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Universidade Federal de Santa Catarina
Programa de Pós-Graduação em Filosofia
Área de Ontologia
ANÁLISE CATEGORIAL DA ARTE
EM AMIE THOMASSON
Dissertação de Mestrado
Debora Pazetto Ferreira
Florianópolis
2010
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Universidade Federal de Santa Catarina
Programa de Pós-Graduação em Filosofia
Área de Ontologia
ANÁLISE CATEGORIAL DA ARTE
EM AMIE THOMASSON
Debora Pazetto Ferreira
Dissertação apresentada ao
Programa de Pós-Graduação
em Filosofia, na Área de
Ontologia, da Universidade
Federal de Santa Catarina,
como requisito parcial para
obtenção do grau de Mestre em
Filosofia.
Florianópolis
2010
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AGRADECIMENTOS
Agradeço a meu orientador, Celso Braida, com respeito e
admiração, por contribuir com as reflexões e com a realização deste
trabalho.
À CAPES, pelo apoio financeiro concedido durante os dois
anos de pesquisa.
Aos professores e colegas do curso de Filosofia da UFSC, com
os quais passei momentos agradáveis de aprofundamento, discussão e
estudo.
Aos meus pais, à minha avó e à minha madrinha, por me
acompanharem, me incentivarem e me apoiarem em todo meu percurso
acadêmico.
Aos parentes e amigos que sempre se fizeram presentes em
todos os momentos importantes da minha vida.
Para João Paulo Ferreira,
que contava a uma
criança histórias fantásticas
sobre um homem chamado
Sócrates.
RESUMO
Esta dissertação pretende investigar o que é uma obra de arte,
assumindo como principal subsídio metodológico a análise crítica de
alguns textos de Amie Thomasson. A ontologia de Roman Ingarden
também é exposta, pois constitui uma influência central para o
pensamento de Thomasson. Diversas noções utilizadas pela autora,
como a aceitação do pluralismo ontológico, a busca da estrutura
específica de cada tipo de arte e a admissão de que a arte comporta
características espaço-temporais e abstratas, remontam aos escritos do
pensador polonês. Esses temas estão embutidos no principal aspecto
abordado na dissertação, a saber, o modo como Thomasson investiga a
obra de arte através da busca de seu estatuto ontológico, dentro do
contexto de um quadro categorial mais amplo. A autora afirma que a
questão central da ontologia da arte é: que tipo de entidade é uma obra
de arte? Essa questão não é respondida através de uma definição rígida
da arte ou de uma lista finita de características que permita classificar
qualquer objeto no mundo como arte ou não-arte. Thomasson
compromete-se apenas com a pretensão modesta de buscar um espaço
categorial bem sucedido para a alocação das obras de arte. Ela
problematiza o fato de que a estética e a metafísica tradicionais não
proporcionam categorias adequadas para alocar a arte, a ficção e os
objetos culturais, pois costumam adotar sistemas dualistas como sujeito-
objeto, real-ideal, concreto-abstrato, entre outros, impróprios para
pensar as obras de arte, que comportam características híbridas. Como
alternativa, Thomasson sugere uma metodologia ontológica formal para
a criação de sistemas categoriais e, nesse contexto, de categorias que
respeitem a configuração específica das obras de arte. Sua proposta é
analisada nessa dissertação como uma solução eficaz para capturar a
estrutura ontológica das obras de arte através de uma base analítica
formal.
Palavras chave: análise categorial, ontologia formal, obra de arte.
ABSTRACT
This thesis aims to investigate what is a work of art, assuming
the critical analysis of some texts of Amie Thomasson as its main
methodological subsidy. The ontology of Roman Ingarden is also
exposed because it is a central influence to the thought of
Thomasson. Several concepts used by the author, as the acceptance of
ontological pluralism, the search for the specific structure of each type
of art and the admission that art involves spatiotemporal and abstract
characteristics, go back to the writings of the Polish thinker. These
themes are inserted in the main aspect addressed by this thesis, namely,
how Thomasson investigates the work of art through the pursuit of its
ontological status within the broader context of a categorical
framework. The author argues that the central question of the ontology
of art is: what kind of entity is a work of art? This question is not
answered by a rigid definition of art or a finite list of characteristics that
allow classifying any object in the world as art or not art. Thomasson
undertakes only the modest pretense of seeking for a successful
categorial space for the allocation of works of art. She discusses the fact
that traditional aesthetics and metaphysics do not provide adequate
categories to allocate art, fiction and cultural objects, because they tend
to adopt dualistic systems, like subject-object, real-ideal, concrete-
abstract, among others, that are inadequate to think about works of art,
which include hybrid features. Alternatively, Thomasson suggests a
formal ontological methodology for creating categorial systems and, in
this context, categories that meet the specific configuration of
artworks. Her proposal is analyzed in this dissertation as an effective
solution to capture the ontological structure of works of art through a
formal analytical base.
Key Words: categorial analysis, formal ontology, work of art.
SUMÁRIO
1. INTRODUÇÃO 08
1.1 Delimitação do Tema 09
1.2 Contextualização do Problema 10
1.3 Contra a Estética 18
1.4 O Plano Investigativo e o Método 22
1.5 Ontologia Categorial
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PARTE I
O MODELO ONTOLÓGICO DE INGARDEN 29
2. A ONTOLOGIA DA ARTE DE INGARDEN 30
2.1 Considerações Ontológicas acerca da Obra de Arte Literária 36
2.2 A Estrutura da Obra de Arte Literária 40
2.2.1 Formações Fônico-lingüísticas 41
2.2.2 As Unidades de Significação 45
2.2.3 Objetividades Apresentadas 50
2.2.4 Aspectos Esquematizados 52
2.3 As Bases Ônticas da Literatura 54
2.4 Outros Tipos de Obra de Arte 57
2.4.1 As Obras de Arte Teatrais, Musicais e Pictóricas 59
2.5 Possíveis Desenvolvimentos das Teorias de Ingarden 65
PARTE II
A ONTOLOGIA DA ARTE EM AMIE THOMASSON 69
3. UMA BASE ANALÍTICA PARA UMA ONTOLOGIA
CATEGORIAL 70
3.1 O Método Ontológico de Thomasson 71
3.2 Aplicação da Metodologia 85
3.3 Objetos Ficcionais 86
4. O ESTATUTO ONTOLÓGICO DAS OBRAS DE ARTE 98
4.1 O Senso-comum como Critério Ontológico 109
4.1.1 O Modelo da Descoberta 111
4.2 Categorias Ontológicas Híbridas 125
4.3 As Bordas Irregulares da Ontologia 131
5. CONCLUSÕES 133
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 141
8
1. INTRODUÇÃO
1.1 Delimitação do Tema
A preocupação dos filósofos com a elaboração de um
pensamento capaz de subsumir o âmbito do artístico é manifesta desde
Platão, perpassando toda a tradição metafísica e vigorando na filosofia
contemporânea com inigualável intensidade. Todavia, o objetivo desta
dissertação não é realizar uma compilação das diversas abordagens em
filosofia da arte e estética, mas analisar uma proposta conceitual capaz
de pensar a arte tal como ela é apresentada atualmente. A amplitude de
semelhante objetivo é delimitada pela linha de interpretação a ser
seguida. A filosofia da arte ocidental recente pode ser dividida em
algumas diretrizes de interpretação, normalmente encabeçadas por
autores bastante consagrados. A maioria dos manuais de estética e
filosofia da arte costuma mencionar como abordagens contemporâneas a
Hermenêutica de Gadamer, a Teoria Crítica, onde se encaixam as
filosofias da arte de Adorno, Marcuse e Benjamim, a abordagem
existencialista de Sartre, a vertente heideggeriana iniciada com a
publicação de A Origem da Obra de Arte, a corrente merleau-pontyana
e, na melhor das hipóteses, também a tradição analítica de Danto, Weitz,
Goodman e Dickie, e a tradição pragmatista de Dewey, Shusterman e
Thierry de Duve
1
. Evidentemente, essa classificação do pensamento
filosófico em correntes e tradições é reducionista e injusta para com a
singularidade da obra de cada autor. Seu principal problema, no entanto,
é que as linhas de pensamento de meados do século passado são
apontadas como os últimos grandes paradigmas em filosofia da arte.
Isso conduz à questão: como a filosofia tem contribuído atualmente para
o pensamento sobre a obra de arte, de modo a poder lidar com a arte
contemporânea? Uma pesquisa que se pretende ontológica e não
exegética ou histórica encontra-se impossibilitada de abrigar a pretensão
de abranger muitas diretrizes filosóficas sobre o tema proposto. Assim,
mesmo que se possua ciência da importância da promoção de um debate
filosófico com as diferentes linhas de interpretação em filosofia da arte,
é necessário delimitar o assunto com a escolha de uma proposta
filosófica, enfocando a pesquisa em suas questões internas e assumindo
de antemão a exclusão de uma extensa análise de outras correntes.
1
LACOSTE, Jean. A Filosofia da Arte. Rio de janeiro: Jorge Zahar, 1997.
9
Às elaborações conceituais aqui desenvolvidas não consta o
dever de se submeter à autoridade de nenhuma tradição ou autor, mas
apenas ao rigor do próprio pensamento filosófico e das implicações
ontológicas demandadas pelos conceitos utilizados. No entanto, a
análise da ontologia da arte de Amie Thomasson é assumida como
suporte teórico da investigação pelo conceito de obra de arte. Seu
pensamento foi influenciado pela ontologia categorial de Husserl, que
funcionou como um pilar de sustentação para diversos
desenvolvimentos subsequentes em filosofia da arte, apesar desse tema
apenas aparecer de modo indireto e raras vezes na totalidade de sua
obra. Todavia, um de seus discípulos diretos, Roman Ingarden, dedicou
boa parte de sua pesquisa filosófica a uma extensa e sistemática
investigação da obra de arte, com enfoque na obra de arte literária. Por
sua vez, inspirando-se nos escritos de Ingarden, a autora contemporânea
Amie Thomasson empreende progressivamente uma vasta pesquisa
categorial sobre a arte e a ficção, estabelecendo um profícuo colóquio
com diversos pensadores atuais. A análise crítica dos escritos de
Thomasson constitui o corpo fundamental desta pesquisa, ao passo que a
filosofia de Ingarden é examinada como uma das principais influências
históricas presentes na constituição de sua obra.
Assim, a dissertação se organiza do seguinte modo: na
Introdução, será exposto qual o problema filosófico em questão a
saber, a busca pelo estatuto ontológico das obras de arte , sua
relevância e suas dificuldades, buscando-se justificar porque a ontologia
de Amie Thomasson funciona como uma possível resposta ao problema.
O primeiro passo nessa direção é ambientar o pensamento acerca da
obra de arte no plano investigativo-filosófico. Nesta dissertação, a arte é
pensada como uma questão fundamentalmente ontológica, no âmbito da
ontologia categorial. Ou seja, visa-se inseri-la em um quadro de
categorias ontológicas básicas. Uma vez realizada essa primeira
contextualização, a Parte I da dissertação expõe a principal influência
teórica da abordagem ontológico-categorial da arte de Thomasson, a
filosofia da arte de Roman Ingarden. Em sequência, desenvolve-se na
Parte II uma análise crítica dos textos de Thomasson e de seus
pressupostos e comprometimentos ontológicos. Além disso, convém
expor as críticas que Thomasson faz às abordagens clássicas em
filosofia da arte, bem como às abordagens contemporâneas das quais ela
busca explicitamente se afastar (Sartre, Collingwood, Currie, entre
outros). Nessa divergência, a peculiaridade do pensamento de
10
Thomasson aparece em sua assunção do senso-comum como critério
metodológico em ontologia da arte, e na sua defesa de categorias
híbridas.
1.2 Contextualização do Problema
Elaborar um quadro conceitual que possa subsumir o conceito
de ―obra de arte‖ não é uma tarefa simples, entre outros motivos, porque
este não é um conceito unívoco, a respeito do qual todos concordam
2
. A
compreensão comum que se mantém acerca da arte varia de acordo com
a época e a cultura. Um modo bastante eficaz de apreender a
compreensão basilar ocidental acerca de um assunto é através das
definições presentes em dicionários.
Arte: conjunto de preceitos para a perfeita execução
de qualquer coisa; livro ou tratado que contém esses
preceitos; execução prática de uma ideia; saber ou perícia em
usar os meios para atingir um resultado; belas-artes;
artifício; ofício, profissão; indústria; astúcia; habilidade (...);
artes liberais: as que dependem mais da inteligência que das
mãos; artes mecânicas: as que assentam no trabalho manual;
fazer arte: agir provocantemente, com determinado intuito.
Belas-artes: artes que têm por objeto a representação do belo
3
.
A definição acima não tem a ambição de constituir uma posição
filosófica a respeito da arte e tampouco de submeter-se às exigências do
rigor ontológico. Contudo, deve ser tomada em consideração como
expressão de uma opinião comum e bem aceita sobre a arte. Embora
seja comum, não é ingênua, isto é, isenta de comprometimentos
teóricos. Ao contrário, funda-se tacitamente em uma doutrina filosófica
que logrou tornar-se a grande diretriz ocidental do modo de se pensar a
arte, a saber, a estética. Desde os primeiros questionamentos filosóficos
acerca da arte até muitas filosofias contemporâneas, a arte é submetida
2
Eventualmente utiliza-se palavras alternativas, como dado de arte, acontecimento artístico,
arte, experiência artística, entre outras, mas devem ser entendidas no sentido de ―obra de arte‖,
e não como algo mais amplo ou mais subjetivo.
3
FERREIRA, Aurélio Buarque de Hollanda. Pequeno Dicionário Brasileiro da Língua
Portuguesa. Editora Companhia Nacional, Rio de Janeiro, 1972.
11
ao âmbito do estético. Essa compreensão esteticizante tão
profundamente enraizada na cultura ocidental de tal modo que vige até
os dias atuais, tendo sido pouquíssimas vezes posta em dúvida
adquire, nesse momento, o papel do grande inimigo teórico, que deve
ser enfrentado antes de tudo, para que se possa pensar a arte sem a
condução implícita de preconceitos impregnados na tradição a partir da
qual se faz filosofia da arte.
Os tipos de obra de arte que são comentados nos grandes
clássicos de estética são também clássicos
4
, isto é, são os tipos
tradicionais da arte: a pintura, a escultura, a música, a poesia. Mesmo
autores mais recentes, como Heidegger e Gadamer, prendem-se aos
exemplos da arte tradicional, mencionando, no máximo, obras de arte do
início do século XX. Assim, a estética, tomando como exemplo
privilegiado a tradicional arte de museu ocidental, não chega a pensar
nas novas formas de arte emergentes contemporaneamente. Heidegger e
Merleau-Ponty discorrem muito bem sobre as telas de Cézanne e de Van
Gogh, mas seus conceitos sobreviveriam ao confronto com uma
performance de Orlan, com uma instalação de Regina Silveira? A isso
que se chama de arte moderna e contemporânea, parece que a estética
nunca alcança
5
. A amostragem, a seleção de exemplos de uma teoria,
nunca é neutra, mas prefigura-se pelo próprio ponto de vista teórico. Ou
seja, os exemplos que uma teoria seleciona como arte estão envoltos na
compreensão possivelmente pré-teórica que ela possui acerca da arte.
Assim, os exemplos e a teoria acabam por reverberar entre si, em uma
circularidade que pode ser viciosa do ponto de vista da transparência do
pensamento: a teoria pré-determina o que será tomado como exemplo de
arte e os exemplos de arte confirmam apenas os desenvolvimentos
teóricos que estavam implícitos em sua própria seleção. Desse modo,
a relação entre filosofia e arte não é imparcial e, na medida em que se
4
A palavra ―clássico‖ está sendo utilizada nesse contexto sem o rigor histórico que
merece. ―Arte clássica‖ não está sendo mencionada como uma referência direta à época
clássica greco-romana, entre os séculos V e III a.C., tampouco ao ressurgimento do clássico no
Renascimento europeu dos séculos XV e XVI, ou ao estilo neoclássico do século XVIII. Está
sendo usada meramente como uma indicação da arte bem aceita dentro da tradição estética,
como a pintura de cavalete, a escultura figurativa, a música erudita, etc. A arte não-clássica,
nesse sentido, seria a arte que surge voluntariamente como uma ruptura desses paradigmas, ou
seja, as vanguardas modernas e a arte contemporânea.
5
Deste desencontro surgem as concepções de diversos teóricos atuais de que a arte
contemporânea é a morte da arte, ou a compreensão mais lúcida de que ela é antiestética. Por
exemplo, BADIOU, Alain. Pequeno Manual de Inestética. São Paulo: Editora Estação
Liberdade, 2002.
12
constitui como o solo mais basilar da filosofia da arte, merece ser
pensada em primeiro lugar.
A dificuldade deriva do fato de que, em termos, arte e filosofia
são atividades autônomas, isto é, a arte existe e é compreendida
enquanto arte independentemente da filosofia e esta se sustenta mesmo
que não chegue a questionar-se sobre a arte. Desse modo, quando se
decide fazer filosofia da arte, que posição a filosofia deve manter a
respeito da arte? Ela pode adotar a posição soberana de quem tem o
poder de decidir o que é e o que não é arte, como em certos escritos
platônicos. Ou adotar a posição de quem chega posteriormente, afinal a
arte existe enquanto tal e não cabe à filosofia delimitar seu escopo,
mas apenas esclarecê-lo ou explicitá-lo. A posição escolhida direciona
decisivamente a pesquisa. Mais do que isso, não se trata de uma escolha
meta-filosófica que deve ser realizada antes de desenvolver a teoria. É
parte da teoria. Não é meta-filosofia, é filosofia, e por isso deve ser bem
refletida. Ademais, ambas as perspectivas apresentam problemas. No
primeiro caso, ao outorgar à filosofia o direito de decidir sobre o que é
arte e o que não é, em um sentido ontológico e ético-político como na
República platônica, sua tarefa torna-se muito fácil. Basta elaborar uma
teoria fechada sobre o que é arte, ou seja, criar uma ideia de arte e
destrinchá-la conceitualmente, analisar seus diversos elementos, eleger
aquilo que lhe é fundamental, i.e., quais as essências que fazem com que
algo seja arte e sem as quais algo não pode ser considerado arte. Em
seguida, aplica-se a ideia ao mundo. Assim, todos os dados que não se
ajustam à teoria elaborada, que não possuem os traços que foram
elencados como sendo essenciais, não podem ser considerados arte.
Thomasson critica essa perspectiva, que ela denomina Modelo da
Descoberta, pelo fato de que mesmo que um objeto tenha o nome de
arte, que uma civilização inteira o considere enquanto tal, que esteja no
interior de uma instituição artística, que desempenhe um papel social ou
político enquanto arte, se ele não se adéqua à essência da arte,
descoberta pela filosofia teórica, é necessário admitir que ele não é arte
e que todos os falantes, todas as instituições, toda a cultura está
equivocada em considerá-lo desse modo. O problema dessa perspectiva,
como de toda posição idealista, é que ela não é aberta à própria
experiência cotidiana com as coisas, tampouco às concepções do senso-
comum, que, para Thomasson, são fundadoras em ontologia da arte
6
. A
6
THOMASSON, A. L. The ontology of Art. The Blackwell Guide to Aesthetics, ed. Peter
Kivy, Oxford: Blackwell, 2004. p. 3.
13
arte se apresenta primeiramente como um acontecimento no mundo e a
filosofia se propõe a pensar essa experiência tão rica e diversa, mas,
quando começa a conceitualizá-la, perde-se das vivências que a
instigaram. Cria uma ideia teórica autônoma de arte e depois volta ao
mundo crendo-se no direito de aplicar impassivelmente essa ideia às
coisas, julgando a arte e classificando-a como se lhe fosse anterior,
como se não houvesse surgido por uma demanda dos próprios dados.
Contra essa atitude filosófica, Jean Lacoste escreve:
Primitiva, exótica, popular, ―gótica‖, ―rudimentar‖,
ingênua, a própria arte encarrega-se de fazer explodir, no
tempo e no espaço, toda e qualquer definição canônica do
belo, que cada ampliação do ―museu imaginário‖ faz surgir
como preconceito. A filosofia da arte não está, pois, na
cabeça do filósofo. Ela é reclamada pela história, na verdade
bem recente, da definição das ―belas artes‖ e do prazer
―estético‖, em outras palavras, sensível e subjetivo, que uma
obra pode suscitar
7
.
Embora adote um ponto de vista claramente estético ao
enfatizar o prazer ―sensível e subjetivo‖ que a obra suscita, a
reivindicação central do autor nas linhas acima é que a filosofia da arte é
reclamada pelas próprias obras, pela história da arte: não está na cabeça
do filósofo. Cada ampliação do museu imaginário, ou seja, cada nova
forma de arte admitida ou cada obra em suas inovações, tem o poder
secular de refutar as definições de arte ou de beleza que não são
abrangentes o suficiente para englobá-las. Com efeito, através de uma
mirada retrospectiva pode-se identificar um constante movimento das
estéticas atrás das artes, lutando por apreender suas novas configurações
e nunca as alcançando. A estética persegue a arte e esta corre desvairada
à frente, deixando-a sempre para trás a balbuciar suas determinações e
fixações. Por esse motivo, como foi mencionado anteriormente, as
estéticas clássicas costumam fixar-se em padrões de arte tradicional e
ignorar a arte moderna e contemporânea.
A arte contemporânea deve ser levada em consideração na
criação de uma filosofia da arte livre de preconceitos estéticos, que
possa abranger o conceito de obra de arte com maior amplitude possível.
Quiçá, esta é mais uma tentativa da filosofia de partir no encalço da
7
LACOSTE, Jean. A Filosofia da Arte. Rio de janeiro: Jorge Zahar, 1997.p. 7
14
expansão da arte sem nunca impetrá-la. Ainda assim, a filosofia deve
estar aberta à arte e suas novidades e deve esforçar-se por não impor um
ideal fechado à mesma, no papel de juiz, soberano ou legislador. Um
pensamento que não queira ser dogmático deve cuidar para não avocar o
papel de um leito de Procusto para a arte, esticando-a ou decepando-a
para que encaixe forçosamente em um conceito pré-existente. A arte
sobrevive por si mesma na prática, na criação, no imaginário, nas
instituições da humanidade. Os homens dispõem de meios para pensar e
lidar com a arte, para diferenciar aquilo que é arte do que não é,
independentemente de qualquer teoria metafísica que pretenda julgar
essas concepções como equivocadas, porque não estão de acordo com a
verdadeira essência da arte. O que seria a essência da arte, anterior aos
exemplos concretos do que é considerado arte? Há uma essência da arte
que é anterior aos dados de arte, a partir da qual se pode julgá-los e
classificá-los? Semelhante idealismo depara-se certamente com o
espinhoso problema de ter que explicar como surge a essência da arte,
anterior à sua manifestação fática, senão das ideias inatas da mente
humana ou das mãos de deus em pessoa.
Assim, que se reconhecer que a filosofia da arte nasce com
Platão, mas porque a própria experiência estética se torna relativa e
problemática, porque a arte por si mesma lhe coloca dúvidas, apresenta
situações que não estão no ―roteiro‖. A fluidez e originalidade da
história da arte demanda do pensamento latitudes cada vez mais
ousadas. Mesmo que a diversidade das experiências artísticas e a
simplicidade do ato criador sejam irredutíveis aos conceitos e à
linguagem, o pensamento pode reservar a si a aptidão de cingir a arte,
desde que a envergadura de suas asas seja grande o suficiente. Destarte,
ao invés de formular um conceito fixo e fechado da arte que funcione
como juiz da mesma, o filósofo deve estar aberto às novas ondulações
da criação artística, esforçando-se para que os conceitos por ele criados
não excluam nem as mais sutis manifestações do que se entende como
obra de arte nas práticas cotidianas das diferentes culturas. Contudo,
como toda perspectiva unilateral, colocar a filosofia no papel de
aprendiz da arte também apresenta suas incongruências. Pois, ao passo
que a posição idealista outorga um papel quase divino e, portanto,
apartado do mundo, ao filósofo, esta posição o subestima como um
mero comentador de um fato existente, sem qualquer papel de
organização da experiência. O filósofo não pode ser reduzido à função
de reflexo dos fatos ou de um pedagogo que não assume mais do que a
15
tarefa de elucidar algo que já está pronto. A filosofia não é apenas
explicativa, mas prescritiva: ela é criação de conceitos e de planos
teóricos
8
. Se, por um lado, ela não pode aniquilar as demandas da
experiência e isolar-se nas torres de marfim do saber, por outro lado, ela
não pode abdicar completamente do papel de prescrever estruturações
dos dados. O aspecto criativo, prescritivo e persuasivo da filosofia não
deve ceder lugar ao humilde papel de esclarecimento de opiniões
formadas. Embora Thomasson assuma que o senso-comum funciona
como critério ontológico para categorizar objetos artísticos, culturais e
fictícios, a sua metodologia para construção de categorias baseada nos
conceitos de dependência ontológica, de estados mentais e de coisas
reais não deixa de ser uma proposta criativa de estruturação da
experiência mundana.
Por conseguinte, as duas perspectivas apontadas anteriormente
mostram-se insuficientes em sua unilateralidade. A filosofia não decide
o que é arte a partir de um ideal pré-empírico, tampouco é um reflexo
imparcial dos fatos. A relação entre arte e filosofia da arte tem a mesma
estrutura reversível da relação entre ser e pensar, magistralmente
expressa por Deleuze:
Não é uma fusão, entretanto, é uma reversibilidade,
uma troca imediata, perpétua, instantânea, um clarão. O
movimento infinito é duplo e não senão uma dobra de um
ao outro. É nesse sentido que se diz que pensar e ser são uma
só e mesma coisa
9
.
Ou seja, a filosofia da arte deve ser construída em um constante
movimento de ir e vir da filosofia à arte, da teoria aos exemplos
concretos, do conceito às manifestações, sem que haja uma hierarquia
entre os mesmos. Arte e pensamento ligam-se por uma seta que aponta
para os dois lados, de modo que a filosofia pode categorizar a arte, mas
sem que as manifestações artísticas deixem de ser o critério do
pensamento que lhe diz respeito. As constantes inovações artísticas ou
releituras e redescobertas de antigas criações colocam em questão os
conceitos adolescidos em filosofia da arte, são o crivo pelo qual eles têm
que passar para que continuem vigorando. O movimento do dado ao
8
DELEUZE E GUATARRI. O que é a Filosofia? São Paulo: Editora 34, 1997. p.
13.
9
DELEUZE E GUATARRI. O que é a Filosofia?São Paulo: Editora 34, 1997. p. 54.
16
conceito e do conceito ao dado é potencialmente infinito, o que confere
um aspecto dinâmico ao pensamento, retirando-lhe a pretensão
metafísica de elaborar um conceito fechado, imutável e determinante a
respeito da arte. Arte e a filosofia jogam uma com a outra no papel de
rivais, em uma competição construtiva, pois a proximidade intensa da
emulação provoca uma relação de estímulo mútuo, na qual uma
continuamente provoca à outra novas elaborações e criações. Dessa
maneira, a filosofia da arte se constitui em perene criação, de modo
fluido e aberto, gerando conceitos que se mantêm passíveis de reformas.
É desse modo que as categorizações apresentadas nesta dissertação
devem ser compreendidas.
Uma das primeiras tarefas em filosofia da arte, por conseguinte,
é atualizar o que ela chama de arte e toma como exemplos privilegiados.
Em outras palavras, é entrar na discussão filosófica cingindo também as
artes contemporâneas mais polêmicas. São os casos-limite mais radicais
de arte que têm a faculdade de pôr em questão as compreensões estéticas
tradicionais e não a estatuária neoclássica ou a pintura de cavalete
barroca. A arte contemporânea mina as bases e suportes da arte clássica
e daquilo que auxilia no reconhecimento de algo como arte.
Contemporaneamente, apresentam-se várias amostras de obras de arte
que não se consegue facilmente classificar, não se consegue
prontamente dizer o que é. O que significa que se está diante de dados
que se chama de arte porque foram assinados por artistas ou porque
estão dentro de instituições legitimadoras, mas que, por si mesmos,
abandonam os indivíduos em dificuldade de julgá-los como obras de
arte. São principalmente esses casos que devem ser levantados, pois
colocam em dúvida as bordas irregulares do conceito investigado. Pois a
filosofia é também, como delineou Nietzsche, a atividade humana que
opera onde ainda não há conceitos, onde ainda não se sabe como aplicar
a linguagem
10
. A filosofia surge no momento em que os modos
tradicionais de pensar e julgar deixam de funcionar, não conseguem
mais dar conta dos dados. Então surge o filósofo como criador de novas
propostas conceituais que possam apanhar as situações de exceção, os
casos extra-ordinários, que fugiram dos limites da linguagem. Em
filosofia da arte, essa feição do pensamento faz-se ainda mais explícita,
pois o artista é justamente aquele que faz coisas extra-ordinárias, que
cria as novidades, as exceções, que espezinha as ideias habituais.
10
NIETZSCHE, F. Além do Bem e do Mal. São paulo: Cia das Letras, 1992. § 211,
285.
17
Quando a arte questiona os gestos do passado, emerge uma esfera de
estranheza, de vazio conceitual, uma esfera de dados e de vivências sem
nome, que não se consegue classificar e julgar com os conceitos
ordinários que vigoravam até então. O filósofo ou o teórico da arte
possui a faculdade de preencher esse vazio, criando novos nomes, novos
conceitos, criando um plano no qual a arte possa outra vez repousar.
Nesse ponto, a própria filosofia dobra-se sobre seu objeto de estudo,
manifestando-se, ela mesma, enquanto arte. A filosofia da arte também é
arte da filosofia, é ato criativo de construção e instauração de conceitos.
O filósofo é um artista que cria conceitos
11
. As propostas da arte
contemporânea, como, por exemplo, os ready-mades de Duchamp,
demandam essa criação. Afirmar de um ready-made que ele é uma roda
de bicicleta, uma escultura ou um objeto é despi-lo de sua feição
artística, pois nenhum desses três conceitos apanha a obra de arte em
questão. É necessário criar outros conceitos, como os sugeridos por
teóricos da arte: ―instalação‖ ou ―apropriação‖.
É à filosofia, não enquanto estudo da história do pensamento e
polimento de antigas ideias, mas enquanto criação de conceitos e
levantamento de pretensões de validade, que cabe a arriscada empreitada
de persuadir os indivíduos de que seus conceitos são válidos ou que suas
categorias são eficientes para estruturar as compreensões de mundo. A
filosofia não cria a ideia apenas pela ideia, mas responde à provocação
dos dados, do que se apresenta sem que, contudo, haja um plano
conceitual eficiente para pensá-lo. A arte contemporânea muitas vezes
se manifesta como um ―isso‖, como algo que está para além das
variáveis controladas. Ela quebra a regularidade com a qual se pensa
ordinariamente os acontecimentos: é o surgimento do extra-ordinário.
As obras de arte fundadoras são, principalmente nas vanguardas
modernas e na arte contemporânea, aquelas que quebram a própria ideia
de arte. Manifestam-se, portanto, a partir de um abismo conceitual,
11
Essa compreensão do filósofo enquanto criador de conceitos encontra-se em
Deleuze e Guattari, contudo, estes resguardam a diferença da arte em relação à filosofia
pensando esta como criação de conceitos e aquela como criação de perceptos e afectos,
mantendo, portanto, uma concepção tradicionalmente estética da arte. O filósofo, desse modo,
não é um artista porque sua atitude criativa opera do plano conceitual e o artista não é um
filósofo porque sua criação estende-se apenas pelo plano da sensibilidade. Essa concepção,
apesar de conter a frutífera ideia de colocar arte e filosofia do mesmo lado quanto à atividade
criativa, mostra-se, por outro lado, como reducionista em relação à arte contemporânea, que
voluntariamente e conscientemente deixa de operar apenas no nível dos perceptos e afectos,
propondo-se igualmente como criadora de conceitos, de linguagem e de ideias. DELEUZE E
GUATARRI. O que é a Filosofia?São Paulo: Editora 34, 1997.p 13-18.
18
como algo em relação ao qual ainda não se possui teorias apropriadas:
um ―isso‖ sem nome, sem ser, fora da linguagem. No entanto, um ―isso‖
que alcançará seu espaço conquanto possa ser inserido em um quadro
conceitual que seja eficiente para cingir sua nova estrutura sem decepá-
la ou mal interpretá-la. Assim, um dado de arte original é apenas um
―isso‖ até que se o abarque em um conceito igualmente original, como
―performance‖, ―arte relacional‖, ―ready-made‖, ―instalação‖, ―body-
art‖, entre outros. Criar um quadro conceitual que abranja os dados é
tarefa do filósofo, mesmo que não se trate de um filósofo profissional ou
de alguém que estudou história da filosofia. Se o próprio artista introduz
um conceito que sentido à sua arte, é como filósofo que ele está
operando nesse instante. E, em relação à arte moderna e contemporânea,
a ocupação de criar conceitos que dêem sentido a seus novos feitios tem
sido executada quase exclusivamente por artistas e críticos de arte, tendo
a tradição filosófica se esquivado furtivamente desse pantanoso terreno.
Thomasson é estudada nessa dissertação como uma autora atualizada,
que cria categorias capacitadas para lidar com a arte de modo mais
amplo, logo, que podem ser utilizadas para abarcar as configurações
mais díspares da arte contemporânea
12
. As noções que ela elabora não
estão no mesmo nível que as de instalação ou land-art, porque estas são
específicas e têm mais sentido no circuito artístico do que na ontologia.
Embora a principal motivação desta dissertação seja a dificuldade de
lidar filosoficamente com a a arte contemporânea, Thomasson não está
preocupada com estas determinações específicas. Seus conceitos são
formais e ontologicamente genéricos, isto é, valem para as obras de arte
em geral.
1.3 Contra a Estética Filosófica
O combate à abordagem puramente estética da arte não é
novidade. Heidegger, em A Origem da Obra de Arte, já afirma que
pretende abordar a obra de arte de um ponto de vista não subjetivo, isto
é, que não vai fazer uma estética, que não vai pensar a arte a partir da
12
Na conclusão desta dissertação, alguns exemplares de arte contemporânea são
levantados para mostrar que a teoria desenvolvida por Thomasson, diferentemente das estéticas
tradicionais, vale para as formas mais recentes de arte. Estes exemplares são mais focados na
área de artes plásticas, em função da minha formação teórica e prática. No entanto, a teoria de
Thomasson vale para o conceito de obra de arte em geral, até mesmo porque a própria divisão
em ―áreas‖ artísticas é um dos temas questionados pela arte contemporânea.
19
percepção do sujeito
13
. Mesmo autores anteriores, como Nietzsche e
Marx, apresentam rupturas significativas com as estéticas filosóficas de
Kant, Schiller, Schelling, entre outras. Posicionar-se contra a estética
filosófica não significa chegar à radicalização de que a arte não contém
substratos estéticos, que ela não pode ser bela ou de bom-gosto ou ser
um objeto perceptivo. Trata-se apenas de não reduzir a arte ao estético,
de mostrar que pode haver obras artísticas que extrapolam a estética
filosófica. A associação de arte com beleza, por exemplo, é um produto
conceitual que foi criado dentro da tradição estética e tornou-se tão
convincente que se mantém em vigor mesmo dois séculos depois de os
próprios artistas terem reivindicado para si o direito de não se submeter
às normas da beleza, do bom-gosto, da harmonia e da perfeição. A força
persuasiva da estética, que a torna vigente na história da filosofia por
tanto tempo, mostra que ela contém elementos conceituais
extremamente eficientes para lidar com a arte, tornando-se
explicitamente problemática apenas no momento em que a própria arte
se modifica. A arte contemporânea liberta-se do plano estético,
apresenta novas questões, novas esferas nas quais a estética não se
encontra mais em casa com igual familiaridade.
Assim como arte, estética pode revelar-se como uma noção
obscura e equívoca, sendo necessário realizar primeiramente um
esclarecimento da mesma. A estética filosófica enquanto disciplina
apresenta muitas variações e grande flexibilidade em suas ideias. Mas a
estrutura geral, o ―estético‖ propriamente dito, é a abordagem
paradigmática da arte a partir da aisthesis, ou seja, do estado perceptivo
do sujeito que experimenta a obra de arte. Logo, o núcleo da estética
filosófica é o ponto de vista do sentimento do sujeito, do prazer que a
arte provoca ou dos efeitos emocionais que estimula
14
. Essa
perspectiva, implícita em Platão e Aristóteles, é assumida por
Baumgarten, Kant, Schiller, Schelling e as demais estéticas tradicionais,
que arrazoam a arte em relação à aisthesis, à sensibilidade. Obra de arte,
portanto, é pensada como produção de uma aparência sensível, sendo o
artista um produtor de aparência, de ilusão sensorial. A estética clássica,
seguindo os pressupostos platônico-aristotélicos, por vezes associa a arte
com uma espécie de mimese, ilusão, engodo, utopia, com aquilo que
―não é real‖. Ora, pensar a arte como não-real é aplicar-lhe um conceito
13
HEIDEGGER, M. A Origem da Obra de Arte. Lisboa: Edições 70, 1992.
14
DELEUZE E GUATARRI. O que é a Filosofia?São Paulo: Editora 34, 1997. p.
213-215.
20
negativo, isto é, não se pensa a arte por ela mesma, mas a partir de um
pensamento sobre o real tomado como positivo. A obra de arte é
pensada negativamente como ausência do real, como mera
representação. Não obstante, a arte não tem nada de negativo. Ela é um
acontecimento positivo que deve ser pensado por si mesmo, e não em
relação de polaridade com algum outro âmbito fenomênico. Husserl,
antes de Ingarden e Thomasson, foi um dos primeiros filósofos a alertar
que a arte, assim como todas as coisas, devia ser pensada por si mesma e
não através de conceitos negativos referidos a alguma esfera positiva.
A partir do século XX as estéticas filosóficas começam a
abandonar o conceito de sensibilidade, eixo central da estética do século
XVIII, mas começam a utilizar o conceito de percepção, como em
Deleuze
15
. O conceito de vivência, elaborado na tradição de Bergson e
Dilthey já se constitui como uma ligeira fuga da estética, pois ―vivência‖
tem a ver com ação, com um sujeito que é ativo, intencional, e não mais
o passivo sujeito da afecção
16
. Contudo, os conceitos de vivência, de
expressão, de forma significativa, de configuração de sentido, etc.,
elaborados por Dilthey ainda guardam um vínculo estreito com o âmbito
da sensibilidade, pois se mantém no domínio da capacidade de um
sujeito ser afetado. Aos poucos, o distanciamento vai tornando-se maior,
até que a arte passa a ser compreendida como linguagem ou como forma
simbólica com Ernst Cassirer
17
. Entretanto, ainda se supervaloriza o
aspecto expressivo-sensível da linguagem. Assim, o pano de fundo das
concepções da arte como linguagem expressiva ainda é o estético. Em
todas as concepções da estética clássica um esquema de base que
opera: por um lado, um sujeito físico que produz e forma a um
objeto, por outro lado, esse objeto dotado de forma é sentido por outro
sujeito físico que é capaz de ser afetado, de perceber sua forma. O gesto
artístico é um gesto de afecção de um suporte, a obra é um objeto
afetante e o espectador é um ser sensível, afetável. As correntes estéticas
tradicionais costumam privilegiar ou o pólo do artista, através da noção
de gênio, de criação, ou o pólo do espectador, através da noção de gosto,
de fruição, de afetabilidade. Realizar um salto para fora do estético,
portanto, não é privilegiar qualquer um dos três pólos em jogo, i.e.,
sujeito-artista, objeto-obra ou sujeito-espectador, mas abandonar o
próprio modelo sujeito-objeto. A filosofia deve abandonar essa
15
Idem. p. 213.
16
GADAMER. Verdade e Método. Petrópolis: Ed.Vozes.1997.
17
CASSIRER, E. Filosofia das Formas Simbólicas. São Paulo: Martins Fontes, 1994.
