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SILVANA RUFFIER SCARINCI
SAFO NOVELLA:
uma poética do abandono nos lamentos de
Barbara Strozzi (Veneza, 1619 – 1677)
Tese apresentada ao Departamento de
Música do Instituto de Artes da Universidade
Estadual de Campinas – UNICAMP, para
obtenção do Título de Doutor em Música.
Área de concentração: Práticas interpreta-
tivas.
Orientadora: Profª Dra. Helena Jank
Apoio: FAPESP
CAMPINAS
2006
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FICHA CATALOGRÁFICA ELABORADA PELA
BIBLIOTECA DO INSTITUTO DE ARTES DA UNICAMP
Bibliotecário: Liliane Forner – CRB-8
ª
/ 6244
Scarinci, Silvana Ruffier.
Sca73s Safo Novella: uma poética do abandono nos lamentos de
Barbara Strozzi (Veneza, 1619-1677) / Silvana Ruffier
Scarinci. – Campinas, SP: [s.n.], 2006.
Orientador: Helena Jank.
Tese(doutorado) - Universidade Estadual de Campinas.
Instituto de Artes.
1. Strozzi, Bárbara. 2. Compositoras-Itália. 3. Música
barroca. I. Jank, Helena. II. Universidade Estadual de
Campinas.Instituto de Artes. III. Título.
Título em inglês: “Safo Novella: a poetics of abandonment in Barbara
Strozzi´s laments (Venice, 1619-1677).”
Palavras-chave em inglês (Keywords): Strozzi, Barbara – Women
Composers / Italy - Baroque music
Titulação: Doutor em Música – Práticas Interpretativas
Banca examinadora:
Prof. Drª Helena Jank
Prof. Drª Laura Tausz Rónai
Prof. Dr. Paulo Mugayar Kuhl
Prof. Drª Mariza Correa
Prof. Drª Adriana Giarola Kayama
Prof. Drª Denise Hortência Lopes Garcia
Prof. Drª Rosângela Pereira de Tugny
Data da defesa: 15 de Agosto de 2006
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AGRADECIMENTOS
A Alcir Pécora, pelas pacientes leituras e sugestões; a Andrea e Susana
Lombardi, pelo constante apoio e estímulo nos momentos mais difíceis;
a Bruce Dickey e Candace Smith pela calorosa acolhida em sua casa em
Bolonha; a Claudia Habermann, cuja bela voz contribuiu para a
compreensão da música de Strozzi; a Cristine Guse, pelas suas
misteriosas revelações; a David Lasocki, por colocar a minha disposição
valiosos documentos de sua biblioteca na Universidade de Indiana; a
Denise Garcia e Rafael Vasconcellos, pelo apoio afetivo em todos os
momentos deste trabalho; a Elimar Machado por possibilitar-me que
colocasse as mãos na fascinante obra de Francesca Caccini; a FAPESP
por viabilizar esta pesquisa; a Eugênia Esmeraldo pela sempre cálida
acolhida; a Helena Jank, pela paciência com que seguiu passo a passo
este trabalho e pela amizade inabalável; a Juares Costa, por
acompanhar a elaboração de tudo o que circundou esta tese; a Juliana
Parra que a meu lado, em tantos momentos importantes, contribuiu
com inspiradoras versões desta música; aos colegas Kátia Justi, Lúcia
Carpena, Edmundo Hora, Mônica Lucas, Marcos Holler, Alberto Pacheco,
Marcello Stasi e Cassiano Barros, por ouvirem atentos os tantos
percursos desta pesquisa; a Letícia Bertelli, pela amizade dedicada e o
amor que compartilhamos por Barbara Strozzi; a Ligiana Costa, pelo
entusiasmo e companheirismo em terras italianas; a Lucia Wataghin,
pela profunda, mais que fraterna amizade, cuja ajuda possibilitou a
inclusão do precioso material primário presente na tese: suas revisões
têm um preço inestimável; a Mãe Dango, pelos cuidados em outros
planos que não os acadêmicos; a Maria Izzo, Moira Smiley e todo o
grupo Anima Fortis, pela descoberta coletiva da música de Strozzi; a
vii
Marília Vargas, pela brilhante interpretação da música do período de
Strozzi; a Mariza Correa, pela ajuda sempre estável, estimulante, e
generosidade com meu trabalho; a Massimo Ossi, pelo apoio intelectual
efetivo desde os meus primeiros passos desta jornada; a meus alunos
da Escola Municipal de São Paulo, que muito me têm ensinado; a minha
mãe, pela confiança primordial, básica, fundadora; a Mônika Grond pelo
permanente afeto; a Paulo di Paula, Luiz Henrique Fiaminghi, Lara
Ziggiatti e Alexandre d’Antônio por enriquecerem com suas cordas e
arcos a música de Barbara Strozzi; a Paulo Kühl, pelas valiosas
sugestões e por compartilhar generosamente sua importante biblioteca;
a Peter e Obie Szidon pela confiança e carinho; a Priscilla Borges, por
emprestar sua bela voz e extraordinário talento nas muitas leituras da
música de Strozzi; a Rita Rios, pelas leituras estimulantes; a Salette
Aquino pela acolhida inicial e pelo presente inestimável; a Silvia Stasi,
pela recepção carinhosa e pelos deliciosos lanches que preparava para
os longos dias de pesquisa nas bibliotecas de Bolonha; a Sophie, Joanna
e David North, pelos dias magníficos que me proporcionaram em
Veneza; a Stefano La Via, pela dedicada orientação durante minha
estada em Cremona e Roma; a Susan McClary, por incentivar-me a
perseguir academicamente meu amor pela música de Strozzi; a
UNICAMP por hospedar-me nesta jornada. À grande família por
enriquecerem minha vida com novos afetos: Bio, Tati, Bri, Dora, Fred,
Caio e Camila. E por fim, às minhas filhas, Lívia e Sofia, parceiras de
tantas aventuras e desventuras destes anos todos e ao Ricardo, o
companheiro amoroso e dedicado que possibilitou a finalização desta
difícil tarefa.
viii
[- vem, lira divina, e me responde;
encontra, tu mesma, tua própria voz]
[ ]
Safo de Lesbos; fragmento 93
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RESUMO
Este projeto aborda de forma crítica e interdisciplinar os lamentos
da compositora do seicento italiano, Barbara Strozzi. Para realizá-lo,
diferentes abordagens tornaram-se necessárias: primeiramente fiz uma
análise de seus lamentos mais representativos. Em segundo lugar, o
confronto destas obras com obras similares de diferentes autores
possibilitou a compreensão dos ideais estéticos e expressivos do
período; e por último, estabeleci as conexões entre estas obras e o
cenário cultural e ideológico que as circunda. As vozes de muitas
mulheres, poetas e musicistas, criam um denso diálogo com a voz de
nossa Venere canora. De Safo a Gaspara Stampa, das heroínas de
Ovídio a Barbara Strozzi, todas elas expressam as dores do abandono
com as cores violentas do desejo erótico. Tento explicar como a obra de
Strozzi encaixa-se nesta tradição e como ela constrói a figura do ser
abandonado dentro de um novo contexto, permeado pela força
propulsora de Giambattista Marino. Como anfitriã da Accademia degli
Unisoni, Barbara Strozzi cria uma música que dialoga com os
intelectuais e poetas que freqüentam sua academia, usando uma
linguagem que jocosamente provoca, seduz e corajosamente reafirma
seu lugar como cortesã.
Palavras-chave: Strozzi, Barbara; Cantata; Lamento; Música Barroca;
Compositoras.
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xii
ABSTRACT
This project adresses in a critical and interdisciplinary way the
Laments of the seicento woman composer Barbara Strozzi. This task is
approached in three complementary steps: firstly an analysis of her
most representative laments; secondly, confronting these works with
similar ones from different authors, which enables us to understand the
aesthetic and expressive ideals of the period; and thirdly the
connections between these works and the cultural and ideological
scenery that surrounds them. The voices from many women poets and
musicians create a dense dialogue with the Venere Canora’s own singing
voice. From Sappho to Gaspara Stampa, from Ovid’s heroines to
Barbara Strozzi, they all express the pains of abandonment with the
violent shades of erotic longing. I try to explain how Strozzi’s work fits
into this tradition and how she constructs the figure of the abandoned
being within a new poetic and cultural environment, permeated by the
revigorating impulse of Giambattista Marino. Being the hostess of the
Venetian Accademia degli Unisoni, Barbara Strozzi creates a music that
dialogues with her male visitors in a language that wittily provokes,
allures and bravely restates her position as a courtesan.
Key-words: Strozzi, Barbara; Cantata; Lament; Baroque Music; Women
- composers.
xiii
xiv
xv
Safo novella:
uma poética do abandono nos lamentos de Barbara Strozzi
(Veneza, 1619 – 1677)
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO..................................................................................................... 1
CAPÍTULO 1........................................................................................................ 7
METODOLOGIAS....................................................................................................................................... 7
1.1 Caminhos Metodológicos........................................................................................................ 7
1.2 A voz feminina e a questão de gênero............................................................................. 9
1.3 Gênero e gênero ..................................................................................................................... 11
CAPÍTULO 2...................................................................................................... 17
A GÊNESE DO LAMENTO..................................................................................................................... 17
2.1 Lamento em ópera................................................................................................................. 19
2.2 Lamento de câmara............................................................................................................... 20
2.3 Arianna e a Ninfa – modelos seminais ........................................................................... 21
2.4 Recitativo e Ária...................................................................................................................... 29
2.5 Lamentos e a poética do abandono. ............................................................................... 30
CAPÍTULO 3...................................................................................................... 43
A CANTATA EM BARBARA STROZZI: UMA ÓPERA EM MINIATURA ........................... 43
CAPÍTULO 4...................................................................................................... 67
UMA OUTRA ARIANNA........................................................................................................................ 67
CAPÍTULO 5...................................................................................................... 81
OS LAMENTOS DE BARBARA STROZZI (ANÁLISES) .......................................................... 81
5.1 Appresso ai molli argenti ..................................................................................................... 81
5.2 Lagrime mie............................................................................................................................ 108
5.3 Hor che Apollo........................................................................................................................ 125
CAPÍTULO 6.................................................................................................... 157
BARBARA STROZZI E AS MULHERES DE VENEZA.............................................................. 157
xvi
SAFO NOVELLA: A TRADIÇÃO DO ABANDONO.................................................................... 181
7.1 Autoras e o topos do abandono...................................................................................... 187
7.2 Francesca Caccini e o tratamento do Lamento......................................................... 192
7.3 Safo em contexto marinista.............................................................................................. 202
CONCLUSÃO ................................................................................................... 213
BARBARA STROZZI E A ACCADEMIA DEGLI INCOGNITI: TEXTOS TRADUZIDOS
E ORIGINAIS.......................................................................................................................................... 235
A CONTENDA DO CANTO E DAS LÁGRIMAS............................................................................ 237
TEXTOS ORIGINAIS EM ITALIANO............................................................................................... 249
TEXTO DE ARCANGELA TARABOTTI............................................................................................. 268
MÚSICAS................................................................................................................................................... 275
Apresso ai Molli Argenti .................................................................................................................... 277
Hor Che Apollo ..................................................................................................................................... 289
Lagrime mie .......................................................................................................................................... 309
Lamento d’Arianna del Cavalier Marino...................................................................................... 325
I sospiri d’Ergasto............................................................................................................................... 341
Lamento de Alcina .............................................................................................................................. 353
1
INTRODUÇÃO
Há cerca de quatro anos, quando acabara de voltar de uma longa
temporada nos Estados Unidos, contava a um amigo de meu entusiasmo
sobre a descoberta recente da música de uma mulher formidável do
século XVII, Barbara Strozzi. Alinhavava, naquela conversa, as minhas
primeiras idéias sobre esta pesquisa - dizia-lhe que pouco me
interessava escrever uma tese puramente científica, que tratasse com
frieza e objetividade clínica a obra desta mulher. Falava de meu desejo
profundo de trazer Barbara Strozzi para perto de nós. Queria ser capaz,
ao final de minha pesquisa, de realmente compreender não somente a
música de Strozzi, mas também a mulher que viveu há alguns séculos o
drama de alçar-se como cantora e compositora num universo muito
pouco acolhedor para uma voz feminina tão assertiva. Queria
compreender como ela realizara tanto em situação tão inóspita; uma
mulher que não se enquadrava em nenhum dos papéis convencionais
destinados a uma mulher de sua época: nem virgem, nem esposa, nem
viúva. Seu nome ou lugar na sociedade não lhe era dado, como era o
padrão da época, por homem algum, senão o próprio pai – e ainda
assim, tornando-se mãe de quatro filhos, foi autora de uma obra
considerável: oito volumes de Cantatas publicados durante sua vida.
Fui construindo este trabalho a partir do prazer de tocar a sua
música. Em 2000, bem antes de pensar neste doutorado, comecei a
tomar contato com a música de Strozzi através de um grupo que criei
em Bloomington, (Indiana), Anima Fortis. O grupo, composto por sete
mulheres cantoras e intrumentistas, trabalhou intensamente na
reconstrução do universo que cercava Barbara Strozzi e produziu
coletivamente um espetáculo que reunia a música da compositora,
textos de autoras e poetas do período e pinturas de artistas mulheres,
2
principalmente Artemísia Gentileschi. Daquele momento em diante,
percebi que o assunto me interessava mais profundamente do que
apenas tocar aquela música extraordinária – que o fato de ter sido
composta por uma mulher provocava-me questões que iam bem além
da partitura e de suas particularidades técnicas. De alguma forma,
passara a me relacionar com Barbara Strozzi como uma mulher de
carne e osso, e tinha urgência em decifrar o que se escondia por detrás
de sua música. A música e a mulher tornaram-se para mim inseparáveis
– a compreensão de uma levava-me à compreensão da outra e vice-
versa. Afinal creio que ambas tomaram corpo neste trabalho:
compreendo melhor o significado de sua música e sua música ganha
significado por entender melhor que mulher foi esta.
Neste trabalho, pretendo compreender os significados da obra de
Barbara Strozzi a partir de seus lamentos. Escolhi os lamentos por
perceber que a obra de um artista não se restringe a sua obra em si,
isolada e arrancada de um contexto maior. Lamentos por si só vem
carregados de conotações intrínsecas, que os coloca imediatamente em
diálogo com uma tradição musical e literária ao mesmo tempo muito
antiga e particularmente vigorosa neste período – o que possibilitou a
percepção de conexões imediatas com as convenções dos lamentos e de
decifrar os novos significados criados por Barbara Strozzi.
Para esta busca de significados, procurei seguir os passos de
importantes musicólogos, que bem antes de mim, compreenderam que
a musicologia deveria abrir-se para um olhar crítico e interdisciplinar.
Joseph Kerman, pai desta musicologia conhecida também como
hermenêutica, possibilitou a outras gerações de relacionarem-se com
sua pesquisa de uma forma mais pessoal, na qual o sujeito permite-se
expor seu próprio desejo em relação a seu objeto. Deste modo,
inspirada por muitos autores, percebi que não poderia produzir um
trabalho sem criar uma relação profundamente viva e afetiva com esta
música e com a mulher que se escondia por detrás de sua obra.
3
Procuro aproximar-me da obra de Strozzi a partir de vários
pontos: uma abordagem mais estrutural e analítica de obras
representativas; a descrição de obras de outros autores que nos fazem
compreender a tradição na qual elas se inserem; um levantamento dos
ideais estéticos e expressivos do período; e a relação destas obras com
um cenário cultural e ideológico mais amplo que circunda esta produção.
Após definir os caminhos metodológicos que conduzem meu
trabalho, faço uma descrição dos lamentos e sua gênese musical e
literária. Monteverdi torna-se um personagem freqüente deste trabalho,
gerador que foi das mais fortes convenções musicais do período.
Autores das gerações que se seguiram a ele não puderam produzir sua
música sem que, de alguma forma, dialogassem com esta imponente
figura do passado imediato. Os lamentos da ninfa e de Arianna de
Monteverdi serão obras matrizes, cujas convenções marcarão qualquer
obra deste tipo que surgir posteriormente.
A Cantata foi um dos gêneros mais usados pelos compositores do
século XVII quando estes não podiam, por diversas razões, dedicar-se à
produção da mais sedutora forma de composição da época, a ópera. É
surpreendente, no entanto, que tão pouco se tenha escrito sobre um
gênero tão prolificamente explorado, e, no entanto considerado
“menor”. Strozzi foi postumamente lembrada como a criadora da
Cantata, e no capítulo 3 examino as razões pelas quais as Cantatas
possuem um enfoque tão distinto de assuntos tratados anteriormente
com tanta gravidade, como por exemplo, o amor. Contemplo também as
novas convenções que circundam a produção das Cantatas e observo
em que contexto social e cultural produziu-se e realizou-se a recepção
deste gênero tão particular.
Para compreender melhor as mudanças estéticas e dramáticas que
ocorreram no período em que viveu Barbara Strozzi, comparo duas
Ariannas distintas: a primeira produzida pela bem-aventurada conjunção
Rinuccini - Monteverdi e a segunda vinda à luz pelas mãos de
4
Giambattista Marino, o poeta da meraviglia, dos efeitos argutos e
inesperados. No choque de construção das duas personagens
homônimas, percebemos as forças ideológicas e culturais que estavam
em jogo no período e como a obra de Strozzi é um produto direto desta
nova estética.
Abordar aspectos técnicos da composição de Strozzi foi um árduo
percurso. Um gênero tão pouco estudado trouxe-me as dificuldades
inerentes ao explorador de territórios desconhecidos. Tateei por muito
tempo à busca de luzes que mostrassem o caminho: as respostas
surgiram após entrar em contato com a poesia italiana seiscentista e
especialmente a de Marino. A compreensão de suas técnicas poéticas
trouxe-me dados que me habilitaram a descobrir o funcionamento da
música de Barbara Strozzi. No capítulo 5 analiso detalhadamente três
dos mais importantes lamentos da virtuosissima cantatrice, desvelando
seus processos criativos intrinsecamente ligados às técnicas marinistas.
Quem eram as mulheres do século XVII? O capítulo 6 desvenda o
universo feminino na Veneza seiscentista um ambiente no qual se
sobrepunham leis de comportamento paradoxais e muitas vezes
violentas. Mulheres artistas surgiram no mesmo período em que nascia
a ópera e o interesse pela personagem feminina. A voz feminina
ganhava os palcos e com ela outras vozes manifestavam-se procurando
entender se as mulheres faziam ou não parte da espécie humana.
Ardentes foram os debates e poucas puderam elevar-se acima de um
mundo que permanecia às margens - nele estiveram circunscritas tantas
autoras, entre elas a poeta e cortesã Veronica Franco e a própria
Barbara Strozzi. O longo discurso que apresento traduzido, La contesa
del canto e delle Lagrime, proferido por Strozzi em uma das reuniões na
Accademia degli Unisoni – a academia criada pelo pai da compositora
para que ela mostrasse seus atributos artísticos e cortesãos – é um
documento vivo do ambiente intelectual e sofisticado no qual ela vivia.
5
A tradição literária ligada à figura da mulher abandonada que se
lamenta, remonta a uma tradição poética que nasce na Antigüidade com
Safo, Ovídio, Catulo e Virgílio. Examino o fio condutor que une estas
vozes femininas desde a “décima musa”, como se referia Platão a Safo,
passando pelos eloqüentes discursos do abandono das heroínas de
Ovídio. A reapropriação destas vozes no início do período moderno por
Gaspara Stampa vai dar continuidade às queixas femininas de
abandono; mais tarde serão relidas pela compositora Francesca Caccini
ao tratar do mesmo tema através de sua fascinante personagem Alcina.
Na ópera de Caccini, a personagem é elevada do vulgar papel de
perversa feiticeira para o de uma mulher cheia de humanidade e
profundidade psicológica. Busco explicar como a obra de Strozzi se
enquadra dentro desta tradição, e como ela constrói a figura do ser
abandonado dentro de um novo contexto cultural e poético, permeado
pela força propulsora de Giambattista Marino.
Esta é uma das possíveis histórias sobre a música e a personagem
Barbara Strozzi que construí. Não tento aqui traçar conclusões
positivistas e definitivas sobre meu objeto de pesquisa. Utilizei-me de
todas as ferramentas que se demonstraram úteis para mim. Desde
aspectos técnicos, estruturais e objetivos, passando por uma ampla
gama de informações que adquiri neste percurso (estudos italianísticos,
leituras e cursos na área de feminismo, pesquisa de material primário
na Itália, incluindo uma tarde contemplativa ao lado da casa de Barbara
Strozzi, à beira de um canal em Veneza). Não posso deixar de incluir,
num nível que considero fundamental em minha formação pessoal e não
especificamente acadêmica, um conhecimento adquirido não nos livros
ou em sala de aula, mas nos consultórios psicanalíticos. Aí desenvolvi
uma capacidade de espiar por detrás das aparências, de revelar
significados ocultos ou obscurecidos, de modo que pude acessar melhor
os poucos dados que chegaram até nós sobre nossa Venere Canora.
Juntando estas peças soltas, muitas vezes desconexas, contrapondo-as
6
a dados conhecidos de outros personagens da época, tornou-se aos
poucos possível a montagem deste quebra-cabeça. Barbara Strozzi
parece, então, elevar-se a minha frente não mais com o véu que a
encobria e mantinha ignota (desconhecida), mas como uma mulher a
quem ouso hoje sentir-me próxima. O que busquei foi encontrar
significado na vida e obra de Barbara Strozzi, e espero que este trabalho
comunique ao leitor o mesmo entusiasmo que tive no decorrer desta
jornada.
7
CAPÍTULO 1
METODOLOGIAS
1.1 Caminhos Metodológicos
Ellen Rosand, ao trazer à luz a existência de uma mulher
compositora do século XVII, abriu caminho para novas investigações a
respeito da sofisticada produção musical de Barbara Strozzi e da teia
sócio-cultural que a envolvia e com a qual se encontrava em estreito
diálogo. Contemplar a música de uma mulher do passado requer duas
abordagens distintas e complementares: um primeiro olhar focado na
música per se, em seus aspectos técnicos, sua estrutura, sua linguagem
harmônica e melódica, sua íntima vinculação com o texto. Do foco fino,
o olhar se amplia e tenta compreender como os fios desse tecido se
entrelaçam com o universo que o cerca – o diálogo é denso, as vozes
muitas: compositores, poetas, intelectuais, a obra poética de seu pai,
vinculada à melhor produção musical do período, mulheres que
irrompem do silêncio e sugerem novas construções do feminino. As
tentativas de realizar uma musicologia mais abrangente, que olha além,
ou mais atrás do objeto musical em si, têm sido elaboradas por diversos
autores, iniciando-se com Joseph Kerman, em seu livro Contemplating
Music – Challenges to Musicology. Neste livro, Kerman desafia uma
musicologia baseada num positivismo científico e propõe uma
musicologia com orientação crítica, que num primeiro momento definia
como “formas de olhar para a arte que tentam levar em conta os
significados que esta carrega, o prazer que ela provoca, e os valores que
assume para nós, hoje. Uma musicologia crítica lida com peças musicais
8
e com pessoas ouvindo-as, com fato e sensação, com a vida do passado
no presente... derivando-se em diversos ramos da musicologia
contemporânea”. Karen Fournier, em seu artigo Toward an
Epistemological Model for Music Theory (Fournier, 2001) descreve as
várias correntes epistemológicas da musicologia atual. A musicologia
parece ainda se debater entre duas linhas antagônicas de abordagem,
dividindo o campo entre os pesquisadores definidos como “positivistas”,
ou às vezes, “estruturalistas” contra um segundo grupo que alega que
este tipo de pesquisa não oferece uma explicação adequada da
experiência estética da música. Esta segunda abordagem, batizada por
Kerman como uma “crítica musical”, passou a ser conhecida também
como ‘hermenêutica’. Os desafios iniciados por Kerman, provocaram
uma produção mais ampla, que possibilitou a pesquisadores
estabelecerem conexões da música com outros campos de
conhecimento, e também iniciou “um deslocamento na ênfase da
pesquisa, permitindo a estudiosos explorarem sua relação pessoal com
objetos musicais, ... e as conexões percebidas entre as obras e o
contexto cultural que as sustenta”. Gary Tomlinson sugere que a
oposição entre uma musicologia estruturalista e hermenêutica reside na
visão de orientação analítica de uma obra contraposta a um olhar mais
além da partitura, no qual se devem considerar as múltiplas forças que
interagem na criação musical (Tomlinson, 1993).
Tomlinson abre caminhos metodológicos com os quais esta
pesquisa possui enormes afinidades. Ao focar no objetivo primordial
deste trabalho, isto é, uma procura de significado na obra, e em
especial nos Lamentos de Barbara Strozzi, trato de buscar descrições
tão densas quanto possíveis de suas conexões com o universo que a
cerca. Tomando emprestada a expressão citada por Tomlinson, abordo a
obra da virtuosissima cantatrice como “um texto em seu contexto”
1
.
1
Tomlinson utiliza a expressão a partir de A. L. Becker (Becker, 1995).
9
Sigo alguns dos passos do autor ao examinar os lamentos de Strozzi
contextualizando-os em tradições de obras similares, formulando
hipóteses sobre intenções da autora, que se manifestam em sua música,
e buscando as referências extra-textuais de sua produção, isto é,
decifrando relações que se estabelecem com as ideologias culturais que
circundam sua obra. Nesta tentativa de uma crítica cultural da obra de
Strozzi, é de importância fundamental conhecer os meandros de um dos
movimentos literários que marcaram profundamente os caminhos
estéticos que a arte tomou no século XVII: o marinismo. Resultando da
força disruptiva da poesia de Giambattista Marino, não houve espaço
cultural e social que sobrevivesse intacto à influência deste autor. Dizia-
se na época que se marineggiava em todas as esferas do cotidiano
italiano seiscentista, e a música de Strozzi, intimamente vinculada ao
ambiente intelectual da vanguarda veneziana não poderia ficar isolada
de tão forte corrente. A música vocal naturalmente envolve um texto –
e na forma que se entrelaçam texto musical e texto poético,
multiplicam-se os significados. A poesia que Barbara Strozzi usa em
suas Cantatas é toda de cunho marinista: a descoberta de que sua
técnica composicional envolve também procedimentos técnicos da
poesia marinista elucida como uma leitura interdisciplinar de uma obra
pode trazer uma compreensão mais profunda de seus significados.
1.2 A voz feminina e a questão de gênero
A primeira metade do século XVII italiano é marcado por uma
produção musical que rompe inexoravelmente com o velho e inaugura a
música da modernidade. Experimentação e ousadia são aspectos daquilo
que os contemporâneos de Barbara Strozzi estavam buscando. A crise
com as leis do contraponto renascentista se instaura e o rompimento
com antigas práticas prolifera entre os compositores de vanguarda. O
stile antico segue seu caminho independente, enquanto no universo da
10
música secular, a polifonia sai de cena, entra o solista, entra a solista. O
gosto pela voz individual, pela cor particular da voz desta ou daquele
cantor inspira a criação de determinadas obras e até mesmo de novos
gêneros. Pensemos, por exemplo, na implicação entre o surgimento de
virtuoses mulheres (um dos casos mais expressivos se dá com o
concerto delle donne na corte de Ferrarra por volta de 1580) e o
impulso dado à criação de um novo estilo. Podemos também lembrar de
Caterina Martinelli, La Romanina, recrutada aos treze anos em Roma e
mandada para a casa de Monteverdi em 1603, para completar sua
educação musical. Monteverdi escreve para ela o papel-título de
Arianna, mas a jovem cantora morre de varíola cinco anos mais tarde,
às vésperas da estréia da ópera.
Wendy Heller também aponta para a importância na escolha de
determinado/as intérpretes para papéis ou gêneros específicos (Heller,
2004). A famosa cantora romana Anna Renzi foi muito admirada pela
platéia de ópera veneziana, e principalmente pelos membros da
Accademia degli Incogniti
2
, que a ela dedicaram um volume (Le glorie
della Signora Anna Renzi Romana) (Heller, p. 174) com diversos escritos
em sua homenagem. Nele, o compositor veneziano Benedetto Ferrari
inadvertidamente confunde personagem e intérprete (Ottavia/Anna
Renzi) no famoso Lamento (L’incoronazione di Poppea):
Non è Ottavia, che lagrime diffonde Não é Otávia, que lágrimas derrama
Esule, esposte a le spumose arene; Exilada, exposta à espumosa areia;
È un mostro, che note alte, e profonde, É um monstro
3
, que com notas altas e
profundas,
Accrescer va lo stuolo de le Sirene. Vai juntar-se à frota de Sereias.
(Heller, p. 174)
Barbara Strozzi, virtuosissima cantatrice, compõe neste novo
cenário: sua música é pensada para sua própria voz, para sua própria
2
Esta academia foi fundada em 1630 pelo escritor Giovanni Francesco Loredano.
Dentre seus membros, incluía-se os maiores intelectuais do patriciado veneziano.
11
performance, que se dá numa academia - Academia degli Unisoni. Esta,
como tantas outras academias que floresciam na Itália, era um
ambiente de produção e discussão intelectual, normalmente reservado
aos homens, mas neste caso, para a música de uma mulher em
particular.
O entusiasmo pelas primeiras produções operísticas abriu um
grande espaço para a inclusão da mulher em um circuito até então
inusitado – o papel feminino em ópera permitiu que a mulher subisse ao
palco – uma ascensão observada com um misto de admiração e
desconfiança. Não só as mulheres passaram a cantar profissionalmente,
como as personagens femininas em ópera eram aquelas incumbidas de
expressar afetos de grande intensidade. O surgimento da ópera,
acompanhado do surgimento de papéis masculinos e femininos, instigou
a investigação sobre a questão de gênero em música.
1.3 Gênero e gênero
Neste trabalho usarei o termo “gênero” com dois sentidos
diversos. Na acepção puramente musical, deriva-se da necessidade de
classificar a obra de arte, que nasce com Aristóteles e permeia toda a
poética ocidental. As recorrências musicais são organizadas de modo a
tornarem-se gêneros estabelecidos no passado que possibilitam a
reprodução dos mesmos no futuro. Dentro da tradição aristotélica, a
tipologia do gênero musical concebe a obra de arte como fechada e
homogênea. Outra função de gênero musical está ligada mais à
natureza da experiência estética, com uma preocupação em relação à
comunicação e recepção da obra de arte. Como notou Heather Dubrow
(Kallberg, 2001), o gênero se comporta mais como um contrato entre
autor e leitor, que pode ser propositadamente quebrado. Desta forma,
gênero pode ser visto de uma forma um pouco mais fluida e flexível,
3
A palavra mostro em italiano antigo possue também um significado positivo, um ser
12
relacionando-se mais com sua função, com a “retórica ou ‘discurso’ de
gênero dentro da comunicação e recepção artística”. Neste trabalho,
será importante notar o diálogo entre os traços reconhecíveis do gênero
com seus desvios – num jogo que criará novos sentidos (muitas vezes
irônicos) - como podemos ver a seguir na análise do Lamento de Egeo
na ópera Giasone de Francesco Cavalli (página 42). Este conceito de
gênero está vinculado à noção de convenção, pois os gêneros passam a
ser reconhecíveis graças às convenções que os definem como tais. Por
convenção entendemos procedimentos que, devido a seu uso repetido,
cristalizaram-se em determinados modelos ou fórmulas que não
demandam maiores explicações para serem compreendidos.
A segunda definição de gênero está vinculada às acepções que se
derivam da famosa frase de Simone de Beauvoir quando afirmou, em
1949, que “não se nasce mulher” (Beauvoir, 1961), possibilitando a
construção da mulher como um “sujeito-em-processo”, que desestabiliza
o conceito da naturalização da diferença sexual. Uma vez que com o
surgimento da ópera presenciamos determinadas definições de “mulher”
ou “homem”, investigações baseadas nas teorias atuais sobre gênero
tornaram-se necessárias. Podemos então tentar compreender, a partir
da idéia de que homens e mulheres são socialmente constituídos, de
que modo a música propaga ideais a respeito da definição de gênero. Os
textos dos membros da Academia degli Incogniti testemunharão uma
verdadeira luta na tentativa de definição do que é uma mulher, definição
que entrava em crise diante dos novos espaços que se abriam para elas.
Os escritos proto-feministas
4
da época nos obrigam a ver essas
mulheres esforçando-se para serem vistas como sujeitos sociais na
história, e as atuais teorias feministas de gênero tornam-se um
instrumento útil para compreendê-las como mulheres “construídas e
auto-construtoras” (De Beauvoir, 1961
).
de qualidades extraordinárias.
13
As primeiras musicólogas a embrenharem-se no assunto foram
Susan McClary e Suzanne Cusick – a primeira, num capítulo de seu livro
Feminine Endings, inaugurando uma musicologia de cunho
explicitamente feminista, aborda as concepções de masculinidade e
feminilidade em Orfeu de Monteverdi. A segunda focalizou a Arianna de
Monteverdi, estimulando uma ampla discussão ao redor do tema dos
lamentos e da construção de gênero. Desde estas primeiras incursões
no campo do feminismo em musicologia, várias outras autoras seguiram
os passos destas pioneiras. Evidenciando a relevância de uma
abordagem feminista dentro da musicologia atual, pode-se encontrar na
mais recente edição do New Grove Dictionary of Music o verbete
Feminism. Segundo o verbete, os primeiros estudos feministas em
musicologia surgiram por volta de 1970, com o objetivo de tornar a
mulher presente dentro dos estudos da musicologia tradicional. Assim
nasceram os primeiros esforços no sentido de encontrar nomes de
mulheres esquecidas na História da Música e tornar sua obra acessível.
Numa fase posterior, cerca de dez anos mais tarde, quando especialistas
de outras áreas passaram a pensar de uma maneira interdisciplinar, a
musicologia feminista passou a dialogar com teorias feministas de
outros campos, adotando formas de pensamento mais amplas e mais
críticas. O feminismo na musicologia passou a ter um intenso interesse
em cultura e a analisar música como um produto que reproduz ou
contesta ideologias hegemônicas.
O ensaio seminal de McClary sobre o tratamento de gênero em
Orfeu gerou muitas discussões sobre o assunto e influenciou, por outro
lado, uma produção crítica na área entre novas gerações de
musicólogos. Susan McClary argumenta que
in staged “representations” of the social world, the identification
of characters as either male or female is fundamental. The
seventeenth-century composer writing dramatic music
4
Utilizo este termo seguindo o exemplo de várias autoras, entre as quais Wendy Heller
14
immediately confronted the problem of gender construction –
that is, how to depict men and women in the medium of music.
The concept of “construction” is important here, for while the
sex of an individual is a biological given, gender and sexuality
are socially organized: their forms (ranges of proper behaviors,
appearances, duties) differ significantly in accordance with time,
place and class. (nas representações cênicas do mundo social, a
identificação dos personagens como femininos ou masculinos é
fundamental. O compositor do Século XVII, ao escrever música
dramática, era confrontado imediatamente com o problema de
construção de gênero–isto é, como descrever homens ou
mulheres
através da música. O conceito de “construção” é
importante aqui, pois enquanto o sexo de um indivíduo é dado
biologicamente, gênero e sexualidade são socialmente
organizados: suas formas (o âmbito de comportamento
apropriado, aparência, deveres) diferem significativamente
conforme o tempo, lugar e classe). (
McClary, 1991, p 36).
Jeffrey Kurtzmann responde às colocações de McClary
argumentando que os personagens de Orfeu e Euridice reagem às
circunstâncias dramáticas do libreto de forma universalmente humana,
ultrapassando a questão de gênero (Kurtzmann, 2001). Ora, este
argumento parece fundado na idéia de que o humano seria universal, e
que reações não são resultado de determinantes culturais e ideológicos.
O decoro das emoções, como veremos adiante no capítulo 2, são
aprendidos ou incorporados através de todos os modelos culturais a que
se é exposto. Kurtzmann não deixa de reconhecer a força e coragem
das colocações de McClary, e a relevância de estudos de gênero em
musicologia. Ele reage negativamente a McClary, quando acredita que
esta “escreve sobre música com o objetivo de provar idéias sobre
política e poder concebidas a priori, produzindo uma crítica sobre a
maneira na qual a música, como um produto cultural, interpreta e
promove estas concepções pré-existentes”. Relacionando o efeito que o
cinema contemporâneo tem no sentido de prover um modelo do
feminino ou masculino para o espectador, McClary sustenta que a
representação do feminino ou masculino em ópera era delineada de
acordo com as atitudes prevalentes nas sociedades nas quais os
compositores viviam, que por sua vez também alimentavam a
15
reprodução destes modelos hegemônicos. O trabalho de McClary,
publicado nos anos 1990, foi de importância fundamental para a
produção posterior de novas e valiosas reflexões e para o surgimento de
outros estudiosos na área. Ao romper com determinadas barreiras
teóricas, alguns detalhes históricos podem ter sido subestimados, o que
de forma alguma desqualifica a importância de suas investidas em
território ainda tão virgem.
O projeto a que me proponho localiza-se no vértice desta
discussão – graças ao trabalho pioneiro de McClary, sinto-me
encorajada a abordar a música de uma mulher compositora em um
contexto de estudos de gênero. Profundamente inspirada por McClary,
ouso também desviar-me de certas posições suas. Como Kurtzmann,
acredito na importância de discutir música em um contexto político e
refletir sobre as razões pelas quais questões políticas (incluindo relações
de poder entre o masculino e o feminino) se refletem em música, sem,
no entanto esquecer da música como objeto principal de reflexão.
Lawrence Lipking em seu livro Abandoned Women and Poetic
Tradition trouxe uma resposta para a questão que me intrigou desde
minha primeira aproximação como intérprete da obra de Strozzi: por
que se afirmaria ela, em sua primeira peça, como Safo novella, ou a
Nova Safo? Novamente aqui recorro à tarefa proposta por Tomlinson de
ligar seu texto a outros textos – examino, a partir de Lipking, a tradição
do abandono feminino na poesia desde Safo até sua recepção na Itália
renascentista. Os lamentos em Barbara Strozzi, surpreendentemente - à
primeira vista - são escritos na primeira voz masculina. Ofereço algumas
respostas a esta questão. Em primeiro lugar, os autores dos poemas dos
lamentos de Strozzi são homens que os dedicam à compositora. Isto
cria um divertido diálogo de coqueteria e sedução, criando um triângulo
entre autora, autor do poema e ouvinte. O resultado condiz com o
ambiente profundamente teatral da época, repleto dos maneirismos de
16
uma sociedade de comportamento altamente codificado. Por outro lado,
podemos traçar uma construção poética do ser abandonado, observando
as relações com outras tradições poéticas e musicais, e como o discurso
do abandono chegou a Strozzi e se modificou. Strozzi trata seus
lamentos dentro de certas convenções dos lamentos femininos, mas
imbuídos das novas cores marinistas, que a tudo transformara
radicalmente desde a geração anterior.
17
CAPÍTULO 2
A GÊNESE DO LAMENTO
A gênese do lamento pode ser traçada em fontes clássicas – no
teatro grego e nas reflexões sobre música de Platão e Plutarco.
5
Na
tragédia grega, monodias completas eram executadas por mulheres,
com o intuito de expressar emoções profundas. Sobretudo em Eurípides,
autor trágico por excelência, são as mulheres que articulam as emoções,
geralmente em forma de canção
6
, jamais se encontrando uma monodia
na voz de um personagem masculino adulto.
As personagens que se lamentam na literatura clássica seriam
usadas com motivos educacionais no início do período moderno.
Cristoforo Landino, um dos primeiros humanistas envolvidos com o
projeto de educação do início do período moderno – studia humanitatis
– em um comentário sobre Virgílio, deixa claro a função moralizante dos
textos clássicos:
Maronis poema omne humanae vitae genus exprimit, ut nullus
hominum ordo, nulla aetas, nullus sexus sit, nulla denique
conditio, quae ab eo sua officia non integre addiscat. (Os
poemas de Virgílio retratam cada tipo de vida humana, de modo
que não há classe, idade, sexo ou finalmente, qualquer
condição que não poderia aprender dele a totalidade de suas
obrigações) (Apud. Grendler, 1989, p 237)
5
Plutarco relaciona os modos gregos aos afetos: o Mixolídio seria um modo emocional,
tendo sido usado pela primeira vez por Safo, e imitado pelos trágicos. O autor, citando
Platão, diz que o modo Lídio, de alturas rebaixadas, era de ordem lamentosa. Plutarco,
Moralia, vol XIV. Trad. Benedict Einarson. Cambridge: Harvard University Press, 1967,
pg 387. Apud. HOLFORD-STREVENS, Leofrank. “Her eyes became two spouts: classical
antecedents of Renaissance Laments.” In: Early Music, agosto 1999.
6
De acordo com Leofrank Holford-Strevens (ver nota anterior), os três modos de
expressão em tragédias gregas – fala, recitativo e canção – são diferenciados entre si
pelo metro, mas a canção (seja individual ou coral) é também caracterizada por um
dialeto artificial diferente do que era usado no resto da peça.
18
Estas leituras moralizantes retratavam Dido, assim como tantas
outras heroínas, como mulheres tentadoras que desviam os heróis de
suas obrigações e seduzem-nos para o mundo da luxúria, do ócio
amoroso. Dido também era usada como exemplo para a educação das
meninas, ensinando-as a cuidar de suas obrigações e a não se deixarem
levar pelos desvarios da paixão, pois acabariam seguindo os passos da
Rainha de Cartago: derelictamque ab amante demum, dolentemque et
affligentem sese, de perditaque omni spe, mortem etiam ultro sibi
consciscentem... (abandonada por seu amante, em luto e aflição, sem já
nenhuma esperança, resolveu acabar com a própria vida) (Idem. P
238). Em classes de retórica do início do período moderno, meninos
deviam compor e recitar suas próprias versões dos lamentos femininos
da Eneida de Virgílio. Para articular tais discursos, usavam figuras de
retórica apropriadas para a classe social, gênero e patética da
personagem (Woods, p 408). Segundo Anne MacNeil, “lamentos
ensinavam aos meninos não somente retórica, mas decorum.
Conhecendo o Lamento profundamente, ... eles aprendiam que os
excessos emocionais “femininos” constituíam impulsos a serem
controlados e harmonizados com a auto-disciplina para que se
tornassem homens adultos.” Deste modo os meninos corporificavam o
conhecimento – compreendendo o outro feminino, imitando-o, o menino
elabora sua própria masculinidade, rejeitando o que deveria pertencer a
outro gênero. Percebe-se na época uma grande circulação das
categorias feminino e masculino: meninos que imitam a retórica
feminina, homens que se lamentam na voz feminina, homens castrados
cantando papéis femininos, mulheres que transgridem o decoro da fala
feminina e representam mulheres com discursos cheios de virilidade, e
finalmente uma compositora que escreve lamentos na voz masculina.
Podemos entrever no período uma grande flexibilidade em relação a
19
gênero, como se a sua divisão biológica binária não fosse ainda tão
rígida como veio a se estabelecer em épocas posteriores.
As fontes literárias dos lamentos musicais do perídod barroco têm
suas origens nas Heroídes de Ovídio. Suas epístolas de personagens
femininos em estado de profunda angústia - Ariadne, Penélope, Dido e
Safo, entre outras, - proliferam em traduções italianas do início do
período moderno e serviram de modelo literário para autores como
Tasso e Ariosto. A primeira metade do século XVII assistiu a uma
profunda valorização do lamento, vindo este a se definir claramente
como um gênero da música vocal de câmara, assim como uma cena
padrão na ópera veneziana.
2.1 Lamento em ópera
Os lamentos nas óperas do início do século XVII eram monólogos
em recitativo, acompanhados pelo baixo contínuo. Com forte caráter
emocional, surgem em momentos chave, normalmente marcando
mudanças dramáticas no curso dos acontecimentos do enredo.
Os lamentos recitativos são escritos em versos endecassilabi (onze
sílabas) e settenari (sete sílabas), com esquemas de rimas em geral
indefinidos. Dessa forma, a música pode imitar a fala, o que não
ocorreria em versos com acentuações rítmicas regulares, como os
senari, por exemplo, que levariam a fórmulas rítmicas regulares de três
tempos, pré-determinando formas mais esquemáticas como as árias.
Estas configuravam um meio pouco apropriado à elocução dos afetos –
a forma mais livre dos endecassilabi e settenari, sem acentuação rígida
das sílabas, mostrava-se como a forma favorita para a expressão da
introspecção e de uma gama mais variada de emoções.
A cena do lamento é quase sempre longa, a personagem
encontra-se sozinha, em geral numa situação de abandono, num
momento de grande intensidade emocional. O lamento marca uma
20
tomada de consciência da personagem, refletindo sobre as razões que a
levaram a chegar a tal situação. A cena cria um momento pivot no
enredo, causando uma mudança na ordem dos acontecimentos.
2.2 Lamento de câmara
Em sua versão camerística, o lamento apresenta-se formalmente
menos claro, como uma subcategoria das Cantatas, por si só um gênero
esquivo a generalizações, devido a sua variedade formal. É possível, no
entanto, traçar duas vertentes claras do desenvolvimento do gênero,
ambas estabelecidas nitidamente na obra de Claudio Monteverdi, que
apesar de não ter sido o criador do gênero, foi responsável pelo
estabelecimento do cânone.
A primeira vertente são os lamentos recitativos e a segunda são
os lamentos sobre um basso ostinato (passacaglia). Ambos estiveram
igualmente presentes na produção operística e camerística.
O locus classicus do lamento de câmera é um baixo de quatro
notas descendentes que se repete indefinidamente numa peça (basso
ostinato), formado por um tetracórdio descendente, em geral menor.
Existem também os bassi ostinati sobre tetracórdios descendentes
maiores para cenas de caráter de outra ordem, como as de alto teor
erótico, como é o caso de Pur ti miro, pur ti godo, no final de
L’incoronazzione di Poppea. O uso do ostinato era freqüente – o
tetracórdio descendente era conhecido como baixo da Passacaglia.
Segundo Massimo Ossi, a primeira ocorrência do baixo do lamento foi
publicado em 1628, em Il Carro di Madama Lucia, um diálogo de “Il
Fasolo”, compositor romano (Ossi, sem data). Outras peças com o
mesmo baixo são Usurpator tiranno, uma cantada a voce sola sopra il
Passacaglie de Giovanni Felice Sances, de 1633 e a seção central do
dueto de Martino Pesenti, Ardo, ma non ardisco il chiuso ardore, de
1638. Sances usa versos settenari e endecassilabi em seu lamento
21
sobre o baixo ostinato. O baixo, que perfaz quatro compassos, dá
também a medida das frases do canto, sempre regulares, de quatro,
oito, doze e excepcionalmente dezesseis compassos. A regularidade da
peça e o uso convencional das dissonâncias não apresentam nenhuma
novidade musical, senão a de estabelecer a relação entre o baixo da
passacaglia e o lamento. Sances encerra a peça com um trecho em
recitativo, retornando nos últimos vinte compassos ao baixo ostinato,
antecipando a prática de combinar lamento-aria com seções de
recitativo, o que vai se estabelecer como uma prática convencional a
partir dos anos quarenta, tanto em ópera quanto nas cantatas.
2.3 Arianna e a Ninfa – modelos seminais
O lamento recitativo mais marcante do século XVII que
estabeleceu uma série de topoi do gênero, foi o Lamento de Arianna,
trecho central da ópera homônima de Claudio Monteverdi de 1608. Esta
não foi a primeira ocorrência de lamento - outros lamentos monódicos
recitativos (in genere rappresentativo) surgiram antes de Arianna. Já
sabemos que o próprio Monteverdi, em 1607, faz Orfeu lamentar-se
pela perda de Euridice, mas o sucesso de Arianna marca a história do
lamento irreversivelmente, devido a seu efeito patético: non fur pur una
dama che non versasse qualche lagrimetta al suo pianto. (não houve
uma dama sequer que não vertesse uma lagrimazinha com seu
lamento).
7
Os recitativos são uma resposta às buscas dos humanistas
para a expressão musical dos afetos. E a expressão dos afetos estava
intimamente vinculada à noção de que a música deveria servir à
palavra, num intercâmbio estreito entre poesia e música. A música
servia à poesia e ambas cumpriam o papel da imitazione, busca que
permeia toda a carreira do compositor. Em 1616, fica clara a intenção
7
Comentário de Federico Follino referindo-se ao trecho do Lamento durante a
performance da ópera, por ocasião das festividades das bodas nupciais de Francesco
Gonzaga e Margherita de Savoy na corte de Mântua.
22
de Monteverdi, ao recusar um texto que lhe havia sido enviado para
musicar, reclamando que não poderia criar nenhum efeito emocional
musicando o vento, que não possui o dom da fala (de’ Paoli, 1973).
O Lamento d’Arianna passa então a ser uma obra de referência
para tudo o que foi produzido depois, tanto no universo musical quanto
literário. O texto de Otavio Rinuccini, por exemplo, serviu de base para
o idílio Arianna de GiamBattista Marino.
8
A ópera de Monteverdi e seu
lamento (o único trecho que sobreviveu até nossos dias) permaneceram
populares até a metade do século XVII: Severo Bonini, em seu Discorsi
e regole sopra la musica (1640) relata que o lamento de Arianna “foi tão
apreciado que não havia lar algum, onde houvesse teorbas ou cravos,
que não possuísse uma cópia do lamento.” (Fabbri, 1985. p. 98).
Observemos alguns versos do Lamento d’Arianna,
9
numa
passagem de grande intensidade emocional, na qual Arianna usa
imprecações contra Teseu, desejando que os ventos o afoguem e as
baleias o destrocem, para imediatamente arrepender-se, culpar-se e
confessar que quem assim falou foi sua língua, mas não seu coração. A
acentuação irregular das sílabas (as sílabas acentuadas estão em
negrito) e a alternância livre de versos de sete e onze sílabas colaboram
para o efeito de um discurso afetivamente conturbado:
O nembi, o turbi, o venti, settenari
Sommergetelo voi dentro a quell’onde!
endecassilabo
Correte, orche e balene,
settenari
E delle membra immonde
settenari
Empiete le voragini profonde!
endecassilabo
Che parlo, ahi! Che vaneggio? settenari
Misera, ohi! Che chieggio?
settenari
O Teseu, o Teseu mio, settenari
Non son, non son quell’io settenari
Che i feri detti sciolse;
settenari
Par l’affanno mio, par il dolore;
endecassilabo
Parla lingua, sì, ma non già il core. endecassilabo
8
Ver a versão musicada por Possenti discutida no capítulo 6.
9
O autor do libreto é Ottavio Rinuccini, colaborador de diversos autores de obras
músico-teatrais do início do século XVII.
Este trecho antecipa o que Monteverdi vai desenvolver
explicitamente com a criação do genere concitato no Combatimento di
Tancredi e Clorinda em 1623. Trata-se de um artifício de imitazione que
o autor cria para descrever estados de ira, e assim o explica no prefácio
do Livro VIII:
Havendo io considerato le nostre passioni, od d’affettioni del
animo, essere tre le principali, cioè Ira, Temperanza, et Humiltà
o supplicatione ... et come l’Arte Musica lo notifica chiaramente
in questi tre termini, di concitato, molle, et temperato, né
havendo in tutte le compositioni de’ passati compositori potuto
ritrovare esempio del concitato genere...(Tendo eu considerado
as nossas paixões, ou os afetos d’alma, como sendo três as
principais, isto é, a ira, a temperança e a humildade ou súplica,
... e como a Arte [da] Música as nomeia claramente nestes três
termos, agitado, calmo e temperado, não havendo encontrado
entre todas as composições de compositores do passado um
exemplo do gênero agitado...) (Monteverdi - Malipiero, 1991)
O ritmo torna-se agitado, ainda não da forma tão esquemática de
1623, mas já é nítido o esboço do que se tornará o stile concitato. Sobre
o primeiro verso, a melodia salta sobre notas da tríade de sol (como
será observado em trechos de concitato em obras futuras, geralmente
sobre tríades de sol e ré maior). O ritmo acelerado em semicolcheias e
notas repetidas antecipa igualmente o que se transformará claramente
na nova técnica, (a qual passará a ser utilizada por diversos
compositores do período barroco, inclusive Barbara Strozzi).
23
24
25
Monteverdi contribuiu igualmente para o gênero do lamento
recitativo de câmara com Misero Alceo (1614), um madrigal no qual a
seção central é um lamento recitativo. Além deste, Monteverdi publicou
duas obras in genere rappresentativo,
10
em seu Concerto: Settimo libro
de madrigali de 1619. Desde Orfeu, Monteverdi já segue as convenções
retóricas da época: para Orfeu, cria uma preghiera (prece) e não um
lamento. Estes são próprios das mulheres, como em Arianna ou em
todas as outras personagens femininas subseqüentes (“una delle
ingrate,”
11
Octavia, Penelope, a ninfa dos Madrigali Guerrieri ed
amorosi). Seguindo o modelo da bem sucedida Arianna, diversos
autores escreverão lamentos recitativos em suas óperas até meados do
século XVII: entre eles, Stefano Landi, Luigi Rossi e Vicenzo Mazzocchi
em Roma e Francesco Cavalli em Veneza.
Durante sua carreira, Monteverdi foi acusado de romper com
diversas convenções musicais, despertando a hostilidade de seus
oponentes. No entanto, como ele mesmo defendeu-se,
12
outros já
haviam experimentado tais novidades. O fato é que Monteverdi explora
com tal artifício estas “novidades”, que sua obra passa a ser o ponto de
referência mais importante dentro do estilo, tornando-o o autor de
maior influência do período. O Lamento della ninfa, sobre um texto de
10
Os termos usados por essa geração são, em diversas instâncias, pouco precisos e se
misturam em suas acepções. Genere rappresentativo, muitas vezes, confunde-se com
o conceito de recitativo. As duas Lettera amorosi e Partenza Amorosa são obras
desvinculadas da ópera. Ver a discussão no Capítulo 3 sobre este assunto.
