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Vanessa Freitas de Paiva Macedo
FRIDA KAHLO
Entre Chagas e Borboletas
Dissertação apresentada ao Instituto de Artes da
Universidade Estadual de Campinas para
obtenção do Título de Mestre em Artes.
Orientadora: Julia Ziviani Vitiello
Campinas
2008
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FICHA CATALOGRÁFICA ELABORADA PELA
BIBLIOTECA DO INSTITUTO DE ARTES DA UNICAMP
Título em inglês: “FRIDA KAHLO - Among wounds and butterflies”.
Palavras-chave em inglês (Keywords): 1. Dance 2. Cicles of the creative
process; 3. Frida Khalo; 4. Autobiographic art .
Titulação: Mestre em Artes.
Banca examinadora:
Profa. Dra. Julia Ziviani Vitiello.
Prof. Dr. Milton José de Almeida.
Profa. Dra. Verônica Fabrini Machado de Almeida.
Prof. Dr. Adilson Nascimento Jesus (suplente).
Profa. Dra. Antonieta Marília de Oswald de Andrade(suplente).
Data da Defesa: 28/05/2008
Programa de Pós-Graduação: Artes.
Macedo, Vanessa Freitas de Paiva.
M151f FRIDA KAHLO - entre chagas e borboletas / Vanessa
Freitas de Paiva Macedo. – Campinas, SP: [s.n.], 2008.
Orientador: Profa. Dra. Julia Ziviani Vitiello.
Dissertação (mestrado) – Universidade Estadual de
Campinas,
Instituto de Artes.
1. Dança 2. Ciclos do processo criativo 3. Frida Kahlo
4. Arte - Autobiografia. I. Vitiello, Julia Ziviani. II.
Universidade Estadual de Campinas. Instituto de Artes. III.
Título.
(em/ia)
II
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III
IV
Aos meus pais,
José Wilson e Maria Helena, pela insistência.
V
Agradecimentos
A Angela Nolf, com quem dividi inicialmente o meu desejo de ingressar no
mestrado.
A Julia Ziviani, pelo voto de confiança e pelo olhar poético.
À Stacatto Cia de Dança, com quem desenvolvi esta pesquisa e, especialmente, a
Fernando Machado, diretor desta cia.
À Cia Borelli de Dança e à Cia Fragmento de Dança, pelo aprendizado diário.
Aos amigos Giovanna Araújo, Adriana Guidotte, Lavinia Bizotto e Sérgio Galdino,
e ao primo Valmir Júnior, por acompanharem os meus passos.
A Ana Carolina Wenceslau, com quem dividi algumas angústias desta pesquisa.
A Sandro Borelli, por me fazer perceber um outro caminho para todas as coisas.
ACAPES, pelo apoio financeiro.
Aos meus pais e irmãs, mais uma vez e sempre.
VI
Ecos...
Depois do nascimento a morte ou a morte para o nascimento? A espera de
meses, gerindo e alimentando, é dolorosa, ansiosa, desejada. Mas após ver o
clarear das luzes, as sombras, a imagem de fora para dentro (quando apenas a
conhecia por dentro) vem o desnudamento, a angústia. Ficou o vácuo, a falta.
Falta sem explicação de não se sabe o quê. Restos de lembranças. O mesmo
vazio de antes, antes da gestação, antes do desejo, antes do desconhecido
apresentar-se frente a frente.
Então, estou diante de um recomeço ou de um final saudoso? Repousa em
mim a incompreensão absoluta. Sentimentos deslocados e dissociados estão
presentes. Eu os percebo e eles parecem me perceber. Rapidamente sou
absorvida.
Dúvidas muitas. Saudades também. Das lembranças que me
acompanharam e nutriram e que agora perco para os olhos de quem queira vê-
las. Não são mais restritas a mim. Quis torná-las visíveis e agora temo pela
solidão que me toma. Esse é o paradoxo, necessário, latente, misterioso. Do
nascimento à morte, da morte ao nascimento. Um espaço indescritível.
(... o dia seguinte àquele em que fui espectadora de Entre Chagas e Borboletas).
VII
Resumo
Esta pesquisa propõe perceber a simbiose entre o artista e sua obra,
reconhecendo a proximidade que vida e criação artística podem assumir,
convergindo para uma arte autobiográfica. Investiga-se a relação entre dor e arte/
morte e criação como ciclo possível e necessário ao processo criativo. Frida Kahlo
é escolhida como artista expoente para suscitar essas questões. A pesquisa
mergulha em seu universo para, a partir dele, ver surgir o seu próprio, numa
criação em dança. Nasce Entre Chagas e Borboletas. Os intermédios por que ela
passa para estruturar-se – o processo criativo – são o material que interage com
todos os temas investigados, para registrar o caminho anterior à obra.
Palavras-chaves: dança, dor/morte/criação ciclos do processo criativo,
Frida Kahlo, arte autobiográfica.
VIII
Abstract
This research propose to sense the symbiosis between the artist and his
work, recognising the proximity that life and artistic creation can built, converging to
an autobiografic art. Investigating the relation between pain and art, death and
creation as a possible and necessary cicle to creative process. Frida Kahlo is
chosen as an expoent artist to bring up these questions. The research dives deeply
into her universe to, starting from that, built its own universe in a dance creation.
Among Wounds and Butterflies born. The inner - ways it passes though to built
itself – the creative process - is the material that interacts with all the themes
investigated, to register the path before the creation.
Key words: dance, pain/ death/ creation – cicles of the creative process,
Frida Kahlo, autobiographic art.
IX
X
SUMÁRIO
PERCURSOS E PERCALÇOS NA ARTE
Dor, morte e criação 01
Da dor à arte como testemunho 05
O artista autobiográfico 06
Arte, vida, transfiguração 11
FRIDA KAHLO
Um retrato sem espelho 15
Relato biográfico 18
O México de Frida 31
Um olhar diferenciado para a morte 34
Realismo, Surrealismo ou realismo fantástico 37
PROCESSO CRIATIVO
O inominável “algo” continuamente inacabado 39
Lugares visitados 42
Da Gestação ao Nascimento 47
Travessia pela vida e obra de Frida
49
Investigação e construção das cenas
53
CONSTRUÇÃO DRAMATÚRGICA
O pensamento na dança 59
A busca de uma energia em fluxo 61
Muitas Fridas que habitam Frida 65
ENTRE CHAGAS E BORBOLETAS
Trilha – o tempo de quem dança 77
Espaço e luz – uma imagem apartada 79
Figurino cores “sem cores” 82
OUTROS ECOS... 87
REFERÊNCIA DAS OBRAS E DAS IMAGENS FOTOGRÁFICAS 88
BIBLIOGRAFIA 90
PERCURSOS E PERCALÇOS NA ARTE
Dor, morte e criação
Talvez, por nos impor uma condição de fragilidade, o sofrimento nos deixa
mais próximos do que somos. De alguma forma, distancia-nos da razão e nos
envolve numa sensação perene de fim, como se nos aproximasse da morte.
Percebendo uma relação não apenas circunstancial entre sofrimento e
criação, comecei a investigar essa proximidade. Visitei lugares em que criadores
se expressaram a partir e por meio da dor
1
e, inevitavelmente, visitei lugares
próprios, lugares incompreendidos, de vazios íntimos.
Não existe, nesta pesquisa, nenhuma pretensão em estabelecer uma regra
geral ou uma relação de causa e efeito entre o artista e sua obra. Trata-se de
buscar uma melhor compreensão das questões que considero intrínsecas à
criação.
Como as possibilidades de expressão e fazer artísticos são singulares em
sua essência, nenhum caminho se mostrará único e nenhum processo de criação
igual ao outro. Mas o que se pode perceber é que há sensações que transitam em
todas as esferas, mesmo que recebam nomes diferentes e surjam em momentos
também diferentes. Nesse sentido é que entendo a relação da criação com o
sofrimento. Isso porque, mesmo que não busque esse caminho, a criação
angustia, exige, invade, é dolorida em si mesma. Com este pensamento, afirma
João Frayze
2
:
1
Muitos distinguem dor e sofrimento. Este estaria ligado ao psíquico enquanto aquela, ao físico.
Aqui não abordo esses termos com essas diferenças específicas. Tanto dor quanto sofrimento são
utilizados, nesta pesquisa, como padecimento humano em todos os sentidos, moral, espiritual ou
físico. O termo “sofrimento”, no entanto, parece-me mais amplo, mais subjetivo. Podemos não
saber de onde vem, apenas sabemos que está ali, manifestado na angústia, por exemplo. Já a dor
parece poder ser localizada, nomeada, mesmo que de forma metafórica. Uma “dor no coração”
pode ser a dor da própria alma.
2
Psicanalista e professor da USP, seu estudo abrange estética e psicanálise. Entre outras coisas,
aborda a relação arte-dor.
1
Destacar-se dos pontos fixos, ainda que sob as imensas asas da
imaginação, é um ato doloroso: o ato poético. É a dor da solidão de
quem chega ao novo sem saber bem por quê. É a dor intrínseca à arte.
(2006, p.268)
Mas o que dizer da arte que, não satisfeita em conter, intrinsecamente, a dor,
busca encontrar nela um caminho para a criação? Como um artista, num ato
consciente ou não, poderia produzir a partir de e alimentado pela própria dor?
Esses questionamentos aproximaram-me, rapidamente, de Frida Kahlo.
Vítima da dor, significou-a em tudo. Transformou-a em cores. Deu-lhe nome e
lugar. Dor do corpo, dor de Diego. Dor que parecia impedir que se revelasse, mas
era, em si mesma, o próprio motivo da sua revelação como mulher e como artista.
A dor na arte guarda esse paradoxo, tira de nós para devolver, mata para
permitir que nasça. Fragiliza para, em seguida, fortalecer, numa permanente
desconstrução, urgente e necessária à construção. Parece-me que ela se
manifesta na concepção criativa por meio da vivência de múltiplas mortes internas,
sejam elas súbitas ou gradativas. Essas mortes e os conseqüentes nascimentos
que delas derivam são vivenciados pelo artista no seu processo criativo, em
sensações que se intercalam entre a angústia e a euforia: “Há uma vinculação
originária e essencial entre vida-morte tão enigmática quanto àquela que discute
arte-dor” (Frayze-Pereira. 2006, p. 272).
Se a existência, por si só, implica em um pensamento para o não existir,
logo, é natural que, na solidão da criação, essas questões venham à tona e
terminem se tornando tema recorrente em muitas obras artísticas – a morte em
seus vários sentidos. A que se manifesta em aflições diárias, burburinhos internos,
a que remanesce de perdas dolorosas e, a maior de todas, aquela que nos tira a
matéria, interrompendo ou finalizando a vida. Qualquer dessas possibilidades é
capaz de trazer o vazio que abre espaços ao ato criativo. Portanto, por
necessidade, opção ou condição própria da criação, o artista sente a presença de
uma finitude.
2
O desejo de investigar as possíveis relações entre dor e arte, morte e
criação foi o que precedeu o meu encontro com Frida. No entanto, somente após
a leitura do livro Corpos Frágeis, Mulheres Poderosas
3
consegui aproximar-me
com maior clareza do que me moveu inicialmente.
Passei a perguntar-me a razão pela qual as histórias de vida daquelas
mulheres, descritas na obra indicada, tocavam-me tanto. Todas elas marcadas
pela dor que restava em seus corpos feridos, acometidos por fatalidades ou
resultados de um destino trágico. São nove mulheres descritas: Frida Kahlo; a
violoncelista Jacqueline du Pré; as escritoras Virginia Woolf e Katherine Mansfield;
as cantoras, de ópera, Maria Callas e, de jazz, Billie Holiday; a atriz Judy Garland;
a química Madame Curie; e a filósofa Simone Weil.
Para algumas dessas mulheres, o sofrimento precedia a criação e as
alimentava. Frida Kahlo se reinventou em auto-retratos, quando esteve presa à
cama. Virginia Woolf, por sua vez, por meio da escrita, expressou sua angústia e
seu desespero, decorrentes de fortes crises depressivas e de uma acentuada
tendência ao suicídio.
Já para outras o sofrimento veio como resultado da intensa atuação
profissional. Judy Garland foi uma atriz de sucesso precoce e tornou-se, também
precocemente, dependente de uma série de remédios (drogas para não dormir,
para não engordar, álcool e antidepressivos). Já Madame Curie, notável cientista
que recebeu por duas vezes o Prêmio Nobel, foi responsável por importantes
descobertas no campo da radioatividade e morreu vítima de câncer. Muito
provavelmente adoeceu em razão da exposição a que se submeteu em seu
trabalho.
O que aproxima essas mulheres umas das outras? Todas conviveram com
a dor e o talento próprios, numa relação quase simbiótica. Relação que se
configurou num paradoxo, assumindo, ao mesmo tempo, o papel de protagonista
e antagonista em suas vidas. Nem todos os exemplos referem-se à criação em
arte, mas todas foram, de fato, criadoras de algo diferenciado, pois tiveram de
3
Indicação da profa. Verônica Fabrini no exame de qualificação.
3
ultrapassar limites incomuns para adquirirem o valor que hoje a história lhes
confere. Suas virtudes levaram à dor ou suas dores foram o motivo da
manifestação de tais virtudes. Por meio delas observa-se como o sofrimento
serviu de elo ou interferência na forma como criaram e/ou recriaram dentro de
suas particularidades profissionais.
Tendo a dor, o que ela pode provocar como resposta criativa em algumas
pessoas, como um dos focos desta pesquisa, chega a parecer inevitável
mencionar uma vertente da arte contemporânea que é rapidamente associada à
dor
a Body Art, em que o artista assume seu corpo como matéria de exploração.
Violência, sofrimento, mutilação, autoflagelo em vários graus, tudo pode ser usado
como expressão artística impressa no próprio corpo.
Na idéia aqui presente, no entanto, enfatizada pelo universo de Frida Kahlo,
falo da dor que se transmuta em arte, que é motivo de transformação, de
libertação ou expressão de inquietudes por parte do artista. Não se trata de,
propositadamente, por meio da dor, desafiar o próprio corpo, superando seus
limites naturais, como em muitos casos da Body Art. Até porque, no caso de Frida,
foram fatos trágicos de sua vida que lhe trouxeram dores e obstáculos intensos a
suportar; não foi ela quem escolheu a dor. Foi escolhida por ela. Esses exemplos,
portanto, tratam de expressões artísticas diferentes, mesmo que não sejam em
tudo dissociadas, já que ambas têm como premissa a relação intrínseca da dor
com a arte.
Aqui me concentro na dor que não precisa estar exposta, aquela que faz
parte dos bastidores do processo criativo e que, muitas vezes, só se revela
quando se passa a conhecer a biografia do artista criador. Uma dor, tal qual Frida
nos mostra, não opcional. E se por meio dela a arte pôde se revelar, foi em razão
de um processo no qual a condição de vida da artista e sua obra não tiveram a
chance de dissociar-se.
4
Da dor à arte como testemunho
Comecei a perceber que há uma conexão, não linear, entre dor, sofrimento,
criação, morte e arte confessional ou autobiográfica.
Considerando que a criação sugere um encontro profundo do homem
consigo mesmo, vê-se que a própria obra pode revelar o artista. A arte é capaz de
se mostrar como um espelho do seu criador, mesmo que seja num reflexo
distorcido. A essa relação vida-obra Frayze-Pereira cita Merleau-Ponty ao
considerar a pintura de Cézanne:
É certo que a vida não explica a obra, porém certo é também que se
comunicam. A verdade é que esta obra por fazer – exigia esta vida.
Desde o início, a vida de Cézanne só encontrava equilíbrio apoiando-se
na obra ainda futura, era seu projeto e a obra nela se anunciava por
signos premonitórios que erraríamos se os considerássemos causas,
mas que fazem da obra e da vida uma única aventura. (2006, p.253)
É importante ressaltar que, mesmo a criação estando, de alguma forma,
relacionada com o vivido pelo artista, a partir do momento em que deixa de ser
vida e passa a ser arte, insere-se num universo ficcional. A questão que se coloca
é observar o artista que, deliberadamente ou não, retrata a própria história,
transfigurando sua vida em sua arte. À criação que possui essa particularidade
chamarei de arte autobiográfica.
O dicionário Aurélio define a palavra “autobiografia” como “vida de um
indivíduo escrita por ele mesmo” (1986, p. 202). Nesta pesquisa, porém, dou-lhe
uma conotação poética
grafia não é necessariamente a escrita na linguagem
literária. A dança se expressa numa escrita corporal, a pintura numa escrita de
imagens e cores e, assim por diante, todas as artes podem ser escrituras próprias.
A arte autobiográfica, portanto, é a que testemunha a vida do artista criador,
5
recriando seu universo particular e suas experiências vividas, numa escrita única.
Trata-se da transfiguração da própria vida em cores, imagens, sons ou qualquer
outra forma de expressão artística, de uma maneira intensa e urgente.
Inevitável é perceber que quem se alimenta da própria dor para criar
geralmente não consegue deixar de ser autobiográfico. Talvez por não conseguir
escapar da teia de acontecimentos, geralmente trágicos, que pontuam sua
existência. Mas essa arte que subsiste a partir de registros íntimos diferencia-se
dos outros manifestos de arte? Essa foi uma pergunta que me fiz ao entrar em
contato com Frida Kahlo.
O artista autobiográfico
O falar de si mesmo pode aparecer na obra de forma sutil, metafórica ou
explícita. Independentemente do quanto existe da realidade pessoal do criador,
está claro que sempre se tratará de recriação. Isso porque, embora a criação seja
sustentada por fatos reais, são fatos poetizados e que adquirem vida própria, ou
seja, existem independentemente da ligação que possuem com a realidade que os
deu origem. Mas existem nuances consideráveis entre tais artistas – alguns são
explicitamente autobiográficos; outros falam de si por meio de personagens
criados ou da escolha de temas nos quais se reconhecem e que expressam sua
fala íntima. Este último caso é o que acontece na maioria das vezes, até porque
não é necessário relacionar a obra com o artista para poder apreciá-la; muito
embora acredite que esse pensamento relacional seja positivo, pois situa a criação
no contexto em que surge, conhecendo o pensamento que permeou a sua
construção, não é apenas uma questão de curiosidade. Penso que é um ato
transformador, capaz de fazer a obra nos tocar de forma diferenciada.
