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Universidade Estadual de Campinas
Instituto de Artes
São Jorge: espiritualidade e arte na
amizade de Schoenberg e Kandinsky
Daniele Gugelmo Dias
Campinas
2006
i
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Universidade Estadual de Campinas
Institutos de Artes
Doutorado em Música
São Jorge: espiritualidade e arte na
amizade de
Schoenberg e Kandinsky
Daniele Gugelmo Dias
Tese apresentada ao Curso de Doutorado
em Música do Instituto de Artes da
Unicamp como requisito parcial para a
obtenção do grau de Doutor em Música
sob a orientação do Prof. Dr. Silvio Ferraz
de Mello Filho.
Campinas
2006
iii
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FICHA CATALOGRÁFICA ELABORADA PELA
BIBLIOTECA DO INSTITUTO DE ARTES DA UNICAMP
Dias, Daniele Gugelmo.
D543s São Jorge: espiritualidade e arte na amizade de Schoenberg e
Kandinsky. / Daniele Gugelmo Dias. – Campinas, SP: [s.n.],
2006.
Orientador: Silvio Ferraz de Mello Filho.
Tese(doutorado) - Universidade Estadual de Campinas,
Instituto de Artes.
1. Música(composição). 2. Espiritualismo. 3. Atonalidade
(música). 4. Pós-modernismo. 5. Improvisação(música).
I. Mello Filho, Silvio Ferraz de. II. Universidade Estadual de
Campinas.Instituto de Artes. III. Título.
(lf/ia)
Título em inglês: “San George: spirituality and art in the friendship between
Schoenberg
and Kandinsky”
Palavras-chave em inglês (Keywords): Music(composition) – Spiritualism
– Atonalism
(music) – Post-modernism – Improvisation(music)
Titulação: Doutor em Música
Banca examinadora:
Prof. Dr. Silvio Ferraz de Mello Filho
Prof Dr. Claudiney Rodrigues Carrasco
Prof Dr Emerson Luiz De Biaggi
Prof. Dr. Marcos Branda Lacerda
Prof. Dr. Fernando Henrique de Oliveira Iazzetta
Data da defesa: 31 de Outubro de 2006
Programa de Pós-Graduação: Música
iv
v
Dedicatória
Para
Guilherme, Laura e Paulo
Com muito amor.
vii
Agradecimentos
Escola de Música da Universidade Federal do Rio Grande do Norte
Capes pelo apoio institucional e financeiro.
Bibliotecárias de Sesto San Giovanni – MI pela gentileza do atendimento.
Bibliotecários da Louis-Nucera – Nice, pelo profissionalismo com que me ajudaram
nas pesquisas.
Sra. Catherine Jourdin da Biblioteca do Conservatório de Nice pela ajuda constante.
Eike Fess da Fundação Schoenberg (ASC) de Viena pela acessoria na pesquisa.
Enrica e Celestino Soddu pelo acompanhamento de meu trabalho inicial.
Frédéric Dumas e Symblema pelo o convite franco ao trabalho musical.
John Boudler e PIAP pelo toque especial que deixaram aqui.
Sra. Marie Maerten pelas aulas e dedicação.
Mauricio Lozano pelo trabalho de editoração das peças de piano.
Presto Editorações, na pessoa de Thiago Rocha e Marcos Pantaleone, pelo trabalho
de editoração musical das peças de percussão.
Robin Meier pela ajuda amiga e fácil de sempre.
François Paris e toda a equipe do CIRM pela acolhida em todos esses anos.
Michel Pascal pelo ensino da eletroacústica, pela orientação nos estúdios do CIRM,
e o devotamento em suas aulas e discussões.
Queridos amigos,
Alexandre Pimenta, Anne Françoise, Berenice, Ophelie e Alain Guerini, Armando
Boito Jr, Elisabeth e Francisco Figueiredo, Conceição e José Antônio Spinelli,
Cláudia e Marcos Lopes, João Vargas, Lisete Giovanelli, Luis Maia da Silva, Maria
Emília e Roger Leguidard, Marie-Neully Laurenty, Paola Nowominski, Alain
Morelle, Tatiana e Luis Renato Vedovato, Sigisfredo Luis Brenelli, Tarcísio Gomes
Filho, pela amizade e pelo papel de coadjuvantes, registro aqui meu agradecimento.
Silvio Ferraz agradeço a lucidez e a orientação fundamental neste doutorado.
Guilherme e Maria Thereza pela vibração positiva.
Meus pais, Carlos e Neuza pela participação.
Alessandro e Elaine pela simpatia e receptividade de sempre.
Meu tio João pela constante música de fundo para toda a família.
Minhas tias Luiza e Zélia pela incansável e amorosa dedicação e presença.
Schoenberg, Kandinsky, Allan Kardec, Victor Hugo, Herculano Pires, Biaggio
Pincelli e aos tantos amigos anônimos da espiritualidade, sem os quais este trabalho
não teria a mesma força.
ix
Epígrafe
« Devemos dar-nos conta que estamos circundados de enigmas. E devemos ter a coragem
de afrontá-los sem querermos em vão ter a solução. É importante que nossa capacidade
criativa reproduza enigmas na base dos quais circundamos. A fim de que nossa alma tente
não resolvê-los, mas decifrá-los. O que obtemos deste modo, não deve ser a solução, mas
um método de cifragem ou decifragem. Método sem valor intrínseco, que oferece material
para criar novos enigmas. Ele é, de fato, o reflexo do inatingível. Um reflexo imperfeito, ou
seja, humano. Mas, se através dele aprendemos a tornar possível o inatingível, então nos
aproximamos de Deus, porque neste momento não pedimos mais para entender. Não o
medimos mais com o nosso intelecto, não o criticamos, não o negamos, pelo fato de não o
podermos transformar no inadequado, que é a certeza de nós humanos. »
Schoenberg
1
1
Carta de 2/8/1912 dirigida a Kandinsky in : Hahl-Koch : 2002, p.58
xi
Resumo
Este trabalho insere-se na área de « Processos Criativos » do Doutorado em Música
do Instituto de Artes da Unicamp. Ele compreende dois volumes. O primeiro dedica-se à
descrição e análise dos resultados da pesquisa. O segundo apresenta seu experimento
prático na forma de 5 composições musicais.
Na descrição de nossas experiências musicais começamos por contextualizá-las em
nossa interpretação da história musical do século XX. A seguir, organizamos a reflexão
sobre nossa criação em dois grandes arcos, que denominamos de força motora e força
diretriz. Como principal força motora, apresentamos a amizade e a espiritualidade de
Schoenberg e Kandinsky. Como principais forças diretrizes, destacamos os seguintes
elementos musicais: atonalismo, aforisma, acaso/improvisação, colagem/citação.
O experimento prático apresenta-se na forma de partituras e gravações. São elas :
1) Música para Schoenberg - piano solo, 2) Quadros de uma Improvisação : Ponto, Linha,
Superfície - grupo de percussão e suporte eletrônico, 3) São Jorge - grupo de percussão,
4) Poesia sem palavras - piano solo e 5) Pequenos Mundos - suporte eletrônico.
Composição Musical – Espiritualismo - Pós-Modernismo – Atonalismo – Improvisação -
Colagem
xiii
Abstract
This thesis belongs to the research field “Creative Process” of the Music
Department of the Art Institute of the State University of Campinas-Unicamp. It is
organized in two volumes: the first volume is dedicated to the description and analysis of
the research results; the second one presents the practical experiment in the form of 5 music
compositions.
We begin the description of our music experiences contextualizing them in our
interpretation of the history of the music of the XX century. Then, we organize the
reflections on our creation at two basic bows, named motor strength and guiding strength.
As main motor strength we present the friendship and the spirituality of Schoenberg and
Kandinsky. As main guiding strength we highlight the following music elements:
atonalism, aphorism, chance/improvisation, quotation/citation.
The practical experiment is presented in the form of sheet music and recorded
music:
1) Music for Schoenberg – solo piano; 2) Pictures of an improvisation: Point, Line, Surface
– percussion group and electronic support; 3) São Jorge - percussion group; 4) Poem
without words - solo piano; and 5) Small Worlds - electronic support.
Musical Composition – Spiritualism - Post-Modernism – Atonalism – Improvisation -
Quotation
xv
Lista de Imagens
Capítulo 2
Tabela 1 – Cronologia comparada entre Schoenberg e Kandinsky p.67
Capítulo 3
Exemplo 1Noite Transfigurada – Schoenberg, compassos 1a 5. p.111
Capítulo 4
Imagem 1 – Visão panorâmica da parte eletrônica de Quadros de uma improvisação : Ponto Linha,
Superfície p.139
Tabela 1 – Forma envolvendo vários elementos em Quadros de uma improvisação : Ponto, linha,
Superfície p.155
Tabela 2 – Relação das expressões, metáforas e seus significados na música São Jorge
p.156
Capítulo 5
Imagem 1- Pequenos Mundos I kandinsky p.174
Imagem 2 - Pequenos Mundos II Kandinsky p.174
Imagem 3Pequenos Mundos III Kandinsky p.175
Imagem 4Pequenos Mundos IV Kandinsky p.175
Imagem 5Pequenos Mundos V Kandinsky p.176
Imagem 6Pequenos Mundos VI kandinsky p.176
Imagem 7Pequenos Mundos VII Kandinsky p.177
Imagem 8 Pequenos Mundos VIII Kandinsky p.177
Imagem 9 Pequenos Mundos IX Kandinsky p.178
Imagem 10 Pequenos Mundos X Kandinsky p.178
Imagem 11 Pequenos Mundos XI Kandinsky p.179
Imagem 12 Pequenos Mundos XII Kandinsky p.179
Figura 1 – Sintetizador Modular Oberheim, versão 8 vozes p.182
xvii
Sumário
« São Jorge : espiritualidade e arte na amizade de Schoenberg e Kandinsky »
Dedicatória viii
Agradecimentos ix
Resumo xi
Abstract xiii
Epígrafe xv
Lista de imagens xvii
Sumário xix
Introdução p.1-16
Capítulo 1 - “Schoenberg e o panorama musical do século XX”
Parte 1
1.Introdução p.21
2.Prática Comum p.24
3.Dissolução da Prática Comum p.26
4.A Segunda Escola de Viena p.28
5.Dodecafonismo p.33
6. Serialismo Integral p.36
7.Música Aberta p.38
8.Minimalismo p.41
9.Música Espectral p.43
10.Sistemas Individuais p.46
Parte 2 :
A tecnologia eletrônica
1.Introdução p.49
2.Música Concreta p.50
3.Música Eletrônica p.51
4. Música Eletroacústica p.52
5.Música Acusmática p.53
xix
6.Música Mista p.54
7. « Live » e Tratamento em Tempo Real p.54
8. Música feita por Computador p.55
9.Particularidades p.56
10. Observação Final p.57
Capítulo 2 : « Encontro entre Schoenberg e Kandinsky »
Parte 1 – Gênese
1.Kandinsky p.59
2.A amizade p.63
3.Antecedentes p.63
4.Correspondências p.67
5.A espiritualidade p.74
5.1. Schoenberg p.74
5.2.Kandinsky p.80
Parte 2 – Conceitos
1.Idéia p.86
2.Necessidade Interior p.90
3.Revolução/Evolução p.95
Parte 3 – Concepção e elaboração musical
p.91
Capítulo 3 – « Atonalismo »
Parte 1 – Altura
1.O conceito Atonal p.103
2.A música atonal p.106
3.Noite Transfigurada, op.4 p.109
4.Música para Schoenberg p.114
Parte 2 – Duração
1.Seis peças para piano, opus 19 p.116
2.Poesia sem palavras p.122
2.1.Xilogravura e expressionismo p.123
2.2.Aforisma e expressão na música p.126
xx
Capítulo 4 – « Acaso/Improvisação »
1.A Improvisação p.133
2.Acaso no século XX p.137
2.1. Cage p.138
3.O primeiro acaso na Europa : Stockhausen e Boulez p.143
3.1.Xenakis p.146
3.2.Boucourecheliev p.148
4.Acaso e intuição p.148
5.As composições p.150
5.1. Quadros de uma Improvisação p.150
Ponto p.152
Linha p.153
Superfície p.154
5.2. « São Jorge » p.157
Capítulo 5 – « Colagem/Citação »
1.Definição : Colagem e citação p.163
2.Pós-Modernismo p.165
3. Pós-Modernismo e Música p.168
4.Pequenos Mundos p.172
5.As composições p.180
6.O Sintetizador Oberheim p.182
7. Glenn Gould p.184
Considerações Finais p.189
Bibliografia p.192
Anexo p.207
Correspondências
Lista de Concertos
xxi
Composições da Tese
Música para Schoenberg
Poesia sem palavras
Quadros de uma Improvisação : Ponto, Linha, Superfície
São Jorge
CD audio :
1.Pequenos Mundos, 3m35s
2.Quadros de uma Improvisação (eletrônica), 10m
3.Quadros de uma Improvisação (versão concerto), 10m
xxii
Introdução
1
“São Jorge: espiritualidade e arte
na amizade entre Schoenberg e Kandinsky”
Introdução
A origem desta tese está na forma pela qual percebo minha atividade composicional.
Esta percepção é um processo onde criação e reflexão estão indissociáveis. Assim, os
elementos como: inspiração, motivos ou materiais, técnicas bem como a maneira como são
tratados, constituem o corpo deste trabalho inserido em Processo Criativo no Departamento
de Música do Instituto de Artes da Unicamp.
A primeira vez que consegui ter um trabalho com conseqüências mais maduras
sobre o assunto com esta ótica foi em minha Graduação em Composição, cuja monografia
de final de curso foi “Cartas do Tarot – jogos polifônicos”, um conjunto de 22 peças para
piano solo que se desenvolveram sobre o contraponto atonal em 2 vozes até 6 vozes.
Em um segundo momento, em meu Mestrado em Artes, na área de Processo
Criativo, consegui aprofundar o assunto quando então compus a peça “Os Sete Dias da
Criação” para grande orquestra sinfônica. Neste momento tentei responder a algumas
questões como: qual é meu estilo? Onde encontro a raiz da musica que componho? Fazendo
um panorama da História da Música focalizei a Segunda Escola de Viena e cheguei em
Schoenberg.
Ao ingressar no Doutorado em Música, apresentei um projeto cujo titulo era: “O
Dodecafonismo de Schoenberg e a Segunda Escola de Viena”. Pretendia aí fazer um estudo
de musicologia sistêmica buscando as principais obras para a compreensão do movimento
atonal. Uma radiografia da Escola de Viena. Logo no início da pesquisa, um livro
encontrado
1
vem mudar a direção de meus estudos. O encontro com Kandinsky aponta para
um paralelo extra-musical com Schoenberg. A amizade e espiritualidade deles transforma-
1
Hahl-Koch, J. Arnold Schönberg, Wassily Kandinsky : Musica e Pittura. Trad Mirella
Torre. Milano : SE Editora, 2002.
2
se em um programa para meu doutorado muito coerente com minha trajetória artística e
acadêmica até o momento, ou seja, o universo espiritual como programa recorrente.
A nossa tese divide-se em dois tomos. No primeiro, temos a pesquisa “teórica”, no
segundo, “os experimentos práticos”. Apresentaremos aqui, um breve resumo do conteúdo
do primeiro tomo. Nosso trabalho desenvolveu-se em torno de uma idéia central: a presença
de Schoenberg no panorama musical do século XX é a raiz que nos permite compreender a
música contemporânea. Esta raiz não exclui outros fatores nem outros compositores, em
nossa opinião, secundários e coadjuvantes respectivamente. É preciso alertar que, no
entanto, esta idéia central não é uma tese. Não procuramos realizar um trabalho de pesquisa
que buscasse a sua “comprovação” ou sustentação. Mesmo que tenhamos feito leituras
neste sentido, este tema foi utilizado como pano de fundo de nosso trabalho. Em que
consiste nossa pesquisa principal, feita a partir desta premissa? Ela consiste na reflexão
sobre alguns temas e manipulação de alguns utensílios composicionais. Estes utensílios,
que possuem seu caráter abstrato, teórico, são, acima de tudo, instrumentos de criação
musical que surgiram a partir de nosso interesse por Schoenberg. Entre Schoenberg e estes
“instrumentos de criação”, nos deparamos com alguns temas, que foram emergindo pouco a
pouco de nosso trabalho. Os mais importantes são 1) o processo de desconstrução do
tonalismo, 2) a proposta do dodecafonismo, 3) a amizade entre Schoenberg e o artista
plástico russo Vassily Kandinsky, 4) a postura religiosa de ambos, 5) os conceitos de Idéia
de Schoenberg e de 6) Necessidade Interior de Kandinsky e 7) a projeção de Schoenberg na
música contemporânea, particularmente, na música eletroacústica.
Quando afirmamos que estes temas foram surgindo paulatinamente, queremos
afirmar que eles são fruto de um percurso de estudo sobre a idéia inicial. Não foram
objetivo da tese. São, agora, parte de seu resultado. Este não planejamento prévio de nosso
ponto de chegada pode sugerir um forte subjetivismo de nosso trabalho, todavia,
acreditamos que nestas surpresas residem o caráter “científico” da pesquisa. Seria ela
artificial se fosse totalmente controlada pelo pesquisador. Pôde ela nos surpreender devido
à autenticidade do objeto pesquisado. Ele possuía vida e reagiu à nossa manipulação. Entre
seus movimentos inesperados, destaca-se a amizade entre nosso tema principal, Arnold
Schoenberg, e Wassily Kandinsky. Face até então oculta de nossas preocupações, a relação
3
entre o compositor-pintor e o pintor-musicista acabou por ocupar a cena de nosso trabalho
como primeiro “ator coadjuvante”. Este ator teve um papel chave no desenvolvimento de
nosso interesse pelas concepções de mundo de Schoenberg, uma vez que revelou uma forte
característica de sua personalidade: a sua espiritualidade. Diante desta descoberta, novidade
em relação à nossa motivação inicial, dedicada ao seu papel teórico-musical, voltamo-nos
ao seu caráter psicológico. E o “Schoenberg atonal” surgiu-nos como o “Schoenberg
crente”, amigo do “espiritualista Kandinsky”.
Esta cadeia chega ao ponto ápice de nossa pesquisa devido à conexão que
estabeleceu com nossas próprias convicções pessoais. No elo final entre objeto de pesquisa
e pesquisador, foi decisiva a empatia entre as nossas concepções de mundo, muito além do
que nossas concepções sobre a arte e a música em particular. Este caminho de pesquisa,
nada retilíneo, não poderia ser finalizado por experimentos musicais que representassem
idéias composicionais aprisionadas por modelos estanques. O ato composicional pode
utilizar um modelo, mas não se resume nele. Quando descrevemos este “experimento
científico”, que é a criação artístico-musical, nos apegamos a modelos enquanto um
“idioma acadêmico”, única maneira capaz de traduzir a complexidade de eventos presente
no processo de criação para seus observadores, para nossos pares universitários. Sem
modelos, sem este “idioma”, não seríamos capazes de nos comunicar. São estes modelos,
portanto, meios de expressão da pesquisa, instrumentos teóricos indispensáveis. Todavia,
não são a própria pesquisa, não podem ocupar o lugar central da atividade do pesquisador.
Como denominá-los? Seriam eles nossas “idéias composicionais”? Idéias que teriam
origem em teóricos da música, compositores ou não?
Devido ao caráter prático de uma tese de doutorado em composição, pois ela
apresenta um resultado concreto da pesquisa sob a forma de criações musicais originais,
acreditamos que um bom nome para nossas ferramentas de trabalho possa ser o de “forças
criativas”, sendo ela divididas, sinteticamente, entre diretivas e motoras. Neste termos,
empobrecedores, mas “facilitadores”, como advertimos acima, os temas que surgiram de
nossa pesquisa sobre Schoenberg, envolvendo o 1) fim da Prática Comum, 2) o
dodecafonismo, 3) a amizade entre Schoenberg e Kandinsky, 4) a espiritualidade de ambos,
5) os conceitos de Idéia de Schoenberg e de 6) Necessidade Interior de Kandinsky e 7) a o
4
inventário da herança de Schoenberg na música contemporânea foram, para nós, as forças
motoras de nossos experimentos composicionais. Enquanto energias propulsoras, estiveram
presentes no artesanato musical ora articuladas, ora individualizadas. Coordenando-as,
dando sentido à sua presença, focalizando seu rumo, nos utilizamos das forças diretivas.
Foram elas 1) o tonalismo livre, 2) o aforisma, 3) o acaso-improvisação e 4) a colagem-
citação.
Nas 5 músicas apresentadas nesta tese, forças motrizes e diretrizes não se
relacionam de modo repetitivo. Por vezes, uma idéia motriz é apenas um sentimento, uma
intuição. Todavia, ela pode ser bem mais presente que a idéia diretiva, mesmo que esta seja
muito mais teórica e tenha sido, por este motivo, objeto de maior leitura e reflexão. Noutros
casos, a força motriz é quase insignificante, tendo a força diretiva desempenhado quase as
duas funções no experimento realizado. Cada caso será analisado individualmente no corpo
da tese. Entretanto, se as músicas foram o resultado de todo nosso trabalho, elas não
ocuparam os esforços de nosso texto. Como experimento, encontram-se no segundo tomo,
pois comunicam-se com o leitor através de sua linguagem específica. Neste primeiro tomo,
nosso texto se ocupará do que lhe é próprio, da abstração de tudo que é concreto e prático
do segundo tomo.
Em sua descrição, dedicamos um Primeiro Capítulo a Schoenberg dentro do
panorama da música no século XX. O Segundo Capítulo é reservado à sua amizade com
Kandinsky, destacando-se os conceitos de Idéia e Necessidade Interior e sua respectiva
espiritualidade. No Terceiro Capítulo, retomamos o tema do atonalismo, apresentado
genericamente no Primeiro capítulo, em função de sua utilização como força diretiva ao
lado do “aforisma” em nossos experimentos Música para Schoenberg e Poesia sem
palavras. No Quarto Capítulo, apresentamos as forças diretivas “acaso-improvisação”,
presentes nos experimentos Quadros de uma improvisação e São Jorge. Mostra-se presente
neste capítulo a utilização do tema da religiosidade de Kandinsky e seu apego à figura de
São Jorge como força motora de nossa criação. No Quinto e último Capítulo, tratamos das
forças diretrizes “colagem-citação, presentes no experimento Pequenos Mundos. Nesta
criação, a força motora foi uma questão. Poderíamos avaliar concretamente a herança de
Schoenberg na música de nossos dias, em especial, na música eletroacústica? Movidos por
5
esta espécie de desafio, nossa reflexão sobre Pequenos Mundos finaliza nosso trabalho. Ele
articula, de maneira complexa, as presenças de Schoenberg, Kandinsky e a nossa
existência, enquanto pesquisadores contemporâneos.
Devemos fazer alguns esclarecimentos sobre a divisão de nossos capítulos e seu
conteúdo. A utilização aqui dos termos “forças”, diretivas e motoras, é apenas uma
indicação possível do modo pelo qual operamos a união entre o ponto inicial de nosso
trabalho, a sua raiz, os temas emergentes que dele surgiram e alguns utensílios de nossos
experimentos. Nosso objetivo não foi a análise exaustiva desta raiz e de suas ramificações,
onde se procuraria definir onde termina o tema inicial, onde começa a força diretiva e
motriz. Estes termos funcionam, somente se compreendidos como pontos cardeais de nosso
percurso. Em nosso texto, as músicas, apresentadas no segundo tomo, são aqui tomadas
igualmente como referências. Sequer são objeto de capítulos específicos, apesar da
coincidência entre seu número, 5 capítulos, 5 criações. Pensando as etapas da pesquisa
como caminho percorrido, o primeiro capítulo dedica-se à apresentação de nosso grande
parti-pris e os demais como as relações entre temas e utensílios presentes na trama da
criação musical.
Nosso primeiro capítulo é um panorama da música no século XX. Neste panorama,
a figura de maior relevo é Schoenberg. São analisadas 8 “regiões”: 1) Prática Comum, 2)
Escola de Viena, 3) Serialismo Integral, 4) Música Aberta, 5) Minimalismo, 6) Música
Espectral, 7) Sistemas Individuais e 8) Música Eletrônica. Estas regiões foram vistas em
função de uma questão simples. Nossa intenção era de estabelecer um grande período antes
de Schoenberg, o momento de ruptura realizado através de sua obra e as variadas
repercussões que a sua presença possuíram e possuem até hoje. Há uma divisão de espaço
desigual entre estas regiões, sendo umas mais largas, outras mais profundas. Elas não são
uniformes por duas razões. Como o nosso argumento direciona-se para Schoenberg, o
período histórico anterior a ele é resumido. E, no período posterior, se abrimos nossa visão
para uma gama diversa de diferentes tipos de música, é devido à possibilidade da presença
de Schoenberg. Todavia, estas regiões posteriores são desiguais. Primeiramente, porque
elas foram examinadas em função do que poderíamos chamar “índice Shoenberg”. Em
6
segundo, porque nosso conhecimento sobre um tão vasto terreno possui limites, fronteiras
delimitadas pelo nosso interesse e pela nossa capacidade de pesquisa.
Pode o Tonalismo Clássico (Prática Comum) ser resumido a um pequeno conjunto
de características? Possuem estas características um ponto central, um alicerce teórico
musical? Por que Schoenberg é quem sacramenta o fim do Tonalismo Clássico? Qual a
relação entre Schoenberg e a quase infinita variedade de sistemas musicais individuais
surgidos depois da II Guerra Mundial? Qual a relação entre Schoenberg e a Música
Concreta? Estas perguntas sintetizam as questões que nos colocamos nesta pesquisa. Ao
longo do Capítulo I, tentaremos explorar as seguintes idéias. 1) O período da Prática
Comum, mesmo sendo gigantescamente amplo, possui caraterísticas limitadas, passíveis de
serem visualisadas num horizonte mais ou menos preciso. Neste horizonte, há um elemento
central, um alicerce. Este alicerce é a definição da altura. Imaginado como uma fortaleza
que é atacada por um exército, a Prática Comum é tomada definitivamente quando um
golpe lhe cinde o alicerce. Schoenberg participou de um movimento de contestação. Não
poderia ter dado sua contribuição não fossem todos que lhe precederam, nem sem os que
estavam ao seu lado. Todavia, entre os mais variados compositores engajados nesta batalha,
com as mais diversas armas, com os mais diversos métodos, apenas um deu o que
acreditamos ser o golpe final.
Schoenberg tinha uma proposta de música, o dodecafonismo. Como proposta de
uma nova modalidade de música, o dodecafonismo apresentava-se como um sistema, talvez
tão rígido como o Tonalismo Clássico, talvez até mais arbitrário. Como podemos acreditar
que a extrema amplitude de músicas surgidas posterior a Schoenberg pode ser herança de
sua contribuição? Para nós, o dodecafonismo de Schoenberg foi, independente da intenção
de seu criador, muito mais uma arma contra o tonalismo do que um conjunto de regras
normatizador de uma nova ordem musical. O dodecafonismo foi libertador justamente
porque mostrou-se, entre todos os ataques sofridos pelo Tonalismo, como o mais fechada. E
foi na sua coerência e radicalidade que se mostrou a sua força. Houve outros compositores
que atacaram a Prática Comum de uma forma muito mais interessante e complexa, talvez
com muito mais talento e fortuna no plano estético. Ao seu lado, Schoenberg pode ser
considerado exageradamente simples. Todavia, foi na simplicidade das regras para sua
7
música de doze tons que ele abordou frontalmente o problema das alturas no Tonalismo.
Neste ponto, o dodecafonismo deve ser encarado mais como atitude cultural de contestação
do que prescrição teórico-musical. Ao pregar a nova organização das alturas entre as doze
notas, como regra, Schoenberg não criou uma nova Prática Comum, mas gerou,
indiretamente, uma nova postura diante das normas musicais.
Se a música perdia o seu maior elemento de coerção artística, nada mais seria capaz
de regular arbitrariamente a liberdade composicional. Desta forma, se Schoenberg pode ser
“condecorado” pela sua atitude teórica, pois derrubou séculos de cultura tonal, ao final
desta batalha, nosso combatente não se torna um novo ditador do cenário criado por ele
próprio. Neste cenário, foi sua contestação radical que é vista por nós como herança, não o
dodecafonismo. E aqui indicamos o caminho de nossa perspectiva, que nos permitirá
responder uma de nossas perguntas. Este caminho, que se apropria da Música Concreta é
apenas um exemplo. Em nosso Capítulo I, não o repetimos explicitamente, como nesta
Introdução. Todavia, ele é a base implícita, que por vezes se manifesta pontualmente, de
nossa abordagem dos sistemas musicais posteriores a Schoenberg. Assim, se aqui citamos
Schaeffer, o mesmo paralelo poderia ser criado com Cage, ou outro compositor. Então
vejamos, qual a relação entre Schoenberg e Schaeffer, entre outros tantos que povoaram a
criação musical do século XX? Não teria sido a descoberta do som concreto de Schaeffer
muito mais revolucionária que o dodecafonismo de Schoenberg? Não teria a música
concreta verdadeiramente aberto um novo continente para a criação musical? Para
respondermos esta pergunta, não comparamos o resultado final de suas criações,
dodecafonismo e música concreta. Comparamos as suas atitudes. Ambas podem ser
consideradas da mesma envergadura no terreno da inovação. Todavia, acreditamos que se
Schaeffer pôde propor “qualquer som” como música, foi porque, antes dele, Schoenberg
propôs qualquer nota como centro da música. Num exercício de imaginação, projetamos a
figura de Schaeffer se questionando: se a Prática Comum não aprisiona mais as alturas, o
que pode hoje aprisionar o som? Diante dele, o gravador dava-lhe a resposta que
Schoenberg encontrou em sua própria “aparelhagem teórica”.
2
2
Uma elucidativa entrevista de Schaeffer feita em 1990 por Bernadete Zagonel, mas publicada pela
Revista Opus apenas em 2005 nos apresenta uma testemunho significativo sobre este novo
8
Nosso Segundo Capítulo é dedicado ao que poderíamos considerar o tema mais
importante surgido de nossa pesquisa inicial sobre Schoenberg. Este capítulo aborda alguns
aspectos da amizade entre o compositor e o pintor Wassily Kandinsky. Apresentaremos
uma breve nota biográfica de ambos, alguns eventos que marcaram seu encontro.
Trataremos de sua correspondência para, em seguida, movidos por algumas idéias presentes
em sua troca de cartas, procurá-las em alguns de seus escritos. O fato central desta amizade
é a surpresa recíproca que a obra de um causa noutro. Tanto o tonalismo livre de
Schoenberg provoca admiração e respeito em Kandinsky, quanto o abstracionismo de
Kandinsky agrada Schoenberg, fazendo-o identificar na inovação plástica do pintor a sua
inovação musical. Foi através desta correspondência que despertamos para uma
possibilidade de pesquisa, aqui não desenvolvida, mas que merece ser mencionada. Teria
desempenhado Kandinsky na história da pintura o papel desempenhado por Schoenberg na
música? Esta interrogação foi um elemento adicional em nossa curiosidade por Kandinsky.
Todavia, ela acabou por se tornar secundária tanto pelo volume de informações que
implicava a ser desenvolvido em nosso trabalho, como por um outro elemento descoberto
no universo de Kandinsky.
Além de suas respectivas importâncias, o que descobrimos em Kandinsky e
terminou por nos sugerir uma releitura de Schoenberg, foi a influência que as idéias
espirituais tinham sobre ambos. Foi no conhecimento da concepção de arte de Kandinsky e
sua relação com idéias de fundo religioso que passamos a sentir a necessidade de reler
Schoenberg, não mais como apenas o grande teórico musical, mas também como o homem
de fé. Como conciliamos estas duas faces de nosso objeto de pesquisa? A face de
Schoenberg do dodecafonismo com a face de Schoenberg religioso. Movidos pela premissa
de que uma visão não unilateral da obra de Schoenberg poderia enriquecer nosso repertório
de forças criativas, diretivas ou motoras, procuramos focalizar a sua concepção de mundo,
continente: “... eu não gosto muito do termo “inventar uma musica”, apesar de que, com efeito, os
contemporâneos tomaram a coisa como uma invenção. Eu sustentei, durante muitos anos de fervor e
de experimentação, que havia aí uma música possível, em todo caso, um continente sonoro,
musical, a ser reconhecido. Então não posso negar este caminho que segui durante muito tempo,
mas o que é mais incrível é que este caminho seguido com assiduidade, com muita energia, pois eu
tenho muita energia e sou “cabeçudo”, não levava a nada. Sou então um dos contemporâneos que
ousa dizer: trabalhei muito, mas isto não levou a lugar nenhum.” (Zagonel: 2005, p. 288)
9
particularmente a sua concepção espiritual. O que definimos enquanto concepção
espiritual? Tudo o que de alguma maneira revela uma crença em Deus, na alma, na vida
desta alma após a morte do corpo físico. Chamamos este conjunto de “concepção
espiritual” porque, às vezes, ele não se encontra identificado com uma religião em
particular. É também espiritual porque se diferencia do material, do corpo físico. Os
elementos que indicamos acima e que formam uma concepção espiritual não apresentam-se
inseparáveis. Pode-se ter fé em Deus, sem acreditar na alma. Pode-se acreditar na vida após
a morte sem se acreditar em Deus. O que nos interessa no conjunto de elementos que
revelam sobretudo a fé de Schoenberg e Kandinsky é a relação desta com suas respectivas
criações. Não exploraremos aqui uma definição do tipo de religião que possuem, da
proximidade ou distanciamento que apresentam das crenças conhecidas. O que nos
interessa saber é como estas convicções, de caráter subjetivo e pessoal, nos ajudam a
entender suas concepções de arte e a sua própria obra artística.
Na relação entre suas concepções espiritual e artística, dois termos se destacam. São
eles “Idéia” em Schoenberg e “Necessidade Interior” em Kandinsky. Enquanto o primeiro é
bem mais amplo e, por decorrência, bem mais difícil de ser definido, o segundo é mais
específico, possuindo uma relação direta entre o modo de entender arte e espiritualismo.
Kandinsky, ao escrever uma obra dedicada a esta relação, procura definir o que entende
como Necessidade Interior, enquanto Schoenberg, apesar de muito ter escrito, não dedicou
uma monografia ao assunto. Não temos uma conclusão suficientemente coerente da forma
como estes dois termos, Idéia e Necessidade Interior, definem arte e espiritualidade nos
dois autores mas apenas algumas indicações de como podem ser compreendidos. Uma
delas é de que a Necessidade Interior de Kandinsky pode ser definida, em termos
schoenberguianos, como sendo a sua Idéia criativa. Por outro lado, seria a Necessidade
Interior de Kandinsky, a “Idéia Central” da criação artística de Schoenberg? Por vários
motivos, acreditamos que não. Como já dissemos, o termo Idéia é muito amplo, e mesmo
que houvesse uma Idéia Central em Schoenberg, esta não caberia na complexa e específica
definição de Necessidade Interior de Kandinsky. Ademais, esta identificação acabaria com
a originalidade dos dois termos, tornando-os um só.
10
Se podemos estabelecer uma relação entre a Necessidade Interior de Kandinsky e
uma Idéia central em Schoenberg, ela ocorre através de uma das características presentes
em Kandinsky: sua espiritualidade. Enquanto a Necessidade Interior seria um dos impulsos
criativos de Schoenberg, sua crença em Deus pode, ao nosso ver, ser considerada como o
sentido mais forte de sua Idéia criativa. Aqui, devemos fazer uma diferenciação.
Schoenberg acreditava que cada compositor possuía a sua Idéia. Neste sentido, ele dá uma
definição formal do que ela seja. A nossa questão aqui é saber qual o conteúdo desta forma
no próprio autor do conceito. Não interpretamos, portanto, o conceito geral de Idéia em
Schoemberg, mas tentamos indicar qual o conteúdo que este conceito possui para o autor.
Outras impressões serão apresentadas em nosso capítulo. Ele é encerrado com uma
síntese das composições realizadas. Nesta parte final, fazemos uma introdução às nossa
peças, buscando transformar as idéias trabalhadas no decorrer dos Capítulos I e II em
utensílios musicais. Temas do I Capítulo como Atonalismo, Acaso, Improvisação, Colagem
e Música Eletrônica, entre outros, aparecem ao lado de temas deste II Capítulo, como
Necessidade Interior, dando origem à criação musical. A aproximação entre este conjunto
de idéias será desenvolvida e aprofundada no decorrer dos capítulos III, IV e V.
No Capítulo III, retomamos o tema do atonalismo apresentado no Capítulo I. Se
inicialmente, o abordamos na perspectiva do século XX, aqui o analisaremos mais
detidamente, destacando seu surgimento no interior da obra de Schoenberg. Focalizada uma
obra-chave para a compreensão do surgimento do atonalismo schoenberguiano (Noite
Transfigurada, op.4), apresentaremos nosso primeiro experimento prático, denominado
Música para Schoenberg. A relação entre atonalismo e nosso experimento foi mediada pelo
conceito de altura. Altura, neste caso, representa tanto um elemento musical concreto, como
uma menção direta a Schoenberg, podendo ser considerada como força motora de nossa
peça. A força motora é a importância que atribuímos a Schoenberg no cenário da música
contemporânea. Importância derivada de nossa pesquisa, mas também de admiração
pessoal. Este encontro entre análise e afeto resulta num experimento em parte puramente
reflexivo, intelectual, em parte emotivo. Seu título resume esta síntese, pois combina nossas
razões numa homenagem a Schoenberg. Todavia, se dedicamos nosso “atividade em
laboratório” a Schoenberg, a matéria prima de nosso experimento foi retirada de
11
Schoenberg. O autor e sua Noite desfigurada foram ao mesmo tempo, razão de inspiração e
elemento de construção musical. E aqui, a força diretriz de nossa peça foi a Colagem.
A segunda parte do Capítulo III é dedicada a outra relação que estabelecemos entre
Schoenberg e nosso experimento. A partir de Seis peças para piano, op. 19, nos detemos no
problema da duração. Além de Schoenberg, nosso experimento, chamado “Poesia sem
palavras”, introduz a presença de Kandinsky em sua realização. Para tanto, utilizamos uma
série de xilogravuras do autor. Juntas, a peça de Schoenberg e a xilogravura de Kandinsky
nos indicaram a reflexão sobre a expressão aforística na música, sendo ela a força diretriz
de nossa criação. A idéia motora é o encontro de Schoenberg e Kandinsky e sua transição
dos mundos tonal e figurativo, para os mundos atonal e abstrato. Não por mera
coincidência, somente nosso experimento número 2 apresenta o uso prático da combinação
Schoenberg-Kandinsky. Ele reproduz o nosso percurso de pesquisa, iniciado por
Schoenberg, presente em “Música para Schoenberg” e desenvolvido, somente num segundo
momento, a partir de sua a amizade com Kandinsky.
No capítulo IV retomamos o tema do Acaso, apenas apresentado no Capítulo I.
Primeiramente, tentamos encontrar seus traços ancestrais na prática da improvisação do
Barroco. Depois, nos detemos mais pausadamente em seus expoentes do século XX,
notadamente Cage, Stockhausen, Boulez, Xenakis e Boucourecheliev. Por fim, lançamos
uma questão: não seria a intuição um elemento pertencente ao Acaso? A intuição,
integrando as etapas de pesquisa, elaboração e interpretação da música, não colocaria o
Acaso como seu elemento central? Como outras questões de nossa tese, não a apresentamos
com sua resposta. Nossas perguntas sobre a relação entre Acaso, intuição e criação artística
são paradoxalmente, respostas a questões anteriores a esta pesquisa, e mais perenes que a
mesma, envolvendo a definição da arte como prática científica.
Encerramos nosso capítulo apresentando os experimentos número 3 e 4,
denominados Quadros de uma Improvisação e São Jorge. Em Quadros, passamos a
aproveitar exclusivamente o conjunto de elementos fornecidos por Kandinsky. Nosso
experimento 3 faz um amálgama de escritos e produções do pintor, onde sua apreciação da
música, particularmente da percussão, é diretamente utilizada como nossa matéria prima.
Este amálgama é completado pela utilização de recursos eletrônicos, gerando como
12
resultado final uma música mista. A força motora deste experimento foi o caráter
interdisciplinar da reflexão de Kandinsky. Apesar de ser pintor, este artista manipulava
elementos de outras áreas de conhecimento para refletir sobre sua produção, sugerindo que
elementos técnicos da pintura, como ponto, linha e superfície podem ter correspondentes na
percussão musical. A sugestão de Kandinsky não ultrapassa os limites de uma metáfora.
Enquanto força motora, sua metáfora moveu-nos no sentido de concretizá-la.
Kandinsky realiza apenas uma transposição de imagem para o som? Como
dissemos, o que nos moveu foi a sua capacidade de refletir sobre a sua pintura a partir de
elementos exteriores, distantes. Esta aproximação que faz de disciplinas distintas, entre
desenho e som, nos sugeriu a aproximação de períodos distantes, entre épocas distintas,
entre momentos históricos diferentes. Aqui, o difícil e perigoso exercício de aproximação
feita no Capítulo I, que sintetizava momentos históricos diferentes, unindo-os em torno de
algumas hipóteses, foi tirado do texto escrito e transposto para a experimentação musical. O
que poderíamos aproximar da percussão sugerida por Kandinsky em nosso experimento
musical? Não seria a percussão manifestação primitiva da música, tal como são o ponto, a
linha e a superfície os elementos originais na pintura? Sendo o abstracionismo de
Kandinsky a expressão mais contemporânea que manipulávamos da pintura, qual seria a
forma de expressão mais contemporânea da música?
Estas perguntas nos fizeram pensar a música eletrônica como elemento capaz de
realizar uma dupla aproximação. Ela seria o elemento que mais evidenciaria um contraste
entre passado e presente, entre primitivo e moderno, entre figurativismo e abstracionismo.
Fundindo elementos distantes, unindo práticas diferentes e talvez opostas, os instrumentos
eletrônicos nos dariam a possibilidade de aplicar em nosso experimento uma força diretriz:
a idéia de acaso e intuição. O acaso seria aplicado à prática interpretativa do grupo de
percussão que realizaria Quadros. Constrastando com o binômio primitivo-acaso, a parte
eletrônica representaria o binômio moderno-determinação. Realizada em estúdio, feita a
partir da manipulação precisa e estudada de seus elementos, posteriormente registrado em
suporte eletrônico, a “metade” eletrônica de nosso experimento 3 se relacionaria com a
intuição e improvisação dos percussionistas, aproximando dois extremos da pesquisa e da
arte.
13
Nosso capítulo IV termina pela descrição de nosso experimento 4, São Jorge
Escolhemos o tema deste santo por várias razões. A primeira deve-se ao apego de
Kandinsky pela sua figura, presente em várias de suas obras. A segunda deve-se à própria
característica de São Jorge. Santo popular em diversas sociedades, São Jorge é uma espécie
de ícone rejeitado inicialmente pela Igreja Católica, apenas com o passar dos séculos foi
incorporado oficialmente como santo. Para nós, estes dois aspectos de seu personagem
representam bem a espiritualidade de Kandinsky, na medida em que ela é uma fé sem
Igreja, uma crença sem religião, apesar de seu apego à Teosofia e ao Espiritismo. Além das
próprias razões que ligaram Kandinsky a São Jorge, a imagem do duelo, de um confronto,
nos inspirou em nosso experimento musical, feito para percussão. São Jorge aqui foi nossa
força motora. A força diretriz foi novamente a improvisação, em particular, a idéia de
“ilha” em Boucourechliev.
Talvez tenhamos sido influenciados igualmente por outras razões, de ordem mais
pessoal, para utilizarmos a pintura de São Jorge feita por Kandinsky. Quando se pensa em
São Jorge, não se pode deixar de pensar em sua própria história. História de um cavaleiro,
que vence o mal, na figura do dragão. Esta história, inspirou vários artistas. Para nossa
surpresa, encontramos recentemente uma série de esculturas de Salvador Dali que
representavam, bem realisticamente, o santo guerreiro.
3
Este foi nosso penúltimo
experimento musical e a seqüência de experiências em qualquer laboratório, assim como as
etapas de uma pesquisa em qualquer tese possuem também a sua história, o seu
encadeamento particular, as suas razões de existir. Começamos por uma homenagem a
Schoenberg (experimento 1: Música para Schoenberg), em seguida, descobrimos a amizade
entre ele e Kandinsky (experimento 2: Poesia sem palavras). Diante desta amizade,
decidimos mergulhar no universo de Kandinsky, (experimentos 3 e 4: Quadros de uma
Improvisação e São Jorge). Este mergulho coincidiu com o estabelecimento de paralelos
entre a biografia de Kandinsky e Schoenberg e o fim de um trajeto biográfico nos apresenta
a idéia de conclusão. Sempre complexa, a conclusão de uma história de vida não se resume
a luta do bem contra o mal. Todavia, se o mal e o bem são considerados numa complexa
gama de valores e opções, por que a história de São Jorge não poderia representar esta
3
Galerie d´Arte de Saint Paul de Vence, Alpes-maritimes - França.
14
complexidade? Mais ainda, por que a vitória do bem não poderia representar o fim das lutas
artísticas presentes nas vidas de Schoenberg e Kandinsky?
Em nosso Capítulo V descrevemos nosso experimento número 5. Ele encerra nossa
pesquisa e marca nossa volta ao universo de Schoenberg, representando um caminho que,
imbuído da contribuição de Kandinsky, retoma uma nova leitura do primeiro. Retomamos
neste capítulo as idéias de Colagem e citação, apresentadas no capítulo I e desenvolvidas no
capítulo III, por ocasião da descrição de nosso experimento número 1 “Musica para
Schoenberg”. Nesta retomada, lançamos algumas questões sobre a classificação da música
contemporânea. Seria ela música pós-moderna? Caso positivo, o que seria o modernismo
musical? De que forma ele estaria ultrapassado? Nosso último experimento chama-se
“Pequenos Mundos” e se utilizou da Colagem e Citação como forças diretivas. Como força
motora foi utilizado uma série de pinturas de Kandinsky de mesmo nome. Como
experimento conclusivo, o objetivo desta criação foi de sintetizar os elementos
apresentados anteriormente. Esta reapresentação de idéias passou pelo aforisma, pela
colagem da música de Schoenberg, e pela utilização de uma tecnologia posterior à obra do
compositor. Como no experimento número 3 Quadros, procuramos reunir elementos
distantes de si tanto na história como em seu caráter artístico. Assim, encontram-se
articuladas a música de Schoenberg para piano solo, a interpretação de Glenn Gould, o
sintetizador Oberheim, a série de pinturas de Kandinsky (força motora) e a Colagem (força
diretiva).
Para finalizar nossa introdução, uma última observação. Ela foi escrita, não
escapando dos clichês de metodologia, depois da tese. Tem o defeito de não esconder que
seus aparentes objetivos iniciais são, na verdade, espécie de considerações finais. Muitos
dos termos e idéias aqui apresentados foram extraídos de nossa leitura posterior da tese já
finalizada e, por esta razão, são o resultado e não o começo da tese. Desta forma, não deve
surpreender ao leitor que não tenhamos dedicado a estas idéias mais espaço em nosso
trabalho do que em nossa Introdução. Elas estão na tese sob a forma de uma extensa
descrição, muitas vezes sem o aprofundamento dos conceitos de forças criativas.
15
Como última observação, acrescentamos uma explicação sobre o título de nossa
tese: “São Jorge espiritualidade e arte na amizade entre Schoenberg e Kandinsky”. São
Jorge no título justifica-se por vários motivos. Inicialmente trata-se de um homem real com
uma história de fé que transforma-se em mito. Jorge nascido na Capadócia no século III
DC, pertencente ao exército romano, após perseguido e torturado, termina seus dias,
defendendo perante seus inimigos, sua crença em Jesus Cristo, passando a ser um modelo
de resistência e fé. Ao longo dos séculos seguintes, sua história espalha-se e chega à Europa
onde passa a ser cultuado em festas pagãs inicialmente. A igreja católica integra São Jorge
em seus cânones a partir do século XV e além de cultuado, torna-se padroeiro de vários
povos: no sul da Alemanha, especificamente na Baviera de Kandinsky, Rússia, Inglaterra,
dentre outros. São Jorge é considerado por excelência um ícone na luta do bem contra o
mal. Por este fato também, São Jorge guarda uma grande aproximação com o Cavaleiro
Azul: símbolo do espiritual que domina a matéria. São Jorge representa a crença espiritual
de ambos, Schoenberg e Kandinsky, que acreditaiam num mundo onde a supremacia do
espírito deveria se sobrepor à matéria. Um último argumento que nos incentivou a escolha
deste titulo é que São Jorge é o nome de uma das peças da tese, e desta forma, teríamos um
link direto com as composições realizadas.
16
Capítulo1
17
Capítulo 1 - “Schoenberg e o panorama musical do século XX”
Parte 1 : A primeira metade do século XX : o paradigma de Schoenberg
1. Introdução p.21
2. Prática Comum p.24
3. Dissolução da Prática Comum p.26
4. Escola de Viena p.28
5. Dodecafonismo p.33
6. Serialismo Integral p.36
7. Música Aberta p.38
8. Minimalismo p.41
9. Música Espectral p.43
10. Sistemas Individuais p.46
Parte 2 : Segunda Metade do século XX : A tecnologia eletrônica
1. Introdução p.49
2. Música Concreta p.50
3. Música Eletrônica p.51
4. Música Eletroacústica p.52
18
5. Música Acusmática p.53
6. Música Mista p.54
7. « Live » e Tratamento em Tempo Real p.54
8. Música feita por Computador p.55
9. Particularidades p.56
10. Observação Final p.57
19
Capítulo 1
“Schoenberg e o panorama musical do século XX”
Parte 1: A primeira metade do século XX : o paradigma de Schoenberg
Nas músicas criadas para a realização deste doutorado, Schoenberg foi inspiração
direta. De que forma? Ele esteve presente através de algumas de suas músicas, de algumas
de suas idéias composicionais e através de algumas opiniões não somente sobre a arte mas
sobre um conjunto de temas que acaba por revelar sua visão de mundo. E por que várias
faces deste compositor ocuparam um lugar central na criação aqui apresentada? Por que
Schoenberg foi tão importante para a criação musical aqui realizada? Não se escolheu
Schoenberg como “matriz” das criações musicais aqui realizadas por simples acaso ou
afinidade pessoal. Além do acaso e das razões afetivas, sempre presentes nas pesquisas,
talvez como seus elementos iniciais, o que uniu de forma direta a criação realizada e a obra
de Schoenberg foram algumas considerações históricas.
Uma das idéias centrais desta tese, que a sustenta implicitamente, é que na quase
“infinita” diversidade da música contemporânea há um ponto de partida. E que este ponto
de partida foi estabelecido por Schoenberg quando fundamentou a negação da Prática
Comum. Este capítulo tem como objetivo revelar a visão parcial que temos do panorama
musical do século XX e o lugar que acreditamos ter Schoenberg em seu interior. Todavia,
este panorama não pretende comprovar esta idéia. Se interpretado como capítulo de história
da música ou de musicologia, muitas de suas passagens parecerão superficiais, muitas serão
as ausências notadas e seu resultado será insuficiente. Não discordamos que nele haja
descrições superficiais e também omissões. Mas gostaríamos de esclarecer que seu objetivo
é de fornecer à nossa tese, as referências musicais que utilizamos em nossa pesquisa.