11
A personagem não identificada por nenhum nome específico do Ballo delle Ingrate
(1608) canta seu lamento em stilo rappresentativo. Monteverdi relata a cena: ...una
delle Ingrate ... proruppe in cosí lagrimosi accenti accompagnati da sospiri e da
singulti, che non fu cuor di donna così fiero in quel teatro che non versasse per gli
occhi qualche lagrima pietosa. (uma das ingratas irrompe com tais harmonias
lacrimosas, acompanhadas de suspiros e de soluços, de modo que não houve coração
feminino altivo suficiente que não vertesse uma lágrima piedosa). É interessante notar
que aqui também Monteverdi segue as convenções da época de construção de gênero,
nas quais só as mulheres, mesmo as que não estão no palco, mas na platéia, podem
exprimir emoções abertamente através das lágrimas.
12
Para detalhes de uma das mais famosas controvérsias da música da era pré-
moderna, ver L’Artusi overo Delle imperfettioni della moderna musica (Veneza, 1600;
facs. Bologna, 1968) e a resposta de Monteverdi no prefácio do Quinto libro dei
Madrigali (1605).
26
Rinuccini, é uma obra de solução engenhosa: extrapolando o texto
originalmente simples de canzonetta estrófica, Monteverdi cria uma obra
de dimensão surpreendentemente trágica. A organização formal e rígida
do baixo repetido – são trinta e quatro repetições - é rompida pela
melodia errática e sinuosa, pelas frases que se resolvem em pontos
distintos da resolução do baixo, pelas dissonâncias que colidem com o
baixo. O coro masculino que intervém (perchè si cantano al tempo della
mano / porque cantam ao tempo da mão), comentando o discurso da
ninfa (qual va cantato al tempo dell’ affetto dell’animo / a qual vai
cantando ao tempo do afeto da alma), estabelece um olhar narrativo
exterior ao discurso desorganizado, ao desvario da ninfa. O ouvinte é
convidado a ficar do lado de fora, do lado da sanidade, observando de
longe o espetáculo da dor e da loucura.
13
Monteverdi consegue mesclar
o efeito do discurso livre do recitativo com a limitação formal da
canzoneta estrófica de Rinuccini. O autor logra representar a angústia
da ninfa através de diversos artifícios: melodias muito curtas, às vezes
somente sobre duas notas, como as primeiras exclamações da ninfa
sobre a palavra amor, repetidas três vezes, numa seqüência
ascendente, interrompida por longas pausas. O desespero da
personagem se dá através da repetição obsessiva, mas truncada pelas
pausas – o baixo repetitivo cria a sensação de opressão, sobre o qual a
ninfa se debate, lutando por escapar ao inevitável, ao destino que se
obstina, inexorável.
13
Este argumento é magnificamente desenvolvido por Susan McClary em Feminin
Endings; pg 82-90.
Mas o inevitável ela combate: três vezes repete non mi tormenti e
na terceira vez, ao exclamar non mi tormenti più, um no é acrescido,
27
com súbito salto de quinta ascendente e acrescido de uma pausa. O
salto é uma surpresa inesperada, pois a melodia havia se resolvido no
, no retorno do início do tetracórdio. Monteverdi representa a angústia
da personagem quase à beira da loucura – perceptível ao ouvinte
através das passagens inesperadas com alterações bruscas de direção
melódica ou pausas imprevistas, como se o pensamento mudasse
subitamente de direção:
28
Apesar da limitação inerente à sua estrutura formal, o lamento
estrófico ganha espaço na ópera após 1640. Francesco Cavalli, o mais
prolixo compositor de óperas do século XVII, explora o baixo do lamento
com grande liberdade, combinando-o com outras fórmulas, modulando
ou transpondo-o, introduzindo grande cromatismo, explorando a tensão
entre a melodia do canto e a rigidez da linha mais grave, evitando, por
exemplo, cadências nas resoluções deste baixo .
2.4 Recitativo e Ária
A partir desse momento, os lamentos passam a combinar seções
contrastantes entre si - principalmente a alternância de ária e recitativo
se faz mais e mais presente. Lamentos sobre temas da história recente
ou contemporânea começam a surgir, como o Lamento della principessa
di Tunisi de Loreto Vettori, o Lamento della Regina di Svezia de Luigi
Rossi ou o Lamento della Regina Maria di Scozia de Giacomo Carissimi.
Podemos localizar os lamentos de Barbara Strozzi neste momento em
29
30
que o gosto pelo longo lamento recitativo da personagem trágica
começa a se dissipar. Na obra geral de Strozzi, lidamos com um
problema de classificação de gênero, já apontado por Ellen Rosand em
seu artigo seminal de 1978 sobre a autora. Os títulos gerais de suas
publicações apresentam madrigais, ariettas, árias e cantatas, os quais
fazem parte de cada um dos volume. Folheando seus sete livros
publicados (um deles encontra-se aparentemente perdido ou jamais foi
publicado), observamos a presença de lamentos e uma serenata. Os
títulos não são esclarecedores quanto ao gênero de cada peça, podendo-
se notar que a distinção entre aria e arietta é muito pouco consistente.
De acordo com a taxonomia de Strozzi, cantatas e arias parecem
possuir uma distinção mais clara entre si: as primeiras são peças
longas e complexas, com várias seções contrastantes, dentro das quais
encontram-se os lamentos; as segundas, constituem-se de obras mais
breves, muitas vezes estróficas ou circunscritas por um refrão no
começo e no final da peça. A maioria das peças, no entanto, não possui
nenhuma classificação indicada pela autora. Os lamentos,
especificamente indicados por ela, são apenas três: Il Lamento sul
rodano (livro 2 e 3), Appresso a i molli argenti (livro 8), Lagrime mie
(idem). No entanto, composições com características formais idênticas
ou similares às que a própria autora intitula Lamentos, sem nenhum
título específico, podem ser tratadas como lamentos. Estes são:
L’Eraclito amoroso, L’amante segreto (livro 2); Cor donato, cor rubato,
contrasto trà Filindo Dori e Tirsi (livro 3), Per San Pietro (livro 5); Hor
che Apollo (livro 8).
2.5 Lamentos e a poética do abandono.
Como vimos anteriormente, Susan McClary afirmou que existem
representações bem elaboradas do masculino e feminino em música
desde Monteverdi. Esta idéia é derivada de uma famosa frase do
31
compositor, em resposta ao projeto do Duque Ferdinando para uma
favola marittima, Le nozze di Tetide, planejado para a celebração do
casamento do duque com Catarina de’ Medici:
14
[...] Come caro Signore potrò io imittare il parlar de’ venti se
non parlano! Et come potrò io con il mezzo loro movere li
affetti! Mosse l’Arianna per esser donna, et mosse parimenti
Orfeu per essere homo; [...] l'Arianna mi porta ad un giusto
lamento; et l'Orfeu ad una giusta preghiera [...] (Como, caro
Senhor, poderei eu imitar o falar dos ventos, se eles não falam!
E como poderei eu por meio dos ventos mover os afetos!
Arianna provocava emoções por ser mulher, e, da mesma
forma, Orfeu emocionava, por ser homem, e não vento...
Arianna me dirigiu para um justo lamento e Orfeu para uma
justa prece...)
15
Com esta frase, Monteverdi expõe o claro e profundo interesse
pelo aspecto humano de seus personagens, contrapondo sua realidade
affetiva, emocional, ao desinteresse que lhe causavam os ventos, sem
nenhuma articulação psicológica. Não se pode deixar de notar também
que, com esta frase, Monteverdi se mostra consciente de uma clara
distinção entre gêneros, indicando que em sua obra está presente uma
concepção do masculino e do feminino. A ligação entre lamento e
feminilidade pode também ser intuída desta mesma afirmação - apesar
de ter dedicado a Orfeu dois expressivos lamentos no desenrolar da
ópera (o primeiro, quando Orfeu recebe a notícia da morte de Euridice,
e o segundo, quando a perde pela segunda vez, ao desobedecer as
ordens de Plutão, virando-se para contemplá-la), Monteverdi prefere
relacionar o Lamento à feminilidade de Arianna e a Preghiera, em seu
aspecto masculino, ligado ao poder retórico da sedução (a preghiera é
14
O casamento de Ferdinando com Caterina de’ Medici, em 1617, fomentou a
preparação de múltiplas festividades, para as quais Monteverdi foi também solicitado.
Le nozze di Tetide, um libreto do Conde Scipione Agnelli com tema apropriado para
festividades de casamento, foi enviado a Monteverdi no final de 1616 para que este
oferecesse um julgamento, o qual foi bastante negativo.
15
Carta n. 21, a Alessandro Striggio, de Veneza, 9 de dezembro de 1616 (Apud. De’
Paoli, 1973).
32
usada para convencer Caronte a permitir a Orfeu a passagem pelo rio
que separa o mundo dos vivos e o dos mortos). Monteverdi parece
expressar com essa escolha uma problemática do período: apesar de
Orfeu cantar dois lamentos e apenas uma preghiera, é preferível defini-
lo de forma a não ameaçar sua masculinidade: os lamentos revelam um
aspecto incômodo do personagem. Torna-se mais fácil referir-se a ele
através de um gênero que reafirma seu papel mais tipicamente
masculino – no qual poder e controle são mais explícitos - e não através
de um gênero que o feminize.
Arianna não apresenta tal problemática: um lamento, ligado
intrinsecamente à situação de abandono, encaixa-se bem na
representação do feminino do início da era moderna – Monteverdi não
tem motivos para “esquecer” o lamento de Arianna, e expressa a
relação natural entre lamento e feminilidade sem hesitação.
É paradoxal, a partir da frase de Monteverdi, que Orfeu ainda
assim cante dois lamentos. Apesar da confessa dificuldade em relacionar
lamentos ao papel masculino, estes não constituem necessariamente
uma transgressão à convenção dos lamentos em geral. Desde os
madrigais, em sua tradição vinculada mais diretamente a Petrarca do
que aos poetas mais tardios aos quais a ópera barroca se vincula,
deparamos-nos com personagens masculinos que lamentam a
inacessibilidade da mulher amada. Existem lamentos masculinos na
maioria das óperas e cantatas do século XVII. No entanto, fascínio maior
foi sempre exercido pelos lamentos femininos em música. Sua presença
na numerosa produção musical do século XVII pode ser explicada pela
sua força expressiva, pelo desvelar de uma subjetividade mais profunda
da personagem, e pelo potencial catártico que apresenta. Os lamentos
masculinos são intrigantes, pois de alguma forma não provocavam a
mesma reação afetiva que os lamentos femininos. É esclarecedora a
33
observação de Lawrence Lipking, ao revelar que
os homens
abandonados
compose a pathetic remnant, usually more priggish than out of
control. … Instead, in poems, men tend to be rejected:
dismissed by the lady before possesion, and therefore kept on a
string. Dante is not abandoned by Beatrice nor Petrarch by
Laura. The male poets could hardly be given up by women who
never took them in the first place … He is obsessed less by a
sense of loss than by a sense of what he has never had.
Significantly, such female Petrarchans as Louise Labé and
Gaspara Stampa reverse the conventions they inherit from men.
As women, they complain about absent lovers they once knew
all too well, and thus add an unusually direct note of sexual
passion to the usual Petrarchan longings (constituem um
patético vestígio [da figura da mulher abandonada],
normalmente mais comedido do que fora de controle. Ao
contrário, nos poemas, o homem tende a ser rejeitado: é
desprezado pela mulher antes mesmo de possuí-la, e, portanto
permanece sob seu poder. Dante não é abandonado por Beatriz
e tampouco Petrarca por Laura. Os poetas masculinos não
poderiam ser abandonados por mulheres que em primeiro lugar
nunca os aceitaram. ... Ele fica mais obcecado pela sensação
daquilo que nunca possuiu do que por uma sensação de perda.
Significativamente, poetas petrarquistas mulheres, como Louise
Labé e Gaspara Stampa invertem a convenção herdada dos
homens. Como mulheres, elas se queixam de amantes ausentes
aos quais conheceram bem demais, e assim acrescentam um
tom intrigante e direto de paixão sexual aos anseios
petrarquistas usuais) (Lipking, 1988).
No primeiro lamento de Orfeu, após receber a notícia da morte de
Euridice, nas horas que antecedem as núpcias que jamais ocorreriam,
sua queixa não é contra a mulher amada – Orfeu não foi abandonado
por Euridice, mas encontrou-se em situação equivalente à do abandono,
por uma circunstância implacável, que transcende a vontade de ambos:
a morte.
Tu se’ morta, mia vita, ed io respiro? Tu estás morta, vida minha, e eu
[respiro?
Tu se’ da me partita Tu de mim partiste
Per mai più non tornare, ed io rimango? Para nunca mais voltar, enquanto eu [aqui]
[permaneço?
No, che se i versi alcuna cosa ponno Não, pois se meus versos algum poder
[possuem
34
N’andrò sicuro a’ profundi abissi, Eu descerei com certeza aos mais profundos
[abismos
Oggi turbo crudele Hoje acidente cruel
I due lumi maggiori Os dois astros mais belos
Di queste nostre selve, de nossas florestas,
Euridice et Orfeu, Euridice e Orfeu,
L’una punta da l’angue, A primeira, mordida pela serpente
L’altro dal duol trafitto, ahi lassi, E o outro, de dor trespassado, ai de mim,
ha spenti]. [apagaram-se.
Orfeu não se coloca jamais na posição de homem abandonado –
sua situação é, para ele e para a platéia, inaceitável. Sua masculinidade
permanece inquestionável – seu sofrimento é claramente exposto, mas
ele não continua, como Arianna, numa situação sem saída, paralisado,
entregue, como ela, à dor. Enquanto Arianna segue as convenções da
figura da mulher abandonada, Orfeu a rejeita. Desta forma, contraria a
convenção feminino/passiva ao decidir enfrentar até mesmo a
inexorabilidade da morte e descer ao Inferno para recuperar sua bem-
amada Euridice. Na geração de Monteverdi e Cavalli, percebe-se
claramente o incômodo com o gênero do Lamento expresso pela voz
masculina – e uma confortável aceitação dos lamentos expressos pela
voz feminina. Outras tradições até mesmo excluem a possibilidade de
representar a figura do homem abandonado, usando as mulheres para
representar tais sentimentos de abandono. É paradoxal que
compositores saibam expressar com tanta sofisticação a situação de
abandono, só se permitindo representá-la em seu espectro completo
através da personagem feminina. Em geral, a convenção do lamento
feminino percorre uma gama extremamente ampla de afetos. No
Lamento de Arianna podemos presenciar uma ternura e nostalgia
suplicante, passando por ultraje, revolta e auto-compaixão, para
imediatamente transfor-se em medo, imobilidade e desesperança. Logo
o discurso explode em fúria e desejo de vingança e finalmente a
personagem se arrepende e se culpa, entregando-se a uma amarga
desesperança, ao expressar o desejo de morte:
35
Lasciatemi morire!
E chi volete voi che mi conforte
In co sì dura sorte,
In così gran martire?
Lasciatemi morire.
O Teseu, O Teseu mio,
Sì che mio ti vo’ dir, che mio per sei,
Ben che t’involi, ahi, crudo, a gli occhi
miei.
Volgiti, Teseu mio,
Volgiti, Teseu, O Dio!
Volgiti indietro a rimirar con lei
Che lasciato há per te la Patria e il Regno,
E in queste arene ancora,
Cibo di fere dispietate e crude,
Lascierà l’ossa ignude!
O Teseu, O Teseu mio,
Se tu sapessi, O Dio!
Se tu sapessi, ohimè, comme s’affana
La povera Arianna,
Forse pentito
Rivolgeresti ancor la prora al lito!
Ma com l’aure serene
Tu te ne vai felice et io qui piango.
A te prepara Atene
Liete pompe superbe, ed io rimango
Cibo di fere in solitarie arene.
Te l’uno e l’altro tuo vecchio parente
Strigeran lieti, et io
Più non vedrovvi, O Madre, O Padre mio!
Dove, dov’è la fede
Che tanto mi giuravi?
Così ne l’alta fede
Tu mi ripon degl’Avi?
Son queste le corone
Onde m’adorni il crine?
Questi gli scettri sono,
Questi le gemme e gl’ori?
Lasciarmi in abandono
A fera che mi strazi e mi divori?
Ah, Teseu, ah, Teseu mio,
Lascierai tu morire
Invan piangendo, invan gridando ‘aita
La misera Arianna
Ch’a te fidossi e ti diè gloria e vita?
Ahi, che non pur rispondi!
Ahi, che più d’aspe è sordo a’ miei
lamenti!
O nembri, O turbi, O venti,
Sommergetelo voi dentr’a quell’onde!
Correte, orche e balene,
E delle membra immonde
Deixa-me morrer.
E quem queres que me console
em destino tão cruel,
em tão grande martírio? Deixa-me
morrer.
O, Teseu, O meu Teseu,
Pois meu quero chamar-te, pois meu
ainda és,
apesar de fugires, ai, cruel!, de meu
olhar.
Retorna, Teseu meu,
retorna, Teseu, O Deus! Retorna e olha
aquela
que por ti deixou a pátria e o reino,
e nesta praia agora,
presa de feras cruéis e selvagens,
deixará seus ossos desnudos.
O Teseu, O, meu Teseu,
se tu soubesses, O, Deus!
se tu soubesses, ai de mim, como sofre
a pobre Arianna,
talvez arrependido
voltarias a proa à costa.
Mas com as brisas serenas
tu partes feliz, e eu aqui choro;
para ti, Atenas prepara, alegres e
soberbas pompas, e eu aqui fico, alimento
das feras nas praias solitárias; tu, a um e
outro, teus velhos pais
abraçarás alegre, e eu
nunca mais os verei, O, mãe, O, pai meu!
Onde, onde está a fidelidade que tantas
vezes juraste?
É assim que me devolves,
ao trono de meus ancestrais? São estas
as coroas
com as quais me adornas o cabelo? / são
estes os cetros, estas as jóias e o ouro:
deixar-me abandonada às feras que me
destroçam e me devoram?
Ah, Teseu, ah, meu Teseu, deixarás tu
morrer
em vão chorando, em vão gritando por
ajuda a miserável Arianna
que em ti confiou e te deu glória e vida?
Ai, ainda assim não responde!
Ai, mais que uma serpente, é surdo a
meus lamentos!
Ó nuvens, ó, redemoinhos, ó, ventos, /
afoguem-no sob aquelas ondas! / Corram,
monstros e baleias, / e seus membros
imundos / espalhem no abismo profundo!
36
Empiete le voragini profonde!
Che parlo, ahi, che vaneggio?
Misera ohimè, che chieggio?
O Teseu, O Teseu mio,
Non son, non son quell’io,
Non son quell’io che I feri detti sciolse;
Parlò l’affanno mio, parlò il dolore,
Parlò la lingua, sì, ma non già il cuore.
Misera! Ancor dò loco
A la tradita speme?
E non si spegne,
Fra tanto scherno ancor, d’amor il foco?
Spegni tu Morte, ornai, le fiamme
insegne!
O Madre, O Padre, O dell’antico Regno
Superbi alberghi, av’ebbi d’or la cuna,
O servi, O fidi amici (ahi fato indegno!)
Mirate ove m’ha scort’empia fortuna,
Mirate di che duol m’há fatto erede
L’amor mio,
La mia fede,
E l’altrui inganno.
Così va chi tropp’ama e troppo crede.
Que digo, ai! Estou delirando?
Infeliz, ai de mim! Que peço?
O, Teseu, O, meu Teseu,
Não era eu aquela,
que pronunciou aquelas palavras
selvagens:
falou minha angústia, falou a dor;
Falou a língua sim, mas não o coração.
Infeliz! Ainda creio
na esperança traída,
e não se extingue,
com tanto desprezo, do amor o fogo?
Apaga tu, Morte, enfim, as indignas
chamas.
Oh, mãe, oh pai, supremo albergo, do
antigo reino, onde tive, de ouro, meu
berço, oh servos, oh amigos fiéis, (Ai,
Destino indigno!), Vejam onde me levou
ímpia sorte, Vejam de que dor me
tornaram herdeira
o meu amor, a minha fidelidade, e a
traição alheia. É assim que termina quem
demasiado ama e demasiado crê.
Os lamentos constituem um meio tentador para poetas e
compositores expressarem paixões extremas e opostas, cobrindo uma
ampla tessitura de emoções, transitando entre elas rapidamente (como
da mais terna recordação do ser amado à raiva furiosa ou sentimento de
vingança) e descrevendo uma tipologia do feminino descrita por
inúmeros tratados e ensaios da época. Em Arianna já se delineiam
conceitos que serão mais tarde teorizadas por Monteverdi, ao
reconhecer em Torquato Tasso o poeta que melhor expressa paixões
conflitantes, o que serve de base para a elaboração do stile concitato
em seu Combattimento di Tancredi e Clorinda em 1624.
16
A leitura
16
No prefácio do Oitavo Livro de Madrigais (1638), diz Monteverdi:
..diedi di piglio al divin Tasso, come poeta che esprime con ogni proprietà, &
naturalezza com la sua oratione quelle passioni, che tende a voler descrivere & ritrovai
la descrittione, che fa del combattimento di Tancredi con Clorinda, per haver io le due
passioni cõtrarie de mettere in cãto Guerra cioè preghiera, & morte (tomei o divino
Tasso como o poeta que expressa em suas orações naturalmente e com toda a
propriedade as paixões que deseja descrever, e eu encontrei as descrições que ele faz
37
feminista dos lamentos femininos tem visto as imprecações de Arianna
contra Teseu
17
e seu imediato arrependimento
18
como renúncia à
eloqüência. Deste modo a personagem sucumbe frente à esperada regra
de virtude feminina, o silêncio. Cusick nos fala da perda de poder
quando Arianna nega sua própria imprecação e se auto-impinge o
silêncio, como uma necessária desistência de autonomia
19
experimentada por todas as mulheres, no momento em que se
confrontam com o casamento (devemos nos lembrar que a performance
de Arianna deu-se por ocasião das festividades de casamento na corte
de Mântua, em 1608, entre o Príncipe Francesco Gonzaga e Margherita
de Sabóia). Tal conflito entre eloqüência e silêncio, segundo Heller,
expressa claramente a forma na qual as mulheres eram vistas no início
do período moderno
20
, e clarifica como se deu a representação da
mulher na ópera veneziana do século dezessete. Tratados sobre o
comportamento das mulheres proliferavam na Itália renascentista, e o
elogio (masculino) ao silêncio feminino se repete em vários deles, como
no Dialogo di M. Lodovico Dolce, della Istitution delle Donne, o qual
determina:
Due cose ricercarei nella mia fanciulla, timidità & vergogna: le
quali habbiano a esser quasì base & fondamento di tutta la
fabbrica delle virtù, in che noi intendiamo disciplinarla: & senza
do duelo entre Tancredi e Clorinda, de modo a ter as duas emoções contrastantes para
colocar em música – guerra, isto é, prece e morte).
17
O nembri, O turbi, O venti, / Sommergetelo voi dentr'a quell'onde! / Correte, orche
e balene,/ E delle membra immonde / Empiete le voragini profonde!
18
Che parlo, ahi, che vaneggio?/ Misera, ohimè, Che chieggio?
19
A palavra inglesa agency já foi traduzida para o português como “agência” por
Álvaro Cabral no livro A construção da sociedade de Anthony Giddens, que esclarece o
sentido original em seu glossário: “Agência’ diz respeito a eventos dos quais um
indivíduo é o perpetrador no sentido de que ele poderia, em qualquer fase de uma
dada seqüência de conduta, ter atuado de modo diferente.” No entanto, escolho
palavras de uso mais corrente do vocabulário da língua portuguesa.
20
Adoto a denominação “início do período moderno” (traduzida do inglês, early
modern period) seguindo diversos autores que têm questionado o conceito de
periodização histórica. O termo renascença, por exemplo, tem sido contestado por
colocar demasiada ênfase em alta cultura. Esta denominação, “início do período
moderno”, implica numa ligação com a modernidade, ao invés do período
imediatamente anterior.
38
queste è da credere, che tutto lo edificio rovinerà, in modo che
ci bisogna principalmente in lei l’una & l’altra piantare,
accrescere, & fermarla di tempo in tempo (Para a educação da
jovenzinha, duas coisas deverão ser buscadas; timidez e recato,
as quais serão base e fundamento de toda a construção da
virtude, na qual pretendemos discipliná-la: e sem as quais,
pode-se crer que todo o edifício cairá em ruínas, de modo que é
necessário nela [na jovenzinha] uma e outro [timidez e recato]
plantar, cultivar e fixar de tempos em tempos) (Dolce, 1655).
Se o silêncio é prescrito às mulheres como a melhor opção para o
caminho da virtude, os lamentos femininos na ópera, assim como numa
longa tradição literária com a qual se vinculam diretamente,
contradizem o moto, criando um espaço em que o Outro
21
feminino se
manifesta, mais loquaz do que em qualquer outra manifestação musical.
A figura da mulher abandonada permeia toda uma tradição poética que
nasce na antiguidade – de Penelope a Safo, de Dido a Ariadne – e
permanece viva através do início do período moderno chegando aos
nossos dias (sem mencionar a grande incidência da representação da
mulher abandonada em outras culturas). Lawrence Lipking, partindo da
etimologia da palavra “abandono”: do latim ad (ao) e bandon (poder ou
controle), sugere que a palavra “abandono” significava originalmente
submissão ao poder, como curvar-se à vontade de um monarca – a
pessoa que possui a outra pode igualmente desfazer-se dela. Mas a
mesma etimologia, permite um sentido ainda oposto: a liberação de
uma ligação
22
. Assim aqueles que são abandonados podem ser banidos
por aquele que os controla, ou podem tomar as rédeas de seu próprio
21
O termo “Outro feminino” é discutido longamente por Simone de Beauvoir em seu Le
deuxième sexe (1949). A idéia tem suas raízes na Antiguidade, quando Aristóteles já
via a natureza feminina como “afligida por defeitos naturais”. Hegel desenvolve mais
claramente uma idéia de alteridade ao perceber que encontramos “na própria
consciência uma hostilidade fundamental em relação a toda outra consciência; o
sujeito só pode se colocar ao deslocar – ele se apresenta como essencial em oposição
ao outro, não-essencial, o objeto”. E segue Beauvoir: “nenhum sujeito tornar-se-á
voluntariamente objeto, não-essencial; não é o Outro que, ao se definir como Outro
que estabelece o Primeiro (the One). O Outro é colocado como tal pelo Primeiro, ao
definir-se, ele próprio, como Primeiro”.
22
Em inglês, bondage.
39
destino. A mulher abandonada, em sua desolação, nada mais tem a
perder, e esta liberdade cria fascínio e desconforto aos que presenciam
o espetáculo.
Em Cavalli observamos alguns personagens masculinos em
situação de abandono, como em sua ópera Giasone (1649), na cena na
qual Egeo, abandonado por Medea, pede a esta que lhe conceda, de seu
próprio punho, a misericórdia da morte. O gênero de lamento é bem
definido por Cavalli, emprestando o tetracórdio descendente menor
23
ao
trecho em que os versos tornam-se senari. Com um eco à famosa frase
final do Lamento de Arianna (Misero così va chi fedel t’adorò?), numa
reviravolta irônica, transformada aqui em pergunta, Cavalli marca o
gênero do Lamento ao mesmo tempo em que o nega: Egeo recusa-se a
permanecer no lugar de Arianna. Toda a cena é pontuada por um claro
desvio cômico. O humor só pode ocorrer quando há uma reviravolta na
expectativa criada e as convenções são quebradas. Personagem
principal da Academia degli Unisoni, G. F. Loredano, aponta para o
efeito ridículo que provocaria um homem, que ao tentar obter o amor de
uma mulher, versasse lágrimas:
Amor é filho da harmonia, e no entanto, aqueles amantes que
gostariam de despertá-lo em suas amadas, bem os vi
cantando, mas não vertendo lágrimas, indignas do homem e
que fariam até mesmo provocar o riso ao invés do Amor
24
.
A ironia já se estabelece no primeiro verso, quando Egeo, que
esperava o golpe da morte, abre os olhos e não encontra Medea: ao
invés de entregar-se passivo e introspecto à dor, como a convenção do
lamento feminino impõe, fala, indignado, diretamente ao público,
referindo-se a Medea na terceira pessoa – Egeo não assume o destino
23
Sobre a implicação do tetracórdio descendente menor e o gênero do Lamento, ler o
Capítulo 2 desta tese.
40
do abandonado (ver abaixo versos 11 a 16). Como Orfeu, em seu
segundo Lamento, Egeo se desvencilha da posição “feminina”, com um
moto misógino, típico da época, identificando a mulher com a
inconstância. Cavalli, ao implodir a convenção do lamento, ensina à
platéia a falta de decoro exibida por um homem ao se lamentar.
1. Si parte, mi deride? Ela parte, ela zomba de mim?
2 Si parte, e non m’uccide? ela parte, e não me mata?
3. Dove fuggisti, Onde, para onde fugiste,
4. dove, lasso, sparisti, empia spergiura? onde, ai, desapareces, implacável?
5. Così la data fè Assim a confiança dada
6. di trafiggermi il cor, ahi, si trascura? no trespassar de meu coração, ai,
[traíste?
7. Oh promesse tradite, Oh, promessas traídas,
8. o fera, o empia, o ria, oh orgulhosa, ímpia, cruel,
9. dammi le mie ferite, dá-me as minhas feridas,
10. dammi la morte mia! dá-me a minha morte!
11. Misero così va Desgraçado assim termina
12. chi fedel t’adorò? o fiel que te adorou?
13. traitrice beltà, Traidora beldade,
14. infelice, che fò? infeliz, que faço?
15. Stolto, non m’avvisai Estúpido, não percebi
16. che con beltà fè non si trova mai! que com beldades, fidelidade não
convive jamais!
Wendy Heller lembra-nos do comentário de Nino Pirrotta sobre a
importância da verossimilhança no início da ópera, e de como canções
eram mais ligadas a personagens isentas das leis que governam o
comportamento humano, entre eles personagens cômicos, crianças,
deuses. Heller acrescenta que na medida em que a ópera acostumou-se
mais e mais com as canções, a questão da verossimilhança passou a
operar de forma diferente: compositores e libretistas passaram não só a
24
Ver original nos textos primários em italiano, pg. 241.
41
diferenciar homens de deuses, servos de mestres, homens de mulheres,
como também passaram a caracterizar tipos diferentes de mulheres.
Heller analisa diversas personagens femininas e demonstra, por
exemplo, como a castidade de Ottavia, de Monteverdi, é representada
musicalmente através de um modo estático e não ornamentado. Já
Arianna têm sua feminilidade, assim como sua herança clássica,
representada por suas “emoções desordenadas, o uso de recitativo ao
invés de canção, a obsessão com a morte, e também o silenciamento de
seus desejos mais ameaçadores” (Heller, 2004). A autora expande as
intuições inauguradas por Susan McClary há mais de uma década,
analisando minuciosamente o tratamento da expressão feminina através
dos recursos usados por compositores da primeira metade do século
XVII, como métrica, estrutura das frases, desenhos rítmicos e
melódicos, text painting, uso de cromatismo, estilo tonal e organização
formal.
É intrigante a dicotomia entre atração e rejeição pelo espetáculo
da dor de abandono – mesmo sendo desconfortável num papel
masculino, ameaçando feminizá-lo, é inegável o fascínio que este exerce
sobre autores e platéia, tanto masculina quanto feminina. Destinar a
cena de abandono para o Outro feminino, parece criar um
distanciamento seguro para o espectador masculino. Mas a retórica do
abandono é bem conhecida dos autores masculinos, como vimos
anteriormente nas lições de retórica dos meninos que imitavam os
lamentos das heroínas da antiguidade. Homens conhecem intimamente
o tema, mas afastam-se do discurso da dor por temer feminizarem-se.
Assim a figura da mulher abandonada é deslocada com segurança para
a figura do Outro feminino. Mas este doloroso discurso localizado na
alteridade feminina “pressupõe que certas verdades da solidão e sua
exposição atingem tal profundidade que toda a humanidade deveria ser
capaz de se reconhecer nelas.” Acredito, portanto, que o fascínio pelos
42
lamentos em música e em literatura deriva-se dessa verdade profunda a
respeito da dor do abandono na qual todos os seres humanos,
independentemente de seu gênero, se reconhecem, mesmo que quem a
expresse, no período que abordo neste trabalho seja geralmente a
personagem feminina.
25
25
A intensidade emocional presente nos lamentos, nos remete ao comentário de Freud
em Além do príncipio do prazer, no qual descreve a reação de pessoas que
sobreviveram a um trauma. “Elas seguidamente contam suas histórias de maneira
profundamente emocional, contraditória e fragmentada, a ponto de comprometer sua
credibilidade... tais feridas emocionais se manifestam através de gritos incontroláveis,
posturas catatônicas ou “congeladas”... o autor tenta explicar como o trauma poderia
provocar o comportamento das vítimas semelhante ao de “mulheres histéricas”. Freud
usa a Gerusalemme Liberata, de Torquato Tasso como exemplo da experiência de
trauma, no qual surge a presença insistente da voz pesarosa, em lamento:O retrato
poético mais comovente de um destino assim foi pintado por Tasso na epopéia
romântica Gerusalemme Liberata. Seu herói, Tancredo, inadvertidamente mata sua
bem amada Clorinda num duelo, estando ela disfarçada sob a armadura de um
cavaleiro inimigo. Após o enterro, abre caminho numa estranha floresta mágica que
aterroriza o exército dos cruzados. Com a espada, faz um talho numa árvore altaneira,
mas do corte é sangue que escorre e a voz de Clorinda, cuja alma está aprisionada na
árvore, é ouvida a lamentar-se que mais uma vez foi ferida pelo amado.” (Freud -
Salomão, 1969).
43
CAPÍTULO 3
A CANTATA EM BARBARA STROZZI:
UMA ÓPERA EM MINIATURA
Nem todos os talentosos compositores do século XVII puderam
realizar seus experimentos no mundo da ópera, por mais sofisticado que
fosse seu domínio da linguagem musical em voga. Sem um meio tão
rico de possibilidades à sua disposição, estes compositores, à margem
da mais fascinante inovação composicional da época, reduziam o
vocabulário operístico a um mínimo, realizando na Cantata uma
miniatura do que teriam feito na grande forma. Assim como o oratório e
a ópera, a Cantata descende diretamente do gênero altamente
intelectual do século XVI, o madrigal. O gosto pela palavra e a refinada
sensibilidade dos madrigalistas pela tradução musical do texto levou os
compositores a uma percepção aguçada das possibilidades dramáticas
da música. Um passo importante para a criação das cantatas foi a
exploração pelos monodistas florentinos da voz solista, que se destacava
dos madrigais, passando a ser acompanhada pelo baixo-contínuo. As
árias curtas estróficas e líricas que apareceram em 1602 no Nuove
Musiche de Caccini podem ser vistas como um embrião das Cantatas. O
surgimento da monodia acompanhada entrelaça-se com o surgimento
do madrigal acompanhado por baixo-contínuo (com sua primeira
aparição na segunda parte de Il Quinto libro de madrigali a cinque voci
de Monteverdi, em Veneza, 1606). O próprio Monteverdi é um dos
importantes compositores que marcam o surgimento das cantatas,
apesar de nunca ter-se apropriado da terminologia: muitas das obras
em seu último livro de madrigais em nada diferem das cantatas que se
44
produziam já no período. Segundo o artigo do New Grove Dictionary of
Music, o termo Cantata surge pela primeira vez em 1589, em um libreto
para a comemoração do casamento de Cesare d’Este e Virginia de’
Medici, Cantata pastoralle fatta per Calen di Maggio in Siena. Insinuam-
se já neste momento as ligações com o drama musical pelas indicações
escritas no libreto: azione sceniche e coreografiche, rime per musica
pastorali e ninfali. O primeiro compositor a utilizar-se do termo para
uma coleção exclusivamente musical foi Alessandro Grandi, com seu
Cantade et arie, do qual só uma segunda re-impressão de 1620
sobreviveu. O notável viajante inglês e historiador de música do século
XVIII, Charles Burney, refere-se ao uso do termo cantata pela primeira
vez em 1638, pelo compositor Benedetto Ferrari. Neste início da história
da Cantata, a forma constituía-se essencialmente de variações
estróficas. Não havia razões muito claras para que compositores e
editores do período adotassem uma terminologia comum para a música
vocal solo acompanhada. Os dois volumes de Giovanni Felice Sances, de
1633, Cantade, marcam definitivamente o desenvolvimento do gênero.
Entre obras mais conservadoras em forma de variações estróficas,
encontram-se novidades como Usurpator tirano, escrita sobre um baixo
de passacaglia e finalizada com um longo recitativo e Lagrimosa beltà,
sobre uma ciaconna, interrompida por trechos em arioso. A forma mais
significativa, no entanto, está em Presso l’onde tranquille, no qual,
recitativo, arioso e ária se sucedem (incluindo uma longa seção sobre
um baixo ostinato) (Gianturco, 1990). Esta alternância de tipos de
música passa a ser a principal característica das cantatas
26
. É graças a
isto que o gênero pode ser visto como o primo pobre da ópera, no qual
se torna possível realizar um verdadeiro drama musical em miniatura:
mini-cenas que se concatenam dramaticamente, possibilitando ao
26
Ver no capítulo 6, pg 174, a atribuição da criação do gênero Cantata a Barbara
Strozzi.
45
espectador apreciar, num ambiente modesto, o desenrolar de um
espetáculo pleno de teatralidade.
Em um dos primeiros estudos da Cantata italiana do século XVII,
Henri Prunière condenaria este tipo de música argumentando que esta
revertia o papel que possuíra na tradição madrigalista. Segundo ele, nos
madrigais, a poesia, de alto valor literário, tinha na música uma parceira
que não fazia outro papel senão elevá-la; agora, a “música tratava de
vingar-se”, e era composta sem nenhuma consideração pelo texto
(Gianturco, 1990). Apesar de podermos considerar as afirmações de
Prunières ultrapassadas, o autor não deve ser de todo desprezado. O
descrédito que expressava a respeito da relação da música com o texto
nas Cantatas denota uma percepção vaga sobre mudanças estéticas
importantes que ocorreram no período. Seu incômodo é um reflexo da
visão de sua geração da poesia do seicento, menosprezada pela crítica
como inferior e decadente. Benedetto Croce, o famoso filósofo e crítico
italiano do final do século XIX e início do XX, foi o maior responsável
pelo longo desinteresse pela poesia da época, principalmente a de
Giambattista Marino, cuja obra influenciou diretamente a música do
século XVII, e especialmente as Cantatas. O que Prunières percebeu foi
uma crise estética que sinaliza o fim de uma era: a era na qual os ideais
humanistas eram tão bem traduzidos na requintada arte do madrigal,
ligada à obra poética de Petrarca a Tasso. A literatura clássica tem seu
fim demarcado pela morte do autor da Gerusalemme liberata, em 1595.
O rompimento que ocorreu com o surgimento do barroco está
ligado às descobertas científicas e às noções filosóficas que colocaram
em cheque antigos paradigmas. O filósofo Giordano Bruno, com a
introdução da idéia do infinito, possibilita ao artista barroco criar
relações muito além do espaço finito habitual, expandindo os dados da
realidade. As metáforas de gosto clássico, cuidadosas e racionais,
correspondentes a uma percepção da natureza finita e controlada (ver o
poema de Petrarca, H’or che ‘l ciel e la terra e ‘l vento tace, página 49),
46
expandem-se agora para as metáforas audaciosas e surpreendentes,
capazes de ligar pontos longínquos aparentemente desconexos. As
justificativas teóricas dos marinistas baseiam-se na aceitação do gosto
público e na idéia de que a poesia deve provocar prazer através do
efeito de meraviglia. Em uma carta de 1624, Marino escreveria: La vera
regola è saper rompere le regole a tempo e luogo, accomodandosi al
costume corrente ed al gusto del secolo (a verdadeira regra é saber
romper as regras na hora e momento certos, acomodando-se ao
costume corrente e ao gosto do século). Trata-se, portanto de uma
poética voltada à recepção do público e sua reação direta: È del poeta il
fin la meraviglia / (parlo de l’eccellente, non del goffo): / chi non sa far
stupir, vada alla striglia (Lupperini, 2002). (É do poeta o fim a maravilha
/ (falo do excelente, não do tolo): / quem não sabe surpreender, que
retorne ao estábulo). Ou seja, o poeta tem como fim primordial
provocar o maravilhamento do leitor, e aquele que não é capaz de
provocar tal efeito, deve desistir de uma arte que agora se tornou
intelectual e técnica e voltar a uma atividade tão natural como lidar com
os estribos dos cavalos; a natureza é violentada por um exercício de
artificialização constante. A natureza se tornou obra do homem, e é lida
por Marino como uma construção de engenharia na qual o mundo e o
próprio homem são vistos como uma máquina: questa gran machina
universale (esta grande máquina universal); la machina meravigliosa
che mondo si dimanda (a máquina maravilhosa que o mundo pede); Se
Iddio col cenno solo governa la mole dell’Universo, tu col cenno solo la
machina del tuo corpo governi...(Se Deus com um gesto apenas
governa a massa do Universo, tu com apenas um gesto a máquina de
teu corpo governas). (Peters, 1973. P 95-110).
Não encontramos mais uma relação imediata com a vida ou a
natureza, Marino prefere uma visão distanciada, analítica e cerebral de
seus objetos. Podemos ver este artifício nos últimos versos de Il canto
dell’usignolo (O canto do rouxinol), parte de sua obra monumental
47
L’Adone
27
. O elemento vital do verso, o canto do rouxinol, é
representado por uma série ininterrupta de sinédoques compondo um
jogo lingüístico virtuosístico, no qual o leitor deve reagir
intelectualmente e decifrar a imagem criada pelo poeta. A sinédoque é
uma figura de retórica na qual partes ou aspectos simples aludem ao
todo: “uma voz emplumada, um som voador, um vivo sopro, uma
pluma canora, um canto alado”:
Chi crederà che forze acoglier possa Quem poderia crer que alminha tão
[pequena
animetta sì picciola cotante? possa conter tanta força?
e celar tra le vene e dentro l’ossa [e quem poderia crer que] um átomo
[cantante
possa esconder nas veias e dentro
tanta dolcezza um atomo sonante? dos ossos tanta doçura?
O ch’altro sai che da liev’aura mossa Ou que outra coisa possa ser além de
[uma voz
una voce pennuta, un suon volante? emplumada, um som voador movido
[por leve brisa?
e vestito di penne un vivo fiato, ou que outra coisa possa ser além
de um vivo sopro
una piuma canora, un canto alato? uma pluma canora, um canto alado?
Em Marino já não encontramos o sentimento elegíaco, a volúpia
da dor, a permanente melancolia que permeia a obra de Petrarca. A
mudança de rumo estético que vai possibilitar o surgimento das
cantatas pode ser claramente vislumbrada na abordagem de Monteverdi
ao poema de Petrarca, Hor che ’l ciel e la terra e ‘l vento tace, o
segundo madrigal do Oitavo livro:
Hor che ‘l ciel e la terra e ‘l vento tace Agora que o céu e a terra e o vento
calam
e le fere e gli augelli il sonno affrena, e as feras e os pássaros o sono
acalma,
Notte il carro stellato in giro mena a noite a carruagem estrelada leva
27
O poema foi publicado em Paris em 1623, com dedicatória ao rei da França, Luis
XIII. Inicialmente concebido como um modesto poema idílico-mitológico acaba por
tornar-se um ambicioso projeto, com a intenção de colocar-se à altura da
Gerusalemme liberata de Tasso; os vinte Canti de Adone contém 5033 oitavas,
consituindo-se no poema mais longo da literatura italiana.
48
e nel suo letto il mar senz’onda giace, e no seu leito o mar sem ondas jaz,
veglio, penso, ardo, piango e chi mi sface em vigília penso, ardo, choro, e o que
me destrói
sempre m’è innanzi per mia dolce pena. sempre está diante de mim para
minha doce pena.
Guerra è il mio stato, d’ira e di duol piena, Guerra é o meu estado, plena
de ira e de dor,
e sol di lei pensando ho qualche pace. e somente nela pensando encontro
um pouco de paz.
Così sol d’una chiara fonte viva Assim de uma única clara e viva fonte
move il dolce e l’amaro ond’io mi pasco. encontro o doce e o amargo do qual
me alimento.
Una man sola mi risana e punge. Uma única mão me cura e me fere.
E perchè il mio martir non giunga a riva, E para que meu martírio nunca cesse,
mille volte il dì moro e mille nasco, mil vezes por dia morro e mil vezes
[nasço,
tanto dalla salute mia son lunge. tão distante da salvação me encontro.
Nesta peça podemos observar o abandono do antigo tratamento
que Monteverdi teria dedicado ao poema trinta anos antes. Em 1638, já
imbuído das novas técnicas marinistas, Monteverdi utiliza-se de seu stile
concitato para descrever pictoricamente o estado interior do poeta:
guerra è il mio stato, piena d’ira e di duol. Típica de Marino é a
transformação do subjetivo em imagem exterior – e assim, Petrarca e
sua retórica delicada e interiorizada é lida, a partir do sétimo verso,
como um poema de Marino. O Soneto de Petrarca, formalmente coeso e
equilibrado, vê sua forma rompida por Monteverdi, ao criar uma
sucessão de momentos justapostos, artifício típico da poesia de Marino.
O início do Soneto, com o característico tema da paisagem como
expressão ou manifestação da interioridade do poeta, é delicadamente
musicado por acordes homofônicos, amplos mas hesitantes, como as
feras que aos poucos adormecem e o vento que à noite se cala. Os
lentos e graves acordes de lá menor soam como um sopro vacilante, e
são articulados por expressivas pausas, plenos da gravità de Petrarca.
Esta atmosfera noturna e misteriosa é rompida pelo súbito ataque do
concitato, e este nível de interioridade nunca é recuperado até o final da
49
peça. Três décadas antes, Monteverdi manter-se-ia coerente com os
princípios da seconda prattica e aproveitaria para destilar musicalmente
cada insinuação de emoção ou especialmente neste caso, do recorrente
voluptas dolendi (mia dolce pena / doce dor). Mas em 1638, Monteverdi
não poderia mais abrir mão de seu revolucionário stile concitato, que
tantas possibilidades dramáticas trouxe para a música. O stile concitato
torna-se aqui o ícone da crise estética, do fim de uma era: o equilíbrio
formal do madrigal renascentista abre espaço para o gesto dramático,
exteriorizado e artificial. Marino se superpõe a Petrarca, e a relação
maleável e sensível entre texto e música de antigas peças como Ecco
mormorar l’onde dão lugar a um tratamento musical quase anti-
sintático, repleto de cesuras formais que passam a ser uma das
principais características das Cantatas.
Apesar das primeiras cantatas terem sido impressas em Veneza,
Roma destacou-se como o centro mais prolífico na produção do gênero
no século XVII. O expressivo número de famílias aristocratas em Roma
favoreceu a produção de cantatas – vários dos principais compositores
do gênero eram empregados permanentemente ou por curtos períodos
por algumas destas ricas famílias. As cantatas eram apresentadas em
reuniões conhecidas como conversazioni nas casas destes aristocratas.
O público constituía-se de cognoscenti que se deleitavam com a
erudição demonstrada nestes encontros, tanto nas conversas quanto na
música e poesia apresentadas. Os principais nomes ligados à Cantata
em Roma foram Luigi Rossi (1598-1652), Marco Marazzoli (1605-1662),
Mario Savioni (1608-1685), Giacomo Carissimi (1605-1674) e Antonio
Pietro Cesti (1623-1669). Neste ambiente aristocrático, a qualidade de
seus membros (virtù) era julgada pela forma como se apresentavam,
falavam, movimentavam-se ou mesmo dançavam, o que denota uma
alta valorização de aspectos exteriorizados e performáticos em voga no
momento. O costume dos jogos intelectuais a que se propunham nestes
encontros é relatado em inúmeros tratados: Il cortigiano, de Baltasare
50
Castiglione (Veneza, 1528), La civil conversazione, de Stefano Guazzo
(Veneza, 1574), Dialogo de’ giuochi, de Girolamo Bargagl, (Siena,
1572), Cento giuochi liberali, et d’ingegno, de Innocentio Ringhieri
(Bolonha, 1551) entre outros. Estes jogos revelam o alto valor que era
dado, neste ambiente do ócio cortês, à agudeza intelectual, ao gosto
pela arguzia (qualidade mordaz e espirituosa), à arte da finzione, ou
dissimulação. A gravità petrarquista combina pouco com o modus
vivendi do cortesão do século XVII. Nem as dores do amor deverão ser
tomadas tão a sério como o foram em toda a tradição madrigalista; as
leis do decoro, agora, pregam um permanente sorriso nos lábios, que
cria distância do mergulho interior produzido pela poesia de Petrarca a
Tasso. Em seu pequeno tratado de comportamento – Da dissimulação
Honesta, Nápoles, 1641 - Torquato Accetto recomenda que não se
permita que as coisas sejam vistas como realmente são: “Simula-se
aquilo que não é, dissimula-se aquilo que é. Disse Virgílio de Enéas: No
rosto simula a esperança, sufoca no coração a dor profunda” (Acceto,
1641/2001).
O amor não é mais o objeto preferido da antiga melancolia
petrarquista, mas um assunto a ser tratado jocosamente, com
exteriorizada ironia, como na canzonetta abaixo, do pai de Barbara
Strozzi:
Gira il nemico Amore O inimigo, traiçoeiro Amor cerca
la rocca del mio core. a fortaleza de meu coração.
su presto, ch’egli [è] qui poco lontano, rápido, que ele não está longe,
armi alla mano! armas em punho!
... ...
Cor mio, non val fuggir, Coração meu, não tente fugir,
sei morto e servo] estás morto e prisioneiro]
d’un tiranno protervo, de um tirano arrogante,
che ‘l vincitor, ch’è gia dentro alla piazza, pois o vencedor, que já está dentro
[da praça
grida: “Foco, ammazza!” grita: “Queimai, morrei”
(Monteveri/Malipiero, 1981)
51
A própria compositora, aos dezenove anos, abrirá a primeira
reunião da Academia degli Unisoni com um Soneto, no qual o amor é
tratado com um tom zombeteiro e cético: Quanti sciocchi al primo
sguardo / So promettono il gioir. / Sempre Amor, sempre è bugiardo /
Altr’è il fare, ed altre è il dir. (Quantos tolos, ao primeiro olhar, / só
prometem-se a felicidade. / Sempre Amor, sempre mentiroso / uma
coisa é o fazer e outra o dizer).
28
Stefano Guazzo, em seu tratado, relata um jogo proposto a um
determinado Signor Ercole, que deverá improvisar um lamento amoroso
dirigido a uma das senhoras presentes. A cena retrata bem a atmosfera
artificial e performática destas reuniões, nas quais as qualidades dos
participantes eram medidas por suas capacidades retóricas. A
improvisação é constituída de uma série de clichês retirados da tradição
poética dos lamentos, muito similar ao conteúdo encontrado nos textos
das cantatas. Nosso Signor Ercole levanta então o chapéu, estende a
mão a signora Lelia e assim declama:
A voi, bellissima angela del paradiso, a voi, miracolo del mondo,
a voi, mia vita, anzi a voi, mia morte, non vengo già sopra le
mie gambe, che ormai non può più reggere in piedi questo
misero corpo, ma son condotto sopra il trionfal carro d’Amore
ad annunziarvi con questa tremante e debole voce e con questo
poco di spirito che m’avanza la mia vicina morte. La quale non
m’avrebbe colto in su la primavera de’ miei anni, quando io non
avessi data fede a quel proverbio ch’egli sia meglio esser
martire che confessore, percioché ora conosco ch’io sono stato
micidiale di me medesimo, per non aver mai presso ardire di
confessarvi la mortal piaga che mi fecero nel cuore i bei
vostr’occhi nel torneo che si fece in questa città dell’anno
millecinquecentosessantasette, alli quindici maggio. Dove io
appressi a conoscere quanto si assicuri il giudicio degli uomini
per mezo de’ paragoni, perché essendo quivi un gran numero di
donne, alle quali è stato il cielo liberalissimo di grazie e di
bellezze, io ritrovai nel vostro viso tanta eccellenza e di bellezze
e di grazie sopra l’altre donne, ch’io dissi: “Ecco un sole fra le
stelle”, e giudicai subito che a voi degnamente si convenisse
quel detto:
Sparisce e fugge
28
Ver Anexos, página 274.
52
ogn’altro lume dove il vostro splende.
E con tutto ch’io mi sentisse già ferito da un pungente strale che
mi fu aventato da un vostro grazioso sguardo, io nondimeno mi
diedi a credere di potermene ancora uscire dalle vostre mani.
