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Robson Rodrigues de Paula
Audiência do Espírito Santo”: música evangélica, indústria
fonográfica e formação de celebridades no Brasil
Tese apresentada, como requisito parcial
para obtenção do título de Doutor, ao
Programa de Pós-graduação em Ciências
Sociais, da Universidade do Estado do Rio
de Janeiro.
Orientadora: Profª. Dr.ª Clara Cristina Jost Mafra
Rio de Janeiro
2008
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2
Robson Rodrigues de Paula
“Audiência do Espírito Santo”: música evangélica, indústria fonográfica e produção
de celebridades no Brasil
Tese apresentada, como requisito parcial para
obtenção do título de Doutor, ao Programa de
Pós-graduação em Ciências Sociais, da
Universidade do Estado do Rio de Janeiro.
Aprovado em _________________________
Banca Examinadora
________________________________________
Profª Dr.ª Clara Cristina Jost Mafra (orientadora)
Departamento de Ciências Sociais (PPCIS/UERJ)
________________________________________
Profª Dr.ª Cecília Loreto Mariz
Departamento de Ciências Sociais (PPCIS/UERJ)
________________________________________
Profª Dr.ª Maria Cláudia Coelho
Departamento de Ciências Sociais (PPCIS/UERJ)
_________________________________________
Profª Dr.ª Renata Menezes
Museu Nacional (UFRJ)
_________________________________________
Profª Dr.ª Elizabeth Travassos
Departamento de Música (UNIRIO)
Suplentes
__________________________________________
Profª Dr.ª Sandra de Sá Carneiro
Departamento de Ciências Sociais (PPCIS/UERJ)
__________________________________________
Profª Dr.ª Márcia Leitão Pinheiro
Laboratório de Estudos da Sociedade (Lesce/UENF)
Rio de Janeiro
2008
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3
A Heloisa R. de Silva e a Luiz Ricardo Lopes, pelo apoio
incondicional, pela certeza de que “tudo daria certo”.
4
AGRADECIMENTOS
Foram muitas as pessoas que direta e indiretamente contribuíram para a realização desta
tese.
Em primeiro lugar, eu agradeço imensamente à professora Clara Mafra. Ao longo de minha
curta jornada como antropólogo, tive a feliz oportunidade de contar com sua orientação.
Seja indicando caminhos promissores, seja incentivando o desenvolvimento de minha
retórica, seja cobrando e lembrando os prazos, Clara conseguiu ensinar-me a tirar o melhor
de minhas limitações. Por ela tenho imensa gratidão e amizade.
Ao longo de minha formação na UERJ também contei com a boa-vontade e generosidade
de outros professores. Agradeço, principalmente, a Rosane Prado, Márcia Contins, Luiz
Eduardo Soares, Cecília Mariz e Luitgarde Cavalcanti.
No Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da UERJ encontrei um ambiente
agradável de reflexão e produção intelectual. Em especial, destaco os cursos de
“Sensibilidade Moderna e Inteligibilidade Religiosa”, ministrado por Amir Geiger e Cecília
Mariz e o de “Teoria Social III”, lecionado por Maria Cláudia Coelho e Valter Sinder.
Também não posso deixar de prestar os meus agradecimentos a Rose Nascimento, Lúcia
Lombardi e Álvaro Júnior, por terem concedido entrevistas com uma riqueza de detalhes
impressionante. Contando com a colaboração deles, pude imergir, por completo, no
universo da música dos evangélicos.
A Lígia, Graça, Lúcia, agradeço o acolhimento e receptividade quando freqüentei a Igreja
Ministério do Espírito Santo em Nome do Senhor Jesus Cristo, no início da pesquisa.
Expresso a minha profunda gratidão aos colaboradores Michael B. Matias, Sandra Orequio
e Paulo Roberto Mariscal, por terem me ajudado nas visitas à Igreja Ministério Apascentar
de Nova Iguaçu. Estendo os meus agradecimentos, aos membros dessa igreja, que
concederam ótimos relatos.
Agradeço ao pastor Eraldo Melo da Igreja Comunidade Evangélica de Salvador, pelas
informações concedidas sobre aquele contexto sócio-religioso.
5
No exame de qualificação, Márcia Contins e Elizabeth Travassos fizeram leituras bastante
consistentes, ajudando-me a focalizar as questões. A elas também sou grato.
Aos companheiros de jornada, Alberto C. Elias, Camila Sampaio, Carly Machado, Cláudia
Swatowski, Marcelo Natividade, Patrícia Coralis, agradeço pelos momentos de trocas e de
ajuda mútua, seja nos cursos, ou nos congressos de que participamos pelo mundo a fora.
Aos amigos de longa data, Adriana e Jansen, devo fazer um agradecimento especial.
Obrigado por estarem sempre presentes, seja nos momentos de alegria ou de turbulência.
Aos amigos Marcelo Rauta e Rafael Bezerra, por terem, generosamente, compartilhado os
seus conhecimentos sobre teoria musical.
Aos meus amigos do peito, Carla, Bianca, Márcia, Gabriel, Sarinha, Raquel, Rosane, Rô,
Carol, Fernando, Alan, agradeço pelo suporte emocional e por torcerem pelo meu sucesso.
À minha família, em especial às minhas irmãs, Vera e Caroline, e a minha sobrinha, Larissa.
A Denise Salim Santos, pela revisão cuidadosa da tese.
Por fim, não posso deixar de agradecer à FAPERJ, por ter-me concebido uma bolsa de
estudo em grande parte do doutorado.
6
RESUMO
DE PAULA, Robson R. “Audiência do Espírito Santo: música evangélica, indústria
fonográfica e formação de celebridades no Brasil, 2008. 214 f. Tese (Doutorado em
Ciências Sociais)- Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais, Universidade
do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2008.
Seguindo uma perspectiva analítica que visa compreender o fenômeno a
partir de suas dinâmicas internas, nesta tese focalizo o sentido de missão religiosa
que tem impulsionado as recentes transformações na organização da produção
musical evangélica, bem com as negociações realizadas pelos diferentes atores
sociais religiosos e não religiosos envolvidos no processo. Argumento que esse
nicho do mercado possui uma estrutura organizacional similar a de outras empresas
estabelecidas no mercado - pois conta, como as demais, com um rol de cantores,
capacidade de formação de celebridades, empresas produtoras e distribuidoras -,
mas que por estar freqüentemente associada às congregações e igrejas
evangélicas, estabelece um modo de auto-regulação estreitamente vinculado a um
projeto proselitista que visa a ampliação da “audiência do Espírito do Santo” e do
“resgate do mundo”.
Palavras-chave: Música Evangélica, Indústria Fonográfica, Formação de
Celebridades e Proselitismo Cristão.
7
ABSTRACT
Following an analytic perspective that intends to understand the phenomenon
from its inside dynamics, in this thesis I focus the meaning of religious mission that
has been stimulating the recent transformation in the gospel music production
organization, as well with the businesses made by the different social factors –
religious and non-religious – involved in the process. I argue that this part of
business owns an organizational structure similar to other companies established on
the market for it counts, as the others, with a roll of singers, celebrities formation
capability, producing companies and deliverers – , but for being usually associated to
congregations and churches, establishes a way of self-regulation closely joined to a
proselytism project that looks for the ampliation of the “Holly Ghost’s audience” and
of the “rescue of the world”.
Keywords: evangelical music, music industry, celebrities formation, proselytism
evangelical
8
LISTA DE ILUSTRAÇÕES
Ilustração 1 - Organograma da estrutura da grande empresa fonográfica no Brasil
nos anos 70-80-----------------------------------------------------------------------------------------32
Ilustração 2 - Organograma da estrutura da grande empresa fonográfica no Brasil a
partir dos anos 90 -------------------------------------------------------------------------------------41
Ilustração 3 - Foto da entrada do Pavilhão 5 do Riocentro ---------------------------------51
Ilustração 4 - Foto do portão do Pavilhão 5 do Riocentro ---------------------------------52
Ilustração 5 - Foto da entrada do estande da Igreja Ministério Apascentar de Nova
Iguaçu na primeira Expo-Rio Cristã no Riocentro --------------------------------------------53
Ilustração 6 - Foto do estande da Editora Paz e Terra na primeira Expo-Rio Cristã no
Riocentro ------------------------------------------------------------------------------------------------54
Ilustração 7 - Foto da cantora Rose Nascimento ---------------------------------------------68
Ilustração 8 - Foto do LP Amor Sem Fim de Lúcia Lombardi ------------------------------76
Ilustração 9 - Foto do LP Nova Paixão de Lúcia Lombardi ---------------------------------77
Ilustração 10 - Foto do LP Ao Rei Jesus de Lúcia Lombardi ------------------------------81
Ilustração 11 - Foto do LP Jesus Está Voltando de Lúcia Lombardi ---------------------82
Ilustração 12 - Foto do LP Aviva Chama de Lúcia Lombardi ------------------------------84
Ilustração 13 - Foto da fita VHS da apresentação de Lúcia Lombardi na Igreja
World Revivel Church---------------------------------------------------------------------------------84
9
Ilustração 14 - Foto do cantor Álvaro Júnior ---------------------------------------------------90
Ilustração 15 – Foto do CD Orações Musicadas de Álvaro Júnior -----------------------97
Ilustração 16 - Foto do CD Óleo Fresco de Álvaro Júnior ----------------------------------97
Ilustração 17 – Quadro com os dois circuitos de distribuição dos álbuns
evangélicos ---------------------------------------------------------------------------------------------98
Ilustração 18 – Foto do Centro de Nova Iguaçu ---------------------------------------------103
Ilustração 19 – Foto da Primeira “Mincareta Gospel”da Igreja Ministério
Apascentar de Nova Iguaçu --------------------------------------------------------------------- 116
Ilustração 20 - Foto da Primeira “Mincareta Gospel”da Igreja Ministério
Apascentar de Nova Iguaçu-----------------------------------------------------------------------116
Ilustração 21 – Foto da cantora Andréa Fontes ---------------------------------------------165
Ilustração 22 – Foto do cantor Jorginho de Xem -----------------------------------------165
Ilustração 23 – Foto da cantora Cassiane ----------------------------------------------------165
10
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ------------------------------------------------------------------------------------12
1. A INDÚSTRIA FONOGRÁFICA EVANLICA E A FORMAÇÃO DO NICHO
EVANGÉLICO------------------------------------------------------------------------------------26
1.1 A importância das majors na consolidação do mercado fonográfico
brasileiro na década de 1970 --------------------------------------------------------------27
1.2 A tentativa de criação de circuitos alternativos no mercado fonográfico
brasileiro nos anos de 1970 ---------------------------------------------------------------34
1.3 A criação da Bompastor em meio a inovação da
música evangélica (1970- 1980)-----------------------------------------------------------35
1.4 A formação das grandes gravadoras evangélicas e a formação de um nicho
do mercado fonográfico brasileiro a partir dos anos 90--------------------------38
1.5 “Com Deus eu vou vencer”: estratégias do nicho evangélico frente à crise
no mercado fonográfico internacional------------------------------------------------- 48
1.6 A Expo Rio Cristã: expandindo o mercado e integrando os “crentes--------51
2. TRÊS TRAJETÓRIAS EM UM PROCESSO DE INDUSTRIALIZAÇÃO DA
SICA EVANGÉLICA-----------------------------------------------------------------------57
2.1 A celebridade que veio de “dentro”------------------------------------------------------58
2.1.1 Rose, a “cantorinha de Jesus”--------------------------------------------------------------------------59
2.1.2 “Fui ficando fraca”: o afastamento da igreja e a constituição de uma rede mais
ampliada------------------------------------------------------------------------------------------------------62
2.1.3 O retorno e o “chamado” em um contexto de reprodução industrial da música
2.1.4 evangélica----------------------------------------------------------------------------------------------------64
2.1.5 Ser ou não ser um ídolo? A constituição da celebridade evangélica -------------------------67
2.1.6 Diva pentecostal?------------------------------------------------------------------------------------------70
2.2 A artista da MPB que se transformou em evangélica------------------------------72
2.2.1 A infância no rádio e na televio----------------------------------------------------------------------73
2.2.2 “Eu fui ao fundo do Poço”: Os primeiros contatos com a IURD--------------------------------77
2.2.3 A constituição da artista assembleiana: a conversão como ruptura?----------------------79
2.2.4 Revisão da conversão e constituição de uma rede amplia--------------------------------------82
2.2.5 Em busca do reconhecimento: a trajetória internacional-----------------------------------------85
2.3 A Constituição da celebridade regional evangélica--------------------------------87
2.3.1 A sede pela criatividade”: a infância entre o religioso e o secular----------------------------90
2.3.2 A circulação por outros estilos musicais: a influência do axé music na
adolescência-------------------------------------------------------------------------------------------------93
2.3.3 A “conversão verdadeira” e criação de uma rede de amizade ao redor da banda da
igreja-----------------------------------------------------------------------------------------------------------94
2.3.4 “A igreja é a nossa porta voz”: a distribuição dos álbuns----------------------------------------97
3 AMPLIANDO A AUDIÊNCIA DO “ESPIRITO SANTO”: A TOQUE NO
ALTAR MUSIC--------------------------------------------------------------------------------102
3.1 Uma igreja neopentecostal em Nova Iguaçu ---------------------------------------103
3.2 Igreja e seu Fundador: trajetórias que se confundem
e se entrecruzam------------------------------------------------------------------------------107
3.3 “Ele nunca falta”: o sagrado no meio da comunidade---------------------------109
11
3.4 “Um dia todos os jovens da Baixada irão declarar que Jesus é o Senhor”:
“o resgate do mundo”----------------------------------------------------------------------113
3.5 “Este lugar é sagrado, apesar da gente estar se divertindo”: Os eventos
musicais e as festas temáticas----------------------------------------------------------114
3.6 Separados para Deus e contratados pela igreja”: A formação do
Ministério Toque o Altar-------------------------------------------------------------------119
3.7 “Uma pequena história de sucesso”: as músicas do Toque no Altar-----120
3.8 “Nós não somos uma gravadora”: a divisão no Toque no Altar-------------124
4 AS SONORIDADES DO GOSPEL TUPINIQUIM”: OS ESTILOS MUSICAIS
EVANGÉLICOS--------------------------------------------------------------------------------132
4.1 Reproduzido para evangelizar: a formação da “hinódia oficial------134
4.2 “A proliferação dos corinhos” e dos “cânticos”: novas musicalidades e
antigos temas -------------------------------------------------------------------------------- 143
4.3 De Vento em Popa”: Os Vencedores Por Cristo e a produção musical
evangélica antes da consolidação do nicho fonográfico
------------------------------------------------------------------------------------------------------146
4.4 As músicas que embalam o Mercado Evangélico----------------------------------151
4.4.1 “Há uma roda de fogo entre nós”: “Os hinos de fogo” e as “músicas
pentecostais”------------------------------------------------------------------------------------151
4.4.2 “Não sou apenas servo, teu amigo me tornei”: “Os hinos de adoração e
Louvor”- entre o sentir e o aprender------------------------------------------------------166
4.4.3 As “músicas resgatadas”----------------------------------------------------------------------181
4.4.3.1 “Chuta que é laço”: O gospel funk - na contramão da sensualidade e
no caminho da salvação-----------------------------------------------------------------------181
4.4.3.2 “O resgate do tambor”: axé music evangélicos e a redefinição dos limites
entre sagrado e profano-----------------------------------------------------------------------189
4.4.4 produção musical evangélica-------------------------------------------------------------193
CONCLUSÃO--------------------------------------------------------------------------------------195
BIBLIOGRAFIA-----------------------------------------------------------------------------------203
APÊNDICE A - Roteiro semi-estruturado utilizado para entrevistar os
cantores evangélicos ------------------------------------------------------------------------212
APÊNDICE B -Roteiro semi-estruturado utilizado para entrevistar os
membros da Igreja Ministério Apascentar --------------------------------------------214
12
INTRODUÇÃO
A apresentação do objeto da tese
“Música gospel”, “música de crente”, “louvor”, “música religiosa”, “música
cristã contemporânea” o alguns termos utilizados para designar a música
evangélica, uma música de difícil definição, mas que, no entanto, se encontra
marcadamente articulada a partir de categorias morais: o que está dentro” é a
música de Deus, que constroe a pessoa; o que está “fora” é do “mundo”, do
Demônio. Produzida por indivíduos ou grupos evangélicos, preferencialmente é
destinada à audiência evangélica. Digo preferencialmente porque, cada vez mais,
observa-se que a música desse segmento religioso vem conquistando novos
públicos, tem sido disponibilizada como mais um gênero musical pelo mercado
fonográfico brasileiro
1
, assumindo um lugar de destaque nas programações
evangélicas voltadas para o grande público.
Mesmo sendo um fenômeno instigante para ser estudado, que estamos
falando da produção musical do segmento religioso
2
que mais cresceu nas últimas
décadas e, conseqüentemente, contribuiu para a redefinição do cenário religioso
brasileiro, ainda são poucos os trabalhos, no âmbito das ciências sociais e da
etnomusicologia, que adotaram a música evangélica como objeto de pesquisa. Boa
parte desses estudos se detêm na análise dos deslocamentos, apropriações e
redefinições entre os extremos morais (“igreja” e mundo”). No conjunto dessa
escassa produção acadêmica, o trabalho de Araújo (1996)
3
se destaca por investigar
a utilização de “gêneros musicais populares” pelos evangélicos nas últimas décadas.
1
Estima-se, que 30% da produção musical nacional seja composta por “música gospel”. No primeiro capítulo,
voltarei a este ponto.
2
Segundo dados do último Censo Demográfico (IBGE), cujos resultados começaram a ser divulgados no ano de
2000, 15 % da população brasileira se diz evangélica. Tal informação chamou a atenção dos religiosos e dos
pesquisadores, já que em 1991, somente 9,05% dos pesquisados se auto-identificavam como evangélicos. Em
meros absolutos, em uma década, o segmento evangélico de 13 milhões passou a congregar 26 milhões de
pessoas. Dessa forma, eles, seguramente, ocupam o segundo lugar na distribuição religiosa do país, ficando
somente abaixo dos católicos, que constituem 73, 85% da população. Além desse dado que indica uma
redefinição no campo religioso brasileiro, foi constatado que, cada vez mais, a religiosidade evangélica tem
despertado também o interesse de indivíduos escolarizados e das camadas médias. Até então, a expansão se
dava sobretudo entre os mais pobres e com pouca escolarização.
3
No artigo, Araújo propõe analisar a inclusão de “gêneros musicais populares” no repertório musical evangélico.
Esse escrito destaca-se pela criatividade do autor que, mesmo não sendo um especialista em estudos sobre
religião, chamou a atenção para a importância da produção musical no segmento evangélico, num período em
que este aspecto dessa religiosidade não despertava grandes interesses acadêmicos.
13
Buscando sofisticar a perspectiva de análise desse etnomusicólogo, outros
artigos procuram compreender o sentido simbólico da incorporação de determinadas
musicalidades - percebidas como “profanas” pelos evangélicos até pouco tempo
atrás -, como o funk (Pinheiro, 1998) e o rock (Jungblut, 2007), no repertório desse
segmento religioso. A constituição de uma black music gospel
4
também tem sido
analisada. Porém, nesse caso, outras questões o investigadas: ora prioriza-se a
ação dos produtores que realizam os eventos evangélicos - denominados como
“festas”-, em que a black music gospel é difundida (Pinheiro, 2004; 2006), ora
procura-se compreender a noção de negritude veiculada nessa expressão musical.
(Pinheiro, 2007).
Além desses trabalhos mais pontuais, os estudos de Cunha (2004) e Dolghei
(2006, 2007) destacam-se por analisar as recentes transformações ocorridas nas
musicalidades evangélicas, por meio de uma perspectiva de cunho histórico e
macrossociológico. Inspiradas no conceito de hibridismo cultural
5
(Hall, 2003),
ambas defendem a tese de que, ao conjugarem a música tradicional evangélica
brasileira” - que foi fortemente influenciada pela tradição musical norte-americana -
com samba, rock e o funk - gêneros musicais até então rejeitados -, na atualidade,
os evangélicos estariam produzindo uma música híbrida, ou, de um modo geral, uma
cultura híbrida, caracterizada pela junção do tradicional com o moderno e do local
com o global.
Mesmo contribuindo grandemente para inteligibilidade do fenômeno, ao
produzirem uma análise de conjunto, esses dois estudos não contemplam, por
exemplo, as motivações que levaram os evangélicos a reinventarem suas
musicalidades, nem tampouco investigam as tensões e negociações existentes entre
os atores sociais (cantores, pastores, donos de gravadora etc.) que promoveram tais
mudanças. Isto porque esses trabalhos seguem uma abordagem teórico-
metodológica na qual o pesquisador se distancia do fenômeno estudado, para poder
classificá-lo. Nesse caso, em especial, concluíram que a “música gospel é uma
“musicalidade híbrida”.
4
Segundo Pinheiro, Black Music seria a expressão musical de referencial africano e produzida nos Estados
Unidos, ou inspirada nela como o rap e a rhythm Blues (2004, p.3).
5
Na minha concepção, ao considerar que, diante do processo de globalização, há uma tendência, inexorável, de
mistura das culturas, o conceito de hibridismo cultural não é preciso. Se tudo é híbrido, ou passível de o ser, qual
seria a validade analítica desse conceito?
14
Sem desconsiderar as circunstâncias histórico-sociais, nesta tese sugiro uma
outra possibilidade de entendimento do fenômeno, priorizando a análise de suas
dinâmicas internas. Procuro compreender as negociações de sentido que têm
impulsionado as recentes transformações na produção musical evangélica,
ressaltando as tensões e controvérsias estabelecidas entre os atores sociais que
estão imersos nesse processo. Levando em conta a distinção entre capitalismo e
cristianismo realizada por Robbins (2004)
6
, ao longo da tese argumento que esse
nicho do mercado fonográfico, além de possuir uma estrutura organizacional
singular, que está fortemente associado às denominações evangélicas, tamm
se estrutura e se auto-regulariza a partir da idéia de missão religiosa. Neste sentido,
analiso o enquadramento moral que norteia a produção musical evangélica.
Antes de apresentar a estrutura da tese, farei um breve recuo para descrever
melhor a minha inserção em campo. Tendo em vista que a minha relação com os
evangélicos teve início muito antes do meu ingresso no doutorado, terei que trarei à
baila outras experiências, que me encaminharam para esta surpreendente jornada.
Da “conversão” à antropologia da religião ao estudo da música
evangélica: a constituição do objeto da tese
Proveniente de uma família que tem forte influência evangélica, somente
passei a conceber essa religiosidade como objeto de estudo no início de 2000,
quando ingressei em um projeto de iniciação científica na UERJ, cuja finalidade era
investigar a União Evangélica dos Policias Militares do Rio de Janeiro (UEPMERJ).
Essa pesquisa, de que resultou minha monografia de conclusão de curso
7
, am de
permitir um ganho teórico, que demandava um conhecimento tanto da literatura
sobre antropologia da religião como dos estudos sobre Segurança Pública e
Organizações Policiais, tamm possibilitou a minha primeira experiência em
6
No artigo The Globalization of Pentecostal and a Charismatic Chistianity”, Joel Robbins faz uma revisão na
literatura sobre o processo de globalização do pentecostalismo no mundo. Segundo o pesquisador da
Universidade da Califórnia, em linhas gerais, acerca dos reflexos da expansão global do pentecostalismo, os
estudiosos se dividem em dois grandes blocos: enquanto uns defendem a iia de que essa religiosidade replica
em si as formas canônicas das culturas em que se insere; outros acreditam que os pentecostais acabam
promovendo um processo de indigenização das culturais locais, ao introduzir sua lógica cultural (concepções,
valores, rituais, etc.) nestas sociedades. Ao longo do artigo, Robbins ressalta que a expansão pentecostal tem se
dado a partir desse paradoxo.
7
Para maiores informações ver: A formação do Policial Ungido”. Monografia de final de curso em Ciências
Sociais. (UERJ), 2002 (mimeo).
15
trabalho de campo. Ao longo de 8 meses, convivendo com os policiais no 24°
Batalhão, mesmo tendo realizado entrevistas, pude produzir uma etnografia
clássica
8
, no estilo malinowskiano (Malinowski, 1978), que o próprio objeto
facilitava este tipo de narrativa.
O segmento evangélico e as questões relacionadas às organizações policiais
continuaram dominando as minhas preocupações depois da graduação. Em 2002,
ingressei no mestrado tendo como objetivo dar continuidade ao estudo iniciado
anteriormente, mas, por uma série de questões, acabei focalizando a divulgação
midiática do assassinato do jornalista da Rede Globo de Televisão, Tim Lopes,
ocorrido naquele ano
9
. Mesmo sendo “capturado” quase que completamente pelo
campo de pesquisa que estuda violência, criminalidade e segurança pública, a
religiosidade evangélica continuou me chamando a atenção, seja por estar vinculado
à linha de pesquisa Religião e Movimentos Sociais, do Programa de Pós-graduação
em Ciência Sociais (UERJ), ou pelo fato do próprio tema, escolhido para ser
estudado na ocasião, contemplar também essa esfera. Explico: um dos principais
atores sociais envolvidos no “caso Tim Lopes”, foi o inspetor evangélico Daniel
Gomes. Este policial civil, que foi o responsável pela investigação do crime, além de
ter sua carreira profissional marcada por condecorações e por investigações bem-
sucedidas, escreveu um livro
10
, no qual orienta os policiais evangélicos a serem
“bons policiais”.
Em 2004, quando iniciei o doutorado, planejava retomar o estudo sobre os
policiais militares evangélicos fluminenses e poder, dessa forma, problematizar
algumas questões que ficaram em aberto desde a graduação. Porém, por questões
políticas, a entrada de pesquisadores nas policiais do estado do Rio de Janeiro foi
dificultada. Em função disso, tive que redirecionar o objeto da tese. E se no
8
Neste trabalho foram priorizados dois níveis de análise. O primeiro plano consistiu em uma análise da relação
institucional entre a UEPMERJ, uma organização religiosa que funciona, desde a sua criação em 1967, no
interior da Polícia Militar do estado do Rio de Janeiro. De certa maneira, essa instituição procura adequar-se à
estrutura e funcionamento da PM, sem, no entanto, deixar de difundir os valores da religiosidade evangélica.
fortes indícios de que alguns princípios da religiosidade evangélica, como a “obediência às autoridades”, tendem
a reforçar o ethos corporativo militar. Além disso, a UEPMERJ, baseada na religião, desenvolve um modelo
alternativo de identidade policial. Por vezes, esse modelo se afasta do padrão de comportamento do policial não
evangélico e dos aspectos centrais do paradigma de masculinidade das camadas populares.
9
Ver: DE PAULA, Robson (2004), Tragédia” e “Acomodão”: Uma análise antropológica do assassinato do
jornalista Tim Lopes. Dissertação de mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Ciências
Sociais (PPCIS/UERJ) (mimeo).
10
GOMES, Daniel. Como investigar crimes com a ajuda divina: Pode um policial ser ajudado por Deus em suas
investigações? Rio de Janeiro: CPAD, 1999.
16
mestrado, quase me afastei dos estudos sobre religião, em 2005, optei por me
“converter” por completo à antropologia da religião.
A princípio, interessei-me pela conversão de artistas à religiosidade
evangélica. A partir do final dos anos 90, vários artistas não se converteram à
religiosidade evangélica, como também fizeram questão de expor publicamente os
motivos e os encaminhamentos de sua conversão. Monique Evans, Wanderley
Cardoso, Nelson Ned, Baby do Brasil, Dedé Santana, Gisele Fraga, Mara Maravilha,
Salgadinho, Jece Valadão, Waguinho, o alguns famosos que engrossaram a lista
dos novos evangélicos. Em meio ao crescimento e à diversificação do segmento
evangélico no Brasil, naquele momento, parecia interessante compreender não
somente a constituição desse fenômeno, mas também o que ele tinha a dizer sobre
as transformações ocorridas na religiosidade evangélica nos últimos anos.
Mais tranqüilo por ter definido um outro tema, passei, então, a pesquisar em
revistas de grande circulação e em sites evangélicos, a fim de obter maiores
informações sobre o fenômeno em questão. Observei que, de 2000 a meados de
2005, vários periódicos nacionais tinham produzido matérias sobre a conversão de
artistas evangélicos, dando, na maioria das vezes, um enfoque sensacionalista
11
.
Em boa parte das reportagens a que tive acesso, inclusive as publicadas em revistas
evangélicas
12
, a autenticidade da conversão desses novos evangélicos foi colocada
em xeque: ora interpretaram-na como um “modismo”, ora como uma possibilidade
de reconstituição de uma “carreira fracassada.
De todas as conversões de famosos ocorridas no final dos anos 90, a da
cantora Baby do Brasil, antes Baby Consuelo, parece ter causado mais
estranhamento o dos seus fãs, mas também dos evangélicos em geral.
11
Algumas reportagens sobre a conversão de artistas à religiosidade evangélica:
1- Ricos de joelhos: Artistas, profissionais liberais e emergentes buscam alívio na Igreja Sara Nossa Terra”
(Istoé, 17/09/2000);
2- Ibope: tolerante na área dos costumes, igreja evangélica atrai ricos e famosos”(Revista Veja,
04/10/2000)- disponível em: http://veja.abril.com.br/041000/p_090.html (Consulta em 17/07/2005).
3- A elite vai ao paraíso: celebridades como Íris Abravanel e Rodolfo, ex-Raimundos, abraçam a doutrina
evangélica que defende o sucesso sem culpa” (Istoé, 18/07/2001).
4- “Carreiras salvas pela força da fé(Época, 02/12/ 2002);
5- “Crentes de que toda nudez será perdoada” (Estado de São Paulo, 26/01/2003);
6- “Os artistas de Cristo” (Diário de São Paulo, 21/08/ 2005).
12
Dentre elas destacam-se:
1- “Moda ou graça” (Revista Vidamix, 01/2000)- disponível em:
http://www1.uol.com.br/bibliaworld/vidamix/num04/index.htm (consulta em 21/08/2005);
2- “Celebridades convertidas”(Arquivo Gospel, 01/04/2004)- disponível em:
http://www.arquivogospel.com.br/textos_v.asp?cod_texto=12 (consulta em 21/08/2005);
17
Reconhecida como uma das grandes cantoras da MPB e amante de um visual nada
convencional, em 1997, Baby do Brasil chocou os brasileiros ao assumir seu novo
pertencimento religioso em público. Segundo a cantora, que também se popularizou
por suas incansáveis “buscas espirituais”, após ter experimentado o “poder do
Espírito Santo” sozinha em seu quarto, sentiu uma imensa vontade de se tornar
evangélica. A partir daí, resolve fazer parte do rol de membros da Igreja Evangélica
Sara Nossa Terra, uma denominação neopentecostal que tem acolhido muitas
celebridades. Tempos depois, em 2000, dizendo-se “tocada” mais uma vez por
Deus
13
e tendo feito vários cursos teológicos, Baby do Brasil fundou sua própria
igreja, o Ministério Espírito Santo de Deus em Nome do Senhor Jesus Cristo,
passando, dessa forma, a exercer o pastorado.
Tendo em vista esse processo de conversão o expressivo que suscitou
várias indagações, resolvi entrar em contato diretamente com a cantora. Relendo
uma das reportagens que discutia sua adesão à religiosidade evangélica, tive
acesso ao endereço e ao telefone do Clube Monte Líbano, local onde Baby do Brasil
se reunia com suas “ovelhas”. Dois dias depois, em 26 de julho de 2005, liguei para
este clube, que fica na zona sul carioca, e um senhor de voz rouca informou-me que
as reuniões da “cantora Baby” estavam sendo realizadas em Botafogo. Nessa
breve conversa, ele me forneceu o telefone de uma das “colaboradoras”
(secretárias) de Baby. Alguns minutos depois, conversei com uma delas, Lígia,
sobre os meus interesses e, para minha surpresa, fui convidado a ir, naquele mesmo
dia, à igreja da “popstora” maneira carinhosa com que Baby ficou sendo
adjetivada, após ter se tornado uma líder espiritual.
Sem nenhuma identificação e o tendo estrutura arquitetônica de um templo
evangélico convencional, a igreja da “popstoraBaby do Brasil passa desapercebida
para as pessoas que transitam na Rua Arnaldo Quintela, em Botafogo. Trata-se de
uma casa de cor azul, com dois pavimentos, que não destoa das demais. Alguns
dias depois, em conversa com os membros da igreja, descobri que, de certa forma,
13
Segue um trecho de uma entrevista, onde a cantora relata essa experiência:
“Em 5 de abril de 2000, eu abri o ministério par o qual o Senhor me convocou. Ele se revelou a mim e disse que
eu abriria um ministério do qual Ele seria o comandante. Ele estava muito triste com muitas igrejas porque elas
queriam fazer o papel que só pode pertencer a Ele e disse que sabia que eu seria corajosa o suficiente para não
querer o controle, e sim dar a Ele o poder que é todo Seu. Eu fiquei muito impressionada com aquilo, mas Ele
me deu os três sinais que disse que daria. Todos os três sinais aconteceram. Então, eu realmente abri o
ministério, em nome do Senhor Jesus. Nós o chamamos de Ministério do Espírito Santo, que começou no dia 5
de abril de 2000. Eu costumo brincar, dizendo que eu sou a ‘popstora’(Revista Profética, 08/2004).
18
essa discrição faz parte de uma estratégia utilizada pela cantora para evitar a
aproximação de curiosos.
O espaço interno é bastante amplo e colorido. No primeiro pavimento, logo na
entrada, há uma sala com alguns sofás e cadeiras, todas com cores fortes e
desenhos que lembram a pelugem de uma onça (“capa de oncinha”). Neste local
onde, durante o dia, funciona o escritório da cantora, à noite, antes dos cultos, os
membros costumam se acomodar para “botar a conversa em dia”. Ao lado, em uma
sala maior, fica uma espécie de estúdio, onde Baby costuma ensaiar suas músicas.
Existem outras dependências na parte inferior da casa, mas minha circulação se
restringiu somente a esses dois espaços. Os cultos são realizados no segundo
pavimento, em uma outra sala não tão ampla quanto o estúdio, porém
aconchegante. A organização e a disposição das pessoas, neste local, seguem o
formato tradicional das igrejas evangélicas: de um lado os membros, de outro, a
liderança pastoral e os instrumentistas. Porém, quanto à decoração, pode-se dizer
que é um mix de objetos
14
que fazem alusão ao judaísmo, ao cristianismo e a
própria imagem da cantora.
Contudo, o que mais me chamou a atenção na igreja de Baby do Brasil foi a
organização dos cultos. Pode-se dizer que eram verdadeiros shows musicais que
começavam às 20:30 horas, sem hora para acabar. Foram raras as vezes que eu sai
da igreja, às quartas-feiras, antes da meia-noite. Nesse dia da semana, as reuniões
se iniciavam com uma longa oração, liderada pelos dois músicos da igreja. Alguns
minutos depois, sempre com um visual exuberante, Baby chegava, sozinha ou
acompanhada por seus familiares, e se juntava a todos. Quase que
imperceptivelmente, as músicas começavam a ser executadas em substituição às
orações. Era dessa maneira que a popstora” e seus músicos conduziam o público,
geralmente composto por cerca de umas 30 pessoas, para o momento do louvor”.
Pode-se dizer, sem exagero algum, que a música é central na liturgia do Ministério
do Espírito Santo de Deus em Nome do Senhor Jesus Cristo. Igualmente a outras
denominações evangélicas, nos cultos dessa igreja tamm há o “momento da
pregação”, no qual são apresentados temas da vida cristã e lidos trechos bíblicos,
porém a execução musical é priorizada. O momento do louvor” poderia durar horas.
Isso não quer dizer que o repertório musical dessa denominação evangélica seja
14
Na sala onde são realizados os cultos faixas com dizeres que fazem referência a Jesus; uma bandeira de
Israel; uma mesa com um castiçal; um pôster com uma foto da cantora.
19
extremamente extenso. Pelo contrário, nos cultos de que participei, observei a
repetição de várias músicas. A execução musical era bastante interessante:
cantavam os louvores e ao final de cada um, começavam a orar, ao som dos
instrumentos. Essa performance ritual que junta música e oração é denominada por
eles como “ministrações”. Sendo assim, o momento do louvor” integra as músicas e
as “ministrações”.
Por sete meses acompanhei os cultos do Ministério do Espírito Santo de
Deus em Nome do Senhor Jesus Cristo. Nesse período, tive a possibilidade de
conhecer mais de perto não cantora Baby do Brasil como tamm os membros
de sua igreja. Mesmo tendo explicado claramente as minhas motivações de estar
entre eles, por vislumbrarem minha possível conversão, sempre se mostraram
receptivos e afetuosos. Acreditam eles que, somente os “enviados por Deus” para
estarem entre eles, conseguem ter acesso à igreja
15
. A própria Baby, em uma de
nossas conversas, disse-me que tinha certeza de que me converteria e de que eu
seria membro de sua igreja.
Contudo, mesmo tendo conquistado a confiança deles e sendo visto como o
“irmãozinho da UERJ”, não consegui realizar uma entrevista gravada com Baby.
Foram rias as vezes marcadas, mas sempre havia um imprevisto da parte dela.
Cheguei a cogitar algumas explicações para essa atitude: seria um indicativo de
uma agenda lotada e tumultuada? Seria uma estratégia para garantir a minha
permanência na igreja até ser “tocado por Deus” e me converter? Ou um simples
“estrelismo” de uma das maiores cantoras da MPB que tem se mantido afastada da
grande mídia?
Seja qual for a resposta, o fato é que a minha estada no Ministério Espírito
Santo de Deus em Nome do Senhor Jesus Cristo contribuiu grandemente para a
definição do objeto dessa tese. Tanto nas pregações da Baby como nas conversas
amistosas com os membros da igreja, observei a recorrência de uma questão: em
vários momentos, justificavam a autenticidade” da conversão de famosos à
religiosidade evangélica. Procuravam rebater a idéia muito difundida nos meios de
comunicação de que esse fenômeno seria, meramente, uma estratégia usada pelos
15
Em uma entrevista, Baby do Brasil indica também essa concepção:
“É um ministério pequeno, porque a nossa intenção é deixar Deus fazer a equipe, fazer tudo como Ele quer. s
temos cerca de 20 membros, chegando a 40 pessoas, quando temos convidados. Mas a equipe está sendo
formada ao longo desses anos. Muitas obras e milagres aconteceram por meio de pessoas que nos visitam,
sem que sejam necessariamente do ministério”. (Revista Profética, 08/2004).
20
cantores “decadentes”, para salvarem suas carreiras. Essa defesa despertou minha
curiosidade sobre a indústria fonográfica evangélica.
Busquei então informações, a princípio em sites, revistas e jornais
evangélicos, e percebi que, de certa maneira, na década de 90, a produção musical
evangélica passou a ter contornos mais profissionais, possibilitando, dessa forma,
altos lucros tanto para os empresários como para os cantores. Neste período, foram
criadas grandes gravadoras que, associadas aos meios de comunicação desse
segmento religioso, passaram a produzir, distribuir e divulgar sistematicamente os
álbuns musicais evangélicos. Criou-se, portanto, um mercado fonográfico, voltado,
exclusivamente para os evangélicos. Por sua vez, a formação desse nicho do
mercado ocorreu em meio à expansão e à diversificação da religiosidade evangélica
no país.
Diante dessas constatações, seria mais produtivo estudar não somente a
conversão de famosos, mas as transformações ocorridas no meio musical no qual
estes cantores circulariam depois de convertidos. Sendo assim, no início de 2006,
passei a estudar o processo de formação do mercado fonográfico evangélico
brasileiro, procurando compreender o somente as circunstâncias sociais e
religiosas que contribuíram para a ocorrência desse fenômeno, mas tamm a sua
repercussão na relação das gravadoras com as igrejas, na formação das
celebridades e, por último, com o mesmo nível de importância, nas próprias músicas
evangélicas.
Em termos metodológicos, a análise desse objeto impõe a utilização de
diferentes fontes e técnicas
16
, na medida em que o seu recorte não se restringiu a
uma localidade específica e nem tampouco sua ocorrência inicia-se no tempo
presente. Pelo contrário, o estudo da formação do novo nicho do mercado
fonográfico exige tamm uma incursão histórica no período anterior ao seu
surgimento para que as mudanças na produção musical, decorrentes de sua
formação, sejam percebidas. Sabemos que a estruturação do mercado fonográfico
no Brasil dependeu da entrada e do enraizamento da religião evangélica no país.
Desta forma, mesmo tendo como marco temporal as duas últimas décadas, o
16
Neste sentido, este trabalho está estruturado de acordo com a perspectiva ampliada de etnografia descrita por
Giumbelli, quando fez uma avaliação no estilo malinowskiano. Segue um trecho: “‘objetivo fundamental da
pesquisa etnográfica’ deve ser buscado a partir de uma variedade de fontes, cuja pertinência é avaliada pelo
acesso que propiciam aos ‘mecanismos sociais’ e aos ‘pontos de vista’ em suas ‘manifestações concretas’”
(Giumbelli, 2002, p14).
21
presente trabalho utilizou estudos históricos: 1) sobre a inserção do protestantismo
no Brasil; 2) sobre a formação do mercado fonográfico; e tamm matérias
jornalísticas, publicadas em revistas e em sites evangélicos.
Contudo, ao longo da pesquisa, a técnica mais utilizada foi o trabalho de
campo. Após de ter acompanhado os cultos do Ministério Espírito Santo de Deus em
Nome do Senhor Jesus Cristo, no início de 2006 fiz algumas visitas à Igreja
Evangélica Internacional da Zona Sul, uma denominação que tem desenvolvido uma
forte relação com as empresas fonográficas e com as mídias evangélicas.
Liderada pelo pastor Marcos Peixoto, a Comunidade Evangélica Internacional
da Zona Sul conta com 15 congregações, espalhadas não somente no Rio de
Janeiro, mas tamm em outros estados do Brasil e na Europa. Essa denominação
preza muito a execução musical, sendo uma das pioneiras na reprodução de suas
músicas em álbuns. Atualmente mantém uma forte parceria com a MK Music -
empresa que compõe o Grupo MK. Tive a oportunidade de acompanhar alguns
cultos realizados às quartas-feiras. Para essa programação especial denominada
como “Quarta do Avivamento”, são convidados cantores famosos do meio
evangélicos, sendo, boa parte deles, funcionários do Grupo MK. Ao acompanhá-las,
observei mais de perto a relação desenvolvida entre cantores e audiência no espaço
do templo, bem como o complexo de relações existentes entre cantores, lideranças
pastorais e dono de gravadora, que favorecem somente os “de dentro”
17
.
Ainda procurando compreender as redes que passaram a existir entre as
gravadoras e igrejas após a formação do mercado fonográfico evangélico, entre os
meses de maio de 2006 e fevereiro de 2008, acompanhei os cultos do Ministério
Apascentar de Nova Iguaçu. Nesse período, pude observar a dinâmica ritual dos
cultos, bem como a profissinalização da gravadora Toque no Altar Music. Mesmo
realizando 10 entrevistas com membros dessa igreja nos finais das celebrações, não
consegui desenvolver uma relação o próxima como a que estabeleci com os fiéis
da igreja Ministério Espírito Santo de Deus em Nome do Senhor Jesus Cristo. Não
sei se essa dificuldade deve-se ao fato da igreja ter grandes dimensões - os mais de
três mil membros se dispersam em pequenos “grupos fechados” -, ou porque o
pastor Marcus indica a suas ovelhas que os “assuntos” da igreja não sejam
17
Desenvolverei este ponto no segundo capítulo. Para outras informações sobre a Comunidade Internacional da
Zona Sul, ver: http://www.comunidadezonasul.com.br/.
22
comentados com “pessoas estranhas” e fora dos domínios do templo. De qualquer
forma, seja qual for a resposta, um dado é surpreendente: os assuntos mais
polêmicos e divergentes não são comentados em público, como foi, por exemplo, a
saída de alguns integrantes do grupo Toque no Altar no início de 2007. Este
episódio chocou os evangélicos de um modo geral, porém, internamente, quase não
foi abordado. Tanto que, para entendê-lo melhor, tive que recorrer às matérias
jornalísticas, publicadas nos sites e revistas evangélicas, e às comunidades da igreja
no orkut
18
. A despeito dessas limitações, ao acompanhar mais de perto essa igreja,
pude perceber a forma como ela se projeta no espaço público de Nova Iguaçu e nas
diferentes mídias, tendo como justificativa o projeto proselitista de “resgate do
mundo”.
Por fim, em menor escala, durante o mês de janeiro de 2007, freqüentei os
cultos da Igreja Comunidade Evangélica de Salvador, com o intuído de observar sua
relação com o mercado fonográfico evangélico local, que suas músicas tamm
estão sendo reproduzidas em CDs.
Na primeira semana de janeiro de 2007, enviei um e-mail a uma das
lideranças da Igreja Comunidade Evangélica de Salvador, solicitando que ele falasse
sobre o lugar da música na liturgia em sua igreja, bem como as motivações que
fizeram com que aquela igreja passasse a reproduzir suas músicas em CDs. Como
estratégia, informei que, no ano anterior havia entrevistado um dos membros do seu
ministério de louvor, o cantor Álvaro Júnior. Para minha felicidade, no mesmo dia, o
pastor Eraldo Melo, enviou uma mensagem, respondendo não somente as minhas
questões, mas se colocando inteiramente à minha disposição. Em síntese, informou-
me que a música é muito importante nos cultos da Igreja Comunidade Evangélica de
Salvador; e que a gravação de CDs é uma forma da igreja “levar a palavra de Deus”.
A princípio, pensei entrevistá-lo, mas como ele estava viajando e retornaria a
Salvador após o meu regresso para o Rio de Janeiro, descartei a possibilidade.
No dia seguinte, em 07/01/2007, fui pela primeira vez à Comunidade
Evangélica de Salvador, que fica na Boca do Rio, bairro de classe média da capital
baiana. Ao todo, tive a possibilidade de assistir a 5 cultos 3 nos domingos e 2 nos
sábados daquele mês.
18
No terceiro capítulo, desenvolvo esse ponto.
23
O templo estava em construção e agregava cerca de 400 pessoas.
Basicamente, entre os membros, observei a predominância de jovens, em sua
maioria branca e mestiça - um dado discrepante se compararmos com a distribuição
étnica de Salvador, em que um contingente expressivo de negros. Na ocasião,
essa igreja, que segue o formato litúrgico muito semelhante ao adotado pelo
Ministério Apascentar, em Nova Iguaçu (RJ), estava se preparando para a
realização do evangelismo, que seria feito durante o carnaval. alguns anos, a
Comunidade Evangélica de Salvador faz uma “passeata”, com trio etrico, no
circuito Barra-Ondina nos primeiros dias do carnaval. Em vários momentos das
reuniões de que participei, os líderes da igreja reforçaram a necessidade da
realização dessa “passeata” tanto para “resgatar as almas” como também para
mostrar que o axé é um “ritmo sagrado”, que mesmo sendo usado pelo Diabo,
pertence a Deus. Observei que, em rias vezes, faziam questão de dizer que a
programação era uma “passeata” e o um cortejoou um “bloco”. Nesse caso, é
flagrante a estratégia da igreja em se distanciar discursivamente dos outros grupos
que também se apresentam neste circuito tão importante no carnaval soteropolitano.
Para observar a relação dos cantores com a audiência evangélica,
paralelamente, entre os anos de 2006 e início de 2008, participei de uma infinidade
de shows
19
, eventos musicais e feiras de produtos evangélicos realizados tanto no
Rio de Janeiro como em Salvador.
19
Entre 2006 e início de 2008, participei de vários shows, passeatas, e feiras de produtos evangélicos. Segue
uma lista com os eventos mais representativos:
1- Primeira Expo Rio-Cristã.
Local: Rio Centro, Jacarepaguá, Rio de Janeiro; Organizador: Empresa EBF Eventos; Data: 12/04/2006;
2- Clamor Pela Paz.
Local: Quinta da Boa Vista, São Cristóvão, Rio de Janeiro; Organizador: Rádio Melodia e gravadora
TopGospel; Data: 21/04/2006;
3- Canta Rio
Local: Enseada de Botafogo, Rio de Janeiro; Organizador: Grupo MK; Data: 28/09/2006;
4- Verão Gospel.
Local: Clube Boca do Rio, Boca do Rio, Salvador (BA); Data: 13/01/2007;
5- Marcha pra Jesus
Local: Av. Presidente, Centro, Rio de Janeiro; Data: 26/05/2007;
6- Gravação do DVD do Grupo Diante do Trono
Local: Praça da Apoteose, Centro, Rio de Janeiro; Organizador: Igreja da Lagoinha (MG); Data:
07/07/2007.
24
Além disso, realizei entrevistas com três cantores evangélicos
20
, nas quais
busquei identificar as estratégias que cada um deles tem adotado em meio às
transformações do meio musical evangélico.
Este trabalho segue as orientações de Geertz (1978), sobretudo ao
considerar que um evento (ou um lugar específico) é apenas um recorte analítico,
que, além de ser estudado em si mesmo, deve ser analisado levando-se em conta
as teias de significados sociais nas quais está associado. Nos termos do autor,
procuro fazer um estudo na aldeia e não da aldeia, ao analisar a formação do
mercado fonográfico evangélico a partir de eventos, shows e cultos que foram
observados.
Organização dos capítulos
A tese foi estruturada em quatro capítulos. Embora em cada um deles seja
abordado um tema específico, o argumento central é retomado. Sob diferentes
enfoques, a concepção de que o mercado fonográfico evangélico se organiza e se
auto-regula a partir da idéia de “missão religiosa” é enfatizada. Sendo assim, no
primeiro capítulo, indico as circunstâncias sociais e religiosas que facilitaram o
surgimento do mercado fonográfico evangélico, nicho empresarial que desde dos
anos 90 tem garantido a sua auto-sustentabilidade, e que se tornou um dos mais
lucrativos deste setor empresarial. Indico, tamm, os aspectos organizacionais e
estruturais que singularizam as empresas deste segmento dentre as demais.
Veremos que a forte vinculação entre denominações evangélicas e gravadoras é um
dos elementos mais marcantes deste mercado. Sintomaticamente, essa associação
singular tem proporcionado outros sentidos, limites e possibilidades que extrapolam
os observados nas empresas convencionais, aquelas que não estão ligadas às
instituições religiosas.
Com o objetivo de compreender as dinâmicas internas desse mercado, no
segundo capítulo analiso a trajetória de três cantores evangélicos. Por meio do
relato e da jornada de vida desses artistas, procuro entender as estratégias que eles
estão utilizando para dar continuidade às suas carreiras em meio ao processo
crescente de profissionalização da produção musical evangélica. Longe de ser um
20
Ver em APÉNDICE I, o roteiro semi-estruturado que foi utilizado nessas entrevistas.
25
fenômeno que tem-se constituído de maneira harmoniosa, veremos que a formação
de um mercado fonográfico no interior da religiosidade evangélica tem suscitado
conflitos, “fissuras” e novas associações entre cantores, lideranças pastorais, donos
de gravadora e audiência evangélica.
Além da observação da trajetória dos artistas que estão experimentando as
novas condições de trabalho no meio musical evangélico, a presente tese visa
tamm entender a relação estabelecida por gravadoras e igrejas evangélicas no
mercado fonográfico evangélico. Com essa finalidade, no terceiro capítulo,
apresento um estudo de caso. Trata-se de uma gravadora que foi fundada por uma
denominação evangélica. Refiro-me à Toque no Altar Music, uma empresa dirigida
pela Igreja Ministério Apascentar de Nova Iguaçu, na Baixada Fluminense, Rio de
Janeiro. Neste estudo, aponto algumas controvérsias que passaram a existir com
relação à concepção do “verdadeiro papel” dos cantores, pastores e donos de
gravadoras.
Por fim, no quarto capítulo, apresento os três estilos musicais evangélicos”
que estão sendo amplamente produzidos pelas gravadoras desse segmento
religioso nos dias atuais. Através da análise de um conjunto de elementos, procuro
demonstrar como se institui a regulação tanto das letras como das melodias das
músicas evangélicas. Embora haja uma abertura maior quanto aos ritmos
percussivos do que já ocorreu no passado, é evidente um forte controle com relação
aos temas tratados.
Na conclusão retomo os argumentos apresentados em cada capítulo, em
busca de uma compreensão mais alargada sobre os rumos da religiosidade
evangélica no Brasil.
26
1 A INDÚSTRIA FONOGRÁFICA BRASILEIRA E A FORMAÇÃO DO
NICHO EVANGÉLICO
A formação do mercado fonográfico auto-sustentável evangélico no Brasil
será o tema deste capítulo. Procurarei dar relevo não somente à constituição das
grandes gravadoras evangélicas, mas também às circunstâncias sociais e religiosas
que contribuíram para a formação desse nicho empresarial em nosso país. Veremos
que as empresas fonográficas evangélicas se diferenciam das demais,
especialmente por ainda concentrarem as etapas de produção dos álbuns e tamm
por desenvolverem uma íntima associação com as igrejas evangélicas. Tal
vinculação entre instituições religiosas e organizações empresariais um colorido
diferenciado a este segmento do mercado fonográfico, ao imprimir um novo formato
organizacional e institucional, que muitas igrejas dirigem gravadoras, e ao
contribuir também para a formação de uma concepção de missão religiosa do
mercado.
Antes de descortinar o universo das gravadoras evangélicas, devo fazer
algumas considerações sobre o desenvolvimento da indústria fonográfica no Brasil -
um dos mais significativos ramos da indústria cultural
21
-, bem como a relação que
21
Na década de 1930 e 40, em meio à expansão industrial e à constituição do capitalismo monopolista nas
sociedades européias, Max Horkheimer e Theodor Adorno formularam o conceito de indústria cultural, para
denominar a formação de um segmento empresarial, que tinha como foco a produção da cultura -cinema, música
literatura, etc. Preocupados com a manutenção da autonomia individual e tendo como referência os escritos de
Karl Marx e Max Weber, estes dois filósofos da Escola de Frankfurt condenaram o crescimento da indústria
cultural. Argumentavam que, para garantir os seus lucros astronômicos, a indústria cultural teria que adequar os
seus produtos ao gosto médio das massas. Tal iniciativa além empobrecer e massificar as manifestações
artísticas, também impossibilitaria a livre escolha dos indivíduos, na medida que somente os produtos
“vendáveis” seriam fabricados e disponibilizados para o consumo. Em síntese, na visão destes pensadores
“apocalípticos” (Eco, 2001), a indústria cultural contribuiria para uma homogeneização da cultura e alienação das
massas.
Nos anos 70, outros autores, como Marshall MacLuham, se inseriram no debate sobre o
desenvolvimento da indústria cultural na sociedade capitalista. Especialista em comunicação de massa,
MacLuhm ampliou a discussão ao propor uma mudança de foco: ao invés de se analisar o conteúdo veiculado
pela indústria cultural, como sugeriram Adorno e Horkheimer, os pequisadores deveriam compreender a própria
natureza do veículo.
Nos anos seguintes, outros autores refletiram sobre a relação da indústria cultural com a sociedade
abrangente, porém, como bem colocou Eco (2001), quase sempre produzindo análises valorativas: ora a
indústria cultural é tida como um instrumento de dominação e alienação das massas os “apocalípticos-, ora
como um veículo democrático que possibilitaria uma maior circulação dos conteúdos culturais os integrados”
(idem).
Dizer que a indústria cultural é má ou boa não explica a complexidade do fenômeno, assim criticou
Paulo Puterman (1994). Para o autor, o estudo do tema deveria ser desenvolvido dentro de uma abordagem
27
estabeleceu, ao longo dos anos, com as multinacionais do setor. É fundamental
compreender as principais características do cenário empresarial no qual as
empresas fonográficas evangélicas foram criadas.
1.1 A importância das majors na consolidação do mercado fonográfico
brasileiro nos anos de 1970
Desde sua fundação na primeira década do século XX, as gravadoras
brasileiras têm adotado o paradigma da indústria fonográfica norte-americana, não
no que diz respeito à utilização das inovações tecnológicas na produção das
músicas, mas também quanto aos procedimentos típicos utilizados para a
regulamentação deste setor industrial (Silva, 2001).
A intervenção externa na formação da indústria fonográfica nacional o se
restringiu apenas aos modelos estrangeiros utilizados por nossas empresas. É
importante ressaltar tamm que boa parte das gravadoras brasileiras se constitui a
partir da associação com as grandes transnacionais desse setor. Tal relação foi
intensificada, sobretudo, após os anos de 1970, quando as gravadoras RCA e EMI-
Odeon construíram novos estúdios no Brasil.
Como bem colocaram Dias (2000) e Ghezzi (2003), para entendemos as
condições econômicas e políticas que contribuíram para a grande influência
estrangeira no desenvolvimento das empresas fonográficas brasileiras, temos que
compreender o projeto mais amplo de modernização econômica adotado pelos
governos militares na década de 1970. Segundo as pesquisadoras, à ocasião, o
Estado Brasileiro produziu várias mudanças tanto nos setores produtivos de base
como também no conjunto de empresas que compõem os ramos da produção
cultural e de telecomunicações. Observa-se, a partir dos anos de 1970, um grande
investimento governamental na produção de filmes, peças teatrais, concertos e
sociológica. Além dessa crítica, Puterman (idem) salientou a imprecisão e a inconsistência dos próprios
conceitos de indústria cultural e comunicação de massa. Em suas palavras:
Uma outra crítica que se pode fazer aos estudos da comunicação de massas e que, portanto, engloba os
estudos de cultural é a conceituação obscura, confusa, imprecisa de ambos termo. Ambos designam ao mesmo
tempo os meios técnicos para a produção e suas formas simbólicas. Também são confundidas a iia de uma
fonte de informações (a indústria cultural) e a massa que recebe informação dessa fonte (a população de um
país,um grupo social, uma coletividade). A imprecisão obscurece a compreensão daquilo que o conceito pretende
representar e invalida os resultados de observações, raciocínios e pesquisas que se pretende efetuar a partir
dele(Puterman, 1994: 36).Tendo em vista as críticas de Puterman, ao longo da tese, não o utilizarei o conceito
de indústria cultural.