21
dicotomia, pensando a arte fora do esquema sujeito-perceptivo e objeto
que impressiona o sujeito. Não apenas porque o paradigma estético
pensa arte negativamente e não em si mesma, mas porque ele não
mais conta do conceito de obra de arte, que se modificou bruscamente
no último século e, a despeito de ter abandonado a esfera
exclusivamente sensível e perceptiva, continua sendo arte. O estético
não conta de toda arte que é feita atualmente, como, por exemplo, a
arte conceitual ou a arte relacional. A arte conceitual não pode ser
capturada esteticamente porque sua ênfase está no significado, na atitude
mental e não na aparência da obra. Para os praticantes de arte conceitual,
o que importa é a ideia criada, sendo a execução da obra de pouca
relevância, podendo ser relegada a outras pessoas com habilidades
técnicas necessárias. A obra Uma e Três Cadeiras de Joseph Kosuth
apresenta o objeto cadeira, ao lado de uma fotografia dela e uma
definição do dicionário de ―cadeira‖ impressa sobre papel. A obra
Desenho de De Kooning Apagado, apresentada por Robert
Rauschenberg, é um desenho de Willem de Kooning, artista ligado à
abstração gestual, no qual Rauschenberg, com a permissão do colega,
apaga e desfaz o seu gesto. A obra final é um papel quase em branco.
Ambas levantam a questão da desmaterialização da arte e da prioridade
da ideia sobre o objeto. Esse tipo de arte não pode ser compreendido
com o modelo estético sujeito-perceptivo/ objeto-percebido, pois está
centrada no conceito e não na sensibilidade, na aisthesis. O objeto é
veículo e catalisador da ideia e o sujeito não é mais o indivíduo passivo
afetado pela sensação, mas adquire o papel ativo de compreensão e
conhecimento conceitual. As intervenções urbanas, do mesmo modo,
enfatizam mais o aspecto de transgressão do que o objeto perceptível,
pois normalmente são intervenções de cunho crítico em objetos pré-
existentes. A arte relacional tampouco pode ser compreendida
esteticamente, pois anula a bipolaridade artista-espectador, uma vez que
a obra é compreendida como uma contínua criação que envolve ambos.
Não há mais o espectador passível de ser afetado do paradigma estético:
as experiências e repertórios individuais estão a serviço da construção de
significados coletivos, o que faz com que a participação do público seja
um fator indispensável, seja na criação de objetos interativos, como
algumas obras de Amélia Toledo e Lygia Clarck, seja na execução de
performances, como Ritmo Zero de Marina Abramovic.
Esses exemplos mostram que a arte contemporânea demanda
que o modo como se compreende a arte na tradição filosófica seja
22
revisado. Para manter a coerência do pensamento filosófico, é
necessário abandonar o privilégio do paradigma estético ou deixar de
considerar arte os dados que o extrapolam. É no sentido de um
questionamento do modelo estético, buscando abordar a arte como um
acontecimento positivo e que deve ser pensado em si mesmo, que se
encaminham Husserl e Ingarden, sendo seguidos contemporaneamente
por Amie Thomasson. Esta sugere uma concepção formal de obra de
arte, que não corre o risco de excluir nenhuma forma de arte, pois não a
aborda através de uma definição generalizante, mas através da busca de
seu estatuto ontológico, isto é, da sua alocação em um sistema
categorial. Portanto, a hipótese é que a ontologia de Thomasson abarca
com eficácia as obras de arte contemporânea, motivo pelo qual a análise
de sua teoria é o objetivo central desta dissertação.
1.4 O Plano Investigativo e o Método
O plano investigativo em que a obra de arte será abordada na
dissertação é ontológico. Isso não quer dizer que a arte não deve ser
abordada no plano da ética e da política ou no plano psicológico ou
humano-existencial. É evidente que as obras de arte comportam
implicações éticas, políticas, psicológicas e outras, que renderiam
interessantíssimas contribuições ao assunto. Contudo, todos esses planos
investigativos partem de pressupostos ontológicos, que lhes servem de
base, mesmo que inconsciente, para ulteriores desenvolvimentos. Ou
seja, ao se indagar sobre o papel político da arte, sobre seu teor ético,
sobre seu papel na vida humana ou no psiquismo dos sujeitos se está
pressupondo de antemão, mesmo que tacitamente, uma compreensão do
que é a arte. A estrutura ontológica básica da obra de arte é o
fundamento mais primordial de qualquer investigação sobre arte em
qualquer plano discursivo. Pois todos eles partem necessariamente de
uma pré-compreensão do conceito de arte, no qual está embutida uma
ossatura ontológica. Desse modo, quando se adota a meta de pensar a
obra de arte, não é possível iniciar a pesquisa sub-repticiamente nos
planos éticos, políticos ou psicológicos, pressupondo-se uma
compreensão do conceito que é justamente a meta da investigação. O
plano ontológico compromete-se com a empreitada de começar a
pesquisa pelo exame da própria concepção de arte, pela busca de uma
formulação genuína de sua estrutura ontológica. A dissertação inicia-se
23
e mantém-se nesse plano, que funciona como fundamento para possíveis
investigações em outras esferas do pensamento filosófico.
Assim, o tema proposto para pesquisa é a ontologia da obra de
arte, concebida no contexto da análise de categorias ontológicas básicas
elaborada por Thomasson. A pesquisa deve assumir a tarefa de analisar
com quais categorias ontológicas a existência e o conceito de obras de
arte se compromete, o que será realizado tendo como base metodológica
a análise lógica e semântica das proposições e dos conceitos utilizados
na prática cotidiana e erudita em relação à arte. Amie Thomasson afirma
que a metodologia para a elaboração de qualquer ontologia é o exame
das concepções ontológicas prévias presentes nas práticas e nas crenças
do senso-comum
18
. O levantamento de exemplos de compreensão dos
inúmeros tipos de obras de arte permite a variação dos casos de
aplicação da concepção ontológica, o que funciona como um
procedimento de controle das teorias elaboradas, evitando a
arbitrariedade das mesmas. Assim, pressupõe-se que a metodologia
baseada na análise das ideias e dos enunciados corriqueiros sobre obras
de arte é intrínseca à formulação da proposta categorial que visa cingir
esse conceito.
1.5 Ontologia Categorial
Assim como Husserl e Ingarden, Thomasson empreende sua
ontologia da arte buscando categorias ontológicas nas quais os diversos
tipos de obras de arte podem ser subsumidos. Ela afirma que a questão
central da ontologia da arte é que tipo de entidade é uma obra de arte,
isto é, se é um objeto puramente físico, um tipo ideal, um ente abstrato,
uma entidade imaginária, entre outros. É pertinente, destarte, um
esclarecimento mais aprofundado do que se entende por categoria
ontológica.
Desde seu início, a filosofia persegue o estabelecimento de
conceitos que possam organizar os dados da experiência, que possam
dizer o que as coisas são e o que elas não são e como se diferenciam
umas das outras. Essa tarefa é feita muitas vezes com a seleção de
categorias ontológicas, ou seja, de conceitos capazes de fazer distinções
e classificações entre os fatos mundanos através do antigo método
18
THOMASSON, A. L. The ontology of Art. The Blackwell Guide to Aesthetics, ed.
Peter Kivy, Oxford: Blackwell, 2004. p. 5.
24
aristotélico de enunciar o gênero comum e a diferença específica. A
elaboração de uma categoria ontológica implica na seleção dos traços
essenciais de algo, de tal modo que esses traços comuns garantam a
identidade do ―algo‖ em meio às suas diversas ocorrências e variações.
Além disso, a categoria deve ser capaz de diferenciar-se de outras
categorias através da seleção da estrutura ontológica que a justifica
enquanto uma categoria autônoma. Assim, as noções fundamentais de
―identidade‖ e ―diferença‖ são as principais atuantes na classificação
categorial, que já está presente na própria linguagem pré-filosófica, uma
vez que a nomeação dos itens da realidade e a própria organização
gramatical pressupõem a subsunção do idêntico sob um mesmo nome
ou tipo e a identificação do que lhe é diferente:
Uma língua pode ser vista como uma solução
intuitiva e informal para essas questões. Uma vez alcançada
uma forma de enunciação e dicção do mundo, porém, nasce
o desejo de classificar não as coisas, mas aquilo que se diz
sobre as coisas: as expressões ―categoria‖ e ―tipo‖ indicam
essa reflexão nessas classificações e modos de dizer o
mundo. Uma vez que categorias e tipos estão disponíveis,
isso nos permite dizer o que uma coisa é sabendo-se o que se
está a dizer
19
.
De volta ao assunto central desta dissertação, estabelecer
categorias ontológicas implica ter clareza quanto a que tipo de coisa
uma obra de arte é, quais os traços essenciais que fazem com que algo
seja assim classificado cotidianamente. Os tipos de obras de arte são
inumeráveis e extremamente diversificados. Entretanto, deve haver uma
estrutura invariante que subjaz a essa multiplicidade de casos, que é
precisamente o que permite a identificação de algo como obra de arte.
Do contrário, não haveria nada que pudesse funcionar como critério para
classificar a diversidade dos dados sob o nome comum ―arte‖ e essa
denominação seria apenas arbitrária.
As categorias ontológicas estão presentes em qualquer
diferenciação corriqueira das coisas. Sempre se identifica tipos de
coisas, se diz que certos objetos são de ―tal modo‖. Ou seja, um
―isso‖ que se apresenta e que é ―assim‖, tem um ―como‖, um ―de tal
modo‖. Essas palavras são meros indicadores formais, pois indicam o
19
BRAIDA, C. R. ; KRAUSE, D. Ontologia II. As categorias ontológicas básicas. 1.
ed. Florianópolis: EaD-UFSC, 2008. v.1. p .81.
25
objeto sem outorgar-lhe qualquer conteúdo: não têm gênero, grau ou
número, não especificam nada, não determinam nenhuma característica
do que está sendo indicado, não diferenciam entre as coisas, logo, não
podem constituir categorias ontológicas. Quando se diz que ―isso é uma
obra de arte‖ uma determinação: atribui-se um conteúdo (arte) ao
dado que se apresenta (isso). Contudo, antes de aplicar o conceito ―arte‖
a um ―isso‖, é preciso identificar certo ―como‖, certo ―de tal modo‖ que
faz com que, sempre que um ―isso‖ apresente esse ―como‖, ele possa ser
identificado como o mesmo, a saber, como obra de arte. Qual é o
―como‖ que faz com que algo seja reconhecido como arte, sem se
confundir com outros tipos de coisas, como objetos físicos ou entes
ideais?
Pode-se questionar se de fato esse ―como‖, essa estrutura
ontológica que permanece invariante na multiplicidade de dados
oferecida pela experiência. Se não houvesse, afundar-se-ia em um
nominalismo radical, que defenderia que é o simples ato humano de
chamar um objeto de arte que o põe como arte, ou seja, que não há nada
no próprio dado que autorize essa denominação: o que se considera arte
é uma questão contingente, arbitrária. É o mero ser nomeado arte que
faz com que algo seja arte
20
. Todavia, isso é o mesmo que afirmar que
não obras de arte, que apenas um hábito de nomeação arbitrária,
uma convenção social. Mesmo que leve a conclusões tão desagradáveis,
o nominalismo é uma teoria difícil de refutar. Contudo, ele não entra em
concordância com a prática artística, porque, levado às últimas
consequências, defende que o que se diz sobre a arte carece de sentido,
pois essa palavra é um mero nome, um sopro sem qualquer vínculo com
o objeto. Todavia, o modo como se lida normalmente com a arte, no
cotidiano ou no ambiente erudito, pressupõe que ela tem um sentido,
que se entende até certo grau quando e porque um objeto é classificado
20
Duchamp joga muito com essa ideia, ao colocar dentro do museu um objeto que, fora do
mesmo, não constitui um dado artístico. Os ready-mades sustentam sua feição artística
precisamente nessa contravenção, de por como arte algo que, enquanto objeto, não é arte.
Desse modo, parece ser justificada a opinião de que basta alguém nomear algo como arte
para que se torne arte. Contudo, não se pode saltar para uma conclusão tão precipitada,
pois o próprio Duchamp afirmou que nem todo objeto poderia funcionar como um ready-
made e que eles tiveram que ser feitos em mero limitado, do contrário perderiam sua
conotação artística. Essa postura mostra, portanto, que não se trata apenas de um caso de
nomeação, mas que algo no próprio objeto, ou melhor, no próprio ato artístico, que o
justifica enquanto arte. PAZ, Octavio. Marcel Duchamp, ou o castelo da pureza .São
Paulo: Perspectiva, 1990. Ver também: KOSUTH, Joseph. Arte depois da Filosofia.
Malassartes nº 1, 1975.
26
como arte. Além disso, os artistas contam em sua prática artística com a
experiência do fracasso: todo artista admite que existem obras que não
deram certo, que foram feitas com o intuito de tornarem-se obras, mas
falharam, não atingiram o estatuto de obras de arte. Entretanto, se a arte
é apenas uma questão de nomeação, como defende a perspectiva
nominalista, basta afirmar de um objeto que ele é arte para que ele possa
ser considerado arte. A experiência do fracasso perde o sentido nesse
ponto de vista. Especialmente para artistas consagrados, que já carregam
consigo a alcunha de fazedor de arte, seria muito simples afirmar com
sucesso de qualquer objeto que é uma obra de arte, uma vez que a
nomeação é arbitrária e, portanto, pode funcionar antes de tudo através
da autoridade de um nomeador ou de sua força persuasiva. Contudo, as
coisas não se passam desse modo. Ademais, é manifesto que existe uma
prática humana de distinguir as obras de arte, de discordar sobre certos
objetos e analisá-los para poder classificá-los como obras de arte ou não.
Ou seja, a prática comum em relação à arte leva à conclusão de que
algo no dado que justifica sua classificação enquanto obra de arte. É
precisamente este ―algo‖ que está sendo buscado nesta investigação,
pois é o que constitui a estrutura invariante que permite classificar as
coisas em uma categoria ontológica.
Na Parte II da dissertação, expõe-se como Thomasson busca a
estrutura invariante dos dados através da noção de dependência
ontológica: a categoria ontológica de algo é alcançada pelo rastreamento
das suas cadeias de dependência, i.e., do que depende para existir. As
categorias assim introduzidas são formais, no sentido de que não são
meras descrições do dado-de-arte (como na ciência empírica), nem são
prescrições arbitrárias e ideiais (como no idealismo e no nominalismo):
são formais porque estabelecem uma dimensão de sentido e validade
para os enunciados, a partir da qual se podem apontar critérios, regras, e
limites. O que não significa, no entanto, que as categorias sejam
predicados verdadeiros ou propriedades dos exemplares. Ao contrário,
as categorias ontológicas apenas permitem alocar os exemplares na
dimensão de sentido e validade, orientando o julgamento sobre eles.
Ademais, dois problemas concernentes ao estabelecimento
de um quadro categorial. Por um lado, o estabelecimento da estrutura
invariante que pode ser usada como dimensão de sentido para distinguir
o que a arte é e sem a qual algo não pode ser arte. Por outro lado, a
questão epistemológica de, uma vez estabelecida qual é a estrutura
ontológica, saber aplicá-la ao mundo. Ou seja, mesmo que se estabeleça
27
o estatuto ontológico da arte, não necessariamente se está apto para
distinguir quais dados da experiência o possuem. Há, portanto, uma via
ontológica e uma via epistemológica, sendo que a primeira busca o ―ser‖
do assunto em questão e a segunda classifica os acontecimentos
singulares da realidade dentro das categorias ontológicas previamente
formuladas. O problema epistemológico funda-se, portanto, no
ontológico. Esta dissertação ambiciona manter-se no plano ontológico
da investigação categorial.
A ontologia categorial de base de um pensamento determina o
modo como a realidade é percebida. Ou seja, o modo como o
pensamento humano está categorizado em determinada cultura implica
que se irá perceber certas coisas e outras não, mesmo que sejam
evidentes, porque ficam além ou aquém das categorias com as quais se
costuma operar. Assim, uma das motivações para se fazer uma
investigação categorial é ter clareza de quais categorias se está
habituado a usar para operar com a experiência e, com isso, buscar
manter-se aberto para outras possibilidades, para a percepção de coisas
diferentes, sem excluí-las de antemão devido a conceitos prévios e
fixações ontológicas. De acordo com Thomasson, ter clareza das
categorias tácitas com as quais se opera cotidianamente é o primeiro
passo em filosofia da arte. Por esse motivo, partir de certo ceticismo em
relação aos conceitos pode ser bastante profícuo enquanto adoção da
postura de quem não sabe de antemão como determinar o objeto que
está sendo examinado, pois desse modo evita-se a imposição de pré-
conceitos. Contudo, cabe ao exercício filosófico ultrapassar esse âmbito
de vazio judicativo e arriscar-se a estabelecer conceitos e categorias.
Estes não precisam ser concebidos como verdades absolutas ou
determinações fixas de seu objeto, mas como modos de organizar os
dados de acordo com a prática e o discurso comum. Com quais
caracteres pode-se preencher o nome ―arte‖ além dos caracteres da
sensibilidade usados como exclusividade pela estética? Thomasson os
busca na ideia de dependência ontológica, na perspectiva da construção
de categorias capazes de dar conta das obras de arte dentro do contexto
de um sistema categorial mais amplo. O objetivo central desta pesquisa,
que será desenvolvido principalmente na Parte II, é analisar a proposta
metodológica de Thomasson, que encontra, nas relações de dependência
ontológica das obras de arte a estados mentais e coisas reais, a estrutura
invariante que permite alocar as obras de arte dentro da categoria
ontológica que lhes diz respeito. Usando uma única metodologia,
28
baseada no exame das concepções e práticas do senso-comum, e uma
mesma base analítico-categorial, a autora chega a um pluralismo
ontológico, que propõe a alocação da arte em duas categorias diferentes,
de acordo com suas diferenças estruturais de dependência ontológica. A
proposta de Thomasson é defendida nesta dissertação como uma boa
solução ontológica para lidar com o conceito de obra de arte,
especialmente eficaz com a arte contemporânea, uma vez que, por ser
formal, não predetermina ou generaliza nada acerca dos objetos que
caem sob as categorias sugeridas.
29
PARTE I
O MODELO ONTOLÓGICO DE INGARDEN
30
2. A ONTOLOGIA DA ARTE DE INGARDEN
Amie Thomasson insere-se em um campo de discussão
bastante ativo em filosofia analítica e categorial. Suas publicações
comportam inúmeras referências e réplicas a discussões travadas com
filósofos contemporâneos. Entretanto, o exame desse contexto recente
não é o único requisito para uma compreensão adequada de seu
pensamento. Seus escritos reportam-se com igual relevância a um pano
de fundo teórico histórico, que é o modelo categorial ―descritivo‖
iniciado por Husserl. De acordo com a autora, Husserl descreve a
estrutura categorial do mundo de acordo com a nossa linguagem,
experiência ou pensamento, sem adotar comprometimentos ontológicos
acerca de quais entidades ocupam essas categorias. A estratégia
descritiva de Husserl consiste em investigar as categorias do significado,
que podem ser usadas posteriormente para definir categorias ontológicas
como correlatos, isto é, como categorias dos objetos significados,
correlatas das categorias do significar. Desse modo, suas categorias
ontológicas descrevem a estrutura ontológica das coisas a partir da
estrutura da intencionalidade humana, sem preocupar-se com
investigações empíricas que mostrem se ou não os objetos que
ocupariam essas categorias
21
. A abordagem descritiva pode também ser
denominada ―formale é endossada por Thomasson
22
. Assim, a autora
assume algumas pressuposições enraizadas na fenomenologia
husserliana, como a busca pela estrutura ontológica dos entes, a
construção de um sistema categorial, a compreensão das categorias
ontológicas como formais e regulativas, a priorização dos conceitos
positivos das próprias coisas em detrimento dos conceitos negativos
importados de outras áreas do saber, entre outros. Contudo, ela
claramente abandona a linguagem da fenomenologia e não assume uma
filiação a esta tradição. Se Thomasson pode ser dita pertencente a uma
tradição, trata-se certamente da tradição analítico-categorial
contemporânea, emergente nas últimas décadas subretudo nos países de
língua inglesa. No entanto, embora não seja uma fenomenóloga, a
pensadora assume que uma de suas principais influências teóricas é o
21
THOMASSON, A. ―Categories‖, Stanford Encyclopedia of Philosophy
http://plato.stanford.edu/entries/categories. (first posted 2004). p. 1, 5.
22
Idem. p. 1, 5, 11.
31
filósofo polonês Roman Ingarden
23
, discípulo direto de Husserl, que
constrói uma teoria da obra de arte literária e, posteriormente, das outras
formas de arte. Embora o descritivismo ontológico de Thomasson
remonte a Husserl, o tema investigado nessa dissertação, a obra de arte,
apenas aparece com clareza em Ingarden. Por esse motivo, a exposição
das influências históricas da filósofa concentra-se no pensador polonês.
Ingarden afirma, logo no prefácio da primeira edição de A Obra
de Arte Literária, que, embora seu tema principal seja a obra de arte
literária, a sua motivação para a investigação é o problema filosófico
mais geral da relação entre realismo e idealismo. Ele parte de uma
crítica ao idealismo transcendental de Husserl, que entende como uma
metafísica idealista, como uma tentativa de ―conceber o mundo real e
seus elementos como objetividades puramente intencionais, que têm seu
fundamento ontológico e sua razão determinante nas profundidades da
pura consciência constitutiva‖
24
. Embora o foco deste capítulo seja a
contribuição filosófica de Ingarden acerca do estatuto da obra de arte, é
justo para com seu ―venerado mestre‖ ressaltar que o pensador polonês,
ao menos até a época da redação de A Obra de Arte Literária, mantém-
se preso à filosofia que Husserl desenvolve principalmente em Ideias I.
Por esse motivo, as críticas do discípulo nem sempre fazem justiça ao
mestre, cujo pensamento tem por característica capital a constante
renovação. Feita esta advertência, pode-se afirmar que o ponto central
de Ingarden é recusar o idealismo transcendental, sem, todavia, cair no
extremo oposto de um realismo epistemológico ou empirismo ingênuo.
A crítica de Ingarden a Husserl foi pouquíssimo corroborada por outros
críticos de Husserl, que afirmam que o idealismo transcendental não
implica uma metafísica idealista, e o próprio Husserl afirma, em
correspondência com seu discípulo, que este não compreendeu o sentido
revolucionário de sua fenomenologia constitutiva
25
. Ingarden,
entretanto, afirma que Husserl está comprometido com uma posição
mais radical de idealismo, que não é apenas epistemológico, mas, em
23
Thomasson cita Ingarden em diversos de seus textos, contudo, a admissão da
relevância de sua influência não consta em nenhuma obra publicada. Todavia, ao ser
questionada sobre o assunto em correspondência pessoal, a autora afirma: ―a obra histórica que
tem maior influência para mim e que eu certamente recomendo é a de Roman Ingarden,
especialmente A obra de Arte Literária e a Ontologia da Obra de Arte‖.
24
INGARDEN, R. A obra de arte literária. 3.ed. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1965.
p. 4.
25
HUSSERL, E. Carta de 25 de Novembro de de 1931. In: MITSCHERLING, J.
Roman Ingarden‘s Ontology and Aesthetics. Canada: University of Ottawa Press, 1997.
32
última instância, corrobora a ideia ontológica de que os objetos do
mundo ―real‖ devem sua existência à atividade constitutiva da
consciência humana. Mitscherling explica que
De acordo com Ingarden, o idealismo
transcendental de Husserl era em princípio o mesmo que
todas as outras formas de idealismo que tornam o mundo, ou
o ―ser‖, ou a ―realidade‖, dependentes da atividade de
alguma mente ou consciência
26
.
Assim, para Ingarden, a ontologia de Husserl coloca todas as
entidades como puramente intencionais, pois não existe nada cuja
existência não dependa da intencionalidade da consciência. Ou seja, o
discípulo, que teve contato direto e correspondeu-se com Husserl por
mais de cinquenta anos, afirma que o idealismo transcendental, embora
não seja um idealismo radical como o de Berkeley, que afirma que a
consciência cria o mundo, tampouco é apenas epistemológico como o
kantiano, pois ele nega a existência de qualquer coisa em si mesma:
―essa negação é mais do que um postulado epistemológico é uma
asserção metafísica a respeito tanto do ser do mundo natural quanto do
ser do mundo cognoscível‖
27
. Essa discussão, todavia, foge dos
objetivos desta dissertação, que não se compromete com a defesa da
crítica ingardiana a Husserl. Esta é exposta apenas com o fim de
elucidar o ponto de partida da filosofia de Ingarden, que investiga as
obras de arte como um meio de criticar o idealismo transcendental.
As obras de arte se apresentam como um campo de investigação
privilegiado para Ingarden porque estas sim são puramente intencionais,
o que o permite contrastá-las com entidades que escapam ao modo de
ser puramente intencional, refutando o idealismo transcendental
husserliano:
A investigação de Ingarden em A Obra de Arte
Literária confirmou sua suspeita da posição radical
transcendental de Husserl de acordo com a qual todas as
entidades participam do estatuto de objetividades puramente
26
―According to Ingarden, then, Husserl‘s transcendental idealism was in principle
the same as all other forms of idealism thet make the world or ‗being‘, or ‗reality‘, dependent
upon the activity of some mind or consciousness‖. MITSCHERLING, J. Roman Ingarden‘s
Ontology and Aesthetics. Canada: University of Ottawa Press, 1997. p.6
27
―This denial is more than a epistemological claim it is a metaphysical assertion
regarding the being of both the natural world and the knowable world‖. Idem. p. 48.
33
intencionais e o convenceu de que também existem
entidades ontologicamente autônomas e não-intencionais,
tanto objetos materiais reais‖ quanto entidades puramente
ideais (ou ―objetividades‖ ideais), como conceitos ideais,
ideias e essências
28
.
Contra sua interpretação do idealismo transcendental, que
postularia a consciência como base ôntica e ontológica do mundo,
Ingarden afirma que objetos existencialmente autônomos, que são
formalmente diferentes dos objetos puramente intencionais. Além disso,
o objeto da percepção, seja ela interna (percepção dos estados psíquicos
do sujeito), externa (percepção das coisas ―reais‖) ou imanente
(percepção dos fenômenos da consciência), é transcendente ao ato da
consciência perceptiva, ao passo que, em Husserl, todas as percepções
são remetidas, pelo método das reduções, à imanência da consciência,
compreendida como um objeto puramente intencional, sem nenhuma
conexão com o mundo real e seus objetos
29
. Ingarden defende que
três modos de ser: o real, o ideal, e o puramente intencional, sendo os
dois primeiros autônomos em relação à consciência constitutiva. No
entanto, isso não leva Ingarden a um realismo ingênuo, pois ele não se
compromete com a existência dos objetos que caem sob o escopo desses
modos de ser. Ele afirma que, no caso de questões ontológico-
existenciais, dois tipos de pergunta: a primeira é se o objeto em
questão (uma cadeira, um homem, o mundo) existe de fato de acordo
com seu modo de ser apropriado; a segunda é qual é o modo de ser
apropriado ao objeto, que é predeterminado pela sua essência, pela
própria ideia do objeto, independentemente de sua existência factual.
Conforme Ingarden, a primeira questão é metafísica ou científica.
Apenas a segunda é ontológica e demanda ―uma análise puramente
ontológica da ideia da existência em geral e das ideias dos modos
particulares de existência, assim como uma análise da ideia do objeto
em questão‖
30
. Desse modo, Ingarden não retorna a um realismo
28
―Ingarden‘s investigations in The Literary Work of Art confirmed his suspicious of
Husserl‘s radical transcendental position according to which all existents enjoy the status of
purely intentional objectivities and convinced him that there also exist non-intentional,
ontically autonomous entities both ‗real‘ materal objects and such purely ideal entities (or ideal
‗objectivities‘) as ideal concepts, ideas, and essences‖. Idem. p. 6.
29
Idem. p. 81.
30
―A purely ontological analysis of the idea of existence in general and of the ideas
of particular modes of existence as well as an analysis of the idea of the object in question‖.
34
ingênuo ou à atitude natural descrita por Husserl, porque não está
falando da existência das coisas ou do mundo, mas da autonomia dos
modos de ser em relação à consciência, chegando à conclusão de que é
inerente à ideia do ser real e do ser ideal sua autonomia ontológica. Por
isso Ingarden postula que três modos de ser, afirmando que Husserl
reduz todos eles a um único: o modo de ser puramente intencional, que,
para Ingarden, caracteriza o ser das obras de arte. Daí a relevância de
seus estudos estéticos em relação ao problema do idealismo metafísico
que ele enxerga em seu mestre.
Tratar a intencionalidade como um modo de ser, no entanto,
mostra um afastamento do conceito husserliano de intencionalidade, que
se caracteriza muito mais como a capacidade da consciência de referir-
se ao ser, o que pode ocorrer de diversos modos, como percepção,
afecção, memória, imaginação, entre outros. Ao falar de ―objetos
puramente intencionais‖, Ingarden não trata mais a intencionalidade
husserlianamente, enquanto um encontro entre o ato e o conteúdo da
consciência, como nas Investigações Lógicas, ou enquanto o modo de
constituição dos fenômenos, como em Ideias I, mas como um modo de
ser, como uma categoria ontológica ―que caracteriza, entre outros, o ser
da obra literária‖
31
. No entanto, esta dissertação não se compromete
com a defesa de nenhum dos lados da querela Husserl-Ingarden ou com
a interpretação bastante parcial de Ingarden a respeito de Husserl.
Tampouco com a questão de se Ingarden ainda pode ser considerado um
fenomenólogo. O foco deste capítulo é o modo como Ingarden pensou a
obra de arte, a saber, como uma entidade pertencente à categoria do
puramente intencional, estratificada e dependente de estados mentais
subjetivos, de suportes concretos e de unidades de sentido ideais
caracterizações muito semelhantes à concepção de Thomasson a respeito
da arte.
As obras de arte são classificadas pelo pensador polonês como
puramente intencionais porque sua existência depende não apenas do ato
intencional de um criador, mas da ―concretização‖ da obra, realizada
pela intencionalidade de algum espectador. No entanto, embora sejam
entidades heterônomas e dependentes ontologicamente da consciência,
esta não é sua única base ôntica, pois elas dependem tanto de entidades
INGARDEN, R. Controversy Over the Existence of the World. In: MITSCHERLING, J.
Roman Ingarden‘s Ontology and Aesthetics. Canada: University of Ottawa Press, 1997. P. 87.
31
INGARDEN, R. A obra de arte literária. 3.ed. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1965.
Prefácio. p. XVII.
35
ideais (significados) quanto de entidades reais (matéria, suporte).
Diferentemente de seu predecessor, a transposição da ideia da obra para
uma presença física qualquer é pensada como fundamental para que haja
uma obra de arte, logo, não se pode conceber uma ideia de obra de arte
na mente de um artista como uma obra de arte verdadeira e completa
32
.
Essa concepção estritamente idealista ou ―irrealista‖ da arte pode ser
detectada em Husserl, embora o fundador da fenomenologia não
construa um pensamento claro acerca do estatuto ontológico das obras
de arte ou dos objetos ficcionais
33
. Ingarden, por outro lado, toma as
obras de arte como exemplo privilegiado da zona ontológica do ser
puramente intencional, que ele pretende preservar ao lado do ser real e
do ser ideal, mantendo assim três zonas de ser ou três categorias
ontológicas fundamentais
34
. Em virtude dessa motivação basilar,
Ingarden torna-se um dos primeiros pensadores a construir uma teoria
positiva da arte pensando-a principalmente na investigação acerca da
obra de arte literária sem a tratar negativamente ou como um mero
apêndice de uma questão filosófica mais relevante. Thomasson alerta
para a negligência por parte da tradição filosófica, da qual Ingarden é
uma exceção, em relação aos objetos fictícios, assim como das obras de
arte:
32
Esta concepção de cunho anti-idealista da obra de arte é seguida por Amie
Thomasson, como será desenvolvido posteriormente, sendo a crítica aos filósofos idealistas
contemporâneos, como Collingwood e Curie, uma de suas principais ocupações na defesa de
sua ontologia da arte.
33
Em Experiência e Juízo, pode-se resumir a posição de Husserl em relação à arte do
seguinte modo: as obras de arte são entidades irreais, uma vez que possuem a forma temporal
da irrealidade, a oni-temporalidade, mas são irreais enquanto idealidades limitadas, i.e., é
instrínseco à sua essência incorporar-se em alguma entidade real, em tinta, em ondas sonoras,
em papel. Talvez seja um pouco mais esclarecedor diferenciar os entes reais dos irreais
levando-se em conta que os irreais são conteúdos intencionados como objetividades de sentido;
os reais, por sua vez, são conteúdos cuja objetividade é perceptiva, sensorial. Assim, sentido e
objeto contrastam-se, são uma diferença absoluta, tal como real e irreal. Quando Husserl
defende que a obra de arte é um irreal, ele está afirmando que ela é um sentido, ou seja, que na
apreciação de um quadro como uma obra de arte, o que está em questão não é a matéria tinta
sobre tela em certa forma e localização espaço-temporal, como quando se percebe uma caneca
sobre a mesa. O que está em questão é o sentido da pintura, que se encarna na matéria, mas que
poderia encarnar-se em qualquer outra matéria e ainda assim, manter-se idêntico a si mesmo.
Esse vínculo frouxo da arte à matéria que lhe serve de suporte caracteriza Husserl como um
idealista para Ingarden, posição da qual ele busca afastar-se. HUSSERL, E. Experience and
Judgement. London, Routledge, 1973.
34
INGARDEN, R. A obra de arte literária. 3.ed. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1965.
p. 4.
36
Embora exemplos oriundos da ficção e da mitologia
muito providenciam uma fonte de interessantes quebra-
cabeças e contra-exemplos que têm guiado o
desenvolvimento de teorias de Frege a Russell e a Kripke, a
ficção sempre foi vista como um problema secundário na
metafísica
35
.
Esse descuido, de acordo com a pensadora, é uma perda não
apenas para o problema da ficção ou das obras de arte em geral, mas
para a própria metafísica, pois a falta de um espaço ontológico adequado
para esse tipo de entidade mostra as lacunas e falhas dos sistemas de
categorias das metafísicas tradicionais. Assim, a questão pelo estatuto
ontológico dos objetos artísticos ou ficcionais não é apenas um pequeno
canto da metafísica, mas uma profícua semente para desenvolver seus
problemas cardinais. Por esse motivo Thomasson encontra em Ingarden
seu principal apoio teórico, uma vez que este, partindo do mesmo
pressuposto, elabora uma extensa e complexa teoria sobre a obra de arte
literária. As principais divisas de sua teoria são: a defesa de que a obra
de arte literária pertence à categoria dos objetos intencionais; a
inovadora concepção de que a obra de arte literária tem várias camadas,
sendo que uma delas consiste em um ―esquema‖ que permite ao leitor
―concretizar‖ a obra; e, finalmente, a compreensão da obra de arte
literária como uma harmonia polifônica entre suas distintas camadas,
formada através da experiência do leitor. Embora Ingarden trate
privilegiadamente da obra de arte literária, as aquisições teóricas e
conceituais que ele realiza podem ser estendidas para a obra de arte em
geral, o que ele faz posteriormente, todavia resguardando com cuidado
as diferenças específicas de cada tipo de arte.
2.1 Considerações Ontológicas acerca da Obra de Arte Literária
Ingarden busca diferenciar-se dos críticos e historiadores da
arte, afirmando que o que busca é a essência da obra, enquanto estes
35
―Although examples from fiction and mythology have long provided a source of
interesting puzzles and counterexamples that have guided the development of theories from
Frege to Russell to Kripke, fiction has been seen as a sideshow issue in metaphysics‖.
THOMASSON, A. L. Fiction and Metaphysics. Cambridge: Cambridge University Press,
1999. p. 11.
37
partem da mesma como algo já dado ou consideram esse problema
insignificante
36
. As questões estéticas ou de valor artístico das obras são
metodologicamente deixadas de lado pelo autor, nesse primeiro
momento, não porque as considera irrelevantes, mas porque são
posteriores, isto é, ontologicamente fundadas na essência da obra, no o
que ela é. Trata-se explicitamente de uma investigação ontológica.
Nessa direção, o autor afirma, seguindo a meta husserliana de pensar as
coisas em si mesmas, que não deseja encaixar a arte em uma categoria
pré-existente, como ―objeto físico‖ ou ―entidade psicológica‖, pois
pensa que a arte tem sua própria estrutura ontológica, seu modo de ser
específico. Logo, não deve ser forçada a se adequar a uma categoria
prévia, mas exigir a construção da sua própria categoria, destituída de
pré-conceitos e pré-compreensões que a determinem de antemão. Essa
tendência filosófica ao pré-conceito é sua principal inimiga, tanto no
combate ao psicologismo da arte, quanto no combate às duas
concepções tradicionais da teoria geral da arte, que ele condena como
insuficientes, pois em uma ela é pensada em analogia com as artes
visuais, especialmente a pintura, logo, ignora-se o seu aspecto
linguístico; em outra, põe-se a ênfase nos elementos lingüísticos e
ignoram-se os elementos perceptivos
37
. Ingarden explica que o
problema de ambas as concepções é tratar da obra de arte literária
unilateralmente, ignorando sua polifonia, sua multiplicidade de
camadas.
No encalço da essência da literatura, Ingarden investiga a
estrutura comum ou essencial a todas as obras de arte literárias. Aí surge
o problema, mencionado na Introdução desta dissertação, da
delimitação da esfera de exemplares de obras a serem selecionados
como ponto de partida. Ingarden é ciente desse problema e por isso
adverte que o material de análise é apenas provisório e pode ser
modificado livremente de acordo com o desenvolvimento da
investigação, uma vez que: ―a determinação definitiva do âmbito da
obra literária pressupõe a captação e a determinação conceptual da
própria essência da obra literária. Seria, portanto, possível somente
depois de concluída a investigação‖
38
. Por esse motivo, o filósofo adota
o método de começar a pesquisa com aquelas obras cujo estatuto de obra
36
INGARDEN, R. A obra de arte literária. 3.ed. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1965.
p. 19
37
Idem. p. 3.
38
Idem. p. 23
38
literária é inquestionável
39
. Esse método se justifica porque a almejada
essência da obra literária ainda não foi encontrada, uma vez que está
sendo investigada de início, logo, ainda não um critério para
distinguir o que é uma obra de arte literária do que não o é
40
. Desse
modo, tomando como exemplo casos paradigmáticos de obras de arte
literária, o autor questiona se elas são entidades reais ou ideais,
concluindo que o problema é que a própria distinção entre real e ideal
ainda não foi bem elaborada. Além disso, classificar uma entidade como
real ou ideal pressupõe um conhecimento acerca do seu modo de ser,
que, no caso, é precisamente o que está sendo buscado e não pode,
portanto, ser pressuposto. Por isso Ingarden começa a pesquisa
eliminando todos os preconceitos tradicionais acerca da essência da obra
de arte, para poder investigá-la partindo apenas da coisa mesma como
algo que é dado, todavia sem ser conhecido:
Ainda que tenhamos que nos contentar,
provisoriamente, com conceitos de objetividades reais e
ideais não suficientemente clarificados, as tentativas
fracassadas em considerar a obra literária como objetividade
ideal ou real mostrar-nos-ão, da maneira mais sensível, quão
obscuro e insuficiente é o que sabemos da obra literária
41
.
Diante dessa falta de clareza a respeito das duas categorias
metafísicas tradicionais, dentre as quais se costuma inserir a arte,
Ingarden propõe o tempo como critério de distinção: o real é temporal e
39
Seguindo esse mesmo raciocínio, o autor opta por deixar de lado, ao menos
provisoriamente, a questão do valor estético da obra, uma vez que pretende partir do zero no
encalço do ―esqueleto ontológico‖ da obra literária. Como esse esqueleto deve ser uma
estrutura comum a todas as obras, a questão de se obras de mais ou menos valor literário
afigura-se como posterior e derivada. É necessário primeiro adquirir clareza a respeito da
essência da obra de arte literária para a seguir pensar sobre seu valor estético e outras
questões de nível epistemológico. INGARDEN, R. A obra de arte literária. 3.ed. Lisboa:
Calouste Gulbenkian, 1965. p. 38
40
Nesse ponto, é válido questionar se o autor acredita em um critério que, diante de
qualquer texto, permita classificar se é uma obra de arte ou não. Esse problema não aparece de
modo explícito em Ingarden, mas Thomasson, por outro lado, aborda o assunto, afirmando que
não busca um critério que distinga arte de não-arte, mas apenas visa, diante de um objeto
considerado como arte pelo senso-comum, estabelecer seu estatuto ontológico. Por isso ela
adota o método de Ingarden de partir de exemplos consagrados de arte. Cf. THOMASSON, A.