Ma quando poi ebbero grazia queste orecchie d’udire le soavi e
pellegrine parole che voi, quali rose, spargevate fra l’altre
donne, ohimè ch’a gran forza restai preso e legato, in sì fatta
maniera ch’io non seppi negare a me medesimo d’esser fatto
vostro prigione. Or torno a dire che preso animo di chieder
rimedio del male, avrei per avventura ritrovata tanta pietá nel
cuor vostro, che quella istessa mano che fece la piaga, l’avrebbe
anco risanata. Qui forse direte e che se non mi dava il cuore di
venir nel vostro cospetto, io doveva almeno chieder soccorso col
mezo di lettere. Ma io vi faccio sapere che più volte hò provato
di deporre in carta la grave soma de’ miei tormenti, ma sempre
com le lagrime che copiosamente vi cadevano sopra, si levava
la forma de’ caratteri, in manier che sì come ad Amor piace, io
son qui per passarmi all’altra vita. Ma perché la mia dolente
anima alberga, già da lungo tempo, nel vostro reale e generoso
cuore, io vi supplico che in mercede delle lunghe pene che per
voi ho, tacendo, amando e morendo, infin ad ora sostenute, non
mi neghiate almeno d’appressar la vostra bocca alla mia, e con
soave fiato sospingere essa anima al suo primo albergo, nel
quale entrando, chi sa?, potrebbe forse con la virtù di qualche
scintilla del vostro spirito, che con essa sarà congiunto, dar
ancora polso e lena a queste languide membra e serbale ancora
um poco di tempo alla servitù vostra. E quando pure per volontà
de’ cieli ella abbia a disgiungersi senza più termine dall’infelice
corpo, io morrò contento d’aver conosciuto col testimonio della
vostra bocca il desiderio ch’aveste della salute e della vita mia.
Onde consecrandovi lietamente i miei amorosi affetti, me
n’anderò al mio caminno, con speranza che voi nel mio partire
direte con voce pietose e con qualche lagrime:
Alma, ch’albergo avesti nel mio petto,
abbi or la su nel ciel degno ricetto.
A vós, belíssimo anjo do Paraíso, a vós, maravilha do mundo, a
vós, vida minha, a vós também minha morte, não venho mais
sobre as próprias pernas, que já não podem sustentar de pé
este corpo miserável, mas sou conduzido sobre o carro triunfal
do Amor para vos anunciar com esta voz débil e fraca, com este
pequeno sopro que ainda tenho, a aproximação de minha
morte. A qual não me teria acolhido na primavera de meus
anos, se não acreditasse naquele provérbio que diz ser melhor
ser mártir que santo
29
, pois agora sei que fui assassino de mim
mesmo, por não haver ousado confessar-vos a mortal chaga
produzida no meu coração por vossos olhos no torneio ocorrido
nesta cidade no ano de mil quinhentos e sessenta e sete, no dia
quinze de maio. Quando então compreendi quão correto é o
julgamento dos homens por meio da comparação pois estando
29
O santo, em contraposição ao mártir, professa a sua fé e escapa à morte. O amante
confessa seu amor numa última tentativa de escapar à morte que já vê aproximar-se.
53
ali um grande número de mulheres, com as quais foi o céu
generoso em graça e beleza, encontrei em vosso rosto tanta
superioridade em beleza e graça sobre as outras mulheres, que
eu pensei: “Eis um sol dentre as estrelas”, e logo refleti que a
vós dignamente faria jus o dito:
Desaparece e foge qualquer
outra luz onde a vossa própria resplandece.
E apesar de já me sentir ferido por dolorosa flecha que me foi
lançada por vosso olhar gracioso, eu, no entanto pus-me a crer
que podia ainda escapar de seu controle. Mas quando estes
ouvidos foram agraciados pelas suaves palavras peregrinas, que
vós, tal qual uma rosa, semeáveis entre as outras damas, ai de
mim, tornei-me preso e enlaçado, de tal maneira que não pude
negar a mim mesmo de ter-me tornado vosso prisioneiro. Agora
torno a dizer que se tivesse tido o ânimo de pedir a cura para
tal mal, receberia a ventura de tanta piedade de vosso coração,
pois a própria mão que produz a ferida, haveria também de
curá-la. Talvez diríeis que se não tive coragem de vir a vossa
presença, deveria ao menos pedir socorro por meio de carta.
Mas já que minha dolorosa alma há muito tempo habita vosso
majestoso e pródigo coração, peço-vos como consolo pelo longo
sofrimento de ao amar-vos ter-me mantido calado, e
suportando isto até então, morrendo, que ao menos não
recusais colocar vossos lábios sobre os meus e com vosso doce
hálito forçais minha alma de volta a sua primeira moradia... E
se por desejo dos céus [minha alma] deverá partir sem mais
atraso de seu corpo infeliz, deverei morrer satisfeito... com a
esperança de que em minha partida direis com piedosa voz e
algumas lágrimas:
Alma, que em meu peito vivestes,
que tenhas nos céus honroso
abrigo. (Guazzo/Freitas, 2001)
Conforme o relato de Guazzo, a reação do público é de riso (di
questo lamento risero tutti, come potete pensare / sobre este lamento
riram-se todos, como pudestes pensar). O motivo do riso não se explica
porque lamentos são agora tomados como uma tópica fora de moda (a
gigantesca produção de Cantatas sobre o mesmo tema atesta o
contrário) e a exibição de clichês do abandono amoroso por si só
provocaria o riso. A situação é espirituosa devido a sua artificialidade –
não existe realmente um palco: o protagonista finge um papel teatral
fora do teatro, ao lamentar-se ficticiamente de um amor que não existe
a uma senhora presente, coquetemente provocando-a por um beijo.
54
Aquela a quem o lamento fora dedicado - Signora Lelia - não demonstra
intimidar-se pela provocação: conhece as regras da civil conversatione,
e permanece no mesmo nível de finzione (fingimento) de seu
interlocutor, respondendo com arguzia:
S’io conoscessi, cortese e valoroso amante, che voi foste vicino
alla morte, come sonano le vostre dolenti parole, io non
mancherei di rendervi con un bacio l’anima vostra. (Se eu
soubesse, cortês e valoroso amante, que estáveis tão próximo
da morte quanto vossas penosas palavras o indicam, não
tardaria em restaurar vossa alma com um beijo.)
Como diria Corisca, a personagem de Guarini, ch’altro alfin
l’onestate ... / non è che un’arte di parere onesta (o que é enfim a
honestidade senão uma arte de parecer honesta) (Guarini, 2006). O
lamento do início da carreira de Barbara Strozzi, L’eraclito amoroso, em
nada se distingue em conteúdo do lamento improvisado pelo Signor
Ercole – difere apenas na organização do texto, em prosa, no caso de
Guazzo, em versos em Strozzi:
L’ERACLITO AMOROSO
Udite amanti la cagione, oh Dio,
ch'a lagrimar mi porta:
nell'adorato e bello idolo mio,
che sì fido credei, la fede è morta.
Vaghezza ho sol di piangere
Mi pasco sol di lagrime,
Il duolo è mia delizia
e son miei gioie i gemiti.
Ogni martire aggradami,
ogni dolor dilettami,
i singulti mi sanano,
i sospir mi consolano.
Ma se la fede negami
quell'incostante e perfido,
almen fede serbatemi
sino alla morte, o lagrime!
Ogni tristezza assalgami,
ogni cordoglio eternisi
tanto ogni male affliggami
che m'uccida e sotterrimi
ERÁCLITO AMOROSO
Escutai, amantes, a razão, oh, Deus,
que me traz o pranto:
no adorado e belo ídolo meu,
que tão fiel cria, a fidelidade está morta.
Prazer só tenho em chorar,
alimento-me só de lágrimas,
a dor é minha delícia
e são minhas alegrias os gemidos.
Cada martírio me agrada,
cada dor me apraz,
os soluços me curam,
os suspiros me consolam.
Mas se a fidelidade me é negada
por aquele inconstante e pérfido,
que ao menos fiéis se conservem
até à morte, Oh, lágrimas!
Que cada tristeza me assalte
Cada pesar se eternize,
cada mal me aflija,
me mata e me soterre.
55
As Cantatas do século XVII eram, portanto executadas no típico
ambiente da civil conversatione, nos círculos da aristocracia romana, ou
da inteligência das academias venezianas - como atestam diretamente
as reuniões da Accademia degli Unisoni, presididas por Barbara Strozzi e
freqüentadas por famosos literati, como Giovan Francesco Loredano, o
primeiro biógrafo de Marino
30
. A influência do poeta permeava todas as
esferas culturais, e ainda além delas: como notou Giovanni Battista
Nicolini, si marineggiava... dovunque e da tutti: in chiesa ... e in
taverna, a teatro e nelle Corti ... nelle aule dei tribunale e nei gabinetti
politici, negli atti legislativi, nei rogiti notariali e, dove meno si
crederebbe, nei dispacci dei diplomatici (se marineava em todo lugar: na
Igreja e na taberna, no teatro e nas Cortes ... nas salas dos tribunais e
nos gabinetes políticos, nos atos legislativos, nos atos notariais e, onde
menos se esperaria, nos despachos dos diplomatas) (Freitas, 2001, p
526).
Roger Freitas afirma que as Cantatas - cuja poesia é repleta de
clichês similares aos encontrados no lamento improvisado de nosso
Signor Ercole – não deveriam ser levadas a sério; seu fim primordial
seria o de demonstrar a um público conoscenti a capacidade do músico
de produzir arguzia em um ambiente urbano refinado. Com esta idéia
em mente, o autor tenta demonstrar como os compositores respondem
a convenções já estabelecidas pela ópera ao tratamento musical de
determinadas formas poéticas. Ao romper com certas regras, estariam
exercitando os modernos modelos da poética marinista. Os tipos de
música – recitativo, ária e arioso – deveriam corresponder a
30
A autoria dos textos das Cantatas de Strozzi não é sempre definida, e muitas vezes
os textos soam como se fossem improvisados (Che si può fare). Os autores
identificados em suas publicações são os seguintes, aparecendo mais de uma vez em
alguns casos: Livro 1: Giulio Strozzi; Livro 2: Giulio Strozzi; Cicognini; Pietro Paolo
Bissari; Livro 3: Loredano; Livro 7: Sebastiano Baldino; Gio. Petro Monesi; Rotillio
Lepidi; Pietro Dolfino; Pietro Dolfin; Marc’Antonio Corraro; Francesco Piccoli; Giorgio
Tani; Giovanni Pietro Monesi; Signor Pellicani; Nicola Beregani; Livro oitavo: Cavalier
Artale; Giuseppe Artale; Aurelio Aureli; Sig. Brunacci; Brunacci.
56
determinadas formas de verso. Passagens em versi sciolti, nas quais
não há esquemas regulares de metro e rima, são musicadas em
recitativo; enquanto configurações fechadas como a canzonetta são
usadas para as árias. A exceção se dá no arioso, quando um autor usa
versi sciolti (muitas vezes apenas um verso) como se fosse uma ária,
em geral para fechar uma seção em recitativo de forma mais lírica.
Estruturas poéticas estróficas recebem naturalmente tratamento musical
estrófico, repetindo a mesma música para cada estrofe ou usando
variações. Na ocorrência de refrão poético, o tratamento musical é
bastante óbvio, usando a mesma música a cada aparição do refrão.
Freitas defende que ao desestabilizar estas convenções, usando tipos de
música distinta da esperada para cada tipo de verso, o compositor
estaria produzindo refinada arguzia, pois o público sofisticado saberia
ouvir o rompimento de tais padrões. Giacomo Carissimi, um prolífico
compositor romano de Cantatas, parece desviar-se pouco destas
convenções e mantém-se bastante conservador no seu uso da poesia
per musica. Vejamos, por exemplo, quão convencional é o uso de tipos
de música para o poema In un mar di pensieri. Dividido em três seções,
todas construídas sobre o mesmo baixo, a estrutura musical segue
exatamente a estrutura do texto, produzindo-se assim uma Cantata em
forma de variações estróficas.
In un mar di pensieri,
l’alma solo s’aggira,
e con dolor si fieri,
nel suo martir sospira; (x3) Ária ternária
Perchè il fato d’un sventurato, no, no
non si può frangere, no (x2)
tocca a me sempre sempre di piangere. Recitativo
Non hà mai tregua o pace
di cure il mio pieno.
Così d’augel’ rapace,
esca è sempre il mio seno (x2) Ária ternária (ornamentada)
Perchè le stelle empie e rubelle, no, no.
non si può frangere, no.
tocca a me sempre sempre di píangere (x2) Recitativo (variação melódica,
ornamentada)
Qual di Sisifo il sasso,
il mio desir si trova
hor alto in cima, hor basso,
ma nulla al fin gli giova. (x2) Ária ternária
Che ria sventura sempre più dura,
no, non sì può frangere (x2)
tocca a me sempre sempre di píangere (x2) Recitativo; variação melódica sem
ornamentação
Ora, parece-me bastante improvável que em uma performance da
época, um ouvinte fosse sempre capaz de relacionar auditivamente o
tipo de verso com o tipo de música usado. É verdade, porém, que se
pode verificar em um número substancial de Cantatas, uma grande
inconsistência na relação entre música e texto - os conceitos
estabelecidos pela ópera que definiam com clareza as diferenças entre
recitativo, ária e arioso passam agora a ser usados com menos rigidez.
A quebra das regras impostas pelas convenções operísticas poderia
significar um simples exercício do marineggiare – no entanto, é pouco
provável que a platéia, mesmo culta, pudesse perceber este artifício
auditivamente quando a música rompia com estas convenções.
Observemos, por exemplo, um trecho de Lagrime mie, no qual Barbara
Strozzi transforma um verso irregular de onze sílabas em uma ária
ternária, com acentos bem definidos:
E voi lumi dolenti, non piangete.
57
Seria muito difícil afirmar que a autora tenta criar qualquer efeito
arguto perceptível ao superpor versos irregulares sobre música regular –
afinal o efeito não é audível: escuta-se simplesmente uma ária ternária.
Muitas outras ocorrências similares podem ser vistas na obra de Strozzi;
encontramos, por exemplo, um surpreendente caso de recitativo parlato
sobre versos regulares de oito sílabas (a qual barbara sventura; página
95), ou uma longuíssima ária ternária sobre versi sciolti (Apresso il caro
bene / gradite eran le pene, / m’era dolce il soffrir, soave il foco; página
100).
A execução de uma Cantata, não pode ser diretamente
relacionada à improvisação do lamento acima relatado por Guazzo,
apesar dos textos muitas vezes não passarem de um amontoado de
clichês similares. Os giouchi (jogos) presentes nos salões ou nas
academias consistiam em desafios intelectuais propostos entre os
58
59
participantes. Pode-se ver um exemplo deles na primeira reunião da
Accademia degli Unisoni, descrita no documento aqui transcrito e
traduzido como “A contenda do Canto e das Lágrimas”. Neste
documento podemos testemunhar o gosto pelo artificialismo intelectual
e pelo aspecto performático destas reuniões. Um tema é proposto e dois
membros da academia discorrerão longamente sobre o assunto, como
dois advogados, exercitando sua mais refinada capacidade retórica, por
menos relevante que seja o ponto a ser defendido. Na Veglia Prima
acompanhamos de perto a atmosfera de uma destas reuniões presididas
por Barbara Strozzi: um Soneto do compositor Francesco Belli é
dedicado à compositora, que logo a seguir canta uma ária, convidando
os acadêmicos ao discurso (página 275). Não possuímos documentação
sobre a quantidade de música que era executada nestas reuniões, mas
em vista da grande produção de Barbara Strozzi, podemos pensar que
ela cantava por um tempo considerável
31
. Seu primeiro livro de
madrigais, publicado em 1644, consiste de peças escritas para diversas
vozes e ocorre, a partir do segundo livro de Cantatas, a presença de
mais de um cantor e eventualmente de dois violinos. O contínuo implica
na participação de no mínimo um cravista acompanhador. A afirmação
de Ellen Rosand de que Strozzi acompanhar-se-ia à teorba pode ser
verdadeira apenas para algumas peças mais simples, em geral a parte
de contínuo em suas peças requer um instrumento capaz de executar
um baixo muito movimentado (ideal para uma viola da gamba) e
acrescentar uma harmonia bastante rápida - um atributo inexeqüível
para uma única teorba. O nível de dificuldade de grande parte de sua
obra, seja para conjunto ou solo, pressupõe uma preparação prévia
mínima, por mais experientes e talentosos que fossem os músicos.
Podemos assim concluir que a execução de sua música não era um mero
31
O famoso castrato Atto Melani (1626-1714) relata uma de suas performances
durante um jantar para o Imperador do Sacro Império Romano, Ferdinando III, na
qual teria cantado durante três horas.
60
giuocho improvisado a cada reunião, mas uma apresentação
cuidadosamente preparada e executada. A expectativa de que esta
música fosse apreciada deve estar diretamente relacionada ao nível da
dificuldade vocal e instrumental que ela apresenta – qualidades que
mereceram o apreço e elogio de tantos (ver o comentário de Pepush no
capítulo 6, página 173).
No universo das Cantatas, o marineggiare não se explica pela
provocação intelectual que causaria a quebra das convenções da poesia
per musica. A importância de Marino para o surgimento do gênero é
fundamental e, ao compreendermos como sua influência permeou cada
instância da vida cultural e pública do período, faz-se mais clara a
compreensão dos significados que envolvem a produção e recepção da
Cantata. No Canto V de Adone, Marino ocupa trinta e nove estrofes para
descrever os personagens Venus e Adonis assistindo a uma
arrebatadora produção teatral. “Tanto o teatro com sua elaborada
arquitetura cósmica quanto o palco, com sua maquinaria complexa,
rápidas mudanças de cena e intermezzi extravagantes, refletem um
gosto pelo espetáculo absolutamente típico da vida cultural e social do
seicento; um gosto que um crítico habilmente chamou de
desbordamiento de lo teatral em todas as áreas da arte e da cultura
(Dìaz, 1969). Ao entrarem no grande saguão, Venus e Adonis não se
deparam com um simples teatro, mas com um símbolo do universo, em
uma alusão à conhecida metáfora do Theatrum Mundi:
Qui per cento finestre immensa sala Aqui por cem janelas o dia penetra
di polito cristallo il giorno prende na imensa sala de polido cristal
e in un bel quadro di mosaico terso, e num belo quadro de límpido mosaico
la figura contien del universo. compõe-se o desenho do universo.
Não existe documentação definitiva de que as Cantatas fossem
encenadas ou semi-encenadas, mas o ambiente fortemente teatral das
notte piacevolli (Freitas, 2001) faz-nos pensar que esta seria uma
possibilidade bastante plausível. O limiar entre música vocal pura e
61
música vocal para teatro é tênue – e as diversas experimentações da
geração imediatamente anterior à de Strozzi atestam esta flexibilidade
de meios de performance. Lembremo-nos que o costume dos cantores
de expressarem melhor o conteúdo emocional de sua música com o
apoio de um verdadeiro manual de retórica gestual remonta ao final do
século XVI (cuja prática levara Artusi a criticar ferozmente o “ridículo”
hábito). Os próprios termos que descreviam as inovações musicais da
época como stile recitativo, rappresentativo e espressivo denotam a
profunda ligação da música vocal com a música cênica, e são objetos de
uma longa discussão de Giovanni Battista
Doni em seu Trattato della
musica scenica de 1633-5. O autor diz:
Per stile dunque recitativo s’intende oggi quella sorte di
melodìa, che può acconciamente, e con garbo recitarsi, cioè
cantarsi da un solo in guisa tale, che le parole s’intendano, o
facciasi ciò sul palco delle scene, o nelle Chiese, e Oratorj a
foggia di Dialoghi, o pure nelle Camere private [grifo meu], o
altrove; e finalmente con questo nome s’intende ogni sorte di
Musica, che si canti da un solo al suono di qualche strumento,
con poco allungamento delle note, e in modo tale, che si
avvicini al parlare comune; ma però affetuoso ... Ma per
Rappresentativa intendere debbiamo quella sorte di melodìa,
che è veramente proporzionata alla Scena, cioè per ogni sorte di
azione Drammatica, che si voglia rappresentare (i Greci dicono
µιµεϊδαι: imitare) col canto, che è quase l’istesso, che l’odierno
stile Recitativo, e non del tutto il medesimo; perchè alcune cose
se gli doverebbono levare per perfezionarlo, e altre aggiugnerli,
come appresso si dimostrerà. Più dunque mi piace di chiamare
questo stile accomodato alle Scene, Rappresentativo, o Scenico,
che Recitativo; sì perchè gli Attori detti in Greco υποκριταί, e in
Latino
Histriones non recitano, ma rappresentano; imitando le
azioni, e costumi umani; sì anco perchè come ho dimostrato ne’
miei Discorsi musicali, questo stile ottimamente si adatterebbe
al recitare in pubblico al suono di alcuno instrumento, conforme
l’antica usanza, qualche Poema eroico ....
Por estilo recitativo, pois, se compreende hoje o tipo de melodia
que se pode recitar corretamente e com garbo, isto é, o canto
solo, de tal modo que se compreendam as palavras, ou que se
faça no palco ou nas Igrejas e oratórios em forma de diálogos,
ou nas câmaras privadas, ou em outro lugar; e finalmente com
este nome entende-se todo tipo de música, que se cante solo ao
som de qualquer instrumento, com pouco alongamento das
notas, e de tal forma que se aproxime da fala comum, mas, no
entanto afetuosa.
62
Mas por rappresentativo devemos entender um tipo de melodia
que é verdadeiramente correspondente ao palco, isto é, para
cada tipo de ação dramática que se deseja representar (os
gregos dizem µιµεϊδαι, ou seja, imitar) com o canto, que é
quase igual ao stile recitativo atual, mas não completamente,
porque algumas coisas deveriam ser removidas para levá-lo à
perfeição ... Portanto agrada-me mais chamar este estilo
apropriado para o teatro de rappresentativo ou scenico, ao
invés de recitativo, porque os atores em grego chamados de
υποκριταί e em latim de histriones não recitavam, mas
representavam, imitando as ações e costumes humanos, e
também porque como já demonstrei em meu Discorsi musicali,
este estilo seria muito apropriado para a recitação em público
ao som de algum instrumento, conforme a prática antiga, de
algum poema heróico... (Doni, 1763).
Assim vemos o quanto a música vocal desta geração carregava em
si um enorme potencial teatral, mesmo quando não estava
deliberadamente destinada ao teatro. Já nas palavras do subtítulo dos
Madrigali guerrieri, et amorosi de 1638 de Monteverdi, percebe-se
várias possibilidades de execução: con alcuni opuscoli in genere
rappresentativo, che saranno per brevi Episodij frà i canti senza gesto
(com algumas pequenas obras em estilo representativo, que servirão
como breves episódios entre os cantos sem gesto). No desdobramento
do volume, não fica sempre explícito quais obras são destinadas à ação
cênica, com algumas exceções claras como Il combattimento di Tancredi
e Clorinda e o Lamento della ninfa ou o BalloVolgendo il ciel per
l’immortal sentiero”, este último com instruções precisas para ação e
dança. O pai de Barbara Strozzi envolveu-se na produção de Proserpina
rapita, uma obra escrita para o casamento de Giustiniana Mocenigo e
Lorenzo Giustiniani, em abril de 1630. A obra continha não somente a
música de Monteverdi, mas igualmente dança. O próprio Giulio Strozzi
participou teatralmente na produção, declamando, no papel de
Pachinos, um elogio ao famoso compositor: Quanto nel chiaro mondo /
su VERDI arcadi MONTI / di te si cantarà? (Quanto no claro mundo / em
VERDI MONTE da Arcádia / sobre ti se cantará?). Volgendo il ciel per
63
l’immortal sentiero é uma obra para cantor solista e dois violinos, que
entremeiam a peça com ritornelli, de maneira semelhante a Hor che
Apollo, de Strozzi. Não conhecemos nenhum relato sobre a execução do
Lamento della ninfa e tampouco sabemos para que ocasião precisa foi
escrita. Enquanto outras obras são suficientemente documentadas em
relação à encenação, esta última recebe apenas a sugestão de
Monteverdi: “Rappresentativa” surge como subtítulo da peça. Trata-se
de uma pequena obra de câmara, distinta em sua magnitude das outras
obras encenadas. No entanto, se seu destino explícito não era o teatro,
seu conteúdo e apelo dramático são fortes o suficiente para conter
desde a retórica gestual já usada na tradição tardia madrigalista, até
mesmo uma encenação mais explícita, sem o aparato cênico reservado
a peças de maior envergadura. Ao pensarmos na recepção do Lamento
d’Arianna, e nas inúmeras cópias que circulavam profusamente nas
mãos de um público profissional e amador, perguntamo-nos que
influência teria tido a performance teatral da peça (como foi concebida
originalmente), na sua execução em um ambiente social menos formal
do que um teatro, mas tão codificado quanto o ambiente da civil
conversatione. A influente visão de Marino do mundo como um teatro
fora completamente absorvida pelas reuniões sociais, como vimos na
descrição de Guazzo. As Cantatas de Barbara Strozzi ajustam-se
perfeitamente a este ambiente do transbordamento teatral, e peças
como Hor che Apollo com seus numerosos e expressivos ritornelli
convidam a algo mais do que uma atuação neutra de um cantor à
espera de seu momento para cantar. A presença de ritornelli em ópera
ou nas peças dramáticas mais curtas como os balli ou outros gêneros
indefinidos
32
implicam em dança ou ação cênica. É perfeitamente
plausível imaginar que as Cantatas seguissem o mesmo modelo da
32
Os gêneros dramáticos em música incluem muitas experimentações no século XVII,
desde o uso de pantomima no Combattimento, dança nos diversos Balli, até formatos
desconhecidos como o enigmático “anatopismo” em Proserpina rapita.
64
musica rappresentativa de câmara, e que os mais diversos tipos de ação
cênica, certamente em dimensões mais modestas do que no teatro,
fossem experimentadas em sua execução.
O conteúdo dos lamentos nas Cantatas, como vimos acima,
aproximavam-se do lamento de Guazzo. Percebe-se, nas Cantatas, certo
desdém com o texto, tomado de maneira mais frívola do que na tradição
anterior do madrigal. Nisto vemos a clara influência marinista, na qual,
das dores do amor ou rimos ou as tratamos tão artificialmente que se
transformam em sofisticados jogos de linguagem (ver a versão de
Arianna de Marino, pg 69). Em Strozzi, nos deparamos ainda com um
terceiro fenômeno no qual o texto se transforma em mera escusa para a
produção de música. Isto fica claro numa passagem em H’or che Apollo,
quando os insípidos sintagmas sì sì - verso sete - transformam-se,
graças à música, num mergulho emocional ímpar. O efeito é de uma
dramaticidade incomum na época, antecipando a cisão que passa a
ocorrer entre música e texto que haverá de culminar no drama musical
da produção instrumental do século XVIII
33
. Se em Marino os lamentos
eram puro exercício de virtuosismo lingüístico, desprovidos de qualquer
tentativa de revelar uma interioridade emocional, em Guazzo eram
giocchi retóricos, nos quais a revelação do sofrimento interior não
passava de simulação. Em ambos tratava-se de uma construção
distanciada de qualquer emoção profunda.
A recepção das cantatas fazia parte dos hábitos em voga da civil
conversazione – eram feitas dentro do espírito da época do consumo
elegante, coquete, mais da superfície do que da interioridade, da
imagem externa e não da emoção profunda. Afetos ligados ao
sofrimento eram permitidos desde que apresentados com um
distanciamento que tornava a emoção algo sempre alienado, relatado,
33
As atribuições dramáticas da música puramente instrumental do período clássico são
apontadas por Charles Rosen em seu livro, The Classical Style, Haydn, Mozart,
Beethoven.
65
mas não verdadeiramente sentido. Em Strozzi, os textos dos lamentos
apontam nesta mesma direção – não podemos crer na “sinceridade” de
qualquer um deles. No entanto, a leitura musical destes textos oferece
novas possibilidades. A primeira, plenamente de acordo com os ditames
da voga marinista, imbui sua música de técnicas encontradas na poesia
de Marino: cesuras formais freqüentes, fragmentação do discurso,
abandono da subjetividade por imagens exteriores (ver em Apresso ai
molli argenti a mimese musical do rio, na qual a dor de Fileno
transforma-se em imagem exterior), emoções dissecadas como um
exercício de anatomia (o afeto do combate interno que se torna ação em
concitato; ver pág. 94), súbitas aparições da presença da autora,
falando de dentro da obra com o espectador (a qual barbara sventura,
pg 95), colagem de afetos conflitantes (em Lagrime mie, pg 122), etc.
Pudemos ver acima como Monteverdi, na fase final de sua obra (a
partir de 1638), alternava duas abordagens opostas em sua música. Por
um lado, conservava-se fiel aos preceitos da poesia petrarquista,
mantendo uma relação maleável e sutil entre texto e música,
mergulhando musicalmente no cerne da emoção, escondido por detrás
da palavra. Por outro lado, rompia com a tradição petrarquista,
atribuindo características marinistas a textos até mesmo do próprio
Petrarca, como vimos em Hor che ’l ciel e la terra e ‘l vento tace.
Barbara Strozzi, em sua obra, utiliza-se de ambos os recursos, mas
ainda encontra uma terceira possibilidade, na qual, os textos, sempre
impregnados pelo forte marineggiare, são tratados de maneira sui
generis. A autora investe de pathos um texto que não implica tamanha
subjetividade, percorrendo o caminho contrário criado por Marino: este
rompia com a busca de subjetividade, fixando em imagens externas o
que pertencia ao interior. Strozzi usa o texto marinista, exteriorizado e
artificial, como subterfúgio para mergulhar num universo de melancólica
subjetividade. Hor che Apollo, por exemplo, é uma peça na qual o texto
torna-se apenas pretexto para a destilação voluptuosa da dor do
66
abandono. Podemos pensar em uma leitura petrarquista de um texto
marinista, que resulta numa antecipação quase visionária do que se
realizaria mais de um século mais tarde. Se os caminhos da ópera do
século XVII levaram a uma cisão entre música e palavra devido ao gosto
de um público ávido por acrobacias vocais, Strozzi redimi-se dos
exageros melodramáticos, confiando no poder da música de encontrar
sutilezas emocionais escondidas muito além da palavra. Nas Cantatas
da virtuosissima cantatrice, deparamo-nos com uma confluência de
tradições diversas – inseridas no ambiente da mais alta sofisticação
intelectual, sua composição expressa a convergência das correntes
múltiplas do pensamento seiscentista, já vislumbrando a música de uma
nova era.
67
CAPÍTULO 4
UMA OUTRA ARIANNA
Para o casamento do Príncipe Francesco e Marguerita de Sabóia,
em Mântua, em 1608, vários dias de festividades foram organizados, e
dentre numerosas produções teatrais e musicais, a segunda ópera de
Monteverdi, Arianna, foi encenada. A este evento compareceram
“príncipes, princesas, embaixadores, damas convidadas, e o maior
número de cavalheiros estrangeiros que o teatro podia abarcar, o qual,
apesar de ter uma capacidade de seis mil e algumas pessoas a mais ...
nem o Capitão Camillo Strozzi ... foi suficiente para aquietar tamanha
multidão [que tentava entrar]...” (Fabbri, 1996. p 85). Os poetas
Chiabrera e Rinuccini encontravam-se na corte de Mântua para
supervisionar as encenações das peças para as quais haviam produzido
os textos. O noivo escreveria de Turim a seu irmão, o Duque Ferdinando
Gonzaga: “Vossa Mais Ilustre Senhoria está envolvido em poesia,
estando em companhia do Senhor Rinuccini e do Senhor Chiabrera, mas
eu não estou sem poetas, pois Marino está aqui, e ele é o homem mais
galante do mundo.” (Fabbri, 1996. p 84). Marino envolver-se-ia com as
festividades de Mântua ao responder a um desafio escrito por Chiabrera
intitulado Il trionfo dell’onore e concebido pelo próprio príncipe
Francesco. Ambicioso e cosmopolita como era Marino, não é nada
surpreendente que o poeta tenha respondido ao sucesso da Arianna de
Rinuccini-Monteverdi com um poema homônimo de sua autoria,
contendo nada menos que setecentos e oitenta e um versos. A
prolixidade do autor era notória, mas as diferenças estilísticas entre as
duas Ariannas fazem-nos compreender as mudanças estéticas que
advieram com a forte presença da poesia de Marino. O poeta dedica-se
a sua misera Arianna, rotta dal mare e dal viaggio stanca (triste
Arianna, enfraquecida pelo mar e cansada da viagem) num crescendo
68
de fantasia e sensualidade nunca visto entre poetas da mesma época.
Seu corpo é descrito em detalhes minuciosos, com o prazer voyeurista
de um poeta fascinado por imagens profundamente eróticas ao espiar
sua personagem adormecida, inconsciente de seu olhar: sovra l’orlo del
lido /... / dove giacea l’innamorata donna: / nuda no, d’una gonna /
velata sol semplicemente bianca ... (sobre as margens da orla
[marítima] / onde jazia a moça enamorada: / nua não, com uma
camisola / coberta levemente branca). E mais adiante: ed ai recessi
interni / de l’ultime bellezze, ove natura / vergognosa s’asconde, scopria
del vago seno / le palpitanti e tepidette neve (e nos refúgios internos /
da suprema beleza, onde a natureza / envergonhada se esconde,
descobria o belo seio / a palpitante e tépida neve).
O trecho do lamento de Arianna em primeira pessoa distancia-se
enormemente daquele de Rinuccini: a personagem torna-se rasa,
despida de profundidade psicológica. Enquanto a tradição madrigalista
ligada a Petrarca explorava o impulso criativo a partir do interior,
expressando uma vasta gama de nuances psíquicas, com o efeito de
meraviglia, ao contrário, a introspecção perdia espaço. Marino evita o
subjetivo ao fragmentar e fixar-se em imagens particulares que
descrevem exteriormente um personagem. A subjetividade se
corporifica em imagem externa, como podemos ver quando Marino
traduz a queixa de Arianna pela brevidade de seu encontro com Teseu
na imagem das estrelas do poente e do alvorecer. Não há nenhuma
intenção de realismo – mulher alguma, na situação em que se
encontrava Arianna, queixar-se-ia do desaparecimento do amado
durante a noite de forma tão engenhosa: Misera, e chi m’hà tolto / il
mio dolce compagno?/ lassa, perchè quel bene, / ch’Espero mi concesse,
/ Lucifero mi fura? (Infeliz, quem me privou / de meu doce
companheiro? / ai de mim, porque aquele bem, / que Héspero me
concedeu, / Lúcifer me roubou?). Marino amplia apenas os trechos de
Rinuccini nos quais Arianna vitimiza-se com a situação em que se
69
encontra e descarta todos os contrastes emocionais tão sutilmente
explorados por Monteverdi: Dunque, perfido, dunque / a questa guisa
lasci / colei, che per te solo / lasciò la patria e ‘l padre? / Io ti campai la
vita, / tu m’esponi a la morte (Assim, pérfido, assim / desta maneira
deixas / aquela, que por ti somente / deixou a pátria e o pai? / Eu te
salvei a vida, / tu me expões à morte). E ainda: torna, deh, torna
indietro, / menami teco, e poi / ti servirò d’ancella, / se non vorrai di
sposa. / Ti tesserò le tele / per la novella moglie; / t’acconcerò le piume,
/ dove con lei ti corchi; / darò l’acqua a le mani, / se non con altro vaso,
/ con l’urne di quest’occhi (retorna, ai, retorna, / toma-me contigo, e
depois / te servirei de escrava, / se não me quiseres como esposa. /
Tecer-te-ei os véus / para a nova mulher; / ordenar-te-ei o leito, / onde
com ela te deitarás; / darei água às mãos, / se não com outro vaso, /
com as urnas destes olhos). A personagem perde densidade com a
pirotecnia verbal de Marino. Se em Rinuccini o objetivo era o de
provocar fortes emoções no espectador, que “acreditava” e emocionava-
se em compassio com a dor de Arianna, em Marino, o espectador não
sente dor nenhuma. Mantém um meio-sorriso nos lábios e se compraz
quando compreende a beleza dos jogos argutos que ele produz: Tu, che
del mar sei nata, / madre d’Amor benigna, / bellissima Ciprigna, /
perchè nel mar permetti / un tanto tradimento (Tu, que do mar és
nascida, / mãe do Amor benigna, / belíssima estrela de Chipre, / por
que no mar permites / tamanha traição). Não há nestes versos, como
havia em Rinuccini, nenhuma relação da personagem com a própria dor:
se é que existe uma personagem, ela pensa em demasia, não se queixa,
enfurecida, da traição a qual foi acometida, mas constrói um discurso
que elimina qualquer possibilidade de realismo. A arguzia que se
constrói para que o leitor decifre seu conteúdo – a estrela de Chipre que
corresponde à estrela Vênus que por sua vez é a estrela do amor e que,
portanto, tendo nascido do mar, não poderia permitir tamanha traição –
pode somente provocar uma reação de satisfação intelectual. O
70
espectador que Marino forma não chora, mas sorri – mantém-se em
controle, num distanciamento decoroso, no qual a emoção se dissimula,
e deve-se “pôr freio aos afetos ... como súditos da razão” Acetto, 2001,
p 26).
Todo o conflito emocional descortinado por Rinuccini, a complexa
construção psicológica de um personagem à beira da loucura, em Marino
perde completamente o interesse. Não há nenhuma percepção sutil da
psique feminina, o único aspecto do feminino que lhe chama a atenção é
o corpo, desabitado de qualquer alma:
“Misera, e chi m’ha tolto
il mio dolce compagno?
lassa, perché quel bene,
ch’Espero
34
mi concesse,
Lucifero
35
mi fura?
perchè quanto cortese
mi fu la sera oscura,
320 tanto l’aurora chiara
mi si dimostra avara?
Dite, ditemi, o scogli,
duri scogli, aspri sassi,
chi è, chi m’hà rapito
325 colui che mi rapio
da la paterna reggia?
Se fu Borea
36
superbo,
supplico Orizia
37
bella
che ‘l faccia un’altra volta
330 risospingere al lido;
se Zefiro
38
spietato,
prego Clori
39
pietosa
ch’ogni piacer gli neghi,
tanto ch’a me nol renda;
335 se fu fors’Euro
40
audace,
o pur Noto
41
rapace,
con Eolo
42
mi querelo,
Infeliz, quem me privou
de meu doce companheiro?
ai de mim, porque aquele bem,
que Héspero
52
me concedeu,
Lúcifer
53
me roubou?
porque se tão cortês
foi para mim a noite escura,
se demonstra tão avara
comigo a aurora clara?
Digam-me, digam-me, oh rochedos,
duros rochedos, ásperas pedras,
quem é que de mim arrebatou,
aquele que a mim raptara
do reino paterno?
Se fosse Bóreas soberbo,
suplicaria Orizia bela
que faça uma vez mais
repelir à orla;
se Zéfiro impiedoso,
peço a Clori piedosa
que todo prazer lhe negue,
mas que a mim mo devolva;
se fosse talvez Euro audaz,
ou mesmo ávido Noto,
com Eolo me queixo,
34
Espero: anoitece (todas as notas relativas a este poema são traduzidas diretamente
da edição de Asor Rosa).
35
Lucifero: a estrela Venus, quando surge a manhã; toda a expressão quer dizer que o
amor de Teseu por Arianna dura apenas uma noite.
36
Borea: vento do norte.
37
Orizia: mãe de Borea.
38
Zefiro: vento do poente.
39
Clori: mãe de Zefiro.
40
Euro: vento do Oriente.
41
Noto: vento do meio-dia.
42
Eolo: rei dos ventos, dos quais dependiam todos aqueles nomeados antes.
71
e le lor fraudi accuso.
Ma se sol per fuggirmi,
340 fellone e traditore,
il crudo Teseu mio
sen va da me lontano,
abbia al suo corso iniquo
l’onde contrarie e i venti,
345 le stelle e gli elementi.
Dunque, perfido, dunque
a questa guisa lasci
colei, che per te solo
lasciò la patria e ‘l padre?
350 Io ti campai la vita,
tu m’esponi a la morte,
Io ti donnai lo stame,
per cui libero uscisti
da gl’intricati giri
355 del carcere confuso;
tu tra questi deserti,
ond’uscir mai non spero,
inculti, abbandonati,
disleal, m’abbandoni.
360 Io ti sottrassi al rischio
del gran mostro biforme
43
,
ed a la tua posposi
la fraterna salute
44
;
tu sì malvagiamente
365 ingrato e sconoscente
preda mi lasci ed esca.
de le selvagge fere.
Ecco le ricompense
de l’amor che t’ho mostro;
370 ecco i premi ch’acquisto
di quanto ho per te fatto,
o del mar, che ti porta,
più instabile e crudele!
Vele fugace, o vele,
375 che di liev’aura gonfie
e os seus fraudes acuso.
Mas se somente para escapar-me,
implacável traidor,
o meu cruel Teseu
parte para longe de mim,
que tenha em seu curso iníquo
as ondas contrárias e os ventos,
as estrelas e os elementos.
Assim, pérfido, assim
desta maneira deixas
aquela, que por ti somente
deixou a pátria e o pai?
Eu te salvei a vida,
tu me expões à morte,
Eu te dei o fio,
pelo qual livre saíste
das voltas intrincadas
do cárcere confuso;
tu, nestes desertos,
de onde sair já não espero,
descuidados, abandonados,
desleal, me abandonas.
Eu te livrei do risco
do grande monstro biforme,
e a tua [amada] postergaste
o fraterno cumprimento;
tu tão perversamente
ingrato e sem reconhecimento
presa me deixas e partes
das feras selvagens.
Eis a recompensa
do amor que te demonstrei;
eis o prêmio que recebi
de tudo que por ti fiz,
Oh, [ser] do mar que te leva,
Mais instável e cruel!
Velas fugazes, Oh velas,
que de leves ares se inflam
43
Biforme: o Minotauro (ou Semitauro, como o chama Arianna, possuía o corpo de
homem e a cabeça de touro.
44
la fraterna salute: Arianna era filha de Pasifae, como o Minotauro.
45
Felice …gittate: “É a tradução do virgiliano: ‘Felix, heu nimium felix, si litora tantum
– numquam Dardanidae tetigissent nostra carinar!’ Aen., IV, 657-58” (Balsamo-
Crivelli).
46
Ciprigna: Venus.
47
monte Ideo: o monte Ida, na ilha de Creta.
48
tradito padre: Minosse, rei de Creta e pai de Arianna: foi ele que prendeu no
labirinto o Minotauro, a quem oferecia como jantar os jovens desaventurados que
Atenas devia oferecer-lhe em tributo.
49
nobi l re ditteo: Minosse; Ditte era um monte da ilha de Creta.
50
la nepote del Sole: Pasifae era filha do Sol.
51
la ... Giove: Minosse era filho de Giove.
72
su per l’acque volate,
se la vostra bianchezza
rappresenta il candore
de la mia fede pura,
380 la vostra leggerezza
si rassomiglia al core
volubile, incostante,
del mio fallace amante.
Oh inganno malvagio,
385 oh tradigion perversa!
son questi gl’imenei,
queste son le promesse?
i giuramenti questi,
quando la fé mi desti
390 con maritaggio atero
Volar farmi beata?
Oh sciocca e forsennata
femina che si piega
ad amator che prega!
395 Ah, non sia sì leggera
vergine mai, che creda
a lusinghe ed a vezzi
di giovane importuno,
che mentre il desir ferve,
400 tutto promette e giura;
ma tosto ch’adempito
ha l’ingordo appetito,
passa l’amor, né cura
sacramento né patto;
405 si sazzia immantinente,
ama cangiar sovente,
ed, appena veduta,
nova beltà desia,
e ‘l primo foco oblia.
410 Oimè, come no temi
al tuo grave peccato
da ciel giusta vendetta,
spergiuro scelerato?
Ma che? sempre l’ingrato
415 suol essere infedele.
Felice, o me felice,
se mai l’attiche navi
l’ancora nel mar nostro
non avesser gittate
45
,
420 né questo maledetto
peregrino straniero
ad approdare in Creta
fusse già mai venuto;
o fusse al Ciel piaciuto
425 ch’ucciso pur l’avesse
nel cieco labirinto
il Semitauro fiero.
Lingua mia folle, ah taci:
ché di colui, ch’adoro,
430 lo scherno ancor m’è dolce,
sobre as águas voais,
se a vossa alvura
representa o candor
de minha fidelidade pura,
a vossa leveza
se assemelha ao coração
volúvel, inconstante,
de meu falso amante.
Oh, engano pérfido,
Oh, traição perversa!
é este o matrimônio,
estas são as promessas?
estes são os juramentos,
quando me fizeste confiar
num casamento sem asas
voar beatificada?
Oh, cega e louca
mulher que se dobra
ao amante que implora!
Ah, não fosse tão inconseqüente
virgem, que cria
nas seduções e dotes
de jovem impulsivo,
que enquanto o desejo ferve,
tudo promete e jura;
mas assim que é saciado
o voraz apetite,
passa o amor, nem cuidada
promessa, nem pacto;
se sacia subitamente,
ama mudar seguido,
e, apenas consumada,
nova beldade deseja,
e o primeiro fogo esquece.
Ai, de mim, como não temes
a teu grave pecado
do céu justa vingança,
mentiroso nefasto?
Mas que? Sempre o ingrato
será somente infiel.
Feliz, Oh, feliz de mim,
se jamais o navio ático
a âncora em nosso mar
não houvesse jogado,
nem aquele maldito
peregrino estrangeiro
a aproar em Creta
não tivesse jamais vindo;
ou que fosse ao Céu aprazido
que morto no entanto o tivesse
no cego labirinto
o Minotauro feroz.
Língua minha louca, ah, cala-te:
que dele, que eu adoro,
a lembrança ainda me é doce,
73
l’inganno ancor m’è caro.
Teseu mio, ti perdono:
torna, deh, torna indietro,
menami teco, e poi
435 ti servirò d’ancella,
se non vorrai di sposa.
Ti tesserò le tele
per la novella moglie;
t’acconcerò le piume,
440 dove con lei ti corchi;
darò l’acqua a le mani,
se non con altro vaso,
con l’urne di quest’occhi:
pur ch’io goda de’ tuoi
445 il desiato raggio,
in ufficio sì vile
mi terrò fortunata.
Tu, che del mar sei nata,
madre d’Amor benigna,
450 bellissima Ciprigna
46
,
perchè nel mar permetti
un tanto tradimento,
né fai ch’arresti il vento
la fuggitiva armata?
455 Che farò, sventurata?
Ho perduto in un punto
Creta insieme ed Atene,
e genitore e sposo.
Lassa, dove rimango?
460 misera, dove andronne?
Drizzerò forse I passi
al patri monte Ideo
47
,
da cui golfo sì largo
m’allontana e divide?
465 rivolgerò le piante,
facendo pur ritorno
al mio tradito padre
48
,
dal cui grembo mi tolsi
per seguir follemente
470 l’empio mio fratricida?
o consolar mi deggio
sovra il fido e leale
amor del buon consorte,
lo qual da me per l’onde
475 sì rapido sen fugge,
che l’arrancata voga
de’ ben spediti remi
è lenta a tanta fretta?
Ma quando ancor volessi,
480 oimè! Quinci partire,
qual legno attendo in questa
solitudine orrenda,
da cui sbandito veggio
ogni commercio umano?
485 in cui Fortuna scarsa
o engano ainda me é caro.
Teseu meu, te perdôo:
retorna, ai, retorna,
toma-me contigo, e depois
te servirei de escrava,
se não me quiseres como esposa.
Tecer-te-ei os véus
para a nova mulher;
ordenar-te-ei o leito,
onde com ela te deitarás;
darei água às mãos,
se não com outro vaso,
com as urnas destes olhos:
para que eu goze de ti
o desejado raio,
em ofício tão vil
me manterá afortunada.
Tu, que do mar és nascida,
mãe do Amor benigna,
belíssima estrela de Chipre,
porque no mar permites
tamanha traição,
não fazes que pare o vento
para a fugitiva armada?
Que farei, desventurada?
Perdi de uma só vez,
Creta junto com Atenas,
Os pais e o esposo.
Ai de mim, onde fico?
desgraçada, onde andarei?
Voltarei talvez os passos
ao monte Ideo,
de cujo golfo tão largo
me distancia e separa?
revogarei a descendência [familiar],
podendo retornar
a meu pai traído,
de cujo colo me tolhi
para seguir tolamente
o ímpio fratricida meu?
ou consolar-me devo
sobre o fiel e leal
amor do bondoso consorte,
o qual de mim pelas ondas
tão rápido se vai,
que o primeiro vogar
de tão rápidos remos
é lenta em tanta pressa?
Mas desde que quiseste,
Ai de mim! Daqui partir,
tal qual tronco espero nesta
solidão horrenda,
de onde vejo banido
qualquer contato humano?
em cuja Fortuna escassa
74
ne la miseria estrema
non mi concede pure
o d’orecchia pietosa
udito che m’ascolti,
490 o di bocca cortese
voce che mi risponda?
Conviemmi dunque a forza,
esposta alla mercede
o di balene e d’orche,
495 over d’orsi e di lupi,
tra l’inospite rupi
di questa infame riva
(s’alcun ventre ferino
non mi dà pur sepolcro)
500 insepolta morire;
o, per maggior martire,
di barbari corsari
divenir preda indegna,
che ‘n trionfo servile
505 traggano incatenata
la figlia sfortunata
del nobil re ditteo
49
,
la nepote del Sole
50
,
la progenie di Giove
51
,
510 colei ch’esser devea
d’Atene alta reina.
Deh! Pria, prego, m’uccida
questo dolor mortale,
mortale ed omicida;
515 solo però ch’é tale,
ch’uccidermi non vale.
Crudel, quando uccidesti
del flessuoso albergo
il feroce custode,
520 perchè non mi togliesti
la vita a un tempo istesso?
Ch’oltre ch’io non sarei
in sì penoso stato,
fora ancor la tua fede
525 sciolta, sì ma non rotta.
Perchè, perchè partendo
almen non mi lasciati
quella spada inumana,
ch’ancor tinta è del sangue
530 del mio fratel possente,
acciò che commun fosse
con la sorella insieme
una medesma sorte?
Ma che? Mancheran forse
535 a chi di morrir brama
altre guise di morte?
Non credo il Ciel sì crudo
che, s’al mio Teseu in seno
poter viver mi toglie,
540 senza il mio Teseu almeno
nem a miséria extrema
não me concede nem mesmo
ou uma escuta piedosa,
um ouvido que me ouça,
ou de boca cortês
voz que me responda?
Concordarei então à força,
exposta à mercê
ou das baleias e orcas,
ou dos ursos e lobos,
entre as inóspitas rochas
destas margens infames
(se algum ventre ferino
não me der nem sepulcro)
insepulta morrer;
ou para maior martírio,
de bárbaros corsários
tornar-me-ei presa indigna,
que em triunfo servil
trarão acorrentada
a filha desafortunada
do nobre rei de Ditte
a neta do Sol,
a prole de Giove,
com ela deveria estar
em Atenas grande rainha.
Ai! Pria, peço, mata-me
esta dor mortal,
mortal e homicida;
porém a dor é tal,
que matar-me não serve.
Cruel, quando mataste
do labirinto
o feroz guardião,
por que não me tiraste
a vida ao mesmo tempo?
Eu não estaria
em tão penoso estado
se estivesse a tua fidelidade
apenas em crise, mas não rompida.
Por que, por que partindo
ao menos não me deixaste
aquela espada desumana,
com a mancha do sangue
de meu irmão poderoso,
de modo que em comum tivesse
junto com a irmã
uma mesma morte?
Mas como? Talvez faltasse
àquele ávido de morrer
outra forma de morte?
Não creio ser o Céu tão cruel
que se a meu Teseu no peito
poder viver me tolhe,
sem meu Teseu, ao menos,
75
poter morir mi neghi.
Chi sarà che mi vieti
che com mortal ruina
da questa balza alpina
545 traboccando io non pera?
ma qual altra caduta
cerco maggior di quella,
onde, levato a volo
da l’alta sua speranza,
550 precipita il desio?
Potrò nel mar gittarmi,
e dentro il salso umore
estinguere in um punto
e la vita e l’ardore:
555 ma s’io verso da’ lumi
e mari e fonti e fiumi,
né mi sommergo in essi,
come morir tra l’acque
esser può mai ch’io speri?
560 Se col focile accendo
fiamma ingorda e vorace,
per distruggermi in foco
questo mi giova poco;
ché da maggior fornace
565 sento ognor consumarmi,
né può cenere farmi.
Dunque com forte laccio
stringerommi la gola
e qui da qualche ramo
570 mi rimarrò pendente:
no, no, che d’altro nodo
più saldo e più tenace
mi tien legato il core,
né mi dà morte, Amore.
575 Sorbir tosco nocente
per uscir d’ogni affanno
fora miglior partito;
se non che ‘l petto ho pieno
d’amoroso veleno,
580 e pur di duol non esco.
Deggio affliggermi forse
su la sinistra poppa
due vipere mordace?
ma questo che rileva,
585 se tra gli aspi e le serpi
de l’empia gelosia
io vivo tuttavia?
S’io credessi col ferro
quest’anima infelice
590 discacciar dal suo nido,
con acuto coltello
vorrei passarmi il fianco:
ma questo è van pensiero,
perché dal cieco arciero
595 son con mille saette
poder morrer me negue.
Quem me proibirá
que em destruição mortal
daquele precipício alpino
caindo eu não pereça?
mas que outra queda
busco maior que aquela
onde, levada em vôo
do alto de sua esperança,
precipita o desejo?
Poderei no mar lançar-me,
e dentro do humor salgado
extinguir de uma só vez
a vida e o ardor:
mas se eu derramar dos olhos
mares e fontes e rios,
nem neles submerjo,
como morrer entre as águas
posso por isto esperar?
Se com a espada acendo
chama ardente e voraz,
para destruir-me no fogo
pouco me favorece;
que da maior fornalha
sinto sempre consumir-me,
nem cinzas posso tornar-me.