Assim, este capítulo deve ser compreendido como percurso de nossa criação musical.
Percurso que teve, em seu desenvolvimento, grandes, pequenas e profundas sinalizações.
20
Ele é desproporcional sob muitos pontos de vista e não poderia ser diferente uma vez que
não existe reflexão sobre a criação artística pessoal que leve em conta todas as referências
artísticas, sendo eqüidistante de Escolas, compositores e obras. As referências abaixo
apresentadas devem ser entendidas como a nossa visão da música do século XX e, com
suas inevitáveis lacunas e exageros, o nosso desproporcional e legítimo percurso de
pesquisa e criação musical.
1. Introdução
« Schoenberg tornou-se um clássico sem jamais receber do público uma acolhida
unânime ». Esta afirmação de Charles Rosen (1979, p.9) leva-nos a seguinte questão : Por
que Schoenberg é um clássico ? Mas o que é um clássico ? Pode-se dizer que um clássico é
um modelo, uma fonte viva, uma referência histórica, analítica, cultural de onde podemos
derivar muitas perguntas e respostas, lançando assim algumas hipóteses e isso tudo mesmo
sem ter a unanimidade do público.
Ao nosso ver é imprescindível estudar Schoenberg para a compreensão da música
no século XX. Ele foi radical em suas propostas apresentando-se tradicional e vanguarda ao
mesmo tempo ou, explicando melhor, ele condensou o pensamento musical de uma época e
por isso mesmo pôde lançar as bases para uma música futura, criando um novo paradigma.
Partindo de suas reflexões e de suas músicas, podemos abordar a música feita até nossos
dias e encontrarmos algumas explicações. Essa é uma hipótese que desenvolvemos
gradativamente à medida que uma imensidão de questões foram surgindo e se
multiplicando.
Por exemplo : o que teria em comum entre as obras de Almeida Prado, Luciano
Berio, Andre Boucourechliev, Gerard Grisey, Nigg, Maurice Ohana, Steve Reich, Giacinto
Scelzi, Stockhausen e outros tantos do século XX ? Podemos afirmar que o traço comum
entre elas é a ausência de uma prática comum em seus procedimentos composicionais. Esse
tem sido o procedimento adotado pela maioria dos compositores, para cada obra uma
prática, um estilo, uma maneira específica de lidar com as notas, especialmente após a
Segunda Guerra Mundial. E quem é, ou o que é responsável por isso ? Guiados por esta
21
questão seguimos o rastro de individualização da técnica e do procedimento composicional
e fomos voltando na história da música. (DIAS : 2000, pp.87-137)
Essa tendência individualizante dos compositores a partir da segunda metade do
século XX nos levou à passagem do século XIX-XX quando lentamente o Tonalismo
vigente é alargado, incorporando procedimentos e elementos que não eram usuais no
período precedente. Na busca de cada compositor estabelecer seu estilo, a nova disposição
das alturas dissolve, em menor ou maior grau, o predomínio do Tonalismo. Nesta
retrospectiva chegamos ao nome de Schoenberg como um expoente da nova organização
das alturas face ao Tonalismo. Como isso se deu ?
Através de iniciativas esparsas no final do século XIX, em compositores como Liszt
e Wagner, esta transformação avança de forma mais ostensiva com Debussy, Bartok e
Stravinsky e, finalmente, com o Dodecafonismo de Schoenberg, ocorre a ruptura total dos
parâmetros fundamentais do Tonalismo, especialmente no tocante à organização das
alturas. (DIAS : 2000, p.111-116) Deste momento em diante, o que notamos é uma abertura
e multiplicação de maneiras de compor. Acreditamos que a desconstrução do tonalismo tem
seu auge no dodecafonismo e nessa sua desmontagem, material e uso do material se
desnvinculam, visto que no tonalismo eles se vinculam. Mais do que uma questão teórica
relativa às alturas, o dodecafonismo aponta um caminho de liberdade entre os muitos
caminhos abertos por compositores do mesmo período, tais como, Mahler, Bruckner,
Debussy, dentre outros. Mas porque liberdade ? É, na verdade a liberdade de estilo, onde o
Tonalismo não era a única via possível e viável para a elaboração musical. Liberdade
explorada pelos compositores que vieram depois.
Mas para se chegar ao dodecafonismo, Schoenberg trilhou um longo caminho
musical, experimentou muitas possibilidades e, gradativamente foi somando e subtraindo
da harmonia tonal e seus centros tonais, elementos e estruturas. Esse caminho de
experimentação, de utilização e alargamento da Tonalidade pode ser encontrado em sua
primeira peça, considerada significativa Verklärte Nacht
1
, op.4 de 1899. Nesta peça já
presenciamos o processo de individualização criativa, de material e procedimentos da
forma como foi utilizada a Tonalidade livremente.
1
Noite Transfigurada
22
Como Schoenberg usou a Tonalidade livremente ? De que maneira alargou a
Tonalidade e chegou ao Dodecafonismo ? Para tentar responder a essas questões
selecionamos algumas obras onde podemos acompanhar sua especificidade composicional.
Além de compositor, Schoenberg procurou justificar teoricamente suas opções musicais,
realizando um exercício teórico onde registrou suas reflexões a respeito dos problemas da
criação musical, da harmonia, do contraponto, entre outros.
Em uma emissão da Rádio Frankfurt ao analisar seu « Lieder » op.22 para voz e
orquestra, ele afirma :
« Por volta de 1908, eu havia dado os primeiros passos (…) no
domínio da composição chamada, injustamente de, atonal, e o traço
característico é o abandono de um centro tonal e dos métodos de
tratamento da dissonância em vigor até esta época. (…)”
(Schoenberg : 1974, p. 43)
Por esta afirmação notamos a preocupação desde o início de sua carreira com a
expansão da Tonalidade. Seus primeiros experimentos composicionais datam de 1883,
baseados fortemente na Tonalidade. Ele utiliza pela primeira vez a série dodecafônica
apenas em 1921 no op.25, Suite para Piano (Hahl-Koch :2002, p.206). Não foi de maneira
improvisada e casual que chegou a elaborar o Dodecafonismo e este seu sistema foi fruto
direto do Tonalismo.
Acreditamos que a partir de Schoenberg encerra-se definitivamente o domínio da
Tonalidade enquanto sistema único. Neste sentido, aproveitamos a interpretação de Carl
Dahlhaus:
« A tonalidade harmônica que dominou a cena por três
séculos tem seu fim por volta de 1910. Foi um sistema
universal de referência. Em contraste, nenhum sistema
projetado no século XX, com exceção a técnica de 12 notas,
apresentou específica validade para o trabalho dos
compositores, a não ser em sua individualidade. »
(Dahlhaus: 1980, p. 183)
23
Schoenberg não foi o único compositor em sua época a se preocupar com um novo
sistema compositional, outros compositores, mesmo antes dele, também se empenharam no
confronto com o Tonalismo, temos exemplo disso em Debussy, Scriabin, Bartok, entre
tantos outros. A grande diferença de Schoenberg para todos os outros compositores desta
época é que ele elaborou um sistema específico, com elementos, relações e atributos
determinados, que encarava frontalmente o ponto chave do Tonalismo : a organização das
alturas. E no caminho de elaboração deste sistema específico, o dodecafonismo, ele
aprofundou-se de maneira mais intensa na questão das alturas.
O tratamento da Tonalidade livre por Schoenberg culminou no Dodecafonismo.
Além de seus trabalhos de composição terem sido divulgados em concertos, suas idéias
eram propagadas entre seus alunos. Rapidamente suas reflexões ganharam espaço e fizeram
discípulos. Foi assim que Webern e Berg, dois de seus melhores alunos, estimulados com
as novas idéias dedicaram-se a obras onde se vê o primeiro desdobramento do
Dodecafonismo. Chegamos então à chamada Segunda Escola de Viena
2
que deu-se a partir
de Schoenberg, Berg e Webern.
2. Prática Comum
Para analisarmos a Altura como a espinha dorsal da música tonal, adotamos a
perspectiva que trata do tonalismo através do conceito de Prática Comum. A Prática
Comum é um conceito usado por Walter Piston (Piston : 1976) para designar o conjunto de
regras que prevalecia na música tonal. Como elucida o prefácio da edição italiana de seu
livro « Harmonia » de 1989 :
«( …) este conceito é usado em sentido mais amplo para
indicar o conjunto da harmonia de Bach a Wagner,
aceitando a hipótese que as mudanças históricas e estilíscas
ocorridas entre os dois extremos – mesmo de grande
relevância - não são tais de invalidar a substancial unidade
2
A Primeira Escola de Viena compreende o grupo de compositores do Classicismo (segunda
metade do século XVIII de Viena): W.A.Mozart, J.Haydn, L.v.Beethoven. Os seus sucessores
vienenses são: F.Schubert, A. Bruckner, J.Brahms, G. Mahler.
24
sintática e gramatical da época da harmonia tonal. » (Bosco :
1989, p.XVI)
Com esta reflexão sobre a Prática Comum notamos a existência durante séculos de
um sistema musical o suficientemente coeso e forte para suportar grandes diferenças de
estilos e propostas no seu interior, sem desaparecer ou desintegrar-se por completo. Não se
trata aqui de afirmarmos que a música feita por Bach, Mozart e Beethoven, por exemplo,
seja a mesma música, o que seria um contrasenso, mas o que procuramos destacar é que no
trabalho desses compositores citados, a Tonalidade é um taço comum, um elo que nos
permite abordar suas músicas através de uma mesma « gramática ». A existência do
tonalismo no seio da música ocidental faz com que possamos afirmar que foi o maior
sistema de referência utilizado na música ocidental, podemos prosseguir nossa afirmação
complementando : até hoje. Face a esta constatação não podemos nos esquivar de uma
análise de seu funcionamento ou de seus princípios.
O tratado de harmonia de Rameau condensou em 1722 os princípios básicos desta
teoria harmônica comum. Em seu livro ele resume a prática que se tinha em torno das
escalas, graus funções dos graus. Com Rameau temos o nascimento da Harmonia tonal
moderna respaldado pela afirmação do Temperamento. O temperamento foi uma
padronização da afinação dos instrumentos, resultado de cálculos matemáticos anotados por
teóricos do século XVI (Lindley : 1980, pp.660-674). O temperamento deu ao músico a
possibilidade de se criar uma espécie de padrão na relação entre alturas. Como principal
elemento para a compreensão desta relação temos o intervalo. Os intervalos são
classificados conforme a distância estabelecida entre as notas que os compõem. Quando
mais de duas notas são reunidas elas formam um acorde e o acorde tem um papel de
fundamento na configuração harmônica de uma música. E a base de todos esses elementos
e processos citados é a altura.
A Harmonia é a disciplina musical que se ocupa de apresentar as normas do Sistema
Tonal. Todo o conjunto de alturas, intervalos, acordes e sua distribuição no tempo
constituem o corpo teórico da Harmonia. Ao longo da história da música, os compêndios
sobre o tema indicam caminhos e possibilidades para um bom funcionamento da
25
tonalidade. Todo tipo de conselho é dado na literatura da Prática Comum para o melhor
aproveitamento dos efeitos da tonalidade. Uma grande preocupação , se não a maior, é
utilizar as alturas e as relações entre os acordes de maneira a bem conduzir as dissonâncias.
A dissonância constitue capítulo importantíssmo na prática tonal, pois ela exige cuidados
especiais na sua preparação, apresentação e resolução. O tratamento da dissonância aponta
caminhos diferentes em vários períodos da Prática Comum. Em manuais de teoria
elementar encontramos a seguinte distinção entre dissonância e consonância :
“Os intervalos consonantes são aqueles que formam juntos dois
sons que o ouvido não experimenta a necessidade de os separar ; a
consonância dá uma impressão de unidade de coesão e de
estabilidade. Os intervalos dissonantes, ao contrário, são aqueles
que formam entre eles dois sons que o ouvido experimenta a
necessidade de modificar, substituindo-os por outros sons ; a
dissonância dá uma impressão de instabilidade, os sons têm uma
tendência à se dissociar para chegar a uma consonância. »
(Danhauser : 1929, p. 42)
Esta definição de consonância e dissonância subjetiva nos leva a reflexões acerca do
contexto cultural em que ocorre sua definição. Como se trata de uma definição baseada na
sensação que o ouvido experimenta poder-se-ia dizer que essa subjetividade admite os mais
variados tipos de sons classificados como consonantes e dissonantes. E de fato foi isso que
ocorreu na História da Música. A classificação de sons dissonantes e consonantes variou ao
longo da História e junto com esta variação, o tratamento da dissonância sofreu grandes
transformações.
Para elucidar a força da tradição em torno às regras do tonalismo temos um fato
mais que curioso, a respeito de dissonância ocorrido com Schoenberg e sua obra Verklärte
Nacht. A música foi naquela época recusada em Viena por uma sociedade musical por
causa de uma dissonância que ainda não havia sido catalogada em manuais. (Rosen :1979,
p.13)
3. Dissolução da Prática Comum
26
As transformações que o tratamento das dissonâncias tiveram ao longo da história
3
conduziram a uma expansão do Tonalismo e fez com que fosse descaracterizada a Prática
Comum.
A Prática Comum, como nos indica a abordagem de Walter Piston, vai se
desintegrar a partir de Wagner, ou do final do século XIX. Alguns estudos apontam obras
esparsas, em diversos compositores durante o Tonalismo, como « críticas » feitas a esta
prática. Temos por exemplo Fantasia e Fuga Cromática de Mozart, baseada sobre escala
cromática. Beethoven em seus últimos Quartetos de Cordas , apresenta longos trechos de
tonalidade completamente indefinida e um uso ostensivo do cromatismo. Mas essas obras
não são suficientes para, em suas singularidades, formarem um movimento de abandono da
tonalidade. Constituem mais fortemente uma espécie de afirmação do tonalismo, através do
contraste que apresentam. E apenas a partir da obra de Wagner que temos uma definição da
estrutura cromática dominando a música : é a melodia contínua impulsionada pelo
caminhar cromático das harmonias.
Assim, o abandono do sistema tonal inicia-se no final do século XIX
4
de maneira
mais ostensiva e sistemática nas composições de Liszt, Wagner e Debussy. Além do
cromatismo, presenciamos escalas provenientes de outras culturas, e alguns modelos
particulares concebidos por cada compositor. Como exemplo desta fase podemos citar
também Scriabin, Satie, Hindemith.Para esses compositores já não bastava a disposição de
graus da tonalidade, funções específicas dos acordes, relações entre funções, tríades para
constituir a forma, a estrutura e o próprio discurso musical.
Alguns autores apontam Debussy como sendo o compositor que abre as portas do
século XX (Boulez : 19954, p. 301). A maneira de Debussy trabalhar é de difícil
3
Importante referência para este assunto é a conferência de György Ligeti de 1993 onde traça de
maneira sintética, e muito clara, um “Itinerário do Sistema Tonal” iniciando no século XII,
atravessando todos os séculos e chegando até sua maneira de compor. (Ligeti: 1993)
4
Em 1993 num discurso realizado por ocasião de obtenção do prémio Balzan, György Ligeti deixa-
nos reflexões sobre o tratamento das dissonâncias, dominantes secundárias, modulações e o
desmanche tonal. Ele diz que: “ ... é com Chopin que o papel das dominantes secundárias se
engendram de tal forma no seio do sistema de modulações que a coluna vertebral da tonalidade
vacila. A primeira peça atonal da história da musica poderia bem ser o final Prestíssimo da Sonata
em si bemol menor de Chopin.” (Ligeti: 1993)
27
classificação se tomarmos um Manual de Harmonia do século XIX e tentarmos analisar sua
obra. É muito comum em suas partituras figurar a armadura de clave de determinada
tonalidade e, entretanto, todo o discurso apresentado não corresponder à tonalidade
indicada. Isso demonstra como estava ligado a uma tradição e, ao mesmo tempo, como
procurava um caminho de liberdade da mesma.
Segundo Rosen (Rosen: 1979, p. 11), o rompimento da Prática Comum pode ser
também observado em Stravinsky (o outro responsável pelo fim do tonalismo seria,
segundo este autor, Schoenberg). Apontado como um dos dois compositores mais
importantes do século XX, Stravinsky trabalha também com tratamento livre da tonalidade.
Por exemplo, em Petrouchka utiliza a sobreposição de tonalidades ; em A Sagração da
Primavera inicia a obra com uma melodia fora dos moldes tradicionais, no extremo agudo
do Fagote ; em O Pássaro de Fogo mescla trechos modais e tonais. E ainda em sua última
fase criativa adota o dodecafonismo em suas composições.
Pelo quadro descrito acima podemos dizer que a virada do século XIX para o XX
apresenta um cenário muito rico e expressivo no caminho do Tonalismo Livre. Vivía-se um
ambiente propício para mudanças não apenas na música, mas também em outras áreas
artísticas. Experimentava-se um movimento de renovação e expansão dos cânones
tradicionais da arte em geral. Nomes como Kandinsky, Picasso, Matisse, Duchamp
propunham manifestações que questionavam a validade das regras tradicionais na pintura e
artes plásticas, muitas vezes, chocando o público. E temos ainda um outro campo a citar,
ligado ao desenvolvimento da eletricidade tais como o cinema e o rádio, que neste
momento estavam com experimentos em andamento.
Mas na música acreditamos que, através de Arnold Schoenberg, tivemos uma
síntese deste movimento de mudanças. Foi ele quem aprofundou-se no tema e fez nascer
um novo sistema para regular as alturas : o dodecafonismo.
4. A Segunda Escola de Viena
A Segunda Escola de Viena é formada pelo grupo de compositores Arnold
Schoenberg, Anton Webern e Alban Berg. Segundo Rosen « O mestre encontrou em seus
28
discípulos um gênio igual ao seu e uma precocidade mais remarcável ainda ». (Rosen :
1979, p.15) Analisando o relacionamento dos três compositores segue afirmando que :
« (…) as pesquisas mais radicais foram engajadas por Schoenberg (…) mas a influência
não tarda a ser recíproca, e Schoenberg deve muito ao estímulo vindo de seus discipulos »
(Rosen : 1979, p.15)
A Segunda Escola de Viena foi um grupo de compositores de vanguarda, Webern e
Berg incentivados por Schoenberg adotaram as inovações propostas por este e partiram
logo para caminhos extremamente originais. É de 1906-1914, particularmente, que entre os
três músicos ocorre uma comunhão quase que total.
Webern (1883-1945) depois do contato com a série dodecafônica, não retomou
outro tipo de composição, mas criou uma maneira de abordar a série sempre dentro de uma
estrutura simétrica. Primando pelo formalismo e economia de meios buscou desenvolver
uma linguagem mais concentrada. É apontado como o precursor do Serialismo Integral,
movimento solidificado por Boulez e Stokhausen. Ele iniciou seus estudos com Schoenberg
em 1905 e apenas dois de seus trabalhos com catalogação de « opus » foram compostos
durante esse período : Passacaglia e o coro Entflieht auf liehten Kahnen. Schoenberg
introduz a técnica das 12 notas a um grupo íntimo de estudantes e amigos no início de 1920
e é neste ano que Webern começa a compor usando o método, mas só vai realizar sua
primeira peça totalmente dodecafônica no Trio para Cordas, op.20, terminado em 1928.
Em sua fase inicial de composição apresenta a experiência com atonalidade. Escreve
peças para voz e piano, quartetos de cordas, temas e variações para piano, quintetos e obras
para orquestra. Em suas primeiras obras é possível observar frequentemente harmonias
inesperadas, um estilo muitas vezes associado a Brahms mas são peças onde já se destaca a
preocupação com uma estrutura muito clara. Seu estilo pode ser dividido em três fases
distintas : a primeira, a partir de 1908 quando abandona a tonalidade e inicia peças curtas e
pontilhísticas (do opus 3 até o opus 11). A segunda fase, a partir de 1914, quando retoma a
escrita para voz e inicia o trabalho de conectar partes para constituir uma forma contínua. E
a terceira e última fase, a partir de 1926, quando seguro do uso do método das 12 notas,
passa a compor para formas instrumentais maiores sucessivamente. (Bailey: 1980)
29
Os elementos estilísticos inovadores dentro da obra de Webern estão colocados lado
a lado em termos de importância e giram em torno da dinâmica, silêncio e timbre. A
respeito do timbre existe vários caminhos de desenvolvimento que Webern dá ao discurso
musical para trabalhar esta idéia : efeitos instrumentais utilizados como parte constituinte
da articulação musical, justaposição de extremos, de instrumentos, timbre, registros e
contínua mudança timbrística.
Como exemplo de seu estilo considerado « aforístico » temos a Bagatellen op.9 que
ilustra muitas das técnicas citadas aqui, ou ainda Drei Kleine Stucke op.11 para violoncelo e
piano de 1914, cuja terceira de suas peças é inteiramente ppp e pp, o violoncelo toca 8
notas e o piano 3 notas melódicas e 3 acordes. Este opus conta com 32 compassos, e
representa o extremo do estilo aforístico de Webern.
Em sua Sinfonia, op.21 acompanhamos um brilhante trabalho de simultaneidade
simétrica vertical e horizontal (espelhos e palíndromes) através de uma série de cânones
duplos. Seu gosto pela simetria existe desde as primeiras peças da juventude e o leva a
desenvolvê-lo ao extremo no Concerto de Camera, op. 24 que é baseado inteiramente em
um provérbio latino que pode ser lido em 4 direções.
5
Outras obras suas que possuem apoio
no pensamento simétrico são: Variações op.27 (1937), Quarteto de Cordas, op.28 (1936-8),
Cantata n.1, op.29 (1938-9), Variações para Orquestra, op.30. (BAILEY : 1980)
Alban Berg (1885-1935) não trabalhou com o rigor de Webern mas procurou
associar a série dodecafônica ao tonalismo. A preocupação tonal nunca esteve ausente
totalmente de sua música, ao analisarmos sua origem vienense, sua cultura musical
podemos entender como sua música foi assim fortemente marcada pelo tonalismo.
Sua primeira herança musical vem sem dúvida de Viena. Segundo Jameaux, Berg
tinha um
« ´modo vienense´de escrita instrumental (…) indo até o limite de
suas possibilidades (…) também uma maneira vienense de escrever
as frases com suas anacruses iniciais, o primeiro acento , o ´levare´,
5
S A T O R
A R E P O
T E N E T
O P E R A
R O T A S
30
o climax expressivo, a retomada, o acento final e desinência (…)
Também uma maneira vienense de acompanhar uma frase de ligá-la
à seguinte, uma maneira de juntar letras em palavras, palavras em
frases, frases em parágrafos, parágrafos em discrusos e de organizar
tudo de maneira que tudo esteja lá, sem nada de supérfluo. »
(Jameux : 1980, p.9)
Em sua obra, Berg parte do ambiente vienense pós-romântico rumo ao
dodecafonismo mas sempre tendo como coluna vertebral o modelo vienense de escrita que
permanece o mesmo ao longo das 12 principais obras do compositor : op.1-7, Concerto de
Câmera , Suite Lírica, O vinho, Lulu, Concerto para violino. Essa cultura musical vienense
possue duas dimensões : a cidade que criou a sinfonia e a que criou a ópera alemã. Nomes
de grande referência na obra de Berg foram Wagner, Schumann, Richard Strauss, Mahler e
Schoenberg.
Como todo jovem compositor da época a modernidade era um destino batendo à
porta. A liberdade da linguagem harmônica, uma nova orquestra, a crítica de ópera, a
abertura sobre os mistérios entre mito e música. E tudo isso veio até Berg com Wagner
aprendido através de Schoenberg. Ele iniciou seus estudos com Schoenberg em 1904, e este
ao se lembrar de seu aluno jovem associa-o imediatamente ao movimento romântico da
época. Schoenberg escreve : « Eu examinei as composições que ele me apresentava,
melodias num estilo que se situava entre Hugo Wolf e Brahms, reconheci um verdadeiro
talento. » (Barilier : 1978, p.47)
Berg é um dramático puro por natureza, acreditava que tudo em música dependia do
trabalho de escrita e da maneira como tudo se apresentasse em cena. Jameaux afirma que
em Berg ocorre « uma dramatização do discurso instrumental como paralelo complementar
da sinfonização da ópera » (Jameux : 1980, p. 11).
Continuando na linha romântica, os traços comuns entre Schumann e Berg são
notados em vários sentidos. Ambos dividiam seus gostos entre a poesia e a música desde a
fase juvenil e a produção musical de ambos encontra em grande parte referência e apoio em
textos literários. Elementos musicais em Berg que apontam o romantismo Schumaniano
passam pelas indicações expressivas na partitura, que são numerosas e minuciosas: a
polifonia, também a escrita, o trabalho dos motivos, a organização dos silêncios e acentos, e
31
a construção das frases. Berg como romântico procura a unidade no exagero de um discurso
que nunca pareceu razoável : a tensão permanente da Sonata para piano, o clima
incandescente do Quarteto opus 3, e o drama de Lulu.
Outra grande influência sobre Berg foi a composição de Richard Strauss. A
orquestra de Strauss em seus Poemas sinfônicos, o tratamento da voz e do texto poético nos
Lieder, a ocupação do espaço cênico teatral; esses são alguns dos itens mais remarcáveis.
Se havia um ponto de encontro no que tange a elementos, idéias e estruturas musicais, suas
atitudes em relação ao passado, à cultura e à herança eram opostas. Como nos elucida
Jameaux « Strauss depois de 1910 acreditava no fazer o novo com o velho e de fazer
Strauss com o que não é seu. » Comparando com Berg, diz que « A atitude de Berg em
relação à cultura é totalmente diferente e se faz sobre o modo da citação/ruptura. »
(Jameux : 1980, p.13) Essa citação/ruptura que a autora se refere pode ser acompanhada na
obra de Berg especialmente na maneira como lida com cada fórmula instrumental e vocal
escolhida – nunca a mesma – e com modificações no decorrer da obra. Ex : Quarteto opus
3, as Peças opus 6, as duas óperas o Concerto de Câmara.
Nesta onda de influências, a figura de Mahler exerceu grande poder sobre os três
vienenses e razões objetivas podem explicar a grande atração que sentiam por ele : 1)
Mahler foi um conciliador de Wagner e Brahms, 2) um sinfonista aberto ao mundo
“exterior”, 3) colocou também em turbulência o sistema tonal, 4) acreditava na função
estrutural do timbre e 5) adotava em sua vida profissional uma atitude crítica ao
stablishment vienense. A influência de Mahler está presente frequentemente em Berg, seja
como melancolia (Sonate, Lied, op.4, n5, “Interlúdio” de Wozzeck, Lulu, o último
movimento da Suite Lírica) ; como canção popular (Wozzeck, Lulu, o Concerto para
violino) ; a valsa como criação de um mundo amado (atravessa toda sua obra desde a
Sonata passando pelo Concerto de Câmara e indo até Lulu) (Jameux : 1980, p.14).
Mas Schoenberg como professor foi quem exerceu sobre Berg a grande fascinação
intelectual, musical e pessoal. É verdade que Schoenberg também apreciou desde o início o
talento de Berg, chegando a ministrar-lhe curso de composição gratuitamente, face à
situação financeira precária pela qual passava a família do então aluno. As primeiras
composições de Berg são de 1900. De 1900-1908 dedica-se quase que totalmente a canções
32
para canto e piano. De 1908 a 1911 foi aluno de Schoenberg. Em depoimento Schoenberg
escreve que :
« Desde as primeiras composições de Berg (…) pode-se assinalar
duas coisas. Primeiro, que a música para ele é uma língua, e que ele
se exprime verdadeiramente nesta língua ; e segundo : um calor
transbordante de sentimento. » (Jameux : 1980, p.31)
Se dissemos que Webern nunca abandonou a série e o cuidado com a simetria,
podemos dizer que Berg nunca abandonou o tonalismo e a preocupação com um idioma
musical expressivo.
5. Dodecafonismo
Mas o que foi exatamente o dodecafonismo ? Em linhas gerais o dodecafonismo foi
uma concepção onde as alturas – as mesmas do sistema tonal – perderam a sua disposição
de escala e foram serializadas. Essa serialização é uma nova disposição das alturas tendo
em vista dispersar os polos atrativos do sistema tonal. A recomendação principal ao se
elaborar a série é que não se deve criar sequência onde haja a possibilidade de uma
estrutura tonal se alojar. A partir desta série fazemos uma composição musical.
O único documento que se tem notícia até os dias de hoje, onde Schoenberg fala
sobre o dodecafonismo de maneira mais aprofundada, é a transcrição de uma conferência
que realizou na Universidade da California – Los Angeles em 1939 intitulada « A
composição de doze sons ». Esta publicação foi feita em 1948 pela primeira vez e foi
revisada por René Leibowitz. Neste texto Schoenberg diz : « A composição com doze sons
não tem outro objetivo que a compreensibilidade » e referindo-se aos problemas da
aceitação que suas músicas sofriam, continua : « As obras compostas no estilo não
conseguiram se fazer compreender e isso malgrado a seus novos meios de organização. »
(Schoenberg : 1989, p.84)
33
Neste texto acompanhamos sua reflexão acerca do dodecafonismo apoiado na idéia
da « emancipação da dissonância » onde através de uma breve incursão sobre Wagner e
Debussy conclui :
« (…) eu entendo que a compreensibilidade da dissonância é
equivalente à compreensibilidade da consonância. (…) tratando a
dissonância como consonância é a maneira de renunciar à
supremacia do centro tonal. Evitando o estabelecimento de uma
tonalidade, ultrapassamos a noção da modulação (…) »
(Schoenberg: 1989, p. 86)
É clara a idéia do dodecafonismo como um método que veio libertar o trabalho
composicional do sistema tonal. Chega mesmo a comparar o resultado sonoro do
dodecafonismo à « uma harmonia nova, rica em cores (…) » (Schoenberg : 1989, p.86)
Schoenberg ao explicar o que é o dodecafonismo, aponta a formação da série
decorrente de intervalos diferentes que não pode, nem deve ser chamada de escala, ainda
que esta série tenha sido inventada para substituir algumas vantagens unificadoras e
formativas da escala e da tonalidade.
A revisão bibliográfica acerca da obra marco do dodecafonismo aponta uma
divergência ao definir qual é a primeira obra dodecafônica. Alguns dizem que foi
«Cinco Peças Para Piano » opus 23 (1920/1923), e outros indicam « Suite para Piano »
opus 25 (1921/1923). Autores como Bosseur (1992, p, 40), Malherbe (1996, p.2) e
D´Allones (1992, p.66) apontam o opus 23 como sendo a primeira peça dodecafônica,
especificamente seu último movimento. Leibowtz (1969, p.97), Griffiths (1992, p.75),
Hahl-Koch (2002, p.206) e o próprio Schoenberg em seu artigo « Composição com doze
sons » (1960, p.131) falam da « Suite para Piano » opus 25 como sendo o primeiro trabalho
inteiramente dodecafônico. Reunidos aqui dois depoimentos sobre esses opus.
Erwin Stein nos diz a respeito do opus 23 :
« A 5a peça é uma valsa cuja forma básica consiste em 12 notas em
ordem fixa. Esta série volta constantemente através do
movimento, começando sempre logo que possível como aparição
prévia esteja terminada. Para começar, aparece como melodia de
valsa, verticalmente, e formada ritmicamente por 3 motivos. O
acompanhamento dá a mesma sucessão de notas, começando,
34
entretanto, com outra nota e parcialmente reunidas em acordes. »
(Stein : html)
Em seguida temos outro depoimento em uma carta que Schoenberg escreve à
Nicholas Slonismsky em 1937 sobre o opus 25 e o dodecafonismo :
« O quarto movimento, Soneto, é uma verdadeira composição com
doze sons. A técnica é relativamente primitiva, porque era um das
primeiras peças escritas estritamente segundo este método, ainda
que não tenha sido o primeiro – havia já alguns movimentos da
Suite para piano que havia composto no outono de 1921. Foi aqui
que de repente tomei consciência do sentido real de minhas
intenções. » (Leibowtz : 1969, p.96)
É entre os anos 1923-24 que Schoenberg conclui quatro importantes obras,
referenciadas por Leibowitz como sendo as obras através das quais se operou a técnica
dodecafônica. São elas : Cinco peças para piano op.23, Serenata opus 24, Suite para piano
op.25 e o Quinteto para metais opus 26.
Pelo que entendemos da análise de cada autor, todos tem razão ao apontar o opus
23 ou o opus 25 como a primeira peça dodecafônica. Schoenberg começou a compor o opus
25 antes de terminar o opus 23, de forma intuitiva talvez tenha chegado no último
movimento do opus 23 à série dodecafônica, o que influenciou, ou até mesmo o levou à
composição do opus 25, planejando esta inteiramente na forma dodecafônica.
Na polêmica do primeiro lugar de peça dodecafônica, D´Allones aconselha a se
considerar os opus 23 e 25 como representantes de uma fase experimental com o
dodecafonismo. Acreditamos bastante prudente o conselho de D´Allones e acrescentamos o
opus 24 e 26 à lista, citados por Leibowitz como peças fundamentais na sedimentação
dodecafônica . No tocante ao marco do dodecafonismo pensamos que tanto o opus 23 como
o opus 25 podem ser consideradas como « primeira peça dodecafônica », visto que estão
estreitamente ligadas em suas gênese e gestação.
Tanto Schoenberg como Webern ou Berg utilizam a série e conseguem dar uma
grande unidade às suas obras. Schoenberg nunca deixou o pensamento tradicional da
linguagem musical de lado e declara os compositores dos quais « aprendeu » suas idéias em
35
um texto datado de 24.11.1931, Das Werk Arnold Schoenberg de Rufer e citado por
Leibowitz :
« De Bach : 1. O pensamento contrapontístico ; quer dizer a arte de
inventar figuras sonoras capazes de se acompanhar a si mesmas. 2.
A arte de derivar o todo de uma só unidade e a maneira de encadear
as figuras entre elas. 3.A emancipação de tempos do compasso.
De Mozart : 1. A desigualdade do tamanho das frases. 2. O
agrupamento de caracteres heterogêneos em uma só entidade
temática. 3.O desvio em relação ao número pares de compassos do
tema e de seus compostos. 4. A arte da formação de idéias
secundárias. 5. A arte de introduzir e de `transitar`.
De Beethoven : 1. A arte de desenvolvimento de temas e de
movimentos. 2. A arte da variação e da diferenciação. 3. A
diversidade na construção de movimentos de longa expiração. 4. A
arte de alongar sem hesitação, mas também de reduzir brutalmente
segundo as `necessidades da causa`. 5. Ritmicamente : o
deslocamento das figuras sobre outros tempos do compasso.
De Wagner : 1. O uso que se pode fazer dos temas segundo suas
expressões assim que suas concepções corretas em vista deste uso.
2. A familiaridade entre os sons e as cores. 3. A possibilidade de
manter os temas e os motivos como entidades autônomas, o que
permite suas superposições dissonantes à certs harmonias.
De Brahms : 1. Muito do que tinha procurado insconscientemente
em Mozart, sobretudo a irregularidade do número de compassos,
extensão e condensação das frases. 2. A plasticidade das
formações : não economizar, não economizar quando a claridade
exige mais espaço : levar cada figura às suas últimas consequências.
3. A concepção sistemática do aspecto global de um movimento. 4.
Economia e, entretanto, riqueza.
Também aprendi muito de Schubert e também Mahler, Strauss e
Reger. Eu não me subtraí à ninguém e eu posso por consequência ,
dizer de mim mesmo : minha originalidade vem de todo o « bem »
que nunca percebi e imitei. » (Leibowitz : 1969, p. 21)
O dodecafonismo é uma das muitas produções polêmicas da Escola de Viena, é um
capítulo por demais importante dentro do século XX e para a História da Música. Foi
através do movimento criado pela Escola de Viena, iniciado por Schoenberg e seus alunos,
fomentado obviamente por um momento histórico muito particular, que vemos nascer os
gérmens de todo o movimento musical posterior. Sem dúvida o « método dos 12 sons »,
como Schoenberg gostava de chamar, ou dodecafonismo, como passou para a história, foi o
36
motor de muitas transformações. E qual o núcleo deste motor ? A altura é o núcleo, espécie
de órgão vital, célula primordial sem a qual nada existiria, ou, não existira como tal. A
elaboração do dodecafonismo foi uma reorganização das alturas e foi através deste feito
que uma série de reflexões surgiram, criando outros parâmetros, multiplicando-se as
possibilidades de criação e concepção musical. Um movimento nunca antes visto que
efetivou uma liberdade desejada pela maioria dos compositores. Os desdobramentos da
revolução instaurada pela Escola de Viena serão abordados na sequência.
6. Serialismo Integral
É na Alemanha, no Internationales Musikinstitut Darmstadt
6
que as idéias da Escola
de Viena vão ganhar maior propaganda e também, pela publicação em Paris, entre 1947 e
1949 de dois livros determinantes Schoenberg et son école e Introduction à la musique des
12 sons ambos de René Leibowitz.
Olivier Messiaen então professor do Conservatório Nacional Superior de Paris
revela-se determinante para toda uma geração de músicos, entre eles Pierre Boulez, Jean
Barraqué, Karlheins Stokhausen entre tantos outros. Esses compositores são os
continuadores da Segunda Escola de Viena pois, com base na divulgação das idéias
dodecafônicas passam a compor a partir delas. Entre 1949-50 Messiaen compõe Quatre
Études de Rythme para piano, o segundo dos quais intitula-se Modes de Valeurs et
d´Intensités. Nesta peça utilizou pela primeira vez a técnica serial não apenas aplicada às
alturas mas às durações, aos ataques e às intensidades, pode ser considerada como uma
primeira etapa em direção à obra serial integral (Bosseur : 1990, pp.16-17).
Em 1951, Pierre Boulez apresenta a obra Livre pour Quatuor e propõe um
tratamento serial sucessivo de todos os prâmetros. Entetanto realiza sua idéia de
serialização total simultânea apenas em Polyphonie X (1951), para 18 instrumentos solistas,
e no primeiro livro de Structures (1952) (Vignal : 1994, p. 86).
Stockhausen estimulado pela proposta de Messiaen compõe Kreuzpiel (1951) e
KontraPunkte (1952) ambas para conjunto instrumental. Quando Stockhausen passa ao
6
Cursos Internacionais de Música de Dramstadt
37
trabalho com a música eletrônica, não abandona o pensamento serial. Peças como Gesang
der Junglinge
7
(1956), para sons vocais e sintetizados, Zeitmasse (1956), para quinteto de
sopros e Gruppen (1957) para três orquestras, trabalham com grandes grupos de notas ao
contrário do pontilhismo da herança de Webern e Messiaen (Sadie : 1994, p. 905).
Boulez e Stockhausen notavam a partir de suas experiências que era possivel uma
nova concepção musical baseada em estruturas onde o antigo sistema tonal era substituído
por novos conjuntos de regras. Não era preciso um texto para respaldar uma obra, bastava
uma idéia estruturada, organizada e delineada por séries : series de alturas, de figuras de
valores, de ritmos, de dinâmicas, de timbres, etc. para a unidade e coesão da música.
Os primeiros compositores a aderirem ao serialismo integral foram Luigi Nono,
Bruno Maderna e Franco Donatoni. Para eles o que interessava era trabalhar a obra musical
não através de um processo mnemônico, mas de maneira a considerar a técnica serial como
um início onde nada ainda havia sido feito, colocando em questionamento os princípios
fundamentais da composição musical, em particular a concepção do tempo (Bosseur : 1990,
p.23).
Apesar dos jovens compositores terem aderido com rapidez ao serialismo é muito
importante frisar que cada qual entendia o serialismo de uma maneira muito pessoal. A
liberdade concedida ao fazer musical pelo dodecafonismo, encontra terreno fértil com o
serialismo e multiplica as manifestações individualizantes.
7. Música Aberta
Chamamos aqui de Música Aberta aquelas que incorporaram em seu discurso
musical a indeterminação. Este movimento surgiu dentro do próprio Serialismo Integral. O
primeiro compositor que procurou romper a serialização de todos os parâmetros musicais
incorporando seu oposto radical, a indeterminação, foi Karlheinz Stokhausen (1928). Na
peça Klavierstuck XI apresenta 19 sequências que o intérprete deve escolher livremente
para execução. Com esta peça para piano estava dada a largada de um novo movimento
(DIAS : 121-122).
7
Canto dos Adolescentes
38
Vários compositores começaram a trabalhar neste sentido. Passaram a utilizar a
indeterminação, o acaso, a imprecisão em suas obras, dando margem ao inesperado, a
vontade do intérprete para escolher e atuar como um compositor no momento da execução
musical. Figuram da lista Boulez, Boucourechliev, Cage, Feldman, Globokar, Lutolawski e
tantos outros.
A concepção de indeterminação contém muitas variantes entre os compositores, mas
em linhas gerais pode-se agrupar as manifestações iniciais em duas vertentes : 1) os que
partem de estruturas seriais – por exemplo, Stockhausen, Boulez, Boucourechliev, 2) os que
rompem completamento com o sistema anterior – John Cage, Earle Brown, Morton
Feldman e Christian Wolff. Segundo Bosseur, as idéias do segundo grupo « (…)
encontram-se mais ligadas ao pensamento de Charles Ives ou Erik Satie do que aos ideais
da Escola de Viena. » (Bosseur : 1990, p.51).
John Cage (1912-1992) é um nome que merece destaque no capítulo Música Aberta.
Compositor, poeta e pintor admitia a possibilidade do aleatório em composições e
concertos, admitindo assim todo tipo de instrumentos. O conjunto de sua obra é de uma
diversidade remarcável. Após ter trabalhado como jardineiro na Califórnia, percorreu a
Europa de 1930-31 De 1931 a 1934 estudou composição com Richard Buhling em Los
Angeles, depois com Adolph Weiss, um aluno de Schoenberg, e Henry Cowell em Nova
York. Entre 1934 e 1935, estudou contraponto e análise com Schoenberg na Califórnia.
(Nattiez: 1991, p.12) E desta época que são suas primeiras composições, verdadeiros
ensaios sobre o dodecafonismo não serial. A partir de 1937 começa a montar orquestras de
percussão (Seattle, San Francisco, New York). Como material necessário para a realização
de suas primeiras obras, vemos já a vontade de John Cage de aceitar todo tipo de
instrumento, por exemplo, latas de conserva, ou ainda dispositivos elétricos utilizados pela
primeira vez em obras compostas.
Nos anos 40 trabalha sobre o piano preparado, inovação que lhe dará a glória,
transformando esse instrumento em uma orquestra miniatura de percussão. Ao final dos
anos 40 interessa-se por filosofias asiáticas o que o leva a um estudo aprofundado do Zen.
Em Music of Changes (1951), o resultado desta nova fase se apresenta na união o acaso do
39
ato criador ao I Ching, sendo este último decisivo para decidir alturas, durações e
dinâmicas.
Sua prática radical do aleatório é totalmente diferente do que faziam na mesma
época os compositores europeus como Boulez na Troisième Sonate ou Stockhausen em
Klavierstuck XI. Um vasto campo de operações aleatórias estão reunidos e abertos em
Concerto para piano e orquestra (1957-58). Durante os anos 60, ele se interessa mais pela
live eletronic , sobretudo em Cartridge Music.
A partir da década de 60 muitos compositores começam a interessar-se cada vez
mais pela Música Aberta, ocorrendo uma explosão de abordagens diferentes. Termos como
aleatório, indeterminado, acaso, improvisação, dentro outros, confundem-se num sem
número de páginas musicais e literárias sobre o assunto.
A preocupação de Boulez é « (…) conciliar acaso e composição, a fim de respeitar o
acabado da obra ocidental, o seu ciclo fechado (…)” (Boulez : 1966, p. 52).
Bruno Maderna desenvolve seu pensamento musical próximo ao de Boulez, pois
entende a indeterminação tendo em vista um « diálogo entre a rigidez das indicações da
escrita e a mobilidade, ao nível da escolha dos materiais sonoros ou ainda do dosamento
dos contrastes, dos modos de articulação das sequências. » (Bosseur : 1990, p.88) Para
Bruno Maderna a abertura não é a ausência ou negação da forma, mas uma construção que
conduz à beleza desejada pelo compositor.
Segundo Bosseur, André Boucourechliev (1925-1997) abordou a Música Aberta
tendo em mente que o serialismo seria uma vontade de transcender « (…) as pesquisas
gramaticais rigorosas através de uma poética dos mais vastos aspectos, até dissolver a
noção limitada de sistema numa noção mais ampla de estilo », assim o serialismo seria mais
um modo de pensamento do que um método de composição. (Bosseur : 1990, p.89)
Boucourechliev, de origem húngara, radicado na França tem um marco importante
em sua carreira que foi a composição de uma série de cinco peças denominadas Archipel,
escritas entre 1967-70. São consideradas como obras abertas e destinam-se para diversas
formações instrumentais. Caracterizam-se pela liberdade dos intérpretes escolherem
sequências pré-definidas, liberdade esta que implica em uma escuta recíproca, variando de
uma execução à outra, segundo as próprias escolhas. Não são consideradas obras aleatórias,
40
mas móveis. Em 1970 leva essa experiência ao limite com Anarchipel que como o título
mostra assume o risco da anarquia interromper seu discurso. (Boucourechliev: 1970)
É pertinente citarmos que em seu processo criativo a inspiração dessas obras
relaciona-se com as pequisas literárias do início do século (Proust, Mallarmé, Joyce) e
também com o relacionamento que teve com artistas americanos durante sua estadia nos
Estados Unidos em 1964
8
. Acredita que a abertura ocorre em sua peça, não porque deixou o
acaso agir, mas porque o material foi libertado através de sua flexibilidade.
8. Minimalismo
O movimento minimalista rejeita a complexidade da música feita anteriormente, quer
seja no aspecto estrutural-serial, quer seja no aspecto “aleatório”. Seu elemento
fundamental é a repetição strictu e lato sensu. Alguns autores defendem a idéia de que o
minimalismo tenta resgatar elementos do passado musical através do uso dos sistemas
modal e tonal o que apontam como explicação para a grande aproximação que teve com a
música popular e o rock (Sadie : 1994, p.607-608).
Os nomes mais representativos do movimento são La Monte Young, Tierry Riley,
Steve Reich, Phillip Glass, Cornelius Cardew e Michael Nyman. Como organização do
material sonoro utilizam mais frequentemente a repetição reiterada de um material, uso de
uma pulsação sem mudanças, prolongamento de notas isoladas, defasagem de padrões
rítmicos, processos de adições de pequenas células de motivos, harmonias simples, tonais
ou modais e exploração de timbres isolados. Segundo Wisnik : “ a música minimal expõe a
nu processos sonoros que parecem se realimentar não da intervenção do artista, mas da sua
própria lógica autônoma (…)” (Wisnik : 1999, pp 174-5).
É interessante o acompanhamento do movimento minimalista no que toca a
organização das alturas pois, na maioria das obras instrumentais do movimento, ocorre uma
retomada aberta das colunas mestras do Tonalismo : os graus tonais. Utilizado de maneira
modificada, uma espécie de tonalismo primitivo surge de seu discurso e apresenta os graus
tonais de maneira deliberada (I,IV,V). A insistência desses graus, na maioria das músicas
8
www.entretemps.asso.fr/Boucourechliev
41
minimalismtas, parece uma espécie de grito consciente acerca do « atrator » abandonado : a
tonalidade.
A relação primordial do minimalismo é derivada da repetição, reiteração ou iteração.
Reich em Writings About Music (1974) menciona que,uma vez determinado o proceso da
repetição, o mesmo segue como fator estruturante até o final da obra. Determinadas notas,
acordes, ou grupo rítmicos são iterados continuamente. Evidentemente que cada
composição, ou cada autor, apresenta elementos específicos, mas a idéia de um material
mínimo transformado por um processo de interação sonora reiterado, é a principal
característica desse sistema. Em algumas música muitos dos encontros sonoros se dão de
maneira indeterminada, evidenciando um acaso controlado, pois provém de situações
restritivas e consequentemente com graus de liberdade e autonomia pequenos. Um exemplo
da organização sonora emergente do Minimalismo pode ser verificada na obra Pendulum
Music de Reich. Nesta peça, três ou mais microfones conectados a um mesmo amplificador,
são suspensos do teto na mesma altura e deixados num processo de oscilação livre. A
distância entre os microfones e os auto-falantes criam re-alimentação no sistema gerando
sonoridades únicas ao processo.
La Monte Young (1935) teve suas primeiras obras derivadas do pensamento serial de
Webern, em seguida integrou o movimento Fluxus
9
e a partir da década de 60 inicia o
período da repetição onde começou a usar bordões repetitivos, em afinação natural, com
execução em conjunto em espetáculos com integração de luz. Como exemplo de suas obras
temos : The Well-Tuned Piano (1964), Piece for David Tudor n.1 e Composition 1960, n.2.
O Minimalismo para Tierry Riley (1935) surgiu de trabalhos com tape loops nos
estúdios da Rádio Francesa em 1962-3. Suas primeiras composições tiveram a influência de
Stockhausen. Uma marca de Riley é o uso do modalismo e a repetição serve para formar
um material não usual, ao invés da constante de Young. Riley utiliza a repetição e técnicas
de multiplicação. Um pequeno motivo ou célula é repetida até o executante decidir que
9
Movimento artístico datado do final dos anos 50, que reuniu música, poesia e dança através de
performances. Influenciados pelo Dada, pelo pensamento de John Cage e pela filosofia Zen,
efetuam um trabalho iconoclasta perante as várias categorias de arte através de uma rejeição
sistemática de instituições e da noção de obra de arte. (Fluxus: html)
42
deve mudá-la ou substituí-la. Entre suas peças destacamos : Five Legged Stool (1961), in
C (1964), Keyboard Studies n.2 (1964), Keyboard Studies n.7 (1967), A Rainbow in Curved
Air (1967).
Philip Glass (1937) estudou flauta, piano, harmonia e composição, depois estudou
com Nadia Boulanger e Milhaud, também trabalhou com músicos indianos e tibetanos.
Suas peças minimalistas iniciais (1965-8) são experimentais e exploratórias, mas seu estilo
pessoal é firmado com base na repetição, onde as figuras musicais são estruturadas de
acordo com um método aditivo. Provavelmente a origem deste pensamento encontra-se na
música indiana. Entre suas peças destacamos : Einstein on the Beach (1976), Strung Out
(1967), One One (1968), Music in Fifths (1969), Two Pages (1969), Music with Changing
Parts (1973), Modern Love Waltz (1977) (Meterns: 1983, pp.19-32).
9. Música Espectral
Os primeiros tempos da música espectral (início da década de 1970) são
fortemente marcados pela produção acústica instrumental, mas em pouco tempo inicia a sua
parceria com o mundo eletrônico, tornando-se este de grande importância em sua feitura. A
música espectral surge da base sonora instrumental : o som fundamental e seu espectro
sonoro, ou seja, a música onde todo material é derivado das propriedades acústicas do som.
