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L ilia n Si m o n e G o d o y F o ns e ca
Hans Jonas e a responsabilidade do homem frente
ao desafio biotecnol
ó
gico
Belo Horizonte
Universidade Federal de Minas Gerais
Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas
2009
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2
Lilian Simone Godoy Fonseca
Hans Jonas e a responsabilidade do homem frente
ao desafio biotecnológico
Tese apresentada ao Curso de
Pós-Graduação em Filosofia da
Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas
da Universidade Federal de Minas Gerais
como requisito à obtenção do título
de Doutor em Filosofia.
Linha de Pesquisa: Filosofia da Ciência
Orientador: Prof. Dr. Ivan Domingues
Belo Horizonte
Universidade Federal de Minas Gerais
Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas
2009
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3
Aos meus pais, os responsáveis
pela minha existência e
por minhas convicções.
Ao Yuri, por ter despertado
em mim o mais genuíno
sentimento de responsabilidade.
4
A G R A D E C I M E N T O S :
Agradeço a Capes pela concessão da bolsa que possibilitou minha dedicação
exclusiva à realização do meu doutoramento e, em especial, pela bolsa de estudos
no exterior, dentro do Programa de Estágio de Doutorando - o PDEE, que tornou
possível um ano de profícuos estudos junto à Université catholique de Louvain, na
Bélgica, de janeiro de 2006 a janeiro de 2007.
Agradeço também à Prof
a
. Nathalie Frogneux, que me acolheu, na função de co-
orientadora, junto à Faculté des sciences philosophiques, da UCL, e comigo
generosamente compartilhou o seu profundo conhecimento sobre o conjunto da
obra de Hans Jonas e, mesmo à distância, através de seu livro, forneceu-me um
precioso guia para vencer as dificuldades teóricas.
Ao Prof. Ivan Domingues, por aceitar, desde o início com grande interesse e
entusiasmo, o tema proposto e durante todo o percurso, ter se mostrado atento às
minhas falhas e compreensível com minhas limitações, ainda assim, apontando
sempre direções mais pertinentes e seguras. Se o resultado não expressa todo o
seu empenho, certamente, cabe a mim o demérito por não ter vencido todas as
imprecisões apontadas.
Aos Professores Alcino Bonella e Carlos Drawin, pelas críticas e sugestões que
fortaleceram sensivelmente a versão ora apresentada, cujas imperfeições
remanescentes não fazem jus à inestimável contribuição ensejada.
Aos Professores Oswaldo Giacoia e Telma Birchal, pelas sugestões e críticas
apresentadas no momento da defesa.
À Andréa por sua boa vontade e atenção permanentes.
À família que, apesar de tantos problemas, possibilitou a realização do trabalho.
Aos amigos, pelos momentos em que pude renovar a energia para prosseguir a
tarefa.
À Ana Paula, por tudo.
E ao princípio, sempre!!
5
O futuro da humanidade é o primeiro dever do
comportamento humano coletivo na era da civilização
técnica, que chegou a ser ‘onipotente’ de modo
negativo. Não está aqui explicitamente incluído o futuro
da natureza como condição sine qua non; mas ademais,
independentemente disso, o futuro da natureza é de sua
responsabilidade metafísica, uma vez que o homem não
só se converteu em um perigo para si mesmo, mas
também para toda a biosfera. (PV, p. 245; PR, p. 227)
6
SUMÁR I O
Introdução
................................................................................................................ p. 13
Parte I – Problemática: Exposição dos diferentes aspectos do problema ....... p. 20
Capítulo 1: O Homem na era biotecnológica ................................................. p. 22
1.1 - O século XXI como o “século das biotecnologias” ........................... p. 22
a) O que são as biotecnologias? ....................................................................... p. 23
b) Como e quando surgiram? ........................................................................... p. 24
c) Usos já implantados até o momento ............................................................ p. 26
1.2 - Usos possíveis, usos discutíveis: a caminho do pós-humano? ..................... p. 28
1.3 - As biotecnologias e o retorno da eugenia ..................................................... p. 59
Capítulo 2: Dificuldades conceituais à abordagem do problema ................... p. 72
2.1 - Dificuldades colocadas à reflexão ética pelo pensamento moderno: os
dualismos cosmológico, antropológico e moral ........................................................ p. 73
A) Descartes e o moderno dualismo no homem .............................................. p. 74
B) As dicotomias colocadas pela (ou atribuídas à) filosofia de David Hume . p. 81
B.1) A problemática passagem do ser ao dever .......................................... p. 81
B.2) A separação entre juízos de fato e juízos de valor ............................... p. 85
C) A separação kantiana entre razão prática e razão teórica ............................ p. 97
2.2 - Dificuldades colocadas à reflexão ética decorrentes do pensamento
contemporâneo ......................................................................................................... p. 101
A’) G. E. Moore e a falácia naturalista ......................................................... p. 102
B’) Weber e a neutralidade axiológica ........................................................... p. 104
2.3 - A desarticulação entre ética, ciência e técnica .......................................... .p. 112
Capítulo 3: A situação da ética contemporânea ............................................ p. 124
3.1 A perspectiva metaética ................................................................................ p. 128
3.2 Duas diferentes abordagens de ética normativa ............................................ p. 129
7
A” Kant e a razão prática como origem do dever incondicional .................. p. 130
B” Weber e a distinção entre Ética da Convicção e Ética da Responsabilidade
.................................................................................................................................. p. 136
3.3 O surgimento e desenvolvimento das Éticas Aplicadas e Bioética ............. .p. 146
Parte II – Sistemática: A ética da responsabilidade como resposta ao desafio atual
.................................................................................................................................. p. 158
Capítulo 4: Do Fenômeno da Vida rumo ao Princípio Responsabilidade ... p. 158
4.1 – Breve apresentação biobibliográfica de Hans Jonas .................................. p. 160
4.2 - O dualismo como problema central na reflexão filosófica jonassiana ........ p 167
4.3 – O trajeto para a resolução do dualismo ....................................................... p.171
A. “Tentativas” anteriores para a resolução do dualismo cartesiano ............. p. 171
A.1 A Substância de Spinoza .................................................................... p. 171
A.2 A Mônada de Leibniz ......................................................................... p. 172
A.3 O pan-organismo de Whitehead ......................................................... p. 174
B. A solução de Hans Jonas ........................................................................... p. 176
4.4 – Avaliação e conseqüências dessa solução .................................................. p. 191
4.5 – As diferentes formulações de pr e a resposta jonassiana às éticas anteriores .......
................................................................................................................... p. 206
Capítulo 5 - A fundamentação ontológica da ética do futuro ....................... p. 230
5.1 - A questão do saber como propedêutica à fundamentação .......................... p. 231
5.2 - Fundamentação passo 1 - A Teoria dos fins ou a relação entre Ser e fins . p. 253
5.3 - Fundamentação passo 2 - A teoria da responsabilidade ou a articulação entre o
Bem, o Dever e o Ser ............................................................................................... p. 272
Capítulo 6 – Técnica Medicina e Ética como aplicação do Princípio Responsabilidade
.................................................................................................................................. p. 314
6.1 – A concepção jonassiana sobre as pesquisas biotecnológicas em geral .. p.319
8
6.2 – A reflexão jonassiana acerca das pesquisas com seres humanos .......... p. 332
6.3 - A reflexão jonassiana quanto às aplicações das biotecnologias em seres
humanos ................................................................................................................... p. 360
Capítulo 7 – Contribuições, críticas e limitações da formulação jonassiana ao
enfrentamento do desafio biotecnológico
.......................................................... p. 388
7.1 – Contribuições da ética da responsabilidade à discussão do tema ......... p. 388
7.2 – Críticas à formulação ética jonassiana .................................................. p. 407
1. Aspecto conceitual ................................................................................. p. 408
a. Os tripla significação do termo «valor» ............................................ p. 408
b. A ambigüidade do estatuto do «homem» ......................................... p. 410
c. Um conceito limitado de «natureza» ................................................ p. 413
2. Aspecto metodológico ........................................................................... p. 414
a. O recurso à «heurística do medo» ..................................................... p. 414
b. Viabilidade de uma fundamentação ontológica ................................ p. 419
c. Uma ética subjetivista: rumo ao «psicologismo»? ............................ p. 420
3. Aspecto prático ...................................................................................... p. 422
a. Apologia ao totalitarismo político? ................................................... p. 423
b. Contra a liberdade da ciência? .......................................................... p. 424
7.3 – Para vencer os limites da formulação ética jonassiana ......................... p. 425
Conclusão ....................................................................................................... p. 447
Referências Bibliográficas .............................................................................. p.453
1) Títulos de Hans Jonas ......................................................................... p. 453
2) Textos sobre Jonas .............................................................................. p. 454
3) Títulos afins ........................................................................................ p. 458
4) Instrumentos de pesquisa consultados ................................................ p. 465
5) Leituras secundárias ............................................................................ p. 467
6) Sites consultados ................................................................................. p. 468
9
Abreviaturas:
Títulos de Jonas:
CDA: Le concept de Dieu après Auschwitz
EF: Pour une Éthique du Futur
EL: Évolution et Liberté
Gpr: “De la Gnose au principe responsabilité”
OF: Organismus und Freiheit
PhE: Philosophical Essays
PhL: The Phenomenon of Life
PhV: Le Phénomène de la Vie
PR: Le Principe Responsabilité
PV: Das Prinzip Verantwortung
TME: Technik, Medizin und Ethik
TME[e]: Técnica, medicina y ética (versão espanhola)
TPUT: “The Practical Uses of Theory”
Outros:
ECT: “Ética, Ciência e Técnica” (Ivan Domingues)
EPM: Enquête sur les Principes de la Morale (Hume)
DH: “La puissance de la subjetivité comme dignité de l’homme” (Frogneux)
FMC: Fundamentação da Metafísica dos Costumes
LK: Lexikon Kantien (Na verdade: Kant-Lexikon)
MW: Max Weber (Julien Freund)
PcV: Política como Vocação (edição da UnB)
PEf: Principia Ethica (versão francesa)
TNH: Tratado da Natureza Humana (Hume)
VM: Hans Jonas ou la Vie dans le Monde (Frogneux)
10
Resumo:
O principal objetivo desse estudo foi examinar a formulação
ética do filósofo alemão Hans Jonas, à luz do desafio colocado
pelos avanços biotecnológicos dirigidos à aplicação em seres
humanos não apenas com o propósito de curar, mas de
aperfeiçoar ou de hibridar a espécie humana com outras espécies
ou máquinas. Algo que se torna cada vez mais possível, em função
dos crescentes progressos das pesquisas nessa área.
Buscou-se evidenciar as questões que estão em jogo, sobretudo,
na proposta da chamada eugenia positiva e no projeto pós-
humano e confrontar com elas a formulação ética jonassiana, para
estabelecer um parâmetro ou um limite eticamente consistente,
visando inibir a execução real de tal programa.
11
Abstract
The main objective of this study was to examine the ethical formulation of
the German philosopher, Hans Jonas, in light of the challenge put by the
biotechnological progress destined to the application to the human beings
not only with the goal to cure, but to improve or to cross the human race
with other species, even machines.
Something that becomes more and more possible, because of the
increasing progress of the researches in this field.
It was tried to show the aspects that are in question, mainly, in the
proposition of called positive eugenics and in the post-human project, to
confront them with the jonassian ethical formulation and, so, to establish
a parameter or a morally solid limit to avoid the true execution of such
program.
12
Résumé:
L'objectif principal de cette étude a été le d'examiner la formulation
éthique du philosophe allemand, Hans Jonas, à lumière du défi mise par
le progrès biotechnologique conduit envers à l'application aux êtres
humains non pas seulement avec la finalité de guérir, mais d'améliorer ou
d'hybrider l'espèce humaine avec des autres espèces, voire des machines.
Quelque chose qui se devient de plus en plus possible, à cause du progrès
croissant des recherches dans ce champ.
Il s'est essayé de montrer les aspects qui sont en question,
principalement, dans la proposition du dit eugénisme positif et dans le
projet post-humain, pour leur confronter à la formulation éthique
jonassienne et, ainsi, établir un paramètre ou une limite moralement
solide pour bloquer la vraie exécution d'un tel programme.
13
Introdução
A situação do homem atual, identificada no título ao termo desafio, num certo
sentido, não se distingue da situação do homem em outras épocas. Pois, o ser humano,
por sua própria condição, sempre foi confrontado ao desafio de assegurar sua própria
sobrevivência. O desafio não constitui, portanto, algo novo para a espécie humana.
Novo é, porém, o tipo de desafio ora colocado o qual, mais que inédito, apresenta um
caráter altamente ambíguo.
Com efeito, o século XX chegou ao fim legando ao XXI um cenário jamais
imaginado em toda a História, tanto por suas promissoras conquistas, quanto por suas
insuspeitas ameaças, ambas decorrentes do avanço das tecnologias em geral e da inédita
possibilidade da aplicação em seres humanos das chamadas biotecnologias, em
particular.
Do ponto de vista das tecnologias em geral, as conquistas são inumeráveis. Elas
podem ser sintetizadas, porém, no próprio ambiente doméstico, onde, sobretudo graças
à eletricidade, foi possível integrar ao cotidiano uma série de utensílios para facilitar e
aumentar o conforto, especialmente dos moradores das áreas urbanas que, por
conseguinte, foram completamente transformadas. Não obstante, essas inegáveis
conquistas trouxeram consigo um grande número de problemas de ordem social,
urbanística e ambiental, de proporções cada vez maiores e com aspectos cada vez mais
complexos, representando uma indisfarçável ameaça ao equilíbrio e à continuidade da
vida planetária, num futuro cada vez menos remoto.
1
1. Tais questões, às quais Jonas dispensa também sua atenção, embora de grande urgência e relevância,
não serão tratadas aqui, por extrapolarem o foco proposto: a aplicação das biotecnologias em seres
humanos, especialmente aquelas que, como veremos, são destinadas a fins não-terapêuticos.
14
No âmbito das conquistas biotecnológicas, é possível citar o aumento da
qualidade e da expectativa de vida
(ao menos de uma parcela da humanidade
2
)
, a
identificação dos genes responsáveis por várias enfermidades, permitindo, graças à
técnica da amniocentese
3
, o reconhecimento precoce
(intra-uterino)
de certos males, o
que pode oferecer aos médicos e pacientes algumas alternativas de lhes fazer face.
Alguns destes podem ser curados antes mesmo do nascimento ou, nos casos em que a
cura ainda não é possível, conceder aos pais a possibilidade de optar entre impedir o
nascimento
4
do filho cuja
(provável curta)
existência seria extremamente penosa para eles
e para o próprio bebê
5
ou deixá-lo nascer, conscientes, porém, da limitada condição de
vida da criança e das implicações dessa decisão em suas próprias vidas.
Ninguém seria tolo o bastante para negar ou recusar esses e outros benefícios
proporcionados pelas biotecnologias. Todavia, pretende-se aqui examinar o outro lado
dessa preciosa moeda. Pois, como tudo na esfera humana, as aplicações biotecnológicas
em seres humanos podem se destinar a fins aceitáveis ou a outros questionáveis, até
abusivos, por implicarem riscos ou eventuais prejuízos de dimensões equivalentes ou
superiores aos excepcionais benefícios que se espera alcançar com elas.
2. que as conquistas não são largamente distribuídas, mas, em sua maioria, mantidas como privilégios
dos países mais ricos e, mesmos nesses, garantida, quase que exclusivamente, aos mais abastados.
3. Método de diagnóstico pré-natal que consiste na aspiração trans-abdominal de pequena quantidade de
fluído amniótico da bolsa amniótica, que envolve o feto. É particularmente aconselhada aos pais perante a
probabilidade de deformações genéticas durante a gravidez. Trata-se de uma avaliação citogenética, que
permite detectar a existência de trissomia 21 (responsável pela síndrome de Down) e estabelecer o sexo
fetal, importante quando se prevêem patologias ligadas ao sexo, como a hemofilia. Este processo também
permite: determinar os grupos sangüíneos ABO e sensibilização ao fator Rh; estimar a maturidade fetal;
revelar anomalias bioquímicas homozigóticas (erros hereditários de metabolismo); determinar, através da
análise bioquímica de células, a presença de quaisquer patologias fetais, como a doença de Tay-Sachs ou
galactosemia e determinar a possível necessidade de uma transfusão fetal intra-uterina.
Fonte: http://pt.wikipedia.org/wiki/Amniocentese em 14/02/2008
4. Obviamente, em países em que o chamado aborto terapêutico é permitido.
5. Um exemplo refere-se aos fetos portadores de anencefalia definida como “Uma malformação congênita
que se caracteriza geralmente pela ausência da abóbada craniana e massa encefálica reduzida”.
Questiona-se a adequação do termo, uma vez que não se trata de uma ‘ausência do encéfalo’, como o
termo faz sugerir. O tema, em 2005, gerou intensa discussão entre a sociedade e os parlamentares
brasileiros, em função de uma decisão do, então, ministro do Supremo Tribunal Federal, Marco Aurélio
de Mello, que concedeu “medida liminar autorizando a antecipação terapêutica de parto nos casos de
anencefalia, o que levou a sociedade a polemizar o assunto e o STF a cassar, em reunião plenária, a
liminar concedida”.
Fonte: http://www.direitonet.com.br/artigos/exibir/1921/Anencefalia-Um-decisum-polemico
15
Para evocar apenas alguns deles, vale citar: a utilização da mesma técnica da
amniocentese para identificar o sexo do feto e, em caso de não ser o desejado pelo casal,
“justificar” o aborto praticado, sobretudo, quando se trata de fetos do sexo feminino
6
,
especialmente, em nações como a Índia e a China, cujas culturas privilegiam o
nascimento de meninos.
7
Outro problema criado pela cultura biotecnológica diz respeito à prática comum,
no âmbito da pesquisa, de se patentear as invenções. Recentemente, o mapeamento do
genoma humano tornou possível também o registro de “patentes” dos genes humanos
8
.
Uma situação tão inusitada quanto absurda que mereceria um estudo à parte, por
estabelecer a chave do patrimônio genético da humanidade como uma propriedade
intelectual “privatizável”.
No entanto, o que desde o início constituiu o alvo principal dessa investigação foi
o tema da eugenia. Pois, embora tenha por base uma prática bastante antiga que, no final
do século XIX, foi associada a uma suspeita sistematização teórica, a eugenia ressurgiu
e foi potencializada enormemente, tornando-se ainda mais complexa, graças à
possibilidade de aplicação das biotecnologias em seres humanos, com propósitos, no
mínimo, antagônicos e questionáveis. Isso porque, assim como os diferentes usos da
amniocentese podem ser aceitáveis ou discutíveis - conforme os alvos visados – surgem,
aqui, duas diferentes possibilidades: a primeira diz respeito ao uso das biotecnologias
para, como mencionado, curar doenças geneticamente transmitidas e que, como se
6. Aqui, não se discute o direito do casal de escolher o sexo do bebê, mas se defende o direito à vida
independentemente do sexo do feto.
7. Esta preferência tem provocado um expressivo desequilíbrio na população desses países, quanto à
proporção cada vez maior de indivíduos do sexo masculino.
8. Jeremy Rifkin denuncia esta prática em seu livro Il secolo biotech. Il commercio genetico e l’ínizio di
una nuova era, no segundo capítulo intitulado “Patentear a vida”, onde ele discute os problemas
decorrentes da atividade científica que trata “A vida como invenção” (Tópico 2) e “Os seres humanos
como propriedade intelectual” (Tópico 4). Tais aspectos mostram a complexidade da questão que,
todavia, não será aqui discutida.
16
trata de eliminar uma característica herdada, foi chamada de eugenia negativa. Esse
consistiria um uso, em princípio, aceitável.
Porém, outro caso, bastante discutível - e do qual vamos nos ocupar - com
relação à utilização das mesmas técnicas não para curar, mas para “melhorar” a carga
genética recebida, para “criar” um bebê com características supostamente “superiores”.
Eis a chamada eugenia positiva, assim classificada por inserir características ausentes no
material genético do feto. O problema que se coloca tem que ver com o fato de, por
princípio, nas condições atuais, ela não ser destinada a todos
9
, mas somente a uma elite
econômica, resultando na criação de uma “casta” geneticamente privilegiada de seres
humanos. Deste modo, estabelecendo não apenas mais um mecanismo de discriminação
e desigualdade social, mas certamente o mais cruel, já que verdadeiramente irreversível.
O efeito imediato dessa nova discriminação sócio-genética sugere problemas de
ordens: social, por possibilitar uma nova modalidade de discriminação; ética, quanto a
estabelecer se isso seria eticamente aceitável; e política, para equacionar as relações de
forças entre os diferentes grupos que, certamente, seriam conflitantes. Quadro que se
mostra extremamente complexo, exigindo, portanto, uma minuciosa reflexão filosófica,
antes que sua prática seja adotada e instituída.
Outro uso possível das biotecnologias em seres humanos que se apresenta como
um desafio à reflexão ética refere-se ao projeto defendido por diferentes autores, entre
os quais Roberto Marchesini
10
, para quem o corpo humano, tornado obsoleto, levaria à
proposta do que ele denomina de hibridismo, isto é, a possibilidade de se combinar
aspectos físicos humanos com os de animais ou mesmo máquinas, para criar o que se
intitulou de pós-humano.
9. Neste contexto, será discutida, também, a chamada eugenia liberal, para avaliar até que ponto ela
resolveria esse impasse.
10. Autor do livro Post-human. Verso nuovi modelli di esistenza. Torino: Bollati Boringhieri, 2002.
17
Todos aqueles que, por diferentes motivos, defendem a preservação do corpo
humano tal qual ele é, ou questionam as razões que motivariam um ser humano a
“hibridar-se” ou, simplesmente, colocam-se contra sua proposta são pejorativamente
chamados de puristas
11
.
Embora possa parecer uma proposta delirante, o fato é que o mapeamento do
genoma humano e as pesquisas no campo da transgenia tornam tal delírio totalmente
exeqüível, possibilitando a criação de verdadeiras quimeras, que nada deixam a dever às
figuras mitológicas dos centauros, sereias, minotauros, medusas e outros do imaginário
popular como lobisomem ou da ficção do século XX como homem mosca, homem
aranha, etc.
Para além de seu aspecto, até certo ponto, risível, o que está aqui em jogo é nada
menos que o patrimônio genético humano
12
. Por esse motivo, essa será, ao lado da
eugenia positiva, a segunda aplicação da biotecnologia a ser examinada para estabelecer
se, afinal, podem ser consideradas aceitáveis ou, ao contrário, abusivas.
Cabe notar que, devido à numerosa existência de títulos consagrados ao
assunto, a clonagem será abordada apenas brevemente. Pois, embora suas implicações
éticas não sejam de modo algum irrelevantes, julgamos que as duas questões
destacadas: a eugenia positiva e o pós-humano constituem um campo suficientemente
problemático e por serem, até o momento, menos debatidas que a clonagem, elas
exigirão maior atenção e melhor detalhamento ao longo da exposição, sendo mais
sensato, restringi-la apenas às duas.
Nesse cenário tão promissor quanto ameaçador, forçosamente, a biotecnologia,
mais que um tema, torna-se, um desafio à reflexão filosófica, que nos coloca a todos
diante de algo que, por um lado, pode libertar o ser humano de uma série de males e
11. Também identificados ao termo tecnófobos ou, mais recentemente, ao termo bioconservadores.
12. Que, diga-se de passagem, está sendo silenciosa, mas sistematicamente, patenteado.
18
limitações, que desde os primórdios perturbam a humanidade. Por outro, pode (se
levados a cabo todos os projetos delirantes, graças a ela, tornados possíveis), não apenas
danificar a constituição genética, ao “tentar” estabelecer melhorias, mas, suprimir
definitivamente o que até o momento atual foi designado pelo termo Homem, ao buscar
realizar o projeto pós-humano, criando inúmeros seres de espécies mistas e indefinidas.
Essa ameaça, por si só, deveria senão inibir, ao menos, coibir a ação daqueles que
estão à frente das pesquisas com vistas a tornar exeqüíveis esses projetos que,
lamentavelmente, parecem justificar a presença no imaginário popular da figura do
“cientista maluco”, aquele que conhece certos “mistérios” insondáveis, ao menos para
nós leigos, mas que, em nome do orgulho, da vaidade e do próprio poder, faz um uso
irresponsável desse conhecimento.
Contudo, ao invés de se inibirem diante do que constitui uma ameaça, ao
contrário, tais mentes se sentem estimuladas e, até mesmo, impelidas a prosseguir, ainda
que o preço a pagar seja demasiado elevado e, o que é pior e mais injusto, a ser pago
não por aqueles que hoje tomam a decisão de levar adiante seus projetos, mas pelas
futuras gerações.
Tal estado de coisas coloca a discussão dessas aplicações das biotecnologias no
centro da reflexão ética. Entre os autores que se ocupam desse problema, Hans Jonas foi
um dos precursores. No final da década de 1970, ele compreendia a necessidade de
elaborar, no seu Princípio Responsabilidade
(1979)
, uma “ética para a civilização
tecnológica”. Desde o início, ele se posiciona criticamente, pois, embora não rejeite os
benefícios das tecnologias, vê também seus riscos potenciais e contra eles nos adverte.
De modo surpreendente, Jonas antecipa os problemas que, cada vez mais, se
fazem notar. E, enquanto alguns autores se esforçam para justificar e endossar todos os
projetos tornados possíveis pelas biotecnologias, ele se empenha em demonstrar a
19
necessidade de um parâmetro, um critério para discernir e um limite para evitar suas
aplicações duvidosas.
Exatamente por isso, entre as diversas alternativas possíveis, escolheu-se,
portanto, a concepção jonassiana para tentar enfrentar essa questão que constitui,
certamente, um dos mais complexos problemas transmitidos pelo século XX aos
legatários do XXI.
Para tanto, dividiremos a exposição em duas partes, designadas respectivamente
de problemática, onde serão apresentados os vários aspectos concernentes à abordagem
do problema e sistemática, onde serão apresentadas a formulação, a fundamentação, a
aplicação e, por fim, uma avaliação da proposta ética jonassiana, buscando-se também
sugerir alguns caminhos que possam sanar os eventuais limites encontrados e conduzir à
sua efetiva concretização.
20
PARTE I – PROBLEMÁTICA
EXPOSIÇÃO DOS DIFERENTES ASPECTOS DO PROBLEMA
Introdução ao Problema
A questão a ser abordada é certamente um dos mais complexos e delicados
problemas criados pelo homem nos últimos tempos. Trata-se da aplicação das
biotecnologias em seres humanos. Questão complexa, uma vez que, como apontado, as
biotecnologias se apresentam como uma grande conquista da humanidade quando
permitem, por exemplo, a detecção precoce e a cura definitiva de inúmeras doenças
hereditárias ou congênitas até então incuráveis, acendendo, assim, uma esperança
inaudita na história humana: a de - antes mesmo do nascimento - vencer, de uma vez
por todas, diversas doenças diante das quais, anteriormente, a humanidade encontrava-
se inteiramente indefesa.
Esse aspecto das biotecnologias digno de todo louvor, esconde, porém, um lado
bastante polêmico, justamente sobre o qual se pretende aqui debruçar. Vem a ser, a sua
aplicação dirigida não à cura, mas ao “aperfeiçoamento” dos atributos humanos, seja
por meio de manipulação genética ou de outros recursos a serem oportunamente
abordados.
Sobretudo é esse uso mais pretensioso das biotecnologias que inspira receio,
revela o caráter delicado da questão e divide as opiniões que foram - de modo simplista
- reduzidas por alguns autores
(entre os quais Gilbert Hottois e Roberto. Marchesini)
em
duas posições: a dos tecnófilos e a dos tecnófobos. Ou seja, de um lado os entusiastas
incondicionais e de outro os intolerantes radicais com relação às tecnologias em geral.
Mas, para além dessa divisão reducionista, o que se pretende aqui é realizar uma
crítica
13
no sentido de buscar o(s) limite(s) adequado(s) para o uso das biotecnologias
13. No sentido de alcançar, com relação à aplicação das biotecnologias em seres humanos, o mesmo
propósito estabelecido por Kant em relação à razão, sobretudo em seu uso teórico, quando na Crítica da
21
em seres humanos. Nem cego entusiasmo, nem intolerância obstinada, o que se almeja é
uma crítica consciente dessa prática que, embora extremamente promissora, seo
utilizada de forma criteriosa, pode se converter numa ameaça de conseqüências
imprevisíveis, irreversíveis e de proporções jamais vistas, ao interferir na base genética
da humanidade.
É essa ameaça que impõe a postura crítica, como tentativa de se propor um limite
e um critério de aplicação a essas novas tecnologias que, se utilizadas indiscriminada e
aleatoriamente, podem afetar definitivamente a constituição humana, desfigurando algo
que a humanidade, ao longo de toda a sua história, preservou
14
: nosso patrimônio
genético
15
.
Evidentemente, inúmeras questões se colocam para a introdução do tema, sendo
as iniciais:
o que são biotecnologias? Como e quando surgiram? Quais são seus usos
possíveis?
Essas e outras questões serão abordadas no decorrer do capítulo 1, com o intuito
de preparar para as demais reflexões que terão lugar nos capítulos posteriores. No
capítulo 2, serão abordadas as principais dificuldades conceituais que se colocam, desde
a modernidade, à abordagem desse problema. E, no capítulo 3, será apresentada, em
linhas gerais, a situação da ética contemporânea.
Segue-se, assim, uma breve consideração sobre o contexto atual, acerca das
chamadas biotecnologias.
Razão Pura, ele considera que a tarefa própria da razão é: “determinar de maneira completa e segura os
limites do uso que é tentado para além de todos os limites da experiência”. (Kant-Lexikon. p. 226) Em
francês: “déterminer de façon complète et sûre les limites de l’usage qui en est tenté au-delà de toutes les
limites de l’expérience”. A ênfase aqui recai, porém, na noção de limite do uso, especialmente, na esfera
da própria experiência, que é o que se pretende buscar.
14. Embora, talvez, porque ainda não dispusesse dos recursos ora disponíveis.
15. Estima-se que o homem, tal como conhecido atualmente, alcançou sua estabilidade genética há,
aproximadamente, 150.000 anos. Fonte: A. Kahn & D. Lecourt. Bioéthique et liberte. Paris: PUF, 2004,
p. 76. Na verdade, os próprios autores fornecem dois diferentes dados. À página 31, do mesmo livro,
registra-se 100.000 anos. De qualquer modo, evidentemente, trata-se de um cálculo aproximativo.
22
CAPÍTULO 1: O HOMEM NA ERA BIOTECNOLÓGICA
Esse capítulo será dedicado à discussão dos aspectos gerais das biotecnologias (1.1) e
de algumas de suas aplicações em seres humanos mais polêmicas: aquela direcionada ao
projeto pós-humano (1.2) e à eugenia em suas diferentes possibilidades (1.3).
1.1 - O século XXI como o “século das biotecnologias”
Embora a maior parte das descobertas que inauguraram a “era biotecnológica”
tenham sido feitas no século XX, sobretudo a partir da década de 70; é o século XXI
que tem sido chamado de ‘século biotecnológico’
16
. Isso se deve ao fato, tão importante
quanto preocupante de que, se no século anterior a ampliação do conhecimento nessa
área possibilitou o surgimento de uma “nova matriz operativa”
17
, ao que tudo indica, é o
século atual que será marcado pela aplicação, nos mais diferentes setores e das mais
diferentes formas, desses conhecimentos em plena fase de expansão.
Ademais, cabe enfatizar um paralelo entre o século XX e o atual, considerando o
primeiro como sendo o da física, cujo marco principal foi a descoberta da fissão nuclear,
tendo por conseqüência a criação da energia, mas também da bomba nuclear. E o XXI,
o século da biologia, cujo marco principal remonta-se à descoberta do DNA
18
, tendo por
conseqüência a possibilidade de cura de graves doenças pela manipulação genética, mas
também seu uso para fins, no mínimo, discutíveis como, por exemplo, a eugenia
positiva.
16. Título do livro de Jeremy Rifkin, The Biotech Century que, no presente pico, será citado várias
vezes.
17. Expressão utilizada por Rifkin, para caracterizar esse novo viés inaugurado no interior da biologia.
18. Costuma-se afirmar que existiram dois momentos na história da descoberta dos ácidos nucléicos
(DNA e RNA). O primeiro foi a descoberta da sua existência no núcleo celular - ocorrida em 1869 graças
ao bioquímico alemão Johann Friedrich Miescher (1844-1895) - e a determinação de sua composição
química. O segundo momento foi a identificação e aceitação do DNA como material hereditário. Depois
da descoberta de que o DNA constituía o material hereditário; inúmeras pesquisas foram realizadas para
elucidar sua estrutura e entender que fatores tornavam o DNA o banco de memória da informação
hereditária. Vários experimentos foram realizados até chegar, em 1953, à proposta do modelo da dupla
hélice do DNA de James Watson (1928- ) e Francis Crick (1916-2004).
Fonte: http://www.biomol.org/historia/ Em 23/03/08.
23
Tal paralelo é fundamental por demonstrar o caráter paradoxal dessas novas
descobertas que tanto podem significar uma benção, como também uma maldição
19
e
não apenas para as gerações atuais, mas, injustamente, até mesmo para as futuras
gerações.
Antes de avançar em direção à análise dos principais aspectos implicados na
aplicação das biotecnologias, é preciso estabelecer um entendimento quanto ao objeto
principal desse estudo. Por isso, a seguir, serão colocadas questões elementares, mas
indispensáveis ao prosseguimento dessa reflexão. Assim, vejamos:
a) O que são as biotecnologias?
Existem inúmeras definições de biotecnologia. Para efeito de nossa reflexão, o
ponto de partida será a definição estabelecida, em 1992, pela Convenção sobre
Diversidade Biológica da ONU, segundo a qual:
"Biotecnologia significa qualquer
aplicação tecnológica que use sistemas biológicos, organismos vivos ou derivados destes,
para fazer ou modificar produtos ou processos para usos específicos."
20
Esta ampla definição de biotecnologia engloba todo o conjunto de atividades
realizadas milhares de anos pelo homem, envolvendo a utilização de organismos
vivos, como por exemplo, a produção de alimentos fermentados (pão, vinho, iogurte,
cerveja, etc.). Por isso, é fundamental ressaltar que nossa investigação refere-se, mais
precisamente, à chamada biotecnologia moderna que se distingue da anterior por
empregar a informação genética ao incorporar técnicas de DNA (ácido
desoxirribonucléico) recombinante
21
.
Essas técnicas possibilitam a modificação direta do genoma do organismo alvo
pela introdução intencional de fragmentos de DNA exógenos
(genes de outros seres)
que
19. Aspecto observado por Jonas com relação às tecnologias que visam intervir no “núcleo” das coisas.
20. Convenção sobre Diversidade Biológica. Artigo 2, “Uso do Termo”. Nações Unidas. 1992.
Recuperado em 20 de setembro de 2006.
21. DNA recombinante (rDNA) é uma seqüência de DNA artificial que resulta da combinação de
diferentes seqüências de DNAs. Em outros termos, seria a mistura do DNA de diferentes organismos.
24
possuem uma função conhecida. Assim, via engenharia genética
22
, por exemplo, o gene
(DNA) que contém a informação para síntese de uma proteína de interesse pode ser
transferido para outro organismo que então produzirá grandes quantidades desta
substância buscada.
Outro importante aspecto que diferencia a biotecnologia atual das práticas
anteriores é o fato de que ela integra diversas disciplinas biológicas como: genética,
biologia molecular, embriologia e biologia celular e outras de diferentes áreas como a
bioquímica, engenharia química, tecnologia da informação, nanotecnologia e, até
mesmo, robótica
23
.
Portanto, é esse complexo conjunto de conhecimentos e práticas que será aqui
denominado biotecnologia. Algo que não se pode perder de vista ao longo da exposição,
especialmente quando estiverem em foco algumas de suas aplicações mais polêmicas,
sobretudo, por se destinarem aos seres humanos.
b) Como e quando surgiram?
Embora a palavra biotecnologia tenha sido usada pela primeira vez, somente em
1919 por Karl Ereky - um engenheiro agrícola da Hungria - como vimos acima, as
primeiras aplicações biotecnológicas pelo ser humano são muito antigas. fontes que
datam de 1800 a.C., com o uso de leveduras (organismos vivos) para fermentar vinhos e
pães, produzindo especialmente alimentos. Outras fontes, porém, atestam que a
aplicação da biotecnologia seria tão antiga quanto o próprio Homo sapiens.
24
22. Trata-se da “modificação de seres vivos pela manipulação direta do DNA, através da inserção ou
deleção de fragmentos específicos. Sua aplicação pode ser na produção de vacinas, proteínas por
microorganismos, alimentos, transplantes, terapia gênica, animais transgênicos”, etc. O mesmo que
manipulação ou modificação genética. (Fonte: http://www.ufrgs.br/bioetica/engeneti.htm - em 23/11/07)
23. Nesse sentido, quando o termo biotecnologia for aqui empregado, que se ter em mente esse amplo
espectro, que extrapola o próprio contexto das biociências. Razão pela qual, chegou-se a pensar em
utilizar o termo “neotecnologias” para sugerir que não se trata apenas das ciências biológicas. Mas, visto
que o termo biotecnologia pressupõe essa expansão em direção a outras áreas, tornou-se dispensável a
adoção do neologismo.
24. Pois, na verdade, registros bem mais antigos que o acima mencionado: - 8000 a.C: coleta de
sementes para replantio. Evidências de que na Mesopotâmia se utilizava aleitamento seletivo na pecuária.
25
Contudo, o crescimento amplo e acelerado da moderna biotecnologia ocorreu
no século XX, a partir da década de 70, com o desenvolvimento da engenharia genética,
que possibilitou a alteração direta do material genético, graças à tecnologia do DNA
recombinante.
Anteriormente aos anos 1970, o termo biotecnologia era usado quase
exclusivamente na indústria de processamento de alimentos e na agroindústria. A partir
de então, passou a ser utilizado também em diferentes instituições científicas ocidentais
para designar as técnicas de laboratório desenvolvidas em pesquisa biológica, ligadas
aos processos de DNA recombinante ou à cultura de tecidos.
Cabe lembrar que, no sentido mais amplo, o termo poderia designar toda a
variedade de métodos, antigos ou modernos, empregados para manipular organismos
com o objetivo de satisfazer às exigências humanas. Por isso, o termo também pode ser
definido como
“a aplicação de conhecimento nativo e/ou científico para o gerenciamento de
(partes de) microorganismos, ou de células e tecidos de organismos superiores, de forma que
estes forneçam bens e serviços para uso dos seres humanos.”
25
Todavia, aqui, como estabelecido, privilegiar-se-á, não a ampla definição
proposta pelas Nações Unidas, mas aquela mais precisa de biotecnologia moderna, que
emprega a informação genética do DNA e incorpora técnicas de várias disciplinas
biológicas a outras de diferentes áreas da ciência, todas visando sua aplicação com os
mais diferentes fins.
- 6000 a.C.: Oriente Médio, uso de levedura para elaboração de cerveja. - 4000 a.C.: China, fabricação de
iogurte e queijo pela fermentação láctica utilizando bactérias. - 2300 a.C.: Egito, produção de pão com
fermento. Isso significa que a biotecnologia teria surgido no período Paleolítico (palavra que vem do
grego e significa "antiga pedra") que corresponde ao período da história do homem compreendido entre
500.000 a 18.000 a.C. Mais exatamente, a biotecnologia surge no período anteriormente denominado de
Paleolítico Superior (40 30.000 a10 8.000 a.C.). Ou, conforme a nova classificação que divide o
período Paleolítico em dois sub-períodos: o Paleolítico Inicial ou Antigo - onde se incluem o Paleolítico
Inferior e o Médio da divisão anterior e o Paleolítico Recente - que corresponde ao Paleolítico Superior
da divisão anterior, que é marcado pelo aparecimento do Homo sapiens e pelas primeiras descobertas do
homem para dominar a natureza.
25. Bunders, J.; Haverkort, W.; Hiemstra, W. Biotechnology: Building on Farmer's Knowledge.
Macmillan Education, Ltd, 1996.
26
c) Usos já implantados até o momento
Vimos que, após os anos 70, cientistas concentraram suas atenções nas pesquisas
com o DNA. Tais pesquisas, sobretudo nos EUA, possibilitaram a criação dos
organismos geneticamente modificados (OGMs), também conhecidos como
transgênicos. Depois de conseguir transferir genes de uma espécie para outra, foi
possível aperfeiçoar as técnicas e utilizá-las na criação de medicamentos, hormônios,
plantas modificadas e outros produtos.
Desde então, as pesquisas se expandiram e, atualmente, os cientistas podem usar a
biotecnologia e a modificação dos genes para os fins mais diversos. Por exemplo,
transformar uma planta convencional que nos serve de alimento, em outra que seja mais
tolerante a algumas pragas ou a herbicidas, desenvolver variedades de produtos
enriquecidos do ponto de vista nutricional ou ainda sintetizar substâncias que ajudem os
seres humanos no combate a determinadas doenças.
Várias substâncias ou produtos são produzidos por meio da biotecnologia
moderna também chamada engenharia genética. Entre os quais podemos mencionar o
interferon
26
humano, a insulina humana, os hormônios de crescimento humano, além da
criação de plantas resistentes a vírus, de plantas tolerantes a insetos e plantas resistentes
a herbicidas. Outro importante uso da biotecnologia está relacionado à produção de
bactérias, empregadas para a biodegradação em casos de vazamentos de óleos ou lixos
tóxicos em meios aquáticos como oceanos, mares, etc.
Todos esses usos, de certo modo incorporados ao nosso cotidiano, nem sempre
com o nosso conhecimento, embora possam implicar algum risco, fornecem benefícios
inquestionáveis para um grande número de indivíduos, em diferentes partes do globo e,
26. O Interferon ou Interferona ou Interferão é uma proteína produzida por todos os animais
vertebrados e por alguns invertebrados. O Interferon é produzido pelas células do organismo para
defendê-lo de agentes externos como vírus, bactérias e células de tumores.”
Fonte: http://pt.wikipedia.org/wiki/Interferon Acesso em 23/11/07.
27
em princípio, independentemente de sua condição social. Razão pela qual, de um modo
geral, não suscitam grandes suspeitas ou levantam grande polêmica em torno de sua
realização.
Entre eles, porém, o caso dos alimentos transgênicos que tem sido alvo de uma
série de críticas. Primeiro, por introduzir na natureza organismos “artificiais” cujo
impacto ambiental não foi ainda calculado com o devido rigor (ou divulgado para o
público em geral). Segundo, por criar sementes que, embora mais resistentes a pragas e
doenças, apresentam uma série de problemas, especialmente para o pequeno produtor.
O primeiro e mais notório problema, decorrente dessas sementes “criadas”, é a
gradual extinção das sementes nativas, que perdem lugar para as sementes sintéticas, o
que está relacionado ao segundo e mais grave problema: o da dependência cada vez
maior dos produtores em relação às empresas que “produzem” as sementes. Grupos
como a Monsanto detêm hoje quase o total monopólio mundial na produção de
sementes. Isso significa que produtores rurais de diversos países tornam-se,
voluntariamente ou não, dependentes
27
de sua produção de sementes para plantar e
produzir alimentos cujos efeitos para o meio ambiente e a saúde humana ainda não
foram confirmados totalmente seguros.
Por esse e outros motivos
28
, alguns países taxativamente proíbem o uso de
sementes transgênicas, enquanto outros, como os EUA, não por acaso, adotaram
inteiramente o seu uso e, desconsiderando a legislação específica de outros países,
exportam seus produtos, muitas vezes sem alertar para o fato de que utilizam em sua
composição algum tipo de substância extraída de alimento transgênico. O que é, no
27. Pois, ao contrário do que ocorre com as sementes tradicionais, o “fruto” (ou segunda geração) de uma
semente sintética, por se tratar de um organismo híbrido, é estéril. Isso significa que, de um milho
transgênico, por exemplo, não se pode extrair a semente para a próxima safra, criando uma dependência
permanente dos produtores em relação aos fornecedores das sementes.
28. Como o fato de tais sementes destruírem as plantações tradicionais e, por serem resistentes a pragas,
criarem “super-pragas” cada vez mais resistentes. Sem falar no fato de que, até o momento, não
estudos conclusivos que contestem o seu efeito cancerígeno.
28
mínimo, um abuso e um desrespeito em relação à liberdade (valor tão caro a eles) dos
demais consumidores (que não os norte-americanos).
Essa é uma questão bastante problemática, mas não é ainda a que nos toca
diretamente. Pois, nossa preocupação maior é, justamente, com relação aos usos que
afetam diretamente a constituição humana, que serão examinados a seguir.
1.2 - Usos possíveis, usos discutíveis: a caminho do pós-humano?
Além das aplicações mencionadas, existem outras possibilidades que despertam
ainda mais dúvidas, discussões e preocupações, até mesmo entre os pesquisadores da
engenharia genética, com relação às pesquisas e aos futuros empregos que possam ferir
princípios éticos e direitos humanos essenciais
29
. Pois,
Apesar de uma série de reportagens favoráveis divulgadas pela mídia
sobre vários experimentos de terapia genética e sobre a elevada
expectativa declarada pela sociedade médica e pela indústria de
biotecnologia, os resultados foram tão decepcionantes que o próprio
Nih
30
foi (...) obrigado a pedir aos cientistas que conduzem
experimentos de engenharia genética para evitarem fazer promessas
que não podem ser mantidas. (...) «a eficácia clínica, em qualquer
protocolo de terapia genética, até hoje, não foi definitivamente
demonstrada, contrariamente às reivindicações anedóticas de uma
terapia de sucesso.»
31
Ainda assim, algumas técnicas biológicas, como a manipulação de DNA, a
produção de embriões humanos em laboratório, a clonagem para utilização em
29. Por exemplo, o princípio ético da dignidade, de não usar pessoas como meios (no caso das pesquisas)
e o direito humano essencial expresso no artigo I da Declaração Universal dos Direitos Humanos, que
afirma: Todas as pessoas nascem livres e iguais em dignidade e direitos. Ponto que será mais bem
discutido adiante.
30. National Institutes of Health, que é a agência norte-americana para regulamentar as pesquisas
médicas.
31. Rifkin. Op. cit. pp. 214-215.
29
transplantes, a terapia gênica
32
, a manipulação de células germinativas
33
, a seleção de
características genéticas (eugenia) nas primeiras divisões celulares no processamento da
fecundação assistida, o diagnóstico precoce de doenças hereditárias tardias e cálculos
atuariais nas empresas de seguro ou de emprego são apenas alguns exemplos das várias
aplicações já em curso.
Alguns desses usos levantam problemas por poderem ferir a dignidade humana,
outros porque implicam conseqüências imprevisíveis ou incontroláveis ou ainda porque
seus resultados previsíveis oferecem mais riscos do que benefícios. Sendo assim, antes
de se estabelecer a sua aplicação são ainda necessárias muitas pesquisas.
Há casos, porém, que mesmo a realização de pesquisas envolve graves aspectos
éticos, devido ao seu caráter extremamente ambíguo e controverso. Entre os mais
debatidos está, sem dúvida, a clonagem humana. Inúmeros livros, artigos, papers têm
sido dedicados à análise desse tema que suscita uma série de questões éticas, jurídicas e,
mesmo, técnicas.
Técnicas, porque não se sabe ainda a eficácia de seus resultados em seres
humanos; jurídicas, porque é preciso refletir sobre os direitos tanto da “cópia”, quanto
do “original”; e éticas, porque, mais uma vez, está em jogo a delicada questão da
dignidade humana, ameaçada pela tentativa de se “replicar” um ser humano.
De fato, a clonagem de seres vivos, várias cadas, constitui um amplo campo
de pesquisas científicas, tornadas públicas em 1997; quando cientistas anunciaram a
primeira bem sucedida clonagem de um mamífero, a da famosa ovelha Dolly.
32. A terapia gênica (TG) é um tratamento para doenças hereditárias que se caracteriza pela inserção de
um gene funcional dentro da célula humana a fim de conferir uma nova função ou melhorar os efeitos de
um gene anormal.” Fonte: http://www.cib.org.br/apresentacao/terapia_genica_alexandra_zilli_word.pdf
em 23/11/07. Em outras palavras, é a manipulação de genes do indivíduo para corrigir defeitos genéticos.
A terapia gênica pode ser de 3 tipos: 1. De correção, quando ocorre a inserção de um gene funcional no
local de um não funcional ou deleção de um gene deletério; 2. De complementação, quando é feita a
introdução de uma cópia normal sem modificação do original, ou 3. De adição, com o acréscimo de um
gene ausente no genoma. (Fonte: http://www.ufrgs.br/bioetica/terapgen.htm em 23/11/07)
33. Células germinativas são aquelas ligadas ao sistema reprodutivo; também chamadas de gametas.
30
Após tal êxito, vários cientistas, em diferentes locais do plaeta, manifestaram-se
com o propósito de utilizar a técnica da clonagem também em seres humanos.
Na verdade, antes da ovelha Dolly, muitos animais haviam sido clonados, tais
como ratos, coelhos e, depois de Dolly, inúmeros outros como vacas, outras ovelhas e
recentemente, uma gata de estimação chamada CC
34
, foram submetidos à mesma técnica.
Em função dessa expansão da clonagem, alguns países sancionaram leis proibindo
a clonagem de seres humanos. Contudo, para muitos cientistas a simples existência de
leis não constitui qualquer impeditivo ao prosseguimento de suas pesquisas
35
. Por esse
motivo, há pouca chance de se impedir efetivamente a clonagem de seres humanos
36
.
Uma forma de, senão impedir, ao menos restringir tal prática, refere-se aos seus
altos custos. Efetivamente, os gastos envolvidos numa clonagem são bastante elevados.
Todavia, recursos financeiros não são um verdadeiro problema e, na realidade, eles não
faltam para o desenvolvimento desta tecnologia, que promete trazer fama e mesmo
fortuna a seus realizadores. Por esse motivo e também por razões emocionais, como o
desejo de clonar uma pessoa querida doente ou falecida, muitas pessoas continuam
financiando essas pesquisas que talvez, antes do que imaginemos, possam ser colocadas
em prática também em seres humanos.
Aqueles que se opõem à clonagem humana o fazem por julgarem que a espécie
humana está tomando um caminho bastante perigoso e possivelmente irreversível que
pode gerar graves conseqüências, nem todas previsíveis. Eles advertem que a tecnologia
da clonagem é ainda muito incipiente. A média de sucesso em tais experiências é de
apenas 3%. Muitos clones nascem defeituosos e morrem pouco após seu nascimento.
Ademais, a duplicação de seres humanos, mesmo que superasse as atuais limitações
técnicas, não poderia transpor as questões: ética e jurídica mencionadas; e ainda teria
34. Experimento realizado em 2001, na Universidade do Texas.
35. Pois, basta realizá-las num país onde tais pesquisas sejam permitidas.
36. A menos que se chegue a um entendimento internacional nesse sentido.
31
que se defrontar com a inevitável questão religiosa: se o homem tem o direito de se
“brincar de Deus”?
37
Aqui, porém, é preciso distinguir entre a chamada clonagem terapêutica da
clonagem propriamente reprodutiva, que não diferem essencialmente com relação ao
procedimento inicial
38
, mas pelo fato de, nessa última, durante a fase chamada
blastocisto, o embrião ser implantado na cavidade uterina, para gerar um indivíduo com
patrimônio genético idêntico ao do doador da célula somática. na clonagem dita
“terapêutica”, o blastocisto não é inserido num útero, pois se destina a ser usado no
laboratório para produzir células-tronco (Totipotentes
39
) visando à produção de cópias
saudáveis de tecidos ou órgãos de uma pessoa doente para transplante. Embora ambas
sejam questionadas (a terapêutica por utilizar embriões humanos como material
biológico
)
40
,
é a clonagem reprodutiva que coloca maiores problemas, por sua
finalidade, considerada fútil, de criar a cópia de uma pessoa, implicando uma série de
questões de ordem ética, religiosa e jurídica, por estabelecer uma ruptura no processo
natural de reprodução humana, alterando profundamente o significado, não apenas da
37. Argumento recorrente, mas pouco eficiente no contexto científico. Ver, por exemplo, o capítulo 13 de
A virtude soberana, de Ronald Dworkin, intitulado exatamente: “Brincar de Deus: genes, clones e sorte”.
38. Que consiste na técnica denominada Transferência Nuclear (TN), baseada na remoção do núcleo de
um óvulo e sua substituição pelo núcleo de outra célula somática. Após a fusão, ocorre a diferenciação
das células e com cinco dias de fecundação, o embrião atinge de 200 a 250 células, formando o
blastocisto.
39. Cabe esclarecer que “Células-tronco são células com capacidade de auto-replicação, isto é, com
capacidade de gerar uma cópia idêntica a si mesma e com potencial de diferenciar-se em vários tecidos.”
Elas podem ser classificadas em quatro diferentes grupos, a saber: - As Totipotentes: células que são
capazes de diferenciarem-se em todos os 216 tecidos que formam o corpo humano incluindo a placenta e
anexos embrionários; - As Pluripotentes ou multipotentes: lulas capazes de diferenciar-se em quase
todos os tecidos humanos, excluindo a placenta e anexos embrionários; - As Oligopotentes: células que se
diferenciam em poucos tecidos e - As Unipotentes: células que se diferenciam em um único tecido.
Fonte: http://www.ghente.org/temas/celulas-tronco/index.htm
40. Por exemplo, o projeto da Lei de Biossegurança brasileira, aprovado pela Câmara dos Deputados em
fevereiro de 2004, para substituir a lei de 1995, textualmente, proibiu a produção de embriões humanos
destinados a servir como material biológico”, permitindo a pesquisa com células-tronco provenientes
de cordões umbilicais, medulas ósseas ou placentas. Embriões descartados pelas clínicas de fertilização in
vitro ou produzidos por clonagem terapêutica não poderiam ser usados para a obtenção de células-tronco.
Fato que gerou toda a discussão posterior entorno das pesquisas com células-tronco embrionárias;
levando a que, em 29 de maio de 2008, o Supremo Tribunal Federal julgasse constitucional a Lei de
Biossegurança, permitindo as pesquisas com células-tronco embrionárias para fins terapêuticos no Brasil.
Fonte: www.estadao.com.br/vidae/not_vid180432,0.htm
32
procriação, mas de outros importantes referenciais humanos, como: a origem da vida, os
conceitos de família, maternidade e paternidade biológica e ainda o de vínculo
geracional.
Entretanto, a clonagem não é a única questionável aplicação das biotecnologias
em seres humanos. Outras como o útero artificial, a criação de cyborgs, a
nanotecnologia
41
, a eugenia, etc.
42
estão sendo propostas por diferentes cientistas.
Alguns autores vêm se ocupando destas questões algum tempo, nem sempre numa
perspectiva crítica, como a de Jeremy Rifkin, mas, no “melhor espírito científico”,
mantendo a “objetividade e a neutralidade” (pretensamente) exigidas da ciência. Entre
esses encontramos o italiano Roberto Marchesini
43
, autor do livro
Post-human
44
- Verso
nuovi modelli di esistenza (2002)
que, por seu caráter absolutamente polêmico, inspirou
toda a discussão que se segue, em torno do que ele denomina de pós-humano
45
.
Em linhas gerais, pode-se resumir que Marchesini defende o pós-humanismo e o
que ele chama de hibridismo
46
e critica o que ele (des)classifica de purismo, conceitos
chaves para compreender minimamente a sua posição, da qual passamos agora a nos
ocupar.
41. Parece difícil imaginar, mas um dos possíveis problemas que ela pode criar “é a nanopoluição que é
gerada por nanomateriais ou durante a confecção destes. Este tipo de poluição, formada por
nanopartículas que podem ser muito perigosas uma vez que flutuem facilmente pelo ar viajando por
grandes distâncias. Devido ao seu pequeno tamanho, os nanopoluentes podem entrar nas lulas de seres
humanos, animais e plantas. Como a maioria destes nanopoluentes não existe na natureza, as células
provavelmente não terão os meios apropriados de lidar com eles, causando danos ainda não conhecidos.
Estes nanopoluentes poderiam se acumular na cadeia alimentar como os metais pesados e o DDT.”
Fonte: http://pt.wikipedia.org/wiki/Nanotecnologia#Utiliza.C3.A7.C3.B5es_mais_radicais
42. Todas elas são reunidas no interior da obra de Marchesini, como relativas ao pós-humano.
43. “Estudioso de Ciências Biológicas e de Epistemologia, diretor dos «Quaderni di Bioetica», presidente
da Sociedade Italiana de Ciências Comportamentais Aplicadas, professor de bioética e zooantropologia
em diversas faculdades italianas.” Autor de outros importantes títulos. (Fonte: Contracapa do Post-
human).
44. Termo inventado por especialistas da inteligência artificial. A. Kahn & D. Lecourt. Bioéthique et
liberté. p. 51.
45. Cabe enfatizar que o que ele entende por pós-humano engloba todas as aplicações questionáveis das
biotecnologias entre as quais a clonagem, o útero artificial, a eugenia, etc. Razão pela qual,
dispensaremos uma atenção especial ao seu livro, com o objetivo de conhecer melhor a sua concepção
para, em seguida, levantar os problemas que dela decorrem.
46. Sobre esse termo, é especialmente interessante a reflexão de Günther Anders no ensaio Sur la honte
prométhéenne”, § 7, in L’Obsolescen de l’homme, pp. 62-68.
33
O ponto de partida da argumentação de Roberto Marchesini é a crítica ao que
denomina de “paradigma da incompletude humana” que, para ele, estaria na origem da
dicotomia natureza/cultura.
Com efeito, segundo Marchesini:
“o paradigma que tornou possível esta fratura entre
tudo aquilo que chamamos «natureza» e tudo aquilo a que atribuímos o título de «cultura» se
baseia num tema simples e direto, vem a ser que o homem, como espécie é, do ponto de vista
biológico, um ser incompleto”.
47
(p. 9)
48
Ele aponta duas importantes conseqüências filosóficas decorrentes desse
“paradigma da incompletude biológica do homem”
, a saber:
a) que não se pode denotar, compreender, explicar a complexidade da
antroposfera, ou seja, o articulado fluxo de expressões humanas,
partindo de uma investigação biológica do homem; b) que a biologia
descritiva da espécie Homo sapiens não é prescritiva sobre o
comportamento do homem, ou seja, que o ser humano não sendo
completamente determinado por sua natureza biológica, é na
realidade livre na busca da justa (boa) conduta.
49
(Ibidem.)
Embora o próprio Marchesini não o faça, pode-se reduzir a) e b) a um
resultado, o de que, neste contexto, o aspecto biológico humano, por si só, é insuficiente
para explicar a complexidade do homem e inadequado para prescrever sua conduta.
50
47. No original: “Il paradigma che ha reso possibile questa frattura fra tutto ciò che chiamiamo «natura» e
tutto ciò a cui tributiamo il titolo di «cultura» si basa su un assunto semplice e diretto, ovvero che l’uomo,
como specie, sia da un punto di vista biologico un essere incompleto.” (op. cit. p. 9)
48. Cabe esclarecer que somente o original das citações do texto de Marchesini foi incluído, pelo fato de
ser, de todos os textos estrangeiros citados, o de mais difícil acesso; oferecendo, assim, ao leitor a
possibilidade de ter maior proximidade com o pensamento do autor. Mas, fazer o mesmo com todos os
demais trechos citados, o que é o correto, aumentaria consideravelmente o tamanho, já excessivo da tese.
49. No original: a) che non si possa denotare, comprendere, spiegare la complessità dell’antroposfera,
ossia l’articolato flusso di espressioni umane, partendo da una indagine biologica dell’uomo; b) che la
biologia descrittiva della specie Homo sapiens non sia prescrittiva sul comportamento dell’uomo, ossia
che l’essere umano, non essendo completamente determinato dalla sua natura bilogica, sia in realtà libero
nella ricerca della giusta condotta.” (Ibidem.)
50. Aspecto que faz lembrar a famosa interdição humeana que será discutida no Capítulo 2.
34
Marchesini é crítico desta abordagem e isso fica claro quando, ao longo de sua
exposição, ele apresenta seus objetivos, cabendo citar ao menos três deles:
1.
demonstrar como o conceito que temos de natureza humana é
profundamente errado e como o paradigma da incompletude pré-
requisitiva, longe de poder explicar a complexidade humana, não é
filho de uma idéia fixista acerca da natureza biológica do homem, mas
também não está em condições de explicar os feedback das aquisições
tecnológicas sobre o substrato orgânico do homem.
51
(p. 10)
2. superar a pretensão humanística
52
do homem como universo
isolado, não só como centro epistemológico e ético, mas também
como sujeito auto-referido e totalmente impermeável à contaminação
exterior.
53
(p. 12)
3. mover uma profunda crítica à idéia de que a cultura seja um
processo privado e autárquico que concerne à nossa espécie e,
sobretudo, que seja capaz de separar e não de conjugar no seu
processo aquisitivo ou de desenvolvimento o tema da alteridade.
54
(pp.
66-67)
Para bem compreender a proposta de Marchesini, é necessário reter esses três
aspectos que ele pretende contestar, vale frisar: 1. O equivocado conceito de “natureza
humana”, com base no paradigma da incompletude, por implicar uma concepção fixista
do homem, que ele recusa; 2. O pretenso isolamento do homem em relação a outros
51. No original: dimostrare come il concetto che abbiamo di natura umana sia profundamente errato e
come il paradigma dell’incompletezza prerequisitiva, lungi dal poter spiegare la complessità umana, non
solo sia figlio di un’idea fissista circa la natura biologica dell’uomo, mas altre non sia in grado di
spiegare i feedback delle acquisizioni tecnologiche sul sostrato organico dell’uomo.” (Ibidem. p. 10)
52. O que Marchesini denominou de antropocentrismo ontológico.
53. No original: “superare la pretesa umanistica dell’uomo come universo isolato, non solo come centro
epistemologico ed etico, bensì como soggetto autoreferito e totalmente impermeabile alla contaminazione
esterna.” (Ibidem. p. 12)
54. No original: “muovere una profonda critica all’idea che la cultura sia un processo privato e autarchico
che riguarda la nostra specie e soprattutto che sia capace di separare e non di coniugare nel suo processo
acquisitivo o di sviluppo il soggetto dall’alterità.” (Ibidem. pp. 66-67)
35
seres (vivos e máquinas), pretensão que ele pejorativamente chamará de purismo e 3. A
errônea concepção de cultura como um processo exclusivo
55
da espécie humana.
Além disso, Marchesini pretende também evitar o risco de se
“considerar a natureza
em sentido reducionista e mesmo supor uma correlação estreita entre âmbito descritivo e âmbito
prescritivo, quer dizer, pensar que do repertório das características da natureza humana possam
decorrer os valores que informam o comportamento.”
56
(p. 10)
Pois, segundo ele, essa concepção reducionista da ontologia humana é ainda mais
perigosa, uma vez que pode sugerir
“que seja suficiente um catálogo denotativo (descritivo,
interpretativo e explicativo) das qualidades biológicas do homem para determinar as linhas
sobre as quais [seja possível] instruir a conduta humana.”
57
(Ibidem.)
Em suma, pode-se dizer que Marchesini pretende combater o paradigma da
incompletude biológica do homem, pois, no seu entender, ela conduz ao fixismo, ao
purismo, ao exclusivismo e ao reducionismo. Mas, ainda assim, Marchesini admite que
“o paradigma da incompletude ab origine ou pré-requisitiva, embora não verídico, é de fato
muito mais apropriado para explicar a antroposfera do que o determinismo biológico”.
58
(Ibidem.)
Ele também reconhece que
“a resposta oferecida pelo paradigma da incompletude tem
um valor próprio porque sublinha que uma abordagem instrucionista
59
determinante biológica
55. Exclusivo no sentido literal de excluir as demais formas de vida e mesmo os diversos artefatos com os
quais o homem interage.
56. No original: “considerare la natura in senso riduzionistico e quindi ipotizzare una correlazione stretta
tra ambito descrittivo e ambito prescrittivo, ovvero ritenere che dal repertorio delle caratteristiche della
natura umana possano discendere i valori che informano il comportamento.” (Ibidem. cit. 10) Aqui, de
novo, Hume.
57. No original: “che sia sufficiente un catalogo denotativo (descrittivo, interpretativo ed esplicativo)
delle qualità biologiche dell’uomo per individuare le linee su cui informare la condotta umana.” (Ibidem)
58. No original: “Il paradigma dell’incompletezza ab origine, o prerequisitiva, benché non veritiero, è
infatti molto più appropriato a spiegare l’antroposfera rispetto al determinismo biologico”. (Ibidem.)
59. Cabe esclarecer que: “O modelo instrucionista parte (...) do pressuposto de poder explicar um sistema
complexo através da auto-referencialidade, ou seja, do conteúdo informativo implícito (instrução) o qual,
transmite uma rede causal algorítmica, logo, de natureza determinística, realiza características
morfológicas e funcionais do próprio sistema.” (Ibidem. pp. 88-89)
36
= expressão cultural não é adequada para dar conta da variedade da proposição humana nos
diversos ramos culturais e na complexidade expressiva.”
60
(Ibidem. pp. 10-11)
Em outras palavras, a constituição biológica do homem jamais poderia explicar a
inumerável diversidade cultural que compõe a experiência humana ao longo de sua
história e nos diferentes pontos do globo. Talvez, por isso, como forma de buscar
compreender a “peculiaridade do homem”, ele admita que:
“A idéia separativa do par
natureza-cultura precisa diferenciar [tanto] quanto possível as duas componentes, (...) e
simplificar (...) as (...) qualidades da natureza e da cultura para evitar toda contaminação, para
poder distinguir melhor os dois interlocutores da ontologia humana.”
61
(Ibidem. p. 11)
Ou seja, tratar-se-ia de um recurso (quase) “didático”, mas sem correspondência
na realidade, onde as duas esferas seriam praticamente concêntricas. Por falar em
centro, cabe agora destacar outro tema que Marchesini coloca como alvo de suas
críticas; vem a ser, o antropocentrismo ontológico que, num certo sentido, ficou
subentendido em suas críticas ao purismo e ao exclusivismo.
Marchesini critica o
antropocentrismo ontológico
por situar
“na cultura humanística a
sua máxima expressão
[enquanto ele]
identifica no pós-humanismo contemporâneo o germe de
uma profunda reconsideração dos débitos referenciais contraídos pelo homem com a
alteridade”
62
.
(p. 12)
É importante notar que ele distingue entre humanismo e antropocentrismo,
sobretudo porque o primeiro ultrapassa o “isolacionismo ontológico”, no qual o
segundo se detém. Desse modo, a crítica ao antropocentrismo feita pelo pós-humanismo
60. No original: “la risposta offerta dal paradigma dell’incompletezza ha un valore proprio perché (...)
sottolinea che un approccio istruzionista – determinante biologica = espressione culturale non è adatto a
dare conto della varietà della proposizione umana nei diversi stipici culturali e nella complessità
espressiva.” (Ibidem. pp. 10-11)
61. No original: “L’idea separativa della coppia natura-cultura ha bisogno di differenziare per quanto
possibilie le due componenti (...) [e] semplificare (...) le qualità della natura e della cultura per evitare
ogni contaminazione, per poter connotare meglio i due interlocutori dell’ontologia umana”. (Ibidem. p.
11)
62. No original: “nella cultura umanistica la sua massima espressione e individuando nel postumanesimo
contemporaneo il germe di una profonda riconsiderazione dei debiti referenziali contratti dall’uomo con
l’alterità.” (Ibidem. p. 12)
37
não implica uma visão anti-humanista, mas se deve à incapacidade daquele de
compreender a aceleração dos processos de “contaminação” resultantes do
desenvolvimento tecnológico da segunda metade do século XX
(pp. 12-13),
que
modificaram profundamente a relação do homem com a realidade externa,
aproximando-o dela e permitindo “pontos híbridos” com a alteridade
63
.
Por esse motivo, Marchesini entende que a concepção isolacionista e universalista
cedeu lugar às gicas conjugativas e pluralistas, a primeira coaduna-se com o
antropocentrismo e o humanismo tradicional e as últimas abrem caminho à visão pós-
humanista. Nessa linha, ele critica também a estreita visão humanista, visto que
“Enquanto a moldura humanística considera o homem um ser incompleto, mas acabado (...)
[chegando] a considerar tudo aquilo que não é humano uma coisa e não um partner –, para o
pós-humanismo o homem é simplesmente um ser transicional heteroreferido (...) [e] plural
(...)”
64
.
(Ibidem. pp. 13-14)
Segundo Marchesini, trata-se de
“uma pluralidade dos projetos conjugativos (...) hoje
definimos [como] antroposfera, onde figuram não somente os homens, mas também outros
partner – primeiro entre todos os animais e os instrumentos – que, como veremos, estão
intervindo de modo nada passivo no complexo ontológico do homem.”
65
(Ibidem. p. 14)
Com base em tudo o que se disse até aqui, é possível, afinal, indicar a tese
defendida por Marchesini, a saber:
que o homem é um verdadeiro milagre biológico, que, portanto, não
nada a invejar aos outros seres vivos, possuindo um potencial
cognitivo inicial - [tanto] na aprendizagem como na heurística –
63. Essa posição endossa, sem qualquer restrição, a criação de quimeras a partir do gene humano. Tal
questão será oportunamente comentada.
64. No original: “Mentre la cornice umanistica ritiene l’uomo un essere incompleto ma compiuto (...)
considerare tutto c che non è umano una cosa e non un partner –, per il postumanesimo l’uomo è
semplicemente un essere transizionale eteroriferito, (...) plurale (...)”. (Ibidem. pp. 13-14)
65. No original: “Una pluralità di progetti coniugativi (...) che oggi definiamo antroposfera, dove
compiono non solo gli uomini ma anche altri partner primi fra tutti gli animali e gli strumenti che,
come vendremo, sono intervenuti in modo tutt’altro che passivo nel complesso ontologico dell’uomo.”
(Ibidem. p. 14)
38
ímpar no mundo animal, uma bagagem de padrões inatos entre os
mais complexos e articulados, um organismo que, seja de um ponto de
vista performativo seja do ponto de vista da longevidade, [é] sem
dúvida competitivo em relação aos outros animais. E é justamente
essa excelência biológica que permite ao homem realizar o complexo
epigenético
66
que chamamos cultura. (...) Numa perspectiva
conjugativa, liberada do fardo da incompletude, toda cultura é
resultado de um diferente percurso hibridativo com a alteridade.
67
(Ibidem. pp. 14-15)
Embora considere que não se possa explicar a emergência da cultura pela
“incompletude” biológica do homem, Marchesini reconhece que
“A idéia [de] que o
homem é um ser imperfeito que se completa através da cultura é seguramente um dos marcos da
tradição ocidental.”
68
(Ibidem. p. 15)
Essa mesma tradição tem outro marco, correlato ao anterior, para explicar o
surgimento da técnica. Segundo o qual
«a técnica nasceu não como expressão do espírito
humano, mas como remédio à sua insuficiência biológica»
e mais,
«o homem, pela carência de
sua herança instintual, pode viver somente graças à sua ação, que rapidamente conduz a estes
procedimentos técnicos que recortam, no enigma do mundo, um mundo para o homem».
69
(p. 16)
66. “Adj., Geol., diz-se dos depósitos minerais que se formam depois da rocha onde ocorrem; formado
posteriormente.” (Fonte: http://www.priberam.pt/dlpo/definir_resultados.aspx)
67. No original: “che l’uomo è un vero e proprio miracolo biologico, che quindi non ha nulla da invidiare
agli altri esseri viventi, possedendo un potenziale cognitivo di partenza – nell’apprendimento come
nell’euristica che non ha pari nel mondo animale, un corredo di pattern innati tra i più complessi e
articolati, un organismo che sia da un punto di vista performativo sia dal punto di vista della lunghezza
della vita è senza dubbio competitivo rispetto agli altri animali. Ed è proprio questa eccellenza biologica
che permette all’uomo di realizzare quel complesso epigenetico che chiamiamo cultura (...) In una
prospettiva coniugativa, liberata dal fardello dell’incompletezza, ogni cultura è l’esito di un diverso
percorso ibridativo con l’alterità.” (pp. 14-15)
68. No original: “L’idea che l’uomo sia un essere imperfetto che si completa attraverso la cultura è
sicuramente uno dei capisaldi della tradizione occidentale.”(Ibidem. p 15)
69. No original: “la tecnica è nata non come espressione dello spirito umano, ma come rimedio alla sua
insufficienza biológica e, ancora, l’uomo, per la carenza della sua dotazione istintuale, può vivere solo
grazie alla sua azzione, che da subito approda a quelle procedure tecniche che ritagliano, nell’enigma del
mondo, un mondo per l’uomo.” (Ibidem. p. 16)
39
Assim, conforme essa concepção, devido a sua “inferioridade biológica”, expressa
por sua debilidade física,
«o homem sem a técnica não teria sobrevivido».
70
(Ibidem.)
São tais pressupostos e conclusões que Marchesini pretende recusar, ao defender que:
não é arriscado falar de um acesso pós-humanístico, ou seja, de um
processo de superação não do paradigma antropocêntrico e,
portanto, de um absoluto ético e epistêmico dos aparatos vocacionais
do homem - mas de uma idéia de humanidade bem estruturada sobre
um modelo e definitiva nos seus caracteres mas, sobretudo, invasiva.
Segundo o modelo pós-humanístico, é a alteridade a ‘constituir’ a
estrutura do homem, o seu estilo de vida, as suas realizações. É
através da hibridação que se constrói o não equilíbrio cultural a
abertura do sistema - que consente em levar à superfície as mais
autênticas realizações expressivas do homem. Em outras palavras, a
humanidade ‘apurada’ de o-humano, se constrói através do
abandono da solidão e o prazer da conexão com o outro, o diverso,
capaz de trazer novos estados de não–equilíbrio e de reforçar, por
conseguinte, a pulsão conjugativa do homem com o mundo.
71
(Ibidem.
p. 70)
Expresso dessa maneira, o ponto de vista pós-humanista se apresenta como uma
alternativa bastante fecunda e promissora, sobretudo porque, para Marchesini, graças a ele:
Começa a tomar forma um novo modo de conceber a subjetividade,
baseado não mais sobre a consecução de uma forma perfeita,
70. No original: “l’uomo senza la tecnica non sarebbe sopravvissuto”. (Ibidem.)
71. No original: “non è azzardato parlare di un accesso postumanistico, ossia di un processo di
superamento non solo del paradigma antropocentrico e quindi di un’assolutezza etica ed epistemica
degli apparati vocazionali dell’uomo ma altresì di un’idea di umanità ben strutturata su un modello e
definitiva nei suoi caratteri, ma soprattutto pervasiva. Secondo il modello postumanistico, è l’alterità a
perfondere la struttura dell’uomo, il suo stile di vita, le sue prestazioni. È attraverso l’ibridazione che si
costruisce quel non-equilibrio culturale l’apertura del sistema che consente di portare in superficie le
più autentiche prestazioni espressive dell’uomo. In altre parole, l’umanità trasuda di non-umano, si
construisce attraverso l’abbandono della solitudine e il piacere della connessione com l’altro, il diverso,
capace di apportare nuovi stati di non-equilibrio e di rafforzare perciò la pulsione coniugativa dell’uomo
con il mondo.” (Ibidem. p. 70)
40
absoluta e desejável para todos os homens, nem sobre um processo
separativo e autárquico (autoreferencial) da ontogênese, e muito
menos sobre a estabilidade (identidade = idêntico), singularidade
(identidade = indivíduo), pureza (identidade = não contaminação). A
subjetividade começa a jogar-se na promiscuidade ontológica, onde a
hibridação e a contaminação com [a] realidade não-humana (animais
ou máquinas) não representam mais ameaça à definição identitária,
mas, antes, torna-se a expressão mais autêntica da subjetividade.
72
(Ibidem. p. 70)
Logo, ultrapassando todo fixismo, purismo, exclusivismo e reducionismo, o
processo
“hibridativo pode assim ir além disseminando as suas tentações e abrindo uma nova
estação de consciência, que [para Marchesini,] não é errado chamar de pós-humanística.”
73
(Ibidem. p.71)
A defesa que Marchesini faz da perspectiva pós-humanista explica o ponto de
partida de sua exposição, cabe lembrar, a crítica à separação entre natureza e cultura,
visto que:
Uma das dicotomias mais enraizadas na tradição ocidental é aquela
que põe como termos opostos e auto-excludentes os âmbitos de
natureza e cultura, uma antinomia que (...) contribuiu para dar vida a
outras dicotomias como natural x artificial, instinto x racional, etc.
[e] que se põe hoje como barreira ontológica entre entes diferentes
72. No original: “Inizia a prendere forma un nuovo modo di concepire la soggettività, basato non più sul
raggiungimento di una forma perfetta, assoluta e desirabile per tutti gli uomini, né su un processo
separativo e autarchico (autoreferenziale) dell’ontogenesi, e tanto meno sulla stabilità (identità =
identico), singolarità (identità = individuo), purezza (identità = incontaminazione). La soggettività inizia a
giocarsi nella promiscuità ontologica, dove l’ibridazione e la contaminazione con realtà non-umane
(animali o macchiniche) non rappresentano più minace alla definizione identitaria, bensì divengono
l’espressione più autentica della soggettività.” (Ibidem.)
73. No original: “(...) ibridativo può così tracimare seminando le sue tentazioni e aprendo una nuova
stagione di consapevolezza, che non è errato chiamare postumanistica”. (Ibidem. p. 71)
41
(por exemplo, entre homem e máquina ou mesmo entre homem e
animal) e que vêm diversamente aceitas (...)
74
.
(Ibidem. p. 77)
Isso não significa, porém, que Marchesini ignore as evidentes diferenças que
existem entre máquinas, homens e animais. Ao contrário, sobre os dois últimos, ele as
enumera dizendo que o homem pode ser identificado ao que ele chama de “sistema
aberto”, enquanto os animais constituiriam “sistemas fechados” caracterizados pela: a)
baixa dependência do par parental, b) pequeno ou inexistente período de socialização e
c) breve fase na qual é possível modificar certos padrões de comportamento. Sendo um
sistema aberto, o homem apresenta características exatamente opostas às supracitadas.
(Ibidem. p. 107)
Todavia,
“A especificidade do homem reside, de fato, na capacidade de hibridar-se com
o mundo externo e, sobretudo, com os animais e esta pulsão, esta dependência do externo,
remete os seres humanos dos sistemas a um novo estado de não-equilíbrio permanente.”
75
(Ibidem. p. 110)
Essa “capacidade de hibridar-se”, sobretudo com os animais, produz o que
Marchesini denomina de teriomorfismo, vem a ser, a assimilação da “forma” de ser
animal pelo homem. Razão pela qual ele afirma que:
“O teriomorfo constitui’ as
expressões do homem, informa, ou seja, dá forma às mais complexas proposições conjeturais da
nossa espécie; a presença do teriomorfo é tão profunda que não é possível arrancar-lhe do
homem sem inevitavelmente privá-lo do caráter de humanidade.”
76
(Ibidem. p. 111)
74. No original: “Una delle dicotomie più radicate nella tradizione occidentale è quella che pone come
termini oppositivi e autoescludenti gli ambiti di natura e cutura, un’antinomia che (...) abbia contribuito a
dar vita ad altre dicotomie come naturale vs artificiale, instintivo vs razionale e via dicendo che si
pongono oggi come barriere ontologiche tra enti differenti (per esempio tra uomo e macchina oppure tra
uomo e animale) e che vengono diversamente accettate (...).” (Ibidem. p. 77)
75. No original: “La specializzazione dell’uomo sta infatti nella capacità di ibridarsi com il mondo
esterno e soprattutto com gli animali e questa pulsione, questa dipendenza dall’esterno, rende gli esseri
umani dei sistemi in un nuovo stato di non-equlibrio permanente.” (Ibidem.p. 110)
76. No original: “Il teriomorfo perfonde le espressioni dell’uomo, informa, ossia dà forma alle più
complesse proposizioni congetturali della nostra specie; la presenza del teriomorfo è così profonda che
non è possibile spogliarne l’uomo senza inevitabilmente privarlo del caracttere di umanità.” (Ibidem. p.
111)
42
Por conseguinte, como não podia deixar de ser, a definição de homem de
Marchesini leva em conta essa peculiaridade humana. Em suas palavras:
“O homem é o
animal que aprende até com as outras espécies e que utiliza as outras espécies como
prolongamentos, sejam esses perceptivos, cognitivos, taxionômicos, estéticos, operativos,
funcionais etc.”
77
(Ibidem. p. 113)
Nessa perspectiva, o homem não pode ser compreendido em separado,
desvinculado de sua relação com a alteridade animal. Sobretudo porque,
“A parceria com
o animal permitiu à nossa espécie alargar o próprio domínio comportamental, mas também
mudou profundamente a identidade do homem enquanto tal.”
78
(Ibidem. p. 114)
Marchesini com excelentes olhos essa relação entre homem e animais e,
àqueles que possam criticá-la por não compreendê-la, ele esclarece que:
Construir um sistema híbrido significa transformar a inveja ou o
medo da performance animal em um objetivo alcançável através de
um projeto. A idéia de inscrivibilidade não humana no catálogo do
homem é fundamental para a sua sucessiva inscrição, seja essa
tecnológica, zootécnica ou biotecnológica.
79
(Ibidem. p. 116)
Seguindo esse pensamento, Marchesini defende a realização do que denomina de
zoomimese que, segundo ele,
“não consiste no adquirir a alteridade teriomórfica, através da
simples imitação/incorporação”
80
(Ibidem. p. 121),
mas, no aproximar homens e animais, com
base em quatro componentes zoomiméticos, a saber: a) o confronto: na relação entre
homem e animal b) o diálogo: pela complementaridade entre a performance humana e a
77. No original: “L’uomo è quell’animale che impara anche dalle altre specie e che utilizza le altre specie
come prolungamenti, siano essi percettivi, cognitivi, tassonomici, estetici, operativi, funzionali e via
dicendo.” (Ibidem. p 113)
78. No original: “La partnership com l’animale ha permesso alla nostra specie di alargare il proprio
dominio comportamentale, mas ha altresì profondamente mutato l’identità dell’uomo in quanto tale.”
(Ibidem. p. 114)
79. No original: “Costruire un sistema ibrido significa trasformare l’invidia o la paura della performance
animale in un obiettivo raggiungibile attraverso un progetto. L’idea di iscrivibilità di una prestazione non-
umana nel catalogi dell’uomo è fondamentale per la sua successiva iscrizione, sia essa tecnologica,
zootecnica o biotecnologica.” (Ibidem. p. 116)
80. No original: “non consiste soltanto nell’acquisire l’alterità teriomorfica, attraverso la semplice
imitazione/incorporazione (...)”. (Ibidem. p. 121)
43
animal; c) parceria: pela sinergia entre o repertório performativo humano e o animal e d)
hibridação: pela fusão de uma performatividade humana com uma não-humana.
Em suas palavras,
“A zoomimese opera uma verdadeira revolução no homem porque
muda o conceito de adequação da função - ou seja, porque põe continuamente em discussão a
idéia de competência - e particularmente modifica a percepção de ‘otimalidade’.”
81
(
Ibidem.
p.
122)
Os quatro componentes mencionados são relevantes nesse processo,
“Mas é,
sobretudo, na hibridização que se modifica a percepção performativa através da emergência
inesperada de uma função não prevista e não previsível no repertório das atitudes humanas.”
82
(Ibidem.)
Em outros termos, é a hibridização que melhor possibilita a abertura à dimensão
pós-humana, uma vez que:
O pós-humanismo se funda sobre uma idéia de hospitalidade:
hospedar e fazer-se hospedar, ou seja, tornar-se, no momento mesmo
em que se se abre ao mundo. Nesta concessão interativa e de
princípio do ser inevitavelmente aumenta a vizinhança com a
realidade externa. O animal não é mais o estrangeiro, o espelho
escuro a afastar ou, eventualmente, purificar, mas torna-se parceiro
promotor da identidade.
83
(
Ibidem.
p. 139)
Contudo, Marchesini não ignora as dificuldades inerentes a tal processo e, por
isso, se pergunta:
“podemos, enquanto homens, e, portanto, filogeneticamente determinados,
renunciar ao vínculo antropocêntrico?”
Ele reconhece que não. Sendo assim, mais adiante
81. No original: “La zoomimesi attua una vera e propria rivoluzione nell’uomo perché sposta il concetto
di adeguatezza della funzione ossia perché rimette continuamente in discussione l’idea di competenza –
e in particolar modo modifica la percezione di ottimalità.”( Ibidem. p. 122)
82. No original: “Ma è soprattutto nell’ibridazione che si modifica la percezione performativa attraverso
l’emergenza inattesa di una funzione non prevista e non prevedibile nel repertorio delle attitudini
dell’uomo.” (Ibidem.)
83. No original: “Il postumanesimo si fonda su un’idea di ospitalità: ospitare e farsi ospitare, ossia
divenire nel momento stesso in cui ci si apre al mondo. In questa concezione interattiva e di soglia
dell’essere inevitabilmente aumenta la vicinanzaa com la realtà esterna. L’animale non è plo straniero,
lo specchio oscuro da allontare o, eventualmente, da epurare, mas diventa il partner promotore di
identità.” (Ibidem. p. 139)
44
torna a questionar:
“como é possível realizar a crítica ao antropocentrismo? [Para ele,] É neste
ponto que se insere o processo de contaminação, aquele que [no seu entender] podemos definir
[como] «hibridação epistemológica».”
