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FERNANDO CEZAR BOURGOGNE DE ALMEIDA
A INFILTRAÇÃO DE AGENTES E A AÇÃO CONTROLADA
COMO FORMAS DE REPRESSÃO AO CRIME
ORGANIZADO
MESTRADO EM DIREITO
PUC/SP
2010
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FERNANDO CEZAR BOURGOGNE DE ALMEIDA
A INFILTRAÇÃO DE AGENTES E A AÇÃO CONTROLADA
COMO FORMAS DE REPRESSÃO AO CRIME
ORGANIZADO
Monografia apresentada à banca examinadora do
Programa de Pós-Graduação stricto sensu da
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo,
como exigência parcial para a obtenção do título
de mestre em Direito das Relações Sociais,
Subárea de Direito Processual Penal, sob a
orientação do professor doutor Marco Antonio
Marques da Silva.
PUC/SP
2010
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BANCA EXAMINADORA
___________________________________________
___________________________________________
___________________________________________
RESUMO
Nessa dissertação se aprofunda o estudo da ação controlada e da infiltração
de agentes, que são meios investigatórios previstos na legislação brasileira para o
combate ao crime organizado. Para compreender o tema, inicia-se o trabalho com
uma análise do Estado Democrático de Direito e a necessidade de sua eficiência
em relação ao combate à criminalidade organizada. Essa criminalidade, embora
não seja um fenômeno recente, muito evoluiu com o incremento dos meios de
comunicação. Ela ganhou poder, estrutura empresarial e tornou-se transnacional.
Assim, faz-se necessário compreender as características dessa evolução; o que é
crime organizado e conhecer os recursos disponíveis para seu combate, alguns
previstos em tratados internacionais incorporados ao nosso ordenamento jurídico.
Estabelecidos esses conceitos, torna-se possível uma profunda análise dos meios
investigatórios escolhidos, passando-se a estudar seus conceitos, suas leituras em
outros países, seus requisitos para utilização e toda a operacionalidade dos
mecanismos, que, se bem utilizados, são ferramentas indispensáveis para fazer
frente às organizações criminosas.
ABSTRACT
In this dissertation, there is a deeper approach in the study of controlled
action and undercover agents, which are used as investigative means forseen
within the Brazilian legislation to battle organized crime. To provide a better
comprehension of the subject, this work begins with an analysis of the Democratic
State of Law, and the necessity of that and its need for efficiency related to the
counter attack of organized crime, therefore enabling a better comprehension of
the subject. This type of crime, even though it is not a recent phenomena, has
evolved altogether with the improvements from the communication means. This
such criminals have had their power, business structure increased, they have also
become transnational businesses. Therefore, it is necessary to understand the
characteristics and features of this evolution: understanding the organized crime
and knowing the resources there are available for its counter strike, some of them
which are foreseen in international agreements which were incorporated in our
justice ruling. With those concepts established, a more profound analysis becomes
feasible for those investigative means that were chosen, their approach in other
countries, the requirements necessary for utilization and the full gamut of
operational resources that are imperative to confront criminal organizations.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO 3
1. ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO E O COMBATE À
CRIMINALIDADE.....................................................................................
5
1.1. Estado Democrático de Direito e seus fundamentos ................... 5
1.2. Princípio da dignidade da pessoa humana....................................
9
1.3. Objetivos da República Federativa do Brasil............................... 10
1.4. Direitos e garantias fundamentais ............................................... 11
2. TRATADOS INTERNACIONAIS E O COMBATE AO CRIME
ORGANIZADO..........................................................................................
15
2.1. Os tratados internacionais no ordenamento jurídico brasileiro.... 15
2.2. Convenção das Nações Unidas Contra o Crime Organizado
Transnacional......................................................................................
20
3. A NOVA CRIMINALIDADE E A GLOBALIZAÇÃO........................ 22
3.1. A nova criminalidade organizada ................................................
22
3.2. A globalização e a criminalidade transnacional .......................... 24
4. CRIME ORGANIZADO ....................................................................... 30
4.1. Evolução legislativa .................................................................... 30
4.2. Necessidade de conceituação ...................................................... 42
4.3. Definição doutrinária ...................................................................
44
4.4. Direito estrangeiro .......................................................................
46
5. AÇÃO CONTROLADA ........................................................................
54
5.1. Definição .....................................................................................
54
5.2. Direito estrangeiro .......................................................................
65
5.3. Controle da investigação ............................................................. 68
5.4. Flagrante diferido e flagrante esperado ...................................... 75
6. INFILTRAÇÃO DE AGENTES ............................................................
82
6.1. Conceito .......................................................................................
82
6.2. Direito estrangeiro .......................................................................
93
6.3. Controle da operação ...................................................................
101
6.4. O agente infiltrado .......................................................................
111
6.5. Sigilo da investigação ..................................................................
117
6.6. Finalidade .................................................................................... 124
6.7. Reflexos probatórios ....................................................................
130
6.8. Agente infiltrado e agente provocador ........................................ 139
6.9. Responsabilidade criminal .......................................................... 149
7. CONCLUSÕES ......................................................................................
160
Referências Bibliográficas ......................................................................... 169
3
INTRODUÇÃO
O presente trabalho tem como objetivo analisar dois mecanismos de
combate ao crime organizado os quais ainda são pouco utilizados em nosso
país, mas outras nações que os utilizam mais tempo puderam comprovar-
lhes a eficiência. Apesar da existência de outros mecanismos legais que
possibilitam o combate à delinqüência organizada, a escolha desses dois deve-
se à novidade que tais recursos representam em nosso ordenamento, bem
como ao fato de que são pouco utilizados no Brasil, além de serem raros
materiais legislativo, jurisprudencial e, inclusive, doutrinário.
Inicia-se o trabalho com uma análise do conceito de Estado
Democrático de Direito e seus fundamentos, em especial o princípio da
dignidade da pessoa humana. Explora-se, ainda, o confronto entre a
necessidade de se resguardarem os direitos individuais das pessoas
investigadas e acusadas de pertencerem ao crime organizado com a
necessidade de um direito penal e processual penal eficientes para garantir a
segurança dos cidadãos.
Analisam-se, também, os tratados internacionais, que são fontes
importantes no estudo do crime organizado e seus mecanismos de
investigação. Com efeito, faz-se uma análise da forma de ingresso e natureza
jurídica daqueles no ordenamento jurídico pátrio, dando-se especial atenção à
Convenção contra o Crime Organizado Transnacional, que é a norma
internacional mais abrangente no combate ao crime organizado.
Em seguida, realiza-se um breve apanhado da recente evolução da
criminalidade, ressaltando-se o crescimento dos crimes econômicos e da
utilização das facilidades geradas pela globalização para a prática destes
crimes. Aborda-se, ainda, a facilidade que o crime organizado, com sua
estrutura empresarial, tem encontrado para atuar dentro desse quadro.
4
No segundo capítulo, estuda-se o conceito de crime organizado no
Brasil e em algumas outras legislações. Sem a pretensão de esgotar o tema,
esse capítulo tem como objetivo alicerçar alguns conceitos necessários para se
entender aquilo a que se visa combater com os mecanismos investigatórios
mencionados no tema.
Demonstra-se a dificuldade encontrada no combate às organizações
criminosas ao se relacionar suas principais características, dentre elas as
ligações com o poder estatal e a sociedade em geral. Ainda, analisa-se a
legislação brasileira, de outros países e de organismos internacionais,
procurando uma uniformização dos conceitos básicos, o que possibilitaria,
sobremaneira, um amplo combate a essas organizações.
Finalmente, nos capítulos subsequentes passa-se à análise da ação
controlada e da infiltração de agentes, momento em que se procura analisar os
dois institutos sob diversos aspectos.
Ressalte-se que, além de buscar o conceito e o tratamento recebido por
esses institutos em outros países, analisa-se desde o pedido, o deferimento
judicial, atuação dos policiais, consequências probatórias e outros pontos
relevantes para a compreensão do tema.
Pretende-se, pois, fomentar a discussão sobre os dois métodos
investigativos em testilha, para conferir segurança àqueles que pretendam
utilizá-los nas investigações que envolvam atuação do crime organizado, bem
como, chamar a atenção sobre a necessidade de uma regulamentação legal
mais aprofundada.
Por fim, busca-se possibilitar uma maior e melhor utilização da ação
controlada e da infiltração de agentes, por entendê-las como ferramentas
indispensáveis ao combate às organizações criminosas.
5
1. ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO E O COMBATE À
CRIMINALIDADE
1.1. Estado Democrático de Direito e seus fundamentos
O modelo social seguido por um determinado Estado é uma
manifestação política que determina o ideal para a satisfação de suas
aspirações. Ele vem definido na Constituição de cada nação.
O artigo 1
o
da Constituição Federal de 1988 preceitua que a República
Federativa do Brasil é um Estado Democrático de Direito. Essa expressão
abarca um conceito político-jurídico surgido no final do século XVIII, início
do século XIX, quando movimentos burgueses revolucionários insurgiram-se
contra o Absolutismo e impuseram tamm ao soberano a obediência à lei.
Foi no final do século XIX, início do século XX que o Estado passou por um
processo de democratização, a partir do qual se criou o Estado Democrático
de Direito, do modo concebido hoje, e no qual além da submissão à lei, o
Estado também deveria se submeter à vontade popular e os fins propostos
pelo povo.
Por isso, ao estabelecer o Brasil como um Estado Democrático de
Direito, a Constituição Federal impõe um regime em que o país deva ser
regido por normas positivadas, produzidas através de processo legislativo
democrático.
Desta forma, as leis devem ser produzidas por representantes do povo,
que os elege de forma periódica.
Também o Poder Executivo deve ser composto de representantes do
povo, escolhidos através de processo eleitoral livre e transparente.
Por fim, a possibilidade de amplo e livre acesso ao Poder Judiciário em
caso de lesão ou ameaça de lesão aos direitos assegurados pela lei e a
6
exigência de um tratamento igualitário a todas as pessoas, configuram,
outrossim, características do Estado Democrático de Direito.
Assim, a existência de leis claras, a participação popular na sua
produção e execução, o respeito ao princípio da igualdade e o livre acesso à
Justiça são as principais características do Estado Democrático de Direito.
Luiz Alberto David Araújo e Vidal Serrano Nunes Júnior
1
sustentam
que, embora não consignado expressamente no artigo 1
o
da Constituição
Federal, não como se negar que o Brasil é um Estado Democrático Social
de Direito, vez que todo o texto constitucional impõe ao Estado objetivos
sociais claros, que não podem ser descartados quando se visa a traçar o perfil
constitucional do Estado Brasileiro.
Desta feita, um dos objetivos fundamentais da República, estampado no
artigo da Carta Maior é a construção de uma sociedade justa, a erradicação
da pobreza e a redução das desigualdades sociais, enquanto a educação e a
saúde passaram a integrar o rol dos Direitos Fundamentais.
O próprio artigo 1
o
da Constituição Federal, além de estabelecer o
Estado Democrático de Direito, também relaciona seus fundamentos:
a) Soberania
Soberania é a ausência de subordinação ou dependência em relação a
outro poder. O Estado pode, portanto, criar suas próprias normas, sua ordem
jurídica. Com efeito, vislumbram-se duas importantes faces: uma relacionada
à sua supremacia na ordem interna e a outra, sua independência externa, que
indica que o Brasil não está subordinado a outro país ou organismo
internacional.
Atualmente este conceito é diferente do que se entendia por soberania
nos séculos XVIII e XIX, pois a globalização e as relações entre os Estados
1
ARAUJO, Luiz Alberto David & NUNES JÚNIOR, Vidal Serrano. Curso de direito constitucional. 10. ed.
rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 99.
7
impõem um respeito mútuo e necessidade de obediência a normas criadas
pelo Direito Internacional, como tratados e convenções. Obviamente estas
normas, em regra, têm validade quando aderidas por esses Estados.
Contudo, em alguns casos, a comunidade internacional interfere na soberania
nacional de algum país para fazer cessar lesões a interesses mundialmente
reconhecidos, como os direitos humanos.
b) Cidadania
A cidadania decorre do próprio princípio do Estado Democrático de
Direito e pode ser compreendida como o conjunto de direitos que possibilitam
que a pessoa participe ativamente da vida social e política de uma nação.
Cumpre ao Estado essa observância.
Contudo, a expressão cidadania incluída no artigo 1
o
não se resume à
posse de direitos políticos, mas possui conceituação mais ampla, como o
direito a ter direitos.
Por esse motivo, a doutrina entende que a cidadania conjuga os três
próximos fundamentos relacionados no mesmo dispositivo.
c) Dignidade da Pessoa Humana
A dignidade da pessoa humana é a imposição de respeito aos direitos e
garantias fundamentais, não pelas pessoas, mas também pelo próprio
Estado. Sintetiza todos os direitos humanos e, conforme mencionado por
Celso Ribeiro Bastos
2
, foi um acerto do Constituinte, que colocou a pessoa
humana como finalidade última do Estado, e não como meio de alcançar
outros objetivos.
Este princípio impõe a supremacia da liberdade individual em relação a
outros interesses e significa um mínimo invulnerável que toda pessoa possui,
2
BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de direito constitucional. 14. ed. São Paulo: Saraiva, 1992, p. 148.
8
assegurado pela Constituição, que somente pode sofrer limitações em casos
muito excepcionais.
Atualmente este fundamento é visto como um supraprincípio, que
engloba diversos outros, ainda que não positivados, mas que devem ser
reconhecidos, uma vez que fazem parte da natureza humana.
d) Valores sociais do trabalho e da livre iniciativa
Os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa também são
relacionados como fundamentos da ordem econômica, conforme previsto no
artigo 170 da Constituição Federal e indicam que o Brasil adota o sistema
capitalista. É a liberdade de trabalho, para sustento das pessoas e crescimento
do país.
Entendeu o Constituinte que, através do trabalho, o homem garante sua
subsistência e impulsiona o desenvolvimento do país. Por isso desse
dispositivo decorrem diversos outros que visam a proteger o trabalho.
e) Pluralismo político
Ao relacionar o pluralismo político como fundamento do nosso Estado
Democrático de Direito, mais uma vez a Constituição Federal garantiu a
democracia, ou seja, a participação ampla e livre do povo na escolha de seus
dirigentes, resguardado a necessidade de se conviver com os diversos
pensamentos políticos.
Ressalta-se, ainda, a importância da opinião pública livre como forma
de proteção à democracia, possibilitando-se a existência de uma oposição
ativa e livre, a atuar contra o poder estatal do momento.
9
1.2. Princípio da dignidade da pessoa humana
Interessa-nos, para o presente trabalho, uma visão mais aprofundada
acerca da dignidade da pessoa humana, um dos fundamentos da República
Federativa Brasileira, considerado pela doutrina como um supraprincípio, do
qual decorrem os demais direitos e garantias assegurados pela Constituição
Federal.
Enquanto no Estado Liberal a proteção à dignidade da pessoa humana
era positivada com o escopo de defender o indivíduo em face dos abusos
praticados pelo Estado, no Estado Democrático de Direito o conceito se
ampliou.
Por esse motivo, atualmente não basta ao Estado se omitir para
assegurar os direitos decorrentes da dignidade da pessoa a todos. Ele deve
agir de forma eficaz para concretizar essa proteção. Portanto, o Estado deve
atuar para assegurar a vida, a integridade física, o patrimônio, a honra e outros
direitos dos cidadãos.
Dessa forma, pode-se concluir que a ordem política e paz social são
decorrências lógicas do princípio da dignidade da pessoa humana, uma vez
que este impõe ao Estado a obrigação de agir com eficiência para garantir a
segurança pública, prevenindo e reprimindo a prática de infrações penais
3
.
Logo, observa-se que a dignidade da pessoa humana apresenta dois
enfoques a serem oportunamente considerados: ao mesmo tempo em que é
necessária uma atuação eficaz do Estado contra a criminalidade, também
impõe-se limites a essa atuação, para que não ocorram abusos.
Portanto, busca-se o equilíbrio entre a necessidade de punir aqueles que
violam os direitos constitucionalmente assegurados, tipificados em virtude de
sua importância; e a necessidade de que a busca dessa punição seja feita de
3
PIMENTEL, José Eduardo. O princípio da dignidade da pessoa humana no processo penal. In: MIRANDA,
Jorge; SILVA, Marco Antonio Marques da Silva (coords). Tratado Luso-Brasileiro da Dignidade Humana
São Paulo: Quartier Latin, 2008, p. 640.
10
maneira justa, livre de qualquer abuso, em respeito ao devido processo legal e
a todos os demais direitos assegurados aos acusados.
Assim, ao mesmo tempo em que deve haver preocupação em relação ao
garantismo, deve haver a mesma preocupação em relação à eficiência do
processo penal, sob pena de o Estado também não cumprir o papel que lhe foi
designado pela Constituição Federal.
Deve o Estado Brasileiro evoluir de modo a respeitar a dignidade
humana em sentido amplo e irrestrito, lutando cada vez mais para proteção
dos direitos do acusado, sem se esquecer de buscar a eficiência do processo
penal, para que o sistema punitivo não se torne obsoleto e inócuo.
1.3. Objetivos da República Federativa do Brasil
Não se devem confundir os objetivos da República Federativa do Brasil
com seus fundamentos. Enquanto os fundamentos fazem parte da Estrutura do
Estado, os objetivos constituem algo exterior, a que se visa alcançar.
A fixação de objetivos a serem alcançados pelo Estado é inovação da
Constituição Federal de 1988, mas não são esses os únicos objetivos da
República Federativa do Brasil, mas tão somente aqueles considerados mais
importantes, os fundamentais.
Da análise do conjunto desses objetivos, verifica-se que são eles
prestações positivas que aspiram a alcançar a igualdade econômica, social e
cultural, dando efetividade ao princípio da dignidade da pessoa humana.
Assim, o artigo 3
o
da Constituição Federal estabelece o conteúdo
ideológico do texto constitucional. Todos os demais dispositivos pretendem,
de alguma forma, alcançar os objetivos propostos.
Entre os objetivos estabelecidos pelo preceptivo em apreço estão:
construir uma sociedade livre, justa e solidária; garantir o desenvolvimento
11
nacional; erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades
sociais e regionais; promover o bem de todos, sem preconceitos de origem,
raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.
Do disposto no inciso I, que estabelece como um dos objetivos a
construção de uma sociedade livre e justa, sem dúvida decorre o direito à
segurança pública, explicitado no artigo 144 do texto constitucional.
Assim, o combate à criminalidade que atinge a sociedade, assegurando-
se a todos os acusados o exercício de seus direitos individuais, constitui um
dos objetivos da República Brasileira.
1.4. Direitos e garantias fundamentais
A dignidade da pessoa humana é um dos fundamentos do próprio
Estado Democrático de Direito, por isso o Constituinte esmerou-se em criar
uma vasta carta de direitos e garantias constitucionais.
A ideia da existência de direitos fundamentais é anterior ao próprio
constitucionalismo. Ao longo da história, o homem se convenceu da
necessidade de impor limites ao poder daqueles que governavam um Estado.
Assim, inspirada em constituições de outros países democráticos e em
tratados e convenções internacionais, a Constituição Federal de 1988 trouxe
uma das maiores e mais completas cartas de direitos e garantias individuais.
O Título II da Constituição Federal trata dos “Dos Direitos e Garantias
Fundamentais”. Subdivide-se em cinco capítulos: “Dos direitos e deveres
individuais e coletivos” (artigo 5
o
), “Dos direitos sociais” (artigos 6
o
a 11),
“Da nacionalidade” (artigos 12 e 13), “Dos direitos políticos” (artigos 14 a
16) e “Dos partidos políticos” (artigo 17).
12
O artigo da Constituição Federal relaciona os “direitos e garantias
individuais e coletivas”, que, na verdade, são as liberdades públicas e as
normas que visam a garanti-las. São os chamados direitos humanos de
primeira geração.
Neste artigo , a carta constitucional estabeleceu diversos direitos que
são a essência do Direito Penal e Processual Penal brasileiro, à medida que
impõe limites ao jus puniendi do Estado.
Essa louvável preocupação do Poder Constituinte originário em
relacionar todos os direitos e garantias é atribuída ao momento histórico em
que foi votada a Constituição, pois o país saía de um longo período de
ditadura militar, durante o qual o desrespeito aos direitos humanos,
infelizmente, era algo costumeiro.
A doutrina aponta algumas características próprias desses direitos e
garantias fundamentais, que, além de fazerem parte do núcleo imutável do
texto constitucional (são cláusulas pétrias, conforme disposto no artigo 60, §
4
o
, inciso IV), são imprescritíveis, inalienáveis, irrenunciáveis, invioláveis,
universais, efetivos, interdependentes e complementam-se.
Muito se discute sobre a diferenciação de direitos e garantias
individuais. Os direitos individuais são poderes de agir reconhecidos e
protegidos pela ordem jurídica a todas as pessoas
4
. Estes direitos relacionados
na Constituição apenas configurariam a forma positivada e seriam inerentes à
pessoa humana.
as garantias, em um sentido estrito, são normas que objetivam
assegurar o exercício desses direitos. Podem ser proibições que protegem o
exercício do direito, limitam o poder estatal, ou meios fornecidos para a tutela
4
FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Direitos Humanos Fundamentais. ed. São Paulo: Saraiva, 2005,
p. 28.
13
de direitos violados. Estes últimos também são normalmente chamados de
remédios constitucionais.
Incluem-se como garantias constitucionais a proibição à censura (inciso
IX), inviolabilidade do lar (inciso XI), livre acesso ao Judiciário (inciso
XXXV), irretroatividade da lei penal mais severa (inciso XL), devido
processo legal (inciso LIX), dentre outros.
Alguns autores entendem que os dois conceitos se confundem, pois
embora algumas garantias possuam caráter instrumental, na verdade são
direitos que o cidadão possui em relação ao Estado e a outras pessoas, ou seja,
direitos de exigir o cumprimento do que lhe foi assegurado pela Constituição.
Assim, a pessoa tem o direito de ser julgada pelo Júri (inciso XXXVIII) e
direito de que não lhe seja aplicada pena cruel (inciso XLVII, e).
Vale ressaltar que o rol de direitos e garantias individuais do artigo
da Constituição Federal é exemplificativo, pois o próprio texto constitucional,
no § 2º, do mesmo artigo, dispõe que também compõem a estrutura dos
direitos e garantias individuais outros espalhados pelo próprio texto
constitucional, que decorram dos princípios adotados pela Constituição
Federal e que estejam expressos em tratados internacionais em que o Brasil
seja parte
5
.
Por fim, cabe aqui o mesmo posicionamento exposto quando da análise
do supraprincípio da dignidade da pessoa humana, vez que no Estado
Democrático de Direito os direitos individuais não se limitam a impor
obrigações negativas ao Estado, mas também impõem a tomada de ações
positivas por parte do poder público para garanti-los.
Estas últimas consistem no dever de proteção imposto ao Estado em
face dos imperativos de tutela que trazem os direitos fundamentais
assegurados na Constituição Federal.
5
Sobre este tema trataremos mais profundamente em seguida.
14
Trata-se de reflexo do hipotético contrato social, em que os indivíduos
abrem mão de parcela de suas liberdades em troca da proteção do Estado
6
.
Portanto, sobre este aspecto de prestação positiva imposta pelos direitos
fundamentais, o Estado deve exercer a tutela penal, tornando crime as
condutas que afetam os direitos fundamentais, imprimindo uma eficiente
investigação dos fatos que violarem esses direitos e, finalmente, punindo
aqueles que comprovadamente os tenham violado.
Nessa busca é que deve haver o equilíbrio entre a obrigação do Estado
em assegurar aos investigados os direitos fundamentais do devido processo
legal e a necessidade de se imprimir maior eficiência à persecução penal.
Devem-se evitar soluções que pendam para qualquer dos lados, ora
tornando ineficiente o processo penal em face das mudanças surgidas na
criminalidade atual, ora tendendo a soluções radicais; como a aplicação do
Direito Penal do Inimigo.
Destarte, o Estado deve estabelecer um sistema que obtenha eficiência
com garantismo
7
. Garantismo na medida em que devem ser respeitados os
direitos individuais do investigado ou acusado, assegurando-se a ampla defesa
e a necessidade de que qualquer violação desses direitos para fins
investigatórios pressuponha a previsão legal, necessidade da medida e uma
decisão judicial fundamentada. um sistema eficiente deve ser célere, justo
para que consiga apurar os fatos criminosos e punir os responsáveis.
6
FELDENS, Luciano. O dever estatal de investigar. In: CUNHA, Rogério Sanches; TAQUES, Pedro;
GOMES, Luiz Flávio (coords). Limites Constitucionais da Investigação São Paulo: Editora Revista dos
Tribunais, 2009, p. 230.
7
FERNANDES, Antonio Scarance. O Equilíbrio entre a Eficiência e o Garantismo e o Crime Organizado.
In: TOLEDO, Otávio Augusto de Almeida; LANFREDI, Luís Geraldo Sant’ana; SOUZA, Luciano
Anderson; SILVA, Luciano Nascimento. Repressão Penal e Crime Organizado Os novos rumos da política
criminal após o 11 de Setembro. – São Paulo: Quartier Latin, 2009, p. 228.
15
2. TRATADOS INTERNACIONAIS E O COMBATE AO CRIME
ORGANIZADO
2.1. Os tratados internacionas no ordenamento jurídico brasileiro
Os tratados internacionais são atualmente a principal fonte de obrigação
do Direito internacional, além de serem cada vez mais comuns, utilizados
para regulamentar os mais diversos temas de interesse da comunidade
internacional.
Como são acordos firmados voluntariamente entre Estados, eles são
aplicáveis apenas àqueles que formalmente o adotaram. A boa-fé é o mais
importante princípio que norteia sua interpretação. Porquanto a adesão não é
obrigatória a nenhum Estado, deve-se presumir a boa-fé de todos os Estados-
partes em cumprir os preceitos acordados.
Ressalte-se a possibilidade de um Estado-parte aderir ao tratado com
reservas ou, caso não queira mais cumprir seus preceitos, utilizar-se do
instituto da denúncia, que é o ato unilateral pelo qual um dos Estados anuncia
formalmente sua intenção de não mais fazer parte de um determinado tratado.
Entretanto, quando o Estado-parte formalmente passa a integrar um
determinado tratado, obriga-se ao cumprimento de seus dispositivos, não lhe
sendo permitido invocar disposições de seu ordenamento jurídico interno
como justificativa para o descumprimento. É o que dispõe o artigo 27 da
Convenção de Viena, que disciplina e regula o processo de formação dos
tratados entre Estados.
Em nosso sistema jurídico a incorporação de um tratado internacional
deve se submeter a três fases distintas. Inicialmente o tratado é negociado e
assinado pelo chefe do Poder Executivo, o Presidente da República, o que
implica uma aceitação provisória e precária dos termos. Tal aceitação o
16
produz, ainda, efeitos jurídicos vinculantes. Em seguida, faz-se necessária a
aprovação pelo Poder Legislativo, através de decreto legislativo. Por fim, o
Poder Executivo deve formalizar a ratificação deste tratado, fazendo-o por
meio de decreto, que consiste em aceite definitivo, momento em que passa a
produzir efeitos no plano nacional.
Este ato complexo de integração do Estado Brasileiro a um tratado está
previsto na Constituição Federal, no artigo 84, inciso VIII, que determina a
competência exclusiva do Presidente da República para celebrar tratados,
convenções e atos internacionais, sujeitos a posterior aprovação do Congresso
Nacional, e pelo artigo 49, inciso I, que dispõe sobre a competência exclusiva
do Congresso Nacional para, através de decreto legislativo, aprovar estes
documentos internacionais.
Ocorre que, apesar do sistema balanceado, que busca evitar abusos por
parte dos poderes, Flávia Piovesan
8
critica a omissão da Constituição Federal
em relação aos prazos para o Presidente da República encaminhar o tratado ao
Congresso, o prazo para que o legislativo aprecie o tratado assinado e, ainda,
o prazo para que o Presidente da República o ratifique, após aprovado.
Pondera a autora que essas omissões possibilitam a afronta ao princípio da
boa-fé, vigente no Direito Internacional.
Entretanto, a Constituição Federal de 1988 estabeleceu uma distinção
entre os tratados internacionais relativos a direitos humanos e os demais, que
se referem a outros temas.
O artigo 5º, § 2º, da Constituição Federal, fruto do Poder Constituinte
originário, estabeleceu que os direitos e garantias estabelecidas no artigo 5º,
não excluem outros decorrentes dos tratados de que o Brasil seja parte. Assim,
além dos direitos e garantias individuais enumerados nos diversos incisos do
artigo 5º, também integram o rol de direitos individuais constitucionalmente
8
PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e o direito constitucional internacional. 11ª ed. ver. E atual. São
Paulo: Saraiva, 2010, p. 50.
17
garantidos os direitos implícitos, que são os decorrentes do regime e
princípios adotados pela Constituição, além de todos aqueles enunciados nos
tratados internacionais de que o Brasil seja parte.
Diante deste dispositivo, a doutrina defendia o entendimento de que
os tratados internacionais que possuem como objeto a defesa de direitos
humanos tinham status de norma constitucional. Contudo, não foi este o
entendimento acolhido pelo Supremo Tribunal Federal, que, em suas
decisões, concedeu-lhes o status de norma infraconstitucional.
Com o intuito de colocar fim à celeuma, a Emenda Constitucional
45, introduziu um parágrafo terceiro ao artigo 5º, determinando que os
tratados e convenções internacionais relativos a direitos humanos devem ser
aprovados em dois turnos, em ambas as casas legislativas, mediante quórum
de três quintos de seus membros. Assim, terão a mesma força de emenda
constitucional
9
.
Com efeito, conclui-se que atualmente os tratados internacionais
referentes a direitos humanos, submetidos aos requisitos acima elencados,
possuem a mesma hierarquia que as emendas constitucionais.
Existe a possibilidade de que materialmente o tratado internacional
cumpra o requisito de tratar de direitos humanos, mas formalmente não seja
submetido ao quórum especial e à votação em dois turnos. Ou seja, mesmo
após o advento da emenda constitucional 45, se o tratado internacional de
direitos humanos não se submeter ao requisito formal de votação previsto
pelo § 3º, do artigo 5º, da Constituição Federal, ele poderá integrar o
ordenamento jurídico, mas sem o status de norma constitucional.
A escolha da opção entre submeter o tratado ao quórum especial e
votação em dois turnos para dar-lhe força de norma constitucional é ato
discricionário do Congresso Nacional.
9
Tratam-se das mesmas exigências que a Constituição Federal estabelece para a aprovação de emendas
constitucionais no artigo 60, § 2º.
18
Ainda se discute a posição em relação à Constituição Federal dos
tratados internacionais referentes a direitos humanos anteriores à vigência da
Emenda Constitucional 45, vez que a votação em dois turnos e o quórum
especial não lhes eram exigidos.
Em que pese a resistência da corte suprema, defende-se que o novo
dispositivo apenas referendou o posicionamento de que eles sempre tiveram
hierarquia constitucional, pois a matéria é que estabelece o poder ao tratado
internacional, ressalvando-se que anteriormente à inovação legislativa não
eram exigidos os requisitos formais especiais.
Desta forma, atualmente, para que um tratado relativo a direitos
humanos tenha hierarquia constitucional ele deve ser submetido ao quórum
privilegiado e à votação em dois turnos. Somente se cumpridas estas
formalidades passarão a ter status de emenda constitucional e, mais, serão
tidos como cláusulas pétreas.
Portanto, uma vez assinado e submetido à especial aprovação do
Congresso Nacional, os tratados internacionais de direitos humanos não
podem ser objeto de denúncia pelo Brasil, pois, por força do disposto no
artigo 60, § 4º, da Constituição Federal, passam a integrar o núcleo imutável
da Carta Constitucional.
Outra diferenciação entre os tratados internacionais de direitos
humanos e os que versam sobre outras matérias repousa no momento em que
passam a possuir obrigatoriedade interna. Enquanto os tratados comuns
necessitam de um decreto presidencial que lhes faça a incorporação ao
ordenamento jurídico interno e publicidade, os tratados internacionais de
direitos humanos têm aplicabilidade imediata após a aprovação legislativa,
por decorrência do disposto no artigo , § 1º, da Constituição Federal, que
determina que as normas definidoras de direitos e garantias fundamentais têm
aplicação imediata.
19
em relação aos demais tratados internacionais, há quem sustente que,
apesar da hierarquia infraconstitucional, eles possuem um posicionamento
supralegal, em face do princípio da boa-fé, que tem como expressão o
mencionado artigo 27 da Convenção de Viena.
Entretanto, prevalece o entendimento de que os tratados internacionais
não relativos a direitos humanos possuem o mesmo status de lei ordinária e,
portanto, cumpridos os requisitos formais estabelecidos pela Constituição
Federal, passam a integrar o ordenamento jurídico interno.
Nesta linha de pensamento, eventual conflito entre os tratados
internacionais e a lei deve ser resolvido com fundamento no princípio de que
a lei posterior revoga a lei anterior que com ela seja incompatível
10
.
Contudo, a adoção deste entendimento causa discrepância entre a
ordem jurídica interna e a internacional. Primeiro porque, de acordo com a
Convenção de Viena, não é admissível que se justifique o descumprimento de
acordo utilizando-se como argumento a lei interna e, segundo, que no plano
internacional a obrigatoriedade de cumprir o tratado persiste até que o Estado-
membro formalize a denúncia.
Em relação à denúncia, critica-se o sistema estabelecido pelo
ordenamento pátrio, pois esta é ato exclusivo do Poder Executivo.
Acreditamos que o mais correto seria exigir-se o mesmo procedimento para a
denúncia do que para a integração, pois o Poder Executivo estaria, sozinho,
abrindo mão de direitos e obrigações de que o Poder Legislativo também
participou, ao estabelecê-los.
Importa ao presente trabalho a especificação de que o direito pátrio
adotou um sistema misto para disciplinar os tratados internacionais,
concedendo regimes jurídicos diversos aos tratados de direitos humanos e aos
demais, relativos a outras matérias.
10
Foi o posicionamento adotado pelo Supremo Tribunal Federal em 1977, no Recurso Extraordinário
80.004.
20
Convém salientar, ainda, que, por terem hierarquia infraconstitucional,
os tratados internacionais que não se referem a direitos humanos não podem
contrariar a Constituição Federal. Compete ao Supremo Tribunal Federal, em
recurso extraordinário, julgar as causas em que a decisão recorrida declarar a
inconstitucionalidade de um tratado internacional
11
.
2.2. Convenção das Nações Unidas Contra o Crime Organizado
Transnacional
Conquanto exista o entendimento de que o combate à criminalidade
organizada decorre da própria proteção constitucional à dignidade da pessoa
humana, a doutrina e a jurisprudência entendem que os tratados internacionais
que versam sobre o combate ao crime organizado têm status de norma
infraconstitucional, ingressando em nosso ordenamento com a mesma
hierarquia de uma lei ordinária.
O principal instrumento internacional de combate ao crime organizado
é a Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional,
mais conhecida como Convenção de Palermo
12
, mas que foi adotada na
Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas, na cidade de Nova
Iorque, em 15 de novembro de 2000.
Este documento internacional foi ratificado pelo Poder Legislativo
Brasileiro através do Decreto Legislativo 231, de 29 de maio de 2003, e
incorporado ao nosso ordenamento jurídico através do Decreto 5.015, de 12
de março de 2004.
11
Artigo 102, inciso III, alínea “b”, da Constituição Federal.
12
Esse documento foi aberto para assinatura no Palácio de Justiça de Palermo, na Itália, no período de 12 a
15 de dezembro de 2000. Posteriormente, ele seguiu para Nova Iorque, onde permaneceu até 12 de dezembro
de 2002, aberto para novas adesões.
21
A convenção teve como objetivo promover a cooperação internacional
para previnir e combater o crime organizado transnacional. Em seu bojo, ela
define organização criminosa, determina a tipificação da conduta daquele que
integra e coordena esses grupos, prevê técnicas especiais de investigação para
o combate ao crime organizado, disciplina o confisco de bens e valores e,
ainda, prevê a responsabilidade da pessoa jurídica.
Outros três tratados internacionais foram adotados em conjunto e
integrados à Convenção de Palermo pela Organização das Nações Unidas,
visando a incentivar o combate internacional ao crime organizado. Eles
também foram assinados e incorporados pelo Brasil
13
. o os chamados
protocolos adicionais, pois são condicionados à assinatura da Convenção das
Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional e complementam-
na. São eles: Protocolo para Previnir e Punir o Tráfico de Pessoas,
especialmente de mulheres e crianças; Protocolo contra o Contrabando de
Pessoas por Terra, Mar e Ar; e Protocolo contra a Produção Ilícita e o Tráfico
de Armas de Fogo, suas Partes, Componentes e Munição
14
.
Enfatize-se, ainda, a existência de três outros documentos
internacionais assinados pelo Brasil em que há previsão da utilização do
instituto da entrega vigiada, importante instrumento de combate ao crime
organizado
15
: Convenção Interamericana contra a Fabricação e o Tráfico
Ilícitos de Armas de Fogo, Munições, Explosivos e outros Materiais
Correlatos, Convenção contra o Tráfico Ilícito de Entorpecentes e Substâncias
Psicotrópicas e a Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção.
13
Ver Decretos 5.017/04, 5.016/04 e 5.941/06.
14
GOMES, Rodrigo Carneiro. Investigação criminal na Convenção de Palermo: instrumento e limites. In:
CUNHA, Rogério Sanches; TAQUES, Pedro; GOMES, Luiz Flávio (coords). Limites Constitucionais da
Investigação – São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2009, p. 357.
15
Ver capítulo específico sobre o tema.
22
3. A NOVA CRIMINALIDADE E A GLOBALIZAÇÃO
3.1. A nova criminalidade organizada
Durante séculos o Direito Penal foi utilizado como forma de manter o
poder daqueles que o detinham em determinada época.
Somente na Idade Média surgiu a preocupação com a recuperação do
criminoso. O Iluminismo é o movimento a partir do qual se edifica o desejo
de justiça, igualdade e liberdade que, embora não tenha afastado totalmente a
utilização do Direito Penal como forma de garantia do poder, trouxe à baila a
preocupação também com a proteção do cidadão em relação aos abusos do
Estado.
Atualmente, o Direito Penal visa à garantia da paz social, mas também
tutela os direitos individuais, o que certamente foi uma das maiores
conquistas da humanidade contra os frequentes abusos daqueles que detinham
o poder e não encontravam qualquer força que lhe impusesse algum limite.
A legislação penal e processual penal brasileira e a Constituição
Federal retratam bem essa fase de transição. O Código Penal Brasileiro, de
1940, destaca os crimes contra as pessoas, contra o patrimônio, contra os
costumes, contra a administração pública, dentre outros. a Constituição
Federal de 1988 apresenta um extenso rol de direitos e garantias individuais.
Contudo a criminalidade muito se modificou nas últimas décadas, visto
que, além dos crimes individuais, praticados por deliquentes de forma isolada
(há muito tipificados pela legislação brasileira), surgiu uma criminalidade
organizada, com estrutura e organização hierárquica que tem demonstrado
grande eficiência na prática de crimes e em livrar-se da atuação dos órgãos
estatais responsáveis pela prevenção e repressão do crime.
23
Não que as organizações criminosas sejam um fenômeno recente, pois
suas origens podem ser identificadas nos séculos XVII e XVIII, com as
Tríades Chinesas, a Yakuza Japonesa e as Máfias italianas. Mas nas últimas
décadas suas atuações muito se expandiram, estruturaram-se em um modelo
empresarial e aproveitaram-se do crescimento da atividade econômica
internacional e a abertura dos mercados.
Este fenômeno criminal experimentou um desenvolvimento
extraordinário em virtude das novas tecnologias relacionadas à informática e
meios de comunicação, bem como se aproveitou do relaxamento do controle
que os Estados exerciam sobre suas fronteiras
16
.
Ademais, essa nova criminalidade reflete a atual situação
experimentada pela sociedade, que é essencialmente capitalista. A prática de
crimes econômicos é corolária disso. Por isso, Anabela Miranda Rodrigues
escreveu que esta nova criminalidade, organizada e com finalidade
econômica, é uma atividade econômica em sentido amplo, causando além das
nefastas consequências econômicas, reflexos negativos nas ordens sociais e
políticas
17
.