28
shows. Além de incrementar a produção de diferentes expressões artísticas, o
Estado também foi o grande responsável pela expansão das indústrias televisivas
(Hamburger, 2005), editoriais e publicitárias no Brasil. Quanto ao mercado
fonográfico, com o objetivo de ampliar o setor através da adoção de uma gestão
mais empresarial, os governos militares concederam vários incentivos para a
implantação de gravadoras estrangeiras no país que passavam, principalmente, pela
concessão de boa infra-estrutura e incentivos fiscais.
Contudo, devo ressaltar que a política pública dos governos militares
destinada à consolidação de diferentes setores industriais tinha como base um
projeto político de Integração Nacional. Ou seja, ao expandir os meios de
comunicação, ao fomentar as diferentes manifestações artísticas e ao incentivar o
desenvolvimento das indústrias ligadas à cultura, o Estado vislumbrava, a partir
destes meios, exercer uma influência maior sobre os cidadãos situados nas
diferentes regiões do país. Dessa maneira, segundo Ghezzi:
Ao mesmo tempo em que o Estado implementou e efetivou no Brasil a indústria
cultural e o mercado de consumo de bens culturais, ele também reprimiu, calcado na
ideologia da Segurança Nacional, algumas obras que eram produtos dessa mesma
indústria. A origem dessa ambigüidade desempenhada pelo Estado residiu no fato
de que o agente promotor do desenvolvimento capitalista no Brasil foi o Estado
autoritário, cujas práticas eram tanto modernizadoras, quanto coercitivas e
repressoras. (Ghezzi, 2003, p.66-67).
Esse posicionamento político-econômico do Estado, que foi denominado por
Ortiz (1988) como modernização conservadora
22
, além de ter contribuído para a
“proliferação de produtos culturais concomitantemente à censura empreendida a
alguns deles pelo Estado; e para a consolidação de uma sociedade de consumo
cada vez maior de bens simlicos” (Ghezzi, 2003, p. 55), possibilitou a constituição
do mercado fonográfico brasileiro.
O crescimento da indústria fonográfica no Brasil na década de 1970 pode ser
medido pelo grande número de venda dos álbuns
23
observado naquele período. No
ano de 1970 foram vendidos mais de 17.102.000 unidades no país. Quatro anos
depois, em 1974, a indústria fonográfica nacional vendeu cerca de 31.098.000
compactos simples, duplos e LPs - um crescimento significativo em relação ao início
22
Esta expressão foi usada por Renato Ortiz no livro A moderna tradição brasileira, publicado em 1988, pela
editora Ática.
23
Fonte: ABPD, RJ: 03/1995, In: (Dias, 2000).
29
daquela década. Esta tendência crescente na venda de produtos fonográficos
perdurou ao longo dos anos 70, chegando ao número expressivo de 67.104.000
unidades em 1979. Podemos, então, observar que, em 10 anos, houve um
crescimento de quase 400 % na vendagem de produtos fonográfico no Brasil. Por
conta desse aumento impressionante, o país passou a ocupar a 5ª posição no
mercado mundial no final daquela década.
Além dos estímulos governamentais
24
, Dias (2000) destacou outros três
fatores que teriam contribuído para a expansão do setor. São eles:
1) A consolidação da produção e do mercado de música popular brasileira.
Com objetivo de atingir um público mais amplo e variado, as empresas
procuraram segmentar mais o mercado, investindo também na produção de
“músicas populares”. Criaram corpos estáveis de artistas contratados os
casts de cantores-, levando em conta as diferentes tendências musicais
nacionais presentes naquela época, como a Bossa Nova, a Jovem Guarda,
o Tropicalismo e a Música Sertaneja. A partir daí, por terem garantido a
produção, distribuição e divulgação de seus álbuns, alguns artistas foram
transformados em celebridades, dentre eles: Gilberto Gil, Gal Costa, Maria
Betânia, Roberto Carlos, Caetano Veloso e Chico Buarque;
2) O uso de LPs como principal formato da produção fonográfica, em
substituição gradativa aos compactos simples e duplos. Esta inovação
tecnológica contribuiu para a queda nos custos, otimizando, dessa maneira,
os investimentos das empresas;
3) A interação entre as diferentes indústrias culturais contribuiu para a
divulgação e comercialização da música popular. Destacam-se, neste
sentido, as estratégias utilizadas pela gravadora brasileira Som Livre.
Sendo uma das empresas do bloco empresarial das Organizações Globo, a
Som Livre contou com a colaboração das demais empresas ligadas ao
grupo, em especial a Rede Globo de Televisão, para divulgação de seus
cantores.
24
Além dos incentivos fiscais concedidos às transnacionais, os governos também concederam tal benéfico a
qualquer empresa que produzisse música popular brasileira. Para outros esclarecimentos, ver Dias, 2000;
Ghezzi, 2003.
30
na década de 1970, a Rede Globo exercia um grande monopólio
nos meios televisivos e detinha tamm a maior audiência do público
brasileiro (Hamburger, 2005). Como principal produto, a emissora fundada
pelo jornalista Roberto Marinho tinha e ainda continua tendo - a
telenovela. Diante da enorme receptividade desse gênero narrativo entre o
público, em parceira com a Rede Globo, a Som Livre passou a divulgar o
material de seus cantores, a partir das trilhas sonoras das novelas. A
seguir, apresento um trecho, no qual Márcia Dias faz algumas
considerações sobre como se dava essa negociação:
(...) se a gravadora quer promover um artista novo, que tenha um trabalho pronto, ela
pode procurar a emissora de TV e propor a sua divulgação como trilha. Se o artista
está fazendo sucesso, o interesse de fazer sua canção integrar uma trilha diminui,
uma vez que a compra do disco da novela, motivada por aquela canção específica,
pode significar que não se comprou o disco do artista, o que não é vantagem para a
gravadora. Por outro lado, a emissora de TV pode sugerir uma troca: promove uma
canção de um artista novo e a gravadora oferece outra, de um consagrado (Dias,
2000, p. 62).
Com relação aos fatores indicados é importante salientar que, nos anos de
1990, quando as grandes gravadoras evangélicas se constituíram no Brasil, a
criação de casts estáveis de cantores e a formação de um circuito de relações entre
diferentes empresas (que também passa por uma forte associação com as igrejas)
tamm permitiu o crescimento das mesmas.
25
Além dos fatores internos indicados, a dominação das gravadoras
multinacionais no mercado brasileiro, assim como em outros paises periféricos,
tamm pode ser explicada a partir de um outro processo externo, que caracteriza o
desenvolvimento desse setor industrial. Trata-se da crescente concentração e fusão
de empresas fonográficas. Se lançarmos um olhar sobre a história da indústria
fonográfica mundial, vamos constatar um gradativo movimento de fusões de
empresas
26
, que possibilitou o surgimento de novas organizações empresariais
maiores e mais poderosas. em 1931, observa-se esta tendência. Naquele
período, a fusão das gravadoras Colúmbia, Pathé e Gramophone originou a EMI. Na
mesma época, surgiu a RCA-Victor, após a junção da Victor como a RCA. Em 1937,
25
Esses pontos serão desenvolvidos adiante, por hora voltemos à apresentação das circunstâncias sociais que
estão associadas à constituição da indústria fonográfica no Brasil.
26
Para maiores esclarecimentos sobre as fusões das empresas fonográficas ao longo da história, ver: Dias
(2000) e Ghezzi (2003).
31
depois de muita negociação, a Deustsche Grammophon, a Telefunken e Siemens se
unem e formam uma outra empresa fonográfica, a Polydor. Em 1945, mesmo no
final da segunda guerra mundial, observa-se a constituição da Phonogram, uma
empresa que resultou da união da Gramophone com a Philips. As fusões não
pararam por aí. Posteriormente, em 1969, em um cenário político mundial mais
estável, surgiu a EMI, resultante da incorporação da Odeon pela antiga EMI. Nove
anos depois, em 1978, a união da antiga Polydor com a Phonogram deu origem a
PolyGram. Ao longo dos anos 80 e 90, verifica-se também o surgimento de novas
empresas fonográficas através de fusões: A BMG-Ariola – fruto da junção das
empresas, Ariola, Bestelsmann e RCA, em 1987 –; a Sony Music resultante da
fusão da CBS Discos com a Sony Corp.-, em 1987; e Waner Music Time
Warner/WEA, Toshiba e Continental -, em 1993.
Portanto, observa-se que, ao longo das décadas, as empresas do setor
fonográfico tenderam a se fundir em blocos cada vez maiores e mais poderosos.
Tais fusões deram origem a novas mega-empresas fonográficas. As majors, como
são conhecidas, se caracterizaram, sobretudo nos anos de 1970 e 80, por
concentrarem todas as etapas de produção dos álbuns. A seguir, apresento um
organograma da estrutura padrão dessas empresas, a qual perdurou até o final da
década de 80:
32
Ilustração 1: Organograma I. Estrutura da Grande Empresa Fonográfica: Brasil - anos 70-80
27
Direção Geral/
Presidência
Estúdio
Diretor
de
Vendas
Gerência
de
Produção
Gerência
de
Repertório
Internacio-
nal
Gerência
de
Repertório
Nacional
Gerência
de
Fábrica e
Estúdio
Corte
Vê-se que tais indústrias possuíam departamentos especializados e
interdependentes. Concentravam também todo o processo de produção, distribuição
e divulgação dos álbuns em nível nacional e internacional. Associado a essa gestão
centralizadora, observa-se tamm que os cantores o eram incluídos no
organograma da empresa, mesmo havendo uma relação contratual entre eles e as
organizações empresariais contratantes. A não inclusão do cast na estrutura das
majors explicita o “lugar” paradoxal que os cantores ocupavam nessas empresas.
Márcia Dias elaborou uma reflexão sobre isso:
(...) o artista não tem um “lugar” na empresa; o cast não existe espacialmente nela.
Apesar de conferir a necessária essencialidade ao processo, o artista,
paradoxalmente, não faz parte da indústria. Ele passa por ela, negocia, grava seu
disco, trabalha, muitas vezes, arduamente seu savoir faire, seu talento, sua
personalidade artística, seu nome, sua imagem, até quando o negócio se mantenha
interessante para todas as partes envolvidas, caso contrário, será substituído (2000,
p. 72).
27
Fontes: Dias (2000) e Ghezzi (2003).
Fábrica
Editoras
Distribuição
e
Comercialização
Divulgação
Direção
Artística
33
Portanto, mesmo compondo os elencos estáveis das grandes gravadoras, os
artistas não eram totalmente vinculados a elas. Em geral, firmavam contratos por um
tempo determinado e continuavam no cast dessas empresas, se os seus álbuns
tivessem uma grande aceitação no mercado.
Em função dessa relação ambígua entre cantores e empresas e tamm por
conta de um processo crescente de profissionalização dos procedimentos das
empresas fonográficas, nos anos 70 e 80, o Departamento de Direção Artística
passou a ter um grande espaço no interior das gravadoras (Dias, 2000; Ghezzi,
2003; Muller; 2005). Isto porque, sua principal função é intermediar as relações entre
cantores e empresários. Em outros termos, o diretor artístico, juntamente com sua
equipe, procura equacionar não os interesses em questão, como também
condicionar os artistas às exigências da empresa e do mercado consumidor.
Ao lado do Departamento de Direção Artística, o Setor de Marketing assumiu
um papel importantíssimo na gestão das empresas fonográficas, nas décadas de
1970 e 1980 (Muller, 2005). Exercendo também a função de mediação, o
Departamento de Marketing busca, através de diferentes instrumentos de pesquisa,
intermediar a relação entre as gravadoras e o público.
Em ntese, até o final dos anos de 1980, as majors eram caracterizadas por
concentrarem as etapas de produção dos álbuns musicais; constituírem casts
estáveis de cantores; e conferirem um papel central aos Departamentos de Direção
Artística e Marketing.
Se por um lado esse tipo de gestão empresarial impulsionou a
profissionalização do mercado fonográfico brasileiro, já que em grande parte a nossa
indústria fonográfica pode ser considerada uma extensão das gigantes
transnacionais, por outro, além de ter levado várias empresas brasileira a
encerrarem suas atividades, tamm ocasionou debates sobre o papel da música
brasileira.
Ainda na década de 70, segundo Leonardo de Marchi (2005), a dominação
das majors no cenário nacional produziu calorosos debates, principalmente a
respeito da soberania cultural da música brasileira. As críticas às grandes
transnacionais não foram restritas à grande circulação de músicas estrangeiras no
país. O debate considerou a própria necessidade dos cantores brasileiros
34
produzirem álbuns, sem terem que se submeter às grandes corporações
transnacionais (idem).
1.2 A tentativa de criação de circuitos alternativos no mercado fonográfico
brasileiro nos anos de 1970
Até aqui vimos que, por terem grandes recursos econômicos e por contarem
com a colaboração dos governos, as empresas transnacionais acabaram exercendo
uma grande influência no mercado fonográfico brasileiro, em especial, a partir dos
anos de 1970. Contudo, não podemos perder de vista que, na ocasião, este
segmento do mercado não era composto exclusivamente pelas majors. Entre outras
gravadoras, a Som Livre, a Copacabana, a Continental e a Top Tape, por alguns
anos, conseguiram manter seus patrimônios, sem serem, necessariamente,
“engolidas” pelas grandes empresas.
Além disso, em meio a um debate sobre necessidade de se ampliar a
produção musical brasileira, surgiram também gravadoras
28
que almejaram criar
circuitos alternativos para produção e comercialização de “músicas autenticamente
nacionais”. Entre estas empresas, destaca-se a Lira Paulistana.
Criada por Wilson Souto Jr. em 1979, na cidade de São Paulo, a gravadora
Lira Paulistana surgiu como objetivo de abrir um espaço alternativo para que os
artistas brasileiros pudessem produzir seus álbuns sem o aval das transnacionais
(Ghezzi, 2003; De Marchi 2005 e 2006). Em pouco tempo, a Lira Paulistana chamou
a atenção de cantores de diferentes estilos e tendências musicais, que tamm
assumiam uma postura crítica à lógica de produção e expansão das majors. Entre
os artistas que integraram o elenco da gravadora paulistana, destacam-se: Arrigo
Barnabé, Tetê Espíndola e Grupo Rumo. Há um consenso entre os estudiosos sobre
o tema, acerca da grande importância que a gravadora de Wilson Souto Jr. teve na
tentativa de produção de um circuito comercial independente no Brasil. Em meio a
forte e marcante interferência das grandes corporações, com ajuda de pequenos
empresários e colaboradores, a Lira Paulista procurou não produzir mas distribuir
e divulgar os álbuns dos seus cantores. Por um curto período, a gravadora
28
Para um maior esclarecimento sobre as gravadoras independentes, ver: (Dias, 2000; Ghezzi, 2003; Marchi
2005 e 2006).
35
conseguiu lançar alguns artistas engajados na luta pela difusão de ritmos musicais,
considerados brasileiros. Porém, mesmo ligando-se à gravadora brasileira
Continental em 1982, a Lira Paulista não conseguiu se manter no mercado.
Também se opondo ao suposto “imperialismo” imprimido pelas majors, alguns
grupos musicais, como Boca Livre, produziram LPs sem a intervenção das grandes
empresas fonográficas. Em 1979, contando somente com colaboração da gravadora
brasileira Eldorado na parte da distribuição, e com a ajuda da Rede Globo na
divulgação das duas músicas de trabalho do álbum Toada e Quem tem a viola - o
grupo Boca Livre conseguiu vender mais de 80 mil cópias de seu primeiro LP (Dias,
2000; De Marchi, 2006).
Foi neste contexto marcado, por um lado, pela crescente influência das
empresas estrangeiras no mercado fonográfico nacional e, por outro, por um
movimento artístico-político de valorização da música “autenticamente” brasileira,
que surgiu a primeira gravadora evangélica de grande porte no Brasil. Longe
daqueles debates e visando o segmento evangélico, que à ocasião representava
cerca de 5% da população brasileira, o filho do cantor Luiz de Carvalho, Elias de
Carvalho, fundou a gravadora Bompastor na capital paulista em 1971.
1.3 A criação da Bompastor em meio à inovação da música evangélica (1970-
1980)
Se em um cenário mais amplo, a formação da Bompastor se deu dentro de
um debate político sobre a influência estrangeira na produção musical brasileira,
internamente, entre os evangélicos, se desenvolvia um questionamento sobre a
introdução de ritmos e gêneros musicais populares na música evangélica (Cunha,
2004).
Nesse período, inspirados nas práticas proselitistas do Movimento de Jesus
29
,
grupos de jovens de igrejas tradicionais adotaram novas abordagens de
evangelização, que incluíam apresentações teatrais e musicais. Tais grupos
chocaram os mais ortodoxos o por utilizarem uma estética inspirada no
movimento hippie, mas também por incorporarem o rock e as baladas românticas
em seus repertórios musicais (idem).
29
No terceiro capítulo, apresentarei as características desse movimento que produziu novas estratégias de
evangelização nos EUA.
36
Contudo, mesmo despertando sentimento de perplexidade ou interesse,
essas novas tendências não foram incorporadas no repertório musical produzido
pela Bompastor. No período de formação da gravadora, somente as músicas do
cantor Luiz de Carvalho foram reproduzidas.
Nascido no ano de 1925, Luiz de Carvalho lançou, pelo selo Músicas Sacras,
o primeiro LP evangélico no Brasil, em 1958. A partir daí, passou a percorrer várias
cidades brasileiras, cantando não as músicas de seu primeiro álbum A graça de
Jesus, mas também exercendo uma outra atividade que tanto aprecia até os dias
atuais: propagar, pelas pregações, as “boas novas” evangélicas. Era dessa maneira
informal e o sistemática que o cantor e evangelista Luiz de Carvalho divulgava e
distribuía seus LPs. Com a criação da Bompastor, o artista passou a contar também
com a ajuda de algumas empresas ligadas à nova gravadora e, conseqüentemente,
pode expandir um pouco mais sua audiência. Desde o seu primeiro trabalho,
inspirado nos hinários das igrejas, sobretudo, no Cantor Cristão, da Igreja Batista, e
na Harpa Cristã, da Assembléia de Deus, Luiz de Carvalho procurou compor o seu
repertório com músicas que abordam, em especial, passagens bíblicas, o sofrimento
e a redenção de Jesus e esperança dos crentes na salvação eterna. A seguir,
apresento uma de suas músicas mais conhecidas, que caracteriza muito bem o seu
repertório.
Lindo País
Composição: Luiz de Carvalho
No mundo a gente chora de tristeza (v1)
No mundo a gente ri pra não chorar
O mundo não conhece o que é o amor
O mundo não conhece o que é paz
Ao lindo país (ao lindo país)
Onde existe amor (v5)
Onde não há guerra e nem dor
Ao lindo país (ao lindo país)
Onde existe amor
Onde não há guerra e nem dor
Quando a gente crê no Salvador (v10)
E recebe dele a salvação
A felicidade vem morar
Para sempre em nosso coração
Ao lindo país (ao lindo país)
Onde existe amor (v15)
Onde não há guerra e nem dor
Ao lindo país (ao lindo país)
Onde existe amor
Onde não há guerra e nem dor
Cansaços (v20)
37
Músicas como essas, que falam sobre a uma nova vida em um lindo,
incorruptível e glorioso mundo, fizeram - e continuam fazendo - parte do repertório
do cantor, que já tem mais de 60 anos de carreira e mais de 70 álbuns musicais.
Tendo uma voz impostada de barítono, adotando melodias ritmicamente lentas e
primando por um visual estético austero – ternos e roupas sociais-, Luiz de Carvalho
não chocou a audiência mais conservadora, quando teve os seus primeiros discos
produzidos pela Bompastor. Além disso, sendo a “vitrine” da gravadora, contribuiu
para a aceitação dela pelo público. Pode-se então dizer que, ao invés de investir em
ritmos o convencionais, que eram alvos de debates e de polêmicas, a Bompastor
resolver produzir músicas que não chocavam a audiência evangélica nos anos 70.
Pelo contrário, a gravadora acabou reafirmando e ampliando as tendências
musicais, que eram predominantes no meio musical evangélico da época.
Somente no final dos anos 70, com a formação de novas bandas e grupos -
como Vencedores Por Cristo, Grupo Elo e Comunidade S-8 -, os ritmos populares e
o rock começam a ganhar força e a serem, timidamente, incorporados na hinódia de
algumas igrejas
30
. Por hora, devo ressaltar que, ao longo da década de 1970, a
Bompastor não produziu gêneros musicais tidos como profanos, como o samba e o
rock. Mesmo depois, nos anos 80, quando outros cantores foram contratados, a
gravadora não mudou o seu estilo.
Além disso, na contramão da grande indústria fonográfica, que destinava
parte de sua produção aos artistas estrangeiros, a primeira gravadora evangélica de
grande porte produziu somente as músicas de artistas brasileiros. A distribuição de
álbuns de cantores estrangeiros ocorreu tempos depois, no final dos anos 80 e início
dos anos 90, quando a Bompastor passou a distribuir os LPs de cantores norte-
americanos, como Michael W. Smith, The Cathedrais e Sandi Patti.
Na década de 1980, mesmo havendo uma instabilidade econômica e política
no cenário mais amplo, que afetou diretamente a indústria fonográfica brasileira
como um todo (Dias, 2000; Silva, 2001; Ghezzi, 2003; De Marchi 2005 e 2006), a
Bompastor não interrompeu suas atividades. De modo geral, na ocasião, houve
uma queda significativa na venda de LPs de artistas nacionais e estrangeiros. Se em
1979, quando o Brasil ocupava a 5 ª posição mundial, foram vendidas mais de 64.
30
Este ponto será aprofundado em outros capítulos.
38
104.000 unidades, em 1984, para apreensão dos empresários do setor, o número
ficou na casa das 43.994.000 unidades vendidas. Nos anos subseqüentes, houve
uma relativa melhora, mas, ao final daquela década, ocorreu outra queda expressiva
(idem). Mesmo assim, neste período de crise, a Bompastor expandiu suas
atividades, lançando alguns nomes da música evangélica, que, posteriormente, se
constituíram como referências. Entre os artistas lançados pela gravadora, estão:
Armando Filho, Leila Praxedes, Cristina Mel e grupo Prisma Brasil.
A atuação da empresa dos Carvalhos não se restringiu à produção e
distribuição de álbuns musicais. A partir de 1990, quando surgem outras grandes
gravadoras evangélicas, o grupo empresarial Bompastor estendeu seus negócios ao
mercado editorial
31
, lançando livros de autores brasileiros e estrangeiros, de grande
vulto internacional
32
. Ainda na área editorial, a Bompastor comprou a Editora
Eclésia, e logo em seguida, lançou a Revista Eclésia. Atualmente, o referido grupo
empresarial é composto por várias lojas, uma editora literária e uma gravadora.
1.4 A fundação das grandes gravadoras evangélicas e a formação de um nicho
do mercado fonográfico brasileiro a partir de 1990
A Bompastor influenciou, quase que exclusivamente, o mercado fonográfico
evangélico brasileiro até a fundação de outras grandes gravadoras na década de
1990. A partir daí, em especial, a Gospel Record, MK Music, Line Records e a Top
Gospel passaram a disputar a audiência de um segmento que tem crescido
expressivamente no Brasil: os evangélicos. Criou-se naquele período um mercado
fonográfico voltado preferencialmente para o referido segmento religioso. Quanto à
formação desse nicho específico, cabe uma questão mais ampla: quais os fatores
econômicos e sociais que facilitaram a fundação de empresas fonográficas
evangélicas?
Primeiramente, pode-se afirmar que a estabilização econômica possibilitou o
surgimento de grandes gravadoras evangélicas. Com a implantação do Plano Real
31
Segundo Legwgoy (2005), a partir da década de 1990, o mercado editorial evangélico brasileiro tem recebido
uma “enxurrada” de booksellers cristãos norte-americanos. Tal literatura tem alcançado uma expressiva
audiência, que transcende os marcos institucionais.
32
Dentre os livros estrangeiros distribuídos pela Bompastor, destacam-se os de Benny Hinn, Charles Swindoll,
Bill Grahm e Peter Wagner.
39
(1992-1993), a inflação foi controlada e alguns setores da indústria, como o
fonográfico, passaram a ter novamente um bom desempenho. A partir daí, de forma
inconstante, a indústria fonográfica como um todo, voltou a crescer, chegando a
ocupar a posição no ranking mundial das vendas de discos em 1996 (Dias, 2000;
Silva, 2001; Ghezzi, 2003; De Marchi, 2006). Grosso modo, podemos dizer que a
década de 1990, em termo econômicos, foi um período propício para a implantação
de novas empresas fonográficas no Brasil, ainda que a partir de 1997 tenha ocorrido
uma acentuada retração nas vendas, por conta de outros fatores que serão
apresentados adiante.
Além da relativa estabilidade financeira, podemos destacar um outro dado
que, a meu ver, contribuiu mais para a criação desse nicho do mercado fonográfico.
Refiro-me ao crescimento e diversificação do segmento evangélico no país. Se na
década de 1970, esse segmento religioso representava somente 5% da população,
em 1991 o número de evangélicos chegou a 9%. Neste período, diante de disputas
e sínteses no cenário religioso nacional
33
- uma dinâmica que inclui não só as
denominações evangélicas, mas o catolicismo e as religiosidades de matrizes afro-
brasileiras -, foram criados outros arranjos institucionais evangélicos. Novas
denominações e ministérios específicos (igrejas destinadas a roqueiros, tatuados,
surfistas, gays etc.) foram fundados, e outros atores sociais foram incorporados ao
segmento religioso em questão.
Tendo em vista a crescente nova demanda, alguns empresários e igrejas
passaram a produzir “produtos evangélicos”
34
: roupas, livros, material escolar,
objetos de decoração, produtos cosméticos, brinquedos, CDs e DVDs. Esses
“artigos evangélicos”
35
fazem referência a temas bíblicos, ou usam o nome de
Jesus, como marca. Para ilustrar, desde os anos 90, o mercado editorial evangélico
33
No âmbito das ciências sociais, vários autores têm procurado compreender as mudanças ocorridas nas últimas
décadas no cenário religioso brasileiro, em especial, com relação ao crescimento da população de evangélicos.
As vozes parecem se agrupar em dois blocos: de um lado, encontramos pesquisadores que procuram explicar as
recentes transformações religiosas através de uma abordagem que dá relevo às dinâmicas institucionais,
vislumbrando o entendimento de recortes sociais mais amplos; de outro lado, alguns estudiosos procuram
estudar o crescimento do contingente evangélico, priorizando os sincretismos, as disputas, o trânsito entre as
religiosidades que compõem o cenário religioso brasileiro. Para um maior esclarecimento sobre essas duas
abordagens, ver: Mafra e Swatowski (2007).
34
Isso não quer dizer que anteriormente não houve empresas que produzissem produtos evangélicos. Pelo
contrário, no país, já na década de 1950 algumas empresas editoriais começaram a produzir livros e artigos
voltados para o público infanto-juvenil. Para outras informações, ver: Bellotti (2007).
35
Para uma maior compreensão dos estabelecimentos onde os “artigos evangélicos” são disponibilizados para o
consumo, ver: (Giumbelli, 2007).
40
brasileiro tem se modernizado e expandido nacionalmente, conseguindo lucros
expressivos, sobretudo a partir da venda de bíblias e de livros sobre a vida cristã
(Lewgoy, 2005).
A criação das grandes gravadoras evangélicas ocorreu dentro desse
processo de formação de um campo específico do mercado nos anos 90. A partir
daí, a produção musical evangélica, cada vez mais vai assumir uma lógica comercial
e empresarial. Contudo, ainda que sigam o formato das demais empresas
fonográficas, as maiores gravadoras evangélicas possuem algumas singularidades
em termos de estrutura organizacional e funcionamento. Explico a seguir.
Vimos que, sobretudo a partir dos anos de 1970, boa parte das empresas
fonográficas seculares brasileiras se constitui sob a tutela das majors, que, à
ocasião, se caracterizava por concentrar todas as etapas de produção dos álbuns.
Essa dependência externa perdurou, ao longo dos anos e continua até os dias
atuais. Observa-se ainda, entre as empresas, uma tendência de formação de blocos
cada vez mais fortes e poderosos. Porém, desde a década 1990, seguindo as
tendências globais, as transnacionais têm fragmentado e terceirizado algumas das
etapas da produção fonográfica. Para que se compreenda melhor o modelo
estrutural-organizacional que as majors têm adotado para diminuir seus gastos e
otimizar suas gestões empresariais na contemporaneidade, apresento mais um
organograma.
41
Ilustração 2 - Organograma II: Estrutura da Grande Empresa Fonográfica: Brasil - anos 90 em
diante - (Modelo da gravadora BMG
36
- 1994)
Direção
Artística
Produção Musical
Gerência de
Marketing
Gerência de
Vendas
Estúdios
bricas
Gerência de Adm. e Finanças Distribuição Física
Se até o final dos anos 80, todo o processo de fabricação era executado por
uma indústria, agora, nesta nova concepção empresarial, algumas das etapas da
produção passaram a ser delegadas a outros atores e empresas. Assim, a
gravadora passou a controlar somente a parte artística, a aérea de finanças e a de
marketing. As demais etapas foram terceirizadas. Essa reengenharia administrativa
e operacional tem possibilitado a “desterritorialização da produção” (Dias, 2000).
Dito de outro modo, nos dias atuais, a elaboração de um álbum pode envolver a
participação de diversas empresas e integrar profissionais lotados em diferentes
cidades ou países.
Contrariando a tendência global, as empresas evangélicas MK Music, Line
Records e Gospel Records, em especial, têm imprimido uma gestão empresarial
caracterizada pela:
1) Concentração das etapas de produção.
A produção, divulgação e distribuição dos álbuns são tarefas
realizadas pela própria gravadora ou por empresas associadas;
36
A BMG e a Sony Music Fonte: Dias (2000)
Presidência
Serviços Terceiros
42
2) Formação de casts de cantores evangélicos.
As gravadoras deste nicho do mercado somente produzem álbuns de
artistas evangélicos, tendo em vista que sua audiência é
preferencialmente composta por indivíduos desse segmento religioso;
3) Produção de músicas consideradas evangélicas.
Mesmo incorporando gêneros musicais considerados como “profanos”
até pouco tempo por boa parte dos evangélicos, as gravadoras
somente lançam músicas, cujas letras abordam “temas evangélicos”,
como: a relação do fiel com Deus; a valorização dos atributos da
Divindade; a exortação de como o crente deve se comportar; o poder
de Deus na luta contra o diabo etc;
4) Forte vinculação com algumas denominações evangélicas. As
gravadoras do referido segmento são dirigidas por personalidades
evangélicas (políticos, empresários, pastores ou cantores) ou por
denominações evangélicas, que tamm usam a música para se
projetarem no espaço público;
5) Sua atuação é regida e auto-regulada pela idéia de missão
religiosa de “resgate do mundo”
Mesmo sendo uma atividade econômica pautada na busca de lucros
cada vez mais expressivos, as empresas fonográficas que compõem
este nicho do mercado fonográfico justificam sua atuação pela idéia de
missão religiosa. Neste sentido, o os atores sociais - cantores,
instrumentistas, donos de gravadoras etc-, mas todo aparato
institucional seriam meios legítimos para a expansão das “boas novas”
evangélicas.
Se globalmente uma tendência das empresas fonográfica em
“desterritorializar” a produção musical, verifica-se no nicho evangélico brasileiro
43
ainda a ocorrência de uma concentração de etapas de produção, que vai desde a
gravação até a distribuição dos álbuns.
A concepção empresarial da MK Music é um bom exemplo deste tipo de
gestão. Fundada pelo político Arolde de Oliveira, em 1990, a referida empresa
carioca é responsável por 70% da produção fonográfica evangélica e 30% da
nacional
37
, sendo também a única gravadora do segmento evangélico a integrar a
Associação Brasileira de Produtores de Disco (ABPD). Em parte, esse sucesso pode
ser explicado pela forma como a empresa está constituída. Na verdade, a MK Music
é um dos braços do Grupo MK de Comunicação, que também agrega as áreas
radiofônica
38
, digital
39
e impressa
40
. Por conta dessa atuação tanto no setor
fonográfico como nas diferentes mídias, o Grupo MK consegue realizar uma ampla
divulgação de seus álbuns no meio evangélico. Além disso, assim com a Line
Records e Gospel Records, a MK Music tem conseguindo realizar uma distribuição
sistemática dos produtos fonográficos de seus 39 cantores e grupos em todo
território nacional evento extremamente recente na cena musical evangélica.
Somados a esses empreendimentos, buscando expandir sua atuação para outros
países da América Latina, o grupo empresarial dirigido pela esposa de Arolde de
Oliveira, Yvelise de Oliveira, tem produzido álbuns com versões tamm em
espanhol, como o da cantora Fernanda Brum, Apenas un Toque. Juntamente com
outros CDs, DVDs e livros, tais produções estão tamm disponibilizadas para
venda em um dos portais do Grupo MK.
Assim como a MK Music, a Gospel Records faz parte de um grupo de
empresas que integram diversas mídias. Porém, diferentemente da primeira, a
Gospel Records é dirigida pela Igreja Renascer em Cristo. Fundada em 1990, na
37
Para maiores informações, ver a seguinte reportagem:
1) ‘Sons divinos’: Cresce a procura por música religiosa e dezenas de músicos investem no estilo” no
guia de final de semana do site: www.uol.com.br (consulta: 24/10/2007);
Ver também os sites: http://www.grupomk.com.br/( consulta: 24/10/2007);
http://www.tiosam.com/enciclopedia/?q=Gospel_internacional (consulta: 24/10/2007).
38
Rádio 93FM gospel,ver: http://www.radio93.com.br/
39
O grupo possui: 1) Megaportal jornastico e de conteúdo - ElNet.com.br-; 2) Portal de Música Som
www.gospel.com.br; 3) Portal B2C mkshopping.com.br; 4) radio93.com.br e mais outros 50 portais de sites na
Web.
40
O grupo também possui a
MK Editora. Em janeiro de 2007, a referida editora contava com 73 títulos
publicados. Além disso, a MK Editora publica a revista mensal Enfoque Gospel. Para outras informações, ver:
http://www.mkeditora.com.br.
44
capital paulista, pelo apóstolo Estevem Hernandes e por sua esposa, bispa Sônia
Hernandes, a referida empresa fonográfica surgiu com a proposta de gravar as
músicas dos cantores desta igreja. Contudo, ao longo dos anos, passou a produzir
álbuns de outros artistas e grupos, diversificando também sua atuação em termos de
gêneros musicais. Sendo assim, a Gospel Records tem lançado álbuns que fogem
ritmicamente à regra da “hinódia tradicional evangélica”
41
. Em seu cast, que contém
18 artistas, existem bandas de rock (Banda Resgate), funkeiros evangélicos (Dj
Alpiste) e pagodeiros. Com a colaboração de empresas que também compõem o
patrimônio da Igreja Renascer em Cristo, em seus 17 anos de funcionamento, a
referida empresa fonográfica já lançou mais de 100 títulos, além de produzir e
distribuir CDs de grandes cantores e grupos
42
.
A Gravadora Line Records também é uma das grandes corporações
evangélicas da atualidade. Constituída em 1992, dois anos após a criação da
Gospel Records e da MK Music, a Line Records compõe o rol de empresas que são
dirigidas pela Igreja Universal do Reino de Deus (IURD). Em um primeiro momento,
a gravadora da IURD atuava também no mercado secular, porém, tendo em vista a
crescente visibilidade da música evangélica no país, em 1994 passou a produzir
somente álbuns de evangélicos. À ocasião, no intuito de associar o nome da Line
Records aos crentes, a direção da gravadora contratou vários artistas conhecidos no
meio evangélico, como: Ed Wilson, Sérgio Lopes, Melissa, Carlinhos Félix e Oséias
de Paula. Em 16 anos de existência, com um cast de 34 cantores - dentre eles, Mara
Maravilha, Robinson Monteiro (ex-vencedor do programa de calouros do Raul Gil) e
Salgadinho-, a Line Records pode ser considerada uma major gospel
43
, na medida
em que também faz parte de um bloco de empresas que abarcam diferentes meios
41
No quarto capítulo, farei uma análise mais aprofundada sobre as transformações nas musicalidades
evangélicas.
42
A distribuição e divulgação dos álbuns produzidos pela Gospel Records são feitas por um conjunto de
empresas, as quais também estão diretamente vinculadas à igreja do apóstolo Hernandes. Dentre essas
empresas, podemos destacar as emissoras da Manchete Gospel - que atingem mais de 300 cidades em todo
país e a Rede Gospel de TV - um canal aberto UHF e a cabo, que alcança tamm todo território nacional. A
Igreja Renascer também conta com uma considerável atuação no mercado editorial. Neste segmento, os carros-
chefe são: a Revista Gospel e o Jornal Gospel News. Por fim, vale lembrar que a Renascer possui também uma
rede de páginas na internet, o Igospel. Em todas estas empresas, os produtos musicais da Gospel Records são
divulgados.
43
Salvaguardando as diferenças indicadas entre as majors seculares e as grandes gravadoras evangélicas,
considero esta denominação muito oportuna. Algumas reportagens de revistas seculares têm usado essa
expressão para denominar as empresas fonográficas evangélicas. Para um melhor esclarecimento, ver Jesus
Cristo superstar: Misturando som pesado e outros gêneros, o gospel sai das igrejas e se transforma em
fenômeno de consumo” (Veja, 23/06/1999).
45
de comunicação
44
. Da mesma forma que a MK Music e a Gospel Records, a Line
Records produz, divulga e distribui seus álbuns em todo território nacional.
Ao lado desses três conglomerados empresariais, temos outras gravadoras
de médio porte conhecidas, que também foram fundadas a partir dos anos 90.
Dentre elas, destaco a TopGospel
45
, Zecap Gospel Music
46
, Graça Music
47
, Central
Gospel
48
e Bola Music
49
. No cast dessas empresas, encontramos algumas
celebridades, mas nada compatível ao quadro das grandes gravadoras.
Além disso, também não podemos deixar de ressaltar que existem dezenas
de gravadoras
50
de pequeno porte e selos individuais espalhados em todo território
nacional. Por não contarem com a colaboração das grandes mídias evangélicas, os
cantores destas gravadoras usam, sobretudo, o espaço das igrejas
51
para a
divulgação de seus álbuns.
De modo geral, a atuação das empresas fonográficas evangélicas tem
contribuído para a formação de mais um nicho especializado auto-sustentável de
produção musical no país. Se na década de 1970 vimos surgir no Brasil um
segmento fonográfico alternativo que pleiteava a “soberania” da música nacional,
44
O monumental patrimônio empresarial da IURD inclui, dentre outras empresas, a Rede Aleluia – rede de rádio
que contém cerca de 30 emissoras -, o jornal Folha Universal, a Revista Plenitude – que tem uma tiragem de 223
mil exemplares - e a emissora Rede Record.
45
Na apresentação das gravadoras evangélicas mais conhecidas, não podíamos deixar de incluir a TopGospel.
Criada pelo político Francisco Silva, em 1996, a gravadora já produziu álbuns de cantores conhecido pelo grande
publico evangélico, como Wanderley Cardoso, Cris Duran, Mattos Nascimento e Sérgio Lopes. Atualmente
possui um cast com seis cantores. Além de dirigir a TopGospel, Francisco Silva é dono da Rádio Melodia, uma
das primeiras rádios FM evangélicas do Brasil. Atualmente, a Melodia tem oscilado nas primeiras posições do
rank de audiência no Estado do Rio de Janeiro. Para se ter uma idéia, no mês de maio de 2007, a rádio
perdeu para FM O Dia. Em grande parte, a divulgação dos cantores da TopGospel é feita pela Rádio Melodia.
Em sua programação, recorrentemente, as músicas dos cantores da gravadora são tocadas, intercaladas com os
sucessos de outros cantores, que eventualmente são pedidos pelos ouvintes. Além disso, uma outra forma
adotada pela gravadora para promover os seus cantores é através dos shows que realiza em estádios e em
parques blicos. Para outras informações, ver: http://www.portaltopgospel.com.br/
46
A Zecap Gospel Music é uma gravadora carioca que atualmente possui um cast com 6 cantores. Para outras
informações, ver: http://www.zekap.com.br/.
47
A Graça Music faz parte do patrimônio da Igreja Internacional da Graça Atualmente possui um cast com 18
artistas. Para outras informações, ver: http://www.gracamusic.com.br.
48
A Central Music é uma das empresas dirigidas pela Igreja Assembléia de Deus na Penha. Conta com um cast
com 6 cantores. Para maiores informações, ver: centralgospelcom.br.
49
A Bola Music é uma empresa fonográfica da Bola de Neve, uma igreja, voltada, sobretudo para o público
jovem e amante do surf. Em seu cast existem 5 cantores. Ver: www.bolamusic.com.br/.
50
Em um levantamento feito em sites e páginas evangélicas na internet em 2006, constatei a existência de mais
de 120 gravadoras e selos no Brasil. A relação encontra-se em apêndice.
51
No próximo capítulo aprofundarei neste ponto.
46
mas que não consegui criar um mercado apartado da grande indústria; se nos anos
de 1980, por conta da falta de interesse das grandes gravadoras, observou-se a
fundação de selos individuais e a criação de um circuito específico voltados para a
produção e distribuição do funk; podemos afirmar que, nos anos de 1990, constitui-
se um mercado fonográfico evangélico no país, uma vez que, nos termos de Thorton
(Thorton apud De Machi, 2005), esse nicho: 1) agrega meios de comunicação
especializados (impressos, radiofônicos, televisivos, etc); 2) possui pontos próprios
de venda dos produtos; 3) realiza apresentações para um segmento particular e 4)
opera numa gica alternativa ao grande mercado fonográfico. Dito de outro modo,
as empresas que compõem esse mercado se especializaram em um determinado
“gênero musical”
52
música gospel-, criando um segmento comercial alternativo ao
circuito fonográfico majoritário, que está vinculado às grandes corporações
transnacionais.
Como foi destacado anteriormente, uma das características que singularizam
este segmento do mercado entre os demais é a existência de uma forte associação
entre gravadoras e algumas denominações evangélicas. De maneiras e razões
diferenciadas, observa-se, no mercado fonográfico evangélico, uma forte vinculação
entre igrejas e empresas fonográficas. Para ilustrar: além das gravadoras que foram
fundadas por empresários que desenvolvem uma forte relação com lideranças
evangélicas - inclusive concedendo espaço nas programações radiofônicas às
lideranças pastoras
53
-, existem: 1) igrejas que contratam os serviços de grandes
gravadoras e produzem CDs e DVDs de seus ministérios de louvor - dentre elas,
destaco: Comunidade Internacional da Zona Sul e Ministério Sarando a Terra Ferida;
2) denominações evangélicas que fundaram selos com o intuito de produzir os
álbuns de seus próprios ministérios de louvor. Um bom exemplo é a Igreja Batista da
Lagoinha (MG), a qual reproduz as músicas do grupo Diante do Trono; 3) igrejas que
criaram grandes gravadoras, formando tamm grandes blocos empresariais
(Renascer em Cristo e Universal do Reino de Deus); 4) igrejas que, inicialmente,
fundaram selos com o intuito de gravar as músicas de seus respectivos grupos de
52
No Brasil, o termo gospel passou a designar toda a produção musical evangélica. No quarto capítulo, farei uma
consideração sobre as diferentes utilizações desse termo no Brasil e nos EUA.
53
A Rádio El Shadai, uma das empresas do Grupo Mk Music, concede um espaço aos líderes do Conselho de
Ministros Evangélicos do Estado do Rio de Janeiro em sua programação.
47
louvor, mas, ao longo do tempo, passaram a produzir álbuns de outros artistas.
Neste último caso, destaco o Ministério Apascentar, em Nova Iguaçu.
A especificidade deste nicho do mercado o se apresenta somente quanto à
sua estrutura-organizacional. Em grande parte, por ter uma forte interferência de
igrejas evangélicas, o mercado fonográfico em questão também se caracteriza por
se pautar e se auto-regular a partir da idéia de missão religiosa. Mesmo
desenvolvendo atividades guiadas por uma racionalidade empresarial voltada para a
aquisição de lucros econômicos, as gravadoras evangélicas também são vistas
como veículos irradiadores das “boas novas” evangélicas. Ou seja, por
reproduzirem, em grande escala, “músicas evangélicas”, as empresas fonográficas
são concebidas como meios legítimos de propagação da própria religiosidade
evangélica. A seguir, apresento trechos de um texto onde a equipe da Toque no
Altar Music faz uma descrição sobre o objetivo e a função da gravadora:
A Toque no Altar Music tem como objetivo alcançar vidas para o Senhor Jesus
através do louvor, oferecendo músicas com qualidade e unção, baseadas totalmente
na palavra de Deus, no intuito de expandir o evangelho de Cristo na terra. Sua
missão é evangelizar por meio da música, fazendo com que milhares e milhares de
pessoas em todo o mundo conheçam e reconheçam que um Deus, um
Senhor e assim, que se cumpra a palavra profética descrita em Romanos 14:11, que
diz: “... todo joelho se dobrará e toda língua confessará que sou Deus”. (Toque no
Altar Music. sitehttp://www.toquenoaltarmusic.com.br/site/gravadora.php. (Consulta
em 05/04/08).
.
Corroborando a idéia de que as gravadoras se apresentam como
organizações engajadas em um projeto missionário, trago um trecho da entrevista
da vice-presidente da MK Music, concedida à Revista Enfoque Gospel. Quando a
jornalista lembrou das novas conquistas internacionais da gravadora, a executiva
justificou:
Sentimos a confirmação de Deus sobre o propósito d’Ele para a MK Music e para
todo o Grupo MK de Comunicação. Somos gratos ao Senhor e tamm a todo o
povo de Deus. Pois o grupo não é feito apenas dos funcionários, cantores, ministério,
mas por todos aqueles que têm acreditado e investido em nosso ministério, que
tem um objetivo: crescer no propósito de Deus. Porque d’Ele, por Ele e para Ele são
todas as coisas (Vice-presidente da MK Music, Cristina Xisto, Enfoque Gospel
09/07).
Há, por parte dos donos das gravadoras, produtores musicais e cantores, um
cuidado para não escandalizarem a audiência. Em outras palavras, não as
músicas devem se produzidas levando-se em conta os temas e ritmos aceitos pelos
48
evangélicos, como também os cantores devem adotar estéticas, comportamentos e
vocabulário condizentes com os compartilhados pelos evangélicos. Nos termos
nativos, para ser valorizado, o cantor deverá “dar o testemunho”, o que significa, em
especial, ser membro de uma igreja - condição sine qua nom para ser reconhecido
como um “cantor evangélico”- e ter uma vida guiada pelos valores e concepções
religiosas. Portanto, fortes indícios de que o respeito pela audiência é um dos
critérios norteadores da produção musical evangélica. Não estamos diante de um
mercado que procura sempre na superação irrestrita uma forma de agradar ao
público, nem tampouco diante de um segmento que pensa o artista como um gênio
criativo, transgressor e inovador. Pelo contrário, estamos diante de um nicho do
mercado que procura, a todo o momento, se renovar e se expandir, mas tendo,
como princípio, a salvaguarda de valores e concepções evangélicas. Por exemplo,
a definição de um “bom cantor ou o entendimento do que venha ser uma “boa
música evangélica” são avaliações produzidas a partir de concepções religiosas.
Ao longo da tese, ao tratar da formação de celebridades evangélicas, ao
abordar a criação de uma gravadora por uma igreja e ao analisar os estilos musicais
evangélicos, aprofundarei a análise. Por hora, devo indicar as estratégias que as
gravadoras evangélicas estão adotando com relação à crise atual no mercado
fonográfico brasileiro.
1.5 “Com Deus eu vou vencer”: Estratégias do nicho evangélico frente à crise
anunciada no Mercado Fonográfico Internacional
Segundo a Associação Brasileira de Produtores de Discos (ABPD), depois de
ter expressado um ótimo crescimento em 1996, a indústria fonográfica brasileira
passou a amargar grandes perdas em seus ganhos. Entre os anos de 1999 e 2003,
o faturamento das gravadoras ligadas à ABPD baixou de R$ 814 milhões para 601
milhões de reais e total de unidades vendidas caiu de 88 milhões para 56 milhões
cópias. Em 2004, houve uma ligeira recuperação, mas a partir do ano seguinte, a
tendência de retração do mercado fonográfico brasileiro se confirmou, quando o
total de unidades vendidas o passou de 52,9 milhões de cópias e o faturamento
geral ficou na casa dos 615,2 milhões de reais. Para apreensão ainda maior dos
49
empresários do setor, no ano de 2006, foram vendidas 37,7milhões de unidades no
país e o montante de vendas totais foi de 454 milhões de reais. Esses dados
configuram a ocorrência de um progressivo encolhimento do setor fonográfico
brasileiro como um todo.
Um dos fatores que colaboram para essa redução é o crescimento de uma
rede ilegal de produção e distribuição de produtos fonográficos, que tem se
espalhando não no Brasil, mas em todo o globo. A pirataria, sem dúvida
nenhuma, é uma das principais causas da crise neste segmento empresarial.
Enquanto os empresários lastimam a retração nas vendas, sobretudo partir de 1997,
a indústria da pirataria cresce assustadoramente no país, chegando a superar, em
termos de vendagem e de faturamento, a indústria legalmente instituída
54
.
Diante desse verdadeiro “mercado paralelo”, as empresas do setor têm
procurado desenvolver estratégias, que vão desde o enxugamento dos postos de
trabalho
55
à criação de campanhas nacionais de conscientização (De Marchi, 2006).
Para Herchmann e Kischinhevsky (2005), além da pirataria, a concorrência
desleal com as novas formas de obtenção de músicas tem contribuído também para
a “crise” no mercado de produtos fonográficos. Com a chegada, no Brasil, da
tecnologia de gravação de CDs e com a popularização de serviços de
compartilhamento de arquivos digitais na internet, como Napter, Kazaa e Emule,
qualquer pessoa, no conforto de sua residência, pode “fabricar” um CD. Mesmo
tendo criado serviços próprios de downloads para a venda de arquivos musicais on-
line, as empresas não têm conseguido conter a procura desenfreada pelos sites
considerados ilegais. Somente em 2003, mais de 1,12 milhões de usuários
baixaram músicas nestes espaços virtuais não autorizados (idem).
Na contramão da grande indústria que, como vimos, tem amargado grandes
prejuízos, o nicho evangélico tem expandido os seus negócios. Esta tendência não
tem sido verificada no segmento fonográfico, mas no mercado evangélico como
54
Segundo dados da Associação Brasileira de Produtores de Discos, em 2003, a indústria da pirataria faturou
365 milhões e vendeu mais de 73 milhões de unidades; enquanto no ano seguinte, 2004, o rendimento bruto
ficou na casa de 706 miles, decorrentes da venda de mais de 66 milhões de unidades. Para outras
informações, ver: www.abpd.org.br.
55
Entre os anos de 1997 e 2003 houve uma redução de mais de 50% dos empregos diretos nos setor. Ver:
(Marchi, 2006).
50
um todo. Juntas, as empresas evangélicas - gravadora, editoras, livrarias, etc. -
faturam mais de 500 milhões de reais por ano
56
.
Em especial, com relação ao setor fonográfico, observa-se um crescimento
bem expressivo. Segundo a reportagem Vocação Musical” da revista Istoé
Dinheiro, publicada em 30/10/2006, somente a Line Records faturou mais de 50
milhões de reais naquele ano, um rendimento que, conforme declaração de um dos
representantes daquela gravadora, indicaria um crescimento de 26% em relação a
2005.
Nos últimos anos, a MK Music tem conseguido ampliar o seu cast e expandir
sua atuação. Atualmente, a gravadora é responsável por 30 % do mercado
fonográfico brasileiro e tem procurando se inserir em mercados de outros países da
América Latina. Contudo, o grupo empresarial tamm vem sofrendo com a
pirataria, como relata sua presidente, Yvelise de Oliveria:
A MK Music, atualmente, é a maior gravadora gospel do Brasil, mas vem sofrendo
grandes perdas com a pirataria, que agora atingiu níveis insuportáveis. Cinqüenta
por cento de todos os seus produtos são pirateados de todas as formas e meios e
vendidos e distribuídos a preços que não seriam possíveis se não fossem roubados.
Através da Internet é possível baixar qualquer CD sem pagar direitos autorais e
artísticos a ninguém (Entrevista concedida a Revista Enfoque Gospel- 01/2007)
57
Tendo em vista o crescimento da produção e comercialização ilegal de
produtos fonográficos tamm no meio evangélico, a MK Music, assim como outras
gravadoras e igrejas, tem buscado sensibilizar a audiência utilizando o argumento
de que pirataria é um pecado contra Deus.
Outras medidas mais objetivas contra a pirataria também tem sido adotada
pela maior empresa fonográfica evangélica do país. Seguindo a estratégia das
grandes corporações para competir com a circulação ilegal de músicas na internet,
56
Para maiores esclarecimentos ver as seguintes reportagens:
“Empresas investem no filão evangélico”. Correio Braziliense (15/09/02).
Mercado do Senhor: segmento de artigos religiosos varia de CDs a roupas, fatura milhões e não
conhece fronteiras”. Istoé Independente (22/09/2004). Segue um trecho significativo da entrevista: “A fé
que move montanhas também permite bons negócios. O mercado de produtos religiosos não sabe o
significado da palavra crise e se mantém nas alturas. No ano passado, as vendas de CDs, DVDs, livros,
camisetas, entre outros produtos, registraram faturamento de R$ 1 bilhão. o segmento fonográfico,
embalado pelo ritmo gospel, contabilizou R$ 500 milhões no ano passado e para 2004 espera um
crescimento de 20%. Os números são do grupo EBF-Eventos, empresa paulista que faz consultoria e
pesquisas para o setor evangélico”. (Istoé, 22/09/04).
57
Para maiores esclarecimentos, ver a matéria O problema da pirataria”. Enfoque Gospel (janeiro de 2007).
51
a MK Music criou um portal –somgospel.com.br-, onde disponibiliza arquivos de
músicas para serem baixados.
Além dessas iniciativas, para fomentar o mercado de produtos evangélicos de
um modo geral, a partir do ano de 2000, anualmente tem sido promovida, na capital
de São Paulo, uma feira que agrega empresas dos mais vários setores que
comem o mercado de produtos evangélicos. Realizada nas dependências do
Expo Center Norte, a Expo Cristã tem se estruturado nos moldes das grandes feiras
que acontecem naquela cidade, sem deixar de promover também outros eventos
paralelos, como shows, seminários e apresentações de pregadores famosos.
A partir de 2006, uma feira anual semelhante tem sido organizada no Rio de
Janeiro. Para entender como este evento tem sido organizado, bem como sua
importância para a ampliação do mercado fonográfico evangélico, participei da
Expo-Rio Cristã. Por ilustrar não as estratégias que as empresas evangélicas
têm desenvolvido para expandir seus negócios, mas tamm por indicar a íntima
associação existente entre igrejas e gravadoras na formação desde nicho, descrevo,
a seguir, as impressões que tive desta visita.
1.6 Expo-Rio Cristã: expandido o mercado e integrando os crentes
Ilustração 3: Foto da entrada do Pavilhão 5 do RioCentro
58
.
Quando cheguei à abertura oficial da 1ª Expo Rio Cristã, realizada no centro
de convenções do Riocentro, entre os dias 12 e 16 de abril de 2006, fiquei
58
Fonte: Robson de Paula 12/04/07.
52
espantado com o ritual que se desenrolava diante dos meus olhos, tendo em vista
que tinha, até então, uma concepção muito estreita sobre o formato e a organização
de uma feira de artigos evangélicos. Capturado pela cena, e diante da falta de
palavras para descrevê-la naquele momento, revolvi, então, tirar a foto anterior.
Como podemos observar, debaixo de uma faixa, com os dizeres Bíblia: R$ 1,99 e...
[imagem do carro] concorra a um carro O Km, uma pequena multidão encontrava-se
virada para a entrada do pavilhão 5 daquele centro de conversões. Lá na frente,
bem ao fundo, do lado do portão de entrada do pavilhão, um grupo de pastores do
Conselho de Ministros Evangélicos do Rio de Janeiro (COMERJ)
59
dirigia a
cerimônia. No instante em que eu tirei a foto, um dos pastores fazia uma rápida
oração, e por um ato performático, determinou o sucesso nas vendas da megafeira
de produtos evangélicos do Rio de Janeiro. Recordo também que, de maneira bem
enfática, ressaltou o caráter proselitista e integrador do evento. “Juntar o povo de
Deus carioca em um coração”, como disse o pastor, também era o objetivo da
feira. Em seguida, dirigidos por lideranças pastorais de peso no meio evangélico -
entre eles, reverendo Ezequiel Texeira e Cilas Malafaia-, todos cantaram o hino
nacional. Entre aplausos calorosos, sorrisos de contentamento e sob as bênçãos de
Deus, a feira foi considerada oficialmente aberta. Todos, então, lentamente e
demonstrando muita empolgação, se dirigiram à entrada do portão principal do
pavilhão 5.
Ilustração 4: Foto do Portão 5 do Pavilhão do Riocentro
60
.
