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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO
FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS
DEPARTAMENTO DE FILOSOFIA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM FILOSOFIA
Flamarion Caldeira Ramos
A “MIRAGEM” DO ABSOLUTO
Sobre a contraposição de Schopenhauer a Hegel:
Crítica, Especulação e Filosofia da Religião
São Paulo
2008
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Flamarion Caldeira Ramos
A “MIRAGEM” DO ABSOLUTO
Sobre a contraposição de Schopenhauer a Hegel
Crítica, Especulação e Filosofia da Religião
Tese apresentada ao programa de Pós-
Graduação em Filosofia do
Departamento de Filosofia da Faculdade
de Filosofia, Letras e Ciências Humanas
da Universidade de São Paulo, para
obtenção do título de Doutor em
Filosofia sob a orientação da Profa. Dra.
Maria Lúcia Mello e Oliveira Cacciola
São Paulo
2008
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DEDICATÓRIA
À dona Maria José
“Zeza”
Mãe
“Em nossa época o intelectual não está, na verdade, isento
das pressões que a economia exerce sobre ele para satisfazer as
exigências constantemente mutáveis da realidade.
Consequentemente, a meditação, que visava a eternidade, é
posta de lado pela inteligência pragmática, que visa o momento
seguinte. Em vez de perder o seu caráter de privilégio, o
pensamento especulativo é inteiramente liquidado – e isso
dificilmente pode ser chamado de progresso. É verdade que
nesse processo a natureza perdeu o seu caráter atemorizador,
suas qualitates ocultae, mas, ao ser completamente despojada da
possibilidade de falar através das mentes humanas, mesmo na
linguagem destorcida desses grupos privilegiados, a natureza
parece estar se vingando”
Max Horkheimer
Eclipse da Razão
v
AGRADECIMENTOS
Gostaria de registrar aqui meu agradecimento a todo apoio e tempo concedidos pelo
Departamento de Filosofia da Universidade de São Paulo. Agradeço em especial o
carinho e a atenção do pessoal da secretaria do departamento: Marie Pedroso, Maria
Helena, Verônica, Luciana, Roseli, Geni e Ruben.
Agradeço ao professor Mathias Kossler por ter gentilmente me recebido para um
período frutífero de pesquisa na Johannes Gutemberg-Universität de Mainz e também
ao professor Michael Gerhardt, responsável pelo meu contato com a obra de Philipp
Mainländer.
Agradeço aos professores Caetano Ernesto Plastino, Moacyr Novaes e José Carlos
Estêvão pelo auxílio nos tempos de iniciação científica; aos professores José Eduardo
Marques Baioni e Eduardo Brandão pelo instrutivo exame de qualificação. Aos
professores José Thomaz Brum, Silvio Rosa Filho, Marcio Suzuki e Osvaldo Giacóia
por todas as conversas e dicas enriquecedoras. À minha orientadora, professora Maria
Lúcia Cacciola, agradeço por toda paciência e apoio dispensados ao longo de todos
esses anos.
Aos amigos dos grupos de estudos de filosofia alemã da Usp e em especial ao Prof.
Ricardo Terra, por ter aceitado discutir esse trabalho no interior de um deles e pelas
valiosas observações. Agradeço a todos que o discutiram comigo em especial a Marisa
Lopes, Rúrion Soares Melo, Fernando Costa Mattos, Luiz Sérgio Repa, Monique
Hulshof, Erinson Otênio, Bruno Nadai, Bruno Simões, Ricardo Crissiúma e Francisco
Prata Gaspar. Também não posso deixar de agradecer a Luís Nascimento, Ana Carolina
Soliva Soria, Maurício Keinert, Ivanilde, Marília e Cristina. Aos amigos da Facamp e da
Unopec pelo apoio.
Às amigas Adriana Viana Campos e Flavia Felix Pucci – não me esquecerei de que
você, Flavia, foi uma das mais entusiastas defensoras do tema desta tese.
Aos amigos do Goethe Institut e em especial ao profº Henrique Oliveira.
À minha Mãe, Maria José, aos irmãos Anderson e Jeferson e irmãs, Érika e Cris. Ao
Léo e ao Guilherme. À Sheila e sua família, pelo companheirismo nos primeiros anos
deste trabalho.
Aos amigos por razões que só eles conhecem: Valter José Maria Filho, Igor Siva Alves,
Luciano, Ivan Neves Marques Jr., Flávio Ricardo, Marcio José Silveira Lima, Cléber e
Paola, Érico Nogueira, Bruno Learth, Denílson Soares Cordeiro, Gilberto Tedéia, Jarlee
Salviano e Paulo Jonas de Lima Piva: “companheiros de infortúnio”. (Leidensgefährte,
Socî malorum, compagnon de misères, my fellow-sufferer, Parerga, § 156).
À Fapesp pela bolsa de quatro anos, e ao DAAD que me possibilitou a estadia de três
meses na Alemanha.
vi
RESUMO
Ramos, Flamarion Caldeira. A “miragemdo absoluto. Sobre a contraposição de
Schopenhauer a Hegel: Crítica, Especulação e Filosofia da Religião. 2008. 264 f. Tese
(Doutorado) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas. Departamento de
Filosofia, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2008.
Esta tese procura reconstruir a crítica de Schopenhauer a Hegel, para além das
invectivas e juízos sumários. Embora não escreva um texto específico sobre esse tema,
a posição crítica de Schopenhauer em relação a Hegel é formulada em vários momentos
de sua obra. Nosso trabalho consiste, em um primeiro momento, em reconstruir a crítica
de Schopenhauer, comparando-a com as posturas críticas de Schelling e Feuerbach.
Trata-se de expor e analisar os argumentos de Schopenhauer de modo a construir uma
imagem crítica da filosofia de Hegel e, ao mesmo tempo, mostrar em que sentido essa
mesma crítica pode ser relativizada do ponto de vista da filosofia hegeliana. Nesse
sentido, o presente trabalho procura refletir sobre a dificuldade implicada na tarefa de
construir uma crítica da filosofia de Hegel, já que como mostrou Gérard Lebrun, Hegel
oferece menos uma filosofia que um discurso que é mal compreendido sempre que
tentamos julgá-lo a partir de nossos pressupostos discursivos. Num segundo momento,
examinamos os pontos comuns da abordagem especulativa presente em ambas as
filosofias e investigamos temas tais como a questão da determinação das coisas finitas
em relação à realidade substancial, a tarefa da filosofia e o problema da exposição da
verdade filosófica. Num terceiro e conclusivo momento, procuráremos contrapor a
filosofia da religião de ambos os autores, pois como pretendemos mostrar, o tema da
fronteira entre a filosofia e a religião é fundamental para estabelecer a oposição entre os
autores sobre a questão central da exposição do absoluto e dos limites do conhecimento.
Por fim, ofereceremos ainda alguns textos paralelos a essa tese que procuram refletir
sobre as interpretações de autores como Lukács e Horkheimer sobre a contraposição
entre Hegel e Schopenhauer.
Palavras-chave: Schopenhauer, Hegel, Absoluto, Vontade, Especulação, Religião
vii
ABSTRACT
Ramos, Flamarion Caldeira. The “mirage” of the Absolute. On the contraposition of
Schopenhauer and Hegel: Critique, Speculation and the Philosophy of Religion. 2008.
264 p. Thesis (PhD) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas.
Departamento de Filosofia, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2008.
This thesis seeks to reconstruct Schopenhauer's criticism of Hegel, beyond invective
and brief judgment. Though he does not write on the theme specifically, Schopenhauer's
critical position with regards to Hegel is formulated at several moments of his oeuvre.
This work consists of reconstructing Schopenhauer's criticism at first, by comparing it
to the criticism of Schelling and Feuerbach. It aims at exposing and analyzing
Schopenhauer's arguments so as to build a critical image of the philosophy of Hegel,
and simultaneously demonstrate how this very criticism can be relativized from a
Hegelian point of view. Therefore, this work seeks to reflect upon the difficulty implied
in the task of constructing a criticism of the philosophy of Hegel, since Hegel, as Gérard
Lebrun has demonstrated, offers less of a philosophy than a discourse which is
misunderstood whenever we attempt to judge it from the perspective of our discursive
presuppositions. Secondly, we shall examine the common points in the speculative
approach present in both philosophies, and investigate themes such as the question of
the determination of the finite in relation to the substantial reality, the task of
Philosophy and the problem of the exposure of the philosophical truth. Thirdly, we'll
attempt to counterpose the philosophy of religion of both authors, for, as we intend to
demonstrate, the theme of the frontier between Philosophy and Religion is crucial to
establish the opposition between the authors on the central issue of exposure of the
Absolute and of the limits of knowledge. Finally, we shall look into a few other texts –
parallel to this thesis – which aim at reflecting upon the interpretations of authors such
as Lukács and Horkheimer about the counterposition between Hegel and Schopenhauer.
Key-words: Schopenhauer, Hegel, the Absolute, the Will, Speculation, Religion
viii
ZUSAMMENFASSUNG
Ramos, Flamarion Caldeira. Die Luftspiegelung des Absoluten. Schopenhauers
Auseinandersetzung mit Hegel: Kritik, Spekulation und Philosophie der Religion. 2008.
264 S. These (Doktorarbeit) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas.
Departamento de Filosofia, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2008.
Die verschiedenen Möglichkeiten, Schopenhauers Auseinandersetzung mit Hegel zu
entwickeln macht das Ziel unserer Untersuchung aus. Obwohl Schopenhauers Kritik an
Hegel auf das ganze System zielt, letztere ist aber nicht systematisch orientiert wie die
Kritik an Kant. Es gibt keine bestimmte Stelle im Werk Schopenhauers, die sich
spezifisch auf Hegels Philosophie bezieht. Es gibt nur vereinzelte Bezüge und auch
viele Ungenauigkeiten, Schiefheiten und Missverständnisse in Schopenhauers
Charakterisierung von Hegel. Man soll aber bemerken, jenseits der Unqualifiziertheit
dieser Aussagen, das theoretische Gewicht dieser Kritik innerhalb Schopenhauers
Philosophie, und auch im Rahmen der Geschichte der Kritiken gegen Hegels
Philosophie. Demgemäss, möchten wir alle Ansichten der vorläufigen Gegnerschaft
beider Philosophien zu entfalten und in einem zweiten Moment die Analyse zu
vertiefen, um genau zu bestimmen, inwieweit Schopenhauers Sicht über die Hegelsche
Philosophie einseitig und unrichtig ist, oder mehr als ein bloßer Interpretationsfehler ist.
Unsere Untersuchung wird als wichtige Richtlinien einige grundlegende begriffliche
Ausgangspunkte, die zur kritischen Haltung Schopenhauers gegen Hegel und den
spekulativen Idealismus gehören, wie z.B., die Beschränkung der Anschauung auf
sinnlichen Erfahrungen, die Ablehnung des Begriffs von Absolutem Wissen, die
Annahme der Materie als “Sichtbarkeit des Willens”, die Verneinung der Theleologie
der Geschichte. Die zentralen Problemen der Darstellung des Absoluten und der
Bestimmung der Grenze der Erkenntnis bilden die Hauptfragen diser Arbeit. Sie werden
untersucht im Rahmen sowohl der spekulativen Lehren als auch der
Religionsphilosophien beiden Autoren. Schließlich werden die verschiedenen
Interpretationen der Auseinandersetzung Schopenhauer mit Hegel bei Lukács und
Horkheimer diskutiert. In dieser Hinsicht, ist Schopenhauers Auseinandersetzung mit
Hegel keine zufällige Beschaffenheit des Schopenhauerschen Pessimismus, sondern der
entscheidende Punkt die Bedeutsamkeit und Aktualität seines Gedankens zu prüfen.
Stichwörter: Schopenhauer, Hegel, das Absolute, Wille, Spekulation, Religion
ix
SUMÁRIO
Agradecimentos V
Resumo VI
Abreviações XI
Introdução 1
Primeira parte – Crítica 16
1. Generalidades sobre a idéia de uma “crítica da Filosofia de Hegel” 16
Schelling
Feuerbach, o jovem Marx
2. A crítica de Schopenhauer 30
3. A astúcia hegeliana 44
A crítica de Hegel a Kant
Dialética e especulação em Hegel
4. Filosofia Transcendental e metafísica da Vontade 54
A crítica de Schopenhauer a Kant
Aporias e paradoxos da filosofia de Schopenhauer
5. Conclusão da primeira parte: Imanência e Transcendência 75
A exposição do absoluto e os limites do conhecimento
Segunda parte – Especulação 83
1. A tarefa da filosofia e a necessidade metafísica 85
Hegel e a tarefa sistemática da filosofia 85
A teoria da “proposição especulativa”
A especifidade da filosofia em Schopenhauer 101
Excurso: Saber substancial – sobre a interpretação de Kossler 111
2. O especulativo em Schopenhauer 114
3. A realidade substancial e a determinação das coisas finitas 127
O mundo como objetivação da vontade em Schopenhauer 128
Finito e infinito em Hegel 139
x
4. Concordância e diferença na determinação do especulativo 150
A oposição fundamental entre Hegel e Schopenhauer
Terceira parte – Filosofia especulativa e religião 157
1. A controversa questão do conceito especulativo de religião 159
O lugar da religião na Fenomenologia: o problema da exposição do
Absoluto 161
A esfera do espírito absoluto e a religião cristã como a
“religião consumada” ou “absoluta” 170
2. Religião e Filosofia em Schopenhauer 185
Da filosofia moral ao misticismo 189
3. Teologia ou cosmologia? 202
4. Versöhnung ou Erlösung? 215
5. “ – Nichts, woraus es resultiert”- última e penúltima palavra 221
Apêndice I: Religião e Filosofia em Horkheimer e Schopenhauer 223
Apêndice II: Pessimismo e política 233
Bibliografia 245
xi
Siglas e Abreviaturas
OBRAS DE SCHOPENHAUER
SW Sämtliche Werke. Editadas e comentadas criticamente por Arthur
Hübscher, Wiesbaden, F. A. Brockhaus, 1972, 7 vols. As referências a
essa edição são indicadas pelas iniciais SW, seguidas do número do
volume em algarismo romano e do número da página em número
arábico.
SG Über die vierfache Wurzel des Satzes vom zureichenden Grunde,
[Sobre a Quádrupla Raiz do Princípio de Razão Suficiente] – 1813 (1
a
ed.), 1847 (2
a.
ed.); Trad. Francesa: De la Quadruple Racine du
Principe de Raison Suffisante, Trad de F. X. Chenet, Paris, J. Vrin,
1991.
WWV Die Welt als Wille und Vorstellung, [O Mundo Como Vontade e
Representação] – 1819 (1a. Ed.), 1844 (2
a
. ed.); 1859 (3a. ed);
Tradução brasileira de Jair Barboza, São Paulo, Unesp, 2005.
WWV, E. Die Welt als Wille und Vorstellung, Ergänzungen, [O Mundo Como
Vontade e Representação: Complementos ] – 1844 (2
a
. ed.); 1859 (3a.
ed).
KKPh Kritik der Kantischen Philosophie. In: WWV (SW I). Crítica da
Filosofia Kantiana, Trad. de Maria Lúcia Cacciola, In: Coleção “Os
Pensadores”, Abril Cultural, São Paulo, 4
ª
ed., 1988
E Die Beiden Grundprobleme der Ethik. [Os Dois Problemas
Fundamentais da Ética] – 1841.
FW Die Beiden Grundprobleme der Ethik, I: Über die Freiheit des
Willens, Os Dois Problemas Fundamentais da Ética, I: Sobre a
Liberdade da Vontade –1841.
FM Die Beiden Grundprobleme der Ethik, II: Über das Fundament der
Moral, Os Dois Problemas Fundamentais da Ética,II: Sobre o
Fundamento da Moral – 1841. Tradução brasileira de Maria Lúcia
Cacciola, São Paulo, Martins Fontes, 1995.
WN Über den Willen in der Natur, Sobre a Vontade na Natureza – 1836.
P Parerga und Paralipomena, I/II, SW V, VI – 1851.
HN Der Handschriftliche Nachlass. Editados por Arthur Hübscher. 1985,
5 vols.
xii
PV Philosophische Vorlesungen, (1821). Editadas por Volker
Spierling, Piper, München, 1986; 4 vols.
GB Gesammelte Brief. Herausgegeben von Arthur Hübscher, Bonn,
Bouvier Verlang Herbert Grundmann, 1987.
OBRAS DE HEGEL
GW Gesammelte Werke. In Auftrag der Deutschen Forschungsgemein-
schaft hrsg. von der Rheinisch-Westfälischen Akademie der
Wissenschaften, Düsseldorf. Hamburgo: F. Meiner, 1968 e segs., 22
vols.
V Vorlesungen. Ausgewählte Nachschriften und Manuskripte. Hamburg:
F. Meiner, 1983 e segs., 16 vols.
W Theorie-Werkausgabe.Werke in 20 Bänden; Suhrkamp Verlag 1970.
Organizadas por Eva Moldenhauer e Karl Markus Michel, Frankfurt,
Suhrkamp, 1971, 20 vols. (abrev. W, seguida pelo número do volume e
da página em arábico).
Differenz Differenz der Fichteschen und Schellingschen Systems der
Philosophie, in Bezug auf Reinhold’s Beiträge zur leichtern übersicht
des Zustands der Philosophie zu Anfang der neunzehnten
Jahrhunderts, 1stes Heft. [Diferença entre os sistemas filosóficos de
Fichte e Schelling] – 1801. Trad. portuguesa de Carlos Morujão,
Lisboa, Imprensa Nacional Casa da Moeda, 2003.
GuW Glauben und Wissen, oder die Reflexionsphilosophie der Subjektivität
in der Vollständigkeit ihrer Formen als Kantische, Jacobische und
Fichtesche Philosophie. [Fé e Saber, ou a filosofia da reflexão da
subjetividade na completude de suas formas enquanto filosofias
kantiana, Jacobiana e Fichteana] - 1802
PhG Phänomenologie des Geistes. [Fenomenologia do Espírito] 1807.
Trad. brasileira de Paulo Meneses, Petrópolis, Vozes, 1992, 2 vols.
WdL Wissenschaft der Logik. [Ciência da Lógica] – 1816-17/1832
Enz Enzyklopädie der philosophischen Wissenschaften in Grundrisse
[Enciclopédia das Ciências Filosóficas] – 3ª ed. 1830
1
. Trad.
Brasileira em 3 vols: I: A Ciência da Lógica; II: Filosofia da
Natureza; III: A Filosofia do Espírito. Trad. por P. Meneses, [vols. I e
II] e J. N. Machado [vol. II]. São Paulo, Loyola, 1995, 1997, 1995.
1
Subdivisões: I, II e III – para as Partes (Ciência da Lógica, Filosofia da Natureza, Filosofia do
Espírito); § - para os parágrafos; Anm. – para as respectivas Anotações (Anmerkungen); Z – para os
adendos orais (Zusätze).
xiii
VPhRel Vorlesungen über die Philosophie der Religion. [Preleções sobre
filosofia da religião] – 1821-1831. Editadas e comentadas
criticamente por Walter Jaeschke, Hamburg, Felix Meiner, 1993, 3
vols. Trad. esp. de Ricardo Ferrara, Madrid, Alianza, 1984-87, 3 vols.
HR Vorrede zu Hinrich´s Religionsphilosophie [Prefácio à Filosofia da
Religião de Hinrichs] – 1822. Tradução em Prefácios, pp. 207-231.
Prefácios Prefácios. Trad., introdução e notas de M. J. Carmo Ferreira. Lisboa,
Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1989.
VN Die Vernunft in der Geschichte. [A razão na história]. Editado por J.
Hoffmeister, Hamburg: Felix Meiner, 1994. Trad. de Artur Morão,
Lisboa: Edições 70, 1995.
Salvo indicação contrária, as traduções dos textos de Schopenhauer e Hegel são de
nossa autoria.
1
Introdução
Hegel e Schopenhauer, apesar de contemporâneos (a obra principal de
Schopenhauer, O Mundo como Vontade e Representação aparece um ano – 1818 –
após a primeira edição da Enciclopédia, 1817), e de construírem cada um suas
respectivas filosofias a partir de uma reflexão crítica sobre a filosofia de Kant,
elaboraram dois sistemas filosóficos aparentemente tão distintos que qualquer
comparação entre os dois pareceria impertinente ou mesmo impossível. Apesar de
lecionarem durante um tempo (por volta de 1820) na mesma universidade em Berlim,
pode-se dizer que ambos fizeram questão de se ignorar mutuamente, pois se Hegel por
um lado não se interessou em ler a obra do colega de universidade, seu pensamento não
teve, por outro, qualquer influência no desenvolvimento filosófico de Schopenhauer.
1
Este, por sua vez, fez questão de desprezar não apenas Hegel como os outros idealistas,
Fichte e Schelling, e se proclama como o único verdadeiro herdeiro da filosofia
kantiana: “Todos começam a dar-se conta de que a filosofia efetiva e séria ainda se
encontra lá onde Kant a deixou. Em todo caso, não reconheço que tenha acontecido algo
na filosofia, entre ele e mim; por conseguinte, ligo-me imediatamente a ele”.
2
A partir
disso, Schopenhauer escreve em suas obras uma série de referências ofensivas aos
idealistas e em especial à “figura ministerial” Hegel. É possível que essas diatribes de
Schopenhauer tenham contribuído para a imagem de Hegel como o filósofo místico do
espírito absoluto, que desprezaria o indivíduo e a realidade efetiva em nome de
construções racionais abstratas e da autoridade do estado prussiano.
Embora a crítica de Schopenhauer a Hegel incida sobre todo o sistema do autor
da Fenomenologia do Espírito, ela não se apresenta sistematicamente desenvolvida,
como é o caso da crítica à Kant. Não há nenhum texto específico, mas muitas e pontuais
referências espalhadas pela obra. Há também muitas críticas gratuitas e invectivas
injuriosas e desqualificadoras. Mas, é preciso notar, para além das diatribes e ofensas, o
valor teórico da crítica de Schopenhauer, tanto em relação a seu próprio pensamento –
pois o contraste com o antípoda Hegel serve para esclarecer sua própria filosofia –,
como também o peso de sua crítica em relação à história das críticas à filosofia
hegeliana. Dentro desse quadro, vale a pena assinalar que a crítica de Schopenhauer visa
1
Cf. Schmidt, A. Idee und Weltwille. Schopenhauer als Kritiker Hegels. Munique e Viena, Edition
Akzente, 1988, p. 11.
2
KKPh, SW II, p. 493. (Trad. bras., p. 86). Ver a lista das abreviações utilizadas neste trabalho na
Bibliografia.
2
restituir, contra as construções teóricas idealistas, o direito à primazia da efetividade.
Essa noção de efetividade se contrapõe à compreensão hegeliana da realidade efetiva,
pois privilegia acima de tudo a experiência sensível, aquela que se remete a uma
intuição possível
3
. Nesse sentido a interpretação de Schopenhauer se aproxima da
tradição crítica que vê na filosofia de Hegel uma espécie de misticismo lógico (tradição
que inclui autores tão diferentes como Schelling e Kierkegaard, por um lado e
Feuerbach e o jovem Marx, por outro). A oposição entre a realidade da intuição e a falta
de efetividade das construções conceituais abstratas forma o núcleo da crítica de
Schopenhauer. A partir disso surgem as oposições específicas: moral do indivíduo
contra moral da totalidade, a questão do Estado, a negação da história enquanto ciência.
O ponto em que essa contraposição encontra seu acabamento reside na crítica à idéia de
“absoluto”. O filósofo acusará assim Hegel e os idealistas de terem recuperado, na
contramão da crítica de Kant, a idéia de uma razão capaz de conhecer o infinito.
É possível destacar uma imagem crítica da dialética hegeliana que Schopenhauer
oferece para além do juízo sumário, das injúrias e das ofensas. Mas uma passagem dos
Manuscritos Póstumos chama a atenção exatamente por seu caráter sumário: “Meu
juízo sobre Hegel eu formulei sumariamente: pois um ajuizamento detalhado da minha
parte sobre o que é tão ruim e inepto não vale a pena”.
4
Alfred Schmidt afirma que não
se poderia esperar da parte de Schopenhauer uma ocupação detalhada com a filosofia
hegeliana, cujas obras ele leu apenas de modo superficial.
5
Observa, entretanto, que as
hoje em dia irritantes referências maldosas de Schopenhauer a Hegel nos fazem deixar
de ver que a questão não se refere apenas ao problema pessoal, mas a uma questão
filosoficamente relevante: a questão do valor do idealismo absoluto: “As mordazes
glosas de Schopenhauer não dizem respeito apenas à ‘criatura filosófica ministerial’,
mas frequentemente também a uma construção teórica idealista que ele toma por
completamente errônea”.
6
A partir disso, Schmidt opõe ao panlogismo de Hegel, à
tentativa de reduzir a metafísica à lógica, o intuicionismo de Schopenhauer e sua crítica
nominalista da linguagem.
O que está por trás dessa oposição é, sem dúvida, uma concepção antagônica de
razão. É na elevação do conceito de razão a uma faculdade positiva de conhecimento
3
Para a delimitação do conceito de realidade efetiva ou efetividade (Wirklichkeit) compare-se as
definições presentes em WWV, § 4 e Enz I, § 6.
4
Manuscritos póstumos (HN) IV, Primeiro volume, p. 208 (Pandectae II – 1836, 132).
5
Cf. Op cit., p. 43.
6
Ibid. p. 44.
3
que Schopenhauer observa de Kant a Hegel uma decadência da filosofia alemã. Partindo
o conhecimento da intuição sensível, que logo se torna intuição intelectual, por meio do
trabalho do entendimento que submete os dados sensíveis às categorias do espaço,
tempo e causalidade, a razão não saberia exercer qualquer função constitutiva. Ela
apenas relaciona as intuições e cria, a partir delas, conceitos abstratos: “Os conceitos,
embora radicalmente distintos das representações intuitivas têm, contudo, com estas
uma relação necessária, sem a qual eles não existiriam: esta relação constitui, pois, toda
a sua essência e a sua realidade. A reflexão é necessariamente uma imitação, uma
reprodução do mundo da intuição, embora seja uma imitação duma natureza muito
especial em uma matéria inteiramente heterogenea. Além disso, pode-se dizer com
muita exatidão que os conceitos são representações de representações”.
7
Segue-se disso
o caráter necessariamente secundário da razão: “ela é de natureza feminina: ela só pode
dar depois de ter recebido. Por ela mesma nada tem a não ser a forma sem conteúdo de
sua operação”.
8
Para Hegel, entretanto, somente uma concepção do conceito a partir da lógica do
entendimento pode entendê-lo como uma mera forma do pensamento, “uma
representação geral”, algo “morto, vazio e abstrato”.
9
Mas a concepção hegeliana do
“conceito especulativo” é diametralmente oposta a essa, pois entende o conceito como
“o princípio de toda vida e por isso o absolutamente concreto”.
10
Quando o pensamento
que se guia apenas pelo entendimento se pergunta pelo nascimento e a formação dos
conceitos, Hegel responde dizendo que “de modo algum nós formamos os conceitos, e
que em geral o conceito não se pode mesmo considerar como algo nascido. Certamente,
o conceito não é simplesmente o ser ou o imediato, mas lhe pertence também a
mediação; essa reside nele mesmo, e o conceito é o mediatizado através de si mesmo
consigo mesmo. É absurdo admitir que haveria primeiro os objetos que formam o
conteúdo de nossas representações, e posteriormente viria nossa atividade subjetiva, que
por meio da operação do abstrair, antes mencionada, e do reunir do que é comum aos
objetos, formaria os seus conceitos. O conceito é, antes, o verdadeiramente primeiro, e
as coisas são o que são pela atividade do conceito a elas imanente, e que nelas se
revela.”
11
Hegel não deixa de sublinhar a concordância dessa tese geral com a teologia
7
WWV, § 9, SW II, p. 48.
8
WWV, § 10, SW II, p. 59.
9
Enz. § 160, W 8, p. 306. Cf. Schmidt, A. Op. Cit., p. 54.
10
Ibid, Idem.
11
Enz, § 163, Zusatz 2, SW 8, p. 312. (Trad. de Paulo Meneses, São Paulo: Loyola, 1995, p. 298).
4
cristã: “Em nossa consciência religiosa isso ocorre de modo que dizemos que Deus
criou o mundo do nada, ou, exprimindo diversamente, que o mundo e as coisas finitas
procederam da plenitude do pensamento divino e dos desígnios divinos. Assim se
reconhece que o pensamento, e mais precisamente o conceito, é a forma infinita ou
atividade criadora e livre, que não precisa de uma matéria dada, fora dela, para realizar-
se”
12
.
São esses textos de Hegel que Schmidt cita para ilustrar a idéia do “conceito
especulativo” da Lógica hegeliana e a referência teológica nela inclusa.
13
A eles o autor
opõe o seguinte texto de Schopenhauer: “desde Locke os filósofos buscam a origem dos
conceitos. Hegel teve a idéia de inverter as coisas, de colocar tudo de cabeça para baixo,
a saber, de fazer com que os conceitos fossem a coisa primeira, original, imediatamente
dados e dos quais se tem que partir. De acordo com isso, nós poderíamos construir a
partir deles qualquer coisa que quiséssemos já que meras palavras aparecem facilmente
no lugar de conceitos”.
14
Em muitas outras passagens de sua obra Schopenhauer ironiza
as formulações de Hegel de que o mundo seria o “auto-pensamento de si da idéia
absoluta”,
15
ou de que “o espírito é o reflexo do infinito no finito”.
16
Schmidt não deixa
de observar, entretanto, que a crítica de Schopenhauer desconsidera todo o processo de
pensamento que faz com que Hegel chegue a tais formulações e as toma como se elas
fossem afirmações imediatas sobre o mundo. Ele deixa de ver que para Hegel tais idéias
não se esgotam em formulações particulares, mas retiram todo seu sentido de um todo
mediatizado por todo um processo concreto de pensamento, pois para Hegel, ao
contrário do que afirma Schopenhauer, no processo do conhecer efetividade e conceito
não são imediatamente idênticos.
17
Não obstante esses equívocos de leitura, Schmidt
aponta para a tendência da época de rejeitar as construções teóricas meramente
especulativas: “Quando Schopenhauer aponta na seqüência, sem mais cerimônias, a
filosofia hegeliana como o ponto final de um desenvolvimento espiritual obscurantista
especificamente alemão, que há cinquenta anos invocou aquela dúbia ‘faculdade’, então
12
Ibid, Idem.
13
Cf. Schmidt, A. Op. Cit., p. 56.
14
HN, IV-1, p. 208. Apud. Schmidt, Op. Cit., p. 57.
15
SG, SW I, p. 123.
16
P I, SW V, p. 170. Essas afirmações são de Schopenhauer e não se encontram na obra de Hegel. Se elas
correspondem ou não ao pensamento de Hegel é algo que discutimos preliminarmente na seqüência e de
maneira mais detalhada ao longo do trabalho.
17
Cf. Schmidt, Op. Cit., p. 63.
5
essa classificação é injusta. Ela mostra, entretanto, que a época de Schopenhauer não
está mais disposta a aceitar a substancialidade da Razão entre seus temas metafísicos”.
18
Em coerência com sua crítica, Schopenhauer irá opor à especulação hegeliana
um certo “materialismo gnosiológico”. Ele localizará o cérebro como a base e o
fundamento da capacidade cognitiva. Schmidt, por sua vez, opõe o “intelecto físico” de
Schopenhauer à “alma imaterial” de Hegel. Sem desconsiderar toda a problemática da
concepção materialista de Schopenhauer, Schmidt refere-se também aos textos em que
Schopenhauer opõe a Matéria ao Absoluto da filosofia pós-kantiana. Nessa
identificação, ainda que irônica, se expressa segundo Schmidt, “a mais completa
aversão a Hegel que se possa pensar”.
19
Há da parte dos comentadores de Schopenhauer uma série de textos que se
ocupam de sua crítica a Hegel
20
. Dentre eles deve-se destacar os comentários de Alfred
Schmidt e Matthias Kossler que apresentam estudos abrangentes sobre as relações entre
os dois autores. Enquanto Schmidt procura reconstruir a crítica de Schopenhauer para
além das ofensas e diatribes, comparando-a às críticas de Feuerbach, Marx e
Kierkegaard a Hegel, Kossler oferece uma comparação sistemática entre as duas
filosofias e tenta desconstruir a imagem de uma incompatibilidade absoluta entre elas. A
partir disso, restavam-nos duas vias: uma seria seguir a via mais corrente dos
comentadores de Schopenhauer que apontam a pura e simples oposição de
Schopenhauer a Hegel, oposição, aliás, que seria fácil comprovar a partir dos textos: ao
contrário do que diz Kossler, ainda que Schopenhauer nem sempre proceda de uma
maneira adequada em suas críticas expressas, ainda assim se percebe um esforço
coerentemente orientado no sentido de construir a mais completa oposição à filosofia
hegeliana que se possa pensar – como mostra Schmidt. Não pretendemos, porém, seguir
esse caminho, pois acreditamos que não seria possível ir muito além de Schmidt – a não
ser em questões específicas –, e não julgamos relevante um trabalho que se limitasse
apenas ao campo doxográfico, isto é, que se contentasse em mostrar como
18
Ibid, p. 76-7.
19
Ibid, p. 93. A passagem para a qual Schmidt chama a atenção encontra-se na Crítica da Filosofia
Kantiana: “Se vossas senhorias fazem questão absoluta de um absolutum, então lhes porei nas mãos um,
que satisfaz a todas as exigências de uma tal mercadoria, bem melhor do que vossas esgarçadas figuras de
nuvens: é a matéria. Ela é incriada e imperecível, portanto efetivamente independente e ‘quod per se est et
per se concipitur’. Tudo provém do seu seio e para ele retorna: que mais se pode desejar de um absoluto?”
Trad. bras., p. 141. Essa passagem será analisada no capítulo 3 da Segunda parte.
20
Uma análise pormenorizada de todos os textos que trataram da relação Hegel e Schopenhauer encontra-
se em Kossler, M. Substantielles Wissen und subjektives Handeln: dargestellt in einem Vergleich von
Schopenhauer un Hegel. Lang, Frankfurt a. M., Bern, Paris, New York, 1990, pp. 15-29.
6
Schopenhauer recusa Hegel. Nesse sentido, Kossler critica com razão a abordagem de
Schmidt, que ao tratar de maneira superficial a filosofia de Hegel permanece dentro dos
limites da abordagem que o próprio Schopenhauer faz, sem se elevar a uma comparação
objetiva dos dois autores.
21
Uma outra possibilidade seria fazer uma comparação
sistemática entre os autores – o que também não pretendemos, não apenas devido à
dificuldade intrínseca da tarefa, mas porque também ela não conseguiria ir além da
doxografia (isto é, uma apresentação exterior de duas visões antagônicas e
aparentemente inconciliáveis sobre o que é a filosofia).
Uma outra perspectiva que nos ocorreu seria a idéia de confrontar aquilo que
Schopenhauer entende por “visão filosófica da religião”, em particular do cristianismo,
com a idéia da “religião absoluta” que Hegel oferece em suas Preleções sobre a
Filosofia da Religião. Não se trataria apenas de opor duas visões antagônicas da religião
– ou do cristianismo – (elas mesmas baseadas em visões filosóficas opostas), mas de
mostrar como a “filosofia da religião” de Schopenhauer, entendida como fechamento de
seu “sistema” se apresenta estrategicamente construída como uma crítica da
interpretação racionalista da existência, da qual Espinosa e Hegel são os principais
alvos. No entanto, é justamente nas relações entre religião e filosofia que Schopenhauer
mais parece se aproximar de Hegel, já que ambos consideram que a filosofia apenas
conduz ao conceito aquilo que a religião, em especial o cristianismo, já expressa à sua
maneira – linguagem da representação em Hegel, linguagem alegórica em
Schopenhauer. Nosso trabalho será, portanto, um comentário da contraposição de
Schopenhauer à filosofia de Hegel, mas que terá como fio condutor a tentativa do
primeiro de fundar uma visão filosófica da religião a partir de uma filosofia que nega
explicitamente aquilo que se denominava, na época do idealismo alemão, como
“filosofia da religião”, que ele entendia ser um disfarce da teologia. Daí se segue sua
crítica à idéia de “sistema”
22
, que comportaria não apenas a realização da pretensão do
conhecimento de saber absoluto, mas um elemento eminentemente positivo, como
celebração do que existe, como império da força, história dos vencedores. Schopenhauer
entende, como veremos, a religião como um movimento de negação do curso do
mundo. Será, portanto, a idéia paradoxal de construir um cristianismo que se pretende
21
Cf. Ibid, p. 250, nota 51.
22
A crítica à idéia de “sistema” tal como entendida pelos autores do idealismo alemão não significa uma
rejeição ao pensamento sistemático em geral. É isso que nos permite falar no sistema do próprio
Schopenhauer. Não obstante, resulta da crítica que Schopenhauer oferece da filosofia hegeliana a rejeição
à idéia de um único sistema de filosofia e a abertura da filosofia a uma forma não-sistemática.
7
genuíno e que, no entanto, deve ser ateu e pessimista. Seria interessante mostrar,
seguindo uma indicação de Gérard Lebrun
23
, como a filosofia de Schopenhauer já
anunciava aquela suspeita sobre a “miragem do Absoluto” [absoluto que a dialética
hegeliana, por meio da recuperação e ressignificação da temática teológica, renovava à
sua maneira], suspeita que tornava necessário voltar-se ao outro lado da dialética e
reconhecer nela o esforço de salvar – em um discurso moderno – as velhas significações
do discurso teológico.
A menção à desgastada oposição entre pessimismo e otimismo pode levantar
facilmente a impressão de superficialidade, e sem dúvida seria esse o caso se, na base da
contraposição que estamos apresentando estivesse pura e simplesmente a oposição entre
duas visões de mundo opostas. Enfim, mais uma vez não superaríamos o quadro da
doxografia, a apresentação superficial de pontos de vistas opostos. Pelo contrário,
pretendemos investigar os pressupostos conceituais que estão na base de tal oposição.
Por isso, o confronto entre “pensamento sistemático”, “otimismo” e “conciliação”, por
um lado, e por outro, “pensamento fragmentário”, “pessimismo” e “redenção”, só
poderá se dar ao final de todo um percurso que tem como fim encontrar as bases que
sustentam tais “visões”. Com isso teremos mostrado ao final que a oposição entre
“pessimismo” e “otimismo” reside no fundo em discussões conceituais que não têm
nada de superficiais.
A abordagem que parte pura e simplesmente da oposição de Schopenhauer a
Hegel – como a de Schmidt – encontra, porém, certos limites. Não é dificil deixar de
notar que a concepção limitada de razão que Schopenhauer opõe a Hegel dificilmente
consegue penetrar no cerne do pensamento de Hegel. A partir da especificidade do
pensamento hegeliano, que não se deixa tomar por um conjunto de afirmações sobre a
realidade, alguns comentadores insistem na dificuldade de se contrapor a Hegel através
de teses opostas.
24
Por exemplo, Gérard Lebrun, em sua obra sobre Hegel, assinala que
a filosofia hegeliana, enquanto discurso, não se deixa objetar. Porque dissolve todas as
23
Lebrun, G. O Avesso da Dialética, São Paulo, Companhia das Letras, 1988, p. 290.
24
Cf. Châtelet, François. O Pensamento de Hegel. Lisboa, Editorial Presença, 2
A
. ed., s/d., p. 143:
“Também não é refuta-lo fazer referência a <factos> (mas que factos do domínio da história das ciências,
das culturas, dos povos ou simplesmente da História, podem valer contra uma teoria – contra uma ordem
fundamentada do discurso – que estabelece, precisamente, o que há a estabelecer como <factos>?). A
única refutação eficaz só pode seguir um caminho: mostrar o erro da concepção de conjunto adoptada por
Hegel. As doutrinas propriamente filosóficas posteriores ao hegelianismo, que o ignoraram ou quiseram
passar ‘de lado’, caíram ‘dentro’ dele (dentro das ‘atitudes’, das categorias que o sistema hegeliano tinha
definido como momentos parciais do Espírito em devir)”.
8
categorias da representação e da finitude, ela é ontologicamente neutra, um discurso
liberado de toda hipótese e de todo princípio e que não dá o direito de ser caracterizada
pelos princípios que ela mesma previamente negou. Ora, se é assim
“se a filosofia de Hegel rompeu toda ligação com a representação, ela não é mais uma doutrina.
E se ela não é mais uma doutrina, não há nada a objetar contra ela. É somente a uma doutrina
que se tem o direito de endereçar objeções. Mas um discurso, só se pode tomá-lo de
empréstimo, passear nele ou passear em outro lugar. Não se objeta nada a um discurso, não
mais que a um caminho ou a uma paisagem”.
25
Nesse sentido, também a crítica de Schopenhauer, ao opor à filosofia
especulativa uma concepção limitada de razão, também não vai muito longe pois
desconsidera a crítica de Hegel à Kant, e a reelaboração do especulativo a partir da
filosofia crítica.
26
Como diz Lebrun, “quando Schopenhauer fala do ‘dogmatismo
hegeliano’, sua linha de ataque continua sendo kantiana: para ele, Hegel é antes de mais
nada um dos ‘fanfarrões’, dos ‘charlatães’ que pretenderam enfrentar o interdito
kantiano e revelar a essência das coisas”.
27
Como vimos acima, boa parte da estratégia crítica de Schopenhauer realmente se
limita a opor ao “dogmatismo” hegeliano o criticismo kantiano, a especulação à
limitação das faculdades humanas de conhecimento segundo Kant. Mas, embora se
afaste da abordagem de Nietzsche, pois mantém a convicção na razoabilidade dos
valores cristãos,
28
Schopenhauer oferece muito mais em sua contraposição crítica ao
sistema de Hegel do que uma simples volta a Kant. A contraposição de Schopenhauer a
Hegel se distancia, nesse sentido, das abordagens da chamada “esquerda hegeliana” (no
caso, Feuerbach e Marx) pois não vê no sistema de Hegel uma falsa “solução abstrata”
às cisões da modernidade, mas rejeita a idéia mesma de uma reconciliação, de uma
síntese conceitual, em suma, a idéia mesma de “sistema”
29
. Ora, se é assim, devemos
25
La Patience du Concept, Paris, Gallimard, 1972, p. 222; trad. bras., p. 223. Deixamos aqui de lado uma
discussão sobre a interpretação de Lebrun sobre Hegel. A referência a essa passagem polêmica do livro de
Lebrun serve apenas para ilustrar de modo preliminar a dificuldade da tarefa implicada numa crítica da
filosofia de Hegel.
26
Cf. G. Wohlfart, Der spekulative Satz, p. 74. O tema da recuperação do pensamento especulativo, tanto
em Hegel quanto em Schopenhauer, recuperação que não deve ser vista como uma mera “recaída” num
pensamento pré-crítico, será discutido mais abaixo, cf. pp. 53 e seguintes.
27
O Avesso da Dialética, São Paulo, Companhia das Letras, 1988, p., p. 53.
28
Pretendemos abordar essa questão quando compararmos, nos capítulos conclusivos da tese, as visões de
Hegel e Schopenhauer sobre o cristianismo.
29
Aqui parece contraditório afirmar que Schopenhauer critica a idéia de “sistema” (tanto em Hegel
quanto em Kant), já que nos referiremos ao “sistema” do próprio Schopenhauer. Mas, como veremos, se a
filosofia de Schopenhauer pode ser vista como um sistema de pensamento ela não é uma filosofia
9
considerar então a crítica de Schopenhauer como algo mais que uma defesa do kantismo
ou como uma simples revolta contra uma filosofia construída com meros conceitos
abstratos. Nesse sentido, a crítica de Schopenhauer a Hegel também deve ser lida a
partir de sua crítica a Kant, do qual ele parte, é verdade, mas pretende se afastar.
No entanto, não se trata apenas, neste trabalho, de apresentar simplesmente o
que Schopenhauer tem a contrapor a Hegel. Ao reconstruir a crítica de Schopenhauer a
Hegel é a filosofia do primeiro que é colocada em xeque. O problema que surge então é
o da coerência mesma do empreendimento schopenhaueriano que constrói uma filosofia
que embora se baseie numa certa herança kantiana, ao mesmo tempo subverte essa
herança ao oferecer uma abordagem fisiologista do conhecimento.
30
Nesse sentido,
como tentaremos mostrar, a posição de Schopenhauer não procura apenas opor um certo
empirismo gnosiológico ao sistema idealista hegeliano, ou clamar uma volta
“conservadora” a Kant, mas ao resgatar aquilo que considera ausente no sistema de
Hegel, oferece um contradiscurso ou um necessário contraponto ao mesmo.
31
A partir
da crítica schopenhaueriana, e de sua especificidade em relação à tradição de crítica da
filosofia de Hegel, podemos reconstruir aquilo que seu pensamento trouxe de novo.
Esse aspecto inovador será destacado principalmente na conclusão da segunda parte e
nos apêndices a esse trabalho, que procurará comparar a abordagem crítica de
Schopenhauer com a crítica de Horkheimer a Hegel.
Segundo Lebrun, a esquerda hegeliana se limitou a invocar a “experiência” e o
“concreto” e a inverter o hegelianismo, acreditando, entretanto, que quando Hegel fosse
devidamente corrigido ele poderia servir de referência. Em suma, os ideais da filosofia
hegeliana permaneciam intactos: “como o que se ataca são as ‘teses’ hegelianas, e nunca
a linguagem hegeliana, que no seu pedantismo parece inofensiva, como somente se
contesta o otimismo hegeliano e se larga na sombra o optimum, é muito natural se
pensar que o pecado capital de Hegel consistiu em querer demonstrar que esse optimum
estava realizado, ou que estava realizado sob essa forma (...) Os que se contentaram
sistemática que pretende esgotar a totalidade do saber. Ela é uma filosofia que se coloca ao lado de
outras, sem pretender ser o único sistema possível.
30
Cf. Cassirer, que vê na teoria do conhecimento de Schopenhauer apenas uma teoria fisiológica do
conhecimento. “Los Sistemas Postkantianos”. In: El Problema del conocimiento en la filosofia y en la
ciencia modernas. Trad. de W. Roces, FCE, Mexico, 1957, vol. III, p. 529.
31
Mesmo Kossler, que considera as críticas de Schopenhauer como “desqualificadas” esboça um
contraponto a Hegel a partir de Schopenhauer na seção C do quarto capítulo de seu referido trabalho,
intitulada “Die Überwindung der Unzulänglichkeit des Hegelschen Begriffs durch Schopenhauers
Sprache”. Op. Cit., pp. 204-210.
10
em ironizar sobre as falsas soluções hegelianas estavam condenados a nunca poder
questionar a validade dos ideais hegelianos”.
32
Para Lebrun, foi Stirner, “esse
verdadeiro ‘filósofo maldito’” o primeiro a mostrar o caminho, mas foi Nietzsche que
levou a cabo a grande crítica ao hegelianismo.
33
Mas o próprio Lebrun indica que foi a
partir de Schopenhauer que se começou a desconfiar da “miragem do Absoluto”.
34
É
esse o sentido de sua oposição pessimista ao panlogismo hegeliano – que Schopenhauer
aproxima de Espinosa e Leibniz.
É assim que poderíamos ler a crítica de Schopenhauer à filosofia da religião e do
Estado de Hegel contida no ensaio Sobre a Filosofia Universitária. Não é à toa que
nesse texto os anátemas de Schopenhauer se referem quase todos a esses temas. Nesse
texto o autor se esforça – muitas vezes com uma linguagem muito pouco respeitosa –
em mostrar a impossibilidade do ensino da filosofia num Estado que tem como um dos
seus pilares a religião. A filosofia, que busca apenas a verdade, deve ser independente
da religião do Estado e não sua aliada. Se a universidade estiver comprometida com o
Estado, então o ensino da filosofia é que estará comprometido. Portanto, a crítica de
Schopenhauer terá em vista especialmente a filosofia ensinada nas universidades que,
patrocinadas pelo Estado, ratificam os dogmas da religião. É isso o que ele enxerga na
filosofia de Hegel, especialmente em sua filosofia da religião. Pois é bem verdade que a
filosofia, como livre investigação da verdade, poderia entrar em desacordo com a
religião estatal e ir contra os desígnios do Estado. Contra essa dificuldade, diz
Schopenhauer, “o professor de filosofia Hegel inventou a expressão ‘religião absoluta’,
com a qual também alcançou seu intuito, pois conhecia seu público: para a filosofia de
cátedra, a religião também é verdadeira e propriamente absoluta, quer dizer, deve e tem
de ser absoluta e simplesmente verdadeira, pois, do contrário!... Outros desses
investigadores da verdade fundem, por sua vez, filosofia e religião num centauro, que
chamam de filosofia da religião, e costumam ensinar também que religião e filosofia são
a mesma coisa”.
35
Contra isso, Schopenhauer irá procurar estabelecer a verdadeira
função do Estado e o lugar exato da religião.
Em Schopenhauer, não se trata apenas de opor uma visão platônica que entende
a filosofia como discurso do eterno e incorruptível contra uma filosofia que tenta
32
O Avesso da Dialética, p. 104.
33
Cf. Ibid, p. 105.
34
Ibid., p. 290.
35
P I, SW, V, p. 163. Sobre a Filosofia Universitária. Trad. Maria Lúcia Cacciola e Marcio Suzuki. São
Paulo, Martins Fontes, 2
a
. ed, 2001, p. 9.
11
conhecer o vir a ser de todas coisas. Ele opõe sua visão da moral como algo que se
decide no interior da vontade de viver contra uma concepção que aguarda dos
acontecimentos a realização de seu sentido: ou seja, uma visão pessimista – que concebe
o mundo como algo meramente a ser interpretado e não acredita que um acontecimento
qualquer possa resgatar o mundo de sua falta total de finalidade, e uma visão otimista –
que concebe a possibilidade da felicidade no transcurso das coisas mundanas:
Os tolos pensam ao contrário, que algo deva se tornar primeiro e vir. Por isso, dão à história
um lugar principal em sua filosofia e a constróem segundo um plano mundial pré-construído,
em que tudo tende ao melhor, o que finalmente deve advir e trazer um grande bem-estar. Daí
que eles tomam o mundo como inteiramente real e apontam a finalidade do mesmo em uma
mísera felicidade terrena, a qual, mesmo a despeito dos esforços dos homens e dos favores da
sorte não é menos uma crua, ilusória, nula e triste coisa, da qual nem as constituições e
legislações, nem máquinas a vapor e telégrafo podem fazer algo essencialmente melhor. Esses
filósofos e glorificadores da história são portanto simples realistas, portanto, otimistas e
eudemonistas, triviais companheiros e filistinos encarnados, em suma, verdadeiramente maus
cristãos; pois o verdadeiro espírito e núcleo do cristianismo, assim como o do bramanismo e do
budismo, é o conhecimento da nulidade da felicidade terrestre, o completo desprezo da mesma
e o engajamento em uma existência inteiramente outra, completamente contraposta: Este é o
espírito e a finalidade do cristianismo, o verdadeiro ‘humor da coisa’; não como eles pensam, o
monoteísmo. Daí que o budismo ateu é parente mais próximo do cristianismo que o judaísmo
otimista e o islamismo, simples variedade do primeiro
36
.
As últimas passagens citadas mostram como a crítica de Schopenhauer se
concentra na temática da interpretação filosófica da religião. É a partir desse tema que
surgem as questões do Estado e da História. Portanto, ao criticar uma idéia central do
sistema especulativo hegeliano (a identidade de conteúdo entre religião e filosofia),
Schopenhauer entra no terreno da controvérsia sobre o conceito especulativo de religião.
Ao mesmo tempo ele se verá na tarefa de dar uma resposta própria ao problema da
relação entre filosofia e religião. É exatamente nesse ponto que nos deparamos com uma
última e decisiva dificuldade: ao fazer uma leitura mais atenta da filosofia de Hegel
verificamos que no que se refere à questão da relação entre filosofia e religião há muito
mais semelhanças entre Hegel e Schopenhauer do que o último poderia supor. Tanto
para Hegel quanto para Schopenhauer, a religião já contém em si mesma a verdade,
embora de forma inadequada (na forma da alegoria em Schopenhauer e na forma da
representação em Hegel). Para os dois filósofos se colocará a tarefa de expor então
36
WWV, E., Cap. 38, SW III, p. 505.
12
aquele mesmo conteúdo na forma pura da verdade filosófica. Não bastaria, portanto,
opor a visão de Schopenhauer sobre as relações entre filosofia e religião a de Hegel,
mas verificar até que ponto os dois filósofos procuram, por caminhos diversos,
demonstrar a identidade de conteúdo entre filosofia e religião, sem sacrificar com isso a
exigência de imanência inerente às suas respectivas filosofias. Não se trataria apenas de
opor duas visões antagônicas da religião – ou do cristianismo – (elas mesmas baseadas
em visões filosóficas opostas), mas trata-se sobretudo de analisar até que ponto cada um
dos filósofos consegue realizar a tarefa que propõe: oferecer uma explicação filosófica
da religião no quadro de uma filosofia imanente e não dogmática. Trata-se
propriamente da possibilidade de uma filosofia especulativa mesmo depois da crítica
kantiana. Dito de uma maneira conceitualmente mais precisa, trata-se do problema
fundamental do idealismo alemão, o da exposição do absoluto, ou, no caso de
Schopenhauer, da “miragem” do absoluto, ou de seja lá o que for que se considere ser a
Vontade como coisa-em-si.
Hegel buscará a solução dessa tarefa numa filosofia que, livre de todas as
oposições abstratas do entendimento se verá livre de todos os pressupostos e poderá
assim se voltar às meras determinações de pensamento, às categorias da Lógica. Nessa
última, entendida como ontologia e não meramente lógica subjetiva, o absoluto se
conceberia a si mesmo livre de toda forma finita, como a intuição ou a representação. Já
Schopenhauer não encontrará tal facilidade: sua proposta é unir um ponto de partida
empírico, que se pretende, nos passos de Kant, crítico do conhecimento, com uma
abordagem de tipo especulativo. É a partir desse projeto que devemos entender e
analisar até suas últimas consequências o movimento que faz Schopenhauer opor à
teologia especulativa hegeliana, uma “metafísica imanente”, uma cosmologia que toma
como objeto apenas o mundo, tal como nos é dado e que a reflexão metafísica busca
apenas interpretar; segundo Schopenhauer, este mundo é o mundo da vontade (o querer
dado imediatamente à consciência de si) e da representação (o mundo empírico dado na
consciência externa). É a essa limitação última que remonta não só a negatividade da
filosofia, mas o seu necessário, segundo Schopenhauer, ponto de vista finito, limitado,
mundano, que o impede de ser um discurso do absoluto. A vontade, como “coisa em si”,
núcleo ou essência do mundo pode bem constituir uma totalidade, mas nunca um
absoluto no sentido do idealismo alemão
37
. Verificar até que ponto Schopenhauer
37
Por essa razão, veremos a filosofia de Schopenhauer apresentar um certo caráter perspectivista, ou
mesmo relativista, já que a impossibilidade de conhecer o absoluto exclui também um “saber absoluto”.
13
consegue oferecer um ponto de vista sobre o conhecimento que esteja além de sua
definição sumária de razão como uma mera faculdade de abstração e,
consequentemente, à altura da tarefa que uma crítica da filosofia hegeliana exige, é um
dos desafios do presente trabalho.
38
Tendo em vista tal tese, o percurso que trilharemos trará os seguintes
momentos: em primeiro lugar, apresentaremos algumas reflexões gerais sobre a idéia de
uma “crítica da filosofia hegeliana”, não apenas para mostrar o quanto Schopenhauer se
aproxima ou se afasta dos outros críticos, mas para esclarecer o que está em jogo
quando se pretende criticar a dialética de Hegel. Em segundo lugar, tentaremos mostrar
o quanto Schopenhauer procura, em sua filosofia, resolver problemas similares àqueles
que Hegel procurou resolver em seu sistema, e o quanto as limitações que ele estabelece
para a resolução de tal tarefa pressupõe uma reflexão crítica sobre os limites e alcances
da filosofia. Com isso veremos em que sentido Schopenhauer pode ser lido como um
filósofo pós-kantiano: não apenas porque escreve a partir da revolução copernicana de
Kant, mas porque comunga com os autores clássicos do idealismo a tarefa de oferecer
uma alternativa especulativa à crise da metafísica. Essa especulação aparece, entretanto,
unida a uma abordagem naturalista do conhecimento, e a um apelo à experiência, o que
faz Schopenhauer se proclamar como o único pós-kantiano fiel a Kant. Mas tal tarefa
(unir especulação metafísica com uma abordagem fisio-psicológica do conhecimento)
significará, antes, uma corrupção da filosofia transcendental de Kant. Essa corrupção, e
as contradições que dela surgem, não devem ser vistas simplesmente como uma prova
da incoerência e impossibilidade do sistema de Schopenhauer. É no pensamento de tais
contradições unicamente que se pode pensar em sua filosofia como uma alternativa à
filosofia de Hegel. Não se trata de resolver todas as aporias da filosofia de
Schopenhauer – o que somente um outro trabalho poderia oferecer –, mas de mostrar
como o interesse de seu pensamento está na reflexão sobre essas mesmas contradições.
Para empreender tal confronto a abordagem que propomos é a seguinte: como se
trata de um trabalho sobre a crítica de Schopenhauer a Hegel, iremos partir de alguns
tópicos da tradição de críticas à filosofia hegeliana, especialmente Schelling, Feuerbach
38
O leitor já terá percebido nas idas e vindas deste texto introdutório, em que consiste nossa dificuldade:
trata-se de elevar a filosofia de Schopenhauer para além de uma leitura superficial que o apresentaria
apenas como precursor do atual mutismo filosófico. Apesar de sua descendência iluminista e seu flerte
com a filosofia inglesa tentaremos mostrar antes o vínculo de Schopenhauer com a tradição especulativa
do idealismo alemão pós-kantiano. O fato de permanecer dentro dos limites de uma “filosofia da
reflexão” não impediu o filósofo de falar sobre o mundo, deixando o silêncio apenas para aquilo que está
além dele.
14
e o jovem Marx, para inserir Schopenhauer nessa tradição e verificar qual a
especificidade de sua abordagem. Assim, um primeiro momento desse trabalho será a
reconstrução da crítica de Schopenhauer. Num segundo momento se tratará de discutir e
apontar os erros interpretativos não apenas de Schopenhauer, mas como de boa parte
dos críticos clássicos de Hegel que foram responsáveis pela criação de uma imagem
enganadora da filosofia hegeliana: não será o caso de resgatar o verdadeiro Hegel para
além de seus detratores
39
, mas de mostrar a dificuldade de tal tarefa e os riscos que ela
traz, isto é mostrar como Hegel já previa e respondia antecipadamente boa parte das
críticas que posteriormente lhe seriam feitas. A partir disso poderemos não apenas
constatar os limites da abordagem de Schopenhauer, mas investigar as dificuldades que
sua própria posição acarreta. A essa altura ficará claro que o ponto central da
contraposição dos autores é a diferente maneira como cada um interpreta e critica a
filosofia de Kant. Se podemos afirmar, como Kossler
40
, que a partir de Kant surgem
duas linhas de desenvolvimento, a tentativa schopenhaueriana de afirmar o idealismo
transcendental, e a tentativa hegeliana de desenvolvê-lo dialeticamente, não
concordamos porém com a afirmação do autor de que a diferença entre dialética e
filosofia transcendental não é tão fundamental e consistiria apenas numa “nuance”
41
.
Pelo contrário, tentaremos mostrar que, se Hegel vai mais além em sua crítica a Kant
que Schopenhauer, é justamente por não mais submeter o pensamento especulativo à
teoria do conhecimento. Como mostrou um trabalho recente sobre Schopenhauer
42
, é
justamente por fundamentar sua metafísica em uma teoria do conhecimento, baseada
numa certa interpretação subjetivista do transcendentalismo kantiano, que o filósofo
envereda por aporias e antinomias que somente a dissolução final para a qual aponta a
conclusão de sua obra poderia dar conta. Esses temas desenvolvidos na conclusão da
primeira parte desse trabalho não serão abordados de modo exaustivo, pois não
constituem propriamente o objeto da tese. Não se trata de reconstruir todo o pensamento
de Schopenhauer, ou de comparar sistematicamente as críticas deste último e de Hegel a
Kant. Trata-se apenas de preparar o terreno e esclarecer algumas questões que serão
essenciais para a segunda parte do trabalho, que consistirá numa comparação entre os
39
Para um comentário exaustivo sobre as várias vertentes da crítica da filosofia de Hegel ver Henning
Ottmann. Individuum und Gemeinschaft bei Hegel, volume I, Berlim, Walter de Gruyter, 1977.
40
Op. Cit, p. 28.
41
Cf. Ibid, Idem. Tal conclusão é antecipada por Kossler aqui, na introdução de seu trabalho, como uma
antecipação do resultado que somente a comparação sistemática que o autor empreende em sua obra irá
demonstrar.
42
Martin Booms, Aporie und Subjekt. Die erkenntnistheoretische Entfaltungslogik der Philosophie
Schopenhauers, Würzburg, Königshausen und Neumann, 2003.
15
aspectos especulativos de ambas as filosofias. O tema central para esse exercício de
comparação é a questão sobre a forma que a filosofia deve assumir para expor a verdade
filosófica. A questão do método e da forma expositiva da filosofia não deve ser, porém,
abstraída da questão pelo conteúdo. Veremos que a forma da filosofia corresponde ao
conteúdo que ela deve apresentar. Enquanto em Hegel temos o saber absoluto daquilo
que em verdade é, em Schopenhauer trata-se de expor e justificar uma intuição da
essência do mundo. O modo como este saber se articula determina também a postura do
filósofo, seja na figura que assume a doutrina, seja na postura ética que se assume a
partir dela. Ao tratar do tema central da correspondência entre a forma e o conteúdo e
lidar com o núcleo sistemático de ambas as filosofias, este trabalho parecerá lidar com o
todo de suas doutrinas. Daí o aspecto um tanto amplo da temática deste trabalho,
embora tenhamos nos esforçado para fazer um recorte
43
. O que nos interessa não é
esgotar todas as possibilidades do confronto entre Hegel e Schopenhauer, mas apenas
discutir os aspectos mais básicos que estão em sua origem.
Dessa forma, nosso percurso parte de uma discussão crítica sobre a crítica de
Schopenhauer a Hegel. Essa discussão nos leva a uma comparação especulativa de suas
doutrinas sobre o modo de exposição da verdade filosófica. Ocorre que o conteúdo que
a filosofia expõe coincide com o conteúdo exposto de outra forma pela religião. Por
isso, na parte final deste trabalho, temos uma discussão filosófica sobre a relação entre a
filosofia e a religião.
43
Esse recorte talvez fique mais claro se dissermos aquilo sobre o que o trabalho não tratará: não faremos
qualquer comparação entre as “filosofias da natureza” de ambos os autores, assim como de suas
respectivas “teorias estéticas”. Deve-se advertir que nos remeteremos apenas à filosofia madura de Hegel,
desconsiderando os chamados “escritos de juventude” e dando primazia às obras publicadas, as únicas
que Schopenhauer eventualmente pode ter lido.
Primeira parte: Crítica
Capítulo 1: Generalidades sobre a idéia de uma “crítica da filosofia de Hegel”
As dificuldades inerentes à toda tentativa de contraposição à filosofia de Hegel
foram elegantemente ressaltadas pelo célebre discurso de Michel Foucault por ocasião
de sua nomeação para o Collège de France, no lugar de Jean Hyppolite: “Toda a nossa
época, seja pela lógica ou pela epistemologia, seja por Marx ou por Nietzsche, procura
escapar de Hegel (...) Mas escapar realmente de Hegel supõe apreciar exatamente o
quanto custa separar-se dele; supõe saber até onde Hegel, insidiosamente, talvez,
aproximou-se de nós; supõe saber, naquilo que nos permite pensar contra Hegel, o que
ainda é hegeliano; e medir em que nosso recurso contra ele é ainda, talvez, um ardil que
ele nos opõe, ao termo do qual nos espera, imóvel e em outro lugar”
1
. Os impasses e a
premente atualidade que um confronto com a filosofia de Hegel impõe também não
passam despercebidos por Habermas: “Persistimos até hoje no estado de consciência
que os jovens hegelianos introduziram, quando se distanciaram de Hegel e da filosofia
em geral. Desde então, estão em curso aqueles gestos triunfantes de suplantação
recíproca, com os quais descuidamos do fato de que permanecemos contemporâneos
dos jovens hegelianos”
2
. Mas se foram os jovens hegelianos os primeiros a sinalizarem
a urgência de uma “crítica da filosofia hegeliana”, foi Schelling o primeiro a
empreendê-la de modo sistemático. Veremos que a crítica de Schelling já anuncia em
muitos pontos as objeções correntes desde então contra o sistema de Hegel: o caráter
supostamente abstrato e dogmático de seu sistema.
Foi apenas em 1827 que Schelling, em suas preleções Sobre a História da
Filosofia moderna formulou suas restrições ao sistema do outrora amigo e colega no
Seminário de Tübingen
3
. Bem antes, em 1807, Hegel já havia rompido com a filosofia
1
Foucault, M. A ordem do discurso, Tradução de Laura Fraga de Almeida Sampaio, São Paulo, Loyola,
2004, p. 72-3.
2
Habermas, J. O Discurso filosófico da Modernidade, São Paulo, Martins Fontes, 2000, p. 76. Para uma
apreciação dessa passagem, cf. o artigo de Luiz Sérgio Repa: “Sobre a tese da contemporaneidade dos
jovens hegelianos”. In: Cadernos de Filosofia Alemã, nº 1, Universidade de São Paulo, 1996.
3
F. W. J. von Schelling, História da Filosofia Moderna: Hegel, In: Coleção “Os pensadores”, Trad. de
Rubens R. Torres Filho, São Paulo, Abril Cultural, 1979. (Para a edição original ver Sämtliche Werke,
organizado por K. F. A. Schelling, 14 vols., Stuttgart, 1856-1861, vol.X, p. 125. Abrev. SSW). Esse texto,
Zur Geschichte der neueren Philosophie, que só foi publicado póstumamente, possivelmente serviu de
base para uma série de conferências de Schelling em Berlim por volta de 1927. No entanto, alguns trechos
desse texto podem ter sido redigidos posteriormente. Cf. Horstmann, Rolf-Peter. Die Grenzen der
17
da identidade ao recusar a idéia de uma “intuição intelectual” como conhecimento
imediato do absoluto na Fenomenologia do Espírito. A “resposta” de Schelling irá
consistir na recusa em considerar a lógica como idêntica à ontologia ou à metafísica e
em dizer que tão somente com o “pensar puro” não se pode alcançar nenhum resultado
positivo.
Para situar a crítica de Schelling é necessário notar, entretanto, que antes do
rompimento de Hegel anunciado no prefácio da Fenomenologia do Espírito, os dois
filósofos seguiram caminhos paralelos
4
. Em 1802, Hegel publica sua primeira obra, a
Diferença entre os Sistemas Filosóficos de Fichte e de Schelling e nela procura mostrar
a superioridade do idealismo de Schelling em relação ao idealismo considerado
meramente “subjetivo” de Fichte: ao contrário deste último, a intuição intelectual em
Schelling se tranformaria na auto-intuição do absoluto, rompendo os limites da
subjetividade e realizando a unificação das cisões da época, cisões postas pelo
entendimento – sujeito e objeto, finito e infinito, espírito e natureza, etc. No idealismo
de Fichte, embora se comece com o princípio da especulação – a intuição de si mesmo
do primeiro princípio incondicionado da Doutrina da Ciência – não se alcançaria nem a
unidade sistemática nem a superação das cisões, ambas exigidas pela “tarefa suprema da
filosofia”, pois tal superação é apenas postulada, como na filosofia prática de Kant. Mas
se em 1802 Hegel se aproximava da intuição intelectual de Schelling, já em 1807, na
Fenomenologia do Espírito nega que a “intuição intelectual” possa estar de acordo com
o estatuto científico da filosofia
5
.
Em sua crítica a Hegel, Schelling reconhece a proximidade do sistema hegeliano
com sua primeira filosofia: a Lógica hegeliana utilizaria, segundo ele, o mesmo método
de sua Filosofia da Natureza (aqui já designada de filosofia negativa
6
) e permitiria, se
Vernunft. Eine Untersuchung zu Zielen und Motiven des Deutschen Idealismus. Frankfurt am Main,
Vittorio Klostermann, 3ª. Ed, 2004, p. 190, nota 119.
4
Sobre o trabalho em conjunto de Hegel e Schelling, especialmente no período comum em Iena (1801-
1803, Cf. Düsing, Kaus. “Spekulation und Reflexion. Zur Zusammenarbeit Schellings und Hegels in
Jena”. In: Hegel-Studien, 5 (1969), pp. 95-128.
5
Embora não se refira diretamente a Schelling, a seguinte passagem do prefácio à Fenomenologia é
conhecida como o estopim do rompimento entre os filósofos: “Opor este saber único, que no absoluto
tudo é igual, ao conhecimento diferenciado e cumprido ou que procura e exige o cumprimento –, ou fazer
passar o seu absoluto pela noite em que, como se costuma dizer, todos os gatos são pardos, é a
ingenuidade do vazio no conhecimento”.( Dies eine Wissen, daß im Absoluten alles gleich ist, der
unterscheidenden und erfüllten oder Erfüllung suchenden und fordernden Erkenntnis entgegenzusetzen
oder sein Absolutes für die Nacht auszugeben, worin, wie man zu sagen pflegt, alle Kühe schwarz sind, ist
die Naivität der Leere an Erkenntnis). PhG, W 3, p. 21 – Trad. Manuel C. Ferreira, In: Hegel, Prefácios,
Lisboa, Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1990, p. 44
6
A filosofia negativa, segundo Schelling, seria aquela que não “trata de modo nenhum da existência
(Existenz), daquilo que efetivamente existe e, portanto, tampouco de conhecimento nesse sentido, mas
18
fosse corretamente compreendida, a realização de uma perspectiva situada além dela
mesma, a filosofia positiva. A Naturphilosophie de Schelling se colocava, segundo o
próprio autor, fora de toda contradição, mas justamente por isso desistia de toda
pretensão à objetividade, ou seja “tinha de confessar-se como ciência, na qual não se
trata de modo nenhum de existência, daquilo que efetivamente existe e, portanto,
tampouco de conhecimento nesse sentido, mas somente das relações que os objetos
assumem no mero pensar (...) tinha de confessar-se como filosofia meramente
negativa”
7
. Ao tomar como ponto de partida o método da filosofia da natureza, Hegel,
segundo Schelling, se voltava para o “pensar puro” que tem por único objeto o conceito
puro: “Não se pode negar a Hegel o mérito de haver percebido bem a natureza
meramente lógica daquela filosofia, que se propôs elaborar e prometeu levar à sua
forma perfeita. Se se tivesse fixado a isso, e tivesse executado esse pensamento com
rigorosa, com decidida renúncia a todo positivo, ele teria provocado a decidida
passagem à filosofia positiva, pois o negativo, o pólo negativo, em sua pureza, não pode
estar em parte nenhuma sem exigir, prontamente o positivo”.
8
A passagem, no entanto,
prossegue, mas o tom de elogio passa à censura: “Mas acontece que esse recolhimento
ao mero pensar, ao conceito puro, estava ligado, como se pode encontrar enunciado logo
às primeiras páginas da Lógica de Hegel, com a pretensão de que o conceito seja tudo e
não deixe nada fora de si”.
9
Ao reconhecer, então, que a pretensão de Hegel era unir
lógica e ontologia ao identificar ser e pensamento, Schelling nele identifica o projeto
“monstruoso” de alcançar o conhecimento que Kant negou à razão e de extrapolar os
limites de todo conhecimento a priori, em suma, um mero “episódio” da história da
filosofia, um “triste episódio”
10
.
Dessa forma, a crítica de Schelling procura mostrar na Lógica de Hegel o contra-
senso da tentativa de determinar todas as coisas como meras “determinações de
pensamento”. Schelling se volta contra a idéia mesma de uma filosofia que pretende
começar sem pressupor nada. É assim que o autor argumenta para mostrar que o
processo de pensamento que leva o inicio da Lógica a apresentar uma dialética entre ser,
nada e devir, só é possível pelo concurso do pensamento subjetivo. A Lógica de Hegel
somente das relações que os objetos assumem no mero pensar”, (SSW, X, 125) ao contrário da filosofia
positiva que se refere à existência, àquilo que é “por toda parte o positivo”.
7
F. W. J. von Schelling, História da Filosofia Moderna: Hegel, In: Coleção “Os pensadores”, Trad. de
Rubens R. Torres Filho, São Paulo, Abril Cultural, 1979, p. 158 (SSW, vol. X, p. 125).
8
Ibid, p. 158 (SSW, X, p. 126).
9
Ibid,Idem.
10
Ibid., p. 160 (SSW, X, p. 128).
19
começa de fato, com o “ser puro”, como a categoria mais indeterminada, como o ser no
qual não há absolutamente nada de um sujeito. Ela parte do puro pensamento e procede
segundo a necessidade intrínseca de seus momentos, uma vez suprimida a oposição da
consciência entre sujeito e objeto, realizando-se, portanto, seu desenvolvimento no
domínio da idéia ou do Absoluto. Dessa forma, a história apresentará fenomenalmente
aquilo que a lógica tematiza de maneira sistemática ou conceitual: as definições ou
categorias do absoluto
11
. Segue-se daí a identificação entre a lógica e a metafísica:
12
elas coincidem porque as formas puras do pensar são identicamente determinações do
real, da assim chamada Coisa mesma (Sache selbst),
13
inseridas num processo de
progressiva concreção que parte da categoria “mais pobre e vazia” – o ser – para atingir
a Idéia, que conserva em si todas as determinações do absoluto, único concreto em
relação a tudo o mais que tomado fora de sua participação nessa totalidade é meramente
abstrato.
14
Para levar a cabo esse projeto, a filosofia não pode se valer de uma outra
ciência que lhe serviria de base, mas deve ser a expressão mesma do conteúdo:
A filosofia, ao dever ser ciência, não pode (...) pedir emprestado o seu método a uma ciência
subordinada, como é a matemática, como tão pouco pode dar-se por satisfeita com
asseverações categóricas da intuição interior, nem se servir de um raciocínio por fundamentos
da reflexão exterior. Pelo contrário, só pode sê-lo a natureza do conteúdo, a qual se move no
conhecer científico, sendo ao mesmo tempo esta reflexão mesma do conteúdo, que somente
põe e produz a sua determinação mesma
15
.
Na Ciência da Lógica, Hegel elabora um itinerário dialético pelo qual as
determinações mais abstratas atingem no final sua plena concretude. Assim, Hegel parte
11
A primazia da esfera lógica é clara, pois só nela a verdade está em seu puro elemento”, o do pensar, e
tudo aquilo que é concreto no fundo se reduz a Gedankenbestimmungen. Cf. Enz. § 25.
12
“A lógica coincide pois com a metafísica, a ciência das coisas apreendidas no pensamentos, que
passavam por exprimir as essencialidades das coisas” Enciclopédia I, § 24, W 8, p. 81. Trad. de Paulo
Meneses, São Paulo: Loyola, 1995, vol. I, p. 77.
13
Deve-se ter em vista aqui a distinção hegeliana entre Ding e Sache. A objetividade da lógica não é dada
pela referência às coisas (Dinge), mas pela reflexão da Coisa, “o conceito das coisas”, isto é, um processo
de totalização efetuado por sucessivas mediações. Na Fenomenologia, a coisa era descrita como o objeto
da certeza sensível e da percepção emergindo na consciência como seu outro: “A Coisa mesma exprime,
pois, a essencialidade espiritual, em que todos esses momentos estão suprassumidos como válidos para si;
nela, portanto, só valem como universais. Ali, a certeza de si mesma é para a consciência uma essência
objetiva – uma Coisa, objeto engendrado pela consciência de si como seu, mas que nem por isso deixa de
ser objeto livre e autêntico. A coisa (Ding) da certeza sensível e da percepção tem agora, para a
consciência-de-si, sua significação unicamente através dela: nisso reside a diferença entre uma coisa
[Ding] e a Coisa [Sache]”. Trad. de Paulo Meneses, Petrópolis, Vozes, 1992, vol. I, p. 254
14
“A filosofia, ao contrário, não considera a determinação inessencial, mas a determinação enquanto
essencial. Seu elemento e seu conteúdo não é o abstrato e o inefetivo, mas sim o efetivo, que se põe a si
mesmo e é em si vivente: o ser-aí em seu conceito. É o processo que produz e percorre os seus momentos;
e o movimento total constitui o positivo e sua verdade”, PhG, W 3, p. 45., Trad. bras., p. 46.
15
Prefácio à 1
a
. ed. da Ciência da Lógica (W 5, p. 15).
20
da determinação mais geral que se tem, o ser, que em sua generalidade abstrata se
identifica com o nada, mas que através do devir de suas mediações chega a manifestar-
se como essência até atingir finalmente o domínio do absoluto enquanto doutrina do
conceito. A essência, por sua vez, mostra-se o lugar da gênese do conceito, cujo
desenvolvimento avança para a posição final da identidade dialética entre ser e
manifestação na Idéia absoluta. A partir da idéia absoluta, o Sistema percorre o
caminho da Natureza que se manifesta como mediação entre o lógico e o espiritual;
atinge, finalmente, o Espírito onde o ser como manifestação se concretiza propriamente
como História e como suprassunção da história no Absoluto. O caminho do Sistema
parte, pois, do Absoluto presente no saber da consciência e de sua expressão pura no
Lógico para retornar ao princípio pela suprassunção no absoluto retornado à sua
imediatez mediatizada, de todos os momentos percorridos na Natureza e no Espírito.
Para Schelling, entretanto, tal movimento é duplamente ilusório: “1) na medida
em que o pensamento é substituído pelo conceito, e este representado como algo que
move a si mesmo, e no entanto o conceito por si mesmo ficaria inteiramente imóvel se
não fosse o conceito de um sujeito pensante, isto é, se não fosse um pensamento; 2) na
medida em que se simula que o pensamento é propelido somente por uma necessidade
que está nele mesmo, enquanto é manifesto que ele tem um alvo em direção ao qual se
esforça e que, por mais que o filosofante procure ocultar de si a consciência dele, com
isso, simplesmente, atua mais decididamente sem consciência sobre a marcha do
filosofar”.
16
Se o ser do inicio da Lógica é apenas o ser indeterminado, que segundo o
próprio Hegel não é nada, todo o movimento posterior da Lógica seria arbitrário, pois já
que do nada não pode haver nenhum prosseguimento, somente a subjetividade do
filósofo imprimiria movimento às categorias, e, portanto a lógica não seria um processo
da própria coisa como pretendia Hegel.
17
Schelling não apenas afirma que o “puro
pensamento do ser” já pressupõe uma série de coisas, como afirma ainda que o
movimento que conduz do puro ser ao absoluto é artificial se comparado com o
movimento da filosofia negativa.
Contra a pretensão de Hegel de que a filosofia enquanto sistema da ciência não
deveria pressupor nada, Schelling argumenta mostrando que o primeiro resultado da
lógica do ser (“o ser é nada”) já pressupõe a forma do juízo, a ligação estabelecida pela
16
Ibid, p. 162 (SSW, X, p. 132).
17
Schelling ainda contesta a possibilidade do pensamento do ser puro, indeterminado: “não há nenhum
ser em geral, nenhum ser sem sujeito, o ser é, antes, necessariamente e sempre um ser determinado”. Ibid,
p. 133
21
cópula “é”.
18
Sendo assim, Schelling conclui que mesmo a lógica tomada naquele
sentido sublime como a primeira ciência filosófica tem de servir-se das formas lógicas
comuns. “Mas obviamente não são meramente as formas lógicas”, prossegue Schelling,
“mas quase todos os conceitos dos quais nos servimos na vida comum sem mais
meditação, e sem que consideremos necessário legitimar-nos quanto a eles, são quase
todos os conceitos dessa espécie de que também Hegel se serve logo no início e que ele,
portanto, pressupõe”.
19
Além disso, mesmo a forma trinitária da dialética já pressupõe a
numeração: “Mas como chego, aqui, no extremo rebordo da filosofia, onde ela ainda
mal pode abrir a boca e só com esforço encontra palavra e fala, a aplicar o conceito de
número?”.
20
Comparando a lógica de Hegel com sua filosofia negativa (que Schelling ousa
denominar o “original” em relação à “imitação”), o autor do Sistema do Idealismo
Transcendental afirma que lá, em sua primeira filosofia, partia-se de uma oposição real,
uma efetiva dissonância (entre o subjetivo e o objetivo, por exemplo), da qual se
alcançava posteriormente uma efetiva elevação, enquanto na Lógica de Hegel “há tão
pouco a superar quanto há a superar ao encher uma vasilha vazia; tudo se passa
inteiramente em paz – entre ser e nada não há nenhuma oposição, estes não fazem nada
um ao outro. A transposição do conceito de processo para o movimento dialético, em
que não é possível nenhuma luta, mas somente um progredir monótono, quase
soporífero, faz parte, portanto, daquele abuso das palavras que, em Hegel, é certamente
um grande meio para ocultar a falta de verdadeira vida.
21
Ao contrário da Filosofia da
Natureza, em que o absoluto permanecia junto de si sem precisar exteriorizar-se (daí seu
caráter meramente negativo), a Lógica de Hegel pretende expor a exteriorização da
idéia lógica no mundo objetivo (na natureza). Ora, esse processo seria artificial,
segundo Schelling, pois aquilo que se mostra como resultado está pressuposto desde o
início (na mente do filósofo), sem ser explicitado, e o que se tem é uma sucessão de
passagens artificiais – da idéia à natureza, e desta ao espírito – que não se justificariam.
Daí a necessidade de postular dois inícios no sistema: o lógico e o real: “O sistema
anterior [isto é, a filosofia negativa de Schelling] não conhece um duplo vir-a-ser, um
lógico e um real, mas partindo do sujeito abstrato, do sujeito em sua abstração, está
18
Cf. Ibid, p. 162 (SSW, X, p. 134).
19
Ibid, p. 168 (SSW, X, 144).
20
Ibid, p. 168 (SSW, X, 145).
21
Ibid, p. 164 (SSW, X, 137).
22
desde o primeiro passo, na natureza e não precisa posteriormente de nenhuma outra
explicação da passagem do lógico ao real”
22
.
Por recusar qualquer pressuposição anterior, a Lógica de Hegel nega a
necessidade da “intuição intelectual”, tal como expressa em Fichte e Schelling. Mas
esse último não admite que a Lógica possa passar sem a pressuposição de qualquer
intuição. Já que considera que o método da Lógica é o mesmo da filosofia-da-
identidade, Schelling pensa que Hegel só pode camuflar a intuição, pois se utilizava de
um método que tinha unicamente a natureza como conteúdo e a intuição natural como
acompanhante. Daí, assevera Schelling, “Hegel, já com o primeiro passo de sua Lógica,
pressupõe a intuição e, sem contrabandeá-la, não poderia dar nenhum passo”
23
. Munido
desse argumento, Schelling tenta responder à objeção feita por Hegel de que o sistema
da identidade, ao invés de demonstrar o absoluto pela via da ciência, apela para uma
intuição intelectual, a qual não se sabe exatamente o que seja a não ser que, enquanto
algo meramente subjetivo, não pode ter lugar na ciência.
24
Em primeiro lugar, Schelling
nega que tenha apelado para a intuição intelectual na primeira exposição do sistema da
identidade que, segundo o próprio autor é a única rigorosamente científica. Admite,
porém que se serve dela em outro contexto, especialmente para marcar sua diferença
com relação a Fichte: enquanto este procurava demonstrar a existência do eu, Schelling
buscava abstrair da intuição intelectual – que demonstra a existência de uma forma
determinada de sujeito-objeto –, para que aparecesse o “sujeito-objeto” geral como
forma de todo ser.
25
Ao admitir que a filosofia-da-identidade suspende a pergunta pela existência,
Schelling concede que seu primeiro sistema era apenas uma abstração. Nele o Absoluto,
se aparecia,
26
não tinha o significado da mais elevada efetividade, mas somente
enquanto “identidade absoluta”, enquanto forma geral da sujeito-objetividade. Sendo
assim, no confronto com a existência, com a objetividade real, a filosofia de Schelling
teria que superar a abstração da filosofia da identidade e assim chegar ao outro da
22
Ibid, p. 169 (SSW, X, 146).
23
Cf. Ibid, p. 165 (SSW, X, 138).
24
Ibid, p. 169 (SSW, X, 147).
25
“Não é o eu, como está na intuição intelectual, como imediatamente certo, mas o que é obtido por
abstração do sujeito na intuição intelectual, o sujeito-objeto retirado da intuição intelectual, isto é,
universal, indeterminado e que, nessa medida, não é mais algo imediatamente certo mas, retirado da
intuição intelectual, só pode ser ainda algo que diz respeito ao pensamento puro: somente este é o começo
da filosofia objetiva, liberta de toda subjetividade” Ibid, p. 170 (SSW, X, 148).
26
“Observo que naquela (primeira) exposição do sistema da identidade a palavra o Absoluto não aparecia
de modo nenhum, tão pouco quanto a palavra intuição intelectual” Ibid, p. 171 (SSW, X, p. 149).
23
filosofia. Nesse outro sentido, ainda desconhecido pela filosofia primeira de Schelling,
o autor admite uma intuição intelectual.
27
Como se vê, o que está em jogo nessas críticas é sem dúvida uma certa
concepção distinta da filosofia. Enquanto em Hegel a consideração filosófica permanece
sempre em si mesma na forma conceitual – o que o impede de admitir uma passagem
imediata às próprias coisas, para Schelling a filosofia lida com o outro de si mesma,
com o impensado. A partir disso, Schelling abre caminho para a posterior tradição
crítica da filosofia hegeliana, tradição essa que nega a “abstração” do sistema em nome
de uma idéia de efetividade diferente daquela que essa filosofia havia concebido. Toda
tradição das críticas a Hegel (de Feuerbach a Marx, de Kierkegaard a Schopenhauer)
denunciará a inefetividade da construção idealista e irá considerar os conceitos da
Lógica como algo apenas “subjetivo, artificialmente feito objetivo”.
28
“Os conceitos
como tais, prossegue Schelling, não existem de fato em parte nenhuma a não ser na
consciência, são, pois, tomados objetivamente, depois da natureza, não antes dela;
Hegel retirou-os de seu lugar natural, ao pô-los no começo da filosofia”.
29
Derivado disso é a censura que Schelling ainda faz à concepção de Hegel de que
a filosofia é uma “consideração pensante dos pensamentos”, ou seja, que o verdadeiro
pensar (a Lógica) lida apenas com os conceitos em sua pureza (independentes da
representação, da determinação sensível). Para Schelling, o pensamento não é apenas
puro pensar, pois a própria realidade sensível deve ser objeto do pensamento. E a
filosofia, enquanto pensar efetivo reflete sobre seu outro, pois “pensar efetivo é aquilo
pelo qual algo contraposto ao pensar é superado”.
30
Assim, ainda que conceda que a
idéia lógica abarca toda a realidade; que a idéia é a verdade de tudo; que sem ela nada
poderia existir, ainda assim, segundo Schelling, a explicação para a existência não teria
sido completamente dada:
27
Essa intuição intelectual surge para Schelling no confronto com o outro do pensamento, com o puro
“indeterminado em si” que não é nem objeto, mas a mera matéria do pensar: “Se o pensar está ocupado
com a determinação dessa matéria, ele não pensa nessa própria base, mas apenas nessa determinação
conceitual que introduz nela (argila de escultor) – ela é, pois, o propriamente não-pensado no pensar. Um
pensar não pensante porém, não será muito afastado de um pensar intuinte, e nessa medida um pensar que
tem por fundamento uma intuição intelectual passa através dessa filosofia inteira, assim como através da
geometria, na qual a intuição exterior da figura, que é desenhada no quadro negro ou alhures, é
constantemente apenas o portador de uma intuição interior e espiritual. Seja dito isto, pois, em face de
uma filosofia certamente desprovida de intuição”. Ibid, p. 171-2 (SSW, X, 151).
28
Ibid, p. 166 (SSW, X, p. 140).
29
Ibid, Idem.
30
Ibid, p. 166 (SSW, X, p. 141).
24
Tudo pode estar na idéia lógica, sem que com isso algo estivesse explicado, como, por
exemplo, no mundo sensível tudo está contido em número e medida, sem que por isso a
geometria ou a aritmética explicassem o mundo sensível. O mundo inteiro está como que nas
redes do entendimento ou da razão, mas a questão é justamente como ele entrou nessa rede,
pois no mundo há manifestamente ainda algo outro e algo mais do que mera razão, e até
mesmo algo que se esforça para transpor esses limites
31
.
Ao reclamar-se do “mundo efetivo”, da “contingência” e da “realidade sensível”
Schelling já anuncia as críticas que Feuerbach (e Marx seguindo seus passos) fará da
filosofia hegeliana. Ainda que suas intenções sejam completamente diferentes, pois
enquanto Schelling apresenta um outro sistema de filosofia que pretende resolver os
impasses que o idealismo alemão desde Kant tenta solucionar, - impossibilidade do
conhecimento do absoluto, cisão entre sujeito e objeto, etc Feuerbach pretende fazer
uma reviralvolta na filosofia, uma inversão da filosofia hegeliana, expressão máxima,
segundo ele, da identidade entre filosofia especulativa e teologia.
32
Feuerbach pretende
substituir a especulação pela antropologia e transferir, com isso, o centro da reflexão
filosófica de Deus para o homem. Para esse programa o texto de 1839 Para a Crítica da
Filosofia Hegeliana desempenha, sem dúvida, um papel central.
Nesse texto Feuerbach questionará, como Schelling, a tentativa hegeliana de
construir uma filosofia sem pressupostos. Se não podemos nem devemos apelar a
nenhum dado imediato, a nenhuma intuição, isso significa que tudo que se apresentar na
exposição científica do sistema deve passar pelo exame, pela crítica. A Lógica de Hegel
expõe assim todas as categorias a uma crítica exaustiva e apenas no final – com a idéia
absoluta, temos sua justificação última. Mas Feuerbach detectará aqui o ponto em que a
filosofia de Hegel se torna imune a toda crítica e se eleva sobre toda possibilidade de
exame: a idéia absoluta, que no final se sabe presente desde o início transforma a
filosofia num círculo no qual se fecha a si mesma e com isso deixa de se expor ao
exame e a qualquer exposição crítica, sendo por isso, dogmática. Nesse sentido, o autor
31
Ibid, p. 168 (SSW, X, p. 143-4).