Ao contrário da criminalidade clássica, essa nova espécie de
criminalidade não se limita à prática de crimes nos quais há uma vítima
individualizada, mas tem seu foco central na prática de crimes que atingem a
sociedade de forma difusa. Este aspecto faz com que a população não sinta
diretamente os efeitos dessa criminalidade, embora seus efeitos sejam muito
mais perniciosos à sociedade do que a maioria das outros crimes.
Marco Antonio Marques da Silva
18
, citando Winfried Hassemer, aponta
que as principais características dessa nova espécie de criminalidade são a
16
CALLEGARI, André Luís, Crime Organizado (org) Tipicidade Política Criminal Investigação e
Processo, Porto Alegre: Ed. Livraria do Advogado, 2008, p. 14.
17
RODRIGUES, Anabela Miranda Faria. Globalização, Democracia e Crime. In: COSTA, José de Faria;
SILVA, Marco Antonio Marques da (coords). Direito Penal Especial, Processo Penal e Direitos
Fundamentais – Visão Luso-Brasileira – São Paulo: Quartier Latin, 2006, p. 283.
18
SILVA, Marco Antonio Marques da - Acesso à Justiça Penal e Estado Democrático de Direito São
Paulo: Ed. Juarez de Oliveira, 2001, p. 136.
24
ausência de individualização das vítimas, pois elas geralmente são o Estado e
comunidades; a pouca visibilidade dos danos causados pelo crime; um novo
modus operandi, que são agressões civis; e a existência de um sistema de
proteção de alta profissionalidade
.
Outra característica presente nesta criminalidade organizada é a sua
formação empresarial, com divisão de tarefas bem definidas, tercerização de
algumas atividades e distanciamento entre o comando e os executores.
São crimes decorrentes dos novos riscos impostos pela sociedade atual,
que há alguns anos eram inconcebíveis, pois os locais por onde transitavam
sequer existiam, ou ainda eram embrionários. Dessa forma, alguns crimes
ambientais e a lavagem de dinheiro, por exemplo, são decorrência da atual
realidade social.
Assim, o Direito Penal e Processual Penal, na forma como previstos
atualmente, com seu rigorismo formal, o têm conseguido reprimir a
ocorrência destes crimes.
3.2. A globalização e a criminalidade transnacional
No âmbito econômico, social, cultural e das comunicações, as duas
últimas décadas têm experimentado um fenômeno denominado globalização.
A globalização é uma característica da sociedade pós-industrial e tem
como motor o incremento dos meios de comunicação, que, cada vez mais,
aproxima as pessoas, independentemente do local do mundo em que se
encontrem.
Dentre os meios de comunicação, o mais recente e que mais tem
contribuído para a formação da chamada “aldeia global” é a internet. Anabela
Miranda Rodrigues destaca a mudança introduzida por este meio de
comunicação, afirmando que ela não se restringiu a imprimir maior
25
velocidade na transmissão das informações, mas alterou a vida de todas as
pessoas. Citou como exemplo marcante a figura de Nelson Mandela, que,
muitas vezes, parece-nos mais familiar do que a de nosso vizinho
19
.
Essa globalização apresenta diversas características: a hegemonia
militar e econômica dos Estados Unidos; a transformação dos locais
estratégicos no mundo; a crise de identidade do Estado-nação; os atores deste
fenômeno são os Estados, as grandes empresas e os organismos
internacionais; a democracia como regime político e a desnacionalização
como meta econômica; a perda do conceito de poder vertical e hierárquico; a
perda da identidade pessoal em relação ao país ou um determinado grupo
social; as ameaças do mundo são as organizações criminosas, os vírus e as
catástrofes naturais; as desigualdades sócio-econômicas e culturais dividem a
população do mundo em globalizados e excluídos; o avanço tecnológico (com
ênfase na internet e a revolução digital); e a transformação do direito por meio
de tratados e tribunais internacionais.
A globalização fez com que as fronteiras entre os países fossem
diluídas, encurtando-se os espaços existentes entre um país e outro. Surgiram
empresas transnacionais e formaram-se grupos internacionais econômicos e
políticos como modo de regulamentar as relações entre as diversas nações.
Da mesma forma, essa globalização já atinge a criminalidade, que
soube evoluir, tornando-se também transnacional. Um mundo globalizado
possibilita a troca de informações de modo célere e constitui fértil campo para
a criminalidade. Assim, é possível, atualmente, que uma pessoa em um
determinado país, sem sair da frente de seu computador, pratique um crime
em outro, situado do outro lado do mundo. É o chamado ‘ciber-crime’.
Também a diversidade de ordenamentos jurídicos permite que o criminoso
escolha o local em que vai praticar o crime (que pode ser diverso do local em
19
RODRIGUES, Anabela Miranda Faria. Globalização, Democracia e Crime. In: COSTA, José de Faria;
SILVA, Marco Antonio Marques da (coords). Direito Penal Especial, Processo Penal e Direitos
Fundamentais – Visão Luso-Brasileira – São Paulo: Quartier Latin, 2006, p. 277;
26
que ele vai esconder o produto do crime, que também pode ser diverso do
local onde ele se abrigará), tudo em prol de se resguardar, de acordo com as
benesses legislativas de cada país.
Nessa era globalizada predominância do crime organizado, que
possui estrutura suficiente para aproveitar-se das facilidades que lhes são
proporcionadas. O crime organizado atua em dois ou mais Estados e,
geralmente tem finalidade econômica. São os chamados crimes of the
powerful (crime dos poderosos
20
) e são, por exemplo: tráfico de
entorpecentes, tráfico de armas, tráfico de seres humanos, tráfico de órgãos
humanos, tráfico de animais, corrupção internacional e crimes cometidos pela
internet.
Verifica-se que a sociedade cobra do direito penal uma resposta a essa
criminalidade. Trata-se de um ônus para o qual ele ainda não está
devidamente preparado, mormente em face da não previsão de todo esse
avanço na legislação e o despreparo dos órgãos incumbitos do combate à
criminalidade.
Também, o combate a esta criminalidade mostra-se muito complicado,
em razão de suas peculiaridades, como, por exemplo, o alto poder de
intimidação das organizações criminosas e a lei do silêncio” imposta a seus
integrantes e a eventuais testemunhas.
De igual modo, essas organizações criminosas aproveitam-se das
lacunas existentes nas diferentes legislações dos países e utilizam seu poder
econômico para corromper os órgãos estatais, facilitando sua atuação.
Embora haja uma predominância dos crimes econômicos, não significa
que eles sejam as únicas formas de criminalidade na era globalizada. Ao lado
de outros delitos como os crimes cibernéticos, o bioterrorismo e os delitos
tradicionais, também se percebe o ressurgimento de crimes que não mais se
20
Conforme tradução feita por Anabela Miranda Rodrigues, Op. Cit., p. 283.
27
observavam, como o tráfico de seres humano (tráfico de órgãos, prostituição e
outros) e a pirataria.
Por fim, a lavagem de dinheiro tem sido prática comum, ante a
necessidade dos criminosos de dar uma aparência lícita ao produto dos crimes
por eles cometidos, podendo, então, desfrutar dos lucros.
Como já mencionado, a globalização atinge também o conceito de
vítima e bem jurídico atingido. A primeira não se apresenta mais de forma
individualizada, mas sim de forma difusa. E a segunda é composta não mais
por interesses individuais, mas sim de bens jurídicos universais, como a
genética, a segurança nos meios de telecomunicação, segurança da internet e
outros.
Diante desses acontecimentos, para fazer frente à evolução da
criminalidade, os Estados vêm buscando novas soluções. Nesse ponto,
podem-se verificar algumas tendências político-criminais decorrentes do
processo de globalização:
1
a
) Descriminalização dos crimes anti-globalização. Como este fenômeno
implica na circulação de pessoas, bens e valores por todas as fronteiras,
alguns crimes tendem a desaparecer por constituírem obstáculo ao próprio
desenvolvimento, como, por exemplo, o crime de descaminho e de evasão de
divisas.
2
a
) Globalização da política criminal. A forma de reação ao crime deve, na
medida do possível, ser uniformizada, especialmente nos crimes que
perturbam a ordem internacional, praticados por organizações criminosas.
Assim, contra a criminalidade transacional devem-se estabelecer reações
transnacionais, evitando-se a existência de “paraísos jurídico-penais”.
28
3
a
) Globalização da cooperação policial e judicial. Para o combate ao crime
transnacional é necessária uma integração dos órgãos responsáveis pela
investigação e repressão, que pode ser feita através de tratados ou acordos de
colaboração mútua, formando-se forças-tarefa e trocando-se informações.
4
a
) Globalização da Justiça criminal. A mais recente das reivindicações
consiste na criação de uma Justiça Criminal Internacional, que de forma
permanente possa julgar os crimes que afetem diversos países. A maior
expressão dessa tendência foi a criação do Tribunal Penal Internacional que
tem competência para julgar os crimes que lesam toda a humanidade, como
genocídio e crimes de guerra.
Estas tendências devem levar a uma flexibilização das regras de
imputação e de garantias penais e processuais como forma de se alcançar a
eficiência no combate a este tipo de crime. Deve-se estabelecer uma
diferenciação entre o crime clássico que atinge vítimas individuais e aquele
em que os efeitos perante a sociedade são de grandes proporções, não
nacionais, como internacionais.
Embora deva o Direito Penal ser cada vez mais excepcional”, ele deve
ser mais severo nos casos em que for chamado a intervir. Justifica-se a
mencionada flexibilização na necessidade de se assegurar a eficiência da
atividade estatal
21
.
Não se defende uma guerra ao crime organizado”, mas a implantação
de mecanismos eficientes para seu combate, sempre se mantendo o devido
equilíbrio entre a necessidade de se combater esse novo mal e a necessidade
de o Estado Democrático de Direito assegurar os direitos individuais das
pessoas investigadas e, posteriormente, acusadas.
21
BECHARA, Fábio Ramazzini. Criminalidade organizada e procedimento diferenciado: entre eficiência e
garantismo. In: COSTA, José de Faria; SILVA, Marco Antonio Marques da (coords). Direito Penal Especial,
Processo Penal e Direitos Fundamentais – Visão Luso-Brasileira – São Paulo: Quartier Latin, 2006, p. 925.
29
Dentro desta flexibilização, necessária para o combate ao crime
organizado, destacamos a utilização de novos meios de investigações. Estes,
embora atinjam direitos individuais
22
, como o direito à intimidade, à vida
privada e o sigilo de comunicações, são ferramentas necessárias ao Estado
para a repressão a esta nova criminalidade.
Assim, a ideia de pronta interferência do Estado para cessar a prática
delituosa teve que ceder à utilização da “ação controlada”. Frize-se, também,
que os obstáculos legais e morais foram superados para que se autorizasse a
infiltração de agentes em organizações criminosas.
Obviamente estas, assim como outras técnicas de investigação (por
exemplo, a interceptação telefônica, quebra de sigilo fiscal e bancária, etc.),
são medidas excepcionais, constituindo a ultima ratio da política criminal,
que podem e devem ser utilizadas quando imprescindíveis para a apuração
de crimes graves, decorrentes da atuação de verdadeiras organizações
criminosas.
Por fim, vale salientar que do ponto de vista político–social, essas
medidas investigativas não são as formas mais eficientes de combate ao
crime, ainda que o organizado. Ainda se acredita que a melhor forma de
combate à criminalidade é a prevenção, que pode ser exercida pela
fiscalização prévia do Estado, mas principalmente pela socialização de todos
os cidadãos, no que se inclui a educação, saúde, respeito e, até mesmo, uma
reestruturação do sistema penitenciário, que há tempos não consegue atingir
sua finalidade ressocializadora.
22
Antonio Scarance Fernandes, na obra Crime Organizado Aspectos Processuais, que coordenou
juntamente com outros autores, se posicionou no sentido de que a ação controlada, quando utilizada
isoladamente, não é lesiva aos direitos individuais.
30
4. CRIME ORGANIZADO
4.1. Evolução legislativa
Com o advento da Lei 9.034/95, o ordenamento jurídico pátrio passou a
dispor de um instrumento legislativo de combate às organizações criminosas.
De imediato, a doutrina debruçou-se sobre o diploma legal em questão,
abordando desde singelos aspectos formais aos de natureza eminentemente
prática.
Uma das discussões mais importantes que se estabeleceu foi acerca do
próprio conceito de organização criminosa.
Nesse particular, deve-se dividir a análise conceitual em dois momentos
distintos: o advento da Lei 9.034/97 e sua alteração pela Lei 10.217/01.
Não se pode negar, por regra geral, que a lei (aqui, em sentido amplo)
define parâmetros para sua aplicabilidade, cabendo ao intérprete verificar a
relação das premissas abstratas com o universo concreto, numa atividade
complementar.
Desta maneira, em seu texto original, a “Lei de Combate ao Crime
Organizado” previa em seu artigo 1º, a notícia de que regularia “meios de
prova e procedimentos investigatórios que versarem sobre crime resultante de
ações de quadrilha ou bando.”
Havia, pois, um norteador para que se estabelecesse o âmbito de
aplicação das normas consequentes, ou seja, organização criminosa seria a
que perpetrasse, em suma, ações de quadrilha ou bando.
De acordo com esse raciocínio, o intérprete era remetido ao artigo 288
do Código Penal, subsistindo indagações sobre as relações d advindas.
Assim, coube ao doutrinador tecer ponderações acerca da definição dada pela
lei. Noutras palavras, do alcance sistemático do conceito de organização
31
criminosa.
Não foram poucos os que se detiveram ao tema. Dentre os quais, Carlos
Alberto Marchi de Queiroz
23
salientou que haveria uma verdadeira
impropriedade legislativa, posto que a exigência de mais de três pessoas
afastaria, desde logo, qualquer conduta desviante assemelhada, praticada por
até três pessoas (nos termos do artigo 288 do Código Penal). Outrossim,
salientava o autor, na época da publicação de seus estudos (1998), que esta
exigência poderia dar margem ao uso de artifícios processuais que poderiam
frustrar em juízo a luta contra o crime organizado.
Alguns outros, como Geraldo Prado e William Douglas
24
, alertavam
que a lei, ao relacionar ações de quadrilha ou bando com atividades de
organizações criminosas, teria pecado por não distinguir quadrilhas de
bagatela das verdadeiras organizações delinquenciais, prevendo para umas e
outras o mesmo tratamento, de sorte que seria inadmissível igualar ladrões
de galinha associados” com as máfias de fraude à Previdência, por exemplo.
De fato, alguns equívocos poderiam ocorrer pela fria leitura do artigo.
Afinal, os tais “ladrões de galinha associados” seriam tidos por organização
criminosa, sofrendo todos os rigores da nova lei, como a vedação à liberdade
provisória.
De outro lado, práticas como o jogo do bicho, atividade com reflexos
notadamente ilícitos, além de outras contravencionais, não estariam
contempladas pelo novo diploma. Isso porque o artigo 288 do Código Penal
incrimina a conduta dos que se associam com a finalidade de cometer crimes,
excluindo-se, nesta leitura, as contravenções.
Por conta de tais ponderações e utilizando a premissa fornecida pela
redação original do artigo 1º (da Lei 9.034/95), algumas linhas de pensamento
23
QUEIROZ, Carlos Alberto Marchi de. Crime Organizado no Brasil, São Paulo, Editora Iglu, 1998, p.17-
18.
24
PRADO, Geraldo & DOUGLAS, William. Comentários à Lei do Crime Organizado. - Belo Horizonte:
Editora Del Rey, 1995, p.42-43.
32
ganharam força na doutrina e jurisprudência.
Surgiram correntes interpretativas, das quais três se destacaram, que,
guardadas as respectivas diferenças, balizaram a atividade jurisdicional na
leitura da expressão “crime organizado”.
A primeira delas, em verdadeira interpretação literal, compreendia que
crime organizado corresponderia às ações praticadas por quadrilha ou bando,
nada mais.
Outra vertente, num acréscimo à primeira concepção, afirmava a
aplicabilidade da Lei 9.034/95 para delito de quadrilha ou bando, incluindo,
pelas regras do concurso material, o ilícito resultante.
Para os defensores de ambas, não se poderia conceber a caracterização
de organização criminosa sem o perfazimento do tipo penal do artigo 288 do
Código Penal. A nova lei serviria para endurecer o tratamento de ilícito
previsto, disciplinando regras processuais e questões probatórias
suplementares às já previstas.
As críticas que tais posicionamentos receberam não foram poucas.
Dentre elas, a hipótese dos “ladrões de galinha associados” (já mencionada
neste trabalho) ganhava relevância, porquanto o novo diploma poderia se
prestar à punição de pequenos criminosos, em descompasso com a vontade do
legislador.
Guaracy Mingardi
25
, ao tratar da provável vinculação dos conceitos de
quadrilha/bando e organização criminosa, argumentou que a simples
tipificação do primeiro não bastaria ao reconhecimento do segundo,
reforçando a ideia de que a interpretação literal não seria a mais correta à
espécie. Dessa feita, após apresentar o preceito primário do artigo 288 do
Código Penal, advertiu que a lei seria adequada apenas para o crime comum,
pois utilizava como único critério o número de participantes. Tal
característica não bastaria para diferenciá-lo do crime organizado.
25
MINGARDI, Guaracy. O Estado e o Crime Organizado, São Paulo: IBCCRIM, 1998, p.39.
33
Mingardi utiliza o exemplo dos arrastões” ocorridos em praias
cariocas, noticiados através de grandes veículos de comunicação, para
justificar seu raciocínio. Diz ele, comparar um misto de briga e corre-corre
numa praia da Zona Sul do Rio de Janeiro, onde centenas de jovens espantam
os banhistas para furtá-los, com o que representaria o crime organizado, seria
demasiadamente equivocado.
Para alguns dos adeptos da primeira posição, o crime do artigo 288 do
Código Penal, por si só, bastaria para a configuração de uma organização
criminosa, enquanto, para a segunda, deveria ser verificada conjuntamente a
prática de delito diverso, desde que resultante da ilícita associação.
De se mencionar, pela concepção derivada, aqueles que se conluiassem
para furtar galinhas (e perpetrassem seus propósitos) responderiam pelo artigo
288, cumulado com o artigo 155, na forma do artigo 69, todos do Código
Penal. Igualmente, os meliantes da orla fluminense. Estariam todos, pois,
abrangidos pela Lei 9.034/95.
Portanto, a distinção prática entre os pensamentos não teria o condão de
suprir a proclamada imperfeição legislativa.
Na falta de outros critérios apresentados pela lei, caberia, então, ao
Poder Judiciário estabelecer a diferença entre as pequenas quadrilhas e
verdadeiras organizações criminosas. Deveria, pois, muito além de dizer o
direito, criar o direito, conferindo a correta aplicabilidade da norma abstrata
ao universo concreto.
Entretanto, critérios diferenciadores não poderiam brotar a esmo, sob
pena de usurpação da própria função legislativa. Falhando a interpretação
autêntica, restaria a sistemática, teleológica, nunca puramente literal.
Adveio, então, um terceiro posicionamento, dando conta de que o
conceito de organização criminosa seria complexo, composto pelos dados
típicos do delito previsto no artigo 288 do Código Penal, mais alguns
requisitos extras.
34
Assim, autores como Luiz Flavio Gomes e Raul Cervini
26
defendiam,
numa interpretação construtiva (considerada bastante questionável pelos
próprios autores), que o correto âmbito de incidência da Lei 9.034/95 estaria
constituído pelas organizações criminosas, de cuja composição fariam parte
os dados típicos do artigo 288 do Código Penal e outras exigências adicionais
(organização, planejamento, hierarquia do grupo etc.).
De plano, a única ponderação que nutria paralelismo entre as leituras
doutrinárias apresentadas, sem dúvidas, era de que o delito de quadrilha ou
bando, tipificado no artigo 288 do Código Penal, constituía o ponto de partida
para qualquer análise sobre a expressão “organização criminosa”.
Criticavam o terceiro posicionamento, mais uma vez, os que não
admitiam o artigo 288 do Código Penal como pressuposto à caracterização de
organização criminosa, embora seus argumentos não fossem suficientes o
bastante para repelir a redação legal.
Entretanto, embora a doutrina concordasse com a exigência de
substratos adicionais
à quadrilha/bando para a definição de crime organizado,
divergia-se sobre alguns aspectos, como pertinência de todos os requisitos,
incidência cumulativa, natureza facultativa de alguns, alternatividade,
permanecendo incerto o conceito de organização criminosa.
Em resposta à discussão, sobreveio uma inovação legislativa que trouxe
novos elementos para essa discussão.
Deste modo, em 23 de junho de 2000, por conta da MSC
27
837/2000,
foi encaminhada proposta de mudança dos artigos 1º e 2º da Lei nº 9.034, de 3
de maio de 1995, que resultou no Projeto de Lei 3.275/00.
Sem adentrar nas minúcias do processo legislativo, convém destacar
26
GOMES, Luiz Flávio & CERVINI, Raúl. Crime organizado. 2ª ed. São Paulo: RT, 1997, p. 89 ss.
27
“Mensagem do Poder Executivo”: Instrumento de comunicação oficial do Poder Executivo aos outros
poderes. Quando destinado ao Poder Legislativo, é utilizado para informar sobre fato da Administração
Pública; expor o plano de governo por ocasião da abertura de sessão legislativa; submeter ao Congresso
Nacional matérias que dependem de deliberação de suas Casas; apresentar veto; enfim, fazer e agradecer
comunicações de tudo quanto seja de interesse dos poderes públicos e da Nação.
35
algumas particularidades sobre a tramitação da propositura.
Dentre as inúmeras discussões sobre o teor apropriado do artigo 1º,
caput, sugeriu-se a redação “Esta Lei define e regula meios de prova e
procedimentos investigatórios que versem sobre a garantia da segurança e
estabilidade institucional, ilícitos decorrentes de ações praticadas por
quadrilha ou bando ou organizações ou associações criminosas de qualquer
tipo”
28
.
Sem dúvidas, se antevia significativa alteração, mormente por
acréscimos como “garantia da segurança”, estabilidade institucional”, e
“ilícitos decorrentes de ões praticadas por quadrilha ou bando ou
organizações ou associações criminosas de qualquer tipo”.
Certamente, não mais existia a tão concepção de quadrilha/bando
para nortear o operador do direito, mas outras balizas.
Entretanto, de logo, as noções de “garantia da segurança” e
“estabilidade institucional” foram suprimidas
29
. De sua banda, durante o crivo
pelo Senado Federal, surgiu a Emenda nº1, a qual determinava a retirada da
expressão “...ou organizações ou associações criminosas de qualquer tipo”.
30
Inegavelmente, a emenda do Senado Federal, em caso de sobrevida,
manteria a essência da lei cuja reforma era discutida. Retornaria, pois, o
parâmetro único da quadrilha ou bando.
Entretanto, não tendo prosperado a Emenda nº1 daquela casa
legislativa, prevaleceu entendimento de que a redação devida ao artigo 1º,
seria: “Esta Lei define e regula meios de prova e procedimentos
investigatórios que versem sobre ilícitos decorrentes de ações praticadas por
quadrilha ou bando ou organizações ou associações criminosas de qualquer
tipo”.
28
Conforme “Diário da Câmara dos Deputados”, sábado, 24 de junho de 2000, p.33931.
29
Conforme “Diário da Câmara dos Deputados”, quinta-feira, 14 de setembro de 2000, p.45828,
Requerimento de Destaque (bancada do PT).
30
Conforme “Diário da Câmara dos Deputados”, quarta-feira, 29 de novembro de 2000, p.61947.
36
Aprovado o teor, restou sancionado o projeto, no que nasceu a Lei
10.217, de 11 de abril de 2001, alterando o trajeto da discussão sobre o
conceito de “organização criminosa”.
Por isso, para significativa parcela da doutrina, três noções passaram a
coexistir, de maneira autônoma e independente, cada qual com seu conteúdo
próprio. Assim, “quadrilha ou bando”, “associação criminosa” e “organização
criminosa” deveriam ser tratadas como concepções distintas.
Neste contexto, o ilícito da quadrilha ou bando”, regrado pelo artigo
288 do Código Penal, remeteria às posições anteriormente apresentadas
(como o risco de se enquadrar condutas penais de somenos relevância),
guardadas as devidas proporções com a nova definição legal
31
.
Por seu turno, associação criminosa”, expressão presente noutros
diplomas, restou caracterizada como o conluio antevisto pelo legislador em
situações específicas. Para ilustrar a hipótese, lições da época se referiam aos
artigos 14 e 18, III, da antiga lei de drogas, como exemplos da espécie.
Atualmente, conforme o raciocínio apresentado, a associação criminosa
se vislumbra no artigo 35 da Lei 11.343/06
32
, naquele concurso para a prática
do genocídio
33
, dentre outras previsões legais.
Questão tormentosa, portanto, repousa no conceito de “crime
organizado”, não devidamente abarcado pela lei, haja vista persistir a ausência
de interpretação autêntica.
Poder-se-ia ponderar que organização criminosa” é o gênero, do qual
são espécies “quadrilha/bando” e “associação criminosa”.
Sob esse aspecto, “associação criminosa” não deveria ser caracterizada
31
Por exemplo, a contravenção penal de jogo do bicho, argumento daqueles que resistiriam à vinculação de
quadrilha/bando com organização criminosa, poderia encontrar guarida nas outras acepções fornecidas pelo
legislador.
32
“Art. 35. Associarem-se duas ou mais pessoas para o fim de praticar, reiteradamente ou não, qualquer dos
crimes previstos nos arts. 33, caput e § 1
o
, e 34 desta Lei: Pena - reclusão, de 3 (três) a 10 (dez) anos, e
pagamento de 700 (setecentos) a 1.200 (mil e duzentos) dias-multa. Parágrafo único: Nas mesmas penas do
caput deste artigo incorre quem se associa para a prática reiterada do crime definido no art. 36 desta Lei”
33
Art. da Lei 2889/56: Associarem-se mais de 3 (três) pessoas para prática dos crimes mencionados no
artigo anterior.
37
apenas como o conluio legalmente definido (v.g., lei de drogas), embora
incluísse a hipótese. Teria, cumpre ponderar, alcance mais abrangente,
possibilitando o acréscimo de requisitos extras, livrando-se das amarras
materiais da lei.
Não parece ser esta a solução adequada, porquanto associação
criminosa” poderá se restringir às hipóteses que o legislador lhe atribuir,
conforme o caso específico, deixando a liberdade doutrinária definir “crime
organizado” conforme a expressão “organização criminosa de qualquer tipo”,
extraída do artigo 1º.
Dessa via, diversos juristas reconhecem que associação criminosa” e
“quadrilha ou bando”, embora perfilados à organização criminosa” pela Lei
10.217/01, não se confundem com “crime organizado”.
A questão, pois, resolve-se da seguinte maneira: “crime organizado”
seria a espécie “organização criminosa em sentido estrito”, enquanto
“organização criminosa em sentido amplo” abraçaria também, enquanto
gênero, “quadrilha ou bando” e “associação criminosa”.
A discussão em comento ostenta pertinência, teórica e prática, por
vários motivos. Exemplificando, numa análise da delação premiada, prevista
no artigo da Lei 9.034/95: “Nos crimes praticados em organização
criminosa, a pena será reduzida de um a dois terços, quando a colaboração
espontânea do agente levar ao esclarecimento de infrações penais e sua
autoria”.
Caso o intérprete entenda que “organização criminosa” é um sinônimo
de crime organizado”, este diferente em essência da “associação criminosa”
e “quadrilha ou bando”, aos últimos não se aplicaria a delação premiada.
E, evidentemente, a pretensão do legislador foi a de que o diploma, com
todas as suas disposições, regulasse as condutas perpetradas pelos grupos
descritos no artigo inaugural. Daí a razão primordial da distinção entre
“organização criminosa em sentido estrito” (aqui como “crime organizado”
38
ou organização criminosa propriamente dita”) da organização criminosa em
sentido amplo” (gênero que abrange “associação criminosa” e “quadrilha ou
bando”, as quais também poderiam ser denominadas “organizações
criminosas por equiparação”).
A par da discussão até então enfrentada, o próprio parlamento
reconheceu sua omissão, tendo buscado, ainda que tardiamente, apresentar a
definição legal de “organização criminosa”.
Dentre as diversas propostas de alteração, destacamos a propositura do
Projeto de Lei nº 7.223/02
34
, tendente a alterar a Lei 9.034/95. Na justificativa
do projeto o deputado federal Luiz Carlos Hauly, do PSDB-PR, apontou que a
maior omissão da Lei 9.034/95 foi não ter explicitado o conceito de crime
organizado” ou de “organização criminosa”, o que gerou sérios embaraços a
interpretação e aplicação desta lei. Também explicitou a necessidade de se
diferenciar o crime organizado das tradicionais quadrilhas e bando, muito
previstas no Código Penal
35
.
De certo, caso o projeto fosse convertido em lei, desprezando-se a
possibilidade de qualquer alteração significativa durante o processo
legislativo, seria forçoso reconhecer que, numa interpretação autêntica, crime
organizado pressuporia: a) hierarquia estrutural; b) planejamento empresarial;
c) uso de meios tecnológicos avançados; d) recrutamento de pessoas; e)
divisão funcional de atividades; f) conexão estrutural ou funcional com o
poder blico ou com agente do poder público; g) oferta de prestações
sociais; h) divisão territorial das atividades ilícitas; i) alto poder de
intimidação; j) alta capacitação para a prática de fraude; l) conexão local,
regional, nacional ou internacional com outra organização criminosa.
Esses requisitos, vale lembrar, exigidos no projeto de um parágrafo
único a ser incluído no artigo da Lei 9.034/95, ao mesmo tempo em que
34
A integra do projeto de lei encontra-se disponível no sitio eletrônico da Câmara dos Deputados, através do
endereço: “http://www.camara.gov.br/sileg/integras/98644.pdf”
35
Ibidem.
39
resolveriam alguns problemas, de outro lado, trariam outros.
Por consequência, cumpre discutir se a redação proposta, com seus
onze requisitos, exigiria a concomitância de todos eles. Ou seja, questiona-se:
a caracterização de organização criminosa, para os novos efeitos da respectiva
lei, presumiria que todas as exigências fossem observadas? Este o desafio que
teria de ser enfrentado pela doutrina.
Parece sensato concluir que a resposta deve ser negativa.
Ora, dizer que uma organização criminosa apenas poderia ser assim
caracterizada, sofrendo os imperativos da lei, se verificado, por exemplo, o
uso de meios tecnológicos avançados, complicaria em muito as atividades do
Poder Judiciário.
É perfeitamente concebível que uma estrutura inadvertidamente
montada para a prática de ilícitos, dotada de hierarquia
36
, planejamento,
recrutamento de pessoas, divisão funcional de atividades, dentre outros, se
utilize de meios mais simplificados de comunicação, como cartas,
mensageiros próprios, telefone com linha discada e outros.
Para demonstrar a plausibilidade da hipótese, basta lembrar muitas
gangues que fomentam o tráfico de drogas, cujo movimento financeiro é
descrito em simples cadernos, a chegada de policiais é alertada com menores
empinando pipas e o comércio é feito pelos “aviõezinhos”, que fuzilam os
seus devedores e amedrontam a comunidade. Como dizer que não se trata de
organização criminosa?
Importante ponderar que ainda o problema do enredo probatório.
Como provar em juízo, muitas vezes, o uso de tecnologia avançada”, e mais,
o que significaria a expressão. Basta que lembremos as bandas largas e
celulares modernos (com câmera, internet, etc), até pouco tempo considerados
36
Aqui, em sentido amplo, deixando-se de lado a discussão de que “obediência hierárquica” pode ser
vislumbrada dentro da Administração Pública. Pensar desta maneira, ainda mais quando se busca entender o
fenômeno das organizações criminosas, poderia aniquilar o objetivo da lei, afinal, exigiria uma relação de
direito público com o subordinado, o que nos parece absurdo neste caso.
40
objetos de luxo e, atualmente, alvos de promoções cada vez mais acessíveis
aos brasileiros de baixa renda.
Parece que a solução mais adequada seria caracterizar organização
criminosa como a estrutura em que, no seu bojo, estivessem presentes
diversos daqueles fatores que se pretendem incluir na lei, não necessariamente
todos.
Entretanto, até o momento o mencionado Projeto de Lei não vingou,
como também ainda não tiveram sucesso outras propostas de alteração da Lei
9.034/95 nesse aspecto.
Finalmente, vale ainda lembrar que, em 2004, o Brasil incorporou ao
seu ordenamento
37
o texto da “Convenção das Nações Unidas contra o Crime
Organizado Transnacional”, adotado em Nova Iorque, em 15 de novembro de
2000, que em seu artigo 2º apresenta uma definição de grupo criminoso
organizado
38
.
Da definição trazida pelo diploma internacional é possível extrair-se os
elementos mínimos para a configuração de uma organização criminosa no
Brasil, vez que o texto está incorporado em nosso ordenamento, com força de
lei ordinária.
O primeiro requisito é relativo à pluralidade mínima de integrantes, que
segundo a convenção de Nova Iorque é de três pessoas. Assim, para a
caracterização de uma organização criminosa são necessárias pelo menos três
pessoas.
O requisito seguinte refere-se à necessidade de que a atividade exercida
37
Ver Decreto 5.015, de 12 de março de 2004, e Decreto Legislativo 231, de 29 de maio de 2003.
38
Art. 2º: Para efeitos da presente Convenção, entende-se por:
a) ‘Grupo criminoso organizado’ - grupo estruturado de três ou mais pessoas, existente algum tempo e
atuando concertadamente com o propósito de cometer uma ou mais infrações graves ou enunciadas na
presente Convenção, com a intenção de obter, direta ou indiretamente, um benefício econômico ou outro
benefício material;
b) ‘Infração grave’ - ato que constitua infração punível com uma pena de privação de liberdade, cujo máximo
não seja inferior a quatro anos ou com pena superior;
c) ‘Grupo estruturado’ - grupo formado de maneira não fortuita para a prática imediata de uma infração,
ainda que os seus membros não tenham funções formalmente definidas, que não haja continuidade na sua
composição e que não disponha de uma estrutura elaborada.
41
pelo grupo seja ilícita.
Em terceiro lugar exige-se uma atuação combinada, da qual se extrai a
necessidade de existência de divisão de tarefas e uma hierarquia na
organização, com submissão a um comando.
o quarto requisito é extraído do termo “existente algum tempo”,
do qual decorre a necessidade de se verificar a estabilidade e permanência do
grupo. Note-se que a Convenção de Palermo contenta-se com a intenção de se
praticar um crime grave
39
, mas não prescinde da estabilidade e
permanência.
O requisito seguinte é a existência de um grupo estruturado, ou seja,
que não decorra de uma união fortuita, casual.
O último requisito é que a organização tenha como objetivo uma
vantagem econômica ou outro benefício material. Trata-se de reflexo da
preponderância dos crimes econômicos, diferenciando essas organizações dos
grupos terroristas que são movidos por fins religiosos ou ideológicos.
Apesar do artigo da Convenção dispor que o texto versa sobre a
criminalidade organizada transnacional, não razão para se diferenciar o
tratamento, para fins de definição, entre uma organização criminosa que tenha
atuação transnacional ou regional.
Ademais, o próprio texto da Convenção, em seu artigo 34, item 2,
dispensa a natureza transnacional dos delitos que prevê para fins de
incorporação ao direito interno de cada um dos Estados – parte.
Portanto, a transnacionalidade é apenas uma das características
possíveis de se encontrar em uma organização criminosa, mas sua ausência
não a desnatura.
Assim, apesar de se utilizar de termos vagos, a definição acima
transcrita, constante do artigo 2, “a”, da chamada Convenção de Palermo, é a
melhor definição legislativa de que dispomos em nosso ordenamento jurídico.
39
Ao contrário do artigo 288 do Código Penal brasileiro, que exige a finalidade de cometer crimes.
42
Ela traz a vantagem de ser adotada por outros países signatários, o que
permite a uniformização do combate à atuação destas organizações.
4.2. Necessidade de conceituação
Discute-se a necessidade de que o Brasil edite nova lei definindo o que
seja crime organizado.
A princípio, o texto da convenção de Palermo, incorporado ao nosso
ordenamento jurídico pelo Decreto 5.015, de 12 de março de 2004, supre a
necessidade da existência de uma conceituação para atender ao princípio da
legalidade.
Dessa forma, não como se sustentar a inaplicabilidade dos diversos
dispositivos legais que se referem a crime organizado ou organização
criminosa por falta de uma definição legislativa.
Apesar das críticas no sentido de que a norma utiliza termos vagos e
imprecisos, não se pode esquecer que o crime organizado é um fenômeno
dinâmico e flexível, sempre a atuar nas brechas legislativas e fragilidades do
Estado.
Assim, a edição de uma norma que previsse um conceito fechado de
crime organizado, exigindo a presença de requisitos objetivos poderia tornar-
se obsoleta pouco tempo após sua edição, causando a impunidade das ações
dessas organizações.
São inúmeras as dificuldades de se chegar a uma definição sobre o que
seja crime organizado, principalmente a inexistência de uma estrutura
orgânica homogênea, decorrente de sua possibilidade de adaptar-se a qualquer
estrutura sócio-econômica e a necessidade de livrar-se das medidas adotadas
pelo Estado para combatê-la.
Entretanto, ainda quem defenda a edição de uma lei ordinária, não
43
apenas definindo o que é uma organização criminosa, mas também tipificando
a conduta daquele que a integra.
Destarte, seria necessária a edição de um tipo penal que trouxesse
algumas características históricas dessas organizações criminosas, como a
participação mínima de duas pessoas, intenção de obter vantagem econômica,
infiltração no poder estatal, divisão funcional de tarefas e outros.
O legislador deveria, diante dessas características, estabelecer que,
comprovada a existência de um mero mínimo desses requisitos, estaríamos
diante uma organização criminosa. Obviamente, há necessidade de prudência
ao se estabelecerem os requisitos mínimos, visando-se a não inviabilizar a
aplicação do dispositivo.
A vantagem da adoção dessa medida seria a possibilidade de se
estabelecer um tipo penal incriminador para a conduta daquele que venha a
integrar uma organização criminosa, pois muitas vezes não é possível
comprovar a participação de todos os integrantes de uma organização na
prática de um determinado crime.
André Luís Callegari
40
tece duras críticas a essa solução, apontando a
conceituação legislativa de crime organizado seria muito próximo ao conceito
do crime de quadrilha, além de que o Estado estaria impondo um modelo de
transferência de responsabilidade de um ente coletivo a cada um de seus
integrantes, o que fere os critérios de imputação de responsabilidade.
Vale recordar que ao aderir à Convenção de Palermo, o Brasil
comprometeu-se a tipificar a conduta daquele que integra organização
criminosa, conforme disposto no artigo 5º desse diploma internacional.
Entretanto, deve-se admitir que até o momento não foi possível chegar
a um conceito completo sobre crime organizado, motivo pelo qual
entendemos que, até que a ciência criminal chegue a um consenso, devemos
40
CALLEGARI, André Luís, Crime Organizado (org) Tipicidade Política Criminal Investigação e
Processo. Porto Alegre: Ed. Livraria do Advogado, 2008, p. 18-19.
44
permanecer com o conceito estabelecido na Convenção de Palermo.
4.3. Definição doutrinária
A despeito de todo o exposto, trabalhando com as premissas que hoje
vigoram na ordem jurídica, a doutrina, a seu modo, tratou de conceituar o que
seria “crime organizado”.
Mario Chiavario entende que, por organizações criminosas, dentre
outros sentidos, estão as:
“(...) Organizações robustamente radicadas sobre o território mas
também com estreitas ligações e ramificações internacionais, ligadas
sobretudo aquele narcotráfico, que aqui na América Latina se sente
com uma intensidade ainda mais assustadora. Organizações capazes
de criar uma espécie de anti-ordenamento jurídico com próprias
regras, próprios tribunais e, sobretudo, próprios executores de
sentenças, mas também, como dizíamos, de insinuar-se nas fibras
mais íntimas das próprias instituições estatais; em uma rede de
conivência e solidariedade que se imprimem em inércias difusas
quando não em trocas de apoios ativos (e suspeitos, entre os mais
inflamados, chegaram também a roçar personalidades colocadas
no vértice do aparelho estatal). Organizações, enfim, que nos últimos
anos puderam aproveitar também da degeneração das relações entre
o mundo dos negócios, com a ampliação do assim chamado sistema
de propina (isto é, das compensações distribuídas por baixo do pano
pelos empreendedores públicos e privados, para partidos e homens
de partido para obter vantagens de todos os gêneros)”
41
.