59
Para maiores informações, ver o site: http://www.comerj.com.br/index.php.
60
Fonte: Robson de Paula 12/04/07
53
Ao entrar de fato na Expo-Rio Cristã, que foi organizada pela Empresa EBF
Eventos, impressionou-me a sua grandiosidade. Ao todo havia no local mais de 200
expositores, que ofereciam uma expressiva variedade de produtos evangélicos,
como livros, CDs, DVDs, roupas, objetos para decoração, artigos para santa ceia e
mobiliário para as igrejas, etc. À medida que acompanhava o fluxo, assim como os
que estavam no entorno, ficava cada vez mais impactado com a sofisticação dos
estandes. Luzes coloridas, formas arrojadas, tecnologia de ponta e muita
propaganda foram usadas nas estruturas dos espaços de cada expositor. Por
fazerem usos de grandes construções, detive-me mais a observar os estandes da
gravadora Gospel Records, da Igreja Ministério Apascentar, da Igreja Projeto Vida
Nova, cujo dirigente é o pastor Ezequiel Teixeira.
Ilustração 5: Foto da entrada do estande da Igreja Ministério Apascentar de Nova Iguaçu
61
.
O investimento na estrutura física dos estandes não foi a única estratégia
utilizada por eles para capturar a atenção dos visitantes. Com o intuito de valorizar
ainda mais os seus produtos, muitos expositores convidaram artistas, pastores e
políticos. Por alguns minutos, Rosinha Matheus que na ocasião era governadora
do estado do Rio de Janeiro- e seu esposo, Anthony Garotinho, ficaram no estande
de Editora Paz e Terra, que tem publicado os livros escritos pelo casal. No espaço
da Igreja Ministério Apascentar também havia muito movimentando com a presença,
61
Fonte: Robson de Paula 12/04/07.
54
inclusive, de músicos do grupo Toque no Altar que estavam lançando, na feira, o
álbumOlha pra mim”.
Ilustração 6: Foto do estande da Editora Paz e Terra
62
.
Realizada na Semana Santa, feriado nacional em que os cristãos
comemoram a ressurreição de Jesus, pode-se afirmar que a referida feira assumiu
uma dimensão que extrapolou a função básica de comercialização de produtos.
Sendo composta, em sua maioria, por expositores ligados às denominações
evangélicas, a Expo-Rio Cristã tamm integrou outros eventos que, comumente,
são feitos nos espaços dos templos evangélicos, como a realização de congressos
evangelísticos, cuja função é a propagação das boas novas” evangélica, e cursos
de capacitação espiritual”, voltados, preferencialmente, para cantores e
instrumentistas, ligados às atividades musicais das igrejas. Além disso, para
promover artistas e gravadoras, durante os cinco dias da feira, cantores e grupos
fizeram apresentações para o público visitante. Por fim, para lembrar a importância
religiosa do feriado, foi montada uma peça teatral sobre a Paixão de Cristo,
contando com a presença dos famosos convertidos Jece Valadão, que faleceu em
novembro daquele ano, e Sônia Lima, ex-jurada do programa “Show de Calouros”
de Silvio Santos.
Além disso, a feira tamm contou com uma ótima infra-estrutura de serviços
de alimentação e um espaço recreativo, onde os pais puderem deixar seus filhos
62
Fonte: Robson de Paula 12/04/06.
55
enquanto faziam suas compras ou participavam das diferentes atrações
disponibilizadas.
Pode-se, então, afirmar que, mais do que fomentar relações consideradas,
meramente, comerciais, a Expo-Rio Cristã agregou - e continua agregando -
atividades proselitistas, artísticas e recreativas. Ela foi organizada para que os
visitantes permanecessem, em suas dependências, ao longo do dia. Nelas, os
visitantes compram os produtos disponíveis, ouvem pregações, conhecem seus
cantores favoritos, assistem às peças teatrais e interagem com indivíduos de outras
denominações. Neste sentido, pode-se dizer que, essas feiras, lembram, em muitos
momentos, os grandes congressos realizados por denominações evangélicas, como
a Assembléia de Deus, dos quais igrejas de diferentes localidades participam e se
confraternizam. Além disso, tamm não podemos esquecer que vários expositores
eram as próprias denominações evangélicas.
Segundo um balanço geral, feito posteriormente pelos organizadores, o
evento reuniu mais de 80 mil pessoas e também movimentou um grande volume de
vendas. Além da divulgação sistemática nos meios de comunicação, o sucesso da
Expo-Rio Cristã, deveu-se tamm ao grande apoio das principais lideranças
pastorais do estado, vinculadas ao COMERJ. Estes pastores não conferiram a
um sentido religioso e cerimonial ao evento ao abençoá-lo, mas também
promoveram uma extensa divulgação em suas igrejas. Sem contar que estamos
falando de pastores de igrejas que comercializaram os seus produtos na Expo Rio
Cristã, como Silas Malafaia (Assembléia de Deus), Ezequiel Teixeira (Projeto Vida
Nova de Irajá), Marco Antônio Peixoto (Comunidade da Zona Sul), Marcus Gregório
(Ministério Apascentar) e outros.
A realização de feiras, como a Expo-Rio Cristã, nos indica que, diante da
crescente crise do mercado fonográfico, o segmento empresarial evangélico tem
reagido e criado, em contrapartida, estratégias para ampliar os seus negócios.
Ilustra a forte ligação entre denominações evangélicas e empresas fonográficas,
uma das principais características que singulariza o mercado evangélico dos
demais. No caso da feira de que participei, tal associação possibilitou não somente a
realização de outras atividades, consideradas como não comerciais, mas também
uma forte adesão dos evangélicos.
56
Com a apresentação deste evento, procurei mostrar que o mercado
fonográfico evangélico, mesmo adotando práticas regidas por uma lógica
mercadológica voltada para a obtenção do lucro, possui não uma organização-
estrutural específica, mas também um sentido simbólico que ultrapassa as relações
comerciais.
No próximo capítulo, a partir da apresentação da trajetória de três cantores,
veremos como estes profissionais m enfrentado as novas condições profissionais,
decorrentes da formação do mercado fonográfico evangélico.
57
2 TRÊS JORNADAS EM UM PROCESSO DE INDUSTRIALIZAÇÃO DA MÚSICA
EVANGÉLICA
No primeiro capítulo apresentei as circunstâncias sociais, históricas e
religiosas que facilitaram a formação de um mercado fonográfico, voltado
exclusivamente para a produção de música gospel. Vimos que, principalmente a
partir dos anos de 1990, por iniciativa de alguns empresários ou denominações
evangélicas, foram fundadas grandes gravadoras no país. Nessa cada, a Line
Records, a Gospel Records, e a MK Music, juntamente com as rádios do segmento,
passaram a imprimir um estilo mais industrial na produção, na divulgação e na
distribuição de álbuns, em todo território nacional.
A atuação mais industrial das grandes gravadoras tem como contrapartida a
formação das celebridades
63
. Até os anos de 1990, boa parte dos cantores
evangélicos, salvo raras exceções, alcançava somente uma pequena e restrita
audiência. Com a fundação das referidas empresas fonográficas, alguns deles, por
terem os seus álbuns distribuídos sistematicamente e por terem um fácil acesso às
mídias evangélicas, tornaram-se celebridades.
Neste capítulo, a partir da observação da trajetória de três cantores
evangélicos
64
, procuro compreender a maneira como eles estão se posicionando em
relação às novas condições profissionais mencionadas. Além disso, pretendo indicar
alguns problemas e algumas fissuras”, que passaram a ocorrer no meio musical
evangélico a partir da incorporação de uma lógica mais mercantil e industrial. Dessa
forma, inspirado diretamente em Norbert Elias (1995), desenvolvo uma escrita que
63
No livro “Mídia, Memória e Celebridade: Estratégias narrativas em contextos de alta visibilidade”, Micael
Herschmann e Carlos Alberto M. Pereira problematizam o papel das celebridades na atualidade. Para os
autores, não só no Brasil, mas em todas as sociedades marcadamente influenciadas pela “cultura midiática”, as
biografias ou as narrativas biográficas têm sido muito valorizadas. Sejam a partir das ries biográficas
realizadas pelo canal People and Art -, sejam através dos filmes nacionais e estrangeiros como Tiradentes,
Mauá e Malcon X-, ou até mesmo pelos sites dos pop stars, a cada vez mais, a busca pelo conhecimento da
trajetória ou estilo de vida dos famosos tem sido alvo de uma assídua e atenta audiência. A partir da
perspectiva teórica que os autores adotaram na coletânea, para explicar o fortalecimento desse “voerismo”
desenfreado, teríamos que levar em conta os efeitos provocados pelo processo de globalização nas identidades
coletivas e na constituição do self, ou seja, teríamos que considerar a diluição dos sentimentos coletivos e
sensação de fragmentação e efemeridade individuais. Neste sentido: As narrativas biográficas possibilitariam
ordenar a realidade, cristalizando temporariamente identidades, projetos de vida, seja para o sujeito biografado,
seja para os consumidores deste tipo de produto” (Herschmann e Pereira, 2005:8).
64
Ver em Apêndice A o roteiro semi-estruturado utilizado para entrevistá-los.
58
ora descreve as minúcias da jornada de vida dos cantores, ora contextualiza os
eventos relatados, em busca de uma compreensão mais ampliada.
Inicio, apresentando a trajetória de Rose Nascimento, uma cantora
assembleiana que conquistou um espaço de destaque no meio evangélico, num
“movimento de dentro para fora”. Em seguida, analiso a jornada de vida de Lúcia
Lombardi. Proveniente do meio secular, onde era reconhecida como cantora, ao
se converter, Lúcia teve que fazer várias negociações quanto à sua imagem para se
inserir no meio musical evangélico. Finalizo o capítulo, apresentando a trajetória de
Álvaro Júnior. Baiano e amante da música clássica e do samba-de-roda, o cantor
tem desenvolvido a sua carreira fora da mídia evangélica e do centro irradiador da
indústria fonográfica evangélica, que se encontra na região sudeste. Em síntese,
darei relevo a três jornadas, a três soluções individuais em meio a um processo de
industrialização da música comercial evangélica.
2.1 A Celebridade que veio de “dentro”
No início do ano de 2005, quando efetivamente iniciei a pesquisa, o
conhecia ninguém do segmento da música evangélica que pudesse viabilizar o
contato com os cantores. Por este motivo, como estratégia de inserção, comecei a
“entrar” nas páginas dos artistas e de igrejas evangélicas na internet. Foi dessa
forma que obtive as primeiras informações sobre as transformações, ocorridas na
atualidade, no segmento da música comercial evangélica. Através dos sites dos
cantores tive acesso aos telefones dos assessores e secretários, pessoas com as
quais deveria contatar e agendar as entrevistas com os referidos artistas. Sem
rodeios, fiz uma lista com alguns nomes, na esperança de poder entrevistá-los o
mais rápido o possível. Após entrar em contato com as equipes de vários cantores,
fui percebendo que seria muito difícil aproximar-me para melhor conhecer as
celebridades evangélicas. Olha, infelizmente, a agenda do cantor esta lotada.”, por
uns meses, ora de forma delicada, ora de maneira grosseira, escutei esta frase, ou
versões semelhantes, dita pelos secretários dos artistas. Comecei a constatar que
acompanhar mais de perto o dia-a-dia das celebridades evangélicas não seria uma
tarefa das mais fáceis de serem realizadas.
59
Depois de tentar várias vezes e não conseguir entrevistar nenhum cantor, tive
a oportunidade de conhecer a cantora Rose Nascimento
65
, em novembro de 2005. O
encontro foi viabilizado pelo secretário dela, Cláudio. Ao telefone, tivemos uma longa
conversa, durante a qual fui argüido sobre os objetivos da pesquisa. Satisfeito com
as minhas respostas, Cláudio resolveu marcar um encontro nosso.
Na manhã ensolarada do dia 7 de dezembro de 2005, dirigi-me ao local
indicado por Cláudio. Recordo-me que estava bastante animando, não pelo fato
de entrevistar uma das cantoras mais conhecida e que vende mais CDs e DVDs
evangélicos no Brasil, como também pelo fato de poder conhecer a sua casa e seus
familiares. Rose Nascimento mora em um condomínio fechado, visivelmente de
classe média, em Campo Grande, Zona Oeste do Rio de Janeiro.
De forma bastante acolhedora, fui recebido pela cantora em sua bela e ampla
casa. Assim que cheguei e expus os objetivos da pesquisa, percebi que a nossa
conversa seria bastante informal e amistosa. Por algumas horas, entre xícaras de
café e biscoitinhos, Rose falou de sua carreira. Neste dia, também tive a
oportunidade de conhecer os filhos da cantora, os quais, por várias vezes,
apareceram na sala, participando de nossa conversa. Com base nesta entrevista e
em outras informações que fui coletando ao longo do ano de 2005, apresento
algumas informações sobre a trajetória de Rose Nascimento.
2.1.1 Rose, a “cantorinha de Jesus”
Rosângela de Azeredo Nascimento nasceu no dia 15 de setembro de 1967,
no município do Rio de Janeiro. Proveniente de uma família das camadas
populares, por alguns minutos, em nossa conversa, Rose falou das privações que
passou, juntamente com os e seus 12 irmãos
66
, na infância. Segue um trecho:
65
Informações preliminares: Rose Nascimento, 40 anos, casada, negra, 3 filhos (os três tem um grupo: Os
Nascimentos), assembleiana, moradora do Bairro de Campo Grande. Álbuns lançados: 1) Livre, 2) A Dose mais
Forte, 3) Cinco Letras Preciosas, 4) Receba a Vida, 5) Mil Razões, 6) Começo, meio e fim, 7) Mais Firme do que
Nunca, 8) Melhores Louvores, 9) Sempre Fiel, 10) Aqui Tem Alegria (Infantil), 11) Sempre Fiel (Ao Vivo), 12)
Louvores Ungidos da Harpa, 13) Para o Mundo Ouvir e 14) Uma Questão de . DVDs: 1) Mais Firme do que
Nunca, 2) Sempre Fiel e 3) Para o Mundo Ouvir.
66
Dos seus 12 irmãos, pelo menos 8 são cantores evangélicos ou fazem backing vocal para evangélicos: Mattos
Nascimento, Noemia Nascimento, Marcelo Nascimento, Ruth Nascimento, Marquinhos Nascimento, Tuca
Nascimento ( já tem duas filhas que cantam: Gisele Nascimento e Michele Nascimento) e Willian Nascimento.
60
Nascemos em um berço, totalmente, vamos dizer assim, pobre materialmente
falando. E graças a Deus, eu acho que essa situação acabou ajudando para que nós
tivéssemos uma simplicidade. Eu acho que quando você nasce em um berço, quando
você já passou por várias privações na vida, você acaba sendo mais simples.
Quando Deus começa a te dar uma vida melhor, você passa a ser simples. Você tem
aquela raiz, você lembra daquela criação que o seu pai te deu há muito tempo. Isso é
muito importante (Rose Nascimento, 7/12/2005).
Durante a fala, Rose ficou bastante emocionada e não foi sem razão.
Atualmente a cantora conseguiu conquistar uma estabilidade financeira, possuindo,
inclusive, bens materiais que seu pai, como pastor de uma pequena igreja em
Campo Grande, não pudera dar-lhe na infância. Contudo, ainda que tenha tido uma
infância sofrida, Rose Nascimento concebe aquele momento com um período de
aprendizado, onde ela pôde desenvolver uma postura mais simples”, o que teria
ajudado na forma como lida com o seu entorno e com suas realizações, hoje na
atualidade.
Se por um lado a infância é lembrada como um momento difícil, por outro, os
primeiros anos de vida da cantora foram marcados por uma forte vinculação à
igreja. De modo geral, os evangélicos, principalmente os da assembléia da Deus,
procuram desenvolver uma vida eclesial intensa (Fernandes, 1995; Mafra, 2002). A
família da cantora não fugia a essa regra. Pelo contrário, juntamente com os irmãos,
Rose Nascimento foi criada dentro da igreja desde sua mais tenra idade. Muito cedo
e fortemente influenciada pelo pai - que além de pastor tamm era maestro - e por
sua mãe, que era solista do coral, Rose passou a ter grande interesse pela música.
Descontraída e com um tom jocoso, a cantora, no fragmento abaixo, indica uma
frase que costuma falar quando lhe perguntam sobre o seu primeiro contato com a
música:
Eu tenho mania de dizer que eu cantava desde que eu mamava. Mamava e cantava.
Mamava e canta. (risos). Eu nasci no evangelho. Cantava na igreja. Cantava em
grupos na igreja. Cantava no grupo das crianças e depois no grupo dos adolescentes
e assim fui indo. (Rose Nascimento, 7/12/2005).
A Igreja Assembléia de Deus
67
chegou ao Brasil em 1911. Por intermédio
dos missionários suecos Gunnar Vingren e Daniel Berg, a referida denominação se
67
Para um maior esclarecimento sobre a história da Assembléia de Deus, ver: (Freston, 1994 e Perboni, 2000).
Para um maior entendimento da inserção da Assembléia de Deus no meio pentecostal brasileiro, ver: Mariano
(1996) e Mafra (2002).
61
instalou, inicialmente, no estado do Pará, onde ganhou adeptos e se expandiu para
todo o território nacional. Defendendo a centralidade do uso da blia e a crença no
batismo do Espírito Santo, a Assembia de Deus se consolidou como a maior
igreja pentecostal do Brasil, ao longo do século XX. Mesmo priorizando, durante a
liturgia dos cultos, a leitura da bíblia, a igreja evangélica de origem norte-americana
valoriza muito a música. Em boa parte das denominações assembleianas são
montados vários grupos musicais, organizados de acordo com a idade e/ou sexo.
Sendo assim, existem os grupos de crianças, de adolescentes, de jovens, de
senhoras e o coral da igreja. O fato de cantar desde muito cedo, não nos grupos
e corais da igreja, como tamm individualmente nas apresentações especiais
durante os cultos, fez com que os familiares e amigos da cantora passassem a
chamá-la, carinhosamente, de a “cantorinha de Jesus”- um apelido que Rose
Nascimento faz questão de tornar público.
No período em que a cantora começou a se apresentar na igreja, para ser
mais preciso na década de 1970, a música evangélica não tinha ainda alcançado a
dimensão industrial observável nos dias atuais. A distribuição dos álbuns era muito
restrita e precária, fato que inviabilizava um maior conhecimento dos cantores em
todo território nacional (Cunha, 2004; Baggio, 2005). Sem contar que nesta época,
existia uma gravadora evangélica de grande porte, a “Bom Pastor”. Acrescenta-
se que, eram poucas as rádios que divulgavam as músicas evangélicas. Em outros
termos, pode-se dizer que as condições necessárias para a formação de
celebridades ainda não tinham sido criadas no meio musical evangélico. Sendo
assim, boa parte dos cantores como Rose Nascimento cantava nas igrejas, nos
coros ou individualmente, em apresentações especiais. Portanto, é possível afirmar
que os cantores atuavam localmente, e sua atividade não era percebida como uma
profissão.
62
2.1.2 “Fui ficando fraca”: O afastamento da igreja e a constituição de uma rede
mais ampliada
Durante toda a infância, Rose seguiu o curso que seus pais haviam
programado: estudava, fazia as tarefas de casa e, principalmente, como uma boa
assembleiana, passava longas horas na igreja, ensaiando nos grupos. Era neste
mundo que Rose “navegava”. Porém, segundo a cantora, com o passar dos anos, o
seu interesse pela leitura bíblica reduziu. Gradativamente ela deixou de orar, o que,
a seu ver, contribuiu para o afastamento da igreja. Em contrapartida, com a
ampliação do círculo de amigos, Rose passou a transitar em outros espaços:
Quase não lia mais a bíblia. Eu não tinha mais aquele entendimento da palavra. Fui
criada no evangelho, que não tinha aquele entendimento da palavra. Então o que
que aconteceu? Fui crescendo e fui arrumando aquelas amizades que diz: ‘Vamos
ali? Vamos ali que é melhor. Ah, não vai pra igreja hoje não. Vamos ao baile’. Então
eu fui indo, até escondida da minha mãe, e quando eu fui vê, eu estava fraca na
igreja e não consegui mais voltar. Fui me afastando, fui me afastando devagar (Rose
Nascimento, 7/12/2005).
Somados o enfraquecimento espiritual e as novas redes de amigos não
evangélicos, a cantora acreditava que rompendo os laços com a igreja e podendo
assim circular em outros espaços, poderia não ampliar os seus horizontes
pessoais - conhecer e namorar outros rapazes -, mas também buscar novas
possibilidades profissionais. Mesmo sabendo que contava com a reprovação da
família, Rose Nascimento passou a freqüentar bares, serestas e clubes. Nestes
lugares, ainda muito jovem, a cantora participou, como vocalista, de bandas de
cantores que estavam fazendo sucesso na década de 1980, como a cantora Joana.
Diz-nos Rose:
Quando eu me afastei do evangelho, eu passei a fazer vocal para rios cantores,
como Elimar Santos e Joana. Eu já fiz vocal com esse pessoal do secular. Então, o
que acontece? Antes de sair da casa do Senhor eu já fazia vocal, mas para
63
cantores evangélicos. Quando eu me afastei da casa do Senhor, passei a fazer vocal
para o secular. E cantava também em clube e em serestas. (Rose Nascimento,
7/12/2005).
Mesmo não estando mais vinculada à igreja, onde o seu interesse pela música
surgiu, Rose não deixou de cantar. Por ter desenvolvido uma técnica vocal, uma
habilidade para o canto, ao se “desviar” da igreja, a cantora teve condições de
pleitear as oportunidades de trabalho que iam aparecendo no campo da música
secular. Dessa forma, a cantora passou a fazer backing vocal para cantores que
transitavam no mundo secular”. Foram então estabelecidos outros contatos de
amizade e não apenas os profissionais.
Rose Nascimento manteve o convívio familiar. Quando conversava com seus
irmãos e amigos, questionava-se sobre seu afastamento da religiosidade evangélica.
Afinal, todos seguiam o curso de suas vidas, namoravam, trabalhavam e constituíam
família. Rose buscava justamente essas realizações ao se “desviar”. Segue um
trecho:
Decepções! Quando a gente sai da igreja, a gente pensa que vai ser diferente, que
eu ia conseguir as coisas mais rápidas, que ia ser como uma porta mais larga, a qual
eu pudesse entrar. Eu pensei que seria mais fácil conseguir um namorado, um
emprego, conseguir isso, ou aquilo (...). Pelo contrário, foi o momento de menos valor
na minha vida, porque eu imergi muito no mundo. Entrei muito naquelas águas sujas.
Participei de muitas coisas que eu não deveria ter participado. Então, o que
aconteceu? Aquilo foi tirando o meu valor (Rose Nascimento, 7/12/2005).
O questionamento a respeito do afastamento da igreja tornou-se mais intenso
quando a cantora percebeu que, apesar dos fortes laços de amizade, não conseguia
adaptar-se ao estilo de vida das novas amizades não-evangélicas. Neste novo
circuito de relações os relacionamentos afetivos/sexuais
68
eram mais “frouxos” e
instáveis, contrastando com os namoros
69
dos jovens de sua igreja. Nestes, em tese,
além do valor da virgindade, os enamorados deviam firmar um “compromisso sério”,
visando a um futuro casamento. Quando comparava as duas possibilidades de
relacionamento a artista entrava em conflito. Segue mais um trecho:
68
No livro Amor Líquido: Sobre a fragilidade dos laços humanos”, Zymunt Bauman analisa as características
dos relacionamentos amorosos na modernidade. Em linhas gerais, segundo o sociólogo, em nossos tempos,
cada vez mais os relacionamentos estão ficando mais efêmeros e “frouxos”. Este padrão de relacionamento
aproxima-se ao tipo de vínculo afetivo, valorizado nos espaços onde Rose Nascimento passou a circular.
69
Para um maior esclarecimento sobre as concepções dos jovens assembleianos sobre o namoro, ver: Sampaio
(2004).
64
Então, procurava um namorado, o namorado só queria ficar, não queria namorar, não
queria ter uma responsabilidade (...) Aí foi quando eu comecei a ver as pessoas que
cresceram junto comigo na igreja, estavam melhorando de vida. Estavam
perseverando, com toda luta, com toda prova, porque a gente tem que perseverar. E
era uma coisa que eu não preservei. Eu fui para o outro lado. E eu falei: ‘Não, eu
acho que este caminho que eu entrei é errado. Eu vou voltar. Não quero saber.
Preciso voltar pra minhas raízes, pra aquilo que eu aprendi’. Pronto, depois que eu
voltei pra casa do senhor, tudo na minha vida floresceu. Deus me deu esposo. Deus
me deu meus filhos. Deus me deu o meu lar. (Rose Nascimento, 7/12/2005).
De acordo com que aprendera na infância e na adolescência, o caminho que
escolhera não estava correto. Dessa forma, aos 20 anos, Rose Nascimento decide
retornar às suas “raízes” e, após certo tempo, alcança suas principais metas:
casamento, filhos e um lar - o ideal evangélico de família.
2.1.3 O retorno e o “chamado em um contexto de reprodução industrial da
música evangélica
Cerca de cinco anos depois, Rose Nascimento retornou ao convívio da igreja.
Voltou a freqüentar os cultos, as consagrações e os ensaios. Enfim, retomou sua vida
eclesial. Além disso, quando tinha um tempo livre, freqüentava as orações na casa de
uma irmã reconhecida na vizinhança pelos seus dons espirituais e pelas “orações
fortes” que fazia. Numa dessas visitas, a cantora recebeu uma mensagem que
marcou sua trajetória. Eis o seu relato:
Aí quando cheguei à casa daquela irmã, ela falou pra mim: “Olha, Deus mandou eu te
falar que tem uma grande obra, com você no louvor. E que você vai gravar um disco
solo. E que milhares de pessoas serão abençoadas com os seus louvores”. Você tem
dito no seu coração que você não quer. Você tem lutado, mas, não é você que quer,
é Ele quem quer. O ministério que Deus está te dando. Vai chegar alguém e vai fazer
uma proposta e você não pode recusar. Pronto, aí, eu não tive uma outra saída.
eu pensei dentro de mim: “Ah meu Deus do céu, Jesus... tem misericórdia. Eu não
quero pra mim! Mas se o Senhor falou, vai prover tudo. (Rose Nascimento,
7/12/2005).
Pelo vocabulário evangélico, Rose recebera um “chamadopara ser cantora.
Este trecho é relevante para compreender não apenas a forma como ela,
gradativamente, é moldada e se torna uma celebridade evangélica, mas, sobretudo,
as mudanças no meio evangélico, impulsionadas pelo processo de industrialização
da música evangélica. Quando a profeta diz para Rose Nascimento que ela
65
recebera uma missão de Deus e iria gravar um CD, uma nova concepção de
“chamado” estava sendo expressa. Em outras palavras, para que a missão se
concretizasse na vida da entrevistada, não bastava ter o dom e cantar em coros e
nos solos da igreja. A gravação de um álbum era fundamental. Rose deveria
alcançar uma ampla audiência, o que foi possível com formação de um mercado
fonográfico evangélico no início da década de 1990, no meio musical evangélico.
Quando Rose retornou à igreja, o cenário da música evangélica era bem
diferente do período de sua infância. Se na década de 70 a produção musical
evangélica se dava em pequena escala e de forma não sistemática, nos anos 90
alcança uma dimensão mais industrial e profissional. Neste período foram fundadas
grandes empresas fonográficas evangélicas, que associadas às mídias e às igrejas,
fomentavam uma profissionalização na produção, distribuição e divulgação dos
álbuns.
Pode-se, então, perceber que a profecia dita à Rose Nascimento, em Campo
Grande, zona oeste carioca, estava, de certa forma, em sintonia com às novas
condições empresariais do meio musical evangélico. Caso tivesse acesso aos
grandes empresários do nicho fonográfico, a cantora teria condição de gravar um
álbum e assim como os cantores seculares, poderia atingir uma grande audiência.
A partir dos anos de 1990 criaram-se condições de produção de celebridades
evangélicas.
Vale ressaltar, entretanto, que somente uma pequena parcela dos cantores
conseguiu alcançar o status de celebridade. Para ser reconhecido nacionalmente,
um cantor evangélico deve estar inserido nos circuitos fechados das grandes
gravadoras evangélicas – algo que nem todos conseguem, por motivos variados.
Uma semana após ter recebido a mensagem proferida pela “irmã de oração”,
Rose recebeu uma proposta:
De repente, uma semana depois, chegou uma pessoa e me fez uma
proposta. E aí, eu aceitei. Foi uma dificuldade muito grande pra gente gravar,
porque esta pessoa também não tinha tanta condição. Entramos assim com
a cara e a coragem, com a fé. (Rose Nascimento, 7/12/2005).
A firme convicção de que a profecia se realizaria fez com que a cantora
aceitasse a proposta para gravar o CD sem uma reflexão maior sobre as condições
materiais que estavam sendo oferecidas. A postura adotada por ela, ao aceitar a
oferta e entrar com a cara e a coragem, com a ”, resulta de recurso muito usado
pelos evangélicos. Rose tomou “posse da palavra”, ou seja, após receber a
66
mensagem de que iria gravar um álbum, através de um ato performático, a cantora
se mobilizou e direcionou a sua expectativa para a criação das condições afim de
que a profecia se cumprisse. Ao receber a oferta, ela entendeu que entre a profecia
e a proposta havia uma continuidade. Dessa forma, aceitou o convite sem
questionar. No trecho a seguir, Rose Nascimento fala mais sobre esse ponto,
esclarecendo, inclusive, quem foi a pessoa que lançou a oferta para a gravação do
seu primeiro LP:
Foi irmão de sangue mesmo: o Tuca. E tinha uma gravadora que era muito chegada
a nós, um pessoal bacana pra caramba. Eles fizeram uma parceria com a gente. Eles
falaram assim: “Olha, você faz vocal pra gente. Eu não pago. E vamos colocar no
disco da sua irmã. Eles falaram isso para o meu irmão. ‘Então legal’. nós
levamos dois anos para gravar um disco. Teve um dia que eu cheguei e disse para o
meu irmão: “Ah meu Deus, que benção e está? Dois anos pra benção chegar. Ah
senhor tem misericórdia”. foi quando, um dos donos de uma gravadora, que era
uma das melhores da América Latina, que era a Som e Louvores, o Orlando, ouviu, o
meu irmão mostrou pra ele. E aí, ele falou: ‘Eu quero fazer um contrato com ela. Eu
gostei desta menina”. (Rose Nascimento, 7/12/2005).
O fato de pertencer a uma família de músicos que estabelecia relações de
amizade com pessoas ligadas a algumas gravadoras evangélicas possibilitou a
inserção e o reconhecimento da cantora. Viabilizada por uma rede informal, após
dois anos de persistência, Rose consegue mostrar o seu trabalho a uma gravadora e
foi contratada. Dessa forma, grava o seu primeiro CD em 1991. Em poucos meses,
com oito faixas, o álbum Livre alcançou a cifra de 100 mil cópias vendidas. Tal
sucesso de vendas rendeu à jovem cantora o disco de ouro
70
. Ao lembrar desse
feito, a cantora regozijou dizendo:
18 CDs Nacionais (Lançamento até 12/2003)
1) Disco de Ouro- 100 mil cópias;
2) Disco Platina- 250 mil cópias;
3) Disco Platina duplo- 500 mil cópias;
4) Disco Platina triplo- 750 mil cópias;
5) Disco Diamante- 1 milhão de cópias.
CDs nacionais (lançamentos a partir de janeiro de 2004) e CDs internacionais ( a partir de janeiro de 2001)
1) Disco de Ouro- 50 mil cópias;
2) Disco Platina- 125 mil cópias;
3) Disco Platina duplo- 250 mil cópias;
4) Disco Platina triplo- 375 mil cópias;
5) Disco Diamante- 500 milhão de cópias.
DVDs ( lançamentos a partir de 02//2002)
Ouro- 25 mil cópias;
Platina- 50 mil cópias.
Para outras informações, consultar o site da Associão Brasileira de Produtores de Discos (ABPD),
www.abpd.org.br.
67
Deus foi tão maravilhoso, que em um ano vendi 100 mil, e olha que eu era uma
cantora novata, começando, ninguém me conhecia. Foi um marco na minha vida
muito grande. Foi uma bênção. Ganhei disco de ouro. (Rose Nascimento, 7/12/2005).
No meio musical, o recebimento de um disco de ouro representa a
confirmação do sucesso de vendas do álbum e, conseqüentemente, o próprio
reconhecimento do cantor. Ao receber a referida premiação, Rose se firmou como
uma cantora. A artista tornou-se uma pessoa pública, uma artista evangélica, a partir
da divulgação de sua música nas rádios evangélicas, ao se apresentar em shows e
nas festividades das igrejas. Mas como se deu esta passagem do anonimato ao
reconhecimento? Quais foram as principais mudanças ocorridas na imagem
cantora?
2.1.4 Ser ou não ser um ídolo? Constituição da celebridade evangélica
Para, Rose Nascimento, ao se tornar uma artista reconhecida, foi preciso
repensar a forma de apresentação em público. Ainda muito jovem Rose procurou
cuidar mais de sie ser mais vaidosa”- mudanças estéticas que implicavam, por
exemplo, o corte do cabelo. Contudo, tais anseios iam contra a doutrina da igreja.
Apesar disso a cantora não abriu mão de seu desejo e se confrontou com as normas
de sua comunidade religiosa, o que pode ser ilustrado pelo relato:
Passei a ser muito criticada, porque a igreja que eu era antes era muito fechada. Era
uma igreja muito tradicional, de não poder nem sequer aparar a ponta do cabelo. E
eu como cantora evangélica, eu não posso andar de qualquer jeito. Eu não posso
chegar em um evento com o cabelo todo despontado - apesar que hoje o cabelo
despontado é moda, mas antigamente não (...) Então, eu gostava de aparar o meu
cabelo, botava um batonzinho, fazia a sobrancelha, tudo direitinho. eu era
criticada. Me chamavam até de Jezabel. Diziam: “a Jezabel da igreja chegou” (Rose
Nascimento, 7/12/2005).
Rose Nascimento freqüentava a Assembléia de Deus, uma denominação
evangélica que valoriza muito certos hábitos, como a proibição do corte de cabelo
para mulheres, considerados ortodoxos pela sociedade mais abrangente.
Entretanto, ao atingir uma ampla audiência, a entrevistada percebeu a necessidade
de criar um estilo que incorporasse alguns elementos da moda corrente o que
68
tamm não era aceito por sua igreja. De acordo com a entrevistada, sua
comunidade passou a contestá-la. Diante das críticas, a cantora decidiu mudar de
igreja. Passou então a assistir os cultos em outra Assembléia de Deus em Campo
Grande
71
onde, juntamente com o esposo e os filhos, permanece até os dias atuais.
Resolvido o impasse, na nova igreja, Rose sentiu mais “liberdade” para
mudar a sua estética, sem sofrer publicamente coerções. Inclusive, foi a partir deste
momento que ela deixou os seus cabelos ficarem mais soltos e esvoaçantes - o que
acabou se tornando a sua marca por longos anos.
Ilustração 7: Foto de Rose Nascimento
72
.
Além dos cabelos encaracolados, o repertório escolhido pela cantora
tamm contribuiu para compor a imagem da “Cantora Rose Nascimento”. Cabe
abordar os critérios utilizados pela cantora para diferenciar a música evangélica da
secular, antes de tratar o papel do estilo de música adotado no processo de
constituição em celebridade. De certa forma, essa diferenciação vai repercutir na
forma como ela percebe os cantores e a audiência. Para Rose, todas as músicas
produzidas e executadas pelos pares religiosos podem ser consideradas como
mensagens da divindade para a audiência, ainda que reproduzidas em CDs, o que
fica claro por suas palavras:
71
Assembléia de Deus, localizada também em Campo Grande, cujo líder é o pastor Daniel Malafaia.
72
Fonte:
http://www.supergospel.com.br/artistas/rosenascimento/m (consulta em 19/10/2006).
69
Quando você recebe um CD de um cantor, às vezes, você está triste dentro de casa,
está vazio, passando por uma dificuldade, querendo escutar uma palavra, você
coloca este CD, aquela palavra que você está querendo ouvir, aquele CD fala para
você. Deus fala através daquela música. Então, você fica alegre. E você passa a
ser daquela pessoa. “Poxa! Eu gosto muito daquele cantor, pois quando eu estava
triste, ele cantou, e Deus falou comigo” (Rose Nascimento, 7/12/2005).
Se no meio secular as músicas o recebidas pela audiência ora como fonte
de entretenimento, ora como meio de lembrar da pessoa amada ou como um
instrumento de politização, segundo a cantora, a música evangélica é um veículo
de comunicação entre Deus e os seres humanos. Neste sentido, os cantores
evangélicos seriam concebidos como “canais” ou “porta-vozes” da divindade.
Assim, os fãs não estabeleceriam uma relação com o artista evangélico por suas
características físicas ou por seu carisma, mas por ser um “veículo” da divindade.
Trata-se, portanto, de uma relação muito distinta da estabelecida pelos não-
evangélicos, já que a divindade estaria presente, amortizando possíveis tensões ou
“excessos”. No trecho a seguir, Rose Nascimento apresenta algumas informações
que possibilitam um entendimento de sua concepção acerca da relação
celebridade/fãs evangélicos:
Fãs da igreja não se matam. Fãs do secular se matam. m outros que se
suicidam. É uma coisa que já vem da carne, enquanto o outro vem do espírito.
Então, é totalmente diferente. Com certeza é muito diferente. (Rose Nascimento,
7/12/2005).
A cantora estabelece uma clara distinção entre a relação dos fãs com artistas
evangélicos e dos fãs com astros não-evangélicos
73
. Para ela, a primeira seria uma
relação espiritual, uma vez que o artista seria um canal de Deus e suas músicas
mensagens divinas. a relação entre fãs e astros seculares seria carnal, regida
por uma paixão exagerada do fã pelo artista.
Surge uma questão: se os cantores são vistos como meros “instrumentos” de
Deus e se as suas músicas são concebidas como mensagens divinas, por que
existe então uma preocupação da cantora com sua imagem? A partir do relato de
Rose Nascimento, evidencia-se uma forte tensão em sua formação como
celebridade. Por um lado, uma tendência a diferenciar-se, tornar-se uma
73
Para um maior esclarecimento sobre a experiência da fama na modernidade, bem como a relação entre fãs e
ídolos no mundo secular, ver os trabalhos de Maria Cláudia Coelho (1997, 1999 e 2003).
70
referência, com uma determinada imagem. Por outro, percebe-se maior
valorização do papel de veiculo” de Deus, de mensageira das boas novas da
religiosidade evangélica. Ser uma artista - um objeto a ser idolatrado - ou uma
“serva do senhor”- um “canal” de transmissão da divindade? Esta tensão parece
atravessar sua construção como celebridade. De certa forma, esse dilema também
se reflete na própria percepção do artista pela audiência.
1.2.5 A Diva Pentecostal?
Rose Nascimento é conhecida no meio evangélico pelo estilo das músicas
que canta. Ela é uma típica cantora assembleiana, cuja referência maior são as
“músicas pentecostais” uma versão industrializada dos “hinos de fogo”
74
. Trata-
se de músicas inspiradas, na maior parte das vezes, no ritmo do forró, com letras
que explicitam especialmente o poder da divindade contra as investidas do demônio
ou descrevem passagens da bíblia, quando Deus exorta os fiéis. Estes hinos são
entoados com voz estridente e com muita personalidade. Quando estas músicas
são apresentadas pela cantora nas igrejas pentecostais, geralmente provocam
choro ou expressões como Aleluia, glória a Deus”, o que indica uma sintonia entre
este tipo de música evangélica e uma certa performance corporal.
Ao longo de 15 anos de carreira Rose conquistou um lugar de destaque na
música evangélica brasileira, cantando “hinos de fogo”. Por esta razão, a cantora
preferiu ter uma atenção na escolha das músicas, que uma das formas de ser
reconhecida por sua audiência é seu repertório.
Observar-se o grande respeito da cantora por sua audiência, o apenas no
que diz respeito ao repertório, mas também quando se trata de ocasiões tensas, em
público. Em nosso encontro, Rose relatou uma situação perturbadora, ocorrida
quando se apresentou em um show na cidade de Campos, interior do estado do Rio
de Janeiro. Segundo ela, a programação foi realizada num período em que estava
bastante cansada, devido aos inúmeros compromissos. Vivendo em ritmo
acelerado, a artista emagreceu muito e também teve queda de cabelo. Apesar de
ser um momento difícil, compareceu ao evento. Segue a descrição:
74
No quarto capítulo apresentarei os temas e as categorias que caracterizam este “estilo musical evangélico’”.
71
Cheguei lá e tal, bem magrinha, com meu cabelo mais curto. disseram: e agora
nós vamos ouvir a Rose’. Nisso chegou um rapaz e começou a gritar: ‘Ih! Está aí não
é a Rose não, gente. A Rose é mais gorda e tem cabelão’. Foi em um espaço
grande. Foi em um clube. Nisso, ele foi para casa- ele morava bem do ladinho -,
pegou a prima, a tia, e começaram a gritar: não é a Rose não. Ela quer imitar a
Rose, mas não é a Rose não’. eu comecei a chorar no palco e falei assim:
irmãos, sou eu mesma’. O pessoal todo chorando. Olha estou passando por isso,
por isso’. Tive que contar meu problema para que o pessoal pudesse entender o que
aconteceu. O rapaz saiu sem graça porque ele não conseguiu vencer. (Rose
Nascimento, 7/12/2005).
Este episódio revela que a artista não foi reconhecida por sua audiência.
Como já salientado, a partir dos anos de 1990 o processo de industrialização da
música evangélica possibilitou um reconhecimento nacional de alguns cantores
evangélicos. Vale pontuar, entretanto, que a audiência desenvolveu uma relação
distanciada e midiatizada com esses cantores. o se trata mais daquele pequeno
público que convivia com o artista em igrejas ou na vizinhança, mas de uma multidão
em contato com os artistas somente em shows e apresentações. Neste episódio, um
se frustrou, ao perceber a grande diferença entre a imagem da celebridade - com
quem se relacionava - e a própria artista. Diante disso, para não passar por
impostora, Rose expõe, publicamente, sua intimidade, afim de desfazer o mal-
entendido. Dessa forma a tensão é resolvida.
A partir desse relato é possível afirmar que, no processo de construção de
Rose como celebridade, ocorreu uma disputa entre diferentes atores sociais. Em um
primeiro momento, a cantora rompeu com sua antiga igreja, em busca de maior
“liberdade” para transformar sua estética de acordo com sua vontade. Em seguida,
lançou-se no meio musical evangélico, criando algumas “marcas identificadoras”,
para se distinguir de seus pares. Em poucos anos, Rose Nascimento conseguiu
alcançar um lugar de destaque entre as “estrelas” evangélicas, passando a ser
reconhecida tanto por seus “hinos de fogo”, quanto por seu visual. Em contrapartida,
ao ocupar esta posição, a cantora deixou de ter um controle total sobre sua imagem
e seu estilo musical. De certo modo, a audiência evangélica passa a exercer um
maior controle sobre ela.
A trajetória de Lúcia Lombardi será apresentada a seguir, em contraste com a
de Rose Nascimento. Diferentemente desta, Lombardi se projetou e ganhou
notoriedade inicialmente no meio secular.
72
2.2 A artista da MPB que se transformou em evangélica
Conheci a cantora Lúcia Lombardi de forma bastante inusitada e inesperada.
Depois de ter entrevistado Rose Nascimento, continuei, pela Internet, a minha
busca por informações de outros cantores evangélicos. Porém, não obtive sucesso
algum em minha investida. Conversando com um colega sobre este percalço que
estava imobilizando o desenvolvimento da pesquisa, tive conhecimento da cantora
Lúcia Lombardi. Ele me informou que em suas redes de pessoais, havia uma
cantora evangélica que, embora não tivesse fazendo mais sucesso aqui no Brasil,
poderia elucidar alguns pontos sobre as transformações ocorridas na música
evangélica nas últimas décadas. Achei interessante, mais ainda quando ele
informou que a cantora, antes de se converter, fora artista da MPB, atriz, modelo
fotográfico e que tamm tinha feito vários comerciais para a televisão. Fiquei
muito motivado em entrevistá-la. Seria uma ótima oportunidade de observar como
se o processo de conversão de uma artista secular. Sem contar também que
seria muito bom comparar a trajetória de um artista que veio de “fora”, com uma
que nasceu e se constituiu como tal no meio evangélico, no caso a Rose
Nascimento. Sem hesitar, pedi que ele entrasse em contato com a artista e visse a
possibilidade de eu conhecê-la mais de perto. Depois de uma semana, veio a
resposta: Lúcia Lombardi aceitara o convite e decidira me receber em sua
residência.
Com um gravador dentro da bolsa e com a cabeça cheia de idéias, na
manhã do dia 10 de janeiro de 2006, me dirigi ao bairro da Taquara, zona oeste
carioca, onde se realizou a entrevista. A região onde Lúcia Lombardi mora é
bastante arborizada e com pouco tráfego de automóveis, ao lado de uma reserva
florestal.
Lúcia Lombardi me recebeu de forma bastante acolhedora em sua espaçosa
casa. Pelo fato de ter sido indicado por um amigo, já fui recebido com informalidade
e com um belo sorriso no rosto. Na verdade, ela sabia mais sobre os objetivos da
minha pesquisa do que eu sobre a sua trajetória. Isso ficou evidente quando, antes
73
mesmo de me sentar no sofá, ela iniciou a entrevista, emitindo sua opinião sobre as
gravadoras evangélicas brasileiras. nos primeiros momentos, percebi que nossa
conversa seria informal e num tom de denúncia. Lucia é bastante crítica e não
com bons olhos as transformações ocorridas no processo de industrialização da
música evangélica no país. De forma direta e clara, a cantora respondeu, com
propriedade e desenvoltura, todas as perguntas que fiz sobre a indústria fonográfica
evangélica e sobre a sua trajetória.
2.2.1 A infância no rádio e na televisão
Fátima Lúcia Couto nasceu no município do Rio de Janeiro, em 1964.
Diferente de Rose Nascimento, Lucia Lombardi veio de uma família de católicos,
com ascendência direta de portugueses. Mesmo não passando por privações e não
sendo ainda evangélica, a infância da cantora, assim como a de Rose, foi marcada
por uma grande inserção na música. Desde muito pequena, Lucia foi tomada por
um grande fascínio pela música. Muito desinibida e incentivada pelos pais - que
tinham uma celebridade na família, Vicente Celestino -, Lúcia com oito anos de
idade se apresentava em alguns programas televisivos e em algumas rádios. No
trecho a seguir, Lucia relembra este período.
Eu comecei a cantar com 8 anos de idade. Eu fui descoberta pelo apresentador
Flávio Cavalcanti, na extinta Rede Tupi de Televisão. Eu confesso a você que o fato
de ter sido sobrinha neta de um cantor famoso [Vicente Celestino], me favoreceu. Na
época nós nhamos o Paulo Celestino, que foi um humorista, um comediante que
atuava ao lado do Soares. Então, eu tive muito acesso nas emissoras de
televisão, usando o nome do Paulo Celestino e do Vicente Celestino. Eu fui capa de
várias revistas e matérias da Revista Amiga, e capa de vários jornais. (Lúcia
Lombardi, 10/01/06).
Fundada pelo jornalista paraibano Francisco de Assis Chateaubriand, em
setembro de 1950, a TV Tupi, estava mais de 20 anos no ar quando Lúcia
Lombardi começou a sua carreira como cantora. Por longos anos, a primeira
emissora de televisão da América Latina garantiu altos índices de audiência, ao
exibir programas como: Alô Doçura, Sítio do Picapau Amarelo - depois passou a ser
exibido pela Rede Globo de Televisão-, O u é o Limite e o famoso Clube dos
Artistas. Além disso, a TV Tupi criou um produto televisivo que passaria a ser,
74
futuramente, uma das grandes paixões nacionais: a telenovela. A emissora de
Chateaubriand tamm tinha com um de seus carros-chefes o programa dominical
de Flávio Cavalcanti, no qual a cantora foi descoberta. Na década de 1970, o
programa
75
do primeiro apresentador de um show de calouros televisivo
representava um terço do faturamento comercial da emissora e registrava 70% de
sua audiência total. Com seu estilo polêmico, amado por uns e odiado por outros,
Flavio Cavalcanti foi uns dos grandes nomes da TV Tupi e, de um modo geral, da
televisão brasileira. Por seu programa passaram várias personalidades do meio
artístico, como: Sérgio Bittencourt, Leila Diniz, Mister Eco, Osvaldo Sargentelli e
outros. Foi nesse contexto artístico que, ainda criança, Lúcia Lombardi passou a se
apresentar e a se descobrir como cantora. Diferente de Rose Nascimento, que em
suas primeiras apresentações alcançava uma restrita e próxima audiência de
evangélicos assembleianos, Lúcia, na infância, teve a oportunidade de se
apresentar para milhares de pessoas, interpretando alguns sucessos musicais da
época.
Contudo, a má administração, os sucessivos problemas financeiros e a
crescente disputa com outras emissoras pela audiência contribuíram para o
desmonte e a conseqüente falência da TV Tupi, em 1980 (Hamburger, 2005).
Segundo Lúcia Lombardi, com o fechamento da TV Tupi, sua atuação foi
direcionada para o rádio. Relembrando esse momento ímpar, a artista, no
fragmento a seguir, tece alguns comentários que nos ajudam a compreender como
se deu a sua precoce inserção no meio artístico secular.
Eu fui freqüentadora assídua da Rádio Nacional, com o falecido César de Alencar,
que já estava meio morto na época. Pô! Eu tenho 42 anos e já tem uns 20 anos
que ele morreu. Na época em que eu comecei, a Rádio Nacional já estava morrendo,
mas ainda assim, eu ia. Tinha também a Rádio Tamoio, que competia com a Rádio
Mundial. (Lúcia Lombardi, 10/01/06).
Mesmo conhecendo a emissora de dio em seu declínio no final dos anos de
1980, Lúcia se orgulha pelo fato de ter sido uma das diversas personalidades que
75
Para maiores informações, ver as matérias:
Flavio Cavalcanti revisitado” (Jornal do Brasil, 22/08/01);
A doutrina política de Flavio Cavalcanti na TV (Jornal Estado de S. Paulo, 27/08/01);
"Livro decifra elo entre Flávio Cavalcanti e o regime militar" (Folha de S. Paulo, 21/08/01).
75
ajudaram a fazer a história da Rádio Nacional
76
, que se confunde com a própria
história do rádio no país. Fundada em 1935, a Rádio Nacional foi palco de vários
nomes da música e do teatro brasileiro, como Aracy de Almeida, Emilinha Borba,
Paulo Tapajós, Walter D`Ávila, Mário Lago, Oduvaldo Viana, Paulo Gracindo e
outros. Segundo Saroldi e Moreira (2005), para além da importância cultural e
artística, a Rádio Nacional, a partir de 1942, passou a desempenhar um importante
papel na promoção de uma maior integração nacional. Em outros termos, ao
transmitir os seus programas drios em todo território nacional, a rádio foi
aproximando as regiões do Brasil, político e culturalmente. Porém, a partir dos anos
de 1950, com a constituição das primeiras emissoras de televisão do país, a rádio
perdeu sua influência e audiência. No final dos anos de 1980, quando Lúcia Lombardi
passou a se apresentar na Rádio Nacional, em especial, no programa do César
Alencar, a rádio não tinha mais o glamour das décadas anteriores. Mesmo assim,
continuou sendo uma referência para os principiantes.
Segundo a cantora, a cada apresentação, o desejo de atuar em um palco se
intensificava. À medida que crescia, sentia-se mais confortável nas atividades que
desempenhava. Na década de 1980, em busca de profissionalização, Lúcia se
inscreveu nos cursos de interpretação do Tablado
77
, uma conceituada escola de
teatro do Rio de Janeiro fundada por Maria Clara Machado. No campo da música, a
artista também buscou aperfeiçoamento de suas habilidades: inscrevendo-se em um
curso de canto, no Berklee College of Music, em Boston, nos EUA.
Eu criei os meus filhos como artista. Eu nunca tive uma outra profissão. Nunca fiz
nada. Eu sou formada nos EUA, em música. Eu fiz pós-graduação lá. Eu fiz Escola
de Música Maria da Glória. Eu fiz teatro no Tablado, com o Jaime Barcellos. Eu me
preparei para ser artista (Lúcia Lombardi, 10/01/06).
Comparando a formação de Lucia Lombardi com a de Rose Nascimento, nota-
se a preocupação da primeira quanto à profissionalização. Em nosso encontro, Rose
informou que o seu aprendizado na música se deu mais no dia-a-dia, quando
observava os erros e acertos em suas apresentações individuais ou em grupo na
igreja. Pode-se dizer que Rose Nascimento desenvolveu suas habilidades musicais
76
Para maiores informações sobre a história da Rádio Nacional, ver o seguinte site:
http://pt.wikipedia.org/wiki/R%C3%A1dio_Nacional e http://www.radiobras.gov.br/nacionalrj/default.htm (consulta
em (06/02/06).
77
Para maiores informações sobre a escola de Teatro Tablato, ver o site:
www.otablado.com.br (consulta em
13/02/06).
76
no convívio familiar e nas relações que desenvolvia nos coros. Dessa maneira, não
sentiu a necessidade de recorrer a uma educação formal na música. Até porque, não
podemos perder de vista que, quando iniciou a sua carreira o havia ainda entre os
evangélicos a figura do cantor profissional. Em contrapartida, Lúcia Lombardi iniciou
a sua trajetória artística no meio secular, que já na década de 1980 era muito
concorrido e mais exigente quanto à formação profissional. Estamos falando do
período dos grandes shows e dos festivais de música popular que mobilizavam os
artistas, as emissoras de televisão e a população. Segundo Lúcia, nos circuitos que
freqüentava, havia uma cobrança para que os artistas se equiparassem aos cantores
que estavam se projetando na época, entre eles: Caetano Veloso, Milton Nascimento
e Gal Costa.
Na busca pelo “estrelato”, a artista, ainda muito jovem, atuou em novelas - como
Meu de laranja Lima e Plumas e Paetês - e comerciais de televisão, como da
pasta de dentes Kolynos. De acordo com seu relato, ao mostrar seu potencial vocal
em programas televisivos, vários empresários interessaram-se em produzir um álbum
musical. Dessa forma, Lúcia Lombardi, em 1986, gravou seu primeiro LP:
Eu comecei como atriz e depois fui estudar canto. Gravei três LPs, dois foram
sucessos, inclusive um era o tema do seriado Delegacia de Mulheres, com a música
Péssimo Marido, em 1986. E em 1988, ganhei meu segundo disco de ouro, com a
música Self Pity, uma versão minha e do compositor Ivan Santos. O terceiro que já ia
pelo mesmo caminho não aconteceu (Lúcia Lombardi, 10/01/06).
A partir de 1986 sua carreira como cantora desenvolveu-se. Lúcia Lombardi
não apenas gravou seus primeiros LPs, como também conseguiu que suas
músicas fossem utilizadas nos seriados da Rede Globo de Televisão. Para a
cantora, este foi o auge de sua carreira artística.
I
lustração 8: Foto do LP Amor Sem fim
77
2.2.2 “Eu fui ao fundo do Poço”: Os primeiros contatos com a IURD
No momento em que cia Lombardi ainda divulgava seu terceiro LP ocorreu
um trágico episódio que, fatalmente, mudou os rumos de sua trajetória. Em 1991,
quando estava casada com seu segundo marido, e já tinha três filhos, sofreu uma
queda, que prejudicou os movimentos das pernas. Aos 26 anos, Lúcia Lombardi teria
ficado paralítica.
Eu gravei [terceiro LP], chegou a tocar em algumas rádios, mas eu levei o tombo e a
minha carreira ali foi interrompida. Foi quando eu fiquei completamente
desestruturada. Eu vivia da música. Eu criei os meus filhos, do meu primeiro
casamento, com a música. E naquele momento, eu fiquei no fundo do poço, fiquei
sem amigos e sem um roteiro de vida, sem dinheiro e sem nada. (Lúcia Lombardi,
10/01/06).
O acidente trouxe vários problemas para vida da cantora. Segundo a artista,
a queda prejudicou os movimentos de suas pernas. Aos 26 anos, Lúcia Lombardi
teria ficado paralítica. Associado a esse problema de saúde, algum tempo depois, a
empresa de seu ex-esposo entrou em crise. Desesperançada e não vendo uma
saída para os problemas que vieram em forma de avalanche, cia lembrou de
uma mensagem que tinha recebido de Deus através de um familiar.
E eu tinha ouvido falar de Jesus através de uma prima, que era sobrinha de um
deputado, que na época também estava na mídia. E ela falou pra mim: Lúcia, por
que você não vai pra Igreja Universal, para você se libertar? Deus tem uma obra com
você”. Aí, eu falei: “Você está maluca(Lúcia Lombardi, 10/01/06).
Segundo a cantora, ao receber esta mensagem, não somente desacreditou,
mas usou expressões jocosas no diálogo com a prima. Até então Lúcia era arredia
à religiosidade evangélica. Além de ter sido socializada nos dogmas do catolicismo,
ela freqüentou religiões afro-brasileiras e o espiritismo de Alan Kardec. Contudo,
quando ocorreu o acidente, rememorou a cena, na qual sua prima a convidava para
ir a Igreja Universal do Reino de Deus
78
. Segue um trecho:
78
Fundada em 1977, no Rio de Janeiro, pelo bispo Edir Macedo, a Igreja Universal do Reino de Deus é
considerada uma das igrejas que compõe o quadro das denominações da terceira onda de pentecostalismo no
Brasil (Freston, 1994). Diferentemente da Assembléia de Deus, que defende um repúdio ao “mundo”, a IURD
não solicita aos seus membros um rompimento mais acentuado em termos de comportamento e vestimenta
(Mariano 1995). Porém, uma das grandes marcas da IURD, que inclusive têm implicações na política, é a forte
utilização das mídias eletrônicas para a realização de um proselitismo sistemático (Fonseca 1997; Conrado,
2001). A Igreja Universal inaugurou, no país, uma nova forma de apropriação religiosa dos meios de
comunicação.