32
“O mistério da teologia é a antropologia, mas o segredo da filosofia especulativa é a teologia – a
teologia especulativa que se distingue da teologia comum, porque transpõe para o aquém, isto é,
actualiza, determina e realiza a essência divina, que a outra exilava para o além, por medo e estupidez”
L. Feuerbach, Teses provisórias para a reforma da filosofia, Trad. Artur Morão, Lisboa, Edições 70, p.
19
25
dirá que “a filosofia hegeliana é, pois o apogeu da filosofia sistemática de tipo
especulativo.”
33
No sistema hegeliano, segundo Feuerbach, a exposição ou demonstração é ao
mesmo tempo igualmente fim para si mesma, ou seja, há uma identidade entre forma e
conteúdo. Mas tal identidade só é possível porque o filósofo constrói seu sistema dentro
do círculo da idéia absoluta: a construção do sistema pressupõe a idéia absoluta o que
contradiz a pretensão de uma filosofia inteiramente sem pressupostos: “Exatamente por
isso a prova do absoluto em Hegel – deixando de lado o rigor científico no
desenvolvimento – por princípio e pela essência tem apenas uma significação formal. A
filosofia hegeliana nos apresenta, desde seu começo e ponto de partida, uma
contradição, contradição entre a verdade e a cientificidade, entre a essencialidade e a
formalidade, entre o pensar e o escrever. Formalmente, a idéia absoluta não é
pressuposta, mas na essência [é]”
34
. Sendo uma mediação meramente formal, a idéia
absoluta dispensa o confronto com o realmente outro do pensamento e permanece, por
isso, encasulada em si mesma, apartada da intuição sensível. Nesse sentido a filosofia
hegeliana sofre a mesma reprovação que recai sobre a filosofia moderna de Descartes e
Espinosa, “a censura de uma ruptura não-mediatizada (unvermittelten) com a intuição
sensível, a censura da pressuposição imediata (unmittelbaren) da filosofia”
35
.
A partir disso, Feuerbach irá criticar a recusa da certeza sensível na filosofia de
Hegel, em especial a dialética dessa certeza apresentada no primeiro capítulo da
Fenomenologia do Espírito. Aí Hegel mostra que a consciência acredita que o conteúdo
concreto de seu saber é “um conhecimento de riqueza infinda, para o qual é impossível
achar limite”
36
. Este saber é apresentado como uma certeza sensível (sinnliche
Gewissheit), ou seja, certeza de que a presença do ser se dá através da receptividade da
sensibilidade. O ser seria dado aí integralmente, já que “do objeto nada ainda deixou de
lado, mas o tem em toda a sua plenitude, diante de si”. Presença que, por se dar através
33
Zur Kritik der Hegelschen Philosophie, Gesammelte Werke, IX, p. 33.
34
Ibid, p. 39. Segundo Feuerbach, antes que Hegel desse à sua lógica uma forma de comunicação
científica, a idéia absoluta era já para ele uma certeza, uma verdade imediata: “A idéia absoluta era uma
certeza absoluta para o pensador Hegel, mas para o escritor Hegel ela era uma incerteza formal. Essa
contradição entre o pensador liberado da necessidade (bedürfnislosen), dominando a exposição, e para
quem a coisa já está resolvida e o escritor submetido à necessidade (bedürftigen) e à sucessão, que põe
como formalmente incerto aquilo que para o pensador é certo, essa contradição objetivada é o processo da
idéia absoluta, que pressupõe o ser e a essência, mas de maneira tal que eles pressupõem na verdade a
idéia mesma” (Ibid, p. 40). Dessa forma, a exteriorização da idéia seria apenas um jogo e o não saber do
início da lógica uma “ironia” com a qual se diverte o pensador especulativo.
35
Ibid, p. 42.
36
PhG, W 3, p. 81; trad. cit., p. 74.
26
de uma intuição imediata, não se completa através do desdobramento do espaço e do
tempo ou da inspeção detalhada de suas partes. Ao tematizar o que chama de certeza
sensível, Hegel procuraria assim dar conta de toda tentativa de pensar a tarefa filosófica
como retorno à espontaneidade do ser, retorno à origem muda graças à receptividade
plena de uma intuição não-dependente do trabalho do conceito. Ao contrário, Hegel
quer mostrar que “essa certeza se revela expressamente como a verdade mais abstrata e
mais pobre. Do que ela sabe, só exprime isto: ele é. Sua verdade contém apenas o ser da
Coisa; a consciência, por seu lado, só está nessa certeza como puro Eu, ou seja, Eu só
estou ali como puro este, e o objeto, igualmente apenas como puro isto
37
. A dialética
da certeza sensível irá mostrar que toda vez que ela tenta exprimir o imediato (“agora é
noite”, “isto é uma casa”) ela lida não com o singular, mas com a simplicidade
mediatizada da linguagem (o isto, o agora), ou seja, com universais. Assim, “o mais
verdadeiro é a linguagem: nela refutamos imediatamente nosso visar, e porque o
universal é o verdadeiro da certeza sensível, e a linguagem só exprime esse verdadeiro,
está, pois totalmente excluído que possamos dizer o sensível que visamos”.
38
Feuerbach irá questionar tal refutação da certeza sensível contestando que o
universal tenha sido provado pelo uso dos dêiticos. O que tal dialética provaria seria a
incapacidade da própria linguagem de atingir o sensível e não a irrealidade do sensível,
ou seja, é uma refutação da linguagem que a consciência sensível encontra nesse fato, e
não uma refutação da própria certeza sensível: “Meu irmão se chama João, Adolfo; mas
além dele existe uma infinidade de outros homens que se chamam também João,
Adolfo. Disso se segue que meu João não é uma realidade? Segue-se que a Joanidade é
uma verdade? Para a consciência sensível, todas as palavras são nomes próprios,
Nomina própria; eles são em si indiferentes em relação ao mesmo ser, para a
consciência sensível não são mais que signos que lhe permitem atingir seu alvo pela via
mais curta. A linguagem não tem nada a ver com a coisa”.
39
Na verdade o erro de
Hegel, segundo Feuerbach, foi ter tomado somente o tempo e não o espaço por forma da
intuição. Nos Princípios para a Filosofia do Futuro escreve Feuerbach:
Hegel dá ao espaço, como em geral à natureza, apenas uma determinação negativa. Somente
‘estar aqui’ é positivo. Eu não estou além, porque estou aqui – este não-estar-além é, pois, uma
37
Ibid, Idem.
38
Ibid, trad. p. 76.
39
Feuerbach, Op. Cit, p. 43. Para um comentário sobre essa questão ver Paulo Arantes: Hegel e a ordem
do tempo, São Paulo, Hucitec, 2000, p. 79, nota 17.
27
conseqüência do estar aqui positivo, rico de sentido. É somente um limite da tua representação,
mas não um limite em si, que o aqui não seja o além, que uma coisa seja exterior à outra. É
uma exterioridade que deve existir, que não se opõe à razão, mas se lhe conforma. Mas, em
Hegel, esta exterioridade recíproca é uma determinação negativa, porque é a exterioridade do
que não deve ser exterior – com efeito, o conceito lógico, enquanto identidade absoluta
consigo mesmo, tem-se por verdade – e o espaço é justamente a negação da idéia, da razão,
negação na qual, pois, só se pode de novo reintroduzir a razão, negando-a. Mas longe de o
espaço ser a negação da razão, é pelo contrário no espaço que justamente importa abrir lugar à
idéia e à razão; o espaço é a primeira esfera da razão. Sem exterioridade espacial, também não
existe exterioridade lógica alguma
40
.
Essa superestimação do tempo e a conseqüente desvalorização da experiência
sensível espacial está na origem da desconsideração da realidade imediata. É verdade
que a linguagem só exprime o abstrato, mas ao dizer, o sujeito que da experiência
sensível pressupõe o movimento corporal para a visada do objeto (isto é uma árvore, ali
há uma casa). Por isso, Hegel só consegue refutar o aqui e o agora lógico, não o real. E
essa é a chave da dialética: “só constitui a forma de sua intuição e de seu método
mesmo o tempo que exclui e não simultaneamente, também o espaço que tolera; seu
sistema só conhece subordinação e sucessão, ignora tudo da coordenação e da
coexistência”.
41
Assim como na crítica de Schelling,
42
Feuerbach rejeita a dissolução da
experiência sensível na filosofia de Hegel. Para ele, essa dissolução torna a filosofia de
Hegel imune à toda crítica, é verdade, mas num sentido dogmático; e, ao mesmo tempo,
por pairar acima de toda realidade concreta, acaba por converter-se numa “mística
racional”. Essa expressão – como todo o aparato crítico feuerbachiano – também será
usada pelo jovem Marx para caracterizar a Lógica de Hegel. Embora elogie Hegel por
ter concebido a história como processo, como alienação e superação dessa alienação e o
homem efetivo como resultado de seu trabalho, Marx também recusa o caráter abstrato
e meramente ideal do sistema. “A apropriação das forças essenciais humanas”, escreve
Marx em seus Manuscritos Parisienses, “convertidas em objetos, em objetos estranhos,
é pois, em primeiro lugar, uma apropriação que se passa apenas na consciência, no
pensamento puro, isto é, na abstração, a apropriação desses objetos como pensamentos
40
Princípios da Filosofia do Futuro, trad. cit., p. 89.
41
Zur Kritik der Hegelschen Philosophie, Gesammelte Werke, IX, p. 17. Sobre esse aspecto da crítica de
Feuerbach, Cf. Arantes, P. Op. Cit., pp. 371-5.
42
Sobre a semelhança de Schelling e Feuerbach com relação à crítica de Hegel, ver Alfred Schmidt.
Emanzipatorische Sinnlichkeit, München, Zürich, Piper Verlag, 1988, p. 106.
28
e movimentos do pensamento; por isso, já na Fenomenologia (apesar do seu aspecto
totalmente negativo e crítico, e apesar da crítica efetivamente nela contida, que com
freqüência se adianta muito ao desenvolvimento posterior) está latente como gérmen,
como potência, como um mistério, o positivismo acrítico e o igualmente acrítico
idealismo das obras posteriores de Hegel, essa dissolução e restauração filosóficas da
empiria existente”.
43
Ao comentar a Filosofia do Direito de Hegel, Marx retoma o processo contra a
mistificação idealista. Ao criticar a suposta primazia do Estado sobre a sociedade civil,
Marx pretende ter desvendado o segredo da filosofia de Hegel, que ele caracteriza como
“misticismo lógico”: na verdade, a prioridade do Estado em relação às esferas
subordinadas da família e da sociedade civil é a prioridade da idéia lógica em relação
aos seus momentos particulares. O que torna possível a inversão dos predicados que
Marx, seguindo Feuerbach, constata, é a concepção ontológica de Hegel que torna todas
as determinações particulares, finitas, fenomenais do ser em momentos abstratos da
manifestação da idéia absoluta. A crítica procura mostrar, portanto, que à ontologização
da Idéia corresponde um esvaziamento da realidade efetiva – a base material da própria
idéia.
Trata-se, dessa forma, de colocar o sistema hegeliano sobre seus próprios pés e
desfazer a idéia de autonomia do Estado. Nesse sentido, o procedimento de Marx segue
de perto a crítica antropológica empregada por Feuerbach que consiste muito
simplesmente em inverter os resultados teóricos da teologia e da filosofia especulativa
para que a verdade seja estabelecida. Para esse último o pressuposto de tal inversão é a
abstração da essência dos objetos, transportada para fora dos próprios objetos, e da sua
posterior apresentação como um produto de Deus ou do pensamento. Portanto, caberia à
crítica reconduzir o pensamento ao seu verdadeiro fundamento, pois a filosofia
especulativa já exprimiria às avessas a verdade dos objetos. Tal fundamento é o homem
como ser genérico e o ser sensível imediato.
Para o jovem Marx, a filosofia especulativa afirma exatamente o contrário do
que se passa na realidade – ou dito de outra forma, ela diz o que é a realidade, mas a
esvazia na abstração do pensamento. Assim, na Filosofia do Direito, por exemplo,
família e sociedade civil constituem a condição de existência do Estado, elas são a
verdadeira força motriz do Estado, seu sujeito, e, no entanto, tal condição é formulada
43
K. Marx, Manuscritos Econômico-Filosóficos, In: Coleção “Os Pensadores”, São Paulo, Abril Cultural,
1985, p. 36.
29
como sendo condicionada, determinada pelo Estado, seu predicado. Hegel não nega tal
condição, mas a realidade social que lhe serviu como ponto de partida, perde, no fim das
contas, seu significado efetivo originário: ela é concebida como resultado da
necessidade da idéia em sua efetivação. O misticismo lógico consistiria essencialmente
nesse esvaziamento da realidade social, que a transformaria em seguida num produto da
idéia e faz desta a autêntica realidade. Aqui temos, sem dúvida, o procedimento
especulativo em sua síntese, mas não ainda o seu verdadeiro segredo que só se revela
inteiramente quando comparamos a inversão efetuada no domínio da sociedade ao
andamento das categorias na Grande Lógica. Poderíamos constatar aí que o misticismo
hegeliano obedece rigorosamente o mesmo encadeamento das categorias lógicas na
formação da idéia absoluta. Segundo Marx, Hegel “dá à sua lógica um corpo político,
não a lógica do corpo político”.
44
Por outro lado, a crítica de Marx também reencontra Schelling ao fazer com que
a passagem da Lógica à Filosofia do Real só se torne possível pelo pensamento
subjetivo do próprio filósofo. Sobre essa passagem, diz Marx:
toda esta idéia, que se comporta de forma tão estranha e barroca e que propiciou aos hegelianos
incríveis dores de cabeça, nada mais é, afinal das contas, do que a abstração (isto é, o pensador
abstrato), que, escaldada pela experiência e esclarecida sobre sua verdade, decide, sob certas
condições – abandonar-se e pôr seu ser-outro, o particular, o determinado, no lugar de seu ser-
junto-a-si, de seu não ser, de sua generalidade e de sua indeterminação, a natureza. Decide
deixar sair livremente para fora de si a natureza, que ocultava em si só como abstração, como
coisa do pensamento. Isto é, decide abandonar a abstração e contemplar por fim a natureza
libertada dela. A idéia abstrata, que se converte imediatamente em contemplação, não é outra
coisa senão o pensamento abstrato que se renuncia e se decide pela contemplação. Toda esta
passagem da lógica à filosofia da natureza é apenas a passagem – de tão difícil realização para
o pensador abstrato, que por isso descreve-a de forma tão extravagante – da abstração à
contemplação. O sentimento místico que leva o filósofo do pensar abstrato à contemplação é o
aborrecimento (Langweile), a ânsia (Sehnsucht) por um conteúdo.
45
44
Crítica da filosofia do direito de Hegel, Ed. Boitempo, p. 67.
45
Manuscritos, Ed. Cit., p. 46-7.
30
Capítulo 2 – A crítica de Schopenhauer
Na contraposição de Schopenhauer a Hegel encontraremos quase todos os
motivos que, desde Schelling, foram levantados contra a filosofia hegeliana. Entre as
muitas diatribes que encontramos na obra de Schopenhauer contra Hegel algumas têm
um lugar representativo, não apenas por seu caráter polêmico, mas também pela
importância estratégica que assumem. Essas referências, ofensas e críticas englobam
quase todos os temas clássicos da filosofia (teoria do conhecimento, filosofia da
natureza e ética), além de discussões a respeito de método e estilo de escrita filosófica.
A partir disso temos o seguinte quadro: a primeira crítica está presente na dissertação
Sobre a Quadrúpla Raiz do Princípio de Razão Suficiente, e tem como tema principal o
conceito de razão; a segunda aparece no adendo ao Esboço de uma História da Teoria
do Ideal e Real, no qual as figuras principais do idealismo alemão (Fichte, Schelling e
Hegel) são duramente combatidas. É também nesse texto que estão afirmações
importantes de Schopenhauer sobre o modo de pensar do idealista, ao qual ele opõe a
sobriedade da filosofia da reflexão; a terceira crítica aparece no prefácio de Os dois
problemas fundamentais da ética, e tem como tema principal a filosofia da natureza;
por fim, encontramos no ensaio Sobre a Filosofia Universitária a mais feroz de todas
elas e cujo tema diz respeito aos vários âmbitos da moral: filosofia da história, teoria do
direito e do Estado e filosofia da religião. Há várias outras passagens da obra de
Schopenhauer em que o autor se refere a Hegel, com palavras nem um pouco
respeitosas; mas em nenhuma delas encontramos críticas com um valor conceitual tão
representativo quanto nas passagens acima. É por essa razão que para iniciar nosso
trajeto devemos analisar cada uma delas.
Para Schopenhauer, a razão é a faculdade de formar conceitos e constitui a
segunda forma do princípio de razão, aquela que rege as representações abstratas. O
filósofo diz que tudo aquilo que foi considerado em todos os tempos e povos como obra
da razão se relaciona visivelmente apenas àquilo que é possível ao conhecimento
abstrato, discursivo, reflexivo, ligado às palavras e mediato e não ao conhecimento
intuitivo puro, imediato e sensível. Segundo o autor, encontramos em nós apenas as
formas da intuição externa, objetiva, o tempo e o espaço, e a causalidade como simples
forma do entendimento pela qual ele constrói o mundo físico objetivo, e por fim, a parte
31
formal do conhecimento abstrato, que constitui o objeto da lógica enquanto teoria da
razão.
46
Dessa forma, todo o elemento material de nosso conhecimento, isto é, tudo que
não pode ser considerado como a forma subjetiva, como atividade própria da
inteligência, portanto, todo o estofo do conhecimento, vem do exterior, da intuição
objetiva do mundo físico, derivada da sensação. É esse conhecimento intuitivo e através
de sua matéria empírica que a razão transforma, em seguida, em conceitos que ela fixa
em palavras, para encontrar nelas a matéria necessária para suas combinações infinitas,
graças aos juízos e raciocínios que constituem todo o tecido do pensamento.
47
Essa é a
única atividade da razão, sendo “absolutamente impossível para ela fornecer uma
matéria para seus próprios recursos”.
48
É nesse contexto que Schopenhauer acusa Hegel
e o idealismo alemão de ter desnaturado a razão e o entendimento, invertendo seus
sentidos, fazendo do último uma capacidade de abstrair e da primeira uma faculdade
metafísica capaz de conceber por si mesma idéias incondicionadas: “Os professores de
filosofia acharam bom retirar daquela faculdade de pensar e refletir que diferencia os
homens dos animais (...) seu nome habitual e não mais chamá-la de razão, mas contra
todo uso e todo costume saudável, entendimento, e da mesma forma tudo aquilo que
dela deriva de compreensível (verständig), ao invés de racional (vernünftig), o que
produz um efeito discordante e ruim, como uma falsa nota”.
49
Graças a essa inversão, a
razão foi elevada a uma espécie de oráculo metafísico: “A razão, entrujada de maneira
tão atrevida de toda essa sabedoria, é entendida como uma ‘faculdade do supra-
sensível’, ou também ‘faculdade das idéias’, em suma, como uma faculdade em nós
presente voltada para a metafísica, de tipo oracular. Sobre a maneira de se perceber
essas magnificênças e visões supra-sensíveis reina, há cinqüenta anos, entre os adeptos,
uma grande variedade de concepções. Segundo os mais drásticos, ela tem uma intuição
racional imediata do absoluto, ou ainda ad libitum do infinito, e de suas evoluções até o
finito. Segundo outros, mais modestos, é antes ouvindo do que vendo, já que ela não
intui diretamente, mas apenas entende o que se passa na tal cucolândia das nuvens, e
assim narra fielmente àquele tal entendimento, que a partir daí escreve compêndios
filosóficos”.
50
46
Cf. SG, § 34, SW I, p. 110.
47
Cf. Ibid, Idem.
48
Ibid, SW I, p. 117. Schopenhauer assinala aqui que não é um mero acaso que a palavra razão é, em
todas as línguas latinas e também nas germânicas, do genêro feminino, enquanto o entendimento do
gênero masculino: a razão só concebe, não cria.
49
Ibid, SW I, p. 112
50
Ibid, p. 111.
32
Schopenhauer opôe assim às construções teóricas idealistas de Fichte, Schelling
e Hegel e à possibilidade de conhecer o absoluto, a limitação do entendimento humano
às intuições sensíveis, e da razão à capacidade de relacionar representações abstratas.
Para isso, o autor evoca Locke e Kant: ambos teriam afirmado a dependência do
conhecimento à experiência, sendo que Kant explica como se dá a parte formal a priori
do conhecimento e Locke a parte material
51
. No entanto, teria sido o próprio Kant, com
seu imperativo categórico que teria fornecido o motivo para a concepção da razão como
uma faculdade criadora. Segundo Schopenhauer, por uma ampliação audaciosa, a razão
que já em Kant constituia um “oráculo prático” se tornou um “oráculo teórico”. Teria
sido sobretudo Jacobi que com essa invenção ajudou os pós-kantianos a sair do
desespero que a crítica kantiana causou. A razão se tornou entendimento e àquela foi
atribuida uma capacidade especial de conceber idéias na qual se baseou toda filosofia
alemã posterior, “primeiro como construção livre e como projeção do eu absoluto e de
suas emanações rumo ao não eu; depois como intuição intelectual da identidade
absoluta ou da indiferença e de suas evoluções até a natureza, ou também de Deus,
nascendo do seu fundo tenebroso ou de sua ausência de fundo (abismo), à la Jakob
Böhme; enfim como idéia absoluta se pensando a si mesma e como palco no qual se
executa o ballet do auto-movimento dos conceitos, mas sempre como concepção
imediata do divino, do supra-sensível, da beleza, da divindade, da verdade, da bondade
e de tudo mais que se queira com o final ‘ade’”.
52
Outro aspecto da crítica da razão de Schopenhauer é o tema das provas da
existência de Deus, tratado nos parágrafos 8 e 9 do mesmo texto, quando critica
Descartes e Espinosa. Para ele, a filosofia inteira de Espinosa – que ele interpreta como
panteísmo – se baseia na mesma confusão entre princípio de conhecimento e princípio
de causa e efeito (ou entre razão e entendimento) que tornou possível a prova ontológica
de Deus em Descartes. O idealismo alemão, sobretudo com Schelling e Hegel, é
compreendido como o desenvolvimento desse equívoco fundamental e é por isso que
51
Cf. Ibid, p. 116.
52
Ibid, p. 123: “erst als freie Konstruktion und Projektion des absoluten Ich und seiner Emanationen zum
Nicht-Ich, dann als intellektuale Anschauung der absoluten Identität, oder Indifferenz, und ihrer
Evolutionen zur Natur, oder auch des Entstehens Gottes aus seinem finstern Grunde, oder Ungrunde, à la
Jakob Böhme, endlich als reines Sichselbstdenken der absoluten Idee und Schauplatz des Ballets der
Selbstbewegung der Begriffe, daneben aber stets noch als unmittelbares Vernehmen des Göttlichen, des
Uebersinnlichen, der Gottheit, der Schönheit, Wahrheit, Gutheit, und was sonst noch für Heiten gefällig
seyn mögen”.
33
Schopenhauer afirma, em vários momentos de sua obra, que essa filosofia não passa de
uma espécie de cópia deformada pela linguagem da filosofia de Espinosa
53
.
A lei da causalidade regula, para Schopenhauer, todo o conteúdo das formas
puras da intuição, tempo e espaço. Toda a realidade empírica é regida pela validade
desse princípio. O estabelecimento da lei de causalidade como forma da experiência
permite a Schopenhauer, na esteira de Kant, confirmar a validade da refutação das
provas da existência de Deus. Tanto a prova ontológica quanto a prova cosmológica
contradizem o princípio de razão. É aqui que Schopenhauer, na Dissertação se refere
polemicamente a Hegel, defendendo que toda sua doutrina não passaria de uma
“monstruosa amplificação da prova ontológica”.
54
Já aqui vemos o aspecto central da
crítica de Schopenhauer ao “panlogismo” hegeliano. É enquanto permite o pensamento
em um “absoluto” que Schopenhauer enxerga um vínculo profundo entre as provas da
existência de Deus e a filosofia hegeliana.
Para Schopenhauer, a filosofia moderna consistiu num abuso daquele equívoco
que conduz à prova ontológica: a confusão entre princípio de razão de conhecimento e
princípio de causa e efeito. Não se pode confundir, segundo o filósofo, o princípio de
conhecimento que serve para estabelecer um juízo com uma causa que serve de razão
para um acontecimento real. Descartes teria, segundo Schopenhauer, confundido
intencionalmente os dois princípios e colocado um princípio de conhecimento para
determinar a existência de Deus a partir de sua própria definição, ao invés de se
perguntar, como seria razoável, pelo princípio de causalidade.
55
Saber e demonstrar que
(dass) uma coisa é não é a mesma coisa que saber por que (Warum) uma coisa é. Esse
seria o fundamento para a inferência da existência de Deus a partir de sua própria
definição. Schopenhauer se fia na idéia de que a definição de uma coisa e a prova de sua
existência são coisas distintas
56
. A mesma confusão seria o fundamento do “panteísmo”
de Espinosa. A relação da substância universal e única (Deus) com seus infinitos
atributos (o mundo) é a relação entre um conceito e os juízos analíticos fundados nele e
que dele podem derivar-se: é a relação do princípio de conhecimento com suas
conseqüências. Seu procedimento consiste em mesclar o princípio de conhecimento que
jaz no fundo de um determinado conceito com uma causa ativa do exterior. “Assim, o
53
Sobre esse tema Cf. Eduardo Brandão, “A concepção de matéria em Schopenhauer e o Absoluto”, em
João Carlos Salles (org), Schopenhauer e o Idealismo alemão, Salvador: Quarteto, 2004, pp. 45-57.
54
SG, § 7, SW I, p. 11-2.
55
Cf. SG, §7, SW, I, p. 10.
56
Cf. Ibid, p. 11. Essa distinção apareceria, segundo Schopenhauer, de maneira ainda não muito clara em
Aristóteles e depois completamente desenvolvida em Kant.
34
panteísmo de Espinosa é somente a realização da prova ontológica de Descartes. (...) O
que Descartes apresentou apenas como ideal, subjetivo, isto é, apenas para nós, apenas
para o conhecimento em vista da prova da existência de Deus, Espinosa tomou de uma
maneira real e objetiva, como a relação real entre Deus e o mundo. (...) O primeiro
tinha ensinado em sua prova ontológica que a existencia de Deus resulta de sua essentia,
o segundo fez da causa sui a essência de Deus”
57
.
Por não aceitar a supressão da diferença entre os dois significados do princípio
de razão, Schopenhauer nega reconhecer um sentido para a expressão causa sui que os
“neo-espinosistas” Schelling e Hegel recuperaram. Assim como o absoluto, a causa sui
não passa de uma decisão autoritária e impertinente de romper a cadeia infinita da
causalidade. Da mesma forma, a prova cosmológica, ao deduzir um ser necessário a
partir do ser contingente, “consiste na realidade em afirmar que o princípio de razão do
devir (ou lei de causalidade) conduz necessariamente a um pensamento que o suprime e
o declara como nulo. Pois não se chega à causa prima (o Absoluto) senão remontando
do efeito à causa numa série tão longa quanto se queira; mas não se pode parar em uma
causa primeira sem anular o princípio de razão”.
58
De qualquer forma, a teoria da identidade do real e do ideal mereceria, à
primeira vista, uma atenção especial, principalmente num texto chamado Esboço de
uma história da teoria do ideal e do real. Mas é exatamente isso que Schopenhauer
nega, afirmando que no caso dos três “sofistas”, Fichte, Schelling e Hegel, não se trata
de filosofia séria, já que eles negariam a seriedade e a probidade da pesquisa. Mesmo
assim, Schopenhauer se esforça em mostrar que tal identidade construída por esses
filósofos não se realizaria e que a crítica da filosofia da reflexão em Hegel não passa de
um jogo de palavras ininteligível
59
. O autor cita o prefácio da Fenomenologia do
57
SG, §7, SW, I, p. 14.
58
Cf. SG, § 20, SW, I, p. 41. Cf. também, Ibid., § 49, p. 153, onde Schopenhauer critica a idéia de
incondicionado. A questão da recuperação hegeliana das provas da existência de Deus será tratada de
maneira mais pormenorizada na terceira parte, capítulo 3 (pp. 199-212).
59
Cf. Parerga e Paralipomena, I, SW V, p. 28. Podemos comparar essa idéia com a parte final da crítica
de Schelling sobre o modo de pensar e a linguagem de Hegel. Assim, diz o filósofo, “quem, sob pretexto
de que são meras determinações finitas do entendimento, quer elevar-se acima de todos os conceitos
naturais, despoja a si mesmo, justamente com isso, de todos os órgãos da inteligibilidade, pois somente
nessas formas tudo pode ser-nos inteligível” Op. Cit, p. 178 (SW, X, p. 162). Ele faz ainda a seguinte
comparação: se cabeças com grande habilidade e imaginação se propõem, mas sem grande inventividade
para tarefas mecânicas, a criar uma máquina de tornear garrafas – fabricam perfeitamente uma, mas o
mecanismo é tão difícil e artificioso, as máquinas rangem tanto que se prefere usar as mãos. O mesmo se
passa na filosofia: “se o martírio de um sistema anti-natural é maior do que aquele fardo da ignorância,
prefere-se no entanto continuar a suportar este”. Ibid, Idem. (SW, X, p. 164).
35
Espírito: “não é difícil de perceber que essa maneira [de proceder] – expor uma
proposição, defendê-la com argumentos, refutar o seu oposto com razões – não é a
forma como a verdade pode manifestar-se. A verdade é seu próprio movimento dentro
de si mesma”.
60
Schopenhauer não se detém, porém, no detalhe do argumento de Hegel
e apenas mostra a sua perplexidade com aquilo que ele entende ser a negação de todo
são entendimento que conduzia os antigos filósofos à busca da verdade. Mesmo os
racionalistas Descartes, Espinosa e Leibniz são louvados por ainda acreditarem ser
possível a transmissão de conhecimento com palavras compreensíveis ao entendimento
comum. Já em Hegel não se trataria de pensar a partir de conceitos, mas esses mesmos é
que usariam a cabeça dos homens para se auto-pensarem:
portanto, aquilo que é pensado in abstracto como tal deveria ser um e o mesmo com o
objetivamente existente em si mesmo e, da mesma forma, também a lógica deveria ser ao
mesmo tempo a verdadeira metafísica: de acordo com isso, precisamos apenas pensar, ou
deixar os conceitos agirem para saber como é o mundo lá fora. Portanto tudo o que dá na telha
(in einem Hirnkasten spukt) é ao mesmo tempo real e verdadeiro. Porque doravante o ‘quanto
mais idiota melhor’ (»je toller je besser«) era o mote dos filosofastros desse período, assim era
essa absurdidade apoiada pela segunda, segundo a qual nós não pensamos, mas os conceitos se
realizavam sozinhos e sem nossa participação o processo de pensamento, o que foi chamado de
auto-movimento dialético do conceito e deveria ser assim uma revelação de todas as coisas in
et extra naturam.
61
Apesar de curto e conter muitos juízos sumários, esse texto oferece uma reflexão
importante de Schopenhauer sobre a gênese do idealismo alemão. A partir de Schelling,
que Schopenhauer considera o mais “talentoso” dos idealistas, teria surgido a ocasião
para uma recuperação de Espinosa em chave idealista, o que teria atingido seu ponto
culminante com Hegel. Após mostrar o desenvolvimento do pensamento sobre as
relações entre o ideal e o real de Descartes a Kant, Schopenhauer se detém na tentativa
de Schelling de superar o problema pela afirmação da identidade do real e do real, o que
60
Fenomenologia do Espírito, W 3, p. 46. Trad. Cit, p. 47. Citado por Schopenhauer em Parerga e
Paralipomena I, SW V, p. 30.
61
Ibid, p. 36-7: “also das in abstracto Gedachte als solches und unmittelbar sollte Eins seyn mit dem
objektiv Vorhandenen an sich selbst, und demgemäß sollte denn auch die Logik zugleich die wahre
Metaphysik seyn: demnach brauchten wir nur zu denken, oder die Begriffe walten zu lassen, um zu
wissen, wie die Welt da draußen absolut beschaffen sei. Danach wäre Alles, was in einem Hirnkasten
spukt, sofort wahr und real. Weil nun ferner »je toller je besser« der Wahlspruch der Philosophaster
dieser Periode war; so wurde diese Absurdität durch die zweite gestützt, daß nicht wir dächten, sondern
die Begriffe allein und ohne unser Zuthun den Gedankenprozeß vollzögen, welcher daher die dialektische
Selbstbewegung des Begriffs genannt wurde und nun eine Offenbarung aller Dinge in et extra naturam
seyn sollte”.
36
para ele significaria algo como “cortar o nó”, ao invés de desfazê-lo. Aqui o filósofo
afirma mais uma vez sua volta a Kant, já que censura Schelling exatamente por ter
contradito o primeiro. A tendência a interpretar Kant a partir de Espinosa é censurada:
“Entrementes ele compreendeu ao menos o próprio e original sentido do problema que
diz respeito à relação entre nossa intuição e o ser e essência em si mesma das coisas que
se apresentam; mas por haurir sua doutrina principalmente a partir de Espinosa, ele
toma deste as expressões pensar e ser, que designam muito mal o referido problema e
mais tarde dariam lugar às mais malucas monstruosidades”
62
. O ponto que
Schopenhauer ressalta aqui é a clivagem que faz o problema da relação entre o ideal e o
real se deslocar da intuição e o intuído para o pensar e o pensado. Com isso a relação
imediata com o em-si é suprimida por uma relação abstrata entre ser e pensar, o que
teria dado a ocasião para uma logicização da metafísica em Hegel e o desprezo pela
experiência sensível, a única que, segundo Schopenhauer, contém uma relação imediata
com o ser em si. Como tentaremos mostrar, a crítica de Schopenhauer procura corrigir
Espinosa via Kant, e vai na contramão da recuperação que Schelling e depois Hegel
oferecem da filosofia de Espinosa, que tentariam justamente corrigir Kant via
Espinosa.
63
Um outro texto em que Schopenhauer cita, de maneira representativa, textos de
Hegel para fundamentar sua crítica é o prefácio à primeira edição de Os dois problemas
fundamentais da ética (1840). Trata-se, nesse texto, de tentar mostrar à Sociedade Real
de Ciências da Dinamarca que não premiou o texto Sobre o Fundamento da Moral, que
os filósofos mencionados de maneira ofensiva nessa obra não são tão dignos de respeito
quanto se pensa. Esses summi philosophi são Fichte e Hegel. Fichte foi objeto do § 11,
intitulado “A ética de Fichte como espelho de aumento dos erros da ética kantiana”.
Mas se Fichte ainda é considerado digno de crítica e é qualificado como “homem de
talento”, Schopenhauer considera Hegel como um autor abaixo de toda crítica, mas que
exerceu uma influência perniciosa em toda literatura alemã. É no sentido de tentar
neutralizar essa influência que Schopenhauer tentará mostrar que Hegel não teria sequer
62
PI, SW, IV, p. 35.
63
Poderíamos concluir daí, portanto, que para pensar a relação entre Schopenhauer e os idealistas
Schelling e Hegel, é necessário investigar como Schopenhauer interpreta Spinoza. Sobre isso ver Ortrum
Schulz. Wille und Intellekt bei Schopenhauer und Spinoza, Frankfurt, Peter Lang, 1993. Sobre Schelling e
Schopenhauer ver Berg, R. Jan, Objektiver Idealismus und Voluntarismus in der Metaphysik Schellings
und Schopenhauers. Würzburg, K & N, 2003 e Jair Barboza, Infinitude subjetiva e estética. Natureza e
arte em Schelling e Schopenhauer. São Paulo, Unesp, 2005.
37
competência para ser um professor universitário, pois sua obra conteria equívocos que
contraria todo bom senso, que “lhe falta mesmo todo entendimento humano comum
(gemeine Menschenverstand), por mais comum que ele possa ser”.
64
Os exemplos de Schopenhauer são todos tirados da Filosofia da Natureza da
Enciclopédia. Referem-se às questões da permanência da substância, da lei de
causalidade, da lei de inércia e da matéria. Em primeiro lugar, o autor cita o § 293 da
referida obra, passagem que trata do peso dos corpos: “um exemplo da especificação
existente do peso é o fenômeno que ocorre quando uma barra de ferro em equilíbrio
sobre seu ponto de apoio perde, uma vez magnetisada, seu equilíbrio e aparece mais
pesada em um dos seus polos que o outro. Uma parte é assim afetada de modo a se
tornar mais pesada sem desperdicio de volume; a matéria, cuja massa não aumenta, se
torna especificamente mais pesada”.
65
Para Schopenhauer o equívoco aí já estaria na
mera forma do silogismo, que ele assim resume: tudo aquilo que se torna mais pesado
de um lado pende para um lado: essa barra magnetisada pende para um lado: portanto,
ela se tornou mais pesada nesse lado.
66
Essa forma silogística contrariaria a regra
aristotélica segundo a qual “de meras premissas afirmativas não se segue nada na
segunda figura”. Mas, segundo Schopenhauer, mesmo a lógica inata do “reto e sadio
entendimento” (gesunder und gerader Verstand) impediria um tal raciocínio.
O segundo exemplo é retirado do § 269 e versa sobre a lei de inércia: “A
gravitação contradiz imediatamente a lei de inércia, pois através daquela a matéria se
esforça para sair de si mesma em direção a outra”.
67
Ora, Schopenhauer não pode
aceitar que a lei de inércia seja suprimida, pois se ela própria diz que “onde nenhuma
causa intervém, nenhuma mudança se produz”, ela não passa de um corolário da lei de
causalidade.
68
A partir disso, Schopenhauer exclama: “Como?! Não se pode conceber
que a lei de inércia seja tão pouco contrária a que um corpo seja atraído (angezogen)
por outro como a que seja repelido (gestoßen) por ele?! Tanto em um caso como no
outro, é a irrupção de uma causa externa a que suprime ou modifica o repouso ou o
64
E. SW IV, p. xx. Schopenhauer ainda diz que a academia bem poderia dizer que “as doutrinas celestes
dessa sabedoria são inacessíveis à inteligências tão baixas quanto a minha (Schopenhauer), e que aquilo
que considero como não-senso (Unsinn) é de sentido profundo insondável”. Mas o que ele quer é
justamente mostrar o contrário.
65
Enz, § 293 (Anm) W 9, p. 158, trad. Bras., p. 170.
66
Os dois problemas fundamentais da ética, SW IV, p. xxi
67
Enz, § 269 (Anm), W 9, p. 82; trad. Bras., p. 89.
68
E. SW IV, p. xxii.
38
movimento até então existente; e de tal modo que na atração como na repulsão, ação e
reação são mutuamente iguais”.
69
A terceira citação se refere a uma passagem em que Hegel polemiza contra a
explicação da eletricidade pela hipótese dos poros (§ 298): “ainda que se admita in
abstracto que a matéria é perecível e não absoluta, ainda assim na aplicação se vai
contra isso (...) de modo que, de fato, a matéria é tida como absolutamente autônoma,
eterna. Esse equívoco é introduzido pelo erro geral do entendimento de que etc”.
70
Segundo Schopenhauer essa passagem denunciaria que Hegel acreditaria na
transitoriedade da matéria. Para o primeiro, entretanto, seria absurdo aceitar que a
matéria seja passageira, pois o entendimento não permite pensar num nascimento ou
destruição da matéria: “que a matéria persiste, ou seja, que não nasce nem perece como
todas as outras coisas, mas que existe e permanece tão indestrutível como ingerada
durante todo o tempo, e por isso seu quantum não pode aumentar nem diminuir: esse é
um conhecimento a priori tão sólido e seguro como qualquer conhecimento
matemático”.
71
Que Hegel pense que os corpos podem se tornar mais pesados sem que sua
massa aumente; que a gravitação contradiz a lei de inércia, e que a matéria seja
passageira, provaria, para Schopenhauer, que antes de ser um summus philosophus
Hegel daria provas de sua própria ininteligência (Unverstand). Isso porque os exemplos
acima não se refeririam a aspectos particulares, ou mesmo centrais do sistema, mas de
“conhecimentos a priori, ou seja, de problemas que qualquer um pode resolver pela
mera reflexão”.
72
Como se vê trata-se de defender a filosofia da reflexão contra os
golpes da dialética especulativa. Nesse sentido, Schopenhauer irá evocar Locke e
69
Ibid, Idem.
70
Ibid, p. xxiii. Vale citar o texto de Hegel na íntegra: “ainda que se admita in abstracto que a matéria é
perecível e não absoluta, ainda assim na aplicação se vai contra isso quando se concebe a matéria de facto
como negativa, quando nela se deve pôr a negação. Os poros são, sem dúvida, o negativo – com efeito,
nada há a fazer, é necessário chegar a tal determinação – são o negativo apenas junto da matéria, o
negativo não da própria matéria, mas lá onde a matéria não é; de modo que, de facto, a matéria se
admite apenas como afirmativa, como absolutamente independente, eterna. Este erro é suscitado pelo
erro geral do entendimento ao conceber o elemento metafísico apenas como uma coisa de pensamento ao
lado, isto é, fora da realidade efetiva; pelo que, ao lado da crença na não absolutez da matéria, crê-se
também na absolutez da mesma; a primeira fé encontra lugar, quando o encontra, fora da ciência; mas a
segunda prevalece essencialmente na ciência” (W 8, p. 168-9). Como o texto de Hegel parece dizer
exatamente o contrário daquilo que Schopenhauer quer mostrar, Kossler mostra esse equívoco como a
prova final do desconhecimento de Schopenhauer da obra de Hegel. Cf. Substantielles Wissen und
subjektives Handeln: dargestellt in einem Vergleich von Schopenhauer und Hegel. Lang, Frankfurt a. M.,
Bern, Paris, New York, 1990, p. 23.
71
E. SW IV, p. xxiii.
72
E. SW IV, p. xxiv.
39
defender Kant contra aquilo que entende ser a arrogância e o tom desdenhoso da
linguagem de Hegel.
73
Para Schopenhauer, a teoria hegeliana do conceito retiraria o lógico da esfera
subjetiva, abstrata e dependente da consciência empírica e o transportaria ao mundo
real. Dessa maneira, Hegel colocaria o mundo empírico como reflexo do lógico. Contra
Hegel, portanto, Schopenhauer afirma que é a intuição sensível e não os conceitos dela
dependentes, que constitui o princípio do conhecimento. Enquanto representação de
uma representação, o conhecimento racional é inteiramente dependente do
conhecimento intuitivo do entendimento.
A partir do mesmo ponto de vista, Schopenhauer recusa a concepção segundo a
qual a moralidade seria a realização de uma “idéia” ou “conceito”, que estaria para além
da realidade da vida individual. É assim que, no contexto de uma crítica a Hegel – e
mais especificamente ao materialismo dos jovens hegelianos de esquerda –
Schopenhauer afirma que o objeto da moral não é o movimento histórico dos povos,
mas o indivíduo e sua consciência:
No mesmo sentido se sustentou que a ética não deveria ter por tema o agir do indivíduo, mas
sim o das massas, único tema digno dela. Nada pode ser mais perverso do que essa visão
baseada no mais banal realismo. Pois em cada indivíduo aparece a vontade de viver inteira e
indivisa, e o microcosmo é igual ao macrocosmo. As massas não tem mais conteúdo do que
cada indivíduo. Na ética, não se trata da ação e de sua conseqüência, mas do querer, e esse se
apresenta continuamente apenas no indivíduo. Não é o destino dos povos, o qual se apresenta
apenas no fenômeno, mas o do indivíduo que se decide moralmente. Os povos são, na verdade,
meras abstrações; só os indivíduos existem efetivamente
74
.
Já que é contra o pensamento dialético, não surpreende a crítica que
Schopenhauer dirige à idéia de considerar a história como o cânone do conhecimento
filosófico. A história não conseguiria se elevar sequer ao nível da mera ciência, pois
enquanto essa consegue uma certa sistematicidade ao abordar os fatos e classificá-los
em conceitos e depois em gêneros, a história lida só com o particular: ela apresenta não
a subordinação dos fatos conhecidos, mas sua mera coordenação. Ela seria então um
saber sem ser uma ciência, pois conhece apenas o particular, o indivíduo e não o
73
Cf. Ibid, p. xxiv-v.
74
WWV E., Cap. 47, SW, III, p. 676. Ao se dirigir contra os jovens hegelianos, especialmente Feuerbach
ao qual ele se refere, Schopenhauer poderia ser posto ao lado dos liberais como Rudolf Haym (ou mesmo
Stirner) que criticam a glorificação metafísica do Estado em favor da liberdade do indivíduo.
40
universal. Os universais que ela constrói – períodos, épocas, mudanças de governo etc –
são meramente subjetivos. O único universal verdadeiro – se é que se pode chamar
assim – é aquele que é anterior aos próprios fatos – a idéia, enquanto objetidade
adequada da Vontade. Essa, entretanto, só pode ser apreendida pelas artes e pela
filosofia que se ocupam daquilo que é sempre do mesmo modo, idêntico a si, enquanto
que “a matéria da história, ao contrário, é o singular em sua singularidade e
contingência, o que uma vez é e depois nunca mais é, os entrelaçamentos passageiros de
um mundo humano tão móvel quanto nuvens no vento, e que freqüentemente pelo
menor acaso é desformado”.
75
A tendência a subordinar o real ao lógico, levaria Hegel,
segundo Schopenhauer, ao erro de acreditar que em todo acontecimento algo pleno de
sentido se realiza. Contra isso, Schopenhauer nega a idéia de um sentido da história ou
do curso do mundo. Mesmo a história enquanto disciplina não constitui uma ciência,
mas um mero saber, condenado a rastejar na experiência: “A história nos ensina que a
cada momento existiu uma outra coisa; a filosofia se esforça, ao contrário, em nos
elevar à idéia de que a mesma coisa foi é e será. Na realidade, a essência da vida
humana como da natureza está inteiramente presente em todo lugar, em todo momento e
precisa, para ser reconhecida em sua fonte, apenas de uma certa profundidade de
apreensão (Auffassung)”.
76
Ao lidar apenas com fenômenos e estar subordinada à forma
do tempo, a história permaneceria apenas na superfície. Em Schopenhauer, portanto, a
história não saberia dar sentido à existência humana: Eadem sed Aliter (o mesmo, mas
diferentemente) é sua divisa.
A partir dessa concepção, a visão hegeliana da história não será criticada, como
fora até aqui, por seu caráter altamente especulativo. Pelo contrário, Hegel será acusado
de ter dado a ocasião a uma espécie de realismo raso que se fiaria nas meras aparências:
“Quanto a essa tendência, promovida especialmente pela perniciosa e emburrecedora
pseudofilosofia (Afterphilosophie) hegeliana, de se construir a história do mundo como
um todo planejado ou, como dizem ‘construí-la organicamente’, ela repousa, no fundo
em um realismo tosco e trivial, que toma o fenômeno como a essência em si do mundo
e faz tudo depender dele, de suas formas e processos”.
77
Aqui fica claro mais uma vez o
75
WWV, E., SW III, p. 503.
76
WWV, E., Cap. 38, SW, III, p. 504.
77
Ibid, Idem.
41
quanto a crítica de Schopenhauer se dirige não apenas a Hegel, mas ao pós-
hegelianismo.
78
Ao comentar essa crítica schopenhaueriana, Alfred Schmidt ressalta
especialmente o caráter materialista da crítica de Schopenhauer e o aproxima de
Feuerbach e Marx.
79
O que diferenciaria, porém, Schopenhauer da crítica marxista é sua
recusa terminante de conceder qualquer valor científico à história. É devido aos
princípios de sua metafísica que o autor de O Mundo Como Vontade e Representação
nega a história, o que o leva a se contrapor a quase todo pensamento de seu tempo.
Mesmo Nietzsche, que não pode ser contado entre os grandes defensores da História
como ciência fundamental, se expressa criticamente contra o anti-historicismo de
Schopenhauer.
80
Para Schmidt, entretanto, “a distância de Schopenhauer em relação à
História não é nenhum erro de pensamento que ele bem poderia ter economizado. Ela se
baseia no princípio de sua própria metafísica. A vontade do mundo aparece
continuamente no espaço e no tempo. Como coisa em si, porém, ela existe independente
dessas formas subjetivas do conhecimento. Seria por isso inteiramente equivocado
aceitar que a essência do mundo se deixa ‘de alguma maneira, seja ela da forma mais
sutilmente oculta, apreender historicamente’”.
81
Schmidt contrapõe o anti-historicismo de Schopenhauer ao sistema filosófico de
Hegel, em que o fim universal que deve ser buscado na história é identico ao fim último
do mundo em geral, o qual a filosofia sempre pressupõe: a idéia como “o verdadeiro, o
78
Sem considerar esse aspecto da crítica de Schopenhauer, Gerard Lebrun nota que quando o primeiro
ataca o “historismo” hegeliano, acaba expressando antes um contra-senso de leitura. Para Lebrun, Hegel
não dota de realidade os fenômenos temporais e lhes confere um sentido imanente, como interpreta
Schopenhauer. Hegel não divinizaria o fenômeno, e a história aparece antes como um discurso que só
adquire sentido a partir do privilégio conferido a certos conceitos: “Hegel diz que a História-discurso,
percorrendo o aparecer do Espírito, lida ‘somente com o eterno’: Schopenhauer entende que o Absoluto
reside ‘na turbulência dos acontecimentos’. E essa leitura inverte, por completo, o sentido do
hegelianismo. Ela somente teria cabimento se Hegel tivesse feito do tempo ‘o poder’ do conceito – e não
o contrário. Somente teria cabimento se Hegel não tivesse afirmado, com toda a clareza, que o Conceito
‘não está no tempo nem é nada temporal...’”. O Avesso da Dialética. São Paulo, Companhia das Letras,
1988, S. 51. Cf. Enz. § 258.
79
Idee und Weltwille. Schopenhauer als Kritiker Hegels. Munique e Viena, Edition Akzente, 1988, p. 65
e seguintes e cf. também, pp. 94 e seguintes. Como vimos, uma possível aproximação entre Schopenhauer
e Feuerbach poderia ser feita a partir da crítica que ambos fazem ao que eles entendem como um desprezo
da experiência sensível no pensamento hegeliano. Sobre isso ver: Böröcz, János F. Resignation und
Revolution: Ein Vergleich der Ethik bei Arthur Schopenhauer und Ludwig A. Feuerbach.Münster, Lit,
1998.
80
Schmidt cita uma passagem de Para além de bem e mal204): “Com seu pouco inteligente furor
contra Hegel, ele (Schopenhauer) conseguiu desvincular toda a última geração de alemães do contexto da
cultura alemã, a qual, tudo considerado, representa um cimo e um refinamento divinatório do sentido
histórico: mas o próprio Schopenhauer era justamente nesse ponto, tão pobre, tão pouco receptivo e
pouco alemão que chegava à genialidade” F. Nietzsche, Além do Bem e do Mal, Companhia das Letras,
São Paulo, 1992, p. 106.
81
Op. Cit., p. 19.
42
eterno, o absolutamente poderoso”.
82
Dessa forma, continua Schmidt, “quando
Schopenhauer protesta contra a idéia, fomentada pela ‘perniciosa e emburrecedora
pseudofilosofia (Afterphilosophie) hegeliana, de se construir a história do mundo como
um todo planejado’, ele se volta não apenas contra a admissão de uma ‘racionalidade’
imanente ao processo histórico, mas também – o que é frequentemente desconsiderado
– contra toda concepção teológica ou filosófica de uma criação do mundo a partir de um
princípio transcendente pré-estabelecido”.
83
Essa contraposição se basearia na idéia de
que os conceitos abstratos (nesse caso, a história como idéia) sempre seriam secundários
em relação a sua origem empírica, o que faz Schopenhauer se voltar não para a história,
mas para as ciências naturais. Sua filosofia da natureza não seria, porém, um mero
mecanicismo, mas teria uma concepção dinâmica e iria na mesma direção da dialética
da natureza de Engels ao assumir o conflito como sua nota característica.
84
Isso não significa, todavia, que para Schopenhauer devessemos nos ater aos fatos
brutos, como se seu pensamento não passasse de um certo realismo empirista. É verdade
que sua tarefa será o entendimento da experiência, a verdadeira interpretação de seu
sentido e conteúdo. Mas não se trata dessa ou daquela experiência em particular, mas da
experiência em geral – que nos dará a chave para o deciframento do enigma do mundo.
Essa chave, Schopenhauer a encontrará na experiência do próprio corpo como passagem
para o em si do mundo – o assim chamado argumento de analogia. Nesse sentido, ainda
que busque decifrar um sentido metafísico para a experiência sensível, o método de
Schopenhauer permanece empírico já que tenta compreender o núcleo essencial das
coisas não por meio de esquemas conceituais, mas pela experiência absolutamente
imediata do corpo de qualquer indivíduo. Assim, “ao contrário de Hegel, Schopenhauer
tenta interpretar a totalidade do mundo a partir de um princípio cuja realidade qualquer
indivíduo sente em si mesmo”.
85
Esse constituiria o intuicionismo de Schopenhauer.
Ao opor a vontade de viver como o núcleo mais íntimo de toda efetividade à
idéia hegeliana, Schopenhauer coloca o “alógico” como fundamento de sua metafísica.
Enquanto para a dialética de Hegel não há nenhuma realidade que prevaleça ao
pensamento, isto é, nada que, em última instância, não se resolva em determinações
conceituais, a vontade em Schopenhauer aparece como um obscuro, nunca inteiramente
82
Ibid. p. 20. Schmidt cita aqui o texto da Razão na História.
83
Ibid. Idem.
84
Cf. Ibid., p. 24.
85
Ibid. p. 26.
43
esclarecido mistério por trás das coisas.
86
O que, segundo Schmidt, além de abrir
caminho para a psicanálise será responsável pelo caráter não dogmático do pensamento
de Schopenhauer, que por princípio nunca poderá esgotar o conhecimento da
experiência ou atingir um saber absoluto. Mas o principal resultado que se poderia tirar
da inovação na maneira de pensar que Schopenhauer leva a cabo não estaria apenas aí,
mas na maneira anti-laudatória pela qual ele julga aquilo que descobre. Ao criticar a
fábula idealista da “alma racional” Schopenhauer não funda uma “religião do aquém
que poderia se contrapor à antiga “religião do além”: “O clima da filosofia de
Schopenhauer oscila propriamente entre uma visão realista ou materialista da
engrenagem do mundo (Weltgetriebe) e o mais severo protesto contra aquilo que foi
conhecido. A metafísica da vontade é ao mesmo tempo a metafísica de sua negação”.
87
Essa ordem de reflexões aponta para a questão do sentido moral do mundo e para a
primazia da moral sobre a teoria que tornaria Schopenhauer também precursor de
Kierkegaard: “a finalidade da vida, Schopenhauer não cansa de sublinhar, é uma
finalidade moral e não intelectual. Na medida em que ele parte da originalidade do
conhecimento intuitivo, ele se decidiu como Kierkegaard pelo instante ‘concreto’ e
contra a ‘abstração’ conceitual. Considerar o mundo ‘de cima’ é uma coisa; uma coisa
qualitativamente outra é existir nele corporalmente. Schopenhauer topa logo cedo com
essa distinção fundamental para todo pensamento existencial ulterior.”
88
86
Cf. Ibid., p. 28.
87
Ibid. p. 31-2.
88
Ibid. p. 33. Aqui teríamos um ponto de ligação entre as preocupações de Schelling, Feuerbach e
Schopenhauer em suas respectivas críticas e ao mesmo tempo, a chave para pensar a contemporaneidade
(talvez não mais atualidade) de seus pensamentos.
44
Capítulo 3 – A astúcia hegeliana
Tendo esboçado os aspectos principais da contraposição de Schopenhauer a
Hegel e visto em que elas se aproximam ou se afastam da tradição crítica inaugurada
por Schelling, caberia agora avaliar a pertinência e o alcance dessa postura crítica.
Nesse sentido, devemos nos lembrar da reflexão de Foucault citada acima e evocar toda
a dificuldade que uma crítica efetiva da filosofia hegeliana traz consigo.
89
O próprio Hegel já havia ressaltado a nulidade de uma crítica apenas externa de
uma filosofia a outra. Na Ciência da Lógica, ao comentar a crítica que se fazia em sua
época à filosofia de Espinosa, Hegel assinala a necessidade de uma crítica imanente de
uma filosofia, crítica na qual o ponto de partida do adversário fosse levado até suas
últimas conseqüências para que fosse ao fim erguido a um ponto de vista mais elevado:
“a refutação não deve vir de fora, isto é, não deve partir de admissões que são exteriores
ao sistema e que não corresponde a ele. (...) A verdadeira refutação deve penetrar na
força do opositor e se colocar no círculo de seu vigor; atacá-lo de fora e fixar daí seu
direito, não vale. A única refutação do espinosismo pode apenas consistir em
reconhecer, primeiramente, que seu ponto de partida é essencial e necessário, mas que
num segundo momento esse ponto de vista possa ser elevado acima de si mesmo”.
90
Em O Avesso da Dialética, obra na qual procura mostrar em que sentido
somente seria possível uma “contraposição” ou rejeição da filosofia de Hegel, Lebrun
nota que não seria pertinente entrar num tipo de debate em que as regras já seriam
previamente fixadas por Hegel: “Se o sistema hegeliano é vulnerável, isso não se deve a
seu dogmatismo (no sentido comum) nem a seu idealismo, ou, ainda, ao fato de que
Hegel teria tratado superficialmente as ciências de sua época. Para encontrar a falha na
couraça, precisamos nos convencer de que toda crítica a Hegel é vã, se se começa por
aceitar a razão como uma fonte de conhecimentos por meio de meros conceitos. Pouco
importa, assim, que acusemos Hegel de dar uma imagem deformante, ou mesmo
caricata dessa razão pura. Pois, enquanto nos mantemos nessa posição – que o enorme
impacto de Kant, diga-se de passagem, abalou menos do que poderíamos crer –, o
sistema hegeliano permanece inexpugnável. Podemos muito bem acusá-lo de
charlatanismo, mas não o refutaremos... Isso se passa de outro modo, contudo, se o
exame do hegelianismo é comandado pela exigência de se colocar em questão a própria
89
Cf. Lebrun, G. La Patience du Concept, Paris, Gallimard, 1972, p. 222. Ver acima p. 9.
90
WdL, W 6, p. 249-50.
45
noção de um conhecimento pela razão pura (em vez de criticar o alcance desta, como o
fez Kant). (...) Não se refuta um sistema da razão. Tudo o que se pode fazer, é
reencontrar, bem ou mal e por subterfúgios, as escolhas léxicas nas quais ele se baseou e
que traduzem, sem margem de dúvida, tomadas de posição eminentemente infra-
racionais”.
91
A partir desse programa, Gérard Lebrun irá propor uma releitura da dialética
hegeliana a partir da “grande suspeita” que a abordagem de Nietzsche suscita. Segundo
o autor a originalidade da crítica de Nietzsche – ou de uma crítica de estilo
nietzschiano
92
– residiria em sua desconfiança com relação ao ideal civilizatório que se
vislumbra em Hegel e em toda tradição filosófica: não se trataria mais de criticar apenas
a “abstração” que o sistema promove ao subordinar a ontologia à lógica, ou a história à
idéia, mas de combater frontalmente os valores essencialmente cristãos dos quais o
sistema de Hegel é apenas uma de suas mais acabadas formulações. Nesse sentido, a
crítica nietzschiana iria além de Schopenhauer pois não mais criticaria Hegel em nome
daquilo que ele mesmo chamaria “a finitude”: “Quando Schopenhauer fala do
‘dogmatismo hegeliano’, sua linha de ataque continua sendo kantiana: para ele, Hegel é
antes de mais nada um dos ‘fanfarrões’, dos ‘charlatães’ que pretenderam enfrentar o
interdito kantiano e revelar a essência das coisas”.
93
Já Nietzsche não se limitaria a opor
Hegel a Kant, pois vislumbra em ambos o mesmo projeto de desvalorização do devir
que constitui o segredo da interpretação cristã da existência: “Quer o Absoluto seja
posto como visível, quer como invisível, o importante é que ele está sendo posto, e que
a um reino dos fins (meramente ideal ou já realizado, é o que menos importa...) se
sacrifica a auto-suficiência do que está em devir”.
94
Como vimos acima, boa parte da estratégia crítica de Schopenhauer realmente se
limita a opor ao “dogmatismo” hegeliano o criticismo kantiano, à especulação a
limitação das faculdades humanas de conhecimento. Com isso Schopenhauer deixa de
levar em conta o fato de que a especulação hegeliana surge como uma crítica das
categorias da finitude, isto é, como uma crítica a toda e qualquer filosofia da reflexão,
91
O Avesso da Dialética, São Paulo, Companhia das Letras, p. 16.
92
O autor confessa que inicialmente planejava “testar a dialética com a ajuda de analisadores emprestados
a Nietzsche”, mas por diversas razões – entre as quais o fato de Nietzsche não ter conhecido Hegel o
suficiente para justificar tal abordagem – acabou desistindo desse plano e preferindo antes recuperar os
pressupostos de uma “estratégia filológica inconfessa, conveniente como resposta a certas exigências
vitais de ordem e de segurança”. Ibid, Idem.
93
Ibid, p. 53.
94
Ibid, p. 54.
46
que compreende a racionalidade como mera subjetividade, como a de Kant e Fichte, e
até mesmo a toda idéia de uma teoria do conhecimento.
Deveríamos agora esboçar alguns pontos gerais dessa crítica hegeliana
95
.
Podemos localizar três momentos dessa crítica no Hegel maduro: nos escritos críticos
de Jena no ínicio dos anos 1800; na Fenomenologia do Espírito de 1807 e no sistema
definitivo tanto na Ciência da Lógica (1812-1816) como na Enciclopédia. Nossa
exposição seguirá esse itinerário, sem se deter é claro na contextualização de cada uma
dessas obras.
Nos escritos críticos de Jena, especialmente em Diferença entre os sistemas de
Filosofia de Fichte e Schelling (1801) e Fé e saber (1802) Hegel formula um
diagnóstico sobre a situação da filosofia alemã em sua época. Ao refletir sobre o sistema
de Fichte e mostrar a originalidade de Schelling, Hegel elabora uma crítica da filosofia
de Kant para mostrar em que sentido ela ficou aquém da “tarefa filosófica” da época.
Nesse quadro, Kant será censurado por ter permanecido na oposição entre sujeito e
objeto, pensamento e ser sem ter se elevado a uma apreensão especulativa da realidade
e, asssim, suprimir essas oposições abstratas. Por ter permanecido na oposição, o
idealismo crítico permaneceu como uma filosofia da reflexão sobre as formas finitas do
pensamento, negando a pretensão da razão de conhecer o absoluto. É verdade, segundo
Hegel, que uma tal filosofia teve o mérito do idealismo ao colocar que cada um de seus
opostos não tem efetividade em si, e que a identidade finita do conceito e da intuição na
consciência, que se chama experiência, não pode ser considerada um conhecimento
racional. Mas, “à medida em que a filosofia kantiana toma esse conhecimento finito
como o único possível e confere ao ser em si [Ansichseiende], ao positivo, aquele lado
negativo, puramente idealista, ou inversamente, ao fazer desse conceito vazio, enquanto
absoluto, tanto razão prática quanto razão teórica, ela recai na finitude absoluta e na
subjetividade, e toda a tarefa e conteúdo dessa filosofia não é o conhecimento do
absoluto, mas o conhecimento dessa subjetividade ou uma crítica das faculdades de
conhecimento”.
96
95
A crítica de Hegel a Kant é objeto de uma vasta bibliografia. A coletânea de conferências do Congresso
Internacional Hegel de 1981 em Stuttgart é uma referência importante: Kant oder Hegel? Über Formen
der Begründung in der Philosophie (org. Dieter Henrich. Stuttgart, Klett-Cotta, 1983). Cf. Stanguenec, A.
Hegel, critique de Kant. Paris, PUF, 1985. Um comentário abrangente e uma vasta bibliografia sobre o
tema encontra-se na tese de Silvio Rosa Filho, Eclipse da Moralidade; exercício de leitura sobre as
relações entre Hegel e um caso de irreconciliação extorquida, Universidade de São Paulo, 2002.
96
GuW, W 2, p. 303.
47
É interessante notar aqui, que na seqüência desse texto Hegel cita uma passagem
da introdução do Ensaio sobre o entendimento humano de Locke, que bem poderia
valer para ele como uma introdução à filosofia kantiana. Aqui Hegel parece ler Kant
como Schopenhauer, mas em chave crítica. Assim, com respeito ao problema que Kant
coloca – como são possíveis juízos sintéticos a priori – Hegel diz que ele não levou seu
pensamento até seus últimos limites e permaneceu na significação subjetiva e exterior
da questão ao mostrar que um verdadeiro conhecimento racional é impossível e que
toda filosofia seria uma mera ilusão da intelecção racional (Vernunfteinsicht).
97
Ao
separar o múltiplo da sensibilidade da ação unificadora do entendimento, o mundo
objetivo se torna algo inconsistente que depende da síntese do sujeito para ter conexão
necessária. A dedução teria assim, segundo Hegel, a significação de que “do ponto de
vista das impressões e de sua realidade empírica nada resta a pensar senão que a
impressão vem das coisas em si, pois delas provém a determinidade inconcebível da
consciência empírica, e elas não podem nem ser intuídas, nem conhecidas”.
98
Sendo assim, a síntese do múltiplo só poderá ser pensada a partir da unidade que
é dada pela consciência de si de um sujeito, e sendo esta sua única determinidade
objetiva, o idealismo transcendental de Kant é, na verdade, um idealismo psicológico:
O Idealismo crítico não consistiria em nada além de um saber formal que o sujeito e as
coisas ou o não-eu existem cada um por si – o eu do “eu penso” e a coisa em si -, não como
se cada um deles fosse posto como substância, um como coisa psíquica (Seelending) o
outro como coisa objetiva, mas o eu do “eu penso”, como sujeito, é absoluto, assim como a
coisa em si que está além dele, ambos sem outras determinidades segundo as categorias. A
determinidade objetiva e suas formas entram somente na relação de cada termo com o
outro; e esta identidade que é a sua é a identidade formal que se manifesta como conexão
causal, de tal modo que a coisa em si se torna objeto, desde que ela recebe alguma
determinidade advinda do sujeito ativo, determinidade una e idêntica em seus termos, mas
que são na verdade completamente diferentes, identicas como sol e pedra o são com relação
ao calor quando o sol aquece a pedra. Em uma tal identidade formal se encontra a absoluta
identidade do sujeito e do objeto, e o idealismo transcendental se converteu nesse idealismo
formal ou talvez e mais propriamente psicológico.
99
Hegel desvela assim o idealismo formal de Kant como um dualismo que coloca
de um lado o ponto absoluto da egoidade e do outro uma diversidade absoluta ou
97
Cf. Ibid, p. 304. Nesse aspecto, Kant teria ficado ao lado de Hume, segundo Hegel, na negação do
conhecimento filosófico especulativo.
98
Ibid, p. 310.
99
Cf. Ibid, p. 310-11.
48
sensação. Esse dualismo corromperia a abordagem inicialmente idealista que colocaria
como fundamento – no início da dedução das categorias – o princípio da identidade das
formas do juízo com as próprias coisas. Assim as coisas são consideradas ora como
representação, ora como coisa existente,
100
mas sempre a partir de um sujeito que
unifica essas representações. Portanto, o entendimento humano, preso às determinações
finitas, só pode conhecer fenômenos dados na experiência. O conhecimento da
manifestação (Erscheinung) do absoluto, assim como da absoluta identidade, é negado e
a razão fica bloqueada pela atividade fixadora e limitadora do entendimento. O que
faltou a Kant, segundo Hegel, foi reconhecer que “também um entendimento, que
conhece apenas fenômenos e um nada em si, é ele mesmo fenômeno e nada em si”.
101
No escrito da Diferença, Hegel mostra como esse idealismo subjetivo também
está na base do pensamento de Fichte, que embora reconhecendo o caráter problemático
da dedução das categorias não conseguiu se emancipar das cisões do entendimento. A
passagem é longa, mas vale a pena cita-la na íntegra:
No princípio da dedução das categorias, esta filosofia é autêntico idealismo, e este princípio é o
que Fichte extraiu em forma mais pura e rigorosa e a que chamou espírito da filosofia de Kant.
O fato de as coisas em si – através do que nada se exprime objetivamente senão a forma vazia
da oposição – serem de novo hipostasiadas e colocadas como objetividade absoluta, tal como
as coisas do dogmático – o fato de as próprias categorias, transformadas, em parte em
faculdades inertes e mortas da inteligência, em parte, em princípios supremos, por meio dos
quais o enunciado, no qual o próprio absoluto é expresso, como, por exemplo, a substância de
Espinosa, é aniquilado, e dessa forma, o raciocinar negativo se ter podido colocar, agora tal
como dantes, no lugar do filosofar, somente com mais pretensão, sob o nome de filosofia
crítica -, estas circunstâncias residem, acima de tudo, na forma da dedução kantiana das
categorias, não no seu princípio ou espírito; e se, de Kant, não tivéssemos outro pedaço de sua
filosofia senão este, aquela transformação seria quase ininteligível. Naquela dedução das
formas do entendimento está expresso, do modo mais determinado, o princípio da especulação,
a saber, a identidade do sujeito e do objeto; esta teoria do entendimento foi apadrinhada pela
razão. Pelo contrário, quando Kant transforma esta mesma identidade, como razão, em objeto
da reflexão filosófica, a identidade desaparece por si mesma; se o entendimento foi tratado com
a razão, a razão, pelo contrário, é tratada com o entendimento. Torna-se aqui claro em que
nível subordinado foi concebida a identidade do sujeito e do objeto. A identidade do sujeito e
do objeto restringe-se aqui a doze, ou melhor, apenas a nove atividades puras do pensar, pois a
modalidade não oferece nenhuma determinação verdadeiramente objetiva; nela reside,
essencialmente, a não identidade do sujeito e do objeto. Permanece fora das determinações
100
Cf. Ibid, p. 312.
101
Ibid, p. 313.
49
objetivas por meio das categorias um domínio empírico monstruoso da sensibilidade e da
percepção, uma aposterioridade absoluta para a qual não é indicada nenhuma aprioridade
senão, apenas, uma máxima subjetiva da faculdade de julgar reflexionante; quer dizer, a não-
identidade é elevada a princípio absoluto.
102
Hegel estende sua crítica a todos os âmbitos do sistema de Kant. Tanto em Fé e
Saber, como na Ciência da Lógica e na Enciclopédia (especialmente na terceira edição
de 1830), um ponto central da crítica de Hegel se dirige à antitética da razão pura, as
antinomias da dialética transcendental da primeira Crítica. Pois justamente aqui Kant
teria, segundo Hegel, chegado perto de uma consideração especulativa da dialética. Mas
exatamente por tomar as categorias em seu aspecto meramente subjetivo, Kant teria se
restringido à questão da aplicação das categorias e descuidado da reflexão sobre seu
conteúdo.
103
Dessa forma, se para Kant a razão, em sua tentativa de buscar o
incondicionado cai em antinomias, para Hegel deve-se ver aí uma contradição objetiva
que diz respeito ao próprio conteúdo, não meramente a uma aplicação equivocada da
razão. No § 48 da Enciclopédia, diz Hegel: “Neste ponto chega-se a declarar que é o
conteúdo mesmo, quer dizer, são as categorias para si que trazem a contradição. Esse
pensamento – de que a contradição, que é posta pelas determinações de entendimento
no racional, é essencial e necessária – deve ser considerado como um dos mais
importantes e mais profundos progressos da filosofia dos tempos modernos. [Mas] tão
profundo é esse ponto de vista quanto é trivial sua solução: ela consiste apenas em uma
ternura para com as coisas do mundo”.
104
Por um lado, Hegel saúda a consideração sobre o caráter contraditório das
determinações da razão; por outro, rejeita a solução kantiana, que consiste em deslocar a
102
Differenz, W2, p. 9-10. Trad. de Carlos Morujão, Lisboa, Imprensa Nacional Casa da Moeda, 2003, p.
29-30.
103
Cf. G. Lebrun, A antinomia e seu conteúdo. In: A filosofia e sua história, pp. 567-597. Para uma crítica
da interpretação hegeliana cf. Guéroult, M. “Le jugement de Hegel sur l´antithétique de la raison pure” In:
Études de philosophie allemande. Hildesheim, Nova Yorque, Georg Olms, 1977, pp. 125-147.
104
Enz, W 8, p. 126; trad. Cit., p. 120. Na Ciência da Lógica, Hegel já formulava um argumento análogo:
“As exposições dialéticas de Kant nas antinomias da razão pura não merecem, na verdade, quando
consideradas detidamente (...) nenhum grande elogio. Mas a idéia geral que está em seu fundamento e que
ela fez valer é a objetividade da aparência e a necessidade da contradição, que pertencem à natureza das
determinações de pensamento: primeiro, é verdade, à medida que essas determinações são aplicadas às
coisas em si; mas, o que elas são na razão e em consideração àquilo que é em si, é sua natureza. É este
resultado, compreendido em seu lado positivo, nada mais que a negatividade interna das mesmas, como
sua alma que a si mesma se põe em movimento, o princípio de toda vivacidade espiritual e natural. Mas
se permanece-se apenas no lado abstrato negativo do dialético, então o resultado é só o conhecimento de
que a razão é incapaz de compreender o infinito; - um resultado notável, pois, é dizer, o infinito sendo o
racional, que a razão é incapaz de conhecer o racional”. WdL, W5, p. 52.
50
contradição da ordem das coisas para a ordem do pensamento. Ora, com isso, o que se
tem, segundo Hegel é o sacríficio de todo conteúdo e teor do conhecimento. Além disso,
Hegel afirma que não basta citar quatro antinomias, pois “o ponto principal a destacar é
que não é só nos quatro objetos particulares tomados da Cosmologia que a antinomia se
encontra; mas antes em todos os objetos de todos os gêneros, em todas as
representações, conceitos e idéias. Saber disso, e conhecer os objetos segundo essa
propriedade, faz parte do essencial da consideração filosófica. Essa propriedade
constitui o que se determina mais adiante como o momento dialético do lógico”.
105
Mas o momento da contradição, aqui designado como o dialético (das
Dialektischen), é apenas um momento do especulativo (das Spekulative), que é o
apreender do oposto em sua unidade ou o positivo no negativo, isto é, a conceituação de
um objeto como uma unidade de determinações opostas.
106
Enquanto não se eleva a
esse saber especulativo, a crítica do conhecimento permanece no mau infinito, pois não
concebe este como unidade de determinações opostas, mas como uma progressão
indefinida. Essa progressão só pode ser postulada, já que a crítica da razão se prende
aos fenômenos e faz desse modo de conhecer o único possível. Segundo Hegel, isso é “a
maior inconsequência. De uma parte, conceder que o entendimento só conhece
fenômenos; e, de outra parte, afirmar esse conhecer como algo absoluto, quando se diz
que o conhecer não pode ir além, que esse é o limite absoluto, natural do saber
humano”.
107
Com isso, vê-se que para Hegel, o modo de pensar kantiano é finitizador e
dualista, devido à sua ternura, ou “medo”
108
(Angst) diante do objeto. A atividade da
razão só consistiria assim em sistematizar, pela aplicação das categorias, a matéria
105
Enz, W 8, p. 127-8; trad. Cit., p. 121.
106
Cf. Ibid, (Zusatz), p. 128, trad. p. 121, e WdL, W 5, p. 52.
107
Enz, § 60, W 8, p. 143-4., Trad., p. 136. O primeiro adendo desse parágrafo ainda esclarece: “Como
resultado das reflexões feitas sobre os diversos níveis da consciência, declara-se então que o conteúdo
daquilo que conhecemos é somente fenômeno. Com esse resultado se tem de concordar na medida em que
o pensar finito certamente só lida com fenômenos. Só que com esse nível do fenômeno ainda não se
esgotou a questão; mas há uma terra superior, que, entretanto, para a filosofia kantiana permanece um
além inacessível.” Ibid, p. 146-7, trad., p. 137.
108
Cf. WdL, W 5, p. 45. Como se vê, para Hegel, Kant esteve próximo de descobrir o verdadeiramente
racional (no sentido hegeliano), mas acabou capitulando em nome de um certo “lockeanismo”: “É sabido
que a interpretação hegeliana – esse esquadrinhamento das maneiras kantianas de polemizar contra a
razão – redescobre a seguir a razão atuando na unidade sintética originária da apercepção; depois é a vez
dessa função que Kant chama de imaginação produtiva e Hegel identifica com a unidade racional,
concebida não como produto dos opostos, mas como identidade originária deles. A idéia da razão
transparece ainda na forma da triplicidade, na descoberta das antinomias e enfim, com maior veemência,
na noção de juízo reflexionante. Ainda e sempre, o racional em Kant – Hegel insiste reiteradamente sobre
isso – é constantemente farejado, mas se lhe acontece ser exprimido ele é prontamente cancelado”. Paulo
Arantes, Hegel: A ordem do tempo, p. 242.
51
fornecida por meio da percepção, isto é, em dar forma a um material exterior.
Permanece por isso formal e subjetivo, não indo além de uma teoria do conhecimento:
“Essa razão – é esse o resultado – nada fornece a não ser a unidade formal para
simplificação e sistematização das experiências; é um cânon, não um órganon, da
verdade; não pode fornecer uma doutrina do infinito, mas só uma crítica do
conhecimento.”
109
Será na Fenomenologia do Espírito que Hegel irá mostrar como a consciência
supera essas oposições abstratas e chega ao saber absoluto, enquanto ciência pura (reine
Wissenschaft). É claro que não é o caso aqui de refazer o percurso da consciência pelo
qual ela se reconhece como espírito, como produtora de sua realidade, mas vale a pena
esboçar a crítica que na Introdução Hegel oferece da idéia de uma teoria do
conhecimento. Logo no primeiro parágrafo que abre a Introdução, Hegel já apresenta o
teor de sua crítica:
Segundo uma representação natural (natürliche Vorstellung), a filosofia, antes de
abordar a Coisa mesma – ou seja, o conhecimento efetivo do que é, em verdade – necessita
primeiro pôr-se de acordo sobre o conhecer, o qual se considera ou um instrumento com que se
domina o absoluto ou um meio através do qual o absoluto é contemplado. Parece correto esse
cuidado, pois há, possivelmente, diversos tipos de conhecimentos. Alguns poderiam ser mais
idôneos que outros para a obtenção do fim último, e por isso seria possível uma falsa escolha
entre eles. Há também outro motivo: sendo o conhecer uma faculdade de espécie e de âmbito
determinados, sem uma determinação mais exata de sua natureza e de seus limites, há o risco
de alcançar as nuvens do erro em lugar do céu da verdade. Ora esse cuidado chega até a
transformar-se na convicção de que constitui um contra-senso, em seu conceito, todo
empreendimento visando conquistas para a consciência o que é em si, mediante o conhecer; e
que entre o conhecer e o absoluto passa uma nítida linha divisória
110
.
Vemos aqui o início do questionamento hegeliano do idealismo transcendental.
Para Hegel, em Kant o conhecimento é apresentado como um instrumento que precisa
ser conhecido para se estabelecer os limites de sua aplicação. Este conhecimento prévio
do instrumento, ou seja, esta exigência de um “conhecimento que em geral se ocupa
menos dos objetos que do nosso modo de os conhecer na medida em que este deve ser
109
Enz., § 52, trad., p. 129. No adendo Hegel afirma que Kant, apesar de ter definido a razão como a
faculdade do incondicionado, ao reduzi-la à identidade abstrata acaba por abdicar da incondicionalidade
da razão, pois tal ela é “somente por não ser determinada de fora por um conteúdo a ela estranho; senão,
antes, determina-se a si mesma e por isso em seu conteúdo está junto a si mesma”. Ibid, Idem.
110
PhG, W 3, p. 68, Trad., vol. I, p. 63.
52
possível a priori”
111
é exatamente uma das definições fornecidas por Kant para o
transcendental. Ocorre que para Hegel uma tal compreensão do conhecimento é já de
início formalista, pois parte de uma separação entre ser e pensamento, e confere
realidade objetiva somente ao objeto intuído no espaço e no tempo e categorizado pelo
entendimento. Em seu procedimento aparentemente sensato de examinar o instrumento
antes de seu uso, a filosofia crítica se esqueceria de examinar suas mais básicas
pressuposições, e especialmente aquela que coloca o absoluto como algo fora do
alcance do conhecimento. Esse modo de conhecer “pressupõe, por exemplo,
representações sobre o conhecer como instrumento e meio e também uma diferença
entre nós mesmos e esse conhecer, mas sobretudo, que o absoluto esteja de um lado e o
conhecer do outro lado – para si e separado do absoluto – e mesmo assim seja algo real.
Pressupõe com isto que o conhecimento, que, enquanto fora do absoluto, está também
fora da verdade, seja verdadeiro
112
.
O argumento de Hegel procura mostrar a contradição presente na pressuposição
de uma linha divisória entre o conhecimento e o absoluto. Com efeito, como pode um
conhecimento estar fora do absoluto e ainda aspirar validade? A pressuposição que se
faz é a de que se o conhecimento não atinge o absoluto então se determinou de alguma
forma o que o absoluto é. E para estabelecer isso, é preciso sair fora dos limites do meu
conhecimento para aí estabelecer seus limites, o que é contraditório. Ou seja, o
conhecimento do limite já não é mais um limite. E a colocação de um limite é apenas
uma opção ontológica que afirma a separação entre o finito e o infinito e se prende a um
modo de conhecimento finitista. Ao comentar essa crítica hegeliana, Lebrun afirma que
Hegel age como quem diz: “Vocês dizem que o Finito escorre e passa, mas vocês
apenas dizem isto e fazem deste não-ser um atributo ‘imperecível (unvergänglich) e
absoluto’; sua linguagem e sua melancolia não estão de acordo com sua ontologia”
113
.
Mais do que melancolia o que Hegel vê aqui antes é um certo escrúpulo em
relação ao conhecer que se revela não um mero medo de errar, mas um medo da
verdade: “O temor de errar introduz uma desconfiança na ciência, que, sem tais
escrúpulos, se entrega espontaneamente à sua tarefa, e conhece efetivamente.
Entretanto, deveria ser levada em conta a posição inversa: por que não cuidar de
introduzir uma desconfiança nessa desconfiança, e não temer que esse temor de errar já
111
KANT, Crítica da razão pura, B 25
112
PhG, W 3, p. 70, Trad., vol. I, p. 64.
113
Lebrun, La patience du concept, p. 191
53
seja o próprio erro? (...) suposição que dá a conhecer que o assim chamado medo
(Furcht) do erro é, antes, medo da verdade”
114
. Se admite-se a conseqüência dessa
argumentação – a de que só o absoluto é verdadeiro – deve-se admitir também que a
afirmação de um conhecimento limitado é falsa:
“Essa conseqüência resulta de que só o absoluto é verdadeiro, ou só o verdadeiro é absoluto. É
possível rejeitar essa conseqüência mediante a distinção entre um conhecimento que não
conhece de fato o absoluto, como quer a ciência, e ainda assim é verdadeiro, e o conhecimento
em geral, que, embora incapaz de apreender o absoluto, seja capaz de outra verdade. Mas
vemos que no final esse falatório vai acabar numa distinção obscura entre um verdadeiro
absoluto e um verdadeiro ordinário; e que o absoluto, o conhecer, etc., são palavras que
pressupõem uma significação; e há que esforçar-se por adquiri-la primeiro”.
115
Se é verdade, como quer Hegel, que “o conhecer não é o desvio do raio; é o
próprio raio, através do qual a verdade nos toca”, então a distinção entre o
conhecimento e o absoluto, entre o ser e o pensar é falsa, pois o absoluto não deve ser
abstraído do processo pelo qual ele se dá a conhecer. É a distinção kantiana entre o
fenômeno e a coisa em si que constitui o cerne do problema. Ela seria a fonte de todo o
“ninho de contradições” em que a filosofia de Kant se enrosca. Por isso, podemos ver
que ao contrário da abordagem de Schopenhauer, que parte da distinção entre o real e o
ideal
116
e a partir dela aprofunda a separação entre o fenômeno e a coisa em si, Hegel
busca afastar do idealismo o “fantasma da coisa em si”, transformando o idealismo
transcendental em idealismo absoluto. Assim, para concluir esse percurso, vale citar um
trecho da Introdução à Ciência da Lógica:
“O idealismo transcendental desenvolvido de modo conseqüente conheceu a nulidade do
fantasma da coisa em si, que a filosofia crítica ainda deixava restante, essa sombra segregada
de todo conteúdo e assumiu a tarefa de destruí-lo completamente. Também essa filosofia
começou por apresentar as determinações da razão por si mesmas. Mas a postura subjetiva
dessa tentativa não a deixou chegar até sua completude.”
117
114
PhG, W 3, p. 70, Trad., vol. I, p. 64.
115
Ibid, p. 70, trad. p. 65.
116
Cf. supra, pp. 37 e ss.
117
WdL, W 5, p. 41.
54
Capítulo 4: Filosofia transcendental e metafísica da Vontade em Schopenhauer
Schopenhauer sempre definiu seu projeto filosófico como um ensaio de reflexão
metafísica a partir da revolução que a Crítica da Razão Pura de Kant teria feito. É
assim que no estratégico texto sobre A necessidade metafísica do homem, o filósofo
acertará suas contas com a filosofia kantiana ao tentar resgatar um sentido para a
metafísica insuspeito para Kant, mas que evitaria contrariar os resultados da crítica da
razão.
Para Schopenhauer, a metafísica é uma disposição natural da humanidade
118
. Ela
surge do espanto do homem diante de sua própria existência, da consciência de sua
finitude enquanto indivíduo, e do caráter contingente do mundo.
119
Sua tarefa consiste
em ser um conhecimento que vai além dos fenômenos dados e que tenta explicar aquilo
pelo que a natureza é condicionada em um sentido ou em outro, isto é, mostrar aquilo
que está por trás da natureza e é sua essência
120
. A filosofia é, portanto, a inteligência
exata e universal da experiência mesma, a explicação verdadeira de seu sentido e
conteúdo
121
. Mas como é possível conhecer a essência da natureza? É aqui que
Schopenhauer entende seguir Kant ao colocar como primeiro passo de sua filosofia uma
reflexão sobre as condições de possibilidade de conhecimento.
O mundo não é senão aquilo que pode ser conhecido pelo sujeito: é sua
representação. O universo inteiro é apenas objeto em relação a um sujeito, ou seja, pura
representação. Mas esse idealismo é conseqüência apenas de um modo unilateral de
consideração do mundo: o modo de conhecimento dos fenômenos, submetido ao
princípio de razão suficiente
122
. Para conhecer mais do que os fenômenos dados na
118
Cf. WWV, E., Cap. 17, SW, III, 176. Daí a célebre expressão “o homem é um animal metafísico”.
Essa expressão é a versão de Schopenhauer para a consideração da metafísica como “disposição natural
da humanidade” tematizada por Kant. Se a metafísica não pode ser uma ciência, ela não deixa de ser
natural, pois “a razão humana, impelida por exigências próprias, que não pela simples vaidade de saber
muito, prossegue irresistivelmente a sua marcha para esses problemas, que não podem ser solucionados
pelo uso empírico da razão nem por princípios extraídos da experiência. Assim, em todos os homens e
desde que neles a razão ascende à especulação, houve sempre e continuará a haver uma metafísica”. Kant,
Krv, B21 (trad. Port., p. 51).
119
“Seu espanto (Verwunderung) é tanto mais sério quanto mais ou menos lhe toca a consciência de estar
pela primeira vez confrontado à morte e ao lado da finitude de toda existência também o caráter vão de
todo esforço. Com essa clareza (Besinnung) e com esse espanto surge então somente ao homem a
necessidade de uma metafísica”. Ibid, Idem.
120
Cf. Ibid., p. 180.
121
Cf. Ibid., p. 204.
122
O princípio de razão suficiente é uma expressão comum que designa quatro relações diferentes, nas
quais cada uma se baseia sob uma lei especial e dada a priori. Sobre essas quatro leis, descobertas graças
ao princípio da especificação, é preciso admitir, segundo o princípio da homogeneidade, que se elas se
unem sob uma denominação comum elas derivam também de uma mesma constituição primitiva de nossa
55
intuição é necessário um outro modo de conhecimento, que diga respeito à coisa-em-si e
seja independente do princípio de razão.
Para chegar a tal conhecimento, Schopenhauer não buscará nenhum princípio
que esteja para além da experiência; pelo contrário, seu procedimento será o de partir da
experiência interna e, no cruzamento dessa com a experiência externa, oferecer uma
metafísica imanente, isto é, fornecer uma explicação sobre a totalidade da experiência a
partir da própria experiência.
123
Para o autor esse é o único caminho que resta à
filosofia, pois como diz, contra Hegel: “Todo pretenso procedimento sem pressuposição
é devaneio: pois sempre devemos tomar algo como dado e dele partir. Isso diz
nomeadamente o doVmoipoustw, que é condição incontornável de toda ação humana,
mesmo do filosofar; pois nós podemos espiritualmente tão pouco oscilar no éter livre
quanto fisicamente”.
124
Seguindo os passos de Kant na “Estética Transcendental”, para Schopenhauer, o
mundo deve ser considerado por um lado como fenômeno, isto é, como objeto em
relação a um sujeito e, por outro, como coisa-em-si, ou seja, independente de qualquer
representação do sujeito. O ponto de vista da representação toma os objetos do mundo
como subordinados às formas puras de apreensão do sujeito, a saber, o tempo o espaço e
a causalidade que formam juntas o princípio de razão. Mas esta perspectiva, por ser
unilateral exige, para ser completada, o ponto de vista do mundo tomado em si mesmo,
independente do princípio de razão. E, segundo Schopenhauer, a vontade humana é o
fenômeno mais adequado para representar o em si dos objetos do mundo. Para o autor,
se o próprio filósofo não fosse nada mais do que o puro sujeito que conhece, seria
impossível encontrar a significação própria deste mundo. Mas “a verdade é que no
caminho da representação, nunca se pode ir além da representação: ela é uma totalidade
fechada e não tem, nos seus próprios meios, nenhum fio que conduza à essência da
faculdade de conhecimento, de sua raiz comum, e poderia considerar-se desde então essa como a origem
de toda dependência, de toda relatividade, de toda instabilidade e toda finitude dos objetos de nossa
consciência, que limitam os sentidos, o entendimento e a razão, o sujeito e o objeto. A significação geral
do princípio de razão se reduz ao fato de que sempre e em toda parte uma coisa só é em virtude de uma
outra. Cf. Über die vierfache Wurzel des Satzes vom zureichenden Grunde, SW, I, p. 157-158.
