hipocrisias, mas ao mesmo tempo se mostra como um
homem comum, que erra e sofre como todos os demais (Puc
Rio, Certificação Digital No 0519850/CA).
Toda esta certeza da auto-imagem encontrada em Rousseau está bem
distante do que apresenta o escritor argentino Jorge Luis Borges em seu conto
Borges e eu de 1985, em que narrador e autor se confundem. O
autoquestionamento substitui a afirmação da auto-imagem. Não há respostas
nem formação identitária coerente. A transparência aqui se faz na intuição e na
incerteza como se a auto-imagem soubesse que a busca de seu lugar de
existência é utópica ou pertence a um não-lugar.
Ao outro, a Borges, é que acontecem as coisas.
Eu caminho por Buenos Aires e demoro-me, talvez já
mecanicamente, na contemplação do arco de um saguão
e da cancela; de Borges tenho notícias pelo correio e vejo
o seu nome num trio de professores ou num dicionário
biográfico. Agradam-me os relógios de areia, os mapas, a
tipografia do século XVIII, as etimologias, o sabor do café
e a prosa de Stevenson; o outro comunga dessas
preferências, mas de um modo vaidoso que as converte
em atributos de um ator. Seria exagerado afirmar que a
nossa relação é hostil; eu vivo, eu deixo-me viver, para
que Borges possa urdir a sua literatura, e essa literatura
justifica-me. Não me custa confessar que conseguiu
certas páginas válidas, mas essas páginas não me podem
salvar, talvez porque o bom já não seja de alguém, nem
sequer do outro, mas da linguagem ou da tradição.
Quanto ao mais, estou destinado a perder-me
definitivamente, e só algum instante de mim poderá
sobreviver no outro. Pouco a pouco vou-lhe cedendo tudo,
ainda que me conste o seu perverso hábito de falsificar e
magnificar. Espinosa entendeu que todas as coisas
querem perseverar no seu ser; a pedra eternamente quer
ser pedra, e o tigre um tigre. Eu hei-de ficar em Borges,
não em mim (se é que sou alguém), mas reconheço-me
menos nos seus livros do que em muitos outros ou no
laborioso toque de uma viola. Há anos tratei de me livrar
dele e passei das mitologias do arrabalde aos jogos com o
tempo e com o infinito, mas esses jogos agora são de
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