Como argumenta Cohen-Levinas ao analisar a obra de Grisey :
« (…) a idéia de uma música que tira sua especificidade do material
sonoro e que gera simultaneamente a escuta, a percepção e o
desenvolvimento musical traduz em Grisey uma atitude
interpretativa da história do som propriamente dito. (…) A idéia do
som, mais exatamente, a idéia da harmonia revela-se através do
contato dos dedos com o teclado, a idéia da harmonia : é apalpando
os acordes, distinguindo através do tato a boa da má disposição
deste acorde no espaço do piano, que o integramos na história da
música ocidental no que ela detem de rigor e pragmatismo. »
(Cohen-Levinas : 1998, p. 52)
Recusando os modelos extra-musicais, os processos matemáticos e outras
43
abstrações, a focalização sobre o som, assim é que Gérard Grisey (1946-1998), um dos
mentores da música espectral na França juntamente com Tristan Murail (1947), resumiu em
1984 a posição de músicos que compartilhavam seus pontos de vista e estavam reunidos
desde 1973 no grupo « Itinerário ». Deste círculo pertenciam também o pianista-compositor
Michael Levinas (1949), Roger Tessier, Hugues Dufourt (1943) que tornou-se o teórico e o
porta-voz do grupo, dentre outros.
A música espectral se inspira por um lado na acústica, por outro na
formalização das tecnologias de estúdio, dando continuidade aos trabalhos de Stockhausen
e de György Ligeti (1923-2006) em busca de pontes, de equivalentes entre escrita
instrumental e princípios de transformação do som descobertos por manipulação em
estúdio. Unimos a estes dados os trabalhos de Emile Leipp e do laboratório de acústica
musical da Universidade de Paris VII-Jussieu, especialmente as análises espectográficas e
também a influência do compositor G.Scelsi.
A importância do estúdio eletrônico com seus instrumentos e técnicas é
fundamental para música espectral, como observa Coehn-Levinas :
« A eletrônica permitiu a toda uma geração de compositores de
desenvolver uma escuta microfônica do som (…) A síntese
instrumental exprime cada um dos composantes do som, assim
como a síntese eletrônica, os componentes são tão prolixos e
complexos que elas se prestam a uma micro-síntese.(…) » (Coehn-
Levinas : 1998, p. 56)
E continua no mesmo texto dizendo que
« (…) compreendemos que para Grisey a análise espectral de
instrumentos (sonograma, spectograma) é indispensável. Um som
de clarinete ou trompete, ou de flauta é explorado pela macro-
síntese em razão de suas qualidades intrínsecas » (Coehn-Levinas :
1998, p.57)
O que a música espectral vai buscar na acústica é inicialmente uma
compreensão dos fenômenos sonoros para em seguida fixar a escrita na realidade do
ouvido. “A música espectral se recusa a uma apreensão puramente abstrata, formal da
44
escrita musical, e nisso ela se opõem ao serialismo” (Mussat : 1995, p. 118). Ela busca sua
justificativa, a lógica de suas transformações e seu dinamismo no estudo dos parâmetros
pertinentes no plano da percepção.
A expressão “música espectral” pode levar a crer que se substitui um
mecanismo gerador (a série por exemplo) por um outro (o espectro). De fato, o estudo da
acústica e do som colocam também em evidência a interdependência dos parâmetros e suas
imbricações. Na prática, os compositores são levados a reconstituir artificialmente os
espectros sonoros distribuindo os harmônicos aos diversos instrumentos presentes, antes de
seguir as metamorforses no tempo e no espaço, como em Gondwana, onde após uma
simulação de espectros naturais, Murail faz-nos ouvir a transformação de um som
« desarmônico » de sino em um som harmônico de trompete (Mussat : 1995, pp 117-119).
Tristan Murail apresentou em seminário organizado pelo IRCAM em 1985 as
várias etapas pelas quais passaram a composição espectral. Apresentamos aqui essas etapas
que são acompanhadas das datas e principais obras/compositores :
« Primeiras experiêncais com os espectros (1973-1977)
espectro harmônico como ponto de partida (Grisey :
Périodes, Partiels ; Murail : Sables)
Analogias com a eletrônica clássica – no domínio
espectral : a modulação em anel ; primeiros cálculos de frequência (Grisey :
Partiels, Modulations ; Murail : Territoires de l´Oubli, Ethers)
Era da calculadora
Sistematização do cálculo espectral (1978-1980)
Aplicação sistemática da modulação em anel em uma
obra inteira (Les Courants de l´Espace)
Utilização da modulação de frequência como modelo
espectral (Gondwana)
A era do computador de bolso e do PDP-10
Formalização e informatização (1980-1984)
Generalização da idéia de espectro ; utilização de
funções para definir as frequências e as durações
Espectros não-lineares
A era da tela gráfica e do micro-computador
A caminho de uma verdadeira estação de trabalho para o compositor(1985...)
Simulação orquestral
45
A caminho de um tratado de orquestração informática ?
A era da síntese à domicílio »
(Murail in Cohen-Levinas : 1998, pp. 105-106)
10. Sistemas Individuais
A partir da década de 70 observamos uma série de caminhos abertos, muitos ainda
hoje sendo percorridos. Seja pela dificuldade de perspectiva histórica em que nos
encontramos para poder observar e concluir sobre os movimentos, seja pela multiplicação
de manifestações musicais, denominamos o referido movimento de Práticas Individuais.
Com esta denominação queremos apresentar aqueles sistemas que foram iniciados e
desenvolvidos pelos mais variados compositores e que, pelo menos de maneira aparente e
superficial, não podem ser considerados como uma corrente específica com características
comuns formando uma Escola. Como analisa Bousseur :
« À medida que nos aproximamos do final dos anos 70, torna-
se cada vez mais difícil discernir s linhas diretrizes do
pensamento musical ; embora, de certa maneira, o campo de
investigação possa parecer retraído, pelo menos na Europa, em
relação às trocas pluridisciplinares, à invenção de novos
modelos de notação e ao fato da prática musical fora do
âmbito do concreto conter pouco significado para os novos
compositores, assistimos no entanto, a um acréscimo da
individualização das linguagens musicais (…) » (Bosseur :
1990, p.191)
A este « verdadeiro labiritno de tendências » na classificação de Massin, podemos
identificar a « relatividade dos sistemas » ( Massin : 1997, p.1215).
Ao identificarmos as práticas individuais como um movimento a partir da década de
70 podemos igualmente lançar uma visão histórica ao passado e buscarmos identificar seus
precurssores. O primeiro nome a destacarmos é Debussy (1862-1918) que rompeu com a
antiga prática tonal, utilizando harmonias de quartas e quintas, acordes que não eram
construidos com sobreposição de terças, escalas modais, entre outros elementos, sem ter
46
tido discípulos imediatos (Massin : 1998, pp.907-916). Também podemos citar Charles Ives
(1874-1954) que numa espécie de isolamento de qualquer tipo de Escola vanguardista,
manipulava os sons de maneira nada convencional para sua época, fazendo sobreposição de
tonalidades e estruturas em blocos.
Entre a gama imensa de exemplos de compositores dentro das práticas individuais,
destacamos alguns aqui : Maurice Ohana (1914) que criou uma linguagem pessoal e
rebelde a toda influência dodecafônica, impregnando suas obras com um caráter mais
ibérico. Giacinto Scelsi (1905-1988) orientou suas pesquisas pelo conhecimento dos
músicos asiáticos e fez o que é chamada de « música estática ». (Massin: 1998, pp.1139).
Iannis Xenakis (1922-2001) com formação em arquitetura e matemática, começou a
compor tardiamente, com absoluta independência de todas as correntes surgidas a partir da
Escola de Viena. Utilizou teorias vindas da matemática : método estocástico, teoria dos
jogos, teoria dos conjuntos, entre tantas outras teorias (Massin : 1998, pp.1197-1200).
György Ligeti (1923-2006) cuja técnica de composição é a micropolifonia. Suas obras são
um pouco a síntese entre as pesquisas acústicas e um universo musical mais tradicional, sua
escritura é harmônica sem ser tonal atonal ou serial. (Ligeti: html)
Muitos desses compositores das práticas individuais desenvolveram trabalhos e
composições em grande parte de música eletroacústica e serão, desta forma, tratados no
item que aprofundará o assunto.
Os compositores brasileiros no século XX não fogem à regra dos sistemas
individuais. Sobretudo a partir de Villa-Lobos (1887-1959) ocorre uma tendência pela
utilização e mistura de variados materiais, não se podendo mais classificá-los a partir de
uma divisão estrita entre linguagem atonal ou tonal. Destacamos Widmer (1927-1990) que
mesclava um caráter abstrato a elementos regionais. Smetak (1913-1984 que desenvolveu
as « esculturas sonoras » e possibilitou um novo material sonoro e inaugurando através
delas um novo processo musical. Ele pregava « a abolição da tônica e sua substituição pelo
Som Gerador » e a amplicção da série de 12 para 36 sons (…) » (Mariz: 1983, p.279).
Cláudio Santoro (1919-1989) que teve uma marcante fase dodecafônica e depois adotou um
estilo mais eclético. Gilberto Mendes (1922) « compositor pioneiro em nosso país da
música aleatória, a música concreta, visual, microtonal e o humor » (Mariz : 1983, p, 310).
47
Almeida Prado (1944) pianista e compositor que desenvolve sistemas diferenciados para
suas obras, dentre os quais destacamos um sistema baseado nas ressonâncias, utilizados em
seu ciclo para piano « Cartas Celestes » (1974). A obra de Almeida Prado leva a exploração
de um nova forma organizacional definido pelo próprio compositor como « transtonal »
(Almeida Prado : 1985, p.22). Neste sentido, o compositor engendra uma estrutura
discursiva que perpassa os processos tonais, através da ressonância e da série harmônica
construindo centros ou atratores sonoros locais.
Como já dissemos anteriormente, outra manifestação importantíssima do século XX
foi a composição desenvolvida através de suporte tecnológico, ou a música eletroacústica, e
que, por sua especificidade técnico-histórica será abordada a seguir em uma seção
destacada especialmente para o assunto.
48
Parte 2
Segunda Metade do século XX : A tecnologia eletrônica
1. Introdução
10
O século XX assistiu o nascimento da arte eletrônica e a música não escapou a
este movimento. Como novidade inicial um instrumento chamado « gravador » instigou a
curiosidade de um engenheiro de som francês, que passou a explorar suas possibilidades e
apresentou ao mundo um novo universo de possibilidades sonoras. Não podemos
considerar a música da segunda metade do século XX sem abordarmos os recursos
tecnológicos ligados à eletricidade que florescem neste momento. Como analisa Vande
Gorne :
« No início do século XX, tudo concorria para a explosão de uma
nova arte : a generalização da eletricidade nas cidades, os primeiros
vôos de aviões, automóveis que familiarizam o homem à idéia e a
sensação da velocidade. A partir de então, a comunicação entre os
seres humanos passa pelas máquinas (o telégrafo em 1837, o
telefone de 1876, mais tarde a televisão, do grego ((tau)-(eta)-
(lambda)-(eta) : à distância), ela é mediatizada à velocidade da luz,
bem além das capacidades naturais de transmissão do corpo
humano.
A fixação sobre um suporte de um momento roubado da vida foi
também possível para qualquer fato : a fotografia, o cinema
habituam o homem a viver uma realidade diferenciada e a confiar a
rememoração, a narração das coisas por outras mídias que escreve.
A ilusão ou a modificação desta realidade torna-se o objeto e o
sujeito da arte contemporânea. A música conhece igualmente sua
ferramenta de fixação do som (sonofixação) (Chion : 1991
11
) : a
gravação sonora. Pierre Schaeffer abriu uma via profundamente
nova, mostrando a partir de 1948 todo o interesse musical a tirar de
uma concepção perceptiva e morfológica da composição que ele
10
Abordaremos nesta seção os movimentos musicais da segunda metade do século XX que
valeram-se predominantemente do desenvolvimento tecnológico elétrico para sua produção. As
nomenclaturas que apresentaremos aqui, apesar da grande ambiguidade, seguem a evolução
histórica de seu aparecimento (CHION : 1982, pp 3-17).
11
L'Art des sons fixés ou la Musique concrètement. Fontaine, (France), Metamkine/Nota
Bene/Sonoconcept, 1991 in Vande Gorne: html
49
chama de « música concreta (…) » (Vande Gorne : 1995)
2. Música Concreta
O termo música concreta se opõem, em um primeiro momento à música
abstrata, ou seja, à música instrumental que necessita de intermediários (partituras,
intérpretes) para realizar a idéia musical do compositor. Foi Pierre Schaeffer (1910-1995)
engenheiro de som da Rádio Televisão Francesa, que em 1948 inventou esta modalidade
musical e a batizou de « música concreta ». Em 1952 teoriza em sua obra À la recherche
d´une musique concrète, que esta consiste em gravar sons sobre fita magética depois
montar esses « objetos sonoros », de tal maneira que eles tornem-se « objetos musicais ».
Pierre Schaeffer começa por definir a música concreta como uma « colagem e
um agrupamento sobre fita magnética de sons pré-gravados a partir de materiais sonoros
variados e concretos (…) » Anos mais tarde apresenta seu postulado de musicalidade :
« O objeto sonoro é o que eu escuto, é uma existência que eu
distinguo. (…) como se passa do sonoro ao musical ? Sonoro, é o
que eu percebo, musical, é um julgamento de valor. O objeto é
sonoro antes de ser musical : ele representa o fragmento da
percepção, mas se faço uma escolha dentre os objetos, se isolo
alguns, talvez possa chegar ao musical. » (Schaeffer : html)
Foi graças à chegada do gravador (1939), da fita magnética e a generalização de
utilização dos procedimentos magnéticos na indústria fonográfica (1945), que se iniciou a
exploração do fenômeno sonoro (1948-9). No Estúdio de Ensaio, transformado em Grupo
de Pesquisa de Música Concreta (GRMC) em 1951 quando se instala à Rádio Televisão
Francesa, Pierre Schaeffer se servia do estudo e da classificação dos sons para denominar
os objetos musicais. Vários compositores, entre os quais Pierre Boulez, Luc Ferrari,
Karlheinz Stockhausen ou Jean Barraqué passam pelo GRMC para realizar estudos
concretos.
Em 20 de junho de 1948 ocorre o primeiro « concerto de barulhos ». Este concerto
compreendeu as seguintes peças : Étude n° 1 « déconcertante » ou étude aux tourniquets ;
Étude n° 2 « imposée » ou « étude aux chemins de fer » ; Étude n° 3 « concertante » ou
50
« étude pour orchestre » ; Étude n° 4 « composée » ou « étude aux pianos » ; Étude n° 5
« pathétique » ou « étude aux casseroles ».
Schaeffer com a palavra « concreta » queria dizer : « que toma-se o som na
totalidade de seus caracteres… » (Chion : 1982, p.5). Trazia também uma nova maneira de
escutar e de nominar o som, a « escuta concreta ».
A primeira grande obra de música concreta é Symphonie pour un homme seul (1950)
assinada em dupla : Pierre Henry e Pierre Schaeffer.
3. Música Eletrônica
Entre 1949-50 surge a música eletrônica que vem modificar a definição de
« concreta ». Música concreta passa então a designar mais precisamente a música feita a
partir de sons gravados por microfone, em oposição aos sons eletrônicos, artificiais, que
precisam de osciladores elétricos e de alto-falantes para existir. Em linhas gerais, a música
eletrônica é aquela feita por instrumentos eletrônicos (Ondas Martenot, os sintetizadores, o
órgão eletrônico, dentre outros), ou seja, uma música concebida eletronicamente,
contrariamente à música concreta que utilizava sons captados por microfone.
A « música eletrônica » desenvolveu-se na Alemanha, inicialmente em Colônia.
Sua aparição é fixada por volta de 1950. Os seus fundamentos científicos foram
estabelecidos por Meyer-Eppler no Instituto de Fonética e de Pesquisas Cibernéticas da
Universidade de Bonn, mas foi em Darmstadt em 1951, por ocasião dos cursos de férias
internacionais, onde foram apresentados em estado bruto os primeiros experimentos de
música eletrônica. O profeta principal e promotor artístico do movimento foi o teórico e
compositor Herbert Eimert (Stuckenschnidt : 1969, p. 178). É Eimert que estabelece seu
postulado :
«(…) só a técnica serial de Schoenberg, adaptada e extrapolada aos
quatro parâmetros oficialmente reconhecidos do som (altura,
intensidade, duração, timbre) seria capaz de dar à música eletrônica
sua linguagem. » (Chion : 1982, p.7)
É de Stockhausen, o Étude n1 , composição do verão de 1953, a primeira obra
fundada sobre o « som sinus », ou sinoidal, composto de sons puros sem interferência de
51
harmônicos. Eimert e Stockhausen concordavam com o parentesco entre a música concreta
e a prática contemporânea da composição serial. Já no final dos anos 50, o perfil da música
eletrônica modifica-se através de uma concepção não mais estritamente ligada à idéia serial
de Schoenberg. Algumas obras eletrônicas do fim dos anos 50 são : Kontakte
Stockhausen, Momenti – Berio, Continuo – Maderna.
Datam da mesma época outros estúdios que começaram o trabalho com a
aparelhagem eletrônica, a citar : Milão, Berlin, Suiça, USA e Tokyo. Em um relatório
apresentado por Lejaren Hiller em Darmstadt em 1963, diretor de um laboratório de música
eletrônica em Urbana/USA, este faz um balanço da música aliada à tecnologia elétrica e
condensa a produção de até então em quatro categorias :
« 1) música escrita para instrumentos eletrônicos desde 1920,
2)música eletrônica sobre fita magnética, desde 1948, 3)música para
sintetizadores eletrônicos, desde 1955, 4)música para
computadores, a partir de 1957 ». (Stuckenschmidt : 1969, pp. 190-
2)
4. Música Eletroacústica
As experiências com a arte eletrônica continuam e a expressão “música
eletroacústica” surge no fim dos anos 50 para designar a música sobre fita magnética, uma
música que utilizava a partir de então, os sons « concretos » (captados por microfone) e os
sons eletrônicos (produzidos por osciladores).
A obra citada como inaugural da música eletroacústica é Canto dos
adolescentes de Stockhausen (1956) onde o compositor procura realizar uma fusão entre a
voz manipulada e multiplicada de um jovem lendo a Bíblia (material concreto) e os sons
eletrônicos. Outro exemplo é Haut-voltage (1956) de Pierre Henry onde realiza amálgamas
de sons concretos e eletrônicos, criando uma espécie de orquestra imaginária onde todos os
sons coabitam em harmonia.
A expressão « música eletroacústica » ao se propagar tomou uma extensão
enorme, a ponto de designar todo tipo de criação que envolve eletricidade, eletrônica e
52
afins, sem uma significação precisa. É a expressão mais usada e geral. Em sentido mais
restrito ela é a música para fita magnética realizada em estúdio, em gravadores, a partir de
sons de origem acústica (captados por microfone) ou eletrônica, que são manipulados, ou
não, combinados, montados, superpostos de maneira a realizar obras fixas sobre suporte
(fita magnética), sendo suscetível de ser interpretada em concerto pelo emprego de
orquestras de alto-falantes (Chion : 1986 : pp. 9-10).
5. Música Acusmática
Em um programa de rádio em 1955 na França, o escritor Jérôme Peignot usa a
expressão « barulho acusmático » para descrever a separação de um som de suas origens,
como era encontrado na música concreta. Pierre Schaeffer em 1966 compara o papel do
gravador à cortina de Pitágoras, enfatizando a concentração do ouvinte em relação à música
gravada
12
.
Em 1974 François Bayle, diretor do GRM sugere a adoção do termo como mais
conveniente para representar as condições especiais de escuta da música gravada. Assim,
temos que a expressão música acusmática pretende chamar a atenção sobre o modo de
ouvir os sons e a música (Emmerson e Smalley: 1980, pp. 61). Desde então, a música
acusmática passa a figurar nos discos lançados pelo GRM bem como designar a produção
de Bayle. Para efetivar a prática da música acusmática foi criado « Acusmonion » -
orquestra de alto-falantes - que consiste em uma série de caixa de som, ou alto-falantes de
variados tamanhos, dispostos em várias distâncias, direções, ajudando à organizar o espaço
acústico segundo as características da sala e o espaço psicológico em função da obra
executada (Bosseur : 1992, p.13).
6. Música Mista
12
A expressão « acusmática » vem da grécia antiga (akusmatikoi), especificmente da escola
Pitagórica, onde se colocava uma cortina entre o mestre e os alunos para que a visão não
atrapalhasse a concentração da escuta.
53
A música mista é caracterizada pelo uso de fita magnética e instrumentos,
incluindo a voz, em execução ao vivo. A reunião desses elementos em uma obra deram-se
gradualmente no cenário musical, como pode ser acompanhado em nosso relato até então.
Uma das primeiras realizações foi Déserts (1952) de Varèse que propõe uma justaposição
de sequências eletroacústicas e orquestrais. Depois de alguns anos surge Rimes de
H.Pousseur e Kontakte (1960) de Stockhausen onde os instrumentos desenvolvem relações
de oposição, de aliança e de complementariedade com os fenômenos eletrônicos. Outras
obras significativas do estilo : Orphée 53 – Pierre Henry e Pierre Schaeffer, (1953), obras
de Jean-Etienne Marie (1917-1989), Musica su due dimensioni I (1952) – Bruno Maderna
para flauta, percussão e fita magnética.
7. Live e Tratamento em Tempo Real
Após os aparelhos terem se tornado suficientemente aperfeiçoados a música
eletrônica começa a realizar concertos com execução ao vivo (live) e mais tarde passa a
fazer modificações eletrônicas nos sons no momento da execução ao vivo (Tratamento em
tempo real). São sintetizadores, gravadores, instrumentos ou corpos sonoros eletrificados,
material esse que passou também a ser empregado em improvisações (geralmente em
grupo) ou em obras escritas.
O movimento live inicia-se no USA nos anos 60 e depois entra na Europa
através da Itália (Musica Elettronica Viva). John Cage, com a série Imaginary Landscape
(1939-52), é pioneiro no uso de equipamentos eletrônicos ao vivo. Stockhausen denomina
inicialmente essa prática de « microfonização”, o que explora em Mikrophonie I e
II, Mixtur, dentre outras.
O « live » suscita não somente obras, mas muitas experiências com dispositivos
eletrônicos mais ou menos complexos. Citamos as experiências de « biofeedback », onde o
organismo humano serve de inicializador de processos sonoros. Como exemplo temos as
obras de David Rosenboom, Corticalart de Pierre Henry e Roger Lafosse.
A característica principal da modalidade « Tratamento em Tempo Real » é que
o som pode ser modificado no momento mesmo em que está sendo emitido, ou ainda ser
54
repetido com atrasos de um a vários segundos. Citamos aqui : Hallaphone - Hans-Peter
Haller, Solo - Stockhausen, Concerto Milieu Divin - Jean Etienne Marie, e obras de
Vandenbogaerder.
8. Música feita por Computador
Pela rápida e fácil difusão do computador na vida cotidiana, ele atende
atualmente os vários domínios das realizações humanas. Ele tornou-se uma ferramenta que
alcançou todas as artes e por consequência, a música. Dentro do mundo musical, podemos
abrir ainda um leque de possibilidades e terrenos que o computador vem atendendo nos
últimos anos, indo da edição de partituras até sistemas mais complexos de composicão.
Destacamos aqui em linhas gerais, a trajetória histórica pelo qual passou o computador
dentro do mundo musical especificamente no que concerne à criação.
As primeiras experiências musicais com computador foram efetuadas em 1956
nos EUA, por M. Klein e D.D.Bolitho. Em 1957 Lejaren Hiller e Leonard M. Isaacson da
Universidade de Illinois, apresentam a Suite Illiac para quarteto de cordas, nesta obra, uma
das experiências de composição automatizada consistia em programar as regras do
contraponto tais como havia definido Fux em seu tratado Gradus ad Parnassum de 1725, o
programa consistia em uma gramática, sendo todos os aspectos sistemáticos da composição
assumidos pelo computador.
Jean-Claude Risset (1938) é um dos grandes expoentes da música feita por
computador. Pianista e compositor, fez também estudos científicos. Trabalhou na década de
60 nos EUA com Max Matthews na Bell Telephone Laboratories desenvolvendo um
trabalho de síntese de sons por computador : imitação de sons instrumentais, sons
paradoxais, processos de desenvolvimento sonoro, dentre outros. Segundo Jean-Claude
Risset, o computador permite explorar as consequências de um processo muito complexo
para que aquele que a concebe possa colocá-la em prática até o fim. Os programas
(softwares) constituem-se em ferramentas capazes de favorecer um conjunto de cálculos e
de fornecer os elementos de análise de escrita.
Em 1959 Matthews, Pierce e Guttman iniciam no laboratório Bell Telephone
55
Company experiências de análise e síntese de palavras, através de um conversor digital
analógico que permetia converter os resultados numéricos dos computadores em tensões
elétricas variáveis.
Como ferramenta que gera outras ferramentas, o computador pode servir
também a estabelecer conexões entre os aparelhos eletrônicos, um complemento precioso
dos sintetizadores que agrupados, ocupam muito pouco espaço com relação aos pesados
equipmentos dos primeiros estúdios de pesquisa.
Os equipamentos concebidos no IRCAM (Institutto de Pesquisa e Coordenação
Acústica Musical) em Paris visam reduzir a distância entre a busca dos pesquisadoes e dos
compositores (Bosseur : 1992 : pp. 110-113).
Um nome também a ser destacado no domínio computador-música é I. Xenakis
(1922-2001), arquiteto de formação, criou uma máquina que permite associar grafismo e
resultados acústicos através de uma tablete gráfica ligada a um computador e seus
periféricos. Inicia este projeto na década de 70 e o coloca em funcionamento em 1980 a
ferramenta denominada « UPIC ».
Segundo Hugues Dufourt :
« O surgimento da informática musical aboliu de maneira
irreversível toda referência aos conceitos ou modelos saídos da ação
mecânica. Ela rompe igualmente com o domínio « analógico » da
eletroacústica. O tratamento numérico do sinal implica, em sua
apreensão mesma, uma conversão de mentalidade. »
(Dufourt :1991, p.8)
Os trabalhos sobre computador e música continuam avançando pelo mundo
todo, sendo este um campo em plena expansão, aberto às pesquisas e novas descobertas.
9. Particularidades
Dentro do binômio cronologia/gênero que nos propomos aqui, é indispensável
ao menos citar o caso da Paisagem Sonora. Paisagem Sonora tem sido a designação de
alguns trabalhos que se interessam pela utilização de sons gravados das mais diversas
56
fontes naturais, seja os sons das ruas, do movimento das águas, tempestades, animais,
dentre tantos outros e sua utilização dentro de um contexto artístico.
Destacamos aqui os trabalhos de Jacques Lejeune (1940) que através de sua
obra Symphonie au bord d´un paysage (1981) propõem uma composição a partir do modelo
gráfico de uma paisagem, apresentando para isso um desenho muito pertinente, onde
associa a tansformação lenta de traços figurativos em abstratos. (Pascal: 2004)
Outro compositor de destaque é François Bernard Mâche (1935) que trabalha a
partir do conceito de fonografia, ou seja, a extração de modelos da natureza. Como obras
representativa citamos Kassandra (1977), Le dauphin d´Arion, dentre outras. (Pascal: 2004)
Luc Ferrari (1929-2005) é outro exemplo neste item, que apesar de ser um
compositor de difícil classificação entre os gêneros, considerado um iconoclasta, trabalha
os sons que toma da natureza de maneira ímpar, trazendo uma qualidade do som e sua
aproximação do ouvido que afetaram sensivelmente o campo da escuta eletroacústica.
Temos exemplo em : Presque rien (1977), Heterozygote, dentre outras. (Pascal: 2004)
As evoluções tecnológicas sempre crescentes e ligadas a todas as mídias, tem
aumentado nos últimos tempos a interação entre várias expressões artísticas, e cada vez
mais vê-se trabalhos que reúnem um acervo de meios em uma exibição de espetáculo.
Multimídia ou várias mídias são termos que designam globalmente todas as obras,
manifestações, happenings, que fazem apelo à técnicas de expressões variadas (música
instrumental, eletroacústica, sintetizadores ao vivo, dança, lasers, projeções, emissões de
perfumes na atmosfera, luzes, leituras, vídeo, dentre outros) reunidas em um mesmo
espetáculo. Os americanos são pioneiros dos trabalhos de multi-mídias, dentre eles
destacamos Cage e Oliveros. Na Europa : Riedl, Ferrari, Bayle, Xenakis, Chion, Henry,
Clozier.
10. Observação Final
Não pretendemos aqui estabelecer uma história ou conceitos definitivos da
música e tecnologia eletrônica, o que seria um contrasenso, escapando completamente ao
perfil de nossa pesquisa. Por tratar-se de um universo em plena expansão, efetivamente
57
ligado às novas descobertas tecnológicas, entendemos que muitas novas possibilidades
podem estar sendo estabelecidas no momento em que escrevemos essas linhas. Existem
inúmeras outras expressões que embora empregadas algumas vezes em diversas situações
(concertos ou textos) não nos ocupamos aqui. Não abordamos a música experimental,
music for tape, eletro-instrumental por acreditarmos estarem contidas de certa forma, na
organização que apresentamos acima. O estudo histórico e terminológico que apresentamos
aqui tem o intuito de referenciar termos, expressões e análises que faremos ao longo deste
trabalho.
58
Capítulo 2
59
Capítulo 2
« Encontro entre Schoenberg e Kandinsky »
Parte 1 – Gênese
1. Kandinsky p.59
2. A amizade p.63
3. Antecedentes p.63
4. Correspondências p.67
5. A espiritualidade p.74
5.1. Schoenberg p.74
5.2.Kandinsky p.80
Parte 2 - Conceitos
1. Idéia p.86
2. Necessidade Interior p.90
3. Revolução/Evolução p.95
Parte 3 - Concepção e elaboração musical p.91
60
Capítulo 2
Encontro de Schoenberg e Kandinsky
Parte 1 – Gênese
1. Kandinsky
Wassily Kandinsky nasceu em Moscou em 1866. De origem aristocrática realizou
viagens com a família pela Itália, tendo contato com as artes pictóricas desde tenra idade.
Além disso, teve uma educação que envolvia a prática musical, estudou piano e violoncelo
desde a infância. No Liceu aprende alemão, depois fez estudos de direito na Universidade
de Moscou chegando a defender uma tese de doutorado sobre economia política. Nesta
época faz viagens pelo interior da Rússia despertando um interesse agudo pela arte
decorativa de uma província desconhecida por ele (Provincia Setentrional de Vologda). Em
1889 visita a Exposição Universal em Paris. E na idade madura, com 30 anos, decide
começar a estudar pintura frequentando a Escola de Arte de Anton Azbe em Munique. Em
1900 entra na classe de von Stuck também em Munique e pinta seus primeiros quadros. Em
seguida funda o Grupo Phalange e abre uma escola de pintura. É desta época suas
primeiras incisões em madeira. Realiza muitas exposições e viagens por toda Europa. Em
1909 compra uma casa em Murnau onde realiza vários quadros inspirado no ambiente que
encontra na região. É a época das primeiras « Improvisações » e quando começa a
escrever O som amarelo, também funda a Nova Associação dos Artistas de Moscou. De
1910 é sua primeira aquarela abstrata. Em 1911 torna-se amigo de Klee, Macke, Arp e
Schoenberg, iniciando a troca de correspondências com este. Organiza com Franz Marc o
grupo Cavaleiro Azul. Publica neste mesmo ano O Espiritual na Arte. Com o início da
Guerra deixa a Alemanha e retorna para Moscou. A partir de 1918 torna-se membro do
Departamento de Artes Visuais do Comissariado do Povo, ocupado com múltiplas
atividades culturais após a Revolução de Outubro, dedica-se pouco à pintura. Ocupa-se da
organização de museus em Moscou e províncias, mas continua a publicar artigos teóricos
na Alemanha. Em 1921 termina sua atividade pedagógica na Rússia e volta para a
61
Alemanha. É chamado para ensinar na Bauhaus de Weimar e dirige o atelier de pintura
mural. Publica Pequenos Mundos, série de 12 estampas com técnicas diversas. Em 1924
funda com Klee, Feininger e Jawlenskj o grupo dos Quatro Azuis. Em 1926 publica Ponto e
Linha sobre o Plano. Por todo esse tempo realiza inúmeras viagens pela Europa. Em 1928
torna-se cidadão alemão e realiza a cenografia de Quadros de uma exposição de
Mussorgski. Em 1933 Bauhaus é fechada pelos nazistas e Kandinsky transfere-se para
Paris. Em 1939 torna-se cidadão francês. No momento da invasão alemã refugia-se por dois
meses em Cauterets, nos Alpes, depois retorna à Paris ocupada. Vem a falecer em 1944,
antes do final da Guerra.
Kandinsky é considerado o pai do abstracionismo. Foi ele quem revolucionou a
pintura no século XX. Fala-se em uma história da pintura considerando antes e depois de
Kandinsky. O início do século XX apresenta um movimento de transformações em todas as
artes, vários são os fatores que explicam esse cenário. Fatores de ordem sociais, políticas,
econômicas, ou psicanalíticas desta época vem somente a confirmar que tudo favorecia um
cenário de mudanças, questionamentos, propiciando o nascimento de novos paradigmas. É
aí que localizamos Kandinsky e Schoenberg.
2. Amizade Schoenberg/Kandinsky
Schoenberg (1874-1951) e Kandinsky (1866-1944), circulavam pelo mesmo meio
artístico Europeu, entre Alemanha e Áustria do início do século XX. Foi assim que,
assistindo a um concerto de Schoenberg, Kandinsky entusiasma-se por estreitar contato
com aquele, escrevendo-lho uma primeira carta. A partir de então inicia-se uma longa troca
de correspondências. Nessas cartas a produção e o pensamento de ambos é apresentado. O
que salta aos olhos é a afinidade espiritual que tinham, afinidade esta com reflexos nas
opiniões sobre arte, música, pintura, e principalmente na busca de um caminho de
transformação da linguagem tradicional. Eram dois inconformados com a realidade e,
paradoxalmente, amantes de tudo, ou quase tudo que a tradição lhes havia ofertado.
Schoenberg buscava libertar a música da tonalidade e Kandinsky buscava a liberdade da
pintura do figurativismo.
62
As cartas são dos anos 1911 a 1914, e giram em torno de temas de interesse comum,
de assuntos que ambos se dedicavam no período, trazem reflexões de seus experimentos
teatrais, anotações sobre seus trabalhos teóricos como O Espiritual na Arte, o almanaque O
Cavaleiro Azul, Harmonia além de encontrar-se apontamentos gerais sobre pintura e
música. A descoberta da amizade entre eles foi o elo inicial que utilizamos para realizar
uma série de composições que acompanham este trabalho. Desta forma, apresentamos aqui
em linhas gerais a trajetória dessa amizade.
3. Antecedentes
Ambos, Schoenberg e Kandinsky, partiram da tradição, o primeiro do tonalismo e o
segundo da arte figurativa, e gradativamente as desintegraram (Leoni :2003, html). Pode-se
observar muitos pontos comuns em suas produções e também similaridades em suas idéias,
espiritualismo, em seus interesses culturais e atitudes, mas cada qual fez sempre o seu
próprio caminho, cada qual produziu seu próprio trabalho. Eles não fizeram música
taduzida em pintura ou pintura em música.
« A atitude deles foi mais ´religiosa´, eles acreditavam em ´outro´
mundo que poderia ser visto na arte, acima da forma o conteúdo, a
essência íntima das coisas acima do aspecto externo, emancipação
da dissonância das notas da harmonia tradicional como das cores. »
(Hal-Koch : 2002, p.209)
Kandinsky era 8 anos mais velho que Schoenberg e começou a pintar depois dos 30,
mas sua evolução artística ocorreu no mesmo tempo que a de Schoeberg. Eles tiveram
reconhecimento público também contemporaneamente. Esta evidência é tão surpreendente
que podería-se pensar que um influenciou o outro, mas esta idéia é refutada por Hahl-Koch
que argumenta o não conhecimento um do outro antes de 1911 e a falta de contato
completo entre 1914-21. Abaixo segue alguns pontos importantes de suas trajetórias, para
demonstrar suas similaridades :
Arnold Schoenberg
Viena – 1874/Los Angeles – 1951
Wassily Kandinsky
Moscou – 1866/Neuilly-sur-Seine – 1944
63
Schoenberg nasceu em Viena de família de
origem burguesa, possuía formação musical,
tendo estudado violino, dedicou-se também à
pintura.
Kandinsky quando criança estudou
música (piano e violoncelo, em 1896
iniciou seus estudos de pintura, dedicou-
se a escritos de poesias e peças teatrais.
Nascido em Moscou de família
aristocrata, cultivava a língua alemã e foi
morar jovem em Munique.
1899 – compõe Verklärt Nacht, op. 4 (tema :
casal de amantes). Em 1903 – Pelleas und
Melisande, Jugendstil, Gurrelieder (1900 e
1911).
Em 1903/4 Alban Berg e Anton Webern
tornam-se seus alunos.
Conhece Mahler.
Da mesma época os temas de Kandinsky
são : linguagem natural, fábula, lenda,
casal de amantes, motivos folclóricos.
Alguns quadros : O adeus (1903), O
tocador de gusli (1907), Noite de Lua
(1907). Em 1900 torna-se aluno de Franz
Stuck em Munique, em 1901 funda a
Escola de Arte e Galeria Phalanx em
Munique
Poesia sem Palavras é publicada em
Moscou.
Em 1906-7 Schoenberg está na busca de novos
caminhos expressivos, adota a redução da
duração das composições, condensação da
expressão, renúncia da repetição, até às
variações, troca de movimento harmônico de
terças para quartas, alargamento gradual do
limite da tonalidade, passa por ilhas tonais,
chega à atonalidade
Segundo Quarteto de Cordas op.10 (1907-8),
Erwartung, crescente atonalismo.
Schoenberg pintor. Período em que
Desta mesma época temos os
quadros de Kandinsky Outono na Baviera
(1908), Jardim do Castelo (1908),
« Paisagem de verão » (1909), Igreja de
Murnau (1908-9). Inicia o trabalho com
suas primeiras composições cênicas,
funda a Nova Associação dos Artistas de
Munique. Em artigo de 1913 Thomas von
Hartmann analisa o gradual
distanciamento de Kandinsky dos cânones
figurativos a partir dos anos 1908-9.
64
realizou a maior parte de suas pinturas (70
quadros à óleo, 160 aquarelas e desenhos).
1908-9 – o ponto alto do atonalismo
com Klavierstucke op.11 (1909).
Kandinsky inicia sua primeira
Composição Cênica. Kandinsky realiza
« O som amarelo », obra onde desenvolve
a idéia de identidade interior entre som ,
cor e palavra. Inicia Improvisações e
adquire uma casa em Murnau/Baviera.
1910 – Schoenberg realiza a primeira
exposição como pintor. « Colours », op.16,
uma das 5 peças para orquestra apresenta a
antecipação da composição baseada na
« Klangfarbenmelodie » –melodia de timbres.
Schoenberg dissolve inteiramente a tonalidade.
Críticos da época comentam o
desenvolvimento da música e da pintura
estreitamente ligados como tendência desde o
Romantismo.
Kandinsky no mesmo ano realiza a
primeira Aquarela abstrata. Termina O
Espiritual na Arte e Improvisação VII.
1911 – Schoenberg termina seu livro
Harmonielehre que é editado em Viena.
Compõem 6 peças para piano opus 19.
Kandinsky publica O Espiritual na Arte.
Kandinsky apresenta em Berlim uma
exposição com 4 pinturas de Schoenberg.
Kandinsky faz três quadros sobre o tema
de São Jorge, funda o Cavaleiro Azul
junto a Franz Marc.
1912 – Shoenberg compõe Pierrot
Lunaire. Kandinsky faz sua primeira
exposição pessoal. Sai o volume Arnold
1913 – Primeira performance de
Gurrelieder em Viena. Publicação de
Kandinsky 1903-1913, termina
65
Schoenberg com artigos e testemunhos de
artistas e alunos.
Composição VII e a coleção de poemas
Klange (sons).
1914 – Kandinsky realiza
composições musicais para sua
Composição Cênica. Começa a refletir
sobre as bases de seu futuro livro : Ponto
e linha sobre o plano. Schoenberg passa o
verão com a família na Baviera, vizinho à
casa de Kandinsky. Kandinsky retorna à
Rússia com o início da I Guerra.
1915 – Schoenberg é chamado ao
exército austríaco, trabalha no oratório A
escada de Jacó.
1918 – Schoenberg funda a Associação
para representações musicais privadas.
Em 1918 Kandinsky é nominado
membro do Departamento de Artes
Visuais do Interior do Comissariado do
Povo para a difusão da Cultura. Ensina
em Moscou. Como diretor de Museu da
cultura pictórica organiza 22 museus
provinciais.
1921 – Conclui Suite para Piano op.25,
Kandinsky na Rússia no mesmo ano sua
linguagem pictórica apresenta formas
geométricas com maior rigor. Nova edição
de Harmonia.
Kandinsky funda em Moscou a
Academia das Artes e Ciências , em
dezembro se transfere para Berlim. Início
da fase de objetivação para ambos :
Schoenberg- uso das 12 notas, princípio
da não repetição das mesmas.
1922/23 – Segunda fase do atonalismo
- estabelece a série em ordem mais ou menos
arbitrária válida para determinada obra.
1922 – Kandinsky torna-se
professor em Bauhaus, apresenta novo
estilo, redução de formas fundamentais e
66
Ambos se apegam às formas tradicionais e ao
conceito de obra : Schoenberg – sinfonias,
música de câmara, oratório.
cores primárias. Usa cores com o
pensamento serial.
Kandinsky- pintura à óleo,
aquarelas, desenhos.
1923 – Publicação da primeira obra
dodecafônica : Peças para piano opus 23.
(Halh-Koch : 2002, p. 206)
1925 – Schoenberg torna-se professor
de composição na Akademia der Kunste –
Berlin
1926 – Schoenberg transfere-se para
Berlim pela terceira vez.
1926 - Kandinsky publica Ponto e
linha sobre o plano.
1928 – Kandinsky coloca em cena
no teatro de Dessau Quadros de uma
exposição de Mussorgski com jogos de
luzes e formas abstratas.
1931 – Schoenberg trabalha em Moisés
e Aarão.
1933 – Schoenberg imigra para New
York/EUA e
1932 – Fechamento da Bauhaus.
1933 - Kandinsky muda-se para
Neuilly-sur-Seine/France.
Tabela 1 – Cronologia comparada entre Schoenberg e Kandinsky
4. Correspondências
67
Em 1911 após Kandinsky ter assistido a um concerto
1
de Schoenberg e ter ficado
profundamente impressionado com sua música escreve-lhe uma carta, iniciando assim uma
vivaz correspondência nos anos sucessivos. (Hahl-Koch : 2002, p.198) Segundo Hahl-koch
as principais cartas giram em torno de 3 temas : 1) os experimentos teatrais, 2) as principais
obras teóricas e 3) pintura e música.
Kandinsky tinha uma refinada sensibilidade musical. Seu conhecimento teórico não
era profundo mas chegou a desenvolver muitas idéais em suas obras teóricas baseado em
sua apreensão musical. É importante dizer que foi um dos primeiros ´não-músicos´a
reconhecer o valor de Schoenberg. Seu interesse pela música, especialmente no período
entre 1909-12 é acompanhado também pelas anotações de seu amigo Thomas von
Hartmann.
Ao ouvir a música de Schoenberg pela primeira vez pode ser que Kandinsky tenha
ficado muito impressionado com a linguagem nova que se apresentava, pode ser também
que ele estivesse consciente das inovações de Schoenberg, mas sobretudo, pode ser que ele
intuisse uma afinidade com a música tão inovadora que afrontava as regras tradicionais,
como a pintura daqueles anos. Tanto Quarteto para codas op.10 como as Peças para piano
op.11 apresentam o trabalho em torno da atonalidade. Schoenberg, explicando esse período
criativo, afirma estar renunciando a um centro tonal e que apenas alguns retornos
ocasionais das tríades perfeitas representam a tonalidade.
As peças executadas neste concerto haviam sido apresentadas em Viena dois anos
antes - 1908 - e causaram um grande escândalo. A receptividade dessas obras era bastante
polêmica pois, no início do século XX o romantismo era ainda a corrente que predominava.
Há vários artigos publicados na época e cartas entre amigos que testemunham o grande
transtorno causado por uma música que soava tão constrangedoramente diferente. Tanto
que a expressão « atonalidade », surgida nessa época, possuía um caráter depreciativo.
Schoenberg não gostava da expressão « atonal » mas seus opositores e críticos trabalhavam
1
Em 1° de janeiro de 1911 Kandinsky junto a outros amigos assiste em Munique a um concerto
onde é executado o Quarteto para cordas op.10 de 1907-08 e as Peças para piano op.11 de 1909 de
Schoenberg.
68
em cima dela para atacar a nova manifestação. Como chegou a escrever Hans Pfitzner,
compositor de posição conservadora :
« A corrente atonal a nivel international (…) o caos atonal (…) é na
arte, o equivalente do bolchevismo, que ameaça os Estados
europeus. No fundo, este grupo não interessa a ninguém. Vem
imposto ao mundo como a força de uma minoria. » (Hal-Koch :
2002, p.198)
Em uma carta de 1911, entre Franz Marc a seu amigo August Macke, este comenta
uma conversa que teve com Kandinsky a respeito de Schoenberg. Enquanto afirmava que
Schoenberg trabalhava com mistura de sons sem qualquer « sonoridade », apenas pura
expressão, notava que Kandinsky era entusiasta desta idéia, que este era seu objetivo:
« (…) a dissolução de suas cores em uma grande harmonia, o limite
extremo na sua criação, que ele deve ainda superar ; os jovens
franceses já haviam compreendido este princípio schoenberguiano
(Rouault, Braque, Fauconnier, Picasso, etc) »
E continua na carta dizendo que :
« Vi as últimas obras de Kandinsky em seu atelier e confesso que
não ter nunca recebido de um quadro uma impressão tão profunda e
terrível, nenhum como Kandinsky age de modo assim tão
penetrante (…) » (Hahl-Koch : 2002, p, 199)
Esta relação de admiração não se restringiu às suas obras. O relacionamento entre
eles logo envolveu as duas famílias. O primeiro encontro deu-se em setembro de 1911,
quando Schoenberg passava o fim do verão no lago de Starnberg, não muito longe de
Munique, nem de Murnau, onde Kandinsky tinha uma casa. E é justamente em 1911 que
Schoenberg envia a Kandinsky por carta um trecho de seu livro Harmonia, mais
precisamente a passagem onde fala sobre consonância e dissonância. Kandinsky o traduz
imediatamente juntando um comentário para o catálogo de uma mostra na Rússia, para a
qual queria enviar também quadros de Schoenberg. Com esta iniciativa Schoenberg viaja
até São Petesburgo no final de 1912.
Kandinsky insiste para a publicação de Schoenberg no almanaque O
Cavaleiro Azul Schoenberg publica então um artigo : A relação com o texto , além de ter
69
quadros reproduzidos ali e uma partitura o Lied Herzgewachse , op.20, sobre texto de
Maurice Maeterlinck. Kandinsky era admirador de Maeterlink e chega a citá-lo em seu
livro O Espiritual na Arte. Para bem ilustrarmos a receptividade que tiveram um para com
o outro, transcrevemos aqui a primeira carta que trocaram, um documento histórico que
deixa transparecer uma grande empatia:
Munique, 18/01/1911
« Prezado Professor !
Desculpe-me se lhe escrevo pois ainda não tive o prazer de
conhecê-lo pessoalmente. Apenas assisti o seu concerto, e foi para
mim uma alegria autêntica. Certamente o senhor não me conhece,
ou não conhece os meus trabalhos, porque não costumo expor
muito ; em Viena expus uma vez apenas, por um período curto e já
faz alguns anos. Mas nossas intenções, o nosso modo de pensar e de
sentir têm tanto em comum que sinto poder exprimir a minha
simpatia.
Em suas obras o senhor realizou aquilo que eu, de forma
naturalmente inexplicada, desejava encontrar na música. O caminho
autônomo através das vias do próprio destino, a vida intrínseca de
cada simples voz em suas composições, são exatamente aquilo que
eu tento exprimir de forma pictórica. Neste momento existe na
pintura uma forte tendência de procurar por uma via construtiva a
« nova harmonia », pelo que o elemento rítmico vem montado em
forma quase geométrica. Seja pela minha sensibilidade ou por
minha ocupação, concordo só em parte com esta via. A construção
é aquilo que falta, quase irremediavelmente, à pintura dos últimos
anos. É justo procurá-la. Mas o meu modo de conceber esta
construção é diferente.
Penso de fato que a harmonia do nosso tempo não deve ser
procurada através de uma via « geométrica », mas ao contrário,
através de uma via rigorosamente anti-geométrica, anti-lógica. Esta
via é aquela das « dissonâncias na arte », assim também na pintura,
como na música. E a dissonância pictórica e musical « de hoje » não
é outra coisa que o conhecimento dos « amanhãs». (Naturalmente
não se deve excluir a priori a chamada « harmonia » acadêmica :
toma-se aquilo do que se tem necessidade, sem preocupar-se de
onde se toma. O próprio « hoje», no momento do iminente
« liberalismo », as possibilidades são muito numerosas !)
Foi infinitamente prazeroso encontrar no senhor o mesmo
conceito. Lamento entretanto uma coisa : não entendi as últimas
duas frases, inseridas em seu programa (manifesto). Tentei várias
vezes, mas não consegui encontrar uma explicação de todo exata.
70
Permito-me de enviar-lhe uma cartela com imagens minhas
(as xilogravuras são de quase 3 anos atrás) e nesta carta coloco
algumas fotografias de meus últimos quadros. Não tenho ainda os
do último período. Estarei muito feliz se estas coisas lhe
interessarem.
Com viva simpatia e sincera estima.
Kandinsky »
Viena, 24/01/1911
« Prezado Senhor, agradeço-o muito por sua carta. Causou-me
um enorme prazer. Às minhas obras são negados, pelo momento, o
sucesso junto ao grande público. Consigo entretanto conquistar sem
dificuldade o interesse de pessoas singulares : as pessoas de
verdadeiro valor, aquelas com as quais importa preocupar-se. Faz-
me enorme prazer que seja um artista que trabalha em um campo
diverso do meu. Certamente entre os melhores que hoje se
empenham ativamente, existe algumas relações, alguns pontos em
comum, que não são casuais. Estou orgulhoso que manifestações
parecidas de simpatia me sejam expressas frequentemente pelos
melhores.