Na literatura temos Henry Miller e Charles Bukowski como exemplos de
autores que desenvolveram obras de narrativa extremamente autobiográfica.
Virginia Woolf e Katherine Mansfield (já citadas anteriormente) também colocaram
em suas obras muito de suas experiências íntimas. Vários contos de Katherine
6
reúnem trechos do diário que manteve em vida. Virginia Woolf, por sua vez,
também tem publicações importantes de escritos autobiográficos. Há quem
acredite que Momentos de Vida
4
seja sua principal obra. Esse é um fato muito
interessante – por qual motivo encontramos muitas vezes nas cartas, relatos e
diários de muitos escritores o que há de mais forte no conjunto de sua obra
literária?
Geralmente apenas um estudo mais intenso torna conhecida esta relação
vida-obra. Cecília Meireles explorou temas que remetem às suas tragédias
familiares (com apenas 3 anos já havia perdido seus pais e três irmãos). Morte,
silêncio e efêmero foram questões reincidentes em sua poesia, e referiam-se à
sua orfandade e solidão. Em Olhinhos de Gato
5
, os personagens, todos com
pseudônimos, existiram de fato e fizeram parte de sua infância. A escritora
aparece como personagem – título: “a menina dos olhinhos de gato”.
Pode parecer que a obra de Cecília Meireles seja muito mais lírica do que
autobiográfica, pois fala de suas emoções sem necessariamente narrar fatos
vividos. Mas não quero aqui estabelecer uma rigidez de conceitos entre essas
possibilidades de criação, pois parto da premissa de que a arte autobiográfica é
aquela que se concentra na experiência íntima do criador, independentemente de
ser um relato vivido, ou um sentimento que o acompanhou permanentemente – o
importante é que o ato criador parta da impossibilidade de aceitar outro caminho a
não ser o de “dentro para fora”.
O primeiro fato que impulsiona um artista com obras de intensa carga
autobiográfica é aquele que só ele próprio conhece. Fica mais claro se
imaginarmos Diego Rivera e Frida Kahlo – ele dizia pintar o que via, num desejo
de retratar, principalmente, a condição social e histórica da época; Frida, por sua
vez, dizia pintar o que sentia. É importante destacar, no entanto, que isso não quer
4
Obra pouco conhecida, Momentos de Vida traz textos autobiográficos de Virginia Woolf
organizados por Jeanne Schulkind, que defendeu tese de doutorado sobre a escritora na
Universidade de Sussex, Inglaterra.
5
O texto dessa obra foi publicado em capítulos na revista Ocidente, de Lisboa. A primeira edição
em livro é de 1980.
7
dizer que um se expresse melhor para o mundo do que o outro, mas apenas que
partem de lugares diferentes, foram afetados por motivos distintos.
Com certeza o que está “fora” e “dentro” do criador não se dissociam,
fazem parte de uma rede que interage, interfere e se modifica permanentemente.
Isso é inerente ao processo de criação – englobar ação e reação
ininterruptamente. Os fatos se transmutam em memórias, as memórias agem
sobre novos fatos e tudo que está em volta do artista, de alguma forma, colabora
para que expresse o mundo que ele percebe e sente, pois o modo de observar é
único e próprio de cada um.
Nessa maneira de se expressar na criação que tem como ponto de partida
voltar-se para si mesmo, Isadora Duncan é um forte exemplo, pois foi pioneira na
busca da liberdade e expressão próprias na dança. As grandes mudanças
econômico-sociais que marcaram o início do século 20 possivelmente
contribuíram para as novas idéias que Isadora propagou e defendeu na vida e na
dança. Preocupou-se em dar mais voz à alma, rompendo com os rigores da
técnica clássica, e se permitiu explorar o sentimento que a invadia no momento
em que atuava. Afirmou ter pressentido a morte dos filhos e disse ter dançado a
visão que teve, sem ensaio prévio (Fragmentos Autobiográficos, 1985, p.116).
Transpôs para os movimentos os sentimentos do que pressentiu, comovendo o
público e a si mesma de forma muito especial. Em muitos trechos de sua biografia
fez questão de afirmar o quanto se desvelou por meio da sua arte.
Minha arte é precisamente um esforço para exprimir em gestos e
movimentos a verdade de meu ser. E foram-me preciso longos anos
para encontrar o menor gesto absolutamente verdadeiro. As palavras
têm um sentido diferente. Diante do público, que acudia em massa às
minhas representações, eu jamais hesitei. Dava-lhe os impulsos mais
secretos de minha alma. Desde o início, nada mais fiz do que dançar a
minha vida. (Duncan. Minha Vida, 1985, xi)
8
É importante destacar que há artistas, e não são poucos, que negam a
condição de se revelarem em suas obras. Fernando Pessoa é um deles. Por meio
de seus heterônimos disse estar construindo personagens teatrais e nega que
tenham alguma relação consigo mesmo. Ferreira Gullar, no entanto, contesta essa
afirmação. Demonstrando ser um profundo conhecedor da obra do poeta, indica
as inúmeras identificações entre Pessoa e os heterônimos criados por ele.
A presença do traço autobiográfico, portanto, em muitos casos, pode estar
projetada nas criações dos artistas. Tomemos Franz Kafka como exemplo.
Apenas os mais próximos, aqueles que tiveram acesso ao seu diário, à leitura de
suas cartas, relatos de sonhos e estudos biográficos sobre o autor conseguem
perceber as características desse escritor em seus personagens. Assim como na
obra de Fernando Pessoa, não fica claro que sua escrita está permeada de si
mesmo. Em Carta ao Pai
6
, no entanto, Kafka dá-nos a chance de revisitar suas
ficções com outro olhar. Nessa obra, que não tinha a intenção de ser literatura,
expõe toda sua fragilidade como ser humano, descrevendo sua relação conflituosa
com seu pai. Depois de conhecê-la, conseguimos imaginá-lo como protagonista
de seus contos e novelas.
Como não podia deixar de ser, há também os que, abertamente, revelam-se
autobiográficos. No cenário atual, podemos citar Tracey Emin e Nazareth
Pacheco.
Artista plástica britânica, nascida em 1963, Tracey Emin expõe seu universo
emocional de forma franca e direta. Na instalação My Bed, por exemplo,
reconstruiu o lugar em que passou quatro dias tentando o suicídio; em Abortion
Watercolours retrata, em 27 aquarelas, os abortos que cometeu; e na obra
Everyone I Have Ever Slept With 1963-1995, bordou, numa tenda, mais de cem
nomes de todos aqueles que passaram por sua cama entre os
anos citados no
título da obra. Como a maioria dos criadores que se assumem intensamente na
obra, Tracey é uma artista contemporânea extremamente visceral, ferozmente
aplaudida e criticada por seus trabalhos.
6
Carta escrita a seu pai, em 1919, cinco anos antes de sua morte, e que nunca chegou a ser
entregue. Foi publicada após sua morte.
9
Ainda na década de 1990, Nazareth Pacheco, nascida em São Paulo, no
ano de 1961, é uma elucidação importante. Nazareth enfrentou inúmeras cirurgias
para reparar um problema de malformação congênita e constrói sua arte por meio
de fotos, instrumentos ortopédicos, moldes e outros objetos que fizeram parte da
história de seu corpo. Assim respondeu a uma entrevista sobre como percebe a
“transformação” da sua vida em arte:
Por meio de questões ligadas à identidade e à memória. Chegou um
momento em minha vida em que a questão do modelo ideal de beleza
passou a ter um peso grande e foi por meio desta questão que,
trabalhando com esses dados, a minha experiência de vida foi
"transformada" em arte, mas com uma grande preocupação formal e
estética ao realizar os chamados "objetos de arte". (entrevista de Tadeu
Chiarelli, disponível em
www.artenauniversidade.ufpr.br)
Assim como Tracey e Nazareth Pacheco, Frida Kahlo não se revelou em
metáforas. Se tentou esconder-se, o fez por trás da própria face, talvez num
reflexo enrijecido de si mesma, nos muitos auto-retratos. O que há de comum em
todos esses artistas com linguagens e opções criativas tão diferentes? Parece-me
que aqueles que declararam sua arte como revelação da própria vida, talvez por
não conseguirem manter um distanciamento da obra, assemelham-se na
intensidade e visceralidade com que se expressam. Acredito que todos se deixam
invadir incisivamente pelos sentimentos presentes, permitindo que eles não só
interfiram como conduzam o processo de criação. São artistas que não
conseguem se desvencilhar de suas obras, estão presos a elas, ao mesmo tempo
em que se libertam nelas.
Esse pensamento foi demonstrado por um fato ocorrido com a própria Frida
Kahlo, quando recebeu a encomenda de um auto-retrato. Durante o período em
que criava, a pintora passou por momentos difíceis e terminou modificando
completamente o que prometera ao cliente. Mesmo decepcionando-o, pois ele
10
esperava recebê-lo tal qual vira no esboço anterior, manteve sua feição com a
expressão mais sincera do que estava vivendo. Não poderia ter concluído o auto-
retrato conforme o esboço, já que isso tecnicamente lhe seria uma tarefa fácil?
Acredito que não, pois fazia parte do seu processo criativo deixar os sentimentos
presentes invadirem a obra, sem restrições.
Atualmente, percebe-se um espaço cada vez maior na expressão das
particularidades dos artistas. A dança, por exemplo, tem se manifestado nas mais
variadas formas, procurando assim como Duncan havia sugerido no início do
século 20 a interferência dos sentimentos pessoais de cada um. Na dança
contemporânea, não há uma única técnica e nem um mesmo modo de fazer. Mas
dentre as várias tendências percebo ser cada vez mais comum a busca pela
compreensão do movimento. Isso significa que “o corpo passa então a se
perguntar, não mais o que, ou qual gesto aprender, mas como se chegar a ele”
(Julia Ziviani, em Dança: Memória nos Corpos Cênicos, 2004). A intenção é
preencher o movimento de sentido e dar espaço para o intérprete buscar, nas
suas questões pessoais, a sua “leitura” corporal individualizada. Tudo isso é
extremamente valioso, pois crescem o número de criadores-intérpretes no
desenvolvimento de trabalhos únicos.
Arte, vida, transfiguração
“A arte imita a vida.” A assertiva é atribuída a Aristóteles, mas foi discutida e
transformada por muitos outros pensadores. Tornou-se, nas palavras de Oscar
Wilde, “A vida imita a arte”. Tanto num caso como no outro está contida,
essencialmente, uma idéia de compreensão da arte. Uma idéia que permeia,
como veremos, não somente o universo de pensadores e filósofos, mas dos
próprios artistas.
Segundo Ariano Suassuna, Aristóteles foi mal compreendido ao falar em
“imitação”, pois não queria dizer que a arte é cópia estreita e servil do real, e sim
que o criador parte do real para remanejar e recriar um novo universo (2005, p.
11
197). Muitos artistas perceberam a arte como um retorno à natureza. Jean-George
Noverre
7
, por exemplo, afirmou que a dança deveria ser “uma cópia fiel da bela
natureza” (apud Monteiro. 1998, p. 185). É um pensamento que busca a essência
das coisas, considerando que quanto mais o criador perceber as diferenças,
imperfeições e assimetrias da natureza na composição de sua obra, mais próximo
estará de tocar a alma do espectador.
A discussão torna-se instigante quando contrapomos a idéia destes à
defendida por Oscar Wilde, que apresentou, para a época, uma forma inédita de
compreensão da arte.
No ensaio A Decadência da Mentira, Wilde vai, pouco a pouco, refutando
todos os pensamentos clássicos para chegar à conclusão de que “A vida imita a
Arte muito mais do que a Arte a Vida” (1994, p. 51). Segundo o autor, a arte, para
ser considerada como tal, deve criar um universo ficcional, que explore o
imaginativo e nos reporte a outra realidade. Sustentar que a arte propõe a
imitação da vida e que parte do realismo é impedir a criatividade e negar o que
seria uma virtude do artista – ser capaz de enxergar as coisas além daquilo que
verdadeiramente são. Essa é uma das conclusões de sua estética:
A Arte nunca exprime mais nada, a não ser a própria Arte. Tem uma
vida Independente, como o Pensamento, e desenvolve-se puramente
em suas próprias linhas. Não é necessariamente realista num período
de realismo, nem espiritualista em uma idade de fé. Não é produto de
sua época, com a qual está ordinariamente em desacordo, e a história
que nos revela é a do seu próprio progresso. (Wilde. 1994, p. 60)
Dentre as várias discussões a que Wilde nos leva, essa é uma das mais
curiosas. Como a arte conseguiria privar-se de uma relação de proximidade com a
7
Noverre (1727-1810) é um nome importante, não só como bailarino, coreógrafo e mestre de balé,
mas também como teórico que deixou uma obra reflexiva, em forma de cartas, que discute a arte
da dança.
12
existência que a circunda? Refiro-me à existência social, humana e histórica. A
existência marcada por um lugar e uma época.
Depois de Wilde, tornou-se comum falar dessa possibilidade de inversão –
vida imitando a arte e não o contrário. Algumas vezes para ressaltar o caráter
premonitório da arte, pois ela seria capaz de mostrar aquilo que o homem não
consegue perceber sozinho.
Não acredito que seja o caso de defender uma ou outra idéia das aqui
apresentadas, pois elas se completam. Vida e arte podem e devem se influenciar
mutuamente, porque precisam uma da outra e se recriam a todo o momento.
Portanto, quando se fala que a arte deve “imitar” a natureza, a expressão
deve ser entendida como recriação. Muitos estetas escreveram opondo-se ao uso
dessa palavra. Como uma pintura abstrata imitaria a realidade? O fato é que não
se pode entender imitação como cópia. Aproximar a arte da natureza, do real ou
da vida não significa, simplesmente, reproduzir a realidade, e sim identificar-se
com sentimentos e sensações comuns à essência humana. Talvez esse seja um
caminho que dê sentido à palavra “imitação”, embora eu concorde que seja
inapropriada.
Mas, sem qualquer desejo de inovar por inovar, acreditamos que não
existem motivos suficientemente fortes para manter uma palavra, que
causa tantos equívocos no campo da Arte e no da Estética, como a
palavra ‘imitação’. É evidente que a arte não imita a natureza, motivo
pelo qual a teoria da imitação deve ser precisada como teoria da
recriação, ou da transfiguração: A arte não imita a natureza, ela a
recria e transfigura. (Suassuna. 2005, p. 226, grifo do autor)
O que possibilita esse ato de recriação é a singularidade do olhar. Mesmo
partindo de um mesmo tema veremos tantas obras diferentes quantos forem os
artistas a criá-las. Novamente cito Suassuna, que nos traz um exemplo
interessante:Havia maior semelhança entre os dois quadros de Holbein (cujos
13
modelos eram diferentes) do que entre os dois retratos de Henrique VIII pintados
por dois artistas diferentes”. (2005, p. 229)
O processo criador, portanto, inevitavelmente, sente a interferência de muitos
fatores, internos e externos, e não se obriga a ter uma coerência linear e objetiva.
Isso acontece mais naturalmente ainda na arte autobiográfica, pois mais do que
transfigurar a vida ela transfigura o que é particular do artista criador. Essas
questões estão sendo elucidadas para deixar claro que isso não a impede de ter
um universo essencialmente original; pode nascer estreitamente vinculada a quem
lhe dá origem, mas é capaz de desvencilhar-se e adquirir vida própria. Por isso
Frida Kahlo e tantos outros artistas transcenderam por meio de uma obra tão
cheia de detalhes particulares, íntimos. Por isso um diário pode tornar-se uma
obra de arte.
14
FRIDA KAHLO
Um retrato sem espelho
Uma mulher ousada,
a enaltece
Destinada a conviver com a
cores vivas, resistiu, permaneceu
Verdadeira e dec
pertencer a uma escola ou tendência estéti
por isso não fez conc
Pintava como realização pessoal e c
Talvez seja essa a razão de sua originalidade.
constante. A dor que retrat
convite a voltar-se para dentro.
Extremamente amorosa, Fr
exageradamente carinhosas, cheias de mi
Nunca foi conhecida por s
poesia que percebo s
pintura, mas que está nas páginas do s
trocadas com familiares e amigo
literatura mexicana conf
em suas palavras, de outro, é impassível
mostrando feridas, sangue e lágrimas em s
raízes, resistir ferozmente.
É possível conhecer sua biograf
pois sua vida refletia incis
idealista e intensa. Uma pintora original, determinada
r suas raízes mexicanas. Apaixonada pela vida, seduzida pela morte.
imagem da dor em sua própria imagem, recriou-se em
. Assim fez-se Frida Kahlo.
idida a expressar-se à sua maneira, não se interessou em
ca. Sua arte era necessária e urgente,
essões em momento algum para satisfazer o olhar do outro.
om extrema fidelidade aos seus sentimentos.
Seu olhar nos muitos auto-retratos expressa uma força extrema, dura,
a não causa piedade. Talvez silêncio. Solidez. Um
ida escrevia muito bem. Suas cartas eram
mos e até um pouco ingênuas e infantis.
eus escritos, mas eram bastante poéticos. É nessa
eu sofrimento, um sofrimento que não é ressaltado na sua
eu diário e nas muitas correspondências
s. Encontramos em Frida o que há de melhor na
essional do século 20
8
. Se, de um lado, mostra fragilidade
em muitos de seus auto-retratos. Mesmo
uas telas, parece disposta a fincar
ia entrando em contato com sua criação,
ivamente sua obra. Sua arte era o testemunho de si
bol, biógrafa de Frida Kahlo, na Folha de São Paulo, em matéria escrita
8
Declaração de Raquel Ti
por ocasião do seu centenário. http://www1.folha.uol.com.br/folha/ilustrada/ult90u67343.shtml
-
acesso em janeiro/2007.