84
(
Ibidem.
p. 155)
A hibridação epistemológica, segundo Marchesini, decorre do fato de que
O homem, mais que todos os outros animais, é um fruto híbrido, ou
seja, o resultado de uma contaminação que permite produzir
conjecturas sobre o mundo, com base [em] diversos focos, tais como:
sistemas teóricos, instrumentos de pesquisa, tradições consolidadas,
aprendizado individual.
85
(
Ibidem.
p. 156)
Assim, o homem pode construir sua relação (epistêmica) com o mundo com o
recurso a várias formas do que Marchesini denomina de “alteridade”. Além disso,
“Sem
os nossos instrumentos tecnológicos, e teóricos nos sentimos (...) insuficientes e nus.”
86
(Ibidem.)
Para explicitar essa estreita relação do homem com tais instrumentos, ele afirma:
A hibridação com a alteridade não-humana, por exemplo, permite
uma passagem de ‘limiar’ que, para simplificar ao máximo, podemos
definir assim: o olho do homem tem um domínio, o sistema ótico da
máquina revela a parcialidade do domínio do olho humano, a
hibridação constrói um domínio alargado ‘a cavalo’
87
entre estes dois
domínios, esta posição permite uma redefinição das performances
visuais, ou seja, torna percorrível a revolução da tecnologia ótica,
obviamente em suas diversas passagens.
88
(
Ibidem.
p. 157)
84. No original: “possiamo noi, in quanto uomini, e quindi filogeneticamene determinati, rinunciare al vincolo
antropocentrico? (...) come si è potuta realizzare la critica all’antropocentrismo? È a questo punto che si inserisce il
processo di contaminazione, quello che potremmo definire «hibridazione epistemologica».” (Ibidem. p. 155)
85. No original: “L’uomo, assai più di ogni altro animale, è un frutto ibrido, ossia il risultato di una contaminazione
che consente di produrre congetture sul mondo sulla base di diverse focali, quali: sistemi teorici, strumenti
d’indagine, tradizioni consolidate, apprendimento individuale.” (Ibidem. p. 156)
86. No original: “Senza i nostri strumenti tecnologici e teorici ci sentiamo (...) insufficienti e nudi.” (Ibidem.)
87. A expressão italiana “a cavallo”, sem equivalente em português, sugere a idéia de superposição, desse modo, uma
tradução possível aqui seria: “um domínio alargado por superposição”.
88. No original: “L’ibridazione com l’alterità non-umana, per esempio, consente un passaggio di soglia che, per
semplificare al massimo, potremmo così definire: l’occhio dell’uomo ha un dominio, il sistema ottico della macchina
svela la parzialità del dominio dell’occhio umano, l’ibridazione construisce un dominio allargato a cavallo tra questi
due domini, questa posizione permette una redefinizione delle performance visive ossia rende percorribile la
revoluzione della tecnologia ottica, ovviamente nei suoi diversi passaggi.” (Ibidem. p. 157)
45
Marchesini enfatiza ainda que
“A hibridação, referida quer ao suporte tecnológico,
quer à parceria com o animal, é o arquétipo deste processo, o primeiro passo que permite ao
homem formular teses contra-intuitivas isto é, de ir além do limiar das explicações auto-
referidas, ou seja, baseadas a priori (...).”
89
(
Ibidem.
p. 157)
Nesse sentido, tanto a hibridação homem/animal, quanto a hibridação
homem/tecnologia amplia a própria percepção do homem e sua relação com o mundo.
Porém, entre esses dois tipos de hibridação mencionados acima, cabe destacar aquela
referida ao “suporte tecnológico”, tendo em vista que, segundo Marchesini:
Toda aplicação tecnológica, mas também toda aquisição científica,
desloca o limiar das representações, isto é, oferece uma nova grade
de leitura aos processos externos. (...) Podemos, então, falar de uma
transformação no modo de ser homens interconexa à parceria
tecnológica adquirida. De fato, toda tecnologia é uma
psicotecnologia, como sublinhado por Kerckhove
(1991, trad. it. p. 23)
porque modifica profundamente a performatividade conjectural do
homem.
90
(
Ibidem.
pp. 158-159. Grifos nossos.)
Isso significa que, toda parceria do homem com a tecnologia altera a própria psique
humana. Mas, indo além de Kerckhove, Marchesini defende ainda que, dada a situação
atual,
“todas as tecnologias devem ser consideradas biotecnologias
91
, porque retroagem sobre
89. No original: “L’ibridazione riferita vuoi al supporto tecnologico, vuoi alla partnership com l’animale
è l’archetipo di questo processo, il primo passo che consente all’uomo di formulare tesi controintuitive
cioè di andare oltre la soglia delle spiegazioni autoreferite, ossia basate su a priori (...).”(Ibidem.)
90. No original: “Ogni applicazione tecnologica, ma altresì ogni acquisizione scientifica, sposta la soglia
delle rappresentazioni, offre cioè una nuova griglia di lettura ai processi esterni. (...) Possianmo pertanto
parlare di una trasformazione nel modo di essere uomini interconessa alle partnership tecnologiche
acquisite. Di fatto ogni tecnologia è una psicotecnologia, come sottolineato da de Kerckhove
(1991, trad.
it. p. 23), perché modifica profondamente la perfomatività congetturale dell’uomo.” (Ibidem. pp. 158-159).
91. Isso mostra que Marchesini emprega o termo “biotecnologia” num sentido diferente do estabelecido
anteriormente.
46
[o] sistema biológico através [de] uma multiformidade de eventos (a percepção performativa, a
co-evolução corpo instrumento, a emergência de novas funções).”
92
(Ibidem. p. 163)
Assim, levando em conta toda essa interação (ação e retroação) entre homens e as
biotecnologias, Marchesini tece uma série de críticas, sobretudo a todos que insistem em
Permanecer ancorados numa visão preconcebida da pureza, da
autonomia do homem, confiando ao saber e às aplicações
tecnológicas as funções de domínio sobre o mundo,
[pois, segundo ele,
isso]
significa expor a humanidade presente e as futuras gerações a
um risco incalculável. (...) A idéia de pureza é de fato uma aberração
da mente que conduz inevitavelmente à recusa de toda possibilidade
dialética e à tentativa de substituir a realidade externa com projeções
e antropomorfismos. A aceleração tecnológica inaugurada pela
biotecnologia e pela revolução informática da segunda metade do
século XX, se desenvolvida no interior de uma moldura essencialista,
arrisca-se a transformar-se de grande oportunidade em uma grave
ameaça para o futuro. (...) Como sublinharam Ernst Myr
(1982)
e
Daniel Dennett
(1995)
, Darwin rompeu com a pretensão essencialista
reunindo o homem à realidade externa, dando um novo estatuto
ontológico ao mutante.
93
(
Ibidem.
p 180)
A menção à mutação e sua crítica ao purismo e ao que ele chama de
‘essencialismo’ - que remete à crítica ao fixismo, mencionada anteriormente -, estão na
92. No original: “tutte le tecnologie devono essere considerate biotecnologie, perché retroagiscono sul
sistema biologico attraverso una multimormità di eventi (la percezione performativa, la coevoluzione
corpo-strumento, l’emergenza di nuove funzioni). (Ibidem. p. 163)
93. No original: “Rimanere ancorati a una visione informata della purezza, dell’autonomia dell’uomo,
affidando al sapere e alle applicazioni tecnologice la funzione di dominio sul modo, significa esporre
l’umanità presente e le future generazioni a un rischio incalcolabile. (...) L’idea di purezza è infatti
un’aberrazione della mente che porta inevitabilmente al rifiuto di ogi possibilità dialettica e al tentativo di
sostituire la realtà esterna con proiezioni e antropormorfismi. L’accelerazione tecnologica inaugurata
dalla biotecnologia e dalla rivoluzione informatica della seconda metà del XX secolo, se sviluppata
all’interno di una cornice essenzialista, rischia di trasformarsi da grande opportunità in una grave
minaccia per il futuro. (...) Come hanno sottolineato Ernst Mayr (1982) e Daniel Dennett (1995), Darwin
ha spezzato la pretensa essenzialista ricongiungendo l’uomo alla realtà esterna e dando un nuovo statuto
ontologico al mutante.” (Ibidem. p. 180)
47
base de sua defesa do pós-humanismo. Dado que, para ele,
“O pensamento pós-humano
não é, portanto, o resultado de uma transição ontológica em direção a um estado hiper-
humanístico, mas antes a renúncia operada hic et nunc ao essencialismo e a uma visão
homologada do homem.”
94
(
Ibidem.
p. 183)
Essa visão encontra partidários, sobretudo, entre aqueles que, combatendo todo e
qualquer “essencialismo”, vêm realizando uma série de práticas na tentativa de
transformar temporária ou definitivamente o próprio corpo. Com relação a isso,
Marchesini nos diz que:
Para Miglietti [as] «práticas de modificação extrema do corpo,
tatuagem, piercing, branding, escarificações, mutilações são [os]
sinais mais evidentes de uma metamorfose que tende a redesenhar os
corpos do novo milênio»
(p. 75)
. Isto é, delineia-se «um corpo que
‘transborda’ [excede] em outro de si, uma hibridação entre humano,
animal, vegetal, mitologia, ficção científica, rituais, iniciações, um
corpo como con-fusão, de mundos, animais/vegetais; de gêneros,
feminino/masculino; de elementos, orgânico/inorgânico»
(p.76)
.
95
(
Ibidem.
p. 185)
E mesmo admitindo que tais processos, especialmente no final do século XX,
tornaram-se bastante freqüentes e mesmo exagerados”, Marchesini enfatiza que tudo
isso que se verificou
na segunda metade do culo XX não é nada mais que uma
aceleração dos processos de hibridação humano/não-humano que
94. No original: “Il pensiero post-human non è perciò l’esito di una transizione ontologica verso uno stato
iperumanistico, bensì la rinuncia operata hic et nunc all’essenzialismo e a una visione omologata
dell’uomo.” (Ibidem. p. 183)
95. No original: “Per la Miglietti «pratiche di modificazione estrema del corpo, tatuaggio, piercing,
branding, scarificazioni, mutilazioni sono segni più evidenti di una metamorfosi che tende a ridisegnare i
corpi del nuovo millenio» (p. 75). Si delinea cioè «un corpo che sconfina in altro da sé, una ibridazione
tra umano, animale, vegetale, mitologia, fantascienza, rituali, iniziazioni, un corpo come con-fusione, di
mondi, animale/vegetale; di generi, femminile/maschile; di elementi, organico/inorganico» (p.76).”
(Ibidem. p. 185)
48
caracterizam a história do homem.
[A única diferença é que, agora,]
A
imperfeição torna-se mais profunda e confirma o próprio devir na
história anagráfica
96
do indivíduo, que aceita e promove a própria
contínua transição, ou seja, o estado de metamorfoses permanente.
97
(
Ibidem.
p. 190)
Com base nesses procedimentos, sempre mais abundantes e espantosos,
Marchesini considera que, progressivamente,
“as mutações, as hibridações, as
infecções/invasões à kosmópolis humana perdem o seu caráter de perigo e tornam-se
oportunidade”.
98
99
(
Ibidem.
p. 192)
Nesse contexto, o conceito de indivíduo cede lugar ao inusitado conceito de
multivíduo e, segundo ele,
“O multivíduo pós-humanístico tem um sentido no seu devir e o
seu devir é uma seqüência de ocasionais convergências com outras linhas do devir.”
100
(
Ibidem.
)
Tal conceito está em consonância com outro recém estabelecido, o de sujeito pós-
humanista que, segundo Marchesini, Katherine Hailes
(1999, p. 3)
definiu como sendo
“«um amálgama, uma coleção de componentes heterogêneos, uma entidade material-
informativa cujos limites sofrem contínuas construções e reconstruções».”
101
(
Ibidem.
p. 195)
Precisamente, graças a essas contínuas transformações
“Assistimos ao emergir de uma
fenética
102
que continuamente vem renegociada na relação entre sujeito e mundo, onde de uma
96. Termo italiano, sem correspondente em português, que significa: “relativo a anagrafe”, cujo
significado é “Registro in cui sono iscritti i residenti di un comune con l'indicazione del loro stato civile”.
97. No original: “nella seconda metà del xx secolo non è altro che una accelerazione dei processi di
ibridazione umano-non-umano che caractterizzano la storia dell’uomo. L’imperfezione si fa più profonda
e sancisce il proprio divenire nella storia anagrafica dell’individuo, che accetta e promuove la propria
continua transizione ovverosia lo stato di metamorfosi permanente.” (Ibidem. p. 190)
98. No original: “le mutazioni, le ibridazioni, le infezioni/invasioni alla kosmopolis umana perdono il loro
carattere di pericolo e divengono opportunità”. (Ibidem.p. 192)
99. Poderíamos aqui, indagar: oportunidade de quê? A resposta de Marchesini, certamente seria: a de
realizar mais e mais hibridações e de eliminar definitivamente a “aberração” do purismo.
100. No original: “Il multividuo postumanistico ha un senso nel suo divenire e il suo divenire è una
sequenza di occasionali convergenze con altre linee del divenire.” (Ibidem.)
101. No original: «un amalgama, una collezione di componenti eterogenee, un’entità materiale-
informativa i cui confini subiscono continue costruzioni e ricostruzioni».” (Ibidem. p. 195)
102. Área da Biologia que agrupa espécies com base na similaridade fenotípica, utilizando todas as
características marcantes. Embora seja útil na classificação filogênica, a fenética não demonstra tanta
utilidade nos níveis de classificação mais detalhados, tal como o gênero, que necessita de métodos mais
apurados. No nível de espécie torna-se mais difícil ainda classificar utilizando a fenética, devido à
ocorrência de grande semelhança fenotipical entre seres do mesmo sexo, mesmo de espécies diferentes.
49
liberdade preservacionista que tende a defender o corpo da invasão externa se passa a uma
liberdade modificacionista -, isto é, que tende a sancionar o direito à metamorfose.”
103
(Ibidem.)
Contudo, Marchesini aponta, afinal, um problema no coração dessa aparente “ilha
de benesses”, tal como descrita por ele até o momento. que
Pela primeira vez se se
conta da ‘invasividade’ da tecnologia, teme-se que a máquina possa superar o homem. Muitos
autores incitam sem meios termos a não esquecer como as máquinas estão se desenvolvendo de
modo tão vertiginoso, ao ponto que em breve poder-se-á considerar obsoleto o papel do
homem.”
104
(Ibidem. p. 196)
Esse receio de o homem ser superado pela máquina, de fato, não é novo na
História
105
. Nova é a possibilidade de que, efetivamente, a máquina se torne superior ao
homem, inclusive superando sua inteligência
106
, ao ponto de torná-lo, em todos os
aspectos, obsoleto. Ainda assim, Marchesini sustenta que
O pós-humanismo se fez retirando-se a camisa de força do platonismo
e revelando a importância de tornar-se mutante e híbrido; é uma
interpretação pós-humana não como separada e antinômica com
relação à tradição humanística, mas porque fundada sobre uma
Fonte: http://pt.wikipedia.org/wiki/Fen%C3%A9tica em 22/02/08
103. No original: “Assistiamo all’emergere di una fenetica che continuamente viene rinegoziata nel
rapporto tra soggeto e mondo, ove da una libertàe preservazionista - tesa a difendere il corpo
dall’invasione esterna si passa a una libertà modificazionista - tesa cioè a sancire il diritto alla
metamorfosi.” (Ibidem. p. 195)
104. No original: “Per la prima volta ci si accorge dell’invasività della tecnologia, si teme che la machina
possa superare l’uomo. Molti autori si sollecitano senza mezzi termini a non dimenticare come le machine
si stiano sviluppando in modo vertiginoso, cosicc in breve potrebbero considerare obsoleto il ruolo
dell’uomo.” (Ibidem. p. 196)
105. Cabe lembrar aqui do movimento conhecido como Luddismo que insurgiu contra as profundas
alterações trazidas pela chamada "Revolução Industrial". Nesse período, as reclamações contra as
máquinas, que substituíram a mão-de-obra humana, eram freqüentes. Mas, em 1811, na Inglaterra, tal
movimento estourou, ganhando uma dimensão significativa. O termo deriva de Ned Ludd, um dos líderes
do movimento. Os “luditas” despertaram muita atenção por seus atos: invadiam fábricas e destruíam
máquinas que, para eles, retiravam seus trabalhos, por serem mais eficientes que os homens. Para além do
sentido histórico, este termo apresenta também um aspecto político, utilizado para designar todos aqueles
que se opõem ao desenvolvimento tecnológico ou industrial. Tais pessoas são também chamadas de
"luddites" ou "ludditas" e o movimento social é hoje conhecido como o “neo-luddismo”. Um exemplo de
um autor que se identifica com esta designação é o Kirkpatrick Sale, que escreveu o livro Rebels Against
the Future.
Fonte: http://pt.wikipedia.org/wiki/Ludismo em 05/03/08
106. Por mais irreal que tal afirmação possa parecer, é preciso lembrar que, embora isso não seja ainda
tecnicamente possível, há um ramo de pesquisa em plena expansão denominada Inteligência Artificial.
50
ontologia não mais dividida entre humano e não-humano
.
107
(Ibidem. p.
198)
Ele aposta, de fato, em todo esse processo, que segundo pensa seria
“o ato final de
um percurso evolutivo em cujo ápice estaria o assim chamado Homo ciberneticus.
108
(Ibidem)
Curiosamente, porém, ele entende que
“A exaltação do tecnológico e do virtual como
oposição ao natural e orgânico
109
(...)- se apresenta como simples imagem invertida da
exaltação da natureza incontaminada e do neoludismo de Jeremy Rifkin
(1980)
110
. [Pois,] Ambos
são formas de purismo, freqüentemente guiadas com igual ardor maniqueísta.”
111
(Ibidem)
Ao passo que o pós-humanismo, tal como ele defende, visa de fato:
criar um continuum entre o homem e os seus extremos referenciais,
ou seja, a máquina e o animal (...). Cyborgs e teriomorfos são apenas
aparentemente dois pólos antitéticos do pós-humanismo, [pois] na
realidade esses representam o futuro de uma geração plurifenética
que hoje parece a única a demonstrar vitalidade e criatividade.
112
(Ibidem. p. 199)
O resultado de todo esse processo serão multividuos totalmente
“privados de uma
identidade estável”
113
(Ibidem.)
que não poderão mais receber o título de “ser” muito
menos de “humano”. Marchesini celebra, assim, o fato de que
“Estamos caminhando em
107. No original: “Il postumanesimo lo ha fatto proprio, togliendosi la camicia de forza del platonismo e
scoprendo l’importanza del divenire mutante e ibrido; è un’interpretazione postumana non in quanto
separata e antinomica rispetto alla tradizione umanistica, ma perché fondata su un’ontologia non più
divisa in umano e non-umano.” (Marchesini. p. 198)
108. No original: “... l’atto finalle di un percorso evolutivo al cui apice starebbe il cosidetto Homo
ciberneticus..” (Ibidem)
109. “Teresa Macrì (1996) fala de «corpo pós-orgânico»” (Ibidem). Tema que não será tratado aqui.
110. J. Rifkin & T. Howard. Entropy: A New World View. New York: Viking Press, 1980.
111. No original: “L’esaltazione del tecnologico e del virtuale da contrapporre al naturale e all’organico –
Teresa Macrì (1996) parla de «corpo postorganico» - si presenta come semplice specularità oppositiva
dell’esaltazione della natura incontaminata e del neoluddismo di Jeremy Rifkin (1980). Sono entrambe
forme di purismo, spesso condotte con uguale ardore manicheo.” (Ibidem)
112. No original: “creare un continuum tra l’uomo e i suoi estremi referenziali, ossia la macchina e
l’animale (...). Cyborg e teriomorfi sono solo apparentemente due poli antitetici del postumanesimo, in
realtà essi rappresentano il futuro di una generazione plurifenetica che oggie sembra l’unica a dimostrare
vitalità e creatività.” (Ibidem. p. 199)
113. No original: “privi di una identità stabile”. (Ibidem.)
51
direção a uma realidade caracterizada pelas contaminações e pela perda de identidade.”
114
(Ibidem. p. 205)
Neste sentido,
“A idéia humanística de um homem «total», invadido pela realidade
externa e medidas das coisas, demonstra-se totalmente superada.
115
(Ibidem)
Superada também será a própria condição humana, uma vez que,
Alguns estudiosos, e os denominados teóricos da inteligência artificial
forte - entre os quais o decano Marvin Minsky estimam que
aumentando a complexidade das máquinas, será possível no futuro
realizar não sistemas cibernéticos em condições de simular o
pensamento humano, mas autênticas mentes artificias. Com o
desenvolvimento dos computadores paralelos ou dos sistemas
informáticos orgânicos, os chamados «bioputer», muito mais
eficientes no que concerne à capacidade de memória, poder-se-á de
fato superar aquele limiar crítico que permite o emergir de uma
consciência.
116
(Ibidem)
Desse modo, em breve, será possível criar artificialmente uma consciência. E,
quanto ao corpo, autores como Kerckhove
(1994, p. 58)
consideram que ele “deve
mudar”
117
(Ibidem.p. 219),
uma vez que inúmeras pessoas, entre as quais o artista Stelarc
consideram-no
114. No original: “Stiamo andando verso una realtà caractterizzata dalle contaminazioni e dalla perdita
dell’identità.” (Ibidem. p. 205)
115. No original: “L’idea umanistica di un uomo «cifra», pervasivo nella realtà esterna e misura delle
cose, si è dimostrata totalmente superata.” (Ibidem.)
116. No original: “Alcuni studiosi, i cosiddetti teorici dell’inteligenza artificiale forte - tra cui il decano
Marvin Minsky – ritengono che aumentando la complessità delle macchine sarà possibile in futuro
realizzare non solo sistemi cibernetici in grado di simulare il pensiero umano, ma delle autentiche menti
artificiali. Con lo sviluppo dei computer paralleli o dei sistemi informatici organici, i cosiddetti
«bioputer», molto più efficienti per quanto concerne le capacità di memoria, si potrebbe infatti superare
quella soglia critica che permette l’emergere di una coscienza.” (Ibidem. p. 205)
117. No original: “deve cambiare”. (Ibidem. p. 219)
52
mal equipado, incompetente, inadaptado
118
aos desafios postos pela
tecnosfera.
[Seguindo tais pressupostos,]
A tecnologia, de fato,
precisa invadir o recesso do homem, estender os seus sentidos através
de mirabolantes interfaces, amplificar a memória da mente, mas
encontra a resistência de um suporte que evoluiu a si mesmo
reforçando os sistemas de defesa e de expulsão dos xenobiontes.
Trata-se de um corpo xenófobo que rejeita transplantes, coloca em
ação reações alérgicas e inflamatórias (...) anulando a possibilidade
de substituição, mudança, reprogramação, revisão das partes.
119
(Ibidem. pp. 219-220)
Marchesini lembra que a cibernética
120
criada por Norbert Wiener tornou possível
uma ampla interface entre máquinas e organismos – de um lado
contribuindo para enriquecer as máquinas de mecanismos internos
121
em condições de torná-las contexto-referidas, ou seja, mecanicamente
inteligentes, de outro, propondo uma interpretação mecanomorfa
mesmo do organismo que renova o velho paradigma cartesiano. (...)
Mas será sem dúvida o desenvolvimento da genética e da informática
que dará o empurrão final à idéia de corpo sujeito, ao ponto tal que
hoje é opinião difundida que o «soma» não seja outra coisa que uma
118. No capítulo final, essa visão será confrontada com a forte crítica de nther Anders em
L’Obsolescence de l’homme.
119. No original: “mal equipaggiato, incompetente, inadatto alle sfide poste dalla tecnosfera. La
tecnologia infatti ha bisogno di invadere i recessi dell’uomo, di estendere i suoi sensi attraverso
mirabolanti interface, di amplificare la memoria della mente, ma trova le resistenze di un supporto che si
è evolutto proprio rafforzando i sistemi di difesa e di espulsione degli xenobionti. Si trata di un corpo
xenofobo che rigettta trapianti, mette in atto reazioni allergiche e inflammatorie (...) annullando la
possibilità di sostituzione, modifica, riprogettazone, revisione delle parti.” (Ibidem. pp. 219-220)
120. “Estudo dos mecanismos de comunicação e de controlo nas máquinas e nos seres vivos, do modo
como se organizam, regulam, reproduzem, evoluem e aprendem.”
Fonte: http://www.priberam.pt/dlpo/definir_resultados.aspx
121. Em italiano o termo empregado foi “servomeccanismi” que significa: “Sistema di controllo a
retroazione automatico destinato a controllare la posizione o la velocità o l'accelerazione che p
assumere un organo meccanico” e não possui termo equivalente em português. Fonte:
http://it.wiktionary.org/wiki/servomeccanismo
53
prótese e que a relação mente-corpo seja para todos os efeitos uma
relação de interface.
122
(Ibidem. pp. 221-222)
A seguir, ele aponta duas importantes vantagens dessa concepção do corpo como
máquina, a saber, as possibilidades de: a) reprogramá-lo e modificá-lo no sentido de
alcançar metas performativas cada vez mais exigentes, b) exercer um maior controle,
otimizando a relação entre as funções realizadas e a energia despendida para realizá-las.
(Ibidem. p. 222)
Ele próprio admite que, nessa concepção, o corpo em nada se distingue de
um eletrodoméstico que o homem utiliza conforme a sua necessidade.
(Ibidem. p. 223)
Diversas concepções relativas ao corpo surgidas no final do século XX
convergem na direção da “reprogramação somática”, tanto no sentido mais modesto de
uma alteração com fins
“corretivos, quanto no sentido mais ambicioso de reconfigurá-lo do
ponto de vista estrutural e funcional”.
(Ibidem. p. 227)
Marchesini cita Giuseppe Longo
(2001, p. 12)
para quem
:
o homem contemporâneo vive uma «profunda dilaceração: por um
lado gostaria de melhorar’ o mundo e o homem no mundo (...) por
outro, conservar o patrimônio hereditário dos sentimentos, emoções e
capacidades que o homem, como é hoje, guarda em si e que sente
profundamente conatural [a si]».
123
(Ibidem. p. 228)
Adotando a primeira alternativa, Marchesini considera que para se distanciar do
que ele chama (pejorativamente) de
“preservacionismo humanístico da integridade do
corpo”,
existem três principais abordagens que ele classifica da seguinte forma:
122. No original: “un’ampia interfaccia tra macchine e organismi da una parte contribuendo ad
arricchire le macchine de servomeccanismi in grado di renderle contestoriferite, ossia mecanicamente
intelligenti, dall’altra avviando un’interpretazione meccanomorfa dell’organismo stesso che rinverdisce il
vecchio paradigma cartesiano. (...) Ma sarà senza dubbio lo sviluppo della genetica e dell’informatica a
dare la spallata finale all’idea di corpo soggetto, al punto tale che oggie è opinione difusa che il soma non
sia altro che una protesi e che la relazione mente-corpo sia a tutti gli effetti un raporto di interfaccia.” (pp.
221-222)
123. No original: “l’uomo contemporaneo vive una «profonda lacerazione: da una parte si vorrebbe
‘migliorare’ il mondo e l’uomo nel mondo (...) dall’altra si vorrebbe conservare il patrimonio ereditario di
sentimenti, emozioni e capacità che l’uomo com’è oggi custodisce in e che sente profondamente
connaturato».” (Ibidem. p. 228)
54
a) abordagem trans-humanística: segundo a qual o corpo pode ser desmontado e
reprogramado para facilitar a substituição de alguma parte por um aparato tecnológico,
partilhada por Moravec, More e Chislenko;
b) abordagem hiper-humanística: segundo a qual o corpo pode ser reforçado por meio
de artefatos que aumentam sua capacidade perceptiva e operativa, tornando-se também
mais controlável, partilhada por Lévy, de Kerckhove e Stelarc e
c) abordagem pós-humanística: segundo a qual toda pretensão de posse do corpo está
definitivamente superada. Trata-se, pois, da livre conjugação do corpo ao mundo, que é
partilhada por Haraway, Kelly e Deitch.
124
125
(Ibidem. p. 228)
Assim, o corpo perde todas suas prerrogativas. A tecnologia, definitivamente,
“rouba a cena”: não cabe a ela ser projetada para adequar-se ao corpo, mas ao corpo
se “ajustar” a ela e às máquinas, acolhendo a alteridade em geral, para não se decretar
dispensável.
Conseqüentemente, o corpo reduzido à mera coisa, simples artefato entre outros,
não tarda em se converter em mercadoria. Legitima-se, assim não a reificação, mas,
por conseguinte, a comercialização do corpo ou de partes dele (órgãos, genes, etc.).
Entretanto, Marchesini considera que
A tendência a reprojetar o corpo é, portanto, referível àquela
abertura do sistema que parece caracterizar a nossa espécie,
associável, de resto, a outras tendências hibridativas: por exemplo, o
desejo de se aventurar em dimensões desconhecidas, a capacidade de
colocar em discussão o próprio registro perceptivo e interpretativo, a
124. E, embora ele não se inclua, cabe, aqui, acrescentar o próprio Marchesini.
125. Ivan Domingues considera tal divisão excessiva e desnecessária, uma vez que, segundo pensa, pós-
humanismo e transhumanismo seriam a mesma coisa; ao passo que hiperhumanismo parece intensificar as
características do humano, logo não se oporia ao humano, mas ao transhumano ou ao pós-humano.
55
adoção de estratégias comportamentais de outras espécies
.
126
(Ibidem.
p. 233)
Ele se pergunta, então, por que não empregar o
maquinomorfismo e o teriomorfismo
como matriz para novos projetos de cirurgia plástica propriamente hibridativa”
(Ibidem. p. 235),
para obter o que ele chama de beleza híbrida.
127
(Ibidem)
Algo que, por mais bizarro que pareça, encontra quem faça. Tanto que
Marchesini relata uma série de experiências de hibridação homem/animal
128
e
homem/máquina, entre as quais as de Stelarc que - ao explorar a liberdade de modificar
e
transformar o próprio corpo
- tem ainda mais aguçada a sua percepção de obsolescência
do corpo.
Ao estabelecer uma comparação entre o corpo “natural” e o corpo tecnológico
(Ibidem)
, Marchesini se depara com as diversas vantagens do corpo tecnológico.
(Ibidem.
p. 237)
Entretanto, ele reconhece que o fator econômico interfere como um elemento
determinante dessa
“liberdade de modificar e transformar o corpo”
(Ibidem)
.
Ou seja, nem
todos são igualmente livres para transformar o próprio corpo no ‘corpo de seus
sonhos’
129
.
Marchesini comenta que vários autores pós-humanistas previram que todos esses
elementos seriam aspectos prováveis da sociedade futura, projetando, assim, um mundo
esvaziado de humanidade, avaliação que, em sua opinião, é um tanto precoce.
(Ibidem)
126. No original: “La tendenza a riprogettare il corpo è pertanto riconducibile a quell’apertura del sistema
che sembra caratterizzare la nostra specie, associabile peraltro ad altre tendenze ibridative: per esempio il
desiderio di intraprendere avventure nelle dimensioni incognite, la capacità di mettere in discussione il
proprio registro percettivo e intrepretativo, l’adozione di strategie comportamentali di altre specie.” (p.
233)
127. No original: machinomorfismo o il teriomorfismo come matrice per nuovi progetti di chirurgia
plastica propriamente ibridativa” (Ibidem. p. 235) – bellezze ibride (Ibidem).
128. Especialmente os adeptos de uma prática conhecida como body modification, entre os quais
destacam-se dois nomes: Erik Sprague, também conhecido como homem lagarto e Dennis Avner, ou
homem gato. Suas imagens podem ser vistas, juntamente com as de outros seres “híbridos”, em inúmeros
sites, entre os quais: http://blogdodito.com.br/?tag=piercing
129. Nesse contexto, pode-se pensar no número incontável de mulheres que, se tivessem condições,
fariam cirurgias plásticas, colocariam botox ou silicone, ou fariam uma lipoescultura. Processos que não
são, propriamente, o que Marchesini defende como hibridação, mas estão dentro do processo mais geral
de transformação e reconstrução do próprio corpo acima mencionado.
56
Mas, segundo ele, a origem de todo esse processo de transformação do próprio
corpo coincide com o surgimento da body art, nascida nos anos 60
130
que, portanto, seria
a responsável por abrir caminho ao pós-humano.
(Ibidem. pp. 238-239)
Pois, graças a ela,
aos poucos começou a ganhar forma
uma nova visão de corpo, a do corpo invadido, transformado,
devastado
131
, modificado em busca de uma autenticidade não mais
escrava da pureza, mas antes fruto da contaminação. (...) O corpo que
Stelarc imagina é integralmente casado com a tecnologia (...) ele
parece interessado em explorar o corpo na tentativa de anular toda
possível resistência à fusão com a tecnologia.
132
(Ibidem. p. 249)
Marchesini retoma as palavras de Mark Dery
(1996, trad. it. p. 177)
para quem:
“«no
sinergismo cibernético de Stelarc, a distinção entre controlador e controlado é anulada: o
homem vem estendido de seu sistema à alta tecnologia, mas representa antes uma extensão
desta última.».”
133
(Ibidem. p. 249)
Outro fato importante, segundo Marchesini, ocorreu em 1992, quando Jeffey
Deitch realizou uma exposição intitulada Pós-humano, a propósito da qual ele disse:
“«no futuro, os artistas não estarão empenhados apenas em redefinir a arte. No futuro pós-
humano os artistas poderão ser co-envolvidos na redefinição da própria existência».”
134
(Ibidem.)
Ao que tudo indica, Stelarc é um artista que já assume essa tarefa.
130. Com grande repercussão, sobretudo, na década de 90, quando se destacou o nome da artista francesa
Orlan, cujo trabalho identificado como A Arte Carnal é definido como performance cirúrgica de uma
estética da transformação”. Para maiores informações recomenda-se o seu site http://www.orlan.net/
131. É precisamente essa a impressão que se tem ao ver as modificações extremas realizadas em diversas
partes do corpo. Por exemplo, através do bizarro site:
http://wiki.bmezine.com/index.php/Category:Extreme_Modifications
132. No original: una nuova visione del corpo, quella del corpo invaso, transformato, devastato,
modificato alla ricerca di una autenticità non più ancella della purezza, bensì frutto della contaminazione.
(...) Il corpo che Stelarc immagina è integralmente sposato con la tecnologia (...) egli sembra interessato a
esplorare il corpo nel tentativo di annullare ogni possibile resilienza alla fusione con la tecnologia.”
(Ibidem. p. 249)
133. No original: “«nel sinergismo cibernetico di Stelarc, la distinzione tra controllore e controllato è
sfumata: ‘uomo viene esteso dal suo sistema ad alta tecnologia, ma rappresenta anche un’estensione di
quest’ultimo.»” (Ibidem. p. 249)
134. No original: “«nel futuro, gli artisti non saranno impegnati solo a ridefinire l’arte. Nel futuro
postumano gli artisti potranno essere coinvolti nella ridefinizione dell’esistenza stessa».” (Ibidem. p. 241)
57
Além de tudo o que foi comentado, cabe ainda mencionar que, devido aos
crescentes avanços das ciências informáticas, surge uma nova dimensão denominada
infosfera, na qual o corpo se mostra particularmente obsoleto, por ser o domínio da
realidade virtual.
135
Para finalizar, cabe frisar que o traço mais marcante dos autores pós-humanistas é a
defesa da “abertura à conjugação com a alteridade”
(Ibidem. p. 244),
seja ela entendida como
outros seres vivos, em especial os animais (teriomorfismo) ou como não vivos, as máquinas
(maquinomorfismo). E que, segundo eles, a tecnosfera constitui a dimensão própria da
humanidade.
(Ibidem. p. 245)
Eles propõem, afinal, a analogia entre o corpo humano, a máquina e o automaton
(Ibidem. p. 269)
, algo que estava presente na famosa metáfora cartesiana do corpo
máquina e na concepção antropológica de La Mettrie.
(Ibidem. p. 274)
Tudo isso leva Marchesini a concluir que o homem aspira a libertar-se do vínculo
biológico por meio de máquinas
(Ibidem. p. 293)
e, talvez, fazer de si mesmo um Automa.
136
Retomando Bernaldino Baldi, Marchesini ressalta a neutralidade da máquina com
relação ao bem e ao mal.
(Ibidem.)
E, mais adiante, comentando a competição entre o
cérebro humano e a máquina, adverte para o fato de que, muito em breve, a capacidade
intelectual humana poderá ser superada
(Ibidem. p. 302)
Ele prenuncia que o próximo passo será a criação de um robô projetado por um
robô. Ou seja, será o “nascimento” do filho do filho do homem
(Ibidem. p. 322)
Feito que
será superado quando se alcançar a criação de uma inteligência sem mente e a
produção de conhecimento sem consciência
(Ibidem. p. 329)
.
Algo que (contrariamente ao
que Marchesini pensa) será, com toda certeza, o verdadeiro epílogo da história humana.
135. Ao que se refere David Le Breton em seu notável texto “Adeus ao corpo”, apresentado no Ciclo de
Conferências O homem-máquina, organizado por Artepensamento em 2001, cujos textos foram reunidos
por Adauto Novaes e publicado no volume intitulado O homem-máquina A ciência manipula o corpo,
pp. 123-137.
136. “O automa é uma marionete sem fios, um organismo sem órgãos, um ser animado sem necessidades
e finalidades próprias dos seres viventes.” (Marchesini. p. 293)
58
Francis Fukuyama, em seu livro intitulado Nosso futuro pós-humano
(2003)
,
aborda tal questão numa perspectiva menos entusiasta. No capítulo 6, “Por que
deveríamos nos inquietar”, ele afirma que, à proposta pós-humanista, se podem apontar
três tipos de objeções: 1. de natureza religiosa, 2. de aspecto utilitário e 3. filosóficas. A
objeção religiosa se fundamenta na concepção da criação do homem à imagem e
semelhança de Deus, à qual não vamos aqui nos ater
137
.
No caso do aspecto utilitário, Fukuyama aponta o cálculo baseado no “custo e
benefício”, uma objeção bastante frágil, pois, pode acontecer que o custo (financeiro)
seja compensado por altos lucros e o “custo” humano implicado o interesse a quem
possa se beneficiar direta ou indiretamente de tais lucros. Ao que se soma a denúncia de
Rifkin, a propósito da primeira terapia genética realizada num ser humano, segundo a
qual
“poucos biólogos (...) registraram sua opinião sobre o fato de que o experimento foi
conduzido mais por ambição pessoal e por ganhos comerciais do que por amor à ciência.”
(Rifkin, 1998. p. 213)
Donde, pode-se pensar que tal objeção não teria muita eficácia se os
envolvidos fossem, “coincidentemente”, os beneficiados, ainda que isso significasse o
prejuízo de muitos.
Quanto às objeções de ordem filosóficas, Fukuyama aponta três aspectos
138
relevantes, referentes aos direitos humanos, à natureza humana e à dignidade humana
139
.
Certamente Marchesini, desqualificaria tal objeção, pois seus três aspectos se ancoram
num dos alvos de suas críticas apontadas acima, sobretudo, ao antropocentrismo, ao
essencialismo e ao exclusivismo. Não obstante, são os pontos que merecem maior
137. Hans Jonas tem um argumento semelhante e oportunamente ele será mais bem examinado.
138. Dos quais, no último capítulo, apenas o terceiro será retomado diretamente. O segundo deles será
incorporado à discussão sobre o conceito de homem e o primeiro dará lugar à questão da
institucionalização jurídica da aplicação biotecnológica em seres humanos.
139. É importante mencionar, aqui, o texto de Nick Bostrom: “In defense of Posthuman Dignity”, que cita
criticamente a posição de Fukuyama e de outros que censuram o projeto s-humano, defendendo a
necessidade de se expandir o conceito de dignidade para abarcar esses “seres híbridos”, segundo ele, para
proveito da própria humanidade. No capítulo final, retomaremos o argumento de Bostrom, para
confrontar com a posição extraída a partir da formulação jonassiana.
59
atenção. Por isso, ao final, eles serão retomados para um exame mais consistente,
quando, após a exposição da concepção jonassiana, essa proposta puder ser reavaliada à
luz da perspectiva ética da responsabilidade.
Veremos, a seguir, a possibilidade de aplicação das biotecnologias para retomar o
(quase) esquecido projeto eugenista.
1.3 - As biotecnologias e o retorno da eugenia
No interior do projeto de Marchesini, aloja-se ainda um problema tão complexo
quanto aquele colocado pelo pós-humano e tão polêmico quanto a possibilidade da
clonagem reprodutiva. Conquistada a possibilidade de se manipular a estrutura genética
do ser humano, ganha novo fôlego uma prática largamente difundida entre o final do
século XIX e primeiras décadas do culo XX - abandonada após os abusos nazistas -,
que toma para si o propósito de realizar o “melhoramento”
140
da espécie humana, a
chamada eugenia
.
Assim, pensar o uso das biotecnologias, com vistas à eugenia, se impõe como um
inadiável desafio ético, que não se trata mais apenas da intervenção humana na estrutura
genética de outras espécies, mas em sua própria para fins, no mínimo, questionáveis.
Aqui, é preciso lembrar que, ao longo da história da humanidade, foram
registrados diferentes povos, entre os quais gregos, celtas, e até indígenas sul-
americanos (conhecidos como fueginos
141
), que tinham o hábito de eliminar as pessoas
que nasciam ou se tornavam deficientes ou muito doentes ou apresentavam algum tipo
de má-formação.
140. Não é a proposta de “melhorar” a espécie humana que é motivo de repreensão, se assim fosse, todo o
esforço de aprimoramento humano realizado através da cultura também o seria. Nesse pormenor não
sejamos rousseaunianos. Trata-se, porém, como veremos, das concepções que alimentaram a prática da
eugenia, com forte tendência ao preconceito sócio-racial e gritante intolerância com relação à diferença.
141. Habitantes da “Terra do Fogo” (em castelhano “Tierra del Fuego”). Um arquipélago na extremidade
sul da América do Sul, cujo território foi dividido entre a Argentina e o Chile, situado nos confins da
Patagônia.
60
Sobretudo entre os gregos, por exemplo, a prática conhecida como “exposição dos
recém-nascidos” era bastante comum conforme diversos testemunhos de figuras ilustres
da época entre os quais Plutarco, Platão e Aristóteles
142
.
Todavia, embora existisse tal prática e a palavra eugenia (εύγένεια) constasse do
antigo léxico grego, o termo significava para os falantes de então:
“bom nascimento,
nobreza de origem, // nobreza de sentimentos”
143
. Somente em 1865, graças a Francis
Galton (1822-1911), o termo foi definido como:
o estudo dos agentes sob o controle social
que podem melhorar ou empobrecer as qualidades raciais das futuras gerações seja física ou
mentalmente”,
sentido que norteou, entre o final do culo XIX e primeiras décadas do
século XX, pesquisas e programas de caráter eugênico em diferentes países do mundo.
Galton era primo de Charles Darwin
144
(1809-1882) que, em 1858, havia
publicado o seu mais famoso livro A Origem das Espécies.
Seguindo a concepção ali apresentada por Darwin, Galton propõe que
as forças cegas da seleção natural, como agente propulsor do
progresso, devem ser substituídas por uma seleção consciente e os
homens devem usar todos os conhecimentos adquiridos pelo estudo e
o processo da evolução nos tempos passados, a fim de promover o
progresso físico e moral no futuro.
145
A partir daí, a idéia ganhou força e se espalhou. No ano de 1908, surge em
Londres a "Eugenics Society" reconhecida como a primeira organização a defender
organizada e ostensivamente idéias eugênicas. Leonard Darwin (1850-1943) - militar,
engenheiro e oitavo dos dez filhos de Charles Darwin - era um de seus líderes.
142. Véronique Dasen, Dwarfs in ancient Egypt and Greece. Oxford: 1993.
Fonte: http://www.voicesfortoday.com/ajavon/philo/article-monstres.htm
143. Isidro Pereira. Dicionário Grego-Português e Português-Grego. p. 235.
144. Erasmus Darwin era avô de ambos, porém com esposas diferentes, Darwin descendeu da primeira,
por parte de pai, e Galton da segunda, por parte de mãe.
145. http://www.bioetica.ufrgs.br/eugenia.htm
61
Logo a seguir, inúmeras sociedades semelhantes surgem em diferentes países da
Europa entre eles: Alemanha, França, Dinamarca, Tchecoslováquia, Hungria, Áustria,
Bélgica, Suíça e União Soviética e da América, sobretudo, nos Estados Unidos,
Argentina, Peru e, até mesmo, no Brasil, tendo como precursora a Sociedade Paulista de
Eugenia, fundada em 1918.
Em 1929, no Rio de Janeiro, foi realizado o Congresso Brasileiro de
Eugenismo abordando, entre outros temas: "O Problema Eugênico da Migração". Logo
a seguir, foi publicado o Boletim de Eugenismo que propunha coibir todas as
imigrações não-brancas.
146
Durante algum tempo, em diferentes países, foram conduzidas políticas de
"higiene ou profilaxia social", visando impedir a procriação de pessoas portadoras de
doenças consideradas hereditárias e, até mesmo, eliminar os portadores de problemas
físicos ou mentais considerados mais graves.
Contudo, a eugenia conhece o seu mais escandaloso uso no programa levado a
cabo pelo regime nacional socialista de Adolf Hitler. Alguns autores, porém, em
especial Jiménez de Asúa consideram
“que as políticas alemã, italiana e espanhola nesta área
não eram eugenistas, mas sim "racismo"
147
; numa tentativa explícita de diferenciar as
práticas nazistas das eugenistas, alegando que as práticas de Hitler se inspiraram no
Ensaio sobre a desigualdade das raças humanas, publicado em 1854, pelo Conde de
Gobineau
148
, muito antes, portanto, de Galton e, mesmo, da divulgação das concepções
de Darwin.
149
146. Tais idéias, em voga à época no Brasil, podem ter inspirado o insólito O Presidente Negro de
Monteiro Lobato, publicado inicialmente como um folhetim no jornal A Manhã, em 1926.
147. http://www.bioetica.ufrgs.br/eugenia.htm.
148. Consta que o Conde de Gobineau esteve no Brasil, coletando dados.
149. Não obstante, classificar de “racismo”, não exclui a possibilidade de eugenia, uma vez que o intento
de Hitler era realizar a “purificação” da raça ariana. Ou seja, a alvo era a “raça”, mas o propósito era
eugenista.
62
Neste ensaio, Gobineau apresenta a sua tese da superioridade da "raça ariana",
que, posteriormente, será levada ao extremo pelos teóricos do nazismo Günther e
Rosenberg, entre os anos de 1920 a 1937. Além de Gobineau, outro autor alemão,
Gauch, defendia existir menos diferenças anatômicas e histológicas entre o homem e os
animais, que entre um nórdico (ariano) e as demais "raças".
Tais concepções, em 1935, acabaram se convertendo em objeto de legislação
através das “Leis de Nuremberg”, que proibiram o casamento e o contato sexual de
alemães com judeus, o casamento de pessoas com transtornos mentais, doenças
contagiosas ou hereditárias, exigindo um certificado de saúde, para oficializar os
casamentos. Mas, desde 1933, já haviam sido publicadas as leis que propunham a
esterilização de pessoas com problemas hereditários e a castração dos delinqüentes sexuais.
Com o advento da Grande Guerra, muitas outras práticas, ainda mais
questionáveis, para não dizer absurdas, foram realizadas pelos nazistas para garantir a
"
pureza e a supremacia da raça ariana
"
. Por esse motivo, após o término do conflito, o
tema da eugenia foi compulsoriamente abandonado e esquecido, para evitar qualquer
alusão ou comparação com as atrocidades nazistas.
Entretanto, hoje, setores da biotecnologia retomam alguns daqueles ideais, fazendo
reacender a discussão em torno da eugenia, sobre o que Rifkin faz uma grave advertência:
A possibilidade de programar mudanças genéticas na linha germinal
humana para dirigir o desenvolvimento evolutivo das gerações
futuras coloca a sociedade frente a uma era eugenética, cuja
conseqüência, seja para a biologia da nossa espécie seja para a
civilização, são largamente imprevisíveis e desconhecidas. agora,
biólogos moleculares, médicos e empresas farmacêuticas, sempre em
maior número estão dispostos a arriscar, convencidos do fato de que
controlar o destino da nossa evolução seja a próxima fronteira social
63
do gênero humano. Seus argumentos são expressos em termos de
saúde pessoal, escolha individual e responsabilidade
150
coletiva pelas
gerações futuras.
(Rifkin. pp. 215-216)
Rifkin quer alertar para o fato de que, embora a argumentação dos defensores do
uso biotecnológico para alcançar o “ideal” da eugenia, se ancorem na “melhor das
intenções”, as suas conseqüências não poderiam ser mais desastrosas, uma vez que
A segregação dos indivíduos com base no perfil genético representa
uma passagem fundamental no exercício do poder. Em uma sociedade
onde o indivíduo pode vir determinado pelo genótipo, o poder das
instituições torna-se absoluto. Ao mesmo tempo, a crescente
polarização da sociedade entre indivíduos e grupos geneticamente
«superiores» e geneticamente «inferiores» poderia criar uma nova e
potente dinâmica social. As famílias que podem permitir-se
programar características genéticas «superiores» em seus filhos no
momento da concepção podem assegurar às suas progênies uma
grande vantagem biológica, e então mesmo uma vantagem econômica
e social. O problema da estereotipização genética poderia levar a
emergente «subclasse genética» a crescentes protestos e ao
surgimento de um movimento mundial dos «direitos genéticos», se,
como é provável, um número sempre maior de vítimas da
discriminação genética se organizasse para afirmarem todos juntos o
seu direito a uma plena e livre participação no século da
biotecnologia.
(Rifkin. pp. 270-271)
Segundo Rifkin, apesar desses problemas, a eugenia encontra defensores que,
abertamente, expõem suas posições favoráveis a essa nova forma de tirania genética.
Pois,
150. Algo que, apesar do termo usado, como veremos na Parte II, não é compatível com a proposta de
Jonas.
64
Alguns engenheiros genéticos acreditam que a criação, no futuro, de
uma «genetocracia» seja inevitável. O biólogo molecular Lee Silver,
da Universidade de Princeton, escreve que num futuro não muito
distante, a sociedade será constituída por duas diferentes classes
biológicas, às quais ele se refere chamando-as de Gen Rich [Gene
Rico] e [Gene] Natural. O Gene Rico, que representa 10% da
população, compreende um grupo de pessoas enriquecidas com genes
sintéticos que são a cabeça da sociedade. (...) No centro dessa nova
aristocracia genética os cientistas Gene Rico, acrescidos de
especiais características genéticas que aumentam enormemente as
suas capacidades mentais, conferindo-lhe o poder de ditarem os
termos dos futuros passos na evolução da Terra.
(Rifkin. p. 271)
Essa nova aristocracia genética encontra no discurso de Lee Silver um fiel
apologista, que se serve de um argumento “decisivo” para angariar a simpatia,
sobretudo, do “típico” cidadão norte-americano, dado que
Silver reconhece que a crescente polarização da sociedade em
direção às classes Gen Rich e Natural poderia ser injusta, mas
acrescenta imediatamente que os filhos de pais ricos sempre tiveram
muito mais oportunidades e vantagens. «Qualquer um que reconheça
a pais abastados o direito de oferecer a seus filhos, por exemplo, a
possibilidade de freqüentar uma caríssima escola privada, não pode
considerar injusto o uso de tecnologia reprogenética», sustém Silver.
Como muitos de seus colegas, ele é um rigoroso defensor das novas
tecnologias genéticas. «Em uma sociedade que atribui à liberdade
humana o máximo valor», ele escreve, «é difícil encontrar alguma
base legítima para restringir o uso da reprogenética.»
(Rifkin. p. 272)
65
O fato de que, historicamente,
“os filhos de pais ricos sempre tiveram muito mais
oportunidades e vantagens”
não significa que, em algum momento, isso possa ser
considerado justo. Além disso, mesmo que se reconheça o direito de pais abastados
oferecerem
“a seus filhos, por exemplo, a possibilidade de freqüentar uma caríssima escola
privada”
, não significa que se aceite que somente eles tenham esse direito. Por isso, é
absurdo sustentar que quem reconhece tal direito (dos pais abastados)
“não pode
considerar injusto o uso de tecnologia reprogenética”,
porque a questão da justiça que se
pode aqui levantar, contra Silver, não é quanto ao fato de que eles possam, mas ao fato
de que só eles possam.
Ademais Silver ignora, ainda, que a “reprogenética” fere a liberdade antes de
realizá-la, dado que impõe um determinismo muito mais intransponível do que o sócio-
econômico: o determinismo genético que cria um abismo social e promove um elitismo
que é, em todos os casos, irreversível. Ou, poder-se-ia esperar que um novo “sistema de
cotas” venha amenizá-lo?
Embora com discursos diferentes, todos os defensores dessa “nova eugenia”,
sintomaticamente, buscam desvinculá-la ao máximo das concepções e práticas do
passado. Elaboram, assim, uma nova terminologia que pretende abordar a eugenia
segundo os efeitos visados
151
. Por isso, com freqüência, encontramos os termos:
“eugenia negativa” e “eugenia positiva”, citados já na Introdução.
152
Vários estudiosos do tema e demais interessados procuram apresentar suas
definições. Aqui, servirão de guia, precisamente, as definições apresentadas por Hans
Jonas em seu livro Técnica, Medicina e Ética
(1987)
153
]
, onde podemos ler uma
151. Assim, por exemplo, como acabamos de ver, Silver utiliza o termo reprogenética.
152. Busca-se estabelecer, ainda, outra modalidade, a chamada: eugenia liberal, que será abordada no
final do capítulo.
153. Technik, Medizin und Ethik (TME), obra em que o autor discute, no capítulo 8 intitulado: “Laßt uns
einen Menschen klonieren: Vor der Eugenik zur Gentechnologie” (pp.162-203), mais diretamente a
questão da eugenia, rapidamente sugerida em Das Prinzip Verantwortung (PV) [“Der Mensch als Objekt
66
definição geral da eugenia negativa ou preventiva, como
“um controle de emparceiramento
(acasalamento) [Paarungskontrolle] que tenta evitar a transmissão de genes patógenos ou
nocivos de qualquer outro modo, afastando seus portadores da reprodução.”
(TME. p. 172. TME
[te] p. 115)
154
Enquanto a eugenia positiva ou ativa consistiria na
“seleção genética humana
planificada com o objetivo de melhorar a espécie.”
(TME. p. 176. TME [te] p. 117)
Ou seja, em princípio, existiriam duas modalidades de eugenia
155
: a primeira,
herdeira daquela antiga prática grega, que visa excluir da atividade reprodutiva humana
todos os indivíduos que apresentem alguma patologia ou deformidade passível de
transmissão genética, visando a sua total extinção. Daí o seu caráter preventivo, ou
negativo, no sentido de não permitir que certos indivíduos deixem descendência. A
segunda, mais próxima do sentido de Galton, através dos recursos introduzidos pelas
biotecnologias, visa melhorar a espécie humana, promovendo o seu aperfeiçoamento
genético. Daí o seu caráter positivo, ou ativo, no sentido de intervir diretamente na
estrutura genética do indivíduo para aprimorar a estrutura genética de sua descendência.
Todavia, Jonas observa que, com o avanço das técnicas, a distância entre as duas
desaparece, a tal ponto que:
Um passo também insensível da estratégia hereditária defensiva à
melhorista é possível com o nascente diagnóstico pré-natal
156
der Technik” (pp. 47-53), sobretudo, Genetische Manipulation (pp. 52-53)]. Questão que será retomada
no capítulo 6, mais precisamente em 6.3.
154. O original alemão será abreviado TME e a tradução espanhola TME [te], sempre que citados juntos.
Mas quando houver apenas a menção ao TME, entenda-se aí a versão espanhola que foi a mais citada.
155. Na verdade, como se disse, tenta-se introduzir outra modalidade identificada à eugenia liberal.
156. Em seu livro, O futuro da natureza humana¸ Habermas faz uma avaliação semelhante, a essa aqui
expressa por Jonas, com relação ao DGPI (diagnóstico genético de pré-implantação) e à pesquisa em
células–tronco de embriões humanos que, embora extremamente úteis - o primeiro para a detecção prévia
de certas doenças ou más-formações de embriões, resultantes do processo de inseminação artificial, o que
pode levar à (discutível) eliminação dos embriões não sadios e o segundo, por possibilitar a reparação de
órgãos e tecidos doentes (mas, usando, para isso, futuros seres humanos em potencial como “material
biológico”) -, são vistos com certo receio, uma vez que, segundo pensa, eles “estimulam em grande escala
as atitudes que favorecem a passagem da eugenia negativa para a positiva.” (Op.cit. p. 130) Esse
argumento, conhecido como slippery slope, bastante recorrente na reflexão bioética, defende que “um ato
particular, aparentemente inocente, quando tomado de forma isolada, pode levar a um conjunto futuro de
67
(mediante aminiocentese e outros métodos). Com seu objetivo
declarado, a exclusão do embrião danificado, entra no terreno da
eugenia da compaixão preventiva. (...) um filtro pré-natal limitado a
(...) casos [considerados] graves segue claramente no campo da
“eugenia negativa”, que certamente não é sangrenta
157
. (...) Mas o
desejo paterno de ter uma descendência “perfeita” pode ir mais além
e estabelecer critérios mais ambiciosos para admitir a vida (por outro
lado também a escolha de sexo). Utilizado assim, o diagnóstico pré-
natal poderia contribuir para que a repugnância à morte do feto
siga diminuindo e se estenda como um costume ideologicamente
animado na sociedade (...) o objetivo da temerosa prevenção de um
mal maior se transformaria na insolente persecução do bem maior e
nos encontraríamos no meio do campo, tão objetável moral como
biologicamente, da eugenia positiva que, ademais, zomba dos limites
de nosso saber.
(TME. p. 175. TME [te] p. 117).
Jonas expõe assim, com toda clareza, a questão da sub-reptícia transposição da
eugenia negativa, em princípio justificável, para a positiva que, mais que “insolente”, pode
ser considerada fútil
158
, uma vez que não se destina a uma utilidade real, por exemplo, a
terapêutica: realizar uma reparação ou uma cura; do que resulta que ela é também
desnecessária, isto é, inteiramente prescindível e, ainda pior, extremamente perniciosa, por
seus efeitos psico-sociais previsíveis,
como os discutidos por Habermas,
e imprudente por
seus efeitos imprevisíveis.
eventos de crescente malefício.” Fonte: http://www.bioetica.ufrgs.br/slippery.htm - Nessa perspectiva,
pode-se considerar que, tanto o processo do diagnóstico genético de pré-implantação quanto a pesquisa
em células–tronco embrionárias, além de em si mesmos levantarem questões de ordem ética (muito
discutidas no texto habermasiano), têm como principal inconveniente o fato de poderem conduzir a uma
progressiva e imperceptível assimilação da eugenia positiva. Isso revela que o foco central do problema é,
justamente, a eugenia positiva. Razão pela qual, não nos ativemos aqui aos dois procedimentos, mas a
essa modalidade de eugenia e à questão do pós-humano, por representarem, por assim dizer, o arriscado
extremo ao qual a aplicação imprudente das biotecnologias em seres humanos pode nos conduzir.
157. No original, “die dann zwar nicht mehr unblutig ist.“ (TME. 175)
158. Termo forte empregado por Jonas para designar os motivos de certas ações nesse campo.
68
Contudo, para atenuar esse quadro, cunhou-se a expressão mencionada, eugenia
liberal que, de fato, não alude à outra modalidade de eugenia. Trata-se apenas de um ponto
de vista que, segundo Habermas
159
,
“não reconhece um limite entre intervenções terapêuticas e
de aperfeiçoamento, mas deixa às preferências individuais dos integrantes do mercado a escolha
dos objetivos relativos a intervenções que alteram características.”
(Op. cit. p. 27)
Os defensores da concepção liberal, no interior da qual examinariam também a
eugenia -, entre os quais Ronald Dworkin -, entendem que não cabe ao Estado interferir nas
questões concernentes à vida privada dos indivíduos, o que é, em última instância, o caso da
procriação.
O tema da eugenia liberal é discutido no capítulo 13 de seu livro A Virtude
Soberana, no qual Dworkin defende uma visão de moralidade política normativa,
porém, não restritiva em relação à biotecnologia moderna. Ele denomina essa posição
de individualismo ético, sustentado por dois princípios normativos fundamentais que,
por sua vez, estão na base do que ele considera a virtude soberana da comunidade
política, denominada de igual consideração
(p. IX).
O 1
o
Princípio, identificado à igual importância, defende que
é importante, de um
ponto de vista objetivo, que a vida humana seja bem sucedida, em vez de desperdiçada, e isso é
igualmente, importante, daquele ponto de vista objetivo, para cada vida humana.”
(p. XV)
E o 2
o
Princípio, chamado de responsabilidade especial, afirma que
“embora
devamos todos reconhecer a igual importância objetiva do êxito na vida humana, uma pessoa
tem responsabilidade e final por esse sucesso, - a pessoa dona de tal vida.”
(Ibidem)
Ele discute especialmente a questão dos exames genéticos pré-natais, mas o que
ele fala sobre esse tema pode ser estendido à biotecnologia moderna em geral, com
relação a qual ele entende que toda objeção feita até o momento apoiou-se, sobretudo,
em três aspectos principais:
159. Tomou-se Habermas por referência, uma vez que Jonas sequer conheceu o termo criado por
Nicholas Agar. Habermas menciona o artigo “Liberal Eugenics”, in H. Kuhse, P. Singer (2000). (Op. cit.
p. 27, n. 3) E seu livro, Liberal Eugenics: In Defense of Human Enhancement, foi publicado em 2004.
69
1) No argumento denominado de “Slippery Slope”
160
, isto é, da “ladeira
escorregadia”, ou em português substituído pela imagem do “efeito bola de neve”, visto
que tem se afirmado que a pesquisa biotecnológica em seres humanos pode levar à
ocorrência inadmissível de abortos espontâneos ou gerar inúmeras crianças deformadas.
2) No argumento com base na justiça social, dado que, durante algum tempo, essa
nova tecnologia seria acessível apenas aos mais ricos, o que poderia aumentar ainda
mais a distância e a desigualdade entre os dois extremos da pirâmide social.
3) No argumento com base nos aspectos estéticos, considerando que a
biotecnologia seria aplicada para isolar e reproduzir o fenótipo mais almejado no
contexto atual, privando o mundo futuro da diversidade fenotípica humana.
Dworkin considera que tais objeções, no fundo, revelam o incômodo causado pela
biotecnologia moderna, e afirma que a sua
hipótese é que a ciência genética nos mostrou a possibilidade de um
deslocamento moral
(...).
Tememos a possibilidade de pessoas criarem
outras pessoas porque tal possibilidade em si altera de maneira
muito mais marcante
(...)
o limite entre a sorte e a escolha que
estrutura todos os nossos valores
(...).
Porém, o uso mais dramático
da diferença fundamental entre a sorte e a escolha está na atribuição
de responsabilidade pessoal e coletiva, e é nisso que parece maior o
risco de insegurança moral.
(Virtude Soberana. pp. 633-634)
Dentro dessa questão da responsabilidade ele declara que
O princípio de responsabilidade especial que endossamos posiciona
contra qualquer forma profunda de paternalismo. Argumenta,
portanto, a favor da regulamentação, em vez da proibição pura e
simples, e uma regulamentação que procure a divulgação precisa e o
160. Termo proposto, em 1985, por Frederick F. Schauer, para designar a situação na qual um
determinado ato, aparentemente inofensivo isoladamente, pode gerar no futuro uma série de eventos
progressivamente nocivos. Fonte: http://www.ufrgs.br/bioetica/slippery.htm
70
licenciamento, e não a proibição, nem mesmo limitada. admitiria
exames
161
recomendados por médicos com formação e experiência
suficientes para oferecer aconselhamento profissional e interpretação
competentes. Mas não aceitaria a extinção de um exame, por pessoas
competentes, porque sua precisão é especulativa, contanto que seu
caráter especulativo seja totalmente revelado.
(pp. 640-641)
Transpondo essa declaração para a esfera da eugenia, embora ele fale de uma
regulamentação, nada impediria que os pais, desde que orientados por “profissionais
competentes”, possam determinar os genótipos de seus futuros filhos.
Porém, como seria possível compatibilizar essa posição com os dois princípios de
sua formulação? A começar pelo segundo que estabelece que, em última instância, cada
pessoa é especialmente responsável por sua própria vida? E o primeiro que estabelece a
igual
importância para cada vida humana que, por essa razão, uma vez iniciada não pode ser
desperdiçada? E quantas vidas, originadas, o seriam desperdiçadas, porém, para
realizar tais pesquisas, com o objetivo de alcançar um único espécime “melhor”?
Apesar disso, como nos assevera Habermas,
“Do ponto de vista liberal, as novas
técnicas de reprodução, tanto quanto a substituição de órgãos ou a morte medicalmente
assistida, apresentam-se como um aumento da autonomia pessoal.”
(Op. cit. p. 38)
Essa visão bastante otimista oculta, porém, um problema ao colocar num só “pacote” «as
novas técnicas de reprodução, (...) a substituição de órgãos e a morte medicalmente assistida»
como se se tratassem de uma só questão, se não levantassem dificuldades específicas, inclusive
com diferentes níveis de justificação, e se todos expressassem um real ganho de autonomia.
Focalizando apenas o primeiro item, novas técnicas de reprodução, no interior do qual se
pode discutir a questão da eugenia vista sob essa ótica liberal, é preciso considerar que o
principal problema colocado por ela é o intransponível paradoxo que ela comporta. Em outros
termos, a própria noção de eugenia liberal traz implícito um insuperável dilema.
161. Ele se refere aos exames que podem “revelar propensão genética à doença”, em torno do qual discute
se devem ou não ser disponibilizados ao público. (p. 640)
71
Pois, se a eugenia for praticada da forma “liberal” que seus defensores postulam, embora
ela possa expressar (até certo ponto
162
) a liberdade de os pais escolherem o genótipo de seus
futuros filhos, em contrapartida, a sua conseqüência será, por um lado, a demonstração da “falta
de liberdade” (imposta, certamente pela falta de recursos financeiros) dos pais que não puderem
programar geneticamente seus filhos. Por outro lado, com relação aos filhos, a conseqüência
será a proporcional redução de suas liberdades, tanto daqueles que forem modificados quanto
dos que não forem. As duas “categorias” de indivíduos serão irremediavelmente marcadas pelo
estigma: modificado ou não-modificado, sendo dada a cada uma delas um diferente status e
sendo cobrado de cada uma delas um equivalente nível de exigência.
Logo, sem a interveniência do Estado, a desigualdade sócio-econômica já existente,
elevar-se-á, num futuro próximo, à desigualdade genética que, assim como a anterior, significa
muito mais do que simples diferença. Não obstante, se o Estado precisar intervir para minimizar
esse quadro, a eugenia já não mais poderá ser chamada “liberal”. Eis o paradoxo ou o dilema da
tão propalada eugenia liberal, que de livre nada tem, nem na ausência nem na presença da
ingerência estatal. Não passando, assim, propositalmente ou não, de um conceito falacioso.
Sua própria existência constitui mais um sinal da complexidade do problema ético
colocado pelo ressurgimento do projeto eugenista, graças às práticas possibilitadas pelas novas
biotecnologias. Apesar das inúmeras questões levantadas, os que sustentam não ser
necessário, nem mesmo possível, uma avaliação moral no âmbito da ciência e da técnica
163
.
Assim, por um lado, estamos diante de um novo e vasto campo que se abre no
interior da reflexão ética, com a urgente tarefa de estabelecer, senão limites, ao menos
parâmetros para orientar essa atividade que, se deixada entregue a seus próprios
executores, pode comprometer irreversivelmente o futuro da espécie humana.
162. Já que tais escolhas podem ser feitas em função das próprias exigências do mercado.
163. Posição motivada seja pela interdição da passagem do ser ao dever-ser e pela separação entre juízos
de fato e de valor atribuídas a Hume, seja pela divisão entre teoria e prática estabelecida desde os gregos,
ou ainda pela chamada lei de Hume, formulada no começo do século XX (1903) pelo filósofo analítico
George Edward Moore que, em seu Principia Ethica, interdita derivar o que deve ser daquilo que
(supostamente) é, para evitar o paralogismo que ele denomina de falácia naturalista. Obstáculos
analisados no capítulo 2.
72
Por outro lado, estamos diante de outro problema, de ordem teórica, referente à
necessidade de se refutar posições para demonstrar a possibilidade de se estabelecer
uma reflexão ética no campo da ciência e da cnica. O capítulo seguinte tem como
objetivo apresentar tais disposições que, espera-se, possam ser respondidas à altura pela
formulação ética jonassiana.
CAPÍTULO 2 - DIFICULDADES CONCEITUAIS À ABORDAGEM DO PROBLEMA
Vimos, no capítulo anterior, o desafio colocado pelo avanço das biotecnologias,
buscando indicar seus benefícios, mas também os riscos que estão em jogo, sobretudo,
no tocante à sua questionável aplicação em seres humanos. Primeiramente, discutiu-se a
apologia feita por Marchesini ao que ele chama de hibridação do homem com a
“alteridade”, no sentido de se constituir algo que exalta sob o termo de pós-humano; em
seguida, o retorno do projeto eugenista especialmente em sua modalidade identificada
como eugenia positiva. No presente capítulo, buscar-se-á demonstrar que tal programa
cria uma situação embaraçosa na medida em que, se por um lado, existe a possibilidade
de sua consumação real, por outro, ela pode não encontrar uma objeção consistente,
devido a certas dificuldades conceituais colocadas à reflexão ética, considerada, então,
incapaz de enfrentar efetivamente os problemas destacados.
Tais dificuldades podem ser divididas em dois grupos: as decorrentes de
concepções atribuídas a pensadores modernos como Descartes, Hume e Kant e as
decorrentes de concepções de pensadores contemporâneos como a falácia naturalista,
de Moore e a neutralidade axiológica, de Weber. Dessas dificuldades resultam, entre
outras, as noções vigentes de ciência, natureza e do próprio homem, bem como a
afirmação pertinaz da desarticulação entre ética, ciência e técnica.
73
Com o objetivo de apresentar, ainda que rapidamente, cada uma das dificuldades
mencionadas, a exposição foi dividida em três etapas: 2.1 Dificuldades colocadas à
reflexão ética pelo pensamento moderno: os dualismos cosmológico, antropológico e
moral; 2.2 Dificuldades colocadas à reflexão ética decorrentes do pensamento
contemporâneo e 2.3 - A desarticulação entre ética, ciência e técnica.
2.1 - Dificuldades colocadas à reflexão ética pelo pensamento moderno: os dualismos
cosmológico, antropológico e moral
O pensamento moderno, notadamente o elaborado por Descartes, Hume e Kant
164
,
coloca uma dificuldade à reflexão ética por estabelecer ou fortalecer dualismos que,
embora de natureza teórica, geram conseqüências que se fazem notar no âmbito prático.
Assim, veremos com Descartes (A) a retomada e exacerbação da dicotomia entre
corpo e alma; com Hume (B) a introdução da separação entre ser e dever-ser
165
e com
Kant (C) a radicalização da divisão entre razão prática e razão teórica, que repercute na
divisão entre reino da liberdade e reino da necessidade. Noções que dão origem a
conceitos de homem, ciência e natureza que, convenientemente, legitimam a relação
entre eles sugerida pelo lema baconiano
166
e à desarticulação entre ética, ciência e
técnica, a partir da qual fica bastante difícil contestar, do ponto de vista ético, o uso
indiscriminado das biotecnologias em seres humanos.
Comecemos, portanto, nossa exposição indicando a dificuldade decorrente da
filosofia de René Descartes.
164. Na verdade, não se pode afirmar que a filosofia kantiana coloque uma dificuldade à reflexão ética.
Mas, como veremos, a perspectiva jonassiana exige a superação do dualismo, nas suas mais diversas
manifestações, para possibilitar o enfrentamento satisfatório dos problemas supracitados.
165. Sendo também atribuída a ele a separação entre juízo de fato e juízo de valor.
166. A concepção de que cabe à ciência conceder ao homem o poder de dominar a natureza em seu
proveito.
74
A) Descartes e o moderno dualismo no homem
Para compreender a concepção antropológica cartesiana, é preciso ter em mente,
ainda que de modo sucinto, as principais definições de homem anteriores.
Remontando à origem, o pensamento grego antigo centrava-se em torno da noção
de kósmos ou da physis como uma ordem eterna e concebia o homem em conexão com
ela. Embora Lima Vaz
167
indique Diógenes de Apolônia
168
, como o primeiro pensador
pré-socrático a oferecer uma concepção antropológica, ele identifica Sócrates,
consagrado com fundador da ética, também como o da antropologia filosófica. E,
segundoVaz,
Na visão socrática, o “humano” só tem sentido se referido a um
princípio interior ou a uma dimensão de interioridade presente em
cada homem e que ele designou justamente com o antigo termo de
“alma” (psyché), mas dando-lhe uma significação essencialmente
nova e propriamente socrática. (...) A ‘alma’, segundo Sócrates, é a
sede de uma areté que permite medir o homem segundo a dimensão
interior na qual reside a verdadeira grandeza humana. É na “alma”,
em suma, que tem lugar a opção profunda que orienta a vida humana
segundo o justo ou o injusto e é ela, portanto, que constitui a verdadeira
essência do homem, sede da sua verdadeira areté.
(Op. cit. p. 34)
A concepção antropológica legada por seu sucessor, Platão, é apontada por Vaz
como uma das mais influentes da tradição ocidental e ela se caracteriza pela síntese
entre
“a tradição pré-socrática da relação do homem com o kósmos
169
, a tradição sofística do
homem como ser da cultura (paidéia) destinado à vida política e a herança dominante de
Sócrates do ‘homem interior’ e da ‘alma’ (psyché)
”. (Op. cit. p. 36)
Esse aspecto indica a maior
complexidade da antropologia platônica, em relação às anteriores.
167. H.C.L. Vaz. Antropologia Filosófica I, p. 30.
168. Discípulo de Antístenes e Anaxágoras, que floresce por volta de 440-430 a.C.
169. Sobretudo, em conformidade com a doutrina de Pitágoras.
75
Platão, inspirado pela tradição órfica, concebia o homem como um ser constituído
por duas partes, o corpo e a alma, onde o primeiro era visto, por sua natureza material,
como uma prisão para a segunda que, por sua natureza imaterial e divina, podia
contemplar as idéias habitantes do mundo inteligível e aspirava se libertar do corpo,
para reencontrar a verdade nela impressa, mas esquecida em seu “aprisionamento”.
Ele ainda divide a a alma em três partes
170
, obedecendo a seguinte hierarquia:
1. Concupiscente: representada pelo baixo ventre, responsável pelo apetite e desejo,
inclusive o sexual, portanto, ligada à libido. Sua virtude correspondente é a moderação
ou temperança (sophrosýne).
2. Irascível: relacionada ao tórax, à qual se atribui a impetuosidade e os sentimentos.
Sua virtude respectiva é a coragem (andreía).
3. Racional: referida à cabeça, encarregada de controlar as outras duas partes. Sua
virtude correlata é a sabedoria ou prudência (phrónesis).
171
Aristóteles também compreende o homem no interior da Psicologia, definida
como a teoria da alma, com base nos conceitos de alma (psykhé) e intelecto (noûs). Ele
estabelece a alma como forma primordial e essência de todo corpo que possui vida. No
De Anima, modificando a concepção platônica das três partes da alma, ele afirma que a
alma é una, que a sua essência é simples, mas que ela é capaz de realizar diversas
funções ou operações como: nutrição, sensação, apetite, locomoção e pensamento. Com
base nas quais ele propõe cinco classes de potência, princípios ou operação, que se
diversificam em função de seus atos e de seus objetivos: vegetativa, sensitiva, apetitiva,
locomotiva e intelectiva. A alma do homem é a única capaz de realizar as cinco funções.
A concepção antropológica grega exercerá grande influência posterior, mas, com
o advento do cristianismo, será confrontada com a visão cristã, segundo a qual, o
170. Concepção conhecida como “tricotomia da alma”, que é apresentada no Livro IV da República.
171. Para maiores detalhes sobre a antropologia, tanto a grega quanto às demais, recomenda-se a preciosa
leitura de Lima Vaz, na obra supracitada, Antropologia Filosófica I.
76
homem é concebido como “criatura”, mas diferente de todas as demais, porque imago
Dei. Tal visão encontra um forte adversário na gnose que, em linhas gerais, lembra o
dualismo de viés órfico, dele se distinguindo, porém, por estender o aspecto prisional do
corpo a todo o kósmos.
172
Em outros termos,
“o dualismo preconizado pelas correntes
gnósticas implica uma condenação da matéria, obra do princípio do mal, o que se coloca em
oposição frontal à verdade central do anúncio cristão (...).”
(Vaz. Op. cit. p. 62)
E, desse modo,
o dualismo gnóstico cria uma profunda separação entre o homem e mundo,
constituindo, assim, o chamado dualismo cosmológico.
173
Na antropologia agostiniana, apesar da proximidade com o pensamento platônico,
o homem conquista a condição de um ser uno, graças ao contexto teológico no qual a
dimensão humana é concebida.
“A criação do homem como episódio culminante da criação
de todo o universo segundo a narração genesíaca implica uma superação radical do dualismo
maniqueísta
174
(...)”
(Op. cit. p. 65).
Visão que, de modo geral, prevalece no período medieval.
Entretanto, no pensamento moderno, com Descartes, o dualismo corpo e alma é
não apenas retomado, mas, radicalizado. Descartes é considerado o mais alto expoente
da antropologia racionalista. Tanto que, como Vaz sugere, as expressões: homem
cartesiano e homem racionalista
(Op. cit. p. 82)
tornam-se quase sinônimas.
Cabe frisar que, na concepção clássica o homem encontrava na Física
“o seu lugar
como “ser da natureza”
175
(...) ao mesmo tempo em que, pelo nous ou intellectus, passava além
das fronteiras da Física e penetrava no terreno da Metafísica, constituindo-se em horizon et
continiuum entre o corporal e o espiritual entre o físico e o metafísico.”
(Ibidem.)
Descartes, ao privilegiar o método, inverte a clássica ordem que ia da Física à
Metafísica, estabelecendo a Metafísica como ponto de partida que conduz à Física.
172. N. Frogneux. Hans Jonas ou la vie dans le monde. Bruxelles: De Boeck & Larcier, 2001. p. 70.
173. Como veremos, esse será o primeiro dualismo enfrentado por Jonas.
174. E também gnóstico.
175. Sobre o que Vaz chama a atenção para o fato de que esse é o significado antigo “do conceito de
natureza humana, hé anthropiné physis”. (Op. Cit. p. 82)
77
“Essa inversão da ordem clássica do saber filosófico origem igualmente a uma inversão
temática no problema do homem”.
(Ibidem.)
Sendo assim, o problema antropológico é
reformulado e identificado ao problema da relação da alma e do corpo. De tal modo
que, o homem racionalista passa a ser associado a dois traços fundamentais:
“a) a subjetividade do espírito como res cogitans e consciência-de-si;
b) a exterioridade (concebida mecanicisticamente) do corpo com relação ao espírito.”
(Ibidem)
Isso explica porque, no Tratado do Homem
176
, para explicar o funcionamento do
corpo humano, Descartes propõe uma analogia com o que seriam tipos de “homens-
máquina”, sobre os quais ele nos diz, de saída:
“Estes homens serão como nós, compostos
de uma alma e de um corpo. E é necessário que eu descreva, primeiro, o corpo, separadamente,
e depois a alma, também separadamente. Enfim, será necessário que eu mostre como estas duas
naturezas devem estar unidas para compor os homens que se assemelham a nós.”
(p. 139) [p. 119]
Tal formulação explicita o dualismo que marcará toda a concepção filosófica
cartesiana. Não obstante, Vaz assinala que esse dualismo, de viés racionalista, é
fundamentalmente distinto do dualismo clássico de matiz platônico. Pois,
Aqui o espírito como res cogitans separa-se do corpo como res
extensa, não para elevar-se à contemplação do mundo das idéias
(como no Fédon platônico), mas para melhor conhecer e dominar o
mundo conforme o programa da V
a
e VI
a
partes do Discours de la
Méthode
177
. A antropologia de Descartes cinde-se, assim, em uma
176. Escrito em 1633, publicado postumamente. A versão aqui citada será aquela oferecida por Jordino
Marques, no final de seu Descartes e sua concepção de homem (pp. 139-219), traduzido a partir da
Edição Adam-Tannery (AT). Daí, que as citações terão dupla numeração, a primeira, entre parênteses,
refere-se à paginação de Marques e a segunda, entre colchetes, à edição AT.
177. Mais precisamente, é na Parte VI do Discurso do Método, que se pode ler a entusiasmada
recomendação de Descartes, ao dizer que “é possível chegar a conhecimentos que são muito úteis para a
vida e que, em vez dessa filosofia especulativa que é ensinada nas escolas, é possível encontrar uma
prática, pela qual, conhecendo a força e as ações do fogo, da água, do ar, dos astros, dos céus e de todos
os outros corpos que nos cercam, tão distintamente quanto conhecemos os diversos ofícios dos nossos
artífices, poderíamos do mesmo modo aplicá-los a todos os usos aos quais são próprios e, assim, tornar-
nos senhores e possuidores da natureza...” R. Descartes. Discurso do Método. Parte VI; p. 131.
78
metafísica do espírito e uma física do corpo: a idéia adequada, isto é,
clara e distinta das duas substâncias, mostra-se como “naturezas
completas” que podem subsistir uma sem a outra. A formação da
antropologia cartesiana parece acompanhar, assim, os estágios da
formação de uma nova idéia de razão que presidirá ao
desenvolvimento da filosofia moderna até Kant (...).
(Op. cit. pp. 82-83)
No tocante à concepção física supracitada, Descartes, ainda no Tratado do
Homem
,
levando adiante a analogia com o homem-máquina, supõe
que o corpo nada mais seja do que uma estátua, ou máquina de terra
que Deus forma deliberadamente, para torná-la o mais possível
semelhante a nós: de modo que lhe dá não só a cor e a forma de todos
os nossos membros, como também insere todas as peças que são
necessárias para fazer que ela caminhe, coma, respire, enfim, imite
todas as nossas funções, que se imagina proceder da matéria e
depender da disposição dos órgãos.
(p. 140) [p. 120]
Sendo assim, para exercer as atividades que lhe são próprias e que Descartes
descreve, minuciosamente, como tarefas desempenhadas por um complexo mecanismo,
essa máquina pode prescindir completamente da alma. Por isso, foi possível analisar
todas as funções desse mecanismo, sem tratar especificamente da questão da alma
178
.
Descartes conclui, assim, o seu Tratado do Homem:
Desejo que se considere que estas funções seguem todas naturalmente
nessa máquina só a disposição de seus órgãos, nem mais e nem menos
do que fazem os movimentos de um relógio ou outro autômato, seus
contrapés e sua rodas, de modo que não é necessário conceber quanto a
178. Que é, em alguns momentos, mencionada, mas para antecipar o que se passaria, com a sua
introdução no mecanismo e cuja conexão com o corpo será discutida apenas no Tratado das Paixões
(1649).
79
elas nenhuma outra alma vegetativa, nem sensitiva, nem mesmo outro
princípio de movimento e de vida do que seu sangue...
(p. 200) [p. 202]
Com tal formulação, Descartes recusa a concepção aristotélica de alma, que
atribuía à alma a realização de diferentes atividades como: vegetativa, sensitiva,
apetitiva, locomotiva e intelectiva, reservando a ela apenas essa última atividade. Além
disso, ele renuncia também a física escolástico-aristotélica e se depara com a
necessidade de estabelecer uma nova forma de
“compreensão da natureza segundo o
modelo matemático”
(Op. cit. p. 83)
, como anunciado por Galileu. Tendo sido reduzida à
mera res extensa destituída de alma, a natureza torna-se, então, disponível à dominação
para o proveito humano pelo conhecimento científico. Isso explica o fato de o todo
tornar-se a prioridade na filosofia cartesiana. Ademais, segundo Vaz, é nas Meditações
que
o dualismo cartesiano se mostra plenamente constituído e, com ele,
define-se a estrutura fundamental da antropologia racionalista: de um
lado o “espírito” cujo existir se manifesta na evidência do Cogito; de
outro, o “corpo” obedecendo aos movimentos e às leis que impelem a
máquina do mundo. (...) justamente [no] Cogito (...) está implicada
uma nova relação do “espírito” com o mundo que define uma nova
concepção de homem.
(Ibidem.)
Nesse contexto, não o homem é abordado mecanicamente. Também o mundo
se torna uma grande máquina que pode ser explicada pela razão, conforme o modelo
eminentemente matemático. Vaz ressalta ainda que,
Uma conseqüência importante da antropologia racionalista é o
progressivo atenuar-se da distinção entre “natural” e “artificial”
(entre a physis e a téchne) que era um dos fundamentos da visão
aristotélica do mundo. O corpo humano é integrado no conjunto dos
artefatos e das máquinas e a presença do “espíritomanifestando-
80
se sobretudo na linguagem, separa o homem do animal-máquina.
(Op.
cit. p. 84)
Essa passagem sugere perfeitamente a conexão entre a antropologia cartesiana e o
desafio biotecnológico em relação ao ser humano. Pois, o corpo, separado das funções
“superiores”, é reduzido à condição de máquina e, efetivamente, à de “coisa” (res)
179
.