Mas antes de tudo muito obrigado pelos quadros. Gostei
muito da cartela. Tudo é perfeitamente claro e estou certo que nos
entenderemos sobre os pontos mais importantes. Por exemplo,
sobre o que o senhor chama de o « ilógico » e eu chamo de
« exclusão da vontade consciente da arte ». E também creio, sobre o
que o senhor escreve a propósito do elemento construtivo. Cada
atividade criativa que quer juntar os efeitos tradicionais não é de
todo ausente de atos conscientes. Mas a arte pertence ao
inconsciente ! Precisa exprimir-se a si mesmo. Exprimir-se com
imediatez ! Não se deve pois exprimir o próprio gosto, a própria
educação, a própria inteligência, o próprio saber ou a própria
habilidade. Nenhuma destas qualidades adquiridas, mas ao
contrário aquelas inatas, instintivas. Cada criação, cada criação
consciente baseia-se sobre um princípio matemático ou geométrico,
sobre seção áurea e sobre qualquer coisa de semelhante. Somente a
criação inconsciente, que se traduz na equação : « forma-
manifestação », cria formas verdadeiras ; ela, entretanto, produz
aqueles modelos que as pessoas sem originalidade imitam,
transformando-as em « fórmula ». Mas quem é capaz de escutar a si
mesmo, de reconhecer os próprios instintos, de aprofundar cada
problema através de uma reflexão pessoal, não tem necessidade de
tal muleta. Não é necessário ser um pioneiro para trabalhar assim,
mas um homem que se leva a sério, e que assim fazendo leva a sério
71
o verdadeiro objetivo da humanidade em cada campo do espírito e
da arte : compreender, e exprimir o que é inerente!!! Sou
profundamente convicto disso !
Agradeço-lhe mais uma vez os quadros. Como já disse, a
cartela muito me agradou. As fotografias estão pouco claras. Seria
mais oportuno ver as cores. Por este motivo hesito em mandar-lhe
algumas fotos de meus quadros. Talvez o senhor não saiba que eu
também pinto. Mas para mim a cor é tão importante (não a cor
« bela» mas a cor expressiva, expressiva na relação com as outras
cores) que duvido que se possa ter alguma impressão vendo as
reproduções. Alguns amigos dizem que sim, mas eu não estou certo.
De qualquer forma enviar-lhe-ei alguma, se lhe interessar. Apesar
de eu pintar de um modo diverso, o senhor encontrará certamente
traços comuns. Eu, ao menos, encontro nas fotografias alguns
desses traços comuns. Não, talvez pelo fato do senhor ser muito
pouco figurativo. Nem eu acredito que a pintura deva ser
necessariamente figurativa. Creio exatamente o contrário. Não façõ
objeção, se a imaginação sugere qualquer coisa de figurativo. Isso
pode acontecer porque, através dos olhos nós recebemos somente
elementos concretos. O ouvido, ao contrário, possui melhores
possibilidades. Mas se o artista consegue realizar através dos ritmos
e dos valores sonoros o seu mais íntimo desejo, ou aquele de
exprimir somente processos interiores, imagens interiores, então o
« objeto da pintura » cessa de ser uma simples reprodução daquilo
que os olhos vêem.
Desculpe-me muito de não ter estado em Munique. Talvez
pudéssemos ter nos conhecido. De qualquer forma, cedo ou tarde
acontecerá, ou quando estiver em Munique ou quando o senhor
estiver em Viena. Penso que temos alguma coisa a nos dizer. Espero
com alegria este momento e espero de ter logo notícias suas. Pelo
instante saúdo-lhe cordialmente.
Arnold Schoenberg »
Justo : não tenho à mão o manifesto, não consigo encontrá-lo.
Assim não consigo saber de qual frase se trata. Estas frases foram
inseridas no manifesto pela agência musical Gutman sem meu
conhecimento. Não me agrada essa antipática forma de
publicidade. Mas não posso fazer outra coisa do que enviar um
reprovamento à agência, sem ter sequer mesmo o direito, pois o
concerto era organizado inteiramente por esta agência, com seus
próprios recursos ( e disso sou muito grato). Assim não tive
possibilidade de dizer grande coisa.
72
As frases foram tiradas de um artigo publicado no número de
outubro da revista « Musik » e intitulado Kapitel aus meiner
Harmonielehre (Capítulo extraído de meu Manual de Harmonia).
Sch.
2
Kandinsky quando se interessa por Schoenberg, e este por aquele, estabelecem antes
de mais nada uma confirmação de intenções artísticas. Ambos apresentam essa
concordância já nesta primeira carta. Escreve Kandinsky : « (…)Suas composições são
exatamente aquilo que eu tento exprimir em forma pictórica » e Schoenberg « (…) pinto de
modo diverso mas o senhor encontrará certamente traços comuns. Eu ao menos, os
encontro nas fotografias. (…) penso que temos alguma coisa a nos dizer.(…) »
Esta mútua primeira impressão demonsta empatia e compreensão artístico-
espiritual muito clara. Segundo Hahl-Koch, perante a obra de arte, na visão deles, não é
mais a representação da beleza mas a manifestação da verdade do artista que predomina.
Essa manifestação age como um meio de comunicação espiritual. Ela deve exprimir e
estimular as forças do espírito.
Ambos recusavam o materialismo. Tiveram grande interesse pela Teosofia, que era
moda no início do século XX na Europa. Schoenberg interessou-se por Swedenborg e
Strindberg. Há estudos que revelam o relacionamento de Kandinsky com a Teosofia, o
Espiritismo e o Ocultismo. O Monismo
3
reforçado pelas novas descobertas científicas sobre
a radiação (átomo e energia) é uma espécie de confirmação empírica da passagem da
matéria ao espírito. Neste sentido Schoenberg reconhece também em Einstein afinidade
espiritual. Por este mesmo caminho Kandinsky fala de uma « vibração » da alma, que
emana da obra de arte, ou o princípio da « Necessidade Interior ».
2
In Hahl-Koch : 2002, p. 17-21. (obs : A tradução foi feita por nós e as palavras grifadas foram mantidas do
original.)
3
Monismo (do grego « um ») – chama-se monismo as teorias filosóficas que defendem a unidade
da realidade como um todo (em metafísica) ou a identidade entre mente e corpo (em filosofia da
mente). Opõe-se ao dualismo ou ao pluralismo em geral. As raízes do Monismo na filosofia
ocidental estão em Parmênides, Platão e Plotino. Spinoza é o filósofo monista por excelência, pois
defende que existe uma única coisa, a substância, da qual tudo mais são modos. Hegel defende um
monismo semelhante. (wikipedia.org/wiki/monismo)
73
Nos dois, a atitude de fundo é religiosa. Acreditavam em um outro mundo,
inatingível, que era necessário vizualizar na arte. As prioridades eram : acima da forma o
conteúdo, a essência íntima das coisas acima de seus aspectos exteriores, a verdade acima
da beleza, emancipação da dissonância da harmonia tradicional, como das cores na pintura.
Ambos sustentaram suas convicções em escritos, com muita firmeza e entusiasmo, com fé,
e as vezes com agressividade (Hahl-Koch : 2002, pp.203-212). A espiritualidade comum de
ambos, ao nosso ver, apresenta um rico material de análise para a produção artística deles.
Acreditamos que ela seja o fundamento existencial de suas teorias e práticas. Faremos aqui
uma pequena incursão sobre o assunto.
5. A espiritualidade
5.1 Schoenberg
Existem dois conceitos chaves para a comprensão não apenas da empatia entre
Schoenberg e Kandinsky mas também para suas abordagens artísticas, são eles : a noção de
« Idéia » em Schoenberg e a noção de « Necessidade Interior » em Kandinsky. Ambos os
conceitos aparecem ao longo de quase todos os textos dos dois autores (cartas, e textos
teóricos) e dizem respeito à criação, ou concepção e realização artística. Atrás destes dois
conceitos está a fé particular de cada um, constituída de elementos impalpáveis, sutis,
psicológicos segundo outros.
Todo o conjunto de percepções metafísicas que tinham da realidade, passava pelo
interesse religioso que tinham face à vida. Esclarecemos que esse interesse religioso não se
tratava de uma defesa dos dogmas de uma religião secularizada, mas de uma religiosidade
que fazia apelo ao significado original da palavra, religare - unir-se a Deus. Inicialmente
todo o conhecimento místico tem forte ligação bíblica para ambos. Todavia, a presença da
Bíblia era mais fortemente cristã para Kandinsky enquanto Shoenberg apoiava-se mais nos
escritos do Velho Testamento visto que era de oriem judaica (convertido ao protestantismo
na idade adulta, volta-se novamente ao judaismo durante a Segunda Guerra).
74
É muito comum encontrarmos nos textos teóricos de Schoenberg citações bíblicas e
algumas de suas obras são baseadas em trechos e histórias contadas no Velho Testamento
(A Escada de Jacob, Moisés e Aarão). A belíssima interpretação que faz do ato da criação
do compositor em seu artigo « Composição com 12 notas » (Schoenberg: p.107-147) é
baseada na descrição da criação do mundo narrada em Gênesis, primeiro livro do Antigo
Testamento.
O musicólogo Carl Dahlhaus fala sobre uma « Teologia Estética de Schoenberg »
analisando o reiterado uso de expressões que a seu ver « não são simples metáforas, sem
qualquer fundo religioso » (Dahlhaus : 1997, p.256). Faz longas considerações a respeito do
amálgama entre categorias religiosas e psicologia em seus textos. Ele aponta muitos
caminhos possíveis para a análise que passam pela psicologia freudiana, pelas
interpretações de uma religião antropocêntrica como em Schleiermacher e Feuerbach, pela
hermenêutica, dentre outras possibilidades.
Em nossa leitura destacamos duas influências que Schoenberg faz inúmeras
referências : os filósofos Schopenhauer (1788-1860), Swedenborg (1688-1772) e o escritor
Balzac (1799-1850). Ainda aqui é justificável uma explicação espiritualista para essa
referência pois, como frisa Carl Dahlhaus, Schoenberg passa pela : « (…)metafísica da
vontade de Schopenahuer. » (Dahlhaus : 1997, p.257).
Em linhas gerais Schopenhauer, considerado o filósofo do pessimisimo, interpreta o
mundo como um dos piores lugares para o espírito humano, essa idéia dá lugar a Vontade
como fonte de vida e progresso. É essa Vontade universal, onde a consciência individual é
apenas um momento fugidio, que estimula o ser a se nutrir do desejo de felicidade,
felicidade inatingível que engendra o sofrimento e a dor, estado natural do homem segundo
Schopenhauer. Unica escapatória : « destruir em nós, por todos os meios, a Vontade de
viver » e, segundo Moravia, escapar do desejo insaciável, « pelo mergulho completo no
nirvana budista e na contemplação estética » (Moravia : 1992, pp. 194-204).
Seu interesse por Balzac é relevado mais fortemente através do romance Seraphîta ,
onde o romancista francês desenvolve o pensamento swedenborguiano, largamente exposto
no curso da obra. É considerado por especialistas, muito mais que um simples romance, um
75
verdadeiro estudo filosófico, onde encontra-se as tendências místicas do autor (Longaud :
1969, pp. 224-225).
Swedenborg, homem culto do século XVIII, dedicou-se à ciência, política, filosofia
e teosofia. Erudito, fisiologista, foi também engenheiro responsável por várias invenções.
Na vida adulta converte-se a partir de uma visão que tem de um anjo. A partir desta
conversão passa a pregar e a publicar sua fé cristã renovada por uma nova interpretação
espiritualista. Tendo origem na Igreja Luterana, ainda durante sua vida, várias destas igrejas
tornam-se congregações swedenborguianas, subsistindo até os dias de hoje. Contou com
uma publicação especial de Kant (1724-1804) que critica seu misticismo. Swedenborg pode
ser entendido como o precursor do espiritismo moderno
4
, tendo sua obra sido um
compêndio de comunicações mediúnicas que ele próprio recebia. Essas comunicações
versavam sobre variados fatos da vida do além e suas implicações na vida terrena.
Encontramos referência ao misticismo de Schoenberg em quase todos autores que se
dedicaram a uma exegese de sua vida e obra, mas as opiniões a respeito do assunto mudam
consideravelmente de autor para autor. Contrariamente a grande corrente liderada por
Dalhaus, que busca uma explicação psicológica ou filosófica para as preocupações
metafísicas de Schoenberg, Yizahak Sadaï vê no misticismo de Schoenberg uma chaga,
uma obsessão que o teria cegado, levando-o a cometer erros crasos em seu livro
Harmonia (Sadaï : 1999, pp.59-73). Para Sadaï, o importante é manter a crítica perante a
obra teórica, e necessitando de uma explicação para o que considera como « deslizes » de
Schoenberg, encontra uma justificativa na questão espiritual. Costura em seu texto a idéia
de que Schoenberg acreditava ter uma missão que competia só a ele, citando sua famosa
frase : « Ninguém queria fazer este trabalho, então tive que assumir.»
Seguindo o raciocínio de Schoenberg de que a Harmonia deveria seguir « leis da
natureza » (a organização da série harmônica), este modelo natural apresenta o pressuposto
que devemos, em uma disposição a quatro partes, dobrar primeiramente a fundamental,
depois a quinta e por último a terça, justamente a ordem em que esses intervalos aparecem
na série harmônica. Este princípio aplicar-se-ia igualmente ao acorde de VII grau, diz
4
Para um mapeamento sobre o espiritismo moderno ver : Aubrée, Marion e Laplantine, François.
La table le Livre et les Esprits. Paris : Ed. Jean-Claude Lattès, 1990.
76
Schoenberg. Sadaï argumenta a impossibilidade de aplicação do mesmo princípio ao
referido grau, dizendo que : « Esta crença, quase mística, conduz um Schoenberg a
conclusões que - se aceitarmos – podem nos tornar textualmente surdos em relação à
harmonia tradicional. » (Sadaï : 1999, p. 64).
Outra consideração de Sadaï é a propósito da reflexão de Schoenberg sobre acorde,
quando afirma que qualquer acorde pode encadear qualquer outro acorde. Aqui Sadaï vê
imensa contradição, inclusive condenando o professor Schoenberg ; que faz distinção entre
meros exercícios e obras de arte. Ele conclui a propósito disto :
« 1. O acorde de sétima diminuída pode ser encadeado a qualquer
acorde (…)
2.O encadeamento de um acorde de sétima diminuída a um acorde
de quarta e sexta do I grau deve ser evitado.
Se o primeiro enunciado é verdadeiro, o segundo é duvidoso, com
toda evidência. » (Sadai : 1999, p.65)
Fazem parte das análise de Sadaï basicamente as questões sobre formação de
acordes e relações entre si num encadeamento. E é radical em suas considerações :
« Os propósitos de Schoenberg, inspirados pelo modelo dos
modelos que representam os harmônicos de um som fundamental,
provam bem que Schoenberg estava desprovido, sobre o plano
teórico, de uma visão sistêmica, orientada através do funcionamento
do sistema tonal, enquanto sistema. » (Sadai : 1999, p.68)
Não esconde sua indignação e tristeza no final do artigo, sendo o momento em que
lança a necessidade da intervenção de uma outra disciplina para a compreensão do caso
Schoenberg:
« Gostaríamos de fechar por uma nota pessoal. A admiração que
temos pelo compositor que representa Arnold Schoenberg é
diametralmente oposta, infelizmente, às conclusões um pouco
pesantes as quais nos levam nossa percepção sobre seu Tratado de
Harmonia. Não saberíamos explicar uma discordância assim
flagrante em um personagem como Scoenberg sem fazer apelo a
uma disciplina que não é a nossa e que seria provavelmente aquela
que se adequam aos estudos da personalidade. » (Sadaï : 1999, p.73)
77
Ao nosso ver as críticas de Sadaï são extremamente focadas num teoricismo
unilateral que não comporta outra interpretação. Para uma melhor compreensão dos
« erros » - se é que eles existem de fato - do livro Harmonia, do radicalismo de Schoenberg
em muitos momentos, assim como do seu julgamento do mundo, ou de sua obra musical
revolucionária, é necessário uma visão que englobe o contexto histórico e social de sua
época, bem como seu espiritualismo e não um estudo de sua personalidade, como conclui
Sadaï.
Identificamos o seu texto « Gustav Mahler » de 1912 inserido em Estilo e
Idéia como um dos mais contundentes acerca da temática espiritualista. Escrito um ano
após a morte de Mahler, Schoenberg apresenta-nos um texto emotivo onde, seja pelo fato
da perda recente do amigo, seja pela homenagem que deseja prestar, apresenta um
repertório de imagens bíblicas significativo, além de críticas com forte conotação moral. Ao
analisar a obra daquele compositor, faz uma longa introdução falando da importância de
declararmos ao mundo nossa fé e contagiarmos os outros com ela e de induzirmos as
criaturas a adorarem este mesmo « fogo que é sagrado ». Continua de maneira exaltada
dizendo que este fogo deve ser a luz que ilumina as trevas. E acrescenta comparando o
artista a um apóstolo : « Um apóstolo não inflamado pela fé, a qual é negada a auréola da
santidade, pregará apenas heresias, não pode levar dentro de si a imagem de um deus (…)»
(Schoenberg : 1960, p.9 ).
Schoenberg rende-se totalmente a um poder divino, modelo absoluto de influência
sobre si próprio, quando analisa mais adiante o julgamento que podemos ter de uma obra de
arte:
« Toda vez que o intelecto humano procurou descobrir as leis que
governam as obras divinas, descobriu apenas as leis que
caracterizam e distinguem a nossa capacidade de conhecer através
do pensamento e a fantasia. Movemo-nos em um círculo fechado,
vemos apenas nós mesmos ou no máximo o nosso ser, todas as
vezes que nos iludimos de ter descrito a essência de alguma coisa
existente fora de nós, e dessas leis que nos melhores dos casos são
aquelas de nossa capacidade intelectiva, fazemos apenas um metro
para julgar a obra do criador ! Com base nessas leis julgamos a obra
do grande artista !» (Schoenberg, 1960, p. 12-13)
78
No mesmo artigo, ao confessar que havia inicialmente duvidado da criação de
Mahler, considerando banais seus temas, utiliza mais uma vez uma imagem bíblica : « É
importante que admita ter sido Saulo antes de tornar-me Paulo (…) » ( Schoenberg : 1960,
p.18).
Dedica-se a análise das Sinfonias de Mahler neste mesmo tom, buscando a relação
com elementos espirituais, divinos, com imagens que suscitam um texto religioso,
traduzindo ao nosso ver a religiosidade que vivia intimamente. Acredita que a apreciação
da « grande arte » só poderia ser feita por quem fosse uma espécie de iniciado espiritual, e
encontramos também aqui este depoimento explícito ao falar da Sexta Sinfonia de Mahler:
« (…) só quem compreende o múrmúrio das vozes celestes privadas de qualquer calor
animal, pode ouvir esta música » (Schoenberg : 1960, p.19).
Ao falar sobre um crítico musical que depreciava a obra de Mahler tratando-a de um
« gigantesco pout-pourris sinfônico » não economiza palavras em um julgamento moral que
vem denunciar inicialmente a crença na vida espiritual após a morte do corpo e em seguida
a importância da vida espiritual, tratada como a verdadeira vida, sintetizando assim em um
parágrafo destacado, a seguinte conclusão: « O grande artista deve ser de qualquer maneira
punido em vida, pelas honras que gozará depois de morto. » (Schoenberg, 1960, p.25)
Sobre o objetivo da arte, da expressão que os grandes homens têm, para Schoenberg
é único e comum : a aspiração da humanidade deve ser Deus. (Schoenberg :1960, p.27). E
esse caminho deve ser ensinado de geração em geração, mas apesar dessa hereditariedade, é
necessário responsabilidade para asusmir tal caminho, só pode de fato ser colocada a quem
pode assumi-la.
Novamente recorre à terminologia bíblica para a interpretação da personalidade de
um artista que quando jovem mostra o melhor de si e que torna-se um « filisteu » ao menos
no aspecto exterior quando envelhece. E continua dizendo que não podemos procurar a
aparência, pois esta se dissolve, « mas o que é inato passa de uma vida à outra e se
desenvolve em formas expressivas mais elevadas ». (Schoenberg : 1960, p.33) Aqui
novamente nos dá prova não somente de sua crença na existência da alma mas como dá a
entender que acredita também na reencarnação desta alma num novo corpo, numa outra
vida.
79
Tudo leva a crer que Mahler também havia uma atitude espiritualista frente não
apenas à vida, mas à sua obra artística e mostrando essa comunhão de pensamentos,
Schoenberg cita um trecho de uma carta que Mahler envia à esposa onde explica a cena
final de Fausto. Nesta explicação que assume ser intraduzível, salienta que para a
compreensão deve-se « estar livre da corporeidade terrena». E Schoenberg fecha as aspas e
continua concordando com Mahler, dizendo que este é o caminho justo, que se deve « viver
no alto ». Esse « viver no alto » encontra ressonância mais uma vez na religião ou em uma
postura espiritualizada. Ele avança neste sentido e aprofunda-se sobre o relacionamento do
homem com o espiritual, afirmando logo adiante no mesmo texto que a Nona Sinfonia de
Mahler parece ter sido « ditada », que ele teria sido um porta-voz, um intérprete, pois ela,
concebida de tal beleza, seria compreensivel apenas por quem renunciasse ao calor animal
pois que ela está no frescor do espírito (Schoenberg : 1960, p.35).
Na parte conclusiva do texto ele aborda a Décima Sinfonia, tecendo longas
considerações através de uma interpretação velada e mística. Acredita que esta sinfonia
continha uma mensagem que ainda não era tempo de surgir, não havia preparação dos
homens para receber o que ela continha. Lembra também o caso de Beethoven que
escreveu apenas Nove Sinfonias e diz que aqueles que chegaram a escrever Nove Sinfonias
estão mais próximos do além e, talvez, os mistérios desse além sejam revelados apenas
quando escrever a Décima. Nosso dever, segundo Schoenberg, é de conquistar a visão da
alma, a imortalidade. Essa seria a missão do gênio, e por isso vive sempre o futuro. Conclui
dizendo que a Mahler foi concedido o dom de revelar apenas o que revelou e que, quando
quiz dizer mais, foi levado deste mundo. Mas nós devemos continuar a luta pois a
« Decima » não foi ainda revelada (Schoenberg : 1960, p.36). Além da espiritualidade que
envolve o assunto da Décima Sinfonia o que fica muito claro, é que Schoenberg faz parte
da tradição Beethoveniana. Não é por mero acaso que toma as Sinfonias para analisar como
eixo musical neste artigo sobre Mahler. A tradição da escrita dos motivos e o
desenvolvimento tem raízes em Beethoven e ele o reconhece aqui como o grande mestre, a
grande fonte de inspiração de Malher e de si próprio.
5.2.Kandinsky
80
A espiritualidade de Kandinsky apresenta traços menos bíblicos, sendo proveniente
de uma cultura de várias vertentes espiritualistas traduzidas em um vocabulário místico
fortemente anti-materialista. É em seu livro O Espiritual na Arte (de 1909, mas publicado
apenas em 1911) que desenvolve um ensaio sobre o tema. Apontado pela bibliografia geral
como sendo um livro dedicado à teoria das cores, seguindo o percurso de Goethe para uma
gramática da cores, vemos nele um livro de teoria do espiritual (Pontiggia : 1989, p.115),
onde desenvolve seu conceito de Necessidade Interior. Organizado em duas seções,
primeiramente faz considerações mais gerais, apresentando a idéia de uma hierarquia
espiritual traduzida pela imagem da pirâmide É aí que desenvolve reflexões espiritualistas,
com uma pequena revisão bibliográfica do assunto. Na segunda parte, volta-se mais
propriamente à pintura apresentando sua teoria sobre as cores e formas, desenvolvendo
reflexões mais técnicas e para tanto explora o conceito de Necessidade Interior. Vamos nos
deter aqui na primeira seção. Para Vallier (Vallier : 2003, pp.5-32) O Espiritual na Arte
revela uma tripla estratificação : a mais antiga seria formada pelo simbolismo, uma segunda
apoia-se sobre os teósofos, e a última, seria formada por elementos estéticos psicológicos.
Aqui, como no caso de Schoenberg, notamos a dificuldade dos analistas quando se deparam
com artistas que apresentam alguma forma de religiosidade associada a suas concepções
teóricas.
Kandinsky inicia seu texto contextualizando « cada arte como filha de seu tempo »
(Kandinsky : 1989, p.17) e assim, cada período cultural exprimindo sua arte, não se repete
jamais. Dentro deste panorama, coloca o problema do seu tempo, dizendo que estão
acordando ainda de um longo período de materialismo
5
, que contém em si ainda os
gérmens da falta de fé, de uma meta. Ainda não acordaram completamente deste pesadelo
materialista que considera a vida do universo como um jogo perverso e sem importância.
5
Kandinsky chega a falar do pesadelo materialista : « Ainda não acabou o pesadelo das concepções
materialistas, que consideram a vida no universo como um jogo perverso e sem peso. »
(Kandinsky : 1989, p.17). É importante lembrar que Kandinsky viveu sob a empolgação suscitada
pelo movimento operário que teve na Revolução Russa (1917) seu auge, onde acreditava-se que
bastava a estatização de todos os meios de produção para que todos os problemas se resolvessem.
81
Em seguida passa em revista a situação do consumo da arte, da visita a uma
exposição e fala dessa arte de catálogo que as pessoas visitam, num ato de puro consumo.
Buscando o sentido da arte cita Schumann : « Iluminar a profundidade do coração humano,
este é o objetivo do artista » (Kandinsky : 1989, p.19). Prossege fazendo um contraponto
entre a alma do artista e a massa que gira pelas salas. Acredita em uma distância entre o
artista e esse público anônimo que não compreende o objetivo do artista. E qual seria o
papel do artista para Kandinsky ? Essa compreensão que ele almeja entre artista e público é
explicada da seguinte forma :
«Compreender significa tomar o ponto de vista do artista. Foi dito
que a arte é filha de seu tempo. (…) A arte que não tem futuro, que
é apenas filha de seu tempo mas não se torna mãe do futuro é uma
arte estéril. Tem uma vida curta e morre moralmente no instante em
que muda a atmosfera em que é reproduzida.
Também a outra arte, suscetível de novos desenvolvimentos, está
radicada na própria época, mas não se limita a ser um eco e um
reflexo desta, possui ao contrário uma estimulante força profética,
capaz de exercitar-se uma influência ampla e profunda»
(Kandinsky : 1989, p. 20)
Esse papel do artista que vive o futuro, que faz o futuro, tem relação estreita com a
vida espiritual, da qual a arte é um componente fundamental, sendo um movimento
ascendente e progressivo. É o movimento do conhecimento. E compara também o artista ao
profeta : um homem que tem em si uma misteriosa força « visionária » (Kandinsky : 1989,
p.21).
Continuando a análise da vida espiritual entrelaçada ao artista, utiliza a imagem do
triângulo para deixar clara a noção de hierarquia. Afirma que em sua base, as seções do
tiângulo são sempre maiores, movendo-se quase imperceptívelmente ou gradativamente
para cima, e onde hoje temos o vértice, amanhã será uma primeira seção. Aquilo que é hoje
compreensível apenas ao vértice e para o resto do triângulo ainda é obscuro, amanhã tornar-
se-á vida densa de emoções e significados. E exemplifica o que é estar acima :
« No vértice está as vezes apenas um homem. O seu olhar é sereno
como sua imensa tristeza. E aqueles que estão mais próximos não
o entendem. (…) Assim desprezaram Beethoven que vivia só no
vértice. Quantos anos foram precisos antes que uma seção maior
do triângulo chegasse onde está ele ! » (Kandinsky : 1989, p.23)
82
Sobre os elementos dos quais se nutrem os artistas e que eles próprios produzem, ele
chama de « pão espiritual », uma clara alusão ao pão anunciado na última ceia cristã, ícone
de profundas raízes no seio de religiões como o catolicismo e protestantismo. Fala ainda de
um lado escuro, sem vida do pão que não alimenta, mas que pode matar, um tombo que o
artista pode ter. E para falar disso utiliza um conceito da bíblico : « o talento ( no sentido
evangélico) pode tornar-se uma maldição, não apenas para o artista que o possui mas
também para aquele que come o pão envenenado » (Kandinsky : 1989, p.24).
Esta idéia está impregnada pelo sentido superior que a obra de arte deve ter, pelo
valor positivo de movimento a uma vida espiritual elevada :
« O artista que usa a sua energia para satisfazer exigências menos
elevadas, dá um conteúdo impuro a uma forma aparentemente
artística, misturada a elementos fracos e elementos negativos,
engana os homens, e o ajuda a enganar-se a si próprio (…)»
(Kandinsky : 1989, p. 24)
Acredita que nos períodos onde a arte não tem grandes homens, onde falta o pão
salutar, alí existe um momento de decadência espiritual. É uma visão muito em acordo com
o universo religioso em geral, quando afirmam existir no mundo uma bipolaridade
(negativa/positiva) e de seus respectivos papéis na salvação ou perdição da alma.
Recorre à figura bíblica de Moisés para exemplificar o trabalho do artista. Moisés ao
retornar escondido do monte vê o povo dançando em torno do bezerro de ouro, mas mesmo
assim dá aos homens uma nova sabedoria (os dez mandamentos). O artista compreende
súbito Moisés e responde a seu apelo no sentido de « como buscar a cura ». E neste ponto
traz especialmente uma nota de rodapé, dissertando consideravelmente sobre matéria e
espírito, onde, ao nosso ver, não apenas revela suas inquietações íntimas, mas apresenta
questionamentos que eram divididos com companheiros de estudos espirituais:
« Fala-se frequentemente de materialidade, de imaterialidade e de
estados intermediários que vêm indicados como « maios ou
menos » materiais. A realidade é apenas matéria ? É apenas
espírito ? As diferenças que notamos entre matéria e espírito não
poderiam ser gradações de uma e de outro ? Também o pensamento,
que a ciência positiva indica como produto do espírito, é matéria,
mas apenas os sentidos sutis podem percebê-lo. Aquilo que a mão
83
não pode tocar é espírito ? Neste breve escrito não é possível
aprofundar o argumento e será suficiente não dar definição muito
rígida » (Kandinsky : 1989, p.26).
Agrupa em uma seção única os materialistas
6
na grande pirâmide. Não é a eles que
dá a propriedade da verdade e muito menos da vitória, pelo contrário, acusa-os de nunca
terem conseguido resolver um problema sozinhos e sempre terem provocados sacrifícios de
homens melhores que eles. Fala da pirâmide como se fosse uma grande cidade espiritual,
onde podemos encontrar um entrelaçamento de fatos os mais variados que não eram aceitos
em um determinado momento e depois passam a ser aceitos, criticando a ciência
materialista. Salienta as várias confusões que podem causar a crença unicamente material, e
reproduz as discussões da Física sobre a relativdade da matéria, como forma de pedir
prudência sobre a não existência da vida espiritual. Seu interesse pelo desenvolvimento de
argumentos científicos que possam colocar em xeque o materialismo não somente se
restringe à crítica destes. Apresenta uma outra nota de rodapé onde cita vários nomes
ligados às investigações de fenômenos espirituais : Crookes, Flammarion, Lombroso,
dentre tantos outros. Conta que Lombroso teria participada de seções espíritas com Eusapia
Palladino e no final ainda faz referência à Sociedade de Estudos Psíquicos de Paris que
organizava viagens de estudos para dar informações objetivas sobre os resultados obtidos
(Kandinsky : 1989, p.30).
Acrescenta ainda que um número crescente de homens que não tiveram apoio nos
métodos da ciência materialista e que partiram para a ajuda de métodos esquecidos de
outras culturas. Dentre esses povos destaca os indianos, através do estudo e trabalho
desenvolvido por H.P.Blavatzky, fundadora então da Sociedade Teosófica. E nos explica
que :
« Esta sociedade é composta de logge, que procuram ocupar-se dos
problemas do espírito através do conhecimento interior. Os seus
6
Fala desses materialistas localizados em vários grupos, 1)o religioso constituído por ateus dentre
os hebreus, católicos, protestantes, etc ; 2)o político constituído por democratas ou republicanos ;
3)o econômico constituído pelos socialistas. Todos são ateus e justificam seu ateísmo cego por
palavras como as do cientista Virchow : « Dissequei muitos cadáveres, nunca encontrei uma alma ».
(Kandinsky : 1989, p.27)
84
métodos se contrapõem aos dos positivistas, partem de premissas
antigas e são expressos com relativa precisão » (Kandinsky : 1989,
p.31).
Kandinsky em seu texto mostra ter um bom conhecimento do metier espiritualista
da época, dominando a terminologia, os nomes, as sociedades e fazendo a diferença das
várias tendências ou correntes dentro do cenário espiritualista. Descreve em detalhes, por
exemplo o, o movimento teosófico citando para isso bibliografia. Com todo esse
conhecimento que possui, não deixa de lado seu senso crítico, dizendo que a facilidade de
teorização dos teósofos, talvez um pouco apressada pode causar um certo ceticismo mas
que
«(…) este amplo movimento espiritual é um estímulo vigoroso, que
reunirá como um grito de liberdade alguns corações desesperados,
às voltas nas trevas e na noite ; é o aparecimento de uma mão que
indica o caminho e oferece ajuda » (Kandinsky : 1989, p.31-32).
E é assim que para Kandinsky, quando tudo está se acabando, religião, ciência,
moral, quando os sustentáculos eternos estão por ruinarem, o homem volta o olhar da
exterioridade para si mesmo. E é este redirecionamento de seu olhar que nos propiciará
melhor compreender seu conceito de Necessidade Interior, que tomaremos mais adiante.
Cita a literatura, a música e a arte como terrenos onde o olhar espiritual começa a se
manifestar mais sensivelmente. Como poeta concentra-se em Maeterlink, como um dos
primeiros profetas, escritores, visionários da decadência que descreve. Na música passa por
Wagner, vendo o Leitmotiv como uma espécie de atmosfera espiritual expressa
musicalmente que prenuncia o herói e que o herói difunde em torno de si. Exemplifica em
nota de rodapé, comparando esse fenômeno o caso dos médiuns sensitivos que não podem
estar em uma sala que antes tenha sido ocupada por uma pessoa espiritualmente antipática,
ainda que não o saibam. (Kandinsky : 1989, p.33).
Também cita Debussy dizendo que : « Debussy não usa nunca, nem mesmo nas
imagens « impressionistas », uma descrição inteiramente material, como faz a música de
programa, mas desfruta o valor interior de um fenômeno. » (Kandinsky : 1989, p.34) Esta
85
preocupação com o olhar interior estaria também difundida em outros artistas plásticos.
Cita como exemplos Rossetti, Burne-Jones, Bocklin, Stuck, Cézanne, Matisse e Picasso.
E chega em Schoenberg, dizendo que é ainda um compositor isolado pois renuncia à
beleza convencional, possuindo amor por todos os meios que o levam a uma expressão do
eu. E em um tom animado acrescenta: « (…) ele diz em seu Manual de Harmonia que todo
acorde, toda sequência é possível » (Kandinsky : 1989, p.35) Contextualiza Schoenberg
como o mestre do trabalho com a liberdade. Diz que ele adverte claramente que mesmo a
maior das liberdades, que é a respiração livre e incondicional da arte, não pode ser absoluta.
Schoenberg valendo-se da necessidade interior já descobriu a mina de ouro da nova beleza.
Conclui : « A música de Schoenberg nos conduz a uma região nova, onde as experiências
musicais não são acústicas, mas puramente psíquicas. Aqui começa a « música do futuro. »
(Kandinsky : 1989, p.35)
Para Kandinsky cada arte diz o que deve dizer com seus meios e isso é uma atitude
espiritual. Em todas elas seria possível de se acompanhar, o antinaturalismo, a abstração e a
interioridade que conscientemente ou não obedeciam ao famoso axioma socrático :
« Conhece-te a ti mesmo». É importante dizer aqui que esta reflexão, aribuída à Sócrates, é
utilizada como base pela maioria das filosofias espiritulistas de origem ocidental, sendo
também as teorias de Sócrates e Platão em estudos sistemáticos, apontadas como
precursoras do cristianismo
7
. Ao final de suas reflexões sobre o espiritual para a arte,
conclui: « Quem aprofunda os tesouros secretos interiores de sua arte colabora
admiravelmente a construir a pirâmide espiritual que chegará ao céu ». (Kandinsky : 1989,
40)
Parte 2 – Conceitos
1. Idéia
Como dissemos acima, dois conceitos são fundamentais para a compreensão do
pensamento, teoria e prática artísticas de Schoenberg e Kandinsky, são eles,
7
ver : Kardec, Allan. Evangelho Segundo o Espiritismo. IDE : São Paulo, 1991.(pp. 8-32)
86
respectivamente, a noção de « Idéia »
8
e « Necessidade Interior ». Faremos neste item um
estudo dessas duas noções que se entrelaçam, entre si e em nosso trabalho, tornando-se
assim a intersecção entre os dois autores e nosso modo de atuação. Portanto, a leitura que
faremos desses conceitos visa em um primeiro momento esclarecer a posição de cada um
dos autores e em seguida indicar as bases de que nos servimos para a escolha de materiais,
técnicas, dentre outros elementos de nossa criação composicional.
Em seu livro Estilo e Idéia de 1950, realizado um ano antes de sua morte,
Schoenberg condensa em um único volume, a pedido de amigos, uma série de artigos,
conferências e escritos, publicados durante vários anos de sua vida (de 1912 a 1948).
Encontramos aí um extenso material para análise de suas reflexões sobre Idéia, mas não
apenas aqui acompanhamos suas reflexões acerca do tema, pois toda sua obra teórica, assim
como suas correspondências pessoais estão repletas de citações e pensamentos acerca do
tema.
Como todo conceito, Idéia apresenta múltiplas facetas e encerra um conjunto de
características que podem ir de uma noção abstrata como a inspiração até uma definição
técnica como motivo. Ela é muitas vezes sinônimo, outras vezes noção complementar e
coadjuvante de « Necessidade Interior », conceito este defendido por Kandinsky.
Ao falar da relação do texto com a música Schoenberg exemplifica-a através da
análise de um Lieder de Schubert, dizendo que a Idéia desta música dispensava
completamente a compreensão das palavras, pois quando veio a conhecer o sentido de todo
o texto, de fato não mudara sua interpretação musical. Analisa em seguida a composição de
um Lieder seu e fala novamente sobre a inspiração e realização musical, apresentando
dados de como a Idéia aparece, no caso nas palavras iniciais de um poema, e guia, no
escuro, orientando certeiramente toda a composição:
« Ainda mais decisivo que esta experiência, foi para mim o fato de
ter escrito muitos de meus Lieders, do início ao fim inspirando-me
apenas no som das primeiras palavras do texto, sem preocupar-me
minimamente de como se desenvolvia os fatos contidos na poesia,
8
Observamos que a noção de Idéia de Schoenberg vem em grande parte da concepção Platônica do
mundo. Na teoria de Platão as idéias existem num mundo separado, o mundo dos inteligíveis,
situado na esfera celeste. O mundo divino das idéias contrapõe-se à matéria obscura e incriada. (ver
ainda « Monismo », rodapé p. 85)
87
sem ao menos olhá-la no êxtase da composição. Entretanto, alguns
dias depois dei-me conta do verdadeiro conteúdo poético do meu
Lied, e com grande maravilha me dei conta de não ter dado maior
justiça ao poeta, como quando guiado pelo meu contato direto com
o som inicial, intuí que devia absolutamente segui-lo »
(Schoenberg : 1960, p.6)
Podemos considerar que a técnica musical era de tal forma apreendida por ele que,
dos primeiros sons, acordes, motivos trabalhava o desenvolvimento de maneira
concatenada e consequente, sendo que um elemento engendrava o outro e assim por diante,
até uma conclusão do trabalho muito coerente. Essa herança Beethoviana apreendida, a
técnica propriamente dita, e muito bem exercitada, diga-se de passagem, é também Idéia,
embora em outro nível.
A Idéia para ele está em toda a parte, é o macro e o microcosmo da música, diga-se
de toda arte. Ela é vital e orgânica em sua acepção mais clara. Compara ao corpo humano
dizendo que se cortarmos qualquer parte do corpo sempre verterá a mesma coisa : o sangue.
Assim como uma palavra, um olhar, um gesto, um comportamento, a cor do cabelo são
elementos suficientes para revelar a personalidade de um ser humano, pode-se igualmente,
quando se escuta um verso de uma poesia, um compasso, captar toda a poesia e composição
(Schoenberg : 1960, p.6).
Afirma que frequentemente estas impressões pedem uma adaptação, reduzindo em
particular o que possuímos como inteiro. A mesma criação artística pode dar voltas
complicadas antes de chegar ao momento da verdadeira e própria concepção. Cita o caso de
Kandinsky e Kokoschka que pintam quadros cujos objetos dos quais são constituídos, o
tema é pouco mais de um pretexto para improvisar com formas e cores
9
, e para exprimir-se
como até então apenas os músicos podiam exprimir-se. Isso tudo representa a Idéia. É
preciso então que o compositor atenha-se ao que a obra de arte pretende oferecer, não
apenas ao que é apenas o pretexto pois o pretexto não é a idéia. É desta forma que o efeito
artístico permanece pois segue uma Idéia e não procura traduzir, no caso em que analisa,
texto em música.
9
Por exemplo : uma linha é um pretexto para expressar a idéia de movimento.
88
« Nós que somos inspirados, devemos ter fé » (Schoenberg : 1960, p.9), assim
admite ser um compositor inspirado, que apreende a Idéia e a desenvolve, e incita o leitor a
deixar-se levar por esta fé, transformando a Idéia em uma obra concluída, um milagre
extremamente natural:
« Nós não acreditamos suficientemente na totalidade, na grandeza
de uma coisa (…) Muito menos confiamos na capacidade de receber
a impressão de um objeto como uma totalidade que traz em si todos
os particulares em suas recíprocas relações. Cremos compreender o
que é natural : mas o milagre é extremamente natural e o natural
extremamente milagroso. » (Schoenberg : 1960, p. 9-10)
Para Schoenberg a Idéia é mais importante que o estilo dentro da obra artística e sua
gênese não é sempre palpável. « Uma idéia não é sempre resultado de um trabalho cerebral.
Pode ocupar a mente sem ter sido estimulada e até sem ter sido desejada, como um som
musical chega ao ouvido e um odor ao nariz » (Schoenberg : 1960, p.49).
Este contato sutil e imponderável com a Idéia é marcado por uma forte
personificação, resultado da maturação individual : « As idéias podem ser apreciadas
apenas por quem as possui, mas pode apreciá-las apenas quem mereça, por sua vez, ser
apreciado.» Este raciocínio fechado, dogmático, revela que a Idéia acompanha apenas quem
a pode desenvolvê-la, ou seja, sem remetente certo ela sempre chega ao destinário correto.
É bastante oportuno ao explicar que a terminologia musical, bastante vaga,
apresenta Idéia como sinônimo de tema, melodia, frase ou motivo, mas que para si, foge a
este sentido comum. Hesita na definição do significado de Idéia, mas acaba por se render,
« entrega » o que entende como Idéia : o « método pelo qual se restabelece um equilíbrio é,
na minha opinião, a verdadeira idéia da composição », resultado da interação de todos os
elementos (notas, ritmos, funções, motivos, dentre outros).
Vai ainda buscar longe do terreno musical um exemplo bastante elucidativo para
esclarecer essa noção, fazendo distinção entre estilo e idéia, assumindo o papel de um
89
professor que deseja bem ensinar aos seus alunos. Toma o exemplo do alicate
10
e reporta-o
ao estado da mecânica antes de sua invenção. A idéia de fixar o ponto de cruzamento dos
dois braços fazendo com que a parte superior, menor, mova-se em direção oposta à parte
maior, inferior, aumentando assim a força de quem o aperta, permitindo de cortar o ferro,
ele nos diz que esta idéia só pode ter sido resultado de um gênio. Este instrumento pode ser
ultrapassado, pode haver outros melhores e talvez até possa tornar-se supérfluo caindo
mesmo em desuso, mas a idéia que está por traz dele nunca será ultrapassada. Esta é a
gande diferença de um mero estilo e uma verdadeira Idéia. É seguindo este raciocínio que
para ele « Uma idéia não pode nunca morrer » (Schoenberg : 1960, p.50). « Uma idéia
nasce, deve ser trabalhada, formulada, desenvolvida, elaborada, sustentada e perseguida até
seu definitivo cumprimento » (Schoenberg : 1960, p.51).
2. Necessidade Interior
Apesar do uso frequente e sistemático do termo em todo documento escrito que
deixou, é, sobretudo na segunda parte de seu livro O Espiritual na Arte (Murnau, 1909),
que Kandinsky desenvolve, explica e define no conceito de « Necessidade Interior ». A
primeira vez que o define, utiliza uma metáfora musical, como era seu costume :
« Em geral a cor é um meio para influenciar diretamente a alma. A
cor é a tecla. O olho é o martelo. A alma é um piano com muitas
cordas.
O artista é a mão que, tocando esta ou aquela tecla, faz vibrar a
alma.
É claro que a harmonia das cores é fundada somente sobre este
princípio : o contato eficaz com a alma.
Este é o fundamento que pode-se definir como princípio da
necessidade interior. » (Kandinsky : 1989, p.46)
10
« paio di tenaglie » na edição italiana utilizada - termo que evoluiu e passou a ser aplicado ao
alicate para cortar crustáceos e ainda para o cortador de azulejos, sendo o princípio de
funcionamento sempre o mesmo.
90
Para compreender o que significa Necesidade Interior para Kandinsky é necessário
lembrar que considerava como alimento do artista o « pão espiritual », sendo este também o
seu produto. Esta gestação e produção do elemento vital dá-se numa espécie de maiêutica
que faz surgir a obra de arte, do foro íntimo de cada artista. É preciso conhecer-se a si
mesmo e assumir, revelando sua identidade de forma exterior. É neste ponto que o conceito
está entrelaçado com a noção de Idéia de Schoenberg. A Idéia para Schcoenberg é a
manifestação de algo que existe latente e muitas vezes inconsciente no indivíduo. Este
processo, alvo de estudos da psicologia da criação e da ciência cognitiva em nossos dias, é
abordado por Kandinsky no início do século, de uma forma mística muito simples, é o meio
espiritual que o produz, que o propicia, dando-lhe vida pois lhe dá significado.
Falando das cores frisa que : « é claro que a harmonia das cores é fundada apenas
sobre um princípio : o eficaz contato com a alma. » (Kandinsky : 1989, p. 46). O dever do
artista era tocar a alma de quem o observasse, essa obrigação é o princípio da Necesidade
Interior.
Ao falar das cores, Kandinsky também lança mão do conceito ; para ele elas
possuem um « som puramente interior ». Este som interior assemelha-se ao som de um
trompete ou de um instrumento, como o imaginamos quando ouvimos a palavra
« trompete », não importa se emitido ao aberto ou no fechado, por muitos ou não. A forma,
entretanto é abstrata e se assemelha a uma figura geométrica, possui um som interior : é um
ser espiritual que tem a qualidade daquela figura. Todo triângulo (seja agudo, retângulo ou
equilátero) tem um perfume espiritual próprio.
Para Kandinsky, tudo o que é exterior possui uma interioridade em si. É o binômio
matéria/espírto. É assim que a forma é a expressão do conteúdo interior. Não existe para ele
nenhuma forma totalmente material. Não se pode tão pouco reproduzir exatamente uma
forma
material. Para reafirmar sua crença na força de algo que é espiritual, pondera que, se o
artista depende de seu olho, de sua mão, « estes demonstram mais o senso artístico de sua
alma » (Kandinsky : 1989, p.50).
Quem não compreende o som interior da forma, seja física ou abstrata, considera a
composição como um arbítrio. O deslocamento, aparentemente sem motivo, das formas na
91
superfície de um quadro parece então um jogo sem significado. Mas aqui vale o critério
que sempre aparece como único verdadeiramente artístico e essencial : o princípio da
necessidade interior.( Kandinsky : 1989, p. 54).
Se o quadro não tem cores, serão os mais variados elementos dentro dele que
permitem e preparam um contraponto puramente gráfico. Mas a cor, que encerra infinitas
potencialidades, conduzirá juntamente com o desenho, ao grande contraponto pictórico.
Assim, a pintura chegará à composição e será « uma arte pura a serviço do divino ». O guia
único e infalível : o princípio da necessidade interior.
E explica-nos como ela surge:
« A necessidade interior nasce de três causas ou exigências
místicas :
1.cada artista, enquanto criador, deve exprimir a si próprio
(personalidade)
2.cada artista, enquanto filho de sua época, deve exprimir a sua
época (estilo como valor interior, composto da linguagem da época
e, até onde existir a nação, da linguagem da nação),
3.cada artista, enquanto está a serviço da arte, deve exprimir a arte
(artisticidade pura e eterna que existe em todos os homens, em
todos os povos, em todos os tempos ; que se observa na obra de
cada artista, de cada nação, de cada época e que, enquanto fator
fundamental da arte, não conhece espaço nem tempo » (Kandinsky :
1989, p.55).
O binômio objetivo/subjetivo também entra no vocabulário de Kandinsky para a
reflexão de Necessidade Interior. A artisticidade pura e eterna é objetiva e pode-se
compreendê-la graças ao elemento subjetivo. A necessidade interior é que procura no
subjetivo hoje uma forma, amanhã outra. A atitude do espírito é sempre ir em frente e
aquelas que hoje são leis interiores da harmonia, amanhã serão exteriores e usadas como
tais. A força espiritual da arte se serve de uma forma atual apenas como apoio para ir além.
Em suma, «a ação da necessidade interior e o desenvolvimento da arte são uma progressiva
expressão da objetividade eterna na subjetividade temporânea. E por consequência, a luta
da objetividade contra a subjetividade » (Kandinsky : 1989, p57).
Assim é que para consolidar sua realização artística o artista deve ser cego às formas
notáveis ou não notáveis, surdo às teorias e desejos de sua época. Este paradoxo é que faz
92
com que fixe os olhos e ouvidos em sua vida interior para saber se valer de todos os meios,
lícitos ou não com a mesma facilidade. « Este é o único modo para exprimir uma
necessidade mística », (Kandinsky : 1989, p. 58) diga-se interior.
Kandinsky coloca o caminho da Necessidade Interior como escolha premeditada e
chama a atenção que espírito e corpo obedecem a uma lei universal. O espírito, como o
corpo, se reforça e se desenvolve com o exercício. Também o espírito, como o corpo, torna-
se fraco e impotente se o deixamos. Recorre a uma passagem do Novo Testamento
(Parábola dos Talentos : São Mateus, cap. XXV, vs. de 14 a 30) para contextualizar esse
desenvolvimento, colocando a responsabilidade no indivíduo. A sensibilidade inata da arte
é exatamente o talento evangélico, que não deve ser enterrado. O artista que não obtém o
máximo de seus dotes é um servo inútil.
Kandinsky não se identifica com a teoria Skrjabin. Para o pintor, o que este tenta
fazer ao potencializar o efeito do som musical, com o som da cor correspondente, é
elementar e unívoco. Não é isto que desenvolve em suas composições cênicas, nem em
torno de suas reflexões sobre a interioridade e correspondência. Ainda que se possa
trabalhar sobre a contraposição ou alternância de dois ou de todos os elementos. Aponta os
quartetos de Schoenberg como exemplo desta forma de proceder, demonstrando que a
concordância interior assume força e significado com o uso neste sentido da concordância
exterior.