78
Quando eu levei o tombo, eu me lembrei desta frase que a minha prima falou pra
mim, me chamando para ir à Universal. Aí eu fui buscar a fé. Meses depois eu fiquei
curada. Pra medicina foi um fato inédito, atribuíram, inclusive, que foi um milagre,
porque a minha situação foi um caos, eu fiquei muito debilitada. E eu comecei a
caminhar outra vez. (Lucia Lombardi, 10/01/06).
Pouco depois Lúcia Lombardi passou a freqüentar as correntes da igreja do
bispo Edir Macedo, onde teria obtido a cura. Por interpretar seu restabelecimento
como um milagre de Deus, Lúcia se converteu à religiosidade evangélica. Como bem
indicou Oro, em alguns casos, “a conversão religiosa ocorre simultânea ou
paralelamente ao desaparecimento da doença. Dessa forma, a cura do corpo e cura
da alma o indissociadas (1996:61). Em outro trecho de sua entrevista relatou que,
ao se converter, houve um “renovo” em seu interior. O “vazio” que a incomodava,
apesar de ter alcançado grandes realizações profissionais, foipreenchido” por Deus.
Além da forte ênfase na cura divina, A IURD possui uma característica que, a
princípio, chamou a atenção da cantora: a possibilidade de permanecer no
anonimato. Em outros termos, observa-se, nessa denominação evangélica, pouca
adesão dos fiéis nas atividades que exigem maior vinculação com a instituição
religiosa (Fernandes, 1995). A não adesão às atividades da igreja era, para a
cantora, um aspecto positivo:
A Universal é uma igreja que eu admiro muito. Ela não quer saber o que você é. Ela
não quer saber o seu nome. Você vai à igreja, você não precisa se misturar com
nada e ninguém. Não precisa ficar ajudando ou trabalhando nos cargos da igreja.
Você ouve a palavra de Deus e se você quiser dar dinheiro, você dá. Mas se não
quiser, também não dá (Lúcia Lombardi, 10/01/06).
79
Se, no primeiro momento, ficar sentada no banco sem um engajamento nas
atividades e nos cargos era uma atitude confortável e positiva para a cantora, após
alguns meses, surgiu a necessidade de participar ativamente nos cultos, utilizando
suas habilidades musicais e oratórias, como informa o trecho a seguir:
Eu sou uma pessoa que tem o dom da palavra. Eu tenho uma formação artística:
eu fiz teatro e canto. Então, eu tenho muita facilidade de me comunicar com o
público, de falar muito. Então começou a aflorar em mim uma vontade de pregar o
evangelho e a Igreja Universal não usa mulheres no púlpito. Eu não bati de frente
com eles, até porque eles nem souberam disso. Mas um dia, eu fui convidada a
ministrar, a dar o meu testemunho na Assembléia de Deus, eu fui e ali fiquei (cia
Lombardi, 10/01/06).
Não há muito espaço para as mulheres na hierarquia eclesial da IURD. Os
postos mais altos são confiados a alguns homens que devem possuir um “carisma”,
compatível com o “estilo empreendedor da igreja (Mafra, 2002). Ao perceber a
dificuldade de se impor e demonstrar suas habilidades, a cantora decidiu mudar de
igreja. Lúcia Lombardi conheceu a igreja Assembia de Deus em Marechal
Hermes, no subúrbio carioca, por intermédio de um amigo. Apesar de ser distante
de sua residência à ocasião residia na Barra da Tijuca decidiu congregar nesta
igreja.
Lúcia Lombardi se constituiu inicialmente como artista secular e,
posteriormente, se converteu na IURD. Na próxima seção, a formação de cia
como cantora evangélica é analisada, tendo em vista uma compreensão do
processo de construção desse novo “lugar”. Para tal, faz-se necessário não apenas
uma apresentação das novas redes profissionais estabelecidas, como também
abordar as rupturas e continuidades na trajetória da cantora, especificamente no
que se refere à sua postura e imagem.
2.2.3 A constituição da artista assembleiana: a conversão como
ruptura?
Antes do acidente, Lúcia Lombardi firmara contrato com a gravadora Line
Records que atuava tamm no mercado secular no início dos anos 1990. No
período em que a cantora se afastou interrompendo a carreira, a gravadora passou
80
a produzir somente músicas evangélicas. No trecho de sua entrevista, Lúcia
descreve a transição:
Na época da gravação do meu LP, fui contratada pela gravadora Line Records.
Na época, há 15 anos atrás, era secular. A Line Records não era uma gravadora só
pra crente. A direção da gravadora estava nas mãos do Durval Ferreira, que foi um
dos nomes da Bossa Nova no Brasil. E eles contrataram o Durval Ferreira para ser
diretor da gravadora e contrataram artistas. Eu fui contratada, a Vanusa foi
contratada. Foi contratada a Gretchen, que depois houve aquele escândalo todo.
Então, naquela época a facção evangélica era muito pequenininha. A Line Records
tinha uma artista que fazia sucesso, que era a cantora Melissa (Lúcia Lombardi,
10/01/06).
No fragmento acima, Lúcia Lombardi lembra alguns colegas de profissão e
ressalta a desproporção entre cantores evangélicos e seculares no início da
empresa. Com o crescimento do mercado evangélico, a gravadora passou a atuar
exclusivamente na produção e distribuição de álbuns deste segmento religioso. Ao
longo da década de 1990 houve algumas modificações em prol da associação do
nome da Line Records ao segmento evangélico. Nessa investida foram contratados
cantores de peso da música evangélica, como Sérgio Lopes e Marina de Oliveira
atualmente proprietária da MK Music.
Em meio a esse processo de transição e de redirecionamento da nova
gravadora, Lúcia disse ter recebido um convite dos dirigentes da Line Records. Eles
tinham interesse em produzir um novo álbum da cantora, com músicas evangélicas.
O convite foi feito na mesma ocasião em que a cantora conheceu e se interessou
pela Assembia de Deus de Marechal Hermes. Insatisfeita com as condições
profissionais e declarando ter sido “tocada” por Deus, Lúcia Lombardi recusou o
convite e se desligou da IURD.
Na nova denominação evangélica, ao lado de seu ex-esposo, Lúcia
Lombardi passou a cantar e pregar nos cultos e consagrações das igrejas
vinculadas à Assembléia de Deus de Madureira. De acordo com seu relato, havia
uma expectativa dos membros das igrejas onde pregava em relação à sua vida
pregressa e seu testemunho. Ela era, quase sempre, apresentada como a ex-
cantora e ex-atriz da Rede Globo de Televisão, o que fazia com que os cultos e
programações ficassem lotados. Dessa forma, por assumir tal posição de destaque
na igreja, a cantora passou a ter maior atenção com relação à sua postura e
vestimenta. Com a colaboração das novas amigas que integravam o grupo das
senhoras, Lúcia moldou, gradativamente, sua imagem, seguindo os padrões pré-
81
estabelecidos pelos líderes da igreja. A cantora deixou seus cabelos crescerem e
passou a usar saias e vestidos longos.
Em poucos anos, ainda segundo seu relato, a sua cura divina passou a
constituir o foco de interesse nas redes de igrejas Assembléia de Deus, que
integravam o Campo de Madureira. Por conta dessa visibilidade, em 1995, um
diácono da igreja estimulou o contato entre a cantora e uma gravadora:
Fui encaminhada através de um diácono, um obreiro da Assembléia de Deus, para
gravar na Vinil Press, que na época gravava o Jair Pires, que foi um grande cantor
da Assembléia de Deus. Jair Pires foi um homem da Assembléia de Deus. E o Jair
Pires tamm estava contratado. Um outro que também é muito famoso, que
compunha música para o J. Neto, que é o Roberto Carlos dos crentes” (Lúcia
Lombardi, 10/01/06).
Dessa forma, por redes informais, em poucos meses, Lúcia Lombardi gravou
seu primeiro LP evangélico, Ao Rei Jesus. Passou então a se relacionar com
alguns cantores assembleianos, como J. Neto.
Ilustração 9 Foto do LP Ao Rei Jesus
79
.
A partir de seu relato e da observação de fotos da cantora, percebe-se uma
nítida transformação de seu visual. Ainda que conservando seu nome artístico
Lúcia Lombardi –, no processo de conversão a cantora estabeleceu uma clara
ruptura em relação à sua vestimenta. Mas, se esteticamente verifica-se um claro
“divisor de águas”, no que concerne à música a artista não alterou sua forma de
cantar, pois manteve o mesmo estilo, que ressalta os tons graves de sua voz. Um
dos trechos a entrevistada ilustra o seu “jeito” de cantar e a recepção junto aos
pentecostais. Ressalte-se que o tom foi de crítica:
79
Fonte: Robson de Paula em 10/01/06.
82
Você que a concepção da Assembléia de Deus é de que quem berra é o bom
cantor. Para eles comarem a glorificar, você tem que berrar. Você tem que dar
aqueles agudos que destrõem o ouvido de qualquer um. Isso pra eles é o máximo. É
claro que eu estou falando da Assembléia de Deus do pentecostes, porque existe a
Assembléia de Deus tradicional, que é mais amena. Mas aquela Assembléia de Deus
mesmo, como o povo diz a “igreja do sapatinho”, é berrar. aqueles agudos, para
poder alcançar. E eu vim com uma nova proposta dentro da Assembléia de Deus. Eu
tenho uma voz rouca. Então, eu chegava para cantar e a igreja fica toda calada,
me ouvindo. O meu timbre intimidava a igreja (Lúcia Lombardi, 10/01/06).
Este fragmento ilustra como os LPs da cantora eram recebidos pela
audiência assembleiana. Acostumados a ouvir as grandes cantoras sopranos, os
assembleianos ficavam intimidados com o timbre grave, de contralto, de cia
Lombardi. De qualquer modo, apesar deste estranhamento, a maneira como a
cantora se colocava nos púlpitos agradava a audiência. A aceitação do público foi
traduzida na vendagem de seu primeiro LP. Segundo informou, em poucos meses
de divulgação, sobretudo nas igrejas, o álbum Ao Rei Jesus vendeu 15 mil cópias.
Mais adiante, será abordado o tema da distribuição dos álbuns no interior do
segmento evangélico. A constituição de Lúcia Lombardi como cantora, sua
dificuldade em se ajustar” aos padrões assembleianos, e sua posterior
“reconversão” tamm serão tratados a seguir.
2.2.4 Revisão da conversão e constituição de uma rede ampliada
Ilustração 10: Foto do LP O Rei está voltando
80
.
80
Fonte: www.lucialombardi.com (consulta 10/11/06).
83
Em 1997 Lúcia Lombardi gravou seu segundo LP evangélico, O Rei Está
Voltando. Apesar de agradar a audiência assembleiana, Lúcia Lombardi declarou
que começou a se questionar sobre seu novo visual neste mesmo ano. A
tradicional identidade estética pentecostal (Mariano, 1995) deixou de ser
entendida como uma marca, como um sinal de sua conversão. Esta revisão,
segundo a cantora, foi impulsionada pelas discussões e reflexões nos cursos de
teologia que passou a freqüentar. Lúcia faz uma revisão crítica do início de sua
conversão neste trecho de entrevista:
Eu posso dizer que vim primeiro para o evangelho e depois pra Jesus, porque fui
confinada em uma igreja que mudou os meus hábitos, a minha cultura e mostrou
que ali estava Cristo, mas na verdade Cristo é liberdade. Cristo é transformação,
mas é liberdade. Então eu fui coagida a conviver em uma cultura’, entre aspas, e
tornar um crente (cia Lombardi, 10/01/06).
Se, em um primeiro momento, para a cantora a transformação de sua
imagem era um marcade sua adesão à religiosidade evangélica, tempos depois,
a vestimenta deixou de ser sinal relevante de sua conversão. Como observou
Mafra, o processo de conversão dos evangélicos tanto pode se dar de modo forte
quanto de forma minimalista, pois pode tamm envolver um “trabalho lento de
reconstituição de referentes do passado e do presente da pessoa que muitas vezes
tem de lidar com categorias latentes de significado” (2002, 120).
As redes de sociabilidade nas quais o crente está inserido interferem no
modo como ele vai experimentar a conversão, apesar de se tratar de um movimento
individual que envolve, principalmente, uma busca do fiel por se “sentir bem.
Nesse sentido, não se deve desconsiderar a imposição de cada igreja, ao tentar
moldar os indivíduos segundo sua doutrina. No que concerne à trajetória da
cantora, observa-se, por um lado, uma busca individual por se sentir “confortável” e,
por outro, um desejo de seguir as indicações doutrinárias dos líderes religiosos.
Nem sempre foi possível realizar esses dois desejos. Para solucionar a dualidade
entre a vontade individual e as determinações da igreja, Lúcia Lombardi rompeu
com uma congregação e se filiou a outra, cuja doutrina se adequava mais ao estilo
desejado. Foi o que ocorreu quando ela passou a freqüentar a Assembia de Deus
da Barra da Tijuca.
84
A partir de 1998, Lúcia Lombardi adotou um novo estilo, e diversificou
ritmicamente seu repertório. Essas modificações foram potencializadas quando, em
meados de 1999, a cantora se vinculou à Igreja Batista. Com novo visual, cabelos
loiros, em 2000 ela grava o Aviva Chama, um álbum produzido independentemente.
Ilustração 11. Foto do LP Aviva Chama
81
na outra denominação evangélica, divorciada, Lúcia Lombardi disse ter
mais “liberdade” para exercer sua habilidade como artista. Durante o período
assembleiano, a cantora restringiu suas redes profissionais ao circuito das igrejas
Assembléia de Deus, e na igreja Batista Lúcia alcançou uma audiência maior.
Foram também estabelecidas rias redes internacionais que possibilitaram a
realização de outras produções, como o vídeo gravado na Igreja World Revival
Church
82
, em Beverly, EUA, dentre outras.
Ilustração 12. Foto da Fita de VHS da apresentação ao vivo de Lúcia Lombardi
81
Fonte:
www.lucialombardi.com (consulta 10/11/06).
82
Para um maior esclarecimento sobre a organização institucional e ritual da referida denominação evangélica,
ver: http://www.worldrevivalchurch.com/. (consulta em 17/03/06).
85
na Igreja World Revivel Church
83
2.2.5 Em busca do reconhecimento: a trajetória internacional
Ao longo do texto, vimos que cia Lombardi desenvolveu sua carreira como
cantora no meio secular, e após sua conversão, em 1991, se lançou no segmento
evangélico. Em 16 anos de carreira evangélica, com 7 álbuns, a cantora o se
inseriu no “circuito de distribuição das grandes gravadoras”. Pelo contrário, com
exceção de seu primeiro disco, lançado em 1996, os outros foram produzidos
independentemente, sem colaboração de gravadoras e/ou distribuidoras. Por essa
razão, a comercialização dos discos se deu, a princípio, de maneira informal e não
sistemática, sobretudo nas igrejas.
Eu cantava mais nas igrejas. eles tiravam uma oferta para mim. Eu saía com
sacos cheios de moedas de dentro das igrejas. Eu saía rindo, porque nunca imaginei
de um cachê de 8 e 10 mil, que eu iria passar com um saco de moedas, com R$
80,00, R$ 50,00 ou R$ 20,00. O que era chamado de ‘gasolina’ que ajudava no
combustível. Aí também eu fazia propaganda do CD. Era dessa forma que eu vendia
os CDs”. (Lúcia Lombardi, 10/01/06).
A partir deste relato, uma outra possibilidade de distribuição dos discos
evangélicos é apresentada. Como indicado no início deste capítulo, a criação das
grandes gravadoras possibilitou o desenvolvimento da carreira de uma parcela dos
cantores evangélicos. Muitos outros seguiram divulgando seus trabalhos somente
nas igrejas e recebendo uma pequena remuneração. Lúcia Lombardi foi uma dessas
artistas: no final das apresentações recebia uma “oferta”, solicitada ao público.
Ainda, a cantora informou também que muitos pastores, nas festividades das igrejas,
valorizavam mais a presença dos grandes nomes da música evangélica, do que a de
cantores locais.
Engraçado é que a igreja recebe o artista, mas ela não paga. Ela paga os que
estão na mídia (...) Eu não estou condenando a mídia. Eu quero que a mídia seja
menos hipócrita, e que ela assuma verdadeiramente seu papel. Igreja é igreja e
comercial é comercial. Se um cantor vai à igreja, e se a igreja recebe aquele cantor,
ela deve contratá-lo e pagar um cachê a ele. Mas não ficar dando miria e esmola
pra um, que é desfavorecido, que não tem dinheiro pra fazer a mídia, e dando
dinheiro para o outro e para a gravadora, porque a gravadora, inclusive, monopoliza
83
Fonte: www.lucialombardi.com (consulta em 10/11/06).
86
as igrejas. Alguns pastores dependem das rádios evangélicas para divulgar suas
igrejas. Então tudo é monopólio. (Lucia Lombardi, 10/01/2006).
Lúcia Lombardi aborda um ponto de suma importância para uma
compreensão acerca do vínculo entre igreja, gravadoras e mídia evangélica. Como
citado, o segmento evangélico está crescendo significativamente no Brasil,
fenômeno que, em parte, é impulsionado pelo uso sistemático dos meios de
comunicação de massa pelas lideranças evangélicas. Por sua vez, tais mídias estão
fortemente vinculadas às grandes gravadoras. Desse modo criam-se nexos de
dependência entre algumas lideranças evangélicas, gravadoras e mídia, que
favorecem somente os que integram esse complexo de relações. Assim, um convite
de um pastor a um determinado cantor famoso de uma certa gravadora, cujo dono
concede um espaço para falar em uma dio, é muito mais conveniente do que
chamar ummissionário”, como relatou Lombardi.
Diante das dificuldades de se inserir no circuito de “divulgação das grandes
empresas fonográficas evangélicas”, há 10 anos Lúcia Lombardi preferiu buscar
novos horizontes profissionais nas igrejas evangélicas freqüentadas por brasileiros
no exterior. Atualmente, casada há cinco anos com um historiador brasileiro, a
artista está divulgando no exterior seu novo CD e seu livro O perigo começa em
casa, publicado em português e espanhol.
Na próxima seção será apresentada a trajetória do cantor Álvaro nior, a
partir da qual analisa-se a formação do circuito de distribuição mais sistemático”
dos álbuns evangélicos. Tal circuito, além de favorecer os cantores do centro
irradiador da indústria fonográfica (Rio de Janeiro e São Paulo) do segmento
religioso em questão, tamm afeta a constituição das carreiras dos artistas de
outras regiões do Brasil.
87
2.3 A Constituição da celebridade regional evangélica
A terceira trajetória que irei apresentar, e que por diversas razões ajudam na
compreensão do fenômeno que estou indicando ao longo deste escrito, traz
algumas diferenças marcantes em relação às duas já reconstituídas,
principalmente, quanto à questão de gênero, ao aspecto geracional e ao local de
origem. Em outras palavras, trata-se de um jovem cantor baiano, cuja formação se
deu, inicialmente, no interior da igreja Batista em Salvador, na Bahia. Porém, antes
de indicar os percalços experimentados por ele em sua trajetória profissional, farei
uma breve consideração sobre a minha primeira visita à capital baiana, focalizando
a visita que fiz a uma loja de produtos evangélicos. Neste estabelecimento
comercial além de ter acesso, pela primeira vez, aos álbuns do cantor Álvaro
Junior, tamm, de forma mais geral, pude compreender melhor a maneira como os
artistas locais distribuem seus produtos em concorrência com as celebridades do
sudeste.
No início do ano de 2006, tive a oportunidade de passar quase um mês na
capital baiana. Mesmo sendo um período relativamente pequeno para se conhecer
a configuração do mercado local de produtos evangélicos, constatei que ainda são
poucas as lojas e livrarias evangélicas existentes naquela cidade. Para ser mais
preciso, depois de muito perguntar aos meus informantes soteropolitanos e de
procurar nos sites de busca na internet, consegui o endereço de apenas 4 lojas,
especializadas na venda dos referidos produtos. Minha intenção era conhecer mais
de perto a dinâmica do mercado evangélico de Salvador, e com sorte, fazer contato
com algum cantor local. Fui a uma delas, que fica situada próximo à Praça da
Liberdade, na região central da cidade.
Na loja, gentilmente fui recepcionado por uma das funcionárias. Atenciosa,
ela rapidamente começou a mostrar os diversos produtos comercializados no local:
blusas, mochilas, bolsas, cadernos, cartões, livros, CDs e DVDs, todos com dizeres
sobre Jesus Cristo ou versículos da bíblia. Fiquei impressionado com a
diversificação de produtos existentes no local. Enquanto andávamos pela loja,
começamos a conversar. Em poucas palavras, expliquei que era um pesquisador
88
carioca e que tinha um forte interesse em ter acesso aos CDs disponíveis na loja.
Com um sorriso no rosto, a jovem negra - que estava com uma blusa branca, com
uma estampa escrita: “Só Jesus Salva”- me levou até as prateleiras. Perguntei a ela
quais eram os mais vendidos. E a resposta veio de um outro funcionário que estava
ao meu lado prestando atenção nas minhas perguntas. “Fernanda Brum, Cassiane,
Aline Barros, Pámela, Rose Nascimento, Shirley Carvalhaes e J. Neto”, disse ele
algumas vezes até que eu gravasse a lista.
Esta resposta me chamou a atenção, pelo menos por três motivos: 1) a
grande parte dos cantores indicados já foi, ou continua sendo, do cast da gravadora
MK Music; 2) nesta pequena lista, somente um homem foi citado; 3) em nenhum
momento foi mencionado um cantor local ou regional.
Mostrando um aparente espanto, perguntei se havia algum cantor da cidade
que estivesse fazendo sucesso na ocasião. A funcionária perguntou ao colega de
trabalho, e ele, depois de alguns segundos, se dirigiu até uma prateleira e trouxe
três CDs: o primeiro que eu peguei foi o da Igreja Comunidade Evanlica de
Salvador, Ao Senhor pertence esta cidade; o outro era de um cantor de reggae,
Nego Viera, cujo título é Mata Atlântica; o último, Orações Musicadas, era do cantor
Álvaro Junior.
Enquanto observava os títulos das músicas, a vendedora respondia as
perguntas que eu ia fazendo sobre os artistas preferidos pelos evangélicos baianos
e tamm sobre as programações evangélicas realizadas na cidade.
Pelo que ela me contou, boa parte dos CDs que são comercializados na loja
são produzidos pelas grandes gravadoras evangélicas. Mensalmente eles recebem
os novos álbuns, que são impreterivelmente enviados do sudeste, em especial do
Rio de Janeiro e São Paulo. Somente uma pequena parcela dos álbuns vendidos é
composta por cantores locais. Estes, por sua vez, conseguem ter acesso à loja
através de redes de amigos e conhecidos, que não estão vinculados às grandes
empresas fonográficas, não tendo, portanto, o suporte das mesmas para a
distribuição dos seus produtos fonográficos. Quanto à venda dos CDs, segundo a
funcionária, o público até compra os álbuns dos artistas soteropolitanos, mas os
que mais “saemsão os dos cantores famosos. Em relação aos eventos e shows,
ela informou que Salvador ainda “está engatinhando”, se compararmos com os
89
megashows realizados no Rio de Janeiro e em São Paulo. As programações
evangélicas no espaço público de Salvador não são tão freqüentes.
Depois de quase uma hora, já cansado e constrangido de fazer tantas
perguntas, agradeci e me retirei. Sai da loja com os três CDs em uma sacola, com a
logomarca da loja, tentando assimilar tantas informações.
Descrevi este episódio porque ele elucida muito bem o ponto que pretendo
desenvolver nesta seção, ou seja, o circuito de distribuição das grandes
gravadoras, que se expande do sudeste para as outras regiões do país. Se tal
circuito tem colaborado para a expansão de música evangélica em nível nacional,
tamm, tem trazido novas questões e tenes no meio musical evangélico. A
seguir, a partir da observação cuidadosa da trajetória de Álvaro nior, procurarei
descrever e problematizar tais dilemas.
Três dias depois que visitei a loja Betânia, no dia 17 de janeiro de 2006 entrei
em contato com o cantor Álvaro Junior pelo telefone. Tentei ser muito breve na
exposição dos objetivos tanto da pesquisa como das razões que me levavam a
tentar entrevistá-lo. Conhecer mais de perto a trajetória de um jovem que está se
constituindo como cantor evangélico, em uma cidade marcadamente influenciada
pelas religiões afro-brasileiras e pelos ritmos que valorizam os instrumentos de
percussão, seria, no mínimo, um ganho etnográfico para a pesquisa. Prontamente,
mostrando interessado em colaborar, ele aceitou o meu convite. Como na ocasião o
cantor não estava em Salvador, marcamos para semana subseqüente, em um
shopping center, no bairro em que eu estava hospedado.
Na tarde do dia 25 de janeiro de 2006, sob um sol escaldante do nordeste
brasileiro, mas, felizmente, tendo a brisa úmida vinda do mar, me dirigi ao Shopping
da Barra. Não foi difícil reconhecer o cantor, já que, no local indicado, não havia
muitas pessoas transitando. Dirigimos-nos a um restaurante, e procuramos uma
mesa ao fundo, para que não fossemos incomodados. Foi sob estas condições que
a entrevista com ele foi feita.
Durante o encontro, Álvaro Junior mostrou-se atento e bastante conhecedor,
tanto de alguns ícones que fazem parte da história da música evangélica, como
tamm do desenvolvimento e constituição dos ritmos que compõem o axé music.
90
O relato do cantor, associado às informações que coletei em algumas comunidades
do orkut, na internet, me ajudaramo só a reconstituir a trajetória de Álvaro Junior,
que passarei a apresentar a seguir, mas também as novas controvérsias e novas
tensões que passaram a existir a partir da formação do mercado fonográfico
evangélico.
2.3.1 “A sede pela criatividade”: a infância entre o religioso e o secular
Ilustração 13 Foto do cantor Álvaro Júnior.
84
Em 1977, em Boca do Rio, um bairro de classe média da capital baiana,
nascia Álvaro Júnior. Socializado em uma família fortemente influenciada pela
música, desde pequeno demonstrava muito interesse pelos instrumentos de cordas.
Neste período, sua avó materna e seus pais eram da Igreja Batista. Posteriormente,
seu avô, que era seresteiro, tamm se converteu a esta religião. O cantor
declarou, na entrevista que, na infância, teve acesso a vários compositores e
cantores da música clássica, como Tchaikovsky e Mozart:
Eu tive a experiência com a música muito cedo, aos cinco anos de idade. Eu tinha
uma coleção de discos que meu pai comprou, de discos de clássicos de Tchaikovsky
e Mozart. Eu via aquela coleção de vinil e adorava. Eram discos pequenos de vinil.
Eu colocava na vitrola para ouvir em casa e não consegui parar de ouvir. Eu tinha
cinco anos e eu ouvia vários compositores e me emocionava com aquilo. Eu tive uma
experiência muito interessante com a música”.lvaro Junior, 25 de janeiro de 2006).
84
Fonte: Robson de Paula (25/01/2006)
91
Além de ter recebido uma forte influência da música clássica, Álvaro Júnior
informou que, em sua infância, manteve uma forte vinculação com a música
popular, especialmente com samba de roda. Como foi mencionado, o avô do
cantor, por muitos anos, foi seresteiro. Em nossa conversa, demonstrando um forte
afeto, o cantor relatou que o avô era especialista na arte de tocar viola, no
Recôncavo Baiano, uma área da região metropolitana de Salvador conhecida por
ser “berço” de importantes músicos da MPB. No fragmento a seguir, o cantor traz
algumas informações sobre o seu avô, ressaltando a grande influência que ele teve
no desenvolvimento de seu interesse pela música:
A pessoa que mais me atinou para música foi meu avô. Meu avô era seresteiro, aqui
do samba de roda. Não sei se você sabe, mas uma controvérsia dessa história de
onde o samba nasceu, se é no Rio de janeiro ou se é na Bahia. Mas é fato que aqui na
cidade de Santo Amaro, onde Caetano nasceu, onde a Maria Bethânia nasceu, existe
um movimento forte de samba de roda, que se espalha pelo interior. Então têm muitos
violeiros, muitos cancioneiros que trabalham com samba de roda. O meu avô era um
destes violeiros de samba de roda, aliás, um violonista, violonista de samba de roda.
(Álvaro Júnior, 25 de janeiro de 2006).
Ao falar do seu ano trecho acima, Álvaro Júnior remonta uma discussão
histórica e cultural sobre a origem do samba no Brasil. Considerado e defendido
politicamente com um gênero musical “autêntico” brasileiro, tanto por músicos como
por intelectuais, o samba é proveniente do lundu, que por sua vez, pode ser
considerado como descendente do maxixe (Tinhorão, 2004). Com bem lembrou o
entrevistado, não existe um consenso por parte dos estudiosos e populares quanto
ao local onde este gênero musical teria se originado. Pelo contrário, existe uma
disputa com relação à origem temporal e territorial do samba, que passa por
questões ideológicas e sociais (Napolitano e Wasserman 2006). Porém, a despeito
dessas controvérsias, o que o se pode negar é que o samba contribuiu para a
manutenção da identidade nacional (Vianna, 1995)
85
.
O samba de roda é considerado um dos principais estilos musicais do
samba. Sendo composto por violas, pandeiros e utensílios - como pratos e facas-, o
samba de roda tem como principal característica o acompanhamento das batidas
de palmas, que além de ajudarem na marcação tmica, tamm asseguram a
sincronia da dança, feita coletivamente em círculo.
85
Para um maior entendimento do processo de nacionalização do samba e suas implicações na identidade
nacional, ver: Vianna (1995).
92
Foi tocando viola que o avô do cantor participou de diversos grupos musicais
de samba de roda. Assim conheceu vários artistas locais e regionais. Seu avô não
perdeu sua antiga paixão pelo samba de roda após a conversão evangélica. De
forma criativa, o ex-seresteiro cantava os hinos do Cantor Cristãohirio batista -
nesse ritmo. Segundo o artista, a versatilidade do avô foi uma das principais razões
que o estimularam a buscar os estudos musicais. Segue seu relato:
Então ele pegava aqueles hinos e cantava num estilo meio seresteiro, meio de
interiorano. Eu ficava impressionado com aquilo. Então, ele foi trazendo mais para o
contesto da igreja evangélica. Ele cantava hinos do Cantor Cristão no ritmo de
samba de roda. Ele, então, foi a minha inspiração de me aprofundar mais na música
(Álvaro Júnior, 25 de janeiro de 2006).
De fato, como relatou o cantor, a presença do afoi determinante em sua
decisão de aprofundar os seus estudos sobre música. Tendo somente doze anos
de idade, Álvaro Junior começou a estudar violão. Porém, como nos conta no
fragmento abaixo, mesmo se inspirando diretamente em seu avô, que circulava
mais pela música popular, a sua inserção se deu primeiramente na música clássica.
Então, eu comecei a me aprofundar realmente na música. Eu comecei a estudar
violão clássico durante um período. Depois tive aula com um professor, que é
formado em composição e regência, uma pessoa conceituada que é o professor
Mello, aqui na cidade. Com ele me aprofundei na questão da harmonia. Comecei a
ouvir também música instrumental e passei a gostar da questão da improvisação.
Então eu curti isso. Mas com o passar do tempo, eu senti que com a música clássica,
eu ia ser mais um executor do que um improvisador, assim eu ia pegar aquelas
peças e reproduzir. Mas eu queria criar, eu sempre tive sede de criatividade (Álvaro
Júnior, 25 de janeiro de 2006).
Ao buscar desenvolver mais seu lado “criativo”, o cantor passou a tocar
tamm guitarra aos quinze anos. Álvaro Junior passou a circular mais nos bares e
clubes de Salvador, apesar de ser evangélico. Nestes espaços estabeleceu novas
redes de amizades com cantores, músicos e compositores não-evangélicos e,
gradativamente, foi se afastando da igreja.
Neste período, em que o cantor ampliou sua navegação para outros espaços
de entretenimento, o axé music já era um fenômeno industrial não só na Bahia, mas
em todo o Brasil. Para melhor compreensão do contexto musical no qual o
entrevistado se constituiu como músico, a seguir serão apresentados alguns dados
sobre o axé music.
93
3.3.4 A circulação por outros estilos musicais: a influência do amusic na
adolescência
No final da década de 1980, a grande mídia do sudeste, sem um
conhecimento mais aprofundado do que ocorria no meio musical soteropolitano,
denominou as inovações musicais produzidas pelos artistas baianos, como axé
music, em alusão pejorativa às religiões afro-brasileiras. Naquela época a
multiplicidade de ritmos baianos foi considerada pela mídia um novo gênero
musical. Porém, como bem explicou Goli Guerreiro, o axé music
É o encontro da música dos blocos de trio com a música dos blocos afros (frevo
baiano+samba-reggae). É um estilo mestiço, cuja linguagem mistura sonoridades
harmônicas e percussivas. Tal mescla foi concebida inicialmente pelas bandas de
trio, atraídas pela visibilidade e inovação musical do samba-reggae (2000: 133).
Dessa forma, o axé music, longe de ser um nero musical bem definido,
representa uma grande variedade de ritmos e sonoridades baianos produzidos nas
duas últimas cadas. Este estilo deixou de ser um fenômeno musical meramente
local e se tornou uma música de massa, por meio da veiculação sistemática da
mídia. Pela primeira vez o eixo irradiador da indústria fonográfica, que
historicamente se projetava do sudeste para as outras regiões do país, foi invertido.
Com o amusic, a Bahia tornou-se também um pólo de exportação de tendências
musicais. Foi neste movimento de mudança e ascensão da música baiana que
Álvaro Junior se constitui como músico.
De acordo com suas informações, as oportunidades de trabalho no campo
da música, em Salvador, estavam relacionadas ao axé music. Boa parte dos bares
e das casas de show da cidade investia neste novo movimento musical. Seguindo
a tendência o cantor passou a integrar uma “banda de axé”, que se apresentava,
em especial, na região entre os bairros do Rio Vermelho e Boca do Rio.
Por cerca de 4 anos o cantor circulou na noite da cidade. Álvaro Junior se
rendeu à música de massa, criada pelos artistas locais, apesar de sua socialização,
desde pequeno, na música clássica e no samba de roda. Durante os anos que
94
participou da “banda de axé”, de acordo com seu relato, nunca enfrentou problemas
no que se refere à assimilação de suas tarefas no grupo. Pelo contrário, informou
que sempre teve destreza e habilidade para tocar e produzir arranjos musicais.
Portanto, na linguagem dos músicos soteropolitanos, o cantor se considera “safo”.
Safo é um cara que tem facilidade, tem uma certa velocidade para poder pegar as
coisas. Tem um ouvido mais trabalhado. São aqueles caras que ouvem a música e já
sabe. Porque tem pessoas que já nascem com este dom de tocar. m umas
pessoas que tem ouvido absoluto, elas têm facilidade de tocar, mas existe também
um desenvolvimento natural da percepção do músico que ele vai desenvolvendo.
Então pelo fato da gente ter sido colocado em tantas situações assim, você acaba se
virando e tendo facilidade. (Álvaro Júnior, 25 de janeiro de 2006).
Como podemos observar, no relato, o cantor apresenta algumas categorias
nativas – “safo” e “ouvido absoluto” -, usadas, em especial, para designar as
habilidades musicais que um “bom músico” deve ter. Segundo sua concepção,
alguns indivíduos nascem com tais habilidades; outros, por sua vez, conseguem
desenvolvê-las ao longo de suas jornadas de vida. Pelo que vimos aagora, pode-
se afirmar que o contato precoce com a música clássica e com o samba de roda,
associado à profissionalização musical formal, contribuiu para a formação de Álvaro
Júnior. Por essa razão, segundo ele, os seus pares o viam como um músico safo”.
2.3.5 A conversão verdadeira e criação de uma rede de amizade ao
redor da banda da igreja
O relativo sucesso da banda não impediu que o cantor, ao final da
adolescência, passasse por um processo de reflexão no qual questionou sua
existência. Considerando-se influenciado por alguns filósofos e pensadores, a
seguir, o cantor se refere a este “período de questionamentos” que, mais adiante,
desembocou em sua conversão.
Eu gostava muito de ficar lendo, então comecei a ler alguns livros de Nietzsche,
Kafka e algumas coisas relacionadas à filosofia, que geram questionamentos muito
profundos, no sentido da existência de Deus, da questão da nossa vida. Bom, eu fiz
esse questionamento durante minha adolescência, mas cheguei à faixa etária de
dezenove para vinte anos de idade e fui vendo melhor. Foi que ocorreu minha
conversão verdadeira. Mas até eu chegar a esta fase, eu estava com uma série de
questionamentos, mas com uma convicção que era da falta de paz”. (Álvaro Júnior,
25 de janeiro de 2006).
95
Álvaro Junior dirigiu-se para o conhecimento e experiências religiosas
transmitidas por seus familiares, por considerar que o pensamento filosófico não
fornecia respostas às suas indagações. Aos vinte anos decidiu se vincular a uma
nova denominação evangélica a Comunidade Evangélica de Salvador
86
que, à
ocasião, estava sendo criada, buscando conquistar um público jovem.
Nesta nova denominação o cantor passou a se envolver diretamente nas
atividades musicais. O espaço da igreja, principalmente no ensaio do ministério de
louvor, tornou-se um lugar onde compartilhava suas experiências pessoais com os
novos amigos. Segue um trecho:
A partir daí [da conversão] eu comecei a me envolver com a música na igreja. Logo
no início, eu tive uma experiência excelente com a banda da Igreja. Nós gravamos o
primeiro CD da Comunidade de Salvador. Esta experiência foi fantástica. Nós
éramos como uma família. Nós nos encontrávamos todo domingo de manhã, para
fazer o nosso ensaio. Nós tínhamos um tempo de compartilhar os nossos problemas,
além do momento de oração. O ensaio era uma coisa que quase que ficava em
segundo plano, mas a gente gostava de música. Então tinha que fazer música, mas
assim, a nossa prioridade era sempre ser uma família. (Álvaro Júnior, 25 de janeiro
de 2006).
Em um dos ensaios do grupo musical o entrevistado sentiu o desejo de
compor músicas. Até então, Álvaro somente era um instrumentista:
Naquele dia, eu orei muito. Fiz uma oração e pedi a Deus para compor, porque eu
não conseguia colocar as iias no papel. Eu queria dizer muitas coisas na mesma
música, ou também colocava tudo que eu sabia de música em uma música só, e
ficava um bolo e eu não conseguia compor. Então eu orei e acredito que tenha sido,
realmente, mais uma experiência sobrenatural na minha vida, porque eu comecei a
fazer uma música atrás da outra (...) eu não faço música na hora que eu quero,
acontece. Eu algumas vezes fiz música parando no meio da rua. Eu tive que
encostar o carro numa esquina para compor a música. A música vinha toda na minha
cabeça (Álvaro Júnior, 25 de janeiro de 2006).
Segundo Álvaro Júnior, após o pedido à divindade, as composições passaram
a “surgir” inconscientemente. Em outros termos, ele o seria um artista que cria
sua arte, mas um canalatravés do qual as mensagens de Deus são transmitidas.
Na condição de “veículo” a divindade pode transmitir seus desígnios a qualquer
momento, seja na rua, seja no aconchego da casa. Dessa forma, em poucos anos,
o cantor compôs várias músicas.
86
Para um maior esclarecimento sobre a organização institucional da referida denominação evangélica, ver: <
http://www.mce.org.br/ > (Consulta em 06/07/2006)
96
Face ao volume de material produzido, o cantor pediu a Deus para indicar
alguém para interpretá-las. Inicialmente Álvaro Júnior não tinha a pretensão de
gravar um CD. Pelo contrário, de acordo com sua entrevista, sua intenção era
apenas compor e tocar seus instrumentos favoritos: guitarra e violão. Entretanto, a
partir de uma conversa com um pastor de sua igreja, ele mudou de idéia. A seguir,
o cantor explica como isto se deu:
Eu orei e pedi a Deus que me iluminasse. Foi quando apareceu meu produtor, que
até hoje trabalhamos juntos. O nome dele é Eraldo Mello. Ele é um grande músico,
formado fora do país. Ele é um grande produtor musical. Então, em um belo dia, s
conversando e eu comecei a mostrar algumas músicas que tinha composto para ele.
nesse momento ele perguntou: ‘por que você não grava estas músicas’? Eu falei:
“o...quê? Eu não tenho voz e não sou arranjador”. Aí ele falou assim: “mas eu quero
te dar um apoio nesse sentido”.lvaro Júnior, 25/01/ 2006).
De acordo com seu relato, a conversa com um dos pastores de sua igreja foi
determinante para sua inserção como cantor na música evangélica. Seria mais cil
gravar um CD, por contar com o auxílio de um profissional da música. A questão
relativa aos arranjos estava resolvida, mas era necessário um aprimoramento
vocal. Em busca de um melhor desempenho nessa área, o cantor ingressou em um
curso de canto, ministrado por uma professora muito conhecida em Salvador, Acácia
Monteiro, na Escola de Música, Art Music.
No início de 2004, já com “preparo vocal”, Álvaro Júnior gravou seu primeiro
CD, Orações Musicadas - com músicas inspiradas no maracatu, no samba de roda
e na bossa nova. Pouco depois, quando o primeiro álbum ainda estava em
processo de divulgação, gravou seu segundo CD ao vivo, Óleo Fresco, na
Comunidade Evangélica de Salvador, em novembro do mesmo ano. Seguindo o
vocabulário evangélico, podemos dizer que este CD é composto por “hinos de
adoração”. Em outras palavras, são músicas mais lentas, com letras que exaltam os
atributos da divindade ou expressam a relação de amor entre a divindade e os
humanos.
97
Ilustração 14: Foto do CD Orações Musicadas
87
.
Ilustração 15. Foto do CD Óleo Fresco
88
.
2.3.6 “A igreja é a nossa porta voz”: a distribuição dos álbuns
Na realização dos dois álbuns, Álvaro Junior não contou com a distribuição
de nenhuma gravadora evangélica. Seus CDs foram divulgados sobretudo em
igrejas e em algumas “lojas parceiras”. Disse o cantor:
Eu vendo muito os meus CDs nas igrejas que vou. Tenho alguns parceiros e alguns
amigos divulgando nas rádios também. Mas não tenho nenhuma gravadora que
pegue o meu trabalho e divulgue. Já recebi propostas e tudo, mas hoje em dia você
tem que ser muito criterioso, porque as gravadoras, às vezes, pegam o trabalho e
engavetam. Então é uma coisa muito arriscada (Álvaro Júnior, 25/ 01/2006).
87
Fonte:
http://www.alvarojunior.com.br/2008/discografia.php (consulta em 10/07/08)
88
Fonte: http://www.alvarojunior.com.br/2008/discografia.php (consulta em 10/07/08)
98
De fato, para os cantores que o são contratados por uma grande
gravadora, que, por sua vez, seja vinculada às grandes mídias evangélicas, a opção
mais viável de difusão consiste nas apresentações em igrejas. Porém, os púlpitos
dos templos evangélicos também o utilizados para a apresentação e divulgação
de cantores famosos. Por exemplo, a cantora Rose Nascimento, cuja trajetória foi
apresentada no início deste capítulo, também o deixa de divulgar o seu trabalho
nas igrejas. Segundo ela:
O evangélico tem uma coisa de bom, o melhor, uma coisa de muito bom: a igreja. A
igreja é nossa porta voz. Entendeu? Um compra o CD, canta na igreja, a igreja
toda compra também. Por exemplo, meu CD que saiu agora ‘Para o mundo ouvir’,
em cinco dias eu vendi 50 mil cópias. Isso em cinco dias. (Rose Nascimento,
07/12/2005).
Para que o leitor compreenda melhor como se a distribuição dos
CDs evangélicos, segue um quadro, com dois circuitos possíveis de distribuição.
Ilustração 16: Circuitos de distribuição do álbuns evangélicos
Produção Independente/
Produção em Pequenas Gravadoras
Produção em Grandes Gravadoras
Distribuição por redes informais Distribuição sistemática dos
álbuns
Acesso restrito à mídia Uso contínuo da mídia
Participação do cantor em
pequenas festividades
Participação freqüente em
grandes shows
Alcance a um público restrito Alcance a um grande público
Uso da igreja para a divulgação
dos álbuns
Uso da igreja para a divulgação
dos álbuns
Os dois circuitos
89
indicam possibilidades distintas de divulgação dos álbuns,
mas observa-se que ambos possuem uma característica em comum: a utilização da
igreja como espaço para a comercialização dos CDs. No entanto, se para os
cantores independentes, como Álvaro Júnior, a igreja é quase a única possibilidade
89
Além de uma infinidade de cantores que seguem diferentes orientações musicais e que transitam nas igrejas,
observa-se que o circuito de Produção Independente e em Pequenas Gravadoras também integra a produção da
black music gospel – uma produção não tão expressiva que, mesmo seguindo as diretrizes e os valores
evangélicos, não são diretamente controladas pelas gravadoras e pelas igrejas. Para uma maior compreensão
da forma como a black music gospel é produzida e divulgada, ver: Pinheiro (2006).
99
de mostrar seu trabalho, para as celebridades, como Rose Nascimento, trata-se de
mais uma alternativa de divulgação. Os cantores vinculados às grandes gravadoras
têmcil acesso às mídias de difusão mais ampla e a grandes shows.
Todavia, o cantor iniciante que almeja entrar para grandes gravadoras afim de
contar com a divulgação e a distribuição mais sistemáticas dos álbuns deve
adequar-se aos padrões estéticos e musicais definidos por elas. Tais critérios, por
sua vez, são estabelecidos a partir do gosto do público-alvo. Álvaro Junior descreve
os critérios de escolha das gravadoras:
Muitas das vezes, as gravadoras falam assim: ‘nós estamos precisando de um cara
jovem, com tantos anos, que o público adolescente vai gostar’. Ou seja, um cara
forte. Ele tem que ter isso ou aquilo, que passa por um determinado padrão físico
para atrair o público jovem. Existe esta confusão de marketing, misturado com a
ganância e falta de compromisso com o país e com outra série de coisas, que gera
este tipo de coisa. Então, a gente pra sobreviver neste mundo, conta com divulgação
aqui e acolá. Indo e vindo (Álvaro Júnior, 25 de janeiro de 2006).
O relato demonstra uma crítica de Álvaro Junior a respeito da adoção de uma
postura mais mercadológica na escolha dos cantores pelas gravadoras evangélicas.
Assim como cia Lombardi, o cantor não com bons olhos este complexo de
redes de relações, que conta com estratégias de mercado na produção da música.
Pelo contrário, ambos defendem uma delimitação do que entendem como campos
pertencentes ao sagrado” e ao “profano” para superar os problemas e “fissuras” no
universo da música evangélica no país. De acordo com estes dois cantores, as
gravadoras, por serem comandadas por evangélicos, o deveriam adotar a lógica
do “capitalismo mais selvagem. O que Álvaro percebe como uma “confusão de
marketing, misturado com a ganância e falta de compromisso com o país”, nada
mais é do que a adoção de uma estratégia empresarial-capitalista, que está inserida
na teia de relações entre gravadoras, mídia, lideranças pastoras e cantores
evangélicos.
Álvaro Junior, além de expressar um estranhamento em relação ao processo
de industrialização da música evangélica no Brasil, também relatou que a inserção
dos cantores evangélicos baianos nas grandes gravadoras e na mídia mais ampla é
muito difícil, em função do afastamento do centro irradiador da música evangélica,
Rio de Janeiro e São Paulo. No segmento secular, Salvador tornou-se um pólo de
exportação de tendências musicais para outras regiões do país. no que tange à
música evangélica a capital baiana permanece recebendo a influência das
100
produções musicais do sudeste. Deste modo, os cantores evangélicos
soteropolitanos que objetivam alcançar uma grande audiência devem se deslocar
para o sudeste. Em função desses obstáculos, Álvaro Junior desenvolve sua carreira
fora do circuito das grandes gravadoras.
A trajetória de três cantores evangélicos foi apresentada neste capítulo,
evidenciando diferentes caminhos no processo de constituição dos artistas, em um
momento significativo da música evangélica no país. Cada vez mais a produção da
música evangélica assume um caráter industrial. Como indicado, se, por um lado,
tal tendência tem contribuído para uma ampliação sistemática da música evangélica
para todo o território nacional, por outro lado, a adoção de uma lógica empresarial
em um contexto religioso, produz novas questões e “fissuras” entre cantores,
pastores, mídias e gravadoras.
A partir da trajetória da Rose Nascimento discutiu-se a nova concepção do
“chamado ministerial”, que acopla as idéias de dom e de massificação ampliada da
música evangélica e, sintomaticamente, do cantor. A formação da cantora e sua
transformação em celebridade foram aqui abordadas. Por se tratar de um fenômeno
muito recente no segmento evangélico, a constituição de uma “celebridade
religiosa”, ao menos no caso em questão, parece dar-se, a partir de uma tensão:
ser “um servo”- instrumento da divindade- ou um ídolo, nos moldes seculares? Tal
tensão não é resolvida, talvez por ser constituinte e definidora dessa nova
modalidade de celebridade.
Se a trajetória de Rose Nascimento possibilitou maior compreensão sobre as
negociações efetuadas pela cantora que se formou ao mesmo tempo em que
ocorria o crescimento da indústria fonográfica evangélica, a jornada de Lúcia
Lombardi indica as dificuldades enfrentadas por um artista secular ao pleitear um
“lugar ao solno quadro dos cantores evangélicos. Após sua conversão, a artista
não se inseriu nas grandes gravadoras. Ela percorreu um circuito de distribuição
mais informal dos álbuns e, atualmente, está buscando novos horizontes
profissionais, divulgando seu trabalho nas igrejas formadas por brasileiros no
exterior. Ainda a partir da história de vida de Lúcia Lombardi, observa-se a
disparidade na valorização dos cantores nas festividades das igrejas.
O processo de constituição de Álvaro Júnior como cantor evangélico também
esclarece a dinâmica da expansão da indústria fonográfica evangélica,
101
evidenciando, ao menos, dois circuitos de distribuição dos álbuns: um mais
informal, e outro mais sistemático. Como apresentado, este cantor, por não ter
acesso ao centro irradiador da música evangélica, nem possuir relação direta com
grandes mídias, não conseguiu ainda integrar esse complexo de relações que
favorece somente os que ali estão inseridos. Assim, o músico se apresenta em
igrejas, sobretudo nas da Região Nordeste. Ele consegue divulgar seus CDs em
algumas rádios e lojas de Salvador, por intermédio de amigos.
Dessa forma, apesar de encontrar três soluções diferentes, decorrentes de
distintas condições e relações, os três seguem circulando nas igrejas e
programações evangélicas, o que evidencia a existência de um vínculo profundo
com a religiosidade evangélica. O pertencimento religioso assume preemincia na
definição da conduta, do repertório e da relação com a audiência destes artistas.
102
3 AMPLIANDO A AUDIÊNCIA DO ESPíRITO SANTO”: A TOQUE
NO ALTAR MUSIC
No início deste trabalho, vimos que a íntima vinculação das gravadoras
evangélicas com algumas denominações do segmento religioso é uma das
características que singulariza o mercado fonográfico evangélico. Tal associação,
contudo, tem se dado de maneiras variadas.
Neste capítulo, apresentarei um caso específico: a fundação de uma empresa
fonográfica por uma denominação evangélica. Trata-se da gravadora Toque no Altar
Music. Criada em 1999 pela liderança da Igreja Ministério Apascentar de Nova
Iguaçu (RJ), a empresa tinha como objetivo, inicialmente, a produção dos álbuns do
ministério de louvor da igreja, o Toque no Altar. Porém, em meados de 2006, a
Toque no Altar Music adotou uma postura mais empresarial: contratou novos
profissionais e ampliou a audiência do grupo de louvor para outros países.
Sintomaticamente, essa profissionalização produziu divergências de opiniões entre
os músicos e a liderança pastoral sobre o “verdadeiro” papel da igreja, dos ministros
de louvor e da gravadora. Tal disputa resultou em uma divisão no grupo, gerando,
conseqüentemente, um questionamento mais amplo no meio evangélico brasileiro
sobre tais concepções, que o Toque no Altar é uma referência musical no país.
Esse caso é muito revelador por mostrar que uma singular associação entre
empresas fonográficas e igrejas evangélicas no país. Se por um lado essa
vinculação tem possibilitado uma ampliação da audiência da música deste segmento
religioso em todo território nacional, por outro, tem produzido divergências quanto
aos limites da atuação das denominações, das lideranças evangélicas e dos
ministérios de louvor.
Antes de indicar como essas divergências de opiniões e redefinições
conceituais se deram e, possivelmente, o que elas informam sobre as
transformações mais gerais que estão ocorrendo no segmento evangélico,
sobretudo quanto às musicalidades, apresento algumas informações sobre a Igreja
Ministério Apascentar. Nessa preliminar, em especial, priorizarei a fundação da
103
igreja na paisagem de Nova Iguaçu, sua organização institucional, bem como os
aspectos cosmológicos, compartilhados por liderança e membros, que os impulsiona
a ampliarem a divulgação das músicas do grupo Toque no Altar.
3.1 Uma igreja neopentecostal em Nova Iguaçu
Ilustração 17: Foto do centro de Nova Iguaçu
90
.
Tendo uma população de 840.000 habitantes
91
aproximadamente, cobrindo
uma área de 542, 04 Km² - a maior da região metropolitana do Rio de Janeiro e
com um PIB de R$ 3.816.154,00
92
, o município de Nova Iguaçu é seguramente um
dos mais importantes do estado do Rio de Janeiro. Ao lado de Duque de Caxias,
São João de Meriti, Nilópolis, Belford Roxo, Queimados, Mesquita, Magé,
Guapimirim, Japeri, Paracambi, Seropédica e Itaguaí, Nova Iguaçu integra a Baixada
Fluminense, uma região geográfica que, mesmo tendo uma fundamental importância
histórica e econômica no estado, sofre com as grandes desigualdades sociais.
Apesar de ser uma região marcada por uma grande atividade industrial e comercial,
a Baixada Fluminense amarga índices sociais extremamente negativos: crescimento
90
Fonte: http://pt.wikipedia.org/wiki/Nova_Igua%C3%A7u
91
Estimativa feita pelo IBGE/I em julho de 2006.
92
Dados do relatório do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio
de Janeiro (IPPUR/UFRJ), divulgado em julho de 2006.
104
desordenado das regiões urbanas
93
, pobreza, violência e etc. Para se ter uma idéia,
Nova Iguaçú, que tem o segundo maior PIB da região, ocupa a 45ª colocação no
ranking estadual em Índice de Desenvolvimento Humano (IDH). Essa posição
desfavorável em relação a outros municípios fluminenses, em parte, é decorrente da
falta de serviços locais adequados de saúde, cultura, trabalho e entretenimento.
As discrepâncias sociais não são constatadas quando consideramos o
município em questão em relação ao Rio de Janeiro. Observando mais atentamente
a paisagem de Nova Iguaçu, verifica-se um contraste expresso entre os bairros
centrais e os da periferia. Por exemplo, constatou-se no Censo Demográfico (IBGE),
realizado em 2000, que 73,8% da população habitante do bairro central tem acesso
aos serviços blicos de abastecimento de água e esgoto sanitário, enquanto que
somente 15,4 % dos residentes de Tinguá, um bairro da periferia do município que
acolhe a Reserva Biológica do Tinguá, têm suas casas ligadas à rede geral de
esgoto. Os contrastes não param por aí. Enquanto que prédios, shoppings centers e
grandes templos evangélicos formam a paisagem do centro de Nova Iguaçu, nos
bairros periféricos uma recorrência de comércios mais informais, moradias em
situações de vulnerabilidade e degradação ambiental.
Quanto à distribuição religiosa, ao lado de Belford Roxo e Duque de Caxias,
Nova Iguaçu tem um dos menores contingentes populacionais de católicos do
estado do Rio de janeiro, em torno de 43% da população local. Por outro lado, cerca
de 30% da população destes mesmos municípios se diz evangélica, um mero
bem acima tanto da média da população de evangélicos no estado (21,1%) como
em território nacional (15%) (Jacob et alii, 2004). Sendo assim, da mesma forma
que na região metropolitana de São Paulo, verifica-se, na metrópole do Rio de
Janeiro, uma predominância de evangélicos nas regiões periféricas (Almeida, 2004).
93
Segundo o relatório do (IPPUR/UFRJ) de 2006, entre os anos de 1950 e 1980, houve um amplo processo
migratório para a Baixada Fluminense. Por descaso do poder público, este contingente populacional, proveniente
não de outras regiões do estado, mas do país como um todo, desordenadamente, ocupou a região da
Baixada Fluminense. Neste período, observou-se um crescimento de cerca de 650% na população do antigo
município de Nova Iguaçu, que na ocasião também abrangia os atuais municípios emancipados de Belford Roxo,
Queimados, Japeri e Mesquita 1999.
105
Mesmo não sendo maioria, os evangélicos de Nova Iguaçu procuram se
impor no espaço público do município, seja construindo grandes templos que se
destacam na paisagem do centro
94
, seja produzindo grandes eventos musicais e
passeatas, ou intervindo nas questões políticas locais.