Isso favorece sua apropriação que a ciência fez posteriormente, em princípio, para fins
de estudo
180
e, atualmente, através das novas biotecnologias, para manipulação com os
mais diversos fins: desde a cura de doenças congênitas até à trans-humanização
181
.
Do ponto de vista da res cogitans, graças a tais concepções, o homem perde a
unidade conquistada com a antropologia agostiniana e, ao mesmo tempo, a dualidade se
aprofunda radicalmente. A alma identifica-se, ainda, à interioridade, mas sem a
referência à virtude, como queriam Sócrates e Platão. Ela não confere mais a perfeição e
é destituída de todas as outras funções (doravante, atribuídas exclusivamente ao corpo)
e preserva apenas a função do pensamento, perdendo, ainda, a conexão com o exterior.
Mas, não é só o conceito de homem que se afetado por essa nova perspectiva.
Também os conceitos de ciência e natureza sofrem alterações. Com relação à ciência, a
posição de Descartes pode ser aproximada à de Bacon, ao destituir a ciência de sua
função puramente contemplativa, estabelecida desde os gregos. Sua função agora é
dominar a natureza.
182
Donde, é o conceito de natureza que sofre o maior impacto. Pois,
de sua condição de physis, referida ao kósmos, como ordem eterna puramente
“contemplável”, a natureza, como parte da res extensa, tornou-se mera máquina a ser
explicada matematicamente e dominada em proveito do homem. Essa visão explica a
relação instrumental a ela imposta desde então e a atual crise ambiental daí resultante.
179. Pois, embora Descartes utilize o termo latino res para designar tanto o corpo quanto a alma, por sua
dimensão material, é o corpo que, de modo mais intenso, é literalmente “coisificado” (reificado).
180. O que a Igreja, anteriormente, não permitia.
181. A imagem do homem-máquina, recorrente nesse período, pode ser considerada como ancestral do
hibridismo que está na base do projeto pós-humano.
182. Esse ponto será mais bem discutido em 2.3.
81
B) As dicotomias colocadas pela (ou atribuídas à) filosofia de David Hume
Uma das principais dificuldades colocadas à reflexão ética recente é devida ao
filósofo escocês David Hume. Trata-se da famosa interdição de se passar do ser ao
dever (B.1). Outra dificuldade, porém, a divisão entre os juízos de fato e juízos de valor
(B.2), embora atribuída também à pena de Hume, como veremos, não pode ser, senão
indo além do próprio texto, a ele creditada.
Vale esclarecer que, embora a proposta jonassiana pretenda responder a todas as
dificuldades mencionadas
183
, por razões metodológicas, optamos por apresentar aqui
apenas as formulações de cada autor, seguida de uma breve análise que realizamos com
base em seus próprios textos; reservando, assim, a exposição e avaliação da resposta de
Jonas para os capítulos 4 e 5. Vejamos, então, a questão colocada por Hume.
B.1) A problemática passagem do ser ao dever
De fato, essa questão é abordada por Jonas em diferentes momentos do PR
184
,
mas uma vez que se fez a opção de apresentar, primeiramente a formulação de cada
183. Embora nem sempre de forma direta, encontramos no texto jonassiano, especialmente na sua obra
mais relevante para o nosso tema, Das Prinzip Verantwortung (PV), e em outra intitulada The
Phenomenon of Life (PhL), tentativas de enfrentar todas as dificuldades aqui mencionadas, mas a
decorrente da formulação humeana ocupa um lugar destacado na reflexão de Jonas, apesar de que no PV,
curiosamente, não há qualquer menção nominal a Hume.
184. No Capítulo II: Questões de fundamento e de método, Tópico IV: no original “Die Pflicht zur
Zukunft”, traduzido em francês como “L’obligation de l’avenir” e em espanhol “El deber para con el
futuro”, item 6: “Dois dogmas: ‘Não verdades metafísicas’ e ‘não caminho do é ao deve’. Mas
também em todo o Tópico V: no original “Sein und Sollen traduzido em francês como “Être et Devoir”
e em espanhol “El Ser y el Deber”. E no Capítulo IV, no original Das Gute, das Sollen und das Sein:
Theorie der Verantwortung”, traduzido em francês como “Le Bien, le Devoir et l’Être: Théorie de la
Responsabilité” e em espanhol “El Bien, el Deber y el Ser: la teoría de la responsabilidad”: Tópico I, que
tem o mesmo título do Tópico V do capítulo II, isto é, no original “Sein und Sollen” (também traduzido
em francês como “Être et Devoir” e em espanhol “El Ser y el Deber”) e Tópico VII “A criança objeto
primordial da responsabilidade”, itens 1: “O ‘deve’ elementar no ‘é do recém-nascido” e 2. “Apelos
menos insistentes de um dever-ser”. Confrontamos aqui, com o original, apenas as traduções que
divergem, sobretudo com relação aos termos Pflicht e Sollen, indistintamente traduzidos no texto
espanhol por deber’, enquanto a tradução francesa optou por distingui-los pelos termos: “obligation” no
primeiro caso e “devoir”, no segundo.
82
autor, cabe no momento, focalizar a célebre passagem do Tratado da natureza
humana
185
, onde Hume nos diz o seguinte:
Em todos os sistemas de moral que eu encontrei até aqui, eu
sempre observei que o autor procede algum tempo segundo a
maneira ordinária de argumentar, onde ele estabelece a existência
de Deus ou que ele faz observações sobre a condição humana,
depois, de repente, eu tenho a surpresa de constatar que ao invés
das cópulas ‘é’ ou ‘não é’ habituais nas proposições, eu somente
encontre proposições onde a ligação é estabelecida por ‘deve’ ou
‘não deve’. Essa mudança é imperceptível; mas ela é, entretanto,
da mais alta importância. Com efeito, como o deve ou não deve
exprimem uma nova relação e uma nova afirmação, é necessário
que elas sejam explicadas: e que ao mesmo tempo se justifique, o
que parece totalmente inconcebível, como essa nova relação pode
se deduzir de outras relações que lhe são inteiramente diferentes.
Mas, como os autores freqüentemente não tomam essa precaução,
eu tomarei a liberdade de recomendá-la aos leitores, e eu estou
convencido de que essa simples atenção destruirá todos os
sistemas correntes de moral e nos mostrará que a distinção do
vício e da virtude não se funda unicamente sobre as relações dos
objetos e que ela não é percebida pela razão.
(THN. III, I, 1)
Essa passagem, mesmo que nem sempre citada diretamente, contém uma das mais
respeitadas advertências da tradição filosófica. Pois, é com base nela que se estabeleceu
a famosa interdição de se transpor do ser ao dever, conhecida como a “lei de Hume”.
185. Cujo subtítulo é “Ensaio para introduzir o método experimental nos assuntos morais”. A passagem
citada encontra-se no Livro III Moral 1a Parte, intitulada “Generalidades sobre a virtude e sobre o
vício” – Seção I – ‘As distinções morais não derivam da razão’ (versão francesa pp. 585-586).
83
Tal expressão mostra que, paradoxalmente, contrariando o próprio espírito do autor, ela
foi convertida num verdadeiro “dogma” que, como veremos, Jonas irá denunciar.
Evidentemente, isolar esse trecho de seu contexto implica o grave risco de perder
de vista o pensamento e a intenção de Hume, mas frente à impossibilidade de realizar
aqui uma análise mais detalhada, que se ocupasse minuciosamente do conjunto da
argumentação humeana, buscar-se-á extrair do próprio texto os elementos fundamentais
para sua compreensão.
Começando, inversamente, pela última frase da citação, cabe ressaltar que nela
Hume expressa o intento de toda a Seção I que é, justamente, demonstrar que as
distinções morais não são provenientes da razão, mas de um
“senso
186
moral”
, como ele
apresentará na Seção II, e que tais distinções não têm por base as relações dos objetos,
mas, pode-se inferir, dos próprios sujeitos. Isto é, não se tratam de distinções objetivas,
mas subjetivas
187
. Sem entrar no mérito dessa questão, faremos apenas o exame da parte
inicial da citação, que nos interessa mais diretamente.
A análise dessa passagem revela que o espanto de Hume deve-se ao fato de, nos
sistemas de moral que ele conheceu, os autores partindo da
maneira ordinária de
argumentar com a qual buscam demonstrar a existência de Deus ou na qual fazem
observações sobre a condição humana
188
, subitamente, abandonam as “cópulas ‘é’ ou ‘não é’
habituais nas proposições para introduzir proposições onde a ligação é estabelecida por
‘deve’ ou ‘não deve’.
Nesse trecho destacam-se dois aspectos aos quais ele endereça sua crítica: o
primeiro, menos lembrado, refere-se ao ponto de partida desses autores, ou melhor, a
maneira ordinária de argumentarcom a qual buscam demonstrar a existência de Deusou
186. No original moral sense e em francês sens moral são as expressões que figuram no título da seção II,
da Parte 1, do Livro III, mas, já no primeiro parágrafo da Seção, Hume usará explicitamente o termo
sentiment”, e mais adiante ele será identificado à simpatia.
187. Veremos, no capítulo 5, que Jonas atribui outra função à dimensão subjetiva na dimensão moral.
188. No original: “makes observations concerning human affairs”.
Fonte: http://www.gutenberg.org/etext/4705
84
na qual fazem observações sobre a condição humana”. Aqui, cabe notar que, sobretudo a
primeira parte da declaração, referente à
maneira ordinária de argumentar” com a qual
buscam demonstrar a existência de Deus”, sugere uma crítica ao procedimento argumentativo
tipicamente escolástico
. O
segundo aspecto, mais citado, deve-se ao fato de não se
preocuparem em explicar e justificar a mudança que realizam substituindo as cópulas
habituais das proposições descritivas é ou não é, pelas cópulas deve ou não deve, das
proposições prescritivas típicas de um sistema moral. Visto que, como Hume adverte,
Essa mudança é imperceptível; mas ela é, entretanto, da mais alta
importância. Com efeito, como o deve ou não deve exprimem uma
nova relação e uma nova afirmação, é necessário que elas sejam
explicadas: e que ao mesmo tempo se justifique, o que parece
totalmente inconcebível, como essa nova relação pode se deduzir de
outras relações que lhe são inteiramente diferentes.
Portanto, o que Hume critica é, na verdade, o procedimento desses autores que
pretendem estabelecer um sistema moral que, por definição, é prescritivo ou normativo;
uma vez que visa normalizar, instituir regras ou, em outras palavras, indicar o que deve
ou não deve ser (feito), tendo como ponto de partida proposições que simplesmente
descrevem um estado de coisas.
Todavia, embora a partir dessa crítica tenha se estabelecido uma total interdição,
até onde se pode ler no próprio texto, o que Hume afirma é a necessidade de justificar,
como destacado, essa nova relação. Mesmo se nossa atenção se fixar sobre a parte onde
ele diz
“que parece totalmente inconcebível, como essa nova relação pode se deduzir de outras
relações que lhe são inteiramente diferentes”
;
cabe notar que ele diz:
“parece totalmente
inconcebível”
189
.
Ou seja, se por um lado a expressão
totalmente inconcebível é bastante
189. No original: “for what seems altogether inconceivable”. Termo que, segundo o Oxford Advanced
Learner's Dictionary, significa: impossible to imagine or believee não “impossible to do or to carry
out”. Fonte: http://www.oup.com/oald-bin/web_getald7index1a.pl?search_word=inconceivable
85
enfática, o fato de precedê-la com a palavra parece
, reduz significativamente a sua força.
Ademais, pode-se ler a frase seguinte como uma questão implícita:
como essa nova
relação pode se deduzir de outras relações que lhe são inteiramente diferentes”? De modo que
se pode
entender que o que Hume reclama é uma explicação ou uma demonstração da
possibilidade de se estabelecer a mediação entre essas duas relações heterogêneas.
Dito de outro modo, se não se pode passar diretamente das proposições
descritivas às prescritivas, tornar a reflexão ética possível exige encontrar um ou mais
termos para se estabelecer a conexão entre elas. Autores que não se deixaram paralisar
pela leitura proibitiva de Hume, tentaram buscar essa conexão entre o que é e o que
deve ser e em alguns casos essa mediação necessária foi encontrada na esfera do
valor
190
.
O capítulo 5 mostrará que Jonas é um desses autores e o 7 avaliará se, afinal, o
modo como ele equaciona a relação entre o ser e o dever é ou não bem sucedido. Agora,
porém, apresentaremos a segunda dificuldade atribuída à filosofia humeana.
B.2) A separação entre juízos de fato e juízos de valor
Essa célebre separação constitui a base moderna da dificuldade imposta à
articulação entre ciência e ética, que será abordada no próximo tópico (2.3). Aqui, trata-
se de examinar a origem ou a procedência dessa cisão que, a rigor, não consta no texto
de Hume, ao contrário do que se possa presumir.
O certo é que, esta divisão, por estar relacionada à
“distinção entre normas e fatos ou
ainda entre dever e ser, tornou-se um tema obrigatório das reflexões sobre ética. [Isso explica
porque,] Tradicionalmente remonta-se essa distinção a Hume. [Dado que] Em seu Tratado da
190. Outros, porém, indevidamente, identificaram à esfera do dever à esfera do valor. Indevidamente,
porque, até onde se sabe, a dimensão axiológica não se reduz à deontológica, do mesmo modo que, a
deontológica não se reduz a axiológica.
86
natureza humana”, ele julga ilegítima a passagem da cópula ‹‹é›› à cópula ‹deve››”
191
.
Interdição cuja acuidade foi examinada anteriormente.
Contudo, se como vimos, com relação à questão do ser e do dever-ser, é possível,
ainda que com a ressalva feita, identificá-la no texto humeano, o mesmo não ocorre com
relação a essa divisão, cuja origem presumida parece antes um trabalho engenhoso de
(apressada) hermenêutica, que um autêntico ponto da filosofia de Hume. Em outras
palavras, nos principais textos de Hume sobre a questão moral, não constam as
expressões explícitas: juízos de fato e juízos de valor.
Na verdade, encontram-se apenas menções à distinção entre erros de fato e erros
de direito e entre relações de idéias e relações de fatos e não qualquer ocorrência do
termo valor. Pode-se questionar se, a partir do conceito de fato, é possível inferir dos
textos de Hume a distinção entre fato e valor.
Para testar tal hipótese, antes, é preciso ter presente as definições de tais
conceitos, começando pelo conceito de fato. Recorrendo ao verbete do Dictionnaire de
l’Encyclopédie Philosophique Universelle, vemos que:
Um fato é o que é, o que se manifesta como dado objetivo da
experiência. A noção somente é verdadeiramente compreensível em
um sistema de oposições: ao (1) pensamento, inicialmente, ao (2)
necessário, em seguida, ao (3) direito, enfim.
1) O fato designa o que é efetivamente por oposição ao que é suposto
ou antecipado, a hipótese ou a teoria. Ele remete ao real por
oposição ao imaginário ou ao possível; ao dado, por oposição ao
construto [mental].
2) A palavra ‘fato’ designa o que, sendo, poderia não ser. O que é
contingente, por oposição ao que é necessário em virtude das regras
191. Pierre Livet. “Normes et Faits”, In Encyclopédie Philosophique Universelle. Vol. I - L’Univers
Philosophique. Paris: PUF, 1998, p. 124.
87
da lógica. Leibniz distingue nesse sentido as ‘verdades do juízo’,
necessárias seu contrário implica contradição e as ‘verdades de
fato’, contingentes, cujo oposto é logicamente possível.
(Monadologia,
§ 33)
Ver também a distinção similar de Hume entre relações de
idéias’ e relações de fato’
(Tratado da Natureza Humana, livro 1, 3
a
parte, seção 1 e Uma investigação sobre os princípios da moral, seção, 4).
3) Enfim, o ‘fato’ se opõe ao ‘direito’. É o que é por contraste com o
que deve ou deveria ser. O fato é então conduzido diante de um
tribunal de princípios que deve avaliá-lo, julgar sua legitimidade e
seu fundamento. Essa distinção é operatória inicialmente em filosofia
moral e política. Assim Rousseau, buscando os fundamentos da
desigualdade, começa por ‘afastar todos os fatos’
(Discurso sobre a
origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens),
ou recusa
todos aqueles que pretendem fundar a ordem social estabelecendo o
direito pelo fato
(Ver o Contrato Social, livro I, cap. 2)
. Ela está também
no domínio gnosiológico, quando se trata de exibir os critérios que
garantem a certeza
(Descartes, Meditação Metafísica, 1)
. Coube ao
criticismo kantiano ter enunciado em toda sua amplidão o projeto de
uma jurisdição sistemática do conhecimento, ‹‹tanto em relação a
seus limites, quanto à sua estrutura interna››
(Crítica da razão pura,
prefácio, 2
a
ed.).
Ver a distinção entre ‘questão de fato’ e ‘questão de
direito’
(ibid., “Analítica dos conceitos”, cap. II, seção 1).
192
Esse verbete é especialmente interessante porque, além de esclarecer que o
conceito de fato é mais bem compreendido num sistema de oposição, seja em relação ao
conceito de pensamento, do que é necessário ou de direito, ele confirma nossa
192. P. Kahn, “Verbete fait” in Les Notions Philosophiques. Dictionnaire II de l’Encyclopédie
Philosophique Universelle. Tomo 1, Paris: PUF, 1998, pp. 949-950.
88
indicação quanto à distinção humeana entre relações de idéias e relações de fatos e,
sintomaticamente, não faz qualquer menção a uma eventual oposição ao termo valor.
Com efeito, a ausência do termo pode ser explicada com base em dois
comentários sobre a obra de Hume, relativos a questões totalmente diferentes. O
primeiro comentário é de Michel Malherbe que, ao apresentar a definição humeana de
“consciência moral” como uma paixão ou tendência, nos diz que
“como toda tendência,
ela se dirige a um fim, dir-se-ia hoje um valor, a saber, a felicidade dos homens”.
193
O segundo
comentário é de André Leroy que afirma:
“O bem, ou o valor, para empregar uma
expressão mais à moda hoje, não existe independentemente do espírito humano.”
194
195
Embora se referindo a temas distintos, as duas citações sugerem que o conceito de
valor é relativamente recente ou, ao menos, não integra o ambiente conceitual de Hume.
Veremos alguns exemplos das distinções encontradas nos textos humeanos, mas,
antes, é preciso relembrar que o propósito da reflexão moral de Hume é demonstrar que
as concepções morais não provêm da razão. Pois, segundo ele, nossas ações não seriam
motivadas pela razão, mas pelas paixões. Sendo assim, a razão apenas indiretamente
influencia nossa conduta, em duas situações específicas: 1. quando ela nos desperta uma
paixão, revelando-nos a existência de algo que se converte no objeto dessa paixão ou 2.
quando ela nos revela a relação de causa e efeito, indicando o meio de realizar nossa
paixão. Assim, poderíamos dizer que, conforme as indicações acima, na perspectiva
humeana, a razão apresenta duas funções: heurística e pragmática.
196
Porém, segundo Hume, tais julgamentos podem ser falsos ou equivocados,
induzindo a pessoa ao erro, ou seja, acarretando uma espécie de “erro de cálculo” para
alcançar seus fins; o que não significa que aí resida a origem da imoralidade, uma vez
193. Michel Malherbe. Introduction à Enquête sur les Príncipes de la Morale. p. 26 (grifos nossos).
194. André Leroy. Prefácio de EPM. Paris: Aubier, 1947. p. 15 (grifos nossos).
195. Cabe ressaltar, já antecipando Jonas, que Malherbe identifica o valor ao fim e Leroy ao bem.
196. Domingues lembra, ainda, a função lógica.
89
que não constitui um erro voluntário ou que implique culpa. Em outras palavras, tal erro
não é de natureza moral, apenas um tipo de erro de ‘avaliação’, seja com relação à
natureza do objeto considerado, seja com relação à possibilidade de tal objeto servir à
realização de um determinado fim. É o que Hume denomina um erro de fato e que ele
distingue do erro de direito, que seria uma espécie de “impostura” como, por exemplo,
o adultério. Mas apesar da diferença entre os dois erros, ele afirma que:
Se se pretendia que, embora um erro de fato não seja uma falta,
enquanto um erro de direito o seja realmente; e que esse possa ser a
fonte da imoralidade: eu responderia que é impossível que tal erro
seja a fonte original da imoralidade uma vez que ela supõe a
realidade do bem e do mal; quer dizer a realidade de uma distinção
moral independente de tais juízos.
(TNH. p. 575)
Aqui importa ressaltar que, para além das distinções, Hume está mais empenhado
em demonstrar que esses dois tipos de erros não constituem a fonte ou origem da
imoralidade. Assim, curiosamente, ele mais os aproxima que diferencia e não se
preocupa em, efetivamente, distingui-los com relação a um eventual valor pressuposto
em certos tipos de ações. E, apesar de empregar os mesmos termos do terceiro par
conceitual apresentado pelo verbete com a definição de fato (fato x direito), Hume não
se atém seja ao aspecto deontológico, muito menos ao axiológico, da questão.
A outra distinção, entre os conceitos de idéias e fatos, surge no seguinte trecho:
Uma vez que as operações do entendimento humano se divIbidem em
dois tipos, a comparação de idéias e a inferência de um fato, se a
virtude se descobrisse pelo entendimento, ela deveria ser o objeto de
uma dessas operações; e não uma terceira operação do
entendimento que possa descobri-la.
(TNH. p. 578. Grifos nossos.)
90
Mais uma vez, agora utilizando os termos do primeiro par conceitual da definição
supracitada, Hume está mais interessado em demonstrar que tais operações realizadas
pelo entendimento não são capazes de discernir o que seja a virtude. Uma posição sobre
a qual ele insiste, mas que parece contradizer a seguinte afirmação:
O raciocínio tem por único objeto descobrir dos dois lados as
circunstâncias que são comuns a tais qualidades; de observar o ponto
sobre o qual as qualidades que se estima se concordam, ou ao
contrário as qualidades que se reprova; e se dirigindo assim até os
fundamentos da moral, de trazer à tona os princípios universais
últimos de onde deriva toda espécie de censura ou de aprovação. E
como se trata de uma questão de fato, e não de ciência abstrata, s
somente podemos esperar sucesso seguindo o método experimental
que deduz as máximas gerais da comparação dos casos particulares.
O outro método científico, onde um princípio abstrato geral é de
início posto, depois ramificado em diversas inferências e conclusões,
pode ser mais perfeito por ele mesmo, mas ele é menos conveniente à
imperfeição da natureza humana e ele é, nesse tema como em outros,
uma fonte comum de ilusão e de erros.
(Enquête. p. 49. Grifos nossos)
Embora contrariando a citação anterior, esse trecho, mais que a defesa do método
indutivo experimental nas questões morais, estabelece o raciocínio como o responsável
por
trazer à tona os princípios universais últimos”
da moralidade, isto é, por uma atividade,
o que não coaduna com tudo o que Hume falou em outros momentos sobre natureza
meramente passiva da razão, nem, por outros motivos, com o trecho seguinte:
Esse raciocínio não apenas prova que a moral não consiste em
relações que são objetos de ciência; mas, se se o examina, ele provará
com igual certeza que ela não consiste em uma questão de fato que o
entendimento possa descobrir.
(TNH. p. 584. Grifos nossos)
91
As partes destacadas acima falam exatamente o oposto uma da outra e, apesar de a
segunda ser mais coerente com a proposta de Hume, a primeira, onde defende o seu
método, não pode ser ignorada. Assim como não se pode ignorar a afirmação de que:
A verdade é matéria de discussão, o gosto não é; o que existe na
natureza das coisas é a regra de nosso juízo, o que cada um
experimenta dentro se si mesmo é a regra do sentimento. As
proposições de geometria podem ser provadas, os sistemas de física
se prestar a controvérsia; mas, a harmonia de um verso, a ternura de
uma paixão, o brilho de um traço do espírito são de natureza a
proporcionar um prazer imediato. Não se teria a idéia de argumentar
sobre a beleza do outro, mas se argumenta muito freqüentemente
sobre o caráter justo ou injusto de suas ações.
197
(EPM. pp. 46-47)
Essa passagem é a única que, supostamente, poderia sugerir a buscada distinção
entre juízos de fato e juízos de valor. Todavia, se se faz dela uma leitura atenta, verifica-
se que, ao contrário, aqui, Hume preocupa-se em distinguir entre as matérias que são
passíveis de discussão e as que não são. Em outros termos, o que pode ser demonstrado
ou provado e o que não pode. Poder-se-ia, forçando um pouco o texto, defender que
Hume ali parece sugerir que pode haver algo como um ‘juízo de fato’, jamais um ‘juízo
de valor’. Algo que, de todo modo, é no mínimo questionável, visto que, estabelecido
dessa forma, não apenas a reflexão ética, mas também a estética seriam impossíveis
198
.
Ainda assim, a separação ali sugerida é importante para compreender outra distinção
que ele estabelece e que André Cresson e Gilles Deleuze
199
ressaltam ao dizer:
Desse ponto de vista, se vê ao mesmo tempo qual é o problema moral,
e qual é sua diferença com o problema do conhecimento. O que é
197. Posições que Kant contestará, respectivamente, com a segunda e a terceira Críticas.
198. Vide nota anterior.
199. A. Cresson & G. Deleuze. David Hume. Sa vie, son oœvre avec un exposé de sa Philosophie. Paris:
PUF, 1952.
92
difícil, no conhecimento, é inferir, e determinar das partes da
natureza o objeto da física. Essa determinação sempre incerta em
direito, é praticamente operada pelo cálculo das probabilidades. Mas
em moral, ao contrário, os elementos são imediatamente dados. Hume
o especifica: não há inferência a fazer. Somente, o difícil é com eles
construir um todo; o que se a tarefa da regra geral. O problema
moral é a construção de um conjunto, a partir de elementos dados,
mutuamente excludentes, [ou seja,] a constituição de um interesse
geral, a partir dos interesses particulares.
(op. cit. pp. 53-54)
Em outras palavras, segundo Hume, o problema cognitivo é passar do universal
ao particular (ou seja, um problema dedutivo), enquanto o problema ético é fazer o
processo inverso, com base no particular chegar ao universal (um problema indutivo).
Isso, obviamente, decorre de sua proposta de estabelecer o método empírico na reflexão
moral
200
. Com base nessa distinção, Hume reforça a tradicional divisão da filosofia em
especulativa e prática,
sobre o que ele faz outro comentário que sugere uma contradição:
como se compreende sempre a moral nessa segunda divisão, admite-
se que ela influencia nossas paixões e nossas ações e que ela
ultrapassa os juízos calmos e pacíficos do entendimento. É o que
confirma a experiência corrente, essa nos informa que os homens são
freqüentemente governados por seus deveres que eles são
dissuadidos de certas ões pela opinião de que elas são injustas, e
que eles são impelidos a outras ações pela opinião de que elas são
obrigatórias.
(TNH. p.572. Grifos nossos).
Aqui, Hume admite que
a experiência corrente (...) nos informa que os homens são
freqüentemente governados por seus deveres”, algo que, para manter sua própria posição - que
recusa
a capacidade da moral de influenciar as paixões e ações -, ele parece rejeitar,
200. Concepção que será inteiramente rejeitada por Kant.
93
embora, ele próprio tenha escolhido a experiência comum como seu ponto de partida. Já
a afirmação de que os homens são governados por seus deveres não se aplica, de modo
algum, à sua formulação; de fato, soa mais kantiana que humeana.
Faremos, agora, uma breve análise do conceito de valor, cuja pesquisa conduziu a
uma interessante reflexão, partindo mais uma vez da definição oferecida pela
Encyclopédie Philosophique Universelle, segundo a qual:
“O termo valor se emprega em
domínios extremamente diversos, econômico, estético ou ético. É possível, sem fazer o
completo recenseamento desses empregos, distinguir dois tipos de uso: um uso relativamente
normativo, e um uso absolutamente normativo.”
201
O sentido relativo encontra-se, sobretudo, no domínio econômico, dado que o
valor de algo depende do uso que possa ter. Ou seja, o valor de um terreno depende, por
exemplo, de sua fertilidade. Mas pode-se também encontrar tal relatividade com
respeito ao que define algo como desejável ou não, o que leva, num primeiro momento,
a uma avaliação subjetiva que, todavia, pressupõe valores compartilhados socialmente,
ou seja, valores intersubjetivos.
No sentido absoluto, o termo valor surge primeiramente no domínio matemático,
para expressar o valor de um número independentemente de sua posição em relação ao
zero. Mas o termo valor adquire o sentido estritamente absoluto precisamente no
domínio ético, estabelecendo uma ligação entre as noções de valor, universalidade e
unicidade. O exemplo desse sentido de valor encontra-se na filosofia que Kant expõe na
Fundamentação da metafísica dos costumes, na célebre distinção que ele estabelece
entre o “preço” das coisas e o “valor” do ser humano, expresso por sua dignidade, única
noção que pode ser identificada ao valor absoluto. A partir de então, o termo valor
adquire uma importância capital no interior da reflexão ética
202
.
201. P. Mathias. “Valeur ”, In Encyclopédie Philosophique Universelle. Vol. II Les Notions
Philosophiques. Tome 2. Paris: PUF, 1998, p. 2690.
202. O que não o isenta, porém, de severas críticas, por exemplo, as que foram dirigidas por Nietzsche.
94
Essa afirmação parece encerrar a investigação que buscou verificar se a partir do
conceito de fato, é possível inferir dos textos humeanos a distinção entre fato e valor.
Toda a pesquisa conduziu no sentido de demonstrar a posteridade do conceito de
valor
203
em relação ao filósofo escocês, com o que se pode concluir a impossibilidade
de se atribuir a Hume a distinção explícita entre juízos de fato e juízos de valor, embora
sua divisão entre ser e dever possa, certamente, ser identificada à base dessa
diferenciação.
Entretanto, o problema aberto pela (suposta) divisão humeana, entre juízos de
fato e juízos de valor, permaneceu, originando uma oposição entre, por um lado:
os ‹‹cognitivistas››, para quem os enunciados contendo prescrições
podem, como os outros, ser verdadeiros ou falsos, e os ‹‹não-
cognitivistas››, para quem uma avaliação ou uma prescrição não têm
valor de verdade. Os segundos podem reprovar os primeiros por
desconhecerem a especificidade e a irredutibilidade do normativo.
Os primeiros podem acusar os segundos de relegar as avaliações
morais ao domínio irracional do sentimento. Qualquer partido que se
tome, as normas devem poder justificar por referência a outras
normas ou outros fatos, então de maneira heterônoma; mas a
atividade normativa parece também dar prova de uma criatividade
autônoma, introduzindo obrigações que não são naturais.
204
Cabe ressaltar, todavia, a estranha formulação subjacente à tese mantida pelos
“‹‹não-cognitivistas››, para quem uma avaliação ou uma prescrição não têm valor de verdade”.
Pois, se eles identificam
“uma avaliação ou uma prescrição”
a um juízo de valor, o que
defendem é que:
“um juízo de valor não têm valor de verdade”
, ou seja, os não cognitivistas
203. Embora, como destacado pelo Ivan Domingues em nossas conversas, a ampla noção de valor tenha
um longo histórico na tradição filosófica, podendo ser identificada já à idéia platônica de Bem.
204. Pierre Livet. “Normes et Faits”, In Encyclopédie Philosophique Universelle. Vol. I - L’Univers
Philosophique. Paris: PUF, 1998, p. 124.
95
consideram a verdade como um valor, atribuído aos fatos, mas não aos valores.
Todavia, contrariando o que pretendem, acabam por identificar fato e valor. Ou, nas
palavras de Pierre Livet,
“Encontra-se aqui em uma situação paradoxal. Partindo-se da
divisão entre fato e valor, chega-se a encontrar os valores ocultos nos fatos.”
(Ibidem. p. 1890)
E,
poder-se-ia acrescentar que, segundo tal concepção, de modo ainda mais paradoxal, os
valores seriam destituídos do importante valor de verdade.
Mesmo apontado tal contra-senso, a “batalha” ainda não está ganha, pois, para
que a ética seja possível, é preciso demonstrar que, embora
“os valores e normas sejam
diferentes dos fatos, eles sejam suscetíveis de uma descrição e de uma explicação.
(Ibidem.)
Entre as inúmeras tentativas cognitivistas para afirmarem o valor de verdade”
das prescrições morais, merece destaque, por sua simplicidade e eficiência, a proposta
habermasiana que estabelece a distinção entre as pretensões de validade: verdade,
correção e veracidade inerentes a todo ato de fala. Ele aponta, porém, que cada uma
delas prevalece num tipo de situação discursiva específica: a verdade no discurso
científico, com sua dimensão objetiva, a veracidade no discurso psicanalítico, que diz
respeito à dimensão subjetiva e, priorizando a dimensão social ou intersubjetiva, a
correção relativa ao discurso normativo
205
.
Mas apesar da força que adquirem os valores, ao serem aproximados das normas
cabe enfatizar que,
“Permanece verdadeiro que certos valores poderiam não ter força de
norma: eles não implicariam engajamento prático, e ainda menos sanções se não forem
respeitados.”
(Ibidem. p. 1893)
Como, por exemplo, valores estéticos e outros com forte
alcance social, mas que não se destinam a guiar as ações.
Para concluir nossa reflexão sobre o valor, recorremos ainda uma vez às
palavras de Livet, que nos diz:
205. Ainda que posteriormente, em Faticidade e Validade, Habermas proponha a distinção entre fatos,
valores e normas.
96
Se os valores verdadeiros existem, então o conjunto de nossas
expectativas, da revelação de sua resistência à sua insatisfação (...)
forma um processo que deveria tornar provável sua detecção. Mas
isso não nos garantirá que nós saberemos num momento dado quais
são os verdadeiros valores. Com efeito, somente a seqüência infinita
do processo nos certificará de que os valores que nós conseguimos
isolar permanecem sempre estáveis. Do ponto de vista que é o nosso,
e que se inscreve em um momento dado da história, nós não podemos
evidentemente garantir que isso será assim em todo o futuro. A tarefa
de propor valores e de colocá-los à prova dos fatos é exatamente a
nossa, mas ela se perpetuará indefinidamente.
(Op. cit. p. 1899)
Com base nessa formulação, pode-se defender que, mais do que separar, é
possível estabelecer uma íntima relação entre valores e fatos
206
. Ainda assim, será
preciso considerar o ponto de vista segundo o qual, voltando ao tema do item anterior:
Afirmar a autonomia do dever em relação ao ser é a fortiori pensar a
consciência do dever como consciência autônoma (Kant). Mas o
sujeito moral é também o indivíduo racional. O reconhecimento de
sua autonomia, então, segue ao lado da divisão entre os juízos de
fatos que manifestam sua racionalidade e os juízos de valor que
manifestam sua autonomia de decisão. A noção de autonomia moral
se desenvolve então, paradoxalmente, ao lado daquela da
neutralidade axiológica (Weber).
(P. Livet. op. cit. p. 124, c. 1)
Razão pela qual, mais adiante, focalizaremos também a concepção de neutralidade
axiológica de Weber. Antes, porém, concluiremos a exposição dos pensadores
modernos, apresentando a divisão proposta por Kant.
206. Sobretudo com Hilary Putnam que, ao invés de separação, sugere uma estreita ligação entre fato e
valor.
97
C) A separação kantiana entre razão prática e razão teórica
Na raiz dessa divisão kantiana encontra-se a distinção entre θεωρíα e πρξις,
cuja origem remete ao próprio surgimento da filosofia. Pois, como observa Jean
Ferrari
207
, tal separação pode ocorrer
“quando aparece a idéia de um saber desinteressado
que não se preocupa com as aplicações práticas e a [idéia] de uma pesquisa da verdade que
desconsidera as realidades sensíveis.”
(Op. cit. p. 116)
Com o passar do tempo, a definição dos conceitos e a relação original entre eles
foram de tal maneira modificadas, nos diferentes contextos e pelos diferentes autores,
que atualmente
“parece difícil reunir numa mesma problemática a teoria no sentido moderno
do termo e a θεωρíα platônica, a πρξις aristotélica e aquela de Marx e Engels.” (Ibidem.).
A repercussão das modificações do significado dos termos na relação entre eles se
deu tanto no sentido horizontal: originariamente opostos, chegaram à união e até mesmo
à identificação; quanto vertical: inicialmente prevaleceu a superioridade da θεωρíα,
depois a πρξις alcançou sua hegemonia e muitas foram as tentativas, bem ou mal
sucedidas, de reconciliá-las evitando qualquer hierarquia.
Além disso, inúmeros termos
208
surgiram com significados mais o menos
semelhantes aos originais, criando uma gama de conceitos bastante complexa. A
dificuldade hoje é, precisamente, identificar nessa teia conceitual, “o fio da meada”,
para compreender toda a trama que está em jogo nessa questão. Nada mais seguro, em
filosofia, do que remontar ao clássico período grego para, a partir da origem, traçar um
fio condutor que possa elucidar um conceito, no nosso caso, os de teoria e prática.
A relação original entre θεωρíα e πρξις vincula-se diretamente às
características específicas da ciência grega que se constituiu a partir de
“uma dupla
207. Jean Ferrari. “Theoria et Praxis”. In Encyclopédie Philosophique Universelle. L’Univers
Philosophique. I. Paris: PUF, 1989, pp. 116-123. Fonte principal de toda essa parte.
208. Exemplo: “Ação e contemplação, teoria e experiência, fato e lei, idéia e realidade” etc. (Ibidem).
98
renúncia: às explicações míticas tradicionais, [e] às receitas técnicas que ela tinha herdado das
civilizações do Egito e da Ásia.”
(Ibidem.)
A primeira renúncia transforma a cosmogonia, própria ao discurso mítico, em
cosmologia, uma narrativa também sobre a origem, mas com base no discurso racional.
E a segunda renúncia transforma o sentido inicial de geometria, como técnica de
agrimensura, em uma construção puramente teórica e racional.
Os dois aspectos referem-se ao primeiro sentido do termo grego θεωρíα,
comumente traduzido por contemplação
209
uma vez que
“ele designa ao mesmo tempo a
ação de olhar e o que é olhado e, para o filósofo, incluindo aqui o cientista que prefere a razão
ao fato, definitivamente não se trata de ver as aparências sensíveis, mas as idéias ou realidades
inteligíveis cuja visão constitui propriamente a ciência (′επιστηµη).”
(Ibidem p. 117.)
o espírito da ciência moderna desenvolve-se numa dialética entre a pesquisa
teórica e a prática, sem superioridade de uma em relação à outra. Resta ainda alguma
pesquisa desinteressada, tal como os gregos poderiam conceber, mas, ainda assim,
desde que em algum nível ela se refere a dados observáveis, ela acaba sendo submetida
à verificação experimental e, por esse fato, sua verdade deriva de uma prova prática.
A ciência moderna nasce, então, do casamento entre a imposição do modelo
matemático à física (por extensão a todas as demais ciências naturais), numa palavra:
desse ideal de quantificação, e a metodologia experimental. Nesse sentido, são
profundas as transformações na relação entre a teoria e a prática, sendo a mais relevante
o fato de que a teoria científica perde, definitivamente, o caráter meramente
contemplativo da θεωρíα grega. É o fim do conhecimento desinteressado.
209. Além dessa oposição entre a contemplação, como fonte de uma insuperável felicidade e as demais
atividades práticas, vistas como inferiores; Platão introduz no Cármides outra distinção entre ποιειν e
πραττειν, verbos gregos que significam, respectivamente, fazer/produzir e agir; e que estão na raiz das
palavras poiesis e práxis: “o primeiro designando a forma geral do agir humano, o segundo uma
especificação deste agir na ação humana que visa o bem, a ação moral que nos aproxima da contemplação
das essências” (Ibidem). Aristóteles, embora dela recusando vários aspectos, é herdeiro dessa tradição. Na
Metafísica (E, 1, 1025b 25), retomando a divisão de seu mestre, ele afirma que toda operação do
entendimento é “prático, produtivo ou teórico.” (Ibidem.) No interior da poiesis estaria inserida a τέχνη.
99
Um dos méritos de Kant foi, nesse contexto de profunda “quantificação e
instrumentalização” da ciência, restabelecer à prática seu sentido originariamente moral,
renovando a antiga oposição entre conhecer e fazer, com base na distinção entre
“conhecimento teórico, cujos princípios racionais são os conceitos da natureza e a filosofia
prática cuja legislação é aquela da liberdade.”
(Ibidem.)
Kant retoma ao seu modo a distinção platônico-aristotélica, empregando o termo
ação ao que se identificaria à dimensão da πρξις, isto é, ao âmbito da atividade
decorrente da vontade livre, que institui o domínio próprio do agir humano,
e reservando
o termo técnica para a esfera da aplicação ou dos efeitos produzidos pela teoria.
Contudo, o problema criado pela filosofia kantiana é a passagem da teoria à
prática, decorrente desta divisão entre natureza e liberdade
210
, entre ciência e moral, ou
entre razão pura e razão prática, sendo a primeira responsável por estabelecer
“as
condições de possibilidade do que é, [e] a segunda aquelas do que deve ser.”
211
(Ibidem.)
Segundo Otfried Höffe,
“Com a separação entre uso teórico e prático da razão Kant
reconhece a distinção de Hume entre proposições descritivas e proposições prescritivas.”
212
No âmbito teórico, Kant reconhece, por um lado, a teoria física que se ocupa dos
objetos dados na experiência e, por outro, uma teoria especulativa, equivalente à antiga
metafísica, que se volta para os princípios, postulando conceitos que se constituem pela
“pretensão ilusória da razão de apreender o ser em si”
.
(Ibidem. p. 120)
No âmbito prático, trata-se de conceber, também, uma ‘teoria’, voltada não aos
princípios do que é, mas às leis do que deve-ser, mesmo que tal dever nunca venha a se
210. Ou ainda, entre necessidade e liberdade. Dicotomia presente no Livro II, Parte III, Seção I, do
Treatise of Human Nature, de Hume, e que origem à célebre 3a antinomia exposta no Livro Segundo
da “Dialética Transcendental”, da Crítica da Razão Pura. Cuja solução exige de Kant a divisão entre o
reino da liberdade e o reino das causas ou da necessidade que, por sua vez, restam separados.
211. Distinção baseada na divisão humeana, discutida em B.1.
212. Otfried Höffe. Immanuel Kant. p. 188.
100
realizar. Logo, na esfera da liberdade, cabe distinguir entre uma
“teoria prática ou prática
teórica e uma prática que será a própria experiência moral, em seu caráter factual.”
213
(Ibidem)
Com efeito, a principal preocupação de Kant é demonstrar que, na esfera prática,
o valor da ação não tem por base a experiência, mas
“a prescrição universal e necessária
que é o dever. A teoria aqui é a razão que legifera, e somente há conduta moral na submissão às
prescrições da Razão prática”.
(Ibidem)
Ferrari ressalta o fato de Kant estender tal princípio também às esferas política e
jurídica, (tanto ao direito Civil quanto Internacional), uma vez que, segundo pensa,
sobretudo nesses âmbitos da ação, os fundamentos não podem derivar da experiência,
mas, somente, dos princípios a priori. É precisamente na esfera do direito internacional
que, segundo o autor, esta concepção kantiana se mostra mais fecunda, ao superar a
limitação de sua época, marcada pela situação concreta onde as relações entre os
Estados eram estabelecidas pela força, e o contexto teórico que oscilava entre
concepções utópicas de um lado e, do outro, por aqueles que, como Mendelssohn, se
recusavam a ver qualquer progresso no curso da história. Kant, por sua vez, vislumbrava
a possibilidade “
(in praxi) de um estado universal dos povos fundado sobre o Direito”.
(Ibidem).
Nesse sentido, Ferrari nos diz que, na visão kantiana:
a experiência moral, a constituição do Estado, a vida internacional
perderiam toda significação se uma teoria não definisse as condições
a priori de sua existência. (...) A teoria que é aqui entendida como o
213. Kant preocupa-se em examinar todos os aspectos dessa distinção, apresentada em diferentes textos.
Na Fundamentação da Metafísica dos Costumes ele busca encontrar e estabelecer o princípio supremo da
moralidade. Na Crítica da Razão Prática ele abandona a análise da razão em seu uso especulativo,
realizada na Crítica da Razão Pura, para se dedicar a seu uso prático. Essa obra concerne, então, ao
domínio do agir e não mais aquele do conhecimento teórico. Na filosofia moral de Kant, a Metafísica dos
Costumes é complementar à Fundamentação da Metafísica dos Costumes e constitui sua seqüência. Pois,
nessa Kant expôs somente os princípios a priori da moralidade, dando apenas alguns exemplos para
ilustrar sua demonstração, naquela, ele detalha o conteúdo concreto dos diferentes deveres morais. Na
Antropologia do ponto de vista pragmático, ele examina o que o homem enquanto ser livre “faz ou pode e
deve fazer de si mesmo”. E ainda num opúsculo intitulado “Isto pode ser correto na teoria, mas nada vale
na prática”, ele examina a relação entre teoria e prática em três esferas distintas: na moral geral, no direito
político e no direito das gentes.
101
conjunto dos princípios a priori da ação, diz o que deve ser, ela é
conforme à essência do homem e se exprime em um ideal formal cuja
necessidade e universalidade são percebidas por todos. Na prática, a
experiência dos indivíduos como a história dos homens se esforça por
realizar esse ideal sem jamais alcançá-lo, mas o progresso se define
precisamente por esse esforço que tende a uma perfeita moralidade e
um Estado universal de direito almejado pela natureza. Por esse fato,
o homem reconhece que ele não é um simples fenômeno sensível, mas
que ele tem uma natureza inteligível e um destino infinito que
nenhuma experiência poder realizar plenamente.
(Ibidem)
A formulação kantiana não chega, portanto, a criar uma dificuldade à reflexão
ética propriamente dita, mas cria um problema para a articulação entre ela e a ciência.
Após Kant, muitos autores buscaram pensar essa relação entre teoria e prática,
desfazendo a separação entre ideal e fato, razão e história. Fichte, por exemplo, suprime
a distinção entre razão prática e razão teórica.
214
Ainda assim, permaneceu a cisão entre
as esferas da liberdade e da necessidade, expressa na separação entre ética e ciência.
Deixando em aberto tal separação, passamos à exposição das questões colocadas
por Weber e Moore.
2.2 –
Dificuldades colocadas à reflexão ética decorrentes do pensamento contemporâneo
Nesse tópico, para começar, sefeito uma breve exposição da falácia naturalista
formulada por George Edward Moore (A’). E, em seguida, uma discussão acerca da
concepção de neutralidade científica (B’) de Max Weber
215
.
214. Hegel vai mais além, almejando conciliar a essência e a situação humana concreta, reconciliar o
finito e o infinito. Para Hegel, trata-se, portanto, de apreender a totalidade da experiência humana. Pois,
segundo ele, “se a prática é freqüentemente impotente para se exprimir racionalmente, e se a teoria é
incapaz de encontrar o real, é porque não se toma bastante a sério a própria vida que é, a uma vez,
teoria e prática, vida do pensamento, mas também pensamento da vida”. (Ibidem) A solução proposta por
Jonas, como veremos, caminha nessa direção, embora de forma diversa.
215. A divisão entre Ética da Convicção e Ética da Responsabilidade será discutida no capítulo 3.
102
A’) G. E. Moore e a falácia naturalista
Se a divisão kantiana não cria, propriamente falando, um problema à reflexão
ética, o mesmo não se pode dizer da interpretação corrente da “lei de Hume”. Esse
também é o caso, conforme se pretende demonstrar, da célebre falácia naturalista de
Moore, defendida como prova irrefutável da completa inaptidão de toda ética anterior, e
mesmo de algumas posteriores, ao renomado filósofo inglês.
Moore é considerado, ao lado de Bertrand Russell, o fundador da chamada
filosofia analítica que, exerceu grande influência, sobretudo na primeira metade do
século XX. A filosofia analítica, aplicada à moral, estabelece que antes de investigar a
natureza do contexto moral, propriamente dito, o filósofo deve analisar o conteúdo dos
termos empregados nos enunciados prescritivos.
216
Seguindo, portanto, a linha de abordagem sugerida por Hume, Moore quer
demonstrar que a maioria das concepções éticas comete o equívoco de utilizar termos
morais como se referissem a objetos naturais.
A influência de Moore com sua pesquisa analítica em ética é, portanto, decisiva,
pelo fato de ter por objetivo tornar evidentes as formulações possíveis dos enunciados
morais, com base na avaliação de suas condições formais e de seus conteúdos, enquanto
proposições normativas. Ele mostra que o exame do que é próprio à esfera da moral
começa pelo questionamento do que se pretende dizer quando se emprega, por exemplo,
o predicado bom ou justo em relação a algo ou alguém. Com esse ponto de partida,
Moore cria condições para que também o problema da justificação ética possa ser
formulado no interior da análise dos enunciados morais. Assim, sua análise semântica
216. Alguns autores associam esta nova abordagem, que faz da linguagem o centro de toda investigação
possível no âmbito moral, ao procedimento, senão realizado, ao menos sugerido por Hume. Abordagem
que foi denominada de metaética e será discutida no capítulo 3.
103
dos enunciados de valor, realizada no Principia Ethica
217
, fornece elementos para se
abordar logicamente os problemas referentes à justificação das expressões normativas.
Ele começa pelo esclarecimento de que,
“a particularidade da Ética não é examinar as
afirmações relativas à conduta dos homens, mas relativas à propriedade das coisas que designa o
termo ‘bem’, e à propriedade oposta designada pelo termo ‘mal’.”
(PEf. pp. 80-81).
Isso porque Moore considera que
“esta questão [de] como definir o ‘bom(o bem) é a
mais fundamental de toda a ética.”
(Ibidem. p. 97)
É ainda no Principia Ethica que ele apresenta seu argumento central identificado
como a falácia naturalista que pode ser exposto, brevemente, da seguinte forma:
qualquer teoria que procure definir a ética em termos naturalistas - o que significa
buscar em argumentos não-morais, inspirados na concepção de que a Natureza pode ser
tomada como fonte de normas, valores e critérios para a ação - incorre na falácia
naturalista.
A ética visa estabelecer o que é bom ou correto, ou seja, o que deve ser. Todas as
teorias chamadas de naturalistas identificam o substantivo bondade ou correção com
propriedades “naturais” das coisas, melhor dizendo, com aquilo que é. O que constitui
um equívoco
218
. Pois, segundo a falácia naturalista, não se pode identificar o que deve
ser àquilo que é. Moore esclarece ainda que reservou
o nome de "naturalismo" a um método particular para abordar a
ética método que, no senso estrito, não é compatível com a
possibilidade de uma ética, qualquer que ela seja. Esse método
consiste em substituir ao «bem» alguma propriedade única de um
objeto natural ou de uma coleção de objetos naturais; e a substituir
assim a ética por uma das ciências da natureza.
(PEf. p. 86)
217. Será utilizada a versão francesa, daí porque será abreviada pelas iniciais PEf.
218. Tanto segundo a “lei de Hume”, quanto, como estamos vendo, na perspectiva da falácia naturalista.
104
Um bom exemplo de teoria naturalista é oferecido pela concepção de Herbert
Spencer
219
que, inspirado pela teoria evolucionista de Darwin, identifica a “boa
conduta” à “conduta mais evoluída”. Mas, na perspectiva da falácia naturalista, o
adjetivo “bom” não pode ser identificado, diretamente, à expressão: “mais evoluído”,
porque se referem a esferas diferentes. Pois, segundo Moore, afirmar que algo é “bom”
envolve uma questão de avaliação; enquanto afirmar que algo é “mais evoluído”
constituiria uma questão de fato.
220
Em outros termos, a segunda pertence ao âmbito do
ser, enquanto a primeira pertence à esfera do dever. Sendo assim, a teoria de Spencer,
ao mesmo tempo, transgride a “lei de Hume” e comete a falácia naturalista.
Vemos, portanto, que a “lei de Hume” e sua versão analítica, a falácia naturalista,
tornam-se critérios rigorosos para avaliar se uma teoria moral pode ou não ser
considerada adequada, com base no uso que faz dos termos normativos.
221
A seguir, para concluir esse tópico, focalizaremos o pensamento
222
de Max
Weber.
B’) Weber e a neutralidade axiológica
Em
B.2
do tópico anterior, buscou-se identificar no contexto da obra de Hume a
origem, freqüentemente a ele atribuída, da distinção entre juízos de fato e juízos de
valor. A ausência de qualquer ocorrência explícita do termo valor levantou a suspeita
quanto a tal filiação que, se de fato existe, não pode ser senão indireta. Isso fica ainda
mais evidente quando se investiga, no interior do pensamento weberiano, o tema da
neutralidade axiológica do qual vamos, a seguir, nos ocupar.
219. Identificado como o fundador do chamado “darwinismo social”.
220. Algo, todavia, no mínimo discutível, sobretudo em se tratando de sociedades humanas.
221. Vale mencionar o comentário de Ivan Domingues, ao assinalar que, curiosamente, porém, na
perspectiva de Moore, o próprio Hume, por identificar a origem da moral num sentimento, propondo,
assim, uma moral naturalista subjetivista, incorreria também na falácia naturalista.
222. Na verdade, aqui será examinada somente a noção de neutralidade axiológica, deixando a discussão
sobre a distinção entre ética da responsabilidade e ética da convicção para o capítulo seguinte.
105
Uma das primeiras indicações que encontramos com relação a essa questão é a
afirmação de que
“Weber, retomando uma posição de Kant, sustenta que não se deve
confundir juízo de fato e juízo de valor
223
. Em termos kantianos, isso equivaleria a identificar o
Belo ao Bem e ao Verdadeiro, o que impossibilitaria o conhecimento objetivo, em função de
uma abordagem forçosamente unilateral do real”
224
.
Importa, aqui, frisar que Hume pode ter inspirado, mas não foi ele que estabeleceu
tal separação. Talvez o mesmo valha para Kant. Efetivamente, é em Max Weber que
tais expressões são colocadas de forma explícita, justamente, a propósito de sua reflexão
sobre a neutralidade axiológica, que se tornou bastante célebre, o que não significa,
porém, que ela seja sempre bem compreendida. Razão pela qual será preciso fazer uma
breve recapitulação de sua formulação. Antes de qualquer coisa, é indispensável
compreender o contexto no qual Weber concebe e defende tal posição.
Na passagem do século XIX ao XX, no meio intelectual alemão tem lugar um
debate entre aqueles que, por um lado, defendem a possibilidade de se deduzir, de uma
ciência geral da sociedade, um sistema de leis e normas válido para um dado grupo
social, eliminando, para isso, os aspectos políticos dessa reflexão e, por outro, aqueles
que, como Weber, defendem a impossibilidade de se tomar um aspecto, mesmo aquele
que se apresenta como preponderante na análise de uma determinada transformação
social, como princípio motor da história universal. Pois, a hierarquia dos diferentes
fatores causais não existe no real, mas resulta da própria atitude do investigador.
Isso significa que a sociologia não pode fornecer diretrizes para a ação política,
uma vez que essa pressupõe sempre uma escolha de valores, e a tarefa daquela se limita
a indicar os aspectos técnicos para avaliar uma dada situação e as previsíveis
conseqüências de uma decisão.
223. Resta saber se tais expressões se encontram ipsis literis em Kant ou se foram inferidas a partir da
divisão que ele propõe e torna patente em suas três críticas.
224. Tradução livre do texto extraído de http://www.memo.fr/article.asp?ID=PER_CON_008#Som1
106
Assim, segundo Weber, é preciso manter a separação entre a posição científica
que se restringe a fazer a constatação objetiva dos fatos e a dimensão prático-avaliativa.
Cabe dizer que a ciência se destina a estabelecer juízos de fato, cuja validade se pretende
universal, enquanto os juízos de valor
225
são, por definição, contextuais e subjetivos.
Nessa perspectiva, surge a questão quanto à possibilidade de se estabelecer uma
ciência objetiva das práticas humanas, que são sempre impregnadas de valores.
Em resposta a tal questão, Weber propõe a distinção entre juízo de valor
(Werturteil) e relação aos valores (Wertbeziehung). O juízo de valor pressupõe um
posicionamento ético ou existencial, enquanto que a relação aos valores é a base ou
pano de fundo das questões que um investigador dirige à realidade. Nas palavras de
Weber:
“a relação aos valores designa a interpretação filosófica do ‘interesse’ especificamente
científico que comanda a seleção e a formação do objeto de uma pesquisa empírica.”
(Essai sur
la théorie de la science, 434, Grifos nossos.)
Ela constitui, portanto, a possibilidade de se
interpretar e compreender as diferentes condutas humanas.
Tal distinção precisa ficar nítida, pois ela constitui a base do que Weber denomina
de neutralidade axiológica. Postura que ele considera indispensável, sobretudo, no
exercício da atividade de ensino, criticando duramente aqueles que se serviam de suas
posições para ‘professar’ suas convicções pessoais, ou seja, emitir seus juízos de valor,
em seus cursos. Retomando o texto de Weber, lemos que:
Entre os pretensos adversários da liberdade de fazer em ‘sala de aula’
avaliações (políticas) alguns são menos que os outros habilitados a
invocar o princípio da exclusão dos juízos de valor’, que ademais
eles entendem com freqüência muito mal, em função de desacreditar
as discussões concernentes aos problemas de política cultural e social
que têm lugar publicamente, fora das salas de aula. Em razão da
225. Já Émile Durkheim propõe a distinção entre juízo de valor e juízo de realidade.
107
existência incontestável de elementos tendenciosos e pseudo-
independentes em relação aos valores que são no mais encorajados
em nossas disciplinas por grupos de interesses poderosos, tenazes e
conscientes de seu fim, compreende-se sem nenhuma dúvida que certo
número de cientistas, perfeitamente independentes de caráter,
persistem em nossos dias em fazer avaliações em suas classes, porque
eles são muito orgulhosos para participar dessa imitação (tolice) de
uma aparente “neutralidade axiológica”.
(Essai. p. 409)
Portanto, ao defender a neutralidade axiológica, Weber critica o uso da cátedra
para fins de “propaganda” das posições pessoais, mas isso não significa que ele defenda
que as discussões políticas, fora das salas de aula, devam ser evitadas ou que sejam
destituídas de valor. Ao contrário, ele reconhece a sua legitimidade e também o fato de
que o valor constitui algo presente em toda atividade humana em geral e com relação à
atividade científica não seria diferente. O que ele denomina de ‘relação aos valores’
está, necessariamente, presente desde o momento da escolha de um objeto de estudo.
Nesse sentido, Weber defende que:
Uma discussão concernente ao valor não tem no fundo outra
significação que contribuir para apreender o que o interlocutor (ou
ainda nós mesmos) visa realmente, quer dizer compreender o valor
que está realmente e não aparentemente em jogo entre as duas partes
e tornar assim possível em geral uma tomada de posição em relação a
esse valor.
(Ibidem. p. 421)
Ou seja, ao invés de negar ou tentar ocultar tais valores, eles precisam, mesmo, é
ser explicitados. Desse modo, ao contrário do que a expressão ‘neutralidade axiológica’
possa sugerir, o que Weber expressa através dela, está
Bem longe então do ponto de vista da exigência da ‘neutralidade
axiológica’ [segundo o qual] as discussões empíricas a partir de
108
controvérsias sobre as avaliações sejam estéreis ou destituídas de
todo sentido, o conhecimento de sua significação constitui ao
contrário a pressuposição de todas as discussões úteis desse gênero.
Elas pressupõem simplesmente a compreensão da possibilidade de
avaliações últimas que são em princípio irredutivelmente divergentes.
(Ibidem. pp. 421-422)
Tal concepção é bastante ousada, sobretudo, num momento em que predominava
a tese cientificista da ‘objetividade’ e da necessidade de se exilar do campo científico
toda e qualquer referência ao valor. Mas, seguindo Julien Freund - em sua obra
intitulada precisamente Max Weber - caberia ainda perguntar, na perspectiva weberiana:
O que é o valor? Ele não é uma qualidade inerente às coisas; ele não
é da ordem nem do dado sensível nem da transcendência, mas
daquela do juízo. Não , portanto, qualquer valor objetivo, ele é
profundamente subjetivo, criado pelo homem, conforme ele aprova ou
desaprova alguma coisa, a busca ou a rejeita, a louva ou a despreza.
(MW, p.26)
Em função desse caráter essencialmente subjetivo, poderíamos dizer:
convencional e, por esse motivo, arbitrário do valor,
“Weber afirma
(...)
não somente a
irracionalidade fundamental do mundo; mas também de todos os valores, sem nenhuma
exceção.
(...)
Pois, os valores não têm nenhuma realidade sensível nem transcendental, eles não
têm outro suporte que as significações variáveis que nós damos às coisas.”
( MW, pp.26-27)
Isso significa que os valores são, na verdade, mera construção
226
humana. Razão
pela qual eles são tão diversos e “voláteis”, pois não correspondem a nenhuma realidade
concreta.
“Daí a definição seguinte de valor: ‘Nós entendemos por valor o que e unicamente o
que pode se tornar o conteúdo de uma tomada de posição, então, se tornar o objeto de um
julgamento articulado e consciente, de caráter positivo ou negativo’.”
(MW, p.28)
226. Construção que pode ser pessoal ou social, ou seja, individual ou coletiva. Resultando em valores
subjetivos ou “objetivos”, no sentido de serem compartilhados intersubjetivamente numa dada sociedade.
109
Entretanto, levando-se a sério essa concepção de valor, que explica porque
Avaliação e significação são então para Weber dois termos quase
sinônimos que ele emprega às vezes numa mesma expressão, aquela
da avaliação significativa. Dever-se-ia concluir que finalmente todos
os valores se equivalem e que poderia ser indiferente escolher um ou
outro. Se tudo se equivale, nada vale. Como os valores podem então
nessas condições suscitar antagonismos?
(Ibidem. Grifos nossos)
Em outros termos, uma vez destituídos de sua realidade concreta, todos os valores
tornam-se igualmente subjetivos, irracionais, o que impede que se estabeleça qualquer
hierarquia entre eles. E se não diferença entre eles, surge a questão: o que conduz a
conflitos entre os diversos valores? Todavia, Weber nos esclarece que tal interpretação
não se aplica a todos os domínios. Mais exatamente, é
apenas do ponto de vista teórico, como simples expressão de um
juízo, que os valores são todos de mesma natureza, mas não é assim
na prática, porque os valores têm um caráter vital, uma vez que eles
dão um sentido à nossa existência. O que faz que haja uma diferença
entre eles é o grau de nossa adesão.
(MW, p.28)
Desse modo, o que Weber pretende frisar é o aspecto de que a diferença não
reside nos valores, mas na avaliação pessoal de cada valor. Por esse motivo ele pode
considerar que
O bem não é uma substância eterna, imutavelmente idêntica a si
mesma e definível a priori, mas, conforme as circunstâncias e nossas
escolhas sucessivas, uma mesma coisa pode tornar-se boa ou má.
(...)
Por conseqüência, quer seja coletiva ou individual, a criação dos
valores é sempre subjetiva e irracional. Do ponto de vista do
estabelecimento de um antagonismo dos valores, a sociedade não
goza de nenhum privilégio epistemológico ou metafísico em relação
110
aos indivíduos; não então nenhuma razão de ver nela uma
realidade superior ao homem. Aliás, a oposição entre o indivíduo e a
sociedade é uma das fontes principais do antagonismo de valores.
(MW, p.30)
227
Assim, Weber não concebe qualquer valor, nem mesmo o bem, como imutável,
nem atribui qualquer preferência heurística ou epistemológica à sociedade em relação
ao indivíduo. Ou seja, nem na criação nem na avaliação dos diferentes valores
228
existe
uma supremacia do grupo em relação ao indivíduo. Isso significa que um valor social
não é menos arbitrário que um valor individual e que, longe de ser uma via para
resolver, a sociedade constitui mais uma fonte de conflitos entre diferentes valores.
Sobre o tema do conflito de valores, é preciso acrescentar que há
ainda outro aspecto sobre o qual Weber não cessou de insistir: o
paradoxo das conseqüências. Não é unicamente a escolha divergente
de fins diferentes que provoca a ‘colisão’ dos valores, mas ainda as
conseqüências de nossas ações. Não é verdade que o bem engendra
somente o bem e o mal somente o mal, porque nossas melhores
intenções, as mais puras como as mais nobres podem, uma vez
realizadas, provocar conseqüências desagradáveis para nós mesmos
e incômodas para os outros
229
. De onde nova fonte de conflitos.
(MW,
p.30)
Ao abordar o paradoxo das conseqüências, Weber desmistifica a ingênua opinião
de que as boas causas conduzem a bons resultados e acrescenta mais um dado ao
227. Haverá, porém, uma esfera não subjetiva ou intersubjetiva de valor? Jonas tentará mostrar que sim.
228. Weber fala, por exemplo, de valores epistêmicos tais como verdade e objetividade, que devem
conduzir a pesquisa científica.
229. Extrapolando um pouco a reflexão weberiana, poderíamos acrescentar que esse aspecto constitui um
desafio especial à reflexão ética, sobretudo porque denuncia um aspecto deficiente da reflexão kantiana,
com relação aos efeitos. Ou seja, não basta agir bem e com a melhor das intenções, pois, além disso, os
efeitos das ações também devem ser considerados. Isso confirma o dito popular segundo o qual de boas
intenções o inferno está cheio”. Por esse motivo, a ação verdadeiramente ética precisa, portanto, reunir os
três requisitos concernentes aos princípios, meios e fins, isto é, motivação, ação e conclusão (efeito).
111
problema do conflito de valores, inevitável tanto na dimensão individual quanto social,
mas também presente na própria atividade científica. Visto que, segundo ele:
a história das ciências é uma sucessão de conflitos de métodos que
mascara um antagonismo de valores. (...) Mesmo as ciências da natureza
não escapam ao dogmatismo metodológico. É, entretanto, na esfera das
ciências humanas e sociais que a luta é a mais característica. (...) Weber
insiste particularmente sobre a tensão característica entre a relação aos
valores e a neutralidade axiológica, isto é, entre a inevitável
subjetividade própria a toda espécie de conhecimento e a necessária
objetividade que exige a atitude dita científica. Não seria o caso de
sacrificar a subjetividade em favor da objetividade, à maneira do
positivismo naturalista, nem inversamente a objetividade em favor da
subjetividade à maneira dos idealistas ou ideólogos que fazem intervir
seus ideais práticos ou suas convicções em suas pesquisas. Weber
combate com a mesma paixão essas duas posições unilaterais que
negligenciam, tanto uma quanto a outra, um aspecto do trabalho
científico. Ainda que sejam contraditórios ambos pertencem, ao mesmo
tempo, à investigação científica. (MW, pp. 32-33)
Mais uma vez, vale a pena ressaltar a posição weberiana que postula, não a
exclusão, mas a convergência entre a objetividade e a subjetividade, duas atitudes
científicas que, embora pareçam contraditórias, podem, muito bem ser consideradas
como complementares e igualmente desejáveis para a melhor realização da atividade
científica, desde que uma não predomine sobre a outra. Nesse sentido,
não é preciso (...) atribuir uma significação puramente negativa a
essa inevitável subjetividade que introduz a relação aos valores, uma
vez que é uma condição do desenvolvimento do saber científico. (...)
O que importa reconhecer absolutamente, é que os pontos de vista
variáveis que ela condiciona têm somente uma validade hipotética; e
112
são somente fios condutores do trabalho de pesquisa. Essa idéia
constitui o fundo mesmo da noção weberiana tão contestada de
neutralidade axiológica, que define a uma vez o sentido da
pesquisa teórica e a atitude prática do cientista enquanto cientista.
Ela significa de início que o cientista se abstém de transformar os
valores segundo os quais ele aborda o estudo do real em julgamento
de valores, isto é, de fazer das convicções pessoais [as orientações]
conforme as quais ele aprecia positivamente ou negativamente os
eventos. Esta confusão, Weber não cessa de denunciar em toda a sua
obra epistemológica. antagonismo entre juízo de valor e relação
aos valores, porque eles pertencem a duas ordens heterogêneas. O
primeiro aprova ou desaprova em nome da crença, a segunda é uma
hipótese de trabalho permitindo conduzir a resultados controláveis. O
papel do cientista é explicar e fazer compreender o real ou os
eventos, não de idealizá-los ou depreciá-los.
(MW, p.37-38)
Enfim, poderíamos concluir essa reflexão, acrescentando que a
“neutralidade
axiológica significa então que pode haver tensão e antagonismo no cientista entre as
obrigações da pesquisa e seu engajamento prático como homem.”
(MW, p.38)
O que longe de ser um problema, representa a dimensão mais real e efetivamente
humana de se compreender e bem conduzir a ciência.
Passamos a seguir a exposição do último tópico do presente capítulo.
2.3 - A desarticulação entre ética, ciência e técnica
113
Para discutir essa questão, tomar-se-á por base o texto, “Ética, Ciência e
Técnica”
230
, de Ivan Domingues, que expõe o tema de forma bastante expressiva.
Ele inicia a discussão expondo a visão de alguns importantes autores que
abordaram a questão da ciência e da técnica, a partir de diferentes perspectivas.
Começando pelas posições de Descartes e Bacon
231
que, apesar de suas nítidas
diferenças no que tange à questão da teoria e do método, concordam quanto ao fato de
que o homem deve usar a ciência e a técnica para conhecer e dominar a natureza. A
partir do quê, Bacon afirma que saber é poder. Essa sentença, que se tornará o “lema de
Bacon, encontra-se na origem da ciência moderna
232
e coincide com o rebaixamento da
natureza à condição de algo a ser conhecido para ser dominado.
233
Para alcançar esse objetivo, Bacon percebe a necessidade de se estabelecer um
novo organon
234
, ou seja, um novo “instrumento” de investigação em lugar do velho
Organon aristotélico, uma vez que esse se baseia no método dedutivo
235
, que segundo
Bacon é válido para a demonstração, mas não para a descoberta de novos
conhecimentos. Ao passo que
a indução dos fatos particulares observados, nos faz inferir uma
verdade que antes não conhecíamos. A insuficiência do método
aristotélico é de ter tratado difusamente a dedução e quase
transcurado a indução. Bacon se propõe integrá-lo, de modo a
230. I. Domingues. “Ética, Ciência e Técnica”, in Kriterion. Belo Horizonte: UFMG, no 109, jun/2004, p.
159-174.
231. Aqui, em função de sua importância para a discussão, será feita uma breve digressão a respeito de
Bacon. Mais adiante, ao mencionar Rousseau voltaremos à exposição de Domingues.
232. Sobre isso Jonas declara que “Na origem da ciência moderna, a análise do devir substitui a
contemplação do ser.” (PhL, 67) Apud. Frogneux, p.125.
233. Essa concepção a respeito da natureza é um traço decisivo da ciência moderna, mas seus ecos ainda
se fazem ouvir nos dias atuais, apenas enfraquecidos pelo contraponto do clamor ecologista.
234. Novum organum é o título de uma das mais importantes obras filosóficas de Bacon (que, na verdade,
constitui uma parte da Instauratio magna ou Grande restauração), publicado em 1620, onde Bacon
apresenta e descreve o seu novo método para as ciências, visando substituir o Organon aristotélico.
235. A dedução é denominada por Bacon de antecipação da mente e a indução de interpretação da
natureza.
114
arrancar da natureza os seus segredos através da experiência e da
observação, as únicas que, fazendo-nos conhecer as causas das
coisas, nos dão o domínio sobre elas. Somente assim os homens
sairão da barbárie livrando-se de sua miséria e infelicidade. O fim da
ciência, para Bacon é pragmático, instrumental: ela é o instrumento
do qual o homem se serve para interpretar e dominar a natureza.
236
Com base nesse método e plenamente confiante no potencial do homem de levar
adiante a tarefa de dominar a natureza, Bacon
237
estabelece também um programa para
essa nova ciência.
O curioso desse programa é o fato de que, se à época ele pudesse parecer
extremamente ambicioso, quase irreal, em nossos dias, o que se verifica é que
praticamente todas as metas ali estabelecidas foram alcançadas ou estão muito
próximas de sê-lo. Razão pela qual é interessante apontar, aqui, os seus aspectos mais
importantes:
Programa para a Nova Ciência de Sir Francis Bacon
Magnalia Naturæ - Præcipue quoad usus humanos
238
Prolongar a vida.
Devolver, em algum grau, a juventude.
Retardar o envelhecimento.
Curar as doenças consideradas incuráveis.
236. M. F. Sciacca. op. cit. p. 66.
237. Apesar de Bacon ser reconhecido por ter lançado a pedra fundamental do método indutivo-
experimental, efetivamente, não coube a ele o mérito de realizar a passagem do método qualitativo para o
quantitativo. Esta mudança se deu com Galileu, reconhecido, por isso, como o verdadeiro pai da
revolução científica ao, distanciando-se de Bacon, introduzir a Matemática e a Geometria para testar, isto
é, confirmar ou não as hipóteses e estabelecer a verdade científica -, reconhecidas, então, como as
linguagens privilegiadas da ciência. Porém, a ênfase concedida, aqui, a Bacon se deve, antes, à sua visão
com relação à ciência, que é o tema que está se discutindo no momento.
238. “As maravilhas naturais, sobretudo aquelas que servem ao homem”. Esta lista encerra o volume
composto pela Sylva Sylvarum e a New Atlantis, volume que constitui a edição original de 1627.
115
Amenizar a dor.
Purgativos (remédios) mais acessíveis e menos repugnantes.
Transformar o temperamento, a obesidade e a magreza.
Transformar a estatura.
Transformar os traços.
Metamorfose de um corpo em outro.
Fabricar novas espécies.
Transplantar uma espécie em outra.
Instrumentos de destruição, como aqueles de guerra e de perigo [de ameaça].
Tornar os espíritos alegres, e colocá-los em boa disposição.
Poder da imaginação sobre o corpo, ou sobre o corpo de outro.
Acelerar o tempo no que tange à maturação.
Acelerar o tempo no que concerne à destilação.
Acelerar a germinação.
Fabricar para a terra compostos ricos [nutrientes].
Produzir alimentos novos a partir de substâncias que não são atualmente utilizadas.
Fabricar novos fios para vestimentas; e novos materiais a exemplo do papel e do vidro.
Predições naturais.
Ilusões dos sentidos.
Maiores prazeres para os sentidos.
239
É impossível conhecer esse programa sem nos admirar. Pois, de fato, quase tudo o
que Bacon propôs ali
(em 1627!!!)
parece ter sido conquistado, principalmente, pela
ciência do século XX. Por isso, considerar o projeto baconiano, nos leva a concluir que
de duas uma: ou Bacon foi seguido muito fielmente pelos realizadores dessa nova
ciência que ele fundou ou que ele foi, na verdade, um “profeta”, tamanha a precisão
com que cada um das metas acima listadas já foi ou está sendo alcançada.
239. Sir Francis Bacon. La Nouvelle Atlantide. Paris: Payot, 1983, pp. 86-87.
116
Cabe destacar, aqui, em função de nossa temática, os itens onde ele propõe a
Metamorfose de um corpo em outro. Fabricar novas espécies. Transplantar uma espécie em
outra.
O que, antes fictício, foi tornado absolutamente exeqüível pelas novas
biotecnologias, especialmente pela técnica do DNA recombinante.
Além desse interessante aspecto das chamadas ciências modernas, não se pode
deixar de mencionar que, até o final do século XVI, a Igreja exerceu um gido controle
sobre todo o conhecimento herdado, produzido e transmitido. Logo, o surgimento da
ciência moderna foi possível, ou antes, um “novo método” pôde ser aceito, pela
ruptura com o parâmetro anterior do conhecimento, baseado na figura da
“autoridade”
240
que, em relação ao período antigo, remetia ao discurso filosófico
241
e
com relação ao próprio período e ao medieval, remetia ao discurso de caráter
eminentemente teológico/religioso.
Assim, a ciência se constitui reivindicando sua “autonomia” em relação à religião,
por um lado, e à filosofia, por outro. Inclusive, com relação à reflexão ética. Isso explica
porque, ainda hoje, a ciência evoca incessantemente a liberdade como um de seus mais
caros “valores”, quase mais defendido do que a própria verdade.
242
Graças a essa autonomia, conquistada a duras penas, a ciência prosperou e de sua
união com a técnica surgiu a tecnologia, cuja eficiência mostrou-se inquestionável. Por
isso, desde a modernidade, conhecimento é, basicamente, conhecimento científico.
Ainda hoje, porém, a ciência insiste em defender a bandeira da autonomia, nos
mesmos termos de seu surgimento. Algo que, além de injustificado - visto que, filosofia
240. À luz do que se torna ainda mais interessante o comentário de Jean Ladrière sobre a atitude crítica da
ciência moderna com relação à tradição e à autoridade. J. Ladrière. “Approche philosophique de la
problématique bioétique”. In J-F Malherbe. Éthique et Genétique. Cabay: Louvain-la-Neuve, 1983, pp. 7-
37. Aqui 35.
241. Especialmente o de Aristóteles que se torna persona non grata em função do abuso de seu
pensamento feito pela escolástica para reforçar as próprias convicções, como um recurso ao argumento da
“autoridade”.
242. Pois, quantos lamentáveis episódios se conhecem de cientistas” que, para confirmar sua teoria, são
capazes de adulterar resultados e burlar procedimentos. Vide, por exemplo: S. Vieira & W. S. Hossne.
Experimentação com seres humanos. Capítulo 6. “Fraude em Ciência”, pp. 108-128.
117
e religião não aspiram ocupar o lugar da ciência, hoje mais do que consolidado -, é
inadequado, tendo em vista os problemas suscitados, justamente por sua mais poderosa
“cria”: a tecnologia; em especial, na sua versão mais recente das biotecnologias,
sobretudo, quando dirigidas à aplicação indiscriminada em seres humanos.
Na base desse discurso de autonomia “geral e irrestrita” da ciência, encontram-se, como
mencionado, a concepção dicotômica decorrente da interdição humeana de se passar do ser
ao dever-ser, mais exatamente, da divisão entre fato e valor que, como veremos, tem também
por conseqüência a correlata desarticulação entre ética, ciência e técnica.
Outro ponto importante a destacar é o fato de o lema de Bacon inspirar os
iluministas do século XVIII, que vêem a ciência e a técnica como instrumentos de
libertação humana, pela extinção da ignorância e pelo combate à superstição.
Rousseau é o único do período que não se deixa levar por tal otimismo e, em seu
famoso ensaio laureado pela
Academia de Dijon
243
, em 1750,
demonstra que, ao contrário
do esperado, o avanço da ciência e da técnica, embora tenha trazido algum progresso
material, não provocou o correlato aperfeiçoamento moral
244
nem tampouco aprimorou
a espécie humana. Suas teses, embora radicais e contrárias ao discurso da época,
curiosamente, agradaram ao júri da Academia, caso contrário não o teria premiado.
No século seguinte, Marx, ainda que mais próximo de Bacon, Descartes e dos
iluministas do que de Rousseau, preserva a noção da ciência e da técnica enquanto
instrumentos, mas revela um aspecto inteiramente novo, mesmo perverso, no modo em
que são utilizadas modernamente. Pois, como Domingues ressalta, segundo Marx:
ao se integrarem às forças produtivas da economia (mais
precisamente da economia capitalista, em que se colocam a serviço
do capital e do aumento da riqueza), em vez de permitirem a
243. J.-J. Rousseau. Discours sur les sciences et les arts. Paris: Flammarion, 1992.
244. Inversamente, considera que a ciência conduz à dissolução dos costumes (p. 61), sendo mesmo
incompatível com a virtude (pp. 74-75).
118
dominação da natureza e aumentarem a liberdade do homem, a
ciência e a técnica convertem-se em instrumento de dominação do
homem pelo homem e instalam a maior das tiranias, que é o jugo do
capital, ao qual está submetida a própria burguesia. (ID, p. 161)
Posteriormente, no século XX, Adorno, inspirado por Marx, mas tendo
assistido ao horror da Segunda Guerra e, em especial, ao de Auschwitz, se preocupa
com os usos feitos e ainda possíveis da ciência e da técnica, ressaltando um aspecto,
até então não explicitado, referente ao seu emprego
“como valor cultural e sua função de
ideologia ou arma ideológica” (Ibidem)
245
.
Contudo, reforçando também o seu uso como
meio de
“dominação do homem pelo homem” (Ibidem). Além disso,
Adorno
vincula a ciência e a técnica à problemática luckasiana da
consciência reificada, fala do enfeitiçamento da técnica, enfatiza o
caráter manipulatório das relações geradas por ela (manipulação da
natureza e do homem) e mostra o tipo de homem requisitado pela
civilização tecnológica: o indivíduo tecnologizado (Adorno fala de
“pessoas tecnológicas”)
246
, cuja energia psíquica e modo de agir
estão em perfeita sintonia com o poder tecnológico gerado pela
ciência. (ID, p. 162)
Domingues chama a atenção para ao fato de que, todas as concepções citadas,
tanto as otimistas (de Bacon e Descartes) quanto as mais críticas (de Marx e Adorno),
têm em comum o modo de abordar a ciência e a técnica como meio e instrumento do
poder humano, (sobre as coisas ou sobre o próprio homem).
245. Enquanto outro importante representante da Escola de Frankfurt, Habermas, em seu famoso livro,
Técnica e ciência como ideologia, considera que a técnica - ainda que produtora de artefatos e depositária
de uma típica ideologia de controle das forças naturais - pode realizar seu potencial de emancipação
humana desde que não cometa o equívoco de aspirar à função de modelo de racionalização, exercido pela
interação simbólica nos processos de socialização, e se recuse a noção de que seu objetivo indiscutível é
impor-se como um poder de análise e controle dos processos sociais e naturais. Para tanto, ele sustenta, de
modo intransigente, a nítida distinção entre a ação racional dirigida a fins e a interação. Fonte:
http://www.labcom.ubi.pt/agoranet/05/morgado_3leiturashabermas.pdf
246. Sobre esse aspecto ver O. Giacoia Junior. Corpos em Fabricação”. Revista Natureza Humana, o
Paulo, v. 5, n. 1, p. 175-204, 2003.
119
Na década de 1950, porém, Heidegger
247
coloca abaixo essa noção instituída da
ciência e da técnica como instrumento de domínio humano, ainda que para controle de
outros seres humanos, para propor a incômoda noção da técnica como um poder
autônomo que se desprendeu das mãos do homem para dominá-lo
248
.
É nesse contexto, com o intuito de ressaltar a ação constituidora da
técnica e sua capacidade de produzir coisas, que Heidegger (...)
mostra que a tecnologia não é um instrumento ou um meio, mas um
elemento co-ligador e uma espécie de armadura que molda e instaura
o homem à sua medida e conforma sua necessidade (o técnico ou o
indivíduo tecnológico), e ao mesmo tempo instala a realidade como
instrumento (de acumulação) e como estoque (para consumo). O
resultado é a chamada técnica planetária, que em sua ação
desenfreada na modernidade levou à devastação da terra, e, (...) ao
triunfo do tecno-burocrata capaz de extrair, com seus cálculos e
dispositivos, o máximo de rentabilidade de cada setor da imensa
cadeia de produção tecnológica. (ID, pp. 163-164)
Heidegger um passo além quando, no texto:
“Superação da metafísica” - de 1954,
antevê a engenharia genética atual e prenuncia que
“a técnica planetária depois de submeter
a natureza externa, parte para sujeitar a natureza interna e produzir o homem”. (ID, p. 164)
Domingues se pergunta, adiante, o que teria acontecido para que a ciência e a
técnica deixassem de ser meros instrumentos para se tornarem um poder autônomo.
Antes de responder, ele aponta as três
249
fases da história da tecnologia, cada uma delas
representada pela invenção predominante da época: a máquina a vapor, o motor a
explosão, o transistor, que lugar ao chip, que pode ser identificado à quarta fase.
247. Ponto trabalhado também por O. Giacoia Junior. “Notas sobre a técnica no pensamento de
Heidegger”. Veritas, Porto Alegre, v. 43, n. 1, mar.1998, pp. 48-62.
248. Visão que terá forte influência sobre a de Jonas.
249. De fato, poder-se-ia dizer: quatro fases, incluindo a era da “informação”, simbolizada pelo
computador, ou ainda, por sua unidade “vital” elementar, o chip.
120
As duas primeiras fases se caracterizam por tecnologias que servem ao homem, que as
utiliza de forma instrumental, enquanto as outras duas, invertendo os pólos, revelam seu
poder de colocar o homem como seu objeto.
Ele identifica como causa desse processo uma dupla cisão que teria ocorrido no
início da modernidade e se estendido aos séculos seguintes, culminando no século XX,
com desdobramentos até o XXI.
Por um lado, a cisão entre ética e a ciência, fundada na separação
entre o juízo de fato e o juízo de valor, cuja formulação vamos
encontrar em Hume
250
e cujo desdobramento nos leva ao dualismo de
Kant, fazendo com que se desse à ciência um cheque em branco e
impedindo que seus produtos e resultados fossem moralizados, à
diferença dos tempos antigos e medievais. (ID, p. 166)
Essa passagem apresenta o núcleo da questão. Pois, graças à cisão operada por
Hume entre ser e dever, que está na base da cisão entre fato e valor, a ciência se afastou
da ética, a tal ponto que passou a considerar qualquer tentativa de aproximação como
forma de ingerência em seus assuntos. E, durante muito tempo, só aceitou como normas
aquelas que fossem estritamente de ordem técnica
251
. Domingues acrescenta que,
Por outro lado, a cisão entre a ciência e a tecnologia, em razão de a
tecnologia ter ganhado autonomia, revelando-se com o poder de selar
o próprio destino da ciência, uma vez que no curso do processo a
ciência se viu cada vez mais dependente do conjunto de tecnologias
que ela mesma gerou. (...) juntamente com essa dupla cisão, ocorreu
nos tempos modernos um profundo redirecionamento da ciência e da
técnica, quando elas caíram no mercado e se submeteram aos
250. Como vimos, de fato, tal formulação é apenas sugerida por Hume.
251. O que, apenas recentemente, tende a mudar com a criação dos Comitês de Ética no interior dos
institutos de pesquisa, que podem cobrar dos pesquisadores uma conduta ética na execução das pesquisas.