15
própria. O curioso é nunca ter se preocupado com a veracidade dos fatos;
propositadamente, fantasiou episódios de sua vida e não se sabe até hoje se
muitos deles são reais ou não, já que sempre estão recheados de detalhes e
informações que contradizem outros relatos. A começar pelo seu nascimento, que,
para coincidir com o ano da Revolução Mexicana, dizia ter sido em 1910, quando,
na verdade, fora em 1907 (escreveu isso até mesmo em seu diário, que só ela, a
princípio, tinha acesso, como se ela própria se convencesse de suas invenções).
Alguns dizeres que constam das paredes da Casa Azul, lugar em que nasceu e
morreu, também não são verídicos. Assim como as versões registradas por ela de
como começou a pintar, que variam dependendo da biografia. O episódio de como
ela e Diego se conheceram e muitos outros são contados por eles com diferenças
imensas (não se sabe qual dos dois era mais inventivo).
É bem possível que isso se deva à condição de heroína que foi incorporada
pouco a pouco à sua personalidade. Era interessante para Frida modificar fatos
tornando-os mais penosos para ser tida como mais forte ainda do que realmente
era. Herrera (1996, p. 114) fala da teatralização da dor que compunha a imagem
da pintora, dizendo que é nesse momento que se percebe, nos auto-retratos, uma
máscara ocupando o lugar da face e escondendo os verdadeiros sentimentos e
sofrimentos que ali se encontram. Essa pode ser, inclusive, uma característica
natural do povo mexicano, que para Octavio Paz (2006, p. 25) mente por fantasia,
desespero ou para superar sua vida sórdida.
Impossível arte e vida desvincularem-se. Em seu momento criativo, Frida
retratava a realidade e, quando questionada sobre ela, pincelava-a de fantasias e
exageros. Assim, fazia-se a artista irreverente.
Esteve entre a vida e a morte, desde muito cedo. De um lado, estavam o
intenso sofrimento físico e as mazelas amorosas. De outro, a capacidade de
transformar dor em criação, alimentar-se dela, expressar-se por meio dela. O que
a destruiu foi o que a permitiu construir. Desnuda-se pela arte, sem pudor, sem
hesitar. O paradoxo é um detalhe precioso de sua existência.
16
2. A Coluna Partida, 1944
17
Relato biográfico
Em 6 de julho de 1907, na cidade de Coyoacán, hoje parte da Cidade do
México, nascia Frida Kahlo. Seu pai, Wilhelm Kahlo, era imigrante alemão, filho de
judeus húngaros, ateu, amante da música e da literatura. Sua mãe, Mathilde
Calderón, era mexicana, de ascendência espanhola e indígena, extremamente
católica, e de pouco estudo. Essa mistura de origens foi retratada pela artista em
algumas de suas obras. Frida recorre a uma dualidade que aparece na freqüente
polarização de noite e dia, terra e água, sol e lua e, principalmente, vida e morte.
Wilhelm Kahlo chegou ao México, com 19 anos, e mudou seu nome para
Guilhermo Kahlo, tradução de Wilhelm para o espanhol. Casou-se duas vezes. No
primeiro casamento, teve duas filhas. No segundo, com Mathilde Calderón, foram
quatro, também mulheres.
Magdalena Carmem Frida Kahlo y Calderón é seu nome completo. Foi a
terceira das quatro filhas do casal e a preferida de seu pai, que a diferenciava das
outras pela inteligência e sensibilidade. Tiveram uma ligação muito forte de
admiração e afeto mútuo. Sempre foi chamada pelo seu terceiro nome – FRIDA,
que remete à palavra “Friede”, em alemão, e que significa PAZ. Assinava Frieda, e
só voltou à grafia de nascença no final dos anos 30, quando imperava o nazismo
na Alemanha.
Frida sofreu de paralisia infantil aos 6 anos, e ficou com uma considerável
diferença entre as pernas. Isso lhe rendeu o apelido de “Frida perna-de-pau”. No
entanto, retrucava ferozmente as zombarias das outras crianças, pois já tinha na
infância, tal qual tivera na adolescência e na vida adulta, uma personalidade forte,
apesar de vitimada pela solidão que sua condição física lhe impunha. Precisou
desdobrar-se para praticar atividades esportivas, como lhe fora recomendado, e
aplicar-se nas que não eram tão convencionais para o sexo feminino. Dizia gostar
do que os meninos faziam, andar de patins, pedalar e nadar. E, naquela época,
início do século 20, a sociedade tinha características muito mais machistas do que
as que vivemos hoje.
18
Aos 15 anos, passou na seleção para estudar na Escola Preparatória
Nacional, berço de formação de importantes cientistas, acadêmicos e intelectuais
da época, onde poucas meninas conseguiam ingressar. A partir desse período,
Frida adquiriu vínculos com pessoas importantes para sua formação pessoal,
política e artística. Foi na Escola Preparatória que participou de um grupo de
estudantes ativistas políticos, chamados “los cachuchas”. Tinha um espírito
eufórico e estava num lugar propício para manifestar sua veia revolucionária.
Também nesta escola conheceu Alejandro Gómez e Diego Rivera, dois dos
homens mais importantes da sua vida.
No ano de 1925, precisamente no dia 17 de setembro, Frida sofreu um
terrível acidente. O ônibus em que estava colidiu com um bonde e uma barra de
ferro atravessou-lhe o corpo.
Essa tragédia modificou completamente sua vida. A artista sofreu dores
intensas dos 18 anos até o momento de sua morte, quando tinha apenas 47 anos.
Seu corpo ficou completamente destruído e ninguém acreditava que pudesse
sobreviver. Sua irmã mais velha, Matilde, acompanhou-a no período em que
esteve internada no hospital, pois seus pais ficaram muito abalados e não tiveram
condições de fazê-lo.
Depois de aproximadamente um mês, foi dado o primeiro diagnóstico sério:
Fratura de terceira e quarta vértebras lombares, três fraturas na bacia,
onze fraturas no pé direito, luxação do cotovelo esquerdo, ferimento
profundo do abdômen, produzido por uma barra de ferro que entrou
pelo quadril esquerdo e saiu pelo sexo, rasgando o lábio esquerdo.
Peritonite aguda. Cistite precisando de sonda por muitos dias. (Rauda
Jamis. 1987, p.78)
A convalescença foi extremamente difícil e este período é considerado por
muitos como sua iniciação na pintura. Sua mãe pendurou um espelho no teto de
sua cama, onde ficou presa por nove meses, transformando-a num leito com
19
dossel. Frida via sua imagem o tempo inteiro, para isso bastava que abrisse os
olhos. Começou, então, a pintar a si mesma nas intermináveis horas em que
esteve obrigada a ficar deitada. Foi assim que virou o seu próprio modelo. De
início, não pensava em ser pintora, interessava-se pela medicina, mas,
rapidamente, passou a percorrer o caminho que se colocou à sua frente.
Algum tempo depois do acidente, ela conheceu Diego Rivera, célebre pintor
mexicano e um dos mais solicitados do seu país. Sua arte tinha caráter
revolucionário, retratava o índio oprimido, a luta da classe operária contra o
capitalismo e enaltecia a cultura popular. Rivera nasceu em Guanajuato, em 1886,
e tinha 41 anos quando conheceu Frida.
Há muitos relatos diferentes do primeiro encontro do casal. Um deles conta
que Frida teria ido à procura de Diego para que opinasse sobre seus quadros.
Uma outra versão é que teriam se conhecido por intermédio da fotógrafa norte-
americana Tina Modotti. Independentemente de como tenha sido, Diego, desde
logo, surpreendeu-se com a personalidade artística de Frida.
E ela, por sua vez, afirmou que, desde que estudava na Escola
Preparatória, já o observava pintando os murais e dizia que iria casar-se com ele.
Foram amigos e, em menos de três anos, bem mais do que isso. Rivera tornou-se
o maior amor da vida dela.
Casaram-se no ano de 1925, contra a vontade de sua mãe, que se
incomodava com o fato de ele ser comunista, ateu e 20 anos mais velho do que
ela. Fisicamente também tinham grandes diferenças – dizia-se que era o
casamento de um elefante com uma pombinha. Mas hoje muitos biógrafos
consideram ter sido a união de dois monstros sagrados. Depois desse encontro, a
existência e obra de Frida restaram marcadas de Diego até a sua morte.
Moraram um tempo nos Estados Unidos e algumas obras da pintora
aludem às diferenças entre esse país e o México. Ela tinha aversão ao capitalismo
e ao povo norte-americano, o qual chamava de “gringolândia”. Apesar disso, fez
importantes amigos lá e teve uma boa aceitação de sua obra. Admitiu, inclusive,
terem sido os Estados Unidos o primeiro país a reconhecer seu valor artístico. Ela
20
e Diego discutiram algumas vezes em razão do seu desejo de retornar ao México
em contraposição ao dele de permanecer nos Estados Unidos. Depois de três
anos entre São Francisco, Detroit e Nova York, voltaram para o México, em razão
dos incessantes pedidos de Frida.
Foram um casal com comportamento bastante diferenciado para a época.
De 1934 a 1939 moraram em casas separadas, unidas por uma ponte, construída
em San Angel, próximo a Coyoacán. Nos outros anos moraram na casa
construída pelo pai de Frida, conhecida por “Casa Azul”, que atualmente é o
Museu Frida Kahlo.
Diego nunca foi fiel a Frida, teve muitas amantes, e ela também os teve,
homens e mulheres. Foi uma relação extremamente conflituosa, já que a pintora
tinha verdadeira obsessão por Diego, além de um amor que chegava a ser,
inclusive, maternal. Em vários dos seus quadros, Diego aparece ora em seus
braços (como um filho), ora ao seu lado, ora em sua testa (como um terceiro olho).
Em seu diário escreveu exaustivamente sobre a paixão e o sofrimento que sentia
por ele.
A relação se complicou ainda mais quando Frida descobriu a ligação de
Diego com Cristina, sua irmã mais nova. Separaram-se em 1939 e Frida voltou
para a casa de seus pais, em Coyoacán. Foi Rivera quem insistiu no divórcio e ela
ficou profundamente abalada. Apenas um ano depois, em 1940, casaram-se
novamente, acordando, conforme exigido por Frida, que ela se manteria
independente financeiramente por meio da venda de seus quadros, pagaria
metade das contas e eles não teriam relações sexuais.
A artista deixou registrado, em seu diário, que sofreu dois grandes
acidentes em sua vida. O primeiro foi o ônibus e o segundo, Diego.
Quando se casaram, enquanto Diego já era um pintor reconhecido, Frida
estava apenas começando. Não se pode dizer que sua obra não sofreu influência
dele, pois a partir de 1929 percebe-se que ela assume uma mexicanidade
(característica bastante explorada por Diego em seus murais) e usa cores mais
21
claras e variadas. Essa influência, no entanto, em nenhum momento, fez com que
Frida abandonasse sua individualidade e originalidade.
Como pintora, Frida jamais deveu alguma coisa a Diego, quero dizer
que Diego nunca foi seu mestre, nunca lhe corrigiu um desenho (...) e
em muitos domínios era até o contrário, porque Frida tinha sobre ele
autoridade (...), muita (...) Moral e artística (...). (Alejandro Gómez Arias
apud Rauda Jamis. 1987, p. 71)
Seus primeiros quadros são marcados pela influência da pintura italiana
renascentista, período em que o retrato se tornou bastante popular na pintura. Ao
longo de sua carreira, retratou amigos, membros da família e, principalmente, a si
mesma. Sua primeira pintura considerada séria é Auto-Retrato com Vestido de
Veludo (1926), presente dado ao seu namorado, na época, Alejandro Gómez
Arias.
3. Auto-Retrato com Vestido de Veludo, 1926
22
Um olhar por toda sua obra é também um olhar sobre os aspectos
reservados de sua intimidade. Não escondeu isso de ninguém, afirmou ter pintado
a própria realidade. Rauda Jamis, escrevendo a biografia romanceada de Frida,
descreve os sentimentos da artista em relação à sua arte:
Às vezes me pergunto se minha pintura não foi, pela maneira como a
conduzi, mais parecida com a obra de um escritor do que de um pintor.
Uma espécie de diário, a correspondência de toda uma vida (...). Aliás
meus quadros, eu os ofereci quase todos, sempre foram destinados a
alguém desde o começo. Como cartas. Minha obra: a biografia mais
completa que jamais poderia ser feita de mim. (1987, p. 186-187)
Embora as pessoas tivessem a impressão contrária, seus quadros, de um
modo geral, eram pequenos. O maior que pintou foi As Duas Fridas (p. 44), com
173,5 x 173 cm. Pintou-o em 1939. Neste ano, sua relação com Diego estava
bastante abalada e ela dizia que o tamanho do seu sofrimento não cabia numa
tela pequena.
Sua obra explora intensamente o universo feminino – maternidade, infância
e sexualidade. Frida via nas flores um símbolo de fertilidade e ao pintar naturezas-
mortas, o que fez mais intensamente nos seus últimos anos de vida, ela dava às
plantas e frutas as formas de genitálias, algumas vezes sutilmente e outras
explicitamente. Em razão disso, por exemplo, teve uma de suas obras
encomendadas devolvidas pelo então presidente do México, Comacho, que se
chocou com as evidentes referências sexuais.
Em razão das seqüelas do acidente, a pintora sofreu três abortos; pintou e
escreveu muito a respeito da maternidade e remeteu, muitas vezes, a si mesma
como filha e também como mãe, que não chegou a ser. Diego muito bem
descreve a obra de Frida:
23
(...) é a primeira vez na história da arte que uma mulher expressou com
uma sinceridade total, descarnada e, poder-se-ia dizer, tranqüilamente
feroz, esses fatos gerais e particulares que dizem respeito
exclusivamente às mulheres (...) ela pintou seu próprio nascimento, sua
alimentação ao seio, seu crescimento na família e seus sofrimentos
terríveis de toda ordem (...). (apud Rauda Jamis. 1987, p. 238)
4. Eu e Minha Ama ou Eu a Mamar, 1937
Foi somente quando sofreu o primeiro aborto, no ano de 1930, que Frida
soube que, em razão das fraturas em sua pélvis, provavelmente, não poderia ter
filhos. Mesmo assim, tentou outras vezes e, em 1932, quis levar a gravidez
adiante, vivendo momentos muito traumáticos. Passou 13 dias internada num
hospital, em Detroit (Estados Unidos), e lá mesmo pintou a sua dolorosa perda.
Diego levou, a pedido de Frida, livros de medicina, para que pudesse estudar as
ilustrações anatômicas e reproduzi-las, à sua maneira, em suas pinturas. Desse
24
período em diante, passou a criar obras mais sangrentas, uma de suas fortes
características.
Outro aspecto visível em seu trabalho é a dose de humor negro,
tipicamente mexicano, pois retratava a desgraça de forma sarcástica. Isso pode
ser observado mais explicitamente no quadro Unos Quantos Piquetitos (1935), em
que retratou um assassinato noticiado nos jornais – uma mulher morta por seu
namorado, que afirmou ter dado “apenas algumas facadas”.
5. Algumas Pequenas Facadas, 1935
Frida nunca foi uma pintora disciplinada, não pintava com regularidade. Em
alguns períodos, dedicava-se integralmente e, em outros, absolutamente não. Sua
arte era um ato de urgência, uma satisfação íntima. Como não via a pintura,
simplesmente, como profissão, suas criações acompanhavam seu estado de
espírito, além, é claro, da sua condição física. Mesmo com a saúde extremamente
abalada, dava um jeito de adaptar-se de tal forma que conseguia pintar nas
situações mais inusitadas como, por exemplo, na cama de um hospital.
25
26
No ano de 1938, Frida realizou a sua primeira exposição individual em Nova
York e recebeu críticas bastante favoráveis da imprensa. Nessa exposição vendeu
metade de suas pinturas e recebeu encomendas para novos trabalhos. O ator e
colecionador Edward G. Robinson adquiriu quatro de suas obras, por US$ 200
cada. Isso foi motivador para Frida acreditar que poderia viver de sua arte, pois
sentia necessidade de ser financeiramente independente de Diego.
A artista conheceu o francês André Breton em 1939, um expoente do
Surrealismo que projetaria a sua obra para a Europa. Encantado com seus
quadros, organizou sua primeira e única exposição em vida, em Paris. Apesar de
esta não ter tido tanto êxito quanto a de Nova York, um fato importante aconteceu
– Frida consagrou-se como a primeira artista mexicana do século 20 a ter uma
obra adquirida pelo Museu do Louvre, o Auto-Retrato – El Marco (1938).
6. Auto-Retrato El Marco, 1938
Percebe-se também um forte conteúdo político na obra de Frida, que se
preocupava em evidenciar suas raízes culturais, afastando-se das influências
estrangeiras. Era filiada ao partido comunista e queria que a sua arte fosse, de
alguma forma, uma expressão da revolução.
Em 1942, Frida foi eleita membro do Seminário de Cultura Mexicana, órgão
abaixo da Secretaria de Educação. A missão dessa entidade era promover a
cultura do México. No ano seguinte recebeu um convite para lecionar na Escola de
Pintura e Escultura e foi considerada uma inovadora do ensino artístico no México.
A artista levava seus alunos para a rua, incentivando-os a pintar o que viam ao
invés de copiar modelos. Queria que desenvolvessem um estilo próprio,
exprimindo suas convicções políticas e sociais. Recomendava que lessem obras
marxistas e participassem de discussões com Diego.