Em agosto de 2006, ocorreu um episódio que indica claramente a força deste
segmento religioso nos assuntos políticos de Nova Iguaçu. No encerramento da
Oficina de Arte Pública, um evento promovido pela prefeitura, um artista da região
pintou um tridente, próximo ao Mirante do Cruzeiro, na encosta da Serra do Vulcão,
que fica no centro daquele município. De vários lugares da região podia-se ver o
tridente branco, que contrastava com o verde do gramado da montanha. Esse
evento gerou uma grande polêmica entre os iguaçuanos, porque vários segmentos
sociais, em especial os evangélicos, passaram a associar o desenho ao demônio.
Mesmo o artista tendo explicado que o tridente era uma referência direta ao deus da
mitologia grega Poseidon, houve uma pressão, principalmente de alguns setores
evangélicos, para que o desenho fosse retirado. Diante disso, o prefeito Lindberg
Faria (PT), reconhecido no meio político por sua atuação junto às associações
estudantis, fez a seguinte colocação:
Quando soube que tinha sido desenhado um tridente mandei retirar imediatamente.
Ele tinha [o artista] combinado de escrever eu amo Nova Iguaçu”, mas acabou
colocando esse símbolo que afronta à cruz. Desde pequeno que vejo a figura do
diabo com tridente na mão. Moramos numa cidade de Deus (O Dia, 15/08/06).
É neste cenário social, marcado por um desenvolvimento econômico
fortemente desigual e por uma presença atuante dos evangélicos, que a Igreja
Ministério Apascentar tem-se constituído e chamado atenção por suas estratégias
proselitistas, voltadas, preferencialmente, para o público jovem.
94
Segue uma pequena tabela com algumas denominações evangélicas que construíram e fazem uso de grandes
construções na paisagem do centro de Nova Iguaçu:
DENOMINAÇÕES ENDEREÇO
Assembléia de Deus Rua Santa Luzia, 41.
1 ª Igreja Batista Rua Cel. Francisco Soares, n° 479.
Igreja Cristo Vive Avenida Governador Portela, 850.
Igreja Pentecostal de Nova Vida Rua Iracema Soares Pereira Junqueira, n°221.
Igreja Ministério Apascentar Avenida Getúlio de Moura, n° 452.
Universal do Reino de Deus Avenida Marechal Floriano 1.310.
106
Tomando como base os relatos de 10 membros
95
, matérias jornalísticas e
informações do site da igreja, a seguir apresento a história do Ministério Apascentar,
em Nova Iguaçu.
Em 1993, em uma pequena casa em Nova Iguaçu, foi criada a Igreja
Apascentar. Segundo contam, na ocasião, a igreja agregava somente 5 pessoas. Na
verdade, era um grupo de amigos que tinha como objetivo fundar uma nova
denominação evangélica que tivesse como base o “avivamento do espírito” (ênfase
nos dons do Espírito Santo), a “adoração” (a música como um instrumento de
mediação entre a Divindade e os humanos), a “libertação financeira” (teologia da
prosperidade) e a restauração da família”
96
. Por defender tais princípios, podemos
dizer que o Ministério Apascentar é uma igreja neopentecostal.
As igrejas neopentecostais são as denominações evangélicas que foram
fundadas a partir da década de 1970 que, assim como as primeiras pentecostais,
valorizam, dentre outros pontos, o batismo com o Espírito Santo, a cura divina, a
emoção - durante a liturgia dos cultos - e a cosmologia da batalha espiritual
97
.
Existem, porém, algumas características que distinguem tais denominações das
demais. Primeiramente, ressaltamos o uso sistemático dos meios de comunicação,
em especial da televisão (Oro, 1996; Swatowki, 2005). O proselitismo e a divulgação
das atividades das igrejas o feitos, em grande parte, por meio de jornais, de
periódicos, de programas televisivos e da internet. Além disso, como salientou
Mariano (2005), de certa forma, as igrejas neopentecostais abandonaram vários
traços ascéticos, abrindo mão, inclusive, da antiga estética pentecostal, a qual era
usada para distinguir os “crentes” dos outros indivíduos do “mundo”. Aliado a essas
características, ao observar, por exemplo, a Universal do Reino de Deus,
Comunidade Evangélica da Zona Sul, a Renascer em Cristo e a própria Apascentar
de Nova Iguaçu, percebemos que são igrejas fundadas por líderes fortes, os quais,
95
Ver o roteiro semi-estruturado em Apêndice B.
96
Estes princípios organizam as práticas e os rituais da igreja. Para maiores informações, ver:
www.apascentar.org.
97
Segundo os pentecostais, vivemos em um mundo caracterizado por um luta constante entre Deus, anjos e
demônios (Mariz, 1995; Birman, 1996; Clara, 2002). No quarto capítulo, ao analisar os estilos musicais
evangélicos”, apresentarei as concepções centrais que fazem parte da cosmologia pentecostal.
107
além de exercerem um enorme controle doutririo e administrativo-financeiro em
suas respectivas denominações, tamm se destacam por serem carismáticos.
3.2 Igreja e seu Fundador: trajetórias que se confundem e se entrecruzam.
Como muitas outras igrejas, o Ministério Apascentar começou em uma
pequena residência. Atualmente, ocupa uma grande área, em um ponto estratégico,
próximo ao centro comercial de Nova Iguaçu. E, se em um primeiro momento a
igreja só contava com um templo, atualmente o ministério possui 11 congregações
98
,
98
Relação das congregações e dos pastores dirigentes:
1) Ministério Apascentar em Queimados
Pr. Anderson de Souza Lima e Prª Alessandra Koch.
Av. Dr. Pedro Jorge, n.801Centro, Queimados;
2) Ministério Apascentar em Belford Roxo
Prª. Angela e Dcº Adecir
Endereço: Estrada Geral, 14 - Bairro Sublime;
3) Ministério Apascentar em Nilópolis
Prº Delson Prª Georgina
Endereço: Rua joão evangelista de carvalho, 2016 – centro;
4) Ministério Apascentar em Duque de Caxias
Pr. Valdecy e DCª. Flávia
Endereço: Rua Manoel Lucas, 99 - Centro
5) Ministério Apascentar em Anchieta
Pr. Marco Campos e Pra. Miriam Campos
Estrada Rio do Pau, n.225 – Anchieta;
6) Ministério Apascentar em Ricardo de Albuquerque
Pr. Venilton Gonçalves e Marly de Jesus
Rua Pereira da Rocha, N. 237 Ricardo de Albuquerque;
7) Ministério Apascentar em Campo Grande
Rua Professor Gonçalves, 41, Campo Grande, Rio de Janeiro;
8) Ministério Apascentar em Jacarepaguá
Pr. César Dias e Prª Núbia Rosa
Estrada do Cafundá, 02 - Tanque - Jacarepaguá – RJ;
9) Ministério Apascentar em Engenho Novo
Pr. Jorge Conceição e Prª Marinha Alves da Conceição
Rua Barão do Bom Retiro, 220 Engenho Novo;
10) Ministério Apascentar em Itaipu
Pr. Derby e Prª Marília
Rua Ewerton da Costa Xavier - Semmero;
11) Ministério Apascentar em Guarulhos-SP
Pr. Ney Messias e Prª Andréia
Av. Bom Clima, 33 - Centro - Guarulhos-SP.
108
distribuídas em outros municípios da Baixada Fluminense, no subúrbio carioca, em
Nitei e em Guarulhos, São Paulo.
Com o desenvolvimento dessa estrutura-organizacional, tornou-se necessária
a criação de um corpo de pastores e obreiros que pudesse, minimamente, viabilizar
a continuidade dos projetos e manutenção das atividades das igrejas filiadas. Sendo
assim, segundo o site
99
da Igreja Apascentar, atualmente, além do líder presidente,
Marcus Gregório, e de sua esposa, Christina Almeida, o ministério conta com 25
pastores e pastoras. Diferentemente da Igreja Universal do Reino de Deus, onde os
postos mais altos o confiados somente aos homens, o Ministério Apascentar
permite a inserção das mulheres no pastorado
100
. Dos 27 líderes, 13 são do sexo
feminino e 14 do sexo masculino. Além deste dado que nos leva a suspeitar que
nessa denominação evangélica uma maior simetria nas carreiras eclesiais, na
medida em que tanto homens como mulheres podem ocupar o pastorado,
importante informar que boa parte das congregações é liderada por casais de
pastores, seguindo um dos princípios mais caros da igreja: a centralidade na família.
Ainda apresentando a estrutura organizacional da igreja, cabe salientar que,
além dos pastores serem responsáveis pelas congregações, tamm dirigem as
redes ou departamentos específicos. São eles: Escola Bíblica, Rede de Crianças,
Rede Jovens, Espaço R (rede de adolescentes), Ministério Ruah, Ministério
FACES (ministério de dança), Ministério de Intercessão e Ministério de Louvor.
O pastor Marcus Gregório é central nesta estrutura. Aliás, a expansão bem
sucedida da igreja se confunde com a trajetória do seu pastor presidente. Como o
Bispo Edir Macedo, Marcus Gregório se constitui em um dos maiores deres
evangélicos do país, na mesma proporção em que a sua igreja se tornava uma
grande denominação evangélica. Ao lado de grandes lideranças pastorais, Marcus
Gregório faz parte da diretoria do Conselho de Ministros do Rio de Janeiro
(COMERJ)
101
, como presidente. Atua, também, como pregador tanto nos programas
realizados pela igreja em dios e canais televisivos
102
, como em outras igrejas.
99
http://www.apascentar.org/cds.php
100
Para um maior entendimento a respeito da inserção das mulheres no pastorado, ver: Santos (2002).
101
Para maiores informações do Comerj, ver: www,comerj.com.br.
102
Tendo somente 14 anos de existência, a igreja já conta com os seguintes programas nas rádios evangélicas e
nos canais televisivos:
1) Na Rádio FM Melodia:
109
Formado em teologia e amante de um discurso direto e bem acessível a todos,
Gregório publicou rios livros sobre prosperidade material e espiritual. ”Chegou a
sua vez”, “Aprenda a crescer no seu trabalho”, ”Recebendo a restituição em dobro” e
“Eu vou viver uma virada na minha vida” são alguns dos escritos do der da igreja
Apascentar. Além disso, produziu vários DVDs com mensagens pragmáticas, que
ensinam os fiéis a solucionarem problemas cotidianos e a superarem circunstâncias
adversas.
Com essa carreira, Marcus Gregório conseguiu não ganhar credibilidade
junto ao público evangélico, ao criar uma imagem de homem bem sucedido” e
“instruído”, mas também difundiu a iia de que no Ministério Apascentar a
divindade se faz presente, através de milagres e de conquistas financeiras.
3.3 “Ele nunca falta”: o sagrado no meio da comunidade.
O Ministério Apascentar desenvolve uma intensa atividade religiosa
semanal
103
. Seguindo o formato de suas parceiras neopentecostais, a igreja do
“Profetizando Restituição Sobre sua Vida” às 15h;
Programa “Marcando Minha Geração” às 10h;
2) Na Rádio El Sahadai 93 FM
Profetizando portas abertas | 23h;
3) Rede TV
“Profetizando Portas Abertas sobre a Tua Vida”/ sábados às 8:45h;
4) Rede Super
“Profetizando Restituição sobre a Tua Vida”/ De segunda a sábado-20:00h.;
5) CNT
“Profetizando Restituição sobre a Tua Vida”./ Terça-feira - 17:00
Quinta-feira-17:00H, Sábado-09:00H e 15:00H
Domingo - 16:00 H;
6) Rede TV Sul
“Profetizando Restituição sobre a Tua Vida”.
Todo Sábado às 11:00 H.
103
Segue a programação da igreja:
Domingo: 09 h (Culto de Ensino) e 18 h (Culto de Adoração);
Terça-feira: 19 h (Culto do Espírito Santo);
Quinta-feira: 19 h (Culto da Restituição);
Sábado: 19 h (Culto Jovem).
110
pastor Marcus Gregório desenvolve vários cultos semanais, cada um com um
propósito específico. Por exemplo, os membros que aparecem às terças-feiras
sabem que o culto é destinado a “busca do Espírito Santo”. Nessas reuniões, as
orações, as músicas, bem com a pregação são realizadas no intuito de promover
uma aproximação maior entre os fiéis e a divindade. Em termos nativos, busca-se
um “revestimento” de Deus
104
. as celebrações aos sábados têm um caráter mais
proselitista, voltado, preferencialmente, aos jovens. Geralmente, nesse dia da
semana, o convidados artistas e pregadores conhecidos no meio evangélico.
um cuidado por parte da liderança da igreja na seleção de músicas mais “agitadas” e
variadas em termos rítmicos, para que, de fato, a audiência jovem seja atingida.
No projeto missionário da igreja Ministério Apascentar a idéia de que o
sagrado se manifesta no meio da comunidade é central. Essa visão também é
marcante entre os membros - pelo menos aos que tive acesso. Para ilustrar, a
seguir apresento um relato de um jovem de 21 anos:
O fator que determinou mesmo para que eu ficasse na igreja foi que eu não sentia a
presença de Deus há muito tempo. O que marcou mesmo, eu não sei a data nem o
dia certo, mas foi uma pregação do pastor Marcos Gregório. Nesse dia, o culto nem
acabou. Foi tremendo. Ele não conseguiu dar a benção apostólica. A unção de
Deus foi tão tremenda, muito poderosa. Então isso marcou a minha vida, porque
muito tempo eu não sentia essa presença tão forte. Foi algo que nunca vou
esquecer. Isso é o que me motiva sempre a estar lá: a presença de Deus em todos
os cultos. Ele nunca falta (Rafael, 18/06/07).
Nesse caso, a pregação “ungida” do pastor criou uma dimensão favorável
para que Deus comparecesse ao ritual e “renovasse” (“preenchesse”) o jovem rapaz.
Em outros casos, não é palavra, mas a música que serve como um suporte de
ligação entre seres humanos e divindade:
Gosto muito das palavras que o pastor Marcos Gregório ministra. Tamm gosto
do pastor rcio. Mas gosto muito da música. Todos quando escutam as músicas
ficam empolgados e sentem, realmente, a presença de Deus (Fernanda,
17/06/07).
Boa parte dos cultos da Apascentar é destinada aos “louvores”.
Diferentemente da Assembléia de Deus, que tradicionalmente distribui seus
membros em grupos de louvores (crianças, adolescentes, jovens, senhoras e etc.),
que em cada “conjunto” apresenta as músicas que foram ensaiadas durante a
104
De acordo com a cosmologia pentecostal, para vencerem as forças do demônio, os evangélicos têm que se
“revestiremdo pode Deus. No quarto capítulo voltarei a esse ponto. Por hora, para um maior esclarecimento
sobre o referido tema, ver: De Paula (2002); Mafra e De Paula (2002).
111
semana, na igreja do pastor Marcus Gregório, todos cantam juntos. Uma equipe de
instrumentistas e cantores - o ministério de louvor - dirige e coordena a execução da
parte musical, enquanto a audiência acompanha. Na frente, no púlpito da igreja, o
ministério de louvor se apresenta; na platéia, se acomoda um público que não se
subdivide por idade e/ou gênero: uma multidão, uma massa que participa
ativamente, cantando, dançando, se alegrando ou chorando copiosamente. Como
informou a entrevistada, as músicas são centrais na dinâmica dos rituais da igreja e
são vistas como um veículo para a manifestação do sagrado.
Além disso, contrastando com outras denominações evangélicas, como a
Luterana e Presbiteriana, que seguem uma liturgia pré-estabelecida nos rituais, as
celebrações do Ministério Apascentar podem sofrer mudanças de uma hora para
outra. Essa maior flexibilidade tem, pelo menos, uma explicação. Segundo a
liderança, os cultos o também dirigidos pela divindade. Frases como: Aqui Deus
está no controle”, ditas pelo pastor Gregório, expressam essa concepção. Por
exemplo, a pregação, estudada durante toda semana, e a seqüência das músicas,
exaustivamente ensaiadas, podem ser mudadas durante a programação, se a
divindade “tocar”, “ordenar”, ao pastor.
Aliando a crença de que a divindade se manifesta no meio da comunidade,
existe um outro traço que me chamou atenção no discurso e nas práticas dos
membros da Apascentar: há uma ênfase muito forte na teologia da prosperidade. Os
membros são encorajados, a todo instante, a lutar por uma vida financeira melhor, a
romper com as suas limitações e a esperar sempre mais de Deus neste “mundo”. No
vocabulário nativo, ao agirem dessa maneira estão “restituindo o que foi roubado
105
.
A seguir, apresento mais um trecho em que o jovem expõe alguns argumentos
dessa teologia que coloca mais em relevo as conquistas nessa vida, “no aqui e
agora”.
O que eu mais gosto na Apascentar é o estímulo ao crescimento. O pastor Marcos
Gregório, o pastor Márcio e toda liderança são muito voltados à pregação do
evangelho de uma forma prática, para que você cresça e expanda. Esta,
certamente, é a vontade de Deus: ver a sua prosperidade, para implementação do
reino de Deus (Rafael, 18/06/07).
105
Esta frase - ou versões semelhantes - é muito usada pelos membros do Ministério Apascentar.
112
Para o jovem, a implantação do “reino de Deus” se aqui, nesta vida, como
conseqüência de uma vida próspera. Talvez o que ele tenha sugerido é que uma
vida próspera seja sinônimo de viver no “reino de Deus”.
uma música do Toque no Altar que ilustra muito bem a concepção
indicada pelo entrevistado.
Toda sorte de bênçãos
Toque no Altar
Por onde eu for a tua bênção me seguirá (v1)
Onde eu colocar as minhas mãos prosperará
A minha entrada e a minha saída bendita serão
Pois sobre mim há uma promessa
Prosperarei, transbordarei (v5)
Os meus celeiros fartamente se encherão
A minha casa terá sempre tua provisão
Onde eu puser a planta dos meus pés
Possuirei
Pois sobre mim há uma promessa (v10)
Prosperarei, transbordarei
Para direita, para esquerda
À minha frente
E para trás
Por todo lado, sou abençoado (v15)
Em tudo o que eu faço
Sou abençoado
Toda sorte de bênçãos
O Senhor preparou para mim
E em todas as coisas (v20)
Eu sou mais do que vencedor.
“Prosperarei e transbordarei”, este parece ser um dos lemas da igreja. Seja a
partir das pregações ou através das músicas, os fiéis são motivados a superar os
seus problemas financeiros e a prosperar.
O Ministério Apascentar tamm tem desenvolvido campanhas
106
, em que os
princípios da teologia da prosperidade o transmitidos. Durante algumas semanas,
106
Segue uma lista com os dias da campanha que foi realizada no início de 2008. A Campanha "A Vitória sobre
os Gigantes"
Gigante: O gigante do Imposvel - 26/02/2008;
Gigante: O gigante das minhas finanças - 04/03/2008;
Gigante: O gigante da limitação dos sonhos- 11/03/2008;
Gigante: Gigante do desânimo próprio - 18/03/2008;
Gigante: Gigante do passado colocando em dúvida o teu futuro-25/03/2008;
Gigante: Gigante que te impede de frutificar para Deus - 01/04/2008;
Gigante: Gigante da mentira, porque ela quer calar a voz profética - 08/04/2008.
113
os fiéis oram em busca da realização de um objetivo pré-determinado. Tal alvo” é
associado a uma passagem da bíblia, que se torna o lema” da campanha. Em
meados de 2007, por exemplo, o Ministério Apascentar realizou uma campanha que
foi muito comentada em Nova Iguaçu. Trata-se da campanha “Deus vai tirar o teu
vexame”. Por cerca de sete quintas-feiras, comandados pelo pastor Marcus
Gregório, os fiéis oraram para que a divindade atuasse em situações, que, de
alguma forma, estivessem criando um sentimento de “vergonha”. A conta de luz que
não foi paga, a doença que persiste sem solução, a mulher que quer engravidar e
não consegue, o filho que não tem forças de deixar as drogas ilícitas, a empresa da
família que está indo à falência, seriam exemplos situações “vergonhosas”.
3.4 “Um dia todos os jovens da Baixada irão declarar que Jesus é o Senhor”:
“o resgate do mundo”
O estímulo para o crescimento não é para os fiéis. A igreja também deve
crescer e “conquistar tudo que o diabo roubou”. Se no plano dos indivíduos a
reconquista se no melhoramento da vida financeira, na busca pela harmonia nos
relacionamentos afetivo-sexuais (namoros e casamentos) e na cura das doenças, no
plano da instituição religiosa, o “resgate do que foi roubado pelo diabo” ocorre
quando a igreja cresce, ganha visibilidade no espaço público e alcança diferentes
segmentos socais. De todos os relatos a que tive acesso, o que será apresentado a
seguir expressa fortemente esse projeto de expansão do sagrado para o “mundo”.
Trata-se de um fragmento de uma mensagem, “Os nossos alvos”, escrita por líderes
do ministério no site da igreja.
(...) Temos sonhado que um dia todos os jovens da Baixada irão declarar que Jesus é
o Senhor das suas vidas e das suas famílias. Sonhamos também com uma casa de
recuperação para dependentes químicos; com um abrigo para homossexuais; com
uma escola totalmente baseada em princípios bíblicos; com nossa cidade sem um
morador de rua; com crianças sendo tiradas das ruas e sendo tratadas como elas de
verdade merecem; com um grande carro de som, tipo trio-elétrico, para “perturbar” o
império das trevas com evangelismos diários; com um programa de TV da juventude
em canal aberto; assim como um programa de rádio também, e muitos, mais muitos
outros sonhos que vão destruir todas as armadilhas de satanás contra a vida dos
jovens (...). (Pr Marcio Rocha de Souza e Pra Marisangela Siqueira de Souza site
www.jovensapascentar.com.br, consulta 08/08/07).
114
Nessa mensagem, dois líderes do Ministério Apascentar esboçam um desejo
de expansão do que eles consideram comosagrado” para outros espaços da cidade.
Para a realização de tal projeto seriam usadas estratégias que, até pouco tempo,
eram consideradas profanas por boa parte dos evangélicos, como a utilização de trios
elétricos no estilo carnaval de ruas de Salvador. Vemos nesse trecho, a difusão da
idéia de resgate do mundo”. Segundo esse projeto proselitista, não somente os não-
evangélicos devem ser resgatados”, mas tamm os meios de comunicação, as
artes e a política.
Nos seus 15 anos de existência, a igreja do pastor Marcus Gregório tem
promovido diferentes estratégias para atingir, cada vez mais, um público maior, em
seu projeto de “resgate do mundo”. Além de fazer um uso intensivo de diferentes
mídias, a liderança da igreja tem promovido grandes eventos musicais e festas
temáticas no Espaço Apascentar - um galpão-, ou no estacionamento do templo.
Pode-se dizer que todas essas atividades, associadas à reprodução das músicas do
Toque no Altar, constituem o rol de medidas adotadas pela igreja do pastor Marcus
Gregório para projetá-la no espaço público. A seguir, ao apresentar os eventos
musicais promovidos pelo Ministério Apascentar, desenvolvo a idéia de “resgate do
mundo”.
3.5 “Este lugar é sagrado, apesar da gente estar se divertindo”: Os eventos
musicais e as festas temáticas.
Se as campanhas são realizadas com o intuito de auto-ajuda, os eventos
musicais e as festas temáticas, oficialmente, têm como um dos objetivos o
proselitismo, a aproximação dos jovens à igreja. Realizadas nos finais de semana,
no templo ou no Espaço Apascentar, essas programações têm chamado a atenção
da juventude e, conseqüentemente, aumentado a visibilidade da igreja no espaço
público local. A seguir, trago o relato de outro rapaz, que diz sentir-se motivado
pelos eventos musicais desenvolvidos pela igreja:
115
Acho que o que mais me marcou na igreja foi a vinda de alguns cantores,
até mesmo o Cris Duran. Ele é um cantor de vel internacional. A vinda
dele foi muito importante para a igreja, para o levantamento da igreja, até
por uma questão de status. Foi muito importante até para Nova Iguaçu.
(Everton, 17/06/07).
Nesse trecho, o entrevistado refere-se a uma programação realizada pelo
Ministério Apascentar no início de 2007. Durante todos os sábados do mês de
janeiro daquele ano, aproveitando as férias escolares, os líderes da igreja
promoveram shows, onde artistas renomados da música evangélica foram
convidados. Fazendo referência ao “Festival de Verão”, que ocorreu na mesma
época em Salvador (BA), com a participação de grandes nomes do amusic e do
pop brasileiro foram convidados, a igreja “batizou” esta série de apresentações como
“Verão Gospel”. Alguns cantores famosos, como Cris Duran, compareceram ao
evento e mobilizaram o público. Vemos que o entrevistado diz ter sido “marcado” por
essa programação musical a qual, em sua concepção, não possibilitou maior
visibilidade da igreja no espaço público, mas também acabou promovendo o próprio
município.
No dia 21 de setembro de 2007, ainda tendo como referência os grandes
eventos seculares inicialmente produzidos em Salvador, o Ministério Apascentar
realizou a primeira micareta evangélica, no estacionamento da igreja. Da mesma
forma que as micaretas o evangélicas, a “MimCareta Gospel”- como foi batizada
por eles- tinha um trio elétrico, bandas de a que neste caso eram formadas
tamm por evangélicos- e produção de abadá –“aba Deus” -, que neste caso foi um
lenço amarelo que custou R$ 10. A seguir, o líder da rede de adolescentes da igreja,
tece alguns comentários sobre a realização desse evento:
A micareta aconteceu pouco tempo. Nós alugamos um trio elétrico, tinha
também duas bandas aqui: a “Banda Tambores Remidos” da Bahia e a “Banda
Louva a Deus” de Brasília. Eles tocam mais música estilo baiano, ritmado. Foi muito
legal, porque as pessoas entravam, ganhavam um lenço [Aba Deus] para
amarrarem em suas cabeças que é florescente e chamava muita atenção. Foi muito
bom. Foi uma benção de Deus. O estacionamento lotado. Deu quase duas mil
pessoas. Todo mundo dançando, se divertindo, comendo e tomando refrigerante.
Foi um ambiente super descontraído. Ninguém precisou usar drogas, brigar ou
levantar uma arma pra ninguém. Porque todo mundo se respeita e sabe que este
lugar é sagrado, apesar da gente se divertindo, podendo dançar. A gente tem
que respeitar está casa (André, 28/09/07).
116
Nesse fragmento da entrevista, o diácono fala sobre o evento que levou uma
pequena multidão ao estacionamento do Ministério Apascentar, em uma sexta-feira
à noite. Ressalta o aspecto de entretenimento da programação, mas não deixa de
pontuar também sua dimensão religiosa. Para ele, a “Mimcareta gospel” forneceu
diversão aos seus participantes, sem perder o seu caráter sagrado. Um outro
entrevistado tamm tece alguns comentários sobre a micarenta evangélica da
Baixada Fluminense:
Gostei muito da micareta. Estiveram aqui o Louva Deus e os Tambores Remidos. Foi
algo muito sobrenatural. Eles tocam ritmos da Bahia. Isso veio demonstrar que quem
criou os ritmos e quem criou a musicalidade foi o senhor Jesus Cristo o nosso Deus.
Mas, foi tomado posse por algumas entidades [demônios], mas eles [Louva a Deus e
Tambores Remidos] vieram resgatar isso. Foi algo sobrenatural. (Robson, 28/09/07).
Ilustração 18: Foto da “Mincareta Gospel”
107
. Ilustração 19: Foto da “Mincareta Gospel”
108
.
A idéia do “resgate do mundo” parte do pressuposto de que todos os
domínios da vida social, a princípio, pertenciam a Deus, porém, após a queda do
homem no Jardim do Éden, não somente os humanos se “perderam, mas também
o próprio mundo teria sido “capturado” pelo Diabo. Na atualidade, enquanto Cristo
não volta para levar os “salvos” para o céu, o papel da igreja seria “resgatar” tanto os
humanos, como os diferentes domínios da vida social.
Em especial, com relação à “Mimcareta gospel”, o “resgate” o não se deu
somente na captura de novas vidas para a Divindade a partir de uma programação,
que, até então, ainda o tinha sido realizada por evangélicos. A própria micareta–
com os seus ritmos e performances- tamm pôde ser “resgatada para Deus”. Em
107
Fonte: www.apascentar.org (Consulta em 10/03/08).
108
Fonte: www.apascentar.org (Consulta em 10/03/08).
117
outros termos, se até então a micareta era vista como uma programação diabólica,
após ser “resgatada”, passou a ser um instrumento de evangelização e de
entretenimento. Houve, portanto, uma inversão de sentido simbólico dessa
programação musical.
Contudo, tal processo pôde ocorrer, de fato, porque houve também um
controle tanto dos costumes como das performances corporais. Assim com em
outros eventos promovidos pela liderança da igreja, durante a Mimcareta Gospel”,
os jovens não puderam fazer uso de substâncias consideradas drogas pela
sociedade abrangente como álcool, maconha, cocaína, etc.-, não puderam praticar
relações sexuais, nem, tampouco, desnudar seus corpos, ou amesmo dançar de
maneira, considerada, por eles, como sensual. Observa-se, nesses eventos que,
mesmo havendo uma liberação com relação ao uso do axé music - uma expressão
musical tida como diabólica até então-, os participantes procuram pautar suas
condutas a partir de uma “etiqueta”.
Esse conjunto de “boas maneiras” que o “verdadeiro crente” deve manter, não
é imposta explicitamente pelos líderes da igreja nessas programações. Entre os
jovens parece existir um certo pudor, internalizado, diante de algumas
performances corporais. Tanto que, quando algum jovem mais afoito dança de forma
mais sensual, ou extrapola nas brincadeiras, os que estão ao redor comentam ou,
até mesmo chamam sua atenção.
Mesmo sendo programações de cunho religioso, em que os participantes
procuram manter o autocontrole sobre seus comportamentos para estabelecer um
“contato” com Deus, também uma dimensão de entretenimento. Além de
cultuarem a divindade através de músicas e danças, os participantes tamm
assistem seus cantores favoritos, reencontram seus amigos, namoram, comem os
sanduíches, que são vendidos nas “barraquinhas”, e bebem muito refrigerantes. Por
isso, essas programações tamm são vistas como boas possibilidades de uma
“diversão sadia”.
Como foi abordado no icio deste capítulo, mesmo sendo um município
que tem uma importância econômica na região, Nova Iguaçu não possui muitas
alternativas de entretenimento para os jovens. Segundo dados da prefeitura de Nova
Iguaçu, o município conta somente com 2 teatros e 6 cinemas. Também, de acordo
118
com o site guia de Nova Iguaçu
109
, existe uma casa de show na região, a Rio
Sampa”. Além dessas poucas opções, existem próximos à Rodovia Presidente
Dutra, alguns bares que são freqüentados, predominantemente, por jovens de
camadas médias: os bares da “Rua da Lama”. Porém, a grande possibilidade de
diversão para os mais pobres são, realmente, os bailes funks, organizados,
geralmente, nos finais de semana em alguns clubes, sobretudo os da periferia do
município.
Nesse cenário, os eventos realizados pelo Ministério Apascentar acabam
sendo boas possibilidades de entretenimento: uma diversão que exclui bebidas
alcoólicas, sexo e outras drogas ilícitas, mas que, por outro lado, garante segurança
e músicas com ritmos que estão disponibilizados na sociedade abrangente aos
participantes.
Esse tipo de “diversão sadia” tamm é oferecido por outras denominações
evangélicas da região. Nos finais de semana, em Duque de Caxias, a Renascer em
Cristo tem promovido as “noites dançantes”, com direito a globo espelhado, canhões
de luz, estroboscópio, fumaça, DJs e MC’s. Mesmo sendo alvo de polêmicas e
proibidas por algumas lideranças pastorais, estas programações têm chamando a
atenção de muitos adolescentes e jovens.
Algumas equipes de som evangélicas tambémm realizado eventos voltados
para o entretenimento dos jovens crentes. Entre outras, A Gospel Beat (GB), Soul de
Cristo (SC) e Gospel Nigth (GN) promovem verdadeiros bailes, que são
denominados pelos seus participantes como “festa(Pinheiro, 2006). Inspiradas no
modelo das equipes de som não evangélicas, estas possuem grandes caixas de
som; convidam DJs e MC’s, neste caso evangélicos, como Adriano Gospel Funk,
MC F. Reis e DJ Naudão, que circulam mais neste circuito de festa”; e se
apresentam também em clubes (idem, 2006).
Da mesma forma que nas festas temáticas e nos shows musicais realizados
pela igreja Apascentar, em todas essas programações observa-se a incorporação de
diferentes ritmos musicais, considerados até então como profanos como funk, e
axé music; uma etiqueta” que regula os comportamentos dos participantes; uma
contenção dos costumes e das performances corporais; e a idéia de resgate do
mundo”.
109
Para maiores esclarecimentos, ver: http://www.guiadenovaiguacu.com. (Consulta feita em 27/02/08).
119
3.6 “Separados para Deus e contratados pela igreja”: A formação do Ministério
Toque o Altar
Segundo contam os líderes e membros da igreja, a criação do grupo Toque
no Altar se deu a partir de uma reflexão realizada pelo pastor Marcus Gregório sobre
o papel dos cantores e da música nas igrejas. Tendo como base a passagem bíblica
(I Crônicas 25), em que uma exortação sobre a importância da separação dos
cantores em relação aos demais segmentos sociais do povo de Israel, Gregório
decidiu criar um corpo de músicos tamm apartados. A partir de então, em meados
do ano de 2002, os cantores e instrumentistas passaram a se dedicar integralmente
às atividades da igreja. Dessa forma, os 4 integrantes- atualmente são 16- foram
contratados e tornaram-se funcionários da igreja.
A dedicação exclusiva dos músicos possibilitou a elaboração de um mero
expressivo de músicas, com arranjos complexos e instrumentos variados.
Sintomaticamente, a partir da produção e divulgação dos álbuns, o grupo pode
concorrer em de igualdade com os outros ministérios de louvor e cantores que
tamm reproduzem suas músicas em álbuns. Ao mesmo tempo, com maior
disponibilidade, o ministério Toque no Altar passou a viajar e a participar de eventos
e shows em outras cidades com mais freqüência, contribuindo, assim, para o
alargamento do circuito de relações da igreja como um todo. Atualmente, os
cantores são conhecidos não só no Brasil, mas tamm no exterior.
De um modo geral, os membros da igreja a que eu tive acesso são
favoráveis à dedicação exclusiva do ministério de louvor e se orgulham da ampla
projeção que o grupo alcançou em um curto período de tempo. A seguir, trago
outras considerações feitas por uma das entrevistadas.
O Toque no Altar é uma idealização do pastor que deu certo. O pastor idealizou o
grupo, fez com que eles começassem a trabalhar em tempo integral. Eles ficam o
dia inteiro, trabalhando na parte musical. Todos podem ver o resultado dessa
dedicação: eles são um bênção mesmo, não aqui em Nova Iguaçu, mais em
todos o país (Fernanda, 17/06/07).
120
A ampliação do circuito de relações do Toque no Altar para outros países é
entendida como uma confirmação de seu chamado”. Sendo uma idealização do
líder da igreja, os cantores “apartados”, ao se projetarem para além da cidade e
levarem consigo o nome do Ministério Apascentar, estariam confirmando a sua
missão e, decorrentemente, a meta da igreja como um todo: “resgatar o mundo”:
Sou muito grato. Deus está usando os nossos levitas, o Toque no Altar, para
ganhar multidões, almas pelo mundo a fora. A música deles impactam as
multidões (...) Eles o inspirados por Deus. (Joares, 29/09/07).
Associado a essa concepção, alguns membros do Ministério Apascentar
vêem no aumento da audiência do Toque no Altar uma forma de projetar
positivamente o Nova Iguaçu, mas a Baixada Fluminense como um todo. O
relato que apresento a seguir explicita claramente essa concepção:
O Toque no Altar é tremendo. Graças a Deus, apesar de sermos membros de uma
igreja na Baixada Fluminense, o Ministério Toque no Altar alcançou um renome
nacional, e até um renome internacional. É um motivo de orgulho, pois muitos fazem
pouco caso quando falamos que moramos em Nova Iguaçu. Quando a gente o
sucesso do Toque no Altar, e sabe que ele faz parte de uma igreja da Baixada
Fluminense, é mesmo uma glória de Deus. (Maria, 28/09/07).
Nesse sentido, o referido ministério de louvor seria um exemplo de que nesta
região tão desassistida pelo poder público que, inclusive, muitas vezes, nos meios
de comunicação, se faz presente pela violência e pobreza, existem grupos
talentosos. Da mesma forma que os fiéis da Assembia de Deus de Madureira
vêem na construção de sua catedral uma forma de comunicar à sociedade
abrangente que naquela região suburbana também fartura, exuberância e luxo
(Mafra, 2007), os membros da igreja Apascentar usam a arte musical do Toque no
Altar para atribuir uma positividade à Baixada Fluminense.
121
3.7 “Uma pequena história de sucesso”: as músicas do Toque no Altar
Ao longo dos 5 anos de formação, o Toque no Altar gravou seis CDs e dois
DVD
110
. Boa parte dessa produção musical foi inspirada nas campanhas idealizadas
pelo pastor Marcus Gregório. Observa-se literalmente uma continuidade entre os
temas das letras e os “Alvos” indicados nas campanhas. A produção do segundo CD
do Toque no Altar expressa claramente essa homologia. Lançado em outubro de
2003, o álbum Restituição é exemplar. Foi fruto de uma grande campanha
promovida pelo Ministério Apascentar. Inicialmente, o pastor pretendia elaborar um
CD artesanal, com duas músicas temas do evento, que seria, posteriormente,
distribuído aos participantes. Porém, diante do sucesso da campanha e das
músicas, foi produzido um outro CD com mais 7 músicas, sendo que uma delas é
uma faixa multimídia como vídeo-clip da música Restitui. Segue a letra.
Restitui
111
Os planos que foram embora (v1)
O sonho que se perdeu
O que era festa e agora
É luto do que já morreu
Não podes pensar que este é o teu fim (v5)
Não é o que Deus planejou
Levante-se do chão!
Erga um clamor!
Restitui! Eu quero de volta o que é meu
Sara-me! E põe Teu azeite em minha dor (v10)
Restitui! E leva-me às águas tranqüilas
Lava-me! E refrigera a minh’alma
Restitui...
E o tempo que roubado foi
Não poderá se comparar (v15)
A tudo aquilo que o Senhor
Tem preparado ao que clamar
Creia porque o poder de um clamor
Pode ressuscitar...
110 Seguem os títulos dos álbuns: Toque no Altar, Restituição, Deus de Promessas e Olha pra mim, Deus de
promessas ao vivo e É impossível, mas Deus Pode; DVDs Toque no Altar/Restituição e Deus de Promessas.
Segundo o site do Toque no Altar (http://www.toquenoaltar.com.br-consultado no dia 10/08/07), o ministério
vendeu um total de 2 milhões de cópias de CDs e DVDs.
111
A música Restitui é recorrentemente lembrada e cantada pelos membros da igreja. Ouso dizer que, se
montássemos uma trilha sonora da igreja, Restitui seria a música tema.
122
Procurando seguir os passos das igrejas Renascer em Cristo e Batista da
Lagoinha, que tamm divulgam amplamente as músicas dos seus respectivos
ministérios de louvor, a Apascentar de Nova Iguaçu fundou a sua própria empresa
fonográfica, a Toque no Altar Music, em 1999, que até os dias atuais tem como
presidentes o pastor Marcus Gregório e sua esposa.
Mesmo não se vinculando diretamente às grandes gravadoras evangélicas, o
Toque no Altar tem conseguido divulgar e distribuir suas músicas em todo o território
nacional
112
. Em parte, essa penetração nacional está relacionada à grande inserção
que o Ministério Apascentar tem nas mídias. A igreja do pastor Marcus Gregório
possui um espaço de segunda a sexta-feira, em duas das maiores rádios
evangélicas do Rio de Janeiro, a El Shaday (93,3 FM) e Melodia (FM 97,3). Am
disso, também desenvolve uma programação nos seguintes canais televisivos: Rede
TV, CNT, Rede TV Sul e Rede Mana Sat. Em todos esses programas, não as
pregações do pastor Marcus Gregório são veiculadas, mas também as músicas do
Toque no Altar.
Associado ao uso intensivo das mídias, a divulgação dos álbuns do Toque no
Altar tem sido feita tamm pelo próprio pastor Marcus Gregório em suas viagens
ministeriais. Convidado para realizar pregações em todo país e no exterior, Gregório
tamm faz questão, como muitos membros disseram, de fazer referência às
músicas do grupo.
Além disso, no meio evangélico, existe uma prática que acaba contribuindo
para a divulgação e, conseqüentemente, para o aumento da audiência não do
Toque no Altar, mas de diversos grupos e cantores. Refiro-me à divulgação “boca a
boca”. Quando um cantor executa uma música que por alguma razão desperta o
interesse da audiência, o próprio fiel se encarrega de fazer uma propaganda do
cantor. Muitos evangélicos, inclusive, utilizam as músicas de seus artistas favoritos
em suas igrejas, seja nas apresentações individuais, ou nos ministérios de louvor.
Especificamente, em relação ao Toque no Altar, pude perceber que até na Igreja
Comunidade Evangélica, em Salvador, onde participei de alguns cultos em janeiro
de 2007, as músicas deste grupo foram executadas pelo ministério de louvor
112
O Toque no Altar conta com representantes nos seguintes Estados da Federação: São Paulo, Pernambuco,
Pará, Mato Grosso do Sul, Mato Grosso, Goiás, Distrito Federal, Amazonas, Acre e Espírito Santo. Para outras
informações, ver: www.toquenoaltarmusic.com.br.
123
soteropolitano. Aliás, em todas as programações musicais que acompanhei naquela
cidade, os grandes sucessos do Toque no Altar foram executados.
Pode-se também medir o sucesso do grupo pela vendagem de seus álbuns
musicais. Segundo o site do Ministério Apascentar, em poucos anos de existência, o
grupo teria vendido mais de 2 milhões de cópias de CDs e DVDs, sendo que
somente o álbum Deus de Promessa vendeu mais de 700 mil cópias. Esse sucesso
se repete, de forma mais discreta, na vendagem de dois outros álbuns, Restitui e
Toque no Altar, cujo número de cópias comercializadas ultrapassou 500 mil, cada
álbum.
Além disso, um outro dado que indica uma boa recepção do Toque no Altar,
pelos os evangélicos, é o número expressivo de s que criam e integram
comunidades do orkut sobre o grupo. As mais lotadas o: Toque no Altar Trazendo
a Arca (76.951 membros), Toque no Altar (36.878 membros), Toque no Altar e M
Apascentar (29.782 membros), Olha pra mim - Toque no Altar (25.060 membros) e
Eu amo os louvores do Toque no Altar (6.138 membros)
113
.
Como resultado, o ministério de louvor Toque no Altar é um dos grupos
brasileiros mais premiados pelo Troféu Talento
114
, uma espécie de Oscar
evangélico.
Em meados de 2006, visando ampliar ainda mais a projeção do Toque no
Altar, a liderança da Apascentar promoveu uma rie de mudanças na gestão da
gravadora da igreja. Foi contratado Maurício Soares, ex-diretor comercial da Line
Records. Esse profissional passou a ser o diretor executivo da Toque no Altar Music.
Ao assumir a nova função, Soares não só contratou outros funcionários, mas
tamm imprimiu uma perspectiva mais “profissional na gestão da empresa
fonográfica. Em uma entrevista concedida por ele a um site, relata algumas dessas
mudanças.
113
Consulta feita no dia 03/10/2007, às 15:00 horas.
114
Na edição 2005 do Troféu Talento, o Toque no Altar concorreu nas categorias: 1) Melhor Versão: “Faz
Chover” (CD Toque no Altar); 2) Melhor CD Independente: "Toque no Altar" e 3) Música do Ano: “Restitui(CD
Restituição).
Na edição 2006 do Troféu Talento, o Toque no Altar conquistou as seguintes premiações: 1) Álbum
Independente: com o CD Deus de Promessas; 2) Álbum de Adoração e Louvor; 3) Álbum do ano; 4) Música do
Ano (Deus de Promessas); 5) Compositor: Ronald Fonseca e Davi Sacer e 6) Destaque: Ministério Toque no
Altar.
Além dessas premiações, os CDs Toque no Altar, Restituição e Deus de Promessas, foram premiados com o
Disco de Diamante. O que significa que o referido grupo vendeu mais de meio milhão de cópias vendidas.
Em 2007, pelo terceiro ano consecutivo, o Ministério Toque no Altar conquistou a categoria Música do ano (Olha
Pra Mim), além das categorias Grupo de Adoração, Álbum do ano e Álbum de adoração.
124
Deixamos de ser uma empresa com visão amadora para buscarmos a excelência de nossas
atividades através da profissionalização. A equipe de funcionários entendeu esta mudança e
agora está 100% empenhada em resultados. Estamos finalizando o processo de informatização
da empresa e já em fevereiro estaremos completamente integrados em todos os
departamentos. Com o novo sistema operacional teremos acesso on line a todos os relatórios
da empresa e assim poderemos ter uma visão mais apurada das diferentes atividades.
Conseguimos regularizar o nosso estoque que era um problema crítico do passado. Também
estamos estreitando ainda mais o relacionamento da empresa junto ao mercado. No fim do ano
lançamos uma campanha de incentivo às vendas que foi um verdadeiro sucesso. Estamos
investindo em mídia através de programas de TV e rádio o que tem surtido grande efeito para
nosso trabalho. Também investimos bastante na internet. Em poucas semanas reformulamos
nosso site e implantamos a Rádio On Line que está surpreendendo a todos nós. Na verdade, o
meu desafio é trazer uma visão profissional para a empresa sem perder a sensibilidade
espiritual do ministério de louvor e do trabalho realizado pelo Pr. Marcus Gregório. (Maurício
Soares, site-www.toquenoaltar.com.br 30/01/2007)
Contudo, essa nova gestão da Toque no Altar Music não foi aceita por todos
os músicos do grupo. Instaurou-se uma divergência quanto aos rumos que a
empresa estava tomando. No conflito de opiniões, quatro componentes saíram do
grupo.
Esse caso, que a princípio era uma desavença entre a liderança da igreja
Apascentar e os músicos do grupo, acabou envolvendo outros atores e instituições
sociais; e, ao ser divulgado irrestritamente por diferentes meios de comunicação
evangélicos, produziu um questionamento mais amplo sobre os limites da atuação
das igrejas, das empresas fonográficas e dos músicos evangélicos. Neste sentido, a
divisão no Toque no Altar nos mostra que a íntima vinculação entre igreja e
gravadoras - um dado que singulariza o mercado fonográfico evangélico dos demais
- tem provocado uma série de conflitos e divergências entre os crentes.
A seguir, apresento os posicionamentos dos atores que se envolveram
diretamente no caso, bem como as concepções formuladas por eles nos meios de
comunicação.
3.8 “Nós não somos uma gravadora”: a divisão no Toque no Altar
No dia 1° de fevereiro de 2007, o pastor Marcos Gregório, der de a Igreja
Ministério Apascentar de Nova Iguaçu, emitiu um comunicado sobre a saída de
alguns membros do Toque no Altar. Sabemos que por motivos variados os músicos
entram e saem das bandas das igrejas. Porém, o que singulariza esse rompimento
dos demais foi a maneira como se deu a saída dos integrantes, a incorporação de
outros atores sociais não-evangélicos na resolução do episódio, bem como a sua
125
ampla divulgação nas diferentes mídias evangélicas. Reproduzo abaixo trechos do
comunicado que, na ocasião, foi recorrentemente divulgado nos maiores sites
evangélicos:
Ministério de Louvor Toque no Altar
Comunicado Oficial
Rio de Janeiro, 01 de fevereiro de 2007.
Nas últimas semanas temos convivido com inúmeras informações, notícias e boatos
quanto à existência de prováveis desentendimentos havidos entre os membros do Ministério
Toque no Altar.
A fim de dirimirmos quaisquer dúvidas e no intuito maior de restabelecermos a VERDADE,
vimos a público esclarecer que:
1) Sob a direção do Pr. Marcus Gregório (idealizador e fundador do projeto), o Toque
no Altar é parte integrante (proveniente/fruto) da Comunidade Evangélica Ministério
Apascentar de Nova Iguaçu, sendo formado por músicos (em tempo integral) da referida
igreja;
(...)
4) Além do nculo empregatício com o Ministério Apascentar de Nova Iguaçu, os
músicos possuem contrato artístico em vigor e válido até abril de 2011 com a gravadora
Toque no Altar Music;
5) Ocorre que, desde o mês de novembro de 2006, os integrantes Luis Arcanjo, André
Rodrigues e André Matos, começaram a demonstrar, mal veladamente (com suas ações e
omissões) interesse em desligarem-se do Ministério;
6) Infelizmente, ao invés de expressarem clara e objetivamente suas intenções
diretamente ao Pr. Marcus Gregório optaram pela pura e simples ruptura, decidindo
unilateralmente passar a não mais cumprirem com suas obrigações contratuais, e o que é
mais lamentável, rompendo com os laços fraternais e os vínculos de submissão espiritual
que deviam ao Ministério Apascentar de Nova Iguaçu, conseqüentemente, ao próprio Pr.
Marcus Gregório;
7) Após algumas frustradas tentativas de reaproximação por parte do Pr. Marcus
Gregório, restou claro que a decisão dos referidos integrantes foi mesmo a de rompimento
sumário;
8) Sem que houvesse em nenhum momento a rescisão do contrato artístico em vigor,
mesmo ainda sem oficialmente (juridicamente) estarem desligados (desobrigados) dos
vínculos trabalhistas e/ou artísticos que ainda têm com o Ministério Apascentar de Nova
Iguaçu, bem como com a Gravadora Toque no Altar, estas pessoas começaram a divulgar a
criação de um novo "ministério", denominado Trazendo a Arca, praticando assim, grave
infração contratual;
9) Numa demonstração de absoluta má fé, estas mesmas pessoas, utilizando-se
indevidamente do nome, do respeito e da credibilidade amealhada durante anos de trabalho
sério do Toque no Altar, estão ilicitamente agendando eventos pelo país, ludibriando não
os contratantes como o blico presente a estes eventos que são, portanto, viciados de
ILEGALIDADE;
(...)
11) Para esclarecimento de todos os interessados, e mesmo para resguardar direitos e
prevenir responsabilidades, cumpre-nos informar que estas pessoas, de acordo com contrato
juridicamente firmado com o Toque no Altar Music, estão legalmente impedidas de:
A - participarem de eventos, mesmo que sob outro nome artístico diferente de Toque no
Altar;
B - interpretarem as canções do Toque no Altar;
C - participarem de programas de Rádio, TV ou outros órgãos da imprensa e,
D - utilizarem o nome e/ou a marca “Toque no Altar” para quaisquer fins, mesmo que para a
mais singela referência;
126
(...)
Enquanto isso, o Toque no Altar segue com suas participações em eventos pelo país e
no exterior, sendo abençoado e abençoando a todos aqueles que crêem que “o que segue a
justiça e a bondade, achará a vida, a justiça e a honra”.
(Provérbios 21.21).
Contamos com a compreensão e, principalmente, as orações de todos.
Atenciosamente,
Mauricio Soares
Diretor Executivo
Toque no Altar Music
Esse comunicado foi publicado em vários sites evangélicos
115
e em algumas
comunidades do orkut
116
. Nas semanas subseqüentes à sua divulgação, ocorreu
uma verdadeira enxurrada de mensagens do público evangélico nos mesmos
veículos de comunicação. As opiniões foram conflitantes: ora favoráveis ao
posicionamento adotado pelo pastor Marcus Gregório - e, conseqüentemente do
Ministério Apascentar -, ora sensíveis à posição tomada pelos integrantes que se
desligaram do Toque no Altar.
Contudo, a polêmica foi potencializada com a publicação da carta aberta
117
,
divulgada pela advogada dos ex-integrantes do grupo no dia 10 de maio de 2007.
Seguem alguns trechos do documento:
AVISO ÀS RÁDIOS, CONTRATANTES, GRAVADORAS E TODOS AQUELES
QUE CONOSCO MANTÊM LAÇOS DE AMIZADE E APREÇO.
Sirvo-me do presente, para na qualidade de advogada do grupo Gospel Musical,
denominado Trazendo a Arca, prestar a bem da verdade os seguintes
esclarecimentos:
(...)
115
Para ilustrar, abaixo segue uma pequena lista de sites onde o comunicado foi divulgado:
www.overbo.com.br (02/02/07);
www.eventogospel.com.br (02/02/07);
www.supergospel.com.br (02/02/07);
www.toquennoaltar.com.br (05/02/07).
116
1) Na comunidade Oficial do Toque no Altar (25 132 membros - consulta feita em 31 de julho de 2007), ver
os tópicos:
Comunicado Oficial (04/02/07);
Declaração de Davi em um evento em Fortaleza (14/02/07);
Por que os integrantes do Toque no Altar saíram (06/06/07);
2) Na comunidade Ministério Apascentar (2 217 membros - consulta feita em 31 de julho de 2007), ver os
tópicos:
Ki triste (05/02/07);
Até que em fim uma luz no fim do túnel (21/02/07);
Tire as suas conclusões (27/02/07);
Nova oficial Trazendo a Arca (17/05/07).
117
Endereço: www.gospelmais.com.br
127
2) O Grupo Toque no Altar não possui nenhuma espécie de ligação com o
Grupo Trazendo a Arca, a despeito de ser de conhecimento público que os
integrantes do Trazendo a Arca, fizeram parte do Toque no Altar, que conta com
um número imenso de integrantes.
3) Não existe no ordenamento jurídico pátrio a possibilidade de um músico ser
compelido a permanecer em grupo musical. Assim como Ivete Sangalo deixou a
Banda Eva, Cazuza deixou o Barão Vermelho, Rita Lee os Mutantes, Ney
Matogrosso os Secos e Malhados, os integrantes do “Trazendo a Arca”, deixaram o
“Toque no Altar” e formaram novo Grupo Musical’
(...)
6) A medida liminar que vedava os integrantes do Trazendo a Arca de
exercerem seu ofício, foi revogada pela Sétima Câmara vel do Tribunal de
Justiça do Estado do Rio de Janeiro, pelo Desembargador Relator André Andrade,
como comprova a cópia em anexo;
7) O Trazendo a Arca pode fazer shows, eventos, gravações, apresentações
de qualquer natureza, sendo levianas as afirmações em contrário.
(...)
9) Por fim o Trazendo a Arca espera contar com o apoio e a credibilidade de
seus parceiros comerciais, na firme crença de que a verdade já desvendada, como
comprova a decisão judicial de Segundo Grau de Jurisdição, em breve estará
descoberta e a tona, mas desde já, penitenciamo-nos por eventuais transtornos
trazidos pela indevida utilização da medida judicial de Primeiro Grau revogada, e
que em momento algum chegou a atingir as rádios que tocam nossas músicas e
divulgam nossos eventos e as pessoas que contrataram nossos shows e divulgam
os nossos trabalhos, pessoas com as quais sempre procuramos manter laços
profissionais, lastreados na boa-fé, seriedade, cumprimento do pactuado, o que se
de um lado é exigido de todos, por outro, é mais reforçado por aqueles que seguem
a Fé Cristã.
Rio de Janeiro, Flavia Marques Farias OAB/RJ 120.149
Observando o comunicado oficial da igreja e os trechos da carta aberta da
advogada dos ex-músicos do Toque no Altar, percebemos que estamos diante de
um caso que indica:
1) Mudança na relação entre lideranças evangélicas e ministérios de
louvor.
Mesmo sendo produzido a partir de laços de afetividade e de
comprometimento com a manutenção das atividades da igreja, a relação
entre pastores e músicos pode ser tamm contratual. Por abarcar essa
dimensão trabalhista, possíveis disputas poderão envolver outras instituições,
como os poderes judiciais. Observando os comunicados oficiais tanto da
igreja como da advogada dos cantores dissidentes, vemos que a divisão do
128
grupo incorporou o poder judiciário em sua resolução. Sintomaticamente,
ambas as parte passaram também a utilizar os jargões e categorias
comumente usadas por esse poder instituído no debate midiático. Mesmo se
dirigindo exclusivamente ao público evangélico, os referidos posicionamentos
oficiais não produziram justificativas religiosas” para explicar suas versões. A
liderança da igreja priorizou o aspecto da quebra contratual, indicando a
necessidade de punir, nos ternos da lei, os cantores afastados, enquanto a
advogada do grupo procurou reafirmar a “legalidade” da saída dos referidos
cantores, usando, inclusive, exemplos de outros artistas seculares que
romperam com suas antigas bandas e constituíram carreiras solo. Neste
sentido, para ela não haveria nenhuma diferença entre os grupos evangélicos
e os não-evangélicos.
Porém, a repercussão do caso nos meios de comunicação que compõem
esse nicho do mercado não se restringiu a esse aspecto mais jurídico. No dia
4 de maio de 2007 foi publicada
118
uma entrevista coletiva com os ex-músicos do
Toque o Altar. No final da tarde do dia 03 de março, antes de fazerem uma
apresentação em uma igreja, eles expuseram, ao público, suas motivações para
o afastamento do grupo e da igreja. A cantora do grupo declarou.
A partir do momento em que o pastor Marcus começou a tratar as coisas de
maneira que não é a essência, o queríamos continuar nisso. Nosso grupo foi
conversar com ele. Não nhamos intenção de montar banda nenhuma, mas
percebemos que nós éramos os únicos que realmente acreditavam naquela visão
inicial. As coisas foram saindo do controle (Verônica Sader, 04/03/07) [grifos meus].