Portanto com forte laço
estrangular-me o pescoço
e aqui de algum galho
ficarei pendurada:
não, não, pois de outro nó
mais irremovível e tenaz
mantém preso o coração,
nem me traz a morte, Cupido.
Sorver veneno nocivo
para fugir a todo afã,
seria melhor partida;
tenho porém o peito pleno
de amoroso veneno,
e assim da dor não escapo.
Devo infligir-me, talvez,
sob o lado esquerdo do peito
duas serpentes mordazes?
Mas que efeito pode isto ter,
se entre as cobras e as serpentes
do ímpio ciúme
continuo a viver?
Se eu cresse que com a espada
esta alma infeliz
expulsar de seu ninho,
com aguda navalha
quisera ferir-me a carne:
mas isto é vão pensamento,
pois do cego arqueiro
com mil flechas
76
in mezo al cor ferita,
né pur lascio la vita.
Ah! Per me non si trova,
dunque, a tratarmi di pena,
600 pena bastante? e, mentre
senza morir mi moro,
sarà per maggior male
la mia morte immortale?
Lassa, lassa, che parlo?
605 Quando pur questa mano
l’ufficio alfin s’usurpi
de la Parca proterva,
se tua son, Teseu mio,
con qual ragion poss’io,
610 togliendo a me la vita,
a te toglier la serva?”
no meio do coração ferido,
nem assim deixo a vida.
Ah! Para mim não existe,
portanto, em questão de dor,
dor suficiente? e, enquanto
sem morrer morro,
será para mal pior
a minha morte imortal?
Ai de mim, que digo?
Quando esta minha mão
a tarefa ao fim se usurpe
da Parca impetuosa,
se tua sou, Teseu meu,
com que direito posso eu,
tolhendo-me a vida,
a ti, tolher a serva?”
A versão musical de 1623 de Pellegrino Possenti (ca.1590 -
ca.1628) do Lamento de Arianna de Marino baseia-se somente no trecho
em primeira pessoa, acima traduzido. Subjugado por um texto pobre de
conflitos emocionais, Possenti, imbuído das primeiras técnicas da prima
prattica, não ousa em demasia. Aqui, o tratamento musical da poesia de
Marino não é de forma alguma marinista, como serão, por exemplo, os
madrigais de 1638 de Monteverdi (ver os comentários de Hor che ’l ciel
e la terra e ‘l vento tace na página 49). Quinze anos depois da execução
de Arianna de Monteverdi, e um ano antes do Combattimento di
Tancredi e Clorinda, Possenti ainda não absorvera as técnicas que
receberiam influência direta da poesia de Marino. É um complexo
momento de transição para qualquer compositor. Monteverdi está à
busca de uma nova linguagem e só no ano seguinte vai se configurar
sua revolucionária conquista maneirista, o stile concitato. Se na primeira
Arianna Monteverdi dispôs de toda sua paleta de efeitos de
verossimilhança para retratar as dores da personagem, Possenti vê-se
ludibriado ao musicar um texto que não oferece grande possibilidade
dramático-musical. Torna-se realmente impossível criar dramaticidade
com inconsistências do tipo “o meu cruel Teseu” (il crudo Theseo mio).
Arianna refere-se ternamente a Teseu usando o pronome possessivo
mio. Mas o uso demasiado próximo do adjetivo crudo cria um choque
sintático tão grande que na superposição de sentimentos contrários, a
frase acaba por perder completamente o sentido. Se o efeito desejado é
buscar o que Rinuccini logrou em sua Arianna, com as bruscas
mudanças de afetos, aqui Marino falha, revelando grande inadequação
no tratamento das emoções. Sobre crudo, Possenti usará um fá sobre
uma tríade de Dó maior para resolvê-lo no mi sobre mio, uma tentativa
de pintura de palavras que acaba por interromper a continuidade da
frase:
O tratamento de Possenti da passagem na qual Arianna é
acusativa torna-se pobre em dramaticidade. O trecho é semelhante ao
poema seminal de Rinuccini que diz: Son queste le corone / Onde
m’adorni il crine? / Questi gli scettri sono, / Questi le gemme e gl’ori?
Aqui podemos perceber como Monteverdi já se adiantara em direção a
seu stile concitato, algo ainda não assimilado ou mesmo percebido por
seus contemporâneos. Vejamos o tratamento conservador que Possenti
dá a este segmento:
77
A poesia de Marino, revestida de uma linguagem musical
classicizante, poucas chances terá de ser bem sucedida. Possenti, ao
beber direto das fontes florentinas, viu-se paralisado ao tentar construir
seu drama musical sobre uma poesia tão pouco dramática. Melhor
realização musical lhe trará I sospiri d’Ergasto, no qual vê-se livre do
peso trágico da Arianna anterior e deixa-se levar pelo prazer de uma
vocalidade mais livre. Esta Cantata adapta-se melhor aos salões della
civil conversazione: como no lamento do Signor Ercole (capítulo 3),
Ergato suspira por Clori, por ela sente-se morrer, mas mantém um
sorriso arguto nos lábios. A ária estrófica com variações, uma forma
menos séria do que um trágico lamento em recitativo, dá espaço à
ornamentação melódica e maior exploração do virtuosismo vocal dos
cantores. Os longos melismas são usados em sílabas tônicas, mas nem
sempre em palavras de conteúdo especialmente dramático, o que
naturalmente revela uma preocupação mais trivial com a “sinceridade”
do Lamento. Nesta peça, Possenti mostra uma conexão mais afinada
com a poesia de Marino – apesar do poema não ser deste autor – do
78
que na sua Arianna, na qual não conseguiu despir-se da inescapável
influência do “divino Monteverdi.”
54
79
54
A peça completa encontra-se nos anexos, pg 346.
80
81
CAPÍTULO 5
OS LAMENTOS DE BARBARA STROZZI
(ANÁLISES)
5.1 Appresso ai molli argenti
LAMENTO
1 a Appresso ai molli argenti 7
2 b d'un rivo mormorante, 7
3 b sedea Fileno amante 7
4 A per accordar con l'onde i suoi lamenti, 11
5 C allor ch'in sen nutriva 7
6 A per lontana beltà
fiamme cocenti. 11
7 x Ond'ei, dal duolo oppresso, 7
8 C sospirava, piangeva, indi s'udiva 11
9 d
gridar contro la sorte; 7
10 x e solo egli chiedea, 7
11 D per dar fine al suo mal,
pietade a morte. 11
[8 C] indi s'udiva
9 d
gridar contro la sorte; 7
10 x e solo egli chiedea, 7
11 D per dar fine al suo mal,
pietade a morte. 11
82
12 x Onde, da un cruccio interno 7
13 e traffitto e
combattuto, 7
14 e mesto, pallido e muto 7
15 f le luci al ciel rivolse, 7
16 F poi, parlando così, d'Amor si dolse: 11
-------------------------------------------------------------------------------
17 g "
A qual barbara sventura 8
18 h mi condanna Amor tiranno, 8
19 h che sol vuol di pena e affanno 8
20 G del cor ch'avampa alimentar l'arsura! 11
19 h che sol vuol di pena e affanno 8
20 G del cor ch'avampa alimentar l'arsura! 11
21 g
A qual barbara sventura 8
---------------------------------------------------------------------------------
Aria
22 i A' miei danni congiurato, 8
23 j vuol Amor per tormentarmi 8
24 j dal mio sole allontanarmi 8
25 i
perch'io mora disperato, 8
22 i A' miei danni congiurato, 8
23 j vuol Amor per tormentarmi 8
24 j dal mio sole allontanarmi 8
25 i
perch'io mora disperato, 8
83
26 k Ond'io provo in modo strano 8
27 k mentre a Filli son lontano, 8
28 G
più ardent'il foco e la prigion più dura. 11
29 g
A qual barbara sventura! 8
---------------------------------------------------------------------------------
30 l Appresso il
caro bene 7
31 l gradite eran le pene, 7
32 x m'era dolce il soffrir, soave il foco, 11
30 l Appresso il
caro bene 7
31 l gradite eran le pene, 7
31 l gradite eran
le pene, 7
32 x m'era dolce il soffrir
, soave il foco, 11
---------------------------------------------------------------------------------
33 m Ma l'idolo ch'adoro 7
34 M
in pianto amaro or ch'io non miro, io moro. 11
---------------------------------------------------------------------------------
35 a Chiare stelle in ciclo ardenti, 8
36 a siete belle e risplendenti, 8
35 a Chiare stelle in ciclo ardenti, 8
36 a siete belle e risplendenti, 8
37 n ma sia pur con vostra pace: 8
38 N
più assai di voi il mio bel sol mi piace. 11
84
37 n ma sia pur con vostra pace: 8
38 N
più assai di voi il mio bel sol mi piace. 11
---------------------------------------------------------------------------------
39 o Augelletti, che spiegate 8
40 o
vostr'affetti in voci grate, 8
41 p di voi tutti il canto io lodo, 8
42 P
ma in udir Filli mia molto più godo. 11
42 P
ma in udir Filli mia molto più godo. 11
43 q Vaghi fiori, che spirate 8
44 q d'almi odori aurette amate, 8
45 r
sete belli, io lo ravviso, 8
46 R
ma son più belli i fior ch'ha Filli in viso." 11
---------------------------------------------------------------------------------
47 x Mentr'in tal guisa il misero Fileno, 11
48 s lagnandosi d'Amore 7
49 s narrava il suo dolore 7
50 T alle stelle, agl'augelli, ai fiori, all'acque, 11
51 T dal mesto cor trasse un sospiro e tacque.11
(Gio. Pietro Monesi)
(Os números na coluna da esquerda são os números dos versos; as
letras referem-se ao tipo de rima; os números da coluna direita
85
referem-se ao número de sílabas de cada verso. As partes sublinhadas
são repetidas quando musicadas por Strozzi)
Tradução
LAMENTO
Appresso ai molli argenti
d'un rivo mormorante,
sedea Fileno amante
per accordar con l'onde i suoi lamenti,
allor ch'in sen nutriva
per lontana beltà fiamme cocenti.
Ond'ei, dal duolo oppresso,
sospirava, piangeva, indi s'udiva
gridar contro la sorte;
e solo egli chiedea,
per dar fine al suo mal, pietade a morte.
Onde, da un cruccio interno
traffitto e combattuto,
mesto, pallido e muto
le luci al ciel rivolse,
poi, parlando così, d'Amor si dolse:
"A qual barbara sventura
mi condanna Amor tiranno,
che sol vuol di pena e affanno
del cor ch'avampa alimentar l'arsura!
A' miei danni congiurato,
vuol Amor per tormentarmi
dal mio sole allontanarmi
perch'io mora disperato,
ond'io provo in modo strano
mentre a Filli son lontano,
più ardent'il foco e la prigion più dura.
Appresso il caro bene
gradite eran le pene,
m'era dolce il soffrir, soave il foco,
Ma l'idolo ch'adoro
in pianto amaro or ch'io non miro, io
moro.
Chiare stelle in ciclo ardenti,
siete belle e risplendenti,
ma sia pur con vostra pace:
più assai di voi il mio bel sol mi piace.
Augelletti, che spiegate
vostr'affetti in voci grate,
di voi tutti il canto io lodo,
ma in udir Filli mia molto più godo.
Vaghi fiori, che spirate
d'almi odori aurette amate,
sete belli, io lo ravviso,
À beira de fluído argento
de um rio murmurante,
sentava Fileno amante
para afinar com as ondas seus lamentos
pois que em seu peito nutria
por amada longínqua, ardentes chamas.
Onde ele, pela dor oprimido,
suspirava, chorava, e então se ouvia
gritar contra o destino,
e apenas ele pedia,
para dar fim a seu mal, piedade à morte.
Então, por uma profunda angústia
trespassado e vencido,
triste, pálido e mudo,
às luzes do céu se volta,
e assim falando, do Amor se queixa:
“A tal bárbara desventura
me condena o Amor tirano,
que só quer de pena e aflição
do coração alimentar a sede!
Aos meus danos conspirando,
quer o Amor, para atormentar-me
do meu sol distanciar-me
para que eu morra desesperado,
assim provo de estranho modo,
enquanto de Filli estou longe,
mais ardente o fogo e a prisão mais dura.
Ao lado do caro bem
agradáveis eram as penas,
era-me doce o sofrer, suave o fogo.
Mas o ídolo que eu adoro
em amargo pranto, agora que não a vejo,
eu morro.
Claras estrelas em ciclo ardente,
são belas e resplandecentes,
mas deixai-me que o diga, com vossa
permissão:
muito mais que vós, o meu belo sol me
apraz.
Passarinhos que expressam
seus afetos em graciosas vozes,
de vós todos os cantos eu aprovo,
mas ao ouvir Filli minha, muito mais eu
gozo.
ma son più belli i fior ch'ha Filli in viso."
Mentr'in tal guisa il misero Fileno,
lagnandosi d'Amore
narrava il suo dolore
alle stelle, agl'augelli, ai fiori, all'acque,
dal mesto cor trasse un sospiro e tacque.
(Gio. Pietro Monesi)
Graciosas flores que expiram
odores de almas amadas,
são belas, eu reconheço,
mas são mais belas as flores que tem Filli
em sua face.”
Enquanto, de tal modo, o miserável Fileno,
lamentando-se de Amor narrava sua dor
às estrelas, aos pássaros, às flores e à
água,
do triste coração soltou um suspiro e
calou-se.
Seção I
Verso 1, 2, 3 e 4
O verso abre a moldura narrativa da peça, e apesar de
simplesmente insinuar um cenário para o que se seguirá – “à beira de
86
87
fluído argento” – o verso surge investido de grande intensidade
emocional. À primeira vista parece inexplicável o fato da compositora
tratar um rio com tão expressivo pathos, a frase constituindo-se de
uma linha ascendente e descendente, dividindo-se em duas partes pelo
salto de sexta menor descendente de mi a sol sustenido, o qual compõe
um intervalo de sétima maior com o baixo sobre a palavra molli (o
mesmo artifício é usado por B. Strozzi em Lagrime mie). O líquido
prateado constitui a corporificação dos lamentos de Fileno, que se
“afinam” com o murmúrio do rio. Num tratamento tipicamente
marinista, o que cria significado é a arguzia, uma conexão audaciosa
entre campos diversos: o rio, os lamentos, o pathos da tristeza do
abandono amoroso encontram-se inesperadamente relacionados. O
exercício intelectual é o de desvendar essas conexões, num sobressalto
de meraviglia (um conceito da poesia marinista, na qual o leitor não é
estimulado a reagir com sentimentos particulares, mas é induzido a
fazer ligações estranhas e inesperadas, num pequeno choque
intelectual, imprevisível, surpreendente). A tristeza do abandono se
corporifica na imagem do rio – a subjetividade torna-se imagem, torna-
se concreta, visível. A imitazione, que em Monteverdi dava-se sem
mediação entre subjetividade e música, aqui percorre um caminho mais
longo: a dor do abandono transfigura-se metaforicamente em rio, o rio é
mimetizado musicalmente, misturando corporalidade e subjetividade.
Como em Marino, o acesso à subjetividade se dá através de imagens
construídas – o interior se exterioriza em imagens fragmentadas, e o
mundo das emoções se torna um exercício linguístico de
desdobramentos metafóricos. O que Barbara Strozzi realiza aqui é uma
aplicação direta das descobertas poéticas de Marino ao vocabulário
musical.
Verso 2
Constitui-se no preenchimento melódico do intervalo descendente
de sexta menor, que apareceu anteriormente sobre a palavra molli – o
88
longo melisma sobre a palavra mormorante cria perfeita imitazione do
múrmurio do rio. A frase desce do mi ao sol#, em torno do qual
permanece, retornando ao mi por salto de quarta e chegando
cromaticamente ao mi (re, re#, mi).
Verso 3
O verso é mais rítmico – mimetizando uma ação concreta, não
psicológica. Sentava-se: um ato simples e concreto. O nome do
personagem principal é introduzido, juntamente com o adjetivo que o
descreve: Fileno amoroso. Há uma certa delicadeza no pronunciar de
seu nome, um personagem cujo primeiro contato não recebe atribuição
de grande virilidade (devemos lembrar das invocações reverentes aos
nomes de personagens masculinos como Orfeu e Ruggiero, ou mesmo o
adjetivo Signor, pronunciado por Proserpina ou Poppea). Seu estado
“amoroso” ao contrário, recebe maior ênfase, ao apoiar-se solidamente
na tônica do acorde, numa nota mais longa.
Verso 4
Para “afinar-se” com as ondas (acordar con l’onde), o mesmo
motivo de un rivo é repetido (mi-re-do-si-do) e seu lamento usa a
convenção clássica de uma figura ligada à representação da dor – neste
caso intensificado pelo uso de uma dupla linha descendente: na voz de
forma cromática e no baixo de forma diatônica. A palavra lamenti ecoa a
palavra mormorante através do uso dos dois primeiros longos melismas
da peça, que por sua vez será recorrente em cocenti no verso 6, no
melisma mais virtuosístico de toda peça.
Verso 5, 6 e 7
Numa simples ação, como antes em sedea, o ritmo acompanha
mimeticamente a ação, sílaba contra nota, introduzindo o próximo
verso, este de ordem subjetiva, representando o ardor do amor de
Fileno por uma figura amada. Bela (Beltá) se relaciona com ardente
(concenti): as duas palavras atingem o climax da seção na nota sol. A
leitura de Strozzi é atenta e sofisticada, os texto musical e poético são
tramados em fios apertados – nada lhe passa despercebido. Não só a
imitação pictórica das palavras fiamme e cocenti se dá no plano musical,
como também se faz presente a imitação da sensação subjetiva do
queimar-se ardentemente, numa ascenção intensa e acelerada em
direção ao clímax, no qual há possibilidade de um breve momento de
êxtase, seguido por uma queda vertiginosa, perfazendo uma escala
descendente de oitava em semi-fusas, antecedendo a resolução final da
obra: o cair no silêncio. O baixo não se resolve concomitantemente com
a melodia, mas atrasado: o efeito é de um discurso fragmentado, dá-se
89
uma cisão entre a coerência da cadência perfeita em sol e a narração da
queda de Fileno, tão vertiginosa que ocorre antes da resolução do baixo.
O trecho é um gesto puramente teatral e melodramático, numa
demonstração de habilidade vocal ímpar. Neste momento no qual o
foco volta-se ao puro deleite com a voz, o texto torna-se mera desculpa
para o espetáculo do cantor, e a qualidade patética inicial se esvai.
Assim funciona a poesia de Marino: a introspecção perde importância
em função de gestos exteriorzados, sem densidade psicológica.
Verso 7
Após a ascensão dramática do verso anterior ao clímax melódico,
o verso 6 se contrai numa tessitura melódica muito estreita,
contrapondo a expansão emocional anterior a uma contrição de afetos,
retornando à representação pictórica da dor do personagem: duolo
coincide com um sol sustenido sobre um baixo na nota . Cenas de
grande contraste dramático se alternam constantemente, como na
prática marinista da meraviglia, surpreendendo o espectador com gestos
inusitados.
Verso 8 e 9
A palavra sospirava vem antecedida de uma pausa, numa típica
convenção da representação do suspiro em música. Com um impulso
ascendente sobre sospirava, a melodia alcança a palavra piangeva que
logo descende cromaticamente, na mesma representação pictórica da
dor já observada no verso 4. O motivo rítmico sobre udiva é o mesmo
usado sobre duolo. O verso é endecassilabo e há presença de melisma.
90
Verso 9
O uso insistente de aliterações duras (gr – d – gr – c – tr – rt ) é
musicalmente sublinhado por Strozzi, acentuando o efeito de fricção
entre melodia e baixo, efeito ainda mais intensificado pela harmonia
tensa e arrojada.
Verso 10
A aliteração líquida do verso (s
olo egli chiedea) é sublinhada pelo
movimento harmônico (mi – Do6 – Mi ) que se resolve, placidamente,
em la.
Verso 11
O verso é musicalmente bipartido, atingindo um clímax melódico
na palavra pietade, cuja repetição veemente, é exaltada pelo intervalo
de quinta diminuta descendente. A outra metade do verso é toda
desenhada por repetitivas segundas menores descendentes (fá – mi, fá
–mi; do-si, do-si), quase numa lullaby da morte, que aqui se apresenta
doce, como único consolo para o protagonista.
Novamente aqui o verso é endecassilabo e há presença de
melisma. Todo este trecho é repetido, quase literalmente, uma quinta
inferior.
91
Versos 12 e 13
A palavra combattuto não poderia deixar de invocar
reminiscências monteverdianas: o genere concitato imita teatralmente o
combate, mas neste caso, um combate interno, no qual o protagonista
se encontra.
Como em Marino, o foco é multifacetado. A subjetividade se torna
menos profunda, pois tudo está desmembrado – cada emoção dissecada
– como na Arianna de Marino
55
, o foco se desloca do afetivo, do
mergulho ao cerne interior da emoção, para a imagem externa. Aqui, o
afeto é mimetizado como ação, não como realidade afetiva. O subjetivo
torna-se exteriorizado. No corpo dá-se o sintoma da emoção – são as
imagens externas, ou a teatralidade dessa subjetividade que importa.
Não há mais a presença forte de um personagem, da construção de uma
psicologia “verdadeira”, “sincera”, como em Monteverdi. O princípio dos
55
Ver capítulo 4.
92
contrastes, adotado pelo compositor a partir de Torquato Tasso
56
, é
claro na mudança súbita do verso 13 para o verso 14, onde a agitação
repentinamente cessa: os baixos repetidos em ritmo rápido e os saltos
dentro de uma tríade maior, características inconfundíveis do concitato,
subitamente se transforma num estado estático, paralisado pelas
aliterações moles (
mesto – pallido - muto) e estabilidade da melodia e
seqüência harmônica lenta.
Verso 15/16
A melodia consiste de uma frase ascendente e perfaz uma oitava
de sol a sol, mimetizando a ação do “voltar-se aos céus”. O desenho
melódico descendente, alongando-se numa mínima em così, cria uma
sensação de ponto duplo – così: - acrescido de uma espécie de pequena
coda de caráter mais afetivo em amor si dolse, com a figura cromática
descendente fá – mi -mib – ré.
Verso 17 e 18
56
Monteverdi explica a influência que a obra de Torquato Tasso exerceu sobre sua
estética no prefácio ao Oitavo Livro de Madrigais. Tasso, ao imortalizar a guerra
objetiva em sua Gerusalemme Liberata, faz corresponder a guerra subjetiva das
paixões, o conflito interior do indivíduo.
93
A aparição da voz do personagem é marcada pelo surgimento dos
versos ottonari, com uma nítida diferenciação de escrita musical. Strozzi
marca a seção com a indicação “adagio,” sugerindo uma mudança
drástica de andamento. A voz, em recitativo parlato, é contrastada pela
movimentação do baixo, melodicamente ativo pela primeira vez, em
escalas descendentes, insistentes e marcadas, funcionando como uma
espécie de basso ostinato, com direção irreversível, inexorável. A voz
fala de forma monótona, estática, sem esperança de escapar à terrível
desventura. A intensificação de pathos sobre a palavra barbara dá-se
através da acentuação criada pelo ritmo, alongando a sílaba tônica
através da semínima pontuada. A autora se introduz na obra, e seu
nome surge fortemente investido de drama – o qual reaparecerá mais
quatro vezes – e a cada aparição, de forma um pouco mais carregada
de tensão – seja ela pela harmonia mais dissonante, ou pela
movimentação melódica mais dramática do baixo (ver versos 21 e 29).
Barbara, ao contrário de Fileno ou Fili, surge densa, plena de
subjetividade. A autora existe – afirma e reafirma sua existência, nos
espia, num duplo flerte, de dentro da sua obra: flerte com o autor do
poema (Barbara Strozzi, a cortesã, responde jocosa à provocação de um
homem que lhe dedica o poema da Cantata) e com o espectador, que
subitamente se depara com um personagem inesperado na peça. Nega,
ironicamente, a Fileno, a Fili e ao narrador, o foco central da cena. É a
persona poética Barbara Strozzi que se coloca no centro do espetáculo,
reafirmando-se autora: Safo novella
57
.
94
57
A primeira obra publicada de Strozzi abre-se com o verso: Mercé di voi, mia
fortunata stella , / volo di Pindo in fra i beati cori / e coronata d’immortali allori / forse
Verso 19 e 20
Marcados pela aceleração de tempo, com indicação clara da autora
(presto), os versos se desenvolvem sobre uma seção em âmbito durus
(presença de fá#, do#, ré# e lá#). Baixo e voz se movimentam
intensamente, numa teia contrapontística acirrada e agressiva, a voz
saltitante em terças, quartas, quintas, ou movimentos rápidos de
pequenas escalas, com resposta imediata do baixo, contrastando
detta sarò Saffo novella. (Graças a ti, minha estrela afortunada, / em vôo de Pindaro
entre coros divinos, / e coroada com louros imortais, talvez chamada serei - a nova
Safo).
95
drasticamente com a paralisia anterior, agora transformado em puro
movimento, uma quase fuga aos tormentos de Amor, o deus cego que
tiraniza o coração dos amantes. O ultraje e a revolta literalmente
desabam através de uma escala descendente do baixo perfazendo uma
nona, sobre uma cadência perfeita de Si – mi, retornando, subjugado ao
tema recorrente, quase refrão central da peça, a qual barbara sventura
(Verso 21).
Verso 22 a 25
96
A seção em ária é movimentada, mas de maneira menos
contundente do que a seção anterior – não há uma disputa entre voz e
baixo, os dois se acompanham liricamente, insinuando a nostalgia do
amor ausente que vai ser explorado mais e mais a partir do verso 30. O
trecho já perdeu a agressividade do âmbito anterior e dos saltos
intervalares abruptos; o desenho da voz é melodioso, em curvas suaves
ascendentes e descendentes. A presença de melismas é cada vez mais
freqüente, numa entrega à volúpia sensual da ausência. A voz torna-se
puro fluir de sensações, a fala vai para segundo plano: o desejo
corporifica-se no prazer físico da emissão do canto, o sopro interno
transformado em êxtase pelo ausente.
Versos 26 e 27
Num trecho em recitativo, é introduzido o nome Fili, a bem-amada
ausente. Como na introdução do nome do personagem principal, não há
nenhum investimento psicológico na evocação do nome da amada.
97
Verso 28
Numa seqüência ascendente, acompanhada do baixo em enfática
ascensão cromática, o verso se encaminha para um clímax que introduz
a última aparição do refrão a qual barbara sventura. A tensão dramática
se intensifica devido ao contraste entre o baixo que ascendeu no verso
anterior e que agora anda em direção contrária, numa longa e patética
escala descendente perfazendo uma tessitura de 12ª.
Versos 30 a 32
98
Estes três versos, retornando à forma settenari e endecassilabi,
inauguram um longo trecho em ária, aqui sobre o baixo de passacaglia
99
modificado. A utilização da passacaglia em cenas de amor foi já
amplamente explorada em ópera, como em Pur ti miro no final de
Poppea. O uso de palavras de alto teor afetivo, como caro e bene, faz
parte do vocabulário típico dessas cenas, em geral situações onde um
casal de amantes se encontra num episódio de suave erotismo, como
ocorre entre Poppea e Nerone na ópera de Monteverdi. Strozzi usa o
topos operístico para reproduzir a lembrança da cena amorosa, a terna
reminiscência pelo ser amado. Aqui não se encontra presente o objeto
do amor, e assim caro e bene, muitas e muitas vezes reiterados
enfatizam o efeito da ausência, principalmente porque são marcados
pela presença de segundas descendentes, quase apoggiaturas, como
ocorreu antes sobre a palavra morte no verso 11. Os topoi da cena
amorosa (baixo da passacaglia e as palavras típicas da cena: caro e
bene) se contrapõe à presença latente da morte, anunciada já na
primeira seção da obra.
Versos 33 e 34
A seção responde às aliterações duras e cromaticamente
descendentes de ad
oro, amaro, hor, miro, moro em dupla escala
cromática descendente, marcando sílaba a sílaba com semínimas que
marcham, passo a passo, diante da ausência da figura amada, em
direção à morte.
100
Versos 35 a 46
101
102
103
Retornando à ária, esta é a passagem mais lírica da obra, na qual
o cantor entrega-se à sensualidade de longos melismas, acompanhados
de um baixo de dança, alternando-se em trechos que são ou
reminiscências melódicas ou rítmicas da passacaglia ou da ciaccona.
Trata-se da fala final de Fileno: após a repetida insinuação da presença
da morte, a personagem dança e entrega-se ao canto. Desde a ninfa de
Monteverdi, a relação entre o baixo ostinato da passacaglia e a loucura
ficara estabelecida. Aqui o efeito não se dá da mesma forma, pois o
discurso desconexo de Fileno não é construído pontualmente como o da
ninfa (perceptível ao ouvinte através das passagens inesperadas, como
mudanças imprevistas da melodia ou pausas súbitas, como se o
pensamento se partisse em direções contrárias), mas sim pelo choque
104
que ocorre entre passagens tão contrastantes entre si: de uma seção de
alta densidade dramática, para outra que torna a agradável lembrança
do passado presente, na qual o personagem se refugia e nega a
realidade. O efeito é de uma espécie de desconexão com o discurso que
se desenvolvera até então, o pathos dramático e doloroso se desfaz na
volúpia da ausência, no gozo da lembrança. A dor transforma-se em
canto, o abandono, enfim, produz música.
Versos 47 a 51
A moldura narrativa final que envolve o lamento reporta-se ao
início da obra: a tríade que se estabelece em saltos é de ré menor e a
partir da palavra guisa, a semelhança melódica é ainda mais óbvia,
rítmica e melodicamente. O salto de trítono descendente, criando mais
uma vez uma relação de sétima maior com o baixo, é de efeito ainda
mais dramático do que no início, gerando um eco contundente entre a
idéia do fluído (molli) ligado aos lamentos de Fileno e aqui ao estado
105
106
subjetivo do personagem: misero Fileno. A rima entre amore e dolore é
reforçada por Strozzi melodicamente, criando uma equivalência a dois
conceitos que no poema se estabeleciam apenas por uma rima.
Seguem-se motivos que mimetizam claramente a ação do olhar de
Fileno (elevando-se ao céu, e baixando à terra). Finalmente o silêncio,
reforçado pela cadência deslocada entre voz e baixo, como no verso 6,
que antecipava a queda final de Fileno.
O texto desta Cantata é um modelo clássico do lamento. Desde
Cipriano da Rore (1515 - 1565) e seu pungente De la belle contrade
d’Oriente, estamos familiarizados com este formato: uma moldura
narrativa que abre e encerra a peça seguida de uma parte central na
qual a personagem queixa-se do abandono amoroso. Esta é também a
estrutura formal do Lamento della ninfa e tantos outros lamentos
subseqüentes. Desde Rore, insinua-se já o elemento teatral que só se
desenvolveria plenamente bem mais tarde, e vê o seu pleno resplendor
com a ninfa de Monteverdi. Como vimos no capítulo 2, assistimos com a
ninfa a um dos mais pungentes espetáculos da subjetividade feminina,
em um nível raramente atingido por outros compositores da época.
Barbara Strozzi segue, por um lado, os rastros da ninfa, mas distancia-
se enormemente ao deixar-se impregnar das novas correntes
maneiristas. Se nos deparamos com um desenrolar de cenas de forte
apelo teatral, surpreendemo-nos ao encontrar certo vácuo na
construção do personagem principal, neste caso, Fileno. No entanto, a
ausência desta elaboração mais focada não anula a existência de uma
subjetividade mais difusa, sem um “eu” bem determinado. É quase um
ethos geral do abandono que se presencia, não centrado sobre um
determinado personagem. Fileno passa a ser apenas uma desculpa para
o desenvolvimento de um discurso do abandono, no qual se mistura a
personagem forte, autoral, Barbara Strozzi. E como em L’astratto
(capítulo 7, pg 248), esta personagem se posiciona, narcisisticamente,
em relação direta com o espectador. O período é rico em experimentos
107
deste tipo: Velásquez, em 1656, pinta seu famoso quadro Las meninas:
uma cena que dialoga com o espectador, na qual nos sentimos olhados
pelo autor e simultaneamente devolvemos este olhar
58
.
Às vezes nossa Venere canora nos lança um olhar jocoso e
sedutor, outras vezes, um olhar melancólico. Esta melancolia se
explicita nos momentos em que a compositora reveste de uma triste
sensualidade as manifestações de lembrança do ser amado. Nestas
ocasiões, a música passa a fluir quase espontaneamente, soando como
simples e fácil improvisação, entregando-se à volúpia da emissão vocal.
Neste espaço composicional, onde se mesclam a autora e a cantora, não
poderíamos deixar de vislumbrar a forte presença da persona Barbara
Strozzi, que como Stampa tenta criar uma obra exemplar da própria
vida e do próprio amor.
58
Discussões fascinantes sobre o assunto encontram-se no livro de Michel Foucault, As
palavras e as Coisas: Uma arqueologia das ciências humanas, na História da Arte de
Gombrich ou ainda no artigo de Ferreira Gullar, “As Meninas”.
108
5.2 Lagrime mie
1 A Lagrime mie, à che vi trattenete, 11
2 B Perchè non isfogate il fier dolore, 11
3 B Che mi toglie ‘l respiro e opprime il cuore 11
-------------------------------
Arioso
4 x Lidia, che tant’ adoro, 7
5 C Perchè un guardo pietoso, ahimè, mi donò, 11
6 C Il paterno rigor l’impriggionò. 11
7 x Tra due mura rinchiusa 7
8 X Stà la bella innocente, 7
9 E Dove giunger non può raggio di sole, 11
10 e E quel che più mi duole 7
11 F Ed accresc’il mio mal, tormenti e pene, 11
12 x é che per mia cagione 7
13 f Prova mal il mio bene. 7
-------------------------------
-------------------------------
Adagio
14 A E voi lumi dolenti, non piangete! 11
15 A Lagrime mie, à che vi trattenete? 11
-------------------------------
-------------------------------
Aria adag.
16 g Lidia, ahimè, veggo mancarmi. 8
17 c L’idol mio, che tanto adoro, 8
18 g Stà colei tra duri marmi 8
19 c Per cui spiro e pur non moro. 8
20 h Se la morte m’e gradita, 8
21 i Or che son privo di spene, 8
22 h Dhè, toglietemi la vita 8
23 i (Ve ne prego) aspre mie pene. 8
------------------------------
------------------------------
24 G Ma ben m’accorgo, che per tormentarmi 11
25 j Maggiormente, la sorte 7
26 j Mi niega anco la morte. 7
------------------------------
------------------------------
27 h Se dunqu’è vero, o Dio, 7
28 h Che sol del pianto mio, 7
29 a Il rio destino ha sete. 7
30 A Lagrime mie, a che vi trattenete. 11
109
Tradução
Lagrime mie, à che vi trattenete,
Perchè non isfogate il fier dolore,
Che mi toglie ‘l respiro e opprime il cuore
Lidia, che tant’ adoro,
Perchè un guardo pietoso, ahimè, mi
donò,
Il paterno rigor l’impriggionò.
Tra due mura rinchiusa
Stà la bella innocente,
Dove giunger non può raggio di sole,
E quel che più mi duole
Ed accresc’il mio mal, tormenti e pene,
é che per mia cagione
Prova mal il mio bene
E voi lumi dolenti, non piangete!
Lagrime mie, à che vi trattenete?
Lidia, ahimè, veggo mancarmi.
L’idol mio, che tanto adoro,
Stà colei tra duri marmi
Per cui spiro e pur non moro.
Se la morte m’e gradita,
Or che son privo di spene,
Dhè, toglietemi la vita
(Ve ne prego) aspre mie pene.
Ma ben m’accorgo, che per tormentarmi
Maggiormente, la sorte
Mi niega anco la morte.
Se dunqu’è vero, o Dio,
Che sol del pianto mio,
Il rio destino ha sete.
Lagrime mie, a che vi trattenete.
Lágrimas minhas, o que as detém?
Porque não dão vazão à dor cruel,
que me tira o fôlego e oprime o coração?
Lídia, que tanto adoro,
por um olhar piedoso, ai, que me lançou,
o paterno rigor a aprisionou.
Presa entre duas paredes,
está a bela inocente
onde nenhum raio de sol alcança,
e o que me dói ainda mais
e aumenta meu mal, tormentos e pena,
É que por minha causa
Sofre o meu bem.
E vós, olhos dolentes, não chorais?
Lágrimas minhas, o que as detém?
Lídia, ai, sinto-me fraquejar.
Ídolo meu, que tanto adoro,
está entre o duro mármore,
por ela suspiro, e no entanto não morro.
Se a morte me fosse oferecida,
já que sou privado de esperança,
Oh, leva minha vida,
peço-te, meu amargo penar.
Mas bem percebo,
que para atormentar-me ainda mais,
o destino me nega até a morte.
Se então é verdade, oh Deus,
que somente o meu pranto,
O cruel destino deseja.
Lágrimas minhas, o que vos detém?
SEÇÃO I
Verso 1:
A longa frase de oito compassos é usada como um refrão que dividirá a
peça em três blocos. De tremenda força expressiva, as palavras lagrime
mie estabelecem o pathos central da obra, colocando as lágrimas como
foco principal do lamento. A escala descendente harmônica
59
constitui-
se em exercício virtuosístico de verossimilhança. Por um lado, temos a
representação pictórica de lágrimas caindo, por outro, a revelação de
uma subjetividade que se esconde por detrás destas lágrimas: as notas
se agrupam de duas em duas, tombando em segundas, quase todas
menores, como apoggiaturas que acentuam a direção da frase
descendente, inelutável, porém trôpega, soluçante. Os trilos colocados
sobre o ré sustenido e o lá, reforçam a divisão simétrica da frase sobre
o intervalo dramático e extremamente instável - diabulus in musica - de
110
59
O termo é inadequado por seu anacronismo. O fato da inexistência de tal escala no
século XVII só faz por realçar o perfil exótico, estranhamente oriental do trecho. Sua
segunda aumentada salta aos ouvidos e colide na cabeça do segundo tempo com o
acorde de mi menor subjacente.
111
quarta aumentada (ou quinta diminuta). Aqui o caráter rappresentativo
distancia-se de Monteverdi, pois quando este cria uma música cênica,
de contraposição de personagens em ação dialógica, em Barbara
Strozzi, o personagem é secundário, praticamente inexistente. A
representação é a da subjetividade que se corporifica em imagem
externa, como em Marino quando transforma a queixa de Arianna pela
brevidade de seu envolvimento com Teseu na imagem das estrelas do
poente e alvorecer (ver referência no Capítulo 4, página 72).
Sobre a che vi trattenete são mantidas as apoggiaturas nas
mesmas notas (dó – si); a frase se expande brevemente até um mi,
para recair ainda mais contundente sobre o si, pelo uso das notas que o
circundam cromaticamente: basicamente não há movimento, as
lágrimas detidas mantêm-se presas sobre a mesma nota si.
Verso 2:
Novamente a imagem se desvela pictoricamente, o impulso do
desafogar ascende a um dos três pontos culminantes da peça (isfogate),
para logo se contrair sobre fier com um intervalo de trítono entre mi e
lá#, em dissonância com o baixo (sol). A palavra dolor mantém-se
longa; um baixo extremamente cromático a constringe, numa
experimentação harmônica que se alinha às antigas ousadias de
Monteverdi. Desde o tempo das dissonâncias não preparadas em
Amarillis do Quinto Livro de Madrigais (1605), tais experimentações
permaneceram vivas até as últimas obras do autor. Em uma passagem
de Non havea Febo ancora (1638), Monteverdi apresenta acordes
harmonicamente inexplicáveis e de efeito extremamente dramático
sobre as palavras suo dolor: coincidentemente, Barbara Strozzi se
permite o mesmo tipo de liberdade em uma passagem sobre o mesmo
sintagma.
Verso 3
Após expressivo madrigalismo em re pausa - spiro, sobre core
desenvolve-se um longo melisma composto de saltos, que se completam
por segundas menores ascendentes, em uma referência à frase de
abertura que se constituía de segundas menores descendentes: nota-se
que as duas idéias se complementam, ligando lagrime a core, as
112
primeiras na sua inexorável descendência, o último na premência
opressiva da dor da ausência.
Em seguida é apresentada uma transposição melódica quase
literal do mesmo verso.
Verso 4 e 5
O nome da amada surge pela primeira vez no pólo tonal de dó
maior, uma “novidade” harmônica de efeito luminoso: o nome abre a
seção em arioso, a invocação do ausente liga-se, como em outras
cantatas, à canção. Clamar o nome da amada é um evento
aparentemente inexistente em ópera do século XVII. Encontramos
invocações ao herói ausente, como as invocações a Orfeo
60
, Ulisse
61
,
Ruggiero
62
, mas em nenhuma destas óperas existe uma inversão da
situação como faz Barbara Strozzi: os nomes de Euridice, de Penelope,
de Alcina jamais são invocados por seus amantes. A invocação do nome
de uma mulher é um evento distinto das convenções operísticas. A
primeira pessoa nas cantatas de Strozzi é quase integralmente na voz
60
Em Orfeu, de Monteverdi, a mensageira relata a invocação de Euridice a Orfeu em
seu momento de morte, no segundo ato, compassos 200-201, versão moderna editado
para a performance de Jordi Savall, 2004.
61
Na edição de Malipiero, Penelope invoca o nome de Ulisse na primeira cena prima do
primeiro ato, em seu primeiro solo.
113
masculina. Torna-se, portanto significativa a invocação do nome da
amada investida de notável afetividade. Deparamos-nos neste ponto
com uma fluidez nas convenções de gênero da época: em Strozzi
revela-se a representação de uma afetividade normalmente reservada
às mulheres, retratando um amante que rompe com os padrões
masculinos da época. A expansão afetiva sobre o nome da amada é
ainda ampliada pela melodia claramente em dó maior, rítmica e alegre,
revelando o deleite da lembrança que a amada invoca.
Verso 6
Do clímax e expansão emocional sobre o nome da amada, há uma
aceleração em direção à vertiginosa queda, cujo efeito é obtido através
da reiteração das escalas descendentes de oitava em semicolcheias, a
segunda escala mais aguda que a primeira e dramaticamente finalizada.
A cadência perfeita de dó maior, caindo na nota mais grave de toda a
obra sobre a palavra imprigionò é um gesto de grande teatralidade, uma
súbita contrição de afetos, em contraposição à expansão emocional
anterior. O texto tornou-se mais uma vez desculpa para o teatro das
emoções, a representação foi além do discurso verbal, cuja presença
62
Na Liberazione di Ruggiero del’isola d’Alcina, de Francesca Caccini, a personagem
principal invoca o nome de Ruggiero em seu lamento (nos anexos, página 351,
114
tornou-se apenas insinuação de uma música muito além das palavras.
As emoções contraditórias se fazem presentes, como se fizeram nos
lamentos do início do século, quando a busca de um psicologismo sutil
fazia o deleite dos compositores e do público. No entanto, em Strozzi
tais emoções surgem revestidas de uma artificialidade maneirista. A
subjetividade se faz imagística e artificial, fragmentando a obra em uma
colagem de afetos conflitantes. A obra não se desmantela devido a
artifícios engenhosamente construídos pela compositora: repetições
motívicas, intervalos melódicos que permeiam a obra e a presença do
ritornello.
Versos 7, 8 e 9
Trata-se de um trecho bastante estático, perfazendo o intervalo
constrito de uma terça diminuta (fá a ré sustenido). Em estilo recitativo,
a linha melódica é grave, girando em torno de fá, refletindo a idéia de
confinamento, tristeza, escuridão.
compasso 12-13).
115
Verso 10 e 11
Desde o verso sete, pequenos saltos vão gradativamente criando
momentum para alcançar um clímax sobre a palavra mal. Esta
intensificação progressiva inicia-se com a nota lá (bella), si (inocente),
dó (può), ré (quel), mi (duole) e finalmente fá (mal). Pictórica e
formalmente bem estruturado, o efeito é ressaltado pela semínima
seguida de uma pausa, que prepara o gesto extremamente dramático
do cromatismo duplo (soprano e baixo em terças) em linha descendente
sobre tormenti e pene. O artifício é típico da linguagem de Strozzi: uma
alternância constante de expansão e recolhimento de afetos, de
resultado genuinamente teatral.
116
Verso 12 e 13
Aqui podemos ver como a compositora mantém a unidade de uma
peça construída quase somente de fragmentos: partindo de um salto
descendente de oitava (o mesmo intervalo que estrutura toda a peça:
mi a mi), a linha sobe então gradativamente até o mi agudo outra vez,
voltando a descer até o lá, terminando a seção.
117
Verso 14
O verso é equilibrado com grande elegância, criando uma simetria
entre duas frases complementares. As suspensões dos primeiros sete
compassos encadeiam-se descendentemente de forma seqüencial - nas
quais as sílabas tônicas (sobre lumi e dolenti) são acentuadas com as
dissonâncias de sétima. Na segunda metade do verso - um longo
melisma sobre piangente – as resoluções em sextas das suspensões de
sétima são adiadas por saltos ascendentes de quartas, criando o efeito
de soluços. A seção de grande lirismo, uma ária ternária em movimento
pendular de dança, é recorrente nos momentos mais melancólicos de
Strozzi, nos quais deparamo-nos com a ligação entre a tristeza do
abandono e o surgimento da canção. Podemos pensar em uma espécie
de devaneio lírico, quase um transe poético, resultado de uma imersão
mais profunda no subjetivo. A estética marinista da emoção que
travestiu-se em sensualidade exteriorizada une-se aqui a uma
verdadeira interioridade, reminiscência da sutileza psicológica a que o
público de Monteverdi acostumara-se a presenciar. Não é mera
coincidência que o baixo relembra a obstinação da passacaglia sobre o
qual a ninfa há vinte e um anos debateu-se em seu discurso desconexo
e conflitado – em Lagrime mie não se dá o mesmo discurso incoerente e
roto, que se efetuava pela presença do choque das dissonâncias e
118
quebras rítmicas. Ao contrário, as dissonâncias neste trecho de Strozzi
ajudam a acentuar o movimento de dança e criar essa sensação de
propulsão hipnótica, manifestando-se externamente no movimento físico
da dança.
Verso 15
Retorno do refrão. A segunda metade da frase é mais estática,
declamatória e conclusiva do que na primeira aparição do verso. Há uma
insistência sobre o mi, com uma inflexão na sensível, ré sustenido.
119
Versos 16 a 23
É uma seção sobre a nova métrica ottonaria que se distingue do
restante da obra. Barbara Strozzi marca a nova seção denominando-a
Aria adagio. Os versos ottonari e seus acentos regulares apontam para
uma mudança clara de textura rítmica. O trecho todo silábico, com
acompanhamento de figuração rápida, rompe com o pathos anterior, de
interioridade e agudeza psicológica. O texto, construído de imagens
estereotipadas, não é tratado com a gravidade prévia; nesta passagem,
Strozzi vê oportunidade para criar movimento e contraste. Só não há
um desmantelamento formal porque existem artifícios que mantém a
coesão da peça: aqui, por exemplo, toda a seção perfaz uma longa
descida da oitava que estrutura formalmente a cantata (mi do compasso
74/5 ao último mi do compasso 84).
120
A superposição de atmosferas contrastantes cria uma obra de
efeito fortemente teatral: miniaturas de cenas se alternam. O ouvinte
não se desprende do espetáculo, surpreendido pelo gosto imagístico
típico da estética maneirista.
Versos 20 a 23
Repetição quase iteral da música dos versos 18 e 19. (Apenas
algumas notas são diferentes).
Verso 24 e 25
Único trecho mais claramente em recitativo; as frases iniciais
desenhando arcos melódicos bem equilibrados são típicos da elegância
de Strozzi. A música responde sensivelmente ao texto poético, como no
compasso 93: o contratempo, que se transforma em uma quinta
diminuída em relação ao baixo, emenda melodicamente o enjambement
sobre a palavra maggiormente. As dissonâncias que se criam entre a
melodia e o baixo só se resolverão sobre o sol sustenido na palavra
sorte que melodicamente é o final da frase anterior, mas também está
ligada ao próximo verso através de outro enjambement
63
. O mesmo
121
63
Enjambement ocorre quando o final de uma frase não coincide com o final do verso e
esta se completa no verso seguinte.
efeito poético, Strozzi realiza através da música, criando uma separação
melódica apenas parcial entre os dois versos.
Verso 26
Em contraposição aos acordes que acompanham o trecho anterior
em recitativo, a melodia apresenta-se com ritmo rápido de colcheias e
semicolcheias e saltos em direções opostas, acompanhados por um
baixo movido. A repetição das palavras mi niega e logo a seguir mi
niega anco la morte cria um movimento de aceleração e energia em
direção à última elocução da palavra morte. O baixo em seu movimento
cromático ascendente intensifica a sensação de precipitação, reforçada
ainda pela dissonância do mi bemol na melodia com o fá sustenido no
baixo. A aceleração e cadência súbita preparam o contraste para a
próxima e última seção lírica.
122
123
Verso 27
A última seção da peça apresenta-se novamente em ritmo
ternário, no entanto, não é uma dança o que se escuta. O ritmo ternário
do baixo é rompido com trechos semelhantes a hemiolas na voz, como
nos compassos 99, 100, 101, 102; nos compassos 103 e 104 as
palavras vero repetidas duas vezes criam também uma célula rítmica
independente do fluxo ternário que então se interrompe. É um final
lírico, porém um pouco tropeçante, sem a fluência da ária ternária
anterior. A fluência é retomada nos madrigalismos com os melismas
sobre a palavra pianto, repetida três vezes numa seqüência melódica
descendente.
124
125
5.3 Hor che Apollo
Sinfonia adagio
[Aria]
1. a Hor che Apollo è a Theti in seno 8
2. b
e il mio sol sta in grembo al sonno, 8
3. a
or ch'a lui pensand'io peno, 8
4. b ne posar gl'occhi miei ponno, 8
-------------------------------
-------------------------------
[Recitativo/Aria]
5. C A questo albergo per sfogar il duolo 11
6. C
vengo piangente, innamorato e solo. 11
[vengo piangente, innamorato e solo]
Ritornello
[Recitativo/Aria]
7. d [ X 6], Filli, questo core, 7
8. d che per amor si more, 7
9. e
à te vien supplicante 7
10. e
de' tuoi bei lumi amante. 7
Ritornello allegro
Aria adagio
11. f Mira al pie' tante catene, 8
12. g lucidissima mia stella, 8
13. f
e se duolti ch'io stia in pene 8
14. g
si men cruda ò pur men bella, [X2] 8
Ritornello allegro
126
[aria]
15. h Se men cruda, pietade havrò 8
16. h del mio servier saprò 8
17. G che m’ami e se men bella, 8
18. x
io frangerò i legami. 8
Ritornello
[aria]
19. h Vedi al core quante spine 8
20. i tu mi dai, vermiglia rosa, 8
21. h
e se sdegni mie rovine, 8
22. I
si men fiera o men vezzosa. [X2] 8
-------------------------------
-------------------------------
[genere concitato]
23. x Ma isfogatevi, spriggionatevi, 11
adagio [aria]
24. j miei sospir, s'io già comprendo 8
25. J
che di me ride Filli anco dormendo. 11
[miei sospir, s'io
g
ià comprendo
che di me ride Filli anco dormendo]
Ritornello
[recitativo/aria]
26. x Ride [3x]de' miei lamenti 7
27. k certo questa crudele 7
28. K e sprezza i preghi miei, le mie querele. 11
29. L Deggio per ciò partir senza conforto: 11
30. L se vivo non mi vuoi, mi vedrai morto. 11
[De
gg
io per ciò partir senza conforto
se vivo non mi vuoi [non mi vuoi] mi vedrai morto] do
Ritornello adagio
127
Adag. [aria]
31. m Mentre altrove il pie' s'invia, 8
32. n io
ti lascio [io ti lascio] in dolce oblio; 8
33. m
parto, Filli, [parto] anima mia, 8
[parto, Filli,
parto, anima mia]
34. n questo sia l'ultimo addio! 8
[l'ultimo addio, questo sia l'ultimo addio]
Tradução
HOR CHE APOLLO
Hor che Apollo è a Theti in seno
e il mio sol sta in grembo al sonno,
or ch'a lui pensand'io peno,
né posar gl'occhi miei ponno,
a questo albergo per sfogar il duolo
vengo piangente, innamorato e solo.
Sì, Filli, questo core,
che per amor si more,
a te vien supplicante
de' tuoi bei lumi amante.
Mira al pie' tante catene,
lucidissima mia stella,
e se duolti ch'io stia in pene
si men cruda oppur men bella.
Se men cruda, pietade avrò
del mio servir, saprò
che m'ami e se men bella,
io frangerò i legami.
Vedi al core quante spine
tu mi dai, vermiglia rosa,
e se sdegni mie rovine,
si men fiera o men vezzosa.
Ma isfogatevi, spriggionatevi,
miei sospir, s'io già comprendo
che di me ride Filli anco dormendo.
Ride de' miei lamenti
certo questa crudele
e sprezza i preghi miei, le mie querele.
Deggio per ciò partir senza conforto:
i i i i d i t
Enquanto Apolo descansa no seio de Teti,
e o meu sol descansa no colo do sono,
enquanto nele penso, eu peno,
e repousar os olhos meus não posso,
a este refúgio para afogar a dor,
venho em pranto, enamorado e só.
Sim, Filli, este coração,
que por amor morre,
a ti vem suplicante
de teus belos olhos amante.
Vê, aos pés tantos grilhões,
iluminada estrela minha,
e se te dói que eu sofra,
seja menos cruel ou menos bela.