Alberto Silva Franco discorre sobre algumas das características da
criminalidade organizada, que, além da transnacionalidade, possui uma
sofisticada estrutura organizacional, uma finalidade de obter lucros
ilimitados, dificuldade de determinação territorial e capacidade de criar uma
zona cinzenta entre o lícito e o ilícito
42
.
Da mesma forma, Mario Daniel Montoya admite que ainda não um
41
CHIAVARIO, Mario. Direitos Humanos, Processo Penal e Criminalidade Organizada. Revista Brasileira
de Ciências Criminais, São Paulo, n.5, janeiro / março de 2004, p.28, apud PRADO, Geraldo; DOUGLAS,
William. Comentários à Lei do Crime Organizado. Belo Horizonte: Editora Del Rey, 1995, p.41-42.
42
FRANCO, Alberto Silva, Globalização e Criminalidade dos Poderosos. In: PODVAL, Roberto (org.).
Temas de Direito Penal Econômico. - São Paulo: Ed. RT, 2000, p. 260.
45
conceito satisfatório de crime organizado, mas afirma que é possível definir-
lhe as principais características:
“1) O alto padrão organizativo; 2) A racionalidade do tipo de
empresário da corporação criminosa’, que oferece bens e serviços
ilícitos (tais como drogas e prostituição) e vem investindo seus
lucros em setores legais da economia; 3) A utilização de métodos
violentos com a finalidade de ocupar posições proeminentes ou de
ter o monopólio do mercado (obtenção do máximo lucro sem
necessidade de realizar grandes investimentos, redução dos custos e
controle da mão-de-obra); 4) Valer-se da corrupção da força policial
e do Poder Judiciário; 5) Estabelecer relações com o poder político;
6) Utilizar a intimidação e o homicídio, seja para neutralizar a
aplicação da lei, seja para obter decisões políticas favoráveis ou para
atingir seus objetivos”.
43
Marcelo Batlouni Mendroni salienta que organização criminosa é uma
empresa com o objetivo de praticar as mais diversas formas de crimes
44
,
detalhando que as tipicamente brasileiras têm observado os seguintes
elementos: a) estrutura hierárquico-piramidal (com chefes, gerentes e aviões);
b) divisão direcionada de tarefas; c) membros restritos; d) agentes públicos
participantes ou envolvidos (quando não participam efetivamente do grupo,
são corrompidos para viabilizar a ação das atividades criminosas); e)
orientação para a obtenção de dinheiro e de poder; f) domínio territorial
45
.
Muito semelhantes são as características apontadas por Eduardo Araujo
da Silva
46
: a) acumulação de poder econômico; b) alto poder de corrupção; c)
necessidade de “legalizar” o lucro obtido ilicitamente; d) alto poder de
intimidação; e) conexões locais e internacionais; f) estrutura piramidal; g)
relação com a comunidade.
Vale mencionar, ainda, os caracteres fundamentais arrecadados na
doutrina por Antonio Scarance Fernandes:
43
MONTOYA, Daniel Mario. Máfia e Crime Organizado Aspectos legais, autoria mediata,
responsabilidade penal das estruturas organizadas de poder. Atividades criminosas. - Rio de Janeiro: Ed.
Lúmen Jutis, 2007, p. 67-68.
44
MENDRONI, Marcelo Batlouni. Crime Organizado Aspectos Gerais e Mecanismos Legais. São Paulo:
ed. Juarez de Oliveira, 2002, p.10.
45
Ibidem, p.13-18.
46
SILVA, Eduardo Araujo. Crime Organizado Procedimento Probatório. Edição. São Paulo: Ed. Atlas,
2009, p. 15-19.
46
“.. associação permanente e estável de diversas pessoas; estrutura
empresarial, hierarquizada e piramidal, com poder concentrado nas
mãos dos deres, os quais não mantêm contato diretamente com as
bases; poder elevado de corrupção; uso de violência e intimidação
para submeter os membros da organização e para obter a
colaboração ou o silêncio de pessoas não participantes do núcleo
criminoso, finalidade de lucro; uso de sistemas de lavagem de
dinheiro para legalizar as vultosas somas obtidas com as práticas
delituosas; regionalização ou internacionalização da organização; o
uso de modernas tecnologias”
47
.
Interessante notar que os conceitos apresentam estreita semelhança,
capaz de delinear os requisitos mínimos de uma organização criminosa.
Ademais, a maioria desses requisitos apresentados pela doutrina estão
inclusos no Projeto de Lei 7.223/02, acima mencionado.
Destarte, nessa comparação entre o material legislativo (ainda que
numa fase embrionária) e doutrina, a convergência de pontos comuns poderia
resultar na tão esperada pacificação conceitual sobre crime organizado, de
modo que facilitaria aos operadores do direito o manejo de medidas eficazes
de combate a essa nefasta estrutura.
4.4. Direito estrangeiro
Apesar da constante mutação do crime organizado, em alguns países o
combate a essas organizações colhe significativos frutos, oriundos de
políticas públicas que tiveram coragem suficiente para reconhecer o problema
e, adiante, buscaram extirpá-lo do cotidiano de seus cidadãos de bem.
É cediço, todavia, que cada nação apresenta formas diversas de
criminalidade, de sorte que a concepção de organização delituosa acaba se
moldando de acordo com a realidade territorial. Assim, apesar de alguns
47
FERNANDES, Antonio Scarance. O equilíbrio na repressão ao crime organizado. In: FERNANDES,
Antonio Scarance, ALMEIDA, José Raul Gavião de; MORAES, Maurício Zanoide de (coords). Crime
Organizado: Aspectos processuais – São Paulo: Editora Revista dos tribunais, 2009, p. 13.
47
pontos comuns, o conceito sofre mudanças de acordo com as realidades
sociais, políticas, econômicas ou religiosas de cada região.
Diante desse quadro, alguns autores terminam por diferenciar
substancialmente “máfia” de “crime organizado”. Enquanto, para outros, as
expressões poderiam ser consideradas sinônimas.
A relevância da distinção entre eles, para aqueles que as observam
como realidades distintas, residiria na maneira como um governo deveria
combatê-las. A “máfia” ostentaria estrutura mais complexa, com lealdade
imensurável de muitos de seus membros aos chefes (como se integrassem
uma “família”). Ela estaria, ainda, enraizada no seio de algumas comunidades,
dificultando sua total dissolução pelo aparato estatal.
Alguns autores ponderam que, observadas as diferentes máfias que o
mundo conhece atualmente, alguns aspectos podem ser reputados comuns, o
que torna possível enquadrá-los como premissas inerentes a tais grupos.
Mario Daniel Montoya, nesse rumo, ensina que, dentre as máfias
conhecidas, os temas característicos podem ser resumidos em sete
48
: a)
posição central da família (com a ressalva de que, por exemplo, na sociedade
chinesa, a expressão pode abarcar até o povoado natal e o grupo étnico,
incluindo consanguíneos e aliados); b) o sentido da honra (regra que constitui
sua única lei, v.g. verdade e sinceridade dentro do grupo, bem como o silêncio
fora dele); c) A cultura da morte (a vida deve ser sacrificada em prol dos
interesses da organização); d) A relação com o Estado e com o poder; e) o
mito fundante (Como exemplo, sociedade das “Tríadas”, que ostentava tal
denominação por conta de seu símbolo, um triângulo equilátero cujos vértices
representam os três conceitos da China: céu, terra e homem.); f) a utilização
da violência; g) estrutura e organização.
Explicando a relação das máfias com o Estado e poder, o mesmo autor
48
MONTOYA, Mario Daniel. fia e Crime Organizado. Rio de Janeiro: Editora Lúmen Iuris, 2007, p.01-
03
48
defende que, atualmente, algumas máfias têm poder igual ou superior ao de
um Estado, elas possuem potencial militar e econômico
49
.
Montoya, prosseguindo o raciocínio, compreende o fenômeno como
uma empresa criminosa, que possui fins lucrativos, cujos membros são
selecionados por meio de iniciação ou captação, utiliza-se de violência,
corrupção e influência para conseguir o silêncio e obediência de todos que
lhes interessa. Ainda, na maioria das vezes, possui uma história e uma forte
raiz sociocultural local, mas expande suas atividades a outros Estados
50
.
Sem olvidar, Giovanni Falcone, magistrado que ferrenhamente
combateu a italiana Cosa Nostra, analisando as máfias, concluiu que elas não
podem ser classificadas como um antiestado, mas como uma organização que
funciona de forma paralela, aproveitando as distorções do desenvolvimento
econômico para atuar na ilegalidade
51
.
Da análise das máfias mais conhecidas, verifica-se que possuem como
características comuns a rigidez organizacional e uma enorme
clandestinidade. Não que a organização e a clandestinidade não sejam
também características das organizações criminosas, mas nas máfias
apresentam-se em destaque, com grande relevância.
Também a dificuldade de ingresso, a lealdade, a honra, regras de
comportamento rígidas, sanções e sistema de punição interna são
peculiaridades das organizações mafiosas.
Vale dizer, a distinção apresentada, entre “máfia” e “crime organizado
apresenta relevância quando analisadas algumas organizações criminosas
específicas, tal qual a Cosa Nostra italiana. Um ex-integrante que resolvesse
desvendar os pilares da organização, para que sentisse estímulo a fazê-lo, não
poderia ser beneficiado com uma simples redução de pena, mas sim, de
garantias de que sua vida seria preservada, incluindo-se mudança de
49
Ibidem, p.2.
50
Ibidem, p. 2.
51
Citado por MONTOYA, Mario Daniel, ibidem.
49
identidade, monitoramento constante do Estado, dentre outros.
Não que o delator do crime organizado (entendido como estrutura
menos complexa que a máfia) também não devesse ficar receoso por sua vida.
Todavia, a organização mafiosa não se contentaria tão somente em
desacreditar a testemunha, como regra geral, mas silenciar um desagregado,
violador de pactos de honra com o grupo.
A máfia, por certo, apresenta comandos que se afastam de suas próprias
finalidades ilícitas, ainda que com ela mantenham relação indireta, regrando
todos os aspectos da vida de seus integrantes. Traça, inclusive, regras de
conduta a serem adotadas no âmbito familiar.
A despeito dessa distinção, entre “máfia” e “crime organizado”, o certo
é que inúmeros países já talharam seus conceitos sobre crime organizado.
Desta feita, no Reino da Espanha, embora a lei processual tenha sido
aprovada bastante tempo, pelo Real Decreto de 14 de setembro de 1882
(denominada Ley de Enjuiciamiento Criminal), diversas alterações
substanciais foram percebidas, de modo a compatibilizar seus dispositivos
com novas exigências legais.
Surgiu, então, a Lei Orgânica 5/1999
52
, que modificou a Ley de
Enjuiciamiento Criminal. Adveio, então, o artigo “282 bis”, no título
destinado a Polícia Judicial, referindo-se às organizações criminosas através
de cinco parágrafos.
O artigo 282 bis, apartado 4, apresenta o que se deve entender por
organização criminosa, dispõe que para os efeitos do disposto no artigo 282
bis, parágrafo 1º, daquele diploma espanhol
53
, se considera organização
criminosa a associação, de três ou mais pessoas, para realizar, de forma
permanente ou reiterada, condutas que tenham por finalidade a prática de
52
Ley Orgánica 5/1999, de 13 de janeiro.
53
A análise do artigo 282 bis, parágrafo 1º, da Ley de Enjuiciamiento Criminal, será objeto de estudo no
momento oportuno, em capítulo posterior, justamente por se relacionar com a discussão acerca do agente
infiltrado. Por ora, interessa apenas o conceito de organização criminosa (delincuencia organizada).
50
determinados delitos: extorsão mediante sequestro
54
, participação na
prostituição
55
, crimes contra o patrimônio e ordem socioeconômica, contra a
propriedade intelectual e industrial, contra os direitos dos trabalhadores,
tráfico de espécies da fauna ou flora ameaçada, tráfico de material nuclear ou
radioativo, contra a saúde pública, falsificação de moeda, tráfico e depósito de
armas
56
, terrorismo e retirada, da Espanha, de bens que integrem seu
patrimônio histórico
57
.
De outro lado, em Portugal, duas leis merecem destaque justamente por
trabalharem a ideia de criminalidade por grupos.
O Código Penal português, em seu artigo 299, define o que
representaria associação criminosa”, punindo-se aquele que promove ou
funda grupo, organização ou associação cuja finalidade seja a prática de
crimes. Note-se que não se exige um número mínimo de pessoas para a
configuração do delito. O parágrafo terceiro deste mesmo dispositivo pune
com pena mais severa os chefes ou dirigentes dessa associação criminosa.
Pela regra do artigo 299 do Código Penal, forçoso reconhecer sua
proximidade com o nosso artigo 288, que versa sobre quadrilha ou bando,
dotado aquele, todavia, de maior especificidade.
Outro diploma significativo naquele país é a Lei 5/2002, que estabelece
medidas de combate à criminalidade organizada e econômico-financeira,
dentre outros, prevendo um regime especial de coleta de provas. O artigo
desta lei estabelece os crimes para os quais se aplica este regime especial, que
são: tráfico de drogas, terrorismo, tráfico de armas, tráfico de influência,
54
O delito de secuestro de personas, previsto no artigo 164, do Código Penal da Espanha, diante de seu
preceito primário, El secuestro de una persona exigiendo alguna condición para ponerla en libertad, remete,
como paralelo no âmbito brasileiro, ao crime de extorsão mediante sequestro, justamente pela exigência de
condição para soltura.
55
Quanto aos artigos 187 a 189 do Código Penal da Espanha, observa-se o equivalente no Brasil pelos
artigos 228 a 230 do Código Penal, e 240 a 241 do Estatuto da Criança e do Adolescente.
56
Observar, no Brasil, o Estatuto do Desarmamento.
57
Artigo 2, parágrafo , “e”, Ley Organica 12/1995: Cometen delito de contrabando, siempre que el valor
de los bienes, mercancías, géneros o efectos sea igual o superior a 3.000.000 de pesetas los que: (...) Saquen
del territorio español bienes que integren el Patrimonio Histórico Español, sin la autorización de la
Administración del Estado cuando ésta sea necesaria.
51
corrupção ativa e passiva, peculato, participação econômica em negócios,
lavagem de capitais, associação criminosa, contrabando, tráfico e viciação de
veículos furtados, lenocínio, tráfico de menores, falsificação de moeda e
outros títulos equiparados.
A leitura da Lei 5/2002, alterada pela Lei 19/08, consoante seu artigo
1º, parágrafo 2º, quando qualquer dos crimes do parágrafo 1º, de “a” a n”,
forem perpetrados de maneira organizada, aplica-se o regime especial de
coleta de provas (ressalvando-se que os ilícitos de contrabando, tráfico e
viciação de veículos furtados, lenocínio e tráfico de menores e contrafação de
moeda e de títulos equiparados a moeda apenas observam o diploma se,
exclusivamente, forem praticados por tais grupos).
Já, na República Italiana, vislumbramos os artigos 416 e 416-bis, do
respectivo Código Penal, os quais tratam, respectivamente, da associação para
delinquir e da associação mafiosa.
Em suma, pela redação conferida ao artigo 416 do Código Penal
italiano, quando três ou mais pessoas se associam com a finalidade de
cometer vários delitos, aquele que promover ou organizar a associação é
punido, por esse simples fato, com a prisão de três a sete anos. De outra via, o
simples fato de participar do grupo acarreta pena de um a cinco anos.
De outro lado, o art. 416-bis, do mesmo estatuto repressivo, prevê a
participação de pelo menos três pessoas para caracterizar o grupo mafioso,
bem como a utilização, por parte dos membros, dentre outros, da intimidação
oriunda do vínculo associativo. Reprova-se o intuito de adquirir, de modo
direto ou indireto, a gestão ou o controle de atividades econômicas, de
concessões ou de permissões de serviços públicos, para obter lucro ou
vantagem ilícita. Punem-se, também, as ações que visem a obstruir o livre
exercício do direito de voto, ou a utilização de intimidação para captar votos
para si ou para outrem.
Por conta das menções anteriormente apresentadas, sobre o conceito de
52
máfia e crime organizado, não restavam dúvidas de que, em vista dos diversos
embates entre a justiça italiana e alguns mafiosos, o país adotaria tipo penal
específico.
Deve ser lembrado que o sobredito comentário encontra guarida na
discussão sobre o próprio conceito de crime organizado, afinal, ele se altera
conforme as particularidades percebidas por cada ente soberano.
De outra via, o crime organizado também é alvo de estudos por
diversos órgãos ao redor do mundo, o que quase sempre reflete a necessidade
da respectiva nação em combater os grupos delituosos.
Assim, de acordo com o “Federal Bureau of Investigation”,
mundialmente conhecido por sua sigla (FBI), crime organizado pode ser
definido como:
“Qualquer grupo tendo algum tipo de estrutura formalizada cujo
objetivo primário é a obtenção de dinheiro através de atividades
ilegais. Tais grupos mantém suas posições através do uso da
violência, corrupção, fraude ou extorsões e, geralmente, têm
significativo impacto sobre os locais e regiões do País onde
atuam”.
58
Já, para a “Interpol”, a definição de organização criminosa pode ser
traduzida desta maneira: Qualquer grupo que tenha uma estrutura
corporativa, cujo principal objetivo seja o ganho de dinheiro através de
atividades ilegais, sempre subsistindo pela imposição do temor e a prática da
corrupção”.
59
Lembrando do modelo estadunidense, importante salientar que alguns
estados federados (dada a autonomia entre os entes que, por lá, ostenta feições
significativas), adotaram suas providências no combate ao crime organizado.
De exemplo, o estado da Califórnia tentou compreender o fenômeno
das organizações criminosas e caracterizou-as da seguinte maneira:
“Consiste em duas ou mais pessoas que com continuidade de
58
MENDRONI, Marcelo Batlouni. Crime Organizado Aspectos Gerais e Mecanismos Legais. São Paulo:
ed. Juarez de Oliveira, 2002, p.6.
59
Ibidem.
53
propósitos, se engajam em uma ou mais das seguintes atividades: 1-
Provimento de coisas e serviços ilegais, vícios, usura 2- Crimes
predatórios como furtos e roubos; diversos tipos distintos de
atividades criminosas se enquadram na definição de crime
organizado, que podem ser distribuídos em cinco categorias:
1. Extorsões;
2. Operadores de vícios: Indivíduos que operam um negócio
contínuo de coisas ou serviços ilegais, como narcóticos, prostituição,
usura e jogos de azar;
3. Furtos/Roubos/Receptações/Estelionatos;
4. Gangues: Grupos de indivíduos com interesse comum ou segundo
plano de se atarem juntos e se engajarem coletivamente em
atividades ilegais para crescer a sua identidade grupal e influência,
como gangues de jovens, clubes de motoqueiros fora-da-lei e
gangues de presidiários;
5. Terroristas: Grupos de indivíduos que combinam para cometer
espetaculares atos criminais, como assassínios e seqüestros de
pessoas públicas, para minar confidências públicas em governos
estáveis por razões políticas ou para vingar-se de alguma ofensa”
60
.
A União Europeia, em 1997, aprovou o documento Enfopol 161-REV-
3 (Diretriz 6204/2/97), no qual descreve onze características para se
identificar a existência de uma organização criminosa. São elas: a)
colaboração de duas ou mais pessoas; b) permanência da organização; c)
cometimento de delitos graves; d) ânimo de lucro; e) distribuição de tarefas; f)
controle interno da organização sobre seus membros; g) atividade
internacional; h) violência; i) uso de estruturas comerciais ou de negócios; j)
branqueamento de capitais; e k) pressão sobre o poder público. As quatro
primeiras devem, obrigatoriamente, estarem presentes, sendo que as demais
podem variar de acordo com o tipo de organização.
O fato, pois, é que deve haver um conceito mínimo do que seria
organização criminosa, ao qual se acrescentariam elementos extras, conforme
as realidades de cada país. Nesse raciocínio, eventualmente, se enquadraria a
mencionada Convenção de Palermo, que estabeleceu um norte para a
unificação das definições.
60
ABADINSKY, Howard. Organized Crime, Nelson-Hall Publisher, Chicago, p.2-4 apud MENDRONI,
Marcelo Batlouni. Crime Organizado Aspectos Gerais e Mecanismos Legais. São Paulo: ed. Juarez de
Oliveira, 2002. p.5.
54
5. AÇÃO CONTROLADA
5.1. Definição
Um dos mais importantes mecanismos para o combate ao crime
organizado é a ação controlada, instituto de grande utilidade para se
identificar diversos integrantes de uma organização criminosa.
Embora a “Lei do Crime Organizado” seja de 1995, bem como diversos
debates tenham surgido durante o trâmite legislativo, é fato que os brasileiros
somente em tempos recentes se acostumaram a lidar com a expressão “ação
controlada”, principalmente por conta de casos que obtiveram grande
repercussão nacional e, consequentemente, destaque na mídia.
Como exemplo, no caso envolvendo a chamada “Operação Satiagraha”,
da Polícia Federal, em que o noticiário alardeou cada detalhe possível da
persecução penal, houve um tópico da sentença condenatória denominado
“ação controlada”
61
, acostado entre as folhas 162 a 179 dos autos. Longe de se
analisar a correta aplicação do instituto no caso em apreço, bem como suas
minúcias, é forçoso reconhecer que foi trazida à baila forte discussão sobre
sua visualização prática, possibilidade de excessos e embaraços percebidos.
Quanto ao seu conceito, o legislador incumbiu-se de elaborar
verdadeira interpretação autêntica, ao estabelecer, na Lei 9.034/95 (com
alteração do caput pela Lei 10.217/01), no inciso II, do artigo 2º, que a ação
controlada ...consiste em retardar a interdição policial do que se supõe ação
praticada por organizações criminosas ou a ela vinculado, desde que mantida
sob observação e acompanhamento para que a medida legal se concretize no
momento mais eficaz do ponto de vista da formação de provas e fornecimento
61
Integra da sentença condenatória, conforme sitio eletrônico da Justiça Federal de São Paulo, referente ao
processo 2008.61.81.010136-1, da Vara Criminal de São Paulo, disponível no endereço:
“http://www.jfsp.gov.br/noticias/2008/dez/081202Satiagraha.pdf”,
55
de informações”.
Não custa lembrar, o Projeto de Lei 3.516, de 1989, de autoria de
Michel Temer, que deu supedâneo a este diploma. Em seu verdadeiro
nascedouro, apresentava definição diversa de ação controlada em seu artigo
62
.
Conforme se verifica no texto efetivamente sancionado, a redação
originalmente proposta percebeu significativas alterações. No artigo 2º, inciso
II, primitivamente simples, o legislador terminou por definir ação controlada,
todavia, sem a pormenorização que se pretendia no artigo 7º, o qual não
restou incorporado ao corpo da lei.
Numa apertada síntese, em vez de se aprofundar na descrição das
hipóteses de não interdição policial imediata, redigidas no projeto “do
transporte, guarda, remessa e entrega de mercadorias, objetos, documentos,
valores, moedas nacional e estrangeira, substâncias, materiais e
equipamentos”, optou o legislador pela redação “que se supõe ação praticada
por organizações criminosas ou a ela vinculada”, em que se inclui,
implicitamente, o constante do texto suprimido, não exaurindo, todavia, o
campo interpretativo da norma.
Excluiu-se, também, a necessidade de prévia autorização judicial,
dando início à discussão acerca da necessidade de decisão judicial para a
utilização do instituto
63
.
Por outro lado, além da interpretação autêntica, alguns doutrinadores
incumbiram-se de definir o instituto.
62
Art. Sempre que fundados elementos o justifiquem, o juiz poderá autorizar, em decisão motivada, a não
interdição policial do transporte, guarda, remessa e entrega de mercadorias, objetos, documentos, valores,
moedas nacional e estrangeira, substâncias, materiais e equipamentos, relacionados com a infração penal,
antes da apreensão considerada significativa para a repressão ao crime organizado.
§ As ações controladas serão desenvolvidas no território nacional e em âmbito internacional, desde que
previstas em tratados, convenções e atos internacionais.
§ 2º – O resultado da operação será imediatamente relatado em auto circunstanciado ao juiz que a autorizou,
para avaliação.
63
Sobre o tema, remetemos o leitor ao item 3.3.
56
De modo que Marcelo Batlouni Mendroni salienta, ao abordar a ação
controlada, que ela Consiste no retardamento e espera do melhor momento
para a atuação policial repressiva contra os criminosos integrantes da
Organização
64
.
Prossegue o autor, mencionando que este instituto concede à Polícia a
possibilidade de esperar a melhor oportunidade para agir, do ponto de vista da
possibilidade de se obter mais provas sobre o fato investigado. A ação
controlada pode ser praticada na forma de flagrante esperado, oportunidade
em que a Polícia recebe notícia sobre a futura prática de um crime e aguarda a
ação dos criminosos em campana, mas também pode ocorrer de se seguir,
clandestinamente e a distância, os passos dos integrantes da organização
criminosa, monitorando toda a ação mediante escuta telefônica ou outros
meios investigatórios
.
Aqui, embora se mencione o flagrante esperado quando trata da ação
controlada, importante notar que significativa parcela da doutrina,
tecnicamente, conceitua esta modalidade diferentemente do flagrante
esperado
65
.
Já, Geraldo Prado e William Douglas
66
dão conta de que a ação
controlada, a rigor, não é meio, mas sim, fonte probatória, que origina provas
testemunhais e documentais. Reconhece-se, também, a possível apreensão de
coisas factíveis de serem tidas como corpo de delito.
Ou seja, por palavras diversas, enquanto os documentos previstos no
artigo 2º, inciso III, da Lei 9.034/95, são, ao menos potencialmente, meios de
prova, a ação controlada constitui verdadeira fonte de prova. No mesmo
64
MENDRONI, Marcelo Batlouni. Crime Organizado Aspectos Gerais e Mecanismos Legais. São Paulo:
ed. Juarez de Oliveira, 2002, p.63-64.
65
E, em virtude de pensamentos essencialmente opostos, remetemos o leitor ao item 5.3 deste trabalho, que
aborda a diferença entre as várias espécies de flagrante, mormente diferido e esperado.
66
PRADO, Geraldo & DOUGLAS, William. Comentários à Lei do Crime Organizado. Belo Horizonte:
Editora Del Rey, 1995, p.49-50.
57
sentido, Vicente Greco Filho classifica a ação controlada como uma
estratégia, da qual serão obtidas as provas buscadas
67
.
Prosseguindo, Prado e Douglas
68
definem, em síntese, ação controlada
como uma vigilância da polícia sobre a atividade criminosa, que é
acompanhada até o momento mais adequado/eficaz do ponto de vista da
formação de provas e obtenção de informações. Nesse momento, então, se
concretizaria a necessária intervenção estatal.
Note-se que o emprego da ação controlada minimiza os efeitos do
segredo, característica comum entre os membros de organizações criminosas,
a qual permite chegar-se aos dirigentes desses grupos e outros integrantes que
normalmente não participam dos atos de execução das atividades criminosas
realizadas
69
.
Outra questão merecedora de destaque versa sobre o instituto da
entrega vigiada, com previsão no artigo 33, inciso II, da Lei 10.409/02
70
(revogada lei de entorpecentes), substituída pelo artigo 53 da Lei 11.343/06
71
(diploma vigente no combate às drogas).
67
GRECO FILHO, Vicente. A entrega vigiada e tráfico de pessoas. In: MARZAGÃO JÚNIOR, Laerte
(coord). Tráfico de Pessoas. – São Paulo: Quartier Latin, 2010, p. 300-301.
68
Op. Cit., p. 50.
69
SOBRINHO, Mário Sérgio. O crime organizado no Brasil. In: FERNANDES, Antonio Scarance,
ALMEIDA, JoRaul Gavião de; MORAES, Maurício Zanoide de (coords). Crime Organizado: Aspectos
processuais – São Paulo: Editora Revista dos tribunais, 2009, p. 44.
70
Art. 33. Em qualquer fase da persecução criminal relativa aos crimes previstos nesta Lei, são permitidos,
além dos previstos na Lei n
o
9.034, de 3 de maio de 1995, mediante autorização judicial, e ouvido o
representante do Ministério Público, os seguintes procedimentos investigatórios:
I – (...);
II a não-atuação policial sobre os portadores de produtos, substâncias ou drogas ilícitas que entrem no
território brasileiro, dele saiam ou nele transitem, com a finalidade de, em colaboração ou não com outros
países, identificar e responsabilizar maior número de integrantes de operações de tráfico e distribuição, sem
prejuízo da ação penal cabível
71
Art. 53. Em qualquer fase da persecução criminal relativa aos crimes previstos nesta Lei, são permitidos,
além dos previstos em lei, mediante autorização judicial e ouvido o Ministério blico, os seguintes
procedimentos investigatórios:
(...)
II - a não-atuação policial sobre os portadores de drogas, seus precursores químicos ou outros produtos
utilizados em sua produção, que se encontrem no território brasileiro, com a finalidade de identificar e
responsabilizar maior número de integrantes de operações de tráfico e distribuição, sem prejuízo da ação
penal cabível.
58
Nos dois casos, os artigos de lei contêm um parágrafo único, que
disciplina a hipótese. Assim, pela revogada Lei 10.409/02, na hipótese do
inciso II, a autorização seria concedida, desde que: a) fossem conhecidos o
itinerário provável e a identificação dos agentes do delito ou de
colaboradores; b) as autoridades competentes dos países de origem ou de
trânsito oferecessem garantia contra a fuga dos suspeitos ou de extravio dos
produtos, substâncias ou drogas ilícitas transportadas.
De sua banda, na nova lei, a autorização será concedida desde que
sejam conhecidos o itinerário provável e a identificação dos agentes do delito
ou de colaboradores.
Aqui, faz-se necessária uma observação. Quando a lei exige o prévio
conhecimento dos agentes ou de colaboradores, refere-se a pelo menos um
dos envolvidos, pois um dos objetivos deste meio investigatório é exatamente
a identificação de outras pessoas que participem da organização criminosa e
dos delitos investigados.
Da mesma forma, a necessidade de prévio conhecimento do itinerário
deve ser compreendida de forma genérica, admitindo-se a utilização da
entrega vigiada com a mera apresentação de indícios de qual será o itinerário,
sob pena de se inviabilizar a utilização do instituto.
Note-se que desvendar a identidade dos agentes e colaboradores e o
itinerário que seguirá a droga são exatamente os objetivos da ação controlada.
Prosseguindo, o ordenamento pátrio contempla o Decreto 3.229, de
29 de outubro de 1999
72
, que promulgou a Convenção Interamericana contra a
Fabricação e o Tráfico Ilícitos de Armas de Fogo, Munições, Explosivos e
outros Materiais Correlatos, concluída em Washington, em 14 de novembro
72
O Congresso Nacional aprovou o Ato multilateral por meio do Decreto Legislativo 58, de 18 de agosto de
1999. Ele entrou em vigor, internacionalmente, em de julho de 1998. O Governo brasileiro depositou o
Instrumento de Ratificação à Convenção em 28 de setembro de 1999, passando a mesma a vigorar, para o
Brasil, em 28 de outubro de 1999, nos termos de seu art. XXV. Tudo, conforme exposto no Decreto 3.229.
59
de 1997. Esta convenção, em seu artigo primeiro, item sete, traz uma
definição de entrega vigiada
73
.
O instrumento também é previsto em dois outros documentos
internacionais assinados pelo Brasil: Convenção contra o Tráfico Ilícito de
Entorpecentes e Substâncias Psicotrópicas, incorporada ao nosso ordenamento
pelo Decreto 154/91 e pela Convenção das Nações Unidas contra a
Corrupção, também conhecida como Convenção de Mérida, que passou a
vigorar no Brasil através do Decreto 5.687/06.
Não fosse isso, conforme exposto no presente trabalho
74
, o Brasil
adotou
75
a Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado
Transnacional”, a denominada “Convenção de Palermo”.
A convenção, em seu bojo, ao dispor sobre instrumentos de combate ao
crime, tratou de definir em seu artigo segundo, alínea “i”, entrega vigiada
76
. Já
no artigo vinte, tratou de norma programática, dispondo que os Estados-parte
deveriam esforçar-se para incluir em seus ordenamentos jurídicos nacionais a
entrega vigiada.
Pois bem. Não restam dúvidas de que nosso ordenamento contempla a
“ação controlada” na Lei 9.034, bem como reconhece a entrega vigiada” em
cinco situações: a) Lei de Drogas; b) Convenção Interamericana contra a
Fabricação e o Tráfico Ilícitos de Armas de Fogo, Munições, Explosivos e
73
Artigo I
Definições
Para efeitos desta Convenção, entender-se-á por:
(...)
7. “Entrega vigiada’’: técnica que consiste em deixar que remessas ilícitas ou suspeitas de armas de fogo,
munições, explosivos e outros materiais correlatos saiam do território de um ou mais Estados, os atravessem
ou neles entrem, com o conhecimento e sob a supervisão de suas autoridades competentes, com o fim de
identificar as pessoas envolvidas no cometimento de delitos mencionados no Artigo IV desta Convenção.
74
No item 2.1, “Conceito”, na análise de “Organização Criminosa”.
75
Ver Decreto 5.015, de 12 de março de 2004, e Decreto Legislativo 231, de 29 de maio de 2003.
76
Artigo 2
Terminologia
Para efeitos da presente Convenção, entende-se por:
i) "Entrega vigiada" - a técnica que consiste em permitir que remessas ilícitas ou suspeitas saiam do território
de um ou mais Estados, os atravessem ou neles entrem, com o conhecimento e sob o controle das suas
autoridades competentes, com a finalidade de investigar infrações e identificar as pessoas envolvidas na sua
prática;
60
outros Materiais Correlatos; c) Convenção das Nações Unidas contra o Crime
Organizado Transnacional; d) Convenção contra o Tráfico Ilícito de
Entorpecentes e Substâncias Psicotrópicas; e) Convenção das Nações Unidas
contra a Corrupção.
Importante ressaltar a importância dos textos dos tratados
internacionais, pois são eles que permitem a utilização da ação controlada em
crimes transnacionais, no qual o Brasil seja um dos países pelo qual se
desenvolve a atividade criminosa. Nesse caso, não há previsão da não-punição
para o delito praticado em território brasileiro, mas apenas se retarda a ação
estatal até a conclusão das investigações realizadas em âmbito internacional.
Encerrada a investigação, compete ao Brasil requerer a extradição das pessoas
envolvidas nos delitos praticados em território brasileiro.
De início, forçoso reconhecer a semelhança entre a “ação controlada” e
a entrega vigiada”, mormente em seus meios e objetivos, dentre os quais se
incluem aguardar o momento mais oportuno para concretizar a resposta
estatal e identificar o destino do bem e as pessoas envolvidas na prática do
crime.
Todavia, cabe indagar a razão pela qual o ordenamento utiliza
terminologias distintas. Afinal, se a lei pretendesse tratar entrega vigiada
como ação controlada, ou o contrário, teria utilizado as mesmas expressões
nos diferentes diplomas.
Outrossim, ação controlada e entrega vigiada teriam naturezas distintas,
a despeito de inevitáveis pontos comuns entre suas definições.
No direito francês há diferenciação evidente: na entrega vigiada a
mercadoria ilegal é vigiada à distância, enquanto, na ação controlada, utiliza-
se de agentes infiltrados na operação
77
.
77
GRECO FILHO, Vicente. A entrega vigiada e tráfico de pessoas. In: MARZAGÃO JÚNIOR, Laerte
(coord). Tráfico de Pessoas. – São Paulo: Quartier Latin, 2010, p. 295.
61
Contudo, não parece, todavia, ser esta a leitura mais coerente com o
sistema pátrio. Se a distinção fosse proposital, poderia prosperar o
entendimento e, consequentemente, a diversidade, mas não existem elementos
suficientes que deem conta disto.
Vale lembrar, diversas nações ao redor do mundo vêm, tempos,
criando e aperfeiçoando soluções no combate ao crime organizado, as quais
implicam expressões gramaticalmente diferenciadas, que versam, todavia,
sobre idênticos institutos.
Portanto, a denominação se apresenta questão de somenos, importando,
tão somente, a respectiva aplicabilidade.
Exemplificando, uma medida que se apresente eficaz no combate ao
tráfico de drogas, transplantada para outra realidade, pode ser válida no trato
com a mercancia de armas, ou, ainda, nortear o enfrentamento de toda e
qualquer organização criminosa, utilizando-se, para tanto, fórmula genérica.
Destarte, como o Brasil produziu seu próprio material legislativo,
inspirado em premissas exteriores, bem como incorporou tratados
internacionalmente debatidos e elaborados, não restam dúvidas de que
“entrega vigiada” e “ação controlada” podem ser expressões sinônimas ou, ao
menos, detentoras de relação umbilical.
Debatendo a pretensa sinonímia tem-se que a colaboração de um
criminoso para a atividade estatal, ao permitir atividades preventivas (ao
evitar a prática de novos delitos) e repressivas (recolhimento de provas contra
os demais co-autores), pode gerar consequências diversas conforme o
contexto em que os fatos estejam inseridos (redução de pena, perdão judicial,
regime inicial menos severo).
Nessa esteira, dependendo de qual foi o crime perpetrado pelo grupo, a
colaboração de um dos agentes pode lhe resultar benesses distintas, conforme
particularidades vislumbradas nas leis que disciplinam as hipóteses. Inegável,
62
contudo, que sempre estaremos diante da “delação premiada”, ainda que por
outras roupagens.
Em resumo, a “delação premiada” objetiva a colaboração de
delinquentes na identificação dos comparsas, mas seu tratamento pelo
ordenamento não é uniforme. Em tese, poderia ostentar outras denominações,
mas não se perderia a essência do instituto. De igual maneira, “ação
controlada” e “entrega vigiada” nutrem a mesma finalidade: retardar a atuação
estatal até o momento mais adequado (do ponto de vista probatório), sem
olvidar perceptíveis variações entre as leis disciplinadoras.
Dessa forma, ação controlada e entrega vigiada são terminologias
diversas que são utilizadas indistintamente, pois possuem o mesmo objetivo:
identificar o maior número possível de integrantes de uma organização
criminosa.
Rodrigo Carneiro Gomes
78
, ao se debruçar sobre a questão, ponderou
que o conceito de ação controlada é mais amplo, pois se aplica a qualquer
ação criminosa, enquanto a entrega vigiada é aplicável apenas nos casos de
entorpecentes (Convenção de Viena) e armas (Convenção Interamericana
contra a Fabricação e o Tráfico Ilícito de Armas de Fogo). Assim, sustenta
que a entrega vigiada é uma modalidade de ação controlada.
Flávio Cardoso Pereira
79
sustenta que, apesar da diferenciação acima
descrita, a distinção entre os dois não tem qualquer efeito prático, uma vez
que existem apenas características doutrinárias que permitiriam a separação
dos institutos. Dessa forma, defende que ambos são sinônimos de flagrante
retardado, que é meio de investigação usado pela polícia para identificar e
prender o maior número de agentes envolvidos no crime.
78
GOMES, Rodrigo Carneiro. Investigação criminal na Convenção de Palermo: instrumentos e limites. In:
CUNHA, Rogério Sanches; TAQUES, Pedro; GOMES, Luiz Flávio (coords). Limites Constitucionais da
Investigação – São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2009, p. 375.
79
PEREIRA, Flávio Cardoso. Meios extraordinários de investigação criminal. Infiltrações policiais e
entregas vigiadas (controladas). Disponível no Portal Jurídico Jus Navigandi, Teresina, ano 12, n. 1777, em
13 de maio de 2008. Acesso por: “http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=11258”.
63
Sem dúvidas, a definição de ação controlada prevista no artigo da
Lei 9.034/95 tem aplicação para qualquer atividade praticada pelo crime
organizado, restando bem mais ampla do que a redação preliminarmente
proposta (consubstanciada no artigo do Projeto de Lei 3.516). De outro
lado, os textos legais que versam sobre a entrega vigiada são dotados de
especificidade, cada qual inserido no contexto do diploma que a preceitua.
Na Argentina o instituto é destinado ao combate ao tráfico de drogas,
motivo pelo qual Carlos Enrique Edwards
80
define a entrega vigiada como
uma técnica de investigação, consubstanciada na permissão de que
entorpecentes sejam naturalmente transportados (por qualquer meio) e, assim,
possam chegar ao seu destino sem interceptação prematura, a fim de se poder
identificar remetente, destinatário e os demais participantes da manobra
criminosa.