Nesse trecho, podemos observar que a cantora se opõe à profissionalização
da gravadora. Em sua visão, ao imprimir uma gestão mais empresarial e mercantil à
Toque no Altar Music, o pastor Marcus Gregório estaria fugindo da proposta inicial
da gravadora, que era produzir e distribuir as músicas do ministério de louvor da
igreja que, por sua vez, teria sido fundando com objetivo de ser um grupo
“apartado” e “consagrado” à Divindade. Neste sentido, ao adotar certos
procedimentos semelhantes às empresas não-evangélicas na promoção do Toque
no Altar, a igreja estaria perdendo o controle e deixando a visão inicial - a essência-
de lado. Portanto, a fala da cantora sinaliza uma tensão entre o papel tradicional
118
Ver: www.vivafm.com.br (04/03/07)
129
dos ministérios de louvor e adoção de estratégias mais mercadológicas na
massificação e distribuição da música evangélica.
No mesmo dia, um outro ex-integrante, Davi Sacer, disse uma frase que
explicita claramente a tensão indicada por Verônica Sader. Segundo ele: “Deus não
chamou o Toque no Altar para ser gravadora. Ele chamou para ser um ministério”.
(04/03/07). Em outros termos, para o artista, a profissionalização da gravadora
desviou o grupo de sua “verdadeira” missão: ser um ministério que, na visão dele, é
incompatível com a adoção de estratégias mais mercadológicas na produção da
música evangélica. Neste sentido, além de indicar uma transformação na relação
entre pastores e músicos da igreja, o caso tamm aponta:
2) Uma redefinição da concepção do papel dos ministérios de louvor:
Como afirmou Cunha (2004), os ministérios de louvor promoveram
grandes transformações no campo da música, especialmente a partir dos
anos de 1990. Oriundos dos antigos conjuntos de jovens e tendo como
principais expoentes cantores reconhecidos no meio evangélico -
Adhemar de Campos, Asaph Borba e Ronaldo Bezerra -, os ministérios de
louvor foram os principais propagadores da concepção de que os
cantores evangélicos são ministradores” (Idem). Dito de outro modo,
estes grupos, que são vinculados diretamente às igrejas, afirmam que a
função dos cantores é criar condições para que o sagrado se manifeste,
através da execução das músicas de adoração e louvor”. Fundamentam
tal concepção fazendo referências aos sacerdotes levitas do povo Hebreu,
os quais eram responsáveis pela manutenção das atividades do
santuário, sendo, inclusive, os únicos “preparados” para carregarem a
“Arca da Aliança” - objeto que representava a “presença de Deus” entre
eles. De todos, eram os destinados a estarem mais próximos do sagrado
e, conseqüentemente, também responsáveis por sua permanência entre
os seres humanos.
Tendo como referência essas concepções cunhadas sobre o papel do
cantor e da música entre os antigos Hebreus, algumas denominações
evangélicas, sobretudo neopentecostais (Comunidades Evangélicas,
130
Igreja da Lagoinha, Comunidade da Graça, Igreja Renascer em Cristo
etc.) formaram os ministérios de louvor. Nestes tempos de valorização da
música tanto na liturgia dos cultos como nos eventos realizados em locais
públicos, os “adoradores”, uma outra forma de denominarem os cantores,
teriam a função de criar condições para a vinda do sagrado. Cantam e
tocam, basicamente, baladas românticas com letras que abordam ora os
atributos da divindade, ora a submissão e “entrega” do fiel a Deus, ou a
relação íntima entre seres humanos e Jesus, na qual o crente, através
dos sentidos, perceberia a presença do sagrado
119
. Por conseguinte, a
reprodução ampliada dos álbuns dos ministérios de louvor é legitimada,
quase sempre, a partir da idéia do resgate” das almas, ponto que foi
discutido. O raciocínio é claro e límpido: ao reproduzir amplamente a
música, esta poderá alcançar multidões, e, decorrentemente, ser um
veículo no “resgate”.
Porém, em alguns casos, esse projeto que associa a concepção do
cantor-sacerdote à reprodução musical, via indústria fonográfica, pode
trazer certos conflitos e divergências de opiniões. Com relação ao Toque
no Altar, vimos que a maior profissionalização da gravadora trouxe um
debate sobre o “verdadeiro” papel dos ministros de louvor. Se para a
liderança da igreja a profissionalização da gravadora representou uma
possibilidade para expansão da audiência do Toque no Altar e,
conseqüentemente, um cumprimento da “missão” dele uma visão de
“chamado ministerial” que se aproxima a da defendida por Rose
Nascimento-, para os dissidentes indicou um desvio da proposta inicial,
uma vulgarização da função dos ministros de louvor. Neste sentido, para
eles existe uma tensão entre “adoradores” e mercado.
Para concluir o capítulo, devo ressaltar que, após a saída dos músicos, a
Toque no Altar Music contratou outros artistas para recomporem o grupo. Além
disso, em junho de 2007, a gravadora da Apascentar de Nova Iguaçu passou a
produzir e distribuir os produtos do Ministério Assembia de Deus dos Últimos Dias,
119
Ao abordar no próximo capítulo os “estilo de adoração e louvor”, desenvolverei este ponto no próximo
capítulo.
131
e os álbuns musicais de Jefter Figueiredo, Danielle Moura e Maurício Paes. Dessa
maneira, o cast dessa empresa fonográfica foi ampliado.
Os dissidentes do Toque no Altar, por sua vez, formaram um outro grupo,
Trazendo a Arca, e gravaram um CD. Produzido sem a colaboração direta das
grandes gravadora, o álbum Marca da Promessa, em poucos meses, ultrapassou a
marca de 150 mil cópias vendidas. Esse sucesso redeu um disco de platina, que foi
entregue aos membros do grupo no Programa Raul Gil, na Emissora Bandeirante.
132
4 AS SONORIDADES DO GOSPEL TUPINIQUIM”: OS ESTILOS MUSICAIS
EVANGÉLICOS
Em abril de 2001, a Revista Veja publicou uma extensa e reveladora matéria
sobre a cena musical evangélica contemporânea. Sob o título jocoso Deus é do
babado: evangélicos agora utilizam o tecno e o rap para conquistar adeptos entre
jovens”, a reportagem abordou a aceitação de novos ritmos e gêneros musicais
pelos evangélicos brasileiros. De acordo com o jornalista Sérgio Martins, com o
objetivo de “capturar” novas vidas, os evangélicos estariam promovendo uma
verdadeira transformação em suas musicalidades. Mesmo tendendo a uma
abordagem que, implicitamente, tenta levar o leitor a perceber tais mudanças como
uma mera estratégia mercadológica de segmentação de mercado, a reportagem
acerta ao abordar as transformações musicais observadas nas últimas décadas no
interior deste segmento religioso.
De fato, nos últimos anos, ocorreram grandes mudanças na produção musical
evangélica que afetaram não a própria configuração social deste segmento
religioso, mas tamm o mercado fonográfico como um todo. Dentre elas, a mais
significativa foi o surgimento do termo gospel como mais um “gênero musical”,
amplamente utilizado pela indústria fonográfica brasileira. Se em sua origem nos
Estados Unidos o termo gospel estava relacionado a uma determinada estética
musical criada principalmente por negros protestantes, no Brasil, a partir dos anos
90, o gospel passou a designar toda musicalidade evangélica. Dessa forma,
diferentes de outros gêneros musicais que são definidos por suas particularidades
rítmicas, o gospel brasileiro refere-se ao conjunto de músicas produzidas pelo
segmento evangélico. Portanto, no Brasil, o gospel passou a ser uma etiqueta que
distingue a música evangélica das demais. Dessa maneira, em meio a uma
valorização crescente de musicalidades consideradas até pouco tempo como
profanas, vemos surgir na cena evangélica, por exemplo, o funk gospel, o forró
gospel, e o axé music gospel como “estilos” deste “gênero musical”. Contudo,
mesmo mantendo os ritmos que os caracterizam, esses novos estilos musicais
133
evangélicos” além de terem suas imagens dissociadas das danças consideradas
sensuais, tamm passaram a ter outras construções simbólicas.
Além dessas musicalidades que foram “resgatadas”, a indústria fonográfica
desse segmento religioso tem disponibilizado outros estilos musicais” que faziam
parte das musicalidades evangélicas antes da constituição deste nicho do mercado.
Tais “estilos musicais” são categorizados não apenas pelos ritmos que empregam,
mas tamm pela função que exercem nos rituais. Porém, mesmo após serem
disponibilizados para o consumo, não perderam a sua eficácia.
Neste capítulo, investigo as especificidades dos “estilos musicais” que
comem o gospel brasileiro, levando-se em conta a análise de três musicalidades
que estão se destacando. Refiro-me às “músicas pentecostais”, aos “hinos de
adoração e louvor” e às musicalidades resgatadas”
120
- como o funk gospel e o axé
music. Enquanto que os dois primeiros se constituíram em um movimento “de dentro
para fora”, ou seja, primeiramente, integraram a liturgia dos cultos em que
desempenhavam funções específicas - e somente depois foram apropriados pelas
gravadoras evangélicas, as “musicalidades resgatadas” estão fazendo uma trajetória
inversa. Em outros termos, faziam parte da cena secular e, agora, após terem
seus sentidos simbólicos redefinidos, também foram incorporadas no repertório
desse segmento religioso.
Observando os conteúdos e os temas abordados nesses “estilos musicais”,
procuro compreender as continuidades e descontinuidades que existem entre eles e
a hinódia oficial”
121
que foi instituída pelas primeiras igrejas evangélicas brasileiras
e, ao longo das décadas, tem sido considerada e reproduzida como a “autêntica”
música sacra evanlica.
Ao considerar também a relação que desenvolvem com a cosmologia
pentecostal
122
, veremos que, enquanto não existem discrepâncias marcantes entre
os hinos da Harpa Cristã e as músicas pentecostais” com relação aos conteúdos,
120
Enquanto os termos “músicas pentecostais” e “hinos de adoração e louvor” são categorias nativas,
“musicalidades resgatadas é uma categoria analítica, que foi pensada para designar os gêneros e ritmos
musicais que foram assimilados, nos últimos anos, pelos evangélicos, a partir do argumento de que todas as
expressões musicais pertencem a Deus.
121
Igualmente a Dolghie (2007), emprego a expressão hinódia oficial para fazer referência as músicas que
foram impressas em hinários oficiais das primeiras denominações evangélicas no Brasil.
122
No âmbito da antropologia e da etnomusicologia são vários os autores que procuram compreender a
formação de determinados gêneros músicas em diálogo com a cosmologia compartilhada pelo grupo estudado.
Seja entre os Suya (Seeger, 1987), seja entre os Wauja (Piedade, 2006), ou entre Guarani (Montardo,2006)
nexos entre musicalidades e cosmologias religiosas têm sido investigados.
134
uma diferença bem acentuada entre a hinódia oficial” e os “hinos de adoração e
louvor”, principalmente a respeito da forma como é pensada e experimentada a
relação dos seres humanos com Divindade. Por outro lado, mesmo sendo músicas
que m ritmos considerados profanos até pouco tempo, as “musicalidades
resgatadas” abordam temas que estão muito presentes nos hinos oficiais” e nas
“músicas pentecostais”, bem como procuram seguir a forma como retratam a relação
entre Deus e evangélicos - ainda que utilizem categorias muito empregadas no meio
secular.
Antes, porém, devo fazer algumas considerações sobre o desenvolvimento da
hinódia protestante no Brasil. Nesta prévia, não procuro fazer uma ampla e
minuciosa apresentação historiográfica de todas as nuanças e transformações
ocorridas no campo da música evangélica desde o século XIX - período em que, de
fato, o segmento protestante se inseriu no país. O meu objetivo semais modesto.
Procuro indicar como, a partir da idéia de missão para o Brasil – país não-evangélico
-, a produção musical das primeiras igrejas protestantes brasileiras procurou
repudiar as musicalidades nativas, principalmente as que estavam associadas às
religiosidades afro-brasileiras ou às danças sensuais. Contudo, nos dias atuais, essa
tendência de repúdio tem sido revista e sonoridades percussivas têm sido
incorporadas.
4.1 “Reproduzido para evangelizar”: a formação da “hinódia oficial”
A vinda da família real portuguesa para o Brasil, em 1808 repercutiu não
nos campos político e econômico, mas tamm na esfera religiosa. Em busca de
viabilizar a estada da corte no país e, estreitar as relações com Inglaterra, D. João VI
decretou várias medidas que possibilitaram a permanência e circulação de
estrangeiros, sobretudo ingleses, em terras brasileiras. No conjunto de tais medidas,
o monarca português concedeu permissão para a prática de cultos protestantes.
Contudo, com objetivo de não fomentar uma pomica com a Igreja Católica -
que à ocasião era a única religião oficialmente aceita -, o governo impôs algumas
restrições aos protestantes. Além de não poderem exercer qualquer tipo de atividade
proselitista, os adeptos desta religiosidade tinham que construir templos seguindo a
135
estética das casas. Foi sob essas restrições que, em 1824, imigrantes alemães
fundaram as primeiras comunidades religiosas protestantes no Brasil, mais
precisamente em Nova Friburgo (RJ) e em São Leopoldo (RS) (Mendonça, 1990;
Mafra, 2001). Por estar intimamente relacionada ao processo migratório de europeus
para o Brasil, a inserção destas primeiras igrejas é denominada por vários
pesquisadores como Protestantismo de Imigração.
Em um cenário social marcadamente influenciado pelo catolicismo, as
primeiras igrejas protestantes em solo brasileiro procuraram realizar seus rituais de
forma discreta e restrita, atendendo, preferencialmente, os imigrantes. Uma
evangelização mais sistemática e uma adesão maior de brasileiros à nova
religiosidade somente ocorrerão, tempos depois, em meados do século XIX, quando
missionários americanos vêm para o Brasil.
Com objetivo de expandir a protestante para outros contextos nacionais e
diante de uma maior liberdade religiosa concedida aos protestantes no Brasil, a
partir de 1850, missionários oriundos das igrejas Congregacional, Presbiteriana,
Metodista e Batista fundam aqui outras comunidades religiosas.
Salvaguardando as diferenças institucionais e organizacionais, quanto à
questão teológica, boa parte dessas igrejas seguia as indicações dos Movimentos
de Avivamento. Dentre outros postulados teológicos, compartilhavam a idéia de que
era fundamental realizar uma evangelização sistemática para conscientizarem os
não-protestantes da necessidade de serem salvos pela adesão à religiosidade
protestante (Mendonça, 1990; Dolghie, 2007). Mesmo assumindo entre nós um
sentido diferente do compartilhado pelos religiosos norte-americanos (Mafra, 2001),
pode-se afirmar que a lógica conversionista foi - e continua sendo - uma das
referências teológicas mais marcantes da grande maioria das igrejas evangélicas no
Brasil.
Este princípio teológico pode ser observado nos rituais desenvolvidos por
aquelas igrejas no final do século XIX. Segundo Dolghei (2007), o Protestantismo de
Missão
123
procurou seguir o mesmo formato litúrgico adotado pelas igrejas dos
EUA, simpáticas ao Movimento de Avivamento. Sendo assim, em contraste com a
festividade e com a informalidade presentes nas celebrações católicas, os cultos das
primeiras igrejas protestantes brasileiras apresentavam uma economia nos rituais e
123
A expressão Protestantismo de Missão é uma outra maneira de classificar e agrupar as denominações
evangélicas que fundaram congregações no Brasil meados do século XIX.
136
uma clara ênfase no discurso conversionista racional (idem). Ou seja, o objetivo
central dos cultos era a conversão por meio de pregações.
Neste modelo cúltico protestante que supervalorizava a “palavra”, as músicas
tinham um papel secundário. Quase um pano de fundo das celebrações religiosas,
elas “preparavam a audiência para o recebimento das mensagens de salvação. Por
terem tal função, suas letras abordavam, principalmente, a importância da confissão
dos pecados ou o sofrimento e ressurreição de Jesus Cristo.
Seria uma negligência de nossa parte se não indicássemos a grande
influência que os missionários Sarah e Robert Kalley exerceram na adoção deste
estilo litúrgico evangelístico pelas primeiras igrejas evangélicas brasileiras. Após
uma estada na Ilha Madeira, em 1855 o casal veio para o Brasil com o intuito de
propagar o protestantismo. Igualmente aos seus pares religiosos, acreditavam que
as “boas novas” deveriam ser anunciadas de forma direta e sem apelos emotivos.
Procurando, então, desenvolver novas estratégias de evangelização, o casal passou
a realizar cultos fora dos templos, em lares ou no campo. Nesses encontros, na
acolhida dos familiares ou no frescor das campinas, buscava-se convencer a
audiência de que somente a religiosidade evangélica era a que levava à salvação
eterna.
As contribuições dos Kalleys não se restringiram somente no
desenvolvimento de práticas proselitistas inusitadas e inovadoras. Eles tamm
atuaram expressivamente no campo da música, sendo inclusive os responsáveis
pela formação do primeiro hinário protestante brasileiro, editado em 1861.
Sem sombra de dúvidas, os Salmos e Hinos além de terem uma grande
relevância histórica e identitária para os evangélicos, que seus hinos foram
utilizados por diferentes denominações, tamm pode ser um importante
instrumento para se conhecer melhor os aspectos cosmogicos e ritualísticos
presentes, entre eles, naquele período.
Mendonça (1995) fez uma análise dos aspectos teológicos presentes nos
Salmos e Hinos. Em linhas gerais, constatou que as músicas abordavam os mesmo
temas priorizados nas pregações. Para se ter uma idéia, segundo a contabilidade do
autor, neste hinário:
137
Cerca de setenta cânticos se referem à penitência (confissão de pecados) e ao
convite ao pecador para a conversão. Mais de 130 referem-se ao sacrifício
expiatório na cruz (morte de Deus-Filho), acentuando o teor dramático da pregação
dos avivamentos e muito coloridos e adocicados pelo espírito pietista da
exacerbação do sofrimento físico e moral de Cristo, seus ferimentos, sangue e pelo
quase erotismo no tratamento de temas como amizade e amor íntimos com Jesus
(amante, esposo, gozo, etc.). Os temas de vida futura (céu, vida no além, negação
do mundo) são enfatizados em cerca de cem cânticos. Outra coisa que surpreende é
que o tema crucial do cristianismo que é a ressurreição, ainda mais em se tratando
de uma religiosidade essencialmente cristológica, ocupa um espaço relativamente
pequeno: cerca de dez cânticos. Nota-se, por fim, um extremo individualismo; a
maioria absoluta dos cânticos é disposta na primeira pessoa do singular. Não se
sente o coletivo, o sentido de povo predominante. (Mendonça, 1995, p. 223).
Portanto, no conjunto dos temas presentes nos Salmos e Hinos, destacam-se
o sofrimento de Jesus Cristo na cruz e a necessidade da conversão para a garantia
da vida eterna. Para ilustrar, a seguir apresento uma música deste hinário que até os
dias atuais, é muito executada pelos evangélicos congregacionais. Trata-se do hino
294, Plena Salvação, cuja letra é de Robert Kalley :
Plena Salvação
No Calvário levantado, (v 1)
Salvação Jesus comprou;
Por Seu sangue derramado
Pecadores resgatou.
Vida eterna (v 5)
Para nós Jesus ganhou.
Com amor, Jesus promete
Ter perdão quem nEle crer.
Tal promessa, que repete,
Nossa fé merece ter. (v 10)
Vinde todos!
Ele quer-vos receber.
Aceitai, pois, sem demora,
Tão graciosa salvação.
Recebendo-O, mesmo agora (v 15)
Em Jesus tereis perdão.
No Seu sangue
Há perpétua redenção.
Quantos, nEle perdoados,
Ao Senhor se vêm chegar, (v 20)
Para sempre, renovados,
O Seu nome irão louvar.
Vinde todos!
Salvação Jesus quer dar.
138
Portanto, como bem colocaram Mendonça (1995), Dolghei (2007) e Frederico
(2007), nexos entre os princípios teológicos adotados por boa parte das igrejas
evangélicas fundadas pelos missionários e os temas das músicas que compõem os
Salmos e Hinos. Ou melhor, pode-se afirmar que através das músicas, os princípios
avivalistas, fortemente valorizado por eles, eram difundidos tanto na argumentação
gica e racional, quanto no louvor.
Até aqui, procurei indicar os temas e conteúdos presentes no primeiro hinário
protestante brasileiro, relacionando-os ao modelo de culto instituído pelos
missionários o qual, por sua vez, era fortemente influenciado pelo movimento
avivalista norte-americano. Porém, como relação às melodias, quais os estilos
musicais adotados nas composições?
Ainda segundo Mendonça (idem) e Dolghei (idem), as letras, cuidadosamente
criadas por Sara e Robert Kalley, eram “encaixadas” em melodias européias e
norte-americanas existentes. Criavam poemas escritos em português para
melodias oriundas do repertório de “hinos folclóricos” americanos, ou seja,
adequavam as letras às músicas que, além de não fazerem parte dos hinários
oficiais das igrejas norte-americanas, tinham uma forte influência das canções
românticas e de outros gêneros populares presentes naquele país.
Curiosamente, mesmo sendo fruto de uma mistura de sonoridades populares
norte-americanas, as músicas dos Salmos e Hinos - e as produzidas por outras
denominações a partir dele - são vistas como “verdadeira e genuína músicas sacras
protestantes” (Dolghei, 2006, p.102). Enquanto o lundu, o maxixe e os batuques -
estilos musicais grandemente influenciados pelos negros – e as modinhas – de
origem portuguesa - dominavam a cena musical brasileira no século XIX (Moura,
1995; Tinhorão, 1998), a hinódia protestante se constitui tendo como base gêneros
musicais norte-americanos. Neste sentido, pode-se afirmar que, na ocasião, não
houve um interesse das primeiras igrejas evangélicas brasileiras em incorporar em
seus repertórios os ritmos da música popular que estavam relacionados,
principalmente, às danças sensuais e às religiosidades dos negros.
O estabelecimento de igrejas pentecostais no país no início do século XX não
imprimiu significativas mudanças nessa tendência de afastamento das
musicalidades afro-brasileiras. Por exemplo, a Assembléia de Deus, fundada em
1911 no Pará, produziu uma hidia que também não acolheu os gêneros musicais
139
que estavam na moda naquele período histórico no Brasil. Pelo contrário, de início,
ainda tentando constituir o seu perfil institucional e litúrgico, a Assembléia de Deus
utilizou os Salmos e Hinos em seus cultos. Somente em 1921, com o objetivo de
reafirmar suas próprias doutrinas pentecostais, os assembleianos decidiram produzir
um hirio próprio, a atual Harpa Cristã.
Segundo algumas matérias jornalísticas e sites evangélicos
124
, em 1922 o
Cantor Pentecostal - a primeira versão da Harpa Cristã -, foi distribuído entre os fiéis.
Com somente 54 músicas, o hinário assembleiano teve, em sua primeira tiragem
feita pela tipografia Guanabara, mais de mil cópias. Os anos subseqüentes foram
marcados por uma grande efervescência musical assembleiana. Em 1932, dez anos
após a sua primeira edição, a Harpa Cristã contava com 400 hinos. Ao longo do
século XX, foram feitas várias revisões, adaptações e incorporações de músicas a
este hinário. Como resultado, atualmente o hinário oficial das Assembléias de Deus
conta com 640 músicas.
Na produção da Harpa Cristã destacaram-se, pelo menos, duas grandes
personalidades assembleianas: Frida Vingren e o pastor Paulo Leivas Macalão.
Igualmente a Sara Kalley, Frida Vingren, esposa de Gunnar Vingren, um dos
fundadores da Assembléia de Deus no Brasil, se dedicou à música, especialmente à
tradução e à adaptação de hinos para o português. Das 20 músicas traduzidas para
o nosso idioma, encontram-se os hinos Deixa entrar o espírito de Deus (85) e Se
Cristo comigo vai
125
(515), ambos de grande expressividade entre os
assembleianos.
124
As informações sobre a Harpa Cristã foram retiradas dos seguintes sites, matérias jornalísticas e
comunidades do orkut:
1) Igreja agradece pela Harpa Cristã: AD em Caxias do Sul comemora 76 anos e homenageia líder João
Lundgren”. (Mensageiro da Paz, 12/07),
1) “Harpa Cristã: Hinário da AD brasileira continua sendo referência(Mensageiro da Paz, 03/08);
2) Curiosidades sobre a Harpa Cristã(site: http//br.geocities.com/gospelhomepage/harpcrist.htm, (consulta em
05/06/2008);
3) “A Harpa Cristã” (site: www.gotgospel.com/notícias_a-harpa-cristã_2648.html, (consulta feita em 07/05/2008);
4) http://www.assembleiadedeus100.org.br/htm/hc/harpa_crista.htm (consulta feita em 05/06/2008);
5) http://www.centenarioadbrasil.org.br/historia_conteudo.php?id=36 (consulta feita em 05/06/2008);
6) “Harpa Cristã - CPAD. Endereço eletrônico: http://www.orkut.com/Community.aspx?cmm=3727936. (Consulta
feita em 10/05/2008);
7) Comunidade do Orkut “Hinos da Harpa Cristã”. Endereço eletrônico:
http://www.orkut.com/Community.aspx?cmm=5132850. (Consulta em 10/05/2008);
8) Comunidade do Orkut “Amo os hinos da Harpa Cristã”. Endereço eletrônico:
http://www.orkut.com/Community.aspx?cmm=10447860.(Consulta em 10/05/08).
125
Segue a letra:
140
O fundador da Assembléia de Deus em Madureira, Paulo Leivas Macalão
126
,
além de sua grande importância no processo de institucionalização das conversões
e denominações assembleianas, contribuiu, de forma relevante, na produção
musical desta igreja. Pastor Macalão, como eram chamado por seus pares
religiosos, foi responsável pela tradução, adaptação e criação de várias músicas.
Dentre elas, podemos citar: Deus Tomará Conta de Ti (61), Vem, o Pródigo (71),
“Guarda o contato” (77) e uma música que foi inspirada no Hino Nacional do Reino
Unido (God Save the Queen), Invocação e Louvor.
Semelhantemente aos Salmos e Hinos, a Harpa Cristã traz músicas que
abordam passagens bíblicas, o sofrimento de Cristo no calvário, a necessidade da
conversão à religiosidade evangélica para obtenção da salvação e a esperança dos
salvos de viverem eternamente ao lado da divindade. Contudo, no hinário oficial da
Se, pelos vales, eu peregrino vou andar (v1)
Ou na luz gloriosa de Cristo habitar,
Irei com meu Senhor pra onde Ele for.
Confiando na graça de meu Salvador.
Coro
Se Cristo comigo vai, eu irei (v5)
E não temerei, com gozo irei; comigo vai;
E grato servir a Jesus, levar a cruz;
Se Cristo comigo vai, eu irei.
Se lá para o deserto Jesus me quer mandar;
Levando boas novas de salvação sem par; (v10)
Eu lidarei, então, com paz no coração.
A Cristo seguindo, sem mais dilação.
Sea minha sorte a dura cruz levar,
Sua graça e Seu poder, quero sempre aqui contar.
Contente com Jesus, levando a minha cruz. (v15)
Eu falo de Cristo que é minha luz.
Ao Salvador Jesus eu desejo obedecer,
Pois na Sua Palavra encontro o meu saber;
Fiel a Deus serei, o mundo vencerei,
Jesus vai comigo, não mais temerei. (v20)
Segundo a reportagem Harpa Cristã: Hinário da AD brasileira continua sendo referência”, publicada no
Mensageiro da Paz, um dos jornais da AD, este hino tem um valor histórico extremamente importante no
processo de expansão da igreja Assembléia de Deus no Brasil. Segue um trecho:
“O hino Se Cristo comigo vai (515) foi traduzido pela missionária Frida Vingren como resposta à oração do
missionário Gunnar Vingren ao receber uma carta, do então jovem, Paulo Leivas Macalão, que havia se
transferido do Norte do Brasil para o Rio de Janeiro. Na carta, Macalão solicitava aos missionários em Belém do
Pará o envio de um obreiro para iniciar a obra pentecostal no Rio. Isso ocorreu em 1923, quando Gunnar colocou
o assunto diante de Deus. O espírito Santo falou ao seu coração dizendo que ele era o obreiro indicado.
Analisando todas as dificuldades, ouviu sua esposa cantar o hino que havia acabado de traduzir e que era a
resposta para sua oração: Se Cristo comigo vai, eu irei. E não temerei... ’ Em 1924, o casal desembarcou no Rio
para fundar a AD fluminense” (Mensageiros da Paz, 03/2008).
126
Para um maior esclarecimento sobre a importância que este líder evangélico teve na consolidação da
Assembléia de Deus no Brasil, ver: Mafra (2008).
141
Assembléia de Deus estão presentes músicas que indicam alguns aspectos da
cosmologia pentecostal, como por exemplo, a necessidade do “revestimento de
Deus”. Para ilustrar, a seguir apresento a letra do hino Teu Espírito vem derramar
(290):
Teu Espírito Vem Derramar
Ó Senhor, nós esperamos (v1)
Que escutes a oração;
Nós, Teus servos, clamamos,
Com humilde coração.
Coro
Teu Espírito, vem, derrama, (v5)
Sobre cada coração!
E no crente, que a Ti clama,
Vem, confirma a petição.
2
Deixa o fogo do Espírito,
Sim, nos corações arder, (v10)
P’ra que tudo que é finito,
Jamais possa se reter.
3
Ó Senhor, me purifica,
Tira o mal que está em mim,
A minh’alma santifica, (v15)
E me guarda até o fim.
4
Dá-nos mais da Tua graça,
E enche-nos do Teu poder,
Do Teu templo, ó Deus, se faça
A Tua voz se perceber. (v 20)
5
Dá-nos dons do Teu Espírito;
Faz milagres, ó Senhor,
Pra que tudo, que tens dito,
Cumpra-se, meu Redentor.
Coro Final
Dou-te graças, Rei da glória, (v25)
Pois ouviste a petição;
Belos hinos de vitória,
Mais Tu deste ao coração.
Os versos indicam um clamor da congregação que se dirige à Divindade.
Suplicam para que o espírito de Deus venha, entre eles, e preencha-os com o seu
poder. Nota-se que a letra expressa a idéia de que o espírito de Deus se relaciona
diretamente com os seres humanos; denota a necessidade dos crentes de estarem
142
“revestidos” internamente do poder de Deus contra o mal; e indica a possibilidade da
manifestação do sagrado também através de milagres. Todas essas concepções
estão presentes na cosmologia pentecostal e orientam as práticas e os rituais desse
segmento religioso. Além disso, da mesma forma que em outros hinos do início do
século XX, neste verifica-se uma característica que contrasta com muitas músicas
da atualidade: refiro-me a um tratamento cerimonioso e “respeitoso” com a
Divindade. Versos como “Nós, Teus servos, chamamos, como humilde coração”
ilustram essa afirmação.
Como foi pontuado, grande parte dos hinos da Harpa Cristã foi tamm
musicado com melodias norte-americanas e européias existentes. Preferiam não
incorporar os “gêneros musicais brasileiros”, que priorizavam mais os instrumentos
percussivos, como atabaques e agogôs. Porém, isso não foi uma regra. O bumbo e
o chocalho, por exemplo, sempre foram usados pelos assembleianos em seus cultos
evangelísticos promovidos em espaços abertos, os famosos “ar livre”, e nas
celebrações realizadas dentro do templo.
Procurando seguir a organização instrumental de bandas militares, as
Assembléias de Deus utilizam bumbos, caixas e surdos, além, é claro, de outros
instrumentos de sopro, como trompete, trombone e saxofone. Em certa medida,
pode-se dizer que a trajetória do pastor Macalão, fortemente influenciada pelo ethos
militar, contribuiu para a adesão a este estilo. Sendo filho de um general das Forças
Armadas, o líder forte das Assembléias de Deus dirigiu o seu ministério com uma
rígida disciplina até o seu falecimento em 1982 (Freston, 1996) e também se
inspirou no formato de execução musical militar ao ajudar a constituir a hinódia
assembleiana. Além disso, tamm não podemos deixar de ressaltar que,
reafirmando uma tendência presente no período imperial, as bandas militares
continuaram tendo grande prestígio e popularidade entre o público dos dois maiores
centros urbanos brasileiros - Rio de Janeiro e São Paulo – nas primeiras décadas do
século XX (Tinhorão, 1998). Naquela época, as apresentações das bandas ligadas
às instituições militares representavam uma boa possibilidade de entretenimento
(idem). Neste sentido, não seria equivocado de nossa parte se afirmássemos que a
utilização de grupos musicais nos moldes de uma banda militar pode ser
considerada com um ato de aceitação, por essa denominação evangélica, de uma
forma de fazer música que estava também sendo disponibilizada entre outros
143
segmentos o-evangélicos. Contudo, isso não deve ser considerado como uma
“liberalização dos costumes”. Se nos espaços públicos as bandas militares
executavam músicas provenientes do repertório popular (idem), as bandas da AD
tocavam músicas cujas letras e melodias eram, em grande parte, traduções e
adaptações de hinos estrangeiros hinos escritos por líderes “com grande
intimidade com o Espírito Santo”.
Mesmo tendo, ao longo das décadas, incorporado outros instrumentos
musicais como a bateria e aceitando algumas inovações no campo da música
que foram indicadas nesta tese, a AD, pelo menos a de Madureira, ainda valoriza
o formato de banda na vida congregacional.
Portanto, nas primeiras cadas do culo XX, enquanto no meio secular o
samba se constituiu como um “gênero-síntese” de outras expressões musicais
(batuque, lundu e maxixe) (Moura, 1995; Sodré, 1998; Lopes, 2004), em um
movimento nacionalista mais amplo de criação de uma música “autenticamente”
brasileira (Travassos, 2000), a produção musical evangélica se desenvolveu em
separado, repudiando, principalmente, as musicalidades que estavam relacionadas
às danças sensuais que, por sua vez, tinham origem em ritmos criados pelos
negros.
4.2- “A proliferação dos corinhos” e dos “cânticos”: novas
musicalidades e antigos temas
Nas décadas de 1950 e 1960, a criação de novas denominações, como o
Brasil para Cristo e Deus é Amor, o imprimiu grandes transformações na hinódia
protestante pentecostal. Priorizando a cura espiritual e exercendo um proselitismo
sistemático através de cruzadas evangelísticas, tais igrejas não procuraram investir,
com afinco, na produção de hinários oficiais. Pelo contrário, tanto os temas como as
melodias de suas músicas foram inspiradas na produção musical das igrejas
fundadas anteriormente, sobretudo as pentecostais.
Além disso, existe um outro dado bastante revelador: da mesma forma que
nas Assembléias de Deus, observa-se tamm naquelas igrejas pentecostais,
formadas por brasileiros, um crescimento de músicas de pequena extensão e com
144
conteúdos mais emocionais, nesse período. Os “hinos de fogo”, como são
conhecidos pelos evangélicos, seriam composições populares mais ligadas às
raízes nacionais (a música sertaneja)(Cunha, 2004, p.124). Inclusive, atualmente,
ao serem apropriados pela indústria fonográfica evangélicas, muitos deles passaram
a ser denominados como “músicas pentecostais”. Mais adiante voltarei neste ponto.
A proliferação de corinhos não se restringiu às igrejas pentecostais. Também
nos anos 50 e 60, houve uma grande mudança nas musicalidades das igrejas
Congregacionais, Batistas, Metodistas e Presbiterianas. Como bem ressaltaram
Cunha (2004) e Dolghie (2007), nessas denominações evangélicas denominadas
tamm como igrejas tradicionais, além do repertório dos hinários oficiais, passou-se
a circular uma variedade de músicas com versos curtos e ritmos mais agitados.
Porém, se no meio pentecostal este formato mais “econômico” de hinos estava
relacionado às temáticas pentecostais (como busca do Espírito Santo, cura divina,
batalha espiritual etc.), nas igrejas tradicionais, os corinhos tinham um caráter
evangelístico e foram adaptados ou traduzidos a partir de hinos norte-americanos
que, por sua vez, lembram as marchas e as músicas românticas daquele país.
Sem sombra de vida, o estabelecimento de organizações paraeclesiáticas
norte-americanas no Brasil contribuiu para a difusão de corinhos evangelísticos
entre os participantes das igrejas tradicionais. Ainda anos 50 e 60, com objetivo
específico de promover uma evangelização direcionada preferencialmente para os
jovens, os grupos Organização Palavra da Vida, Os Jovens da Verdade, a Mocidade
Para Cristo e o Serviço de Evangelização para a América Latina (Sepal) se
instalaram em terras brasileiras, em especial em São Paulo. Além de desenvolverem
retiros espirituais, congressos e cursos de música, essas organizações promoveram
várias atividades em igrejas que aceitavam o vínculo.
O aumento da circulação de corinhos entre os tradicionais se dá, portanto, em
meio ao projeto proselitista, promovido por essas organizações missionárias norte-
americanas no país (Cunha, 2004; Dolghie, 2007). Vou mais além: pode-se dizer
que a partir daí, cada vez mais, entre os evangélicos, a música vai ser vista como
uma boa estratégia de evangelização e sensibilização da audiência, chegando,
inclusive, a ter um papel central na liturgia de algumas denominações evangélicas,
como o Ministério Apascentar de Nova Iguaçu, a Comunidade Internacional da Zona
Sul e a Igreja Batista da Lagoinha.
145
Contudo, mesmo aderindo a esses novos formatos musicais e produzindo
novas sonoridades - tendo em vista que, nestas décadas, o violão e o teclado foram
incorporados nos conjuntos musicais de diversas igrejas tradicionais-, não houve
grandes mudanças com relação ao conteúdo abordado. Em outras palavras, a
produção musical evangélica continuou referendada nos temas tratados nos hinários
Salmos e Hinos e na Harpa Cristã.
Nos final dos anos 60 e na década de 70, em meio à radicalização do regime
militar e ao crescimento da indústria fonográfica brasileira, novos gêneros musicais
estrangeiros, que já estavam presentes na cena musical brasileira, passaram a
influenciar tamm a juventude de diversas igrejas tradicionais. A vinda de novos
missionários norte-americanos para o Brasil facilitou a aceitação relativa dessas
musicalidades, principalmente entre os mais jovens. Buscando desenvolver novas
estratégias proselitistas para arrebanhar as moças” e moços” brasileiros, grupos
estadunidenses ligados às organizações missionárias daquele país não só adotaram
“música mais agitada”, mas tamm somaram à música outras modalidades
artísticas, como as artes cênicas. Passaram, então, a executar o rock nos eventos
proselitistas realizados em pareceria com as igrejas. Nessas programações, ao som
de bateria e de guitarra, apresentavam um repertório repleto de versões musicais
norte-americanas, adaptadas para ao português (Cunha, 2004).
Sintomaticamente, mesmo sendo musicado com letras que abordavam a
urgência da conversão ou o amor da divindade pelo seres humanos, o rock
evangélico trouxe vários questionamentos e debates. (Baggio, 2005). Sendo um
gênero musical fortemente associado à contestação, à rebeldia, à sexualidade livre e
às drogas consideradas ilícitas, muitos setores evangélicos foram contrários a sua
utilização, mesmo tendo as letras modificadas e seu sentido simbólico redefinido.
Se para muitos jovens das igrejas tradicionais o rock era visto como uma ótima
estratégia de convencimento das massas, tendo em vista que tinha sido bem
recebido pela audiência abrangente, pelos os evangélicos mais idosos ou oriundos
de denominações pentecostais, era percebido como um gênero diabólico (Idem).
A utilização do rock e de novos instrumentos musicais não foram as únicas
inovações observada nas musicalidades do segmento evangélico a partir do final
dos anos 60. Nessa ocasião, ainda tendo como finalidade o estabelecimento de
novos tipos de abordagem evangelística mais afinados com as novas conjunturas
146
sociais, culturais e de consumo, as organizações missionárias, associadas às igrejas
tradicionais, incentivaram a formação de conjuntos musicais. Dentre eles, podemos
citar: Grupo Elo, Palavra da Vida e Vencedores Por Cristo.(Cunha, 2004; Baggio,
2005). Seguindo uma forte orientação evangelística e missionária, tais grupos não
se apresentaram em várias igrejas, localizadas nas diferentes regiões do país,
como produziram, de forma independente, álbuns musicais. Por ainda não contarem
com um aparato empresarial
127
que viabilizasse tanto a produção quanto a
distribuição sistemática de seus produtos fonográficos, esses grupos alcançaram
uma restrita audncia, formada, sobretudo, pelos evanlicos das igrejas que
visitavam. Contudo, a formação desses grupos representou um passo
importantíssimo para a incorporação de alguns gêneros musicais, considerados
"genuinamente” brasileiros na hinódia evangélica. A produção musical do grupo
Vencedores Por Cristo elucida bem essa questão.
4.3 De Vento em Popa”: Os Vencedores Por Cristo e a
produção musical evangélica antes da consolidação do nicho
fonográfico
O grupo Vencedores Por Cristo foi criado pelo missionário norte-americano
Jim Warren Kemp na cidade de São Paulo em 1968. Vinculado ao Serviço de
Evangelização para a América Latina, Kemp resolveu seguir as orientações
missionárias dessa organização e montou grupos de jovens, provenientes de
diferentes igrejas tradicionais, como a função de propagarem as boas novas
evangélicas” (Baggio, 2005; Camargo Filho, 2005). Após serem submetidos a um
treinamento teológico sistemático, realizado quase sempre no período das férias
escolares, as equipes de jovens, denominadas por eles como equipes missionárias,
percorriam as igrejas das diferentes regiões do país, onde, através de uma
linguagem clara e direta, desenvolviam várias atividades de caráter proselitista,
dentre elas a execução musical. De acordo com Camargo Filho (2005), além de ser
uma ótima estratégia de evangelização, a produção musical tamm era uma fonte
127
Como foi abordado em capítulos anteriores, neste período, existia no Brasil uma gravadora de grande
porte, a Bompastor. Esta empresa fonográfica não tinha interesse em produzir cantores ou grupos que
executavamsicas que destoavam da hinódia mais tradicional.
147
de geração de renda, que os álbuns eram divulgados e vendidos nas
comunidades visitadas por eles.
Foi dessa maneira que o grupo Vencedores Por Cristo se lançou pelo país a
fora e se constitui num grupo missionário que se mantém até os dias atuais. Com o
passar dos anos, foi montado, em separado, um conjunto estritamente musical que
recebeu o mesmo nome da missão.
Ao observar a produção musical desse grupo em meados da década de 70,
verifica-se uma tentativa de incorporação de tendências musicais que eram
percebidas, pela sociedade abrangente, como músicas brasileiras”. Se inicialmente
os Vencedores Por Cristo gravaram sobretudo versões de melodias norte-
americanas, após o álbum De Vento em Popa (1977), músicas escritas por
compositores brasileiros e com ritmos nativos tamm foram inseridas no repertório
do grupo. A própria música que deu nome ao disco era um samba no estilo Bossa
Nova, como bem lembra Camargo Filho, ao falar da presença marcante de ritmos e
sonoridades brasileiras neste álbum.
É o caso da canção título, De Vento em Popa, um samba cuja interpretação lembra
as harmonizações do MPB4, grupo vocal carioca de muito sucesso na década de
1970. Além do estilo musical harmonizado com o momento nacional e com o som de
sua época, a letra possui elementos de diálogo entre a mensagem cristã e a cultura
brasileira. Ela lança mão de imagens e do contar de histórias, técnicas presentes nas
parábolas da antigüidade e nos folhetins eletrônicos (novelas), tão influentes na
cultura nacional ( Camargo Filho, 2005, p.45).
Por essa razão, o grupo Vencedores Por Cristo foi fortemente criticado tanto
pelos setores mais conservadores das igrejas tradicionais como tamm pelos
pentecostais. Talvez seja por isso que o referido grupo, oriundo das camadas
médias da sociedade, tenha buscado não se distanciar dos temas tradicionais da
hinódia evangélica, cuidadosamente guardados por seus pares religiosos. Mesmo
utilizando recursos narrativos informais para contar uma história, os compositores do
Vencedores Por Cristo não propuseram novos temas. A própria música em questão,
De Vento em Popa, é um bom exemplo disso. Acompanhem sua letra
128
.
De Vento em Popa
De vento em popa, o sol por cima, embaixo o mar, (v1)
A voz tão rouca já desafina se vai cantar.
128
Fonte: http://vagalume.uol.com.br/vencedores-por-cristo/. Consulta em 01/07/08
148
E os dois no barco rasgando as ondas,
Vagando ao som das canções dos cais,
Ou de outro pileque, achando até que encontrou a paz. (v5)
Mas veja lá no fim da história o que fica,
Veja o que restou do pobre rapaz,
Vendo que por baixo o mar se agita
E por cima o sol calor já não traz.
Pense, talvez seja esta sua vida. (v10)
Lute, até encontrar o mundo melhor,
Onde a dor, no peito não tem guarida,
Onde brilhe sempre o sol...
Jesus batendo à tua porta deseja entrar,
Não lhe importa tua vida torta, quer te salvar. (v15)
De um mundo torpe, de uma vida morta,
De um sul sem norte, da morte enfim,
E um novo riso te pôr nos lábios,
Uma nova vida que não tem fim!
Abre o coração, derruba a muralha! (v20)
Deixe que Jesus te abrace também,
Deixe que inunde o amor que não falha,
É o desejo de quem só te quer bem,
Canta ao mundo inteiro uma vida tão linda,
Conta o que é ter perdão pelo amor. (v25)
Quantas bênçãos há na graça infinda.
Vivi pra Jesus o Senhor!
Vivi pra Jesus o Senhor!
No início, a música descreve o desejo dos jovens pelo desafio, pela diversão,
pela amizade. Uma indicação indireta, que é uma música para evangélicos, é
feita no quinto verso. Contudo, em seguida a procedência e as intenções dos versos
são claras: trata-se de uma música, cuja mensagem central é a necessidade da
conversão à religiosidade evangélica como “passaporte” para a vida eterna ao lado
da Divindade. E ao fazer uma nova leitura de todos os versos, entende-se que, no
início da música, o compositor está, metaforicamente, indicando, a partir de sua
visão de mundo, como seria a existência de uma pessoa não-evangélica: uma vida
sem sentido e sem destino.
Portanto, mesmo adotando “ritmos brasileiros”, instrumentos de percussão e
novas formas de se comunicar a partir de recursos presentes em outras
manifestações artísticas, o grupo Vencedores Por Cristo procurou salvaguardar a
mensagem básica do repertório evangélico. Esse arranjo”, feito para não chocar a
audiência, tem sido utilizado por cantores e grupos musicais que estão tentando, na
atualidade, inserir outros gêneros musicais populares, como o funk, no repertório
musical evangélico. Ainda com relação aos Vencedores Por Cristo, o podemos
perder de vista que a sua produção musical não alcançou uma ampla e diferenciada
audiência, uma vez que a única gravadora de grande porte nos anos 70, a
149
Bompastor, procurou produzir e distribuir cantores e grupos que não destoavam do
“gosto” da audiência evangélica mais ortodoxa.
Na década posterior, além de versões em português de hinos norte-
americanos, o grupo Vencedores Por Cristo também incluiu em seu repertório
músicas consideradas “autenticamente” brasileiras, como o baião. Porém, da mesma
maneira que o álbum De Vento em Polpa, esses discos foram fortemente rejeitados
por vários setores evangélicos, a ponto de alguns pastores, em uma atitude
estremada, quebrarem os LPs do grupo nos púlpitos das igrejas (Camargo Filho,
2005). Atitudes de repúdio como essa não foram dirigidas somente aos Vencedores
Por Cristo. Outros grupos, como Rebanhão, ocasionaram vários questionamentos no
meio evangélico, sobretudo, por adorarem o tanto rock como uma estética mais
despojada para os padrões evangélicos da época.
Mesmo tendo, historicamente, sido alvo de várias críticas, a banda
Vencedores Por Cristo exerceu uma grande influência nos jovens das igrejas
evangélicas tradicionais, principalmente com relação ao incentivo ao uso de arranjos
para 4 vozes
129
e a utilização de uniformes (Cunha, 2004). Além disso, também
influenciaram musicalmente várias bandas profissionais que foram criadas a partir
dos anos 90. Sem contar tamm, que depois de se afastaram dos Vencedores Por
Cristo, vários ex-integrantes constituíram carreira solo - como Adhemar de Campos
e João Alexandre -, mantendo, em parte, o estilo musical do grupo.
Neste período, o grupo Vencedores Por Cristo
130
teve grande influência nos
grupos jovens das igrejas e na formação de banda profissionais, porém não
alcançou uma posição de grande destaque na indústria fonográfica. Talvez seja pelo
fato de nunca ter contado com a colaboração de grande gravadora evangélica,
129
Arranjos que incorporaram novos ritmos e recursos musicais, salvaguardando a mensagem proselitista de
arrependimento e conversão.
130 Segue a discografia dos Vencedores Por Cristo:
1) Fale do Amor (1971), 2)Novos Caminhos (1972); 3) Se eu fosse Contar (1973); 4)Deixa de Brincadeira
(Compacto duplo) (1974); 5) Louvor I (1975); 6) De Vento em Popa (1977); 7) Louvor II (1980); 8) Tanto Amor
(1980); 9) Louvor III (1981); 10) Tudo ou Nada (1983); 11) Instrumental I (1985); 12) Louvor IV (1985) ; 13)
Instrumental II (1986); 14) Louvor V (1988); 15 Viajar (1989); 16) Louvor VI (1990); 17) Louvor VII (1991); 18)
Cânticos 1 (1992); 19) Sopro de Vida (1993); 20) Louvor VIII (1994); 21) Cânticos 2 (1996); 22) Canções de
Amor (1998); 23) Hinos Vol.01 (1998); 24) VPC 30 anos (1998); 25) Louvor IX (1999); 26) Projeto Portugal I
(2000); 27) Vida de Criança (2001); 28) Novidade (2001); 29) Projeto Portugal II (2002); 30) Louvor X (2003); 31)
VPC 5 anos - 1968 a 1972 (2003); 32) Cante Louvores (2004); 33) Consola Meu Povo - Canções do Profeta
Isaías (2005); 34) Louvor - O Melhor da Série (2006); 35) VPC Ao Vivo 1987 - DVD (2006) e 36) Sem Fronteiras -
DVD e CD (2007).
150
condição fundamental para o reconhecimento mais amplo dos artistas. Ao lado de
outros cantores, seus álbuns são produzidos e distribuídos pela VPC Produções e
Distribuições
131
, empresa diretamente ligada à banda e à missão VPC. Dessa forma,
pode-se afirmar que este grupo não conseguiu se inserir no circuito de distribuição
das grandes gravadora”.
A partir da década de 1990, a consolidação de um nicho específico no
mercado fonográfico brasileiro possibilitou a circulação mais ampla das
musicalidades evangélicas. Como descrevi no primeiro capítulo, neste período, se
dão a formação das grandes gravadoras e o fortalecimento de uma rede integrada
de meios de comunicação e divulgação, eventos que fizeram com que a produção
musical desse segmento religioso deixasse o amadorismo para trás e passasse a ter
contornos mais industrializados. Torna-se mais freqüente a adoção de novas
tecnologias na produção musical e um cuidado maior com a distribuição sistemática
dos produtos.
Nesse cenário mais profissional, as empresas fonográficas passaram a
produzir e disponibilizar diferentes “estilos musicais” para o consumo, que vão desde
alguns que remetem à hinódia mais tradicional evangélica até os mais polêmicos,
como o funk. Muitas modalidades musicais que tinham até então uma função
específica nos rituais passaram a ser oferecidas pelas gravadoras, entre as quais,
os “hinos de fogo” e sua variação, as “músicas pentecostais”.
131
Para outros esclarecimentos, ver o site:http://www.vpc.com.br/commerce/website/principal.asp. (Consulta feita
em 01/07/08).
151
4.4 As músicas que embalam o Mercado Evangélico
4.4.1 - “Há uma roda de fogo entre nós”: “Os hinos de fogo” e as
“músicas pentecostais”
Os “hinos de fogo
132
são expressões musicais originárias das igrejas
pentecostais. Com poucos versos e letras fáceis de guardar, os “hinos de fogo” não
apresentam temas que estão diretamente vinculados à cosmologia desse
segmento religioso, como também desempenham um papel de destaque nos rituais
promovidos por eles. Para desenvolver esse ponto, algumas considerações
precisam ser feitas sobre a cosmologia pentecostal.
Em linhas gerais, segundo a cosmologia pentecostal, Deus e o Diabo são
personae (Mariz, 1997; Mafra, 2002). Longe de serem concebidos como meras
abstrações conceituais e morais, são vistos como atores que interferem ativamente
na vida dos seres humanos. Em outros termos, mesmo não tento seus rostos
revelados e os seus corpos figurativamente representados, tanto a Divindade como
o Diabo são concebidos como seres personificados, que além de possuírem poderes
sobrenaturais - sendo, em grande parte, a causa de vários fenômenos físicos,
sociais e psicológicos -, disputam as vidas de homens e mulheres, em uma guerra
feroz que vem sendo travada desde a fundação do mundo.
A batalha espiritual envolve o fiel em uma série de vitórias pontuais e
fracassos provisórios, num ir e vir de ritos de ‘libertação’, ‘limpeza’ e ‘busca do
espírito’” (Mafra, 2002, p.219). Dito de outro modo, segundo eles, no dia-a-dia, a
todo custo, o Diabo busca obter algumas vitórias parciais, tentando atacar, molestar
ou, até mesmo, destruir homens e mulheres. Diante dessa voracidade do Diabo,
para se manterem guardados, os fiéis necessitam desenvolver uma rie de práticas
“de cuidado de sie do “corpo”, como o jejum, a realização de orações, a ida à igreja
e a subida em montes (Mafra e De Paula, 2002; De Paula 2002). Acreditam que a
132
Ao longo da pesquisa, cataloguei mais de 120 hinos de fogo” ( ou “corinhos de fogo”). Para maiores
informações, indico os seguintes sites:
1)http://www.cadecristo.com.br/GospelMusic/EdynaldodoRio/musica_gospel_EdynaldodoRio_corinhos.htm
(Nesta página encontram-se áudios de alguns corinhos de fogo, interpretados pelo cantor Edynaldo do Rio)
(consulta feita em 02/07/08);
2)
http://www.atosdois.com.br/ (Neste site do Ministério Apostólico Atos Dois foi disponibilizado uma lista com as
letras de 110 corinhos de fogo) (consulta feita em 02/07/08);
152
prática assídua desses rituais produz, em seus corpos, uma “limpeza espiritual”,
seguida de um “preenchimento de Deus”. Na visão deles, portanto, somente a partir
da “busca do Espírito de Santo”, o mal é afastado e a presença de Deus é garantida.
O desenvolvimento de uma relação mais próxima com a Divindade através da
“busca do Espírito Santo”, o assegura uma proteção maior contra os dardos
inflamados do Diabo, mais tamm permite ao fiel o recebimento de dons espirituais.
Ainda tecendo alguns comentários sobre a cosmologia pentecostal, devo
salientar que uma das características mais marcantes e que singulariza estes dos
demais evangélicos é a valorização de dons espirituais e da glossolalia (“falar em
línguas estranhas
133
”) (Freston 1996; Oro, 1960; Mafra, 2001). Acreditam que Jesus
tamm se manifesta no meio da comunidade pela ocorrência de línguas estranhas,
ou seja, quando em alguma celebração, em meio aos louvores ou às pregações, um
fiel começa a proferir sons desconhecidos, desprovidos de uma ordenação, mas que
correspondem às “línguas faladas pelos anjos”. Sendo observada também entre os
católicos carismáticos (Maués, 2003), a glossolalia é um indício marcante da
ocorrência do batismo com o Espírito Santo, algo muito almejado e que garante um
novo status espiritual na congregação.
O interessante a ser observado é que tanto na luta contra o Diabo como nas
práticas para a obtenção do batismo com o Espírito Santo a música está presente,
sobretudo os “hinos de fogo”. Tendo em grande parte a autoria desconhecida, os
“hinos de fogo” são executados nos cultos e eventos de várias denominações
pentecostais, principalmente pelas Assembléias de Deus, no momento em que se
busca uma libertação espiritual”, ou quando se procura receber o “poder de Deus”.
Por essa razão, esse “estilo musical evangélico”, além de ser uma forma pela qual
os fiéis se comunicam com Deus e o com o Diabo, tamm é em si mesmo uma
modalidade que cria ação. Veja-se a letra abaixo:
133
No documentário Santa Cruz, produzido pela Videofilmes/GNT, João Moreira Salles retrata a fundação de
uma igreja pentecostal na periferia da cidade do Rio de Janeiro. Ao mostrar o cotidiano e as histórias de vida dos
membros da Casa de Oração Jesus é o General, Salles focaliza os cultos, onde os fiéis falam em línguas
estranhas”. Evitando uma abordagem sensacionalista, o cineasta apresenta a glossolalia de forma direta e sem
maiores preocupações em classificá-la de maneira pejorativa. Por estas razões, o filme é uma boa fonte para se
conhecer este dom, amplamente presente entre os pentecostais.
153
Sai, Sai, Sai Todo Poder das Trevas
(autoria desconhecida)
Sai, sai, sai todo poder das trevas. (v1)
Sai, sai, sai, a minha fé vonão leva.
Sai, sai, sai todo poder das trevas.
Sai, sai, sai, a minha fé vonão leva.
Não leva não, não leva não. (v5)
Porque tenho Jesus Cristo dentro do meu coração.
Não leva não, não leva não.
Porque tenho Jesus Cristo dentro do meu coração.