Quando já estava bem debilitada fisicamente, Frida resolveu dar aulas em
sua própria casa. No início, muitos dos seus alunos compareceram, mas, em
razão da distância, sobrou apenas um grupo pequeno de quatro, os quais ficaram
conhecidos como “los fridos”. Este depoimento é de um deles, Fanny Rabel:
Ela não nos influenciava pela sua forma de pintar, mas por sua forma
de viver, de considerar o mundo, as pessoas, a arte. Ela nos fazia
perceber e compreender uma certa beleza do México que nós não
tivemos consciência por nós mesmos (...) Diego, ao contrário, poderia
construir uma teoria sobre não importa o que em um minuto. Mas ela,
ela era instintiva, espontânea
9
.(apud Herrera. p, 457)
O envolvimento com a política levou a artista a abrigar o líder revolucionário
Leon Trotsky em sua casa quando, afastado do partido comunista da antiga União
Soviética, precisou de asilo político. Em razão desse contato, terminaram vivendo
9
Elle ne nous influençait pas par sa façon de peindre, mais par sa façon de vivre, de considérer le
monde, les gens et l’art. Elle nous faisait percevoir et comprendre une certaine beauté du Mexique
dont nous n’aurions pas pris conscience par nous-mêmes (...). Diego, au contraire, pouivait
contruire une théorie sur n’importe quois en une minute. Mais elle, elle était instinctive, spontanée.
27
um romance que, embora pouco duradouro, tornou-se fato de considerável
importância em sua vida, abalando a relação com Diego.
Apesar de ter sido militante, Frida admitiu ser ela própria incapaz de produzir
uma obra política. Nos últimos anos de sua vida, porém, parecia estar mais
preocupada em enfatizar essas questões, daí encontrarmos bandeiras, pombas,
líderes políticos e símbolos do comunismo em seus quadros.
O fim dos anos 30 e início dos 40 foi o período em que produziu em maior
quantidade e também criou suas melhores obras. Nessa época, participou de
muitas exposições coletivas no México e nos Estados Unidos, e recebeu, em
1946, o Prêmio Nacional para Arte e Ciência, pelo seu quadro Moisés (1945),
inspirado no livro Moisés, o Homem e a Religião Monoteísta, de Sigmund Freud.
7. Moisés ou os Núcleos, 1945
Gradativamente sua saúde foi piorando, mas mesmo com o corpo bastante
debilitado Frida fumava e bebia muito, não se preocupando com as
recomendações médicas. Passou, ao todo, por cerca de 32 cirurgias, usou coletes
de gesso e aço, foi internada várias vezes e, um ano antes de sua morte, teve de
28
amputar sua perna direita. Mas nada disso a impediu de ser intensa, impetuosa e
cheia de vivacidade.
Pintou até o último ano de sua vida, embora não mostrasse mais a precisão
técnica de suas pinceladas. Somente um ano antes de morrer, conseguiu realizar
sua primeira exposição individual no México. Aos 47 anos, em 1954, faleceu com
diagnóstico de embolia pulmonar, no entanto, o último registro em seu diário leva
muitos a crerem que pode ter se suicidado. Foi cremada, como era seu desejo.
Diego morreu quatro anos mais tarde, cedeu o direito de suas obras e das de
Frida ao México e doou a Casa Azul, transformada no Museu Frida Kahlo, ao
governo.
Considerada, atualmente, uma das artistas mais importantes do seu país,
além de reconhecida mundialmente, Frida é autora de cerca de 200 obras, entre
pinturas e gravuras, das quais aproximadamente 55 são auto-retratos.
8. Auto-Retrato com Colar, 1933 9. Auto-Retrato dedicado
ao Dr Eloesser, 1940
29
10. Auto-Retrato com Colar de Espinhos, 1940 11. Auto-Retrato com Trança, 1941
12. Auto-Retrato com Tehuana 13. Diego e Eu, 1949
ou Pensando em Diego, 1943
30
O México de Frida
O processo criativo, como veremos adiante, está situado num campo
relacional, de conexões múltiplas. As nossas escolhas estão conectadas à
individualidade do nosso olhar, por isso um mesmo contexto é capaz de gerar
criações, interpretações e sensações tão diferenciadas. O artista não tem como se
abstrair da sua condição de parte da história, daí a importância de situá-lo num
determinado tempo e espaço para melhor conhecer e compreender sua obra. As
manifestações artísticas revelam e refletem de alguma forma o pensamento de
uma época. Bebem no momento vivido, naquilo que urge. Nesse sentido se coloca
o pensamento de Manuel Bandeira citado por Cecília de Almeida Salles: “Somos
duplamente prisioneiros: de nós mesmos e do tempo em que vivemos”. (1998,
p.37)
Octavio Paz (2006) nos dá uma visão crítica muito interessante da
identidade do mexicano, que, segundo o escritor, é um povo que procura sua
filiação, um povo que não tem essência e sim história. Como poderíamos entender
isso?
Sabe-se que o México foi ocupado por civilizações antigas de grande
importância (maia, asteca, de Teotihuacan, entre outras), nas quais se formaram
culturas complexas. A essas civilizações pré-colombianas atribuem-se grandes
invenções no campo da arquitetura, medicina, matemática, entre outras áreas.
Com a invasão do México pelos espanhóis, por volta de 1519, eclodiram várias
rebeliões e guerras até que a Espanha conquistasse a totalidade do território
mexicano.
Durante o período colonial Carlos Fuentes nos conta (no Prefácio do Diário
de Frida Kahlo) que se criou “uma cultura mestiça, índia, européia, barroca,
sincrética e insatisfeita” (2005, p. 9). Foi imposto aos nativos um novo modo de
vida, outra religião, outra cultura e, como não poderia ser diferente, a colonização
desencadeou uma sociedade com identidade conflituosa. Mesmo com a
independência do México, em 1821, não houve grandes mudanças. Segundo
31
Fuentes, o país foi emancipado em nome da liberdade e não da igualdade, e ficou
sujeito a diversas invasões externas.
Dentre as invasões, está a dos Estados Unidos, em 1848, os quais
ocuparam, nada mais nada menos, do que a metade do território mexicano. Esses
dois países vizinhos continuam até hoje com uma relação difícil. O povo mexicano
é marcado e “machucado” pelas interferências externas. Diante disso, parece
coerente que um país estigmatizado pela conquista hispânica, rebeliões de toda
natureza, invasões estrangeiras e, atualmente, pela hostilidade estadunidense
tenha dificuldade de compreender a “essência” do seu povo.
O mexicano não quer ser nem índio, nem espanhol. Tampouco quer
descender deles. Nega-os. E não se anima em sua condição de
mestiço, mas só como abstração: é um homem. Torna-se filho do nada.
Começa em si mesmo. (Paz. 2006, p. 81)
Seguiu-se às invasões o que ficou conhecido como Porfiriato, período de
mais de 30 anos em que Porfirio Díaz ficou no poder. Foi uma época de
prosperidade, em que o país teve sua infra-estrutura consideravelmente
melhorada. O povo, no entanto, não estava satisfeito, pois os investidores eram
atraídos pelos baixos salários da classe operária e a maior parte da população
vivia numa acentuada pobreza.
A Revolução Mexicana, em 1910, foi um movimento contra a ditadura de
Porfirio. Teve como líderes populares, entre outros, Emiliano Zapata e Pancho
Villa. Embora não tenha tido êxito político, foi muito importante culturalmente, pois
os líderes revolucionários difundiram a cultura popular de norte a sul, propagando
a necessidade de resgatar as raízes mexicanas. Os ideais da Revolução
influenciaram muitos artistas, entre eles, Frida Kahlo e Diego Rivera.
É, mais uma vez, por meio de Octavio Paz que conhecemos não apenas a
história desta civilização, mas o sentimento do homem mexicano.
32
Quando fala sobre sua origem e sobre o significado da morte e da
religiosidade para o mexicano, desvenda algumas questões que aparecem na
obra de Frida Kahlo, que, como uma verdadeira mexicana que sofreu todas as
sensações e angústias do seu povo, não poderia ser diferente.
A contemplação do horror, e mesmo a familiaridade e a complacência
no seu trato constituem, pelo contrário, um dos traços mais notáveis do
caráter mexicano. Os Cristos ensangüentados das igrejas aldeãs, o
humor macabro de certas manchetes de jornal, os velórios, o costume
de comer no dia 2 de novembro pães e doces em forma de caveiras são
hábitos herdados de índios e de espanhóis, inseparáveis do nosso ser.
Nosso culto à morte é culto à vida, da mesma forma que o amor, que é
fome de vida, é desejo de morte. O gosto pela autodestruição não
deriva só de tendências masoquistas, mas também de uma certa
religiosidade. (PAZ. 2006, p. 25)
Da citação acima conseguimos compreender várias características da obra
de Frida: a questão da ironia contida em algumas de suas pinturas; a recorrência
freqüente à morte, mas com um olhar de fertilização para a vida; e a religiosidade
que aparece em suas criações por meio de seus ex-votos, quadros em que estão
contidos uma tragédia, um santo e uma inscrição, representando uma forma de
agradecimento por uma graça alcançada.
O povo mexicano é desconfiado e solitário, não se abre e nem se mostra
com facilidade. Esse é o aspecto que nos remete à observação de que Frida
pintava seus modelos como se estivessem usando uma máscara. No entanto, o
corpo é visto com naturalidade. “Para nós o corpo existe; traz gravidades e limites
ao nosso ser. Sofremo-lo e gozamo-lo; não é uma roupa que estamos
acostumados a habitar, nem alguma coisa alheia a nós: somos o nosso corpo”
(Paz. 2006, p. 35).
33
Essa naturalidade não se confunde com falta de pudor. O mexicano se vale
do pudor como defesa à sua intimidade e aprecia as mulheres recatadas,
assemelhando-se a qualquer outra sociedade com características machistas.
Nesse aspecto, Frida foi um exemplo de ousadia, uma vez que lidou com a
sexualidade em sua vida e obra com originalidade e simplicidade incomuns para a
época.
Um olhar diferenciado para a morte
O mexicano enaltece a morte e zomba dela. Fazendo uma analogia com o
Brasil, o significado do Carnaval para nós, como festa comemorativa, é aquele que
os mexicanos dão ao Dia de Finados.
Frida não foi exceção entre os mexicanos, muito pelo contrário, suas
características latinas eram ressaltadas, ela tinha uma relação intensa com a
natureza, a ancestralidade e o mítico. Estabeleceu um elo indissolúvel entre vida e
morte e, como já foi dito, essa questão foi extremamente recorrente em sua
criação. Acredito ser válida para Frida a compreensão que os antigos mexicanos
tinham da morte:
Para os antigos mexicanos a oposição entre morte e vida não era tão
absoluta quanto para nós. A vida se prolongava na morte. E o inverso.
A morte não era o fim natural da vida, mas sim outra fase de um ciclo
infinito. Vida, morte e ressurreição eram estágios de um processo
cósmico, que se repetia insaciável. A vida não tinha função mais nobre
que desembocar na morte, seu contrário e complemento; e a morte, por
sua vez, não era um fim em si; o homem alimentava com sua morte a
voracidade da vida, sempre insatisfeita. O sacrifício possuía um duplo
objetivo: por um lado, o homem acedia ao processo criador (pagando
aos deuses, simultaneamente, a dívida feita pela espécie); pelo outro,
alimentava a vida cósmica e a social, que se nutria da primeira (Paz.
2006, p. 52)
34
Frida retratou a fertilidade, o nascimento, a vida e a morte. A relação com
essa temática estava muito atrelada à natureza e à consciência de que o ser
humano alimenta-se da terra, surge dela e a ela retorna. Na época em que pintou
O Meu Nascimento (1932), tinha acabado de perder sua mãe. A artista refere-se
neste quadro à sua vinda ao mundo e, ao mesmo tempo, à recente perda
materna.
14. O Meu Nascimento ,1932
Também quando pintou a imagem do dr. Luther Burbank, um cientista
conhecido por suas invenções híbridas, mostrou-o metade homem e metade
árvore. As raízes dessa árvore fixavam-se no corpo do próprio Burbank que
estava sob a terra, sugerindo que sua vida alimentava-se de sua própria morte.
35
15. Retrato de Luther Burbank, 1933
A dualidade apontada como característica e sempre presente em sua vida
e obra representa o conflito entre duas Fridas, a que quer morrer e a que deseja
intensamente viver. Compreendo essa polaridade morte e vida e tantas outras que
criou como uma mistura de força e fragilidade que a sustentaram como mulher e
artista. Uma polaridade unida, é importante ressaltar. Quando Frida mostra
opostos como morte/vida, noite/dia, homem/mulher, sol/lua, México/Europa,
mostra-os extremamente ligados e dependentes um do outro.
Realismo, Surrealismo ou realismo fantástico
O Surrealismo surgiu numa época em que as idéias psicanalíticas de Freud
(1856-1939) despertaram interesse geral nas pessoas. Suas questões sobre o
inconsciente alimentaram o movimento surrealista.
36
Frida não hesitava em dizer que pintava a sua própria realidade. Mesmo
sendo vista como surrealista por alguns, sua obra apresentava características
muito próprias que não nos permitem enquadrá-la completamente em um
determinado movimento artístico.
Em alguns momentos, seus quadros assumem ou parecem assumir
características surrealistas. A artista utiliza imagens híbridas e sobrepostas e faz
fortes referências à sexualidade. Algumas de suas obras sugerem a vazão do
inconsciente e a negação do racionalismo – idéias conhecidas daquilo que
caracteriza o Surrealismo.
No entanto, se pensarmos no Surrealismo tal qual Octavio Paz (1974)
propõe, veremos que se trata de abolir a idéia de uma realidade única imposta
pela sociedade e perceber a revelação do oculto, a aparição do duplo, a libertação
do homem de uma idéia preconcebida de todas as coisas. Nesse caso, Frida
Kahlo seria uma artista que se inclui em tal pensamento. Pois, segundo o autor,
numa visão que considero especialmente inovadora, o Surrealismo não é uma
escola, nem uma poética, nem uma religião ou partido político e sim uma “atitude
do espírito humano”. (1974, p.10)
Interessante é que o pai do Surrealismo, André Breton, ao conhecer as
obras de Frida, ficou surpreso em perceber que, embora ela não tivesse tido
contato com o movimento, pôde reproduzi-lo tão bem. Foi ele quem mais afirmou
que suas pinturas eram verdadeiramente surrealistas, quando ela própria dizia o
contrário:
Alguns críticos tentaram me classificar entre os surrealistas; mas eu não
me considero como uma surrealista (...). Verdadeiramente eu não sei se
minhas pinturas são surrealistas ou não, mas eu sei que elas são a
expressão mais franca de mim mesma
10
. (apud Herrera. 1996, p. 363)
10
Certains critiques ont essayé de me classer parmi les surréalistes; mais je ne me considère pas
comme une surréaliste (...). Vraiment je ne sais pas si mes peintures sont surréaliste ou pas, mais
je sais qu’elles sont l’expression la plus franches de moi-même (...).
37
Frida, na realidade, não tinha nenhuma preocupação em pertencer a um
movimento e acredito que isso fazia sua arte assumir uma originalidade
diferenciada.
artistas considera sua pintura
list e entre eles está Diego Rivera. Mas há ainda os que vêem a pintora com
uma fa
ter pouco material escrito sobre o tema, encontrei algumas
piniões esparsas que inserem Frida Kahlo nesse gênero.
Uma grande parte de pesquisadores e
rea a
se realista e outra surrealista. Não considero fundamental classificá-la num
movimento porque, muitas vezes, a classificação rotula e aponta o artista para
uma tendência na qual nem ele próprio se insere, como é o caso da pintora
mexicana. Além disso, apontei a possibilidade de vermos o Surrealismo não como
uma escola ou tendência. A discussão, porém, é saudável à compreensão de
algumas características da criação artística. Em razão disso, é interessante
ressaltar que já se considera uma nova possibilidade – o realismo fantástico, que
passou a ser visto como um gênero independente somente a partir do século 20.
O realismo fantástico mostra o irreal como algo comum, o absurdo como parte da
realidade. Apesar de
o
38
PROCESSO CRIATIVO
O inominável “algo” continuamente inacabado
É fascinante conhecer o percurso de cada criador para se chegar à obra.
Materiais, idéias e esboços do caminho que antecede o produto artístico, muitas
vezes acessíveis somente aos que investigam o processo criativo, são
extremamente valiosos. Deixam rastros, descortinam espaços onde podemos
encontrar pistas significativas.
Mas quando o artista se dá conta do que realmente o leva à criação? De
onde vem o que se chama de inspiração? O que é preciso para acioná-la? São
muitas as perguntas sem uma única resposta, ou sem resposta alguma. Trata-se
da presença da singularidade. A arte não exige uma compreensão única, e pode e
deve saber explorar o que a inteligência humana é incapaz de explicar.
Acredito na intrincada relação entre obra e processo, como coloca Cecília
Almeida Salles, para quem:
O processo de criação é um movimento falível, sustentado pela
incerteza, englobando a intervenção do acaso e abrindo espaço para a
introdução de idéias novas. Um processo no qual não se pode
determinar um ponto inicial, nem final. (Redes da Criação. 2006, p.15)
Penso que não se pode determinar o ponto inicial nem final porque para o
artista a obra se constrói por meio de vários começos e fins – um movimento
cíclico de mortes e nascimentos. Parece-me que é no “entre”, entre esses vários
começos e fins, que a criação vai se configurando, numa busca que leva a
encontros que nunca se perfazem totalmente.
O fato de apresentar o seu trabalho ao público, quando, de alguma forma,
ele se mostra “finalizado”, não faz com que o criador deixe de percebê-lo em
“estado de permanente inacabamento” (Cecília Sales. 2006, p.21). Tornar a
criação pública é uma necessidade do artista para sentir o nascimento de sua
39
obra. Muitas vezes alguns optam por apresentá-la dizendo que se trata de um
“trabalho em processo”. Independentemente de acreditar que está mostrando um
processo ou uma finalização, a idéia de incompletude acompanha o criador. Isso é
motivador, gera uma dinâmica interna, um pulso constante que o faz produzir.