Edwards lembra-nos que o narcotráfico internacional merece ser
entendido como um fenômeno desconhecedor de fronteiras, de sorte que um
carregamento de drogas pode circular por dois ou mais países. Assim, ao ser
interceptado o envio do entorpecente no país pelo qual circula, sobreleva o
risco de não se atingirem os destinatários do carregamento. E, por meio das
entregas controladas, o apenas poderão ser identificados e detidos os
membros do grupo que transportam a remessa (através de determinado país),
mas também os outros integrantes que a recebem, possibilitando desbaratar
totalmente a organização
81
.
Antonio Scarance Fernandes, ao detalhar a forma de realização dessa
operação, aponta as alternativas que surgem quando da utilização da ação
controlada. A primeira é a interdição, em que interrupção da entrega da
coisa. A segunda chama-se substituição, ocasião em que a coisa é substituída
por outra, evitando-se, dessa forma, sua perda ou extravio. Por fim, a última
80
EDWARDS, Carlos Enrique. El Arrepentido, el Agente Encubierto y la Entrega Vigilada – Modificación a
la Ley de Estupefacientes. Análisis de la ley 24.424. - Buenos Aires: Ad Hoc, 1996. p.107-108.
81
Ibidem.
64
modalidade é o acompanhamento, no qual é realizada apenas uma vigilância
sobre a atividade criminosa
82
.
Estas possibilidades são descritas no artigo 11, item 3, da “Convenção
contra o Tráfico Ilícito de Entorpecentes e Substâncias Psicotrópicas”,
assinada na cidade de Viena, em 1988 e incorporada pelo Decreto 154 de
26 de junho de 1991
83
.
Deve-se reconhecer, a partir da análise dessas opções, que, na primeira
hipótese, há grande possibilidade de se frustrar a finalidade da operação, pois,
quando derem falta da coisa, os integrantes da organização criminosa cessarão
imediatamente sua atividade normal, fazendo o possível para não serem
identificados, inclusive cessando os contatos e encontros entre eles. Essa
alternativa parece-nos mais uma atitude de frustração da operação em face da
probabilidade de se perder o objeto vigiado. Assim, para que não exista
prejuízo, interrompe-se a operação, apreende-se o objeto e efetua-se a prisão
apenas das pessoas que estavam identificadas até aquele momento.
A segunda hipótese, chamada de substituição, se bem feita, traz grande
vantagem de afastar o risco da perda do produto criminoso. Nesse caso a
substituição, que pode ser total ou parcial, é feita por uma substância similar,
que visa a iludir os investigados. Chama-se de “entrega limpa”.
a atuação chamada de acompanhamento é a mais comum: a
substância vigiada permanece em poder dos criminosos, sendo acompanhada
pelas autoridades.
Por fim, não custa lembrar que a ação controlada (flagrante diferido)
não pressupõe a existência da infiltração de policiais, embora as ideias se
complementem
84
. O agente dessa qualidade, por óbvio, quando inserido no
82
FERNANDES, Antonio Scarance. O equilíbrio na repressão ao crime organizado. In: FERNANDES,
Antonio Scarance, ALMEIDA, José Raul Gavião de; MORAES, Maurício Zanoide de (coords). Crime
Organizado: Aspectos processuais – São Paulo: Editora Revista dos tribunais, 2009, p. 16.
83
3. As remessas ilícitas, cuja entrega vigiada tenha sido negociada poderão, com o consentimento das Partes
interessadas, ser interceptadas e autorizadas a prosseguir intactas ou tendo sido retirado ou subtraído, total ou
parcialmente, os entorpecentes ou substâncias psicotrópicas que continham.
84
Sobre a ação controlada sem infiltração de agentes, recomendamos a leitura do item 5.3.
65
seio da organização criminosa, poderá indicar as coordenadas a serem
seguidas pelo grupo, facilitando o acompanhamento do ilícito ou, ainda,
poderá ele próprio fazer o acompanhamento, repassando as informações
obtidas a seus superiores.
Sem prejuízo, a “ação controlada - entrega vigiada” pode muito bem ser
desencadeada sem que representantes do Estado se infiltrem no grupo,
utilizando-se escutas, campanas ou outros meios.
5.2. Direito estrangeiro
A ação controlada é instrumento de combate à delinquência organizada
utilizada em diversos outros países, ante sua capacidade de auxiliar na
identificação do maior número possível de integrantes dessas organizações e,
até mesmo, auxiliar no conhecimento da estrutura e desmantelamento delas.
Em alguns países o instrumento é destinado apenas ao combate ao
tráfico de drogas, enquanto noutros sua utilização é aceita para todos os
delitos que envolvam o crime organizado.
Na Argentina esse instrumento recebe a denominação de “entrega
vigiada” e está destinada apenas ao combate do tráfico de drogas, dependendo
de prévia autorização judicial.
O artigo 33 da Lei 23.737/89 daquele país, incorporado pelo artigo 11
da Lei 24.424/95, prevê, inclusive, a possibilidade de se autorizar a saída do
entorpecente do território argentino, desde que haja cooperação do país de
destino das drogas. Se possível, deve-se constar na decisão o tipo de droga,
sua quantidade e peso.
Na Colômbia a medida vem prevista no Código de Procedimento Penal
(Lei 906/2004, artigo 243), podendo ser utilizada para o combate ao
transporte de armas, explosivos, munições, moeda falsificada, drogas e, ainda,
66
quando houver informação prestada por agente infiltrado da existência de
atividade criminal contínua, que certamente inclui os delitos praticados por
organizações criminosas.
Esse mesmo diploma prevê, ainda, que é possível que a operação seja
realizada em conjunto com autoridades de outros países, quando o produto
vem de outro país ou tem como destino outra nação. Nesse caso, deve ser
solicitada a cooperação judicial de autoridades estrangeiras, como prevê o
artigo 485 do Código de Procedimento Penal.
Vale ressaltar o cuidado do legislador colombiano em impedir que o
agente infiltrado induza o investigado a cometer o delito, expressando tal
impedimento no texto legal.
Por fim, o texto dispõe que, após a conclusão da operação, os resultados
devem ser levados à apreciação do juiz de controle de garantias, o qual, em
trinta e seis horas, estabelecerá a legalidade formal e material, passando a
valer como elemento probatório.
Na Espanha o instituto encontra-se previsto no artigo 263 bis da Ley de
Enjuiciamiento Criminal, introduzido pela Ley Orgánica 5 de 13 de janeiro
de 1999, que dispõe que a medida pode ser autorizada pelo juiz, pelo
Ministério Público, chefes das unidades orgânicas, centrais ou provinciais, da
Polícia Judiciária e os seus comandos superiores. Contudo, caso autorizada
por esses últimos, a operação deve ser comunicada imediatamente ao
Ministério Público e, se existir procedimento judicial, ao juiz de instrução
competente.
A lei espanhola permite a utilização da entrega vigiada para o combate
a diversos tipos de crimes, os quais são comumente praticados por
organizações criminosas, como receptação, tráfico de drogas, tráfico de armas
e outros.
Interessante observar-se que no último parágrafo do dispositivo em
apreço, o legislador permite a interceptação de correspondências suspeitas de
67
conter entorpecentes, sua abertura e substituição por outro produto, para então
segui-la e identificarem-se os destinatários.
Nesse ponto, como violação do direito de sigilo das
correspondências, que é constitucionalmente assegurado, a doutrina espanhola
vem entendendo que há necessidade de prévia autorização judicial
85
.
Na Itália a ação controlada é prevista para o combate ao tráfico de
drogas (Decreto Del Presidente Della Repubblica 309/ 1990), extorsão
mediante sequestro (Lei 82/1991) e extorsão, usura e lavagem de dinheiro
(Lei n° 172/1992).
Naquele país o juiz tem o poder de retardar a emissão ou a execução de
ordens de sequestro e de prisão. Já a autoridade policial também pode retardar
atos de sua atribuição, como a prisão em flagrante e a execução de ordens de
prisão, desde que se comunique o Ministério Público, a quem incumbe o
estabelecimento de diretrizes para que a Polícia Judiciária empregue a ação
controlada
86
.
Em Portugal a ação controlada atualmente está regulada pelo artigo
160-A da Lei 144, de 31 de agosto de 1999, introduzido pelo artigo 2º, da
Lei 104, de 25 de agosto de 2001, que é legislação que trata da cooperação
judiciária internacional em matéria penal e, portanto, pre apenas sua
utilização em casos nos quais a investigação criminal passa por Portugal e em
algum outro país com o qual ele tenha firmado convenção de cooperação em
matéria penal, desde que o crime admita a extradição.
Determina-se, também, a necessidade de imediata intervenção da
polícia judiciária quando houver aumento na possibilidade dos autores da
85
COGAN, Marco Antônio Pinheiro Machado; JOSÉ, Maria Jamile. Crime organizado e terrorismo na
Espanha. In: FERNANDES, Antonio Scarance, ALMEIDA, José Raul Gavião de; MORAES, Maurício
Zanoide de (coords). Crime Organizado: Aspectos processuais São Paulo: Editora Revista dos tribunais,
2009, p. 144-145.
86
VAGGIONE, Luiz Fernando; MAGALHÃES, Rodrigo Mansour. O crime organizado na Itália e as
medidas adotadas para seu combate. In: FERNANDES, Antonio Scarance, ALMEIDA, José Raul Gavião
de; MORAES, Maurício Zanoide de (coords). Crime Organizado: Aspectos processuais São Paulo: Editora
Revista dos tribunais, 2009, p. 246.
68
infração escaparem ou de se perder a possibilidade de apreenderem-se as
substâncias ou bens vigiados.
Como se verifica, além da previsão em diplomas internacionais, a ação
controlada (ou entrega vigiada) vem prevista em diversas legislações
estrangeiras, constiuindo relevante e difundido instrumento de combate à
delinquência.
5.3. Controle da investigação
A demora na efetivação da prisão em flagrante
87
sob o rótulo de ação
controlada
88
, inicialmente prevista na Lei 9.034/95, vai muito além de
simplesmente livrar o policial do delito de prevaricação (pela não intervenção
imediata), mas resguarda todo o seio social, à medida que tem por objetivo
final o desmantelamento de organizações criminosas.
Não se concebe que o ordenamento se contente com uma ação
precipitada, que coíba a ocorrência de crimes de somenos e identifique apenas
alguns integrantes do grupo criminoso, quando a prudência recomenda (e a
sociedade reclama) que o Estado atue para extirpar da sociedade a
organização criminosa, que, ao agir, perpetra diversas ações delituosas.
Assim, utilizando-se da ação controlada o policial não precisa efetuar o
flagrante de inopino (embora esse seja o seu dever). Ele pode, destarte,
aguardar o melhor momento para a intervenção estatal, de forma a alcançar o
maior número possível de membros de determinada organização criminosa e
identificar outras ações delituosas, que antes não haviam sido reveladas.
87
Expressão colocada numa acepção menos técnica, sem entrar na discussão entre flagrante esperado e
diferido, objeto do item 5.4 deste trabalho.
88
Entrega Vigiada e Ação Controlada, a despeito de respeitáveis entendimentos contrários, serão tratadas
como expressões sinônimas, conforme explicação contida no item 3.1.
69
Noutras palavras, ao Estado interessa encontrar aqueles que
verdadeiramente comandam a atividade criminosa. Exemplificando, na
observância do delito previsto no artigo 33 da Lei 11.343/06, devem ser
perseguidos os “chefes do tráfico”, que detêm a propriedade do entorpecente e
que respondem por sua circulação, não somente o popular aviãozinho”
(geralmente um viciado desafortunado que vende drogas para sustentar o
próprio vício) ou o pequeno distribuidor.
Todavia, enquanto o mecanismo da ação controlada contempla certo
brilhantismo numa leitura teórica, de outro lado, enfrenta problemas
relacionados à sua percepção prática.
O primeiro decorre da ineficiência dos agentes envolvidos na operação,
em razão da qual, muitas vezes, se esvai não apenas a finalidade de se
identificarem outros integrantes da organização criminosa, mas também se
perde a oportunidade de efetuar-se a prisão em flagrante dos criminosos
vigiados e de se apreenderem os produtos criminosos que traziam com eles.
Nessa hipótese é forçoso reconhecer que a frustração faz parte do risco
da utilização desse meio de investigação. Com efeito, o Estado deve-se
preparar para diminuir ao mínimo a possibilidade dessa fatídica ocorrência.
Assim, os agentes devem ser bem treinados e a vigilância deve ser feita
por mais de uma forma, por mais de uma equipe, a fim de se minimizarem os
riscos.
Outro problema, este mais grave, advém da possibilidade de que
servidores levianos possam aproveitar-se da espécie para justificar a inércia
em determinados casos.
Ilustrando a hipótese, basta imaginar um policial que assiste,
silenciosamente, ao intenso comércio de drogas em sua área de atuação.
Surpreendido pela inobservância do dever legal (necessidade de realizar o
flagrante), poderia alegar que estava se utilizando da ação controlada e que
70
aguardava o momento mais apropriado (em seu questionável universo
valorativo) para realizar a prisão.
Por tais razões, ainda que a ação criminosa esteja em curso, subsiste
a imprescindibilidade de acompanhamento judicial da medida, com
intervenção do Ministério Público, tudo para evitar empreitadas inadvertidas
por alguns policiais levianos.
Ora, a ação controlada não pode nascer de meras conjecturas ou
exacerbado subjetivismo, sob pena de legitimar camufladas desídias ou, pior,
conluios entre policiais e criminosos.
Nesse sentido, Marcelo Mendroni
89
asseverou que é imprescindível a
prévia autorização judicial, sob pena de ser ter uma “ação descontrolada”.
Assim, é a ordem judicial que deve estabelecer o termo inicial da ação
policial. Dessa forma, evita-se o desvirtuamento da utilização da medida por
maus policiais, que, por exemplo, ao serem surpreendidos dando proteção a
criminosos, visando a isentarem-se de qualquer responsabilidade penal por
suas condutas, poderiam alegar que ali se encontravam utilizando-se da ação
controlada.
Dessa forma, observada prévia comunicação ao Poder Judiciário e ao
Ministério Público, não restariam motivos para duvidar de propositada
demora na realização do flagrante, principalmente quando se poderia exigir
relatório pormenorizado ao respectivo agente policial e, adiante, questioná-lo
sobre toda a diligência.
Ademais, além do controle a ser exercido sobre a atividade policial, a
necessidade de autorização judicial decorre da possibilidade de violação a
direito fundamental dos investigados. A ação controlada exige um
acompanhamento próximo da mercadoria ilícita e das pessoas que a
89
MENDRONI, Marcelo Batlouni. Crime Organizado Aspectos Gerais e Mecanismos Legais. São Paulo:
ed. Juarez de Oliveira, 2002, p.65.
71
conduzem, o que pode, na maioria dos casos, lesar o direito à intimidade
daqueles que estão sendo investigados.
Entretanto, deve-se ponderar que, embora a autorização judicial possa
traduzir providência óbvia, ou seja, premissa natural da ação controlada,
estranhamente o parlamentar não a exigiu de forma expressa na Lei 9.034/95.
Diante de infeliz omissão legislativa, a qual margem a
entendimentos que desprezavam a intervenção prévia do magistrado, interveio
o legislador com a edição da Lei 10.409/02 (diploma elaborado sobre o
universo das drogas), fulminando a celeuma ao prever a entrega vigiada e
regras para sua percepção.
Nos termos da previsão legal de que se fala, atualmente revogada,
estipulou-se a necessidade de autorização judicial, precedida de manifestação
do representante do Ministério Público.
Nota-se que o legislador foi além das expectativas inicialmente
ponderadas, prescrevendo não apenas a necessidade de decisão proferida pelo
magistrado monocrático, mas também, requisitos que deveriam nortear a
autorização judicial. Assim, a autorização judicial somente poderia ser
concedida se: fosse conhecido o provável itinerário, fossem identificados os
agentes do delito e seus colaboradores, se as autoridades dos outros países
pelos quais a droga iria transitar oferecessem garantias contra a fuga dos
suspeitos e o extravio dos produtos, substâncias ou drogas ilícitas
transportadas.
Sobreveio, então, a Lei 11.343/06, diploma que subsiste até os dias
atuais no trato com as drogas e crimes relacionados. Felizmente, este novo
preceito, em seu artigo 53 “caput”, inciso II, e parágrafo único, repetiu a
necessidade de autorização judicial e oitiva do órgão ministerial,
indispensáveis ao bom andamento da medida.
Contudo, a nova lei de drogas não repetiu uma das premissas do
diploma de 2002 (de que as autoridades competentes dos países de origem ou
72
de trânsito oferecessem garantias contra a fuga dos suspeitos ou de extravio
dos produtos, substâncias ou drogas ilícitas transportadas), embora a doutrina
aponte o requisito pela leitura implícita da medida e das disposições trazidas
pelos já mencionados tratados internacionais que tratam do tema.
Assim, verifica-se uma evolução do instituto pelo legislativo, desde o
seu nascedouro (na Lei 9.034/95) até os dias atuais (ante o novo diploma de
drogas), a despeito de aparente diferença terminológica (entrega vigiada
ação controlada).
De qualquer forma, deve-se observar que o ordenamento não
pormenoriza a percepção prática da ação controlada. Desse modo, coube à
doutrina traçar parâmetros que uniformizem o tratamento conferido pelo
Judiciário.
Nesse sentido, Flávio Cardoso Pereira
90
pondera que seria necessária a
inclusão de alguns requisitos para perfeita delimitação na utilização do
instituto. Por isso, a lei deveria afastar de forma clara a possibilidade de uso
da medida sem autorização judicial, exigir um planejamento estratégico
anterior e, finalmente, impor um controle da execução da medida,
determinando que a autoridade policial informasse diariamente ao Ministério
Público o andamento das investigações, evitando-se abusos.
O autor defende, ademais, que antes da concessão da autorização pelo
magistrado, deve-se estabelecer um planejamento operacional ente Polícia e
Ministério Público, no qual se verifica a necessidade de utilização da
medida, relatando-a de forma detalhada para que o juiz possa compreendê-la.
Somente dessa forma, poderá o magistrado proferir decisão, com base no
princípio da proporcionalidade, considerando sempre a utilização da ação
90
PEREIRA, Flávio Cardoso. A moderna investigação criminal. In: CUNHA, Rogério Sanches; TAQUES,
Pedro; GOMES, Luiz Flávio (coords). Limites Constitucionais da Investigação São Paulo: Editora Revista
dos Tribunais, 2009, p. 128.
73
controlada como ultima ratio, ante a possibilidade de violação de direitos e
garantias individuais dos investigados
91
.
A autorização judicial deve delimitar o tempo de duração da operação
ao necessário para a formação das provas” ou ao “fornecimento de
informações”, conforme as expressões constantes do artigo 2º, inciso II, da
Lei 9.034/95.
Assim, dentro destes parâmetros e de acordo com o caso concreto, deve
o magistrado estabelecer o prazo de duração da medida, podendo,
posteriormente, prorrogá-lo, caso comprovada a necessidade.
Entretanto, quem faça uma análise segmentada do instituto,
diferenciando-o em relação ao diploma legal em que ele está inserido. Assim,
Vicente Grecco Filho
92
defende que a autorização judicial somente é
necessária para as hipóteses de investigação de crimes ligados ao tráfico de
drogas, previstos na Lei n° 11.343/06. para as investigações de
organizações criminosas ela é prescindível, ante a omissão da lei 9.034/95 e a
lei n° 10.217/01 que a alterou.
Ainda assim, o autor entende que nas hipóteses da lei 11.343/06 a
natureza jurídica da autorização judicial é de ser um ato de jurisdição
voluntária, pois visa apenas ao controle judicial sobre a atividade policial, não
incide, pois, sobre a esfera jurídica de terceiros
93
.
Embora tenhamos adotado o entendimento de que, em nosso
ordenamento jurídico, a exigência de prévia autorização judicial, deve-se
ponderar que, em algumas hipóteses, quando a ação criminosa estiver em
curso, o tempo necessário para se obter essa autorização possa prejudicar a
operação.
91
Ibidem.
92
GRECO FILHO, Vicente. A entrega vigiada e tráfico de pessoas. In: MARZAGÃO JÚNIOR, Laerte
(coord). Tráfico de Pessoas. – São Paulo: Quartier Latin, 2010, p. 297 ss.
93
Para Vicente Greco Filho a utilização da ação controlada não interfere em direitos fundamentais dos
investigados.
74
Assim, por exemplo, quando policiais identificam, ao acaso, um
caminhão transportando grande quantidade de drogas, eles, à evidência,
colheriam melhores resultados se utilizassem a ação controlada, embora não
possuam tempo suficiente para obter uma autorização judicial. Por este
motivo, Antonio Scarance Fernandes defende a possibilidade de, em casos de
urgência, aceite-se uma vigilância inicial da polícia, até que, em seguida, se
obtenha a autorização judicial para o prosseguimento da ação controlada
94
.
Para evitarem-se os problemas acima descritos, faz-se necessário que
esse pedido seja feito logo em seguida ou concomitante (pela autoridade
policial), ainda que verbalmente, utilizando em analogia a previsão contida no
artigo 4, § 1º, da Lei 9.296/96 (Lei de Interceptações Telefônicas).
Inquestionavelmente, a ação controlada percebe melhores frutos
quando desenvolvida em conjunto com a figura do agente infiltrado.
Contudo, nem sempre ocorrerá a utilização simultânea de tais
mecanismos, remanescendo a discussão sobre a percepção isolada da entrega
vigiada.
Noutras palavras, subsiste a indagação sobre os meios que alicerçariam
a ação controlada enquanto providência autônoma, ou seja, na ausência de
servidores enraizados na estrutura delitiva.
Sem dúvida é possível imaginar a utilização da ação controlada sem
que haja em curso uma infiltração de agentes, quando o acompanhamento
puder ser feito de outras formas, como campanas, em que observação a
distância, sem que os investigados percebam.
Marcelo Batlouni Mendroni denominou a hipótese de “investigação
monitorada”
95
, mas ao nosso ver sem razão, pois além da questão
terminológica nos parecer questão de somenos, a medida permaneceria
94
FERNANDES, Antonio Scarance. O equilíbrio na repressão ao crime organizado. In: FERNANDES,
Antonio Scarance, ALMEIDA, José Raul Gavião de; MORAES, Maurício Zanoide de (coords). Crime
Organizado: Aspectos processuais – São Paulo: Editora Revista dos tribunais, 2009, p. 17.
95
MENDRONI, Marcelo Batlouni. Crime Organizado Aspectos Gerais e Mecanismos Legais. São Paulo:
ed. Juarez de Oliveira, 2002, p.68-69
75
essencialmente a mesma. O operador do direito deve apenas esclarecer se a
desencadearia com ou sem a infiltração de agentes.
Assim, como já mencionado, a ação controlada pode ser percebida
isoladamente, não pressupondo a infiltração de agentes para existir. Pode,
ainda, ser utilizada em conjunto com outras medidas, como a interceptação
telefônica.
O que se pondera, todavia, é a conveniência da utilização conjunta dos
mecanismos, aumentando significativamente a probabilidade de êxito na
empreitada.
Ou seja, as providências são independentes, embora haja conveniência
numa leitura conjunta.
Evidentemente, qualquer outra diligência necessária para a
investigação, como a interceptação telefônica, escuta ambiental, violação de
domicílio e outras, devem ser precedidas de autorização judicial própria.
Por fim, como bem ponderado por Eduardo Araujo da Silva
96
, os
policiais que se utilizam da ação controlada devem ter atenção especial para
manterem sempre uma posição passiva, não induzindo os integrantes da ação
criminosa a praticarem algum crime e, ainda, não devem praticar atos que
violem a intimidade e a vida dos investigados.
5.4. Flagrante diferido e flagrante esperado
A análise do instituto da ação controlada es diretamente ligada à
prisão em flagrante, pois com a utilização desse mecanismo de investigação,
prorroga-se a realização da prisão.
Sabe-se que, regra geral, nos termos do artigo 301 do Código de
Processo Penal, o policial que deparar com qualquer das situações de
96
Op. Cit., p. 84.
76
flagrante descritas no artigo 302 do mesmo diploma, deve prender
imediatamente o autor do crime.
A exceção é exatamente a ação controlada, na qual a prisão em
flagrante é prorrogada para momento posterior, mais oportuno à colheita de
provas.
A prisão em flagrante é uma espécie de prisão provisória, consistente
numa medida cerceadora da liberdade de locomoção, autodefesa da sociedade
e a única hipótese em que é executada independentemente de ordem escrita e
fundamentada da autoridade judiciária competente.
Inicialmente, não se pode negar que a prisão em flagrante ostenta
diversas funções, dentre elas, evitar a fuga do infrator, auxiliar na colheita de
provas, além de impedir a consumação (ou o exaurimento) do delito
97
.
Sobre o conceito dessa espécie carcerária, Julio Fabbrini Mirabete
98
explicou que o termo “flagrante” deriva do latim flagare, flagrans e
flagrantis, que significa o que é acalorado, evidente, notório, visível ou
manifesto. Juridicamente, flagrante é a qualidade do delito que está
acontecendo, que permite identificar-se e prender-se seu autor
independentemente de mandado de prisão. Segundo ele, a prisão em flagrante
define-se como uma forma de autodefesa da sociedade, decorrente da
necessidade social de se fazer cessar imediatamente a prática do crime e,
ainda, como uma forma acautelatória da prova da autoria e materialidade do
delito.
A prisão em flagrante ostenta natureza jurídica de ato administrativo,
ainda que exercida facultativamente pelo particular, como admite a lei.
De maneira inquestionável, a flagrância, quando processualmente
imaculada, torna tormentosa a defesa do acusado que, em vista da pronta
intervenção estatal, dificilmente consegue afastar a autoria do injusto.
97
Ressalvando-se, na hipótese de impedir a consumação do delito, a observância da ação controlada.
98
MIRABETE, Julio Fabbrini. Processo Penal. 16. ed. rev. e atual. - São Paulo: editora Atlas, 2004, p.401-
402.
77
Por conta das espécies de flagrante, podemos denominá-lo “próprio”,
“impróprio”, presumido”, “preparado”, esperado”, “diferido”,
“compulsório” e “facultativo”.
Diz-se próprio o flagrante em que o agente é surpreendido no momento
em que está cometendo a infração penal (artigo 302, inciso I, do Código de
Processo Penal) ou, ainda, quando acaba de praticá-la (artigo 302, inciso II,
do Código de Processo Penal). Essas hipóteses, doutrinariamente, também são
conhecidas por flagrante real ou propriamente dito.
Importante ressaltar que alguns juristas questionam a inclusão do artigo
302, inciso II, do Código de Processo Penal, no conceito de flagrante próprio,
pois o criminoso esgotou todo o seu potencial lesivo. Ele pode ser preso,
todavia, por ainda permanecer no local do delito ou diante de circunstância
indicativa da autoria.
De acordo com o raciocínio, a hipótese retrataria, em verdade, mera
presunção, por conta do agente não ter sido surpreendido enquanto
efetivamente praticava o crime, mas num momento fático diverso, posterior,
ainda que imediatamente após. Enquadrar-se-ia melhor na “quase-flagrância”
(mesma seara da próxima modalidade, prevista pelo artigo 302, inciso III, do
Código de Processo Penal). Na defesa dessa tese, exemplificam que o acusado
poderia ter apanhado a arma depois do delito praticado por outrem, ou a roupa
ter sido manchada pelo sangue da vítima na tentativa de socorrê-la.
Entretanto, a despeito dos respeitáveis argumentos em sentido
contrário, subsiste a concepção de que, ao ser surpreendido depois da prática
do crime (respeitadas as circunstâncias do caso concreto), autoriza-se a prisão
do agente na modalidade flagrante próprio.
De via diversa, flagrante impróprio ou quase-flagrante, retratado no
artigo 302, inciso III, do Código de Processo Penal, se verifica quando o
agente é perseguido, logo após o crime, pela autoridade, ofendido ou qualquer
pessoa, em situação que faça presumir que ele seja o autor da infração.
78
Ainda no mesmo artigo 302 do Código de Processo Penal, o inciso IV
prevê a figura do flagrante presumido, que ocorre quando o agente é
encontrado, logo depois, com instrumentos, armas, objetos ou papeis que o
façam presumir autor da infração.
Discussão existe, vale lembrar, por conta das expressões “logo após” e
“logo depois”, observadas pela lei, respectivamente, nos casos de flagrante
impróprio e presumido. Alguns afirmam que se trata de locuções sinônimas,
enquanto outros, fundamentadamente, apontam diferenças.
Fernando da Costa Tourinho Filho anotou que as duas expressões
possuem o mesmo sentido, mas reconheceu que elas são expressões um tanto
vagas, que permitem uma interpretação mais flexível
99
.
A despeito dos diferentes posicionamentos, indubitável que as
expressões devem ser analisadas com a prudência devida, numa margem
temporal razoável, evitando-se arbitrariedades. Parece correta, todavia, a
interpretação que as trata de maneira uniforme.
Dessa forma, a prisão deve se concretizar num lapso condizente com a
presunção de autoria. Afinal, quanto mais distante cronologicamente o crime,
maiores as chances de o criminoso ter-se despojado de tudo que o ligava ao
ato espúrio.
Por seu turno, qualquer do povo poderá prender alguém em flagrante,
nos termos do artigo 301, primeira parte, do Código de Processo Penal, no
que se denomina flagrante facultativo. Como mencionado, as autoridades
policiais e seus agentes não somente poderão, mas sim, deverão prender quem
quer que seja encontrado em flagrante delito, pela leitura do artigo 301, in
fine, do Código de Processo Penal, hipótese intitulada flagrante compulsório.
Surgem, pois, mais três espécies de flagrante, quais sejam, preparado,
esperado e diferido.
99
TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Prática de Processo Penal, 28ª edição, São Paulo: Editora
Saraiva, 2007. p. 48.
79
No flagrante preparado, também chamado provocado, o agente é
induzido a praticar um crime que, por conta da ação anterior da vítima ou
agente público, nunca poderá ser consumado.
Sobre o assunto, o Supremo Tribunal Federal, inclusive, editou súmula
de entendimento, sob o número 145, no sentido de que: “Não há crime,
quando a preparação do flagrante torna impossível a sua consumação”.
Assim, após provocar outrem a praticar o crime, o agente toma todas as
providências necessárias para prendê-lo em flagrante durante a execução,
tornando impossível a consumação.
O flagrante preparado, também conhecido por delito de ensaio ou de
experiência, resta compreendido no conceito de crime impossível (que
engloba a ineficácia absoluta do meio e a impropriedade absoluta do objeto
material).
Diferentemente, no flagrante esperado não qualquer instigação para
outrem praticar o crime, inexiste, portanto, interferência externa. Vale dizer, a
decisão de praticar o ilícito é tomada pelo próprio criminoso, enquanto o
aparato estatal apenas aguarda a efetivação de sua deliberação interna para
surpreendê-lo.
O flagrante esperado evita que o delinquente seja surpreendido
prematuramente, enquanto empreende somente atos preparatórios, geralmente
atípicos. Espera-se, conscientemente, o início de execução ou a consumação
do crime, quando será possível vislumbrar a situação de flagrante.
Situação diversa ocorre no flagrante prorrogado ou retardado, quando o
crime foi praticado, todavia, não repentina repressão. Sem prejuízo, a
inércia inicial se justifica pela possibilidade de surpreender outros membros
da empreitada criminosa, gerando maior efetividade da atuação policial.
Como exemplo das últimas espécies discutidas, podemos lembrar de
situação extremamente corriqueira nos dias atuais, por exemplo, daquele
criminoso surpreendido vendendo drogas. Por certo, conforme as
80
circunstâncias, podem surgir três hipóteses essencialmente distintas:
a) O autuado não queria negociar drogas, trazia consigo apenas para seu
uso, mas acabou cedendo diante da insistência do policial em adquiri-las.
Trata-se de flagrante preparado quanto ao crime de tráfico, afinal, ele apenas
foi perpetrado pela instigação do agente público;
b) A polícia descobriu, de antemão, que o criminoso iria entregar certa
droga em determinado endereço, para consumo de terceiros. Por isso, espera o
traficante chegar ao local combinado e, percebendo que ele traz consigo a
substância, efetua a prisão. Aqui, a hipótese é de flagrante esperado;
c) notícias de que certo delinquente faça parte de grupo organizado
para o tráfico de drogas, participando unicamente como “aviãozinho”.
Embora a polícia o surpreenda vendendo drogas, deixa de capturá-lo
imediatamente (embora crime tenha se consumado) para verificar o local
para onde o dinheiro é levado. chegando, poderá encontrar depósito de
substâncias ilícitas, além dos demais membros da organização, hipótese em
que a atividade estatal terá colhido frutos bem mais significativos. Aqui, pois,
reside o flagrante retardado.
A diferença primordial entre flagrante esperado e retardado reside,
portanto, no momento em que a prisão é levada a efeito. Enquanto no
primeiro a consumação é o ponto derradeiro para a intervenção policial, no
outro se prorroga esse instante, estendendo-se a vigilância para depois do
crime, objetivando, assim, a captura de maior número de pessoas ou
apreensão de coisas.
Retornando ao último exemplo, caso a polícia sempre prendesse o
“aviãozinho”, jamais chegaria ao coração da cadeia criminosa. Isso porque o
simples vendedor dificilmente entregaria seus comandantes, aqueles que
efetivamente detêm o controle sobre o comércio de ilícitos, produzindo,
distribuindo e lucrando com as drogas.
Sustenta-se que flagrante retardado, ou diferido e a ação controlada
81
entrega vigiada sejam sinônimos.
Nesse raciocínio, seria possível o flagrante diferido apenas quando a lei
o permitisse, nas hipóteses da ação controlada e entrega vigiada,
reconhecendo-se, assim, seu caráter excepcional. Nada mais correto, com
respeito aos que pensam de maneira diversa, já que a regra determina a
intervenção estatal imediata, ou seja, a pronta captura daquele que praticou
um crime.
Oportuno mencionar, pelo entendimento de que as expressões ação
controlada”, entrega vigiada” e “flagrante diferido” seriam idênticas, não se
inclui o previsto na “Lei de Lavagem de Dinheiro”.
Mormente porque embora o artigo 4º, §4º, da Lei 9.613/98, prescreva
que A ordem de prisão de pessoas ou da apreensão ou sequestro de bens,
direitos ou valores, poderá ser suspensa pelo juiz, ouvido o Ministério
Público, quando a sua execução imediata pode comprometer as
investigações”, a medida, nos termos do caput, somente teria supedâneo no
curso de ação ou inquérito policial, quando não mais haveria espaço para o
flagrante.
Portanto, mesmo que o disposto na legislação contra a lavagem de
dinheiro tenha a mesma finalidade dos demais institutos, ou seja,
precipuamente aguardar o melhor momento para a intervenção estatal, as
espécies ostentariam naturezas distintas.
Nesse caso, quando a lei menciona “ordem de prisão”, pressupõem-se
outras espécies de prisão, que não a em flagrante.
Contudo, embora instituto diverso, se trata de outro mecanismo para
assegurar maior efetividade no combate ao crime e, por consequencia, merece
ser amplamente discutido e aplicado.
82
6. INFILTRAÇÃO DE AGENTES
6.1. Conceito
Conceituar agente infiltrado, sem quaisquer dúvidas, consubstancia-se
numa árdua tarefa aos operadores do direito pátrio, seja por tratar-se de figura
bem recente em nosso ordenamento, seja pela escassez de material legislativo
disciplinando o tema.
Por certo, na primitiva redação da Lei 9.034, constante no Diário
Oficial de 04 de maio de 1995
100
, inexistia qualquer referência sobre
infiltração de agentes no crime organizado, subsistindo, naquela época,
discussão teórica baseada em experiências estrangeiras.
Basta observar que, no Brasil, enquanto o deputado federal Michel
Temer apresentava o Projeto de Lei 3.516, em 24 de agosto de 1989
101
, noutra
realidade, em Portugal, seis anos antes, o Decreto-Lei 430/83
disciplinava este importante instrumento de combate à criminalidade.
Cumpre ponderar que, embora a figura do agente infiltrado estivesse
contemplada no Projeto de Lei em testilha, não foi mantida a previsão quando
o diploma entrou em vigor.
Na oportunidade, o Presidente da República optou por vetar o inciso I,
do artigo
102
, dando conta de que seu teor, em tese, afrontaria o interesse
público. Nesse raciocínio, a Mensagem nº483, incluindo em seu bojo as
razões do Ministério da Justiça sobre o assunto, assinalava que o dispositivo
100
p. 6241
101
Conforme noticiado pelo “Diário do Congresso Nacional”, Seção I, de 25 de agosto de 1989, p.8555, que
deu origem à Lei 9.034/95.
102
Artigo Em qualquer fase da persecução criminal que verse sobre ação praticada por organizações
criminosas são permitidos, além dos já previstos na lei, os seguintes procedimentos de investigação e
formação de provas:
I infiltração de agentes de polícia especializada em quadrilhas ou bandos, vedada qualquer co-participação
delituosa, exceção feita ao disposto no art.288 do Decreto-Lei 2.848, de 07 de dezembro de 1940 Código
Penal, de cuja ação se preexclui, no caso, a antijuridicidade;
83
contrariava o interesse público, pois permitia que um agente policial,
independentemente de autorização judicial, se infiltrasse em quadrilhas ou
bandos. Lembrou a mensagem de veto que a redação do projeto original,
criado na Comissão de Constituição e Justiça e Redação, condicionava a
infiltração à prévia obtenção de autorização judicial
103
.
Convém salientar, o dispositivo vetado teve sua redação alterada
durante a tramitação do processo legislativo. Desse modo, é importante
lembrar a diferença entre o texto originalmente proposto e aquele enviado
para sanção. No projeto original, o artigo 8º exigia: a solicitação feita pela
autoridade policial, a análise da imprescindibilidade da medida, decisão
judicial e ciência do Ministério Público
104
.
Em apertada síntese, o veto presidencial repelia a desnecessidade de
autorização judicial, no que, eventualmente, diversas arbitrariedades poderiam
ser praticadas.
A ausência de autorização judicial tornaria difícil delimitar até aonde
iria o exercício correto das atividades investigatórias e a partir de onde
poderia existir uma verdadeira colaboração do agente infiltrado nas atividades
delituosas da organização criminosa.
De certo, o texto final daria margem ao inadvertido uso da infiltração
por agentes públicos levianos, hipótese em que, ventilada como plausível na
época, desvirtuaria os objetivos primordiais deste instrumento de combate ao
crime organizado.
Contudo, alguns anos depois, em 2000, o então Presidente da República
Fernando Henrique Cardoso divulgou o “Plano Nacional de Segurança
Pública”, cujo objetivo era traçar parâmetros mais eficientes para a área.
103
Conforme exposto no sitio eletrônico da Presidência da Republica Federativa do Brasil, em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/Mensagem_Veto/anterior_98/VEP-LEI-9034-1995.pdf
104
Art. A infiltração de agentes de polícia especializada em organização criminosa, para investigação do
crime organizado, será solicitado pela autoridade policial ao Juiz competente, que a autorizará desde que haja
suficientes indícios da prática ou da tentativa das infrações penais presentes nesta lei e a providência for
absolutamente indispensável à apuração ou à assecuração das provas, dando ciência ao Ministério Público.
84
Naquele momento o país estava sendo atingido por uma onda de violência,
principalmente na cidade do Rio de Janeiro, onde o tráfico de drogas gerava
consequências devastadoras. Assim, em regime de urgência constitucional, foi
enviado ao Congresso Nacional o Projeto de Lei 3.275/00
105
.
Dessa maneira, o ordenamento recebeu a Lei 10.217/2001, que incluiu
o inciso V, ao artigo 2º, da Lei 9.034/95, o qual trouxe, finalmente, o agente
infiltrado ao nosso sistema legislativo.
Pela fria leitura do texto legal, poder-se-ia, num breve resumo, definir
agente infiltrado como o membro de grupo policial ou de inteligência que,
mediante circunstanciada autorização judicial, termina inserido na estrutura
do crime organizado, instante em que passa a ser um de seus integrantes, com
o escopo primordial de conhecer-lhe a estrutura, o funcionamento, identificar
seus integrantes e reconhecer seus líderes, além, evidentemente, de colher
elementos probatórios para futura ação penal.
Ocorre, todavia, que a descrição legal do instituto se apresenta
sobremaneira genérica e inviabiliza, por vezes, sua aplicabilidade prática. O
legislativo perdeu, com a redação apresentada, ótima oportunidade para
disciplinar a atividade do agente infiltrado e, consequentemente, dificultou a
atuação estatal nesse sentido.
