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Monstro? Esfinge, animal e donzela: centauro, macho e cavalo; unicórnio,
quimera, corpo compósito e misturado; onde e como distinguir o lugar da solda ou do
corte, o sulco onde a ligação se ata e se aperta, a cicatriz onde se juntam os lábios, o
da direita e o da esquerda, o de cima e o de baixo, mas também o anjo e a besta, o
vencedor vaidoso, modesto ou vingador, e a humilde ou repugnante vítima, o inerte e o
imbecil, o senhor e o escravo, o imperador e o palhaço. Monstro, é verdade, mas
normal. Que semblante afastar, agora, para melhor conhecer o lugar de junção?
Arlequim-Hermafrodita serve-se das duas mãos, não como ambidestro, mas
como canhoto completado destro até do lado esquerdo, viu-se claramente quando ele
se despia, suas capas dando viravoltas nos dois lados. Encantos da infância e rugas
próprias dos idosos, misturados, levam a que se pergunte sua idade: adolescente ou
ancião? Mas, quando apareceram a pele e a carne, todos descobriram, sobretudo sua
mestiçagem: mulato, temperado, híbrido em geral, e em que medida? Um quarto de
sangue negro? Um oitavo? E se ele não brincasse mais de rei, mesmo de comédia,
daria vontade de chamá-lo de bastardo ou mestiçado, cruzado. Sangue misto, marrom,
amarronzado, impuro.
Que nos poderia exibir agora o monstro comum, tatuado, ambidestro,
hermafrodita e mestiço sob a própria pele? Sim, o sangue e a carne. A ciência fala de
órgãos, de funções, de células e de moléculas, para finalmente confessar: faz tempo
não se fala mais de vida nos laboratórios: mas ele nunca se refere à carne que,
precisamente, designa, num dado lugar do corpo, aqui e agora, a mistura de músculos
e de sangue, de pele e de pêlos, de ossos, de nervos e de funções diversas, que
mescla aquilo que o saber pertinente analisa. A vida joga os dados e embaralha as
cartas. Arlequim põe à mostra, para terminar, a sua carne. Misturados, a carne e o
sangue mestiço de Arlequim parecem confundir-se ainda com um casaco de arlequim.
Há algum tempo, numerosos espectadores já tinham deixado a sala,
cansados dos golpes teatrais frustrados, irritado com essa viravolta da comédia em
tragédia, tendo chegado para rir, decepcionando-se por ter que pensar. Alguns mesmo,
especialistas eruditos sem dúvida, haviam compreendido, por sua própria conta, que
cada porção do seu saber parece também com o casaco de Arlequim, cada um
trabalhando na interseção ou na interferência de várias outras ciências e, às vezes, de