É importante elucidar essas questões sobre o processo para enfatizar que,
tão importante quanto a obra finalizada, são os muitos “entres” pelos quais
passamos para se chegar a ela. Espaços que se formam em meio a
experimentações, discussões, sensações, erros, nos próprios desenhos que se
formam no corpo e nas imagens que surgem no percurso e que nos permitem
reconhecer outros caminhos. Nesse tempo/espaço aberto a diferentes
significados, necessariamente, estarão presentes dúvidas e medos, e isso é
alimento para a criação. Volto à autora citada porque o seu estudo é dirigido à
crítica genética
11
, ou seja, ao entendimento da complexidade que envolve os
processos criativos. Nesse estudo, Cecília (2006) defende a necessidade de se
pensar a criação como rede de conexões, mantida por uma multiplicidade de
relações. Daí a impossibilidade de traçarmos um percurso de forma linear, pois
dinamismo, mutabilidade e incerteza são inerentes à criação. Essa visão de
processo criativo parece corresponder à idéia de pensamento rizomático
12
,
segundo o qual é essencial assumir paradoxos e abandonar dualismos, perceber
a multiplicidade de ações que se relacionam entre si, sem hierarquias ou
centralizações. Ou seja, na criação tudo se cruza, não há, necessariamente, uma
relação de causa e efeito.
Para escrever sobre o processo de criação Frida Kahlo – Entre Chagas e
Borboletas, precisei não somente percebê-lo, mas, de alguma forma, conseguir
expressar-me na linguagem escrita. Expor escolhas, dúvidas e inquietudes não é
uma tarefa fácil. Mas o mais complicado é tratar daquilo que se considera,
praticamente, indizível, transpor para a linguagem discursiva aquilo que
11
Crítica genética é a investigação da obra de arte tendo como foco a sua construção. A princípio
voltava-se ao estudo de casos na literatura. Recentemente, pesquisadores, entre eles Cecília
Almeida Salles, vêm buscando, considerando as singularidades dos casos estudados, encontrar
generalizações que correspondam ao fazer artístico como um todo.
12
Pensamento defendido por Deleuze e Guattari, em Mil Platôs.
40
simplesmente sentimos. Sentimos ao observar determinada imagem, ao
experienciar um prazer estético. Ou ainda, aquilo que antecede o processo, o que
seria, para cada um, o principal fator motivador da criação.
Então é preciso, depois de algum tempo, olhar para trás e tentar reconhecer
o que nos move, quais os impulsos que nos pertencem. Não que seja necessário
procurar as razões de nossas escolhas. O mais interessante é tentar percebê-las,
observar o quanto algumas questões reincidem e como nos apropriamos delas.
Reconheço inicialmente no meu processo criativo uma sensação de
inquietude. Uma sensação que qualquer um possui, artista ou não? Poderia,
inclusive, afirmar – o ser humano sente uma inquietude – de forma generalizada?
Provavelmente. É um sentimento que nos é próprio. O que muda é que essa
inquietude assume formas e intensidades particulares, é direcionada a lugares
diferenciados. Na arte ela se dirige para o espaço da criação. No meu caso, sinto
certa urgência em aquietar, pelo menos por algum tempo, a inquietude. E é um
caminho longo.
Tudo começa num percurso extremamente imagético. Percebo que existe
“algo” em mim que desejo expressar, comunicar. Logo o desejo vira necessidade.
Até esse momento ainda é uma gestação. Sentimentos acionam imagens que
passam a me perseguir em qualquer momento. Não é preciso estar no espaço de
ensaio, não é preciso levar o corpo à exaustão. A contaminação é antecedente a
tudo isso. Pouco a pouco, esse “algo”, que é o próprio desassossego, o
inominado, o aquietar, o incompreendido, vira imagem. Que vira gesto. Que vira
movimento. Que vira fala de um corpo. Que porta a voz da alma. Então sinto que
estou sedenta do grande desafio – permitir o tão desejado nascimento que é a
criação.
41
Lugares visitados
Como foi dito, de um modo geral, o criador, independentemente da sua
linguagem artística, percebe em sua obra um estado de inacabamento. Há no
processo criativo um constante dinamismo, pontos diversos que se cruzam,
convergem e divergem para lugares que, continuamente, levam a outros lugares.
Constatando que não são raros os escritores que alteram partes dos textos
sempre que lhes é possível, filmes com possibilidades de mais de um final,
pintores que admitem ter deixado a obra por concluir, o que pensar das
performances e dos espetáculos de dança e teatro que pertencem ao que se
convencionou chamar de artes efêmeras?
Percebo isso no meu processo – a possibilidade viva de modificar partes da
criação a cada novo momento. Não só porque, geralmente, utilizamos, em cada
temporada de apresentações, espaços físicos diferentes, que exigem adaptações
próprias, mas porque parece que me sinto completamente envolvida pela
pulsação constante de ver a obra se transformando. Na dança, essa possibilidade
se coloca muito próxima, porque em cada espetáculo temos a chance de renovar,
amadurecer, vivenciar em tempo real as nossas sensações.
Um único tema pode gerar várias criações e várias obras podem ter sido
construídas durante um processo para se chegar a uma última, apresentada ao
público como resultado da pesquisa. É importante admitir a possibilidade de os
muitos caminhos percorridos adquirirem certa autonomia e se sustentarem como
obras. Como se para construir algo passássemos por outras construções, tão
importantes quanto a última delas, a que se ansiava no início. Assim não corremos
o risco de abandonar alguns tesouros que preenchem o processo.
Esta pesquisa resultou em três trabalhos. Entre Chagas e Borboletas é o
último deles, o que considero a finalização do processo; Sem Voz, Sem Sono,
Sem Vez, o seu estágio mais inicial; Versos da Última Estação, um período
intenso e de importantes descobertas que intermediou os outros dois. No entanto
se verá adiante que houve outras construções importantes que não foram para a
42
43
cena, mas parte delas remanesce nos trabalhos acima citados. Outras foram
abandonadas, não conseguiram se inserir nas idéias daqueles momentos, o que
não quer dizer que não possam retornar em outra época, uma vez que ficaram
registradas na memória do corpo.
Iniciei a pesquisa de movimento sozinha. A partir de uma série de exercícios
investigativos, explorei a solidão que é própria do trabalho individual. Algumas
vezes, apaguei as luzes, fechei os olhos e deixei o meu corpo livre, ao som de
músicas que me instigavam, para ver que gestos e movimentos surgiam dando
sentido às imagens que vinha pesquisando.
Sem Voz, Sem Sono, Sem Vez, estreado em maio de 2006, foi o primeiro
resultado cênico da pesquisa. Sua principal referência foi o quadro As Duas
Fridas, pintura que expressa latente dualidade.
Força e fragilidade, grito e silêncio são a síntese dessa primeira fase
coreográfica. Mas ainda não foi um mergulho profundo. Talvez um primeiro broto,
um primeiro desafio. Nesse duo, como
se fôssemos uma, usamos um único
figurino. Colando nossos corpos,
entramos uma na outra. Usei o figurino
como recurso para passar a idéia de
dualidade. Em movimento, transferimos
de um corpo para o outro, primeiro a
blusa e, depois, a saia. Compomos uma
única imagem, por vezes, partida ao
meio.
16. Sem Voz, Sem Sono, Sem Vez – Adriana
Guidotte e Vanessa Macedo
Foto: Gil Grossi
44
17. As Duas Fridas, 1939
Antes desse duo, havia experimentado outras possibilidades criativas,
sempre individualmente ou com, no máximo, mais uma pessoa. Cheguei a
construir um dueto usando máscaras de, aproximadamente, 15 minutos. Na
época, chamei-o de Chagas. Nunca chegou a ser apresentado, mas muitas
imagens dele foram reconstruídas, mais tarde, no espetáculo Entre Chagas e
Borboletas.
Em fevereiro de 2007, comecei a colocar em prática uma idéia que já
possuía há algum tempo
fazer uma criação com um grupo de intérpretes,
experimentando as minhas imagens em corpos diferentes do meu. A pesquisa foi
iniciada com uma Companhia de São Caetano do Sul, chamada Stacatto, com a
qual estive durante um ano inteiro.
Nesse mesmo período, também continuei com meu trabalho criativo
individual, concebendo Versos da Última Estação
solo inspirado na morte.
Muitas referências dele serviram para o trabalho em grupo e o inverso também
ocorreu. Não há como um não beber no outro, porque estavam inseridos num
mesmo contexto e parte do período de criação de um coincidiu com o do outro.
Apesar de não ter sido longo, de janeiro a maio de 2007, o processo
criativo de Versos da Última Estação foi muito intenso. Tocou-me imensamente no
plano emocional, porque me exigiu uma interpretação até então não
experimentada. Trabalhei de forma diferenciada com a respiração e a voz, pois
nos primeiros 20 minutos do solo movimento-me rindo, e em alguns momentos,
gargalhando. Foi um grande desafio. É um riso denso, irônico, sofrido, que me
leva a um estado corporal único, um mergulho numa solidão profunda. Parece que
o limite entre o racional e o insano se torna muito tênue em algumas frações de
segundos. A partir desse solo, comecei a pensar com mais intensidade ainda em
como construir a dramaturgia de Entre Chagas e Borboletas.
Seis meses mais tarde, já trabalhando com a Stacatto, introduzi o riso, de
forma muito sutil, num momento específico da coreografia. Fiz isso quando já
estávamos finalizando o processo. Parecia que estava faltando algo que me
interessava – o humor negro de Frida, a forma como ironizava os acontecimentos
45
46
trágicos, o exagero, a loucura disfarçada. Enfim, um corpo que se move com
densidade, enquanto a face sorri. Precisávamos dessa imagem. Afinal, Versos da
Última Estação expressa o que me fez chegar em Frida.
Foi como tudo começou – num desejo de falar da dor, das pequenas mortes
diárias, da última de todas as mortes. Não sei se no processo com a Stacatto isso
se perdeu no caminho. Tenho essa lembrança forte no solo, mas depois não
consegui mais visualizá-la. Pode ser que esteja presente em todas as cenas de
Entre Chagas e Borboletas – no silêncio das máscaras, na figura frágil e distante
bombeando o próprio sangue, no preto dos figurinos. Sim, talvez a dor e a morte
estejam em tudo. Não identifico exatamente onde, é como se estivessem por trás
de tudo ou entre todas as coisas, por isso perdi a necessidade de evidenciá-las.
Foto Silvia Machado
18. Versos da Última Estação – Vanessa Macedo
Foto: Silvia Machado
19. Versos da Última Estação – Vanessa Macedo
No solo, os movimentos são mais rápidos, mais agoniados, menos
desenhados do que em Entre Chagas e Borboletas. Mas há semelhanças nos
dois trabalhos, de gestos, de interpretação (o riso), de ações (os olhos fechados),
mas, acima de tudo, de sentimento. Ambos trazem uma despedida. Uma
clemência. Um estado de desassossego.
Da gestação ao nascimento
Um diário de bordo acompanhou todo o processo de criação em grupo.
Muito do que hoje considero descobertas valiosas pareciam já estar presentes há
algum tempo, mas eu não percebia. Algumas vezes, relendo o diário, fiquei
surpresa. Como eu não discernia sobre o que eu já estava fazendo? O registro
que ficava para mim da época de determinada sensação ou escolha era posterior
ao momento em que de fato aconteceu. Talvez porque seja impossível separar as
47
partes do todo numa criação artística. Nesse sentido remetemos ao pensamento
de Fayga Ostrower:
Nas obras de arte, os conteúdos expressivos resultam de constantes
inter-relações entre parte e totalidade. Cada componente, ao participar
de uma composição, dela receberá um determinado significado. Esse
significado não existia, independentemente, como um dado fixo ou
preestabelecido, anterior à composição assim como não existia a
composição sem os componentes. Tudo surge e se define em
interações recíprocas. (Acasos e Criação Artística. 1990, p.33)
Percebi que, só depois de visualizar o espetáculo por inteiro, no período de
sua finalização, é que me senti mais preparada para escrever sobre ele. Durante
o processo, perguntava-me o porquê das coisas, esforçava-me para compreender
as escolhas e o que me levava a percorrer determinado caminho. Mas me
faltavam respostas, eu apenas sentia um desejo imenso de seguir naquela
direção.
Foram mais de 50 encontros. Nove meses de processo, de fevereiro a
novembro. Tínhamos dois ensaios por semana de, aproximadamente, três horas
cada, mas o grupo trabalhava outros dias, sem a minha presença. No início eram
três bailarinas: Maitê Molnar, Paula Sanchez e Silvia Martins. Aline Proetti chegou
pouco tempo depois e a última, Jéssica Moretto, entrou três meses depois de
iniciado o processo. Terminamos em cinco.
Muitas idéias se desfizeram no caminho. Outras surgiram, foram
abandonadas por um tempo e, depois, retomadas. Essa última situação aconteceu
várias vezes. O interessante é que, uma vez retomadas, se tornava mais nítida a
importância daquelas imagens, mais do que as que nunca haviam passado por
esse período de abandono.
48
Travessia pela vida e obra de Frida
Antes de começar o diário de bordo, eu já estava no trabalho instigante de
reunir, em ordem cronológica, todas as obras encontradas de Frida. Não queria
me fixar em um ou alguns quadros, nem mesmo em particularidades de sua vida,
sem antes conhecer um pouco de tudo. Já tinha lido algumas biografias, o seu
diário e muitas de suas cartas. Mas foi este trabalho lento e minucioso que me fez
conhecer a sua trajetória artística e pôde me direcionar para algumas escolhas.
Foram ao todo 106 pinturas, entre os anos de 1922 e 1953. Observei cada
uma delas e li sobre o período em que foram feitas, o tamanho, o material
utilizado, o lugar em que estão hoje, a simbologia de suas imagens, enfim, todo e
qualquer tipo de informação possível.
Conhecer a obra dessa artista foi a constatação de sua arte extremamente
confessional. Nela Frida revela sua trajetória de vida, os acontecimentos mais
importantes, as pessoas que conheceu e, acima de tudo, o seu estado físico e
emocional nos seus muitos auto-retratos.
Fiz as minhas reflexões e anotações interpretativas e foi neste rascunho
que começaram a se fazer presentes muitas das minhas escolhas na criação de
Entre Chagas e Borboletas.
49
Primeira página do caderno de anotações Frida-Obras
50
51
Dessa viagem cronológica destaquei quatro obras que me inspiraram de
forma especial: O Meu Nascimento (1932), Minha Ama e Eu (1937), As Duas
Fridas (1939) e A Coluna Partida (1944).
Quando iniciei o trabalho com o grupo, não quis evidenciar o que me
interessava no universo de Frida Kahlo, queria trocar algumas impressões com as
intérpretes sem que elas tivessem sofrido influências minhas. Assim, teríamos a
chance de criar um diálogo com sentimentos muito próprios. Pedi a elas que,
assim como eu, escolhessem um ou alguns quadros da artista. Depois,
percebemos que algumas imagens surgidas no espetáculo coincidiram com essas
escolhas. É o caso da Silvia, que selecionou o Auto-Retrato com Cabelo Cortado,
pois é ela quem faz a cena final, abandonando os cabelos ao chão.
20. Auto-Retrato com o Cabelo Cortado, 1940
Foto: André Prado
21. Entre Chagas e Borboletas Silvia Martins
52
Investigação e construção das cenas
Fazia parte do processo que todas pesquisassem sobre a vida e obra de
Frida. Nos primeiros encontros, antes de começar o aquecimento corporal,
conversávamos e observávamos as imagens que eu levava dos quadros. Líamos
muitas coisas escritas por Frida, pois tinha especial interesse na sua forma de se
expressar por meio das palavras. Eu deixava nossos diálogos tomarem o rumo
que precisavam, queria saber que outras conversas surgiam atreladas à primeira.
Percebia que essas viagens, por assuntos completamente diferentes dos iniciais,
eram motivo de importantes percepções no processo criativo.
Para aproximar as intérpretes da minha proposta corporal, dei algumas
aulas, com exercícios específicos que costumo trabalhar. Assim, elas poderiam
conhecer o tipo de movimentação que tenho explorado. Não tinham uma relação
direta com a pesquisa de gestos e ações, mas já traziam algumas referências
corporais que eu buscava.
O primeiro exercício investigativo que fizemos foi abandonado à medida
que os ensaios prosseguiram. Pedi que, em duplas, carregassem os corpos uma
das outras, alternando-se entre o carregar e o ser carregado, numa troca quase
imperceptível. Essa era umas das imagens que eu tinha, antes de iniciar o
trabalho, mas foi se desfazendo no decorrer do processo.
A primeira seqüência de movimento que levei ao grupo, no entanto,
terminou permanecendo na íntegra no trabalho. Foi estruturada individualmente e
no meu corpo, mas por um longo período deixei-a de lado, retomando-a três
meses depois de experimentada. É um trecho da coreografia que ficou guardado
por mim e por elas, com carinho, como o primeiro registro do corpo. São frases de
movimentos mais suaves. Acho que essa foi a razão do abandono temporal dessa
parte. Talvez o fato de ter percebido a forte personalidade de Frida tenha-me feito,
inicialmente, buscar algo mais forte.
No início do processo, desejava, de alguma forma, encontrar algo que
envolvesse a relação que Frida criou com o espelho e os auto-retratos. Por isso,
53
propunha às bailarinas que se vissem umas nas outras, compondo uma imagem
única que, muitas vezes, era a imagem do duplo. O que mais sentia era a
necessidade de criar duetos.
O espetáculo começa com o duo das máscaras. Antes de iniciar o processo
com a Stacatto, já tinha essa idéia comigo. Ela havia permanecido daquele
trabalho com as máscaras, Chagas, que não cheguei a apresentar ao público.
Foto: André Prado
22. Entre Chagas e Borboletas – Silvia Martins e Paula Sanchez
Depois de alguns meses de ensaio, cheguei a achar que este duo estava
desconectado do resto do trabalho. Como era uma imagem que me acompanhava
há muito tempo e foi o primeiro momento criado, parece que ficou um pouco
distante de tudo o que surgiu depois. Talvez seja só uma sensação. Mas,
independentemente disso, quis insistir nele, porque achei importante preservar
esse primeiro desejo.