Se menos cruel, piedade terás
pela minha dedicação, saberei
que me amas; e se menos bela,
romperei as correntes.
Vê ao coração, quantos espinhos
tu me dás, rubra rosa ,
e se desprezas minha ruína,
seja menos altiva ou menos bela.
Mas desabafem, soltem-se,
meus suspiros, que eu já compreendo /
Que de mim ri Filli até dormindo.
Ri de meus lamentos,
certamente, aquela cruel
e despreza meus pedidos, minhas queixas.
Devo por isso partir sem consolo:
se vivo non mi vuoi, mi vedrai morto.
Mentre altrove il pie' s'invia,
io ti lascio in dolce oblio;
parto, Filli, anima mia,
questo sia l'ultimo addio!
se vivo não me queres, me verás morto.
Enquanto o pé em outra direção vai,
eu te deixo em doce olvido;
parto, Filli, alma minha,
este será o último adeus!
Verso 1 a 4
25
29
33
128
129
Versos 1 a 4
A cena se abre com a imagem de Apollo adormecido nos braços de
Teti. Apollo (o deus sol) adormecido não é apenas metáfora da noite,
como é o motivo que provoca a lembrança da figura amada, que na
tradição petrarquista é traduzida por “sol”, ou o centro da vida daquele
que ama.
64
A imbricação entre texto e música é grande: três vezes a
linha melódica descendente mimetiza a ação do deitar-se. Além da
imitação pictórica da ação, há o aspecto mais subjetivo da sensação de
intimidade dos amantes adormecidos, mesclado à melancolia do
observador que não participa da cena amorosa (como na Ode II de
Safo). Não somente a linha descendente é um topos ligado à tristeza e
melancolia (que aqui é intensificado pelas figuras pontuadas que
aumentam a sensação de queda), como as segundas menores
descendentes estão sempre ligadas a algum afeto pesaroso, ou em suas
expressões físicas, como o pranto ou suspiros. O motivo é repetido três
vezes sobre Theti - seno - grembo al sono, criando musicalmente a
conexão entre as duas imagens (Apollo adormecido nos braços de Teti e
a bem amada adormecida no colo do sono). Contraposta ao motivo
descendente que mimetiza o sono, ascende a lembrança da amada, o
“sol” que se eleva duas vezes (compasso 24 a 26), mas cuja expansão
emotiva é breve, retraindo-se logo através do cromatismo doloroso da
segunda menor descendente. O motivo melódico e rítmico sobre o nome
Apollo (compasso 21) é repetido duas vezes sobre lui (compasso 28 e
29): o narrador, referindo-se Apollo, depara-se com a situação de
abandono, o que precipita a representação da agitação noturna, da
64
Em Stampa, na Rime 146, lemos: Come posso far pace col desio, / o farvi tregua,
poi ch’egli pur vuole , / non essendo qui nosco il suo bel sole, / tranquilo porto e sole
al viver mio? (como posso apaziguar meus desejos, ou vos dar trégua, pois ele assim
quer, enquanto longe de mim está meu sol, porto tranqüilo e sol do meu viver?
[grifo meu])
angústia insone, através da melodia agitada do baixo em colcheias em
seqüência ascendente, reforçada pelos saltos disjuntos e dissonantes da
voz (note-se a presença de dois trítonos seguidos nos compassos 33 e
34).
Verso 5
37
Em recitativo, o trecho é marcado pela presença do semitom recorrente
desde o início da peça: ré – mib ou mib –ré, que na primeira parte
sublinharam Apollo, sol, lui e agora per sfogar e duolo.
130
Verso 6
41
43
45
47
49
131
50
Numa ária em ritmo ternário, a sensação é pendular, lembrando
uma berceuse. A relação entre soprano e baixo é de grande elegância,
com as delicadas permutas de motivos rítmicos e melódicos, a direção
movendo-se sempre para frente, num efeito semelhante a um transe -
uma espécie de perda de consciência do mundo exterior e uma absorção
completa ao estado de desolamento e solidão em que se encontra o
personagem. A presença de ré – mib é marcante, ligando motivicamente
a seção com as anteriores.
Verso 7
132
Casos de assincronia entre texto e música são fenômenos que
passam a ser cada vez mais freqüentes a partir de 1660, servindo
claramente às demandas de um público ávido por malabarismo vocal
vistuosístico das novas prima-donne. Árias de ópera do período
demonstravam uma constante oscilação entre gestos madrigalísticos e
uma completa dissociação entre música e palavra. Um exemplo desta
dissociação aparece surpreendentemente na obra do próprio
Monteverdi: em sua última ópera, L’incoronazzione di Poppea, em uma
ária de Sêneca, um longo melisma de quarenta e uma notas sobre o
artigo la [belezza]
65
parece ir de encontro a sua teoria claramente
expressa na famosa Dichiaratione:
Barbara Strozzi dá um passo além dos puros madrigalismos
usados comumente por Monteverdi e seus contemporâneos, ou mesmo
do puro prazer vocal sem conexão com o texto. Mesmo quando os
65
Ato 1, cena 6, compassos 32-46.
133
134
melismas não correspondem a palavras investidas de pathos específico,
é inegável a existência de um pathos expresso quase que puramente
através da música. É como se o foco se concentrasse num determinado
afeto que uma palavra não necessariamente representa, mas apenas
levemente sugere e, portanto, não pode haver um efeito de
verossimilhança/mimese direta. Se em Marino há um processo de de-
subjetivação em função da fragmentação e fixação em imagens
particulares quase descritivas de um determinado personagem, em
Barbara Strozzi existe uma certa fragmentação do texto, mas com o
intuito contrário ao de Marino. Um texto pobre dramaticamente se
amplia e transforma-se numa obra dramática, plena de subjetividade,
graças à música. Uma palavra como si recebe um foco de luz
extraordinário, é repetida seis vezes, ganhando uma dimensão de
significado muito maior do que o autor do poema pretendia
originalmente. A compositora investe o sintagma de alta carga
subjetiva: O si rompe com o pathos anterior da desolação e alienação da
realidade, numa escala ascendente, um gesto quase de fúria contra o
estado semi-hipnótico anterior. O efeito é de grande teatralidade: são
cenas emocionais que se alternam, sem nem mesmo o suporte verbal
que se suporia constituírem-nas. A música, que em Monteverdi
sustentava (e re-interpretava) a palavra, em Barbara Strozzi
transforma-se em fala – sem palavras. A palavra é apenas uma
insinuação, uma desculpa para o mergulho na subjetividade de um
personagem que nem sequer chega a se construir. O personagem não
se constrói por falta de um palco que o sustente, de um libreto que o
invente, de um convite ao mundo da ópera do qual Strozzi permaneceu
excluída. Mas com seu palco minimizado, com seu drama miniaturizado,
a subjetividade ainda é percebida. Deparamos-nos sim com um
personagem: sem nome relevante, sem gênero marcadamente
escolhido, mas constituído de emoções complexas, profundas e
claramente nomeáveis. A música apenas nos guia por esse universo
135
subjetivo e quase não verbal. A poesia é apenas um pretexto para o
teatro musical que a compositora produz. Nessa passagem, lembremo-
nos de Arianna e tantos outros personagens femininos que no auge de
sua dor, duvidam de terem sido capazes de vociferar contra o bem
amado. A expansão assertiva e furiosa inicial sobre o si – note-se a
presença de mi natural, empurrando a escala ascendentemente para
seu ponto culminante - imediatamente contraindo-se, primeiro
hesitando sobre o que acabou de expressar, para recair na
inevitabilidade de sua situação: fa – mib – ré, reafirmando mais uma
vez o que já nos foi revelado desde o começo: o eu narrativo contrai-se
em sua dor de abandono. O nome da amada é pronunciado numa escala
descendente de sol à sib, com notas ornamentais ao redor desta
estrutura, e a melodia volta mais uma vez ao inelutável intervalo de
segunda menor mib – ré.
Verso 8, 9 e10
70
A idéia da súplica é desenhada em linhas melódicas que se
movimentam ondulantes a partir do compasso 70, através de uma
seqüência ascendente perfazendo uma oitava de sol a sol. A seção
encerra com a palavra amante, sobre o repetitivo intervalo (mib – ré),
aqui ornamentado. Notável é a reincidência do movimento cantabile de
dança, ligando novamente a fluidez do canto ao tema da separação.
136
Versos 11 a 14
79 Ritornello allegro
83
137
87
90 Aria adagio
93
96
138
99
102
O material utilizado pela voz já foi introduzido no ritornello que
toma emprestadas as melodias do primeiro e segundo violinos. A
compositora percebe o eco poético entre estes versos ottonari e os
versos 19 a 22, ambos de significados correspondentes, e aproveita a
oportunidade para utilizar a mesma música. O ritmo, pendular, com
reminiscências de uma ciacona, cria um sentido de movimento físico
indubitável. Não estou argumentando que trechos em Cantatas, como
na ópera do período, seriam destinados à dança, pois não foi até agora
levantada qualquer evidência histórica para o fato. Discuto esta
possibilidade no Capítulo 3. O que esta seção da obra nos oferece é uma
referência musical ao movimento físico, uma evidência de corporalidade.
Strozzi usa o mesmo artifício em outras Cantatas, como podemos ver
em Apresso ai molli argenti, na seção dos versos 35 a 46, por exemplo.
São trechos que além de criarem blocos formais que se destacam do
resto da obra, sublinham certo pathos ligado à memória voluptuosa do
amor, a dor do abandono mesclando-se ao prazer físico que a amada
provoca (vedi al core quante spine / tu mi dai, vermiglia rosa). Voluptas
dolendi se expressa em dança, pois só através da música feita
139
140
corporalidade, pode-se expressar mais plenamente. Os dois trechos,
acrescidos dos ritornellos que imitam as partes cantadas, delimitam
uma seção que corresponderia a uma cena de dança, criando um
equilíbrio na forma geral da obra, conforme o esquema:
Sinfonia 10 versos
Recitativo / ária
Ritornello
Recitativo / ária
Ritornello Seção de dança
Ária 12 versos
Ritornello
Ária
Ritornello
Ária
Recitativo / ária 12 versos
Ritornello
Recitativo / ária
Ária
A insinuação de um pathos dramático se dá pela introdução do
motivo de notas repetidas (compassos 101 e 102) e assim como pela
longa linha descendente de 11º do baixo (compassos 91 a 93), que será
melhor explorado a partir do verso 28.
Versos 15 a 18
115
118
121
125
141
128 Ritornello
131
135
142
138
143
141
144
147
Os versos centrais da seção de dança introduzem motivos
embrionários que se desenvolverão mais tarde: segundas que vão e
voltam, com direção incerta (compassos 115-6), signos da hesitação
que ocorrerá na última seção, no verso 31 (mentre altrove il piè s’invia,
compasso 207). O motivo das notas repetidas aqui também surge um
pouco mais contundente (compasso 118), anunciando o confronto com a
situação de exclusão que vai se concretizar mais tarde.
A dança se dá no trecho do poema em que há uma esperança de
recuperação do amor perdido (versos 11 a 22).
Verso 23
144
150
Em genere concitato, o verso 24 é uma ampliação do que ocorrera
no verso 7 (uma melodia em semi-colcheias em graus conjuntos com o
mesmo ponto culminante na nota fá, sobre a tríade de Sib).
Formalmente, a relação é clara, e neste trecho, o que havia se insinuado
anteriormente, aqui, se confirma amplificado: o verso 6 faz uma leve
referência à dança; dos versos 11 ao 22, a dança se materializa. A
agitação sobre o sintagma si é ampliada textual e musicalmente, criando
um grande rompimento com o que se desenrolara até então.
Subitamente, como um choque, a realidade se desnuda implacável,
agora já sem possibilidade alguma de redenção. Em concitata explosão
emocional, o clímax (fá) é atingido várias vezes, a melodia repetida do
compasso 153 reitera a pungência da insistente nota aguda. A explosão
marca o momento pivô da obra: como nos lamentos em ópera do
período, os quais determinam uma mudança de direção no enredo, este
verso divide o “enredo psicológico” em duas grandes cenas. Deste verso
até o final, há um caminhar implacável a seu desfecho trágico, aqui
desprovido do lieto fine (final feliz), obrigatório nas óperas do período.
No drama em miniatura, torna-se impossível uma reversão de pathos
em tão curto espaço, o que intensifica a densidade da obra.
145
Verso 24 e 25
156 adagio
159
162
165
146
167
O motivo do cromatismo doloroso da segunda menor descendente
que dá unidade a obra desde o primeiro compasso, reaparece
novamente sobre a palavra sospir. A seguir expande-se o motivo das
notas repetidas, já insinuadas pela primeira vez no verso 14, surgindo
aqui como confirmação do tema sáfico da exclusão: a dor do
personagem em abandono não afeta o estado da amada, que até em
sonho o exclui. A insistência sobre a mesma nota, no único trecho da
peça sem nenhuma ocorrência de melismas é reiterada quando as notas
ascendem logo em seguida uma segunda, simultaneamente
acompanhadas de um baixo descendente em graus conjuntos, numa
dramática tessitura de 14ª, uma relação estrita de nota contra sílaba
(compassos 158-160). O efeito do canto em recitativo parlato é de um
crescendo exasperante, amplificado pelo acompanhamento de um baixo
com direção melódica marcada, irreversível, quase um basso ostinato
(ver ocorrência semelhante na análise de Apresso ai molli argenti, com a
introdução da referência ao nome da autora, verso 17). O trecho todo se
repete numa quarta acima, intensificando a percepção da irremediável
exclusão: Filli, até então mencionado em segunda pessoa, subitamente
é transformada em terceira pessoa, explicitando o rompimento, a cisão
que é a partir deste ponto definitiva e culminará numa explosão de raiva
e ressentimento contra a amada (verso 26).
170 Ritornello
147
174
O ritornelo que segue tem a função de reforçar o que foi já
exposto pela voz: o baixo e o segundo violino repetem a frase sobre as
notas sol repetidas, e no momento em que a frase subiria um tom para
a nota lá, Barbara Strozzi joga a continuação da frase para o primeiro
violino. Enquanto o segundo violino permanece na nota sol, e na
aspereza do atrito dissonante, com as vozes partindo em direções
opostas, dá-se a evidência da ruptura. A frase cadencial se repete
(compasso 175), numa contração melancólica, quase um comentário
sobre o inevitável desenlace.
Verso 26 e 27
148
177
181
149
185
188
191
194
197
150
Em recitativo, é reiterada a irreversível posição de exclusão do
personagem. Filli é vista definitivamente à distância, e o observador,
após uma expressiva explosão de raiva, cai em um estado melancólico
de transe, traduzido pela ária pendular em métrica tripla.
Versos 31 ao final
200 Ritornello adagio
151
152
153
154
155
O baixo de passacaglia surge acompanhado apenas pelos dois
violinos. O tetracorde descendente menor – o locus clássico do lamento
– é aqui ampliado melodicamente. De um esqueleto de quatro notas
(sol, fá, mib, ré), o baixo transforma-se numa linha bem mais
complexa, revestido de uma tensão cromática que cria direções
melódicas claras.
Trecho similar foi explorado por Strozzi no livro 2 e 3 de Cantatas,
nos anos 1651 e 1654, respectivamente. O baixo é o mesmo, porém a
parte vocal e dos violinos foi mais amplamente.
Se em outras obras Barbara Strozzi usou o baixo da passacaglia
em situações mais cantabiles (lembremo-nos dos trechos em Apresso ai
molli argenti acima discutidos), em ritmos ternários com um movimento
que avançava sempre para frente, aqui o baixo anda a passos lentos,
quase fúnebres, respirando a cada pausa, num caminhar trôpego mas
com rumo inelutável (o cromatismo marcando fortemente esta direção,
sempre no sentido do primeiro ou quinto grau, estabelecendo
nitidamente o centro tonal). Se no Lamento della ninfa o baixo-ostinato
marcava a tensão entre o desvario da ninfa em choque com o
aprisionamento do baixo repetido, aqui a melodia caminha junto com
ele: os acentos são quase sempre concomitantes, as pausas
coincidentes, não há mais luta contra a direção obstinada do baixo, o
destino já se encontra configurado.
A loucura em Strozzi se traduz em um aspecto distinto de
Monteverdi: enquanto nele presencia-se o forte choque entre o desejo
da ninfa e a realidade que se delineia e a contém, em Barbara Strozzi
surge uma desconexão com a realidade, que é negada através do
refúgio no gozo da lembrança (transformando-se sempre em canção ou
em dança). O abandono reveste-se de um aspecto melancólico quando a
autora concede uma pausa no confronto com a realidade: como em
156
Petrarca, a dor torna-se sedutora. Sobre tais penas disse o poeta:
“farto-me com uma espécie de volúpia, tão pungente que, se dela
alguém vem me arrancar, é contra minha vontade
66
”. Quando surge o
baixo da passacaglia, signo ligado à manifestação da loucura em
Monteverdi, em Strozzi este traduz a aceitação final do que já foi
resolvido antecipadamente: não há nada contra o qual se debater, há
apenas uma previsível caminhada em direção ao desenlace final de
separação, que é reiterada com inúmeras repetições de palavras de
ruptura: ti lascio / parto / ultimo addio.
Ellen Rosand antecipou a idéia de que o afeto mais característico
na obra de Strozzi é o sofrimento. Em obras como Hor che Apollo,
deparamo-nos com uma atmosfera geral de melancolia, uma dor com
um certo tom de volúpia, inevitável e permanente, ao contrário da
explosão de afetos que encontramos em compositores como Monteverdi
ou Cavalli. Nenhum personagem definido é fabricado com profundidade
psicológica. Filli aqui também não se constrói – não há nenhuma
subjetividade inerente ao ser amado. Ao contrário de um personagem
como Teseu, por exemplo, feito de carne e osso, um personagem com
uma história - história de heroísmo ao qual se contrapõe uma heroína
abandonada. A heroína da ópera também possui uma constituição
psicológica, erigido através de sua temporalidade: um passado, um
presente e uma projeção no futuro. No mundo das Cantatas, a
temporalidade é escassa, rasa. O momento presente é o que importa –
e o foco se dá na pequena história das emoções, que se concatenam
como pequenos eventos, como minúscula ópera de uma subjetividade
sem personagens, com um eu poético difuso, que jamais encarna em
papel algum, mas parece permear a obra de Barbara Strozzi.
66
Citação de Petrarca no prefácio do livro: A estética da melancolia, de Marie-Claude
Lambotte. Companhia de Freud, editora. Rio de Janeiro, 2000.
157
CAPÍTULO 6
BARBARA STROZZI E AS MULHERES DE VENEZA.
Barbara Strozzi pode ser vista, por um lado, como uma
personagem típica do seicento italiano, e paradoxalmente, como uma
mulher muito além de sua época. Paradoxal era a própria cidade em que
vivia – Veneza, - ora elevada como símbolo de pureza e castidade, ora
vista como um berço de corrupção e luxúria. Por seus palácios, canais e
conventos conviviam o sacro e o profano, o nobre e o plebeu, a madona
e a cortesã. Para o patriciado, o lugar das mulheres era em casa, e as
festas religiosas eram as únicas atividades sociais permitidas. Entre a
classe das popolane (mulheres do povo) as regras eram mais flexíveis e
elas podiam trabalhar em diversas tarefas – na nascente indústria de
tecidos, o trabalho feminino era especialmente valorizado. A classe
trabalhadora feminina também fazia parte do cenário comum a qualquer
cidade portuária: o número de prostitutas em Veneza no século XVI era
calculado em onze mil mulheres, apesar da estimativa ser talvez um
pouco exagerada (Ruggiero, 1985). Veneza tornou-se um centro
europeu do prazer ilícito, cuja fama só era comparável a Roma. Estas
mulheres trabalhadoras não possuíam nenhum acesso à educação, que
era privilégio de poucas mulheres do patriciado. Testemunha feroz da
injustiça que era impetrada às mulheres pela falta de acesso à
educação, a freira veneziana Arcangela Tarabotti vociferava contra um
autor que excluía as mulheres da raça humana em seu tratado
indisfarçadamente misógino, Le donne non essere della spetie degli
huomini (A mulher não é da mesma espécie dos homens):
Voi, con sofistici argomenti vi sete messo ad assalir quel sesso,
che per mancanza di studi non può risponder alle vostre
inventate malvagità, e col veleno de’ vostri caratteri procurate
d’uccider l’anime de’ semplici; Anzi tentate col nero de’ vostri
inchiostri, d’oscurare il candido della Fede Christiana, e di
macchiar l’innocenza, e purità delle Donne. (Vós, com
158
argumentos sofisticados vos pusestes a atacar aquele sexo, que
por falta de estudos não pode responder a vossa inventada
malvadeza, e com o veneno de vosso caráter procurastes matar
as almas simples; assim tentastes com a negra tinta obscurecer
o cândido da Fé Cristã, e manchar a inocência e pureza das
mulheres
(Tarabotti, 1651).
Mesmo as mulheres do patriciado recebiam uma educação
mínima, suficiente apenas para torná-las socialmente desenvoltas e lhes
possibilitar a perspectiva de um casamento vantajoso dentro de sua
própria casta financeira. A estas mulheres cabia um dote
67
cuja função
constituía um mecanismo de acumulação de capital entre as famílias
nobres. Filha ilegítima de Giulio Strozzi - por sua vez filho ilegítimo de
uma importante família florentina - Barbara Strozzi não receberia um
dote, cujas razões podem ser explicadas por sua condição de
ilegitimidade, ou pelas convicções libertinas de seu pai, membro da
Academia veneziana onde mais ferozmente se discutiam questões
relativas à mulher. O valor dos dotes, subindo consideravelmente no
final da Renascença, era indicador de status social, e servia de base
para o sucesso econômico da nova família. O casamento era a única
posição social plenamente aceita para uma mulher. A falta de
disponibilidade de um dote normalmente tornava-se um obstáculo para
que a mulher se casasse, e muitas delas eram compelidas a abraçar a
vida monástica. Estas freiras faziam parte de um excedente de filhas da
nobreza cujos dotes que lhes permitiria um bom casamento acabariam
por esgotar os bens familiares. Enviá-las então para o convento
apresentava-se como uma solução mais honrada do que casá-las fora de
sua classe. A própria Tarabotti, entrando no convento beneditino aos 13
anos, usaria a oportunidade de forma atípica, embarcando em uma
67
O diário de um florentino, Gregorio Dati, nos fornece um exemplo esclarecedor sobre
o papel dos dotes. Cada vez que seus negócios começavam a decair, sua esposa
falecia misteriosamente, sendo logo substituída por outra, que trazia para o casamento
um dote que permitia que seus negócios florescessem novamente (Ruggiero, 1985).
159
prolífica carreira literária. Contra a condenação das mulheres à vida
monástica, rebelar-se-ia a famosa freira e escritora, pintando um
quadro de lucidez sombria sobre a realidade feminina da Serenissima do
século XVII. Em sua primeira obra, Tirannia paterna, Tarabotti
considerava os patriarcas que forçavam suas filhas à vida monástica
como verdadeiras réplicas dos piores tiranos da história, como o próprio
Nero.
Se stimate che l’ numero grande di esse figliouole pregiudichino
alla ragion di stato, poichè se si maritassero tutte troppo
crescerebbe la nobilità e s’impovirerebbero le case, com lo
sborso di tante doti, pigliate la compagnia che vi è stata
destinata da Dio senza avidità di danari, che ad ogni modo a
comperar schiave come fate voi le moglieri, sarebbe più
decente che voi sborsaste l’oro e non ch’esse profondessero
tesori per comperarsi un padrone, e poichè nel far serragli di
donne, e in altri costumi imitate gli abusi de’ Traci, dovereste
imitarli anche in uccider i parti maschi subito nati, conservando-
ne un solo per famiglia, che saria molt minor piccato, che
sappellir vive le vostre carni. (Se notardes que o grande número
de filhas é prejudicial por razões de estado, pois se todas
casassem a nobreza aumentaria e empobreceria as famílias pelo
desembolso de tantos dotes, aceitai a companhia que vos é
destinada por Deus, sem avidez de dinheiro; pois, de qualquer
modo, ao comprar escravos, como comprais esposas, seria mais
decente se gastardes ouro e não que se esvaziassem tesouros
para comprar-se um patrão, e porque ao fazer haréns para
mulheres e em outros hábitos bárbaros imitais os abusos dos
trácios, deveríeis também imitá-los matando meninos recém-
nascidos, conservando apenas um por família. E isto seria um
pecado bem menor do que enterrar viva sua própria
carne) [grifo meu] (Heller, 2004, p 52).
Se o convento equivalia a enterrar-se viva para a ardente
Tarabotti, ao menos nos conventos apresentava-se a possibilidade de
uma educação formal - perspectiva bem mais promissora do que a que
tinham as mulheres que transitavam livremente além das paredes da
clausura. Enquanto os meninos aprendiam a ler e escrever nas mãos de
tutores privados em casa ou em escolas mantidas pelo governo, as
meninas nobres e cittadine recebiam uma educação limitada em casa ou
no convento. Sua instrução consistia em leitura e escrita rudimentar no
160
vernáculo, aritmética elementar, assim como trabalhos manuais.
Somente em casos muito raros as mulheres se beneficiariam com uma
educação pública e humanista. Enquanto 30 por cento da população
masculina em Veneza era minimamente alfabetizada em 1587, somente
10 a 15 por cento da população feminina sabia ler (Grendler, 1988, p
99-100). Barbara Strozzi incluía-se nesta reduzida fração de mulheres
instruídas, e no seu caso, educada bem além do que nos simples
rudimentos da escrita.
No tratado do escritor veneziano Lodovico Dolce, dedicado à
educação das mulheres, Della Institution delle donne secondo li tre stati,
che cadono nella vita humana (“Sobre a instituição das mulheres,
segundo os três estados que cabem na vida humana”) (Dolce, 1545, p
6), as únicas categorias virtuosas para uma mulher eram reflexo direto
de sua relação com o homem. Assim para o autor humanista, as
mulheres poderiam somente almejar uma tipologia bem limitada: una
perfetta vergine, una perfetta maritatta, & una perfetta vedova, di
maniera, che ciascuna Donna, che osserva i ricordi di questo libro, può
com molta facilità innalzarsi alla perfettione di questi tre stati (uma
perfeita virgem, uma perfeita esposa e uma perfeita viúva, de maneira
que cada mulher, que observa os escritos deste livro, pode, com muita
facilidade, atingir a perfeição destes três estados). Nem virgem, nem
esposa, nem viúva, Barbara Strozzi escapava à tipologia da mulher
virtuosa do início da era moderna.
Fora das paredes dos conventos e da segurança de um casamento
bem planejado, as mulheres se deparavam com uma situação
econômica precária. Sobreviver fora das convenções religiosas e
matrimoniais era um cenário de grande instabilidade para uma mulher
do século XVII. Uma única categoria de mulheres podia, no entanto,
cruzar as invisíveis fronteiras sociais e beneficiar-se do convívio com
uma classe diferente daquela a qual pertencia em sua origem: a
cortesã, ou meretrix honesta. Se por um lado tornar-se cortesã
161
colocava-a numa posição de certa exclusão social, para uma mulher da
época tratava-se de uma rara oportunidade de liberdade e autonomia:
cortesãs podiam transcender convenções, ultrapassar limites sociais,
recebendo uma educação completa, e possuindo o privilégio e meios
financeiros para interagir com os homens de letras e circular na mais
alta esfera social.
O viajante inglês Thomas Coryat (1577-1617) oferece a seguinte e
interessante etimologia para o termo “cortesã”:
The woman that professeth this trade is called in the italian
tongue Cortezana, which word is derived from the italian word
cortesia that signifieth courtesie. Because these kinde of women
are said to receive courtesies of their favourites. (A mulher que
professa este negócio é chamada na língua italiana de
Cortezana, cuja palavra é derivada do italiano cortesia que
significava courtesie. Porque este tipo de mulher é conhecida
por receber cortesias de seus favoritos) (Mcclehouse, 1905, p
265).
Ao ignorar a relação entre cortezana / corteggiana e sua
verdadeira etimologia - donna di corte (mulher da corte) - o viajante
inglês faz uma reflexão útil para compreendermos uma faceta
fundamental da vida de uma cortesã. Elas relacionavam-se com seus
“favoritos” e recebiam deles “cortesias” ou “favores” que permitiam que
se mantivessem financeiramente independentes e em controle de suas
próprias vidas. As cortesãs encontravam-se numa situação sui generis
dentro do contexto social e econômico do século XVII. O que as
diferenciava da prostituta comum era o fato de buscarem para si uma
educação cortigiana - da corte - que as elevasse ao nível intelectual dos
homens com quem almejavam conviver.
Numa época que em Veneza floresciam as Accademie – salões
literários onde se debatia todo o tipo de questões culturais em voga –
poucas mulheres freqüentavam estes círculos masculinos privilegiados.
Alguns, no entanto, abriram suas portas para as cortesãs “honestas”,
162
oferecendo a elas a possibilidade de crescimento intelectual e proteção
política. Atingir a posição de cortigiana onesta na sociedade significava
transitar num círculo público normalmente fechado para a maior parte
das mulheres das castas superiores. As estratégias de um cortesão para
ascender socialmente eram reapropriadas pelas cortesãs, “redefinindo a
categoria humanista masculina da virtù como integridade intelectual
feminina” (Rosenthal, 1992). Famosas foram as cortesãs que
produziram obra literária de valor, e dentre muitas, fez-se notória a
obra e a vida de Veronica Franco (1546-1591). Educada pela mãe,
Franco recebeu o apoio de um influente intelectual veneziano, Domenico
Vernier. Ela usufruiu do privilégio de freqüentar seu famoso salão em
Santa Maria Formosa, pelo qual transitaram muitas outras escritoras
como Gaspara Stampa, Tulia d’Aragona e Veronica Gambara.
Afetuosamente refere-se a ele a escritora Moderata Fonte, outra
freqüentadora da mesma academia:
Fioriscono certo in quei tempi antichi, disse Lucretia, de rari, e
maravigliosi ingegni; ma a giorni nostri, o che ‘l mondo va
invechiando, o gli huomini van peggiorando, non si trovan così
fati ingegni: Come no, rispose Corinna, perdonatemi voi errate;
Ve ne sono de tali, che aguagliano quelli del tempo
passato…..Questo fu il Clarissimo Signor Domenico Venier, di cui
la memoria chiarissima vivrà immortale nel mondo, e fin che
vivo mi starà sempre fissa nel cuore. (Sem dúvida floresceram
nos tempos antigos, disse Lucretia, raras e maravilhosas
mentes; mas nos nossos dias, talvez porque o mundo esteja
envelhecendo ou o homem piorando, não mais se encontram
tais mentes: Como não, responde Corinna, perdoa-me, mas
estás errada; existem tais mentes que se igualam com aquelas
do passado……Este foi o mais ilustre Senhor Domenico Venier,
de cuja memória brilhante viverá imortal neste mundo, e vivo
estará sempre guardado em meu coração) (Fonte, 1600).
Através da obra de Veronica Franco pode-se vislumbrar o enorme
esforço de uma mulher daquele período ao enfrentar os obstáculos
levantados por uma sociedade hostil à educação das mulheres e mais
ainda, aos anseios femininos de encontrar meios de sobrevivência
aliados à preservação de uma dignidade pessoal. A famosa cortesã
163
reivindicaria, em sua obra, respeito por sua produção intelectual,
rejeitando o estereótipo da cortesã cobiçosa e impostora tornada
popular por escritores do período. Em uma de suas cartas, fica claro que
Veronica Franco reivindica um espaço de dignidade na profissão de
cortesã. A elegância com que rejeita um homem que aposta uma
quantia por seu corpo e afeto é notável:
E con queste righe torno ad accettarvi della medesima
disposizione dell’animo mio, al quale voi fate espresso torto con
imputarmi d’avarizia, mentre credete con premii poter
comprarm l’amor mio, il quale, benchè ia amor di donna che non
concorre di ricchezze né di certe altre circostanze con un par
vostro, non è però di vil femina che per convenuto prezzo
obligasse alcuna parte del suo corpo, nonchè tutto l’animo,
overo di altra femina, che, da voi falsamente riputata tale contra
I suoi buoni portamenti, per la vostra buona opinione meritasse
nel vostro giudizio d’esser aborita, benchè, ciò non ostante,
fosse amata da voi. E la cagion che m’acqueta nel dispiacer ch’io
sento di vedermi così da voi richiesta con accrescimento di
prezzo, quasifacendo mercato, se ben, a dir la verità,
molt’ingordo della mia persona, che vale assai poco, è questa.
(E com estas linhas eu mais uma vez quero informar-vos da
verdadeira inclinação de minha alma, a qual cometeis
claramente injustiça, uma vez que me acusais de avarice,
enquanto pensais que oferecendo-me prêmios, podeis comprar
meu amor. Este amor, mesmo sendo o de uma mulher cuja
riqueza e outros privilégios não podem competir com alguém de
vossa casta, não é o amor de uma mulher baixa que por um
preço combinado entregaria qualquer parte de seu corpo ou de
sua própria alma. Tampouco é o amor de uma mulher, que
apesar de sua excelente conduta, de acordo com vosso melhor
julgamento e opinião, merecesse ser desdenhada, e apesar de
tudo, é amada por vós. E é isto que ameniza o desagrado que
sinto ao ver-vos cortejar-me por um preço ainda mais alto,
como se estivésseis apostando no leilão, vorazmente, devo
admitir, por minha pessoa cujo valor é tão pequeno. (Rosenthal,
1992).
Na busca por apoio do mecenato, era essencial tanto para o cortesão
quanto para a cortesã, refinamento verbal e comportamento social
sofisticado. Os ataques feitos às atividades das cortesãs, baseados em
preconceitos morais, denunciavam um “medo da potencial ameaça que
uma cortesã colocava à profissão masculina” (Rosenthal, 1992, p 7).
Estes escritores usavam a imagem de Veneza, pura e sublime, para
164
denegrir as cortesãs como prostitutas de baixo-calão. As sátiras
atacando violentamente as cortesãs remontam a Aretino em seu famoso
diálogo (1535) entre Pippa e sua mãe, no qual esta última ensina a filha
como tornar-se uma prostituta (Aretino, 2006). Franco, em sua obra
epistolar, revisita Aretino, mas aqui, ao invés de satirizar a cortesã,
expõe cruamente os perigos que ela pode enfrentar em sua vida,
empobrecida e desprovida da proteção da sociedade.
Troppo infelice cosa e troppo contraria al senso umano è
l’obligar il corpo e l’industria di una tal servitù che spaventa
solamente a pensarne. Darsi in prenda di tanti, com rischio
d’esser dispogliata, d’esser rubbata, d’esser uscisa, ch’un solo
un dì ti toglie quanto con molti in molto tempo hai acquistato,
con tant’altri pericoli d’ingiuria e d’infirmità contagiose e
spaventose; mangiar con l’altrui bocca, dormir con gli occhi
altrui, muoversi secondo l’altrui desiderio, correndo in manifesto
naufragio sempre della facoltà e della vita; qual maggiore
miseria? quai ricchezza, quai commodità, quai delizie posson
acquistar um tanto peso? Credete a me: tra tutte le sciagure
mondane questa è l’estrema; ma poi, se s’aggiungeranno ai
rispetti del mondo quei dell’anima, che perdizione e che
certezza di danazione è questa? (Que coisa infeliz, contrária à
razão humana é subjugar o corpo e a mente à tamanha
servidão, que assusta só de pensar. Tornar-se presa de tantos,
com risco de ser saqueada, de ser roubada, de ser morta.
Desprovida em um só dia de tudo que em tanto tempo tenha
conquistado, com tantos outros perigos de danos e de doenças
contagiosas e assustadoras; comer com a boca de outro, dormir
com os olhos de outro, mover-se segundo o desejo de outro,
precipitando em óbvio naufrágio a própria faculdade e a própria
vida; que desgraça poderia ser maior? Que riquezas, que
confortos, que delícias poderiam contrabalançar-se a tanto
peso? Crê em mim, de todas as desgraças do mundo, esta é a
pior; mas, além disto, se às preocupações mundanas
acrescentas àquelas da alma, que perdição e certeza de
danação será esta) (Rosenthal, 1992).
Através dos poucos dados que conhecemos sobre a vida de
Barbara Strozzi, podemos reconstruir uma personagem que reflete
claramente as ambivalências que definiam o lugar da mulher naquele
período. O século XVII assistiu a um breve resplandecer do papel
feminino na esfera pública - inúmeras foram as discussões a respeito da
natureza feminina, e acirrados foram os debates; por vezes elogiosos,
mas na maioria das vezes extremamente negativos, condenando a
165
mulher à esfera animal, em eco aos antigos escritos aristotélicos. O
período viu nascer um sofisticado debate proto-feminista
68
, expressado
tanto pela voz feminina quanto masculina, e acompanhado de violentos
ataques de cunho claramente misógino, como por exemplo, a
enciclopédia dos defeitos femininos escrita por Giuseppe Passi - I
donneschi defetti – o qual seria respondido mais tarde por Lucrezia
Marinella com La nobilitá et l’eccelenza delle donne co’ diffetti et
mancamenti de gli huomini (“A nobreza e a excelência das mulheres
contra os defeitos e erros dos homens”) (Marinella, 1600).
Veneza assistiria à significativa produção literária de várias
autoras, entre elas, como vimos acima, a cortesã Verônica Franco, que
se tornaria um símbolo da sofisticação intelectual, sensualidade e beleza
da Sereníssima. Este panorama, que favoreceu o surgimento da
expressão feminina, pode ser vislumbrado em todas as esferas culturais,
na pintura (basta lembrar Artemísia Gentileschi), na literatura, no teatro
e na música. Nesta última esfera, as mulheres literalmente fizeram-se
ouvir, graças ao interesse recente que surgira pela voz feminina,
remontando ao século anterior, quando na corte de Ferrara se ouviram
as primeiras mulheres virtuoses do canto. Na corte do Duque Alfonso,
desenvolvera-se fortemente o gosto pelas vozes de mulheres, e nos
anos de 1580, o grupo conhecido como concerto delle donne
69
constituiu-se num marco para o desenvolvimento da música barroca. O
compositor da corte, Luzzasco Luzzaschi, compunha madrigais com
estas vozes em mente: as partes de soprano eram extremamente
virtuosísticas, propiciando o desabrochar do que logo viria a ser
conhecido como monodia. Este gênero, desenvolvido principalmente por
Giulio Caccini em Florença, vai ser dedicado também à performance
68
O termo foi utilizado por alguns autores para referir-se a uma tendência que surgia
no final do Renascimento em relação a questões que bem mais tarde foram retomadas
pelas feministas.
69
O grupo de constituía-se de Lívia D’Arco, (+ 1611), Anna Guarini (+ 1598),
Tarquinia Molza (1542-1617) e Laura Peverara (__ - 1601).
166
feminina, e as primeiras mulheres a experimentarem o novo estilo
seriam a mulher e as filhas do próprio compositor. Um pequeno passo
vai separar estas primeiras experiências da criação da ópera, e
naturalmente a mulher subirá aos palcos. Da tímida Euridice de Caccini
(1600) à assertiva presença da Arianna de Monteverdi (1608), se
estabelecia irrevogavelmente a presença da personagem feminina na
ópera. O entusiasmo das primeiras produções operísticas abriu um
grande espaço para a inclusão da mulher num circuito até então
inusitado – uma ascensão observada com um misto de admiração e
desconfiança. Não só as mulheres passaram a cantar profissionalmente,
como as personagens femininas em ópera eram incumbidas de
expressarem afetos interiores de grande intensidade.
O pai de Barbara, Giulio Strozzi, circulava com desembaraço pelo
meio intelectual e artístico de Veneza, tendo sido ativo participante da
Academmia degli Incogniti, a qual abrigava quase todos os intelectuais
de relevância na vida cultural da cidade-república. O grupo compreendia
filósofos, poetas, historiadores, e membros do clero – todos eles
prolíficos escritores, cujas publicações cobriam diversos gêneros. O
poeta e escritor que fundou a academia em 1630, Giovanni Francesco
Loredano, correspondia-se com Arcangela Tarabotti, cujas cartas
(Rosand, 1978) refletem uma complexa relação da Academia com a
produção intelectual feminina. A maior parte dos escritos da academia
aderia à forte onda misógina, que se contrapunha às novas concepções
da voz feminina em Veneza. Apesar da ambivalente relação entre
Tarabotti e os Incogniti, ela parece ter usufruído da proximidade com a
academia, numa “combinação de dependência mútua, admiração,
curiosidade e, às vezes, antagonismo” (Heller, 2004, p 72). Foi entre os
Incogniti que seus primeiros manuscritos circularam e fizeram-na
conhecida. Loredano praticamente controlava o mundo editorial de
Veneza, e a aprovação literária do autor era particularmente valiosa
para Tarabotti. Esta academia estava diretamente ligada à produção
167
operística e o próprio Giulio Strozzi foi colaborador de Monteverdi,
escrevendo o libreto de sua primeira ópera, La finta pazza Licori, hoje
perdida. Giulio Strozzi participaria da inauguração do Teatro Novissimo
em 1640, com outra produção de La finta pazza, desta vez em parceria
com o compositor Francesco Sacrati. A protagonista desta ópera, no
papel de Deidamia, foi Anna Renzi, uma cantora que se tornou famosa
na Itália de meados do século XVII. Renzi ganhou o apoio de inúmeros
membros proeminentes da sociedade veneziana e manteve excepcional
independência financeira, sem jamais casar-se. O apreço pela arte de
Anna Renzi aparece claramente no volume que celebra a cantora,
escrito por Giulio Strozzi, Le glorie della Signora Anna Renzi romana (em
1644 - por coincidência, o mesmo ano de publicação do primeiro volume
de madrigais de Barbara). Assim comentaria Giulio Strozzi sobre a
chegada de Renzi em Veneza:
Venne questa canora Ninfa del Tebro nel fin dell’anno 1640 a
beare com la sua dilitiosa virtù questa Reggia di Nettunno
nell’Adria, e nel rappresentar, che ella fece la finta stoltezza di
Deidamia, rapì daddovero non solo i sensi a gli huomini, ma gli
anima ancora de’ più esquisiti professori dell’Armoniche azzioni.
(Chegou esta melodiosa Ninfa do Tevere, no final do ano de
1640, trazendo sua virtude deliciosa a esta Rainha de Netuno
no Adriático, e com sua representação da falsa loucura de
Deidamia, ela não só roubou realmente os sentidos dos
homens, mas também a alma dos mais refinados especialistas
do drama musical) (Glixon, 1995).
Os honorários de 500 scudi venezianos que Anna Renzi recebeu
por sua interpretação em La Deidamia é um indicativo do sucesso de
sua carreira. Sua condição financeira foi tão bem sucedida que ela foi
capaz de emprestar somas significativas a amigos e conhecidos. Há um
registro de que um cantor da Basílica de São Marcos, o romano
Girolamo Medici, concordou em liberar parte de seu salário durante um
ano até saldar uma dívida de 150 ducados que havia tomado
emprestado de Anna Renzi. Várias outras cantoras tiveram o privilégio
168
de atingir o reconhecimento público e uma vida profissional produtiva
com notável grau de independência e segurança financeira – um fato
inexistente no universo das mulheres em outras áreas da sociedade
veneziana.
A produção de Giulio Strozzi cobria uma ampla gama de gêneros:
poesia e prosa, versos para canções (como toda a poesia do primeiro
livro musicado por Barbara), peças teatrais e libretos. Pode-se pensar
na sua carreira como a de um cronista da sociedade aristocrática de
Veneza, como atestam suas diversas descrições publicadas, entre elas,
das festividades em honra de Cosimo II, o grande duque da Toscana
(1621). Através de seu pai, Barbara Strozzi aparentemente teve contato
com a elite intelectual de Veneza. A ligação intensa com a música deve
ter levado Giulio Strozzi a oferecer à filha a formação necessária que
permitiu seu desenvolvimento como cantora e compositora. É provável
que sua educação musical tenha sido organizada através do pai, pois
Barbara estudou com o mais bem sucedido compositor de ópera da
época. No prefácio de seu Op. 2, ela esclarece: ...Francesco Cavalli ...
[era] già dalla mia fanciullezza mio cortese precettore... (Francesco
Cavalli era já na minha juventude meu cortês preceptor). Giulio Strozzi
criou para a filha, em 1637, a Accademia degli Unisoni, onde além de
discussões sobre as questões em voga na época, Barbara encontrava
um espaço para trazer a público as suas próprias composições. O afeto
que nutria pelo pai se expressa na Dedicatória de seu Opus 1 (1644), no
qual escreve: Colui, che, sin da fanciulletta, mi há dato il cognome, e’l
buon essere (com ele, que desde minha meninice, deu-me o sobrenome
e a boa índole). Sua fama como cantora virtuose foi reconhecida por
diversos litterati, assim como músicos de renome. As primeiras
evidências da carreira de Barbara como cantora datam da publicação da
opus 1 e 2 de Nicolò Fontei, duas coletâneas de cantatas dedicadas à
virtuosissima cantatrice, (Rosand, 1972) quando esta tinha apenas
dezoito anos. Muito mais tarde, a compositora seria lembrada como a
169
inventora do gênero cantata. Reconhecendo o fato com indisfarçado
contragosto, o autor acaba por diminuir o valor de sua obra:
There are some Compositions of a Lady, who liv’d about Sixty or
Seventy years ago, whose name was Barbara Strozzi; in which
we have an Account that She, being the first who invented this
mixture of Recitative and Air, gave to the Publick as a Trial
whether that style would be acceptale: but tho’ there is too
much simplicity in the Style of her Airs, yet we cannot but be
obblig’d to the Fair sex for that Invention and Contrivance.
(Existem algumas composições de uma Senhora, que viveu
cerca de sessenta ou setenta anos atrás; nas quais vemos que
ela, tendo sido a primeira a inventar esta mistura de Recitativo
e Ária, experimentou com o público este estilo para ver se seria
aceito, mas apesar de haver demasiado simplismo no estilo de
suas árias, ainda assim não podemos senão ficar agradecidos ao
Belo sexo por tal criação e invenção) (Pepush, 1982).
Apesar do parcial reconhecimento póstumo e dos evidentes
méritos vocais da Venere Canora,
70
é surpreendente que no momento
em que as mulheres ganhavam os palcos, tanto do teatro, quanto da
ópera, Barbara Strozzi permaneceria ciscunscrita ao espaço semi-
doméstico da academia criada por seu pai. Continuam misteriosas as
razões pelas quais ela não teria encontrado acesso ao mundo
verdadeiramente público da grande novidade musical do momento – a
recém criada ópera. Ou a impossibilidade de uma circulação mais ampla
pelo mundo da ópera decorreria de sua suposta ligação com o papel da
cortesã, confirmando a clássica associação entre as propriedades
sedutoras da música e da liberdade sexual?
Dedicada a Barbara Strozzi, a primeira publicação das reuniões da
Accademia degli Unisoni equipara os atrativos físicos da compositora às
suas qualidades vocais:
Molto Illustre Signora
Non ad altri che V.S. che ha la maggior parte nelle glorie di
questa nuova Accademia si devono i frutti che da lei se ne
raccolgono. L’ordinaria legge di consacrare ogn’oggetto a quella
70
Ver logo abaixo na referência que faz Loredano a Barbara Strozzi.
170
deità da ci begnini influssi proviene, mi obbliga a donare le più
pregiate primizie di quest’albero innestato di virtù a lei, ch’è il
primo mobile in questo cielo. Anzi l’armonia della sua voce lo
rende tale; onde ragionevolmente si possa stimare um terreno
di grande paradiso quel luogo in cui nel vagheggiare le sue
bellezze si diletta lo sguardo, e nell’eccellenza del suo canto
gode l’orecchio... (Mui Ilustre Senhora. A nenhum outro senão
V.S. cabe a maior parte da glória desta nova Academia a quem
devemos os frutos que de Vós recebemos. O costume comum
de consagrar cada objeto àquela deidade, de quem fluidos
benignos provém, obriga-me a dedicar as mais prezadas
primícias desta árvore transplantada de virtude a ela, que é o
primo mobile deste céu [no sistema ptolomeico, o nono céu,
que velocíssimo e sem estrelas, gira ao redor da terra,
comunicando o movimento aos céus inferiores]. De tal modo
que a beleza da sua voz assim o torna; onde claramente
pode-se perceber um lugar paradisíaco e, ao contemplar
as suas belezas, deleita-se o olhar e na excelência de seu
canto, goza o ouvido...) [grifo meu] (Inglis, 1986-7)
Ainda na mesma veglia prima (primeira reunião), Gian Francesco
Loredano referir-se-ía a Barbara Strozzi num tom suspeitosamente
lisonjeiro e sensual - tratamento atípico para uma donna di corte ou
uma mulher do patriciado: Per servire ai commandi d’una Venere
canora, ch’essendo BARBARA solamente nel nome, porta amore nel
volto, e le Grazie nel seno, entro a discorrere in questo Panteone di
Virtù. (para servir às ordens de uma Vênus canora, a qual sendo
BARBARA [cruel] somente no nome, porta amor no rosto, e as Graças
no seio, passei a discursar neste Panteão de Virtude). O título que lhe
dá Loredano, “Vênus Canora”, confirmaria as atribuições de uma
cortesã, deusa do amor e também do canto, cuja crueldade se esconde
erroneamente em seu nome, pois na realidade o rosto esconde amores
e o seio Graças, companheiras de Vênus, divindades da beleza que
espalham a alegria no coração dos homens. A descrição de Thomas
Coryat de uma cortesã poderia facilmente aplicar-se a Barbara Strozzi,
ao pensarmos no seu poder retórico - como anfitriã dos Unisoni - e
musical:
Moreover shee will endeavour to enchaunt thee partly with her
melodious notes that shee warbles out upon her lute, which
shee fingers with as laudable a stroke as many men that are
171
excellent professors in the noble science of Musicke; and partly
with that heart-tempting harmony of her voice. Also thou wilt
finde the Venetian Cortezan (if she be a selected woman
indeed) a good Rhetorician, and a most elegant discourser, so
that if shee cannot move with all these foresaid delights, shee
will assay thy constancy with her Rhetorical tongue. (Por um
lado, ela vai tentar seduzir-vos com suas notas melodiosas que
ela gorjeia acompanhada do alaúde, o qual ela dedilha com
toque tão louvável quanto tantos homens que são excelentes
professores na nobre ciência da Música; e por outro, com
aquela harmonia de sua voz que tenta os corações. Vereis
também que a Cortesã veneziana (se ela for uma mulher
realmente seleta) é hábil nas artes retóricas, e elegante
oradora, assim se ela não conseguir seduzir-vos com todas as
citadas delícias, ela vai dobrar vossa constância com sua
retórica língua) (Coryat, 1611).
Como vimos anteriormente, as cortesãs tinham um papel
proeminente na sociedade veneziana, o que não lhes garantia olhares
acolhedores de todos. Em uma das reuniões presididas por Barbara, na
qual teria entregado flores aos convidados, um Incogniti faria um ataque
frontal a sua integridade moral, com o seguinte comentário: Bella cosa
donare i fiori dopo aver dispensati i frutti (Bela coisa distribuir as flores,
quando os frutos já foram entregues) (Rosand, 1972). Muitas outras
circunstâncias insinuam a possibilidade de Barbara Strozzi ter realmente
sido uma cortesã. O quadro La suonatrice di viola da gamba de
Bernardo Strozzi (o sobrenome em comum é mera coincidência),
originalmente fazia parte da coleção particular de Nicolò Sagredo
(Barbara Strozzi dedica a ele seu op. 7, cuja introdução louva-o como
mio Dio tutelare, - meu deus protetor – deixando claro que ela vinha
recebendo apoio financeiro dele). Ellen e David Rosand, num artigo de
1981, defendem a idéia de tratar-se de um retrato de Barbara Strozzi. A
pintura hoje na “Gemäldegalerie Alte Meister” de Dresden, possui uma
qualidade notável em sua sensualidade imediata, o corpo arredondado e
generosamente exposto, o rosto perfeitamente individualizado com o
olhar melancólico e profundo fixo no espectador (Rosand, 1981). Os
172
atributos iconográficos - o seio que se mostra, as jóias que lhe adornam
os braços – fariam parte das convenções da retratística das cortesãs.
O opus 5 (Sacri musicali affetti, 1655), foi dedicado a Anna de’
Medici, a arquiduquesa da Áustria. Num relato enviado ao Duque de
Mântua, de Antonio Bosso - mantovês residente em Veneza - lemos uma
quase anedota, em linguajar satírico, típico das críticas mordazes contra
o comportamento pouco recatado das cortesãs :
Dirò qualque curiosità all’Altezza Vossa Serenissima fuori del
serio. La Barbara Strozzi dedicò alla Arciduchessa di Spruc una
parte de quelle sue musiche a quell’Altezza e li hà mandato a
donare l’altro giorno un scattolino d’oro adornato di rubini con il
suo ritrato, et un gallano da petto pur d’oro con rubini di che la
detta Signora si preggia, e ne fa pompa, ponendo il gallano in
mezzo alle sue due belle tettine (o che tette). (Contarei a Vossa
Sereníssima Alteza umas curiosidades que não são muito sérias.
Barbara Strozzi dedicou à Arquiduquesa de Innsbruck alguma
de sua música; sua Alteza enviou-lhe outro dia uma pequena
caixa adornada com rubis com seu retrato, e um colar, também
de ouro e rubis, que a dita Senhora aprecia, mas não faz
pompa, exibindo-o entre seus belos peitinhos (e que peitos!)
Glixon, 1997).