Considera longamente a relação entre obra de arte, artista e público para explicitar o
seu conceito e lançar uma espécie de carta aberta aos artistas, falando sobre suas
responsabilidades e deveres. Acredita que a verdadeira obra de arte nasce do artista de
maneira misteriosa, enigmática, mística. Ela vive, age e colabora para a criação da vida
espiritual. Só deste ponto de vista interior se pode responder à pergunta se a obra de arte
seja boa ou má. O qualificativo de feia ou muito fraca significa que tem uma forma feia ou
muito fraca para fazer vibrar a alma de um som puro. Mesmo as obras consideradas
imorais, ou não conseguem suscitar emoções mentais (e então não são arte, segundo sua
definição) ou provocam também uma emoção, porque têm alguma expressão de alguma
forma justa e são « boas ». Mas também se é gerada uma emoção puramente física, de
baixo nível, não se pode desprezá-la. « Talvez precisássemos desprezar quem tem reações
93
vulgares ». Neste momento, quando critica o público, Kandinsky aproxima-se da afirmação
de Schoenberg, quando este afirma que também o público deve ter compreendido a Idéia
para poder apreciá-la na obra musical.
Um quadro bem pintado não é aquele que tem valores exatos, ou uma distinção
quase científica entre as tonalidades frias e quentes e, grifa em seu próprio texto :
« …mas aquele que tem uma verdadeira vida interior. E um bom
desenho é aquele no qual não se pode mudar nada sem destruir esta
vida interior, independentemente do fato de contradizer regra de
anatomia, botânica ou de outra ciência » (Kandinsky : 1989, p.87).
Da mesma maneira o artista não precisa usar uma cor porque ela existe na natueza,
mas porque é necessária no quadro. Esta objetividade diante da obra de arte é que vai
traduzir a subjetividade do mundo interior. A pintura sendo uma arte, não é para ele uma
inútil criação de coisas que se perdem no vazio, mas é uma força que tem finalidade e deve
servir ao desenvolvimento e ao refinamento da alma, « ao movimento do triângulo ». Se a
arte se substrai deste objetivo permanece de fato no vazio, pois nenhuma outra força pode
substituí-la.
« O artista é um servo que tem o dever para com a arte e para com
si mesmo. Deve educar-se e recolher-se em sua alma, cuidando dela
e enriquecendo-na de maneira que ela torne-se um manto de seu
talento exterior, e não seja como uma luva perdida de uma mão
desconhecida, com uma vazia e inútil aparência » (Kandinsky :
1989, p.89).
O artista precisa ter alguma coisa pra dizer pois seu trabalho não é dominar a forma,
mas adaptá-la ao conteúdo. Tudo na vida de um artista é o material sutil e impalpável, mas
concreto que constitui sua obra.
O artista como um rei tem poder mas dever. Se é o sacerdote da beleza, esta beleza
deve inspirar-se no princípio do valor interior. A única medida da beleza é a grandeza da
necessidade interior. É belo o que nasce da necessidade interior. E belo o que é
interiormente belo. E para isso pode ser interiormente belo aquilo que é exteriormente
bruto. Seja na arte como na vida. E cita Maeterlinck para dizer que : « (…) pouquíssimos
resistem ao fascínio de uma alma que se dedica à beleza. » (Kandinsky : 1989, p.90). Esta é
94
propriedade da alma e o que torna possível a lenta ascensão do triângulo espiritual. Aqui
poderíamos nos perguntar : dedicar-se à beleza constitui algum imperativo ético, que se
aproximaria do altruísmo cristão ? Dedicar-se à beleza significaria a negação dos interesses
materiais cotidianos da vida corporal, de nossos interesses individuais contidos em nossas
razões egoísticas, tal como nos pregam as idéias espiritualistas em geral? Constitui-se o
conceito de Necessidade Interior em apêndice de alguma destas teorias espiritualistas ou ele
próprio é tentaiva de uma nova teologia ? Podemos afimar que Kandinsky não se assume
adepto exclusivo de nenhuma doutrina espiritualista, apesar de citar abertamente adeptos do
espiritismo de sua época e a teosofia. Prefere seguir independente, como um crente sem
Igreja, como um « teólogo da arte ». Haveria um papel equivalente em Schoenberg, em sua
contribuição particular à música e em sua reflexão sobre o conceito de Idéia ? Mas sendo
Kandinsky um teólogo da arte, pode sua teologia nos seduzir e ajudar a compreender o
papel de Schoenberg na música ?
3. Revolução/evolução
Após acompanharmos no Capítulo 1 o desenvolvimento musical do século XX
retomamos aqui a discussão do papel de Schoenberg na dissolução da Prática Comum e
nossa hipótese de que ele lançou as bases para um novo paradigma musical, com
repercussão em toda a história posterior, sendo referência de nossa própria produção
composicional. Se este paradigma não foi único no século XX, certamente foi forte o
suficiente para marcar todas as décadas seguintes. Nenhum compositor conseguiu passar ao
largo de suas idéias, elas desencadearam uma série de ações e reações dentro do cenário
musical. É notório no relato que acompanhamos até aqui, a influência e importância de
Schoenberg em nossos dias. Os compositores do século XX, em sua total maioria, sentiram-
se tocados pelas reflexões que partiram da Escola de Viena e Schoenberg como principal
fomentador do movimento dodecafônico, tem um papel decisivo para o rumo que a música
tomou após aqueles anos iniciais do século XX.
A gênese de toda a sua revolução residiu na organização das alturas. Uma nova
organização das mesmas alturas que teve um « efeito dominó » arrebatando ritmo,
95
dinâmica, timbre, forma, instrumentação e por decorrência todos os outros elementos.
Schoenberg é o vértice, o ponto final do sistema tonal e o ponto inicial da multiplicidade de
sistemas. Ele foi o « missionário » que fez o triângulo kandinskiano girar no século XX,
colocando em seu alto, não somente o tonalismo livre, dito atonalismo, como toda a
liberdade de criação. Stuckenschmidt aborda o problema de maneira ampla :
« Os primeiros anos do século XX jogaram por terra todas as
convenções admitidas até então, em uma revolta que partiu do
fundo do inconsciente coletivo. A tonalidade, a harmonia, a melodia
e o ritmo repudiavam todos juntos as leis tradicionais que tinham
reinado durante séculos sobre a música ocidental. (…) o termo de
crise convém às maravilhas à evolução musical depois de 1908, na
medida em que tomamos em sua acepção verdadeira de movimento
decisivo.(…) O abandono da tonalidade consagrava de alguma
maneira o desejo que tínhamos de nos livrar de toda imposição, toda
lei. O reino soberano do sentimento, que foi substituído ao da regra,
constitui psicologicamente um fenômeno de super-compensação. E
a intelectualidade que caracteriza, desde o fim do século XIX, os
espíritos criadores vem se confrontar a uma força contrária.(…) Os
primeiros quadros abstratos de Kandinsky, o lirismo de Augusto
Stramm, os lieders de Stefan George, o monodrama de Arnold
Schoenberg, assim como as produções contemporâneas de seus
alunos, enfim, todas essas manifestações ilustram uma nova
concepção do mundo e da arte » (Stuckensmidt : 1969, p.90).
Se a crise atingiu todo o mundo artístico da época, na música ela foi frontalmente
abordada pelas reflexões de Schoenberg. Como compositor e teórico, dedicou-se ao fio de
anos a uma pesquisa intensa e solitária. Sem a novidade de um novo instrumento, como no
caso da relação entre Pierre Schaeffer e o gravador, Schoenberg mergulhou no mundo
musical de sua época e foi buscar nas entranhas da harmonia os recursos para estabelecer
uma nova concepção musical. Paralelamente, no terreno da pintura, o destaque foi de
Kandinsky, apontado como o pai do abstracionismo, pintor e teórico deixou uma grande
contribuição através de sua prática e teoria. E como de fato o que ocorria na época era uma
revolução, proveniente de uma grande crise que afetava todas as áreas, foi também natural
que os dois se encontrassem e trocassem muitas idéias, como veremos mais adiante.
Mussat fala de uma revolução musical no início do século liderada pela
Escola de Viena (Schoenberg, Webern, Berg) elencando alguns itens básicos, além do
96
tratamento das alturas já anunciado, são eles : 1) o abandono da tonalidade como tema, 2)
emprego de pequenas formas, 3) uma nova distribuição de timbres e, a partir de 1923, 4) a
utilização da série. E este autor diz : « Schoenberg contestou o termo « revolução »,
utilizado, segundo ele, por uma falta de conhecimento : essas mudanças tão profundas
inscrevem-se na história e resultam de uma evolução » (Mussat : 1995, p.11).
Através do movimento de mudanças em todas as áreas artísticas no início do século
XX podemos colocar lado à lado as expressões revolução e evolução. Não os entendemos
como termos excludentes, pelo contrário, a revolução aconteceu por uma necessidade
natural de evolução. Vários fatores em ebulição, internos e externos ao sistema tonal, como
do sistema pictórico e outros não estudados aqui, contribuíram para que se repensasse o
tonalismo ou o figurativismo como única ou principais referências. O tonalismo, sua
organização e hierarquia e consequentes, passa a não ser o único caminho para uma
almejada organização musical. Assim como o figurativismo não será nunca mais o único
caminho para a expressão das idéias artísticas de um pintor.
Parte 3 – Concepção e elaboração musical
Nosso trabalho de composição musical (Tomo II) partiu de um exercício dos
conceitos de Schoenberg e Kandinsky apresentados aqui. A gênese desta escolha foi
determinada pelo 1. interesse espiritual, 2. inserção na tradição musical/artística, 3. impulso
de inovação frente aos modelos estabelecidos.
Esses três pontos identificados em uma primeira leitura, nos conduziram a fixar os dois
autores como referência teórica, histórica e espiritual. O paradoxo entre inserção da
tradição e impulso de inovação foi muito enriquecedor e nos trouxe muitas possibilidades
de escolhas. O próprio referencial histórico que apresentamos no primeiro capítulo subsidia
esta concepção da arte inserida em um movimento social histórico, sendo sua trajetória um
fluxo contínuo entre tradição e ruptura.
O exercício composicional a que nos propusemos teve também um caráter de
homenagem aos dois autores. A Idéia partiu deles, formam assim a força motora da
pesquisa e da criação musical. As composições podem ser agrupadas em três grandes áreas
97
técnico- composicionais caracterizadas como a força diretriz deste trabalho e temos para
cada uma delas dois exemplos: 1) Atonalismo – Poesia sem Palavras piano solo e Música
para Schoenberg, piano solo ; 2) Acaso controlado e Improvisação – Quadros de uma
Improvisação : Ponto Linha, Superfície percussão e suporte eletrônico, e São Jorge, grupo
de percussão ; 3) Colagem e Citação– Música para Schoenberg - piano solo e Pequenos
Mundos - eletroacústica.
A escolha do campo técnico–composicional deu-se a partir da pesquisa que fizemos
onde consideramos Schoenberg como paradigma do século XX. Partimos da questão da
desconstrução do tonalismo. Essa desconstrução, que não consiste apenas em uma nova
hierarquia das alturas apresentada pelo dodecafonismo, afeta todos os parâmetros do som e
os elementos que constituem a música. Desta forma, a maneira de conceber uma
composição musical altera-se após Schoenberg através de todos os compositores ao longo
do século de maneira irreversível. Como consequência dessa avalanche de mudanças,
instaura-se uma crise que apresenta um caminho completamente aberto a todas as
tendências estilísticas.
O primeiro problema composicional abordado por nós foi exatamente o do
tonalismo desintegrado, ou tonalismo livre. O material que usamos para trabalhar o
problema foi a peça Verklärte Nacht, op. 4 de Schoenberg, construída na tonalidade de Ré
menor. Aqui, esta peça foi encarada como um objeto, símbolo de uma época. Dentro deste
conceito, olhamos para este objeto e tentamos extrair dele as suas forças, contrárias ou
coadjuvantes, para revivermos a época em que foi concebido e aplicarmos, hoje, um
pensamento se não semelhante, ao menos próximo. Utilizamos a tonalidade, o
distanciamento da mesma, abordamos a forma, o encadeamento das idéias, texturas, e a
possibilidade da linguagem de um novo instrumento (piano solo). Esta releitura apresenta a
visão de quem cria no início do século XXI e assim, trabalhando a música após, dentre
tantas outras novidades, por exemplo, a criação da Sinfonia de 1968 por Berio. O título da
peça encerra a homenagem e a técnica da citação : Música para Schoenberg.
Em outra peça, Poesia sem palavras , avançamos a questão da não tonalidade (ou o
atonalismo, transtonalismo, pantonalismo, pós-tonalismo, dentre tantas outras
denominações), seguindo assim a proposta inicial. Mergulhamos nesse mundo que
98
chamamos Atonalismo, desta vez sem partir de uma peça do período, mas partindo de uma
xilogravuras da época. São 12 miniaturas para piano solo, cada qual correspondente a uma
imagem diferente. As imagens de Kandinsky de 1904 são em preto e branco, a temática
passa pela vida cotidiana, cavaleiros, paisagens, vilarejos. Há a evocação de sentimentos
poéticos de quem observa cada cena. Aqui, cada peça é única e apresenta um problema
específico do ponto de vista composicional. A organização das alturas não tem nenhum
critério de exigência, a forma procura um elo com a imagem, proporção sobretudo, extratos
de recursos são utilizados, tais como, contraponto, repetição, som pedal. Essa foi uma
tentativa, não de traduzir imagem em música, mas de captar o « apelo interior » de cada
uma delas, conselho seguido de Kandinsky.
Após a descontrução do tonalismo e o uso do atonalismo, apresentamos um
movimento que contestava vivamente o domínio e os efeitos da organização da alturas.
Nesta ótica, encontramos nas reflexões sobre o acaso, a maior oposição feita à
sistematização do dodecafonismo por Schoenberg. Primeira e Segunda Escola de Viena
trabalhavam mais ou menos sobre uma mesma linha, quando surgem as primeiras reações
para desvencilhamento do serialismo integral. Ao nosso ver, ao mesmo tempo que surge
um movimento de oposição à sua Escola, é justamente graças à existência de Schoenberg
que este movimento pôde existir. Ou dito de outra maneira, cresce a consciência da abertura
que o paradigma de Schoenberg trazia. Desenvolvemos para tanto duas peças : Quadros de
uma Improvisação : Ponto, Linha Superfície para grupo de percussão e suporte eletrônico,
e São Jorge para grupo de percussão. Essas duas peças trabalham sobre o eixo do acaso e
improvisação em seus mais variados aspectos. É pedida a participação dos músicos que
devem a cada execução criar uma nova música.
São Jorge é inspirada em um quadro homônimo de Kandinsky de 1911. Temos
abertura, improvisação, acaso e uma história ser contada. Essa história é a de São Jorge,
não se trata de contar através de um texto falado, mas de transmitir eventos sonoros de tal
forma que sua alma seja apreendida, no sentido de busca da « ressonância interior ».
Completando nossa visão sobre o desenvolvimento da música no século XX a partir
de Schoenberg, chegamos à invenção da Música Concreta por Schaeffer em 1948.
Mudando de instrumento e técnica, nosso objetivo aqui foi de estabelecer relações, criando
99
uma transição entre o nosso campo de preocupações musicais, envolvendo o surgimento do
atonalismo, os temas apresentados nos escritos de Schoenberg e Kandinsky e a música
eletrônica. Dentro deste quadro, dedicamos dois trabalhos composicionais ao assunto :
Pequenos Mundos - música eletroacústica e Quadros de uma Improvisação : Ponto, Linha,
Superfície - música mista.
Em Quadros de uma Improvisação temos acaso controlado, improvisação e um
grande estímulo entre a parte acústica e eletroacústica, situação essa que resulta num
amálgama sonoro que constrói um grande crescendo final. O acaso é controlado por
elementos delimitados organizados em momentos distintos. O seu título é uma simbiose
entre vários elementos encontrados na obra de Kandinsky.
Quadros de uma improvisação apresenta a questão da música mista. O confronto
entre sons eletrônicos e acústicos é uma realidade que se instalou no cenário musical há
anos. Aqui, a parte eletrônica, apesar de fixa, tem o impulso da improvisação e visa guiar os
músicos através de sugestões musicais. Dividem o mesmo espaço, sons fixos e não fixos,
com altura determinada ou não, trechos escritos, outros indeterminados, sons eletrônicos e
acústicos. Sendo um tipo de música que se localiza muito mais proximamente de nossos
dias, Quadros pôde aproveitar-se da tradição anterior, mesclando elementos novos a
antigos, representando um jogo prático de citações históricas que apresentamos em nosso
primeiro capítulo, dedicado às nossas referências musicais.
Nossa última música talvez estabeleça o elo de comunicação mais estreito entre os
autores pesquisados. Ela articula criações visual de Kandinsky e musical de Schoenberg.
Pequenos Mundos traz o nome de uma coleção de impressões de Kandinsky de 1922,
utilizando como material básico o op. 19 para piano de Schoenberg e sons gerados pelo
sintetizador Oberheim. Toda esta peça foi gerida e finalizada em computador, estamos aqui
completamente imersos na era tecnológica, em fins do século XX. Os sons do piano
gravado estão lado a lado aos sons de um sintetizador « datado », um dos primeiros a poder
trabalhar polifonicamente, podendo fixar afinações em quartos de tons. Além de
« sintetizar » Schoenberg, salientamos que a gravação utilizada não foi escolhida
fortuitamente, mas buscou acrescentar mais um elemento de um período bem preciso. Para
tanto, nos utilizamos do trabalho de interpretação de Glenn Gould
100
Capítulo 3
101
Capítulo 3
« Atonalismo »
Parte 1 – Altura
1. O conceito Atonal p.103
2. A música atonal p.106
3. Noite Transfigurada, op.4 p.109
4. Música para Schoenberg p.114
Parte 2 – Duração
1. Seis peças para piano, opus 19 p.116
2. Poesia sem palavras p.122
2.1.Xilogravura e expressionismo p.123
2.2.Aforisma e expressão na música p.126
102
Capítulo 3
« Atonalismo »
Parte 1 – Altura
1. O conceito Atonal
A expressão atonalismo foi utilizada pela primeira vez por críticos para falarem da
peça Pierrot Lunaire (1912) de Schoenberg. (Bosseur : 1992, ) Schoenberg não apreciava o
termo e deixou várias declarações afirmando que não era uma forma feliz para se falar do
que acontecia com a música naquele momento, muito menos para com música que ele
fazia. Na terceira edição de seu livro Harmonia em 1921, ao analisar uma configuração de
acorde não convencional, junta uma nota de rodapé e detem-se longamente no assunto da
atonalidade :
« A lista dos que hoje empregam tais procedimentos é muito
grande. (…) A quantidade e qualidade dos companheiros de luta me
dão uma grande satisfação. Para eles, naturalmente, existe uma nova
« direção », e denominam-se atonais. Tenho que me distanciar deste
termo, pois que eu sou músico e não tenho nada a ver com o atonal.
Atonal poderia simplesmente significar : algo que não tem nada a
ver com a natureza do som. Já a expressão « tonal » se usa
impropriamente se se entende em um sentido excludente e não
includente. Só se deve entender de maneira includente : tudo o que
procede de uma sucessão de sons, seja por relação direta com uma
única fundamental ou seja mediante relações mais complexas,
constitui a tonalidade. É evidente que se baseando nesta definição
que é a única justa, não se pode estabelecer racionalmente um
oposição que corresponda a palavra « atonalidade ». (Schoenberg :
1974 , p.484-5)
Para ele, a tonalidade continuava a existir sempre, mesmo no caso de não termos
claramente definida uma tônica, e o termo atonalidade (amusich) era inadequado pois fazia
uma antítese à tonalidade. O sufixo « a » neste caso, significa uma negação. Se de fato
fosse necessário buscar um novo nome, sugere « politonal » ou « pantonal », mas em todo
103
caso, adverte-nos para a necessidade de se refletir sobre o fato desta música ser ou não ser
tonal. Em seu artigo « Teoria e composição », da edição francesa de Estilo e Idéia, avança
no assunto considerando a questão tonal/atonal :
« Deus obrigado : composição através de doze sons que não tem
outro parentesco que aquele de cada som com cada outro. Quanto à
questão, não devemos nem podemos escrever tonalmente, não
devemos nem podemos escrever atonalmente. Escrever ou não
escrever, mas em todo caso não faça perguntas, faça o que você é
capaz. Se você tem em si do que escrever uma bela obra, escreva,
tonal ou atonal. » (Schoenberg : 1977, p.203).
Para a Escola de Viena, atonalidade não implica a abolição da tonalidade, mas uma
extensão da mesma, acompanhada de uma revisão dos privilégios e princípios de
subordinação aos quais estavam até então submetidos o tratamento dos intervalos
harmônicos e acordes. Este idéia foi bem sintetizada por Schoenberg em 1911 (em seu
« Harmonia ») quando afirmou que projetava uma « democratização da harmonia »
(Bosseur : 1992, p.21).
Ao analisar seu Segundo quarteto de Cordas op.10, como a transição para o
segundo período criativo diz
1
:
«Nessa época, eu renunciava construir minha música em torno de
um centro tonal, inovação que chamaram incorretamente de
« atonalidade ». No primeiro e segundo movimentos desse quarteto,
existe numerosas passagens onde as partes independentes se movem
sem a preocupação de saber se a sobreposição produzirá ou não
harmonias de escola. E entretanto aqui, como no terceiro e quarto
movimentos, distingue-se claramente a tonalidade em todos os
lugares essenciais de articulação da estrutura formal.(…) »
(Schoenberg : 1977, p.70)
Também Alban Berg vê na expressão atonalidade, que se aplica ao campo
harmônico, um termo genérico de « não música ». Para ele, este foi um termo encontrado
pelos adversários da nova música que se fazia, como forma de criticá-la e recusá-la
(Bosseur : 1992, p.22-23). Anton Webern é da mesma opinião, recusa o termo por entender
que significa : « sem som». E assim, como pode ser música se não tem som ? Conclui num
texto de 1932: « A tonalidade foi, até nossos dias, um dos meios mais importantes para
1
: « Comment je me juge : retours en arrière ».in Schoenberg: 2002, pp.11-91
104
criar uma coerência. Ela é a única aquisição da música do passado que desapareceu, todo o
resto existe ainda » (Bosseur : 1992, p.23).
Varèse, em 1934, reconhece a influência e importância de Schoenberg e também
concorda com a mesma postura da Escola de Viena, para a qual o que se denomina de
atonalidade é uma tonalidade que liberou-se das funções e moldes tradicionais. O
interessante é que, apesar de concordar com a definição dos três compositores citados,
aborda o atonalismo como uma corrente consolidada :
« Acredito que Stravinsky morreu e que Schoenberg tem muito
mais importância. Sua influência será grande mas seu « sistema »
provavelmente contestado : ele é para música o que o cubismo é
para a pintura. O « sistema » atonal não existe verdadeiramente ; é
uma concepção falsa, pois sentimos uma tonalidade, que recusamos
sua presença ou não. Não é necessário ter uma tônica com sua terça
ou quinta para estabelecer uma tonalidade ; de fato, o que é o acorde
senão uma fundamental com seus segundos e terceiros
harmônicos ? Que se designe como atonal ou não, Schoenberg é um
romântico para a concepção e um impressionista para execução »
(Bosseur : 1992, p.23).
Bartók, ao abordar o atonalismo concorda com o mesmo sentido dado pelos outros
compositores aqui citados:
« A música de nossos dias tende resolutamente ao atonal.
Entretanto, não parece exato de conceber o princípio tonal como o
contrário do princípio atonal. Este último é bem mais a
consequência de uma evolução que se deu pouco a pouco a partir do
tonal, que progride gradualmente e que não mostrou nenhuma
quebra nem salto violento. » (Bosseur : 1992, p.23)
Todavia, malgrado o combate contra a expressão atonalismo entre seus criadores, o
que podemos ver em Bartók é que ela ganha terreno para se consolidar como vocabulário
na história da música, perdendo sua conotação pejorativa com o tempo. Ainda existem, até
os dias de hoje, busca de termos que possam explicar a prática musical que, saída do
sistema tonal, não é mais tonal strictu sensu. Encontramos difundidos na bibliografia :
tonalismo livre, atonalismo livre, pós-tonalismo, pantonalismo, transtonal, dentre tantos
outros termos que fazem alusão a este tipo de concepção.
105
2. A música atonal
Dissemos anteriormente que a Música Atonal foi aquela feita inicialmente pela
Escola de Viena. Esta música parte do sistema tonal e o desconfigura, basicamente
utilizando as mesmas alturas do sistema tonal, sem contudo ater-se mais às regras do
mesmo (graus, funções, relações entre funções, dentre outras). Mas regras também existem
dentro do atonalismo. Para se falar destas regras é preciso saber inicialmente sobre qual
atonalismo estamos falando, pois existem muitas variantes de compositor a compositor, de
obra a obra.
Malherbe propõem uma análise pertinente para o dodecafonismo através da imagem
do negativo do sistema tonal. Como no caso da imagem fotográfica, o negativo supõe a
existência de um objeto inicial. « É isso », diz ele, « o que se passa com os ouvintes dessas
músicas cuja cultura de ouvido é essencialmente formada nos anos 20 como hoje, pelo
sentido tonl » (Malherbe : 1996, p.13). Diferentemente de Malherbe, acreditamos que esta
reflexão sobre o negativo é muito pertinente para se aplicar também ao atonalismo em lato
sensu, e não apenas ao dodecafonismo. É notório que as regras estabelecidas para o
dodecafonismo são mais estritas permitindo uma compreensão mais rápida da idéia do
negativo. Os compositores que iniciaram este processo de desconstrução do tonal,
notoriamente a Escola de Viena, apresentam várias nuances no interior das escolhas
harmônicas, alturas e encadeamentos, para nos atermos apenas no quesito alturas. Mas o
caminho da desconstrução apresenta em sua gênese « escolhas em negativo », ou seja,
tendências repetidas no interior das peças, convergência geral entre compositores e
composições.
Podemos elencar algumas dessas escolhas gerais que ao nosso ver são básicas : 1)
não deixar por muito tempo a tônica predominar em um discurso, ou 2) não deixar uma
nota polarizar o discurso, 3) usar preferencialmente encadeamentos que engendrem uma
idéia de modulação constante, 4) uso do cromatismo em larga escala, desmontando as
estruturas tonais 5) construção de acordes baseados em outros intervalos que não seja a
sobreposição de terças. Esses elementos repetem-se nas obras de transição entre tonalismo
106
e dodecafonismo, tornando-se em alguns casos base para um novo sistema, como por
exemplo no sistema desenvolvido por Bartók. Se pensamos a construção de um novo
sistema, « negativo do tonalismo », a partir dos elementos relacionados à « altura », foi
porque elegemos a altura como chave de leitura do sistema tonal. Todavia, a sua
desconstrução ocorre em outros termos, podendo ser acrescentados desdobramentos em
relação ao tempo, dinâmica e timbre.
Como pode ser concluído dessas características acima, o processo que envolveu o
nascimento da música atonal foi lento e não surgiu de um grande acaso. Deu-se de uma
composição à outra, através de uma experimentação contínua. Desde o século XIX podia-se
sentir que alterações no trato das modulações e uso de cromatismos, modificavam a
aparência do tonalismo ; essas seriam as causas internas da desconstrução tonal. Existem
também as causas externas que vem a contribuir para a complexidade harmônica, surgindo
através do uso concomitante no discurso musical, de escalas e modos de culturas distintas
daquela européia tratada aqui. Malherbe chama de « renovação interna », aquela que
utilizou elementos da gramática tonal e objetos tonais comuns e « renovação externa » -
aquela vinda de fora do sistema, que encontrou novos meios de unir coerentemente objetos
sonoros heterogêneos (Malherbe : 1996, pp. 7-35).
Como exemplo de renovação interna cita o Pelúdio para piano n.2 em la menor
(1839) de Chopin. Ele é elaboado a partir do funcionamento do sistema tonal, mas não
parece tonal. Chopin utiliza uma série de funções usuais como pedal, bordaduras,
apogiaturas, retardos que colocadas juntas geram notas e intervalos que ou contradizem a
harmonia ou a desviam de seu caminho tradicional. Esse flutuar harmônico é acentuado por
uma linha melódica evasiva que reforça a estranheza do conjunto.
Como exemplo de renovação externa cita Debussy, especificamente o início do
prelúdio do primeiro ato de Pelleas et Mélisande (1902). Neste exemplo encontramos um
modo antigo de ré, uma escala exótica (escala por tons inteiros), uma nota pedal
pertencente a escala por tons inteiros mas produzindo um intervalo de trítono com o
primeiro modo, e todo o trecho segue em variações sobre esses mesmos materiais. É uma
reunião de material extremamente divergente resultando em grande coerência.
107
Ele sugere uma coleção de peças e procedimentos que poderiam fazer uma
história do crepúsculo tonal : Richard Wagner Tristão e Isolda (1857-59), Richard Strauss –
Quadro últimos Lieders (1948), Schoenberg – Noite Transfigurada (1899), Gurrelieder
(1900-11), a experiência atonal no Segundo Quarteto (1907-8), a hierarquia dodecafônica
em Peças para piano opus 23 (1923) a união dos dois mundos com Alban Berg – Concerto
par violino, à memória de um Anjo (1935).
Dentro do panorama de desconstrução tonal ainda existem compositores, ao longo
do século XX, e nos dias de hoje, que se dedicam a esta problemática. Dmitri
Chostakovitch é um deles pois seu modo de tratar a tonalidade passa pelo enfoque da
desconstrução, quando utiliza harmonias vazias, melodias redundantes e sem fim, citações
deslocadas, dentre outros elementos. A lembrança de um passado perpetuado e obsessivo
pode ser ouvida em « Sonata para viola e piano opus 147 (1975) através de uma citação do
adágio de Sonata ao Luar de Beethoven, desarticulada até o absurdo.
Um outro procedimento que ajudou em muito a revisão do tonalismo foi a
sobreposição. Sobreposição de intervalos que passaram a fazer acordes cada vez mais
complexos, formando acordes de nona, décima primeira, décima terceira, etc. Esses acordes
podem fazer parte de variadas tonalidades. Temos exemplos abundantes : o famoso acorde
dos « Augures printaniers » de Stravinsky em Sagração da Primavera (1913) que é a
junção de um acorde perfeito maior de fa bemol e a primeira inversão do acorde de sétima
de dominante de la bemol.
Temos também o exemplo de Darius Milhaud que mistura temas pertencentes a
tonalidades diferentes, cada qual evoluindo em sua harmonização. Seu XIV e XV Quarteto
de cordas de 1948 é exemplo desta técnica, sendo que ainda podem ser executdos
separadamente ou simultaneamente em octeto. Pioneiro desta técnica foi o americano
Charles Ives que em The unanswered question (1906) apresenta 3 texturas musicais
diferentes : uma lenta trama nas cordas, diatônica e consoante, sobre a qual soa sete vezes
um tema de trompete cortado por frases cromáticas dissonantes e progressivamente mais
rápidas executadas pelas madeiras.
Esta prática de executar junto o que até então era impossível, estimula os
compositores a misturar fragmentos de músicas pertencentes a gêneros, estéticas ou épocas
108
diferentes, surgindo a então chamada « música de colagens ». Charles Ives é o precursor
desta técnica, unindo inicialmente elementos de seu ambiente musical : áreas populares,
motivos de ragtime, marchas militares, realizando bem antes da aparição do gravador,
imagens e paisagens sonoras como em Central Park in the dark (1906). Trabalharemos
mais detidamente sobre a técnica da colagem e citação no « Capítulo 4 » deste trabalho.
Entendemos que no século XX, de certa forma todo o sistema musical pode ser
abordado como « atonal », se considerarmos a matriz sendo o tonalismo e partirmos do
princípio que os compositores trabalham sobre a idéia do negativo daquele. Essa é uma
visão que considera a música inserida na tradição. Um primeiro atonalismo seria
representado pela Escola de Viena enquanto vanguarda e outros atonalismos derivados
deste, seja por afirmação (dodecafonismo, serialismo, serialismo integral) ou negação
(música aberta, minimalismo, espectralismo).
Como dissemos acima cada compositor acaba por definir suas próprias regras dentro
do atonalismo, como alguns citados acima : Milhaud, Schostacovich, Stravinsky, Poulenc,
dentre tantos outros. Todavia, devido em função de nossa perspectiva estar ligada à obra de
Schoenberg, focalizaremos aqui dois momentos dentro de sua obra : Noite Transfigurada
opus 4 para sexteto de cordas, com forte configuração tonal, e 6 Pequenas Peças para
piano opus 19, representante de um atonalismo minimal.
3. Noite Transfigurada , op.4
O primeiro trabalho de Schoenberg, a partir do qual progressivamente vai se
afirmando ao longo dos primeiros anos do século XX é uma peça para sexteto de cordas de
1899 denominada Verklärte Nacht ou Noite Transfigurada. René Leibowitz aponta o
romantismo nesta obra numa tentativa de combinar Wagner e Brahms (Leibowitz : 1969,
p.23). Na verdade, é um poema sinfônico baseado em um poema de Richard Dehmel que
inclusive dá o título à peça. Como analisa Dahlhaus :
« Na época em que Noite Transfigurada (1899) como Pelléas e
Melisande (1903) foram compostas o prestígio da música de
programa era ainda alto. Schoenberg muito próximo de Richard
Strauss, era um dos « modernos » assim compunha música de
109
programa, era um moderno que representava a transição entre a
época de Wagner e a nova música do século XX. » (Dalhaus :1997,
p.151)
O programa é utilizado como um roteiro e molda a grande forma da peça, mas como
o próprio compositor dizia, era « completamente dispensável para a compreensão da
mesma ». O poema é estruturado em cinco estrofes de tamanhos desiguais, lembrando a
forma musical « Rondó ». Uma passagem recorrente - o passeio ao clarão da lua – alterna
segundo o esquema A-B-A-C-A com duas passagens diferentes, contrastantes, o discurso
de uma mulher e a resposta de um homem.
Embora a estrutura do poema seja um Rondó, não foi esta forma que Schoenberg
utilizou para a composição. Sua composição é determinada pelo princípio da « variação em
desenvolvimento », sejam suas primeiras obras tonais ou as dodecafônicas tardias. Este é
um procedimento que consiste em seguir um tema até suas consequências as mais extremas
e religar, no decorrer da obra, motivos que foram inicialmente expostos isoladamente. À
forma de base inicial, o Rondó no poema, sobrepõem-se uma cadeia de ligações motívicas-
temáticas, uma rede que torna-se cada vez mais densa e complexa (Dahlhaus : 1997, p.151-
2).
A peça é organizada em cinco partes distintas, segundo a estrutura do poema, com
mudança no andamento anotada em cada uma delas: 1. « Sehr langsam » ou « Grave »
(compasso 1) ; 2. « Breiter » ou « Molto rallentando » (compasso 100) ; 3. « Schwer
betont » ou « Pesante » (compasso 201) ; 4. « Sehr breit und langsam » ou « Adagio »
(compasso 229) ; 5. « Sehr ruhig » ou « Adagio » (compasso 370). Em 1950 Schoenberg
deixa por escrito uma análise desta obra anotando a correspondência dos principais temas
com a idéia do poema (Nono : 1988, pp.119-123). É notório seu raciocínio romântico em
sintonia com sua época. O primeiro tema que apresenta, por exemplo, corresponde ao
« passeio em um parque » :
110
Exemplo 1Noite Transfigurada – Schoenberg, compassos 1 a 5.
Dentro dessas cinco seções podemos visualizar duas grandes partes onde na
primeira (movimentos 1, 2, 3) uma mulher se expressa de maneira dramática declarando
sua paixão por um homem, mas confessando esperar um filho de outro e na segunda parte
(movimentos 4 e 5), onde o homem fala com grande ternura e acolhimento a esta mulher,
declarando igualmente sua paixão.
Escolhemos esta peça como alvo de estudo por ser sua primeira peça de referência,
assim considerada pelo próprio compositor, por ser tonal e possuir passagens de grandes
mudanças harmônicas. Ela pode bem representar o crepúsculo do tonalismo e as primeiras
transformações internas dentro do sistema tonal à caminho de um atonalismo. Uma noção
muito importante que podemos aplicar a esta peça é o seu próprio conceito de
« monotonalidade », ao pé da letra, uma tonalidade.
Schoenberg costuma trabalhar com a noção de região para distinguir entre
tonalidade principal e modulações. Dever-se-ia falar em modulações, segundo ele somente
se 1) um tom foi abandonado de maneira clara e por um tempo considerável, 2) se foi
estabelecido um outro tom com todas suas funções características. Se falta tal estabilização,
por exemplo se a harmonia não se fixa em um tom definitivo, mas sobretudo emprega
acordes que por seus múltiplos significados possam ser considerados pertencentes a várias
tonalidades, deveria se falar em harmonia de passagem. E nos explica da seguinte maneira a
questão das regiões e monotonalidade :
111
« O conceito de regiões é uma consequência lógica do princípio da
monotonalidade. De acordo com este princípio, cada digressão de
uma tônica é considerada quase como a tonalidade, sendo direta ou
indiretamente, próxima ou remotamente relacionada a ela. Em
outras palavras, só há uma única tonalidade em uma peça, e cada
segmento formalmente considerado como outra tonalidade é apenas
uma região, um contraste harmônico em relação à tonalidade »
(Schoenberg : 1969, p.19).
A primeira parte da peça é em Ré menor, representa a fala da mulher dramática e
tensa. Por volta do compasso 169 ocorre uma mudança na harmonia, apresentando uma
armadura de clave de Sib M em um rítmo harmônico complexo e rápido. Temos um
depoimento de Schoenberg, acerca de Noite Transfigurada, de como elaborou um trecho
imediatamente anterior a este Sib M, que guarda relação com esta mudança da armadura e o
fim do segundo movimento, precisamente o compasso 161. Como pode ser acompanhado
no texto abaixo, é uma seção em que procurava retratar uma espécie de tensão emocional,
valendo-se de um artifício contrapontístico. Diz ele :
« Vos surpreenderá que sobre um compasso de Verklarte Nacht eu
tenha trabalhado uma hora inteira, enquanto que toda a partitura de
quatrocentos e quinze compassos tenha escrito em três semanas.
Isso surpreente também os meus amigos quando mostro a eles
aquele compasso. De fato ele é um pouco complexo porque,
querendo exprimir, segundo as convicções artísticas da época (pós-
wagneriana), a idéia que estava por trás do texto poético, me parecia
que o sistema melhor para atingir a finalidade fosse uma
complicada combinação contrapontística : um Leitmotiv e sua
inversão soando contemporaneamente » (Schoenberg :1960, p.163).
Em seguida a este trecho vem o « Adagio » com armadura em Ré Maior (compasso
229) que é o terceiro movimento. Denominamos essa seção de « Coral » ; sua textura muda,
dando lugar a um largo 4/4 com melodia bem pronunciada no violoncelo e
acompanhamento dos 7 primeiros compassos através de acordes em semínimas. Aqui
inicia-se a segunda parte, representada pela fala do homem que, pacífico, acolhe sua amada
dando-lhe conforto e esperança.
112
Encontramos nessa segunda parte uma mudança maior na harmonia. Após o ré
menor inicial, há uma seção em F# M (compasso 249), claramente uma melodia
acompanhada, nos moldes românticos que lembra Strauss. Nova mudança, desta vez para
armadura de clave em Reb M (compasso 266). No compasso 291 a mudança é para
armadura de Fa M. No compasso 320 uma nova mudança da armadura para Réb M, e
armadura de Ré Maior no compasso 337. O início do quinto movimento está no compasso
370, com uma melodia no violino em contraponto a outra, do violoncelo. Uma Coda surge
a partir do compasso 391, centralizada no mesmo Ré Maior que assim segue até o final.
Nas palavras de Schoenberg :
« Uma longa coda conclui o trabalho. Seu material consiste em
temas das partes precedentes, todos modificados novamente, então
como a glorificar os milagres da natureza, que mudaram esta noite
de tragédia em uma noite transfigurada » (Schoenberg, 1988, p.
123).
Diante do perfil harmônico desta obra, podemos falar em sua monotonalidade em
Ré (maior ou menor, quase não importando de fato o seu modo). Todas as mudanças e
nuances de harmonia que ela apresenta podem ser abordados pelos conceitos de região, que
o próprio Schoenberg estabeleceu.
No todo, ela tem uma linguagem fortemente marcada pelo romantismo do século
XIX e apresenta como técnica básica, o « motivo em desenvolvimento ». Para bem
compreendermos seu sentido, iniciamos pela definição que Schoenberg dá ao « motivo »:
«unidade que contém uma ou mais características melódicas e
rítmicas. A sua presença é revelada pelo seu constante uso através
de um trecho. O seu uso consiste em frequentes repetições, algumas
invariáveis, a maior parte variadas » (Schoenberg : 1960, p. 64).
Se devemos buscar na história da música uma referência para a paternidade desta
técnica em Schoenberg, podemos identificar claramente que sua profusão de motivos em
desenvolvimento vem sobretudo de Beethoven (Dahlhaus : 1997, pp.185-191). Fizemos um
levantamento dos motivos em desenvolvimento e identificamos um grande número deles,
podendo ser divididos entre principais e secundários. Ao todo chegamos em 64 elementos,
113
dentre motivos principais, secundários, e de acompanhamentos.
2
Esses elementos foram
tomados por nós como objetos e a partir deles concebemos uma peça musical para piano
solo. Em seguida apresentamos um estudo da mesma.
4. Música para Schoenberg
Na tentativa de fazer uma releitura desta obra, desenvolvemos uma peça para piano
solo. Ela não é apenas inspirada, mas baseada e repleta de citações/colagens de Noite
Transfigurada. Esta composição parte da idéia de uma nota Ré como polo atrator. Todas as
configurações motívicas são extraídas de Noite Transfigurada e são retrabalhadas na
disposição, no tempo e textura. A tonalidade de Ré, que não foi escolhida em vão por
Schoenberg, mas por ser de fácil trato, ou melhor, de boa ressonância (bom resultado de
harmônicos) nas cordas, foi mantida e explorada no piano, que se revela excelente no
trabalho das ressonâncias, garantindo uma boa quantidade dos harmônicos no decorrer da
peça. Para isso também foram usados « clusters ».
O tratamento temporal apresenta um alargamento dos motivos, concatenação e
sobreposição de idéias que estão separadas no trabalho de Schoenberg, mas as alturas são
mantidas. Através deste enfoque temporal temos um outro mapeamento da mesma música.
Esta preocupação está refletida na escrita adotada, além do uso dos três pentagramas que
salientam a peocupação com as diferentes regiões do piano bem como suas ressonâncias.
Temos ainda ausência de fórmulas de compassos, barras de compassos utilizadas para
separar idéias ou seções, mas as alturas foram mantidas.
As cinco partes do poema original podem ser encontradas também aqui : 1) Início 2)
Con Moto, 3) Coral, 4) Fa# M, 5) Allegro, da última página, que é basicamente a Coda .
Mas não utilizamos o procedimento da forma Rondó, nem uma extração integral de cada
parte. O tratamento que predomina aqui é a colagem de alguns elementos.
Nosso objetivo era manter o parâmetro das alturas e alterar os outros : intensidade,
duração e timbre. Trabalhando assim estaríamos afirmando a tese da importância das
2
Esta análise pode ser acompanhada em : Dias, Daniele Gugelmo. « Estágio » in Proceedings of 6th
International Conference Generative Art. Milan : 2003 (pp. 376-382).
114
alturas dentro da história da música. Por que ? Ao tomarmos um exemplo musical qualquer,
por exemplo, uma sinfonia de Beethoven e executarmos a mesma em um piano,
identificamos imediatamente que é a sinfonia, mesmo sem ouvirmos uma orquestra, os
solos, as diferenças timbrísticas, e intensidades. Isso ocorre pois mantivemos o conjunto
das alturas, e durações. E se mudássemos também as durações ? Haveria uma estranheza,
mas ainda seria possível o reconhecimento da Sinfonia. Mas se mudássemos as alturas, não
uma mera transposição a uma outra tonalidade, mas na direção das notas, matendo os
outros parâmetros, será que a reconheceríamos?
Para fazer uma citação de Schoenberg ou qualquer outro compositor tonal, é preciso
se fazer tonalmente, assim como se quizermos citar a transição da técnica tonal para a
atonal, é preciso fazê-la através das alturas. É o que fez, por exemplo, Berio em sua
Sinfonia de 1968, quando ele cita Mahler faz na íntegra do que Mahler escreveu. Há muitas
razões para o privilégio das alturas. Há mais de 2000 anos no Ocidente quase todas as
teorias da música são pitagóricas, concebem a música como a arte das relações entre as
frequências (alturas) dos sons. Os problemas ligados às alturas sempre foram beneficiados
de uma maneira absoluta em relação aos outros problemas (D´Allones : 1992, p.10).
Várias culturas constataram que um corpo que vibra pode vibrar duas vezes mais
rápido e em consequência emitir um som mais agudo. Muitos instrumentos, e não apenas os
ocidentais, permitem obter 4 ou 5 primeiros harmônicos do som fundamental. São fatos
físicos simples (D´Allones : 1992, p.25). Como explica D´Allones :
« Muito cedo o pensamento teórico se inclina sobre esses
fenômenos e declara que existe, na cadeia contínua dos sons
audíveis, intervalos chamados « naturais », pois a experiência física
elementar parece ditá-los. Um passo a mais e são classificados de
« bons » intervalos, subentendendo que os outros são maus »
(D´Allones : 1992, p. 26).
E o mesmo autor continua a dissertar sobre o tema explicando-nos que uma filosofia
de base matemática, como a de Pitágoras, coloca em valor o fato de que no início da série
harmônica, os harmônicos são obtidos dividindo-se a corda em 2, 3, 4, ou 5 segmentos
iguais. Além disso, compondo a música com a ajuda dos intervalos de oitava, quinta e
terça, comunica-se ao ouvinte um jogo inteligível sobre os 5 ou 6 números inteiros. Isso era
115
compor uma música segundo os « números ». Havia a garantia de se falar ao ouvinte a
liguagem da razão. Concluindo seu raciocínio diz :
«A cadeia de Pitágoras a Xenakis, é contínua e viva, que recusa aos
sons a tentação da anarquia e os organiza segundo estruturas,
algumas infinitamente variadas, mas sempre identificáveis de uma
maneira ou de outra » (D´Allones : 1992, p.26).
As reflexões que estiveram por trás de nossa composição passaram por uma revisão
sumária da história da música (Capítulo 1). Esta composição é antes de mais nada uma
homenagem atual (realizada em 2003) a Schoenberg. Ela nos dá, dentre outros, elementos
para afirmarmos o papel das alturas, ou a importância das alturas dentro da cultura da
música ocidental. Foi também uma forma de refletir « composicionalmente » a gênese de
uma revolução musical iniciada através do problema tonalismo/atonalismo no início do
século XX. E hoje, face à riqueza e variedade de estilos musicais, à multiplicidade de
tendências e sistemas acreditamos que entre os primeiros « exercícios » de Schoenberg em
Noite Transfigurada já se encontrava a abertura da concepção musical que desfrutamos em
nossos dias. Se afirmamos que a tese que sustenta nossa pesquisa é a compreensão de
Schoenberg como o ponto de partida para a música contemporânea, nossas criações
musicais existiram somente em função de um objetivo : serem um experimento prático
desta convicção.
Parte 2 – Duração
1. Seis Pequenas Peças para piano
3
, opus 19
Seis Pequenas Peças para Piano, opus 19 tem a duração de cerca de 5 minutos.
Foram compostas em 1911. Não é irrelevante notar que as cinco primeiras foram escritas
3
Sechs Kleine Klavierstücke
116
no inverno, enquanto trabalhava em seu livro Harmonia e a última em junho, poucas
semanas depois da morte de Mahler (18 de maio de 1911).
Elas são miniaturas para piano solo de estilo aforístico. São 12 anos que separam o
opus 4 e o opus 19. Temos dois mundos completamente diferentes e estranhos um do outro.
É de se notar também a grande diferença desta obra para Gurrelieder, música densa que
segue mais uma vez ao impulso romântico, escrita quase contemporaneamente. A
brevidade do opus 19 revela a mente musical de Schoenberg em grande mudança.
Leibowitz (1969, p.83) fala de uma composição inacaba de Schoenberg de 1910, um
ano antes do opus 19. Trata-se de Três Pequenas Peças Para Orquestra de Câmara. A
primeira peça tem 12 compassos e um tempo rápido, a segunda conta com apenas 7
compassos, em um tempo moderado e a terceira tem 8 compassos e está inacabada. Para
Leibowtz tanto essa peça inacabada, como o opus 19 fazem parte de uma mesma tendência
musical nova que ele denomina de « estilo aforístico », essas peças são únicas dentro da
produção de Schoenberg.
A primeira peça do Opus 19 – « Leicht zart » - conta com 17 compassos. A idéia
que predomina nela é um estilo cotrapontístico com uma linha aguda que se confronta com
ressonâncias da região média do piano. A partir do compasso 7 onde se inicia uma nova
seção, temos trêmulos (consequente) que comentam a articulação anterior (antecedente) e
transformam-se em acorde sustentado por dois compasos e meio. A parte final retoma um
caráter mais contrapontístico e a peça termina numa espécie de recitativo final, nos três
últimos compassos.
A segunda peça – « Langsam » - é elaborada a partir de terças (maiores e menores)
e incorpora pausas na articulação do discurso o que desconfigura a fórmula de compasso
escolhida : 4/4. Tem no total 9 compassos. Apresenta uma introdução em um compasso e
meio, depois uma melodia em legato expressivo, interlúdio com as terças. Um acorde
pontua a última seção, terças alternadas entre mão direita e esquerda que terminam em um
acorde (sol-si-mib-fa#-sib-re).
A terceira peça – « Sehr langame » - apresenta uma construção mais aberta entre as
duas mãos, com oitavas na mão esquerda e um longo fraseado na mão direita. Tem ao todo
9 compasos. No quarto compasso temos um sib que repete, igualmente entre o sétimo e
117
oitavo compassos a repetição é do mi depois re#-mib. Essa repetição de notas é prova de
que o ideal de não-repetição elegido mais tarde por Schoenberg, estava ainda em
amadurecimento. Não apenas nesta peças, mas também nas outras, trabalha com as alturas
de maneira livre e procura não polarizar sobre nenhuma altura. A repetição aqui
apresentada é mostra do cuidado e discrição com que se empenha.
A quarta peça – « Rasch, aber leicht » - traz como característica principal uma
organização formal onde uma única linha melódica faz uma proposta e um comentário,
como se o piano fosse um instrumento monódico. Aparecem acordes ocasionais apenas
pontuando a melodia.
A quinta peça – « Etwas rasch » - é mais contrapontísitca, com partes claramente
distintas e no seu final traz um deslocamento por diferentes regiões do piano. Ela conta com
15 compassos.
A sexta peça – « Sehr langsam » - tem como material principal acordes que
trabalham ressonâncias, salientando assim outra caracterísitica timbrística do piano.
Apresenta no último sistema três pentagramas, uma escrita que reforça a preocupação com
a ressonância.
4
Quando Schoenberg compôs estas peças, já estava consumado em suas obras
teóricas e musicais o questionamento das tradições acadêmicas. O que chama a atenção
nelas é sua brevidade. Existem várias explicações para esta opção. Considera-se como
alguns fatores básicos: o experimentalismo ao qual se empenhava incansavelmente, a
preocupação com a não-repetição, o afastamento da prolixidade e a influência de Werbern,
que era seu aluno desde 1908 (D´Allones : 1992, p.53).