Embora a doutrina venha se preocupando em discutir os limites do
agente, estabelecendo-se aspectos norteadores de sua atuação, todo o trabalho
investigativo corre o risco de esbarrar na ausência de pormenorização legal,
fulminando de nulidade bons trabalhos de infiltração amparados somente em
interpretações doutrinárias que, por sua natureza, poderiam ser duramente
questionadas nos nossos Tribunais.
Entretanto, a doutrina ainda tenta compreender o verdadeiro alcance da
expressão agente infiltrado” e, ainda, apontar a deficiência de nossa previsão
105
PACHECO, Rafael. Crime Organizado Medidas de Controle e Infiltração Policial. Curitiba: editora
Juruá, 2007, p.112-113.
85
legislativa, na esperança do surgimento de um novo texto legal que
pormenorize a utilização desse meio de investigação.
A argentina Claudia Santamaría, ao definir agente infiltrado, asseverou
que, naquele país, além do policial, também é possível o uso das forças
armadas para a escolha do agente infiltrado. Por lá, nos dizeres da autora,
observa-se a finalidade de investigar internamente a organização criminosa,
mormente na percepção do cometimento e preparação de ilícitos, informando
sobre tais circunstâncias para, conforme o caso, descobrir a empreitada,
podendo o agente estatal participar da atividade ilícita e, também, ter
preservada sua verdadeira identidade
106
.
Por sua vez, Alberto Silva Franco, ao sintetizar o conceito, define
agente infiltrado como funcionário da polícia que, falseando sua identidade,
penetra no âmago da organização criminosa para obter informações e, dessa
forma, desmantelá-la
107
.
Marcelo Batlouni Mendroni, a seu modo, salienta que a infiltração de
agentes:
“Consiste basicamente em permitir a um agente da Polícia ou de
serviço de inteligência infiltrar-se no seio da Organização
Criminosa, passando a integrá-la como se criminoso fosse, - na
verdade como se um novo integrante fosse. Agindo assim,
penetrando no organismo e participando das atividades diárias, das
conversas, problemas e decisões, como também por vezes de
situações concretas, ele passa a ter condições de melhor
compreendê-la para melhor combatê-la através do repasse das
informações às autoridades”.
108
Para Soraya Moradillo Pinto:
“A infiltração consiste na introdução de agentes de polícia ou de
inteligência no meio da organização sem que sua real atividade seja
conhecida, para nela trabalhar e viver temporariamente, como parte
106
SANTAMARIA, Claudia B Moscato de. El agente encubierto, Buenos Aires: La Ley, 2000, p.1 apud
PACHECO, Rafael. Crime Organizado Medidas de Controle e Infiltração Policial. Curitiba: editora Juruá,
2007, p.108.
107
FRANCO, Alberto Silva. Leis penais especiais e sua interpretação jurisprudencial. edição ver., atual. e
ampl. São Paulo: RT, 2002, p.584.
108
MENDRONI, Marcelo Batlouni. Agentes infiltrados x ação criminosa. Portal Âmbito Jurídico, 31 de
janeiro de 2006. Disponível no sitio eletrônico: “http://www.ambito-
juridico.com.br/site/index.php?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=697”.
86
integrante dela, com a finalidade de descobrir a forma como as suas
atividades são desenvolvidas, seus pontos vulneráveis, as pessoas
que dela fazem parte e os cargos que hierarquicamente ocupam
dentro da organização, os seus fornecedores, sua clientela, seus
auxiliares com vinculações estatais, seu real poder de comando e de
abrangência, seus planos e forma de atuação e execução, captação de
documentos e informações, enfim tudo que possa servir para
esclarecer as atividades ilegais e obter provas necessárias para o
procedimento judiciário”.
109
Entretanto, como toda inovação legislativa, ainda mais em Processo
Penal, o instituto gerou questionamentos de alguns doutrinadores.
Uma das críticas ao mecanismo de infiltração de agentes reside, de
maneira significativa, no fato de que a hipótese se consubstanciaria numa
medida restritiva de direitos fundamentais, especialmente o direito à
intimidade.
Ademais, durante a infiltração, sem conhecer a real identidade do
interlocutor, os investigados acabam por fazer confidências ao agente, o que
lhe prejudica o direito de defesa, pois tais declarações são realizadas a um
agente público e serão utilizadas mais tarde em um processo criminal, sem
que lhe tenha sido garantida a possibilidade de ficar em silêncio e não
produzir prova contra si
110
.
Também podem ser violados durante a operação o direito à
autodeterminação informativa e a inviolabilidade do domicílio, pois muitas
vezes o agente ingressa na residência ou local de trabalho do investigado,
obtendo autorização mediante fraude.
Como, pois, conciliar a ofensa a tais bens jurídicos, alguns
constitucionalmente protegidos, com a necessidade estatal de resguardar a
sociedade das indesejadas consequências do crime organizado? Sem dúvidas,
a resposta deve caminhar no sentido da possibilidade de infiltração de
109
PINTO, Soraya Moradilli. Infiltração Policial nas organizações criminosas São Paulo: Ed. Juarez de
Oliveira, 2007, p. 68.
110
FERNANDES, Antonio Scarance. O Equilíbrio entre a Eficiência e o Garantismo e o Crime Organizado.
In: TOLEDO, Otávio Augusto de Almeida; LANFREDI, Luís Geraldo Sant’ana; SOUZA, Luciano
Anderson; SILVA, Luciano Nascimento. Repressão Penal e Crime Organizado Os novos rumos da política
criminal após o 11 de Setembro. – São Paulo: Quartier Latin, 2009, p. 249-250.
87
agentes.
Além das prestações positivas impostas ao Estado pelo princípio da
dignidade da pessoa humana e todos os direitos individuais correlatos a ele,
em especial o direito à segurança
111
, é possível encontrar fundamento em
tratados internacionais.
Dessa maneira, encontra-se importante norte na Convenção Europeia
para a Proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais” ou,
simplesmente, “Convênio Europeu de Direitos Humanos”.
Pelo amealhado no tratado a que se reportou, cujo primitivo texto foi
lavrado na distante data de 04 de novembro de 1950, em Roma, objetivou-se
preservar as garantias de todo e qualquer cidadão, conferindo-lhes um
substrato de dignidade. Todavia, o resguardo não se verificou de maneira
absoluta, pois houve espaço para que os interesses do Estado, em certos
pontos, preponderassem sobre o interesse individual.
Ao presente estudo, interessa-nos o artigo , que trata do direito ao
respeito pela vida privada e familiar. O parágrafo segundo desse dispositivo
prevê que não pode haver ingerência do Estado no exercício desses direitos,
salvo quando tal ingerência estiver prevista em lei e consistir uma providência
necessária para a segurança nacional, para a segurança pública, para o bem-
estar econômico do país, a defesa da ordem e a prevenção das infrações
penais, a proteção da saúde ou da moral, ou a proteção dos direitos e das
liberdades de terceiros
112
.
Em suma, se o pacto europeu de direitos humanos, de um lado, preserva
a vida privada e familiar (bem como o domicílio e correspondência dos
111
Ver capítulo 1.
112
Artigo 8.º (Direito ao respeito pela vida privada e familiar)
1. Qualquer pessoa tem direito ao respeito da sua vida privada e familiar, do seu domicílio e da sua
correspondência.
2. Não pode haver ingerência da autoridade pública no exercício deste direito senão quando esta ingerência
estiver prevista na lei e constituir uma providência que, numa sociedade democrática, seja necessária para a
segurança nacional, para a segurança pública, para o bem-estar econômico do país, a defesa da ordem e a
prevenção das infracções penais, a protecção da saúde ou da moral, ou a protecção dos direitos e das
liberdades de terceiros.
88
moradores de países signatários); de outro, também admite situações
excepcionais que confrontem tais direitos, antevendo a inevitabilidade da
intervenção estatal quando estiverem em pauta as hipóteses de interesses
públicos acima descritos.
Dessa forma, as opções que autorizam a relativização de tão
importantes direitos, aparentemente genéricas, em verdade demonstram que
os interesses do corpo social devem prevalecer sobre inadvertidas condutas de
seus pares.
Inclusive, seria antagônico conceber Estados reféns dos direitos
outorgados aos próprios nacionais, inertes no combate aos nefastos grupos
desagregadores e, talvez, totalmente impotentes na busca pela pacificação
social. Pior ainda seria admitir que o pretexto de odiosa desídia seja
prerrogativa pretensamente inquebrantável, ainda que utilizada por algumas
pessoas altamente nocivas ao coletivo.
Nessa esteira, o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem
113
, ao
debater eventual interferência estatal na vida privada, terminou por acatar a
possibilidade quando percebidas determinadas situações autorizadoras,
mormente o tripé “legalidade – legitimidade do fim – necessidade”
114
.
Portanto, depreende-se que a infiltração de agentes na realidade
brasileira é prevista em lei, legítima pelo objetivo perseguido, além de
necessária quando a organização criminosa não foi desmantelada por meios
convencionais. Portanto, preenche todos os requisitos exigidos pelos diplomas
113
O Tribunal Europeu dos Direitos do Homem instituído pela Convenção, com as alterações do Protocolo
n.º 11, é composto por um número de juízes igual ao de Estados contratantes (actualmente quarenta e um).
Não existe nenhuma restrição quanto ao número de juízes com a mesma nacionalidade. Os juízes são eleitos,
por seis anos, pela Assembleia Parlamentar do Conselho da Europa. Contudo, o mandato de metade dos
juízes eleitos nas primeiras eleições expira após três anos, de maneira a que a renovação dos mandatos de
metade dos juízes se faça de três em três anos. Os juízes exercem as suas funções a título individual e não
representam os Estados. Não podem exercer uma actividade incompatível com os seus deveres de
independência e imparcialidade ou com a disponibilidade exigida pelo desempenho de funções a tempo
inteiro. O mandato termina aos 70 anos de idade. Texto disponível no sitio eletrônico:
“http://www.gddc.pt/direitos-humanos/sist-europeu-dh/cons-europa-tedh.html”.
114
MARTIN, Joaquin Delgado. El processo penal ante la criminalidad organizada: el agente encubierto.
Actualidad Penal. Madrid, La Ley, p.10, jan.2001, apud PACHECO, Rafael. Crime Organizado Medidas
de Controle e Infiltração Policial. Curitiba: editora Juruá, 2007, p.112.
89
legais internacionais que tratam da mesma matéria.
E, diga-se de passagem, a questão não foi trazida de estatutos
essencialmente repressivos, mas sim, por tratado continental de direitos
humanos.
A hipótese, se compreendida à luz de nosso conjunto legislativo, não
seria absurda a leitura da Convenção Americana de Direitos Humanos nos
moldes da realidade europeia, subsidiando, pois, a atuação policial nos grupos
criminosos.
Com efeito, o artigo 11 do Pacto de São José da Costa Rica”,
disciplina a proteção da honra e dignidade humana (incluindo a vida privada)
e prescreve que ninguém pode ser objeto de ingerências arbitrárias ou
abusivas em sua vida privada
115
.
Numa apertada síntese, o tratado de direitos humanos não desautoriza
qualquer ingerência na vida privada do cidadão, somente aquela arbitrária
(sem fundamento em lei ou regras)
116
ou abusiva (contraria à lei ou
prescrições)
117
.
Sem dúvidas, o agente infiltrado ostenta ponderável respaldo legal,
apenas excluindo sua aplicabilidade interpretações inadvertidas e
despreocupadas com a pacificação social. Deve-se, a todo instante, ressaltar a
imprescindibilidade da medida.
115
Artigo 11 - Proteção da honra e da dignidade:
1. Toda pessoa tem direito ao respeito da sua honra e ao reconhecimento de sua dignidade.
2. Ninguém pode ser objeto de ingerências arbitrárias ou abusivas em sua vida privada, em sua família, em
seu domicílio ou em sua correspondência, nem de ofensas ilegais à sua honra ou reputação.
3. Toda pessoa tem direito à proteção da lei contra tais ingerências ou tais ofensas.
116
Arbitrário - ar.bi.trá.rio - adj (lat arbitrariu) 1 Resultante de arbítrio pessoal, ou sem fundamento em lei
ou em regras: Decisão arbitrária. 2 Que não é permitido. 3 Caprichoso, despótico, discricionário. Extraído
do web site: “http://michaelis.uol.com.br/moderno/portugues/index.php?lingua=portugues-
portugues&palavra=arbitrário”, referente ao “Dicionário Michaelis da Língua Portuguesa”
117
Abusivo - a.bu.si.vo - adj (lat abusivu) 1 Praticado ou introduzido por abuso. 2 Impróprio, inconveniente.
3 Contrário às leis, às prescrições. Extraído do site: “Dicionário Michaelis da ngua Portuguesa”, endereço:
“http://michaelis.uol.com.br/moderno/portugues/index.php?lingua=portugues-portugues&palavra=abusivo”.
90
Ora, como recorda Marcelo Mendroni
118
, são inúmeras as vantagens
decorrentes do correto emprego da infiltração de agentes, como o
esclarecimento da autoria de crimes, do modus operandi das organizações
criminosas, identificação dos líderes e “testas de ferro”, recuperação de bens,
identificação de agentes públicos e empresas envolvidas nas atividades
criminosas, dentre outras.
Questionar a infiltração pela possibilidade de o agente praticar crimes,
por si só, não se apresenta como argumento suficiente a desautorizá-la. Desde
que dentro de premissas aceitáveis, reconhecem-se várias posições sobre a
excludente da responsabilidade penal
119
, devendo, pois, sobressair a defesa
dos princípios constitucionais prevalentes.
Por derradeiro, o Princípio da Proporcionalidade Constitucional, ou
Verhaltnismaßigkeitsgrudsatz, consagrado pela doutrina alemã, nos ensina
que o conflito aparente de normas constitucionais deve ser solucionado pela
escolha daquela de maior peso. E, nessa esteira, o direito à intimidade ou à
vida privada não pode prevalecer sobre o de toda a coletividade,
absurdamente concebendo que este seja refém daquele.
A teoria da proporcionalidade, também chamada de princípio da
proporcionalidade, tem sua origem no Direito Administrativo e decorre do
princípio da legalidade. Suzana de Toledo Barros
120
, citando Lopes Gonzalez,
lembra que a partir da década de setenta do último século, a jurisprudência
francesa consagrou a necessidade de ponderação, diante do caso concreto, das
medidas limitativas de direito em face dos interesses enfrentados. Dever-se-ia
utilizar a técnica da ponderação do custo-benefício.
118
MENDRONI, Marcelo Batlouni. Agentes infiltrados x ação criminosa, Portal Jurídico Âmbito Jurídico,
Rio Grande, 31/01/2006, disponível no endereço eletrônico “http://www.ambito-
juridico.com.br/site/index.php?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=697”.
119
Remetemos o leitor ao item específico, neste capítulo.
120
BARROS, Suzana de Toledo - O princípio da proporcionalidade e o controle de constitucionalidade das
leis restritivas de direitos fundamentais. 3 ed. Brasília: Brasília Jurídica, 2003, p. 44.
91
Contudo, após a 2
a
Guerra Mundial, foi na Alemanha que o princípio da
proporcionalidade ganhou seu contorno atual e foi alçado do Direito
Administrativo para o Direito Constitucional.
Os direitos humanos fundamentais inseridos na Constituição Federal
formam um sistema de direitos e garantias e, dentro desse sistema, os direitos
e garantias vigoram em harmonia, encontram seus limites um em relação aos
outros.
Se houver conflito entre dois ou mais direitos e garantias, compete ao
intérprete procurar harmonizá-los, de forma a encontrar uma solução para o
caso concreto. Não se pode aceitar a existência de conflitos insolúveis entre
normas constitucionais.
O princípio da proporcionalidade serve para solucionar esses conflitos,
sopesando os valores a fim de determinar qual deve prevalecer diante de um
caso concreto.
A Constituição Federal não reconhece nenhum direito absoluto, pois
por mais relevante que seja um determinado direito, ele sempre encontrará
limites em outro mais importante ou de igual valia.
A aplicação da teoria da proporcionalidade é forma de interpretação do
texto constitucional, na qual se busca o verdadeiro significado da norma e a
harmonia das normas constitucionais, baseando-se no princípio da
relatividade ou da convivência das liberdades públicas.
Tanto a doutrina quanto a jurisprudência têm conferido à
proporcionalidade o status de princípio constitucional, extraído de outros
direitos garantidos pela Constituição, como a liberdade, a justiça, a
personalidade e outros. Antonio Scarance Fernandes entende que: o
princípio da proporcionalidade complementa o princípio da reserva legal e
reafirma o Estado de Direito
121
.
121
FERNANDES, Antonio Scarance. Processo Penal Constitucional 4. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo:
Editora Revista dos Tribunais, 2005. pg 56.
92
Daí decorre o fundamento que garante a aplicabilidade do agente
infiltrado em nosso ordenamento jurídico, pois as consequentes violações aos
direitos individuais dos investigados justificam-se para a proteção de outros
direitos que interessam a toda a sociedade.
Superada a questão da constitucionalidade, resta-nos analisar, ainda, a
existência de um obstáculo ético-social da utilização desse meio
investigatório.
A primeira resistência que infiltração de agentes enfrenta é o princípio
de que o Estado não pode ser partícipe ou co-autor de crimes. O Estado impõe
as regras de convívio social, estabelecendo a ética como um dos objetivos a
serem alcançados, razão pela qual não se pode admitir que o próprio Estado
aja de forma distinta.
Ainda, os cidadãos não estão dispostos a ver o dinheiro proveniente de
seus impostos ser investido em técnicas de investigação que não passem de
uma encenação de um delito, não alcançando o objetivo de livrá-los do
flagelo a que estão expostos devido ao crime organizado.
Eduardo Araujo da Silva
122
, citando Juan José Lópes Ortega, aponta que
a infiltração de agentes apresenta três características básicas: a dissimulação,
que é o ocultamento do agente infiltrado de sua condição de agente estatal e
de suas reais intenções; o engano, pois há uma encenação que permite ao
agente obter a confiança do investigado; e a interação, pois agente e
investigado passam a ter uma relação direta e pessoal.
Impossível não se associar a figura do agente infiltrado aos serviços
secretos e seus espiões, comuns na política internacional.
Superada a questão do chamado “agente provocador”, que será
analisada mais adiante, não merece prosperar qualquer crítica de natureza
ética a esse tipo de investigação.
A prudente atuação do agente infiltrado em nada altera os
122
Op. Cit., p. 21.
93
acontecimentos, os planos da organização criminosa. Sua atuação, em regra, é
passiva. Mesmo quando compelido a atuar para garantir seu disfarce, essa
ação seria consequência da atuação daquela organização, o que ocorreria com
ou sem a intervenção do agente estatal.
Vale lembrar que a atuação do agente infiltrado é controlada, seus
limites são pré-estabelecidos, é imprescindível para que se conheça a
intimidade da organização criminosa e seus integrantes e, ainda, sua presença
é capaz de evitar inúmeros delitos, às vezes, mesmo sem revelar sua
identidade.
Por fim, alcançado o objetivo e desmantelada a organização criminosa,
todo o investimento na operação é recompensado pela paz pública gerada com
o fim da entidade criminosa e a punição de seus integrantes pelos crimes
praticados.
Assim, colocando-se na balança os dois valores, deve prevalecer o
interesse público em ver extirpada da sociedade a organização criminosa que
se pretende combater com a medida. Trata-se, pois, de medida de política
criminal.
6.2. Direito estrangeiro
A figura do agente infiltrado ostenta diversas leituras ao redor do
mundo, cada qual com suas perspectivas e particularidades, fato que
demonstra a diuturna preocupação em frear a atuação do crime organizado.
A Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado
Transnacional, diploma adotado em Nova Iorque no ano de 2000, contemplou
expressamente o objeto desse estudo, confirmando, ao seu modo, a
importância da infiltração de agentes no combate à criminalidade.
Dessa forma, cada Estado Parte ostenta a prerrogativa de disciplinar a
94
matéria, em conformidade com os princípios fundamentais do ordenamento
jurídico nacional. Adiante, no que toca à formação e assistência técnica dos
servidores estatais, denota-se a preocupação em capacitá-los prévia e
adequadamente, mediante programas de formação específicos ao bom uso de
diferentes instrumentos e técnicas (incluindo-se, aqui, o infiltrado).
Como mencionado, no Brasil, o Decreto 5.015, de 12 de março de
2004 introduziu em nosso ordenamento o tratado, conhecido também como
Convenção de Palermo.
Inquestionável, pois, a preocupação da comunidade internacional em
estabelecer premissas no trato com a delinquência organizada, ressaltando-se
a pertinência da infiltração de agentes.
Para ilustrar a eficácia da medida, convém apresentar um fato que
tomou o noticiário global. Trata-se do episódio envolvendo a política Ingrid
Betancourt, recentemente socorrida pelas forças estatais colombianas e que,
durante anos, teve sua liberdade tolhida pelo grupo guerrilheiro “Forças
Armadas Revolucionárias da Colômbia”, popularmente conhecida como
“FARC”.
Nos dizeres do periódico português “Açoriano Oriental”, numa matéria
publicada na seção “internacional”, de 03 de julho de 2008, a operação apenas
logrou êxito em virtude de agentes terem se infiltrado na guerrilha, os quais
atuaram decisivamente no momento em que o resgate iria ser levado a
efeito
123
.
No mesmo sentido, o jornal O Estado de São Paulo”, por notícia da
BBC Brasil, deu conta de que a infiltração de agentes foi providencial ao
deslinde da operação, ponderando, já no título da reportagem, que “Infiltração
nas Farc permitiu resgate, diz analista Operação de inteligência do
Exército colombiano começou anos atrás, diz ex-guerrilheiro.Logo, em seu
123
Operação de resgate começou com infiltração nas FARC, In: Portal “Açoriano Oriental Online”, 03 de
julho de 2008, através do endereço eletrônico: “http://www.acorianooriental.pt/noticias/view/172619”.
95
bojo, a matéria esclarece que o processo de infiltração se deu entre os
guerrilheiros mais jovens, que ingressaram em um momento de expansão do
exército revolucionário
124
.
Além desse antecedente fático, que fornece uma visão genérica do
instituto e seus possíveis reflexos práticos, torna-se importante analisar a
maneira como determinados países trataram a espécie, no que será possível,
diante da ausência de pormenorização legal no Brasil, melhor compreender os
desdobramentos percebidos no deslinde das operações.
de se reconhecer que algumas nações priorizam o mecanismo de
infiltração no trato com o tráfico de drogas, enquanto noutras, há sua
observância prática para os mais diversos delitos. Esta última hipótese nos
parece mais correta, porquanto a criminalidade organizada observa diversos
tentáculos e, hodiernamente, seus membros não se restringem a perpetrar
somente determinado ilícito, ao perseguir todo dividendo que qualquer
atividade escusa pode proporcionar.
Em relação à notícia acima, a lei colombiana, mais especificamente a
Lei 906, de 31 de agosto de 2004, que criou o Código de Procedimiento
Penal colombiano, em seus artigos 241 e 242 dispõe sobre a infiltração de
agentes em organizações criminosas.
Interessante notar que a lei colombiana exige uma prévia análise da
organização criminosa antes que seja autorizada a infiltração. Também, o
agente infiltrado pode ser um funcionário da polícia judicial ou um particular,
sendo que a operação pode perdurar por no máximo um ano, prorrogável por
mais um ano, mediante devida justificação.
Por seu turno, a França contemplou o agente infiltrado em situações
pontuais, destacando-se o artigo 706-32, do Código de Processo Penal,
124
Infiltração nas Farc permitiu resgate, diz analista Operação de inteligência do Exército colombiano
começou anos atrás, diz ex-guerrilheiro. In: “O Estado de São Paulo”, edição online, 02 de julho de 2008,
seção “Geral”, disponível em: http://www.estadao.com.br/noticias/geral,infiltracao-nas-farc-permitiu-
resgate-diz-analista,199635,0.htm”
96
voltado ao universo das drogas.
Em pequena síntese, o dispositivo dá conta de que, sem prejuízo das
disposições dos artigos 706-81 a 706-87 do mesmo diploma
125
e, para
constatar infrações (de aquisição, oferta ou cessão de drogas mencionados nos
artigos 222-37 e 222-39, do Código Penal), identificar os autores e cúmplices,
bem como efetuar as sanções previstas, os oficiais de polícia judiciária e, sob
sua autoridade, os agentes de polícia judiciária podem (com autorização e
comunicação às autoridades mencionando-se Procurador da República, Juiz
de Instrução e Ministério Publico) adquirir entorpecentes sem serem
responsabilizados penalmente.
Adiante, em vista da aquisição de tais produtos, disponibilizar-se-á para
as pessoas envolvidas nesses crimes, nos termos anteriormente ponderados,
meios de caráter jurídico ou financeiro, bem como de transporte, depósito,
acomodação, armazenamento e telecomunicação.
Ademais, na esteira dos artigos 706-81 a 706-87, incluídos na seção
De l'infiltration”, referidos no artigo 706-32, todos do Código de Processo
Penal da França, denota-se que o tema foi esmiuçado.
Preambularmente, o artigo 706-81 pondera que, se as necessidades do
procedimento criminal exigirem uma operação de infiltração, desde que de
maneira justificada, tal pode ser autorizada dentre os crimes previstos no
artigo 706-73
126
.
Por sua vez, o artigo 706-82 retira a responsabilidade penal dos agentes
infiltrados, prescrevendo atos previamente abarcados pela excludente.
Contudo, a proteção ao agente infiltrado encontra melhor guarida no
preceito adiante, especificamente o artigo 706-84, que dá conta de que a
125
Adiante analisados.
126
Alguns exemplos: crime de meurtre commis en bande organisée prévu par le 8° de l'article 221-4 du code
penal (homicídio praticado por grupo organizado); crime de tortures et d'actes de barbarie commis en bande
organisée prévu par l'article 222-4 du code penal (crime de tortura e atos de barbárie cometidos pelo crime
organizado); crimes et délits constituant des actes de terrorisme prévus par les articles 421-1 à 421-5 du
code pénal (crimes e delitos que constituam atos de terrorismo); etc.
97
verdadeira identidade do agente infiltrado não pode ser revelada. Ademais,
define como crime a violação do sigilo por outrem, cominando penas que
aumentam significativamente nos casos de violência, lesão ou morte de
cônjuge, filhos e ascendentes do servidor.
Em suma, além de considerável multa, aquele que inadvertidamente
revelar a qualificação do agente francês, por si só, pode perceber uma prisão
de cinco anos. Na hipótese de sua conduta ocasionar atos violentos contra o
infiltrado ou familiares (cônjuge, filhos e ascendentes), o lapso carcerário
passa a ser de sete anos. Já, sobrevindo a morte de qualquer destes, a
segregação do delator alcança dez anos.
Ainda, o artigo 706-86 dispõe sobre a utilização, como elemento de
prova, do quanto apurado pelo infiltrado em seu labor, ressaltando, até de
maneira repetida no contexto, que deve ser preservada a sua real qualificação.
Por fim, salienta o artigo 706-87, numa redação ligada ao princípio da
presunção de inocência, que nenhuma condenação pode ser baseada
exclusivamente nas declarações do agente, urgindo a necessidade de
acréscimos ao enredo probatório.
A questão também é abordada pela legislação mexicana, em diploma
datado de 1996. Naquele ano, a Ley Federal Contra La Delincuencia
Organizada, publicada no Diário Oficial de 07 de novembro, retratava a
figura do agente infiltrado no artigo 11 e artigo 11 bis.
Assim, nesse país a repressão à criminalidade organizada deverá
perseguir o conhecimento das estruturas da organização, formas de operação e
âmbito de atuação, podendo, ainda, ser autorizada a infiltração de agentes.
Ademais, a investigação deve observar tanto a conduta da pessoa física (que
pertença ao grupo delituoso), quanto da jurídica (utilizada para a prática de
crimes).
De maneira oportuna, extremamente valiosa a proteção que o México
confere aos reais dados de qualificação de seu agente infiltrado, preservando-
98
os mesmo durante o processo que se seguir.
Ainda, cumpre ponderar que esse dispositivo foi amplamente discutido
pela comunidade forense mexicana. Dentre as diversas questões, vale
mencionar artigo lavrado pela Procuradoria Geral da República no México
127
,
na qual aquele órgão defende que a infiltração é um meio de investigação
eficaz para adentrar nas organizações criminosas e, doravante, conhecer sua
essência, notadamente modus operandi, composição, estrutura, área de
atuação, ou toda informação que se preste ao desmantelamento da
organização. Ressalta, por fim, que apenas o Procurador Geral da República
mexicano pode autorizá-la, numa fria e coerente leitura do artigo 11.
Prosseguindo no trato de realidades diversas, vale reconhecer os
costumeiros elogios destinados à Alemanha pela abordagem do tema,
principalmente com as inovações no Código de Processo Penal trazidas pela
Gesetz zur Bekämpfung des illegalen Rauschgifthan-dels und anderer
Erscheinungsformen der Organisierten Kriminalitat OrgKG (legislação
especial para combate ao tráfico ilícito de entorpecentes e outras organizações
criminosas), que entrou em vigor na Alemanha em 22 de setembro de 1992,
introduziu os artigos 110-a – 110-e no Código de Procedimento Penal.
Mencionados dispositivos, segundo Mário Daniel Montoya, descrevem
quais são os requisitos para a utilização do agente infiltrado: 1) atuação
somente quando existirem indícios da ocorrência de crimes de tráfico de
drogas, ou armas, falsificação de moeda, documentos ou valores, segurança
do Estado, ou seja, crime praticado por organização criminosa; 2) atuação
somente se outras formas de investigação não prometem êxito (cláusula de
127
Conforme informações do próprio site da Procuradoria Geral da República do México, disponível em:
“http://www.pgr.gob.mx/Que%20es%20PGR/presentacion.asp”, La Procuraduría General de la República
es el órgano del poder Ejecutivo Federal, que se encarga principalmente de investigar y perseguir los delitos
del orden federal y cuyo titular es el Procurador General de la República, quien preside al Ministerio
Público de la Federación y a sus órganos auxiliares que son la policía investigadora y los peritos, ou seja,
órgão do poder executivo federal, que se encarrega primordialmente de delitos da seara federal, cujo titular é
o Procurador Geral da República, que preside o Ministério Público da Federação e seus órgãos auxiliares que
são a policia investigatória e os peritos.
99
subsidiariedade); 3) dependência de aprovação fiscal e/ou judicial; 4) severo
controle do agente encoberto, por parte de um agente da polícia; 5) proibição
de cometer atos delitivos.
Além elencar os casos de aplicação da infiltração de agentes, a lei
alemã permite a utilização desse meio investigatório em outras situações, nas
quais depende de uma análise por parte do juiz diante do caso concreto. Nas
hipóteses previstas expressamente na lei a autorização para se utilizar da
infiltração de agentes é dada pelo Ministério Público. Ainda previsão da
possibilidade de se utilizarem as informações obtidas em outros casos, como
provas emprestadas para a apuração de outros crimes elencados no parágrafo
110, n° 1
128
.
Ao comentar a previsão legal da infiltração de agentes na Alemanha,
Ricardo Alves Bento
129
asseverou que os agentes policiais encarregados da
infiltração podem se utilizar de identidade falsa, concedida por um tempo
determinada e para utilização na missão planejada. Missão esta que deve ter
parâmetros previamente estabelecidos, para que não se desvirtue. Ademais, há
previsão de prazo certo, o qual pode ser prorrogado de acordo com a
necessidade da investigação.
O autor ainda aponta uma característica peculiar desta legislação, que
admite que, em caso de perigo na demora e impossibilidade de obtenção de
ordem judicial em curto prazo, a infiltração pode ser efetivada por um prazo
de três dias, enquanto se obtém a necessária autorização do magistrado. Caso
seja negada a autorização ou a decisão não seja proferida dentro deste prazo, a
infiltração deve cessar
130
.
Ainda, pertinente a análise da legislação da Espanha, através de sua Ley
128
MENDRONI, Marcelo Batlouni. Crime Organizado – Aspectos Gerais e Mecanismos Legais. São Paulo:
ed. Juarez de Oliveira, 2002, p.84-85.
129
BENTO, Ricardo Alves, Agente infiltrado Busca pela legitimação constitucional. In: CUNHA, Rogério
Sanches; TAQUES, Pedro; GOMES, Luiz Flávio (coords). Limites Constitucionais da Investigação São
Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2009, p. 351.
130
Ibidem.
100
de Enjuiciamiento Criminal, que permite a infiltração do agente e, por via de
consequência, proteção aos seus verdadeiros dados e exclusão da
responsabilidade penal, tudo com estrita observância do princípio da
proporcionalidade. Igualmente, o diploma abarca a definição de criminalidade
organizada, traçando a atuação do servidor para crimes de maior gravidade.
Observa-se que a legislação espanhola repete o repúdio internacional ao
denominado agente provocador, preceituando a isenção de responsabilidade
penal do infiltrado desde que seus atos, veementemente, não constituam uma
provocação ao delito.
Por sua vez, a Argentina também cuidou de prever o instituto no artigo
31 da Lei 23.737
131
, com redação conferida pela Lei 24.424.
Assim, a infiltração de agentes depende de prévia decisão judicial
fundamentada e pode ser utilizada para o combate a organizações criminosas
voltadas ao tráfico de drogas. A designação deve ser sigilosa, recair sobre um
agente das forças de segurança que voluntariamente se disponha a atuar como
agente infiltrado e consignará o seu nome verdadeiro, bem como a identidade
falsa com a qual ele atuará.
Dispõe a lei argentina que o juiz deve ter conhecimento imediato de
toda a informação colhida pelo agente infiltrado. Há previsão, ainda, da
possibilidade de o agente vir a praticar crimes no curso da operação, os quais
não serão punidos. Ressalva-se, logicamente, que esses crimes devem
decorrer do desenvolvimento normal da operação e não se pode colocar em
risco certo a vida ou a integridade física de uma pessoa, ou impor grave
sofrimento físico ou moral a outrem.
Se necessário, o agente infiltrado poderá ser ouvido como testemunha
e, independente disso, se após a operação houver algum risco a ele, poderá
optar por se aposentar, independente da quantidade de anos que tiver
trabalhado.
131
Melhor discutida no item “Sigilo da Investigação”.
101
Por fim, essa legislação também tipificou a conduta do funcionário
público que, agindo com dolo ou culpa, revelar a identidade verdadeira do
agente infiltrado, sua nova identidade ou o local de seu domicílio.
Por derradeiro, cumpre consignar que alguns países, como a Itália,
preferiram relacionar os delitos em que é possível se obter autorização para a
investigação mediante a infiltração de agentes
132
.
Nessa esteira, Decreto del Presidente della Repubblica de 9 ottobre
1990, n.309-97, acerca do tráfico de drogas, bem como Decreto-legge 8
giugno 1992, n.306 (comvertito dall’art 1 della legge 7 agosto 1992, n.356,
com modificazioni), sobre casos de lavagem de dinheiro.
De todo o amealhado, merece especial atenção a maneira como alguns
países resguardam a verdadeira qualificação do agente infiltrado, ressaltando-
se o exemplo francês e argentino que cominaram crimes aos denunciantes. Na
realidade espanhola, o legislador apresentou parâmetros sobre utilização
como prova das informações coligidas, além de prazo e controle da
investigação.
6.3. Controle da operação
Uma das importantes questões acerca da atuação do agente infiltrado é
o acompanhamento pormenorizado da operação, vez que o servidor
desenvolve suas atividades dentro da organização criminosa em nome do
próprio Estado.
Evidentemente que, ao infiltrar um policial no âmago da estrutura
delituosa, como se dela fizesse parte, se espera um paralelo e contínuo
monitoramento estatal de todos os seus passos. diversas razões para tanto:
132
MENDRONI, Marcelo Batlouni. Crime Organizado Aspectos Gerais e Mecanismos Legais. São Paulo:
ed. Juarez de Oliveira, 2002, p.88.
102
a lisura da empreitada, o controle das informações adquiridas e, inclusive, a
preocupação com a integridade física do agente, fatores que, sem vidas,
rotineiramente se confundem com o êxito da operação.
Ora, deixar um policial à própria sorte na organização criminosa,
aguardando suas conclusões apenas ao final da operação, seria muito
temerário. Dentre tantos possíveis dissabores, no caso de não haver controle,
pouco poderia ser feito para evitar que o servidor atuasse de maneira
desmedida ou para salvá-lo em caso de risco. Ainda, não se poderia
vislumbrar a pertinência das informações colhidas e a necessidade e
conveniência da continuidade dessa arriscada operação.
Portanto, faz-se necessário permitir a constante fiscalização de toda a
atividade, não apenas pelos superiores hierárquicos do agente, mas também
pelo Poder Judiciário e Ministério Público, que poderão constantemente medir
a necessidade e eficiência da investigação.
Nesse sentido, cumpre lembrar a discussão ocasionada pelo advento da
Lei 9.034/95, inicialmente elaborada com previsão expressa do mecanismo de
infiltração de agentes. Originariamente, no artigo 2º, inciso I, a hipótese era
apresentada de maneira equivocada, num texto que terminou vetado pelo
Presidente da República.
O texto vetado previa a possibilidade de se infiltrar agentes de polícia
em quadrilhas ou bandos, sem a necessidade de autorização judicial, além de
vedar expressamente a prática de qualquer crime por ele em co-autoria, exceto
o previsto no artigo 288 do Código Penal
133
.
Convém ressalvar que o dispositivo vetado teve sua redação modificada
durante o trâmite legislativo, diferenciando-se substancialmente daquela
apresentada no nascedouro do Projeto de Lei.
A redação inicialmente proposta para o Projeto de Lei 3.516, em 24 de
133
“I – infiltração de agentes de polícia especializada em quadrilhas ou bandos, vedada qualquer co-
participação delituosa, exceção feita ao disposto no art.288 do Decreto-Lei 2.848, de 07 de dezembro de 1940
– Código Penal, de cuja ação se preexclui, no caso, a antijuridicidade”.
103
agosto de 1989, preceituava que a infiltração de agentes não poderia ser
automaticamente estabelecida por quem quer que fosse. Exigia-se, pois,
prévia solicitação da autoridade policial ao magistrado competente, bem como
ciência ao respectivo órgão do Ministério Público.
Estaria o legislador, por conseguinte, traçando mínimos parâmetros de
controle, condicionando o desenrolar das atividades ao prévio conhecimento
dos responsáveis pela persecução penal, respectivamente, delegado, promotor
e magistrado. Contudo, essa regra foi inadvertidamente abolida do texto final,
proporcionando deficiência que gerou o repúdio presidencial.
Em suma, a questão debatida norteava-se pelo veto e implicava a
necessidade de positivar rapidamente o mecanismo. Assim, sobreveio a Lei nº
10.217
134
, de 11 de abril de 2001, para efetivamente contemplar o infiltrado
no ordenamento brasileiro e, igualmente, sanar a omissão destacada pelo
Executivo (sobre o necessário e prévio controle judicial).
Diante desta inovação legislativa, concretizada em 2001 (década após o
inaugural projeto de Temer e Teixeira), o artigo 2º, inciso V, da Lei 9.034/95,
finalmente trouxe ao nosso ordenamento a infiltração de agentes de polícia ou
de inteligência como procedimento investigatório.
O novo dispositivo deve ser analisado de maneira contextualizada,
observando-se parâmetros rotineiramente aplicáveis ao processo criminal.
Desse modo, embora a Lei 10.217 não tenha previsto, de maneira expressa, a
prévia solicitação pelo delegado ao magistrado, tampouco a necessidade de
ciência ao órgão do Ministério Público, tais providências devem ser
compreendidas na leitura do termo “circunstanciada autorização judicial”.
A nova redação não menciona que o juiz pode autorizar a infiltração de
ofício. Dessa forma, pressupõe-se anterior solicitação. Assim, a necessária
imparcialidade do julgador o impede de atuar como sujeito ativo da produção
da prova, cabendo-lhe a atuação mediante provocação do legítimo
134
Alterando a Lei 9.034/95.
104
interessado.
Trata-se de decorrência lógica do sistema acusatório, adotado em nosso
ordenamento processual penal, no qual a atividade investigatória fica a cargo
da Polícia, sob o controle externo do Ministério Público.
Ao magistrado é defeso determinar os rumos da investigação e colher,
por conta própria, os elementos que guarneceriam a acusação, sob pena de
imiscuir-se na esfera de atuação do órgão ministerial ou da Polícia. Todavia,
tal premissa não lhe impede de conhecer a empreitada, mormente porque ele
deve fiscalizar-lhe a realização nos termos do ordenamento e, ainda, coibir
arbitrariedades.