123
Nisso o filósofo observa sua estrita fidelidade ao que ele considerar ser o cerne da filosofia crítica: a
recusa de toda e qualquer transcendência e a firme resolução de manter-se no domínio da experiência,
cuja totalidade é o mundo. Cacciola, M. L., Schopenhauer e a questão do dogmatismo, São Paulo, Edusp,
1994, p. 171.
124
P II, SW, VI, p. 39. “Jedes angeblich voraussetzungslose Verfahren in der Philosophie ist
Windbeutelei: denn immer muß man irgend etwas als gegeben ansehen, um davon auszugehn. Dies
nämlich besagt das doV moi pou stw, welches die unumgängliche Bedingung jedes menschlichen Thuns,
selbst des Philosophirens, ist; weil wir geistig so wenig, wie körperlich, im freien Aether schweben
können.”
56
coisa-em-si, que difere dela toto genere”.
125
O conhecimento, porém, tem como
condição necessária a existência de um corpo, cujas modificações são o ponto de partida
do entendimento para a intuição desse mundo. O indivíduo é, assim, ao mesmo tempo, o
sujeito do conhecimento e encontra aí a chave do enigma do universo: a Vontade
126
. O
corpo é dado ao sujeito de duas maneiras distintas: como representação no
conhecimento fenomenal de si mesmo e como princípio imediatamente conhecido,
como vontade.
No ensaio Sobre a Vontade na Natureza, o filósofo explicita sua posição:
“Aquilo que Kant opunha ao simples fenômeno – que eu chamo mais resolutamente de
representação – e que ele tomava por totalmente incognoscível, a saber a coisa-em-si,
esse substrato de todos os fenômenos e, portanto, de toda a natureza, é o que nós
conhecemos imediatamente, aquilo que nos é perfeitamente familiar, e que encontramos
no fundo de nosso próprio eu como Vontade.
127
Para poder falar da coisa-em-si,
Schopenhauer procede assim a uma analogia: ele estende a todos os fenômenos o que
acontece com o fenômeno humano, pois se eles são semelhantes ao corpo humano
enquanto representação, o resto, pela sua essência, deve ser o mesmo que em nós
chamamos vontade, já que fora da vontade e da representação não podemos pensar
nada
128
. A partir disso, o filósofo tira a seguinte conclusão: “Não somente as ações
voluntárias do ser animal, mas também o mecanismo orgânico de sua vida corporal, sua
figura e sua conformação, assim como a vegetação no mundo das plantas, a
cristalização no reino mineral e, de uma maneira geral, toda força original que se
manifesta nos fenômenos físicos e químicos, até mesmo o peso, tudo isso – tomado em
si fora do fenômeno, isto é, fora do nosso cérebro e de sua representação – é
perfeitamente idêntico com o que nós encontramos em nós sob a forma de Vontade, da
qual nós temos o conhecimento mais direto e mais íntimo que pode haver”.
129
Portanto, será no entrecruzamento da experiência interna, que se dá no corpo,
com a experiência externa da consciência que se constituirá a metafísica da Vontade de
Schopenhauer.
130
Embora esse procedimento possa ser visto como uma crítica da
125
Crítica da Filosofia Kantiana, Trad. de Maria Lúcia Cacciola, In: Coleção “Os Pensadores”, Abril
Cultural, São Paulo, 4
ª
ed., 1988, p. 156.
126
Cf. WWV, § 19, SW, II, p. 119.
127
WN, SW, IV, p. 2.
128
Cf. WWV, I, § 19, SW, II, p. 125.
129
WN, SW, IV, p. 2.
130
“É essa metafísica da Vontade que vem suprir a ausência da metafísica exigida, segundo
Schopenhauer, pela filosofia crítica. Sua fonte é deslocada do supra sensível para a experiência interior
que cada um tem de seu próprio corpo em ação, surgindo, da impossibilidade mesma de uma metafísica
57
metafísica tradicional, por negar a possibilidade de hipóstases transcendentes e se basear
numa rígida teoria do conhecimento, Schopenhauer não chega a negar a possibilidade
de um conhecimento que dê conta do todo da experiência. A filosofia tem como seu
objeto a experiência, mas não essa ou aquela determinada experiência, mas a
experiência em geral, sua possibilidade, seu domínio, seu conteúdo essencial, seus
elementos externo e internos, sua forma e matéria.
131
Por essa razão, Schopenhauer irá
criticar Kant por sua definição de metafísica como ciência de meros conceitos.
Mas não parece totalmente errôneo que nós, para decifrar a experiência, isto é, o único mundo que
nos é presente, devemos abstrai-lo inteiramente, ignorarmos seu conteúdo e tomarmos meramente
as formas vazias a priori como sua matéria e ponto de partida? Não é mais apropriado que a
ciência da experiência em geral e como tal, também crie a partir da experiência? Seu problema
mesmo é dado empiricamente; por que não deve a solução partir da própria experiência? Não
parece absurdo que aquele que deva falar sobre a natureza das coisas, não considere as próprias
coisas, mas se apegue a certos conceitos abstratos?
132
A crítica de Schopenhauer a Kant visa assim construir um novo conceito de
metafísica, pois se para Kant a finitude da razão impedia que o conhecimento
especulativo fosse além de uma fé racional, para Schopenhauer a limitação do saber
teórico deve dar lugar a um tipo de experiência capaz de ir além das meras formas da
intuição. Essa experiência será localizada no próprio corpo, como chave ao em si do
mundo, quando se faz a analogia entre a vontade humana e todos os objetos do mundo.
Nesse sentido o filósofo compreende sua filosofia como metafísica imanente, pois parte
de uma experiência dada na consciência de si que é estendida à totalidade da
experiência.
É a partir desse projeto de uma metafísica imanente que Schopenhauer irá
criticar a filosofia de Kant como um todo. Primeiro o filósofo critica a dedução das
categorias a partir da tábua dos juízos na “Lógica Transcendental” e daí decorrem suas
críticas ao predomínio do abstrato sobre o intuitivo, ao caráter sistemático da filosofia
de Kant, e à concepção racional da moral kantiana
133
. Para Schopenhauer o fato de Kant
fazer derivar das formas do juízo a condição do conhecimento dos objetos, teria sido
transcendente, a metafísica imanente que decreta a ausência de Deus e a presença do homem como ser
corporal finito”. Cacciola, M. L., Op. Cit, p. 23.
131
Cf. PII, SW VI, p. 22.
132
WWV, II, Cap. 17, SW, III, p. 201. Cf. PII, § 9.
133
Cf. Maria L. Cacciola. “O intuitivo e o abstrato na filosofia de Schopenhauer”, In: João Carlos Salles
da Silva (org) Schopenhauer e o Idealismo alemão, Salvador: Quarteto, 2004, p. 169.
58
responsável pelo privilégio que recebe o pensar em detrimento do intuir. Por isso o
filósofo irá negar toda a tábua de categorias de Kant, deixando somente a causalidade
como forma da intuição empírica, intuição não meramente sensível, mas intelectual,
pois inseparável do entendimento que remete o efeito a uma causa. Como veremos mais
detidamente abaixo, para Schopenhauer, as intuições empíricas possuem as formas do
tempo, do espaço e da causalidade e, embora intelectuais, elas não são abstratas.
Portanto, o domínio do intuitivo teria primazia em relação ao abstrato, que é sempre
derivado do primeiro. Se, por um lado, Schopenhauer nega que o conhecimento sensível
seja meramente cego e sem conceito, pois ele já conteria a forma da experiência, por
outro lado, não haveria conceitos sem sua referência ao empírico, “pois, são justamente
os conceitos que adquirem todo significado, todo conteúdo, unicamente por sua
referência às representações intuitivas, dos quais foram abstraídos, extraídos, quer dizer
formados por abstração de todo inessencial. Portanto, se deles é retirada a base da
intuição, são vazios e nulos. As intuições, ao contrário, têm significado imediato e
bastante grande (nelas objetiva-se a coisa em si): elas representam-se a si mesmas,
enunciam-se por si mesmas, não tem um conteúdo meramente emprestado como os
conceitos”.
134
Schopenhauer não diz que a filosofia prescinde completamente de conceitos
abstratos. Pelo contrário, essa é sua matéria, embora não sua fonte, pois ela é não uma
ciência a partir de conceitos, mas em conceitos.
135
O mérito de Kant consiste em ter
reconhecido que os conceitos mais abstratos (considerados pela tradição e também por
Kant como categorias) só permitem um uso na experiência e não na metafísica, isto é,
só permitem ligar um fato ao outro (como a causalidade, única categoria aceita por
Schopenhauer), não utilizá-lo para além dos fenômenos. É certo, também, que existem
intuições puras (como o tempo e o espaço), e até mesmo um conhecimento a priori, que
diz respeito apenas à parte formal da experiência. Mas apenas essa parte formal não
esgota a experiência; assim, a metafísica, enquanto ciência da experiência em geral,
deve basear-se não apenas em conceitos puros a priori, ou na parte formal do
conhecimento, mas deve ter uma origem empírica, nos fatos da consciência externa e
134
KKPh, SW, I, p. 562-3., trad. Cit., p. 132-3. Para um comentário e uma crítica da interpretação que
Schopenhauer faz da filosofia de Kant e da chamada “revolução copernicana”, ver Martin Booms, Op.
Cit, pp. 65-126.
135
Cf. WWV II, Cap. 4, SW III. p. 48: “Allgemeine Begriffe sollen zwar der Stoff seyn, in welchen die
Philosophie ihre Erkenntniß absetzt und niederlegt; jedoch nicht die Quelle, aus der sie solche schöpft:
der terminus ad quem, nicht a quo. Sie ist nicht, wie Kant sie definirt, eine Wissenschaft aus Begriffen,
sondern in Begriffen.”
59
interna: A metafísica não é apenas dedução das categorias do entendimento, mas
decifração da experiência dada. E tal experiência, ainda que tenha no tempo, no espaço
e na causalidade suas formas puras, não se esgota aí. Dessa forma, na impossibilidade
que a filosofia encontra em se deter em meras determinações abstratas de pensamento,
Schopenhauer irá sublinhar, especialmente contra Hegel que a filosofia deve “assim
como a arte e a poesia, sua fonte na apreensão intuitiva do mundo. E embora a cabeça
deva ficar em cima, não se deve proceder na filosofia com tanto sangue frio, de tal
modo que no final o homem todo, com o coração e a cabeça, não agisse e não ficasse
inteiramente abalado. Filosofia não é nenhum exemplo de álgebra”
136
.
Esse projeto de uma metafísica imanente não se dá, entretanto, sem enormes
dificuldades. As maiores dificuldades surgem na tentativa de conciliar uma abordagem
naturalista do conhecimento com uma filosofia idealista. Elas perpassam toda a
metafísica do filósofo, desde sua teoria do conhecimento até sua Erlösungslehre:
primeiro como oposição de dois pontos de vista aparentemente inconciliáveis sobre o
conhecimento, um que parte do mundo empírico objetivo dado a posteriori e outro que
parte das condições transcendentais a priori e subjetivas da representação; e segundo
como uma tensão entre uma metafísica da natureza de cunho materialista e uma ética e
uma estética de caráter intelectualista.
Schopenhauer critica, logo no início de sua obra principal, O Mundo Como
Vontade e Representação, tanto o idealismo absoluto (na figura de Fichte) quanto o
materialismo, pois ambos partem de um princípio unilateral do conhecimento (ou o
sujeito ou o objeto), e não conseguem explicar a representação total (gesammte
Vorstellung), isto é a relação sujeito e objeto. Será, portanto, da representação enquanto
dado da experiência que Schopenhauer partirá. Ela se encontra, por sua vez, regida pelo
princípio de razão. Mas o que é exatamente o princípio de razão? Ele é a expressão
geral das condições formais sob as quais unicamente um objeto pode ser dado na
experiência, a condição de todo objeto possível. Se ele é a condição de possibilidade dos
objetos então ele só pode estar no sujeito que é, enquanto tal, a condição do mundo
como representação. A partir disso, Schopenhauer pode abrir o primeiro livro de O
136
PII, § 9, SW VI, p. 13: “Sie muß, so gut wie Kunst und Poesie, ihre Quelle in der anschaulichen
Auffassung der Welt haben: auch darf es dabei, so sehr auch der Kopf oben zu bleiben hat, doch nicht so
kaltblütig hergehn, daß nicht am Ende der ganze Mensch, mit Herz und Kopf, zur Aktion käme und durch
und durch erschüttert würde. Philosophie ist kein Algebra-Exempel”
60
Mundo... que tem como objeto a representação submetida ao princípio de razão, com a
célebre passagem:
“O Mundo é minha representação” – essa é uma verdade para todo ser vivo e pensante, ainda
que só no homem ela chegue a uma consciência abstrata e clara. A partir do momento em que
ele pode chegar a ela a clareza filosófica se lhe fez presente. Ele sabe então com certeza que
não conhece nenhum sol e nenhuma terra, mas somente um olho que vê um sol e uma mão que
sente a terra; sabe que o mundo que o rodeia só existe enquanto representação, isto é, somente
através de um outro, o que representa, que é ele mesmo”.
137
Essa proposição, que Schopenhauer coloca como uma verdade a priori, exprime
o modo de toda experiência possível e imaginável, que é a relação sujeito-objeto, o
modo comum a todos os modos de representações imagináveis, seja ela abstrata ou
intuitiva, pura ou empírica. Essa relação exprime a idéia de que “tudo o que existe para
o conhecimento, o mundo inteiro, é apenas objeto em relação a um sujeito, intuição do
que aparece, em uma palavra, representação”.
138
A partir desse ponto de vista, portanto,
tudo o que existe, existe apenas para o sujeito, como sua representação.
O princípio de razão suficiente é assim a expressão geral das condições formais
que o sujeito impõe ao objeto
139
. Logo no início do primeiro livro de O Mundo, o
filósofo se remete à sua obra inaugural, a dissertação Sobre a quádrupla raiz do
Princípio de Razão Suficiente. Aí Schopenhauer estabelecera a dependência de todos os
objetos da experiência entre si, isto é, sua determinação recíproca e sua subordinação às
formas do princípio de razão, que se dividem em quatro. Para o autor, em todas as
nossas representações existe uma relação submetida a uma norma e determinada pela
forma, a priori, em virtude da qual nada se manifesta independentemente e com
existência por si, isolada ou separada. O princípio de razão suficiente exprime essa
conexão. E ainda que esse princípio seja suscetível de diversas formas, segundo a
137
WWV, I §1, SW II, p.3.
138
Ibid., p. 4.
139
Cf. SG, SW, I, p. 157-158. Na expressão do princípio, Schopenhauer retoma a fórmula de Wolf: “Nihil
est sine ratione cur potius sit, quam non sit. Nichts ist ohne Grund warum es sey.” (“Nada é sem que haja
uma razão de ser”). O autor reconhece Leibniz como o primeiro a formular o princípio de razão suficiente
como um princípio fundamental de todos os conhecimentos e de todas as ciências. (CF. § 9) Mas Leibniz
não teria indicado a distinção entre o princípio de razão do conhecimento (ratio cognoscendi), que funda
um juízo, do princípio de razão do ser (ratio essendi), que se refere à causa de um evento real
(Schopenhauer o denominará princípio de razão do devir). Aristóteles já tinha estabelecido a distinção
entre razão de conhecimento e causa, sendo que o primeiro consiste em saber e demonstrar o que uma
coisa é, e o segundo consiste em saber e demonstrar porque uma coisa é. Mas, para Schopenhauer,
Aristóteles não chega a uma clara compreensão e expressão do princípio de razão (Cf. SG, § 6). Embora
essa distinção só apareça em Wolf, é apenas Kant que distingue, numa polêmica com Eberhardt, o
princípio lógico formal do conhecimento do princípio transcendental (material) de causalidade (Cf. SG, §
13).
61
diferente maneira pela qual os objetos se relacionam entre si em cada classe, ele
conserva, entretanto, o elemento comum a todas essas formas. Essas últimas se dividem
em quatro espécies determinadas que, segundo as leis de homogeneidade e
especificação, constituem as quatro classes entre as quais se dividem tudo o que pode
tornar-se objeto para nós
140
. As quatro instâncias do princípio de razão são: a) princípio
de razão do devir, que rege as representações intuitivas dadas pelo entendimento; b)
princípio de razão do conhecer, que rege as representações abstratas, os conceitos,
dados pela razão; c) princípio de razão do ser, que é dado pelas formas a priori do
entendimento, o tempo e o espaço; d) princípio de razão do agir, a motivação, cujo
objeto é o sujeito do querer, que se oferece à consciência de si.
Deve-se notar a importância do princípio de razão do devir, que se deve ao fato
de que esta é a modalidade do princípio de razão que rege os objetos empíricos e pela
qual se mostrará como, em tais objetos, sua realidade empírica converge para sua
realidade transcendental, isto é, como tais objetos serão reduzidos, para o autor, à
condição de representações, de objetos para um sujeito. Schopenhauer denomina essa
primeira classe de objetos de representações intuitivas, completas e empíricas. Elas são
intuitivas, em oposição ao meramente pensado, aos conceitos abstratos
141
. São
completas porque não se referem apenas ao elemento formal dos fenômenos – espaço e
tempo – mas também ao material. Elas são empíricas, por um lado, porque têm sua
origem em uma excitação da nossa sensibilidade, por outro porque formam, junto com o
espaço e o tempo e a causalidade aquele complexo que constitui nossa realidade
empírica.
142
Nessa classe de objetos, o princípio de razão suficiente aparece como lei de
causalidade, e como tal se chama princípio de razão suficiente do devir. Tal princípio
consiste em que quando um ou vários objetos se encontram num novo estado ele deve
ter sido precedido de outro estado anterior do qual segue-se regularmente o novo estado
que agora se apresenta. Todos os objetos que se apresentam na representação como um
140
Cf. SG, § 16, SW, I, p. 51. Schopenhauer ressalta que a ordem em que essas instâncias do princípio de
razão aparecem no texto foi escolhida apenas pela clareza, diferentemente da “ordem sistemática” que
seria a seguinte: princípio de razão do ser, do devir, do agir e do conhecer. Cf. Ibid, p. 150. Aqui
seguiremos a ordem em que as formas aparecem no texto.
141
Cf. SG, § 17, SW, I, p. 61. O autor divide as representações em geral em abstratas e intuitivas. As
primeiras só são possíveis pela razão, que é a faculdade de formar conceitos. Para Schopenhauer, em
oposição a Kant, a faculdade de formar conceitos é racional, não intelectual (dada pelo entendimento). A
experiência em geral , com suas condições, é o objeto das representações intuitivas que, uma vez que são
determinadas pelo entendimento, são intelectuais. As leis da experiência são o espaço e o tempo. “Mas
deve-se notar, diz o autor, que o princípio de razão, como lei de causalidade e de motivação, determina a
experiência e que, por outro lado, como lei de justificação dos juízos, determina o pensamento”(WWV, I,
§3, SW, II, p. 6)
142
Cf. Ibid., Idem.
62
todo, constituindo o conjunto da realidade empírica estão, no que concerne ao começo e
ao término de seus estados, portanto na direção do transcurso do tempo, ligados por esse
princípio uns com os outros. Tal processo se chama sucessão, e o primeiro estado se
chama causa, e o segundo efeito
143
.
A lei da causalidade regula, para Schopenhauer, todo o conteúdo das formas
puras da intuição, tempo e espaço, assim como sua perceptibilidade, a matéria. A
realidade da matéria reside em sua atividade; daí sua própria essência consistir em ser
causa e efeito.
144
Assim, dadas as formas puras da intuição que são o espaço e o tempo,
o primeiro ato do entendimento é a intuição do mundo real que consiste em conhecer o
efeito pela causa; assim, toda intuição é intelectual
145
. Mas ela só pode realizar-se com
o conhecimento imediato de algum efeito como ponto de partida. O entendimento
transforma então em intuição o que a princípio era uma mera sensação vaga
146
: ele faz
com que uma sensação subjetiva – a mera afecção corporal – se torne uma intuição
objetiva ao conceber a sensação corporal dada como um efeito que como tal deve ter
necessariamente sua causa. Portanto, a intuição pressupõe a lei de causalidade. Essa
última é uma lei absolutamente a priori e dela depende toda a experiência.
147
Aqui Schopenhauer distingue três maneiras pelas quais a lei de causalidade
(Gesetz der Kausalität) se manifesta na natureza: como causa (Ursache), no sentido
mais estrito, como excitação (Reiz) e como motivo (Motiv). Sobre essa diversidade
repousa a distinção essencial entre os corpos inorgânicos, os vegetais e os animais, e
não sobre as características anatômicas externas ou sobre as características químicas. A
causa (Ursache), em seu significado mais estrito, é a que produz exclusivamente as
variações no reino inorgânico; portanto a que origina aqueles efeitos que são objeto da
mecânica, da física e da química. A segunda forma de causalidade é a excitação (Reiz)
que rege a vida orgânica como tal, ou seja, as plantas, os vegetais e ainda a parte
inconsciente da vida animal, que é realmente uma parte vegetativa. A terceira forma é o
motivo (Motiv) que rege a vida animal propriamente dita: quer dizer, as atividades, as
143
Cf. SG, § 43, SW, I, p. 145.
144
WWV, I, §4, SW, II, p. 7.
145
Ibid., Idem. Cf. Sobre a Visão e as Cores. SW, I, p. 7.
146
“Os sentidos, com efeito, não fornecem outra coisa senão a matéria bruta que o entendimento
recompõe, através de suas formas, o espaço, o tempo e a causalidade, em apercepção objetiva de um
mundo físico, ordenado por leis. Disso se segue que nossa intuição empírica ordinária é na verdade uma
intuição intelectual”. SG, §21, SW, I, p. 72.
147
Com isso Schopenhauer pode afirmar que a causalidade é a única forma do entendimento, excluindo
todas as outras categorias da tábua kantiana. Cf. SG, § 21. O que não se dará, porém, sem enormes
dificuldades que o conceito de matéria tenta solucionar.
63
ações conscientes de todos os seres animais. Essa forma de causalidade, que atua no
sujeito do querer, é também designada por Schopenhauer como a “causalidade vista de
dentro”
148
.
O correlativismo entre sujeito e objeto ganha, a partir do ensaio Sobre a Vontade
na Natureza e da segunda edição de O Mundo..., uma nova configuração. A partir de
uma visão objetiva do conhecimento
149
, tal correlação passa a exprimir-se pelo par
intelecto e matéria. Com isso, o conceito de matéria, que inicialmente era identificado
ao conceito de causalidade, passa a ganhar um estatuto que não possuía na primeira
edição de 1818. Aí, ele era definido como a instância subjetiva que unificava tempo e
espaço, conciliando o fluxo inconstante do tempo com a constância imutável do
espaço
150
. Já a partir da segunda edição a matéria seria o correlato objetivo do sujeito,
mais precismanente do intelecto. Mas ambos, intelecto e matéria, assim como sua
versão mais geral, sujeito e objeto, constituem apenas o mundo como representação que
em si mesmo, isto é, considerado fora de uma relação de conhecimento é Vontade. O
ponto de vista da representação é unilateral, incide apenas sobre um lado das coisas e
exige, para que se complete o conhecimento do mundo, um outro ponto de vista que
considere o que o mundo é em si mesmo. Esse outro ponto de vista afirma que “o
mundo é minha vontade”. Como vimos acima, tal inferência do substrato da
representação é feita por meio de uma analogia: Schopenhauer remete a experiência do
próprio corpo a todos os outros: ou seja, o querer, dado na consciência de si
(Selbstbewußtsein) é estendido, por analogia, a tudo que é dado na representação da
consciência externa; a quarta classe de representações do sujeito é tomada como chave
de decifração da primeira classe, a das representações empíricas:
Na medida em que procuro filosofia, não etiologia, tenho de aprender a compreender até
mesmo a essência íntima dos movimentos mais simples e comuns do corpo orgânico (os quais
vejo se seguirem de causas) a partir de meu próprio movimento por motivos, e reconhecer que
as forças infundadas que se exteriorizam em todos os corpos da natureza são idênticas em
148
Cf. SG, § 20.
149
Essa “visão objetiva do conhecimento” é exposta por Schopenhauer no capítulo 22 aos Complementos
de O Mundo..., e consiste na observação empírica abstraída da observação transcendental da experiência.
Essa visão, que considera apenas as condições materiais da experiência, deve ser completada pela visão
subjetiva, que tem como objeto exatamente as condições transcendentais da mesma. Será no jogo entre
esses dois pontos de vista, ou na complementaridade de ambos, que se constituirá a metafísica de
Schopenhauer.
150
Cf. WWV, § 4, SW II, pp. 12-15. As dificuldades da concepção de matéria e suas modificações ao
longo da obra de Schopenhauer são analisadas cuidadosamente por Eduardo Brandão em sua tese O
Conceito de Matéria na obra de Schopenhauer. Voltaremos a essa questão no capítulo 3.1 da segunda
parte.
64
espécie com aquilo que em é a vontade, e diferentes desta apenas segundo o grau. Isso
significa: a quarta classe de representações estabelecida no ensaio sobre o princípio de razão
tem de se tornar para mim a chave para o conhecimento da essência íntima da primeira classe.
A partir da lei de motivação tenho de apreender a compreender a lei de causalidade em sua
significação íntima
151
.
Essa extensão do objeto da quarta classe à primeira torna possível uma
consideração da natureza como graus sucessivos de objetivação da vontade. Acontece
que se tudo na natureza, da matéria bruta ao animal mais desenvolvido, o homem, é
manifestação de uma mesma vontade, também o conhecimento passa a ser submetido a
tal processo: ele é apenas manifestação da vontade de viver. Assim, a partir dessa visão
objetiva que constata empiricamente, por meio da analogia, processos naturais de
objetivação da vontade, o conhecimento se vê dependente de uma série de fenômenos
que o torna possível, o que parece contrariar o ponto de vista transcendental do início. O
próprio Schopenhauer expõe tal contradição como uma “antinomia” da faculdade de
conhecer:
Assim, necessariamente, vemos de um lado a existência do mundo todo dependente do primeiro
ser que conhece, por mais imperfeito que seja; de outro, vemos esse primeiro animal cognoscente
inteiramente dependente do primeiro ser que conhece, por mais imperfeito que seja; de outro,
vemos esse primeiro animal cognoscente inteiramente dependente de uma longa cadeia de causa e
efeitos que o precede, na qual aparece como um membro diminuto. Essas duas visões
contraditórias, pelas quais somos, de fato, conduzidos com igual necessidade, poderiam decerto
chamar-se uma antinomia da nossa faculdade de conhecer
152
.
A apresentação de tal contradição e sua afirmação por Schopenhauer deu lugar à
clássica objeção do “círculo de Zeller”, pela qual muitos comentadores afirmaram o
caráter contraditório da filosofia de Schopenhauer.
153
De fato, Schopenhauer não
suprime a contradição, afirma pelo contrário sua necessidade e oferece a ela uma
solução que se vale do mesmo procedimento de Kant na resolução das antinomias, isto
é, o recurso à distinção entre a ordem do em si e do fenômeno: o processo temporal que
151
WWV I § 24, SW II, p. 150; trad. bras., p. 187.
152
WWV I § 7, SW II, p. 36; trad. bras., p. 76.
153
Tal contradição já havia sido apontada por vários comentadores antes que Eduard Zeller a tivesse
tornada célebre ao dizer, no texto da História da filosofia alemã desde Leibniz de 1873, que, segundo
Schopenhauer, encontramo-nos no seguinte círculo: “a representação tem que ser um produto do cérebro
e o cérebro um produto da representação – uma contradição para cuja solução o filósofo em nada
contribuiu” (em Materialen zu Schopenhauers Die Welt als Wille und Vorstellung, Frankfurt am Main,
Surkhamp, 1984, p. 184).
65
se dá objetivamente, no mundo como representação, diz respeito apenas a esse mundo;
em si mesmo, tal processo é independente da forma da representação. Ou seja, é apenas
enquanto fenômeno que a representação é um processo explicado, ele também, como
um processo da representação empírica. Em si mesmo, ele é atemporal.
154
Schopenhauer, entretanto, deu ocasião para a crítica ao colocar as duas “visões
sobre o intelecto” de modo abstrato, uma sem relação com a outra. Pois “é tão
verdadeiro dizer que aquele que conhece é um produto da matéria quanto dizer que a
matéria é uma mera representação do cognoscente: mas isso é também unilateral. Pois o
materialismo é a filosofia do sujeito que se esquece de si mesmo em suas contas. Assim,
a afirmação de que eu não passo de uma mera modificação da matéria, deve ser
contraposta a esta: que toda matéria existe apenas em minha representação; e ela não
tem menos razão”.
155
Da mesma forma, dizer “que a cabeça está no espaço não a
impede de ver que o espaço só existe na cabeça”.
156
Não notaram, porém, os críticos de Schopenhauer,
157
que é exatamente no jogo
entre as perspectivas objetiva e subjetiva, fisiológica e transcendental que Schopenhauer
propõe uma solução para o princípio da filosofia que desde Kant os filósofos buscaram:
“Aqui está o caminho pelo qual eu ultrapasso Kant e os limites postos por ele, ainda porém me
mantendo no campo da reflexão, portanto da probidade, portanto sem o devaneio de uma pretensa
intuição intelectual, ou pensar absoluto, que caracteriza o período da pseudo-filosofia entre mim e
Kant. Kant parte, por sua observação da insuficiência do conhecimento racional para penetrar a
essência do mundo, do conhecimento como de um fato dado por nossa consciência e procedia
assim, nesse sentido, a posteriori. Eu procurei indicar nesse capítulo, assim como no escrito Sobre
a Vontade na Natureza, o que o conhecimento é em sua essência e origem, isto é, algo secundário,
determinado aos fins individuais: daí segue-se sua incapacidade para compreender a essência do
mundo; nessa medida chego ao mesmo resultado a priori. Mas não se conhece nada de modo
154
“Na existência-em-si (Dasein-an-sich) não há processos, mas temos que pressupô-los necessariamente
como uma tradução daquilo que é em-si, na linguagem do nosso intelecto intuitivo, já que o em-si
permanece incompreensível para nós”. M. L. Cacciola, Op. Cit, p. 80. Cf. Eduardo Brandão, O conceito
de matéria, p. 181.
155
WWV II, Cap. 1, SW, p. 15: “Es ist eben so wahr, daß das Erkennende ein Produkt der Materie sei, als
daß die Materie eine bloße Vorstellung des Erkennenden sei: aber es ist auch eben so einseitig. Denn der
Materialismus ist die Philosophie des bei seiner Rechnung sich selbst vergessenden Subjekts. Darum eben
muß der Behauptung, daß ich eine bloße Modifikation der Materie sei, gegenüber, diese geltend gemacht
werden, daß alle Materie bloß in meiner Vorstellung existire: und sie hat nicht minder Recht”.
156
PII § 30, SW, VI, p. 52.
157
Assim como Zeller, também Kuno Fischer afirma a incapacidade de Schopenhauer em resolver o
problema do círculo o que terminaria por destruir o sistema. Cf. Die Welt als Erkenntnissystem (em
Materialen zu Schopenhauers Die Welt als Wille und Vorstellung, Frankfurt am Main, Surkhamp, 1984,
p. 186-96). Também Volkelt compreende a tendência ao materialismo como uma contradição que destrói
o ponto de vista transcendental-idealista. Cf. Schopenhauer, – seine Persönlichkeit, seine Lehre, sein
Glaube. Stuttgart, Frommanns Verlag, 1923, p. 86 e seguintes.
66
inteiro e completo se não se o percorre inteiramente até chegar a seu outro lado e daí alcançar um
novo ponto de partida. Por isso se deve também aqui na importante consideração do princípio do
conhecimento proceder não apenas como Kant, do intelecto para o conhecimento do mundo, mas
como eu aqui procedi do mundo tomado como existente ao intelecto. Assim se torna essa
consideração fisiológica em sentido amplo o complemento daquela outra, ideológica como
chamam os franceses, mas mais corretamente transcendental.”
158
Hans Naegelsbach, numa obra de 1927,
159
apesar de se referir de maneira crítica
e negativa à duplicidade da teoria schopenhaueriana da representação, nota um sentido
“profundamente trágico” nessa colocação em paralelo de duas teses tão radicalmente
opostas que o filósofo coloca com frieza, para desespero do leitor. Pois “encontramos
uma formulação extrema de dois pontos de vistas inteiramente opostos (...) com a (...)
finalidade de que ambos se aniquilem mutuamente”.
160
Não estaria aí, como o próprio
crítico suspeita, o interesse da abordagem de Schopenhauer?
161
Schopenhauer parece assim se afastar de Kant tanto em sua abordagem
fisiologista e materialista do conhecimento quanto em sua interpretação da coisa-em-si
como a vontade imanente que se manifesta no mundo. Ao comentar as múltiplas
dificuldades dessa abordagem, Alfred Schmidt comenta: “à vontade é atribuída por
Schopenhauer a tarefa de resolver o problema da ‘substância’ num sentido pré-crítico,
realista ingênuo. Na medida em que a especulação pós-kantiana recorre, por sua vez, a
problemas da metafísica do século dezessete, pode-se interpretar também a doutrina de
Schopenhauer de que a coisa em si pode ser conhecida enquanto vontade que se objetiva
de modo gradual como uma variação daquele tipo de especulação (Spielart jener
Spekulation)”.
162
O autor observa entretanto, que essa especulação, longe de pretender
oferecer um conhecimento completo da coisa em si e desvendar todos os mistérios da
existência, apresenta-se como uma interpretação do mundo fenomênico, referente ao
qual unicamente a doutrina da vontade teria validade, portanto, sem pretender ser uma
158
WWV II, cap. 22, SW III, p. 328-9.
159
Das Wesen der Vorstellung bei Schopenhauer, Heidelberg, 1927.
160
Ibid, p. 117.
161
Cf. Ibid, p. 119 e seguintes. O autor prefere, entretanto, ver nessa contradição assumida, nessa
expressão de uma filosofia kant-não-kantiana (Kantisch-unkantischen Philosophie) antes um desespero de
ordem pessoal de uma filosofia em que há mais “vivência que clareza de pensamento”. Ibid, p. 98. É
interessante notar, porém, que alguns outros autores aproximam tal “vai-e-vém” (Drehwende) da filosofia
de Schopenhauer com uma espécie de dialética. Cf. Spierling, Volker. Schopenhauers
Transzendentalisches Selbstmißverständnis; Booms, Martin. Aporie und Subjekt, p. 56-7.
162
Alfred Schmidt, Die Wahrheit im Gewande der Lüge – Schopenhauers Religionsphilosophie, Piper,
1986, p. 203, nota 442. Cf. Naegelsbach, Op. Cit., p. 88 e seguintes. Cf. Booms, Martin. Aporie und
Subjekt, pp. 271-4.
67
verdade absolutamente conclusiva.
163
O caráter crítico da filosofia de Schopenhauer se
sustenta na asserção de que o caminho da reflexão da autoconsciência – negado em
parte pelo idealismo de Schelling e completamente por Hegel, é o único possível para o
indivíduo que pensa.
164
Uma outra dificuldade que surge nessa reconstrução da filosofia de
Schopenhauer a partir de sua crítica a Hegel se refere ao problema do “significado
moral do mundo” e à teoria da negação da vontade de viver que é sua conseqüência. Por
ter colocado o mundo da representação, a objetivação da vontade na natureza, de modo
inteiramente separado do mundo da coisa em si – separação baseada na completa
diferença entre o real e o ideal, a única solução que Schopenhauer oferece do problema
moral e a única ação livre possível consiste numa negação completa das formas de
manifestação da vontade de viver no fenômeno, uma abstração total do mundo
empírico. Sobre isso comenta Schmidt: “O elemento paradoxal da (não por acaso
idêntica com sua filosofia da natureza) metafísica de Schopenhauer consiste em que, por
um lado ela se baseia numa visão de mundo (Weltansicht) empírico-materialista que
condena o espírito à mais completa falta de significado, por outro lado entretanto, de
modo tão genial quanto inconseqüente, visa alcançar o ‘triunfo do espírito’ atingido no
percurso gradual da natureza”.
165
Schopenhauer não chega a usar tal expressão, pelo
contrário, se esforça em mostrar a falta de sentido da expressão “espírito”. Em outros
momentos, porém, faz referência à vitória da “inteligência sobre a cega vontade de
viver”
166
, e dá um significado eminentemente espiritual ao ato de negação da
vontade.
167
Resta saber se um apelo a uma “ordem inteiramente outra das coisas”
ameaça a resolução de permanecer no solo do imanência.
Que a doutrina da vontade de viver, que apela para uma ordem de consideração
para além do modo de apreensão do mundo intuitivo, ganhe com isso um caráter
místico, é algo que o próprio Schopenhauer afirma. Tal doutrina baseia-se na
experiência do eu como o foco do mundo, o núcleo de toda existência. Tal vivência
aparece como uma espécie de união mística que se dá no reconhecimento da identidade
163
Cf. Op. Cit., p. 101.
164
Assim, a duplicidade da teoria schopenhaueriana da representação se resolve na compreensão de sua
aporética crítica: contra o idealismo, ele ressalta o materialismo e a visão fisiológica do conhecimento;
contra o materialismo, a abordagem transcendental-idealista. Cf. Eduardo Brandão, O Conceito de
Matéria, pp. 225 e seguintes.
165
Op. Cit, p. 90.
166
Cf. WWV II, Cap. 41, SW III, p. 530.
167
Cf. Naegelsbach, Op. Cit, p. 64 e Schmidt, Die Wahrheit im Gewande der Lüge, p. 88 e seguintes.
68
da Vontade em todos os fenômenos, como sendo seu ser mais íntimo ou “coisa em si”.
Tal reconhecimento se dá especialmente na experiência ética da compaixão e é ao
mesmo tempo um sentimento que é um conhecimento e um conhecimento que é um
sentimento, o que leva Schopenhauer a denominá-lo um “conhecimento intuitivo” que
se dá imediatamente sem o concurso da razão e que tem como condição apenas a
suspensão do principium individuationis, que é, segundo o filósofo, a única condição de
toda multiplicidade e individualidade.
Baseando-se numa interpretação da filosofia kantiana segundo a qual ela teria
estabelecido a total diferença entre o real e o ideal, Schopenhauer abstrai da assim
chamada “coisa em si” tudo aquilo que diz respeito aos fenômenos. Assim, se nesses
últimos encontramos tudo determinado por tempo, espaço e causalidade, ou seja, as
formas do princípio de razão, naquilo que seria a “coisa em si” essas mesmas
determinações simplesmente não se aplicariam. Ao se utilizar dessa teoria em sua ética
Schopenhauer estabelece o critério da virtude, que diferencia o egoísta do compassivo.
O egoísta, ao se considerar essencialmente diferente dos outros seres, se baseia no
mesmo equívoco da metafísica clássica, equívoco que consiste em tomar o espaço e o
tempo como determinações das coisas-em-si, e não como produto da atividade do
sujeito do conhecimento. O princípio de individuação, que funda a diferença entre os
indivíduos vale, portanto apenas para os fenômenos, não para as coisas-em-si. Se a
multiplicidade se dá apenas no espaço dos fenômenos, ela não vale como coisa-em-si.
“Pois o múltiplo só se deixa pensar e representar ou como coexistente ou como
sucessivo. É porque o múltiplo de tal espécie são os indivíduos que eu chamo espaço e
tempo de ‘principium individuationis’, porque eles tornam possível a multiplicidade,
sem importar-me se este é exatamente o sentido em que os escolásticos tomaram esta
expressão”.
168
A partir dessa teoria, Schopenhauer conclui a necessária insubmissão da
coisa-em-si às formas do tempo e do espaço, ou seja, a doutrina de que toda a
multiplicidade é apenas aparente, que em todos os indivíduos deste mundo, por infinito
que seja o número em que eles se apresentem, sucessiva ou coexistentemente, só se
manifesta uma e a mesma essência, que é verdadeiramente e neles todos presente e
idêntica. Esta doutrina, porém, é anterior a Kant e, segundo o autor, já se encontra nos
“Upanishads”.
169
Como a base metafísica da ética consiste no fato de que um indivíduo
168
Sobre o Fundamento da Moral.Trad. de Maria Lúcia Cacciola, São Paulo: Martins Fontes, 1995, p.
203. (SW, IV, 267).
169
Ibid., p. 205. (268)
69
se reconhece a si próprio, a sua essência verdadeira, imediatamente no outro, ele supera
aquilo que os hindus chamam de véu de Maia, Kant de as formas puras da intuição, e
Schopenhauer denomina o principio de individuação. Assim, é um conhecimento
metafísico da unidade essencial de todos os seres que está na base das ações dotadas de
valor moral. Esse “conhecimento metafísico” é na verdade a própria metafísica de
Schopenhauer:
a multiplicidade e a diferenciação dos indivíduos é um mero fenômeno, quer dizer, só está
presente na minha representação. Minha essência interna verdadeira existe tão imediatamente
em cada ser vivo quanto ela só se anuncia para mim, na minha autoconsciência. Este
conhecimento, para o qual em sânscrito, a expressão corrente é ‘tat-tvam-asi’, quer dizer, ‘isto
é tu’, é aquilo que irrompe como compaixão (Mitleid), sobre a qual repousa toda virtude
genuína, quer dizer, altruísta, e cuja expressão real é toda boa ação
170
.
No entanto, apesar de constituir um fato reconhecidamente efetivo, a compaixão
não deixa de causar espanto. É algo de que a razão não pode dar conta diretamente e
cujos fundamentos não podem ser descobertos pelo caminho da experiência. Portanto,
Schopenhauer reconhece que, do ponto de vista empírico, a irrupção desse
conhecimento só pode ser um milagre, o que justifica a consideração do ato compassivo
como uma espécie de “misticismo prático”.
171
Mas se o caráter intuitivo e imediato de
tal conhecimento foge a qualquer explicação, sua decifração metafísica é possível, por
meio de uma reflexão sobre suas condições de possibilidade.
Ora, tal conhecimento só é possível através de uma outra pressuposição da
filosofia de Schopenhauer, a saber, a da possibilidade de uma forma de conhecimento
substancial da essência do mundo, para além do mero saber relativo. Isso porque
originalmente o intelecto humano é apenas um instrumento da Vontade, um meio para
que ela atinja seus fins, sua satisfação e essencialmente a conservação e reprodução de
si mesma. Mas é possível que o intelecto se liberte dessa servidão e se eleve do
conhecimento instrumental a um saber substancial. O que só é possível por uma
modificação que intervém no sujeito quando deixa de unir sua qualidade de sujeito do
conhecimento a de indivíduo, isto é, quando a intuição já não opera por intermédio de
um corpo. Isto porque, originariamente, o conhecimento está inteiramente a serviço da
vontade, isto é, se refere a um corpo e enquanto tal, submetido ao princípio de razão.
Dessa forma, o conhecimento vai tender a procurar nos objetos as relações estabelecidas
170
Ibid., p. 207-8. (270).
171
WWV, E, Cap. 47, SW, III, p. 743. (E, 209).
70
pelo princípio de razão, isto é, suas múltiplas relações consideradas sob a forma do
tempo, do espaço e da causalidade. Mas quando o conhecimento se liberta do serviço da
vontade, quando o sujeito deixa de ser individual, tornando-se então puro sujeito do
conhecimento, ele não procura mais as relações conforme o princípio de razão, e se
eleva a uma forma de conhecimento que irá buscar somente o essencial em todas as
coisas. Tal conhecimento se revela no gênio artístico que tem acesso às idéias eternas
por meio de uma apreensão intuitiva; pelo homem virtuoso que se eleva acima do
egoísmo prático e pratica então esse misticismo prático da compaixão; e também pelo
filósofo, que embora se utilize do instrumento de servidão da vontade, isto é, o princípio
de razão – na medida em que se vale de conceitos abstratos – , se eleva a uma forma de
conhecimento que tem em vista muito mais do que o mero fornecimento de motivos à
vontade. Atinge o conhecimento mais objetivo possível e anuncia assim a libertação do
intelecto da servidão da vontade.
Essa filosofia não se esgota na determinação do fundamento da moral. Ela
considera ainda um estágio superior de clareza de consciência, quando o sujeito
reconhece intuitivamente o todo da existência e dele se afasta: a negação da vontade de
vida. É na determinação problemática do que resta após essa supressão da vontade de
vida (que também é definida como essência do mundo ou como “coisa em si”) que o
misticismo aparece como o marco que separa o conhecimento negativo da filosofia por
um lado, do conhecimento positivo da mística por outro. A filosofia, que segundo o
postulado de Schopenhauer deve permanecer no solo firme da experiência e deve ser
imanente e não transcendente, não pode falar daquilo sobre o que não é possível
nenhuma intuição e portanto nenhum discurso. Seu objeto é apenas o mundo, a
experiência interna e externa da consciência, e a tarefa do filósofo é a interpretação de
sua totalidade. E essa totalidade espelhada pelo sistema filosófico de Schopenhauer é o
mundo em que a vontade de viver se objetiva em diversos graus, dos seres mais simples
até o homem, que ao reconhecer que a vida não passa de uma série de desilusões, que a
dor e o tédio irremediáveis são os pólos de uma existência sem sentido, pode enfim
decidir-se por suprimir-se a si mesmo, última liberdade, único consolo que lhe resta, (o
que não ousaremos chamar otimismo). Ora, essa verdade é reconhecida intuitivamente,
sem a clareza da consciência filosófica, pelo asceta que então deixa de afirmar a
vontade.
Sem levar em consideração o sofrimento dos indivíduos, aqueles que afirmam a
vontade encontram sempre novos motivos para o querer. O conhecimento do todo pode,
71
entretanto, representar um quietivo para a vontade. Quem nega a vontade o faz porque
tomou para si o sofrimento de todo o mundo, e daí, não pode mais afirmar sua vontade,
esse mundo que tem diante dos olhos. Quem chega ao conhecimento da nulidade
(Nichtigkeit) e da amargura (Bitterkeit) da vida se sente inclinado à negação da vontade.
Mas esta só é possível através de “um completo desvio (Umkehrung) da natureza
humana”.
172
Daí a necessidade da passagem da virtude ao ascetismo. Aquele que não se
deixa mais determinar pelos motivos da vontade coloca-se em contradição aberta contra
o fenômeno dessa mesma vontade. O seu corpo, são e forte, exprime através dos órgãos
de reprodução o desejo sexual, mas ele nega a Vontade e contradiz o seu corpo,
recusando toda satisfação sexual. A castidade voluntária é assim o primeiro passo na via
do ascetismo, isto é, da negação da vontade de viver: “A castidade nega a afirmação da
Vontade que vai para além da vida do indivíduo; ela indica assim que a Vontade se
suprime a si mesma, ao mesmo tempo que a vida do corpo, que é a sua manifestação. A
natureza o diz e a natureza é sempre verdadeira e ingênua: se esta máxima se tornasse
universal, a espécie humana desapareceria”.
173
A negação da vontade de viver é, assim,
uma negação desse mundo que nos é dado sob as condições do tempo e do espaço. A
determinação do que resta após a supressão da vontade, no entanto, permanece
problemática, já que só nos é dado conhecer esse mundo e nenhum outro. Schopenhauer
não diz que a supressão do querer representa a supressão de qualquer forma de
existência, mas também não afirma a realidade de um mundo à parte do querer viver, o
que constituiria a destruição do ponto de vista imanente.
174
Mesmo deixando para o místico a tarefa de completar esse espaço que o filósofo
deixa vazio, Schopenhauer reconhece a proximidade entre essa doutrina e o misticismo:
“O quietismo, isto é, a renúncia de todo querer, o ascetismo, isto é, a mortificação
voluntária da própria vontade e o misticismo, isto é, a consciência da identidade de seu
próprio ser com todas as coisas, ou com o núcleo do mundo, se encontram em ligação
estreita; assim, aquele que professa uma delas é levado à aceitação da outra, mesmo
contra seu próprio propósito”.
175
Essa é a definição do misticismo em sentido estrito, no
172
Metaphysik der Sitten, PV, p. 231.
173
WWV, § 68, SW, II, p. 449.
174
Essa questão deverá ser enfrentada de modo mais detido na parte final do trabalho que teria como
objeto a filosofia da religião de Schopenhauer em comparação com a de Hegel. Só então poderemos
delimitar de maneira definitiva a fronteira entre a filosofia e o misticismo.
175
WWV, E., Cap. 48, SW, II, p. 703: “Quietismus, d.i. Aufgeben alles Wollens, Askesis, d.i.
absichtliche Ertödtung des Eigenwillens, und Mysticismus, d.i. Bewußtseyn der Identität seines eigenen
Wesens mit dem aller Dinge, oder dem Kern der Welt, stehen in genauester Verbindung; so daß wer sich
zu einem derselben bekennt allmälig auch zur Annahme der andern, selbst gegen seinen Vorsatz, geleitet
72
que o distingue e o aproxima do quietismo e do ascetismo, mas nesse mesmo contexto
(capítulo) o autor oferece uma outra definição mais geral de “mística”:
Mística, no sentido mais amplo consiste naquela tendência de se atingir imediatamente aquilo
que nem intuição nem conceito, em suma nenhum conhecimento alcança. O místico permanece
assim em oposição ao filósofo, pois procede de dentro e este de fora. O místico parte portanto
de sua experiência interna, positiva, individual, na qual ele se sente como o ser eterno, único
etc. Mas disso nada é comunicável a não ser as mesmas afirmações nas quais se tem que
acreditar: por isso ele não pode convencer. O filósofo, ao contrário, parte do que é comum a
todos, do fenômeno objetivo presente para todos, e dos fatos da consciência de si, tal como se
apresentam a todos. Seu método é portanto a reflexão sobre tudo isso e a combinação do que aí
é dado: por isso ele pode convencer. Por isso, ele deve evitar proceder ao modo dos místicos
por meio da afirmação de intuições intelectuais ou a partir de pretensas percepções imediatas
da razão e querer espelhar um conhecimento positivo do que é eternamente inacessível a todo
conhecimento e que no máximo pode ser assinalado por meio de uma negação. O valor e a
dignidade da filosofia consistem em desprezar todas as suposições infundadas e aceitar como
dado apenas aquilo que se deixa provar no mundo externo intuititivamente dado, nas formas
constitutivas de nosso intelecto e na consciência de si mesmo comum a todos. Por isso mesmo
ela deve permanecer cosmologia e não pode nunca se tornar teologia. Seu tema deve se limitar
ao mundo: dizer o que este é, em seu mais profundo interior, em todos os seus aspectos, é tudo
o que ela pode honestamente oferecer. Isso corresponde ao fato de que minha doutrina, quando
chega a seu ponto culminante, adquire um caráter negativo, e assim termina com uma negação.
Ela pode apenas falar daquilo que foi negado, suprimido: o que se ganha, o que se obtêm com
isso (no fim do quarto livro) ela é obrigada a designar como nada, e pode apenas acrescentar
como consolo que esse nada é apenas relativo e não um nada absoluto. Pois aquilo que não é
nada daquilo que conhecemos é por isso, para nós, simplesmente nada. Mas disso não se segue
entretanto, que isso seja absolutamente nada, que tenha de ser nada também de todo ponto de
vista possível e em todo sentido possível, mas apenas que estamos limitados a um
conhecimento inteiramente negativo do mesmo. O que corresponde muito bem à limitação de
nosso ponto de vista. – A partir daqui exatamente o místico procede de forma positiva e a partir
de onde, portanto, nada resta além da mística
176
.
Essa passagem ilustra bem o que Schopenhauer entende por misticismo ou
mística e ao mesmo tempo o que a diferencia do ponto de vista filosófico. Ele retoma
aqui de maneira pormenorizada os resultados do § 71 (último) de O Mundo... Para a
wird”. O capítulo 48 dos Complementos ao Mundo como Vontade e Representação se chama “Sobre a
doutrina da negação da vontade de viver”, mas trata sobretudo do parentesco entre essa doutrina de
Schopenhauer e a mística em geral (os escritos sagradas da Índia e do budismo, o misticismo cristão de
M. Eckhart e J. Böhme entre outros). O autor vê nesse parentesco não um problema, mas uma vantagem
de sua doutrina e lança o desafio às filosofias otimistas de desmentirem toda essa literatura. Cf. Ibid, p.
704 e seguintes.
176
WWV, E. Cap. 48, SW III, p. 699-701.
73
filosofia não há outra alternativa senão se remeter aos místicos que oferecem uma
descrição positiva do estado de negação de vontade. Mas mesmo essa descrição é
apenas uma alegoria, pois não se trata aqui de um conhecimento na forma de sujeito e
objeto, mas de uma experiência pessoal. Assim como a filosofia não pode descrever
objetivamente esse estado também os livros de toda mística só nos podem fornecer
relatos indiretos dessa experiência. Não se trata de uma mera insuficiência da
linguagem, mas de uma limitação inerente ao ponto de vista que a filosofia toma: o
mundo, tal como nos é dado, além do qual a reflexão metafísica não pode aventurar-se;
segundo Schopenhauer, o mundo da vontade (o querer dado imediatamente à
consciência de si) e da representação (o mundo empírico dado na consciência externa).
É a essa limitação última que remonta não só a negatividade da filosofia
177
, mas seu
necessário ponto de vista finito, limitado, mundano, que a impede, segundo
Schopenhauer, de ser um discurso do absoluto. A vontade, como “coisa em si”, núcleo
ou essência do mundo pode bem constituir uma totalidade,
178
mas nunca um absoluto
no sentido do idealismo alemão.
Apesar dessa reconhecida e assumida limitação, se pode ver na obra de
Schopenhauer uma nítida superioridade do ponto de vista filosófico. Se a mística guarda
seu valor de tentativa de descrição daquilo que está além de toda razão, cabe à filosofia
mostrar claramente aquilo que é acessível à razão. Num apontamento de 1858, diz o
autor: “Budha, Eckhart e eu ensinamos no essencial o mesmo. Eckhart nos grilhões de
sua mitologia cristã. No Budismo se encontram os mesmos pensamentos, mas livre de
tal mitologia por isso simples e claro até onde uma religião pode ser clara. Em mim se
encontra a plena clareza”
179
. Esse orgulho tardio na verdade já se encontrava justificado
a partir de uma observação no final do quarto livro da obra de 1818, quando o autor
dizia que aquela lúgubre impressão do nada deveria ser dissipada pela consideração da
vida e da conduta dos santos e que isso seria preferível a fugir dela “como o fazem os
indianos através de mitos e palavras vazias de sentido, como reabsorção em Brahma ou
177
Aqui já se ressalta um contraponto a Hegel, para quem o pensamento do limite é um conhecimento
positivo: “Fazemos de nós mesmos algo finito pelo fato de acolhermos um outro em nossa consciência.
Mas justamente, enquanto sabemos desse outro, estamos além desse limite. Só o que não sabe é limitado,
porque não sabe de seu limite; ao contrário, quem sabe de seu limite sabe dele não como de um limite de
seu saber, mas como de algo que é sabido, como de algo que pertence ao seu saber”. Enz § 386, Zusatz,
SW, X, p. 36.
178
Essa concepção do mundo como totalidade auto-referente surge na filosofia de Schopenhauer em
afirmações como essa: “a vontade de viver relaciona-se sempre apenas consigo mesma”. Metaphysik der
Sitten, p. 188.
179
HN, IV, vol. 2, p. 29.
74
o Nirvana dos budistas”
180
. Essa apologia da clareza explica o sentido negativo que
Schopenhauer oferece da mística quando esse significa simplesmente algo para além da
compreensão racional e que não deve ser admitido na filosofia.
181
Daí sua crítica à
intuição intelectual de Schelling ou ao projeto de uma filosofia sem nenhuma outra
pressuposição senão o pensar puro como a de Hegel.
180
WWV, § 71, SW, II, p. 487.
181
O apelo ao racionalismo, em contraposição ao misticismo em filosofia, também é feito nos Parerga II
§ 10 Cf. SW VI, p. 14. Se esse trabalho pretende contribuir para desfazer a legenda do “ultra-racionalismo
dogmático” de Hegel, ele também pretende ao menos matizar a imagem do “irracionalismo” de
Schopenhauer.
75
Capítulo 5: Imanência e transcendência
Ao chegar à conclusão dessa primeira parte de nosso trabalho, a qual foi
denominada “crítica” porque se tratava, por um lado, de apresentar uma certa tradição
crítica da filosofia de Hegel e, por outro, esboçar uma metacrítica hegeliana a essa
mesma tradição, agora deveremos fazer um balanço dos resultados da postura crítica de
Schopenhauer em relação a Hegel.
Vimos que Schopenhauer seguia a tradição crítica inaugurada por Schelling e
seguida posteriormente por Feuerbach e o jovem Marx que viam na filosofia hegeliana
uma espécie de misticismo lógico. Por se elevar a uma abordagem que pretende
ultrapassar as limitações da metafísica do entendimento, Hegel já esperava um tipo de
crítica que consideraria a filosofia especulativa algo como um “misticismo”. É nesse
contexto que o autor aproxima, num adendo ao § 82 da Enciclopédia das Ciências
Filosóficas, a especulação ao misticismo:
“A respeito da significação do especulativo, há que mencionar aqui que se tem de entender, por
isso, o mesmo que antes se costumava designar como místico – sobretudo em relação à
consciência religiosa e a seu conteúdo. Hoje em dia, quando se fala de místico, esse em regra
geral conta como sinônimo de misterioso e inconcebível, e esse misterioso e inconcebível é
então, segundo aliás a diversidade da cultura e da mentalidade, considerado por um como
autêntico e verdadeiro, por outro como superstição e ilusão. Deve-se notar a propósito, antes de
tudo, que o místico sem dúvida é algo misterioso; contudo, só para o entendimento, e de fato
simplesmente porque a identidade abstrata é o princípio do entendimento, enquanto o místico
(como sinônimo de especulativo) é a unidade concreta dessas determinações que para o
entendimento só valem como verdadeiro em sua separação e oposição”.
182
Essa passagem encontra-se na determinação do conceito da lógica quando Hegel
expõe suas três formas, que na verdade devem ser apreendidas como seus três
momentos: o primeiro é o lado abstrato, o pensar enquanto entendimento (Verstand),
que fixa as determinações de maneira abstrata separando-as umas das outras sem reuni-
las numa totalidade concreta (aqui o entendimento tem o sentido que a razão tem em
Schopenhauer); o segundo é o momento dialético ou negativamente racional, o auto-
182
Enz, § 82 Zusatz, W 8, p. 178-9, trad. p. 168. “O místico em geral é todo especulativo que permanece
oculto ao entendimento” Preleções sobre Filosofia da Religião, Ed. W. Jaeschke, Hamburg, F. Meiner,
1993, vol. I, p. 333. Para uma análise do “especulativo” em Hegel e sua aproximação ao misticismo ver
G. Wohlfart. Der spekulative Satz. Berlin, Walter de Gruyter, 1981, pp. 67-74.
76
suprassumir (Sichaufheben)
183
de tais determinações abstratas e sua passagem
(Übergehen) para suas determinações opostas; por fim, o terceiro momento é o
especulativo, ou positivamente racional que apreende a unidade das determinações em
sua oposição. É justamente esse terceiro momento que Hegel aproxima do misticismo:
na verdade, misticismo é uma denominação que o pensar que se fixa nas determinações
abstratas do entendimento oferece do racional por não conseguir se elevar ao
pensamento de algo verdadeiramente concreto. Da mesma forma se fala de especulação
como algo meramente pensado, subjetivo e sem realidade. Mas segundo a concepção
hegeliana, o especulativo não é “algo puramente subjetivo; mas é antes, expressamente
o que contém em si mesmo, como suprassumidas, aquelas oposições em que o
entendimento permanece (portanto também aquela [oposição] entre o subjetivo e o
objetivo) e justamente por isso se mostra como concreto e como totalidade”.
184
Dessa forma, o que o projeto filosófico de Hegel tentará estabelecer é uma forma
de exposição do Absoluto, que enquanto tal só pode ser sua própria autoexposição, e
que procura evitar a unilateralidade das determinações abstratas do entendimento. Por
isso o ponto central de sua crítica à filosofia da reflexão é a crítica à forma judicativa da
filosofia, em favor de uma teoria do silogismo. Para Hegel, Kant concebe o a priori
apenas como o conceito formal da universalidade e da necessidade, e não como razão.
O juízo, através da cópula, apenas liga de maneira formal uma coisa a outra sem a
mediação pela qual essa coisa recebe tal determinação:
“O racional ou, como Kant se expressa, o que é o a priori (das Apriorische) desse juízo, a
identidade absoluta como conceito mediador (Mittelbegriff) não se apresenta no juízo, mas
somente no silogismo; no juízo é apenas a cópula ‘é’, um sem consciência (Bewußtlose), e o
próprio juízo é apenas o fenômeno em que prevalece a diferença”
185
.
183
Procurámos manter a tradução de Aufhebung por “suprassunção” a partir da tradução de Paulo
Meneses da Fenomenologia e da Enciclopédia. Como se sabe, esta palavra tem múltiplos significados e
justamente por isso possui um interesse especulativo. Seus principais sentidos são: 1) levantar, sustentar,
erguer; 2) anular, abolir, destruir, revogar, cancelar, suspender; 3) conservar, poupar, preservar. Cf.
Inwood, M. Dicionário Hegel, p. 302. Hegel comenta o “significado especulativo” da palavra Aufheben
na Ciência da Lógica, W 5, pp. 113-4.
184
Enz, § 82 Zusatz, W 8, p. 178-9, trad. p. 168. Cf. Ciência da Lógica, W5, p. 52.
185
GuW, W2, p. 307. Para esclarecer esse ponto, vale citar o comentário de Paulo Arantes: “A filosofia
crítica não progride do juízo ao silogismo a priori. Certo, Kant solucionou segundo a verdade o problema
da possibilidade dos juízos sintéticos a priori; o fundamento dessa possibilidade é precisamente a
identidade sintética da razão. Mas o juízo, tomado isoladamente, só pode oferecer uma única
manifestação dessa identidade, e a cópula, em última instância, exprime antes o ‘não-reconhecimento do
racional’”. Hegel: a ordem do tempo, ed. Cit, p. 242-3. “A forma da proposição, ou mais precisamente a
do juízo, é imprópria para exprimir o concreto – e o verdadeiro é concreto – e o especulativo: o juízo é,
77
Essa concepção do especulativo, entretanto, se afasta da idéia de uma
compreensão imediata do Absoluto por intuição intelectual, ou pelo sentimento
imediato. Hegel critica não apenas Schelling, mas toda a concepção de sua época que
considera que se pode pensar o Absoluto sem mediações conceituais. O filósofo nega
quaquer recurso à uma intuição imediata do absoluto, tal como ele entende ser a
“intuição intelectual” de Schelling e o “saber imediato” de Jacobi
186
.
Se podemos observar nesse pequeno esboço uma aproximação das concepções
de misticismo em Hegel e Schopenhauer, não é difícil delimitar suas diferenças. A
concepção da filosofia em Hegel se constitui como uma crítica à idéia de
Weltweisheit
187
, exatamente o pressuposto da concepção filosófica de Schopenhauer,
que concebe a filosofia como “cosmologia” e tem o mundo como pressuposto. Ela é
reflexão infinita e seu único verdadeiro objeto é Deus ou o Absoluto. Dessa forma,
Hegel irá criticar toda forma de pensar finitista, que se fixa no modo de pensar
subjetivo, parta ele do sensível ou do sentimento ou de qualquer outra pressuposição
imediata. Para levar a cabo esse projeto, a filosofia não pode se valer de uma outra
ciência que lhe serviria de base, mas deve ser a expressão mesma do conteúdo: “A
filosofia, ao dever ser ciência, não pode (...) pedir emprestado o seu método a uma
ciência subordinada, como é a matemática, como tão pouco pode dar-se por satisfeita
com asseverações categóricas da intuição interior, nem se servir de um raciocínio por
fundamentos da reflexão exterior. Pelo contrário, só pode sê-lo a natureza do conteúdo,
por sua forma, unilateral; e nessa medida é falso”. Enz § 31, trad. Cit., p. 94. Este tema terá um
desenvolvimento logo abaixo, no primeiro capítulo da segunda parte.
186
Cf. acima, nota 5, p. 17. Nesse ponto Schopenhauer se une a Hegel ao rejeitar uma faculdade de
acesso imediato ao essencial do mundo, sem mediação: “Esses conceitos e pensamentos que constituem a
classe das representações não intuitivas, nunca têm uma relação imediata portanto com a essência e o ser
em si das coisas, somente uma relação mediata, a saber, a partir da mediação da intuição: esta é aquela
que por um lado lhes fornecem a matéria e, por outro, está em relação às coisas em si, isto é com a
desconhecida essência que se objetiva, autônoma, das coisas. (P I. SW, V, p. 36) Essa crítica não exclui
(nos dois casos), uma possível influência de Schelling na formação de ambos os sistemas. Para a recepção
de Schelling em Schopenhauer ver Jair Barboza, Infinitude Subjetiva e Estética, São Paulo, Unesp, 2005.
187
No Prefácio à Filosofia da Religião de Hinrichs (1821) lemos o seguinte comentário: “Este mal, a
contingência e o arbítrio do sentimento subjetivo e do seu opinar, ligados à cultura da reflexão que prova
a si que o espírito seria incapaz do saber da verdade, é chamado, desde tempos antigos, sofisticaria
(Sophisterei). É ela que merece o apelido de cosmosofia (Weltweisheit) que o senhor Fr. Von Schlegel
recentemente foi de novo buscar; com efeito, ela é uma sabedoria naquilo e daquilo a que se costuma
chamar mundo, do acidental, do não verdadeiro, do temporal; ela é a vaidade que eleva o vão, a
contingência do sentimento e o bel-prazer do opinar a princípio absoluto do que seria justiça e dever, fé e
verdade”. W 11, p. 60; trad. Prefácios, p. 224. Num texto da Enciclopédia, porém, Hegel recupera um
significado positivo para Weltweisheit: “no espírito dos governos e dos povos, desperta a sabedoria-do-
mundo (Weltweisheit), quer dizer, a sabedoria sobre o que é em si e para si justo e racional na efetividade.
Com razão chama-se Weltweisheit a produção do pensar, e, mais determinadamente, a filosofia, porque o
pensar torna presente a verdade do espírito, introduz este no mundo, e o liberta assim em sua efetividade e
nele mesmo”. Enz III, § 552, W 10, p. 357. Trad. bras., p. 330. Cf. Lições sobre a Filosofia da História,
W 12, pp. 526-7.
78
a qual se move no conhecer científico, sendo ao mesmo tempo esta reflexão mesma do
conteúdo, que somente põe e produz a sua determinação mesma”.
188
Ainda não estamos no momento de apresentar tudo o que está em jogo no
projeto sistemático de Hegel e como ele o justifica – o que faremos na próxima parte. É
entretanto, fácil de ver que a crítica de Schopenhauer, expressa de uma maneira
sumária,
189
dificilmente consegue penetrar no cerne do pensamento de Hegel. Apesar de
ser um traço característico da crítica à filosofia de Hegel nessa epóca, estaríamos
inclinados a conceder que tal postura não chega a fornecer uma verdadeira crítica da
filosofia hegeliana. Se, como mostrou Lebrun, a crítica tradicional à filosofia de Hegel,
que a denuncia como misticismo lógico, recua para uma posição que privilegia o
pensamento abstrato do entendimento ou se baseia em uma ilusória prioridade do
conhecimento sensível, também a crítica de Schopenhauer, ao opor à filosofia
especulativa uma concepção limitada de razão, também não vai muito longe pois
desconsidera a crítica de Hegel a Kant, e a relaboração do especulativo a partir da
filosofia crítica.
190
Nesse mesmo sentido, deve ser contestada a idéia, gerada por esse tipo de
postura crítica, de que Hegel, ao falar do absoluto e recuperar uma teologia
especulativa, recaíria numa metafísica transcendente. É verdade que se pode opor
Schopenhauer e Hegel pelo fato de que enquanto o primeiro parte do mundo tal como
este aparece na consciência e na consciência de si (mundo externo e interno), o segundo
parte de um certo “holismo lógico”, expresso na proposição “só o absoluto é verdadeiro,
só o verdadeiro é absoluto”.
191
Mas isto não significa que Hegel, ao contrário do que diz
Schopenhauer, despreze a experiência. Pois em Hegel, trata-se sempre da experiência da
consciência que, ao reconhecer suas contradições se revela como “espírito”, palavra que
sugere a idéia de transcendência e imaterialidade, mas que nada mais significa que o
universo das mediações existentes no mundo dos homens. Como vimos, cada uma
dessas filosofias se apresenta como uma interpretação crítica de Kant: enquanto
Schopenhauer critica o predomínio do “abstrato” em Kant e ressalta a impossibilidade
de conceitos puros a priori, pois todo e qualquer conceito só tem sentido acoplado à
intuição, Hegel critica Kant por ter justamente colocado uma dependência das
categorias em relação à intuição sensível. Se para Schopenhauer, Kant teria se deixado
188
Prefácio à 1
a
. ed. da Ciência da Lógica (W 5, p. 16).
189
Ver acima p. 5, nota 4.
190
Cf. G. Wohlfart, Op. Cit, p. 74.
191
PhG, W3, p. 70; trad. bras., vol. I, p. 64.
79
levar pelo seu amor à simetria e ao pensamento abstrato da escolástica – presente em
sua própria terminologia – para Hegel, ao contrário, Kant teria deixado se levar por sua
“ternura pelas coisas do mundo”. Mas se o caráter imanente da metafísica de
Schopenhauer é dado por sua cosmologia e pelo seu relativo empirismo, em Hegel o
conceito é sempre, para si mesmo, sua própria medida.
Nesse sentido, pode-se dizer que Hegel ao invés de desprezar a experiência, na
verdade, radicaliza a imanência.
192
. Isso se revela tanto em sua definição da verdade
como uma concordância, não mais entre uma representação e uma coisa, mas de um
conteúdo consigo mesmo
193
, quanto na experiência que a consciência faz de si mesma,
pela qual se revela que “a consciência é para si mesma seu próprio conceito”. Hegel
desloca assim o problema do conhecimento, que passa não mais a ser o problema de
uma relação entre uma representação e um objeto, mas sim da coisa consigo mesma, do
conceito consigo mesmo. É assim que na Fenomenologia do Espírito o exame do saber
verdadeiro preserva a distinção kantiana entre coisa em si e fenômeno, mas a desloca
para dentro da própria consciência. Pois é ela mesma que diferencia entre a “verdade” e
algo que só tem verdade “para ela”. Tanto o saber verdadeiro quanto o não verdadeiro
se mostram como momentos da consciência, tornando desnecessário e impossível
estabelecer um ponto de vista exterior a ela que pudesse servir de padrão de medida
para distinguir o saber verdadeiro do saber não verdadeiro: “A natureza do objeto que
investigamos ultrapassa essa separação ou essa aparência de separação e de
pressuposição. A consciência fornece, em si mesma, sua própria medida; motivo pelo
qual a investigação se torna uma comparação de si consigo mesma, já que a distinção
que acaba de ser feita incide na consciência”.
194
A partir disso a experiência passa a ser
compreendida não mais como a relação de uma consciência a um objeto, mas como “o
movimento dialético que a consciência exercita em si mesma, tanto em seu saber como
em seu objeto, enquanto dele surge o novo objeto verdadeiro para a consciência”.
195
Um outro caminho, porém, seria investigar se a concepção schopenhaueriana de
razão seria de fato tão limitada quanto parece: ou seja, se o místico em Schopenhauer
não seria uma expressão do especulativo em seu pensamento. Apesar de defini-la como
uma mera faculdade de abstração, sem nenhuma característica positiva (como o
entendimento em Hegel), a razão que se vê efetivamente em operação em sua metafísica
192
Cf. Marcos Nobre, A Dialética negativa de Theodor W. Adorno, São Paulo: Iluminuras, 1998, p. 121.
193
Cf. Enz, § 24, Zusatz, trad. Cit., p. 82.
194
PhG, W3, p. 76, trad. Cit, p. 69.
195
Ibid, p. 78, trad. p. 71.
80
vai muito além das formas limitadas do princípio de razão. Não apenas na estética e na
ética está em jogo um elevar-se das formas fixas do princípio de razão, mas a própria
reflexão filosófica exige um tipo de razão diferente da mera razão enquanto faculdade
dos conceitos abstratos, e que Schopenhauer ora chama de “conhecimento intuitivo”,
“clareza de consciência” e “modo de conhecimento alterado”, sem oferecer maiores
explicações. Para permanecer na temática da negação da vontade e dela extrair um
exemplo, basta notar que somente o homem e somente porque nele o conhecimento
atinge aquela clareza de consciência (Besonnenheit) a ponto de tornar possível a visão
do todo da existência, somente a ele se coloca a alternativa da negação da vontade. E
essa visão não é apenas algo subjetivo, próprio ao gênio artístico ou moral, mas é o
próprio conhecimento que a vontade tem de si mesma:
“Os três primeiros livros devem ter trazido o conhecimento distinto e certo de que, no mundo
como representação, a vontade recebe seu espelho, no qual ela se conhece a si mesma em graus
crescentes de distinção e completude, sendo o mais elevado o homem, cuja essência entretanto
só recebe plena expressão na série conexa de suas ações. A conexão autoconsciente destas é
possível pela razão, que sempre lhe permite um olhar de conjunto, in abstracto, sobre o
todo.”
196
Nessa passagem é possível notar todo o alcance da especulação
schopenhaueriana: depois de ter estendido a descoberta do em si do próprio corpo como
vontade a todos os fenômenos, o autor passa a considerar objetivamente como a vontade
se objetiva na natureza até atingir o pleno conhecimento de si mesma no homem
(especialmente a partir de Sobre a Vontade na Natureza e da 2º edição da obra
principal). Assim, sentencia, “o mundo é o autoconhecimento da Vontade”
197
.
Especulação imanente, sem dúvida, pois se baseia no mundo empírico representado na
consciência e na consciência de si, mas ainda assim especulação.
198
É no interior
dessa especulação, na superação do ponto de vista meramente empírico ou na corrupção
do kantiano, que teremos que reconhecer a verdadeira oposição de Schopenhauer a
Hegel.
196
W I § 54, SW II, p.323; trad. bras., p. 357 (com modificações).
197
W I § 71, SW II, p. 485; trad. bras., p. 517.
198
Nesse sentido o autor fala em especulação metafísica para designar a abordagem metafísica do
fenômeno empírico da compaixão: “Certamente este processo é digno de espanto e até misterioso. É, na
verdade, o grande mistério da ética, seu fenômeno originário e o marco além do qual só a especulação
metafísica pode ariscar um passo.” FM, SW IV, p. 209. (trad. Cit., p. 129-30). Grifo nosso.
81
Assim, se se pode contestar as críticas de Schopenhauer a Hegel, pode-se no
mesmo movimento pensar numa crítica hegeliana da filosofia de Schopenhauer.
199
A
partir do quadro que Hegel oferece dos problemas filosóficos de sua época e da crítica
que ele endereça especialmente a Schelling, Jacobi e os românticos, seria possível
imaginar como ele teria julgado a filosofia de Schopenhauer. Ao aprofundar as cisões
que a filosofia de Kant herdou do iluminismo, ao propor uma volta não só a Kant, mas a
Hume e Locke, a filosofia de Schopenhauer teria dado continuidade à negação das
pretensões clássicas de conhecimento do verdadeiro pela filosofia. O predomínio do
empírico e do fisiológico estaria de acordo com a tendência da modernidade em
aprofundar a cisão entre o espírito e a natureza, cisão que Hegel teria abolido em nome
do predomínio do espiritual. Já Schopenhauer busca suprimir tal dualidade
estabelecendo a primazia do natural sobre o intelectual. Dessa forma, corresponderia no
primeiro uma predominância do ideal e do espiritual e consequentemente da lógica, da
história e da política em sua filosofia, enquanto Schopenhauer procura incorporar em
seu sistema os resultados das ciências de sua época, subordinando em certa medida a
eles suas reflexões sobre o domínio moral. Se o domínio espiritual constitui a
característica do sistema de Hegel, não surpreende que ela culmine num saber absoluto,
caracterizado como rememoração e reconhecimento da realidade que é própria ao
espírito. Já Schopenhauer parece desembocar num misticismo, fruto da colocação da
vontade como fundamento infundado do mundo. Se a filosofia de Schopenhauer está de
acordo com a tendência anti-especulativa da época, pois mantém as determinações
abstratas do entendimento e busca se prender à realidade dada, é a filosofia de Hegel
que estabeleceria a verdadeira imanência, ao colocar mesmo o terreno da religião e do
sagrado como apontando sempre para este próprio mundo, fechando a porta a qualquer
misticismo do inteiramente outro. Pois se a filosofia de Schopenhauer parte do próprio
mundo dado na experiência, após esvaziar de sentido tudo que nele acontece, só restaria
apontar para aquilo que está além da experiência dada. Mas ainda não estamos em
condições de afirmar o que seria uma boa e uma má imanência. Essas considerações
serão desenvolvidas nas partes seguintes desse trabalho, que terão como objeto as
filosofias especulativas de ambos os filósofos, as quais conduzem a uma reflexão
199
Talvez a crítica mais relevante do pensamento de Schopenhauer realizada do ponto de vista da
dialética hegeliana – mas também marxista – tenha sido elaborada por G. Lukács no ensaio intitulado
“Schopenhauer”, publicado no livro Die Zerstörung der Vernunft (A destruição da razão). O texto de
Lukács será objeto de discussão no segundo apêndice a este trabalho.
82
filosófica da religião, que possibilita, por sua vez, a delimitação definitiva entre o
transcendente e o imanente.
Segunda parte: Especulação
A primeira parte deste trabalho procurou desenvolver sob diversos pontos de
vista a idéia de crítica: foram apresentadas tanto a tradição crítica da filosofia hegeliana
em geral como a crítica de Schopenhauer. Por outro lado, ressaltámos a crítica hegeliana
às filosofias da reflexão, em especial a Kant, e a partir daí inicíamos uma discussão
sobre uma possível refutação hegeliana de seus críticos. O intuito da primeira parte não
foi nem colocar Hegel como vencedor em um duelo contra a filosofia da reflexão, nem
desqualificar de um ponto de vista especulativo, toda e qualquer reflexão filosófica
“finitista”. Procurámos discutir de tal modo as diversas noções de “crítica” para
ressaltar a dificuldade de julgar uma determinada filosofia a partir de critérios externos
a ela, já que cada uma tem pressupostos próprios e traz em si mesma sua própria idéia
de “crítica”. Tratava-se apenas de mostrar que, ao contrário de uma representação hoje
quase aceita como natural, o caráter crítico de uma filosofia não se esgota na admissão
de sua impossibilidade ou na delimitação daquilo sobre o que ela não pode falar, isto é,
na maldição à qualquer tipo de filosofia especulativa. Uma teoria filosófica deve ser
julgada por aquilo que ela diz e não por aquilo sobre o que ela por “medo da verdade”
deixaria de pensar. Dessa forma, tanto a filosofia de Hegel quanto a de Schopenhauer
sofreram diversos ataques da parte dos caçadores de dogmatismos, críticos
frequentemente incapazes de valorizar a experiência intelectual presente em ambos os
autores. O que faremos aqui será apenas uma pretensamente sóbria exposição em
paralelo de dois modelos diversos de filosofia especulativa. A decisão sobre a maior ou
menor pertinência de ambas as abordagens ficará a cargo do leitor. O que pretendemos
deixar claro ao final da exposição é o vínculo que ambos os autores estabelecem, para
além das diferentes noções de “especulação”, entre a crítica à metafísica tradicional e
uma nova abordagem especulativa. Nesse sentido, da mesma forma em que na primeira
parte o tema da “especulação” já era abordado, da mesma forma nesta segunda parte o
tema “crítica” continuirá presente. Para os dois autores, ambas as noções são
inseparáveis.
Para isso será necessário voltar a (ou tratar com mais rigor) temas que apenas
mencionamos na primeira parte: a delimitação mais precisa do que é, para Hegel, a
filosofia especulativa em contraposição à filosofia da reflexão; como se constitui uma
metafísica especulativa em Schopenhauer apesar do interdito kantiano contra a
metafísica; como em ambos os autores se articula uma crítica do ponto de vista do
84
entendimento comum com a abertura a uma nova abordagem da filosofia; como em
ambos, se relaciona a realidade efetiva com as aparências, isto é, como se determina a
realidade das coisas finitas em contraposição à realidade “substancial”. A partir disso
será possível compreender o lugar e a função do “negativo”, do mal e das cisões, que
desempenham um papel marcante no pensamento dos dois filósofos. Com isso teremos
preparado o terreno para a terceira parte que tematiza a religião como outro modo de
exposição daquilo que a filosofia demonstra como verdade.
Capítulo 1: A tarefa da filosofia e a necessidade da metafísica
Para uma compreensão da diferença específica entre os dois tipos de especulação
filosófica em jogo nos sistemas de Hegel e Schopenhauer devemos partir de uma análise
das diversas concepções que ambos os filósofos têm da tarefa da filosofia.
1.1 – Hegel e a tarefa sistemática da filosofia
Hegel define, logo no início de sua produção filosófica madura, a necessidade
ou carência (Bedürfnis) de filosofia como a tentativa de suprimir as cisões. Essa
carência será um dos tópicos desenvolvidos no primeiro escrito publicado por Hegel, a
Diferença entre os sistemas de Filosofia de Fichte e Schelling de 1801. Nele Hegel faz
um balanço do cenário filosófico e da cultura da época e constata tal época como
marcada por cisões que uma certa “cultura do entendimento” teria exacerbado ao
aprofundar certas oposições como finito e infinito, sujeito e objeto, conceito e ser. É
nesse momento, entretanto, que se tem necessidade da filosofia:
Quando o poder de unificação desapareceu da vida dos homens, e os opostos perderam
a sua relação viva e a ação recíproca e ganharam autonomia, surge a necessidade da filosofia.
Nesta medida, é uma contingência, mas, sob a cisão dada, é a tentativa necessária para suprimir
a oposição da subjetividade e da objetividade consolidadas, e conceber o surgimento do mundo
intelectual e do mundo real como um devir, o seu ser como produto, como um produzir: na
atividade infinita do devir e do produzir, a razão uniu o que estava separado e rebaixou a cisão
absoluta a uma relativa, que está condicionada pela identidade originária.
1
Isso não significa uma condenação absoluta das oposições abstratas em favor de
uma pretensa unidade concreta da razão. Pois para Hegel “a cisão necessária é um fator
da vida, que se forma a si mesma opondo-se eternamente, e a totalidade só é possível,
na forma suprema da vida, através do restabelecimento a partir da suprema separação.
Mas a razão coloca-se contra a fixação absoluta da cisão por meio do entendimento, e
isto tanto mais quanto os próprios termos absolutos opostos tiveram origem na razão”.
2
Hegel vê o problema daquilo que ele chama de “cultura do entendimento” no fato de
que esta cultura transformaria aquelas oposições em dados absolutos, deixando de se
1
Differenz, GW, 4, p. 14 (trad. Cit., p. 38).
2
Differenz, GW, 4, p. 13 (trad. Cit., p. 38). Ver o elogio de Hegel ao agir do entendimento em um adendo
ao §80 da Enciclopédia: “tanto no domínio prático quanto no teórico, sem entendimento não se chega a
nenhuma fixidez e determinidade” (W 8, p. 169, trad. Cit., p. 160).
86
elevar a uma concepção especulativa da filosofia e abandonando seu interesse máximo
que é a da supressão de tais opostos. O que ele critica, em suma, nessa cultura do
entendimento é seu dualismo e sua tentativa de bloquear qualquer acesso ao absoluto.
Para o autor, a fonte de uma cisão (Entzweiung) é sempre uma totalidade anterior que
seria sua origem. Assim, tudo que se apresenta na cultura como expressão particular é,
na verdade, manifestação do absoluto que se fixa como algo autônomo. É o
entendimento, enquanto “força do limitar” que fixa uma oposição e se desgarra do todo.
Já a razão, “só atinge o absoluto na medida em que se arranca a estas partes múltiplas”.
3
Assim, as oposições se tornam fixas, segundo Hegel, porque o entendimento
“imita” a razão ao tentar pensar a unidade absoluta por meio da absolutização de um dos
lados da oposição (sujeito ou objeto, por exemplo).
4
O pensamento do entendimento
não percebe que ao conceber o infinito contraposto ao finito transforma o infinito em
algo fixo, portanto, finito, pois “o infinito, na medida em que é oposto ao finito, é um
racional posto pelo entendimento; exprime para si mesmo, como racional, apenas a
negação do finito. Na medida em que o entendimento fixa o infinito, opõe-no
absolutamente ao finito, e a reflexão, que se tinha elevado à razão, ao suprimir o finito
rebaixou-se de novo ao plano do entendimento quando fixou o agir da razão na
oposição; todavia, reclama ainda a pretensão de ser racional neste retroceder”.
5
Aqui já vemos esboçada a crítica que Hegel endereçará a Kant e a Fichte, não
apenas no escrito da Diferença, mas também em Fé e Saber: ambos teriam tentado
cumprir a tarefa da razão com os meios do entendimento, e com isso, construíram um
falso conceito de infinito (ou do incondicionado). Antes, porém, de investigar como
Hegel concebe a verdadeira infinitude, valeria a pena acompanhar sua concepção da
reflexão e da especulação filosóficas.
Hegel entende a reflexão (Reflexion) como instrumento da filosofia – esse é um
dos títulos da apresentação geral do escrito da Diferença. Mas aqui parece surgir uma
contradição entre a tarefa e o instrumento da filosofia, já que os produtos da reflexão
são coisas limitadas e a tarefa da filosofia foi acima exposta como a produção do
absoluto para a consciência. A reflexão isolada é uma faculdade limitadora, é como o
entendimento uma posição de opostos que suprime o absoluto. Mas enquanto se
3
Ibid, Idem, (trad. Cit., p. 37).
4
Essa postura é comparável a de Schopenhauer que também critica a unilateralidade das posições do
materialismo e do idealismo. Para ele ambos devem ser correlatos – um tem que levar o outro em
consideração.
5
Differenz, GW, 4, p. 14 (trad. Cit., p. 38).
87
relaciona com o absoluto, enquanto razão, a reflexão se suprime a si mesma sem perder,
contudo, sua subsistência enquanto forma finita derivada deste absoluto:
O absoluto deve ser refletido, posto; mas deste modo ele não é posto, mas sim suprimido,
pois, ao ser posto, tornou-se limitado. A mediação desta contradição é a reflexão filosófica. Deve-
se preferencialmente mostrar em que medida a reflexão é capaz de captar o absoluto e como, no
seu trabalho como especulação, suporta a necessidade e a possibilidade de ser sintetizada com a
intuição absoluta, e ser para si, subjetivamente, justamente tão perfeita como o seu produto, o
absoluto construído na consciência, deve ser, ao mesmo tempo, consciente e inconsciente.
6
Aqui, como quase sempre em Hegel, está mais uma vez em jogo a distinção
entre a atividade da razão e a atividade do entendimento: enquanto a reflexão
permanece isolada, como entendimento que limita e separa, ela deixa escapar o absoluto
enquanto totalidade; já a razão “apresenta-se a si mesma como força do absoluto
negativo, portanto, como negar absoluto, e, simultaneamente, como força do pôr da
totalidade dos opostos subjetivo e objetivo”.
7
O entendimento chega a produzir uma
totalidade abstrata, enquanto totalidade de condições que leva de um condicionado a
outro; mas é a razão que impulsiona a reflexão para a totalidade. Já o entendimento
tende a se fixar na oposição (do condicionado ao incondicionado, do finito ao infinito).
Quando elabora uma síntese, a reflexão do entendimento, na tentativa de conciliar
proposições contraditórias, projeta uma totalidade para além dos limites que estabeleceu
para seu conhecimento. Daí a suposição de uma “coisa em si” e os postulados da razão
prática que não se deixam conciliar com a razão teórica. Mas a razão suprime o
entendimento ao reconhecer que a posição do finito ou do infinito como opostos um ao
outro destrói o que lhe é oposto. A reflexão deve assim, dar lugar ao saber da
especulação filosófica racional que unifica aquilo que ela separou:
Este aniquilar (Vernichten), ou o puro pôr da razão sem opor, seria, quando ela é oposta à
objetividade infinita, a subjetividade infinita: o reino da liberdade oposto ao mundo objetivo.
Porque este é, nesta mesma forma, oposto e condicionado, deve então a razão, para suprimir
absolutamente a oposição, aniquilá-la também na sua autonomia. A razão aniquila-os a ambos ao
unificá-los; pois eles são apenas na medida em que não são unificados. Nesta unificação,
subsistem ambos simultaneamente, pois o oposto e, por conseguinte, limitado é, com isto,
6
Ibid, p. 16 (trad. Cit., p. 41). Aqui se pode assinalar algumas diferenças entre essa concepção da
exposição do absoluto e aquela que Hegel elaborará posteriormente. Ao que parece, aqui Hegel
compreendia a especulação filosófica como o ato de lançar-se
à corps perdu na investigação; a partir da
Fenomenologia, a intuição intelectual ou transcendental dá lugar à necessidade de expor o absoluto na forma
científica da especulação.
7
Ibid, p. 17 (trad. Cit., p. 41).
88
relacionado com o absoluto. Mas o oposto não permanece por si; mas apenas na medida em que é
posto no absoluto, quer dizer, como identidade; o limitado, já que pertence a uma das totalidades
opostas, portanto, relativas, é ou necessário ou livre; na medida em que pertence à síntese de
ambas, suprime a sua própria limitação; é, ao mesmo tempo, livre e necessário, consciente e sem
consciência. Esta identidade consciente do finito e da infinitude, a unificação dos dois mundos, do
sensível e do intelectual, do necessário e do livre, na consciência é saber. A reflexão como
faculdade do finito, e o infinito que lhe é oposto, são sintetizados na razão, cuja infinitude capta
em si o finito.
8
Esse procedimento da razão, que se eleva acima de uma identidade abstrata de
opostos, Hegel denomina especulação. Essa especulação, longe de ser apresentada por
Hegel como uma ascese mística, é na verdade apenas um modo de conhecimento que
relaciona os opostos da reflexão ao absoluto e torna visível sua relação com a totalidade.