Notável é a diferença no deferente tratamento do viajante francês,
Andrè Maugars, a Leonora Barone (1611-1670), cantora romana. Em
seu diário de viagem mostra-se entusiasta dos talentos da artista, capaz
de acompanhar-se à teorba ou viola, mas também de seu
comportamento casto e tímido. A ressalva deve fazer-se importante
num contexto em que era natural ligar a música às habilidades inerentes
das cortesãs:
Non si picca d’esser bella ma non è né civettuola; canta insieme
con pudore e sicurezza, con generosità e modestia, con
dolcezza e gravità. La sua voce ha una estensione molto grande
ed è intonata, armoniosa e lei la sa addolcire e rinforzare senza
fatica e senza fare alcuna smorfia. I suoi slanci e i suoi sospiri
non sono lascivi, i suoi sguardi non sono impudichi e i suoi gesti
sono quelli che si addicono a um donna onesta. (Não se exibe
por ser bela e tampouco é coquete; canta tanto com pudor
quanto segurança, com generosidade e modéstia, com doçura e
austeridade. A sua voz possui uma extensão muito grande e é
afinada, harmoniosa e ela sabe torná-la doce ou forte sem
173
fadiga, e sem nenhuma contorção facial. Seus ímpetos e seus
suspiros não são lascivos, e seus olhares não são impudicos e
seus gestos são aqueles próprios de uma mulher honesta)
(Camiz, 1993).
As artes da cortesania eram passadas de mãe para filha. Barbara
era filha de uma criada de Giulio Strozzi, Isabella Garzoni, conhecida
como La Greghetta, a quem o pai designa, em 1628, como herdeira de
seus “móveis, escritos, contratos e dinheiro que se encontrem na hora
de minha morte em Veneza.” Acrescenta ainda que “o faz sem nenhum
interesse malvado, mas somente pela fidelidade e longa servidão, que
juntamente com a filhinha, dedicou-se durante muitos anos não
recebendo de mim nenhum pagamento nem salário ... e faltando ela, irá
tudo isto para Dona Barbara Valle, sua filha...” Vinte e dois anos mais
tarde, em seu testamento final, o pai, então empobrecido, refere-se a
ela como Barbara di Santa Sofia mia figliuola elletiva, e però chiamata
comumente la Strozzi (Barbara di Santa Sofia, minha filhinha eletiva, e
chamada comumente “a Strozzi”). Rosand levanta a hipótese de La
Gregheta tratar-se da mesma cortesã mencionada em um poema do
Incognito Francesco Busenello ou Giovanni Garzoni, Epitaffi inscritti al
Garzone dalle puttane.
Assim como Anna Renzi, Strozzi pode gerenciar suas finanças, ao
menos em determinados períodos de sua vida, com relativa
desenvoltura. Glixon relata diversos eventos relativos à vida financeira
de Strozzi, e a primeira data em que surge documentação a respeito é
março de 1640, quando ela, apenas aos vinte anos, envia seu pai para
coletar os juros de seu investimento governamental (Glixon, 1995). Dois
anos mais tarde, ela autoriza novamente o pai a lidar com os juros e o
capital de seus investimentos no Zecca (Casa da moeda do governo).
Logo depois da morte do pai, em 1652, Antonio Peruzzi, um negociante
expatriado de Florença (como seu pai o fora), representa-a para
recolher seus juros, voltando a fazê-lo em 1657 e 1661. Além da renda
174
que Barbara obtinha de seus investimentos públicos, existem registros
de diversos empréstimos feitos a intelectuais acadêmicos (Sforza e
Ostilio Bissari, irmãos de Pietro Paolo Bissari, membro dos Incogniti e
autor do poema de uma das cantatas da op. 2 de Barbara, assim como
Chiara Priuli, viúva e mãe de Pietro Dolfin, cuja poesia foi musicada pela
compositora em seu Op. 7), e nobres ricos estrangeiros (Giovanni Paolo
Vidman, membro degl’Icogniti, a quem La finta pazza de Giulio Strozzi e
Sacrati fora dedicada). É surpreendente o desembaraço com que
Barbara Strozzi lidava com suas finanças desde os vinte anos. Qual seria
a fonte desta renda, tão cedo na vida de uma cantora que, ao contrário
de suas colegas prima donne, permanecia incógnita no restrito universo
de uma única academia?
Como vimos, Os Incogniti aderiram com vigor aos debates sobre a
questão feminina, e como emblema da academia escolheram a estátua
de uma mulher coberta por um véu, com a inscrição Ignoto Deo. O
dístico parece muito apropriado para uma academia cujos objetivos
irreverentes e anticlericais, com um forte tom imoral e iconoclasta,
reverenciam uma deusa desconhecida. Giovanni Francesco Loredano, o
fundador da Academia, justifica-se dizendo que tendo os atenienses
erigido um templo a um deus desconhecido, não seria grande coisa
adorar uma deusa sem conhecê-la. No entanto, não faltaram esforços
da virtuosissima cantatrice para que seu nome atravessasse os séculos
e chegasse até nós. Ela publicou, em vida, oito livros de Cantatas, um
êxito raramente alcançado por qualquer de seus contemporâneos. É no
mínimo revelador que Strozzi abra seu primeiro volume de Cantatas
com uma obra na qual se afirma autora, esperando ser reconhecida
como a nova Safo (Merce di voi). Em seu Opus 3 (1654), no lugar
normalmente reservado a uma dedicatória, aparece a inscrição Ignota
Dea, corrigindo, talvez bem humorada, o latim de Loredano. Queixar-se-
ia também, com elegância e agudeza típica de sua época, do véu que a
encobria e a mantinha desconhecida?
175
Barbara Strozzi nunca se casou, mas sobrevivem os documentos
sobre o nascimento de quatro filhos, três dos quais, filhos de algum dos
irmãos Vidman (citado acima). Surpreendente é o fato que se revela na
passagem abaixo, relatando o estupro e o nascimento de um dos filhos:
Ho saputto che detto signore hebbe d’una sua serva uma figlia,
che morì l’anno passatto rinomata per cantatrice, et anco
poetessa per nome Barbara Strozzi, la quale stuprata dal Conte
Vildman Nobile Veneto fece un figlio, che porta il nome di Giulio
Strozzi, e si vede di continuo per questa piazza... (Soube que
aquele senhor teve de uma serva uma filha, que morreu no ano
passado, renomada como cantora, e também poeta, com o
nome de Barbara Strozzi, a qual estuprada pelo Conde Vildman,
um nobre veneziano, teve um filho, que porta o nome de Giulio
Strozzi, o qual se vê seguidamente pela cidade...) (Glixon,
1995).
Estupros em Veneza faziam parte de um macabro cenário na vida
das mulheres da Serenissima, onde a violência sexual era fato comum,
algo quase esperado e inevitável para mulheres de classes inferiores.
Pouca esperança teriam estas mulheres de que fosse feita justiça contra
a agressão - muitas vezes cometido por uma gangue masculina - uma
vez que existia uma concepção geralmente aceita do corpo feminino
como algo violável. Crimes de estupro só eram punidos nos casos em
que a violência atingia grau maior do que a agressão sexual em si,
quando a vida da vítima era seriamente ameaçada, o estupro era
acompanhado de roubo material, ou quando se tratava de crianças ou
de mulheres nobres
71
. Nos poucos casos notificados, a justiça era
branda, consistindo muitas vezes em pagamentos de dotes para as
vítimas - ou em um casamento forçado, uma vez que uma mulher
estuprada veria a possibilidade de casar-se bastante diminuída. Barbara
Strozzi não vem a casar-se com seu nobre e rico agressor, antigo amigo
de seu pai. No entanto, três de seus filhos são comprovadamente de
algum dos irmãos Vidman. No testamento de Martino Vidman, há
176
referência a dois dos filhos de Barbara Strozzi, Irmã Lodovica Strozzi
(antes chamada Laura), freira no Convento de Santo Sepolcro e Giulio
Pietro Strozzi, a quem Martino deixa a herança de trinta ducados por
ano. O mesmo Giulio Pietro declara-se filho de Giovanni Paolo Vidman
ao reivindicar sua herança em uma das cortes financeiras de Veneza,
em agosto de 1678. O homem a quem o pai de Barbara havia dedicado
seu La finta pazza era, no entanto, casado com outra mulher, Camilla
Grotta (Glixon, 1995). A vida das duas famílias era intimamente
entrelaçada. Desde 1638 Giulio Strozzi cita Giovanni Paolo Vidman em
seu testamento, pedindo que Barbara e sua mãe o considerem em
primeiro lugar caso necessitem vender o retrato que dele pintou
Bernardo Strozzi. Dezoito anos mais tarde, a entrada no convento das
duas filhas de Barbara, Laura e sua irmã mais velha Isabella, foi
financiada por ninguém menos do que Camilla Grotta, usando os fundos
de seu falecido marido. A primeira filha morreria pouco depois de entrar
no convento, aos 15 anos; a segunda, Laura, mudaria seu nome para
Irmã Lodovica Vidman em 1657. Barbara Strozzi, portanto, escolhe para
as próprias filhas, destino diferente de seu próprio. Impedidas de
casarem-se dentro do patriciado por serem filhas bastardas de um
aristocrata com uma cortesã, a Igreja deve ter-se mostrado como um
destino mais seguro do que o que a mãe escolhera para si mesma.
Apesar de ser designada como herdeira de Giulio Strozzi, Barbara
tornar-se-ía responsável pelo sustento de pai e mãe na velhice dos dois.
O pai morreria antes, mas os últimos documentos relativos à sua vida
atestam que vivia sob o mesmo teto que Barbara, responsável pelo
aluguel de uma residência alugada da mesma família Vidman, na Corte
del Remer, Cannaregio 4765 A. A carta que envia ao Duque de Veneza
em dezembro de 1651, alega a impossibilidade de pagar um imposto
dada a responsabilidade de sustentar a mãe e os filhos:
71
Um capítulo inteiro sobre estupro (“Violence and Sexuality: Rape”) está presente
177
Serenissimo Prencipe. Da che principiò a soggiacere al tormento
della guerra questa Clementissima Patria, anch’io Barbara
Strozzi, humilissima serva di Vostra Serenità, compiansi le sue
disaventure, e non permettendomi lo stato mio di soccorrerla
col sangue, raccolsi ogni mia sostanza, vendei i miei mobili, e
ridotti in denari contadi depositai il tutto in cecca, ben
convendoli, cha la calamità publica, divenghi calamità dell’oro
de privati. Credevo, ch’havendo con quest’holocausto volontario
sodisfatto al possibile delle mie forze, non fossi mai per esser
costretta all’impossibile; tuttavia d’improviso mi veggo colpita
da un mandato degl’Eccellentissimi Governatori dell’Intrade, con
che vengo obligata a pagare in Cecca due tanse a ducati cento
l’una, impostemi in tempo, che trovandomi lontana dalla Città
non potei esser ascoltata. Mi persuado, che quando la giustitia
degl’Eccellentissimi Tansadori havesse fatto riflesso sopra il
numero di quattro figliuoli ch’agravano la mia famiglia aggiunti
alla madre in età cadente, e sopra l’angustissime mie fortune,
non mi sarebbe già mai sopravenuta questa molestia; può
chiaramente vedersi ne’ libri publici, ch’io non ho cosa alcuna in
Decima, e sa Dio, che quando mancasse il puoco prò, che
conseguisco della cecca, converrei sicuramente mendicar il vito
dall’altrui carità. Genuflessa, però, supplico l’Eccellenza Vostra a
non permetter l’esterminio d’una casa, che non può pagare,
perche quanto havea l’ha consacrato al publico. Genuflessa le
supplico a compartir le miserie d’una numerosa famiglia
concedermi gratia, che le mie ragioni siano ascoltate da qualche
tribunale, perche anch’io possa conseguir quel pietoso solevo,
che in questo serenissimo stato non fu mai negato alle lacrime
della povertà. Grazie. (Sereníssimo Príncipe: desde que caiu ao
tormento da guerra esta pátria clementíssima, mesmo eu,
Barbara Strozzi, humilíssima serva de Vossa Serenidade,
lamentei as suas desventuras, e não me permitindo meu estado
de socorrê-la com o sangue, recolhi todas minhas posses, vendi
minha mobília e depositei meu dinheiro na Casa de Moeda,
compreendendo que a calamidade pública torna-se a
calamidade da riqueza privada. Cri que com este sacrifício
voluntário, cumpri meu dever no limite de meus recursos, e que
não fosse ainda constrangida a fazer o impossível. Ainda assim
vejo-me obrigada por um mandato de Vossos Excelentes
Governadores dos Impostos a pagar para a Casa da Moeda dois
impostos de 100 ducados cada. Estes foram a mim impingidos
enquanto me encontrava longe da cidade, e assim não pude ser
ouvida. Estou convencida de que se Vossos Excelentes
Assessores de Impostos houvessem refletido com justiça de que
tenho quatro filhos além de uma mãe idosa, esta ameaça não
teria jamais ocorrido. Pode-se ver claramente nos livros
públicos que eu não tenho nada listado na declaração de
imposto sobre propriedade, e somente Deus sabe que se a
pequena renda que vem a mim da Casa da Moeda faltasse, eu
teria certamente que mendigar meu sustento de alguma outra
caridade. De joelhos eu imploro Vossa Excelência que não
permita a destruição de um lar incapaz de pagar [mais um
em: RUGGIERO, G. op.cit.
178
imposto], que dedicou ao público tanto quanto tinha. De joelhos
imploro que tenhais piedade com as misérias de uma grande
família, e dai-me o perdão, de forma que meus argumentos
sejam escutados por algum tribunal; de modo que eu alcance o
alívio da caridade que em Vosso Mais Sereno Estado nunca foi
negado às lágrimas da pobreza. Obrigada. 12 de maio de
1654.) (Glixon, 1995).
Esta carta, assim como a documentação relativa às atividades
financeiras de Strozzi, revela-nos uma mulher com um formidável poder
de agenciar sua própria vida. Mãe de quatro filhos, cantora de talento
extraordinário, compositora persistente no reconhecimento e
perpetuação de sua obra, Barbara Strozzi gerenciava, aparentemente
sozinha, uma intensa vida profissional. Podemos apenas vislumbrar as
dificuldades que ela enfrentaria como uma mulher que ocupava um
lugar tão ambíguo e paradoxal na sociedade veneziana. A relação de
Barbara com o pai é sugestiva para interpretarmos uma capacidade de
autonomia tão inusitada para a época. A mitologia em torno das
mulheres guerreiras fazia eco às discussões proto-feministas em voga. A
tradicional necessidade de domesticar e converter personagens
femininas guerreiras (Clorinda) ou exterminar as sedutoras feiticeiras
(Alcina) é re-elaborada por Giulio Strozzi em seu libreto para a ópera
Veremonda amazzone di Aragona musicada por Cavalli (1652). Tal
libreto foi uma adaptação de Celio, escrito originalmente em Florença,
em 1646, por Giacinto Cicognini, no qual a heroína era provavelmente
inspirada na Rainha Isabella, esposa de Ferdinando de Aragon. Na
versão de Giulio Strozzi, Veremonda é uma amazona, uma das
personagens femininas mais heróicas da ópera do seicento italiano: ela
é uma corajosa e virtuosa guerreira que combate e vence o inimigo,
enquanto seu marido permanece em casa estudando astrologia (Heller,
2004, p 221-222). Esta liberadora visão do universo feminino não
poderia deixar de refletir-se no imaginário de Barbara Strozzi. Seria esta
a virtù feminina que o pai desejara para a filha, quando lhe pedia que
179
lembrasse ... di quanto ho fatto per lei in allevarla, e metterla sul
cammino della virtù (o quanto havia feito por ela, educando-a e
mostrando-lhe o caminho da virtude)? (Rosand, 1978).
Ainda permanecem misteriosos muitos aspectos da vida de Barbara
Strozzi. Os poucos dados remanescentes sobre sua vida permitem-nos
hoje vislumbrar o complexo universo em que estava inserida, e assim
construir, ao menos parcialmente, o quebra-cabeça que forma o retrato
da complexa e fascinante mulher e compositora seiscentista. Dentro do
rol da tipologia dos papéis femininos aos quais as mulheres do início da
era moderna deviam submeter-se, – a donzela, a mulher casada ou a
viúva - Barbara Strozzi não se enquadrava em nenhum deles, ocupando
um lugar ambivalente e muitas vezes incômodo da amazona guerreira e
autônoma antecipado por seu pai. Transgressora e audaz, sua vida e
obra exemplar testemunham sua independência ideológica e oferecem à
mulher do início da modernidade a possibilidade de romper as regras
vigentes e criar modelos femininos alternativos.
180
181
CAPÍTULO 7
SAFO NOVELLA: A TRADIÇÃO DO ABANDONO
O primeiro dos oito volumes de Cantatas de Barbara Strozzi inicia-
se com um dueto para duas sopranos e baixo-contínuo, no qual a
protagonista – mulher – canta:
Mercé di voi, mia fortunata stella, Graças a ti, minha estrela afortunada,
volo di Pindo in fra i beati cori em vôo de Píndaro entre coros divinos
e coronata d’immortali allori e coroada com louros imortais,
forse detta sarò Saffo novella. talvez chamada serei - a nova Safo.
Os textos do primeiro livro de Madrigais são de autoria do poeta e
libretista Giulio Strozzi, pai elletivo
72
de Barbara. É extremamente
significativo o fato de Strozzi iniciar sua obra anunciando-se como uma
nova Safo, aquela a quem o pai entrega uma voz, feminina, autora, re-
encarnando a voz da poeta grega. Sem poder ignorar a força de tal
exórdio, perguntamo-nos que significado esconde-se atrás da
identificação de Strozzi com Safo. Como se dá a recepção de Safo na
Itália seiscentista e que importância podemos inferir de sua forte
afirmação?
À grandeza de Safo já se referia Platão, que a chamava de “a
décima musa.” O próprio Aristóteles dizia que ao passo que Homero era
considerado “o poeta”, Safo seria “a poeta”, “honrada pelo povo de
Mytilene, apesar de ser uma mulher”. Segundo Werner Jaeger, o
“espírito grego parece ter precisado de Safo para dar o último passo no
mundo da intimidade do sentimento subjetivo” (Jaegger, 1995). As
traduções das obras de Platão e Aristóteles já circulavam na Itália desde
o século XVI, mas a verdadeira Safo é introduzida pela primeira vez
numa tradução de Francesco Robortello (Veneza, 1554) do tratado de
72
Aos dez anos de idade, Barbara Strozzi é adotada pelo pai biológico, e este passa a se
referir a ela como filha elletiva.
182
Longinus, Sobre o sublime
73
. Sua tradução para o latim da Ode II
circulou na Itália do século XVI, assim como seu comentário a respeito
do poema, no qual elogia a capacidade de Safo em descrever sensações
físicas com total ausência de mediação:
Não te admiras como em um mesmo instante, Safo busca a
alma, o corpo, os ouvidos, a língua, os olhos, a tez, como se
fossem todos alheios a ela mesma e dispersos, como se unindo
sentimentos contrários, ela é, de uma só vez, trespassada pelo
frio ao mesmo tempo em que queima, consciente e fora de si,
pois ela está ou aterrorizada ou ao ponto de morrer, de modo
que não é uma única paixão que se manifesta nela, mas uma
confluência das paixões? Todas essas coisas ocorrem com os
amantes, mas é como, já disse, a seleção das mais
surpreendentes delas e sua combinação em um único quadro
que produziu esta obra prima (Lebegue, 1997).
Não podemos concluir positivamente que Barbara Strozzi
conhecesse a tradução de Robortello e os comentários de Longinus, mas
já há quase um século a sombra inspiradora de Safo fazia-se presente
na vida intelectual veneziana. Só assim a compositora poderia ter
invocado o nome da poeta grega de forma tão contundente. Seu pai
revela intimidade com a poesia de Safo, ao citá-la, na descrição de uma
missa de Monteverdi em memória do Grande Duque Cosimo II de’
Medici, em abril de 1621: “As solenidades de luto começaram com uma
queixosa sinfonia, capaz de arrancar lágrimas, e ainda provocar pesar,
imitando o antigo modo Mixolídio redescoberto por Safo na Antigüidade”
(Fabbri, 1994).
Eis a seguir a Ode II traduzida para o português (Fontes, 2003):
Parece-me ser igual dos deuses
aquele homem que, à tua frente
sentado, tua voz deliciosa, de perto,
escuta, inclinando o rosto,
-------
e teu riso luminoso que acorda desejos – ah! eu juro,
73
Hoje sabe-se que a obra é de autor anônimo, porém, na época de Robortello, era
conhecida como de autoria de Denys Longinus (Lebègue, 1997).
183
o coração no peito estremece de pavor,
no instante em que te vejo: dizer não posso mais
uma só palavra;
--------
a língua se dilacera;
escorre-me sob a pele uma chama furtiva;
os olhos não vêem; os ouvidos
zumbem;
--------
um frio suor me recobre; um frêmito do corpo
se apodera, mais verde do que as ervas eu fico;
que estou a um passo da morte,
parece [
--------
Mas [
É estonteante a violência erótica do poema e a descrição de
sintomas físicos que Safo constrói. Comentadores da antiguidade
referiam-se ao poema como um texto de diagnóstico médico: sintomas
de amor, segundo Plutarco e de medo, segundo Lucretius.
O poema cria um triângulo agudo: a persona poética que observa,
em sofrimento, a moça e o homem que sentam juntos, numa cena de
intimidade amorosa. O observador
74
encontra-se excluído da cena de
amor, paralisado em seu desejo e sofrimento devastador. A felicidade do
par força o observador a admitir sua própria impotência, sua solidão e
anseio frustrado. Safo inaugura uma tradição retomada por muitas
outras autoras que lhe sucederam: o tema da exclusão, ou do abandono
74
No poema original em grego não há nenhuma referência quanto ao gênero do/a
observador/a. Tornou-se lugar comum confundi-la com a própria Safo, criando assim
uma ligação não necessariamente verdadeira entre a poeta e o lesbianismo. Sem
descartar esta possibilidade, prefiro pensar que Safo fala da sensação do desejo e
rejeição muito além do gênero, justamente oferecendo a homens e mulheres uma voz
que expresse essa sensualidade extraordinária aliada à dor física do desejo não
realizado.
184
em seu sentido etimológico, o sentir-se banido da relação amorosa
75
. A
poesia feminina e o abandono parecem intrinsecamente relacionados e
inúmeras foram as mulheres que usaram o mesmo motivo até os nossos
dias: de Gaspara Stampa a Sylvia Plath
76
, de Mariana Alcoforado
77
a
Emily Dickinson
78
. A persona poética Safo oferece uma voz que suas
sucessoras tomam emprestada, e seu poema torna-se um poema
arquétipo feminino. A poeta cria a partir do sentido de perda e assim
escreve como uma forma de protesto contra sua situação, ou para
extravasar e registrar sua dor. A dor da perda transforma-se em força
criadora – a mulher assume-se autora no espaço solitário do abandono.
Não somente mulheres dedicaram sua poesia ao tema do
abandono: homens também o fizeram, mas raramente mantiveram sua
identidade masculina. Ovídio criaria um novo gênero literário, no qual
inaugura a presença da heroína na literatura, entregando a palavra à
mulher. As suas Heroídes consistem numa série de cartas de mulheres
abandonadas a seus amantes: Penélope a Ulisses; Ariadne a Teseu;
Dido a Enéias; Safo a Fáon. Ovídio perpetuou uma imagem arquetípica
do amor feminino já criada por Safo e aqui potencializada nas vozes de
tantas heroínas. O poeta romano consegue dar voz a mulheres que
sofreram a violência da traição daqueles em quem haviam depositado
sua confiança, exercitando uma verdadeira psicologia dos tormentos do
abandono amoroso. Em Ovídio, o herói, símbolo da lealdade masculina
em relação à pátria e seus deveres civis, é paradoxalmente um homem
75
A idéia de uma tradição do abandono na poesia a partir de Safo é desenvolvida por
Lawrence Lipking em seu livro Abandoned Women and poetic tradition.
76
Poeta norte-americana, nasceu em 1932 em Massachusetts. Casou-se com o poeta
inglês Ted Hughes de quem se separou em 1962. Dois anos mais tarde, a poeta
suicidou-se, deixando dois filhos pequenos e uma respeitável obra poética.
77
Mariana Alcoforado nasceu em Beja, Portugal, em 1640. Foi obrigada a entrar no
convento aos 11 anos. Aos 20 anos apaixonou-se por um oficial francês, a quem
dedica as dolorosas cartas de amor que foram publicadas em inúmeras traduções até
nossos dias.
78
Emily Elizabeth Dickinson nasceu em 1830 em Massachusetts e morreu em 1886.
Ela foi considerada, ao lado de Walt Whitman, a mais importante poeta norte-
ameriacana do século XIX.
185
incapaz de manter sua lealdade em relação à mulher amada (Néraudau,
2003). Dido oferece a Enéias o esquecimento de suas obrigações
masculinas, e o otium amoroso põe em perigo o papel do herói que lhe
está destinado. As heroínas de Ovídio são o outro feminino que se
contrapõe às qualidades viris da epopéia. Muitas das mulheres das
Heroídes respondem à violência do abandono que sofreram com a
violência de seu desejo de vingança. Medéia termina sua carta dizendo:
“a cólera gera assustadoras ameaças; irei aonde me conduzir minha
cólera. Talvez eu me arrependa do que farei; mas me arrependo
também de ter velado os dias de um esposo infiel. Entrego-me ao deus
que agita meu coração; não sei em que projeto maior minha alma
medita” (Ovídio, 2003).
Em Ovídio, a intensidade da dor traduz-se em todas as possíveis
manifestações corporais. Sua Safo entrega-se à dor física com a mesma
veemência com que a personagem da poeta grega entregava-se à
violência de seu desejo: “não tive receio de ferir meu peito nem de
soltar gritos, arrancando meus cabelos, como uma mãe que vê ser
levado para a pira fúnebre o corpo inanimado do filho querido que ela
perdeu” (idem). A mesma sintomatologia física do abandono se encontra
presente em outras personagens, como em Dido, quando ela diz: “Eu
queimo como as tochas de cera untadas com enxofre, como o incenso
sagrado atirado às brasas fumegantes... Enéias está sempre, quando eu
velo, como que atado a meus olhos; a noite e o dia trazem sem cessar
Enéias ao meu espírito” (ibidem). E a própria Medéia, ecoando Safo:
“Quando te vi, desfaleci; queimava como uma chama desconhecida,
como queima nos altares dos grandes deuses a tocha de pinho. Eras
belo e meu destino me arrastava: teus olhos atraíam meus olhares.
Pérfido, tu os sentiste: quem pode facilmente esconder o amor? A
chama, ao elevar-se, trai e denuncia a si mesma” (ibidem).
As flutuações entre o desejo furioso de vingança e a
sintomatologia da dor física do abandono estarão ainda presentes, mas
186
de maneira menos contundente, nos lamentos femininos do século XVII
- podemos lembrar as imprecações contra Teseu da Arianna de
Rinucinni
79
contrapostas a súbitas contrações de arrependimento a que
se entrega imediatamente. Fica claro que o libretista da segunda ópera
de Monteverdi buscou nas fontes de Ovídio inspiração para sua Arianna.
Esta fala: “E nesta praia agora, / presa de feras cruéis e selvagens, /
deixará seus ossos desnudos”, ecoando a Arianna de Ovídio, que
lamentára-se assim: “Uma areia profunda retinha meus pés de moça...
sou uma presa, uma isca jogada sem defesa aos animais ferozes... os
pássaros marinhos abater-se-ão sobre meus ossos que não serão
enterrados?” (Ibidem).
Ovídio circulava na Itália seiscentista em traduções moralizantes.
Assim, Remigio Fiorentino (1521?-1581?), publicou sua tradução das
Heroídes em 1555, com comentários edificantes e domesticadores do
vigor das heroínas de Ovídio. Na epígrafe da epístola de Ero a Leandro,
Remigio Fiorentino diz: Ove il poeta dimostra quanto sieno impaziente le
donne dell’amare, e che per ogni piccolo sospetto si mettono in
disperazione... (onde o poeta demonstra como são impacientes as
mulheres ao amar, e a cada pequena suspeita já se põem
desesperadas...).
Ainda mais misógino é o comentário de M. Gioseppe Horologgi
(1563), relatando que Arianna fora abandonada por Teseu devido à
paixão pelo álcool: Si può intendere historicamente, che essendo
Arianna in quell’Isola abondantissima di Vino, ne bevesse
soverchiamente, onde adormentatasi, Theseo partendosi vi la
lasciasse... perche la donna che si lascia facilmente vincere dal vino;
79
“Ottavio Rinuccini (1562–1621), como poeta, adota modelos tradicionais derivados
de Petrarca e de Bembo a sua codificação, mas também contempla autores
contemporâneos como o maneirista Gabriele Fiamma e Torquato Tasso.” (Chiarelli,
2003).
187
facilmente si lascia ancora vincere da i piacere di Venere (pode-se
compreender historicamente que estando Arianna naquela ilha de vinho
muito abundante, o tomasse sofregamente, onde adormecera; Teseu
partindo aí a deixou... porque a mulher que se deixa facilmente vencer
pelo vinho, deixa-se também vencer pelo prazer de Vênus) (Anguillara,
2006).
Mas pode-se inferir que Ovídio – e, portanto Safo em segunda
mão – não fora recebido na Itália seiscentista somente como meio
disciplinador e edificante do público feminino. A poeta e (provável)
cortesã Gaspara Stampa, cerca de cem anos antes de Barbara Strozzi,
era já reconhecida como “a nova Safo de nossos dias, à altura dos
gregos na língua toscana, mais casta que ela, e muito mais bela”
80
.
7.1 Autoras e o topos do abandono.
Gaspara Stampa (1523-1554) é vista pela crítica como uma das
mais importantes poetas do início do período moderno italiano. Desde
seu primeiro poema reconhecemos a ambição semelhante a Petrarca:
instituir uma obra exemplar da própria vida e do próprio amor. Ecoando
Petrarca, Stampa abre sua Rime com idênticas palavras: Voi,
ch’ascoltate... Os modelos adotados por Gaspara Stampa (assim como
Veronica Franco, outra poeta – e cortesã - do seicento italiano) são
também derivados das Heroides de Ovídio. Como vimos, trata-se de um
texto no qual um autor adota as vozes de mulheres e cria um modelo do
“feminino” sobre o qual autoras do início do período moderno irão se
basear. Já na epístola dedicatória de sua Rime, em despedida a seu
amante, Stampa alinha-se com a tradição do abandono: “... ao receber
este pobre livreto, tu poderás oferecer-me a cortesia de um simples
suspiro, o qual, de tão longe, poderá refrescar a memória de tua
188
esquecida e abandonada Anaxilla” (Stampa, 1994). Estas linhas ecoam
a voz de Safo, no arquétipo feminino criado por Ovídio: “Teus olhos,
lendo esta carta, escrita por mão devota, reconheceram logo minha
letra, ou, se não tivésses lido o nome Safo, que a traçou, saberias quem
te enviou um bilhete tão breve?... preciso chorar sobre meu amor; a
elegia é um canto choroso” (ibidem). Nas vozes de tantas heroínas, o
autor latino faz da epístola um meio de exercitar uma voz que rompe o
silêncio ao qual o abandono amoroso as forçou. A conquista de uma voz
feminina realiza-se neste paradoxo: se por um lado o abandono as faz
calar, é neste espaço de interioridade silenciosa que surge o poder de
uma voz própria, autora, realizando-se plena na carta amorosa - ou, na
ópera barroca, no monólogo feminino: il duol che sí mi punge / non
mandasse in oblio, / e l’udisse ei, per cui pianti e cantai... (Stampa,
1994) (a dor que assim me fere / porque não pode o olvido levar / que
ele escutasse, por quem eu chorei e cantei...).
Stampa cria sua própria voz poética servindo-se dos gêneros da
poesia petrarquista, da epístola heróica de Ovídio e do Lamento (ou
querela): udite tutti intenti / il suon or degli acerbi miei lamenti (Idem, p
95) (escuta com atenção / o som, ou da crueldade os meus lamentos).
Ao seguir o modelo de Petrarca e seus poemas dedicados a Laura,
Stampa ao mesmo tempo inverte o papel do autor petrarquista
sobrepondo o modelo das Heroídes - uma mulher escrevendo epístolas
ao homem que a abandona. Stampa celebra as qualidades de seu
amado, enquanto deplora a falta de reciprocidade à intensidade de seu
amor. Trabalhando nesta tradição, através de seu temperamento
apaixonado e tempestuoso, sua naturalidade e “sinceridade”
81
, Stampa
80
Na primeira edição póstuma da Rime de Gaspara Stampa (1554), sua irmã, Cassandra,
lhe dedica o moto.
81
A maioria dos críticos usaram o termo “sinceridade” para referir-se à obra de Gaspara
Stampa. Com sinceridade, quiseram referir-se à autora tornando-se presente em seus
poemas e criando uma obra exemplar da própria vida. Petrarca não é tido como um autor
“sincero”, apesar de usar o mesmo artifício, dedicando seus poemas à mulher amada.
189
a expande além dos limites da linguagem delicada e contida de Petrarca.
A paixão pelo Conde de Treviso, Collaltino Collalto, tem papel similar à
paixão por Laura na poesia de Petrarca; ambos os autores usam os
nomes dos amantes metaforicamente: soave colle (suaves montes) ou
l’aura serena (o ar/Laura serena). No Canzoniere, o tema principal é o
do amor por uma mulher chamada Laura, que, ao contrário de Stampa,
permanece intocada e inacessível. Já Stampa relata sua vivência
amorosa, na qual a descrição do amor físico é declarada sem rodeios,
sua paixão é “agressiva e os versos que a expressam, diretos e
vigorosos” (Phillippy, 1992):
Chi vuol conoscer, donne, il mio signore, Se quereis conhecer, mulheres, o
meu Senhor,
miri um signor di vago e dolce aspetto, olhai um Senhor de belo e doce
aspecto,
giovane d’anni e vecchio d’intelletto, jovem nos anos, mas velho no
intelecto,
imagin de la gloria e del valore: imagem da glória e do valor:
di pel biondo, e di vivo colore, de cabelos loiros e vivas cores,
di persona alta e spazioso petto, de estatura alta e largo peito,
e finalmente in ogni opra perfetto, e finalmente perfeito em cada feito,
fuor ch’un poco (ohimè lassa!) empio in amore exceto, ai de mim!, infiel no amor.
e chi vuol poi conoscer me, rimiri e se quiserdes conhecer-me, veríeis
una donna in effetti ed in sembiante uma mulher, na aparência e no
semblante,
imagin de la morte e de’ martiri, imagem da morte e do martírio,
un albergo di fé salda e costante, um albergue de fidelidade e
constância,
una, che, perchè pianga, arda e sospiri, aquela, que por todas as lágrimas,
ardor e suspiros,
non fa pietoso il suo crudel amante. não faz piedoso o seu cruel amante.
Como a personagem Alcina, de Francesca Caccini
82
, a persona que
assume nas epístolas rompe com o papel convencional que lhe caberia
como amante: sua atitude é masculina, ativa, aquela “que persegue, a
caçadora” (idem). Como vimos, desde Virgílio, o Lamento feminino
implica na presença do herói: este abandona sua amada em função de
Adoto o termo sincero para referir-me a uma presença quase física da persona poética,
onde o corpo, em sua obra, surge quase sem mediação.
82
Ver discussão a seguir no mesmo capítulo.
190
suas obrigações masculinas, militares e patrióticas. Em Gaspara
Stampa, como em Francesca Caccini, ou nas cartas de Ovídio, as
heroínas fazem uma censura do heróico e argumentam a favor do amor,
como no poema O notte, a me più chiara, e più beata (Ibidem, p 84), no
qual o repouso amoroso é oferecido ao herói, remetendo-nos a figuras
femininas épicas do otium, como Alcina ou Armida.
A referência a Safo em Stampa (seja via Robortello/Longinus ou
Ovídio) torna-se clara no soneto abaixo
83
.
Quando innanti ai begli occhi almi e lucenti,
per mia rara ventura al mondo, i’ vegno,
lo stil, la lingua, l’ardire e l’ingegno,
i pensieri, i concetti e i sentimenti
o restan tutti opressi o tutti spenti,
e quasi muta e stupida divegno;
o sia la riverenza, in che li tegno,
o sia che sono in quel bel lume intenti.
Basta ch’io non so mai formar parola,
si quel fatale e mio divino aspetto
la forza insieme e l’anima m’invola.
O mirabil d’Amore e raro effetto,
ch’una sol cosa, una bellezza sola
mi dia la vita, e tolga l’intelletto!
Quando me aproximo dos sagrados, luminosos olhos
a maior rara ventura do mundo a mim vem,
o estilo, a linguagem, a audácia e o engenho,
os pensamentos, os conceitos e os sentimentos
tornam-se todos oprimidos ou todos apagados,
e quase muda e estúpida me torno;
talvez por causa da reverência que lhe tenho,
ou porque sou por tamanha luz apagada.
Basta, que se não sei mais formar palavra,
diante da face fatal e de divino aspecto
que toda minha força e alma me rouba.
Oh, milagre do Amor e raro efeito,
que uma só coisa, uma beleza apenas
me dê a vida e me tire o intelecto!
O poema é uma referência clara ao poema arquétipo feminino, a
Ode II de Safo, ao recriar a mesma imagem da mulher, que diante do
amado, vê sua força intelectual anulada. Stampa, consciente de suas
qualidades, lista-as sem hesitação, e as enumera categoricamente:
estilo, linguagem, audácia, engenho, pensamentos, conceitos e
sentimentos. Todos os atributos que lhe são caros como autora e poeta
caem por terra, anulam-se diante da presença dos luminosos olhos, da
face fatal de divino aspecto. O paradoxo entre a anulação da força
criativa feminina e o amor que tira e dá a vida é um fio tenaz que
percorre a obra de tantas autoras, e o conflito se torna um topos
recorrente à obra de muitas delas, através dos tempos, desde sua
fundadora grega. A Safo de Ovídio, prestes a precipitar-se dos rochedos
na costa de Áccio, imploraria: “fazei com que ele volte; com ele voltará
83
O mesmo poema foi escolhido por Lipking para exemplificar a ligação entre Stampa e
Safo.
191
também sua poetisa: é ele que dá, é ele que tira as forças de meu
espírito” (Ovídeo, 2003).
Gaspara Stampa, em todos os tempos - passado, presente e
futuro - cantará. Como Safo, cantará sobre seu ardor e seu pranto, que
se transformam no elemento fundador de sua poesia:
Arsi, piansi, cantai; piango, ardo e canto; Ardia, chorava e cantava; ardo, choro
e canto;
piangerò, arderò, canterò sempre chorarei, arderei, cantarei sempre
(fin che Morte o Fortuna o tempo stempre (até que a Morte ou Fortuna ou o
tempo lave
a l’ingengo, occhi e cor, stil, foco e pianto) o engenho, olhos, coração, estilo,
fogo e pranto)
Assim também a Safo de Ovídio proclamava a criação poética
como resultado das lágrimas: Elegia flebeli carmen (a elegia é uma
poesia de lágrimas). A única solução para o apaziguamento da angústia
provocada por tal dilema é a morte, que a tudo igualaria: engenho,
olhos, coração, estilo, fogo e pranto. Solução encontrada, diz a lenda,
por Safo e Stampa, e gerações mais tarde, por Sylvia Plath.
192
7.2 Francesca Caccini e o tratamento do Lamento.
A ópera La liberazione di Ruggiero dall’Isola d’Alcina foi encenada
na corte dos Medici em Florença por ocasião da visita do Príncipe da
Polônia e Suiça, Ladislao Sigismondo, em 1625. Francesca Caccini, filha
de Giulio Caccini - renomado teórico e compositor da Camerata
Fiorentina - tornou-se famosa como cantora e instrumentista (cravo,
alaúde e chitarronetto). Foi compositora contratada pela corte dos
Medici e ao alcançar prestígio de tal ordem, seu salário tornou-se o mais
alto de que se têm notícias dentre os músicos do período em toda Itália.
Assim como Barbara Strozzi, Francesca se tornaria uma virtuose
reconhecida em todo o país (ela foi uma das sopranos consideradas por
Monteverdi para substituir Caterina Martinelli no papel de Arianna em
1608). Francesca Caccini escolhe um episódio de Orlando Furioso de
Lodovico Ariosto, os cantos 6 a 10, no qual é descrito o amor entre a
Feiticeira Alcina e o jovem Cavaleiro Ruggiero. Este, originalmente
comprometido com sua noiva Bradamante, ao visitar a ilha de Alcina, é
por ela enfeitiçado, entregando-se ao otium amoroso. A história muda
de rumo quando a Maga Melissa desencanta Ruggiero, lembrando-o de
seu compromisso com Bradamante e de suas obrigações militares de
cavaleiro.
Em sua ópera, Caccini eleva Alcina à posição de personagem
principal, graças à intensidade musical com a qual caracteriza seu papel,
o que subverte a representação original de Ariosto. O papel de Alcina
divide-se em dois momentos distintos. Sua primeira aparição se dá
através de um diálogo amoroso com Ruggiero, no qual os amantes
trocam juras de amor de alto teor erótico (Dunque di pari foco
eternamente / Arda’l nostro desio. Pois que com tal fogo / eternamente
193
arda o nosso desejo). Lendo a obra de Ariosto através das convenções
do final do início do período moderno, a audiência da ópera
construes Alcina as representing illegitimate power: she
dominates Ruggiero and other men by deceiving their senses
and promising them both the pleasures of unrestrained sexuality
and freedom from their obligations to (male) society. (constrói
Alcina como uma representação de poder ilegítimo: ela domina
Ruggiero e outros homens enganando seus sentidos e
prometendo a eles tanto os prazeres de uma sexualidade
desenfreada quanto a liberação de suas obrigações com a
sociedade (masculina) (Cusick, 1993).
É intrigante o jogo entre realidade e fantasia: como num jogo de
espelhos, Alcina se debate com a própria consciência de sua dupla
natureza – por um lado, feiticeira, capaz de criar uma realidade ilusória
para Ruggiero e por outro, desejosa de se tornar verdadeiramente
humana, para que possa então crer na realidade do amor de seu
amante. Caccini, neste momento, introduz uma cena que não pertence a
Orlando furioso
84
, reforçando a dimensão humanizada de Alcina,
ausente em Ariosto. A introdução da cena do espelho é reveladora: após
Ruggiero elogiar a beleza de Alcina e declarar seu amor apaixonado,
esta pede a Ruggiero que a contemple através de seu espelho, pois
através deste, ela se vê e deseja que o amante a veja tal qual ela é:
Ah non ti prender gioco
Gentilissimo Amante,
Di chi per te si strugge in vivo foco,
Non ha questo sembiante
Parte, che pure à sospirar t’alletti,
Parli lo specchio mio, là dove impressa
D’ogni bellezza priva
Ho per costume di mirar me stessa.
Ah, não quero enganar-te
Gentilíssimo Amante,
Aquela que por ti se consome em fogo,
Não tem este semblante [aparência]
Pelo qual a suspirar desejas,
Deixa que fale meu espelho, lá onde
impresso,
Privado de toda beleza Tenho o costume
de mirar a mim mesma.
84
como notou Cusick, esta cena é baseada superficialmente numa cena entre Armida e
Rinaldo, na Gerusalemme liberata, de Torquato Tasso.
194
De acordo com o texto de Ariosto, Alcina é representada como
uma poderosa feiticeira, capaz de comandar os seres do mar com
“simples palavras e encantos mágicos”, numa clara alegoria sobre a
sexualidade feminina descontrolada e sedutora, capaz de desviar os
homens de suas obrigações masculinas. Quando Melissa desencanta
Ruggiero e Alcina percebe o desaparecimento de seu amado, Caccini
cria a longa cena de lamento para a personagem. Vejamos como o
gênero do lamento é por Francesca Caccini revisitado:
Qui lasciai la mia vita,
Ma dov’ora s’asconda
Chi di voi ramo, ó fronda,
Chi di voi vaghi fonti a me l’addita?
Dhe perche veggio in terra
Giacersi in abbandono
Si caro al mio bel Sole ogni mio dono?
Lassa, ch’in queste spoglie
Scorgo l’altrui fallire,
Antivedo il mio pianto, e’l mio morire.
Che disse all’or Ruggiero?
Ahi, che per mille prove
So, quanto vario sai l’human pensiero.
Ahi, Melissa, Melissa
Sol da te riconosco ogni mio male,
Perfida, ancor sicura
Da te non sono entro al mio proprio albergo?
Sempre proterva, e dura
Il mio Regno perturbi, e la mia pace?
Ma non sempre trionfa animo audace,
Andronne a ritrovar questo crudele,
E con soavi note,
E con l’umide gote
Ammolirò l’insuperbito Core,
Da dolenti occhi miei manderò fuore
Soavissime fiamme, e vivi strali,
Che al suo novo desio tronchino l’ali.
Ferma, ferma crudele,
Ove ne vai spietato,
Dove mi lasci ingrato in preda al pianto?
Rafrena almen cotanto
La furia del partire,
Che l’immenso dolor l’anima ancida,
Rimira il pianto mio, senti le strida,
Senti le mie giustissime querele,
Ferma, ferma crudele, e questi lumi
Che pur’ora chiamavi e Stelle, e Soli,
Mira qual son per te conversi in fiumi,
Specchiati in questo viso
Ove la gioia, e’l riso havean la fede,
Vedrai la tua mancanza, e la mia fede,
E che tra pene e doglie
Quanto ha di mesto il mondo ivi s’accoglie.
Dhè se non hai pietà del mio languire,
Movati il tuo fallire,
Sai pur, qual macchia inestinguibil sia
In nobil Cavaliero il tradimento:
Ruggiero, Anima mia
Aqui deixei minha vida
Mas onde agora se esconde
Qual, dentre vossos ramos, ó copas
Quem, dentre as belas fontes, me-lo apontará?
Ai, pois que vejo por terra
Jazer em abandono
Tão caros a meu belo Sol todos os meus dons?
Ai, que nestes restos,
Percebo a falha de outros [Melissa],
Prevejo o meu pranto e minha morte.
Que disse então Ruggiero?
Ai, que por mil provas
Sei, quão volúvel é o pensamento humano.
Ai, Melissa, Melissa
Em ti reconheço cada mal meu,
Pérfida, em ti não tenho confiança
e entras em meu próprio albergue?
Sempre insolente e dura
O meu Reino perturbas, e a minha paz?
Mas nem sempre triunfa o ânimo audaz,
Partirei a encontrar aquele cruel
E com tom suave,
E com as gotas úmidas,
Amolecerei o coração orgulhoso,
De meus olhos dolentes enviarei
Suavíssimas chamas, e vívidos golpes,
Que a seu novo desejo cortará as asas
Pára, pára cruel,
Onde vais, impiedoso,
Onde me deixas, ingrato, presa do pranto?
Refreia ao menos um pouco
A fúria do partir
pois tamanha dor a alma mata,
Mira outra vez o pranto meu, ouve o grito,
Ouve minha justíssima queixa,
Pára, pára cruel, e estes olhos
Que outrora chamavas de Estrelas e Sóis,
Olha como se tornaram para ti rios,
Espelha-te neste semblante,
Onde a alegria, e o riso permaneciam,
Verás a tua deslealdade e a minha fidelidade,
E que entre dor e sofrimento,
Quanto tem de triste o mundo que ali se acolhe.
Ai, se não tens piedade de meu langor,
Acaba com tua infidelidade,
Sabes mesmo, que mancha inextingüível é
Em nobre Cavaleiro a traição:
Ruggiero, Alma minha
195
Troppo di te, troppo di me pavento,
Se tu mi neghi in tant’affanni aita,
Ohime come da te senza mia colpa
Ogn’ombra di pietà veggio sparita?
Vita della mia vita
Poscia che’l proprio honore,
E del mio favellar gl’ultimi accenti,
Non ponno oprar, che’l tuo rigor s’arreste,
Almen dhe ti souvenga,
Quai dolci abbracciamenti
Nella pace d’Amor meco godesti,
E si dolce memoria il piè ritenga
Ditemi, O Cieli voi, poiche egli tace,
Dite, qual’è maggiore
L’ostinata sua voglia, o’l mio dolore,
Che nulla ancor da quel crudel impetra,
O ferita di Tigre, ò cor di pietra.
Lassa ch’indarno io prego,
Deh perche non gli niego
Quinci il partirsi à forza?
Deh perchè dura scorza
Omai non cangio il suo crudel sembiante?
Furie, che giù nella Città di Dite
Ad ogni mio voler sempre disposi,
Ne’ miei soliti alberghi à me venite,
Per voi terribil’onde
Ardino in vivo foco
E dall’atre voragini profonde,
Tal che da queste arene
Ogni sentiero al dipartir si chiuda,
Orsù fuggit’omai, fuggi se puoi,
Opri forza d’incanto
Quel, ch’indarno tentaro i preghi, e’l pianto.
Qual temerario core
Alla vista di queste
Ondeggianti di foco atre tempeste
Non sentirà di morte
Il gelido timore?
Qual animo sì forte
Potrà mirar d’Alcina
L’adirato sembiante?
Mal consigliato Amante,
Poiche di me sprezzasti il core, e il Regno,
Proverai quanto vaglia
Di tradita beltà l’odio, e lo sdegno.
Demasiado temor carrego, por ti, por mim
Se tu me negas para tanta aflição ajuda,
Ai de mim, sem culpa minha, como de ti,
Cada sombra de piedade vejo esvair-se
Vida da minha vida,
Pois que possa a própria honra,
Já que do meu falar, as últimas palavras,
Nada puderam fazer para teu rigor interromper,
Ao menos, ai, recorda-te
Quão doces os abraços
Na paz do Amor, comigo gozaste,
E que tão doce memória não te deixe partir.
Dizei-me, ó céus, pois ele se cala,
Dizei-me qual é maior
Sua vontade obstinada ou a minha dor,
Que nada consegue daquele cruel suplicar
Oh, ferida de Tigre, oh, coração de pedra.
Ai, que em vão suplico,
Ai, porque não lhe nego
Daqui o partir, à força?
Ai, porque tão dura casca
Já não mudou seu cruel semblante?
Fúrias, que abaixo, na Cidade de Dite
A cada querer meu sempre corteses,
Em meu solitário refúgio a mim venhais,
Por vós terríveis fúrias
Ardam em fogo vivo
E dos escuros abismos profundos,
Como destas areias
Cada caminho ao partir se cerre,
Ânimo, foge já, foge se podes
Abram-se forças do encanto,
Àquela que em vão tentou a prece e o pranto
Qual coração temeroso
À vista destas
Tempestades ondulantes de fogo
Não sentirá da morte
O gélido temor?
Qual ânimo tão forte
Poderá mirar de Alcina
O irado semblante?
Mal aconselhado amante,
Já que de mim desprezaste o coração e o Reino,
Provarei quanto vale,
De beldade traída, o ódio e o desdém.
Este lamento difere radicalmente do que vimos ocorrer em
Arianna. Alcina, ao perceber o abandono iminente, inicialmente é
acometida de dor dilacerante, mas logo junta suas forças para vingar-
se. Sua atitude é altiva e ameaçadora, mais caracteristicamente
masculina, ao evitar a todo custo deixar-se levar pela mesma desolação
e paralisia que vimos acometer Arianna. Jamais se culpa por sua reação
violenta, e no irremediável cenário, permite que a ira a domine em seu
plano de vingança.
Tal episódio ocorre de forma bem diversa no original de Ariosto,
no qual a feiticeira, depois da partida de seu amante, persegue-o em
furiosa batalha com uma frota numerosa de navios. Estes acabam
queimando todos, menos o dela, no qual faz sua triste escapada. Ariosto
descreve apenas brevemente a dor de Alcina, comentando que esta não
poderia, como Dido, dar fim a seu martírio, pois feiticeiras não morrem
jamais. Francesca Caccini amplifica a cena, tratando Alcina com inegável
simpatia – a música que lhe cabe é a mais notável de toda a ópera. A
Melissa, que no enredo representa o amor puro, casto e sereno de
Bradamante (a noiva prometida de Ruggiero), é dada uma música sem
qualquer tensão cromática, com ritmo regular, previsível e enfadonho, e
harmonia convencional:
196
Exemplo 1: Melissa desperta Ruggiero
Caccini implicitamente censura a visão vigente que elogia a
posição da companheira silenciosa e casta, subvertendo a visão de
Ariosto através da caracterização musical de Melissa. Isto se torna ainda
mais evidente pela oposição ao discurso de Alcina, de uma sensualidade
exuberante, pleno de contrastes, profundamente humanizado pela
exposição de afetos contraditórios e violentos. Como Arianna, Alcina
sofre o abandono de Ruggiero, mas ao contrário desta, não internaliza
jamais a culpa (Ohimè, come da te senza mia colpa, / Ogni ombra di
pietà veggio sparita?), e recusa-se a aceitar passivamente seu destino:
sua súplica não é solitária. Alcina confronta seu amante, transgredindo
as leis do decoro feminino – como Orfeu, crê em seu poder de sedução
(E com soavi note,/ E com l’umide gote / Ammolirò l’insuperbito Core) e
tenta, com os recursos mais humanos (lágrimas, ternas lembranças de
seu amor) mudar a decisão de Ruggiero de partir. Quando todas suas
tentativas falham, Alcina opta pela vingança, e ao contrário de Arianna,
não se arrepende de sua própria fúria.