L. The ontology of Art‖. The Blackwell Guide to Aesthetics, ed. Peter Kivy, Oxford:
Blackwell, 2004.
41
INGARDEN, R. A obra de arte literária. 3.ed. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1965.
p. 25.
39
o ideal não é. Os objetos ideais, como as entidades matemáticas ou os
universais, são autônomos ontologicamente, são atemporais e não são
alteráveis. Os objetos reais podem sofrer modificações e têm uma
duração no tempo natural
42
. Aplicando-se esta distinção a uma obra de
arte literária, é manifesto que esta passa a existir em um dado momento,
existe ao longo de um período de tempo no qual pode sofrer alterações e
talvez cesse de existir. Assim, é temporal e modificável como um ente
real. Entretanto, todos concordam que o Fausto, para usar o exemplo do
pensador, é um ente ideal também, pois não se limita à tinta sobre papel,
mas tem uma dimensão de sentido que não é real, não é espaço-
temporal. Com isso, torna-se evidente o problema: como uma obra de
arte literária pode ser ideal e temporal ao mesmo tempo?
Usando uma didática que será reaproveitada por Amie
Thomasson, Ingarden passa a criticar as respostas que ele considera
insuficientes para o dilema em questão. O seu principal alvo de críticas é
o que ele chama de solução psicologista, predominante no cenário
filosófico da época
43
. Esta concepção, defendida por Kleiner e por
Kucharski, entre outros, consiste em afirmar que a parte temporal da
obra é apenas a parte material, que não constitui a obra: é apenas o meio
pelo qual ela se manifesta. A obra verdadeira estaria na experiência do
autor durante sua produção, na vivência psíquica da criação. O ponto
contra-intuitivo dessa perspectiva é que, nesse caso, a obra nunca seria
compreendida pelo leitor, pois a experiência do autor é sempre mediada
pelos meios materiais; não há acesso direto à vivência psíquica do autor.
Além disso, a obra passa a existir em sua totalidade quando a
experiência do autor termina, ou seja, a obra se completa como um
todo com início, meio e fim, quando o autor a termina, logo, quando a
sua experiência de criação se finda
44
. Se a obra é pensada como estando
na experiência de redação do escritor, chega-se à trágica conclusão de
42
Idem. p.25.
43
O psicologismo, em especial o psicologismo epistemológico, que consiste na
tentativa de fundar todas as ciências e saberes em bases psíquicas, era um gigante no início do
século XX, equiparando-se em popularidade apenas ao historicismo. Essa corrente consiste na
radicalização da concepção do mundo como representação do sujeito, da qual se conclui,
portanto, que a ciência primordial é a ciência das faculdades psíquicas, sendo todas as outras
meras províncias de seu império. De acordo com Maria Manuela Saraiva, ―Ingarden não cessa
de combater o psicologismo, da primeira à última página de A Obra de Arte Literária‖. Cf.
SARAIVA, Prefácio. In: INGARDEN, R. A obra de arte literária. 3.ed. Lisboa: Calouste
Gulbenkian, 1965.
44
INGARDEN, R. A obra de arte literária. 3.ed. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1965.
p.30.
40
que ela se anula assim que se completa. A obra de arte literária e as
vivências psíquicas não podem ser idênticas, porque não suportam os
mesmos predicados, de acordo com o princípio lógico de que dois
objetos são idênticos se as proposições que se aplicam a um podem ser
aplicadas ao outro. Se a literatura fosse um estado psíquico,
Vários juízos que dizem respeito à obra de arte
literária singular deviam ser errados ou absurdos. O que
significaria, neste caso, o fato de a Ilíada ser escrita em
hexâmetros? Podem quaisquer vivências ou estados
psíquicos ser escritos em hexâmetros?
45
O predicado ―ser escrito em hexâmetros‖ se aplica à obra e não
se aplica à vivência, logo, elas não se identificam. Há outra vertente da
solução psicologista que pensa a obra como estando na experiência
subjetiva do leitor. Outra vez, o ponto fraco dessa versão é que cada
leitor tem a sua experiência, logo, não um único Fausto, mas
milhares, um para cada subjetividade, e torna-se bastante abstruso tentar
encontrar um critério de identidade que faça com que todas essas
vivências se refiram a uma mesma obra de arte.
Contra as soluções acima, Ingarden apresenta sua resposta, que
ele admite ser uma via difícil, porém única e incontornável: ―reconhecer
a existência das unidades ideais de sentido‖
46
. Uma das principais
contribuições de Ingarden, que o posiciona para além da dicotomia
realismo-idealismo, é assumir que a condição de existência de obras de
arte literárias é a presença de unidades de sentido ideais, às quais a obra
faz remissões que constituem o seu aspecto ideal, sem, com isso, abdicar
da presença de um aspecto material que garante seu caráter temporal e
real.
2.2 A Estrutura da Obra de Arte Literária
Ingarden defende que a estrutura essencial da obra de arte
literária é complexa, compõe-se de camadas heterogêneas
47
. Ele é
45
Idem. p. 31.
46
Idem. p. 34
47
Além de dividir a obra de arte literária em quatro camadas fundamentais, Ingarden
mostra diversas funções que se apresentam nesses estratos, como a função apresentativa, a
função expressiva, a função simbólica, de comunicação ou notificação. Não há, porém, uma
41
consciente da originalidade de sua teoria, alertando para o fato de que
nenhum dos pensadores que conhece percebeu que a estrutura
fundamental da obra de arte literária reside nessa organização polifônica
e multi-estratificada. Polifônica porque os estratos relacionam-se entre si
em cadeias de mútua dependência, o que mostra que ―a obra literária
não constitui um feixe desarticulado de elementos casualmente
justapostos, mas uma construção orgânica cuja unidade se baseia
precisamente na particularidade dos estratos singulares‖
48
. Desse
modo, a essência da obra como uma unidade é revelada através da
análise das suas camadas e suas inter-relações. As camadas ou estratos
fundamentais da obra de arte literária são quatro
49
:
Formações Fônico-lingüísticas
Unidades de Significação (a parte mais essencial da obra, na
qual as outras camadas de fundam ontologicamente)
Objetividades Apresentadas
Aspectos Esquematizados
2.2.1 Formações fônico-lingüísticas
Ingarden inicia a investigação dos estratos da obra literária pelo
que constitui sua parte mais concreta, que são as formações fônico-
lingüísticas. Primeiramente é preciso esclarecer como se compreende a
linguagem e qual seu papel ontológico na constituição da literatura. O
correspondência biunívoca entre os estratos da obra e as funções da linguagem que o autor
identifica. Conquanto o tema da presente dissertação não é uma investigação pormenorizada da
linguagem, mas um esclarecimento das noções ontológicas em torno do conceito de obra de
arte, o tema das funções não será abordado nesse capítulo, que será limitado à divisão
estratificada da obra de arte feita por Ingarden e seus comprometimentos ontológicos.
48
INGARDEN, R. A obra de arte literária. 3.ed. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1965.
p. 45.
49
Ingarden admite que, na medida em que diversos gêneros de literatura, pode
haver mais do que quatro estratos, e cada estrato pode ter funções diferentes e outras
modificações. Logo, em algum tipo de literatura pode haver estratos que não há em outras. Mas
o que ele busca é a essência da obra de arte literária, comum a todos os gêneros de literatura,
logo, identifica apenas os estratos absolutamente necessários à essência da obra ―para se
conservar sua unidade intrínseca e se manter seu caráter fundamental‖, que são os quatro
estratos classificados acima. INGARDEN, R. A obra de arte literária. 3.ed. Lisboa: Calouste
Gulbenkian, 1965. p. 46.
42
autor distingue o material fônico
50
da significação da palavra, que é
manifesta em sua forma significativa. De acordo com Ingarden, o
material fônico da palavra é a forma que as vibrações fônicas tomam
quando a palavra é falada. Trata-se, portanto, do componente real da
palavra, de suas ocorrências concretas, que podem ser faladas em
diferentes entonações, volumes e velocidades. A forma significativa, por
outro lado, é aquilo que se mantém idêntico na palavra em suas distintas
ocorrências enquanto material fônico. Não se trata da ocorrência
singular real e sensível da palavra (material fônico), mas da própria
palavra, do fonema. Porém, embora a forma significativa não seja real,
ela também não é algo ideal: ―seria naturalmente falso ver no fonema
enquanto forma lógica um objeto ideal autônomo no seu ser situado ao
mesmo nível, p. ex., das objetividades matemáticas‖
51
. A forma
significativa não pode ser considerada ideal porque ela é temporal:
forma-se no decurso do tempo, está sujeita a alterações e sua geração
comporta elementos reais, culturais e históricos. Ela tampouco é real,
individual, concreta, pois a palavra enquanto forma significativa tem
algum nível de identidade e permanência, diferentemente do material
fônico, da pronúncia, que a cada vez é uma ocorrência singular. A
função da forma significativa, expressa sensivelmente a cada vez
enquanto material fônico, é conduzir ao significado da palavra de acordo
com a dinâmica descrita:
A forma significativa caracteriza a palavra
respectiva por si só e determina a sua significação na medida
em que a captação dessa forma pelo ouvinte dirige a
compreensão para a significação correspondente e leva à
realização da intenção significativa do sujeito da
compreensão. (...) Em contrapartida, as particularidades
50
Ingarden usa o termo material fônico, o que parece outorgar um privilégio à
linguagem falada em relação à linguagem escrita, o que parece um pouco descabido na media
em que o que está em questão é a obra literária, cuja apresentação é bem mais comum por
escrito. No entanto, ele mesmo admite que o som é o elemento primário da palavra, mais do
que o signo visual, o que não implica que este não pertença igualmente à essência da palavra.
Essa atenção especial à palavra falada explica-se pelo fato de que, nesse momento de seu livro,
Ingarden está ocupando-se mais com a discussão filosófica e científica acerca da linguagem em
geral do que com a ontologia da obra de arte literária. No entanto, o que ele fala acerca do
material fônico pode ser transposto em uma analogia válida para o signo visual escrito ou
impresso. INGARDEN, R. A obra de arte literária. 3.ed. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1965.
p. 53.
51
INGARDEN, R. A obra de arte literária. 3.ed. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1965.
p. 55
43
variáveis do material fônico concreto não contribuem em
nada de essencial para esta função da palavra
52
.
Ou seja, a função da forma significativa é determinar a
significação de uma palavra e a função do material fônico é expressar
sensivelmente a forma significativa, sendo que a forma dessa expressão
é relevante na medida em que pode direcionar a atitude e o conteúdo
psíquico dos ouvintes. O material fônico de uma mesma palavra pode
ser diverso: ela pode ser falada com indelicadeza, com raiva, com afeto
ou com ironia. Isso não altera a forma nem o significado da palavra, mas
altera o efeito psíquico ou o estado emocional que ela pode provocar nos
ouvintes.
Após tratar o elemento simples da linguagem, as palavras,
Ingarden faz considerações sobre a frase, que ele afirma ser anterior às
palavras porque é a formação verdadeiramente autônoma da
linguagem , apesar de constituída por estas
53
. A principal diferença
entre palavras e sentenças é que aquelas são caracterizadas pela forma
significativa, pelo fonema, ao passo que não existe um fonema das
frases no mesmo sentido, que elas são formações compostas, cuja
organização pode sempre variar. Contudo, a frase é um fenômeno
fonético essencial para a obra de arte literária, porque esta possui um
ritmo, uma cadência (tempo, verse, stanza), constituído pelas sentenças.
Ingarden trata do ritmo das sentenças em analogia ao fonema das
palavras. O ritmo assim compreendido pertence à frase e conduz ao seu
significado, distinguindo-se, novamente, do material fônico da mesma,
isto é, das leituras ou recitações individuais e concretas, que têm, a cada
vez, uma entonação, velocidade, volume, etc., a depender da vontade do
leitor. Este material fônico, assim como no caso das palavras, é
importante para determinar o efeito emocional da obra de arte literária,
mas não se relaciona com a função significativa da linguagem. O autor
traça uma enorme gama de diferenciações e sutilezas, construindo algo
próximo de uma ciência linguística que foge dos propósitos desta
dissertação.
É necessário, destarte, estabelecer com maior clareza qual a
relevância das considerações de Ingarden sobre as formações fônico-
lingüísticas para a compreensão ontológica da obra de arte literária. O
principal é a defesa de que a forma significativa é um elemento
52
Idem. p. 58-59
53
Idem. p. 63
44
constitutivo da obra de arte literária, ao passo que o material fônico fica
de fora, não pertence à obra essencialmente (embora possa ter alguma
relevância na medida em que influencia o estado emocional do ouvinte).
Ele afirma que a distinção entre o material fônico concreto e o elemento
formal significativo ―faz supor que o material fônico concreto seja para
eliminar da obra literária. Com efeito, ele constitui apenas o substrato
fônico das formas significativas concretizadas nas leituras singulares‖
54
.
Assim, a parte sensível-concreta-material-real da linguagem, seja
enquanto som na leitura ou signo gráfico na escrita, é eliminada da
essência da obra de arte literária. Porém, a parte formal-significativa,
que, mesmo não sendo real-concreta, tampouco é ideal pois comporta
elementos reais (temporais); culturais e históricos , é mantida, o que
vai de encontro à concepção das correntes psicologistas, que eliminavam
também este aspecto:
Os fenômenos fônico-lingüísticos discutidos no
parágrafo precedente, tais como o ritmo, o andamento, a
melodia, as produções de unidades significativas ou rítmicas,
etc., podem pertencer à obra literária, mas sempre e
unicamente no sentido de determinadas qualidades formais
típicas e não como casos acidentais que apenas se dão no
material fônico concreto
55
.
A principal função do estrato fônico-lingüístico é o de
―revelação‖ da obra ou de ―determinação‖ das unidades de significação.
Ele é o invólucro externo da obra, pois o seu estrato mais próprio e
constitutivo é certamente as unidades de significação, que serão
abordadas a seguir. Entretanto, estas estão essencialmente relacionadas
com as formas significativas, pois sem elas as unidades de significação
não poderiam ser reveladas ou determinadas:
Pertence à ideia de significação estar ligada a
qualquer forma significativa (ou a qualquer sinal verbal de
natureza visual, acústica, táctil) e ser por isso a sua
significação. Encontra nessa forma o seu invólucro externo, a
sua ―expressão‖, o seu portador exterior. Sem uma ―forma
significativa‖ a significação não poderia de modo algum
existir. (...) Com a ausência, porém, de toda a matéria formal
54
Idem. p. 71
55
Idem. p.73
45
significativa, o estrato das unidades de significação deixaria
de existir e com ele ruiriam necessariamente também os
restantes estratos da obra literária
56
.
Ou seja, a dependência ontológica dos demais estratos, em
particular o das unidades de significação, nas formações lingüísticas é
uma dependência ontológica genérica e não rígida. Ou seja, as unidades
de significação dependem ontologicamente da sua manifestação em
alguma forma significativa qualquer, mas não de alguma forma
específica, pois o mesmo significado pode ser revelado por diferentes
formas significativas, como mostra o exemplo óbvio da tradução, isto é,
do fato de que uma mesma obra, comportando os mesmos significados,
pode ser expressa em diferentes línguas. Assim, apesar de cumprirem
um papel mais extrínseco na obra de arte literária, uma vez que a
dependência ontológica que a une às demais camadas é apenas genérica,
as formações fônico-lingüísticas são constitutivas da obra, pertencem à
sua essência.
O que deve ser ressaltado nesse momento é, sobretudo, a
admissão de um estrato não-ideal como sendo intrínseco à obra de arte
literária. Embora a parte estritamente material e real das formações
lingüísticas, i.e., o material fônico, seja eliminado da essência da obra, a
parte lingüística formal é mantida como constitutiva. Ela constitui o
primeiro estrato ontológico da obra de arte literária e, ainda que não seja
algo real pois é aquilo que se mantém sob as ocorrências sensíveis de
uma palavra, e que permite que esta seja reconhecida como a mesma
palavra tampouco é algo de ideal, pois as palavras são algo criado, têm
um começo no tempo e podem se extinguir. Excluídas da bipolaridade
real-ideal, as formas significativas podem ser compreendidas dentro
do terceiro modo de ser admitido por Ingarden, que é o ser puramente
intencional.
2.2.2 As Unidades de Significação
As unidades de significação (significado, sentido) são a parte
mais essencial da obra de arte literária, pois são o fundamento
ontológico mais primordial de todos os outros estratos. O autor as
compreende como entidades ideais em certo sentido, embora necessitem
56
Idem. p. 77
46
do estrato não-ideal das formações lingüísticas para serem reveladas.
Ingarden começa a tratar das unidades de significação dos nomes, entre
os quais inclui substantivos e pronomes, distinguindo-os das palavras
funcionais (isto, entre, e, ou, etc.) e dos verbos. Ele classifica cinco
elementos da significação dos nomes:
Fator intencional direcional: a referência de um significado a
determinado objeto.
Conteúdo material: atribui propriedades, qualidades ao objeto
intencional.
Conteúdo formal: é um modo de tratar o objeto formalmente,
como uma ―coisa‖, ―entidade‖, ―processo‖.
Momento de caracterização existencial: é um modo de tratar o
objeto de acordo com seu ―modo de ser‖, i.e., como real ou
ideal.
Momento de posição existencial: é um modo de tratar o objeto
como existindo em certa realidade, como na realidade espaço-
temporal ou na realidade ficcional.
Assim, o significado de um nome comporta os cinco momentos
apontados acima, ou seja, refere-se a alguma coisa, atribui-lhe
propriedades, concede-lhe um estatuto formal como ―coisa‖ ou
―evento‖, etc., caracteriza-a como real ou ideal e posiciona-a como
existindo em alguma realidade. Ingarden analisa também as palavras
funcionais e os verbos, depois aborda as formações mais complexas,
como frases e orações. Esta análise é feita de forma bastante precisa,
resguardando as especificidades de cada tipo de palavra e frase. Estes
filigranas acerca das unidades de significação não serão alargados, pois
o que mais importa neste contexto é reter que estas são concebidas como
um aspecto ideal presente nas obras literárias, embora não existam sem
um vínculo lingüístico. O sentido em que essa idealidade é
compreendida pelo autor, todavia, precisa ser explicitado, pois difere do
sentido tradicional, bem como do husserliano. O filósofo aponta de
início para um problema que emerge da compreensão do sentido das
palavras como uma entidade ideal: uma mesma palavra com um mesmo
significado parece sofrer alterações em seu significado em diferentes
contextos, variação esta que não deveria ocorrer se o significado é um
ente ideal (logo, atemporal e invariante, de acordo com a concepção
tradicional). Entretanto, o autor arquiteta a solução de que este fato se
47
justifica porque o significado da palavra em um contexto específico é
uma atualização concreta de seu conceito ideal. Assim, um conceito
pode ter várias significações, que podem modificar-se historicamente, na
medida em que se alcança um conhecimento mais amplo do conceito,
por exemplo. No entanto, com essa afirmação o autor não pretende
comprometer-se com a defesa de uma concepção platônica de
―conceito‖, ou com a posição estritamente idealista de Husserl
57
, que
retira todo aspecto de variação e temporalidade dos conceitos ou
significados.
Qual é, portanto, a essência das unidades de significação?
Ingarden posiciona-se contra duas vertentes de interpretação do mesmo
assunto: a psicologista, que afirma que o sentido é um estado psíquico
oriundo das vivências do sujeito, e a idealista, cujo representante mais
significativo é Husserl, e que defende o sentido como um ente
estritamente ideal, eterno e imutável. Ingarden descarta ambas as
alternativas, pois sustenta que o sentido, embora seja uma idealidade,
não tem uma existência ideal autônoma, dependendo em sua origem e
existência de operações da consciência. Todavia, isso o significa que
ele é um conteúdo psíquico, pois quando se fala do sentido de um nome,
fala-se do que ele designa intencionalmente, do objeto ou da ação a que
ele se projeta intencionalmente através de uma formação fônico-
lingüística determinada, e não simplesmente de um estado mental.
Ingarden admite que a crítica de Husserl ao psicologismo parece ter
superado definitivamente a concepção das significações como elementos
psíquicos, contudo, afirma que o mestre foi longe demais no caminho
oposto. Os significados são idealidades de um ―tipo especial‖, pois não
são invariáveis nem atemporais:
Como seria neste caso compreensível que uma e a
mesma significação de uma palavra como julgamos ter
acabado de demonstrar pudesse unir-se ora com umas
significações, ora com outras numa unidade de ordem
superior, aparecer em lugares diferentes da frase e submeter-
se a diversas modificações do fator de direção intencional e
do conteúdo formal, adquirindo até diversos modos de
atualidade ou de potencialidade, de explicitação e
implicação? Será então lícito considerá-la ainda como
57
Advertindo-se que o autor refere-se ao idealismo defendido por Husserl apenas nas
Investigações Lógicas, sem ater-se para as modificações esboçadas nessa temática em Lógica
Transcendental.
48
espécie ideal e equipará-la porventura às essencialidades
ideais ou às ideias?
58
Desse modo, o sentido não é um ente ideal atemporal,
invariável e autônomo, pois ele está sujeito a modificações na
diversidade de contextos. Essas variações, contudo, não são de teor
psicológico ou subjetivo, pois o que varia é o próprio significado de
acordo com a posição que ocupa em uma frase ou em frases distintas, e
não a representação mental dos sujeitos. O significado não é um estado
mental porque lhe é intrínseca a relação com o objeto, seja como
referência intencional ao objeto, determinando-o formal ou
materialmente, seja como execução de determinadas funções
intencionais.
Além disso, a relação de um significado a um fonema (forma
significativa) é necessária, pois este é o portador daquele, o seu modo de
acesso. A vinculação do fonema ao significado é imposta por algum ato
subjetivo da consciência, na qual ela nomeia um objeto ou cria uma
função lingüística. Ou seja, um material fônico que, a princípio, é
completamente desprovido de sentido, passa a possuí-lo através de um
ato da consciência, na qual ela o constitui como portador de um
significado. Analogamente, as transformações das significações de cada
palavra nos contextos das diversas frases dependem da construção das
frases, que se origina através de operações mentais. Em suma, nas
palavras de Ingarden, ―aqui, o ato de consciência cria propriamente algo
que anteriormente não existia, embora nada consiga criar que uma vez
criado possa existir com autonomia no seu próprio ser‖
59
. Ou seja, o
significado é algo criado pela consciência, logo, não possui a autonomia
ontológica nem do ser real nem do ser ideal. A esfera das objetividades e
dos conceitos ideais se furta a toda atividade espontânea do sujeito
consciente e a toda tentativa de modificação
60
. As unidades de
significação, em contrapartida, nascem, são transformadas ao longo de
sua existência, e podem até mesmo deixar de existir, sendo tudo
executado através de operações da consciência. O mesmo vale para
formas mais conjugadas de significação, como as frases e as narrativas,
logo, para obras literárias em sua totalidade:
58
INGARDEN, R. A obra de arte literária. 3.ed. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1965.
p. 117
59
Idem. p. 121
60
Idem. p. 121
49
E seria ridículo julgar-se que todas as maneiras
diversas de tratar ―o mesmo tema‖ existiriam, por assim
dizer, desde todo o sempre como objetividades ideais,
enquanto durante a narração temos a consciência
inteiramente nítida de a podermos realizar de outro modo
diferente e de estar em nosso poder, caso não sejamos
perturbados por circunstâncias extrínsecas, das à narração
esta ou aquela forma
61
.
À parte dos preciosismos de Ingarden a respeito das unidades de
significação em palavras, frases ou narrativas, que fazem por vezes a sua
pesquisa tomar o aspecto de uma investigação da linguagem ou
gramática, seu ponto central é estritamente ontológico: trata-se de
apontar para uma esfera de entidades que não pode ser incluída em
nenhum dos dois lados do dualismo ―real‖ e ―ideal‖; que deve, portanto,
ser pensada em outra categoria ontológica, que seja adequada ao seu
modo de ser específico. O sentido possui um estatuto ontológico
híbrido, pois tem aspectos ideais na medida em que, uma vez criado,
tem uma intencionalidade autônoma, ou seja, refere-s a objetos,
significa, independentemente da vontade ou dos estados psíquicos dos
sujeitos. Contudo, ele não é estritamente ideal, pois depende da
intencionalidade da consciência em geral, além de ter sido criado em
certo momento e estar sujeito a variações. Por esse motivo, tanto a
solução psicologista quanto a idealista mostram-se insuficientes para
tratar das unidades de significação e do objeto que é constituído
sobretudo por estas: a obra de arte literária. Revela-se pela primeira vez
de modo explícito a gravidade do questionamento ontológico das obras
literárias, a saber, que na medida em que sua existência não pode ser
negada e elas não são obviamente entidades físicas, nem, como foi
mostrado, psicológicas ou ideais, a própria divisão habitual de todas as
objetividades em reais e ideais mostra-se insuficiente. Ingarden não se
satisfaz com uma solução negativa, que contenta-se apenas com retirar a
significação e, por conseguinte, a literatura, do reino do real e do ideal,
mas busca uma solução positiva: ―é, portanto, necessário supor ainda
outro tipo de objetividades‖
62
. A assunção do terceiro ―reino
ontológico‖, o puramente intencional, não implica a negação dos outros
dois, isto é, que haja objetividades físicas e conceitos ideais, como os
61
Idem. p.125
62
Idem. p.120
50
matemáticos, por exemplo. Implica simplesmente a negação de que esta
seja a única divisão ontológica possível, que ela conta de todo o
dado, que este dualismo tradicional seja exaustivo
63
.
2.2.3 Objetividades Apresentadas
A terceira camada da obra de arte literária vincula-se
estreitamente com as unidades de significação, pois são seu correlato
intencional. As objetividades apresentadas são o conteúdo de uma
palavra ou uma frase, aquilo que é apresentado por seu intermédio.
Enquanto as palavras têm coisas ou personagens como correlatos, as
frases e sentenças normalmente apresentam como correlato intencional
um estado de coisas. O estado de coisas criado ou revelado pela
sentença é chamado pelo autor de ―estado de coisas puramente
intencional‖, pois não é o mesmo que estados de coisas que existem
objetivamente no mundo real, independentemente de sua enunciação em
sentenças. É nesse sentido que Ingarden alerta para a distinção entre
sentenças literárias e sentenças científicas, por exemplo, que são juízos
assertórios, isto é, que se pretendem verdadeiros ou falsos. As frases
literárias não são asserções, pois não afirmam a existência dos estados
de coisas que descrevem e não estão comprometidas com uma noção
científica de verdade; por isso podem criar mundos onticamente
inexistentes e objetos puramente representados. Ingarden chama esse
caráter das frases que aparecem nas obras literárias de ―quase-
judicativo‖, pois elas não chegam a ser juízos, uma vez que estes
pretendem que ―a relação objetiva determinada pelo seu conteúdo de
sentido não exista na realidade como puramente intencional, mas como
relação objetiva radicada numa esfera ontologicamente autônoma em
relação ao juízo‖
64
. Ou seja, o juízo refere-se ao seu correlato
intencional como algo existente objetivamente e as frases literárias
referem-se aos seus correlatos intencionais precisamente como
objetividades intencionais. A frase literária encontra-se apartada de
63
Thomasson parte precisamente desta intuição original de Ingarden em suas
ulteriores investigações. Mesmo chegando a soluções distintas das do pensador polonês, seu
problema basilar é o mesmo, expresso justamente como uma recusa do dualismo entre o real e
o ideal através da investigação acerca do estatuto ontológico das obras de arte e das entidades
fictícias em geral.
64
INGARDEN, R. A obra de arte literária. 3.ed. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1965.
p.184
51
qualquer pretensão de verdade ou falsidade, pois seu correlato não é
posto como existindo ou inexistindo no mundo real, mas no mundo
fictício.
Por esse motivo, o correlato intencional das sentenças literárias
não são objetividades reais, mas objetividades apresentadas. São coisas,
personagens, ocorrências projetadas nominalmente ou verbalmente na
obra
65
; conseqüentemente, existem como objetos puramente
intencionais apresentados pelas unidades de significação presentes nas
obras. A literatura cria uma realidade apresentada, que, conforme
Ingarden, opera nos moldes do real, pois os objetos são representados
como reais, concretos, espaço-temporais. Essa ―realidade‖ da obra,
contudo, não é espaço-temporal, não é a realidade material, nem a ideal-
geométrica, nem a imaginária, mas a apresentada
66
. Ela é apresentada
com características do espaço-tempo real, porém sem ser real ou
objetiva: ―esse caráter de realidade não pode, porém, ser inteiramente
identificado com o caráter ontológico dos objetos reais efetivamente
existentes. Há no caso das objetividades apresentadas apenas um aspecto
exterior de realidade‖
67
. Elas não são postas como coisas reais que estão
radicadas no mundo e existem no espaço e no tempo por si mesmas,
independente de um sujeito que as intencione. Entretanto, ainda
conservam um aspecto de realidade, na medida em que a simulam:
―aparece aqui uma modificação do caráter de realidade que não elimina,
mas reduz este caráter quase a uma mera pretensão de realidade‖
68
.
Assim, se um autor move um personagem de um lugar a outro ou de um
65
O termo ―objetividades apresentadas‖ é usado por Ingarden para designar tudo que
é projetado em uma obra de arte literária: coisas, pessoas, eventos, estados de coisas,
processos, ações. Assim, fenômenos que tradicionalmente pertencem a categorias ontológicas
diferentes, como coisa e evento, são unidos em uma mesma dimensão, por serem apresentados
não no mundo real, mas no mundo projetado ficcionalmente por uma obra de arte. Do mesmo
modo, a distinção entre real e ideal pode ser apresentada em uma obra, como, por exemplo, se
um escritor descrever um matemático fazendo cálculos. Os objetos matemáticos, que são
ideais, e o próprio matemático, que é real, continuam mantendo essa distinção entre si, mas
apenas ao modo de um ―como se‖, pois ambos são apresentados ―como se‖ fossem ideais ou
―como se‖ fossem reais, mas de fato não são nem uma coisa nem outra: pertencem a uma
esfera ontológica total, que é a das objetividades apresentadas, a dos correlatos de obras de arte
literárias.
66
Ingarden enfatiza essas diferenciações para deixar claro que a realidade
apresentada tem a sua estrutura ontológica específica, que deve ser pensada em si mesma, e
não em analogia ou oposição com outras esferas de realidade, como a imaginação, o mundo
espaço-temporal, as entidades abstratas matemáticas, entre outros.
67
INGARDEN, R. A obra de arte literária. 3.ed. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1965.
p. 243
68
Idem. p. 243
52
dia para o outro sem descrever o percurso ou a transcorrência, estes são
―concretizados‖ pelo leitor, porque a obra de arte literária representa seu
objeto como real
69
e, apesar de não os colocar no espaço e no tempo
reais, a estrutura espaço-temporal da realidade é transposta para as
objetividades apresentadas.
Esse ponto, que parece retroceder ao paradigma estético da
mimese, pode e deve ser questionado, pois privilegia somente a
literatura clássica. Ingarden não afirma explicitamente que toda
literatura simula o real, apenas que quando numa obra literária se trata
de objetos apresentados que são ‗reais‘ pelo seu conteúdo e se pretende
conservar seu tipo de realidade, então eles devem ser apresentados como
temporais e existentes no espaço‖
70
. Logo, o pensador não defende que
a literatura apenas transpõe o modo de ser do real para o puramente
intencional. Entretanto, todos os exemplos que oferece ao investigar as
objetividades apresentadas são de objetividades concebidas nos moldes
da realidade. Mas como afirmar que a literatura cria objetividades
representadas em analogia à realidade espaço-temporal ao se levar em
consideração obras como a literatura fantástica de Borges, como O
Aleph ou A Biblioteca de Babel, ou os anacronismos presentes nos
contos de Clarice Lispector? As obras de arte literárias modernas e
contemporâneas não visam necessariamente à representação da
realidade espaço-temporal; pelo contrário, almejam muitas vezes
produzir um estranhamento ou uma relativização da mesma. obras
cujo teor central consiste precisamente em furtar a continuidade
temporal, em anular o sentido do real, do espaço e do tempo
71
. O
paradigma mimético da linguagem ficcional não sobrevive à literatura
contemporânea. Contudo, o ponto central de Ingarden é a noção de que
as objetividades apresentadas nas obras de arte literárias são projetadas
pelas unidades de sentido da obra e têm uma estrutura ontológica
própria, que é intencional e não se identifica com o modo de ser do real,
nem do ideal, nem do imaginário.
2.2.4 Aspectos Esquematizados
69
Idem. p. 137
70
Idem. p. 245. Grifo introduzido.
71 Por exemplo, diversas obras de Escher, Clarice Lispector, Jorge Luis Borges, Bioy Casares, Gabriel Garcia Marquez, Anish Kapoor,
Sophie Calle, entre outros
53
Quando a literatura representa suas objetividades como reais,
deve se coordenar com as condições de intuição dos objetos reais, i.e.,
sua realidade perceptual primária, seu modo de aparecer. Conforme a
fenomenologia, a aparição de qualquer objeto sempre se em um jogo
de presenças e ausências, no qual alguns perfis, configurações ou
aspectos se apresentam enquanto outros se ausentam, revezando sua
manifestação ao longo do tempo
72
. A identidade do objeto real é uma
fita que amarra seus múltiplos perfis e permite sua identificação como
constituintes de um mesmo objeto. Além disso, quando um aspecto é
experimentado em dois momentos diferentes, eles não aparecem como
dois aspectos separados, mas como duas experiências de um aspecto,
ou seja, cada perfil mantém sua identidade ao longo da variação
temporal. Na percepção dos objetos reais e individuais não se
experimenta simultaneamente todos os aspectos ou perfis do objeto, mas
se intenciona os aspectos que não estão presentes. Por isso é possível a
percepção de uma cadeira, por exemplo, como um objeto volumétrico,
mesmo que só se esteja percebendo seu perfil frontal: porque seus outros
perfis, como sua parte de trás, de cima e de baixo, ainda que não sejam
percebidos sensorialmente, são intencionados, funcionando como um
esquema ideal que permite a experiência do objeto como um todo.
Analogamente, durante a leitura de uma obra literária, o leitor
concretiza o que Ingarden chama de aspectos esquematizados, ou seja,
ele naturalmente completa e preenche a obra com dados advindos de
experiências concretas prévias
73
. Por exemplo, em Vidas Secas,
Graciliano Ramos descreve a morte da cachorrinha Baleia na cozinha.
vários aspectos que são descritos pelo autor, vários detalhes e
características dos personagens e das situações. Todavia, o leitor insere
diversos aspectos esquematizados que não são descritos, como o fato de
que essa cozinha fica em uma casa, que essa casa fica em algum lugar
do espaço, que ela tem continuidade espacial, que Baleia tem volume e
extensão, que sua morte se ao longo de um período de tempo. Ou até
coisas mais simples da representação dos objetos, por exemplo, se o
autor fala de um homem, o leitor concretiza que ele tem sangue nas
veias, olhos, que respira, etc., sem que todos esses dados precisem ser
especificados pelo autor. A concretização é o ato do leitor de preencher
72
SOKOLOWSKI, R. Introduction to Phenomenology. New York: Cambridge
University. Press, 2000. p. 33.
73
MITSCHERLING. J. Roman Ingarden’s Ontology and Aesthetics. Ottawa:
University of Ottawa Press, 1997. p. 138.
54
as partes indeterminadas da obra através de aspectos esquematizados.
Ou seja, a realidade representada da obra é concretizada pelo leitor
através da inserção natural dos dados esquemáticos de sua experiência
prévia no mundo real. Prosseguindo a crítica feita anteriormente, pode-
se questionar como se essa inserção natural dos dados da experiência
espaço-temporal no caso de literaturas que não representam suas
criações como coisas reais. Não é possível inserir os aspectos
esquematizados da experiência com as coisas reais em O Caminho das
Veredas que se Bifurcam, de Borges, pois o conto apresenta uma
perspectiva e um andamento que impossibilita a apreensão da
continuidade temporal da obra, ou em A Invenção de Morel, de Adolfo
Bioy Casares. Mesmo em obras de artes visuais pode-se questionar a
concretização de aspectos esquematizados a partir da realidade concreta,
pois um desenho de Escher, por exemplo, é feito precisamente para
tornar perplexa a percepção normal da continuidade espacial, do
volume, dos planos, enfim, a percepção natural do espaço euclidiano.
Entretanto, embora Ingarden não tenha se preocupado com essa
extensão de seu conceito, é forçoso admitir que a concretização de
aspectos esquematizados em geral continua sendo inevitável. Pois
mesmo que os dados da realidade espaço-temporal deixem de fazer
sentido, eles continuam sendo o critério de apreciação da literatura
fantástica ou de outras formas de arte que os problematizem, uma vez
que a inserção natural dos dados da experiência espaço-temporal
simplesmente acontece e é também em relação a estes que se percebe a
literatura fantástica, por exemplo, como uma quebra, uma ruptura dos
mesmos. Ou seja, é quando o sujeito fracassa em inserir os aspectos
esquematizados do espaço concreto ou do tempo natural em uma obra
de arte que ele pode percebê-la em seu ato artístico transgressivo, em
seu propósito de produzir estranhamentos ou relativizações.
2.3 As Bases Ônticas da Literatura
De acordo com Ingarden, a interconexão das quatro camadas
apresentadas constitui a ―harmonia polifônica da obra, através da qual
ajuizamos um texto como uma obra de arte literária, pois ela que mostra
o valor estético da obra‖
74
. O autor afirma que as camadas carregam as
74
INGARDEN, R. A obra de arte literária. 3.ed. Lisboa: Calouste Gulbenkian,
1965.p. 139.
55
qualidades de valor estético e por isso são constituintes fundamentais da
harmonia polifônica, que é o que torna a obra um objeto estético. Esse
obscuro conceito de harmonia polifônica não é assaz desenvolvido pelo
filósofo. Ao que parece, a obra é analisada em seus elementos
constitutivos, mas apenas sua unidade polifônica (a junção de todas as
camadas e funções) constitui um objeto estético, sendo concretizada
através de várias experiências subjetivas de apreensão por parte do
leitor. As formações fonéticas, as unidades de sentido, as objetividades
representadas e os aspectos esquematizados não são percebidos
separadamente durante a leitura de uma obra de arte literária. Ela é
apreendida como uma totalidade e assim torna-se um objeto estético.
Pois ―estético‖, embora esteja associado estreitamente com o belo, o
sublime e o harmônico, significa primordialmente sensível. Contudo,
tomados isoladamente, os estratos essenciais não são objetos da
sensibilidade, pois não percepção sensível do sentido ou de uma
representação ou de um esquema. Mas os estratos são tomados
isoladamente apenas no exercício filosófico de abstração, isto é, de
análise de algo em seus diversos momentos. Ao leitor, a obra se
apresenta como uma unidade concretizada em um veículo material. Essa
unidade é o objeto estético, ou seja, é um ser de percepção, que pode ser
tocado, lido, entoado, ouvido. Assim, mesmo que se possa supor a
existência de certos elementos de uma obra de arte literária na mente do
escritor antes de ele redigi-la, não se pode afirmar que a obra mesma
está presente em sua mente, pois ela só se completa enquanto uma
unidade polifônica de todas as camadas que lhe são intrínsecas no
momento em que é apreendida sensorialmente pelo leitor.
Revela-se, portanto, a concepção de Ingarden da obra de arte
literária como uma unidade que pode ser analisada em seus quatro
momentos constitutivos. Mas qual a estrutura ontológica dessa unidade?