Essa reflexão é, por um lado ligada à reflexão do entendimento, já que ela constitui um
dos seus momentos e está ligada à abstração conceitual e suas relações de implicação;
por outro, a especulação deve possuir a capacidade de ter em vista a unidade dos
opostos e o todo do sistema racional
9
. Ao pensamento sistemático especulativo, Hegel
opõe o chamado “são entendimento humano” (gesunder Menschenverstand) e o
filosofar que não se constitui em sistema
10
. A especulação que se constrói em sistema,
pelo contrário, “eleva à consciência a identidade sem consciência para o são
entendimento humano, ou constrói como uma identidade consciente o que é
necessariamente oposto na consciência do entendimento comum, uma unificação do
separado na crença que é, para ele, um horror”.
11
O entendimento comum não pode
aceitar sua auto-supressão na autêntica reflexão filosófica, não pode aceitar perder-se na
especulação, já que esta última aniquila aquilo que o entendimento põe. Por isso “o são
entendimento humano não entende o agir da especulação. A especulação reconhece
como realidade do conhecimento apenas o ser do conhecimento na totalidade; tudo o
que é determinado tem, para ela, apenas realidade e verdade na relação reconhecida com
o absoluto”.
12
A especulação filosófica torna contingente e aparente aquilo que para o
entendimento aparece como necessário e substancial.
8
Ibid, p. 17-18 (trad. Cit., p. 43).
9
Ver acima p. 76. Cf. Ludwig Siep, Der Weg der Phänomenologie des Geistes, Frankfurt am Main,
Suhrkamp, 2000, p. 38.
10
“O filosofar que não se constrói em sistema é uma fuga constante diante das limitações, é mais uma
luta da razão pela liberdade do que um puro autoconhecimento de si mesmo, que se tornou seguro e claro
sobre si”. Differenz, SW 4, p. 30 (trad. Cit., p. 57).
11
Ibid, p. 21 (trad. Cit., p. 47).
12
Ibid, p. 20, (trad. P. 45).
89
Será na Fenomenologia do Espírito que Hegel colocará em jogo, através da
apresentação do curso histórico que eleva a consciência à sua máxima consciência de si
como “espírito”, esse processo negativo de dissolução das imagens que para si mesmo o
entendimento humano se faz. O trabalho do negativo se faz presente na história como
aniquilamento sucessivo das ilusões da consciência, trabalho que a eleva à consciência
realizada de si mesma. Por isso, a Fenomenologia apresentava o título “Ciência da
experiência da consciência”.
13
Nessa obra vemos em funcionamento os três momentos
do método lógico-metafísico que expomos acima
14
e que está na base do Sistema. Na
Fenomenologia o primeiro momento, o do pensar enquanto entendimento está presente
nos diversos pontos de vista que a consciência assume. O segundo momento, o dialético
representa o momento em que a consciência percebe suas determinações se inverterem
(ou interverterem - umschlagen) em seu contrário. O terceiro momento, o especulativo é
o próprio percurso que a consciência faz de rememoração de seus momentos que lhe
permite chegar ao saber absoluto. Será a partir das contradições que surgem toda vez
que a consciência se apega a uma imagem, que Hegel apontará a necessidade de
superação do ponto de vista finito. A partir de tal método, Hegel estabelece diferentes
sentidos para as noções de experiência, verdade, aparência e sistema.
Não teremos condições de expor aqui em todos os seus detalhes que sentido tem
para Hegel cada uma dessas noções. Basta apenas se deter nas linhas gerais do sistema
tal como Hegel o apresenta no Prefácio à Fenomenologia do Espírito para alcançarmos
uma noção preliminar do que Hegel entende por “especulação” e especialmente daquilo
que o filósofo define como “proposição especulativa”.
Hegel entende por experiência, ao contrário de Kant, não apenas aquilo que pode
ser dado na intuição sensível e que é passível de uma síntese pelo entendimento. Para
Hegel a experiência deve ser compreendida como o complexo movimento que a
consciência efetua ao tomar consciência de si mesma. Não se trata apenas de um
processo gnosiológico, mas envolve, mais do que isso, todo o conjunto de mediações
envolvido na formação da consciência; e não apenas de um indivíduo, mas de todo um
povo. A experiência que Hegel apresenta na Fenomenologia não é apenas a correção
que a consciência faz de suas antigas concepções, mas a conversão (Umkehrung) da
consciência que percebe que toda a base de suas convicções anteriores repousava em
pressuposições contraditórias e se inverte em seu contrário. Essa experiência é a
13
Cf. L. Siep, Op. Cit., p. 63 e seguintes.
14
Ver acima p. 76.
90
experiência que a consciência faz ao separar o momento do saber e o momento da
objetividade, isto é, ao opor o saber de si e um objeto exterior. É isso que a primeira
parte da obra mostrará: o capítulo “consciência” expõe a passagem da consciência de
sua mais imediata e ilusória certeza sensível, quando ela se fia na existência de um
acesso imediato a algo que está fora dela mesma, até o entendimento que se dissolve na
“consciência de si”, nome do capítulo seguinte. Na certeza sensível, a consciência toma
aquilo que ela vê, ouve e toca como algo completamente independente de si mesma.
Mas ao nomear aquilo que ela toma como outro de si mesma ela se vê enredada na
abstração e, portanto, na mediação
15
. Ao final de tal percurso se mostrará que aquilo
que a consciência apreende é sempre resultado da experiência que ela faz de si mesma, e
portanto, como dissemos acima
16
, a imanência é mantida:
A consciência não sabe e não concebe nada que não tenha lugar na sua experiência. Com
efeito, o que está nessa experiência é somente a substância espiritual tomada, na verdade, como
objeto do seu Si. O espírito, no entanto, torna-se objeto, pois ele é esse movimento de tornar-se um
outro, isto é, objeto do seu si, e de suprimir esse ser-outro. Esse movimento justamente é
denominado experiência. Nele, o imediato, o não experimentado, isto é, o abstrato, seja do ser
sensível ou do simples que é apenas pensado, se aliena e, em seguida, retorna a si desta alienação.
Somente então ele se apresenta na sua efetividade e verdade, e é também propriedade da
consciência.
17
A oposição que se faz entre um saber e um “objeto” abstraído desse saber é a
base da experiência que a consciência efetua e pela qual ela deve reconhecer ao final
que essa é uma diferença que ela mesma põe e que, portanto, deve ser aceita como uma
atividade sua. Nesse movimento, a substância reconhece ser sujeito de um processo que
ela mesma instaurou. Daí Hegel denominar “espírito” a substância: Essa representação
deve expressar a atividade da substância ou “coisa mesma” como sujeito, isto é, como
autora de sua auto-diferenciação, como movimento negativo do absoluto pelo qual ele
se determina pondo ao mesmo tempo a igualdade e a diferença. Essa auto-mediação do
absoluto é aquilo que o sistema deve mostrar e justificar. A desigualdade do eu em
relação ao objeto é assim, ao mesmo tempo, desigualdade da substância consigo mesma,
e aquilo que parece ser externo à substância é na verdade sua própria atividade:
15
Cf. acima, p. 30.
16
Cf. acima, p. 84.
17
PhG, W3, p. 38-9 (trad. Cit., I, p. 40).
91
O que está expresso na representação, que exprime o absoluto como espírito, é que o
verdadeiro só é efetivo como sistema, ou que a substância é essencialmente sujeito – o conceito
mais elevado que pertence aos tempos modernos e à sua religião. Só o espiritual é o efetivo: é a
essência ou aquilo que é em si (Ansichseinde): o relacionado consigo e o determinado; o ser-
outro e o ser-para-si; e o que nessa determinidade ou em seu ser-fora-de-si permanece em si
mesmo – enfim, ele é em-si e para-si.
18
Aqui Hegel coloca como princípio do sistema não apenas um certo holismo que
toma apenas o “todo como verdadeiro”. O que está em jogo, mais que isso, é uma
abordagem do conhecimento que procura se afastar de um certo formalismo que Hegel
constata na abordagem de Kant. A abordagem que estabelece um fosso entre o real e o
ideal, entre uma forma e uma matéria é julgada como abstrata e inefetiva por Hegel,
como incapaz de captar o movimento vivo do que Hegel chama o “conceito”
19
. Por isso,
será essencial, para Hegel, conceber a substância como aquilo que se dá a conhecer
como sujeito, ou, como diz o filósofo, “o movimento do pôr-se-a-si-mesmo, ou a
mediação consigo mesmo do tornar-se outro”.
20
Esse ser em si e para si é para nós um
objeto, mas deve, também para si se tornar objeto até que seja suprassumido e refletido
em si como autoproduzido, como puro conceito que se objetiva para si mesmo. Somente
como resultado de todo esse processo, quando refaz o percurso de sua alienação o
espírito torna-se para si aquilo que ele é em si. Esse movimento Hegel chama de ciência
e sua exposição é o sistema. Hegel concebe, portanto, a ciência não como abstração
conceitual que separa o ser do pensamento, e sim como elevação da consciência de si à
sua substancialidade refletida.
21
De acordo com tal método, a verdade se expõe não mais como adequação de
uma representação a uma série de objetos. Ela deve, de acordo com a concepção
holística
22
da substância espiritual, ser considerada como um processo pelo qual tal
substância se reconhece como sujeito. O sistema não é deduzido a partir de um princípio
18
PhG, W3, p. 28. (trad. Cit., I, p. 33).
19
O conceito, o espírito ou o absoluto podem, nessas observações gerais, serem tomados inicialmente
como expressando a mesma coisa, isto é, a “coisa mesma” (die Sache selbst).
20
PhG, W3, p. 23. (trad. Cit., p. 30).
21
Cf. Ibid, p. 30 (trad, cit., p. 34).
22
Sobre o conceito de “holismo”, ver Siep, L. Op. Cit., p. 66: “para Hegel, cada conceito, cada afirmação
e cada teoria só pode ser compreendida em seu nexo com todos os conceitos (afirmações e teorias) de um
domínio, que ele mesmo só é conhecido em um nexo completo com os outros domínios do saber. Não há
nenhuma proposição, mesmo os primeiros axiomas da Lógica, que sejam válidas em si mesmas,
desligadas do contexto de axiomas e suas ‘regras de ligação’”. Para uma discussão mais aprofundada, Cf.
Robert B. Brandon, “Holism and Idealism in Hegel´s Phenomenolgy”, In: Tales of the Mighty Dead,
Historical Essays in the Metaphysics of Intentionality, Harvard University Press, Cambridge, London,
2002, pp. 178-209.
92
absoluto (como o “Eu” em Fichte e a substância de Espinosa), mas se desdobra como
um processo de mediações que só alcança sua verdade no final. Para justificar tal
concepção do sistema, Hegel descarta a imediatez de uma pretensa revelação do
absoluto; o absoluto deve ser compreendido como desdobramento de si mesmo,
movimento que seria responsável pela riqueza de suas determinações e não como
limitação de algo previamente dado: “O todo é somente a essência que se implementa
através de seu desenvolvimento. Sobre o absoluto, deve-se dizer que é essencialmente
resultado; que só no fim é o que é na verdade. Sua natureza consiste nisso: em ser algo
efetivo, em ser sujeito ou vir-a-ser-de-si-mesmo”.
23
Nessa concepção, aquilo que é o
negativo nesse absoluto, a reflexão que ele faz em si mesmo, não deve ser
compreendida como um momento negativo do absoluto. A reflexão ou negatividade é a
mediação que faz o absoluto receber uma determinidade, mas ela mesma é suprimida
pela especulação que apreende essa diferenciação como um momento positivo
24
. Assim,
aquilo que no sistema é a aparência (Erscheinung), que é constituída pelas figuras que a
consciência recebe no caminho de sua formação, converge com a aparição ou
manifestação (Erscheinung) do absoluto. A própria exposição inicial do caminho que
conduz à consideração especulativa do absoluto, isto é, a própria Fenomenologia do
Espírito, assume a forma de aparência
25
. O que diferencia a exposição fenomenológica
dos outros pontos de vista da consciência natural é o saber antecipado do sistema.
26
A
verdade que ela pretende pôr à mostra não é, porém, a revelação de um conteúdo, mas
um sistema especulativo que relativiza as posições do verdadeiro e do falso. O
verdadeiro, assim como o todo, não é aquilo que simplesmente se contrapõe ao falso,
mas é algo que contém em si o falso como um momento determinado. E contra o
entendimento comum que toma por fixa e isolada a concepção do verdadeiro e do falso,
Hegel afirma que a verdade não é “como uma moeda cunhada, pronta para ser entregue
sem mais”
27
; não é a verdade uma unidade originária ou imediata enquanto tal, mas a
“reflexão em si mesmo no seu ser-outro (...) O verdadeiro é o vir-a-ser de si mesmo, o
23
PhG, W3, p. 24, trad. Cit., p. 31.
24
Cf. Hyppolite, J. Gênese e estrutura da Fenomenologia, p. 31: “A negatividade não é, pois, uma forma
que se opõe a todo o conteúdo; é imanente ao conteúdo e permite compreender seu desenvolvimento
necessário”.
25
“Uma vez que aquele sistema da experiência do espírito capta somente sua aparição [Erscheinung],
assim parece puramente negativo o processo que conduz através do sistema da experiência à ciência do
verdadeiro que está na forma do verdadeiro”. PhG, W3, p. 40 (trad. Cit., p. 41).
26
Cf. Siep, Op. Cit., p. 65. Aqui surge a questão da pressuposição que o procedimento pretensamente sem
pressuposição do saber hegeliano deve assumir. Cf. Fulda, H. F. Das Problem einer Einleitung in Hegels
Wissenschaft der Logik, Frankfurt am Main, Vittorio Klostermann, segunda edição, 1975.
27
PhG, W3, p. 40, trad. Cit., p. 41.
93
círculo que pressupõe seu fim como sua meta, que o tem como princípio, e que só é
efetivo mediante sua atualização e seu fim”
28
Todas essas afirmações só recebem sua justificação, como dito, no sistema
desenvolvido. Tomadas como asseverações especulativas desvinculadas do sistema elas
são exatamente aquilo que poderiam parecer ao entendimento comum: como afirmações
sem sentido. Elas indicam, porém, em que sentido Hegel pensa que somente o sistema
científico plenamente desenvolvido como reflexão de si da substância absoluta poderia
resolver a tarefa máxima da filosofia como unificação de opostos. Mais do que isso, elas
revelam a concepção que Hegel tem do absoluto, que se coloca contra a concepção de
uma identidade sem oposição, própria ao entendimento. O absoluto como razão ou
como “espírito” denota a integração da oposição, da diferença, do “ser-outro” no
processo de autoprodução do sujeito. Tal movimento é chamado também “conceito”,
pois só quando a realidade efetiva é concebida como “conceito” desaparece aquela
desigualdade entre o saber e o objeto que a consciência persistia em afirmar. Quando a
consciência percebe ser o espírito toda realidade então é “o objeto para si mesmo tal
como ele é; e foi superado o elemento abstrato da imediatez e da separação entre o saber
e a verdade. O ser está absolutamente mediatizado: é conteúdo substancial que também,
imediatamente, é propriedade do Eu; tem a forma do Si, ou seja, é o conceito”.
29
O
absoluto, assim compreendido como espírito, ou auto-exposição conceitual, aparece
para a consciência e o entendimento comum como uma “inversão” (Verkehrung)
30
. Pois
tanto uma como o outro aceitam como dada a diferença insuperável entre o objeto e o
sujeito, o ser e o saber. Daí novamente justificada a diferença entre o entendimento
comum e a filosofia especulativa, que aparece ao primeiro como um “mundo invertido”.
Daí a necessidade de uma nova teoria lógica que dê conta daquilo que Hegel chama de
“verdade filosófica”, a teoria da proposição especulativa.
A necessidade da proposição especulativa é dada pela incapacidade que uma
proposição comum ou juízo tem de exprimir o especulativo. Se na filosofia kantiana,
nesse ponto tributária da teoria do conhecimento do empirismo inglês (como, aliás,
notam Schopenhauer e Hegel), o especulativo é deixado de lado pela incapacidade que o
28
PhG, W3, p. 23, trad. Cit., p. 30. Um adendo ao § 24 da Enciclopédia oferece uma outra explicação do
conceito de verdade em Hegel: “Chamamos comumente “verdade” a concordância de um objeto com
nossa representação. Temos nesse caso, como pressuposição, um objeto ao qual deve ser conforme nossa
representação sobre ele. No sentido filosófico, ao contrário, verdade significa – expressa abstratamente
em geral – concordância de um conteúdo consigo mesmo”. W 8, p. 86, trad. Cit., p. 82.
29
PhG, W3, p. 39, trad. Cit., p. 41.
30
Cf. Siep, Op. Cit, p. 70.
94
entendimento humano tem de exprimi-lo, para Hegel, pelo contrário, o que tem que ser
deixado de lado na filosofia é a forma judicativa tradicional e não o especulativo. A
proposição especulativa deve ser capaz de expressar o “movimento da coisa mesma”,
que não se deixa apreender como algo determinado, mas só se revela através de um
complexo movimento de mediações. Antes de apresentar essa teoria, vale a pena mais
uma vez ver como Hegel se afasta da concepção tradicional de verdade e argumentação.
Em Kant, como se sabe, uma experiência possível é uma experiência que tem
por base uma intuição sensível. O tipo de conhecimento possível por conceitos puros do
entendimento é o chamado conhecimento a priori, mas ele só oferece juízos analíticos
(juízos do tipo “os corpos são extensos”, que só oferecem uma explicação do conceito
de corpo, sem alargar meu conhecimento). Somente os “juízos de experiência” são
sintéticos e oferecem uma ampliação do conhecimento, pois quando digo, por exemplo,
“os corpos são pesados”, digo algo mais do que pode ser deduzido do mero conceito de
“corpo”
31
. O que aí está acrescido é um fato da experiência, dado pela intuição sensível,
cuja síntese é feita pelo entendimento. O pensamento deve assim sempre referir-se a
intuições, pois de outro modo nenhum objeto nos pode ser dado.
32
É a partir dessa base
que Kant construirá o edifício da razão pura, que constitui os domínios sobre os quais é
possível o conhecimento humano. Um conhecimento que não se refere a uma intuição
sensível ou será um conhecimento meramente analítico, ou uma especulação metafísica
que gira no vazio. É nesse contexto que Kant irá fechar as portas a qualquer teologia
especulativa e a outras elucubrações da metafísica.
O conhecimento é visto assim por Kant como o ato de unificar no entendimento
o múltiplo da intuição sensível. Ao reduzir à unidade a multiplicidade dada na intuição,
o entendimento, através de seus conceitos, opera segundo certas regras. Já a razão visa a
uma unidade mais elevada, pois ela toma como matéria as regras do entendimento, os
princípios.
Se o entendimento pode ser definido como a faculdade de unificar os fenômenos
mediante regras, a razão é a faculdade de unificar as regras do entendimento mediante
princípios. Nunca se dirige, portanto, imediatamente à experiência, nem a nenhum objeto, mas
tão só ao entendimento, para conferir ao diverso dos conhecimentos desta faculdade uma
31
KrV, B 10-11.
32
KrV, B 33.
95
unidade a priori, graças a conceitos; unidade que pode chamar-se unidade de razão e é de
espécie totalmente diferente da que pode ser realizada pelo entendimento.
33
Se o entendimento é o poder de síntese a partir de intuições, a razão, por sua vez,
unifica conceitos. Se o entendimento trabalha com intuições através de conceitos, a
razão lida com conceitos através de idéias. Kant entende por idéia um conceito
necessário da razão que não pode ser um objeto dos sentidos.
34
De onde vem a
necessidade das idéias? Para Kant, o ideal é uma necessidade da razão humana de
buscar a condição geral do conhecimento, de um juízo. É a razão que impele a busca do
incondicionado, da condição das condições, para alcançar o conhecimento completo do
que é dado, já que a experiência sensível que o entendimento sintetiza só lida com
objetos condicionados. O princípio geral da razão consiste assim em “encontrar, para o
conhecimento condicionado do entendimento, o incondicionado, pelo qual se lhe
completa sua unidade”
35
. As idéias são princípios úteis para conceber a totalidade das
condições da experiência, mas por ir além daquilo que é dado apenas ao entendimento,
ela ultrapassa a possibilidade da experiência. As idéias não constituem a experiência,
apenas fornecem um sentido para a experiência em geral. Já os princípios do
entendimento são constitutivos, pois os objetos da experiência só podem ser construídos
de acordo com eles, o que lhes confere um valor objetivo. Mas para além desse uso
constitutivo do juízo que consiste na aplicação de uma regra a partir de um conteúdo
empírico, Kant ainda reserva um lugar para um uso regulativo das idéias da razão pura.
Esse uso regulativo serve apenas para oferecer uma orientação ao pensamento no seu
esforço de sistematização; serve para regular e não para constituir a experiência. Assim,
são, por exemplo, as idéias de alma, Deus ou o universo como totalidade dos
fenômenos: idéias transcendentais que não são dadas em nenhuma intuição empírica,
mas que a razão necessariamente constrói em sua tentativa de perfeição. O ideal do ser
supremo, por exemplo, “não é mais que um princípio regulador da razão, e consiste em
se considerar todas as ligações no mundo como se derivassem de uma causa necessária
e absolutamente suficiente, para nisto fundar a regra de uma unidade sistemática e
necessária, segundo leis gerais na explicação dessa ligação; não é a afirmação de uma
existência necessária em si”.
36
33
KrV, B 359. (trad. Cit., p. 300).
34
Cf. KrV, B 383.
35
KrV, B 364 (trad. Cit., p. 304).
36
KrV, B 647 (trad. Cit., p. 517).
96
O erro consistiria em transformar o uso regulativo da razão num uso
constitutivo, atribuindo realidade objetiva às idéias da razão. É isso o que faz a
metafísica especial, ao transformar o ideal em algo objetivamente existente, seja a alma
da psicologia racional, o mundo da cosmologia racional ou o deus da teologia racional.
É isso justamente que Kant denomina o uso especulativo do ideal da razão pura, que dá
ocasião à aparência transcendental, à dialética entendida como argumentação baseada
no uso equívoco das idéias como se fossem conceitos referentes a uma intuição: “Um
conhecimento teórico é especulativo quando se reporta a um objeto ou a conceitos de
um objeto, que em experiência alguma se podem alcançar. Opõe-se ao conhecimento
natural, que não se dirige a nenhum objeto ou predicado, além dos suscetíveis de serem
dados numa experiência possível”.
37
Como vimos acima, Hegel, ao recuperar o conhecimento especulativo que Kant
havia definido como impossível, terá que se opor justamente ao conhecimento natural
que Kant opunha à especulação. Como para Hegel as limitações da experiência comum,
baseadas na intuição e num entendimento que sintetiza e limita é o que deve ser
transcendido ou superado e não respeitado, deve-se assinalar antes a incapacidade do
entendimento e suas formas finitas para expor o especulativo do que a impossibilidade
do especulativo de ser compreendido
38
. Para Hegel, trata-se antes de tudo, de inverter o
sentido da palavra especulativo, que correntemente significa algo subjetivo e sem
consistência e mostrar que o saber só se alcança quando se deixa de lado uma
concepção do conhecimento que se fundamenta na certeza imediata do eu: “Por esse
motivo, um conteúdo especulativo não pode também ser expresso em uma proposição
unilateral. Se dizemos, por exemplo, que o absoluto é a unidade do subjetivo e do
objetivo, é sem dúvida correto; contudo é unilateral, na medida em que somente a
37
KrV, B 663 (trad. Cit., p. 527). Cf. G. Wohlfart, Der spekulative Satz, ed. Cit., p. 55: “devemos
entender com Kant a proposição especulativa como uma proposição em que algo é predicado de um
objeto com o qual não se tem nenhuma experiência, que portanto não pode ser nem confirmado nem
refutado pela experiência”.
38
A oposição entre o ponto de vista especulativo e o ponto de vista do entendimento pode ser vista como
a oposição entre a consciência e a ciência, tal como Hegel a apresenta no Prefácio à Fenomenologia:
“Para a ciência, o ponto de vista da consciência – saber das coisas objetivas em oposição a si mesma, e a
si mesma em oposição a elas – vale como Outro: esse Outro em que a consciência se sabe junto a si
mesma, antes como perda do espírito. Para a consciência, ao contrário, o elemento do saber é um longe
além, em que não possui mais a si mesma. Cada aspecto desses aparenta, para o outro, ser o inverso da
verdade. Para a consciência natural, confiar-se imediatamente à ciência é uma tentativa que ela faz de
andar de cabeça para baixo, sem saber o que a impele a isso. A imposição de assumir tal posição insólita,
e de mover-se nela, é uma violência inútil para a qual não está preparada”. PhG, W3, p. 30 (trad. Cit,I p.
34-5).
97
unidade está expressa aqui, e o acento está posto nela; quando, de fato, o subjetivo e o
objetivo não são somente idênticos, mas também diferentes”.
39
Para expressar o movimento dialético do conceito a forma tradicional do juízo e
de uma proposição é inadequada. Para dar conta daquilo que Hegel chama de “reflexão
absoluta” ou “reflexão infinita” é preciso uma nova lógica que não mais separe o ser do
saber; em suma uma lógica especulativa que não seja mais afetada por uma rigorosa
distinção entre forma e conteúdo. Essa Lógica deve dissolver as oposições abstratas e
mostrar a verdade como seu “próprio movimento dentro de si mesma”.
40
Ela deve
mostrar que todas as determinações fixas do entendimento se invertem em seu contrário,
e são portanto, contraditórias, restando à consciência reconhecer o “automovimento do
conceito” como o essencial.
A natureza do que é está em ser, no seu próprio ser, seu conceito: nisso reside a necessidade
lógica em geral. Só ela é o racional ou o ritmo do todo orgânico: é tanto o saber do conteúdo
quanto o conteúdo é conceito e essência; ou seja, só a necessidade lógica é o especulativo.
41
Para tornar isso operatório, Hegel deve então propor uma forma diferente de
tratar o conhecimento. A forma predicativa comum deverá dar lugar a uma forma de
exposição que não encubra o especulativo. A relação habitual entre sujeito e predicado
deve ser subvertida pela proposição especulativa que obriga a consciência a revisitar as
significações do sujeito e do predicado, tendo que entendê-los de maneira diversa. No
pensamento representativo, o sujeito é a base na qual se dá a relação de um conteúdo
com seus acidentes, seus predicados; é sobre ele que se dá o movimento de
determinação da essência. Já no pensamento conceitual, o sujeito se comporta de outra
maneira: “enquanto o conceito é o próprio Si do objeto, que se apresenta como seu vir-
a-ser, não é um sujeito inerte que sustenha imóvel os acidentes; mas é o conceito que se
move, e que retoma em si suas determinações”.
42
O movimento rouba ao sujeito sua
base, que ele considera fixa. Ao final ele deve reconhecer a necessidade de meramente
39
Enz, W8, p. 178 (trad. Cit, vol I, p. 168).
40
PhG, W3, p. 47 (trad. Cit, vol. I, p. 47). Esse é exatamente o trecho do prefácio da Fenomenologia que
Schopenhauer cita no Esboço de uma história da teoria do ideal e do real (cf. acima, p. 39, nota 102).
Hegel argumenta nesse trecho contra a idéia de que a filosofia deveria tomar emprestado da matemática
ou de qualquer outra ciência seu método de exposição. Ao contrário da prova matemática que, segundo
Hegel, é um “agir exterior à coisa”, a verdade filosófica deve exprimir o movimento do próprio conceito.
Isso exige, como estamos vendo, uma inversão na representação natural de como se dá o conhecimento,
inversão que só poderia escandalizar quem parte de uma concepção tradicional do entendimento humano,
como Schopenhauer.
41
PhG, W3, p. 54-5 (trad. Cit., vol. I, p. 52).
42
Ibid, p. 57, (trad. Cit., p. 55)
98
acompanhar o movimento, sem interferir no processo. E quando pacientemente
acompanha o movimento objetivo da substância espiritual vê que aquilo que se tomava
como um conteúdo exterior à coisa é, na verdade seu próprio conteúdo, ou seja, a
substância é sujeito. “Assim, o conteúdo já não é, na realidade, o predicado do sujeito,
mas é a substância: é a essência ou o conceito do objeto do qual se fala. O pensar
representativo tem essa natureza de percorrer acidentes e predicados; e com razão os
ultrapassa, por serem apenas predicados e acidentes. Mas agora é freado em seu curso,
pois o que na proposição tem a forma de um predicado é a substância mesma: sofre o
que se pode representar como um contrachoque (Gegenstoß)”.
43
O movimento dialético
deve, portanto, apresentar-se em proposições especulativas que nada mais são que um
vai-e-vém do sujeito ao predicado e do predicado ao sujeito que destrói a relação
predicativa habitual.
A natureza do juízo e da proposição em geral – que em si inclui a diferença entre sujeito e
predicado – é destruída pela proposição especulativa; e a proposição da identidade, em que a
primeira se transforma, contém o contrachoque (Gegenstoß) na relação sujeito-predicado. O
conflito entre a forma de uma proposição em geral e a unidade do conceito que a destrói é
semelhante ao que ocorre no ritmo entre o metro e o acento. O ritmo resulta do balanceamento
dos dois e de sua unificação. Assim também, na proposição filosófica, a identidade do sujeito e
do predicado não deve anular sua diferença expressa pela forma da proposição; mas antes, sua
unidade deve surgir como uma harmonia. A forma da proposição é a manifestação do sentido
determinado ou do acento, o qual diferencia o conteúdo que o preenche; porém a unidade em
que esse acento expira está em que o predicado exprima a substância e em que o próprio sujeito
incida no universal.
44
A proposição especulativa é a proposição que se caracteriza pela identidade da
identidade e da não identidade do sujeito e do predicado e que apresenta o movimento
do pensamento que se destrói a si mesmo enquanto proposição. Ela seria uma
proposição que coloca em jogo dois substantivos não idênticos, mas que são
especulativamente considerados como idênticos, na medida em que a identidade de
sujeito e objeto é “acrescida pelo pensamento (hinzugedacht)”.
45
A expressão
43
Ibid, p. 58, (trad. Cit., p. 55). Cf. Theunissen, Michael, Sein und Schein. Die kritische Funktion der
Hegelschen Logik. Frankfurt, Suhrkamp, 2a. ed. 1994, p. 56: “a proposição (Satz) segundo Hegel é
propriamente a mais extrema oposição (Gegen-Satz), na medida em que ela reúne em si verdade e
inverdade”
44
PhG, W3, p. 59 (trad. Cit., vol I, p. 56).
45
Cf. G. Wohlfart, Der spekulative Satz, p. 197. Hegel fornece dois exemplos de tais proposições: “na
proposição ‘Deus é o ser’ o predicado é o ser: tem uma significação substancial na qual o sujeito se
dissolve. Aqui ‘ser’ não deve ser predicado, mas a essência; por isso parece que, mediante a posição da
99
“proposição especulativa” apresenta-se assim como uma espécie de contradição nos
termos, já que o “efetivamente especulativo” que deve ser apresentado é o movimento
dialético que não pode ser expresso em uma única proposição. Dessa forma, seria
equivocado pensar que proposições especulativas seriam proposições que já em si, sem
o acréscimo do pensar especulativo, como expressões de linguagem, conteriam o
especulativo. Na verdade, trata-se de proposições que se aproximam de uma
apresentação especulativa, na medida em que ela une opostos, e que tem uma
significação especulativa, mas que só vem à tona ao próprio pensar especulativo.
46
Esse
movimento é expresso pelo sistema, que exige que se exclua a maneira pela qual se
costuma relacionar as partes de uma proposição:
A suprassunção da forma da proposição não pode ocorrer só de maneira imediata, nem
mediante o puro conteúdo da proposição. No entanto, esse movimento oposto necessita ter
expressão: não deve ser apenas aquela freagem (Hemmung) interior, mas esse retornar do
conceito a si tem de ser apresentado. Esse movimento – que constitui o que a demonstração
aliás devia realizar – é o movimento dialético da proposição mesma. Só ele é o Especulativo
efetivo, e só o seu enunciar é exposição especulativa. Como proposição, o especulativo é
somente a freagem (Hemmung) interior, o retorno não aí-essente (daseiende) da essência a si
mesma. Por isso, vemos que as exposições filosóficas com freqüência nos remetem a essa
intuição interior, e desse modo ficamos privados da exposição do movimento dialético da
proposição que reclamávamos. A proposição deve exprimir o que é o verdadeiro; mas
proposição, Deus deixa de ser o que é – a saber, sujeito fixo. O pensar, em vez de progredir na passagem
do sujeito ao predicado, se sente, com a perda do sujeito, antes freado e relançado ao pensamento do
sujeito, pois esse lhe faz falta. Ou seja: o próprio predicado sendo expresso como um sujeito, como o ser,
como a essência que esgota a natureza do sujeito, o pensar encontra também o sujeito imediatamente no
predicado. Então, o pensar está ainda nas profundezas do conteúdo, ou, ao menos, tem presente a
exigência de nele se aprofundar; em lugar de manter a livre posição do raciocinar que no predicado vai
para si mesmo. Assim, quando se diz: “o efetivo (Wirkliche) é o universal”, o efetivo como sujeito, some
no seu predicado. O universal não deve ter somente a significação do predicado, de modo que a
proposição exprima que o efetivo seja universal – mas o universal deve exprimir a essência do efetivo.
Perde assim o pensar seu firme solo objetivo, que tinha no sujeito, quando no predicado é recambiado ao
sujeito, e no predicado não é a si que retorna, e sim ao sujeito do conteúdo”. PhG, W3, p. 59-60. Trad.
Cit., vol. I p. 56-7.
46
Cf. G. Wohlfart, Der spekulative Satz, p. 197. Cf. G. Lébrun, La patience du concept, p. 114, trad. Cit.,
p. 118: “O que de mais vazio, por exemplo, que esta sentença isolada: ‘o Absoluto é o Espírito’? Com
essa sentença nua, somente se dará por satisfeito um leitor que figurar ‘o Espírito’ como uma noção a
mais, que bastasse substituir no glossário hegeliano. Ora, a especulação arranca-nos justamente da falsa
segurança dos dicionários representativos; não é um catálogo de noções novas ou corrigidas que entende
redigir; ela visa, ao contrário, a dissolver todas as categorias finitas que esses dicionários enterram. Ela
não pretende oferecer ao entendimento cultivado noções com as quais ele poderia enfim se satisfazer,
mas, a propósito de cada noção recebida, fazer com que lentamente apareça, para ele, a vaidade da
maneira pela qual ele a entendia, pelo fato de que ele a entendia.”
100
essencialmente, o verdadeiro é o sujeito: e como tal é somente o movimento dialético, esse
caminhar que a si mesmo produz, que avança e que retorna a si.
47
Para compreender tudo o que está em jogo nessas passagens do prefácio à
Fenomenologia do Espírito em que Hegel condensa sua teoria da proposição
especulativa, teríamos que nos remeter a sua teoria do juízo tal como ele a expõe na
lógica do conceito da Ciência da Lógica. Como uma tal discussão nos levaria muito
além dos limites deste trabalho, reteremos por hora apenas os traços principais dessa
recuperação do especulativo na filosofia de Hegel. Ao criticar os pressupostos do
entendimento comum, Hegel resgata o especulativo dos limites que a filosofia da
reflexão havia, segundo ele, arbitrariamente imposto ao saber. Para isso, entretanto,
Hegel deve mostrar como a consciência falha toda vez que tenta se referir a um objeto
exterior a ela mesma. O processo deve mostrar, ao fim e ao cabo, que aquilo que a
consciência coloca como exterior a seu saber é sua própria atividade e somente o
conceito é aquilo que não mais está submetido a uma abstração de forma e conteúdo.
Por isso, Hegel o considerará não como o mais abstrato, mas como o mais real. Somente
quando a consciência se livra da oposição que ela, “por medo do objeto”, coloca entre
seu saber e o objeto do seu saber, somente então ela pode voltar-se às puras
determinações de pensamento, ao lógico (das Logische). Esse é o significado que terá
para Hegel o saber absoluto: não uma revelação imediata do divino, nem a identidade
sem diferença, mas a consideração do saber puro para além das oposições abstratas da
consciência. Esse saber pressupõe todo o movimento negativo da consciência com seu
saber, que se dá historicamente, mas que é, ao mesmo tempo, necessidade lógica: “O
saber absoluto é a verdade de todos os modos de consciência, pois, como o andamento
da mesma mostrou, somente no saber absoluto a separação do objeto da certeza de si
mesmo se consumou completamente e a verdade dessa certeza assim como essa certeza
da verdade se tornou igual”.
48
Essa caracterização ainda bem preliminar do absoluto hegeliano servirá à
discussão que pretendemos empreender na seqüência desse trabalho. Antes de iniciá-la,
porém, deveremos rever a maneira como Schopenhauer justifica um tipo de especulação
filosófica que pode ser caracterizada como o exato oposto daquela empreendida pela
filosofia hegeliana.
47
PhG, W3, p. 61 (trad. Cit., p. 57-8).
48
WdL, W5, p. 43.
101
1.2 – Schopenhauer e a especifidade da filosofia em relação à arte e à ciência
A reflexão filosófica de Schopenhauer é caracterizada, como já vimos,
49
por
uma ambigüidade fundamental entre uma abordagem que poderia ser de maneira bem
imprecisa caracterizada como empirista, materialista, fisiologista ou naturalista, por um
lado, e por outro, como idealista e especulativa. A definição da tarefa da filosofia
também guarda essa ambivalência.
Por um lado, a tarefa da filosofia consistiria somente na interpretação da
experiência dada na consciência de si e das outras coisas; por outro, ela deve determinar
um sentido ao todo dessa experiência, sentido que não está dado por nenhuma
experiência “natural” das coisas, mas que se revela como uma inversão da ordem
natural e do procedimento ordinário do conhecimento. De acordo com isso, teremos, por
um lado, o recurso à experiência dada na intuição e na atividade do entendimento como
ponto de partida do processo do conhecimento e por isso uma abordagem
transcendental; por outro, uma tentativa de buscar um caminho alternativo para o
conhecimento que vá além das formas determinadas do entendimento e ofereça um
saber positivo sobre a totalidade das coisas, ou seja uma abordagem especulativa. Para
acompanhar as oscilações que o conceito de filosofia experimenta na obra de
Schopenhauer devemos acompanhar o desenvolvimento que sua obra oferece da idéia
mesma de filosofia.
Desde o início de sua reflexão filosófica Schopenhauer define a a filosofia como
um olhar para aquilo que há de mais essencial no mundo, que considera as coisas
independentemente de qualquer relação, de seu vir-a-ser, isto é, das mediações que
fazem com que elas se tornam o que são. Essa visão essencialista da filosofia já está
presente na primeira edição de sua obra principal (1818), quando Schopenhauer dizia
que
o autêntico modo de consideração filosófico do mundo, ou seja, aquele que nos ensina a
conhecer a sua essência íntima e, dessa maneira, nos conduz para além do fenômeno, é
exatamente aquele que não pergunta “de onde”, “para onde”, “por que”, mas sempre e em toda
parte pergunta apenas pelo quê (Das) do mundo; quer dizer, não considera as coisas de acordo
com alguma relação, isto é, vindo a ser e perecendo, numa palavra, conforme uma das quatro
figuras do princípio de razão, mas diferentemente, tem por objeto precisamente aquilo que
permanece após eliminar-se o modo de consideração que segue o referido princípio, noutros
termos, tem por objeto o ser do mundo sempre igual a si e que aparece em todas as relações,
49
Cf. acima, p. 54.
102
porém sem se submeter a estas, numa palavra, as idéias mesmas. A filosofia, como a arte,
procede de tal conhecimento.
50
Nesse primeiro momento, portanto, a filosofia era definida por Schopenhauer
pelo seu parentesco com a arte: ambas teriam em comum o fato de não partirem de
relações estabelecidas pelo princípio de razão, mas do conhecimento intuitivo das
idéias. Como as idéias são conhecidas por uma espécie de intuição imediata – que será
objeto de uma análise mais detalhada à frente – então a filosofia não pareceria ter a ver
com uma atividade puramente racional de conceitos, já que esses são sempre abstrações.
Daí sua distância em relação à ciência e sua proximidade com a arte: “Pois a arte não
tem a ver como a ciência meramente com a razão, mas com a mais íntima essência do
homem (...) E esse é o caso com minha filosofia; pois ela será filosofia como arte”.
51
As ciências se dividem de acordo com as diferentes formas do princípio de
razão
52
. Elas explicam a relação das coisas, mas deixam algo de inexplicável que elas
pressupõem. Já a filosofia não pressupõe nada de conhecido, pois tudo lhe é estranho e
problemático, não só as relações dos fenômenos, mas os próprios fenômenos
53
. Aquilo
que as ciências pressupõem é o problema próprio da filosofia. Como ela é a ciência do
mais geral seus princípios não podem ser a conseqüência de outros mais gerais. O
princípio de contradição mantém em acordo os conceitos e o princípio de razão explica
a relação dos fenômenos entre si, mas não os próprios fenômenos. Assim, a finalidade
da filosofia não é a procura duma causa final ou eficiente; ela se pergunta, pelo
contrário, pela essência das coisas independente de suas relações mútuas. Ela deve ser a
expressão in abstracto da essência do mundo no seu conjunto. A filosofia se define,
assim, pela tarefa de elevar a um saber permanente
tudo o que o vasto conceito de sentimento abrange e meramente indica como saber negativo,
não abstrato, obscuro. Ela deve ser, portanto, uma expressão in abstracto da essência do
mundo, tanto em seu todo quanto em suas partes. Todavia, para não se perder numa multidão
infindável de juízos particulares, ela tem de se servir da abstração e pensar todo particular, e
suas diferenças, no universal. Eis por que ela, em parte separa, em parte une, e assim vê de
modo sumário toda a diversidade do mundo em geral, conforme o seu ser, e a transmite como
saber em poucos conceitos abstratos. Contudo, por meio de tais conceitos, nos quais a filosofia
fixa a essência do mundo, tanto o inteiramente particular quanto o universal têm de ser
50
WWV I, § 53, SW II, p. 323. (trad. Cit., p. 357).
51
HN I, p. 186. Esse fragmento é de 1814, num período em que o parentesco da filosofia com a arte era
constantemente sublinhado pelo autor.
52 Sobre as formas do princípio de razão, Cf. acima, p. 65 e seguintes.
53 Cf. WWV, § 15, SW, II, p. 97.
103
conhecidos; portanto, o conhecimento de ambos tem de ser ligado de maneira precisa. Com
isso, a capacidade para a filosofia consiste justamente naquele ato, apontado por Platão, de
conhecer o uno no múltiplo e o múltiplo no uno. Por isso, a filosofia será uma soma de juízos
muito gerais, cuja razão de conhecimento imediato é o mundo em sua totalidade, sem nada
excluir; é tudo o que se encontra na consciência humana; ela será uma repetição completa por
assim dizer um espelhamento do mundo em conceitos abstratos, possível exclusivamente pela
união do essencialmente idêntico em um conceito, e separação do diferente em outro
54
.
A delimitação da tarefa da filosofia indica, portanto, uma dificuldade
fundamental: ela deve trazer ao conceito aquilo que é da ordem da intuição e do
sentimento e, portanto, concreto. Ocorre que o conceito é sempre incapaz de fazer isso,
pois a abstração da realidade que é feita pela razão e que origina conceitos nunca
preservam a riqueza do mundo intuitivo. Daí o recurso à arte que mostraria, de maneira
imediata, o conteúdo concreto da intuição, a saber, as idéias. À medida, porém, que as
noções de idéia e conceito vão assumindo um perfil mais definido na obra de
Schopenhauer, a filosofia passa a ser menos algo quase idêntico à arte e mais alguma
coisa entre a ciência e a arte. Para verificar isso, devemos em primeiro lugar analisar a
diferença entre o conhecimento empírico e o abstrato em Schopenhauer, isto é, entre a
intuição e o conceito; depois, num segundo momento, a diferença entre conceito e idéia.
Por fim será possível delimitar melhor a especificidade da filosofia em relação à ciência
e à arte e nos aproximar do tema que mais nos interessa aqui, a saber, o problema da
exposição do conteúdo da verdade filosófica, ou saber especulativo.
Já vimos no que consiste as representações intuitivas para Schopenhauer: são
representações empíricas que têm sua origem em uma excitação da nossa sensibilidade e
formam, junto com o espaço, o tempo e a causalidade o complexo da realidade
empírica.
55
A sensação para Schopenhauer não pode ser abstraída das formas de
apreensão do sujeito, isto é, o tempo, o espaço e causalidade, pois é só na conjunção
desses fatores que a realidade empírica é dada ao sujeito. Portanto, há sempre uma
mediação, nunca um acesso imediato ao sensível, e essa mediação é feita pelo
entendimento através de uma “intuição intelectual”:
56
as representações empíricas
54 Ibid., p. 99. (trad. Cit., p. 137-8).
55
Cf. acima, p. 66 e seguintes.
56
“O primeiro ato do entendimento é a intuição do mundo real que consiste em conhecer o efeito pela
causa; assim, toda intuição é intelectual”. WWV, I, §4, SW, II, p. 7. Cf. Sobre a Visão e as Cores. SW, I,
p. 7. Cf. M. L. Cacciola. O intuitivo e o abstrato na filosofia de Schopenhauer, p. 177: “Configura-se o
que é chamado de ‘intuição intelectual’ no vocabulário schopenhaueriano e que obviamente se distingue
do seu homônimo fichteano e da intuição de um intelectus arquetipus pensada por Kant, como
contraposição ao intelecto humano discursivo. À diferença de Fichte, para quem a intuição intelectual é
104
pertencentes ao conjunto da realidade aparecem sob a forma do espaço e do tempo, e
uma união íntima de uma com a outra é a condição da realidade que assim aparece. Mas
“é o entendimento que cria essa união, reunindo essas formas heterogêneas da
sensibilidade, de modo que da sua penetração recíproca se forma como que por si
mesma a realidade empírica, enquanto representação do conjunto
[Gesammtvorstellung], constituindo uma totalidade mantida pelas formas do princípio
de razão”
57
. Assim, a condição para a presença imediata de uma representação dessa
classe é sua ação causal sobre nossos sentidos e, portanto, sobre nosso corpo que faz
parte dessa classe de objetos (das representações intuitivas) e se encontra submetido
então à lei de causalidade.
A essas representações intuitivas, formadas pelo entrecruzamento da parte
material (as sensações) e da parte formal (a causalidade e as formas do princípio de
razão do conhecer, as intuições puras do espaço e do tempo), se opõem as
representações abstratas que tem como matéria não as sensações, mas os conceitos.
Essas são então “representações de representações”: é a razão que elabora uma
concepção de conjunto ao unificar um número indefinido de coisas particulares em uma
única palavra. A função fundamental da razão consiste em fazer passar a substituição da
apreensão do mundo sensível para as noções abstratas, o que só pode ser feito pela
linguagem. Essa operação, no entanto, faz com que essas representações percam seu
aspecto intuitivo, assim como a água, diz Schopenhauer, “decomposta em seus
elementos perde sua fluidez e sua visibilidade, pois cada propriedade assim isolada
(abstraída) pode ser pensada isoladamente, mas não percebida isoladamente”
58
. O
estudo da linguagem desvela o mecanismo da razão e dele se extrai a lógica,
compreendida como estudo das leis que relacionam os juízos. A lógica ou teoria da
razão oferece assim o conhecimento da parte formal do conhecimento abstrato. Mas “os
conceitos que compõem os juízos e os raciocínios e dos quais são derivados todas as leis
lógicas devem receber sua matéria e seu conteúdo do conhecimento intuitivo, da mesma
forma que o entendimento que constrói esse último toma da sensação a matéria que
fornece um conteúdo a suas formas a priori
59
. A reflexão racional é apenas um reflexo
do conhecimento intuitivo, a transformação da intuição em conceitos. Vê-se assim que,
atividade pura do eu que se volta sobre si mesma, a intuição intelectual em Schopenhauer guarda a
remissão à sensação, e a põe como efeito, embora ela por si mesma não possa ter qualquer referente”.
57
SG § 18, SW I, pp. 29-30.
58
SG § 26, SW I, p. 98.
59
SG §34, SW I, p.
105
para o filósofo, o conhecimento abstrativo, por mais que torne a vida do homem
interessante na medida em que o eleva dos limites estreitos das sensações imediatas
(restrição que caracteriza a vida dos animais), ainda assim só consegue oferecer uma
pálida imagem da riqueza do mundo intuitivo.
A ciência tem a tarefa de conceitualizar o mundo intuitivo. Ela segue, para isso,
o fio condutor do princípio de razão e relacionando uma causa a um efeito extrai
diversas leis conforme o âmbito de consideração de sua atuação. Assim, a lei da
causalidade se manifesta no reino inorgânico como causa (Ursache) no sentido mais
estrito, no reino orgânico como excitação (Reiz) e no reino animal como motivação. Daí
surgem as ciências particulares que estudam essas diversas formas do princípio da
causalidade. Através da atividade da razão o que foi intuído é sistematizado em
conhecimento abstrato. É essa atividade da razão que permite que o conhecimento seja
conservado, comunicado e transformado em ciência. Ela é um conhecimento
progressivo que vai do geral para o particular, por meio de conceitos intermediários e de
divisões fundadas sobre determinações cada vez mais restritas. A finalidade da ciência
não é uma maior certeza, mas facilitar o saber impondo-lhe uma forma e, assim, a
possibilidade dele ser completo. O caráter científico consiste, assim, numa forma
sistemática do conhecimento que é uma marcha gradual do geral para o particular. Mas
o conhecimento que temos pela via da razão e da ciência é um conhecimento de meros
fenômenos da experiência. O todo da experiência, assim como seu núcleo e seu sentido
mais íntimo permanece intocado pelas ciências. As ciências naturais, seja ela a
morfologia, que descreve formas fixas, seja a etiologia, que explica a natureza em
movimento, são incapazes de ultrapassar o campo limitado da representação fenomenal.
A primeira nos apresenta um número infinito de formas, mas que permanecem para nós
estranhas. Já a explicação etiológica de toda a natureza será apenas um inventário de
forças misteriosas, uma demonstração exata das leis que regulam os fenômenos no
tempo e no espaço, através de suas evoluções. A essência, porém, das forças assim
demonstradas deverá permanecer sempre desconhecida, porque a lei a que a ciência
obedece não conduz até lá, de modo que deveríamos nos limitar aos fenômenos e sua
sucessão.
60
A filosofia, contudo, não pode satisfazer-se com tal limitação, pois
“decerto aquilo que perguntamos é algo, em conformidade com sua essência, totalmente
diferente da representação, tendo, pois, de subtrair-se por completo às suas formas e leis. Nesse
60
Cf. WWV, § 17, SW, II, pp. 116-7.
106
sentido, não se pode alcançá-lo a partir da representação, seguindo o fio condutor das leis que
meramente ligam objetos, representações entre si, que são as figuras do princípio de razão”.
61
Já vimos como Schopenhauer elabora uma via de acesso ao em si do mundo
através do reconhecimento da identidade da vontade com o corpo e da analogia que
permite ver em toda a natureza aquela mesma vontade. Essa verdade, que estabelece a
vontade como aquilo que está para além da representação, é chamada pelo autor de
“verdade filosófica”, em contraste com as verdades que estão circunscritas ao domínio
do princípio de razão.
62
É, portanto, através da superação do ponto de vista do
conhecimento ordinário do princípio de razão que se estabelece a metafísica em
Schopenhauer, isto é, o conhecimento filosófico da essência do mundo. A filosofia é a
transmissão desse conhecimento, e mais que isso, ela deve reportar a especificidade do
conhecimento das ciências, das artes e do agir humano a essa intuição fundamental.
Nesse sentido ela será metafísica da natureza, metafísica do belo e metafísica dos
costumes. Com isso a tarefa da filosofia em geral ou metafísica já pode ser definida,
assim como seu conteúdo: “a tarefa da metafísica não é a observação de experiências
singulares, mas sim a explicação correta da experiência como um todo”.
63
Enquanto as
ciências buscam, pelo fio condutor do princípio de razão, uma explicação de fenômenos
particulares, a filosofia no sentido geral de “metafísica”, explica o todo da experiência a
partir de sua essência e precisa, para isso, utilizar-se de modos de conhecimento que não
se restringem ao princípio de razão – daí seu parentesco com a arte, a qual é possível
por uma contemplação desinteressada de idéias, mas também com a ciência que, como
qualquer conhecimento efetivo tem sua fonte na intuão. Assim é possível uma
“metafísica a partir de fontes de conhecimento empírico”,
64
um saber extraído da intuição do mundo externo, efetivo, a elucidação que dele nos oferece os
fatos mais íntimos da consciência de si, assentado em conceitos claros. Ela é uma ciência da
experiência: não de experiências singulares, mas o todo e geral de toda experiência é seu objeto
e sua fonte. Eu deixo bem intacta a doutrina de Kant segundo a qual o mundo da experiência
61
WWV, § 17, SW, II, p. 118. (Trad. Cit., p. 155).
62
“Trata-se de um conhecimento de ordem inteiramente outra, cuja verdade, justamente por isso, não
pode ser incluída nas quatro rubricas por mim arroladas no § 29 do ensaio sobre o princípio de razão, que
reparte todas as verdades em lógica, empírica, metafísica e metalógica; pois agora a verdade não é, como
nos outros casos, a referência de uma representação abstrata a uma outra representação, ou à forma
necessária do representar intuitivo e abstrato, mas é a referência de um juízo à relação que uma
representação intuitiva, o corpo, tem com algo que absolutamente não é representação, mas toto genere
diferente dela, a saber, a vontade. Gostaria por conta disso, de destacar essa verdade de todas as demais e
denominá-la verdade filosófica
κατ εξοχðην. WWV, § 18, SW, II, p. 122. (Trad. Cit., p. 160).
63
WWV E. Cap. 17, SW, III, p. 201.
64
Ibid, Idem.
107
seria mero fenômeno [Erscheinung] e os conhecimentos a priori valem meramente em relação
a ele: mas eu acrescento a isso que ele, mesmo como fenômeno, é a manifestação
[Manifestation] daquilo que aparece [erscheint] e nomeio isso como ele a coisa em si. Por isso,
essa coisa deve exprimir sua essência e seu caráter no mundo da experiência, ser interpretada a
partir dele e na verdade a partir da matéria, não da mera forma da experiência. Por isso a
filosofia não é nada mais que a compreensão exata e universal da experiência mesmo, a
verdadeira interpretação [Auslegung] de seu sentido e conteúdo. Este é o metafísico [das
Metaphysische], aquilo que no fenômeno está apenas vestido e em sua forma ocultado, é aquilo
que se refere a ele como o pensamento às palavras
65
.
O metafísico, para Schopenhauer, é aquilo que há de mais concreto e não aquilo
que é meramente abstraído da experiência. Seu objeto não é, portanto, nem o supra-
sensível abolido do domínio do conhecimento por Kant, nem mesmo puros conceitos
dados a priori – “puras cascas sem caroço” no dizer do filósofo – mas é uma metafísica
que tenta combinar a experiência externa com a interna e faz dessa última a chave da
primeira. Sendo assim ela abandona sua pretensão de tornar-se ciência no sentido forte
do termo, como contendo certeza apodíctica em seus resultados; mas isso não nos
autoriza a negar a possibilidade da própria metafísica, a não ser enquanto ciência
rigorosa. Como veremos mais adiante, a arte, que é a contemplação das coisas
independente do princípio de razão e apreende aquilo que no mundo subsiste fora e
independente de toda relação, que é a essência do mundo e o verdadeiro substrato dos
fenômenos, participa de um modo de conhecimento próximo ao modo de conhecimento
da filosofia. Daí o parentesco profundo entre ambas. Como diz o filósofo, “não é
somente a filosofia, mas também as belas artes trabalham para resolver o problema da
existência”.
66
A diferença reside em que, enquanto a arte apresenta uma imagem
intuitiva da vida, a filosofia a explica através de conceitos abstratos. Uma oferece, por
isso uma satisfação provisória, já que está limitada ao instante da intuição, já a outra
uma resposta definitiva, fixada em conceitos
67
. É sobretudo na exposição das idéias que
65
Ibid, p. 204. Essa caracterização da metafísica em Schopenhauer está baseada sobretudo no capítulo 17
dos Complementos a sua obra principal, que só foram publicados na segunda edição de 1844. Isso não
quer dizer, a nosso ver, que somente a partir dessa “segunda fase” de seu pensamento (iniciada com a
publicação de Sobre a Vontade na Natureza em 1836), Schopenhauer teria chegado a uma visão mais
clara da especificidade da filosofia em relação à arte e a ciência, de modo que essa última estaria cada vez
mais próxima da filosofia, já que até seus resultados serviriam para confirmá-la. Sobre isso ver a nota 68.
Para uma opinião contrária, Cf. Eduardo Brandão. O conceito de matéria, Cap. 1, pp. 5-50.
66
WWV, E. Cap. 34, SW III, p. 463.
67
Uma anotação póstuma do ano de 1817 já expressava de maneira clara o lugar da filosofia: “Na medida
em que a filosofia não é um conhecimento segundo o princípio de razão, mas conhecimento da idéia, ela
deve ser posta entre as artes; só que ela não expõe a idéia, como as outras artes, como idéia, isto é,
intuitivamente, mas in abstracto. Mas como todo assentar em conceitos é um saber, ela é então também
108
a arte revela seu teor especulativo, pois as idéias não são como os conceitos algo
abstraído das intuições, mas a objetivação mesma da essência do mundo. Deixando de
lado por enquanto uma explicação mais detalhada da relação entre conceito e idéia na
filosofia de Schopenhauer – explicação, no entanto, central para julgar o estatuto do
conhecimento abstrato em sua metafísica, vale a pena citar uma passagem que nos
oferece com clareza a concepção do filósofo sobre o lugar da filosofia em relação à
ciência e à arte:
A filosofia ou metafísica, como teoria da consciência e seu conteúdo em geral, ou da totalidade
da experiência como tal, não entra na relação [das ciências particulares]; pois ela não segue a
consideração exigida pelo princípio de razão, mas antes toma esse mesmo como objeto. Ela
deve ser vista como o baixo contínuo de todas as ciências, é porém, de um tipo mais elevado
do que essas e aparentada com a arte quase tanto quanto com a ciência
68
.
Tudo estaria perfeito se não fosse a incapacidade da razão de expor o rico
conteúdo da experiência imediata. Essa incapacidade não é responsável apenas pela
falta de certeza apodítica da metafísica, mas também pelo seu caráter quase hipotético.
Na verdade, essas limitações que Schopenhauer assinala para sua própria filosofia se
deve ao menos a três fatores: primeiro, o caráter secundário da razão, sempre
dependente de uma intuição e por isso incapaz de se mover sem qualquer referência à
experiência; em segundo lugar, a imperfeição metafísica (essencial) do intelecto, mero
instrumento da vontade, feito para a execução de seus fins e não originariamente
destinado ao conhecimento puro das coisas; e por último, o filósofo reconhece que o
caminho que leva da intuição da vontade na consciência de si ao reconhecimento da
vontade no mundo é apenas uma visada inadequada para resolver todos os mistérios do
uma ciência: de fato ela é uma mescla [Mittleres] de arte e ciência, ou antes algo que une a ambas”. HN I,
p. 482. Cf. M. Kossler, Substantielles Wissen, p. 155.
68
WWV, E. Cap. 12, SW III, p. 40. Essa concepção da filosofia, como tão aparentada com a ciência
quanto com a arte por um lado, e por outro como superior a ambas, nos parece ser a visão definitiva do
filósofo, ainda que outras passagens possam levar a outras interpretações. Sobre isso nos filiamos à
interpretação de R. Malter, Transzendentalphilosophie und Metaphysik des Willens, p. 37: “Se
Schopenhauer freqüentemente reforça a proximidade da filosofia com a arte, isso não quer dizer que
exista nele uma tendência a negar os momentos que a filosofia têm em comum com a ciência. Está claro a
partir da concepção de conjunto ainda a ser explicada do pensamento de Schopenhauer, porque a filosofia
e a arte estão mais próximas uma da outra do que a filosofia e a ciência: o interesse de Schopenhauer
recai muito menos sobre o lado formal-metodológico do pensar filosófico do que sobre o lado
conteudístico (inhaltlich). É verdade que a questão pelo como da compreensão da essência do mundo
tematizado no mundo como vontade e representação pode ser comunicada in abstracto, é de fundamental
importância para Schopenhauer, mas ainda mais fundamental é seu interesse na essencialidade a ser
retratada do mundo”. Talvez isso explique também a falta de clareza de Schopenhauer sobre o estatuto
sistemático de sua filosofia, que será analisado a seguir.
109
mundo: “também a percepção interna que nós temos de nossa própria vontade, de modo
algum oferece um conhecimento completo e adequado da coisa em si”.
69
É verdade que
o contato que temos com os atos de nossa própria vontade é o único a nós
imediatamente conhecido e está, portanto, mais livre das formas da representação que
todos os outros objetos da consciência. Mesmo assim, ele ainda é mediatizado, não
apenas por manter a relação sujeito e objeto (algo que conhece – a consciência de si, se
relaciona, por meio do intelecto, com algo a ser conhecido), mas ainda por manter
intocada a forma do tempo, enquanto forma do sentido interno na consciência de si. O
que a torna mais imediata que qualquer outra intuição é o fato de estar livre da forma do
espaço e de “toda forma da causalidade mediatizada pela intuição sensível” (alle
Sinnesanschauung vermittelnden Form der Kausalität)
70
. Por isso, continua o filósofo,
“nesse conhecimento a coisa em si despojou-se em grande parte de seus véus, mas não
apareceu ainda inteiramente nua”.
71
Se é assim, ou seja, se a filosofia de Schopenhauer, entendida como metafísica
fundada na experiência empírica (essa redundância precisa ser sublinhada já que essa
noção de experiência contrasta com a noção de experiência em Hegel), isto é, na
experiência imediata do sujeito, é baseada numa certeza apenas plausível, então não
surpreenderá a forma expositiva que essa filosofia assumirá. Não apenas a certeza
apodítica será abandonada; a própria idéia de “sistema” é relativizada, o que dará lugar
à forma ensaística e aforismática que a filosofia de Schopenhauer apenas esboçará. E
principalmente, o conhecimento de um princípio ou fundamento absoluto é objeto de
uma crítica gnosiológica, mas também de uma recusa.
A dificuldade da forma expositiva da filosofia é colocada por Schopenhauer com
toda a clareza no prefácio à primeira edição de sua obra principal. A idéia do
pensamento único de certo modo relativiza a idéia de sistema, e a clivagem entre seu
conteúdo e sua exposição não passa despercebida:
Um sistema de pensamentos tem sempre de possuir uma coesão arquitetônica, ou seja, uma tal
em que uma parte sustenta continuamente a outra, e esta, por seu turno, não sustenta aquela;
em que a pedra fundamental sustenta todas as partes, sem ser por elas sustentada; em que o
cimo é sustentado, sem sustentar. Ao contrário, um pensamento único (ein einziger Gedanke),
69
WWV, E. Cap. 18, SW III, p. 220.
70
Ibid, Idem.
71
Ibid, Idem: “Demnach hat in dieser innern Erkenntniß das Ding an sich seine Schleier zwar großen
Theils abgeworfen, tritt aber doch noch nicht ganz nackt auf”.
110
por mais abrangente que seja, guarda a mais perfeita unidade. Se, todavia, em vista de sua
comunicação, é decomposto em partes, então a coesão destas tem de ser, por sua vez, orgânica,
isto é, uma tal em que cada parte tanto conserva o todo quanto é por ele conservada, nenhuma é
a primeira ou a última, o todo ganha em clareza mediante cada parte, e a menor parte não pode
ser plenamente compreendida sem que o todo já o tenha sido previamente. – Um livro tem de
ter, entrementes, uma primeira e uma última linha; nesse sentido, permanece sempre bastante
dessemelhante a um organismo, por mais que a este sempre se assemelhe em seu conteúdo.
Consequentemente, forma e matéria estarão aqui em contradição
72
.
Como exposição de um pensamento único, o “sistema” de Schopenhauer não
pode apresentar-se de modo arquitetônico, como uma seqüência dedutiva a partir de um
único princípio, e constitui-se, portanto, mais como um todo de proposições que se
condicionam e se completam mutuamente. Essas proposições são compostas em
pequenos grupos, de modo que o pensamento único encontre neles uma exposição
particular, mas de uma maneira tal que cada grupo, enquanto parte do sistema, exponha
o todo que é o desdobramento daquele pensamento único. As diferentes disciplinas que
compõem as partes desse sistema, concebido de modo orgânico, são para Schopenhauer
apenas visões perspectivas do pensamento único: “quando se levam em conta os
diferentes lados desse pensamento único a ser comunicado, ele se mostra como aquilo
que se nomeou seja metafísica, seja ética, seja estética. E naturalmente ele tinha de ser
tudo isso, caso fosse o que, como já mencionado, o considero”.
73
Esse caráter orgânico e não encadeado do sistema traz consigo ao menos duas
conseqüências ao leitor: primeiro a necessidade de compreender o pensamento único em
toda sua amplitude, o que se expressa na sugestão feita ao leitor de ler o livro duas
vezes, já que “o começo pressupõe o fim quase tanto quanto o fim o começo”; em
segundo lugar, desde que esse todo seja apreendido, a entrada no sistema pode ser feita
através de qualquer ponto, já que qualquer um deles conduz ao seu centro, assim como
uma “Tebas de mil portas”. O critério de verdade de tal sistema não será a correção de
uma única proposição, mas da concordância entre si das diversas proposições e partes
do sistema em seu todo. Também para Schopenhauer o especulativo (no caso o
72
WWV, Prefácio, SW II, p. vi – vii. (trad. Cit., p. 19-20).
73
Ibid, p. vii. O que Schopenhauer o considera nada mais é do que aquilo “que por muito tempo se
procurou sob o nome de filosofia”. Idem. Cf. R. Malter, Transzendentalphilosophie, p. 46. Note-se que
aqui Schopenhauer se refere à metafísica como uma parte do sistema e não como seu todo. Nesse sentido,
a tese de Eduardo Brandão, segundo a qual a metafísica da natureza só ganha autonomia depois da
primeira edição de 1818 (mais precisamente, a partir das preleções de Berlim em 1820), ganha um
reforço. Cf. Op. Cit, p. 17.
111
metafísico – das Metaphysische) não pode ser expresso de modo imediato em uma
única proposição como em um oráculo.
Resta-nos indicar o que é do ponto de vista de seu conteúdo, esse pensamento
único. Os resultados aos quais chegamos até aqui, porém, já tornam possível uma
reflexão prévia sobre as semelhanças e diferenças de Schopenhauer e Hegel no que diz
respeito a seus respectivos projetos filosóficos.
Excurso – Saber substancial – sobre a interpretação de Kossler de Hegel e
Schopenhauer
Algumas afinidades poderiam ser assinaladas entre Schopenhauer e Hegel,
apesar da distância que o primeiro expressa em relação ao segundo, tanto na negação da
razão como capaz de compreender e esgotar o sentido do mundo, como na recusa a
compreender a existência como um todo racional que permitiria tanto uma visão
filosófica da história como uma teologia racional.
74
Em um trabalho recente, Mathias
Kossler procurou mostrar, por meio de uma comparação sistemática, algumas
semelhanças entre os sistemas de Hegel e Schopenhauer. Como ele explica
detalhadamente haveria entre os dois sistemas uma concordância fundamental na
medida em que em ambos substância e sujeito aparecem em uma relação recíproca de
exteriorização (Entäusserung). Essa relação permanece, na reciprocidade do processo,
em sua simplicidade, o mesmo. Sua apreensão está ligada a uma “reviravolta da
consciência” (Umkehrung des Bewußtseins). Em Hegel essa apreensão está no conceito
e em Schopenhauer no modo de conhecimento alterado, aquele que vai além do
princípio de razão.
75
Para o autor é significativo que a reconstrução filosófica da relação
recíproca de exteriorização, na qual substância e sujeito permanecem, só é possível por
meio de uma “antecipação do resultado do desenvolvimento da relação em curso até a
simplicidade (Einfacheit)”. Ambos os sistemas têm dessa forma uma “estrutura
circular”, mas na qual “as partes não estão nem em relação de condição nem de
cronologia (Zeitfolge), pois do mesmo modo que o conceito anula o tempo, também na
74
Sobre as possíveis proximidades entre os dois autores, veja os artigos de Peter Engelmann “Hegel und
Schopenhauer” e Yasuo Kamata: “Schopenhauer, Hegel, Vasubhandu” In: Schirmacher, Wolfgang.
(org). Zeit der Ernte. Studien zum Stand der Schopenhauer Forschung, Festschrift für Arthur Hübscher
zum 85. Geburtstag. Stuttgart-Bad Cannstatt, 1982, pp. 240-8 e 228-39; e Wolfgang Weimer:
“Schopenhauer und Hegels Logik”, In: J. Salaquarda, Schopenhauer, Darmstadt, 1985, pp.314-47.
75
Cf. Op. Cit,, p. 151.
112
introvisão (Durschauung) do principii individuationis a forma da intuição é suprimida
(aufgehoben)”.
76
Como vimos acima, para Hegel o sistema deve assumir uma feição científica
que, embora se afaste de uma concepção positivista, deve manter o mais perfeito rigor.
Dessa forma, poderia se ver a diferença entre Hegel e Schopenhauer no fato de que,
enquanto em Hegel, o modo de conhecimento especulativo que está na base do sistema
não se afastaria da concepção científica, pelo contrário, revela sua verdade, para
Schopenhauer o conhecimento metafísico essencial conduz para além da possibilidade
de apreensão científica.
77
Para uma apreciação correta dessa tese deveremos analisar
ainda como se relaciona a metafísica de Schopenhauer com a abertura que sua filosofia
oferece à mística a partir de sua teoria da redenção, o que faremos apenas na parte final
de nosso trabalho. É possível, entretanto, assinalar desde já, que a filosofia de
Schopenhauer se mantém coerente com sua pretensão de racionalismo, e com sua
defesa da reflexão como método da filosofia.
78
Contudo, permanece a contraposição
entre uma filosofia que mantém até suas últimas consequencias a pretensão de constituir
o saber absoluto e outra que afirma o caráter inesgotável do conhecimento.
Em Hegel, a verdade da relação entre a substância e o sujeito já está no começo,
mas depende da compreensão prévia do todo do sistema, de modo que, assim como em
Schopenhauer “o fim pressupõe o começo e o começo pressupõe o fim”. Essa
compreensão prévia do sistema é possível por uma antecipação que faz com que o
processo seja considerado como um processo imanente. Quando chega ao saber
absoluto, o “elemento subjetivo” ou “ingrediente” (Zutat), é suprimido pela
compreensão rememorativa de todo o processo na forma do conceito. Com isso, a
proposição “o verdadeiro é o todo”, é a “proposição que exprime a apreensão conceitual
da verdade, a mediação, como imediatidade”.
79
Já em Schopenhauer, o fechamento do
sistema, que se daria, na opinião de Kossler, com a expressão da verdadeira relação
entre sujeito e substância não é diretamente tematizada. Como vimos, Schopenhauer se
satisfaz com algumas breves indicações sobre o “pensamento único” e do caráter de seu
sistema que deve, apesar de excluída a sistemática arquitetônica, manter a mais perfeita
76
Ibid, Idem.
77
Cf. Ibid, p. 151-2.
78
“O leitor sempre me encontrará no ponto de vista da reflexão, isto é, da deliberação racional, nunca no
ponto de vista da inspiração chamado intuição intelectual, ou do pensamento absoluto, cujos nomes mais
corretos são: vazio intelectual (Windbeutelei) e charalatanismo”. WWV, Prefácio, SW II, p. xx. (trad. Cit.,
p. 30). Cf. acima p. 78 e seguintes e P II, § 10.
79
Kossler, Op. cit., p. 152. A afirmação de Hegel está, com se sabe, no prefácio da Fenomenologia (W3,
p. 24).
113
unidade. Mas essa verdade é, na expressão de Kossler, “meramente imediata, isto é, ela
é como tal não explicitamente exposta, mas é exigido do leitor, que ele a compreenda
através de uma segunda leitura de toda a obra e assim a apreenda imediatamente”.
80
Dessa forma, a repetição da essência do mundo em conceitos abstratos, tal como
Schopenhauer compreende a filosofia, é inadequada como expressão da verdade de
modo que essa verdade “não deve ser buscada nem num resultado final (esse seria o
modo de conhecimento alterado, como Schopenhauer o apresenta enquanto negação da
vontade) nem na soma de todas as considerações empregadas, mas no nexo ‘organico’
de todas as partes do sistema”.
81
Kossler tenta trazer ao conceito essa relação organica de substância e sujeito que
se dá na filosofia de Schopenhauer, concedendo, entretanto, que Schopenhauer a
reconheceria como impossível ou desnecessária. O paradoxo pode assim ser expresso:
na medida em que o conhecimento deve ser uma apresentação em conceitos abstratos da
essência do mundo, mas essa essência só pode ser apreendida por meio de uma
suspensão do princípio de razão, então haverá sempre uma diferença entre a forma e o
conteúdo da exposição filosófica. Como Schopenhauer não oferece uma explicação
completa desse modo de conhecimento alterado que, no entanto, é o pressuposto da
compreensão do sistema, ele não oferece, pois, uma explicação completa daquela
antecipação do resultado exigida para a compreensão da obra. Para Kossler, essa
explicação, “não é dada, e nem mesmo pode ser dada, porque Schopenhauer mesmo não
tem nenhum conceito claro do que seja o modo de conhecimento alterado”.
82
Por isso, a
questão da relação entre ciência, arte e filosofia recai na questão do estatuto cognitivo
do modo de conhecimento alterado, o que exige uma discussão detalhada do conceito
schopenhaueriano de racionalidade em geral. É essa discussão que faremos na
seqüência.
80
Ibid., Idem. Cf. final do parágrafo 54 do IV livro.
81
Ibid, p. 152-3.
82
Ibid, p. 156.
114
Capítulo 2 – O especulativo em Schopenhauer
Já vimos que para Schopenhauer a razão, enquanto faculdade produtora de
conceitos abstratos, que são meras representações de representações, tem um valor bem
restrito se comparada à atividade do entendimento que produz, ao lado das impressões
sensíveis, a realidade empírica do mundo como representação. Se já não bastasse essa
função secundária da razão, deduzida a partir da dianologia ou teoria do conhecimento
que está na base do “sistema” ou “pensamento único” schopenhaueriano, o filósofo
ainda acrescenta uma abordagem metafísica sobre o intelecto em geral, na qual se revela
o caráter subordinado da faculdade de conhecer em relação à vontade, compreendida
como núcleo essencial do homem. Tanto o conhecimento ordinário do entendimento
comum, quanto o conhecimento científico são baseados no princípio de razão e, por
isso, permitem ver as coisas apenas em suas relações umas com as outras, deixando de
lado seu aspecto “essencial” que somente a visão mais objetiva poderia determinar. O
conhecimento ordinário só compreende as coisas em sua relação com a vontade própria
do sujeito da representação, por isso, esse conhecimento está imediatamente submetido
à servidão da vontade. Já o conhecimento científico está apenas mediatamente
subordinado à vontade, pois embora o olhar objetivo da compreensão das coisas em sua
relação esteja presente, esse olhar é motivado pela necessidade natural de conhecimento
que a vontade tem para atingir seus fins. É somente quando se refere às idéias que o
conhecimento se liberta da servidão da vontade e pode atingir um conhecimento
inteiramente objetivo do mundo, já que tal conhecimento não é motivado por uma
necessidade natural da vontade, mas é algo que em certa medida vai além dela mesma,
e no qual o sujeito de conhecimento se torna como que independente da vontade.
83
O
conhecimento científico, embora ainda siga as determinações do princípio de razão sem
ir além delas, opera de certo modo uma transição entre a completa subordinação do
intelecto à vontade e sua libertação total, pois “quando são compreendidas de fato as
várias relações de um objeto, então é comprendida sua essência própria com uma
clareza cada vez maior, o modo como se compõe continuamente de pura relações e
como se diferencia inteiramente dessas”.
84
Se o intelecto tiver força suficiente – essa a
83
Cf. WWV, E., Kap. 29, SW III, 414. Esse “ir além da vontade” se dá porque o conhecimento objetivo
das idéias que se dá na arte e na filosofia era algo como que “inesperado” segundo a ordem natural das
coisas. Mas o que se dá a conhecer aí não é nada além da própria vontade, ou seja, o sujeito se
compreende como o núcleo da realidade substancial.
84
Ibid, Idem.
115
condição – para manter o conhecimento livre de tudo que possa referir-se à vontade
imediata do sujeito do conhecimento, e voltar-se para “a essência puramente objetiva de
uma aparição que se expressa por meio de todas as relações”
85
, então ele poderá
abandonar o conhecimento de meras relações que também é a forma de conhecimento
do indivíduo sobre coisas individuais e tornar-se o puro sujeito do conhecimento de
idéias, que expressam justamente aquela “essência objetiva”. Schopenhauer define as
“idéias” como algo que revela a verdade das coisas individuais, sua essência íntima, ao
contrário dos conceitos que são abstrações de características essênciais dos objetos, elas
são aquilo que há nelas de “essencial”, e que forma sua espécie. As idéias são
“as formas, permanentes, imutáveis, independentes da existência temporal das coisas
individuais, as species rerum que constituem propriamente o puramente objetivo dos
fenômenos (...) Ela é, como resultado da suma de todas as relações, o caráter autêntico da
coisa, e por isso a expressão completa da essência que se apresenta à reflexão, compreendida
não em sua relação a uma vontade individual, mas como se expressa a si mesma e determina
assim o conjunto de suas relações até aqui conhecidas. A idéia é a raiz comum de todas essas
relações e por isso a manifestação [Erscheinung] completa e perfeita”.
86
É assim que se define a idéia, pelo contraste com as coisas individuais no espaço
e no tempo. As idéias expressariam uma unidade mais concreta que a unidade abstrata
que se tem pelos conceitos: “a idéia é a unidade que decaiu na pluralidade em virtude da
forma temporal e espacial de nossa apreensão intuitiva; o conceito, ao contrário, é
unidade, mas produzida por intermédio da abstração de nossa faculdade racional: a
segunda pode ser descrita como unitas post rem, a primeira como unitas ante rem”.
87
Se
é assim, a idéia deve ser considerada não uma abstração de características gerais das
coisas para além de suas determinações no espaço e no tempo, caso em que temos
apenas conceitos que são produtos de nossa atividade subjetiva de pensamento. As
idéias, pelo contrário, formam uma unidade objetiva, e por isso Schopenhauer
denominou seu âmbito como a “objetidade perfeita da vontade”. A idéia expressa, da
maneira a mais adequada possível, a vontade tal como ela é, sem as formas subjetivas
do espaço, do tempo e da causalidade, mas ainda como representação e, portanto, como
85
“das durch alle Relationen hindurch sich aussprechende, rein objektive Wesen einer Erscheinung”.
Ibid, Idem.
86
Ibid, Idem.
87
WWV, § 49, SW II, p. 277, trad., p. 311-12. Segundo Kossler, devemos distinguir dois tipos de
determinadade (Bestimmtheit): “a determinidade do conceito é um aglomerado estático de características
(Merkmalen), a determinidade da idéia, pelo contrário, uma vivacidade imediata de seres orgânicos”.
Substantielles Wissen, op. Cit., p. 158.
116
fenômeno. Apesar dessa restrição, são as idéias unicamente que podem expressar no
fenômeno a representação mais adequada porque mais objetiva da vontade mesma e por
isso do mundo. São elas e não o conceito que dão a ocasião para os pensamentos mais
fecundos: “pode-se exprimir a diferença entre Idéia e conceito de maneira figurativa e
dizer: o conceito se assemelha a um receptáculo morto no qual tudo o que se põe fica
efetivamente lado a lado, de onde, porém, nada pode ser retirado (por juízo analítico)
senão o que se pôs (por reflexão sintética); a idéia, ao contrário, desenvolve em quem a
apreendeu representações que são novas em referência ao conceito que lhe é homônimo:
ela se assemelha a um organismo vivo desenvolvendo a si mesmo, dotado de força de
procriação, e que produz o que nele não estava contido”.
88
A condição para a intuição da objetidade adequada da vontade é, por sua vez, o
conhecimento mais objetivo possível, livre de todo arbítrio do sujeito da representação.
Essa objetividade do olhar é possível pelo “sujeito puro do conhecimento”, espécie de
sujeito transcendental depurado de sua característica individual e tornado um “claro
espelho do mundo”. Para a apreensão de uma idéia é necessário que o conhecimento
deixe de cumprir sua função natural, ligada ao sujeito do querer, e opere objetivamente
no sentido de conhecer pura e simplesmente. Teríamos aí um ato de “autonegação”
(Selbstverläugnung), no qual a relação de subordinação do intelecto à vontade sofre
uma reviravolta. Mas essa mudança não depende do arbítrio do indivíduo, “antes tem
ela origem em uma temporária prevalência do intelecto sobre a vontade, ou, considerada
fisiologicamente, em uma forte excitação da atividade intuitiva do cérebro, sem
qualquer excitação dos impulsos ou afetos”.
89
Se do lado do sujeito, portanto, o
conhecimento das idéias expressa antes uma objetividade do conhecimento (pois aí a
atividade do sujeito é orientada segundo as próprias coisas e não segundo a necessidade
subjetiva), do lado do objeto (isto é, do lado das idéias) temos a objetidade mais
adequada, pois as idéias se dão a conhecer pelo movimento delas mesmas de se
tornarem objeto de conhecimento, o que se expressa na concepção das idéias como
graus de objetivação da vontade.
Quando consideradas como objeto da contemplação puramente objetiva das
coisas, as idéias são o objeto da arte, ou seja, do prazer estético ligado à atividade livre
do conhecimento. Como, além disso, tal atividade revela um conhecimento objetivo das
88
Ibid, Idem. Nessa passagem é claramente expressa a contraposição entre o abstrato do conceito e o
concreto presente nas idéias. Mas, ao contrário de Hegel, em Schopenhauer o concreto é intuitivo e
imediato e é exatamente nessa imediaticidade ou ausência de intermediação que ele se ele dá a conhecer.
89
WWV, E. Kap. 30, SW III, 417.
117
coisas, temos então uma metafísica, no caso a metafísica do belo. Quando consideradas,
por outro lado, como objetidade adequada da vontade, elas são objeto de consideração
da metafísica da natureza.
90
Nesse âmbito, trata-se de considerar como a vontade se
manifesta na natureza, supondo que já tenhamos admitido ser o mundo a objetivação
daquela mesma vontade que encontramos em nós.
No parágrafo 25 de sua obra principal, Schopenhauer passa a considerar a
vontade tal como ela seria em si, para além de sua subordinção às formas de nosso
conhecimento. Ela seria sempre uma e a mesma, pois o princípio de individuação que é
a condição de toda pluralidade possível lhe é estranha. Ela permanece indivisível pois a
pluralidade das coisas não lhe diz respeito e nem a afeta. Não existe uma pequena parte
dela na pedra e uma grande no indivíduo humano. O mais e o menos diz respeito apenas
ao fenômeno da vontade, não ao que ela seja em si mesma. Portanto, a gradação só afeta
a visibilidade da vontade, a sua objetivação e esta é maior no vegetal do que na pedra,
no animal do que na planta. Estes diversos graus de objetivação da vontade não a altera
diretamente, pois a pluralidade só atinge seus fenômenos, não ela mesma. Diz o
filósofo, “a vontade se manifesta no todo e completamente tanto em um carvalho quanto
em milhões”. Mas ela se expressa ou se manifesta em graus e esses graus de sua
objetivação
91
nada mais são, segundo Schopenhauer que as ”Idéias” tais como Platão
as chamava:
De modo algum se deve pensar com ela nas produções abstratas da razão escolástica
dogmatizante, para cuja descrição Kant usou tão mal como ilegitimamente a referida palavra,
apesar de Platão já ter tomado posse dela e a ter utilizado de maneira apropriada. Entendo,
pois, sob idéia, cada fixo e determinado grau de objetivação da vontade, na medida em que
esta é coisa-em-si e, portanto, é alheia à pluralidade. Graus que se relacionam com as coisas
particulares como suas formas eternas ou protótipos.
92
Se o artista é o gênio que é tomado por uma súbita prevalência do intelecto sobre
sua própria vontade (um excesso de objetividade), o filósofo é aquele que coloca aquele
conhecimento intuitivo na forma conceitual, in abstracto. Ele trabalha com os
90
Por isso, a consideração das idéias no primeiro volume de O mundo... se inicia no parágrafos 25 do
segundo livro (inserido na metafísica da natureza) e vai até o parágrafo 36 do terceiro (já no âmbito da
metafísica do belo).
91
Quase somos tentados a dizer: quando a vontade se objetiva ela torna-se para si aquilo que ela já é em
si. Isto significa: a vontade toma consciência de si mesma, de sua própria operação, pois o que se dá a
conhecer não é algo diferente dela mesma, pelo contrário, quando ela conhece o que ela faz é se
reconhecer na exterioridade. Esse é o significado das passagens em que Schopenhauer afirma: “O mundo
é o autoconhecimento da vontade”.
92
WWV, § 25, SW II, p. 154.
118
conceitos, tal é a matéria da filosofia, mas seu guia é a intuição. A partir da intuição que
revelou a vontade como chave de decifração da experiência e da reflexão filosófica que
permitiu estender essa descoberta para toda a natureza, Schopenhauer pode iniciar uma
consideração especulativa da natureza que a compreende como objetivação da vontade.
De acordo com tal visão, as forças mais universais da natureza se expõem como os
graus mais baixos dessa objetivação da vontade; da mesma forma, as manifestações
mais específicas da natureza, as espécies até o caráter humano individual, expressam os
graus mais elevados da objetivação da vontade. Antes, porém, de investigar detidamente
essa consideração especulativa da natureza que constitui o núcleo da metafísica de
Schopenhauer e analisar suas conseqüências, devemos investigar as condições
subjetivas de tal conhecimento tal como elas se dão no gênio artístico e no filósofo.
Feito isso, teremos estabelecido as bases da interpretação especulativa de
Schopenhauer, tal como proposta por Kossler.
Se o intelecto está originalmente à serviço da vontade e é ordinariamente capaz
apenas de apreender as relações entre as coisas a partir do princípio de razão, para a
apreensão de idéias será necessário um modo de conhecimento bem diferente.
Schopenhauer descreve essa mudança como uma espécie de “autonegação”, na medida
em que representa uma cisão entre o conhecimento e a vontade, pois agora ele atua
independente dela e para além das formas limitadas às quais a representação o
condenava. O conhecimento deixa de ser assim uma lanterna da vontade de cada um e
passa a ser o “espelho límpido da essência objetiva das coisas”.
93
É como se o
conhecimento deixasse de ser o servo de cada vontade particular e passasse a ser o
veículo do conhecimento que a Vontade tem de si mesma; enquanto no primeiro caso a
vontade conhece apenas aquilo que é interessante para ela como manifestação de um
caráter individual, agora ela passa a conhecer-se a si mesma objetivamente em sua
objetidade adequada, a idéia, que revela para si mesma o que ela é em si mesma. Em
vários momentos de sua obra Schopenhauer parece sugerir essa interpretação de sua
filosofia que aqui estamos chamando de “especulativa”, mas ao mesmo tempo parece
constantemente recuar perante tal pensamento, talvez por ficar preso a uma filosofia dos
limites do conhecimento. Assim, em vários momentos a metafísica da vontade aparece,
de acordo com os pressupostos do próprio Schopenhauer, uma especulação no mau
93
Cf. WWV, E. Kap. 30, SW III, p. 417.
119
sentido, isto é, uma “especulação transcendente”. Voltaremos a essa questão
fundamental.
Para atingir de alguma forma essa pura objetividade da intuição, deve haver um
momentâneo predomínio da consciência das outras coisas em relação à consciência de
si mesmo (Bewußtseyn vom eigenen Selbst).
94
Através disso se altera o próprio objeto de
conhecimento que deixa de ser as coisas individuais e passa a ser a idéia de sua espécie.
Se de um ponto de vista metafísico o intelecto foi considerado como um mero
instrumento da vontade, agora o conhecimento adquire autonomia e se vê livre da
sujeição à vontade. O que, entretanto, foge do que se vê normalmente e explica a
raridade do verdadeiro conhecimento objetivo, pois seria como se “o acidente ( o
intelecto) dominasse e suprimisse a substância ( a vontade), ainda que por um curto
tempo”.
95
Esse quase milagre é explicado por Schopenhauer como uma alteração
involuntária na relação entre o intelecto e a vontade:
Essa modificação no sujeito assim exigida não pode derivar da vontade, mesmo porque ela
mesma consiste na eliminação de todo querer, e não pode ser, portanto, um ato do arbítrio e
nem depende de nosso bel prazer. Tal modificação tem origem somente em um predomínio
temporário do intelecto sobre a vontade, ou considerado fisiologicamente, numa forte excitação
da atividade cerebral intuitiva, sem nenhuma excitação das inclinações ou afetos.
96
Portanto, para apreender as idéias efetivamente existentes é suposta uma
capacidade de se abstrair da própria vontade como ato de se elevar para além do
interesse e que exige uma energia particular do intelecto. Essa é a característica do
gênio que consiste na possessão de uma força intelectual muito maior do que se exige
ordinariamente de um intelecto para servir uma vontade individual e no emprego deste
“excedente” para o conhecimento puro da essência do mundo. O que caracteriza a
atividade do gênio, que pode ser descrita de maneira geral como a “capacidade de
apreensão intuitiva das idéias” é justamente a perfeição e a energia do conhecimento
intuitivo.
97
Essa intuição se faz presente sobretudo na arte que pode ser definida de um
ponto de vista filosófico como a exposição das idéias. O artista expõe as idéias e o
94
Cf. Ibid, p. 418.
95
Ibid, p. 420. Ainda que expressa em uma linguagem metafórica essa passagem favorece uma
interpretação especulativa da filosofia de Schopenhauer, ainda que, como mostraremos a frente, essa
especulação seja marcada do ínicio ao fim pela abstração (no sentido hegeliano), isto é, a consideração
separada do sujeito e da substância que, entretanto são a mesma coisa. No fim de sua filosofia, veremos o
sujeito do conhecimento negar-se enquanto vontade, o que revela não mais a separação entre sujeito e
substância, mas sua cisão.
96
Ibid, p. 417.
97
Cf. WWV, E. cap. 31, SW III, p. 428.
120
espectador as apreende de modo mais imediato por sua mediação, pois a obra de arte
não apenas oferece às coisas mais clareza e relevo ao colocar em evidência o elemento
essencial e excluir o acessório, mas também por reduzir a vontade a uma mera
espectadora silenciosa de sua objetividade perfeita. Pois para a compreensão da obra de
arte é necessário considerar o objeto não mais como algo que se relaciona à vontade,
mas como algo que se pode contemplar de modo totalmente desinteressado no silêncio
da vontade.