Muitas idéias de duetos foram se dissolvendo numa imagem apartada,
separada do todo. Essa foi, junto com as máscaras, uma idéia anterior ao trabalho
54
com a Stacatto. Na época, queria ligar duas bailarinas por uma artéria, tal qual no
quadro As Duas Fridas (imagem 17). Uma bombearia o sangue, que chegaria à
outra e, depois, voltaria para a primeira. Ambas repetiriam esse gesto
ininterruptamente, como se fossem o alimento uma da outra. Mas isso foi sendo
transformado em alguém bombeando a si mesmo. A imagem do duplo cedeu
espaço para uma imagem solitária, que permanece por todo o espetáculo na
figura da Jéssica. Imagem apartada que é parte de tudo – memória, aflição,
desejo.
A intenção do olhar foi uma busca perene. O olhar é algo forte nos quadros
de Frida Kahlo. Um dos seus primeiros auto-retratos, entregue a Alejandro Arias,
seu namorado na época, foi acompanhado de um bilhete no qual Frida pedia que
o pendurasse numa altura em que pudesse olhá-la nos olhos. Foi a partir dessa
descoberta que comecei a pensar em como seria o olhar na criação, tal qual Frida
propunha – incisivo, determinado, presente.
Começamos uma longa pesquisa. O primeiro exercício que propus foi uma
descoberta de sentir-se despido diante do outro. Duas a duas, olhando-se
fixamente, sem que essa relação se dispersasse por nenhum motivo que fosse.
Enquanto uma assumia a posição de observadora, a outra tinha de falar, cantar ou
recitar algo. Cada uma delas participou uma vez e, em seguida, abri um espaço
para comentar o exercício. Falou-se da dificuldade de se fixar um olhar no outro,
do quanto a situação é invasiva.
Repetimos o exercício. Experimentamos a mesma situação, substituindo a
fala por gestos. Pedi que os gestos tivessem relação com os quadros vistos e as
discussões surgidas anteriormente. A primeira vez não foi tão interessante, os
gestos pareciam muito representativos das coisas sobre as quais tínhamos
discutido, algumas vezes, quase uma mímica.
Propus que repetíssemos buscando uma sensação e não algo a ser
traduzido ou facilmente percebido. Sugeri que apenas buscassem um sentimento
pessoal. Foi um pouco melhor e uma imagem ficou mais forte para mim. Uma
delas (a Jéssica) fez um movimento com o corpo onde as pernas tremiam e
55
pareciam não conseguir sustentar o tronco, mas ao mesmo tempo resistiam e
retornavam. A coluna se manteve ereta e o olhar, fixo; eram as pernas que, ao
estremecer, faziam com que mudasse de altura. Uma referência à dor e à
persistência. Um corpo que não se entrega. Comentamos novamente a
experiência e eu apontei as situações que mais se aproximaram do que eu
imaginava como criação cênica.
A dinâmica proposta ao grupo – experimentar e dialogar depois – trouxe
resultados positivos. Foi depois de uma longa conversa que encontramos uma
primeira imagem importante. Levei algumas frases interessantes de Frida Kahlo
que eu já havia selecionado. As frases falavam sobre sua condição física, sua
relação com a pintura, com a maternidade, enfim, frases conhecidas que estão em
suas biografias. Frida indicava que a pintura era uma forma de extravasar,
escapar do sofrimento que sentia. Propus que falássemos um pouco sobre as
formas que usamos para extravasar nossas inquietações e recordássemos
alguma situação muito difícil que tivesse ficado registrada em nossas memórias.
Uma imagem que achei interessante e que também me ocorreu foi a da água.
Algumas delas falaram da satisfação, do prazer ou da sensação de alívio que uma
chuveirada causava. A água terminou aparecendo, mais tarde, na trilha sonora.
Quando falamos um pouco sobre as situações que consideravam
marcantes, surgiram histórias sobre morte, relação maternal e aborto. Foi um
momento bem importante, em que todas expuseram sensações que conseguimos
relacionar às expostas por Frida Kahlo. Pedi que pesquisassem, para o próximo
encontro, imagens ou exemplos que tivessem relação com duas das frases que
havia lido no início do ensaio. A primeira, de André Breton: “A arte de Frida Kahlo
é uma bomba amarrada num laço de seda”. E a outra, de Diego Rivera, que,
falando sobre a obra de Frida, afirmou ser “Ácida e meiga, dura como aço e suave
como uma borboleta”. Essas frases estimularam conversas em que procuramos
idéias de como uma movimentação ou cena poderia ser forte como uma bomba ou
o aço e, ao mesmo tempo, frágil como um laço de seda ou as asas de uma
borboleta. A partir daí, tentamos buscar esse caminho no corpo.
56
Desse encontro acredito ter alcançado a imagem a ser perseguida – o
contraste entre acidez e suavidade. Fui criando, naquele momento, algumas
células de movimento. Pela primeira vez não cheguei com absolutamente nada
pronto. Tinha muitas imagens e fui construindo, no próprio ensaio, as seqüências.
Uma vez observadas, acrescentava outras e modificava as que não funcionavam.
Acho que conseguimos trazer para o corpo um pouco de tensão intercalada com
suavidade.
Uma frustração inicial que terminou se transformando num momento que
guardo com carinho é a cena do espetáculo em que se canta Paloma Negra.
Queria muito trabalhar, de alguma forma, a sensualidade, algo ligeiramente
homoerótico. Foram várias as tentativas. Mas nenhuma das minhas propostas
surtiu o efeito desejado. Havia no grupo uma grande dificuldade no toque entre os
corpos e na intenção que estes deveriam preencher nos movimentos, quando
caminhávamos nessa direção. Cheguei a estruturar seqüências, mas tudo acabou
sendo abandonado, porque estava muito distante de ficar como imaginei.
Quase sete meses após iniciado o processo, passei uma tarefa. Poucas
vezes pedi que pensassem em cenas para mostrar no ensaio seguinte.
Geralmente, elas pesquisavam alguns temas, em casa, para fazermos leituras
juntas ou reservávamos um tempo, no próprio ensaio, para que estruturassem
algumas frases de movimentos, com células já trazidas por mim. Dessa vez foi
diferente. Levei a letra da música Paloma Negra, tema que usei no duo Sem Voz,
Sem Sono, Sem Vez. Começamos acompanhando a música, em espanhol.
Depois, coloquei-a novamente, sem a letra, e elas tentaram cantar sozinhas.
Sugeri que, a partir da movimentação trabalhada no processo criativo,
sintetizassem os trechos com que se identificavam mais e estabelecessem uma
relação entre eles e a letra da música. Era uma tarefa individual, poderiam
sussurrar, gritar, indicar apenas a leitura dos lábios, a opção seria delas.
O que achei interessante é que, depois de tanto trabalharmos os olhos
abertos e bem direcionados, algumas delas fizeram parte da movimentação com
57
os olhos fechados. Isso foi mantido, porque deu um destaque sutil para este
momento. Repetimos o exercício algumas vezes. Queria mais ousadia.
Resolvi interferir no material apresentado, dirigindo como gostaria que
fosse. De início, não havia imaginado ninguém cantando, mas fui percebendo na
voz da Aline algo de muito interessante, que se destacava das outras. Então,
fiquei repetindo os exercícios somente com ela. A idéia de buscar a sensualidade
num duo foi sendo transformada. Comecei a achar que poderia encontrá-la nessa
cena. A Aline cantando e a Jéssica dançando. Uma com o olhar voltado para a
outra. Não há toque. Há abraços vazios. Acho que, por outro caminho, encontrei a
cena que estava procurando.
23. Entre Chagas e Borboletas – Aline Proetti e Jéssica Moretto
Fotos: André Prad
o
58
CONSTRUÇÃO DRAMATÚRGICA
O pensamento na dança
Apesar de perceber que os processos que vivenciei, seja como criadora
seja como intérprete, tinham uma preocupação em construir uma dramaturgia
cênica, parece-me que o termo “dramaturgia” passou a ser discutido na dança em
tempos mais recentes
13
. Isso porque foi preciso que seu significado se ampliasse,
deixando de restringir-se ao teatro e vincular-se ao texto e à palavra no sentido
literal, para se perceber sua presença no corpo.
Sabemos que as artes cênicas são tidas como efêmeras, são
manifestações que emergem no presente, num determinado tempo e espaço
únicos. Aquilo que ocorre antes é sua preparação, o que ocorre depois são
possíveis afetações na memória dos que a vivenciaram ou registros de toda
espécie que, mesmo que se aproximem, são incapazes de reproduzi-la. Essas
artes do espetáculo têm o corpo como instrumento de manifesto, texto, fala,
imagem, discurso.
O artista busca ininterruptamente manter sua obra viva e isso significa, de
certa forma, torná-la maior que si mesmo, como se a criação nascesse de uma
relação simbiótica com o seu criador, mas fosse a única sobrevivente. Há uma
preocupação em tê-la validada, reconhecida, pois a arte precisa do olhar do outro
para gerar uma relação, seja de contemplação, reflexão, inquietação ou
transformação. A busca desse reconhecimento é pessoal e constante. Cada
artista, mesmo aquele que parte de uma referência ou escola muito particular, aos
poucos, sente a necessidade de trilhar um caminho próprio, sem regras
específicas. É preciso que o faça para dar expressividade à sua arte.
13
Grande parte do pensamento que desenvolvo aqui se deve à disciplina Dança, Escrita e
Dramaturgia, ministrada pela profa. Cássia Navas, e à disciplina A Poética da Escritura Cênica –
Possibilidades de Conceituação de um Corpo-em-Arte, ministrada pelo prof. Renato Ferracini,
ambos do Instituto de Artes da Unicamp.
59
Pensando especialmente na dança, acredito que essa expressividade pode
ser alcançada por meio da construção de uma dramaturgia em fluxo – questão
que vem se tornando recorrente entre coreógrafos, bailarinos e pesquisadores. É
importante ressaltar, no entanto, que somente quando a dança e o teatro
passaram a se influenciar mutuamente, seja pela dança-teatro, pelo teatro físico
ou, simplesmente, pela busca de uma teatralidade na dança contemporânea é que
muitos diretores de teatro, trabalhando com companhias de dança, começaram a
referir-se à “dramaturgia em dança”. Atualmente termos como “significação”,
“conexão”, “fluxo”, “sentido das ações”, entre outros, são usados para explicar o
que seria essa dramaturgia em dança, pois muitos ainda discutem a sua
existência e o material bibliográfico acerca do tema é escasso.
Considero extremamente interessante a definição de Jean-Marc Adolphe
14
(1997), para quem “a dramaturgia não é a resolução de um elemento no outro (o
sentido dentro da ação ou o inverso), mas a dialética que se estabelece entre
ação e sentido”. E ainda, “dramaturgia é uma exercício de circulação”.
Patricia Cardona
15
(2000) também faz considerações muito interessantes
usando a expressão “fuego de la vida” para indicar a construção da dramaturgia
em dança. A autora menciona a essencialidade da comunicação com o
espectador por meio da presença cênica do bailarino/ator. Todas as questões que
aborda giram em torno de saber como acender e manter a chama desse fogo
acesa para que o espetáculo não se resuma a uma dança de passos
mecanizados, resultando numa comunicação superficial com a platéia.
É importante convencer o bailarino da importância que tem a
dramaturgia para conseguir a percepção do espectador se
considerarmos que uma coisa é dançar, outra é comunicar
14
Adolphe é redator-chefe da revista francesa Movimento, especializou-se em crítica de dança e
teatro e foi conselheiro artístico do Teatro da Bastilha de Paris entre 1994 e 2002.
15
Patricia Cardona é radicada no México, pesquisadora de teatro e dança, estudou na Escola
Internacional de Antropologia Teatral, dirigida por Eugenio Barba.
60
dançando. Uma coisa é impressionar, outra, comover o espectador
para deixar uma memória profunda
16
. (200, p. 61)
Deve-se observar que num espetáculo há muitas relações que se
estabelecem ao mesmo tempo. Relações entre os bailarinos, entre estes e o
coreógrafo, entre cena e platéia, além do espaço, luz, cenário, figurino, trilha e
todo e qualquer outro elemento que faça parte da composição cênica. Sinto que
manter um “exercício de circulação” é um processo individual e, simultaneamente,
coletivo. Individual porque não existe uma fórmula geral capaz de tornar o fazer
artístico uma relação perfeita de causa e efeito. A singularidade existente, mais
nitidamente na dança contemporânea, permite que peculiaridades e diferenças
sentidas e construídas a partir de si mesmo apareçam, cada vez mais, na criação.
Coletivo porque é imprescindível que haja generosidade e cumplicidade entre
criador e intérpretes e entre estes últimos.
A busca de uma energia em fluxo
O pensamento voltado a um fluxo dramatúrgico parece ter início desde o
instante em que se resolve criar. É necessário descobrir o que nos impulsiona a
cada dia, antes de estar no espaço de ensaio, quando se está nele e durante o
espetáculo.
Cada uma dessas etapas, é claro, possui particularidades, acionamentos
específicos. Os momentos que antecedem a montagem coreográfica, geralmente,
são bombardeados de imagens e sensações desestruturadas. Sinto ser a parte
mais sofrida, é como estar inflando ininterruptamente. Nessa fase, os pontos
acionados são, para mim, essencialmente, imagéticos e estar sozinho é uma boa
16
Es indispensable convencer al bailarín de la importancia que tiene la dramaturgia para atrapar la
percepción del espectador si consideramos que una cosa es bailar, y otra, comunicar bailando.
Una cosa es impresionar, y otra conmover al espectador para dejar una memoria profunda.
61
maneira de percebê-los, inclusive para nos preservar de possíveis interferências
em demasia.
Com isso quero dizer que o artista, permanentemente contaminado por
todas as informações que o cercam, precisa, nesta fase, reservar um espaço
maior de encontro consigo mesmo. O exemplo de João Ubaldo Ribeiro, em
entrevista ao jornal O Estado de São Paulo, é bastante interessante:
(...) desde o meu primeiro livro, tomo a mesma medida: a de não ler
nada enquanto produzo porque acabando plagiando sem querer. Afinal,
se gosto de um volteio de frase qualquer, acabo incorporando-o ao meu
patrimônio de ferramentas literárias e solto a frase alheia com a maior
cara-de-pau como se fosse minha. Aconteceu durante a escrita de meu
primeiro livro, Setembro não Tem Jeito: plagiei Stendhal lá no meio da
história. Felizmente, meu anjo da guarda buzinou e desconfiei de que
aquele trecho não era meu. A partir dali não li mais nada. (01 de março
de 2008)
Quando o processo criativo começa a acontecer no espaço de ensaio,
procuramos trazer todas as nossas referências imagéticas e somam-se a elas as
informações e memórias corporais preexistentes. As descobertas vão
acontecendo pouco a pouco, no sentido de se perceber se é necessário mudar o
ritmo e a dinâmica dos movimentos e frases, buscar o relaxamento ou o aumento
da prontidão da musculatura para se chegar à expressão certa. É preciso
encontrar a ação corporal adequada para cada momento, quais gestos devem ser
selecionados e como eles dialogam com a proposta cênica. Quando essas opções
são feitas, assimiladas e repetidas exaustivamente, até que, por meio do trabalho
de aperfeiçoamento diário, passem a não ser mais motivo de preocupação
especial para que sejam realizadas, dizemos que a gramática do corpo está
pronta.
62
O mais difícil é manter atrelado a esse fazer corporal um sentido, um modo
próprio de falar, que também seja expressivo, renovado e reinventado a todo
instante e não puramente técnico. E, ainda que se consiga, não quer dizer que
seremos capazes de fazer com que o outro (espectador) sinta aquilo que
gostaríamos que sentisse.
No momento do espetáculo apresentam-se outras questões, as sensações
vividas pelos intérpretes, sejam de ansiedade, tensão, nervosismo, entre outras, e
ainda as questões técnicas como espaço, figurino, cenografia, luz, e a presença
da platéia. Todas elas interferem na construção dramatúrgica. São tantas
possibilidades quantos são os espetáculos. Portanto, é importante não
estagnarmos por nos sentir seguros, após um número grande de apresentações.
A própria rotina de ensaios nos traz essa segurança que, muitas vezes, pode nos
levar a uma acomodação prejudicial à nossa atuação.
Quando o espetáculo parece estar completamente sob controle e as cenas
se mostram completamente previsíveis, como se fôssemos antecipando em nosso
pensamento os gestos e movimentos seguintes, é porque a conexão expressiva
da ação e do sentido em tempo real deixou de acontecer. Nessas horas, parece
que ficamos ausentes, porém não se trata de uma ausência que ocorre porque a
ação se auto-sustenta, mas porque não conseguimos lhe dar um significado
expressivo. Para que isso não aconteça, é necessário que o artista tenha alguns
elementos que o permitam renovar incessantemente suas ações. Esses
elementos serão diferenciados para cada um: o importante é atingir uma dinâmica
de constante recriação, pois criar em cima da criação é manter a obra viva.
Tenho percebido, com a minha experiência artística, que aquilo que chega
para o público, o modo como ele capta as imagens, independe de o intérprete
estar concentrado numa ativação física ou emocional. Pois, para manter a cena
sempre renovada, o mais importante é sentir a plenitude das ações, vivenciando-
as no momento próprio em que acontecem, uma a uma, sem antecipá-las.
Elucidando melhor, posso dizer que há dias em que a ação física é acionada em
primeiro plano. A movimentação está tão familiarizada no corpo e flui com tanta
63
naturalidade que o coloca num estado capaz de trazer à tona imagens, sensações
e emoções que chegam facilmente no espectador. No entanto, há outros
momentos em que o público também é tocado, mas são as imagens e sensações
que vêm à frente dando sentido às ações físicas e transmitindo o conteúdo
desejado. Não que se possa separar uma questão da outra, apenas acredito que o
impulso inicial pode vir de uma delas, mas ambas se cruzam e se interferem
permanentemente.
O fluxo entre o intérprete e a platéia é imprevisível, às vezes acreditamos
estar no caminho certo, mas a platéia está distante e não compartilha da nossa
sensação. O inverso também pode acontecer, quando o intérprete se sente
ausente, mas o público é tocado pelo seu desempenho além do esperado.