De tal maneira, presente prévio pedido fundamentado da autoridade
policial ou do Ministério Público, pode o juiz autorizar a infiltração de
agentes e, conforme o caso, estipular parâmetros para seu regular
desenvolvimento (por exemplo, ao fixar prazo de duração).
Trata-se de medida excepcional, vez que restringe direitos tutelados
pela Constituição Federal. Por essa razão, o magistrado somente deve deferir
a medida se a prova buscada não puder ser obtida doutro modo.
É o caráter subsidiário da infiltração de agentes, que somente pode ser
utilizada quando imprescindível para a obtenção das informações que se
pretende. Ademais, além da violação de direitos do investigado, a operação
envolve grave risco ao agente. Portanto, deve sempre ser o último recurso
investigativo a que se deva recorrer.
Isso não implica afirmar que todos os outros meios investigatórios
disponíveis devam ser tentados antes, mas que deve haver a priori uma
análise da possibilidade de se alcançar o mesmo objetivo por outros meios.
Obviamente que o pedido da autoridade policial deve-se basear em
indícios de autoria e materialidade delituosas, devidamente documentadas e
não em meras suspeitas.
Com efeito, o pedido para utilização desse meio de investigação deve
105
conter todas as características conhecidas da organização investigada, a
identificação do agente que atuará, a identidade que passará a utilizar, toda a
estratégia que será utilizada, explicar como será feita a comunicação com o
agente infiltrado e um plano para seu resgate, se necessário.
É recomendável que tal estratégia seja discutida entre a autoridade
policial e o membro do Ministério Público que atuará na futura ação penal,
traçando-se um minucioso plano de atuação, de modo que se estabeleçam os
objetivos da empreitada.
Somente com todas essas informações, poderá o magistrado proferir
decisão circunstanciada acerca da operação. Será analisada sua necessidade,
fixada a periodicidade dos relatórios informativos e delimitada a atuação do
agente e os limites da própria investigação.
Deve-se ressaltar a necessidade de prévia manifestação do Ministério
Público acerca do pedido de infiltração de agentes, que, além de ser
decorrência lógica do sistema, encontra expresso respaldo na legislação
vigente. Isso porque o artigo 53, inciso I, da Lei de Drogas, 11.343/06, ao
tratar da infiltração de agentes prevê expressamente que seja ouvido o
Ministério Público.
Destarte, a operação deve ser acompanhada pelo Judiciário desde o
nascedouro, o que possibilita a efetiva análise da imprescindibilidade da
medida durante toda a infiltração. Ademais, não se pode compreender a
necessidade de prévia leitura pelo magistrado (para desencadear a operação)
e, posteriormente, olvidar da mesma cautela no deslinde da empreitada.
Portanto, como deve o juiz autorizar o início da infiltração,
forçosamente se conclui que todos os atos subsequentes devem ser
submetidos à sua apreciação. Portanto, imprescindível que o juiz tenha
conhecimento imediato de todo elemento colhido durante a operação.
De outro turno, apesar do comando legal sobre a prévia e necessária
autorização judicial, poder-se-ia, por apego ao debate, cogitar da reserva de
106
tais providências privativamente ao Ministério Público, como órgão
incumbido de coordenar a operação. Bastaria, para alicerçar a hipótese, leitura
de dispositivos coligidos nos mais diversos países, numa discussão fulcrada
no direito comparado.
Essa é a posição de Marcelo Batlouni Mendroni, para quem na Europa
e nos Estados Unidos da América a tendência é que o poder de conceder a
autorização seja do Ministério Público, o qual conduz as investigações
135
.
No México, por exemplo, concedem-se ao Procurador Geral da
República, responsável pelo Ministério Público daquela federação, poderes
para desencadear a infiltração de agentes nos limites de seu território.
Noutros países, a decisão parte dos chamados juízes de garantia,
encarregados de zelar pelo respeito às garantias fundamentais daqueles
envolvidos na persecução penal, cuja participação no processo é observada
numa fase preambular.
Ora, não é nenhuma dessas a realidade constitucional do ordenamento
processual penal brasileiro. Como mencionado, o Brasil adota o sistema
acusatório, o qual confere ao juiz de direito o dever de zelar pelos direitos e
garantias individuais. Assim, somente ele pode autorizar uma medida que
atente contra esses direitos, como a infiltração de agentes. Ainda assim,
dentro dos requisitos estabelecidos pela lei.
Superada a questão, principalmente porque a legislação brasileira
expressamente prevê a autorização judicial e, por conseguinte, não contempla
a autorização pelo Parquet da medida, cumpre apresentar posicionamentos
sobre a efetivação do controle da infiltração.
Fabio Ramazzini Bechara procurou sintetizar seus entendimentos sobre
o agente infiltrado em seis pontos principais, em que cada qual aborda uma
particularidade do mecanismo. Em alguns, ele trata do controle da medida.
135
MENDRONI, Marcelo Batlouni. Crime Organizado Aspectos Gerais e Mecanismos Legais. São Paulo:
ed. Juarez de Oliveira, 2002, p.72.
107
Assim, entende que, na autorização judicial fundamentada, o magistrado deve
analisar a indispensabilidade da medida, vez que se trata de medida restritiva
de direitos, principalmente os direitos à intimidade e à autodeterminação
informativa, que consiste em saber quem, como e quando se tem informação
de si próprio. Com relação à duração da medida, este autor defende que a
omissão do legislador deve ser suprida com a utilização de analogia à Lei
9.296/96, que trata da interceptação telefônica. Portanto, o prazo deve ser de
quinze dias, prorrogável quantas vezes se mostrar necessário. Ao final de cada
um desses prazos, deve ser apresentado ao magistrado relatório
circunstanciado acerca do que foi amealhado até aquele momento
136
.
Vale destacar a solução apresentada pelo autor diante da ausência de
previsão expressa nos diplomas que tratam do agente infiltrado sobre a
duração da infiltração de agentes. Como mencionado, consiste no uso de
comandos da Lei 9.296/96 para prescrever o prazo da medida, possibilitando-
lhe a renovação e, também, confecção de relatórios.
Entretanto, acreditamos que a omissão do legislador quanto ao prazo
não foi ocasional. Como mencionado nesse trabalho, as organizações
criminosas não possuem uma só forma, apresentam-se nos mais diversos
formatos e atuam em inúmeras áreas.
Evidentemente que deve haver um prazo estipulado para a duração da
operação, a fim de que ela não se eternize. Contudo, acredita-se que este
prazo deva ser estabelecido pelo magistrado em sua “circunstanciada
autorização judicial”.
Portanto, diante da complexidade da investigação, dos riscos
envolvidos e de outros fatores próprios da organização criminosa investigada,
deve o juiz estabelecer o prazo durante o qual aconterá a infiltração.
Obviamente, no decorrer do lapso, poderá ser prorrogado o prazo,
136
BECHARA, Fabio Ramazzini. Infiltração de Agentes e o Combate ao Crime Organizado, nov.2006,
disponível no web site da Assessoria Jurídica da Policia Civil de Goiás, por meio do endereço:
“http://www.policiacivil.goias.gov.br/gerencia/artigos/busca_id.php?publicacao=28937
108
comprovando-se a necessidade e eficiência da medida. Na prorrogação poderá
o juiz estabelecer prazo diferente, de acordo com o que foi apurado no
período antecedente.
Vale ressaltar que a concessão de prazo mais longo não implica perda
do controle sobre a investigação, pois o magistrado pode estabelecer que os
relatórios circunstanciados da investigação sejam entregues em prazos
menores.
Ainda sobre o controle da operação, Flávio Cardoso Pereira argumenta
que o mais importante requisito para o êxito dessa espécie de investigação é o
controle que deve ser feito sobre toda a operação pelo juiz e pelo promotor de
justiça. O Ministério Público, em virtude de sua atividade de controle externo
da atividade policial, deve participar de todo o planejamento da infiltração e,
no seu curso, deve ter acesso a todas as informações recolhidas, pois é ele que
se utilizará dessas provas na persecução penal. Deve o Ministério Público,
ainda, velar pela obediência aos termos da lei e da decisão judicial,
repudiando qualquer prática abusiva por parte do agente infiltrado.
Com relação ao papel do magistrado, este autor defende que ele
também tem a função de controlar a investigação, de modo que se evitem
excessos e abusos, que violariam direitos fundamentais do investigado e
contaminariam de nulidade toda a prova
137
.
Vale mencionar, noutro artigo, o mesmo autor salienta que a parte
opinativa sobre a estratégia e o plano operacional interessa tão somente ao
Ministério Público, pois o magistrado não participa da investigação, apenas
exerce o controle para que sejam cumpridos os limites estabelecidos pela
autorização por ele concedida
138
.
137
PEREIRA, Flávio Cardoso. A investigação criminal realizada por agentes infiltrados. Portal R2 Direito,
(curso de ensino jurídico à distância), disponível no endereço eletrônico:
“http://www.r2learning.com.br/_site/artigos/curso_oab_concurso_artigo_979_A_investigacao_criminal_reali
zada_por_agentes_infi”.
138
PEREIRA, Flávio Cardoso. A moderna investigação criminal. In: CUNHA, Rogério Sanches; TAQUES,
Pedro; GOMES, Luiz Flávio (coords). Limites Constitucionais da Investigação São Paulo: Editora Revista
dos Tribunais, 2009, p. 119.
109
Denota-se, portanto, a importância da participação ministerial em toda e
qualquer infiltração, ao ostentar a prerrogativa de requerer a operação ou, nos
casos de pedido inicial levados pela Polícia, ser cientificado de todo o
deslinde. Vale recordar que se trata do titular privativo da ação penal pública.
Outro ponto merecedor de destaque, ainda no debate sobre o controle
da operação, é o encerramento da infiltração no momento mais oportuno do
ponto de vista probatório. Em tese, a decisão pela interrupção da medida
deveria caber, primordialmente, ao órgão acusador, satisfeito com o
coletado ou antevendo o insucesso e desnecessidade de novas diligências.
Nesse ponto percebe-se a importância de que, no curso da operação, a
autoridade policial que preside a investigação e o órgão do Ministério Público
mantenham estreito contato, uma vez que decidem juntos acerca dos rumos da
investigação.
Marcelo Batlouni Mendroni, ao tratar do cotidiano experimentado pelo
agente infiltrado, reforça a necessidade de acompanhamento da operação por
promotor de justiça, a quem devem ser comunicados os rumos percebidos ao
longo de sua execução. Para ele, o contato entre o agente infiltrado e seu
superior hierárquico deve ser diário, da mesma forma que este último deve
repassar, diariamente, as informações ao promotor de justiça. Esse contato
estreito serve para que se efetue uma constante análise da quantidade e
qualidade do material colhido, com vistas a verificar o momento mais
oportuno para se encerrar a investigação. O mesmo autor lembra que, em
algumas hipóteses, o contato diário não será possível. Nesse caso, deve a
decisão ser tomada pelo próprio agente, que, diante de critérios pré-
estabelecidos, deve verificar o risco de perda do material colhido e se
tempo para prévia consulta a seus superiores e ao Ministério Público
139
.
Em relação ao contato diário entre o agente infiltrado e a autoridade
139
MENDRONI, Marcelo Batlouni. Crime Organizado Aspectos Gerais e Mecanismos Legais. São Paulo:
ed. Juarez de Oliveira, 2002, p. 67-68.
110
que coordena a investigação, sabe-se que nem sempre ele será possível.
Contudo, faz-se necessário que este contato seja o mais estreito possível,
utilizando-se dos mais modernos recursos de comunicação, que devem ser
disponibilizados pelo Estado.
Importante observar-se que o encerramento da operação não depende
de prévia autorização judicial (como ocorre em outras hipóteses, por exemplo,
na prisão temporária), pois compete ao promotor de justiça e a autoridade
policial decidirem sobre a suficiência dos elementos colhidos.
Entretanto, pode o magistrado, a qualquer momento, decretar o fim da
operação, por exemplo, quando julgá-la ineficiente ou que risco
exacerbado ao agente.
Em apertada síntese, podemos concluir que, para a infiltração
transcorrer de maneira escorreita, exige-se autorização judicial prévia,
fundamentada e circunstanciada, no bojo da qual se definem os limites da
operação, sob pena de toda investigação restar inútil. Antes, porém, o
respectivo pedido deve partir da autoridade policial ou do Ministério Público.
O Parquet deve ser informado de todos os passos percebidos na empreitada,
bem como o infiltrado deverá confeccionar relatórios periódicos de suas
atividades.
À guisa de remate, como mencionado, a lei não deu conta sobre o
procedimento a ser adotado, no que, à míngua de texto pormenorizado, as
respostas devem ser fornecidas pelo magistrado no caso concreto.
Enfim, basta que Judiciário e Ministério blico bem exerçam seus
papéis na operação, com esforços para que o grupo criminoso seja
efetivamente desmantelado. Dessa maneira, subsistirão os ideais que
nortearam o surgimento do valoroso mecanismo de infiltração de agentes,
resguardando-se, por via de conseqüência, toda a sociedade.
111
6.4. O agente infiltrado
Questão diversa que sempre é levantada nos debates sobre o agente
infiltrado é atinente à qualidade funcional do servidor a ser infiltrado na
organização criminosa. Embora a lei mencione agentes de polícia ou de
inteligência, alguns doutrinadores defendem que apenas policiais deveriam
ser utilizados nas operações.
A discussão não é meramente teórica, especialmente quando os
defensores da exclusividade de policiais na atuação como agentes infiltrados,
a despeito de outros preceitos legais, utilizam-se da Carta Magna para
embasarem suas lições.
Ora, a Constituição da República de 1988, ao tratar da segurança
pública, preceituou que incumbe à Polícia Federal, primordialmente, a
apuração de infrações penais perpetradas em detrimento da União, suas
entidades autárquicas e empresas públicas. Foi além, conferindo-lhe o
exercício exclusivo das funções de polícia judiciária da União, bem como a
prevenção e repressão dos ilícitos de tráfico de drogas, contrabando e
descaminho
140
.
Ainda, a Constituição Federal, em seu artigo 144, § 4º, disciplinou a
atividade das Polícias Civis e reservou-lhes a apuração de infrações penais de
toda espécie, todavia ressalvou, somente, aquelas de natureza militar e
competência da União.
Portanto, partindo-se da premissa de que o agente infiltrado objetiva
desestruturar a organização criminosa e, de antemão, apontar os crimes por
ela perpetrados, somente policiais poderiam se encarregar deste desiderato.
Isso porque a Constituição reserva a apuração de infrações penais para a
Polícia Federal ou Civil, conforme os interesses envolvidos e o âmbito de
atuação, sem qualquer ressalva que autoriza a atuação de servidores de outras
140
Artigo 144, § 1º A, da Constituição Federal.
112
estruturas administrativas.
Não custa lembrar, diante da celeuma existente por conta de tema
correlato, nossos Tribunais discutem o poder de investigação do Ministério
Público e, consequentemente, a pretensa exclusividade que seria conferida aos
departamentos policiais. Contudo, como o Ministério Público é o titular da
ação penal (de acordo com o artigo 129, inciso I, da Constituição da
República), é possível enfatizar que ostentaria, ademais, atribuições
persecutórias em sede criminal (pela leitura da lei orgânica), em razão das
quais seus membros reivindicam a faculdade de investigar por motivos que
não se comungam aos agentes de inteligência.
Retornando-se à questão da (im)possibilidade dos servidores de
inteligência atuarem infiltrados, Rafael Pacheco
141
lembrou que o Sistema
Brasileiro de Inteligência (SISBIN) é composto pela Agência Brasileira de
Inteligência (ABIN) e por membros de diversos Ministérios, de modo
demasiado heterogêneo. Essas agências e setores de inteligência não visam a
colher provas para o processo penal, mas sim obter e analisar dados e
informações e produzir e difundir conhecimentos, dentro e fora do território
nacional, relativos a fatos e situações de imediata ou potencial influência
sobre o processo decisório, a ação governamental, a salvaguarda e a
segurança da sociedade e do Estado, nos termo do artigo 2º, do Decreto
4.376/02.
Prossegue o autor, nitidamente favorável à exclusividade de policiais
nesse mecanismo de combate ao crime organizado, concluindo que agentes de
inteligência e policiais que possuem funções de policiamento ostensivo não
podem agir como agentes infiltrados, sob pena de se afrontar o artigo 144 da
Constituição Federal. Excetua, contudo, as hipóteses de inquéritos policiais
militares e de agentes de inteligência dos quadros de uma instituição que
acumule funções de polícia judiciária, na apuração de seus ilícitos, que
141
PACHECO, Rafael. Op. Cit., p.116.
113
poderiam se valer da infiltração de agentes
142
.
Flávio Cardoso Pereira
143
também discorda da possibilidade de se
utilizarem agentes de inteligência para a infiltração, ao sustentar que, nesse
caso, haveria um desvirtuamento das funções, pois eles trabalham buscando
informações tendentes a manutenção da ordem e segurança nacional, não
atuam, à evidência, na colheita de provas destinadas à persecução penal.
Assevera o autor que houve uma confusão entre inteligência do estado e
inteligência criminal, cujos métodos de obtenção de informações são
diferentes.
A mesma tendência seguiu as legislações posteriores, conforme novos
dispositivos que tratam da matéria, as quais preveem, a seu modo, a
possibilidade de somente o agente policial se enraizar nos grupos delituosos.
Desse modo, a já revogada Lei 10.409/02, diploma que tencionava
combater a circulação de drogas, inicialmente tratava o servidor infiltrado
apenas como policial e deixava de lado o agente de inteligência
144
.
Poder-se-ia, apenas para argumentar, defender que a ressalva da Lei
9.034/95 representaria a possibilidade de integração das normas, abarcando,
pois, as estruturas de inteligência. Todavia, com o devido acatamento, não
parece ter sido essa a opção legislativa.
Algum tempo depois, sobreveio a Lei 11.343/06, também de repressão
ao contato com as drogas, numa tentativa de sanar as deficiências contidas
nos diplomas anteriores (Leis 6.368/76 e 10.409/02). Este texto legislativo
dispôs, em seu artigo 53, inciso I, que somente agentes de polícia, em tarefas
de investigação, constituídas pelos órgãos especializados pertinentes,
142
PACHECO, Rafael. Op. Cit., p.116-117
143
PEREIRA, Flávio Cardoso. A investigação criminal realizada por agentes infiltrados. Revista do
Ministério Público do Estado do Mato Grosso, Ano 2, n. 2, janeiro/junho-2007. Cuiabá: Centro de Estudos e
Aperfeiçoamento Funcional do Ministério Público do Estado do Mato Grosso, 2007, pág. 176-177.
144
Art. 33. “Em qualquer fase da persecução criminal relativa aos crimes previstos nesta Lei, são permitidos,
além dos previstos na Lei no 9.034, de 3 de maio de 1995, mediante autorização judicial, e ouvido o
representante do Ministério Público, os seguintes procedimentos investigatórios:
I – Infiltração de policiais em quadrilhas, grupos, organizações ou bandos, com o objetivo de colher
informações sobre operações ilícitas desenvolvidas no âmbito dessas associações”.
114
poderiam atuar como agentes infiltrados.
Diante da fria leitura do dispositivo, percebe-se a exclusão dos agentes
de inteligência nas atividades de infiltração, não se repetindo a previsão do
artigo 2º, inciso V, da Lei 9.034/95.
Ademais, não custa lembrar o Substitutivo de Projeto de Lei do Senado
67/96, o qual prevê, pelo seu artigo 9º, que a tarefa de atuar como agente
infiltrado era destinada apenas a agentes de polícia
145
.
Noutras palavras, parece que doutrina e legislativo têm a mesma
concepção do tema em comento, segundo a qual apenas policiais podem atuar
no seio da organização ilícita, a despeito de persistir o texto da Lei 9.034/95
(plenamente em vigor) e dos entendimentos que ainda acolhem o agente de
inteligência como potencial servidor infiltrado.
De outra banda, resta pacífica a impossibilidade do particular atuar
como agente infiltrado. Destaca-se, por argumento nesse sentido, a ausência
de comprometimento daquele com o Estado, bem como a carência de previsão
legal.
Nesse sentido, Flávio Cardoso Pereira
146
repudia o particular como
agente infiltrado, considerando que o particular não recebeu o adequado
treinamento e preparação psicológica para tal atividade. Assim, a
possibilidade de corrupção, seja por medo ou por necessidade, seria maior,
além da já mencionada falta de compromisso como a persecução criminal.
Evidentemente, qualquer estranho ao aparato estatal poderia tornar
temeroso o deslinde da ação, no que cairiam por terra todos os esforços
dispensados para desestruturar a organização criminosa.
Ademais, mesmo diante da previsão autorizadora na Lei 9.034/95,
145
Art. 9º: “A infiltração de agentes de polícia em tarefas de investigação, conduzida pelos órgãos
especializados pertinentes, será precedida de circunstanciada e motivada autorização judicial, que
estabelecerá seus limites, após a manifestação do Ministério Público”.
146
PEREIRA, Flávio Cardoso. A moderna investigação criminal. In: CUNHA, Rogério Sanches; TAQUES,
Pedro; GOMES, Luiz Flávio (coords). Limites Constitucionais da Investigação São Paulo: Editora Revista
dos Tribunais, 2009, p. 116.
115
muito se questiona a infiltração de determinados servidores públicos, no caso,
agentes de inteligência. De tal sorte e, por maiores razões, não haveria lógica
na possibilidade de que o particular desempenhasse esse mister.
Ainda, o sucesso da operação depende de uma rigorosa seleção do
servidor que atuará como agente infiltrado. Deve ele possuir as características
pessoais e profissionais necessárias para a função, como resistência física,
inteligência, velocidade de raciocínio, equilíbrio emocional e sintonia social e
cultural com o meio em que será infiltrado.
Uma vez escolhido, o policial eleito deve ser devidamente treinado para
esse tipo de investigação, tornando-se um expert não apenas em métodos de
investigação, mas também em viver com uma falsa identidade, que abrange
diversos aspectos de sua vida, bolando-se cuidadosamente detalhes que
incluam o período desde o seu suposto nascimento até o dia do início da
operação.
Esse policial também deve estar preparado para viver afastado de sua
família, conhecidos e todos aqueles que possam, de qualquer forma,
possibilitar a revelação de sua verdadeira identidade. Falsos parentes,
propriedades, estilo de vida, documentos antigos e fotos são detalhes que
precisam ser pensados previamente, a fim de se “criar” uma nova pessoa.
Indispensável que seja ministrado um verdadeiro “curso” ao agente
selecionado, que deve abordar toda a parte teória, com noções de direito
penal, direito processual penal e psicologia e uma parte prática, que abranja
preparação física, técnicas de comunicações, adaptação ao meio ambiente e
outros aspectos necessários à sua preparação para essa arriscada missão.
O agente infiltrado deve agir com grande cuidado para não envolver
terceiras pessoas ou lesionar direitos de terceiros, de modo a respeitar os
direitos de intimidade e o devido processo legal. Não é ele um justiceiro, mas
um agente a serviço do Estado.
116
Normalmente o policial eleito para atuar como agente infiltrado deve
ser escolhido entre aqueles que não exercem a função muitos anos, pois
ainda não possui os vícios da profissão (que poderiam revelar suas
identidades) e não corre o risco de ser reconhecido em virtude de ações de que
tenha anteriormente participado.
Diante da complexidade, alto risco e consequências pessoais, a pessoa
indicada para atuar como agente infiltrado deve formalmente anuir com a
participação na investigação. Ou seja, a atuação como agente infiltrado deve
sempre ser voluntária.
Durante todo o treinamento o agente deve demonstrar resistência física
e psicológica, capacidade de tomar decisões sob pressão e espontaneidade na
convivência na organização. Este policial tem que estar pronto para responder
ao ouvir seu novo nome e conviver normalmente com essa nova identidade.
Ainda, não como se negar que o agente também enfrentará pressão
por parte de seus superiores, que anseiam por resultados positivos na
operação, no menor espaço de tempo.
Deve o policial ter pleno acesso a todas as informações disponíveis
acerca da organização criminosa, quem são seus integrantes, como atuam,
quem são seus inimigos e diversos outros detalhes que lhe permitam uma
adaptação mais fácil.
Outro problema que pode surgir, principalmente nas infiltrações de
longo prazo (chamadas de deep cover) é que, devido ao afastamento de seu
convívio social e familiar, o policial passe a criar afeto em relação aos
investigados. Nesses casos, o agente afasta-se de sua identidade real e passa
aceitar o personagem por ele criado como algo normal. Essa reação é
conhecida como ndrome de Estocolmo e somente pode ser evitada com um
cauteloso preparo psicológico do agente selecionado.
117
Por fim, encerrada a operação, chega-se à chamada fase da
reinserção
147
, que consiste na recuperação do infiltrado que participou de uma
longa investigação, vivendo de forma clandestina e na companhia de
criminosos. Deve o Estado ajudar esse agente na recuperação de sua real
identidade, livrando-se dos vícios adquiridos, buscando restabelecer seus
conceitos de ética e moral, bem como lhe auxiliando a retomar sua
convivência social e familiar. Ainda, o agente deve ser submetido a uma
avaliação médica e psicológica, realizando-se profunda análise da
possibilidade dele ser reaproveitado em outra operação semelhante.
6.5. Sigilo da investigação
A necessidade de se manter a infiltração policial sob sigilo nos parece
pacífica, uma vez que faz parte da própria natureza da operação e, portanto,
imprescindível para que a iniciativa repressiva logre êxito.
Obviamente, caso revelada a intervenção estatal na organização
delituosa, estaria selado o fracasso da investigação e, invariavelmente, restaria
imprestável o material colhido, ante a enorme capacidade de mutação do
crime organizado.
Ademais, ante a desconfiança gerada aos integrantes da organização
criminosa, seria temerário cogitar nova infiltração na mesma estrutura
criminosa.
Muito além de permitir que um sério trabalho desenvolvido restasse
inútil, a descoberta da operação colocaria em sério risco o agente infiltrado e
mais, sua família e a respectiva corporação policial. Isso, pois, a reação da
organização delituosa não seria de alívio por abortar uma investigação, mas
147
PEREIRA, Flávio Cardoso. A moderna investigação criminal. In: CUNHA, Rogério Sanches; TAQUES,
Pedro; GOMES, Luiz Flávio (coords). Limites Constitucionais da Investigação São Paulo: Editora Revista
dos Tribunais, 2009, p. 118.
118
sim, de ódio pela maneira como as diligências foram empreendidas.
Além disso, a possibilidade de que o agente seja descoberto pelo
grupo criminoso e, desde logo, não tenha conhecimento de sua exposição.
Dessa forma, informações poderiam ser manipuladas e o policial tornar-se-ia
um fantoche nas mãos dos infratores, de sorte que nada de ilícito seria
perpetrado em sua presença.
Com propriedade, Carlos Enrique Edwards
148
pondera que o sigilo tem
um fundamento lógico: essa é a única forma de garantir o êxito da
investigação e evitar que os membros da organização criminosa descubram
que estão sendo investigados por um agente infiltrado. Por outro lado, lembra
o mesmo autor, o sigilo é a única garantia que tem o agente encoberto de não
ser descoberto e, consequentemente, de proteger sua vida.
Assim, o êxito da atuação estatal está condicionado ao silêncio sobre a
existência e identidade do agente infiltrado, para que ele não seja descoberto
pelos integrantes da organização em que se infiltrou.
Nesse ponto, a Lei 24.424, de nossa vizinha Argentina, sancionada em
07 de dezembro de 1994, que em seu artigo incorporou o artigo 31 bis à
Lei 23.737, em sua alínea “b”, parte final estipula que a designação de um
agente deve manter-se em segredo. Embora pareça desnecessária a ressalva,
optou o legislador por positivá-la, dando conta de que o sigilo, mais óbvia
decorrência da empreitada, afigura-se imprescindível.
Ainda, a previsão contempla a falsa identidade, meio de assegurar a
infiltração e, também, a integridade do agente. Note-se que o pleito para a
utilização do agente infiltrado deve conter o nome verdadeiro do agente e a
identidade falsa que ele utilizará, cuidando o magistrado de manter em sigilo
essa identidade.
Nesse particular, caso revelada (independentemente do motivo) a
148
EDWARDS, Carlos Enrique. El Arrepentido, el Agente Encubierto y la Entrega Vigilada Modificación
a la Ley de Estupefacientes. Análisis de la ley 24.424, Buenos Aires: Ad Hoc, 1996. p.76.
119
verdadeira qualificação do policial, há, no sistema legislativo argentino, meios
estabelecidos para ser resguardada sua segurança, preocupação sobremaneira
oportuna.
No artigo da lei em testilha, que incorporou o artigo 31 quinquies à
Lei 23.737, deu-se interessante solução para o problema, ao se estabelecer
que, em caso de revelação da identidade do agente infiltrado, ele pode
escolher entre permanecer no cargo ou aposentar-se. Essa aposentadoria, para
que não lhe cause nenhum prejuízo, será igual ao correspondente àquilo que
ele ganharia caso se aposentasse dois graus acima daquele em que ele se
encontrava na carreira.
Por seu turno, o artigo 33 bis da Lei 23.737 da Argentina, também
incorporado pela Lei 24.424, menciona que, presumida a existência de perigo
para a vida ou integridade física do agente infiltrado, medidas especiais de
proteção poderão ser disponibilizadas, como
substituição da identidade e
concessão de recursos econômicos indispensáveis para a mudança de
domicílio e trabalho.
Convém assinalar que a Lei 24.424, ao alterar a Lei 23.737, alterou
significativamente o ordenamento jurídico argentino e regulamentou eficazes
instrumentos de combate a organizações criminosas, daí sua importância e
referência.
Em apertada síntese, o sigilo da identidade do agente e de sua inserção
no seio do grupo delituoso, precipuamente, objetiva assegurar a viabilidade
desse louvável mecanismo de combate ao crime organizado. O segredo, pois,
consubstancia-se na razão de ser da própria infiltração.
Afinal, a revelação da verdadeira identidade do agente infiltrado, além
de prejudicar a colheita da prova, põe em risco a vida do agente estatal
incumbido da missão.
Sem prejuízo, o próprio diploma argentino prevê uma excepcionalidade
ao sigilo de dados do agente: na hipótese de seu testemunho restar
120
absolutamente imprescindível ao deslinde da demanda acusatória, como
elemento probatório das informações por ele obtidas. Nesse caso, todavia,
medidas protetivas foram acrescidas ao texto legal.
Contudo, uma das melhores traduções do sigilo se exterioriza na
utilização de identidade diversa. O agente torna-se uma nova pessoa,
desvinculada aparentemente de tudo que o liga ao aparato estatal. Dessa
maneira, caso os criminosos devassem sua vida, amparados nos falsos dados
que lhes foram apresentados, nada encontrariam que pudesse lhe revelar a
verdadeira identidade.
Não poderá mais o agente, ao menos enquanto não desmantelada a
organização criminosa, revelar sua verdadeira identidade, pois, atualmente,
qualquer pesquisa em ferramentas de busca na internet, através do verdadeiro
nome como palavra-chave, poderá resultar em ocorrências que revelem a real
qualidade de servidor público, ainda que por citações em diário oficial ou
inscrições em concursos públicos.
Sobre o tema, Marcelo Batlouni Mendroni
149
pondera que, em face da
própria atividade exercida pelo agente infiltrado, a cautela recomenda que
eles devam atuar com identidade alterada. Competiria, então, ao magistrado
conceder autorização para a expedição de documentos ideologicamente
falsos, que devem ser usados somente na atividade de infiltração e durante
seus desdobramentos.
Importante a observação de que a nova qualificação do agente deve,
única e exclusivamente, prestar-se para a infiltração na organização
criminosa, vedada qualquer outra utilização. Caso contrário, haveria o risco
de o instrumento ser utilizado de maneira desmedida, afastando-se do
verdadeiro objetivo para o qual foi idealizado.
Prossegue o autor, observando que, mesmo depois de encerrada a
149
MENDRONI, Marcelo Batlouni. Crime Organizado Aspectos Gerais e Mecanismos Legais. São Paulo:
ed. Juarez de Oliveira, 2002, p.78.
121
infiltração, durante a instrução processual, a identidade do agente deve ser
mantida sob sigilo, o que lhe permite prosseguir com o uso da identidade
falsa, pois somente assim será possível proteger a vida do agente e de seus
familiares. Recorda, ainda, que normalmente as organizações criminosas são
compostas por pessoas de alta periculosidade, que, se conseguirem acesso ao
agente ou seus familiares, certamente se utilizarão de violência ou formas de
intimidação. Portanto, o sigilo da identidade do agente é, em última análise,
forma de se garantir a aplicação do instrumento legal
150
.
Obviamente, caso o perigo ao agente infiltrado persista após o
encerramento da operação, ele deve receber nova proteção estatal,
principalmente se foi exposto pela necessidade de prestar depoimento em
juízo. Entretanto, isso pode ser realizado através do programa de proteção a
testemunhas, prevista pela Lei n° 9.807, de 13 de julho de 1.999.
Fabio Ramazzini Bechara
151
assevera que a alteração da identidade do
agente infiltrado se por um princípio de ordem pública, estipulado na Lei
9.807/99, que possibilita a alteração do nome completo da pessoa a ser
protegida. Esta modificação deverá ser averbada no respectivo Cartório de
Registro Civil. Ela não deve se limitar ao nome, mas também a todos os
elementos necessários para conceder ao policial uma condição e aparência
criminosa. Assim, deve ele receber diversos tipos de documentos, bem como
dispor de toda a infraestrutura material para manter o personagem criado,
como conta-bancária, linha telefônica, veículo e outros.
Por outro lado, o conhecimento sobre a infiltração de agentes deve se
restringir a pouquíssimos interessados, sob pena de restarem infrutíferas as
operações policiais. Quanto mais pessoas tiverem ciência da medida, por
razões matemáticas de probabilidade, maior o risco de que as informações
150
Ibidem, p.79.
151
BECHARA, Fabio Ramazzini. Infiltração de Agentes e o Combate ao Crime Organizado, nov.2006,
disponível no web site da Assessoria Jurídica da Policia Civil de Goiás, por meio do endereço:
“http://www.policiacivil.goias.gov.br/gerencia/artigos/busca_id.php?publicacao=28937
122
coligidas acabem reveladas, sem que seja possível apurar quem as repassou.
Assim, o pedido de infiltração deve ser distribuído lacrado e de ser
manipulado exclusivamente por funcionário designado pelo juiz competente
(normalmente o diretor de serviços), que também ficará incumbido de guardar
os autos. Obviamente o procedimento referente à infiltração deve ser autuado
em apartado. A remessa desses autos ao Ministério Público deve ser feita em
mãos, diretamente ao promotor de justiça com atribuição para atuar no feito.
Deve-se discutir, por oportuno, sobre a ciência da infiltração pelos
advogados de defesa, questão muito tormentosa.
Evidentemente, não deixará o causídico, para o bom desempenho de
seu mister, de alertar seus patrocinados acerca dos possíveis riscos da
operação, sob pena de seu silêncio representar odiosa traição aos olhos do
cliente.
Mas, como conciliar princípios extraídos da Constituição da República
de 1988, incluindo-se o da publicidade, com a restrição do segredo a poucos
funcionários do Estado? Longe de discutir, por ora, o valor probatório das
informações colhidas
152
, deve prevalecer o direito à vida do agente, bem
jurídico constitucionalmente protegido que certamente seria desprezado pelos
criminosos, ávidos para extirpá-lo do convívio entre seus pares.
Ora, imaginando uma organização criminosa que se prestasse, dentre
outros ilícitos, à rotineira prática de homicídios para prosperar, retirar a vida
do servidor infiltrado seria, além de providencial ao objeto escuso do grupo,
extremamente prazeroso aos seus integrantes.
Assim, o parágrafo único do artigo 2º da Lei 9.034/95, introduzido pelo
artigo 1º da Lei 10.217/01, determina que a decisão judicial sobre a infiltração
seja sigilosa e assim deve permanecer durante toda a operação. Ela não pode
ser considerada inconstitucional por violação ao princípio da ampla defesa.
152
Nesse particular, remetemos à leitura do item “Utilização como Prova”, que trata pormenorizadamente da
utilização processual das informações.
123
Também não violação ao artigo 7º, inciso XIV, da Lei 8.906/94
(Estatuto da Advocacia), pois é evidente que os advogados não podem ter
ciência da infiltração de agentes, sob pena de se decretar o total fracasso da
investigação e colocar em risco a vida do agente. O sigilo é necessário e não
atinge apenas o promotor de justiça e policiais envolvidos na operação
153
.
De certo modo, os congressistas parecem ter acompanhado o mesmo
raciocínio, ao acolherem, ao menos em alguns esboços legislativos, a tese de
que o sigilo dos autos se estende ao patrono dos criminosos. Para esse
raciocínio, basta analisar o “Substitutivo do Projeto de Lei do Senado 67/96”,
em sua Seção II, intitulada Da infiltração de agentes”, no qual o artigo 11, §
2º, estipula que os autos relativos à infiltração somente poderiam ser
consultados pelo juiz, representante do Ministério Público e pela autoridade
policial
154
.
Observe-se que o mencionado §2º é expresso ao delimitar aqueles que
teriam acesso aos autos, de forma exclusiva e omitiu a figura do advogado.
Ademais, pela fria leitura do dispositivo, percebe-se que o silêncio, ao menos
aparentemente, parece ter sido proposital.
Outra medida que ajudaria na proteção do agente infiltrado é a
tipificação como crime da conduta da pessoa que, de forma dolosa ou culposa,
revela a identidade do policial.
Se não fosse o suficiente para coibir a busca da identidade do agente
pelo crime organizado, ao menos desmotivaria funcionários públicos e
agentes da imprensa a revelar a informação.
O que se depreende, portanto, é a absoluta necessidade de que o agente
infiltrado tenha o mínimo de respaldo para o bom desempenho de suas
153
MENDRONI, Marcelo Batlouni. Crime Organizado Aspectos Gerais e Mecanismos Legais. São Paulo:
ed. Juarez de Oliveira, 2002, p.77-78
154
Art. 11 “O pedido de infiltração será sigilosamente distribuído, de forma a não conter informações que
possam indicar a operação a ser efetivada ou identificar o agente que será infiltrado
(...)
§2º - O acesso aos autos será reservado apenas ao juiz, ao Ministério Público e à autoridade policial, para
garantia do sigilo das investigações”.
124
atividades, incluindo-se, obrigatoriamente, o sigilo sobre suas atividades. Não
fosse assim, de nada adiantaria toda a discussão travada por juristas para
aperfeiçoar o mecanismo. Afinal, qualquer diligência sempre restaria inútil.
Outra situação que pode ocorrer durante a operação é a prisão do agente
infiltrado por policiais que desconheçam sua real identidade. Nesse caso, deve
o agente manter-se em silêncio, resguardando sua condição de policial.
Em situação reservada, deve o agente (se possível) ou seus superiores
(que monitoram a operação) entrar em contato com o juiz que autorizou a
operação, para que ele pessoalmente entre em contato com o juiz responsável
pelo processo no qual se mantém o agente detido.
A partir desse ponto, devem os magistrados buscar uma solução para a
questão, decidindo-se sobre a necessidade ou não de se revelar a identidade
do agente e pôr fim à operação.
Em suma, o segredo da investigação pode ser entendido como alicerce
de toda a infiltração de agentes e devem todos os envolvidos na operação
zelar diuturnamente pela sua observância.
6.6. Finalidade
Outra discussão que se coloca acerca do agente infiltrado se refere à
finalidade da operação, ou seja, o que se busca com a realização de tão
perigosa e complexa operação.
Assim, resta-nos analisar quais são os objetivos que o Estado pretende
alcançar ao desencadear a medida.
Não basta tão somente dar conta de que a medida serve de combate ao
crime organizado, numa resposta que denota extrema singeleza. É preciso,
pois, indagar como a operação se prestará ao desiderato para o qual se serve,
logrando êxito ao final de seu percurso.
125
Trata-se de um mecanismo de investigação de alto risco e grau de
complexidade, que consome tempo e recursos financeiros, humanos e
materiais, motivo pelo qual deveria ser utilizado somente para a investigação
de organizações criminosas mais complexas. Entretanto, a lei brasileira
permitiu sua utilização não apenas nesses casos, mas também para a
investigação de quadrilhas ou bando.