Em quais categorias ela se encaixa? O filósofo afirma que a obra de arte
literária estrutura-se ontologicamente em três bases ônticas: as
operações subjetivas da consciência do leitor e do autor; os conceitos
ideais intersubjetivos em virtude dos quais os atos subjetivos da
consciência do leitor e do autor podem apreender os sentidos; e o
material objetivo da obra: tinta, papel. O filósofo afirma que Husserl
pensou a segunda e a terceira base como fundadas ontologicamente na
primeira, e critica-o por negar a autonomia ontológica dos conceitos
56
ideais e da matéria fundando-os na consciência
75
. O aspecto realista de
Ingarden, em oposição ao idealismo transcendental husserliano, está em
insistir na autonomia ontológica de ambos. A sua concepção ontológica
da obra de arte literária defende que a obra, que é um objeto puramente
intencional, possui um modo de existência ôntica heterônoma, pois se
funda nas três bases ônticas descritas acima, que podem ser chamadas
respectivamente de existencial, formal e material
76
. Cada uma delas
possui um modo de existência autônomo, sem hierarquias e
reducionismos. Essa é a estrutura ontológica da literatura.
Além desse aspecto inovador de Ingarden em relação à
fenomenologia husserliana, duas posições teóricas do autor que
merecem ser enfatizadas, não apenas por seu caráter esclarecedor, mas
por terem exercido grande influência na tradição do criticismo literário.
Trata-se da afirmação da significância da intenção do artista na criação
da obra de arte e da negação de que os estados psicológicos do autor
influenciam a cognição do leitor na obra. Quanto ao primeiro ponto,
Ingarden defende que se pode avaliar o sucesso de um artista em
relação aos objetivos que ele pretendeu atingir. Por exemplo, não se
pode considerar Picasso um mau pintor porque ele não representou um
touro fidedignamente, já que esta nunca foi sua intenção. Assim, a
intenção do artista deve ser levada em consideração no ajuizamento da
obra de arte. Quanto ao segundo ponto, há em Ingarden uma rejeição do
psicologismo e da noção romântica de que a arte tem a função de
provocar no leitor as experiências físicas e psicológicas que o autor
experimentou durante a redação. Essa posição anti-psicologista implica
numa concepção objetiva da literatura, que dirige a atenção apenas para
a obra em si mesma e não para as emoções provocadas por ela. Contudo,
nem por isso a intenção do artista na criação da obra é relegada a
segundo plano, pois este tem uma ideia primordial, que procura
concretizar na obra e que o leitor concretiza na leitura
77
. Mas como o
leitor pode concretizar a intenção do artista? Onde ela se encontra? A
obra de arte literária, conforme Ingarden, é constituída por elementos
ônticos que possuem três modos de ser: material, mental e ideal. Ela
depende do texto físico (material); dos atos de consciência do autor e do
75
INGARDEN, R. A obra de arte literária. 3.ed. Lisboa: Calouste Gulbenkian,
1965.p. 140.
76
Idem. p. 147.
77
MITSCHERLING. J. Roman Ingarden’s Ontology and Aesthetics. Ottawa:
University of Ottawa Press, 1997. P. 165.
57
leitor no momento em que criam ou apreendem a obra (mental); e dos
significados ou sentidos, de acordo com os quais a obra é criada e
apreendida (ideal). Mitscherling supõe que Ingarden responderia, que
ele mesmo não se ocupou desse problema, que as intenções do artista
estão na parte mental da obra, mas são transpostas para a parte material
e ideal da mesma através de certa ―coerência‖, estruturação ou lógica
interna da mesma, que pode ser apreendida pelo leitor. Se as intenções
ficassem apenas no plano mental do artista, acabariam assim que ele
concluísse a obra e o leitor não poderia concretizá-las. O comentador
explica que
A intenção do autor é relevante, mas apenas na
medida em que temos de admitir que é por meio dessa
intenção que o trabalho vem a ser como aquela formação
única, cujas peculiaridades de sua estrutura material e ideal
permitem a qualquer número de leitores experimentar a obra,
como de fato o fazem - como "uma única e mesma‖ obra de
arte
78
.
Negar isso seria negar também a intersubjetividade. Assim,
relevar a intenção do artista na criação da obra não implica a defesa de
um psicologismo ou mentalismo na constituição ontológica da arte,
que a intenção apenas adquire importância na medida em que se
concretiza enquanto idealidade apreensível para todos os espectadores
ou leitores da obra.
2.4 Outros Tipos de Obra de Arte
O principal assunto de Ingarden é a obra de arte literária. Ela é
o início de suas investigações acerca da estrutura da obra de arte em
geral. Contudo, ao contrário da maioria dos filósofos, que simplesmente
generalizam uma concepção elaborada a partir de uma forma de arte
para todas as demais, Ingarden compromete-se com o exame das outras
formas de arte em suas especificidades. Por isso suas pesquisas não
levam a uma concepção unívoca da ―natureza da arte‖, o que não precisa
78
―The author‘s intention is relevant, but only to the extent that we must grant that it
is by means of this intention that the work comes into being as that unique formation whose
peculiarities of material and ideal structure enable any number of readers to experience in the
way they in fact do namely, ‗as one and the same‘ work of art‖. Idem. p. 176.
58
ser necessariamente concebido como uma desvantagem. De acordo com
Gierulanka,
Um grupo de escritos amplia investigação de Ingarden
sobre as obras de arte literárias para a música, a pintura, a
arquitetura e o cinema. A ampliação, no entanto, nunca é
uma transferência automática dos resultados obtidos para um
tipo de objeto para outro tipo. Cada tipo é estudado
separadamente, o que permite que as características
peculiares de cada objeto sejam reveladas. Ingarden não tem
medo de pluralismo nos resultados, caso sejam as próprias
coisas que demandem esse pluralismo. Ele tenta
fervorosamente evitar uma uniformidade-a-todo-custo que
distorceria a realidade, privando-a da riqueza que nos
encanta tanto quando temos contato natural com ela, sem
preconceitos teóricos
79
.
Amie Thomasson, na mesma linha, alerta para o fato de que não
é necessário que diferentes tipos de obra de arte pertençam à mesma
categoria. São as características das obras, analisadas em si mesmas, que
devem orientar sua sublocação categorial, o que pode conduzir a
diferentes categorias para diferentes tipos de arte, ou mesmo de estilo
artístico. Por exemplo, os happenings são tradicionalmente concebidos
no campo das artes plásticas, mas podem estar na mesma categoria
ontológica da música, que é um acontecimento temporal e não um
objeto físico duradouro como quadros ou esculturas. A arte deve ser
analisada em suas especificidades e não a partir de uma generalização, o
que pode gerar um pluralismo ontológico nos resultados. Rosenkrantz
afirma que a economia ontológica é irrelevante e não deve funcionar
como ideal nas pesquisas, como em Quine ou Ockham
80
. Ou seja, a
quantidade de categorias deve ser determinada pela demanda dos dados
examinados, das diferenças estruturais que eles apresentam entre si, e
79
―One group of writings extends Ingarden‘s research on the literary works of art,
viz. music, painting, architecture and film. The extension, however, are never automatic
transfers of results obtained for one kind of object to another. Each kind is studied separately in
as intuition which allows the characteristic features of the object to be unveiled. Ingarden is not
afraid of pluralism in results, if the things themselves dictate such pluralism. He fervently tries
to avoid a uniformity-at-all-costs which would distort reality, depriving it of the richness which
enchants us so much when we have natural contact with it, without theoretical prejudices‖.
Idem. p. 136.
80
Hoffman e Rosenkrantz. Substance: its Nature and Existence, London: Routledge,
1997.
59
não por uma apreciação estética pelo clean, pelas paisagens desérticas
ou pela simplicidade de quadros categoriais.
Com essa motivação, Ingarden passa a analisar o teatro, a
música, a pintura e a arquitetura. Cada um desses tipos é analisado em
suas estruturas específicas, sem que um seja reduzido a outro.
2.4.1 As Obras de Arte Teatrais, Musicais e Pictóricas
A primeira forma de arte que Ingarden investiga além da
literatura é o teatro, possivelmente por ser o que se encontra mais
próximo daquela, apenas estendendo-a para a efêmera dimensão da
atuação. Ele começa a problematizar filosoficamente o teatro através da
busca por sua identidade: o Don Carlos que é lido é o mesmo que é
assistido no palco? Para responder essa pergunta, Ingarden traça uma
distinção entre a obra escrita, a ―peça de palco‖ (stage play)
81
e as
múltiplas performances. Pode-se identificar em seus escritos uma
hierarquia ontológica implícita, que segue a seguinte estrutura: obra
escrita peça de palco performance concreta apreensão do
espectador. As setas indicam uma relação de dependência ontológica, na
qual o item posterior é ontologicamente fundado no anterior. A
identidade de uma peça de teatro envolve todos esses níveis, pois
nenhum deles é autônomo: as camadas dependem umas das outras ou
porque são ontologicamente fundadas nos momentos anteriores ou
porque criam seu sentido por referência aos momentos que lhe sucedem,
isto é, a obra escrita faz sentido apenas em referência à peça de palco
que constitui sua atualização e esta, por sua vez, em referência à
atuação, que tampouco possui sentido sem a remissão à apreensão por
alguma platéia.
Essa solução, embora não seja desenvolvida claramente por
Ingarden, adota o modelo fenomenológico para se pensar a questão da
identidade em meio à multiplicidade. Robert Sokolowski descreve a
identidade ante a diversidade de perfis ou camadas de um mesmo objeto
do seguinte modo:
81
A peça de palco é a peça escrita juntamente com a atualização das orientações para
encenação, que fazem parte da obra. Contudo, a própria peça escrita, mesmo sem levar em
conta as orientações, já se distingue dos outros tipos de literatura, como o romance ou a poesia,
porque é elaborada e início com a intenção de ser encenada.
60
Achamos que sabemos claramente o que uma
aparência é um aspecto que vemos, uma sentença que
proferimos, uma performance que ouvimos mas a
identidade não parece ser algo que podemos colocar em
nossas mãos ou diante de nossos olhos. Parece que ela se
esquiva. E, no entanto, sabemos que a identidade nunca é
redutível a uma de suas aparências; sabemos que a identidade
deve ser distinguida desta e de cada aparência ou perfil a que
temos acesso (...) O que tentamos fazer na análise filosófica é
garantir a realidade das identidades, trazer à tona o fato de
que elas são diferentes de um conjunto de aparências, e
mostrar que, apesar do seu estatuto escorregadio, elas
realmente são um componente da nossa experiência
82
.
Desse modo, um mesmo drama é criado por seu autor, é
apresentado aos leitores a cada vez que é lido e é apresentado a uma
platéia a cada vez que é atuado. A obra não se identifica com nenhum
dos níveis mencionados por Ingarden, tampouco com a soma de todos.
Ela é o traço que sublinha todos os seus momentos, que os amarra e
justifica sua interdependência. É claro que deve haver um limite para a
―interpretação‖ de uma obra cênica, pois os atores e diretores podem
criar releituras tão alheias à obra que, mesmo que afirmem tratar-se de
uma encenação de Don Carlos, pouco se reconhecerá da obra, o que
pode gerar polêmica quanto à legitimidade da peça enquanto encenação
de Don Carlos
83
. Note-se que o critério para se afirmar isso é a obra
escrita. Esse fato mostra o vínculo de identidade entre a obra escrita e a
execução no palco. O suposto limite da identidade, a partir do qual a
encenação não pode mais ser considerada uma execução da obra,
certamente não é uma linha precisa ao modo de um limite territorial,
82
―We think we know rather clearly what an appearance is an aspect that we see, a
sentence that we utter, a performance that we hear but the identity seems not to be something
we can put our hands on or put before our eyes. It seems to elude or grasp. And yet we know
that the identity is never reducible to one of its appearances; we know that the identity must be
distinguished from this and every presentation that we enjoy of it. (…) What we try to do in
philosophical analysis is to secure the reality of such identities, to bring out the fact that they
are different from their manifolds of presentation, and to show that despite their slippery status
they truly are a component of what we experience‖. SOKOLOWSKI, R. Introduction to
Phenomenology. New York: Cambridge University. Press, 2000.p. 30-31.
83
O que não significa que a performance perde seu valor artístico por não constituir
uma representação da obra em questão. O ponto discutido por Ingarden não é a qualidade ou o
valor de um trabalho de interpretação cênica, mas a identidade entre uma peça escrita, uma
peça de palco, as múltiplas performances e múltiplas apreensões da platéia
61
mas uma vasta área de vaguezas e imprecisões, um terreno oscilante e
suspenso, no qual dificilmente se pode julgar algo com exatidão
84
.
Acerca da música, Ingarden coloca questões semelhantes
àquelas suscitadas pelas artes teatrais: como pensar na preservação da
identidade de uma obra musical em performances diferentes da mesma
ou quando não nenhuma performance em ação? Onde a obra musical
―espera‖ quando não está sendo executada? Na experiência mundana, a
identidade de um objeto costuma ser assegurada por sua continuidade no
espaço e no tempo. Entretanto, a música não fica no espaço ou no tempo
quando não está sendo executada. Ela não é um ente concreto, com
localização espaço-temporal, mas também não é uma entidade subjetiva,
pois é algo executado ou executável, que tem, portanto, existência
pública. A música também não é um ente ideal, pois é criada em certo
momento, isto é, não é eterna como se pretende que sejam os entes
ideais. Manifesta-se novamente, portanto, a questão pela categoria
ontológica da obra de arte através da investigação de seu modo de ser,
de sua estrutura específica e de sua identidade ontológica.
Em Controversy over the Existence of the World, Ingarden
defende que dois tipos de objetos: os localizados espaço-
temporalmente e os extratemporais, ideais
85
. Ele divide os primeiros de
acordo com sua estrutura temporal: objetos que perduram no tempo;
processos; eventos. Eventos são instantâneos, são o começo ou fim de
um processo, ou seja, não têm duração. Processos são agregados de
fases, que se desenvolvem de fase em fase, são entes em transição. A
música não é um ente ideal, pois não é eterna, tem um momento de
criação. Também não é um evento, pois tem duração; também não se
constitui como um objeto físico que perdura no tempo, como os objetos
concretos em geral. Tampouco trata-se de um processo, pois não se pode
afirmar que a música é um agregado de momentos. Ingarden cria outra
categoria da temporalidade para cingir a música: o continuum, i.e., um
todo completo a cada momento em que se realiza. Desse modo, o
filósofo resolve o problema de como se ouve a música como um todo se
84
Esse mesmo problema ressurge com Thomasson, que assume que há limites para o
conhecimento em ontologia da arte e que questões como esta podem simplesmente não ter
resposta, pois o critério último desse tipo de identificação é o reconhecimento do senso-
comum, que não possui a univocidade e o rigor de um conhecimento científico.
THOMASSON, Amie. Ontology of art and knowledge in aesthetics. (published in The Journal
of Aesthetics and Art Criticism 63:3 Summer 2005).
85
MITSCHERLING. J. Roman Ingarden’s Ontology and Aesthetics. Canada:
University of Ottawa Press, 1997. p. 174.
62
a cada instante t se apreende o som t: a cada instante t ouve-se uma
fase do continuum que constitui a estrutura essencial da música. Ou seja,
mesmo que a música seja uma sucessão de momentos, a cada momento
é completa, pois ela não é meramente uma soma de várias fases, mas
uma estrutura que perpassa todas elas e se manifesta como uma
totalidade a cada momento. A temporalidade da música não é
cronológica como a dos processos, mas anacrônica. Ela não se estende
no tempo em sucessão de momentos, como roupas estendidas no varal,
mas como uma teia na qual tudo se liga a tudo. Seus momentos são
pensados e sentidos como um todo, como se a música inteira estivesse
contida em cada nota. É a manutenção dessa estrutura singular do
continuum que garante a identidade da obra em suas diversas
performances.
A pintura difere do teatro e da música porque não constitui uma
arte de performance. Além disso, costuma ser compreendida como um
objeto singular e concreto, existindo como uma presença única em um
plano espaço-temporalmente determinado. Essa compreensão comum da
pintura, que vale também para a escultura, possui, todavia, o direito de
ser questionada. Em seu livro The Picture
86
, Ingarden diferencia pintura
(painting) de representação ou figuração (picture), afirmando que essa
distinção é seu ponto de partida para a investigação do modo de ser da
obra de arte pictórica. Pintura é a parte material e figuração a parte não
material, é o aspecto visual. A figuração é uma formação estratificada,
que consiste em quatro camadas: 1. O objeto apresentado; 2. O aspecto
reconstruído que traz o objeto à aparência; 3. A função representativa; 4.
O tema literário. A primeira camada da figuração é ―o que é
apresentado‖
87
, o objeto que vem à tona na representação figurativa. No
entanto, para que o objeto seja reconhecido, é preciso que haja algo em
comum entre a percepção natural no mundo físico e a percepção na arte.
É a esse ponto que Ingarden se remete quando trata da segunda camada,
do aspecto reconstruído que traz o objeto à aparência.
Assim como os ―aspectos esquematizados‖ da literatura, ocorre
com a apreciação pictórica algo semelhante ao modo como a
fenomenologia descreve a percepção do mundo natural
88
, das coisas
espaço-temporais: só há acesso a perfis, e preenche-se a percepção atual,
86
Idem. p. 175.
87
Idem. p. 176.
88
SOKOLOWSKI, R. Introduction to Phenomenology. New York: Cambridge
University. Press, 2000. p. 28-35.
63
por exemplo, de uma cadeira de frente, com a ―construção intencional‖
de sua parte de trás, porque a consciência ―leva‖ até a percepção do
perfil frontal da cadeira a experiência temporal de ter dado a volta
nela, de que os objetos têm volume, de que eles constituem um sistema
entre si, voltando suas diversas faces uns para os outros. Merleau-Ponty
explica essa dinâmica perceptiva na Fenomenologia da Percepção com
belas palavras:
Ver é entrar em um universo de seres que se
mostram, e eles não se mostrariam se não pudessem estar uns
escondidos atrás dos outros ou atrás de mim. Em outros
termos: olhar um objeto é vir habitá-lo e dali apreender todas
as coisas segundo a face que elas voltam para ele. (...) Assim,
cada objeto é o espelho de todos os outros. Quando olho o
abajur posto em minha mesa, eu lhe atribuo não apenas as
qualidades visíveis a partir de meu lugar, mas ainda aquelas
que a lareira, as paredes, a mesa podem ―ver‖, o verso de
meu abajur é apenas a face que ele ―mostra‖ à lareira. (...)
Mas, mais uma vez, meu olhar humano só ―põe‖ uma face do
objeto, mesmo se, por meio dos horizontes, ele visa todas as
outras. Ele só pode ser confrontado com s visões precedentes
e com as dos outros homens por intermédio do tempo e da
linguagem
89
.
Sem entrar em maiores detalhes, é manifesto que a percepção
natural se através de uma reconstrução intencional dos perfis que
não são dados no momento atual. Do mesmo modo, na pintura
figurativa, o que se percebe atualmente é um plano bidimensional, mas
reconstrói-se intencionalmente uma dimensão de tridimensionalidade na
qual os objetos pintados são apresentados. A pintura é tinta sobre um
plano material, mas a figuração é preenchimento pela consciência, é um
objeto puramente intencional. A pintura é mancha de cor sobre tecido, a
figuração é uma cadeira, um rosto, Afrodite nascendo ou uma cesta de
legumes. O que Ingarden chama de aspecto reconstruído é essa camada
das operações da consciência que permitem o reconhecimento de um
objeto que se apresenta na figuração como tal objeto, e não
simplesmente como mancha de cor bidimensional. Essa ―mágica‖ da
pintura foi diversas vezes tematizada em crítica de arte: como é possível
89
MERLEAU-PONTY, M. Fenomenologia da Percepção. São Paulo: Martins
Fontes, 1999. p. 104-107.
64
apreciar um retrato e ter a sensação de ser olhado de volta por ele, sentir
incômodo, ou sentir piedade ao ver um Cristo crucificado, se o que se vê
concretamente é apenas mancha de tinta distribuída em certa
configuração sobre um tecido? Como um olho que é feito de mancha
pode fazer com que um espectador sinta-se olhado? Como o pintor pode
criar essa ilusão de realidade, de objetividade, de tridimensionalidade a
partir de um plano bidimensional? Esse é o enigma figural, contra o qual
Manet e os impressionistas foram os primeiros a se rebelar, afirmando
que a pintura não é uma janela para o mundo, que não deve assumir o
compromisso de criar uma ilusão figurativa, mas deve afirmar-se como
aquilo que é: um plano manchado
90
. A fenomenologia explica o enigma
figural pela intencionalidade da consciência, que reconstrói os objetos a
partir de um vínculo simbólico, estrutural ou formal com o mundo
espaço-temporal. Ingarden assevera que esse segundo estrato é o mais
basilar na constituição da representação pictórica. Os dois estratos
subsequentes servem apenas para diferenciar entre a função de
representar um objeto, como as naturezas mortas de Cézanne (terceira
camada), e a representação de uma cena ou tema histórico ou
mitológico, cujo sentido se apóia em um tema literário que se estende
para além do que está meramente representado no quadro (quarta
camada).
A distinção entre pintura e figuração serve sobretudo para
mostrar que a figuração, que, de acordo com o pensador, é a verdadeira
obra de arte, não se identifica com seu suporte material
91
. Logo, assim
como a música, a figuração não é um ―objeto real‖, no sentido dos
objetos concretos espaço-temporais; ela tem um modo de ser próprio,
determinado por sua estrutura essencial. Com isso, mostra-se a
problematização da compreensão da pintura e da escultura como objetos
físicos, que será criticada por Thomasson como The Physical Object
Theory. O ponto central, todavia, está na ideia de que o sujeito
concretiza a obra de arte e isso é constitutivo da obra em si mesma. Este
assentimento deve ser levado em consideração no enfrentamento aos
problemas relativos à identidade da obra pictórica: como é possível
manter sua identidade entre a diversidade de concretizações feitas pelos
sujeitos? Ingarden evita esse problema, que permeia toda teoria
subjetivista da arte, pela distinção entre obra de arte e objeto estético. A
90
JANSON, A. Iniciação à História da Arte. São Paulo: Martins Fontes, 1988.
91
MITSCHERLING. J. Roman Ingarden’s Ontology and Aesthetics. Ottawa:
University of Ottawa Press, 1997. p.178.
65
obra existe como uma mesma obra de arte única e idêntica a si mesma,
todavia enquanto potência, ou seja, antes do contato com o espectador.
Mas ela é atualizada na concretização do espectador, que introjeta
nela não apenas a estrutura intencional da consciência, mas uma
dimensão subjetiva, como crenças, gostos, opiniões. Ou seja, a obra de
arte é idêntica a si enquanto potência, mas concretizada de modos
diferentes para cada espectador. Ela é a mesma enquanto obra de arte,
mas diversa enquanto objeto estético, motivo pelo qual é possível fazer
juízos estéticos diferentes de uma mesma obra.
O que mais se evidencia a olhos ontologicamente atentos é que
o que há em comum entre as diferentes caracterizações das obras de arte
feitas por Ingarden é o fato de que o o estatuto ontológico de todas elas
não pode ser pensado dentro da dicotomia real-ideal, uma vez que a
identidade da obra comporta tanto elementos reais-materiais quanto
elementos ideais. Por isso ele as pensa como puramente intencionais.
Esse aspecto híbrido da categoria ontológica que deve sublocar a arte é
um ponto que fica obscuro em Ingarden, e, embora seja a pedra de toque
de sua teoria, pode ser também seu tendão de Aquiles. Amie Thomasson
constrói sua alocação categorial da arte precisamente a partir desse
ponto de fusão entre o ideal/mental (pensados em um único ―eixo‖ pela
autora) e o real, esclarecendo e formalizando aquilo que em Ingarden
aparece de modo mais intuitivo e tácito.
2.5 Possíveis Desenvolvimentos das Teorias de Ingarden
Embora tenha elaborado uma teoria tão complexa e completa
acerca da arte, Ingarden teve pouca influência na estética contemporânea
porque seus textos são bastante abstrusos e porque ficou refugiado na
Polônia durante a Segunda Guerra Mundial, afastando-se da Alemanha,
que era o foco intelectual da época. Mesmo os fenomenólogos
posteriores seguem mais a crítica de consciência da escola de Genebra
do que Ingarden. Sua influência incidiu mais intensamente entre os
pensadores de língua inglesa e na tradição da hermenêutica filosófica.
Hartmann e Gadamer, principalmente, popularizaram a teoria de
Ingarden da obra de arte como entidade estratificada
92
. Diversas de suas
contribuições proporcionam boas respostas a problemas centrais da
92
MITSCHERLING. J. Roman Ingarden’s Ontology and Aesthetics. Ottawa:
University of Ottawa Press, 1997. p. 197, 198.
66
hermenêutica. Nos escritos de Gadamer, por exemplo, a noção central
da análise da obra de arte é Spiel: jogo, jogar. O verbo é mais
elucidativo, porque ele afirma que a obra de arte tem que ser
continuamente reconstruída pelo espectador enquanto criação, o que fica
mais claro nas artes transitórias, como o teatro, a música e a dança. Ou
seja, assim como Ingarden, com os conceitos de aspectos reconstruídos
ou esquematizados, Gadamer sustenta que a obra não é um objeto que
existe independentemente, produzido por uma atividade criativa e que
posteriormente é apreendido pelo espectador como prazer estético, de
acordo com o paradigma da estética filosófica tradicional. Em Verdade e
Método, a obra de arte é pensada por Gadamer como algo
continuamente em criação na relação com o espectador, o artista e o
objeto. Em concordância com Ingarden, o hermeneuta afirma que a obra
de arte não é a coisa material nem o ato mental, pois é algo que deve ser
interpretado (logo, não é material), mas cuja interpretação deve se referir
ao objeto ou texto real (logo, não é mental ou subjetiva). Para a
hermenêutica filosófica de Gadamer, a obra é uma criação com várias
camadas que transcende sujeito e objeto, apesar de incluir esses dois
pólos em sua constituição, unindo-os no preenchimento ou construção.
Essas ideias foram em grande parte apropriadas de Ingarden, o que
mostra como suas teorias podem ser desenvolvidas
contemporaneamente, não apenas dentro da mesma tradição, mas
levando-as a desvios, reformulações e mudanças de foco.
Quiçá a maior contribuição de Ingarden é a concepção de que a
arte possui um caráter esquemático, que diz respeito à sua estrutura
ontológica essencial (ontologia) e à sua apreensão tanto como obra de
arte quanto como objeto estético (epistemologia). Significa que na obra
de arte certas características são dadas apenas esquematicamente e são
preenchidas, reconstruídas, concretizadas pela pessoa que a apreende.
―pontos de indeterminação‖ que são deixados em aberto na obra e
são preenchidos pela intencionalidade do leitor ou espectador. O modo
como o leitor, por exemplo, preenche os pontos de indeterminação de
um romance nunca é completamente determinado pela obra e sua parte
descrita. Esses preenchimentos podem se modificar ao longo da obra se
o autor revela detalhes que não tinham aparecido anteriormente e que
tinham sido preenchidos de algum outro modo pelo leitor. Pode-se, por
conseguinte, mudar a concretização de um detalhe com o qual um
personagem havia sido representado até então com base no esquema da
obra, adaptando-o à nova informação, que vem do andamento da obra.
67
Analogamente, na pintura, o objeto físico é dado e, como coisa real, não
apresenta pontos de indeterminação. Mas a obra de arte propriamente
dita é a figuração, que é a concretização feita pelo espectador, o
preenchimento do que é dado na pintura apenas esquematicamente. Por
exemplo, a pintura representa uma mancha na forma de uma cadeira de
frente, mas essa mancha é concretizada como uma objetividade, isto é,
como uma cadeira tridimensional, que tem parte de trás, volume e ocupa
um lugar no espaço. Estes perfis não se mostram no suporte material da
pintura, mas no preenchimento do seu esquema, que se dá através de um
ato intencional do espectador. A música também é esquemática, é um
conjunto de indicações sonoras a serem preenchidas. O compositor de
uma obra musical deixa vários pontos indeterminados, que são
concretizados pelas performances individuais da música, que são
apreendidas pelo ouvinte como o objeto estético musical. É o caráter
esquemático da obra de arte que torna a concretização dos pontos
indeterminados por parte do espectador (que deixa de ser passivo e
passa a ter um papel ativo na constituição da obra de arte), não apenas
possível, mas necessária.
Enfim, Ingarden adota o preceito fenomenológico de por as
essências de volta à existência, ou melhor, de revelar as essências nas
coisas existentes cotidianamente. O pensador realiza esse intento através
de uma descrição dos dados, que o leva a estabelecer três modos de ser:
o real, o ideal e o intencional. Essa divisão cria uma alocação categorial
dos dados em suas especificidades. A singularidade do pensamento de
Ingarden está em demonstrar a interdependência dos modos de ser, sem
reduzir uns aos outros. A maioria dos autores cai em algum tipo de
reducionismo ou postula uma hierarquia arbitrária entre os modos de
ser. Conforme Ingarden, estes são independentes e autônomos, e
interagem uns com os outros para tornar possível o mundo tal como é
experimentado. Trata-se de uma descrição fenomenológica no sentido
de que é a experiência mundana que demanda a admissão de três modos
de ser básicos. É a existência e identidade da obra literária que mostra
que há um reino ontológico para além do real e do ideal, e faz o filósofo
propor o modo ontológico do puramente intencional:
Se, porém, esta tentativa também falhasse e se
mostrasse simultaneamente que é lícito aceitar dois reinos
de objetos, os reais e os ideais, então não se poderia resolver
em sentido positivo o problema do modo de ser nem o da
68
identidade da obra literária, cuja existência deveria ser
simplesmente negada
93
.
A radicalidade do pensamento de Ingarden está nessa afirmação
segura de que a obra de arte não pode ser pensada dentro da dicotomia
tradicional entre reais e ideais, pois ela é uma entidade híbrida, com
características de ambas as categorias. O pensamento deve servir para
criar sentido para as experiências mundanas e não para obrigá-las a se
encaixar dentro de fórmulas prontas e preconceitos teóricos. Por isso o
estudo da obra de arte é tão importante para Ingarden, pois ela é um
acontecimento cuja existência não pode ser negada e que tampouco pode
ser compreendida com o dualismo real/ideal, mostrando que há um
terceiro modo de ser, que comporta caracteres de ambos os lados.
Thomasson parte exatamente desse ponto: a exigência de uma
compreensão adequada para as obras de arte mostra as lacunas e os
problemas da metafísica como um todo. Assim como as teorias de
Ingarden remetem-se intensamente à fenomenologia husserliana, os
apontamentos de Thomasson fazem referência à filosofia da arte de
Ingarden de modo ainda mais direto, uma vez que, diferentemente de
Husserl e Ingarden, Thomasson e Ingarden adotam o mesmo problema
investigativo, que é a construção de uma ontologia categorial específica
para as obras de arte.
93
INGARDEN, R. A obra de arte literária. 3.ed. Lisboa: Calouste Gulbenkian,
1965.p. 139. p. 35.
69
PARTE II
A ONTOLOGIA DA ARTE EM AMIE THOMASSON
70
3. UMA BASE ANALÍTICA PARA UMA ONTOLOGIA
CATEGORIAL
Do final do século XX até os dias atuais, emerge uma linha de
interpretação em filosofia da arte que tem se expandido principalmente
nos países de língua inglesa. Trata-se da abordagem formal ou categorial
da arte, que pretende pensá-la formalmente isto é, sem predeterminar
características históricas ou materiais, obtidas por generalização ou no
contexto de um quadro de categorias ontológicas básicas. Nessa linha de
pesquisa encontram-se autores eminentes como Amie Thomasson,
Gregory Currie, Peter Lamarque, Nicholas Wolterstorff, Kendall
Walton, entre outros. A intensidade desse debate atual em filosofia da
arte pode ser acompanhada principalmente nas revistas The Journal of
Aesthetics and Art Criticism (EUA) e The British Journal of Aesthetics
(Reino Unido), bem como no número crescente de publicações de livros
nessa temática, principalmente na Inglaterra e nos Estados Unidos.
Amie Thomasson, atualmente pesquisadora e professora de
filosofia da Universidade de Miami, insere-se nessa corrente. Seu
trabalho se direciona a problemas cardinais em filosofia da linguagem e
metafísica, como os debates sobre analiticidade, condições de identidade
dos objetos em geral, parcimônia ontológica, comprometimentos e
implicações ontológicas, sistemas de categorias, entre outros. Esta
dissertação não possui a pretensão de tecer um comentário sobre a
filosofia de Thomasson, tampouco de constituir um catálogo de suas
obras ou debater com a imensa diversidade de suas pesquisas. O foco
desta investigação é o estatuto ontológico da obra de arte, no contexto
de uma abordagem categorial e formal. Assim, os textos de Thomasson
a serem examinados são principalmente aqueles que apresentam
discussões sobre filosofia da arte e estética, como The Ontology of Art e
Ontology of Art and Acknowledge in Aesthetics. No entanto, em virtude
do fato intensamente ressaltado pela própria autora de que não se pode
fazer ontologia regional sem uma elucidação prévia das bases analíticas
e categoriais com as quais se está operando, e do fato de que esta
dissertação visa pensar a obra de arte dentro do contexto mais amplo de
uma ontologia categorial, será necessário abordar outros escritos que
mostram concepções ontológicas mais basilares da pensadora. O livro
que funcionará como fio condutor para a discussão de sua ontologia
categorial ou formal é Fiction and Metaphysics, pois apresenta o sistema
analítico proposto por Thomasson como pano de fundo para qualquer
71
investigação em ontologias regionais. Além disso, o objetivo do livro
não foge tanto do tema proposto por essa investigação, pois constitui
uma pesquisa sobre os objetos ficcionais, que, como se esclarecerá,
pertencem à mesma categoria ontológica proposta para a literatura e a
música.
Desse modo, assim como Ingarden inicia sua pesquisa com uma
investigação da obra de arte literária, para depois adentrar em questões
sobre obras de arte em geral, sendo que, além disso, todas essas
pesquisas funcionam como uma semente para investigações metafísicas
mais básicas, como o debate entre realismo e idealismo, Thomasson
trata de objetos ficcionais e de seu suporte ontológico, as obras
literárias, como uma semente para investigar os dualismos metafísicos e
propor um sistema ontológico categorial multidimensional. O caminho a
ser trilhado, portanto, é o mesmo. A pesquisa sobre a ficção leva
Thomasson a constituir um sistema categorial que possa prover uma
base de discussão mais sólida para os objetos que sempre foram
relegados a segundo plano nas discussões da tradição metafísica, como
os seres fictícios, as obras de arte e os objetos culturais. Assim, a
exposição de seu pensamento começará com o esclarecimento de seu
sistema categorial, para em seguida mostrar como ela aborda o problema
da ficção nesse contexto e, posteriormente, as obras de arte em geral.
3.1 O Método Ontológico de Thomasson
Thomasson mantém-se constantemente em discussão com
filósofos modernos e contemporâneos, desde Frege, Quine e Husserl a
Smith, Wolterstorff, Chisholm, Hoffman e Rosenkrantz, entre outros.
Desse modo, ela está familiarizada com as discussões acerca da
retomada da ontologia e da descrença bastante generalizada acerca da
postulação de sistemas de categorias. Por esse motivo ela parte de uma
argumentação contra as desconfianças céticas a respeito de ontologias
categoriais. Thomasson explica que dois modos de fazer ontologia
exercidos atualmente: um deles é a ontologia categorial, que ela admite
estar veementemente démodé e desacreditada, o outro é o que ela chama
de ―piecemeal ontology‖, ou seja, ontologias parciais, regionais. As
ontologias categorias são feitas desde Aristóteles, passando por sistemas
consagrados, como os de Porfírio, Kant e Husserl, e consistem no
estabelecimento de alguns conceitos básicos que funcionam como
72
categorias ontológicas que visam determinar que tipo de coisas pode
haver no mundo. Nesse nível ontológico, os filósofos preocupam-se em
buscar os tipos ou categorias dentre as quais as coisas podem ser
afirmadas existindo, sem se preocupar ainda com quais coisas as
ocupam efetivamente: ―a primeira tarefa é desenvolver categorias nas
quais se pode dizer que as coisas existem, sem o compromisso de
afirmar se essas categorias são ou não ocupadas‖
94
. Ou seja, trata-se de
postular quais categorias se pode utilizar para pensar tudo aquilo que
pode ser afirmado como existente ou possível, sem assumir de antemão
comprometimentos ontológicos a respeito da existência de quaisquer
tipos de entidades. Essa abordagem filosófica foi introduzida no capítulo
1.5 da Introdução. Ela pode ser mais bem compreendida em
contraposição a outro tipo de abordagem, alcunhada de ontologia
piecemeal por Thomasson. Esta consiste em iniciar as investigações
filosóficas não a partir de um solo global e formal, mas a partir da
discussão da existência de certos tipos de entidades. Por isso chama-se
piecemeal, i.e., algo que se faz por partes, por pedaços: toma-se algum
tipo de entidade, normalmente as que são mais debatidas ou sofrem mais
preconceitos na história da metafísica tradicional, como os universais, os
números, os ideais ou os objetos ficcionais, por exemplo, e elabora-se
uma série de raciocínios para se demonstrar a existência ou inexistência
da entidade em questão, sem pensá-la no contexto mais amplo de um
solo de discussão para as possíveis assunções de existência de todos os
tipos pensáveis de entidades (que é o papel da ontologia categorial). A
autora afirma que os pensadores contemporâneos costumam focar mais
nesse tipo de abordagem, com algumas exceções significativas, como
Chisholm, que elabora uma árvore de tipos em On Metaphysics, ou
Hoffman e Rosenkrantz, que tecem considerações sobre categorias em
Substance among other Categories, bem como Johansson em
Ontological Investigations e Grossmann em The Categorial Structure of
the World.
Pelo que foi elucidado até aqui, pode-se facilmente concluir
que Thomasson opta pela defesa de uma ontologia categorial, com a
justificativa de que, quando se exerce exclusivamente ontologias
parciais ou regionais, corre-se o risco de ser arbitrário e inconsistente,
pois não se possui um solo mais amplo e formal para analisar as
94
―The first task is to lay out categories in which things migth be claimed to exist,
without commitment to whether or not such categories are occupied‖. THOMASSON, A.
Fiction and Metaphysics. Cambridge: Cambridge University Press, 1999. p. 115.
73
implicações ontológicas das admissões ou exclusão de cada tipo de
entidade. Assim, ontólogos regionais acabam por admitir a existência de
certas entidades e negar a existência de outras, sendo que, ao se exercer
uma análise mais aprofundada da estrutura ontológica das mesmas,
revela-se que ambas pertencem ao mesmo tipo ou à mesma categoria.
Assim, seria inconsistente negar a existência de uma e afirmar a
existência de outra, mas isso é algo que não se pode perceber a não ser
quando se estabelece uma base de análise prévia, que é justamente a
ontologia categorial. Assim, Thomasson não critica as ontologias
parciais, apenas alerta para o fato de que elas têm que se fundar em um
nível ontológico mais sistemático e formal para que não caiam em
inconsistências ontológicas, arbitrariedades e casos de falsa parcimônia.
A autora costuma conduzir a discussão em termos de admissão da
existência ou não, ou da dispensabilidade ou não, de certo tipo de
entidade, o que pode facilmente levar a uma queda em questões factual-
empíricas, que poderiam ser resolvidas no âmbito científico e não no
filosófico. Mas pode-se manter a sua argumentação central também em
termos de possibilidade/impossibilidade, de sentido/não-sentido, de
compatibilidade/incompatibilidade com o quadro conceitual aceito, o
que explicita a implicação filosófica de cada afirmação das ontologias
regionais com uma suposta teoria de fundo, onde estariam especificados
as categorias ou tipos compatíveis, necessários e suficientes para dar
conta dos dados. Essa teoria de fundo é a base analítica ou ontologia
categorial que a autora pretende formular para, subseqüentemente,
fundar seus desenvolvimentos em ontologias regionais.