Acredito que essas peculiaridades devem ser percebidas a todo o
momento, pois elas podem variar de espetáculo para espetáculo, de cena para
cena, no mesmo espetáculo, de dia para dia. O ideal é estar pronto para receber e
aceitar essas possíveis oscilações e saber lidar com elas de forma intuitiva e
criativa.
A dramaturgia em fluxo se insere num pensamento rizomático
17
, o qual se
opõe ao dualista ou dicotômico. Não há um ponto inicial de onde emergem todos
os outros, tudo se conecta a tudo, não há condutor, nem conduzido.
No processo de criação, sinto que uma possível forma de construir uma
dramaturgia em fluxo, além das questões já apontadas, é tornar a obra mais
próxima de um “estado humano”, ou seja, torná-la acessível ao universo de quem
a observa. Explicarei melhor.
Atualmente, é comum os criadores na dança afirmarem que é interessante
ser “menos bailarino em cena”, seja na simples forma de caminhar ou de se
expressar por meio de um gesto. Pois é importante não deixar que a mecânica
exagerada da ação distorça em excesso o movimento realizado no cotidiano. O
intuito é aproximar a arte do espectador. Isso não quer dizer que a platéia será
mais intimamente tocada se o virtuosismo for abandonado, mas tão-somente que
17
Sobre rizoma, ver página 40.
64
ele não pode ser exageradamente percebido a ponto de interferir em outras
possíveis percepções. É essencial buscar um equilíbrio. O movimento cênico não
pode ser nem extremamente construído tornando-se o estereótipo de algo e nem
extremamente natural perdendo a magia do artístico. Tem que se descobrir o que
está entre essas duas possibilidades.
Jamais a arte será mera questão de habilidade ou se limitará a meros
problemas técnicos. A técnica representa um instrumento de trabalho,
que o artista precisa conhecer – evidentemente – e dominar com plena
soberania (...). Nas obras de arte, as técnicas acabam se tornando
invisíveis, sendo absorvidas inteiramente pelas formas expressivas.
(Fayga Ostrower.1990, p.18)
Acredito na importância de colocar o “público na ação”, deixar alguns
espaços vazios para serem preenchidos por ele, dando-lhe a possibilidade de
acionar memórias particulares. Quanto mais o espectador conseguir sentir que
pode ser um reflexo das imagens cênicas que ali se formam, mais humanizada
estará a arte, mais próximos estaremos de manter a chama acesa.
Muitas Fridas que habitam Frida
Há dois momentos que considero especiais na construção da dramaturgia
de Entre Chagas e Borboletas. O primeiro deles, ainda no início do processo, foi a
busca pela acidez e suavidade (que descrevi no capítulo anterior) Foi quando
percebi quais sensações poderiam ser sugeridas ao grupo para preencher o
movimento. Compreendendo a dramaturgia como a dialética entre ação e sentido
(Adolphe, 1997), começamos a buscar o sentido nas ações e as ações próprias
àquele sentido. Sem sobrepor um ao outro, mas tentando apreendê-los numa
mesma direção.
65
Vejo o segundo momento como a busca por uma dramaturgia individual.
Considerando que para cada nível de relação – dos intérpretes entre si, dos
intérpretes com o público e da cena com o público – exista uma convergência de
dramaturgias que buscam uma sintonia, um fluxo entre elas, a partir dessa
individualização construímos parte desse fluxo.
Isso ocorreu cinco meses após o início do processo em grupo, já
estávamos, portanto, em mais da metade do nosso percurso de nove meses.
Decidi evidenciar as características de cada uma das bailarinas. Passei a enxergar
várias Fridas.
Tudo começou a ter um sentido muito singular. Não imaginava mais a
possibilidade de substituição de umas pelas outras, em cada um dos momentos
coreográficos. O lugar de cada uma tornou-se muito particular. Acredito que isso
tenha a ver com o início de tudo – a pesquisa sobre o artista autobiográfico e a
importância de colocar, verdadeiramente, algo de si na própria arte. Entre Chagas
e Borboletas reúne muitas Fridas que habitam Frida, a partir da individualidade de
cada uma delas.
Todas as bailarinas aprenderam, inicialmente, cada uma das cenas, sem
exceção. Não fui eu quem escolheu o que cada uma faria, foram elas que se
escolheram. Eu apenas, o máximo que pude, procurei abrir espaço para que elas
ocupassem o lugar que mais as interessava. Naturalmente, elas começaram a se
expressar melhor fazendo aquilo com que mais se identificavam. Então, eu
passava a decidir. Mas elas já tinham, intimamente, decidido. Acreditava que este
era um caminho possível para a criação ficar mais intensa e verdadeira.
Descrevi poeticamente o que eu considerava próprio de cada uma, nas
suas respectivas cenas. Li em voz alta, sem dizer a quem pertencia o texto e pedi
que elas tentassem observar em qual se enxergavam, para que eu pudesse saber
se os nossos pensamentos estavam em conexão.
Assim, apresento nas páginas seguintes: Desfigura da Dor, Árvore da
Esperança, Auto-Retrato, Paloma Negra e Coluna Partida.
66
67
“Desfigura da Dor”
Deixo meus rastros. Atravesso silenciosamente, mas não fiz esta escolha. Meus
gritos não ressoam, implodem e só eu posso senti-los. Não pertenço a lugar algum, não
tive a chance de ver teus olhos, não tive a chance de ver os meus. De longe observo a tua
face, tua face e minha face são uma só. Não sei quem somos. Contorno a tua imagem,
imagem dupla, imagem única. Estou aqui e em ti. Sou este ser sem sexo, sem rosto, sem
voz, sem sono, sem vez. Os teus beijos não me alcançam, olho-te nos olhos, mas não
podes me ver. Serei para sempre a mais viva lembrança, a lembrança não será abortada e
seguiremos juntos ou juntas, seguiremos acompanhados da solidão de não termos nos
conhecido, apesar de tão íntimos, tão estupidamente íntimos. Sou o filho não nascido e
sou a mãe sem filho. Sou mãe e filho da mesma alma.
Como um elo de todas as coisas, sou o que está entre. Entre o dia e a noite, entre o
homem e a mulher, entre o nascimento e a morte.
Agora tenho a tua imagem em mim, sou o teu reverso, sou o teu inteiro. Nossos
corpos estão de costas um para o outro. Todas as vezes que te toco com força, desejo ver a
mim, mas você faz o mesmo, porque somos o mesmo. Minha amiga imaginária, “as
duas Fridas”, as muitas faces que me habitam, tudo se perde em nossas respirações
ofegantes, expressões de gozo, de doença, de falta de ar. Desejo estar dentro do teu corpo,
confundir-me e expressar-me através dele. Respiro o teu ar, falta ar para tantas Fridas.
Sim, somos muitas, mas eu, mais uma vez, sou a que procura um espaço. Sou a
Frida menina, mulher, homem, envelhecida, atropelada pelo destino. Sou a ingenuidade,
carrego a infância comigo, as cores em muitas flores sem cores. Sou a que não
encontrou máscaras. Estive sempre no momento antecipado ou atrasado do meu futuro.
No meu corpo, escorrerão essas cores, cores da minha morte, cores de Frida, cores
de sangue. O sangue que escorreu das telas. O mesmo sangue que escorreu da vida.
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“Árvore da Esperança”
Caminhamos frente a frente, vejo-me num espelho. Sei que é o meu rosto, são os
meus traços, enrijecidos, sem cor, e que me separam da minha própria pele e são a minha
pele. Chamo-te com meus olhos, também com minhas mãos. Sei que queres vir e preciso
conhecer teu rosto. Ora é você quem sai de mim, ora sou eu. Carrego-te, conduzo teus
gestos, peço que fique. Beijo-te o rosto, quero sentir tua pele, mas existe algo que nos
separa e, mesmo querendo amar-te, mesmo sentindo o teu cheiro, não consigo tocar-te.
Afeto, proteção, amizade, paixão emudecida. Esses são meus beijos.
Mesmo que pareça impossível, estarei de pé, irreverente, persistente, absolutamente
certa que só existe um caminho para mim, aquele que me leva à frente da dor, do
cansaço, do destino. Assim é que exponho minha intimidade em minha arte, sem pudor,
sem regras, sem me preocupar com o que os outros pensam. A minha autenticidade está,
simplesmente, em ser fiel aos meus sentimentos, aos meus impulsos. Não aceito, ou se
aceito esbravejo o quanto posso, sem timidez, sem premeditar a minha fala.
Sou filha da Revolução e por ela resolvi nascer três anos mais tarde, porque
invento o destino que não tive, fantasio as paixões que não me cuidam.
Respiro com você toda visceralidade que me pertence, até me faltar o ar, até te
sentir dentro de mim. Não me canso. Quando todas as Fridas que me habitam estiverem
suaves, estarei ácida à procura de um caminho que me ligue ao cosmos, terra e água, em
giros repetidos e rápidos em idas e vindas ao chão.
Seguro a tua mão, que também é minha, até que os nossos dedos se soltem e eu
fique apenas com a lembrança dos teus olhos nos meus. Você bem que tenta alcançar-
me, mas o meu caminho é solitário. Na minha frente, vejo o meu dorso vermelho, as cores
da morte e da vida. Espero encontrar-te novamente, ao fim de tudo, sem rosto, mais uma
vez, para dar-te o último beijo, aquele que, mais uma vez, não te toca a face, mas que te
tocará, para sempre, a alma.
70
71
“Auto-Retrato”
Todas as vezes que me vejo, não me vejo, é outro rosto, sou eu travestida de outra
face. O que em mim tenho, só eu mesma conheço, não sei se pinto a imagem que quero
que tenham de mim ou aquela que me mantém viva, um reflexo que ao invés de mostrar
minhas fragilidades, esconde-me terna e impassivel. Apenas alguns detalhes sutis me
revelam, mas será preciso conhecer-me a fundo para que eles se coloquem à mostra.
Travestida desta outra face, vejo-me por vezes nela, sou ela também. Juntas, como
uma só, sentimos não ter podido conhecer de fato os nossos traços. Entro em ti, saio de ti,
recebo teus beijos, expulso-te sem escolha, vou seguindo e sei que tentas me alcançar. Eu
também tento, eu também sou parte do teu corpo, por isso carrego-te e deixo-me carregar.
Tenho os olhos firmes e não tenho medo de encontrar outros olhos. Junto-me a
todas as outras, sou todos os auto-retratos, sou o cabelo cortado, sou o que restou de mim
e permaneço sem causar piedade alguma, sem desmoronar, sem dizer muito sobre mim.
Talvez tenha conseguido me despir em minhas cartas, em meu diário, nos lugares de
pouco acesso, lugares dos meus segredos, das minhas frustrações.
Quando mais uma vez te encontro, depois de deixar parte de mim por toda parte,
volto a sentir-te perto. Mais uma vez, nossa pele não se encontra, mas atravessa-me, tal
qual me atravessou o bonde, tal qual me atravessou Diego. Atravessa-me pela última
vez.
Agora não há mais cinza, nem branco. É o meu preto que invade a cena. Minhas
sobras restam ao chão. Nas mechas arrancadas, deixo-me estar só. Estou de luto. Esta é a
última imagem. Permaneço imóvel até a escuridão levar-me por completo.
72
73
“Paloma Negra”
Os meus passos não passarão despercebidos, entro na cena invadindo-a, querendo
revelar as faces mascaradas, a imagem apartada. Entro em conexão com tudo e falo do
meu drama, com dignidade, sem medo de estar de frente, no centro de todas as coisas, é
assim que me coloco. Os meus gestos flagelam o meu ventre, um pedaço de mim que se
esvai no meio dos meus dedos, sem que eu possa fazê-lo voltar. Mas isso não me assusta,
continuo firme, olhando para tudo que me cerca, não estou conformada, nem indignada,
sei que sou capaz de suportar. Deixo os meus olhos na altura dos teus, por isso posso
penetrar, despir e invadir a tua alma. Sempre que me olhares estarás olhando a ti
também. Confundo o espelho, as sombras, o outro. Pareço sorrir? Sim. Sinto-me sorrir?
Não sei. Ironizo minhas chagas, sem dúvida ironizo. Sou o paradoxo. Desejo não
pertencer mais a este lugar, mas luto bravamente para não abandoná-lo. Sinto fascínio
e repulsa pela morte. Fascínio e repulsa pela vida.
Encontro-te apenas como lembrança. Acaricio o meu rosto, como se fosse o teu,
como se estiveste sob os cuidados de minhas mãos. Imagino que seguro tua cabeça e
digo-te que protegerei cada um dos teus passos, cada um dos teus vôos.
Estarei nos surtos, no desespero, nas respirações. Revelo-me na sedução, na
intensidade e visceralidade do corpo, na voz que acompanha, que grita, sussurra e cala.
Canto para ti e danças para mim. Canto como jamais imaginei. Um canto da alma.
Vou, devagar, em tua direção, sem perder os teus olhos de vista. Sem perder os
meus olhos nos teus. Quando te alcanço, faço-me presente nos teus braços vazios. Então
me despeço. Fico na fantasia. Sou aquela que não precisou de pés, pois tinha asas para
voar. Asas de borboletas.
74
75
76
4BColuna Partida”
Fui segregada de mim mesma e vejo-me de longe. Envelheci rapidamente, meus
dias viraram meses, os meses anos e o presente, um espaço entre a vida e a morte. Neste
espaço, estou só, só como jamais imaginei que pudesse estar antes da escuridão. O meu
corpo me abandona aos poucos e eu, o quanto posso, bombeio meu sangue, oxigeno meus
pulmões, “dou a luz a mim mesma”. A minha imagem impactante e desconectada do
que me cerca é a imagem da dor, da solidão, da impotência diante da natureza. Também
sou a memória, o sonho, o real surreal. Aqui me mostro de frente, seminua, fantasiada
de sangue, envolvida do meu próprio cordão umbilical.
A lentidão com que desenho os meus passos é a expressão mais sincera da minha
fragilidade. O vento balança-me e quase me entrego, mas tenho raízes bem fincadas e
elas me sustentam para que eu possa retornar. Assim resisto. O tremor dos meus pés não
me faz cair. Permaneço com a coluna ereta e eu mesma me reergo.
Tenho seios incapazes de dar leite e sonhos que me foram roubados, mas nem o
gosto amargo dos remédios tirou-me a doçura nos lábios.
Vejo a minha imagem nas tantas que me procuram. Sinto-me protegida quando
tocas minha pele, conduz meus passos, mesmo sabendo que escapo aos poucos. Escapo de
mim.
Quando cantas, danço para ti. Carrego-te em meus braços vazios. Seduzo e sinto
tua sedução. Somos apenas nós duas, somos uma, nossos olhares se chamam e chegas
bem perto. Mas, mais uma vez, não podes invadir esse meu espaço. Espaço de solidão.
Se ao fim, seguro-te também e porque sei que também precisas. Deixo-me
suavemente escorrer até chegar em tua mão e, em tua partida, sigo teus passos e me vejo
no sangue, no rosto coberto, nos cabelos ao chão, no vazio das tuas mãos.
77
ENTRE CHAGAS E BORBOLETAS
Trilha O tempo de quem dança
Acompanhando livremente os passos. Mais do que isso, seguindo o tempo
dos sentimentos. É assim que penso a relação entre trilha e intérprete. Não quis
trabalhar com contagem da música. Não existe marcação de um passo num
acorde. O que existe são pequenas deixas musicais, deixas que situam o bailarino
sobre o momento em que ele está, mas sem necessariamente obrigá-lo a
apressar o movimento para não prejudicar a cena seguinte.
Com as inúmeras repetições que ocorrem nos ensaios, acaba-se
construindo um tempo interno e conjunto que surge na relação consigo mesmo e
com o outro. A coreografia termina fixando um tempo próprio, as deixas terminam
acontecendo quase sempre no mesmo momento musical. É claro que ocorrem
variações. Ora o espaço em que se está apresentando é mais amplo, ora menos.
Ora os bailarinos estão mais ansiosos, ora menos. Mas são variações que podem
ser resolvidas por meio de pequenas operações da trilha pelo sonoplasta. Nada
que altere significativamente o espetáculo.
Há dois momentos em que não há trilha mecânica. O primeiro deles é
aquele em que as bailarinas estão ao som da própria respiração, foi uma
descoberta extremamente espontânea. Elas começaram a ficar muito ofegantes,
pela própria movimentação daquele trecho coreográfico, e eu acabei aproveitando
isso como parte da trilha. O segundo é a cena do canto Paloma Negra. Em ambos
podemos pausar o CD e retomá-lo nas músicas das cenas seguintes,
acompanhando o tempo das bailarinas. A trilha, portanto, termina compondo a
densidade e a poesia dos momentos cênicos, sem estar atrelada ao movimento.
A escolha das músicas foi uma tarefa difícil. Selecionei algumas que sentia
ter a ver com o trabalho e, de tanto escutá-las, tornaram-se companheiras. Mas
criava as cenas sem pensar na trilha exata, nem mesmo a que estava usando
seguia sempre a mesma ordem, pois em cada ensaio experimentava as faixas em
78
trechos coreográficos diferentes. Aos poucos, fui descartando algumas e repetindo
outras.
Começaram a surgir idéias sonoras relacionadas a momentos específicos
do trabalho. Queria usar, em algumas partes do duo das máscaras, algo que
remetesse à infância, vozes de criança ou uma canção de ninar. Também achei
interessante inserir referências religiosas, tão presentes no universo mexicano.
Pensando nisso, introduzimos sons de reza, em que as vozes não são
identificadas, e a interferência de sinos, em vários momentos da trilha, ligando
uma música à outra.
O meu desejo era trabalhar com um músico para compor uma trilha inédita.
No entanto, percebi que durante os ensaios eu insistia em repetir algumas
músicas já selecionadas. Essa insistência tornou-se bastante significativa, não
conseguia mais imaginar aquelas cenas sem aqueles trechos musicais. Senti que
poderia ser interessante mantê-los.