Não nos parece essa solução a mais correta, sob pena de se banalizar o
instituto e se correr o risco de operações frustradas, muitas vezes com
consequências trágicas.
De qualquer forma, deve-se reconhecer que o instituto ainda é muito
pouco utilizado no Brasil.
Merece aplausos, nessas circunstâncias, uma iniciativa do Ministério
Público do Rio Grande do Sul, que se utilizou de agentes infiltrados para
desbaratar organização criminosa que expandia seus tentáculos naquela
unidade federativa.
Na chamada “Operação Lagarta” obtiveram-se significativos proveitos
na luta contra o crime organizado, os quais demonstraram quão eficiente pode
ser a medida quando corretamente utilizada.
A operação foi promovida pelo promotor de justiça Frederico Schneider
de Medeiros, da Promotoria Especializada Criminal que, em setembro de
2005, desarticulou uma organização criminosa voltada para a prática de
crimes de estelionato e lavagem de dinheiro, procedendo-se ao sequestro de
ativos avaliados em mais de quatro milhões de reais
155
.
Esta operação foi considerada, àquele tempo, inédita no Estado do Rio
Grande do Sul. Um policial foi infiltrado em uma empresa, permaneceu
disfarçado como empregado, o que lhe possibilitou sacar fotografias e
observar o cotidiano das ações criminosas, até identificar todos os envolvidos
155
ROMAIS, Célio. Ação do Ministério Público é Exemplo. Agência de Notícias do Ministério Público do
Rio Grande do Sul, espaço “Notícias”, seção “Crimes”, 03 de abril de 2008, disponível em:
“http://www.mp.rs.gov.br/imprensa/noticias/id13795.htm”.
126
nos crimes.
Para se obter o desejado êxito, foi criada uma empresa de consultoria
fictícia, na qual o agente trabalhava, confeccionando-se cartões de visitas,
alugando-se imóvel e concedendo-se toda a infraestrutura necessária para
resguardar o sigilo da operação. Também foram confeccionados documentos
falsos, criados e-mails falsos e designados outros policiais para cuidarem da
segurança do agente, tudo com a devida autorização judicial.
Paralelamente, foram utilizados outros meios investigatórios, como
captação ambiental de sinais óticos e acústicos, interceptação telefônica e
telemática, acesso a informações de operações financeiras, ação controlada,
quebra de sigilo fiscal, busca e apreensão, sequestro de bens e, por fim, a
prisão temporária
156
.
De se perceber que o sucesso da operação se deveu, dentre outros
fatores, à estrutura que o agente infiltrado recebeu para o bom desempenho de
suas funções, tudo com autorização do Poder Judiciário.
Como, portanto, negar a importância dos servidores infiltrados no
combate ao crime organizado? Dizer o contrário, além de eloquente equívoco,
preserva as instituições organizadas para a prática de crimes em detrimento do
Estado Democrático de Direito.
Ocorre que, por vezes, é necessário que as operações sejam
desencadeadas por tempo consideravelmente amplo, visando a obter melhores
e relevantes resultados, pois, se desenvolvidas num curto lapso, a despeito de
sua pertinência, percebem benefícios mais superficiais.
Assim, caso se observem os parâmetros da Lei 9.296/96 (interceptações
telefônicas), à míngua de previsão pormenorizada própria, teríamos como
regra a hipótese light cover, ou seja, a diligência não poderia exceder o prazo
máximo de quinze dias (renovável por igual tempo se comprovada a
indispensabilidade do meio).
156
Ibidem.
127
Dessa forma, para o sucesso da operação seria necessário que a
renovação desse prazo se desse por inúmeras vezes, tantas quanto forem
necessárias, até que toda a organização criminosa esteja totalmente
desestruturada e os objetivos estatais tenham sido alcançados.
Por isso defendemos que a omissão legislativa quanto ao prazo foi
proposital e possibilitou ao juiz, de acordo com a complexidade do caso sob
investigação, estabelecer o prazo necessário. Possibilita-se, assim, a chamada
deep cover.
Rafael Pacheco
157
, ao compilar lições de Vanessa Dias Ferreira e Isabel
Oneto, utiliza as concepções das autoras para definir essas diferentes
modalidades. Assim, light cover seriam infiltrações de agentes com duração
máxima de seis meses, não se exigindo do agente uma permanência contínua
no meio criminoso, demandando um planejamento menor e possibilitando que
o policial mantenha sua própria identidade e seu lugar na estrutura estatal.
as deep cover são aquelas com duração superior a seis meses,
exigindo-se do agente uma total imersão no meio criminoso, no qual ele
assume uma nova identidade e se afasta de seu meio social e familiar. Essas
são as mais perigosas, pois exigem grande planejamento e infraestrutura.
Por certo, dependendo da estrutura da organização criminosa, somente
as deep cover têm o condão de melhor satisfazer a finalidade pretendida,
embora vinculem com maior profundidade o agente. Destarte, após um
período estressante de atividades na organização criminosa, deve o servidor
ser amparado pelo Poder Público quanto aos reflexos psicológicos advindos
(inevitavelmente) de sua atuação.
Deve-se avaliar o custo/benefício da utilização desse meio
investigativo, devendo-se medir os riscos ao agente, risco de exposição da
instituição, possibilidade de se obter sucesso, além dos custos das medidas de
157
PACHECO, Rafael. Op. Cit., p.127.
128
seguranças e infraestrutura necessárias
158
.
Assim, o produto do planejamento de uma infiltração de agentes é o
plano de operação, que deve conter, dentre outros, os seguintes requisitos:
descrição da situação fática (deve-se apontar todos os elementos fáticos
colhidos, a organização alvo e o ambiente onde se desenvolverá a infiltração);
missão (aponta o objetivo da infiltração, com descrição das provas que se está
propondo buscar); descrição dos recursos materiais, humanos e financeiros
disponíveis (devem-se pormenorizar as pessoas que serão envolvidas e terão
conhecimento da investigação, toda a infraestrutura que será disponibilizada
para o êxito da investigação e o orçamento disponível para o custeio da
operação); apontamento dos treinamentos necessários para o agente e a equipe
envolvida; descrição das medidas de segurança a serem observadas (para
resguardar a colheita da prova e a integridade do agente, inclusive eventual
resgate deste); indicação da pessoa que coordenará a operação e a que
manterá contato com o agente infiltrado; apontamento dos meios de
comunicação que serão utilizados com o agente; descrição das restrições
impostas à atuação do agente e estabelecimento de prazo provável da medida
(estabelecendo-se, ao menos, metas iniciais a serem alcançadas).
Causa especial preocupação a situação dos infiltrados quando a
operação tiver sido frustrada ou, ainda, revelada prematuramente, eis que suas
vidas e as de seus familiares poderiam ficar expostas a retaliações. Nesse
caso, recomenda-se a pronta intervenção estatal, incluindo, se o caso, o
respectivo agente (e parentes) no programa de proteção às testemunhas,
mesmo ausente o respectivo depoimento em Juízo.
Em suma, a finalidade da medida consubstancia-se no combate ao
crime organizado, na identificação de integrantes da organização ilícita,
desnudando-se a atuação de cada um deles, a extensão dos negócios, de modo
158
PACHECO, Denilson Feitoza. Atividades de inteligência e processo penal. In: IV Jornada Jurídica da
Justiça Militar da União Auditoria da CJM, 30 de setembro de 2005, Juiz de Fora/MG. Disponível em:
“http://www.militar.com.br/modules.php?name=Juridico&file=display&jid=124”.
129
a revelar outros delitos praticados pela organização, identificar agentes
públicos envolvidos ou coniventes, método utilizado para lavar o dinheiro
arrecadado, dentre outros. Ainda, poderão ser percebidos avanços na
recuperação dos produtos de delitos, tudo para desmantelar a organização.
Em uma visão mais ampla, a importância da utilização da infiltração de
agentes não se limita apenas à identificação dos criminosos, mas também à
possibilidade de o Estado ter um conhecimento mais aprofundado dessas
organizações criminosas, traçando-se um perfil das pessoas que se envolvem
com elas, como nascem, como se desenvolvem, como criam toda a estrutura e
quais são as lacunas existentes na estrutura social que permitem a existência
do fenômeno.
Por fim, não menos importante, o agente infiltrado também possui a
incumbência de evitar a prática de crimes.
Ora, é certo que, durante a operação, alguns delitos serão praticados, os
quais podem ser, inclusive, acompanhados pelo agente estatal e, muitas vezes,
quando necessário, até com a contribuição dele.
Entretanto, colhendo a informação de que um crime grave será
praticado, deve o agente infiltrado agir para evitar sua consumação,
preferencialmente comunicando seus superiores.
Ademais, ante a gravidade do crime que se cogita praticar, pode (e
deve) o agente abortar a operação e agir para evitar sua consumação, por
exemplo, no caso em que a organização criminosa pretenda praticar um
homicídio.
Evidente que, se possível fazer sem risco à operação, deve o agente
manter sua falsa identidade, deixando a interferência para outros policiais.
Indubitavelmente, o agente poderia continuar infiltrado, prosseguindo-se a
investigação e levando os demais integrantes da organização criminosa a
pensar que a frustração da prática do crime se deu por outros fatores.
130
6.7. Reflexos probatórios
Dentre os pontos mais debatidos no estudo do agente infiltrado,
sobressaem indagações acerca da possibilidade de se utilizar como prova
elementos advindos do efetivo uso da medida. Em virtude da ausência de
material legislativo sobre o tema, resta à doutrina procurar soluções para as
inúmeras questões atinentes à matéria, para as quais se pode aplicar os
princípios constitucionais, hipóteses legislativas análogas e as regras gerais
trazidas pelo Código de Processo Penal.
Por conta das raríssimas operações desenvolvidas até os dias atuais, o
intérprete não tem à disposição um relevante roteiro jurisprudencial,
inexistindo, igualmente, material prático em quantidade suficiente para
pacificar a questão.
Outra importante ferramenta para lidarmos com a questão é o Direito
Comparado, aproveitando-se de material legislativo de outros países, que
trataram o tema mais profundamente.
Recentemente, no seminário Crime Organizado: Mecanismos de
Combate e reflexos no Estado Democrático de Direito”, realizado no Tribunal
de Justiça do Rio de Janeiro, se discutiu, dentre outros pontos, o mecanismo
de infiltração de agentes no Brasil. Marina Ito, correspondente do portal de
internet “Consultor Jurídico”, compilou algumas das explanações realizadas,
dentre as quais se pode mencionar a opinião de Ana Paula Vieira de Carvalho,
juíza da 6ª Vara Federal Criminal do Rio de Janeiro.
Segundo seu entendimento
159
, o mecanismo é muito pouco debatido
pela comunidade jurídica, raramente há notícias de sua utilização. Prosseguiu
a magistrada, a despeito de ter atuado em casos de enorme repercussão no
159
Conforme ITO, Marina. Congresso precisa detalhar uso de agente infiltrado. 12 de maio de 2009, Portal
“Consultor Jurídico”, disponível em: http://www.conjur.com.br/2009-mai-12/congresso-disciplinar-
infiltracao-agente-investigar-crime.
131
país (v.g. “Operação Furacão”
160
), dando conta de que nunca lhe foi solicitado
o uso de agente infiltrado em uma investigação, numa triste constatação que
reflete a realidade brasileira no trato com a medida. Ademais, ponderou que a
própria lei impõe dificuldades, principalmente em vista da previsão vaga
adotada pelo ordenamento, a qual não oferece, pois, a devida segurança (ao
Judiciário, Ministério Público e Polícia) para que a estratégia de investigação
seja adotada.
Importante abrirem-se parênteses para analisarmos o direito à prova em
nosso ordenamento jurídico.
O direito à prova decorre da própria Constituição Federal, que, ao
dispor expressamente sobre os direitos de ação, defesa e contraditório,
também assegura o direito à prova. Afinal, de nada adiantaria permitir a
qualquer pessoa levar suas postulações a juízo se não lhe fosse conferido o
direito de provar suas alegações.
A prova é o meio pelo qual as partes tentam demonstrar os fatos por
elas alegados, com o objetivo de formar a convicção do julgador, que, em sua
decisão, os usará como fundamentação, nos termos do artigo 93, IX, da
Constituição Federal. A prova será levada ao processo, para que possa ser
avaliada pelo juiz, o qual pode, inclusive, determinar, de ofício, a efetivação
de prova que considere relevante para a apuração da verdade.
No tocante à finalidade da prova, Vicente Greco Filho
161
argumenta que
a finalidade da prova é convencer o juiz, que é seu destinatário. Assim, a
finalidade da prova é prática, ou seja, convencer o juiz daquilo que é alegado
pela parte. Não uma busca pela certeza absoluta, que sempre será
impossível, mas sim por uma certeza que seja suficiente a convencer o
magistrado.
160
A Operação Hurricane foi levada a cabo, pela Polícia Federal, na data de 13 de abril de 2007.
desencadeada pela Polícia Federal, uma sexta-feira, em quatro estados - Rio de Janeiro, São Paulo, Bahia e
Distrito Federal -, e levou à prisão 25 suspeitos de envolvimento em uma rede de corrupção e de tráfico de
influência, que beneficiaria a máfia do jogo.
161
GRECO FILHO, Vicente. Manual de Processo Penal. São Paulo: ed. Saraiva, 1991, p.174.
132
Busca-se reduzir ao mínimo possível a margem de erro, levando ao juiz
uma confortável probabilidade de exatidão. Afinal, não é qualquer dúvida que
deve levar o magistrado à absolvição, mas sim a dúvida não pode ser
dissipada por uma profunda análise das provas existentes nos autos.
Antonio Scarance Fernandes
162
desdobra o direito à prova em face dos
direitos que são conferidos às partes no processo, os quais chegam a oito:
direito de requerer a produção da prova; direito a que o juiz decida sobre o
pedido de produção de prova; caso deferida, direito a que ela seja
efetivamente produzida, fornecendo-se meios necessários para sua produção;
direito de participar da produção da prova; direito ao contraditório durante a
produção da prova; direito a que ela seja produzida com a participação do
juiz; direito a que, depois de realizada a prova, as partes possam se manifestar
a seu respeito; direito a que a prova seja analisada pelo juiz.
Diante do princípio da busca da verdade real, vigente no direito
processual penal pátrio, é possível se admitir uma maior flexibilidade na
produção das provas, contudo, exige-se maior rigor na sua apreciação quando
comparada ao direito processual civil.
Complementando, não adianta somente possuir a prova, mas é
necessário validamente acrescentá-la aos autos, respeitando-se, dentre outros,
o devido processo legal, o contraditório e a ampla defesa.
Portanto, não basta infiltrar o servidor numa odiosa organização
criminosa, permitindo-lhe conhecer todo o modus operandi, membros,
detalhes sobre os crimes praticados, dentre tantas outras informações ao seu
alcance, sem que se perquira a utilização dos dados em Juízo.
Em resumo, não satisfaz o magistrado simplesmente saber como a
quadrilha age, quem a compõe ou, mesmo, quanto de ilícito circunda as
levianas atividades. Isso porque no bojo das decisões, considerando o critério
162
FERNANDES, Atonio Scarance - Processo penal constitucional. 4.ed. rev., atual. e ampl. São Paulo:
Editora Revista dos Tribunais, 2005, pgs. 78/79.
133
da persuasão racional, deve haver referência aos dados que expressamente
constam nos autos, através de decretos fundamentados nos elementos de
prova em direito admitidos e coletados na instrução.
Deve-se lembrar que, no Brasil, foi adotado o sistema da persuasão
racional, em que ao magistrado deve fundamentar sua decisão em elementos
que constem dos autos. Dessa forma, resta-nos debater a maneira como as
informações colhidas pelo agente infiltrado serão trazidas aos autos.
Para Rafael Pacheco
163
, torna-se imprescindível, ab initio, perceber se a
colheita probatória observou todas as cautelas devidas, premissa que não pode
ser olvidada na busca pelo sucesso da empreitada. Assim, torna-se
imprescindível que constem dos autos relatórios da autoridade policial, os
quais descrevem toda a operação e a orientação jurídica que seguiu a
investigação, sob pena de não se conceder qualquer valor probatório ao
resultado de toda a investigação. Por outro lado, recorda o mesmo autor, que,
se a atuação do agente infiltrado observar todas as garantias dos investigados,
bem como os limites estabelecidos pela decisão que a autorizou, as provas
colhidas serão válidas.
Ora, a própria Lei 9.034/95, por seu artigo 2º, conta de que o agente
infiltrado se enquadra entre procedimentos de investigação e formação de
provas. Não se concebe, pois, que a medida seja repelida simplesmente por
sua essência, eis que expressamente é admitida pelo ordenamento.
Questiona-se, então, quando a ação poderia ser considerada válida,
observada sem qualquer ponto que a maculasse por completo. Até porque, na
ausência de pormenorização legislativa, é o interprete quem deve traçar os
paradigmas das futuras infiltrações.
Nesse particular, Flávio Cardoso Moreira
164
apresenta seis requisitos
163
Op. Cit., p.137.
164
PEREIRA, Flávio Cardoso. A investigação criminal realizada por agentes infiltrados. Portal R2 Direito,
(curso de ensino jurídico à distância), disponível no endereço eletrônico:
“http://www.r2learning.com.br/_site/artigos/curso_oab_concurso_artigo_979_A_investigacao_criminal_reali
zada_por_agentes_infi”.
134
para que a infiltração prospere e, doravante, possa servir como base de
eventual decreto condenatório. São eles: a) excepcionalidade da medida; b)
autorização judicial; c) juízo de proporcionalidade; d) especialidade, no
sentido de que deve ser previamente delimitado o objetivo da investigação,
especificando-se, na medida do possível, os crimes e pessoas investigadas; e)
motivação da decisão judicial que autoriza a medida; f) controle pelo
Judiciário e Ministério Público.
Dentre os requisitos acima colacionados, de se ressaltar a questão da
proporcionalidade da medida, item de extrema relevância quando se
confrontam medidas estatais com direitos e garantias fundamentais.
A autorização judicial que possibilita a infiltração de um agente em
uma organização criminosa atinge, ao menos, o direito à autodeterminação
informativa, pois os investigados terão suas conversas e ideias levadas a
pessoas as quais eles não sabiam que eram destinatários e, ainda, os direitos à
intimidade e vida privada.
Em razão do exposto, prima facie, as provas obtidas com a infiltração
de agentes teriam origem ilícita, porquanto produzidas em violação a direito
constitucionalmente tutelado. Contudo, a providência visa a proteger a
sociedade, livrando-a das indesejadas organizações criminosas que tanto
corroem os pilares do próprio Estado.
A questão se resolve, portanto, na propalada leitura da
proporcionalidade, analisando-se cada caso concreto, como discutido
antes
165
.
Então, não se deve apegar-se à visão simplista e formalista de acordo
com a qual a infiltração de agentes deve ser considerada prova ilícita por
atingir direitos fundamentais. A questão merece uma análise mais profunda,
considerando-se as características da sociedade atual e da criminalidade
organizada, bem como a necessidade de o Estado possuir meios eficientes de
165
Ver item 6.1.
135
combate, ainda que extraordinários e dentro de limites impostos pela própria
lei e a constituição Federal.
Não se tratando, pois, de atividade ilícita empreendida pelo Estado,
tudo o que surgir no desenrolar natural da empreitada pode e deve ser
admitido como prova.
Desta sorte, exemplificando, se o infiltrado indica demonstrativos da
conduta criminosa, como transação bancária efetuada com o proveito dos
ilícitos perpetrados, nada impede requerimento à respectiva instituição
financeira para apresentação de movimentações realizadas por determinada
conta, dia e pessoa.
Assim, a infiltração de agentes é uma forma de investigação que não
deve ser utilizada de forma isolada. Além da ação controlada, vista, outros
recursos investigatórios devem ser utilizados, como a interceptação telefônica,
gravação ambiental, filmagens, quebra de sigilos bancário e fiscal, apreensão
de documentos e outros.
Dessa forma, diante do coletado na operação, torna-se possível o acesso
a dados, documentos e informações fiscais, bancárias, financeiras e eleitorais,
desde que, por óbvio, os autos contemplem prévio requerimento do Ministério
Público (ou autoridade policial) ao Poder Judiciário.
Na sequência, é importante debater a juntada das informações que não
podem ser comprovadas por documentos, ocasião em que surge a necessidade
do servidor que atuou como agente infiltrado forneça seu depoimento sobre
situações por ele experimentadas.
Marcelo Batlouni Mendroni
166
, ao se debruçar sobre a hipótese,
lembrou que, embora a lei silencie sobre a possibilidade do agente infiltrado
ser ouvido como testemunha, esta situação é permitida e, muitas vezes,
imprescindível. Em face do longo convívio que experimentou e o amplo
166
MENDRONI, Marcelo Batlouni. Crime Organizado Aspectos Gerais e Mecanismos Legais. São Paulo:
ed. Juarez de Oliveira, 2002, p.77.
136
conhecimento da estrutura e funcionamento da organização criminosa, este
agente pode fazer ao magistrado um relato detalhado dos fatos, esclarecendo
quaisquer dúvidas existentes. Fica a cargo do juiz a valoração dessa prova no
momento de sua decisão.
Alguns autores entendem que, ao ser ouvido como testemunha, a
verdadeira identidade do agente infiltrado deve ser mantida em sigilo, como
forma de resguardar sua segurança e de sua família.
Discordamos quanto à necessidade de se manter sob sigilo a identidade
do agente, pois isso afrontaria diretamente os princípios constitucionais do
contraditório e da ampla defesa.
Como permitir que uma pessoa preste depoimento em juízo sem que a
parte contrária possa conhecê-lo e, se for o caso, contraditá-la. Muito se
cogitou da possibilidade de testemunhas deporem com os rostos cobertos,
como ocorre em outros países, mas as ideias sempre foram rechaçadas, em
face dos mencionados princípios do contraditório e ampla defesa.
Evidente que há necessidade do Estado resguardar a integridade física e
a vida do agente que o serviu (e de seus familiares), mas esta proteção tem
que ser alcançada por outros meios.
Eduardo Araujo da Silva
167
aponta uma situação intermediária entre a
identificação da testemunha e o testemunho anônimo. Seria a possibilidade de
que, com autorização judicial, a defesa tivesse acesso ao nome e eventual
alcunha da pessoa protegida, preservando-se os demais dados. Embora ainda
se constate uma limitação ao direito à ampla defesa, presume-se que com
estes dados a defesa teria condições de verificar se algum vínculo entre a
pessoa e o acusado ou os fatos, apontando a eventual existência de
impedimento ou suspeição.
Entretanto, embora mitigue as consequências, esta solução não livra o
agente do risco de represálias a ele e seus familiares.
167
Op. Cit., p. 137.
137
Portanto, entendemos que o depoimento do agente infiltrado somente
deva ser colhido quando imprescindível para o julgamento do feito. Assim,
caso venha a ser solicitada a revelação de sua identidade para que seja ouvido
em juízo, deve o magistrado analisar se há necessidade, indeferindo-a nos
termos do § 1º, do artigo 400 do Código de Processo Penal, se não entendê-la
imprescindível.
Assim, deve ser evitada a exposição do agente infiltrado. Ele deve ser
levado a depor em juízo somente em casos excepcionais. Durante a operação,
o agente infiltrado pode proporcionar diversas outras espécies de provas (com
autorização judicial quando necessário), como relatórios circunstanciados,
fotografias, gravações telefônicas e ambientais, extratos bancários,
documentos diversos, informações fiscais, provas periciais, apreensão de bens
e valores e outros.
Somente depois de analisado todo o conjunto probatório, deve o
magistrado decidir sobre a pertinência de sua oitiva, considerando, ainda, o
risco envolvido na revelação da identidade.
Evidente que hipóteses em que o depoimento do agente será
extremamente pertinente ao processo, justamente pelo amplo conhecimento
de todas as atividades da organização criminosa. Nesses casos, ele deverá ser
ouvido e identificado.
Caso a organização criminosa tenha sido totalmente desmantelada, não
haverá maiores problemas para sua proteção. A questão é tormentosa (e mais
comum) nas hipóteses em que nem todos os integrantes foram presos, a
organização não tenha sido totalmente desmanchada ou não se tenha certeza
disso.
Nesses casos, o infiltrado deve perceber as proteções legais que outras
testemunhas observariam, precipuamente se coagidas ou expostas à grave
ameaça por colaborarem com a persecução penal. Ressalte-se, por oportuno, o
prévio contato daquele com a estrutura delituosa se deu em nome do próprio
138
Estado, sobrelevando o intuito de ampará-lo.
No Brasil, convém destacar a Lei 9.807, de 13 de julho de 1999, que
“Estabelece normas para a organização e a manutenção de programas
especiais de proteção a vítimas e a testemunhas ameaçadas, institui o
Programa Federal de Assistência a Vítimas e a Testemunhas Ameaçadas e
dispõe sobre a proteção de acusados ou condenados que tenham
voluntariamente prestado efetiva colaboração à investigação policial e ao
processo criminal.”
Nessa seara, Denílson Feitoza Pacheco
168
, ao tratar da situação do
agente pós-infiltração, ponderou que deve haver uma gradação de medidas, a
depender do caso concreto. Assim, pode haver desde um afastamento
temporário das funções aa mudança de local de trabalho e de identidade,
como ocorre no programa de assistência a testemunhas ameaçadas, pois o
agente infiltrado não deixa de ser uma testemunha dos fatos.
Ademais, muito além de resguardar os agentes infiltrados dos riscos
inerentes à empreitada, a Lei 9.807/99 estende a respectiva proteção ao
cônjuge ou companheiro, ascendentes, descendentes e dependentes que
tenham convivência habitual com o servidor, nos termos do artigo 2º, §1º.
Noutras palavras, confere maior tranquilidade ao policial para o bom
desempenho de sua função, sobretudo pela ciência de que seus familiares
estariam abrangidos pelas benesses legais.
De outra banda, após analisar diplomas protetivos ao redor do mundo,
Mario Daniel Montoya
169
destacou a importância de se blindar a testemunha
no trato com o crime organizado, entendimento do qual devemos comungar.
Defendeu que a testemunha que, na prática, necessita de proteção, geralmente
168
PACHECO, Denilson Feitoza. Atividades de inteligência e processo penal. In: IV Jornada Jurídica da
Justiça Militar da União Auditoria da CJM, 30 de setembro de 2005, Juiz de Fora/MG. Disponível em:
“http://www.militar.com.br/modules.php?name=Juridico&file=display&jid=124”.
169
MONTOYA, Mario Daniel. Informantes y Técnicas de Investigación Encubiertas Análisis
Constitucional y Procesal Penal. edição atualizada e ampliada, Buenos Aires: ed Ad Hoc, 2001, p.158-
159.
139
ostenta significativo conhecimento sobre a estrutura da organização
criminosa. Ela pode comprovar que determinados delitos foram perpetrados
mediante seus contundentes depoimentos, como certamente ocorre com o
agente que se infiltrou na organização criminosa.
De certo, nos processos criminais contra integrantes do crime
organizado, a tarefa de coletar provas afigura-se extremamente árdua ao
aparato estatal, especialmente quando a exposição do modus operandi da
organização criminosa pode custar a própria vida da testemunha. Daí a
raridade de depoimentos.
Como observa Montoya, nos processos contra organizações criminosas
a prova testemunhal é o meio de prova mais importante, quando não é o
único
170
.
Resumindo, resta concluir à luz do exposto que, observadas as cautelas
na realização da infiltração de agentes, ela pode gerar provas relevantes no
processo penal, alicerçando eventual e futura decisão condenatória.
Mas, quando as informações puderem ser documentalmente
comprovadas, basta o requerimento ao magistrado competente para obtenção
do necessário, por meio de petição fundamentada da autoridade policial ou do
Parquet.
Já, na hipótese de imprescindível confirmação por testemunho, nada
impede que o infiltrado o seu valioso depoimento, tornando-se crucial que
o Estado atue para protegê-los das conseqüências advindas.
6.8. Agente infiltrado e agente provocador
Quando se trata de infiltração de agentes, uma das principais críticas
que se faz é sobre a possibilidade de o Estado, por meio de seu agente, dar
170
Ibidem, p.160.
140
causa a ocorrência de crimes.
Pondera-se que o papel do Estado é prevenir e repreender a prática de
infrações penais e, quando se autoriza a infiltração de agentes, ele estaria o
realizando exatamente o contrário, ou seja, estaria provocando a prática de
crimes.
Entretanto, em uma aprofundada análise do instituto, verifica-se que
grande disparidade conceitual entre agente infiltrado e agente provocador,
porquanto cada qual percebe consequências distintas no plano fático.
De um lado, tem-se a figura do agente infiltrado, importante
instrumento de combate ao crime organizado em diversos países, antevisto em
tratados internacionais de motivação repressiva e, sem dúvidas, de
significativa pertinência à defesa da sociedade. De outro, o polêmico agente
provocador, que nutre padrões de conduta que podem levar ao fracasso de
toda e qualquer medida a que estiver vinculado, tornando inúteis esforços
presumidamente legítimos.
Ao iniciar a análise, cumpre apresentar divergências pontuais entre tais
atividades desenvolvidas por policiais, de infiltração e provocação, com o fito
de enriquecer o debate.
Na visão de Marcelo Batlouni Mendroni
171
não como confundir o
“agente infiltrado” com o “agente provocador”. O primeiro age sob ordem e
com autorização para infiltrar-se, mantém sempre uma atitude passiva, atua
somente em conjunto ou com apoio dos demais integrantes da organização
criminosa, ou quando inevitável para manter oculta sua qualidade de agente
do Estado. Já o segundo atua ofensivamente, causa à prática criminosa,
instiga ou induz os investigados a praticarem uma conduta criminosa. Como
exemplo de agente provocador, o autor exemplifica com o policial que solicita
a uma pessoa que acredita ser traficante, que lhe venda algumas porções de
171
MENDRONI, Marcelo Batlouni. Crime Organizado Aspectos Gerais e Mecanismos Legais. São Paulo:
ed. Juarez de Oliveira, 2002, p.79.
141
droga.
Assim, o agente provocador é o agente estatal que induz outra pessoa à
prática de um crime e contribui com sua execução, seja como co-autor, seja
como partícipe. É certo que este agente não age com a intenção de pôr em
risco um bem jurídico ou para satisfazer algum interesse pessoal, mas sim
com a intenção de que a pessoa provocada venha a sofrer uma sanção penal
em face de sua conduta. A principal característica do agente provocador é que
seu comportamento é contraditório, pois ao mesmo tempo em que não
pretende a lesão ao bem jurídico, deseja que o investigado volte sua ação
criminosa contra este mesmo bem jurídico, para que possa, ao final, ser
punido. Muitas vezes não se consegue garantir a proteção ao bem jurídico, o
qual é lesionado, apenas para que o provocado possa efetivamente vir a ser
punido.
Há, à evidência, a necessidade de um preparo psicológico e moral do
agente que atuará infiltrado em uma organização criminosa, pois seu
comportamento ditará a validade do conteúdo probatório arrecadado.
Como exemplo bem simplificado, basta imaginar policial que,
ocultando sua verdadeira identidade, ingressa em organização criminosa de
furto e desmanche de carros, com a precípua finalidade de prender seus
integrantes. Até esse momento, não se pode afirmar seguramente qual será
sua natureza, de agente infiltrado ou provocador. Por isso, resta
imprescindível a leitura de seus próximos passos.
O servidor permanece atrelado ao grupo delituoso e, depois de certo
tempo, nunca presenciou ou teve ciência de qualquer subtração de veículo
(embora esteja certo de que a qualquer momento os crimes podem ocorrer),
pois a quadrilha, ao que se percebe, está em latente funcionamento. Nesse
ponto, duas hipóteses podem se verificar:
a) Afoito em desbaratar a quadrilha, o policial, por conta própria,
prepara um automóvel com as características costumeiramente desejadas pelo
142
bando, estaciona-o em local previamente planejado e que, de antemão, sabe
que é observado pelos criminosos e finaliza ao adverti-los da pretensa res
furtiva como estímulo ao ato espúrio. Em seguida, com a subtração daquele
bem, noticia o fato aos seus superiores que, municiados das informações
prestadas, efetuam a prisão no depósito utilizado para desmanche.
b) Paciente, aguarda o tempo necessário até a efetiva intervenção e
sabe, tempos depois, de um furto planejado sem a sua contribuição intelectual.
Ao se dirigir até o depósito para desmanche, surpreende a res furtiva descrita
nas tratativas prévias, comunicando seus pares que, de maneira eficaz, logram
êxito em capturar os quadrilheiros.
Embora de extrema singeleza o exemplo apresentado, depreende-se
que, na primeira hipótese, a intervenção estatal somente se concretizou pela
atuação do policial enraizado no grupo, verdadeiro responsável pelo
desencadear dos fatos, subsistindo-se a figura do agente provocador.
Já, noutro episódio, a organização teria delinquido com ou sem a
participação do servidor. Ele simplesmente repassou as informações que lhe
foram confiadas pelos criminosos, nada mais. Assim, neste último
desdobramento, a atividade estatal somente prosperou diante da infiltração
policial, não há nada, pois, que macule a captura.
Em apertada síntese, a distinção entre as espécies não se estabelece
(regra geral) no nascedouro da empreitada, mas na maneira como ela se
desenvolve. Resta perfeitamente possível que um policial tenha se infiltrado
regularmente na organização criminosa e, na ânsia de colher rapidamente o
fruto de sua atividade, abandone a passividade que deveria nortear sua
conduta e assuma papel de destaque no cometimento do injusto, tornando-se
responsável pela prática delituosa.
Como menciona Rafael Pacheco
172
, a diferença entre o agente
provocador e o infiltrado, é que este não exerce qualquer influência na
172
Op. Cit., p.139.
143
determinação de praticar o crime, enquanto aquele contraria o Estado
Democrático de Direito, que repudia a primeira conduta, especialmente se
praticada por um representante seu, que tem o dever de coibir a prática de
crimes.
Percebe-se que entre o agente provocador e o agente infiltrado existe
significativa diferença, pois este último é considerado homem de confiança e
age de acordo com os ditames legais, enquanto aquele é, em geral, repudiado
pelos sistemas legislativos.
No caso do agente infiltrado, o criminoso praticaria o delito
independentemente de sua atuação, enquanto agente estatal, porque ele
funciona tão somente como alguém que recebe a informação e aguarda a
prova. De outra via, o agente provocador não se contenta em aguardar a
ocorrência do delito, partindo para a provocação do crime, mesmo diante da
predisposição do agente para o crime.
Em suma, o agente provocador interfere de maneira significativa na
cadeia de acontecimentos, deixando o Estado de mãos atadas diante de uma
atividade criminosa que provavelmente aconteceria, mesmo depois de algum
tempo.
A expressão original, l´agent provocateur, como recordam Sergio Luis
Lamas Moreira e Marcus Vinicius Lamas Moreira, possui origem francesa,
nas práticas absolutistas, definindo a pessoa que induz ou instiga alguém a
cometer um determinado crime, com o intuito de possibilitar a prisão em
flagrante do executor
173
.
O que interessa aos responsáveis pela operação, pois, é evitar que o
servidor infiltrado desvirtue sua empreitada tornando-se, inadvertidamente,
provocador, de modo a transportar uma conduta inicialmente legítima para o
173
MOREIRA, Sério Luis Lamas; MOREIRA, Marcus Vinicius Lamas. Indagações sobre o agente
provocador e o agente infiltrado. Boletim IBCCRIM, São Paulo, v.11, n.128, p.14-15, jul.2009, apud
PACHECO, Rafael. Crime Organizado Medidas de Controle e Infiltração Policial. Curitiba: editora Juruá,
2007, p.139.
144
terreno da ilegalidade.
Ademais, como observam Manuel João Alves, Fernando Gonçalves e
Manuel Monteiro Guedes Valente
174
, quando o agente atua com vontade e
intenção de determinar outrem a praticar um crime, está agindo também com
dolo em relação à sua prática. Ou seja, analisando-se o comportamento do
agente provocador, verifica-se que ele também tem a intenção de ver o crime
se consumar, ainda que praticado por interposta pessoa. Não obstante a
possibilidade de se vislumbrar uma atenuante relativa ao relevante valor
social, o fato é que o agente provocador possui dolo em relação ao crime que
determina a prática ao investigado
175
.
Este dolo, se não direto, uma vez que o agente provocador pode
realmente acreditar que poderá evitar a consumação, será, ao menos, um dolo
eventual, no qual ele aceita a possibilidade da consumação em prol de efetuar
a prisão do investigado.
A provocação do crime pelo agente estatal infiltrado na organização
criminosa leva à ilicitude da prova colhida. Com efeito, se prejudica não
apenas a responsabilização dos integrantes da organização criminosa pelo
crime a que foram induzidos, mas também se vicia toda a credibilidade do
restante das provas colhidas por aquele agente.
O fato de uma agente estatal instigar alguém à prática de um crime para
poder, em seguida, responsabilizá-lo criminalmente, afronta o princípio da
dignidade humana. Não é permitido ao Estado testar” todas as pessoas, a fim
de perquirir a honestidade e resistência à tentação de cometer crimes.
Como pondera Eduardo Araújo Silva
176
, essa prática é um abuso do
174
ALVES, Manuel João; GONÇALVES, Fernando; VALENTE, Manuel Monteiro Guedes. Lei e crime. O
agente infiltrado versus o agente provocador. Os princípios do processo penal. Coimbra: editora Almedina,
2001, p. 256 apud GUIMARÃES, Isaac Sabbá. O agente infiltrado na investigação das associações
criminosas. Jus Navigandi, Teresina, ano 6, n. 56, abr. 2002. Disponível em:
“http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=2894”.
175
Sobre a responsabilidade penal do agente e a possível configuração de crime impossível, ver o próximo
item.
176
Op. Cit., p. 109.
145
Estado, que se comprometeu em assegurar a segurança jurídica. Assim,
qualquer prova advinda de tal conduta deve ser considerada ilícita perante a
Constituição brasileira, por afronta ao princípio da dignidade humana e
violação à segurança jurídica, decorrente da própria definição de Estado
Democrático de Direito.
Conclui-se, pois, as péssimas consequências que a transmudação do
agente infiltrado em agente provocador traz a toda operação investigativa.
Afinal, esse servidor ainda pode responder pela prática do crime provocado
conforme as circunstâncias, como partícipe, notadamente quando a
preparação do flagrante pelos milicianos não tenha, a contento, impedido a
consumação do injusto.
A despeito de todo o exposto, ressalte-se que há quem defenda, por
razões plausíveis, definição diversa da questão ora debatida, propiciando-se
uma leitura que abarca distinta classificação.
Dessa forma, Manuel Augusto Alves Meireis
177
, ao se debruçar sobre o
tema, estabeleceu uma concepção tripartida
178
para classificar o agente estatal
que, sem revelar sua identidade ou qualidade, atua próximo à organização
criminosa. Nessa seara, compreende as seguintes espécies: a) agente
provocador; b) agente infiltrado; c) agente encoberto.
Para o autor, agente infiltrado pode ser definido como o agente da
autoridade ou cidadão particular atuando para a Polícia
179
que, sem revelar sua
identidade, almeja obter provas para a responsabilização criminal do suspeito
ou a informação de novos crimes, ganha-lhes a confiança e se mantém
informado acerca de todos os acontecimentos e, eventualmente, acompanha a
execução de crimes.
177
MEIREIS, Manuel Augusto Alves. O Regime das Provas Obtidas pelo Agente Provocador em Processo
Penal, Coimbra, 1999, p.163-164, apud ONETO, Isabel. O Agente Infiltrado Contributo para a
Compreensão do Regime Jurídico das Acções Encobertas, Coimbra Editora, 2005, p.124 -125.
178
Tem como critérios de distinção o grau de ingerência dos agentes da autoridade na esfera jurídica dos
particulares e nos direitos, liberdades e garantias fundamentais do cidadão.
179
No Brasil, por conta da leitura do artigo 2º, V, da Lei 9.034/95, a doutrina se posiciona no sentido de não
admitir o particular como agente infiltrado.
146
Já, ao definir agente provocador, relaciona-o ao agente infiltrado que
passa a instigar ou a determinar que o investigado pratique crimes.
Por fim, Meireis apresenta-nos a figura autônoma do agente encoberto,
que é aquele que se mantém passivo em relação à decisão de delinquir, mas
estava no local dos fatos sem revelar sua identidade, à espera da ocorrência
de algum delito para agir. Ele não provoca a prática de crime, mas também
não busca conquistar a confiança de ninguém, aproximando-se da figura do
chamado “policial à paisana”
180
.