É nessa perspectiva que ela busca compreender e minimizar a
argumentação cética contra os sistemas de categorias ontológicas.
Thomasson explica que as suspeitas céticas quanto a essa tese ancoram-
se em duas fontes. A primeira consiste no fato de que, diante de uma
lista finita de categorias, qual garantia de que são precisamente estas
as categorias nas quais todas as entidades devem ser subsumidas de
modo exaustivo e mutuamente excludente? Pois todo sistema categorial,
e Thomasson está de acordo com isso, se pretende exaustivo, isto é,
qualquer entidade pensável deve encaixar-se em alguma das categorias
selecionadas, não ficando nenhuma ―de fora‖, e se pretende mutuamente
excludente, isto é, cada entidade deve pertencer a apenas uma das
categorias, não podendo ser encaixada em duas delas ou mais. Os
céticos afirmam que não garantias de que a lista de categorias
postuladas cumpra essas duas funções. A segunda fonte dos argumentos
74
céticos edifica-se em um olhar retrospectivo, pois é a compreensão
histórica de que, desde Aristóteles, diversos sistemas categoriais foram
elaborados, todos diferentes uns dos outros, alguns mesmo
contraditórios entre si, e todos se pretendendo verdadeiros ou melhores
do que os anteriores. Diante dessa variedade, como julgar qual sistema é
o correto? Com efeito, através desse ponto de vista, é mais prudente
pensar que a seleção de categorias ontológicas tem mais a ver com as
crenças de cada pensador ou com os conceitos de uma época do que
com a realidade. Thomasson não tira a razão desses argumentos, ao
contrário, toma-lhes como a pedra angular para a defesa, não da
renúncia de sistemas categoriais, mas de uma ontologia categorial que
possa escapar a essas suspeitas nada injustificadas.
De acordo com a autora, os argumentos céticos valem para
refutar ontologias unidimensionais, que operam através do formato de
listas paralelas, que simplesmente enumeram algumas categorias sem
uma base segura para justificar porque são estas as categorias e não
outras, como a tábua aristotélica e a kantiana, ou através do formato de
árvores, que usam a lógica do gênero e da espécie, como a árvore de
Porfírio ou a de Chisholm, para citar uma mais recente. O sistema
proposto por Thomasson foge a estes modelos, porque adota o desígnio
de ser meta-categorial ou, nas palavras da autora, existencial e
multidimensional. ―Existencial‖, por ter diversas conotações na tradição
filosófica, requer esclarecimento:
Freqüentemente a abstração de uma diversidade de
objetos para um sistema de categorias é explicitamente ou
tacitamente baseada nas categorias sintáticas das palavras
que se referem a essas entidades; isso parece estar por trás de
divisões comuns em categorias formais, como objeto,
propriedade e estados de coisas ( correspondentes a
expressões nominais, predicativas e proposicionais). Eu
desenvolvo, em vez disso, um sistema de categorias baseado
nas condições de existência das próprias coisas
95
.
95
―Often the abstraction from a diversity of objects to a system of categories is
explicitly or tacitly based on the syntactic categories of the words referring to those entities;
this seems to lie behind common divisions into formal categories such as object, property and
state of affairs (corresponding to nominative, predicative and propositional expressions). I
draw out instead a system of categories based on the existence conditions of the things
themselves‖. Idem. p. 120.
75
Ou seja, Thomasson classifica seu sistema como existencial
porque se edifica nas condições de existência das próprias coisas e não
nas categorias sintáticas da linguagem. Outro aspecto crucial para a
compreensão de sua proposta analítica é o conceito de
―multidimensional‖. O seu sistema não pode ser pensado como estando
ao lado, no mesmo nível de outros sistemas categoriais, pois o que a
autora oferece é uma base que permite a análise de diferentes ontologias.
Por isso pode-se pensá-lo como meta-categorial ou meta-ontológico: é
uma base unificada na qual as diversas categorias e ontologias podem
ser alocadas e melhor examinadas ou comparadas: ―diferentemente dos
sistemas no formato de listas paralelas ou ramificadas, esse sistema de
categorização é multidimensional, permitindo que vários sistemas
mutuamente ortogonais sejam incorporados‖
96
. É um sistema formal
porque não assume a existência de nenhuma entidade e não se
compromete com a assunção de alguma categoria específica. Funciona
antes como uma metodologia ontológica. O método consiste em
fornecer possíveis categorias ontológicas dentro de uma base mais
primitiva, que possibilita analisar as diversas implicações ontológicas
entre as categorias e a admissão ou exclusão da existência de quaisquer
entidades.
A proposta de Thomasson pode ser pensada como uma
―metodologia‖ ou ―base analítica‖ ou ―sistema meta-categorial‖ ou
―ontologia formal‖. Consiste na adoção do conceito de dependência
ontológica como diretriz do método e dos conceitos de ―real‖ e ―mental‖
como os dois eixos básicos nos quais se funda toda dependência
ontológica ulterior. Assim, ―dependência ontológica‖, ―objetos reais‖
(entendidos como objetos com localização espaço-temporal) e ―estados
mentais‖ são os três conceitos basilares de seu sistema meta-categorial.
A ―existencialidade de sua ontologia, isto é, pensar as coisas em si
mesmas a partir das suas condições de existência e não através de um
paradigma lingüístico, incide no conceito de dependência ontológica,
pois são as relações de dependência de cada entidade a estados mentais
ou a objetos reais que revelam suas condições de existência e de
identidade. Um ponto que parece passível de fácil objeção é a escolha
dos eixos ―mental‖ e ―real‖ como bases analíticas para categorização,
pois eles mesmos são categorias tradicionais e, ademais, postos em
96
―Unlike traditional parallel or tree-type systems, this system of categorization is
multidimensional, enabling various mutually orthogonal systems of categories to be
incorporated‖. Idem. p.120.
76
discussão por diversas teorias. Uma teoria idealista ou uma teoria
materialista eliminativista negaria a existência de entidades puramente
materiais ou puramente ideais, respectivamente. Logo, não é tão
evidente que elas possam servir como bases últimas de um sistema
meta-categorial. Todavia, essa objeção advém de uma compreensão
da natureza formal do sistema, ―pois essas categorias devem ser
desenvolvidas de um modo pré-partidário, antes de tomar decisões sobre
o que deve e o que não deve ser admitido‖
97
. Ou seja, Thomasson não
se compromete, ao selecionar esses dois pilares de dependências
ontológicas, com a admissão da existência de entidades materiais ou
ideais; ela apenas afirma que, para qualquer entidade possível, suas
condições de existência (caso exista) estarão alicerçadas em estados
mentais ou em objetos reais. Ademais, ela não postula que esses dois
eixos sejam uma solução definitiva em ontologia, apenas afirma que, a
princípio, são suficientes para dar conta das condições de existência de
todas as entidades de um modo mais compreensivo e exaustivo que os
sistemas anteriores. É nesse sentido que a pensadora afirma que ―para os
presentes propósitos, eu me limito a desenvolver um sistema categorial
baseado em dois eixos separados, embora em princípio o esquema
poderia ser expandido‖
98
. Ou seja, a possibilidade de que outro eixo de
fundamento de dependências poderia ser incluído no sistema mantém-se
aberta, mas, para tal, seria necessário demonstrar sua relevância
enquanto base de relações de dependência e porque ele não pode ser
reduzido aos dois eixos já apresentados.
A escolha dos conceitos de mental e real como bases para a
ontologia desperta suspeitas porque grande parte da filosofia
desenvolvida nos últimos anos, entre os quais se destacam o
pragmatismo e a filosofia da linguagem, consiste na adoção de uma
postura anti-psicologista, na qual estão inclusos Husserl e Ingarden, que
a autora assume como origens históricas de sua própria teoria. Nas
últimas décadas, a filosofia concentrou-se em argumentos anti-
psicologistas, buscando negar o mentalismo, através da afirmação de
que não existe nada puramente mental ou de que o mental funda-se em
coisas físicas. Nesse caminho, a linguagem vem sendo adotada como o
conceito fundamental, ao lado dos entes espaço-temporais, que permite
97
―For these categories are to be drawn out in a prepartisan way, before making
decisions about what should and should not be admitted‖. Idem. p. 122.
98
―For present purposes I limit myself to drawing out a category system based on two
separate axes, although in principle the scheme could be extended‖. Idem. p. 120.
77
a explicação da experiência mundana sem o apelo para os tradicionais
―estados mentais‖. A linguagem oferece vantagens, pois explica as
dimensões de sentido que extrapolam as ocorrências espaço-temporais,
sem, contudo, comprometer-se com conceitos subjetivos, uma vez que é
pública e histórica. Assim, a escolha dos eixos ―mental e ―real‖ por
parte de Thomasson parece arbitrária e requer melhor argumentação. A
autora está afirmando os conceitos de estados mentais e de coisas reais
como fundos ontológicos nos quais tudo o mais se fundamenta ou
estaria apenas estipulando esses conceitos como base formal (assim
como os geômetras escolhem os seus axiomas e retiram as
consequências)? No primeiro caso, o conceito formal é o de
dependência, e os conceitos de real e mental indicam os tipos de
entidades que podem entrar em relação de dependência. Logo, já se está
fazendo decisões ontológicas, pois se está delimitando o campo da
existência às entidades mentais ou físicas ou as que são uma mistura das
duas. Nesse caso, por mais que Thomasson afirme fazer uma ontologia
multidimensional, que permite a coexistência de quaisquer ontologias, já
que ela não pré-determina a existência de nada, não se pode negar que
sua teoria estaria longe de ser neutra ontologicamente. Pois mesmo que
se possa usar seu sistema mental-real de modo a negar a existência de
todos os entes puramente mentais ou de todos os entes puramente reais,
o fato de haver apenas esses dois eixos como opções para toda
dependência ontológica pré-determina de algum modo as decisões
filosóficas que serão tomadas a partir daí. Pois quando um realista
afirma que coisas reais, por exemplo, ele não está dizendo que
dois tipos possíveis de fundamento ontológico, os estados mentais e as
coisas reais, e que não há nada que se funda nos estados mentais, ou que
o conjunto de coisas fundamentadas em estados mentais é um conjunto
vazio. Isso seria simplificar a teoria realista e forçá-la a uma estrutura
que faz com que ela perca suas distinções e sutilezas. Pois o ponto
central do realismo é o reducionismo, i.e., afirmar que todos os
aparentes estados mentais fundam-se em entidades reais e não que
existem entidades reais. Mas quando se cria um sistema como o de
Thomasson, que de inicio assume os dois eixos, o mental e o real, para
as ulteriores dependências ontológicas das possíveis entidades, ela
exclui de antemão a dependência do próprio eixo mental no eixo
material (materialismo, realismo, reducionismo) ou do eixo material no
eixo mental (solipsismo). Então o sistema não seria tão imparcial quanto
pretende. Ele não seria pré-ontológico, pois assumiria uma decisão
78
ontológica de antemão: de que mental e real são dois eixos
independentes e que um não se funda no outro, mas apenas as outras
coisas que são fundadas num ou noutro ou em ambos. No entanto,
Thomasson indicações de saída para esse problema, que consiste em
pensar os dois eixos em questão como meramente formais, isto é, como
posições que podem ser ocupadas por diversos conceitos. Assim, pode-
se manter o esquema de Thomasson, sustentando que os eixos mental e
real equivalem a x e y, ou seja, que poderiam ser ocupados por outros
conceitos, uma vez que seu esquema é metodológico e não implica em
nenhum compromisso ontológico.
Com efeito, essa solução é plausível, uma vez que a própria
pensadora afirma que o esquema está aberto para se inserir novos
conceitos, apenas advertindo que os conceitos sugeridos de mental e real
são mais eficientes tendo em vista sua relevância histórica e sua
eficiência para lidar com o discurso do senso-comum
99
. Assim, pode-se
sustentar que o esquema de Thomasson oferece espaço para dois ou
mais eixos de base para dependências ontológicas, bem como para os
seis tipos de dependência ontológica que serão examinados a seguir.
Esse espaço é formal e pode ser preenchido por diversos conceitos. A
autora, no entanto, realiza por si mesma esse preenchimento, optando
por dois eixos, o real e o mental, admitindo, todavia, que poderiam ser
outros ou que poderiam ser incluídos mais de dois eixos. Sua escolha,
apesar de ser uma decisão ontológica, não é totalmente arbitrária, pois
ela oferece bons argumentos em seu favor. Segundo Thomasson, essa
dupla raiz fundadora captura o ponto crucial das distinções ontológicas
mais tradicionais, como entre o abstrato e o concreto, o mental e o
material, o ideal e o real, bem como conta das conhecidas
controvérsias acerca do estatuto ontológico de entidades como as
matemáticas, os objetos ficcionais, os objetos sociais, os universais,
entre outras. Em suas palavras,
O esquema poderia ser extendido para mais
dimensões, para acomodar outros assuntos, mas a
centralidade dessas questões como polos de debate torna as
dependências no mental e no real um lugar óbvio para
começar o desenvolvimento de um sistema de categorias
multidimensional
100
.
99
Idem. p. 121.
100
―The scheme could be extended to more dimensions to accommodate other
concerns, but the centrality of these issues as poles of debate makes dependencies on the
79
Ou seja, o esquema metodológico proposto oferece, em
princípio, lugar para dois ou mais eixos que funcionam como bases
ontológicas, sendo que esses eixos são formais, são x e y e z ou mais.
No entanto, a própria autora dá um passo a mais e preenche essas
variáveis, escolhendo não mais do que dois eixos e propondo os
conceitos de estados mentais e objetos reais para dar conta da
experiência mundana, do discurso comum, bem como da tradição
filosófica em geral. Esses dois eixos são propostos como soluções de
preenchimento ontológico para seu método analítico, mas isso não é
feito de qualquer modo, isto é, arbitrariamente ou dogmaticamente, mas
através da capacidade explicativa desses dois conceitos para dar conta
dos principais dualismos e problemas da metafísica. Essa é uma saída
bastante plausível às objeções feitas à autora de imparcialidade e
ingenuidade na escolha do duplo eixo mental-real como diferença
basilar em ontologia.
Além dos conceitos basilares de estados mentais e coisas reais,
o conceito de dependência ontológica é fundamental no sistema
categorial de Thomasson. De acordo com a autora, é necessário elaborar
uma teoria mais detalhada das possíveis relações de dependência e dos
diversos modos nos quais esta pode se apresentar. Trabalhando a partir
da investigação filosófica de Husserl a respeito dos conceitos de
fundação e dependência ontológica, Thomasson adverte que
Nós precisamos de uma teoria da dependência
que seja ao mesmo tempo geral o suficiente para cobrir todos
os casos, revelando o que eles têm em comum, e refinada o
suficiente para respeitar as diferenças relevantes entre os
tipos de dependência. (…) A seguir, é importante isolar o
fenômeno da dependência a fim de evitar a confusão que
resulta de sua mistura com outras questões. (…) Uma
terceira meta desse estudo é generalizar a descrição para
incluir dependências entre estados de coisas, características
de um objeto e propriedades. O trabalho sobre dependência é
geralmente limitado a discutir as relações de dependência
entre objetos
101
.
mental and the real as obvious place to begin in drawing out a multidimensional system of
categories‖ Idem. p. 121.
101
―We need a theory of dependence at once general enough to cover all of the cases,
revealing what they have in common, and fine-grained enough to respect important differences
in types of dependence. (…) Next, it is important to isolate the phenomenon of dependence in
80
Mantendo estes objetivos, Thomasson elabora uma ampla e
detalhada descrição da dependência, que se funda em duas distinções
básicas: a distinção entre duas formas de dependência, a genérica e a
rígida, e a distinção baseada no tempo em que uma entidade requer outra
para existir, que leva aos conceitos de dependência, dependência
histórica e dependência constante. Assim, partindo de uma definição
formal de dependência, ―necessariamente, se A existe, B existe‖, ela
aponta a diferença entre dependência rígida, que consiste na
dependência a um indivíduo específico, um particular, e a genérica, isto
é, a dependência a um tipo de indivíduo, qualquer que seja ele. Por
exemplo, uma pessoa depende de seus pais rigidamente, pois não seria a
mesma pessoa se seus pais fossem outros quaisquer. Por outro lado, uma
maçã depende de sua cor genericamente, pois tem que possuir uma cor,
mas não uma específica. Ela poderia ser de outra cor e continuaria sendo
a mesma maçã (com efeito, as maçãs variam de cor ao longo de sua
existência, do verde, ao vermelho e ao marrom, e continuam sendo as
mesmas).
Quanto ao tempo, Thomasson mostra que um tipo de
dependência em geral: ―se A existe em algum tempo, B existe em algum
tempo‖, ou seja, A depende de B sem nenhuma determinação temporal;
B pode ter existido antes, depois ou durante A. Basta que B tenha
existido em algum tempo qualquer para que A exista. Ela admite que
esse caso de dependência é um pouco raro, mas pode ser encontrado,
como em certa concepção acerca dos Universais, que assume que estes
precisam ser instanciados para existir, mas não determina em qual
tempo, se ao mesmo tempo da instanciação ou em algum tempo anterior.
Outro exemplo menos controverso é a dependência a um acontecimento
futuro, como no caso de um animal mutante, que pode ser considerado o
―fundador de uma nova espécie‖ apenas se seus descendentes
sobreviverem.
A segunda forma de dependência quanto ao tempo é a
dependência constante: ―necessariamente, quando A existe, B existe‖. É
a forma mais forte de dependência, pois requer a presença constante
daquilo de que depende; A depende de B em todos os momentos de sua
order to avoid confusion that results by intermixing it with other issues. (…) A third goal of
this study is to generalize the account to include dependencies among states of affairs,
characteristics of an object and properties. Work on dependence is often limited to discussing
dependence relations among objects‖. Idem. p. 24, 25, 26.
81
existência. casos óbvios dessa forma, como a dependência de um
objeto a si mesmo (que se vincula a sua identidade lógica A=A, A
depende de A em todos os momentos de sua existência), a dependência
de um todo a suas partes essenciais, como por exemplo, o fato de que
uma pessoa depende constantemente de seu cérebro para existir, ou de
uma parte ao todo em que pertence (o cérebro dessa pessoa também
existe enquanto ela existe). Para fugir um pouco dos casos de relações
de dependência apenas entre objetos, Thomasson cita exemplos de
dependência de um estado de coisas a outro (o estado de coisas no qual
―x é motorista‖ depende constantemente do estado de coisas no qual ―x
tem habilitação‖), de propriedades a outras (―x é ciclista‖ depende
constantemente de ―x é bípede‖), etc. Esses são exemplos de
dependência constante rígida. Também a dependência constante
genérica, na qual A depende de que haja constantemente algo que
instancie certa propriedade, mas esse algo não precisa ser nenhum
indivíduo específico, por exemplo, em todo momento que o Brasil
existe, tem que haver algo que instancie a propriedade de ser um
cidadão brasileiro, mas não há nenhum cidadão particular do qual o
Brasil dependa para manter sua existência.
A terceira forma temporal é a dependência histórica: ―se A
existe, B existe em algum tempo anterior ou simultâneo a A‖. Ou seja,
A depende de B para começar a existir, mas pode continuar existindo
mesmo que B cesse de existir. Um exemplo de dependência histórica
rígida é a dependência de um filho a seus pais, pois sua origem depende
daqueles indivíduos específicos que são seus pais, mas mesmo que estes
deixem de existir, ele pode continuar existindo. Como caso de
dependência histórica genérica pode-se mostrar que o bronzeado de x
depende de que tenha havido alguma luz ultravioleta qualquer, que tem
que ocorrer durante o bronzeamento, mas o bronzeado continua
existindo depois, mesmo que não haja mais luz ultravioleta.
Desse modo, com base nos tipos de dependência enumerados, e
lembrando que eles podem ocorrer tanto entre objetos, como entre
propriedades ou estados de coisas e em diferentes combinações,
Thomasson cria uma tabela de relações entre os tipos de dependência. A
dependência rígida implica a dependência genérica, pois se A depende
de um indivíduo específico, depende de um indivíduo qualquer: se x
depende de seu cérebro, depende de algum cérebro. O caminho inverso
não vale. Além disso, a dependência constante implica a dependência
histórica, pois se A depende de B em todos os momentos de sua
82
existência, depende também em sua origem, e ambas implicam a
dependência em geral. Evidentemente, o caminho inverso também não
vale nesses casos. Ademais, a autora indica a propriedade de
transitividade das relações de dependência, pois se A depende de B e B
depende de C, A depende de C para existir. As relações de implicação
entre os diferentes tipos de dependência podem ser organizados na
seguinte tabela:
RCD RHD RD
GCD GHD GD
102
Resumidamente, esta é a teoria da dependência ontológica
desenvolvida por Thomasson e é a partir desta que seu sistema analítico
é elaborado. A dinâmica que a autora segue é rastrear como as relações
de dependência enumeradas acima se combinam dentro dos dois eixos
que ela propõe como o solo mais básico para a fundação de quaisquer
tipos de entidade. Com isso, ela chega a um elegante esquema:
Fonte: THOMASSON, A. Fiction and Metaphysics. Cambridge:
Cambridge University Press, 1999. p. 124
Os dois quadros acima se baseiam nas possíveis relações de
dependência que cada ente pode manter com objetos reais ou estados
mentais. Cada quadro é elaborado com base nas implicações de
102
Idem. p. 123. R: rígida, G: genérica, D: dependência, C: constante, H: histórica.
83
dependência ontológica mostrados na tabela anterior. As colunas
mostram a dependência genérica e as linhas mostram a dependência
rígida. Respeitando as implicações dos tipos de dependência entre si,
que são assimétricas, há seis espaços vazios em cada quadrante, pois não
existe uma entidade que seja rigidamente constantemente dependente,
mas apenas genericamente historicamente dependente e assim por diante
(pois a dependência rígida implica a dependência genérica e a constante
implica a histórica). Uma entidade tem dez possibilidades de localização
em cada quadro, pois são dez os tipos de combinações possíveis entre as
relações de dependência. Assim, cada ente tem dez possibilidades de
alocação no quadro da fundação em objetos reais e mais dez
possibilidades no quadro da fundação em estados mentais, o que resulta
em cem possibilidades de alocação categorial. O esquema que mostraria
essas cem possibilidades seria quadrimensional e por isso não pode ser
desenhado, motivo pelo qual a autora optou pelo desenho repetido dos
dois quadrantes, que, no entanto, não devem ser pensados
separadamente, mas apenas como dois momentos da dependência de
cada ente. A ideia de Thomasson é que cada espaço pode ser
transformado em uma categoria ontológica. Logo, existem cem
possibilidades de categorias ontológicas que são exaustivas e
mutuamente excludentes com base na dependência ontológica a estados
mentais ou objetos reais. Isso não significa que é necessário dar nome a
essas cem categorias. Mesmo porque, dependendo da ontologia que será
elaborada a partir dessa base analítica, muitos desses espaços serão
considerados como não preenchidos, como conjuntos vazios.
O ponto central é que as categorias ontológicas devem ser
elaboradas a partir dessa metodologia de acordo com a relevância para
dar conta dos dados da experiência, da prática e do discurso. O esquema
de Thomasson é uma base analítica unificada que permite a elaboração
de ontologias consistentes, mas não se compromete de antemão com
quais das cem possibilidades de dependência devem de fato ser
transformadas em categorias ontológicas e muito menos com quais
entidades devem ocupar cada uma dessas categorias. Ontologias
diferentes e até mesmo rivais podem ser encaixadas nos quadrantes
acima. Uma ontologia idealista, por exemplo, deixaria vazio o espaço
nos quais se cruzam a última linha e a última coluna do quadro de
dependência em estados mentais, pois este seria o espaço ocupado por
objetos puramente materiais, que não dependem de nenhum modo a
estados mentais. Uma ontologia materialista, por outro lado, deixaria
84
esse mesmo espaço vazio, mas no quadro de dependência em objetos
reais, pois este seria o espaço ocupado por objetos puramente ideais. Por
isso o sistema de Thomasson é meta-ontológico ou formal, pois ele não
determina nada acerca da realidade e da existência ou inexistência das
entidades, e, além disso, ele não prejulga quais ontologias ou quais
categorias ontológicas podem ser estabelecidas. Apenas oferece um
alicerce seguro para elaboração de categorias e ontologias regionais, que
não serão arbitrárias e inconsistentes, na medida em que o sistema
explicita todas as cadeias de implicações ontológicas entre as diferentes
possibilidades de categorização. As eventuais discordâncias filosóficas
serão quanto ao modo de preencher os espaços dos quadrantes, sobre
como denominá-los, sobre quais deles devem ser transformados em
categorias ontológicas, quais devem ser preenchidos e por quais
entidades e quais devem ser deixados vazios, etc. Mas estas
discordâncias não incidem no próprio sistema. Por isso Thomasson
afirma que sua proposta ontológica é multidimensional, permite alocar
ontologias ortogonais e escapa aos argumentos céticos contra as
ontologias categoriais.
Ademais, o sistema preserva a variedade de entidades que
podem existir sem cair em uma ontologia que simplesmente enumera
uma infinidade de conceitos, um carnaval de categorias sem a menor
preocupação com as cadeias de implicação ontológica e com a
justificação da relevância de cada categoria. Seu sistema é diversificado
o suficiente para dar conta da variedade de dados possíveis, mas ainda
assim é simples, pois pode ser resumido em apenas três conceitos
básicos, sendo o resto apenas desenvolvido por relações lógicas de
implicação. A melhor analogia para se compreender a dinâmica da
autora é a tabela periódica, que mostra as categorias formais de
possibilidade de elementos reais e pode ser reduzida a três entidades que
se combinam para formar essas categorias, i.e., prótons, nêutrons e
elétrons. A tabela periódica indica um quadro extensível de
possibilidades de substância que ultrapassa o dado objetivo e, assim,
orienta a pesquisa para o que não está dado, mas seria possível pela
estrutura regulativa constituída pela base conceitual da química. O
método de Thomasson opera dentro do mesmo esquema, permitindo a
criação de categorias e conceitos que, além de dar conta dos dados
objetivos, podem ultrapassá-los e antecipar novos dados, justamente por
seu caráter formal e regulativo.
85
3.2 Aplicação da Metodologia
O aspecto mais interessante da teoria de Thomasson é que ela
oferece um método seguro para lidar com categorias não familiares da
metafísica tradicional. Pois esta costuma operar através de dualismos,
como concreto e abstrato, real e ideal, particular e universal, entre
outros, sendo que, com isso, acaba excluindo as entidades que não se
encaixam bem em nenhum dos dois pólos. Assim, os dados
intermediários costumam ser simplesmente ignorados nas dicotomias
tradicionais da metafísica. Ou são excluídos da existência ou o
reinterpretados de modo a serem forçados a se encaixar em um dos dois
extremos. O esquema de Thomasson oferece espaço para as categorias
intermediárias, nas quais se encaixam os objetos culturais e sociais, bem
como os objetos ficcionais e as obras de arte, pois ele lugar a todas
essas entidades que ficam entre o material e o mental. A pensadora
sugere algumas categorias para alocá-las, lembrando que essa sugestão
não é definitiva, pois depende de como se compreende as fundações
ontológicas das entidades em questão.
Entre os objetos puramente materiais e os fenômenos
puramente mentais, os tipos mais interessantes e mais deixados de lado
são as entidades sociais e culturais, que dependem não dos estados
mentais de algum indivíduo, mas da intersubjetividade, da
intencionalidade coletiva. A coletividade depende dos indivíduos físicos
concretos e também de seus estados mentais. De acordo com as
sugestões da autora, pensamentos e seus conteúdos têm dependência
rígida e constante em estados mentais, logo, ocupam o espaço da
primeira linha do quadro dos estados mentais. Artefatos, por outro lado,
têm dependência histórica genérica ou rígida, dependendo do tipo de
artefato, em estados mentais e dependência constante genérica ou rígida
em objetos reais. Assim, tomando-se uma cadeira como exemplo, pode-
se analisá-la do seguinte modo: se pensada como esta cadeira particular,
ela possui dependência rígida constante em objetos reais, pois depende
de si mesma enquanto objeto real para existir, que é esta cadeira. Se
pensada como uma cadeira, alguma cadeira qualquer, ela tem
dependência constante genérica em objetos reais, pois não cadeiras a
não ser que haja exemplares reais de cadeiras, mas não precisa ser um
exemplar em particular. Quanto aos estados mentais, a cadeira tem
dependência histórica genérica, pois precisa ter sido criada em algum
86
momento, mas não por alguma pessoa em particular e pode continuar
existindo mesmo cessados os estados mentais que a criaram. Com
efeito, vários objetos para se sentar, que são considerados cadeiras,
foram criados por diferentes culturas, sem contato entre si. Não uma
questão de direitos autorais quanto a origem de cadeiras, por isso sua
dependência a estados mentais é genérica. A não ser que seja uma
cadeira pensada como uma obra de design ou de arte. modelos de
cadeiras que são assinados e que são considerados obras daquele
arquiteto, designer ou artista em particular. Nesse sentido, uma cadeira
Le Corbusier, por exemplo, tem dependência histórica rígida em estados
mentais, pois não depende de uma criação mental histórica em geral,
mas da criação mental de Le Corbusier, de seus estados mentais
específicos que possibilitaram a criação desse modelo de cadeira.
Rastreando essas cadeias de dependência, pode-se alocar a cadeira
pensada como esta cadeira comum e anônima na primeira linha do
quadro de dependência a objetos reais e na última linha da segunda
coluna no quadro de dependência a estados mentais. A cadeira pensada
como uma cadeira qualquer comum e anônima ocupa o mesmo espaço
no quadro de dependência a objetos mentais, mas ocupa a última linha
da primeira coluna no quadro de dependência a objetos reais. A cadeira
pensada como um modelo assinado por algum designer ocupa a segunda
linha da primeira coluna em ambos os quadrantes. Assim, nota-se que
um mesmo objeto ―cadeira‖ pode ser pensado de diferentes modos e,
dependendo do modo como é interpretado, funda-se de formas
diferentes a estados mentais e objetos reais e, portanto, ocupa uma
categoria ontológica diferente. Nas três abordagens do dado cadeira, ela
se encontra em três categorias ontológicas distintas, mas todas
intermediárias. Isto é, ela não é um objeto puramente real, como uma
pedra ou uma estrela, que não depende de nenhum modo a estados
mentais para existir. Tampouco é um objeto puramente mental, como o
Bem platônico, que não depende de nenhum objeto real ou físico para
existir. Como se pode notar de início, a maioria dos fenômenos com os
quais se lida cotidianamente ocupa categorias intermediárias entre o
puramente real e o puramente ideal. Os objetos ficcionais são apenas um
caso mais interessante de categorização intermediária, devido ao valor
histórico na discussão metafísica acerca dos mesmos.
3.3. Objetos ficcionais
87
Thomasson afirma que a história da metafísica trata pouco dos
objetos ficcionais e, quando o faz, nunca os trata como um dos
problemas centrais da metafísica, mas apenas como um assunto
interessante ou curioso. Ela adverte, no entanto, que essa negligência
deve-se ao fato de que os entes fictícios possuem um caráter ambíguo
que poderia prontamente levar a contradições caso fossem admitidos em
uma ontologia. Por isso grande parte da tradição que chega a lidar com
entes ficcionais simplesmente rejeita sua existência, enquanto outra
parte a aceita, mas através da criação de campos ontológicos especiais
que possam acomodar suas tendências curiosas, sem que estas levem a
contradições ontológicas
103
. Thomasson pensa que o caminho mais
apropriado é abdicar dessa escolha entre aceitar e não aceitar entidades
ficcionais como se elas fossem algo muito especial ou diferente do resto
das experiências cotidianas, e simplesmente reconhecer suas
semelhanças com outras entidades muito comuns e que nunca foram
questão de decisão ontológica. O ponto mais interessante da teoria de
Thomasson está precisamente nesse aspecto de naturalidade com que ela
pretende abordar os entes fictícios, alocando-os ao lado de entidades que
nunca padeceram de preconceito filosófico, como leis, livros, governos,
teorias científicas, igrejas, entre outras, mas cujo estatuto ontológico-
categorial sempre ficou por esclarecer. Essa abordagem, de acordo com
a autora, não apenas ajuda a entender a ficção, mas coloca seus
problemas em diálogo mais sério com outros problemas centrais da
metafísica. Ou seja, os caracteres ficcionais são entidades culturais e
abstratas e são artefatos, assim como leis e teorias, e apresentam
dificuldades semelhantes como: quais suas condições de identidade?
Qual sua relação com sua base física? Qual sua inserção prática? Qual
sua relação com a intencionalidade da consciência daqueles que os
criaram e da comunidade da qual fazem parte? O mote crucial é que os
entes fictícios combinam características das entidades abstratas e dos
artefatos, o que leva à ruptura com os dualismos tradicionais entre real e
ideal, material e mental, que sempre colocam o abstrato ao lado do ideal
e os artefatos, as coisas singulares e criadas ao lado do real, do material.
Como será explicitado a seguir, Thomasson cria uma nova categoria que
rompe com esse dualismo, localizando-se na zona intermediária entre o
real e o mental, a qual ela nomeia de artefatos abstratos. Por isso a
103
Thomasson menciona Quine, Kripke e Russell como exemplos do primeiro caso e
Meinong e os seguidores de sua teoria como exemplos do segundo caso.
88
ficção justifica-se como um problema nuclear, pois conduz à emergência
dos problemas dos sistemas metafísicos como um todo.
Resumidamente, nessa perspectiva os caracteres
ficionais são um tipo particular de artefato cultural. Como
outros objetos culturais, os caracteres ficcionais dependem
da intencionalidade humana para sua existência. Como
outros artefatos, eles devem ser criados para existir, e eles
podem cessar de existir, tornando-se objetos do passado. É
primariamente neste tratamento dos caracteres ficcionais
como artefatos culturais ordinários, ao invés de habitantes
estranhos de um reino ontológico diferente, que a teoria
artefatual diferencia-se de modo mais drástico dos outros
modos de caracterização dos objetos ficcionais. É também
seu lugar como artefatos culturais que torna os objetos
ficcionais de maior interesse filosófico, pois a ontologia da
ficção pode então servir como modelo para a ontologia de
outros objetos culturais e sociais no mundo cotidiano
104
.
As discussões sobre ficção normalmente começam com o
dilema sobre ser melhor postular ou não postular a existência de
entidades fictícias, com os defensores mostrando o que não se pode
fazer sem elas, e os opositores mostrando como se pode contorná-las
mudando o modo de se referir às mesmas linguisticamente. Thomasson
considera as duas posturas insatisfatórias, pois é simplesmente arbitrário
decidir postular ou não uma entidade sem antes buscar seriamente uma
noção clara do que ela é, para então balancear quais são suas
vantagens e desvantagens para a ontologia. Com isso, ela adota o
método de adiar a decisão ontológica de se há ou não entidades fictícias,
e começar com uma questão mais fácil: se houvesse objetos fictícios, o
que eles seriam? Como resposta, a autora desenvolve a ―teoria artefatual
da ficção‖ (Artifactual Theory of Fiction), que revela as ficções como
104
―In short, on this view fictional characters are a particular kind of cultural artifact.
Like other cultural objects, fictional characters depend on human intentionality for their
existence. Like other artifacts, they must be created in order to exist, and they can cease to
exist, becoming past objects. It is primarily in its treatment of fictional characters as ordinary
cultural artifacts rather than as the odd habitants of a different realm that the artifactual theory
differs most markedly from other ways of characterizing fictional objects. It is also their place
as cultural artifacts that makes fictional objects of broader philosophical interest, for the
ontology of fiction can thus serve as a model for the ontology of other social and cultural
objects in the everyday world‖. THOMASSON, A. Fiction and Metaphysics. Cambridge:
Cambridge University Press, 1999. p. 14.
89
artefatos, i.e., como entes dependentes de várias coisas reais e também
de estados mentais, em vários sentidos, de acordo com o sistema
analítico exposto anteriormente. Essa teoria mostra-se bem sucedida em
resolver dois problemas centrais do debate sobre objetos ficcionais:
como pensar a referência nominal aos mesmos e como oferecer-lhes
condições de identidade
105
. A decisão posterior acerca de sua
postulação dentro de uma ontologia não deveria constituir-se de modo
arbitrário e artificial, pensando em como se pode evitar a ficção através
de uma mudança radical na linguagem e na experiência. A ontologia
deve ser escolhida de acordo com sua capacidade para compreender
melhor a experiência e a linguagem. Nesse momento mostra-se uma
concepção capital de Thomasson, que é sua compreensão a respeito do
papel da filosofia:
Se estamos a postular personagens fictícios, parece
aconselhável postulá-los como entidades que podem
satisfazer ou ao menos dar sentido às nossas crenças e
práticas mais importantes que lhes dizem respeito. Muitas
vezes, as teorias da ficção são conduzidas não por um sentido
independente do que é necessário para compreender o
discurso e a prática concernente à ficção, mas sim por um
desejo de mostrá-la em uma ontologia preconcebida, como
entidades possíveis, inexistentes, ou objetos abstratos para
demonstrar uma aplicação a mais da ontologia em questão,
ou para providenciar exemplos cativantes e familiares. Em
vez de partir de uma ontologia pronta e ver como podemos
encaixar personagens fictícios nela, eu sugiro que
comecemos por prestar atenção a nossas práticas literárias,
105
Esses dois eixos da concepção ontológica que Thomasson desenvolve acerca dos
entes fictícios, pensando-os como artefatos abstratos, é nutrida por uma intensa discussão com
as correntes de origem meinongianas, que afirmam a sua existência e por teorias da linguagem
de referência direta, com inspiração em Kripke, que defendem a sua inexistência com base na
impossibilidade de encontrar referência para os nomes ficcionais. Trata-se de um diálogo
bastante detalhado e com diversos interlocutores, cujas teorias são mostradas uma a uma como
insuficientes. Tendo em vista que o assunto central dessa dissertação não é a teoria de
Thomasson acerca dos objetos ficcionais, mas o estatuto ontológico da obra de arte em geral,
estes aspectos mais minuciosos de seu livro Fiction and Metaphysics serão deixados de lado,
apesar de serem um importante ponto de apoio e inspiração para se pensar sobre as condições
de identidade e referência de um dos casos mais paradigmáticos e discutidos da categoria
ontológica dos artefatos abstratos, que são os entes ficcionais.
90
para que possamos ver que tipo de coisas lhes correspondem
melhor
106
.
Assim, se entidades ficcionais fossem postuladas, o que elas
seriam? Seriam entidades que fazem sentido dentro das práticas e
crenças comuns mais importantes em relação às mesmas. O
compromisso que o filósofo deve adotar é não partir de uma ontologia
pré-concebida, mas olhar para a prática e o discurso a respeito da ficção
e buscar seu sentido através desse âmbito. Como os objetos em questão
são tratados na linguagem e atividade cotidianas? Como entidades
criadas, trazidas à existência em certo tempo, por certo autor. Ficção
vem de fingere, que é ―formar‖. Com efeito, não se lida com objetos
ficcionais como entes que são descobertos ou selecionados de um
conjunto de entes abstratos, eternos, não-existentes ou objetos possíveis,
mas como sendo criados, formados, inventados por seu autor
107
. A
identidade dos seres fictícios, portanto, deve ser buscada nas concepções
comuns acerca dos mesmos e estas são explicitadas ontologicamente
através do rastreamento das relações de dependência que elas mantêm
com objetos reais e estados mentais, de acordo com a metodologia de
Thomasson.