121
imperativos do business e aos interesses de grupos poderosos.
(Ibidem)
Essa apropriação da tecnologia pelo mercado se deu de forma quase furtiva, pois,
embora seus efeitos sejam colocados de maneira explícita, seu processo aconteceu às
ocultas, de modo impositivo e não espontâneo. Pois, como esclarece Domingues,
Foi então que as forças cegas do mercado, os ditames da política e as
coações da razão de Estado (de fins bélicos inclusive) se interpuseram
e se impuseram sobre fins e os ideais das tecnociências. Foi então que
houve o sacrifício da curiosidade intelectual e da liberdade de pensar
do cientista e desfez-se a impressão de autonomia do tecnólogo ou do
tecno-burocrata, de que falava Heidegger, uma vez que sua
capacidade de engenhar e seu poder de fazer as coisas de fato não
pertencem a ele, ao tecnólogo, mas ao capital e aos seus múltiplos
agentes. O resultado é uma terceira cisão: a cisão da ciência e da
tecnologia face à sociedade como um todo, ao se verem sujeitadas a
grupos de interesse e privatizadas pelas forças do mercado, quando
as ciências que tinham gerado a tecnologia, que é apropriada pelo
mercado, se mostram juntamente com a tecnologia completamente
impotentes, sem a menor possibilidade de reverter esse estado de
coisas. (ID, pp. 166-167)
Essa situação contraria todos os entusiastas
252
da técnica e também aqueles que
acreditam que apenas a técnica pode resolver os problemas que ela própria criou. Algo
que a injunção do mercado impossibilitou a tal ponto que, a cada solução descoberta,
um novo problema é criado como “efeito colateral”, gerando uma espécie de mis en
abîme interminável de soluções que produzem novos problemas.
252. Entre os quais cabe mencionar: Gilbert Simondon, com seu Du mode d'existence des objets
techniques. Paris: Aubier, 2001. E José Ortega y Gasset com Meditación de la Técnica y Otros Ensayos
sobre Ciencia y Filosofia. Madrid: Alianza Editorial, 2002. Cujas análises tendem a ser, no geral, bastante
positivas com relação à técnica e sua inserção nos diversos aspectos da vida humana.
122
Em suma, vimos que, primeiro, a ciência se separou da ética, o que resulta no
cientificismo, no interior do qual a ética se viu exilada do domínio “neutro e objetivo da
ciência”, que seguindo à risca o lema de Bacon, saber é poder, pôde reinar absoluta.
A seguir, segundo Domingues, a técnica se separou da ciência, o que resultou no
tecnicismo
253
. Mas ao invés de conquistar sua autonomia, a técnica, ao contrário, viu-se
forçada a se submeter às leis do mercado e a se render aos interesses políticos e
econômicos. Assim, operou-se a instrumentalização do aparato cnico em proveito do
lucro, submetido apenas à lógica do mercado e às razões de Estado. E, ao final desse
processo, a desarticulação entre a ética, ciência e a técnica foi consumada.
Todavia, conforme pensamos, a primeira cisão de fato se deu e toda vez que se
argumenta em favor da irrestrita (= cega) “autonomia” da ciência, ainda se defende,
conscientemente ou o, a validade ou a necessidade de se manter essa cisão.
Entretanto, a segunda não ocorreu, ou melhor, não da mesma forma
254
. Pois, na verdade,
a técnica não teria se separado, mas assimilado, incorporado, “fagotizado” a ciência
para dar lugar à tecnologia.
Em outras palavras, a tecnologia surge da assimilação da ciência pela técnica. A
tecnologia é uma obra híbrida, fruto da união da técnica com a ciência. Com efeito, a
tecnologia é impensável sem a ciência. O fato de prevalecer, num certo sentido, o
aspecto técnico
255
, não muda o dado de que é a ciência que fornece os elementos que
transmutam a técnica em tecnologia, criando algo mais sofisticado, mais eficiente, e, por
isso mesmo, muito mais rentável e interessante para o mercado que, prontamente,
transforma seu produto em mercadoria.
253. Acréscimo nosso.
254 De fato, Domingues explicita sua posição frisando o predomínio da técnica em relação à ciência pura.
255. O que pode ser endossado por Jacques Ellul no seu notável Le Système Technicien cuja tese inicial é
a de que “A técnica não se contenta de ser, e, no nosso mundo de ser o fator principal ou determinante,
ela se tornou Sistema.” J. Ellul. Le Système Technicien. Paris: Calmant-Lévy, 1977, 361 p. Aqui, p. 7.
123
Tudo começou quando a técnica moderna exigiu (exigindo cada vez mais) da
ciência respostas às suas próprias necessidades.
256
Algo que pode ser comprovado pelo
exemplo da termodinâmica. São as dificuldades (técnicas) postas pelo
rendimento (insuficiente) das máquinas a vapor que levam Sadi
Carnot em 1824 a formular o segundo princípio da termodinâmica, o
que supõe uma reflexão de fundo sobre as bases mesmas da física
clássica e relança o pensamento sobre a irreversibilidade dos
fenômenos naturais.
257
Assim, desde então, a reflexão da ciência atende às demandas técnicas
258
e, com
isso, cria-se a tecnologia. Não é mero acaso, portanto, o fato de a primeira fase da
história da tecnologia, acima citada, coincidir, justamente, com a máquina a vapor.
Outra interessante confirmação disso é o fato de que uma das mais recentes áreas
de pesquisa científica, que constitui o foco de nosso estudo; por ser eminentemente
voltada à aplicação, é designada por um termo que explicita essa fusão entre a ciência e
a técnica
259
, a saber, justamente, a “bio-tecnologia”.
Nesse sentido, a desarticulação entre ética, ciência e técnica se deu, efetivamente,
em dois movimentos: 1) pelo exílio do primeiro termo e 2) pela fusão dos outros dois
para gerar a tecnologia
260
, buscando manter à distância a discussão ética.
256. Processo que tornou possível algumas importantes “revoluções”: a revolução científica (século
XVII), a revolução industrial (que surge na Inglaterra em meados do século XVIII e se expande pelo
mundo a partir do século XIX) e no século XX as revoluções: “verde” [ou agrícola] e da informática. (ID,
p. 167)
257. A. Kahn & D. Lecourt. Bioéthique et liberté. Paris: PUF, 2004, pp. 56.
258. O que, na verdade, cumpre a meta do programa baconiano: o saber a serviço do poder e corresponde
à finalidade da ciência como eminentemente instrumental (Vide acima pp. 101-102).
259. Que também é afirmada pela citação de F. L. e Silva, apresentada acima, a propósito da relação entre
saber teórico e saber prático no contexto da Revolução científica do século XVII.
260. Para maior clareza conceitual, buscaremos manter o uso do termo técnica para designar o aparato
existente ao período pré-moderno e o termo tecnologia para designar aquele criado a partir de então.
Hans Jonas, porém, observa essa distinção empregando os termos técnica antiga e técnica moderna. Mas,
em alguns momentos, ele diz apenas “técnica”, ao se referir à técnica moderna, cabendo ao leitor
identificá-la, pelo contexto. Para evitar toda dúvida e ambigüidade, preferimos guardar a distinção
terminológica: técnica e tecnologia empregando-a sempre que estiver em foco nossa própria posição.
124
Em outros termos, tal desarticulação ocorreu, mais precisamente, pelo
afastamento da ética das questões técnico-científicas, criando um obstáculo para se
examinar a legitimidade da licenciosa aplicação das biotecnologias em seres humanos.
Portanto, trata-se de, tendo em vista a necessidade, buscar demonstrar a possibilidade de
rearticular ética e tecnologia, em especial, às biotecnologias.
No âmbito prático, os mencionados comitês de ética poderiam desempenhar
essa função. Porém, cabe à reflexão filosófica fornecer elementos teóricos para superar
essas dificuldades conceituais colocadas ao longo do presente capítulo e embasar as
decisões que, caso contrário, serão meramente casuísticas ou, no máximo, “guiadas às
escuras” pelas chamadas éticas aplicadas que, por seu turno, ainda buscam uma
definição e uma orientação mais consistentes. Tema que será discutido no capítulo a
seguir.
CAPÍTULO 3: A SITUAÇÃO DA ÉTICA CONTEMPORÂNEA
Frente ao quadro atual, que se pode compor somando-se o desafio biotecnológico
apresentado no primeiro capítulo, às dificuldades conceituais discutidas no segundo,
não é difícil perceber o problema que está posto à reflexão ética contemporânea. De
fato, grande é o desafio e muitos são os obstáculos com os quais ela se depara. A isso se
acrescenta, ainda, o fato de que, no contexto contemporâneo, abriu-se um amplo leque
formado pelas inúmeras vertentes da reflexão ética. A variedade é tal que até mesmo a
sua classificação tornou-se uma complicada tarefa.
Um rico e esclarecedor painel da ética contemporânea é oferecido por Lima
Vaz
261
, que endossa a tese de Alasdair MacIntyre, em seu célebre After Virtue, segundo
a qual o vocabulário ético atual, sobretudo de origem aristotélica, em função das
mudanças, de ordem cultural, ocorridas a partir do programa iluminista, teria perdido
261. H.C.L. Vaz. Escritos de filosofia IV - Introdução á Ética Filosófica 1. pp. 419-456.
125
seu sentido exato. Perda que se faz refletir tanto nessa variedade de concepções éticas
atuais, quanto na diversidade de sentidos que a terminologia utilizada atualmente
apresenta, em contraste com a maior unicidade de sentido da ética clássica.
Conhecer, ainda que minimamente, a ética contemporânea requer a compreensão
dessa multiplicidade de concepções e sentidos o que, em alguns aspectos, se torna
bastante complicado. Por isso, embora o ideal fosse realizar uma ampla exposição, se
feita apenas uma breve e modesta reconstituição, levando-se em conta o texto de Vaz.
Ele atribui a origem das diferentes vertentes éticas do século XX: o naturalismo, o
historicismo e o desconstrutivismo, a três modelos predominantes no XIX. Assim, o
naturalismo tem sua ascendência no positivismo, o historicismo, no reducionismo
culturalista; e o desconstrutivismo busca inspiração nos pensadores chamados pós-
modernos, especialmente Freud e Nietzsche. Vaz se atém, sobretudo, ao naturalismo e
historicismo por constituírem como que duas grandes chaves dentro das quais seria
incluída uma parcela significativa das tendências éticas contemporâneas que ele procura
apresentar em seu texto, quase, exaustivamente.
O naturalismo, como um desdobramento do positivismo do século XIX, afirmaria
a natureza como fonte de normas, valores e critérios para a ão. o historicismo,
herdeiro do reducionismo culturalista, teria colocaria o homem como centro da esfera
em que se colocam e solucionam as questões “práticas”, adotando assim uma
perspectiva, assumidamente, antropocêntrica.
O naturalismo seria subdividido em duas vertentes principais: o empirismo
clássico e a ética da ciência cada uma das quais com duas respectivas subdivisões: o
empirismo clássico dividindo-se em teorias não-cognitivistas e emotivistas; e a ética da
126
ciência em subjetiva e objetiva
262
. O historicismo, por sua vez, poderia ser dividido em
três abordagens: a ética hermenêutica, a ética fenomenológica e a ética existencialista.
Vaz menciona ainda outra possibilidade de classificar a ética contemporânea,
estabelecendo a relação entre ética e linguagem que teria resultado, de um lado, na ética
analítica, tendo Moore
263
como seu importante precursor e, de outro, a influente Ética
do Discurso, cujos formuladores são Apel e Habermas.
Haveria ainda uma série de outras abordagens que não se encaixariam nessas
divisões anteriores e precisariam de uma nova classificação. Como por exemplo, as
abordagens que propõem uma releitura do utilitarismo, que Elisabeth Ascombe
denominou de conseqüencialismo e as que propõem uma retomada de Aristóteles que
são identificados ao comunitarismo
264
, por um lado, e à filosofia prática
265
, por outro.
Embora tenha buscado fornecer um panorama mais completo possível das
principais abordagens éticas do último século, ainda assim, a classificação proposta por
Vaz teria deixado escapar algumas concepções. É o que se pode perceber quando se
examina o quadro proposto por Richard Hare que, em seu livro Ética: problemas e
propostas, apresenta uma forma inteiramente diferente de classificação
266
.
De fato, embora extremamente rica e bem elaborada, a exposição de Vaz não foi
suficiente para abarcar todas as concepções éticas do século XX, deixando, assim,
escapar algumas tendências
267
, por exemplo, a que Hare acrescenta, denominada
262. No interior da qual teriam emergido as chamadas bioética e ética ambiental.
263. Cuja formulação, como vimos, dá origem à metaética.
264. Cujo principal nome seria o de A. MacIntyre, que se oporia à filosofia política liberal de J. Rawls.
265. Segundo Vaz, Franco Volpi teria atribuído a origem da Filosofia prática ao curso de Heidegger
sobre a Ética a Nicômaco, em Freiburg, presenciado por seus notáveis alunos que, posteriormente, teriam
retomado, em suas respectivas filosofias, um diferente conceito aristotélico. Gadamer teria retomado o
conceito de phrónesis; Ritter o de Ethos e Hannah Arendt o de praxis. De fato, Volpi, no texto “Le
paradigme perdu”, retoma essa tese apresentada originariamente no seu artigo “Philosophie pratique”,
publicado no Dictionnaire d’Éthique et de philosophie morale, acrescentando Jonas entre os alunos de
Heidegger que teriam, de certo modo, retomado Aristóteles, diferindo, contudo, de seus colegas por não
retomar a ética, mas a metafísica do Estagirita. Mais precisamente a noção de fim.
266. Classificação representada esquematicamente no quadro à página 67.
267. Como as que são indicadas na classificação atribuída a Adela Cortina que, no livro intitulado Ética,
apresentaria alguns pares conceituais para evidenciar o confronto entre diferentes concepções éticas no
127
Intuicionismo e as subdivisões do naturalismo. Não se trata de uma crítica, o que seria
totalmente sem fundamento, à classificação feita por Vaz, mas uma forma de corroborar
a dificuldade de se realizar de modo completo essa tarefa.
Segundo Hare, a grande divisão seria entre as teorias descritivistas e as não-
descritivistas. As descritivistas seriam divididas em naturalistas e intuicionistas. E as
naturalistas, em subjetivistas e objetivistas. As não-descritivistas, por sua vez, seriam
divididas em emotivistas e não-descritivistas racionalísticas que, por fim, de dividiriam
em prescritivista universal, que seria a própria proposta de Hare e a chamada teoria ‘X’.
A exposição de Hare é particularmente interessante por estabelecer uma distinção
entre o que ele entende, por teoria ética, que é o que ele apresenta nesse livro em
especial, como sendo, especificamente, o
“estudo dos conceitos morais, isto é, do uso que
fazemos das palavras morais”
(Op.cit. p. 72). T
radição cuja origem remota costuma-se
atribuir a Hume e a origem mais próxima a Moore. Não obstante, Hare não concorda
com as conclusões a que Moore chegou, do que ele chama, simplesmente, de ética ou
filosofia moral que trataria dos conteúdos ou da parte prescritiva da moral, propriamente
dita.
O interesse por essa divisão que Hare propõe, aqui, se justifica uma vez que ela
está mais próxima da compreensão, segundo a qual a ética contemporânea pode ser
tomada a partir de três âmbitos principais de estudo: a meta-ética, que investiga o
vocabulário utilizado pela moral; a ética normativa, que fundamenta ou fornece as
nomas para o agir humano; e a ética aplicada, que emprega tais descobertas nas tarefas
e problemas morais do dia-a-dia. Divisão que será, então, adotada, por tornar mais
acessível a compreensão e mais fácil a exposição desse vasto campo de reflexão,
contexto atual. Menciona-se, aqui, a título de ilustração: 1. Descritivas e normativas (prescritivas); 2.
Naturalista e Não-Naturalista; 3. Cognitivistas e Não- Cognitivistas; 4. De Motivos e de Fins; 5. De Bens
e de Fins; 6. Materiais e Formais; 7. Substancialistas ou Procedimentais; 8. Teleológicas e Deontológicas;
9. Da Intenção (ou da convicção) e da Responsabilidade;10. De Máximos e de Mínimos. Cabendo
destacar apenas o oitavo e nono pares, aos quais voltaremos em 3.2.
128
visando, oportunamente, indicar como a ética jonassiana poderia ser classificada no
interior desse complexo cenário da ética atual.
Desse modo, o presente capítulo obedece à seguinte divisão: 3.1 A perspectiva
metaética, 3.2 Duas diferentes abordagens de ética normativa e 3.3 O surgimento e
desenvolvimento das Éticas Aplicadas e Bioética.
3.1 – A perspectiva metaética
Este termo designa o estudo referente às proposições prescritivas, do ponto de
vista lingüístico-formal, e à significação dos predicados morais com o objetivo de
elucidar o sentido dos conceitos éticos e a forma como são lingüisticamente empregados
em enunciados concretos. Mostra-se, assim, a relevância da linguagem para a reflexão
ética, no interior da qual o significado, que as proposições morais adquirem nas
interações e conflitos, determina e reflete o horizonte axiológico dos indivíduos.
A metaética pode ainda ser definida como: 1.
“a tentativa de compreender as pressuposições e
compromissos de ordem metafísica, epistemológica, semântica e psicológica do pensamento, do
discurso, e da prática morais.”
268
Ou ainda, como 2. um tipo de reflexão que examina o discurso
moral compondo uma metalinguagem de cunho supostamente neutro, ou seja, não-normativo.
Tais definições demonstram que o objeto privilegiado da metaética é a linguagem
em si, na perspectiva lógica e semântica e o uso que dela é feito no contexto da moral, e
não propriamente o conteúdo, a formulação ou fundamentação de normas ou princípios.
Como mencionado anteriormente, David Hume é considerado o precursor da
investigação metaética, por ter sido o primeiro a realizar uma “análise lingüística”,
avant la lettre, do vocabulário moral. Moore foi reconhecido como um importante
seguidor dessa tradição que, desde então, foi designada por esse termo específico.
Tendo sido discutidos no capítulo anterior, não se pretende, aqui, voltar a eles. Cabe,
268. http://plato.stanford.edu/entries/metaethics/
129
apenas, registrar a importância de suas filosofias para o surgimento e consolidação da
metaética.
Atualmente, inúmeros são os autores que, como Richard Hare, defendem que a
tarefa primordial de toda teoria ética, digna desse nome, é precisamente estabelecer esse
estudo terminológico, antes de pretender tratar das questões propriamente substanciais
(entenda-se, o conteúdo dos enunciados morais). É exatamente o que ele realiza em sua
obra supracitada, com o objetivo de avaliar, como fizeram seus antecessores, se as éticas
existentes atendem aos rigorosos critérios que ele estabelece para serem, então,
consideradas adequadas.
É importante frisar que, na verdade, todas as teorias que ele analisa são, segundo
a definição por ele estabelecida, tipos diferentes de metaética, como a que ele próprio
pretende ali, ao final, esboçar, porém, sem a pretensão de apresentar a solução
definitiva. Razão pela qual, no quadro que ele propõe está em aberto um lugar
(2.2?)
como possibilidade de que surja uma teoria (X) que atenda a todas as exigências,
pressupondo, inclusive, a sua estrita filiação e posição já, por ele, estabelecidas.
Embora constitua uma tarefa de inegável importância, alguns autores preferem
deixá-la ao cargo dos “metaéticos”, passando, então, à atividade seguinte: propor
conteúdos. O que, segundo a divisão adotada, é precisamente a tarefa realizada pelas
concepções designadas com a expressão “éticas normativas” que, no próximo tópico,
serão abordadas a partir de dois autores já mencionados no capítulo 2, Kant e Weber.
3.2 – Duas diferentes abordagens de ética normativa
Recapitulando o que se disse até agora, vimos que os problemas colocados pelo
avanço das tecnologias em geral e das biotecnologias em particular, especialmente
aquelas destinadas à aplicação em seres humanos - cuja finalidade ultrapassa a detecção
e cura de doenças - tornam a ética mais necessária que nunca. Paradoxalmente, porém,
130
em função dos aspectos conceituais apontados, que levaram à desarticulação entre ética
e tecnologia e da grande profusão de éticas no contexto contemporâneo, nunca a
reflexão ética mostrou-se tão problemática. Soma-se a isso, o fato de que, para vários e
destacados autores, a teoria ética foi reduzida à reflexão sobre a linguagem, originando
e privilegiando as questões metaéticas, deixando de lado as questões ditas
substanciais
269
. Isso mostra os vários complicadores que envolvem a questão.
Quanto ao tema proposto para esse tópico, existem autores que têm se dedicado,
inteiramente, à reflexão das questões substanciais. Alguns deles, seguindo a orientação
de dois importantes nomes da chamada ética normativa, Immanuel Kant e Max Weber.
As duas teorias serão apresentadas, visando uma contraposição para evidenciar em que
aspecto a segunda critica a primeira e por quê.
A” – Kant e a razão prática como origem do dever incondicional
Entre outros grandes feitos no âmbito da filosofia em geral, Kant se notabilizou
por realizar a tarefa fundamental de elaborar uma moral rigorosamente racional, para
responder ao subjetivismo, relativismo, e ceticismo que predominavam em seu tempo,
buscando uma resposta à pergunta ética: "que devo fazer?", tendo como única referência
os procedimentos da razão.
Essa questão fundamental é endereçada a um novo conceito de razão, cuja
atividade se exerce segundo dois usos diferentes: a teórica e a prática
270
.
Cabe frisar,
porém, com Otfried Höffe que
a razão prática não é nenhuma outra que a razão teórica; uma
razão, que é exercida ou prática ou teoricamente. De modo geral a
razão significa a faculdade de ultrapassar o âmbito dos sentidos, da
natureza. A ultrapassagem dos sentidos pelo conhecimento é o uso
teórico, na ação é o uso prático da razão. (...) A razão prática, como
269. O que não é o caso de Hare que, em outras obras, dedica-se também às questões substanciais.
270. Aspecto já abordado no capitulo anterior.
131
ela mais abreviadamente se chama, significa a capacidade de
escolher sua ação independentemente de fundamentos determinantes
sensíveis, os impulsos, as carências e paixões, as sensações do
agradável e desagradável.
(Op. cit. p. 188)
Surge, portanto, a questão: quais são os limites legítimos desses dois usos? O uso
teórico, Kant analisa na Crítica da Razão Pura, e uso prático, na Crítica da Razão
Prática, onde ele investiga os princípios da razão em sua relação com a liberdade. Javier
Herrero
271
esclarece que a moral kantiana
é uma moral da razão pura prática, porque pela razão o homem
consegue autarquia e se torna autônomo, porque a razão prática é o
seu "Selbst" mais próprio ("eingentlich Selbst") e com isso de torna
independente de todas as forças "externas" de motivação. O ser
humano é essencialmente autônomo, não por pertencer a uma
determinada comunidade, não por compartilhar com os outros uma
determinada tradição, mas por ser sujeito da razão incondicional.
(op.
cit. p. 19)
Aqui, porém, é preciso diferenciar entre razão prática técnica, que se encontra na
“base de toda ação e figura extra-moral, ela fornece as normas relativas, as regras da habilidade
ou da prudência” (Lexikon Katien. p. 890) e a razão prática moral que
é a fonte das normas absolutas do dever "Sollen" absoluto; a
definição de seu fim, seu imperativo, seus princípios valem
absolutamente, incondicionalmente. Essa razão visa uma unidade
incondicionada, a legalidade e a validade universal da vontade, o
acordo dessa consigo mesma, em suma, uma unidade prática
sistemática. A razão no homem é o princípio da liberdade, da
autonomia; ela constitui nele a "humanidade" e a "personalidade”
271. F.J. Herrero. “A Ética de Kant”. Síntese, Belo Horizonte, v. 28, n.90, 2001. pp. 17-36.
132
puras que se deve em todo e em cada um estimar e respeitar ao mais
alto ponto.
(LK. pp. 890-891)
Nesse sentido, segundo Kant, o que confere ao homem a sua máxima
universalidade: a humanidade e, ao mesmo tempo, a sua máxima singularidade: a
personalidade é a razão moral prática, precisamente, por fornecer o princípio da
liberdade.
Mas a liberdade resultante da razão prática – coerentemente
“se manifesta pela lei
moral” (LK 620)
que, sendo dada pela própria razão a si mesma eleva a razão à condição
de auto-legisladora, o que lhe confere a sua autonomia
272
. Donde provém, portanto, o
singular conceito kantiano de liberdade e o fato de no cerne da filosofia prática kantiana
estar, portanto, a concepção de auto-legislação da razão pura prática.
O ser humano, portanto, se diferencia de todos os outros seres uma vez que,
enquanto os seres naturais estão completamente submetidos às leis da natureza, o
homem como ser racional, pode dar a si mesmo a sua própria lei, elaborada pela razão
moral prática.
Herrero
273
destaca o aspecto de que ele propõe uma teoria que é inerente à
consciência e ao agir moral de todo ser humano e, assim fazendo, ele confere um
sentido novo e muito mais significativo para a praxis, capaz de abarcar não o agir
moral do homem, mas também a sua vida no Estado (política) e na sociedade (Direito).
Assim, tal conceito de praxis se distancia da concepção comum, que prevê uma
doutrina da ciência e uma da prática que é, ao mesmo tempo, diferente e derivada dela.
É o caso, por exemplo, da prática médica que se pauta numa teoria para ser realizada da
maneira mais razoável e hábil possível. Mas não é esse sentido o proposto por Kant. Seu
272. Que, na verdade, pressupõe os dois conceitos nucleares: a razão prática, propriamente dita, e a
liberdade.
273. A partir de notas das aulas, do curso de Ética ministrado pelo Prof. Dr. F. J. Herrero Botin, no 2o
semestre de 2004, do Programa de Pós-Gradução em Filosofia da UFMG.
133
novo conceito de praxis mostra-se também diferente do sentido implícito na disputa
clássica sobre a primazia da vida teórica sobre a prática. Ademais, a ciência pura visa o
universal e necessário, não sendo por isso acessível através de nenhum agir concreto.
A relação que ele tem em mente não entre princípio e aplicação, mas entre
princípios, pois, segundo pensa, a praxis é guiada por princípios. E sua novidade está
em interpretar esses princípios a partir da razão prática, que ele define como uma razão
que é essencialmente, agente, isto é, aquela cuja atividade típica não é o conhecimento.
Kant afirma que o valor da praxis é determinado inteiramente pela concepção
subjacente à qual ela se conforma. A concepção subjacente que pode conferir maior
valor à práxis é o princípio da razão prática por excelência: o conceito de dever
incondicional. Isso significa que somente o conceito de dever incondicional determina o
valor moral da ação.
Por conseguinte, Herrero afirma que, segundo Kant, tentar corrigir a razão por
meio da experiência seria não só um equívoco, mas, a maior tragédia para o ser humano.
Pois, sua dignidade
274
reside, exatamente, em ser sujeito da lei moral incondicional da
razão, que faz dele um fim em si, e que prescreve a realização interna e externa no
mundo dos homens em liberdade.
Cabe, porém indagar: qual é a razão que guia a praxis do homem? Segundo, Kant
é a razão auto-legisladora.
275
E, segundo ele, todo ser humano está submetido,
unicamente, às leis da razão e isto é o que constitui a autonomia do ser humano como
tal. Por isso de disse acima que, o homem kantiano é essencialmente autônomo, não por
274. Dignidade do homem, no contexto antigo = razão (logos) Ser // no contexto moderno: Razão
Prática (homem: sujeito = fim em si) Liberdade.
275. Enquanto fundamento do homem: auto-mos.
134
pertencer a uma determinada comunidade (livre, para o grego, é o cidadão da pólis), a
uma determinada tradição, mas por ser sujeito da razão incondicional.
276
Os critérios fornecidos pela razão prática, tanto no âmbito moral quanto no
jurídico
277
, por procederem da razão, são idênticos à estrutura da razão. Assim, eles têm
a forma da razão, o que significa que as proposições, leis e princípios apenas serão
conformes à razão, quando puderem reivindicar validade universal. Isto é, quando forem
universalizáveis e, portanto, capazes de reconhecimento universal.
É na Fundamentação da Metafísica dos Costumes que Kant propõe-se a encontrar
e fundamentar, ou, nas suas palavras, buscar e fixar o princípio supremo da
moralidade”
(FMC. 200. Grifos nossos),
que não é outro senão o Imperativo Categórico,
cuja formulação fundamental é a seguinte:
“Age de tal forma que a máxima de sua ação
possa por sua vontade elevar-se à lei universal”.
(FMC. 223)
Desse modo, com a lei fundamental de sua liberdade interna, a racionalidade
universal e formal impõe-se a figura do imperativo categórico ou princípio moral,
exigindo que cada um aja conforme a máxima que possa servir como regra para a
vontade de todo ser racional, o que o torna capaz, então, de ser legislador universal,
ainda que se referindo a si mesmo, num experimento mental. Portanto, o imperativo
categórico fornece a regra que eleva a máxima à condição de determinar a moralidade
de toda ação de um ser racional.
276. Assim, se a razão é incondicionalmente legisladora, então, nenhuma concepção heterônoma ou do
egoísmo generalizado (utilitarismo generalizado), nenhuma regra derivada da razão instrumental (e da
decisão) estratégica ou funcionalista, nenhuma Zweckrationalität (razão meios / fins: Weber), nenhuma
Sittlichkeit (eticidade) convencional do Mundo da Vida poderá suplantar o papel absolutamente
insubstituível da razão que tem sua sede no ser humano.” (Na íntegra, como apresentado e registrado em
sala de aula).
277. Segundo Ricardo Terra, “Para Kant, alguns conceitos são comuns às duas partes da metafísica dos
costumes, entre eles, o dever e a obrigação. Dever entendido como "a ação à qual alguém é obrigado. "
R. Terra. “A distinção entre direito e ética na filosofia kantiana”, p. 88.
135
O homem é um ser racional e também um ser de inclinações. Por isso, ele não age
somente como um ser racional, mas deve agir segundo a razão. Assim, o dever faz a
mediação entre razão e inclinação, pois surge da relação que elas exibem no homem.
A máxima provém da inclinação e para ser moral tem que ser universalizável, daí
a necessidade do dever. Segundo Kant, a felicidade é a realização das inclinações, mas
elas devem ser orientadas pela razão para viabilizar a liberdade. Nesse sentido, todos
podem buscar a felicidade, desde que levando em conta o respeito à universalidade.
Em termos kantianos, dizer que o homem é livre significa dizer que ele é
autônomo, isto é, auto-legislador, pelo fato de ser racional. Por isso, a lei da razão é
válida para todos os homens e todo indivíduo é, em princípio, auto-legislador.
Para ser moral, o homem, sendo ao mesmo tempo racional e sensível, deve
submeter-se, em seu mundo interno de ação, à incondicionalidade da lei fundamental,
formal e procedimental da razão pura prática que é a lei de sua liberdade interna
278
, ou
seja, a autonomia.
Assim, o homem deve agir
apenas motivado internamente pela forma de sua razão,
isto é, pelo dever incondicional, prescindindo de todas as condições de sua realização e
afastando todas as máximas não universalizáveis, como as que provêm de princípios
empíricos de felicidade. o princípio moral põe a liberdade interna de acordo consigo
mesma, atuando, assim, como princípio de consistência do mundo interno, mas também
externo, pois, nas palavras de Kant, com as quais encerramos esse pequeno resumo:
A necessidade prática de agir segundo este princípio, isto é, o dever,
não assenta em sentimentos, impulsos e inclinações, mas sim somente
na relação dos seres racionais entre si, relação essa em que a vontade
de um ser racional tem de ser considerada sempre e simultaneamente
278. Herrero esclarece que a liberdade interna é diferente da liberdade privada. A liberdade interna chega
até a raiz e inclui em si a liberdade externa.
136
como legisladora, porque de outra forma não podia pensar-se como
um fim em si mesmo. A razão relaciona pois cada máxima da vontade
concebida com legisladora universal com todas as outras vontades e
com todas as ações para conosco mesmos, e isso não em virtude de
qualquer outro móbil prático ou de qualquer vantagem futura, mas
em virtude da idéia de dignidade de um ser racional que não obedece
a outra lei senão àquela que ele mesmo simultaneamente dá. (FMC.
233-234)
Obviamente, esse breve resumo expressa apenas uma ínfima parte da formulação
moral kantiana. Espera-se, porém, que ele seja suficiente para estabelecer o contraponto
com Weber e esclarecer as razões de sua crítica a Kant, marcantes em sua posição.
B”- Weber e a distinção entre Ética da Convicção e Ética da Responsabilidade
Julien Freund identifica o pensamento de Weber a uma
“filosofia do antagonismo
dos valores”
(p. 44)
, na qual uma tipologia
279
é elaborada com a finalidade de evidenciar a
tensão presente sob diferentes aspectos. Não seria diferente, portanto, na reflexão que
ele realiza no domínio da ação, onde predominam os juízos de valor, as convicções e
avaliações de todo tipo, e se constitui fundamentalmente pela relação meio-fim.
Weber considera que apenas a questão relativa aos meios pode ensejar uma
pesquisa empírica, jamais a questão dos fins. Sendo dado um fim, os cientistas podem
discutir para estabelecer quais são os meios mais adequados e eficazes a alcançá-lo,
avaliar os custos e até mesmo advertir quanto aos eventuais riscos implicados em cada
um dos meios possíveis. Mas nenhuma ciência empírica pode instruir o agente com
279. Termo que faz referência ao método concebido por Weber com base no conceito de tipo ideal que
“não é ele próprio uma ‘hipótese’, mas visa a guiar a elaboração de hipóteses. Por outro lado, ele não é
uma exposição do real, mas se propõe a dotar a exposição de meios de expressão unívocos. (...) Obtém-se
um tipo ideal acentuando unilateralmente um ou vários pontos de vista e encadeando inúmeros
fenômenos dados isoladamente, difusos e discretos, que se encontram em grande ou pequena quantidade
e em locais específicos e o por toda parte, que se ordena segundo os precedentes pontos de vista
escolhidos unilateralmente, para formar um quadro de pensamento homogêneo [einheitlich].” (Essais. pp.
179-181.)
137
relação à escolha de um fim. Tal escolha é um tema específico da moral e concerne à
consciência e à vontade. Ou seja, cabe à ciência instruir sobre o que pode ser feito;
jamais quanto ao que deve ser feito. Ademais, é a questão referente aos fins que suscita
maior antagonismo, pois nela intervêm os diferentes juízos de valor, sempre subjetivos
e pessoais.
Compreende-se melhor sua concepção moral a partir da definição e da tipologia
que ele propõe de atividade. Para Weber, a atividade é
“um comportamento ao qual se
comunica um sentido, geralmente subjetivo, uma vez que ele depende da valorização do fim que
se pretende alcançar”
(p. 46)
, em oposição a um comportamento meramente reativo de
natureza vegetativa ou instintiva. Com base nessa definição ele distingue, ainda que
provisoriamente, quatro diferentes tipos de atividade principais:
1. Atividade tradicional orientada por usos e costumes, que dispensa uma reflexão
quanto a sua utilidade e significação e rege todas as rotineiras atividades cotidianas.
2. Atividade afetiva: orientada por paixões ou emoções imediatas, que dispensa a
reflexão em função da súbita irrupção do sentimento, que conduz a ação a um fim.
3. Atividade racional por valor: orientada pela crença na validade de um fim que pode
ser moral, político, econômico, estético, ideológico, etc., independentemente dos meios
para realizá-lo ou das conseqüências que possa provocar. São as ações realizadas por
pura convicção ou dever, como as de alguém disposto a morrer por uma causa.
4. Atividade racional por finalidade: orientada por um fim que não tem um caráter
absoluto, apenas de um objetivo prático, escolhido, geralmente, após profunda reflexão.
Ela leva em conta tanto a adequação dos meios quanto as possíveis conseqüências e
pode ser modificada em função do cálculo concernente aos efeitos reais e os esperados.
Trata-se de todo tipo de atividade estratégica, seja a de um comandante de um exército,
de um político, de um técnico ou de um homem de negócios.
138
Esses diferentes tipos podem não apenas se combinar nas atividades reais, como
gerar conflitos, tanto quando se confrontam na ação de um único indivíduo, quando se
trata de uma ação envolvendo vários agentes, onde alguns guiam sua ação pela pura
convicção enquanto outros optam por agir em função da eficácia que esperam alcançar.
Basicamente, os dois tipos de atividade racional estão na base da formulação
moral weberiana, conforme a qual o antagonismo entre valor e fim apresenta-se como
insuperável. Surge, assim, a questão: qual seria a ão ética? Aquela que atende à
exigência kantiana de agir incondicionalmente por dever e por respeito à lei,
dispensando toda consideração em relação aos motivos
280
, meios e conseqüências
possíveis, tendo em conta apenas o princípio da concordância da razão com seu
princípio que é o dever incondicional? Ou aquela que considera não apenas a ação, com
relação a seus meios e conseqüências tanto previsíveis quanto imprevisíveis, mas
também todos aqueles que podem ser por ela afetados, vale dizer, a ação responsável?
Em outros termos, a ação ética é aquela que se caracteriza pelo estrito respeito a
um princípio puro e por uma fidelidade incondicional a uma convicção ou, por outro
lado, pela coragem de assumir as conseqüências e os riscos de uma decisão, sob pena de
sacrificar a pura intenção em favor de um engajamento exigido pela situação concreta?
Esse é o conflito que Weber traduz através da antinomia entre Ética de Convicção e
Ética de Responsabilidade, quando escreve que:
toda atividade orientada segundo a ética pode ser subordinada a duas
máximas inteiramente diversas e irredutivelmente
281
opostas. Pode
orientar-se segundo a ética da responsabilidade ou segundo a ética
da convicção. Isso não quer dizer que a ética da convicção equivalha
à ausência de responsabilidade e a ética da responsabilidade, à
ausência de convicção. Não se trata disso, evidentemente. Não
280. Externos ou heterônomos como diria Kant.
281. Ao final, tal irredutibilidade não será tão veemente.
139
obstante oposição profunda entre a atitude de quem se conforma
às máximas da ética da convicção
[tal pessoa cumpre o dever sem
se importar com as conseqüências de seus atos, enquanto que]
quem
se orienta pela ética da responsabilidade [defende que] «devemos
responder pelas previsíveis conseqüências de nossos atos». (...)
Quando as conseqüências de um ato praticado por pura convicção se
revelam desagradáveis, o partidário de tal ética não atribuirá
responsabilidade ao agente, mas ao mundo, à tolice dos homens ou à
vontade de Deus, que assim criou os homens. O partidário da ética da
responsabilidade, ao contrário, contará com as fraquezas comuns do
homem (...) e entenderá que não pode lançar a ombros alheios as
conseqüências previsíveis de sua própria ação.
(Essais. pp. 113 – 114)
Esse antagonismo expressa, de fato, a existência de duas diferentes compreensões
da moral. Por um lado, 1) a moral “em si”, como essência pura, isto é, a moral ‘abstrata’
entendida
“como atividade inteiramente autônoma ou ainda como atividade primeira e
fundamental à qual todas as outras atividades devem obediência, porque elas lhe são
subordinadas”
(MW p. 48)
. Por outro lado, 2)
“a moral concreta, que não leva em conta
somente a pureza, a dignidade e a beleza da intenção, mas as necessidades da vida, nossa
inserção no mundo da história”
(Ibidem.)
, conforme a qual o problema ético não se põe ao
homem como
puro ser moral, mas com relação a todos seus engajamentos: políticos,
econômicos ou sociais.
Desse modo, levando-se em conta a articulação desses diferentes aspectos, não se
pode mais pensar numa ação puramente moral, separada de seus aspectos políticos,
econômicos ou religiosos. Em contrapartida, cada ato humano, seja político, econômico
ou religioso, guarda um sentido moral e preserva uma exigência ética.
Freund assinala que, a rigor, segundo Weber, aquele que adere à
“ética da pura
convicção é o homem do tudo ou nada, ele se recusa a transigir, a fazer concessões, convencido
140
da validade exclusiva do fim que constitui o objeto de sua quer ela seja denominada de
verdade, justiça, igualdade, revolução ou paz.”
(Ibidem.)
Sua postura chega ao extremo de
um fundamentalismo irresponsável e intolerante, cuja pretensão de ser uma ação
exemplar não se cansa de contestar tudo o que não coaduna com a ‘pureza’ de seus
ideais. Toda tentativa de com ele discutir mostra-se inútil, pois sua convicção é para ele
a verdade.
Apesar da evidente irracionalidade de tal posição, Weber lhe concede alguma
intenção racional ao identificá-la à atividade racional por valor.
“Com efeito, ela é busca
de coerência, pelo fato de que ela tenta reconduzir tudo a um único princípio suscetível de
suprimir, ao menos teoricamente, as discordâncias, os conflitos e as contradições”.
(MW p. 49)
Por sua vez, aquele que adere à ética da responsabilidade, volta-se para a
“relação
fundamental de toda ação, aquela do meio ao fim”.
(Ibidem.)
Nesse âmbito, não qualquer
aspecto privilegiado, como no caso da ética da convicção que privilegia a ‘pureza dos
fins’. Ao contrário, trata-se de uma análise dos diferentes componentes de uma ação
concreta, vem a ser: fim, meio, conseqüência e contexto (ou situação), para examinar as
relações que estabelecem entre si. É o que podemos ver, na interessante exposição
organizada por Freund para destacar cada um destes elementos da ação humana:
a) Fim: quem age conforme a responsabilidade tem consciência da diversidade de
fins igualmente estimáveis, que se excluem ou que podem ser buscados sucessivamente,
tanto na esfera individual quanto coletiva. Todavia, não há entre tais fins qualquer
hierarquia capaz de assegurar a algum uma prioridade metafísica em relação aos
demais. O que os difere é apenas a ligação que estabelecem com um dado valor e a
vontade que um agente tem de realizar esse ou aquele fim. Daí decorre o permanente
conflito entre os fins, que está na base do conflito entre os seres humanos.
b) Meio: Após escolher o fim, o adepto da ética da responsabilidade avalia os
meios necessários para realizá-lo, considerando sua eficácia conforme o modo pelo qual
141
pretende alcançar o fim (rápida ou gradativamente), sem ignorar as dificuldades que
possa encontrar. Daí a possibilidade de um novo antagonismo entre alguns meios que,
embora mais eficazes, podem comprometer o objetivo buscado ou despertar a
hostilidade de terceiros prejudicando, assim, o resultado da ação.
c) Conseqüências: Existem as conseqüências previsíveis e as imprevisíveis e o
adepto da ética da responsabilidade deve considerar os dois casos. Pois, tanto as
conseqüências previsíveis podem (como alguns meios) comprometer a realização do fim
e mesmo obrigar o agente a desistir de realizá-lo; quanto as conseqüências imprevisíveis
provocar conflitos, forçando o agente a modificar o curso de sua ação inicialmente
prevista e, por vezes, confrontá-lo a outros valores em relação aos quais ele ainda não
havia se posicionado, abalando sua intenção inicial.
d) Situação (contexto): enfim, o adepto da ética da responsabilidade avalia o fim,
os meios e as conseqüências em função da situação concreta da ação; da realidade para
estabelecer se o que é idealmente desejado é efetivamente realizável ou, em outros
termos, se é sensato realizá-lo. Ao mesmo tempo, ele considera a possibilidade de
realização integral ou parcial em função dos reais limites humanos. Obviamente, pode
haver conflitos entre o seu propósito inicial e as condições reais de sua realização,
forçando necessariamente a aceitação de certos compromissos ou sacrifícios.
Assim, diferentemente da ética da convicção, a ética da responsabilidade
possibilita a tomada de consciência das tensões e conflitos presentes na dimensão da
ação, desde o momento concernente à escolha do fim. Trata-se, portanto, de uma moral
que se caracteriza
“essencialmente pela lucidez, sendo dado que, por mais objetiva que seja a
avaliação das relações entre fim, meios, conseqüências e situação, o compromisso e as escolhas
que impõem os antagonismos são necessariamente subjetivos.”
(MW. p. 51)
Mas, a despeito de toda a diferença que Weber ressalta entre essas duas posições
e até mesmo quando ele diz que:
142
Não é possível conciliar a ética da convicção com a ética da
responsabilidade
282
, assim como não é possível, se jamais se fizer
qualquer concessão ao princípio segundo o qual o fim justifica os
meios, decretar, em nome da moral, qual o fim que justifica um meio
determinado.
(PcV. p. 115)
É importante frisar que essa descrição do antagonismo dessas duas atitudes morais
é, num certo sentido, puramente tipológica. Porque em realidade, por mais opostas que
sejam
“a ética da convicção e a ética da responsabilidade não são contraditórias, mas se
completam uma a outra e juntas constituem o homem autêntico”
.
(MW. p. 52)
Ou nas palavras
de Freund, parafraseando uma célebre fórmula kantiana:
Sem a responsabilidade, a convicção não é mais que simplória exaltação, [e] sem a
convicção a responsabilidade não passa de mera decisão vazia de sentido.
(Ibidem.)
Após essa breve exposição poderíamos, nos dar por satisfeitos e passar ao tema
seguinte. Todavia, como nos adverte Freund:
Para bem compreender o sentido da concepção moral de Weber, é
preciso insistir sobre duas expressões que retornam várias vezes sob
sua pluma, quando ele trata da ética: de uma parte, aquela da atitude
‘cavaleresca’, de outra parte, aquela da atitude ‘demagógica’. A
primeira une ao senso da dignidade, a responsabilidade e a fidelidade
a sua convicção, a segunda é aquela do fraco que somente
justificações. Mais que a moral, é a política que põe em relevo os
antagonismos da ação.
(Ibidem. Grifos nossos.)
Sobre esse tema, Weber se debruça em diferentes textos, propondo sempre uma
análise real da atividade política e daquele que a realiza. Segundo ele, três qualidades
fundamentais são exigidas àquele que pretende se dedicar à política: a) a paixão, como
sincero devotamento a uma causa; b) o senso da responsabilidade, combinado a uma
282. Não é o que Weber dirá no final.
143
sincera convicção e c) certo distanciamento em relação aos homens e às coisas, com o
objetivo de alcançar um agir refletido e consciente. Atitude pela qual se pode evitar a
mais comum armadilha da ação política que, por se referir intrinsecamente ao poder,
conduz, perigosamente, à vaidade e à busca do poder pelo poder.
Cabe aqui mencionar uma importante distinção que Weber propõe entre duas
formas de exercer a política do poder
(Machtpolitik)
: uma é puramente caricatural e
caracteriza todos os que buscam o poder pelo poder; a outra caracteriza todos que
buscam o poder, mas com o propósito de realizar objetivos precisos. Embora fosse um
defensor da política do poder, Weber critica a primeira atitude em favor da segunda.
Segundo a leitura de Catherine Colliot-Thelene
283
, temos que
a oposição estabelecida por Weber entre ética de responsabilidade e
ética de convicção, se inscreve no quadro de uma reflexão sobre a
tensão que existe entre, de uma parte, a lógica imanente à esfera de
ação política e, de outra parte, as exigências acósmicas’ da ética de
fraternidade das religiões da salvação. Ela foi geralmente banalizada
no sentido de uma retomada, em termos modernos, do tema
maquiaveliano do amoralismo da política, mesmo como uma
concessão de Weber à
realpolitik,
isto é, a uma atitude política
oportunista, porque exclusivamente guiada pela busca do poder.
Weber, todavia, tinha explicitamente criticado a realpolitik entendida
como uma política regulada pelas oportunidades de sucesso efêmeras
oferecidas pelas conjunturas, e ele tinha distinguido desta a ‘política
realista’, compatível com o respeito aos valores fundamentais,
embora preocupada com as condições concretas de sua realização.
Com base nesses textos, alguns autores se empenharam em
283. Catherine Colliot-Thelene. “Éthique de Responsabilité / Éthique de Conviction”, in Grand
Dictionnaire de la Philosophie. Paris: Larousse, 2003.
144
demonstrar que a ética da responsabilidade e a ética da convicção
somente constituíam para ele conceitos-limite designando os dois
pólos possíveis da ação engajada, sendo dado que toda ação concreta
participa sempre, segundo proporções variáveis, de uma e de outra.
(op. cit. p. 388.)
Para concluir essa breve exposição sobre Weber, é fundamental frisar o modo
pelo qual ele estabelece a relação entre ética e política, ao criticar a atitude do político
oportunista e preconizar a atitude do político ‘realista’, aquele que visa conciliar os fatos
e os valores. Algo que nem sempre foi devidamente compreendido na teoria ou,
lamentavelmente, observado na prática.
Após a exposição das concepções de Kant e Weber, fica evidente o alvo e o
motivo da precisa crítica que Weber endereça ao filósofo do dever incondicional.
Weber, ao estabelecer a distinção entre ética da convicção e ética da responsabilidade
284
,
aponta as principais características de cada uma delas, mostrando que a primeira se
caracteriza pelo estrito respeito a um princípio puro e por uma fidelidade incondicional
a uma convicção e a segunda, pela consideração dos vários aspectos da ação, com
especial atenção às suas as conseqüências e aos riscos envolvidos, o que em certas
ocasiões pode levar ao sacrifício da pura intenção em favor de um engajamento exigido
pela situação concreta. Naturalmente, ele associa a primeira à filosofia moral de Kant,
que, considerada nessa perspectiva, revela-se insuficiente para lidar com as questões
colocadas à reflexão ética atual.
Mas, vimos que, de início tratadas em separado como tipos diferentes, no decorrer
da exposição, as duas éticas são consideradas complementares, sugerindo que elas
podem e mesmo devem se alternar e até se somar, em determinadas situações.
284. Que podem ser associadas ao nono par conceitual apresentado na introdução. Vale lembrar, aquele
que contrapunha a ética da Intenção à ética da Responsabilidade.
145
Apesar dessa sugestão, a distinção proposta por Weber serviu de base à divisão
entre duas concepções consideradas incompatíveis, identificadas ao oitavo par
conceitual indicado na introdução do capítulo, entre éticas deontológicas e teleológicas.
Desse modo, aquela que Weber chamou de “ética da convicção é associada à
ética deontológica, e aquela chamada por ele de “ética da responsabilidade”, à ética
teleológica. Considerando a etimologia, é possível estabelecer que toda ética definida
como deontológica, privilegia a dimensão do dever (do grego ontos
285
), enquanto as
que se identificam como teleológicas privilegiam o aspecto do fim (télos)
286
.
Dentre as éticas teleológicas, o Utilitarismo é considerado uma das mais importantes.
Sua origem remonta às obras dos filósofos e economistas ingleses do século XVIII e XIX.
Jeremy Bentham e John Stuart Mill. Na visão utilitarista original, uma ação é moralmente
correta se promove a felicidade e condenável se produz a infelicidade, não apenas a do
agente da ação, mas também a de todos afetados por ela. O que significa que o Utilitarismo
condena a ação egoísta, na qual o indivíduo busca seus interesses, em detrimento dos
outros, e se opõe a toda concepção ética que considere os atos como certos ou errados
independentemente das conseqüências que eles possam ter.
287
Costuma-se separar essas duas modalidades atribuindo a origem da primeira a Kant e
da segunda a Aristóteles. Como vimos, porém, Weber mostrou, por um lado, a necessidade
de se reconhecer a limitação de cada uma delas, sobretudo da primeira pelo fato de
desconsiderar os vários aspectos implicados na ação; e, por outro, de se articular as duas
formas para a consecução de um agir coerente e responsável. Ao avaliar a ética jonassiana,
veremos como ela se posiciona em relação a essa divisão.
285. Do grego déon, déontos: dever. Sentido derivado de έον, οντοϛ: necessidade conveniência e de
έοντωϛ: como convém. Segundo Isidro Pereira. Dicionário Grego-Português Português-Grego. p. 123.
286. Ou conseqüências. Razão pela qual uma das vertentes derivadas será denominada
conseqüencialismo.
287. entre os herdeiros da concepção ética kantiana, poder-se-ia mencionar os criadores da Ética do
Discurso, Apel e Habermas, pois, embora não priorizem o aspecto do dever, defendem a possibilidade de
uma ética universal, formal e procedimental. Hans Jonas também poderia ser incluído aí em função de sua
proposta de atualizar ou superar o imperativo categórico kantiano com seu princípio responsabilidade.
146
Para concluir o capítulo, aborda-se a terceira parte, referente às éticas aplicadas.
3.3 – O surgimento e desenvolvimento das Éticas Aplicadas e Bioética
No texto “The Applied Ethics Revolution”, Sergio Cremaschi apresenta duas
diferentes definições de ética aplicada (EA), a primeira afirma que ela é
“comumente
distinguida como aquela parte da ética que atenção particular e direta às questões e
controvérsias práticas”. (p. 71)
E a segunda que ela é
a aplicação de considerações éticas – razões, princípios, valores,
ideais – a uma política ou prática – pessoal ou social – com o
propósito de avaliar (e assim endossar ou rejeitar) tal política ou
prática sobre bases éticas. Deste modo, a ética aplicada é o ramo da
razão prática no qual considerações éticas (em oposição às
prudenciais ou egoístas) são empregadas para guiar a conduta
individual ou coletiva.
(Ibidem.)
O surgimento da EA teria produzido um verdadeiro giro normativo” (normative
turn), ocorrido por volta de 1958. Todavia, o autor prefere apontar como marco desse
“giro”, um “explosivo” texto de Elisabeth Ascombe, publicado em 1956, em que ela,
com base na teoria escolástica da guerra justa de Francisco de Vitória, reprova como
criminosa a decisão do então presidente dos EUA, Harry Truman, de bombardear civis
inocentes, no final da guerra contra o Japão. A crítica da autora se baseia no princípio de
Vitória que estabelece:
“Numquam licet per se et ex intentione interficere innocentem.”
288
Não obstante, somente a partir da década de 70, a EA se consolida e para o que
contribui a publicação de A Theory of Justice, de John Rawls
289
, em 1971, mesmo ano
288. “Nunca é lícito per se e com intenção assassinar inocentes.” Francisco de Vitoria. “De iure belli”, in
Obras de Francisco de Vitoria: relecciones teológicas. Madrid: La editora católica, 1960, pars secunda,
art. 1.
289. Pois, as proposições de Rawls - difundidas universalmente, desde então -, tornaram-se extremamente
influentes não apenas no meio acadêmico, mas constata-se que práticas, que buscam estar de acordo com
elas, já fazem parte das políticas públicas de vários países.
147
em que o termo “bioética” é introduzido por Van Rensselaer Potter
290
. No ano seguinte,
surgem as publicações: Applications of Moral Philosophy de Richard Hare e o paper
“Famine Affluence and Morality” de seu pupilo Peter Singer.
Cremaschi aponta que, desde o início, a bioética apresenta uma pluralidade de
métodos, termo entendido no sentido que Sidgwick estabeleceu no seu The Methods of
Ethics, como
“um procedimento pelo qual conclusões normativas podem ser alcançadas sobre
um dado caso moral.”
(p. 73)
Ele lembra que, segundo Sidgwick, a busca por um método
conduz a um inevitável fracasso, entretanto, no contexto da bioética mais de um
procedimento tornou-se disponível. Merece destaque o conseqüencialismo, termo com o
qual Ascombe rebatizou o antigo utilitarismo.
O conseqüencialismo foi a doutrina predominante na primeira fase da bioética.
Seus principais expoentes são: Peter Singer, Helga Kuhse e James Rachels que
consideram que a bioética busca
“minimizar sofrimentos e sua razão de ser foi o surgimento
de uma difundida atitude mental secularizada para a qual a antiga moralidade era preconceito e
superstição, melhor descrita como o paradigma da sacralidade da vida, que é um tabu ou
pensamento mágico”. (Ibidem.)
Na visão conseqüencialista, o único padrão auto-evidente é, não a sacralidade,
mas a qualidade de vida, o único método aceitável
“para justificar as escolhas é o cálculo
de conseqüências e as distinções moralmente relevantes são aquelas entre a qualidade de vida de
seres sensíveis; todo o resto é ‘sacralidade da vida’ e, por conseguinte, nonsense.” (Ibidem.)
Os conseqüencialistas forjaram o rótulo “deontologia”, sob o qual abrigaram as
mais díspares tendências como kantianas e intuicionistas, ao lado de tomistas e
aristotélicas, além de teologias de diferentes orientações, considerando que todas essas
vertentes pertencem à tradicional doutrina moral que pressupõe um comando divino,
que é
“a melhor expressão do antigo paradigma da sacralidade da vida.” (Ibidem.)
290. Ponto ao qual retomaremos adiante, a partir de outra referência.
148
Assim, por exemplo, Thomas de Aquino considera que a lei moral não provém da
vontade, mas do intelecto divino, enquanto Kant defende que
“não é a vida biológica que é
sagrada, mas as pessoas, como sujeitos de escolha livre e responsabilidade moral, que merecem
respeito infinito; [por seu turno,] a estratégia adotada pelos proponentes da nova moralidade
constantemente tem sido ignorar o que o oponente estava dizendo.” (Ibidem.)
Logo, enquanto o utilitarismo foi a doutrina predominante durante a fase inicial da
bioética, apenas um número reduzido de autores abraçou a causa deontológica.
Cremaschi destaca os nomes de Edmund Pelegrino, que propôs a revisão da tradição
hipocrática, devido aos recentes desenvolvimentos tecno-científicos, com base na nova
consciência da autonomia e dos direitos do paciente e Robert Veatch que, por sua vez,
propôs a revisão da ética médica tradicional a partir de uma perspectiva contratualista,
segundo a qual, a relação médico-paciente é uma relação entre iguais.
Na década de 1980, surge a primeira “teoria mista”. Teóricos da bioética de
tendência kantiana ou embasada no direito (right-based) se aliam à abordagem de
princípios apresentada, em 1979, por Tom L. Beauchamp e James F. Childress, na obra
intitulada Principles of Medical Ethics, cuja inspiração foi o Relatório Belmont de
1978, no qual, partindo de uma série de pontos de vista religiosos e filosóficos
divergentes, se alcançou um acordo sobre um conjunto de princípios intermediários,
embora um acordo semelhante sobre os “princípios últimos” não fosse possível.
A lição que eles extraem do Relatório Belmont é que é possível
alcançar acordos parciais em questões morais controversas mesmo
entre defensores de opostas teorias éticas compreensivas. Uma
conseqüência é que tais teorias não precisam ser totalmente
desenvolvidas antes de decidir dilemas na ética aplicada, e outra é
que a existência de visões compreensivas alternativas não é causa de
um desacordo intransponível sobre escolhas coletivas. (p. 74)
149
Nessa perspectiva, a saída do desacordo seria a aplicação, ao caso em questão, de
princípios intermediários, pois, sobre eles, um acordo, – já John Stuart Mill admitia
“é
alcançado mais facilmente que sobre princípios últimos.” (pp. 74-75)
Além do fato de que, no
“mundo real”, para se elaborar políticas compartilhadas, é suficiente um acordo sobre
tais princípios, independentemente de um acordo sobre os princípios fundacionais.
Beauchamp e Childress propõem quatro princípios intermediários que, segundo
eles, podem ser compartilhados tanto por utilitaristas quanto por deontologistas, a saber:
a) respeito à autonomia, b) não maleficência, c) beneficência e d) eqüidade e justiça.
Embora interessante, essa proposta foi alvo de inúmeras críticas, levando à
elaboração de uma segunda teoria mista, a chamada nova casuística ou abordagem de
casos, com o propósito de fornecer meios de solucionar problemas, ou melhor,
encontrar soluções para casos reais
“quando enfrentando dissensão duradoura sobre
princípios”. (p. 75)
Foi proposta por Albert Jonsen e Stephen Toulmin, nove anos depois
do livro Principles of Medical Ethics, ou seja, em 1988, quando, a teoria de Beauchamp
e Childress era considerada
“como algo que já estava eliminado como uma prática seguida
pelos comitês de ética não menos do que a prática de encontrar um acordo sobre princípios
intermediários.” (p. 76)
A força da casuística segundo Jonsen e Toulmin está na sua capacidade de se
contentar com uma conclusão compartilhada sobre um caso aceito como paradigmático
como ponto de partida para nossa busca por juízos compartilhados em novos casos.
O quarto método da bioética é proveniente das abordagens deliberativas que
buscaram enfatizar que a EA e a bioética, como uma especificidade daquela, não
constituem uma
especificação de alguma doutrina ética, mas um tipo de processo de
deliberação do mundo real orientada por “técnicos da razão” a fim de
obter um acordo sobre decisões práticas de modo que se possam levar
150
em conta diferentes razões com as quais diferentes participantes são
comprometidos e pode render um compromisso virtuoso de onde todos
os participantes saiam sem nada perder e com algum ganho. (p. 78)
Tal abordagem foi proposta por neo-aristotélicos, entre os quais Hans-Georg
Gadamer, neo-pragmatistas e kantianos, entre os quais Onora O’Neil, que é considerada
a mais conseqüente teórica da deliberação.
Embora o texto tenha ainda uma série de aspectos interessantes e que mereceriam,
ao menos, uma breve menção, vamos apenas listar alguns dos subtítulos que se seguem,
cujo objetivo é caracterizar em linhas gerais a EA. Assim vejamos:
À página 91: a EA não é aplicação da ética; à página 93: a EA é uma abordagem
‘kantiana’ para não kantianos, à página 94: EA é deliberação; à gina 97: EA é oposta
à subversão, à página 99: a EA é um presente do “espírito do tempo” (Zeitgeist) e, para
concluir, a EA pode ser a base de uma moral provisória.
Noutro texto, intitulado “What is bioethics? A historical introduction”, também
importante para conhecer o contexto de surgimento da bioética, H. Kuhse e P. Singer
afirmam que, desde a década de 1960, questões relacionadas à saúde e às ciências
biomédicas invadiram a consciência pública (em especial a norte-americana) de um
modo sem precedentes. Por um lado, isso se deve ao incrível desenvolvimento das
próprias ciências biomédicas que possibilitou, por exemplo, a introdução das técnicas de
prolongamento da vida e as de reprodução assistida, entre tantas outras. Por outro, ao
aumento do poder exercido por médicos e cientistas no que tange aos chamados
“direitos dos pacientes” e, mesmo, aos direitos da sociedade, como um todo, que podem
ser afetados pelas decisões tomadas por tais profissionais. Isso acendeu o debate em
torno dos critérios usados por eles em suas decisões, evidenciando que, essa nova ordem
de questões não poderia mais ser resolvida com base em decisões meramente técnicas,
mas, exigia mais do que nunca, decisões essencialmente éticas.
151
Foi esse o clima que possibilitou o surgimento da bioética, termo que
originalmente não foi usado nesse sentido. Quando Van Rensselaer Potter o emprega
pela primeira vez, ele pretende designar:
“«uma ciência da sobrevivência» no sentido
ecológico que é um estudo interdisciplinar visando a assegurar a preservação da biosfera
(Potter, 1970).” (p. 3)
No sentido original, o termo não foi largamente utilizado. Entretanto, ‘bioética’
passa a ser aplicado, com interesse cada vez crescente, no domínio da saúde e das
ciências biomédicas. E é esse o sentido adotado pelos autores.
Embora o termo seja novo e sua projeção no campo do desenvolvimento das
ciências biomédicas relativamente recente, a bioética também pode ser considerada
como um versão atualizada de outras abordagens mais antigas como a ética médica.
Mas é preciso dizer que a bioética vai muito além da própria ética médica. Pois essa,
tradicionalmente, se ocupa da relação médico-paciente, as qualidades esperadas de um
médico e, mais precisamente, da própria conduta médica. Enquanto a bioética é uma
atividade mais crítica e reflexiva, não limitada ao domínio da relação médico-paciente
ou da conduta do médico, ultrapassando, portanto, a ética médica em muitos sentidos.
Primeiro, seu objetivo não é o desenvolvimento de, ou a adesão a, um
código ou conjunto de preceitos, mas um melhor entendimento das
questões. Segundo, está preparada a responder profundas questões
filosóficas sobre a natureza da ética, o valor da vida, o que é ser uma
pessoa, a significação do ser humano. Terceiro, ela abarca questões
de política pública e de direção e controle da ciência. Em todos esses
sentidos, bioética é a um novo e distinto campo de investigação. Não
obstante, sua história começa com a história da ética médica. (p.4)
Mas os autores assinalam que o primeiro trabalho “moderno” sobre bioética,
intitulado Morals and Medicine, foi publicado em 1954, por Joseph Fletcher, um
152
teólogo episcopal norte-americano, cuja abordagem das situações éticas controversas se
assemelha mais ao conseqüencialismo que às tradicionais concepções cristãs, a tal ponto
que, para manter sua posição, posteriormente, ele abandona sua confissão religiosa.
Contudo, somente nos anos 1960, a bioética começa a se constituir, seriamente,
como um campo de estudos. Esse período foi fortemente marcado por importantes
transformações culturais e sociais e as questões dos direitos humanos, da crise cubana,
da guerra do Vietnã, estavam na ordem do dia, tanto quanto aquelas suscitadas pela
introdução dos métodos contraceptivos e pela defesa da legalização do aborto.
Todas essas questões repercutiram também sobre a prática da filosofia que foi
convocada a se pronunciar sobre a aplicação normativa em questões éticas concretas.
291
Essa inserção de filósofos nas discussões contribuiu para consolidar a bioética como
uma disciplina crítica. Mas o maior impulso à bioética foi dado, sem a menor dúvida,
pelo enorme avanço das tecnologias médicas, que levantou questões jamais colocadas.
Os primeiros casos celebrizados, nos EUA, referem-se à invenção do aparelho de
hemodiálise que podia salvar a vida de pacientes com graves doenças renais. Entretanto,
como, à época, o tratamento era extremamente caro, não podia atender a todos os que
dele necessitavam. Assim, em 1962, foi criada uma comissão encarregada de
“selecionar” os pacientes que seriam submetidos ao tratamento, enquanto os demais
eram deixados à própria sorte. Esse poder de “vida e de morte” conferido ao grupo
valeu-lhe a denominação de “Comitê de Deus”, e o critério usado para as decisões foi
colocado em discussão para avaliar em que medida o fator social ou racial estavam
determinando a escolha.
Mas a discussão principal desse período foi desencadeada pela introdução, em
1967, da técnica de transplante de órgãos que criou uma demanda de doadores, que
291. Sobre o que é particularmente interessante o depoimento de Hans Jonas sobre a sua inserção nesses
debates e sua participação no célebre Hastings Center, que se tornou, desde a sua criação em 1969, uma
importante referência não apenas no âmbito dos EUA. Vide Cap. 12 de Souvenirs, pp. 241-243.
153
poderia ser atendida pela extração de órgãos de pacientes em coma irreversível ou
sofrido alguma outra forma de morte que não comprometesse o funcionamento do órgão
visado. Essa questão levou ao célebre estabelecimento do conceito de morte cerebral
pela comissão instituída pela Universidade de Harvard para solucionar o problema.
292
Tais questões serviram para abrir caminho a um terreno minado por inumeráveis
dilemas éticos, alguns se tornaram verdadeiros escândalos, como o caso da experiência
realizada, de 1965 a 1971, no Jewish Chronic Disease Hospital, no Brooklyn, onde
células cancerosas foram injetadas em pacientes sem o seu consentimento, crianças
portadoras de deficiência mental foram inoculadas com o vírus da hepatite no
Willowbrook State Hospital em Nova York, sem esquecer o lamentável episódio dos
negros de Tuskegee, Alabama, que receberam um tratamento “placebo” para sífilis
durante várias décadas, para que os diferentes estágios da doença pudessem ser
estudados.
Na década de 1970, casos como esses vieram à tona e a opinião pública exerceu
forte pressão para que houvesse um maior controle da prática e das pesquisas médicas.
Assim, em 1973 foi criada a Comissão Nacional para a Proteção dos Sujeitos Humanos
das Pesquisas Médicas e Comportamentais, que assumiu a tarefa de estabelecer as
normas e proteger os direitos e interesses dos sujeitos submetidos às pesquisas. Grande
parte das recomendações da Comissão torna-se lei e um de seus mais famosos
documentos – o Relatório Belmont – tornou-se referência para discussões éticas e
posteriores legislações.
Para finalizar, os autores apontam o interessante aspecto da bioética que, desde a
sua origem, estabeleceu-se como uma atividade interdisciplinar reunindo profissionais
292. Essa é outra discussão em que a participação de Jonas merece destaque. Sua posição contrária à
decisão de Harvard está registrada em textos como “On the Redefinition on Death”, Daedalus, no. 6,
1969; e “Against the Stream: Comment on the Definition and Redefinition on Death”, in H. Jonas,
Philosophical Essays, 1974. Dos quais, o ensaio 10 de TME resultou.
154
da medicina, enfermagem, ciências biomédicas, jurídicas, econômicas, e, obviamente,
filósofos e teólogos, a quem era originariamente atribuída as questões éticas e morais,
sem mencionar também o forte peso exercido pela opinião pública.
A partir de então, a disciplina se consolidou e expandiu e, atualmente, existem
centenas de centros de pesquisas bioéticas em todo o mundo, com uma significativa
produção de textos que divulgam e possibilitam a troca e o avanço das discussões no
âmbito internacional.
Para concluir esse panorama da ética contemporânea, cabe ainda mencionar
alguns aspectos que enfraqueceram a reflexão filosófica do século XX, profundamente
marcada pela falência do sentido, pelo niilismo, pelo fim das ideologias e pelo
individualismo.
Todos esses fatores somados dificultam bastante a tarefa de uma reflexão
filosófica em geral e ética em particular, para confrontar todos os problemas colocados.
Pois, a falência do sentido produz o que Hans Jonas chamou de vazio ético, frente ao
qual, como ele admite:
eu me calo
293
e nos calamos todos. Porque precisamente o mesmo
movimento que nos proporcionou a posse dessas forças cujo uso deve
agora ser regrado pelas normas – o movimento do saber moderno sob
a forma das ciências da natureza - arrastou, em virtude de uma
complementaridade inscrita nas força das coisas, os fundamentos de
que as normas podiam ser deduzidas e destruiu a idéia mesma de uma
norma como tal. (PR. p. 60)
293. Gesto que nada tem a ver com a recomendação de Wittgenstein no final de seu Tractatus Logico-
Philosophicus¸ onde ele afirma a célebre frase: “sobre o que não se pode dizer, deve-se calar”. Ali, trata-
se de reconhecer o limite da lógica que diz respeito às proposições declarativas, ficando a ética, a
estética e, mesmo, a experiência religiosa fora desse limite. No caso de Jonas, a questão refere-se à falta
de sentido, provocada pela derrocada dos fundamentos, valores e normas.
155
Nas palavras de Jacqueline Russ
294
, isso significa que
Vivemos num momento em que as referências tradicionais
desapareceram, em que não sabemos mais exatamente quais podem
ser os fundamentos possíveis de uma teoria ética. (...) É num vazio
absoluto que a ética contemporânea se cria, nesse lugar onde se
apagaram as bases habituais, ontológicas, metafísicas, religiosas da
ética pura ou aplicada.
295
Esse vazio ético corresponde, por sua vez, ao que se chama de niilismo
296
, visto
que se trata da constatação da ausência de toda e qualquer referência no âmbito das
normas e valores. Ou, como denunciou Nietzsche, desse “nada” em que estamos todos
mergulhados. Daí que o termo niilismo quer dizer
precisamente que todas as referências
ou normas de obrigação se dissipam, que os valores superiores se depreciam. (...) designa o
fenômeno espiritual ligado à morte de Deus e dos ideais supra-sensíveis. É nele que se origina a
criação atual da ética, nele que entram em gestação os novos valores da modernidade.”
297
Por isso, é a partir desse niilismo que Jonas denuncia a crise de fundamento que
caracteriza a ética contemporânea, ao dizer que:
“Agora estremecemos no desnudamento de
um niilismo, no qual o maior dos poderes se acopla com o maior vazio.” (PR. p. 60)
Ademais, esse niilismo é correlato de outro fenômeno típico de nosso tempo, que
foi denominado de “morte das ideologias”, visto que,
“a morte das grandes narrativas é
uma dimensão (fundamental, decisiva) desse niilismo global (...) definido como etapa espiritual
294. Jacqueline Russ é « agrégée de l'université », doutora em Filosofia e Ciências Humanas, autora de
inúmeras obras filosóficas para o ensino médio e universitário. Ver, por exemplo, catálogo de títulos da
Editora Hachette. http://www.hachette-livre.fr/rechercher-
catalogue.html?idAuteur=000000013206&prenomAuteur=Jacqueline&nomAuteur=Russ
295. J. Russ. Pensamento Ético Contemporâneo. São Paulo: Paulus, 1999, p. 10.
296. Termo cuja etimologia remonta ao latim: nihil, que significa nada. Doutrina segundo a qual nada
existe de absoluto, isto é, não há uma realidade substancial, nem é possível conhecer o real. O que conduz
ao pessimismo metafísico e ao ceticismo em relação aos valores tradicionais (morais, teológicos,
estéticos). Por seus efeitos “corrosivos”, Jonas foi um de seus mais severos críticos, dedicando à questão
uma importante reflexão relacionando-o tanto à gnose quanto ao existencialismo, no ensaio IX de PhV.
297. Russ. pp. 10-11.
156
onde os fins faltam, onde os valores superiores se depreciam, onde não mais resposta à
questão «por quê?» (Nietzsche).”
298
Nesse sentido, frente ao niilismo e à morte das ideologias, é preciso buscar novos
parâmetros para fundamentar a reflexão ética que, por sua vez, tem como tarefa
estabelecer os princípios que possam nortear o agir humano frente a todo o desafio ora
colocado. Assim,
“Essa grande devastação das ideologias está, evidentemente, na origem da
reorganização dos princípios éticos da modernidade.
(...)
Niilismo e morte das ideologias
conduzem a deslegitimar a axiologia e a metamoral.
(...) [Por isso,]
é nesse topo do vazio que
nasce a ética contemporânea, a do nosso tempo.”
299
Além disso, outro grave problema emerge nesse cenário, dado que,
“Quando se
dissolvem as ideologias, então nascem as formas contemporâneas do individualismo, propícias
ao aparecimento de novas regras de conduta.”
300
O individualismo é definido como a
“atitude que privilegia o indivíduo em relação à
coletividade.”
301
Tal atitude emerge sempre que as instituições políticas e sociais entram
em crise, ofuscando a legítima esfera (coletiva) dos cidadãos - como ocorreu na Grécia
quando ocupada por macedônicos e, depois, pelos romanos e no século XIX, - quando o
próprio individualismo converteu-se numa espécie de
“conquista: uma libertação das
diversas formas de poder ou de participação social.”
302
Entretanto, segundo denunciou Gilles Lipovetsky, no L’`ere du vide, o
individualismo contemporâneo
“não designa mais um triunfo da individualidade em face das
regras constrangedoras, mas a realização de indivíduos estranhos às disciplinas, às regras, aos
constrangimentos diversos, às uniformizações.”
303
Por esse motivo, os traços mais marcantes
298. Ibidem. p. 12.
299. Ibidem. pp. 12-13.
300. Ibidem. p. 14. Grifos nossos.
301. Ibidem.
302. Ibidem.
303. Ibidem. p. 15.
157
desse individualismo contemporâneo são,
“as delícias do narcisismo, bem mais do que o
acesso a uma autonomia, a explosão hedonista, mais que a conquista da liberdade.”
304
A partir de tudo isso, como é possível pensar uma ética na era do vazio, do
niilismo de referências e valores, do individualismo narcisista e hedonista, onde as
tecnologias favorecem a ilusão da onipotência humana frente ao mundo, à natureza e a
si mesmo? Sobretudo, tendo em vista a advertência de Hans Jonas, segundo a qual:
Pela primeira vez na história da humanidade (...), as ações do homem
parecem irreversíveis. Ora, o vazio ético se impõe a nós, as morais
tradicionais são inoperantes. Logo, a exigência ética surge, na sua
urgência. Uma nova perspectiva é requerida, que ponha fim à
‘desmoralização’ do homem, privado de referências. É-nos preciso
trabalhar para criar novas fundamentações éticas.
305
Todo esse diagnóstico da situação atual, até aqui realizado, nos preparou para,
finalmente, realizar a exposição da formulação jonassiana que tem a difícil missão de
afrontar todas as questões apresentadas.
Antes, porém, de concluir o presente capítulo, é preciso levantar três questões:
como definir a ética de Jonas no quadro geral apresentado? Ela pode ser inserida entre
as éticas aplicadas e/ou no da bioética? Por quê? As respostas a tais questões serão
buscadas na segunda parte.
304. Ibidem.
305. Ibidem. p. 17.
158
PARTE II – SISTEMÁTICA
A ÉTICA DA RESPONSABILIDADE COMO RESPOSTA AO DESAFIO ATUAL
Entre as diversas propostas éticas contemporâneas mencionadas, a elaborada pelo
filósofo alemão Hans Jonas foi escolhida como alvo de uma apreciação mais detalhada,
justamente por buscar, de saída, transpor os obstáculos colocados pelo pensamento
moderno e também contemporâneo à reflexão ética, em função dos quais, esta tem sido
considerada incapaz de enfrentar as mais candentes questões colocadas pelas novas
biotecnologias.
A perspectiva ética jonassiana será apresentada em quatro momentos: primeiro, a
partir de seus antecedentes biobibliográficos, apresentar-se-á a proposta jonassiana para
solucionar alguns dos dualismos discutidos e, em seguida, a formulação do princípio
responsabilidade
(Capítulo 4).
Toda a exposição posterior será dedicada às várias etapas
de sua fundamentação
(Capítulo 5)
, a seguinte, à proposta de sua aplicação no âmbito da
biomedicina
(Capítulo 6)
e, por último, far-se-á uma avaliação geral, apresentando as
críticas, as contribuições e os limites da ética de Jonas, para encerrar com algumas
sugestões visando minimizar os seus pontos fracos e ressaltar o que ela tem de melhor
(Capítulo 7)
.
Capítulo 4 – Do Fenômeno da Vida rumo ao Princípio Responsabilidade
Embora, nos últimos anos, Jonas venha conquistando cada vez mais espaço, pode-
se dizer que, lamentavelmente, ele é um filósofo ainda pouco conhecido no meio
acadêmico brasileiro. O que se conhece dele, quase sempre, se restringe, à sua obra de
maturidade, que o projetou no cenário filosófico norte-americano e europeu no final da
década de 70, O Princípio Responsabilidade [PR]
(1979), um trabalho de peso e
relevância incontestáveis digno, portanto, de todo o reconhecimento a ele dedicado.
159
Além do PR, dentre os diversos títulos de sua obra, aquele que mais se conhece é o
posterior Técnica, Medicina e Ética
306
[TME] (1985), que constitui uma “aplicação” de
seu princípio responsabilidade ao problema das biotecnologias dirigidas ao ser humano,
notadamente, no campo das ciências biomédicas.
Contudo, a obra de Jonas é bastante extensa, composta, sobretudo, por inúmeros
artigos e recensões
307
. Seus títulos principais: Gnosis und spätantiker Geist - I: Die
mythologische Gnosis (1934) e II: Von der Mythologie zur mystischem Philosophie
(1954), The Phenomen of Life
308
(1966), “The Concept of God after Auschwitz” (1968),
“On the Power or Impotence of Subjectivity (1976), Das Prinzip Verantwortung
(1979), Evolution und Freheit (1983/4) e Technik Medizin und Ethik (1985)
309
.
Isso mostra que Jonas não é somente o “filósofo da responsabilidade”
310
. Sua obra
abrange outras áreas de investigação que, como se pode ver acima, culminam com o PR
e o TME, na reflexão ética, mas sua trajetória intelectual começa muito antes, na década
de 30 e sua produção tão extensa quanto diversificada – contém outras obras basilares
e indispensáveis à justa compreensão de sua formulação ética.
Pretende-se, aqui, iluminar o lado menos conhecido do pensamento de Jonas,
focalizando um tema bastante recorrente em sua obra, mesmo na fase anterior à sua
elaboração ética. Tal questão, de fato complexa, o desafia desde as primeiras reflexões.
Trata-se do problema do dualismo, visto por ele como uma questão a ser forçosamente
enfrentada previamente, para ser possível abrir caminho rumo à reflexão ética.
306. Obra que, no Brasil, é mais bem conhecida e reconhecida por profissionais da área biomédica, com a
qual Jonas nela dialoga.
307. Alguns dos quais foram escritos originariamente em inglês, outros em alemão e alguns ainda em
hebraico.
308. A resenha “The Phenomen of Life 1966”, que F. Neves publica na Revista Kriterion, em 1975,
apresenta essa obra no Brasil.
309. Para uma análise sintética das principais obras de Jonas, ver P. Ricœur. “La responsabilité et la
fragilité de la vie”. In Le Messager Européen, 5, Paris: Gallimard, 1991, pp. 203-218.
310. Aliás, segundo Olivier Depré, Hans Jonas é conhecido como o “pensador da liberdade”. (O. Depré.
Hans Jonas. 1903 – 1993. Paris: Ellipses, 2003. 64 p. Aqui p. 23)
160
Sem almejar esgotar o tema, apenas lançar luz a uma parte menos conhecida da
obra jonassiana, o presente capítulo divide-se em: 4.1 - Breve apresentação
biobibliográfica de Jonas; 4.2 - O dualismo como problema central na reflexão
filosófica jonassiana; 4.3 - O trajeto para a resolução do dualismo; 4.4 - Avaliação e
conseqüências dessa solução e 4.
5
- As diferentes formulações de pr e a resposta
jonassiana às éticas anteriores.
4.1 – Breve apresentação biobibliográfica de Hans Jonas
311
Não é fácil compreender, verdadeiramente, o pensamento de um autor sem
conhecer os aspectos principais de sua biografia. Isso é especialmente verdadeiro no
caso de Jonas, pois ele viveu em profundidade todos os principais acontecimentos do
século XX que, por sua vez, tiveram um visível reflexo no interior de sua obra.
Nascido em 1903, na cidade alemã de Mönchenglandbach; descendente da
tradição judia, sua primeira formação humanística pautou-se pela rigorosa leitura dos
profetas hebreus. Ele próprio resume sua rica vivência intelectual, em diferentes
contextos. Por exemplo, numa conferência realizada em outubro de 1986, na
Universidade de Heidelberg, durante a comemoração dos 600 anos de sua fundação e
numa entrevista
312
, por ocasião da publicação da versão francesa de seu Das Prinzip
Verantwortung, concedida a Jean Greisch e Erny Gillen que se encontraram com o
filósofo, em 14 de julho de 1990.
313
311. Biografia escrita a partir de dados fornecidos pelo próprio Jonas em suas Memórias e nos contextos
citados, retomados por Jean Greisch na apresentação de sua versão para o francês, o Le Principe
Responsabilité, publicado pelas editoras Champs & Flammarion, em 1998, (pp. 9-14) e também por José
Eduardo de Siqueira, no texto “Ética e tecnociência uma abordagem segundo o princípio de
responsabilidade de Hans Jonas”, in Ética, ciência e responsabilidade, São Paulo: Centro Universitário
São Camilo, Loyola, 2005, pp. 101-200.
312. Publicada sob o título “De la gnose au Principe Responsabilité”, in Esprit. Paris, Mai 1991, 5, pp.
5-21.
313. Sem esquecer, obviamente, de suas memórias escritas por Krishna Winston, a partir de conversas
com Jonas, registradas fonograficamente para posterior transcrição, originariamente em inglês. A versão
lida foi a francesa: Souvenirs. Paris: Payot & Rivages, 2005, 382 p.
161
Ali, Jonas destaca três momentos principais de sua trajetória filosófica. O
primeiro tem início em 1921, ano em que inicia sua graduação na Universidade de
Freiburg, escolhida pelo fato de lecionar o célebre filósofo Edmund Husserl, onde
assistiria também às aulas de Martin Heidegger, um professor até aquele momento
pouco conhecido. Jonas reconhece que Heidegger foi durante muito tempo seu mentor
intelectual, a tal ponto que, quando o mestre se transfere para a Universidade de
Marburg, o discípulo segue-o sem hesitar. Fato bastante significativo em seu percurso,
pois é lá que Jonas conhece o seu segundo mentor: Rudolf Bultmann, quem o despertará
para o tema sobre o qual versará sua tese - gnose e o cristianismo primitivo -, defendida
em 1931, ainda sob orientação de Heidegger. Desse trabalho inicial resulta, em 1934, a
sua primeira publicação: o notável Gnosis und spätantiker Geist, que ele mesmo
considera como seu primeiro grande passo como filósofo.
Lamentavelmente, porém, naquele mesmo ano, em decorrência da ascensão de
Hitler ao poder e da adesão de Heidegger ao partido nacional socialista, Jonas se
forçado a deixar a Alemanha. Isso porque, graças a uma acertada intuição, desde aquele
momento, para ele tornou-se
“evidente que era impossível permanecer em tal país fosse
apenas para salvaguardar sua própria dignidade”.