De outra banda, o autor espanhol Joaquin Delgado
181
concebe o agente
infiltrado, bem como servidores relacionados, em diferente perspectiva. Sua
leitura do tema apresenta-se sob quatro diferentes prismas.
No primeiro deles, seria o “agente meramente encoberto”, que é aquele
que investiga um determinado crime e oculta sua condição de policial, mas
sem se utilizar de técnicas de infiltração. Não se presta à investigação de
organizações criminosas complexas, limita-se a criminosos que agem de
forma isolada ou em pequenas quadrilhas.
Ele define, ademais, o “agente encoberto infiltrado”, que é o que
conhecemos como agente infiltrado: aquele que se insere na estrutura de
grandes organizações criminosas, passa a conviver nesse meio, praticando as
mesmas atividades das pessoas que investiga.
Em seguida, Joaquin Delgado apresenta a definição de “agente
encoberto infiltrado com identidade falsa”, que é igual ao agente anterior, mas
que se utiliza de identidade falsa. Ele exerce uma função mais complexa, em
organizações criminosas em que a única forma de se infiltrar é com o apoio
total do Estado, que fornece uma identidade falsa e disponibiliza toda a
180
MEIREIS, Manuel Augusto Alves. O Regime das Provas Obtidas pelo Agente Provocador em Processo
Penal, Coimbra, 1999, p.163-164, apud ONETO, Isabel. O Agente Infiltrado Contributo para a
Compreensão do Regime Jurídico das Acções Encobertas, Coimbra Editora, 2005, p.124 -125.
181
DELGADO, Joaquin. Criminalidad Organizada. J.M. Bosch Editor, 2001, págs 46/48 apud MENDRONI,
Marcelo Batlouni. Agentes infiltrados x ação criminosa. Disponível no Portal Ultima Instância, 1 de agosto
de 2007, através do seguinte endereço na internet: “http://ultimainstancia.uol.com.br/noticia/40534.shtml”.
147
estrutura necessária para a operação.
Por fim, surge o “agente provocador”, que é o agente de polícia que
oculta sua condição e provoca o investigado a praticar o crime, sem que ele
possuísse prévia intenção de assim agir. Assim, ele pode ser qualquer um dos
três anteriores que passa a incutir a ideia criminosa no investigado.
Convém mencionar que o autor apenas faz uma distinção entre o agente
infiltrado que oculta sua identidade, denominando-o agente encubierto
infiltrado, e o agente encubierto infiltrado con identidad supuesta, hipótese
em que se utiliza identidade falsa.
No mais, não parece ser necessária a divisão acima propalada,
porquanto não se retira a qualidade de agente infiltrado, ressaltando-se
somente algumas hipóteses em que a mentirosa qualificação é utlizada.
Ademais, diante do perigo envolvido na operação e a violência
empregada pelo atual crime organizado, dificilmente se poderia conceber um
agente infiltrado que utilizasse seus verdadeiros dados, sob pena de afrontar o
essencial sigilo da investigação.
Apenas complementando o exposto, outros doutrinadores se limitam a
classificar o instrumento policial em duas espécies: agente provocador e
agente infiltrado, vociferando sinonímia entre este e o agente encoberto.
Admite-se, todavia, que, na ponderação de Meireis, não se mostraria
inadvertida a colocação do “agente encoberto” autonomamente, destacando-se
a linha tênue que o distinguiria do policial em trabalho de rotina.
Analisando-se o direito estadunidense, muito se alega que o agente
infiltrado, tal qual concebido em nosso ordenamento, teria paralelo com a
figura do undercover agent.
Indubitavelmente, o instrumento utilizado nos Estados Unidos da
América serviu como modelo a vários ordenamentos, no que procuram
sempre relacioná-lo a toda e qualquer atividade de infiltração.
Contudo, muitos de nossos estudiosos não vislumbram a semelhança,
148
dá-se conta de que tais realidades nutrem essências distintas e cada qual
abarca específicos núcleos de atuação.
Nessa linha de pensamento, Flávio Cardoso Pereira e Fernando Gascón
Inchausti
182
escreveram que o “undercover agent” é um infiltrado sui generis,
pois tem como tarefa a realização de operações genéricas, sem que exista uma
finalidade específica. Ou seja, apesar dele ser um policial que atua de forma
encoberta, não possui uma investigação delitiva concreta, um fato certo.
Em verdade, agente infiltrado e undercover agent ostentam alicerces
extremamente parecidos, no que se arriscaria analisá-los de maneira conjunta.
A diversidade apresenta-se na especificidade que nortearia a atuação do
primeiro em prejuízo da generalidade do outro.
Outras vozes respeitáveis, em sentido oposto, compreendem as espécies
como realidades semelhantes, para não dizer iguais, preceituando que
undercover agent e agente encoberto
183
devem ser tratados da mesma
maneira. Assim, posicionaram-se José Maria Paz Rubio, Julio Mendoza
Muñoz, Manuel Olle Sesé, Rosa Mª. Rodríguez Moriche
184
.
Por fim, ao analisar a figura do agente provocador, verifica-se que ela
guarda uma relação indireta com o entrapment, da doutrina norte-americana.
Esta, porém, analisa o problema por outro foco: o da responsabilização
criminal daquele que praticou uma conduta induzido pelo agente provocador.
Como observado por Mário Daniel Montoya, a jurisprudência norte-
americana se inclina a isentar de pena apenas os casos em que o agente
provocador incutiu a ideia da prática do delito em outra pessoa, permitindo-se
a aplicação de pena nos casos em que demonstre que o sujeito estava, de
182
PEREIRA, Flávio Cardoso. Meios extraordinários de investigação criminal. Infiltrações policiais e
entregas vigiadas (controladas). Portal Jurídico Jus Navigandi, Teresina, ano 12, n. 1777, 13 maio 2008.
Disponível em: “http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=11258”.
183
Sinônimo de agente infiltrado conforme o entendimento escolhido.
184
PAZ RUBIO, José María; MUÑOZ, Julio Mendoza; OLLE SESÉ, Manuel; RODRÍGUEZ MORICHE,
Rosa Mª. La prueba en el proceso penal. Su práctica ante los tribunales. Madrid: Colex, 1999, p. 395.
149
antemão, decidido a cometer o delito. Contudo, este tema será melhor
analisado adiante.
Conclui-se que não se pode admitir que diferenças conceituais criem
percalços à infiltração de agentes, haja vista a importância da medida para o
combate ao crime organizado.
6.9. Responsabilidade criminal
O estudo sobre a infiltração de agentes não estaria completo sem que se
analisasse o afastamento da responsabilidade penal do agente durante o
desempenho de suas atividades junto à organização criminosa, especialmente
em virtude do rotineiro convívio com criminosos de toda espécie.
De antemão, desde que o servidor infiltrado tenha sua atuação pautada
pela observância de premissas legais e doutrinárias, inevitavelmente deverá
ter afastada a responsabilidade penal, tudo para que tão importante
instrumento possa efetivamente observar aplicabilidade prática.
De início, inegável que o delito de quadrilha ou bando, premissa do
grupo criminoso, estaria em tese caracterizado, mormente quando sua prática,
prima facie, subsistiria do contexto. Nesse caso, se houver expressa
autorização legal e judicial, estaria excluída a ilicitude, pois o agente estaria
agindo em estrito cumprimento do dever legal.
Contudo, diante das possibilidades advindas com a infiltração, excluir a
responsabilidade penal pela prática do delito previsto no artigo 288 do Código
Penal, apresenta-se, numa análise conglobada, questão de somenos.
Ora, o agente incorporado à organização criminosa irá conviver com
toda a espécie de ilícitos e, embora sob a égide do Estado, não poderá se
esquivar de inevitáveis provas de confiança aos criminosos, ainda que em
limites toleráveis, sob pena de não alcançar o objetivo da operação e, por
150
vezes, colocar sua vida em risco.
Deve-se reconhecer que é humanamente impossível antever todas as
situações que serão experimentadas pelo policial, pois não se sabe como ele
será recepcionado pelo grupo, nem qual o status que ele ostentará em sua
fictícia e nova vida.
Basta imaginar, por exemplo, o agente que se infiltra num bando
voltado ao tráfico de drogas. Como é cediço, costumeiramente os endividados
com a organização, sem condições alguma de adimplir os débitos percebidos
em razão do vício, acabam perdendo a vida em brutais assassinatos, o mesmo
acontece àqueles que revelaram a estranhos algo sobre a estrutura criminosa.
Então, nesta situação hipotética, o mentor da quadrilha se dirige ao
infiltrado, desconhecendo-lhe a condição e ordena-lhe que mate um devedor
de drogas, na frente de todos, sob o pretexto de conferir sua lealdade. Uma
negativa, dependendo das circunstâncias, pode custar-lhe a própria vida. Que
fazer, então, se inexiste autorização estatal para a prática de homicídios?
É evidente que o agente está proibido de perpetrar crimes. Ele deve, em
verdade, abster-se de qualquer prática que extrapole o desiderato para o qual
foi selecionado. Contudo, e no caso ventilado acima?
O que se pretende com tais colocações, em resumo, é salientar que em
face da omissão de nosso legislador, não encontraremos respostas prontas
para toda e qualquer situação. O operador do direito deve analisar
pormenorizadamente o caso concreto.
Não devem ser admitidos excessos, tampouco que o agente se aproveite
da situação, acreditando que todos os seus atos terão o respaldo público.
Doutro lado, não se afigura plausível que o ordenamento deixe suas mãos
atadas, obrigando-lhe a atuar com a aparência de paladino da lei, moral e bons
costumes, numa conduta que prontamente seria repelida por quem se
acostumou ao rotineiro cometimento de ilícitos. Assim, se não pode
transgredir as normas, que ao menos não deixe transparecer o repúdio.
151
Se ponderarmos as condutas potencialmente destinadas ao infiltrado,
sua participação no bando poderia ser projetada em três situações: a) simples
colheita de dados, num papel de informante; b) consubstanciar-se na própria
provocação do injusto
185
; c) participação de empreitada criminosa
previamente delineada, sem o seu acréscimo intelectual.
Na primeira hipótese, em regra, não haveria maiores problemas, pois
facilmente se vislumbra eventual excesso ou causa excludente do crime. ,
no caso do agente efetivamente estimular a ação delituosa, subsistiria o
flagrante provocado, hipótese de crime impossível por entendimento
sumulado do Supremo Tribunal Federal
186
, pelo qual quedaria inútil qualquer
imputação aos integrantes do grupo.
Da mesma forma, no caso de lesão ao bem jurídico causado pela
atuação do agente provocador, ele deve ser responsabilizado criminalmente.
Ainda que sua intenção seja a responsabilização das pessoas investigadas, não
como se reconhecer a existência de, ao menos, um dolo eventual em seu
comportamento.
Subsiste, então, a participação em atividade criminosa anteriormente
concebida, sem qualquer provocação do agente ao seu deslinde. É a hipótese
de co-autoria ou participação do agente em crimes que já se sabe, de antemão,
são praticados pela organização criminosa investigada. Assim, a atuação do
agente não é indutora do crime, que já é prática comum naquele ambiente, ela
apenas auxilia a preparação ou execução do delito.
Nesse caso, deve-se retirar qualquer imputação ao policial, salvo na
ocorrência de excesso injustificado de sua parte. Isso porque não há como se
admitir que o agente esteja desprotegido das consequências decorrentes da
infiltração. Como não expressa determinação legal nesse sentido, devemos
185
Sobre este ponto, a despeito dos acréscimos oportunos nessa linha de discussão, remetemos à leitura do
item que aborda as diferenças entre agente infiltrado e agente provocador.
186
Súmula 145 do STF: “Não há crime, quando a preparação do flagrante pela polícia torna impossível a sua
consumação”.
152
nos socorrer das excludentes já previstas na sistemática penal.
Por tais motivos e, com o devido acatamento, ousa-se taxar de infeliz a
ponderação da lavra de Luiz Flavio Gomes e Raul Cervini, extraída de obra
lançada pouco depois da entrada em vigor da Lei 9.034/95 (bem antes da
alteração percebida em 2001 que, dentre outros, incluiu o agente infiltrado no
texto legal). Nela os autores, ao comentarem o veto presidencial ao inciso I,
do artigo (que previa a infiltração de agentes), asseveraram que pouco se
poderia esperar desse meio investigatório, pois jamais seria possível que uma
lei autorizasse um agente infiltrado a praticar crimes
187
.
O que se questiona é a leitura precipitada de que pouca eficácia seria de
se esperar de tal meio investigatório, sem de outra via (diante do êxito da
medida em outros países), ao menos, apresentar soluções que viabilizassem a
hipótese.
E, passado algum tempo, com a positivação da medida em 2001, ações
nesse contexto já se apresentaram extremamente oportunas e proveitosas,
conferindo o mínimo necessário para considerar a infiltração de relevante
eficácia e, consequentemente, demonstrar quão válido seria debruçar-se sobre
o tema para aprimorá-lo.
Bem trabalhada, a infiltração pode ser de extrema valia ao Estado e
consistir em indispensável ferramenta para o combate ao crime organizado.
Na tentativa de solucionar o problema, Alberto Silva Franco
188
apresentou diversos entendimentos pertinentes sobre o tema, salientando que
no projeto original era prevista a exclusão da antijuridicidade da conduta do
agente no decorrer de sua atividade como infiltrado. na doutrina, a
discussão perdura, sem que exista um consenso. quem defenda a exclusão
da ilicitude por ter ele agido em estrito comprimento do dever legal ou no
187
CERVINI, Raúl; GOMES, Luiz Flávio. Crime Organizado – Enfoques criminológico, jurídico (Lei
9.034/95) e político-criminal. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais (RT), 1995, p.91.
188
FRANCO, Alberto Silva. Leis penais especiais e sua interpretação jurisprudencial, edição, revista,
atualizada e ampliada, São Paulo: Editora RT, 2002, p. 584.
153
exercício regular de direito, enquanto outros preferem a exclusão da
culpabilidade, por entender que o agente trabalha sob obediência hierárquica a
ordem não manifestamente ilegal. Por fim, salienta, ainda, que quem
defenda que a não responsabilização do agente infiltrado decorre de uma
escusa absolutória, pois embora ele pratique o crime, não é responsabilizado
em razão de política-criminal.
Igualmente, Flávio Cardoso Pereira
189
faz uma leitura de modo a
conglobar os posicionamentos acerca da matéria, acrescentando as hipóteses
de exclusão da culpabilidade por inexigibilidade de conduta diversa e de
atipicidade em face da teoria da imputação objetiva. Contudo, posiciona-se
pela exclusão da antijuridicidade, por entender que o infiltrado age no estrito
cumprimento de dever legal.
Outros autores também protestam pela exclusão da antijuridicidade,
para os quais esse é o melhor caminho para blindar o agente bem
intencionado que se propõe a participar de arriscada operação
190
.
Em contrariedade ao entendimento, alguns discutem que a ptica de
crimes pelo infiltrado nunca poderia ser lida como estrito cumprimento do
dever legal, quiçá uma excepcionalidade. Destarte, o ordenamento faculta a
prática de crime apenas em situações previamente definidas e relevantes,
como estado de necessidade e legítima defesa, nunca, todavia, concebendo-a
como um dever.
Ademais, ao contribuir na prática de crimes, o agente estatal estaria
fazendo exatamente o contrário daquilo que a lei e a Constituição
determinaram, pois em vez de evitar a prática de crimes ou agir para
189
PEREIRA, Flávio Cardoso. A moderna investigação criminal. In: CUNHA, Rogério Sanches; TAQUES,
Pedro; GOMES, Luiz Flávio (coords). Limites Constitucionais da Investigação São Paulo: Editora Revista
dos Tribunais, 2009, p. 119.
190
Por exemplo: MENDRONI, Marcelo Batlouni. Crime Organizado Aspectos Gerais e Mecanismos
Legais. São Paulo: ed. Juarez de Oliveira, 2002, p.71; e PACHECO, Rafael. Crime Organizado – Medidas de
Controle e Infiltração Policial. Curitiba: editora Juruá, 2007, p.131.
154
identificar autores de delitos, estará contribuindo para que novos delitos
ocorram.
Doutra banda, poder-se-ia cogitar da ausência de tipicidade, em vista da
aplicação da teoria da imputação objetiva, segundo a qual o risco permitido
deve ser tolerado pela dogmática penal.
Noutras palavras, a função repressiva do direito penal deveria ser
sopesada quanto aos ilícitos perpetrados pelos quadrilheiros, verdadeiros
criminosos, não pela atitude do policial que tenciona apurá-los. Embora não
esmiuçada, há efetiva e notória previsão legal da infiltração de agentes, de
modo que os riscos daí advindos, desde que, dentro de limites razoáveis,
restariam permitidos pelo ordenamento.
Considera-se um risco permitido tomando-se em conta o critério do
significado social do comportamento, que, como ressaltado por Alessandra
Orcesi Pedro Greco
191
, decorre da utilidade social do perigo após a análise do
balanço entre o bem jurídico sacrificado e o benefício social obtido.
A conduta do infiltrado traduzir-se-ia, em ntese, num risco
juridicamente permitido, coadunando-se, pois, com a aplicação da teoria da
imputação objetiva, sobrelevando-se que a punição ao policial não atenderia
aos anseios sociais.
Sem prejuízo, nem precisaria o crivo da imputação objetiva para aferir
a responsabilidade penal, bastando, tão somente, afastá-la desde logo pela
análise da imputação subjetiva. Afinal, o dolo da conduta do servidor estaria
ausente sem o propósito de delinquir, numa análise do elemento trazido ao
fato típico pelas concepções de Hans Welzel. Destarte, suprimida a intenção
criminosa do contexto, faleceria a própria existência do crime.
Contudo, parece-nos que a distinção entre aquilo que é crime,
expressamente previsto em lei, e as funções dos agentes estatais (em especial
191
GRECO, Alessandra Orcesi Pedro. A autocolocação da vítima em risco. São Paulo: Editora Revista dos
Tribunais, 2004, p. 144.
155
a Polícia) são evidentes e não permitem qualquer confusão, cabendo a eles
evitar a ocorrência do delito. Portanto, embora não pretenda aferir qualquer
vantagem com a prática do crime, o agente infiltrado possui consciência de
que o ato é criminoso e voluntariamente o pratica.
Outro ponto a ser considerado, não menos oportuno, classificaria a
atividade do agente infiltrado como escusa absolutória, ao tratar sua
irresponsabilidade como desdobramento de política criminal.
Na escusa absolutória, o legislador entende que, por razões de
conveniência, é melhor tolerar a prática do crime, do que punir seu autor.
Assim, reconhece-se a ocorrência do crime, mas seu autor não é punido.
Entretanto, entendemos que se carece de expressa determinação legal
classificando a conduta como escusa absolutória, como ocorre noutras
hipóteses em nosso ordenamento jurídico.
Fala-se, ainda, em consentimento do ofendido, pois como o agente
estaria atuando com autorização legal e de seus superiores e a polícia tem
conhecimento de sua atuação, o Estado estaria concordando com a lesão ao
bem jurídico.
Contudo, não se pode admitir tal argumentação, primeiro porque em
crimes na qual a vítima é a sociedade, os superiores hierárquicos jamais
poderiam dispor do bem jurídico tutelado, que pertence a toda coletividade.
Ademais, a autorização legal e administrativa que possui o agente não lhe
permite a prática do crime, mas tão somente o acompanhamento do
investigado, a fim de colher informações e, ainda, evitar a sua prática.
Nas hipóteses em que o titular do bem jurídico tutelado for uma terceira
pessoa, por exemplo, um crime patrimonial, se houver consentimento do
proprietário, certamente não poderá haver responsabilização criminal do
agente infiltrado. Porém, o mesmo raciocínio se aplica igualmente aos
investigados, que também não seriam responsabilizados criminalmente, ainda
que não tenham consciência do consentimento.
156
Também se argumenta que a isenção de responsabilidade, quando da
prática do crime, poderia ocorrer em virtude do estado de necessidade, causa
excludente da ilicitude.
Embora se possa imaginar algumas hipóteses em que seja possível o
agente infiltrado socorrer-se do estado de necessidade, é forçoso reconhecer a
dificuldade de configuração dessa excludente nos crimes rotineiramente
praticados por organizações criminosas, ante a dificuldade de se apresentarem
alguns de seus requisitos essenciais.
Para que se configure a excludente de estado de necessidade é
necessário que exista uma situação de perigo atual a um bem jurídico próprio
ou alheio, que seja inevitável a produção do resultado, que não se exija o
sacrifício do bem jurídico em perigo, que o mal a ser produzido não seja
maior do que aquele que se tente evitar, que a situação de perigo não tenha
sido produzida intencionalmente pelo agente e, ainda, que ele não tenha por
dever de ofício a obrigação de enfrentar a situação de perigo.
Ora, somente em relação a crimes muito leves pode-se argumentar que
a prática de um crime se justifica pelo interesse de sucesso na investigação.
Da mesma forma, ao infiltrar-se voluntariamente em uma investigação, o
agente sabe dos riscos e tem que estar preparado para situações como essa, ou
seja, certamente está, ele mesmo, criando a situação de risco. Por fim,
evidente que o agente encarregado de investigação policial está obrigado a
evitar a prática de crimes. Somente não agirá para evitá-lo se a situação for tal
que sua interferência seja totalmente inócua.
Adquire relevo, nesse terreno, a tese de que o agente estaria amparado
por causa supralegal de exclusão da culpabilidade, consistente na
inexigibilidade de conduta diversa.
Ademais, a hipótese não serviria apenas nos casos em que a vida do
agente estivesse em risco, mas também para preservar a própria operação se
alternativa não lhe socorresse.
157
Dentro do quadro legislativo atual, que foi omisso em relação ao tema,
entendemos que essa é a melhor solução para a exclusão da responsabilidade
do agente infiltrado em relação aos crimes que praticar no curso da operação.
Ao compilar os diversos entendimentos doutrinários acerca do tema,
verificam-se as principais soluções apontadas: causa de exclusão da
culpabilidade por inexigibilidade de conduta diversa, escusa absolutória em
razão de política criminal, excludente de ilicitude de estrito cumprimento do
dever legal, excludente de ilicitude de estado de necessidade, atipicidade por
ausência de dolo e atipicidade por ausência de imputação objetiva.
outro ponto relevante, ademais, que entende a exclusão da
responsabilidade penal do agente somente em alguns casos, nas hipóteses de
afronta a bens jurídicos patrimoniais e supraindividuais, resguardando-se
outros, principalmente, a vida humana.
Em tais casos, quando a vida de outrem esteja ameaçada, incumbindo
ao agente ceifá-la por comando do grupo criminoso, seria o caso de
abandonar a operação, se presente lapso que o permita, mudando-se os rumos
da investigação.
Por óbvio, quando o agente está, de maneira hipotética, obrigado a
matar alguém imediatamente (sob pena de ser ele próprio alvejado), deve
fazê-lo não somente pela qualidade de infiltrado, mas numa atitude que
qualquer pessoa levaria adiante, excluindo-se, destarte, a culpabilidade, ante a
coação moral irresistível.
Todavia, sendo possível o afastamento pelo infiltrado do grupo,
evitando, desse modo, a prática de crimes hediondos (diante da maneira como
execuções sumárias do mundo criminoso geralmente são levadas a efeito),
talvez não lhe socorresse qualquer amparo permissivo se prosseguisse na
operação, eis que extrapolaria sobremaneira a finalidade para a qual se
prestava.
Entretanto, como mencionado, entendemos não haver uma solução
158
geral para a isenção da responsabilidade penal de todos os atos delituosos
praticados pelo agente infiltrado durante a operação.
Na ausência de uma previsão legal específica sobre o tema, deve-se
analisar o caso concreto, ponderando-se para cada um deles a solução.
Dessa forma, várias soluções podem emergir de acordo com a situação
experimentada pelo agente durante a investigação.
Como exemplo, imaginemos a hipótese em que o líder de uma
organização criminosa, desconfiado do envolvimento do agente infiltrado,
determina que ele atire em uma pessoa para comprovar sua lealdade ao grupo
e, em seguida, aponta uma arma para o agente, afirmando que, se ele não
matar aquela pessoa, ele imediatamente matará o agente e aquela pessoa.
Caso não exista possibilidade, de o agente infiltrado evitar o trágico desfecho,
caso ele venha a matar aquela pessoa, ficará isento de pena em virtude da
causa excludente da culpabilidade da coação moral irresistível.
No mesmo exemplo, se o agente optar por disparar contra o coator
(caso seja possível), poderá se valer da excludente da ilicitude da legítima
defesa.
Com relação ao crime de quadrilha ou bando (artigo 288 do Código
Penal), como a própria lei prevê a possibilidade da infiltração, o agente valer-
se-á da excludente de ilicitude do estrito cumprimento do dever legal.
Já no tocante à prática de outros crimes, de menor gravidade, que
tenham que ser praticados pelo agente para demonstrar seu comprometimento
com a organização criminosa (como por exemplo, furtos, falsificação de
documentos, contrabando e descaminho, etc.), entendemos que o agente
poderá se valer da causa supralegal de excludente da culpabilidade,
denominada inexigibilidade de conduta diversa.
A despeito da discussão teórica aqui apresentada, não importa em
termos práticos qual será, efetivamente, o instituto que resguardará o servidor,
se ausência de imputação subjetiva, teoria da imputação objetiva, escusa
159
absolutória, excludente de ilicitude ou inexigibilidade de conduta diversa
(como causa supralegal de exclusão da culpabilidade). Importa, pois, que o
crime organizado seja combatido, aplaudindo-se qualquer tentativa de bem
utilizar os instrumentos conferidos pelo nosso sistema jurídico.
Evidentemente que o ideal seria a edição de uma lei que prevesse, ao
menos, limites mínimos para a atuação do agente, o que forneceria maior
segurança para a utilização do instituto. Foi o que fez a Argentina, com a
edição da lei n° 24.424, que em seu artigo introduziu o artigo 31 ter. na lei
n° 23.737
192
.
Assim, em lei relativa ao combate ao tráfico de entorpecentes, prevê-se
que o agente infiltrado não será punido quando em consequência do
desenvolvimento da operação, se se vir compelido a praticar um crime, desde
que ele não ponha em perigo certo a vida ou a integridade física de uma
pessoa ou imponha grave sofrimento físico ou moral a outro.
Além desse interessante critério utilizado pelo país vizinho, deve-se
analisar a hipótese de que um futuro dispositivo a tratar do tema também
inclua entre os crimes proibidos, aqueles em que não exista a possibilidade de
o Estado, posteriormente, reparar o dano causado pelo crime.
Por outro lado, essa lei deve, ainda, prever a responsabilidade criminal
do agente pelos excessos cometidos.
192
Art. 31 Ter.- “No será punible el agente encubierto que como consecuencia necesaria del desarrollo de la
actuación encomendada, se hubiese visto compelido a incurrir en un delito, siempre que éste no implique
poner en peligro cierto la vida o la integridad física de una persona o la imposición de un grave sufrimiento
físico o moral a otro.
Cuando el agente encubierto hubiese resultado imputado en un proceso, hará saber confidencialmente su
carácter al juez interviniente, quien en forma reservada recabará la pertinente información a la autoridad
que corresponda.
Si el caso correspondiere a las previsiones del primer párrafo de este artículo, el juez lo resolverá sin
develar la verdadera identidad del imputado”. (Artículo incorporado por art. de la Ley 24.424 B.O.
9/1/1995).
160
7. CONCLUSÕES
1) O princípio da dignidade da pessoa humana, um dos fundamentos do
Estado Brasileiro, possui dois lados que, por vezes, entram em conflito.
Impõe-se, de um lado, um limite ao poder estatal, que deve respeitar os
direitos fundamentais que decorrem do princípio em comento. Doutra banda,
necessidade de uma prestação positiva, que consiste no dever do Estado
em agir de forma eficaz para concretizar a proteção a esses direitos. Na
persecução penal, compete ao Estado buscar o equilíbrio entre o garantismo e
a eficiência.
2) A figura do criminoso vem sofrendo profundas alterações nas últimas
décadas. Atualmente, a criminalidade é organizada, possui estrutura
empresarial, vale-se de pessoas jurídicas, atinge bens jurídicos difusos e
aproveita-se dos avanços tecnológicos, da globalização e da internet.
3) As organizações criminosas têm sabido se aproveitar da globalização
especialmente do avanço dos meios de comunicação e a diluição das
fronteiras entre os Estados, para a prática das mais diversas formas de delitos,
em especial os crimes econômicos. Elas valem-se das lacunas encontradas nas
legislações de alguns países, na dificuldade de se conduzirem investigações
transnacionais e na burocracia que envolve a relação entre as nações.
4) Diversas são as soluções que a doutrina vem discutindo para o combate a
essa criminalidade organizada, como a diminuição da burocracia na relação
entre os Estados, a uniformização da política criminal, cooperação policial e
judicial na repressão a esses delitos, criação de tribunais internacionais e a
criação de novos mecanismos de investigação que façam frente à estrutura e
161
poderio do crime organizado. Dentre elas, apontamos a ação controlada e a
infiltração de agentes.
5) Embora se reclame um conceito legal mais preciso do que se entenda por
crime organizado, deve-se admitir a enorme dificuldade em se chegar a uma
definição precisa, que não se torne obsoleta, haja vista a rapidez da evolução e
capacidade de mutação das organizações criminosas. Assim, o conceito
trazido pela Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado
Transnacional (Convenção de Palermo), conquanto vago, atende aos anseios
decorrentes do princípio da legalidade.
6) O crime organizado é dinâmico e flexível, atua nas mais diversas áreas e
com enorme capacidade de adaptação ao meio social, político e legislativo
com o qual convive. Aponta-se, no entanto, como suas características mais
comuns: a) estrutura hierárquico-piramidal; b) planejamento empresarial com
o alto padrão organizativo; c) uso de meios tecnológicos avançados; d)
recrutamento de pessoas; e) divisão funcional de atividades; f) conexão
estrutural ou funcional com o poder público, aliada a um alto poder de
corrupção; g) membros restritos; h) capacidade de estabelecer relações com o
poder político; i) oferta de prestações sociais; j) divisão territorial das
atividades ilícitas; k) uso de violência e intimidação para submeter os
membros da organização e para obter a colaboração ou o silêncio de pessoas
não participantes do núcleo criminoso; l) domínio territorial; m) alta
capacitação para a prática de fraudes; n) conexão local, regional, nacional ou
internacional com outras organizações criminosas; o) acumulação de poder
econômico; p) necessidade de “legalizar” o lucro obtido ilicitamente através
da “lavagem de dinheiro”.
162
7) A ação controlada consiste no retardamento da ação policial diante de um
crime em curso, de modo que se adia a prisão em flagrante, enquanto se
monitora a atuação dos autores do delito e o destino dos bens ilícitos, até que
se alcance o melhor momento para a colheita de provas, visando-se a
identificar outros integrantes da organização criminosa responsável pelos
fatos e descobrir a prática de outros delitos.
8) Ao analisar o sistema processual penal pátrio e o direito comparado,
conclui-se que a ação controlada e a entrega vigiada são nomenclaturas
distintas para o mesmo método investigatório, vez que não possuem
elementos que as distingam.
9) Embora seja método investigativo autônomo, que pode ser utilizado
isoladamente, a ação controlada percebe melhores resultados quando seu
emprego é acompanhado de outras formas de investigação, como a
interceptação telefônica e a infiltração de agentes.
10) Embora de extrema utilidade, a ação controlada deve ser planejada e
realizada com a maior eficiência possível, de forma que o Estado possa, a
qualquer momento, intervir para fazer cessar a atividade delituosa, para que as
pessoas e bens vigiados não saiam da esfera de vigilância dos agentes
encarregados e se perca a oportunidade de efetuar a prisão das pessoas
identificadas.
11) É indispensável que o Estado exerça controle sobre a utilização da ação
controlada como meio investigatório, de forma a evitar que agentes que se
desvirtuem para a prática de ilícitos não a usem como justificativa para
encobrirem suas participações em ações criminosas.
163
12) Dessa forma, para evitar o mau emprego do instituto e por ele atingir
direitos resguardados constitucionalmente, mostra-se imprescindível a
autorização judicial e a notificação do Ministério Público para a utilização da
ação controlada.
13) A ausência de detalhamento legislativo acerca do procedimento da
infiltração de agentes dificulta a aplicação do instituto, vez que as inúmeras
questões decorrentes do emprego dessa espécie de investigação têm que ser
solucionadas pela doutrina e pela jurisprudência. Entretanto, o instituto é
aplicável e, apesar da omissão do legislador, constitui importante mecanismo
de combate ao crime organizado.
14) A utilização da infiltração de agentes não viola a Constituição Federal,
pois embora atinja direitos individuais dos investigados, encontra respaldo no
princípio da proporcionalidade, uma vez que tais direitos cedem em face do
interesse de todos os cidadãos na segurança pública.
15) Da mesma forma, entendemos que a infiltração de agentes não fere a ética
que deve nortear o Estado na utilização de meios investigatórios. Quando
empregada da forma correta, esse método de investigação não influencia o
discernimento dos integrantes da organização criminosa e é uma das formas
mais eficazes de retirar do seio social esses nefastos entes.
16) Para que se obtenha sucesso na investigação, a infiltração de agentes deve
ser acompanhada de severo controle estatal, para que, constantemente, se
verifique a lisura do comportamento do agente, a pertinência das informações
colhidas, a necessidade de prosseguimento da medida e, ainda, se possa
garantir a segurança do agente encarregado.
164
17) O controle é feito não apenas pelos superiores hierárquicos do agente
escolhido, mas também pelo Ministério Público, que, como destinatário
inicial dos elementos colhidos, deve ter ciência de todo o desenrolar da
investigação e estabelecer os rumos que entender convenientes para a
propositura da futura ação penal. Também, por expressa determinação legal, a
investigação deve ser precedida de circunstanciada decisão judicial.
18) Para que seja deferida a medida, tendo em vista a violação de direitos
fundamentais do investigado e o grande risco à vida e à integridade do agente,
deve-se demonstrar que a infiltração é extremamente necessária para apuração
dos fatos e que as mesmas informações não puderam ser obtidas por outros
meios de provas.
19) O pedido para a utilização de infiltração de agentes deve conter todos os
elementos conhecidos sobre a organização investigada, o objetivo da missão,
o agente que será utilizado, sua capacitação para o mister, a estratégia que
será empregada, a identidade de que se valerá o agente, quais os riscos
envolvidos, como será feita a comunicação entre o agente e seus superiores e
qual o plano para o seu resgate em caso de perigo concreto.
20) Já a decisão circunstanciada que autoriza a utilização de agentes
infiltrados, após análise da necessidade e da conveniência da medida, deve
conter a periodicidade dos relatórios, o seu prazo de duração, estabelecer os
limites da atuação do agente, dentre outras determinações específicas ao caso.
21) O encerramento da operação não depende de prévia decisão judicial,
deve ser decisão a ser tomada pela autoridade policial e pelo Ministério
Público, a primeira como coordenadora da investigação e o segundo como
destinatário inicial da prova. Resta imprescindível, desse modo, o contato
165
periódico entre o promotor de justiça e o delegado responsável pela
investigação, a fim de que fixem os rumos da operação, verifiquem o
aproveitamento da medida e o melhor momento para encerrar a infiltração.
Evidente que o juiz pode, a qualquer momento, decretar o fim da operação,
quando verificar a ineficiência da medida ou o aumento do risco ao agente.
22) Apesar da Lei 9.034/95 ter previsto que podem servir como agentes
infiltrados os agentes de polícia ou de inteligência, com base no disposto no
artigo 144, § 1º, inciso IV e § 4º, da Constituição Federal, entende-se que essa
tarefa somente pode ser cumprida por policiais. Tanto assim, que os textos
legais que se seguiram à lei e trataram do tema, como as leis 10.409/03 (já
revogada) e a 11.343/06, previram somente a utilização de policiais como
agentes infiltrados.
23) O sucesso da investigação por meio da atuação de agente infiltrado
depende de uma criteriosa seleção e competente preparo do policial que
atuará. Ele deve participar voluntariamente e receber todas as informações
possíveis para se preparar para o convívio na organização criminosa e a
adaptação à sua nova identidade.
24) O sigilo é elemento essencial da infiltração de agentes, pois permite a
aceitação do agente pela organização criminosa e resguarda sua integridade
física e sua vida.
25) O Estado deve não apenas fornecer uma falsa identidade ao agente
infiltrado, mas também criar todo um passado ao personagem criado,
fornecendo-lhe fotos antigas, documentos, falsos amigos e parentes.
166
26) O acesso aos autos que tratam da infiltração de agentes somente se dará,
para o advogado, após o término da operação, sob pena de se inviabilizar a
utilização desse meio de investigação, tornando-o totalmente inútil.
27) A tipificação da conduta daquele que revelasse a operação ou a verdadeira
identidade do agente seria uma das formas de zelar pela segurança do agente e
o sucesso da operação.
28) Para que a infiltração de agente alcance o objetivo pretendido, muitas
vezes é necessário que a operação se prolongue por grandes períodos, tempo
suficiente para que ele ganhe a confiança dos integrantes, possa ter acesso às
informações úteis para investigação, conheça a identidade dos chefes e
entenda o funcionamento da organização. Por isso, a omissão do prazo de
duração da medida, na lei, decorre da necessidade de se estabelecer um prazo
de acordo com a situação concreta, ou seja, a complexidade da investigação e
da organização criminosa alvo da medida.
29) A infiltração de agentes tem como objetivo identificar os integrantes da
organização criminosa, delinear-lhes a atuação, aferir quem são os chefes, a
extensão dos negócios, as atividades ilícitas praticadas pela organização, a
participação de agentes públicos envolvidos ou coniventes, localizar o destino
do produto dos crimes, o método de lavagem de dinheiro, dentre outros.
30) Durante a operação com o agente infiltrado, podem ser solicitadas ao
Poder Judiciário outras medidas paralelas, que auxiliem na comprovação dos
fatos investigados, como busca e apreensão de documentos, quebra de sigilo
fiscal e financeiro e outras. Essas medidas visam a documentar os elementos
revelados pela infiltração.
167
31) Se for imprescindível para o esclarecimento dos fatos, o juiz, atendendo a
pedido das partes, poderá ouvir o agente infiltrado como testemunha. Nesse
caso, ao menos o nome e a alcunha do agente infiltrado devem ser revelados,
como garantia dos princípios do contraditório e da ampla defesa.
32) Compete ao Estado, se for necessário, garantir a segurança do agente
infiltrado que for ouvido como testemunha. Ele pode, por isso, ser incluído no
Programa Federal de Assistência a Vítimas e a Testemunhas Ameaçadas,
previsto pela Lei 9.807/99.
33) O preparo cuidadoso do agente a ser infiltrado em organização criminosa
é imprescindível para que ele saiba os limites de sua atuação, evitando-se que
passe a agir como agente provocador.
34) O agente provocador instiga ou induz os investigados à prática do crime,
mas não com o intuito de consumar o crime, mas de que seja possível aplicar
ao investigado uma futura sanção penal. Entretanto, como ele também toma
as cautelas para impedir a consumação do delito, torna o crime impossível,
além de contaminar toda a prova colhida durante a operação.
35) Ao passar a integrar uma organização criminosa, com prévia autorização
judicial, baseada em previsão legal, o agente infiltrado não pratica o crime de
quadrilha ou bando, pois age em estrito cumprimento de dever legal, que é
causa excludente da ilicitude.
36) A princípio o agente infiltrado deve se abster da prática de qualquer
conduta criminosa enquanto infiltrado. Contudo, se a prática do crime for
inevitável, a situação deve ser analisada por aqueles que comandam a
operação e, em último caso, se o houver tempo hábil, a decisão caberá ao
168
próprio agente. A repercussão criminal dessa conduta, ante a falta de solução
conferida pela lei, deve ser verificada de acordo com o caso concreto,
geralmente aplicando-se a excludente da culpabilidade em face da causa
supralegal de inexigibilidade de conduta diversa.
37) Para que não seja inviabilizado o uso desse meio de investigação, deve-se
admitir a prática de crimes pelo agente infiltrado, sempre que eles forem
necessários para o sucesso da investigação e dentro de um ponderado critério
de razoabilidade.
38) Faz-se necessária a edição de lei que regulamente a situação do agente
infiltrado diante do cometimento de crimes no período da investigação, para
que se a segurança necessária àquele que se dispõe a colaborar com o
desmantelamento do crime organizado.
169
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