98
A vontade desaparece da consciência do sujeito do conhecimento que se
torna então puro e livre e portanto, “o olho eterno do mundo” (das ewige Weltauge).
99
Nosso problema aqui é saber exatamente como se dá essa atividade do gênio
também no filosófo, já que Schopenhauer diz diversas vezes que da mesma intuição
puramente objetiva donde deriva a verdadeira obra de arte surge também a filosofia.
100
Ocorre que, como vimos acima, a filosofia é a expressão in abstracto da verdade, tendo
como sua matéria, portanto, os conceitos. Qual é a especificidade da genialidade
filosófica?
Ao que nos parece, Schopenhauer parece atribuir à razão um papel bem menor
no conhecimento efetivo da essência do mundo – o que ele chama de metafísica – do
que ela efetivamente desempenha em sua filosofia.
101
Apesar de definir claramente a
atividade filosófica como uma atividade racional, que lida com conceitos abstratos, o
autor destaca o papel do conhecimento intuitivo e de noções que dão somente uma
indicação também vaga da reflexão filosófica. Dentre essas expressões se destaca o
termo Besonnenheit constantemente traduzido por clarividência, clareza de consciência
ou simplesmente “lucidez”
102
. Essa palavra, de difícil tradução para o português,
98
Cf. Ibid, p. 421.
99
Ibid, p. 424: “Com o desaparecimento da vontade na consciência desaparece também a individualidade,
e com esta se suprimem seu sofrimento e sua miséria. Por isso eu descrevi esse puro sujeito do conhecer,
que sobra então, como o olho eterno do mundo que, ainda que em graus bem variados de clareza, mira de
todos os seres vivos, sem ser afetado por seu nascimento ou sua morte e assim, enquanto idêntico consigo
mesmo, é sempre um e o mesmo, o portador do mundo das idéias, isto é, da objetidade das idéias,
enquanto o sujeito individual, turvado em seu conhecer pela individualidade surgida da vontade, só tem
por objeto coisas singulares e tão passageiras quanto estas”. Aqui temos já uma antecipação da negação
da vontade, pois ao se fazer objeto de pura contemplação a vontade deixa de atuar no sujeito do
conhecimento. Para a negação completa da vontade só resta que ela deixe de aparecer como aquilo que é
conhecido e dê espaço para o inteiramente outro.
100
Cf. Ibid, Idem; Ibid, SW III, p. 430 e WWV E. Cap. 31, SW III, p. 429: “A aptidão predominante para
o modo de conhecimento descrito nos capítulos anteriores, do qual nascem todas as autênticas obras das
artes, da poesia e mesmo da filosofia, é propriamente o que se designa com o nome de gênio. Como este
conhecimento tem por seu objeto as idéias platônicas, que não são, porém, captadas in abstracto, mas
apenas intuitivamente, a essência do gênio reside na perfeição e na energia do conhecimento intuitivo“.
101
Cf. Malter, R. Transzendentalphilosophie und Metaphysik des Willens, p. 210 e seguintes e Methling,
A. Das Realitätsproblem im Denken Schopenhauers, p. 72.
102
Vale notar que Besonnenheit, que vem de besinnen (lembrar-se, recordar-se, refletir, voltar a si), é a
palavra que se usa em alemão para traduzir a palvra grega σοφροσúνη(em latim “temperantia”).
121
aparece em Schopenhauer com um sentido próximo ao sentido das palavras
“Reflexion”, “Tiefsinn”, “Denkkraft”, entre outras e significa, em geral, a capacidade
humana de pensar refletidamente, isto é, abstratamente e a partir de conceitos. É essa
capacidade do intelecto humano de trabalhar com conceitos que se chama propriamente
pensar. Essa capacidade, diz Schopenhauer na segunda edição da Quadrupla Raiz
(1847),
“é também designada pela palavra reflexão (Reflexion) que, a partir de uma metáfora
emprestada à ótica, expressa aquilo que há de derivado e secundário nesse modo de
conhecimento. Esse pensar, essa reflexão confere ao homem aquela clareza de consciência
(Besonnenheit), que é vedada aos animais. Pois, à medida que ela o torna capaz de pensar
milhares de coisas com um conceito, em cada um somente o essencial ele pode desconsiderar
de bom grado diferenças de todo tipo, portanto também aquela de espaço e tempo e pela qual
ele mantém a visão geral do passado e do futuro, assim como daquilo que está ausente,
enquanto o animal está sob todos os pontos de vista ligado ao presente. Essa clareza de
consciência, isto é, a capacidade de se refletir, de vir a si, é a fonte própria de todas as
realizações teóricas e práticas, pela qual o homem ultrapassa decididamente o animal. Daí o
cuidado que ele toma com relação ao futuro ao considerar o passado; daí o procedimento
intencionado, planejado e metódico em cada propósito; daí a associação de muitos para um fim
comum, em suma, a ordem, a lei, o estado, etc”.
103
Numa passagem da Crítica da Filosofia Kantiana, esse aspecto autoconsciente
da Besonnenheit presente na passagem acima citada é ainda mais claramente ressaltado.
Se o animal é escravo do presente, no homem
“nasceu com o dom da razão a clareza de consciência (Besonnenheit). Esta lhe permite,
mirando o passado e o futuro, ter uma visão de conjunto do todo de sua vida e do curso do
mundo, torna-o independente do momento presente, permite-lhe ponderar e executar obras de
maneira planejada, com deliberação, tanto para o mal quanto para o bem. Mas o que o homem
faz, fá-lo com plena autoconsciência. Sabe exatamente como sua vontade decide e o que
escolher em cada ocasião, e qual outra escolha seria possível de acordo com o caso, e, a partir
desse querer autoconsciente, aprende a conhecer a si mesmo, espelhando-se nos próprios
atos.”
104
Se nessas passagens a Besonnenheit é considerada uma capacidade comum a
todos os homens, em outras, ela é destacada como algo particularmente presente no
gênio, no artista e no filósofo. Somente esse gênio teria a capacidade de manter esse
103
SG, SW I, 101.
104
WWV, KKPh, SW II, p. 614, trad. de Jair Barboza, ed. Cit., p. 643. Maria Lúcia Cacciola traduz aqui
Besonnenheit por “discernimento” (Cf. Trad. Cit., p. 168).
122
estado por mais tempo e produzir a partir dele uma obra (artística ou filosófica) pela
qual a vontade se vê a si mesma em seu límpido espelho. Se ao homem comum
interessa menos aquilo que diz respeito à existência objetiva das coisas e mais aquilo
que diz diretamente respeito à sua própria vontade, ao seu interesse, “para o gênio, ao
contrário, cujo intelecto é descolado da vontade e, portanto, da pessoa, tudo o que diz
respeito a essa última não esconde o mundo e as coisas mesmas, mas ele as percebe
nitidamente, as toma tal como ela é em si e para si verdadeira, na intuição objetiva.
Nesse sentido ele é esclarecido (besonnen)”.
105
Segundo Schopenhauer, é essa clareza
de consciência que permite ao pintor, por exemplo, reproduzir fielmente sobre a tela a
natureza que ele tem diante dos olhos e ao poeta evocar sem erro, através de conceitos
abstratos, a intuição presente, anunciando e exprimindo pelas palavras à clara
consciência aquilo que os outros se limitam a sentir. Assim como o sentimento só toma
consciência de si no homem, assim também a vontade só toma plena consciência de seu
mundo no gênio que supera a consideração do homem ordinário e revela, por meio da
idéia, a universalidade presente na essência das coisas.
À medida que se intensifica, em gradações infinitas, a clareza de consciência (Deutlichkeit des
Bewußtseyns), aparece cada vez mais a Besonnenheit e daí aos poucos, ainda que muito
raramente e em graus distintos de clareza surge como um raio na cabeça uma pergunta do tipo
‘o que é tudo isso?’, ou ainda ‘como isso é de fato feito?’ A primeira questão será feita pelo
filósofo quando ela chega a uma grande clareza e é posta com persistência, e a outra, da mesma
forma, será feita pelo artista ou poeta. Dessa forma, a vocação elevada desses dois terá sua raiz
na Besonnenheit, que surge da clareza com a qual eles percebem o mundo e eles mesmos e com
isso chega à consciência sobre eles. Mas o processo todo se origina no fato de que o intelecto,
por seu predomínio, se desliga momentaneamente da vontade, da qual ele é originalmente o
servo.
106
Se como vimos acima, a Besonnenheit é algo presente no gênio, seja ele o
artista, o espectador ou o filósofo, ela é, mais do que isso, o que torna possível que a
vontade enquanto coisa em si chegue à consciência de si mesma. Como faculdade da
razão que possibilita a formação de conceitos e a apreensão das coisas para além do
tempo presente, ela é a condição do modo de consideração independente do princípio de
razão, já que não se prende a uma de suas formas apenas, mas vê a relatividade de todas
105
WWV, E. Kap. 31, SW II, p. 435: “Dem Genie hingegen, dessen Intellekt vom Willen, also von der
Person, abgelöst ist, bedeckt das diese Betreffende nicht die Welt und die Dinge selbst; sondern es wird
ihrer deutlich inne, es nimmt sie, an und für sich selbst, in objektiver Anschauung, wahr: in diesem Sinne
ist es besonnen”.
106
Ibid, p. 435-436.
123
elas e vai diretamente ao essencial presente para além das relações. Ela faz a ponte entre
o conceito e a idéia, entre a ciência por um lado, e a arte e a filosofia por outro.
107
Se o
modo de consideração que segue o princípio de razão é o racional, presente para a
realização da finalidade individual do homem na manutenção de sua existência e na
ciência como uma extensão desse uso do conhecimento dirigido à satisfação da
necessidade do indivíduo e da espécie, o modo que prescinde do que está presente nesse
princípio é o genial, presente essencialmente na arte. A questão por trás da
representação artística se refere à forma do mundo, às idéias individuais enquanto
expressões objetivas, mas particulares da vontade. Por isso, as idéias se dão ao artista de
modo mais claro que em qualquer outro, porque mais intuitivo, mas de maneira
completamente imediata, sem a reflexão da reflexão que só a consciência filosófica é
capaz de fazer, isto é, sem a mediação conceitual. Pois se ele conhece a essência do
mundo na intuição, essa é essencialmente individual e, por essa razão, a Besonnenheit
aparece no gênio como fantasia, seu instrumento indispensável. Pois é a fantasia que
amplia o horizonte do gênio, alargando-o para além de sua experiência pessoal e
permitindo que ele não se limite àquilo que tem diante dos olhos. É ela que
põe o gênio na condição de, a partir do pouco que chegou à sua apercepção efetiva, construir
todo o resto e assim deixar desfilar diante de si quase todas as imagens possíveis da vida.
Ademais, os objetos efetivos são quase sempre apenas exemplares bastante imperfeitos da idéia
que neles se expõe: por isso o gênio precisa da fantasia para ver nas coisas não o que a natureza
efetivamente formou, mas o que se esforçava por formar, mas que devido à luta de suas formas
entre si, não pôde levar a bom termo.
108
Se para o gênio artístico, é essencial a fantasia, para o gênio filosófico – e há de
fato uma philosophische Besonnenheit
109
– o instrumento essencial é a reflexão e com
esse instrumento o filósofo opera sua matéria, os conceitos. A explicação acima do
papel da fantasia na arte é filosófica e não está imediatamente presente na consciência
107
Cf. Kossler, M. Substantielles Wissen, p. 161. A oposição entre a arte e a ciência é expressa no § 36 do
primeiro volume de O Mundo como Vontade e Representação: “A ciência segue a torrente infinda e
incessante das diversas formas de fundamento a consequência: de cada fim alcançado é novamente
atirada mais adiante, nunca alcançando um fim último, ou uma satisfação completa, tão pouco quanto,
correndo, pode-se alcançar o ponto onde as nuvens tocam a linha do horizonte. A arte, ao contrário,
encontra em toda parte o seu fim. Pois o objeto de sua contemplação ela o retira da torrente do curso do
mundo e o isola diante de si. E esse particular, que na torrente fugidia do mundo era uma parte ínfima que
a desaparecer, torna-se um representante do todo, um equivalente no espaço e no tempo do múltiplo
infinito. A arte se detém nesse particular. A roda do tempo pára. As relações desaparecem. Apenas o
essencial, a Idéia, é o objeto da arte.” SW II, p. 218, trad. Cit., p. 253-4.
108
WWV, § 36, SW II, p. 219, trad. Cit., p. 255
109
Cf. WWV, § 1, SW II, p. 3.
124
artística. O artista não compreende sua ação como a construção da idéia a partir da
percepção particular e como abstração da mesma, mas para ele tanto essa intuição como
a fantasia é intuição objetiva. Como diz Kossler, “a clareza de consciência
(Besonnenheit) filosófica se diferencia da artística pelo fato de que ela não iguala essa
fantasia subjetiva à verdade objetiva, mas a reflete em sua subjetividade e assim, por
meio da reflexão que a atravessa é compreensão especulativa (spekulative
Begreifen).”
110
Segundo Kossler, a possibilidade de intuir a essência do mundo que é
dada imediatamente à fantasia artística é, na compreensão filosófica, uma “construção
especulativa” que ao refletir sobre si mesma na simplicidade do pensamento é ao
mesmo tempo revogada, isto é, compreendida em sua artificialidade e subjetividade:
Assim como a visão mais ou menos inconsciente do artista é compreendida como a atividade
da abstração que traz à tona o conceito, da mesma forma a idéia na consideração filosófica é
conceito, inicialmente conceito abstrato, que é compreendido e refletido, entretanto, como
especulativo e nessa intuição é conceito que a si mesmo se compreende (sich selbst
begreifender Begriff) e com isso é idéia conceituada (begriffene Idee).
111
É dessa maneira, segundo Kossler, que se pode interpretar a passagem em que
Schopenhauer afirma que a idéia pode se “definir de todo modo como representante
adequada do conceito”.
112
Enquanto o artista se livra de modo incompreensível
(unbegreifliche) e por um curto tempo do véu de maia que cobre a essência única para
além das representações, o filósofo faz o mesmo de maneira conceitual e definitiva na
medida em que esclarece a essência especulativa do conceito (as idéias), e por isso,
pode refletir o mundo em conceitos abstratos. A obra filosófica deve necessariamente se
fazer em conceitos, ainda que seu conteúdo sejam as idéias e a vontade como coisa em
si, pois o que teríamos diante de nós se não fossem os conceitos entretecidos em um
sistema organicamente construído seria mais uma intuição artística – um poema, por
exemplo, que também tem nos conceitos, nas palavras, a sua matéria. A exposição
filosófica deve mostrar ao mesmo tempo as coisas no mundo em sua particularidade,
isto é, em sua propriedade particular que a destaca de todas as outras e, ao mesmo
tempo, em sua unidade profunda, pois sua tarefa é aquela atividade aparentemente
contraditória de “expressar o uno no múltiplo e o múltiplo no uno”. Por isso, do ponto
de vista da representação e do conceito, as coisas aparecem como coisas discretas, como
110
Op. Cit., p. 162.
111
Ibid, Idem.
112
Cf. Ibid, p. 163 e WWV, § 49, SW II, p. 276, trad. Cit., p. 310-1.
125
diferentes uma das outras, mas do ponto de vista especulativo do “mundo como vontade
e representação”, elas aparecem em sua unidade.
113
Que se tome como exemplo, as faculdades de conhecer. Na exposição de
Schopenhauer, as diferentes faculdades de conhecer, sensibilidade, entendimento,
consciência de si e razão estão completamente separadas de modo que as passagens da
sensação para a intuição, da intuição para o conceito e do ato de vontade para a ação do
corpo são todas incompreensíveis e acontecem subitamente. Mas a idéia, pelo contrário,
“toma as diferentes faculdades de conhecer como momentos que se desenvolvem se
excluindo e se incluindo a si mesmas; na idéia, a vontade como coisa em si cria a partir
de si a sensibilidade e como sua intensificação (Steigerung) entendimento, razão e
consciência de si, na qual a unidade dessas faculdades forma a identidade completa da
idéia. Ela pode ser designada como o conceito que se conceitua a si mesmo, pois só à
maneira da idéia sua origem a partir da intuição é compatível com a intemporalidade
que lhe é essencial”.
114
Com essa interpretação, Kossler pretende fechar o hiato que
separa duas tendências contraditórias da filosofia de Schopenhauer, a saber, a afirmação
da separação absoluta entre vontade e intelecto e a união de ambos com o primado da
vontade. Ambas as tendências ou doutrinas fundamentais só seriam compatíveis na
filosofia de Schopenhauer por meio da doutrina especulativa das idéias. Assim, a
tendência a separar vontade e intelecto corresponderia ao ponto de vista abstrato e
conceitual (presente especialmente na dissertação Sobre a Quadrúpla Raiz e no ponto
de vista assumido no primeiro livro da obra principal) e o ponto de vista do primado da
vontade, que supõe, porém, a união de ambos, o pensamento metafísico-especulativo
das idéias (especialmente presente na metafísica propriamente dita de Schopenhauer, os
livros segundo, terceiro e quarto de O Mundo como Vontade e Representação). A
possibilidade de pensar ambas as doutrinas como um pensamento único é dada pela
compreensão especulativa da doutrina das idéias como um processo que volta a si.
Assim,
“a metafísica de Schopenhauer é especulativa no duplo sentido em que ela é, por um lado,
construção como desenvolvimento temporalmente exposto da vontade que é em si
(ansichseienden) para a idéia mais elevada em uma gradação sequencial de idéias e, por outro,
113
Para Kossler a unidade especulativa do pensamento de Schopenhauer está no título de sua obra
principal que se chama “ ‘Die Welt als Wille und Vorstellung’ und nicht ‘Die Welt als Wille und die Welt
als Vorstellung’”. Cf. Op. cit, p. 131.
114
Kossler, M. Op. cit, p. 160. A interpretação de Kossler supõe aqui uma comparação com o movimento
da PhG de Hegel que vai da certeza sensível até o espírito como momentos do espírito absoluto.
126
na medida em que esse desenvolvimento é compreendido como a essência do mundo sempre
igual a si mesma, a qual está expressa em toda idéia individual de modo completo e inteira, e é
o espelho da verdadeira essência do mundo. O especulativo torna o desenvolvimento das idéias
um movimento dialético, que se torna objetivo na idéia mais elevada, a do homem individual,
como experiência da consciência. O conhecimento completo do caráter, tal como é essa
experiência em sua simplicidade, é a coincidência da reflexão e da imediatidade na ação moral
e com isso como autoconhecimento da vontade a compreensão filosófica da idéia não apenas
segundo sua forma, como na arte, mas também segundo seu conteúdo como simples essência
do mundo”.
115
Essa interpretação de Kossler, como se vê, tenta trazer ao conceito o que na
filosofia de Schopenhauer não se deixa descrever conceitualmente, a saber, a
possibilidade de um conhecimento efetivo da essência do mundo pela própria essência
do mundo. Schopenhauer a teria tomado por incorreta, impossível e desnecessária –
Kossler mesmo o admite. Ele entende porém que esse recuo do filósofo se deve ao fato
de Schopenhauer ter se prendido a sua teoria do conceito desenvolvida de maneira
puramente dianológica (erkenntnistheoretisch), sem levar em conta o fato de que tal
teoria deveria ser revista à luz de sua metafísica. Todavia, tal interpretação nos ajuda a
pensar a contraposição de Schopenhauer a Hegel, pois permite uma consideração
especulativa da filosofia de Schopenhauer, o que torna possível uma comparação que
permite ir além da mera constatação da exterioridade completa dos dois autores. A partir
dessa consideração se torna possível não apenas aproximar Hegel e Schopenhauer, mas
mostrar de modo mais convincente os pontos a partir dos quais ambos se distanciam e
pelos quais se pode dar a razão de suas diferenças fundamentais. É à luz dessa
consideração que passamos a analisar ambas as filosofias a partir de seu centro, isto é, a
apresentação da substância que é o sujeito que se autodiferencia a si mesmo. Nossa
interpretação seguirá de perto a abordagem de Kossler, a qual servirá de guia para o
exame do núcleo doutrinal de ambos os autores. A partir desse exame poderemos
discutir a interpretação de Kossler e destacar os pontos em que nossa interpretação
diverge da sua.
115
Ibid, p. 162.
127
Capítulo 3 – A realidade substancial e a determinação das coisas finitas
Para que a metafísica de Schopenhauer seja comparável ao sistema hegeliano
deveríamos considerar a vontade não apenas como o conteúdo mais efetivo da
experiência, como o espírito ou a “idéia absoluta” em Hegel, mas também como o
sujeito que estabelece sua própria autodiferenciação, como o absoluto hegeliano. Em
várias passagens de sua obra, quando Schopenhauer coloca a vontade, como coisas-em-
si, na origem de tudo que existe no mundo como representação, esse ponto de vista
totalizante se faz presente. Isso certamente parecerá estranho ao leitor de Schopenhauer,
uma vez que, como vimos, o filósofo não se cansa de negar que a vontade possa ser
considerada algo como o “absoluto”. É possível, da mesma forma, referir-se a outras
tantas passagens em que Schopenhauer afirma o caráter relativo e hipotético dos
resultados a que ele chega em sua metafísica. Isso se deve como vimos, em parte a seus
pressupostos gnosiológicos, em parte à natureza mesma de sua especulação filosófica.
Mas essa reserva se deve de fato e sobretudo à compreensão que Schopenhauer tem do
absoluto como algo fora da experiência e impossível de ser conhecido, compreensão
que como estamos vendo ao longo dessa tese, não se identifica com a de Hegel. Já o
fato de o absoluto em Hegel assumir também a forma do Deus cristão será analisado e
discutido na terceira parte dessa tese.
Tendo em vista a precaução de chamar a vontade de “absoluto” procuraremos
nos valer das expressões que o próprio Schopenhauer utiliza para nomear a vontade –
expressões como a “essência íntima do mundo”, “aquilo que há de mais real” ou
simplesmente a “coisa em si” presente em todos os fenômenos. Ou seja, a abordagem
especulativa mostra o que o entendimento comum não consegue apreender – embora de
forma hipotética e não científica. Supondo que o autor já tenha encontrado o caminho
que o levou a nomear de “vontade” aquilo que ele entende estar na base de todos os
fenômenos da natureza (inclusive o homem), trata-se agora de considerar como essa se
objetiva no mundo. Desse ponto de vista, a vontade será considerada não mais como um
objeto conhecido pelo sujeito e determinado por suas condições de conhecimento, mas
sim como uma substância que se põe a si mesma e se manifesta como sujeito no mundo
(natural e humano). Para essa consideração, a teoria do conhecimento será suspensa,
mas continuará, como se verá, a fornecer as bases do pensamento especulativo em
questão. Nisso estará uma das diferenças fundamentais entre Hegel e Schopenhauer.
128
3.1 – O mundo como objetivação da vontade em Schopenhauer
Uma metafísica da natureza somente é possível para Schopenhauer porque um
ponto de vista que vai além dos resultados da reflexão científica pode ser assumido.
Esse ponto de vista é a consideração dos objetos para além das formas do princípio de
razão, isto é, a consideração capaz de conhecer o idêntico em fenômenos diferentes e o
diferente em fenômenos semelhantes
116
, o que constitui a genialidade no sentido
filosófico. Essa consideração genial, aqui também chamada especulativa, é que permite
fazer a analogia entre o eu e o mundo que desvenda o mistério da natureza:
“Na medida em que procuro filosofia, não etiologia, tenho de aprender a compreender até
mesmo a essência íntima dos movimentos mais simples e comuns do corpo orgânico (os quais
vejo se seguirem de causas) a partir de meu próprio movimento por motivos, e reconhecer que
as forças infundadas que se exteriorizam em todos os corpos da natureza são idênticas em
espécie com aquilo que em mim é a vontade, e diferentes desta apenas segundo o grau. Isso
significa: a quarta classe de representações estabelecida no ensaio sobre o princípio de razão
tem de se tornar para mim a chave para o conhecimento da essência íntima da primeira classe.
A partir da lei de motivação tenho de aprender a compreender a lei de causalidade em sua
significação íntima”.
117
Se a filosofia deve ser um conhecimento incondicionado da essência do mundo e
não um conhecimento relativo
118
, ela não pode se limitar à explicação do modo de
atuação das coisas no mundo, mas deve determinar sua essência. É verdade que a
matemática, por exemplo, nos fornece um conhecimento certo e rigoroso daquilo que no
fenômeno é grandeza, posição, número, ou seja, relações espaciais e temporais e a
etiologia nos dá por completo as condições regulares sob as quais os fenômenos
aparecem no tempo e no espaço com todas as suas determinações. No entanto, elas não
mostram nada além de meras proporções, relações de uma representação com outra,
formas sem nenhum conteúdo. O conteúdo que está em jogo nas ciências é algo
previamente dado, mas nunca explicado, algo não mais explanável por outra coisa,
portanto, algo sem-fundamento (grundlos). Na explanação científica, segundo o
116
Cf. WWV, § 22, SW II, p. 132, trad. Cit., p. 169.
117
WWV, § 24, SW II, p. 150, trad. Cit., p. 187. Vê-se aqui uma exposição do argumento de analogia em
que ela é feita bem no interior do princípio de razão. Apesar disso, pode-se afirmar que a analogia só
pode ser feita a partir de uma visão para além das formas do princípio de razão que as reconhece em sua
relatividade e as utiliza para estabelecer a verdade filosófica que não diz mais respeito ao âmbito das
determinações abstratas do princípio de razão suficiente.
118
Cf. Ibid, trad. Cit., p. 186.
129
filósofo, sempre permanece algo pressuposto, a saber, as forças da natureza, o modo
determinado de fazer efeito das coisas, a qualidade, o caráter de cada fenômeno, o
infundado (das Grundlose), algo que é independente das formas de conhecimento, mas
que aparece determinado por essas formas, por isso sua forma pode ser conhecida, não
seu conteúdo, ou seja, como elas aparecem, mas não o que aparece. Schopenhauer parte
da tese segundo a qual em cada coisa na natureza há algo a que jamais pode ser
atribuído um fundamento, para o qual nenhuma explanação é possível, nem causa
ulterior pode ser investigada. Esse infundado é justamente a coisa em si, “aquilo que
essencialmente não é representação, não é objeto do conhecimento e só se torna
cognoscível quando entra naquela forma. A forma lhe é originariamente alheia e nunca
se torna una com ela. A coisa-em-si jamais pode ser remetida à mera forma e como esta
é o princípio de razão, jamais pode ser plenamente fundamentada”.
119
Nesse ponto fica claro o quanto é importante, para o ponto de vista de
Schopenhauer, restabelecer um sentido para a questão da coisa-em-si. Pois é admitido
algo para além da atividade do sujeito – pelo menos do sujeito do conhecimento – que
atua, portanto, sem a participação constitutiva do sujeito
120
. Aqui está a pressuposição
ontológica que tornará possível o anti-racionalismo schopenhaueriano, entendido num
sentido rigoroso como contraposição à filosofia pós kantiana: a suposição de uma
atividade anterior ao conhecimento, que torna esse último mero resultado de sua
atividade, que estabelece um fosso entre aquilo que se manifesta e aquilo que é
conhecido, que torna a liberdade humana impossível enquanto liberum arbritrium
indifferentiae, e que abre espaço a uma vontade cega que torna ilusório todo sentido
genuinamente espiritual para a vida humana que não seja a revogação dessa primazia da
vontade. O que pode ser plenamente conhecido não é a coisa mesma, mas somente
aquilo que se submete às formas do sujeito, e ao invés de reduzir isso mesmo à toda a
realidade, para Schopenhaer aquilo que realmente tem efetividade está fora dessas
formas, embora presente no interior do indivíduo que, pela reflexão filosófica, pode se
119
WWV, § 24, SW II, p. 144, trad. Cit., p. 181.
120
“A natureza significa em geral aquilo que age, que se move e cria sem a mediação do intelecto.”
(“Ueberhaupt bedeutet Natur das ohne Vermittelung des Intellekts Wirkende, Treibende, Schaffende”).
WWV, E. Kap. 21, SW III, p. 304. É possível encontrar várias passagens em que o autor fala de “um ser
em si, independente de tornar-se conhecido, de se apresentar a um intelecto” (Kap. 22, SW III, p. 309) ou
de “uma essência em si das coisas do mundo que existe independente do conhecimento” (Idem, p. 322).
Para Schopenhauer, desconsiderar esse algo para além dos fenômenos e tomar o mundo da representação
como algo absolutamente real seria construir uma ontologia com um material que só permite uma
dianoiologia. Esse seria o principal erro do dogmatismo que desconsidera a essência das coisas e só lida
com fenômenos como se fossem coisas em si mesmas (Cf. Ibid, Idem).
130
reconhecer nos fenômenos exteriores. Desse movimento esperaríamos uma volta do
realismo, já que recupera um conceito forte de coisa-em-si como essência. O que
veremos, entretanto, será um idealismo sui generis, que afirma a incognoscibilidade do
que é mais essencial e a matéria como um “absoluto”. Autores como Fichte e Hegel
serão criticados aqui exatamente por terem tomado o caminho inverso daquele que
Schopenhauer, a partir de Kant, tomou: ambos, pelo menos essa é a leitura de
Schopenhauer, dissolveram a coisa em si na atividade consciente do sujeito. Exatamente
isso que Hegel e Fichte teriam desconsiderado será a chave para a filosofia de
Schopenhaer: a atividade inconsciente do indivíduo, como o infundado que está na base
(a essência que explica sem ser explicada) dos fenômenos. Para ele, portanto, vale a
divisa, quanto mais real menos racional, pois
Quanto mais necessidade um conhecimento implica, tanto mais há nele aquilo que não pode ser
pensado nem representado de outro modo, como por exemplo, as relações espaciais; quanto
mais claro e suficiente ele é, tanto menos puro conteúdo objetivo possui, ou tanto menos
realidade propriamente dita ele fornece. Ao contrário, quanto mais nele há que tem de ser
apreendido de maneira pura e contingente, quanto mais ele se nos impõe de modo
simplesmente empírico, tanto mais há nele algo de propriamente objetivo e verdadeiramente
real, mas também tanto mais inexplicável é, ou seja, não pode mais ser deduzido de outra
coisa
121
.
Com a mediação dessas considerações metafísicas que restabelecem uma
discussão sobre a essência da coisa-em-si, Schopenhauer pode considerar agora toda a
natureza – e isso quer dizer, todo o mundo – como objetivação da vontade, isto é, como
o tornar-se objeto, representação, apresentação no mundo fenomênico daquela essência
em si de todas as coisas. Pelo pressuposto da absoluta heterogeneidade do real e do
ideal, daquilo que se manifesta e o modo como se manifesta, da coisa-em-si e suas
formas fenomênicas, Schopenhauer coloca essa essência como una, mas de uma
unidade especial, pois não derivada da forma da multiplicidade e, na verdade, pela
abstração dessa forma do reino do em si:
a vontade como coisa-em-si encontra-se fora do domínio do princípio de razão e de todas as
suas figuras, e, por conseguinte, é absolutamente sem-fundamento, embora cada um de seus
fenômenos esteja por inteiro submetido ao princípio de razão. Ela é, pois, livre de toda
pluralidade, apesar de seus fenômenos no espaço e no tempo serem inumeráveis. Ela é una,
todavia não no sentido de que um objeto é uno, cuja unidade é conhecida apenas em oposição à
121
WWV, § 24, SW II, p. 145, trad. Cit., p. 182.
131
pluralidade possível, muito menos é una como um conceito, cuja unidade nasce apenas pela
abstração da pluralidade; ao contrário, a vontade é uma como aquilo que se encontra fora do
tempo e do espaço, exterior ao principio individuationis, isto é, da possibilidade da
pluralidade
122
.
Nessa passagem vemos condensada a maneira como Schopenhauer estabelece a
relação entre a vontade e suas manifestações particulares, a essência e seu fenômeno
compreendido como objetivação, visibilidade da vontade. As formas de conhecimento
não se referem senão à manifestação da coisa-em-si, que enquanto tal permanece sem
fundamento. É assim que Schopenhauer infere as características metafísicas da vontade.
Ela permanece exterior ao tempo e ao espaço, por isso não conhece nenhuma
determinação ou limitação temporal ou espacial. Una ela é não no sentido em que um
indivíduo é uno ou um conceito é uno, mas como algo alheio àquilo que possibilita a
pluralidade, o principium individuationis.
123
Schopenhauer diz expressamente que “não
há uma parte pequena dela na pedra, uma maior no homem, pois a relação entre parte e
todo pertence exclusivamente ao espaço, e perde todo seu sentido quando nos despimos
dessa forma de intuição. Mais e menos concernem apenas ao fenômeno, isto é, à
visibilidade, à objetivação: esta possui um grau maior na planta que na pedra, um grau
maior no animal que na planta, sim, o aparecimento da Vontade na visibilidade, sua
objetivação, possui tantas infinitas gradações como a existente entre a mais débil luz
crepuscular e a mais brilhante luz solar, entre o tom elevado e o eco mais baixo”.
124
Dessa forma, se a pluralidade se deve apenas às formas subjetivas de conhecimento, o
espaço e o tempo, que não têm participação naquilo que constitui o mais essencial, ela
só diz respeito ao modo como se objetiva para um sujeito cognoscente a coisa em si.
Por outro lado, a maneira como é vista essa coisa em si atinge diversos graus de
clareza, ou visibilidade (Sichtbarkeit) e esses graus de clareza correspondem aos graus
de objetivação da vontade. Aqui o objeto conhecido se já não é a coisa em si, pois
mantém a forma de objeto para um sujeito, já não obedece ao principium
individuationis e por isso apresenta de maneira cada vez mais clara aquela essência. Daí
seu nome de objetidade adequada da vontade. Trata-se das idéias, compreendida agora
como os diferentes graus de objetivação da vontade expressos em inumeráveis
indivíduos e que existem como seus protótipos, ou formas eternas das coisas. Das coisas
122
WWV, § 23, SW II, p. 134, trad. Cit., p. 172.
123
Nas preleções de Berlim (1920), diz Schopenhauer: “Sua unidade é mais propriamente ausência de
número (Zahllosigkeit)” MN, p. 106.
124
WWV, § 25, SW II, p. 152, trad. Cit., p. 189.
132
particulares às idéias, e destas à coisa em si, a vontade ganha em realidade aquilo que
ela perde em clareza para a consciência:
“Assim como as gradações de sua objetivação não lhe dizem respeito imediatamente, diz-lhe
menos respeito ainda a pluralidade dos fenômenos nesses diferentes graus. Por outras palavras,
a multidão de indivíduos de todo tipo ou as exteriorizações isoladas de cada força não lhe
concernem, pois essa pluralidade é condicionada imediatamente por tempo e espaço, nos quais
ela mesma nunca entra em cena. A vontade se manifesta no todo e completamente tanto em um
carvalho quanto em milhões. O número deles, sua multiplicação no espaço e no tempo, não
possui significação alguma em referência a ela, mas só em referência à pluralidade dos
indivíduos que conhecem no espaço e no tempo e aí mesmo são multiplicados e dispersos”.
125
Aqui está em jogo duas ordens de multiplicidade contrapostas à “unidade” da
vontade: a pluralidade dos indivíduos no espaço e no tempo, ou simplesmente as coisas
particulares que derivam do principium individuationis por um lado, e por outro, as
manifestações da vontade em seus diferentes graus, as idéias. Por isso as idéias, sempre
no plural,
126
são definidas como graus de objetivação da vontade. Sua multiplicidade
não se deve às formas do princípio de razão, mas à atividade da própria vontade que vai
se manifestando sempre em graus mais claros de objetivação. Mas se o que torna sua
manifestação múltipla é a clareza com a qual ela se manifesta para um sujeito, então
essa multiplicidade ainda deve ser remetida ao mundo como representação, pois retém
sua forma fundamental de ser objeto para um sujeito.
127
Os graus mais baixos de
objetivação da vontade são expostos pelas forças mais universais da natureza. Elas
aparecem na matéria em geral como gravidade, impenetrabilidade e em particular como
rigidez, fluidez, elasticidade, eletricidade, magnetismo e outras propriedades químicas
de todo tipo. Essa força é conhecida filosoficamente como objetidade imediata da
vontade na natureza e, por isso encontra-se fora da cadeia de causas e em geral fora do
princípio de razão. É assim algo tão sem-fundamento (grundlos) como a própria
vontade e é não a causa de uma série de efeitos na natureza, mas aquilo que confere a
uma causa sua eficácia. A etiologia considera tais forças, porém, como causas
originárias e as define como qualitas occulta.
125
WWV, § 25, SW II, p. 152-3, trad. Cit., p. 189-90. Cf. Malter, R. Op cit., p. 254.
126
Não há em Schopenhauer algo como uma “idéia absoluta”. As determinações do que é a coisa em si se
dão pela relação sujeito e objeto e não há uma totalização das determinações, mas uma constante
depuração do elemento subjetivo que desfigura o em-si. Nesse sentido não há em Schopenhauer uma
“totalidade” no sentido hegeliano, mas uma essência por trás da aparência.
127
Cf. Malter, Op. cit, p. 56-7.
133
A partir dessas forças mais universais até o homem, a metafísica da natureza vê
a vontade se objetivar na natureza em graus de clareza cada vez maiores. Das forças
mais universais até o homem o que se vê, com a aparição do conhecimento, é o
desenvolvimento da individualidade. No reino orgânico, cada espécie natural, tanto do
reino vegetal quanto animal representa uma idéia, isto é, uma manifestação particular,
própria, única, da vontade. Já no homem, cada indivíduo representa como que uma
idéia, de modo que cada caráter humano pode ser visto como uma idéia particular:
“Portanto, enquanto cada homem deve ser visto como um fenômeno particularmente
determinado e característico da Vontade, em certa medida até mesmo como um Idéia própria,
nos animais, ao contrário, o caráter individual falta por completo, posto que apenas a espécie
possui significação própria. Quanto mais o animal encontra-se afastado do homem tanto menor
é nele o vestígio de caráter. As plantas, ao fim, não possuem propriedades individuais,
excetuando-se as que podem ser explicadas completamente a partir das influências favoráveis
de solo, clima e outras circunstâncias. Por último, no reino inorgânico da natureza desaparece
por completo qualquer individualidade”.
128
Os fenômenos da natureza inorgânica são exteriorizações de forças universais da
natureza que não se objetivam pela intermediação da diferença de individualidades que
expressam a idéia em sua totalidade, mas exprimem antes a si mesmos unicamente na
espécie, expondo a esta por completo e sem desvio em cada fenômeno particular. Essas
forças (a gravidade, a eletricidade, por exemplo) expõem-se na natureza em milhões de
fenômenos exatamente do mesmo modo, e somente as circunstâncias exteriores podem
modificá-los. Essas circunstâncias exteriores não dizem respeito àquilo que a força é em
si mesma (a vontade ou o grau de sua objetivação, a idéia), mas a seus fenômenos
particulares determinados pelo tempo, espaço e a causalidade. A unidade de sua
essência em todos os seus fenômenos, essa constância inalterável de seu aparecimento
toda vez que sejam dadas as condições pelo fio condutor da causalidade define o que se
entende por lei natural. Essa é dada pela “referência de uma idéia à forma de seu
fenômeno. Tal forma é tempo, espaço e causalidade, os quais têm conexão necessária e
inseparável, e relação recíproca.”
129
A idéia se multiplica em inúmeros fenômenos
através do tempo e do espaço. Já a ordem de aparecimento desses fenômenos nestas
formas da multiplicidade é determinada pela lei de causalidade. Essa fornece assim, a
norma pela qual os fenômenos das diversas idéias aparecem, em conformidade com a
128
WWV, § 26, SW II, p. 156, trad. Cit., p. 194. Itálico nosso.
129
WWV, § 26, SW II, p. 159, trad. Cit., p. 196.
134
qual espaço, tempo e causalidade são distribuídos. Segundo Schopenhauer, a
causalidade deve remeter à matéria entendida como substrato dos fenômenos, pois essa
última representa a união de espaço e tempo, “união que se mostra como mudança dos
acidentes na permanência da substância, e cuja possibilidade universal é justamente a
causalidade ou o devir”.
130
Assim como a lei de causalidade se relaciona com a lei da
permanência da substância, da mesma forma tempo e espaço, pois “o tempo é a mera
possibilidade de determinações opostas na mesma matéria, o espaço é a mera
possibilidade de permanência da mesma matéria sob determinações opostas”.
131
Com
isso temos um representante no mundo fenômenico da representação daquilo que
constitui no mundo como vontade a unidade da coisa em si – a matéria. Ela passa como
uma substância presente em toda parte na natureza e suas alterações ou determinações
possíveis no mundo da experiência é seu acidente. Aquela norma do aparecimento dos
fenômenos, a causalidade,
“remete necessariamente à identidade de toda a matéria existente, substrato comum de todos os
diversos fenômenos, os quais, se não fossem relacionados à matéria comum, cuja posse têm de
repartir, não precisariam dessa lei para determinar suas exigências: todos poderiam
simultaneamente e conjuntamente preencher o espaço infinito por um tempo infinito. Ora, visto
que a totalidade dos fenômenos das Idéias eternas remete a uma única e mesma matéria, tem de
existir uma regra do seu aparecer e desaparecer, do contrário nenhum deles cederia lugar ao
outro. Em virtude disso, a lei de causalidade está intimamente ligada à lei de permanência da
substância”.
132
A Matéria é assim apresentada como o substrato de todos os fenômenos que
estão ligados segundo a lei de causalidade. Com isso, ela faz o vínculo entre o mundo
da multiplicidade fenômenica (o mundo como representação) e o mundo da essência
única que se manifesta (o mundo como vontade). Nela está o mundo real como o
complexo do fundado (Grund) e o sem-fundamento (Grundlose) – o princípio de razão,
a representação e a vontade cega não mais explicável.
133
O conceito de matéria
representa assim, sem dúvida, um ponto central na determinação da relação entre a
vontade (o domínio da coisa em si que estaria além de toda possibilidade de
pluralidade) e a representação (o mundo da experiência submetido ao princípio de
razão, e por isso, múltiplo). Para tornar essa relação um pouco mais clara devemos
130
WWV, § 26, SW II, p. 160, trad. Cit., p. 197.
131
Ibid, Idem.
132
Ibid, Idem.
133
Cf. Malter, R. Transzendentalphilosophie und Metaphysik des Willens, p. 260.
135
analisar, portanto, o capítulo 24 dos Complementos ao Mundo como Vontade e
Representação, que tem como tema exatamente a matéria (Materie). Vamos considerar
esse capítulo como fio condutor para a interpretação do conceito de matéria, deixando
um pouco de lado as alterações que o conceito sofre ao longo da obra de Schopenhauer
e sem a intenção de fornecer uma interpretação definitiva desse conceito que tem sido a
cruz dos intérpretes de Schopenhauer.
134
O conceito de matéria em Schopenhauer tem dois lados. Por um lado ela é
subjetiva, pois é representação, mas um tipo de representação essencial, pois é uma
condição da experiência. Se remetendo ao capítulo 4 dos Complementos em que
Schopenhauer apresentou uma tábua dos conhecimentos a priori, o autor retoma a
consideração da matéria como a “atividade (Wirksamkeit) em geral”. Por esse motivo a
matéria ocupa o lugar da causalidade na tábua dos conhecimentos a priori, pois o
material é “aquilo que age (Wirkende), o efetivo (Wirkliche) em geral e abstraindo do
modo específico de seu atuar. Por isso a matéria, enquanto tal, não é objeto da intuição,
mas somente do pensamento, portanto, propriamente uma abstração”.
135
A matéria só
pode ser intuida como uma forma determinada de atuar, por isso, só aparece na intuição
como um corpo dotado de forma e qualidade. Nesse sentido, a matéria é Stoff. Abstraída
de sua forma específica de agir, compreendida como a atividade in abstracto a Materie
é o agir em geral sempre pressuposto em toda intuição. Por isso, a matéria, enquanto
Materie não é objeto, mas condição da experiência. Ela desempenha assim o papel da
categoria de substância, mas por ser apenas o agir em geral ela não se separa da
causalidade, pois não pode ser pensada senão preenchendo o espaço e, dessa forma,
atuando. Portanto, “a essência completa da matéria consiste no atuar (Wirken), somente
através desse [atuar] ela preenche o espaço e permanece no tempo: ela é completamente
apenas causalidade”
136
. Enquanto condição da experiência, a matéria é considerada
subjetiva, algo que o entendimento acrescenta necessariamente à experiência para torná-
la possível.
Mas para além de seu lado subjetivo, a matéria tem um lado objetivo, referido
àquilo que ela é em si mesma. Aqui a matéria, compreendida não mais como simples
condição subjetiva da experiência, mas como visibilidade da vontade, parece fazer as
134
Sobre a discussão do “materialismo” em Schopenhauer Cf. uma seleção de textos em Spierling, V.
Materialen zu Schopenhauers “Die Welt als Wille und Vorstellung”, pp. 341 e seguintes. Uma discussão
sobre as diversas interpretações está em Brandão, Eduardo. O conceito de matéria na obra de
Schopenhauer, p. 206, nota 631.
135
WWV, Kap. 24, SW III, p. 346.
136
WWV, Kap. 24, SW III, p. 347.
136
vezes de um efetivo representante do conceito (e não da categoria) de substância.
Embora não possa ser dada na experiência, a matéria compreendida como a própria
causalidade objetiva, parece atuar de modo independente do sujeito:
“De acordo como isso a matéria é aquilo pelo qual a vontade, que constitui a essência das
coisas, aparece na perceptibilidade, se torna intuível, visível. Nesse sentido, a matéria é então a
mera visibilidade da vontade, ou o vínculo do mundo da vontade com o mundo como
representação. Ela pertence a esse, na medida em que é o produto das funções do intelecto, e
àquele na medida em que é a vontade que se manifesta em todos os seres materiais, isto é,
fenômenos. Por isso, todo objeto é enquanto coisa em si vontade e enquanto fenômeno
matéria”.
137
Dessa forma, Schopenhauer considera a matéria como a própria vontade, não
mais como ela é em si mesma, mas à medida que é vista ou intuída (angeschaut), ou
seja, adentra o mundo como representação. Nessa medida ela é o estofo (Stoff) do
mundo vísivel, aquilo que é dado a ver, cuja essência é a vontade. Como representante
da vontade una, também a matéria em si mesma é una: “as figuras são inumeráveis; a
matéria é una; do mesmo modo que a vontade é una em todas as suas objetivações”.
138
Daqui surge a inseparabilidade entre força, corpo e matéria, pois uma não pode surgir
sem a outra: “Pois se a matéria é a visibilidade da vontade, toda força entretanto é em si
vontade, então nenhuma força pode aparecer sem substrato material e, inversamente,
nenhum corpo pode ser sem as forças que lhe são inerentes, que constituem assim sua
qualidade. Com isso, ele é a união de matéria e forma, que se chama Stoff. Força e
matéria são inseparáveis, pois no fundo são uma só”.
139
Nesse ponto central de sua metafísica Schopenhauer deve compatibilizar o ponto
de vista idealista (do mundo como representação, presente no primeiro livro de O
Mundo) com o ponto de vista metafísico e objetivo (presente na metafísica da natureza
do segundo livro). Por um lado a matéria é uma espécie de categoria – praedicabilia a
priori para usar a expressão dos Complementos, condição da experiência, mas que se
reduz à categoria de causalidade que a pressupõe; por outro lado, enquanto visibilidade
da vontade, ela reflete a unidade da coisa em si, para além das formas da representação.
137
WWV, Kap. 24, SW III, p. 349. “Demzufolge ist die Materie Dasjenige, wodurch der Wille, der das
innere Wesen der Dinge ausmacht, in die Wahrnehmbarkeit tritt, anschaulich, sichtbar wird. In diesem
Sinne ist also die Materie die bloße Sichtbarkeit des Willens, oder das Band der Welt als Wille mit der
Welt als Vorstellung. Dieser gehört sie an, sofern sie das Produkt der Funktionen des Intellekts ist, jener,
sofern das in allen materiellen Wesen, d.i. Erscheinungen, sich Manifestirende der Wille ist. Daher ist
jedes Objekt als Ding an sich Wille, und als Erscheinung Materie”.
138
WWV, Kap. 24, SW III, p. 351.
139
Ibid, p. 351-2.
137
Nesse sentido ela tem um duplo estatuto: enquanto conceito abstrato que é condição da
experiência, ela é aquilo que permanece no espaço; enquanto dada na intuição empírica
ela é aquilo que se altera no tempo. Por isso, além de tudo o mais ela é ainda unificação
de espaço e tempo.
140
Se como vimos, a matéria se reduz à causalidade, então o
conceito de substância é apenas um derivado e por isso Schopenhauer não o admite
como categoria do entendimento.
De seu ambíguo estatuto deriva a característica de ser um absoluto no mundo
como representação. Pois apesar de ser algo acrescentado pelo pensamento
(Schopenhauer usa a expressão “hinzugedacht”) à experiência, à matéria cabem todos os
atributos que se predicam ao conceito de uma substância absoluta: ela é incriada,
imperecível e presente em toda intuição. Seria a vontade um absoluto no mundo em si
mesmo? Schopenhauer parece conceder:
“Com efeito, todo o palavrório sobre o absoluto, este tema quase que exclusivo das tentativas
de filosofia, ensaiadas desde Kant, nada mais é do que a prova cosmológica disfarçada. Ou
seja, esta prova que, em conseqüência do processo que lhe foi movido por Kant, foi declarada
privada de todos os direitos e fora-da-lei, não podendo mais mostrar-se em sua verdadeira
figura, entra em cena, por isso, sob toda a sorte de disfarces, ora com distinção, sob o manto da
intuição intelectual, ou do pensamento puro, ora como um suspeito vagabundo que consegue o
que quer, ora mendigando, ora ameaçando com os mais humildes filosofemas. Se vossas
senhorias fazem questão absoluta de um absolutum, então lhes porei nas mãos um, que satisfaz
a todas as exigências de uma tal mercadoria, bem melhor do que vossas esgarçadas figuras de
nuvens: é a matéria. Ela é incriada e imperecível, portanto efetivamente independente e ‘quod
per se est et per se concipitur’. Tudo provém do seu seio e para ele retorna: que mais se pode
desejar de um absoluto?”
141
Apesar dessa e de outras afirmações,
142
Schopenhauer nega qualquer
possibilidade de conhecimento do absoluto. Isso se deve em parte devido à natureza
secundária do intelecto; em parte à maneira como Schopenhauer entende o absoluto:
como algo fora de toda experiência possível, pois tudo o que se dá para uma intuição só
pode ser limitado por nossas formas de conhecimento. No entanto, aquilo que é o
140
Cf. KKPh, trad. Cit., p. 146.
141
KKPh, SW II, p. 574. Trad. Cit., p. 140-1. A passagem em latin é uma referência à definição 3 da parte
I da Ética de Espinosa que tem como objeto justamente o conceito de substância: “Por substância entendo
o que existe em si e por si é concebido, isto é, aquilo cujo conceito não carece do conceito de outra coisa
do qual deva ser formado”. Ética, Trad. de Joaquim de Carvalho, Ed. Os pensadores, São Paulo, Abril
Cultural,1983, p. 76. Cf. P II, §§ 42 e 74 e o Prólogo aos Dois Problemas Fundamentais da Ética.
142
Eduardo Brandão oferece um esquema das passagens em que Schopenhauer afirma a matéria como um
absoluto no texto A concepção de matéria em Schopenhauer e o absoluto. Op. cit., p. 49 e seguintes.
138
núcleo e a essência da realidade se manifesta, se objetiva se dá a ver no mundo como
idéia, matéria e vontade. Isso que se manifesta, isso que se dá a ver não é, todavia, o
absoluto, mas somente aquilo que relativamente a nós é o mais essencial. O que ele é
em si mesmo e fora de toda relação permanecerá sempre um mistério
143
. Essa é a
maneira como Schopenhauer fecha a porta a qualquer especulação sobre o absoluto,
mesmo que o mundo compreendido como o autoconhecimento da vontade esgote toda a
realidade da experiência. Permanece assim a possibilidade de algo fora dessa
experiência. Essa possibilidade de algo além da vontade se por um lado fecha a porta a
um tipo de especulação que Schopenhauer chama de transcendente, ainda assim torna
pensável uma negação da vontade e a partir dessa, aquilo que só pode ser caracterizado
como o inteiramente outro. Estamos aqui no ponto em que Schopenhauer fecha a porta
ao conhecimento especulativo e abre para o misticismo. Antes, porém de analisar esse
ponto devemos voltar a Hegel e ver como em sua filosofia se dá a relação entre o
infinito e suas determinações particulares.
143
No texto final dos Complementos ao Mundo como Vontade e Representação, Schopenhauer trata das
questões que a filosofia não pode responder porque ultrapassam necessariamente o âmbito do
conhecimento possível. A principal delas é exatamente a questão da determinação do que é a coisa-em-si
independente de qualquer referência ao conhecimento, isto é, em si mesma de maneira absoluta. Cf.
WWV, E., Cap. 50, SW III, p. 733 e seguintes. Mas é numa carta a Frauenstädt de agosto de 1852 que o
filósofo diz com toda clareza que sua filosofia “ensina o que é o fenômeno e a coisa em si. Mas essa é só
relativamente coisa em si, isto é, em sua relação com o fenômeno: - e este é fenômeno só em sua relação
com a coisa em si. Além disso ele é um fenômeno cerebral. O que vem a ser a coisa em si fora de toda
relação eu nunca disse, porque isso eu não sei: na mesma, porém, ela é vontade de viver”. GB, p. 291.
139
3.2 Finito e infinito em Hegel
Como vimos na primeira parte desse trabalho, a recuperação da possibilidade do
conhecimento do absoluto tal como ele é em si e para si em Hegel se dá a partir de uma
crítica da filosofia moderna em geral e especialmente da filosofia kantiana e não é um
mero retorno ao dogmatismo – como acreditava Schopenhauer. Pelo contrário, como
vimos, se trata de uma crítica aos pressupostos comuns tanto ao dogmatismo da
metafísica clássica (o racionalismo, na linguagem kantiana; a metafísica do
entendimento, na linguagem hegeliana) quanto à filosofia transcendental. O que deve
mudar é a maneira como se compreende o absoluto: não mais como aquilo que se furta a
qualquer contato com o sujeito do conhecimento, mas aquilo que se dá a conhecer na
experiência e que é o sujeito mesmo que conhece: a substância como sujeito, o espírito
absoluto. Na Fenomenologia do Espirito é descrita a passagem da consciência de sua
mais ingênua certeza sensível até a compreensão do todo da experiência como “saber
absoluto”, em que a consciência não mais opõe o seu saber a um outro fora de si, nem
mais se representa numa figura diferente de si, mas se reconhece apenas como puro
saber de si. Se nessa abordagem fenomenológica tratava-se de saber como a
consciência fazia o percurso desse saber, no sistema da filosofia especulativa
propriamente dito será a vez de ver como o próprio absoluto se põe a si mesmo – ou
seja, como ele chega a sair de si e determinar-se a se mesmo
144
. É essa abordagem
puramente especulativa que seguiremos para apresentar o modo como Hegel
compreende a relação entre a realidade efetiva (o absoluto) e as coisas particulares.
Ao invés de apresentar todo o percurso que conduz ao saber absoluto, seja a
partir da Fenomenologia, seja a partir da Lógica do Ser até à idéia absoluta na Lógica
do Conceito, optamos por expor um momento da lógica hegeliana em que certos
conceitos fundamentais para a nossa discussão ganham determinação. Partiremos da
lógica da existência (Dasein), até o momento em que será possível ter uma noção dos
desdobramentos do conceito até o absoluto. A razão dessa escolha se deve em parte à
dificuldade de abordar a lógica hegeliana em sua completude dentro dos limites deste
trabalho e, por outro lado, à necessidade da exposição do tema no quadro do presente
trabalho, já que a lógica do Dasein expõe a passagem do finito para o infinito e o
144
Como bem mostrou Rubens Rodrigues Torres Filho (“Produção extrateórica da síntese”, em: Ensaios
de Filosofia Ilustrada, São Paulo, Iluminuras, p. 163) essa sem dúvida a questão chave de todo
“idealismo alemão”, expressa na pergunta de Schelling na terceira de suas Cartas filosóficas sobre o
dogmatismo e o criticismo: “Como chego em geral a sair do absoluto e ir a um outro oposto?”
140
“princípio da negação da negação”. A partir dela e das considerações que fizemos acima
no capítulo 1 dessa segunda parte poderemos compreender a natureza do sistema da
filosofia especulativa hegeliana como sendo ao mesmo tempo uma crítica das
categorias ou determinações de pensamento pressupostas pela metafísica tradicional e
uma exposição da “metafísica propriamente dita”.
145
Podemos afirmar que a lógica de
Hegel consiste por um lado, numa reformulação crítica da ontologia presente tanto na
filosofia antiga quanto na moderna, que está na base tanto da consciência natural quanto
da filosofia transcendental de Kant e Fichte; e, por outro, numa crítica ou reformulação
da filosofia da identidade de Schelling e da filosofia da substância de Espinosa.
O projeto de Hegel ganha clareza quando se tem em mente o que ele entende por
Dasein. Pode-se dizer que Dasein, para Hegel, tem o significado que a tradição dava à
palavra “mundo”.
146
Trata-se para Hegel de mostrar que aquilo que vemos no mundo
são coisas perpassadas pela negatividade e que somente nossas “determinações de
pensamento” teimam em considerar como coisas positivas, que tem uma subsistência
própria. O objetivo de Hegel nas primeiras partes da Grande Lógica é mostrar que a
contradição e a negatividade não são meramente derivadas das representações
subjetivas, mas estão presentes nas próprias coisas. Para isso será necessário derrubar
cada um dos opostos que a consciência representativa supõe como absolutamente
contrapostos uns aos outros.
A lógica do Dasein constitui o segundo capítulo da primeira parte da lógica do
ser, que tem como tema a determinação da qualidade – esta entendida não como
qualidade subjetiva derivada dos sentidos, mas como qualidade do próprio objeto.
Dentro da lógica do ser, a lógica do Dasein é dividida em três partes ou momentos: a) o
Dasein enquanto tal, que desenvolve as categorias em sua determinação até a
determinação da finitude; b) a teoria da finitude, as determinações do “algo” e do
“outro”; c) a teoria da infinitude, que mostra ser a verdade e a reconciliação das coisas
finitas. Descreveremos os principais momentos dessa dialética.
Em contraste ao puro ser o Dasein é o ser determinado, ser-aí.
147
Essa
determinidade do ser de ser ou estar é uma qualidade sua, diferente de outras
145
Cf. WdL, 5, p. 16. A idéia da unidade entre a crítica e a exposição da metafísica na lógica de Hegel é a
tese de Michael Theunissen em Sein und Schein: die Kritische Funktion der Hegelschen Logik, Frankfurt
am Main, Suhrkamp, 2ª. Ed., 1994.
146
Para essas e outras afirmações a seguir, assim como para a exposição da lógica do Dasein, nos
utilizamos das lições de Christian Iber, Subjektivität, Vernunft und ihre Kritik: Prager Vorlesungen über
den Deutschen Idealismus, Frankfurt am Main, Suhrkamp, 1999.
147
Doravante iremos traduzir Dasein por ser-aí seguindo a tradução brasileira de Paulo Meneses para a
lógica da Enciclopédia.
141
determinidades quantitativas ou de medida, que são outras determinções da lógica do
ser. O ser-aí se desenvolve enquanto “algo” para o “finito” e de algo finito para o
“infinito”. Ele é determinidade essente, mas enquanto ser-aí-de (Daseiendes) algo em
relação a outro, por isso é mutável e finito.
148
O desenvolvimento do “algo” (Etwas)
finito é ao mesmo tempo o desenvolvimento de sua negatividade: ele é “não apenas
determinado contra um outro, mas nele mesmo negativamente determinado”. Com isso
Hegel parte da concepção de uma negatividade imanente, ao invés de uma negatividade
apenas externa. Hegel desenvolve isso através de uma contraposição a Espinosa e, para
isso, analisa a estrutura lógica da “determinidade” (Bestimmtheit) enquanto tal. Assim
como Espinosa, Hegel diz que “toda determinidade é negação”; essa negação,
entretanto, não se constitui apenas do não-ser, mas do não-ser que é tomado no ser, pelo
devir que suprassume o ser e o nada e que tem como resultado o ser-aí. Portanto, a
determinidade é ao mesmo tempo negativa e positiva. Dessa forma, diz Hegel,
referindo-se a Espinosa:
“A determinidade é a negação posta como afirmativa, é a proposição de Espinosa: Omnis
determinatio est negatio. Essa proposição é de uma importância infinita; mas é apenas a
negação como tal, a abstração sem forma; a filosofia especulativa não deve culpar-se por
colocar a negação ou o nada como um último; este é para ela tampouco quanto a realidade
(Realität) o verdadeiro”.
149
Com a distinção da determinidade do ser-aí surge uma segunda diferenciação
dentro da determinidade qualitativa, a diferença entre realidade e negação como formas
diversas de qualidade. Realidade e negação são para Hegel propriedades positivas e
negativas que formam a diferença qualitativa dos modos de ser. Se a tradição
considerava a determinidade qualitativa como algo imediatamente dado, ou como
realidade ou como limitação dessa realidade, Hegel considera como verdadeira somente
a concepção que supera o dualismo metafísico de realidade e negação. A refutação
148
WdL, 5, 114: “Ser-aí é ser determinado; sua determinidade é determinidade essente, qualidade. Por
meio de sua qualidade é algo contraposto a um outro, é mutável e finito, determinado negativamente não
apenas contra um outro mas absolutamente em si. Essa negação, inicialmente contraposta ao algo finito é
o infinito; a oposição abstrata, na qual essas determinações aparecem se dissolve na infinidade sem
oposição, no ser-para-si”. (“Dasein ist bestimmtes Sein; seine Bestimmtheit ist seiende Bestimmtheit,
Qualität. Durch seine Qualität ist Etwas gegen ein Anderes, ist veränderlich und endlich, nicht nur gegen
ein Anderes, sondern an ihm schlechthin negativ bestimmt. Diese seine Negation dem endlichen Etwas
zunächst gegenüber ist das Unendliche; der abstrakte Gegensatz, in welchem diese Bestimmungen
erscheinen, löst sich in die gegensatzlose Unendlichkeit, in das Fürsichsein auf.”)
149
WdL, 5, p. 121.
142
desse pressuposto metafísico, segundo o qual entre o ser e o nada não pode haver
nenhum intermediário é o tema fundamental da doutrina do ser.
150
Na passagem da imediatez indeterminada do ser-em-si (Ansichsein) para a
imediatez determinada do ser-aí há uma primeira negação pela qual o ser aí em geral se
torna algo (Etwas). Esse processo da auto-supressão da diferença da determinidade
qualitativa do ser aí em geral pelo qual o algo surge como ser-aí determinado
(bestimmtes Daseiendes) é o que Hegel chama de “primeira negação da negação”. Essa
se constitui como a presença e a negação da realidade e da negação em algo
determinado. Assim, “a realidade inclui em si mesma a negação, é ser-aí, não ser
indeterminado, abstrato. Da mesma forma é o ser-aí negação, não o nada que
abstratamente deve ser, mas aqui posto, como é em si, como essente, pertencente ao ser-
aí.”
151
Com essa primeira negação, esse “algo” aparece como algo em si independente,
com a aparência de algo subsistente por si, o que se revelará na seqüência como falso.
O conceito de “algo” é desenvolvido na seção seguinte (B) em uma segunda
dialética. A explicação do fato de que o ser aí enquanto algo exclui o outro, leva ao par
Algo e Outro. O algo está numa relação com o outro, isto é, submetido a um processo
do vir-a-ser que suprime a aparência de sua positividade. Se num primeiro momento
algo está oposto a um outro “algo”, num segundo momento ambos se opõem como
outro um ao outro. Esse segundo momento é esclarecido por Hegel pela maneira como
nos referimos a algo na linguagem. O uso do pronome demostrativo este (Dieses) para
diferenciar de um outro mostra essa indiferenciação, pois este é aplicável a todo e
qualquer algo. A linguagem só exprime o indeterminado. Portanto, diz Hegel na Lógica
da Enciclopédia: “Algo se torna um Outro, mas o Outro é, ele mesmo, um Algo;
portanto torna-se igualmente um Outro, e assim por diante, até ao infinito”.
152
Desse modo resulta que Algo e Outro são essencialmente outros. Não resta ao
fim nenhum “algo” diferente do seu ser-outro. Ele passou completamente no outro, na
alteridade (Andersheit). Por isso, o terceiro momento é o do outro enquanto tal, não
150
Cf. Iber, C., Op. cit, p. 123. Esse intermediário é, como se sabe, o devir. O raciocínio é o seguinte: o
ser se apresenta inicialmente como aquilo que é o mais indeterminado e imediato; mas nessa ausência de
determinação ele é idêntico ao nada. Mas ser e nada não são apenas idênticos, mas também diferentes
pois para identificá-los eu precisei previamente diferenciá-los. Como idênticos, porém, não posso pensar
em um sem pensar o outro, assim como enquanto diferentes eu só posso passar de um para o outro por
meio de uma transição. Essa transição, enquanto simultaneidade de identidade e diferença é feita pelo
devir: ele faz a passagem do nada ao ser – enquanto surgir, e do ser ao nada – enquanto perecer. Veremos
essas determinações já presentes na lógica do ser-aí.
151
WdL, 5, p. 122-3.
152
Enz, § 93, trad. Cit., p. 189.
143
enquanto outro de algo, mas enquanto outro de si mesmo. O outro de si mesmo é o
título para o puro alterar-se do outro, o puro auto-negar-se do outro. A auto-relação leva
o outro a opor-se a si mesmo. Como ao outro não sobrevêm nenhuma propriedade que a
de sua auto-relação, ele leva à restituição do algo idêntico a si, em um nível mais
elevado. Mas esse “algo” restituído pelo outro não é o mesmo do início, mas é “refletido
em si”. Ele é aquilo que permanece como substrato desse processo, e mantem-se a si
mesmo ao negar-se: “algo conserva-se em seu não ser-aí; ele é essencialmente um com
ele e essencialmente não um com ele. Ele está pois em relação ao seu ser-outro ; não é o
puro seu ser-outro. O ser-outro é ao mesmo tempo contido nele e ao mesmo tempo
ainda dele separado; ele é ser-para-outro (Sein-für-Anderes)”.
153
Do fato de que “algo” se conserva em seu não-ser-aí (Nichtdasein), no processo
de sua alteração, resulta que algo está doravante em relação a seu ser-outro. Daí a
categoria do ser-para-outro que denota um modo de relação do algo contraposto ao
outro, que surge como saldo da dialética da passagem do algo para o outro. Mas além
do ser-para-outro, há o ser-em-si, que é a relação do algo a si contra seu ser-outro: “ele
conserva-se em seu não ser-aí e é ser, não porém como ser em geral, mas como relação
a si contra sua relação a outro, como igualdade consigo contra sua não igualdade
(Ungleichheit). Um tal ser é ser-em-si (Ansichsein).”
154
Esse par do ser-para-outro e do
ser-em-si forma os dois momentos do algo: os modos de relação do algo e seu outro.
Mas esses dois momentos se revelarão como inseparáveis e ambos os conceitos como
recíprocos: um só tem sentido em relação ao outro; o ser-em-si é idêntico à negação do
ser-para-outro e precisa, portanto, dessa referência para afirmar-se. Surge uma nova
unidade caracterizada pelo termo An-ihm-Sein. Na apresentação da dialética que mostra
a implicação mútua de ambos, Hegel critica a tradição que separa o ser-em-si do ser-
para-outro. Especialmente rejeitado é o conceito kantiano de coisa-em-si como uma
“muito simples abstração”, que por definição é vazia. Assim como mostra a
inconsistência da coisa-em-si, da mesma forma Hegel rejeita uma concepção do
absoluto como o indeterminável, em que tudo é jogado. A ele Hegel opõe o conceito
como nexo de suas determinações que são concretas e cognoscíveis em si:
“A coisa em si é o mesmo que aquele absoluto do qual nada se sabe senão que tudo nele é um.
Sabe-se bem o que está nessas coisas-em-si: elas não são nada mais que abstrações vazias e
sem verdade. O que essa coisa-em-si em verdade é, o que verdadeiramente é em si, disso a
153
WdL, 5, p. 127.
154
Ibid, p. 128.
144
lógica é a apresentação, em que por em-si algo melhor é compreendido do que a abstração, a
saber, algo que é em seu conceito; este, porém, é concreto em si, como conceito
completamente conceituável e cognoscível em si como determinado e como nexo de suas
determinações”.
155
Um quarto estágio da dialética do ser é alcançado com o advento das categorias
determinação (Bestimmung) e característica ou condição (Beschaffenheit). A
determinação é a determinidade (Bestimmtheit) do algo, que surge de seu ser-para-outro
e é tomado em seu ser-em-si. O ser-em-si toma a determinidade de tal forma que essa se
internaliza como determinação. A determinidade que não é internalizada do algo, que
permanece fora da determinação é a determinidade que é apenas ser-para-outro. Essa
determinidade é a Beschaffenheit. Ambas, determinação e característica formam aquilo
que constitui os predicados do algo. Podemos pensar a primeira como determinidade
interna, a segunda como externa: a determinação tem o sentido de destinação enquanto
a Beschaffenheit tem o sentido de uma qualidade imediatamente dada. Apesar de
inicialmente opostas, a dialética mostrará, como sempre, a passagem de uma a outra, e
ambas se revelarão como inseparáveis. Assim, ao final teremos que as mudanças ou
alterações que o algo sofre no processo de recebimento ou criação de suas
determinidades externas e internas são possíveis porque ele permanece, apesar das
mudanças, o mesmo. Dessa forma, ele é “ser-a-si desenvolvido” (entwickeltes
Insichsein), “individualidade desenvolvida”. Estamos aqui no ponto em que podemos
compreender como algo recebe suas determinidades em relação a seu outro: algo e
outro é a negação não mais externa, mas imanente, de modo que a auto-afirmação não é
mais imediata, mas intermediada pelo “suprassumir do ser-outro”, que está incluído
155
Ibid, p. 130. A lógica pretende, dessa forma, oferecer uma alternative ao problema da coisa-em-si,
dissolvendo como inconsistente esse conceito e propondo uma nova abordagem: ao invés de pensar algo
absolutamente indeterminado e incognoscível por detrás da experiência, deixar que o indeterminado – o
ser, receba (por seu próprio movimento) suas determinações. O saber absoluto é o desdobramento dessas
determinações que não são apenas conceitos do entendimento, mas categorias das coisas mesmas. Uma
outra crítica de Hegel ao conceito de coisa-em-si encontra-se no terceiro capítulo da Fenomenologia do
Espírito, “Força e Entendimento”. A consciência se depara com um interior que se furta ao conhecimento
e divide o mundo em um mundo fenomênico e um mundo supra-sensível que seria seu lado verdadeiro.
Mas, para Hegel, se a natureza se esconde no fenômeno ela se oculta então atrás de si mesma; pois o
fenômeno é apenas a mediação necessária entre o exterior e o interior: “Sem dúvida, não pode haver
nenhum conhecimento desse interior, tal como ele aqui é imediatamente; não porque a razão seja míope
ou limitada, ou como queiram chamá-la (a propósito, nada sabemos aqui, pois não penetramos ainda tão
fundo), mas pela simples natureza da Coisa mesma: justamente porque no vácuo nada se conhece; ou,
expressando do outro lado, porque esse interior é determinado como o além da consciência”. (PhG, W3,
p. 117-8, trad.,vol. I, p. 101-2) No final dessa dialética do interior e do exterior se mostrará que o em si é
plenamente concebível pois ele é o próprio em si interior da consciência: “Fica patente que por trás da
assim chamada cortina, que deve cobrir o interior, nada há para ver, a não ser que nós entremos lá dentro
– tanto para como para que haja algo ali atrás que possa ser visto” (PhG, W3, p.135-3, trad., p. 118). Cf.
José Henrique Santos, O trabalho do negativo, p. 141.
145
como momento do algo. Isso vale tanto para o “algo” quanto para o “outro”, já que todo
algo torna-se um outro.
Mas apesar de “suprassumidos” e incluídos um no outro como momentos, algo e
outro são também qualitativamente diferentes. A partir dessa relação de inclusão e
diferença surge a categoria do limite (Grenze) em sua complexa estrutura. O limite será
exposto como “realização e contradição”. O limite revela a finitude das coisas e a
contradição a elas imanente. Essa categoria é exposta em três momentos: em primeiro
lugar, como contradição estrita de ser e não-ser no Algo; em segundo lugar, em sua
representação para o entendimento como tentativa de manter o ser-aí e o limite como
separados; e por fim, será mostrado que o ser-aí é inseparável de seu limite e que não
pode por isso afastar a contradição que o coloca em uma perpétua inquietude, impelindo
as coisas para além de si mesmas. Essa dupla determinação do algo, a saber, o seu limite
e o ir além de si devido à contradição do limite constitui Algo como finito. O limite,
inicialmente pensado espacialmente é colocado em movimento devido à contradição do
ser limitado e com isso, imerge na temporalidade. A mutabilidade se transforma assim
em transitoriedade, pela qual o ser é exposto ao não-ser.
Hegel desenvolve sua teoria da finitude na seção Bc da lógica do ser-aí. Ela pode
ser compreendida como o ponto final da destruição do ponto de vista do “sádio
entendimento humano” que parte da originariedade e independência das coisas
particulares.
156
A essência da finitude é compreendida como contradição entre ser e não-
ser, cujo desenvolvimento se revela como perecimento (Vergehen). Hegel diz que o
destino das coisas finitas no mundo é seu próprio declínio. Isso porque elas estão
afetadas pela “alterabilidade” (Veränderlichkeit) que constitui sua essência, de modo
que “a alteração é só a manifestação do que o ser-aí é em si. O vivente morre, e na
verdade simplesmente pelo motivo de que, como tal, carrega dentro de si mesmo o
gérmen da morte”.
157
Num primeiro momento, na seção chamada “a imediatidade da finitude” Hegel
explica a estrutura da negatividade própria à finitude. Com isso ele critica
principalmente a concepção de entendimento da finitude e contrapõe a essa a concepção
da razão: enquando o entendimento se detem no significado imediato da finitude, a
razão expõe o conceito dialético de finitude, que conduz à sua dissolução no infinito.
Segundo Hegel, a concepção tradicional do finito o toma como algo imediato,
156
Cf. Iber, C. Op. cit, p. 138.
157
Enz, § 92, Zusatz, W8, p. 198, trad. Cit., p. 189.
146
isolado e separado. O infinito é visto assim como além, como abstraído de sua relação
com o infinito. Dessa forma, o entendimento compreende o finito como a negação
qualitativa levada ao cúmulo, que não deixa restar nenhuma determinação positiva e por
isso é uma representação triste:
“A finitude é a categoria mais tenaz do entendimento, enquanto denota essa simplicidade
qualitativa da negação que torna a ser a oposição do nada e do perecer contra o ser. A negação
em geral, a qualidade natural, limite, respectivamente convivem com seu outro, o ser-aí;
também o nada abstrato é rejeitado como abstração, mas a finitude é a negação em si fixada e é
contraposta de maneira brusca a seu afirmativo”
158
A inconsistência dessa concepção do entendimento se dá no fato de que ao
afirmar o finito como fixo ele se dá como imperecível e absoluto, mesmo “eterno”. O
entendimento, segundo Hegel, não nega o finito, mas o mantêm em sua positividade.
Aqui Hegel retoma a crítica às “filosofias da reflexão” que formam uma concepção
comum da finitude absolutamente posta. Se Kant coloca em forma conceitual a
subjetividade abstrata contraposta a um positivo desconhecido, Jacobi se livra da
mediação subjetiva na imediatidade do saber. Mas ambos postulam uma separação
absoluta entre o finito e o infinito e só se reconciliam com o absoluto na forma da fé ou
do sentimento. Em Fichte, Hegel enxerga uma contradição insolúvel entre um eu
absolutamente posto, mas limitado pelo não-eu, contradição que não é resolvida, mas
indefinidamente postergada numa tarefa infinita.
159
As categorias do obstáculo ou
barreira (Schranke) e do dever (Sollen) que a filosofia transcendental evoca para
resolver a contradição do finito absolutamente posto apenas expressam de modo
concreto aquela inconsistência. É a elas que Hegel dedica uma nova reflexão.
A questão presente aqui é a da relação do Algo com o seu ser-outro como limite,
isto é, como esse Algo trabalha seu obstáculo. Como o Algo nega seu limite como seu
próprio não-ser, mas esse permanece ser-aí que constitui sua qualidade enquanto ser-a-si
(Insichsein), então o Algo não consegue se livrar inteiramente de seu limite. A
contradição abstrata, não resolvida do finito como relação negativa a si mesmo é posta
em sua figura concreta como relação que nega sua determinação essente em si a seu
158
WdL, 5, p. 140: “Die Endlichkeit ist um dieser qualitativen Einfachheit der Negation, die zum
abstrakten Gegensatze des Nichts und Vergehens gegen das Sein zurückgegangen ist, die hartnäckigste
Kategorie des Verstandes; die Negation überhaupt, Beschaffenheit, Grenze vertragen sich mit ihrem
Anderen, dem Dasein; auch das abstrakte Nichts wird für sich als Abstraktion aufgegeben; aber
Endlichkeit ist die als an sich fixierte Negation und steht daher seinem Affirmativen schroff gegenüber”.
159
Cf. Iber, C. op cit., p. 141 e Lebrun, G. La Patience du concept, p. 309 e seguintes (Trad., p. 309 e
seguintes também).
147
limite imanente. O limite de “algo”, enquanto limite por ele mesmo negado é o
obstáculo. A negação do limite negado, isto é, a negação do obstáculo é o dever. Ele
tem uma dupla função ou duplo estatuto (Zweischeidigkeit), pois o obstáculo que limita
o Algo é também aquilo que o define. O dever é assim uma dupla negação de si. Dito de
outra forma: pela relação negativa da determinação do ser-em-si-essente do algo a seu
limite imanente ele se torna obstáculo. Mas uma vez que o limite pertence
essencialmente ao ser-em-si, esse se relaciona de maneira negativa igualmente a si na
negação de seu limite e se torna dever. A relação negativa do Algo a si mesm é
constitutiva tanto para o obstáculo quanto para o dever. As categorias concretas do
finito, obstáculo e dever, resultam da contradição desenvolvida do Algo finito com seus
limites.
A dialética do obstáculo é também uma crítica da concepção transcendental do
obstáculo como insuperável. Para Hegel o discurso sobre o limite e o obstáculo que não
pode ser ultrapassado contêm a inconsciência do fato de que quando algo é dito limitado
por um obstáculo já se vislumbrou sua superação. Da mesma forma, constitui uma
contradição falar da limitação (Beschränktheit) de nosso conhecer, pois ao falar desse
limite já se está além dele. Com essa concepção do limite, o entendimento não pode
constituir no dever uma verdadeira finitude. A categoria do dever se revela como a
contradição do ser-em-si e do não-ser: “O que deve ser é e não é ao mesmo tempo”.
160
Para o dever o aspecto negativo é tão constitutivo quanto o positivo. O dever tem, pois,
essencialmente um obstáculo. Ele não é nada sem ele; portanto, ele não é só em si, mas
também ser-outro, portanto, não é um infinito.
“A infinitude da reflexão, de que se fala aqui, é só uma tentativa de atingir a verdadeira
infinitude, um meio-termo infeliz. É esse, em geral, o ponto de vista da filosofia que nos
últimos tempos se fez vigente na Alemanha. O finito deve aqui ser somente suprassumido, e o
infinito deve ser não simplesmente um negativo, mas também um positivo. Nesse dever-se
reside sempre a impotência, em que algo é reconhecido como justificado, e contudo não pode
fazer-se valer. A filosofia de Kant e a de Fichte no que diz respeito à ética, ficaram nesse ponto
de vista do dever ser. A incessante aproximação da lei da razão é o extremo a que se chega por
esse caminho”.
161
O resultado dessa crítica hegeliana do finito como categoria fixa do
entendimento leva à consideração da inconsistência não apenas do modo como a
160
WdL, W5, p. 145.
161
Enz, § 94 Zusatz, W8, p. 199, trad. Cit., p. 191.
148
categoria é compreendida, mas a superação do finito e a recuperação da verdadeira
infinitude. O finito deve reconhecer sua finitude: se tudo é perecível no finito, então
deve o próprio finito perecer; o triste discurso da finitude deve ele mesmo perecer. O
resultado disso, entretanto, não é o puro nada, mas a dissolução ou suprassunção do
finito e sua conciliação no infinito. Essa dissolução do finito no infinito é o tema da
última seção da lógica do ser-aí.
O infinito pode ser determinado de três modos. No primeiro nível, ele é “numa
simples determinação o afirmativo como negação do finito”.
162
O infinito surge assim
como auto-supressão (Selbstaufhebung) do finito. Disso se segue que o infinito só surge
do finito o que justifica a crítica a Schelling e Espinosa que ao partirem do infinito daí
não mais conseguiriam derivar o finito. Mas disso resulta também que o finito só é
verdadeiramente infinito, de modo que ele desaparece no infinito, pois o que é assim é
“só o infinito”. Aqui ainda temos, porém, um conceito ainda muito abstrato de
infinito.
163
Já num segundo momento, Hegel reitera a crítica ao mau infinito ao criticar
a idéia da determinação recíproca (Wechselbestimmung) do finito com o infinito. Ainda
que o infinito apresente uma progressão imanente sobre a finitude absolutamente posta,
o conceito do infinito tomado simplesmente como negação do finito ainda é
insuficiente. Hegel vê a contradição presente nessa determinação recíproca porque o
entendimento toma as determinações do finito e do infinito como independentes ainda
que reconheça sua relatividade.
164
No terceiro e último momento, o verdadeiro conceito
de infinito aparece como processo de autosupressão tanto do mau infinito quanto do
finito. Com isso o infinito pode aparecer como uma unidade processual de infinito e do
finito e como superação do finito independente e do infinito imediato (que não contém
em si o finito). O que se tem ao final dessa dialética é a concepção de uma infinitude
que não deixa de considerar a finitude, como a concepção da simples infinitude vazia;
nem tem o finito como um outro a si oposto, mas contêm a si como “suprassumido”:
“O verdadeiro infinito não se comporta simplesmente como o ácido unilateral, mas se
conserva. A negação da negação não é uma neutralização: o infinito é o afirmativo, e só o
finito é suprassumido (Aufgehobene). No ser-para-si é introduzida a determinação da
162
WdL, W5, p. 149.
163
Cf. Iber, C. op. cit., p. 159.
164
“O reconhecimento da incompletude ou mesmo da nulidade do Finito não basta, portanto, para garantir
o acesso ao Infinito. A dialética do Entendimento pode, certamente, mostrar a autonegação do Finito, mas
não nos fazer revisar a sua significação, visto que ignora que a Finitude por ela denunciada na realidade é
a das categorias e visto que ela própria ainda procede com categorias finitas”. G. Lébrun, La patience du
concept, p. 252 (trad. Cit., p. 252).
149
idealidade. O ser-aí, inicialmente apreendido apenas segundo seu ser ou sua afirmação, tem
uma realidade; assim a finitude, de início, também está na determinação da realidade. Mas a
verdade do finito é, antes, sua idealidade.
165
O finito só pode, dessa forma, chegar a sua reconciliação na afirmativa
infinitude. Embora não seja a última categoria da lógica – pelo contrário, estamos aqui
ainda no início da lógica do ser, ainda falta desdobrar a categoria do para-si, ainda
assim com o infinito afirmativo Hegel já está em condições de afirmar a resolução da
contradição entre o finito e o infinito. Para estabelecer a relação consistente entre ambos
Hegel menciona o conceito de idealidade. Ela é a expressão para o modo como o finito
é suprassumido no infinito e compreendido como um momento seu. Não se trata de uma
“negação do ser-aí finito”, pois com essa Aufhebung o finito também é positivamente
afirmado
166
. Com isso o finito é salvo de seu declínio e de sua inconsistência a qual
estaria condenado se o infinito permanecesse compreendido como aquilo que
desaparece no infinito imediato de Schelling e Espinosa ou eternamente oposto ao
infinito no dualismo das filosofias da reflexão. A prova da idealidade do finito
fundamenta, para Hegel, o idealismo objetivo da filosofia, que ele entende ter levado a
cabo com sua teoria do infinito positivo. “Essa idealidade do finito é a proposição-
capital (Hauptsatz) da filosofia, e toda a verdadeira filosofia é por isso um
idealismo”.
167
A teoria da infinitude, apesar de central e explicar exemplarmente o método
dialético da lógica e a crítica aos pressupostos ontológicos do entendimento e da
filosofia tradicional (leia-se, a metafísica clássica e o idealismo alemão), não constitui
decerto o absoluto de Hegel. Ainda faltam todas as determinações da lógica da essência
e do conceito para que ele seja apresentado em sua completude. É possível, entretanto, a
partir desses resultados preliminares, esboçar uma comparação entre o conceito de
especulação que surge da lógica de Hegel com o projeto de Schopenhauer de uma
metafísica pós-kantiana.
165
Enz, § 95, SW 8, p. 201, trad. Cit., p. 193.
166
“Assim como o verdadeiro Infinito já não é um além, o Finito não é um aquém: de modo mais geral (e
uma vez ultrapassada essa repartição arbitrária dos conteúdos), ele é aquilo que retorna a si em se
tornando o seu outro. É por isso que sua imagem é o círculo, linha fechada e “inteiramente presente, ‘sem
começo nem fim’”. G. Lébrun, Op. Cit., p. 251, trad. Cit. p. 251.
167
Enz, § 95 Anm., SW 8, p. 203, trad., p. 193.
150
Capítulo 4 – Concordância e diferença a respeito do “especulativo”
A apresentação em paralelo dos aspectos centrais das filosofias especulativas de
Hegel e Schopenhauer
168
nos permite precisar com mais rigor o abismo que separa
ambos os autores apesar de alguns pontos de partida comuns. Para desenvolver isso é
necessário que se estabeleça um sentido próprio para a noção de especulativo. Se
entendermos esse conceito no sentido exclusivamente hegeliano da palavra então seria
forçoso ver a filosofia de Schopenhauer como mais uma insistência naqueles mesmos
pressupostos ontológicos que eram responsáveis pela insuficiência da metafísica do
entendimento: a concepção dos opostos como justapostos uns aos outros, isto é, a
insistência nas oposições abstratas do entendimento. Nesse sentido, entendido em
sentido estritamente hegeliano, o especulativo não é somente o metafísico – no sentido
em que se entende tradicionalmente esta palavra, como algo que não é dado na
experiência, que se esconde à razão humana, mas aquilo que é bloqueado quando as
determinações fixas do entendimento são incondicionalmente aceitas. Compreendido
dessa forma, o especulativo pode ser inteiramente abarcado pela razão, desde que o
método de exposição não o deforme por meio da cisão com o conteúdo: ou seja, o
próprio sistema, encarregado de expor o absoluto, deve ser a autoexposição do absoluto
que resgata todos os seus momentos e os suprassume (suprime e conserva) na totalidade
acabada da idéia absoluta. E se ele deve ser isso, somente ele pode ser isso. Desse modo,
ainda que se possa notar lampejos de especulação em filósofos como Heráclito, Platão,
Aristóteles ou Espinosa, somente o sistema completamente desenvolvido pode assumir
para si a pretensão da verdade absoluta, isto é, da verdadeira filosofia especulativa.
169
168
Essa apresentação, entretanto, ainda não está completa: falta apresentar o lado, digamos, “existencial”
da relação do substancial com a realidade empírica. No caso de Schopenhauer, trataria-se de apresentar,
por um lado, o conflito moral entre o ponto de vista particular do indivíduo (a vontade compreendida
como exclusiva – o egoísmo) e o ponto de vista do todo (o reconhecimento da vontade como coisa-em-si
na experiência da compaixão); por outro, o conflito da vontade enquanto querer incessante e a sua
perenidade – o infinito da vontade contraposto à finitude do indivíduo, ou seja, a questão da morte. Essas
considerações levarão Schopenhauer a afirmar o caráter irreconciliável da experiência do indivíduo no
mundo, o que conduz à reflexão sobre a negação da vontade e desta à possibilidade do inteiramente
outro. No caso de Hegel, trata-se de mostrar como a experiência da negatividade e da dor que constitui o
caminho mesmo de formação da consciência enquanto espírito encontra sua reconciliação no sistema da
filosofia especulativa, reconciliação que tem uma antecipação representativa na religião. O que
apresentamos até aqui foram somente os fundamentos filosóficos dessas conseqüências que serão tratadas
na próxima parte.
169
Aqui a filosofia hegeliana parece ensejar toda a crítica de ultradogmatismo que toda a filosofia
posterior de algum modo a acusou. Sobre isso, podemos nos referir novamente à interpretação de Lebrun
que tenta mostrar em seu ensaio sobre Hegel que a “filosofia” de Hegel não seria, no fim das contas, que
“uma outra regulação da linguagem” e não “um outro conjunto doutrinal” (trad. Cit., p. 318). Para Lebrun
151
Se admitirmos, contudo, que é possível um outro conceito de especulação que
não o conceito hegeliano, então a filosofia de Schopenhauer pode sim ser considerada
especulativa. Ou seja, se concedermos que a filosofia de Hegel não oferece o único
conceito possível para a especulação filosófica, que é pelo menos admissível um
conceito de especulação não necessariamente hegeliano, mas ligado à reflexão do
sujeito finito, enquanto crítica das extrapolações racionais e uma tentativa de tornar
intuitivo o conhecimento substancial para um determinado sujeito do conhecimento,
então deve-se admitir que Hegel não tem o monopólio do sentido para a noção de
filosofia especulativa. Assim como na primeira parte mostramos a inadequação do uso
exclusivo da noção de crítica como filosofia transcendental kantiana, da mesma forma,
resulta das reflexões dessa segunda parte a inconseqüência do uso exclusivo da noção
de especulação somente como filosofia especulativa do tipo hegeliana.
Se partirmos portanto de uma noção ampliada do conceito de especulação,
podemos atingir um ponto de vista que compare as filosofias de Hegel e Schopenhauer
como dois tipos diferentes, porém comuns de filosofia especulativa. Ambos tentam
reformular a metafísica após o interdito kantiano da especulação filosófica. Ambos
combatem a unilateralidade das posições do materialismo puro e do idealismo abstrato;
ambos criticam a absolutização das deteminações abstratas (respectivamente do
entendimento para Hegel e da razão para Schopenhauer) para o conhecimento efetivo.