As dependências imediatas dos caracteres ficcionais remetem-
se aos atos criativos de um autor (dependência histórica rígida) e à
existência da obra literária (dependência constante genérica) na qual
aparecem. A dependência histórica do ente ficcional aos atos mentais de
um autor o assinala como um artefato, pois é algo criado em certo
106
―If we are to postulate fictional characters at all, it seems advisable to postulate
them as entities that can satisfy or at least make sense of our most important beliefs and
practices concerning them. Often theories of fiction are driven not by an independent sense of
what is needed to understand talk and practice regarding fiction, but rather by a desire to show
how a preconceived ontology of possible, nonexistent, or abstract objects to demonstrate one
more useful application of the ontology under discussion, or to provide catchy and familiar
examples. Instead of starting from a ready-made ontology and seeing how we can fit fictional
characters into it, I suggest that we begin by paying careful attention to our literary practices so
that we can see what sorts of things would most closely correspond to them‖. THOMASSON,
A. Fiction and Metaphysics. Cambridge: Cambridge University Press, 1999. p. 5.
107
Quando a pensadora trata de entes ficcionais pretende dar conta de todas as
entidades que aparecem em uma obra de literatura, desde os personagens que são nomeados até
os objetos mencionados, eventos, estados de coisas, fatos acontecimentos. Cadeiras, dias,
sentimentos, acontecimentos, estradas e animais que aparecem em obras de literatura têm o
estatuto de ficcional, mesmo que não sejam entidades propriamente ditas. No entanto, para
facilitar o tratamento do assunto, a filósofa britânica opta por lidar com personagens de ficção,
como Sherlock Holmes, Antígona e Fausto, por serem casos mais paradigmáticos e mais
referidos dos caracteres fictícios.
91
momento por algum humano. Trata-se de uma dependência rígida
porque os caracteres só poderiam ter sido criados por seus autores
enquanto indivíduos particulares, pois Fausto não seria Fausto se não
tivesse sido criado precisamente por Goethe. É histórica porque os
personagens subsistem mesmo depois da morte de seus autores, através
do seu registro em livros ou arquivos. A dependência do ente ficcional à
existência de alguma obra literária é constante, porque só existe na
medida em que existe alguma obra na qual aparece, e é genérica, pois
pode ser qualquer cópia e não uma em particular. Além disso, a
dependência é transitiva, logo, àquilo de que obras literárias e atos
criativos de um autor dependem, também dependerão os entes
ficcionais. As obras literárias também dependem de modo histórico e
gido dos atos criativos de um autor, bem como da existência de alguma
cópia das mesmas e da existência de algum público capaz de
compreendê-las (ambas constantes e genéricas), pois não se pode
afirmar que uma obra literária escrita em uma língua morta, por
exemplo, sem que exista alguma pessoa capaz de compreendê-la, ainda
existe enquanto obra literária. Assim, obras literárias e objetos ficcionais
possuem as mesmas relações de dependência ontológica: dependem
historicamente e rigidamente dos atos mentais de seu autor bem como
de sua existência enquanto indivíduo físico particular, e dependem
constantemente e genericamente tanto da existência de exemplares de
obras literárias quanto da existência dos estados mentais de alguma
comunidade lingüística capaz de compreendê-las. Assim, mesmo sendo
os entes ficcionais dependentes de atos criativos e exemplares concretos
de obras literárias e, portanto, serem artefatos, eles não possuem
existência espaço-temporal localizável e, portanto, são abstratos.
Sherlock Holmes não se localiza em nenhuma obra concreta nem na
mente de um autor, não tem localização espaço-temporal. Isso coloca
essas entidades fora das metafísicas dualistas, que aceitam artefatos
como particulares espaço-temporais ou abstratos como imutáveis e fora
do tempo ou eternos e independentes. Por esse motivo a ficção sempre
foi cingida com cautela e receio pela metafísica tradicional, i.e., por ser
um exemplo manifesto de acontecimento intermediário, cuja existência
coloca em questão o próprio dualismo metafísico. O sistema meta-
ontológico de Thomasson cria um espaço legitimado para esse tipo de
dado e é a partir dele que ela sugere uma categoria ontológica que possa
alocar os entes ficcionais com base nas relações de dependência
92
descritas acima: a categoria dos artefatos abstratos. Essa categoria
localiza-se nos quadros do sistema de Thomasson do seguinte modo:
Fonte: THOMASSON, A. Fiction and Metaphysics. Cambridge: Cambridge University Press,
1999. p. 124
Desse modo, considerando o modo como os seres ficcionais
surgem na experiência através das práticas e do discurso cotidianos,
Thomasson chega à concepção de que eles são artefatos abstratos, isto é,
são artefatos porque são criados, são temporais, são dependentes dos
autores e da comunidade lingüística compreensiva, bem como da
existência de cópias de obras literárias, e são abstratos porque não se
identificam com as cópias nem com algum indivíduo físico, não têm
localização temporal e dependem de estados mentais. A pensadora
explicita as concepções já presentes no senso-comum a respeito dos
seres ficcionais para poder localizá-los em seu sistema de dependências
e com isso criar uma categoria que respeite suas características
específicas. Com isso ela responde à questão colocada precedentemente
sobre o que seriam entidades fictícias, caso devessem ser admitidas em
uma ontologia. Agora é necessário dar um passo a mais, mergulhando
na decisão ontológica propriamente dita: uma vez que foi
compreendido que tipo de coisa é um ente ficcional, deve-se admiti-lo
em uma ontologia? É importante notar que, nesse segundo momento,
Thomasson não está mais na esfera da meta-ontologia, mas está
tomando decisões ontológicas. No entanto, a tese acerca da admissão da
existência não é feita aos moldes da filosofia piecemeal‖, mas com
base em seu sistema analítico unificado.
X
93
Para ingressar no terreno da tese da admissão de entidades
fictícias em sua ontologia, Thomasson resgata o conceito de parcimônia
ontológica, que ela afirma ficar por trás de muitas decisões ontológicas,
principalmente na tradicional rejeição a objetos ficcionais. Muitos
filósofos acham que assumir objetos ficcionais leva a uma ontologia
super-povoada, que admite um carnaval de entidades sem critérios de
identidade claros. Por isso, com vistas a uma ontologia mais lúcida, a
uma paisagem filosófica mais deserta, simplesmente eliminam certas
entidades ambíguas. Thomasson mostra que seres fictícios não
apresentam problemas graves em relação à referencialidade
108
ou a
condições de identidade
109
, o que refuta os argumentos mais comuns
108
Thomasson oferece uma solução para o problema da referencialidade de seres
ficcionais através de um alargamento da Teoria de Referência Direta, em discussão
principalmente com Kripke, que usava essa teoria para afirmar a inexistência de entes fictícios
devido a sua impossibilidade de ser referidos por um nome. Pois, de acordo com sua versão da
teoria, nomes funcionam através de referência direta ao objeto que denominam, portanto,
circunstâncias causais e históricas são essenciais. O modelo de Kripke defende que a referência
de um nome se determina pelo batismo de um objeto e a proliferação do uso desse nome para
designar esse objeto. O ponto é que os personagens fictícios não poderiam ser batizados em
uma circunstância causal e histórica porque não têm localização espaço-temporal, não podem
ser apontados. De acordo com Thomasson, a intuição fundamental da teoria de Kripke, de que
a referência tem a ver com circunstâncias causais e históricas pode e deve ser mantida, mas o
―batismo‖ pode ser alargado conceitualmente, isto é, pode ser concebido de modo diferente
para objetos abstratos. O batismo de um personagem é feito ao se nomear a descrição de um
personagem, por exemplo, e o texto concreto e espaço-temporal fornece um vínculo público
que possibilita a referencialidade nesse sentido (algo para se apontar). Ou seja, deve-se admitir
que, apesar de essenciais, essas correntes causais e históricas não são as únicas coisas
envolvidas na nomeação: a dependência também deve ser incluída, o que permite a nomeação
de entes não espaço-temporais, como ficções, leis, teorias, entes matemáticos, etc. Ou seja, a
referência viaja não apenas através de cadeias de causalidade entre o nome e a coisa, mas
através de cadeias de dependência ontológica. É desse modo que Thomasson consegue
preservar a teoria da referencialidade direta histórica, mas estendê-la de modo que possa incluir
também referência a entes fictícios e outros tipos de entes abstratos que preservam vínculo de
dependência ontológica com entes reais. Cf. THOMASSON, A. Fiction and Metaphysics.
Cambridge: Cambridge University Press, 1999.
109
A pensadora começa a esclarecer as condições de identidade dos objetos ficcionais
através de uma refutação das teorias meinongianas, que afirmam que as condições de
identidade da ficção assemelham-se às condições de identidade de outros seres abstratos, como
conjuntos e tipos lógicos. Esse modelo defende que objetos ficcionais são idênticos apenas se
possuem as mesmas propriedades. O problema mais grave dessa teoria está em reedições,
traduções, continuações, etc., nas quais um personagem pode alterar algumas de suas
propriedades. Esta teoria levaria à conclusão de que não se trata mais do mesmo personagem, o
que vai contra a prática comum de identificar personagens. Isso se porque as condições de
identidade da teoria meinongiana ignoram o vínculo histórico e a questão da origem histórica,
que está presente na prática lingüística de identificar personagens ficcionais, porque que ele os
pensa como entes abstratos independentes. Como alternativa, Thomasson busca as condições
de identidade de um personagem ao longo de uma mesma obra, o que é mais simples, e ao
94
contra sua admissão. Resta distinguir a verdadeira da falsa parcimônia
ontológica, para mostrar que a busca de parcimônia não é um argumento
válido contra a assunção da ficção. Simplesmente eliminar entidades
sempre que possível não resulta em uma ontologia mais parcimoniosa,
pois pode levar a inconsistências e arbitrariedades (se feito de modo
―piecemeal‖ e não no contexto geral de implicações ontológicas). A
parcimônia verdadeira é eliminar o que é desnecessário, i.e., se é
possível fazer com menos entidades o mesmo que se faz com mais
entidades, a ontologia mais magra é preferível. O argumento principal
de Thomasson é que eliminar objetos ficcionais é um caso de falsa
parcimônia, pois não se pode oferecer uma análise do discurso e da
prática com obras de literatura e caracteres de ficção tão eficiente sem a
admissão de objetos ficcionais. Eliminá-los leva simplesmente a
contorcionismos teóricos, soluções ad hoc e reviravoltas ontológicas
artificiosas e incongruentes, que o oferecem nenhuma vantagem
filosófica relevante.
A filósofa classifica dois casos clássicos de falsa parcimônia.
Evidentemente, a contenção filosófica em se admitir entes não é uma
questão de números de entidades, mas de tipos de entidades, pois não é
parcimonioso eliminar algumas entidades de um tipo e manter outras do
mesmo tipo (como eliminar jogos de boliche, mas não de sinuca, por
exemplo). Entretanto, os praticantes de ontologias ―piecemeal‖
longo de obras distintas, sejam elas uma seqüência de novelas acerca de um mesmo
personagem feita pelo mesmo autor, como a série de Sherlock Holmes, ou histórias
independentes, feitas por autores diferentes, mas que usam o mesmo personagem, como o
Fausto de Goethe e de Thomas Mann, na qual os autores posteriores fazem uma releitura da
obra do autor que criou o personagem. Deixando de lado as minúcias através das quais a autora
constrói seus apontamentos, em discussão com Meinong, Wolterstorff, Reicher, entre outros,
ela chega à seguinte solução, que admite ser necessária, porém o suficiente: um personagem
x que aparece em uma obra L será o mesmo personagem que y que aparece na obra K se o
autor da obra K é familiarizado com a obra L e o personagem x e quer escrever sobre esse
mesmo personagem, fazendo-o aparecer novamente em outra obra. Nesse caso, x e y são o
mesmo personagem, não importa se o autor é o mesmo ou não (o que importa é a intenção de
retomar e identificar o personagem por parte do autor). Ela admite que essa solução não é
suficiente porque nem sempre é claro quando um segundo autor está atribuindo novas
características a um velho personagem em uma outra obra ou se está criando um personagem
novo com, talvez, o mesmo nome. No entanto, essa solução permite identificar até certo ponto
caracteres ficcionais e preserva a intuição usada na prática e no discurso a respeito deles de que
a identificação tem a ver com sua origem histórica. Ademais, de acordo com a autora, essa
dificuldade não se insere apenas na identificação de objetos ficcionais, mas também na
identificação de pessoas reais que mudam, navios, fungos, pilhas de lixo, etc. Além disso, a
própria prática lingüística incorpora esses casos de vagueza e ambigüidade com as palavras
―releitura‖, ―inspiração‖, ―baseado em‖, etc. Cf. THOMASSON, A. Fiction and Metaphysics.
Cambridge: Cambridge University Press, 1999.
95
costumam cair nesse equívoco, que Thomasson rotula como o primeiro
caso de falsa parcimônia. O segundo caso é rejeitar um tipo de entidade,
mas aceitar outro com características similares ou com os mesmos
índices de dependência ontológica. Ambos os casos oferecem filosofias
inconsistentes e injustificadas. Para desenvolver uma teoria bem
sucedida e clara quanto a suas implicações ontológicas, é necessário
buscar a parcimônia genuína, que, nas palavras da autora,
Não vem da mera rejeição de qualquer tipo de
entidade, mas antes da minimização dos comprometimentos
com tipos ontológicos de entidades, baseada nos princípios
de uma teoria sutil e elegante que, entre outras coisas, diz
quais são as entidades mais básicas e como elas podem ser
combinadas
110
.
As ontologias costumam traduzir a ficção em termos de ―obra
de literatura‖ para poder eliminar personagens ficcionais, apenas porque
estes parecem ―pessoas imaginárias‖, mas mantém obras de literatura,
que é apenas linguagem, logo, aparentemente não oferece tantos
problemas metafísicos. Mas o que são entidades ficcionais e o que são
obras literárias? Thomasson busca uma nova visão do que são entidades
ficcionais: não são pessoas, nem imaginárias, nem reais em outro mundo
possível, nem não-existentes: são criações culturais, artefatos abstratos
produzidos através da intencionalidade e que requerem entidades
concretas (cópias de livros e indivíduos capazes de compreendê-los)
para existir. Mas a literatura e a linguagem também são entidades
culturais, coisas criadas e dependentes da intencionalidade. São
entidades do tipo representativo, que consistem em símbolos investidos
de significado através de atos intencionais individuais ou coletivos e
que, com isso, servem para representar algo para além de si. Por essa
capacidade representacional, a linguagem torna possíveis outras
entidades, como objetos ficcionais. Então personagens fictícios e obras
de literatura não pertencem a categorias tão diferentes. Como foi
mencionado anteriormente, objetos ficcionais e obra de literatura, da
qual aqueles são imediatamente dependentes, possuem os mesmos
110
―Genuine parsimony comes not from rejecting just any sort f entity but rather from
minimizing commitments to the relevant ontological kinds of entities based on the principles of
a smooth and elegant theory that, among other things, says what the most basic entities are and
how they can be combined‖. THOMASSON, A. Fiction and Metaphysics. Cambridge:
Cambridge University Press, 1999. p. 139.
96
índices de dependência ontológica, logo, pertencem à mesma categoria
dentro do sistema criado por Thomasson. Assim eliminar um em favor
do outro é um caso de falsa parcimônia do primeiro tipo. Quem quiser
manter obras literárias e rejeitar objetos ficcionais tem que encontrar a
diferença ontológica relevante entre eles, pois, ao que tudo indica,
quando se aceita obras, se aceita os personagens que vem junto com
elas. E quando se tenta solucionar esse dilema excluindo todas as
entidades dessa categoria, tanto personagens quanto obras literárias ou
quaisquer outras que aí se encaixarem, pode-se cair em um caso de falsa
parcimônia do segundo tipo. Pois a categoria dos artefatos abstratos é
similar a outras categorias que são dependentes genericamente e
constantemente de coisas reais e estados mentais. Isto é, por que se
eliminaria esta categoria, que inclui a dependência histórica rígida, mas
se aceitaria outra que inclui uma dependência histórica genérica em
objetos físicos, na qual se encontram diversas entidades como teorias
científicas, universais, números, leis, e as categorias de dependência
genérica constante em estados mentais, nas quais estão governos,
igrejas, escolas, entre outros? A não ser que se eliminassem todas essas
entidades intermediárias e se aceitasse apenas os casos extremos de
coisas físicas os ideais puros. Mas poucos ontólogos que eliminam seres
ficcionais com base nos argumentos de economia filosófica estariam
dispostos a assumir essa posição.
Enfim, a argumentação de Thomasson consiste em mostrar
que objetos ficcionais não são entidades tão estranhas e controversas,
mas têm características comuns com diversas entidades cotidianas que a
ontologia sempre admitiu sem problemas. A implicância com os
ficcionais mostra-se injustificada e pode ser explicada por
tradicionalismo ou preconceito. Isso mostra o perigo de se fazer
ontologia ―piecemeal‖, aceitando ou rejeitando entidades
individualmente, sem usar princípios genéricos para justificar. Pois o
resultado costuma ser aterrissar em ontologias falsamente parcimoniosas
e inconsistentes, que admitem certas entidades e rejeitam outras do
mesmo tipo, sem a menor fundamentação.
Desse modo, de acordo com o sistema analítico-categorial,
que mostra as cadeias de implicação ontológica, e de acordo com o
modo como Thomasson compreende o papel da filosofia, que é fazer
sentido com base na experiência, na prática, no discurso, na linguagem
cotidiana, e de acordo com seus argumentos a respeito de parcimônia
ontológica, facilmente se é conduzido à aceitação da existência de
97
entidades ficcionais. Aceitar que seres ficcionais existem não conduz a
uma ontologia pantagruélica sem critérios, sem justificativas e super-
povoada. Ao contrário, conduz a uma ontologia regional consistente
com a base analítica mínima sugerida pela autora e em consonância com
a prática e o discurso comum a respeito do assunto. Por isso ela admite a
existência de personagens fictícios, enquanto personagens fictícios,
evidentemente, isto é, enquanto entidades culturais, lingüísticas, criadas,
manifestadas em cópias de obras de literatura e não enquanto pessoas
reais ou tipos humanos possíveis, ou criaturas existentes em algum reino
ontológico distante.
Assim, caracteres ficcionais existem enquanto tal, são
admitidos filosoficamente e adquirem um estatuto ontológico claro, que
consiste no pertencimento à categoria dos artefatos abstratos, no
contexto do quadro categorial pensado na metodologia de rastreamento
das dependências ontológicas em objetos reais e estados mentais
proposto por Thomasson. O próximo passo, portanto, consiste em
expandir os resultados adquiridos até aqui com os objetos ficcionais
para as obras de arte em geral.
98
4. O ESTATUTO ONTOLÓGICO DAS OBRAS DE ARTE
Recapitulando o que foi apresentado até aqui, pode-se lidar
com o sistema multidimensional de Thomasson como uma ferramenta
bastante eficiente para a ontologia, que ajuda a evitar os dois
argumentos que são fontes do ceticismo, e traz de volta as categorias
como dispositivos ontológicos. Ademais, ele oferece outras vantagens:
É um esquema no qual é possível comparar
diferentes ontologias, pois as ontologias mais distintas se
encaixam nele, dependendo de como preenchem ou deixam
vazios os espaços do diagrama;
Evita as falsas dicotomias e dá lugar às entidades
intermediárias que ficam de fora dos sistemas dualistas
tradicionais;
Torna as decisões ontológicas acerca de cada
entidade claras e consistentes, pois revela quais espaços
(categorias) são vazios e quais são ocupados, mostrando as
relações entre entidades de diferentes categorias, suas
diferenças, o que faz com que uma entidade entre em uma
categoria e não em outra (suas dependências), etc.
O sistema mostra os comprometimentos ontológicos de se
admitir cada entidade e, portanto, estabelecer os espaços possíveis para
ser ocupados (categorias) é anterior a selecionar no mundo quais
entidades ocupam esses espaços, se as há. Esse sistema mais amplo,
juntamente com o conceito de parcimônia ontológica genuína, permite
um exame mais lúcido dos custos e benefícios de se admitir um tipo de
entidade como existente, uma categoria como preenchida ou não. Nessa
direção foi feita a admissão da existência dos caracteres ficcionais no
capítulo anterior. Usando a mesma metodologia, passar-sea analisar o
estatuto ontológico das obras de arte em geral, em suas diversas formas.
Thomasson não trata desse tema no livro que vem sendo analisado até
então, i.e., Fiction and Metaphysics, mas em artigos específicos, que,
por sua vez, não tratam da metodologia que foi exposta anteriormente,
contudo, a mantêm como plano de fundo. Portanto, a subseqüente
análise das obras de arte será feita em analogia à aplicação da
metodologia aos caracteres ficcionais, que foi apresentada no capítulo
anterior, com exceção do momento da ―admissão da existência‖, pois a
99
existência de obras de arte nunca chega a ser questionada, nem pela
metafísica, nem pelo senso-comum.
Em Ontology of Art and Knowledge in Aesthetics, Thomasson
inicia sua pesquisa colocando à luz, de modo meta-ontológico,
problemas cardinais da ontologia da arte, como ―o que estamos fazendo
quando discutimos sobre o estatuto ontológico das obras de arte? Quais
são os métodos e os critérios de sucesso apropriados para responder e
avaliar respostas a essas questões?‖
111
Talvez a questão mais central ou,
no mínimo, a mais sensata é: ―que tipos de respostas podemos esperar e
demandar em questões sobre ontologia da arte?‖
112
Essas perguntas, em
especial a última, delimitam a esfera de atuação da filósofa em sua
pesquisa concernente à arte, conquanto mostram que os resultados da
pesquisa são previamente orientados de modo determinante pelas
questões que são colocadas pelo pesquisador, bem como pelos métodos
e critérios que são usados em suas respostas. Thomasson quer advertir,
antes de tudo, para o fato de que fazer ontologia da arte de modo
rigoroso não é colocar qualquer questão a respeito de obras de arte,
mesmo que sejam aparentemente carregadas de problemas filosóficos.
Questões como: quantos erros um violinista pode cometer e ainda assim
realizar uma execução das Quatro Estações de Vivaldi? Quantas
restaurações a Galatéia pode sofrer e continuar sendo a pintura original?
Qual o critério para se considerar um escrito uma obra de literatura ou
apenas um registro escrito sem valor literário? Estes são exemplos de
problemas que parecem ser passíveis apenas de uma solução arbitrária.
São problemas específicos e, assim como Ingarden, Thomasson relega-
os para o trabalho de historiadores e críticos de arte. O pensamento
filosófico deve dar um passo atrás desses debates particulares rumo a
questões meta-ontológicas como as que foram colocadas inicialmente.
Paralelamente, em seu artigo The Ontology of Art, Thomasson
levanta outras questões centrais para a filosofia da arte, de cunho mais
ontológico: que tipo de entidade é uma obra de arte? Trata-se de um
objeto físico, de um tipo ideal, universal, de uma entidade imaginária, de
outra coisa? Qual a relação entre obras de arte e o estado mental dos
artistas que as criaram e dos espectadores? Qual sua relação com os
111
―What are we doing when we argue about the ontological status of works of art?
What are the proper methods and criteria of success to be used in answering and evaluating
answers to these questions?‖ THOMASSON, Amie. Ontology of art and knowledge in
aesthetics. (published in The Journal of Aesthetics and Art Criticism 63:3 Summer 2005) p.1.
112
―What kinds of answers can we expect and demand in questions about ontology of
art?‖ Idem, p.1.
100
objetos físicos, com abstrações visuais ou estruturas auditivas ou
lingüísticas? Sob quais condições uma obra existe, sobrevive ou cessa
de existir? Mantendo sua base ontológica existencial, Thomasson não
questiona como a arte pode ser definida, mas que tipo de entidades são
obras de arte, i.e., qual seu estatuto ontológico:
É importante notar que essa questão é bastante distinta
da questão de se ou como a ―arte‖ pode ser definida. A
questão ontológica não pergunta que condições algo deve
satisfazer para ser uma obra de arte, mas antes, de várias
entidades aceitas como obras de arte paradigmáticas de
diferentes gêneros (p.e. Guernica, Clair de Lune, oo Emma),
ela pergunta: que tipo de entidade é essa?
113
Desse modo, Thomasson não se compromete com a
pressuposição de que é possível elaborar uma definição de ―obra de
arte‖ que permita distinguir tudo que é arte de tudo que não é arte. Ela
não busca uma lista finita de características que definam completamente
as obras de arte e apenas elas, mas, ao contrário, resume sua pesquisa à
busca do estatuto ontológico da obra de arte, que pode ser
compartilhado com vários outros tipos de entidades, assim como, dentro
do que é legitimamente considerado arte, diferentes gêneros de arte
podem ter estatutos ontológicos diferentes. Não se pode deixar passar
por alto, no entanto, essa forte concepção de que a questão ontológica
pergunta a uma entidade de que tipo ela é e não persegue a definição de
um conceito localizado em algum plano abstrato: inicia-se pelos
exemplos, pelos casos aceitos como exemplos paradigmáticos do tipo
de ente a ser investigado. Pesquisar o estatuto ontológico da arte,
portanto, requer a existência de certo conjunto de entidades aceitas
como obras de arte, diante das quais será questionado que tipo de
entidades são elas. Essa opinião expressa rapidamente pela autora não
pode ser assumida sem maiores verificações. Trata-se de um problema
semelhante ao que foi mencionado na Introdução desta dissertação (1.2
Contextualização do Problema) como a relação entre a filosofia e a arte.
113
―It is important to notice that this question is quite distinct from the question of
whether or how ‗art‘ may be defined. The ontological question does not ask what conditions
anything must satisfy if it is to be a work of art, but rather, of various entities accepted as
paradigm works of art of different genres (e.g. Guernica, Clair de Lune, or Emma), it asks:
What sort of entity is this?‖ THOMASSON, A. L. ―The ontology of Art‖. The Blackwell Guide
to Aesthetics, ed. Peter Kivy, Oxford: Blackwell, 2004. p 1.
101
Foi afirmado que a amostragem, a seleção de exemplos de uma teoria,
nunca é neutra, mas prefigura-se pelo próprio ponto de vista teórico. Ou
seja, os exemplos que uma teoria seleciona como arte estão envoltos na
compreensão possivelmente pré-teórica que ela possui acerca da arte.
Uma teoria da arte sempre corre o risco de pré-determinar o que será
tomado como exemplo de arte e os exemplos de arte confirmarão, por
isso, apenas os desenvolvimentos teóricos que estavam implícitos em
sua própria seleção. Assim, a relação entre a busca do estatuto
ontológico da arte e ―várias entidades aceitas como obras de arte
paradigmáticas‖ não é imparcial e merece ao menos o benefício da
dúvida. Pois se o estatuto ontológico das obras de arte é o que está sendo
buscado, ou seja, se ainda não clareza de que tipos de coisas são
obras de arte, como garantir que esses casos paradigmáticos não estão
sendo selecionados dentro de alguma concepção prévia, tradição ou
preconceito que irá, por conseguinte, conduzir toda a investigação e
determinar seus resultados?
Thomasson aparta-se da posição soberana de quem tem o poder
de delimitar o escopo da arte a partir de um conceito abstrato e prévio.
Entretanto, é importante questionar qual posição ela adota como
alternativa a esta. Trata-se da posição de quem apenas esclarece ou
reflete sobre um dado? O filósofo, todavia, não pode ser reduzido à
função de reflexo da realidade, de um mero comentador que assume não
mais do que a tarefa de esclarecer e elucidar um fato que já está pronto e
compreendido. Parece que a teoria de Thomasson compromete-se com o
papel explicativo da filosofia, abdicando de sua capacidade prescritiva.
No entanto, será coerente apontar um papel tão humilde a uma
pensadora que cria um sistema ontológico tão abrangente, detalhado e
inovador como o exposto no capítulo anterior? A sua própria
metodologia ontológica de base não seria uma colossal afirmação do
papel criativo-prescritivo da filosofia? Thomasson não impõe ideias
prévias aos dados de arte e às opiniões do senso-comum, mas a decisão
de analisá-los através das cadeias de dependência ontológica a coisas
reais e estados mentais transcende em grande escala o papel meramente
―esclarecedor‖ da filosofia. Por esse motivo deve-se cuidar para não
incorrer em uma interpretação apressada do pensamento de Thomasson,
que coloque sua ontologia da arte na posição de mero reflexo de uma
classificação tradicional ou senso-comum da arte. A filosofia nunca
chega a ser um reflexo neutro da ―realidade‖, mas uma estruturação
criativa dos dados, ou uma antecipação regulativa da investigação.
102
Com efeito, Thomasson assume que o senso-comum funciona
como critério para as decisões ontológicas acerca da arte. Esse método
pode ser percebido na aplicação de sua analítica ontológica ao caso
dos objetos ficcionais, exposto anteriormente. A alocação categorial dos
objetos ficcionais foi definida através do rastreamento de suas relações
de dependência a estados mentais e a coisas reais; essas relações, por
sua vez, foram detectadas nas práticas e nos discursos comuns relativos
aos entes fictícios. É o modo como se lida e como se refere aos objetos
ficcionais que mostra quais são suas cadeias de dependência ontológica.
Em The Ontology of Art, Thomasson assume prontamente esse critério.
A autora está defendendo simplesmente a ideia de que não faz sentido
buscar um conceito abstrato de arte que seja anterior à prática e ao
discurso que classifica certos objetos como artísticos no dia-a-dia ou
historicamente. Não faz sentido porque antes dessas práticas e discursos
não arte, não o conceito de arte. O dado artístico é aquilo que está
inserido na prática e no discurso cotidiano que a ele se refere. Quando
um filósofo busca o conceito de arte, ele não pergunta a um objeto
qualquer ―o que é arte?‖, ele pergunta ―o que é isso que é arte?‖; ele o
pergunta, portanto, a um objeto ou grupo de objetos compreendidos
como arte. Assim, a posição de Thomasson de partir de várias entidades
já aceitas como casos paradigmáticos de obras de arte não é uma escolha
imparcial da autora, mas a admissão de uma circularidade inalienável da
própria pesquisa filosófica. Mesmo os pensadores idealistas, que criam
um conceito abstrato de arte para depois julgar aquilo que o senso-
comum compreende enquanto arte como correto ou incorreto,
outorgando ao seu conceito um papel de leito de Procusto, iniciaram sua
pesquisa por uma compreensão prévia de obra de arte, que reside na
própria classificação cotidiana de certos objetos como artísticos. Pois se
essa classificação não existisse em sua experiência cotidiana, se não
houvesse a prática de ir a museus, comprar e vender obras, distinguir
certos objetos como artísticos, identificá-los em outras culturas, de
distinguir certos sujeitos como artistas, etc., esse filósofo idealista
jamais buscaria o conceito de arte. Mesmo que depois ele se volte contra
toda a prática e o discurso de seu tempo, foram estes os primeiros
motores de sua pesquisa filosófica. A arte se apresenta primeiramente
como uma experiência no mundo, e a filosofia se propõe a pensá-la. No
entanto, na maioria das vezes, acaba negligenciando os dados que a
instigaram, criando uma ideia teórica autônoma de arte. Depois crê ter o
direito de aplicar impassivelmente essa ideia às coisas, julgando os
103
dados e classificando-os como se lhe fosse anterior, como se não
houvesse surgido por uma demanda do próprio desenvolvimento da arte.
É contra essa postura que Thomasson se volta, através da admissão da
circularidade intrínseca à própria investigação filosófica, que é partir de
uma regionalização prévia para buscar um conceito que explique essa
regionalização. uma região de entes que são ditos e tratados como
arte. Toda filosofia da arte parte dessa regionalização. O conceito
adquirido posteriormente pode voltar-se e corrigir essa regionalização
ou não. O fundamental, contudo, é admitir essa base prévia e inevitável,
pois essa clareza permite um cuidado especial para que preconceitos
e opiniões dogmáticas não se infiltrem no desenvolvimento da pesquisa.
Além de admitir a inevitabilidade de partir de uma
regionalização cotidiana e histórica dos entes, que classifica alguns deles
como arte, Thomasson diferencia-se da maioria das opiniões em
ontologia porque não busca um conceito abstrato ou genérico de arte,
mas um conceito formal. Um conceito abstrato ou genérico é alcançado
por abstração ou generalização
114
, isto é, toma-se uma multiplicidade de
exemplos de arte e busca-se aquilo que há em comum entre esses
exemplos, o que seu ―gênero semelhante‖. Ou seja, assim como se
toma diferentes objetos vermelhos e se percebe que aquilo que em
comum entre eles é o ―vermelho‖, chegando-se ao gênero ou conceito
abstrato de ―vermelho‖, toma-se diversos exemplares de arte e busca-se
o que em comum entre eles. Esse método leva ao condicionamento
do conceito filosófico pela época ou pela cultura na qual os exemplos
são selecionados, pois qualquer filósofo que buscasse o gênero
semelhante entre as obras de arte do século XVIII chegaria ao conceito
de beleza como definiens da arte, assim como qualquer filósofo que
buscasse o gênero semelhante entre as obras de arte na Grécia chegaria
ao conceito de harmonia, ao conceito de sagrado na Idade Média ou ao
conceito de sublime no século XIX. Esse método foi continuamente
utilizado pelas estéticas filosóficas, motivo pelo qual elas sempre foram
refutadas pelas formas de arte que as sucediam, a não ser que insistissem
em manter o conceito de arte assim formulado contra as novas formas de
arte, negando sua artisticidade, o que também não é um acontecimento
muito incomum.
Quando Thomasson afirma que parte de exemplos
paradigmáticos de arte, não o faz no sentido de buscar, por abstração ou
114
THOMASSON, A. ―Categories‖, Stanford Encyclopedia of Philosophy
http://plato.stanford.edu/entries/categories. (first posted 2004). p. 5.
104
generalização, o que em comum entre esses exemplos e chegar a um
conceito abstrato de arte como os que foram mencionados acima. Os
conceitos a que pretende chegar são formais porque não determinam
nada acerca do objeto que está sendo buscado, não determinam se será
belo, sublime, se terá dimensões, se será sagrado ou profano, ou
questionador ou radical, se terá papéis sociais, religiosos ou políticos, se
será estético, etc. Talvez sequer se possa afirmar que a autora busque um
conceito de arte. Ela busca o estatuto ontológico das obras de arte, e isso
significa: a sua localização categorial dentro do esquema metodológico
que foi esboçado no capítulo anterior, bem como a elaboração desses
esquemas categoriais. Os diversos exemplares de obras de arte devem
ser rastreados em suas cadeias de dependência ontológica através das
práticas e dos discursos que lhes concernem, o que proverá uma
localização nos diagramas da analítica ontológica. Uma vez localizados,
pode-se dar um nome para o espaço do diagrama que os acolhe,
transformar esse espaço em uma categoria ontológica relevante e assim
obter seu estatuto ontológico. Esse estatuto compromete-se apenas com
as relações de dependência ontológica das obras de arte a estados
mentais e a objetos reais, que são identificadas no senso-comum, e não
com qualquer conceito abstrato que determine previamente que tipo de
coisa será uma obra de arte. Essa é a diferença entre conceitos abstratos
e conceitos formais. A alocação categorial das obras de arte sequer
necessita ser exclusiva ou uniforme, isto é, pode ser que tipos de arte
diferentes localizem-se em categorias diferentes, bem como pode ser
que as obras de arte compartilhem sua categoria com objetos
tradicionalmente não artísticos, que apresentem relações de dependência
semelhantes. Por isso Thomasson adverte que não procura uma
definição de obra de arte, mas apenas sua localização categorial.
No encalço desta localização, a autora percebe a necessidade de
afirmar sua posição ontológica contra as concepções filosóficas
tradicionais acerca das obras de arte. A despeito de ser um
acontecimento com o qual todos lidam cotidianamente sem maiores
dilemas, a arte sempre foi um assunto problemático quando importado
para o terreno do pensamento conceitual. Por isso há diversas e até
opostas opiniões sobre a arte na história da filosofia e da estética.
Thomasson certamente não avoca a ambição de debater com todas elas,
selecionando apenas três concepções que considera mais fundamentais e
representativas do pensamento sobre a arte. Essas concepções são linhas
guias, que abrigam vários autores e várias opiniões semelhantes sob si,
105
sendo essa divisão apenas didática e metodológica. A primeira
concepção, fundada na tradição fisicalista, é a de que obras de arte são
objetos físicos (the physical-object theory), são pedaços de tecido,
tintas, blocos de pedra, ondas sonoras, impressões gráficas sobre papel.
Assim, o estatuto ontológico das obras de arte não é mais intrigante do
que o estatuto ontológico dos objetos físicos em geral, como cadeiras e
automóveis. Nessa perspectiva, a obra de arte é identificada com a
matéria física que a compõe. Assim, a estátua David é identificada com
o pedaço de mármore que a sustenta. Essa teoria, que inclui a arte na
categoria ontológica de ―objetos físicos‖, foi criticada por razões
bastante óbvias. Entre as muitas objeções possíveis, Collingwood
ressaltou que a criação imaginativa é uma condição necessária para a
existência de obras de arte, o que não se aplica aos demais objetos
físicos. Ele argumenta que uma obra de arte pode existir apenas na
mente de um artista, mesmo que não tenha sido transposta para
nenhuma matéria, pois ela é uma atividade imaginária do artista em
consonância com uma atividade imaginária do espectador
115
.
Entretanto, não é necessária a adoção do ponto de vista mentalista de
Collingwood para a negação da concepção da obra de arte como objeto
físico. Basta atentar-se para as condições de identidade e conservação
das obras. A estátua e o mármore têm identidades diferentes, pois a
estátua tem uma orientação significativa, pode ter propriedades estéticas
e é algo criado pelo artista, ao passo que o mármore em si mesmo não
possui nenhuma dessas características. Além disso, as condições de
conservação de ambos são radicalmente diferentes, pois se o dedo do
David é destruído e substituído por outro, o mármore não se conserva,
mas a obra sim. Do mesmo modo, na restauração de uma pintura, a
matéria não se conserva, ao passo que a obra sobrevive. Por outro lado,
quando se quebra uma estátua em pedaços e se os reorganiza em outro
formato, a matéria é conservada, mas a obra cessa de existir. Desse
modo, a obra de arte não pode ser identificada estritamente com a
matéria que a constitui
116
.
Esse tipo de argumentação mostra que Thomasson está
utilizando os conceitos de condições de identidade e de existência para
mostrar quais as relações de dependência ontológica das obras de arte
115
COLLINGWOOD, R.G. The Principles of Art. New York: Oxford University
Press, 1958.
116
THOMASSON, A. L. ―The ontology of Art‖. The Blackwell Guide to Aesthetics,
ed. Peter Kivy, Oxford: Blackwell, 2004. p. 4.
106
aos objetos físicos, nesse caso, para refutar a teoria fisicalista.
Conquanto se é capaz de estabelecer sob quais condições uma obra
artística mantém-se ela mesma e sob quais condições ela existe,
sobrevive ou cessa de existir, se adquiriu boa parte do conhecimento
necessário para o estabelecimento do seu estatuto ontológico. Por
exemplo, normalmente se compreende que se a matéria na qual uma
pintura se encontra, isto é, as tintas e o suporte, for destruída, a própria
obra igualmente o será. Assim, se a tela da A Anunciação for queimada,
a obra A Anunciação cessa de existir. Por outro lado, normalmente se
pensa diferentemente em relação a obras literárias, cênicas e musicais.
Ou seja, se um livro ou um Compact Disc são destruídos, se uma
apresentação musical ou cênica for cancelada, isso não implica a
destruição da obra que estava gravada ou impressa ou que seria
apresentada, mesmo no caso da destruição do manuscrito ou da partitura
original do autor/compositor. Se um exemplar de A Montanha Mágica
for destruído, mesmo que esse exemplar seja o manuscrito original de
Thomas Mann, não se entende que a obra A montanha Mágica cessou de
existir; há, inclusive, obras literárias que sobrevivem por séculos apenas
em estado de transmissão oral. Essas diferenças acerca das condições de
sobrevivência de uma obra de arte fornecem uma primeira indicação
de seu estatuto ontológico e de que diferentes gêneros de arte podem
pertencer a categorias ontológicas diferentes, pois suas relações de
dependência a objetos físicos divergem entre si. Considerando-se apenas
os apontamentos acima apresentados, poder-se-ia compreender as obras
de artes plásticas tradicionais como indivíduos concretos, localizados
em certo espaço e em certo tempo, enquanto as obras musicais e
literárias seriam compreendidas como entidades abstratas, isto é, sem
localização espaço-temporal.