Para criar a transição entre essas idéias, convidei o músico Loop B, pois ele
já havia feito outro trabalho musical para a companhia. Conversamos sobre a
minha idéia de trilha e o ambiente sonoro que desejava instaurar em cada cena.
Ele assistiu a alguns ensaios; num primeiro momento, passamos a coreografia
com as músicas que eu estava usando e, em seguida, passamos no silêncio, no
tempo sugerido pelo próprio movimento. Nesse contato inicial, apenas mencionei
o meu desejo de usar as músicas que eu já havia selecionado, mas deixei-o à
vontade para experimentar composições próprias, pois também me instigava essa
outra possibilidade.
A primeira prova da trilha veio um mês após esse encontro. Ele compôs
uma faixa única de aproximadamente 50 minutos de duração, com pouquíssimas
variações rítmicas. Talvez, das nossas conversas, tenha ficado uma referência
muito presente de trilha sonora como fundo musical, sem evidente
correspondência com os movimentos. Mas não era só isso. Parte da proposta era
essa, mas o caminho que ele sugeriu não criou um ambiente intenso e presente,
que era o que eu buscava. Lembro de lhe falar de algo que ficasse impregnado,
79
registrado na memória, um tema musical que nos acompanhasse insistentemente.
Era o que eu imaginava. Algo que colasse na imagem vista e permanecesse vivo.
Dessa primeira prova manteve-se muito pouco, apenas um trecho de violão e
alguns efeitos sonoros.
Já no segundo encontro, pedi que ele trabalhasse com as músicas que eu
estava usando, acrescentando sinos, vozes das crianças, barulho de chuva, sons
que trouxessem a presença da maternidade, natureza, religiosidade, enfim, muitas
das referências descobertas no decorrer do processo.
Discutimos várias possibilidades, em cada uma das cenas e, numa segunda
tentativa de composição da trilha, identifiquei-me um pouco mais. Mas ainda não
tinha concluído a pesquisa corporal, estávamos no meio do percurso. Foi com
essa tentativa que fomos para a qualificação.
Dois meses depois, novos ajustes na trilha. A última música escolhida para
fazer parte dela foi a primeira que usei quando comecei a pesquisar Frida –
Paloma Negra. Mais uma vez, voltei à idéia inicial que, a princípio, havia
abandonado. Essa música seria cantada ao vivo por Aline, mas antes dessa cena
a trilha anunciaria, sutilmente, alguns trechos dela.
Hoje ainda tenho dúvidas sobre alguns trechos da trilha. Acho que
parcerias para a criação são extremamente difíceis. É preciso haver muita
identificação entre coreógrafo e músico. O que me manteve com Loop B foi a sua
total disposição em considerar as minhas sugestões. Assim caminhamos juntos
em todas as escolhas.
Espaço e Luz Uma imagem apartada
O processo começou, como já foi dito, com três bailarinas: Paula, Maitê e
Silvia. Pouco tempo depois Aline se juntou a nós e a última a chegar foi Jéssica,
que não sei se por acaso ou por total identificação, tornou-se a “Frida apartada”.
Essa Frida, todas as vezes em que está em cena, ocupa apenas uma parte do
80
espaço cênico, que delimita o lugar que é só dela, um lugar onde ninguém mais
transita.
Depois de descobrir essa imagem resolvi separá-la também por meio de
outros recursos – o linóleo e a luz. Mas isso aconteceu por acaso. Para a
qualificação, usaríamos linóleo branco; faltou um linóleo para completar o espaço
da sala. Foi quando surgiu a idéia. Deixaríamos quatro linóleos brancos e apenas
um preto, que seria o da Jéssica. Isso também poderia ser resolvido com a luz,
mas aproveitamos aquela situação para experimentar a mistura do preto com o
branco.
Depois da qualificação, realizada no Departamento de Dança do Instituto de
Artes da Unicamp, apresentamos uma vez na Casa do Lago. Lá fizemos o oposto,
quatro linóleos pretos e um branco. Mas nos pareceu que uma figura isolada e no
branco ficava com um destaque muito grande, desequilibrando a idéia proposta
para a cena.
Na concepção da luz, trabalhei com Casé, o iluminador da Companhia
Satacatto. Como não tenho muita experiência com iluminação, expus as idéias de
como visualizava o espaço cênico, mas não fiquei acompanhando muito de perto
o andamento da criação. Não foi uma opção acertada, mas só mais tarde eu viria
a saber disso.
Casé acompanhou alguns ensaios, nos quais conversamos um pouco sobre
a concepção do trabalho. Não queria usar cores, pensava numa luz toda branca,
para compor com a idéia do figurino. Sugeri um quadrado de luz, formando uma
moldura e uma diagonal de ponta a ponta do palco, onde muitas cenas
acontecem.
Porém, nunca havíamos testado a luz e o linóleo em duas cores num
espaço cênico grande. Tínhamos feito, até então, três apresentações em lugares
bem mais intimistas, onde a platéia ficava bem próxima da cena. A apresentação
que se aproximava, no Sesc Santana, seria diferente. Considero esse dia a estréia
do trabalho, porque foi o primeiro momento em que tivemos todos os elementos
81
da forma como foram pensados no processo criativo – figurino, luz, linóleo, trilha e
platéia.
O palco só esteve disponível para nós no dia da apresentação. A
montagem de luz foi bem desgastante; neste momento percebi como havia ficado
distante dessa parte da criação. Nada parecia dar certo, os equipamentos
solicitados eram insuficientes para fazer o imaginado e a luz estava manchando o
chão a ponto de realmente incomodar. Então, percebi que deveria ter tido mais
cuidado ao pensar na cor branca para o linóleo, pois ela evidencia mais facilmente
qualquer falha no espaço. Foi um grande aprendizado. Naquele espaço amplo a
figura apartada distanciou-se imensamente da cena geral. Acho que naquele
momento comecei a desistir do linóleo em duas cores, mas já não dava mais
tempo. Também percebi que a moldura de luz ficou muito enfatizada, tirando o
foco da cena final, que na sua sutileza pedia uma luz mais fechada nas duas
intérpretes.
Compreendi naquele momento que o projeto de luz precisava ser
repensado. O caminho seria simplificar. A luz, assim como o figurino, tinha de
compor com as imagens dos intérpretes em cena e não se sobrepor a elas.
Depois dessa experiência pensei no espaço com linóleo todo preto. Apenas um
feixe estreito de luz separando Jéssica das demais poderia ser suficiente. Mas
isso ainda não foi experimentado. Ficou para mim a certeza de como não fazer. E,
mais uma vez, de o quanto é importante que todas as questões que envolvem a
criação caminhem juntas, sem atropelos.
A concepção da luz ficou inacabada porque será preciso repensar no mapa
criado e testá-lo em outra oportunidade. Dentro da realidade da dança, a luz
termina sendo sempre adaptada, porque é dispendioso se ter todos os
equipamentos necessários disponíveis nos locais de apresentação. Talvez por
conhecer e conviver com essa realidade, eu não tenha me preocupado tanto em
deixar a criação da luz definida. Mas deveria ter sido o contrário, pois só assim
saberia exatamente do que poderia abrir mão nos lugares com menos recursos
encontrar o essencial para compor com o trabalho.
82
Figurinos Cores “sem cores”
Esqueci o espelho. Não via mais apenas uma Frida refletida em cinco
intérpretes. Via muitas Fridas personalizadas, distantes e íntimas umas das
outras. Faces de uma única imagem ou muitas imagens de uma mesma face.
Como vestir essas Fridas? Observei as cenas criadas. Visualizei a presença do
duplo. O feminino e o masculino. Homem e mulher não como personagens
antagônicos, mas como duas forças num mesmo conteúdo. Pensei numa das
bailarinas de calça e paletó, tal qual Frida havia se pintado, tal qual havia se
deixado fotografar junto à família, no meio das três irmãs, fazendo-se “o filho
homem”. Paula me parecia a intérprete mais próxima dessa imagem. Não era uma
mulher travestida de homem. Paletó, sem camisa por dentro, os seios aparecendo
sutilmente. Essa terminou se tornando, para mim, a principal imagem do figurino.
Aquela que simboliza o paradoxo, a que traz homem e mulher no mesmo corpo.
Desenho Yumi Sakate
Foi somente em outubro, um mês antes da estréia, que comecei a decidir
como vestir essas muitas Fridas, mas acho que, naquele momento, a
83
personalização das bailarinas já estava bem mais clara. Depois que comecei a
enxergar essas diversas faces e fases na cena, tudo ficou mais compreensível.
Então, decidi que ninguém se vestiria igual.
Pesquisei os trajes usados por Frida, não queria nada literal, apenas
algumas referências. Pensei em vestidos com pequenos detalhes de renda,
alguém com gola alta, sugerindo um colete, algumas estampas de flores pintadas.
Sem exageros, sem evidências, sem cores. Mas onde estão as tantas cores de
Frida Kahlo?
Foto: André Prado
29. Entre Chagas e Borboletas Na seqüência: Silvia Martins, Paula Sanchez, Maitê Molnar e Aline Proetti
Preto, branco e cinza. Essas são as escolhidas para vestirem Frida e o
espaço cênico. Foi uma escolha que demorou a acontecer. No exame de
84
qualificação foi interessante esperar cores e não encontrá-las. Nessa ocasião, as
intérpretes estavam de preto porque ainda não tínhamos figurino e o linóleo
branco terminou contrapondo a sua cor ao preto. Essa experiência nos mostrou
uma possibilidade interessante.
As duas outras cores que aparecem no espetáculo são sutis e não estão no
figurino: um líquido azul, passando entre tubos estreitos, como veias expostas, na
figura apartada de Jéssica, e um vermelho que escorre pelas costas nuas e cobre
as unhas de Maitê.
Fotos: André Prado
30. Entre Chagas e Borboletas Jéssica Moretto e Maitê Molnar
Na dança, o figurino precisa ser realmente uma parte em harmonia com o
intérprete e seus movimentos. Em razão disso, para que não atrapalhasse a
coreografia, observei o que seria necessário para que cada uma das intérpretes se
mexesse livremente, sem que a amplitude de seus movimentos fosse limitada.
85
Pensando nisso, decidimos, eu e o elenco, o comprimento das saias, o uso ou não
das mangas, etc.
Convidei Yumi Sakate, que trabalha com moda e tem uma grande
familiaridade com dança, para desenhar os figurinos, acrescentando suas idéias
às minhas. Durante dois encontros ela apenas observou a coreografia e sugeriu
algumas possibilidades. No terceiro, quase três meses após o primeiro, as idéias
foram propostas em desenho.
Como estávamos muito próximas da estréia, saímos em busca de vestidos
que se aproximassem daqueles desenhos, na intenção de acrescentar os detalhes
de flores, rendas e pinturas nos figurinos já comprados. Não deu certo. Tudo o que
encontramos teria de ser bastante modificado, por isso resolvemos confeccioná-
los numa costureira.
Depois de finalizado, fizemos um ensaio-teste com o figurino, observando a
organização das cenas com a composição do preto, cinza e branco.
Experimentamos trocar alguns figurinos entre elas, pois apesar de terem sido
concebidos de acordo com a individualidade de cada intérprete, somente depois
de visualizados a distância, percebemos como se adequariam melhor às imagens
cênicas.
Os detalhes finais como a escolha das estampas, as aplicações de flores e
as rendas nos vestidos foram acrescentados pela figurinista. Queríamos trabalhar
com as sutilezas, nada exagerado. Foi uma parceria acertada, pois,
pessoalmente, considero o figurino uma das etapas mais difíceis do processo
criativo. Além de não tolher os movimentos ou desfavorecer o desenho do corpo,
tem de estar bem afinado com a proposta do trabalho porque ele contribui
incisivamente na imagem em que se apresenta o intérprete.
Na última cena do espetáculo não há mais cinza e branco. Não há tons
intermediários ou nuances sem definição. No final, depois de algumas poucas
trocas de figurino, durante o espetáculo, todas vestem o preto, a não-luz. É um
momento de luto. É aqui, também, que aparece o vermelho-sangue. É tudo o que
resta. Sangue da despedida.
86
Foto: André Prado
31. Entre Chagas de Borboletas Silvia Martins
87
Outros ecos...
Re-conhecer esse espaço em que quimeras se escondem, inquietudes se
alojam, instintos se afloram, desejos desconhecidos encontram amparo. Re-
conhecer esse espaço individual da criação. Percebendo a dor, atravesso-a e
recebo-a de volta. Mortes se tornam companheiras.
Divido as sensações com os que me acompanham e fico aberta às várias
possibilidades de ressoar um mesmo som. Troco imagens, primeiro comigo
mesma, depois com o outro. O movimento interno é contínuo, turbulento, sereno.
As rupturas são sinais de novo início, o novo início é um retorno à ruptura. Cada
momento no seu momento, mesmo que tudo se cruze, mesmo que não se possa
re-conhecer. Apenas sentir.
88
REFERÊNCIA DAS OBRAS E DAS IMAGENS FOTOGRÁFICAS
1. Imagem extraída do seu diário na página 141.
2. A Coluna Partida, 1944. Óleo sobre tela, montado sobre masonite, 40 x 30,7
cm. Museu Dolores Olmedo Patino, México.
3. Auto-Retrato com Vestido de Veludo, 1926. Óleo sobre tela, 79,7 x 60 cm.
Sucessores de Alejandro Gómez Arias, México.
4. Eu a Mamar ou Minha Ama e Eu, 1937. Óleo sobre metal, 30,5 x 34,7cm.
Museu Dolores Olmedo Patino, México.
5. Algumas Pequenas Facadas, 1935. Óleo metal. 38 x 48,5 cm. Museu Dolores
Olmedo Patino, México. Foto Raúl Salinas.
6. Auto-Retrato El Marco, 1938. Óleo sobre alumínio e vidro, 29 x 22 cm. Museu
Nacional de Arte Moderna, Centro Georges Pompidou, Paris.
7. Moisés ou Os Núcleos, 1945. Óleo sobre fibra dura, 61 x 75,6 cm. Coleção
Jorge Espinosa Ulloa, México.
8. Auto-Retrato com Colar, 1933. Óleo sobre metal, 34,5 x 29,5 cm. Coleção
Jacques e Natasha Gelman, México.
9. Auto- Retrato Dedicado ao dr. Eloesser, 1940. Óleo sobre masonite, 59,5 x 40
cm. Coleção particular, Estados Unidos.
10. Auto-Retrato com Colar de Espinho, 1940. Óleo sobre tela, 63, 5 x 49,5 cm.
Centro de Pesquisas Humanas, Universidade de Austin, Texas.
11. Auto-Retrato com Trança, 1941. Óleo sobre masonite, 51 x 38, 5 cm. Coleção
Jacques e Natasha Gelman, México.
12. Auto-Retrato em Tehuana ou Pensando em Diego, 1943. Óleo sobre fibra
dura, 62,8 x 60,9 cm. Coleção Jaques e Natasha Gelman, México.
13. Diego e Eu, 1949. Óleo sobre tela montado sobre masonite, 29, 5 x 22,4 cm.
Coleção particular, Nova York.
14. Meu Nascimento, 1932. Óleo sobre metal, 30,5 x 35 cm. Coleção particular
(Madonna), EUA.
15. Retrato de Luther Burbank, 1931. Óleo sobre masonite, 86, 5 x 61,7 cm.
Museu Dolores Olmedo Patino, México.
89
16. Adriana Guidotte e Vanessa Macedo no duo Sem Voz, Sem Sono, Sem Vez.
Centro Cultural São Paulo, maio/2006. Foto de Gil Grossi.
17. As Duas Fridas, 1939. Óleo sobre tela, 173,5 x 173 cm. Museu de Arte
Moderna México.
18. Vanessa Macedo no solo Versos da Última Estação. Sede do Balé da Cidade,
junho/2007. Foto de Silvia Machado.
19. Vanessa Macedo no solo Versos da Última Estação. Sede do Balé da Cidade,
junho/2007. Foto de Silvia Machado.
20. Auto-Retrato com o Cabelo Cortado, 1940. Óleo sobre tela, 40 x 28 cm. Doada
por Edgar Kaufman Jr ao Museu de Arte Moderna, Nova York.
21. Silvia Martins no espetáculo Entre Chagas e Borboletas. Sesc Santana,
novembro/2007. Foto de André Prado.
22. Sivia Martins e Paula Sanches no espetáculo Entre Chagas e Borboletas. Sesc
Santana, novembro/2007. Foto de André Prado.
23. Aline Proetti e Jéssica Moretto, na ordem, no espetáculo Entre Chagas e
Borboletas. Sesc Santana, novembro/2007. Foto de André Prado.
24. Maitê Molnar no espetáculo Entre Chagas e Borboletas. Sesc Santana,
novembro/2007. Foto de André Prado. Imagem da página 67.
25. Paula Sanchez no espetáculo Entre Chagas e Borboletas. Sesc Santana,
novembro/2007. Foto de André Prado. Imagem da página 69.
26. Silvia Martins no espetáculo Entre Chagas e Borboletas. Sesc Santana,
novembro/2007. Foto de André Prado. Imagem da página 71.
27. Aline Proetti no espetáculo Entre Chagas e Borboletas. Sesc Santana,
novembro/2007. Foto de André Prado. Imagem da página 73.
28. Jéssica Moretto no espetáculo Entre Chagas e Borboletas. Sesc Santana,
novembro/2007. Foto de André Prado. Imagem da página 75.
29. Elenco completo da Stacatto no espetáculo Entre Chagas e Borboletas. Sesc
Santana, novembro/2007. Foto de André Prado.
30. Jéssica Moretto e Maitê Molnar, na ordem, no espetáculo Entre Chagas e
Borboletas. Sesc Santana, novembro/2007. Foto de André Prado.
90
31. Sivia Martins no espetáculo Entre Chagas e Borboletas. Sesc Santana,
novembro/2007. Foto de André Prado.
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Site consultado na internet:
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