Enfim, ambos alargam o conceito de experiência de modo que as experiências éticas,
artísticas e religiosas desempenham um papel fundamental na constituição de suas obras
filosóficas (para não falar mais de “sistemas”, já que no caso de Schopenhauer há uma
não podemos acusar Hegel de dogmático, otimista ou teólogo, pois não somente essas noções como
também as categorias mais gerais de ser, unidade, oposição são completamente reformuladas em sua
filosofia, de modo que aquilo que entendemos por metafísica, dogmatismo, otimismo tem um significado
bem diferente do significado que Hegel os atribui. Trata-se, portanto, menos de uma outra filosofia, uma
outra ontologia, que de outro código linguístico: “Não digamos tampouco que o negativo será
infalivelmente reabsorvido, pois não se trata de maneira alguma de descrevê-lo de maneira mais otimista,
mas escrever ou falar o negativo de outra maneira (...) Em suma, a dialética só parece garantir o sentido
antecipadamente, se for investida de uma outra doutrina; porém, como máquina de linguagem, ela se
contenta em tornar certos parti-pris ontológicos como responsáveis pelo não-sentido apressadamente
assumido” (Ibid, p. 304). Nesse sentido, parece que Lebrun acaba por dissolver o especulativo no
dialético corretamente compreendido – não apenas como negativo puro e simples, mas como negativo
que revoga as significações bem conhecidas: “Sempre há ganho de sentido, claro, e mais rico do que se
imaginava – mas sob a condição de acrescentar que até então não se sabia o que era o sentido e a dialética
não é portanto um alargamento, mas uma crítica radical do pensamento do Entendimento” (Ibid., p. 302).
É interessante notar que, segundo Lebrun, sempre que Hegel fala em manifestação ou revelação do
sentido, deve se entender por isso explicitação de sentido.Um outro ponto de vista é defendido por
autores como Michael Theunissen que, sem desconsiderar o aspecto crítico da filosofia de Hegel, indicam
como a metafísica é reabsorvida no interior do sistema: “a lógica do conceito expõe a verdade que está
presente na metafísica”. Sein und Schein, ed. Cit., p. 63.
152
dissolução da forma sistemática da filosofia por conta de seu caráter hipotético). Apesar
desses pontos comuns, algumas divergências fundamentais se revelam como
insuperáveis.
O primeiro ponto de divergência reside na diferente postura em relação ao
imediato da experiência. Se em Hegel aquilo que é mais imediato escapa na dissolução
da certeza sensível, e só é resgatado a partir da mediação conceitual, em Schopenhauer
o intuitivo permanece o primordial e a mediação conceitual é a barreira que deve ser
afastada. O desenvolvimento da ciência em Hegel consiste na dissolução do imediato e
no reconhecimento das mediações, já em Schopenhauer a filosofia, não apenas enquanto
ciência e sem qualquer intenção sistemática deve apenas dar a razão da experiência
imediata. Podemos até mesmo dizer que o sistema em Hegel repõe todo o movimento
das medições até a imediatidade da idéia absoluta, enquanto em Schopenhauer o acesso
à verdade filosófica reside na tentativa de resgatar a verdade intuitiva sob o véu da
mediação do princípio de razão. Em ambos, entretanto, o mais essencial já está de
alguma forma presente no mais imediato, cabendo à filosofia conceituar isso. A certeza
filosófica, contudo, só é mantida em Hegel, que abarca completamente todas as visões
de mundo particulares, ainda que de alguma forma elas sejam reconciliadas no sistema.
Hegel demonstra, especialmente na Fenomenologia, a fragilidade das visões de mundo
e, por isso, a necessidade de um saber não mais subordinado às limitações do sujeito do
conhecimento. Em Schopenhauer, a incerteza que resulta da precariedade da
especulação, resgata o interesse pelas visões de mundo particulares: nenhuma é falsa,
embora nenhuma possa requerer para si a verdade absoluta.
170
Se em Hegel temos a
condenação da filosofia como Weltweisheit em Schopenhauer, ao contrário, temos a
170
Por essa razão a história da filosofia apresenta meros “fragmentos”, tentativas de solução do “enigma
do mundo” que só se estabelecem pela força expositiva de seus autores, pela concordância com a
experiência (aqui o ponto em que o caráter intuitivo de uma filosofia se revela como essencial, ela deve
ser antihegelianamente clara). Com isso um certo relativismo é admitido: Nenhuma visão de mundo que
tenha surgido de uma apreensão objetiva e intuitiva das coisas e conduzida de maneira conseqüente pode
ser inteiramente falsa; no pior dos casos, porém, ela é, no máximo apenas unilateral. Assim é, por
exemplo, o materialismo completo, o idealismo absoluto entre outros. Todas eles são verdadeiros, mas
todos o são simultaneamente. Logo, sua verdade é apenas relativa. Cada compreensão é em si verdadeira
apenas de um determinado ponto de vista, assim como um quadro representa a paisagem só de um ponto
de vista. Se nos elevarmos do ponto de vista de um tal sistema reconheceremos a relatividade de sua
verdade, isto é, sua parcialidade. Somente o ponto de vista mais elevado que a todos observa e tudo leva
em conta pode fornecer verdade absoluta. P II: Sobre Filosofia e seu método, § 13, SW VI, p. 17. Essa
“verdade absoluta” entretanto, está ausente e mesmo a filosofia de Schopenhauer se coloca apenas como
mais uma visão de mundo.
153
redução da filosofia às visões particulares do mundo – nem por isso, porém, uma
dissolução relativista da filosofia.
171
A partir disso fica claro porque a filosofia de Schopenhauer deve assumir uma
outra forma que a filosofia hegeliana: ela admite todo tipo de tentativa para trazer ao
conceito, à clareza da exposição filosófica, a riqueza inesgotável do mundo da
experiência. Há aqui uma nítida abertura da filosofia ao ensaísmo, ao fragmentário, à
exposição anti-sistemática de idéias em aforismos. O que Schopenhauer entende ser o
critério principal da verdade é a “concordância da realidade consigo mesma”.
172
A
forma científica da reflexão é, por um lado saudada quando significa o esforço genuíno
de conhecimento a partir da pesquisa livre e honesta. Mas se esse ponto de vista é
irrefletidamente aceito como único possível então Schopenhauer prefere fazer o elogio
do diletantismo.
173
Desse ponto de partida, a filosofia de Schopenhauer não poderia deixar de se
opor expressamente à filosofia de Hegel, chegando porém a uma rejeição de conjunto
que se dispensou da análise crítica. Como vimos na primeira parte deste trabalho, a
leitura superficial que Schopenhauer fez de Hegel não o permitiu perceber o alcance da
crítica de Hegel a Kant e à lógica tradicional. É somente à luz dessa superficialidade que
se pode entender a insistência de Schopenhauer em uma crítica a Hegel baseada em
premissas que este último se esforçou por mostrar como vãs. Daí pode-se supor que
Schopenhauer não tenha de modo algum entendido o que significava a pretensão
171
“Toda visão conduzida de modo conseqüente é apenas uma apreensão intuitiva e objetiva da natureza
traduzida em conceitos e com isso tornada fixa. Mas a natureza, por sua vez, jamais mente ou se contradiz
a si mesma, pois sua essência exclui essa possibilidade. Onde se tem contradição e mentira lá se tem
pensamentos que não se originaram da apreensão objetiva, como por exemplo, o otimismo. Por outro
lado, uma apreensão objetiva pode ser incompleta e parcial; então ela precisa de um complemento, não de
uma refutação.” Ibid, Idem.
172
P I, SW, V, p. 149. Fragmentos para a história da filosofia, Tradução de Maria Lúcia Cacciola, São
Paulo, Iluminuras, 2002, p. 119. “Essa espécie de concordância é, porém, por causa do seu caráter
originário e por estar sob constante controle da experiência, plenamente segura. Em contrapartida, aquela
que é derivada e que apenas o silogismo produz pode facilmente alguma vez ser julgada falsa, isto é, logo
que algum membro da longa cadeia for falso, frouxamente ligado ou errado”. Ibid, Idem. Cf. Maria Lúcia
Cacciola, Schopenhauer e a questão do dogmatismo, p. 175: “O núcleo da crítica de Schopenhauer às
filosofias localiza-se na obtenção de verdades a partir de cadeias dedutivas que esquecem a sua origem
intuitiva, engendrando, pois, hipóstases transcendentes que permitem a entrada da teologia na filosofia”.
173
Cf. Cacciola, Maria Lúcia. Apresentação em Sobre a Filosofia Universitária, São Paulo, Martins
Fontes, 2001, p. XXXI. Este elogio ao diletantismo é acompanhado do elogio da “fina observação” de
“espíritos privilegiados” que são os “escritores filosóficos”, também conhecidos pela tradição como
“moralistas”. A “observação genial” é o complemento necessário da metafísica: “O que ainda resta exige
fina observação e espirituosa compreensão, até mesmo consideração de um ponto de vista um tanto mais
elevado, quero dizer, de alguma superioridade que se pode saborear somente nos escritos de espíritos
privilegiados como Teofrastro, Montaigne, La Rochefoucauld, Labruyère, Helvétius, Chamfort, Addison,
Shaftesbury, Shenstone, Lichtenberg entre outros. Mas isso não se deve buscar nem aturar nos
compêndios de professores de filosofia sem espírito e inimigos da inteligência”. P II, Sobre Filosofia e
seu método § 21, SW VI 25.
154
hegeliana de examinar as “determinações puras de pensamento”, isto é, a análise do
significado puro das categorias
174
. Dessa forma, embora comparáveis enquanto
especulativas, as dimensões do “metafísico” e do “lógico” não são idênticas. Justamente
neste terreno, o lógico, para Hegel o mais importante, Schopenhauer revela uma certa
limitação, ou seja, a pobreza da sua crítica provém da pobreza de sua teoria das
representações abstratas, dos conceitos
175
. Exatamente por ter oferecido uma teoria
muito simples dos conceitos, e também da razão como sendo apenas uma faculdade de
abstração, o caráter especulativo do pensamento de Schopenhauer acaba sendo
obscurecido por seu constante recuo diante das pretensões de sua própria filosofia.
Assim, se por um lado ele afirma que a filosofia deve ser “não um conhecimento
relativo, mas incondicional da essência do mundo”
176
, por outro lado esse conhecimento
permanece mera tarefa já que “a base e o solo sobre os quais repousam todos os nossos
conhecimentos e ciências é o inexplicável”
177
. Por essa razão, foi necessário escavar
profundamente na obra de Schopenhauer as passagens que permitiam formular uma
interpretação especulativa de sua filosofia – o que fizemos na presente parte do
trabalho, tentando evitar, porém, ir contra o espírito e a letra de sua filosofia. A unidade
dos diversos pontos de vista de sua filosofia é dada pela “harmonia e unidade do mundo
intuitivo mesmo, que é seu fundamento comum de conhecimento”
178
. Caberá ao gênio
filósofo preservar essa unidade em seu “espelhamento do mundo em conceitos
abstratos”.
179
Como também notou Kossler, para Hegel, essa insuficiência da especulação e o
caráter contingente de sua apreensão não seriam satisfatórios
180
. Como a discussão
sobre a “proposição especulativa” mostrou, o sistema deve incluir também uma
apresentação especulativa. Essa apresentação deve expressar o movimento dialético do
pensamento que consiste na suprassunção da forma representativa. Esse movimento não
deve, necessariamente, basear-se em alguma intuição imediata, mas deve ser exposto:
Que a forma da proposição seja suprassumida não pode ocorrer só de maneira imediata, nem
mediante o puro conteúdo da proposição. No entanto, esse movimento oposto necessita ter
174
Cf. Wolfgang Weimer: “Schopenhauer und Hegels Logik”, In: J. Salaquarda, Schopenhauer,
Darmstadt, 1985, p. 327.
175
Cf. Ibid, p. 344 e Kossler, M. Substantielles Wissen, p. 95.
176
WWV I § 24, SW II, p. 149, trad. Cit., p. 186.
177
P II: Sobre Filosofia e seu método, § 1, SW VI, p. 7.
178
WWV I § 15, SW II, p. 99, trad. Cit., p. 138.
179
Ibid, Idem.
180
Cf. Kossler, Substantielles Wissen, p. 170.
155
expressão: não deve ser apenas aquela freagem interior, mas esse retornar do conceito a si tem
de ser apresentado. Esse movimento – que constitui o que a demonstração aliás devia realizar
– é o movimento dialético da proposição mesma. Só ele é o Especulativo efetivo, e só o seu
enunciar é exposição especulativa. Como proposição, o especulativo é somente a freagem
interior, o retorno que não é da essência a si mesma. Por isso, vemos que as exposições
filosóficas com freqüência nos remetem a essa intuição interior, e desse modo ficamos
privados da exposição do movimento dialético da proposição que reclamávamos
181
.
Essa passagem pode ser lida como mais uma crítica de Hegel às filosofias que se
baseiam em algum dado imediato, seja a intuição ou o sentimento e dispensam o
trabalho da mediação conceitual. Disso se segue uma severa rejeição ao apelo à
genialidade filosófica e ao pensar intuitivo
182
. De certo modo, todo o sistema, da
Fenomenologia do Espírito até a Enciclopédia não é nada além desse esforço de
apresentação da idéia filosófica
183
. Nesse sentido, todas as suas reservas contra
Schelling podem ser aplicadas a Schopenhauer que nesse ponto específico está muito
mais próximo deste último do que de Hegel.
Por isso o que Schopenhauer oferece não é bem uma crítica da filosofia
especulativa hegeliana, mas um contraponto, uma contraposição ao Sistema. A
diferença que verificamos entre, por um lado, uma exposição filosófica que repõe todos
os seus movimentos e pressupostos e se completa no percurso de todas as suas
determinações e, por outro, uma exposição que apresenta apenas fragmentos de uma
idéia mais elevada e nunca inesgotável, essa diferença terá uma outra expressão no
conflito de visões de mundo opostas: à completude do sistema corresponderá um
181
PhG, W3, p. 61, trad. p. 59.
182
“Assim, hoje, um filosofar natural que se julga bom demais para o conceito, e devido à falta de
conceito se tem em conta de um pensar intuitivo e poético, lança no mercado combinações caprichosas de
uma força de imaginação somente desorganizada por meio de pensamento – imagens que não são carne
nem peixe; que nem são poesia nem filosofia”. PhG, W3, p. 64, trad., p. 60.
183
Cf. Kossler, M. Substantielles Wissen, p. 163. Para Kossler, pelo fato de Hegel explicar
detalhadamente a relação “especulativo-dialética” de idéia e conceito, sujeito e substância, seu sistema
pode ser visto como “o aperfeiçoamento do sistema de Schopenhauer, na medida em que ele o esclarece
sobre si mesmo” (Ibid, p. 174). Com isso Kossler quer completar as insuficiências de ambos os sistemas
na medida em que um oferece ao outro exatamente aquilo que lhes falta: se em Schopenhauer faltaria a
completude conceitual, em Hegel o caráter intuitivo da verdade seria desprezado. Sem entrar na discussão
da pertinência dessa abordagem, deve-se notar que ela deixa de levar em consideração, em nome de uma
suposta identidade, aquilo que a nosso ver constitui o fundamental da controvérsia: a oposição de
Schopenhauer a uma imagem conciliadora e otimista da história humana. Kossler não desenvolve esse
tema porque em sua interpretação da filosofia de Schopenhauer ele deixa de lado a teoria estrita da
negação da vontade de viver, exposta nos últimos três parágrafos do primeiro livro de O mundo como
vontade e representação, e considera como ponto culminante de sua filosofia não essa teoria, mas a
intuição das idéias na estética e a introvisão do véu de Maia por meio da compaixão na ética. Com isso, o
momento negativo com o qual Schopenhauer encerra sua filosofia é desconsiderado e a crítica a Hegel é
analisada apenas a partir de sua pertinência conceitual. Esse aspecto será desenvolvido nos capítulos
seguintes.
156
pensamento conciliador em que o absoluto é expresso como o “jogo de amor de Deus
consigo mesmo”, enquanto a intuição filosófica de Schopenhauer divisa a dilacerante
“desunião da essência do mundo consigo mesma”. Por isso a contraposição entre Hegel
e Schopenhauer não se esgota apenas nas questões metodológicas e expositivas da
filosofia; nem mesmo nos pressupostos ontológicos que formam a base das respectivas
doutrinas. Ela encontra seu ponto culminante na oposição entre duas visões de mundo
absolutamente opostas. Daí veremos se contrapor um pensamento da cisão absoluta ao
pensamento da reconciliação. Como esses conceitos encontram seu eixo na reflexão
filosófica sobre a religião é a ela que dedicaremos a parte final deste trabalho.
Terceira Parte: Filosofia especulativa e religião
Depois de termos examinado detalhadamente a contraposição entre Hegel e
Schopenhauer em relação à concepção teórica da filosofia, ou seja, no que diz respeito
às concepções fundamentais sobre o método e o objeto da reflexão filosófica, cabe-nos
agora examinar como tais concepções se articulam no que diz respeito ao todo de suas
visões de mundo, isto é, qual a aparência externa que cada um dos sistemas assume. A
noção de “visão de mundo” é sem dúvida problemática, não apenas por ter sido
desenvolvida a partir de um outro ponto de vista teórico que não aquele imediatamente
presente para Hegel e Schopenhauer, mas também por sugerir uma banalização dos
aspectos exteriores de ambas as filosofias. Isso se torna ainda mais problemático pelo
fato de que Hegel expressamente demonstra a fragilidade das visões de mundo e a
necessidade de superação do ponto de vista representativo da filosofia. No entanto, é
inegável que o filósofo oferece indicações daquilo que poderia ser o aspecto
representativo de seu sistema da filosofia. E isso acontece especialmente quando é
tematizada a relação da filosofia com a religião, de quem ela compartilha uma
coincidência de conteúdo. Sobre isso o autor se expressa claramente: “o conteúdo da
filosofia e da religião é o mesmo – abstraindo do conteúdo mais amplo da natureza
externa e do espírito finito, que não recai no âmbito da religião”
1
. Não se trata de tentar
reconstruir aqui a velha imagem do panlogismo ontoteológico hegeliano para justificar a
crítica de Schopenhauer. Nosso objetivo será, antes de tudo, o de reconstruir o debate
filosófico sobre o conceito especulativo de religião, tal como desenvolvido a partir da
recepção de Espinosa e da querela do ateísmo. Com essa reconstrução poderemos
entender por que é tão fundamental para Schopenhauer oferecer uma alternativa à
solução hegeliana e uma que lhe seja absolutamente contraposta. Trata-se, então, de
reler a crítica de Schopenhauer sob a luz de sua tentativa de estabelecer uma nova
abordagem sobre a relação entre ciência e religião. Se não conseguirmos justificar a
crítica de Schopenhauer, poderemos ao menos compreender em todo seu alcance aquilo
que podemos somente com muitas reservas chamar de sua “filosofia da religião”. Ao
fim e ao cabo desse percurso estaremos então em condições de emitir um juízo
definitivo sobre a contraposição geral de Schopenhauer a Hegel.
1
Enz, § 573, Anm., W 10, p. 379, trad. p. 352. Essa passagem importantíssima é citada aqui fora de seu
contexto. Tentaremos, nas páginas seguintes, reconduzir essa idéia a seu contexto original.
158
Para isso, nossa exposição se dará em três momentos principais: em primeiro
lugar, tentaremos reconstruir a controvérsia sobre a filosofia hegeliana da religião no
contexto do Pantheismusstreit e da discussão sobre a filosofia de Espinosa. Hegel
procura ao mesmo tempo responder as acusações de panteísmo e ateísmo e defender
Espinosa das mesmas acusações sem, no entanto, deixar de apontar as diferenças entre
suas concepções e as de Espinosa. A partir disso, poderemos discutir o lugar e o papel
da reflexão filosófica sobre a religião no sistema de Hegel. Num segundo momento,
então, poderemos reconstruir e analisar o papel da reflexão sobre a religião no
pensamento de Schopenhauer. Por fim, discutiremos as conseqüências teóricas e
práticas desse confronto.
Capítulo 1 – A controversa questão do conceito especulativo de religião
Como vimos na recensão que fizemos na primeira parte deste trabalho, a crítica
de Schopenhauer a Hegel se concentra no tema da relação da fiilosofia com a religião.
É a partir desse tema que surgem as demais acusações, a denúncia do “panlogismo” e da
interferência do estado e da religião na filosofia. Portanto, ao criticar uma idéia central
do sistema especulativo hegeliano (a identidade entre religião e filosofia),
Schopenhauer entra no terreno da controvérsia sobre o conceito especulativo de religião.
Ao mesmo tempo ele se verá na tarefa de dar uma resposta própria ao problema da
relação entre filosofia e religião.
Como se sabe, foi basicamente um debate em torno da filosofia da religião de
Hegel que suscitou a ruptura da escola hegeliana em duas vertentes. À direita, autores
como Carl Ludwig Michelet, Karl Rosenkranz e Philipp Marheineke insistiam na
identidade da filosofia e da religião no sistema de Hegel, enquanto à esquerda, Strauß,
Feuerbach, Bruno Bauer, entre outros, viram em tal identidade a primazia da filosofia e
da razão sobre a religião e a consequente supressão da mesma. Tanto à esquerda, quanto
à direita se constatava, porém, o fracasso da concepção hegeliana: por um lado se via a
redução antropológica da religião (esquerda), por outro (direita), a restauração
supernaturalista da ortodoxia.
1
A idéia da identidade entre filosofia e religião é um tema sempre retomado no
interior do sistema de Hegel. Sua expressão sistemática máxima é a teoria do espírito
absoluto da Enciclopédia das Ciências Filosóficas (1830). Aí a religião toma o lugar
sistemático de auto-conhecimento do absoluto por si mesmo, mas ainda anterior a sua
forma perfeita, conceitual, já que permanece no domínio da consciência, da
representação. Objetivamente, a religião é definida como uma relação a si da essência
absoluta que se conhece a si mesma como espírito. Já na Fenomenologia do Espírito
(1807) o “saber absoluto” não tinha qualquer outro conteúdo do que aquele que a
“religião manifesta” já apresentava
2
. Portanto, a filosofia, ao elevar-se do ponto de vista
da consciência (fenomenologia) ao ponto de vista puramente conceitual irá expressar a
1
Cf. W. Jaeschke, Reason in Religion – The Foundations of Hegel´s Philosophy of Religion, Trad. J. M.
Stewart e P. Hodgson, University of Califórnia Pres, Berkeley, Los Angeles, Oxford, 1990, pp. 349-421.
2
A religião manifesta (offenbare), ou revelada (geoffenbart) não é outra senão a religião cristã que
constitui a verdade de todas as outras religiões determinadas. Por isso é também chamada “religião
absoluta” ou consumada (vollendete) Cf. Vrelph., p. 28.
160
forma pura do conceito do espírito absoluto. O desdobramento das puras determinações
de pensamento, isto é, a Lógica, será, portanto, a explicação da subjetividade absoluta, a
teoria do “conceito divino”. E isso ela o é não por reivindicar para si o estatuto de
sucedâneo da teologia ou por considerar Deus como objeto específico, mas porque seu
único tema é o absoluto ou “o verdadeiro que se sabe a si mesmo como verdadeiro”. É
por essa razão que Hegel pode formular em um linguagem representativa aquilo que é a
lógica: “A lógica, por conseguinte, deve ser apreendida como o sistema da razão pura,
como o reino do pensamento puro. Este reino é a verdade mesma, tal como é sem véus
em e para si mesma; por isso, pode-se dizer que este conteúdo é a apresentação de
Deus como Ele é na sua essência eterna, antes da criação da natureza e de um espírito
finito”.
3
Essa apresentação de Deus em sua essência eterna deve ser compreendida como
o desdobramento da trindade imanente nas determinações do puro pensar. Embora a
lógica possa ser vista como fundamentação do sistema da filosofia, esse sistema como
um todo constitui uma apresentação de Deus, de como ele é tanto antes da criação
(lógica), como nas figuras finitas do mundo criado (filosofia da natureza e do espírito
finito), e no retorno a si da essência eterna na totalidade de suas figuras finitas (filosofia
do espírito absoluto). Não somente a lógica, mas todo o sistema adquire assim o caráter
de coincidência de seu conteúdo com o da religião manifesta.
4
Essas afirmações gerais são válidas para o sistema constituido de Hegel, tal
como apresentado, por exemplo, na última edição da Enciclopédia (1830). Elas não
deixam ver, porém, que a questão da religião sofre diversas transformações ao longo do
desenvolvimento do pensamento de Hegel. Só muito recentemente surgiram estudos que
tentam dar conta da questão em seu todo, isto é, que refletem sobre o desenvolvimento
do pensamento de Hegel sobre a religião, dos escritos de juventude até a formulação
definitiva do sistema. Como uma tal reconstrução nos levaria para muito além das
questões que nos interessam no presente trabalho, nos limitaremos a acompanhar as
transformações do pensamento de Hegel sobre a religião a partir da Fenomenologia até
suas Lições sobre a Filosofia da Religião ministradas em Berlim entre 1821 e 1831.
3
Introdução à Ciência da Lógica, WdL, W 5, p. 43.
4
Cf.Hans Kimmerle, Religion und Philosophie als Abschluss des Systems, In: Pöggeler, O. (org) Hegel,
Freiburg, München, 1977, p. 159.
161
1.1 – O lugar da religião na Fenomenologia: o problema da exposição do Absoluto
Como se sabe, o capítulo VII da Fenomenologia do Espírito apresenta a religião
como a “totalidade simples” ou “si absoluto”
5
dos momentos anteriores: consciência,
consciência de si, razão, espírito. Por essa razão, se poderá afirmar uma identidade de
conteúdo entre o saber da religião e o saber absoluto. O capítulo sobre a religião forma
assim a conclusão de todo o movimento anterior que é novamente reproduzido agora
como história da religião
6
: primeiro como “religião natural”, que compreende tanto a
religiosidade oriental, quanto a religião de Israel e do Egito; a religião da arte, que
compreende a religiosidade helênica e, por fim, a religião manifesta (offenbare)
7
, a
religião cristã que também é designada como “religião absoluta” pois nela o objeto da
consciência tem essencialmente a “forma da consciência de si”. O processo que leva até
esse último estágio é descrito por Hegel como a exteriorização da substância, sua
elevação até a consciência de si e a externação ou alienação dessa consciência de si, sua
passagem ao Si universal. O evento fundamental nesse sentido é a encarnação de Deus
em forma humana (Menschwerdung Gottes), quando se chega então a saber que a
“natureza divina é o mesmo que a humana, e é essa unidade que é intuída”
8
. A história
da religião reproduz, portanto, o percurso da Fenomenologia: o auto-elevar-se da
consciência a partir da imediatidade da religião natural até a certeza de si do espírito na
religião revelada. O que distingue, entretanto, a religião do “saber absoluto” é a forma
em que o absoluto é exposto. Enquanto na religião, mesmo na religião revelada, o saber
de si do espírito ainda é exposto na forma da representação e, portanto, a partir da
diferença entre a consciência e seu objeto, no saber absoluto tal conhecimento é exposto
na forma do conceito, na qual toda exterioridade entre consciência e objeto, eu e coisa é
suprimida e o saber se eleva a sua pura forma.
Desse modo, o capítulo ou seção da Fenomenologia intitulada “Religião” já
apresenta, ressalvada algumas diferenças pontuais, a concepção madura de Hegel sobre
as relações entre filosofia e religião. Na Enciclopédia a arte ganhará autonomia e nas
Lições sobre a Filosofia da Religião a história da religião receberá outras formulações.
5
PhG, W3, p. 498, trad. Vol. II, p. 146.
6
Cf. Jean Hyppolite, Gênese e Estrutura, p. 566: “A história das religiões, quer dizer, do saber de si do
espírito, é ao mesmo tempo a história do espírito do mundo que na religião se sabe a si mesmo como
espírito”.
7
Optamos por traduzir “offenbare Religion” por religião manifesta ao invés de religião revelada (como
foi traduzido por Paulo Meneses) para diferenciar offenbare de geoffenbart. Na Enciclopédia (1830)
Hegel sempre utiliza este segundo adjetivo. Cf. abaixo nota 52.
8
“die göttliche Natur ist dasselbe, was die menschliche ist, und diese Einheit ist es, die angeschaut wird”.
PhG, W3, p. 552, trad. Vol. II, p. 189.
162
Mas valeria a pena se deter nesse momento crucial da Fenomenologia, pois ela já
apresenta, em contraste com os chamados “escritos teológicos de juventude”
9
, o
conceito especulativo da religião como autoconhecimento do absoluto e não como um
mero elevar-se do finito ao infinito.
Hegel inicia esse sétimo capítulo se referindo às aparições anteriores da religião
no percurso do espírito. No momento do “entendimento” a consciência tomava
consciência do supra-sensível, mas este era apenas o universal abstrato “carente de si”
que não chegava a saber-se como espírito. Já para a consciência de si a religião aparecia
como “consciência infeliz”, pois expressava a dor da separação em que se encontrava a
consciência que colocava num além a unidade do singular e do imutável e vivia,
portanto, “lutando por chegar de novo à objetividade, mas sem consegui-la”.
10
A
religião aparecia ainda no primeiro momento da seção “Espírito” como a religião do
mundo inferior (ctônico), dramatizado na tragédia grega enquanto luta da lei divina
contra a lei humana, na tensão entre a Polis e a nascente individualidade. Aparecia ainda
a religião como a superstição que resistia ao esclarecimento do mundo do espírito
alienado de si e, por último, como religião da moralidade, da fé racional do idealismo de
Kant e Fichte. Ora, todas essas manifestações da religião ainda se davam a partir do
ponto de vista da consciência que considera o pensar de modo dualista, impedindo o
movimento dialético-especulativo de reconhecimento do absoluto. Essa cisão se
expressa ainda mais claramente no momento “Razão”, momento em que, segundo
Hegel, não há religião, porque sua consciência de si se sabe, ou se busca no imediato
presente
11
.
As condições necessárias para o surgimento do momento “religião” só estarão
dadas quando o absoluto deixar de ser o objeto de uma consciência diferente de si
mesma, permanecendo consciente de si mesmo, e se representar a si através de figuras
determinadas. Isso não quer dizer, entretanto, que a oposição característica da
consciência, constituinte de todo o movimento fenomenológico, tenha desaparecido
aqui. Ela continua a estar presente, mas já não se divide em dois membros distintos, a
consciência e seu objeto, mas é interior ao próprio absoluto. Nela o espírito sabedor de
si já é sua própria consciência de si pura. Ela representa o espírito como o universal que
9
Os textos teológicos do jovem Hegel não serão levados em conta aqui não apenas porque, como dito no
início, Schopenhauer não os conheceu, como também porque sua análise ultrapassaria e muito o campo
temático que delimitamos para nossa discussão.
10
PhG, W3, p. 495, trad. II, p. 143
11
Ibid, Idem.
163
contém toda a essência e toda efetividade. Mas tal conteúdo é representado para uma
consciência, não se elevou, portanto, à absoluta identidade de si, pois está preso a uma
imagem. Uma vez que a representação expõe o próprio conteúdo não segundo sua
lógica interna, mas se fia em imagens tiradas da imediatez naturalista ou, como diz o
filósofo, imersas no elemento do ser, o absoluto que se representa em figuras não chega
a saber o que ele é em si na sua verdade
12
. Nessa figuração dá-se a separação entre o
ser-aí efetivo do espírito e sua consciência de si, o que resulta na separação das figuras e
suas essências, que se perdem assim numa transcendência interior que somente o
conceito pode superar.
Na medida em que o espírito na religião se representa para ele mesmo, ele é certamente
consciência, e a efetividade incluída na religião é a figura e a roupagem de sua representação.
Mas nessa representação não se atribui à efetividade seu pleno direito, - a saber, o direito de
não ser roupagem apenas, e sim um ser-aí livre independente. Inversamente, por lhe faltar sua
perfeição em si mesma, é uma figura determinada, que não atinge o que deve apresentar: isto é,
o espírito consciente de si mesmo
13
.
Contudo, apesar dessas limitações, o leitor que percorre as páginas iniciais do
capítulo VII percebe que ali se dá uma virada fundamental no que diz respeito à
estrutura da obra. Justamente porque é no momento “religião” que o próprio absoluto
apresenta a consciência de si à consciência que se encontra aqui uma reflexão detida da
parte de Hegel sobre todo o percurso fenomenológico
14
. Nessas páginas Hegel
confronta duas totalidades: a totalidade em conjunto (zusammengefaßte Totalität) que é
constituída pelo espírito na sua existência mundana em geral, ou seja, o conjunto de
suas figuras em todos os seus momentos; e a totalidade simples (einfache Totalität), que
seria o recolhimento em unidades determinadas daquela primeira e mais ampla
totalidade: ou seja, essa segunda totalidade unifica os momentos da totalidade anterior e
lhes dá uma forma determinada. Por isso se iniciará um novo percurso, mas agora não
se trata mais de momentos da consciência até o espírito, mas do próprio saber que o
espírito tem de si, isto é, do absoluto. Assim, “por muito diversas que sejam as formas
como o absoluto se manifestou à consciência religiosa, é sempre o mesmo sujeito que
apresenta os próprios predicados através das diversas fases do seu desenvolvimento”.
15
12
Chiereghin, F. Introdução à leitura da Fenomenologia do Espírito de Hegel, p. 144.
13
PhG, W3, p. 498, trad. II, p. 145.
14
Cf. Chiereghin, F. Op. cit, p. 145.
15
Ibid, p. 54.
164
Trata-se, portanto, no momento chamado “Religião”, do saber que o espírito tem
de si mesmo, ou seja, “o espírito que se sabe com espírito”.
16
Esse novo percurso terá
como dito, três momentos: religião natural, religião da arte e religião manifesta
(offenbare). Estes momentos são, portanto, momentos em que o espírito vai se
revelando a si mesmo como espírito. De certo modo veremos se repetir novamente o
movimento que vai da certeza sensível até à consciência de si espelhado na história da
religião que se desenvolve da religião natural até à religião manifesta, que constitui a
consumação da mentalidade religiosa, e por isso é também chamada “religião absoluta”.
Esse desenvolvimento não significa, entretanto, que ao final alcançaremos o saber
absoluto, pois a oposição característica da consciência ainda permanece presente. Essa
oposição, porém, já não se manifesta entre uma consciência e seu objeto, pois o espírito
aqui já se sabe como espírito, mas se revelando a si mesmo no modo da representação.
A representação religiosa expõe o conteúdo absoluto como um objeto da consciência,
um objeto cuja forma não é imediatamente a revelação completa da essência.
17
quando a representação for superada pela forma conceitual, numa outra esfera, então se
chegará ao saber absoluto. Entretanto, o conteúdo que aí se dá a conhecer, ainda que de
forma inadequada, é o mesmo que a filosofia especulativa esgotará em seu conceito.
Não nos interessa aqui recorrer até o detalhe da história das religiões tal como
Hegel a expõe na Fenomenologia. Vamos nos concentrar no momento crucial da
religião manifesta, que é o momento da religião cristã. Retenhamos apenas o
movimento lógico que guia a passagem de um estágio ao outro: no primeiro, o da
religião natural, o espírito se “sabe como seu próprio objeto em figura natural ou
imediata”
18
. Já no segundo estágio, como religião da arte, o espírito suprassume essa
imediatidade ou naturalidade: nela, “a figura se eleva à forma do Si, através do produzir
da consciência, de modo que essa contempla em seu objeto o seu agir ou o Si”
19
. Já na
religião manifesta, é suprimida a unilateralidade das duas primeiras figuras:
“O Si é tanto um imediato quanto a imediatez é Si. Se na primeira efetividade o espírito está,
em geral, na forma da consciência; na segunda, na forma da consciência de si; então na terceira
16
PhG, W3, p. 495, trad. II, p. 143.
17
Cf. Hyppolite, J. Op cit., p. 563: “O espírito que sabe o espírito é consciência de si e consciência ao
mesmo tempo; representa-se a si mesmo em si mesmo, e essa representação de si é suscetível de se
transformar na religião até que esteja perfeitamente adequada àquilo que pretende exprimir.”
18
PhG, W3, p. 502, Trad. II, p. 149.
19
Ibid, Idem.
165
está na forma da unidade de ambas: tem a figura do ser-em-si-e-para-si; e assim, enquanto está
representado como é em si e para si, é a religião manifesta”.
20
Ao aparecer primeiramente em figuras que não correspondem inicialmente ao
que o espírito é em si e para si, o espírito se submete a um itinerário fenomenológico em
que essa inadequação vai se dissolvendo. Este processo começa pela religião natural em
que o divino é fixado em imagens que não correspondem ao que é o espírito: seja na
luminosidade (Lichtwesen), na religião das plantas e dos animais, ou no artesão
(Werkmeister), a substância não chega a se tornar sujeito.
21
Neste último momento,
porém, a substância deixa de ser uma imediatidade natural para ser algo construído pela
mediação da subjetividade. Com isso o espírito se torna artista e temos então a
passagem para o momento da “religião da arte”. Aqui a criação artística não tem
simplesmente o significado da produção de uma bela obra, mas a obra de arte é o lugar
próprio da manifestação da divindade. À religião natural segue-se então a religião da
arte que tem seu lugar concreto na civilização helênica. Pela obra de arte o espírito
suprassume sua naturalidade e se manifesta em figuras cada vez mais adequadas a seu
conceito, isto é, cada vez mais espirituais, partindo da mais completa representação
abstrata até a mais concreta manifestação de si na tragédia. Assim, no primeiro
momento, na “obra de arte abstrata”, a divindade manifesta-se nas criações plásticas do
templo e da estátua, e na linguagem oracular. No segundo momento, na “obra de arte
viva”, a imediatidade do objeto produzido é suprassumida pelo culto, em que se faz
presente a realidade espiritual da divindade em uma comunidade. Por fim, na “obra de
arte espiritual”, os deuses ganham personalidade e representação na tragédia, que
também significa a elevação a uma forma clara e universal de linguagem que
corresponde à maturidade de um povo:
Essa linguagem superior, a tragédia, abarca assim mais estreitamente a dispersão dos
momentos do mundo essencial e do mundo operante. Conforme a natureza do conceito, a
substância do divino dissocia-se em suas figuras, e seu movimento está igualmente em
conformidade com o seu conceito. No que concerne à forma, ao penetrar o seu conteúdo, a
linguagem deixa de ser narrativa, assim como o conteúdo deixa de ser representado. É o herói
mesmo quem fala, e a representação mostra ao ouvinte – que ao mesmo tempo é espectador
20
Ibid, Idem. (Trad. modificada).
21
Segundo Siep, no primeiro momento (Lichtwesen) se apresentam claros traços das religiões persas e
judaicas, no segundo (Pflanze und Tier), traços das religiões indianas, egípcias e sírias, e no terceiro trata-
se da cultura e religião egípcia mais avançada. Cf. Op. Cit, p. 223. Como nota Jaeschke, entretanto, é
difícil delimitar com rigor as referências de Hegel nesse capítulo, ao contrário das Lições de Berlim em
que as referências são mais explícitas. Cf. Reason in Religion, pp. 197-207.
166
homens conscientes-de-si, que sabem e sabem dizer seu direito e seu fim; a força e a vontade
de sua determinidade.
22
Na tragédia a força do destino se faz presente, mas a ela se contrapõe o herói.
Nesse conflito se realizará o “despovoamento do céu” pelo triunfo da consciência de si
irônica da comédia. A comédia desvela aquilo que a tragédia só anunciava: associados
ao homem na submissão ao destino, os deuses revelam-se como personificações de
aspectos particulares do homem. Com isso se dá o processo de purificação do divino,
primeiro pelo desvelamento cômico dos deuses e pelo triunfo da consciência de si
particular na democracia grega e nas filosofias estóicas e céticas.
23
A religião manifesta pressupõe, assim, todo o movimento anterior, por meio do
qual a substância vira sujeito: “o espírito avançou da forma da substância à forma do
sujeito através da religião da arte, pois ela produz a figura do espírito e assim põe nela o
agir ou a consciência-de-si”
24
. O absoluto deixa de ser apreendido como um objeto da
consciência (na religião natural) ou como uma força estranha (o destino na tragédia) e
passa a ser visto como um produto que desvanece (a comédia é a consciência disso). A
consciência infeliz paga o preço de tal sacrifício e reconhece que assim perdeu seu
Deus. Essa consciência infeliz
constitui o reverso e o complemento da consciência completamente feliz dentro de si, - da
consciência cômica. A essência divina retorna para essa última consciência, ou seja, ela é a
perfeita exteriorização da substância. Ao contrário, a consciência infeliz é o destino trágico da
certeza de si mesmo, que deve ser em si e para si. É a consciência da perda de toda a
essencialidade nessa certeza de si; e justamente da perda desse saber de si, - da substância
como do Si. É a dor que se expressa nas duras palavras: Deus morreu.
25
Mas nesse sacrifício a substância se revelará a si mesma como sujeito quando o
próprio Deus se faz homem, e mostrar assim que deixou de ser aquela abstração carente
de vida que soçobrou na comédia. É por meio dessa concentração de referências que
Hegel interpreta toda a paixão de Cristo e lhe oferece uma explicação especulativa
26
. A
22
PhG, W3, p. 534, trad. II, p. 174-5. Cf. Chiereghin, Op. cit., p. 150
23
Cf. Siep, L. Op. Cit, p. 233 e Chiereghin, Op. cit, p. 151-2.
24
PhG, W3, p. 545, trad. II, p. 183.
25
PhG, W3, p. 547, trad. II, p. 184. A descrição que Hegel oferece aqui da “consciência infeliz” contrasta
com aquela oferecida no capítulo “Consciência-de-si” em que ela era descrita como a consciência da
distância entre a divindade e a consciência do crente. Cf. Siep. L, Op. Cit, p. 235.
26
Que seja citada uma passagem exemplar em que mesmo a geração do filho de Deus é interpretada
especulativamente: “Desse espírito, que abandonou a forma da substância e entra no ser-aí na figura da
consciência-de si, pode-se dizer – caso se prefira utilizar relações tomadas da geração natural – que o
espírito tem uma mãe efetiva, mas um pai em-si-essente. Com efeito, a efetividade ou a consciência-de-si,
167
encarnação ou humanização (Menschwerdung) de Deus não significa um rebaixamento
da essência divina, mas sua transformação em efetiva consciência de si. Por isso, para
Hegel, a Menschwerdung Gottes é o ponto central da religião, pois “essa encarnação da
essência divina, ou o fato de que ela tem essencial e imediatamente a figura da
consciência-se-si, é o conteúdo simples da religião absoluta”.
27
Agora a morte efetiva
de Deus enquanto homem, enquanto consciência de si singular existente é um momento
necessário de sua revelação como espírito. Esse movimento corresponde à passagem da
certeza sensível ao universal que foi o resultado do primeiro capítulo da
Fenomenologia: “Este homem singular, portanto, como o homem que a essência
absoluta se revelou ser, consuma nele enquanto singular o movimento do ser-sensível.
Ele é o Deus imediatamente presente: assim, o seu ser passou para o ter sido. A
consciência, para a qual ele tem essa presença sensível, deixa de vê-lo, de ouvi-lo; ela o
tinha visto e ouvido, - e só porque o tinha visto e ouvido, torna-se ela mesma
consciência espiritual. Ou seja: como antes ele nasceu para ela como ser-aí sensível,
agora nasce como espírito”.
28
A presença sensível do espírito vive na comunidade e este
é um momento do processo: “O que constitui o todo completo desse espírito não é o
singular, mas sim o singular junto com a consciência da comunidade e o que ele é para a
comunidade”.
29
Mas a morte de Deus tem ainda o significado da completa efetivação de
sua essência. Ela deve alienar-se totalmente de si num existir natural e numa efetividade
existente como mal.
“A morte é o sentimento dolorido da consciência infeliz, de que Deus mesmo morreu. Essa
dura expressão do simples saber de si mais íntimo, o retorno da consciência às profundezas da
noite do ‘Eu=Eu’, que nada mais distingue nem sabe fora dela. Assim, esse sentimento é de
fato a perda da substância e de seu contrapor-se à consciência; mas é, ao mesmo tempo, a pura
subjetividade da substância, ou a pura certeza de si mesma que faltava à substância, - seja
enquanto objeto, seja enquanto o imediato seja enquanto pura essência. Esse saber é, pois, a
animação pela qual a substância se fez sujeito. Morreu sua abstração e carência de vida, e
assim a substância se tornou consciência de si simples e universal”.
30
e o em-si como a substância são os seus dois momentos, pela exteriorização mútua dos quais – tornando-
se cada um deles o outro – o espírito entra no ser-aí como sua unidade”. PhG, W3, p. 550, trad. II, p. 186.
27
PhG, W3, p. 552, trad. II, p. 188.
28
PhG, W3, p. 555, trad. II, p. 191. Cf. Siep, L. Op. Cit, p. 238.
29
PhG, W3, p. 556, trad. II, p. 191.
30
PhG, W3, p. 572, trad. II, p. 204. Sobre a questão da “morte de Deus”, Cf. Löwith, K. Hegels
Aufhebung der christlichen Religion. In: Hegel-Studien Beiheft 1 (1964), p. 212, Jaeschke, W. Die
Religionsphilosophie Hegels, pp. 64 e seguintes; R. Garaudy. Dieu est mort. Étude sur Hegel. Paris, 1962,
pp. 100 e seguintes.
168
A morte de Cristo se apresenta como a mediação que conduz o espírito à
completa consciência de si. A comunidade deve reconciliar a existência finita com a
essência divina através da morte do mediador. Por isso, o que acontece é não somente a
morte do Deus homem, mas ainda a morte do Deus abstrato, cuja transcendência
separava radicalmente a existência humana da essência divina
31
. Assim, o absoluto
deixa de ser um além inatingível para a consciência, como sucedia com a consciência
infeliz, ou aquela unidade impenetrável e obscura do destino. O absoluto se revela na
consciência de si de Deus que oferece a completa manifestação de si, na qual a
consciência já não encontra nada de estranho, antes se reconhecendo e se encontrando
completamente reconhecida por ela. Por essa razão, a religião cristã se apresenta como a
religião absoluta, ou “consumada” como Hegel a nomeará nas Lições de Berlim, pois
nela
a essência é sabida como espírito; vale dizer, essa religião é sua consciência, sobre si mesma,
de ser espírito. Com efeito, o espírito é o saber de si mesmo em sua extrusão: é a essência que é
o movimento de preservar no seu ser-outro a igualdade consigo mesma. Ora, isso é a
substância, na medida em que ela, em sua acidentalidade, é igualmente refletida sobre si, não
ao contrário, como indiferente a algo inessencial, e que por isso se encontrasse em algo
estranho; senão que ali a substância está dentro de si, isto é, enquanto ela é sujeito ou Si. Por
conseguinte, a essência divina é revelada (geoffenbart) nessa religião. O seu ser-manifesto
(Offenbarsein) consiste manifestamente (offenbar) em que se sabe o que ela é. Mas ela é
conhecida justamente enquanto é conhecida como espírito, - como essência que é
essencialmente consciência de si
32
.
Aqui começamos a ver coincidir o processo da religião revelada com o saber
especulativo da filosofia, pois assim como o conceito na filosofia, Deus, na revelação,
penetra o inteiramente outro do ser sensível e mantém-se na igualdade consigo mesmo
através desta total alienação de si. No cristianismo dá-se assim, a plena manifestação
daquilo que é o divino em si, ou seja, espírito. Nela deixa de existir qualquer mistério e
qualquer separação entre o além e o aquém: “Deus é assim aqui manifestamente
(offenbar) como ele é: ele é aí assim como ele é em si; ele é-aí como espírito. Deus só é
acessível no puro saber especulativo, e é somente nesse saber; e só é esse saber mesmo,
porque Deus é o espírito, e esse saber especulativo é o saber da religião manifesta
(offenbare). Um saber que sabe Deus como pensar, ou pura essência, e esse pensar
31
Cf. J. Hyppolite, Op. Cit, p. 595.
32
PhG, W3, p. 552, trad. II, p. 188.
169
como ser e como ser-aí, e o ser-aí como a negatividade de si mesmo; por isso, como Si
este Si, e Si universal. Justamente isso sabe a religião manifesta”
33
. Aqui se revela a
trindade constitutiva tanto da religião quanto da filosofia especulativa.
Tendo chegado a esse ponto pode-se afirmar que o conteúdo da fé cristã é
idêntico ao conteúdo da filosofia especulativa
34
. Mas tal identidade não é absoluta, pois
resta ainda a diferença da forma: a consciência religiosa ainda está presente de modo
imediato, não na forma do conceito, mas enquanto algo representado. O conteúdo
religioso ainda depende de um acontecer inconcebível, graça ou fé, que não tem a
necessidade do conceito. A conciliação aqui ainda é meramente representada e não
conceituada, embora em si já tenha ocorrido
35
. Apesar de superar a imediatez das
religiões naturais e artísticas, ela não renuncia inteiramente à imagem.
Embora o espírito certamente alcance nela sua figura verdadeira, justamente sua figura mesma
e a representação ainda são o lado não superado, do qual o espírito deve passar ao conceito,
para nele dissolver totalmente a forma da objetividade: - nele que inclui dentro de si
igualmente seu contrário
36
.
A exposição da verdade do conteúdo da religião manifesta em forma conceitual
será, então, a verdadeira suprassunção da diferença entre a essência divina e sua
representação. A forma conceitual supera a representação ainda imperfeita de uma
redenção lançada ao futuro a qual se entregava a mentalidade religiosa. Ela supera
enfim, a cisão num aquém e num além, em nome de uma identidade que mantém a
diferença. De certa forma, a religião deve “suprassumir-se” na forma conceitual para
compreender o próprio conteúdo que ela apresenta. Pois só do ponto de vista do saber é
que o espírito pode ser captado na simplicidade que lhe é própria, como reconhecimento
de si no seu ser-outro.
33
PhG, W3, p. 554, trad. II, p. 190.
34
E na verdade, não apenas o conteúdo do cristianismo, mas de todo o capítulo VII. Pois como nota
Wohlfart, “arte e religião são ao mesmo tempo o solo (o ‘Territorium’), a partir do qual o conhecimento
especulativo-filosófico é possível. No final, não se trata nem de permanecer nele, nem tampouco antes
dele. – A reflexão absoluta do conceito especulativo é por assim dizer a revisão filosófica do conteúdo
artístico-religioso”. Der spekulative Satz, p. 100.
35
“Há assim nessa união do ser e pensar o defeito de estar a essência espiritual ainda afetada por uma
cisão, não reconciliada, em um aquém e além. O conteúdo é o verdadeiro, mas todos os seus momentos,
postos no elemento do representar, têm o caráter de não serem conceituados, mas de aparecerem como
lados totalmente independentes, que se relacionam exteriormente um como o outro. Para que o verdadeiro
conteúdo receba também sua verdadeira forma para a consciência, faz-se mister a mais alta formação
(Bildung) dessa consciência: há que elevar ao conceito sua intuição da substância absoluta, igualar, para
ela mesma, sua consciência com sua consciência de si: - como para nós, ou em si ocorreu”. PhG, W3, p.
555-6, trad. II, p. 192.
36
PhG, W3, p. 502-3, trad. II, p. 149.
170
Essa apresentação da relação entre a religião e a filosofia especulativa já seria
suficiente para compreender o conceito especulativo da religião – a religião como a
consciência de si do espírito absoluto
37
. Mas como Hegel fornece tanto na Enciclopédia
(especialmente na terceria edição de 1830), como nas Lições de Berlim, explicações
mais claras para esse conceito, nos remeteremos a esses textos para completar nossa
apreensão das linhas gerais da filosofia hegeliana da religião em geral e da religião
cristã em particular.
1.2 – A esfera do espírito absoluto e a religião cristã como a “religião consumada” ou
“absoluta”
Para apresentar em toda sua estrutura a filosofia da religião de Hegel tal como
ela se dá no interior de seu sistema, deveríamos analisar tanto as diferenças entre as
diversas edições da Enciclopédia (1817, 1827 e 1830), quanto entre as diversas versões
que nos chegaram das Lições sobre a Filosofia da Religião (1821, 1824, 1827 e
1831)
38
. Mas não faremos isso aqui, já que isso exigiria um espaço muito maior do que
aquele que devemos reservar para uma comparação com a “filosofia da religião” de
Schopenhauer. Nos limitaremos a traçar as linhas gerais do conceito de religião e da
concepção da religião consumada tal como aparecem nas Lições, e por fim
discutiremos a relação que se estabelece entre a religião e a filosofia no interior da
filosofia do espírito absoluto da Enciclopédia de 1830.
Começemos pelo manuscrito das lições de 1821. Nele Hegel apresenta um
prólogo que será mantido em todas as lições posteriores e no qual ele apresenta a
finalidade de suas lições. O objeto da filosofia da religião é Deus e a finalidade dela
consiste no conhecimento de seu objeto.
O objeto destas lições é a filosofia da religião (Ela tem em geral, em suma, o mesmo fim que a
antiga ciência metafísica, chamada theologia naturalis, pela qual se entendia o âmbito daquilo
que a mera razão podia saber de Deus, - “mera” significa diferente de uma religião positiva,
revelada, de uma religião que se saberia por outros meios que os da razão) e o objeto da
religião mesmo é o altíssimo, o absoluto (aquele que é simplesmente verdadeiro) (a verdade
mesma): a região na qual foram resolvidos todos os enigmas do mundo, todas as contradições
37
Cf. Jaeschke, W. Reason in Religion, p. 188. Cf. Hyppolite, J. Op. cit, p. 565: “A fenomenologia da
religião não é mais a fenomenologia da consciência se elevando à certeza de que o espírito é a única
verdade. É o próprio espírito que, tendo chegado ao saber de si, busca uma expressão adequada à sua
essência”.
38
Para uma análise das diferenças entre as lições, Cf. Jaeschke, W. Reason in Religion, pp. 208-348.
171
do pensamento, todas as dores do sentimento – a região da verdade eterna e do repouso eterno,
da verdade absoluta mesma. (...) Ele é o ponto de partida de tudo e o final de tudo. Tudo
deriva dele e tudo regressa a ele. (O objeto unitário e único da filosofia é ele, ocupar-se dele,
conhecer tudo nele, reduzir tudo a ele, assim como derivar dele todo o particular, justificar tudo
exclusivamente enquanto brota dele, se mantém em conexão com ele, vive de sua irradiação e
tem sua alma. Por isso a filosofia é teologia, e a ocupação com ela, ou melhor nela, é para si
culto divino)
39
.
Recuperar o conceito de Deus para a filosofia teórica não é certamente apenas a
tarefa da filosofia da religião, mas de todo o sistema, que se define como uma
“explicação de Deus” e nada mais
40
. Por essa razão, a filosofia da religião ocupará o
lugar de última disciplina no sistema: a ciência filosófica da religião ocupa o último
lugar entre todas as outras disciplinas, de maneira que ela própria já é o resultado de
todo o percurso reflexivo e conceitual anterior
41
. Assim, a base originária da filosofia da
religião é um resultado cujo conteúdo já é em si verdadeiro. Somente o próprio sistema
oferece a verdadeira prova da necessidade do ponto de vista religioso. Por isso, como
veremos mais a frente, não é necessária uma prova prévia da existência de Deus, pois de
certo modo todo o sistema pode ser visto como essa prova. O pensamento sobre Deus é,
segundo Hegel, aquilo que constitui o centro último de tudo aquilo que distingue o
homem do animal, a consciência, o pensamento e tudo que deriva daí, os costumes, as
ciências e as artes. (É o que Hegel diz no trecho suprimido na passagem acima do
manuscrito). Por isso, podemos partir da religião como de algo imediatamente dado,
admitindo que a constituição do seu ponto de vista já está comprovado e que podemos
imediatamente recorrer ao testemunho da própria consciência. Isso implica a
necessidade mesma de adotar como começo dessa ciência o conteúdo pressuposto
subjetivamente pela consciência, porque este é, pelo menos empiricamente, tomado
como universalmente válido, ou seja, a religião apresenta-se de imediato como verdade
para todos os homens e a repousa no testemunho do espírito tal como ele se manifesta
no espírito dos homens reunidos em comunidade, que sabem de Deus e da religião
primeiramente como conteúdo externo transmitido pela tradição e só depois chegam a
conhecer o seu conteúdo especulativo verdadeiro. Mas somente a filosofia da religião,
39
VphRel, I, p. 3-4 (Ms), trad. Esp., p. 3-4.
40
Cf. W. Jaeschke, Reason in Religion, p. 214. No escrito da Diferença é dito que a especulação, assim
como a arte é, em sua essência, ofício divino (Gottesdienst), “ambas são uma intuição viva da vida
absoluta e, por isso, estão em unidade com ela”. Differenz, SW IV, p. 76, trad. p. 108.
41
“A ciência da religião é uma e na verdade a última disciplina na filosofia; desse modo ela pressupõe as
outras disciplinas filosóficas, é portanto resultado”. VPhRel, I (1827), p. 265.
172
em virtude de seu desenvolvimento especulativo e conceitual, pode propiciar um
conhecimento científico do que Deus é, de maneira que somente por seu intermédio se
sabe efetivamente o que ele é. Essa verdade só será alcançada, entretanto, ao término do
processo, quando o que antes era chamado indeterminadamente de Deus se apresenta
como resultado efetivo da filosofia inteira.
De acordo com essa concepção, Hegel irá se opor à visão predominante em sua
época, segundo a qual Deus não poderia ser conhecido, restando apenas o apelo à fé e
ao sentimento como fontes da religião. Hegel retoma, mais uma vez, sua crítica à assim
chamada “filosofia da reflexão” de Kant e Jacobi, que teria estabelecido uma barreira
entre Deus e o conhecimento, restando a este último restringir-se apenas ao âmbito do
finito, dando lugar a uma fé que acaba se refugiando no simples sentimento. O alvo
principal de Hegel é a concepção da religião de F. D. E. Schleiermacher, exposta em sua
obra Sobre a Religião. Discursos aos seus detratores cultivados (publicada anônima em
1799)
42
. No Prólogo à Filosofia da Religião de H. F. W. Hinrichs (1821), Hegel
caracteriza esta concepção como o resultado do “pressuposto absoluto” da cultura de
seu tempo segundo o qual o homem não saberia nada da verdade: “O sistema de
distinções e determinações sutis, metafísicas, casuísticas, em que o entendimento
estilhaçou o conteúdo sólido da religião e sobre o qual colocou a autoridade igual à que
tem a verdade eterna, é o primeiro mal que começa no interior da própria religião”
43
.
Esse mal teria sido desencadeado por um processo no interior da Aufklärung que a teria
conduzido do impulso pelo conhecimento da verdade e da luta ao preconceito ao
esvaziamento do conteúdo objetivo da fé. Esse processo encontraria, no campo da
filosofia, seu ápice com a filosofia crítica kantiana. Apesar de partir de uma justificada
crítica da teologia dogmática da metafísica, esta filosofia teria captado somente como
uma finitude toda determinação graças à elevação do princípio do entendimento ao
padrão de medida máximo da verdade. Segundo Hegel, esta filosofia teria deixado Deus
sem nenhuma determinação ao elevá-lo sem qualquer propriedade e predicado ao além
do saber, isto é, teria o rebaixado à ausência de conteúdo.
Esta filosofia deu a este entendimento a consciência correta sobre si de que ele seria incapaz de
conhecer a verdade; mas, ao captar o espírito unicamente como este entendimento, ela
converteu em princípio universal que o homem não poderia saber nada de Deus e – como se
fora de Deus pudesse haver em geral uma verdade e objetos absolutos – nada poderia saber em
42
Cf. Baioni, J. E. M., Substancialidade e Subjetividade, p. 202.
43
W11, p. 50, Tradução Prefácios, p. 218.
173
geral do que é em si. Se a religião coloca a honra e a salvação do homem em conhecer Deus, e
o seu benefício em ter-lhe comunicado este conhecimento e desvendado a essência
desconhecida do mesmo Deus, então nesta filosofia, na mais tremenda oposição à religião, o
espírito degradou-se até à modéstia do animal como seu destino supremo; só que o homem
possui desgraçadamente a prerrogativa de ter ainda a consciência desta sua nesciência; em face
disso, o animal possui de fato a modéstia muito mais pura, verdadeira, ou seja, a modéstia
totalmente ingênua da nesciência. Pode-se bem considerar agora que este resultado se tornou,
com poucas excepções, um preconceito universal da nossa cultura.
44
Para Hegel, a concepção que vê a religião como baseada no sentimento tem
origem nesse esvaziamento do saber especulativo de Deus pela filosofia kantiana. Pois
ao restringir o campo do conhecimento ao fenômeno, isto é, a meras finitudes, chegaria-
se então à conclusão, com Schleiermacher, de que somente o sentimento seria a forma
verdadeira em que a religiosidade conservaria sua autenticidade.
45
Contra essa
concepção da religião que Hegel vê como predominante em sua época ao traçar o “lugar
da filosofia da religião em relação às necessidades do tempo”
46
é que o autor pretende
lançar as bases de uma teologia especulativa, que faria justiça ao conceito da “religião
manifesta” desenvolvido desde a Fenomenologia, segundo o qual a religião cristã, bem
longe de ser uma religião do mistério e do Deus abscôndito, é na verdade, a religião na
qual o espírito chega à sua máxima consciência de si, ou seja, a única em que ele vem a
ser para si mesmo espírito, e com isso realiza o conceito de religião, recebendo assim o
título de religião consumada ou absoluta.
É o fenômeno totalmente peculiar desta época ter regressado, no ponto culminante da sua
cultura, àquela antiga representação de que Deus é o que não se comunica e o que não revela a
sua natureza ao espírito humano. Esta afirmação acerca da inveja de Deus tem de ser tanto
mais estranha no interior do círculo da religião cristã quanto esta religião não é e não quer ser
nada senão a revelação do que Deus é, e a comunidade cristã não deve ser nada senão a
comunidade à qual foi enviado o Espírito de Deus e na qual este mesmo – que, justamente
porque é Espírito, não é sensibilidade e sentimento, não é um representar do sensível, mas
pensar, saber, conhecer, e, porque é o Espírito Santo divino, é unicamente pensar, saber e
conhecer de Deus – conduz os membros ao conhecimento de Deus. O que seria ainda a
comunidade cristã sem este conhecimento? O que é uma teologia sem conhecimento de Deus?
44
W11, p. 53-4, Tradução Prefácios, p. 220.
45
Cf. Ibid, Idem. (Trad. p. 221).
46
Este é o título de um dos tópicos da introdução nas Lições de 1824. Em 1827 esse tópico recebe o
título: “a relação da ciência da religião diante das necessidades de nosso tempo”.
174
Precisamente aquilo que é uma filosofia sem o mesmo conhecimento: um bronze que ressoa e
um címbalo que retine!
47
Com isso já se delineia o vínculo entre a filosofia especulativa e o conceito
especulativo da religião que Hegel desenvolve: se a religião é o saber de si mesmo do
espírito é somente na religião em que o espírito se sabe como espírito que ela alcança
sua máxima realização: “A religião consumada é aquela em que o conceito retornou a
si, na qual o objeto é a idéia absoluta – Deus enquanto espírito, segundo sua verdade e
abertura (Offenbarkeit) à consciência. As religiões anteriores, nas quais a determinidade
do conceito é menor, mais abstrata e deficiente, são as religiões determinadas, as quais
constituem os graus da passagem do conceito da religião até sua consumação. A religião
cristã se nos mostrará como a religião absoluta”
48
. O conceito da religião consiste,
portanto, no desdobramento sistemático dos momentos em que o espírito se revela a si
mesmo. Por isso, a religião cristã, sendo a única, segundo Hegel, na qual o espírito se
revela a si mesmo como espírito é a religião que está mais de acordo com seu próprio
conceito. Ela deve esboçar aquilo que a filosofia especulativa explica: a conciliação dos
contrários, a síntese da universalidade absoluta do pensar puro e a singularidade
absoluta da sensação.
49
Com isso Hegel chega à formulação sistemática do conceito
especulativo de religião que já era anunciado na Fenomenologia do Espírito: a religião
não é mera consciência nem mera relação do espírito finito com o espírito absoluto, mas
a autoconsciência do espírito absoluto na consciência finita, e os momentos particulares
do espírito absoluto (subjetivo e objetivo) são apenas momentos do processo
50
. Por isso,
a coincidência do conteúdo da religião e da filosofia: ambas são, em sua última e
definitiva figura, apenas o desdobramento da autoconsciência do absoluto.
É essa coincidência de conteúdo que permite a Hegel afirmar que “o conteúdo da
filosofia e o da religião é o mesmo”. Essa identidade não significa apenas que a
filosofia trata dos mesmos temas que a religião, mas que a religião deve conter em si o
movimento conceitual do sistema. É isso que leva o filósofo a afirmar que “requer-se
47
W11, p. 65, Tradução Prefácios, p. 227. (Cf. Enz, § 564).
48
VphRel, I, p. 28-9. (Ms 10b). Trad. esp. 27.
49
Cf. VphRel. I, pp. 115-129. Ms 18a-22b. “A religião é a consciência do verdadeiro em si e para si, em
oposição à verdade sensível, finita, da sensação etc. Esta a compreensão mais precisa sobre a
determinação da religião, que conhecemos primeiro a partir da representação”. Ibid, p. 115-6, trad. esp.
p. 109.
50
Cf. VPhRel I, p. 220, trad. Esp. p. 207. Cf. Theunissen, M. Hegels Lehre, p. 82: “Em toda a primeira
parte das lições sobre filosofia da religião Hegel descreve propriamente apenas como o conceito
‘empírico’ de religião como elevação do homem a Deus reverte no conceito ‘especulativo’, segundo o
qual ela é a consciência de si mesmo de Deus”.
175
uma especulação aprofundada para apreender correta e determinadamente no
pensamento o que é Deus como espírito”
51
. Assim, será no interior de uma filosofia do
espírito absoluto que se elucidará em definitivo a relação entre essas duas disciplinas.
A esfera do espírito absoluto é composta pela arte, pela religião e pela filosofia.
Essa tripartição corresponde às três esferas do intuitivo (imediato), do representativo e
do conceitual. É nessas “disciplinas” que o conceito do espírito tem sua realidade, pois
ele é aqui objeto para si mesmo. A arte aqui ganha uma autônomia que não tinha na
exposição fenomenológica; por outro lado, a religião aqui apresentada é apenas a
religião revelada (geoffenbarte)
52
. E embora a filosofia constitua o saber absoluto ao
apreender o espírito em seu próprio elemento – o conceitual, Hegel diz que toda essa
esfera, em conjunto, pode ser designada como religião
53
.
Segundo Hegel, no conceito da religião verdadeira que enquanto tal tem como
conteúdo o espírito absoluto, já está implicado que ela seja revelada por Deus
54
. A
substância só pode ser espírito (ser sujeito) quando sabe, quando conhece a si mesma e
só é absoluta quando se autodetermina a manifestar a si própria: por isso, na religião
absoluta o espírito absoluto manifesta “não mais seus momentos abstratos, mas a si
mesmo”
55
. De certo modo, embora determine com isso o conteúdo da religião cristã tal
como se realiza na “comunidade”, Hegel já a apresenta aqui em sua forma conceitual,
apreendida especulativamente, apreensão com a qual unicamente se pode “apreender
correta e determinadamente no pensamento o que é Deus como espírito. Aí se
encontram contidas, antes de tudo, as proposições: Deus é somente Deus enquanto ele
sabe a si mesmo; seu saber-se é além disso sua consciência-de-si no homem, e o saber
do homem sobre Deus: saber que avança para saber-se do homem em Deus”
56
.
Uma vez tendo suprassumido o caráter imediato e sensível da arte, esse espírito
absoluto é, para Hegel, “segundo o conteúdo, o espírito que é em si da natureza e do
51
Enz § 564, Anm. W10, p. 374, trad. p. 347.
52
A mudança na denominação da religião cristã de “religião manifesta” (offenbare) para “religião
revelada” (geoffenbarte) é assim explicada por M. Theunissen: “Manifesto (Offenbar) é algo para nós, já
revelado (geoffenbart) [significa que algo] se revelou a partir de si, por sua própria iniciativa. Se falamos
do Deus manifesto então pensamos sobretudo em sua presença na consciência humana, como é o caso na
‘ciência da experiência da consciência’, que prefere essa linguagem. Em contraste com isso, o enunciado
do Deus revelado chama nossa atenção para seu próprio ato”. Hegels Lehre, p. 218.
53
Cf. Enz § 554, W10, p. 366. Trad., p. 339. Cf. Theunissen, M. Hegels Lehre, p. 81 e seguintes.
54
Cf. Enz § 564. “A Enciclopédia toma a religião verdadeira como a religião revelada, pois quer trazer à
vista a revelação (Offenbarung) como automanifestação de Deus”. M. Theunissen, Hegels Lehre, p. 218.
55
Enz § 564, W10, p. 373, trad. p. 346.
56
Enz § 564, W10, p. 374, trad. p. 347. Nesse trecho Hegel remete à sua Resenha sobre o livro de Carl
Friedrich Göschel, Aphorismen über Nichtwissen und absolutes Wissen im Verhältnisse zur christlichen
Glaubenserkenntnis de 1829. Cf, W11, pp. 353-389.
176
espírito; segundo a forma, é antes de tudo para o saber subjetivo da representação
57
. O
espírito absoluto tem como conteúdo portanto a natureza e o espírito que se apresenta
como subjetivo, que diz respeito à relação a si mesmo no interior de si, e como objetivo,
como a realidade de um mundo produzido por ele. Ele é o espírito “na unidade sendo
em si e para si e produzindo-se eternamente – da objetividade do espírito e de sua
idealidade, ou de seu conceito: o espírito em sua verdade absoluta”
58
. Como estágio da
imediatidade suprassumida, a religião corresponde ao estágio da reflexão: ela
compreende os momentos do conteúdo do espírito absoluto como “fenômenos que se
seguem uns aos outros, e uma conexão do acontecer segundo as determinações finitas
da reflexão
59
. A suprassunção da imediatidade dá origem, enquanto reflexão, à
representação que realiza a mediação externa entre aquilo que é separado. Esses
momentos, apreendidos de forma representativa são os momentos da criação do mundo,
da vida e morte de Cristo e sua ressureição: são momentos que formam a história eterna
do absoluto que se apresenta a si mesmo
60
. Tais momentos só deixam de lado sua forma
representativa ao serem suprassumidos em momentos superiores. Assim, diz Hegel, “tal
forma de modo-de-representação finito é também suprassumida na fé no único espírito,
e na devoção do culto”
61
. Se comporta ao mesmo tempo o pressuposto da forma
representativa, a religião contém, porém, elementos que a elevam além dessa forma
62
, e
que tornam possível uma “apreensão especulativa”, como a que se apresenta, em todos
os seus momentos lógicos, no parágrafo seguinte da Enciclopédia:
Nesse separar, a forma se divide do conteúdo; e, na forma, os diferentes momentos do conceito
se dividem em esferas particulares ou elementos particulares, em cada um dos quais o
conteúdo absoluto se expõe: 1º) enquanto conteúdo eterno, que permanece junto de si em sua
manifestação; 2º) enquanto diferenciação entre a essência eterna e sua manifestação, que por
essa diferença se torna o mundo fenomênico no qual entra o conteúdo; 3º) enquanto infinito
57
Enz § 565, W10, p. 374, trad. p. 347.
58
Enz § 385, W10, p. 32, trad. p. 29.
59
Enz § 565, W10, p. 374, trad. p. 347.Cf. Bruaire, C. Logique et religion chrétienne dans la philosophie
de Hegel, pp. 16-29.
60
Cf. Theunissen, Hegels Lehre, p. 246. Esses momentos correspondem à tripartição que Hegel oferece
da religião revelada a partir das Lições de 1824: o primeiro é a trindade, o segundo a cristologia e o
terceiro a teoria do espírito. Em 1831 esses elementos ganham o nome de “reino do pai”, “reino do filho”
e “reino do espírito”. Cf. Jaeschke, W. Die Religionsphilosophie Hegels, pp. 82 e ss.
61
Enz § 565, W10, p. 374, trad. p. 347.Cf. VPhRel I, pp. 330-338; trad. Esp., p. 312-6. (1827 C: o culto).
62
Segundo Theunissen, todo esse texto baseia-se na teoria segundo a qual “a arte está em casa no
elemento da intuição, a religião na esfera da representação e a filosofia no médium do conceito, mas de
modo que os meios incluem em si ao mesmo tempo começo e fim, a religião portanto fica atrás e além da
representação, começa com a intuição sensível imediata e se movimenta em direção ao conceito”. Hegels
Lehre, p. 226.
177
retorno e reconciliação do mundo exteriorizado com a essência eterna; o retornar, da mesma
essência, do fenômeno para a unidade de sua plenitude
63
.
Hegel desenvolve nos parágrafos seguintes (567-570) uma explicação desses
momentos tanto em seu aspecto lógico quanto representativo. Nota-se nesse trecho,
contudo, uma primazia da linguagem conceitual, ficando a linguagem representativa em
segundo plano: tratam-se de elementos que no fundo são momentos do conceito e como
tais só podem ser desvelados pelo pensar conceitual: o momento do eterno ser em si
(Insichsein), da exteriorização (Entäußerung) e do retorno a si do espírito absoluto
64
. O
primeiro momento é o da universalidade, ao qual corresponde a esfera do puro
pensamento, o elemento abstrato da essência. Este é o espírito absoluto apenas
pressuposto, mas tomado representativamente como potência substancial que na
determinação de reflexão da causalidade é “criador do céu e da terra”
65
. Ele permanece
em si mesmo em sua manifestação, ou seja, ele é o “diferenciar-se de si do espírito
absoluto”
66
. Já no momento da particularidade, que corresponde ao juízo, essa essência
concreta eterna tem seu movimento na “criação do fenômeno, o desagregar-se do eterno
momento da mediação, do Filho único, na oposição autônoma, de um lado, do céu e da
terra, da natureza elementar e concreta; e, de outro lado, do espírito enquanto está na
relação com ela; por isso, do espírito finito
67
. O surgimento da finitude, como
“extremo da negatividade que é aí” dá ocasião ao mal, pois entra em uma relação
exterior com o eterno, como uma natureza a ele contraposta
68
. Mas no momento da
singularidade, momento da subjetividade e do conceito mesmo temos a síntese da
universalidade e da particularidade por meio do retorno ao “fundamento idêntico”. Esse
retorno a si do conteúdo absoluto é a reconciliação do mundo exteriorizado com a
essência eterna. É também o todo que aparece em todos os seus momentos,
universalidade, particularidade e singularidade. A abstração da oposição entre a essência
eterna e seu fenômeno é superada pela “plenitude” do ser absolutamente concreto
69
. O
fim se revela como um resultado de algo que antes era apenas em si, mas que só recebe
sua plenitude quando desdobra todos os seus momentos. Essa síntese ou reconciliação,
63
Enz, § 566, W10, pp.374-5. Trad. p. 348. (com alterações).
64
Cf. Theunissen, M. Hegels Lehre, p. 247.
65
Enz, § 567, W10, p. 375. Trad. p. 348.
66
M. Theunissen, Hegels Lehre, p. 248. A criação do mundo surge aí como imagem da autodiferenciação
do absoluto. Cf. Ibid, p. 266.
67
Enz, § 568, W10, p. 375. Trad. p. 348.
68
Aqui tem lugar uma complicada dialética da identidade e não identidade de Deus e o mundo, Cf.
Chapelle, A. Hegel et la Religion, II, pp. 146 – 207 e Theunissen, Hegels Lehre, p. 250.
69
Cf. M. Theunissen, Hegels Lehre, p. 252.
178
que no fundo é apenas a mediação do absoluto consigo mesmo, tem também, por sua
vez, três momentos:
“I) como pressuposição, a substância universal, que, a partir de sua abstração, se efetivou na
consciência-de-si singular, como imediatamente idêntica à essência, naquele Filho, transferido
da esfera eterna à temporalidade; e nesta o mal é suprassumido enquanto em si. Mas além disso
essa existência imediata, e por isso sensível, do absolutamente concreto se põe no juízo e morre
na dor da negatividade, na qual é, como subjetividade infinita, idêntica a si mesma, da qual,
como retorno absoluto e unidade universal da essencialidade universal e singular, veio a ser
para si mesmo: a idéia do espírito eterno mas vivo e presente no mundo. [§ 570] II) Essa
totalidade objetiva é a pressuposição que é em si para a imediatidade finita do sujeito singular;
por isso essa totalidade é primeiro, para ele, um Outro e algo intuído; mas é a intuição da
verdade que é em si. Por meio desse testemunho do espírito nele, em razão de sua natureza
imediata, o sujeito singular determina-se, primeiro, como o nulo e como o mal; e em seguida –
segundo o exemplo de sua verdade, mediante a crença na unidade, que ali se realizou em si, da
essencialidade universal e singular – ele é também o movimento de se exteriorizar de sua
determinidade-de-natureza e da vontade própria, e de se concluir na dor da negatividade com
aquele exemplo e seu Em-si, e de se conhecer como reunido com a essência. III) A essência,
por essa mediação, se produz como imanente à consciência-de-si, e é a presença efetiva do
espírito que é em si e para si, como espírito universal”.
Nesta passagem, Hegel condensa toda sua teoria a respeito do caráter
especulativo da paixão de Cristo. Ela se dá como mediação absoluta do espírito que se
aliena na finitude e na negatividade para reencontrar a si no espírito da comunidade. Há,
dessa forma, uma correspondência da lógica do conceito (do silogismo) com a teologia
especulativa da trindade. Assim como o espírito é a unidade do pai e do filho, da mesma
forma, o silogismo é a unidade do conceito e do juízo. “O efetivo é uno, mas é
igualmente o dissociar-se dos momentos do conceito, e o silogismo é o percurso
completo da mediação de seus momentos, pelos quais se põe como uno”
70
. Mas em
todos os seus momentos, a idéia está presente como auto revelação divina: em primeiro
lugar no elemento da pura universalidade, que permanece em si em sua diferença,
movimento pelo qual Deus é espírito – a trindade: “Deus enquanto espírito é a atividade
que permanece sendo em si mesma do saber livre; como atividade ela deve pôr-se em
70
Enz, § 181, W 8, p. 331. Trad. p. 316. “Tudo é conceito, e seu ser-aí é a diferença dos momentos do
conceito, de modo que a natureza universal de tudo, mediante a particularidade, se confere realidade
exterior, e assim, enquanto reflexão-sobre-si negativa, se faz algo singular. Ou, inversamente, o efetivo é
um singular, que pela particularidade se eleva à universalidade, e se faz idêntico a si mesmo. O efetivo é
uno, mas é igualmente o dissociar-se dos momentos do conceito, e o silogismo é o percurso completo da
mediação de seus momentos, pelos quais se põe como uno”. Ibid, Idem.
179
momentos, como conceito ela deve se partir (sich urteilen), mas de modo que o
diferente seja imediatamente aquilo do que foi diferenciado”
71
. Ao se efetivar na
consciência de si singular, a universalidade chega ao extremo da singularidade,
transferida da esfera eterna à temporalidade. Nessa experimenta a máxima alienação, ao
conhecer a dor e a morte, mas suprassume esse mal enquanto subjetividade infinita.
Assim, diz Hegel nas Lições sobre Filosofia da Religião, “esta história é a mesma
explicação da natureza divina tal como esta se encontrava na primeira esfera, mas
começando a partir da imediatez ordenada para a intuição e transcorrendo na
singularidade. A abstração do pai é superada no filho – isto é, então, a morte. Porém, a
negação dessa negação é a unidade do pai e do filho, o amor, o espírito”
72
. Num
segundo momento, entretanto, essa verdade é intuída pelo sujeito singular. Ele
reconhece a efetivação de Deus como o nulo e o mal, mas pela crença na unidade da
essencialidade universal e singular a reconhece como sua própria morte enquanto ser
singular reunido com a essência absoluta. Com isso o homem suprassume sua
naturalidade e se eleva a espírito, pois reconhece, enquanto uno com a essência divina,
com o mesmo poder de anular a ocorrência natural (das Geschehene ungeschehen
machen)
73
. Por fim, o espírito se faz presente na consciência de si da comunidade, na
qual ele é espírito universal. Este é o momento do retorno da singularidade à
universalidade.
Com esses três silogismos Hegel pretende ter revelado o conteúdo especulativo
da religião cristã, que por isso mesmo é a religião revelada: “Esses três silogismos que
constituem o silogismo único da mediação absoluta do espírito consigo mesmo são a
revelação desse espírito, a qual representa a vida dele no ciclo de figuras concretas da
representação”
74
. Essas figuras concretas se dispersam e se sucedem temporalmente e
desdobram a mediação do espírito consigo mesmo pela qual ele conclui consigo mesmo.
Com esse resultado a verdade se dá não somente na simplicidade da fé e da devoção do
sentimento, mas também no pensar, e nessa forma é o objeto da filosofia. A filosofia
71
VPhRel, III, p. 281 (1831), trad. esp., p. 263. A passagem continua: “Isto, expresso de maneira
figurada, equivale a dizer que Deus, enquanto pai engendra eternamente seu filho. Nós dizemos: ‘Deus
faz isso, engendra um filho’ – mas toda essa ação é Deus mesmo. Ele é apenas a totalidade e, tomado
abstratamente como pai ele não é o verdadeiro Deus. Esta é somente a verdade abstrata; ela é crida na
religião e é concebida na filosofia”. Ibid, Idem.
72
VPhRel, III, p. 286 (1831), trad. esp., p. 267. “Essa morte é seu ressurgir como espírito” PhG, W3,
p.565, trad. II, p. 199.
73
Cf. VPhRel, III, p. 287 (1831). “Mortais são os indivíduos singulares no sentido da mors mystica
Theunissen, Hegels Lehre, p. 285.
74
Enz, § 571, W10, p. 377. Trad. p. 350.
180
assume agora o conteúdo da religião e da arte e o apreende em sua forma puramente
conceitual.
Essa ciência é a unidade da arte e da religião, enquanto o modo de intuição da arte, exterior
quanto à forma, o seu produzir subjetivo e o fracionar do conteúdo substancial em muitas
figuras autônomas são reunidos na totalidade da religião; e o dispersar-se que se desdobra na
representação da religião e a mediação daquilo que é desdobrado não apenas é recolhido em
um todo, mas também unido na simples intuição espiritual e elevado depois ao pensar
consciente de si. Por isso esse saber é o conceito, conhecido pelo pensamento, da arte e da
religião, em que o diverso no conteúdo é conhecido como necessário, e esse necessário como
livre.
75
A filosofia reconhece a necessidade do conteúdo da “representação absoluta”
assim como a necessidade de suas duas formas: “de um lado, da intuição imediata e de
sua poesia, e da representação, que pressupõe, da revelação objetiva e exterior; de outro
lado, primeiro, do adentrar-em-si subjetivo, depois, do movimento-para-fora subjetivo,
e do identificar da com a pressuposição”
76
. A passagem seguinte do parágrafo 573
que opera a transição definitiva da religião à filosofia pode ser vista como a origem
daquilo que muitos comentadores assinalaram como a “ambigüidade” do pensamento de
Hegel no que diz respeito à relação da filosofia com a religião:
Esse conhecimento é, assim, o reconhecimento desse conteúdo e de sua forma, e a libertação
da unilateralidade das formas e a elevação delas à forma absoluta que se determina a si mesma
para o conteúdo, e permanece idêntica a ele, e nisso é o conhecimento daquela necessidade que
é em si e para si. Esse movimento, que é a filosofia, encontra-se já realizado ao apreender na
conclusão o seu próprio conceito, isto é, só vê retrospectivamente seu saber
77
.
A anotação a esse parágrafo irá explorar a relação da filosofia com a religião. O
importante para Hegel é explorar “a diferença entre as formas do pensar especulativo e
as formas da representação e do entendimento reflexivo”. Para Hegel, a representação
está entre a intuição, que é o dado imediato da inteligência e a inteligência em sua
liberdade, isto é, o pensar. Com isso, a representação opera a ligação sintética do
imediato sensível e do pensamento, a união da singularidade e da universalidade. Esse
representar tem três graus: a rememoração (Erinnerung), pela qual um conteúdo intuído
75
Enz, § 572, W10, p. 378. Trad. p. 351 (com modificações).
76
Enz, § 573, W10, p. 378. Trad. p. 351.
77
Enz, § 573, W10, p. 378-379. Trad. p. 351-2. A ambigüidade ou ambivalência (Zweideutigkeit) da
filosofia hegeliana da religião foi constantemente ressaltada pelos chamados jovens hegelianos (B. Bauer,
Strauß, etc.), mas já se tornou lugar comum em interpretações de diversas direções. Cf. Theunissen,
Hegels Lehre, p. 233, nota 38.
181
é retido pelo eu, interiorizado; a imaginação, que não se limita a referir-se a um objeto
intuído, mas “elabora para si um conteúdo que lhe é próprio
78
, ao qual se contrapõe o
conteúdo da coisa (Sache); o terceiro grau é constituído pela memória que rememora o
signo acolhido na inteligência e com isso produz a linguagem, isto é, um objetivo que é
subjetivo que forma a passagem ao pensar como tal. Toda a teoria hegeliana da
representação está condensada no § 451 da Enciclopédia:
A representação, enquanto intuição rememorada é o meio termo entre o “achar-se
determinado” imediato da inteligência, e a inteligência em sua liberdade, o pensar. Para a
inteligência a representação é o seu, ainda com subjetividade unilateral; enquanto esse “seu”
ainda está condicionado pela imediatez, não é, nele mesmo, o ser. O caminho da inteligência
nas representações consiste tanto em interiorizar a imediatez – em pôr-se intuicionante em si
mesma – quanto em suprassumir a subjetividade da interioridade, e em alienar-se dela nela
mesma e em ser em si mesma na exterioridade própria dela. Mas enquanto o representar
começa da intuição e de seu material achado, essa atividade está ainda afetada pela diferença, e
suas produções ainda são nela sínteses, que só no pensar se tornam a imanência concreta do
conceito
79
.
À insuficiência característica da forma do representar corresponde a
insuficiência da exposição religiosa do absoluto em relação à exposição conceitual. A
religião encontra na linguagem imagética seu modo próprio de comunicação e procura
através de sínteses representativas expressar um conteúdo que em si mesmo é
conceitual. A profusão de imagens na religo tem o mérito de tornar intuitivo o
conceito, com isso, porém, oferece uma síntese do intuitivo e do conceitual que não se
libertou do objeto sensível, imediato. As representações, as imagens, oscilam
eternamente entre os pólos da universalidade e da singularidade, sem alcançarem uma
unidade especulativa, fechada em si e perfeita
80
. Isso torna a diferença entre a forma
representativa do pensar e o pensamento puro uma “diferença terrível”
81
. A
representação se define, portanto, como criadora de uma dualidade entre o ato de
representar e algo representado, dualidade que é superada na forma do conceito. Por
isso, a conciliação operada na consciência devota ainda é imperfeita pois ela não
conceitua a alienação da substância, mas a representa num além. Ela não reconhece a
78
Enz § 451 Z, W10, p. 258, trad. p. 235. “Dessa maneira deixa a imaginação de ser uma rememoração
simplesmente formal, e torna-se a rememoração que diz respeito ao conteúdo, que o universaliza, e
portanto cria representações universais”. Idem, Ibidem.
79
Enz § 451 , W10, p. 258, trad. p. 235.
80
Cf. K. Vieweg, “Religião e saber absoluto”, p. 19.
81
Cf. GdPh, I, W18, p. 104. “A exposição do conceito de modo sensível contém sempre algo impróprio,
no solo da fantasia a idéia não pode se expressar de maneira verdadeira”. Ibid, p. 103.
182
reconciliação já presente e o espírito da comunidade ainda não se tornou ser para si
absoluto
82
. Por isso a verdadeira síntese só pode ser oferecida pela filosofia que tem
apenas a verdade como seu objeto.
A noção de uma “suprassunção” (Aufhebung) da religião pela filosofia
especulativa guarda senão uma ambigüidade ao menos a possibilidade de ser
interpretada em direções opostas. Como notou K. Löwith, trata-se de uma ambigüidade
(Zweideutigkeit) essencial ao pensamento de Hegel que é ao mesmo tempo uma crítica
da religião positiva e sua justificação conceitual.
83
Já para Walter Jaeschke a
“suprassunção” é, na verdade, inequívoca, embora a ambigüidade entre apologia e
crítica permaneça. Para esse autor, que a filosofia consiga conceituar a representação
religiosa pressupõe que essa última seja algo conceituável
84
. Justamente nessa admissão
de uma racionalidade intrínseca da religião a crítica de Hegel se distancia da
Aufklärung, que considerava a doutrina religiosa como positiva e a colocava de lado
enquanto ela não fosse interpretada em termos morais. Dessa forma, a abordagem
hegeliana guarda um inegável caráter apologético, o que não significa ausência de
crítica da religião. Como nota Jaeschke, “Ela justifica a representação, mas apenas
como figura inferior da verdade e completa portanto sua ‘suprassunção’. Seria um erro
interpretar essa suprassunção como meramente transcendental, e eliminar as
implicações críticas da religião do conceito de Aufhebung. Certamente, Hegel não quis
‘por de lado’ a religião, assim como a arte. Ambas são assim até mesmo justificadas,
mas apenas como figuras que não podem preencher a mais alta forma da consciência de
si do espírito”.
85
Além de insistir na comunidade de conteúdo entre ambas, Hegel reflete sobre a
controvérsia gerada em sua época por essa absorção do conteúdo da religião na
filosofia. Hegel tem consciência que por ter alcançado essa idéia de Deus, a filosofia
especulativa tem sido constantemente criticada por seus contemporâneos. Se antes a
filosofia era atacada por ter “demasiadamente pouco de Deus”, isto é, por ateísmo,
82
Cf. PhG, W3, p. 573, trad. II, p. 206: “Sua própria reconciliação entra, pois, como um longe na sua
consciência; como um longe do futuro, assim como a reconciliação, que o outro Si realizou, aparece como
uma distância do passado”.
83
Cf. Löwith, Hegels Aufhebung der christlichen Religion. In: Hegel-Studien Beiheft 1 (1964), 196-236;
p. 227. Enquanto uns ainda viram na suprassunção da religião e mesmo na antropologização do divino
que tem lugar no cristianismo o esforço de Hegel em superar a religião (Cf. Hiyppolite, Gênese e
Estrutura, pp. 29 e 572) outros viram nessa mesma tentativa o empreendimento de restauração política e
cultural da ortodoxia. Cf. R. Haym, Hegel und seine Zeit, p. 426.
84
Cf. Hegels Religionsphilosophie, p. 112.
85
Ibid, p. 113.