314
Esse fato marca profundamente a sua vida, porquanto a partir de então viverá
distante de seus pais, com os quais encontrará apenas algumas vezes fora de seu país
natal, com o qual rompe relações (refeitas somente poucos anos antes de falecer). No
plano intelectual, as conseqüências são ainda mais determinantes, pois a irreparável
decepção, em relação àquele que tinha sido para ele o mais genuíno de todos os
filósofos, provoca o seu afastamento pessoal e uma quase
315
total ruptura teórica.
314. H. Jonas. “De la gnose au Principe Responsabilité” (Gpr). Esprit. Paris, Mai 1991, nº 5, p. 6.
315. “Quase” porque, como veremos, a influência de Heidegger sobre Jonas jamais deixou de existir. E,
antes mesmo da reaproximação, ela sempre se fez presente, embora nem sempre de modo evidente.
162
O segundo momento mais importante na vida intelectual de Jonas tem lugar em
1966, data da publicação de sua segunda grande obra, o célebre Phenomenon of Life,
Toward a Philosophical Biology, onde ele estabelece os parâmetros para o que ele
denomina de “uma filosofia da biologia”. Inaugura-se, assim, um novo campo de
reflexão que se volta para a precariedade da vida e aponta o enorme alcance filosófico
da abordagem das questões biológicas. Desse modo, Jonas restitui à vida sua posição de
destaque, afastando-se a uma vez de dois extremos: do irreal idealismo e do limitado
materialismo. Ele também adverte sobre o equívoco de se separar o homem da natureza
e de imaginá-lo isolado das demais formas de vida. No epílogo desta obra, Jonas esboça
de forma geral o seu projeto ao escrever que
"com a continuidade entre o espírito
316
e o
organismo, entre o organismo e a natureza, a ética se torna parte da filosofia da natureza (...).
Somente uma ética fundada na amplitude do ser (...) pode ter significado na ordem das
coisas.”
317
A relação entre essa conclusão e o terceiro e último momento de seu trajeto
intelectual é auto-evidente. Pois, a partir daí, tem início a sua busca por uma ética
própria desde seus fundamentos. Uma ética da responsabilidade
318
torna-se, portanto, o
principal objetivo de Jonas. Assim, em 1979 ele publica
Das Prinzip Verantwortung -
Versuchi einer Ethic für die Tecnologische Zivilisation,
traduzido para o inglês em 1984,
para o francês em 1990, para o espanhol em 1994 e, para o português, apenas
recentemente, em 2006.
Quando questionado sobre os motivos que o teriam levado dos estudos da gnose à
reflexão sobre a ética, Jonas mencionava os fatos que marcaram sua própria história.
316. No original o termo é Geistes e na versão francesa esprit. A tradução espanhola segue a tradição
anglo-saxã de traduzir tais termos por mind e adota o termo mente.
317. H. Jonas. Das Prinzip Leben. pp. 401 e 403. Versão francesa: Le phénomène de la vie. pp. 281 e 282.
318. Assim, Jonas recupera um tema que, segundo M. Campolina, surge antes mesmo de Aristóteles.
Diversos filósofos antigos teriam se ocupado da responsabilidade, cuja formulação está presente nos
poemas homéricos e nos fragmentos morais de Demócrito. Ver “A emergência da reflexão sobre a
responsabilidade moral na Grécia Antiga”, in Síntese, Belo Horizonte, v. 29, n. 95, p. 301-322, 2002. Ver
sobre esse aspecto, especialmente, a página 303.
163
Pois, desde a juventude, ele foi partidário do sionismo; ao deixar a Alemanha dirigiu-se,
primeiro para Londres, em seguida para Israel, na ocasião, território da Palestina,
tutelado pela coroa britânica, onde, em 1940, se alistou na brigada judaica do exército
britânico, que ele próprio ajudou a criar, para lutar contra o nazismo, permanecendo
como oficial de artilharia até 1949. Sobre esse período, é interessante transcrever sua
seguinte declaração:
Cinco anos como soldado do exército britânico na guerra contra Hitler
(...). Separado dos livros e de tudo o que faz parte da pesquisa (...)
[percebi] que estava [em questão] algo mais essencial. O estado
apocalíptico das coisas, a queda ameaçadora do mundo (...) a
proximidade da morte (...) tudo isso foi terreno suficiente para propiciar
una nova reflexão sobre os fundamentos de nosso ser e para tornar a ver
os princípios pelos quais se guiam nossos pensamentos sobre eles. Assim,
voltando às minhas origens, fui lançado de novo à missão básica do
filósofo e de sua ação nata, que é pensar.
319
A situação limite decorrente da proximidade com a concretude da morte foi,
então, o que despertou em Jonas a preocupação com a vida, tema a que se dedicou com
grande tenacidade. Para levar a cabo seu projeto, Jonas ousou romper com a corrente
dominante da época e no interior da qual se formara, a filosofia do idealismo da
consciência. Isto ocorre, ao verificar que tal concepção era herdeira do dualismo
cartesiano, que determinara não os destinos da filosofia moderna, mas de todo o
pensamento até o século XX, quando ainda prevalecia a dicotomia corpo-alma. Daí ele
conclui que, para repensar a ética, era necessário ultrapassar tal dicotomia. Imbuído
319. R.J. Bernstein. “Rethinking responsibility.” in Hastings Center Report 1995; 25 (7 Special Issue):
13-20.
164
desse propósito, ele produziu diversos ensaios reunidos, em meados da década de 60,
justamente no seu Phenomenon of Life - Toward a Philosophical Biology.
320
Logo, vemos que Jonas inicia sua transição, dos estudos gnósticos para a reflexão
ética, percorrendo os caminhos da reflexão sobre a vida, com o objetivo central de
eliminar o dualismo antigo, acentuado pelo pensamento cartesiano entre corpo e alma.
Todavia, é interessante ressaltar que Jonas se dedicou durante quase duas décadas
- precisamente durante uma década e meia - aos estudos sobre a gnose. O curioso é que,
segundo o próprio Jonas, somente “por acidente” ele se aventurou
“no domínio
extraordinariamente fascinante da história das idéias que cobre a época dos dois a três primeiros
séculos de nascimento do cristianismo (...). O acidente foi uma exposição apresentada em
Marbourg no seminário de Rudolf Bultmann”
321
, que lhe despertou para o tema que, a partir
de então, ocupa parte significativa de sua vida intelectual.
Houve um momento, porém, em que Jonas se voltou para outras questões, ao se
dar conta de que
“em última instância a filosofia tem a ver com o que é, com o ser real ao qual
nós somos confrontados, do qual nós próprios somos uma parte”.
(Gpr. p. 7)
A esta constatação
aliou-se um fator de ordem externa: o fato de, enquanto soldado, não ter acesso às
bibliotecas, o que o obstou a prosseguir suas pesquisas, mas não a continuar a atividade
filosófica. Assim, Jonas deparou-se com as
“questões que cada um traz por assim dizer
consigo, a questão de ser o que se é (...) ao que não se acede pelos livros nem pelas pesquisas
[que] se reportam ao passado, mas pelo que se pode conhecer e compreender em si mesmo, em
primeira pessoa.”
(Gpr. p. 8)
Tudo isso fez manifestar sua insatisfação com relação ao “filosofar alemão”,
especialmente com base nos ensinamentos de Husserl e Heidegger. Com efeito, ele
percebe que seus grandes mestres não incluíam em suas reflexões as descobertas das
320. Em francês: Le phénomène de la vie Vers une Biologie Philosophique, versão que será a mais
utilizada, sob a abreviação PhV. Quando, porém, citado indiretamente aparecerá o título original cuja
abreviação é PhL.
321. H. Jonas. “De la gnose au Principe Responsabilité”. (Gpr) Esprit. Paris, Mai 1991, nº 5, p. 7.
165
ciências naturais sobre o mundo. Todos os temas mais caros a tais pensadores, entre os
quais a
“questão da consciência, do ser-ao-mundo, do Dasein, da angústia, do ser-para-a-morte,
do ser autêntico e inautêntico, etc”
(Ibidem.)
somente expressavam
“aspectos da subjetividade
do si, da alma, da interioridade, mas
[em todos eles]
de certa maneira o mundo real estava
ausente.”
(Ibidem).
E uma vez confrontado com questões concretas, por exemplo, as
levantadas pela perspectiva marxiana, Jonas foi levado a se perguntar:
“de fato, que
socorro nos presta a fenomenologia face à fome?”
(Ibidem).
Desse modo, Jonas entendeu que a questão do corpo fora totalmente ignorada pela
reflexão filosófica alemã eminentemente idealista e
“mesmo em Heidegger, que queria se
liberar dessa tradição, ela persiste, apesar de tudo, através de seu conceito de ser-aí que ele
associa à constituição fundamental da preocupação que é, aliás [como ele admite], uma
magnífica definição de ser-aí.
” (Ibidem.
)
A grande sagacidade de Jonas foi, portanto, perceber que
“somos seres dotados de
um metabolismo e [que por isso] nós temos necessidade do mundo, o mundo real-material e não
somente o mundo da consciência, embora tenhamos necessidade também desse.”
(Gpr. pp. 8-9)
De fato, tal idéia se anunciava a Jonas desde os seus estudos sobre a gnose,
quando ele descobriu o que aponta como possível ligação entre os seus diferentes
trabalhos, a saber:
“o dualismo radical da gnose no qual a alma e o espírito são estrangeiros ao
mundo, alguma coisa que vem de alhures, de fora, que não tem verdadeira pátria nesse mundo, onde
o corpo é a prisão da alma e onde o ser verdadeiro consiste na separação.”
(Gpr. p. 9. Grifos nossos.)
Tal dualismo ele detecta não na tradição ocidental, mas também numa
importante concepção oriental: o budismo. Entretanto, para Jonas, se o dualismo teve
certa utilidade no interior da teoria do conhecimento; na perspectiva da ontologia ou da
metafísica, sua contribuição foi absolutamente insatisfatória, para não dizer negativa.
166
Todas essas avaliações revelam que, mesmo em pleno front, Jonas refletia
322
cada
vez mais intensamente sobre a significação de nosso ser corporal, algo que ele percebia:
Não somente no fato de que nós somos seres corporais, mas também
no fato de que o mundo que nos cerca é povoado de tais seres, de
organismos, que certamente são bem mais primitivos que nós, de
organismos que não pensam e não percebem como nós e que,
entretanto, são outra coisa que simples porções de matéria. (Ibidem.)
Para confrontar esse dualismo, seu propósito passa a ser elaborar um monismo de
uma nova espécie
323
, com o qual fosse possível superar a cisão cartesiana do ser. Cisão
que estabelece que, de um lado,
“o elemento físico da coisa extensa definida por
parâmetros mensuráveis, e de outro a consciência que consiste simplesmente em atos do
espírito.”
(Ibidem.)
Terminada a guerra, Jonas retorna a Jerusalém. Em 1949, é convidado a lecionar
no Canadá, primeiro na MC Gill University de Montreal, depois na Universidade de
Ottawa. Em 1955, muda-se para os EUA e inicia sua carreira na New School for Social
Research de New York, onde lecionará por mais de 20 anos.
A extensão e diversidade de sua obra ilustram perfeitamente o seu percurso
intelectual, aparentemente descontínuo
324
. Mas, como apontado por Nathalie
Frogneux
325
, existe uma unidade essencial cujo fio condutor é, precisamente, a tentativa
de resolução do dualismo
326
. Desde as suas primeiras obras sobre a gnose, passando
322. Parte dessa reflexão está registrada em suas cartas à sua esposa Lore Jonas, parcialmente transcritas
em suas memórias. Souvenirs. pp. 264-292.
323. Explicitado adiante, à p. 187, nota 370.
324. Jonas é um filósofo multifacetado que legou uma obra bastante vasta e, num primeiro momento, de
difícil indexação. Contudo, uma abordagem mais cuidadosa da obra é capaz de identificar os 3 grandes
temas indicados por ele próprio e que podem servir de índice a uma fiel taxonomia de sua obra: Gnose,
Filosofia da Biologia e Ética. J. Greisch, & E. Gillen. “De la gnose au Principe Responsabilité”. Un
entretien avec Hans Jonas, in Esprit, 54 - mai 1991 -, pp. 05-21. Sobre os temas principais da obra de
Jonas ver pp. 07-10.
325. N. Frogneux. Hans Jonas ou la vie dans le monde. (VM) Bruxelles: De Boeck & Larcier, 2001, p. 4.
Obra que guiará o tópico 2 e parte do 3.
326. Sobre o que discorda Pinsart, para quem o fio condutor da obra de Jonas é o conceito de liberdade.
(M.G. Pinsart. Jonas et la Liberté. Dimensions théologiques, ontologiques, éthiques et politiques. Paris:
167
pelos textos dirigidos a uma biologia filosófica, até chegar aos de teor
fundamentalmente ético, o pensamento de Jonas é entoado segundo o diapasão da
resolução do dualismo, cujas diferentes etapas serão apresentadas no tópico a seguir.
4.2 - O dualismo como problema central na reflexão filosófica jonassiana
Vimos, no tópico anterior, que o problema do dualismo constitui, por assim
dizer, o leitmotiv de toda a reflexão filosófica jonassiana. Mas, por que afinal Jonas
atribui ao dualismo uma importância tão grande e por que essa questão precisa ser tão
imperiosamente solucionada?
O próprio Jonas resume sua trajetória como uma
démarche filosófica inteiramente
consagrada à resolução do dualismo, para pensar a dignidade do homem agindo no interior
do mundo onde ele se encontra”.
(DH, p. 16 / VM, XIII n. 2
327
. Grifos nossos)
Esse aspecto é
crucial para compreender porque, desde as suas primeiras obras sobre a gnose, o tema
do dualismo já se mostra como eixo central de sua exposição.
Frogneux ressalta o pioneirismo de Jonas ao descrever o dualismo gnóstico em
toda sua originalidade e radicalidade, sem reduzi-lo ou atribuir sua origem a formas
anteriores como o dualismo persa (mazdeano ou zoroastriano), que é pro-cósmico,
enquanto o dualismo anti-cósmico gnóstico vê o mundo como o lugar por excelência do
mal
328
; ou o dualismo grego (órfico-pitagórico-platônico) no qual, embora
desvalorizado como imperfeito (sobretudo conforme a versão platônica), o cosmos
permanece como uma imagem da perfeição na qual o Demiurgo se inspirou para criá-lo,
enquanto o pensamento gnóstico é totalmente hostil ao mundo como um todo. A autora
adverte ainda que, para Jonas, não uma oposição entre dualismo e monismo, como
há, por exemplo, entre diteísmo e monoteísmo; essa exposição tentará mostrar porquê.
Vrin, 2003, 222 p. Ver p. 07). De qualquer modo, o problema do dualismo é logicamente anterior. O
tópico seguinte tentará justificar tal afirmação.
327. A mesma citação aparece nos dois textos de Frogneux, aqui focalizados.
328. O cosmos gnóstico “não tem nada do caráter venerável do cosmos grego”. (PhV, p. 224)
168
Por sua hostilidade em relação ao mundo, o dualismo gnóstico constitui
“uma
ruptura absoluta, uma torção ou uma perversão da cadeia do ser que atinge as raízes mesmas da
vida humana no mundo”
(VM, p. 27).
Essa ruptura se traduz, na dimensão humana, como
um sentimento de isolamento do homem em sua condição de ser solitário, num mundo
natural hostil e mau; sentimento que se encontra alojado na raiz do pensamento
gnóstico.
Resta ao homem, como um ser “exilado no mundo”, buscar abrigo no “ser divino”.
329
A conseqüência mais nefasta desse dualismo homem / mundo é, segundo Jonas, o
niilismo
330
que se manifesta numa
“metafísica do ser-no-mundo que, em sua raiz, torna a
ação vã, tanto para o homem que a realiza quanto para o mundo que a sofre”.
(VM, 31)
Sendo assim, na base de sua crítica ao dualismo gnóstico encontram-se, na
verdade, as críticas ao niilismo e ao ceticismo moral. Ou seja, a crítica jonassiana
“prende-se (...) menos ao dualismo como tal que a seu alcance cético e niilista para a
antropologia e à ação”
(VM, 101).
Por esse motivo, Frogneux afirma que:
“Sua tarefa filosófica consiste, desde então,
em reencontrar uma medida comum entre o homem e o mundo sem, entretanto, jamais reduzir
um ao outro.”
(DH, p. 09)
Além desse dualismo homem / mundo (ou cósmico-antropológico), Jonas enfrenta
ainda outro dualismo. Trata-se do dualismo espírito / matéria (ou psicofísico)
331
retomado com todo vigor no período moderno, iniciado por René Descartes com a
separação radical entre res cogitans e res extensa - estabelecendo que a natureza se
restringe exclusivamente à segunda, tornando possível uma abordagem
“puramente
329. Cabe mencionar a concepção gnóstica da existência de dois deuses ou princípios divinos
antagônicos: um deus supra-mundano bom e um demiurgo mau, origem desse mundo também mau. (VM,
pp. 29 e ss.)
330. “Essa cisão entre o homem e a realidade total está na base do niilismo.” (PhV, p. 237) Este é
apontado por Jonas como traço comum ao pensamento gnóstico antigo e ao existencialismo moderno. Ver
Ensaio IX de PhV – Gnose, existencialisme et nihilisme” - pp. 217-238.
331. Na antigüidade, os pólos corpo / alma (soma / psyqué) eram realidades distintas que, todavia,
formavam uma unidade.
169
mecânica e quantitativa do mundo natural, tendo seu corolário no método matemático em física”
(PhL, 72 / VM, 121)
332
.
Frogneux afirma que, para Jonas:
“o separatismo cartesiano seria motivado pela
vontade de fundar a metodologia e a metafísica das ciências naturais”
(VM, 121).
Logo,
segundo a autora, nessa perspectiva, Descartes é, mais do que o precursor da filosofia da
consciência ou da subjetividade, o fundador das ciências modernas. Além disso, o que
Jonas confronta nessa nova metafísica é, precisamente, um novo tipo de dualismo no
qual os pólos opostos manifestam-se como
“realidades auto-suficientes (Ibidem.),
enquanto que no dualismo clássico os pólos se encontravam como oposições correlatas
ou interdependentes.
Jonas identifica
um novo tipo de polaridade (...) manifesta por pares tais como sujeito /
objeto, espírito / natureza, consciência / espacialidade, interioridade / exterioridade, em que o
segundo termo goza de uma realidade independente e, finalmente, mesmo anterior”
(PhL, 72 /
VM, 121).
Frogneux explicita que os primeiros termos referem-se à res cogitans e os
segundos à res extensa e que a autonomia entre eles decorre da recíproca exclusão de
seus respectivos domínios. Jonas critica tal cisão, sobretudo, por resultar na total recusa
da subjetividade no âmbito da res extensa, entenda-se aqui, na esfera da natureza.
Frogneux emprega a expressão
“dualismo da pureza”
333
para designar esse
dualismo tal qual descrito por Jonas, uma vez que o que pertence à res extensa não se
refere à res cogitans e vice-versa, a não ser numa curiosa exceção: o ser humano, no
qual as duas rei se unem no interior da “glândula pineal” – formulação que Jonas avalia
como insatisfatória, por ser artificial.
Mas se Descartes é criticado por Jonas, esse também não é poupado por Frogneux
que afirma:
“nessa leitura, a dualidade cartesiana se reduz praticamente à justaposição de dois
332. A dupla referência indica que citamos Frogneux que, por sua vez, cita Jonas.
333. Utilizada por R. Mirashi in Le corps et l’esprit dans la philosophie de Spinoza. Le Plessis-Robinson,
Institut Synthélabo, 1998, p. 17. (Apud. VM, p. 121).
170
monismos complementares e não se distingue muito de seu sucessor, o ocasionalismo
334
(VM,
121 - 122).
Com efeito, conforme a concepção jonassiana, a formulação cartesiana redunda
no mais absoluto fracasso, ao postular um homem fragmentado, visto que:
o “dualismo
cartesiano criou o enigma da maneira pela qual um ato de vontade pode mover um braço, uma
vez que uma parte do mundo externo somente pode ser movida por outro corpo que lhe
transmite seu movimento antecedente”
(PhL, 61 / VM, 122).
Nesse sentido, além de toda interação entre res cogitans e res extensa ser recusada
na dimensão teórica, o cartesianismo, segundo Jonas, nega a evidência da experiência
comum. Por isso, embora admita que a tese cartesiana seja teoricamente consistente, por
se reduzir de um lado à natureza objetivante e de outro ao espírito subjetivante, tal
formulação não permite a emergência do organismo vivo. Exatamente esse é o
problema que Jonas identifica no dualismo cartesiano o qual buscará resolver, pois para
ele que, nesse momento, pretende conceber uma filosofia da biologia,
“o organismo é um
fato crucial” (PhL, 88 / VM, 122).
Basicamente, Jonas busca superar o dualismo para combater as conseqüências
indesejadas, por um lado, do gnóstico, que afirma a vaidade
335
da ação humana no
mundo e, por outro lado, do cartesiano que, ao separar as dimensões: psíquica e física,
cria o problema da ação do próprio corpo e impede a real apreensão do organismo. Nos
334. “Doutrina filosófica elaborada no século XVII por alguns discípulos de Descartes [em especial
Malebranche] que, aceitando a heterogeneidade entre alma e corpo, tornaram insolúvel o problema de
explicar como substâncias heterogêneas podem agir uma sobre a outra. Os cartesianos acreditaram
resolver o problema afirmando que não existe ação real do corpo sobre a alma e vice-versa, que a ação
provém diretamente de Deus e nós apenas experimentamos os efeitos. As causas dos acontecimentos são
meras "ocasiões" da intervenção divina, por conseguinte, "causas ocasionais", mas não efetivas. Mesmo
os corpos se movem por causas ocasionais, os impulsos, derivando-lhe deste movimento que o espírito
originalmente imprime à matéria, criando-a. As criaturas o inteiramente impotentes, somente Deus age
como soberano absoluto, que não delega nada do seu poder”.
Fonte: http://www.spiritualsearch.it/pbAreaCode/viewdett.cfm?id_teotable=7591 (nossa tradução)
335. Considere-se, aqui, o sentido original do termo como qualidade daquilo que é vão.
171
dois casos, porém, o que está em jogo é a possibilidade da emergência da liberdade (e,
ver-se-á, não somente a humana) no mundo.
336
4.3 - O trajeto para a resolução do dualismo
A. “Tentativas” anteriores para a resolução do dualismo cartesiano
Antes de apresentar sua própria solução, Jonas se ocupa das principais concepções
da tradição filosófica que buscaram superar o dualismo criado por Descartes, aquelas
realizadas por Spinoza, Leibniz e Whitehead. Contudo, não é de modo algum
surpreendente constatar que, embora reconhecendo o esforço e o mérito de cada um
deles, Jonas não aceite nenhuma dessas respostas como definitiva e as identifique como
meras tentativas.
A. 1 - A Substância de Spinoza
337
Começando por Spinoza, o primeiro pós-cartesiano que ousou realizar essa tarefa,
Jonas, em 1965, dedica um estudo à sua teoria do organismo, que ele enaltece como
“uma das aventuras mais audaciosas da metafísica” (PhE, 208 / VM, 141),
por ultrapassar a
polaridade disjuntiva matéria / espírito, estabelecendo um novo conceito de substância.
Jonas também elogia o fato de que, embora seu propósito fosse elaborar uma
fundamentação metafísica para a psicologia e a ética e não uma filosofia do vivente, a
antropologia de Spinoza oferece elementos bastante fecundos
“para pensar o organismo
fora do quadro da física mecânica, porque o corpo não é mais concebido como uma substância
ou um agregado, mas como uma entidade funcional”
.
338
(VM, 141-142)
336. Além desses dois dualismos aqui mencionados, Jonas contesta também o dualismo de tipo kantiano,
que retém a liberdade humana à esfera noumenal, tornando-a totalmente ausente na esfera dos fenômenos.
Tema que ele aborda em PIS e em outro texto denominado “Le combat pour la possibilité de la foi” em
Entre le Néant et l’Éternité - pp. 145-174. Jonas contesta ainda a separação humeana entre o ser e o
dever, uma vez que certos seres os viventes se impõem objetivamente como fim no ser, onde eles
aparecem como valores para a consciência capaz de observar esta valorização subjetiva que se esboça
bem aquém do sujeito humano.” (DH, pp. 15-16). Tema que ele expõe em PIS e em PR.
337. Em PhV, Jonas menciona essa concepção spinozana no texto: “La signification du cartésianisme
pour la théorie de la vie”, em duas notas (4 e 5) à página 72.
338. Para uma análise detalhada dessa interpretação jonassiana do modelo spinozano, ver VM, pp. 141-
146.
172
Com efeito, Spinoza busca resolver o problema da separação psicofísica,
estabelecendo
“um co-pertencimento intrínseco do espírito e da matéria.”
(VM, 142)
Tal
solução ficou conhecida como
“paralelismo psicofísico”. (PhE, 217 / VM, 142)
Entretanto, ainda que avalie de forma bastante positiva a concepção de Spinoza e,
inclusive, dela absorva deliberadamente diversos elementos para a sua própria
formulação, Jonas recusa a solução spinozana devido a três aspectos específicos:
1. Ao fato de Spinoza assumir, sem reservas, o axioma cartesiano, amplamente aceito à época,
da total ausência de interação entre alma e corpo (axioma do não-interacionismo);
2. Às conseqüências éticas do panteísmo, sobretudo, a indistinção entre o bem e o mal
no âmbito da natureza e do ser e
3. À supressão spinozana da diferença entre vivente e não-vivente, concebendo um tipo
de
pan-organismo ao definir como orgânico “tudo o que se situa, em qualquer grau que
seja, sobre a escala da organização”.
(VM, 145)
A2. A Mônada de Leibniz
A tentativa leibniziana de solucionar o impasse criado pelo cartesianismo,
identificada à linhagem idealista aproximando-se ora de Spinoza
339
, ora de Berkeley
340
,
constitui, segundo Jonas, uma posição paradoxal
341
entre os herdeiros da tradição
cartesiana.
339. O que aproxima Leibniz e Spinoza é, segundo Jonas, o fato de que ambos “enunciaram, como um
postulado ontológico, o princípio da continuidade qualitativa, permitindo gradações infinitas na
obscuridade e na claridade da percepção, [algo que] se tornou, graças ao evolucionismo, um complemento
lógico à genealogia científica da vida” (PhV, 68). Tal noção é crucial para a sua filosofia da biologia.
340. Por sua vez, o que Jonas como proximidade entre Leibniz e Berkeley é o fato de que tanto “o
idealismo berkeleyniano [quanto] a monadologia leibniziana se posicionam ao lado da res cogitans. (PhV,
66)
341. O paradoxo reside precisamente no fato de Leibniz se colocar, segundo Jonas, entre dois filósofos
com tendências absolutamente contrárias, uma vez que Spinoza, em seu racionalismo monista, afirma a
unidade ou a identidade entre alma e corpo, ou seja: “Em virtude do monismo da substância, a alma
espiritual (mens) uma vez que ela é essencialmente «cogitatio», no sentido cartesiano, é um modo do
atributo divino de Pensamento e uma “parte do intelecto infinito de Deus” (II, pr. Ii, coroll.), enquanto,
“O corpo é um modo do atributo divino da Extensão” (cf. II, pr 13). “Em virtude do paralelismo dos
atributos (...) a todo modo de um atributo qualquer corresponde um modo de pensamento, uma idéia.
então correspondência natural entre o corpo humano e a realidade «formal» ou «subjetiva» (...) de uma
idéia. Mas é da essência do pensamento, ou da idéia, que a realidade «formal» seja por ele representada,
(...). Desde então, a relação da alma e do corpo deve ser a relação de uma idéia a seu objeto próprio”. (J.
173
De saída, Leibniz recusa a solução ocasionalista da interação entre alma e corpo e,
para sustentar sua “ambígua” posição, é forçado a pensar o conceito de substância de
um modo radicalmente novo, através do conceito de mônada: entidade espiritual,
análoga à alma humana, portadora de dois atributos: 1) unidade: responsável pela
percepção e pensamento e 2) força: responsável pela inclinação e apetição.
Com a noção de força, Leibniz pretende introduzir a intensidade na substância
matemática, que Descartes reduzira à extensão e com a noção de unidade, em particular
no plano ontológico, o princípio da continuidade. Jonas, porém, considera contraditória
a formulação leibniziana dado que a matéria seria, ao mesmo tempo, inteiramente
passiva e, dotada de percepção e, segundo pensa:
aquele que percebe, pela natureza mesma
da percepção, deve também ser um agente
. (PhL, 156 n. 3 / VM, 146)
342
Ademais, a crítica jonassiana se endereça a Leibniz por seu 1. idealismo, uma vez
que Jonas, por sua formação dentro da tradição fenomenológica, busca a realidade das
próprias coisas; 2. nominalismo, ao aceitar a tese de Berkeley
343
que nega a realidade
das coisas além das mentes divina e humana e 3. panpsiquismo, ao enfraquecer a real
dimensão da morte: traço distintivo entre o orgânico e o não-orgânico.
344
Ao contrário da subjetividade, que em Spinoza pode descrever satisfatoriamente o
ser-vivo como conatus, a mônada leibniziana não é disso capaz, que permanece
Maréchal. s.j. Précis d’Histoire de la Philosophie Moderne. Tome Premier: De la Renaissance à Kant.
Deuxième édition revue et augmentée avec supplément bibliographique de 1933 a 1949. Bruxelles:
L’Édition Universelle / Paris: Desclée de Brouwer, 1951. 356 p. Aqui pp. 126-7.) Berkeley,
identificado ao empirismo, mas de um tipo original “anti-materialista”, considera que “os corpos são
apenas representações mentais (das «percepções»)”. (PhV, 71, n. 2)
342. Crítica também dirigida a Hume e a Kant por conceberem a percepção puramente passiva (VM, 146).
343. Segundo Berkeley, a causa de todos os erros é supor que a mente pode elaborar idéias abstratas
(como as de "corpo" ou "existência"), critica assim a teoria das idéias gerais de Locke e propõe um
nominalismo absoluto: as idéias são meros nomes e toda idéia ou representação é sempre individual, o
que exige muito cuidado ao usar as palavras. Além disso, para Berkeley, conhecemos idéias e além
delas somente existe a mente que as percebe e Deus (que as faz perceber). Pensar que existe um mundo
material decorre do erro de deixar-se levar pelas falácias da abstração, considerando o "ser" das coisas
independentemente de seu "ser percebidas". Fonte: http://filosofia.idoneos.com/index.php/339135
344. Questão da qual Jonas se ocupa a partir da metade dos anos 60.
174
fechada em si mesma, sendo mais próxima da realidade não-orgânica do que do
orgânico propriamente dito.
Jonas recusa, também, a tese da “harmonia pré-estabelecida”, que pressupõe a
total ausência de risco assegurada por um
“criador absoluto, imutável e infalível”
(VM, 147),
em favor de uma teoria do risco, mais compatível com a realidade e com a possibilidade
da liberdade em ação no mundo
.
345
Embora as critique, Jonas considera as tentativas de Spinoza e Leibniz como
“uma
proeza realizada por um artista que teria as mãos amarradas às costas”
(PhL 63 / VM, 147)
,
as
amarras não sendo nada mais do que a aceitação incondicional do não-interacionismo
estabelecido por Descartes.
A3. O pan-organismo de Whitehead
A terceira tentativa de superar o paralelismo pós cartesiano em favor de uma tese
monista integral é atribuída ao
“grande Whitehead”
(VM, 147)
. De fato, Jonas considera-se
bem próximo do programa filosófico de Whitehead, que ele elogia por ser
“um audacioso
projeto de ontologia fundamental da natureza, cuja força intelectual e a importância filosófica
não têm, em nossa época, outro equivalente.”
(OF, 150 / VM, 147)
O próprio Whitehead, segundo Frogneux, apresenta
“sua teoria geral da realidade
como uma filosofia do organismo, um ensaio de cosmologia baseado sobre um princípio
universal de continuidade do ser”
(VM, 148)
.
Em sua teoria, a substância aristotélica é
substituída pela categoria de uma entidade atual, identificada como o
“sentir”
(Ibidem.)
.
Além disso, Whitehead introduz a concepção de um processo de auto-criação
permanente da natureza, que foi rejeitada pelo mecanicismo.
345. Frogneux sublinha que Jonas maximiza “essa contingência da história humana ao pensar sua
repercussão em Deus como futuro precário e ameaçado”. (VM, 147). Ver também: CDA - Deus como
futuro ou ‘devir’ (pp. 23-25) precário e ameaçado (p. 27).
175
Entretanto, mais uma vez, Jonas, no
The Phenomenon of Life (1966)
346
, recusará o
“pampsiquismo que generaliza às identidades físicas os caracteres orgânicos, e notadamente a
interioridade.”
(Ibidem.)
. As ressalvas de Jonas a Whitehead são semelhantes àquelas que
ele endereçou a Spinoza e Leibniz: 1) minimizar a separação entre vivente e não-vivente
e 2) reduzir uma diferença ontológica a uma simples diferença de grau.
Além do mais, ao sobrepor a identidade orgânica à identidade física, Whitehead
retira da vida seu aspecto angustiante e, justamente por isso, destitui do mal a sua força.
Isto leva Jonas a comparar essa formulação de Whitehead à de Teilhard de Chardin,
embora noutro âmbito filosófico - que Whitehead consegue escapar ao dualismo
pelo fato de elaborar uma
“história com sucesso intrinsecamente garantido”
(Ibidem.),
graças
a um monismo integral e, desse modo, refratário até mesmo aos aspectos positivos do
dualismo
347
.
Frogneux indica, porém, que tal
“desacordo se inscreve sobre o fundo de uma vontade
partilhada de sair de uma concepção puramente exterior e extensa da matéria”.
(Ibidem.)
Nesse sentido, Spinoza, Leibniz e Whitehead, tanto quanto pretende fazer o
próprio Jonas, buscaram
“reafirmar o caráter dinâmico da natureza e de reconhecer em seu
seio uma apetição ou um conatus”.
(Ibidem.)
E aqui, Frogneux propõe uma luminosa síntese, dos elementos que Jonas
identifica em cada um deles, visto que:
Todos três parecem querer sair de uma ontologia da morte
348
e da
inércia e repensar de maneira ativa a natureza, e nela a força e a
346. Pois, em Macht oder Ohnmacht der Subjktivität? (1987), obra bastante idiossincrática, o próprio
Jonas adotará uma concepção que pode ser identificada ao pampsiquismo.
347. O que significa que Jonas pretende reter algo do dualismo e não apenas descartá-lo inteiramente.
348. Essa expressão é diversas vezes empregada por Jonas para estabelecer uma contraposição entre a
concepção antiga de natureza, que era panvitalista (associada ao hilozoísmo) em contraste com a visão
moderna mecanicista, segundo a qual tudo é máquina. No Ensaio I do PhV, ele nos diz textualmente:
“como o foi outrora o panvitalismo, o pan-mecanismo é, no presente, a hipótese englobante; e o caso raro
da vida, realizada sob as condições excepcionais, mesmo únicas, de nosso planeta, é o fato particular
improvável que parece transgredir a lei fundamental e que deve desde então ver-se recusar sua autonomia
(...). Considerar a vida como um problema, é aqui reconhecer sua estranheza no mundo mecânico que é o
176
causalidade. Spinoza oferece, então, bem antes da termodinâmica,
uma conceitualização adequada do sistema aberto e em interação que
é o indivíduo; Leibniz consegue pensar a appetitio do vivente e a
intensidade da natureza; Whitehead, enfim, como seus dois
predecessores, pensa a continuidade natural de uma interioridade.
(Ibidem.)
Essas considerações já fornecem uma indicação do caminho que o próprio Jonas
pretende seguir. É o que veremos no próximo item.
B. A solução de Hans Jonas
Chegamos, assim, ao núcleo central da questão proposta: a formulação
jonassiana para resolver o problema do dualismo e suas conseqüências indesejáveis.
Embora tal questão tenha sido abordada em diferentes textos ao longo de sua produção
intelectual, entre os anos 50 e 90, por sua força sintética e por se tratar de uma versão
mais tardia, o texto escolhido para nortear essa parte foi o mencionado Evolution und
Freheit (1983/4)
349
, que inicia com a seguinte formulação:
Nossa tradição filosófica ocidental, o olhar exclusivamente fixo sobre
o ser humano, tem o costume de lhe atribuir como uma distinção
única uma grande parte do que em realidade tem sua raiz na
existência orgânica enquanto tal: ao fazê-lo, ela priva a compreensão
do mundo orgânico dos conhecimentos que a percepção que ele tem
de si mesmo põe à disposição do homem. De seu lado, a biologia
científica, ligada por suas regras às realidades físicas exteriores,
somente pode ignorar a dimensão da interioridade inerente à vida:
mundo, explicá-la é, nesse clima de ontologia universal da morte – negá-la ao fazer dela uma das
variantes possíveis do sem vida. A teoria mecanicista do organismo é uma tal negação, como os ritos
funerários da pré-história eram uma negação da morte. O homem máquina significa na concepção
moderna o que inversamente significava o hilozoísmo na concepção antiga (...)”. (PhV.p. 22)
349. Aqui utilizaremos a versão francesa desse texto: H. Jonas. “Evolution et Liberté”. In Evolution et
Liberté. Traduit de l’allemand et présenté par Sabine Cornille et Philippe Ivernel. Paris: Payot & Rivages
[2000] 2005. pp. 25-57.
177
ela deixa assim essa vida, plenamente explicada sob o ângulo
material, mais enigmática do que ela estava antes de toda explicação.
Esses dois pontos de vista, congelados desde Descartes em sua
separação artificial, permanecem complementares um ao outro e se
reforçam mutuamente à custa de seu objeto respectivo, um e outro
literalmente reduzidos assim à “porção congruente”: a compreensão
do humano não sofre menos com essa separação que a compreensão
da vida extra-humana. Uma leitura filosófica renovada do texto
biológico pode reconquistar a dimensão interior – a parte melhor
conhecida por nós – para a compreensão das coisas orgânicas e
restituir assim à unidade psicofísica o lugar no conjunto teórico que
ela perdeu desde Descartes, em razão do divórcio entre o mental e o
espiritual. A partir de então, haverá um ganho tanto para a
compreensão do orgânico, quanto para a compreensão do humano.
(EL, pp. 25-26)
Esse importante parágrafo foi citado na íntegra por fornecer as principais
diretrizes para compreender os objetivos de Jonas. De um lado, os problemas
decorrentes da divisão cartesiana: o empobrecimento da compreensão tanto da vida em
geral, quanto da vida humana em particular e, de outro, as principais motivações para a
sua superação: alcançar uma compreensão integral dessas duas dimensões, eliminando a
separação entre o homem e as demais formas de vida.
Curiosamente, o passo seguinte de Jonas não é buscar negar a polaridade, mas,
ao invés disso, estendê-la até as mais remotas fronteiras da vida, afirmando que:
As grandes contradições que o ser humano descobre nele mesmo
liberdade e necessidade, autonomia e dependência, eu e mundo,
relação e isolamento, criatividade e mortalidade têm sua
prefiguração em germe nas formas mais primitivas da vida, cada uma
178
oscilando perigosamente entre ser e não-ser, e portando em si um
horizonte interno de transcendência.
(EL, p. 26)
Tal formulação atesta não apenas o caráter eminentemente contínuo e dual da vida
em si mesma, mas também o co-pertencimento do ser humano a essa condição. Desde
então, o homem não está mais sozinho ou isolado numa condição ilhada,
ontologicamente superior. Toda a contradição que ele experiencia não é, afinal, uma
prerrogativa humana, ao contrário:
Esse tema, comum a toda vida, pode ser seguido em sua evolução
através da ordem ascendente desde as faculdades e as funções
orgânicas: metabolismo, movimento e desejo, sensação e percepção,
imaginação, arte e conceito - um escalonamento contínuo de
liberdade e de perigo, que culmina no homem o qual, talvez, ganhe
uma nova compreensão de sua unicidade, desde que ele deixe de se
considerar como metafisicamente separado.
(Ibidem.)
Desse modo, Jonas estabelece uma perspectiva inteiramente diferente para
conceber a posição do ser humano na escala do ser-vivo. Certamente, influenciado pela
teoria da evolução de Darwin
350
, ele pode afirmar a continuidade
351
existente desde a
forma mais elementar de vida até o ser humano, que representa a forma de vida mais
complexa - até o momento - conhecida. Entretanto, ele admite que,
independentemente dos resultados da pesquisa sobre a evolução, a
presente multiplicidade da vida em sua simultaneidade,
particularmente aquela da vida animal, se oferece como uma
sucessão ascendente de graus, que vai do ‘primitivo’ ao
350. À qual Jonas atribui grande importância, por sua concepção da vida como processo e por sua
reflexão do conceito antigo de “origem” (PhV, p. 53), ainda que criticando-a em alguns aspectos,
sobretudo, na perspectiva do evolucionismo, que contribui para a resolução do dualismo cartesiano
tomando partido da matéria em detrimento do espírito, chegando à solução monista materialista, que ele
igualmente critica, por excluir a dimensão da subjetividade. Ver PhV, Segundo Ensaio, pp. 51-68.
351. Princípio postulado por Spinoza e também por Leibniz e que Jonas retoma no PhV e no EL,
especialmente, pp. 33-34.
179
‘desenvolvido’, escala sobre a qual se situam complexificação da
forma e diferenciação da função, fineza dos sentidos e intensidade das
pulsões, controle dos membros e faculdade de agir, reflexão da
consciência e apreensão da verdade.
(EL, pp. 26-27)
Jonas identifica nessa escala ascendente duas vias pelas quais se deu o progresso:
1) a via da percepção e 2) a via da ação, às quais ele associa respectivamente as
dimensões do saber e do poder. Assim:
de uma parte [a via da percepção] conforme a extensão e a claridade
da experiência, segundo os graus ascendentes da presença sensível do
mundo que atravessam todo o reino animal para conduzir até a
objetivação a mais vasta e a mais livre da totalidade do ser no
homem; e de outra parte, paralelamente a isso e culminando
igualmente no homem, [a via da ação] conforme a dimensão e a
natureza do impacto sobre o mundo, então segundo os graus de
liberdade crescente no agir.
(EL, p. 27. Grifos nossos)
Tais funções, que se manifestam de modo elementar nas formas mais primitivas
da vida e se tornam cada vez mais complexas até alcançar um grau mais elevado no ser
humano, segundo Jonas, identificam-se no nível orgânico mais primitivo à percepção e
mobilidade, cuja inter-relação e interpretação constituem um constante tema de
investigação para os estudiosos da vida animal.
Especialmente digno de nota nessa passagem é o surgimento do conceito de
liberdade, relacionado ao perceber e ao agir já na esfera mais elementar da vida,
quando, o próprio Jonas reconhece que, em princípio, não se espera encontrá-la antes do
“domínio do espírito e da vontade”.
(EL, p. 27)
A partir daí, Jonas começa a revelar toda a originalidade de sua formulação, pois,
não apenas ele atribui a liberdade às formas mais elementares da vida, como identifica
180
essa primeira manifestação da liberdade à mais elementar atividade realizada por todo
ser-vivo: o metabolismo. Segundo suas próprias palavras:
“por nossa parte, nós chegamos
até a afirmar que o metabolismo, camada fundamental de toda existência orgânica, manifesta
uma liberdade – ou melhor – que ele próprio é a primeira forma de liberdade.”
(EL, pp. 27-28)
Num primeiro momento, é bastante difícil acolher essa afirmação sem alguma
estranheza, pois como o próprio Jonas indaga:
“o que poderia ter menos a ver com a
liberdade que o automatismo cego dos processos químicos no interior de nosso corpo?”
(EL, p.
28)
De fato, segundo a visão tradicional, o metabolismo constitui um processo que se
passa sem a menor concorrência da vontade, ou seja, é involuntário, razão pela qual
não parece guardar qualquer proximidade com o que entendemos por liberdade. Porém,
para nossa surpresa, Jonas pretende
“mostrar que, nos movimentos obscuros da substância
orgânica à origem do cosmos, surge pela primeira vez, no seio da necessidade incessantemente
em extensão do universo físico, o clarão de um princípio da liberdade estranho aos sóis, aos
planetas e aos átomos.”
(Ibidem. Grifos nossos)
Tal formulação de Jonas merece destaque, pois ele acaba de afirmar que a forma
mais elementar de vida possui algo que, em sua frágil organização, é absolutamente
ausente em todo mundo inorgânico, desde os seus representantes mais ínfimos, como os
átomos, até aqueles de dimensões colossais como sóis e planetas. Esse atributo, que
integra todo o mundo vivo e o separa do mundo não vivo é precisamente a liberdade,
manifesta no metabolismo.
J
onas reconhece que, para compreender tal conceito em sua nova amplitude, é
preciso afastar todas as suas concepções tradicionais e entender a liberdade como
“um
modo de ser objetivamente diferenciável, isto é, [como] uma maneira de existir que é
prerrogativa do orgânico per se, e que todos os membros da classe ‘organismo’ e, por
conseqüência, somente eles, receberam em partilha”.
(Ibidem.)
Trata-se, segundo ele, de um
“conceito ontológico descritivo”, visto que:
181
Apesar de toda sua objetividade física, os caracteres descritivos por tal
conceito no nível primitivo constituem, no entanto, a base ontológica
desses fenômenos superiores que merecem mais diretamente o nome de
‘liberdade’; e mesmo os mais eminentes dentre eles permanecem ligados
aos discretos começos na camada orgânica fundamental, que são a
condição mesma de sua possibilidade.
(Ibidem.)
A liberdade constitui, portanto, um fenômeno crescente que surge nas mais
remotas e elementares formas de vida. É por isso que Jonas vem a afirmar que
“tomado
nesse sentido fundamental, o conceito de liberdade pode servir de fio de Ariadne para a
interpretação do que nós chamamos «vida»”
. (EL, p. 29)
Assim, a liberdade
352
revela-se, de
fato, como um conceito fundamental da formulação jonassiana.
353
Todavia, a liberdade, tal qual concebida por Jonas, está longe de ser absoluta, pois:
o caminho ascendente que parte daí não é simplesmente a história de
um sucesso. O privilégio da liberdade porta o fardo da aflição e
significa: existência em perigo. Porque a condição fundamental desse
privilégio reside no fato paradoxal de que, por um ato original de
separação, a substância vivente se libertou da integração universal
das coisas no todo da natureza para se colocar face ao mundo,
introduzindo assim, na indiferente segurança da possessão da
existência, a tensão entre ‘ser e não-ser’. (...) Oscilando assim entre
ser e não-ser, o organismo somente tem a posse de seu ser de maneira
condicional e revogável. Assim, o próprio ser, ao invés de um estado
dado, tornou-se uma possibilidade constantemente a realizar,
incessantemente a combater seu contrário incessantemente presente,
o não-ser, que terminará inevitavelmente por devorá-lo
. (EL, pp. 29-
30)
352. “A liberdade é onipresente na obra de Jonas. o livro sobre a gnose põe o problema”. (Depré.
op.cit. p. 54)
353. Ver Pinsart, op. cit. p. 7 e Depré, op. cit. p. 23.
182
Jonas descreve, assim, o “fenômeno vida”, como uma crescente tensão entre ser e
não-ser. E a liberdade, que emerge e se amplia ao longo de todo o processo, traz consigo
o perigo, em idêntica proporção. Trata-se, portanto, de uma “liberdade dialética”, que
tem o risco permanentemente crescente como sua outra face. Desse modo,
o ser [oscila] assim na (…) polaridade (…) que a vida manifesta
constantemente nas antíteses fundadoras entre as quais se desdobra
sua existência: ser e não-ser, si e mundo, forma e matéria, liberdade e
necessidade. De todas essas polaridades, a do ser e não-ser é a mais
fundamental. (…) Porque o não-ser tem para ele a universalidade, a
saber, a igualdade de todas as coisas. O desafio que ele propõe ao
organismo deve, no fim das contas, terminar na submissão na qual o
ser-si desaparece para sempre sob essa forma única.
(EL, p. 30)
Nesse sentido, a vida é constituída por uma sucessão de batalhas entre o ser e o
não-ser, cuja guerra, por fim, será vencida, em cada indivíduo
354
, pelo não-ser.
Adiante, Jonas propõe uma distinção entre e o metabolismo e a atividade
mecânica que o motor de qualquer máquina realiza. Segundo ele, a máquina seria
um sistema inerte, idêntico a si-mesmo, face à identidade cambiante
da matéria da qual ela se alimenta; e ela continua a existir
inteiramente a mesma, uma vez privada de toda alimentação: ela é
então a mesma máquina que pára. Ao contrário, quando nós
designamos um corpo vivente enquanto «sistema metabolizante», nós
devemos incluir aqui que o próprio sistema é inteira e constantemente
o produto de sua atividade metabolizante, e que em nenhuma parte
desse «produto» não deixa de ser o objeto do metabolismo sendo
simultaneamente o agente de sua realização.
(EL, p. 36)
354. Mas, paradoxalmente, ainda assim, a vida - concebida enquanto o conjunto das espécies - triunfará.
183
Logo, diferentemente dos seres não-vivos, todo ser-vivo possui uma tarefa
constante que é a sua própria produção e manutenção e que pode ser assegurada
mediante a execução do próprio metabolismo, compreendido como sua permanente
troca de matéria com o meio. Por esse motivo, segundo Jonas,
“o organismo deveria ser
considerado como uma função integrante da matéria metabolizante, e não o metabolismo como
uma função do organismo”.
(EL, p. 38)
Além dessa inversão na forma de conceber a relação entre o organismo e a
realização do metabolismo, Jonas afirma que no
processo do ser se auto-conservando, a relação do organismo à sua
substância material é dupla: dependente da disponibilidade enquanto que
material, ele é independente de sua identidade do momento; sua própria
identidade funcional não coincide com a identidade funcional de suas
partes, que entretanto a cada instante o constituem inteiramente. Em uma
palavra: a forma orgânica mantém com a matéria uma relação de
liberdade na necessidade.
(EL, p. 40. Grifos nossos)
E aqui Jonas explicita a outra face do metabolismo, uma vez que ele não é
somente expressão da liberdade, que caracteriza todo ser-vivo, mas também da
necessidade, que impõe que todo organismo o realize constantemente para manter-se
vivo. Logo, a liberdade é concebida em relação à esfera, tradicionalmente vista como
diametralmente oposta, da necessidade. Eis uma formulação surpreendente, que contém
elementos essenciais para compreender a formulação jonassiana, sobretudo a distinção
que ele procura e sobre a qual, adiante, ele afirma:
“enquanto que o inanimado (…) pode-se
substituir por qualquer outro sem alteração de valor, no organismo, ao contrário, (…) a vida (…)
somente pode se encontrar na [dimensão] temporal e na totalidade de suas funções.
(Ibidem.)
A relevância dessa passagem reside em que ela apresenta um importante aspecto
para a distinção entre orgânico e inorgânico. A partir dela pode-se inferir que a
184
dimensão espacial está para o inorgânico, assim como a dimensão temporal está para o
orgânico, pois:
É o tempo, e não o espaço concomitante, que é o medium da totalidade
formal do vivente
355
; e sua temporalidade a ele não é essa exterioridade
indiferente que constitui o tempo pelos movimentos do material e a
sucessão de seus estados, mas ela é o modo qualitativo próprio à
apresentação da forma vital ela mesma.
(EL, pp. 40-41)
Cabe também mencionar que, segundo Jonas, a
liberdade fundamental do
organismo (…) consiste numa certa independência da forma em relação ao seu material.”
(EL, p.
41)
Com base no que ele pode, então, afirmar que
“a identidade a si, simples atributo lógico
cujo enunciado não vai além de uma tautologia no ser inanimado, [alcança] no ser vivente um
caráter de um rico teor ontológico, a realização contínua de sua própria função, face à alteridade
da matéria.”
(Ibidem.)
Em outras palavras, ele estabelece que a identidade estática e vazia
do inorgânico corresponde à identidade lógica do A = A, enquanto que a identidade
orgânica, que é dinâmica e plena de conteúdo, por ser uma identidade ontológica, não é
redutível a uma simples fórmula, uma vez que ela:
deve ser de outra natureza. (...) É preciso que uma identidade interna
do todo, ultrapassando a identidade coletiva do substrato que se
encontra cada vez presente e evanescente ao mesmo tempo, supere a
série das trocas. Tal identidade interna está implícita na aventura da
forma, e ela resulta involuntariamente de seu testemunho morfológico
exterior, o único que está acessível à observação.
(EL, p. 42)
Surge aqui uma questão: que tipo de observador estaria apto a registrar
satisfatoriamente esse processo? Segundo Jonas:
“é preciso que o observador da vida seja
preparado pela vida. Em outros termos, exige-se dele o ser orgânico dotado de sua experiência
355. Jonas inscreve-se, aqui, embora de maneira absolutamente inovadora, na tradição heideggeriana de
Sein und Zeit.
185
própria, afim de que ele seja capaz de extrair a «conseqüência» que de facto ele tira
constantemente, (...) a vantagem (...) de ter um corpo, isto é, de ser um corpo”.
(EL, p. 43)
Mas, enfim, a quem Jonas está se referindo afinal? Na verdade, a nós mesmos
(seres humanos), pois
“nós somos preparados pelo que nós somos. Somente (...) uma
identidade interna (...) permite compreender a continuação do ser como auto-continuação”.
(Ibidem. Grifos nossos)
O que ele acaba de propor não é, o que pareceria mais evidente, a exclusividade
da compreensão humana sobre o processo vital - embora, até onde sabemos, a
capacidade de tal compreensão seja mesmo uma prerrogativa eminentemente humana -,
mas algo ainda mais instigante: a introdução do conceito de “si”, pressuposto na noção
de identidade interna. Com efeito:
“Uma identidade que se faz a cada instante
(...) [e que]
se
encontra numa tensão essencial com a totalidade das coisas
(...).
Numa perigosa polarização
onde
(...)
tudo o que não é ela mesma assume o caráter de uma incondicional alteridade.”
(EL, pp.
43-44)
Vimos surgir, assim, outra polaridade irredutível, aquela da ipseidade x alteridade
que, mais uma vez, já se manifesta desde as formas mais elementares da vida. Posto que o
desafio da ipseidade designa tudo o que está além dos limites do
organismo como alguma coisa de estrangeira e, de algum modo,
oposta: como o «mundo» no qual, pelo qual e contra o qual a vida
deve se manter. Sem essa oposição universal da alteridade, não
poderia haver a ipseidade. E, nessa polaridade do si e do mundo, do
dentro e do fora, que completa aquela da matéria e da forma, é
potencialmente posta a situação fundamental da liberdade, com toda a
audácia e a miséria que ela comporta.
(EL, p. 44)
Isso significa que, segundo Jonas, toda forma de vida estabelece com o mundo
uma relação dialética expressa na polaridade ipseidade x alteridade ou si x mundo e,
mais uma vez, tal situação não constitui um privilégio da condição humana.
186
A seguir, ele propõe uma espécie de síntese de tudo o que ele expôs até aqui,
dividindo em quatro diferentes observações, começando pela:
1. “natureza inteiramente dialética da liberdade orgânica, isto é, o fato de que ela é
contrabalançada por uma necessidade correlativa que lhe é indissoluvelmente atada.”
(Ibidem.)
O que, como vimos, está presente nas formas mais elementares da vida, que não
apenas têm a capacidade (faculdade) do metabolismo, mas a necessidade de realizá-lo.
De tal modo que, o poder realizá-lo transforma-se num dever para assegurar a própria
existência. Esses dois aspectos do metabolismo: tanto a liberdade, quanto a necessidade
são absolutamente ausentes na dimensão inorgânica, constituindo, portanto, o que Jonas
denomina de
“antinomia da liberdade [alojada] na raiz da vida”
(EL, p. 45)
que, por sua vez,
só pode ser assegurada pelo próprio metabolismo.
2. Jonas ressalta que para que as trocas de materiais sejam possíveis é necessário
que o organismo as encontre à sua disposição num mundo exterior com o qual
estabelece uma relação de sujeição e poder – pois dele depende sua sobrevivência e nele
exerce suas atividades para se manter - e nessa relação com a liberdade, passa a exercer
um controle sobre sua própria necessidade e pode transcender sua própria falta.
3. Tal transcendência, que pressupõe uma interioridade, implica, além da dupla
possibilidade: satisfação e frustração, uma substância interior (ou antes, uma atividade)
que pode ser designada como: o sentir, a sensibilidade, a reação aos estímulos, uma
aspiração ou outro termo similar. Mas o importante é que, para Jonas,
ela abriga nela, em qualquer grau de «tomada de consciência» que
seja, o interesse absoluto do organismo por sua própria existência e
pela prolongação desta isto significa que ela é «egocêntrica» (...).
Mas ao mesmo tempo, para além do estado puramente interno, auto-
centrado (...) o presente do que afeta é sentido, sua mensagem é
acolhida na interioridade como vinda do outro.
(EL, p. 47)
187
Isso, segundo ele, abre uma fenda na interioridade, doravante cindida, e faz surgir
a
“interioridade descritiva”
356
,
a qual, em razão de sua carência orgânica, é forçada em
direção ao exterior e a transcender sua própria condição. E nesse movimento
, “a
receptividade ao que vem do exterior, face passiva da mesma transcendência, permite à vida ser
a uma vez seletiva e «informada».
(...) [Além disso,]
a identidade interna torna-se o pólo
sujeito de uma comunicação com as coisas
(...)
e assim,
(...)
do isolamento mesmo do sujeito
orgânico, nasce o oposto exato do isolamento.
357
(EL, p. 48)
4. O que Jonas entende por transcendência da vida é simplesmente o fato de que o
ser-vivo
“mantém um horizonte além de sua identidade pontual.”
(Ibidem.)
E que, num
primeiro momento, o horizonte era constituído pelas coisas imediatamente disponíveis,
ou seja, pela
extensão de relações, num espaço concomitante. Mas o interesse de si
pressionado pela carência abre igualmente um horizonte de tempo
que compreende não o ser-presente externo, mas a iminência interna:
a iminência desse futuro próximo em direção ao qual se dirige a todo
instante a continuidade orgânica para a satisfação da falta
experimentada no presente.
(Ibidem.)
Jonas sugere, a seguir, o exemplo das plantas que encontram ao seu redor tudo o
que é necessário para sua sobrevivência e que mantém com o entorno espacial um tipo
específico de troca de material. Todavia, para que novas formas de vida pudessem
existir, outras funções foram exigidas. Por isso, é
“somente na existência do animal que os
caracteres designados aqui, inscritos no ser fundamental do orgânico, entram em plena luz. Três
sinais característicos distinguem a vida animal da vida vegetal: liberdade de movimento,
percepção, sentir.”
(EL, p. 49)
356. O que insinua, aqui, a emergência de uma consciência reflexiva (ou subjetividade). Tema que foi
desenvolvido em “On the Power or Impotence of Subjectivity” (1976).
357. Com o que Jonas supera o solipsismo identificado à mônada leibniziana.
188
Segundo Jonas, sobretudo os dois primeiros, constituem um importante momento
da história da liberdade, iniciada nas formas elementares de vida, com a realização do
metabolismo. O progressivo desenvolvimento do movimento e da percepção
representou, ao mesmo tempo, uma crescente exploração do mundo e uma crescente
individuação de si.
Mas as três faculdades expressam igualmente uma capacidade indispensável a
todo ser-vivo: sua abertura ao mundo, representada pela excitabilidade presente até
mesmo na mais simples célula.
Para reforçar a diferença entre a forma de existência vegetal e animal, Jonas
explicita mais adiante que:
“a marca principal da evolução animal, diferentemente da vida
vegetal, é que o espaço como dimensão da dependência é progressivamente transformado em
uma dimensão da liberdade, ao lado do desenvolvimento das duas faculdades: se deslocar e
perceber à distância.”
(EL, p. 50)
Enquanto que,
“a atividade vegetal típica participa do
processo mesmo do metabolismo”
(EL, p. 55)
. Pode-se afirmar, portanto, que o metabolismo
é a única atividade realizada pelo vegetal, que mantém com o meio uma relação literal
de troca, cuja principal ‘transformação’ ocorre no âmbito interno
358
, sendo totalmente
privado (e dispensado) do movimento e da percepção.
Ao fazer sua avaliação dos benefícios da forma de vida animal em relação à vida
vegetal, Jonas conclui que, embora os ganhos sejam significativos, o preço pago por
eles é bastante elevado: pois, quanto maior a liberdade, maiores os riscos. Logo,
enquanto a sobrevivência das plantas está assegurada de forma imediata pelo próprio
meio, a vida animal só se mantém à custa de um grande esforço.
É justamente a mediaticidade, típica da forma de vida animal, que justifica a
mobilidade, a percepção e o sentir, as três formas distintivas do animal. É também a
358. Cabe lembrar que a principal transformação é interna na perspectiva do vegetal, porém, a
transformação externa: a captura de CO2 e a liberação de O2 - é absolutamente vital para todos os seres
vivos aeróbicos.
189
mediaticidade que coloca o ser, em princípio isolado, face ao mundo que, ao mesmo
tempo em que fornece o que ele necessita, também o ameaça, mas com o qual não pode
deixar de se relacionar. Portanto, o animal não é, de modo algum, um ser isolado, como
uma “mônada leibniziana”, mas um ser que se constitui em relação com o mundo, com
seus semelhantes e com as demais espécies.
Para recapitular os pontos principais desse tópico, será bastante útil recorrer à
outra síntese proposta por Frogneux, agora resumindo toda essa exposição sobre o
organismo, assinalando os:
quatro aspectos [que] permitem extrair a contrario os caracteres
próprios do organismo: 1) sua identidade, a) mediata e b) dinâmica se
mantém em favor das trocas materiais, 2) a forma se situa em uma
relação essencial face à matéria que somente é passageira; essa
identidade é c) individual e não se reduz à soma de suas partes; 3) a
troca com o meio não é nem pontual, nem acidental, mas essencial e
contínua: ela concerne a totalidade de seu ser; a iniciativa da troca é
interna; e a identidade se impõe ao 4) observador que, enquanto
vivente, pode compreendê-la por empatia. (...) A identidade em
questão não é mais aquela da matéria dos corpos inertes,
estabelecida pela percepção sintética dos observadores, mas aquela
de um indivíduo ativo que se auto-identifica. Os seres vivos são «em
virtude deles mesmos, para eles mesmos e continuamente mantidos
por eles mesmos»
(PhL, 79.
VM, p. 159. Numeração e grifos nossos.)
Esses elementos constituem o que poderíamos chamar de ‘organicidade’, ou os
atributos de todo ser-vivo, cabendo incluir, apenas, um traço acima não mencionado: a
liberdade.
190
“Entretanto, em sua extensão crescente, a liberdade da vida encontrou um espaço para
todos os modos de relação de ordem perceptiva, ativa e sensível, - que justificam o fosso
estendendo-se sobre ela, e que, por vias difusas, reconquistam a unidade perdida.”
(EL, p. 57)
Poder-se-ia explicitar: no curso da própria vida continuamente ameaçada e renovada.
E aqui, para encerrar esse tópico, caberia transcrever uma declaração de Jonas no
PIS que, embora tendo sido introduzida noutro contexto, pode servir como conclusão
dessa formulação e uma espécie de transição para sua reflexão ética propriamente dita:
Se (...) eu pude exorcizar um fantasma que circula desde muito tempo –
e tal é bem a doutrina [dualista] (...) então eu não lamentarei o
sacrifício que me atribuí, nem o suplício que impus ao leitor. Tendo
sido tirado esse espinho do pé, eu e ele podemos agora nos consagrar a
coisas mais louváveis: à reflexão séria sobre nossos deveres isto é,
sobre o uso moral de nossa liberdade.
(PIS, p. 95 n. 28)
Àqueles que possam, aqui, se perguntar, por que Jonas pretende fundar a sua ética
na filosofia da biologia ou numa “metafísica da vida”? Pode-se responder recorrendo às
próprias palavras com as quais ele encerra o seu PhV, ao dizer:
Nós abrimos esse volume com a proposição segundo a qual a filosofia
da vida compreende a filosofia do organismo e a filosofia do espírito.
Chegamos a seu fim e à luz do que aprendemos, nós podemos
acrescentar outra proposição, que supõe a primeira, mas que
estabelece uma tarefa nova: uma filosofia do espírito compreende
uma ética - em razão da continuidade do espírito em relação ao
organismo e do organismo em relação à natureza, a ética se torna
uma parte da filosofia da natureza.
(PhV. p 281)
Embora não responda completamente a questão levantada, ao menos, essa
passagem uma indicação do percurso seguido por Jonas. Com base nela, podemos
prosseguir e, no capítulo seguinte, diante da exposição da fundamentação propriamente
191
dita, espera-se que essa pergunta possa, enfim, ser elucidada a contento. Antes, porém,
faremos um breve exame da tentativa de Jonas para superar parte dos dualismos citados.
4.4 – Avaliação e conseqüências dessa formulação
De toda essa exposição, podemos extrair cinco importantes conseqüências:
1. Tal concepção de Jonas é importante, entre outros motivos, porque ao invés de, como
se poderia criticar, reduzir a dignidade do ser humano, ela amplia essa dignidade a todo
ser-vivo, ao fazer da liberdade não um atributo, mas uma condição inalienável de
todas as formas de vida, desde as mais elementares.
Nesse sentido, poderíamos aplicar a tal concepção de Jonas o mesmo comentário
que ele fez em relação à teoria da evolução de Darwin, ao afirmar que:
Na ruidosa indignação que se ergueu contra o atentado à dignidade do
homem pela doutrina de sua origem animal, não se viu que em virtude do
mesmo princípio era a totalidade do mundo vivo que recebia alguma
parcela da dignidade do homem. Se o homem é aparentado aos animais,
os animais são, por sua vez, aparentados ao homem, e então, por graus,
portadores dessa interioridade [e da liberdade], da qual o homem, o mais
avançado de seu reino, é intimamente consciente.
(EL, pp. 33-34)
Assim, ele transpôs o abismo que separou o homem e o mundo, restituindo ao
homem sua condição de integrante do mundo, em estreita relação com todos os demais
seres vivos.
2. Mas, além dessa conseqüência no plano ontológico
359
, poderíamos incluir, seguindo
Frogneux, outra importante conseqüência dessa formulação de Jonas, também para o
plano ético, uma vez que, partindo dessa discussão ele poderá:
“estabelecer no nível ético
uma dialética equivalente àquela que ele tinha evidenciado no nível orgânico. À dialética da
359. Frogneux considera que há aqui também uma dimensão ética, a partir do que poder-se-ia pensar num
plano “onto-ético”.
192
liberdade e da necessidade metabólica corresponderia a dialética do valor e da obrigação ética se
impondo à liberdade humana.”
(VM, p. 274)
3. Explicitando um pouco melhor essa dimensão, chegaríamos à próxima conseqüência,
uma vez que, a partir de sua análise do
“plano imanente da biologia filosófica e da ética,
onde ele afronta o dualismo em [diferentes] níveis: em primeiro lugar, o dualismo cosmológico
que opõe o homem à natureza, em seguida, o dualismo antropológico que opõe a causalidade
física à intenção subjetiva, [ele poderá], enfim, [afrontar] o dualismo moral que opõe o ser ao
dever-ser”.
(Ibidem.)
4. Tudo isso só foi possível, graças ao
“princípio da continuidade, [segundo o qual] a
liberdade se manifesta cada vez mais claramente no mundo do vivente, onde ela faz aumentar ao
mesmo tempo em que ela [própria,] a precariedade e o risco.”
(VM, p. 275)
5. Por fim, no plano conceitual cabe mencionar a importante transformação que Jonas
realiza num conceito fundamental na tradição filosófica: o conceito de liberdade que foi
ampliado a todo ser-vivo e que, embora desempenhe um papel absolutamente central
em sua formulação, não corre o risco de se tornar uma liberdade absoluta, pois ele
próprio reconhece que:
a liberdade acolhe uma potência de tal modo invencível que ela somente
pode reconhecer os limites que ela mesma se fixou. [E que] (...) essa
liberdade, por essência reflexiva, pode cair no abismo da auto-
contemplação se ela se abstrai de toda relação a uma exterioridade. (...)
[Para que isso não aconteça, Jonas estabelece que] ela somente pode se
compreender autenticamente numa relação estreita com a necessidade e
em seu caráter relativo à exterioridade sobre a qual ela faz fundo.
(Ibidem. Grifos nossos)
193
Noutras palavras, Jonas concebe uma liberdade como prerrogativa de todo ser-
vivo e em relação dialética com a necessidade, como constituição do organismo que
pode e deve
360
, permanentemente, realizar o metabolismo.
Desse modo, segundo Jonas, o dualismo pôde ser ultrapassado pela mediação do
conceito de ser-aí orgânico no qual interior e exterior se “interpenetram”. Uma vez que,
“todo ser orgânico possui um horizonte interno, cada um sendo um corpo, um objeto no mundo.
Ele é uma coisa do mundo, mas ao mesmo tempo um ser ao qual incumbem certas ações. O
metabolismo, por exemplo, [que] é uma atividade.”
(Gpr. p. 9.)
Ou seja, Jonas demonstrou que, efetivamente, todo ser-vivo, isto é, todo
“ser que se
mantém em vida por sua atividade é interessado por seu ser, enquanto que uma molécula, uma
vez que ela existe, continua a existir e não tem interesse pelo seu ser, dado que ela existe.”
(Gpr. pp. 9-10)
Foi essa intuição que possibilitou a Jonas inaugurar um modo inteiramente novo
de filosofar e que o conduziu à filosofia da biologia antes de se debruçar sobre as
questões propriamente éticas.
Assim, fica claro porque as primeiras linhas da Introdução do Phenomenon of Life
expressam sua busca por uma síntese ou pela superação desse dualismo, quando ele
afirma que o que entende por
“Uma filosofia da vida compreende a filosofia do organismo e
a filosofia do espírito”.
(PhV, 13)
Tal busca é a tarefa que ele leva adiante com base na
“tese segundo
a qual o orgânico, mesmo em suas formas mais inferiores, prefigura o espírito, e o espírito,
mesmo no que ele alcança de mais alto, permanece parte integrante do orgânico.”
(Ibidem)
Sobre esse ponto, Danielle Lories e Olivier Depré
361
enfatizam que Jonas propõe
de modo claro e imediato os desafios que pretende enfrentar em
The Phenomenon of Life
,
quando já no prefácio destaca que seu objetivo é, sobretudo, interrogar o divórcio
360. Essa relação entre liberdade e necessidade na dimensão ética transforma-se na relação entre
liberdade e responsabilidade, uma vez que “para Jonas a responsabilidade é o fardo da liberdade
humana.” (Pinsart, op. cit. p. 205)
194
entre o material e o mental operado pelo cartesianismo e do qual
tanto o existencialismo contemporâneo quanto a biologia científica
são as últimas conseqüências na história do pensamento. Ao
existencialismo, ele reprovou por considerar o homem em situação de
total «isolamento metafísico» ao lhe atribuir, a ele apenas, os traços
que têm, entretanto, sua fonte na vida orgânica como tal; à biologia
contemporânea, por ignorar a dimensão da interioridade da vida e
por apagar assim a distinção entre animado e inanimado. Contra esse
estado de coisas, trata-se de propor «uma interpretação “existencial”
dos fatos biológicos» com o objetivo de «reclamar para a unidade
psicofísica da vida o lugar no esquema teórico que lhe é recusado
desde Descartes».
(PhV, p. 9; IX. Grifos dos autores)
362
Depré e Lories assinalam ainda o fato de que, em Jonas,
“«Se o espírito está
prefigurado desde o princípio no organismo, então a liberdade também está» (...) ela que é
habitualmente considerada como o apanágio do espírito e da vontade.”
(PhV, p. 14; 3)
.
363
Pois como vimos, com Jonas, a liberdade converte-se no traço distintivo de todo
ser-vivo. Entretanto, ele afirma que tal
“palavra não deve ser [tomada] sem ligação com a
significação que ela tem na esfera humana da qual ela é emprestada, sem o quê seu uso
ampliado seria insignificante”
(Ibidem.)
Logo, a liberdade supera sua dimensão subjetiva
(mental)
para alcançar uma dimensão objetiva, estende-se à esfera orgânica, mas sem
perder o sentido humano.
Dessa forma, o esforço de Jonas concentra-se no intento de renovar
profundamente o pensamento do ser e, por extensão, do homem. Seu propósito é,
portanto,
“romper o isolamento do homem integrando-o no reino [do ser] vivo que se inaugura
361. Danielle Lories & Olivier Depré. Vie et liberté Phénoménologie, nature et éthique chez Hans
Jonas. Paris: Vrin, 2003, 222 p.
362. Ibidem. p. 49.
363. Ibidem. p. 56.
195
com o metabolismo o mais elementar (...) e por aí mesmo de «se situar para além da querela dos
antigos e modernos»; [e mais] de se insurgir contra o dualismo que rejeitou a vida no registro do
processo mecânico cego”.
364
Para tanto, ele demonstrou que o homem pertence ao reino do ser vivo por
realizar, como os demais organismos, a atividade mais elementar do metabolismo que, a
um só tempo, é expressão da liberdade e da necessidade que marca todo ser vivente.
Visando esse fim, os textos de Jonas, reunidos em PhV, buscam um íntimo
entrelaçamento entre
“a análise crítica e a descrição fenomenológica”
(PhV, p. 10; X.)
confrontando, respectivamente, o idealismo antropocêntrico do existencialismo e o
materialismo da ciência natural contemporânea, procurando sustentar contra ambos que
No mistério do corpo vivo, os dois pólos
365
são de fato integrados. As
grandes contradições que o homem descobre em si mesmo a
liberdade e a necessidade, a autonomia e a dependência, o si e o
mundo, a relação e o isolamento, a criatividade e a mortalidade – têm
seus traços rudimentares nas formas mais primitivas de vida, cada
uma em equilíbrio precário entre ser e não-ser, e cada uma dotada
de um horizonte interno de ‘transcendência’.
(PhV, 9)
Partindo do pressuposto de que todos esses elementos, até então tidos como
prerrogativas humanas, estão presentes mesmo nas formas mais elementares de vida,
Jonas traça o percurso que ele ousa trilhar para demonstrar sua posição, ao dizer que:
Nós seguiremos esse tema subjacente a toda vida no seu
desenvolvimento segundo a ordem ascendente das faculdades e
funções orgânicas: metabolismo, movimento e desejo, sensação e
percepção, imaginação, arte e espírito (mente) uma escala
progressiva de liberdade e perigo, culminando no homem, que pode
364. Ibidem. p. 51.
365. Aqui Jonas refere-se aos dois pólos do idealismo e do materialismo que, em última instância,
derivam do dualismo cartesiano alma e corpo.
196
compreender com novo frescor o que ele tem de único quando cessa
de se considerar em um isolamento metafísico.
(Ibidem)
Todas aquelas contradições mencionadas acima refletem os vários aspectos do
dualismo que Jonas pretende combater e que foram sumariados por Frogneux, na
seguinte ordem:
“de início o dualismo cosmológico que opõe o homem à natureza [ou
mundo], em seguida, o dualismo antropológico que opõe a causalidade física à intenção
subjetiva
366
, e enfim o dualismo moral que opõe o ser ao dever-ser.”
(VM. p. 274)
A autora
esclarece ainda que:
Para fundar uma obrigação capaz de ultrapassar esses três dualismos
latentes, Jonas articula duas interpretações da liberdade, a saber, por
um lado, uma liberdade humana autônoma no coração das leis da
natureza da qual ela depende e, por outro lado, uma liberdade
ontológica se manifestando no ser a favor de ocasiões imprevisíveis.
(Ibidem)
Assim, para alcançar seu objetivo de superar o dualismo, a concepção jonassiana
propôs uma ampliação do conceito de liberdade, num duplo sentido. Primeiro, no
sentido de considerar que além da liberdade humana existe também uma liberdade
“ontológica”
367
e, num segundo sentido, fazendo com que a raiz da própria liberdade
humana se fixe
no coração das leis da natureza”.
O resultado direto dessa aproximação
368
entre liberdade e ‘leis da natureza’ é o abalo da clássica dicotomia kantiana entre reino
da liberdade e reino da necessidade, com o que Jonas supera o primeiro dualismo
supracitado: o cosmológico.
366. Aqui, em termos cartesianos dir-se-ia: a res extensa à res cogitans.
367. Aquela que se opõe ao puro determinismo. Expressa na famosa antinomia da Crítica da razão
pura.
368. Aproximação tão importante que a ela Jonas dedicou o texto “Evolution und Freiheit”, de1983-4,
analisado anteriormente.
197
Comentando o método adotado por Jonas para realizar seu intento e as suas
principais conseqüências, Frogneux destaca outro aspecto bastante relevante, ao dizer
que:
Para refutar tais pensamentos da ruptura, Jonas procede como
fenomenólogo a fim de mostrar de um lado que a ação não é o
próprio de um sujeito humano, mas o fato da existência orgânica cujo
ser é indissociavelmente um agir subjetivo, e de outro lado que o
espírito, a consciência e a liberdade, longe de serem prerrogativas
humanas, estão prefiguradas no seio dos primeiros seres vivos.
Assim, aparece um desdobramento ontológico escalar, uma cadeia do
ser sem ruptura nem inversão. A primeira exigência filosófica sendo
assim preenchida, a saber, reconciliar para além do abismo que os
separa, sujeito e objeto, espírito e extensão. Jonas se incumbe de
preencher a segunda exigência, isto é, precisar a especificidade do
homem no ser do qual ele é uma parte eminente. (p. 5)
Desse modo, Jonas realiza o grande feito de superar o dualismo cartesiano e suas
mais diferentes variações
(entre as quais o dualismo cosmológico: homem x mundo)
, ao
expandir os conceitos de espírito, consciência e liberdade para o âmbito do ser-vivo em
geral, estabelecendo uma escala ontológica contínua. Assim, a seguir, torna-se possível
indicar
“a especificidade do homem no ser do qual ele é uma parte eminente.”
(Ibidem)
Tal especificidade, segundo Frogneux, está relacionada ao
“poder de se situar em
ruptura em relação ao mundo
(o qual)
revelar-se-á correlato ao dever de ultrapassar um abismo
que colocava o ser humano em situação de contradição performativa e quebrava a totalidade da
qual ele é, por sua consciência e sua liberdade, uma parte eminente.”
(Ibidem)
369
Além disso, a autora confirma que os principais interlocutores de Jonas são,
efetivamente,
369. Contudo, a referida especificidade humana só se vê claramente a seguir (p. 218), já no âmbito ético.
198
os dois monismos parciais herdados do dualismo cartesiano, o
idealismo e o materialismo. Para escapar a esse último, que constitui
a principal ameaça de nosso tempo, Jonas pouco a pouco acentuou a
diferença antropológica capaz de colocá-lo ao abrigo de todo
reducionismo. Desde então, (...) a reconciliação entre o homem e o
mundo por-se-á antes de tudo em termos éticos (...).
(Ibidem.)
Isso mostra que Jonas não pretende apenas refutar o dualismo cartesiano, mas
também os seus principais derivados, igualmente equivocados porque parciais: o
idealismo e o materialismo, em especial esse último que predomina no contexto atual.
Algo que é confirmado por Depré e Lories, ao comentarem que o intento jonassiano é
contestar as insuficiências e impasses teóricos do dualismo e dos monismos parciais
cujo desmantelamento teve lugar na história do pensamento materialismo e idealismo
propondo uma visão unificada do ser, um novo monismo integral
370
’, dirá o ensaio I
371
, que, sem desfazer da polaridade que funda o dualismo,
«deve absorvê-lo numa unidade
mais elevada da existência de onde são extraídos os opostos como as fisionomias de seu ser ou
das fases de seu devir».
(PhV, p. 27: 17)
Trata-se, ao descrever o fenômeno da vida, de
assegurar um conceito de Ser capaz de englobar o todo da existência e sua unidade
respeitando a variedade e os graus, e reintegrando a finalidade esquecida pela ciência,
inclusive a ciência do ser-vivo, desde a recusa moderna de Aristóteles.
372
Esse ponto é especialmente relevante porque explicita a particularidade do
engenho jonassiano que pretende ultrapassar o dualismo sem recorrer - como outros
fizeram - a monismos parciais que procuram, sobretudo, anular a polaridade. Ao
contrário, ele fornece uma solução mais elaborada, recuperando a dimensão da
finalidade e encontrando um monismo integral, ou seja, uma unidade que sintetiza, mais
370. Monismo, afinal, buscado por Jonas e mencionado à página 155, nota 323.
371. Intitulado: “A vida, a morte e o corpo na teoria do ser”. PhV. pp. 19-35.
372. Danielle Lories & Olivier Depré. Op. cit. p. 51. (Grifos nossos.)
199
do que neutraliza, a dualidade. Em termos dialéticos, seria o equivalente à síntese que
incorpora, sem eliminar, a tese e a antítese, isto é, harmoniza, sem aniquilar, os opostos.
Frogneux chama nossa atenção para outro aspecto importante
373
, que diz respeito a
Essa ontologia da medida comum entre o homem e o mundo [que]
permite igualmente escapar à clivagem moderna da moral
deontológica e conseqüencialista, em vista de (re)encontrar uma ética
da co-presença do homem e do mundo. Ao fazê-lo, Jonas restaura um
quadro antropológico necessário para pensar um agir virtuoso
coletivo (embora ele não reivindique jamais esse termo para sua
própria filosofia), isto é, um agir pelo qual o homem, exercendo suas
faculdades naturais no mundo, pode atingir a uma vez as
conseqüências boas e a sua própria excelência.
(Op. cit. p. 5)
Logo, com tal concepção, Jonas oferece a possibilidade de superar outra divisão,
agora no campo metaético, entre duas diferentes modalidades de moral: as
deontológicas e as conseqüencialistas
374
que quase sempre são consideradas - mais que
antagônicas - excludentes. Pois, como vimos no capitulo 3, as pertencentes ao primeiro
grupo consideram que toda ação é motivada por um dever, enquanto as que pertencem
ao segundo afirmam que toda ação é motivada por um télos ou fim, ou seja, são aquelas
que priorizam as conseqüências das ações. Desse modo, Jonas pode reivindicar um tipo
de moral que tanto se pauta pelo dever, quanto observa as conseqüências ou o fim a que
se destina a ação.
Frogneux ressalta ainda outro traço da concepção jonassiana que merece uma
apreciação mais cuidadosa, pelo fato de Jonas considerar que
Em Descartes, apenas o homem que é dotado de uma subjetividade
requer uma explicação dualista
(PhL, 60),
enquanto que o
373. Sobre o qual voltaremos, sobretudo, ao discutir a questão da aplicação.
374. Ou teleológicas.
200
materialismo basta para dar conta dos outros seres vivos. (...) É
preciso, então, se se crê em Jonas, distinguir entre o dualismo que
torna o homem incompreensível para ele mesmo, porque sua
existência e sua vida repousam sobre um princípio anti-natural, e o
dualismo antropológico moderado, que distingue o psíquico do físico
sem torná-los antagonistas.
(pp. 70-71)
Evidentemente, Jonas recusaria o dualismo do primeiro tipo e só admitiria o
segundo. Todavia, com base nessa interpretação da filosofia de Descartes, Frogneux
considera que, levando-se a sério a avaliação jonassiana:
O dualismo cartesiano atinge um ponto de ruptura conduzindo a um
impasse a especulação sobre a natureza, e particularmente a filosofia
do ser-vivo.
[Pois, nas palavras de Jonas:]
«Com Descartes, o dualismo
entra em sua metamorfose última e mortal»
(PhL, 73),
porque a noção
de ser-vivo se perde na separação radical entre a mecânica animal e
o pensamento humano. Enquanto a estrutura do ser-vivo é
inteiramente rejeitada do lado do extenso mecânico, a função é
recalcada do lado do pensamento.
[Assim,]
O conceito de
subjetividade não tem qualquer lugar fora da consciência humana,
isto é, como performance corporal, uma vez que os animais-
autômatos dela são desprovidos e que, no homem, ela se dirige a seu
próprio espírito.
(...)
Com efeito, Descartes busca reconciliar a altos
custos especulativos o que a teoria separou, mas que é unido na
experiência
[donde, segundo Jonas,]
: «O cartesianismo foi o primeiro a
criar uma situação na qual a teoria, certa de si mesma, entra em
colisão com a experiência»
(PhL, 62 n. 5)
. Nesse quadro teórico, o ser-
vivo animal torna-se, tanto quanto a vida humana, altamente
problemático.
(p. 122)
201
Entretanto, o que Jonas parece querer destacar é o aspecto curioso do
cartesianismo que, em nome da teoria, recusou a própria realidade, trazendo como
conseqüência uma grande dificuldade teórica transmitida a todos que acataram a radical
separação entre res cogitans e res extensa. Outra conseqüência do cartesianismo,
frontalmente criticada por Jonas, refere-se ao conceito de universo dele derivado e
adotado pela cosmologia moderna, uma vez que:
«O universo terrivelmente extenso da cosmologia moderna é
concebido como um campo de massas e de forças inanimadas que
operam segundo as leis da inércia e da distribuição quantitativa no
espaço»
(PhL, 9-10). [Nesse contexto,]
O substrato, doravante
desprovido de toda característica vital, somente é «matéria morta»
(PhL, 74). (p. 131)
Nesse ponto, segundo Frogneux, Jonas se coloca, mais uma vez, entre dois
extremos, por um lado,
o
«monismo integral panvitalista e
[por outro,]
o monismo parcial sem
vida de uma ‘ontologia da morte’
375
»
(PhL, 20) para mostrar que
Histórica e logicamente, o dualismo cartesiano e seus avatares
desempenharam então o papel maior na história da ontologia
ocidental fazendo surgir as dualidades inscritas na natureza:
[pois,]
«o dualismo é o elo que, historicamente, serviu de mediador entre os
dois extremos
(...)