Ainda que não faça textualmente uma referência direta ao Diabo, observa-se,
no corinho, que o fiel ordena a expulsão do mal, classificado aqui, “como todo poder
das trevas”. Nessa luta espiritual, o crente assume uma postura ativa contra o
Diabo, não por confiar em suas próprias potencialidades, mas por acreditar-se
“preenchido por Deus”. Tal concepção é explicita quando diz ao Diabo: “tenho Jesus
Cristo dentro do meu coração”.
Em outros hinos, ao invés de se dirigir diretamente ao Diabo e exigir a sua
retirada, o fiel pede a Deus que o puna com fogo”. Para ilustrar, a seguir trago um
corinho muito conhecido no meio pentecostal, Queima ele, Jesus:
Queima Ele, Jesus
(autoria desconhecida)
Queima ele, Jesus. Queima ele.
Queima ele, Jesus. Queima ele.
Queima ele, Jesus. Queima ele.
No nosso meio ele não pode ficar.
Da mesma forma que na música Sai, sai, sai, todo poder das trevas, o corinho
Queima ele, Jesus não explicita o termo Diabo. Se no primeiro ele é apresentado
como um domínio do mal, aqui é tratado na terceira pessoa do singular. Em todo
caso, o interessante a ser pontuado é que, assim como em outros “hinos de fogo”,
neste observa-se um clamor para que Jesus queime o Diabo.
Ainda que acreditem que a destruição deste “ser do mal ocorra, de fato, no
“final dos tempos”, uma das vitórias parciais mais aclamadas pelos crentes na
batalha espiritual é a queima momentânea do Diabo e a sua posterior expulsão para
longe. Em várias igrejas pentecostais, antigas e novas as neopentecostais-, são
realizados ritos, nos quais se busca a queima do Diabo. Para ilustrar, geralmente às
sextas-feiras, em todos os templos da Igreja Universal do Reino de Deus são feitas
154
“correntes de libertação”. Nesses encontros, além dos pastores fazerem as “orações
fortes”, onde proferem recorrentemente a expressão “queima, Jesus” (Mafra, 2002),
entoam tambémhinos de fogo” para a expulsão do Diabo.
Em outros corinhos, como no Queima, Queima, o fogo de Deus não é usado
contra o Demônio, mas na cura de enfermidades.
Queima, Queima
(autoria desconhecida)
Queima, queima, (v1)
Queima com o fogo da glória.
Queima, queima,
Queima por dentro e por fora.
Queima, queima, (v5)
Queima as doenças agora!
Queima com o fogo divino,
E com o Teu poder,
E nos dá a vitória.
Segundo os poucos e repetitivos versos do corinho, o fogo divino tamm
pode ser usado para a cura de doenças. Neste sentido, ao invés de produzir um
dano, as chamas de Jesus podem causar um efeito curativo milagroso. Pelo que é
informado nas letras do Queima, Queima, o “fogo de Deus” não atinge somente as
camadas mais externas do corpo, mas tamm as regiões mais internas e
profundas, seguindo um movimento de restauração e não de destruição.
Além de possibilitar um efeito regenerativo dos corpos, o “fogo de Deus”
tamm pode “preencher” os fiéis com o poder e torná-los, dessa maneira,
espiritualmente mais fortes. O hino abaixo ilustra muito bem essa concepção.
Senhor, Me Queima
(autoria desconhecida)
Senhor, me queima com fogo do altar, (v1)
Senhor, me queima com fogo do altar,
Senhor estou aqui, pode me queimar!
Senhor estou aqui, pode me queimar!
Eu vim aqui para buscar poder, (v5)
Eu vim aqui para buscar poder,
Senhor, estou aqui, quero receber!
Senhor, estou aqui, quero receber!
155
Os versos desse corinho são bastante interessantes: nele o fiel clama à
divindade para que seja queimado com o fogo, que agora é concebido como sendo
originário de um altar. Mesmo não atribuindo diretamente a causalidade das chamas
poderosas a Deus, da mesma maneira que em outros corinhos, o fiel se dirige a Ele
no afã de receber o seu poder.
Até aqui, em todas as músicas apresentadas, a expressão “fogo de Deus”
designa uma força divina que não se confunde com o próprio Deus. Nos termos de
Alfred Gell (1998), pode-se dizer que nesses exemplos, a agência seria a Divindade,
enquanto o fogo, o seu o índice. Porém, em outros casos, a divindade se manifesta
no meio dos seres humanos como um fogo ou como uma “roda de fogo”:
Tem Uma Roda de Fogo Entre Nós
(autoria desconhecida)
Tem uma roda de fogo entre nós, (v1)
Tem uma roda de fogo entre nós,
Tem uma roda de fogo entre nós,
E no meio da roda eu ouço uma voz!
Poder, Poder, Poder Pentecostal
(autoria desconhecida)
Poder, poder, poder pentecostal, (v1)
Oh, vem nos inflamar, tamm nos renovar,
Oh vem, sim, vem, oh chama divinal,
Teus servos batizar!
Nesses dois corinhos, o próprio Deus é concebido como uma “roda divina” ou
como uma “chama divinal”. Porém, mesmo assim, é percebido agindo, seja ao falar
aos crentes, como ocorre na música Tem uma roda de fogo entre nós, ou batizando
com o Espírito Santo, como é retratado no segundo hino. A divindade que, como
fogo, encanta, ilumina, purifica, mas não pode ser acessada.
Uma outra categoria que aparece, recorrentemente, nas letras dos hinos de
fogo” é o “sangue de Jesus”. Tido pelos pentecostais como uma fonte de poder, nos
corinhos a que tive acesso, ele é empregado de forma bastante semelhante à
categoria “fogo de Deus”. As músicas O sangue de Jesus é poderoso e Jesus
passou seu sangue aqui ilustram essa afirmação.
156
O Sangue de Jesus é Poderoso
(autoria desconhecida)
O sangue de Jesus é poderoso, (v1)
Não há quem possa derrotar,
A doença vai, o demônio sai,
Quando o sangue de Jesus vem operar.
A doença vai, o demônio sai, (v5)
Quando o sangue de Jesus vem operar.
Jesus Passou Seu Sangue Aqui,
(autoria desconhecida)
Jesus passou seu sangue aqui, (v1)
O mal saiu, não resistiu.
Jesus passou seu sangue aqui,
O mal saiu, não resistiu.
No sangue de Jesus há poder, (v5)
Para curar e libertar.
No sangue de Jesus há poder,
Para curar e libertar.
Nesses dois hinos, da mesma forma que o fogo de Deus”, o “sangue de
Jesus” é concebido como uma fonte milagrosa de poder que assegura ao fiel
proteção contra as investidas do Demônio e as enfermidades.
Um dado a ser ressaltado é que em todos os corinhos apresentados, a
comunicação entre os humanos, a Divindade e o Diabo ocorre de forma direta e sem
mediadores. Em nenhuma dessas músicas são mencionados outros seres, uma
constatação que corrobora a idéia que na cosmologia pentecostal um
“empobrecimento” quanto à existência de outros agentes espirituais (Mafra, 2002).
Mesmo que acreditem nas entidades das religiosidades afro-brasileiras, os
pentecostais atribuem a elas um valor de conjunto: todas praticam o mal
(Mariz,1997). Neste sentido são vista como Diabo. Curiosamente, em algumas
músicas são feitas referência a anjos, que assumem um papel ativo na relação com
os seres humanos, ao trazerem “fogo”, poder.
Eu Vi, Eu Vi
(autoria desconhecida)
Eu vi, eu vi, Eu vi, eu vi, (v1)
Um anjo com a espada de fogo
Passando por aqui, (bis)
Era fogo no pé, era fogo na mão,
Era fogo na cabeça, Era fogo puro! (bis) (v5)
157
Varão de Fogo
(Cícero Mendes)
Há um varão de fogo no meio do povo (v1)
É grande o mistério aqui neste lugar
É anjo subindo, é anjo descendo,
Eu já estou vendo o Senhor operar
Aqui nesta igreja a sarça acesa, (v5)
Queimando entre nós está é poder de Deus
Que hoje aqui desce neste lugar
Entra no fogo irmão,
sinta esse fogo irmão,
deixe esse fogo, arder no teu coração (v10)
(Aparentemente sem título)
Eu estou vendo, o fogo está descendo. (v1)
E tem mistério, mui profundo em nosso meio.
Feche os olhos, irmão e entre em comunhão
Há um manto de mistério na Congregação.
Desce do alto, desce poder, quem estiver ligado vai receber. (v5)
Desce do alto, desce poder, quem estiver ligado vai receber.
Quem quer vitória dá glória, quem dá glória recebe vitória,
O anjo desceu lá dá glória, trazendo tua vitória.
Quem quer vitória dá glória, quem dá glória recebe vitória,
O anjo desceu lá dá glória, trazendo tua vitória. (v10)
Quando Ele passa ninguém se contém,
Pavio apagado acende também!
Quando Ele passa ninguém se contém,
Pavio apagado acende também!
Nos três corinhos, são feitas referência a anjos que transitam entre os seres
humanos, fato que indica a presença atuante de outros seres na cosmologia
pentecostal. Descritos nas letras como mensageiros de Deus, estes seres do bem
são tidos como poderosos, já que possuem fogo tanto em seus corpos como nos
objetos que carregam. Contudo, em nenhum trecho, observa-se um clamor dos fiéis
aos anjos, mas somente a Deus. O ato de glorificar ou de entrar em comunhão são
maneiras pelas quais os fiéis solicitam o poder e a proteção da Divindade. Mas,
nestes três corinhos, os anjos assumem uma posição de mensageiros, ao trazerem
a resposta da Divindade às solicitações feitas pelos crentes.
Os “hinos de fogo” não apenas informam as concepções que norteiam a
cosmologia pentecostal. Eles também produzem ações. Nos cultos pentecostais e
nas programações que tive a possibilidade de acompanhar durante a pesquisa,
observei que os “hinos de fogo” têm um papel fundamental nos rituais de “libertação”
e no “recebimento dos dons do ritual”. Podendo ser executados com pandeiros,
guitarra, violão, bateria, ou até sanfona, suas letras parecem narrar a seqüência dos
158
eventos experimentados por eles. Em reunião de oração”, uma cerimônia religiosa
dirigida por mulheres, na qual se busca a presença da Divindade, quando cantam,
por exemplo, “Poder, poder, poder pentecostal, Oh, vem nos inflamar, Também nos
renovar”, acreditam que no momento da excussão dessa música, a Divindade, ou
um anjo enviando por ela, pode comparecer e preencher” os que, realmente, estão
“preparados”. Geralmente os “hinos de fogo” são acompanhados por expressões,
como “Aleluia”, “Glória a Deus” ou pela glossolalia. Em algumas reuniões a que tive
acesso, em rios momentos a polifonia era tão grande, que prejudicava o
entendimento das letras dos hinos.
Se até então os “hinos de fogo” eram executados em rituais específicos para
que determinados objetivos fosse atingidos, com a apropriação deles pela indústria
fonográfica evangélica principalmente depois dos anos 90, passaram também a ser
disponibilizado para o consumo. Mesmo, em parte, tendo suas letras modificadas e
outros instrumentos incorporados à sua melodia, pode-se dizer que os “hinos de
fogo” alcançaram um grande e diversificado blico. Em entrevista concedida à
Revista Enfoque Gospel, Cassiane, uma das cantoras evangélicas mais famosas do
Brasil, tece algumas considerações sobre a expansão das musicalidades
pentecostais:
Eu sou pentecostal mesmo. Sou do "glória "glória a Deus e aleluia" e quero continuar
sendo usada por Deus assim. Fico feliz porque, antes, o estilo pentecostal tinha
espaço dentro da Igreja Pentecostal. Graças a Deus, o Senhor usou a Cassiane
para que o louvor pentecostal atingisse outras denominações. Hoje todo mundo
canta; conseguimos atingir todas as igrejas, de tradicionais a pentecostais. E é
possível ouvir até as tradicionais dizerem: ‘Eu quero ouvir a música que diz 500
graus de puro fogo santo e poder.É muito interessante. Agora, para mim, o mais
importante é que as pessoas saibam que eu sou uma serva do Senhor, serva do
Deus Altíssimo, com o maior desejo de continuar sendo serva, sendo bênção.
Costumo dizer que, se não for bênção, não interessa. Eu quero ser bênção sempre.
(Cassiane, Enfoque Gospel, 08/2005).
No fragmento acima, sem deixar de lembrar sua origem pentecostal,
Cassiane emite alguns comentários sobre aceitação dos “hinos de fogo”, ou das
“músicas pentecostais”, por outros segmentos evangélicos. Menciona tamm a sua
contribuição, como cantora, no reconhecimento dessa modalidade fora do meio
pentecostal.
De fato, com apenas 35 anos de idade e com uma discografia invejável
134
,
Cassiane é uma grande referência entre os evangélicos. Ao lado de Rose
134 Segue uma lista dos álbuns produzidos pela cantora e as premiações alcançadas:
159
Nascimento, Mara Lima, Andréa Fonte, Eliane Martins e Jorginho de Xerém, tem
contribuído enormemente para a propagação das músicas pentecostais. Digo
“músicas pentecostais” e não mais hinos de fogo”, porque as músicas que são
produzidas por esses cantores, ainda que guardem os temas e categorias dos “hinos
de fogo”, possuem uma quantidade de versos maior e são acompanhadas por outros
instrumentos musicais. Dito de outro modo, pode-se afirmar que as “músicas
pentecostais”, como são denominadas em larga escala, é uma versão mais extensa
dos hinos de fogo”, além do fato de terem seus compositores reconhecidos. Para
adensar a minha descrição, apresento cantores e músicas pentecostais a seguir.
Proveniente de uma família de assembleianos, Andréa Fontes é seguramente
uma das cantoras mais conhecida entre os evangélicos. Mesmo tendo gravado
músicas infantis e no “estilo de adoração”, é categorizada como uma cantora
pentecostal pelo mercado fonográfico. Atualmente, integrando o cast da MK Music, a
jovem cantora de 33 anos tem procurado compor seus álbuns com músicas que
remetem aos temas dos “hinos de fogo”, ou da própria hinódia clássica
assembleiana. Por exemplo, a música a seguir, cujo título é Corinhos de Fogo, é
uma seleta de vários “corinhos assembleianos”.
Corinhos de Fogo
(autoria desconhecida)
Mais que reboliço gostoso (v1)
É esse que vem de Deus,
O poder é tanto que eu pulo
Alto e dou glória a Deus (Refrão 2 vezes)
1. CD Cristo é a Força (1981);
2. CD Dou Glória a Deus (1983);
3. CD Rosa de Saron (1985);
4. CD Cheque Mate (4ºLP de Cassiane pela gravadora Melodia Celeste);
5. CD Desafio (1990);
6. CD União (1991);
7. CD Atualidades (1992) - Disco de ouro;
8. CD Força Imensa (1993) - Disco de ouro;
9. CD Puro Amor (1994) - Disco de ouro;
10. CD Sem Palavras (1996) – disco de ouro ;
11. CD Para Sempre (1998) – disco de platina;
12. CD Com muito louvor (1999) – disco de Diamante, com mais de 1 milhão de cópias vendidas;
Song Book Com muito louvor (2000);
13. CD Recompensa (2001) – Disco de platina duplo;
14. CD A Cura (2003) – Disco de platina;
15. CD Sementes da (2005)- Disco de platina;
16. CD 25 Anos de Muito Louvor(2006)- Disco de ouro;
17. DVD 25 Anos de Muito Louvor(2006)- DVD de platina Está na tiragem de 25 mil cópias, somados as
duas primeiras de 50 mil totalizando 125 mil cópias;
CD Faça diferença (2007) Disco de platina.
160
É dou glória a Deus, eu dou glória a Deus (v5)
O poder é tanto que eu pulo
Alto e dou glória a Deus (Refrão 2 vezes)
É hoje, é hoje que o inferno vai se abalar
É hoje, é hoje que a vitória Jesus vai te dar (Refrão 2 vezes)
Eu não te vejo, mas sei que estás aqui, Senhor (v10)
Eu não te vejo, mas sei que estás aqui, Senhor
O anjo do Senhor passeia na igreja
Eu não te vejo, mas sei que estás aqui (Refrão 2 vezes)
O homem da Galiléia está passando aqui (4 vezes)
Deixa que Ele te toque (3 vezes] (v15)
E receberás poder
Vem cá, vem ver hoje aqui nesta igreja
O fogo vai descer (Refrão 2 vezes)
Manda, Senhor, manda esse fogo agora (4 vezes)
Tem fogo aqui, tem fogo lá, (v20)
Tem fogo lá na porta tem fogo no altar (Refrão 2 vezes)
Mais que reboliço gostoso é esse que vem de Deus,
O poder é tanto que eu pulo alto e dou glória a Deus (Refrão 2 vezes)
É dou glória a Deus, eu dou glória a Deus
O poder é tanto que eu pulo alto e dou glória a Deus (Refrão 3 vezes) (v25)
Os versos abordam, ora possibilidade da vinda do sagrado no meio da
comunidade, ora as performances corporais, possivelmente realizadas pelos fiéis
quando sentem a presença de Deus ou dos anjos. Da mesma forma que em outros
“hinos de fogo”, a categoria fogo é recorrentemente usada e mesmo tendo em sua
melodia instrumentos como a bateria e a guitarra, a música Corinhos de Fogo
lembra muito a música regional nordestina, o forró.
Nem sempre a temática da vinda do fogo de Deus e do batismo com o
Espírito Santo são tratadas de forma “séria”. Em alguns casos, ainda que tenha
como finalidade exortar a audiência sobre a seriedade e o respeito necessários para
que o sagrado se manifeste entre os homens, algumas músicas abordam,
jocosamente, histórias inusitadas. Um bom exemplo é música O Batismo no Ônibus,
onde Andréa Fontes narra a história de um empresário que, depois de ter duvidado
da manifestação do poder de Deus em um culto, recebeu uma profecia: seria
batizado com o Espírito Santo em um ônibus. Tempos depois, a profecia se cumpre.
Segue a letra:
161
Andréa Fontes
(Composição: Raimundo Neto)
Certo irmão tinha desejo de ser batizado com fogo divino (v1)
Ser pentecostal e foi para uma festa
Um culto abençoado onde o monte fumegava, era fogo total
No meio daquele fogo, uma irmãzinha cheia
Batizada por Jesus, do banco levantou, começou a marchar (v5)
E dançar na igreja e o irmão vendo aquilo, logo duvidou e disse:
“Eu quero ser batizado com fogo, mas pra ficar assim?
Eu não quero e nem creio”
Jesus Cristo usou um vaso na Congregação
Enviou onde estava aquele irmão e disse: (v10)
“Eu vou te batizar num ônibus cheio”
Ai, o irmão tocou noutro que estava ao seu lado e disse:
“Essa profecia não foi pra mim
Porque eu sou dono de uma grande empresa, tenho uma frota de carro
Não ando de ônibus” (v15)
É... mais o que Deus fala, Deus cumpre!
Passados alguns dias, certo dia ele acorda pra ir pra sua empresa
Tenta ligar o primeiro carro e ele não pega
Vai para o segundo carro
Não pega e assim foi um a um. (v20)
O Espírito Santo não deixou nenhum pegar!
Quando chegou no último carro ele lembrou da profecia e pensou:
“Pronto vai se cumprir hoje, mas eu não vou de ônibus, eu vou de táxi”
É... mas veja só como Deus faz!
E foi para a parada esperar um táxi (v25)
O que passava estava cheio, pra agonia dele
E de repente pára um ônibus pra onde ele ia
E o mesmo estava lotado, nem cabia ele
“Eu chego atrasado, mas nesse não vou!
De repente, lá vem outro, para o seu alívio (v30)
Jesus teve misericórdia, e chegou a benção
Do mesmo que passou, só que agora vazio
Aí, o irmão pensou:
“Pronto, o ônibus tá vazio
A profecia não pode se cumprir (v35)
Minha empresa não é tão longe, não vai dar pra encher”
É... mas de repente o irmão começa a lembrar daquele culto abençoado
Esquece a profecia e começa a glorificar.
“Ô glória! Ô culto gostoso! Ô glória a Jesus!”
E o irmão, glorificando, nem percebe que aquele ônibus que passou cheio quebrou (v40)
E o povo teve que passar todinho pro ônibus em que ele estava
É... ele ficou ligado dando glória, aleluia
De repente, num certo momento, Jesus:
“POW!” Batiza o irmão com o Espírito Santo.
O irmão começa falar em língua estranha, não se contenta em ficar sentado (v45)
Fica de pé e começa a marchar, todo bem arrumado
Engravatado e o ônibus vira um alvoroço
O motorista pára o ônibus e pergunta:
“Que negócio é esse que está acontecendo ai?”
162
Alguém diz: (v50)
“Motorista, tem um homem aqui dentro que ficou doido
Tá falando uma língua que ninguém entende e quando a gente toca nele leva choque
Meu Deus do céu! O que a gente faz?”
“Ah... vamos descer esse camarada aí e chamar o guarda pra fazer alguma coisa
Levar pro hospital ou pro manicômio, aqui dentro ele não pode ficar” (v55)
É...
Foi uma dificuldade pra descer o irmão
E todo povo desceu pra ver no que daria
Fizeram uma roda, aquela multidão
Era tanto benzimento, tanta “ave-maria”
Foram chamar o guarda (v60)
Que já foi abrir caminho entre o povo que estava
E quando o guarda viu o irmão, se abraçou com ele
E em línguas, também começou a falar
Aleluia, eita glória a Deus!
Não era que o guarda era crente e batizado com o Espírito Santo, já entendia o mistério? (v65)
Aí, foi que o povo assombrado e disse:
“Aí gente, ninguém encosta, não!
Ninguém encosta que esse negócio pega!”
E pega mesmo, irmão! Comece a glorificar a Deus onde você estiver
Que pode te encher de po
der hoje (v70)
Na cozinha, na sala, no quarto, na varanda; varrendo, lavando louça, passando pano na casa, como estiver...
Glorifica!
Desde jeito é o Deus da Bíblia Sagrada
Ele decide e faz do jeito que Ele quer
Se Ele promete, cumpre! Ele nunca falha
É desse jeito! Esse é o jeito que Ele é (v75)
Não se preocupe, irmão! Somente dê glória
Deixa o povo dizer que é coisa absurda
Arrebenta tudo, mas o que Ele fala, cumpre
Mesmo que pra o mundo pareça loucura.
Na música, observam-se várias concepções que estão na cosmologia
pentecostal, as quais tenho pontuado ao longo do capítulo, sobretudo, com relação
às idéias de que Deus intervem diretamente na vida dos homens e os batiza com o
Espírito Santo. Também, de forma jogosa, em alguns versos, a cantora fala da
possível estranheza que os não-pentecostais podem ter com relação às
performances corporais, realizadas quando se recebe o Espírito de Deus e fala-se
em línguas estranhas. De fato, no ato de receber o poder de Deus
135
, o crente pode
pular, chorar, tremer ou até mesmo reproduzir movimentos que lembram uma
135
Para uma visualização dessas práticas corporais, realizadas no momento em que se executam as músicas
pentecostais, sugiro que assistam aos seguintes vídeos:
http://www.youtube.com/watch?v=W7XGFOmA6g0 (Trata-se de uma apresentação feita pelo cantor Jorginho de
Xerém da gravadora Zekap Gospel em sua igreja, Assembléia de Deus em Xerém) (consulta feita em
05/07/2008);
http://www.youtube.com/watch?v=qyPYVtTfdaM (Trata-se de uma apresentação feita pela cantora Thayara em
uma igreja) (consulta feita em 05/07/2008).
163
marcha militar. No clip mesmo desta música
136
, de forma teatral, observam-se
algumas dessas práticas corporais, possivelmente realizadas quando ocorre a
glossolalia. Por fim, ainda em termos de conteúdo, não posso deixar de frisar o fato
desta música contar uma história de fundo moral e exortativo. Os versos que ora são
falados, ora cantados ao som de um ritmo inspirado no forró, apresentam à
audiência uma histórica dramática, que mostra o perigo de se “brincar” com Deus.
Se em outros corinhos os versos falam de eventos que devem ocorrem no momento
em que se canta, no Batismo no Ônibus narra-se uma história que, mesmo tendo
ocorrido no passado, pode ter seu desbobramento no presente. Seja nas
apresentações da cantora ou ouvindo o CD, a audiência é convocada a se colocar
de modo adequado glorificar - para que o poder de Deus venha. Nesse sentido,
sendo reproduzida, a música não perde sua eficácia como “estimuladora” da vinda
de Deus entre homens e mulheres.
Além de histórias inusitadas com um fundo exortativo, muitas “músicas
pentecostais” apresentam passagens bíblicas. Por meio delas busca-se passar uma
mensagem de exortação ou correção à audiência. A seguir apresento uma das
músicas mais conhecidas e premiadas de Rose Nascimento, em que a cantora
admoesta sobre a necessidade de submissão aos designos da Divindade,
lembrando a história de Jó.
Fiel Toda Vida
Rose Nascimento
(autoria: Jorge Binah)
Se alguém tentar te humilhar porque és crente (v1)
E crê em Deus, não dê ouvidos, ouvidos
Diga apenas que a tormenta vai passar,
Porque Deus é contigo, contigo
Não se deixe ser levado pela voz do opressor (v5)
Ele só sabe acusar
Não se renda porque ele já perdeu
Agora é a sua vez de humilhar
Não te lembras que ele foi até a Deus dizer que
Blasfemaria contra o seu Senhor (v10)
Se o Senhor deixasse ele consumir todos os seus bens
Jó, não agüentaria
Mas o homem que é fiel no seu propósito e teme a Deus
Não se corrompe não, ( não, não )
Mesmo em meio a tempestade se levantou das cinzas (v15)
E adorou ao Senhor
Jó lançou-se sobre a terra e adorou
136
Ver o clip no site: http://www.youtube.com/watch?v=7-iaB9MeWN8. (consulta feita em 05/07/2008).
164
E falou pra todo o inferno escutar:
``Nu sai do ventre da minha mãe
E é nu que voltarei para lá (v20)
Tudo que eu tinha era de Deus
Deus me deu, e Ele mesmo tomou
Cai por terra o inimigo de Deus
E louvado seja o nome do Senhor``
Deus deixou que o inimigo (v25)
Roubasse os bens do seu ungido
Deixou que o inimigo
Matasse os seus filhos queridos
Deixou ferir com chagas,
Porém Jó não deu ouvido (v30)
E a sua mulher gritou bem alto:
``Amaldiçoa o teu Deus e morre``
``Como falas uma louca mulher
Tu falaste agora contra Jeová
Aceitaste o bem de Deus com prazer (v35)
E o mal não queres tu aceitar
Tudo o que eu tinha era de Deus
Deus me deu, e Ele mesmo tomou
Cai por terra o inimigo de Deus
E bendito seja o nome do Senhor`` (v40)
Bendito é o Senhor!!!
Portanto, como relação ao “hino de fogo”, pode-se dizer que é um “estilo
musical evangélico” que está intimamente vinculado à cosmologia pentecostal e tem
um papel importante nos ritos de “libertação” nos de recebimento do poder de Deus.
Por essa razão, são priorizados temas relacionados à presença do sagrado entre os
seres humanos, seja na expulsão e punição do mal, ou no preenchimento” e na
cura dos servos” que o buscam. Sendo assim, uma das categorias mais presentes
em suas letras é o fogo, empregado quando se refere ao poder de Deus, ou quando
se fala da maneira como a Divindade se manifesta entre os seus. Além disso, um
aspecto bem marcante dos corinhos de fogo” é o tratamento reverenciado” que se
faz à Divindade. Em todas as músicas que tive acesso, observei uma postura servil
e distanciada dos fiéis para com Deus. “Seus servos”, “Senhor poderoso e Deus da
Bíblia Sagrada” são expressões utilizadas nos corinhos que indicam essa relação
cerimoniosa entre os evangélicos e a Divindade. Tais expressões sugerem uma
submissão pelo temor.
Vimos tamm que, ao serem reproduzidos pela indústria fonográfica,
principalmente a partir dos anos 90, os antigos “hinos de fogo” passaram a ter um
maior número de versos e estrofes, ao mesmo tempo que outros instrumentos foram
incluídos em suas melodias. Essas transformações observadas na estrutura da
165
música, somadas ao fato de serem cantadas por artistas oriundos em sua grande
maioria das igrejas Assembléias de Deus, contribuíram para que passassem a ser
classificados como músicas pentecostais” pelo mercado evangélico. Dessa forma,
pode-se dizer que, além dos temas, letras e ritmos, a origem pentecostal, mais até
assembleiana, do cantor é um critério levado em conta na classificação desse estilo
musical. Não estou como isso afirmando que todo cantor assembleiano é visto como
“cantor pentecostal” no meio evangélico. Essa associação só ocorre quando se
vincula a procedência denominacional às músicas pentecostais”. De qualquer
forma, pelo fato do cantor se oriundo desse segmento religioso, há, por parte da
audiência, uma expectativa quanto à sua estética. Espera-se que um cantor
pentecostal adote uma maneira de se vestir condizente com a sua denominação
evangélica. As cantoras devem se apresentar trajando vestidos e saias mais
“comportadas”, e os cantores, se não de terno, ao menos, de calça comprida e de
blusa social. Para ilustrar, seguem alguns fotos de artistas, classificados como
cantores pentecostais pelo mercado evangélico.
Ilustração 20: Foto de Andréia Fontes
Ilustração 21. Foto Jorginho de Xerém
166
Ilustração 22. Foto de Cassiane
Dize-se, então, que a música pentecostal” é uma versão comercializada e
ampliada dos hinos de fogo” que mesmo, sendo desvinculada do seu uso
tradicional ao ser disponibilizada para o grande público, o alterou o seu conteúdo.
Tanto os temas como as categorias dos “hinos de fogo” são tamm usados nessa
musicalidade mais voltada para o consumo.
De qualquer maneira, estas músicas, da mesma maneira que os “hinos de
fogo”, mantêm nexos com os rituais de “libertação” e de “busca do espírito”.
4.4.2- “Não sou apenas servo, teu amigo me tornei”: “Os hinos de adoração e
louvor”- entre o sentir e o aprender
Da mesma forma que os “hinos de fogo”, atualmente, os “hinos de adoração”
estão muito presentes na vida dos evangélicos. Nos cultos, nos megaeventos
realizados nos espaços públicos das grandes metrópoles e nos meios de
comunicação, observa-se uma crescente presença desse “estilo musical”
137
. Por
137
A proliferação desse estilo musical entre os evangélicos tem ocasionado vários debates e reflexões não
sobre o que seria, de fato, um hino de “adoração e louvor”, mas também sobre a preparação espiritual” de seus
executores. Para um maior esclarecimento das questões levantadas por eles, ver as seguintes matérias e
artigos:
1) Adoração, modismo ou necessidade”. (http://www.ocaminhodoadorador.com.br/?p=29) (Consulta feita em
10/08/2008);
2) “Confusão na adoração (http://www.mygospel.com.br/noticias.php?a=146) (Consulta feita em 10/082208);
3) Confusão na adoração - retratos de nossa época” (www.gospelmusiccafe.com.br ) (Consulta feita em
11/07/2008);
4) No site Música e Adoração foram postados vários textos de teólogos, cantores e pastores que buscam discutir
o que seria um “verdadeiro” hino de adoração e louvor. Endereço:
http://www.musicaeadoracao.com.br (Consulta
feita em 11/07/2008).
167
fazer parte significativamente do cotidiano dos evangélicos, a indústria fonográfica
tem investido em sua produção e divulgação.
Pode-se afirmar que tal como as músicas pentecostais”, os “hinos de
adoração e louvor” se propagaram num movimento de “dentro para fora”. Em um
primeiro momento, fizeram parte da liturgia dos cultos de algumas igrejas e somente
depois se tornaram mais um estilo musical disponibilizado pela indústria fonográfica
evangélica. Com relação a essa expansão cabem algumas questões: De que forma
os hinos de adoração se constituíram? Qual é a relação deste estilo musical
evangélico com os ministérios de louvor? Em que medida suas letras e melodias se
distinguem das usadas nos “hinos de fogo” e nas “músicas pentecostais”?
Primeiramente, não como entender o sentido da proliferação dos “hinos de
adoração e louvor” - e sua conseqüente disponibilização pelo mercado fonográfico
evangélico - sem falar da constituição dos ministérios de louvor nas igrejas, bem
como sobre o que facilitou a projeção de alguns deles na atualidade.
Nos anos 70, ainda dentro de um movimento de renovação das musicalidades
evangélicas - que como vimos abarcou a criação de novas bandas
interdenominacionais e a inclusão de “gêneros musicais brasileiros” entre os
evangélicos -, as recém fundadas Comunidades Evangélicas S8 (Goiânia) e da
Graça (São Paulo)
138
criaram os primeiros ministérios de louvor de que se tem
notícia no Brasil (Cunha, 2004). Tendo como seus principais colaboradores Adhemar
de Campos, Asaph Borda e Ronaldo Bezerra, tais denominações evangélicas
pentecostais difundiram uma nova concepção a respeito da participação da música e
dos cantores na igreja. Para eles, inspirados no Movimento de Jesus
139
, ocorrido em
algumas igrejas dos EUA nos anos 70, a “parte musical”, momento em que são
cantadas as músicas, deveria deixar de ocupar uma posição secundária nos cultos.
(idem).
Na redefinição litúrgica, além de não utilizarem hinários oficiais, também o
incorporaram os “hinos de fogo”, tão presentes nas igrejas pentecostais criadas
anteriormente. Por serem igrejas que se identificavam com uma liberalização dos
138
Para outras informações a respeito da história e da organização institucional da Igreja Comunidade da Graça,
ver:
http://www.comuna.com.br/ (consulta em 12/07/2008).
139
Para outras informações sobre este movimento que atingiu várias igrejas norte-americanas e influenciou as
práticas evangelísticas adotadas naquele país, ver: Cunha (2004).
168
costumes, agregaram, no seu repertório, músicas ritmicamente mais agitadas e
baladas românticas.
Neste novo formato cúltico, os músicos assumiram uma posição proeminente.
Diferenciando-se dos conjuntos musicais que cantavam em alguns momentos dos
cultos, os ministérios de louvor deveriam conduzir toda a “parte musical”. Em uma
analogia direta com os levitas
140
, que eram responsáveis pelos rituais de invocação
da presença da Divindade entre o Povo de Israel no Velho Testamento, os ministros
do louvor deveriam, através da música, criar condições para a vinda de Deus entre
os seres humanos. Dessa forma, por intermédio dessas igrejas, se constituiu um
novo estilo litúrgico no meio evangélico, que, em certa medida, se distancia das
celebrações das igrejas protestantes clássicas e pentecostais mais antigas.
Além de adotarem uma nova concepção sobre o papel da música e dos
cantores, tais igreja passam a produzir LPs com os hinos que eram cantados
durante os cultos. Ao invés de reproduzirem suas músicas em hinários oficiais,
como fizeram, por exemplo, as igrejas Assembléia de Deus, Batista e
Congregacional, optaram pela reprodução fonográfica. Produziram discos de
maneira independente e, por não contarem com a colaboração de empresas
fonográfica, os comercializavam, informalmente, nos templos ou em lojas de artigos
evangélicos. Dessa forma, alcançavam audiência pequena, mas fiel.
A partir dos anos 80, outras igrejas evangélicas, sobretudo Batistas,
Presbiterianas e Congregacionais, substituíram os seus conjuntos musicais pelos
ministérios de louvor (Cunha, 2004), e muitas denominações que se constituíram
neste período tomaram esse modelo litúrgico como referência. Em algumas das
igrejas pentecostais
141
os púlpitos que, tanto nas primeiras igrejas pentecostais
como nas tradicionais acolhiam somente os pastores, passaram também a ser o
local onde os músicos da igreja se acomodam com os seus instrumentos. Dessa
forma, os adoradores”, como tamm são freqüentemente chamados, assumiram
um lugar relevante nos ritos e nos megaeventos evangélicos que passaram a ser
realizados no final dos anos 80.
140
A analogia entre os antigos levitas de Israel como os atuais ministros de louvor é feita recorrentemente pelos
evangélicos não só nos veículos de comunicação, mas também nas letras das músicas.
141
Observei esta distribuição do espaço físico pelo menos nas seguintes igrejas que visitei: Comunidade
Evangélica Internacional da Zona Sul (RJ), Comunidade Evangélica de Salvador (BA), Igreja Ministério
Apascentar em Nova Iguaçu (RJ) e Ministério do Espírito Santo de Deus em nome do Senhor Jesus Cristo (RJ).
169
Nos anos 90, a consolidação do mercado fonográfico evangélico contribuiu
para a projeção nacional de alguns ministérios de louvor que se inseriam nos
circuitos das grandes gravadoras ou que criaram suas próprias empresas. Além de
se projetarem e alcançarem uma ampla e diversificada audiência, vários grupos
conseguiram também projetar suas referidas igrejas entre seus pares religiosos,
inclusive muitos ministérios de louvor levam o nome de suas próprias
denominações: Comunidade Internacional da Zona Sul, Comunidade de Nilópolis,
Comunidade Vida Cristã, Ministério Sarando a Terra Ferida e Igreja Batista Nova
Ebenezer. Neste caso, a identidade do grupo se confunde ainda mais com a sua
denominação, que em seus produtos fonográficos aparece a imagem dos músicos
seguida do nome da igreja. Além disso, existe um outro complicador: a partir dessa
década tamm, algumas igrejas fundaram empresas fonográficas para produzir as
músicas de seus mistérios de louvor
142
.
O fato é que, para entendermos a produção musical evangélica nos dias
atuais, principalmente os “hinos de adoração e louvor”, não podemos desconsiderar
os diversos arranjos e vinculações que são realizados entre algumas denominações
evangélicas principalmente as novas igrejas pentecostais ou as que se
pentecostalizaram-, “ministérios de louvor” e gravadoras. fortes indícios de que a
projeção nacional e até mesmo internacional de alguns “ministérios de louvor” foi
possível graças a essas ligações. A trajetória do Diante do Trono (DT) é um bom
exemplo disso.
O grupo Diante do Trono é um dos ministérios de louvor mais reconhecidos
no Brasil e no exterior. Sua trajetória tem servido de inspiração a outros grupos que
procuram alcançar uma ampla e diversificada audiência. Vinculado à Igreja Batista
da Lagoinha
143
de Belo Horizonte, o Diante do Trono surgiu em 1998, após a
participação de Ana Paula Valadão e de um dos maestros dessa igreja em um
congresso de avivamento realizado nos EUA
144
. Dizendo-se tocada” por Deus para
142
Ver o segundo capítulo.
143
A Batista da Lagoinha é um dos casos típicos de igrejas que se “renovaram”, ou seja, que passaram por um
processo de pentecostalização. Por ter adotado práticas e concepções pentecostais foi desligada da Conversão
Batista Brasileira nos anos 70. Ela também é um bom exemplo de igrejas que passaram a dar mais ênfase à
execução musical nos cultos. Para outras informações sobre a história e organização estrutural da Igreja Batista
da Lagoinha, ver o site: http://www.lagoinha.com/engine.php (consulta feita em 15/07/2008).
144
Para outras informações sobre a história do Diante do Trono, ver:
http://www.diantedotrono.com.br/familiadt/lst_parte_historia.asp?nCodHistoria=2 (Consulta em 15/07/2008).
170
“resgatar” o Brasil através da música, Ana Paula Valadão, que é filha do líder da
Batista da Lagoinha, resolveu selecionar um grupo de músicos do ministério de
louvor da igreja e gravar um CD. O álbum, que tem o mesmo nome do grupo, foi
gravado, ao vivo na igreja, e reuniu mais de 7000 pessoas
145
no evento.
Diante do sucesso do primeiro álbum, em 1999, o Diante do Trono lançou
mais um CD, O exaltado, que também reuniu milhares de pessoas em sua gravação,
ao vivo, nas dependências da igreja. A partir daí, por ter as músicas divulgadas nas
rádios evangélicas e por contar com uma rede de colaboradores, o ministério de
louvor da igreja Batista da Lagoinha projetou-se significativamente em Minas Gerais.
Em função disto, o álbum do Diante do Trono, Águas Purificadoras, lançado em
2000, teve que ser gravado em um espaço aberto da cidade: Parque de Exposições
da Gameleira.
Tendo como objetivo alcançar maior audiência
146
, o Diante do Trono passou a
realizar megaeventos em outros estados do Brasil, onde gravou os seus outros
álbuns musicais
147
. Nestes verdadeiros espetáculos, foi utilizado não um aparato
tecnológico sofisticado, com direito a canhões de luzes e refletores de última
geração, mas também outras expressões artísticas, como a dança. Por essas
megaproduções, o Diante do Trono tem sido um dos principais propagadores dos
“hinos de adoração e louvor”, um estilo musical que tem como premissa a idéia de
145
Para outras informações, ver:
http://www.diantedotrono.com.br/familiadt/lst_parte_historia.asp?nCodHistoria=2 (consulta em 15/07/08).
146
Um dos principais objetivos do Diante do Trono é evangelizar as massas pela da música. Segue um trecho,
onde o grupo exe sua missão:
Registrar esta adoração através da gravação de canções e de outras produções que expressem, com o uso de
diversas formas artísticas, nossa devoção e anseio por Deus, e a clara transmissão do Evangelho. Influenciar a
sociedade, começando em nosso país e até os confins da terra, com a mensagem que levamos em nossas
produções, negociações e estilo de vida, sendo um referencial de excelência, santidade e amor.” (os grifos não
são meus) Site: http://www.diantedotrono.com.br/NOSSAMISSAO/ (Consulta em 15/08/2008).
Neste fragmento pode-se observa um dado importante sobre o sentido que os grupos, cantores e igrejas têm
atribuído à reprodução fonográfica das músicas evangélica. Para eles a reprodução musical, longe de tirar a
“áurea” da música, possibilita a expansão da “mensagem evangélica”.
147
Segue uma lista com os títulos dos álbuns e os lugares onde foram gravados:
Brasil Diante do Trono. Local: Rio de Janeiro (Maracanã) em 2001- 180.000 pessoas;
Nos Braços do Pai. Local: Brasília (Explanada dos Ministérios) em 2002- 1.200.000 pessoas;
Quero me Apaixonar. Local: São Paulo (Av. Santos Dummont) em 2003-
2.000.000 pessoas;
Esperança. Local: Salvador (Centro administrativo da cidade) em 2004-
1.000.000 pessoas;
Ainda existe uma cruz. Local: Porto Alegre;
Por amor a ti, oh Brasil. Local: Belém do Pará;
Príncipe da Paz. Local: Rio de Janeiro (Praça da Apoteose/Sambódromo).
Para outros esclarecimentos, ver:
http://www.diantedotrono.com.br/NOSSAMISSAO/ (Consulta em
15/07/08).
171
que a música é um meio pelo qual o fiel adora a Divindade, seja exaltando seus
atributos ou por uma atitude de entrega total de si.
Da mesma forma que o premiado ministério de louvor da Igreja Batista da
Lagoinha
148
, outros grupos e cantores evangélicos investem neste estilo musical,
cuja melodia é, em grande parte, inspirada nas baladas românticas ou no pop
romântico. Seus cantores não só passam a priorizar a execução desse estilo
musical”, como adotam um conjunto de concepções, práticas e comportamentos que
configuram o modo de ser do “adorador”. fortes indícios de que uma nova forma
de se relacionar com o sagrado, que teve origem nos EUA e que foi difundida pelos
primeiros ministérios de louvor nos anos 70, está sendo veiculada, pelos ministérios
de louvor atuais, via indústria fonográfica.
A seguir, pela alise das letras de algumas músicas, procurarei indicar não
as categorias usadas nos “hinos de adoração e louvor”, como tamm as
concepções sobre Deus, cantores, música, adoração e povo evangélico. Minha
aposta é que, ao priorizarem a reprodução deste estilo musical, a indústria
fonográfica e os meios de comunicação evangélicos têm contribuído para maior
circulação das idéias presentes nessa musicalidade que, em certa medida, destoam
das idéias presentes nos “hinos de fogo” e em sua variação, as “músicas
pentecostais”. Se a perspectiva que proponho estiver correta, ou seja, se nexos
entre a cosmologia pentecostal e este dois estilos musicais, será possível afirmar,
então, que novas concepções têm sido incorporadas à visão de mundo dos
pentecostais.
Em termos de conteúdo, uma das continuidades mais expressivas entre os
“hinos de adoração e louvor” e as “músicas pentecostais” é a concepção de que, em
momentos especiais, o sagrado está presente entre os seres humanos. Ou seja,
ambas as musicalidades remetem à idéia de que existe a possibilidade de um
encontro milagroso entre Divindade e fiéis. Contudo, se nas letras dos “hinos de
fogo” - e nas músicas pentecostais” Deus se manifesta usando o fogo, em grande
parte, nos “hinos de adoração e louvor”, para expressar tanto o poder de Deus como
148
O Diante do trono é um dos grupos mais premiado pelo Troféu Talentos. Segue as categorias premiadas.
2002- Grupo do Ano e Música do Ano;
2003- Grupo do Ano e CD Louvor e Adoração;
2004- Grupo do Ano, CD Louvor e Adoração, CD Infantil, CD Ao Vivo e CD do Ano;
2005- CD de Adoração e Louvor, Grupo de Louvor e CD do Ano;
2006- Álbum Infantil, Álbum Pop, Álbum Ao Vivo e Grupo de Louvor;
2007- DVD do ano e DVD Infantil.
Para outros esclarecimentos, ver o site:
http://www.trofeutalento.com.br/pages/ (Consulta feita em 07/07/2008).
172
a sua presença, são também usadas outras categorias que remetem a fluídos.
Nestes hinos, que são mais executados pelos ministérios de louvor, recorrentemente
faz-se referência à Divindade através da categoria “água”, como na música a seguir:
Águas Purificadoras
149
Diante do Trono
Existe um rio, Senhor (v1)
Que flui do teu grande amor
Águas que correm do trono
Águas que curam, que limpam
Por onde o rio passar (v5)
Tudo vai transformar
Pois leva a vida do próprio Deus
E este rio está neste lugar
Refrão
Quero beber do teu rio, Senhor
Sacia minha sede, lava o meu interior (v10)
Eu quero fluir em tuas águas
Eu quero beber da tua fonte
Fontes de águas vivas
Tu és a fonte, Senhor
A música Águas Purificadoras, que deu nome ao álbum do Diante do Trono,
lançado no ano de 2000, fez muito sucesso entre os evangélicos. Parte da audiência
das rádios evangélicas ainda solicita a execução desse hino. Com uma melodia que
lembra uma balada romântica e tendo como acompanhamento, teclado, bateria,
guitarra, além de alguns instrumentos que compõem uma orquestra, esta música
tem como tema a manifestação do sagrado. A categoria “água” é utilizada para
designar a chegada do poder da Divindade, que se comporta como um fluído
contínuo. Da mesma forma que nas músicas pentecostais”, nos versos desse hino
verifica-se a concepção de que a manifestação do sagrado produz milagres, seja na
“limpeza espiritual” ou na cura das doenças.
Além das categorias que remetem a fluídos, como água e óleo, nos hinos de
adoração e louvor”, a expressão “sopro de Deus” também é usada para designar
outra forma do poder de Jesus se propagar entre os fiéis. A música Sopra Espírito
do grupo Renascer Praise, da Igreja Renascer em Cristo, indica essa percepção da
presença de Deus.
149
Para uma visualização da forma como a música é executada, ver:
http://www.youtube.com/watch?v=cP9vl_Vvo5A (Consulta feita em 10/07/2008).
173
Sopra Espírito
150
Renascer Praise
Um Elo de ligação com a unção (v1)
É a vida santificada no altar
Quero no meu interior ... esta unção
Sentir o Teu mover
Fluindo na minha família (v5)
No meu trabalho, em todo lugar
Envolvendo a minha vida em Ti Com a trindade
Em um único ser
Sopra, Pai,
Sopra, Espírito, (v10)
Sopra, Filho
A unção sobre nós
Vem, Senhor, derrama o óleo da unção
E coloca no meu espírito a Tua canção
Como adorador, que entra além do véu (v15)
Que meu canto libere a Tua unção.
Que meu canto libere a Tua unção.
Sopra, Pai,
Sopra, Espírito,
Sopra, Filho (v20)
A unção sobre nós
Vem, Senhor...
Sopra Pai, Sopra Espírito, Sopra Filho, Sobre nós
Sopra Pai, Sopra Espírito, Sopra Filho, Sobre...
De modo geral, na música, verifica-se um clamor pela vinda do sagrado.
Pelo que foi apresentado, no que se refere ao conteúdo, não ocorre nenhuma
diferença em entre este hino e as “músicas pentecostais”, a não ser o fato de
associarem o poder de Deus a um vento ou a um óleo que traz a unção, poder.
Porém, quando se observa verso a verso, verificam-se algumas idéias bem
características dos “hinos de adoração e louvor”, dentre elas a concepção de que o
adorador promove a presença do sagrado no meio da comunidade. Em vários
momentos da música Sopra espírito são feitas analogias entre os sacerdotes do
povo hebreu do Antigo Testamento e os atuais adoradores, como no verso 15:
“Como adorador, que entra além do véu, Que meu canto libere a Tua unção”.
Dito de outro modo, assim como os sacerdotes transitavam no espaço do
templo considerado como o lugar “mais puro”, onde ficava a Arca da Aliança - objeto
que simbolizava a presença da Divindade -, os “adoradores” conseguem estabelecer
um contato íntimo mais intenso com Deus. Porém, para que isso ocorra, os
150
Para uma visualização da execução dessa música, acesse o site:
http://www.youtube.com/watch?v=Wcmw5gaap5Y Consulta feita em 10/007/2008).
174
“adoradores” devem ter “a vida santificada no altar”, como informa a música. Em
outros termos, para ser um “adorador”, além de pautar sua vida de acordo com os
valores da religiosidade evangélica, o músico deve orar, jejuar e ter uma postura de
enfrentamento diante das adversidades.
Mesmo sendo uma categoria que é empregada para nomear os ministros do
louvor, o termo “adorador” tamm é usado para fazer referência a qualquer
evangélico que também venha a adotar esses valores e práticas. Em um outro hino
do Renascer Praise, novamente observa-se a associação entre “adoradores” atuais
e sacerdotes levitas.
Mais de Ti
Renascer Praise
Cordeiro Santo, vindo dos céus (v1)
Leva-me ao Teu encontro além do véu
Enche meus lábios do Teu louvor
Quero ser adorador, meu desejo é conhecer-te mais
Mais, mais de Ti (v5)
Mais do Teu Espírito,
Mais da Tua paz
Mais, Mais de Ti
Mais da Tua luz (v10)
Mais de Ti, Jesus!
Senhor eu me rendo a Ti
Prostrado aos teus pés clamo mais de Ti
Mergulhar no Teu rio, ter mais do Teu Espírito
Eu quero saber te amar! (v15)
Mais, mais de Ti, Mais do Teu Espírito,
Mais da Tua paz
Mais, Mais de Ti, Mais da Tua luz
Mais de Ti, Jesus!
Mais de Ti, Jesus! (v20)
Mais de Ti, Jesus!
Verifica-se tamm na letra dessa música um anseio do fiel em ser um
“adorador”, condição para o desenvolvimento de uma relação mais intensa e “íntima
com Deus. Nota-se que novamente a expressão além do u” é empregada para
expressar a vontade de ultrapassar barreiras e conhecer mais a Divindade. O
interessante a ser pontuado é que ao mesmo tempo que se busca o “preenchimento
do espírito”, tamm, postula-se uma “saída de si” para se “conhecer” a Divindade,
como é explicitado no verso “Mergulhar no Teu rio, ter mais do Teu Espírito”. Para
adensar minha análise, a seguir trago mais uma composição.
175
Leva-me
151
Diante do Trono
Longe de Ti não quero ficar (v1)
longe do Teu amor não posso viver
leva-me até aquele lugar
de intimidade e comunhão
pelo teu espírito (v5)
leva-me Senhor
aos teus rios
leva-me em Teus braços
ao lugar secreto da adoração
teu coração desejo tocar (v10)
ver tua própria vida me envolver
em tua presença me derramar
e mergulhar na tua unção
quebra todo jugo
no meu interior (v15)
rompe as cadeias
liberta-me Senhor
quero ir mais fundo no teu amor
Nos versos de Leva-me tamm se observa um desejo de “sair de si” em
busca de uma experiência extraordinária com a Divindade. Aqui o sagrado não só se
manifesta entre os seres humanos, como ocorre nas letras dos “hinos de fogo” e nas
“músicas pentecostais”, mas os próprios evangélicos “adoradores”- podem, pelo
poder do espírito, ir a Seu encontro. Em contraste com as letras dos hinos que
comem a “hidia clássica”, nas quais os evangélicos são retratados numa
posição distanciada e subserviente em relação à Divindade, esta letra remete à
possibilidade de uma aproximação do fiel com a Deus e o desenvolvimento de uma
submissão pelo amor.
Em vários hinos de adoração e louvor”, observa-se a recorrência de termos
que fazem referência a uma aproximação etérea entre seres humanos e Divindade.
Sendo em grande parte inspiradas em baladas românticas e tendo um forte apelo
emocional, tais músicas são sensuais. Dentre os hinos a que tive acesso, o que
apresento a seguir ilustra muito bem a aproximação desta musicalidade às músicas
seculares românticas.
151
Para uma visualização da execução dessa música, acesse o site:
http://www.youtube.com/watch?v=SvA2OuCp7s4ndo (Consulta feita em 10/007/2008).
176
Quero Te Conhecer
152
Toque no Altar
Tudo o que eu quero está em Ti (v1)
Toda minha vida eu Te entrego
Pois não há outro além de Ti
Tudo que eu possa conquistar
Não se compara à tua presença (v5)
Nem ao prazer de Te adorar
Dias vem, dias vão
E em meu coração
Só aumenta o desejo
De Te encontrar (v10)
Agradecido eu sou
Pelo que já recebi
Mas não estou satisfeito
Eu quero mais
Te conhecer e prosseguir em Te conhecer (v15)
Este é o alvo da minha vida Senhor
Te conhecer e prosseguir em Te conhecer
É tudo o que eu quero pra minha vida Senhor
Eu quero Te ver como nunca Te vi
Tocar-te e sentir Tuas mãos me tocar (v20)
Podes fazer em mim o que tens que fazer
Quero ser segundo o Teu coração
Tendo como título Quero te conhecer, esta música do Toque no Altar tem
como tema o desejo de se obter um conhecimento” maior sobre a Divindade, não a
partir da leitura das escrituras sagradas, mas através dos sentidos. Em vários hinos
de adoração e louvor” são feitas referências à possibilidade de obtenção de um
relacionamento mais íntimo com Deus através do “toqueem partes de seu corpo.
Tendo em vista essa possibilidade mais ativa dos fiéis a respeito do encontro com
Jesus, há fortes indícios de que a própria percepção da natureza da relação entre
evangélicos e a Divindade está mudando. Para ilustrar, apresento mais uma música.
Te Louvarei
Toque no Altar
Perto quero estar, (v1)
Junto aos Teus pés
Pois prazer maior não
Que me render e Te adorar
Tudo o que há em mim, (v5)
Quero Te ofertar
Mas ainda é pouco, eu sei
152
Para uma visualização da execução dessa música, acesse o site:
http://www.youtube.com/watch?v=36j3k7wImFI(Consulta feita em 10/007/2008).
177
Se comparado ao que ganhei
Não sou apenas servo
Teu amigo me tornei (v10)
Te louvarei...
Não importam as circunstâncias
Adorarei...
Somente a Ti Jesus
Em especial, os versos “Não sou apenas servos, teu amigo me tornei”
indicam claramente uma outra forma de se relacionar com o sagrado. Contrastando
com a percepção da relação servil, presente na “hinódia clássica”, onde Deus é
descrito como um ser distante, misterioso e poderoso e que, portanto, deve ser
“servido”, nesta música observa-se a constituição de uma outra visão sobre a
relação com divindade, baseada mais na idéia de submissão pelo amor.
Ainda que sejam feitas referências ao poder, à força e à santidade de Deus,
em outros “hinos de adoração e louvor” é recorrente a concepção de uma submissão
a Jesus através do amor. Por essa razão, nessa musicalidade, em grande parte, a
categoria “servo” foi substituída pelos termos: “filho”, “criança”, esposa”, “amigo”,
“amado”, “companheiro” etc.
Mesmo tendo um título que indique uma posição de subserviência, a música
Meu amo é um ótimo exemplo, pois é indicada uma submissão a Jesus não pelo
temor, mas pelo desenvolvimento de uma relação amorosa.
Meu Amo
153
Toque no Altar
És minha força (v1)
És minha rocha
És meu escudo
Minha cidadela
És meu socorro (v5)
Minha segurança
És meu refugio
Minha fortaleza
És o meu amado, o Cordeiro Santo
Santo, santo, santo és Senhor Jesus (v10)
Santo, santo, santo és Senhor Jesus
Os meus olhos estão em Ti
A minha alma deseja Te adorar
Em Tua presença sou como criança
Procurando os Teus braços pra me entregar (v15)
Quero encostar-me em Teu peito
Só para ouvir as batidas do Teu coração
E transbordando do Teu amor
153
Para uma visualização da execução dessa música, acesse o site:
http://www.youtube.com/watch?v=h5fI2RukFKQ&feature=related Consulta feita em 10/007/2008)
178
Declarar que Te amo Senhor
Declarar que Te amo Senhor ( Jesus ) (v20)
Santo, santo, santo és Senhor Jesus ( 6x )
Ainda que ressalta atributos relacionados a Jesus, não vemos na música uma
busca de obediência pelo temor. Pelo contrário, por justamente ser percebida como
uma “rocha”, uma cidadela” e uma fortaleza”, a Divindade deve ser adorada e
amada. Além disso, como já foi indicado na interpretação dos hinos anteriores,
observa-se em Meu amo uma referência ao “toque” no corpo de Deus, como uma
alusão ao desejo de constituir uma relação mais próxima e “íntima” com o sagrado.