183
agora os ataques se dão pela razão inversa, por que se considera que há “Deus em
excesso” e que, portanto, ela é panteísmo. Ora, essas acusações à filosofia especulativa
são justamente as mesmas que foram feitas à filosofia de Espinosa
86
. O que Hegel
observa aqui é aquilo que em outro texto ele chama de “preconceito da época” que faz o
absoluto depender da assunção subjetiva para ter lugar na filosofia – fé, sentimento.
Com isso, o conhecimento especulativo é descartado pela religião, assim como a
filosofia descarta o conteúdo especulativo presente na religião. O resultado disso seria a
colocação, por um lado, da religião contra a filosofia e, por outro, da filosofia contra a
religião. A acusação de panteísmo seria, assim, uma versão abrandada da velha
acusação de ateísmo, possibilitada porém pelo predomínio da teologia do sentimento e
do saber imediato que teriam rebaixado o conceito de Deus à pura indeterminação.
O abrandamento da censura de ateísmo na de panteísmo tem pois seu fundamento
somente na superficialidade da representação, em que essa brandura para si rarefez e
esvaziou Deus. Ora, enquanto tal representação se aferra à sua universalidade abstrata,
fora da qual recai toda a determinidade, então além disso a determinidade é somente o
não divino, a existência mundana das coisas, que assim permanece em firme
substancialidade imperturbada. Com tal pressuposição, também na universalidade
sendo em si e para si, que na filosofia se afirma de Deus, e em que o ser das coisas
exteriores não têm verdade alguma, fica-se, antes como depois, em que as coisas
mundanas conservam, de fato, o seu ser, e constituem o que há de determinado na
universalidade divina. Assim fazem, daquela universalidade, a universalidade que
chamam panteística: que tudo – isto é, as coisas empíricas sem distinção, as que se
estimam mais altas, como as ordinárias – seja, possua substancialidade, e que esse ser
das coisas mundanas seja Deus. É só a própria ausência-de-pensamento, e uma
falsificação dos conceitos que daí deriva, que produz a representação e segurança sobre
o panteísmo
87
.
86
Sobre a querela do Panteísmo no idealismo alemão, ver J. E. M. Baioni, Substancialidade e
Subjetividade, Hegel intérprete de Espinosa. Tese de doutorado, Universidade de São Paulo, 2004, Cap.
IV: “Panteísmo, ateísmo, e Acosmismo: Espinosimo e Filosofia Especulativa”. As acusações de
“panteísmo” a Hegel foram primeiramente expostas pelo teólogo F. A. G. Tholuck na obra Die Lehre von
der Sünde und vom Versöhner, ode Die wahre Weihe des Zweiflers (1823). Hegel discute o pensamento
de Tholuck no prefácio à segunda edição da Enciclopédia (1827). Mais tarde, um autor anônimo publicou
em 1829 a obra Über die Hegelsche Lehre oder absolutes Wissen und moderner Pantheismus. – Über
Philosophie überhaupt und Hegels Enzyklopädie der philosophischen Wissenschaften insbesondere. Tal
obra recebeu uma réplica de Hegel no mesmo ano nos Jahrbücher für wissenschaftliche Kritik (Cf. W11,
pp. 390-466).
87
Enz, § 573, W10, p. 378-379. Trad. p. 351-2
184
Para além desse aspecto, vale notar que ao ver que sua filosofia é
constantemente comparada a de Espinosa, Hegel dela se afasta ao considerar que a
substância, ainda que seja um degrau essencial no processo de desenvolvimento da
idéia, não é ainda a idéia absoluta, e sim a idéia na forma limitada da necessidade. Falta
não apenas à substância espinosista, mas a toda “representação” abstrata da
substancialidade sua auto-compreensão enquanto subjetividade. Por isso, tanto a
filosofia espinosana, quanta a eleática e os modos de representação orientais
compreendem o absoluto como o gênero pura e simplesmente universal que habita as
espécies, mas que as esvaziam assim de toda realidade efetiva. Seriam melhor
chamadas, portanto, de acosmismo, ao invés de panteísmo. Para Hegel, o defeito dessa
representação de substancialidade é justamente não dar conta da diferença na substância
e não apreender o absoluto como espírito que se constrói sua própria diferenciação:
A deficiência do conteúdo espinosista consiste precisamente em que a forma não é sabida
como a imanente a ele, e por esse motivo lhe advém somente como uma forma subjetiva,
exterior. A substância tal como é compreendida, sem mediação dialética anterior,
imediatamente por Espinosa é, enquanto a potência universal negativa, algo somente como
esse abismo sombrio, informe, que engole para dentro de si todo o conteúdo determinado,
como sendo originariamente nulo, e que nada de si produz, que tenha em si uma consistência
positiva
88
.
Ao afirmar sua distância em relação a Espinosa, Hegel se posiciona no debate
acerca das relações entre dogmatismo e criticismo, fé e saber, religião e filosofia, etc.,
todas discussões provenientes do chamado Pantheismusstreit. Quando Schopenhauer se
volta contra o assim chamado “panlogismo” hegeliano e o acusa de resgatar Espinosa
ele acaba tomando parte num debate que se estende desde a publicação das Cartas sobre
a Filosofia de Espinosa de Jacobi em 1785 até a crítica do último sistema de Schelling
nos anos 1850.
88
Enz, § 151, Trad. Cit, p. 281-2.
185
Capítulo 2 – Religião e Filosofia em Schopenhauer
Para compreender a intervenção de Schopenhauer na controvérsia sobre a
religião, isto é, na discussão sobre o ateísmo, o panteísmo e a relação entre filosofia e
religião, devemos compreender o papel e o lugar que o tema da religião ocupa em seu
pensamento. Somente então se pode compreender como, apesar da recusa de uma
crença na existência de Deus e da rejeição a qualquer subordinação da filosofia à
religião, o filósofo ainda assim admite um profundo acordo entre sua metafísica e certas
representações religiosas especialmente presentes no cristianismo e no budismo tal
como ele os compreendia.
No capítulo 17 dos Complementos ao Mundo como Vontade e Representação
(1844), ao refletir sobre a gênese da metafísica a partir de uma necessidade inerente ao
homem de explicação para o sofrimento e a morte, Schopenhauer compara a metafísica
à religião, estabelecendo suas semelhanças e diferenças. As duas são apresentadas como
diferentes maneiras de satisfazer aquela mesma necessidade. Esse caráter comum de
ambas faz com que Schopenhauer subsuma sob o nome de metafísica tanto a metafísica
em sentido estrito, a filosofia que ele também designa como Doutrina de convencimento
(Überzeugungslehre), quanto a religião, denominada Doutrina de Fé (Glaubenslehre).
Sob o nome de metafísica, em sentido amplo, Schopenhauer entende pois “todo
pretenso conhecimento que vai além da possibilidade da experiência, portanto além da
natureza ou do fenômeno dado das coisas e busca oferecer uma elucidação sobre aquilo
pelo que ela é condicionada em um sentido ou em outro, ou, dito de maneira popular,
sobre aquilo que se esconde atrás da natureza e a torna possível”
89
. O que faz com que
essa metafísica se divida em duas seria a diversidade original entre a capacidade
intelectual das pessoas em virtude da qual, depois que um povo se forma e abandona a
rudeza, não poderia mais haver uma única e mesma explicação para os mistérios do
mundo. “Portanto, encontramos nos povos civilizados geralmente dois diferentes tipos
dela, que se distinguem uma da outra pois uma tem sua confirmação (Beglaubigung) em
si, a outra fora de si
90
. Para o reconhecimento da primeira espécie de metafísica são
necessários vários pressupostos, como reflexão, cultura, tempo livre e juízo, o que só
pode se dar em civilizações avançadas, ou seja, supõe todo um desenvolvimento
89
WWV, E. Kap. 17, SW III, p. 180.
90
Idem, Ibidem.
186
histórico. Não apenas para as civilizações menos avançadas mas para todas as pessoas
que não se formaram o suficiente a ponto de não reconhecer nenhuma outra verdade que
não aquela transmitida pela autoridade e são, portanto, incapazes de refletir a partir de
argumentos, só restam os sistemas da segunda espécie. Esses sistemas
podem ser designados como metafísica popular, por analogia com a poesia popular e a
sabedoria popular, pela qual compreendemos os provérbios. Tais sistemas são conhecidos sob
o nome de religiões e se encontram em todos os povos, com exceção dos mais rudes. Sua
confirmação é, como dito, externa e se chama então revelação, que é documentada por meio de
indícios e milagres
91
.
Esses dois tipos de sistemas metafísicos se comportam hostilmente tanto entre si
quanto um em relação ao outro. Assim, os sistemas religiosos se valem de tudo para
fazer valer sua autoridade: ameaça, poder estatal e uma educação que consiste em
enculcar nas pessoas os dogmas religiosos como verdades eternas. Já os sistemas
estritamente filosóficos procuram convencer apenas através de argumentos, sua guerra
se dá por meio das palavras e da escrita. Ambas pretendem possuir a verdade, o que
gera o antagonismo entre elas: a religião como inimiga do pensamento livre e a filosofia
como inimiga da superstição. Tudo se esclarece pelo fato de que a religião não admite
seu caráter meramente alegórico e pretende que se acredite no que ela conta como se
fosse a verdade sensu proprio. Desde que se afaste essa pretensão da religião, então
pode se estabelecer rigorosamente o âmbito de validade de cada um dos discursos:
Um sistema da primeira espécie, isto é, uma filosofia, tem a pretensão e portanto o dever de ser
verdadeiro sensu stricto et proprio em tudo o que diz, pois se dirige ao pensamento e à
convicção. Uma religião, ao contrário, destinada ao grande número que é incapaz de provar e
de pensar por si mesma, não poderia jamais apreender as mais profundas e difíceis verdades
sensu proprio, e tem, por isso, apenas a obrigação de ser verdadeira sensu allegorico. A
verdade não poderia aparecer nua ao povo
92
.
Se a religião aceitasse essa limitação inerente a seu próprio modo de exposição,
ela poderia servir como um adequado e bom “veículo da verdade”
93
. Pois aquilo que a
religião conta, por meio de mitos e dogmas, aparece como um absurdo para o
91
WWV, E. Kap. 17, SW III, p. 181.
92
Ibid, p. 183
93
Em vários textos Schopenhauer expressa a idéia segundo a qual a religião “tomada alegoricamente é
um mito sagrado, um veículo por meio do qual são trazidas ao povo verdades que de outro modo seriam
totalmente inalcançáveis”. P II, § 177, SW VI, p. 394. Cf. K. W. Wilhelm, Zwischen Allwissenheitslehre
und Verzweiflung, pp. 18-20.
187
entendimento comum exatamente pelo fato de que aquilo a que ela se refere diz respeito
a uma ordem de coisas bem diferente do que aquela com a qual se ocupa esse
entendimento comum, nomeadamente, uma ordem de coisas-em-si, diante da qual as
leis do mundo fenomênico desaparecem
94
. Por essa razão, Schopenhauer elogia
Agostinho e Lutero por terem compreendido os mistérios do cristianismo em oposição
ao pelagianismo que teria rebaixado tudo para o mero entendimento, a tosca
inteligibilidade (Verständlichkeit)
95
. É nesse sentido que Schopenhauer reconhece um
valor para a religião: como meio de transmissão de um profundo conhecimento
metafísico que de outro modo permaneceria inacessível ao povo. É de acordo com essa
utilidade prática da religião que podemos ler os juízos positivos de Schopenhauer no
diálogo Sobre a Religião dos Parerga e Paralipomena (1851). Trata-se, portanto, de
colocar cada discurso em seu lugar, delimitando seu papel, sem o que se teria uma
mistura dos domínios que traria prejuízo tanto para um quanto para outro.
É nesse contexto que surgem as invectivas de Schopenhauer contra a
compreensão da relação entre a filosofia e a religião em seu tempo. Segundo ele, essa
má compreensão surge em geral do desconhecimento do caráter alegórico da religião. O
filósofo se refere à controvérsia entre os supranaturalistas e os racionalistas da seguinte
forma: enquanto os primeiros buscam provar a verdade de todos os dogmas do
cristianismo em sentido próprio e não alegórico, os outros buscam fundar a religião pela
razão, purificando o cristianismo através da exegese. Ambas as tentativas entrariam em
confronto com os conhecimentos e a cultura da época. Em defesa da cultura de sua
época Schopenhauer defende a separação dos domínios próprios da religião e da
filosofia, ao contrário da tendência de fusão entre elas que se apresentaria
principalmente como conseqüência da filosofia hegeliana.
Em nossos dias isto foi feito de modo mais manifesto através daquele estranho híbrido ou
centauro chamado filosofia da religião, que, como um tipo de gnosis se esforça por interpretar
a religião dada para explicar o que é verdadeiro sensu allegorico através de algo verdadeiro
sensu proprio. Mas para isso deve-se já conhecer e possuir a verdade sensu proprio: nesse
caso, porém, aquela interpretação seria supérflua. Pois querer encontrar a metafísica, isto é, a
verdade sensu proprio, a partir da religião através de explicação e interpretação seria um
empreendimento precário e perigoso, para o qual só se poderia decidir se fosse estabelecido
94
WWV, E. Kap. 17, SW III, p. 183.
95
Cf. Ibid, Idem.
188
que a verdade, assim como o ferro e outros metais comuns, só poderia ocorrer no estado de
mineral, jamais em estado puro, e que só se poderia obter através da redução daquele estado.
96
Segundo Schopenhauer, essa tendência contemporânea, quando não motivada
pela banalização pelagiana da religião estaria à serviço da transformação do
cristianismo num otimismo contrário à sua essência. Se, pelo contrário, se toma a
metafísica do próprio Schopenhauer como critério, então pode-se reconhecer a verdade
sensu proprio das religiões pelo grau de aproximação com os resultados de sua
metafísica. Pois, para o filósofo, “o valor de uma religião depende do teor maior ou
menor de verdade que ela, sob o véu da alegoria possa trazer consigo, portanto, da
maior ou menor clareza com a qual se possa ver através desse véu, isto é da
transparência deste último”
97
. Com esse critério, o budismo e o cristianismo levariam a
melhor diante das outras religiões, pois reconhecem o mal no mundo e apontam como
redenção uma reversão completa na relação com o mundo dado. É sobretudo o caráter
ascético dessas religiões que desperta o interesse de Schopenhauer e, especialmente a
rejeição da vida mundana que está na base delas.. Se o principal na religião é, portanto,
a relação que o homem tem com o mal e a morte que se constatam no mundo, então não
será mais a representação do absoluto ou do divino que servirá como critério de
distinção das religiões determinadas. O critério será dado pela relação do homem com o
mundo como um todo que se expressa em atitudes éticas que visam à redenção:
Eu não posso estabelecer a diferença fundamental entre todas as religiões, como ocorre
geralmente, no fato de elas serem monoteístas, politeístas, panteístas ou atéias, mas somente no
fato de elas serem otimistas ou pessimistas, ou seja, se elas apresentam a existência desse
mundo como justificada em si mesma e portanto o louvam e celebram, ou a consideram como
algo que só pode ser compreendido como conseqüência de nossa culpa, e por isso não deveria
propriamente ser, pois consideram que a dor e a morte não poderiam encontrar-se na ordem
eterna, original e imutável das coisas, naquilo que deveria ser de todo ponto de vista. A força,
pela qual o cristianismo pode superar primeiro o judaísmo e então o paganismo grego e romano
reside inteiramente em seu pessimismo, na convicção de que nosso estado é ao mesmo tempo
96
WWV, E. Kap. 17, SW III, p. 185. Por essa razão, em seu livro sobre a filosofia da religião em
Schopenhauer, K. W. Wilhelm prefere usar a expressão “Philosophie der Religion” ao invés de
“Religionsphilosophie”. Cf. Op. Cit, p. 14. Para justificar esse procedimento, o autor cita o seguinte texto
póstumo de Schopenhauer, no qual o filósofo apresenta um esboço de um prefácio à sua tradução dos
Diálogos sobre Religião Natural de Hume: “o título filosofia da religião (Religionsphilosophie) pelo qual
eu uni ambos os textos de Hume deve ser entendido no sentido de que ele contém a filosofia de Hume
sobre a religião no mesmo sentido em que se tem filosofia da história, da botânica, da química. Ou então,
quando se preferir, pode-se tomá-lo ironicamente e com isso indicar como Hume busca se virar com
raciocínio e argumentos à falta da disciplina filosófica que em nossos dias carrega o nome de filosofia da
religião (Religionsphilosophie)”. HN 3, p. 181 e ss.
97
WWV, E. Kap. 17, SW III, p. 186.
189
extremamente miserável e pecaminoso, enquanto o judaísmo e o paganismo eram otimistas.
Esta verdade profunda e dolorosamente sentida por todos fez efeito e teve como conseqüência
a necessidade de redenção
98
.
Esse pessimismo, entretanto, não está presente apenas no cristianismo. Também
para o budismo, tal como Schopenhauer o interpreta, o mundo é apenas uma ilusão da
qual deveríamos nos livrar para atingir a “redenção” em um estado em que todo vínculo
com esse mundo cessasse. É assim que Schopenhauer compreende o Nirvana: à luz do
nada ao qual foi reduzido o mundo a partir da negação da vontade. Essa negação da
vontade é também indicada por vários escritos de religiosos cristãos, que não poderiam
oferecer mais que uma indicação de um estado sobre o qual a filosofia não tem mais
condições de discursar. O que a filosofia ainda oferece é a descrição do caminho que
conduz da ética à redenção.
2.1 – Da filosofia moral ao misticismo
Embora conserve quase sempre uma postura “iluminista” diante da religião e da
metafísica cristã, chegando a se valer das críticas de Voltaire e Hume contra as
pretensões da metafísica teológica, Schopenhauer abre um espaço para o discurso
religioso insuspeito para alguém que pretende fundar uma filosofia imanente, baseada
na experiência intuitiva do mundo e na interpretação de dados científicos da fisiologia e
da medicina de sua época. Para compreender como isso se dá devemos analisar em
detalhe a argumentação de Schopenhauer que o conduz a flertar com a mística e a se
referir constantemente a autores religiosos para ilustrar sua “teoria da negação da
vontade de viver”. Os últimos parágrafos do primeiro volume de O Mundo como
Vontade e Representação (68-71) e os capítulos dos Complementos que a eles se
referem (capítulos 48 e 49) testemunham isso. Antes de tratar deles começamos por
resumir a argumentação de Schopenhauer sobre a passagem da ética à teoria da
redenção
99
.
Todo o quarto livro de O Mundo como Vontade e Representação procura
determinar o significado ético das ações do homem: o que é a liberdade, qual o critério
para as ações dotadas de valor moral, qual o significado de justiça, virtude, maldade etc.
98
WWV, E. Kap. 17, SW III, p. 187-8.
99
Na seqüência apresento um resumo da interpretação da transição da ética à teoria da redenção exposta
em minha dissertação de mestrado: Tragédia e Redenção, Sobre o significado moral da existência na
filosofia de Schopenhauer, Universidade de São Paulo, 2003, pp. 143-161.
190
Mas, ao contrário do livro Os Dois Problemas Fundamentais da Moral, que procuram
analiticamente deduzir esses conceitos sem pressupor nenhuma teoria, o quarto livro da
obra principal se insere num sistema metafísico do qual ele é uma das partes. Por isso,
seu ponto de partida é o resultado de toda sua metafísica: “Os três primeiros livros
devem ter produzido o conhecimento distinto e certo de que, no mundo como
representação a Vontade tem seu espelho, no qual ela se conhece a si mesma em graus
progressivos de clareza e perfeição, sendo o mais elevado o homem”
100
. No homem, ao
chegar ao máximo conhecimento possível de si mesma a vontade pode afirmar-se ou
negar-se a si mesma. Portanto, o fundamental dessa metafísica dos costumes
apresentada no quarto livro é a exposição do fundamento e do sentido das duas posturas
fundamentais que a vontade pode assumir ao conhecer-se a si mesma: afirmação e
negação da vontade
101
. De acordo com isso, deve-se ter em vista que é a própria
vontade de viver, enquanto essência e núcleo do mundo que se afirma ou se nega de
modo consciente no homem: não se trata portanto de uma simples escolha individual,
mesmo porque o indivíduo se revela em Schopenhauer como ilusório, mas da direção
que a própria coisa em si assume diante de seu fenômeno. A letra de Schopenhauer
permite assim uma leitura especulativa de sua filosofia, através da qual o mundo que se
pode ver por meio da arte, da filosofia e do conhecimento intuitivo presente na religião
é apenas o “auto-conhecimento da Vontade” (“die Welt ist die Selbsterkenntniß des
Wille
ns”)
102
.
Tendo em vista então o fato de que a Vontade é aquilo que se manifesta nos
fenômenos, que ela é livre, una e incondicionada em oposição aos fenômenos que são
determinados e condicionados pelo princípio de razão e dessa forma, aparecem como
múltiplos; tendo em vista, portanto, os resultados da “Metafísica da Vontade”,
Schopenhauer expõe as duas atitudes possíveis que a vontade, ao conhecer-se a si
100
WWV, IV, § 54, SW, II, p. 323. Trad. p. 357 (com modificações).
101
Este é propriamente o subtítulo desse quarto livro: “Alcançado o conhecimento de si, afirmação e
negação da vontade de viver.” (Bei erreichter Selbsterkenntniß Bejahung und Verneinung des Willens
zum Leben). A tradução de Jair Barboza, ao trocar a conjunção “e” por “ou” nos parece muito arriscada
pois foge muito da letra do texto. Além disso, nos parece que Schopenhauer procura pensar menos numa
alternativa – embora ela de fato se coloque – do que no processo que conduz de uma à outra.
102
WWV, IV, § 71, SW, II, p. 485. Cf. HN I, p. 462. Cf. Volkelt, J. Arthur Schopenhauer, pp. 337 e
seguintes, e Malter, R. Der eine Gedanke: Hinführung zur Philosophie Arthur Schopenhauers.
Darmstadt, 1988 e do mesmo autor Arthur Schopenhauer. Transzendentalphilosophie und Metaphysik des
Willens, p. 46 e seguintes. Segundo Malter, o pensamento único de Schopenhauer abrange não apenas as
formulações complementares sobre os dois lados do mundo (“o mundo é representação” e “o mundo é
vontade”) mas também o processo pelo qual o sujeito do conhecimento se livra da servidão da vontade na
contemplação estética e na auto-negação voluntária da Vontade. Cf. Ibid., p. 51-2. Cf. Ibid, p. 430.
191
mesma,
definição
os e dificilmente compreensíveis nessa forma geral de expressão serão, espera-se,
esclarecidos pela exposição que logo se segue de fenômenos, os quais são aqui modos de agir,
todos os seres da natureza e, apesar do
sofrimento e da morte constante dos indivíduos que essa manifestação traz consigo, a
afirma. A
fenômen
ente como alguém que comprando todos os talões da loteria,
necessariamente sofrerá grande prejuízo. A afirmação da vontade pressupõe limitações da
toma: a afirmação e a negação de si mesma. No §54 o autor oferece uma
geral dessas duas atitudes:
A vontade afirma-se a si mesma, quer dizer: quando na sua objetidade, isto é, no mundo e na
vida, seu próprio ser lhe é dado clara e completamente, este conhecimento não impede
absolutamente o seu querer, mas mesmo essa vida assim conhecida é também querida por ela,
assim como já o era sem conhecimento, como impulso cego, mas agora com conhecimento,
conscientemente e com reflexão. – O contrário disso, a negação da vontade de viver, se mostra
quando a partir daquele conhecimento a vontade cessa, na medida em que os fenômenos
particulares, uma vez conhecidos não mais agem como motivos do querer, mas o conhecimento
completo da essência do mundo, que cresce pela apreensão das idéias, que espelha a Vontade,
se torna quietivo da vontade e ela livremente se suprime. Esses conceitos bastante
desconhecid
nos quais se exprimem, por um lado, a afirmação em seus diversos graus e, por outro a
negação.
103
Schopenhauer explica, na seqüência do texto, que ambas as atitudes derivam do
conhecimento, mas não do conhecimento abstrato, traduzido em palavras, mas sim de
um conhecimento vivo, expresso apenas pelos fatos e pela conduta, independente de
qualquer dogma. Trata-se apenas de descrever as conseqüências que advém de cada
uma dessas atitudes, já que aquilo que faz com que a vontade tome a direção da
afirmação ou da negação permanece infundado. Aquele que afirma conscientemente a
vontade e que também vê para além do princípio de individuação enxerga apenas a
própria vontade de viver, manifestando-se em
quele que leva em consideração o sofrimento dos indivíduos no mundo dos
os, deixa de afirmá-la:
Precisamente este se reconhecer no fenômeno estranho, de que como demonstrei
repetidamente, se originam em primeiro lugar justiça e amor humano, conduz finalmente ao
abandono da vontade; porque os fenômenos em que esta se apresenta se situam tão
decididamente no estado do sofrimento, que quem estende a si próprio por todos eles, não pode
continuar assim querendo; exatam
103
WWV, §54, SW II, p. 336. Trad. p. 370.
192
consciência de si quanto ao próprio indivíduo e joga com a possibilidade de um curso de vida
favorável pela mão do acaso
104
.
O que difere, portanto, aquele que afirma daquele que nega a vontade, é a
consideração do sofrimento de que o mundo está repleto e não apenas a descoberta da
ilusão do véu de Maia. Não basta simplesmente reconhecer a vontade una para além dos
fenômenos (este seria o primeiro estágio da moral), mas reconhecer a essência
irremediável de seu sofrimento. Para Schopenhauer, o conhecimento chegado ao seu
mais alto grau de perfeição nos mostra que a vida, obra da vontade de viver, é um erro,
algo do qual devemos nos desviar, ou como ele não se cansa de repetir “um negócio
cujos lucros não cobrem os gastos”
105
. O objetivo da vida não é outro senão o
aprendizado de que melhor valeria simplesmente não ter nascido, pois a existência não
passa de uma queda perpétua na morte
106
, e a vida de nosso corpo é apenas uma agonia
travada sem cessar, uma morte repelida de instante em instante; Um tal juízo negativo
sobre a existência em geral é possível, segundo Schopenhauer, quando nos colocamos
no lugar de todos os indivíduos que sofrem, quando deixamos de fazer uma distinção
egoísta entre nosso próprio eu e o dos outros, quando consideramos não só as dores
reais como até mesmo as simplesmente possíveis, e quando fazemos nossas as misérias
do mund
pode, se
l humanidade e o miserável reino animal e,
enfim, um universo que não cessa de esvanecer. E mais, tudo isso o toca tão de perto quanto
o inteiro
107
. Aquele que atinge um tal estado de conhecimento do mundo não
gundo Schopenhauer, deixar de negar a vontade de viver:
Ele percebe o conjunto das coisas, ele conhece sua essência, e ele vê que ela consiste em um
perpétuo escoamento, em um esforço estéril, em uma contradição íntima, e em um sofrimento
contínuo; e é a isso que são votados a miseráve
104
PP, Cap. XIV, § 165, SW, VI, p. 342. Trad. de Wolfgang Leo Maar, Coleção “Os Pensadores”, São
s
nhauer. Droit, Roger-Pol (org.), Bernard Grasset, Paris, 1988, p. 135.
66.
, p. 447.
Paulo, Abril Cultural, 2ª ed. 1980, p. 229-230.
105
WWV, E., Cap. 19, SW, III, p. 271: “Das Leben (…) ein Geschäft ist, welches die Kosten nicht deckt”.
Marie-José Pernin destaca o papel das metáforas comerciais no projeto schopenhaueriano de avaliação da
vida: “A utilização do cálculo em filosofia não é nova (Platão, Leibniz). Mas esses cálculos concluíam
pela apologia do racionalismo e / ou do teísmo, colocando em evidência a ordem do mundo. Os cálculos
de Schopenhauer significam seu fracasso comum. Tal é o paradoxo schopenhaueriano: o cálculo do valor
da vida não pode mais reivindicar os privilégios insignes da racionalidade dogmática. Desde Kant se
coloca o problema do valor, já que o conhecimento das coisas em si, suscetível de fundar a hierarquia dos
bens verdadeiros, não é mais possível: o valor objetivo desapareceu”. “Une Entreprise qui ne couvre pá
sés frais” In: Présences de Schope
106
WWV, § 54, SW, II, p. 3
107
Cf. WWV, § 68
193
para o egoísta a sua própria pessoa. Como então, conhecendo assim o mundo, poderia ele, por
atos incessantes de vontade, afirmar a vida?”.
108
Da universalização da compaixão pode surgir a única ação que realmente pode
suprimir as dores do mundo. É nessa medida que se dá a passagem da bondade da
disposição (Gesinnung) à completa resignação. O conhecimento da totalidade de um
mundo mergulhado e condenado ao sofrimento exerce uma influência decisiva sobre a
própria vontade. Assim, o conhecimento da identidade do querer em todos os seus
fenômenos e a percepção do conjunto das coisas, de sua essência, e de que ela consiste
num sofrimento contínuo e sem finalidade, conduz o homem ao mais alto grau de
consciência moral: a negação da vontade de viver. “Doravante, a vontade desliga-se da
vida: ela estremece diante de seus prazeres, nos quais ela reconhece uma afirmação da
vida”
109
O homem chega ao estado de abnegação voluntária, de resignação, de calma
verdadeira e de estagnação absoluta do querer. A sua vont dea dobra-se, ele já não
afirma
r
a sua essência, representada no espelho do fenômeno, ele a nega. A esse homem
que, para Schopenhauer, compreendeu tudo, já não basta amar os outros como a si
próprio, e fazer para eles o que faria por si mesmo: “nasce nele um desgosto contra a
essência, de que seu próprio fenômeno é a expressão, contra a vontade de viver, contra a
essência e o núcleo daquilo que é um mundo repleto de dores”
110
.
As ações dotadas de valor moral são certamente insuficientes para diminuir o
sofrimento do mundo, mas elas conduzem o homem a desviar-se de sua própria vontade
de viver, e neste sentido elas guardam seu valor moral. O que Schopenhauer oferece
então é um discurso trágico que tem como função trazer à tona o conhecimento que está
na base daquele que nega a vontade. A argumentação de Schopenhauer em favor do
pessimismo visa tanto comprovar o absurdo da vida na forma do tempo e da
individuação regida pelo princípio de individuação, como também a característica
essencialmente insaciável da vontade de viver. O tempo enquanto forma da aparição da
vontade revela aquilo que ela é em si mesma: não apenas uma fo ma inadequada de sua
manifestação, mas o desvelamento de sua nulidade: “Esta nulidade (Nichtigkeit)
encontra sua expressão em toda forma da existência, na finitude do tempo e do espaço,
diante da finitude do indivíduo em ambos; no presente sem duração, como o único
modo de existência da efetividade, na dependência e relatividade de todas as coisas; no
p. 448.
108
Ibid., Idem.
109
WWV, § 68, SW, II,
110
Ibid., Idem.
194
contínuo vir-a-ser sem ser; no contínuo desejar sem satisfação”
111
. A afirmação da vida
seria a aceitação desse espetáculo, “belo de se ver” é verdade; “mas ser é bem outra
isa”
1
co
12
. A negação da vontade tem o sentido de uma recusa e por isso é uma atitude
moral. Aquele que nega é aquele que ao tomar para si todas as dores do mundo, não
pode mais afirmar a injusta justiça eterna. Dessa forma, não basta negar o fenômeno,
mas a própria essência. Para esse se revela em fim a finalidade da existência,
formulação definitiva do sentido moral do mundo em Schopenhauer
113
.
A negação da vontade, no entanto, não surge a partir do sofrimento com a
necessidade do efeito saído de uma causa, mas a vontade permanece livre. Aqui se trata
de uma “conversão transcendental” (transcendentale Veränderung), já que esse é o
único ponto em que a liberdade da vontade se expressa no fenômeno.
114
Daqui em
diante, o autor se utiliza de expressões emprestadas da mística e da religião, cristã e
oriental, para expressar seu pensamento. “Aquilo que os místicos cristãos denominam
efeito da graça e renascimento é para nós a única e imediata manifestação da liberdade
da vontade. Ela aparece apenas quando a vontade, chegada ao conhecimento de sua
essência em si, obtém daí um quietivo, quando então é removido o efeito dos motivos,
os quais residem em outro domínio de conhecimento em que os objetos são apenas
fenômenos”.
115
Essa liberdade é, contudo, misteriosa. Ainda que ela dependa de uma
certa reflexão racional sendo, portanto, privilégio do homem, pois depende da ação dos
motivos mediada pelo conhecimento, que, uma vez suprimida suprime consigo a
manifestação da vontade no caráter, ainda assim, deve-se notar que “todo conhecimento
e inteligência (Einsicht) é como tal independente do arbítrio (Willkür); assim também
aquela negação do querer, aquela penetração na liberdade, não pode ser forçada de
propósito, mas provém da relação íntima do conhecimento com o querer no homem,
vem portanto repentinamente e como algo que veio de fora”.
116
Daí ser possível
designar aquela “conversão transcendental” do homem que nega sua vontade como um
“efeito da graça” ou “renascimento” (Wiedergeburt). Aqui surge uma oposição entre
111
PP, SW, VI, p. 308.
112
WWV, E., Cap. 46, SW III, p. 665.
113
Schopenhauer fala ora do “significado moral do mundo” (“moralische Bedeutung der Welt”, Cf. PP, §
109, SW, VI, p. 221), ou “ordenação moral do universo” (“moralische Weltordnung”, WWV, E., Cap. 47,
SW III, p. 675); ora do “significado ético das ações” (Ethische Bedeutungsamkeit des Handelns - por
exemplo, WWV E., Cap. 48, SW III, p. 695); ou da “finalidade da existência” (WWV, Cap. 49, SW III, p.
727). Todas essas expressões apontam, porém, para o mesmo sentido: a compreensão da necessidade da
negação da vontade de viver.
114
Cf. WWV, § 68, SW, II, p. 467.
115
Ibid.,§ 70, SW, II, p. 478. Trad., p. 510.
116
Ibid., Idem. Trad., p. 511.
195
aquilo que é dado e sobre o qual unicamente é possível discurso ou conhecimento, e
aquilo a que a linguagem não é mais capaz de se referir. De acordo com o modo de
conhecimento natural, os motivos determinam o caráter de maneira necessária, e o
indivíduo não é, aqui, apenas uma ilusão, pois a individualidade, a partir desse modo de
conhecimento “é inerente também à vontade, já que o caráter é individual”. Ao
contrário, de acordo com o modo de conhecimento que se desliga da ação dos motivos,
“o caráter é ele mesmo suprimido na negação da vontade. A individualidade é assim
inerente à vontade somente em sua afirmação, não em sua negação”
117
. Para entender
essa oposição, entretanto, falta qualquer conceito, resta apenas a linguagem simbólica
das religiões. Schopenhauer opõe o homem natural ao santo e o reino da natureza,
regido pela necessidade, ao reino da graça, o reino da liberdade
118
. A identidade de
todos os seres só pode se dar no domínio da negação da vontade (Nirvana), pois no
domínio da afirmação (Samsara), só há multiplicidade
119
. Segundo a teologia cristã
interpretada por Schopenhauer, Adão simboliza a natureza e a afirmação da vontade, e
Cristo simboliza a graça, a negação da vontade, a redenção: “Decididamente, a doutrina
do pecado original (afirmação da vontade) e da redenção (negação da vontade) é a
verdade capital que form
maior pa
cristã ap
obras nã
possível:
a, por assim dizer, o núcleo do cristianismo; todo o resto é, a
rte das vezes, apenas símbolo, envoltório, acessório”.
120
Uma outra doutrina
ropriada por Schopenhauer é a doutrina defendida por Lutero segundo a qual as
o são capazes de nos fazer alcançar a libertação, e que somente a graça a torna
117
WWV, E., Cap. 48, SW, III, p. 700: “A individualidade é na verdade inerente, em primeiro lugar, ao
intelecto, que espelha o fenômeno, que a ele pertence, e que tem como forma o principium
individuationis. Mas ele é também inerente à vontade, na medida em que o caráter é individual: mas
exatamente esse é suprimido na negação da vontade. A individualidade é inerente à vontade apenas em
sua afirmação, não em sua negação”. (“Die Individualität inhärirt zwar zunächst dem Intellekt, der, die
Erscheinung abspiegelnd, der Erscheinung angehört, welche das principium individuationis zur Form
hat. Aber sie inhärirt auch dem Willen, sofern der Charakter individuell ist: dieser selbst jedoch wird in
der Verneinung des Willens aufgehoben. Die Individualität inhärirt also dem Willen nur in seiner
Bejahung, nicht aber in seiner Verneinung”).
118
Cf. WWV, § 70, SW, II, p. 478.
119
Cf. WWV, E., Cap. 48, SW, III, p. 700. Isso não nos deve levar a ver a negação da vontade como uma
“reabsorção do indivíduo no todo do mundo”(Janaway, C. Self and World in Schopenhauer’s Philosophy.
Oxford, Oxford University Press, 1999, p. 285), ou a considerar que a “Redenção significa o retorno da
inadequada à adequada objetidade da vontade, que permanece intemporal” (Malter, Rudolf. “Erlösung
durch Erkenntnis” In: Schirmacher, Wolfgang. Zeit der Ernte. Studien zum Stand der Schopenhauer
Forschung, Festschrift für Arthur Hübscher zum 85. Geburtstag. Stuttgart-Bad Cannstatt, 1982, pp. 41-
59). Schopenhauer não fala em nenhum momento de um retorno, a não ser o retorno ao estado anterior ao
delito do nascimento, o que só pode ser caracterizado negativamente como “nada”.
120
WWV, § 70, SW, II, p. 480.
196
Segundo Lutero (no livro De libertate christiana), assim que a fé entra em nós, as boas obras
brotam espontaneamente, a título de sintomas e de frutos da própria fé; mas elas não são uma
marca do nosso mérito, não nos justificam nada, não nos dão nenhum direito à recompensa;
produzem-se espontânea e gratuitamente. – Também nós, à medida que percebemos cada vez
mais claramente o sentido do princípio de individuação, destacamos em primeiro lugar a
justiça espontânea, em seguida o amor, até à supressão completa do egoísmo, e finalmente, a
resignação ou negação da Vontade.
121
A teoria luterana sobre a vaidade das obras nos auxilia a compreender a relação
que a ética de Schopenhauer estabelece entre a “moral propriamente dita” e sua teoria
da redenção. Interpretada de acordo com a doutrina de Schopenhauer, a teoria luterana
significaria que as obras da Vontade são sempre falíveis e defeituosas, já que ela não é
livre e está submetida à servidão do mal, e enquanto tais, essas obras são impotentes
para nos salvar, o que só a fé é capaz de fazer. Assim, a verdadeira virtude e a santidade
da disposição tem a sua origem primeira não numa vontade premeditada, mas no
conhecimento (a fé). O conhecimento aqui é identificado à fé porque assim como esta
última, o conhecimento não é adquirido por uma determinação do livre-arbítrio, mas
apenas nos pode vir dum favor da graça, independentemente da nossa participação, por
uma espécie de influência exterior.
122
Uma vez que as obras que resultam dos motivos e
do propósito deliberado estão sempre baseadas em algum tipo de egoísmo, elas são
incapazes de nos conduzir à beatitude (Seeligkeit).
123
Nesse sentido, a virtude independe
de qualquer reflexão e, enquanto condição para a salvação, ela não apenas não depende
de nosso mérito pessoal como até mesmo consiste na renúncia à personalidade. Dessa
forma, como a renúncia à personalidade está na base tanto da virtude como da
possibilidade da redenção, as virtudes se apresentam como um sinal da salvação: “As
121
WWV, § 70, SW, II, p. 482-3. A partir da expressão dos dogmas da religião interpretados segundo sua
metafísica, Schopenhauer tenta mostrar que a moral que ele propõe não é nova, pelo contrário, é a
verdadeira expressão da filosofia cristã, a qual já se encontrava, no que diz respeito ao essencial, nos
livros sagrados dos hindus. Cf. Parerga e Paralipomena, Cap. XIV, § 163.
122
Cf. WWV, § 70, SW, II, p. 480. A graça é definida como o “modo de conhecimento que, ao tornar
todos os motivos ineficientes, emudece, como quietivo universal, qualquer querer e proporciona a mais
profunda paz e abre o portão da liberdade”. WWV, § 68, SW, II, p. 463, trad., p. 496. “A fé na graça
significa mais do que a alteração do modo de conhecimento, que permanece não esclarecida. E esse mais,
nomeadamente, algo positivo, que para Lutero é o Deus misericordioso, não se pode afastar quando a
graça é interpretada paralelamente à ininteligibilidade do modo de conhecimento alterado”. Malter, R.
Arthur Schopenhauer. Transzendentalphilosophie und Metaphysik des Willens, p. 426.
123
Cf. Ibid., p. 482. Não se deve confundir a beatitude com a felicidade, o que nos levaria a interpretar a
moral schopenhaueriana como uma nova espécie de eudemonismo: “Resultou do nosso quarto livro que
toda virtude genuína, depois de ter alcançado seu mais alto grau, leva finalmente a uma renúncia plena, na
qual todo querer encontra um fim; a felicidade, em contrapartida, é um querer apaziguado e, portanto,
ambas são incompatíveis desde o fundamento”. Crítica da Filosofia Kantiana, trad. Cit., p. 176, SW, II,
p. 625.
197
virtudes morais, a justiça e a caridade, como eu mostrei, quando são sinceras provém do
fato de que a vontade de viver, quando vê através do principium individuationis, se
reconhece em todos os seu fenômenos, e são portanto, um sinal, um sintoma de que a
vontade fenomênica não está mais firmemente presa àquela ilusão, e que a desilusão se
aproxima: poderíamos dizer, metaforicamente, que ela começa a bater as asas para voar
para longe daqui”.
124
As virtudes morais revelam duplamente a aproximação da
salvação (entendida aqui como a negação da vontade): por um lado, conduzem o
indivíduo àquela renúncia do próprio eu que é a condição da redenção; por outro, o
exercício contínuo da virtude serve, segundo o autor, para quebrar a vontade de viver e
prepará-la para a negação final.
125
Nesse mesmo sentido é possível, para Schopenhauer,
erpr
ele que, pelo
reconhecimento do sofrimento universal, nega a vontade é quase sempre metafórica.
Quem atinge a redenção é aquele que aprendeu a lição da vida, ele foi libertado da
colônia
poderia
é envolvido pela
ilusão, e num destes lugares frios agora se encontra, ou o vê próximo a si, assim prosseguindo
int etar a teoria cristã da remissão dos pecados, pois já que a finalidade da moral é a
renúncia do querer, uma vez que esta última é alcançada, a moralidade ou imoralidade
da conduta anterior se torna indiferente. Assim, “as virtudes morais não são a finalidade
última (der letzte Zweck), mas apenas um degrau para a mesma”.
126
A explicação que Schopenhauer oferece da atitude daqu
penal e regenerado, a partir disso ele nega qualquer consolo que a vida ainda
oferecer.
127
A mesma idéia é expressa na seguinte comparação:
Se compararmos a vida a uma via circular de carvão ardente, com alguns lugares frios, que
teríamos de percorrer incessantemente, estes lugares frios consolam quem
firmemente sua marcha; porém, o homem que vê através do principium individuationis e
reconhece a essência em si das coisas, portanto do todo, não é mais suscetível a um semelhante
124
WWV, E., Cap. 48, SW, III, p. 695.
125
Para o filósofo, o exercício das virtudes morais é o pesado que acaba por retirar da vida as doçuras
que fazem com que nós nos comprazemos nela, e conduz assim o homem à resignação. Nesse sentido, a
passagem da virtude ao ascetismo é imediata: “Aquele que renuncia assim a toda vantagem fortuita e não
quer para si outro destino que não o da humanidade inteira, este acaba por não querer também este último;
o apego à vida e a suas delícias não pode tardar a ceder lugar a uma renúncia geral: assim surge a negação
da vontade. (...) A justiça mesma é o cilício que ameaça seu portador a uma perpétua mortificação, e a
caridade que se priva do necessário, é um jejum de todos os instantes”. WWV, E., Cap. 48, SW, III, p.
keit des Nichts” In: Schop. Jb. 82, 2001, pp. 65-82, p. 80.
697.
126
Ibid., p. 698.
127
“O filósofo não disse certamente aqui o que seria esclarecedor para o entendimento do processo
transcendente em si; mas disse muito sobre como esse processo pode ser entendido por homens comuns”
Cf. Heinz Gerd Ingenkamp, “Die Wirtschaftlich
198
consolo. Vê a si em todos os lugares ao mesmo tempo, e se retira. – Sua Vontade se vira; ela
não mais afirma a própria essência espelhada no fenômeno, mas a nega
128
.
Se a essência foi negada, também o fenômeno desaparece. A negação da vontade
de viver é, assim, uma negação desse mundo que nos é dado sob as condições do tempo
e do espaço. A determinação do que resta após a supressão da vontade permanece, no
entanto, problemática, já que só nos é dado conhecer esse mundo e nenhum outro.
Schopenhauer não diz que a supressão do querer representa a supressão de qualquer
forma de existência, mas também não afirma a realidade de um mundo à parte do querer
viver, uma espécie de paraíso que receberia os santos que negaram a vontade. Por um
lado, Schopenhauer afirma a supressão de todo conteúdo: “... as formas universais do
fenômeno, tempo e espaço, e também a última forma dele, sujeito e objeto: tudo isso é
suprimido com a Vontade. Nenhuma Vontade: nenhuma representação, nenhum
mundo”
129
. Por outro lado, o filósofo descreve a negação da vontade como um estado:
“Homens que meramente espera ver o último vestígio da Vontade desaparecer junto
com o corpo por ele animado” e nos quais “mostra-se a nós aquela paz superior a to
m
da
razão,
aquela completa calmaria oceânica do espírito, aquela profunda tranqüilidade,
confiança inabalável e serenidade jovial, cujos meros reflexos no rosto, como expostos
por Rafael e Correggio, são um completo e seguro evangelho: apenas o conhecimento
restou, a Vontade desapareceu”
130
. Ou seja, por um lado, nada sobrou, por outro, ainda
há um conhecimento que enquanto tal pressupõe esse sujeito puro, livre da vontade.
Essa ambigüidade está presente em toda tentativa que Schopenhauer oferece de
descrição da negação da vontade. Por um lado, aquela tranqüilidade característica da
vida do asceta que olha de modo indiferente para o tumulto da vida e, de outro, a luta
infatigável do mesmo asceta para se manter livre do apego às coisas deste mundo. De
128
WWV, § 68, SW II, p.448-9. Trad., p. 482.
129
WWV, § 71, SW II, p.486. Trad., p. 518.
130
WWV, § 71, SW II, p.487. Trad., p. 518-9. Poderíamos, a partir da indicação de Schopenhauer de que
a negação da vontade de viver conduz à negação completa do fenômeno na morte por inanição, interpretar
o nada que resulta da negação como uma “morte absoluta”, em oposição à “morte fenômenica”.
Schopenhauer, no entanto, desautoriza qualquer interpretação filosófica positiva do nada que resulta da
negação. A questão da morte pela negação da vontade faz surgir aquilo que Malter caracteriza como
“aporia soteriológica”: “quando se deve falar corretamente aquilo que se entende pelo completo estado de
negação da vontade, então não se deve falar que o estado completo se passa nessa vida (pois ele suprime a
vida) nem que ele é alcançado além dessa existência (pois nós só temos essa existência) nem mesmo que
ele é alcançado na morte (pois nela desaparece também a negação da vontade).” Malter, R. Arthur
Schopenhauer. Transzendentalphilosophie und Metaphysik des Willens, p. 441. A “reflexão
soteriológica” de Schopenhauer é, dessa forma, afetada por uma aporia fundamental que impede a
descrição de seu acabamento. Ela descreve um processo de ”mortificação da vontade nessa vida” mas
deixa em aberto a questão pelo que se segue dela. Cf. Ibid, p. 442.
199
um tal estado a filosofia não pode mais oferecer uma descrição conceitualmente precisa
e por isso ele é ilustrado antes pelas imagens religiosas como “o êxtase, enlevamento,
iluminação, união com Deus etc.” Tal recurso não se deve propriamente a uma
deficiência da filosofia, mas remonta à própria coisa que não se deixa apreender por
qualquer forma de conhecimento: “tal estado, porém, não é para ser denominado
propriamente conhecimento, porque ele não possui mais a forma de sujeito e objeto, e
só é acessível àquele que teve a experiência, não podendo ser ulteriormente
comunicado”
131
. Por trazer à expressão uma experiência que não tem a forma do
conhecimento é que a linguagem religiosa pode ajudar a ilustrar aquilo que a filosofia
apenas indicou. Não se trata, portanto, de uma subordinação da filosofia à religião, mas
de um esgotamento do campo discursivo que a filosofia traçou como limite de sua fala.
Essa dificuldade reside no fato de Schopenhauer ter aceitado a tarefa de descrever algo
que não diz respeito estritamente ao campo temático da filosofia, a saber, a negação do
mundo realizada pela ascese mística
132
. Ao mesmo tempo, porém, Schopenhauer
confirma e renega o ponto de vista imanente. No interdito de se aventurar para além do
mpo
experiência última da ética feita pela “conversão” da vontade. Portanto, quando o
filósofo diz que a filosofia deve “reproduzir toda a essência do mundo abstratamente em
ca da experiência comunicável se afirma o princípio segundo o qual a filosofia
permanece imanente e tem apenas o mundo como objeto. Por outro lado, a indicação de
uma ordem de coisas inteiramente outra abre espaço para algo que não está dado no
mundo da experiência, algo que permanece, contudo, indecifrável, ainda que possível. O
fato de Schopenhauer ter negado um estatuto absoluto para a vontade o impede de ver o
nada que restaria após a supressão desta como absoluto
133
.
Assim, a reflexão sobre a fronteira entre a filosofia e a religião desemboca no
problema da limitação do campo conceitual: se a verdade não pode aparecer nua para o
povo, também não o pode para o filósofo. De certa forma, a pretensão de Schopenhauer
de oferecer uma filosofia que traduza para a clareza e exatidão da linguagem conceitual
toda verdade intuitivamente apreendida esbarra em um duplo limite: por um lado, a
insuficiência constitutiva da linguagem conceitual, resultante do caráter secundário e
imperfeito do intelecto; de outro, o caráter absolutamente não comunicável da
131
WWV, IV, § 71, SW, II, p. 323. Trad. p. 517-8.
132
O que o filósofo vê, porém, como uma vantagem de sua filosofia, pois somente nela a experiência
mística receberia um sentido que as outras filosofias jamais poderiam atribuir. Cf. WWV E., Cap. 48.
133
Sobre isso Cf. a discussão epistolar com Frauenstädt e especialmente a carta de 24/08/1852 (GBr, p.
290). Cf. Cacciola, M. L. Schopenhauer e a questão do dogmatismo, p. 24 e Kossler, M. Empirische
Ethik und christliche Moral, p. 176 e seguintes.
200
geral e claramente em conceitos abstratos”, podemos entender que ela realmente cumpre
essa tarefa, ressalvando-se o fato de que a “essência toda do mundo” não constitui toda
a realidade possível. Se o mundo esgotasse todo o sentido possível poderíamos ter uma
filosofia completamente imanente e talvez mesmo um saber absoluto, mas dificilmente
uma ética no sentido de Schopenhauer.
134
A negação de um absoluto é também a
negação de um saber absoluto. Mas o preço a pagar pela ausência de um saber absoluto
pelo qual a verdade poderia apresentar-se em sua forma mais pura e sem nenhum
invólucro será justamente a diminuição de sua supremacia em relação à religião. É
assim então que no diálogo Sobre a Religião Schopenhauer se mostra menos convicto
do triunfo da filosofia. A religião não apenas satisfaz a necessidade metafísica do
homem que não tem acesso à verdade filosófica, mas pode mesmo assumir seu lugar já
que ela é “infinitamente dificil e talvez inalcançável”, pois a verdade abstrata, livre de
todo o mito deverá permanecer “a todos nós, também para os filósofos,
inalcançável”
135
. A verdade seria assim como certos elementos químicos que jamais se
apresentam de modo em si mesmo puro, mas ligados a outras matérias. Da mesma
rma,
periência a origem de uma certa “religiosidade imanente” presente no
fo “a verdade que não pode ser expressa de outra maneira a não ser mitica e
alegoricamente se assemelha à água que não é transportável sem um recipiente; os
filósofos porém, que pretendem possuí-la em estado puro, se assemelham àqueles que
destroem o recipiente para ter a água só para si”
136
.
Talvez seja justamente essa recusa em atribuir realidade absoluta à realidade
dada na ex
pensamento de Schopenhauer. É com essa expressão que Alfred Schmidt caracteriza o
fundamento para o juízo positivo de Schopenhauer sobre a religião
137
. De modo
134
Um fragmento publicado póstumamente indica essa possibilidade: “pode haver então uma filosofia
inteiramente verdadeira, que abstrai completamente da negação da vida, a ignore: uma filosofia
er
a ética, mas apenas teoria do direito e do estado, isto é, doutrina da
mesmo a mais elevada, a
própriamente imanente (eigentlich immanente Philosophie); uma tal filosofia deveria porém, para s
conseqüente, não ter nenhum
felicidade (Klugheitslehre).” HN, I, p. 408. Uma observação acrescentada posteriormente a essa
relativiza, entretanto, esse raciocínio: “Não [é] verdade. A visão do principii individuationis pode surgir,
aparecer a caritas sem a supressão da vontade”. Ibid, Idem. Cf. Kossler, M. Empirische Ethik und
christliche Moral, p. 423.
135
PII, § 174, SW VI, p. 355. Cf. Schmidt, A. Die Wahrheit im Gewande der Lüge, p. 173 e seguintes.
136
PII, § 174, SW VI, p. 353.
137
Cf. Schmidt, A. Die Wahrheit im Gewande der Lüge, p. 131 e seguintes. Com isso Alfred Schmidt
retoma toda uma tradição que desde Paul Deussen, até Horkheimer, procurou interpretar a presença da
religião no pensamento de Schopenhauer. Para uma discussão dessas interpretações ver Kossler, M.
Empirische Ethik und christliche Moral, p. 11 e seguintes. Schmidt se remete principalmente à leitura de
Hans Zint, chegando a citar o seguinte texto: “A síntese de Schopenhauer permanece para todo tempo
uma das mais profundas concepções sobre a meta e o valor do religioso em sua figura mais sublime, na
medida em que a razão filosófica indica um lugar à vivência valorativa mais íntima do homem religioso
que está além de toda razão e no entanto é reconhecida como justa, atém
201
paradoxal, entretanto, o filósofo jamais deixa de dar ao discurso racional da filosofia a
primazia, o que não passa despercebido por Schmidt: “a filosofia pode atribuir à religião
um lugar e uma função, não o contrário”
138
. Mesmo com todas as limitações do
discurso racional, da ciência e da filosofia, Schopenhauer mantém-se afastado de uma
queda na religião, e sua postura permanece, no fim das contas, “iluminista”: a verdade
não deveria assumir a roupagem da mentira pois assim ela entraria numa aliança
perigosa
139
. Entre a exigência da verdade e a limitação da natureza finita da razão,
Schopenhauer nem desiste da metafísica nem constrói um ponto de vista livre do caráter
limitado do homem. Por isso sua filosofia oscila, como ele mesmo admite, “entre a
doutrina da omnisciência dos dogmáticos precedentes e o desespero da crítica
kantiana”
140
. Mesmo com essas limitações o filósofo chega até a supor uma eventual
eutanasia da religião, pela qual ela deixaria de ter lugar num futuro próximo deixando
espaço para um discurso baseado apenas e tão somente na argumentação racional: “Os
resultados morais do cristianismo, até a mais alta ascese, encontram-se em mim
racionalmente fundamentados e em conexão com as coisas, ao passo que no
cristianismo são fundamentados por meras fábulas. A fé no cristianismo desaparece
ada dia mais e, por isso, se tem de recorrer à minha própria”.
141
c
dição mais digna de anseio: não no sentido de uma mera negação, um nada absoluto, mas um grau de
alidade a partir do qual ‘nosso mundo tão real com todos os seus sóis e via-lácteas – (é) nada’”. Das
eligiöse bei Schopenhauer, In: Schop. Jarbuch, nº17, 1930, p. 63. Dentro desse contexto, Schmidt não
esita em colocar Schopenhauer como um “romântico” em oposição à concepção iluminista da religião, o
que o aproxima de Schleiermacher, tão criticado por Hegel. Sobre a interpretação de Horkheimer a
respeito do nexo entre religião e filosofia em Schopenhauer ver o apêndice I.
con
re
R
h
138
Schmidt, A. Die Wahrheit im Gewande der Lüge, p. 165. Cf. Kossler, M. Substantielles Wissen, p.
204.
139
Cf. PII, § 174, SW VI, p. 355.
140
KKPh, SW II, p. 507. Trad. p. 96.
141
P I, SW V, p. 150. Trad. p. 120. Essa passagem é um acréscimo da edição póstuma dos Parerga e
Paralipomena cuja origem é uma nota de 1856. Cf. HN IV, vol. 2, p. 311. Cf. Sobre o Fundamento da
Moral, trad., p. 12 e P II, SW VI, p. 365 (Sobre a Religião).
202
Capítulo 3. Cosmologia ou Teologia
Tendo percorrido as bases das filosofias da religião de Hegel e Schopenhauer,
poderemos nos voltar agora para uma contraposição entre suas abordagens
diametralmente opostas. Resultou de nossa exposição o resultado paradoxal de que,
embora ambos os filósofos ressaltem a primazia da filosofia sobre a religião, pela qual
seria mesmo possível supor uma absorção completa da religião pela filosofia – seja ela a
“Aufhebung” da religião ou sua “Euthanasie” – ambos oferecem uma imagem
representativa dos sistemas a partir de uma linguagem religiosa. É assim que Hegel
caracteriza o sistema como uma teologia especulativa, a lógica como o “pensamento de
Deus antes da criação” e a filosofia do espírito absoluto é interpretada a partir de uma
visão especulativa da trindade. Toda a filosofia de Hegel assume, assim, a característica
de uma exposição de Deus, o que o leva a recuperar a ontoteologia, oferecendo uma
nova abordagem da assim chamada “prova ontológica” da existência de Deus. Enquanto
isso, Schopenhauer procura se opor a Hegel ao afirmar que a filosofia deve ser
“cosmologia” e “cosmosofia” (Weltweisheit) e não teologia. Essa cosmologia assume,
porém, a figura de um pensamento que visa a redenção, uma soteriologia. Por outro
lado, toda a cosmologia de Schopenhauer assume a forma de algo que podeira ser
ia especulativa,
devemos compreender adequadamente como ele resgata a prova ontológica da
existência de Deus da crítica que dela fez Ka
prova, m
Descarte
caracterizado como pantelismo, pelo que o mundo aparece como o “pior dos mundos
possíveis”, algo do qual deveríamos nos livrar para alcançar a redenção. Por essas
razões, o confronto entre os filósofos assumirá a figura de um conflito entre uma
teologia conciliadora (panlogismo) e uma cosmologia pessimista (pantelismo)
142
.
Para não banalisar essa visão da filosofia hegeliana como teolog
nt. Hegel não apenas pretende resgatar essa
as dar uma fundamentação que ela ainda não tinha em Santo Anselmo ou
s. O ponto de partida é justamente a crítica da crítica kantiana:
142
Essas expressões, “panlogismo” e “pantelismo” não passam de formulações “representativas” (no
sentido hegeliano) que não fazem inteira justiça à complexidade do pensamento dos filósofos. Elas são
aceitáveis, entretanto, desde que feita essa ressalva.
203
A crítica kantiana da prova ontológica, sem dúvida alguma, encontrou também uma tão
incondicionada acolhida e aceitação porque Kant, para elucidação da diferença que havia entre
pensar e ser, usou o exemplo dos cem táleres, que segundo o conceito seriam igualmente cem,
quer fossem táleres somente possíveis ou efetivos; mas isso, para minha situação financeira,
faria uma diferença essencial. Nada pode ser tão evidente quanto isso: o que para mim penso
ou represento não é ainda, só por isso, efetivo; o pensamento de que o representar ou também o
conceito não são suficientes para o ser. Prescindindo de que, sem cometer injustiça, se poderia
chamar uma barbaridade dar o nome de conceito a algo como cem táleres, os que repetem
incessantemente, contra a idéia filosófica, que pensar e ser são diferentes deveriam enfim
presumir que isso igualmente não é desconhecido dos filósofos: de fato, que conhecimento
pode haver mais trivial? Mas então devia-se pensar que, quando se fala de Deus, esse é um
objeto de outra espécie que cem táleres, e que qualquer conceito particular, representação, ou
e
r isso a
prova ontológica de Anselm
sistemát
completo
absoluto
como se quiser chamar. De fato, todo o finito é isto e isto somente: [a saber] que seu ser-aí é
diferente de seu conceito. Mas Deus deve ser expressamente o que só pode ser pensado como
existente, [o ser] em que o conceito inclui em si o ser. É essa unidade do conceito e do ser que
constitui o conceito de Deus
143
.
Essa passagem poderia sugerir que Hegel simplesmente se limitaria a salvar a
prova ontológica da crítica dela feita por Kant: este último teria simplesmente destruído
a pressuposição fundamental da prova, s gundo a qual Deus deveria ser considerado
como o ser que une em si mesmo ser e pensamento. Para Anselmo, com efeito, se Deus
é o ser perfeitíssimo, aquele ser tal que “não se pode pensar nada maior”, ele não pode
ser uma mera representação, mas sim aquele que também tem ser, pois um ser
meramente pensado não seria perfeito
144
. Mas, segundo Kant, o ser não é uma
propriedade que pode ser analiticamente deduzida de nenhum conceito: daí o exemplo
dos cem táleres. De certo modo, Hegel concorda com essa crítica: o ser não é nenhuma
determinação de conteúdo, já que ele é em si mesmo vazio e indeterminado. Po
o – e também a da filosofia moderna, ocupa o lugar
ico de um “conceito abstrato” de Deus e será apenas o desenvolvimento
de todas as determinações lógicas que oferecerá a “definição” completa do
. Por isso, a anotação do parágrafo 51 da Enciclopédia (1830) continua:
É claro que isso é ainda uma determinação formal de Deus que, por esse motivo, de fato só
contém a natureza do conceito mesmo. Mas que ele, em seu sentido completamente abstrato, já
inclui em si o ser, é fácil de ver. Pois o conceito, como for aliás determinado, é pelo menos a
relação consigo mesmo resultante da suprassunção da mediação, por conseguinte a própria
143
Enz § 51, Anm. W8, p. 134-5. (Trad. p. 127-8).
144
Cf. VPhRel, III, p. 9. (trad. p. 9).
204
relação imediata consigo mesmo; ora, o ser não é outra coisa que isso. Pode-se bem dizer que
seria estranho se isto, [que é] o mais íntimo do espírito – o conceito –, ou ainda se o Eu, ou a
concreta totalidade que é Deus, não fossem mesmo bastante ricos para neles conterem uma tão
pobre determinação como é o ser; que é, sim, a mais pobre de todas, a mais abstrata que há.
Para o pensamento, nada pode haver mais insignificante, segundo o conteúdo, que o ser. Só
mesmo pode ser ainda menor, talvez o que se representa de início a respeito do ser: a saber,
uma existência exterior, sensível, como a do papel que tenho aqui diante de mim. Aliás, nem se
a não demonstrada e aceita como pressuposta de Deus e então se identifica
nesse abstrato ser e pensam
também
lugar em
ontológi
como o que há de mais perfeito ou ainda subjetivamente como o verdadeiro saber, é
pressuposta, quer dizer, admitida apenas como em si. A essa identidade – por isso abstrata – é
vai querer falar de uma existência sensível, de uma coisa limitada e transitória. Ademais, a
observação trivial da Crítica, de que o pensamento e o ser seriam diferentes, pode no máximo
perturbar o homem quanto ao itinerário de seu espírito, desde o pensamento de Deus até a
certeza de que ele é, mas não pode interrompê-lo.
145
Segundo Hegel, a versão moderna da prova ontológica, oferecida por Descartes,
Espinosa, Leibniz e Wolff, apenas acrescentam algumas determinações a esse conceito
ainda muito abstrato de Anselmo. Como o ser perfeito, Deus é determinado como o
conjunto de toda a realidade, como omnitudo realitatis, como o Ser. Por isso a prova
ontológica assume outras formas, como a cosmológica que parte da existência
contingente do mundo para a existência de um ser absolutamente necessário. Assim,
para Descarte e Espinosa, segundo Hegel, Deus é definido como causa de si mesmo,
causa sui. Com isso a determinação de Deus ganha objetividade pois ela deixa de ser
meramente pensada como em Anselmo (como o ser tal que “não se pode pensar algo
maior”), deixa de ser mediada apenas subjetivamente e ganha objetividade. Tratar-se-á
então, para Hegel, de determinar de modo mais preciso o conceito de “ser necessário”
para dar uma nova fundamentação para a prova ontológica e suprimir o que ela ainda
tem de insatisfatória. O que nas provas de Descartes e Espinosa ainda é insuficiente diz
respeito ao formalismo com o qual elas são conduzidas. Parte-se de uma definição
abstrata, aind
ento, sem reconhecer que ambas as determinações são
opostas. A passagem do conceito subjetivo ao conceito objetivo é por isso o
que, na Lógica, Hegel irá se contrapor às versões existentes da prova
ca:
A deficiência na argumentação de Anselmo – que aliás partilharam com ela Descartes,
Espinosa, assim como o princípio do saber imediato [Jacobi] – é que essa unidade, enunciada
145
Enz § 51, Anm. W8, p. 134-5. (Trad. p. 128-9).
205
logo contraposta a diversidade das duas determinações, como também desde muito tempo
aconteceu contra Anselmo; isto é, de fato, se contrapõe ao infinito a representação e a
existência do finito, pois, como antes se notou, o finito é uma objetividade tal que ao mesmo
tempo não é adequada ao fim, à sua essência e ao seu conceito, e dele difere; ou seja, é uma
representação tal – um subjetivo tal – que não implica a existência.
146
Neste sentido, a crítica de Kant mantém sua razão de ser. Ele se opõe
corretamente às definições abstratas da teologia racional e à sua pretensão de provar
Deus a partir de meros conceitos
147
. Mas o que Kant teria deixado de perceber é que
essa determinação só vale para o âmbito do finito, para o conceito tomado apenas como
conceito subjetivo ou mera representação subjetiva
148
. Com isso ele poderá apenas
construir uma teoria do conhecimento limitadora e não uma teoria especulativa do
infinito
149
. No âmbito do infinito deve valer a identidade de ser e conceito, mas essa
identidade deve ser demonstrada, com o que tal identidade deverá se tornar concreta.
Esse é todo o projeto de Hegel: por isso, a questão da prova ontológica é não apenas
uma recuperação da teologia racional por meio da crítica a Kant, mas a questão mesma
da dedução das categorias do absoluto. Sua crítica a Kant diz respeito, então, à sua
crítica ao caráter meramente subjetivo dos conceitos na filosofia crítica. É toda a lógica
ontológica de Hegel que está em jogo aqui: as categorias não são meros conceitos puros
do entendimento aplicáveis a uma experiência possível, mas são determinações de
pensamento de tudo aquilo que é. Segundo Hegel, a pressuposição de um sujeito do
conhecimento a partir do qual as categorias são pensadas conduzem a aporias. A
consciência de si é apenas um uso possível das categorias, e o que deve ser investigado
são as categorias em si mesmas, independente de sua aplicação relacionada a um sujeito
do conhecimento. A verdadeira investigação das categorias é o desenvolvimento das
puras determinações de pensamento em si mesmas. “Se o sistema das categorias é
pensado independente da representação do sujeito então será inevitável lhe outorgar a
146
Enz § 193, Anm. W8, p. 348-9. (Trad. p. 330-1).
147
Cf. Henrich, D. Der ontologische Gottesbeweis, p. 205. A crítica à definição abstrata de Deus também
é formulada na seguinte passagem da Ciência da Lógica: “a definição abstrata de Deus é, pelo contrário,
esta segundo a qual seu conceito e seu ser são indivisíveis e inseparáveis. A verdadeira crítica das
categorias e da razão é exatamente essa, informar o conhecer sobre essa diferença e evitar aplicar as
o representar e
r uma doutrina do infinito, mas
z, § 52, W8, p. 136, trad., p. 129.
determinações e relações do finito a Deus”. WdL, W5, p. 91.
148
Cf. VPhRel, III, p. 11. Trad. esp. p. 11. “Conceito sem objetividade alguma é um vácu
opinar, ser sem conceitos é a exterioridade e o fenômeno que se desagregam”. Ibid, p. 10.
149
“Dessa maneira, a determinidade permanece exterior ao pensar [considerado] em seu píncaro mais
alto; ele permanece pura e simplesmente um pensar abstrato que aqui se chama sempre razão. Essa razão
– é esse o resultado – nada fornece a não ser a unidade formal para simplificação e sistematização das
experiências; é um cânon, não um órganon da verdade; não pode fornece
só uma crítica do conhecimento”. En
206
determinação do ser”
150
. Desse modo, a questão da prova ontológica em Hegel não é
mais a questão da certeza de saber se seu objeto existe ou não, pois a objetividade já
está assegurada pela própria abordagem lógica. E o que possibilita essa lógica é
justamente a idéia da identidade entre as determinações de pensamento e o ser. Pelo
contrário, a questão da correção ou não da prova, isto é, de sua certeza, só se coloca de
um ponto de vista externo à lógica: a pressuposição da oposição entre ser e pensar.
Portanto, é a própria lógica, ou todo o sistema que oferecerá a verdadeira
fundamentação da prova ontológica.
É por meio da objetivação do conceito que tem lugar a superação do caráter
meramente abstrato da prova ontológica e do conceito de Deus. O conceito não é
meramente subjetivo, como supunha Kant, mas também não é meramente abstrato como
concebia a metafísica. “O conceito é assim essa atividade de suprassumir sua diferença.
Quando a natureza do conceito é compreendida, então a identidade com o ser não é mais
pressuposição, mas resultado. O itinerário consiste em que o conceito se objetive, se
converta em realidade e assim ele é a verdade, unidade do sujeito e do objeto”
151
. Tudo
depende portanto da compreensão do caráter próprio da noção mesma de conceito da
lógica de Hegel. Como já vimos, ele tem pouco a ver com a concepção comum de
conceito, tal como a entende a lógica formal e mesmo a filosofia kantiana. Esse conceito
tradicional de conceito é subsumido por Hegel pela “representação” e, no caso, é o
entendimento que fixa o conceito a partir da noção abstrata de identidade. Essa noção é
abstrata pois o entendimento fixa apenas algumas qualidades essenciais deixando de
lado as diferenças particulares de um objeto que é subsumido por um único conceito.
No conceito hegeliano deve estar presente a particularidade, não apenas como algo que
o conceito abarca abstratamente, mas como algo presente nele. Para deixar de ser
abstrato o conceito deve receber todas as suas determinações. O absoluto só é o absoluto
enquanto totalidade. Mas enquanto ser, ainda indeterminado, ele é apenas a totalidade
de todas as determinações possíveis. Como ele recebe todas as determinações apenas
por seu próprio desdobramento, o conceito indeterminado de ser é também causa sui,
pois ele mesmo se determina a si mesmo, é o efeito de si mesmo
152
. O puro conceito é
assim “o próprio conceito divino e absoluto, mas de modo que não ocorreria uma
relação de aplicação (Anwendung), mas aquele percurso lógico seria a apresentação
esp. p. 259.
. Cit, p. 214.
150
Henrich, Dieter. Op. Cit, p. 211.
151
VPhRel III, (1831) p. 275. Trad.
152
Cf. Henrich, D. Op
207
imediata da auto determinação de Deus para o ser”
153
. Mas Hegel não deixa de apontar
que mesmo na passagem do puro conceito para a objetividade, o conceito completo do
conteúdo “Deus” ainda não foi alcançado, pois o conceito de Deus só é apresentado
quando “já se o tomou na idéia”
154
absoluta. Somente no conceito adequado, isto é, na
esfera da determinação lógica da idéia, o conceito de Deus pode ser adequadamente
determinado. Portanto, somente na esfera da idéia absoluta que unifica o conceito e a
objetividade tem
rn para si, é produzida; o que é em si, deve ser da mesma forma
trária, Schopenhauer procurará oferecer a mais completa
cusa do sistema hegeliano que ele pôde imaginar ao formular o que poderemos
chamar
os a “adequada prova ontológica”
155
.
Mas em uma proposição a verdade não se deixa expressar; ambos são também diferentes, o
conceito absoluto e a idéia enquanto unidade absoluta, [são diversos] de sua realidade; o
espírito é o processo vivo, pelo qual a unidade sendo em si [an sich seiende] da natureza
humana e divina [se to a]
produzido – fim – e nada é produzido que não seja em si. Culto – é pela idéia mesma
produzido e introduzido
156
.
Se não resolvem toda a problemática da recuperação hegeliana da prova
ontológica da existência de Deus e a questão sempre controversa da ontoteologia
hegeliana, essas indicações nos permitem ter ao menos uma noção da teologia
especulativa de Hegel e vislumbrar a possibilidade de uma leitura ontoteológica de seu
sistema
157
. Seja como for, ao intervir na discussão sobre a filosofia da religião e
oferecer uma alternativa con
re
de exato oposto da prova ontológica.
Schopenhauer não apenas repetiu as críticas kantianas às provas da existência de
Deus, mas se recusou mesmo a aceitar qualquer possibilidade de admitir a existência de
Deus. De certo modo, todo seu pensamento pode ser visto como uma defesa do ateísmo:
a crença em Deus não somente não se justifica diante do tribunal crítico da razão, como
se revela até mesmo imoral. Embora subescreva toda a crítica kantiana da teologia
racional, Schopenhauer não a considera decisiva. Para provar a nulidade da prova
ontológica, por exemplo, segundo Schopenhauer, não é necessária nenhuma crítica da
razão, pois seria possível mostrar, sem pressupor a “estética” e a “analítica
153
WdL, W6, p. 404.
154
Ibid, Idem.
155
Cf. Puntel, L. B. Darstellung, Methode und Struktur, p. 116.
156
VPhRel III, (Ms) p. 6, trad. p. 6.
157
Sobre a expressão “ontoteologia” criada por Heidegger, Cf. Puntel, L. B. Darstellung, Methode und
Struktur, p. 109, nota 190.
208
transcendental”, que aquela prova é na verdade um mero jogo de conceitos. Para isso
Schopenhauer evoca o preceito aristotélico, contido no sétimo capítulo do segundo livro
dos Segundos Analíticos, segundo o qual “a existência não se segue da essência de uma
coisa”
158
. Apesar disso, para Schopenhauer, a filosofia moderna consistiu num abuso
daquele equívoco que conduz à prova ontológica: a confusão entre princípio de razão de
conhecimento e princípio de causa e efeito. Descartes teria, segundo Schopenhauer,
confundido intencionalmente os dois princípios e colocado um princípio de
conhecimento para determinar a existência de Deus a partir de sua própria definição, ao
invés de se perguntar, como seria razoável, pelo princípio de causalidade.
159
Ao
contrário de Kant, que via as outras duas provas tradicionais da existência de Deus – a
prova cosmológica e a prova físico-teológica – como fundadas na prova ontológica,
Schopenhauer confere maior peso ao argumento da prova cosmológica.
160
Para ele, a
prova cosmológica, fundamento das outras, “consiste na realidade em afirmar que o
princípio de razão do devir (ou lei de causalidade) conduz necessariamente a um
pensamento que o suprime e o declara como nulo. Pois não se chega à causa prima (o
aparecia em Descartes. Mais a frente, no parágrafo 20, ao destacar a dependência da
Absoluto) senão remontando do efeito à causa numa série tão longa quanto se queira;
mas não se pode parar em uma causa primeira sem anular o princípio de razão”.
161
A lei da causalidade regula, para Schopenhauer, todo o conteúdo das formas
puras da intuição, tempo e espaço. Toda a realidade empírica é regida pela validade
desse princípio. O estabelecimento da lei de causalidade como forma da experiência
permite a Schopenhauer, na esteira de Kant, confirmar a validade da refutação das
provas da existência de Deus. Tanto a prova ontológica quanto a prova cosmológica
contradizem o princípio de razão. É aqui que Schopenhauer, na dissertação Sobre a
Quadrúpla Raiz do Princípio de Razão se refere polemicamente a Hegel, defendendo
que toda sua doutrina não passaria de uma “monstruosa amplificação da prova
ontológica”.
162
Nessa passagem, Schopenhauer critica a prova ontológica tal como
158
KKPh, SW II, p. 606. Crítica da Filosofia Kantiana, Trad. Maria Lúcia Cacciola, São Paulo, Abril
Cultural, 1988, p. 163. Schopenhauer cita o original grego e a tradução latina:το δε ειναι ουκ ουσια
ουδενι, isto é, existentia nunquam ad essentiam rei pertinet”.
159
Cf. SG, §7, SW, I, p. 10.
160
Cf. Salaquarda, J. Schopenhauers Kritik der Physikotheologie. In: Schopenhauer im Denken der
Gegenwart. Piper, München, 1987, pp. 81-96, p. 83. Cf. Crítica da Filosofia Kantiana, Trad. Cit., p. 163.
A prova cosmológica é aquela que parte do conceito de ens realissimum, que enquanto conceito do ser
soberanamente real é o único pelo qual pode ser pensado um ser necessário, isto é, um Ser supremo. Cf.
Kant., Crítica da Razão Pura, Lisboa, Ed. Calouste Gulbenkian, 1993, p. 509, B 633.
161
Cf. SG, § 20, SW, I, p. 41. Cf. Acima, pp. 33-4.
162
SG, § 7, SW II, p. 11-12.
209
prova ontológica em relação à prova cosmológica, ele se refere à recuperação que dela
Hegel teria oferecido. Schopenhauer ironiza de maneira mordaz o procedimento
hegeliano.
ja só a hegelharia (Hegelei), o que é senão uma
163
“Amigo[a]”, disseram para ele[a], “tu estais mau, muito mau desde teu fatal reencontro com o
velho teimoso de Königsberg, tão mau quanto tuas irmãs a ontológica e a físico-teológica. Mas
console-se, nós não te abandonaremos por isso (tu sabes, nós somos pagos para isso): no
entanto – não dá para ser diferente – tu deves mudar de nome e de roupagem; pois se nós te
chamarmos pelo nome todo mundo fugirá. Mas incognita nós podemos carregar-te nos braços
e te apresentar às pessoas de novo; mas como dito, incognita: aí vai! Primeiramente então: teu
objeto leva a partir de agora o nome “o absoluto”: isso soa estranho, digno e distinto – e nós
sabemos melhor que ninguém o quanto e com que imponência podemos proceder entre os
alemães: o que se entende por isso todo mundo sabe e julga-se sábio por isso. Tu mesma,
porém, aparecerás disfarçada na figura de um entimema. Deixai em casa todos os seus pré-
silogismos e premissas com os quais tu nos conduziste ao longo climax: sabe-se muito bem
hoje que eles não valem nada. Mas como um homem de poucas palavras, orgulhoso, audacioso
e imponente, tu chegarás a teu objetivo: “o absoluto”, esbravejarás tu (e nós contigo), “eis o
que tem que ser, diabo, senão não haveria nada!” (nesse momento tu bates na mesa). Donde
viria isso então? “Tola questão! Eu não disse que isso é o absoluto?” – Funciona, confie,
funciona! Os alemães estão acostumados a aceitar palavras ao invés de conceitos: para isso eles
são adestrados por nós desde a infância; - ve
vazia, oca e repulsiva tralha de palavras?” .
Percebe-se aqui a perspicácia de Schopenhauer ao sublinhar a filiação do sistema
de Hegel à prova ontológica, isto é, à tese da identidade entre ser e pensamento. Se a
prova ontológica adequadamente compreendida é todo o desdobramento das
determinações lógicas até a idéia absoluta, então Schopenhauer não deixa de ter razão
ao considerar o sistema de Hegel uma “amplificação” daquela prova. Mas ao insistir na
validade do princípio de razão e de causalidade, Schopenhauer não chega a discutir a
questão essencial da reabilitação hegeliana da prova ontológica pois insiste em
concepções conceituais que Hegel pretende ter superado. O conceito de causa sui deve
ser pensado para além das determinações reflexivas da causalidade (causa e efeito), isto
é, deve ser apreendido especulativamente
164
. Schopenhauer no entanto, apesar de
suspender a validade do princípio de razão no interior de sua metafísica (especialmente
nas metafísicas do belo e dos costumes), se vale desse princípio em sua crítica do
conhecimento, e não admite que ele possa ser suprimido em outros âmbitos. A
163
SG, § 20, SW, I, p. 39. Cf. trad. Francesa, p. 178-9.
164
Cf. Dieter Henrich, Der ontologische Gottesbeweis, p. 214.
210
causalidade remete ao “mau infinito”, à toda mudança que supõe uma causa ao infinito.
A anulação desse princípio seria, para Schopenhauer, conseqüência da “razão
preguiçosa”. Para Hegel, entretanto, se prender a esse princípio seria subordinar a razão
ao entendimento. Com esse procedimento, portanto, Schopenhauer não consegue, como
mos,
to: a filosofia deve permanecer interpretação
do mundo dado e não fabulação teológica:
profundo interior, em todos os seus
165
Para a História da Filosofia, Schopenhauer diz ainda que ele poderia ter desenvolvido
vi oferecer uma crítica convincente à teologia especulativa hegeliana.
Mas ao identificar o sistema de Hegel à prova ontológica, Schopenhauer
determinou claramente ao menos seu inimigo: a visão teológica de mundo. Nesse
sentido, o filósofo irá se opor a toda tentativa de compreender o mundo teológicamente.
Seja a teologia racionalista, seja o panteísmo espinosista, a visão teológico-moral de
Kant ou a filosofia hegeliana do espírito absoluto, todas estarão na mira do discurso
crítico de Schopenhaue. Daí seu mandamen
O valor e a dignidade da filosofia consistem em desprezar todas as suposições infundadas e
aceitar como dado apenas aquilo que se deixa provar no mundo externo intuititivamente dado,
nas formas constitutivas de nosso intelecto e na consciência de si mesmo comum a todos. Por
isso mesmo ela deve permanecer cosmologia e não pode nunca se tornar teologia. Seu tema
deve se limitar ao mundo: dizer o que este é, em seu mais
aspectos, é tudo o que ela pode honestamente oferecer .
Pelo contrário, a filosofia do idealismo alemão, teria, segundo Schopenhauer,
apesar da crítica de Kant, permanecido teologia, pois fala apenas e sempre do Absoluto
e de Deus, de como ele é infinito em oposição ao mundo que, enquanto finito pode ser
desprezado
166
. Para Schopenhauer, Kant teria feito a asseveração de que embora a
existência de Deus tivesse que ficar sem prova seria, no entanto, igualmente impossível
provar seu contrário apenas para amenizar sua crítica à teologia especulativa. Mas ele
teria, na verdade, ignorado “com uma ingenuidade dissimulada”, o princípio “affirmanti
incumbit probatio (a prova cabe a quem afirma), assim como o fato de que o número
das coisas, cuja não existência não pode ser provada, é infinito”.
167
Nos Fragmentos
165
WWV, E. Kap. 48, SWD, II, p. 699-701. Vf. WN, Prefácio.
166
Cf. SG, § 20, SW, I, p. 40: “‘Então filosofamos a partir de cima: por meio das mais diversas deduções,
tendo em comum apenas seu tédio torturante, derivamos daquele [o absoluto] o mundo, nomeando este o
finito e aquele o infinito, - o que resulta numa agradável variação naquela tralha de palavras – e falamos
em geral apenas de Deus, explicamos como, por que, para que, pelo que, através de qual processo
voluntário e involuntário ele fez ou engendrou o mundo; se ele está fora ou dentro, etc; como se a
filosofia fosse teologia e não buscasse esclarecimento sobre o mundo, mas sobre Deus’”.
167
PP I, SW V, p. 138. Fragmentos para a História da Filosofia, Trad. Maria Lúcia Cacciola, São Paulo,
Iluminuras, 2003, p. 109. Cf. KKPh, SW II, p. 606, Trad. cit., p. 163.
211
argumentos para uma contraprova apagógica (demonstração por absurdo) - argumentos
que o autor não demora em avançar.
Em primeiro lugar, a existência de Deus não se harmoniza com o mal e o
tormento do mundo, e teve de sucumbir diante das argumentações de Voltaire e Hume.
O mundo visto de fora, por causa de sua ordenação, sua regularidade, poderia até
permitir a explicação teísta; mas visto de dentro, do ponto de vista subjetivo e moral,
não pode admiti-la: “A triste natureza de um mundo cujos seres vivos sobrevivem
devorando uns aos outros, a conseqüente miséria e medo de todos os viventes, a
quantidade e colossal grandeza de todos os males, a multiplicidade e inevitabilidade dos
sofrimentos que freqüentemente aumentam até a atrocidade, o peso da própria vida e
seu apressar-se para uma morte amarga não se conciliam honestamente com o fato de
que o mundo deva ser a obra da união da bondade infinita com a onisciência e
onipotência”.
168
Em segundo lugar, o teísmo tem com a moralidade de nossas ações uma dupla
conexão, uma a parte ante, com respeito às razões de nossos atos, à significação
transcendente de nossas ações, e outra a parte post, quer dizer, com respeito às
conseqüências de nossos atos, a nossa permanência depois da morte. No primeiro caso,
o teísmo acaba por entrar em conflito com a moral, pois ao conceber o homem como
criatura de Deus, suprime a liberdade e a imputabilidade das ações. No segundo caso, o
teísmo também dificilmente pode se conciliar com a idéia da imortalidade do homem,
pois torna difícil a admissão da eternidade de uma coisa criada já que é “extremamente
ousado admitir que, depois que alguém não tenha sido durante um tempo infinito, deva,
de agora em diante, durar por toda eternidade. Se eu, ao nascer, surgi do nada e fui
criado do nada, então é altamente verossímil que, na morte, vire nada de novo”.
169
Vê-se já, pelo teor desses argumentos, que Schopenhauer reconhece a
importância da prova físico-teológica da existência de Deus. Nem Hume, nem Kant,
entretanto, conferiam o estatuto de prova ao argumento teleológico, embora
reconhecessem seu papel relevante enquanto crença popular.
170
Schopenhauer
reconhece o valor das argumentações de Hume e Kant e as considera como
168
PP I, SW V, p. 138. Trad. cit., p. 109-110.
169
Ibid., p. 113.
170
Cf. Cacciola, M. L. Op. Cit., p. 94. Em Schopenhauer “a importancia conferida às provas
especulativas é, pois minimizada, já que, como o próprio Kant afirma, o alcance delas se reduzia às
querelas entre os especialistas, não chegando a constituir uma ameaça para a fé popular. É a ligação entre
a crença e a moral que faz com que Schopenhauer dê preferência à refutação das provas que teriam
ultrapassado o círculo dos filósofos devido a um maior poder de persuasão”. Ibid., p.96.
212
complementares. Ainda assim, reserva-se o direito de desenvolver seus próprios
argumentos a fim de banir qualquer tentativa de recuperação da teologia. É necessário
portanto, não apenas uma crítica teórica das provas da existência de Deus, mas um
discurso convincente contra a crença em Deus por razões morais.
É no contexto desse discurso que surge o “pessimismo” de Schopenhauer: ele
serve para provar, entre outras coisas, a impossibilidade de admissão da existência de
Deus. Por isso também o elogio às religiões asiáticas (hinduísmo e budismo). Elas
teriam visto o mundo tal como ele é dado na experiência intuitiva (como um véu de
Maia ilusório) sem trazer com isso a representação de um “ser necessário”. Da mesma
forma, o lado pessimista do cristianismo que vê o mundo como um “vale de lágrimas”
traz em si o germe que pode livrá-lo do teísmo. Daí a oposição entre as religiões
pessimistas e otimistas. Paradoxalmente, o que torna as religiões pessimistas superiores
às otimistas é justamente o fato de não pintarem o mundo como uma obra de Deus, mas
como o lugar do predomínio do mal. Trata-se, assim, de criticar não apenas o teísmo,
mas a representação cristã da teodicéia e do “melhor dos mundos possíveis”. E o
panteísmo é ainda mais insustentável, pois seria “uma passagem do improvado e
dificilmente pensável ao absurdo propriamente dito”
171
. Isto porque se poderíamos
ainda pensar, por mais improvável que fosse, que um ser onipotente e onisciente crie
um mundo sofrido, já seria absurdo pensar que o “próprio deus criador que sofre
infinitamente, e apenas nessa pequena terra, morre a cada segundo e isto por atos livres,
o que constitui um absurdo. Muito mais correto seria identificar o mundo com o
diabo”
172
.
Contra o clássico argumento da irrealidade do mal, ou de sua compensação pelo
bem maior do todo, Schopenhauer opõe a simples presença do mal, empiricamente
constatável, capaz de reduzir ao nada a aspiração de felicidade dos homens. Se
compararmos a soma de todas as alegrias possíveis que um homem pode desfrutar em
171
PP II, SW VI, p. 108.
172
Ibid, Idem. Schopenhauer continua: “como fez o venerável autor da Teologia alemã, ao afirmar na p.
93 de sua obra imortal (conforme o texto reconstruído, Stuttgart, 1851): ‘Por isto o espírito do mal e a
natureza são unos e onde a natureza não foi superada também o atroz inimigo não o foi’”. No capítulo 28
dos Complementos é dito: “ainda mais impróprio é o modo de expressar-se dos assim chamados
panteístas, cuja inteira filosofia consiste sobretudo em chamar ‘Deus’ a essa essência íntima do mundo
que lhes é desconhecida, com o que pretendem ter feito grande coisa. Assim o mundo seria então uma
teofania. Avistemos, porém, este mundo de seres continuamente necessitados, que simplesmente por isso,
se devoram uns aos outros durante o pouco tempo que vivem, passam sua existência sob a angústia e a
penúria, padecendo com freqüência de terríveis tormentos, até acabar nos braços da morte: quem vê tudo
isso diante dos olhos dará razão a Aristóteles quando ele diz: äh fðysiV daimonia, all§ ou jðeia esti
(natura daemonia est, non divina); de divinat., c. 2, p.463; Inclusive terá que confessar que um Deus
disposto a transformar-se em um tal mundo deveria estar possuído pelo diabo”. SW III, p. 398-9.