O tratamento da personagem oferece um rompimento com o
paradigma da mulher abandonada, subvertendo as convenções de
gênero típicas do lamento. Podemos alinhar Alcina com as personagens
de Monteverdi, Proserpina (L’Orfeu, 1607) e Poppea (L’incoronazzione di
Poppea, 1643), figuras femininas que dominam a habilidade retórica –
prerrogativa normalmente reservada aos homens do início do período
moderno. Proserpina usa sua habilidade para convencer Plutone, seu
marido, rei do mundo dos mortos, a libertar Euridice e devolvê-la a
197
Orfeu. Poppea, trinta e seis anos mais tarde, é a mais sedutora
cortesã
85
na ópera da primeira metade do século XVII, e como toda
cortesã, é habilíssima nas artes retóricas, aliando sua fala à imodesta
sensualidade para obter de Nerone o que deseja. O trecho mais
condoído do Lamento de Alcina, no entanto, assemelha-se outra vez à
Arianna, no sentido em que sua “fala involuntária apela para a
compaixão do ouvinte, principalmente por parecer autêntica, isto é, não
fabricada com o propósito de manipulação.” A expectativa criada para
um público familiarizado com a personagem de Ariosto, aqui se
desconstrói – o que o ouvinte da ópera escuta é a mais pura imitazione
do sofrimento feminino, o autêntico espetáculo da dor: a linha melódica
se contorce num cromatismo sensual e voluptuoso. A frase é um
exemplo claro da antiga imagem de voluptas dolentis, figura na qual
entrelaçam-se intimamente dor e sensualidade, ou o doce sofrer, tão
presente na obra de Petrarca.
86
A frase de abertura perfaz uma sétima
descendente, e o cromatismo é exuberante, percorrendo oito das onze
notas que preenchem cromaticamente o intervalo de sétima: ré, dó, si
natural, si bemol, lá bemol, sol, fá sustenido e mi.
85
Devo a Susan McClary a generosa sugestão desta idéia.
86
Existe toda uma tradição, desde Petrarca, repleta da linguagem do “doce sofrer”: se
ria, ond’è si dolce ogni tormento (ria-se, quando é tão doce cada sofrer; Soneto XXII);
Pascomi di dolor, piangendo rido (Alimento-me de dor, chorando rio; CXXXIV) ; dolce
pianto (doce pranto); il dolce acerbo e’l bel piacer molesto (o doce sofrer e o prazer
molesto; Canzonieri, CCCXXXI).
198
Exemplo 2: Lamento de Alcina
O nobre cavalheiro Ruggiero desde sua primeira aparição na
ópera, quando apaixonado por Alcina, foi caracterizado pela tríade de sol
maior:
Exemplo 3. (Que doce e bendita sorte)
Fazendo eco a esta caracterização do personagem, a invocação de
seu nome surge solene em sol maior e é proferida sempre com o
mesmo motivo rítmico:
Exemplo 4: Melissa invoca o guerreiro.
Em seu processo de desencantamento, depois da revelação de
Melissa, sol maior transforma-se em menor:
199
Exemplo 5. (Ai de mim, muito bem conheço minha falha)
A mesma tríade de sol menor já se insinuara nas primeiras cenas
de amor entre Alcina e Ruggiero, ainda felizes (dó maior), antecipando o
desenlace doloroso da relação:
Exemplo 6. (Permanecei, meu Senhor)
A intuição do abandono se dará também em sol menor, quando
Alcina se depara com a ausência de Ruggiero: Qui lasciai la mia vita
(aqui deixei minha vida):
Exemplo 7 (Aqui deixei minha vida)
200
Alcina, em seu lamento, voltará a invocar com reverência seu
amado Ruggiero
87
, para logo retroceder, contrita em sua dor, descendo
a um sol sustenido, sobre a tríade de mi maior.
Exemplo 8. (Ruggiero, alma minha)
Pouco depois, Alcina invoca o amor dos dois, repetindo o mesmo
motivo rítmico e melódico em dó maior da cena em que os amantes,
felizes e confiantes, separavam-se pela primeira vez (exemplo 6 acima).
Desta vez a lembrança retorna em tom doloroso, quando Caccini
transforma a quarta descendente do trecho anterior em trítono,
amplificando o efeito ao criar uma síncope sobre o dó, que se choca,
dissonante, com a tríade de mi maior (outra ocorrência musical da
figura do voluptas dolendi). A paz do amor dos dois é relembrada, numa
última tentativa de reter Ruggiero.
201
87
O motivo com o mesmo ritmo e intervalo, parece repetir uma convenção da
invocação do amado. Diversas vezes aparece em Monteverdi: quando Poppea ao
dirigir-se a Nerone, no início da terceira cena de L’incoronazione, lhe implora que não
parta. Proserpina também invoca Plutone com o mesmo motivo, assim como a
mensageira ao relatar a morte de Euridice usa o mesmo motivo ao contar como esta
invocara o nome de Orfeu.
Exemplo 4: (Ao menos, ai, recorda-te / Quão doces os abraços / Na paz do Amor,
comigo gozaste, E que tão doce memória não te deixe partir)
A voz de Safo faz-se presente na obra de Caccini no tratamento
que esta faz de sua personagem principal: a mesma sintomatologia
física do desejo, a violência erótica, a mesma “sinceridade” também
percebida na poesia de Gaspara Stampa. Como nota Cusick, “a
audiência deve esperar que a Alcina de Caccini tente persuadir e
dominar Ruggiero através do engano e da ilusão - mas não é engano o
que se escuta. Como Ruggiero, somos confrontados com uma imagem
sensualmente sedutora, cativante – e, no entanto, verdadeira”. É esta
verdade no discurso de Alcina e sua presença física sem mediação,
traduzida em sua música, que alinha a personagem com a poesia de
Safo e de Gaspara Stampa.
7.3 Safo em contexto marinista
Encontramos o antigo traço sáfico, agora em novo contexto, no
primeiro Soneto de Rime amorose (1602) de Giovan Battista Marino:
202
203
Proemio del Canzonieri
Altri canti di Marte e di sua schiera
gli arditi assaltie l’onorate imprese,
la sanguigne vittorie e le contese,
i trionfi di Morte orrida e fera.
I’ canto, Amor, da questa tua guerrera
quant’ebbi a sostener mortali offese,
come un sguardo mi vinse, un crin mi prese:
istoria miserabile ma vera.
Due begli occhi fur l’armi onde traffitta
giacque, e di sangue in vece amaro pianto
sparse lunga stagion l’anima afflitta.
Tu, per lo cui valor la palma e ‘l vanto
Ebbe di me la mia nemica invitta,
Se desti morte al cor, dà vita al canto.
Primeiro poema do Cancioneiro
Que outros cantem de Marte e suas tropas,
os corajosos ataques e feitos gloriosos,
as vitórias sangrentas e os combates,
os triunfos da Morte horrenda e feroz.
Eu canto, Amor, como desta guerreira
suportei mortais ataques,
e como um olhar que me venceu, suas melenas me
[prenderam: / história infeliz mas verdadeira.
Dois belos olhos foram as armas, onde trespassada
jaz a alma aflita, e ao invés de sangue,
meu pranto amargo corre, por longo tempo.
Tu, por cujo valor as palmas e o orgulho fez
reinar sobre mim a invencível inimiga,
Se deste a morte ao coração, dás vida ao canto.
Em Marino, a tópica do abandono gerando música/poesia se
expressa claramente no final epigramático do Soneto, na linha 14. Um
epigrama - uma solução engenhosa que explica e cria um clímax -
revela a solução do que se anunciou no início do poema: à colocação
antitética de morte (canti de Marte) e amor (I’ canto, Amor) surge a
única possibilidade de vida, a do canto poético, que se opõe à morte do
coração. Alinhando-se com a tradição ovidiana, o poema declara uma
poética que se opõe ao tradicional motivo épico: que outros cantem a
guerra, aqui caberá cantar o amor. Um amor que agora se veste com
uma roupagem maneirista, cuja estética cria uma novidade na história
da literatura: o autor faz-se presente na própria obra, tornando-se
consciente de sua própria criação. A partir de agora, o artista pode obter
satisfação em ver-se refletido, espelhando-se narcisisticamente em sua
obra.
A guerreira de Marino distancia-se radicalmente da guerreira de
Tasso: Clorinda é uma personagem de profundidade trágica, a guerreira
de Marino é uma mulher anônima e sedutora que brinca com um
204
assunto anteriormente tão grave, o amor. Agora presenciamos, numa
guinada jocosa e irônica, a de-subjetivação da personagem e da própria
cena amorosa. A cena passa a ser relatada pelo autor, que nos olha de
dentro do poema, com um meio sorriso, num gesto puramente teatral:
istoria miserabile ma vera. O amor transfigura-se em puro jogo erótico,
no qual os sentidos substituem o sentimento: a guerreira flerta com as
armas de seu olhar, aprisiona com os próprios cabelos. A tendência na
poesia marinista de transformar o que era de âmbito interior em objeto
exterior, de usar imagens para acessar uma subjetividade tão
intelectualizada a ponto de se anular, fez com que Marino fosse rotulado
como “o poeta dos cinco sentidos”: o amor não era mais o estímulo para
emoções interiores, mas uma fonte de delícias sensuais, evidenciadas,
por exemplo, num verdadeiro catálogo de beijos e suas variantes. Na
polêmica que se seguiu à publicação de L’Adone, o escritor Nicola Villani
acusou virulentamente o poeta de destruir o efeito retórico e de não
mais emocionar os ouvintes, exagerando no uso de “conceitos” (concetti
ricercati) e frases engenhosas (arguzie). A figura amada não é mais,
como Clorinda ou Arianna, uma personagem de carne, osso e sobretudo
alma, construída de emoções intensas às quais temos acesso. A
guerreira de Marino não possui nenhuma densidade; é um ser abstrato
que apenas cria uma oportunidade para o surgimento do autor e seu
epigrama final. O que está em jogo em Marino não é mais a retórica
introspectiva de Petrarca, que abrangia uma vasta gama de nuances
psíquicas. Mesmo alinhando-se a tradições anteriores e ainda
reproduzindo antigos topos, a sua obra insere-se em uma nova estética.
O novo estilo cria uma relação ativa entre autor e leitor. Agora vemos-
nos obrigados a reagir intelectualmente à nova poesia, decifrando seu
jogo artificial de meraviglia. Como esclarece Elwert, Marino é “um
acrobata do espírito e um criador de fogos de artifício verbais;” a poesia
barroca
205
non è sentimentale e soggetiva, bensì oggetiva; non è di tutto
confessione ed espressione di esperienze personali e vissute, ma
invece in primo luogo una funzione sociale...Se il Petrarca
mirava a condurre il lettore a sospirare com lui e il poeta
romantico tende a sconvolgerlo com orrori metafisici, il poeta
barocco si propone di fargli venire un sorriso sulle labbra, sorriso
dovuto al piacere squisito che un pensiero arguto o un motto
indovinato sanno suscitare. (não é sentimental e subjetiva, mas
sim objetiva; não é nem um pouco confessional nem expressão
de experiência pessoal por ele vivida, mas tem em primeiro
lugar uma função social ... Se Petrarca buscava conduzir o leitor
a suspirar com ele e o poeta romântico tende a perturbá-lo com
horrores metafísicos, o poeta barroco se propõe a trazer um
sorriso sobre seus lábios, um sorriso como resultado do refinado
prazer que um pensamento arguto ou uma graça espirituosa
pode suscitar) (Elwert, p 3-4).
Com ênfase no estranho e rebuscado, a obra maneirista apóia-se
em truques de prestidigitação, que carregam o observador, como num
passe de mágica, fazendo com que enxergue fenômenos que só se
revelam se este se deixar levar pelos estratagemas do artista. O poeta
passa a observar furtivamente o espectador de dentro de sua obra,
tornando-se quase um voyeur desta relação. Este fenômeno é
recorrente na obra de Strozzi e, como vimos, desde sua primeira peça
estabelece-se esta clara relação entre autora/obra/espectador.
Barbara Strozzi encontra-se neste vértice estético: no ambiente
cosmopolita, sofisticado e coquete da Serenissima, o gosto maneirista
pelo novo e artificial e o desejo de causar meraviglia no espectador
marcam profundamente sua obra. A carta de 1624 de Marino diria: La
vera regola è saper rompere le regole a tempo e luogo, accomodandosi
al costume corrente ed al gusto del secolo (a verdadeira regra é saber
romper a regra no momento e tempo certos, acomodando-se ao
costume corrente e gosto do século). Esta idéia de adequação a novos
tempos e ao gosto do público influencia diretamente Strozzi. Ligada
através do pai à Academia degli Incogniti, na qual Marino era admirado
como o maior poeta daqueles tempos, Strozzi pode ser mais bem
compreendida ao percebermos o que está em jogo na obra do inventor
206
da meraviglia. Com Marino surge uma mudança decisiva na perspectiva
sentimental, íntima, psicológica e humana da poesia. O mergulho na
intimidade emocional típico da tradição petrarquista transforma-se então
em atividade cerebral e jogo intelectual. Aspectos jocosos e lúdicos
permeiam a poética marinista em oposição à antiga gravità e mesmo
piacevolezza de Petrarca. Estas duas características não fazem mais
parte do repertório maneirista por serem demasiado sérias ou
demasiado ingênuas para o novo gosto. O grave e profundo tornou-se
engenhoso, superficial, e aparente; o agradável e ameno tornou-se
sensual, coquete e sedutor. O autor maneirista não busca mais
emocionar, mas provocar um prazer de ordem intelectual; o espectador
não “sente” determinadas emoções, mas pensa e deleita-se quando
compreende o jogo da meraviglia.
O último livro de Cantatas de Barbara Strozzi é repleto de
exemplos desta ordem. Em seu L’Astratto, presenciamos o antigo topos
do abandono, revestidos dos conceitos marinistas traduzidos
engenhosamente em sua música. Talvez a peça mais
caracteristicamente maneirista de Strozzi, L’Astratto, justapõe a idéia da
criação poética/musical às dores do abandono amoroso: Voglio sì, vo'
cantar: forse cantando trovar pace potessi al mio tormento! (Quero
sim, quero cantar: pois talvez cantando, encontrar paz poderia a meu
tormento!). A roupagem musical que a autora dá ao poema vai ainda
além do que Marino fez em seu Proemio del Canzonieri. Estamos aqui
assistindo a uma cena puramente teatral, na qual a presença de um eu
narcíseo salta aos olhos (podemos dizer que salta mais aos olhos que
aos ouvidos, em função de seu forte apelo cênico). É possível pensar
que L’Astratto constitui-se numa peça auto-referencial, correspondendo
à tentativa de Stampa e seu Rime em criar uma obra exemplar da
própria vida. Deparamos-nos com uma personagem que
incansavelmente tenta encontrar a música certa para anular a dor, e
207
nesta busca incessante, descobre-se produzindo centenas de canções,
mas nunca encontrando o fim de seu tormento.
L'ASTRATTO
Voglio sì, vo' cantar: forse cantando
trovar pace potessi al mio tormento!
Ha d'opprimere il duol forza il concento.
Sì, sì, pensiero, aspetta:
a sonar cominziamo
e a nostro senso una canzon troviamo.
"Ebbi il core legato un dì
d'un bel crin..."
La stracerei: subito ch'apro un foglio
sento che mi raccorda il mio cordoglio.
"Fuggia la notte e sol spiegava intorno..."
Eh sì, confondo qui la nott'e 'l giorno!
"Volate, o Furie
e conducete
un miserabile
al foco eterno!"
Ma che fo nell'inferno.
"Al tuo ciel vago desio
spiega l'ale e vanne a fè..."
Che quel che ti compose
poco sapea dell'amoroso strale!
Desiderio d'amante in ciel non sale.
"Goderò sotto la luna..."
Or questa sì ch'è peggio!
Sa il destin degl'amanti e vuol fortuna!
Misero! I guai m'han da me stesso
astratto
e cercando un soggetto
per volerlo dir sol cento n'ho detto.
Chi nei carcere d'un crine
i desiri ha prigionieri,
per sue crude aspre ruine
nemmen suoi sono i pensieri.
Chi, ad un vago alto splendore
die' fedel la libertà
schiavo alfin tutto d'amore
nemmen sua la mente avrà.
O DISTRAÍDO
Quero sim, quero cantar: pois talvez
cantando, encontrar paz poderia a meu
tormento!
O poder da música oprimirá a dor.
Sim, pensamentos, esperem:
Comecemos a tocar
E de acordo com nosso sentimento, uma
canção encontremos. “Estivesse meu
coração preso um dia
aos seus belos cabelos...”
Já os rasguei: assim que inicio a página
Sinto que só relembro minha dor.
“Partia a noite e o sol espalhava sua luz...”
E sim, confundo aqui a noite e o dia!
“Voai, ó fúrias
E conduzi
Um miserável
Ao fogo eterno.”
Mas já estou no inferno!
“A teu céu, meu belo desejo,
abre as asas e vamos com confiança...”
Pois aquele que te criou
Pouco sabia da flecha do amor!
Desejo de amante ao céu não sobe.
“Gozarei sob a lua...”
Agora esta ainda é pior!
Conhece o destino dos amantes e ainda
espera sorte! Infeliz! Meus problemas me
distraíram de mim mesmo, e buscando um
tema de canção, encontrei uma centena.
Quem no cárcere de melenas
Os desejos aprisionou,
Por sua crua e áspera ruína
Nem mesmo seus são os pensamentos.
Quem a um belo e inacessível esplendor
Entrega confiante sua liberdade
Escravo total, ao fim, do amor
Nem mesmo sua a mente terá.
88
Giuseppe Artale (1628-1679) foi um poeta marinista de importância reconhecida.
Quind'io, misero e stolto,
non volendo cantar, cantato ho molto.
(Giuseppe. Artale
88
)
Quando eu, miserável e estúpido,
Sem querer cantar, muito cantei.
O distanciamento arguto já se cria no compasso 5, quando nossa
Venus canora rompe o discurso aparentemente sério, melismático e
arioso do primeiro verso com uma frase que se situa claramente em
outro registro. Trovar pace potessi surge em recitativo parlato, seco e
rítmico, contrastante com a abertura intimista e lírica, exórdio de uma
gravità que nunca se realizará. O verbo potere (poder), no condicional,
aparece delineado musicalmente como uma pergunta pela frase
ascendente, e o ponto de interrogação é traduzido pela pausa de
semicolcheia. O gesto é novamente afirmativo da presença de um forte
“eu”: um autor que sai de uma interioridade (indicado pelo uso implícito
do dêitico “io” [voglio]), de um monólogo interior, para distanciar-se,
ironicamente, mirar o público e sorrir coquetemente de sua própria dor.
O mesmo artifício é usado diversas vezes na peça: os repetidos
rompimentos com o registro sério e uma súbita intervenção para fora
desta interioridade auto-reflexiva e burlesca, transformam a peça em
208
puro exercício da arguzia marinista. Para suscitar maior meraviglia, o
efeito do imprevisto é obtido com as mudanças bruscas e inesperadas, a
mobilidade das situações e gestos dramáticos repentinos. Após outra
frase que suspende o fluxo coerente do discurso pela intromissão da
consciência do autor (Sí, sí, pensiero aspetta), começa a canção/ária em
ritmo pendular, dançante (compasso 20). A peça compõe-se de retalhos
de situações, reminiscências e motivos musicais. Estes elementos
superpostos, fragmentados e aparentemente casuais revelam um
caráter próprio do repertório maneirista
89
, num exercício de meta-
literatura, artificialmente construída sobre si mesma.
A peça termina com uma confirmação frenética do moto que permeia a
tradição do abandono transformando-se em música: non volendo
cantar, cantato ho molto (sem querer cantar, muito cantei).
89
Utilizo-me do termo “maneirista” a partir dos conceitos de Arnold Hauser (Hauser,
1993).
209
Como Safo, Stampa e tantas outras, a dor do abandono em
Strozzi transforma-se em elemento propulsor de sua música. Aqui
transfigurada pela ironia maneirista, inserida no cenário intelectual dos
Incogniti, entre os quais prevalecia o marineggiare, a dor reverte-se em
canto como na poesia de suas antepassadas. No entanto, este canto
surge revestido de uma aparência jocosa e coquete, com um sorriso
sedutor mascarando uma interioridade que raras vezes se vislumbra.
Não poderia ser diferente, pois no ambiente de uma cortesã veneziana,
como vimos na “Polêmica do canto e das lágrimas” recitada pela própria
Barbara Strozzi, um belo rosto cantando será mais poderoso para
seduzir do que um belo rosto em lágrimas
90
. A música de Barbara
Strozzi, sempre na voz masculina, coloca-a em diálogo estreito com os
freqüentadores da Accademia degli Unisoni. As academias de
intelectuais em Veneza, com raras exceções, não eram freqüentadas por
mulheres. A Accademia degli Unisoni, portanto, estabelecia-se como um
espaço de normas violáveis, ecoando o clima transgressor da Accademia
degli Incogniti. Os intelectuais que freqüentavam a academia da
210
90
Ver nos anexos, pg 213, a tradução da polêmica entre o poder do canto ou das
lágrimas recitado na Academia degli Unisoni, em Veneza, 1638.
211
Virtuosissima cantatrice, dedicavam seus poemas a ela – e podemos
compreendê-los como similares do lamento de nosso Signor Ercole
relatado por Guazzo em seu tratado. Barbara Strozzi responde a tais
poemas musicando-os e cantando-os. Apropria-se da voz masculina,
estando ela mesma numa posição normalmente reservada a um
homem, ao presidir uma academia. Podemos ver esta apropriação, por
um lado, como uma afirmação deste lugar viril e afirmativo que a autora
escolhe, de uma mulher que se vê como sujeito que se auto-constrói.
Por outro lado, Barbara Strozzi brinca com estes homens que lhe
dedicam tais poemas, responde-lhes jocosamente com uma música que
provoca, seduz e reafirma corajosamente seu lugar de cortesã.
A música da Virtuosissima Cantatrice mostra-se profundamente
autoral, desde sua primeira obra, Mercè di voi até sua produção mais
tardia e madura, como L’Astratto. A música em geral, como arte
temporal e evanescente, possui um aspecto fenomenológico particular
em relação a outros textos. Sua existência realiza-se somente no
momento da performance, e intérpretes fortes costumam usurpar o
lugar do autor naquele instante. Barbara Strozzi torna-se, portanto,
dupla autora: responsável pela criação original, recria sua música a cada
aparição pública. A superposição particular dos papéis de cantora e
compositora convida-nos a estratégias hermenêuticas distintas das que
se abordaria com outros compositores: não podemos ignorar como estas
duas vozes tornam-se indissolúveis. Como vimos, o público que
escutava sua música é o público da Accademia degli Unisoni, homens da
refinada inteligenzia veneziana que frequentavam a academia para
presenciar a música da cortesã Barbara Strozzi. Música e autora
tornam-se uma só, e os atributos da cortesania – inteligência, sedução,
sofisticação intelectual, coqueteria – fazem-se presentes em sua música.
De forma similar a Gaspara Stampa, a obra de Strozzi torna-se assim
uma obra exemplar de sua própria vida. A cortesã é uma mulher
inerentemente abandonada, em seu aspecto mais liberador, capaz de
212
subverter papéis tradicionais e valores hegemônicos, banida de uma
sociedade que simultaneamente a admira e inveja. L’astratto é,
portanto, um manifesto de sua própria condição, expressando a uma só
vez a longa tradição de vozes que transformam a solidão do abandono
em música com a bravura poética de uma nova estética carregada de
erotismo e sedução.
213
CONCLUSÃO
Nos capítulos precedentes, tratei de me aproximar da música de
Barbara Strozzi a partir do mais amplo cenário a que tive acesso, e
assim pude aos poucos tecer uma trama que criava possíveis
significados para sua obra. As conclusões não são definitivas; são
possíveis conclusões dentro de um universo que oferece mil e uma
interpretações. A minha história é aquela que pude contar; a música da
qual falei é a música que aprendi a ouvir e a mulher Barbara Strozzi é
aquela que ousei entrever. Outras histórias surgirão, nem mais nem
menos verdadeiras do que a versão aqui desenvolvida.
Muitas perguntas permanecem sem respostas, mas levantei
algumas explicações plausíveis. Não sabemos, por exemplo, as razões
determinantes pelas quais Barbara Strozzi permaneceu à margem da
produção mais em voga no período - a ópera - com a qual seu pai se
encontrava intimamente vinculado. Construí uma imagem de Strozzi no
papel de cortesã – e é possível que este lugar a afastasse de uma
atividade mais regular no universo da ópera, seja como cantora ou
como compositora. Pude pintar um retrato da Venere Canora a partir de
documentos díspares: o artigo seminal de Rosand e as pesquisas de
arquivo de Glixon foram pontos de partida fundamentais para basear
historicamente a construção de minha personagem. Mas meu retrato
permaneceria sem densidade não fossem os documentos relativos à
vida de outras mulheres do período. Somando todos estes dados, pude
compreender melhor o lugar que ocupava Barbara Strozzi numa
sociedade que abria novos espaços à mulher, ao mesmo tempo em que
repudiava sua liberdade. Possuímos documentação suficiente a respeito
dos méritos vocais plenamente reconhecidos de nossa virtuosíssima
214
cantatrice – e certamente não seria por falta de qualidades que Strozzi
teria deixado de se alçar aos palcos que acolhiam com entusiasmo as
cantoras do período. É no mínimo ambígua a relação entre pai e filha,
para quem ele havia criado um espaço para exibir sua arte, a Academia
degli Unisoni. No entanto, este homem de relações tão bem
estabelecidas no mundo da ópera deixou de introduzir Barbara a outras
vias profissionais que então se ofereciam às mulheres. Giulio louvava a
carreira da renomada Anna Renzi, mas surpreendentemente, à própria
filha tais portas jamais se abririam.
Sua música limitou-se, portanto, ao gênero mais restrito da
Cantata. Um gênero tido como menor, a Cantata foi relegada à
desatenção da musicologia, provavelmente em vista da atração que a
ópera exerceu desde seus primórdios sobre público e teóricos. No
entanto, a produção de Cantatas na Itália seiscentista é imensa, e a
maioria dos compositores dedicou-se a ela. Absorvida avidamente por
uma sociedade que praticava a civil conversatione, a Cantata pode ser
mais bem compreendida ao examinarmos os hábitos deste ambiente do
ócio cortês, no qual o gosto pela arguzia e pela arte da finzione
constituíam-se em modus vivendi do homem de sociedade. Assuntos
antes abordados com a maior gravidade – como por exemplo, o amor –
eram agora tratados mais levianamente, com o piscar dos olhos e um
sorriso arguto e irônico. A força motriz que se esconde por trás deste
novo viés estético e de comportamento foi a poesia de Giambattista
Marino, o poeta da meraviglia. Sua influência foi tão amplamente
sentida na Itália seiscentista, que se dizia que se marineggiava em
todas as esferas culturais e sociais daquele tempo. As Cantatas,
servindo bem aos propósitos das reuniões desta sociedade culta e al
gusto del secolo, representavam perfeitamente o apelo marinista de um
ambiente de transbordamento teatral. No Capítulo 3, enumero algumas
evidências de que as Cantatas poderiam ter sido executadas com alguns
atributos cênicos, aproximando de alguma forma esta vasta produção à
215
música feita nos teatros da moda. Mesmo não sendo escrita
deliberadamente para o teatro, as Cantatas de Strozzi possuíam um
forte apelo teatral. Os textos em geral repetiam um amontoado de
clichês sobre o tema do abandono amoroso, e eram tratados por Strozzi
de diversas formas. Muitas vezes, de pleno acordo com os ditames da
voga marinista, sua música utiliza-se das mesmas técnicas da poesia de
Marino: constrói-se através de cesuras formais freqüentes; possui um
discurso musical fragmentado; temas ligados à subjetividade se
transformam em imagens exteriores; as emoções são dissecadas como
num exercício de anatomia (lembremo-nos do uso do concitato para
descrever emoções conflitantes em Apresso ai molli argenti); é muitas
vezes construída como uma colagem de afetos díspares; percebe-se o
surgimento súbito da presença autoral de Strozzi. Aspectos da técnica
composicional da autora foram explicados passo a passo nas análises
que desenvolvi no decorrer do trabalho. Se por um lado ela utilizou-se
da linguagem marinista para escrever sua música, em outros momentos
percorreu o caminho contrário daquele feito por Monteverdi ao tratar,
por exemplo, um texto de Petrarca, com técnicas marinistas. Strozzi,
em seus momentos mais melancólicos, utiliza-se de um texto de cunho
marinista apenas como pretexto para a produção de uma música muito
além das palavras, como uma oportunidade para um mergulho ao cerne
das emoções. Hor che Apollo, por exemplo, é uma obra na qual o texto
reproduz a já repetitiva tópica do abandono, absorvida jocosamente
pelo ambiente dos giocchi como nos relata Guazzo em seu tratado La
civil conversazione. Strozzi construirá uma obra de grande apelo
emocional, demonstrando sua confiança no poder da música de
encontrar profundos significados escondidos muito além do texto. O
texto aqui e em outras obras, torna-se mero pretexto para um
verdadeiro teatro de emoções: a representação situa-se além do
discurso verbal.
216
Desde meu primeiro contato com a obra de Strozzi, intrigou-me o
fato dela apresentar-se em sua primeira obra como Safo novella. Tentei
compreender então, de que maneira Safo teria sido recebida na Itália
seiscentista, e que significados eu poderia ler de uma apresentação tão
assertiva e pessoal. Esta busca levou-me a encontrar um fio condutor
que unia muitas autoras de muitas épocas diferentes: o tema da
exclusão de uma relação amorosa, do abandono em seu sentido
etimológico - banir - torna-se elemento fundador de uma poética
feminina. Safo inaugura uma voz que será retomada por sucessivas
mulheres poetas e também compositoras. Seu famoso poema, Ode II,
torna-se um poema arquétipo feminino, no qual a dor do abandono
transforma-se em força criadora.
É desse silencioso espaço de solidão que se elevam tantas vozes
imortalizando a perda amorosa. Ovídio seria o primeiro poeta a abrir
espaço para o surgimento da heroína: suas mulheres lamentam-se
dolorosamente do abandono sofrido por heróis que lhes haviam
professado amor eterno. Desde a Antigüidade, de Homero a Virgílio, o
herói terá sempre que abandonar uma mulher que o distrai de suas
funções viris, chamando-o para o ócio amoroso. O modelo das Heroídes
de Ovídio será usado por poetas mulheres do início do período moderno
e Gaspara Stampa, no século anterior ao de Barbara Strozzi será
reconhecida como a nova Safo de seus dias. Sua obra se produz no
espaço do abandono amoroso, lamentando a falta de reciprocidade à
intensidade de seu amor. Estas vozes femininas se alçarão ainda mais
eloqüentes no período barroco e com o nascimento da ópera se farão
ouvir em seus momentos mais pungentes: o monólogo feminino.
Francesca Caccini revisita a obra de Ariosto e nos apresenta a feiticeira
Alcina como personagem principal, investindo-a de profunda
humanidade. Seu lamento desloca as convenções do Lamento feminino
em ópera, e ao confrontar-se com o abandono, Alcina não o aceita
passivamente: tenta mudar a decisão de seu amado Ruggiero e quando
217
suas tentativas de sedução falham, entrega-se à vingança, sem jamais
arrepender-se de sua fúria. Como em Safo e Stampa, o desejo em
Caccini é descrito sem mediação, em livre expressão de forte
sensualidade mesclada com a da dor do abandono.
Com os novos paradigmas culturais advindos da presença
marinista, o tema surge revestido de novas roupagens. Marino falará
ainda da mesma tópica do abandono gerando música/poesia em seu
primeiro Soneto de Rime amorose de 1602. A antiga temática agora
será tratada de forma jocosa, sem a gravidade anterior que vimos em
nossas autoras. A clássica cena do abandono será relatada com
distanciamento, suscitando reações intelectuais no espectador. A obra é
plena de teatralidade, e o autor faz-se presente com um meio-sorriso
irônico, conduzindo-nos a um jogo ativo em relação à cena que
assistimos. A peça que melhor exemplifica esta reviravolta estética é
L’astratto, do oitavo livro de Barbara Strozzi. Os três primeiros versos
revelam o mesmo traço sáfico que percorre a obra de tantos autores:
Não só a escolha do texto é significativa, mas o tratamento musical que
Strozzi dá ao poema é tremendamente revelador de como o tema da
criação poética a partir da situação de abandono se dá neste novo
contexto. A dor se faz presente, mas a autora distancia-se ironicamente
desta interioridade que não deve agora confessar-se abertamente. O
gesto é pessoal e teatral: a autora pisca o olho para a platéia e sorri
coquetemente de sua própria dor, como o fez o Signor Ercole ao
improvisar um lamento amoroso em uma das reuniões sociais da Civil
conversazione. A peça toda é fragmentada num exercício marinista que
rompe constantemente com o registro sério que por vezes entrevemos.
A música e a cortesã Barbara Strozzi tornam-se inseparáveis:
perfeitamente inserida dentro de um cenário cultural e ideológico muito
particular, sua obra realiza-se como a mais alta expressão da arte de
seu tempo.
218
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GB: Och = Oxford, Christ Church Library. GB: Lbl = London, British
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I: Baf = Bologna, Biblioteca dell’Accademia Filarmonica.
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Notas: Local: I: Fn (Mus.Ant. 104). I: Bc (BB366).
____________. Op. 1: Il primo libro de madrigali. [Facsimile]
Stuttgart:
Cornetto-Verlag, 2002. ISMN M-50100-121-7,
Catalog number FES8.
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Veneza: Gardano, 1651.
Notas: Local I: Fn (Mus.Ant. 30); GB:Och.
____________. Op. 2: Cantate, ariette e duetti. [Facsimile]
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número do catálogo FES7.
____________. Op. 3: Cantate, ariete a uno, due, e tre voci.
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Notas: Local: GB: Lbl.
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[Facsimile]
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número de catálogo number FES2.
____________. Op. 7: Diporti di Euterpe, overo Cantate e ariette a
voce sola.
Veneza: Gardano, 1659.
Notas: Local I: Bc (BB368).
233
____________. Op. 7: Diporti di Euterpe, overo Cantate e ariette a
voce sola [Facsimile], Piero Mioli, ed.
Florença:
Archivum Musicum, Cantata Barocca #3, 1980.
____________. Op. 7: Diporti di Euterpe, overo Cantate e ariette a
voce sola. [Facsimile]
Stuttgart:
Cornetto-Verlag, 1999. ISBN M-50100-081-5,
número de catálogo FES3.
____________. Op. 8: Arie.
Veneza: Gardano, 1664.
Notas: Local I: Baf (manuscript version); I: Bc (BB422).
____________. Op. 8: Arie. [Facsimile]
Bolonha: Antiquae Musicae Italicae Studiosi: Monumenta Veneta.
Forni reimpressão, 1970.
____________. Op. 8: Arie. [Facsimile]
Stuttgart:
Cornetto-Verlag, 2000. ISBN M-50100-126-2,
número de catálogo FES4.
Fonte primária de material contemporâneo a Barbara Strozzi
Accademia degli Unisoni. Satire, e altre raccolte per l'Accademia de
gli Unisoni in casa di Giulio Strozzi.
Veneza: Located at Biblioteca Nazionale Marciana. I: Vnm Cl.X,
Cod. CXV = 7193.
Accademia degli Unisoni. Veglie de' Signori Unisoni. (Veglia Prima;
Veglia Seconda; Veglia Terza di Signori Accademici Unisoni)
Veneza: Sarzina, 1638.
Localizado emt Venice: Biblioteca Nazionale Marciana. I: Vnm
119 C 240.
Fontei, Nicolò.
Bizzarrie Poetiche poste in musica. A 1.2.3 voci
Veneza: Bartholomeo Magni, 1635.
Notas: Dedicado a Giovanni Paolo Vidman. RISM F1485. GB:
Och. I: microfilme.
Fontei, Nicolò.
Bizzarrie Poetiche posta in musica, Libro Secondo. A
uno, doi, e tre voci.
Veneza: Bartolomeo Magni, 1636.
Notas: Dedicado a Giorgio Nani. RISM F1486. GB: Och. I:
microfilme.; also Fond. G. Cini: negativo de foto.
Fontei, Nicolò.
Bizzarrie Poetiche posta in musica, Libro Terzo. A uno,
doi, e tre voci.
Veneza: Alessandro Vincenti, 1639.
Notas: Dedicado a Claudio Du Houssazy. RISM F1488. I: BO
234
Loredano, Giovanni Francesco and Girolamo Brusoni (attrib). Le
glorie de gli Incogniti; p. 280ff.
Veneza: apresso Francesco Valvasense, 1647.
Notas: local I: Vnm 69 C 239 or 388 D 116. (microfilme?) em
UCBerk, UCArl, Yale, Clark, Harvard, WashU, Duke, URochester, Rice,
UIowa, JohnHopkins, UMich, UOxford.
Strozzi, Barbara.
La Contesa del Canto, e delle Lagrime. In G.F.
Loredano
Bizzarrie academiche.
Veniza: Sarzina, 1638.
Notas: local I: Vnm 69 C 239 and 210 C 089. Venice: Correr.
Torrefranca - S.A.H.I.334. Traduções inglesas como
Academical
discourses
(London, 1664) p. 99ff.
Strozzi, Giulio.
Poesie per il Primo libro de' madrigali di Barbara
Strozzi.
Anna Aurigi, ed.
Florença: Studio Editoriale Fiorentino, 1999. ISBN 8887048185
235
ANEXOS
BARBARA STROZZI E A ACCADEMIA DEGLI
INCOGNITI: TEXTOS TRADUZIDOS E ORIGINAIS
236
237
A CONTENDA DO CANTO E DAS LÁGRIMAS
DISCURSOS ACADÊMICOS
RECITATOS PELA SENHORA. BARBARA STROZZI
NA ACADEMIA DEGLI UNISONI
IN VENETIA, M DC XXXVIII
POR SARZINA, TIPÓGRAFO DA ACADEMIA
COM PERMISSÃO DOS SUPERIORES
Pg. 3 Giacomo Sarzina
Ao Leitor
Na Academia dos Senhores Unisoni, foram escutados com aplauso
os seguintes Discursos, e quem os recitou foi a Senhora BARBARA
STROZZI, que, não satisfeita de ser singular na arte do Canto, deseja
ser única na glória da eloqüência. Os autores são dois CAVALHEIROS,
que podem se vangloriar, pois não existem outros que os superem no
engenho, e no valor. Eu resolvi imprimi-los, desejando não somente
satisfazer à curiosidade de muitas pessoas virtuosas, que os procuram,
mas ainda servir àquela Academia. Não pretendo, Leitor, nenhum mérito
pela fatiga da Impressão, sendo esta pouca, em poucas folhas; mas
sim, que tu aceites com cortesia o que eu te ofereço com afeto, e se no
entanto queres me atribuir qualquer mérito pelo afã, que seja aquele de
ter obtido estes Discursos das mãos dos Autores, com cuja modéstia
tive longa contenda, mas que consentiram, finalmente, que os
238
trouxesse à luz, mais por terem saído da boca da Senhora BARBARA,
do que, vivos e felizes, de suas penas .
SE TEM
MAIS PODER
DE ENAMORAR.
Um belo rosto chorando ou
Um belo rosto cantando.
Em prol das Lágrimas.
DISCURSO ACADÊMICO
Do Ilustríssimo Senhor
MATTEO DANDOLO
239
Em prol
DO CANTO
DISCURSO ACADÊMICO
Do Ilustríssimo Senhor
GIO: FRANCESCO LOREDANO
O antigo filósofo Plutarco, Senhores Acadêmicos, convidado a
levantar argumentos contra a eloqüência de uma pessoa que com
belíssimos raciocínios negava o movimento, sem dignar-se em
responder, começou a caminhar pela sala. Quis assim nos ensinar que
os raciocínios e as disputas são supérfluos, quando domina a
experiência e o bom senso pode ser árbitro do juízo.
Eu também deveria, calando-me, responder com uma doce
passagem destes Senhores Músicos às argumentações levantadas no
encontro passado, que defendiam com prejuízo do canto a primazia das
lágrimas. Eu sei que as vossas almas, Senhores, desviadas pelo som de
uma voz canora, perderiam qualquer recordação daquela eloqüência,
que, para se exibir mais ainda, se ergue à defesa dos paradoxos.
Mas tendo que me valer do Discurso, considerarei então as
Lágrimas ou o Canto, por si mesmos ou em sua força, ou na estima dos
outros - porque estes são os argumentos trazidos a favor do pranto - e
não se poderá de modo algum contestar que não seja o Canto, por
essência e por força, infinitamente superior [às lágrimas].
Orgulham-se as lágrimas, em primeiro lugar, da altura de seu
nascimento, tão mais sublime que o Canto, pois se erguem os olhos
240
acima da boca, e elas nascem sob o arco dos cílios, sendo irmãs do
olhar, filhas da luz. Mas o quanto isso seja verdade, é discutível, pois,
sendo formadas de humor seroso, gêmeo do suor, ou por compressão
das membranas do cérebro, ou por dilatação das mentes, não nascem,
mas fogem dos olhos: irmãs não, mas inimigas do olhar, que por aquele
humor salgado do pranto se vê sempre ofendido, e, por vezes, cegado.
Mas que seja concedido às lágrimas aquilo que querem. Dizei-me,
Senhores, na bem composta fachada desta obra, que serve de albergue
momentâneo à alma humana, não possuem os olhos o papel de janelas,
e de porta, a boca? Por que então aqueles que são à força empurrados
dos balcões, devem sentir-se superiores àqueles que saem por vontade
própria pela porta?
Os próprios olhos, que fazem bem o seu ofício, não contenderiam
jamais com a boca. As sentinelas não têm maior importância, por estar
em lugar eminente, do que os chefes militares que cuidam da defesa da
Praça.
Mas o Canto, Senhores Acadêmicos, o Canto, que é composto de
vozes e espírito, e é quase uma alma da própria alma, movido e
regulado por ela, não vem de outro lugar que da cabeça, ou do peito.
Sai pela boca, uma mina espirituosa de vívidos rubis e pérolas, e é
irmão dos sussurros e dos beijos, mas deles não vai mendigando a
força. Basta a si mesmo e mostra até aos cegos que, sem passar pelos
olhares, faz nascer o Amor.
Pois se esta é a nossa questão, deixemos entrar em jogo todas as
lágrimas que já existiram ou que jamais poderão existir, e elas sozinhas
não poderão, nem mesmo num coração muito bem disposto, fazer
nascer a menor sombra de Amor. Mas o Canto, ainda que separado do
belo, entra pelo ouvido, arrebata o coração, tiraniza a alma; e nos
mostra os homens, quase em êxtase amoroso, beatificados, por assim
dizer, de alegria. E poderiam as lágrimas concorrerem com ele?
241
Se Amor é filho do deleite, e o canto não é outra coisa senão
suavidade e contentamento, quem não percebe que dele deve renascer
o Amor? Se o Amor é espírito, e se assemelha a quem o produziu, não
se poderá jamais considerar nascido das lágrimas, mas, ao contrário,
dos espíritos, que saem do canto.
Voa o Amor, assim como as palavras cantadas, acompanhado
pelas vozes harmoniosas que o produzem, e toma posse dos corações;
tanto sobrepuja as lágrimas, quanto o ar é mais nobre e mais sublime
que a água.
Se a semelhança produz o Amor, e a Alma que deve enamorar-se
nada mais é do que harmonia, sendo composta de harmonia, quem não
sabe que não há lugar para o pranto? Quem não sabe que o Amor pode
nascer da Música, mas jamais das Lágrimas?
O Canto é o primogênito da Alma, e os vagidos de um bebê
recém-nascido não são outra coisa senão notas, que, ainda que mal
articuladas, são a prova de que a primeira ciência ensinada pela alma é
o canto, e não as lágrimas. Nem poderia a alma usar outra linguagem,
pois ela vem do céu, de onde o pranto é banido e não poderá se
introduzir de forma alguma. A arte enfim, com base nos ensinamentos
da Natureza, dotou a Música de tal perfeição, que não há poder que não
subjugue, nem impossibilidade que não supere. E quem poderá
contestar tal valor, que foi produzido pelo trabalho conjunto no qual
Natureza e arte empregaram todas as forças? Quem disputará as
qualidades da Música, que é ciência e virtude, companheira da Filosofia?
Cedam portanto as Lágrimas, que finalmente nada mais são do
que uma natural expansão de ternura com a qual os olhos pagam as
dívidas à humanidade. Ou seja, uma imperfeição dos órgãos, que, não
podendo resistir à fumaça, ao vento, ao humor acre, a qualquer abalo,
soltam o pranto. E alguém poderá acreditar que disto já nasceu, ou
poderá jamais nascer o Amor?
242
E quem, no entanto, ainda colocasse a Arte em torno das
lágrimas, e as chamasse artificiosas testemunhas do Amor, saiba que as
Lágrimas de uma bela Dama têm normalmente o engano por fonte.
Chorando, ela arma enganos. Aquilo que os seus olhos destilam, nada
mais é que uma quinta-essência de artifícios, simulações e falsidade,
que são todos inimigos e não progenitores do Amor.
Portanto foi na família de Cupido e de Vênus que os antigos
Maestros do saber colocaram as Graças, o Riso, o Canto e os outros
alegres e felizes Companheiros. O pranto, ao contrário, foi pelo Homero
Latino colocado no ingresso do doloroso Reino.
Mas penetrando ainda mais nos afetos e nos méritos que nascem
das Lágrimas e do Canto, veremos que mais potentes ainda, e mais
eficazes, surgirão as demonstrações e as provas de que não do pranto,
mas da Música, nasce o Amor.
Amor é fogo, que, retendo-se entre as vísceras, queima a alma
com docíssimas chamas. Mas quem não sabe que o sopro de uma boca
canora terá também, naturalmente, força para acendê-lo, enquanto a
água do pranto não poderá senão apagá-lo? E se, por exemplo, alguém
jogasse poucas gotas de água no fogo, teria que admitir que assim
como os salpicos do ferreiro não acendem o fogo, mas depois que ele
está aceso o cutucam e o revigoram, da mesma forma as lágrimas não
são aptas a gerar Amor (o que entre nós se questiona), mas depois que
ele é aceso, e talvez ao soprar do Canto, como inimigas o revigoram
pela natural contraposição de fogo e água.
Amor é uma doce embriaguez do afeto. Quem pode negar que a
suavidade de uma voz tem a virtude de inebriar os sentidos? E a água,
dividida em pequeníssimas gotas, que chamamos Lágrimas, poderá
inebriar de Amor, coisa que não poderia fazer se fosse uma torrente.
Quem enamora com força desconhecida, violentamente arrebata a
alma do Amante. E esse é justamente o efeito do Canto, de acordo com
243
a Escola que melhor entende das coisas do Amor. E as lágrimas ainda
pretendem ter mais força para subjugar os corações?
Aquelas lágrimas sempre fugidias, já precipitadas ou no próprio
ato de se precipitarem, como poderiam vencer a alma, extasiar a
mente? O canto, ao contrário, que sai de forma ordenada, se alça, se
abaixa, circunda os afetos, voa e põe freios nos pensamentos, tem por
estratagemas as fugas, as ritirate, os langores; quem não vê que é feito
exatamente para subjugar e vencer?
A beleza é um raio da luz divina. Amor é o ato daquele raio, que
trespassa os corações e de lá retorna a unir-se com o belo. Mas o mais
verdadeiro ofício do canto é estimular e dirigir a alma humana à
contemplação divina. Terá portanto maior força para inspirar amor do
que as lágrimas, irmãs da tristeza, que nada mais fazem senão lembrar
e lamentar as misérias e os acidentes de nossa vida.
As Feras, os Pássaros e os Peixes, que não conhecem outra razão
além da força da natureza, enamorados do Canto, correm a uma prisão
voluntária. A Música aplaca os Elefantes, convida os Rouxinóis à
competição, comove os Golfinhos, detém as Abelhas. Em suma, se
alguém escuta uma voz canora e não ama, pode-se acreditar que já não
vive.
Mesmo as Cavernas e as Espeluncas, enamoradas do Canto,
refletem as vozes, ainda que truncadas e imperfeitas, para manifestar o
Amor produzido em seu seio pela força do Canto.
Mas qual poder já mostraram as lágrimas, não digo nos Reinos
alheios, mas no seu próprio, o Reino das Águas ou do Pranto? O Canto
não só dá movimento às esferas celestes e torna doce a terra e o ar,
que suavemente tiraniza, mas até nos Reinos das águas, das quais
aquelas lágrimas que ousam competir com ele são pequenas gotas,
comove as Ondas, aplaca os Ventos e subjuga os Golfinhos. E no próprio
Reino do Pranto amansou as Fúrias, as Parcas e Plutão.
244
O Canto a seu bel-prazer pode gerar lágrimas, mas todas as
lágrimas do Mundo jamais poderão gerar Cantos [sic]. E o próprio
pranto, que naturalmente conhece a sua fraqueza, se dispersa e
esvanece, fugindo do encontro, quando o menino em pranto escuta o
canto da Mãe ou da Ama. Mas o Amor, que é o mais nobre de todos os
Deuses, não escolheria um genitor tão vil e comum como o pranto.
As lágrimas escorrem dos olhos ofendidos ou dolorosos
desregradamente e sem beleza alguma. Mas o Canto, com harmonia
estudada, doutas observações e voz mestra, movido e regulado pela
divindade da alma, nunca será recusado como Pai pelo Amor, que é
puro estudo e reflexão. E é o verdadeiro mestre das fugas, das pausas e
dos suspiros, dos langores e daqueles entrelaçamentos musicais que só
se aprendem nas escolas da harmonia, e que, ao serem mencionados,
sem nem mesmo experimentá-los, assim me parece, geram o Amor.
Quem canta normalmente levanta o rosto, seu olhar brilha, e a
boca, quase alegre e sorridente por tão digno e exímio exercício,
descerrando as ricas minas, exibe com pompa seus tesouros. Mas quem
chora abaixa a face, perturba a fronte, e os olhos, por terem mostrado
as suas imperfeições, tornam-se rubros de vergonha e, estando
rebaixados e enuviados, parecem tentar, de certo modo, esconder-se
de quem os mira.
Penaliza-me a pobreza daqueles engenhos, que desejando através
de algumas metáforas valorizar a miséria do pranto, têm, com voz
imaginária, chamado de pérolas as lágrimas. Talvez porque aqueles que
à noite sonham pérolas, de dia normalmente derramam lágrimas.
Míseras pérolas, tão amargas que ofendem, tão fugazes que se
desfazem no ato de se fazer. E poderão se vangloriar deste nome
competindo com aquelas reveladas pelo Canto? Tão suaves, que
reavivam a alma; tão estáveis que se tornam, talvez, as mais
duradouras alegrias do Amor.
245
Nem todos são comovidos pelo pranto. O que pode fazer a chuva
derramada por dois belos olhos, quando cai sobre os rochedos da
crueldade, ou sobre a areia da inconstância? Mas aquele som
harmonioso, que sai de candidíssimas pérolas, porta consigo sempre o
raio do amor, que a tudo inflama e a tudo enamora.
No entanto foram chamada Armas, as lágrimas, mas armas
femininas, que não têm ofensa nem defesa. Mas das armas não nasce o
Amor, se bem que amiúde dele nasçam as armas e as guerras. O canto
é uma arma invisível, feita para ferir a alma, e feri-la de Amor. Pode
pois servir não só a despertar os espíritos guerreiros, como quando
Antigonide [sic] com o Canto forçou os espartanos a tomar as armas,
mas também para dar o devido prêmio do elogio e da glória aos Heróis.
Canta aquele suave Cantor os Capitães Gregos e Troianos na mesa de
Alcino, e faz com sua harmonia nascer as lágrimas até nos olhos de
Ulisses. Pois então poderiam estas se comparar com o Canto, que é seu
Senhor?
Aquela beldade que quer cantar o Amor com o pranto, bem sabe
que não tem talento para tanta conquista. Mas derramando lágrimas,
tenta obter a piedade, a qual, como uma alcoviteira, pode ajudá-la a
obtê-lo. Mas como poderá combater o Canto, que por si só o inspira e o
faz nascer a cada voz?
Até mesmo a estação do enamoramento usa como pode o canto
dos passarinhos para despertar o Amor. Enquanto o terrível e frio
inverno, que em todos adormenta a chama amorosa, faz, com sua
contínua chuva, odioso alarde de lágrimas.
E o céu e todo o ar, tomados de vozes suavíssimas e harmônicas,
exalam amor. Mas quando derramam, chorando, águas, tornam-se tão
detestáveis que os homens se fecham numa prisão voluntária para não
vê-los chorando.
O Amor, em suma, tem um duplo caminho para nascer. Um, sem
contenda, é reservado completamente às vozes e ao Canto, sendo a via
246
do ouvido. O outro é o caminho dos olhos, com o encontro dos espíritos
mais puros e mais vivazes. Nasce, é verdade, dos olhares, mas jamais
de olhares lagrimosos e chorosos. E que espíritos teriam tais olhos que,
no lugar de espíritos amorosos jorrassem amargas lágrimas? Um amor,
mesmo que gigante, afogar-se-ia num mar de pranto.
Nada nos resta, Senhores, a estudar, para a definitiva glória do
Canto, a não ser a estima ou juízo que sempre se fez dele, comparando-
o ao pranto.
Eu, de minha parte, tenho visto vários que, ao buscarem uma
amiga capaz de produzir neles Amor, desejam que ela entenda de
Canto, mas jamais de lágrimas. E quem dentre vós, sinceramente,
Senhores Acadêmicos, não desejaria a mulher amada virtuosa e
cantante, e não lagrimosa e chorosa?