O termo intimidade é muito empregado nos “hinos de adoração e louvor” para
expressar a busca de uma relação mais intensa e menos simétrica com a Divindade.
Mesmo sendo uma musicalidade que tem sua eficácia potencializada no rito, em que
os adoradores” estão juntos em um propósito”, busca-se também o
desenvolvimento de experiências individuais “íntimas” e “secretas”. A música de
Fernanda Brum, uma cantora celebridade, mostra claramente essa relação.
Apenas Um Toque
154
Fernanda Brum
Com olhar apaixonado (v1)
Quero te dizer palavras
Que expressam a vontade do meu coração
A intimidade na adoração
Como um filho, eu quero um abraço (v5)
Me envolver em Tua graça
Não quero tocar só na tua orla
Eu quero tocar onde um filho toca.
Apenas um toque
Apenas um toque no Seu coração (v10)
As lágrimas rolam
As mãos se levantam em adoração
Apenas um toque
Apenas um toque em Seu coração
A igreja se prostra (v15)
A igreja se rende em adoração.
Apenas um toque
Um toque, um toque...
Em uma análise mais atenta dos versos da música que tem o mesmo título do
álbum, verificam-se, na primeira estrofe, algumas idéias que foram desenvolvidas
154
Para uma visualização da execução dessa música, acesse o site:
http: //www.youtube.com/watch?v=DM8U1lcT9cE (Consulta feita em 11/07/2008).
179
anteriormente, em especial, a descrição de um encontro mais próximo com
Divindade, expressado através do toque em suas vestes. Porém, se em um primeiro
momento, este encontro é descrito como uma experiência individual e íntima de
cada um dos fiéis, na segunda estrofe, vemos o termo igreja empregado para
designar que tamm se trata de uma busca que se dá em grupo, ou seja, homens e
mulheres “tocam juntos no sagrado. E para terem este contato, algumas
performances corporais coletivas são executadas.
Em vários cultos e programações de que participei, pude observar que a
nexos entre os “hinos de adoração e louvor” e certas práticas corporais. Enquanto os
“hinos de fogo” e as “músicas pentecostais” demandam gestos mais expressivos e
marcados das mãos, movimentos das pernas, similares aos usados nas marchas
militares, a glossolalia e até a queda do fiel no chão; nos “hinos de adoração e
louvor”, os evangélicos costumam levantar as mãos de forma suave ou colocá-las na
altura do coração, chorar e tamm “falar em línguas estranhas”. Neste sentido,
ainda que focalize a necessidade de uma experiência individual com o sagrado, este
estilo musical é performatizado quando estão juntos nos cultos ou programações.
Isso não quer dizer que, ao escutar um CD de um ministério de louvor, um
evangélico, na privacidade de seu lar, não possa “sentir” a presença da Divindade.
Porém, todo o aprendizado de como se portar diante das músicas se dá em grupo.
Além disso, não posso deixar de salientar que, com freqüência, são
realizados vários seminários e encontros interdenominacionais sobre Adoração e
Louvor em todo o país, nos quais se “aprende” a ser um “adorador”. Sem contar
tamm que vários grupos e igrejas promovem cursos destinados à formação de
ministros de louvor, como o Diante do Trono. Vinculado ao Centro de Treinamento
Ministerial da Igreja Batista da lagoinha
155
, o Diante do Trono tem promovido
diversas atividades pedagógicas na área da música. Dentre elas, destaca-se o curso
de Louvor e Adoração. Durante dois anos, de segunda a sexta-feira, pela manhã, os
alunos cursam várias disciplinas teóricas e práticas sobre adoração e louvor
156
, em
155
O Centro de Treinamento Ministerial Diante do Trono desenvolve cursos, destinados, em especial, a formação
de missionários e ministros de louvor. Para outras informações sobre as atividades desenvolvidas nesta
instituição de ensino, ver o site: http://www.ctmdt.com.br/novosite/default.htm (consulta feita em 20/07/08).
156
Ao longo do curso os alunos têm as seguintes disciplinas:
* Coração do Artista
* História da Música Cristã
* Arte na Adoração
180
que além dos conhecimentos teológicos e musicais, aprendem a desenvolver um
“relacionamento íntimo com Deus”, na disciplina Espiritualidade.
Neste sentido, podemos dizer que, mesmo sendo um estilo musical” que em
se busca o desenvolvimento individual mais intenso com o sagrado, através dos
sentidos, tamm um conjunto de informações sobre Deus, sobre música, sobre
os cantores que devem ser aprendido seja nos cultos, seja nos cursos ou nos
seminários.
Até aqui, foram apresentados dois “estilos musicais” que se propagaram nos
anos 90 em um movimento de “dentro para fora”, ou seja, aqueles que antes de
serem disponibilizados pelo mercado fonogfico, já faziam parte da liturgia de
igrejas. Justamente por estarem presentes no cotidiano dos evangélicos - seja mais
entre os assembleianos, como os “hinos de fogo”, ou mais entre os neopentecostais
e “igrejas renovadas”, como é caso dos “hinos de adoração e louvor”-, as
gravadoras resolveram produzi-los e disponibilizá-los ao grande blico. Contudo,
com a consolidação desse nicho do mercado, outras musicalidades que eram
consideradas até então como profanas, passaram também a fazer parte do
repertório das gravadoras, estando também presentes em programações e shows e
eventos evangélicos.
A seguir, apresento dois gêneros musicais de massa que estão fazendo
grande sucesso no Brasil e que também foram incorporados pelos evangélicos.
Refiro-me ao funk e ao axé music, que integram o que tenho chamando de músicas
resgatadas”.
* Panorama do AT e NT
* Espiritualidade
* Ética Ministerial
* História da Igreja
* Ministério Profético
* Liderança de Louvor
* Adoração Bíblica
* Teologia Sistemática
* Realidade do Campo Missionário
* Missões Urbanas
* Evangelismo e Discipulado
* Homilética
* Liderança
* Transformação
* Contextualização
* Aconselhamento
* História da Música Cristã no Brasil
* Percepção Musical
* Canto Coral *
* Prática em Conjunto *
Para um esclarecimento mais aprofundado das ementas, ver o site:
http://www.ctmdt.com.br/novosite/louvor.htm
(consulta feita em 20/07/2008)
181
4.4.3 As “músicas resgatadas”
4.4.3.1 “Chuta que é laço”: O gospel funk - na contramão da sensualidade e no
caminho da salvação
Produzido por negros norte-americanos na década de 1960, o funk somente
chegou ao Brasil, mais precisamente, no Rio de Janeiro, no início dos anos 70. Se
nos EUA este gênero musical procurava abordar temas relacionados às questões
raciais, entre nós, adotou novos conteúdos e novas estéticas, ao se propagar para o
subúrbio carioca (Vianna, 1988; 1990). Nestes espaços da cidade, ao longo dos
anos 70 e 80, os bailes funk passaram a ser o espaço de entretenimento mais
procurado pelos jovens, chegando a reunir mais de um milhão de pessoas nos finais
de semana (idem).
Na década de 90, em alguns bailes funk, a diversão lúdica deu lugar à
agressão praticada por grupos rivais de jovens - as galeras funk (Cecchetto e Farias,
2002). Sintomaticamente, essa nova configuração dos bailes, bem com o cenário
social e cultural no qual eles eram realizados repercutiram em suas letras. Observa-
se, ainda naquela década, a substituição das melôs” versões que satirizavam as
músicas estrangeiras por músicas que faziam alusão à violência e ao tráfico de
drogas - os chamados “proibidões”. Por conta disso, de forma pejorativa e
generalizante, os meios de comunicação passaram a associar o funk à violência
(Pinheiro, 1998). A postura contrária da grande mídia e a conseqüente ação
repressiva das organizações governamentais pressionaram os cantores e equipes
de som a adotarem novos temas. No trecho a seguir, Cecchetto e Farias fazem uma
consideração a respeito da transformação ocorridas nos conteúdos do funk carioca,
a partir no final dos anos 90:
182
Pode-se supor que o declínio do funk bandido tenha a ver com a própria intervenção
da mídia e das autoridades, que tentaram combater a violência dos bailes e prender
os principais organizadores do proscrito ‘corredor’. Isso abriu espaço para uma outra
tendência existente, embora tímida, nesse circuito, que era a ênfase na relação
entre sexos. Basta lembrar que a primeira montagem nacional, feita por Malboro, foi
a famosa ‘melô da mulher feia’, que ‘não toma banho e cheira igual a um urubu’, para
ficarmos em uma linguagem publicável. Ou, noutro diapasão, o sucesso da dupla
Claudinho e Buchecha, sempre compondo em cima de temas românticos, mas
igualmente permeados de metáforas e alegorias sobre encontros sexuais (Cecchetto
e Farias, 2002, p. 41).
De fato, a tendência temática do funk, indicada pelas autoras no fragmento
acima, tem se fortalecido na atualidade. Cada vez mais são lançadas músicas, nas
quais são abordadas questões relacionadas a encontros sexuais entre homens e
mulheres. Inclusive, de forma jocosa, nestes funk são utilizadas várias categorias
que fazem referência aos órgãos genitais masculinos e femininos. Além disso, não
podemos deixar de lembrar que, desde sua origem, este gênero musical está
intimamente associado à dança, de modo que, atualmente, as coreografias também
incluem movimentos que aludem às relações sexuais.
Dessa forma, por ser um gênero musical fortemente associado à violência e a
sensualidade, até a pouco tempo, o funk era totalmente repudiado pelos
evangélicos. Porém, nos últimos anos, em meio à consolidação do mercado
fonográfico evangélico e a uma postura mais receptiva de algumas igrejas, o funk
passou a integrar o repertório musical desse segmento religioso. Nessa apropriação,
algumas adaptações foram feitas. Além de ter o seu sentido simlico redefinido, na
medida em que passou a ser considerado como um instrumento de evangelização
(Pinheiro, 1998), o funk necessitava ter a sua imagem dissociada da sensualidade.
Sendo assim, pode-se dizer que o gospel funk, como se costuma denominar o funk
evangélico, quanto aos temas e às danças empregadas, está se constituído de
maneira contrastiva em relação ao funk não-evangélico.
Observemos, a seguir, os temas e as categorias presentes neste novo estilo
musical evangélico. Como o funk, em si provoca muitas divergências e polêmicas no
interior do mundo evangélico, vários funk evangélicos têm como tema a sua própria
defesa, com o argumento de que é um ritmo legítimo e aceito por Deus. Nessas
músicas, na maior parte das vezes, de forma lúdica, o feitas referências aos
183
opositores e críticos ao emprego do funk entre os evangélicos. Para ilustrar, a
seguir, apresento uma composição do Adriano Gospel Funk
157
.
Irmão Juiz
Adriano Gospel Funk
(2 vezes)
Se liga amigo tamm preste atenção (v1)
O ritmo é de Deus não dê pro diabo não
Deus fez o rock, o pagode, timbalada e muito mais.
Agora Deus mandou o funk pra quebrar a satanás
( 2 vezes )
Irmão engraçado, fala tudo sem pensar (v5)
Ele vem com suas pedras preparado pra atacar
Critica, perturba, não faz nada pra ajudar
Seu prazer é abrir a boca
Só pra poder condenar
O funk é considerado, bomba pra destruição (v10)
Mas se Deus esta na frente, Ele muda a direção
Ele da vida, paz, amor e salvação
Fique firme na palavra e não escute esse irmão
( 2 vezes )
Irmão engraçado, fala tudo sem pensar
Ele vem com suas pedras preparado pra atacar (v15)
Critica, perturba, não faz nada pra ajudar
Seu prazer é abrir a boca
Só pra poder condenar
Crente lango lango
Ta na mão do tentador (v20)
Fica de bobeira criticando sem temor
Tira a trave do teu olho
Pra poder vim criticar
O som pesado é de Jesus
E ninguém pode parar (v21)
Som pesado, gospel funk
Som pesado, gospel funk
Direcionado à audiência evangélica, este hino pode ser considerado uma
verdadeira apologia à execução não do funk, mas tamm de outros gêneros
considerados profanos até pouco tempo atrás pelo segmento religioso em questão.
Em especial, com relação ao funk, observa-se a idéia de que a apropriação deste
gênero pelos evangélicos reverte o seu “poder destrutivo”. Ou seja, ao ser
apropriado, o funk tem o seu sentido simbólico redefinido, passando até ser visto
157
Filho de pastor da Igreja Evangélica do Nazareno, o jovem Adriano Gospel Funk é um dos funkeiros
evangélicos mais conhecidos na atualidade. Seu álbum musical “Chuta que é laço”, lançado em 2006, vendeu
mais de 45 mil cópias. Por conta do sucesso de suas músicas, naquele ano, o cantor recebeu um Troféu
Talentos na categoria de álbuns rap e alternativos. Atualmente, juntamente com sua equipe, formada por 5
jovens entre 20 e 28 anos, tem se apresentado em igrejas, shows evangélicos e em clubes do Rio de janeiro e
de outros estados. Para outras informações, ver o site:
http://www.adrianogospelfunk.com.br/index.html (consulta
feita em 24/07/08).
184
como um forte aliado na luta contra o Diabo na “batalha espiritual”. Dessa forma, o
“crente engraçado” é um falso crente, pois julga olhando a superfície e só condena.
Além de sua própria legitimação enquanto uma musicalidade sagrada, a
urgência da conversão é um dos principais temas do gospel funk. Usando até
categorias compartilhadas pelos jovens nos bailes funk, imeras músicas
evangélicas procuram alertar para a necessidade da adesão a essa religiosidade,
como um meio para se obter a salvação eterna. A seguir, apresento uma música
que, de maneira bem inusitada e descontraída, tem um caráter evangelístico.
A Chapa Tá Quente
Adriano Gospel Funk
Composição: Indisponível
Alguém... (v1)
Alguém...
Eu tô mandando a real ai
Não fica de bobeira
O bicho tá pegando
Pra quem tá vacilando (v5)
A chapa tá quente
A chapa tá quente
É melhor você ser crente
A chapa tá quente
É melhor você ser crente (v10)
Sua vida muquirana
Não tem nada de bacana
Sai daí, vem pra
Vem pra igreja
Tu tá na mão do palhaço (v15)
Que vida de bagaço
Sai daí, vem pra
Vem pra igreja
Jesus está voltando
E o fim está chegando (v20)
Sai daí, vem pra
Vem pra igreja
Denominando a vida do não-evangélico como “muquirana” e chamando o
diabo de palhaço”, a música A chapa quente tem um forte apelo evangelístico.
Observa-se que, mesmo utilizando categorias que são correntes entre os jovens
funkeiros, essa música, em termos de conteúdo, não se afasta da proposta da
“hinódia oficial” brasileira, ao reatualizar a perspectiva conversionista, ou seja, a
idéia de que a conversão à religiosidade evangélica é a única alternativa para a
185
garantia da vida eterna. Além disso, mesmo em um tom de brincadeira, o hino
tamm faz referência à ação destrutiva do Diabo nos seres humanos que se
colocam afastados de Deus. Neste sentido, ao fazer alusão às investidas do Diabo e
à proteção de Deus, a Chapa quente evoca um dos temas mais caros dos “hinos
de fogo”, a batalha espiritual.
Além de procurar evangelizar através de categorias usuais entre os jovens
não-evangélicos, o gospel funk tem um forte caráter normativo, principalmente no
que se refere à forma como os evangélicos devem namorar e se vestir. Um ótimo
exemplo é a música Irmão Metralha:
Irmão Metralha
Kelly Krentty
(Composição: Kelly Krentty e Adriano Gospel Funk)
Lá vem ele, preparado (v1)
Pronto pra atirar,
o irmão metralha vem pra igreja
Só pra paquerar (2x)
E está afim de todo mundo
E se apaixona todo dia (v5)
Cuidado com o irmão metralha
Esse cara é uma fria
Ele atira pra lá,
Ele atira pra
Irmão metralha,ei! (v10)
Vê se pára de atirar
E vai orar e jejuar
Pra jesus te abençoar.
Ore muito minha irmã,
Antes de partir pro abraço (2x) (v15)
E ser for irmão metralha,
Chuta que é laço!
Chuta,chuta,chuta que é laçoo!
Chuta,chuta,chuta que é laçoo!
De forma jocosa, tendo em seu início sons que lembram tiros de fuzis, a
música faz uma crítica aos evangélicos que utilizam a igreja como local de paquera,
para relações do tipo “ficar” com garotas. O “irmão metralha”, portanto, seria aquele
rapaz que paquera todas as jovens e, em uma atitude volúvel, valoriza o ato de
conquista e não a relação com a outra pessoa. Para os padrões evangélicos, em
que moços e moças devem procurar estabelecer namoros duradouros visando a um
futuro casamento, a atitude o “irmão metralha” é totalmente repudiada. Sendo assim,
186
de acordo com a música, antes de criar um vínculo com o pretendente, as moças
devem orar e jejuar, um procedimento muito usual entre os evangélicos que querem
um “namoro de Deus” (Sampaio, 2004). Se for um irmão metralha”, as jovens tem o
dever de afastar-se dele, ou na linguagem dos jovens funkeiros evangélicos, chutar
que é laço”
158
.
Da mesma maneira que procuram exortar a forma como os jovens devem
namorar, as letras do funk evangélico, em um tom normativo, também fazem
referência às vestimentas que um verdadeiro cristão” deve adotar:
Resposta da Morena
Adriano Gospel Funk
Composição: Indisponível
(introdução)
-olha lá rapaz, olha quem tá vindo ali (v1)
- í é aquela morena, tá com a bíblia na mão!
- paz do senhor filé
- filé não, irmã vitória.
- irmã vitória? (v5)
- a palavra do Senhor nunca volta vazia, ô aleluia.
Contei de um até três e tomei a decisão
Hoje eu tenho Jesus Cristo dentro do meu coração
A minha vida era torta e eu brincava de pecado
Hoje eu sou uma benção e não sou mais chuta que é laço (v10)
Ô glória
Hoje eu sou a irmã vitória
Ô glória
Hoje eu sou a irmã vitória
Ô glória (v15)
Hoje eu sou a irmã vitória
Contei de um até três e tomei a decisão
Hoje eu tenho Jesus Cristo dentro do meu coração
A minha vida era torta e eu brincava de pecado
Hoje eu sou uma benção e não sou mais chuta que é laço (v20)
Ô glória
Hoje eu sou a irmã vitória
Ô glória
Hoje eu sou a irmã vitória
Ô glória (v25)
Hoje eu sou a irmã vitória
Ô glória
Hoje eu sou a irmã vitória
158
“Chuta que é laço” é uma expressão muito usada para designar a atitude de repúdio que deve ser tomada
com relação às pessoas ou às situações que não estão de acordo com os princípios e os valores da religiosidade
evangélica.
187
Ô glória
Hoje eu sou a irmã vitória (v30)
Jesus bateu em minha porta e eu abri
A tal da minissaia joguei no lixão
Hoje eu ando bem vestida
Sem o piercing na barriga
Hoje eu prego, canto e danço (v35)
E não conto mais historia
Então levante a mão pro céu e receba a sua vitória
Ô glória
Hoje eu sou a irmã vitória
Ô glória (v40)
Hoje eu sou a irmã vitória
Ô glória
Hoje eu sou a irmã vitória
As coisas velhas se passaram tudo novo se fez
Quem é princesa de Jesus vai cantar mais uma vez (v45)
As coisas velhas se passaram tudo novo se fez
Quem é princesa de Jesus vai cantar mais uma vez
Ô glória
Hoje eu sou a irmã vitória
Ô glória (v50)
Hoje eu sou a irmã vitória
Ô glória
Hoje eu sou a irmã vitória
Ô glória
Hoje eu sou a irmã vitória (v55)
Hoje eu sou a irmã vitória
Hoje eu sou a irmã vitória
Essa música, que tem a participação especial da cantora Kelly Krentty, narra o
processo de conversão de uma jovem, que antes de se converter é descrita como
uma “garota mundana, do tipo “chuta que é laço”. Porém, quando se converte, passa
a ser a “irmã Vitória”, “a princesa de Jesus”. Em vários momentos da música, é
apresentado o processo de conversão, em que o novo evangélico abandona sua
vida pregressa e assume novos valores e novos comportamentos. O verso As
coisas velhas se passaram tudo novo se fezilustra a experiência de conversão
que se através da ruptura total com o passado. Nesse processo, com relação às
moças, a música sugere a adoção de um estilo mais condizente com os padrões,
indicados pelo segmento religioso. Em outros termos, a nova convertida deve passar
a se vestir bem”, ou seja, utilizar saias mais longas e retirar o piercing da barriga,
denotando uma preocupação em desvincular o funk da sensualidade e em orientar
como o “funkeiro de Jesus” deve se trajar.
Como relação a essas interdições, pode-se dizer que, de fato, um diálogo
entre as letras do funk e o contidiano dos evangélicos. Dos eventos e shows que eu
tive a possibilidade de participar, pude perceber uma preocupação dos cantores do
188
funk, principalmente das mulheres, em utilizarem um estilo de se vestir mais
“recatado”, bem diferente dos empregados pelas “poposudas” e dançarinas
funkeiras, como a Mulher Melancia”. Observei que as cantoras, além de não
trajarem minissaias, não deixavam suas barrigas à mostra. Por sua vez, os cantores
usavam, quase sempre, bermudões e blusões no estilo hip hop. A contenção, uma
maneira de legitimar e sacralizar o funk evangélico, não pára por aí. De um modo
geral, também um forte controle sobre as coreografias empregadas. Se no funk
não-evangélico atual uma predominância de movimentos com quadriz em alusão
às relações sexuais, no funk evangélico prevalecem os passos marcados - que
lembram, às vezes, as antigas danças presentes no funk nos anos 80 - e
movimentos de braços e mãos.
Quanto à circulação do gospel funk
159
, devo fazer algumas considerações.
Como foi indicado, a incorporação do funk no repertório evangélico é um
fenômeno muito recente e ainda é rejeitado por muitas igrejas protestantes clássicas
e pentecostais. Contudo, se observa tanto nos meios de comunicação como nos
eventos e shows evangélicos uma maior abertura ao funk e a seus cantores.
Também não posso deixar de informar que várias igrejas têm reservado, em suas
programações voltadas para os jovens, um espaço aos artistas desse segmento
musical. Finalmente, por ser um gênero que está muito presente na cena secular,
vários eventos não-evangélicos têm dado oportunidade aos funkeiros evangélicos.
159
Com base na agenda do cantor Adriano Gospel Funk podemos supor que o funk evangélico não tem se
restringido somente à audiência evangélica. Observe-se os compromissos agendados pelo artista no mês de
agosto:
Dia 10- PIB de inhaúmaRJ;
Dia 11- 4º Festa do Milho da IEQ de Feu Rosa - Serra – ES;
Dia 17- Igreja Congregacional de Mesquita – RJ;
Dia 18- Revanche ADRIANO GF x MC MICHELE - RJ
Igreja do Nazareno (Av União, 1400 - Mesquita);
Dia 25- MC dia Feliz - MCDONALD da Taquara - RJ às 15h; Marcha para Jesus em Nova Iguaçu - RJ
às 18h; Festa de Rua em Ramos - RJ às 20h;
Dia 29- Comunidade Evangélica Nova Esperança
Maré (Nova Holanda).
Para outros esclarecimentos, ver o site:
http://www.adrianogospelfunk.com.br/ (Consulta feita em 25/ 07/2008).
189
4.4.3.2 “O resgate do tambor”: axé music evangélico e a redefinição dos limites entre
sagrado e profano
Ao lado do gospel funk, registra-se, na atualidade, entre os evangélicos, a
presença de mais uma musicalidade concebida no passado como profana. Por ter
origem nos ritmos afro-brasileiros e por estar intimamente associado à sensualidade,
o amusic não era considerado uma musicalidade apropriada para ser executada
nos cultos e programações evangélicas. Contudo, nos últimos anos, verifica-se uma
crescente aceitação desse “estilo mestiço”, que é resultado de uma mistura de
sonoridades harmônicas e percussivas (Guerreiro, 2000), não na indústria
fonográfica evangélica, mas tamm entre algumas igrejas, sobretudo
neopentecostais. Mais do que uma mera estratégia de segmentação de mercado, a
meu ver, essa aceitação esta intimamente relacionada a uma nova concepção
evangelística que está tomando força no meio evangélico.
Como venho argumentando ao longo da tese, nos últimos anos, vários
segmentos evangélicos m desenvolvido um projeto proselitista baseado na idéia
do “resgate do mundo”, no qual os meios de comunicação e os domínios das artes
têm grande importância e devem ser “capturados” para Deus. Tendo como base a
concepção da batalha espiritual, esses grupos evangélicos – principalmente as
igrejas neopentecostais que construíram grandes patrimônios - defendem a idéia de
que todos os domínios e esferas da sociedade pertencem à Divindade
160
. Porém, no
160
uma música dos Tambores Remidos que expressa claramente essa idéia de que todos os domínios
pertencem à Divindade, portanto, devem ser “resgatados profeticamente”, ou seja, serão apropriados
futuramente por Jesus.
Profetizo
Tambores Remidos
Eu profetizo que a Bahia é do Senhor (v1)
Eu profetizo que o Brasil também
Eu profetizo que a minha casa, minha família
Tudo pertence ao Senhor (2X)
Jesus é poderoso pra fazer
Tudo na tua vida (v5)
Quando ele abre a porta, ninguém fecha
Pode acreditar que a vitória é certa
Tudo, tudo, tudo pertence ao Senhor (3X)
Esta obra não é minha, ela é do Senhor
O ministério não é meu, ele é do Senhor (v10)
190
desenrolar da história humana na terra, afirmam eles, alguns destes segmentos e
instituições sociais foram apropriados pelo Diabo. Diante disso, contrastando com
outras versões evangélicas que rejeitam as coisas do mundo” e focalizam a
salvação eterna, estes evangélicos querem ocupar espaço” e marcar presença em
diferentes setores dos meios de comunicação, cultura, artes etc. Essa atitude não
visa à constituição de uma teocracia ou a absorção do Estado pela religião, mas a
disseminação dos valores da religiosidade evangélica em substituição aos vigentes
que, sob vários aspectos, estão relacionados ao catolicismo.
Diante deste raciocínio, as expressões musicais seculares o devem ser
mais rejeitadas, pelo contrário, elas em si, após terem os seus conteúdos
modificados a partir dos valores compartilhados, podem ser usadas até para
evangelização das massas. Neste sentido, pode-se afirmar que esta atitude
proselitista, associada à segmentação do mercado fonográfico evangélico, está
possibilitando maior diversificação das musicalidades evangélicas, permitindo,
inclusive, a valorização de ritmos e instrumentos percussivos.
Apoiando-se, então, no discurso de que todas as musicalidades pertencem a
Deus, independentemente do ritmo e dos instrumentos que empregam, algumas
bandas de axé music m aparecido na cena musical evangélica. Entre elas, os
Tambores Remidos têm se destacado e alcançado uma ampla audiência e,
conseqüentemente, contribuído para a propagação dos ritmos percussivos entre os
evangélicos.
Liderada pelo ex-integrante do Olodum, o atual pastor Fernando Antônio Brito
de Santana - o Fernando de Itapoã
161
, o grupo musical baiano Tambores Remido
tem uma história bastante interessante.
Segundo o pastor Fernando
162
, a formação do grupo se deu a partir de uma
experiência espiritual que ele teve em 2000. Naquele ano, após se converter à
Os Tambores Remidos não são meus, eles são do Senhor
É do senhor, é do Senhor (2x)
Tudo, tudo, tudo pertence ao Senhor (3x)
161
Fernando Antônio Brito de Santana é pastor da Igreja Evangélica e Vida, em Lauro de Freitas, município
da região metropolitana de Salvador.
162
Entrevista concedida à Igreja Internacional Nova Vida. Site:
http://www.ievn.com.br/home/?modulo=noticias&a=false&nid=60 (Consulta feita em 20/06/2008).
191
religiosidade evangélica, um homem doou à sua igreja vários tambores que eram
utilizados em rituais do candomb. Inspirado por Deus, o recém-converso
“profetizou” que, a partir daquele momento, os tambores seriam usados para
ganhar vidas para Jesus”. Após serem orados, ungidos e pintados de branco com
detalhes vermelhos em formato de chamas de fogo, os tambores passaram a ter
uma função e um sentido simbólico bem diferentes dos compartilhados no
candomblé
163
. Após serem “resgatados” para Deus, eles se tornaram mais um
recurso para a propagação das boas novas” evangélicas. Nota-se, que ao invés de
repudiar os instrumentos por terem uma associação direta com uma outra
religiosidade, como muitos pastores fariam, Fernando de Itapoã se apropriou deles.
Foi a partir dessa experiência que o grupo Tambores Remidos se constituiu.
Foi montada uma banda com os músicos da igreja e comprados outros instrumentos
que se juntaram aos tambores, e que agora estavam “remidos”. Ao longo de oito
anos, além de participar de vários shows e eventos em todo o país, o grupo produziu
um CD e dois DVD de forma independente, ou seja, sem a colaboração de nenhuma
gravadora. Atualmente, os Tambores Remidos integram cast da gravadora Toque no
Altar Music, onde estão preparando um álbum musical.
Com relação às letras deste grupo, observa-se uma predominância de
músicas que procuram salientar a importância da conversão à religiosidade
evangélica como uma forma de se garantir uma vida próspera neste mundo, bem
como tamm a salvação eterna. Ou seja, boa parte das músicas tem um forte apelo
evangelístico. Muitas delas, inclusive, defendem a utilização de músicas com
instrumentos percussivos como um meio legítimo de evangelização. Observe a
música a seguir:
Com relação à trajetória e a repercussão dos Tambores Remidos no meio evangélico na atualidade, ver também
a seguintes entrevista nos sites: http://www.toquenoaltarmusic.com.br/site/noticias.php?opt=D&artigo_id=57
(Consulta feita em 20/06/2008).
163
Os tambores são os instrumentos principais dos rituais das cerimônias do candomblé. Por serem visto como
um instrumento sagrado que media a relação e comunicação entre os orixás e os seres humanos, os tambores
recebem um tratamento ritual muito complexo, que envolve desde a matança de animais até sua vestimenta com
tecidos. Para outras informações sobre o uso ritual e o sentido simlico que os tambores têm no candomblé, ver
Bastide (1978) e Barros (1999).
192
Já não dá mais pra viver
164
Tambores Remidos
Já nãomais pra viver (v1)
Sem Jesus no meu ser
Já nãomais pra viver
Sem Jesus no meu coração
Vem tocando o timbau e o repique e a marcação
Proclamando pro mundo que Jesus Cristo é a Salvação (v5)
Mas hoje eu mudei de vida,
Nova criatura sou
Como os tambores remidos, só louvo ao meu Senhor
Tudo que tem fôlego, louve ao Senhor
Com um forte caráter evangelístico, a música não dá mais pra viver aborda
a importância de se ter “Jesus no coração”, o que para eles significa ser evangélico.
Nos versos, observa-se a idéia de que a conversão à religiosidade evangélica
estabelece uma ruptura na trajetória do convertido em antes e depois. Além disso,
tamm podemos verificar uma apologia ao uso de instrumentos e ritmos
percussivos na propagação das “boas novas evangélicas”.
Encontramos, no repertório do grupo Tambores Remidos, algumas músicas
que remetem à concepção de que a Divindade se manifesta, entre os evangélicos,
através da promoção de milagres. A seguir, apresento uma música que expressa
claramente essa iia.
Milagre
Tambores Remidos
Milagres, milagres, milagres, Deus irá fazer (3X) (v1)
Só tu só Senhor
Pode fazer aquilo que impossível acontecer (2X)
Só tudo Senhor pode realizar, um milagre no meu coração
Me alegrarei, em ti o Cristo (v5)
Bendirei o teu nome
Eu irei louvar sua Majestade santa
Em ti, Jesus, eu vou confiar.
Milagres, milagres, milagres, Deus irá fazer (3X)
Quando cessam as forças do homem (v10)
E não há mais quem se recorrer
Uma voz brada no céu
Sendo assim, “clama a mim e responder-te-ei”
E eu renascerei
Milagres, milagres, milagres, Deus irá fazer (3X) (v15)
164
Para uma visualização da forma como o grupo executa esta música, ver o site:
http://www.youtube.com/watch?v=XmTDstukWTM (consulta feita em 20/07/2008)
193
Sendo uma mescla de funk com axé music, a música Milagres tem como
tema a possibilidade da ocorrência de milagres entre os evangélicos. Neste sentido,
pode-se afirmar que, com relação ao conteúdo, há uma aproximação tanto das
“músicas pentecostais” como dos “hinos de adoração e louvor”, onde a concepção
de que a Divindade se manifesta através de milagres é muito presente.
4.4.4 A produção musical evangélica
Ao longo do capítulo, vimos que as primeiras igrejas evangélicas no Brasil
formaram seus hinários oficiais com músicas que tinham um forte apelo
evangelístico. Influenciadas pelos movimentos avivalistas e utilizando melodias
norte-americanas, tais denominações focaram, em suas músicas, a importância da
conversão à religiosidade evangélica como o único caminho para a obtenção da
salvação eterna. Em uma atitude de repúdio ao mundo”, procuram não empregar as
musicalidades e os instrumentos nativos, principalmente os que estavam associados
às religiões afro-brasileiras e às danças consideradas sensuais.
Por várias décadas, no Brasil, a produção musical, formada pelas primeiras
igrejas evangélicas brasileiras, teve sua perpetuação pelo simples fato de ser
considera como a “autêntica” música sacra. Porém, como foi apresentado, a partir
do final dos anos 50, este quadro passou a mudar. No interior das igrejas
pentecostais, houve uma proliferação de corinhos, fortemente associados à
cosmologia desse segmento evangélico. Por sua vez, nas igrejas tradicionais, por
influência de organizações norte-americanas, passou também a circular uma outra
modalidade de músicas curtas, que além de ter um forte apelo evangelístico tamm
se inspirava nas melodias das músicas daquele país. Enquanto, que nas igrejas
pentecostais houve uma maior abertura às músicas e aos instrumentos populares
violão, pandeiros, bumbos e sanfona-, nas igrejas tradicionais, musicalidades norte-
americana, que já estavam presentes na cena secular brasileira, passaram a chamar
atenção, principalmente dos mais jovens e dos grupos musicais que surgiram
tamm naquela época.
194
Ao longo dos anos, mesmo havendo um diálogo maior com a produção
musical popular e de massa, essas inovações não tiveram uma grande aceitação
entre os evangélicos. Contudo, há fortes indícios de que isso está mudando. Com a
constituição do mercado fonográfico evangélico, somada a perspectiva evangelística
de “resgate do mundo” adotada por algumas igrejas, gêneros e ritmos musicais
associados freqüentemente à sensualidade e às religiosidades afro-brasileiras
passaram a integrar o repertório evangélico, tendo, porém, um trabalho de letra, que
passa a propagar a mensagem evangélica.
Ainda que tenham sido incorporadas novas sonoridades musicais, de modo
geral, com relação aos conteúdos, observa-se que a produção musical evangélica
tende a valorizar os temas abordados na “hinódia oficial evangélica”, principalmente
a conversão como o único caminho para a garantia de uma vida eterna. Inclusive,
algumas musicalidades, como o funk evangélico, tem produzido letras com um
caráter altamente moralista, reafirmando, dessa maneira, os valores e os
comportamentos compartilhados pelos evangélicos. Contudo, com relação às
“músicas de adoração e louvor”, verifica-se uma descontinuidade marcante com
relação à forma de se pensar e experimentar a relação com o sagrado.
195
CONCLUSÃO
Ao longo da tese, apresentei as condições sociais e culturais que contribuíram
para a formação de um mercado fonográfico evangélico no Brasil. Seguindo uma
perspectiva teórica que busca compreender o fenômeno através de suas dinâmicas
internas, procurei analisar a organização estrutural desse nicho do mercado, bem
como o sentido de missão religiosa que tem motivado a profissionalização da
produção musical evangélica.
Vimos que, quanto à organização, ainda que existam diversas empresas de
pequeno e médio porte, o mercado fonográfico evangélico tem se estruturado em
grandes blocos empresariais. As três maiores gravadoras evangélicas, que são
responsáveis pela maior parte da produção musical desse segmento do mercado,
procuram se moldar em grandes conglomerados empresariais, que integram
veículos de comunicação, editoras, portais na Internet, distribuidoras e lojas
associadas por todo território nacional. Diferentemente de outras grandes empresas
fonográficas que têm fragmentado e terceirizado as etapas de produção, as maiores
gravadoras evangélicas procuram gerir todo o processo de elaboração dos produtos
musicais: produção, distribuição e divulgação. Além disso, um outro dado que
singulariza esse nicho empresarial dos demais é a forte vinculação entre algumas
igrejas e empresas fonográficas. Inclusive, como foi salientado no primeiro capítulo,
boa parte das gravadoras é dirigida por denominações evangélicas, e as que não
integram o patrimônio de instituições religiosas, pertencem, pelo menos, a políticos
ou a empresários desse segmento religioso.
Em grande parte, o mercado fonográfico evangélico tem sido impulsionado
por um sentido de missão religiosa. De modo geral, a expansão e profissionalização
da produção musical evangélica inseri-se num projeto proselitista, muito difundido
pelas igrejas neopentecostais, que busca “regatar” os indivíduos não-evangélicos a
partir de práticas de evangelização bem diferentes das tradicionais. Neste sentido,
para eles, a reprodução em série, via indústria fonográfica, não tiraria a “aura” da
música evangélica
165
. Pelo contrário, a produção industrial dessa música garantiria a
165
Segundo Walter Benjamim (1996), uma das conseqüências mais direta do processo de reprodutibilidade
técnica da arte seria “atrofia” de sua “área”. Em outros termos, para o filósofo da Escola de Frankfurt, a
reprodução em série pela indústria, permitiria a emancipação da obra de arte de seu contexto social e histórico.
196
expansão das “boas novas” evangélicas, bem como dos valores compartilhados por
eles.
Contudo, como vimos nos capítulos dois e três, ainda que seja motivado por
um sentido missionário razoavelmente compartilhado, existem disputas, conflitos e
segmentações entre os atores sociais evangélicos, bem como controvérsias com
relação ao “verdadeiro” papel dos cantores, das lideranças evangélicas e dos
empresários.
Primeiramente, por integrarem diferentes empresas e por estarem vinculadas
a determinadas igrejas, as maiores gravadoras evangélicas fomentaram a formação
de redes de favorecimento- os “circuitos de produção em grandes gravadoras” -
que beneficiam um círculo restrito de atores sociais - cantores, pastores, produtores
e empresários. Os artistas que conseguem ser contratados por essas empresas
fonográficas e, conseqüentemente, entrar nesses circuitos, têm grandes
possibilidades de se tornar reconhecidos, na medida em que a produção,
distribuição e divulgação de seus álbuns serão garantidas. Por outro lado, os
cantores que não fazem parte desses complexos de relações dificilmente alcançam
grande audiência. As trajetórias de Rose Nascimento, Lúcia Lombardi e Álvaro
Júnior, apresentadas no segundo capítulo, ilustram claramente essa discrepância.
Em especial, a análise da jornada de vida de Rose Nascimento possibilitou
um entendimento maior sobre as características da “celebridade evanlica”. Ao
mesmo tempo que suas ações e seus discursos indicam um desejo de ser vista
como um “instrumento da divindade” como um “elo de ligação” entre audiência e o
sagrado -, por outro lado, o modo como Rose “cuida de si”, bem como a maneira
como se apresenta em público, se assemelha às celebridades que transitam no
“mundo não-evangélico”. As histórias de vidas de Lúcia Lombardi e de Álvaro Júnior
possibilitaram uma compreensão maior sobre produção dos cantores evangélicos
outsiders, seja pela dificuldade de passagem dos valores conquistados no meio
secular para um outro cenário profissional, seja por estarem distantes do centro
irradiador da indústria fonográfica evangélica.
O crescimento desse mercado, que integra tanto dinâmicas religiosas como
mercantis, tamm tem produzido controvérsias com relação ao “verdadeiro” papel
das igrejas, dos grupos de louvor e das empresas fonográficas. No terceiro capítulo,
apresentei um estudo de caso, no qual a Igreja Ministério Apascentar, sob o lema do
197
“resgate do mundo”, fundou uma gravadora, destinada à produção das músicas de
seu ministério de louvor. Vimos que, em poucos anos, o Toque no Altar da Igreja
Ministério Apascentar tornou-se um dos grupos mais conhecidos do Brasil, sendo,
um dos maiores campeões em vendagem de CDs no segmento gospel. Contudo, a
profissionalização da gravadora da igreja, em 2006, trouxe vários conflitos entre a
liderança pastoral e os integrantes do Toque no Altar, que resultaram, na saída de
alguns músicos do grupo. Essa disputa, que acabou incorporando o poder judiciário,
anuncia uma redefinição da concepção do papel dos ministérios de louvor.
Sem dúvida, a formação do mercado fonográfico evangélico está relacionada
à expansão de uma audiência peculiar. Com a profissionalização das gravadoras, a
música evangélica passou a ser distribuída e divulgada em todo território nacional.
Como foi salientado no quarto capítulo, na atualidade, o “gospel tupiniquim” já
representa 30% da produção musical brasileira e seu repertório inclui uma grande
variedade de ritmos. Em especial, procurei dar relevo a três “estilos musicais
evangélicos”, que têm sido amplamente produzidos pelas gravadoras, a saber:
“músicas pentecostais” - uma versão dos “hinos de fogo”-, hinos de adoração e
louvor” e músicas resgatadas”. Sendo músicas que também integram a liturgia dos
cultos, procurei relacioná-las à cosmologia desse segmento religioso e às
performances que são desenvolvidas quando são executadas. Enquanto que as
“músicas pentecostais” e os “hinos de adoração” estão mais ligados à libertação” e
à “purificação” dos fiéis, as músicas resgatadas”, depois de terem sido assimiladas
pelos evangélicos, passaram a ser usadas, sobretudo para fins de proselitismo e
para a regulação do comportamento dos jovens.
Em cada capítulo, portanto, indiquei aspectos distintos do mercado
fonográfico evangélico, ressaltando as polêmicas, as controvérsias e as mudanças
de concepções produzidas ao longo de seu desenvolvimento. Contudo, agora, torna-
se necessária uma análise mais de conjunto.
Como tem sido estudado, o crescimento do pentecostalismo não é um
fenômeno específico brasileiro, mas sim um evento em escala global (Velho, 1997).
Contudo, ainda que algumas iias circulem mais amplamente como é o caso da
forte distinção entre o céu e a terra (Robbins, 2008) -, em cada região, por estarem
imersos em cenários político-sociais distintos, os evangélicos têm criado estratégias
diferenciadas para garantir a sua perpetuação, ora replicando em si as formas
198
canônicas das culturas em que se inserem, ora introduzindo seus valores e suas
concepções religiosas na dinâmica das sociedades em que se enraízam (Idem,
2004).
No Brasil, fortes indícios de que os dois processos estão se dando ao
mesmo tempo. A maneira como estrutura-se e utiliza-se o mercado fonográfico
evangélico indica esse duplo movimento. Para ilustrar, a seguir descrevo um evento
que participei.Trata-se da gravação ao vivo do DVD do grupo Diante do Trono, na
Praça da Apoteose, no Centro do Rio de Janeiro.
Depois de várias disputas com a prefeitura da cidade do Rio de Janeiro, a
Igreja Batista da Lagoinha de Belo Horizonte (MG) conseguiu marcar a tão esperada
gravação do DVD do Diante do Trono na Praça da Apoteose, no sambódromo
carioca, no dia 07 de julho de 2007. Recordo-me que este evento teve uma grande
repercussão entre os evangélicos não somente pelo fato de ser a comemoração dos
10 anos de existência deste ministério de louvor, mas tamm por ter sido realizado
no sambódromo, um local associado ao carnaval, ao samba, às bebidas alcoólicas,
às mulheres seminuas e tudo que os evangélicos dizem combater.
Naquele dia, ainda no início da passarela do samba, pude observar a
grandiosidade do evento. Em meio aos camelôs que vendiam “artigos evangélicos”
(blusas, faixas, broxes, bonés e etc.) e entre as carrocinhas de cachorros-quentes e
“churrasquinhos”, uma multidão se dirigia à Praça da Apoteose, onde o palco central
foi montado. Na aglomeração, havia crianças, idosos, mas, sobretudo, jovens das
mais variadas procedências sociais e econômicas. Seguindo o fluxo de pessoas,
cada vez que olhava para as arquibancadas e setores, ia ficando mais
impressionado com a grande adesão dos evangélicos ao show. Praticamente todas
as dependências do sambódromo estavam lotadas. De antemão, esperando o
grande número de participantes, a organização do evento colocou vários telões de
projeção ao longo da passarela do samba.
Quando ainda estava no meio da passarela do samba, anunciaram que o
show estava começando. De repente, ouvi uma voz muito aguda feminina, em alto e
bom som, “Só Jesus Cristo é o Senhor, amém. Quando olhei para um dos telões, vi
que se tratava de Ana Paula Valadão, a principal vocalista do Diante do Trono.
Muitos correram em direção à Praça da Apoteose; outros glorificaram a Deus; alguns
199
choraram; enquanto muito outros responderam, dizendo: “amém. O show havia
começado.
Depois de alguns minutos, como muita dificuldade, consegui ficar próximo ao
palco. Sem nenhum exagero, foi o maior show que presenciei durante a pesquisa.
Era uma megaestrutura com dois telões, de alta resolução, nas extremidades.
Víamos, nitidamente, o vestido prateado de Ana Paula Valadão, as performances
dos músicos da banda, bem com as coreografias sincronizadas dos dançarinos do
Diante do Trono.
No palco, além de um grande letreiro iluminado no alto escrito Paz”, foram
colocadas projeções de desenhos que estabeleciam nexos com as músicas e com
as coreografias. Por exemplo, quando foi cantada uma música, em que Jesus Cristo
era chamado de Leão de Judá - uma alusão ao seu poder-, foram projetadas
imagens de um leão e todos, motivados pelo grupo, reproduziram gestos que
remetiam a este animal. Essa dinâmica que junta imagem, música e performance e
que estabelece uma aproximação entre artistas e audiência, foi desenvolvida ao
longo da programação.
Seguindo uma tendência que já tinha observado em outras programações
musicais, a audiência conduzia sozinha as performances. Brados, como, eh, eh, eh,
Jesus é o nosso rei”, ou ele voltará, ah, ah, ah”, seguidos de pulos, foram
constantes e contagiavam a multidão. Essas manifestações efusivas pareciam
ocorrer nos momentos em que as imagens da multidão eram projetadas nos telões.
Parecia que a grandiosidade da massa de vencedores”
166
fomentava ainda mais
tais manifestações. Embora, os cantores tenham conduzido o evento diretamente,
seja executando as músicas ou indicando as coreografias que deveriam ser
realizadas, a audiência tamm se comportou como co-diretora. Mesmo existindo
diferentes motivações para o público estar ali, presume-se que todos estavam ali
para “louvar” a Deus.
Com relação às músicas executadas, houve uma grande diversidade de
ritmos, um dado bastante interessante, na medida em que a especialidade do Diante
do Trono são os “hinos de adoração e louvor”. No repertório do grupo, que
166
Em um artigo sobre a Igreja Universal do Reino de Deus, Patrícia Birman defendeu a idéia de que, ao
produzir grandes eventos espetacularizados, a IURD estaria contribuindo para a criação de um novo imaginário
sobre os evangélicos, mas associado à opulência, à riqueza, ao cosmopolitismo, e à globalização (2000, p
242).
200
posteriormente resultou no álbum Príncipe da Paz”, escutei baladas românticas,
rock mais pesados, canções, bossa-nova e até uma versão pop do Aleluia de
Handel.
Entre as músicas executadas, a Rio de Janeiro me chamou mais atenção.
Trata-se de uma música no estilo bossa nova, em que se solicita a proteção de Deus
para a cidade do Rio de Janeiro. Os versos Rio de Janeiro, que o Cristo vivo e
verdadeiro, estenda os braços sobre s e nos abençoeexplicitam claramente este
objetivo. Durante a execução, algumas imagens que são comumente usadas para
fazer alusão tanto a bossa-nova como à “cidade maravilha” foram projetadas: Cristo
Redentor, Pão de Açúcar, Maracanã e Praia de Copacabana. Na verdade, esse
momento da programação foi um dos mais significativos, tendo em vista que o intuito
do evento, como informou Ana Paula Valadão, era lançar um clamor pela paz para
a Cidade Maravilhosa”.
Logo em seguida, a vocalista principal do Diante do Trono iniciou uma
“ministração” que durou alguns minutos. Ao som do instrumental da música, Ana
Paula orou para que todos os presentes não sofressem nenhum tipo de violência.
Neste momento, todos que estavam ao meu redor, passaram a suplicar em voz alta
e uma polifonia de sons tomou o lugar.
As orações se intensificaram, quando Ana Paula pediu para que todos
dessem as mãos e clamassem a Deus para que o carnaval do Rio de Janeiro
falisse. Com uma voz chorosa e embargada, a cantora tamm implorou a Deus
para que o sambódromo deixasse de ser um lugar da “vergonha”, da
“promiscuidade” e do “pecado”.
tendo como pano de fundo o instrumental de um outro hino, no “estilo de
adoração e louvor”, um dos membros do Diante do Trono, entregou uma grande
chave para o líder do grupo. Em seguida, Ana Paula Valadão a levantou e cantou os
seguintes versos, seguida pela audiência:
Teu é o reino (3x)
Teu é o poder (3x)
Tua é a Glória (3x)
Enquanto isso, dois bailarinos ergueram uma grande faixa branca atrás da
cantora. E em meio ao turbilhão de vozes e choros que vinham da multidão, ela
disse as seguintes palavras: Esta cidade não será mais conhecida com as água de
Yemanjá, mas como as águas que revelam a glória do Senhor”, e logo após, ainda
201
muito emocionada, proferiu: O Rio de Janeiro será o cartão postal do Reino de
Deus no Brasil
167
.
Depois deste momento de ministração”, outras músicas, de álbuns
anteriores, foram executadas, enquanto os dançarinos também seguravam a
bandeira do Brasil. O show, que lembrava um grande culto espetacularizado ao ar
livre, havia terminado.
Este evento que levou uma grande multidão ao sambódromo carioca nos
ajuda a pensar vários aspectos sociológicos e simbólicos que então no bojo da
expansão da segunda maior religiosidade no Brasil.
No Brasil, cada vez mais a realização de grandes shows tem sido vista como
uma ótima estratégia proselitista. Visando atingir um contingente populacional cada
vez maior, os evangélicos sobretudo os neopentecostais -, associados às
empresas fonográficas e aos meios de comunicação, têm promovido grandes
eventos espetacularizados, com recursos tecnológicos do mais variados, em
parques e em estádios das principais capitais do país. Ainda que lancem mão de
toda tecnologia de ponta e procurem reproduzir ao máximo a estrutura dos grandes
shows dos cantores o-evangélicos, eles não deixam de introduzir, em seus
eventos voltados para as multidões, sua lógica cultural - valores, concepções e
rituais.
Como vimos, para além da questão empresarial, a gravação do DVD do
Diante do Trono acabou se tornando um grande culto espetacularizado, onde as
especificidades denominacionais foram deixadas de lado e um sentido de união foi
reforçado. Igualmente a outros eventos de que participei, os cantores deste
ministério de louvor se reportaram à audiência como o “Povo de Deus” no Brasil.
Neste sentido, pode-se afirmar também que, ao promover os megaeventos
musicais, as gravadoras e as igrejas evangélicas vinculadas a elas - têm
contribuído para uma maior comunicação entre os evangélicos. Isso não quer dizer
que estejam postulando o afrouxamento dos vínculos institucionais, até porque estar
ligado a uma igreja evangélica é a condição sine qua nom para integrar o “Povo de
Deus”. Contudo, nessas programações, busca-se romper as barreiras
denominacionais em nome de uma vinculação mais ampla. Sintomaticamente, a
167
Essa “ministração tamm foi disponibilizada no youtube. Para maiores esclarecimentos, ver:
http://www.youtube.com/watch?v=0vwA-JoGoiU (consulta em 05/08/08)
202
criação de um “idioma comum, mais inclusivo e que não toque em questões que
demandem divergências de opiniões, tornar-se necessária.
Como foi apresentando, na gravação do Diante do Trono buscou-se afirmar
temas e projetos comuns a todos os evangélicos como, a superação da violência na
cidade do Rio de Janeiro por intermédio de um clamor à Divindade; a disseminação
de “valores positivos” para os jovens, que incluem a valorização da castidade antes
do casamento; a necessidade do “Povo de Deus” “resgatar” os domínios da cultura –
no caso o carnaval; e a difusão da idéia que o “Brasil é do Senhor” – concepção esta
que passa pela vinculação dessa religiosidade a elementos culturais até então
associados ao catolicismo ou às religiosidades afro-brasileira, e a associação dos
“crentes” à símbolos nacionais, como a bandeira do Brasil.
Mesmo o havendo uma unidade institucional, há fortes indícios de que os
grandes eventos evangélicos, que são produzidos por empresas fonográficas, têm
contribuído para uma comunicação maior entre os evangélicos, ao mesmo tempo
em que os produtos fonográficos circulam com mais fluidez no meio da Audiência
do Espírito Santo”.
203
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212
APÊNDICE A
Roteiro semi-estruturado utilizado para entrevistar os cantores evangélicos
I) Trajetória Profissional
1) Nome?
2) Idade?
3) Filhos?
4) Por que escolheu esta carreira profissional?
5) Quais foram os acontecimentos que te impulsionaram a seguir esta carreira?
6) Quais formam os eventos mais significativos em trajetória profissional?
7) Quando você se converteu, como estava a sua carreira?
II) Conversão
1) Quando você se converteu?
2) Como foi a sua conversão?
3) Teve alguém ou algum fato que você associa a sua conversão?
4) Antes de ser evangélico (a), você pertencia a alguma religião?
5) Quais são as coisas que você deixou de fazer depois de convertido (a)?
6) Quais foram as coisas que você passou a fazer depois da conversão?
7) Como as pessoas mais próximas de você se comportaram diante de sua
conversão?
III) Vida eclesial
1) Você freqüenta os cultos em que igreja evangélica?
2) Tem alguma função ou cargo na igreja?
3) Como os outros membros te vêem? Tem algum privilégio?
IV) Experiências religiosas
1) O que você encontra em Deus que não tem em outro lugar?
2) Você já foi batizado no Espírito Santo?
3) Tem algum dom?
4) Você já vivenciou alguma experiência com Deus?
5) Como você vê o demônio? Ele tem atuando nos últimos dias?
6) De alguma forma, você já lutou contra as forças demoníacas?
V) Evangélicos no Brasil e no mundo
1) Como você vê o crescimento dos evangélicos no Brasil?
2) Na sua concepção, quais sãos os fatores que têm colaborado para o aumento
e visibilidade dos evangélicos no cenário nacional?
3) Como você vê a conversão de artistas e políticos à religiosidade evangélica?
4) Muitas críticas têm sido feitas em relação à conversão de artistas. O que você
pensa sobre isto?
213
VI) Artista & Público
1) Como era a sua relação com o público ou com fãs antes da conversão?
Houve alguma mudança?
2) Na sua concepção, como os seus fãs e o público em geral o (a) percebe?
3) Existem diferencias entres os fãs evangélicos e os não-evangélicos?
4) Após a sua conversão, sua popularidade aumentou ou diminuiu?
VII) O artista & A pessoas
1) Como é o seu dia-a-dia?
2) Existe muita diferença entre o artista (nome) e a pessoa (nome)? Quais?
3) Quando você está na mídia, ou fazendo um show, os seus parentes e amigos
te tratam de forma diferente?
4) Você já adotou algum posicionamento em público que interferiu em suas
relações com familiares e amigos?
5) Você já fez alguma coisa que tenha se arrependido depois?
6) Quais são os seus projetos para o futuro?
214
APÊNDICE B
Roteiro semi-estruturado utilizado para entrevistar os membros da Igreja
Ministério Apascentar.
I) Dados pessoais
8) Nome?
9) Idade?
10) Estado civil?
11) Filhos?
12) Mora em que bairro?
13) Fale sobre as condições físicas de seu bairro?
II) Conversão
8) Antes de ser evangélico (a), você pertencia a alguma religião?
9) Como foi a sua conversão?
10) Quais são as coisas que você deixou de fazer depois de convertido (a)?
11) Quais foram as coisas que você passou a fazer depois da conversão?
12) Como você conheceu a Igreja Apascentar?
III) Vida eclesial
1) Tem alguma função ou cargo na igreja?
IV) Concepções sobre a Igreja
7) O que você mais gosta na Igreja Apascentar?
8) Fale de uma situação ou um evento que ocorreu na igreja que te marcou.
9) Qual é a parte do culto que você mais gosta?
10) O que você acha do Toque no Altar?
11) Quais os hinos que você mais gosta do Toque no Altar? Explique
12) Você freqüenta as programações (shows, passeatas, festas temáticas etc.)
realizadas pela Igreja Apascentar?
V) Concepções sobre música evangélica
5) Quais os cantores e/ou grupos que você mais gosta?Explique.
6) Quais os tipos de hinos que você mais gosta?
7) Em quais lugares você costuma ouvir as músicas evangélicas?
8) O que você sente quando está escutando as músicas evangélicas?
9) Você costuma ouvir músicas “do mundo”?
10) O que você acha das gravadoras evangélicas?
11) Quando tem um tempo livre o que você gosta de fazer?
215
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