213
sua existência com a soma de todos os sofrimentos meramente possíveis que podem
atingi-lo, veremos que para a felicidade há um limite; para o sofrimento, não. Mas a
discussão sobre a proporção do bem e do mal no mundo é supérflua, pois o mal não
pode ser apagado de forma alguma, ou compensado por um bem simultâneo ou
posterior:
Com efeito, ainda que milhares tivessem vivido na felicidade e na volúpia, a angústia e a
agonia mortal de um só indivíduo não seriam suprimidas; e meu bem estar presente não desfaz
meus sofrimentos passados. Se houvesse no mundo cem vezes menos sofrimento do que há de
fato, ainda assim a simples existência do mal seria suficiente para fundar aquela verdade, que
se expressa de diversas formas, ainda que de forma sempre indireta, a saber, que nós temos
muito menos a felicitar que a nos atormentar sobre a existência do mundo; - que o não ser de
sua existência seria preferível – que é algo que, no fundo não deveria ser; etc
173
.
É verdade que a metafísica da vontade também resguarda a infinitude da
essência, a indestrutibilidade da vontade. Mas com isso, com a afirmação infinita da
vida se afirma também a perpetuação do sofrimento do qual não se escapa senão em
fugazes momentos como na contemplação artística. O ponto de vista moral, entretanto,
não se reconcilia com o sofrimento e conduz, assim, a uma negação completa da
vontade de viver que surge através do “conhecimento de seu conflito interno e de sua
nulidade essencial”
174
. Schopenhauer fala do “conflito da vontade consigo mesma”, ou
da “contradição” que se encontra no interior dessa própria vontade, conforme se assuma
o ponto de vista do indivíduo ou da totalidade. A vontade é justamente aquilo que não
coincide consigo mesma, é a expressão de uma falta, é por isso insaciável e infundada;
ela redunda no sofrimento e essa é sua manifestação: um mundo repleto de dores e sem
nenhum outro sentido senão o de que “valeria melhor não ter nascido”. Esse poderia ser
somente o ponto de vista daquele que não pode mais suportar o sofrimento que é
essencial à vida se Schopenhauer não apresentasse também esse movimento
especulativamente como o processo do autoconhecimento da própria vontade que a
levaria a sua autossupressão: “O mundo é uma tragédia na qual a vontade de viver se
conhece e da qual ela se afasta”
175
. O indivíduo que nega a vontade manifesta apenas
essa contradição real da vontade consigo mesma, pela qual ela mesma se suprime.
Dessa condição absurda, de ter que escolher entre afirmar-se e continuar sofrendo, ou
173
WWV, E., Cap. 46, SW, III, p. 661.
174
WWV § 68, SW II, p. 491.
175
“Die Welt ist ein Trauerspiel..., in welchem der Wille zum Leben sich erkenne und sich wende” (HN I,
203)
214
negar-se e suprimir-se,
176
o homem não tem a quem culpar pois se reconhece, na
ausência de um criador, responsável por seu próprio ser do qual, no entanto, não pode se
libertar. A contradição assume a forma do maior dilaceramento, pois agora o dever ser
se volta contra sua própria natureza: “já que somos, porém, aquilo que não deveríamos
ser, faremos também de modo necessário aquilo que não deveríamos fazer”.
177
176
“Qual é a finalidade que está para além de toda experiência, que a colocou [a vontade] nesta bem
desagradável alternativa (höchst mißliche Alternative), de aparecer num mundo em que reina o
sofrimento e a morte, ou de negar sua própria essência? WWV, E., Cap. 50, p. 737. Grifo nosso.
177
WWV, E., Cap. 48, SW, III, p. 691: “Weil wir aber sind was wir nicht seyn sollten, thun wir auch
nothwendig was wir nicht thun sollten”.
215
Capítulo 4. Versöhnung ou Erlösung?
À concepção de Schopenhauer sobre o caráter irremediável do sofrimento se
opõe àquela que Hegel apresenta, por exemplo, no prefácio à Fenomenologia do
Espírito. A morte, a dor, o sofrimento ou o negativo em geral é compreendido pelo
filósofo, à luz do sistema especulativo, como momentos do desdobrar do espírito, de
Deus como o absoluto, que é a vida do espírito que se mantém mesmo na morte.
A morte – se assim quisermos chamar essa inefetividade (Unwirklichkeit) – é a coisa mais
terrível; e suster o que está morto requer a força máxima. A beleza sem-força detesta o
entendimento porque lhe cobra o que não tem condições de cumprir. Mas não é a vida que se
atemoriza ante a morte e se conserva intacta da devastação, mas é a vida que suporta a morte e
nela se conserva que é a vida do espírito. O espírito só alcança sua verdade à medida que se
encontra a si mesmo no dilaceramento absoluto. Ele não é essa potência como o positivo que se
afasta do negativo – como ao dizer de alguma coisa que é nula ou falsa, liquidamos com ela e
passamos a outro assunto. Ao contrário, o espírito só é essa potência enquanto encara
diretamente o negativo e se demora junto dele. Esse demorar-se é o poder mágico que converte
o negativo em ser. Trata-se do mesmo poder que acima se denominou sujeito, e que ao dar, em
seu elemento, ser-aí à determinidade, suprassume a imediatez abstrata, quer dizer, a imediatez
que é apenas essente em geral. Portanto, o sujeito é a substância verdadeira, o ser ou a
imediatez – que não tem fora de si a mediação, mas é a mediação absoluta
178
.
Ao longo deste trabalho vimos como Hegel procura pensar o negativo no interior
mesmo do absoluto. Isso significa superar a visão de Deus como universalidade abstrata
contraposta à realidade particular assim como a apreensão oposta de Deus como a
substância inerte. Com efeito, trata-se da tentativa de superar as limitações da apreensão
do absoluto da metafísica do entendimento, e recuperar o conhecimento do absoluto
bloqueado pela crítica kantiana do conhecimento. Para isso, Hegel também nega o
“intuir intelectual” de Schelling pelo qual se recairia numa simplicidade em que a
efetividade se apresentaria de maneira abstrata, inefetiva
179
. Por isso, para Hegel, “a
178
PhG, W3, p. 36 (trad. I, p. 38). Ao analisar esse trecho, Kojève extrai as seguintes conseqüências: “a
aceitação sem reservas da morte, ou da finitude humana consciente de si, é a fonte última de todo o
pensamento hegeliano, que extrai todas as conseqüências, mesmo as mais longínquas, da existência desse
fato. Segundo esse pensamento, é ao aceitar voluntariamente o risco de morte numa luta por puro
prestígio que o homem aparece pela primeira vez no mundo natural; e é ao resignar-se à morte, ao revelá-
la pelo discurso, que o homem chega finalmente ao Saber absoluto ou à sabedoria, concluindo assim a
história. Pois é partindo da idéia de morte que Hegel elabora sua ciência ou a filosofia absoluta, a única
capaz de explicar filosoficamente a existência, no mundo, de um ser finito consciente de sua finitude e
dela dispondo a seu bel-prazer”. Introdução à Leitura de Hegel, Trad. de Estela dos Santos Abreu, Rio de
Janeiro, Contraponto: Eduerj, 2002, p. 504-5.
179
Cf. PhG W3, p. 23.
216
substância viva é o ser, que na verdade é sujeito, ou – o que significa o mesmo – que é
na verdade efetivo, mas só à medida que é o movimento do pôr-se-a-si-mesmo, ou a
mediação consigo mesmo do tornar-se-outro”.
180
Compreender a substância também
como sujeito significa tornar a negatividade um momento da vida de Deus. Esta é
exatamente a verdade da representação cristã do mundo, pela qual ela coincinde, em seu
conteúdo, com o conceito da filosofia especulativa.
A vida de Deus e o conhecimento divino bem que podem exprimir-se como um jogo de amor
consigo mesmo; mas é uma idéia que baixa ao nível da edificação e até da insipidez quando lhe
falta o sério, a dor, a paciência e o trabalho do negativo. De certo, a vida de Deus é, em si,
tranqüila igualdade e unidade consigo mesma; não lida seriamente com o ser-Outro e a
alienação, nem tampouco como o superar (Uberwinden) dessa alienação. Mas esse em-si é a
universalidade abstrata, que não leva em conta sua natureza de ser-para-si e, portanto, o
movimento da forma em geral. (...) Justamente por ser a forma tão essencial à essência quanto
esta é essencial a si mesma, não se pode apreender e exprimir a essência como essência apenas,
isto é, como substância imediata ou pura auto-intuição do divino. Deve exprimir-se igualmente
como forma e em toda a riqueza da forma desenvolvida, pois só assim a essência é captada e
expressa como algo efetivo
181
.
Vemos assim que o tema da conciliação não aparece como um “otimismo”
superficial de Hegel, mas decorre do problema especulativo da autodiferenciação da
substância absoluta. Pensado como sujeito, o absoluto inclui em si a cisão, a diferença e
a negatividade, e não é mais pensado como um algo abstrato para além de seu outro. Da
mesma forma, o mal. Se “só o absoluto é verdadeiro”, então o mal não pode ser algo à
parte, independente do absoluto, ele é apenas um momento seu. A conciliação se dá
quando se olha o perecível com o olhar do Conceito e se supera a melancolia que resulta
da absolutização do finito
182
. Por isso, a filosofia não é uma consolação diante do mal,
mas a apreensão da realidade efetiva da conciliação:
A filosofia quer conhecer o conteúdo, a realidade efetiva da Idéia divina e justificar a realidade
menosprezada. A razão é efetivamente a percepção da obra divina. O que habitualmente se
chama realidade efetiva (Wirklichkeit) é considerada pela filosofia como algo de corrupto, que
pode decerto aparecer, mas em si e por si não é real. Semelhante discernimento contém o que
se pode chamar a consolação face à representação da infelicidade absoluta, da loucura do que
aconteceu. Contudo, tal consolação é apenas o substituto de um mal que não deveria ter
acontecido, e o seu lar é o finito. A filosofia não é, pois, uma consolação; é mais do que isso,
180
PhG, W3, p. 23 (trad. I, p. 30).
181
Ibid, Idem.
182
Cf. WdL, W5, p. 139.
217
reconcilia e transfigura o real, que se afigura injusto, em racional, apresenta-o como aquilo que
está fundado na própria Idéia e com a razão se deve satisfazer
183
.
A oposição entre Hegel e Schopenhauer parte assim de uma compreensão
diversa do modo pelo qual se dá o autoconhecimento daquilo que se apresenta no
mundo. Para Hegel, o negativo, o mal e a diferença são momentos necessários da
manifestação do absoluto, e são conciliados no “culto contínuo” que é a filosofia e a
religião cristã
184
. Para Schopenhauer, a dor, o sofrimento, a individuação são cisões
essenciais à vontade, das quais o atormentado indivíduo busca a redenção que a
filosofia se limita a explicar e a religião explicita. Algumas interpretações tentam
assinalar um momento de conciliação na obra de Schopenhauer, seja na contemplação
artística em que sujeito e objeto coincidem e a vontade alcançaria a máxima expressão
de si, ou na redenção originada pela negação da vontade, na qual a vontade única teria
sua manifestação adequada
185
. Pela interpretação exposta acima da teoria da negação da
vontade de viver, porém, é possível afirmar que a palavra última da filosofia de
Schopenhauer é realmente uma negação da possibilidade mesma de conciliação no
mundo presente. Enquanto em Hegel temos a tentativa de conciliar o conceito concreto
do infinito, seja ele o “espírito”, o “absoluto” ou “Deus” – como vimos, uma só palavra
ou definição não poderia definir o que Hegel entende por isso que também é a “idéia
absoluta” – com a realidade finita, em Schopenhauer o mundo é expressão de uma
contradição não resolvida da própria vontade consigo mesma
186
. Por isso, a redenção só
183
VG, p. 78; trad. port., p. 71. “Compreendamos este imperativo: é preciso ligar a negatividade do tempo
à negatividade do Conceito; o poder do tempo, que se desenha de início como perda e ruína, deve ser
subordinado ao poder do Conceito, onde a perda é metamorfoseada em ganho, onde o que desaparece dá
testemunho de sua pertinência à História”. Arantes, P. Hegel: A ordem do tempo, p. 211. Da mesma
forma, a conciliação deve se dar no plano da ação ética quando a consciência moral (moralisches
Bewußtsein) julgadora se une à consciência ativa convicta de si mesma (Gewissen): “As duas formas do
Eu certo de si devem reconhecer, cada qual, seu limite: a consciência ativa deve descobrir nela o pecado
necessário implicado em sua finitude, e a consciência ativa deve descobrir nela o pecado necessário
implicado em sua finitude, e a consciência de si universal deve aperceber essa mesma finitude em sua
separação com o finito. A reconciliação do espírito finito com o espírito infinito – embora falsamente
infinito porque separado do finito – é a dialética suprema do espírito, a que exprime a reconciliação viva
no seio do mais profundo dilaceramento. Tal é a dialética do perdão dos pecados, na qual o espírito se
torna para si mesmo espírito absoluto, e não é espírito absoluto senão nesse vir-a-ser” Hyppolite, J.
Gênese e Estrutura, p. 545.
184
“Nessa medida a filosofia é agora um culto contínuo; ela tem como objeto o verdadeiro, o verdadeiro
em sua figura suprema, enquanto espírito absoluto, enquanto Deus, e ela consiste não somente em saber
essa verdade em sua forma simples, enquanto Deus, mas também em saber o racional em suas obras,
enquanto produzidas por Deus e dotadas de razão”. VPhRel I, (1827), p. 334-5; trad. esp., p. 316.
185
É possível citar vários comentadores que vão nessa direção como R. Malter (cf. acima nota 120) e
Horkheimer (em alguns textos; cf. Apêndice I). Cf. Kossler, M. Substantielles Wissen, p. 143 e ss.
186
A expressão contradição não resolvida é, porém, de Hegel: “a natureza é divina em si, na idéia; mas,
como é, não corresponde seu ser a seu conceito; é antes a contradição não resolvida”. Enz, § 248, SW 9,
218
é possível por uma “conversão” da vontade que poderia dar lugar a uma outra ordenação
da existência.
Nesse sentido, o resultado paradoxal de nosso percurso é que a redução da
filosofia à imanência do mundo em Schopenhauer conduz à abertura para uma possível
“realidade” fora do mundo, devido ao esgotamento de sentido possível neste mundo. Já
em Hegel, a conciliação do absoluto com a realidade efetiva abole toda representação de
um transcendente fora do mundo. A miragem do absoluto se desfaz e se abre então a
possibilidade de uma compreensão da realidade histórica concreta. Isso esclarece a
circunstância aparentemente paradoxal pela qual a filosofia hegeliana dá ocasião a
formas de pensamento materialistas preocupadas com a realidade histórica concreta.
Esse pensamento assume a tarefa de pensar o “nada absoluto” e encontrar ainda assim a
possibilidade de criação de um novo sentido. Já a filosofia de Schopenhauer, tendo
esvaziado todo o sentido possível para a realidade, só poderia inaugurar a questão do
niilismo em sua versão mais radical. Por isso, Nietzsche elogia Schopenhauer como
aquele que pela primeira vez colocou com todo seu peso o “problema da existência”.
Ao afastarmos de nós, dessa forma, a interpretação cristã e ao condenarmos seu “sentido”
como uma falsificação de moeda, logo vem a nós, de uma maneira terrível, a pergunta de
Schopenhauer: Tem então a existência, em geral, um sentido? – essa pergunta que ainda levará
alguns séculos para simplesmente ser ouvida completamente e em todas as suas
profundezas
187
.
O juízo de Nietzsche a respeito da solução de Schopenhauer ao “problema da
existência” foi, como se sabe, negativo
188
. Não se pode dizer, entretanto, que a filosofia
de Schopenhauer tenha recebido maior aprovação da parte de seus leitores mais
receptivos. Em geral, não se tem notícia de uma aceitação sem reservas da filosofia de
Schopenhauer, e mesmo aqueles que são considerados os seus herdeiros não assumem a
filosofia do mestre sem uma série de reservas
189
. Numa comparação com Hegel, não
podemos deixar de notar que a atitude da negação da vontade corresponderia àquela da
“bela alma” que na Fenomenologia permanece mergulhada na interioridade de sua
p. 26; trad., p. 30. Já Schopenhauer fala da “desunião essencial da vontade consigo mesma” (WWV, § 27,
SW II, p. 175), ou da “contradição da natureza consigo mesma”.
187
Nietzsche, F. A Gaia Ciência, § 357, In: Obras incompletas. Tradução de Rubens Rodrigues Torres
Filho. In: Coleção “Os pensadores”. São Paulo, Abril Cultural, 3
ª
ed., 1983, p. 220.
188
“O que o próprio Schopenhauer respondeu a essa pergunta foi – perdoem-me – algo precipitado,
juvenil, apenas um compromisso, um parar e ficar entalado justamente nas perspectivas morais cristiano-
ascéticas, às quais, com a crença em Deus, foi retirada a crença... Mas ele colocou a pergunta [...]” Op.
Cit, Idem, Ibidem.
189
Ver os dois apêndices a este trabalho.
219
consciência de si, sem aceitar a reconciliação com o mundo externo. Sua negação
porque abstrata é então sem efetividade, pois vê diante de si apenas o “puro nada” (das
leere Nichts)
190
. Por outro lado, contudo, sua postura no final negativa tem o valor
crítico da recusa do falso consolo: a fragilidade do sistema especulativo e do
conhecimento humano deve dar lugar a uma desconfiança em relação a qualquer
conciliação meramente pensada. Por isso vale ainda o juízo de Horkheimer, que serviu
como leitmotiv para todo o nosso percurso:
é condições em que se faz possível tal
191
Hegel, tão odiado por Schopenhauer não está tão distante dele: a vida do conceito, do Absoluto
hegeliano, é a contradição, o negativo e a dor; o que em Hegel se chama conceito – o sistema
das determinações espirituais que se entregam mutuamente, que se encontram em movimento
eterno – não é senão o surgir e perecer daquele que o concebe; o grande ensinamento da
filosofia hegeliana reside justamente em que o conceito não existe fora e independentemente
do passageiro que se finca nele. O consolo que seu “desalmado otimismo” permite prodigar
segue sendo, em último caso, a intelecção (Einsicht) do necessário entretecimento dos
conceitos no todo, naquela frágil unidade que se chama sistema. O reconhecimento de
estruturas lógicas na natureza e no mundo humano a que se chega no caso de Hegel não está
tão distante da contemplação estética e filosófica de Schopenhauer, como a ele mesmo lhe
parecia (...) A nuance em que Schopenhauer vai mais além de Hegel na liquidação do falso
consolo se encontra em sua recusa a reconhecer a consistência do sistema que abarca o mundo
e a valer-se do desenvolvimento da humanidade at as
intelecção filosófica como razão para divinizar o ser .
O que leva, portanto, Schopenhauer a distanciar-se de Hegel é a negação desse
falso consolo, isto é, quando ele nega que o sistema que abarca o mundo seja
consistente, permitindo que a humanidade se desenvolva até o estado de reconhecer que
o perecer e o permanecer, a morte do singular e o ser do universal sejam a mesma coisa.
Pois mesmo a totalidade social e as instituições em que o espírito chega a si mesmo
190
PhG, W3, p. 491. Segundo Hyppolite, a figura da “bela alma” se remete à obra de Schiller Von Anmut
und Würde de 1793 e ao Livro VI dos Anos de aprendizado de Wilhelm Meister (Cf. Gênese e Estrutura,
p. 541). É curioso notar que o próprio Schopenhauer se refere às Confissões de uma bela alma como
exemplo da negação da vontade (Cf. WWV, § 68, SW II, p. 455). Hegel não pensava apenas nas figuras
literárias mas também nos poetas românticos suicidas como Novalis e Kleist (Cf. Siep, L. Der Weg der
Phänomenologie des Geistes, p. 214 e Rosa Filho, Silvio. Eclipse da Moralidade, p. 131 e seguintes). Do
lado de Schopenhauer, a figura correspondente da bela alma suicida seria seu discípulo Philipp
Mainländer, apesar da recusa do suicídio da parte do primeiro (Cf. apêndice II). Seja como for, para
Kossler em seu resultado final, Schopenhauer é assim “ainda mais intelectualista que Hegel”.
Substantielles Wissen, p. 173. Para o autor então, deveríamos recuar até o momento da compaixão e
localizar ali o momento de conciliação do saber e do agir. Cf. Ibid, Idem.
191
Horkheimer, Max. Voträge und Aufzeichnungen 1949-1973. In: Gesammelte Schriften. Org. A.
Schmidt. Frankfurt. Fischer Taschenbuch Verlag, 1985, vol. VI, p. 134-5. “La Actualidad de
Schopenhauer”. In: T. W. Adorno e M. Horkheimmer, Sociologica, Madrid, Taurus, 1971, p. 178-9.
220
como a arte e a filosofia, estão sujeitas à ruina. Pois o espírito absoluto está ligado ao
espírito subjetivo e objetivo dos povos que estão votados à caducidade. Por isso, “a
genial energia com a qual Hegel, o último grande sistemático da filosofia, salvou a
positividade do absoluto ao fazê-lo assumir a dor e a morte, naufraga ante a
circunstância de que a intelecção, apesar de tudo, está ligada ao sujeito vivo e perece
om el
ê-lo como inscrito na
istória. O absurdo está sempre à espreita de uma cidade feliz.
c e”
192
.
Alfred Schmidt, por sua vez, aluno de Horkheimer, assinala a impossibilidade de
uma paz definitiva no sistema de Schopenhauer. Como a filosofia de Schopenhauer
oscila, como ele próprio afirma, entre o saber total (Allwissenheit) dos dogmáticos e o
desespero da crítica kantiana, ela coloca o problema da verdade em sua radicalidade: “O
pathos da verdade em Schopenhauer está misturado (verschwistert) com a visão
pessimista de que a verdade, ao contrário da convicção de Hegel, não é a potência
histórico-mundial que se põe a si, mas permanece continuamente impotente”.
193
Marcado pela ausência de um saber absoluto e pela negatividade com que descreve o
que conhece, Schopenhauer termina antes por abolir as instâncias de valor: “A
desvalorização do indivíduo em Schopenhauer não é – como em Hegel e Espinosa –
ligado a intenção de dotar de valor absoluto o todo do mundo, antes mostra a falta de
valor do principio do mundo mesmo”.
194
A atualidade de Schopenhauer residiria então
na consciência da impotência da verdade, na reflexão sobre seu caráter transitório que
não permite encontrar sua solução em nenhuma dialética conciliadora. Schopenhauer
teve o mérito de apreender o mal absoluto presente na história, mesmo que sua
abordagem ainda metafísica não tenha conseguido reconhec
h
192
Ibid.,p. 135, trad. esp., p. 179.
193
Idee und Weltwille, p. 116.
194
Die Warheit im Gewande der Lüge, p. 111.
221
Nichts – woraus es resultiert” – Última e penúltima palavra
O caráter especulativo dos pensamentos de Hegel e Schopenhauer se revela
também na reflexão que ambos empreendem do conceito de nada. Aqui se mostra mais
uma diferença fundamental, pois enquanto o Nada é para Schopenhauer a última palavra
da filosofia – pelo menos para aqueles que só podem apreender abstratamente o
processo da negação da vontade, para Hegel, o nada, embora resultado da dissolução
das ilusões da consciência, é também recomeço a partir do qual se encaminha novos
processos de determinação. Para ambos se coloca então a necessidade de uma reflexão
sobre o esvaziamento e a vacuidade das pretensões do indivíduo.
Assim como critica o ceticismo que se detém no nada de verdade que resulta da
dissolução das falsas suposições da consciência natural, da mesma forma, Hegel se opõe
ao niilismo que julga incompleto da filosofia da reflexão: “a primeira coisa na filosofia
é, contudo, conhecer o nada absoluto, ao qual conduz tão pouco a filosofia fichteana
quanto mais a jacobiana a abomina por isso. Contra isso, ambos estão no nada
contraposto à filosofia; o finito, a aparição, têm para ambos realidade absoluta; o
absoluto e o eterno são para ambos o nada para o conhecer”
195
. Reconhecer o nada
absoluto não é, para Hegel, se deter na nulidade das coisas finitas, já que a recusa a
aceitar uma existência verdadeira ao finito constitui o primeiro dever da filosofia. Toda
a filosofia da finitude será assim sempre a expressão desse “niilismo inacabado,
portanto infeliz, corolário de toda ‘visão moral de mundo’... ( a dialética hegeliana, por
sua vez, terá a segurança do niilismo acabado e, portanto, revertido”
196
. Ao
experimentar a sua perda, a consciência se reconcilia no mesmo movimento que a fez
sofrer “a fratura do mais íntimo”, reencontrando a liberdade:
O conceito puro ou a infinitude como abismo do nada, em que imerge todo o ser, deve
descrever em sua pureza, como momento da idéia suprema, e apenas como momento, a dor
suprema que esteve antes historicamente apenas na cultura e como sensação em que se funda a
religião da época moderna – a sensação de que Deus ele mesmo está morto (o que foi, por
assim dizer, empiricamente expresso por Pascal: “la nature est telle qu´elle marque partout un
Dieu perdu et dans l´homme et hors de l´homme) –, e fornecer assim uma existência histórica
àquilo que era de algum modo ou preceito moral de um sacrifício do ser empírico ou o conceito
de abstração formal e, portanto, restabelecer para a filosofia a idéia da absoluta liberdade e,
desse modo, o sofrimento absoluto ou a sexta-feira santa especulativa, que foi além disso
195
GuW, W 2, p. 409; trad. br., p. 150-1. Cf. PhG, W 3, p. 72-3.
196
Arantes, Paulo. Hegel. A ordem do tempo, p. 320.
222
histórica e a partir de cuja rigidez apenas pode e deve ressuscitar a suprema totalidade em toda
a sua seriedade e desde a sua base mais profunda, ao mesmo tempo abarcando tudo na sua
forma da liberdade mais serena
197
.
Já Schopenhauer preferiu tirar todas as conseqüências desconcertantes que a
filosofia da “visão moral de mundo” prometia e que Hegel deplorava. O nada se não
chegou a tomar o lugar do absoluto – talvez este tenha sido reservado para a figura
menos abstrata do sofrimento – ao menos foi alçado ao estatuto de última palavra.
Contudo, para nós que empreendemos essa pequena odisséia por dentro dos textos dos
grandes filósofos alemães, o que resta não é certamente o nada – ou o silêncio, o calar,
essa figura atual da falta de conteúdo – mas a riqueza de um conteúdo que teima em não
se esgotar.
197
GuW, W 2, p. 409; trad. br., p. 173-4.
Apêndice I:
Religião e Filosofia em Horkheimer e Schopenhauer
O objetivo deste texto complementar é expor a abordagem de Max Horkheimer
sobre a relação entre religião e filosofia à luz de sua recepção da filosofia de
Schopenhauer, abordagem especialmente presente em uma conferência de 1967 que tem
o título “Religion und Philosophie”, assim como em outras conferências que o autor
apresentou na década de 60 em colóquios organizados pela “Schopenhauer
Gesellschaft”.
O pensamento de Schopenhauer em relação à ciência e à religião de 1971 foi o
último de cinco textos que Horkheimer publicou em vida sobre a filosofia de
Schopenhauer. Além dele, Horkheimer pronunciou outras quatro conferências na sede
da Schopenhauer Gesellschaft em Frankfurt: Schopenhauer e a sociedade (1955), A
atualidade de Schopenhauer (1961), Religião e Filosofia (1967) e Pessimismo hoje
(1969). Do primeiro ao último texto é possível notar algumas diferenças fundamentais
na abordagem de Horkheimer, pois se fica clara a vinculação entre os primeiros textos e
as reflexões críticas sobre a “razão instrumental” e a “sociedade administrada”,
marcantes no pensamento de Horkheimer do pós-guerra, nos últimos é evidente o
parentesco com os temas da assim chamada filosofia tardia de Horkheimer que flerta
com uma recuperação da teologia por meio da temática do “anseio pelo inteiramente
outro”. Para compreender o que está em jogo nesses textos temos, portanto, que ver
como o motivo do pessimismo se desenvolve ao longo da obra de Horkheimer.
Seguindo a indicação de F. Werner Veauthier, podemos esboçar ao menos cinco
posições ao longo do desenvolvimento intelectual de Horkheimer nas quais o “motivo
do pessimismo” se faz presente.
1
Em primeiro lugar, posições fundamentalmente
pessimistas formam desde o início um elemento constante no pensamento de
1
Cf. “Zur Transformation der Pessimismus-Motive im Denken Max Horkheimers” In: Schopenhauer
Jahrbuch, nº 73, Frankfurt am Main, 1988, pp. 593-607. Para Veauthier, o “motivo pessimista” ou
“motivo schopenhaueriano”, efetivamente presente em todas as fases do pensamento de Horkheimer é “o
interesse no sofrimento humano, em sua causa e na possibilidade de sua supressão. ‘Pois, que milhares
tenham vivido na felicidade e no bem-estar, isso não suprime a angústia e o martírio de um único’. Essa
convicção de Schopenhauer ficou profundamente impregnada na filosofia social de Horkheimer, mesmo
se ele não pudesse compartilhar de sua suposição metafísica fundamental de um querer existir que causa o
sofrimento” Idem, p. 593. Deve-se entender aqui por motivo, segundo Veauthier, algo diferente de
“argumento”, o que não quer dizer que ele seja irredutível a qualquer verificação racional. Ele é, ao
mesmo tempo, ponto de partida (Beweg-Grund) do pensamento, mas também causa real do
desenvolvimento social. Cf. Idem, p. 595.
224
Horkheimer, por mais que se queira ver o pessimismo da fase tardia como uma radical
mudança em relação às posturas críticas da década de 30. Esse elemento se refere ao
caráter infundado da busca da felicidade, do sofrimento da natureza, das dores do
passado e da transitoriedade do presente. Por isso, apesar de todo otimismo que possa
ter o materialismo com relação à mudança das condições, “apesar de toda a valorização
da felicidade que brota do esforço por mudança e da solidariedade, ele carrega consigo
um traço pessimista. A injustiça passada é irremediável. Os sofrimentos das gerações
passadas não encontram nenhuma compensação”.
2
O pessimismo aqui não se refere a
uma teoria catastrófica, apocalíptica em relação ao presente e ao futuro, mas a fatos do
passado, algo que não pode ser mais resgatado. Essa experiência do pessimismo não
contradiz a convicção no caráter socialmente condicionado do bem estar humano, pois
também o sofrimento é causado por relações sociais e como tal deve ser combatido.
Nesse sentido, o pessimismo também se compreende como socialmente condicionado,
pois diz respeito a uma sociedade em que a solidariedade com aqueles que ela exclui,
com os pobres e injustiçados, é negada: o pessimismo é assim negação da solidariedade
negada. Se é assim, então o pessimismo de Horkheimer se distancia, pelo menos em sua
fase inicial, de um pessimismo autocomplacente referido ao próprio sujeito,
constantemente qualificado de “romântico”, pois tenta unir a convicção de que “o
núcleo mesmo da vida é o sofrimento e a morte”, com a solidariedade presente na crítica
social que visa a emancipação. Seria então essa convicção que justificaria a afirmação
posterior de Horkheimer: “O pessimismo metafísico, momento implícito em todo
pensamento genuinamente materialista, me foi familiar desde sempre. À obra de
Schopenhauer devo meu primeiro contato com a filosofia: a relação com a doutrina de
Hegel e de Marx, o desejo de compreender e de mudar a realidade social não
resgataram, apesar do contraste político, minha experiência com a sua filosofia”
3
.
2
Materialismo e Metafísica. In: Teoria Crítica I, Trad. de Hilde Cohn, São Paulo: Perspectiva, 2006, p.
43. Cf. Werner Post, Kritische Theorie und metaphysischer Pessimismus. Zum Spätwerk Max
Horkheimers: München, 1971, p. 37.
3
Prefácio para a reedição de Teoria Crítica I (1968), tradução de Hilde Cohn, São Paulo: Perspectiva,
2006, p. 4. Este prefácio, escrito em 1968, já indica, porém, algumas diferenças fundamentais sobre a
questão da relação entre teoria e prática no pensamento de Horkheimer. Assim, diz o autor na seqüência
do texto citado: “A sociedade melhor, a sociedade justa, é uma meta que se mistura com a idéia de culpa.
Desde o fim da guerra, porém, a meta mudou. A sociedade se encontra em nova fase. Característicos da
estrutura da camada superior já não são os capitalistas concorrentes, mas o empresariado, as associações,
os comitês; a situação material dos dependentes suscita tendências políticas e psicológicas diferentes das
do antigo proletariado”. (Idem, Ibidem). Essa passagem revela claramente o quanto as mudanças
fundamentais entre as abordagens sobre a relação entre a teoria e a prática no pensamento de Horkheimer
dependem de sua visão do capitalismo e da democracia no pós-guerra. Evidentemente, esse não será o
225
Um segundo momento seria aquele caracterizado pelos textos do pós-guerra que
se dirigem especialmente a uma crítica da razão: a Dialética do Esclarecimento (em
parceria com Adorno) e o Eclipse da razão. A idéia do esclarecimento, essencial para o
processo emancipatório é considerada como um fracasso e Horkheimer afirma a posição
pessimista de um declínio latente da razão. Trata-se agora do tema da perversão da
razão que ao invés de levar à emancipação do homem conduziu a uma dominação da
natureza e a um mundo totalmente administrado que tem como conseqüências o declínio
do indivíduo e a revolta da natureza. Esse novo diagnóstico potencializa o motivo
pessimista, pois agora justamente aquela instância que poderia levar o homem à
compreensão das injustiças e assim dar o primeiro passo para a transformação das
relações sociais injustas, é posta em cheque. Embora não chegue a afirmar um
pessimismo metafísico, que estabeleceria causas ahistóricas e intemporais para o mal no
mundo – pelo contrário, Horkheimer recusa terminantemente o recurso a tal
argumentação – o autor não deixa de refletir sobre os fundamentos que levaram a uma
tal situação. O que toma forma no pensamento de Horkheimer agora não é somente um
pessimismo com relação à técnica, uma tecnofobia, mas a idéia segundo a qual a razão
subjetiva, que transforma a razão num mero instrumento, corrói de maneira fatal a razão
objetiva. Disso é conseqüência a falência dos sistemas objetivos da razão, que ainda
tentavam dar voz às necessidades mais essenciais do homem e da natureza e em seu
lugar entra o mero cálculo e a transformação dos meios em fins. Esse talvez seja o
momento mais importante da leitura horkheimiana de Schopenhauer, pois sem dúvida
este último serviu de inspiração ao primeiro na medida em que Schopenhauer já
considerava a razão, desvinculada de qualquer preocupação com o conhecimento
objetivo, como um mero instrumento para servir à vontade de viver.
4
Como conseqüência dessa situação e em contraste com o crescimento
econômico e o estado de bem-estar social, é possível notar nos apontamentos tardios
(Notizen: 1949-1973) uma expansão do sentimento de desilusão com as promessas
emancipadoras da atividade de crítica e transformação da sociedade. Este seria o
terceiro momento do pessimismo em Horkheimer. O retrocesso da autonomia do sujeito
individual, o esvanecimento da fantasia e da criatividade expressam uma situação social
indigna e niveladora. Neste cenário é que se dá uma volta aos textos de Schopenhauer e
tema desse breve comentário, que visa apenas esboçar um quadro sobre os pontos principais da leitura de
Horkheimer sobre Schopenhauer ao longo de sua obra.
4
Cf. Chiarello, Maurício Garcia. Das Lágrimas das coisas. Estudo sobre o conceito de natureza em Max
Horkheimer. Campinas, Editora da Unicamp, 2001, p. 261 e seguintes.
226
uma desconfiança com relação ao pensamento dialético de Hegel e Marx. É o que se
pode notar nas conferências Schopenhauer e a sociedade (1955), e A atualidade de
Schopenhauer (1961). Inicialmente, o autor de Teoria Tradicional e Teoria Crítica
prefere ressaltar os aspectos inconformistas da moral schopenhaueriana e seu caráter
crítico em relação ao idealismo de Hegel. A atualidade e o valor do radicalismo moral
de Schopenhauer, segundo Horkheimer, consistem em sua insistente recusa de qualquer
conciliação idealista em que o sofrimento encontre sua justificação. Dessa atitude é
sintomática sua concepção nada divina do Estado que, antes de ser uma instituição
moral, repousa no “egoísmo esclarecido” dos indivíduos, não sendo mais que uma
instituição protetora, devido aos ataques externos e internos. Assim, Schopenhauer não
teria “endeusado nada, nem o Estado nem a técnica; o desenvolvimento do intelecto se
apóia no desenvolvimento das necessidades; e os promotores máximos das ciências
foram a fome, o instinto de poder e a guerra: a fábula idealista acerca da astúcia da
razão, mediante a qual o horror do passado se vê tanto embelezado como mitigado
graças ao bom final, deixa que se filtre a verdade sobre o sangue e a miséria que
acompanham os triunfos da sociedade, e o resto é ideologia”.
5
A revalorização que Horkheimer oferece do pensamento de Schopenhauer se
deve ao reconhecimento de que nenhuma construção teórica pode estar acima do
sofrimento de cada criatura num mundo que prossegue dominado pela contradição e
pela dor. É assim que ele julga Schopenhauer como um “pessimista clarividente” que
acabou sendo confirmado pela história no século XX; sua negação do curso do mundo é
o reconhecimento da experiência de que nenhuma astúcia da razão pode justificar um
mundo absurdo. A violência da história faz o homem recuar diante de qualquer
esperança de emancipação e o que tem lugar então é a experiência do horror histórico:
“a doutrina de Schopenhauer põe ante a vista do que se trata: os interesses materiais, a luta pela
existência, o bem-estar e o poder formam o motor; a história o resultado. Schopenhauer não
racionalizou filosoficamente a experiência do horror e da injustiça que se dá até nos países que são
governados do modo mais humano; teve medo da história; lhe repugnavam as mudanças políticas
violentas que tentaram levar a cabo na época contemporânea com ajuda de uma exaltação
nacionalista”.
6
5
Horkheimer, Max. Voträge und Aufzeichnungen 1949-1973. In: Gesammelte Schriften. Org. A.
Schmidt. Frankfurt. Fischer Taschenbuch Verlag, 1985, vol. 7, p. 124-5. “Schopenhauer y la Sociedad”.
In: T. W. Adorno e M. Horkheimmer, Sociologica, Madrid: Taurus, 1971, p. 168.
6
Idem., p. 125. (trad. Esp. p. 169).
227
É assim que Horkheimer, em especial a partir dos anos 60, insiste, contra Hegel
e contra o idealismo de qualquer espécie, na inadequação essencial entre o conceito e
seu objeto. O espírito deve cobrar consciência de que o mundo vive dominado pela
contradição e pela dor, mas ao chegar a esse ponto, deve sucumbir, e não erigir-se em
sistema de pensamento capaz de salvar a positividade do absoluto, nele incluindo a
tortura e a morte.
7
Estabelece-se então a tarefa da filosofia de dar voz ao sofrimento, e a
recusa de conciliar a dor com qualquer falsa totalidade. A filosofia deve expressar,
portanto, uma experiência, e essa experiência é a do sofrimento pois somente a
contemplação do mal pode fundar a solidariedade e o impulso de pôr-lhe fim. Maurício
Chiarello mostra como a obra de Schopenhauer passa a ter um papel fundamental no
pensamento de Horkheimer, quando esse se desencanta com as promessas
emancipadoras da dialética. O materialismo dialético teria falhado ao representar o Bem
supremo sobre a face da terra como realização não somente possível no decorrer do
processo histórico, mas mesmo logicamente necessária. Chiarello resume a
aproximação de Horkheimer a Schopenhauer:
“Atual é Schopenhauer, assinala Horkheimer, porque hoje, mais ainda do que em seu tempo, o
progresso da civilização demonstrou ser aquilo que, em sua obra, já se desmascarava em sentenças
tão inconformadas quanto amargas. Saltava-lhe aos olhos que a marcha triunfal do progresso não
passava da manifestação da Vontade inconsciente de si mesma em sua crueza irracional e
autodevoradora. Repetirá, incansável, que o processo histórico é uma eterna repetição do mesmo
com outros nomes e sob outras roupagens. E contudo, nessa clarividência esteve sozinho. Contra
toda sua época, que em uníssono idolatrou a história como contínua e necessária progressão rumo
ao melhor, Schopenhauer escreveu como um profeta a maldizer seu tempo, enquanto seus
contemporâneos deixavam seu vaticínio cair no vazio. Seu grande valor: o de não ter sucumbido a
nenhuma tentativa de racionalizar o horror e a injustiça reinantes na história. Foi lúcido e honesto
o bastante para discernir, por trás da apologia do progresso a qualquer preço, mais um ardil da
razão a disfarçar o interesse material, o afã da existência, bem-estar e poder que governam a
história. Compreendeu melhor do que ninguém em seu tempo que todo progresso pagava-se com
novas penas, para cuja realização impunha-se a representação de algo melhor”.
8
Já no final dos anos 60 a leitura de Horkheimer inicia um novo movimento. Se
temos agora, por um lado, uma confirmação do processo contínuo de reificação que
acarreta na decadência da cultura burguesa e que se expressa na perda de sentido da
autoridade e da família, e de valores como o amor e o respeito, temos, por outro, uma
7
Cf. Alfred Schmidt, Drei Studien über Materialismus. Schopenhauer, Horkheimer, Glücksproblem.
Munique: Carl Hanser Verlag, 1977, pp. 8-9.
8
Op. Cit., p. 195-6.
228
abertura a temas que escapam da crítica social e se aproximam da filosofia da religião e
da teologia. As três últimas conferências de Horkheimer sobre Schopenhauer
desenvolverá esses dois temas. E essas são as duas últimas figuras do pessimismo em
Horkheimer, embora a última delas pareça flertar com uma simbólica esperança numa
ordem diferente de coisas. Essa esperança, entretanto, não se baseia em nenhuma crença
sobrenatural, mas no anseio, que permanece mero anseio, que a injustiça não seja a
única a triunfar. Trata-se de uma esperança que surge da experiência do mal, como
possibilidade última de sua superação. Em Schopenhauer há realmente algo próximo
disso, em sua teoria da negação da vontade de viver. Por isso, para Horkheimer, no
quadro do capitalismo tardio e da dissolução da razão substancial a filosofia de
Schopenhauer, permanecerá um consolo: “em contraste com a mentalidade atual, sua
metafísica oferece a mais profunda fundamentação da moral, sem entrar em contradição
com o conhecimento científico”
9
. Segundo Horkheimer, os argumentos da filosofia
pessimista de Schopenhauer que apóiam o cristianismo são mais plausíveis que os
argumentos da onto-teologia racionalista de autores como Descartes ou Leibniz, ou do
criticismo kantiano que retoma as crenças cristãs na existência de um Deus bondoso e
na imortalidade da alma, por meio da doutrina dos postulados da razão prática
10
. Aqui
Horkheimer parece concordar inteiramente com a tese de Schopenhauer, segundo a qual
sua filosofia deve ser considerada a autêntica filosofia cristã
11
. Mas qual a interpretação
que Schopenhauer tem do cristianismo que o permite julgar que sua filosofia, mesmo
atéia e imanente, é a filosofia própriamente cristã?
Os dois pontos principais que fazem Schopenhauer aproximar sua filosofia da
religião cristã são: a idéia do pecado original, da queda do homem que permite
interpretar o mundo como um “vale de lágrimas” e a idéia da redenção do mundo pelo
sofrimento como apresentado na paixão de cristo. Em sua metafísica, Schopenhauer
oferece uma visão da existência carregada de negatividade, o que se fundamenta em sua
concepção da vontade como a essência íntima das coisas, o substrato de todos os
fenômenos, a coisa em si de Kant. O mundo dos fenômenos que se apresenta na
experiência é regido pelo princípio de razão que sempre relaciona um efeito a uma
causa em todo evento espaço-temporal e é o que torna esse mundo da representação
9
Schopenhauers Denken im Verhältnis zu Wissenschaft und Religion In: Max Horkheimer. Gesammelte
Schriften. Org. A. Schmidt. Frankfurt. Fischer Taschenbuch Verlag, 1985, vol. 7 (Voträge und
Aufzeichnungen 1949-1973), p. 251-2.
10
Religion und Philosophie, In:_______ Idem, p. 193.
11
Ibid, Idem. Cf. A. Schopenhauer, Parerga e Paralipomena, § 163, In: Coleção “Os Pensadores”, São
Paulo: Abril Cultural, 1980, p. 229.
229
uma série necessária de acontecimentos determinados. Assim como em Kant, o
entendimento, que unifica a multiplicidade sensível, aparece como o princípio que torna
a experiência do mundo relativa à nossa capacidade de conhecer. Para além desse
mundo dado na intuição empírica deve haver algo mais substancial, pois se toda a
realidade se esgotasse nos fenômenos, o mundo inteiro não se distinguiria dos sonhos e
o idealismo absoluto seria justificado. Mas para além dos fenômenos Schopenhauer
compreende a vontade como a essência permanente das coisas e constituinte da
realidade substancial do mundo dado na intuição empírica.
Estabelecida a Vontade como a coisa em si, resta indicar quais as conseqüências
éticas com as quais essa filosofia se depara. Se este mundo é a objetivação da vontade
de viver, ele é então o palco da afirmação de si mesma e tudo o que acontece neste
mundo não pode ser senão a realização desse querer. Quando é afirmada essa vontade
de vida o que se afirma é essa vida que temos diante dos olhos no mundo, e para saber o
que quer essa vontade infinita nos basta ver o que o próprio mundo é. Como não existe
causa fora do domínio do princípio de razão, apenas se pode dar razão dos fenômenos,
não da própria vontade. “De fato, a ausência de toda finalidade e de todo limite pertence
à essência da Vontade em si, que é um sem fim”.
12
Um eterno devir, um escoamento
perpétuo é o que caracteriza a vontade de viver. As características perturbadoras que a
vida em geral assume são todas decorrentes da essência da vontade. Segundo
Schopenhauer, a Vontade, em todos os seus graus de manifestação, tem falta total de
uma finalidade última, deseja sempre, sendo o desejo todo o seu ser. É por isso que só
podemos conceber os seres do mundo num estado de perpétua dor, sem felicidade
durável. Isso porque todo desejo é sofrimento, enquanto não é satisfeito, pois nasce
duma falta. Como não existe fim último para o esforço, não existe termo para o
sofrimento. No reino animal vemos a infinita diversidade de formas, as modificações
incessantes às quais elas se submetem para se apropriar do meio, também a arte
inimitável e igualmente perfeita em todos os indivíduos que preside a sua estrutura e seu
mecanismo, a inesgotável quantidade de força que eles empregam, tudo isso em favor
da conservação de suas respectivas espécies. Mas não vemos como resultado mais que a
satisfação da fome e do instinto sexual, e talvez alguns curtos momentos de bem-estar.
“Se se considera, de uma parte, a engenhosidade inexprimível do empreendimento , a
12
A. Schopenhauer, O mundo como vontade e representação. (abrev. WWV) In. __________ Sämtliche
Werke. (abrev. SW) Editadas e comentadas criticamente por Arthur Hübscher, Wiesbaden, F. A.
Brockhaus, 1972, vol II. § 28, p. 195. Tradução brasileira de Jair Barboza, São Paulo, Unesp, 2005, p.
230.
230
riqueza indizível dos meios e, de outro, a pobreza do resultado perseguido e obtido,
então nos impele a admissão de que a vida é um negócio cujos lucros não cobrem, nem
de longe, os gastos”
13
. A vida do homem também não se apresenta de forma alguma
como uma dádiva, mas sim como uma tarefa, como uma dívida da qual devemos nos
livrar. No todo ou em detalhe, o que vemos não é senão miséria universal, fadiga sem
trégua, atividades forçadas, lutas sem fim, mas a finalidade de tudo isso consiste apenas
em assegurar durante um curto espaço de tempo a existência de indivíduos efêmeros e
atormentados.
14
Diante de tal quadro a afirmação da vida seria a aceitação desse espetáculo,
“belo de se ver” é verdade; “mas ser é bem outra coisa”
15
. Já a negação da vontade tem
o sentido de uma recusa e por isso é uma atitude moral. Aquele que nega é aquele que
ao tomar para si todas as dores do mundo, não pode mais afirmar o sofrimento essencial
à vida. Dessa forma, não basta negar o fenômeno, mas a própria essência – a ética dá
lugar a uma teoria da negação da vontade. Para entender o processo de negação,
entretanto, falta qualquer conceito, resta apenas a linguagem simbólica das religiões.
Schopenhauer opõe o homem natural ao santo, o reino da natureza, regido pela
necessidade, ao reino da graça, o reino da liberdade
16
. A identidade de todos os seres só
pode se dar no domínio da negação da vontade (Nirvana), pois no domínio da afirmação
(Samsara), só há multiplicidade
17
. Segundo a teologia cristã interpretada por
13
WWV, Complementos, Cap. 28, SW, vol. III, p. 403.
14
WWV, Complementos, Cap. 28, (SW, III, p. 407).
15
WWV, Complementos, Cap. 46, (SW II, 665).
16
Cf. WWV, § 70, SW, II, p. 478.
17
Cf. WWV, E., Cap. 48, SW, III, p. 700. Isso não nos deve levar a ver a negação da vontade como uma
reabsorção do indivíduo no todo do mundo, como se bastasse restabelecer a unidade que a multiplicidade
do mundo fenomênico desfez para alcançar a redenção. Essa interpretação, porém, está presente em uma
série de comentadores da obra de Schopenhauer e mesmo Horkheimer parece interpretá-lo assim num
texto dos Notizen (que permaneceu póstumo) entitulado “Schopenhauer als Optimist”. Segundo
Horkheimer, mesmo Schopenhauer, com a teoria da negação da vontade de viver, recairia no dogmatismo
otimista, ao considerar a possibilidade do fim do sofrimento como uma realidade metafísica. Para ele,
ainda que Schopenhauer não argumente contra a realidade da miséria, como fazem os outros sistemas,
ainda assim ele incorreria no erro de considerar possível uma reconciliação da vontade consigo mesma.
Essa se daria com o retorno da vontade individual à vontade una: “no fundo, [ele] pensa que a dor e o
tédio só correspondem à vontade individual, não à vontade lisa e plana”. Disso se segue, para
Horkheimer, que Schopenhauer expressaria um otimismo metafísico ainda mais decisivo ao aceitar o mito
da transmigração das almas, que estaria pressuposto na idéia de que apenas alguns indivíduos podem
alcançar uma saída redentora do mundo como vontade. Assim, conclui Horkheimer, “a boa infinitude é
um consolo duvidosamente filosófico. Dessa maneira, em última instância, Schopenhauer conserva a
razão contra si mesmo. O quarto livro de sua obra principal se revela como um descarrilamento, como um
lapsus que os outros três conseguem refutar”. Max Horkheimer, Notizen. In:______ Gesammelte Werke,
ed. Cit., vol. 6, p. 388. Já na conferência Pessimismus Heute (1969), essa mesma interpretação de
Schopenhauer é o ponto de partida para vincular o pessimismo teórico com uma “práxis não não otimista”
(nicht unoptmistische Praxis), pois representaria uma via de superação do pessimismo por meio de uma
solidariedade que contém em si momentos teológicos. Essa interpretação recupera a positividade pois
231
Schopenhauer, Adão simbolizaria a natureza e a afirmação da vontade, e Cristo a graça,
a negação da vontade, a redenção. O filósofo esclarece o que seria esse recurso à
linguagem religiosa:
Recorri aqui aos dogmas da religião cristã (eles mesmos estranhos à filosofia) tão somente para
mostrar que a ética oriunda de toda a nossa consideração – a primeira sendo no todo coerente e
concordante com todas as partes da segunda -, embora nova e supreendente em sua expressão,
de modo algum o é em sua essência; ao contrário, concorda totalmente como todos os dogmas
propriamente cristãos, e no essencial já se achava nestes. Semelhante ética também concorda
com as doutrinas e os preceitos éticos dos livros sagrados da Índia, embora aqui apresentados
de forma bem diferente. Concomitantemente, a recordação dos dogmas da igreja cristã serve
para esclarecer e elucidar a aparente contradição entre, de um lado, a necessidade de todas as
exteriorizações do caráter quando os motivos são dados (reino da natureza), e de outro, a
liberdade que a vontade em si tem para se negar e, assim, suprimir o caráter com toda
necessidade dos motivos neste baseada (reino da graça)
18
.
A partir desse ponto podemos destacar o que seria a “filosofia da religião” de
Schopenhauer, ressalvando-se o fato do filósofo indicar sua desconfiança com relação a
essa expressão que remete a Hegel, notando entretanto, uma certa semelhança entre os
dois filósofos no que diz respeito à fronteira entre a filosofia e a religião. Para
Schopenhauer, o conhecimento metafísico expresso nas religiões sempre apresenta um
conteúdo profundo de verdade, mas quase sempre envolto numa linguagem alegórica,
simbólica. Nesse sentido ele diferencia a verdade sensu proprio da metafísica racional
da verdade sensu allegorico das religiões. A religião apresenta assim a verdade “sob a
roupagem da mentira” e “quando se compreende a dogmática cristã sensu próprio,
então tem razão Voltaire, mas tomada em sentido alegórico ela é um mito sagrado, um
veículo pelo qual são trazidas ao povo verdades que de outro modo lhe seriam
inacessíveis”.
19
considera que, em Schopenhauer haveria uma espécie de “vontade boa”, para além da vontade má que se
objetiva no mundo fenomênico: “A vontade é apenas má, segundo Schopenhauer, quando ela age
enquanto indivíduo contra um outro, não quando o indivíduo, ao invés de se afirmar, realiza sua
verdadeira identidade com outros seres, sente o sofrimento dele como seu” (Gesammelte Werke, p. 228).
Esta seria mais uma interpretação que vê uma conciliação da vontade consigo mesma, e deixa de ver que
negação é justamente o rompimento da vontade consigo mesma, que pode dar lugar a algo inteiramente
desconhecido por nós – o que só pode ser caracterizado negativamente como “nada”. O inteiramente
outro, em Schopenhauer, se apresenta como algo simplesmente inteiramente diferente do mundo
fenômenico, que é também o mundo da vontade. (Cf. WWV, Complementos, Cap. 48, SW, III, p. 691).
18
WWV, § 70, SW II, p. 483; trad. bras., p. 515.
19
Parerga e Paralipomena, § 177 (SW, VI, p. 394). Na conferência Religião e Filosofia, Horkheimer
aponta a concordância dessa concepção de Schopenhauer com o pensamento do teólogo protestante Paul
Tillich. A semelhança com Hegel estaria na consideração do momento de verdade da religião pelo qual
um conteúdo verdadeiro estaria expresso na forma inadequada da alegoria ou da representação. Cf. A.
232
Portanto, é por meio de uma certa aproximação do cristianismo com o budismo e
o hinduísmo, e da acentuação do caráter ascético do cristianismo como uma rejeição
religiosa da existência mundana que Schopenhauer procura salvar o conteúdo da fé
cristã. A justificação da moral cristã ocorre por meio de tal rejeição e a vida dos santos
serve como modelo não por causa dos dogmas religiosos, mas pela visão daquilo que há
de mais íntimo no universo que estaria na base de suas ações. O mundo dos fenômenos,
a realidade da experiência sensível não é a obra de uma potência divina, a expressão de
um ser bom em si mesmo e eterno, mas da vontade que se afirma identicamente em
cada ser finito e é por isso que cada um pode se identificar com cada um, não por meio
de motivos particulares, mas por sua experiência comum na vivência do sofrimento. Por
isso, conclui Horkheimer, “quem reconhece sua obra como verdadeira não afirma de
maneira alguma os dogmas, mas certamente o espírito do evangelho”.
20
A partir dessa recepção de Schopenhauer, Horkheimer irá desenvolver, em seus
últimos escritos, uma recuperação da teologia, que em parte se inspira no pensamento
do autor do Mundo como Vontade e Representação, e dele por outro lado se afasta. O
autor transforma positivamente o anseio pelo inteiramente outro, que em Schopenhauer
tinha apenas um caráter negativo, numa esperança efetiva de que o mal do mundo não
seja a última palavra da realidade. É verdade, porém, que essa esperança permanece um
sentimento com sentido prático, jamais dá lugar a um conhecimento efetivo. Nesse
sentido, o pensamento de Schopenhauer, apesar de marcado pelo pessimismo, constitui
um consolo positivo, pois ainda representa a tentativa de buscar um significado moral
do mundo para além do positivismo e em contraste com a completa socialização levada
a cabo pela sociedade totalmente administrada. Sua teoria, apesar de antecipar e
justificar o pessimismo dos dias de hoje “não é, de modo algum, tão pessimista quanto a
absolutização da ciência”.
21
Ela pode “fundar uma solidariedade que, de maneira não
dogmática, contém em si momentos teológicos”
22
, pois o “pessimismo une experiências
histórico-filosóficas com a herança da grande teologia. Sua difusão poderia ocasionar
muito mais o bem do que a formação cada vez mais e em toda parte exclusivamente
profissional”
23
.
Schmidt. Die Wahrheit im Gewande der Lüge – Schopenhauers Religionsphilosophie, München, Zürich:
Piper, 1986.
20
Religion und Philosophie, In: Op. cit, p. 193.
21
Schopenhauers Denken…,In: Op. cit, p. 252.
22
Pessimismus Heute, In: Op. cit, p. 232. O texto continua: “Com sua postura no final negativa vincula-se
àquilo que aqui em Frankfurt é conhecido como ‘teoria crítica’”.
23
Idem, Ibidem.
233
Apêndice II:
Política e Pessimismo
A questão política em Schopenhauer aparece de maneira apenas complementar
e nunca recebeu da parte do filósofo um tratamento muito detalhado. Sistematicamente,
ela surge no interior de uma metafísica da ética que culmina numa “teoria da negação
da vontade de viver”, mas não apresenta absolutamente nenhuma ligação com essa
última. Tem-se até a impressão que a questão política aí é tratada apenas por constituir
um tema clássico da ética, e não porque o filósofo tenha alguma concepção original
sobre ela. Essa impressão pode ter ao menos duas explicações: por um lado, o fato de
que a ética, tal como Schopenhauer a concebe, esvazia de sentido qualquer ação
transformadora no mundo, e por outro, a pobreza das reflexões do filósofo nesse
campo, seja por razões de ordem pessoal – suas veleidades e preconceitos, seja pela
situação histórica da classe da qual ele faz parte. O ponto mais importante, entretanto,
talvez esteja numa dificuldade inerente à tentativa de unir preocupação política com
convicções filosóficas pessimistas. O presente texto tenta explorar essa questão a partir
da recepção crítica da filosofia política de Schopenhauer.
Dentre as muitas críticas que a filosofia de Schopenhauer sofreu ao longo dos
anos a crítica formulada por Georg Lukács em A destruição da razão ocupa um lugar
especial. A especificidade da interpretação do autor húngaro consiste não apenas na
denúncia, de resto banal, do “irracionalismo” schopenhaueriano, mas na vinculação
deste com o conservadorismo burguês. Sem se deter no movimento lógico do discurso
de Schopenhauer, Lukács oferece uma interpretação da ideologia do intelectual burguês
rentier, mais especificamente, do burguês do período da reação aos movimentos
revolucionários de 1848: “O pessimismo de Schopenhauer é um reflexo ideológico do
período da restauração”.
24
Lukács minimiza o alcance das intuições schopenhauerianas
ao considerá-las meramente como expressões de ranço de classe. Elas seriam apenas o
resultado da radicalização social do individualismo burguês: “as atividades do indivíduo
aparecem separadas de sua base social e voltadas pura e exclusivamente para dentro,
cultivando as próprias peculiaridades e veleidades privadas como valores absolutos”.
25
Schopenhauer seria assim apenas a expressão teórica irracionalista das transformações
que necessariamente se efetuaram no Estado prussiano depois de 1848 e do fracasso da
24
Lukács, G., El Asalto a la Razón. Trad. de Wenceslao Roces. Barcelona, Grijalbo, 1976., p. 169.
25
Ibid., p. 166.
234
revolução. É dessa forma que só a partir de então a própria filosofia de Schopenhauer
começa a ser reconhecida e ele torna-se então o filósofo daquela reação burguesa, que a
sua filosofia tinha previsto, de modo que a transformação burguesa do Estado
semifeudal prussiano deu início ao êxito de sua filosofia, que antes não tinha podido
dar-se.
A partir disso, Lukács vê em Schopenhauer a forma histórica, sintomática do
“irracionalismo entre as revoluções”, e como o “precursor do cosmopolitismo
decadente”.
26
O filósofo teria, segundo Lukács, iniciado o movimento de liberação,
através da ética, de todos os instintos negativos, anti-sociais e anti-humanos do homem,
dando-lhes uma sanção moral, e apresentando-os se não como preceitos, pelo menos
como “destino” do homem. O pessimismo metafísico aprofunda a alienação pois
conduz ao quietismo e a passividade social: “enquanto o panteísmo desvia as mentes,
objetivamente, da concepção religiosa do mundo, a filosofia de Schopenhauer, que
professa ser ateísta, abre de novo o caminho para uma religião que não obriga a nada”.
27
Esse aspecto ficaria ainda mais claro, segundo Lukács, na concepção de tempo que a
teoria do conhecimento de Schopenhauer oferece. Já que o tempo é definido pelo
filósofo como uma mera forma da intuição, não tendo, portanto, qualquer realidade em
si mesmo, não surpreende a negação radical de toda historicidade tanto da natureza
como do mundo humano. Cabe observar que aqui Lukács reconstrói de modo preciso a
oposição de Schopenhauer à filosofia de Hegel.
Para Schopenhauer, a teoria hegeliana do conceito retiraria o lógico da esfera
subjetiva, abstrata e dependente da consciência empírica e o transportaria ao mundo
real. Dessa maneira, Hegel colocaria o mundo empírico como reflexo do lógico. Contra
Hegel portanto, Schopenhauer afirma que é a intuição sensível e não os conceitos dela
dependentes, que constitui o princípio do conhecimento. Além disso, a faculdade
racional, enquanto formadora dos conceitos, perde toda substancialidade pensável. A
tendência a subordinar o real ao lógico, levaria Hegel, segundo Schopenhauer, ao erro
de acreditar que em todo acontecimento algo pleno de sentido se realiza. Contra isso,
Schopenhauer nega a idéia de um sentido da história ou do curso do mundo. Mesmo a
história enquanto disciplina não constitui uma ciência, mas um mero saber, condenado a
rastejar na experiência: “A história nos ensina que a cada momento existiu uma outra
26
Ibid., p. 169.
27
Ibid., p. 177. É nessa direção que Lukacs sublinha o abismo que separa Schopenhauer e Hegel e
contrapõe a lógica dialética do último à lógica metafísico-irracionalista do primeiro. Cf. Ibid., pp. 195-
199.
235
coisa; a filosofia se esforça, ao contrário, em nos elevar à idéia de que a mesma coisa foi
é e será. Na realidade, a essência da vida humana como da natureza está inteiramente
presente em todo lugar, em todo momento e precisa, para ser reconhecida em sua fonte,
apenas de uma certa profundidade de apreensão”
28
. Ao lidar apenas com fenômenos e
estar subordinada à forma do tempo, a história permaneceria apenas na superfície. Em
Schopenhauer, portanto, a história não saberia dar sentido à existência humana: Eadem
sed Aliter (o mesmo, mas diferentemente) é sua divisa.
De um ponto de vista dialético, como o de Lukács, o pessimismo
schopenhaueriano seria então a justificação filosófica do absurdo de toda atividade
política e de todo o progresso, através da desvalorização de toda a forma de sociedade e
de historicidade. O egoísmo burguês, outra característica do pessimismo é antes
reforçado que negado, devido à concepção ética que confirma o isolamento do
indivíduo. Tanto a teoria do conhecimento quanto a estética do filósofo conduziriam a
esse fim. A negação do egoísmo presente na sociedade competitiva e individualista do
capitalismo conduz a um isolamento igualmente individualista, para uma região sublime
que paira acima do curso do mundo, da peble e das obrigações sociais. Vemos assim
que Lukács desenvolve o tema das contradições presentes na “visão moral de mundo”
que Hegel percebia na filosofia moral kantiana e na sua continuação romântica. Ela
expressa, em sua figura mais contraditória, aquela que se suprime livremente a si
mesma, o maior dilaceramento, aquele que conduz à negação do espírito
29
, devido à
afirmação da irreconciliação absoluta. Com isso, Schopenhauer apenas anunciaria
aquilo que se consumaria com Nietzsche: “liberar por meio da ética todos os instintos
negativos, anti-sociais e anti-humanos do homem, dar-lhes uma sanção moral,
apresenta-los senão como preceitos, ao menos como o ‘destino’ para o homem, ou seja,
para o burguês, para o intelectual burguês do período imperialista”
30
.
Ao esvaziar de sentido toda ação política, o pessimismo de Schopenhauer
acabaria funcionando, intencionalmente ou não, como uma apologia indireta do
capitalismo. Se a apologia direta do capitalismo, desvelada por Marx, consiste na
eliminação das contradições sociais existentes ao apresentá-las como aparências
superficiais e passageiras, a apologia indireta se apresenta como uma forma bem mais
28
WWV, E., Cap. 38, SW, III, p. 504.
29
Cf. PhG, trad. bras., vol. II, p. 139: “mostra-se, assim, como consciência abandonada pelo espírito, e
que renega o espírito; já que não reconhece que o espírito, na certeza absoluta de si mesmo, é o senhor de
todo o ato e efetividade, e que pode rejeitá-los e fazê-los não acontecidos”.
30
Lukács, G. Op. Cit., p. 173.
236
elevada e tardia de apologia: “enquanto a apologia direta se esforça em eliminar as
contradições do sistema capitalista, de refutá-los por sofismas, de escamoteá-los, a
apologia indireta, tomando como ponto de partida essas contradições, aceita sua
existência como a de fatos inegáveis, mas lhes dando entretanto uma interpretação
favorável, para manter o próprio capitalismo. Enquanto que a apologia direta se esforça
em apresentar o capitalismo como a melhor ordem de coisas possíveis, como o ponto
culminante da humanidade em marcha, atingido de uma vez por todas, a apologia
indireta sublinha todos os lados ruins do capitalismo e seus horrores que ela considera
não como características do capitalismo, mas de toda vida humana, da existência
enquanto tal. Disso resulta que um combate levado a efeito contra esses horrores é por
princípio não apenas condenado ao fracasso, mas também carece de todo sentido, pois
equivale, segundo esta interpretação, a que o homem queira abolir sua própria
natureza”.
31
A dialética aqui em jogo se apresenta do seguinte modo: ao esvaziar de
sentido a realidade, o filósofo pessimista esvazia o sentido da luta por uma outra
realidade e com isso acaba defendendo, ainda que indiretamente, aquilo que existe:
“Schopenhauer defende o existente de um modo tão decidido como o irracionalismo
feudal ou semifeudal da restauração, mas com um método totalmente oposto, com o
método da apologética burguesa indireta. Os ideólogos da restauração defendiam a
ordem social concreta de seu tempo, a ordem feudal absolutista, ao passo que a filosofia
de Schopenhauer representa a defesa ideológica de toda ordem social existente, capaz
de manter em pé contra todos os perigos a propriedade privada burguesa”
32
.
Assim, ao invés de se voltar contra o capitalismo, verdadeira origem das
contradições, a filosofia de Schopenhauer se volta contra o próprio mundo. Ela
repudiaria a vida em todas as suas formas e o que restaria para nós seria apenas o nada.
Ora, pergunta-se Lukács, é possível viver uma tal vida de acordo com essa filosofia? Ele
responde afirmativamente, pois enquanto essa negação total não é realizada o que se vê
é uma vida contemplativa plena de charme. Dessa forma, Lukács conclui fazendo o
vínculo entre o pessimismo e o cinismo burguês:
o nada como perspectiva do pessimismo, como horizonte de vida, não pode impedir de modo
algum o indivíduo, segundo a ética schopenhaueriana já exposta, de levar uma vida
contemplativa plena de gozo (genussreiches) . Pelo contrário, o abismo do nada, o fundo
sombrio da carência de sentido da existência dá o tempero picante a este gozo da vida.
31
Ibid., p. 167.
32
Ibid, p. 173.
237
Ademais, o aristocratismo afirmado da filosofia de Schopenhauer permitirá a seus fiéis de se
sentir (isto é, de imaginar que eles estão) bem acima de uma plebe lamentável e tão limitada
que ela ainda crê dever combater e sofrer para melhorar as condições da sociedade. O sistema
de Schopenhauer – sistema engenhoso e harmoniosamente construído do ponto de vista da
arquitetônica formal – ergue-se como um belo hotel moderno, dotado de todo conforto, à beira
do abismo, do nada, da carência de todo sentido (ein schönes, mit allem Komfort ausgestattetes
modernes Hotel am Rande des Abgrundes, des Nichts, der Sinnlosigkeit). E a diária
contemplação do abismo, entre refeições esplêndidas, prazeirosamente degustadas, ou entre
obras de arte preciosas, só pode realçar ainda mais o gozo desse conforto refinado
33
.
Se Schopenhauer pode ser considerado o fundador desse “hotel de luxo à beira
do abismo”, deve-se lembrar que não foi ele seu único hóspede. O pessimismo
filosófico do século XIX se constitui na esteira da filosofia de Schopenhauer, mas nem
sempre com uma postura apologética a este último ou ao capitalismo. Os principais
autores desse “movimento” são Eduard von Hartmann, Julius Bahnsen e Philipp
Mainländer. Eduard von Hartmann, cuja obra principal é a Filosofia do Inconsciente, de
1869, procura amalgamar Hegel, Schelling e Schopenhauer ao colocar o “Inconsciente”
como princípio alógico do universo. Julius Bahnsen é o filósofo da “dialética do real”
(Realdialektik) em que busca transformar a contradição dialética numa espécie de
essência de todas as coisas, uma tentativa de desenvolver a idéia de Schopenhauer da
“desunião essencial da vontade consigo mesma”. Já Philipp Mainländer se apresenta
como o mais radical dos discípulos de Schopenhauer, não apenas em sua obra, mas
também em sua vida; e morte. A referência mais conhecida que temos da obra desse
filósofo hoje completamente esquecido nos é dada por Jorge Luis Borges em
Biathanatos:
Ao reler esta nota, penso naquele trágico Philipp Batz, que na história da filosofia é chamado
Philipp Mainländer. Ele foi, como eu, leitor apaixonado de Schopenhauer. Sob sua influência
(e talvez sob a dos gnósticos) imaginou que somos fragmentos de um Deus que, no princípio
dos tempos, destruiu a si mesmo, ávido de não ser. A história universal é a obscura agonia
33
Ibid., p. 201. Se o ponto culminante da ética de Schopenhauer fosse a determinação de um estado de
existência, uma forma de vida superior, livre do sofrimento, então a crítica de Lukács seria irrefutável.
Mas a negação completa da vontade de viver não conduz a nenhuma forma de vida conhecida, e o que se
segue é, apenas para nós, o puro nada. Se confunssemos a estética – momento preliminar da negação da
vontade – com a ética – que radicaliza essa negação, ou levássemos em consideração os Aforismos para a
sabedoria na vida, como parte integrante da ética do filósofo, então teríamos que reconhecer a justiça das
observações de Lukács. Embora pertinente, a leitura de Lukács parte de um pressuposto que invalida toda
a filosofia de Schopenhauer: a convicção da radical falta de sentido do pessimismo, interpretado
hegelianamente apenas como uma contraditória melancolia do finito. O que redunda na negação de
qualquer sentido positivo à experiência mística, sentido pressuposto, como vimos, pela ética de
Schopenhauer.
238
desses fragmentos. Mainländer nasceu em 1841; em 1876, publicou seu livro, Filosofia da
Redenção. Nesse mesmo ano, ele se matou.
34
Borges poderia ter acrescentado que Mainländer não apenas morreu no ano de
publicação de sua obra como se matou justamente no dia que recebeu em casa o
primeiro exemplar de sua obra principal! A obra, que não apenas por esse motivo
causou um certo interesse, não passou despercebida por Nietzsche que no mesmo ano
escreve a Overbeck, em sinal de agradecimento por este tê-lo enviado um exemplar da
Philosophie der Erlösung: “Nós já lemos Voltaire demais, agora é a vez de
Mainländer”.
35
O nome de Voltaire não representa aí somente o pensamento iluminista
em geral, mas será ele o autor para quem Nietzsche dedicará o primeiro volume de
Humano demasiado humano (publicado em 1878, ano do primeiro centenário de sua
morte).
Mas o que era a filosofia de Mainländer que ao menos num primeiro momento
despertou um certo interesse em Nietzsche? O que encontramos em sua obra?
Mainländer apresenta sua obra como uma continuação e correção da filosofia de
Schopenhauer, a qual ele não apenas radicaliza, mas conduz a uma espécie de ontologia
negativa em que o “Não-ser” teria prevalência metafísica sobre o “ser”. Já por meio de
sua reflexão sobre teoria do conhecimento Mainländer chega a uma conclusão oposta ao
pós-kantiano Schopenhauer no que se refere à coisa-em-si: esta não é, para ele, a
Vontade de vida, universal e atemporal que se expressa como essência de todas as
coisas para além do tempo e espaço. Para Mainländer, a coisa-em-si poderia ser
designada como a Vontade de morte individual que está presente em todas as coisas.
Essa vontade individual, que por meio de um “campo de forças” age de acordo com
outras inumeráveis vontades individuais e é o produto de uma transição de uma unidade
transcendente a uma multiplicidade imanente, uma “transformação da essência”
36
. A
unidade primordial, pré-mundana, se desagrega e surge o mundo. Cada vontade
individual tem um impulso que tem sua origem naquela unidade interna primordial.
Através desse movimento surge o mundo. O mundo dos fenômenos é, dessa forma, um
mundo da multiplicidade, do movimento e do escoamento incessante dos seres, o
34
Borges, Jorge Luis. Outras Inquisições, In: Obras Completas de Jorge Luis Borges, São Paulo: Globo,
1999, vol. II, p. 88.
35
In: Nietzsche, Friedrich: Nietzsche Briefwechsel. Kritische Gesamtausgabe. Zweite Abteilung, Fünfter
Band (org) Giorgio Colli u. Mazzino Montinari: Januar 1875 – Dezember 1879. Berlin/ New York:
Walter de Gruyter, 1980, p. 202.
36
Mainländer, Philipp: Die Philosophie der Erlösung. In: Schriften. (editado por Winfried H. Müller-
Seyfarth). Hildesheim/ Zürich/ New York: Olms. 1996, vol. I, p. 89.
239
mundo do devir. (A contraposição entre o mundo dos fenômenos, da multiplicidade, e o
terreno da coisa em si una corresponde inteiramente à doutrina schopenhaueriana do
mundo da vontade e da representação). Mas Mainländer vai mais além de seu mestre
quando compreende esse mundo transcendente como uma espécie de Deus espinozano,
que morre e assim dá vida ao mundo. Daí a sentença: “Deus está morto e sua morte é a
vida do mundo” (“Gott ist gestorben und sein Tod war das Leben der Welt”).
37
Deus
aqui, diferentemente do que pensa Nietzsche, não é morto pelos homens, mas ele
mesmo segue um impulso interno de autodecomposição, um ímpeto de passar do ser ao
não-ser, o que se expressa na lei física do enfraquecimento universal das forças.
Mainländer tenta seguir estritamente a proibição kantiana de ultrapassar o
terreno da experiência, e pretende permanecer preso à imanência. Sua doutrina se
apresenta como um ateísmo científico para o qual a essência de Deus permanece
desconhecida em sentido “constitutivo”. Porém, de um ponto de vista “regulativo”, para
o “juízo reflexionante”, podemos pensar a origem do mundo como se ele fosse “um ato
de vontade motivado”.
38
Isso significa: podemos representar a origem do mundo como
um ato da inacessível transcendência pela qual uma unidade primordial e anterior ao
mundo se transplanta ao não-ser, e se espalha, se dilacera no mundo da imanência: o
mundo surge da vontade desse Deus, de passar do ser ao não-ser, uma espécie de
“autocadaverização de Deus”. Ou seja, Mainländer reinterpreta e radicaliza o
pessimismo de Schopenhauer em uma “metafísica da entropia”, e interpreta toda a
história do mundo como uma descontínua, mas inevitável decadência.
A partir disso, como não há para o sujeito cognoscente nenhum ser melhor e
completo do que a simples unidade, essa unidade não pode ser alcançada por um anseio
pelo ser-outro, mas só resta uma livre escolha entre a permanência no ser ou o não-ser
(aqui o leitor de Schopenhauer reconhece o tema da afirmação e da negação da
vontade). Mas ao se multiplicar no mundo, aquela uno-totalidade já se decidiu pela
única ação livre possível, “nomeadamente, mergulhar no nada absoluto, no nihil
negativum, isto é, se aniquilar completamente, desistir de ser”
39
. E essa ação só pode
ser pensada como referida àquela unidade, já que nada fora dela pode ser pensada.
Dessa forma, a decomposição da unidade no mundo se apresenta como a escolha do ser
primordial de nada ser. “O mundo é o meio para a finalidade do não-ser, e na verdade é
37
Idem, p. 108.
38
Idem, p. 322.
39
Idem, p. 323.
240
o mundo o único meio possível”. A conseqüência lógica desse raciocínio reza que todos
os indivíduos desse mundo real realizam também o esforço ou tendência pelo não-ser.
Eles lutam uns contra os outros, entram em conflito, se opõem mutuamente e dessa
forma enfraquecem sua força. Já que a unidade anterior ao mundo se manifesta no
mundo a partir de uma certa quantidade de força, ela só pode atingir sua finalidade por
meio de um contínuo declínio da mesma; dessa forma todo indivíduo realiza a tendência
ao desaparecimento total por meio do enfraquecimento da força. A castidade e o
suicídio, quando conscientemente exercidos através do conhecimento da essência do
mundo, são apenas meios de realizar completa e conscientemente aquela finalidade, o
nada absoluto para o qual no fim das contas o mundo inevitavelmente aponta.
Se para muitos essa interpretação radical do pessimismo schopenhaueriano
parecerá espantosa, o que dizer da tentativa de unir a isso um pensamento socialista?
Pois é exatamente isso que Mainländer pretende: uma união entre Ferdinad Lassalle e
Siddhārtha Gautama Śākyamunis, ou seja, unir movimento operário social-democrata e
ética compassiva budista!
Para unir pessimismo e socialismo Mainländer constrói uma ética eudemonista
que ao mesmo tempo se baseia e se afasta da ética de Schopenhauer. Para ele toda ação
é motivada por um interesse egoísta, e a finalidade de toda e qualquer ação é sempre o
bem do agente.
40
Mesmo na compaixão o que visa o agente é sempre seu próprio bem,
não apenas evitar o sofrimento do outro, mas o do próprio agente. O que fundamenta a
moral, para Mainländer, não é a compaixão, mas o conhecimento. As virtudes da
compaixão, caridade, justiça, ensinadas pelo cristianismo e pelo budismo, são as mais
valiosas, pois estão de acordo com o conhecimento metafísico a que o homem chega no
fim da história: o conhecimento de que o mundo é um vale de lágrimas e que o não-ser é
preferível ao ser. O conhecimento conduz o homem do egoísmo limitado a sua
individualidade ao egoísmo que se estende a todos os seres o que o faz desejar o bem
coletivo.
A vontade do todo não é outra que a vontade total do indivíduo. Então, para
Mainländer, é uma necessidade tanto prática quanto teórica que o homem seja
independente, pois só a partir desse fundamento é possível uma comunidade ética,
intelectual e social. Embora o indivíduo seja, por um lado, dependente do todo, por
outro ele pode também influenciar esse todo. A autonomia do agir é para Mainländer a
40
Idem, p. 180.
241
primeira “verdade social”, e deve ser assegurada tanto para o indivíduo quanto para a
comunidade. A partir disso Mainländer deduz o sufrágio universal e outras conquistas
democráticas como progresso para aquilo que ele denominará como a “penúltima
finalidade” da história: a implantação do “estado ideal” que para ele coincide com o
estado socialista. Se o sentido da história está dado, resta apenas acelerar seu curso.
A partir desse conciso resumo do projeto político de Mainländer se pode ver o
quanto ele se afasta de seu mestre Schopenhauer. Se o primeiro já transformava os
conceitos desse último tanto na metafísica quanto na ética, será na teoria política que
Mainländer verá sua grande fraqueza. O primeiro volume de sua Filosofia da Redenção
se encerra com uma “Crítica das doutrinas de Kant e Schopenhauer” e o capítulo final
dessa parte, intitulado “Política” traz o seguinte comentário: “A miséria do povo é
descrita [por Schopenhauer] de maneira excelente, mas isso apenas para dar relevo ao
pessimismo. Ademais, Schopenhauer só ofereceu palavras de ódio e desprezo para o
povo e seu esforço, e devemos nos afastar horrorizados dessa perversidade de
disposição (Gesinnung) do grande homem”.
41
Nesse sentido, o filósofo irá elogiar Kant
e os idealistas Fichte, Schelling e Hegel (para decepção de Schopenhauer) por terem
concebido a história como o movimento da humanidade rumo ao estado ideal.
42
Esse
“estado ideal” é concebido por Mainländer praticamente como um “princípio regulativo
do socialismo”,
43
algo sobre o qual o movimento operário deve ter consciência para
lutar por sua realização, mas que segundo sua metafísica, será apenas um momento
intermediário para a redenção completa.
É no interior desse projeto filosófico que Mainländer procurará oferecer uma
crítica da filosofia política de Schopenhaeur. Como epígrafe ao texto citado acima, o
filósofo coloca ironicamente uma frase do próprio Schopenhauer: “Qualquer um,
também o grande gênio, é em alguma esfera do conhecimento decididamente
limitado”
44
. Segundo Mainländer, o “bem situado burguês Schopenhauer”, deixou de
ver que somente a vida num estado bem constituído e justo no que concerne à
distribuição das riquezas poderia oferecer as condições necessárias para a redenção, não
41
Idem, p. 585.
42
Cf. Idem, p. 587.
43
Antes de se suicidar, Mainländer escreveu um segundo volume da “Filosofia da Redenção“, que foi
publicado em 1886 por sua irmã Minna Batz. Nele se encontra um texto intitulado Três discursos aos
trabalhadores alemães, que também foi entregue ao movimento operário social democrata em forma de
panfleto. Cf. Mainländer, Philipp: Die Philosophie der Erlösung. Zweiter Band. Zwölf philosophische
Essays. In: Schriften. (editado por Winfried H. Müller-Seyfarth). Hildesheim/ Zürich/ New York: Olms.
1996, vol. II, pp. 339 e seguintes.
44
Op. Cit, p. 583. A passagem encontra-se em PP II, § 114, SW VI, p. 239.
242
num estado de penúria e necessidade em que as preocupações vitais impediriam o livre
curso do conhecimento – que é o movimento da afirmação à negação da vontade.
É dessa forma que Mainländer une, na figura do “sábio herói”, aquele que
conduz ao estado ideal com o objetivo de redimir a humanidade de suas dores, um
pessimismo quietista com práxis social engajada. Pois quando a humanidade chegar a
esse estágio, então chegará a hora da redenção: o conhecimento elevado a sua máxima
potência traz consigo a convicção da nulidade da vida e essa convicção prepara um fim
total da vida humana. Mainländer compara o processo civilizador com a queda de uma
bola no abismo. Mas esse processo só se acelera com a educação, pois a todos deveria
ser dada a oportunidade de compreender a essência das coisas e atingir a redenção que
assim como a vontade só pode ser individual.
A questão social não é outra senão uma questão de educação, mesmo quando superficialmente
ela tenha uma aparência bem diferente; pois nela se trata apenas de elevar todos os homens
àquele nível de conhecimento a partir do qual somente a vida pode ser corretamente avaliada.
Como porém, o caminho para essa altura está bloqueado por barreiras puramente econômicas e
políticas, então a questão social no presente não se apresenta como uma pura questão
educacional, mas principalmente uma questão política e então econômica.”
45
Conforme a isso exige Mainländer algumas reivindicações que estão de acordo
com as reivindicações do movimento operário: sufrágio universal, redução do tempo de
trabalho, igualdade entre os sexos, aumento de salários, etc. O filósofo ressalta
principalmente a necessidade da redução das horas de trabalho para acabar com a
divisão social do trabalho que não permite que o trabalhador se forme. O homem deve
se tornar consciente de sua situação e de seus companheiros para fazer o caminho da
satisfação material ao conhecimento do bem comum: “Saciado de todos os bens que o
mundo pode oferecer devem ser todos os homens para que a humanidade esteja madura
para a redenção e já que sua redenção é sua destinação, então os homens devem ser
saciados, e essa saciedade (Sättigung) só é possível com a resolução da questão
social”.
46
Somente a satisfação das necessidades básicas e mesmo do desejo em geral
poderia levar a humanidade ao ponto de compreender a satisfação material como algo
45
Die Philosophie der Erlösung. vol. I, p. 295. Com essas preocupações, Mainländer pretende resolver
as deficiência das filosofias da história de Kant e Fichte: “as contruções tanto de Kant quanto de
Fichte sofrem da deficiência decorrente do fato de que nelas se fala muito de causas finais e plano
mundial e muito pouco de causas efetivas”. Ibid, p. 588.
46
Idem, p. 308.
243
que ainda não constitui a finalidade última. Daí a necessidade de dar livre curso a toda
tendência da vontade, limitada, entretanto, por todas as outras.
47
Nesse sentido, também
o amor livre é defendido e todas as barreiras que impedem o avanço da liberdade e do
conhecimento devem ser postas de lado. Mas o socialismo proposto por Mainländer não
se baseia na instituição de uma igualdade social meramente material. Ele não se baseia
na igualdade de resultados ou bens, mas na igualdade de chances, possibilidades,
opções, em suma, de escolha. Pretende-se democrático, sem ser meramente formalista.
A educação deve ser livre, não podendo haver uma doutrina oficial de Estado. Mas será
papel do filósofo defender a satisfação universal das necessidades do povo e assim
apontar para a redenção: “‘Vocês acreditam que a vida tem valor. Vocês tomam os ricos
por felizes, pois eles comem e bebem melhor, porque fazem festa e barulho. Vocês
acham que o coração bate mais tranquilamente sobre a seda do que sobre uma blusa
rudimentar!’ Mas eles se decepcionam; não com discursos, mas pela ação. Deixe-os
experimentar, provar por si mesmos que nem riqueza, honra, glória e vida tranqüila os
tornam felizes. Corte as limitações que separam os iludidos da pretensa felicidade”.
48
Esse novo profeta, que une pessimismo e pensamento histórico pode ser vítima,
entretanto, da crítica da ideologia que poderá retrucar, desconfiada: “‘Tu queres me
enganar, tu mentes, tu trabalhas pelo soldo da burguesia!’, reclama o ‘homem comum’
dialeticamente formado ao filósofo pessimista. ‘Muito bem’, diz esse, ‘tu verás isso’. E
ele deve experimentar isso numa nova ordem de coisas”.
49
A relação entre o pessimismo e a prática já aparecia em Schopenhauer, mesmo
que abafada por um pensamento a-histórico e anti-utópico. Mas tal relação só aparece
claramente em seu discípulo Mainländer e em sua filosofia crítico-social da redenção.
Por isso ele pode ser considerado um Schopenhaueriano de esquerda.
50
Vê-se assim que
Mainländer não deduz de sua metafísica pessimista nenhuma conseqüência
conservadora, mas desenvolve, ainda que como estágio intermediário, a representação
de um estado ideal social-democrata. O cidadão de um tal estado será o indivíduo que a
história tenta efetivar desde seu início: “um homem inteiramente livre. Ele estará
completamente livre do cultor (Zuchtmeister) das leis e formas históricas e estará, livre
47
Apesar de defender o comunismo, Mainländer concebe a origem da sociedade de um ponto de vista
contratualista hobbesiano (assim como Schopenhauer). O egoísmo violento do estado de natureza é
deixado de lado em vista da segurança, escolhida como o “mal menor”. Cf. Idem, pp. 199 e ss.
48
Idem, p. 301.
49
Idem, p. 594.
50
Cf. Lütkehaus, Ludger. Pessimismus und Práxis. Umrisse einer kritischen Philosophie des Elends, In:
Hans Ebeling, L. Lütkehaus, (org), Schopenhauer und Marx. Philosophie des Elends – Elend der
Philosophie? Königstein, Hein, 1980.
244
de todos os grilhões políticos, econômicos e espirituais, para além da lei. Dissipadas
serão todas as formas externas: o homem estará completamente emancipado”.
51
Somente a realização de um tal ideal poderia mostrar ao próprio homem sua verdadeira
face:
Minha filosofia olha para além do estado ideal, para além do comunismo e do amor livre, e
ensina, depois de uma humanidade livre e sem sofrimento, a morte da humanidade. No estado
ideal, isto é, na forma do comunismo e do amor livre, a humanidade mostrará sua “face
hipocrática”: ela está votada ao declínio e o somente ela, mas todo o vale de lágrimas.
52
Por desparatadas que possam parecer as reflexões políticas e metafísicas de
Mainländer elas têm o mérito de oferecer um contraponto crítico aos preconceitos e
insuficiências da política e da teoria do Estado de Schopenhauer que procura apenas
defender os interesses de classe contra visões mais socialistas da sociedade
53
– e isso
apesar e justamente por causa das convicções metafísicas pessimistas. Quando
Horkheimer tenta vincular o pessimismo teórico com uma “práxis não não otimista”, ele
de alguma forma acaba recuperando o projeto do filósofo Mainländer de “emancipação
final”
54
através das “maiores forças humanas, a razão e a ciência”
55
. Esse projeto
pretende fazer justiça ao pessimismo de Schopenhauer superando suas tendências
antidialéticas e antimaterialistas e conservando seu interesse pelo sofrimento que se
recusa a ser reduzido a momento de uma escatologia otimista.
51
Mainländer, Philipp: Die Philosophie der Erlösung, vol. I, p. 311.
52
Mainländer, Philipp: Die Philosophie der Erlösung, vol. II, p. 334.
53
Mainländer cita o seguinte texto de Sobre o Fundamento da Moral para justificar esse juízo: “A
instituição coatora é aqui o Estado, cujo único fim é proteger o indivíduo do outro e o todo de inimigos
externos. Alguns filosofastros alemães desta época venal quiseram torcê-lo numa instituição de
moralidade, educação e edificação, no pano de fundo da qual espreita o alvo jesuítico de suprimir a
liberdade pessoal e o desenvolvimento individual do singular para fazer dele uma mera engrenagem de
um estado chinês e de uma máquina religiosa”. FM, SW IV, p. 217, trad. bras., p. 140-1.
54
Mainländer, Philipp: Die Philosophie der Erlösung, vol. I, p. 589.
55
Mainländer, Philipp: Die Philosophie der Erlösung, vol. I, p. 600.
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