A brevidade no discurso musical não fazia parte da linguagem da época, pelo
contrário, não era sequer considerada. A opção pelo pequeno fragmento, segundo
D´Allones quer por sua forma mesmo, enfraquecia o ideal de totalidade que presidia a
tradição anterior, condenando assim as exposições e articulações longas e prolixas.
4
Um outro tipo de análise desta mesma obra, baseada na Teoria dos Conjuntos, pode ser
acompanhada em : Dias, Daniele Gugelmo. « Os sete dias da criação : da composição à elucidação
do sistema composicional ». (dissertação de mestrado). Unicamp : 2000, pp.247-271.
118
D´Allones vai buscar a definição de aforisma para justificar sua tese. Aforisma é por
definição a pequena forma e originalmente está associada à literatura ou mais
especificamente à poesia. O primeiro autor a praticar o gênero, chegando as vezes a
articular sua mensagem em duas ou uma palavra em pequenas frase foi Georg Christoph
Lichtenberg (1742-1799), que se considerava inimigo do Romantismo e adepto do
Iluminismo. Em Novalis, temos no aforismo um caminho para a ironia, mas ainda
Romântico. Nietzsche abertamente anti-romântico, situa-se na corrente moralista francesa.
Adorno em « Minima Moralia » (1948-50) reativa o gênero para o século XX (D´Allones :
1992, p.54).
Segundo D´Allones a brevidade do aforisma era em si mesma, independentemente
de seu conteúdo, crítica. Neste sentido, apresenta-nos uma reflexão do contexto sócio-
estético em que Schoenberg escreve essas peças :
«Viena do início do século é como anotou diversos de seus
historiadores, frequentemente solicitada por seu fragmento ; sob o
pano de fundo da literatura Kantiana, Ernst Mach em filosofia e
Karl Kraus em literatura elaboram uma visão de mundo dos
acontecimentos « locais » separados e separantes, sensíveis ao
formigamento das diferenças, agudas. É apenas com Freud,
entretanto ciente da unidade e da coerência do vasto sistema
psicanalítico, que surge um grande lugar a esses « fragmentos » do
inconsciente, que, como o lapso, o sonho, a palavra espírito vem
rachar a cidadezinha da consciência.» (D´Allones : 1992, p.55)
É esta a opção que faz D´Allones ao ver no aforisma musical a crítica do passado
musical. A brevidade para ele é o principal elemento dessas peças. Entende que esta foi a
forma foi que Schoenberg encontrou para afirmar que os grandes sistemas estavam
destruídos e que era preciso substituí-los pelos breves momentos musicais. Nestes
« instantes musicais », a expressão seria quase marginal, manifestação de uma curiosidade
ou divertimento.
Cada uma das peças do opus 19 possui uma unidade, imanente de uma idéia musical
simples e original ao mesmo tempo. Para nós, seguindo a sugestão de D´Allones, a
brevidade de cada peça é o registro, ao nível da forma, não somente da crise dos grandes
sistemas, mas uma das maneiras possíveis de se enfrentar esta crise.
119
Citando um aforisma de Adorno «Toda obra musical é um fogo de artifício »
(D´Allones : 1992, p.56) salienta que se o aforisma literário tem a virtude de concentrar a
atenção sobre seu conteúdo, o aforisma musical valoriza de maneira original a duração, o
caráter pontual do instante, assim como o fogo de artifício que existe triunfalmente por um
instante.
O recorte de D´Allones é que o opus 19 surge como uma necessidade de conceber
uma nova idéia do tempo musical. Acredita que Schoenberg permanece muito tempo sobre
esta via : em 1911 ele está trabalhando sobre Pierrot Lunaire e lida com os poemas de
Albert Giraud de maneira aforística, tanto no plano literário, pois o sprechgesang visa
respeitar caracteres do texto, como na instrumentação, que é original e impossível de se
reduzir. Também o conflito apresentado em Moisés e Aarão apresenta Moisés como a lei, o
retorno, o recurso aos elementos estáveis, canônincos verdadeiros e Aarão como sentido da
fórmula, o uso do sensível, a arte de comunicar e dizer, o sentido agudo do instante – por
oposição ao desejo de eternidade.
Entendemos que nessa visão de D´Allones está intrínseco o conflito que Schoenberg
vivia entre tradição e inovação, conflito que apresentamos nos capítulos anteriores como
mola propulsora de sua produção teórico-artística. Para salientar esse conflito, bem como a
profusão de idéias com que lidava na época, é importante lembrar a produção teórico-
musical dele neste ano de 1911 : Seis Pequenas Peças para Piano, Gurrelieder, Pierrot
Lunaire, finalização de seu livro « Harmonia ». Identificamos em sua análise os elementos
que se confrontam : sprechgesange e canto, aforisma e poema de Giraud, instrumentos
tradicionais e nova orquestração diante de uma obra, Moisés - o passado, a eternidade e
Aarão – o presente, o instante, reflexão teórica – o livro Harmonia, confecção musical - as
composições de variados estilos.
Schoenberg deixa anotada uma recomendação para a execução dessas peças : fazer
uma pausa após cada uma delas, pois não deveriam se unir uma a outra
5
. D´Allones vê
nesse pedido do compositor uma técnica que foi retomada muito mais tarde por
compositores que queriam romper com a percepção de um encadeamento, ou melhor, um
5
Glen Gould não segue esta indicação em sua interpretação, separa as peças apenas por uma
respiração.
120
simples encadeamento melódico : algumas obras de Varèse ou Momente de Stockhausen,
por exemplo (D´Allones : 1992, p.58).
D´Allones reserva um espaço especial para a sexta peça, destacando a emoção
contida nela como proveniente da perda do amigo Mahler. Diz ele :
« Quando escreve esta peça – não se pode dizer que a compõe : ele
a põe no máximo – Schoenberg havia voltado do enterro de
Mahler ; ele quer fazer ouvir, entre « piano » e um quádruplo
« piano » final, e « muito lentamente », alguma coisa que poderia
passar como uma última homenagem a Mahler, uma minúscula
« colagem », um ínfimo « pout-pourri », que como a vida do mestre,
desaparece. Como um sopro sobre o lab pouco audível. »
(D´Allones : 1992, p.59)
A sexta peça é construída sobre a sobreposição de 4 quartas superpostas (la-fa#-si e
sol-do-fa) e esse conjunto se reproduz, contrariamente a todos os princípios de
Schoenberg : 4 repetições em 9 compassos. A busca da 4a como intervalo básico nesta peça
talvez seja uma busca de novos fundamentos intevalares que fugissem às terças. Uma
pequena seção intermediária, compassos 5 a 8, apresenta uma transposição de oitava, mas
ainda continua a atuar sobre um acorde de 4as na mão direita e outro na mão esquerda
formado por uma 7a m com 4a aum, que se transforma em 3a M. Um pequeno interlúdio
melódico (compasso 7) seguido de um acorde formado por quartas (do# fa# si e re sol# do)
com a interferência de um mi-mib, para então voltar ao acorde do início. Ela é
extremamente reflexiva e como dissemos acima, apresenta um timbre muito particular do
piano.
Leibowitz (1969, p.84) detem-se na segunda peça. Ele observa que é raro em
Schoenberg o uso do ostinato e aqui temos um exemplo disto. Este ostinato construído a
partir da terça é o núcleo em torno do qual gravitam todas as outras figuras. Tem uma
estrutura em três partes e desde o segundo compasso apresenta um confronto entre terça
maior e menor. É a ela também que Hans-Ulrich Fuss dedica seu maior comentário :
« As repetições de terças da segunda peça, por exemplo, podem ser
percebidas como os rudimentos de um acompanhamento típico de
valsa, com ornamento de colcheias. Deste ponto de vista, a peça
121
aparece como a ossatura de uma valsa, cujo elã é fixado em
repetições que se desaparecem mecanicamente » (Fuss : 1994).
Vemos nesta peça o argumento do tonalismo colocado em xeque. As terças, maiores
e menores, estabelecem um diálogo entre si, desafiando a percepção de quem ouve a
música, pois o Modo não se define até o final dos 9 compassos. De fato, o aforisma aqui
pode ser entendido como uma crítica à organização tonal baseada na terça. É notório, após
a escuta desta música, que o compositor sentia-se completamente livre da tonalidade,
descartando completamente seus elementos fundamentais, o que importa é que faz com o
som o que deseja, o que o deixa à vontade para fazer a sequência de terças, maiores e
menores, num tom de brincadeira e ironia. E aqui nos perguntamos : fazer o que deseja com
o som não foi a atitude radical que dá origem à toda variedade da música contemporânea ?
Afinal, rompido o constrangimento de se alterar as regras da harmonia no interior da
música tradicional, o que mais seria capaz de constranger a criação musical diante de todos
os tipos de sons, naturais ou eletrônicos ?
2. Poesia sem palavras
As reflexões sobre o atonalismo lançaram-nos a uma outra composição para piano
solo. Do complexo mundo atonal, as peças de Schoenberg consideradas neste capítulo,
foram de fundamental importância para determinarmos como ponto de partida a
organização livre das alturas e o caráter pontual do instante, unindo desta forma os
argumentos técnicos de nossa composição.
Poesia sem palavras é o título de uma coleção luxuosa e limitada de 12 xilogravuras
de Kandinsky editadas em 1904 em Moscou. A raridade desta coleção, a pouca circulação,
acrescido pelo fato de serem em número de 12, estimulou-nos a utilizá-las em um conjunto
de composição.
Essa obra é da primeira fase de Kandinsky onde trabalhava sobre a intenção
figurativista. As imagens de formato pequeno e o título sugestivo, apresentam a idéia de
termos nelas poemas que não contém palavras, ou poemas visuais. A pureza das imagens
nos reporta a momentos « fotografados » pelo autor, « flashs de instantes repletos de
122
poesia ». A temática é variada, vemos a presença forte da natueza através das árvores,
flores, montanhas e animais, a temática medieval também se repete, especialmente através
da imagem do cavaleiro (seja em um adeus, como no duelo ou em simples passagens de
fundo). A superfície é plana e bidimensional, sem qualquer interesse pela pesquisa da
perspectiva. Aqui Kandinsky segue os conselhos de Franz von Stuck, seu professor,
deixando de lado sua paixão pela cor, concentrando-se sobre a forma e sobre a infinita
potencialidade da linha. O trabalho com a linha e a forma revela delicadeza, precisão e
detalhismo, com uma forte expressividade do tema de cada gravura.
2.1. Xilogravura e expressionismo
A xilogravura, arte de gravar em madeira, é uma das técnicas de gravura mais antiga
que se conhece. A impressão sobre tecido já era conhecida no século XIV, mas é com o
aparecimento do livro impresso que ela se difunde no Ocidente. (Sugimoto : 2004)
A origem da xilogravura está entre os povos do oriente. Era conhecida entre os
egípcios, indianos e persas que a usavam para a estampagem de tecidos. Mais tarde foi
utilizada como carimbo sobre folhas de papel para a impressão de orações budistas na
China e no Japão. No Ociente seu uso está associado ao desenvolvimento do papel, sendo
utilizada para estampa de baralhos e imagens sacras. Ela se afirma durante a Idade Média
como técnica de reprodução de cópias. Mais tarde passa a ser valorizada como
manifestação artística. No século XVIII surge na Europa as gravuras japonesas a cores,
processo que vai se desenvolver no Ocidente a partir do século XX. Os movimentos de
artes modernistas no século XX passam a utilizar a xilogravura como técnica expressiva.
Sobre uma tábua de madeira dura (a matriz), o artista faz o desenho com um
instrumento de incisão afiado e em seguida coloca a tinta. Uma vez feita a estampa sobre o
papel, as partes em relevo tornam-se pretas, enquanto que as escavadas ficam brancas.
Neste procedimento, o que mais atraía Kandinsky era que, apesar da simplicidade de
execução e a essencialidade dos meios expressivos, a obra podia exercer uma intensa
emoção no expectador (html : Kandinsky).
No início do século XX, a corrente denominada Expressionismo resgata, dentre
123
outras, a xilogravura como técnica.
Quatro estudantes de arquitetura organizaram, na
Alemanha do início deste século, o movimento intitulado A Ponte (Die Brücke).
Segundo a lenda, o nome foi inspirado na ponte ferroviária que atravessa o rio Elba,
em Dresden, mas ganhou conotação de elo entre todas as tendências revolucionárias
na arte. Schmidt-Rottluff, Kirchner, Heckel e Bleyl, os fundadores do grupo, eram
pintores amadores e apelavam aos jovens que
‘‘reproduzissem com rapidez e
sinceridade aquilo que os impelia a criar’’
. Daí nasciam figuras deformadas, às vezes
primitivas, outras próximas da linguagem abstrata.
Os expressionistas resgataram a técnica deixada de lado pelos acadêmicos desde a
Idade Média. E é justamente na produção gráfica que os alemães se destacam, tendo a
técnica com eles ganhado força e originalidade. Para se ter idéia, o conjunto de gravuras
criado por Ernest Ludwig Kirchner, do grupo A Ponte, é o maior do século XX. São mais
de 2 mil obras gráficas.
Pelo programa de A Ponte, os pintores deveriam livrar-se das memórias visuais que
foram ensinadas e levar às telas a emoção que os objetos suscitavam. Daí surgiram imagens
caracterizadas por uma visão angustiada do mundo que os cercava. A Ponte durou sete anos
(1906-1913) e, antes que acabasse, outro grupo expressionista ganhou fama: O Cavaleiro
Azul (Der Blaue Reiter, 1911-1914), fundado em Munique por Kandinsky e pelo alemão
Franz Marc, ao qual incorporaram-se Campendonk e Paul Klee, entre outros.
Juntos, A Ponte e O Cavaleiro Azul são importantes referências do expressionismo
alemão nas artes gráficas. Ao contrário do primeiro, no entanto, o que unia os artistas de O
Cavaleiro não eram protestos, mas a possibilidade de procurar linguagens artísticas que
fossem novas e expressivas. A multiplicidade de formas deixava atônitos até mesmo os
críticos favoráveis ao movimento, segundo revela Hajo Düchting, autor de Kandinsky,
publicado pela editora Taschen. Todavia, Kandinsky justificava-se:
‘‘Pretendemos mostrar
como as aspirações íntimas dos artistas podem se revestir de expressões variadas’’,
escreveu no prefácio do almanaque O Cavaleiro Azul, que teve um único e primeiro
volume.
Os expressionistas foram inspirados pela xilogravura japonesa, pela arte primitiva e
124
pelos trabalhos dos precursores Munch, Van Gogh e Gauguin. A partir daí, buscaram
estabelecer relação entre arte e natureza (Muniz : html, 2000).
O resgate histórico da xilogravura pelos expressionistas do grupo A Ponte, entretanto,
não parece ter sido o estímulo que Kandinsky teve para a produção dessa obra.
Cronologicamente é mesmo inviável tal hipótese, Poesia sem palavras é de 1903/4 e o
grupo A Ponte articula-se a partir de 1906, no entanto queremos com esta abordagem
salientar que seu interesse pela gravura, considerada uma irmã menor das artes visuais, no
início do século X. Talvez Poesia sem Palavras tenha sido uma primeira experiência com a
técnica de incisão sobre madeira para Kandinsky, ou um simples exercício que o lança às
reflexões sobre a linha e a forma. Esta experiência, no entanto, o levou anos mais tarde
adotar tal procedimento como técnica básica para a ilustração do almanaque O Cavaleiro
Azul, dando sequência justamente ao expresionismo de A Ponte. Já na fase abstracionista da
Bauhaus, ele marca encontro novamente com a incisão, desta vez utilizando variados
materiais, dentre eles as cores e é aí que vem à luz Pequenos Mundos (1922).
A xilogravura é um percurso que Kandinsky utiliza para exercitar a
bidimensionalidade, a linha e as formas que podem delas serem derivadas. Como o
Schoenberg do opus 19, que não encontramos mais tarde, também com Kandinsky, as
xilogravuras em branco e preto, figurativistas não aparecem mais em sua produção futura,
que é carregada de preocupação com a forma, cores e a abstração. Esta passagem de
Kandinsky nos fez pensar um paralelo entre o seu experimentalismo e o experimentalismo
de Schoenberg. Ao fazer estudos sobre a linha e a forma, cria uma obra figurativista,
peculiar e não menos rica.
Kandinsky escolhe a incisão sobre madeira pela simplicidade da técnica e a sua
forte expressividade. Nesta obra apresenta 12 xilogravuras, curiosamente o número 12
aparece em muitas sistematizações (os meses do ano, os signos do zodíaco, as 12 notas
cromáticas…) e este assunto é encontrado como alvo de estudos de místicos de várias
correntes. Cientes da visão espiritualista de Kandinsky, acreditamos que a escolha de 12
xilogravuras fez parte de sua cosmo-visão. Não é a única vez que dedica-se a uma coleção
fixada no número 12, em 1922 por exemplo, na época em que está na Bauhaus, realiza uma
série intitulada Pequenos Mundos, uma coleção de 12 incisões que reúne técnicas diversas.
125
Não encontramos nada que tenha sido deixado escrito por ele ou anotado por algum
estudioso, mas certos de sua escolha velada, decidimos associar seus poemas sem palavras
a 12 peças musicais, abrindo assim a cadeia de relações: poemas visuais que se
transformam em poemas musicais.
2.2. Aforisma e expressão na Música
A música composta tenta exercitar a forma compacta das xilogravuras através do
uso de poucos elementos em um tempo concentrado, o mínimo necessário, para em poucos
sons exercitar, ou expressar a poesia de cada imagem.
Ao apreciarmos as imagens de Kandinsky, não é ao expressionismo alemão do
grupo A Ponte que as associamos, mas a aproximação nos vem de uma outra obra musical.
É clara a semelhança com Quadros de uma Exposição de Mussorgski, esta sim referência
anterior para Kandinsky. Seja pelo fato de também ser russo, ou pelo fato de trabalhar uma
coleção de símbolos medievais, ou ainda por ser uma obra que sempre esteve no imaginário
do pintor, em vários momentos é possível sentir nesta coleção de imagens de Kandinsky a
alma de Musorgski que atravessa. Por exemplo, em Musorgski temos O velho castelo, em
Kandinsky O velho Burgo, em Mussorgski uma visita a vários quadros de temática não
homogênea, identicamente o que ocorre com a temática de Kandinsky neste trabalho. Em
ambos cada quadro contém um significado próprio. É muito importante acrescentarmos que
Kandinsky em 1928 realizou uma cenografia exatamente desta obra de Mussorgski,
envolvendo imagens e luzes concebidas por ele. A obra de Mussorgski conta com 11
quadros e um tema « promenade » que é a ligação entre eles : 1. « Gnomus », 2. « O velho
castelo », 3. « Tuilleries », 4. « Bydlo », 5. « Ballet dos pintinhos em seus ovos », 6.
« Samuel Goldenberg », 7. « O mercado de Limoges », 8. « Catacumbaes: Sepulcrum
Romanum », 9. « Cum mortuis in lingua mortua », 10. « A cabana de Baba-Yaga sobre
patas de galinha », 11. « A grande porta de Kiev ». Não temos em nossa composição
citação da obra de Mussorgski, mas faremos a seguir nossa « Promenade » entre as
imagens.
126
A primeira das imagens é o «Rio Reno » (16x7,1cm) A imagem mostra uma
pequena canoa conduzida por um remador que transporta uma pessoa em pé. Ao fundo, a
imagem de um velho burgo no alto de uma montanha. A música trabalha com dois
elementos, como se fossem dois planos, a mão direita num ostinato cromático é o pano de
fundo para uma melodia evasiva da mão esquerda.
A segunda imagem é «A tarde » (6,9x14,6). Esta xilogravura mostra um espaço
público, um jardim com moças e cavalheiros passeando, ao longe imagens de árvores e uma
construção mais elevada que se assemelha a um coreto. A música que acompanha esta
imagem é construída por acordes de quatro notas (formados por sobreposição de quartas)
pontuados em dois momentos, o primeiro por um som grave e o segundo por um acorde
aberto simultaneamente no extremo agudo e extremo grave. A idéia de espacialização dela
vem do fato de encontrarmos nas imagens uma ocupação igualmente espacializada.
A terceira imagem é «Rosas » (8,6x14,6cm). Aqui a beleza pontilhística do quadro é
encantadora. Temos no centro, ao fundo o perfil de uma cidade com suas construções
antigas rodeada por árvores e flores. Duas jovens com grandes saias rodadas e chapéus de
grandes abas estão em primeiro plano e muito próximas uma da outra apreciam as rosas. A
música concentrou-se na idéia pontilhística do quadro e teceu uma melodia que é
construída de forma complementar entre mão direita e esquerda. Cada mão executa uma
nota de cada vez, a pausa e as respirações também compõem o discurso que finaliza em
uma reunião de notas em um acorde que tem a intenção de ser um acorde de harmônicos.
A quarta imagem é «Lago de Montanha » (9,1x15,1cm). Ao fundo, montanhas
provavelmente coberta de neves e no primeiro plano um lago com poucas árvores
próximas. O tema desta peça são os acordes, eles partem de um cluster inicial (no extremo
agudo e extremo grave), entendido antes de mais nada como um acorde, em seguida
acordes de três sons apresentam uma construção crescente de notas até terminar novamente
em um cluster no grave em fff.
A quinta imagem é «Os Expectadores » (8,9x14,6cm). Essa imagem mostra um
público reunido à espera de um espetáculo. Entre eles mulheres, homens e crianças. A
posição das crianças e a inclinação da cabeça dos adultos indicam que algo muito curioso
deve estar se passando. A peça se inicia em um « Allegro giocoso » com notas
127
cuidadosamente destacadas uma da outra, cromatismo, alternância entre as mãos e um
« Prestissimo» no final para conduzir a um acorde no agudo.
A sexta imagem é «Velho Burgo » (7,9x14,2cm). Um velho vilarejo é o tema desta
xilogravura que conta também com a figura do cavaleiro que passa. Uma figura rítmica
que se repete, depois a mesma figura rítmica apresenta mudança cromática, um harpejo de
Fa# menor descendente em forma melódica termina na nota la, uma conclusão tonal é
feita : la-re-la.
A sétima imagem é « A serpente » (7,1x16,3cm). O cenário é formado pela
natureza : grama, pedras, flores, água e uma serpente no alto à direita. A serpente-dragão,
segundo a tradição é símbolo da imortalidade e renascimento. Seguramente Kandinsky viu
incisões e pinturas russas e chinesas nas quais comparecem este misterioso animal e sua
imaginação fixou-a de forma fascinada. Em algumas de suas obras, entretanto, a serpente-
dragão assume outro significado, torna-se símbolo do mal e da vida material contrapondo-
se à figura de São Jorge que encarna o bem e a espiritualidade. O motivo central desta peça
é o cromatismo através de variadas configurações rítmas. O tratamento do tempo é
particular nesta peça que pretende dar uma idéia de imprecisão, imprevisibilidade, apesar
das quiálteras e pausas precisamentente escritas. O « tempo rubato » do início reforça a
idéia de um movimento sinuoso para a interpretação. Após uma apresentação de
movimento descendente temos uma ponte articulada em colcheias ligadas em 2as maiores e
menores. Uma respiração (pausa de semínima) e o cromatismo é retomado com valores do
maior para o menor (semínima, semicolcheia, septina de semicolcheias). Um « tempo
libero » aparece para marcar a próxima seção, que é uma espécie de recitativo condensado e
para finalizar, em notas duplas, uma escala cromática descendente e sem agitação.
A oitava imagem é « Vida Movimentada » (7,7x16,1cm). Esta imagem concentra
uma multidão no que parece um festejo popular. Bandeiras ou flâmulas são levadas à
direita por um cortejo ou uma fanfarra, ao fundo uma construção russa suntuosa com altas
cúpulas, provavelmente um palácio. Muitas pessoas dividem a cena, crianças, mulheres,
velhos, camponeses, nobres ou militares com indumentária. Destacamos os personagens em
funçaõ de suas vestimentas, rica e cheia de detalhes, assim como a expressão nos rostos. A
música é formada por vários motivos diferentes e distintos. 1) Inicialmente uma estrutura
128
de rítmo complementar, 2) um segundo elemento é apresentado pelas colcheias em
movimento regular entre la-sol. 3) Um trilo pontua outra mudança que apresenta uma nota
Mi repetida, 4) duas semínimas ligadas é outro motivo. 5) O movimento regular das
colcheias aparece desta vez numa corde de 4 sons. A segunda parte da peça (terceiro
sistema) apresenta 6) um som que ritmicamente faz alusão ao toque dos trompetes, 7) em
seguida um acorde e 8) um trêmulo em oitavas, sem ralentar mas em diminuendo.
A nona imagem é « O Adeus » (8,2x7,8cm). A cena melancólica apresenta o drama
da despedida entre um casal. O adeus entre um cavaleiro e sua dama projeta-se aqui no
mundo da fábula medieval, tão apreciado por Kandinsky. O cavaleiro, símbolo romântico
do herói virtuoso, olha em frente com firmeza, no sentido das aventuras que o esperam e
das quais deverá dar prova de seu próprio valor. Na mão direita segura uma lança e a seu
lado o cavalo, seu inseparável companheiro. A dama não parece tão forte, abraça seu amor
como último recurso, tentando de dissuadí-lo da partida. A verticalidade da composição é
sublinhada pelos troncos das árvores, pela imponente presença da lança e pelas pregas do
vestido da mulher. A superfície é plana e bidimensional. A preciosidade dos detalhes, o
gosto pelo particular e o forte decorativismo, são uma mostra da cultura simbolista de
Munique, da qual a partir de então Kandinsky é parte integrante. A música é articulada
entre três grandes silêncios. Apresenta um motivo inicial que é na verdade o núcleo de toda
a peça : um intervalo melódico de 4dim (do#-fa). Em seguida esse intervalo é aberto
gradativamente para outras regiões do piano. Um compasso de silêncio e volta-se ao
mesmo motivo espalhado, acrescentando agora a nota si, o que forma um intevalo de 4aum.
Após a terceira pausa um novo comentário sonoro em oitavas. Para terminar um acorde no
grave. As pausas aqui são de grande importância dentro da idéia angustiada da despedida
do casal, na pausa ouvimos as idéias apresentadas anteriormente pois ficam soando na
memória.
A décima imagem é « A Noite » (16,4x7,4cm). Esta imagem mostra uma mulher em
pé centralizada, portando chapéu e vestido longo. Ao longe, em segundo plano, vemos
casas do velho burgo e um cavaleiro que atravessa a imagem. A figura feminina que
predomina no quadro tem sua roupa cuidadosamente trabalhada com traços mais verticais
na saia, o que a torna mais longilínea, na blusa uma série de detalhes e na cabeça o chapéu
129
com grandes abas emoldurado por uma espécie de lenço que cai em direção à saia
misturando-se no mesmo tipo de motivos. A noite parece ser personificada aqui pela
misteriosa figura feminina em primeiro plano. A música consta de três partes distintas, um
ABA em miniatura : um acorde no grave, em seguida três intervalos articulados (5a dim, 4a
aum., 5a dim) na região central do piano e finalmente o mesmo acorde do início aberto em
forma de harpejo.
A décima primeira imagem é « Duelo » (9,1x12,5cm). O tema tipicamente medieval
é abordado por dois cavalheiros que disputam de espadas e escudos em punho. Dois
valorosos cavaleiros se enfrentam em duelo, momento heróico por excelência. Um
crucifixo ao centro, lembrança da profunda religiosidade medieval, cuida da sorte do duelo,
transformando uma cena genérica de batalha em luta decisiva pela vitória do Bem contra as
forças do Mal. A cena é emoldurada pela natureza : árvores e montanhas no segundo plano.
Na música temos um jogo entre mão direita e esquerda com um acorde formado por 4as e
2as. A indicação do tempo é « rápido » e a energia concentrada em ataques de confronto e
desafio. Os acordes são ora separados por uma pausa de semicolcheia, ora por um uníssono
(si) terminando em um trêmulo. O final é deixado para a ressonância dos harmônicos.
A décima segunda e última é « A caça » (14,3x7cm). A imagem mostra um
cavaleiro que atira de arco e flecha e um bando de aves que voa. Aqui a natureza é retratada
com uma grande riqueza de traços. É possível uma leitura de alto à baixo da imagem : o
cavaleiro em primeiro plano à direita, logo atrás árvores e depois pedras de uma montanha,
a curva das asas dos pássaros estando em harmonia com os traços das pedras. A música
apresenta uma figura repetititva em uma articulação « Muito rápido » na mão direita e uma
pequena melodia na mão esquerda, esta é a introdução. No segundo sistema um cluster na
mão direita e um Ré # e um movimento contínuo de um harpejo descendente (re-sib-lab-
solb-mi, do-sib-lab-solb-mi) repetido inúmeras vezes. Para finalizar um andamento
« Vivo » alternando 2as entre MD e ME.
130
Capítulo 4
131
Capítulo 4
« Acaso/Improvisação »
1. A Improvisação p.133
2. Acaso no século XX p.137
2.1. Cage p.138
3. O primeiro acaso na Europa : Stockhausen e Boulez p.143
3.1.Xenakis p.146
3.2.Boucourecheliev p.148
4. Acaso e intuição p.148
5. As composições p.150
5.1.Quadros de uma Improvisação p.150
5.1.1.Ponto p.152
5.1.2.Linha p.153
5.1.3.Superfície p.154
5.2.São Jorge p.157
132
Capítulo 4
« Acaso »
1. A improvisação
Dentro do século XX o acaso ganha status dentro da concepção musical. A este tipo
de abordagem encontramos uma coleção de denominações tais como : indeterminação,
forma aberta, obra móvel, acaso controlado, música aleatória, dentre tantas outras. Cada
uma das expressões surgiu em função das reflexões que os compositores desenvolveram
acerca do tema, e por conseguinte, da maneira como aplicaram esses conceitos em seus
trabalhos. Por isso mesmo encontramos variadas nuances acerca da concepção de acaso em
compositores como Cage, Boulez, Boucourecheliev, Stockhausen ou Xenakis, para
citarmos apenas poucos. Esforçamo-nos aqui por encontrar uma raiz comum do acaso tal
como concepção criativa no século XX. Toda a multiplicidade de acaso que encontramos
difundida na obra dos compositores acima citados teriam uma origem comum ? Caso
positivo, onde estaria ela ? Como podemos abordá-la ? Ou, resumindo : de onde veio o
acaso como elemento constitutivo do discurso musical? Através da reflexão histórica
entendemos que o Acaso encontrado no século XX, pode ser compreendido como
descendente da Improvisação, e esta tem uma longa história, com raízes na prática musical
ocidental. Trataremos a seguir da improvisação como antecedente histórico das
manifestações musicais do século XX que incorporaram em seu discurso o acaso em suas
mais variadas concepções.
Tomando como ponto de partida, a ótica histórica da música clássica européia
corremos o risco de sermos envolvidos, não sem cuidado, pelo discurso de que essa música
foi ao longo dos anos pouco afeita à improvisação. Entretanto, esta é uma falsa crença,
baseada num desconhecimento histórico antes de mais nada. O que verificamos é, bem o
contrário, que a improvisação desde os primórdios da música teve um papel muito
importante. A elaboração e a prática antiga do canto gregoriano e da polifonia efetivaram-
se pela prática da improvisação ; a escola de órgão do século XVII desenvolveu-se em
grande parte graças às improvisaçãoes musicais e nos séculos XVII e XVIII, o
133
acompanhamento, seja na ópera ou na música de câmara, eram improvisados sobre um
baixo dado, ele mesmo saído de um contraponto improvisado.
No início do Barroco, a ornamentação improvisada existia tanto na música profana
como na sagrada : árias de ópera e oratórios, cantatas, concertos, canções e trechos vocais à
capella de todos tipos e novos gêneros de música instrumental, sonatas e concertos
principalmente. Na época não existia praticamente música vocal ou instrumental que não
comportasse um certo grau de ornamentação, as vezes escrito, mas muito mais
frequentemente juntado no momento da execução. Muito depois do período Barroco,
Paganini escreveria :
« Eu devo, para cumprir minhas obrigações, dar dois concertos por
semana, e eu improviso sempre com um acompanhamento de piano.
Eu escrevo esse acompanhamento antes e desenvolvo meu tema
durante a improvisação» (Bailey :1999, p.36).
Bailey acredita que o desaparecimento progressivo da prática da improvisação deu-
se conjuntamente com o crescimento da importância do maestro associado igualmente ao
poder do compositor (Bailey: 1999, p.37). É, entretanto, no período Barroco que a
improvisação parece existir mais efetivamente, ou ter o seu renascimento. No depoimento
de Lionel Salter, cravista e diretor de conjunto barroco, temos no que consistia a
improvisação:
« A música tal qual era escrita servia apenas a refrescar a memória.
Ela era apenas um esqueleto do que era tocado. Assim um
violonista, por exemplo, esperava-se que ele ornamentasse o que
tinha na partitura, neste sentido, havia um pouco de
improvisação. (…) Nesta época, os compositores esperavam tocar
suas próprias obras e as vezes, por falta de tempo, não escreviam
tudo no papel. Eles notavam simplesmente alguns elementos afim
de se lembrarem que iriam tocar alguma coisa especial» (Bailey :
1999, p.37)
Na opinião de Salter, os músicos da época não faziam diferença especial entre
improvisação e execução. O cravista tinha um papel muito improtante, mantinha o rítmo e
fazia as vezes de maestro, deveria integrar tudo e todos. O compositor escrevia apenas uma
linha de baixo e o cravista ocupa-se de bem executar. Essa prática existia em todos os
134
sentidos dentro do conjunto barroco : os violinistas e outros instrumentos de cordas da
orquestra encorajavam o cravista a inventar e vice-versa.
Em todos os estilos barrocos, qual seja a época ou o país, a improvisação sempre
existiu, integrada à trama melódica e harmônica da música. Lembramos que o Barroco na
Europa nasce no século XVI e prolonga-se até boa parte do século XVIII
1
. Dentro do
século XIX parece haver um declínio da atitude do improviso dentro da prática musical,
passando aquela a fazer parte apenas ao metier dos compositores em seus « ateliers ». É o
caso de Schubert ou Beethoven, por exemplo, que mantinham a prática da improvisação
para em seguida anotarem as melhores idéias, fixando desta forma uma partitura que
deveria ser seguida à risca. Esse declínio da imporvisação enquanto prática cultivada pelos
músicos no seio dos grupos e orquestras, como diz Bailey, coincide com uma afirmação do
poder do compositor. É preciso lembrar que é Beethoven o compositor desta transição, o
músico que usava libré, e o novo modelo, o compositor que rebelde à monarquia, decide
por si como estabelecer sua composição. Se ele conseguiu essa mudança de status dentro de
sua época é porque sua época também havia mudado, criando condições para novos papéis,
seja como compositor como o maestro.
De forma geral, a improvisação trazia para a música e o instrumentista, a questão da
escolha, da opção ou do acaso por assim dizer. Esta foi uma das primeiras manifestações do
acaso, enquanto elemento determinante da música, na história. Embora a linguagem
musical sendo estruturada sobre as bases tonais, ou num sistema fechado como o
gregoriano, o que garantia um discurso homogêneo, havia sempre a opção, seja por
determinado intervalo, rítmo, instrumentos ou ornamentações e era dado ao músico, no
momento do concerto muitas vezes, a decisão final. As execuções eram adaptadas,
arranjadas e improvisadas na maioria das vezes.
A análise de Nguyen-Thien Dao, ao refletir sobre improvisão, apresenta uma
combinação desta ao ato da composição, chegando à situação dos dias atuais. Para ele a
improvisação é:
1
« ( …) Desde o fim do século XIX, na literatura musical, Barroco designa globalmente a música
do período que se extende aproximadamente de 1580 a 1750. » (Palisca : 1991, p. 15)
135
« Junção entre a abstração da escritura (suprema delícia do espírito)
e interpretação.
Os maiores compositores (para citar apenas Bach, Mozart e
Beethoven) foram remarcáveis improvisadores. A lenda menciona
que Beethoven improvisava diante de camponeses espantados. A
música chamada culta foi sempre produto de luxo reservado a uma
elite, e compreendemos facilmente que o magnetismo de Beethoven
ao teclado agiu sobre os não habituados, o que prova que a
improvisação é um elelmento essencial do ato criador.
Esquemas pré-concebidos, um código e um pensamento musical
pré-existente permitem esse exercício revelador, verdadeira
manifestação da criação musical.
A escritura musical atual, às vezes tão rígida que permite a alguns
de se exprimir sem que sintam necessidade, às vezes
decorativamente superficial incluindo quilômetros de quadros
justapostos.
Os jogos de improvisação nos esclarecerão enormemente. » (in
Bosseur : 1992, p. 68)
No final do século XIX e início do XX pouco se fala da improvisação dentro da
música clássica ocidental européia, sendo cada vez mais associada às práticas jazzísticas. É
neste momento também que a complexidade da escrita musical cresce, frisando o poder do
compositor em uma espécie de hierarquia entre os músicos. Temos então obras como
Tristão e Isolda de Wagner, ou A Sagração da Primavera de Strawinsky, ou ainda Pierrot
Lunaire de Schoenberg, para citarmos apenas poucas, onde nada está aberto ao acaso, ou
melhor, o acaso está completamente fora da partitura, o pouco que há a decidir nelas após a
escrita final do compositor é deixado apenas ao maestro.
Para ilustrarmos esta colocação, temos o elucidativo depoimento de Boulez em
1975, falando justamente acerca da improvisação. De opinão contundente e polêmica, ele
dá provas aqui do papel de ator principal do compositor, chegando ao extremo de dissociar
a improvisação da invenção:
« Os instrumentistas não tem, propriamente falando, invenção ;
senão eles seriam compositores. Muito se falou sobre a palavra
improvisação ; ou, compreendida no melhor sentido, ela não
substitui a invenção. A verdadeira invenção implica a reflexão sobre
os problemas que não são, em princípio, jamais colocados, ou, em
todo caso, não de uma maneira evidente ; e a reflexão sobre o fato
de criar implica obstáculo. Os instrumentistas não são super-
136
homens, e a resposta que eles dão ao fenômeno da invençao é em
geral um ato de memória manipulada. Eles se lembram do que eles
já tocaram, manipulam essa idéia e a transformam. Os resultados
são uma concentração sobre o fenômeno sonoro mesmo ; mas a
forma é praticamente deixada de lado. As improvisações, e
sobretudo as improvisações em grupo onde tem a correspondência
entre os indivíduos, possuem sempre as mesmas curvas de
invenção : excitação-repouso-excitação-repouso. » (in Bosseur :
1992, p. 68)
Coincidentemente à precisão da escrita musical, determinando uma prática restrita
ao escrito, entre século XIX e início do século XX, temos o surgimento do dodecafonismo
apresentado como sistema musical na década de 20. O acaso em Schoenberg pode ser
encontrado através da maneira fortuita com que tratava as alturas antes de estabelecer o
dodecafonismo. Ou também através de sua inspiração, que como ele acreditava, possuía um
toque divino. Como herdeiro do pensamento romântico vienense, ele representa o
compositor, ator-principal, ou seja : ele tem uma idéia e a anota de maneira conclusiva
sobre o papel, aos executantes resta a interpretação. A improvisação não parece ter sido um
assunto com o qual tenha se ocupado.
2. O Acaso no século XX
O compositor americano Charles Ives (1874-1954) é apontado na bibliografia geral
como um dos precursores das tantas novidades musicais do século XX, notadamente as
manifestações européias do acaso, da colagem, dentre outras. Charles Ives foi
contemporâneo de Schoenberg
2
, desenvolvendo um trabalho nos Estados Unidos
comparável ao de Schoenberg na Europa (Ives : html/ircam).
Juntamente com Henry Cowell, Charles Ives está na origem dos efeitos pianísticos
como o « cluster », por exemplo em Majority (1921) e a técnica do piano preparado que
será ulteriormente desenvolvida por John Cage. (Massin : 1985, p.1090) A concepção da
forma para Ives submete-se a mudanças radicais que o levam diretamente a noção de obra
2
Lembramos : Schoenberg (1874-1951) e Ives (1874-1954).
137
aberta, das formas móveis. Assim é que Hallowe´en (1911), para quarteto de cordas e
piano, pode ser considerada como « uma das primeiras músicas móveis » pois Ives
prescreve, no prefácio, de que maneira a obra pode mudar de uma versão a outra. (Massin :
1985, p.1090)
A livre sobreposição de rítmo, de melodias, e harmonias tem uma forte influência na
música de Ives que desde criança foi habituado pelas experiências de seu pai, maestro de
banda militar, que fazia partir de vários pontos da cidade grupos diferentes, tocando
músicas diversas e depois se encontrando em um mesmo local. A partir dos anos 20 sua
música começa a ter notoreidade. Sua obra compreende sinfonias, sonatas, melodias,
música de câmara e obras para coral. Seu estilo é feito de livre-associações, experimentos
de processos aleatórios, quartos de tons, citações, colagens, enfim tudo o que foi
abundantemente usado ao longo do século XX. Segundo Weid, Ives inventa uma « língua »
pessoal que tende a reunião (o estilo romântico está ao lado de experimentações as mais
surpreendentes, o material « trivial » aparece misturado ao material « nobre ») e à
prospecção (sua música está voltada ao futuro, no sentido das potencialidades infinitas).
Contamos hoje com uma coleção de 120 obras catalogadas, muito inovadoras, e que
prefiguram as técnicas da escrita da música contemporânea : politonalidade, atonalidade,
série, micro-intervalos, clusters, poliritmia, espacialização. (Weid : 1997 : p.81)
2.1. Cage
Entretanto, data de 1951 a introdução do acaso enquanto « força potente » segundo
Griffiths, na música (1992, p. 137). É o compositor John Cage, também americano, que
apresenta a inovação, especialmente com as peças Music of Changes e Imaginary
Landscape n.4. A partir dessas peças os compositores europeus vão se interessar ao novo
campo de exploração, surgindo daí uma multiplicação do acaso.
O primeiro uso sistemático do acaso como elemento composicional é associado à
Cage, mas segundo Griffiths houve também uma manifestação espontânea disseminada em
vários compositores. Sua análise afirma que não podemos deixar de falar do acaso nem
com a música serial, nem com a prática eletrônica. É neste sentido, por exemplo, que
138
Boulez reconhece que o acaso jamais esteve ausente da organização ramificada do
serialismo integral. Quando um elemento é entregue à manipulação numérica, por exemplo,
o compositor perde contrôle dos detalhes de sua obra.
3
Griffiths acredita que este também é o caso da música eletrônica. Um contrôle
absoluto do som é utópico, como exemplo cita a experiência de Stockhausen em Estudo I.
Os sons complexos não podem ser definidos com precisão, sempre restarão zonas vagas
onde as características do som podem ser estabelecidas apenas por probabilidades. Assim,
conclui Griffiths : « o serialismo integral e a composição eletrônica que deram muitas
esperanças revelaram-se permeáveis à influência do acaso » (Griffiths : 1992, p.138).
Numa atitude panteísta, Cage considera que o papel do compositor é liberar todos os
sons pré-existentes na natureza, ou seja, torná-los presentes. Liberar a música significa para
Cage não apenas a saída da forma fixa mas também aceitar o som como organismo
autônomo, deixá-lo se desenvolver fora de toda consideração lógica, psicológica ou
estética. Produzir um som não era uma finalidade, a proposta de Cage é antes uma apologia
do não-agir. Esta atitude provocou violentas reações. Sua concepção do silêncio integra-se
a uma concepção mais geral : o silêncio é o conjunto dos eventos sonoros não organizados,
não almejados pelo compositor. Entretanto, o silêncio não existe enquanto tal. Em 4´33
(1952) propõem uma nova escuta, aquela de um mundo sonoro frequentemente oculto. A
obra inscreve-se, entretanto, em um quadro temporal que leva a 0´00 (1962), obra
conceitual. Para Cage, a música é ação e o gesto essencial (Theatre Piece, 1960). Ele é o
inventor do happening - o primeiro aconteceu em 1952 em Black Mountain College - , uma
idéia que teve inspirado pela leitura de Antonin Artaud (Le Thêâtre et son double) Events
e Musicircus seguem esta linha.
As reflexões de Cage sobre o silêncio ganham um espaço extremamente importante,
ao mesmo tempo provocador e elucidativo de seu pensamento, ímpar no século XX. Segue
abaixo um pequeno depoimento seu:
«Antigamente, o silêncio era um lapso de tempo entre os sons, útil a
diferentes fins, entre os quais aquele do arranjo do bom gosto que
3
Nas correspondências trocadas entre Boulez e Cage eles, dentre outros assuntos, eles debatem a
questão do acaso e do aleatório. (Boulez e Cage. « Correspondance ». Paris : Chr. Bourgois
Éditeur : 1991)
139
fazia que, separando dois sons ou dois grupos de sons, suas
diferenças ou suas relações seriam reforçadas, ou bem aquela da
expressividade, os silêncios forneciam ao discurso musical pausa ou
pontuação, ou ainda como na arquitetura, a introdução ou
interrupção de um silêncio podendo dar clareza seja a uma estrutura
predeterminada, seja a uma estrutura que se desenvolve
organicamente. Aqui onde nenhum desses objetivos nem outros
estão presentes, o silêncio torna-se qualquer coisa de diferente – não
é silêncio de jeito nenhum, mas sons, os sons ambientes. Sua
natureza é imprevisível e modificável. Esses sons que são chamados
silêncios apenas porque não fazem parte de uma intenção musical)
devem ser contados como existentes. O mundo está repleto desses
sons e ele não é, verdadeiramente dizendo, de nenhum modo livre
deles. A pessoa que entra em uma sala anacóica, ambiente
tecnologicamente trabalhado para ser o quanto possível silenciosa,
pode ouvir dois sons, um agudo, um grave – o agudo, é o sistema
nervoso do ouvinte em atividade, o grave, a circulação de seu
sangue. Estão aí manifestamente, sons para ouvir e, de forma
alguma, ouvidos para escutar. » ( in Bosseur : 1992, p. 156)
A indeterminação é o centro da obra de Cage. Segundo Mussat, « toda música que
não vai até o fim de sua indeterminação é para ele supérflua. » (Mussat : 1995, p. 92) Essa
idéia é explorada inicialmente ao nível do material depois do ato compositional. Cage
também lança mão de processos de jogos que lhe permitem compor músicas cada vez mais
impessoais. Em Sixteen Dances (1950) compôs para uma diagonal de quadrados mágicos,
onde inaugura a utilização de processos aleatórios. Em seu « Concerto para piano preparado
e orquestra de câmara » (1951), Cage utiliza diagramas para esvaziar progressivamente seu
gosto pessoal entre o primeiro e o terceiro movimento. A partir de Music of Changes (1951)
ele se serve do I Ching, oráculo chinês baseado no jogo para obteção das respostas. Suas
consultas estão na base de numerosas peças, tais como Empty words (1973-76), Song books
(1970), Music of Throreau (1971) onde trabalha sobre a impossibilidade da linguagem e da
comunicação. Utilizando o I Ching, Cage traz o acaso ao nível da composição e não da
execução. As partituras são assim objetos acabados, fixos, como as obras para piano
preparado
4
.
4
Cage concebeu também obras para Merce Cunnigham independente da coreografia montada, sob
sua influência, segundo técnicas do acaso que levaram Cunningham a « desestruturar o corpo ».
140
John Cage, em entrevista a Daniel Charles, afirma que o ensino inicial do método I
Ching é a aceitação do resultado das operações do acaso. Sua adoção do I Ching é feita com
muita seriedade, o que podemos acompanhar em suas palavras :
« Se nós queremos usar operações de acaso, então devemos
acentuar o resultado. Nós não temos o direito de nos servirmos
como quisermos, se estamos decididos a criticar o resultado e a
procurar uma resposta melhor. Na verdade, o I Ching dá uma
resposta triste a quem insistir a ter uma boa resposta. Se eu fico
infeliz depois de uma consulta, se o resultado não me satisfaz, eu
tenho ao menos aceitando a resposta, uma oportunidade de me
modificar, de mudar a mim mesmo. Mas se eu insisto em mudar o I
Ching, então é ele que muda mais que eu, e eu não obtenho nada,
nada acontece ! » (in Bosseur : 1992, p.61)
Como podemos ver, nesta visão panorâmica de Cage há uma verdadeira proliferação
de técnicas de acaso. Encontramos também a indeterminação ao nível da execução.
Aperfeiçoou este processo pela sobreposição de transparentes, contendo linhas ou pontos
como em Concerto para piano e orquestra (1958) ou as Variações para piano (1958-66);
obras concebidas para uma pluralidade de sistemas sonoros. Nas peças superpostas, a
acumulação dos espaços que tendem a se multiplicar uns pelos outros dá uma impressão de
pluralidade, de liberação polifônica. Generalizando a superposição das obras, Cage criou
processos sem começo nem fim, que podem combinar-se ao infinito nas obras seguintes.
A partir dos anos 1960, Cage supõe que cada evento sonoro tem a possibilidade de
se integrar um ao outro. É desta época suas partituras realizadas a partir do estudo de cartas
astronômicas (Atlas Eclipticalis, 1964, Estudos astrais, 1976). Ele sustenta a idéia de uma
estética do não-finito, como analisa Mussat : « a utopia da criação contínua. ». Em linhas
gerais Mussat resume o pensamento de Cage da seguinte maneira : « Cage pensa que não
podemos tirar a música do cotidiano, pois a Arte é a Vida. O acaso é uma maneira de
reinserir a música na vida » (Mussat : 1995, p.94).
As idéias de acaso ganham impulso entre intelectuais que aproximam-se de Cage,
dentre eles o pianista David Tudor, o compositor Morton Feldman (1926-1987), Earle
Brown (1926), Christian Wolff (1934), guardando relação também com artistas, pintores e
escultores, que trabalhavam em Nova York, notadamente Jackson Pollock e Alexander
141
Calder. Feldman inicia composições sem pretensões, feitas de sons simples, delicados,
frágeis. O acaso aqui está ligado a um desejo de « fazer alguma coisa de muito modesto. »
Suas composições eram realizadas em papéis quadriculados, onde cada quadrado representa
uma unidade de tempo, preenchida por silêncio ou por um som definido em termos vagos,
onde o executante era livre para escolher a altura.
Earle Brown introduz a inderteminação ao nível da forma. É assim que os
executantes de Twenty-five Pages (1953), obra composta para pianos (1 a 25), podem
dispor as páginas na ordem que lhe aprouver. Uma outra mais aberta ainda é
Decembre 1952, primeiro exemplo de uma partitura gráfica que constitue um modelo que
pode ser interpretado por qualquer fonte sonora.
Christian Wolff dedica-se a encorajar a invenção, a comunicação e a interação entre
os executantes de um conjunto. « A música deve permitir ao intérprete de afirmar sua
liberdade e sua dignidade
» afirmava ele. A música para ele deveria possuir uma
capacidade permanente de surpreender (os intérpretes e o compositor). Desta forma, dá
instruções muito gerais.