Entretanto, é evidentemente necessário considerar muitos outros
aspectos para o estabelecimento de categorias para gêneros artísticos
específicos. A própria classificação em gêneros, ademais, é muitas vezes
arbitrária. A pesquisa não deve manter-se apegada à distinção
tradicional da arte em artes visuais, música e literatura, pressupondo que
cada uma delas deva pertencer a uma categoria ontológica específica ou
que todas as obras de música ou de literatura pertençam à mesma
categoria. A Gravura, por exemplo, é uma técnica tradicionalmente
considerada como arte visual ou plástica, mas nem por isso possui uma
localização espaço-temporal específica: várias cópias de O Cavaleiro, a
Morte e o Diabo foram destruídas, bem como a matriz diretamente
107
gravada por Dürer, mas nem por isso se afirma que a obra cessou de
existir. Em contrapartida, uma performance de improvisação musical,
como era tão recorrente no movimento dadaísta ou no jazz, por
exemplo, pode ser considerada um indivíduo concreto, pois se resume a
um evento único passível de localização espaço-temporal. É claro que
essas classificações ainda não foram alcançadas e são apresentadas aqui
apenas como exemplo do funcionamento da metodologia, que é buscar
as condições de identidade e de sobrevivência ou existência ou
conservação das obras de arte, o que é feito através de um exame do
modo como se lida e como se fala das mesmas tanto cotidianamente
quanto eruditamente. Essas condições proporcionam subsídio para
rastrear as dependências ontológicas das obras de arte aos objetos físicos
que as constituem e aos estados mentais dos autores e espectadores que
as criam e fruem, o que, por conseguinte, torna possível sua localização
nos quadrantes da base analítica de Thomasson e a nomeação das
categorias ontológicas que as abrigam.
Outra abordagem metafísica bastante famosa acerca da arte é a
que a concebe puramente nos termos da intencionalidade da consciência.
Collingwood participa dessa concepção na medida em que concebe a
arte como uma atividade imaginária da consciência do artista e do
espectador. Os objetos materiais nos quais a arte se expressa não
constituem a obra de arte, são apenas meios que o artista engendra para
levar os espectadores a reconstruírem em sua consciência a experiência
imaginária que o artista teve ao criar a obra. Nesse sentido, a arte é
concebida sob a categoria ontológica de ―atividade imaginária‖: ―a
experiência imaginária de atividade total do artista, recriada por
espectadores competentes, é a verdadeira obra de arte‖
117
. Sartre, na
mesma direção, afirma que as obras de arte não são objetos percebidos,
mas entidades imaginárias, pois só podem ser experimentados através de
atos imaginativos da consciência
118
. Diferentemente de Collingwood,
Sartre não os concebe como atividades imaginárias, mas como objetos,
entidades imaginárias, criados e sustentados pelos atos da consciência
imaginária, e cuja existência está condicionada a estes. Entretanto, da
mera constatação de que obras de arte não são objetos físicos, não se
117
―The imaginary experience of total activity of the artist‘s, recreated by competent
viewers, is the true work of art‖. COLLINGWOOD, R.G. The Principles of Art. New York:
Oxford University Press, 1958.
118
SARTRE, J. P. The Psychology of Imagination. New York: Washington Square
Press, 1966.
108
pode simplesmente inferir a hipótese de que são entidades ou atividades
imaginárias, existindo apenas na medida em que são imaginadas. Esta
concepção, de acordo com Thomasson, também apresenta problemas,
pois atividades imaginárias são individuais e não podem ser percebidas
sensorialmente. Entretanto, obras de arte são normalmente consideradas
objetos públicos, experimentados e discutidos por diversas pessoas.
Além disso, essa concepção tem a implicação bastante contra-intuitiva
de que, ao se destruir o quadro A Anunciação, o se estaria destruindo
a obra, pois ela continuaria existindo no imaginário das pessoas:
Ambas as visões tornam extremamente difícil ver
como uma e mesma obra de arte poderia ser experimentada e
discutida por muitas pessoas diferentes, pois cada uma
pareceria estar envolvida em suas próprias atividades
imaginativas e vivenciando seus próprios objetos
imaginários. Em tais visões imaginativas, nenhuma obra de
arte pode ser destruída através da destruição de entidades
como telas pintadas, uma vez que as próprias obras
existem na mente do artista e público. Da mesma forma,
contrariamente às práticas e pressupostos regulares do
mundo da arte, as verdadeiras obras de arte não poderiam ser
compradas ou vendidas, executadas ou lidas em voz alta,
restauradas ou reproduzidas mecanicamente
119
.
Ou seja, a segunda concepção acerca das obras de arte, que as
toma como objetos ou atividades imaginárias ou mentais não se sustenta
diante das práticas comuns com as obras de arte. Pois estas são tratadas
normalmente como coisas que podem ser vendidas, transportadas,
regravadas, etc. Ademais, quando duas pessoas discutem sobre uma
obra de arte, pensam estar falando de uma entidade que é comum para
ambas e não das atividades mentais particulares de cada um, pois nesse
caso não haveria discussão alguma, uma vez que se trataria de coisas
diferentes.
119
―Both views make it extremely difficult to see how one and the same work of art
could be experienced and discussed by many different people, since each would seem to be
engaged in her own imaginative activities and experiencing her own imaginary objects. On
such imaginative views no work of art can be destroyed through destroying such entities as
painted canvasses, since the works themselves exist only in the minds of artist and audience.
Similarly, contrary to the regular practices and assumptions of the art world, true works of art
cannot be bought or sold, performed or read aloud, restored or mechanically reproduced‖.
THOMASSON, A. L. ―The ontology of Art‖. The Blackwell Guide to Aesthetics, ed. Peter
Kivy, Oxford: Blackwell, 2004. p. 3, 4.
109
ainda uma terceira alternativa ontológica, defendida por
Currie, Wolterstorff e em uma versão mais fraca por Wollheim, que
consiste na afirmação de que obras de arte não são objetos físicos nem
imaginários, mas entidades abstratas, isto é, são tipos abstratos a partir
dos quais são feitas as cópias materiais (entre as quais são incluídos os
próprios originais de pinturas e esculturas)
120
. Desse modo, o original
de A Anunciação é apenas uma cópia material do tipo abstrato, que
constitui a obra em questão. As réplicas desse quadro, que não foram
pintadas por Fra Angelico e que tradicionalmente são consideradas
ilegítimas, falsificações, nessa perspectiva, também são originais, pois
são cópias do tipo abstrato, do mesmo modo que a de Fra Angelico.
Essa teoria implicaria na total mudança da prática no âmbito artístico de
identificação dos originais e réplicas, cópias, autoria, entre outras
questões. Além disso, essa teoria tem o seguinte ponto fraco: os tipos
abstratos são e sempre foram compreendidos como independentes das
atividades humanas, existindo eternamente, sem serem passíveis de
criação ou destruição. Mas as obras de arte são normalmente concebidas
como coisas criadas em certo momento histórico, por certo artista. Além
disso, muitas obras de arte que foram destruídas, tanto na matéria
quanto na memória. Ou seja, de acordo com a compreensão comum de
obras de arte, elas são dependentes de atividades humanas, não são
eternas, pois são criadas por artistas e são passíveis de destruição, o que
torna a teoria de Currie bastante artificial e contra-intuitiva. Assim, o
posicionamento ontológico que encaixa as obras de arte dentro da
categoria de ―entidades abstratas‖ também apresenta consequências
ontológicas indesejáveis. Esses apontamentos mostram porque as mais
paradigmáticas concepções ontológicas da arte (a teoria do objeto físico,
a da entidade imaginária e a do tipo abstrato) são insuficientes,
apresentando várias implicações ontológicas problemáticas. Thomasson
é uma interlocutora privilegiada na discussão em filosofia da arte
precisamente porque percebe e aponta essa insuficiência e trabalha na
direção da elaboração de uma nova ontologia da arte, que supere os
problemas acima descritos.
4.1 O senso-comum como critério ontológico
120
CURRIE, G. An Ontology of Art. New York: St. Martin‘s Press, 1989. p. 8.
110
Como se pode observar, as críticas que foram levantadas contra
as três abordagens ontológicas citadas fundam-se no senso-comum, isto
é, no modo como as obras de arte são normalmente compreendidas.
Assim, as crenças e os comportamentos básicos na lida cotidiana com a
arte são adotados como os critérios de ajuizamento das diferentes teorias
ontológicas acerca da arte. Poder-se-ia questionar se a explicitação de
que as teorias acima descritas colidem com as crenças do senso-comum
é suficiente para mostrar que são inadequadas. Com efeito, vários
pensadores que defendem os pontos de vista expostos acima não são
inconscientes de sua colisão com o senso-comum. Currie, por exemplo,
admite que sua concepção de que a pintura é um tipo abstrato choca com
a aceitação geral de que a pintura é uma entidade singular, contudo, o
filósofo afirma que ―de modo algum segue-se disso que a pintura é
singular; pode ser que estejamos enganados a respeito disso‖
121
. Ou
seja, do fato de que uma teoria colide com as crenças do senso-comum
não se segue de modo tão óbvio que essa teoria está errada, pois pode
ser que o senso-comum esteja errado em seu modo de apreciar as coisas.
De fato, as teorias científicas inovadoras, quando surgem, normalmente
entram em choque com as crenças do senso-comum, e, uma vez
provadas, ninguém resgata essas crenças como uma possível refutação
às teorias científicas. Assim, estas tampouco deveriam ter direito de
funcionar como crivo de assentimento para teorias filosóficas. Por que
Thomasson defende que o senso-comum funciona como critério
metodológico para as decisões ontológicas a respeito da obra de arte?
O estatuto ontológico de pinturas, sinfonias ou
obras de literatura é, portanto, não algo que podemos
descobrir através de investigações no mundo independente
da mente; ao invés disso, nós devemos seguir o método de
analisar a concepção incorporada nas práticas dos falantes
competentes que fundam e re-fundam a referência do termo
122
.
121
―It by no means follows from this that painting is singular; it is possible that we are
mistaken about this‖. CURRIE, G. An Ontology of Art. New York: St. Martin‘s Press, 1989. p.
87.
122
―The ontological status of paintings, symphonies, or works of literature is thus not
something we can discover by investigations into the mind-independent world; instead, we
must follow the method of analyzing the conception embodied in the practices of those
competent speakers who ground and reground reference of the term‖. THOMASSON, Amie.
Ontology of art and knowledge in aesthetics. (published in The Journal of Aesthetics and Art
Criticism 63:3 Summer 2005) p.6.
111
A filósofa defende este critério, afirmando que a teorias
científicas possuem fundamento empírico e podem ser confirmadas por
experimentos, o que não vale para posições filosóficas. Não há nenhuma
evidência ou contra-evidência empírica que possa confirmar ou refutar
teorias que afirmem que as obras de arte são objetos físicos ou
imaginários ou abstratos. Assim, de acordo com a autora, a analogia
com a ciência não é válida para teorias filosóficas. Ela posiciona-se
igualmente em contraposição às influentes teorias causais de referência,
elaboradas por Kripke e Putnam na década de 70, que afirmam a
falibilidade das crenças do senso-comum. A base dessas teorias consiste
na afirmação de que um nome refere-se a um objeto em função de uma
situação de batismo, portanto de uma relação direta causada por alguém,
que é transmitida para outros por meio de interações comunicativas,
também diretas. Assim, a referência de um termo a uma coisa se
através de um batismo arbitrário que se perpetuou na prática lingüística
e não através de um conjunto de práticas e crenças dos falantes em
relação à coisa nomeada. Essa suposição implica que um termo pode
referir-se a uma coisa mesmo que todas as crenças do senso-comum
acerca dessa coisa estejam erradas. Contra essas teorias, Thomasson
defende que a referência dos termos lingüísticos se pelo modo como
estes são usados e significados cotidianamente pelos falantes. Assim, a
referência de ―arte‖ ocorre através das crenças e práticas comuns dos
falantes em relação à arte. O conceito de arte adquire significado,
portanto, em função do senso-comum, donde não faz sentido que uma
ontologia da obra de arte pretenda descobrir a ―verdadeira natureza da
arte‖ a despeito e até contrariamente às crenças e práticas comuns. O
ponto de partida de Thomasson é uma filosofia da linguagem pública, da
vida comum, e não da esfera de doação para uma consciência isolada. É
no mundo da vida, no espaço público no qual se lida com os dados, que
os termos que os nomeiam são criados, adquirem significado e
referência.
4.1.1 O Modelo da Descoberta
A pesquisa de Thomasson em ontologia da arte remete-se com
frequência a esse extenso debate em filosofia da linguagem e
epistemologia. Em Ontology of Art and Knowledge in Aesthetics, a
112
autora aprofunda-se no tema. Ela explica que as teorias causais de
referência vinculam-se a um paradigma epistemológico que ela
denomina ―the discovery view‖. Esse ponto de vista da ―descoberta‖ é
oriundo da lógica interna das ciências naturais e do empirismo em geral,
consistindo na concepção de que o mundo contém objetos e fatos
independentes da mente humana e que estes são passíveis de serem
conhecidos pela ciência. Esses ―fatos verdadeiros‖ a respeito do mundo
independem das crenças do senso-comum acerca deles, pois este muitas
vezes está errado, e é papel do cientista descobrir a verdade a despeito
das crenças e opiniões do senso-comum
123
. É nesse paradigma que a
ciência opera quando afirma que todos estavam errados ao crer no
geocentrismo, pois foi descoberta a verdade do heliocentrismo pelas
insvestigações empíricas. Esse tipo de perspectiva naturalmente invalida
as opiniões do senso-comum, que constantemente encontram-se em erro
a respeito da verdade das coisas do mundo. O erro justifica-se, nessa
concepção, pelo fato de que, de acordo com as teorias causais de
referência, um nome é dado à coisa em uma situação de batismo e esse
nome passa a referir à coisa. Essa coisa que tem certo nome passa a ser
objeto de crenças e opiniões por parte da comunidade lingüística, mas
estas podem estar equivocadas. O cientista pode descobrir a verdadeira
natureza a respeito do objeto em questão e então mostrar a incorreção
das opiniões do senso-comum. O objeto de investigação pode em
princípio ser completamente conhecido pelo cientista, o que significa
que, para qualquer proposição P a respeito do objeto, P é verdadeira ou
falsa, e se ainda não se descobriu o valor de verdade de P isso se deve a
uma deficiência da pesquisa científica, que ainda não foi
suficientemente bem desenvolvida ou porque ainda não foi inventada a
tecnologia necessária, e não a uma impossibilidade de determinação ou
ambigüidade do próprio objeto de investigação. Thomasson alerta que
essa concepção pode funcionar com êxito no campo das investigações
empíricas. O problema é quando ela se alastra para terrenos mais
pantanosos, como é o caso dos objetos culturais, ficcionais ou artísticos.
Pois como afirmar que uma situação de batismo, na qual um sujeito
aponta para certo objeto e diz ―arte‖ ou ―pintura‖ e que esse nome se
propaga através de cadeias causais, isto é, através da propagação dessa
nomeação na prática lingüística, mas que todos podem estar errados a
respeito da verdadeira natureza disso que se denominou arte? Pois o que
123
Apesar de Thomasson não fazer uma referência direta, trata-se do mesmo
paradigma denominado por Husserl de atitude natural.
113
seria a verdadeira natureza da arte para além das crenças e práticas da
comunidade lingüística concernente à mesma? Pode-se fazer
investigações empíricas em ontologia da arte para se chegar à sua
verdadeira natureza, a respeito da qual todos podem estar errados? Além
disso, pode-se afirmar que qualquer proposição sobre a arte ou é
verdadeira ou é falsa, bastando apenas que se faça investigações o
suficiente para se descobrir seu valor de verdade? Questões como
―quanto de tinta pode ser restaurada em uma pintura e ela manter-se
original?‖, possuem um valor de verdade determinado, que apenas não
foi descoberto ainda? Pelo que foi visto até o momento, pode-se
facilmente concluir que Thomasson discorda completamente do modelo
epistemológico da descoberta. Pode-se questionar inclusive se esse
paradigma vale de fato para a esfera das ciências naturais, o que a autora
não faz, dando-se por satisfeita com a recusa cabal de que ele valha para
o campo das artes, da cultura, dos artefatos, entre outros
124
.
O maior problema das teorias causais de referência é a
suposição de que é possível batizar alguma coisa antes que a coisa que
está sendo nomeada tenha uma posição e um sentido na vida coletiva.
Pois, nesse caso, não seria possível estabelecer a referência do nome,
uma vez que não se conheceria, não se teria familiaridade com o que
está sendo nomeado. Essa incoerência foi apontada por Wittgenstein
através de sua crítica à concepção agostiniana da linguagem, fundada na
noção de definição ostensiva (semelhante ao conceito de ―batismo‖ de
Kripke):
A definição do número dois ―isto se chama `dois`‖
enquanto se mostram duas nozes é perfeitamente exata.
Mas, como se pode definir o dois assim? Aquele a que se dá
a definição não sabe então, o que se quer chamar com ―dois‖;
suporá que você chama de ―dois‖ esse grupo de nozes! –
Pode supor tal coisa. Mas talvez não o suponha. Poderia
também, inversamente, se eu quiser atribuir a esse grupo de
nozes um nome, confundi-lo com um nome para número. E
do mesmo modo, quando elucido um nome próprio
ostensivamente, poderia confundi-lo com um nome de cor,
uma designação de raça, até com o nome de um ponto
124
THOMASSON, Amie. Ontology of art and knowledge in aesthetics. (published in
The Journal of Aesthetics and Art Criticism 63:3 Summer 2005). p. 6.
114
cardeal. Isto é, a definição ostensiva pode ser interpretada em
cada caso como tal e diferentemente
125
.
Wittgenstein elucida, desse modo, que não faz sentido explicar
a linguagem através de uma situação de batismo, embora não use essa
terminologia, pois este se efetua quando se sabe mais ou menos o
que se quer batizar, i.e., o tipo ou a categoria que está sendo designada
pelo nome. Para que o batismo tenha êxito, é preciso que os falantes
saibam qual categoria está sendo refenciada ao se apontar para certo x:
se é x enquanto número, enquanto coisa, enquanto nome próprio,
enquanto qualidade, enquanto lugar no espaço, enquanto valor, etc. Ou
seja, ―deve-se já saber (ou ser capaz de) algo, para poder perguntar sobre
a denominação
126
‖. Isso mostra que a linguagem não está fundada no
batismo, mas na prática cotidiana, na vida pública dentro da qual as
coisas adquirem nomes e os nomes adquirem significados. Thomasson
afirma que este é o problema central das teorias causais de referência:
cada entidade pode ser incluída em muitos tipos ou categorias. Um livro,
por exemplo, pode ser intencionado como objeto cultural, como
composto químico, como objeto singular concreto, como acontecimento
histórico, como obra de arte, como unidade, como certa combinação de
cores e volumes, como formato retangular, entre outros. Quando alguém
aponta para um livro e o batiza como ―livro‖, não como saber qual
das categorias mencionadas acima se es nomeando. É necessário
primeiro especificar qual categoria está sendo designada por ―livro‖.
Logo, antes do batismo, é preciso que haja uma compreensão ontológica
das categorias e de qual categoria está em questão na denominação de
cada entidade. Thomasson chama a essa compreensão ontológica da
categoria relevante para a atribuição de um nome de ―conceito de
desambiguação‖.
Ao menos um conceito de base da ontologia da
obra de arte é necessário para estabelecer a referência de
termos como ―pintura‖ ou ―sinfonia‖. Esses conceitos
determinam o tipo ontológico, se houver, selecionado pelo
termo, e então a ontologia da obra de arte deve ser algo sobre
o qual aprendemos através de análise conceitual dos
conceitos associados das pessoas que competentemente
125
WITTGENSTEIN, L. Investigações filosóficas. São Paulo: Ed. Nova Cultural.
(Col. Os Pensadores), 2000. p. 37.
126
Idem. p. 38.
115
fundam ( e re-fundam) a referência de termos como
―sinfonia‖ e ―pintura‖, não algo que podemos buscar
descobrir através de investigações dentro da realidade
independente da mente
127
.
Assim, é necessário um conceito ontológico de desambiguação,
que especifique que tipo está envolvido na referência de termos relativos
a obras de arte. Esse conceito não é algo que pode ser alcançado por
investigação empírica, mas por análise das compreensões subjacentes à
prática comum com a arte, pois é esta que funda a referência dos termos.
Na prática cotidiana de nomear certas coisas como obras de arte está
implícito um conceito de base do que é relevante para que algo seja
considerado arte, pois do contrário esta classificação não faria o menor
sentido. Por isso o discurso coletivo que funda os termos artísticos tem
um privilégio epistêmico na formação de um conceito ontológico de
obra de arte, e não pode, como um todo, estar massivamente enganado
sobre a natureza ontológica da obra de arte, justamente porque é ele que
funda esse conceito e seu sentido. O conceito de desambiguação referido
por Thomasson é a compreensão de quais características são relevantes
na atribuição do nome ―obra de arte‖ a alguma coisa, e essa
compreensão tem que existir antes do mero batismo para que se possa
saber o que se está nomeando. Se alguém apontasse para uma pintura e
dissesse que aquilo se chama ―pintura‖ e a pessoa para quem isso é
informado não possuísse um conceito de desambiguação a
compreensão do que está ontologicamente em questão na denominação
de algo como ―pintura‖ , ela não poderia saber se o que está sendo
referido é o formato retangular, as cores, o lugar no espaço, o número
um, o composto químico que forma aquele objeto, etc.
Hilary Kornblith argumenta contra essa ideia, afirmando que
antropólogos de Marte poderiam chegar na Terra, selecionar alguns
artefatos e criar um nome para eles, como ―glug‖, mesmo sem estar
inseridos na prática e no discurso que funda os termos relativos aos
127
At least a background concept of the ontology of the work of art is needed to
establish the reference of terms like ‗painting‘ or ‗symphony‘. Such concepts determine the
ontological kind, if any, picked out by the term, and so the ontology of the work of art must be
something we learn about through conceptual analysis of the associated concepts of people
who competently ground (and reground) the reference of terms like ‗symphony‘ and ‗painting,‘
not something we can seek to discover through investigations into mind-independent reality‖.
THOMASSON, Amie. Ontology of art and knowledge in aesthetics. (published in The Journal
of Aesthetics and Art Criticism 63:3 Summer 2005). p. 3.
116
artefatos terrestres
128
. Este seria um exemplo de uma situação de
batismo ao modo das teorias de referência direta e, de acordo com
Kornblith, funciona mesmo para artefatos e objetos culturais.
Thomasson, entretanto, defende que, mesmo no caso dos antropólogos
marcianos, embora eles não estejam inseridos no contexto coletivo que
funda os termos que designam os artefatos terrestres que eles
denominaram ―glug‖, há um conceito tácito de desambiguação operando
para que esse batismo seja possível no caso, um conceito marciano.
Pois os marcianos certamente associam o nome ―glug‖ a algum tipo, a
algum conjunto de características que são relevantes para que algo entre
no conjunto dos objetos designados por ―glug‖. Esse conjunto de
características relevantes para a atribuição de um nome a uma coisa é
precisamente a compreensão ontológica de base que justifica a
nomeação: o conceito de desambiguação de Thomasson.
Kornblith não precisaria ter ido tão longe para buscar exemplos
do acontecimento que ela relata com a parábola dos antropólogos
marcianos. A história ocidental está repleta de exemplos semelhantes
desse mesmo evento, incluindo alguns que dizem respeito aos termos
artísticos. Em todos os casos de colonização, no qual uma
contaminação entre culturas distintas, a cultura dominante denomina
certas práticas ou objetos como ―obras de arte‖, ―música‖, ―pintura‖,
mesmo sem compreender e estar inserida no contexto cultural que
engendrou aqueles objetos e o sentido que eles têm para a cultura
dominada. Quando antropólogos ocidentais olham para alguns objetos
indígenas e os classificam como ―esculturas‖, eles por vezes
desconhecem as compreensões de base do povo que funda o termo
semelhante, se é que existe, em seu próprio idioma. Parece tratar-se,
portanto, de uma situação de batismo arbitrária. Exemplos de
deslocamento conceitual entre culturas podem ser encontrados mesmo
na situação oposta, na qual a cultura dominada inclui objetos dentro de
práticas que não são seu contexto comum em sua cultura original. As
tribos abelans da Nova Guiné, por exemplo, criam ―pinturas‖
bidimensionais utilizando apenas quatro cores em tons muito vivos: o
verde, o vermelho, o amarelo e o preto
129
. Essas pinturas vão do
figurativo ao abstrato e têm uma função ritualística masculina de
comunhão com a criatividade feminina. Em virtude do contato com os
128
Idem. p. 3.
129
GEERTZ. O saber local: Novos ensaios em antropologia interpretativa. Petrópolis:
Editora. Vozes; 1997
117
europeus, algumas revistas coloridas chegam até as aldeias e,
eventualmente, suas páginas são destacadas e pregadas às casas de
rituais, ao modo das pinturas abelans. Essas páginas são as mais
coloridas, normalmente anúncios de comida, e por isso são consideradas
objetos de muito poder. Trata-se, novamente, de uma situação na qual
um objeto é deslocado das práticas que fundam sua nomeação e
renomeado em outro contexto, através de outro conceito de
desambiguação, que inclui as revistas européias e as pinturas
ritualísticas na mesma categoria ontológica, o que permite que recebam
a mesma denominação na língua abelam. Essa atitude não é mais
ingênua do que a contrapartida ocidental de incluir esses objetos na
categoria de ―pintura‖. Este problema, que atrapalhou o sono de tantos
antropólogos, é facilmente resolvido com a noção de conceito de
desambiguação. Pois o que ocorre quando uma cultura batiza certos
objetos ou eventos de outra cultura superficialmente, sem detectar os
conceitos de base que levam aquela cultura a designar certos objetos por
certo nome, é um uso de um conceito de desambiguação que não
pertence a esta. Trata-se de uma apropriação de coisas de uma cultura
pelos conceitos básicos de outra. É um batismo arbitrário, mas não um
batismo que não tenha conceitos prévios (o que careceria de sentido),
mas um batismo que usa conceitos impostos, importados ou deslocados.
A solução para isto é simplesmente admitir que quando os ocidentais
chamam as figuras abelans de ―arte‖, estão incluindo esses objetos no
conceito ocidental de arte, e não utilizando os conceitos abelans para
explicar o mesmo acontecimento. Basta admitir que o que chamamos de
arte abelam é outra coisa para os abelans ou então deixar de usar essa
nomeação e buscar uma que esteja mais de acordo com as práticas e o
discurso abelam acerca destes mesmos objetos. Ou seja, ou se utiliza os
conceitos de desambiguação originais de uma cultura para compreender
as coisas que ela engendra, ou se usa conceitos estrangeiros e se admite
que não se está falando da mesma coisa o que não precisa ser tomado
com a revolta dos antropólogos modernos e dos simpatizantes das
culturas indígenas.
A antropologia contemporânea busca tomar cada vez mais
cuidado para compreender os acontecimentos e objetos de uma cultura
de acordo com seus próprios conceitos basilares, que fundam suas
denominações. Desse modo, não se utiliza os conceitos de
desambiguação do antropólogo e sim os do povo que está sendo
investigado. Esse cuidado, aliado a um estudo extenso da imensa
118
variedade cultural, levou a antropologia de Geertz a uma compreensão
bem próxima de uma ontologia formal:
Se é que existe algo em comum entre todas as artes
em todos os locais onde as descobrimos (em Bali fazem
estátuas com moedas, na Austrália desenhos com lixo) que
justifique incluí-las sob uma mesma rubrica inventada no
mundo ocidental, certamente não será o fato de que afetam
algum sentido universal de beleza. (...) Se é que existe algo
em comum, é que em qualquer lugar do mundo certas
atividades parecem estar especificamente destinadas a
demonstrar que as ideias são visíveis, audíveis e será
preciso inventar uma palavra tactíveis; que podem ser
contidas em formas que permitem aos sentidos, e através
destes, às emoções, comunicar-se com elas de uma maneira
reflexiva
130
.
Geertz aponta para o mesmo problema ontológico que motiva
essa dissertação: algo em comum entre tudo que se considera ―obra
de arte‖? Há alguma estrutura comum que permaneça subjacente a essas
variadíssimas aparições que justifique sua denominação como arte?
Geertz não se mostra plenamente convicto de que exista esse ―algo em
comum‖, mas lança uma proposta bastante interessante, embora se
mantenha no paradigma estético, privilegiando a apreciação sensorial da
obra de arte. Ele explica a arte como ideias que são tranformadas em
formas visíveis, audíveis ou tactíveis e depois apanhadas sensorialmente
e, em seguida, emocionalmente e reflexivamente pelos espectadores.
Com a ressalva das críticas feitas anteriormente ao modelo estético, essa
proposta é relevante ao menos como tentativa de busca de características
gerais capazes de unificar os dados sob o nome de ―obra de arte‖,
―pintura‖, ―música‖. Thomasson busca o mesmo, elaborando, a
princípio, respostas negativas: ―claramente, características comuns
químicas, físicas ou biológicas não são necessárias nem suficientes para
inclusão em tais tipos‖
131
. A ideia de uma ―função comum‖ tampouco
ajuda a justificar o conjunto das obras de arte, pois a arte, se é que tem
uma função, certamente não é unânime para todas as obras ―trabalhos
130
Idem. p. 181.
131
―Clearly no common chemical, physical, or biological features are necessary or
sufficient for membership in such kinds‖.THOMASSON, Amie. Ontology of art and
knowledge in aesthetics. (published in The Journal of Aesthetics and Art Criticism 63:3
Summer 2005). p. 3
119
de música podem ser criados para servir (e podem de fato servir) a
muitas funções diferentes, ou nenhuma‖
132
. A ―semelhança‖ também
não é uma característica de demarcação eficaz, pois ―tudo se assemelha
a tudo em tantas maneiras que isso é inútil como um critério de
unificação‖
133
.
A autora sugere um critério que, embora não seja suficiente
para demarcar o tipo ―obra de arte‖, é ao menos necessário, pois
distingue os membros dos tipos artísticos, culturais ou artefatuais dos
membros dos tipos naturais: ser o produto de intenções humanas. As
intenções humanas podem produzir muitos efeitos, economicamente,
fisicamente, causalmente, etc., aos quais Thomasson não se refere. A
autora sugere o conceito de ―produto de intenções humanas‖ no sentido
de coisas ou ações que são criadas com o objetivo de ser tal coisa. Com
efeito, artefatos são coisas criadas pelos humanos para serem artefatos,
livros são criados com a intenção de ser livros e assim por diante. Ela
afirma que ―uma proposta promissora é que ao menos uma característica
necessária para unificar objetos dentro de tipos-arte, como pinturas,
sinfonias e novelas, é que eles são produtos do mesmo tipo de
intenções‖
134
. Ou seja, algo é uma sinfonia se é o produto bem sucedido
de intenções humanas de criar uma sinfonia; algo é uma instalação se é
o produto bem sucedido de intenções humanas de criar uma instalação.
Através desse critério, uma instalação artística torna-se distinta de um
mero amontoado de coisas deixadas por operários dentro de um museu,
uma pintura de Pollock torna-se distinta de gotas de tinta caídas
acidentalmente sobre um tecido. É importante atentar-se para o adendo
―bem sucedido‖ inserido nas explicações acima. Pois basta que alguém
tenha a intenção de fazer uma sinfonia para que o faça, mesmo que não
tenha quaisquer conhecimentos de composição musical? Thomasson
tem o cuidado de antepor ―bem sucedido‖ a ―produto de intenções
humanas‖ para dar espaço à experiência do fracasso e da incompetência.
Por esse motivo, esse critério é necessário, porém não é suficiente. Para
que algo pertença à categoria ―obra de arte‖, ―pintura‖ ou ―escultura‖,
tem que ter sido criado com a intenção de ser uma obra de arte, uma
132
―Works of music may be created to serve (and may actually serve) many different
functions, or none‖. Idem. p. 3.
133
―Everything resembles everything in so many ways that this is useless as a unifying
criterion‖ Idem. p. 3.
134
―One promising proposal is that at least one sort of feature necessary to unify
objects into such art-kinds such as paintings, symphonies, and novels is that they be the
products of the same sorts of intentions‖. Idem. p. 4.
120
pintura ou uma escultura. Porém, essa intenção não basta para que algo
seja incluído nessas categorias.
Esse critério defendido por Thomasson esbarra em um
problema digno de nota. Pois obras de arte que não são exatamente
coisas produzidas para serem obras de arte. Desde Duchamp os artistas
têm adotado a prática de utilizar objetos ou situações não artísticas em
seu contexto original, transformando-os em obras. Por esse motivo, é
necessário advertir que a apropriação de um objeto ou evento não
artístico como obra de arte deve ser entendido como um ato de produção
intencional de uma obra de arte, tão legítimo quanto a criação de um
objeto novo. Assim, os ready-mades de Duchamp, as cirurgias plásticas
de Orlam, os experimentos científicos e trangênicos de Eduardo Kac, os
construtos tecnológicos e biogenéticos de Stelarc, as esculturas com
corpos de animais de Damien Hisrt, etc., devem ser pensados como
apropriações de objetos e conhecimentos não artísticos para a criação de
obras de arte, o que os inclui sem maiores problemas no critério de ―ser
o produto bem sucedido da intenção humana de criar uma obra de arte‖
sugerido por Thomasson.
casos mais complexos, como a obra de Bispo do Rosário,
que viveu cinquenta anos internado em um sanatório, sob o rótulo de
esquizofrênico paranóide. Bispo constrói objetos a partir dos restos da
sociedade de consumo, preparando-os com preocupações estéticas nas
quais pode-se perceber características dos conceitos das vanguardas
artísticas e das produções elaboradas a partir de 1960. No entanto, nunca
teve contato com o circuito artístico, nunca teve a pretensão de expor em
museus ou de criar obras de artes, pois os objetos que criava eram uma
resposta a uma revelação que teve em um surto, de acordo com a qual
cabia a ele a missão de recriar o mundo para ser apresentado a Deus no
dia do Juízo Final
135
. Assim, embora seu manto, seus fardões, seus
estandartes, suas vitrines, seus ready-mades mumificados possam
assemelhar-se com a arte vanguardista, não podem ser considerados
obras de arte, pois não foram feitos com essa intenção, mas com a
intenção de criar uma compilação, um relatório do mundo para Deus. O
mesmo problema pode ser detectado no que se considera arte primitiva,
como as pinturas de animais e as impressões de mãos nas paredes de
cavernas sagradas, cujo objetivo era atrair a caça e pedir proteção para
os caçadores aos deuses, e não criar obras de arte. Desse modo, aceitar o
135
MORAIS, F. Arthur Bispo do Rosario: Uma biografia em curso. MAM, Rio de
Janeiro, 1989. p.6.
121
critério da intenção implica em aceitar a exclusão de boa parte do que
tradicionalmente se inclui no conjunto das obras de arte. Outra saída
seria mostrar que, no caso de Bispo do Rosário, por exemplo, a intenção
de constituir uma obra de arte não está no criador dos objetos, o Bispo,
mas naquele que intencionou estes objetos como obras de arte. Assim, o
―artista‖ entendido como aquele que teve a intenção de criar um objeto
artístico através da apropriação dos objetos de Bispo sob o conceito de
―arte‖, devido a uma sensibilidade de suas semelhanças com as
vanguardas artísticas é Frederico Morais, que ―descobriu‖ casualmente
suas obras na década de oitenta. As insistentes comparações feitas por
Morais entre Bispo e Duchamp mostram seu esforço de inserir aquele no
sistema artístico, de criar uma nova sugestão de interpretação de seus
trabalhos como obras de arte e não como reflexos mecânicos de um
distúrbio psíquico. Embora Morais tenha visto semelhanças entre Bispo
e Duchamp, é em seu próprio ato de retirar um objeto de um contexto
não artístico e inseri-lo em um museu que mais ressonâncias com os
ready-mades de Duchamp.
No entanto, Thomasson aponta para esse critério de ―ser o
produto de intenções humanas de criar uma obra de arte‖ em um
contexto em que seu objetivo é refutar as teorias causais de referência.
Essas teorias precisam de um conceito de desambiguação que determine
a que tipo um nome se refere. Além dos problemas levantados, o critério
apontado acima não pode funcionar como um conceito de
desambiguação, pois, embora limite as obras de arte ao campo de
criação intencional humana, ele também requer uma compreensão
prévia do que seja uma obra de arte. Pois para que alguém tenha a
intenção de criar uma obra de arte, é preciso que haja uma compreensão
do que seja uma obra de arte. Essa concepção ontológica de fundo é
buscada por Thomasson nos critérios de identidade e de existência das
obras de arte:
Tal concepção ontológica faz a desambiguação das
referências potenciais através da determinação do tipo
ontológico que é referido pelo termo do tipo-arte,
estabelecendo, por exemplo, se o tipo-arte relevante é um
tipo de atividade ou objeto, se é um indivíduo concreto ou
um padrão abstrato exemplificado por esses indivíduos
concretos, e estabelecendo onde se encontram os limites
122
espaciais e temporais de uma obra e as condições sob as
quais a mesma obra sobrevive
136
Essas concepções estão presentes nas práticas cotidianas com a
arte, não são, na maioria das vezes, conceitos explícitos a respeito dos
quais todos os falantes têm clareza. Isto é, não é necessário que as
pessoas possuam uma ideia clara de que, quando falam de um romance,
por exemplo, estão se referindo a um padrão abstrato atualizado nos
exemplares concretos de livros. No entanto, o modo como lidam com os
livros e os romances, por exemplo, ao destruírem um exemplar de livro
e comprarem outro com a mesma estória que o substitui, mostra essa
concepção tácita. Assim, a desambiguação ontológica buscada por
Thomasson para os termos relativos a obras de arte não é procurada em
uma decisão dos falantes para a referência desses termos, mas na
percepção das práticas e do discurso que se manifestam sempre junto
com o uso dos mesmos. Assim, é preciso notar se as pessoas lidam com
os tipos de obras de arte como coisas que podem ser movidas
fisicamente, compradas, se têm direitos autorais, se podem ser copiadas
ou falsificadas, se a obra é considerada destruída com a destruição de
certo objeto concreto no qual ela se instancia ou que apenas a
exemplifica, etc. Por exemplo, considera-se essencial ir a um lugar
específico em um tempo específico para ver uma pintura, mas não para
ler uma obra de literatura, o que mostra que o tipo a que se refere o
termo ―pintura‖ tem a ver com indivíduos concretos, espaço-temporais,
e o tipo a que se refere o termo ―literatura‖ tem a ver com coisas
abstratas. Do mesmo modo, considera-se apropriado perguntar, de uma
performance musical ou dramática, quando ela ocorre ou a que horas
começa, mas essas perguntas não fazem sentido para uma escultura, o
que mostra que o termo ―performance‖ refere-se a um tipo-atividade e o
termo ―escultura‖ refere-se a um tipo-objeto. Thomasson afirma que
―tais práticas de fundo incorporam uma concepção ontológica tácita de
136
Such an ontological conception then disambiguates potential reference by
determining the ontological kind referred to by the art-kind term (if it succeeds in referring at
all), establishing, for example, whether the relevant art-kind is to be a kind of activity or object,
a concrete individual or the abstract pattern exemplified by these concrete individuals, and
establishing where a work‘s spatial and/or temporal boundaries lie and the conditions under
which one and the same work survives‖. THOMASSON, Amie. Ontology of art and
knowledge in aesthetics. (published in The Journal of Aesthetics and Art Criticism 63:3
Summer 2005). p. 5.
123
que espécies de coisas as obras de certo tipo são‖
137
. Por isso
promovem a desambiguação dos termos, que determinam quais
características ontológicas são importantes nas coisas para entendê-las
como pertencendo a certo tipo designado por um termo geral (pintura,
sinfonia, romance, etc.). A autora defende, portanto, uma concepção de
linguagem bem próxima à wittgensteiniana, mostrando que a referência
dos termos não se por uma situação de batismo arbitrária, mas em
meio à vida pública, na qual os termos adquirem sentido ao passo que
são usados no discurso e na prática diária. Assim, é o uso das palavras e
a prática cotidiana na qual são empregadas que fundam seus significados
e não uma definição ostensiva do tipo ―isso é pintura‖, ―isso é obra de
arte‖, como defendem as teorias causais de referência.