: ele foi, com efeito, o veículo do movimento que
conduz o espírito humano do monismo vitalista dos primeiros tempos
ao monismo materialista que nós conhecemos
(...)
e é difícil de
imaginar como um pode ser alcançado a partir do outro sem um
gigantesco ‘desvio’ »
(PhL, 12). (Ibidem.)
Essa passagem merece um esclarecimento, pois, a afirmação de que ‘o dualismo é
o elo que, historicamente, serviu de mediador entre os dois extremos’ soa como um
375. Retomar nota 348 à página 164.
202
elogio à posição que Jonas até então buscou superar. o obstante, o que ela evidencia,
de fato, é o alvo central da crítica jonassiana: os monismos radicais, aqui, identificados
ao panvitalismo e à ‘ontologia da morte’, dado que, embora parciais, ambos pretendem
explicar a realidade de modo absoluto. Como se fosse possível explicar toda a realidade
a partir só da presença ou só da ausência de vida.
Assim, embora em discordância com alguns aspectos da interpretação que Jonas
propõe à filosofia cartesiana, Frogneux considera que é preciso compreender a
dupla crítica subjacente à descrição jonassiana do pensamento
moderno
[que segundo a autora,]
volta-se sobre seu dualismo
metodológico e ontológico e sobre seu ceticismo moral. Por um lado,
o Zeitgeist moderno deixa o ser-vivo desmembrado no conhecimento
que ele pode ter dele mesmo; por outro, ele deixa o homem sem guia
para a ação. Jonas replica a esse pensamento de crise propondo uma
notável fenomenologia do ser-vivo que constitui (...) o momento mais
forte da ultrapassagem do dualismo antropológico da alma e do
corpo, e biológico, do ser-vivo e do homem.
(p. 151)
Em outras palavras, embora Jonas exagere na sua crítica ao cartesianismo, ele
parece acertar quando consegue, efetivamente, superar o dualismo com base na análise
fenomenológica do ser-vivo. Isto é, levando em conta a própria realidade orgânica,
transpondo, a uma vez, a radical separação estabelecida entre alma e corpo e aquela
entre o homem e as demais formas de vida.
Para concluir esse tópico, mais que interessante, será pertinente citar Frogneux,
ainda uma vez, numa luminosa passagem em que ela resume toda essa trajetória de
Jonas, já antecipando seu momento seguinte, ao dizer que:
A fim de replicar ao dualismo moderno, Jonas tenta oferecer uma
resposta que se desenvolve em dois momentos. The Phenomenon of
203
Life põe em evidência o impasse do método analítico das ciências
modernas na medida em que ele permanece surdo à especificidade de
seu objeto, o organismo vivo, que ele reduz à matéria inerte. A
biologia se encontra, desde então, na situação paradoxal onde ela se
conta do ser-vivo sobre a base do não vivo. Ora, é precisamente o
fenômeno do vivo que põe em dificuldade a clivagem dualista
moderna entre o espírito e a matéria, entre o sujeito e o objeto. Jonas
proporá desde então uma fenomenologia do ser-vivo que constitui o
momento mais forte e mais bem sucedido de sua ultrapassagem do
dualismo cartesiano. Essa primeira réplica é, todavia, incapaz de
responder ao segundo problema, aquele do ceticismo moral, isto é, ao
dualismo existencialista. A análise de Jonas se inclina a seguir em um
sentido de início ontológico, em vista de estabelecer uma teleologia
imanente global. Nesse segundo tempo, isto é, desde o fim dos anos
1960, ele tentará mostrar que a liberdade tal como ele a pensa no ser-
vivo é também a ancoragem do valor. A inflexão estritamente
teleológica do pensamento jonassiano reportar-se-á, sobretudo, no
fim dos anos 1970, e eminentemente ao Principe Responsabilité.
376
(pp. 151-152)
Espera-se que toda essa discussão em torno da questão dos dualismos tenha
mostrado sua importância para o contexto de nossa reflexão. Primeiramente, por expor
uma parte da obra jonassiana pouco mencionada. Em segundo lugar, devido ao fato de
ela estabelecer a conexão entre a investigação sobre a gnose, a filosofia da biologia e a
concepção ética jonassianas. Por fim, pelo fato mais evidente de apresentar a discussão
na qual Jonas propõe a superação dos dualismos: - cosmológico, que opõe o homem à
376. Entre a publicação de The Phenomenon of Life (1966) e Das Prinzip Verantwortung (1979), Jonas
escreve uma série de artigos e comunicações, a maioria preparando para a discussão ética que será levada
a cabo nesse último. Alguns deles serão, inclusive, incorporados ao texto definitivo (PV). Para maior
conhecimento da vasta obra jonassiana, recomenda-se a extraordinária bibliografia organizada por N.
Frogneux em seu livro sobre Jonas (pp. 337-357).
204
natureza (ou ao mundo), e – antropológico, que opõe o corpo à alma, preparando, assim,
o caminho para a superação do terceiro, o dualismo ético entre ser e dever-ser
377
.
No início desse capítulo, ao apresentar os aspectos biobibliográficos de Jonas,
mencionamos, embora brevemente, o abalo sofrido na relação entre ele e Heidegger, depois
que esse aderiu ao partido nacional socialista. Fato que, como é sabido, afetou a admiração
e o respeito que o discípulo devotava a seu mestre, a tal ponto que, após muitas décadas
de rompimento, por pressentir o fim iminente de seu mentor intelectual, ele permitiu uma
reconciliação.
Não obstante esse tido afastamento no plano da relação pessoal, do ponto de vista
intelectual, como se indicou, o pensamento de Heidegger permaneceu como fonte de
inspiração para Jonas, fosse como modelo (sobretudo na perspectiva do método) ou
contraponto. Esse ponto evidencia a ambigüidade da ligação que Jonas manteve com
Heidegger, no plano teórico, em parte assimilando, em parte criticando a filosofia do
mestre. Todavia, mesmo quando a crítica é o mote, o que se constata é mais uma resposta a
um ponto da filosofia heideggeriana do qual discorda ou, até, uma tentativa de “suprir” uma
lacuna ali encontrada.
Como mencionado no capítulo 3, Franco Volpi mostrou que alguns de seus mais
eminentes discípulos, que assistiram a seus cursos em Freiburg sobre a Ética a Nicômaco,
posteriormente, em suas próprias filosofias, retomaram um importante conceito aristotélico
para constituí-las. Gadamer, o conceito de phrónesis, Hannah Arendt, o de praxis e Ritter, o
de ethos. Embora Jonas não tenha retomado nenhum conceito da Ética nicomaquea,
propriamente dita, fez do conceito de fim, central na Metafísica aristotélica, um pilar de sua
fundamentação ética. Isto lhe valeu a inclusão entre os neo-aristotélicos. Apel, porém,
contesta essa aproximação apressada e, segundo Volpi, ele classifica a posição de Jonas
como sendo
“quase aristotélica”.
(Op. cit. p. 168)
377. Que será apresentada no Capítulo 5, no contexto da fundamentação de pr.
205
Na perspectiva da assimilação de Heidegger, poderíamos considerar: a retomada de
Aristóteles, o todo existencial-fenomenológico, a noção de autenticidade
378
, o ponto de
vista da reflexão heideggeriana sobre a ambigüidade técnica, que deixa nítida impressão no
pensamento jonassiano e se faz evidente já no ponto de partida do PR. Na perspectiva da
crítica ou mesmo de recusa, cabe mencionar o niilismo, o “idealismo” e as concepções de
metafísica e de homem, como mero “ser-aí”, sem organicidade.
De qualquer modo, não se pode negar que Jonas segue os passos do mestre,
sobretudo, em seus estudos iniciais sobre a Gnose, através da metodologia empregada que é
precisamente a analítica existencial elaborada por Heidegger.
E mesmo quando ele se depara com aquela que constituiria a sua temática própria,
primeiramente, a filosofia da biologia e, em seguida, a ética para a civilização tecnológica,
ele procura suprir duas lacunas da filosofia heideggeriana: a dimensão “material” ou
concreta inexistente na filosofia do Dasein, que ele busca suprir com a ênfase na reflexão
sobre a vida orgânica (fazendo do metabolismo a manifestação elementar da Liberdade) e a
dimensão prática com a elaboração de sua reflexão ética (enfatizando a dimensão da
responsabilidade). Nesse sentido, pode-se ler a ética de Jonas como uma forma de elaborar
a reflexão ética cujo projeto Heidegger anunciou sem formalizar efetivamente
379
.
Para alcançar tais objetivos, Jonas se propõe a difícil tarefa de superar os dualismos
antigos, renovados pelo pensamento moderno. Vimos que, no PhV, ele enfrenta os
dualismos: - cosmológico homem / mundo e - antropológico corpo / alma e, como veremos,
é no PR que ele vai se dedicar à superação do dualismo ético entre ser e dever, que é
estabelecido por Hume.
378. Que, embora pouco enfatizada, é fundamental na formulação de seu princípio responsabilidade.
379. Sobre o tema da ética em Heidegger, Loparic aponta a existência de três grupos divergentes: o
primeiro formado por aqueles que recusam sumariamente a presença da reflexão ética no texto
heideggeriano; o segundo que admite as implicações éticas de suas formulações, ainda que fora da
perspectiva ética tradicional e, por último, aqueles que vêem no pensamento heideggeriano um novo
ponto de partida para se abordar a problemática ética atual. Loparic pode ser incluído nesse terceiro grupo
quando ele defende a existência em Heidegger de um tipo de “ética original” com base, precisamente, no
conceito de responsabilidade. O que atestaria ainda mais esse parentesco entre Jonas e o filósofo da
Floresta Negra. (Z. Loparic. “Ética da finitude”. In Correntes fundamentais da Ética Contemporânea.
Petrópolis: Vozes, 2000, pp. 65-77. Aqui, p. 75)
206
Tendo isso em mente, passamos ao tópico seguinte, que introduzirá pontos centrais da
concepção ética jonassiana - propriamente dita - relacionados à formulação do pr.
4.5 - As diferentes formulações de pr e a resposta jonassiana às éticas anteriores
Diante do insólito desafio colocado pela possibilidade de um uso questionável das
biotecnologias em seres humanos, considerando especialmente os dois exemplos
focalizados no Capítulo 1: a eugenia positiva e a realização do projeto pós-humano;
forçoso é verificar que, devido ao caráter inédito de tais problemas, não se pode esperar
auxílio eficaz das concepções éticas tradicionais. De fato, nenhuma delas se encontra
preparada para lidar com dificuldades de tal ordem.
Essa é uma das primeiras constatações de Hans Jonas já no início de sua obra Das
Prinzip Verantwortung (PV), o que o impele a abandonar a perspectiva ética tradicional
e, tanto quanto possível, inaugurar outra abordagem ética. Pois, se inéditos são os
problemas, inédita também tem que ser a abordagem ética concernente a eles. Isso
esclarece porque o subtítulo desse livro é: Uma ética para a civilização tecnológica.
Ainda assim, Jonas busca elementos para estabelecer essa “nova”
380
ética na própria
tradição.
Jonas começa por notar que a técnica constitui uma “vocação” (Beruf)
381
humana.
Isso equivale a dizer que, desde tempos imemoriais, por meio da técnica, o homem
380. Segundo O. Depré, “De fato, Jonas não quer propriamente dizendo, uma nova ética, (...) ele chama
antes a atenção sobre o fato de que as condições do agir humano mudaram”. In Hans Jonas. Paris:
Ellipses, 2003, p. 26. Porém, o fato de ele enfatizar a mudança do agir humano e a insuficiência das éticas
tradicionais e propor uma “ética do futuro”, fundada sobre um “novo imperativo”, sugerem, sim, a busca
por uma ‘nova’ ética. Embora, ele próprio tenha afirmado, em entrevista a Marion Dönholf e Reinhard
Merkel (Die Zeit, 25 ago 1989), que: “Nessa situação inédita, é preciso repensar ‘sob nova ótica’ as
obrigações éticas. Isso não significa necessariamente que nós temos necessidade de uma nova ética, mas
que existe efetivamente um domínio de aplicação completamente novo no que concerne a nossos
costumes, nossa obrigação e o que nós «devemos» ou «não devemos» fazer. Uma situação tão nova,
quanto é essa de uma época altamente tecnicizada, exige uma nova reflexão ética.Trata-se, portanto,
senão de uma “nova ética” ao menos de uma “nova reflexão ética”. Ver texto “La compassion à elle seule
ne fonde pas aucune éthique”, in H. Jonas, Une Éthique pour la Nature. p. 92.
381. Termo que faz alusão à célebre obra weberiana, cuja versão portuguesa foi intitulada Ciência e
Política duas vocações, reunindo dois importantes textos Wissenschaft als Beruf e Politik als Beruf, onde
Weber discute, sobretudo no segundo, a questão da responsabilidade. Aspecto que sugere senão uma
influência, (mesmo que indireta), alguma proximidade entre a temática de Weber e a formulação
207
interveio e modificou seu ambiente, não apenas para assegurar a sua sobrevivência, mas
para melhorar as condições de sua existência. Graças ao que, diferentemente de todos os
outros animais, o ser humano foi o único capaz de transpor os limites da natureza e criar
a cultura, concebida, conforme Aristóteles, como uma espécie de “segunda natureza”
tão admirável quanto a primeira, só que ‘fabricada’ pelo próprio homem.
Não obstante o fato de a técnica
382
ser considerada um traço marcante e mesmo
onipresente ao longo da história humana, um elemento que distingue inteiramente a
técnica tradicional da tecnologia atual. Tal constatação constitui o ponto de partida da
reflexão de Jonas em seu Princípio Responsabilidade, razão pela qual o Capítulo I
intitula-se a “Transformação da essência do agir humano”.
Ele encontra na antigüidade elementos para demonstrar tal transformação e se
inspira num importante canto do famoso coro da Antígona de Sófocles – em que se pode
ler uma verdadeira apologia à capacidade humana, numa exaltação do poeta aos vários e
fascinantes dons do homem, que o tornam capaz dos atos mais violentos e das mais
admiráveis criações, - transcrito por Jonas logo nas primeiras páginas de PR.
Sobre os notáveis versos de Sófocles, Jonas faz o instigante comentário a seguir:
Essa homenagem atormentada ao poder opressivo do homem narra sua
irrupção violenta que engendra a violência na ordem cósmica, a invasão
jonassiana. Além disso, Jonas menciona em dois contextos diferentes o nome de Weber: em suas
Souvenirs, onde ele faz um elogio à Ética protestante e o espírito do capitalismo (p. 91) e no PR, onde
estabelece uma comparação entre a sua própria formulação e a concepção weberiana das éticas da
convicção e da responsabilidade (PR. pp. 174-175 n. 1).
382. Como assinalado no Capítulo 3, Heidegger, em seu renomado ensaio A Questão da Técnica”, de
1953, enfatiza que a essência da técnica é de grande ambigüidade(p. 35), portanto, não é possível
abordar a técnica sem considerar sua natureza dúbia que, a exemplo da fissão nuclear, tanto pode ser
usada para fins pacíficos: gerar energia, quanto para a destruição. O próprio Heidegger admite, porém, em
uma entrevista concedida, em 1966, ao semanário alemão Der Spiegel, publicada apenas postumamente,
em 1976, que: “a cnica arranca o homem cada vez mais do solo, desenraizando-o. (...) o homem
sofre o controle, a exigência e a injunção de um poder que se manifesta na essência da técnica e que
ele próprio não domina (...). Somente um deus nos pode salvar”. Sugerindo que essa “ambigüidade”
tende para um dos lados e não, exatamente, para o melhor.
Fonte: http://www.heidegger.hpg.ig.com.br/entrevis.htm. Cabe lembrar que o alerta contra essa
ambigüidade da técnica, que sugere uma perspectiva pessimista’, contrapõe-se às posições de Simondon
e de Ortega Y Gasset consideradas mais otimistas que as de Rousseau, Heidegger e Jonas. (Mencionadas
no capítulo 2.)
208
audaciosa dos diferentes domínios naturais pela inteligência infatigável;
mas ao mesmo tempo narra que com as capacidades do discurso, do
pensamento e do sentido social que ele aprendeu de seu próprio
fundador, o homem constrói uma habitação para seu ser humano
autêntico, a saber, o artefato da cidade. A violação da natureza e sua
auto-educação caminham de mãos dadas. (PR, pp. 23-24)
Jonas sugere, portanto, que a ambigüidade atribuída por Heidegger à técnica,
efetivamente, já se manifesta na própria condição humana. Algo que ele evidencia ao,
paradoxalmente, afirmar que, por um lado, o simples surgimento do homem significou
uma
irrupção violenta que engendr[ou] a violência na ordem smica”
,
mas que, por outro
lado, graças a sua capacidade discursiva e ao pensamento, o homem foi capaz de
construir um habitat propriamente humano: a cidade. O paradoxo reside nesta
constatação de que a “civilização” se ergueu, poder-se-ia dizer, sobre os “escombros da
natureza”, ou melhor, é o fruto de sua violação. Em contrapartida, é inegável o fato de
que
“O homem é o criador de sua vida enquanto vida humana;
[que]
ele dobra as circunstâncias
à sua vontade e necessidade e, salvo contra a morte, ele não está jamais desprovido de
recursos.”
(PR p. 24)
Ao retomar tais palavras, Jonas a entender que, apesar de todo esse poder, a
situação humana é bastante frágil, pois, como ele acrescenta
“o homem comparado aos
elementos
[da natureza]
é sempre ainda pequeno; é isso que confere toda essa audácia a suas
incursões”.
(Ibidem.)
De fato, o que espanta é constatar que, em princípio, mais fraco,
menos veloz e desprovido de dotes físicos comparáveis aos de outros animais, apenas
por sua “astúcia”, tenha sido capaz de submeter praticamente todo o reino da natureza.
Trata-se, sem dúvida, de um feito bastante audacioso.
209
Mas isso não reduz a fragilidade humana e uma das provas mais evidentes da
limitação humana é o fato de que,
“qualquer que seja o número das doenças contra as quais o
homem possa encontrar um remédio, a mortalidade em si não se dobra à sua astúcia.”
(Ibidem.)
Tal paradoxo inerente ao “ser”
383
humano sempre esteve presente ao longo de
toda a História, evidenciando-se tanto nos momentos em que o homem alcançou suas
mais nobres e elevadas conquistas, quanto naqueles em que o homem desceu o mais
baixo em suas mais abomináveis ações.
A ambigüidade humana que, por um lado, coloca o homem entre o bem e o mal e,
por outro, entre a fragilidade mais notável e um poder nunca antes imaginado, quando
transposta à esfera da técnica, suscita inúmeras questões. Por isso, Jonas nos alerta que:
O Prometeu definitivamente desacorrentado, ao qual a ciência
confere forças nunca antes conhecidas e a economia seu impulso
infatigável, invoca uma ética que, por meio de entraves livremente
consentidos, impeça o poder do homem de tornar-se uma maldição
para ele.
(PV, p.7; PR, p. 15. Grifos nossos).
384
Eis o mote de sua reflexão ética: a constatação de que a ciência humana atingiu
um grau tão elevado e pôs nas mãos do homem um poder tal que, se conduzido por essa
tendência ao mal, pode significar uma ameaça a todas as espécies vivas, inclusive, à
própria espécie humana, razão pela qual uma nova reflexão ética se faz tão premente.
Embora se refira, aqui, mais ao Anthropos, seria precipitado concluir que a
humanidade constitui o único foco do ampliado horizonte de Jonas. Ao contrário, ele
383. De fato, como Jonas explicita no prefácio do PhV, essa constante ameaça do não-ser ou, como ele
formula, esse “equilíbrio precário entre o ser e o não-ser” (p. 9) constitui o traço do ser em geral.
384. O original alemão será abreviado com as iniciais PV, e a tradução francesa com as inicias PR. Esse
cotejamento com o texto original e a verão francesa será feito nas primeiras citações para evidenciar o
intervalo entre as diferentes edições. No decorrer da exposição, porém, isso ocorrerá apenas quando tal
recurso se mostrar necessário.
210
visa estabelecer um diferente modelo capaz de superar a limitação das éticas anteriores -
assumidamente antropocêntricas
385
- reconhecendo que a ética ora exigida
não pode permanecer no desrespeitoso antropocentrismo que
caracteriza a ética tradicional, particularmente a ética ocidental
helênico-judaico-cristã. As possibilidades apocalípticas radicadas na
moderna tecnologia nos têm ensinado que o exclusivismo
antropocêntrico poderia ser um prejuízo e que necessita, ao menos, de
uma revisão
(PV, p. 95; PR, p. 99).
Essa revisão, de que nos fala Jonas, torna-se urgente em função da incrível
mudança operada pelo avanço científico na própria maneira de conceber o homem. Isto
porque, se na antiga Grécia o ser humano era definido, principalmente, como animal
racional, concepção expressa no conceito de homo sapiens, hoje, o traço que mais
identifica o ser humano é sua incontida capacidade de ‘fabricar objetos’. Daí que,
atualmente, o conceito que melhor define o homem é, como reiterado por Jonas
386
, o de
homo faber que, suplantou o de homo sapiens
387
. Ao demonstrar o triunfo do homo
faber
388
sobre o homo sapiens, ele nos diz:
385. Ainda assim, quem possa considerar a ética jonassiana antropocêntrica por postular, como seu
princípio fundamental, a responsabilidade, do que só o homem é capaz. Pode-se conceder, portanto, que a
perspectiva é antropocêntrica, quando se trata de estabelecer o sujeito ético, mas não no momento de
determinar o seu objeto, que é toda a biosfera. Sob esse aspecto, sua ética poderia ser identificada pela
expressão antropo-cósmica¸ para designar que se trata de uma responsabilidade do homem para consigo e
para com o mundo externo. Expressão empregada por Lourenço Zancanaro, no seu texto: “A teoria da
responsabilidade de Hans Jonas”, in Problemas e teorias da ética contemporânea. Porto Alegre:
Edipucrs, 2004 pp. 187-220, (p. 208).
386. De fato, segundo H. Arendt, Bergson é quem insiste na prioridade do homo faber sobre o homo
sapiens. (Condição Humana. p. 318, n. 68.)
387. Expressão que Jonas utiliza num sentido semelhante à de Homo tecnicus, adotada por outros autores.
388. Paul Ricoeur em seu notável artigo “Ética e Filosofia da Biologia em Hans Jonas” afirma que:
“quanto ao nível propriamente humano, Jonas prefere caracterizá-lo pela confecção de imagens; Homo
pictor engloba Homo faber e Homo sapiens; a função simbólica encarrega-se agora da representação do
mundo (...). O homem nomes às coisas, relaciona seres, abre o campo do possível: assim, a liberdade
se destaca por distanciar-se da causalidade”. (Leituras 2. p. 233) Tal afirmação, certamente, decorre da
visão apresentada no artigo “Homo pictor and the differentia of man” escrito por Jonas no fim da década
de 50, em homenagem aos 60 anos de seu amigo Leo Strauss, publicado primeiramente em alemão no
Zeitschrift für philosophie Forschung, em 1961 e na versão francesa com o título “Outil, image et
tombeau ...”, em Évolution et liberté. Paris: Payot & Rivages, 2005, pp. 59-82. Entretanto, em PV, Jonas
não faz menção ao Homo pictor, apenas à primazia do Homo faber sobre o Homo sapiens. Talvez, o
Homo pictor esteja implícito na concepção do homem como imago Dei, que Jonas menciona sem
211
o homem é agora, cada vez mais, o produtor daquilo que ele produziu
e o ‘fazedor’ daquilo que ele sabe fazer e, sobretudo, o preparador
daquilo que ele será em breve capaz de fazer. Mas, quem é “ele”?
Não vocês ou eu. É o ator coletivo e o ato coletivo, não o ator
individual ou o ato individual que representam aqui um papel; e é o
futuro indeterminado, bem mais do que o espaço contemporâneo da
ação, que fornece o horizonte pertinente da responsabilidade
(PV, p.
32; PR, p. 37. Grifos nossos).
Tal passagem é particularmente significativa por explicitar importantes aspectos
presentes na reflexão jonassiana: o traço eminentemente “fazedor” do homem; o fato de
sua produção hoje não ser mais meramente individual, mas coletiva e, sobretudo, o fato
de que suas ações adquiriram, em nossos dias, uma amplitude temporal como jamais se
viu anteriormente, o que abriu, inevitável e indefinidamente, o horizonte da
responsabilidade em direção ao futuro.
Além disso, Jonas ressalta a gravidade de nossa situação atual, em que o poder
humano alcançou um grau tal que não só possibilitou a quase completa sujeição da
natureza, mas também a conversão do próprio homem em objeto da técnica. Assim,
como abordado no Capítulo 1, graças à manipulação genética humana, pode-se tanto
eliminar doenças, quanto criar quimeras, revelando que, se mal administrado, “o feitiço
pode se virar contra o feiticeiro”. Tal possibilidade expõe um desafio jamais imaginado
e exige um esforço excepcional da reflexão ética no sentido de alertar contra os
possíveis danos causados por tais ações, cujos efeitos irreversíveis tenderão a se
manifestar, não apenas no curto e médio, mas, até e principalmente, no longo prazo.
explicitar, no sentido de que Deus criou ex nihlo, via linguagem, e o homem, também via linguagem, ao
nomear as coisas, “recriou” simbolicamente a criação, aproximando-se, assim, do próprio Criador. Será
necessário, porém, demonstrar qual é, afinal, a concepção de homem presente no texto jonassiano, para
definir quais seriam seus diferentes atributos e, a partir dessa noção, o que constituiria a sua
“integridade”, cuja conservação e equilíbrio estariam ameaçados pela manipulação genética que se
anuncia. (PV, p. 52; PR, p. 54).
212
Estamos nos concentrando aqui nas ações da biociência, implicadas no processo
de uma indiscriminada manipulação genética humana, mas poderíamos ainda alertar
contra o uso
389
de armas químicas, biológicas e nucleares, a descontrolada exploração da
natureza, a desenfreada busca do lucro em detrimento do homem e da natureza, o uso
dos rios, mares oceanos e, mesmo, do espaço como depósito do lixo (produzido num
volume cada vez mais assombroso), a política econômica internacional que cria um
abismo cada vez mais profundo entre os países que vivem na ostentação e os que vivem
na miséria absoluta. O que está associado a outro gravíssimo problema, relacionado ao
insustentável padrão de consumo dos países industrializados e que, a despeito dos
avisos da grave ameaça ecológica que isso acarreta, não estão, sinceramente, dispostos a
rever.
Sobre esse ponto, Jonas enfatiza ainda que, anteriormente, toda a ação do homem
sobre
“os habitantes da terra, do mar e do ar deixavam, entretanto, intocável a natureza
englobante desses reinos e não diminuía suas forças criativas.”
(Ibidem.)
Dito de outro modo,
por maiores que fossem as interferências humanas no planeta, até o século XX, tais
ações não tinham o poder de alterar a “natureza” global dos reinos terrestre, marinho ou
aéreo, nem a de seus habitantes.
Assim, a ética tradicional podia se limitar ao âmbito das relações humanas,
“porque antes de nossa época as intervenções do homem na natureza, tal como ele próprio via,
eram essencialmente de natureza superficial e sem poder de perturbar o equilíbrio imutável.”
(PR
pp. 24-25)
Contudo, atualmente, não apenas essa situação tende a progressivamente se
transformar, como também a interpretação que se faz do passado, pois, segundo Jonas:
“O olhar retrospectivo, porém, descobre que a verdade não foi sempre tão inofensiva.”
(Ibidem.)
389. Nesse caso, não das biotecnologias, mas das tecnologias em geral, sobretudo, daquelas cujos
efeitos podem ser mais desastrosos.
213
Em outras palavras, embora as intervenções atuais do homem na natureza sejam
mais profundas do que foram as anteriores, essas não podem ser consideradas
totalmente inócuas
390
. Apesar disso, ele insiste sobre as diferenças significativas, entre
as ações atuais e as antigas, que se refletem nas diferentes concepções éticas formuladas
no passado e o tipo de reflexão ética exigida no contexto atual. O que o motiva a
analisar, a seguir, os “Traços distintivos da ética até o presente”
391
.
Segundo Jonas, ao contrário do que ocorre em nossos dias, antigamente, as ações
humanas e a dimensão ética apresentavam certas características que ele dispôs em
quatro diferentes itens, que podem ser sintetizados como se segue:
1. Toda relação com o mundo extra-humano, que se fazia pela mediação da
téchne era, com exceção da medicina, neutra do ponto de vista ético, tanto no tocante ao
objeto quanto ao sujeito de tal agir; uma vez que a técnica não afetava nem a natureza
das coisas, nem a do próprio sujeito que a dominava.
2. A dimensão ética estava presente apenas na relação direta entre seres humanos,
inclusive na relação consigo mesmo. Ou seja, não o sujeito, mas também o “objeto”
dessa reflexão era o próprio homem. Por isso se pode dizer que toda a ética tradicional
era antropocêntrica.
3. Nesse âmbito do agir, estimava-se que o ‘homem’ (e sua condição
fundamental) fosse constante em sua essência e que ela própria não fosse um objeto
possível da téchne transformadora.
4. Tanto o bem quanto o mal estar, de que se ocupava o agir, estavam próximos
da ação, não existindo a necessidade de planificar uma ação no longo prazo.
390. A quase total destruição da vegetação original do “velho continente” é um lamentável exemplo dessa
ação anterior do homem sobre a natureza.
391. PR pp. 27-30.
214
Para compreender a situação atual, é necessário, portanto, inverter o que se disse
acima sobre o agir humano anterior à emergência da chamada técnica moderna e a ética
que era até então adequada.
A primeira mudança dessa imagem herdada da antigüidade foi a constatação da
vulnerabilidade da natureza frente à intervenção técnica do homem sobre ela. Esse fato,
que se encontra na origem de uma ciência específica do meio ambiente - a ecologia -,
modificou nossa auto-representação como agentes cujas ações interferem num sistema
global. E demonstrou que
“a natureza do agir humano se modificou de facto e que um objeto
de um tipo inteiramente novo, nada menos que a biosfera inteira do planeta, foi acrescentado ao
pelo que nós devemos ser responsáveis, uma vez que nós temos poder sobre ele.”
(PR p. 31)
Por esse motivo, Jonas afirma que
“A natureza, enquanto objeto da responsabilidade
humana, é certamente uma novidade sobre a qual a teoria ética deve refletir.
(PR pp. 31-32)
Assim, se na concepção tradicional a ética tinha a ver apenas com as questões
humanas, a partir de agora, a ética passa a ter que se ocupar também das questões que
dizem respeito a toda a biosfera. Entretanto, sobre esse aspecto, Jonas pondera que
o último pólo de referência que faz do interesse pela conservação da
natureza um interesse moral é o destino do homem, uma vez que ele
depende da situação da natureza, a orientação antropocêntrica da
ética clássica é ainda conservada aqui, mas, mesmo nesse caso, a
diferença é grande. O fechamento da proximidade e da
simultaneidade desaparece. (PR p. 32)
Desse modo, o que está em jogo nessa preocupação ética com a biosfera é, em
última instância, a preservação das condições da sobrevivência humana. Porém, embora
nesse aspecto a perspectiva antropocêntrica persista, também ocorre uma mudança
inegável, na medida em que a preocupação com relação aos efeitos das ões não pode
215
mais se ater somente àqueles mais próximos e imediatos. Além disso, outra mudança
considerável refere-se ao fato de que
Toda a ética tradicional considerava somente um comportamento não
cumulativo. ... Mas a auto-reprodução cumulativa da mutação
tecnológica do mundo ultrapassa permanentemente as condições de
cada um dos atos para os quais ela contribui... Tudo isso deve ser
incluído na vontade do ato individual se esse deve ser moralmente
responsável.
(PR p. 32-33)
Com efeito, não a reflexão ética viu ampliada espacial e temporalmente a sua
preocupação com os efeitos das ações, mas a própria perspectiva da ação, anteriormente
pontual, no contexto atual, também foi estendida, passando agora a ser cumulativa. Ou
seja, os efeitos de uma ação praticada ontem se somam aos da que é praticada hoje, que
se somarão aos da que será praticada amanhã e assim sucessivamente; gerando
resultados criticamente acumulados e não só pontuais como eram no passado.
Mediante tudo isso, Jonas avalia sua própria formulação e questiona
“se o novo
tipo do agir humano quer dizer que é preciso levar em consideração mais que apenas o interesse
‘do homem’ que nosso dever se estende mais longe e que a limitação antropocêntrica de toda
ética do passado não vale mais?”
(PR p 34).
Questão, aqui, bastante decisiva, uma vez que,
Se fosse o caso, isso reclamaria uma revisão não negligenciável dos
fundamentos da ética. Isso equivaleria a dizer: buscar não somente o
bem humano, mas igualmente o bem das coisas não humanas, isto é,
estender o reconhecimento do ‘fim-em-si’ além da esfera do homem e
integrar essa solicitude no conceito do bem humano.
(Ibidem.)
Considerando que, pelo avanço das biotecnologias, de fato, tal é a nossa situação
atual, Jonas alega que
nós deveríamos permanecer abertos à idéia de que as ciências da
natureza não oferecem toda a verdade sobre o tema da natureza.”
(PR p 35)
Nesse caso, é
216
preciso buscar alhures, ou seja, numa reflexão ética inédita, elementos para nortear as
ações humanas que levem em conta, também, mas não apenas o bem-estar do homem.
Seguindo essa linha de raciocínio, mas indo um pouco além, ele assevera que
a fronteira entre ‘Estado’ (polis) e ‘natureza’ foi abolida: a cidade
dos homens, antes uma inserção no interior do mundo não humano, se
estende sobre a totalidade da natureza terrestre e usurpa seu lugar.
(...)
e ao mesmo tempo, o artefato total, as obras do homem tornam-se
mundo, agindo sobre ele mesmo e, por ele mesmo, engendra uma
nova espécie de ‘natureza’.
(PR p. 37)
Nesse sentido, não é mais possível demarcar com precisão o limite entre a
“cidade” como criação humana e natureza. Dado que a própria natureza converteu-se
em espaço da “criação” humana. Além disso, se
“Há pouco, podia-se dizer: fiat iustitia,
pereat mundus, que a justiça se faça, ainda que o mundo pereça
(...). [Agora]
essa fórmula não
pode mais ser utilizada, nem mesmo num sentido retórico, uma vez que
(...)
se tornou uma
possibilidade real.”
(PR pp. 37-38)
Com efeito, se anteriormente podia-se usar tal expressão para priorizar o dever
sobre o ser ou como mera alegoria da indiferença do homem quanto às conseqüências
de suas ações além da esfera humana; agora, ela precisa ser totalmente abolida, visto
que a possibilidade de destruição deixou de ser metafórica e tornou-se real. Por isso,
Jonas afirma
:
“Que um mundo deva existir para sempre no futuro um mundo apropriado à
morada humana e que sempre no futuro ele deva ser habitado por uma humanidade digna
desse nome, considerar-se-á, de bom grado, um axioma universal ou um objetivo desejável”.
(PR p. 38)
Desse axioma, ele extrairá as principais obrigações de sua concepção,
declarando que, se antes
A presença do homem no mundo era um dado primeiro,
inquestionável, do qual toda idéia da obrigação no humano tomava
217
como ponto de partida, doravante, ela própria se tornou um objeto de
obrigação – a saber, a obrigação de garantir para o futuro a primeira
premissa da obrigação, isto é, justamente a simples presença de
candidatos para a existência de um universo moral no seio do mundo
físico; e isso significa, entre outras coisas, preservar o mundo físico
de modo que as condições de tal presença permaneçam intactas; e
isso significa proteger sua vulnerabilidade contra a ameaça de um
dano causado às suas condições.
(Ibidem.)
Essa passagem evidencia que se, antes, podia-se considerar o ‘homem’ (e sua
condição fundamental) como algo constante em sua essência e, inclusive, que ela
própria não fosse um objeto da téchne transformadora, atualmente, isso não é mais
possível. Dado que, tanto as novas tecnologias podem significar uma ameaça à
preservação do mundo natural, quanto as biotecnologias à permanência do homem,
enquanto homem, no planeta. Por isso, Jonas postula que além da existência do mundo,
também a própria presença do homem nele converteu-se em meta da obrigação.
O tema da obrigação abre caminho ao cerne de sua concepção ética. Por isso, a
seguir, Jonas propõe uma comparação entre o que denomina: “Antigos e novos
imperativos”.
392
Primeiramente, sua atenção dirige-se ao
“1. O imperativo categórico de Kant [que]
afirmava: ‘Age de tal modo que tu possas querer que a máxima de tua ação se torne uma lei
universal’.
(PR p. 39)
Jonas pretende rever tal formulação, uma vez que, segundo pensa,
“aqui a consideração fundamental da moral não é ela mesma moral, mas lógica”
393
(Ibidem.).
No entender de Jonas, o critério kantiano para avaliar se uma ação é ou não moral
é a coerência da “vontade” consigo mesma. Ou melhor, do indivíduo que age, com seu
próprio querer. Porém, a coerência constitui um critério lógico e não exatamente moral.
392. PR pp. 39-42.
393. Sobre esse aspecto ver o interessante comentário de O. Höffe. In Immanuel Kant. pp. 209-210.
218
Por isso, tendo em vista essa “limitação” do Imperativo Categórico kantiano,
Jonas propõe o estabelecimento de outro princípio, o princípio responsabilidade (pr),
como fundamento da ética que ele pretende inaugurar. Daí ele estabelece que
“2. Um
imperativo, adaptado ao novo tipo do agir humano e que se endereça ao novo tipo de sujeitos do
agir, se enunciaria mais ou menos assim: Age de tal modo que os efeitos de tua ação sejam
compatíveis com a permanência de uma vida autenticamente humana na Terra.
(PR p. 40)
Sua formulação permite outras três diferentes variações, a saber:
2. Age de tal modo que os efeitos de tua ação não sejam
destrutivos para a possibilidade futura de uma tal vida.
3. Não comprometa as condições para a continuidade
indefinida da humanidade na Terra.
4. Inclui em tua escolha atual a integridade futura do homem
como objeto secundário de teu querer.
(PR, pp. 39-40)
É possível destacar as palavras-chave de cada uma dessas formulações: a
autenticidade, a possibilidade, a continuidade e a integridade. Sendo que a e
a 4ª referem-se ao próprio homem e a 2ª e a 3ª à vida humana ou à sua efetiva realização
na Terra. Mas, o que as diferentes formulações do pr têm em comum é o fato de que
com todas elas Jonas busca ressaltar que
“o novo imperativo afirma precisamente que nós
temos o direito de arriscar nossa própria vida, mas não a vida da humanidade (...) que nós não
temos o direito de escolher o não-ser das gerações futuras em função do ser da geração atual e
que nós não temos [nem] mesmo o direito de o arriscar.”
(Ibidem. Grifos nossos.)
Nesse sentido, o novo imperativo proposto por Jonas nos compromete, não
apenas com o homem de nosso tempo, mas com a possibilidade futura de uma vida
humana em nosso planeta.
Por esse motivo, insistindo na comparação com o princípio kantiano, ele diz que
se:
“O imperativo categórico de Kant se endereçava ao indivíduo e seu critério era instantâneo. (...)
219
O novo imperativo invoca outra coerência: não aquela do ato em acordo com ele mesmo, mas aquela
de seus efeitos últimos em acordo com a sobrevivência da atividade humana no futuro.”
(PR p. 41)
Isso evidencia que, diferentemente da formulação kantiana, a concepção ética
defendida por Jonas, não leva em conta apenas os princípios, mas também as
conseqüências das ações realizadas. Por isso se pode confirmar o que se disse
anteriormente (4.4) quanto ao fato de a ética jonassiana realizar a síntese entre os tipos
de moral deontológica e conseqüencialista.
394
Essa não é, porém, a única mudança que ele propõe, visto que seu princípio ainda
acrescenta ao cálculo moral o horizonte temporal que está totalmente
ausente na operação lógica instantânea do imperativo kantiano:
enquanto este último se estende em direção a uma ordem sempre
presente da compatibilidade abstrata, nosso imperativo se estende em
direção a um futuro calculável que forma a dimensão inacabada de
nossa responsabilidade.
(PR p. 42)
Todavia, Jonas esclarece que, em função deste
“primeiro imperativo não somos
responsáveis pelos homens futuros, mas pela idéia de homem, cuja presença exige sua
materialização no mundo”
(PV, p. 91; PR, p.88).
Nesse sentido, ele defende que uma vida autenticamente
395
humana deve ainda
existir depois de nós. Algo que, num primeiro momento, parece um ponto pacífico.
Mas, analisando mais detidamente tal imperativo, surge a questão: como podemos ser
responsáveis por aquilo que ainda não existe efetivamente? Essa questão leva-o a
explicitar um ponto fundamental de sua elaboração, segundo o qual,
“o primeiro princípio
de uma ética do futuro não se encontra ele mesmo na ética enquanto doutrina do fazer (...), mas
na metafísica
396
enquanto doutrina do ser da qual a idéia de homem é uma parte”
(PV, p. 92; PR,
p.89).
Assim, nossa responsabilidade é a de assegurar as condições para que essa idéia
394. Aqui, p. 187; Frogneux. VM. p. 5.
395. Oportunamente, buscar-se-á compreender o que vem a ser essa “vida humana autêntica”.
396. Esse aspecto será examinado no tópico seguinte que abordará a questão da fundamentação do pr.
220
possa continuar a se materializar indefinidamente. Por conseguinte, Jonas pode firmar
que:
Frente a tudo isso a existência do homem tem sempre a
prioridade, pouco importa se ele a merece em razão do que foi
feito até agora e de sua continuação provável: é a
possibilidade, comportando sua própria exigência, sempre
transcendente, que deve ser mantida aberta pela existência.
Precisamente a manutenção dessa possibilidade enquanto
responsabilidade cósmica significa a obrigação de existir.
Exagerando, podemos dizer: "a possibilidade que haja
responsabilidade é a responsabilidade que tem a prioridade
absoluta"
(PV, p. 186; PR, p. 174).
Tal formulação demonstra o vínculo originário entre vida e responsabilidade
(PV,
p. 187; PR, p. 175)
, pois, se por um lado é preciso assegurar a existência humana
397
para
que haja a responsabilidade, por outro lado, mais do que nunca, é o exercício da
responsabilidade que pode assegurar a preservação da vida humana. Porém, tal
exercício tem que ser freqüente e pressupõe, portanto, continuidade. Conceito
importante, expresso na penúltima fórmula de pr, que Jonas esclarece declarando que a
continuidade se deduz da natureza da responsabilidade total,
por seu imediato sentido quase tautológico de que o se pode
suspender seu exercício. Nem o cuidado dos pais nem o do
governo
398
pode tirar férias, pois a vida de seu objeto continua
ininterruptamente e renova uma e outra vez suas exigências.
Mais importante ainda é a continuidade desta existência
mesma que recebe seus cuidados como um empenho, que os
397. Existência que deve ser autêntica e íntegra, como destacado nas formulações afirmativas de pr (1 e 4).
398. A responsabilidade dos pais para com os filhos e a dos governantes para com os governados são
tomadas por Jonas como paradigmáticas, pelo fato de existirem espontaneamente no campo da ação
humana, portanto, prescindindo, segundo ele, de qualquer tipo de justificação.
221
dois tipos de responsabilidade aqui considerados deverão ter
em vista em cada ocasião específica de sua atualização. A
responsabilidade particular se limita não a um único
aspecto, mas também a um espaço de tempo concreto da
existência.
(...)
Mas a responsabilidade total perguntar-se-á
sempre: ‘o que vem depois?, aonde levará?’ e, ao mesmo
tempo: ‘o que havia antes?, como se liga ao desenvolvimento
total desta existência o que agora está ocorrendo?’. Em uma
palavra, a responsabilidade total tem que proceder
“historicamente”, abarcar seu objeto em sua historicidade.
Este é o sentido próprio do que aqui designamos com o
conceito de ‘continuidade’
(PV, p. 196 e 197; PR, p.182 e 183).
Destarte, com o conceito de continuidade, Jonas enfatiza a dimensão histórica ou,
melhor dizendo, temporal da responsabilidade, considerando não apenas a situação
presente, mas também passada e futura do objeto pelo qual se é responsável. Embora ele
enfatize que essa
“abertura para o futuro do sujeito por quem se é responsável é o aspecto de
futuro mais autêntico da responsabilidade”
(PV, p. 198; PR, p. 184).
Por isso, coerentemente,
Jonas afirma que a
“responsabilidade coletiva
399
atual tem uma extensão temporal universal”
(PV, p. 220; PR, p. 203).
Sobre o conceito de responsabilidade e sua expansão num sentido que vai muito
além dessa ampliação temporal, Olivier Dupré, em seu livro Hans Jonas, acrescenta que
O artigo sobre a imortalidade
400
e a interpretação de Rudolph Bultmann
mostram muito bem, com efeito, melhor que o Princípio
399. Segundo Frogneux, “em 1973, aparece o artigo "Technology and Responsibility: Reflexions on the
New Tasks of Ethics", que busca esclarecer os novos desafios da responsabilidade coletiva numa
civilização em que os atores parecem suplantados por um sistema tecnológico anônimo que se
autonomiza”. Ponto será aqui retomadoàs páginas 246 e 297. (Nathalie Frogneux: “La puissance de la
subjectivité comme dignité de l’homme”, p. 17.)
400. Trata-se do Ensaio XI do PhV, “A imortalidade e a mentalidade moderna” (pp. 263-280),
originalmente apresentado na Universidade de Harvard em 1961, publicado em Harvard Theological
Review, 55 (1962), 1-20.
222
Responsabilidade, que aos olhos de Jonas uma responsabilidade
ôntica e uma responsabilidade ontológica
401
. É a primeira nossa
responsabilidade intra-mundana que tornou possível o enorme sucesso
do livro de Jonas. É ela que está por trás da retomada de Jonas no
coração da ética aplicada
402
. Ora seria prejudicial e o se faria justiça
à sua obra negligenciar a segunda responsabilidade, aquela que nós
temos em relação ao que está além de nós mesmos, em função do alcance
transcendente de nossas ações. É em razão dessa segunda
responsabilidade – bem mais original que a primeira que nossas ações
são portadoras da eternidade e que a aposta de um agir humano
responsável hoje é a humanidade. (pp. 23-24)
Vale dizer que, nesse ponto se ancora um aspecto fundamental da
responsabilidade concebida por Jonas, visto que ela se prolonga no tempo e se estende,
em especial, a todos nossos semelhantes (isto é, a todos seres humanos), sem se ater aos
nossos “próximos”, compreendidos como aqueles com os quais desfrutamos uma
convivência espaço-temporal. O seu foco é, portanto, a humanidade em geral, embora
levando em conta também toda a biosfera. Traço que, como veremos na parte referente
à aplicação, é bastante significativo para se pensar a questão do uso das biotecnologias
visando, por exemplo, colocar em prática o questionável projeto denominado de “pós-
humano”.
Além disso, esse aspecto pode ser relacionado àquele, mencionado no tópico
anterior, que Frogneux destacou sobre a liberdade, segundo o qual
“Jonas articula duas
401. De fato, no artigo supracitado, Jonas expõe a seguinte conclusão: “Assim, (...) podemos discernir
uma dupla responsabilidade do homem: uma por via da causalidade mundana, pela qual o efeito de sua
ação se estende sobre uma distância maior ou menor no futuro em que ela se dissipa no fim das contas; e
uma responsabilidade simultânea função de seu impacto sobre o reino eterno, em que ela não se dissipa
jamais. Uma, com nossa previsão limitada e a complexidade das coisas mundana, é muito dependente da
sorte e do acaso; a outra procede por normas conhecidas que (...) não estão distantes de nosso coração.
Poderia mesmo haver, como eu indiquei, uma terceira dimensão de nossa responsabilidade, a saber, a via
impalpavelmente recíproca na qual a Eternidade, sem intervir no curso físico das coisas, comunicaria seu
estado espiritual como um humor hostil a uma geração que teria que viver com ela. Mas as duas primeiras
dimensões são mais que suficientes para nos convocar à nossa tarefa.” (p. 280)
402. Sobre essa posição, ver discussão no capítulo 7.
223
interpretações da liberdade, a saber, por um lado, uma liberdade humana autônoma no coração
das leis da natureza da qual ela depende, e por outro lado, uma liberdade ontológica”.
(Op. cit. p.
274)
Pode-se assim inferir, como sugerido pela citação de Frogneux, que Jonas propõe
uma ampliação tanto do conceito de liberdade, quanto do conceito de responsabilidade,
de tal modo que ambos apresentariam uma dimensão “ôntica” e uma dimensão
ontológica. Caberia explicitar: a primeira referente ao ser na sua existência particular,
concreta, temporal e a segunda ao ser na sua essência universal, abstrata e atemporal.
Essa analogia entre os dois conceitos basilares do pensamento jonassiano, sugere uma
notável correlação entre eles, cujas conseqüências serão discutidas no último capítulo.
Todavia, antes de prosseguir com a exposição, será interessante avaliar se a
formulação do pr pode trazer algum benefício ao exame de nosso problema central.
Além do que já disse até aqui, cabe ainda acrescentar que o aspecto mais oportuno
da formulação jonassiana é o fato de evidenciar que somente agora, isto é, a partir de
sua formulação, a constatação da hipertrofia do poder humano se tornou uma exigência
do dever de responsabilidade como tentativa de controle desse mesmo poder
403
, para
assegurar, nas palavras de Jonas, não apenas
“o futuro da humanidade [mas também] o
futuro da natureza”
(PV, p. 243; PR, p. 227).
Dado que,
O futuro da humanidade é o primeiro dever do comportamento
humano coletivo na era da civilização técnica, que chegou a ser
‘onipotente’ de modo negativo. Não está aqui explicitamente incluído
o futuro da natureza como condição sine qua non; mas ademais,
independentemente disso, o futuro da natureza é de sua
responsabilidade metafísica, uma vez que o homem não se
403. No original, “Die Machte des Menschen – Wurzel des Soll der Verantwortung” (PV, p. 231).
224
converteu em um perigo
404
para si mesmo, mas também para toda a
biosfera
(PV, p. 245; PR, p. 227).
Nessa perspectiva, Jonas declara que o resultado de toda a ação humana sobre a
natureza foi a
“perturbação do equilíbrio simbiótico pelo homem”
405
(PV, p. 247; PR, p. 229).
Porém, o mais grave de tudo é que, se primeiramente o homem perturbou o equilíbrio
natural, agora, graças às novas descobertas da engenharia genética e aos anseios
desmedidos de alguns, o equilíbrio da própria estrutura genética humana pode ser
definitivamente rompido.
Por esse motivo, ele avalia que, devido a seu alto grau de periculosidade, para si
mesmo e para as demais formas de vida, o homem constitui um arriscado
empreendimento da natureza, pois, ao criá-lo, ela colocou em perigo a sua própria
sobrevivência. Sobretudo porque, se as recentes descobertas não forem bem conduzidas,
podem resultar num verdadeiro desastre.
Jonas enfatiza, porém, que tal
“ameaça de desastre [é] intrínseca ao ideal baconiano
406
(PV, p. 251; PR, p. 233),
que preconiza usar o saber da ciência para o fim específico de
dominação da natureza, em proveito do próprio homem. Em suas palavras:
Acerca disto temos que dizer agora algo, por mais que seja bastante
conhecido: que o perigo procede das desmedidas proporções da
civilização natural-científico-técnico-industrial. O que podemos chamar
o programa baconiano: pôr o saber a serviço do domínio da natureza e
fazer do domínio da natureza para o melhoramento da sorte do homem,
tem carecido, desde o princípio, em sua realização por parte do
404. Veremos que tal perigo está na base do que Jonas denomina heurística do medo que, partindo da
prevalência dos maus prognósticos sobre os bons, constitui o único meio de advertir a humanidade quanto
à urgência e à necessidade de se assumir essa postura ética de responsabilidade com relação ao futuro.
405. No original: “Störung des symbiotischen Gleichgewichts durch den Menschen”. (PV, p. 247).
406. Embora a importância de Descartes no estabelecimento desse ideal seja inegável, Jonas no PV o
atribui exclusivamente a Bacon.
225
capitalismo, tanto da racionalidade como da justiça
407
com as quais ele
teria sido compatível (...). (PV, p. 251; PR, p. 233. Grifos nossos).
Nesse sentido, o paradoxal de tudo isso, como nos demonstra Jonas, é que existe a
“ameaça de catástrofe pelo excesso de êxito”
408
(PV, p. 251; PR, p. 233)
.
A humanidade vive
hoje, mesmo sem se dar conta disso, um de seus mais dramáticos momentos, não por ter
fracassado na execução de um grande projeto, mas – e nisso reside o paradoxo -, por ter
alcançado um sucesso jamais imaginado, provavelmente, nem mesmo por aquele que
estabeleceu tão audacioso programa.
Em seguida, Jonas ressalta esse paradoxo e explicita as suas razões:
O perigo de catástrofe que comporta o ideal baconiano do domínio sobre
a natureza através da ciência e a técnica radica na magnitude de seu
êxito. Este êxito é fundamentalmente de dois tipos: econômico e
biológico. Na atualidade é manifesto que a conjunção de ambos conduz
necessariamente à crise. O êxito econômico, durante largo tempo o único
percebido, consistiu no incremento, em quantidade e variedade, da
produção de bens, junto a uma diminuição do trabalho humano
empregado para produzi-los; portanto, um maior bem-estar para muitos,
mas também um forçoso maior gasto de todos dentro do sistema, quer
dizer, um incremento enorme do metabolismo entre o conjunto de corpo
social e o mundo natural
(PV, p. 251-252; PR, p. 233-234).
Nada do que Jonas disse acima constitui novidade para aqueles que estão atentos a
um dos mais urgentes problemas de nosso tempo. Pois, jamais o equilíbrio ecológico foi
tão ameaçado como atualmente; em função dos exagerados padrões de produção e
consumo, levando à exploração cada vez maior das fontes de matéria-prima e energia, o
407. Tais aspectos, racionalidade e justiça, serão importantes no último capítulo, para se discutir a
necessidade de se pensar a Educação e a Institucionalização Jurídica.
408. Essa constatação pode ser tomada na perspectiva da dialética hegeliana, especialmente, da
Fenomenologia do Espírito, segundo a qual a radicalização de uma posição conduz necessariamente ao
seu oposto. Ver, por exemplo, a dialética do senhor e do escravo, a do esclarecimento e do terror, etc.
(Sobre esse aspecto, sobretudo, a Parte II.)
226
que, além de poluir, compromete drasticamente as reservas e altera as condições
climáticas do planeta.
Todavia, o mérito de Jonas deve-se ao fato de ter sido um dos primeiros a
explicitar tal situação e demonstrar que a
“dialética do poder sobre a natureza [inclusive no
que tange ao próprio homem, exige] um controle para seu exercício”
(PV, p. 253; PR, p. 235).
Por esse motivo, ele defende que, dada a gravidade de nossa condição atual,
É preciso entender que temos diante de nós uma dialética do
poder que pode ser superada com um poder maior e não com
uma ‘quietista’ renúncia ao poder. A fórmula de Bacon diz que
saber é poder. Mas o programa baconiano manifesta de per si,
isto é, em sua própria execução no auge de seu triunfo, sua
insuficiência, mais ainda, sua contradição interna, ao perder o
controle sobre si mesmo, perda que significa a incapacidade não
de proteger os homens de si mesmos, mas também a natureza
frente aos homens. (...) O poder se tornou autônomo
409
, enquanto
que suas promessas se converteram em uma ameaça e suas
salvadoras perspectivas se transformaram em um apocalipse.
Torna-se agora indispensável, se a catástrofe não lhe puser antes
freio, o poder sobre o poder, a superação da impotência frente à
auto-alimentada coação do poder para seu progressivo exercício.
Após passar de um poder de primeiro grau, dirigido à natureza
que parecia inesgotável, a outro de segundo grau, que usurpou o
controle ao usuário, a auto-limitação do domínio, antes da
colisão contra os limites da natureza que arraste consigo os
dominadores, se converteu na tarefa de um poder de terceiro
grau. Este seria um poder que atuaria sobre o poder de segundo
grau, o qual não é o poder do homem, mas poder do próprio
409. Sobre o que Heidegger já havia chamado atenção. Vide capítulo 2 e também no presente capítulo, p.
136, n. 260.
227
poder para ordenar seu emprego a quem supostamente o
possui
410
.
(PV, p. 253-254; PR, p. 235).
Desse modo, Jonas propõe que, para controlar esse poder, que atualmente se
tornou descontrolado, é necessário o estabelecimento de outra ordem de poder que
possa impor um limite, antes que o pior
(a destruição do homem e/ou da biosfera)
aconteça.
Cabe ressaltar um ponto oportunamente destacado por Depré, sobre o fato de que:
Somente responsabilidade porque potência: «a
responsabilidade é o aspecto complementar da potência»
411
. Desde
Bacon, o homem tornou-se todo poderoso face à natureza, mas
também face ao homem. Tanto e tão bem que no período pré-
moderno, uma responsabilidade em relação ao que deve ser
simplesmente não seria pensável. Na base da filosofia de Jonas e de
seu princípio responsabilidade como princípio, há, portanto,
paradoxalmente, um fato contingente resultando em condições
históricas: o poder tecnológico do homem. O dever-ser implica hoje
um dever-fazer da parte do homem porque esse está em condições de
impedir a realização do dever-ser.
(Hans Jonas. p. 22)
Nesse sentido, é importante frisar que, dada a relação existente entre eles, a
responsabilidade tem que ser proporcional ao poder. E uma vez que a tecnologia
concedeu um poder imenso ao homem de nosso tempo, é preciso que se aceite também,
em contrapartida, uma responsabilidade de igual magnitude. Donde, a responsabilidade
410. Jonas identifica, portanto, três diferentes âmbitos de poder. O primeiro, consoante com o ideal
bacon-cartesiano, é o poder exercido pelo homem sobre a natureza que, num primeiro momento, não
conduzia ao desequilíbrio ou à destruição irreversível dos implicados no processo. O segundo, apontado
por Heidegger, resulta do êxito descomunal obtido na execução desse projeto, emergindo como um poder
monstruoso, cujo melhor exemplo é a Bomba Atômica, que representa a força destrutiva despertada pelo
homem com o uso abusivo da cnica, que se tornou um poder “descontrolado”. Daí a necessidade do
terceiro poder, ou poder de terceiro grau, cuja tarefa é, precisamente, controlar esse segundo poder. (Essa
perda de controle sobre a técnica foi também detectada por Heidegger em sua entrevista de 1966. Vide
nota anterior.)
411. H. Jonas. “A compaixão somente não funda nenhuma ética. A propósito da eutanásia e da ética”.
Entrevista com Marion Gräfin Dönhoff e Reinhard Merkel, Die Zeit, 25 de agosto 1989, in EPN, p. 92.
228
por toda a natureza e, no que tange ao poder das biotecnologias, em especial, pela
humana.
Ainda seguindo as palavras de Depré, é preciso considerar que:
Desse novo poder de ação, resulta a possibilidade de que o homem
desapareça definitivamente do planeta ou que o homem transforme
sua própria essência recorrendo às novas possibilidades oferecidas
pelas biotecnologias. Jonas mostra que o homem, hoje, é dotado de
responsabilidade porque ele tem um poder ou uma potência de
aniquilação. A liberdade como poder do ser (...) é o dever que tem o
homem de hoje de fazer de modo que a humanidade subsista. Não que
a existência do homem se imponha como um valor em si, mas em
nome da idéia ontológica da humanidade. O imperativo categórico da
ética jonassiana, com efeito, ordena agir de tal modo que as
conseqüências de minha ação sejam compatíveis com uma vida
autenticamente humana sobre a terra. O argumento filosófico é em
definitivo o de que: o homem deve ser porque seu dever-ser é inscrito
em seu ser, assim como em todo ser vivo, mas em um grau que
transcende todo ser vivo porque ele é um ser ético. Ora, o homem tem
hoje a possibilidade de impedir a realização desse dever. A ele cabe
então a responsabilidade de fazer de modo que a humanidade
subsista.
(Ibidem)
Nesse sentido, segundo Depré, a principal contribuição que se pode extrair da
ética de Jonas é a obrigação de assegurar, acima de todos os riscos colocados pelo uso
indiscriminado das biotecnologias, a existência futura da humanidade. Contudo, esse
incerto cenário, que nos afronta, evidencia outro aspecto problemático típico de nossa
época, o que Jonas denominou de “vazio ético”
412
, sobre o qual ele nos adverte:
412. Já mencionado no capítulo 3.
229
Se a natureza dessas capacidades é realmente tão nova como aqui se
afirma, e se realmente suas conseqüências potenciais aboliram a
neutralidade moral
413
, de que desfrutava anteriormente o trato
[Umgang]
técnico com a matéria, então tal pressão significa que será
preciso buscar na ética algo de novo suscetível de guiá-la, mas, antes
de tudo, buscar alguma coisa suscetível de fazer valer sua própria
validade teórica frente àquela pressão.
(...)
a verdadeira tarefa, a
saber, a de buscar uma resposta, começa apenas agora
(PV, p. 58; PR,
p. 59).
Isso significa que, até então, era possível aceitar aquele argumento que defendia a
(pretensa) neutralidade moral no campo das ciências. Entretanto, frente aos avanços
biotecnológicos que hipertrofiam vertiginosamente o poder de alterar a estrutura
genética não vegetal e animal, mas também humana, torna-se impossível admitir tal
argumentação. E, no que tange ao nosso tema, pode-se dizer que, ao contrário, exige-se
agora uma ética capaz de cobrar de todos os implicados, isto é, de
todos nós, a
responsabilidade por todas as alterações que venham a ser realizadas em nossa constituição
genética atual e que possam produzir efeitos nocivos e irreversíveis nos homens futuros.
A
base do argumento jonassiano que impõe tal responsabilidade é a constatação de que
O traço distintivo do homem, o fato de que ele pode ter
responsabilidade, significa, ao mesmo tempo, que ele deve tê-la
também para outros que são semelhantes a ele - eles mesmos sujeitos
potenciais de responsabilidade - e que, em uma ou outra relação, ele
a tem: a faculdade de tê-la é a condição suficiente de sua
efetividade
(PV, p. 185; PR, p.173. Grifos nossos).
Desse modo, a responsabilidade é estabelecida como característica essencial e
exclusiva do ser humano e, ao mesmo tempo, disto resulta a necessidade de cada
413. Vide discussão do Capítulo 2, sobre a neutralidade axiológica no âmbito das ciências.
230
homem exercê-la em relação à natureza em geral e aos seus semelhantes em particular.
Jonas pode, assim, afirmar que o fato do homem ser capaz de responsabilidade constitui
a condição suficiente de sua realidade. Vale dizer que, a responsabilidade é real ou
efetiva porque o homem a possui como uma capacidade intrínseca.
Daí pode-se inferir que, para que a responsabilidade possa ser exercida, é
necessário, antes, que a humanidade possa existir. Razão pela qual a continuação da
possibilidade da existência humana se converteu no objeto primeiro da
responsabilidade.
Enfim, para encerrar esse tópico, é interessante reforçar o que Jonas afirmou numa
passagem supracitada, com relação ao fato de que
“será preciso buscar na ética algo de
novo suscetível de guiá-la, mas, antes de tudo, buscar alguma coisa suscetível de fazer valer
sua própria validade teórica
(...)
a verdadeira tarefa, a saber, a de buscar uma resposta, começa
apenas agora”
(PV, p. 58; PR, p. 59, Grifos nossos).
Tal citação anuncia a necessidade de se passar à importante discussão referente à
fundamentação, tema que será examinado no capítulo a seguir.
CAPÍTULO 5 – A FUNDAMENTAÇÃO ONTOLÓGICA DA ÉTICA DO FUTURO
O tema da fundamentação é, com toda certeza, o cleo vital da obra Das Prinzip
Verantwortung (PV), em que Jonas expõe mais detidamente a sua formulação ética
414
. Isso
se confirma no fato de três dos seis capítulos totais (II, III e IV) serem destinados a preparar
e desenvolver a questão e o texto “Sobre o fundamento ontológico de uma Ética do
Futuro”
415
(EF), que complementa e explicita à de PV, ser inteiramente a ela dedicado.
414. Frogneux menciona os quatro níveis do PR explicitados por Dominique Janicaud, a saber: “o
diagnóstico de uma ameaça tecnológica iminente, a tomada de consciência crítica, a formulação da nova
ética e o problema da passagem à política”. (NF. 298) Segundo essa divisão, a formulação e a
fundamentação do pr constituiriam, assim, o terceiro nível.
415. H. Jonas. "Sur le fondement ontologique d’une éthique du futur" in Pour une Éthique du Futur.
Paris: Payot & Rivages, 2002, pp. 69-116.
231
Antes de iniciar a sua exposição, cabe mencionar o oportuno esclarecimento de
Frogneux, segundo o qual: a
“fundação ontológica do dever humano passa, de fato, por duas
etapas essenciais, uma teoria do fim no ser e uma teoria da responsabilidade. (NF, 305)
A
primeira delas, que será o tema do tópico 5.2, é elaborada por Jonas no capítulo III e a
segunda, no capítulo IV do PR, que será o tema do tópico 5.3. Sendo assim, qual seria a
função do capítulo II? Pode-se considerar que ele propõe um percurso metodológico e
epistemológico, consistindo numa espécie de propedêutica, apresentada no item 5.1,
preparando para a tematização da fundamentação propriamente dita, realizada nos itens
seguintes.
Cabe ainda dizer que duas questões são inevitavelmente colocadas a toda
formulação ética, inclusive àquela que se propõe a pensar os problemas atuais. A
primeira delas, a ser abordada no presente capítulo, refere-se precisamente à
fundamentação e a segunda, que será tema do próximo capítulo, à questão da
aplicação.
416
Jonas pensa que, dentre as duas, sem a menor dúvida, a primeira é a
prioritária e é por esse motivo que a ela dedica parte significativa de sua reflexão
exposta em PV (o texto chave dessa parte da exposição), partindo do pressuposto de que
esse é um tema que cabe inteira e exclusivamente ao saber filosófico. Isso explica
porque o saber constitui o ponto de partida de sua elaboração.
5.1 - A questão do saber como propedêutica à fundamentação
O Capítulo II de PV, intitulado “Questões de fundamento e de método”, tem por
objetivo inicial demonstrar a passagem do saber à obrigação, com base num saber
heuristicamente suficiente começando pela distinção entre ‘Saber ideal e saber real na
«Ética do Futuro»’
417
.
416. Tema ao qual o livro Técnica, Medicina e Ética é inteiramente dedicado.
417. Título do tópico 1, pp. 63-72.
232
Seu ponto de partida é a defesa da ‘Prioridade da questão dos princípios’, tendo
em vista que mesmo as respostas às questões práticas não podem confiar simplesmente
nos sentimentos ou preferências pessoais, mas precisam encontrar um fundamento
teoricamente consistente, do qual seja possível extrair a força da obrigação.
A seguir, Jonas aborda
‘O saber fatual dos efeitos remotos da ação técnica’,
referente à
condição futura do homem e do mundo
,
atribuindo-o especificamente ao saber científico
alertando, porém, que tal saber
418
precisa submeter-se ao julgamento da verdade
primeira ou filosófica, a partir da qual se pode avaliar retrospectivamente
419
as ações
atuais, cujas prováveis conseqüências podem ser antecipadas por um exercício do
pensamento.
Por esse motivo, Jonas atesta que
o saber do real e do eventual, relativo à esfera dos fatos (que é
sempre ainda de ordem teórica) se intercala então entre o saber ideal
da doutrina ética dos princípios e o saber prático relativo à aplicação
política que somente pode operar com as constatações hipotéticas
relativas ao que é preciso esperar e o que deve ser favorecido ou
evitado. [E defende que] Deve então ser constituída uma ciência das
predições hipotéticas, uma «futurologia comparada»
420
(PR. 65)
Assim, ele sugere ‘A contribuição desse saber ao saber dos princípios: a heurística do
medo’,
afirmando que tal saber atua como um “elo intermediário” em relação aos
princípios fundamentais e a situação atual, na qual o risco da deformação do homem
tornou-se uma ameaça concreta que, para ser evitada, exige um ponto de vista
418. O saber exigido pela responsabilidade, segundo Jonas, apresenta um duplo aspecto: objetivo e
subjetivo. Ou seja, do ponto de vista objetivo, ele se volta ao “conhecimento das causas físicas”, ou da
esfera científica, e do ponto de vista subjetivo, ao “conhecimento dos fins humanos”, da esfera filosófica,
propriamente dita. (EF. p. 70)
419. O termo usado no original é rücklaufig, que sugere um movimento retrospectivo, embora se tenha a
impressão de que o certo aqui seria um termo que sugerisse prospecção ou projeção, já que se trata de
uma antecipação. Mas, de fato, a sugestão é avaliar a ação por seus efeitos, por isso, a idéia de
retrospecção. Ou seja, Ação (atual) Efeitos (futuros).
420. A questão da futurologia será discutida mais à frente, no final do tópico 5.3.
233
heurístico. E, dado que, o que não se quer é mais fácil saber que o que se quer, ou ainda
que: “o reconhecimento do malum nos é infinitamente mais fácil que o do bonum, é mais
imediato (...) e menos exposto às diferenças de opinião”
(PR. 66)
,
Jonas afirma que a filosofia
moral deve consultar antes nossos temores que nossos desejos. Assim, é introduzida a
heurística do medo que, embora - ele admite - não seja a
“última palavra na busca do
bem”
, pode servir como primeira palavra bastante útil na tentativa de se evitar o pior.
A seguir, Jonas propõe
“A «primeira obrigação» da ética do futuro: fornecer uma idéia
dos efeitos remotos”,
pois, a ética do futuro precisa infundir um temor com relação a algo
jamais experimentado, isto é, sem qualquer precedente passado ou atual. O mal possível
- aqui, a deformação do homem - que (ao menos à época de Jonas) não é mais do que
um malum imaginado, precisa intervir como um malum efetivamente experimentado. E
dado que
“essa representação não se impõe automaticamente, (...) é preciso obtê-la
deliberadamente (...) por um pensamento voltado para o futuro, [logo, ela] se torna a primeira
obrigação, por assim dizer a obrigação liminar da ética que é aqui buscada.”
(PR. 68. Grifos nossos)
Ele acrescenta, a seguir,
“A «segunda obrigação»: mobilização do sentimento adequado
ao representado”,
explicitando que, por se tratar de um mal que não nos diz respeito
diretamente, mas às futuras gerações,
“a representação do destino dos futuros homens, (...) e
a do destino do planeta (...) não tem por si mesma essa influência sobre nossa alma e, entretanto,
ela «deve» tê-la, quer dizer, s devemos lhe conceder tal influência”.
(Ibidem.)
Por isso,
considera que a predisposição a se importar com o futuro das próximas gerações
constitui a segunda obrigação liminar da nova ética. Jonas enfatiza ainda que as duas
obrigações podem ser aceitas como tais, com o reconhecimento prévio do princípio
ético fundamental sobre o qual elas se apóiam. T
al princípio será indicado adiante.
Agora, ele discute
“O caráter incerto das projeções do futuro”
, declarando que a
verdade, aqui buscada, constitui tarefa da ciência, tanto quanto as necessárias predições
dos efeitos das ações atuais. Porém, nesse caso, ela é requerida num grau superior,
234
porque é preciso uma previsão não apenas no curto, mas no longo prazo, tal como sua
ética exige. Mas, ele reconhece que esse
“saber reclamado é sempre necessariamente um
saber que não existe ainda no momento, enquanto saber antecipado ele não existirá jamais
senão, no máximo, como saber disponível ao olhar retrospectivo”.
(PR. 70)
Ainda assim, Jonas garante que
“O saber do possível é heuristicamente suficiente para
a doutrina dos princípios”
, pois, segundo pensa, sua
“simples possibilidade fornece aqui a
necessidade”
(Ibidem)
que, por se referir a um saber ideal, é objeto da reflexão filosófica,
tanto quanto a questão dos fundamentos, motivo pelo qual sua certeza independe das
previsões científicas, mas se deve exclusivamente à auto-evidência da razão, cujos
enunciados são apodíticos
421
. O que é suficiente onde não são exigidas provas, apenas
ilustrações, com vistas a elaborar uma casuística imaginária
422
, para o que muito pode
contribuir a ficção científica.
(A exemplo do Admirável mundo novo, de Aldous Huxley.)
No entanto, Jonas admite que tal saber (do possível), aparentemente,
“é inútil para
aplicar os princípios à política”
, pois, ainda que a incerteza das previsões futuras não
ameace a doutrina dos princípios, elas se tornam notoriamente débeis onde precisam
desempenhar a função de prognóstico. Ele se refere aqui ao âmbito da aplicação prático-
política
423
que - conforme reconhece - é a parte mais vulnerável do sistema, não só do
ponto de vista teórico, mas, em especial, do operatório.
Sendo assim,
“as intuições que a casuística terá eventualmente adquirido são privadas de
sua aplicação oportuna em razão do caráter incerto dos prognósticos e os mais belos princípios
são condenados a permanecer estéreis, antes que seja talvez demasiado tarde.”
(PR. 72)
Frente ao quê, Jonas se levado a buscar uma motivação suficientemente forte
para superar a incerteza de tais prognósticos e tornar o seu princípio ético efetivamente
421. Isto é, evidentes, “Ao passo que as experiências do pensamento hipotético podem, no melhor dos
casos, reivindicar uma probabilidade.” (PR. 71)
422. O que aqui é suficiente, pois, a mera possibilidade (mesmo que imaginária) já é o bastante para
provocar o sentimento de medo ou repulsa e a motivação para se evitar que tal possibilidade se
concretize.
423. Que se pauta por princípios pragmáticos ou utilitários, a exemplo do princípio do custo-benefício.
235
aplicável. O que ele discute no tópico seguinte, cuja exposição pode partir da pergunta:
Por que o mau prognóstico deve prevalecer?
Ao buscar tal motivação, Jonas se conta de que a própria incerteza, que pode
tornar inoperante a percepção ética da responsabilidade pelo futuro - que ele defende -
precisa ser assimilada pela teoria ética, para fornecer oportunamente um novo princípio
que possa ser operatório e atuar como prescrição prática. Prescrição que ele formula em
termos antigos, afirmando
que “é preciso antes dar ouvidos à profecia de infortúnio que à
profecia de felicidade”.
(PR. 73)
Para o que ele indica três diferentes razões:
“1. As probabilidades nos altos riscos”:
Jonas constata que todo empreendimento pode ter êxito ou fracassar. O insucesso,
tolerável em pequena escala, pode ser desastroso numa escala maior. Os mecanismos da
evolução agem em escala pequena, de forma paciente e lenta, enquanto nas ações
humanas, favorecidas pela tecnologia atual - marcadamente rápida e impaciente – quase
sempre está em jogo a grande escala e
– o que é mais grave - o risco de
irreversibilidade.
Então, à medida que, à
“extensão causal se acrescenta assim a velocidade causal das
intervenções tecnológicas na organização da vida”
(PR. 74)
e o homem toma em suas mãos a
sua própria evolução, substituindo o “cego e lento” trabalho da natureza por uma rápida
e consciente planificação com base na razão, ao invés de garantir seu sucesso evolutivo,
o que ele faz é gerar um risco inteiramente novo, diretamente proporcional à rapidez
empregada. Por outro lado, quanto mais rápida a intervenção, menor o tempo para se
corrigir os eventuais erros cometidos. E uma vez que tais erros são inevitáveis, Jonas
recomenda que se maior peso à ameaça que à promessa.
“É o comando da ponderação
face ao estilo revolucionário que adota a mecânica evolutiva do «ou bem – ou bem» sob o signo
da tecnologia com seu «tudo ou nada» imanente e estranho à evolução.” (PR. 74-75)
236
Logo, acerca de práticas que possam interferir no ‘cauteloso’ processo evolutivo,
a pressa e a impaciência, mais que mau-conselheiras, tornam-se verdadeiras ameaças.
“2. A dinâmica cumulativa dos desenvolvimentos técnicos”:
Além disso, Jonas chama a atenção para o fato de que os avanços promovidos
pela tecnologia, visando alcançar um determinado fim em curto prazo, quase sempre se
tornam autônomos. Isto é, adquirem sua própria dinâmica impositiva, determinando
que, uma vez iniciado o processo, ele prossiga contínua e acumulativamente.
A principal conseqüência desse fenômeno que inclui, entre outros, o âmbito das
modificações biotecnológicas dirigidas aos seres humanos, é a
constatação de que a aceleração do desenvolvimento alimentado
tecnologicamente não deixa mais o tempo para as correções automáticas
(...) [por isso] a correção se torna cada vez mais difícil e a liberdade para
fazê-la diminui continuamente. Isso reforça a obrigação de observar os
comandos, conferindo prioridade às possibilidades do infortúnio
fundadas de maneira suficientemente séria (...) em relação às esperanças
– mesmo que essas não sejam menos bem fundadas. (PR. 74-75)
“3. O caráter sacro-santo do sujeito da evolução”:
Por fim, Jonas defende que o terceiro motivo pelo qual é preferível considerar o
prognóstico negativo que o positivo, diz respeito à necessidade de se conservar a
herança de uma evolução anterior, mesmo diante da possibilidade de seu suposto
melhoramento. Pois, mesmo que no caso de sucesso se pudesse auferir alguma
melhoria, no caso de fracasso o preço a pagar é a possibilidade de danificar e mesmo
perder esse patrimônio longamente elaborado pela evolução. Risco que não vale a pena,
sobretudo quando se constata que tão perigoso empreendimento é animado
principalmente pelo orgulhoso saber. Isso o leva a afirmar que, sendo assim
, “nenhum
ganho vale o preço, nenhuma chance de sucesso autoriza o risco”
.
(PR. 77)
237
Tal herança é tratada por Jonas como
“um absoluto que, enquanto um bem
fiduciário
424
supremo e vulnerável, nos impõe a obrigação da conservação. (...) [que] ultrapassa
incomparavelmente todos os comandos e todas as aspirações do ‘meliorismo
425
’”.
(PR. 78)
Contra a inevitável crítica de ‘pessimismo’ endereçada à sua formulação, Jonas
contrapõe o argumento de que
“o maior pessimismo está do lado daqueles que consideram o
[patrimônio] dado suficientemente mau ou não válido para aceitar qualquer risco em nome de
seu melhoramento potencial.”
(Ibidem.)
Em seguida, ele examina a questão do risco, partindo da
importante questão: a
té onde nos é permitido arriscar?
Após indicar as razões que justificam a prescrição de conceder maior atenção ao
mau prognóstico que ao bom, Jonas se volta ao princípio ético no qual se insere tal
prescrição e do qual tais razões retiram sua força. Ele parte do reconhecimento da
incerteza inerente a todo prognóstico em longo prazo, mas que deve ser tomada como
um fato, para se obter um princípio ético adequado e que não seja ele próprio incerto.
Segundo Jonas,
“o que nós discutimos até aqui era já a prescrição prática através da qual
se exprime o princípio (...) que em matéria de questões com certo grau de gravidade aquelas
que comportam um potencial apocalíptico deve-se atribuir maior peso ao prognóstico de
catástrofe que ao prognóstico de salvação”.
(PR. 79)
Sobretudo, hoje, quando estão em jogo
intervenções que comportam esse nível de gravidade tanto na esfera humana, quanto na
esfera planetária.
Aspecto inteiramente inédito e, por isso, ausente nas éticas anteriores, que
não tinham que incluir em sua reflexão a previsão dos efeitos das ações no longo prazo.
As éticas atuais, ao contrário, precisam se preocupar com as conseqüências futuras
no curto e no longo prazo, tanto das ações coletivas, quanto das individuais (que
424. Bem deixado a uma pessoa com o encargo de conservá-lo e transmiti-lo a outrem.
425. Embora pareça estranho o emprego do termo “meliorismo”, ao invés de “melhorismo”, de fato, a
grafia adotada foi aquela e não essa; pelo recurso ao radical latino “meliore”. Assim, no dicionário do
português de Portugal, nem sequer se encontra a grafia com “lh” e no do Português brasileiro, essa grafia
remete à consulta do vocábulo registrado com “li”, que foi o que teve, portanto, sua grafia oficializada.
Fontes: http://www.priberam.pt/dlpo/definir_resultados.aspx e
http://michaelis.uol.com.br/moderno/portugues/index.php?lingua=portugues-
portugues&palavra=meliorismo
238
também podem ter efeitos de grande extensão). Tudo isso revela que,
“na nova dimensão
do agir (...) a projeção remota faz parte de sua essência e de sua obrigação, e alguma outra
prescrição deve então fazer face ao seu caráter incerto”.
(PR. 80)
Jonas afirma que o princípio buscado pode ser experienciado ao se refletir sobre a
dimensão de jogo de azar ou aposta presente em toda ação humana, com respeito a seus
resultados e/ou efeitos colaterais, o que, na perspectiva ética, deve nos fazer questionar
sobre o limite do risco permitido em tal aposta.
Ele divide em cinco itens o seu questionamento, começando pela pergunta:
1. ‘Eu tenho o direito de pôr em jogo os interesses dos outros em minha aposta?’
A imediata resposta de Jonas baseia-se no reconhecimento de que não temos o
direito de apostar o que não nos pertence. Porém, ele faz uma ponderação pautando-se
no fato de que, no que tange às questões humanas, queiramos ou não, quase sempre
nossas ações acabam por afetar o destino de outras pessoas. Assim, conclui que esse
aspecto de culpabilidade precisa ser, de antemão, inserido em todo agir
(e mesmo em toda
recusa de agir)
tenhamos ou não consciência disso. Razão pela qual, ele afirma que:
Determinar qual grau dessa inconsciência a consciência ética pode
tolerar, quer dizer, a onde nós podemos ir rumo à destruição ou
simplesmente no colocar em perigo (ao “colocar em jogo”) os
interesses alheios nos nossos projetos, é a cada vez uma tarefa
relevante da casuística da responsabilidade e isso não pode ser
estipulado em sua generalidade pela doutrina dos princípios.
(PR. 81)
Por princípio, cabe apenas recusar o descuido, que pode ameaçar o bem alheio ou
o próprio e o capricho, que significa arriscar coisas relevantes por objetivos fúteis. E,
embora considerando que o descuido com relação ao próprio bem-estar e mesmo à
própria vida, até certo ponto, seja aceitável; quando se trata do bem-estar e da vida de
239
outrem, todo descuido (ou descaso) implicado em minha aposta torna-se totalmente
inadmissível. Daí a questão que se coloca a seguir:
2. ‘Eu tenho o direito de pôr em jogo a integralidade dos interesses dos outros?’
Tal pergunta, complementar à anterior, tem dois aspectos. O primeiro
incondicional, pois, está em pauta a busca egoísta de meu interesse, em que se contrasta
o caráter parcial do objetivo buscado com o caráter total do interesse posto em jogo.
Caso em que a única resposta aceitável é a de que jamais se pode arriscar a integralidade
dos interesses alheios.
O segundo, porém, refere-se à busca de fins desinteressados. Por exemplo, quando
um governante, em situações extremas, põe em risco a vida da população, ao declarar
guerra, não por ambição, mas para defender seu país. Isto é,
“não para conquistar um bem
supremo, mas para evitar um mal supremo”. (PR. 82)
Jonas considera que esse último ponto
tem sempre prioridade, pois, de fato, é possível viver
“sem um bem supremo, mas não com
um mal supremo”. (Ibidem.) E
sse caso específico demonstra o aspecto condicional, já que
a ocorrência da guerra torna-se justificável, mesmo expondo ao risco a integralidade dos
interesses de todos os envolvidos, por ter em vista um futuro menos tenebroso.
3. ‘O meliorismo não justifica o risco total’
Tal limitação, segundo a qual somente a intenção de evitar um mal maior pode
justificar uma ação que ponha em risco os interesses alheios, não abarca os grandes
riscos relacionados à tecnologia, cujo objetivo não é salvar o que existe ou evitar o
inadmissível, mas melhorar continuamente o que foi conquistado. Pois, seu lema é
progresso e sua principal ambição, à la Bacon, o estabelecimento do paraíso na Terra.
Daí, Jonas dizer que a tecnologia e seus frutos não são regidos pelo signo da
necessidade, mas pela arrogância; sua produção se volta para o excesso e não para o
necessário e, ainda pior, que sua aplicação pode afetar o próprio incondicional. Por isso,
240
ele avalia que a proteção do provisório torna-se insuficiente, exigindo que novamente
entre
“em vigor a afirmação de que meu agir não deve colocar em jogo «o interesse inteiro»
dos outros igualmente concernidos (que, aqui, são as gerações futuras).” (PR. 83)
4. ‘A humanidade não tem o direito ao suicídio’
Nesse contexto, Jonas afirma haver um limite que se impõe até mesmo ao
governante, pois, ainda que seu propósito seja salvar seu país, ele não tem o direito de
empregar qualquer meio que ponha em risco a humanidade como um todo. Ocorre que,
como se sabe, a tecnologia hodierna fornece instrumentos que implicam uma ameaça
dessa extensão, já que podem não só destruir a existência, como desfigurar a essência da
humanidade futura.