O grupo americano conhecia as manifestações de Satie e o Grupo dos Seis em Paris,
mas não era a eles que tentavam imitar. Eram admiradores de Webern, a música de
Feldman, em particular parece estar fortemente influenciada pelas peças de Webern. Mas
são menos interessados pelo rigor do pensamento serial, são mais ligados pela
imprevisibilidade e a leveza da textura das obras atonais, assim como pela utilização eficaz
do silêncio e seu cuidado com os eventos individuais.
A utilização do acaso na música contamina todos sub-sistemas musicais,
deflagrando uma série de questões ligadas à execução, passando pela partitura,
instrumentistas, chegando até a um questionamento completo da arte. É neste espírito que
surge o movimento Fluxus no início dos anos 60. Ao final dos anos 50, vários jovens
artistas, influenciados pelo Dadaísmo, pelas idéias de John Cage e pela filosofia Zen inicial
um processo de rejeição sistemática de instituições e pela noção de obra de arte. Destaca-se
cedo a personalidade de Georges Maciunas no grupo, ele cria uma galeria em 1961 e
organiza concertos de música contemporânea, assim como exposições de seus amigos (John
142
Cage, Dick Higgins, La Monte Young) antes de se instalar na Alemanha. Em setembro de
1962 organiza o primeiro concerto Fluxus, o Fluxus Internationale Festpiele Neuester
Musik, que marca o verdadeiro início do movimento. Logo, dezenas de artistas de todo o
mundo associam-se e encontram nesta prática irreverente e iconoclasta, o espaço de
liberdade que procuravam (Fluxus : html, 2004).
Apresentavam uma proposta radical de concerto, onde a música, espécie de paródia
do concerto clássico (utiliza seus instrumentos, rituais e costumes) e uma abordagem
« extremamente concreta » da maneira de produzir sons com instrumentos : pregar as
teclas do piano, destruir um violino sobre uma mesa (ou uma mesa com um violino cheio
de cimento). A música toma então uma forma visual, ou aparece como uma colagem de
elementos vindos do real (ruídos na sala ou do piano que se quebra com golpes de
machado, música inaudível de asas de uma borboleta). Com seu desenvolvimento, o Fluxus
se diversifica, produzindo obras de arte múltiplas sob forma de caixinhas contendo obras de
bolso, esculturas efêmeras e jogos absurdos, criando a arte postal, os happenings de rua.
O limite extremo que apresenta o Fluxus face à obra artística como um todo, decorre
da grande abertura e liberdade que os próprios artistas foram construindo ao longo da
primeira metade do século XX. Aqui a questão do acaso torna-se o pilar fundamental da
concepção artística, confundindo-se em noções que incluem a improvisação, a obra aberta e
a atitude iconoclasta que revela a crítica antes de tudo à sociedade e ao estabelecido. O
movimento Fluxus foi único e influenciou grandemente as mais variadas artes. Seu papel
saudável de crítica parece ter deixado mais aspectos positivos que as imagens destruidoras
de seus hapennings pois, no período pós-Fluxus, a trajetória musical não foi abalada,
iniciando durante os anos 60, o mergulho minimalista.
3. O primeiro acaso na Europa : Stockhausem e Boulez
Após o fim da Segunda Guerra iniciam-se os cursos de férias internacionais em
Darmstadt (1946-1955). Aí, uma nova orientação instala-se, segundo Stuckenschmit essa
renovação nasceu da necessidade de tirar os músicos alemães do isolamento ao qual foram
submetidos em 12 anos de ditadura cultural nacionalista. Entre outros exercícios, esta
143
reeducação artística incluía o estudo de obras e técnicas aparecidas entre 1933 e 1945
sobretudo nos Estados Unidos (Stuckenschmidt : 1969, p. 214).
A introdução do acaso na Europa dá-se através de Klavierstuck XI (1956), de
Stockhausen, e a Troisième sonate pour piano (1957) de Pierre Boulez, ambas apresentadas
em Darmstadt em 1957. A peça de Stochkausen apresenta-se em uma única página de
formato retangular de 53x93 cm, com 19 fragmentos musicais em grafia normal, para
serem tocados em qualquer ordem. Cage comenta sobre ela : « O formato é tudo o que tem
nela de inconvencional » (Stuchkenshmidt : 1969, p.220). Depois de ter interpretado um
fragmento, o pianista deve escolher um outro e tocá-lo conforme as indicações de tempo,
força e toque dados ao final do último trecho. Um fragmento pode ser repetido, neste caso
ele aparecerá provavelmente diferente na repetição e a peça deve terminar quando um dos
fragmentos for tocado três vezes.
A Troisième Sonate de Boulez é mais regulada em sua utilização do acaso. O
executante tem várias possibilidades de abordar o acaso, sendo que a ordem dos cinco
movimentos pode ser modificada. Esta peça explora a fórmula tentada por Stockhausen em
Klavierstuck XI. As razões que levaram Boulez a escrever essa Sonata estão nas
considerações literárias de James Joyce e sobretudo na obra de Stéphane Mallarmé, pelo
fato de ter repensado totalmente a noção de forma, não concebendo mais a obra como uma
trajetória simples entre um início e um fim fixos para sempre. Mesmo antes de iniciar esta
composição Boulez ficou impressionado pelo poema de Mallarmé « Un Coup de dés » e
pela apresentação tipográfica. Colocando em evidência isso, por exemplo, a partitura dos 6
conjuntos de « Constellation » utiliza cores para diferenciar dois estilos de escrita :
vermelho para os blocos, verde para os pontos. Segundo Mussat :
« Esta organização não é uma analogia gratuita, ela é apresentada
como uma necesidade interior : traduz uma individualização do
material, e coloca em eidência os percursos » ( Mussat : 1995,
p.88).
A publicação em 1957 do Livro de Mallarmé, foi para Boulez uma revelação, mas aí
sua « Troisième Sonata » estava já avançada. O Livro não tem, em efeito, nem começo nem
fim obligatórios pois as páginas podem ser lidas em qualquer ordem escolhida pelo leitor.
Esta mobilidade da leitura, esta capacidade de reconstruir um objeto qualquer que seja o
144
ângulo sob o qual ele é tomado representa uma nova relação do tempo e acaba fascinando
Boulez. A Troisième Sonate tenta dar um equivalente musical a esta idéia. Seu projeto não
foi de mudar a cada instante a obra mas como ele afirma , somente « mudar os pontos de
vista, as perspectivas que temos sobre ela, pois que fundamentalmente o sentido permanece
o mesmo » (Mussat : 1995, p. 89).
Para se fazer melhor compreendido, Boulez fala de um labirinto ou de um mapa de
cidade desconhecida que se deve percorrer, citando assim o livro de Kafka Le Terrier e
L´Emploi du temps de Michel Butor. Ele reconhece também que toma de Joyce sua
predileção pelos grandes conjuntos centrados em torno de um feixe de possibilidades
determinadas, devendo também ainda a Mallarmé sua concepção circular da obra e do
tempo, sua opção pela idéia da obra em progresso, da obra como devenir, revisitada quase
ao infinito. Sobretudo Boulez constata que Joyce e Mallarmé lhe oferecem exemplos de um
texto que torna-se anônimo. Além da autonomia da forma, noção essencial para Boulez, a
procura de tal anonimato é o motivo profundo da Troisième Sonate (Mussat : 1995, p.89).
No artigo « Alea » (1957) em seu livro Relèves d´apprenti Boulez aborda a questão
do acaso lançando questões sobre a validade de sua utilização:
« A composição deve encerrar a cada momento uma surpresa e um
bom prazer apesar de toda a racionalidade que é preciso impor para
se chegar a uma solidez. Eu chego então, ainda por um outro modo,
ao irracional : é assim que questionando-se volta-se a esta obsessão
que toca até as receitas mais rigorosas. Desesperadamente, procura-
se dominar um material por um esforço árduo, mantido, vigilante, e
desesperadamente o acaso subsiste, introduz-se por mil saídas
impossíveis a reter… e é bem assim ! Entretanto, o último
subterfúgio do compositor não será de absorver o acaso ? Por que
não prender este potencial e o forçar a prestar contas ?
Introduzir o acaso na composição ? Não é uma loucura, ou, uma
tentativa vã ? Loucura, talvez, mas será uma loucura útil. De toda
maneira, adotar o acaso por fraqueza, por facilidade, entregar-se a
ele, é uma forma de renunciar à qual não saberemos subscrever sem
deixar todas as prerogativas e as hierarquias que implicam uma obra
criada. Em que conciliar a partir desse momento composição e
acaso ? » (in Bosseur : 1992, p.60)
3.1. Xenakis
145
Também o compositor grego Iannis Xenakis (1922-2001) é de grande importância
dentro da discussão sobre acaso. Ele vale-se de teorias matemáticas e interfaces
computacionais para construir uma música cujo resultado final não é previsível. Quando
falamos de Xenakis é preciso lembrar-se de sua formação em arquitetura, tendo sido ele
colaborador de Le Corbusier de 1947 a 1959 em Paris. Realizou vários projetos entre eles o
do pavilhão Philips da Exposição Universal de Bruxelas em 1958. A partir de 1959 ele
passa a se dedicar inteiramente à música, mas não abandona sua primeira formação. São
exatamente os cálculos que fez para as superfícies do pavilhão Philips que vão lhe servir
para a escrita de Metastasis (1953-54).
Metastasis é uma peça que, tanto no plano da concepção como no resultado sonoro,
possui uma originalidade absoluta. Xenakis trabalha com os fenômenos naturais (canto das
cigarras, barulho e movimento de massas, nuvens) partindo do princípio que não são
produzidos ao acaso, mas são regidos por leis : a lei dos números grandes, as leis de
aparição dos eventos raros (lei do Peixe), de Gauss (velocidade de distribuição), de
Maxwell (teoria cinética do gaz). O objetivo de Xenakis é, nos anos 50 ,de reconstituir na
música eventos semelhantes. Para isso, ele propõe considerar os sons como
estatisticamente independentes um dos outros e aplicar a suas combinações a noção de
densidade, isento de todo carater linear, pontilhista ou determinista. Obcecado pelos estados
de massa da matéria sonora e suas transformações graduais (passagem da continuidade à
descontinuidade, da ordem à desordem, da imobilidade ao movimento), Xenakis procura a
possibilidade de controlar qualquer distribuição de eventos sonoros a partir de um espaço
liso e de um tempo amorfo. Ele vai encontrar no cálculo das probabilidades e outras leis
que regem o acaso, a ferramente conceitual que lhe permite organizar o acaso no plano
sonoro, ou melhor ainda, de o reduzir ao nivel do processo. Como conclui Mussat : « O
aleatório de Xenakis é assim um aleatório matemático, quer dizer perfeitamente
controlado » (Mussat : 1995, 95). E esta formalização geral, aplicável a todos os
parâmetros e apoiando-se sobre as leis dos números grandes, é que Xenakis chama de
música estocástica ( de stochos - o alvo, o objetivo em grego). Cabe lembrar que em todos
os exemplos o compositor chega a uma partitura fixa (Mussat : 1995, 94-95).
146
Metastasis representa a primeira etapa deste processo. O acento é colocado sobre o
contrôle de densidades sonoras. Dividindo ao extremo (61 instrumentos, 61 partes reais),
Xenakis cria um estado de massa espetacular. Apela a progressões geométricas para
combinar os intervalos, durações, dinâmicas e coloca em correlação por fila de intervalos
sonoros contínuos, notadamente os glisandi. Pithoprakta (1955.56) confronta estados
sonoros pontuais (descontinuidade de pizzicatti, con legno, batidas sobre a madeira, golpes
de arcos curtos) com sons glissandos contínuos deduzidos da lei de Gauss. A lei do Peixe
lhe permite, por outro lado, criar uma forma musical livre baseada sobre um mínimo de
imposições lógicas.
Em Achorripsis (1956-57) Xenakis vai mais longe e tenta responder a uma questão
fundamental : existe um mínimo de regras de composição ? ele se apóia sobre as leis de
aparição dos eventos raros (Peixe), reservando-se uma parte (10%) de intervenção na
sucessão de eventos em cadeia. Syrmos (1959) e Analogiques A e B (1959) procuram a
ligação coerente e reiterada entre os eventos, através de um processo em cadeia de Markov
(uma maneira de reintroduzir a memória), e são uma interrogação sobre a definição e
análise do som (lei de Weber-Fletcher, Fourier). Para Xenakis, todo som é uma nuvem
gigante de corpúsculos sonoros evoluindo estatisticamente no tempo, sobre a natureza da
qual a estocástica pode agir, como pode voltar no espaço de músicos e auditores
(Terretektorh, 1965-66, Nomos Gamma, 1967-68).
A maneira de Xenakis compor inclui também dois outros domínios complementares
de sua primeira formalização. A música estratégica é fundada sobre a teoria matemática dos
jogos e não, como as aparências poderiam fazer crer, sobre as reações dos intérpretes
(Duelo, 1959, Estratégia, 1962, para duas orquestras e dois regentes, Linaia-Agon, 1972).
Mesmo em se tratando de dar ao acaso um significado vivido – cada maestro tem por
exemplo a sua disposição em Estratégia 19 táticas – estamos aqui face a uma redução do
acaso.
A música de Xenakis torna audível o processo do pensamento no que ele tem de
mais abstrato e ao mesmo tempo mais sensível, como ele gostava de dizer : « a inteligência
através do ouvido » (Mussat : 1995, 97).
147
3.2. Boucourecheliev
Outro compositor europeu que frequentou os cursos de Darmstadt na época de
Boulez e Stockhausen foi André Boucourechliev (1925- 1997). Ele destaca-se sobretudo
por uma série peças abertas denominadas Archipels (I a V) composta entre 1967 e 1970.
Segundo o compositor, temos nelas uma rede de probabilidades, podendo a partitura ser
comparada a um arquipélago em que cada vez que se descobrem ilhas, se segue uma rota de
navegação diferente, sob ângulos de visão variados, margens novas, mas surgidas de um
mesmo continente submerso, do qual podemos nos aproximar ou afastar por um tempo
mais ou menos longo (Bosseur : 1990, p.89). Boucourechliev analisa da seguinte maneira
essas peças :
« Há ao mesmo tempo nestas obras, em que tudo está anotado mas
onde nada está inscrito, uma extrema liberdade e paradoxalmente
uma extrema coação. O que está anotado é sobretudo uma tipologia
musical, caracteres de densidade, de ritmo, de intensidades
diferenciadas, de abordagens, de registros, etc., e esta tipologia
estende-se do ponto de vista da notação, do mais abstrato ao mais
concreto. Num extremo, estamos próximos do grafismo e no outro
temos estruturas perfeitamente definidas. Entre os dois, existe uma
grande variedade de graus na definição e na indeterminação. Em
suma, numa estrutura de Archipel, eu tento escrever a virtualidade ;
não todas as possíveis, mas prever qual será o comportamento de
uma estrutura entregue a um intérprete livre e responsável »(in
Bosseur : 1990, p. 90).
Em Boucourechliev, a obra aberta é uma nova apresentação da interferência do
acaso na construção musical. Em sua concepção compete ao intérprete a melhor
performance da obra, numa escolha arbitrária dos elementos, ou « ilhas » que decidir
executar. Estamos aqui diante da situação de concerto e a obra aberta ocupa um espaço
conquistado diante do público.
4. Acaso e intuição
148
Ao longo do século XX, quando se fala em acaso e música podemos escolher o viés
pelo qual estabelecemos a análise, dado às inúmeras manifestações deles. Temos o acaso
em parceria com teorias matemáticas (Xenakis), associado a correntes literárias (Boulez),
através de uma abordagem espiritualista (Cage), e com ênfase à interpretação (Stockhausen
e Bouchourechiliev). Poderíamos continuar a elencar inúmeras outras associações que
levaram compositores ao encontro do acaso. Como acreditava Griffits, parece que o acaso
encontrou-se à música de maneira ampla e difusa ao longo do século XX, e não é
unicamente pela influência de Cage.
Desta forma, sentimos necessidade salientar que o acaso pode ser encontrado à
revelia de uma teoria matemática, geométrica, literária, dentre outras, escolhida a dedo por
um compositor. O acaso é um elemento encontrado em toda obra de arte, podendo ser parte
integrande da técnica escolhida ou ser um elemento anterior a ela, inserido em alguma das
etapas do processo de criação. Podemos ter duas atitudes relativas ao acaso na composição
musical de forma geral, que são independentes mesmo do período histórico. Na primeira, o
compositor utiliza a sua intuição para escolher a forma da peça que vai criar. A partir desta
escolha, recusa o acaso e passa a compor através de um caminho determinado pela estrutura
musical que escolheu. Na segunda maneira, o compositor vê-se em situações onde deve
tomar decisões, fazendo várias escolhas como se estivesse entregue a um « gerador
aleatório » (Xenakis : html). Nesta situação, nem todas as decisões tomadas ao acaso são
adotadas pelo compositor e, depois de várias tentativas, acaba chegando a uma versão que o
satisfaz. Em outras palavras, a intuição, manifestação de difícil definição e abordagem,
passa a ser vista como o acaso em ação em qualquer etapa do processo criativo.
Assim é que podemos falar em como o acaso na obra de Schoenberg levou-o à
elaborar a teoria dos 12 sons. Inicialmente, seguindo o caminho wagneriano, de forma
intuitiva começou acelerar o processo de desconstrução tonal introduzindo cada vez mais o
cromatismo na estrutura tonal. Como exemplo desta primeira fase, temos o opus 4 que,
como já foi abordada no capítulo 3, apresenta o tonalismo à caminho de uma
desconstrução. Já mais à vontade num terreno de experimentação, utiliza de maneira
aleatória as alturas no opus 19, que apresenta o tonalismo completamente desconstruído, e,
chega através desse processo de acaso a sistematizar o dodecafonismo no opus 23 e 25.
149
Kandinsky é outro autor que não descartou o acaso de seu trabalho criativo. A
exploração que faz da linha, chegando ao elemento mínimo, o ponto, bem como ao
estabelecimento de sua teoria da forma e cores, mostra-nos uma construção que se abre ao
acaso. Iniciou seus estudos de pintura de maneira figurativista, em O Porto de Odessa
(1898). Em seguida, a série de imagens de Murnau mostra um experimentalismo gradativo
com a desconstrução da imagem, desenvolvendo casualmente esta desconstrução com o
jogo de luzes da paisagem. Em 1910 realiza sua primeira Aquarela Abstrata. A partir desta
obra passa a criar quadros onde nota-se uma homogeneidade estilística, entretanto diversos
entre si.
O que nos sugere os exemplos de Schoenberg e Kandinsky ? Que além do trabalho
incessante, da pesquisa que realizam em suas criações, a intuição no momento da escolha
da atitude a tomar é uma espécie de acaso. Acaso de origem psicológica ? E desta forma,
não acaso, mas determinação concreta do inconsciente ? Não saberíamos responder.
Todavia, acreditamos poder insistir numa breve consideração. A intuição, momento
inexplicável na criação artística, dificilmente enquadra-se numa cronologia de fatos
biográficos que envolvem a vida destes artistas. E não possuindo causa aparente, explicação
fácil e lógica, a intuição apresenta-se como elemento do acaso em suas criações. E qual a
sua interferência na obra artística ? Podemos dizer que a intuição é decisiva para se
escolher a pesquisa, o campo de trabalho a ser praticado e aqui ela é o início da obra
artística. Mas também, ao final de um processo de estudo e experimentação, a intuição pode
ser simples e fundamentalmente, sua « touche » final. Este pequeno detalhe, às vezes um
acorde ou uma cor, pode gerar um resultado estético amplamente diverso, alterando
radicalmente todo o trabalho de pesquisa anterior.
5. Composições
Abordaremos abaixo duas peças que contaram com o acaso como elementos
constitutivos de sua feitura.
5.1. Quadros de uma Improvisação : Ponto, Linha e Superfície.
150
Esta obra é para grupo de percussão e eletrônica pré-gravada. Tem cerca de 10
minutos de duração. Consta de 3 partes distintas : 1
a
parte: Ponto, 2
a
parte, Linha e 3
a
parte : Superfície.
A parte eletrônica foi feita a partir de seções de improvisação com um sintetizador
da Ensonic (ASR 10), em seguida tratada no programa DP (Digital Performance). Os sons
foram gravados de maneira improvisada depois trabalhados no estúdio em 6 pistas stereo.
As técnicas mais utilizadas foram: imitação e inversão, e os efeitos usados em maior escala
foram delay, echo, reverb e tremolo. A parte acústica nesta peça desenvolveu uma escritura
instrumental proveniente das idéias do acaso controlado à maneira de Boucourechliev, ou
seja, elementos musicais foram propostos para serem explorados a partir de uma livre
escolha dos intérpretes (1a e 2a partes). A terceira parte apresenta um rítmo base e em
seguida propõem que os músicos improvisem a partir dele. Ao final, a conclusão da idéia
vem com uma série rítmica.
O título é um amálgama entre várias idéias da obra de Kandinsky. Improvisação é
uma série de quadros que produziu em sua fase abstrata inicial. Quadros de uma
Improvisação é uma referência à obra Quadros de uma Exposição de Mussorgski, pelo qual
dedicou-se durante muitos anos em estudos, realizando uma montagem cênica em 1928.
Ponto, Linha e Superfície é o título do livro de Kandinsky de 1926 onde divulga suas idéias
teóricas sobre pintura. E a idéia de compor para percussão veio de uma sugestão que faz
neste livro : «… pode-se produzir em música pontos, por todas as espécies de instrumentos
(sobretudo os de percussão) »(Kandinsky : 1991, p.50).
Após um período de pesquisa bibliográfica em torno de Kandinsky, esse conjunto de
idéias nos apareceu em associação e correspondência, claras e óbvias. O registro eletrônico
é fixo e funciona como um guia para o grupo. A partir deste registro, elaboramos a
partitura. Os elementos musicais contidos na gravação eletrônica são os mesmos sugeridos
na partitura do grupo, entretanto, estes, não são fixos, ao contrário, indicam para a obra
aberta, móvel, o exercício da improvisação e o acaso controlado, à maneira de
Boucourecheliev. A instrumentação e o número de músicos estão submetidos à mesma
idéia.
151
A composição está organizada em 3 seções distintas, como se se tratassem de três
quadros diferentes, construídos a partir dos três elementos básicos de sua teoria da forma:
1) ponto, 2) linha, 3) superfície. Cada seção tem aproximadamente 3 minutos e cada uma
delas é baseada em uma proposta de improvisação diferente. Trataremos a seguir os
elementos musicais a partir de cada seção :
5.1.1.Ponto
«
O ponto é, interiormente, a forma mais concisa. »
Kandinsky (1926, p.35)
A primeira seção é iniciada pelo grupo e a gravação começa no minuto 13. Na
primeira página, o grupo dispõe de 8 elementos para a escolha e execução. Esses elementos
são sugeridos e os músicos devem escolher o instrumento e o momento de tocar. Na
segunda página o número de eventos aumenta para 11 sendo apenas um elemento em
comum com a página precedente, a pausa de semibreve. Na terceira página aumenta em
mais um elemento o número de eventos e a característica dos mesmos é modificada,
aparecendo alguns rítmos articulados mais extensamente. Nestas três páginas vemos
configurada a primeira seção : Ponto. O número de eventos aumenta gradativamente, assim
como a complexidade dos mesmos.
A idéia do Ponto envolve toda a sugestão de execução deste movimento. Embora não
seja uma improvisação livre, a escolha dos elementos e instrumentos a serem utilizados é
livre e é a esta construção que denominamos aqui de improvisação. O músico escolhe que
figura, que instrumento e quando tocar, instrumentos de maiores ressonâncias são sugeridos
para as notas longas . A seção começa com os músicos executando os quadros escolhidos,
depois de 13 segundos a fita inicia com sons. Tanto na gravação como na execução do
grupo gradativamente há um aumento do número de eventos sonoros.
5.1.2.Linha
152
« A linha é o traço do ponto em movimento, seu produto(…) é o maior
contraste do elemento original da pintura, que é o ponto. As forças
extereores que transforman o ponto em linha podem ser de natureza muito
diferentes. A diversidade de linhas depende do número dessas forças e de
suas combinações.
»
(Kandinsky 1926, p. 67)
A seguir, temos a segunda seção : Linha. Ela está sintetizada em uma página e o
grafismo da escrita muda. Os elementos são novos, mais complexos e constrastantes com
os da primeira seção. Temos vários elementos que podem ser repetidos indefinidamente e
algumas indicações de mudança nas alturas são feitas. Somam, no total, 17 elementos.
Nesta segunda seção a improvisação também esta subordinada à escolha dos módulos, das
repetições e instrumentos. O uso de glissandos, trêmulos e notas repetidas são largamente
apresentados em um único quadro, em uma única página, onde o instrumentista escolhe o
que e quando tocar. Nesta seção, a diferença de alturas é explorada na parte instrumental e
as notas não são escritas, havendo apenas uma sugestão de grave e agudo.
5.1.3.Superfície
«
Consideramos como plano original a superfície material chamada a
levar o conteúdo da obra (…) é definida assim como um ser autônomo no
domínio de seu ambiente.
»
Kandinsky (1926, p. 143)
A terceira e última seção inicia-se em 6m e10s. Esta seção intitulada Superfície
apresenta um rítmo com elementos organizados de forma a estabelecer uma frase rítmica de
base. Bem articulado, preciso e repetido este rítmo nos apresenta um plano
5
, uma superfície
sobre a qual se desenvolve as cores e as formas da imaginação kandinskyana caracterizadas
aqui pela improvisação, que nesta seção é livre, para a escolha dos instrumentos e da
figuração rítmica.
Aqui, a improvisação assume sua caracerística mais convencional proveniente das
estruturas jazzísticas: uma frase rítmica e o improviso a partir dela. A idéia de Superfície
5
O título na tradução francesa é : « Point et Ligne sur plan » : Ponto e linha sobre o plano.
153
aqui está ligada à apresentação do ritmo claramente definido em sua regularidade e
repetição. Este ritmo apresentado pela gravação é repetido pelos instrumentos durante 4
compassos e depois é deixada aos músicos a indicação de uma improvisação a partir do
compasso dado. Aqui mais uma vez a definição desta improvisação fica a critério do grupo,
pode ser individual ou coletiva, restrita ao compasso dado ou completamente livre. A
atenção, entretanto deve ser canalizada para o final, quando os músicos e a gravação
eletrônica reúnem-se em um Tutti onde uma série rítmica
6
é apresentada.
Para a execução é necessário um contrôle da mesa de som para a melhor difusão da
parte eletrônica e para que os músicos tenham um bom retorno, podendo assim interagir de
maneira eficaz com os sons eletrônicos. A composição da parte eletrônica também
respeitou a organização em 3 seções distintas e ela torna-se um guia para os músicos que
podem inspirar-se em algumas figuras sonoras e/ou estabelecerem um diálogo com elas,
seja imitando ou respondendo às proposições gravadas.
A primeira seção começa em 0 :00 e vai até 3 :08, a segunda vai de 3 :09 até 6 :08 e a
terceira e última vai de 6 :10 até 9 :10. Todas as seções seguem as mesma organização já
apresentada anteriormente. É possível ver na imagem abaixo a marca das seções pelo traço
vertical : Part 1, Part 2 e Part3. Abaixo segue uma imagem do programa em que
trabalhamos:
6
Gramani : 1998.
154
Imagem 1 – Visão panorâmica da parte eletrônica de Quadros de uma Improvisação: Ponto, Linha,
Superfície
Fonte : programa DP
A instrumentação segue também a linha do acaso, pois não há uma exigência fechada
e limitada de instrumentos. Ainda que na gravação possamos identificar os instrumentos
fixos, para a parte do grupo existe apenas uma sugestão no início da partitura. O mesmo
raciocínio aplica-se aos instrumentistas, existindo uma indicação de 4 percussionistas no
início da partitura. Todavia, esta não é uma indicação absoluta, podendo ser realizada com
mais ou menos músicos.Essas características da peça fazem como que ela seja uma obra
móvel, mas de forma alguma aleatória ou indeterminada.
A elaboração da forma nesta composição é bem clara e nos fez trabalhar com
elementos distintos em cada seção. Para uma melhor visualização da lógica dos elementos
trabalhados nesta composição, preparamos uma tabela agrupando-os nas diferentes seções
que apresentamos abaixo:
Forma
Seções Elementos
rítmicos
Articulação Dinâmica Improvisação
1 Figuras longas,
médias e curtas
Staccato, non-
legato
Do p ao f O « Ponto »
caraterizado como
figura isolada.
Livre escolha e
repetição de
módulos.
2 Figuras
repetitivas em
Staccato, legato,
glissando
Do p ao f
passando por
A « Linha »
caracterizada por
155
diferentes
alturas
crescendo e
decrescendo
notas repetidas e
sons contínuos.
Livre escolha e
repetição de
módulos.
3 Ritmo
estabelecido
formando uma
frase articulada
e repetida
Legato, non-
legato, stacatto
Do mf ao fff
com muitas
nuances
internas, a
serem
determinadas
pela
improvisação
A idéia de
« Superfície » está
vinculada à frase
rítmica
estabelecida e
repetida como base
para a
improvisação.
Improvisação
associada a um
tema rítmico.
Tabela 1 : A Forma envolvendo vários elementos em Quadros de uma improvisação :Ponto, Linha, Superfície
5.2.São Jorge
O tema de São Jorge foi nos dado igualmente por Kandinsky. Personagem central de
nossa peça, São Jorge é padroeiro da Rússia, país natal de Kandinsky, ftendo sido pintado
em inúmeros quadros por ele. O quadro que originou esta música foi « São Jorge» de 1911.
Como analisa Nishida : « São Jorge é um tema privilegiado por Kandinsky : resta-nos hoje
4 pinturas sobre vidro ». (…) Só em 1911 Kandinsky pinta 3 « São Jorge » à óleo e em
1917 uma aquarela. » (Nishida : in Lazzaro, p. 20). O quadro que escolhemos guarda uma
característica naive e tem a peculiar característica de ter sido pintado em vidro, recuperando
uma técnica tradicional da Baviera, região onde morou e onde o povo nutria grande fé em
São Jorge (Covre : 2003, pp. 23-24). Suas cores predominantes são : amarelo, azul,
156
vermelho, verde e possui uma moldura também toda decorada com motivos nessas cores. O
quadro tem toda sua superfície preenchida pela imagem de São Jorge sobre seu cavalo, que
é azul, cravando a lança no dragão. Não existe espaço vazio, todo espaço é preenchido e
decorado. São Jorge está em uma posição diagonal e a lança cruza o quadro, também em
diagonal, da esquerda para à direita, de cima para baixo. Chega a ser um quadro de difícil
observação, dada a complexidade de sua forma, mas ao mesmo tempo dá impressão de uma
imagem produzida por um artesão, pela característica da ornamentação e cores básicas das
quais é feito: pinceladas amareladas pelo corpo do cavalo, manchas e traços pelo corpo do
dragão, à direita pequenas flores brancas que lembram estampa de um tecido, dentre tantos
outros elementos.
São Jorge pode ser apontado como o personagem central no imaginário espiritual de
Kandinsky pois tem uma aproximação muito grande, para não dizer que seria a própria
representação, de O Cavaleiro Azul
7
, ícone de sua crença na ascenção espiritual, no espírito
superior que doma a matéria. O Cavaleiro Azul chegou a ser o nome de um grupo que
funda junto a Franz Marc em 1911 e foi, o Cavaleiro, figura central de muitos quadros do
início de sua carreira (Covre : 2003).
Esta peça é para grupo de percussão, tendo aproximadamente 10 minutos. Ela traz 4
tímpanos como instrumentos principais, que conduzem a narrativa, numa espécie de
concerto para tímpanos e percussão. O acaso é desenvolvido fortemente pela idéia de
improvisação a partir de uma idéia apresentada e também pela idéia de Boucourechliev das
« ilhas » pelas quais passam os músicos. A escolha menos arbitrária aqui segue uma
história que é contada, a história de São Jorge, que enfrenta o dragão e o mata. No tocante à
performance, existe a possibilidade dos músicos iniciarem a execução estando fora do
palco. Este jogo cênico é sugerido como parte da representação dramática. Também as
expressões musicais são acompanhadas de adjetivos para estabelecer uma metáfora
instigando a interpretação. Por exemplo :
Expressão Significado
7
Der Blauer Reiter
157
Enérgico e agressivo (p.1)
8
Apresenta a tensão. Aqui entendemos que
uma história conflituosa seguirá.
Nervoso e perturbante (p.2) O caos é declarado.
Lento e Religioso (p.9) São Jorge que aparece em cena.
Primitivo (p.4) e Tribal (p.5) Referência à luta de São Jorge contra o
dragão.
A morte do dragão (p.8) Um rítmo de 13 notas dos músicos e 13
acordes repetidos nos tímpanos indicam a
morte do dragão. O número 13 é usado
premeditadamente para indicar a morte, em
muitas culturas é símbolo da morte.
Tabela 2 – Relação das expressões, metáforas e seus significados na música São Jorge
Um aspecto importante a ser considerado é o tratamento do tempo nesta composição
pois ele está inteiramente condicionado ao drama descrito e às decisões dos instrumentistas.
A escrita se dá por módulos, quadros indicativos, estruturas repetitivas, pequenos
improvisos e não existe compassos com fórmulas precisas indicadas ou duração exatas
sendo a indicação geral de alguns minutos. Essa indicação foi escolhida em função da
interpretação que o grupo terá da música. Da mesma forma como Schoenberg utilizava
alguns roteiros extra-musicais para suas peças, aqui lançamos mão da história de São Jorge
para emoldurar a forma desta peça que consta de três partes distintas concebidas em função
do programa. A introdução apresenta o dragão, a segunda parte é marcada pelo surgimento
de São Jorge e a terceira é quando o dragão morre e São Jorge vence.
Introduçãoapresentando a tensão e o dragão. A introdução da peça é feita com um
trinado realizado por 2 caixas-claras para chamar a atenção, como alguém que vai contar
uma história e começa dizendo : « era uma vez… ». Dentro da introdução, uma segunda
parte apresenta o dragão. O « nervoso e perturbante » refere-se a um personagem que não é
bom. Aqui temos a sobreposição de muitos rítmos que não seguem uma métrica
sincronizada e precisa. Eles também podem ser repetidos à escolha dos instrumentistas.
8
Toda paginação em São Jorge faz referência à partitura, no Tomo II (Composições da Tese).
158
Segunda partesurgimento de São Jorge. A segunda seção apresenta São Jorge que
aparece num rítmo solene. Inicia-se o confronto e, na página 4 o dragão é tratado pela
mesma idéia de rítmos sobrepostos, sem sincronia e repetidos. São Jorge aparece com uma
linha escrita em sequência, em contraste com o dragão, como se atravessasse a cena
incólume. Em seguida a seção denominada « Tribal » apresenta o confronto declarado, a
luta se efetiva. No final dessa seção há uma Cadenza (página 5) escrita para os tímpanos
indicando a soberania de São Jorge. Como instrumento solista, os tímpanos ganham uma
cadência para mostrarem suas qualidades particulares, de músico e virtuose. Nesta seção,
existe também um trecho de improvisação livre.
Terceira partemorte do dragão, vitória de São Jorge. A terceira e última parte é
um Allegro cujo elemento principal é a articulação de 13 notas. O número treze foi
escolhido por representar a Morte na cultura mística
9
. É nesse momento que São Jorge dá
os golpes mortais no dragão, sendo sua morte representada na página 8 de nossa música.
Sobre laiser vibrer do grupo, o tímpano executa seus 13 acordes. A parte final, na página 9,
é a vitória do bem.
9
Por exemplo : nos Arcanos Maiores do Tarot a carta número 13 é a da Morte.
159
Capítulo 5
161
Capítulo 5
« Colagem/Citação »
1. Definição : Colagem e Citação p.163
2. Pós-Modernismo p.165
3. Pós-Modernismo e Música p.168
4. Pequenos Mundos p.172
5. As composições p.180
6. O Sintetizador Oberheim p.182
7.Glenn Gould p.184
162
Capítulo 5
« Colage/Citação »
1. Definição : Colagem e citação
Ao longo do século XX, especialmente em sua segunda metade, a técnica da citação e
da colagem surge de maneira autônoma dentro da composição musical, tornando-se, por
assim dizer, uma « antiga-nova » técnica composicional. « Antiga » pois como recurso
musical podemos acompanhar ao longo dos séculos anteriores, embora de maneira esparsa
e não sistemática, a prática da utilização de elementos de outros compositores e estilos
numa composição, o que pode ser interpretado, de certo modo, como uma citação ou
colagem. « Nova » pois sendo uma espécie de releitura de uma técnica antiga, é uma prática
que se destaca no século XX, florescendo no terreno musical. Sobretudo a partir da
Sinfonia (1969) de Berio assistimos à multiplicação dessa tendência, o que leva a autora
Ramaut-Chevassus (Paris : 1998) considerar a colagem ou a citação como técnicas básicas
da Pós-Modernidade.
Na análise de Bosseur (1992, pp. 29-33), as duas expressões - colagem e citação –
apresentam um tênue limite, tendo a segunda raízes antigas. Haveria vestígios da citação já
no canto gregoriano, em Bach, Mozart, em alguns românticos e ainda em numerosos
compositores do século XX, especialmente Stravinsky. Deste ponto de vista podemos traçar
um paralelo com a questão da improvisação tratada no Capítulo 4. As técnicas da
improvisação e citação desenvolveram-se lado a lado na prática instrumental e vocal. Os
temas populares recolhidos por Bach não deixam de ser uma espécie de citação popular
dentro de sua obra vocal religiosa. Nesta mesma direção, podemos identificar uma colagem
de elementos, ou estilos, pois chegou a realizar arranjos e adaptações de peças de Vivaldi.
Outro compositor que não podemos esquecer é Gustav Mahler. Acreditamos que seja
um dos exemplos mais contundentes do início do século XX no terreno da colagem e da
citação. Sua obra sinfônica, como foi esmiuçada por Schoenberg (longo de seu artigo
« Gustav Mahler » de 1961), foi construída, entre outras técnicas, sobre o fragmento, sobre
163
uma coleção de temas, elementos e trechos populares e folclóricos. Destacamos um
exemplo aqui : o terceiro movimento de sua Sinfonia n 1, onde utiliza o tema popular de
Frère Jacques em modo menor. Esta maneira de citar a canção popular modificada e
acrescida de outros elementos, parece ter sido uma tendência de Mahler na maior parte das
Sinfonias.
Bosseur também faz a diferença entre colagem e citação dizendo que é do ponto de
vista organizacional que elas ocorrem. A citação pode ser entendida como um ato
deliberado, onde o compositor procura ligar seu pensamento a de um outro, procurando
uma espécie de « arquétipo » (Bosseur : 1992, p. 30). Este enfoque parece ser apropriado
para todas as épocas, pois no tempo de Bach, por exemplo, quando se tomava um canto
popular para realizar um coral, apropriava-se da peça no intuito de mesclar cultura popular
e a erudita, dentro da Igreja, atraindo assim os fiéis.
A colagem não implica a busca de uma estilização, de uma organização e uma atitude
intencional. Bosseur, em seu estudo de 1978 (Bosseur et alii: 1978, pp. 291-304) anota
diferentes categorias de colagem segundo suas morfologias e funções. Assim apresenta :
«reunião-colagem » (Rosa Mix de Cage para suporte eletrônico de 1965), « colagem-
complexa » compostas de vários fragmentos (trechos de discos de jazz em Imaginary
Landscape n. 5 de Cage – 1952), a « anti-colagem » que consiste em tomar um detalhe de
um todo e dissecá-lo (Tactil de Kagel de 1970), a « colagem narrativa » que possui um
sentido dramático e a « colagem-testemunha » (Ramaut-Chevassus : 1998, p.50).
Ramaut-Chevassus (1998) analisa a colagem e a citação como espécie de marca
registrada da Pós-Modernidade. Como apresenta na introdução de seu livro, a musicologia
abordou a expressão Pós-Modernidade de forma reticente, desconfiada e indiferente, mas
os escritos sobre o assunto foram abundantes em outros domínios artísticos, particularmente
na arquitetura e filosofia. A expressão Pós-Modernidade, difundida desde final da década
de 70, apresenta sentidos múltiplos « um estado de realidade estética e social », « um
conceito » (Jean-Jacques Nattiez), « uma atitude » (John Réa), « menos um tema que uma
ocorrência em um certo número de discurso, um sintoma talvez » (Alain Lhomme)
(Ramaut-Chevassus : 1989, p.3). Ao que tudo indica, a ligação entre música e pos-
modernidade não parece ter sido reinvidicada por compositores, o termo ficou sempre à
164
margem de suas escolhas e decisões, o que a autora quer dizer com isso é que não houve
uma atitude pós-moderna como houve por exemplo com o futurismo, em suma, o pós-
modernismo para ela não é um movimento comparável àqueles do início do século.
Essa questão musicológica sobre as ligações entre música e pós-modernidade é
legitimada por um conjunto de tendências, surgidas desde fim dos anos 60, caracterizada
por ela como o momento de declínio das vanguardas, rachadura dos sistemas totalizantes,
heterogeneidade dos elementos, dentre outros. Esses elementos adquirem coerência se os
consideramos como manifestações estéticas da pós-modernidade. Segundo Ramaut-
Chevassus, se por um lado temos os descendentes da Segunda Escola de Viena como
representantes da chamada música contemporânea atonal, outros compositores,
admiradores de Stravinsky, Bartok, Debussy e Satie dentre outros, defendem e escrevem
uma outra música cujas características desenvolveram-se de maneira diferenteo. Entretanto,
podemos observar atitudes pós-modernas nas duas tendências. Desta forma, a questão da
pós-modernidade torna-se mais vasta do que apenas identificar um corpus ou tipos de
música, tratando-se de observar, através dos repertórios e tipos de músicas diferentes,
gestos e tendências que revelam algum parentesco com a sua problemática.
2. Pós-Modernismo
Para refletir sobre as relações entre Pós-Modernismo e música Ramaut-Chevassus
toma como referências J.F Lyotard (1983), G. Vattimo (1991), J. Clair (1983), L. Ferry
(1990) e Compagnon (1985). A expressão « Pós-Modernismo » aparece no domínio
público e torna-se de uso frequente na Europa a partir de 1979 com o livro de Jean-François
Lyotard La condition postmoderne, que é inicialmente um relatório sobre a condição do
conhecimento nas sociedades mais desenvolvidas. Neste texto, o autor indica alguns pontos
relevantes para situar a gênese do termo, afirmando que pós-modernismo está em uso nesta
época no continente americano, sendo já utilizado por sociólogos e críticos. Salienta ainda
que é possível estabelecer uma equivalência entre as sociedades pós-industriais e as
culturas da era chamada pós-moderna. A ambiguidade inicial do termo apresenta acepções
diversas em seu enfoque. Inicialmente Lyotard acredita que o pós-moderno faz parte do
165
moderno e assim compreendido, o pós-modernismo não é o fim do modernismo mas
modernismo em estado de nascimento.
Um outro significado muito corrente, no qual deteve-se Ramaut-Chevassus, considera
pós-modernidade como um retorno global à tradição, esta considerada como herança e que
o opõem assim ao modernismo. Este significado reinvidicado entre outros, de modo
ofensivo e polêmico, inicialmente surge no discurso sobre a arquitetura para em seguida
estender-se a outros campos. Não designa somente obras mas uma época, o espírito de um
tempo. Um de seus traços fundamentais é o ecletismo. Uma outra acepção é defendida pelo
filósofo Habermas, à qual adere Luc Ferry. Esta apresenta a pós-modernidade como um
estado que ultrapassa o modernismo : forma de repensar a filosofia das Luzes, como uma
« impulsão no sentido de um ultrapassar da razão » (Ramaut-Chevassus : 1989, p.7).
Ao considerar-se pós-modernidade como movimento que vem se opor ao
modernismo é necessário localizarmos o limite deste último. Situamo-nos no domínio da
arte, no fim das « vanguardas chocantes » a partir dos anos 70. Seu fim representaria o fim
do modernismo na música, início do pós-modernismo. Depois destas vanguardas, estariam
as criações pós-modernas caracterizadas por Ferry (1990) como « obras de arte tornadas
modestas » na medida em que elas não procuram mais, não chegam mais a suscitar o
escândalo, ou onde elas não são mais baseadas em grandes projetos estéticos (Ramaut-
Chevassus : 1989, p.8). Para situar a modernidade Ramaut-Chevassus localiza uma
passagem de Jean Clair (Clair : 1983) que analisa o movimento da seguinte maneira :
« a estética da modernidade, considerando que foi uma estética de
innovatio, parece ter esgotado as possibilidades de sua criação. No
interior dela mesma, o desenvolvimento nos anos 10, depois a
institucionalização acelerada nos anos 50 de uma vanguarda que
exasperou e acelerou as tendências (…) trouxe-lhe o golpe de
misericórdia » (in Ramaut-Chevassus : 1989, p.8).
As vanguardas teriam sido pegas em contradição, a busca exclusiva de novidade e de
expressão inédita as conduzem a um gesto vazio e a uma inovação inócua. A tradição de
ruptura desfaz-se de seu conteúdo para existir como gesto mecânico. Para nossa surpresa,
qual a imagem utilizada por Ferry para analisar este ciclo ? O triângulo de Kandinsky.
Desta forma, analisa as vanguardas tomando a imagem do triângulo que Kandinsky
166
apresenta em seu livro Do Espiritual na Arte e tudo o que este autor denominou de « vida
espiritual ». Partindo da imagem triângula, na base larga que se direciona ao ápice singular
temos uma visão centrada sobre o elitismo, o individualismo e o historicismo. O elitismo
está ligado ao estado de solidão do artista só, na ponta do triângulo. E para ilustrar este
ponto cita uma passagem de Schoenberg quando relata uma experiência pessoal em 1913 :
« Eu precisava brigar para que fosse admitida cada uma de minhas
criações, eu havia sido insultado da maneira a mais ultrajante pela
crítica (…) Eu permaneci só face ao mundo hostil » (in Ramaut-
Chevassus, 1989, p. 9).
O individualismo está ligado à expressão do eu e privilegia todos os meios técnicos e
artísticos sustentando as manifestações da personalidade. O historicismo está ligado ao
avançar do triângulo pois a elite será cedo ou tarde incluída, reconhecida em seu papel de
mensageira e de instauradora da ruptura como o único motor de avanço. Esses três
caracteres dominantes – elitismo, individualismo, historicismo - formam uma espécie de
negativo da pós-modernidade, sendo que é exatamente neste ponto que ela transgride.
É desta forma que o pensamento de Gianni Vattimo (1991) é introduzido. Justamente
quando afirma : « a maneira a mais geralmente difundida de caracterisar a pós-
modernidade consiste em considerá-la como o fim da história » (in Ramaut-Chevassus :
1989, p. 9). O fim da história quer dizer fim do historicismo, ou seja, fim do sentimento de
um tempo percebido como um caminho orientado por sucessões de novidades. Mas sair
deste tempo como se fosse um erro ou de um limite a ultrapassar é inscrever-se mais uma
vez na lógica da modernidade. Vattimo recorre a Heidegger para designar a relação entre
moderno e pós-moderno que ele associa ao ultrapassar da metafísica : « (…) relação que
aceita e retoma o moderno, trazendo os traços nele mesmo, como de uma doença, dos quais
nós seremos ainda os convalescentes e que a prolonga, mas submetendo a uma distorção ».
Não se trata de uma aventura a mais no prolongamento do espírito moderno mas de uma
outra atitude que se atém a esta distorção. A idéia de ruptura tem lugar na cultura pós-
moderna a uma importância crescente acordada à rememoração, à retomada de elementos
do passado, mas ela instaura uma relação com o passado que é livre e não constrangedora,
não hierarquizada, que abdica a idéia de uma novidade necessária. Esta atitude,
167
particularmente manifesta em arquitetura e em música, também foi lida como sinal de
reação ou de conservadorismo.
Uma outra consequência do Pós-modernismo segundo a autora seria o fim dos meta-
discursos
1
, idéia esta recuperada de Lyotard. Pode-se entender por meta-discurso toda visão
globalizante que legitima um saber. No domínio das artes que, segundo Ramaut-Chevassus
não é nem saber, nem discurso, podemos fazer aproximações por metáforas. As visões
globlizantes tornam-se as linguagens e gramáticas comuns, os estilos, formas e funções ou
todo outro sistema, tal como o serial, pós-serial que visa a uma coerência total e às vezes
totalitária. Essas visões globalizantes se dispersam em nuvens de elementos de linguagens
de diversas naturezas. A idéia no que concerne à música é aquela de uma heterogeneidade
pragmática, fazendo referêcia a uma totalidade, mas que continua a ser produtiva. A pós-
modernidade pratica também a pluralidade de estilos. E para concluir a idéia, a autora
apresenta uma análise de Compagnon : « contra os dogmas de coerência, equilíbrio, de
pureza que fundaram o modernismo, o pós-modernismo reavalia a ambiguidade, o múltiplo,
a pluralidade dos estilos» (Compagnon in Ramaut-Chevassus : 1989, p. 10)
3. Pós-modernismo e música
Para uma análise da pós-modernidade, a autora considera basicamente a atitude com
relação ao passado e o gosto pelo ecletismo. Inicialmente, a vontade de escapar ao
historicismo é muito forte e por isso mesmo ela se traduz por uma nova relação com o
passado, em suas palavras « uma rememoração livre implicada pelo ultrapassar de uma das
primeiras condições da modernidade » (Ramaut-Chevassus : 1989, p. 11). Essa
rememoração livre coloca o exercício artístico apto a todas direções temporais e espaciais.
Um dos sintomas da alteração ou do abandono do espírito moderno é então, em arquitetura
ou em música a prática da citação. Trata-se de uma re-evocação do espírito de tábua rasa.
Esse confronto com a tradição realiza-se de maneiras múltiplas mas a evocação do passado,
a citação de elementos emprestados faz-se de maneira aberta, não hierarquizada, não
orientada linearmente. Tudo está disponível e pode ser utilizado sem constrangimento de
1
A palavra original é « métarécits » que traduzimos por meta-discurso.
168
coerência cronológica ou temporal. Para elucidar esta reflexão, toma as palavras de
Umberto Eco : « A resposta pós-moderna ao moderno consiste em recohnhecer que o
passado, sendo dado não pode ser destruído porque sua destruição conduz ao silêncio, deve
ser revisitado : com ironia, de uma maneira não inocente » (Eco in Ramaut-Chevassus :
1998, p.12). As várias modalidades dessa nova atitude com relação ao passado manifestam-
se na arte pelo gosto do ecletismo. Esse ecletismo nos coloca o fato da pós-modernidade ser
incrédula ao olhar das visões globalizantes, mas que entretanto, ela não rejeita, pois ela os
fragmenta, os distorce.
Também associado ao pós-modernismo, aparece a idéia de acabar com um certo
elitismo ou hermetismo. A vanguarda, segundo Ramaut-Chevassus teria se esvaziado,
caminhando para a arte conceitual e assim privou o público ou limitou-se a um público de
iniciados muito restrito, e lugares fechados. Este fim de elitismo e o desejo de uma arte ou
música comunicáveis segue por um percurso de simplicidade, de representação, de
realidade, uma superação das querelas entre escolas que não são mais representadas como
diferentes pólos incompatíveis, nem junto aos ouvintes, nem junto aos autores, arquitetos,
compositores da jovem geração. A autora cita o exemplo de Umberto Eco que, ao analisar o
caso da literatura para exprimir essa vontade de retornar ao público com uma obra
comunicável, abordável, fala de um « encontro com a amabilidade ». Como afirma
Ramaut-Chevassus : « o escândalo ou a incompreensão não são mais a prova da validade de
uma obra » (Ramaut-Chevassus, 1998, p.16).