Amor é filho da harmonia, e portanto aqueles amantes que
gostariam de despertá-lo em suas amadas, bem os vi cantando, mas
não vertendo lágrimas, indignas do homem e capazes de provocar o riso
ao invés do Amor. E sob as surdas janelas, não foram jamais vistos
amantes angustiados em pranto, mas sim Músicos, cantando.
E aquele Deus que tem por seu favorito o gênero humano, e não
tem alegria maior do que se ver provocado a amá-lo, quando se dignou
a nos ensinar como deveríamos fazê-lo, parece que não disse outra
coisa, a não ser: Cantai, cantai. E portanto sua esposa amada, a Igreja,
não faz com que os sacerdotes vertam lágrimas, mas que empreguem o
Canto. Aquele Canto que é parto da alma, exercício do Céu, instrumento
das esferas, glória do Paraíso, recreação de Deus.
Orgulhavam-se as lágrimas de ter tido um Sábio tão enamorado
delas, que por tudo chorava. Este acreditava que, para adquirir fama e
glória de Filósofo, bastava o contínuo pranto, enquanto Felicidade
acreditava que bastasse o contínuo riso [sic] (esses dois, por caminhos
contrários, chegaram ao mesmo ponto). Nos nossos tempos, seriam
considerados loucos.
247
Mas esta talvez fosse só a opinião de um homem sábio, que
imaginava um contínuo pranto, e não de um homem infeliz, que chorava
por não saber cantar [sic]. De qualquer modo, pretendia talvez aquele
Filósofo gerar Amor com o Pranto. Não, não. Pensava conseguir
provocar desprezo e ódio contra as coisas terrenas, pelas quais chorava.
Pobres lágrimas, se achavam assim poder provar serem Mães do Amor.
Sócrates, Senhores Acadêmicos, aquele grande Mestre do Amor,
de cuja sabedoria, depois da decisão do Oráculo, seria ímpio duvidar,
tanto estimou a Música que se pôs a aprendê-la em idade avançada.
Orgulham-se as lágrimas porque Apolo decidiu a polêmica a seu
favor. Pois sobre a sua amada já convertida em tronco, não jogou vozes
canoras, mas pranto. Este, Senhores, é um Oráculo favorável ao Canto.
Ele quis dizer que com as mulheres deve-se usar a Música, porque
irrigar com Pranto é uma lisonja a ser usada com as Plantas.
Bem sabia o Deus Músico, que cantando poderia devolver os
sentidos e o intelecto àquela ingrata, que mereceu por sua dureza o
castigo de ser transformada em tronco; mas quis castigá-la, e pagar a
ingratidão da cruel Ninfa derramando aquelas lágrimas que são o
verdadeiro símbolo da ingratidão, pois inflamam, roem e cegam a luz
dos olhos, ou seja, do lugar onde têm a glória de nascer.
Isto equivaleu a decidir entre o canto e elas. Ele quis que as
lágrimas servissem a banhar as ramagens destinadas a coroar e laurear
o Canto.
Mas para que buscar o julgamento de uma falsa Divindade? O
Deus Supremo sublimou o canto na Boca dos Beatos e dos Anjos do
Paraíso, e confinou as lágrimas entre as penas dos espíritos danados no
Inferno.
Eu não poderei duvidar de sua sentença, Senhores Acadêmicos,
quando tereis decidido a questão a favor do canto. Sei bem que não
teria hoje a honra de vossa presença se, na sessão passada, tivesse vos
convidado a ver-me chorar, e não a ouvir-me cantar.
248
E se, todavia existe entre vós alguém que crê mais poderosas as
lágrimas do que o Canto para gerar o Amor, peço aos Céus que chore
sempre, para que possa com facilidade maior enamorar a sua amada.
Mas não se deve, falando das glórias do Canto, prejudicar suas
razões. A superioridade do Canto sobre as lágrimas, em produzir Amor,
será muito mais evidente agora, na boca destes Senhores Músicos.
O FIM
249
TEXTOS ORIGINAIS EM ITALIANO
LA CONTESA DEL CANTO E DELLE LAGRIME.
LA CONTESA DEL CANTO, E DELLE LAGRIME
DISCORSI ACADEMICI
RECITATI DALLA SIG. BARBARA STROZZI
NELL’ACADEMIA DEGLI UNISONI
IN VENETIA, M DC XXXVIII
PER IL SARZINA, STAMPATORE DELL’ACADEMIA
CON LICENZA DE’ SUPERIORI
Pg. 3 Giacomo Sarzina
A’ chi legge
Nell’ Academi de i Signori Unisoni, furono sentiti con applauso li seguenti
Discorsi, che li recitò è stata la Signora BARBARA STROZZI, che non
contenta d’esser singolare nelle prerogative del Canto, vuol esser unica
nelle glorie della facondia. Gl’autori sono due CAVALIERI, che possono
vantarsi de non aver altri, che si preceda nell’ingegno, e nel valore. Io
risolsi di stamparli, bramoso non solo di sodisfar’alla curiosita di mal ti
250
[di] virtuosi, che li ricercano, ma ambizioso ancora di servir à
quell’Academia. Non pretendo Lettore, merito per la fatica delle Stampe,
poca essendo in pochi fogli; ma ben sì, che tù gradisca con cortesia
quello, ch’io ti offerisco con affetto, e se pure [pg. 4] vuoi ascrivermi
qualque merito di fatica, ssia di quella, con che procurai d’ottener questi
Discorsi dalla mano de gl’Autori, la modestia de quali doppo havermeli
lungamente contesi, acconsentirono alla fine di concedergli alla luce, più
tosto per esser usciti dalla bocca della Signora BARBARA, che dalla loro
penna vivi felici.
Pg. 5 SE SIA
PIU POTENTE
AD INNAMORARE.
O’ bel volto Piangente,
O’ bel volto Cantante.
Per la parte delle Lagrime.
DISCORSO ACCADEMICO
Dell’ Illustrissimo Signor
MATTEO DANDOLO
Quel Biondo Dio, che per esser il più benefico del Mondo, più
d’ogni altro poteva iscusare l’idolatria della cieca gentilità, fattosi
Amante e di fanciulla schiva fino de gl’amplessi de’ medesimi Dei, volte
esperimentar, se quella Divinità, c’hà potuto ottener l’adoratione
dell’universo, potesse guadagnar-si un’amoroso affetto dai cuore d’una
fanciulla. Seguì: pregò: tentò: ma ella congiurata con la Natura, si
trasmutò in un tronco, ò per troncare le di lui speranze, ò per mostrare,
251
che le risoluzioni de Donna bene spesso non partecipano dell’instabilità
del sesso donnesco.
Misero Apollo: Ti sarebbe più tosto caduto in pensiero di ritrovar
trà sassi un cuore, che s’intenerisse a tuoi afetti, che trà cuori un sasso,
che non s’ammollisse alle tue preghieri, Come restasse attonito, se’l può
immaginare ogn’uno. Scrivere un Poeta, che all’hora si vide lagrimar la
bella faccia di quel Dio, in cui fù sempre ordinario il canto. E chi sa?
Volle per aventura tentare, già che la sua cruda Dafne, come Donna non
gradiva il canto, se come tronco gradisse l’acqua, che gli
somministravano due piangenti pupille.
Questa Favola, Illustrissimi Signori Accademici, porge occasioni da
dubitarsi: Qual possa servir ad un bel volto per strumento più potente
da captivar’i cuori: O’ il canto, ò le lagrime. Da questa prendono materia
di litigio trà di sé: Bella piangente, o Bella Cantante. Né la decisione alle
loro disordie saria così, se d’accordo non si rimettesero alla sentenza
delle Signorie Vostre Illustrissime, nelle quali sono sicure di ritrovar
insieme giudicio di Paride, el’integrità d’Aristide.
Pretendono le lagrime vanti di maggior forza, mentre stimano,
ch’Apollo habbia decisa la lite in loro favore. Già che doppo, ch’egli vidde
convertita in Tronco la sua diletta, posto da parte il canto, si valse delle
lagrime, quasi, che le stimasse così potenti, che valessero a
commuovere fino i Tronchi.
Rappresentavi Signori Academici, che le lagrime sono figliole de gli
occhi, sorelle de le sguardi, e disciplinate nella scuola di quelle animate
luci, ove non si potessa altra dottrina, che d’innamorare. Ceda pure le
pretensioni il canto, ch’essendo parte della bocca, tanto è inferiore di
forze alle lagrime, quanto le lagrime riconoscono più sublimi i loro natali,
e più potenti i loro genitori.
La Natura ad altra custodia non hà cosegnato le lagrime, ch’a
quella del cuore, né hà voluto, che spiegassero le loro pompe in altra
parte, che nella pupille, quasi, che le stimasse degne d’haver depositario
252
il Rè delle membra, e per trono di Maestà la più bella parte del corpo.
Fermò ella gli occhi per miracolo della bellezza, e le lagrime per miracolo
de gli occhi. E chi non stupisce in vedere, che scaturiscano fonti d’acqua
dalle sfere del fuoco? Queste nelle mestieri servono per pompe funebri.
Queste nelle gioie vagliono solennizzare l’accesso de i contenti. Care
lagrime, ch’inogni caso meritate d’esser gli adobbi del volto. Forse per
questo li ritrovo un Filoso, che fattosi amante delle lagrime occupò tutta
la vita sua in lacrimare. Non già mi troverete Sigori [Signori] alcuno così
amico del canto, che lo giudicasse degno da esser continu a
occupatione d’un Virtuoso e consideri ogn’uno l’efficaccia di quelle
lagrime. Che fanno innamorare anco i Filosofi.
Chi le chiamò con nome semplice di Perle, non aggiustatamene
espresse la loro dignità. Quelle sì generano per l’influenza del Sole, ma
lontane dal Sole; e queste per influenza di duo soli: e dentro le sfere de
imedesemi Soli. Quelle si pescano trà l’acque, e queste trà l’incendi.
Quelle adopera l’arte, per adornar gl’argenti d’un candido collo, e queste
riserba la natura, per arricchir gli ostri d’una leggiadra guancia. Chiami
fino pure più preziose e, se bene tenere, questo forse ci avvertisse che
s’una di quelle liquefatta da Cleopatra, hà potuto sforzar il cuore di
Marc’Antonio a confessar si superato, una di queste, liquefatta per mano
della medesima natura, con maggior forza violenterà i nostri affetti a
confessarsene vinti.
Amore gran capitano di guerra sempre si vale di varie
stratagemme, per abbatter un’anima. Tal’hora tenta le sue vittorie, co’l
solo strepito d’un prezioso metallo. Tal’hora fabbrica i suoi ponti sopra le
basi delle più instabili speranze: Tal’hora assale con la soavità d’una
canora voce; è tal’hora dà le sue scalate per le corde d’un musico
strumento.
Ma alla fine tutte gusti potenti, e lusighevoli stratagemme
riconosco per superiori le lagrime di beltà piangente, trovatosi ben
spesso, che munito da i presidy dell’honestà, si sortenne gl’assalti
253
d’amore, corredato di vezzi, e di lusinghe: ma quando gli armato de
lagrime assule per la parte della compassione, non si trova umanità, che
possa resiter gli: eccettuata quella, che si vanta di non esser humana:
vederli pure, che questo potente guerriero voglia in tutti i modi
espugnata quell’anima, che assedia fino per acqua.
E’ costume de’ fabbri spruzzar con l’acqua, @ agitar co’l vento
quelle fiamme, che bramano più veementi. Amore, Figlio d’un fabbro,
usci bene spesso l’arte paterne. Quando spruzza con l’acqua delle
lagrime, ò quando agita co’l vento de sospiri le fiamme d’un’anima, di
casi pure, ch’egli è risoluto di renderle più veementi.
Anco il sole per far bene spesso cocenti i suoi raggi, gli tramanda
per le nubi, che non sono altro, ch’una acqua volante che si risolve in
lagrime del cielo.
Non v’è cosa, che maggiormente comunichi crescimento alle
piante, quanto il calore congiunto con l’humido: s’egli è vero, ch’Amor
sia una pianta, come dissero alcuni, chi potrà creder, ch’altra cosa vaglia
comunicargli maggior crescimento, quanto gli ardori di due begl’occhi,
congiunti con l’humidità delle lagrime.
Le fiamme de due pupille, quando vengono cinte dall’acqua delle
lagrime, altro non vi persuadete, che siano se qua delle lagrime, se non
di quei fuochi artificiali, che soglio n’arder trà l’onde, potentissimi per la
ragion dell’Antiparistasi.
Escusatemi Signori, se vi paresce strano un mio pensiero. Io direi,
che le lagrime siano latte delle pupille. E che? Sarebbe forse se lontano
dal verosimile, c’habbiano latte, quelle pupille, che partoriscono bene
speso gli amore? Ma, se v’appagate del mio capriccio, concedetemi di
conchiudere, non v’esser cosa più propria per alimentar Amore di
queste, già che queste son latte, @ Amore si pinge fanciullo.
Chiechedesse a gl’Amanti, risponderebbono, che le lagrime altro
non sono, che una quinta essenza della anima distillata per quegli occhi,
254
che pretendono d’insegnarvi a non esser avaro d’Amore, mentre essi
sono prodighi dell’anima propria.
Altri dissero, che le lagrime siano una parte del più purgato
sangue del cuore. Serva a noi per argomento, che s’il sangue Romani,
con maggior forza il sangue vivo di beltà piangente potr’à muover a
tumulto : nostri affetti.
E se direte, che quello per esser forse d’un tiranno, era
tumultuoso, raccordatevi, che anco la beltà non è altro, ch’una Tiranna.
Ma per conoscer, se sia più veemente la forza delle lagrime, che
quella del canto, considerati, ch’elle muovono per natura, e il canto, per
arte.
Io so, che non mi negherete, che lusinghi più il senso una fontana,
che scaturisca dalle naturali, ruvidezza d’un sasso, che quei superbi fonti
di Roma, nell’artifitiosa struttura de’quali non vie sasso, che non vaglia
tesori.
Una schietta beltà quanto captivi i cuori più d’un volto
artificiosamente abbellito, ditelo voi, che bene spesso cadeste nei suoi
lacci. Nudo sinsero : Poeti Amore, per dimostrar, che mudo d’artificy
alletta; captiva; e ferisce: ma, se fisserete gl’occhi nel canto, non
ritroverete languidezza, che non sia una fintione. Esprime falsamente
hor triste, hor lieti gli affetti: simula le passioni i Finge i dolori: e se pur
hà qualche cosa, che piaccia, tanto sol piace, quanto hà del naturale. E
come potrà l’anima amar quel canto, che si gloria di captivare con
fraudi, e che si vanta di farsi riverire anco con le crudezze.
Per esprimer la forza del canto, disse tal’uno, ch’egli è un’incanto,
ma, se volete Signori conoscere, quanto prevaglia a quello la potenza
delle lagrime, riducetevi a memoria, che quell’Armida, che giva fastosa a
trionfare delle più bellicose squadre, co’l vigor de gi’incanti, fù
necessitata a valersi dalle lagrime, per invigorire gli stessi incanti. Fino
le Furie, e: Fantasmi si conoscono deboli in paragone d’una beltà
lacrimante. Né viè maraviglia, perché alla fine, quello sono forze
255
infernali, e le lagrime d’un bel volto non son’altro, che potenze d’un
Cielo turbato.
Confessano i Musici stessi, che per dar vigore allor canto, sono
necessitati a valersi de i sospiri, delle sincope, e delle languidezze:
queste, che altro sono propriamente, se non parti del dolore, e del
pianto? rubbate forse da loro, perchè vedono esanime quella Musica, in
cui mancano le robustezze d'un sospirante affetto.
Consideri ogn'uno la forza di quel pianto, dal quale l'istesso canto
attende soccorsi. Si vanta quell'ambitioso Musico d'haver con la soavità
della voce ottenuta la sua Euridice dall'Inferno: Io piùtosto direi; che si
gli fù concessa, perchè hà saputo perfettamente cantare, forse non gli
stata ritolta, se havesse abastanza saputo piangere. Hà creduto
Pitagora, ch'essi s'esercitino in una perpetua armonia; ma io vedo, che
non li ringratiamo per vederli ben spesso lacrimanti, e non mai per
crederli Musici.
Da poeti fù decantata alle volte una beltà sotto un manto lugubre,
quasi che trà l'oscurità dell'habito riconcentrati gli splendori del bello,
con maggior forza innamorino l'anime. Osservate Signori Academici, che
beltà piangente, beltà vestita di luguhe [lugubre] manto, tanto più
benemerita delle vostri affettioni, quanto che forse si copre di tal habito,
per far l'esequie alla vostra spirate libertà.
Per Legge naturale và creditore d'amor, chi testifica d'esser
amanti, ma che altro sono tal'hora de lagrime, che testi mony d'un
cuore, che ama, con le quali vengono citate, l'anime innanzi al Tribunale
della natura, per satisfar il debito della corrispondenza.
Disse Aristotile, che le lagrime sieno un sudore, ma se a sudori
giustamente si deve la mercede, chi potrà negar la mercede d'amore a
quei begl'occhi, che forse sudano anbelanti, perchè soggiacciano sotto il
peso d'un amoroso affetto.
Hanno tanta efficacia le lagrime nell'innamorare, ch'io non credo,
che gli Dei gradiscano per altro le mirre, e gl'incensi, se non per essere
256
lagrime, benche d'un insensato tronco. Quei lumi, che spesso
risplendono innanzi la Maestà d'un'Altare, per impetuar gratie dal Cielo;
osservati Signori, che non sogliono ardere, senza lagrimar insieme;
Forse per insegnar a duo begl'occhi, che se le lagrime d'innanimati lumi
hanno forza co'l Cielo, le lagrime di due animate facelle potranno
prender autorità con gl'huomini.
Al canto non a'aserivono per ordinaria altri Epiteti, che di melodia,
e di soavità. Ma quando si tratta delle lagrime, soglionsi chiamarsi con
più viril nome armi delle Donne. Argomentare voi, s'elle siano potenti,
già che hanno meritato il titolo di Armi. Non per altra ragione io mi
persuado, che gli Dei habbiamo nascosto gl'occhi al figlio di Venere, se
non perche, s'egli potesse lagrimare, aggiungerebbe tanto di vigore alla
sua potenza, che non si trovarebbe alcun'anima bastante a refistergli.
Quell'età pargoleggiante, che per la propia insufficienza è la più
bisognevole dell'altrui amore; non si vede per ordinario della Natura
provista d'altro, che le lagrime.
E sono elle così potenti, ancorche bambine, ch'il figliuolo
sottoposto per ragione alla giurisdittione sopra le viscere de genitori
stessi. Hor chi dirà, che le lagrime non siano patientisimi stromenti, già
che hanno tanto forza anco maneggiate dai fanciulli?
Il pianto è linguaggio delle passioni, insegnato dall'istessa Natura,
per esser inteso da tutti. Sono lagrime Ambasciadori dell'anima, che
venendo per dar ragguaglio dello stato de' propri affetti, infidiano bene
spesso la libertà degli affetti altrui. Non richiedono audienza ad altri, che
a gl'occhi, perche conoscono esser potentissime quelle istanze, che per
gl'occhi se ne passano al cuore. Essprimono senza lingua le loro
ambasciate, e con mirabil efficacia erano taciturne. Consideri ogn'uno la
forza di quelle lagrime, che anco mutole, fanno persuadere L'istessa
natura pare, che in questa contesa conceda alle lagrime la palma della
vittoria, mentre hà fabbricati gl'archi delle ciglia, per dove elle passano,
affine de dichiararle trionfanti.
257
Sono tali le prerogative delle lagrime, che si stiamano ingiurate,
mentre si vedono paragonate co'l canto. Raccordatevi Signori, che se
tal'hora qualchi sdegnoso affetto risorge Gigante, per ribellarsi dal cielo
della beltà, queste fatte diluvy lo costringono a morte. Se tal hora
qualch'anima contumace risolve di consigliarsi con amore affeso, quese,
Avvocati presentano le suppliche.
Se tal hora qualche pensiero porta la rimembranza d'un sospirato
bene, queste visione accompagnano le memorie. Se tal'hora s'allontana
alcuno, ò dalla cara Patria, ò dall'oggetto, che ama, queste sigliono
rimanere, non sò, come dire, ò in compagnia dell'anima, ò in luogo
dell'anima. Se tal'hora stassi Amore moribondo, è anco morto nel petto
d'un isdegnato Amante, non altri, che questi lo ritornano in vita.
Un'estinto afetto resuscita bene spesso con esser deplorato. Hor chi si
paragoneria con quelle lagrime, che hanno virtù fino di resuscitare i
morti?
Ma Signori se volete con breve argomento comprendere la potenza
delle lagrime, considerate, ch'elle non hanno tenuto di cativar' in casa di
Musici, per contender con la Musixa stessa.
PER LA PARTE
DEL CANTO
DISCORSO ACADEMICO
Dell'Illustrissimo Signor
GIO: FRANCESCO LOREDANO
Plut. N Filosofo, Signori Academici, invitato a portar'
argomenti contro l'eloquenza d'uno, che con belissimi ragioni negava il
moto, senza degnarsi di rispondere, se diede a passegiare per la stanza.
Volendo insegnarci, che sono superflue le ragioni, non necessarie le
dispute, dove mlita [?] l'isperienza, e dove il senso può esser'arbitro del
giuditio.
Doversi anch'io tacendo con un dolce passagio di questi Signori
Musici rispandeme alle ragioni del passato congresso che sostenavano
apregiuditio del canto la precedenza delle lagrime. Io sò, che l'anima di
voi altri Signori sviata dietro al suono d'una voce canora perderebbe
affatto ogni raccordanza di quell'eloquenza, che per ostentare
maggiormente se stessa s'arma a difesa de i Paradossi.
Ma convenendomi co'l Discorso ubbidire, sieno pure le Lagrime, è l
Canto considerati, ò in se medesimi, ò nelle loro forze, ò nella stima de
gl'altri; che a questi capi si reducono gl'argomenti portati a favori del
pianto; non si potrà ad ogni modo contendere, che non sia il Canto, e
per essenza, e per forza infinitamente maggiore.
Vantano in primo luogo le Lagrime l'altezza de i loro natali, tanto
più sublimi del Canto, quanto s'innalzano gli occhi sovra la bocca, come
nate sotto gl'archi della ciglia, sorelle de gli sguardi, figliuole delle luci.
258
259
Ma ciò quanto sia vero, sè'l vedran esse, che formati d'humor seroso
gemello del sudore, ò per compressione delle membrane del cervello, ò
per dilatatione de i menti, non nascono no, ma fuggono da gli occhi: non
sorelle, ma nemiche degli sguardi, mentre da quel salso humore del
pianto si veggono sempre offesi, e tal'hora acctecati.
Ma sia concesso alle lagrime ciò, che vogliono. Ditemi Signori nella
ben composta facciata di questa fabbrica, che serve di momentaneo
albergo all'anima humana, non hanno gli occhi luogo di finestre, e
d'uscio la bocca? Perche dunque vorrano avanzarsi di pregio coloro, che
sono a viva forza precipitati da i balconi, sopra quelli, ch'escono a voglia
loro dalla Porte?
Gl'occhi medesimi, che ben fanno l'ufficio loro non
contenderebbero mai con la bocca. Non hanno preminenza a le
sentinelle, perche stiamo in luogo eminente, sopra i Capi militari, che
assistono alla difesa della Piazza.
Ma'l Canto Signori Academici, il Canto, ch'è composto di voci, e di
spirito, e quasi un'anima dell'anima stesa, mossa, e regolata da lei, non
si tragge da altro luogo, che dal capo, ò dal seno. Esce dalla bocca, che
vuol dire da una spiritosa minera di vivi rubini, e di perle i ben fratello
de i sussurri, e dei baci, ma che da loro no và mendicando le forze.
BAsta solo a se steso, e fà vedere fino a i ciechi, che senza la via degli
sguardi f'à nascere Amore.
Hor se appunto questa è la nostra questione, entri no pure in
giostra tutte le lagrime, che furono, ò sieno per esser giamai, che non
potranno sole in qual sivoglia, anchorche dispostissimo cuore far nascere
una picciol'ombra d'Amore. Ma il Canto, ancor che separato dal bello,
entra l'orecchie, rapisce i cuori; tirannegia l'anime; e fà vedere
gl'huomini, quasi in estati amorosa, imparadisati, per così dire, di gioia.
Et oseranno le lagrime concorrere con lui?
Si Amore è figliuolo del diletto, è l canto non è altro, che soavità, e
contentezza, chi non vede, che da lui deve riforger [risorger]' Amore? Se
260
Amore, è spiritello, e se punto si rassomiglia a chi lo produsse, non si
potrà riputar giamai nato di lagrime, ma ben sì da gli spiriti, ch'escono
dal canto.
Vola Amore, come parole cantate, anzi accompagnato con quelle
harmoniche voci, che lo producono, entra nel possesso de i cuori; e
tanto s'avanza sopra le lagrime, quanto è l'aria più nobile, e più sublime
dell'acqua.
Si la somiglianza è sempre mai la produtrice d'Amore, e l'Anima,
che deve innamorarsi, non è, che harmonia, è composta d'harmonia, chi
non sà, che non v'hà luogo il pianto? Chi non sà, che Amore potrà ben
nascere dalla Musica, ma non mai dalle Lagrime?
Il Canto è primogenito dell'anima, e vagiti d'un bambino appena
nato non sono altro, che note, le quali ancorche mal'articolate, danno
pur'a vedere, che la prima scienza, ch'insegna l'anima, è il canto, non le
lagrime. Ne potevan, venendo essa dal cielo, usar altro linguaggio,
mentre il pianto è sbandito di là sù, nè v'è gratia, che possa
introdurvelo. L'arte poi fabricando sopra gl'insegnamenti della Natura,
hà ridotta la Musica ad una perfettione, che non v'è potere, che non
soggioghi, nè impossibilità, che non superi. E chi vorrà circonscrivere
quel valore, dove quasi a gara la Natura, e l'arte hanno impiegato ogni
forza? Chi vorrà contender' : pregi alla Musica, ch'e scienza, e virtù
compagna della Filosofia?
Cedano dunque le Lagrime, che finalmente altro non sono, che un
naturale sborso di tenerezze, co'l quale gli occhi pagano: i debiti
all'humanità. Overo un'imperfettione de gl'organi, che non potendo
resistire al fumo, al vento, all'humor acre, a qualche percossa, lasciamo
cader il pianto. E da questo potrà alcuno darsi a credere esser mai nato,
ò poter ma nascer Amore?
E chi pur volesse metter'anco l'Arte intorno alle Lagrime, e
chiamarle artificiosi testemoni d'Amore, sappia, che le Lagrime di bella
Donna hanno per ordinario l'inganno per fonte. S'ella piange, tende
261
infidie. Quello, che per gl'occhi distilla, altro non è ch'una quinta essenza
d'artifici, di simulationi, e di falsità, tutti nemici, e non progenitori
d'Amore.
Quindi è, che nella famiglia di Cupido, e di Venere, riposero
gl'antichi Maestri del sapere le Gratie, il Riso, il Giuoco, il Canto, e gl'altri
lieti, e sestosi compagni. Il pianto all'incontro sò ben io, che fù dal
Latin'Homero situato,
Nel primo entrar del doloroso Regno.
Ma internandoci maggiormente ne gli affetti , e ne i pregi, che
nascono dalle Lagrime, e dal Canto, più possenti ancora, e più efficaci
sorgeranno le dimostrationi, e le prove, che non dal pianto, ma dalla
Musica nasca Amore.
Amore è fuoco, che fermandosi entro le viscere, abruccia l'anima con
dolcissime fiamme. Hor chi non sà, che'l fiato d'una bocca canora, anco
naturalmente haverà forza d'accenderlo, mentre l'acqua del pianto non
potrà, se non ammorzarlo? E se pur v'e alcuno, che per esempio
introduca le poche stille del Fabro, non confessa a egli mal suo grado,
che si come gli spruzzi fabrili non accendono il fuoco, ma dopo, ch'egli è
ardente, lo stuzzicano come inimici a rinu i gorirsi, così non sieno le
lagrime atte a figliar Amore (il che trà noi si questiona) ma dopò, ch'egli
è acceso, e forse allo spirare del Canto, vagliano esse tal'hora, come
nemiche ad avvalorarlo per la naturale contrapositione del fuoco, e
dell'acqua.
Amore è una dolce ubbriachezza d'affetto. Chi può negare, che la
soavità d'una voce non habbia virtù d'inebriare i sensi? E vorrà l'acqua,
di visa in picciole stille, che si chiamano Lagrime, inebriar d'Amore, il
che non sarebbe tutta insieme.
Chi innamora con forza non conosciuta, violentamente rapisce
l'anima dell'Amante. E questo se crediamo alla scuola, che meglio d'ogn'
altra s'intese d'Amore, è proprio effetto del Canto. E vorranno le lagrime
haver maggior forza a soggiar' i cuori?
262
Quelle lagrime sempre fugitive, sempre, ò precipitate, ò in atto de
precipitarsi, come potranno vincer l'anime, ra-ò in atto di precipitarsi,
come potranno vincer l'anime, rapir le menti. Il canto all'incontro, che se
n'esce in ordinanza, che s'innalza, s'abbassa, circonda gli affetti, vola
dietro, e mette freno a i pensieri, hà per stratagemme le fughe, le
ritirate, i languori, chi non vede, ch'è fatto appunto per soggiogare, e
per vincere?
La bellezza è un raggio del lume divino. Amore è l'atto di quel
raggio, che passa ne i cuori, e da loro ritorna a riunirsi al bello. Ma il
canto non hà piu proprio ufficio, ch'accitare, e dirizzare gl'animi humani
alla contemplatione divina. Haverà dunque maggior forza ad innamorare
di quello, che s'habbino le lagrime srelle della mestitia, e che non fanno,
se non raccordare, e con piangere le miserie, e gli accidenti della nostra
vita.
Le Fieri, gli uccelli, e i pesci, che non conoscono altra ragione, che
la forza della natura, innamorati dal Canto, corrono ad una voluntaria
prigione. La Musica placa gli Elefanti, fà con lei gareggiare gli Usignuoli,
muove i Delfini, ferma l'Api. In somma a cho ascolta una voce canora, e
non ama, si può credere, che non viva.
Fino gli Antri, e le spelonchi, innamorate dal Canto, rimandano le
voci, se ben tronche, ed imperfette, a palesar l'Amore, che ha loro
prodotto nel seno la forza del Canto.
Ma le lagrime, qual potere hanno mostrato giamai, non dirò ne:
Regni altrui, ma ne i propri loro, ò dell'Acque, ò del Pianto? Il Canto non
solo dà moto alle sfere alesti, ad dolcisce la terra, a l'aria, dov'egli
soavissimamente tiraneggia; ma fin nel Regni dell'acque, di cui son
picciole stille quelle lagrime, che ardiscono contender con lui, hà
impietosite l'onde, placati: venti, e fatti servi i Delfini. E nello stesso
Regno del Pianto hà raddolcite le Furie, le Parche, e Plutone.
Il Canto può generar le lagrime a suo talento, ma tutte le lagrime
del Mondo non saranno mai, ch'altri Canti. E'l pianto stesso, che
263
naturalmente conosce la sua debolezza finne i fanciullini subito, ch'ode il
canto della Madre, ò della Balia, fuggendo il paragone si disperde, e
svanisce. E però Amore, ch'è nobilissimo di tutti gli Dei, non vorrà un
genitori così vile, e così commune, come il pianto.
Le lagrime scorrono da gl'occhi offesi, ò addolorati senza regola e
senza pregio alcuno. Ma il Canto con studiosa harmonia, con dotte
osservationi, e con maestra voce, mosso, e regolato dalla divinità
dell'anima, non farà mai ricusato per Padre da quell'Amore, ch'è tutto
studio, e tutto osservationi. Et è il vero maestro delle fughe, delle pause
de i sospiri, de i languori, e di quei musici intrecciamenti, che non
s'apprendono altrove, che nelle scuole dell'harmonia, e che solamente a
ridirli, non che a provarli pare a me, che partoriscano Amore.
Chi canta, per ordinario solleva il volto, brilla co'l guardo, e la
bocca quasi lieta, e ridente per sì degno, e maestrevole essercitio,
aperte le ricche minere, fà pompa de i suoi thesori. Ma chi piange,
abbassa la faccia, turba la fronti; e gli occhi, per haver fatto mostra
delle lore imperfettioni, s'arrossiscono per vergogna, e tutti abbassati, e
nuvolosi pare, che tantino ad un certo modo nascondersi a chi li mira.
Compassiono la povertà di que gl'ingegni che volendo al meno con
qualche metafora arricchire la mendicità del pianto, hanno con voce
imaginaria, chiamate le lagrime perle. Forse perche con voce imaginaria,
chiamate le lagrime perle. Forse perche coloro, che la notte sognano
perle, il giorno per ordinario spargono lagrime. Misere perle così amare,
che offendono, così fugace, che si disfanno nel farsi. E potran farsi belle
di questo nome in concorso di quelle, che scopre il Canto? Tanto soavi,
che avvivano l'alma; tanto stabili, che sono forse le più durevoli gioie
d'Amore.
E però tutti non si muovono al pianto. Le pioggie, che versano due
beglie occhi, che ponno fare cadendo sopra gli scogli della crueltà, ò
sopra la sabbia dell'incostanza? Ma quel suono armonioso, ch'esce da
264
candissime perle, porta seco sempre il forgore d'amore, che infiamma
tutto, e tutto innamora.
Furono ben sì chiamate Armi le lagrime, ma armidonesche, che
non hanno nè offfesa, nè difesa. Ma dall'armi non nasci d'Amore, benche
sovente da lui nascono l'armi, e le guerre. Il canto è un'arma invisibile,
fatta per ferir l'anima, e ferirla d'Amore. Può però servire non solo a
risvegliare gli spiriti guerrieri; onde Antigonide co'l Canto violentava gli
spartane a predir l'armi; ma serve ancora a dar il dovuto premio della
lode, e della gloria a gli Heroi. Canta quel soave CAntore i Capitani
Greci, e Troiani alla mensa d'Alcinoo, e fà con l'harmonia nascer le
lagrime fino a gli occhi d'Ulisse. E vorranno poi queste paragonarsi co'l
Canto, che n'è a sua voglia Signore?
Quella bellezza, che vuole mei cantare Amore co'l pianto, ben
conosce, che non hà talento per tanto acquisto. E però con lo sborso
delle lagrime, tenta far sua la pietà, ch'essendo compagna, serve per di
mezana a conseguirlo. Hor come potrà guerreggiare co'l Canto, che da
per se lo spria, e lo fàa nascere ad ogni voce?
Fin la stagione, che el inamora, si serve come ella può del canto
de gli uccelli, per svegliar Amore. La dove l'horrido, e freddo verno, che
in tutti sospisce le fiamme amorose, fà con le continue piogge odiosa
pompa le lagrime.
E'l cielo, e l'aria sparsi, ed ingombrati di voci soavissime, & [et]
harmoniche spirano tutti amore. Che se versano, piangendo l'acque, sì
rendono così odiosi, che necessitano gli huomoni ad una volontaria
prigione, più tosto, che vederla lagrimanti.
Amore in somma hà doppia le strade a i Suoi natali. Una senza
contesa, e tutta riserbata alle voci, & [et] al Canto, ch'è la via dell'udito.
L'altra si sà per gli occhi, con l'incontro de gli spiriti più puri, e più vivaci.
Nasce, è vero, da gli sguardi, ma non mai lagrimosi, e piangenti. E che
spiriti haveranno quegli occhi, che in vece di spiritelli amorosi sgorgano
265
amare lagrime? Un'amori, benchè gigante s'affogarebbe in un mare di
pianto.
Altro non ci resta, Signori, a vedere per compiuta gloria del Canto,
che stima, è'l giudicio, ch'è, s'è fatto sempre di lui, a paragone del
pianto.
Io per me hò veduto molti in procacciarsi amica, che in loro
produca sensi d'Amore, far gran Capitale, che s'intendesse di Canto, ma
di lagrime non mai. E chi per vostra fè Signori Academici non vorrebbe
più tosto l'amata donna vistuosa, e cantante, che lagrimosa, e
piangente?
Amore è figlioulo dell'harmonia, e però quegli amanti, che
vorrebbono farlo nascere nelle loro amate, hò ben io veduti cantare, ma
non versar lagrime, indegne dell'huomo, e che farebbero atte a produrre
il riso in vece d'Amore.
92
E sotto alle sorde finestre non s'è veduto
giamai apagas angosciosi. che piangono, ma ben Musici, che antino.
E quel Dio, che hà per suo favorito il genere humano, e non hà
godimento più caro, che'l vedersi provocato ad amarlo, mentre s'è
degnato d'ammaestrarci, come ciò far dobbiamo, non pare, ch'altro
c'intuoni, che Cantate , cantate. E però la Chiesa amata sua Sposa, non
fà, che i Sacerdoti versino lagrime, ma spendino il Canto. Quel Canto,
ch'è parto dell'anima, esercitio del Cielo, impiego delle sfere, gloria del
Paradiso, ricreatione di Dio.
Si gloriavano le lagrime d'haver havuto un Saggio tanto
innamorato di loro, che di tutto piangeva. Felicità, dove per acquistar
nome, e gloria di Filosofo, bastava egualmente il continuo riso, e'l
continuo pianto (che due appunto furono coloro, che per queste
contrarie strade fecero il medesimo acquisto) Ai nostri tempi sarebbero
stimati impazzati.
92
Lacrhymae à claris viris auferendae funt. Plst. de Repub. dial.3 (texto impresso ao
lado do corpo principal)
266
Ma sia pure parere d’huomo saggio, come vien finto il pianger
sempre, e non d’huomo infelice, che piangeva, per non saper cantare.
Ad ogni modo pretendiva forse questo Filosofo di generar Amore co’l
Pianto. Nò, nò. Si credeva di far germogliare lo spezzo, el’odio contro le
cose terrenne, di cui piangeva. Povere lagrime, si con questo pensarono
provarsi Madi d’Amore.
Socrate, Signori Academici, quel gran Maetro d’Amore; della cui
Sapienza, dopo la decisione dell’Oracolo, fora impietà il dubitare; tanto
stimo la Musica, che si diede ad impararla nell’età senile.
Si dan gloria le lagrime, che Appollo decidesse la lite a loro favore.
Poi che alla sua cara già convertita in tronco, non sparse canori voci,
ma’l pianto. Questo Signori è un Oracolo favorevole per il canto. Volle
egli dire, che con le donne si adopri la Musica, perche l’inaffiare di pianto
è una lusinga da usarsi con le Piante.
Ben sapeva il Musico Dio, che haverebbe cantando restituito il
senso, el’inteletto a quell’ingrata, che meritò per la sua durezza il
castigo di cangiarsi in tronco; ma volle rinfacciarla, e pagar
l’ingratitudine della crudelissima Ninfa, con lo sborso di quelle lagrime,
che sono il vero simbolo dell’ingratittudine, poiche infiammano, rodono,
& acciecano quei lumi, ove si dan gloria di nascere?
Che più? fù questo il dar la sentenza a frà il canto, e loro. Volle,
che le lagrime servissero in adacquar le frondi all’hora destinate per
corona, e laurea del Canto.
Ma a che cercar il giuditio d’una mentita Deità? Dio Massimo hà
sublimato il canto nelle Bocche de i Beati, e de gli Angelin Paradiso; e
confinate le lagrime trà le pene de gli spiriti dannati entro l’Inferno.
Io non posso dubitare della vostra sentenza, Signori Academici,
mentre havete decisa la questione a favore del canto. Sò ben’io, che non
haverei ricevuto l’honore a favore del canto. Sò ben’io, che non haverei
ricevuto l’honore delle vostre presenze, s’io la sessione passata le
267
havessi invitati a vedermi piangere, non a vedermi piangere, non a
udirmi cantare.
E se pure v’è alcuno, che creda più possenti le lagrime del canto a
generar Amore, prego il Cielo, che pianga sempre, accioche possa con
agevolezza maggiore innamorar la sua cara.
Ma non è di dovere che parlando delle glorie del Canto, pregiudichi
alle di lui ragioni. Nelle bocche di questi Signori Musici si farà molto
meglio vedere la maggioranza del Canto, sovra le lagrime in
produr’Amore.
IL FINE
Museo Civico e Raccolta CORRER di Venezia
Provenienza luogica 974.17
Collocamento Op. 400.17
268
TEXTO DE ARCANGELA TARABOTTI
CHE LE DONNE SIANO DELLA
SPETIE DEGLI HUOMINI
DIFESA DELLE DONNE
DI
GALERANA BARCITOTTI,
CONTRA
HORATIO PLATA,
IL TRADUTTORE DI QUEI FOGLI,
CHE DICONO:
LE DONNE NON ESSERE DELLA
SPETIE DEGLI HUOMINI
NORIMBERGH
Página 3
Da ciò è nato ch’un Moderno Pretico, al suo credere dottissimo,
habbia voluto col testimonio della Sacra Scrittura far travedere il
Christianesimo, e dar ad intendere al volgo, che le Donne non siano
della spetie degl’Huomini, e che in conseguenza non habbiamo anima.
Se questo si debba credere, lascio, che lo considere, chi hà
giuditio, mentr’io m’accingo a difendere la parte più meritevole, contro
la temeraria pretensione degl’Huomini, che vorrebbero pure iufettar la
Chiesa, anche di questa Eresia, che le Donne non si salvino, e che Dio
non s’habbi humanato, e morto per loro.
269
Ma dicano ciò, che vogliono, questi diabolici Eretici, che le Donne
saggie, come di Saette da debolissimi archi scoccate, si prendono
diletto, non fastidio delle loro pazze parole; anzi decidono la loro
bessagine, e non hanno cosi poco giuditio, che si lasciano acciecare dalle
false apparenze, overo che non sono.
Scano il vero dal falso, questo riprovarlo, e quello eleggerlo.
Sanno d’haver anima, anzi d’haver un’anima nobilissima, si come
tengono per fermo, ed indubitabile, che la Natura non potesse far giamai
il più pessimo animale dell’Huomo; Poich’egli per disprezzo vitupera
l’interiore, per malevolenza il pari, e per invidia il maggiore.
iii Voi, com sofistici argomenti vi sete messo ad assalir quel sesso,
che per mancanza di studi non può risponder alle vostre inventate
malvagità, e col veleno de’ vostri caratteri procurate d’uccider l’anime
de’ semplici; Anzi tentate col nero de’ vostri inchiostri, d’oscurare il
candido della Fede Christiana, e di macchiar l’innocenza, e purità delle
Donne.
Ma v’ingannate. O che non havete letta la Scrittura; O che non
l’intendete: O che non la volete intendere: Overo, che vi pretendete
d’esser il quinto Evangelista; E per ciò venite a tradurre l’Evangelÿ a
modo vostro, stimando forse d’esser comprobato per tale dagl’empi
Eretici, c’hoggidì vivono.
Fugono ad ogni modo come Lepri i veri catolici la vostra falsa
dottrina; Mandacium, perplexam, & doloplenam. Quelli, cha veramente
sono nella Navicella di Pietro, se non vogliono perire, s’otturino ben
bene l’orecchi, per non sentire il vostro canto; peggiore di quello delle
Sirene, e degli infausti Corvi.
Ma veniamo al punto, Signor Esploratore della Scrittura, già, che
professate di sapere più voi, che is Settanta; E ventigliamo un poco
questi vostri concetti degni d’esser abboliti da ogn’animo christiano.
Dite.
270
VEGLIE DE’ SIGNORI UNISONI
Veglia Prima
De’ Signori Academici
UNISONI
Havuta in Venetia in casa
Del Signor
Giulio Strozzi
Alla Molto Illustre Signora
La Sig. Barbara Strozzi
In Venetia
Per il Sarzina
Stampatore dell’Academia
MDCXXVIII
Con licenza de’ Superiori, e Privilegi
Na contracapa
Unam pulsa lyram vocem dabitaltera concorti
Natura hoc praestans ordine sympatiae.
Unisonos Virtus anim os facit, improba nulli
Mens ubitam dulcis nos Homonoea vocat.
Et cantare omnes, & respondere parati.
O quantum est Veneris auribus ingenim.
Iu Iy Strozze
271
Pg 8 SONETTO IN LODE
Della Medesima
Bella, ò Barbara, sei: mille già’ l sanno
Cor date vinti, ahi troppo crudda, e bella:
Ma questa pompa è de l’etade ancella.
Sogetta al caso, e sottoposta al danno.
Più de la tua beltà ti fanno
Industre mano, e armonica favella:
Svra cui non può haver maligna stella
Influsso d’ira, ò libertà d’inganno.
Opra d’angustia carta il far palese
Non è le glorie tue: gli encomi hai certi:
Odine uncenno in ragionar d’imprese.
Puoi con gli accenti’n core note aperti,
Puoi con le luci’n dolci sguardi accese
Ammollir Furie, e incivlir deserti.
Di Francesco Belli
Veglia seconda pg 5
4... quando la Signora Barbara, con quella voce, che contenderebbe;
pregi all’armonia de’Dieli; se questi con la lontananza non isfuggissero il
paragone; invitò con quest’Aria gl’Academici al Discorso.
5. Dite Amanti il vostro Fiori
272
Che bel frutto produrrà,
Ben è saggio Agricoltore
Chi dal Fiore il frutto sà:
Ma ne gli horti di Cupido
Me ne rido che l’istesse
Sian co i fatti le promesse.
Quanti sciocchi al primo sguardo
So promettono il gioir.
Sempre Amor, sempre è bugiardo
Altr’è il fare, ed altro è il dir.
Ma ne gli horti di Cupido
E
Me ne rido, che l’istesse
Sian co i fatti le promesse.
Pg 10. Introduçao aos discursos da VEGLIA PRIMA
... Quiudi dopò la Musica, ch’è accompagnata dalle pù rare voci del
secolo, danno principio alla veglia, sù il primo Problema: se la
maledicenza sia aprone, ò freno della Virtù.
Il Sig. Paolo Vendramino, che lo propose, versato nelle più fine Lettere,
ricivendo l’impulso da una Canzone della Signora Barbara, che con la
soavità del canto rubba à gli ascoltanti l’anima, per l’orecchie; fece
pompa delle maraviglie della sua elloquenza, con la seguinte Lettione,
Resposta do primeiro discurso – Dopo parlò l’illustrissimo Loredano...
Per servire à i comandi d’una Venere canora, ch’essendo BARBARA
solamente nel nome, porta Amore nel volto, e le gratie nel seno; entro à
273
discorrere in questo Panteone di Virtù, ove tutti gli Academici sono
Mercurj.
Pg. 57 discorso del Padre Terreti
...Ed ecco prima, che nella scena d’un volto, in cui si veggono
epilogate tutte le terrene Bellezze, ne vien fatto scala al pensiero, alle
Bellezze Celesti. Anzi faremmo astretti à confessar questo Teatro un
Paradiso, mentre miriamo l’Angeliche bellezza, compendiate in un volto,
e l’armoniche voci del Paradiso, in questo Teatro ristrtte, se quella
superba mano mortal nimica dell’ottio, non contenta...
Fim da Prima Veglia
Pg 67
Quivi si conchiuse il filo de’ Discorsi, che stringendo il nodo della
Virtù; composta havevano l’unione della gloria. Fù poscia dalla Signora
Barbara proposto il sogetto, che occupar dovea l’eloquenza di questi
virtuosi, nella futura veglia. Ciò si fece, con l’occasione di dispensare à
ciascuno di quelli, c’haveano favellato un fiore, sopra di cui s’obligavano
à discorrere, qual fortuna secondo le proprietà di quello, possa
pronosticar si in amore. Nel distribuir questi fiori; rappresentò al vivo la
Signora Barbara quella Primavera, la quale raffigura nel sembiante. La
gratia, di cui fece pompa in questa attione. Là amico delle Muse, hà
honorata questa Venere, col Sonetto chi quì nel fine s’è aggiunto. Dalla
Sorte che servì d’ordine al dispensargli; in tal guisa furono distribuiti. Al
Sig. Paolo Vendramino toccò un fiore del Cedro. AL Sig. Loredano fù
presentata a una Rosa armata di spine, per darsi a conoscere son meno
all’occhio, che al tatto. Il Narciso fù dato al Dettor Rocco, il quale era
nell’ordine di questi Letterati. Non favellò sul Problema; perchè colto
essendo all’improviso; non volle pregiudicare al merito di quella Fama,
che sicurezza d’un humile silentio. Il Sig. Vicenzo Moro ricevette la
Viola: hebbe il s’el somino di Spagna il Sig. Tomasso Cocco. Al Dottore
Francesco Paolo Speranza fù dato il Dulipante; al Pallavicino la
274
Moschetta; Al Torretti riore di Ciregia accompagnato col frutto; e le
Margherite finalmente ricevette il Sig. Clemente Moll. [pg 69]
Compita la distribuitione de fiori, ritornò l’harmonia delle voci à
prender possesso de gl’orechi, per haver tributaria la riverenza de’ cuori.
Erano, non meno rignardevoli le compositioni, quello fossero [?] di
rapito l’animo di ciascuno; quando prima ad un’esser estatico non fosse
stato obligato l’occhio, nel rimirare, qualmente erano corpi terreni quelli,
che alla melodia delle voci, erano giuducati spiriti Angelici. Oltre che
lusingava talmente, e dilettava insieme la dolcezza di quel canto, che
non poteva permetter l’anima d’esser rapita altrove; overo esser
astratta da pensieri fuori di quel corpo, nel quale per le porte de i sensi,
entravano à lei godimenti di Paradiso. Così il concerto de Lettera e de
Musici forma un solo suono, in cui s’odono gl’applausi à trionfi della
Fama; come prima hà invitata la malignità à cimento; così hora con
solenne pompa; di quella publica vittorie. Il ferro, che dalla maledicenza
fù spinto nelle viscere di questa Academia, uscirà imporporato ne i fregi
de’ suo illustre merito; e spuntati i dardi dell’invidia; risplenderàvi è più
il pregio della virtù, e la gloria delle belle Lettere.
Fine della Veglia Prima.
275
MÚSICAS
276
Apresso ai Molli Argenti
Barbara Strozzi
Venezia, 1619-1677
277
278
279
280
281
282
283
284
285
286
287
288
Notas de edição:
1. No compasso 23/24 está escrito ij no lugar da palavra gridar.
2. No compasso 28 aparece um b antes do fá.
3. No compasso 29 também.
4. No original não aparece a barra de compasso entre os compassos 59 e
60.
5. No original não aparece a barra de compasso entre os compassos 76 e
77 (ária).
6. No original não aparece a barra de compasso entre os compassos 79 e
80.
7. No original não aparece a barra de compasso entre os compassos 99 e
100.
8. No original não aparece a barra de compasso entre os compassos 102 e
103.
9. No original não aparece a barra de compasso entre os compassos 109 e
110.
10.No original os compassos encontram-se deslocados: há uma barra de
compasso entre a palavra le e pene no compasso 10, outra entre m’era
e dolce no compasso 111, dividindo a palavra soa-ve no compasso112 e
outra dividindo a palavra fo-co.
11.No original não aparece a barra de compasso entre os compassos 117 e
118.
12.No original não aparece a barra de compasso entre os compassos 123 e
124.
13.No original não aparece a barra de compasso entre os compassos 128 e
131.
14.No original não aparece a barra de compasso entre os compassos 133 e
134.
15.No original não aparece a barra de compasso entre os compassos 148 e
149.
16.No original não aparece a barra de compasso entre os compassos 153 e
154.
17.Sugerimos que o sol seja natural.
18.No original não aparece a barra de compasso entre os compassos 162 e
165.
19.No compasso 178 está escrito ij no lugar das palavras ma in udir Filli
mia.
20.No original não aparece a barra de compasso entre os compassos 182 e
183.
21.No compasso 182 está escrito ij no lugar das palavras ma in udir Filli
mia.
22.No original não aparece a barra de compasso entre os compassos 186 e
188.
23.No original não aparece a barra de compasso entre os compassos 198 e
199; 199 e 200; porém está presente entre o primeiro e o segundo lá do
compasso 199.
24.No original não aparece a barra de compasso entre os compassos 201 e
204.
Hor Che Apollo
Barbara Strozzi
(Veneza, 1619-1977)
5
9
289
13
17
21
25
290
28
31
35
39
42
291
45
48
51
54
292
57
60
64
67
293
70
73
77
81
294
85
88
91
94
295
97
100
103
107
296
111
114
117
120
297
124
127
130
134
298
137
140
143
146
149
299
152
155
158
161
164
300
166
169
173
176
301
179
182
185
189
192
302
196
200
204
303
207
210
304
213
216
305
219
222
306
225
307
308
Lagrime mie
Barbara Strozzi
(1619-1677)
309
310
311
312
313
314
315
316
L’eraclito amoroso
Barbara Strozzi
(1619-1677)
317
318
319
320
321
322
323
324
Lamento d’Arianna del Cavalier Marino
Pellegrino Possenti
(16??-)
325
326
327
328
329
330
331
332
333
334
335
336
337
338
339
Notas de edição:
No original, a divisão de compassos é bastante inconsistente, com
barras de compasso presentes de maneira a agrupar até cinco
compassos de quatro tempos. Julguei apropriado corrigir esta divisão,
unificando-a em compassos quaternários, com uma única exceção nos
compassos 147 e 149.
340
I sospiri d’Ergasto
Pelegrino Possenti
(Veneza, 1623)
341
342
343
344
345
346
347
348
349
350
351
352
Lamento de Alcina
Francesca Caccini
(Florença, 1625)
353
354
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