426
E como Jonas enfatiza não se pode esperar que as gerações futuras possam
concordar com a sua inexistência. Sobretudo, porque a obrigação incondicional,
conforme será retomado mais à frente, segundo a qual a humanidade deve existir. Essa
obrigação se distingue da obrigação condicional que determina a existência de cada
indivíduo em particular. Pois, nas palavras de Jonas:
“O direito individual ao suicídio isso
se discute, o direito ao suicídio da humanidade isso não se discute”.
(PR. 84)
5. ‘A existência do homem não deve ser colocada em jogo’
A seguir, Jonas pode, enfim, formular um princípio que interdita determinadas
«experiências» que a tecnologia torna possível e cuja “expressão pragmática” coincide
com a prescrição de favorecer o prognóstico negativo em relação ao positivo. Tal
princípio ético é enunciado da seguinte forma:
“jamais a existência ou a essência do
homem em sua integralidade devem ser colocadas em jogo nas apostas do agir”
.
(Ibidem.)
Tal princípio estabelece de imediato que a simples possibilidade do risco que ele
prevê é considerada inaceitável. Assim, inverte-se o princípio cartesiano da dúvida,
426. Pode-se incluir, aqui, todas as armas de destruição em massa, como a bomba nuclear, mas também
as armas químicas e biológicas, cujos efeitos podem se prolongar por diversas gerações e provocar
alterações na constituição genética de toda uma população.
241
pois, enquanto Descartes - para chegar à verdade indubitável - avalia tudo o que é
passível de dúvida como equivalente ao que é comprovado falso; Jonas considera tudo o
que possa advir, ainda que cercado de dúvidas, como sendo efetivamente possível.
Ele oferece também uma variação da aposta de Pascal que, entre os breves e
ambíguos prazeres da vida terrena
(que podem custar a danação eterna)
e a beatitude eterna
(que exige um sacrifício dos prazeres mundanos)
, opta pelo sacrifício, considerando que
assim, no máximo, estaria perdendo algo temporal em vista de obter algo eterno e,
mesmo se não existisse algo como a vida eterna, a perda seria pequena em vista do
possível ganho. Ao passo que, na outra opção, o ganho seria pequeno e a perda infinita.
O princípio ético jonassiano da aposta, todavia, não permite a possibilidade da
escolha, quando se trata de questões concernentes à humanidade. Ademais, ele não se
opõe ao inimaginável, mas ao inaceitável. E, ainda, ele obriga, não com base no cálculo
de interesses, mas
“em virtude de uma obrigação primeira de fazer face ao nada.”
(PR. 86)
Tal princípio, embora tenha em vista lidar com a incerteza, nada tem de incerto.
Ao contrário, ele obriga incondicionalmente, não como mero conselho da prudência,
427
mas como um comando irrecusável, desde que se reconheça a responsabilidade pelo que
vai ser. Razão pela qual a responsabilidade se converte no núcleo do agir ético.
Jonas admite, porém, que embora aceitemos tacitamente nossa responsabilidade,
ela não foi ainda demonstrada e nem mesmo o princípio responsabilidade, ponto central
de sua formulação. Tarefa a que se dedica nos tópicos seguintes, começando pela
demonstração do futuro como obrigação.
Jonas demonstra porque, afinal, em sua reflexão ética o futuro constitui, ele
próprio, uma obrigação; argumentando em sete passos.
1. ‘Ausência de reciprocidade na ética do futuro’:
427. No sentido kantiano de recomendação para alcançar determinados fins.
242
A responsabilidade que a ética jonassiana exige não se identifica à concepção
tradicional, na qual a relação de direitos e deveres tem por base a reciprocidade
428
e o
direito de cada um pressupõe dos demais o dever de respeitá-lo e promovê-lo
mutuamente. Tal concepção sucumbe frente ao objeto indicado por Jonas: a humanidade
vindoura, que não pode nem reivindicar seus direitos, nem atender ao dever de
reciprocidade para conosco. Por isso, com relação ao futuro, não faz sentido perguntar,
mesmo com ironia,
o que afinal ele fez a seu favor
429
ou se acaso ele respeita seus direitos.
2. ‘A obrigação em relação à posteridade’:
Jonas afirma que na moral tradicional encontra-se um exemplo elementar de
responsabilidade e obrigação não recíproca que é espontaneamente reconhecida e
praticada. Trata-se da responsabilidade dos pais com relação aos filhos, que pereceriam
sem o contínuo provimento e o solícito cuidado. Pois, ainda que, por tais cuidados, se
espere a retribuição - como o amparo na velhice - isso não implica uma condição,
sobretudo, com relação à responsabilidade que é, nesse contexto, incondicional.
Por essa razão, Jonas considera encontrar-se, assim, o
“arquétipo de todo agir
responsável, que felizmente não precisa de dedução a partir de um princípio, mas que a natureza
poderosamente implantou em nós (ao menos na parte procriadora da humanidade).
430
(PR. 88)
428. O que distingue a proposta de Jonas daquela de Apel que pressupõe reciprocidade e co-
responsabilidade e também da concepção jurídica do modelo contratual estabelecida entre partes
“simétricas”.
429. Alusão a uma fala de Groucho Marx, que teria questionado: “que fizeram por mim as gerações
futuras?” Apud. Enrico Berti “Il «neoaristotelismo» di Hans Jonas”, in Iride. 6, 1991, pp. 227-231 (p.
230).
430. Eis um ponto que merece discussão. Pois, ainda que a responsabilidade em relação aos filhos seja, de
fato, um padrão de comportamento presente em inúmeras espécies animais, incluindo a humana, não se
pode ignorar a existência de exceções. Várias espécies de animais e um número significativo de
indivíduos humanos, mesmo pertencendo à “parcela procriadora”, não se sentem, de modo algum,
impelidos a zelar por sua “cria”, desfazendo-se dela das mais diferentes maneiras e pelas mais diferentes
razões. É bastante conhecido o exemplo de J.-J. Rousseau que não cuidou de nenhum dos cinco filhos,
todos entregues à adoção. Isso não e em xeque a responsabilidade, tal qual descrita por Jonas, nem
mesmo compromete o fato de ele considerar a responsabilidade parental como a responsabilidade
arquetípica por excelência. Mas é importante mostrar que nem sempre a “parcela procriadora” é tão
responsável quanto deveria, o que sugere que, inversamente, pode ser que a “parte não procriadora” não
seja, essencialmente, irresponsável ou incapaz de assumir tal responsabilidade, quando e se necessário.
243
Importa aqui destacar a semelhança ou afinidade que Jonas entre a obrigação
em relação às gerações futuras e a obrigação dos pais em relação aos filhos. E notar que
ele distingue entre a obrigação, plenamente justificável, decorrente do fato de se tornar
autor de uma existência, da obrigação, certamente questionável, de se tornar autor.
3. ‘A obrigação da existência e do ser-como de uma progênie enquanto tal’
Para Jonas, a obrigação em relação à humanidade futura significa primeiro que se
trata da obrigação da existência posterior da humanidade e, em segundo lugar, que tal
obrigação pressupõe o seu ser-como. A primeira obrigação pressupõe a procriação
(não
necessariamente de cada indivíduo)
, pois, como já dito acima, não se impõe a obrigação de
(cada um de nós)
se tornar autor de uma existência. Obrigação que, ele enfatiza, se é que
existe, não foi ainda suficientemente fundamentada. Logo, segue-se a reflexão:
a.
A obrigação de ter uma posteridade tem necessidade de ser fundada?
Jonas considera a fundamentação dessa obrigação menos relevante, uma vez que,
como observa, não motivo para se preocupar quanto a um eventual enfraquecimento
ou diminuição do instinto de procriação e, com relação às causas de destruição externa,
muitos fatores precisariam intervir para levar ao extermínio total da humanidade.
Ele se volta, então, à segunda obrigação, relativa ao ser-como da humanidade
futura, que pode ser mais facilmente deduzida dos princípios anteriormente
apresentados e cuja observação implica necessariamente a primeira obrigação. Com
base no que se viu até aqui, tal obrigação poderia ser enunciada da seguinte maneira:
Dado que de toda maneira
431
existirão os homens no futuro, sua
existência que eles não pediram, uma vez que ela é efetiva, lhes o
direito de nos acusar, a nós seus predecessores, enquanto que autores
de seu infortúnio, se, por nosso agir displicente e que poderia ter sido
431. Essa premissa, à época de Jonas verdadeira, hoje se mostra, no mínimo, questionável.
244
evitado, nós lhes deterioramos o mundo ou a constituição humana.
(PR. 91. Grifos nossos.)
Pois, embora os únicos responsáveis por sua existência sejam seus genitores,
todos os seus ancestrais, mesmo distantes, somos responsáveis pelas condições de sua
existência. Por essa razão, para nós, hoje, o direito decorrente da existência, mesmo não
atualizada, de todos aqueles que virão, impõe a obrigação semelhante a dos autores, em
função da qual temos que prestar contas de nossos atos cujos efeitos possam afetá-los.
b.
Prioridade da obrigação de existir
Entretanto, Jonas admite que, apesar da pertinência dessa formulação, ela não
basta para a teoria ética. Porque, por um lado, poderia induzir os pessimistas a,
simplesmente, renunciarem à procriação e rotularem de irresponsáveis os que se
dispõem a empreendê-la. E, por outro, algo mais grave ocorreria se, considerando essa
acusação antecipada, as gerações futuras, ao invés de nos acusarem, simplesmente
consentissem com sua situação, ao preço de abrirem mão da própria condição humana
ou, ainda pior, simplesmente nem sequer existissem. Nesse caso, paradoxalmente, a
ausência de acusação seria a pior acusação que, por isso, não caberia aos nossos
descendentes, mas, por antecipação, cabe a nós mesmos, como forma de evitar o pior.
Isso mostra que importa considerar não os desejos dos homens futuros,
(que
poderiam ser mera criação nossa)
, mas o seu dever, que não é ideado por nós, já que nos
transcende a todos. Assim, precisamos zelar tanto pelo direito dos homens que virão,
isto é, o direito à felicidade, quanto pela obrigação de ser uma humanidade verdadeira.
Nesse sentido,
“zelar é nossa obrigação fundamental em relação ao futuro da humanidade, da
qual derivam todas as outras obrigações em relação aos homens que virão.”
(PR. 91)
reside, portanto, a primeira obrigação em relação ao ser-como de nossos
descendentes, derivada da obrigação de fazê-los existir, da qual decorrem ainda outras
obrigações, inclusive a de lhes possibilitar a felicidade.
245
c.
O primeiro imperativo: que uma humanidade seja
Jonas considera que a primeira regra para o ser–como pode ser extraída do
imperativo da existência ao que todos os demais são submetidos e que não pode ser
fornecido por nenhuma ética de tipo eudemonista ou inspirada na misericórdia
432
.
Assim,
A primeira regra é que não é admissível nenhum ser-como dos
descendentes futuros da espécie humana que esteja em contradição
com a razão que faz que a existência de uma humanidade como tal
seja exigida. É porque o imperativo que seja uma humanidade é o
primeiro na medida em que se trata somente do homem.
(PR. 94)
4. ‘A responsabilidade ontológica em relação à idéia de homem’
Desse imperativo, Jonas conclui que temos que prestar contas não ao homem
futuro, mas à
idéia
de homem que exige a
existência
daqueles que podem encarná-la na
Terra. Temos uma idéia
ontológica
, não por garantir a existência de seu objeto a partir
de sua essência - como o fazia o conceito de Deus no famoso argumento ontológico -
mas, por se tratar de
“uma idéia que diz que tal presença deve ser, que deve então ser
protegida e que nos impõe uma obrigação, a nós que podemos colocá-la em perigo.”
(PR. 95)
Surge então um
imperativo ontológico
, decorrente da idéia de homem, que impõe a
proibição de
“jogar o vale tudo”
com a humanidade. Mas, Jonas admite que afirmá-lo,
não implica tê-lo fundamentado. Importa, porém, que a simples idéia de homem, ao nos
dizer
“porque os homens devem ser, nos diz ao mesmo tempo como eles devem ser.” (Ibidem.)
5. ‘A idéia ontológica engendra um imperativo categórico e não hipotético’
A ética jonassiana acata a distinção estabelecida por Kant, entre os imperativos:
categórico e hipotético. Do imperativo hipotético, Jonas reconhece diferentes versões,
432. Uma vez que, segundo ele, com base nesses tipos de éticas, pode-se tolerar “muitas coisas que esse
imperativo interdita e muitas coisas que ele ordena podem ser recusadas.” (PR. 94) Mais uma vez indica-
se o texto: “La compassion à elle seule ne fonde pas aucune éthique”, in H. Jonas, Une Éthique pour la
Nature, pp. 108-109.
246
entre as quais, aquela que diz:
Se no futuro houver homens o que depende de nossa
qualidade de genitores então valem tais e tais obrigações (...) que nós devemos observar por
antecipação...”. (Ibidem.)
Enquanto o imperativo categórico ordena simplesmente
“que
haja homens” (Ibidem.) -
, cuja fórmula acentua, nesse dever existir, o que e não o como,-
considerado por Jonas como o único digno de receber a determinação kantiana de
categórico, ou seja, de incondicional.
Jonas enfatiza, porém, que tal princípio, diferentemente do kantiano, não ordena o
acordo entre razão e vontade no agir. Isto é, não se trata aqui de uma idéia do fazer, mas
da idéia de atores possíveis, que exige a existência de seu conteúdo, o que faz dela uma
idéia ontológica ou uma idéia do ser. Segue-se daí que,
“o primeiro princípio de uma
«ética do futuro» não se encontra na ética enquanto doutrina do fazer (...) mas na metafísica
enquanto doutrina do ser da qual a idéia de homem constitui uma parte.”
(PR. 96)
6. ‘Dois dogmas: «não há verdade metafísica»; «não há caminho do “é” ao “deve”»’
A citação anterior esbarra nos dois dogmas mais inflexíveis do pensamento atual,
o de que não existe verdade metafísica e o de que não se pode extrair um dever do ser.
Jonas declara que o segundo deles nunca foi devidamente examinado e que ele tem
sentido em face de um conceito de ser previamente neutralizado, isto é, despojado de
todo valor. Donde, a impossibilidade de se extrair dele o dever não passa de uma
conseqüência tautológica.
O que esse dogma oculta é o fato de que, uma vez tomado como axioma geral, ele
faz parecer impossível qualquer outro conceito de ser, como se o que adota, na verdade
retirado das ciências naturais
433
, fosse o único, verdadeiro e integral conceito de ser.
Assim, Jonas denuncia que a famosa separação entre ser e dever, que assume um
conceito como se fosse o conceito de ser, pressupõe uma determinada metafísica, que
433. A esse respeito, cabe aqui mencionar que, curiosamente, a ciência moderna se constituiu
apropriando-se da questão metafísica “o que é?”, afirmando-se mais apta a respondê-la por empregar o
método empírico e o modelo matemático.
247
somente pode alegar a seu favor o fato de ser mais parcimoniosa, mas, por isso mesmo,
menos profícua que as demais.
Enquanto um enunciado metafísico, o dogma de que não caminho do ser ao
dever, cai sob a interdição feita pelo primeiro dogma, mais fundamental, de que não
existe verdade metafísica. Mais uma vez, Jonas denuncia que tal enunciado oculta um
pressuposto do qual extrai sua validade. Pois, assim como o dogma do “ser e dever”
pressupunha um determinado conceito de ser, também a negação da verdade metafísica
pressupõe certo conceito de saber, segundo o qual:
“É impossível adquirir um saber
científico relativo aos objetos metafísicos”
(PR. 97)
que, novamente, não passa de um
enunciado tautológico, dado que a ciência, por definição, se dirige a objetos físicos.
Por isso, Jonas adverte que até que se defina onde reside o conceito integral de
saber, nada se pode definir sobre o destino da metafísica. Ele adianta, porém, que
qualquer que seja tal definição, ela em nada pode interferir na ética que ele propõe, dado
que toda ética, até mesmo a mais utilitarista, pressupõe também uma metafísica (nesse
caso, o materialismo). O que distingue, portanto, a sua ética é o fato de que nela a
metafísica não pode permanecer oculta, precisa se revelar; o que pode ser uma
desvantagem, do ponto de vista tático, para sua abordagem ética, mas constitui um
ganho considerável para a causa da verdade. Ademais, tem a vantagem de fornecer à
obrigação o fundamento metafísico do dever-ser.
7. ‘Necessidade da metafísica’
Em nome do primeiro princípio de sua ética, que afirmaria porque os homens do
futuro importam, ao afirmar que importa «o homem», Jonas reconhece que não pode
fugir à arriscada incursão pela ontologia. Pois, mesmo admitindo que a religião possa
oferecer respostas não acessíveis à razão filosófica e, nesse contexto, a fornecer um
248
fundamento ético, ela própria não pode ser imposta por um comando. Por conseguinte,
nenhuma obrigação ética fundada na fé teria força para curvar um agnóstico ou um ateu.
a metafísica sempre esteve relacionada à razão, que continuamente está
acessível quando é preciso. A necessidade pode nos levar a buscá-la e todo filósofo
secular que se empenha em elaborar uma ética deve, a despeito de Kant, previamente
reconhecer a possibilidade de uma metafísica racional, a não ser que admita
exclusivamente os critérios de racionalidade determinados pela ciência positiva.
Enfim, para discutir a possibilidade da relação entre “ser e dever”, Jonas propõe,
então, a pergunta: “o homem deve ser? Ele afirma que para que tal questão seja
colocada corretamente é necessário, antes, compreender o que significa dizer que
alguma coisa “deve ser”. Algo que, por sua vez, remete à questão de saber se alguma
coisa deve ser ao invés de nada. Questão que, a seguir, ele examina em cinco passos.
1. ‘O dever-ser de alguma coisa’
Jonas considera que a diferença entre as duas questões é significativa. A primeira,
que se refere ao dever-ser disso ou daquilo, pode ser respondida em relação ao próprio
ser da coisa. Pois, se algo realiza o ser enquanto isso ou aquilo, então, ele deve ser isto
ou aquilo. A segunda questão, porém, cuja alternativa não é outro ser, diferente do
existente, mas o não-ser tout court, exige uma resposta absoluta. Aliás, cabe dizer que o
ser em si é «bom», pois o nada não permite comparação ou gradação. Logo, a existência
como tal «deve» ter a primazia sobre seu oposto contraditório (e não contrário)
434
.
A diferença entre as respostas oferecidas a cada uma das questões pode ser
facilmente demonstrada com base na pergunta inicial referente ao homem. Pode-se
considerar que alguma situação do homem é melhor que outra e, dada a necessidade de
434. Na Lógica, as proposições são contraditórias quando diferem na quantidade e qualidade (Ex.: U+ e
p-, ou p+ e U-) comportando o máximo da oposição, enquanto as proposições contrárias diferem apenas
na qualidade (Ex.: U+ e U-, ou p+ e p-. As últimas, na verdade, são chamadas subcontrárias, contendo,
assim, uma oposição mais fraca). O que está em jogo, aqui, portanto, é a oposição mais contundente, por
se tratar da contraposição entre ser x não-ser.
249
decidir entre uma ou outra, vale optar pelo não-ser do homem que, assim, estaria livre
de todas as limitações das alternativas anteriores
(visto que o não-ser é intrinsecamente
perfeito, isento de todas as eventuais restrições presentes nas alternativas dadas)
. Por isso,
Jonas considera que entre o ser e o não-ser, sempre se pode escolher o não-ser. A não
ser que seja reconhecida uma primazia absoluta do ser em relação ao não-ser. A
resposta a esta questão mais geral, portanto, é essencial para a reflexão ética.
2. ‘A supremacia do ser sobre o nada e o indivíduo’
A acessão dessa primazia e, em função dela, de um dever em relação ao ser, na
dimensão ética, não pode implicar que o indivíduo deve a qualquer preço optar pelo ser.
Em alguns casos, mérito no se arriscar a própria vida, por exemplo, em nome de um
ideal. Até mesmo o suicídio, visando preservar a própria dignidade, é aceitável quando
se trata de defender a dignidade humana como tal. Nos dois casos, prevalece o preceito
de que a vida não seria o bem supremo. Assim, o direito de optar pela própria morte,
embora eticamente questionável; em situações extremas, torna-se compreensível,
constituindo uma exceção (particular) na regra universal. Mas, a possibilidade de optar
pela extinção da humanidade é um
“atentado ao dever-ser” «do homem»
, que remete
forçosamente
“à questão de saber se alguma coisa deve existir ao invés de nada”.
(PR. 101)
3. ‘O sentido da questão leibniziana: «Por que há alguma coisa ao invés de nada?»
Jonas considera que essa famosa questão admite um único sentido e que, fora
dele, pareceria completamente vão perguntar
: «Por que alguma coisa em vez de nada.»
(PR. 101-102)
Logo, para ter sentido, o por quê, aqui colocado, não deve ser interpretado
com respeito à causa precedente, pois a própria causa, qualquer que fosse, já seria parte
do ser e como parte dele não poderia ser sua causa, pois haveria aí um contra-senso.
Até a doutrina criacionista, que teria uma resposta ao por que, enquanto causa,
teria que se haver com a questão relativa à própria existência de Deus. É conhecida a
250
resposta, de viés spinozano, da causa sui, mas que Jonas prefere deixar de lado devido
às suas limitações de ordem lógica. E, mesmo considerando a existência de Deus,
restaria a questão de saber por que Ele criou o mundo. A resposta religiosa afirma que
Ele o quis como um «bem», no que coincidem o Gênesis e o Timeu de Platão.
Porém, como
assinala Jonas, o fato de querer o mundo por ser bom, prova que tal criação é obra de
uma ação divina “ajuizada” e não de um cego querer
(contrariando a tese de Duns
Scoto)
435
.
Aqui, o importante é ressaltar que a questão do dever-ser de um mundo não se
confunde com o conceito de seu autor. Mas antes,
“precisamente supondo que mesmo para
um criador divino tal dever-ser conforme ao conceito do Bem foi a razão de seu ato criador: ele
o quis porque estimou que isso devia ser.”
(PR. 103)
Em outras palavras, pode-se dizer que a constatação de um valor no mundo é um
dos motivos para se supor um autor divino (o que foi, inclusive, um argumento em
favor da tese da existência de Deus) e não o inverso: a hipótese de que o autor fosse o
motivo de atribuir valor à sua criação.
Ainda assim, Jonas não pensa que somente o “eclipse da fé” pode levar a
metafísica a assumir as tarefas antes a cargo da teologia, uma vez que, desde sempre,
tais tarefas cabiam àquela e somente àquela, tanto na perspectiva da crença, quanto da
descrença, o que não afeta em nada a natureza da questão. Por outro lado, a única coisa
que a teologia tem a ensinar à metafísica é a radicalidade do questionamento, que tornou
a pergunta de Leibniz possível, o que seria impensável na antigüidade.
4. ‘A questão de um possível dever-ser deve ser resolvida independentemente da religião’
Voltando, então, ao sentido do por que na questão leibniziana, Jonas reafirma que
considerá-lo enquanto referido à “proveniência causal” torna a questão sem sentido, em
435. Segundo a qual a “vontade de Deus se institui (...) como principio explicativo de todas as coisas”.
Fonte: http://www.cfh.ufsc.br/~simpozio/Megahist-filos/Esc_Ouro/8171y320.html – Em 16/06/08.
251
se tratando do ser em sua totalidade. Mas pensá-lo como referido a uma norma
justificadora
436
, que responderia à pergunta: isso vale a pena ser?”, no sentido de uma
explicação pontual, além de conferir um sentido à questão, também a separaria do
questionamento sobre o autor, por conseguinte, do âmbito da fé.
a questão:
“Por que algo ao invés de nada”?
deve ser entendida no sentido de:
“por que alguma coisa deve ser de preferência ao nada, qualquer que seja a causa que faz com
que ela advenha”
(PR. 104)
.
E a única coisa que realmente importa é o sentido do ‘deve’.
De fato, tomando ou não a perspectiva da fé, a questão de um possível dever-ser
torna-se tarefa de um exame livre, ou seja, um tema filosófico, no qual a questão do
valor como tal se liga de imediato à questão do conhecimento e à questão da avaliação.
Porque o valor ou o bem , supondo que tal coisa exista, é a única
coisa cuja simples possibilidade reclama já a existência (ou cuja
existência, uma vez dada, reclama legitimamente a continuação de
sua existência) – que funda então uma reivindicação de ser, um dever-
ser e que impõe uma obrigação onde o ser depende de um agir
implicando uma escolha livre.
(Ibidem.)
Desse modo, o que Jonas acaba de asseverar é que a atribuição de valor a um ente
é já uma posição em favor da prioridade do ser e também a exigência de um dever-ser,
pois nada se pode atribuir ao não-ser: nem valor, nem não–valor. Neste sentido, ele
acrescenta que
A faculdade do valor é ela própria um valor, o valor de todos os
valores e, por isso mesmo, também a faculdade do não-valor, de modo
que o simples acesso à distinção entre valor e não-valor garantiria
ao ser a prioridade absoluta da escolha em relação ao nada. Logo, de
saída, não o valor hipotético, mas a possibilidade do valor como tal,
formando ele próprio um valor, tem o direito ao ser e contém a
436. No original: rechtfertigender Norm, onde o verbo rechtfertigen significa: justificar, explicar.
252
resposta à questão porque deve existir aquilo que oferece essa
possibilidade. Mas tudo isso vale somente se o próprio conceito de
valor estiver garantido.
(Ibidem.)
5. ‘A questão se transforma naquela do estatuto do «valor»’
Tudo se converge, portanto, para a questão de saber se existe algo como o ‘valor’,
não como algo concreto, mas possível em função do próprio conceito. Isso explica
porque
“estabelecer o estatuto ontológico e epistemológico do valor como tal e elucidar a
questão de sua objetividade tornam-se uma tarefa de importância incontestável.”
(PR. 105)
Pois, o simples fato de existirem avaliações subjetivas que consideram certas
coisas desejáveis e outras indesejáveis, estimadas ou desprezíveis, não define a questão
em favor da teoria que Jonas quer defender, nem neutraliza a força do niilismo. Porque,
no âmbito subjetivo, sempre é possível interrogar se tudo isso, afinal, vale mesmo a
pena e conceder ganho de causa ao pessimismo (tanto o comum, quanto o
shopenhaueriano). Ademais, a vontade enquanto tal pode ser considerada um tormento,
até mesmo a célebre vontade de potência concebida por Nietzsche
“para substituir a
metafísica decaída”
(Ibidem.)
, em relação ao qual o não-querer e, por extensão, o nada
seriam, mais que um alívio, uma libertação.
Isso mostra que nada nos sentimentos impede os indivíduos de buscarem
“refúgio
no nada.”
(PR. 106)
Se, portanto, se trata de ética e de dever, é necessário elaborar uma
teoria dos valores ou do valor enquanto tal, cuja objetividade somente permitiria inferir
um dever-ser objetivo e, por extensão, uma obrigação da conservação do ser, noutras
palavras, uma responsabilidade em relação ao ser.
Jonas está consciente das dificuldades de tal empresa, tanto pelo descrédito que
aflige a teoria dos valores, quanto pelo avanço do ceticismo e do niilismo. Ainda assim,
253
devido à urgência e relevância dessa tarefa, ele a empreende adiante, introduzindo sua
discussão no capítulo III de PR, que é o tema do próximo tópico.
5.2 - Fundamentação passo 1 - A Teoria dos fins ou a relação entre Ser e fins
O capítulo III, intitulado
“Os fins e sua posição no Ser”
, começa pela constatação da
necessidade de se clarificar a relação entre valores e fins
- ou objetivos dado
que,
embora sejam coisas diversas, segundo Jonas, o muitas vezes confundidos. Em busca
de uma distinção, ele se ocupa inicialmente do fim definindo-o como
aquilo em vista de
que uma coisa existe e para a produção ou a conservação
437
da qual tem lugar um processo ou é
empreendida uma ação”.
(PR. 107. Grifos nossos.)
Neste sentido, o fim responde à pergunta “em vista de quê? (ou para quê?).
Donde, o martelo é (existe) para martelar, o tubo digestivo para realizar a digestão, a
marcha para ir de um lugar a outro, e a corte de justiça para fazer cumprir a justiça
438
.
Ele ressalta que os fins ou objetivos, a que se refere, definem as coisas e as ações
correspondentes são feitas independentemente de seu estatuto enquanto valor, cujo
reconhecimento como tal não significa ainda sua aprovação. Ou seja, reconhecer que
algo é o fim de X não implica ainda um juízo de valor
439
. Nesse sentido, os fins podem
ser destituídos de valor. Contudo, é pertinente falar de um meio ou mesmo de um
instrumento melhor ou pior para realizar um fim. Pode-se falar, por exemplo, de um
bom ou um mau martelo, etc.
Inserem-se, assim, os juízos de valor que, todavia, não derivam de uma apreciação
subjetiva, mas da avaliação do desempenho relativo ao fim inerente à própria coisa. Isso
significa que o valor é, portanto, atribuído em virtude do fim.
437. Interessante notar que Jonas introduz, já na definição de fim, a noção de conservação.
438. A escolha desses quatro exemplos não é aleatória. Jonas elege, por assim dizer, um “protótipo” para
cada um dos tipos de relação meio-fim que pretende discutir.
439. Esse primeiro contato com o fim, meramente constatativo, somente pode resultar, portanto, num
juízo de fato, do tipo: “ ‘A’ é fim de X”. Mas, esse momento não diz tudo sobre o fim.
254
Ora, se em virtude do fim se determina o valor, duas questões se colocam: qual é a
essência dos fins buscados nas coisas? E qual é o valor desses próprios fins? A primeira
dirige-se aos fins (foco do capítulo III, discutido no presente tópico) e a segunda, aos
valores (foco do capítulo IV, discutido no tópico seguinte).
Jonas destaca o duplo sentido da expressão “ter um fim”. No primeiro,
o fim faz
parte do conceito da coisa,
conceito que precede sua existência e é a causa
440
de seu
devir. Isso significa que o conceito é subjacente
441
ao objeto e não o objeto ao conceito.
O conceito é a razão de ser de todas as coisas que têm o fim como sua real determinação
e sua essência que é, ao mesmo tempo, idêntica ao seu fim e sem o que não teriam
existência. Há, porém, outro tipo de relação, no qual ‘o fim não reside na coisa’
442
. Caso
em que o fim não se origina dos próprios objetos, nem exclusivamente de seus
conceitos, mas é determinado por quem os produz e em função do quê ele os produz.
Nesse segundo sentido, portanto, o fim dos objetos não se encontra neles mesmos,
mas advém de seu produtor ou do usuário que os detém. Isso se aplica a todos os
objetos inanimados, enquanto artefatos produzidos pelo homem, com vistas a
desempenhar um determinado fim. O que Jonas exemplifica com o martelo e o relógio.
440. Cabe notar que esse primeiro sentido faz lembrar a causa final aristotélica. No original, Ursache:
causa, razão.
441. No original, zugrunde. Mas, é impossível não fazer nova menção a Aristóteles, quando tal vocábulo
sugere uma proximidade com a importante noção de substância, mas, não no sentido original expresso
pelo termo ousía, que significa primeiramente “os bens, a fortuna de alguém ou as propriedades de algo”
e sim em sua versão latina, sub-stantia, que chegou até nós significando “o que está debaixo, o que está
de pé, debaixo, aquilo que subjaz.” Para esse segundo sentido, existem duas palavras gregas, hypostasis e
hipokeimenon. Na verdade, a palavra substância é a tradução latina de hipostasis, “o que está de ,
embaixo”. E Aristóteles utiliza a palavra hipokeimenon, para se referir ao que sub-jaz. Portanto, a
substância e o que é subjacente. Pode-se, então, perguntar: “Subjacente a que? Ao que ocorre, ao que
acontece, ao que sobrevém, ao que Aristóteles chama simbebekos, do verbo symbainein, isto é, os
acidentes”. Assim, segundo Aristóteles, a substância ou hipokeimenon subjaz a seus acidentes. Cabe
acrescentar que a tradução latina predominante, provavelmente, se deve a Cícero e naturalmente foi
transmitida às línguas modernas, enfraquecendo, assim, o sentido original do termo ousía. Isso é relevante
para uma reabilitação fundamental na história da filosofia, que prevaleceu a tendência a considerar “a
substância como o ‘substrato’, o que está debaixo de, o que é suporte de acidentes ou propriedades”,
eliminado, assim o seu sentido primordial e mais radical. Mas, voltando ao termo empregado por Jonas,
pode-se pensar que, nesse caso, o conceito subjaz àquilo que “sobrevém”, ao “acidente”, que é o objeto
propriamente dito. Fonte: http://www.hottopos.com/harvard3/jmarist.htm - Acesso em 25/06/08.
442. Discutido no segundo item do tópico 1, do capítulo III de PR, p. 110: “O fim não reside na coisa”.
255
um tipo de ‘artefato humano, porém, que tem o ‘fim como sua dimensão
imanente’: as instituições. Para analisá-las, Jonas toma o exemplo da corte de justiça,
afirmando que nela não apenas o conceito de justiça a antecede causalmente, mas que
ela deve nele se inscrever, para que possa
“ser aquilo em vista do que foi criada”.
(PR 111)
Ou seja, o conceito de justiça não apenas inspira sua criação, mas deve pautar a
sua ação, sem o que não se justifica a sua existência. Isso significa que, no caso de uma
instituição, se ela não realiza seu conceito ou, poder-se-ia dizer, sua própria causa,
essência ou razão de ser, a sua existência não se justifica.
Por esse motivo, Jonas afirma que as instituições
“devem ser seres que querem o fim
e que agem de maneira autônoma
443
”.
(Ibidem.)
E nelas não pode haver diferença entre
produtor e produto. Nesse caso, o legislador e a própria instituição são
“ontologicamente” um só sujeito, mesmo que o o sejam em pessoa. Vale dizer que,
em essência, o legislador e a corte de justiça devem refletir uma imagem como
sombras de figuras idênticas. Coincidência que, de acordo com o que se disse, só é
possível se, para ambos, o conceito de justiça for o verdadeiro mote de suas ações.
A seguir, Jonas aborda a
“Invisibilidade dos fins no aparato físico”,
tomando o
exemplo de objetos como o martelo ou relógio para observar que nos dois casos, a
própria forma e constituição física que portam, deixam entrever a sua função ou aquilo a
que estão destinados. Isso, segundo ele,
“quer dizer que a intenção invisível («subjetiva») do
produtor resulta na configuração visível («objetiva») do objeto”.
(PR 112-113)
De onde conclui
que tais objetos não são produzidos ao acaso, mas são, literalmente, projetados para
melhor desempenhar seu fim.
444
443. No original, selbsthandelnde que pode significar: 1. “agir por si”, o que estaria de acordo com a
tradução francesa : “qui agissent de manière autonome”; ou 2. “agir conforme a si”, cuja melhor tradução,
talvez, fosse: “que agem de maneira autêntica”, no sentido de ser fiel às suas origens e convicções”, ou
seja, agir conforme à própria essência. Esta opção estaria mais de acordo com o que Jonas estava dizendo
acerca das instituições.
444. Sobre esse aspecto, Jonas insere uma nota comentando que, em função desse traço dos objetos, a
“inteligência técnica” pode fazer os dois trajetos: do meio para o fim ou do fim para o meio. Assim,
256
Porém, no caso da corte de justiça, nada na descrição de todo seu aparato pode
sugerir a sua função. A justiça não se deixa entrever, por exemplo, nos trajes dos
magistrados, nem nos lugares ocupados pelo juiz, jurados e réu. De fato, nem mesmo a
mais completa descrição física de um tribunal poderia apreender a justiça. Pois, aqui, a
idéia de fim encontra-se totalmente invisível e não pode se materializar fisicamente -
apenas conceitualmente - o que pressupõe o conhecimento prévio do conceito de justiça
e exige sua realização em cada ocasião dada.
Cabe destacar também o fato de Jonas reconhecer
“O homem como fim dos objetos e
das instituições”
, dado serem “criados” em vista de um fim, em função do qual são - não
por acaso - organizados. Assim, seus usos ou funcionamentos de modo algum são
casuais. Dos quatro exemplos, ele destaca o martelo e a corte de justiça que, enquanto
artefatos humanos, têm fins humanos e são fabricados e utilizados por seres humanos na
esfera individual (o martelo) ou social (os dois). Isso sugere uma primeira diferença
relacionada “a meios e fins”, a saber, a “distinção entre meio artificial e natural”.
Os meios artificiais são, aqui, representados pelo martelo e pela corte de justiça e
os naturais têm por representantes a marcha e o órgão digestivo. No grupo dos meios
naturais surge a segunda diferença: entre meios naturais voluntários e involuntários.
Assim, a marcha consiste num movimento voluntário a fim de chegar nalgum lugar
com as pernas, que são meios dados pela própria natureza: algo vivo, ou melhor, parte
integrante de um ser vivo. Pois, não são as pernas que marcham, mas se marcha com elas.
Jonas assinala, ainda, a semelhança entre os membros locomotores e as
ferramentas por serem órgãos ou instrumentos que realizam uma obra, reconhecendo,
adiante, o caráter problemático dos fins subjetivos atribuído até as ações involuntárias.
responde-se tanto à questão de saber: qual a aparência deve ter um objeto para realizar determinado fim,
quanto, inversamente, determinar o fim de um objeto que apresenta certa aparência. Mas, essa
“objetividade neutra” estaria completamente ausente noutras criações humanas, especialmente, nas
instituições.
257
A seguir, propõe a distinção entre
“fins no agir humano e no agir animal”,
concluindo
que não se pode pressupor a mesma cadeia subjetiva causal identificada à ação humana,
no caso do agir animal, embora ele também seja orientado a um fim. Pois, todo agir no
animal, ainda que complexo, a cada etapa, obedece à força compulsória
445
do instinto,
segundo situações determinadas e com vistas a satisfazer cegamente ao próprio instinto.
Tal fato, segundo ele, pode ser interpretado em diferentes níveis, dos quais serão
aludidos apenas os três últimos, por sua maior relevância para sua formulação ética:
d
.
relacionado ao que Jonas classifica como
muda impulsão despótica”
(PR. p. 125)
para
obtenção do fim: a satisfação das necessidades que, por sua vez, também é pré-
determinada. Razão pela qual, ele considera que
“surge assim a questão de saber se existe
um fim no mundo objetivo, físico ou somente no mundo subjetivo.”
(Ibidem.)
e
. As ações voluntárias empreendidas pelos animais superiores, para suprir suas
necessidades, podem revelar uma complexidade tal que nos leve a afirmar que se trata
de processos conscientes” e não cegos. Do ponto de vista da cibernética, porém, todo
esse processo pode ser descrito como mero influxo nervoso objetivo, um mecanismo de
feed-back sensório motor, para superar um desequilíbrio e restabelecer o equilíbrio
homeostático de um sistema. Segundo essa concepção, todo o complexo processo vital
teria, portanto, uma finalidade única e negativa: suprimir uma tensão. Assim, toda ação
animal obedeceria à lei da compensação, isto é, à mecânica da entropia.
f
. Daí surge a questão:
“qual papel pode-se ainda atribuir ao elemento subjetivo do vivido no
caráter de finalidade da totalidade da ação, enquanto nenhum testemunho (...) pode ignorar a
pura presença desses elementos?”
(PR. 127)
A busca por tal resposta implica um passo extremamente ousado, no qual Jonas
põe em xeque a tese, de matiz cartesiano, de que a subjetividade como tal exista apenas
no ser humano. Ele levanta a questão de saber o que significaria dizer que a presença do
445. No jargão behaviorista, poder-se-ia dizer: “mero reflexo condicionado”.
258
elemento subjetivo fosse indubitável em qualquer ponto da escala evolutiva. Questão
que remete àquela da “potência e impotência da subjetividade”
446
, que pode ser
convertida na tentativa de definir a presença ou ausência de influência do fim subjetivo.
Para desenvolver seu argumento, Jonas adverte que a expressão “ação voluntária”
não implica necessariamente que a vontade controla o funcionamento do órgão
envolvido. Assim sendo, não é necessário pressupor a vontade (muito menos livre) para
estabelecer a diferença entre a função voluntária e involuntária.
Pois, casos cuja simples posse de seu órgão correspondente, implica
automaticamente o seu uso, por exemplo: os ouvidos. certos casos, porém, como o
das pernas, cujas ações são voluntárias, uma vez que precisam ser, por assim dizer,
“acionadas”, diferindo, portanto, do coração que funciona independentemente do
comando do sujeito. A questão crucial, que agora se coloca, é determinar o papel da
vontade nas ações involuntárias.
Todavia, mais uma vez, tal questão se desvanece diante daquela fundamental
acerca da potência e impotência da subjetividade como tal. Mas,
qual seria a relação entre
essa questão, dita fundamental, e a perspectiva propriamente ética? E por que ela é considerada
tão relevante?
Segundo Frogneux
447
as respostas remetem ao fato de Jonas perceber que:
Se a subjetividade é impotente no mundo, o questionamento ético de
nossos atos é vão; se, ao contrário, o sujeito pode agir livremente, ele
será responsável por seus atos. Tal é a aposta do texto de Hans Jonas
(...) Potência ou impotência da subjetividade? [Pois, ele se conta de
que] Para estabelecer uma fundação da ética, não basta, de fato,
constatar que as tecnociências ampliam o agir humano e comprometem a
446. Título de um texto de Jonas publicado em 1981 que, em princípio, faria parte de PV. Porém, a sua
extensão e o fato de realizar um desvio do tema central de PV, forçaram a sua publicação em separado,
dois anos mais tarde, junto aos mesmos editores.
447. N. Frogneux. “La puissance de la subjectivité comme dignité de l’homme.” In Hans Jonas.
Puissance ou impuissance de la subjectivité. Traduction de l’allemand par Christian Arnsperger, revue et
presentée par Nathalie Frogneux. Paris: CERF, 2000. pp. 9- 24.
259
responsabilidade coletiva de seus atores; ainda é preciso se opor às
vozes daqueles que pretendem que esta liberdade responsável é uma pura
auto-mistificação da subjetividade. Portanto, os problemas éticos
específicos à civilização tecnológica contemporânea não podem ser
estudados independentemente da condição cosmológica da liberdade. Se
a ética compromete doravante e de modo inédito o controle (responsável)
do controle (tecnológico que se autonomiza), é porque a liberdade de
ação não é uma pura ilusão.
(Op. cit. p. 9)
Esse comentário é particularmente interessante, porque esclarece os motivos pelos
quais, segundo Jonas:
“O estatuto da subjetividade nesse domínio toca então igualmente ao
estatuto dos fins humanos e, assim, àquele da ética”.
(PR. 130)
Com relação à potência causal dos fins subjetivos, o que está em pauta, ainda
segundo Frogneux, é a necessidade de
“estabelecer se a explicação causal repousa sobre um
determinismo absoluto, que não deixa nenhuma margem de jogo para a liberdade, quer dizer, à
espontaneidade e à aparição de novas cadeias causais ou se, ao contrário, a liberdade pode se
inscrever no seio do mundo físico.”
448
(op. cit. p. 11. Grifos nossos.)
Sobre essa causalidade final subjetiva, Jonas afirma que sua efetividade quer dizer
eficiência, isto é, que a causa atua em direção ao interior e ao exterior. Portanto, ele
confirma o poder da autodeterminação do pensamento pelo pensamento e de sua
determinação corporal por seu agir. Contestando, assim, a tese cartesiana da
impossibilidade do pensamento originar uma ação do corpo. O que pode ser
corroborado pelo comentário de Frogneux, ao explicitar que essa formulação jonassiana
dirige-se às
especulações, científicas ou filosóficas
449
que negam ou contradizem a
experiência subjetiva ordinária (comum) ... . ... A tarefa que Jonas se
448. Questão que, na verdade, retoma a célebre antinomia, que Kant apresenta na segunda divisão da
Lógica Transcendental, isto é, na Dialética Transcendental da Crítica da Razão Pura.
449. Sobretudo de inspiração cartesiana.
260
propõe nesse pequeno texto é, portanto, essencialmente negativa, visto
que ela consiste em suspender as interdições teóricas que pesam sobre a
eficácia da subjetividade. Neste sentido, sua argumentação não constitui
um momento positivo da ética da responsabilidade, mas antes, para
assegurar a possibilidade de uma liberdade do sujeito, a réplica
preliminar àqueles que contestariam a pertinência do empreendimento
ético desenvolvido no Princípio Responsabilidade.
(Ibidem.)
Finda essa tarefa, ele pode, então, garantir que a hipótese contrária, da impotência
da subjetividade, se mostra ontológica e epistemologicamente absurda e, ademais,
desnecessária para o fim visado: o respeito pela integridade das leis da natureza.
Uma vez que, segundo Jonas, somente assim
Nós podemos então dizer com alguma segurança que o domínio dos
movimentos corporais voluntários no homem e no animal (que ilustramos
com a ajuda da marcha) é um lugar de determinação real pelos fins e
objetivos que são realizados objetivamente pelos mesmos sujeitos que os
empreendem subjetivamente: que existe, então, um agir na natureza. Isso
implica que a eficiência dos fins não é ligada à racionalidade, à reflexão
e ao livre arbítrio, logo, [nem mesmo] ao homem.
(PR. 132)
Aspecto importante a ressaltar visto que, como o próprio Jonas admite,
“no
argumento desenvolvido até o presente e correspondente à esfera de exemplos à qual se reportava, a
eficiência dos fins está ligada à ‘consciência’ (...), à ‘subjetividade’ e ‘ao arbitrário’
450
”. (Ibidem.)
O seu intento é precisamente ampliar essa noção para além da esfera humana, por
considerar tal ampliação um passo
“fundamental para uma fundação ontológica em última
instância do ‘valor’ e, por isso mesmo, da obrigação ética.”
(Ibidem.)
Objetivo que ele leva
adiante, mesmo estando consciente das inúmeras críticas que pode suscitar inspiradas,
450. No original: “an »Willkür«”, que a versão francesa traduziu pelo adjetivo substantivado:
“l’arbitraire” e que deve ser compreendido como o “que depende unicamente de uma decisão individual,
não de uma ordem preestabelecida, ou de uma razão válida para todos” ou, ainda, como “livre poder de
determinação; exercício do livre árbitro” e não no sentido de “facultativo” ou quase “aleatório”, que o
termo em português pode sugerir. Fonte: http://www.cnrtl.fr/definition/arbitraire
261
sobretudo, pelo que ele denomina de
“preconceitos da modernidade”
(Ibidem.)
.
E que,
embora ele não explicite, podem, aqui, ser identificados (ainda que não apenas) aos
desdobramentos da concepção cartesiana de subjetividade.
Portanto, essa ampliação visa mostrar que o fim não se restringe à esfera humana
e que, assim como a subjetividade, ele não constitui um ‘salto’ incompreensível da
evolução. Pois, ao contrário
o que parece um salto é, em realidade, uma continuação; o fruto
é prefigurado na raiz; o ‘fim’ que se torna visível no sentir, no querer e no pensamento estava já
de maneira invisível (...) como disposição positiva (...).”
(PR. 139)
Ora, o que Jonas pretende evitar é, precisamente, o impasse entre o salto absoluto e a
impotência do espírito. Por isso, segundo ele,
Nós podemos então dizer que o princípio teoricamente válido da
novidade que surge, se ele não deve ser totalmente arbitrário e, por isso
mesmo, irracional, deve ser temperado por aquele da continuidade, a
saber, aquele de uma continuidade material e não somente formal de
modo que nós devemos aceitar ser ensinados pelo mais elevado, e mais
rico, relativamente a tudo o que é inferior.
(Ibidem.)
Sobre esse ponto, Frogneux esclarece que
É em virtude de um duplo princípio que Jonas consegue estabelecer
essa disponibilidade dos fins até a natureza inorgânica: o princípio
ontológico de continuidade
451
e o princípio metodológico correlato da
explicação do menos complexo sobre a base do mais complexo, Desde
então é legítimo pressupor já na matéria inerte uma disposição para o
fim, certamente não ainda manifesto.
(NF, 309)
Nesse sentido, Jonas busca identificar
“Os fins para além da subjetividade”,
considerando
,
“o que é o ser deve ser deduzido de seu testemunho e naturalmente daquele que é
o mais manifesto e não mais oculto, do mais desenvolvido e não do menos desenvolvido, do
451. Combinado ao princípio mencionado no início do parágrafo acima: o da novidade. De modo que
haveria a junção de dois princípios ontológicos (novidade e continuidade) e um metodológico.
262
mais pleno e não do mais pobre – então do ‘mais elevado’ que nos seja acessível.”
(PR. 140)
Ou,
em outras palavras, do próprio ser humano. Mas,
“o testemunho de nosso próprio ser é
deliberadamente ignorado pelas ciências da natureza”
(Ibidem.)
,
com base no argumento, até
certo ponto pertinente, de evitar o antropomorfismo.
Por isso, na esfera das ciências naturais parece prevalecer o procedimento
metodológico que, intencionalmente, ignora o nível superior, de modo que:
no estudo dos processos elementares da vida, por exemplo, no nível
molecular, o biólogo procede como se ele ignorasse a existência do
organismo completo no qual tais processos se desenrolam, no estudo
dos organismos inferiores, como se ele ignorasse a existência de
organismos superiores; e no estudo dos organismos mais elevados
como se ele ignorasse que eles são dotados de uma subjetividade; no
estudo do organismo mais elevado (e de seu cérebro) como se ele
ignorasse que o pensamento determinasse o seu ser.
452
(PR. 140-141)
Entretanto, é obvio que o cientista que se ocupa da origem da vida conhece toda a
seqüência da evolução, o que se ocupa do metabolismo celular tem consciência do
organismo inteiro e o que se ocupa do cérebro está ciente da ação do pensamento
453
. Mas,
na análise da pura matéria (...) sempre é ainda possível se ater à
constatação mínima escolhida, puramente ‘externa’, como o exige a
tarefa da física, e ele [o cientista] deve somente resistir à tentação de
se tornar um metafísico reducionista [com base na] da evidência
mínima artificialmente reduzida - o que parece ser mais difícil que
resistir à tentação inversa do antropomorfismo.
(PR. 142)
452. Poder-se-ia ainda acrescentar, por fim, todas as questões delegadas às ciências humanas, como se
ignorasse que o pensamento tivesse relação com a história de vida do indivíduo que, por sua vez, faz parte
de um contexto social que, a uma vez, é determinado pelo contexto político-econômico, que tanto
determina quanto é determinado pela história coletiva e individual, simultânea e reciprocamente.
453. Ao menos no plano das neurociências. Quanto aos demais aspectos, nem todos são considerados
relevantes por aqueles que se dedicam às ciências naturais.
263
Por esse motivo, segundo Jonas, cabe
“ao filósofo mostrar o que significa para o
estatuto do fim o fato de que a comprovação de sua existência pela subjetividade não se limita a
ela mesma, mas que ela afeta o próprio conceito de natureza em sua totalidade.”
(Ibidem.)
Ele
comenta ainda que se interessou pelo conceito de natureza devido à teoria do fim e não
o inverso.
454
Pois, sua intenção é, para estabelecer a possibilidade da ética, ampliar o
âmbito ontológico do fim como tal, tarefa cujo êxito ele pensa bastar a consideração de que:
Assim como a subjetividade é, num certo sentido, um fenômeno de
superfície da natureza a ponta visível de um iceberg bem maior do
mesmo modo ela fala em nome do interior mudo. (...) que acede à palavra
somente graças a ela, em outros termos a matéria deve abrigar nela o
fim sob forma não subjetiva, ou um de seus análogos.
(PR. 143)
Surgem, porém, duas questões: 1. Tem algum sentido falar de um ‘fim’ não
subjetivo, isto é, que não seja mental? 2. O fim na matéria não arruinaria a explicação
causal da física? Começando pela segunda, Jonas assevera não haver qualquer
incompatibilidade entre a compreensão aristotélica do ser e a explicação moderna da
natureza, embora essa tenha rejeitado aquela. Ele esclarece que o motivo pelo qual a
visão aristotélica foi recusada passa pelo argumento de que a explicação causal pode
prescindir da causa final, tornada supérflua e até perigosa, para aqueles para quem sua
consideração impediria a descoberta das “verdadeiras” razões. Argumento que, do ponto
de vista metodológico, Jonas considera pertinente.
Todavia, ele afirma que compreender a natureza e explicá-la são dois processos
bem distintos, enfatizando que não pretende explicar a natureza, tarefa que cabe à
ciência. Trata-se de interpretar a existência nela, demonstrada, de fins e, em face
454. Algo evidente em relação ao PR, mas talvez questionável considerando o PhL. Todavia, é preciso
recordar que o primeiro trabalho publicável de Jonas foi sobre a questão da liberdade (Em São Paulo e
Santo Agostinho), depois ele se dedicou ao tema da gnose, e mesmo tendo se despertado para as questões
concernentes ao organismo durante a guerra, é na década de 50 que ele escreve os primeiros textos que
serão reunidos no PhL, em que propõe os elementos para uma biologia filosófica. Considerando todo o
percurso, a sua afirmação pode fazer mais sentido.
264
desse conceito de natureza, deixar “
inteiramente aberta a maneira pela qual uma ‘finalidade’
generalizada da natureza se manifesta inconscientemente no seu mecanismo causal
determinista... o que é bem compatível com uma teleologia subjacente do processo.”
(PR. 144)
Revela-se uma incapacidade essencial que tem como um de seus efeitos
secundários paradoxais o fato de que as próprias ciências da natureza, enquanto eventos
no universo a se explicar, são sempre excluídas do que elas podem explicar.
455
E, para além das ciências naturais,
Resta (...) a questão de saber que sentido pode ter falar
de um ‘fim’ que não seja ‘sustentado’ por um sujeito em sua subjetividade, que não seja então
‘pensado’ de uma maneira ou de outra: se falar de um fim não mental tem sentido.”
(PR. 145)
Desse modo, Jonas não ignora os inúmeros problemas implicados em tal
formulação. Todavia, ele também constata que
“a polêmica dirigida contra o conceito de
teleologia (distinto de seu estatuto explicativo) em nome das ciências da natureza sempre
recorreu abusivamente ao argumento do caráter ridículo desta posição”
(Ibidem.)
e não
propriamente a argumentos sólidos e pertinentes.
Ademais, Jonas pondera que, embora, de início, haja uma tautologia no fato de que temos
conhecimento dos fins a partir daquilo que já sabemos
456
, ele sentido em se considerar
também fatores não conscientes, tais como a vontade ou desejos inconscientes.
Com base em tais fenômenos, Jonas aposta num tipo de
subjetividade sem sujeito, quer dizer, na disseminação de uma
interioridade apetitiva germinal através de inúmeras partículas
individuais, mais que em sua unidade originária no interior de um sujeito
metafísico total. (Isso quer dizer que o panteísmo não é um complemento
necessário do pampsiquismo
457
). As ‘unidades’ discretas de associação
do diverso, orgânico ou inorgânico seriam então um resultado
455. “As ciências da natureza não nos dizem tudo sobre a natureza: o que sua incapacidade de dar
razão à consciência a partir de suas premissas, e mesmo do caso o mais elementar do sentir (...), é o
testemunho universalmente admitido – precisamente a ponta do iceberg.” (PR. pp. 144-145)
456. Por exemplo, dizemos que o fim do aparelho digestivo é a realização da digestão, porque sabemos de
antemão o que é a digestão e que tal processo no organismo é realizado pelos órgãos desse sistema.
457. Assim, Jonas recusa o panteísmo, enquanto o pampsiquismo é por ele assimilado.
265
evoluído, uma cristalização por assim dizer, deste alvo disperso e elas
seriam inseparáveis da diferença ou da individuação.
(PR. 147)
Tais questões vão além do objetivo de Jonas em PV. Pois,
o importante ali é a
demonstração de que o fim como tal reside na natureza.
Ou, em outros termos, mostrar
que,
“com a produção da vida a natureza manifesta ao menos um fim determinado, a saber, a
própria vida o que talvez não seja mais do que dizer que a liberação do ‘fim’, como tal, a
serviço de fins definidos, que se persegue e que se desfruta também subjetivamente.” (Ibidem.)
Ainda que atribua tal relevância à vida, Jonas se abstém
de dizer que a vida é ‘o’ fim ou mesmo o fim principal da natureza, do
que podemos ter uma conjectura; basta dizer: um fim. Mas se
(segundo uma conjectura que não é insensata) ‘o-ser-fim’ era ele
próprio o fim fundamental, por assim dizer, o fim de todos os fins,
então, com efeito, a vida na qual o fim está liberado, seria uma forma
distinta, permitindo ajudar este fim-a se realizar.
(PR. 147-148)
Jonas pode, então, explicitar que tipo de vontade ele atribui à natureza. Trata-se de
“um querer de superação de si mesmo, mas que não precisa ser ligado a um ‘saber’ e certamente
não um saber antecipador nem à representação de um objetivo: mas antes a uma capacidade de
discernimento”.
(PR. 148)
Algo
que permite reconhecer as condições favoráveis à
satisfação de suas necessidades em cada momento dado e, até, criar tais ocasiões,
quando possível. Daí se conclui
que “existe uma orientação para o fim que se apreende
dessas ocasiões”
458
.
(Ibidem.)
Ele admite que se existe uma incerteza com relação a determinar a verdade de tais
conjecturas, há muito mais em relação à origem da vida. Mas, ainda assim, defende que
458. Em nota à página 148, Jonas refere-se ao modelo dos pontos de indiferença causal proposto em PIS e
apresenta o seu conceito de ocasião como o instante no qual “uma tendência latente ‘pode’ exercer sua
«preferência» e suprimir a indiferença momentânea a cada vez em favor de uma das diferenças deixadas
abertas.” (PR. 148) No original “... eine verbogene Tendenz ihre Vorliebe ausüben konnte und die
momentane Indifferenz jeweils zugunsten einer der offengestellten Differenzen entschied.” (PV. p. 397. n
10)
266
mesmo se o primeiro começo, a associação das moléculas orgânicas,
foi um puro acaso
459
que não foi precedido por nenhuma tendência
que aí se realiza (o que me parece já ser incoerente) – a partir daí em
todo caso a tendência torna-se sempre mais visível: e eu o quero
somente dizer a tendência à evolução (que pode permanecer em
repouso
460
durante um lapso de tempo indeterminado), mas,
sobretudo, a tendência da existência em seus produtos. [Em OF,
Jonas buscou] demonstrar como seguidamente no organismo real
‘mais simples’ - quer dizer, o organismo dotado de um metabolismo e
como tal simultaneamente independente e dependente do ponto de
vista de suas necessidades os horizontes da ipseidade, do mundo e
do tempo, comandados pela alternativa severa do ser e do não-ser se
esboçam já sob uma forma pré-espiritual.
(PR. 148)
Após toda essa reflexão, Jonas pode, enfim, propor uma resposta à questão
formulada no título de
IV, 2
461
, assinalando que:
falar de um fim imanente mesmo se ele é completamente inconsciente
e não voluntário, da digestão e de seu aparelho no conjunto do corpo
vivo e falar da vida como o fim imanente desse mesmo corpo, isso tem
um sentido e não se trata somente de uma metáfora emprestada à
nossa subjetividade.
(PR. 149)
Isso significa que ele está convencido de que é possível encontrar um fim na
natureza, independentemente de sua relação com o que habitualmente se denomina de
consciência. Ou, em outras palavras, o fim não é uma prerrogativa dos seres racionais.
459. Referência à tese de Jacques Monod, endossada pela maioria dos cientistas naturais.
460. No original: “(die beliebig lange ruhen kann)” (PV. p.144.). Pode-se traduzir como ‘que pode
descansar/repousar (ou estar em suspenso) [por/durante] certo tempo’. Algo que parece o contrário do
sugerido pela versão francesa que utiliza a expressão “en veille”, literalmente, em vigília, desperto,
acordado. Daí, nossa opção por traduzir pela expressão ‘em repouso’, para evitar qualquer equívoco ou
ambigüidade.
461. “A causa final se limita aos seres dotados de subjetividade?” (PR. p. 134)
267
Mas isso ainda não basta. É preciso agora conduzir à próxima passagem que
conduz “dos fins ao valor”. Jonas afirma que ainda que tudo começasse com o mero
‘acaso’ da vida, isso seria suficiente. Pois, o próprio ‘fim’ foi ampliado para além de
toda forma de consciência, humana ou animal, em direção ao mundo físico como um
princípio que lhe é devido desde a origem. Já
“a questão de saber até onde se estende seu
reino ‘descendente’
462
em direção às formas elementares do ser, pode permanecer aberta. O ser
da natureza como tal deve ser creditado da disponibilidade para ele.”
(PR. 150)
Tal formulação não oculta, porém, as várias questões suscitadas, entre as quais:
o ‘fim’ é liberto da maldição da ‘subjetividade’ por essa extensão além
da realidade da ‘subjetividade’? A universalidade de seu ocorrer
significa a sanção da validade?” Com a prova de que o fim está de fato
presente na natureza e que ele está mesmo contido na natureza das
coisas, se ganha alguma coisa para a ética que necessita da validade
objetiva dos valores que precisamente por isso devem tornar-se fins?
Pelo fato de ter fins, a natureza pode legitimá-los?
(PR. 150-151.)
A última questão remete à tradicional
“questão de saber se o ser como tal pode fundar
um dever”.
(PR. 151)
Essa questão é respondida no capítulo seguinte consagrado ao
estatuto dos valores. Mas, para iniciar a transição, Jonas introduz o tema da relação
entre universalidade e validade e da relação entre a ‘simples’ subjetividade e uma
subjetividade que reina através (ao longo) da natureza.
Começando pela questão da universalidade, Jonas defende que, dizer que todos os
homens buscam a felicidade, mais que um simples relato estatístico, revela uma
constatação essencial da natureza humana. Por isso, desse fato inicial: a universalidade
do objetivo da felicidade, ele conclui que tal busca se constitui como uma tendência
legítima e, assim, mesmo que não indique uma obrigação, implica ao menos um direito
462. Na tradução francesa: “son règne en bas vers les formes élémentaires de l’être,” (PV. p. 150. Grifos
nossos). No original: “in die Elementarformen des Seins hinab reicht” (PR. p. 145. Grifos nossos).
268
a se buscá-la. E mais, disso resultaria também a obrigação ou um dever de respeitar esse
direito nos outros, ou seja, de não entravá-lo e talvez mesmo de promovê-lo. Logo,
a universalidade fatual, determinada pela natureza, da busca da
felicidade, que se beneficia da presunção mencionada de sua
legitimidade, contribui, apesar de tudo, em parte à sua legitimação.
Presunção, porque até aqui não se tem mais do que uma consideração
provisória e não uma prova filosófica consistente. Pois, que exista um
direito e uma obrigação, um poder e um dever, isso decorre do
próprio argumento, que já é pressuposto. Mas se isso existe, a opinião
da natureza torna-se uma indicação importante e talvez mesmo uma
sanção em vista de sua determinação...
(PR. 152)
Contudo, nesse contexto surge uma série de conflitos, decorrentes do embate entre
o universal e o particular, as dimensões: objetiva e subjetiva, o individual e o coletivo,
enfim, entre as esferas do direito e do valor. Pois, como Jonas admite:
em nosso exemplo, selecionado unicamente por convenção e à guisa
de ilustração, prestamos atenção à diferença do universal e do
particular: que são os objetivos e quereres particulares dos sujeitos
individuais e seus conflitos eventuais à ocasião dos quais surge
normalmente a questão do direito e do valor, enquanto que um e outro
são de boa vontade concedidos ao que é comum a todos; e é aí, nas
tendências particulares, onde nós falamos o mais facilmente de uma
‘simples subjetividade’ dos fins e das avaliações, e é somente , que
nós falamos de um arbitrário que deve de início se justificar. E agora
precisaria certamente dizer a propósito de uma ‘subjetividade’ da
natureza que ela não é nem particular nem arbitrária, e que em
relação a nossos desejos e a nossas opiniões privadas, ela tem todas
269
as vantagens do todo em relação à parte, do durável em relação ao
transitório, do imenso em relação ao ínfimo.
(PR 152)
Nesse sentido, essa subjetividade que Jonas pretende localizar na natureza, não
constitui uma subjetividade particular, idiossincrática, temporária, mas se trata de uma
subjetividade universal, comum, perene que age e ‘reage’ segundo leis universais e que,
portanto, nada tem de arbitrário, de efêmero ou relativo.
463
Ele aborda, então, a “liberdade de negar a determinação natural”. E o interessante,
aqui, é notar que, apesar dessa supremacia da natureza em relação a nós - seres humanos
-, é inegável o fato de que
Entretanto pode-se contradizer seu decreto, quer dizer a parcialidade de
seus fins, mesmo se ao fazê-lo nós nos servimos ainda de um de seus fins,
a saber, da liberdade. É a prerrogativa da liberdade humana de poder
dizer não ao mundo.
Que o mundo tenha valores isso decorre, com
certeza, diretamente do fato de que ele tem fins (e nesse sentido, levando
em conta o que precede, não pode mais estar em questão uma natureza
‘livre de todo valor’), ... E é preciso conceder que per se a superioridade
da natureza do ponto de vista da grandeza, da duração e da potência,
mesmo do esplendor de suas produções, não funda ainda uma
autoridade, mesmo depois que seu pretenso ‘desencantamento’ (Max
Weber) tenha sido questionado no seu ponto mais decisivo, aquele da
ignorância dos fins e valores’, da mesma forma que nas questões
humanas a superioridade numérica da opinião de massa sobre a da
minoria não funda ainda uma verdade.
(PR 153. Grifos nossos.)
463. Difícil não fazer, aqui, guardadas as devidas proporções e intenções, uma analogia entre essa
formulação de Jonas e o eu empírico e o Eu transcendental de Kant. Assinalando, porém, a importante
distinção: que o Eu transcendental, que não é transcendente, mas condição de possibilidade não pode ser
dado na experiência, enquanto essa subjetividade universal postulada por Jonas se “imanentiza” na esfera
supra-pessoal da natureza.
270
Embora admitindo tal possibilidade, Jonas avalia que, em princípio, é possível
discordar legitimamente do decreto da natureza, invocando
uma instância fora dela,
ou
seja, uma esfera transcendente que, por sua vez, seja também investida de autoridade.
Todavia, tal condição é, de antemão, recusada em função do dualismo que ela
implica.
“Dualismo que exigiria a hipótese de um Deus que não seria responsável pelo mundo,
que por sua vez seria essencialmente mau e com a hipótese da alma transcendente capaz desse
ato de discordância.”
(PR 153)
Em outras palavras, Jonas o esboço da teoria ‘gnóstica’ do ser. Por isso, em
contrapartida, para preservar seus pressupostos monistas, ele reformula tal posição,
assinalando que uma discordância legítima somente seria possível no nível do
particular, jamais no âmbito da totalidade. Ou seja, não é possível negar de uma vez
toda a ordem natural, apenas em condições específicas uma ou outra de suas
determinações. Por exemplo, a NASA, através de equipamentos apropriados, consegue
reproduzir ambientes com gravidade zero, o que não significa, porém, que a lei da
gravidade possa ser completamente revogada.
Por fim, Jonas discute a
“indemonstrabilidade da obrigação de afirmar a determinação
natural”
, reconhecendo que a mera
“impossibilidade de uma negação legítima nem sempre
basta para legitimar o próprio objeto, quer dizer, para exigir legitimamente a sua afirmação.”
(PR. 155)
Ou seja, ainda que ao nos afastarmos da totalidade, graças à prerrogativa da
liberdade, estejamos na verdade fazendo um uso
da decisão de valor da natureza em favor
da liberdade”
(Ibidem.)
,
isso não implica a conclusão lógica de que sejamos obrigados a
afirmá-la. E, n
em mesmo em
nome do rigor lógico,
transforma-se
“esta afirmação de facto
inconseqüente em uma autêntica afirmação de jure”
.
(Ibidem.)
Uma vez que,
Para isso, quer dizer, para uma afirmação efetiva, obrigatória, é
requerido o conceito do bem que não é idêntico àquele do valor ou se
se quer que designa a diferença entre o estatuto objetivo e o estatuto
271
subjetivo do valor... que a esperança de que uma teoria dos
valores possa fundar o caráter eventualmente obrigatório dos valores,
precisamente como fundação do bem no ser. Somente desse ponto de
vista poder-se-ia mostrar que ao se ligar a valores, a natureza tem
igualmente a autoridade de lhes sancionar e que ela é habilitada a
exigir seu reconhecimento de nós e de todo querer consciente em seu
seio.
(Ibidem. Grifos nossos.)
Jonas conclui o capítulo III reafirmando sua demonstração de que a natureza
cultiva valores, dado que ela cultiva fins e que, portanto,
ela é tudo menos livre de valores,
sobretudo porque, inegavelmente, os valores são postos e validados por ela própria. Ele,
porém, admite que a questão quanto a saber se o consentimento com relação a tal
posição de valores seria nossa mera opção ou nossa obrigação não foi ainda respondida.
E mais que,
Essa questão não pode mais receber respostas da teoria dos fins que
estabelecia esta demonstração, mas somente da teoria dos valores em
direção a qual nós nos voltamos agora. Mas somente essa
demonstração a imanência dos fins no ser tornara possível se
colocar essa questão e parecerá desta maneira que a teoria ética já
teria ganhado sua batalha mais decisiva.
(Ibidem.)
Isso significa que toda essa discussão sobre o fim na natureza consistiu numa
etapa necessária, mas o suficiente para realizar a fundamentação da ética jonassiana.
Razão pela qual, terminado esse tópico que forneceu a exposição da teoria dos fins que,
como visto, constitui a primeira etapa da fundamentação jonassiana da ética será preciso
ainda apresentar a segunda etapa desse processo, tarefa que será abordada no tópico
seguinte.
272
5.3 - Fundamentação passo 2 - A teoria da responsabilidade ou a articulação entre o
Bem, o Dever e o Ser
O capítulo IV de PR - intitulado “O Bem, o Dever e o Ser: Teoria da
responsabilidade”- que tem em vista demonstrar a relação entre o Ser e o Bem para
chegar ao Dever e expor a teoria da responsabilidade, constituindo, assim, a parte
conclusiva da fundamentação -, está dividido em sete tópicos
464
articulados da seguinte
maneira: no primeiro tópico, Jonas retoma (embora noutra perspectiva) a relação entre
“Ser e Dever
465
; do segundo ao quarto tópico, ele expõe a teoria da responsabilidade,
propriamente dita; no quinto, ele extrai algumas conseqüências de sua teoria para o
âmbito prático-político; no sexto, ele discute a questão: “por que até então a
responsabilidade não ocupou o centro da teoria ética” e no sétimo, ele estabelece a
criança como”objeto elementar da responsabilidade”.
A discussão do “Ser e dever” está subdividido em nove passos e seu ponto de
partida é a afirmação de que
“Fundar o «Bem» ou o «Valor» no ser, isto significa transpor o
pretenso abismo entre o ser e o dever.”
(PR. 157)
Pois como vimos, o bem ou o que tem
valor, sempre que existe por si e não devido a um desejo, necessidade ou escolha, é, por
seu próprio conceito, precisamente aquilo cuja mera possibilidade já implica a exigência
de sua realidade, tornando-se assim um dever, desde que em presença de uma vontade
que seja capaz de perceber tal exigência e de convertê-la em agir. Prenuncia-se, assim, a
articulação entre as dimensões: axiológica, ontológica e deontológica.
464. Dos quais apenas o primeiro será abordado detalhadamente, por trazer a articulação entre o bem, o
dever e o ser. Dos demais serão apontados apenas os aspectos mais relevantes para o tema em questão.
465. Esse primeiro tópico tem o mesmo título do último tópico do capítulo II, “Ser e Dever”, tema que
evidentemente será, então, abordado noutra perspectiva. Pois, se ali a abordagem era essencialmente
ontológica e a ênfase, portanto, recaía sobre o conceito de Ser, aqui, como veremos, a discussão
teleológica preparou o caminho para a abordagem axiológica, para se chegar, enfim, à deontologia, a
ênfase, recaindo, portanto, sobre o conceito de Dever. De qualquer modo, é bastante significativo que o
tema ser e dever apareça mais de uma vez no PR, evidenciando a necessidade vital de sua articulação para
a superação do dualismo ético relacionado à “lei de Hume” e para a sustentação da ética jonassiana.
273
Jonas enfatiza ainda que
“falar do ser-em-si do bem ou do valor isso quer dizer que o
bem ou o valor fazem parte da bagagem do ser (não necessariamente, entretanto, da atualidade
particular do existente) a axiologia torna-se assim uma parte da ontologia.”
(Ibidem)
A questão que se coloca é, então, que relação entre essa proximidade entre o
valor e o ser e a “essência da natureza”? É o que Jonas pretende elucidar a seguir.
Seu primeiro passo é distinguir
“O «bem» e o «mal» com relação ao fim”
. Ele retoma
a conclusão do capítulo anterior, em que foi demonstrado que, por ser capaz de
comportar fins e de ter objetivos, a natureza também é portadora de valores, a partir do
que ele conclui que, dado um fim,
“sua obtenção em cada caso torna-se um bem e seu
impedimento um mal, e com esta diferença começa a imputabilidade do valor.”
(PR. 158)
Uma vez que, que os fins estão presentes na natureza, inclusive na nossa, Jonas
considera que, em princípio, sua dignidade consiste em serem realizados, de modo que,
segundo sua força motivante, eles poderiam ser avaliados ou conforme ao prazer
provocado por sua obtenção ou à dor decorrente de sua obstrução. Ademais, embora
seja possível classificar um fim como melhor ou pior, ele ressalta que um bem em si é
aquele que jamais
“reclama nosso assentimento.”
(Ibidem)
Por esse motivo, frente à questão se sentido em dizer que alguma coisa deve
ser, mesmo quando sua realização não visa satisfazer a pulsão, o instinto ou a vontade,
Jonas afirma que isso corresponde precisamente ao “bem em si.”
O segundo passo consiste em demonstrar “A finalidade como bem em si”, para
saber se aquilo que vale para um fim determinado no qual em primeiro lugar está a
sua faticidade e, apenas como sua derivada, a sua validade (ou valor) de «bem» ou de
«mal», - se isso vale também
“para a própria «finalidade» enquanto caráter ontológico de um
ser?”
(PR. 159)
Algo importante, dado que é precisamente nesse
fim que se revela como um traço
ontológico de um ser
que
Jonas encontra a relação entre fim e o bem-em-si. Pois, como
274
ele afirma:
“Na faculdade como tal de ter fins, nós podemos ver um bem-em-si, que é
intuitivamente certo que ele ultrapassa excessivamente toda ausência de fins do ser.”
(Ibidem)
Com essa faculdade de ter fins como um bem-em-si, ele sustenta que
a presença do
fim em si é superior a sua ausência, sendo
, portanto, levado a reconhecer
“A auto-afirmação
do ser no fim”, o que constitui
o terceiro passo, em que demonstra a possibilidade desse
reconhecimento, visto que,
“Na tendência para um fim como tal, cuja efetividade e eficiência
no mundo devem ser consideradas como sendo alcançadas, (...) nós podemos ver uma auto-
afirmação fundamental do ser que o coloca absolutamente como sendo melhor que o não-ser.”
(Ibidem)
Além dessa superioridade do ser em relação ao não-ser, Jonas afirma que
“Em todo
fim o ser se declara a favor dele mesmo e contra o não ser.”
(Ibidem)
Isso significa que o fim,
assim como o ser, se opõe ao não-ser, ou melhor, que o fim confere ao ser uma superioridade
ainda maior em relação ao não-ser.
E o mais definitivo dessa auto-declaração do ser em
decorrência do fim é o fato de que, segundo Jonas,
Contra essa declaração do ser não há contra-declaração, pois, a
negação do ser denota, ela mesma, um interesse e um fim. Isso quer
dizer que o simples fato de que o ser não seja indiferente em relação a
si mesmo faz de sua diferença com o não-ser o valor de base de todos
os valores, e mesmo o primeiro «sim» como tal.
(Ibidem)
Essa formulação constitui a base para ele passar ao quarto passo que explicita “O
«sim» da vida como um vigoroso «não» ao não-ser”, com o que Jonas afirma que a
natureza manifestou seu interesse
466
na vida orgânica e na extraordinária diversidade de
suas formas, cada uma das quais constituindo um modo de ser e de buscar seu objetivo,
que ela satisfaz gradualmente ao custo de uma restrição e de um aniquilamento,
466. No original, Interesse e na versão francesa: intérêt que pode mesmo significar interesse, mas
também envolvimento, preocupação.
275
equivalentes. Custo que ele considera necessário, pelo fato de que cada fim apenas se
realiza em detrimento de outros fins.
Essa diversidade genérica é também uma seleção, com relação à qual não se pode
afirmar se ela sempre foi a «melhor», apenas que sua conservação é, sem dúvida,
um bem face à alternativa da destruição e do perecimento. Mas, mais
ainda que na extensão do espectro genérico, o interesse se manifesta
na intensidade dos fins dos próprios seres vivos
467
, nos quais o fim da
natureza torna-se progressivamente subjetivo, quer dizer, [cada vez]
mais o fim próprio do executante correspondente.
(PR. 161)
Logo, segundo Jonas, é exatamente na esfera da luta da vida contra morte, que
mais se enfatiza a auto-afirmação do ser. Nesse embate, a vida expressa uma escolha
frente ao risco do não-ser que, por mais paradoxal que possa parecer, faz parte de sua
própria essência.
o quinto passo expressa “O «sim» ontológico como um dever para o homem”,
mostrando que esse «sim», que inicialmente age de forma cega nas outras formas de
vida, conquista sua força de obrigação
“na liberdade lúcida do homem que, como resultado
supremo do trabalho de finalização da natureza, não é simplesmente seu agente suplementar,
mas pode igualmente se tornar seu destruidor graças ao poder que o saber fornece.”
(PR. 163)
Razão pela qual o homem deve inserir o «sim» no seu querer e antepor ao seu
poder o «não» oposto ao não–ser. Entretanto, o próprio Jonas admite que essa passagem
do querer ao dever constitui o ponto nevrálgico da teoria moral, pois é justamente
onde a fundação pode tão facilmente fracassar.
Por isso, no sexto passo, que discute “O problema de um dever diferente do
querer”, Jonas solicita que
467. “O fato de que o ser vivo seja seu próprio fim não significa ainda que ele seja capaz de se propor
fins... Somente a liberdade humana se autoriza a posição e a escolha de fins e por isso mesmo a
incorporação deliberada de outros fins...”. (PR. 162. n. 1)
276
Admitamos então que a finalidade como tal seja o primeiro dos bens e
que ela tem, para exprimi-lo abstratamente, «direito» à realidade.
Apesar de tudo, essa finalidade significa já querer fins e através
deles..., a finalidade dada pela natureza se encarrega da realização
de sua reivindicação de ser que se encontra então com ela em boas
mãos.
(PR. 164)
Cabe ressaltar, porém, que a finalidade natural da auto-conservação não precisa
ser ordenada, nem mesmo se impor por meio de alguma persuasão além daquela
decorrente do prazer que corresponde a seu querer, com seu sim e seu não, sempre
presente. Pois,
mesmo se o conceito de um «querer dever» fizesse sentido, ele seria apesar de
tudo supérfluo aqui e por isso mesmo também o conceito (que efetivamente faz sentido) do
«dever fazer», sendo dado que o querer já presente acarreta automaticamente seu fazer.
(Ibidem.)
E, somente onde algo melhor ou pior se converte em objeto de uma escolha, como
ocorre na esfera humana, é possível falar, com certeza,
em nome do querer do fim de um
dever do melhor caminho”
(Ibidem.)
, ou em termos kantianos, do «imperativo hipotético»
da prudência, que concerne aos meios e não ao próprio fim. Jonas, porém, enfatiza que
qualquer que possa ser a importância desse imperativo nos meandros das questões humanas
ele tem pouca coisa em comum com o imperativo incondicional da moralidade.”
(Ibidem.)
Concluindo esse passo, Jonas indica, ainda, que é preciso mais uma vez
“nos
interrogar sobre o sentido do «valor» e do «bem».”
(PR. 165)
Tarefa realizada no sétimo
passo, ao buscar estabelecer os sentidos que distinguem os dois. Para buscar tais
sentidos, Jonas leva em consideração dois diferentes aspectos: a. o lingüístico e b. o da
validade. Ele começa afirmando que:
“a. Do ponto de vista lingüístico o «bem» face ao «valor» possui a maior dignidade do
ser-em-si”
(PR. 165)
,
pois, nossa tendência é considerá-lo como algo que independe de
277
todo desejo e opinião. Enquanto a noção de «valor» remete naturalmente às questões
«para que?» e «quanto?»: sendo a origem desse segundo termo a esfera da avaliação e
da troca. Por esse motivo, segundo Jonas, o termo «valor» designa inicialmente um grau
de querer, mais exatamente,
“do querer investir e não do dever. Eu me fixo alguma coisa
como fim, porque isso tem valor para mim ou isso tem valor para mim porque isso é imposto
como fim à minha natureza de ser de necessidade, anteriormente a toda escolha”.
(PR. 166)
Cabe inferir, portanto, que todo fim que eu me proponha, somente por isso é
considerado um «valor», ou seja, algo que, no momento, vale a pena que eu busque.
Todavia, embora relevante, esse aspecto não é ainda suficiente, pois, como,
adiante Jonas assinala sobre o sentido, na perspectiva da validade:
b. “(...) nós não
renunciamos a distinguir entre fins válidos e fins não válidos e isso independentemente do fato
de saber se nosso desejo nele encontrou seu registro ou não.”
(PR. 167)
Isso equivale a dizer que nem sempre aquilo que «vale a pena», necessariamente,
coincide com o que «vale a pena para mim». Entretanto, Jonas ressalta que
“o que vale
realmente a pena deveria se tornar o que vale também a pena para mim e o que por isso se
transformou para mim num fim.”
(Ibidem. 1
º
Grifo nosso)
Pois,
valer «realmente» a pena”
deve
significar
qu
e o objeto do meu esforço (ou pena) é bom em si e não em função das
minhas preferências.
Razão pela qual ele assevera que esse
bem em si, necessariamente,
deve tornar-se um fim. Daí que, e
mbora ele não possa obrigar o querer livre a torná-lo seu
fim, ele pode lhe extrair sua confissão de que essa seria efetivamente sua obrigação.
Logo,
“Se não é na obediência, é no sentimento de culpabilidade que se manifesta a confissão.
Nós faltamos com o respeito ao bem.”
(Ibidem)
Com esse aspecto, Jonas enfatiza não apenas a ação, mas também o agente,
elementos que ele aborda, em seguida, no oitavo passo “Fazer o bem e o ser daquele que
o faz: a prevalência da «causa»”, cuja exposição se divide em três momentos, o primeiro
278
que focaliza o agente (a), o segundo que enfoca o próprio agir (b) e o terceiro que
fornece os dois fundamentos de sua teoria ética (c).
(a) Começando pelo agente, Jonas afirma que nem nosso sentimento nem a
distinção entre desejo e dever fornece a certeza de que “fazer o bem pelo bem” possa
beneficiar de algum modo aquele que o realiza, seja a ação bem sucedida ou não. Ainda
assim, pode-se dizer que
“seu ser moral ganhou pelo fato de responder ao apelo da obrigação
ao se curvar a ela” (PR. 168),
mesmo não sendo esse o bem diretamente buscado.
Nisso reside
“O mistério ou o paradoxo da moral [...] o si deve ser esquecido em
proveito da causa, a fim de deixar advir um si de ordem superior (que é igualmente um bem em
si).” (Ibidem) A
ssim, Jonas pode definir o
homem bom como aquele que faz o bem
pelo
bem, que, segundo pensa
é a «causa» no mundo e mesmo a «causa» do mundo.”
(Ibidem.
Grifos nossos)
Razão pela qual, desse modo, jamais a moralidade poderia se tomar por seu
próprio fim. Pois, sua finalidade ou causa não pode ser ela mesma, apenas o bem em si.
(b) Por esse motivo, em seguida, Jonas, distanciando-se de Kant, afirma que não é
a forma, mas o conteúdo do agir que tem prioridade.
Ou ainda,
Não é a própria obrigação que é o objeto, não é a lei moral que
motiva o agir moral, mas o apelo do bem em si possível no mundo que
se ergue face ao meu querer e que exige ser escutado
conformemente à lei moral. Escutar esse apelo é precisamente o que
ordena a lei moral: essa não é nada mais que a persuasão genérica
do apelo de todos os bens dependendo da ação e de seu direito
respectivo à minha ação.
(PR. 168)
Pois, a lei moral nos impõe como dever aquilo que a intelecção nos aponta que,
por si, merece existir e por isso pode exigir o nosso agir. Para que isso nos influencie de
forma a mobilizar nossa vontade, devemos ser capazes de ser afetados por tais coisas.
Por isso, nosso lado emocional precisa também entrar em campo. Desse modo,
“a
279
essência de nossa natureza moral implica que o apelo, tal qual a intelecção nos transmite,
encontre uma resposta em nosso sentimento. É o sentimento de responsabilidade.
(PR. 169)
(c) Sendo assim, a teoria da responsabilidade como, aliás, toda teoria ética, precisa
refletir também sobre dois aspectos igualmente relevantes:
“o fundamento racional da
obrigação, quer dizer, o princípio legitimante por trás da reivindicação de um «se deve» que
obriga, e o fundamento psicológico de sua faculdade de abalar o querer, quer dizer, de se tornar
para um sujeito a causa que faz que ele deixe determinar seu agir por ele.”