O início do pós-modernismo em música durante a década de 60, pode ser
acompanhado através do trabalho de compositores que, inicialmente eram seriais e que
voltaram-se para « objetos novos», sem contudo renegar o passado. Stockhausen e
Pousseur, entre outros, seriam testemunhos europeus explícitos deste procedimento. É a
partir deste momento que começam a integrar em suas obras não apenas novos objetos
sonoros mas também objetos musicais encontrados em outras épocas e países. O exemplo
mais elucidativo é Hymnen (1966-67) de Stockhausen, onde realiza uma simbiose entre as
músicas e os povos.
Temos um relato muito elucidativo sobre o tema, da colagem e citação em Pousseur.
Vejamos uma entrevista de 1989, a respeito de sua ópera « Votre Faust » :
169
« Em torno de 1959 eu tinha nostalgia de certos elementos
tradicionais (…) Eu sempre continuei a escutar e a tocar a música
antiga, mas eu me proibia de empregar qualquer elemento que
pudesse parecer com ela, era uma espécie de divisão da
personalidade mas que não parecia mais necessário de continuar.
(…) Não via mais razão de proibir isso. Toda essa nostalgia e essa
memória eram reutilizáveis. (…) Eu construí pouco a pouco meus
sistemas. O trabalho com a citação era um primeiro método,
fazendo constelações de pedaços de memórias chegava-se à alguma
coisa » (Pousseur in Ramaut-Chevassus : 1989, p.24).
O espírito pós-moderno está também presente em Berio em sua Sinfonia (1968),
através de colagens e citações, dentre outros recursos. Esta obra de síntese, como o próprio
Berio a denominava, é vista como o emblema do espírito pós-moderno por Ramaut-
Chevassus. Sinfonia compreende 5 movimentos onde no primeiro reúne textos de Lévi-
Strauss, especialmente os extraídos da simbologia dos mitos brasileiros sobre a origem da
água. No segundo, faz uma homenagem a Martin Luther King utilizando os sons que
constituem seu nome. O terceiro movimento trabalha sobre textos de Samuel Beckett, que
por sua vez faz um grande número de referências e citações cotidianas e também sobre
Mahler. O quarto movimento utiliza ainda Mahler como citação. O quinto recapitula,
desenvolve e completa os precedentes dando continuidade aos fragmentos. O depoimento
de Berio sobre esta obra destaca :
« A terceira parte da Sinfonia pede um comentário mais detalhado
porque é talvez a música mais experimental que já escrevi. Trata-se
da homenagem a Gustav Mahler (cuja obra parece às vezes trazer
sobre o ombro o peso da história da música desses últimos dois
séculos) e, em particular, o terceiro movimento de sua Segunda
Sinfonia (« Ressureição »). Mahler está na totalidade da música
desta segunda parte como Beckett está na totalidade do texto. O
resultado é uma espécie de Viagem a Citera realizada exatamente a
bordo do terceiro movimento (o « scherzo ») da Segunda Sinfonia.
O movimento mahleriano é tratado como um gerador do qual
proliferam um grande número de figuras musicais que vão de Bach
a Schoenberg, de Brahms a Strawinsky, de Berg a Webern, a
Boulez, a Pousseur e a mim mesmo. (…)» (Berio in Discografia :
170
1986)
O pós-modernismo iniciado a partir dos anos 60, constituído por várias correntes
musicais, cuja principal característica é o abandono do espírito moderno, segue seu curso
histórico até os anos 90 e segundo Ramaut-Chevassus, « nada permite ainda afirmar que
tenham passado de moda e que constituem uma das tendências obsoletas » (Ramaut-
Chevassus : 1998, p.20).
A técnica da colagem e da citação apresenta um percurso bastante significativo dentro
da música para suporte eletrônico. Podemos citar inicialmente Pierre Henry, com sua obra
La Dixième Symphonie de Beethoven (1979) composta a partir de células tomadas das nove
sinfonias de Beethoven. Os movimentos desta peça levam os seguintes subtítulos :1)
« Presto », 2) « Faintaisie I », 3) « Rondo », 4) « Faintaisie II », 5) « Scherzo », 6)
« Allegro Molto », 7) « Allegro con brio », 8) « Larghetto », 9) « Finale ». O que Pierre
Henry faz é recortar e colar trechos os mais variados das sinfonias de Beethoven,
encadeando-os de uma maneira diversa. Sete anos após esta composição, dedica-se a uma
outra obra, que tem a mesma idéia, porém com mais distorções e novos sons incluídos, é a
10a Remix (1986). Cada um dos movimentos recebe novos títulos : 1) « Marche dans le
temps », 2) « Pas Perdus », 3) « Beethoven Seul », 4) « Fantaisie Flipper », 5) « Presto », 6)
« Enfants », 07) « Guerre », 08) « Aube », 9) « 1/2 Finale », 10) « Finale ». Cabe observar
que o próprio meio eletrônico e as técnicas de estúdio favoreceram para que o trabalho da
citação e da colagem se multiplicasse, visto que a técnica básica de estúdio desde os
primeiros passos dos compositores concretos foram : gravação, recorte, colagem e
montagem.
Um outro compositor a destacarmos no terreno eletrônico, que trabalhou
especificamente a colagem de elementos da história da música eletroacústica foi o francês
Christian Zanési (1952). (Pascal : 2004) Como principais obras destacamos : Eclisses
(1978) ; La Nuit rebis (1979) ; Trois Devinettes à écouter pendant l'orage (1980) ; D'un
jardin à l'autre (1982) ; Stop ! L'horizon (1983) ; L'Intime (1985) ; La Traversée (1986) ;
Profil désir (1988) ; Courir (1989) ; Grand bruit (1990) ; Intérieur nuit (1991) ; Cello
(1993) ; Arkheion, les mots de Stockhausen (1995) ; Arkheion, les voix de Pierre Schaeffer
171
(1997) : Toto-Valse (1996) ; Jardin public (1997) ; Saphir, sillons, silences (1998) ; Voix
anciennes (1998) ; Un Portrait sans visage (1999).
Em Arkheion, les mots de Stockhausen (1995) e Arkheion, les voix de Pierre
Schaeffer (1997), temos um trabalho histórico de colagem e citação dos dois referidos
autores. Na primeira, utiliza registros de falas de Stockhausen, que dentre outros expressa a
riqueza dos sons industriais. Como exprime em entrevista dada em 2003 ao filósofo Jean
Pierre Lalloz, e a musicóloga Anne-Claude Iger (Zanési : 2003):
« (…) Um dia quando escutava uma entrevista de Stockhausen, tive
uma idéia. A entrevista, que durava 7-8 minutos, era constituída de
uma frase, de uma grande frase. Imediatamente eu vi uma
possibilidade formal, aquela de trabalhar em cruzamento retomando
não o discurso inteiro mas as palavras de certa forma esparsas, que
a partir de então vão reconstituir o pensamento que havia expresso
na gravação.(…) »
Zanési teve acesso aos arquivos sonoros da Radio France da época de Pierre
Schaeffer para realizar estas obras e ainda como antigo aluno deste, reuniu elementos
esparsos para sua composição num misto de memória pessoal e a história gravada. A
respeito de Arkheion, les voix de Pierre Schaeffer Zanesi escreve :
« Para Pierre Schaeffer que me é mais próximo (…) eu tomei aqui e
ali fragmentos descobertos ao acaso na massa considerável dos
arquivos que lhe diziam respeito. Com esses fragmentos e as idéias
misturadas de minhas lembranças, eu quis simplesmente falar de
seu olhar um pouco desabusado e surpreso (estranha contradição)
diante desta experiência, sempre atual, que ele propôs a cinquenta
anos : fazer a música com o som gravado. »
(Zanesi : 2)html)
4. Pequenos Mundos
Pequenos Mundos é o título de uma série de 12 impressões que Kandinsky produziu
em 1922 quando iniciava seu percurso no Instituto de Artes e Metiers Bauhaus em Weimar.
É uma importante obra da segunda metade de sua carreira e também dentro da produção da
Bauhaus. Ela traz elementos que vão desde o expressionismo da fase de O Cavaleiro Azul
172
até o geometrismo da Escola de Bauhaus (Guerman : 1998, pp. 112-116). Pequenos
Mundos consiste em impressões que utilizam técnicas diferentes, 4 litografias
2
, 4
xilogravuras, 4 pontas-secas
3
, algumas a cores, outras em preto e branco. Nesta obra
trabalha a relação entre o pequeno e o grande de uma maneira poética e inusitada, como
descreve em suas próprias palavras : « o todo pode ser concentrado no átomo, nas
partículas, pois a consciência não é nem grande, nem pequena, e é apenas em seu seio que
os mundos existem » (Guermann. 1998, p. 112).
Algumas destas impressões são coloridas entretanto reduzindo-se praticamente ao
amarelo, vermelho, azul e preto. Kandinsky modifica sua técnica, o figurativismo
desaparece completamente e encaminha seu estilo para um geometrismo mais severo. Tenta
estabelecer uma espécie de gramática de formas picturais, o ponto e a linha são explorados
num exercício de variação constante. Cada imagem é um mundo único e autônomo (Prat :
2001, p.148). O título Pequenos Mundos contém um paradoxo
4
, pois Mundo é por
definição algo grande, imenso. Poderia o que é grande, imenso ser « pequeno » ? Guerman
tenta responder a esta pergunta através de uma reflexão poética onde analisa essas
impressões de Kandinksy:
« Os pequenos universos guardam a arte, as noções secretas sobre o
grande e o infinitamente pequeno, sobre o passado e o futuro, sobre
a possibilidade e a necessidade inevitável de conciliar na criação os
tempos diferentes e as diferentes concepções do Belo » (Guerman :
1998, 112).
Essas impressões são de cunho fortemente abstrato, apresentam uma profusão de
formas e movimentos, seja através das cores ou do branco e preto. Elas fazem parte de um
período maduro de Kandinsky, foram feitas no ano em que inicia seu trabalho de professor
2
A litografia é uma impressão a partir de uma matriz de pedra ou zinco usando-se tinta à óleo. Foi
inventada em 1796 pelo alemão Alois Senefelder buscando um sistema de impressão barato para
partituras musicais e obras de teatro. (www.artemiranda.com)
3
Ponta seca - neste caso, o instrumento usado é uma ponta de material duro e resistente como o aço
montado sobre um apoio. É utilizado como se fosse uma caneta. Sua extremidade é fina e ele
"rasga" a superfície da placa, deixando neste ato uma fina rebarba de metal nas bordas do sulco
gravado, que resultará em uma linha impressa aveludada, característica desta técnica. (Petrini :
2005)
4
podemos também falar em paradoxo para o título das peças estudadas no Capítulo 4 Poesia sem palavras
173
na Bauhaus. São ao mesmo tempo simples e complexas. Simples pois na essência utilizam
um número limitado de elementos. Entre imagens coloridas ou não e técnicas diferentes,
guardam em comum a característica de serem imagens completamente abstratas utilizando
alguns círculos, quadrados, traços e pontos, sendo, ao nosso ver, a proposta formal a
unidade, o ponto de intersecção entre elas. Complexas pois é notória a vocação para o
movimento dessas imagens. Elas apontam para situações diversas de concentração e
dispersão de elementos num fluxo de idéias que causam movimento e a cada quadro, novas
soluções de direcionalidade.
Apresentamos a seguir as 12 impressões intituladas Pequenos Mundos :
Imagem 1 - Pequenos Mundos I
Fonte : Kandinsky,html
Imagem 2 - Pequenos Mundos II
Fonte : Kandinsky, html
174
Imagem 3 - Pequenos Mundos III
Fonte : Kandinsky : html
Imagem 4 - Pequenos Mundos IV
Fonte : Kandinsky, html
175
Imagem 5 - Pequenos Mundos V
Fonte : Kandinsky, html
Imagem 6- Pequenos Mundos VI
Fonte : Kandinsky, html
176
Imagem 7 - Pequenos Mundos VII
Fonte : Kandinsky, html
Imagem 8 - Pequenos Mundos VIII
Fonte : Kandinsky, html
177
Imagem 9 - Pequenos Mundos IX
Fonte : Kandinsky, html
Imagem 10 - Pequenos Mundos X
Fonte : Kandinsky, html
178
Imagem 11 - Pequenos Mundos XI
Fonte : Kandinsky, html
Imagem 12 - Pequenos Mundos XII
Fonte : Kandinsky, html
179
5. As composições
Abordamos duas composições através da técnica da colagem/citação : Música para
Schoenberg para piano solo e Pequenos Mundos para suporte eletrônico. Ambas primam
pela citação de Schoenberg de maneira clara e transparente, colando pedaços de suas obras,
repectivamente o opus 4, e o opus 19. Em Música para Schoenberg, já abordada no
Capítulo 2, temos um processo composicional linear, num exercício temporal que visa
apresentar sequencialmente elementos os mais diversos extraídos de Schoenberg. O
contraponto intrincado que pode ser visto em algumas seções do opus 4 não encontram
espaço na composição para piano solo, que previlegia sobretudo o perfil melódico-
harmônico. Já em Pequenos Mundos a opção foi trabalhar um contraponto complexo
envolvendo timbres diversos, contrariamente ao opus 19 que tende para uma escrita mais
transparente em cada uma das 6 peças.
Pequenos Mundos segue a idéia de aforisma, o que nos fez avançar em nossa
pesquisa sobre a concisão da forma, iniciada anteriormente em Poesia sem Palavras,
buscamos concentrar as 12 impressões em uma única peça musical. Apresentamos no
Capítulo 3 um breve histórico do aforisma. Dentro dos mesmos conceitos explicados
anteriormente, desenvolvemos a composição ora analisada. De forma sintética, o aforisma
na literatura privilegia sobretudo a atenção sobre o conteúdo do texto, o aforisma musical,
segundo D´Allonnes, valoriza de maneira original a duração, « o caráter pontual do
instante » (D´Allones : 1992, p.56). Procuramos criar uma composição sobre suporte
eletrônico que representasse essa concepção : do instante sublinhado.
Tomando o título paradoxal que Kandinsky deu às suas impressões, fizemos uma
peça com pequenas partes extraídas de mundos diferentes. A coleção de sons que fizemos
antes de elaborar a composição foi bem maior que a peça finalizada. Esse processo é, por
sua vez, o mesmo processo pelo qual um poeta ou um filósofo pode chegar em um
aforisma. Muitas histórias, muita reflexão e conteúdo, às vezes muitos anos, estão por trás
de uma frase aforística, curta e concisa.
Pequenos Mundos, a música, tem 3m31s. Ela foi elaborada num programa de música
denominado DP em uma montagem de 9 pistas, que foram posteriormente mixadas. Consta
180
basicamente de duas seções. A primeira vai até minuto 2 :15 e tem o caráter fragmentário.
Esta seção é feita com o motivo das terças da tereceira peça do opus 19 de Schoenberg que
são cortados e colados em diferentes disposições. Como pano de fundo temos os sons do
sintetizador Oberheim. Neste caso o opus 19 funciona como elementos bordados sobre o
fundo sonoro sintetizado. A partir do minuto 2 :15 temos uma mudança na textura com
volume maior de informação. Os trechos escolhidos do opus 19 aqui são mais extensos e
tem um perfil contrastante com os da primeira parte. Esse « Tutti » aparece também com
um som pedal no grave e glissandos no agudo do sintetizador. Aqui temos então três
camadas distintas : 1)som pedal (sintetizador), 2)piano, 3)sons agudos (sintetizador) que
foram feitas por uma reunião de várias outras camadas internas. Isso pode ser visualizado
na Imagem 1 que anexamos neste Capítulo. Em seguida temos a cadência final. A cadência
final é feita a partir de um motivo da primeira peça do opus 19. Ela é uma articulação
discreta e simples.
Esta composição é para suporte eletrônico, sua difusão num Acousmoniom é de
grande eficácia pois, no conjunto dos alto-falantes, o jogo entre as várias camadas, o
diálogo entre piano e sintetizador é enormemente valorizado.
5
« Os mundos » dos quais colhemos materiais para nossa composição foram: 1) O
Sintetizador Oberheim, 2) As 6 Pequenas peças para piano opus 19 de Schoenberg, 3) A
Gravação de Glenn Gould. Esses três mundos tão ricos de significados nos possibilitou
criar, como nas peças para piano Poesia sem palavras, uma cadeia de inter-relações. Esses
recortes que fizemos são uma espécie de homenagem aos sujeitos envolvidos, uma espécie
de tributo ao passado musical, ao mesmo tempo que um exercício de composição.
A idéia da técnica da impressão que Kandinsky utiliza não nos passou despercebida e
o canal eletroacústico foi pensado aqui como a matriz que imprime no ar a imagem sonora.
6
Uma mistura da proposta da música acusmática e da música concreta, na medida em que o
ouvido é convidado a «olhar » para a referência histórica, seja Schoenberg, Gould ou o
sintetizador Oberheim.
5
Não aconselhamos a escuta em aparelhos de som comuns.
6
Aqui cabe uma pequena referência ao compositor Pierre Henry que afirma fazer « cinema sem
imagens ». Henry, Pierre.
www.pastis.org-jade-juillet-pierrehenry.html
181
6. O Sintetizador Oberheim
Para a composição de Pequenos Mundos utilizamos trechos da gravação histórica de
Glenn Gould do opus 19 de Schoenberg e um instrumento eletrônico, o sintetizador
Oberheim. Destacamos aqui em linhas gerais o desenvolvimento histórico dos
sintetizadores para abordarmos aquele instrumento, como é constituído e o que podemos
obter dele. Um sintetizador é um instrumento musical capaz de gerar e manipular sons
eletronicamente através de osciladores eletrônicos produzindo formas de ondas que se
modulam através de ajuda de técnicas específicas.
7
Figura 1 – Sintetizador Modular Oberheim, versão 8 vozes
Fonte : sintetizadores, html
O sintetizador modular Oberheim que utilizamos teve sua fabricação entre os anos
1976-79. Ele é dotado de um teclado com 49 ou 61 teclas, em versão a 8 vozes (existe
também a versão a 6 vozes). Sua principal característica é a polifonia. Contém 2 osciladores
7
Para estudo detalhado dos sintetizadores, bem como desenvolvvimento histórico, ver
bibliografia.
182
por voz. As formas de ondas são variáveis indo do dente de serra ao retângulo. Também são
possíveis de se obter o portamento, o vibrato e o ruído branco. Suas possibilidades são
vastas mas, por este motivo pedem muita paciência do utilizador. É preciso, por exemplo,
afinar inicialmente todas as 8 vozes (não nos esqueçamos que são 2 osciladores por voz). É
este ponto que vai chamar a atenção do compositor Jean-Etienne Marie
8
, (a quem pertenceu
o instrumento por nós utilizado) e que vai dedicar anos de trabalho sobre ele, explorando a
micro-afinação.
Não é um instrumento cômodo de se usar, é de difícil domínio e sua abordagem é
complexa. Em contrapartida possui um som especial, um timbre datado e único, uma
« alma de instrumento ». O apogeu na construção dos sintetizadores foi no início dos anos
80, em seguida uma baixa na produção coincide com a chegada do protocolo MIDI. Com
este novo protocolo muda-se não apenas o sistema, mas também os timbres. Um som de um
sintetizador Oberheim não é substituído pelos sons MIDIs.
O Oberheim enquanto sintetizador permite teoricamente a realização das sínteses
supra-citadas - aditiva, substrativa e FM - mas salientamos que seu principal desempenho e
interesse, para sua época, foi o fato de ser um instrumento que possibilitou a polifonia. O
que até então não era comum nos sintetizadores.
Nosso interesse pelo Oberheim foi tudo aquilo que o constitui único no cenário
eletrônico : a qualidade de seu som e as possibilidades polifônicas que ele apresenta.
Enquanto sintetizador modular, porém dotado de um teclado, pareceu-nos um mundo
fascinante para dividir o espaço de uma composição ao lado de Schoenberg.
8
Jean-Etienne Marie (1917-1989) - em 1949 funda o Cercle Culturel du Conservatoire e organiza
uma primeira série de concertos de música contemporânea na Sorbonne com alunos
do
Conservatório. Em 1968 funda os Seminários de Música contemporânea de Orléans e o Centro
Internacional de Pesquisa Musical (CIRM) e em 1979 Les Musiques Actuelles de Nice côte d´Azur
(MANCA). Durante 26 anos especializou-se na retransmissão de festivais de música contemporânea
e foi o primeiro a misturar fita magnéfica e instrumentos ou orquestra e fitas na França. Seu
domínio de pesquisa foi sobretudo os micro-intervalos e o estudo das relações entre som e imagem.
(Ballif : html)
183
7. Glenn Gould
A gravação
9
do opus 19 utilizada neste trabalho foi feita pour Glenn Gould entre 29-
30 de junho de 1964, e 28 -29 de setembro de 1965 no « 30th Street Studio, New York
City ». Ele não segue a risca as indicações de Schoenberg para separar claramente uma
peça da outra com uma pausa. Ao contrário, ele quase as emenda. Estão separadas por um
suspiro, ou uma breve respiração. Ainda podemos ouvir Gould cantando alguns trechos e o
ranger de sua famosa cadeira, acompanhando seus movimentos e sua música.
Este outro « mundo » em que nossa composição toca, não poderia deixar de ser
comentado. É o pianista Glenn Gould, ele mesmo. Glenn Gould é um pianista muito
particular. Nascido em uma família de músicos, tornou o piano a interface para se
comunicar com o mundo, deixando uma marca registrada no cenário musical de nosso
século. Suscitou muitas polêmicas, mas sua musicalidade, ao nosso ver, dá provas de uma
autonomia e uma força inventiva inigualáveis. Entre as várias polêmicas que levantou, sua
interpretação dos músicos da Segunda Escola de Viena é uma delas, apontada como uma
leitura não fiel. Como veremos a seguir, sua admiração por Schoenberg foi não apenas
registrada em som - suas gravações - como largamente registrada em seus escritos.
Glenn Gould nasceu em Toronto – Canadá, em 25 de setembro de 1932. Estudou
piano inicialmente com sua mãe, depois com o maestro chileno Alberto Guerrero. Com 7
anos inicia a Royal College of Music. Em 1946 apresenta-se pela primeira vez em público
como pianista. Aos 20 anos alcança uma projeção nacional, realizando concertos por todo o
Canadá.
Estréia nos Estados Unidos em 1955, causando sensação. O diretor da Columbia
Masterwors (que torna-se mais tarde Sony Classical) lhe propõe um contrato de
exclusividade. Inicia-se então uma carreira internacional com concertos nos Estados
Unidos, Europa e Russia.
Esses primeiros concertos lhe dão a reputação de um dos maiores pianistas e o mais
inovador de sua geração. A crítica da época fala de sua « musicalidade associada a uma
9
The Glenn Gould Edition. Sony Classical, DDD. Austria :1994
184
técnica invertida ». (Lange : 2006) Muitos se seurpreendem de suas interpretações pouco
ortodoxas de Bach. Sua interpretação das Variações Goldberg, propagam-se pelo mundo
todo constituindo um impulso importante em sua carreira. (Lange : 2006)
Em 1964 no apogeu de seu sucesso, Glenn Gould coloca fim em seus concertos para
se consagrar basicamente a gravações em estúdio. Ele desaparece totalmente do cenário
público. Nenhum músico célebre ousou tal atitude antes. Entretanto, essa opção não lhe
prejudica a popularidade e seus discos continuam a serem muito vendidos.
A partir dessas gravações em estúdio, Glenn Gould torna-se uma verdadeira lenda.
Vários elementos, fatos e escolhas que Gould faz vão tonando-se pouco a pouco motivo de
uma acusação de excentricidade e extravagância. Por exemplo, Gould colocava suas mãos
até o cotovelo de molho na água quente, vinte minutos antes de tocar, para isso pedia uma
pilha de toalhas para secar suas mãos. Pedia também duas grandes garrafas de água mineral
para si. Ingeria cinco espécies de pílulas diferentes, com as indicações as mais variadas.
Usava um par de luvas longas até o ombro para nadar no verão. Sofria de insônia. Utilizava
também uma cadeira especialmente feita para ele, cujo ranger característico torna sua
marca musical. Era exigente quanto a temperatura da sala onde deveria estar e que deveria
estar sempre constante. Costumava abrigar-se bem – cachecol e boina, mesmo com o clima
ameno da primavera. Mas ele rebatia as críticas dando a cada uma de suas escolhas uma
justificativa e concluindo : « Escutar as pessoas dizerem que sou excênctrico, isso me faz
rir ». Gould : 1986, p.15-35)
Glenn Gould vem a falecer em 4 de outubro de 1982 logo após fazer 50 anos.
Deixou-nos um legado de mais de 50 horas de gravação entre música, emissão de rádio, tv,
além de algumas composições.
10
Também através dele ficamos com algumas das críticas
musicais mais intrépidas do fim do século XX, como também escritos sobre música,
músicos, mídias e gravações sonoras. (Lange : 2006)
Seu primeiro encontro com a música de Schoenberg – segundo as lembranças de seu
colega de estudos John Beckwith – parece não ter sido tão boas: « Em 1947 ou 1948 seu
professor Alberto Guerrero lhe mostra durante um curso as peças para piano op.11 e 19.
Sua primeira reação foi de repulsa a Schoenberg e a atonalidade » (Stegeman : 1994, p.16)
10
Slaugterhouse-Five (1972) et The Wars (1982) – música para filme ; Quarteto de Cordas Opus 1.
185
Mas logo em seguida houve uma conversão de Gould com relação a Segunda
Escola de Viena. Em um questionário (Gould : 1986, pp.220-224) que a rádio canadense
CBC lhe submeteu em janeiro de 1952, ele fazia de Schoenberg (e de Webern) os maiores
compositores do século XX, em razão de :
« uma concepção de possibilidades musicais que lhes permitiram
de uma parte de ser os continuadores lógicos da grande linhagem da
música clássica e romântica alemã (…), e conjuntamente de
restaurar, colocando-as em prática na música do século XX muitos
dos ideais da arte da Renascença e do Barroco que, desde muito
tempo, tinham sido relegadas à sombra. Deste ponto de vista, não é
um dos menores méritos de Schoenberg de ter uma compreensão
muito clara do problema da polifonia clássica : em sua música, nós
encontramos pela primeira vez ressuscitada a ciência do
contrapontopuro que, não há dúvidas, jamais existiu num grau tão
intenso em outra música desde a de Bach » (Gould in Stegemann,
p.16)
Arnold Schoenberg era para Gould o compositor do fim de uma época, um viajante
entre dois séculos e dois mundos, entre as últimas manifestações da tonalidade tradicional
dominada pelos modos maior e menor e as primeiras tentativas por substituí-la por um novo
sistema que não seria mais tonal. Em seus inúmeros textos, Gould fala constantemente do
« atonalismo » de Schoenberg, segundo Stegemann, sem saber que este havia rejeitado esta
noção durante toda sua vida
11
.
Na conferência Arnold Schoenberg – A perspective realizada no « Corbett Music
Lectures » na Universidade de Cincinnati, Gould tenta colocar em evidência as fronteiras
móveis ente a tonalidade e o que Schoenberg havia chamado de « emancipação da
dissonância ». Gould sabia que Schoenberg não havia feito a organização e determinação
total do material musical de maneira sistemática como os serialistas que o sucederam :
« Eu fiz um real esforço para distinguir o teórico do compositor e
de não confundir a lógica nem sempre perfeita das teorias de
Schoenberg e o julgamento de valor que tenho sobre suas obras. »
(Stegemann, p. 19)
11
Lembramos que Schoenberg argumentava que a expressão « amusch » não tinha sentido para as
artes.
186
Ele comenta ainda que a publicação de sua conferência sob forma de livro era apens
um esboço preparatório para uma obra mais importante que lhe encomendaram para o ano
seguinte (1966). Este projeto, infelizmente, não se realizou mas suas idéias se repercutiram
nas emissões de rádio em dez partes sobre Schoenberg, pela CBC em 1974.
O interessante é que Gould pronuncia-se contra Schoenberg-teórico e a favor de
Schoenberg-compositor. Segundo Stegemann, por exemplo, o fato, da quinta peça do opus
23 ser apontada como a primeira composição serial no senso estrito do termo, para ele é
apenas uma estatística, « pois a todos outros olhares, esconde-se um processo de
composição prodigiosamente inventivo » (Stegemann : 1994, p.19)
Segundo Michael Stegemann em suas interpretações, Gould procura destacar o perfil
de Schoenberg como um « revolucionário conservador », uma qualidade à qual ele dá
sempre a prioridade sobre o elemento puramente construtivo ; o que atraiu a reprovação de
numerosos puristas da música serial. (Stegemann : 1994, p. 16)
Gould em seus escritos e entrevistas, dá mostras de um conhecimento musical amplo
e profundo. No Ato IV de sua Videoconferência faz uma interessante abordagem de
diferentes compositores, seguindo uma linha cronológica que vai da música Renascentista
até aquela do início do século XX. Nesta longa entrevista, ao falar de Monteverdi lança o
seguinte paralelo :
« De uma certa maneira, Monteverdi se assemelha a um compositor
de nosso século, Arnold Schoenberg. Como Schoenberg, ele
escolhe rejeitar a tradição na qual ele era um dos metres supremos,
e isso de maneira audaciosa, tão arbitrária, poderíamos dizer, que
ele o faz de uma maneira impossível de voltar atrás. Ele torna-se o
prisioneiro de sua própria invenção. No caso de Schoenberg, a
invenção era a técnica dodecafônica, que ia ao encontro de todas as
noções de tonalidade e de cromatismo, e que ele proclama ser o
caminho do futuro. No caso de Monteverdi, era a tonalidade, e ela
foi efetivamente, o futuro. » (Gould : 1986, p. 191)
Mais adiante o entrevistador (Bruno Monsaingeon) lhe pergunta como ele via a
relação entre os três compositores Berg-Webern-Schoenberg, pois ele teria falado menos de
Webern ou de Berg e muito sobre Schoenberg, revelando assim sua predileção por este.
Gould dá uma resposta longa e refletida, fazendo um balanço da chamada Segunda Escola
187
de Viena. Destacamos aqui sua visão de Schoenberg:
« Eu vejo Schoenberg como uma espécie de furioso, um colosso
bíblico profetisando a todos os ventos, um personagem quase
beethoveniano em sua veemêmcia a propóstio de si próprio,de seu
papel e suas obras. » (Gould : 1986, p.211)
188
Considerações Finais
« (…)D’un point de vue littéral, "composer" c'est "mettre
ensemble". Mais que met-on réellement ensemble ? Des sons bien
sûr et il faut imaginer des lois ou des systèmes pour faire
fonctionner la construction ; mais on oublie généralement qu'une
part de soi se trouve dans cette polyphonie – et c'est peut-être le
plus important. Il y manifestement quelque chose de celui qui
compose, ou plus généralement qui crée, qui est passé de l'autre
côté. C'est la partie mystérieuse, au sens où je ne sais pas
l'expliquer – mais c'est absolument tangible, c'est à la fois banal et
merveilleux. On peut vivre cela comme un acte de folie au sens où,
pour atteindre ce but, il faut se couper résolument du monde et
donc s'éloigner des autres. Mais on peut dire d’autre part et
paradoxalement que c'est la condition pour aller vers les autres.
D'une certaine manière mon travail n'est intéressant que s'il est
personnel. L'auditeur à son tour va créer des liens pour rendre cette
hétérogénéité entre "lui" et "moi" homogène. On est donc à
l'opposé de la folie. » (Zanési : 2003)
O trabalho ora aqui apresentado procurou associar a pesquisa em música à sua
produção, como já expusemos na Introdução. A pesquisa transitou pelo que podemos
chamar de terrenos da 1) musicologia, 2) da história e 3) da análise técnica de exemplos
musicais. A prática musical utilizou-se de vários materiais e grande variedade de temas e
inspirações, chamados de forças diretivas e motoras. O objetivo de nosso trabalho era de
conseguir conciliar pesquisa e experimentos práticos com algum nível de coerência. Nos 5
experimentos e em nossa pesquisa, desenvolvemos uma tese? Há em seu conjunto uma
originalidade que pode defini-los como tese de doutorado? Acreditamos que não possuímos
uma tese como as desenvolvidas na Física ou nas Ciências Humanas. Uma tese em
composição tem suas particularidades. Todavia, há muito de comum entre os modelos de
outras áreas e a área de criação musical. Tínhamos hipóteses e teses, parciais e conclusivas.
Qual era a nossa hipótese inicial? A de que Schoenberg é a chave para a música que
189
produziríamos em nosso “laboratório”. Em seu desenvolvimento, encontramos outras sub-
teses que nos ajudaram a reforçar nossa convicção. O argumento de Malherbe de que
Schoenberg agiu por negação, negação ao tonalismo, foi transformado por nós como uma
negação em série, ou melhor, uma negação em cadeia, de um conjunto de características da
Prática Comum. Aqui podemos afirmar ao menos uma originalidade de nossso trabalho.
Existiriam outras?
Como nossa tese não foi desenvolvida em musicologia sistemática, o argumento da
”negação em série” por Schoenberg é apenas pano de fundo de nosso trabalho, um de seus
alicerces. A originalidade, se há, encontra-se na forma como as músicas-experimento foram
articuladas. Articulação que se produziu na prática, presente em nosso segundo tomo, como
na abstração das principais idéias que possibilitaram a realização musical, incluídas aí até o
elemento intuitivo. Este exercício de abstração, que integra o presente volume, extração de
modelos presentes nas músicas realizadas, para nós é a face da dupla comunicação que se
estabelece numa tese de composição. Paralelamente à comunicação musical, há a
comunicação do texto escrito. Nele, reproduzimos e desenvolvemos outros argumentos aqui
destacados. O papel do conceito de Necessidade Interior na visão de Kandinsky sobre a
relação entre artista e obra de arte e a presença de uma “religiosidade laica” unindo-os. A
religiosidade de Schoenberg é a chave para compreensão de seu conceito de Idéia e a sua
Idéia central, extra-musical. A amizade entre ambos cria um paralelo entre seus respectivos
trabalhos de inovação, onde o atonalismo teria seu representante na pintura, representado
pelo abstracionismo.
Ao final, a junção do conjunto de forças criativas em cada um dos experimentos, já
expressas em nossa Introdução e detalhadas no decorrer dos capítulos. Cada uma destas
realizações é uma pequena tese que, em seu conjunto, formam o resultado final de nosso
trabalho de composição num programa de Doutorado em Música, na sub-área de Processo
Criativo.
Cabe-nos ainda ressaltar que este trabalho lança muitas questões que podem vir a
ser desenvolvidas, do ponto de vista composicional ou teórico. Para citarmos apenas poucos
exemplos:
190
1. A relação entre desconstrução da música tonal culminando no dodecafonismo e a
desconstrução na pintura figurativista culminando no abstracionismo.
2. A idéia de força motora e diretriz transposta para outros elementos do século XX.
3. O estudo sobre a espiritualidade nas artes.
Este trabalho também apresenta uma dupla contribuição para o universo acadêmico
musical: 1)as composições musicais originais que, além de já terem sido executadas em
concerto público
1
, estão à disposição de intérpretes, através de suas partituras e gravações,
no caso das músicas mista e eletroacústica. Elas são exemplos de peças contemporâneas,
vindo desta forma a aumentar o repertório de pianistas, percussionistas e músicos
eletroacústicos. 2)a pesquisa encerra uma proposta metodológica clara, apresentando
resultados concretos no terreno da teórico da música no século XX. Destacamos aqui
basicamente o estudo sobre atonalismo, aforisma, improvisação-acaso, citação-colagem e
pós-modernismo.
Como Zanési afirma na epígrafe acima, “compor é colocar lado a lado”, ou ainda,
colocar junto elementos que pedem por sua vez, a criação de leis ou sistemas para que essa
construção funcione. Encontramos em nosso trabalho esta idéia, expressa de maneira
sintética e muito clara por Zanési. A pesquisa vista como uma forma de composição
também pode ser constituída por “idéias reunidas”. Ao longo de nosso trabalho, colocamos
lado a lado vários elementos que podem à primeira vista causar estranheza ou a sensação
que estão em excesso, mas ao chegarmos nas Considerações Finais, no balanço sobre todo
o processo e resultado desta pesquisa, acreditamos que a construção mantém-se em pé, que
as leis criadas para que este sistema funcionasse deram certo.
Por outro lado, as composições apresentadas podem ser encaradas separadamente,
ou mais objetivamente, não é preciso que os músicos ou o público saiba da pesquisa que as
fundamentam para usufruírem e realizarem a música. O mesmo podemos dizer da pesquisa
apresentada em texto escrito, para os leitores e pesquisadores interessados no assunto pode
se configurar não apenas como fonte de informação, mas como um deleite que dispensa a
escuta da música.
1
Vide Anexo: Relação de Concertos.
191
Bibliografia
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Schoenberg » in Analyse Musicale n° 3. Paris : SFAF, avril/1986, pp. 46-53.
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204
Html/Referências da Internet
Battistini, M. « Kandinsky e la musica » in
http :lgxserver.uniba.it/lei/filmusica/fmprospkandinsky.html (2003)
Bonacina, L. e Castelnovo, I. (Tesi di Laurea) « Kandinsky e i codici di controllo dello spazio
architettonico » in
www.artegens.com/tesi:website/tpage.htm
Boucourechliev :
www.entretemps.asso.fr/Boucourechliev, http :fr.wikikpedia.org/wiki/André-
Boucourechliev
Caesar, Rodolfo. The composition of electroacoustic Music. UEA, 1992 (http :www.sussurro.br)
www.artegens.com/tesi/website/tpage.htm
www.ibiblio.org/wm/paint/auth/kandinsky
www.glyphs.com/art/kandinsky
www.artchive.com/artchive/k/kandinsky.html
www.schoenberg.org
Ensemble Symblema :
http://symblema.free.fr
Expressionismo :
http://pt.wikipedia.org/wiki/Expressionismo
Henry, Pierre.
www.pastis.org-jade-juillet-pierrehenry.html
www.filomusica.com
www.clm.es/artesonoro
www.hindemith.org
Ives :
http://mac-texier.ircam.fr/textes/
www.charlesives.org (site oficial)
Kandinsky : www.artv.it/LN_kandinsky/L3/ A1/vr_l3_kandinsky/kand/mostra/qz_05.htm - 18k
Leoni, A. « Musica e pittura in Schoenberg e Kandinsky » in
http://filosofia.dipafilo.unimi.it/~chora/testi2/liberi4SchoenbergKandinsky.htm
Ligeti : http://membres.lycos.fr/yrol/MUSIQUE/LIGETI/ligeti.htm
205
Muniz, Alethea. In Correio Web :
http://www2.correioweb.com.br/cw/2000-10-
05/mat_11560.htm, Brasília, quinta-feira, 05 de outubro de 2000.
www.wiegandmusik.de/fr/
Petrini, Carla.
www.gama7.com.br/dicas (2005)
Rodrigues, Juliana
www.coladaweb.com/artes/xilogravura.htm (2005)
Schaeffer, Pierre.
http://fr.wikipedia.org/wiki/Musique_concrète
Slonimsky : Schoenberg to Nicholas Slonimsky, 3, juin/1937 :
www.schoenberg.at
Soddu, C.
www.generativeart.com
Rodriguez, Sonia Regina :
http://www.brasilcultura.com.br/conteudo.php?id=206&menu=86&sub=215
Sintetizadores :
1.http://fr.wikipedia.org/wiki/Synthétiseur
2. http://www.synthetiseur.info/synthetiseur_def.php
3.
http://www.synthe.info/historique_synthes.php
4.
http://membres.lycos.fr/hhh/SYNTHES/ (Hervé Haro)
Stein : Erwin Stein. New Formal Principles, 1924 :
www.schoenberg.at
Steuermann, Edward
www.usc.edu/isd/archives/schoenberg/as-disco/works/004c.htm
http :www.provita.org.br/cultura/aurea2.html
Zanési, Christian.
1)http://mac-texier.ircam.fr/textes/c00002208/
2)http://www.radiofrance.fr/chaines/france-musiques/biographies/fiche.php?numero=5000120
3)
http://www.vibrofiles.com/artists/artists_christian_zanesi.php#interview
4)www.philosophie-en-ligne.com
206
ANEXO
207
Concertos
Concertos realizados com as músicas compostas durante o doutorado :
1) Música para Schoenberg
Aula Magna do Politecnico
Piazza Leonardo Da Vinci
Milano/IT, dezembro de 2003.
2) Enchaînement
Aula Rogers do Politecnico
Piazza Leonardo Da Vinci
Milano/IT, dezembro de 2004
3) Quadros de uma improvisação : Ponto, Linha, Superfície
Eglise Saint-Cannat Les Prêcheurs
Ensemble Symblema
Marseille/FR, 30/04/2004
Teatro Procópio Ferreira
Grupo de Percussão da Unesp (PIAP)
Tatuí/SP, 17/09/2004
Eglise Saint-François de Paule
Ensemble Symblema
Nice, 10/11/2004
Auditório do Sesc Vila Mariana
Grupo de Percussão da Unesp (PIAP)
São Paulo, 01/10/2004
Aula Rogers do Politecnico
Milano/IT, dezembro de 2004
Espaço Cachuera
Rua Monte Alegre, 1094
Grupo de Percussão da Unesp (PIAP)
São Paulo, 12/03/2005
5) Poesia sem Palavras
Auditório do Conservatoire de Région de Nice
24, Boulevard Cimiez
Nice/FR, 24/06/2005
208
6) Pequenos Mundos
Auditório do Conservatoire de Région de Nice
24, Boulevard Cimiez
Nice/FR, 24/06/2005
209
Correspondência trocada com o Grupo PIAP
1
a respeito de « São Jorge »
14/06/2005
John Boudler escreve colocando as questões de dois membros do PIAP:
14/06/2005
Daniele responde :
Oi John,
Quem me dera sempre tivesse que responder perguntas assim, sinto-me muito motivada a
respondê-las.
Aqui respondo as de Rafael:
1) Rafael
Instrumental
a. No contexto geral da obra, há alguma espécie de tambor que deve ser priorizada nas
escolhas? (ex: tambores com pele animal?)
De fato pensei em tambores com pele de animal, mas depende da disponibilidade de
vocês. Não é uma exigência absoluta.
b. Que tipo de baqueta deve ser priorizada? As que produzem mais harmônicos ou as que
realçam a nota fundamental dos instrumentos?
Depende do trecho. Em "primitivo" e "tribal" gostaria de salientar mais a nota
fundamental. Nos outros trechos podem escolher e mesmo misturar tipos diferentes de
baquetas.
1
Estas correspondências foram efetuadas por e-mail.
210
c. Além dos instrumentos designados para cada executante, há a possibilidade de inclusão
de alguns intrumentos adicionais no set? Caso a resposta seja afirmativa, esses instrumentos
podem ser comuns aos que foram designados à outros executantes ou devem ser
instrumentos com outras peculiaridades?
Podem ser adicionados outros instrumentos. Podem ser também instrumentos
comuns aos que foram designados aos outros. Não me ocorre agora instrumentos com
outras peculiaridades, mas podem testar, quem sabe...
d. Há sempre discussões a respeito de quais são as características de cada tipo de gongo. O
que você considerou como um gongo chinês? Descrever.
Quando escrevi Gongo Chinês pensei naquele instrumento de metal que fica
suspenso e que é tocado no centro, parece-me que é levemente sobressalente no centro. De
toda forma é um som grave, o mais grave possível e bastante ressonante.
e. Em relação aos pratos, há algum tipo que deve ser utilizado predominantemente sobre
outros? O prato "china" deve ser evitado devido ao uso do gongo chinês?
Não conheço o prato "china", mas não precisa ser evitado. Não gostaria de ouvir
aqueles pratos que nos dá a impressão de um som rachado e abafado, desculpe-me a forma
de falar um tanto subjetiva, mas não sei o nome dele. Penso nos pratos com muita
ressonância, o que poderia também ser associado ao triângulo, e afins.
f. É necessário o uso de um cronômetro?
Não, de jeito nenhum o cronômetro. O tempo é uma noção extremamente
importante nesta peça para ser aprisionado pelo cronômetro. É o tempo mítico, o tempo
psicológico e dramático que deve ser privilegiado.
Obra
a. Além de uma luta entre o bem (São Jorge - timpanista) e o mal (6 executantes) qual foi a
história formada quando o quadro foi observado e que serviu posteriormente como base
para composição desta peça? Talvez as características de cada movimento (ex: tribal,
nervoso e perturbante,...) não permitam uma precisa interpretação!
E o que é uma interpretaçao precisa? Uma interpretação por definição é uma visão
de mundo e a natureza de uma visão de mundo está ligada ao repertório, à cultura e à "n"
fatores do sujeito que a "reliza".
A história formada quando o quadro foi observado, não foi uma única, mas
resumidamente, privilegiei a narrativa de que um herói - S. Jorge - enfrenta um dragão e o
211
mata. O quadro reproduz apenas S.Jorge atacando o dragão, mas para traduzir isso em
música precisei abrir o quadro no "tempo". Então aí o dragão é apresentado, existe uma
ambientação, apresenta-se S. Jorge, e a disputa e por fim a morte do dragão.
As cores são importantíssimas pois são provenientes de uma tradição de
camponeses da Baviera, o que torna o quadro "naif". Isso tudo está contido na escolha das
baquetas e dos instrumentos. Aqui está nas mãos do "intérprete"!
b. Existe alguma performance corporal ou facial que possa ser feita pelos executantes ou
pelo timpanista para clarear as informações a serem codificadas para o público?
Não pensei nisso. Acredito que a concentração da execução trará naturalmente a
performance adequada.
c. A minutagem de cada movimento deve ser aproximada. Porém em alguns movimentos, o
tempo de duração acarreta notas de duração muito longa que tradicionalmente são escritas
com figuras de maior valor. Por exemplo: no movimento "primitivo", cada semínima tem o
tempo aproximado de quatro segundos para que ao final sejam atingidos os três minutos. O
mesmo acontece no movimento "A morte do dragão". Está correta essa interpretação da
partitura ou há alguma outra idéia implícita?
Aqui, de fato, talvez tivesse que reescrever em notas de valores mais longos, ou
colocar uma fermata nas semínimas, ou escrever em cima da linha do número 7:
"Maestoso", pois queria mesmo dar uma característica mais solene e pomposa para o
percussionista número 7, que é S.Jorge!
Vale dizer o mesmo para "a morte do dragão" - é tudo mais lento, ressonante, mais
longo, como se houvesse fermatas.
d. Para os movimentos "nervoso e perturbante" e "primitivo" são escritos vários módulos.
Todos devem ser executados?
Podem ate não ser executados, mas não deve ter um silêncio absoluto.
e. No movimento Tribal, qual é a frequência de intervenções que devem ser feitas na base?
Escassas ou muito frequentes? Qual seria o andamento da base?(metrônomo)
Imagine uma cena de disputa em um filme. Para criar a ambiência, o duelo é
apresentado através de golpes gradativos. Se apresentar todos os golpes no primeiro
segundo já não prende mais a atenção do expectador e acabou. Aqui, para se criar
interesse, neste movimento, sugiro intervenções escassas e depois gradativamente, muito
frequentes. Vou mesmo anotar isso na partitura.
212
f. No movimento "Allegro", o que deve ser mais demorado, as treze notas ou as fermatas
com pausas entre cada grupo? Por que foi escolhido o número treze?
Aqui cuidado: 12 colcheias e 1 semicolcheia não tem o mesmo valor aproximativo
aue uma pausa de semínima com fermata.
As pausas são importantíssimas para a ressonância, o tal tempo da narrativa!
Não pensei que alguém ia notar o número 13, mas tem sim uma forte significação.
Ele representa a morte no Tarot!
g. A última nota da peça deve ser tocada pelos dois executantes ou somente por um? Existe
a possibilidade de posicionar esse(s) gongo(s) na frente do palco, ao invés de permanecer
no set em seu lugar original?
Sobre posicioná-los na frente não parece nada mal, experimentem, vejam como fica
no todo.
É possível tocar a última nota pelos dois? Imaginei só 1, mas também teriam que
testar.
Rafael: obrigada por suas perguntas me ajudou também na revisão.
Se alguma coisa não ficou claro, não hesite em me contactar.
Abração
Daniele
14/06/2005
Oi John,
Agora as respostas para o Piero:
2) Piero
1.Até que ponto os tempos tem que ser respeitados?
O tempo na peça é importante do ponto de vista narrativo, psicológico, como já
disse ao Rafael. Vocês vão contar um drama, tem que ter o mínimo de desenvolvimento
temporal, por isso a anotação aproximada da minutagem. É mais importante manter a
coerência interna das idéias. Por exemplo, se está marcado 3 minutos mas o grupo percebe
que precisa de mais "minutos" ou menos, ok, sem problemas, isso é mesmo previsível.
213
2.Baquetas para Timpanos?
De fato, aqui gostaria de estar aí, ao vivo e a cores para escolher junto as
baquetas. Adoro tímpanos! Mas vai ficar ao bom gosto de vocês a escolha delas em função
aos diversos momentos da peça. Só peço uma coisa, deixem os tímpanos no lugar que
merecem: em destaque!
3.Os solos free de tímpanos podem ser usados cabos da baqueta, aros, cúpula, etc...
Sim, sim, sim e DEVEM usar tudo que puderem, até mesmo melhorar o que está
escrito!
4. Onde não há ritornelos realmente não se repete?
Pode ser repetido onde não há ritornelos. Mas procure o equilíbrio e a
musicalidade.
5. (Na parte "tribal" , tímpanos "Vivo" ) neste parte quem inicia este evento? O tímpano ou
a percussão?
A percussão. Talvez esteja mal indicado, vou acrescentar isso à partitura.
6 A dinâmica se equilibra entre os excutantes ou varia entre o tímpanos e percussão?
Depende do trecho. O eauilíbrio sempre deve ser almejado, mas existe nuances
muitas vezes diferentes nas partes (cresc., decresc., forte, piano, etc). Uma vez que a idéia
da narrativa está clara interpretem como julgarem melhor.
Obrigada Piero por suas perguntas, se por acaso algo não ficou claro, é so me
dizer.
Até mais,
Abração
Daniele
15/06/2005
214
Bom dia John,
Pensei melhor e queria falar sobre o cronômetro. É uma opção que pode ser muito
útil. Não sei como estão fazendo com a coordenação do grupo para a execução, mas acho
que não tem tanto problema usarem o cronômetro, e não tenho o direito de dizer que o
cronômetro fica fóra. Talvez para mim que já tenho uma visão do todo, não precisa - se eu
estivesse aí e fosse reger a peça, por exemplo.
Também faltou o andamento da "base" no movimento Tribal. Testei com o
metrônomo e cheguei a colcheia mais ou menos igual a 192.
Se lembrar de mais alguma coisa, escrevo depois.
Bom dia a todos!
Daniele
215
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