Desse modo, Thomasson explica que a ontologia da obra de
arte não pode prosseguir com o modelo da descoberta: não se pode
descobrir o estatuto ontológico de pinturas referindo-se diretamente a
essa coisa com um termo e depois descobrindo sua verdadeira natureza
ontológica através de investigações empíricas no mundo independente
da mente. Ao contrário, ―a concepção ontológica de fundo dos falantes
determina o estatuto ontológico dos membros do tipo-arte referidos pelo
termo‖
138
. O privilégio epistêmico das compreensões do senso-comum
na determinação do estatuto ontológico dos termos relativos a obras de
arte justifica o método ontológico de Thomasson de analisar a
concepção incorporada nas práticas dos falantes. Essas concepções
implícitas podem, em seguida, ser explicitadas pela filosofia e
transformadas em conceitos formais, o que permite o estabelecimento do
estatuto ontológico das obras de arte como ―objeto‖, ―evento‖, ―entidade
abstrata‖, ―artefato abstrato‖, etc. Assim, a ontologia parte do senso-
comum e não pode chegar à conclusão de que este está massivamente
equivocado (apesar de não possuir uma ontologia formal explícita). De
acordo com a pensadora, esse cuidado vale não apenas para a ontologia
da arte, mas para a ontologia em geral, que não deveria chegar a
conclusões totalmente contra-intuitivas e contrárias ao senso-comum.
Isso não quer dizer que não se pode contrariar o senso-comum e que ele
funciona como autoridade máxima em ontologia, mas que soluções
radicais que contrariam o senso-comum não devem ser entendidas como
137
Such background practices thus embody a tacit ontological conception of what
sorts of things works of that kind are‖. Idem. p. 5.
138
―The background ontological conception of grounders determines the ontological
status of members of the art-kind referred to by the term‖. Idem. p. 6.
124
descobertas sobre a ―verdadeira natureza da arte‖, por exemplo, mas
como propostas de mudança para as práticas e concepções comuns em
relação à arte.
Essa advertência implica a refutação ou reformulação de
diversas teorias de estética contemporânea, que chegam a conclusões
bastante revisionárias ou contrárias ao senso-comum. Currie, por
exemplo, defende que, contrariamente às crenças populares, todas as
obras de arte são do tipo ―ação‖ e nunca indivíduos, mesmo pinturas e
esculturas
139
. Levinson defende que, contrariamente às práticas comuns,
qualquer transcrição ou execução de uma obra de arte musical deve ser
considerada uma nova obra de arte
140
. Mark Sagoff também vai de
encontro às práticas comuns, afirmando que nenhuma pintura ou
escultura pode ser restaurada, mesmo que seja uma parte mínima, pois
isso já faria delas obras de arte diferentes
141
. A respeito de semelhantes
considerações filosóficas, Thomasson escreve que:
Visões assim radicais não podem ser apresentadas
como descobertas sobre a ―verdade real‖ da ontologia das
obras de arte que podem derrubar o senso-comum e mostrar
que estamos enganados em tratar obras de arte como
indivíduos capazes de ser comprados e vendidos, coisas
criadas em certo tempo, ou como sendo transcritíveis e
restauráveis. Pois o único modo de descobrir a verdade sobre
a ontologia da obra de arte é através de análise conceitual
que captura das nossas práticas e coisas que dizemos a
concepção ontológica tácita subjacente daqueles que fundam
a referência do termo (...). Soluções radicais não podem ser
vistas como descobertas sobre a posição ontológica real de
qualquer tipo-arte, mas apenas como propostas sobre como
nós deveríamos mudar nossas práticas não porque estão
erradas no sentido de serem baseadas em visões tácitas que
são inconsistentes com os fatos reais, mas apenas, talvez,
porque a mudança proposta seria mais clara, menos propensa
à vagueza, e assim por diante
142
.
139
CURRIE, G. An Ontology of Art. New York: St. Martin‘s Press, 1989. p.8.
140
LEVINSON, J. Music, Art and metaphysics. New York: Cornell University Press,
1990. p.234.
141
SAGOFF, M. ―On Restoring and Reproducing Art‖. Journal of Philosophy 75
(1978): 459.
142
―Such radical views cannot be presented as discoveries about the ―real truth‖ of the
ontology of works of art that may overthrow commonsense and show that we are mistaken in
treating works as individuals capable of being bought and sold, things created at a certain time,
125
Embora Thomasson conceda ao senso-comum o privilégio
epistêmico de ser a base investigativa da ontologia da obra de arte, uma
vez que é ele que funda ordinariamente a referência e o sentido dos
termos, daí não se segue que tudo que se fala sobre a arte deve ser
levado em consideração pela filosofia. Em primeiro lugar, porque esse
privilégio é apenas coletivo e não individual; trata-se das opiniões e
práticas gerais e bem aceitas do senso-comum, e não da crença de
alguém a respeito da arte. Em segundo lugar, porque diz respeito apenas
a características ontológicas das obras de arte (o que, para Thomasson,
significa a dependência ontológica a estados mentais e coisas reais,
implícita no modo como se compreende as condições de existência e
identidade das obras de arte) e não opiniões em geral sobre estética,
sobre beleza, sobre o valor social das obras de arte, sobre o papel
histórico ou político que desempenharam ou desempenham, sobre gosto,
produção, entre outras.
4.2 Categorias Ontológicas Híbridas
Thomasson afirma que a filosofia tem dificuldade em encontrar
uma boa solução ontológica para a obra de arte porque tenta
forçosamente encaixá-la nas categorias da metafísica tradicional, de
acordo com as dualidades dogmáticas a que esta se mantém vinculada.
Mas o apego a esses dualismos levou as teorias ontológicas da arte em
geral à incoerência com as práticas e crenças do senso-comum em
relação à mesma:
Embora diferentes filósofos tenham tentado alocar
as obras de arte praticamente em todas as categorias
desenvolvidas pelos sistemas metafísicos tradicionais
categorias como Objetos Imaginários, Objetos Puramente
or as being transcribable or restorable. For the only way to find out the truth about the ontology
of the work of art is by way of conceptual analysis that teases out from our practices and things
we say the tacit underlying ontological conception of those who ground the reference of the
term. (…) Radical solutions cannot be seen as discoveries about what the ontological standing
of any art-kind really is, but only as proposals about how we should change our practicesnot
because they are wrong in the sense of being based on tacit views that are inconsistent with the
real facts, but only, perhaps, because the proposed change would be clearer, less prone to
vagueness, and so forth‖. THOMASSON, Amie. Ontology of art and knowledge in aesthetics.
(published in The Journal of Aesthetics and Art Criticism 63:3 Summer 2005). p. 7.
126
Físicos, Tipos Abstratos em vários sentidos , nenhuma
destas ajusta-se completamente com as práticas e crenças do
senso-comum a respeito das obras de arte. Isso explica tanto
a diversidade de soluções quanto o fracasso em encontrar
uma solução completamente satisfatória a despeito das
diversas tentativas
143
.
Desse modo, Thomasson abdica de servir-se de uma categoria
ontológica pronta dentro da metafísica tradicional, reconhecendo a
necessidade de repensar suas bifurcações e desenvolver novos sistemas
de categorias ontológicas. A metafísica sempre dividiu os entes entre
objetos sicos independentes da mente humana, por um lado, e objetos
imaginários e mentais por outro lado. Essa divisão categorial não prevê
um espaço para subsunção das obras de arte, conforme elas são
comumente compreendidas, pois elas são pensadas e tratadas como
entidades individuais e concretas, vinculadas a elementos materiais e
físicos, mas igualmente dependentes das formas da intencionalidade
humana. As obras artísticas vêm à existência através de atividades
humanas intencionais, pois mesmo que um pigmento possa cair
fortuitamente sobre a tela, enquanto não houver um ato de criação ou
apropriação do artista, isso não pode ser considerado uma obra de arte.
Por outro lado, as obras são exteriores à mente, pois são entidades de
significado público e, uma vez criadas, continuam existindo
continuamente, mesmo quando não estão sendo observadas ou
imaginadas. Assim, Thomasson sugere uma nova direção para uma
concepção ontológica aceitável da arte, que consiste no abandono da
dicotomia metafísica entre objetos físicos e entidades mentais, e na
criação de categorias ontológicas híbridas, que possam englobar
características de ambos os lados da dicotomia.
Outra divisão metafísica que existe desde Platão é entre objetos
espaço-temporais, perecíveis, em estado de devir e objetos eternos,
ideais, sem localização espaço-temporal. Entretanto, nenhuma dessas
duas categorias ontológicas abrange a música e a literatura, que não têm
143
―Although different philosophers have tried placing works of art in just about all of
the categories laid out by standard metaphysical systemscategories like those of imaginary
objects, purely physical objects, or abstract kinds of various sortsnone of those fits
completely with common sense beliefs and practices regarding works of art. This explains both
the diversity of solutions (as theorists turned from one category to another in search of an
adequate solution) and the failure to find a completely satisfactory solution despite these
diverse efforts‖. THOMASSON, A. L. The ontology of Art. The Blackwell Guide to Aesthetics,
ed. Peter Kivy, Oxford: Blackwell, 2004. p. 9.
127
localização espaço-temporal e continuam existindo independentemente
da destruição de qualquer cópia particular ou do cancelamento de
qualquer performance. Mas que, por outro lado, não podem ser
consideradas eternas, pois são entidades culturais, que têm um momento
histórico de criação e que podem ser destruídas caso tenham todas as
suas cópias destruídas. Além disso, diferentemente dos tipos abstratos,
as obras musicais e literárias não existem independentemente, pois são
criadas por artistas e dependem, portanto, das formas da
intencionalidade humana.
Formalizando o que Thomasson fala a respeito das obras de arte
em Ontology of Art, pode-se buscar sua localização categorial no
esquema ontológico apresentado pela filósofa em Fiction and
Metaphysics. Thomasson admite a possibilidade de um pluralismo
ontológico da arte, pois tipos de arte diferentes podem ser alocados em
categorias diferentes. Como foi visto, a respeito da ficção e das obras
literárias, a autora afirma que as dependências imediatas dos caracteres
ficcionais remetem-se aos atos criativos de um autor (dependência
histórica rígida) e à existência da obra literária (dependência constante
genérica) na qual aparecem. A dependência histórica do ente ficcional
aos atos mentais de um autor o assinala como um artefato, pois é algo
criado em certo momento por algum humano. Trata-se de uma
dependência rígida porque os caracteres só poderiam ter sido criados por
seus autores enquanto indivíduos particulares. É histórica porque os
personagens subsistem mesmo depois da morte de seus autores, através
do seu registro em livros ou arquivos. A dependência do ente ficcional à
existência de alguma obra literária é constante, porque só existe na
medida em que existe alguma obra na qual aparece, e é genérica, pois
pode ser qualquer cópia e não uma em particular. Além disso, a
dependência é transitiva, logo, aquilo de que obras literárias dependem,
também dependerão os entes ficcionais. As obras literárias dependem
igualmente de modo histórico e rígido dos atos criativos de um autor,
bem como da existência de alguma cópia das mesmas e da existência de
algum público capaz de compreendê-las (ambas constantes e genéricas),
pois não se pode afirmar que uma obra literária escrita em uma língua
morta, por exemplo, sem que exista alguma pessoa capaz de
compreendê-la, ainda existe enquanto obra literária. Assim, obras
literárias dependem historicamente e rigidamente dos atos mentais de
seu autor e constantemente e genericamente tanto da existência de
exemplares de obras literárias quanto da existência dos estados mentais
128
de alguma comunidade lingüística capaz de compreendê-las. Essas
cadeias de dependência valem para as obras de arte que não possuem um
suporte específico, como a literatura, o teatro, o cinema, a fotografia, a
gravura e a música. Essas obras, mesmo sendo dependentes de atos
criativos e exemplares concretos de livros, discos, matrizes, negativos,
impressões, performances, etc., e, portanto, serem artefatos, o
possuem existência espaço-temporal localizável e, portanto, são
abstratas. Por isso Thomasson sugere o nome de ―artefatos abstratos‖
para a categoria ontológica que as abriga, que se localiza em seu
esquema do seguinte modo:
Fonte: THOMASSON, A. Fiction and Metaphysics. Cambridge: Cambridge University Press,
1999. p. 124.
Obras de arte que possuem um suporte específico, por sua vez,
como a pintura, algumas esculturas, o desenho, certas instalações, entre
outras, têm, formalmente, as seguintes relações de dependência
ontológica para existir: no quadro dos estados mentais não nenhuma
mudança estrutural, pois também dependem rigidamente e
historicamente dos estados mentais de um autor e dependem
genericamente e constantemente dos estados mentais de alguma pessoa
ou comunidade que as compreenda; no quadro das entidades reais, por
outro lado, dependem rigidamente de seu suporte material e não
genericamente, como a música e a literatura. Sua dependência é rígida
porque uma pintura, por exemplo, tem um suporte específico, tem que
ser feita com aquelas tintas, aquela tela e com aquelas pinceladas, que
não podem ser reproduzidas sem perder sua autenticidade. Não é
possível distinguir, entre performances, livros ou fotografias, qual é a
cópia ou execução mais original, pois todas o são. No caso de pinturas e
esculturas, contudo, discrimina-se um exemplar como sendo o original
X
129
e, se alguma cópia é feita, esta é tomada como uma falsificação. Por
isso, a categoria ontológica que aloca esses tipos de obras de arte é
diferente:
Fonte: THOMASSON, A. Fiction and Metaphysics. Cambridge: Cambridge University Press,
1999. p. 124
Alguns autores defendem que mesmo a pintura e a escultura são
tipos abstratos, que poderiam, em princípio, ser reproduzidas sem perda
da identidade da obra. Strawson, por exemplo, afirma que elas são tipos,
embora não o pareçam por causa da deficiência dos modos de
reprodução
144
. De acordo com o autor, se fosse tecnicamente possível
reproduzir pinturas e esculturas iguais às originais, em todas as
pinceladas e expressões, não faria mais sentido distinguir as originais.
Estas teriam apenas o valor histórico de um manuscrito ou de uma
partitura. Todavia, Thomasson as analisa como individuos singulares,
cuja identidade depende de sua existência enquanto indivíduo físico
particular. Esta análise baseia-se no comportamento das pessoas em
relação a este tipo de obra de arte: se uma escultura é destruída, afirma-
se que a obra deixou de existir; se um pintor pinta um quadro idêntico à
Noite Estrelada, este é considerado uma falsificação, uma cópia sem
valor de original. Embora o argumento de Strawson pareça convincente,
o fato é que não é possível reproduzir pinturas com total fidelidade ao
original. Nenhum pintor é capaz de reproduzir uma pintura em todos os
seus tons e pinceladas, mesmo que ele seja o próprio criador da original.
Tampouco foi inventada alguma máquina ou tecnologia que possa fazê-
lo. É com base nessa realidade e não em uma suposição de possibilidade
144
STRAWSON, P. F., Individuals. London: Methuen, 1959. p. 236.
X
X
130
que o senso comum lida com certas obras de arte como indivíduos
singulares, ocupando apenas um lugar no espaço, e irreprodutíveis.
Thomasson chama de Artefatos Abstratos a categoria
ontológica especificada pelas cadeias de dependência do quadro que
aloca a música, a literatura, a fotografia, o cinema, etc. O último quadro,
no entanto, mostra uma combinação de dependências um pouco
diferente, que especifica uma categoria ontológica distinta. É importante
ressaltar que a autora não apresenta essa categoria em nenhuma obra
publicada. Como foi afirmado, o que está sendo feito nesse capítulo é
uma formalização ou aplicação das considerações de Thomasson a
respeito das obras de arte em geral que ela desenvolve em Ontology of
Art e Ontology of Art and Knowledge in Aesthetics à metodologia
ontológica para criação de categorias e alocação de entidades de acordo
com suas relações de dependência, que a autora apresenta em Fiction
and Metaphysics. Trata-se, portanto, de uma interpretação lógico-
conceitual feita a partir de seus textos, e não de uma exposição dos
mesmos
145
. Em analogia com a categoria dos Artefatos Abstratos, pode-
se criar um nome para a categoria da arte rigidamente dependente de
entidades reais. Poderia chamar-se Artefatos Concretos, pois dependem
de indivíduos concretos e não são tipos abstratos genericamente
dependentes de alguma instanciação
146
. No entanto, esse nome leva a
pensar em artefatos comuns, como mesas, garrafas e ferramentas. Outro
nome interessante seria Artefatos Autorais, pois os artefatos comuns não
dependem genericamente de um autor, enquanto a arte depende
rigidamente. Ou Artefatos Criados, se o conceito de ―criado‖ for
entendido como algo originado a partir de um ato criativo, de um ato de
inovação, e não como algo apenas feito, construído ou reproduzido. No
entanto, os Artefatos Abstratos também são autorais e criados. A
alocação da arte em duas categorias Artefatos Abstratos e Artefatos
Criados induziria à noção equivocada de que uma contraposição
entre Abstrato e Criado. Por esse motivo, modificar ligeiramente a
terminologia de Thomasson, sugerindo as categorias de ―artefatos
abstratos criados‖ e ―artefatos concretos criados‖ apresenta-se como
uma boa alternativa. Contudo, embora sejam algo interessante para fins
didáticos e intuitivos, os nomes das categorias são de pouca relevância
145
Apesar de não ter uma referência bibliográfica como subsídio, essa interpretação
foi autorizada por Thomasson em correspondência pessoal.
146
A denominação Artefatos Concretos foi sugerida pela autora quando foi
questionada a respeito do assunto, igualmente em correspondência pessoal.
131
na ontologia de Thomasson, pois o que realmente determina uma
categoria é sua posição no duplo quadro que mostra as condições de
existência e de identidade de cada ente a partir de suas dependências
ontológicas.
4.3 As Bordas Irregulares da Ontologia
As principais diretrizes do pensamento de Thomasson acerca da
obra de arte já foram expostas. Se a expectativa em relação a esta
dissertação era o estabelecimento de uma definição para obras de arte,
certamente os resultados obtidos a frustrou. Pois o que Thomasson
estabelece não é uma definição de arte, que permita distinguir tudo que é
arte do que não o é, mas um espaço categorial capaz de alocar a arte sem
que esta seja coagida a encaixar-se nas categorias tradicionais da
metafísica, que normalmente não respeitam suas características híbridas
específicas. Assim, a autora não diz o que é a arte, nem classifica quais
objetos no mundo são obras de arte. Ela apenas defende que, se algo é
considerado arte, deve pertencer a uma das duas categorias expostas
acima. Com efeito, como foi ressaltado no começo da Parte II, seu
objetivo inicial não passava disso. Thomasson atinge sua meta,
chegando a um pluralismo ontológico, no qual a arte pode ser
subsumida por duas categorias ontológicas formais, isto é, que não
predeterminam nada acerca de seu objeto, pois não são obtidas por
generalização. As categorias são obtidas apenas pela localização nos
quadros de dependência ontológica, que são também formais, pois não
se comprometem com dizer o que existe nem como são as coisas ou o
que pertence a cada categoria. As relações de dependência das obras de
arte, por sua vez, são rastreadas nas crenças e práticas do senso-comum,
o que mostra que não constituem uma definição rígida do que é a arte,
mas uma formalização de como ela é normalmente compreendida, o que
pode variar historicamente. O objetivo de Thomasson pode parecer
modesto, mas talvez este seja o único modo filosófico de não dar um
passo maior que as pernas, buscando uma definição fechada e um limite
preciso de algo tão aberto, ambíguo e multifacetado como a arte.
A filósofa defende, portanto, um limite mais raso para o
conhecimento ontológico da arte. Trata-se de um território menor,
porém mais seguro. Qualquer estrategista militar sabe que uma pequena
e sólida fortaleza pode ser mais inviolável e mais defensável do que um
132
vasto território disperso e sem proteção. Do mesmo modo, Thomasson é
ciente de que, embora modesta, sua ontologia da obra de arte é bastante
segura e eficaz, pois é formal: estabelece o estatuto ontológico da arte,
sem afirmar como ela é ou quais objetos caem sob seu conceito. A
ontologia deve ser ciente dos limites de seu conhecimento, cuidando
para não fascinar-se pelo paradigma científico e o modelo da descoberta.
Pois se o modelo da descoberta não funciona para a arte, nem todas as
perguntas que lhe dizem respeito podem se respondidas com um
―verdadeiro ou falso‖, porque muitas dessas respostas pareceriam
arbitrárias. Perguntas como: qual porcentagem de tinta pode ser
restaurada em um quadro e ele continuar sendo a mesma obra? Até que
ponto um violinista pode errar ou recriar ao tocar o Concerto para
Violino de Schoenberg? Isto é, qual o limite de sua identidade, a partir
do qual ela se torna uma obra de arte diferente? Supondo que o modelo
da descoberta valha para o mundo independente da mente, estudado
pelas ciências o que é duvidável , isso não significa que ele vale
para as crenças e práticas humanas, que são as fundadoras dos estatutos
ontológicos dos dados em geral. A vagueza, a indeterminação e a
incapacidade de responder a todas as questões são resultados da própria
intencionalidade humana. Existem perguntas cujas respostas podem ser
encontradas no discurso humano comum e existem outras que não. Estas
não devem ser resolvidas forçosamente com a postulação de critérios
filosóficos rígidos, pois, se a resposta não pode ser encontrada no
âmbito epistemológico que lhe compete, a sua postulação sempre se
apresentará como dogmática e arbitrária. Assim, os resultados da
ontologia formal da obra de arte podem parecer superficiais, mas é
porque os próprios predicados artísticos são imprecisos, não têm um
limite regular de até onde se aplicam e onde não se aplicam mais. O que
a ontologia pode fazer é investigar as práticas comuns e ver se podem
prover soluções não-arbitrárias para decidir certos problemas
conceituais, formalizá-las, desvendar suas mútuas implicações
ontológicas, transformá-las em categorias e organizá-las em um sistema
categorial. Para além disso, soluções ontológicas alternativas devem ser
entendidas como propostas sobre como decidir certos problemas ou
incoerências e não como descobertas dos fatos verdadeiros a respeito da
arte, sobre os quais as crenças comuns estariam completamente erradas.
133
5. CONCLUSÕES
Embora o objetivo central desta dissertação não seja uma
análise da arte contemporânea, esta, principalmente na área das artes
plásticas, é certamente sua principal motivação. No último século a arte
experimentou tantas e tão inovadoras configurações do que pode ser
referido pelo nome ―obra de arte‖ que esse conceito tornou-se relativo e
problemático. Por quase um milênio os formatos tinta sobre tela ou
parede, estatuária de bronze, argila ou mármore e representação
figurativa, foram os indicadores que anunciavam algo como uma obra
de arte. Embora essas ―formas‖ não fossem assumidas como definições
do que é uma obra de arte, sempre funcionaram como uma assinatura
implícita do conceito na coisa. Ainda que cada obra fosse singular, esses
padrões de suporte e representação, matéria e forma, operavam como
sinais claros e familiares de que se estava diante de uma obra de arte.
Nas últimas décadas, todavia, as ―semelhanças de família‖ que
orientavam o reconhecimento de um objeto como uma obra de arte se
tornaram cada vez mais sutis, camufladas e dispersas. E isso foi feito
voluntariamente, pela própria necessidade artística de questionar-se
pelos limites de sua atividade. Se alguma questão que orienta
sobretudo a arte moderna e contemporânea é: até onde se pode chegar
com o conceito de obra de arte? Os artistas abandonaram as molduras,
os pedestais, os suportes clássicos, a representação, a matéria, os temas,
as instituições tradicionais, o labor técnico, o predomínio dos sentidos, a
individualidade autoral, a permanência dos objetos e, ainda assim, para a
surpresa de todos, continuaram criando obras de arte. Fizeram arte nas
ruas, arte abstrata, arte efêmera, fizeram arte sobre seus próprios corpos,
na terra, nos desertos, arte virtual, digital, política, apolítica, usaram os
animais, os rituais, a ciência, o acaso. Esvaziaram galerias, misturaram
gêneros, empacotaram museus, foram às ruas e de volta aos cubos
brancos, e, para o agrado ou desagrado de todos, continuaram criando
coisas, ações ou eventos que ainda podem ser referidos pelo nome de
―obra de arte‖. Mesmo que boa parte do senso-comum repudie a arte
contemporânea ou não a compreenda, não deixa de discutir seu valor
enquanto arte. Logo, reconhece-a como arte. É este reconhecimento que
importa para Thomasson e não os juízos estéticos, valorativos ou de
gosto pessoal.
O alargamento das configurações das obras de arte e o
abandono das principais ―semelhanças de família‖ da arte tradicional
134
são os fatores que instigaram esta dissertação, e provavelmente a
maioria dos teóricos atuais em filosofia da arte. São acontecimentos que
conduzem naturalmente à questão: o que então em comum entre essa
diversidade de dados para que ainda possam ser agrupados sob o nome
―obra de arte‖? Se não é a forma, a matéria, a representação, a beleza, a
instituição, é o quê? Essa pergunta apresenta-se como uma força
possessiva na investigação em ontologia da arte. Contudo, que se
reconhecer, após o confronto com o sistema ontológico de Thomasson e
os argumentos que a autora aponta em favor de sua natureza categorial,
formal e multidimensional, que é necessário frustrar um pouco as
expectativas de uma pergunta tão pretensiosa.
Caso espere-se uma definição precisa de ―obra de arte‖, uma
lista finita de características necessárias e suficientes para delimitar esse
conceito de tal modo que, para qualquer objeto x, se possa afirmar,
com base nessa definição, se x é ou não é uma obra de arte , esta não
será encontrada nos textos de Thomasson, tampouco nesta dissertação.
A primeira advertência da autora, em seus escritos de filosofia da arte, é
que não possui a pretensão de criar um conceito que possa classificar o
que é e o que não é arte
147
. Pois essa atitude teórica pressupõe que o
conceito filosófico de ―obra de arte‖ é anterior (ontologicamente e não
cronologicamente) à existência de obras de arte enquanto um
acontecimento no mundo. Como se o conceito pudesse dizer que certos
dados considerados normalmente como obras de arte de fato o são, mas
outros não. No entanto, foi exposto nesta dissertação que Thomasson
manifesta-se contra essa postura, afirmando que a filosofia não tem
como classificar quais são as obras de arte, pois ela parte
inevitavelmente de uma regionalização prévia e cotidiana desse
conceito. Deve-se, portanto, partir dos casos paradigmáticos de arte para
tentar compreender o conceito ontológico implícito na regionalização e
no tratamento ordinário da arte exercido pelo senso-comum. Cabe à
ontologia desenvolver e explicitar essa concepção tácita de ―obra de
arte‖, escolher quais traços devem ser considerados essenciais para o
pertencimento a essa categoria, tendo o senso-comum como critério, e
compreendê-la no contexto mais amplo de um sistema de categorias
ontológicas básicas. Tudo isso é feito, todavia, no plano conceitual-
formal. Não cabe à ontologia olhar para o mundo e afirmar que x, y e z
pertencem ou não à categoria das obras de arte. Esse ajuizamento,
147
THOMASSON, A. L. The ontology of Art. The Blackwell Guide to Aesthetics, ed.
Peter Kivy, Oxford: Blackwell, 2004. p. 1.
135
poucas vezes feito com unanimidade e precisão, pode ser atribuído à
própria vida, às relações entre as pessoas, aos artistas e sua capacidade
de se fazerem reconhecidos, às instituições, à política, etc.
No entanto, a filosofia da arte e as estéticas tradicionais, como
foi exposto na Introdução, acabam postulando conceitos que pré-
determinam quais objetos serão considerados obras de arte e, com isso,
excluindo da sua categoria de ―arte‖ alguns dados que estão dentro da
região ―obra de arte‖ efetiva no tratamento comum-cotidiano da mesma
(que inclui o acadêmico-institucional). O modelo estético tradicional,
que compreende a arte na relação sujeito-objeto, determinada pela
afecção sensorial do sujeito pelo objeto, exclui diversos dados tratados
contemporaneamente como arte do seu conceito de obra de arte: a arte
relacional, a performance, a arte efêmera, a arte conceitual, a
intervenção urbana, entre outras, são deixadas de fora. Por esse motivo,
optou-se por pesquisar a ontologia de Thomasson, que elabora uma
teoria formal da arte, isto é, que rastreia a estrutura essencial da própria
regionalização ―obra de arte‖ presente no senso-comum. Com isso, ela
isenta-se do risco de pré-determinar filosoficamente quais objetos
devem e quais não devem ser considerados obras de arte. Sua teoria é
formal porque apenas formaliza a concepção de arte inerente ao mundo
público, à vida cotidiana. É a estes e não à sua teoria que cabe julgar
quais dados serão tratados como obras de arte. Desse modo, se sua
ontologia da arte é realmente formal, não deve excluir da categoria das
obras de arte quaisquer dados tratados publicamente como obras de arte,
e tampouco deve apenas ser uma generalização do que há em comum no
já reconhecido como arte.
Por conseguinte, além de ser a motivação inicial desta
dissertação, os exemplares mais polêmicos de arte contemporânea
também funcionam como critério de adequação da teoria de Thomasson,
escolhida como interlocutora privilegiada por apresentar uma resposta
bastante eficiente a essa problemática. De acordo com a pensadora, as
condições de existência e de identidade de uma obra de arte são sua
estrutura ontológica básica. Estas condições estão embutidas em suas
relações de dependência ontológica. A autora analisa essas relações do
seguinte modo:
Algumas obras de arte dependem de um objeto físico singular
para existir, isto é, são um único exemplar concreto e
136
existem enquanto este existe (dependência rígida e constante a
coisas reais);
Outras obras de arte dependem de objetos físicos em geral, ou
seja, sua existência requer a instanciação em alguma coisa real,
mas não uma coisa em particular, e existem enquanto essas
instanciações existem (dependência genérica e constante a
coisas reais);
Todas as obras de arte dependem dos estados mentais de um
autor em particular. Pode ser mais de um autor, mas nunca
qualquer pessoa e sim aquele(s) autor(es) que criou a obra. A
obra depende do seu autor(es) para começar a existir, mas pode
continuar existindo cessada a existência daquele(s)
(dependência rígida e histórica a estados mentais);
Todas as obras de arte dependem dos estados mentais de
alguma comunidade ou grupo que possa compreendê-las. Não é
necessário que seja um grupo de pessoas em particular, mas
se pode afirmar que uma obra existe conquanto pode ser
compreendida publicamente enquanto tal (dependência genérica
e constante a estados mentais).
Embora Thomasson não faça isso, essas relações de
dependência podem ser transformadas em conceitos do seguinte modo:
Se x é uma obra de arte, então
x possui algum registro ou suporte espaço-temporal;
x foi criado por estados mentais (logo, envolve mais do que
uma mera presença física, envolve um sentido, significado);
x possui uma autoria específica;
x é acessado através de seu registro ou suporte espaço-temporal
por alguma comunidade ou grupo de pessoas;
x é compreendido publicamente como obra de arte.
É importante notar que o esquema em que as ideias acima
foram apresentadas é a fórmula lógica da implicação (a b). Ou seja,
não se está julgando quais dados no mundo são obras de arte, mas
apenas afirmando que, se algo é considerado uma obra de arte, então
esse algo apresenta as características acima. Trata-se de um
destrinchamento dos traços essenciais mínimos da concepção de obra de
arte presente na regionalização pública e cotidiana do mundo. Para
137
verificar sua abrangência para todas as formas de arte, basta atentar-se
para o fato de que essa conceitualização não pré-determina nem exclui
qualquer dado. Pode-se tomar os exemplares que foram excluídos do
paradigma sujeito-objeto-percepção das estéticas tradicionais para ver
que não funcionam como contra-exemplos à teoria de Thomasson.
Félix González Torres, por exemplo, cria esculturas
minimalistas com objetos cotidianos, como lâmpadas, balas, pirulitos,
relógios, além de realizar intervenções fora do espaço museológico,
ocupando out-doors. Uma de suas obras, Sem Título (da série Placebo),
criada em 1991, consistia em um grande tapete formado por uma
camada de balas de morango embaladas em papel prateado. O peso total
das balas era idêntico ao peso somado do artista, soropositivo, com o de
seu parceiro, que morrera de AIDS seis anos antes. As pessoas que
visitavam a exposição eram convidadas a consumir uma bala. A obra de
Félix não é simplesmente o objeto ―tapete de balas prateadas‖, mas a
ação coletiva do desaparecimento do peso dos dois corpos nas balas,
simbolizando o lento esvaziamento da vida provocado pela AIDS. Essa
obra de arte, que extrapola o paradigma estético por constituir-se através
de uma participação coletiva, na qual o espectador realiza a obra, que
não é o objeto e sim um evento temporal, encaixa-se perfeitamente
dentro do esquema conceitual de Thomasson. A obra possui um suporte
material, no caso, um suporte genérico (uma quantidade x de balas),
pois foi reproduzida diversas vezes e é exposta até os dias de hoje. Ela
foi criada por estados mentais, possui um significado que extrapola a
presença do objeto físico. Ela não poderia ter sido criada por quaisquer
estados mentais, mas somente pelos de Félix González Torres, por isso
envolve direitos autorais e sempre é exposta junto com o nome do autor,
independemente de sua montagem ser refeita anos após sua morte. Por
fim, a obra é acessada enquanto objeto físico e é compreendida como
obra de arte por uma comunidade compreensiva, através de sua
exposição em museus e registros fotográficos em diversas partes do
mundo. Assim, a obra de Félix possui todos os traços selecionados por
Thomasson como essenciais ao conceito de obra de arte e pode ser
alocada em seu sistema na categoria dos Artefatos Abstratos Criados,
que sua instanciação física é genérica.
Houve, no início de 2010, uma exposição de registros da obra
de Gordon Matta-Clark no Museu de Arte Moderna de São Paulo.
Matta-Clark, com formação em arquitetura, realizava obras que não
podem ser expostas em museus, pois consistiam em ocupar os espaços
138
vazios e construções abandonadas de algumas cidades dos Estados
Unidos, em meados do século passado. O artista adotava uma posição
política forte a respeito da arquitetura urbana, explicitando o modo
como a cidade se modificava em função de valores comerciais e do
aburguesamento de zonas residenciais. Junto com grandes equipes, ele
realizava cortes (extrações) nos prédios, criando intersecções entre os
cômodos e entre o interior e o exterior das construções. Ocupava prédios
abandonados para transformá-los em residências coletivas de artistas,
pontos de encontro cultural e restaurantes coletivos, onde até a culinária
era pensada artisticamente. A obra de Matta-Clark, apesar de ter
suportes físicos monumentais e diversos registros fotográficos e
cinematográficos, não se resume a estes. Funda-se antes em uma crítica
social, em um modo de compreender a vida urbana, a socialização, o
modo como a arquitetura determina o comportamento das pessoas, a
necessidade de uma real convivência para a criação coletiva da arte,
entre outras questões, que dificilmente podem ser alcançadas pelo
modelo sujeito-objeto-percepção das estéticas tradicionais. O sistema de
Thomasson, no entanto, prevê espaço para suas obras de arte sem
maiores complicações. Elas possuem um suporte físico, o que permite
seu acesso por uma comunidade compreensiva. Possuem um significado
que extrapola a mera presença física dos objetos, pois foram criados por
estados mentais, com a intenção de fazer uma obra de arte. Elas não
poderiam ter sido criadas por quaisquer estados mentais, mas apenas
pelos de Matta-Clark e sua equipe. Por fim, são compreendidas
publicamente como obras de arte, embora não sejam expostas em
museus (a não ser enquanto registro fotográfico). As obras
arquitetônicas de Matta-Clark pertencem, portanto, à categoria dos
Artefatos Concretos Criados, pois lidam com a singularidade e
espacialidade de cada construção.
As performances artísticas, que surgem como um movimento
forte a partir de metade do século XX, embora suas origens remontem às
vanguardas (dadaísmo, futurismo), possuem uma configuração bastante
significativa para a arte contemporânea. Marina Abramovic realizou um
dos trabalhos mais conhecidos e mais radicais da história da
performance: Ritmo Zero, que consistia em expor-se ao público em uma
posição passiva, por seis horas, disponibilizando setenta e dois objetos
sobre uma mesa, que poderiam ser usados livremente pelos participantes
sobre seu corpo. Entre estes objetos, havia uma tesoura, uma faca,
agulhas e um revólver com uma única bala. Abramovic ficou seis horas
139
sendo manipulada pela audiência com os objetos; teve suas roupas
cortadas, apontaram a arma para sua cabeça, outra pessoa retirou a arma,
foi espetada. Após seis horas expondo-se à liberdade total da violência
do público, a artista ficou de e caminhou entre as pessoas, voltando a
ser um sujeito autônomo perante todos. Essa obra retira completamente
o espectador da posição passiva; ele deixa de ser espectador e passa a
ser um participante, até mesmo enquanto sujeito ético. Abramovic lança
a proposta, que é parte essencial da obra, mas não mais do que a reação
das pessoas, que é o que a constitui propriamente enquanto ação,
enquanto performance. O objetivo da artista era precisamente questionar
os limites da relação entre o performer e o público, que ela percebeu
serem bastante imprecisos e arriscados. Mesmo sendo tão distinta das
formas tradicionais de arte, essa performance é reconhecida
publicamente como obra de arte, pois, embora poucos possam ter
participado dela, é acessada pela grande maioria das pessoas através de
registros e relatos. Ela possui um suporte físico, que é o evento espaço-
temporal ocorrido em certo dia, em certa hora e lugar, além dos
registros. Possui significado e foi criada pelos estados mentais de
Marina Abramovic, enquanto propositora, e pelas pessoas que
participaram da performance, enquanto agentes. Assim, as performances
também podem ser cingidas pelo sistema categorial de Thomasson.
Os exemplos acima têm como objetivo legitimar a teoria de
Thomasson, mostrando que ela se aplica às mais distintas formas de arte
e não exclui a variedade, o hibridismo e o desregramento da arte
contemporânea. Isso ocorre porque trata-se de uma teoria formal, que
não pré-determina quais objetos ocupam cada categoria, mas apenas
analisa a estrutura ontológica (compreendida a partir das relações de
dependência) das concepções de ―obra de arte‖, ―pintura‖, ―literatura‖,
etc., e organiza-os em um quadro categorial. A estrutura ontológica
embutida nos conceitos não é algo fixo, uma essência imutável, porque
o próprio conceito não é algo eterno e supra-sensível. Os conceitos
pertencem ao mundo público, eles adquirem significado ao serem
usados cotidianamente pelos falantes. Logo, podem ser modificados,
expandidos, restringidos. Por isso a ontologia de Thomasson, na medida
em que analisa os conceitos implícitos nas concepções comuns acerca da
obra de arte, também pode variar, não correndo o risco de tornar-se um
sistema fechado e rígido, que acabará por excluir as configurações
artísticas que ainda estão por surgir. Quiçá, através dessa metodologia, a
filosofia possa evitar uma recaída na arrogante atitude de pré-determinar
140
um campo de acontecimentos tão autônomo e genuíno como a arte. A
própria filosofia, na medida em que abandona a égide da verdade, pode
ser pensada como um ato criativo de conceitualização, e, portanto, como
uma atividade artística. Mantendo-se aberta à inconstância dos dados e
das compreensões de arte, é possível furtar-se à constrangedora
constatação de Fernando Pessoa: ―ao passo que a filosofia é estática, a
arte é dinâmica; é mesmo essa a única diferença entre a arte e a
filosofia‖
148
. Por fim, a filosofia da arte dobra-se sobre sua pesquisa e
pode olhar para a arte como um espelho, reconhecendo-se enquanto ato
criativo que escapa ao jugo de preconceitos e cristalizações conceituais.
Destarte, a filosofia passa a ser livre para configurar sentidos e organizar
estruturações para a experiência mundana e a arte passa a ser livre para,
como falava Nietzsche, tornar-se aquilo que é.
148
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Sensacionismo. In: Obras de Fernando Pessoa, vol. III, Lello & Irmão - Editores, Porto, 1986.
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