(Ibidem)
Isso evidencia que a ética tem duas faces: uma objetiva e uma subjetiva, sendo
que a primeira tem a ver com a razão e a segunda com o sentimento. Segundo Jonas, no
curso da História, elas revezaram entre si a posição de centro da teoria ética;
“e
tradicionalmente foi o problema da validade, quer dizer, a face objetiva, que mais ocupou os
filósofos. Mas as duas faces são mutuamente complementares e uma e outra são partes
integrantes da ética como tal.”
(Ibidem)
Outro aspecto relevante, sobre o qual Jonas chama nossa atenção, indica que
do sentido mais próprio do princípio normativo faz parte o fato de que
seu apelo se endereça a seres que lhe são receptivos por sua constituição,
quer dizer, por sua natureza (o que não garante ainda que se lhe
obedeça). Sem dúvida, pode-se dizer que não haveria «tu deves» se não
houvesse ninguém que pudesse entendê-lo e que, por si mesmo, seja
acordado por sua voz e mesmo que busque escutá-lo.
(PR. 170)
Dessa capacidade de serem afetados decorre que, ao menos potencialmente, os
homens já são «seres morais» e, justamente por isso, eles podem também ser imorais.
Jonas afirma, porém, que
“o próprio sentimento moral reclama uma autorização vinda
além dele mesmo e não somente afim de se colocar ao abrigo de contestações vindas de fora
(...), mas em virtude de uma necessidade interna do sentimento em si, de ser mais que um
simples impulso.”
(Ibidem.)
280
Ele acrescenta que tal condição subjetiva não afeta a validade mas, sim, a eficácia
do comando moral e que a lacuna entre
“a sanção abstrata e a motivação concreta deve ser
transposta pelo arco do sentimento único que pode abalar a vontade.”
(PR. 170-171)
Assim, o fenômeno da moralidade enquanto tal resulta desse encontro que Jonas
resume com a expressão
“a presença subjetiva de um interesse moral.”
(PR. 171)
Seguindo a ordem lógica, primeiro estaria a validade das obrigações e, em
segundo lugar, seu sentimento correspondente. Contudo, seguindo a ordem do acesso,
Jonas começa pelo aspecto subjetivo, lançando um breve olhar sobre o elemento
emocional da moralidade, tal qual abordado pela teoria ética anterior.
Assim, no nono e
ú
ltimo passo desse tópico, Jonas expõe
“O aspecto emocional da
moralidade na teoria ética do passado”
, indicando quatro exemplos e, em cada um deles,
um diferente sentimento priorizado por algumas das principais teorias éticas anteriores à sua.
O primeiro exemplo destaca
“O amor ao «bem supremo»(a)
e, para começar, Jonas
ressalta que os antigos filósofos moralistas admitiam a necessidade de o sentimento
se aliar à razão para que o bem objetivo pudesse afetar nossa vontade ou, noutros
termos, que a própria moral, para controlar os afetos, precisa também de um afeto. Entre
os maiores, somente Kant precisou tratar desse tema
como uma concessão feita à nossa
natureza sensível ao invés de aí ver uma parte integrante do elemento ético em si.”
(PR. 172)
Dentre todos os diferentes sentimentos apontados pelos filósofos, Jonas constata a
ausência da responsabilidade e ressalta que a maioria deles
são inspirados por e orientados para um objeto representando um
valor supremo, um «bem supremo». Tradicionalmente, o summum
bonum tinha com freqüência a significação complementar ontológica
(um corolário da idéia de perfeição) de que isso devia ser alguma
coisa de intemporal, que concede à nossa mortalidade o atributo da
eternidade. O objetivo do esforço ético é [era] então de tornar seu
281
próprio estado adequado a esse objeto supremo... de lhe dispensar um
lugar no mundo temporal. O imperecível convida[va] o perecível a
participar dele e suscita[va] nele sua aspiração.
(PR. 172)
Todavia, quando o sentimento em foco é a responsabilidade, seu objeto não é
mais o imperecível, mas, precisamente o
“perecível enquanto que perecível...”.
(PR. 173)
Assim, se no caso anterior, o summum bonum era o objeto supremo do empenho
ético para trazê-lo da esfera eterna (atemporal) para a dimensão temporal, no caso da
responsabilidade, seu
objeto contingente em sua faticidade, apreendido precisamente em
seu caráter perecível, em seu estado de necessidade e na sua
incerteza, é tomado como tendo a potência de mobilizar pela simples
existência (...) a disponibilização de minha pessoa, ao abrigo de todo
desejo de apropriação. E ele o pode manifestamente senão não
haveria sentimento de responsabilidade em relação a tal existência.
(Ibidem.)
O segundo exemplo aborda o “Agir pelo agir” (b), onde Jonas menciona os tipos
de éticas
468
em que
“a forma ou o espírito do próprio ato é o tema da norma e onde o objeto
externo que fornece a situação é antes a ocasião que o objetivo real da ação. Não é o «que», mas
o «como» do agir que importa aqui. ... [
onde
] reina no mais alto ponto a liberdade de si.”
(PR.
174)
Jonas menciona, aqui, a concepção de Weber que distingue entre a ética da
responsabilidade e a ética da convicção, já discutida no capítulo 3.
O terceiro exemplo expõe “O «respeito da lei» de Kant” (c) remetendo à
formulação kantiana que, segundo Jonas, mais uma vez é única
“nesse debate entre os
princípios «materiais» e «formais», «objetivos» e «subjetivos» do ato moral.”
(PR. 175)
468. Segundo Jonas, “O extremo moderno dessa ética da intenção subjetiva é o existencialismo (cf. a
«vontade de querer» de Nietzsche, a «decisão autêntica» de Sartre, a «autenticidade a «resolução» de
Heidegger e assim por diante)”. (PR. 174)
282
Jonas considera que o mais excepcional da concepção kantiana é que nela
o
sentimento se dirige à própria lei e não a algo objetivo.
Ele chama nossa atenção afirmando
que, curiosamente, a principal descoberta de Kant, - cujo aspecto mais impressionante é
o fato de provir
“do defensor da autonomia incondicional da razão em matéria de moral”
(Ibidem)
é a constatação de que, para que a lei moral possa impor-se à nossa vontade, o
sentimento deve também atuar ao lado da razão
.
Kant, porém, explicita que
“não é um
sentimento que suscita em nós um objeto (o que tornaria a moral «heterônoma»), mas a idéia da
obrigação ou da lei moral: o sentimento do respeito.”
(PR. 176)
Assim, a própria razão se converte em fonte de um afeto. Obviamente, não se trata
aqui da razão como «faculdade de conhecer»
469
, ou melhor, em seu uso teórico, mas a
razão
“como princípio de universalidade ao qual a vontade deve se conformar... pela
modalidade da autodeterminação em vista da universalização possível de sua máxima.”
(Ibidem.)
Isto é, em seu uso prático. Jonas ainda acrescenta que, para Kant, o único conteúdo do
imperativo categórico cuja sublimidade inspira o respeito é a forma interna do querer.
Todavia, Jonas alega que, embora a própria formulação kantiana não seja
destituída de sublimidade, ela conduz a um absurdo.
“Porque o sentido do imperativo
categórico é, como demonstram todas as suas aplicações na casuística, não a posição de fins,
mas a auto-limitação da liberdade pela regra do acordo da vontade consigo mesma, na busca dos
fins.” (Ibidem.)
Sentido que Jonas considera incoerente, dado que
,
sem dúvida, uma universalidade mais ampla é uma virtude dos
enunciados teóricos num sistema da verdade, e sua validade para
qualquer outro entendimento auto-evidente... mas é impossível que ela
seja o primeiro fundamento de minha escolha, e muito menos a fonte
do sentimento - seja o respeito ou outra coisa que aqui e agora sele
minha aliança com a coisa.
(PR. 176-177)
469. Essa expressão, empregada por Jonas, desconsidera a distinção kantiana estabelecida entre a razão
como «faculdade de pensar» e o entendimento como a «faculdade de conhecer».
283
Jonas adverte que a intuição moral kantiana excede o que foi estabelecido pela
lógica de seu sistema. Além disso, ele sabe que não foi o único
470
a apontar
“o vazio
particular ao qual conduz «o imperativo categórico» puramente formal com seu critério da
possibilidade de universalizar sem contradição à máxima do querer.”
(PR. 177)
Ele reconhece, porém, que o próprio Kant buscou compensar
o simples formalismo de seu imperativo categórico por um princípio
de comportamento «material», que pretensamente dele decorre, ao
passo que em verdade ele lhe é sobreposto: o respeito pela dignidade
das pessoas enquanto que elas são seus próprios fins. A crítica de
vazio não vale certamente para isso! Ora, o valor próprio
incondicional dos sujeitos razoáveis não decorre de nenhum princípio
formal, mas ele deve persuadir o sentido dos valores do observador
que julga ao se basear sobre a intuição do que é um si agindo
livremente no mundo da necessidade.
(Ibidem.)
Pode-se reconstruir essa passagem indicando que, embora a fórmula do fim-em-si
neutralize a crítica endereçada ao imperativo categórico como um princípio puramente
formal e vazio, Jonas considera que, na verdade, o
respeito pela dignidade das pessoas
enquanto que elas são seus próprios fins
não decorre do mero princípio, mas d
o valor
incondicional dos sujeitos razoáveis
que agem
livremente no mundo da necessidade.
Então, ele expõe
“O ponto de vista da análise seguinte” (d)
, mostrando que no tocante
à vontade em primeiro lugar estão as coisas
e não o que chama de estados da vontade.
Mas,
ao mobilizar minha vontade, as coisas se tornam fins para mim. Ele ainda acrescenta
que a
lei enquanto tal não pode ser nem a causa nem o objeto do respeito; mas o ser,
reconhecido em sua plenitude ou em uma de suas manifestações individuais”.
(PR. 178)
470. Jonas indica a vigorosa critica de Max Scheler in Le Formalisme en l’éthique matérialiste des
valeurs, traduzido para o francês por Maurice de Gandillac, Paris: Gallimard, 1955.
284
Ele avalia que, embora necessário, o mero respeito não basta, porque pode ocorrer
que essa concordância do sentimento frente à dignidade do objeto, não produza efeitos e
“permaneça inoperante.” Por isso
, Jonas afirma que
“Apenas o sentimento de
responsabilidade que vem se somar ao unir tal sujeito a tal objeto nos fará agir a seu favor.”
(Ibidem.)
Ou melhor, para ele, somente tal sentimento é capaz de despertar em nós uma
disposição a agir de modo a considerar a exigência de existência de tal objeto.
A seguir, Jonas evoca mais uma vez a solicitude dos pais que, a partir do que
foi indicado, pode ser considerada como
o arquétipo humano elementar da coincidência entre a
responsabilidade objetiva e o sentimento subjetivo de
responsabilidade, tão espontânea que não precisa invocar a lei moral,
e que a natureza nos educou antecipadamente em vista dos tipos de
responsabilidade que carecem da garantia do instinto e que nela
preparou nosso sentimento.
(Ibidem.)
Após todas essas considerações, Jonas propõe que agora nos voltemos
“para esse
fenômeno «responsabilidade», sobre o qual a teoria ética em seu conjunto tem sido de tal modo
muda.”
(PR. 178-179)
Assim, no segundo tópico - “Teoria da responsabilidade: distinções
preliminares” -, tem início a formulação da teoria da responsabilidade propriamente
dita. Esse tópico é desenvolvido em sete passos, cada um abordando um diferente
aspecto do conceito de responsabilidade.
O primeiro passo aborda a “A responsabilidade como imputação causal dos atos
cometidos”, discutida em três momentos: (a), (b) e (c).
a) De saída, Jonas afirma que
o poder causal, como
a condição da responsabilidade,
pode ser compreendido como o poder de agir. Ademais, ser responsável significa
responder por seu ato e por suas conseqüências. E, e
m alguns casos, é preciso fazer com que
285
o ator assuma sua responsabilidade. Tal medida
tem origem no âmbito jurídico
471
e não
exatamente no moral. N
esse contexto inicial
“A negligência é (...) a única coisa que deve
eventualmente ser dita moralmente culpável e num sentido trivial”.
(PR. 179)
b) Ele assinala, porém, que num segundo momento,
“misturou-se à idéia da
compensação jurídica aquela da punição que tem uma significação moral e que qualifica o ato
causal como sendo moralmente culpável. ... [nesse caso, é] a qualidade e não a causalidade do
ato que é o ponto decisivo que se assume a responsabilidade.”
(PR. 180)
c) Outro aspecto relevante dessa responsabilidade como imputação causal dos
atos cometidos, é que, segundo Jonas,
A diferença indicada entre a responsabilidade legal e a
responsabilidade moral se reflete na diferença entre direito civil e
direto criminal, no curso da evolução divergente dos quais os
conceitos à origem misturados da compensação (pelo fato de incorrer
à responsabilidade jurídica) e da punição (pelo fato da culpa) foram
dissociados. Mas um e outro têm em comum que a «responsabilidade»
se refere aos atos cometidos e que ela se torna real pelo fato de que o
ator é tomado como responsável pelo exterior.
(PR. 180-181)
Segundo Jonas, o que leva o ator a assumir, ainda que interiormente, a
responsabilidade é um sentimento, que pode variar entre um sentimento de
culpabilidade, remorso, aceitação do castigo, ou mesmo um orgulho obstinado que
incide retroativamente, após ter sido praticada a ação. Isso significa que
“sua antecipação
no começo do agir não serve de motivo ao ato, mas (se ele possui uma eficácia) de seleção do
ato, quer dizer de motivo de admissão ou de eliminação.”
(PR. 181)
Por esse motivo,
No fim das contas, quanto menos se faz as coisas, menos se assume a
responsabilidade, e na ausência de obrigação positiva evitar a ação
471. Essa análise remontando à origem jurídica da responsabilidade aproxima-se daquela oferecida por
Paul Ricœur no texto “Le concept de responsabilité ...” in Le Juste. Paris: Esprit, 1995. pp. 41-70.
286
pode se tornar um conselho de prudência. Em suma, a
«responsabilidade» assim compreendida por si mesma não fixa fins,
mas ela é a imposição totalmente formal sobre todo agir causal entre
os homens, exigindo que se possa pedir as contas. Ela é assim a
condição prévia da moral, mas não é ainda ela mesma a moral.
(Ibidem)
No segundo passo, “A responsabilidade pelo a fazer: a obrigação do poder”, Jonas
mostra que existe, porém, outro conceito de responsabilidade que não diz respeito
“ao
cálculo ex post facto do que foi feito, mas à determinação do que está a fazer; um conceito em
virtude do qual eu me sinto então responsável não em primeiro lugar por meu comportamento e
por suas conseqüências, mas pela coisa que reivindica meu agir.”
(Ibidem)
Numa interessante inversão, Jonas estabelece que, em função desse outro conceito
de responsabilidade
O que é dependente, por seu direito próprio, torna-se o que comanda,
o poderoso com seu poder causal torna-se o que é submetido à
obrigação. O poder torna-se objetivamente responsável pelo que lhe é
confiado desta maneira e ele é engajado afetivamente pela tomada de
partido do sentimento de responsabilidade: no sentimento o que
obriga descobre sua ligação com a vontade subjetiva.
(PR. 182)
Contudo, Jonas esclarece que a origem dessa tomada de partido do sentimento
não é a idéia geral de responsabilidade, mas
“o reconhecimento da bondade intrínseca da
coisa, tal qual ela afeta a sensibilidade e tal como ela humilha o puro egoísmo do poder.”
(PR.
182-183)
Assim, o dever-ser do objeto antecede o dever-fazer do sujeito, que é intimado a
se encarregar dos aspectos causais. Isto é, a dar início ao agir. E, com base no
sentimento dos pais pelos filhos, Jonas acrescenta que
“Se o amor se acrescenta à
responsabilidade recebe o élan da devoção da pessoa que aprende a tremer pela sorte do que é
287
digno de ser e do que é amado.”
(PR. 183)
Com base nessa ocorrência, Jonas pode
considerar a responsabilidade numa perspectiva inteiramente diferente de todas as
formas já abordadas por outras teorias éticas e defender que
É esse tipo de responsabilidade e de sentimento de responsabilidade,
e não a «responsabilidade» formal e vazia de qualquer ator em
relação a sua ação que nós temos em vista quando falamos da ética
da responsabilidade pelo futuro de que nós precisamos hoje. ... ([a
partir do qual] nós podemos dizer sem nos contradizer que se é
responsável por seus atos mais irresponsáveis) o que pode querer
dizer «um agir irresponsável». Deve ser excluído aqui o sentido
formalista do termo «irresponsável» = ser incapaz de assumir a
responsabilidade, logo não poder ser considerado como responsável.
(Ibidem)
Assim, no terceiro passo, Jonas esclarece “O que significa «agir de maneira
irresponsável»”. Pois, conforme afirmou, somente aquele que possui a capacidade de ser
responsável pode agir irresponsavelmente.
Mas o que ele entende por isso? Para compreender é preciso considerar a situação
em que
“O bem-estar, o interesse, o destino de outrem é colocado em minhas mãos devido às
circunstâncias ou por uma convenção, o que quer dizer que meu controle sobre isso inclui ao
mesmo tempo minha obrigação por isso.
(PR. 184)
Em tal circunstância, o
“Exercer o poder sem observar a obrigação é então
«irresponsável», quer dizer, uma ruptura na relação de confiança da responsabilidade.”
(Ibidem)
No quarto passo, “A responsabilidade: uma relação não recíproca”, Jonas admite
que existam relações nas quais se estabelece um tipo de responsabilidade recíproca entre
todos os envolvidos. Por exemplo, nas tarefas coletivas em que todos os integrantes
correm perigo e, na qual, todos são responsáveis uns pelos outros, que disso, afinal,
depende o sucesso do empreendimento e a sobrevivência do grupo.
288
Mas, o tipo de responsabilidade que ele postula em sua ética foge a esse modelo,
tanto quanto do modelo de responsabilidade «horizontal» encontrado na relação entre
iguais, como, por exemplo, entre companheiros e irmãos. A responsabilidade que ele
vislumbra é mais próxima daquela «vertical» que existe dos pais com relação aos filhos
e que, além de não pressupor qualquer reciprocidade, não é específica, mas global, que
não é ocasional, mas permanente. Ao menos, enquanto forem crianças e dependentes e
cuja ausência de responsabilidade, implica uma forma eticamente condenável de
irresponsabilidade.
No quinto passo, Jonas distingue entre “Responsabilidade natural e
responsabilidade contratual”, afirmando que
A responsabilidade instituída pela natureza, quer dizer, a
responsabilidade que existe pela natureza é o único exemplo alegado
até aqui (e que é o único familiar), aquele da responsabilidade
parental. Essa não depende de nenhum consentimento prévio ela é
irrevogável e não anulável; e ela é global. [E] A responsabilidade
instituída «artificialmente», pela atribuição e aceitação de um cargo,
... (mas também aquela que decorre de um acordo tácito ou da
competência) é circunscrita pela tarefa quanto a seu conteúdo e
quanto a sua duração
(PR. 186-187).
Por exemplo, a responsabilidade do capitão de um navio ou avião pela segurança
de seus passageiros e sua tripulação, que dura o tempo exato da viagem. Segundo Jonas,
este tipo de responsabilidade pressupõe
“a aceitação, contém um elemento de escolha, em
relação ao qual uma retratação é possível, e igualmente da outra parte a possibilidade de ser
desencarregado da obrigação.”
(PR. 187)
Jonas considera que nesse último tipo de responsabilidade é possível um
comportamento contrário à obrigação, mas não propriamente um comportamento
289
irresponsável.
Logo, ele reserva o sentido forte desse termo
“à traição das responsabilidades
que possuem validade independente que põe em perigo um bem verdadeiro.”
(Ibidem)
Ou seja, somente se pode ser irresponsável por se negligenciar a
responsabilidade
pelo bem, cuja existência não é jamais garantida (...) que depende integralmente de nós [e] é
totalmente incondicional e irrevogável”.
(Ibidem)
A seguir, no sexto item, Jonas discute “A responsabilidade livremente escolhida
do homem político”. Pois, segundo ele, ainda outro tipo de responsabilidade que
ultrapassa a diferença entre a responsabilidade natural e a responsabilidade contratual.
que, no primeiro caso, exemplificado pela responsabilidade dos pais pelos filhos,
tratava-se de uma responsabilidade não escolhida, pois determinada em função do
objeto e, no segundo, estabelecida pela aceitação de uma missão ou tarefa.
Contudo, outro exemplo de responsabilidade, que constitui
um caso eminente em que um bem de primeira ordem e de dignidade
incondicional que não se situa nele mesmo, mas na esfera da ação atual
de nosso poder, pelo qual nós não podemos então ainda ser responsáveis,
pode se tornar o objeto de uma responsabilidade livremente escolhida -
de modo que a escolha vem de início e que em seguida, para o bem da
responsabilidade escolhida, ela se proporciona somente o poder que é
necessário à sua apropriação e ao seu exercício. O caso paradigmático é
aquele do homem político que anseia o poder a fim de ter
responsabilidades e que anseia o poder supremo a fim de exercer a
suprema responsabilidade.
(PR. 188)
Diferentemente da responsabilidade dos pais, cujo objeto é da esfera privada,
aqui,
“o objeto da responsabilidade é a res publica, a «coisa pública» que numa república é
potencialmente assunto de todos ... [mas que] ninguém é formalmente considerado obrigado a
exercer as funções públicas”.
(PR. 189)
290
Razão pela qual todo aquele que se sente chamado a exercer tais funções, assume
de livre e espontânea vontade, toda a responsabilidade que o cargo em questão implica.
E quanto maior o poder aspirado, maior a responsabilidade dele emanada.
No sétimo e último passo desse tópico, Jonas expõe os contrastes entre
“Responsabilidade política e responsabilidade parental
, indicando que, embora entre elas
existam algumas semelhanças, há também algumas diferenças “que saltam aos olhos”.
Assim, a responsabilidade dos pais é comum a todos que, mediante escolha ou
não, tornam-se pais, a responsabilidade política apenas concerne àqueles que optam
pela vida política. A primeira se dirige aos indivíduos singulares que nós mesmos
geramos e a segunda aos numerosos indivíduos anônimos da sociedade já existente. A
origem da primeira é o fato de se tornar, voluntariamente ou não, autor imediato de tais
existências totalmente dependentes; da segunda, é a disposição de assumir um cargo
público com o objetivo de zelar pelo interesse coletivo, com ou sem o consentimento
dos concernidos. A primeira é inteiramente natural e se dirige a objetos próximos e a
segunda, instituída da forma mais artificial, endereçada a objetos mais distantes.
Com tantas diferenças o que afinal elas têm em comum? É o que Jonas aborda, a
seguir, no terceiro tópico, que apresenta a “Teoria da responsabilidade: pais e homem de
Estado, dois paradigmas eminentes”, discutido em oito passos.
O primeiro passo enfoca “A primazia da responsabilidade do homem pelo
homem” que constitui o traço comum entre os dois modelos de responsabilidade e que,
segundo Jonas, pode ser resumido em três termos: «totalidade», «continuidade» e
«futuro» com relação à existência e à felicidade dos seres humanos. Aqui, o elemento
“ser humano” é tomado como o pólo fundamental. E, embora todo ser vivo seja, devido
à própria existência, seu próprio fim e nisso não se distinga do homem, Jonas reconhece
que
“o arquétipo de toda responsabilidade é aquela do homem em relação ao homem”.
(PR. 193)
291
Dado que, se
o sinal distintivo do homem, o fato de que ele somente possa ter
responsabilidade significa, ao mesmo tempo, que ele deve também tê-
la pelos outros que lhe são semelhantes eles próprios sujeitos
potenciais de responsabilidade e que sob uma ou outra relação ele
a tem: a faculdade de tê-la é a condição suficiente de sua
efetividade.
(PR. 194)
Por esse motivo, no segundo passo, Jonas introduz “O «primeiro comando»: que
exista a humanidade”, independente de qual seja o balanço da história humana. Se os
grandes feitos superam ou não as tragédias causadas pelo próprio homem, devido à
dignidade do homem,
“a existência do homem tem sempre a prioridade, pouco importa que ele
a mereça em vista do que foi feito até aqui e em vista de sua continuação provável”
. (PR. 195)
Desse modo, ele estabelece que
“a manutenção dessa possibilidade enquanto
responsabilidade cósmica significa a obrigação de existir. (...) pode-se dizer que: a possibilidade
de que haja a responsabilidade é a responsabilidade que tem prioridade absoluta.”
(Ibidem.)
Conseqüentemente, do fato da existência da humanidade, Jonas extrai o primeiro
comando, que ordena simplesmente: “que os homens vivam”; do qual deriva o segundo
comando que determina “que eles vivam bem”. Assim,
O fato ôntico bruto que eles existam como tais torna-se
(...)
um
comando ontológico: que eles devem existir posteriormente. O
«primeiro comando»
(...)
está contido, sem ser mencionado, em todos
os outros (...) o comando ontológico que fez irrupção onticamente,
institui a «coisa ao mundo» fundamental (...) que obriga doravante
a humanidade, uma vez que ela se pôs a existir efetivamente, mesmo
se foi um acaso cego que a fez aparecer no seio da totalidade das
coisas. Está a «causa» originária de todas as coisas que possam
fazer o objeto da responsabilidade comumente humana.
(PR. 196)
292
No terceiro passo, que discute “A «responsabilidade» do artista por sua obra”,
embora Jonas admita a possibilidade de existir uma responsabilidade do “gênio em
relação à sua obra”, ele ressalta que,
“o obra de arte existe, entretanto, somente para os
homens e à sua intenção e somente enquanto eles próprios existem.”
(PR. 198)
Ao mesmo tempo, ele considera que um mundo sem as obras de arte seria menos
humano e a vida mais pobre de humanidade. Mas, se fosse o caso de escolher entre
salvar uma obra-prima ou uma vida humana, não pode haver dúvida quanto ao fato de
que a vida humana terá sempre a prioridade.
No quarto passo, “Pais e homem de Estado: totalidade das responsabilidades”, o
aspecto da totalidade se impõe aos dois tipos de responsabilidade apontados como
arquetípicos, cujos traços comuns manifestam, exemplarmente, a essência da
responsabilidade e se antepõem a todas as demais formas de responsabilidade. A seguir,
Jonas examina cada um desses traços, começando pela totalidade.
Por totalidade, Jonas entende o fato de que tais
“responsabilidades envolvem o ser
total de seus objetos, quer dizer, todos os aspectos daqueles, indo da simples existência, até aos
interesses mais elevados.”
(PR. 200)
O que é bastante evidente, sobretudo, no caso da
responsabilidade dos pais, a mais original e arquetípica de todas as responsabilidades.
Dado que, seu objeto não é somente as necessidades imediatas, mas a criança como um
todo e em todas as suas potencialidades.
A totalidade de tal objeto começa por seu bem-estar físico que, em seguida, é
acrescido de outros aspectos, por exemplo, a educação em seu sentido mais amplo, indo
até o objetivo maior: a realização de sua felicidade. Algo que Jonas, recordando
Aristóteles, aponta como a ratio essendi do Estado. Portanto, essa deve ser a verdadeira
preocupação do político ou mesmo de uma equipe governamental, qualquer que seja a
forma de ascensão ao poder que, por si, como já indicado, implica objetivamente tal
293
responsabilidade que - tanto quanto a responsabilidade dos pais por seus filhos -
concerne à totalidade física, aos interesses, enfim, à plenitude do ser de seus cidadãos.
No quinto passo, Jonas apresenta a “Sua confirmação no objeto”, ressaltando que
esses dois tipos de responsabilidade transitam a partir de dois pólos diametralmente
opostos: o da maior singularidade e o da maior universalidade.
Partindo do objeto, verifica-se que zelar por uma criança pressupõe a sua
formação que se destina à sua introdução no mundo humano, o que tem início pela
transmissão da linguagem, em seguida, dos códigos de conduta e dos valores sócio-
culturais, a partir do que o indivíduo se torna membro de uma comunidade mais ampla.
Razão pela qual, Jonas afirma que
“o «cidadão» é um objetivo imanente da educação”
(PR. 202)
, cuja t
arefa que, inicialmente, cabe aos pais e depois ao Estado. A educação é,
então, o melhor exemplo de como a esfera
“mais privada e a mais pública, a mais íntima e a
mais universal – se interceptam precisamente pela totalidade de seus respectivos objetos (e que,
aliás, eles se completam)
472
.”
(PR. 203)
O sexto passo estabelece “Sua analogia no sentimento”, em três momentos:
a) Considerando que as duas responsabilidades totais se ligam não apenas em
função do objeto, mas também com relação à condição dos sujeitos. No caso dos pais, a
sua condição subjetiva tem origem na consciência de serem os únicos autores da nova
vida, plena de necessidades, que exige deles todo o cuidado e que lhes desperta o
sentimento de amor inicialmente cego e impessoal, pelo recém-nascido e, em seguida,
um amor “lúcido” pela pessoa singular de cada filho.
No caso do político, ele não é, obviamente, o genitor da comunidade pela qual é
responsável. Ao invés disso, ele próprio é “filho dela”. E mesmo que não tenha, como
472. O que pode levar à supressão de um deles: nas sociedades primitivas, a dimensão do Estado é
suprimida pelas decisões familiais, e no totalitarismo, o Estado invade a esfera das ações privadas. Esta
situação pode se manifestar também no paternalismo, que Jonas aponta como um traço do estado
moderno (capitalista ou comunista). (Ver Cap. V. de PR)
294
tem a mãe, a tarefa de alimentar o bebê ou a do pai de prover o sustento da família, cabe
a ele, ao menos, a função de preservar e organizar a capacidade de sua comunidade se
auto-sustentar.
Quanto ao sentimento, embora não seja possível um amor em relação a um objeto
não individual e inteiramente universal, Jonas aponta um tipo de sentimento análogo ao
amor dos pais pelos filhos, visto que o político, em alguma medida, se identifica com a
“sua” comunidade, da qual é também um membro e com a qual se compromete a zelar
pelo seu bem-estar. residiria uma espécie de base afetiva do poder político, o que
poderia inspirar os sentimentos de fraternidade e solidariedade, os quais, por sua vez,
poderiam favorecer uma espécie distinta de amor. Sendo assim,
“O fato do sentimento
473
torna então o coração receptivo à obrigação que por si não o pede e anima a responsabilidade
assumida por seu impulso.”
(PR. 205. Grifos nossos.)
b) Jonas também uma analogia entre a total dependência da criança em relação
a seus pais e o âmbito político, uma vez que também a res publica cria necessidades que
devem ser satisfeitas pelo político para justificar sua posição.
c) Mas um aspecto que não tem qualquer equivalência entre a dimensão dos
pais e a do político: o fato dos primeiros serem os únicos geradores de seu próprio
objeto, o que determina uma relação inteiramente unilateral e funda um sentimento sem
comparação entre a responsabilidade dos pais e a política.
No sétimo passo, Jonas discute o traço da “continuidade” que deriva da natureza
total da responsabilidade, inicialmente, no sentido evidente de que sua atividade não
pode ser interrompida. Assim, nem a tarefa dos pais, nem a dos políticos pode repousar,
que o caráter de necessidade de seus objetos demanda sua constante atenção. Mas,
seu sentido mais importante diz respeito à continuidade do objeto específico em cada
caso, o qual cabe à responsabilidade resguardar.
473. Certamente trata-se de uma alusão contraposta ao famoso expediente kantiano do “fato da razão”.
295
Jonas afirma, por isso, que
“a responsabilidade total deve proceder «historicamente»,
apreender seu objeto em sua historicidade
474
, está o verdadeiro sentido do que nós
designamos aqui pelo elemento da «continuidade».”
(PR. 208)
Nesse sentido, a responsabilidade política possui uma extensão muito mais ampla,
visto que enquanto a dos pais é circunscrita à criação dos filhos até a sua vida adulta, a
dos políticos se estende nas diferentes direções do tempo.
Porém, Jonas destaca a direção que se abre ao “futuro”, que é abordado no oitavo
e último passo deste tópico. Pois, considera que o principal compromisso da
responsabilidade é, sem dúvida, em relação ao futuro de seu objeto, tanto na dimensão
individual, quanto na dimensão coletiva. E apesar do caráter de imprevisibilidade que
essa tarefa comporta, Jonas afirma que
o caráter futurível próprio daquele por quem se tem a
responsabilidade é o verdadeiro aspecto do futuro da
responsabilidade. (...) À luz de tal extensão, que se transcende a si
própria, torna-se claro que a responsabilidade como tal não é nada
mais que o complemento moral da constituição ontológica de nosso
ser temporal.
(PR. 210)
E, precisamente por isso, surge uma preocupação essencial com o futuro da
espécie humana, visto que é essa dimensão a realizar que se encontra atualmente
ameaçada por nosso agir potencializado pela moderna biotecnologia.
Daí o quarto tópico abordar a “Teoria da responsabilidade e o futuro como seu
horizonte”. De seus oito passos, aqui, apenas serão retomados aqueles mais relevantes
para nosso tema.
No primeiro, “O objetivo da educação: ser adulto”, Jonas enfatiza que, apesar de
suas semelhanças, a diferença entre os dois tipos de responsabilidade são evidentes. A
474. Seja o indivíduo em relação à sua história pessoal, ou à história da comunidade propriamente dita.
296
primeira delas deve-se ao fato de a responsabilidade parental terminar com a chegada de
seus filhos à vida adulta, o que não se dá com a responsabilidade política.
Essa vida adulta, por sua vez, resulta do processo de educação, cujo objetivo é a
autonomia do indivíduo e a sua própria assunção, como sujeito de responsabilidade.
O segundo passo mostra que “O devir histórico não se deixa comparar ao devir
orgânico”, cabendo destacar apenas a declaração de que
“Da humanidade não se pode
jamais dizer (...) que ela «não é ainda»; ... [pois,] a cada vez, o ser humano, mesmo se ele foi de
outro modo, não era mais «inacabado» do que ele é hoje.”
(PR. 214)
Do quarto passo, “A ocasião histórica: um reconhecimento sem saber prévio ...” é
preciso, retomar apenas a distinção entre um tipo qualquer de previsão e a nítida
consciência de que determinadas ocasiões históricas podem decidir o
“destino coletivo por
gerações, e talvez mesmo por séculos adiante”
(PR. 216)
.
Surge, então, a questão de definir “Qual a extensão da responsabilidade política
pelo futuro?”, que Jonas enfoca no quinto tópico, desenvolvido em seis passos, dos
quais, mais uma vez, serão retomados apenas aqueles relevantes para nossa exposição.
Com o primeiro passo, “Toda arte de governar comporta a responsabilidade pela
possibilidade de uma arte de governar futura”, Jonas propõe a seguinte questão:
Qual é então o alcance do futuro da responsabilidade política que,
diferentemente da responsabilidade dos pais, não tem um termo definido
pela natureza do objeto, mas que, por outro lado, é pressionada pelo
excesso do alcance causal em detrimento daquele do saber antecipativo,
que exige então das causas maiores sempre mais sobre ela que o que é
ainda formalmente imputável àquele que age?
(PR. 228)
Questão bastante complexa e relevante, pois afinal ela pressupõe a diferença entre
as duas formas paradigmáticas da responsabilidade, atendo-se àquela que é, justamente,
297
a mais coletiva e que mais se dirige ao futuro: a responsabilidade política. Justamente
aquela que, segundo Jonas, implica um tipo de saber próprio. Na verdade,
um saber muito geral
(...)
, nesse caso, o saber relativo à necessidade
sempre persistente
(...)
da liberdade do homem de Estado. E dele
resulta um imperativo por seu turno muito geral, mas, de modo algum
vazio concernente precisamente ao homem de Estado cujo agir tem
conscientemente esta dimensão de futuro que transborda
colossalmente em direção ao desconhecido, a saber: nada fazer que
possa impedir o surgimento posterior de seus semelhantes; logo não
obstruir a fonte indispensável, mesmo se ela for imprevisível, da
espontaneidade na coletividade, na qual deverão se recrutar os
homens de Estado futuros – logo não produzir, nem no nível do
objetivo, nem no vel do caminho em direção ao objetivo, uma
situação na qual os candidatos possíveis à repetição de seu próprio
papel serão tornados lacaios ou robôs. Em suma, uma das
responsabilidades da arte de governar consiste em cuidar para que a
arte de governar permaneça ainda possível no futuro.
(PR. 228-229)
Cabe, assim, ressaltar que esse imperativo do homem de Estado, por um lado,
prescreve a conservação e a continuidade da própria arte de governar e, por outro,
interdita toda ação que possa tornar os homens futuros meros “lacaios ou robôs”.
No segundo passo, “Os horizontes próximos e distantes sob o domínio de uma
mudança contínua”, Jonas quer saber o que ainda se pode dizer sobre o alcance
temporal da responsabilidade política, que tem sempre a ver com as necessidades mais
imediatas, para as quais são exigidas soluções urgentes.
Mas, o mais relevante para nós, aqui, diz respeito aos aspectos mais remotos sobre
o que ele recomenda ao homem de Estado dar mais ouvidos aos prognósticos negativos
para que, se o melhor não puder ser feito que, ao menos, o pior possa ser evitado.
298
O terceiro passo discute “O alcance dos progressos científico-técnicos”, aludindo
a situação atual do avanço técnico-científico que quase nunca respeita essa
recomendação de, primeiramente, levar em conta a previsão mais negativa, mesmo
quando se trata de questões que envolvam um alto grau de incerteza.
Porém, quando se trata do caso da subvenção pública de pesquisas aplicadas, que
envolve diretamente as esferas do Estado e da ciência, em virtude do poder e da
responsabilidade que tal relação implica, Jonas enfatiza que
“o homem de Estado que num
caso particular pode compartilhar a esperança, não deve, na medida do possível, fazer apostas,
mesmo que por vezes não lhe reste outra solução.”
(PR. 234)
Por outro lado, ele enfatiza que
De forma totalmente indeterminada e não antecipável isso vale (...) para
a subvenção que o Estado concede ao que se chama «pesquisa
fundamental», quer dizer, à teoria pura na qual nenhum objetivo em
absoluto é definido, mas do qual se espera simplesmente «alguma coisa»
em geral que um dia poderá beneficiar a algum interesse prático-público.
É impossível imaginar um horizonte da responsabilidade mais
indeterminado e apesar de tudo ainda realista.
(PR. 234-235)
P
ois, isso nada tem a ver com o que Jonas classifica como
“esperas de milagres,
inspiradas pelo desejo ou pelo sofrimento, freqüentemente nutridos pela crença supersticiosa na
onipotência da ciência”.
(PR. 235)
Tal crença pode conduzir a excessos e à conduta
irresponsável com base na suposta capacidade da ciência de resolver os problemas que
ela mesma cria ou, na pior das hipóteses, na capacidade humana de se adaptar a novas
condições (mesmo às mais desfavoráveis) levando a apostas que podem afetar a
condição humana atual e futura. Um risco que, como Jonas adverte, nenhum homem de
Estado, em nome da responsabilidade que seu cargo comporta, está autorizado a correr.
299
No sexto tópico, discutido em seis passos, Jonas questiona “Por que até então a
«responsabilidade» não estava no centro da teoria ética”?
O primeiro passo indica, “A circunscrição mais estreita do saber e do poder: o
objetivo da permanência”, em que Jonas considera ter condições de retomar e
fornecer uma primeira resposta à questão: por que antes dele o conceito de
responsabilidade não desempenhou um papel central ou outra função relevante e por
que o sentimento de responsabilidade não foi tomado como base afetiva na formação
moral da vontade, tanto quanto o amor e o respeito, por nenhuma teoria ética?
Segundo ele, a responsabilidade está diretamente implicada na relação, nada
simples, entre poder e saber, que
“eram anteriormente de tal modo limitados que, com relação
ao futuro, a maior parte das coisas devia ser abandonada ao destino e à estabilidade da ordem natural
e que toda atenção se dirigia para a tarefa de bem fazer o que se impunha aqui e agora.” (PR. 238)
E uma vez que, no contexto antigo, a retidão do agir encontrava-se bem abrigada
na retidão do ser, isso explica porque toda ética, de então, visava especialmente a
«virtude» que visa
“precisamente o melhor ser possível do homem e que concerne pouco além
de seu próprio exercício em direção ao depois mais remoto.”
(Ibidem.)
e que não se estende
além do alcance de sua esfera imediata de ação.
A única exceção cabia aos governantes que aspiravam uma duração “eterna” às
suas dinastias, o que, entre outras formas, podia ser assegurado por um bom conjunto de
leis. Razão pela qual, segundo esse modelo antigo,
“A melhor constituição é a mais
durável, e a virtude é a melhor garantia da permanência.”
(Ibidem.)
De tal modo que, se
“o bem verdadeiro do indivíduo (mesmo que ele não seja
obrigatoriamente aquele de todos os indivíduos) e o bem pragmático do Estado coincidem,
[isso] faz do Estado uma instituição intrinsecamente moral, e não somente utilitária.”
(PR. 239)
Ademais, anteriormente era reconhecido o caráter de
“incerteza das questões
humanas, do papel do acaso e da sorte, que não se podia avançar mais contra os que se podia
300
armar com uma boa constituição das almas e uma constituição tão resistente quanto possível do
ser comum.”
(PR. 240)
Tais eram, portanto, as únicas formas de enfrentar as incertezas do
acaso e do destino.
O segundo passo destaca, portanto, “A ausência de dinâmica”, como outro traço
marcante da ética anterior. Em contrapartida,
“A pressuposição do cálculo sobre o que
permanece essencialmente o mesmo e que é somente ameaçado pela imprevisibilidade do destino é
naturalmente a ausência desta dinâmica que domina todo o ser e a consciências modernos.”
(Ibidem.)
Assim, Jonas realça o fato de - , por vivermos hoje sob o signo da transformação
continuamente produzindo a si mesma, o realmente novo e seu produto natural: o jamais
ainda visto -, a sabedoria política antiga não poder mais ser retomada. Sobretudo
porque para aqueles cujo presente não projetava tais sombras no
futuro, mas contava essencialmente para ele mesmo, «a
responsabilidade pelo que virá» não era uma norma natural do agir –
ele não teria tido objeto comparável ao nosso e ela seria considerada
como uma hybris mais do que uma virtude.
(Ibidem.)
Mas em função das constantes modificações de suas condições possibilitadas pela
técnica, o agir do homem atual
“não pode mais ser visto sob a linha «horizontal», a continuação
temporal, mas à «vertical», no Eterno que ultrapassa a temporalidade e que é natural e integralmente
presente em cada agora.”
(PR. 241)
O que sugere uma dimensão temporal absolutamente inédita,
muito mais complexa e radical que a anterior.
O quinto passo aborda “A inversão contemporânea do enunciado: «Tu deves, logo
tu podes»”, considerando que o aspecto ético mais inusitado de nossa situação atual,
pode ser ilustrado ainda por outra confrontação, tendo por objeto essa máxima de Kant,
com base naquilo que Jonas repetiu diversas vezes, isto é, que
“a responsabilidade é um
correlato do poder, de modo que, a extensão e o tipo do poder determinam a extensão e o tipo de
responsabilidade.”
(PR. 247)
301
Assim, se o poder e seu freqüentemente exercício aumentaram ao ponto de atingir
certas proporções,
“não é somente o tamanho, mas igualmente a natureza qualitativa da
responsabilidade que se transforma de tal forma que os atos do poder engendram o conteúdo do
dever, que é então essencialmente uma resposta ao que ocorre.”
(Ibidem.)
Isso remete à relação convencional entre o dever e o poder (Können), que agora
foi invertida, uma vez que
Não está mais em primeiro lugar o que o homem pode ser e o que ele
deve fazer (o comando do ideal) e que em seguida ele pode ou o que
ele não pode, mas está em primeiro o que ele faz de facto, porque
ele o pode e a obrigação decorre do fazer: ela lhe é significada pelo
factum causal de seus atos.
(Ibidem.)
Logo, se
“Kant dizia: «Tu deves, logo tu podes». Nós devemos dizer hoje: «Tu deves, porque
tu fazes, porque tu podes», dito de outro modo, teu poder exorbitante está já em obra.”
(Ibidem.)
Em
outros termos, o dever atual decorre do fazer que, por sua vez, é decorrente do poder. E se o
poder ampliou o fazer, por extensão, é preciso também ampliar, proporcionalmente, o dever.
O sexto e último passo desse tópico aborda “O poder do homem: raiz do «se
deve» da responsabilidade”. Aqui, após esse longo percurso no interior da teoria da
responsabilidade, Jonas considera ter encontrado a resposta à pergunta que, segundo ele,
constitui o ponto crítico da teoria moral, isto é,
“a questão de saber como de maneira geral
se passa do querer ao dever: do querer que se empenha (...) enquanto que perseguindo fins, ao
fim natural da finalidade como tal que é então um «bem» em si, ao dever que lhe ordena ou que
lhe proíbe somente fins determinados.”
(PR. 248)
Sua resposta sugere que essa
“transição é
mediatizada pelo fenômeno do poder em seu sentido exclusivamente humano, onde a força
causal se alia ao saber e à liberdade.”
(Ibidem.)
Sugestão que é bastante importante, dado que
«O poder» enquanto força final causal é distribuído através de todo o
domínio do vivente (ser vivo).
(...)
Mas ele é cego e não livre,
(...)
Somente no homem o poder é emancipado do conjunto pelo saber e
302
pelo livre arbítrio e isso pode torná-lo fatal também para si mesmo.
Seu poder é seu destino e se torna sempre o destino geral. Nele e
somente nele, o dever se desprende então do querer enquanto que
auto-controle de seu poder que age conscientemente; e de início em
referência a seu próprio ser
(...)
conforme ao princípio, o homem se
torna para ele mesmo o primeiro objeto do dever
(...)
.
(PR. 248-249)
Além disso, Jonas declara que o homem em função de tal poder
“se torna o gestor
de todos os outros fins em si que caem de uma maneira ou de outra sob a lei de seu poder.”
(PR.
249) Os
quais ele tem o dever de preservar através do auto-controle de seu próprio poder.
Desse modo, Jonas afirma que
“O que, então, mantém por toda parte juntos o querer e
o dever - o poder - é a mesma coisa que coloca a responsabilidade no centro da moral.”
(Ibidem.)
Assim, no sétimo passo, que encerra o tópico e o capítulo, Jonas expõe “A criança
como objeto elementar da responsabilidade”, em três momentos.
O primeiro aborda “O «se deve» elementar no coração do «é» do recém-nascido”.
Para rematar suas reflexões sobre a teoria da responsabilidade, Jonas retorna
“ainda uma
vez ao arquétipo intemporal de toda responsabilidade, aquela dos pais em relação à criança
(PR. 250)
que constitui um arquétipo não apenas do ponto de vista genético e tipológico,
mas também epistemológico, dada sua evidência imediata.
Todavia, Jonas confronta tal evidência ao desafio da teoria moral contemporânea
que
“é precisamente o pretenso abismo entre o ser e o dever, que poderia somente ser
transposto por um fiat seja divino, seja humano, ambos fontes altamente problemáticas de
validade”.
(PR. 250-251)
Jonas tem consciência de que, nesse contexto, o que se questiona, ainda, é se
de
algo que é em si, independente de ser algo existente de fato ou apenas possível, se pode extrair
um «dever»?
Além disso,
303
O que é tomado aqui por base é o conceito de «é» em sua nudez o
que é atualmente, o que foi ou o que ainda será. É preciso então um
paradigma ôntico no qual o simples «é» factual coincide a evidência
com um «deve» que não admite, por conseguinte, o conceito de um
«simples é».
(Ibidem.)
Antecipando a pergunta do teórico rigoroso:
“Existe tal paradigma? (...) [que está]
obrigado a fazê-lo como se ele já não o soubesse”
(Ibidem.),
Jonas considera que
A resposta será sim: o que foi o começo de cada um de nós, enquanto
que nós não podemos sabê-lo, mas que se oferece sempre ao olhar
desde que possamos olhar e saber. Porque em resposta à injunção:
mostre-nos um único caso um único basta para quebrar o dogma
ontológico! onde essa coincidência se produz, pode-se remeter ao
que é o mais familiar: o recém-nascido cuja simples respiração
endereça um «se deve» irrefutável ao seu entorno, a saber, que se
cuide dele.
(PR.251)
O segundo momento expõe “Os apelos menos insistentes de um dever-ser”, em
duas partes: (a) e (b).
a) Primeiramente, Jonas atesta que
“Perguntar se o mundo deve ser não é uma coisa
insensata, mas não tem grande sentido, sendo dado que a resposta, seja positiva ou negativa, é
sem conseqüências: o mundo já existe e continua a fazê-lo, sua existência não está em perigo e
mesmo se estivesse nós não poderíamos fazer nada a respeito.”
(PR.253)
Mas, ele distingue essa pergunta inicial de outra mais relevante
quanto a “saber se o
mundo deve ser antes desta maneira ou desta outra, antes assim ou assim, porque poderia
haver espaço para uma colaboração de nossa parte e então igualmente para uma
responsabilidade e isso nos envia ao domínio mais estreito da causalidade humana”.
(Ibidem.)
Pois, uma vez sendo
304
o mundo tal qual ele é pode esperar além das necessidades
presentes do homem e em regra geral ele próprio mantém aberta a
oportunidade de que seu ser receba «cedo ou tarde» um apoio contra
o pior. O «melhor» é aqui, nota bene, não necessariamente o que
apenas está para vir: o melhor pode ser igualmente o que é preciso
preservar contra uma coisa a vir que seria pior (como, por exemplo, a
extinção das espécies de animais superiores provocada por
inconsciência).
(PR. 253-254)
b) A seguir, Jonas estabelece como sendo a
tarefa da responsabilidade humana
a
conservação
“do conjunto existente e conhecido”
(Ibidem.),
mas não daquilo que não
existe ainda. Exceção feita aos homens futuros, dado que o homem existe
efetivamente.
“Mas «quais» serão os homens em questão, isso deve felizmente permanecer em
suspenso; e dizer que um tal ou tal deve existir antes que ele exista, isso não tem sentido.”
(PR.
255)
O terceiro e último passo, com o qual Jonas encerra o capítulo, indica “A evidência
arquetípica do bebê para delimitar a essência da responsabilidade”. De fato, Jonas considera
que a responsabilidade mais fundamental é aquela com relação ao recém-nascido que une
em si
“a violência do já-ser-aí ... e a impotência plena de exigências do não-ser-ainda, o fim em
si incondicional de todo ser vivo e o somente-dever-o-devir da faculdade de lhe corresponder.
(PR. 257)
Sobre esse último ponto, Jonas esclarece que:
O dever-devir é um estado intermediário o ser sem defesa suspenso
acima do não ser que uma causalidade estrangeira deve atender.
[Pois,] Na insuficiência radical do engendrado enquanto tal é por
assim dizer previsto ontologicamente que os genitores o impeçam de
recair no nada e que eles se encarreguem de seu devir posterior.
Aceitar esse encargo está contido no ato de procriação.
(Ibidem.)
305
Por tal ato, os pais tornam-se, portanto, inteiramente responsáveis pela preservação
e formação de seus filhos, pois
“a responsabilidade no sentido mais originário e mais sólido
decorre do fato de ser autor do ser do qual participam, além dos genitores atuais, todos aqueles
que aceitam a obrigação de procriação”
. (PR. 258)
Contudo, ela implica também,
“para além dos genitores atuais, todos aqueles que
consentem à obrigação da procriação (...) então, todos aqueles que se autorizam a viver
breve, a família humana como tal a cada vez existente.”
(Ibidem.)
É precisamente, por isso, que segundo Jonas,
o
“Estado tem uma responsabilidade em
relação às crianças que dependem de seu domínio bem diferente daquele do bem-estar dos
cidadãos em geral.”
(Ibidem.)
A criança é, portanto, o objeto prototípico privilegiado da responsabilidade, pois,
“Com toda criança que vem ao mundo, a humanidade recomeça face à mortalidade e desse
ponto de vista, é a sobrevivência da humanidade que está igualmente em jogo aqui.”
(Ibidem.)
Concluindo, então, toda essa parte dedicada à fundamentação, no PR, Jonas afirma:
Assim, o «dever» que se manifesta no be possui uma evidência
indubitável, uma concretude e uma urgência. A faticidade extrema do
ser-como, o direito mais extremo a esta faticidade e a extrema
fragilidade do ser coincidem aqui. Nele se manifesta de maneira
exemplar que o lugar da responsabilidade é o ser mergulhado no
devir, entregue ao caráter perecível e ameaçado de perecer. Não é
[como] sub specie æternitas, mas sub specie temporis que ela deve
considerar as coisas e ela pode perder seu todo em um só instante. No
caso de uma vulnerabilidade de ser durável e crítico, como aquela
que existe aqui, a responsabilidade torna-se um continuum de tais
instantes.
(PR. 259)
O estabelecimento da criança como o objeto paradigmático da responsabilidade,
portanto, não é de modo algum arbitrário, uma vez que ela reúne todos os principais
306
aspectos de sua teoria: a prioridade da responsabilidade do homem pelo homem, a sua
precariedade e fragilidade e a sua abertura ao futuro. Ou seja, a criança representa o ser
humano em sua condição mais precária e mais frágil, de cujo futuro depende o contínuo e
responsável cuidado presente.
Essa conclusão esclarece porque noutro texto dedicado à fundamentação, o já
mencionado, “Sur le fondament ontologique d’une éthique du futur” (EF)
475
, de saída, Jonas
declara que ele busca não uma “ética no futuro”, ou seja, uma
“ética concebida hoje para
nossos descendentes futuros”
(EF, p. 69)
,
mas uma «ética do futuro», vem a ser, uma ética
hodierna que se preocupa com o futuro e assume a tarefa de
“proteger nossos descendentes
das conseqüências de nossa ação presente”.
(Ibidem.)
O que ele mostrou ser necessário
476
, ao
apontar que os efeitos de nossas ações, regidas pela “globalização da técnica”, foram
ampliados tão ameaçadoramente em direção ao futuro, ao ponto de a responsabilidade
exigir que em nossas decisões cotidianas levemos em conta o bem das gerações futuras que,
irremediavelmente, serão afetadas por elas.
Portanto, estamos diante de uma responsabilidade o inédita quanto o poder atual
alcançado pela humanidade. O poder e a responsabilidade têm, assim, em comum a
característica de poderem se exercer em ligação a um saber, que precisa ser duplo: - um
saber objetivo das causas físicas e - um saber subjetivo dos fins humanos.
Jonas afirma que embora a EF não constitua um tema da Futurologia, dela necessita,
enquanto
“projeção adiante segundo um método científico, uma vez que nosso agir atual pode
ser a causa de efeitos para os quais devemos manter nossos olhos abertos”
(EF, p. 71).
Mas, ele
distingue dois tipos de Futurologia, o primeiro de uma imagem ideal denominada utopia e a
futurologia da advertência cujo ponto de partida é a meta de alcançar a auto-regulação de
nosso poder descontrolado, embora sirva como alerta
“para aqueles que, além da ciência
475. In H. Jonas. Pour une éthique du futur. Paris: Payot & Rivages, 2002, pp.69-116. Texto
originalmente apresentado numa sessão da Fundação Friedrich Ebert sobre “a sociedade industrial e a
ética do futuro”, em outubro de 1985.
476. Em PR, Cap. I, tópico I: “A transformação do agir humano”.
307
das causas e dos efeitos, cultivam também uma imagem do homem que lhes engaja moralmente
e os faz sentir como confiados a sua guarda.”
(Ibidem.)
Mesmo reconhecendo ser preciso experimentar o dever para, efetivamente, poder
respeitá-lo, Jonas afirma haver outro tipo de dever que não precisa ser experimentado, desde
que ele tenha o próprio fundamento.
Em busca de tal fundamento, portanto, Jonas recorre ao termo “ontológico”, presente
no título do texto ora examinado. Para esclarecer o significado da expressão
“fundamento
ontológico”
,
ele examina dois enunciados com fundamentos lógicos e graus de verdade
diferentes:
a) “Nós devemos comer” e b) “Para comer é preciso trabalhar”
.
O enunciado (a)
explicita a necessidade de comer, cujo fundamento é ontológico, por se assentar em nossa
própria constituição ontológica, como seres metabolizantes, dado que nós só existimos
graças às contínuas trocas de matéria com o exterior. o enunciado (b) expressa uma
situação cujos fundamentos são externos e variáveis conforme as particulares circunstâncias
exteriores (natureza e sociedade) onde o alimento é buscado por cada ser humano. Assim,
enquanto a
“necessidade ontológica de comer é absoluta e não permite exceção, a necessidade
circunstancial de trabalhar admite notoriamente exceções: [por exemplo,] o privilégio ou a
riqueza”
(EF, 72-73).
Daí, Jonas classifica de fundamento ontológico
“O recurso a uma qualidade que
pertence indissociavelmente ao Ser da coisa, como o metabolismo ao organismo, ou a qualidade
que pertence exclusivamente à coisa e a nenhuma outra.”
(EF, 73),
distinguindo-o do
fundamento empírico cuja certeza exige verificação tanto no passado, quanto no futuro,
para ter validade.
Desse modo, ele confere à ética um fundamento ontológico, que apresenta diversos
estratos, começando pelo ser do homem, mas, indo além, até alcançar o fundamento do Ser
em geral. Inicialmente, o homem é, até onde se sabe, o único ser capaz de responsabilidade.
Tal capacidade implica que ele já está sob o seu comando, pois, em outros termos, o «poder
ter» implica o «dever ter». Isso significa que a capacidade de responsabilidade, que é
308
necessariamente uma capacidade de ordem ética, repousa sobre a faculdade ontológica que
o ser humano possui de escolher intencional e deliberadamente entre as diversas alternativas
de ação. Por esse motivo, Jonas afirma que
“a responsabilidade é complementária da
liberdade.”
(EF, 76)
Ou, dito de um modo mais severo,
“é o fardo da liberdade próprio a um
sujeito ativo.”
(Ibidem.)
O «pelo que» somos responsáveis, naturalmente, remete às conseqüências do nosso
agir, uma vez que
“elas afetam um ser.”
(EF, 78)
Assim, o objeto real da responsabilidade é o
ser afetado pela ação. adquire um sentido ético um Ser que possui um valor, pois, frente
a algo sem valor não é preciso responder nada. Aqui a pressuposição ontológica é a de que,
por ter valor, o Ser tem uma exigência com relação a nós, assim, nos tornamos responsáveis
por ele, e em relação a ele devemos agir.
Todavia, o próprio ato implica a liberdade. Logo, a liberdade humana e a
“quantidade” (teor) de valor do Ser constituem os dois pólos ontológicos entre os quais se
realiza a
“responsabilidade enquanto mediação ética”.
(Ibidem.)
Complementária da liberdade
e do valor, a responsabilidade é função comum e, por isso, diretamente proporcional aos
dois pólos. É o que Jonas considera como o mais fundamental com relação à essência da
responsabilidade.
Jonas adverte que, ironicamente, no combate ao efeito, reforçamos a causa. E se,
anteriormente, nossa impotência frente à natureza nos angustiava, agora é, justamente,
nosso poder sobre ela que nos causa angústia, tanto pela natureza quanto por nós mesmos.
Pois, esse poder, inicialmente ao nosso serviço, atualmente se colocou como nosso senhor.
Por isso, é necessário que “venhamos” a exercer sobre ele um controle, algo de que, ao
momento, nos mostramos incapazes, mesmo reconhecendo que esse poder constitui um
produto integral de nosso saber e de nosso querer. Nesse sentido se,
“O saber, o querer e o
poder são coletivos, seu controle também deve sê-lo, apenas os poderes públicos podem exercê-
lo conseqüentemente, ele será político e isso exige, finalmente, um amplo acordo de base.”
(EF, 105)
309
A questão que se coloca, então, é a seguinte:
“de que tipo de acordo se trata e como
obtê-lo?”
(EF, 106)
A resposta de Jonas constitui a sua mais polêmica tese, uma que vez,
segundo ele:
Isso implica em adotar severas medidas de restrição com relação a
nossos hábitos de consumo, a fim de diminuir o nível de vida
“ocidental” recente, o nível de vida tão festejado, cuja voracidade,
com os dejetos que ele produz aparece particularmente culpável pelas
ameaças globais que pesam sobre o meio ambiente. Tratar-se-ia não
de aceitar o empobrecimento econômico, ao menos temporário,
que resultaria de tal redução do consumo, mas também a intervenção
pública na esfera mais privada, a saber, aquela da procriação, a qual
poderia conter o problema demográfico. Tudo isso se tornará
inelutável e quanto mais demorar, mais difícil será, em função da
verdade totalmente simples segundo a qual uma Terra cuja superfície
é limitada não é compatível com um crescimento ilimitado (...).
(Ibidem)
Jonas reconhece que, embora não seja difícil compreender essa questão, a maior
dificuldade nela implicada é estabelecer um modo de alcançar o apoio e a adesão
necessários para levar adiante tais restrições e, inclusive, mantê-las nos momentos críticos.
Ademais, ele tem consciência de que, nesse contexto, é muito mais fácil
fundar uma teoria
ética de uma responsabilidade coletiva face ao futuro do que indicar os meios de sua
realização.
” (EF, 107)
Entretanto, ele considera que sua contribuição, embora incipiente, pode-se dar com
base em três pontos que caracterizam a sua proposta, a saber:
“a) o apelo ao despertar que
traduz a fundação dessa ética, depois b) a formação da consciência e c) a educação do
sentimento que podem decorrer da futurologia praticada sob tal signo”.
(Ibidem)
310
Um aspecto importante, insistentemente mencionado por Jonas, é o fato de que, ao
momento, o maior
“perigo para o futuro planetário inerente ao poder técnico, (...) [referia-se
aos] efeitos desse último sobre o meio ambiente”
(EF, 108).
Algo que interfere nas condições
da vida futura, mas repercute sobre o homem apenas indiretamente. A dimensão catastrófica
emerge quando os efeitos alcançam a escala global.
477
De qualquer modo, esse poder
referia-se apenas às coisas não humanas (como era o caso de toda a técnica, à exceção da
medicina) e suas estimativas podiam deter-se em considerações meramente quantitativas.
Recentemente, porém, estão em voga tecnologias que tomam por objeto também o
homem e que concernem diretamente ao ser das pessoas. E é que surgem as questões
qualitativas, que tornam as cifras insuficientes e, mesmo, impotentes para enfrentar o
problema. Pois, no que tange ao nosso próprio ser, apenas o saber essencial sobre o homem
pode bastar e nos dizer, enfim,
“o que é o bem humano, ou o que vai seguramente a seu
encontro.”
(EF, 109)
As tecnologias supracitadas decorrem, especialmente, das
evoluções no domínio da biologia humana, com suas novas
perspectivas práticas, que ela abre em particular à medicina. As
“viabilidades”, que se atualizam ou começam a se manifestar, em
relação ao início e o fim de nossa existência, nossa vinda ao Mundo,
à duração de nossa vida e nossa morte e mesmo nossa constituição
hereditária.
(Ibidem.)
Não é ocioso destacar, como Jonas o faz, que ao possibilitar qualquer alteração nesses
importantes aspectos da condição humana, o que elas fazem é tocar,
“às últimas questões de
nossa humanidade: a) a noção de bonum humanum, b) ao sentido da vida e da morte, c) à
dignidade da pessoa, d) à integridade da imagem humana (em termos religiosos: da Imago
Dei).”
(EF, 110)
Para Jonas, tais questões só podem ser respondidas com base numa válida imagem do
homem, o naquela em vigor somente nesse momento. Por esse motivo, ele defende que
477. Ponto em que chegou o atual problema do aquecimento, por exemplo.
311
mais do que nunca necessitamos da metafísica, não da metafísica tradicional, meramente
formal, que se limita a dizer
“porque o homem deve ser e porque também nós temos
responsabilidade, mas dessa vez de uma metafísica com conteúdo material, que protege o ser, o
qual é preciso assim proteger de deformações bem concretas.”
(Ibidem.)
Prevalece aqui, aquela regra simples da “heurística do medo” que, em caso de
prognósticos conflitantes, deve-se priorizar aquele que serve como advertência,
independentemente do cálculo quantitativo das conseqüências. De modo que, determinadas
coisas, em pequena ou grande escala, simplesmente não têm razão de ser. Ou seja, devem
ser evitadas pura e simplesmente. Assim, por exemplo, se brincar com o patrimônio
hereditário do homem constitui, essencialmente, um crime, ele será cometido com a
primeira e única tentativa, e não apenas quando atingir uma aplicação massiva. Aspecto
que, em geral, é determinante nas avaliações tanto dos danos das tecnológicas, quanto dos
riscos biológicos.
E aqui Jonas lança a sua segunda tese mais polêmica, ao defender que,
então, a pesquisa já não possuirá mais a liberdade de realizar tais
experiências, nem mesmo de estabelecer por objetivo uma transformação
genética, (isto é, para começar tal estudo) no ser humano – e a liberdade
da ciência tão altamente considerada chocar-se-ia – aqui a uma barreira,
sob o ângulo do fim como do meio.
(EF, 112)
Todavia, ele está consciente de que a previsão realizada por sua EF - ao tocar no
destino da liberdade abrindo uma discussão da qual ele não pode se esquivar - pode
provocar mal-entendido.
De fato, o prognóstico, com ares de advertência, afirmando que a possibilidade
iminente de uma crise ecológica global imporia o sacrifício não apenas do nível material da
vida humana, mas, no extremo, até das liberdades democráticas - ao ponto de, por fim,
somente restar uma tirania - mesmo que com o propósito de buscar nossa salvação, valeu a
Jonas a acusação de “recorrer” à ditadura para resolver nossos problemas.
312
Em sua defesa ele alegou que tal mal-entendido decorre da confusão entre advertência
e recomendação. Todavia, efetivamente ele assumiu ter dito que tal tirania seria sempre
preferível ao desastre e, assim, justificou moralmente esse caso em que esse gênero de
alternativa se apresentasse. Mas, esse ponto de vista que professou, também procurou
defender frente ao tribunal que ele próprio instituiu, através do argumento principal de sua
exposição, partindo das seguintes questões:
não é se contradizer desejar a sobrevivência física ao preço da
liberdade? Nós não declaramos que a liberdade representava a
condição da capacidade de responsabilidade e que essa última é uma
razão pela qual a humanidade deve continuar a existir? Não
violamos, admitindo a tirania como uma alternativa ao aniquilamento
físico, o princípio estabelecido por nós mesmos: a saber, que o como
da existência não pode suprimir o seu por quê?
(EF, 113-114)
Com certeza, tais questões parecem apontar um problema na argumentação de Jonas,
o que ele, contudo, pretende contestar afirmando que,
Nós podemos fazer, entretanto, essa assustadora concessão ao primado
da sobrevivência física, na convicção de que a capacidade ontológica da
liberdade (ela que é inseparável da essência do homem) não se deixa
verdadeiramente apagar, mas somente se retirar temporariamente do
espaço público. Essa convicção pode se apoiar sobre uma experiência
bem conhecida. Nós constatamos que mesmo nos sistemas coercitivos
totalitários, a faculdade de liberdade dos indivíduos se anima
invencivelmente e vivifica nossa fé no homem. (EF, 114)
Mas, com isso, Jonas levanta a terceira tese que suscita polêmica ao dizer que
Nessa “fé”, nós temos o direito de esperar não sem razão que por
tanto tempo que sobrevivem os seres humanos a imagem de Deus
continuará igualmente a viver com eles, na expectativa secreta de sua
hora a vir. Tendo essa esperança – que tem aqui a prioridade sobre o
313
temor – nós podemos mesmo aceitar como preço necessário pela
salvação física uma pausa da liberdade nos assuntos externos da
humanidade.
(EF, 114-115)
E embora a advertência que ele endereça à geração atual seja inteiramente legítima e
urgente, tanto quanto indispensável, a forma pela qual ele o faz, margem a que seus
críticos se insurjam contra ela, abrindo flancos que podem comprometer todo o edifício
laboriosamente construído por ele.
478
Antes de passar ao capítulo 6 que apresentará a aplicação, concluindo essa longa
exposição referente à fundamentação, cabe recuperar seu propósito inicial que era superar o
dualismo ser-dever, estabelecido pela “lei de Hume”, que estabelecia um impedimento ao
projeto fundacional da ética jonassiana.
Após esse trajeto, é possível considerar que Jonas logrou demonstrar a possibilidade
de se transpor a interdição humeana mostrando a existência de fins na natureza e, assim,
também de valor, com o que ele chegou à noção de Bem e finalmente à de dever.
Obviamente, tal solução não é nada simples, mas de modo algum é arbitrária ou
sofística. Para visualizar melhor o caminho percorrido, pode-se retomar as etapas da
fundação ontológica do dever humano:
(Cap. II) » Propedêutica: Questão do saber = Metodologia / Epistemologia
(Cap. III) » 1. Teoria do fim no ser: Ponto de partida: Ontologia + Teleologia =
Axiologia
(Cap. IV) » 2. Teoria da responsabilidade: Resultado: Da Axiologia à Deontologia
Assim, é possível propor a seguinte “fórmula”:
Ser + Fim = Valor (Bem) Dever TR
Onde TR = Teoria da Responsabilidade
478. Assim, na certeza de que sua contribuição é superior às limitações que possam ser apontadas, no
capítulo final, as principais delas serão discutidas e, se possível, respondidas. Quanto àquelas que não
puderem, buscar-se-á contornar os problemas que levantam, visando preservar o essencial da proposta
ética jonassiana.
314
Com base no que se disse até aqui, sobre a fundamentação de pr, torna-se possível
passar à questão de sua aplicação.
CAPÍTULO 6
TÉCNICA MEDICINA E ÉTICA COMO APLICAÇÃO DO
PRINCÍPIO RESPONSABILIDADE
479
A primeira questão que vem à mente de um leitor do livro Técnica Medicina e
Ética (TME) é precisamente: por que para Jonas ele constitui “a prática do princípio
responsabilidade”, quando não se encontra ali, como tal subtítulo faz sugerir, nenhuma
casuística
480
propriamente dita?
De fato, a resposta ou a conjetura que se pode fazer para responder a tal questão,
não é nada óbvia. Tal hipótese pressupõe a retomada de um texto bem anterior
intitulado: “Os usos práticos da teoria”
481
em que Jonas faz importantes considerações
do que ele, à ocasião, entende por prática. Espera-se que tais noções possam esclarecer a
função que ele atribui ao TME em relação ao PR.
Evidentemente, o grande lapso de tempo entre os textos mencionados, tanto
quanto os diferentes propósitos de Jonas em cada um deles não podem ser simplesmente
desconsiderados. Por esse motivo, essa tentativa de resposta não reivindica mais do que
a mera condição de hipótese. Qualquer pretensão de ir além, mais que arrogante,
poderia incorrer num desnecessário equívoco.
479. Nos capítulos finais de PR, Jonas discute a dimensão política que poderia ser considerada uma
espécie de “aplicação”, das concepções discutidas na parte anterior, mas em vista do tema tratado e do
tom datado que tais questões são ali discutidas, optou-se por concentrar toda a discussão da aplicação na
abordagem proposta em TME.
480. Embora, no Prefácio, Jonas afirme pretender ali “começar com a «casuística»” (TMEe, 11), a rigor,
o que temos em TME, mais do que casos concretos paradigmáticos”, que caracterizam a casuística
propriamente dita, é a discussão de alguns temas biomédicos, na verdade os mais complexos, sobre os
quais Jonas reflete, à luz de sua formulação teórica. Isso explica o fato de Jonas empregar o termo
»Kasuistik« (TME, 9) entre aspas, indicando que, naquele contexto, ele não faz um uso estrito do termo.
481. H. Jonas. “The Practical Uses of Theory”, in Social Research, 26, 1959, pp. 127-150. Republicado
sete anos depois no PhL (1966), como seu VIII ensaio, o qual será citado aqui em sua versão francesa
(PhV). Cabe notar ainda que ele surge, exatamente, 20 anos antes de PV (1979) e 26 anos antes do TME
(1985).
315
No texto de 1959, a preocupação principal de Jonas é, não apenas mostrar o que o
seu título anuncia, mas também demarcar as diferentes relações estabelecidas entre
teoria e prática no contexto clássico e no contexto moderno.
Assim, retomando São Tomás que, por sua vez, retorna a Aristóteles, Jonas inicia
seu ensaio com uma citação cuja conclusão é a seguinte:
Das ciências, algumas são práticas, outras especulativas: a diferença
sendo que as primeiras são em vista de uma obra a fazer, enquanto
que as últimas são para elas mesmas. As ciências especulativas são
então honráveis ao mesmo tempo em que [são] boas, mas as ciências
práticas são somente válidas.
482
(TPUT, p.195)
Posição que Jonas contrasta com uma passagem do prefácio à Instauratio magna
(ou Grande Restauração) onde Bacon critica essa clássica separação entre teoria e
prática, sobretudo porque, como ele afirma em sua segunda parte, conhecida como
Novum Organum, a teoria (sobretudo, o que se entendia por teoria no contexto
escolático) era
“fértil em controvérias, mas estéril em obras” (Ibidem. p. 196, n. 2)
Essa crítica de Bacon prepara o caminho no qual a ciência moderna se constituirá,
privilegiando sempre um saber que tem por base
(ou método)
a experimentação e não a
mera especulação e que aspira uma extensão, isto é, tem uma finalidade que é a
aplicação, não mais se limitando a ser mero “conhecimento puro”.
E se, no contexto clássico, é possível falar de
um benefício prático da teoria graças ao efeito esclarecedor que ela
tem sobre a pessoa inteira de seus seguidores para além de sua
efetividade imediata. (...) tal benefício não é de natureza de um ‘uso’
feito da teoria como um meio, e ele é em todo caso um último recurso
482. Passagem citada por Jonas a partir de A. M. Pirotta, ed., Sancti Thomae Aquinatis in Aristotelis
Librum de Anima Commentarium, Lectio I, 3. Para sua versão francesa ver: A. Thiéry. Commentaire Du
Traité de l’Âme, Louvain, ISP, 1923, p. 41.
316
em resposta às necessidades do homem: ou melhor, é a atividade
sustentada pelo próprio pensamento puro, onde o homem é mais
livre. (Ibidem. pp. 196-197)
No contexto moderno, em estrita observância ao lema baconiano, tal relação é
completamente modificada e a teoria torna-se, por assim dizer, um precioso guia para o
fazer e o agir, sobretudo, quando destinados à preservação e melhoria da vida humana.
Na Parte III do ensaio, Jonas propõe uma interessante comparação dessa relação
entre a teoria e a prática com a célebre passagem da “Alegoria da Caverna” de Platão,
quando o filósofo retorna à caverna, depois de contemplar a verdade no mundo exterior.
Jonas uma analogia entre esse retorno à caverna em auxílio daqueles que ali
continuaram presos e a responsabilidade do filósofo de orientar os demais, sobretudo,
nas questões práticas. Ele acrescenta que essa descida na “vida ativa” não pode ser
técnica, mas política
483
.
(Ibidem. p. 201)
Com isso, se pode entender que a função da teoria é fornecer os elementos para
elucidar as questões práticas dos indivíduos, em especial, aquelas mais relevantes,
relacionadas, precisamente, como se disse, à preservação e melhoria da vida humana.
Assim, em relação ao contexto pós-baconiano, a tese defendida por Jonas:
“é a de que no
concerne à teoria moderna em geral, o uso prático não lhe é acidental, mas é sua parte
integrante, ou que a «ciência» é tecnologia por natureza.” (Ibidem. p. 204)
A seguir, ele menciona
“uma escala que descende do geral ao particular, do simples ao
complexo e ao mesmo tempo da teoria à prática”
484
. (Ibidem.)
Tal aproximação indica que a passagem da teoria à prática, que é o que nos
interessa aqui, segue a mesma lógica da dedução e, assim como ela, precisa encontrar
uma mediação entre os dois momentos. Sobre esse aspecto, Jonas recorda que
483. Poder-se-ia acrescentar: ético-política.
484. No Prefácio à TME, Jonas confirma tal indicação ao dizer: “Este passo do geral ao particular e da
teoria às proximidades da prática é o que se tenta dar nos artigos aqui reunidos”. (TME, 11)
317
O juízo, diz Kant, é a faculdade de subsumir o particular sob o
universal; e uma vez que a razão é a faculdade do universal e a
ciência a operação dessa faculdade, o juízo, enquanto que ele se
ocupa dos particulares, está necessariamente fora da ciência e é,
estritamente falando, o ponto entre as abstrações do entendimento e o
concreto da vida. (Ibidem. p. 205)
Cabe enfatizar essa passagem entre “as abstrações do entendimento e o concreto
da vida”, pois é precisamente o que se percebe entre o PR e o TME. Melhor dizendo,
considerado sob tal perspectiva, o TME faria a passagem entre as abstrações teóricas do
PR e as situações concretas às quais ele pode ser, na visão de Jonas, efetivamente
aplicado. Algo que pode ser também sugerido pela afirmação de que
é nesse domínio do
juízo e da escolha concretos
485
que o uso prático da teoria intervém.” (Ibidem. Grifos nossos.)
Adiante, ele faz algumas considerações que, vistas retrospectivamente, à luz do
PR, parecem uma declaração de intenções do que ele proporia nessa obra, vinte anos
depois, ao afirmar que,
No outro extremo da escala, o saber relativo aos fins (ends) ... que
hoje nós não sabemos se ele admite uma teoria, enquanto que
antigamente ele era considerado como eminentemente teórico. Apenas
tal saber permitiria a distinção válida dos usos dignos e indignos,
desejáveis e indesejáveis da ciência, enquanto que a própria ciência
permite somente discernir seu uso correto ou incorreto, adequado ou
inadequado, eficaz ou ineficaz. (Ibidem. pp. 205-206)
Curiosamente, Jonas parece ali prenunciar aquilo que se tornaria o principal mote
de suas obras duas décadas depois. Dado que, textualmente, ele diz:
Assim, mesmo com a pressão das urgências pesando sobre nós, temos
necessidade de uma visão que além dessas urgências para fazer
485. O que estaria em jogo nos principais ensaios de TME.
318
face a elas, num nível que lhes seja superior. (...) Independentemente
das visões dessa «outra» teoria chamada filosofia (...). Não
retorno à posição clássica (...). A própria teoria tornou-se um
processo, e um processo que (...) implica continuamente seu próprio
uso; e ela não pode ser possuída de outro modo. (...) As tarefas que
cabem à teoria são estabelecidas pelos resultados práticos de sua
utilidade anterior, suas soluções devem ser orientadas de novo em
direção à utilidade e assim por diante. Assim, a teoria é totalmente
imersa na prática. (Ibidem. p. 214)
Isso não significa, porém, que Jonas afirme o fim (término) da teoria, em especial
no contexto filosófico, pois, segundo ele:
“Há ainda «teoria pura» enquanto dedicação à
descoberta da verdade e enquanto que devoção ao Ser, o conteúdo da verdade: dessa dedicação,
a ciência é a forma moderna”. (Ibidem. p. 215)
Todavia, aqui não se trata da ciência propriamente dita, porque Jonas está se
referindo, mais exatamente, “À
filosofia enquanto teoria trans-científica, [embora admita
que,] o fato humano da ciência pode fornecer um índice para uma teoria do homem, de modo
que possamos de novo saber alguma coisa sobre a essência do homem e por aí talvez mesmo
alguma coisa da essência do Ser.
(Ibidem. Grifos nossos.)
Com relação ao que, ele antecipa
Qualquer que seja o momento em que tal saber estará de novo
conosco, ele poderá fornecer uma base para o sumamente útil e
necessário saber dos fins. Suspensos a esse evento imprevisível hoje
quanto ao momento e à questão de saber se ocorrerá. Nós temos que
conviver com nossa pobreza confortados talvez pela lembrança de
que já uma vez “o sei que nada sei” revelou-se o início da filosofia.
(Ibidem.)
De fato, essa atitude de modéstia possibilita um reinício em sua própria filosofia.
Vinte anos depois, ele ofereceu ao mundo o seu PR e, após mais seis anos, o TME. O
319
primeiro, no qual ele apresenta uma minuciosa elaboração sobre o “necessário saber dos
fins” e o segundo, em que ele apresenta a “suma utilidade” desse saber. Tal utilidade,
como veremos, implica em tomar a situação concreta à luz de uma perspectiva teórica
capaz de apontar os usos dignos e indignos, desejáveis e indesejáveis da ciência.
Quanto à questão inicial, relativa à ausência de uma casuística, propriamente
dita, pode-se concluir que, dado que a ética jonassiana busca fornecer princípios para a
ação, isso significa que ela é uma ética prescritiva, que se torna “aplicada”, no sentido
de que aplica a regra geral a todos os casos particulares por ela subsumidos e não um
estudo de casos paradigmáticos para se estabelecer uma regra geral.
Tendo essa discussão preliminar como pano de fundo, a exposição das linhas
gerais de argumentação de TME será dividida em três momentos, a saber: 6.1 A
concepção jonassiana sobre as pesquisas biotecnológicas em geral; 6.2 Jonas e as
pesquisas com seres humanos e 6.3 - A avaliação jonassiana quanto às aplicações das
biotecnologias em seres humanos.
6.1 - A concepção jonassiana sobre as pesquisas biotecnológicas em geral
Jonas foi um dos primeiros, senão o primeiro a se deter sobre as implicações
éticas da técnica moderna. Seu PR, publicado em 1979, é um sólido testemunho de seu
empenho em elaborar, como já apontado, uma “ética para uma civilização tecnológica”.
Paolo Becchi, um dos mais respeitáveis tradutores e comentadores de Jonas, em
língua italiana, é autor de vários textos sobre o filósofo, entre os quais o “Technique,
médecine et éthique chez Hans Jonas”
486
que, por seus elogios ou por suas críticas, será
de grande importância para a interpretação e avaliação dessa relevante parte do
pensamento jonassiano. Becchi inicia o referido texto recordando que
486. Escrito, em 2006, por ocasião do 60º aniversário de Alberto Bondolfi, a quem Becchi homenageia
dedicando-lhe o referido texto. Publicado em italiano, com versões alemã e francesa, in F. Haldemann, H.
Poltier & S. Romagnoli (org.) La bioetica crocevia delle discipline. Bern: Peter Lang, 2006, pp. 49-69.
320
A tese fundamental de Jonas é a seguinte: o poder da técnica
alcançou um nível tal que constitui uma séria ameaça para a
sobrevivência do próprio ser humano e da vida natural em geral. Por
essa razão, Jonas conclui imediatamente que a técnica não pode mais
ser considerada como sendo eticamente neutra. Se, no passado,
podia-se ainda pensar assim, uma vez que ela desempenhava um
papel menor em relação à natureza, atualmente, isso não é mais
sustentável uma vez que a técnica substitui a natureza ao ponto de se
tornar uma «segunda natureza». É essencialmente sobre a base do
que ele chama, nas páginas de Technik, Medizin und Ethik, «a ética
da técnica». (Op. cit.p. 51)
Todavia, mesmo antes de publicar PR, ele se ocupava de tais questões, cabendo
destacar que, na verdade, o primeiro artigo dedicado explicitamente à temática data de
1969 e tem por título “Philosophical Reflections on Experimenting with Human
Subjects”
487
. Isso demonstra que a preocupação prática antecedeu a necessidade de
elaboração teórica construída posteriormente, por meio de vários artigos
488
que, ao longo
dos anos 70, pode-se dizer, prepararam a publicação, ao final da mesma década, do PR,
onde ele expõe sua concepção ética definitiva, cuja aplicação, no sentido indicado
acima, é apresentada em TME, que reúne artigos escritos entre 1969 e 1984.
487. Versão original publicada em Dædalus e versões posteriores em periódicos especializados ou
coletâneas, por exemplo, Philosophical Essays - From Ancient Creed to Technological Man. Chicago:
The University Chicago Press, 1974. Midway Reprint 1980, pp. 105-131. Republicado também em TME
como o ensaio de número 6.
488. Cabe mencionar: “The Scientific and Technological Revolutions”, in Philosophy Today, 15, 1971,
pp. 79-101”; “Testimony Before Subcommittee on Health, United States Senate: Hearings on Health,
Science, and Human Rights”, Nov, 9, 1971, The National Advisory Commission on Health Science an
Society Resolution, (…) (73-191-0), 1972, pp. 119-123.; “Technology and Responsibility: Reflections on
the New Tasks of Ethics”, in Social Research, 40, 1973, pp. 31-54; “Responsibility Today: The Ethics of
an Endangered Future”, in Social Research, 43, 1976, pp. 77-97; “Freedom of Scientific Inquiry and the
Public Interest”, in The Hastings Center Report, 6, 1976, pp. 15-17; “The Right to Die”, in The Hastings
Center Report, 8, 1978, pp. 31-36; e, por fim, “Toward a Philosophy of Technology”, in The Hastings
Center Report, 9, 1979, pp. 34-43. Alguns desses artigos foram escritos a convite e parte deles
republicada em TME.
321
Como o próprio título sugere e Jonas explicita no prefácio, TME tem por objetivo
“partir do que é mais próximo de nós. Ali onde a técnica tem diretamente por objeto o homem e
onde nosso conhecimento de nós mesmos, a idéia de nosso bem e nosso mal, tem uma
responsabilidade direta, quer dizer, no âmbito da biologia humana e da medicina.(TME, 11)
Logo, TME é, sobretudo, destinado à reflexão acerca da biotecnologia e sua
relação com o ser humano, tanto no âmbito experimental quanto de sua aplicação. Cabe
explicitar que dos doze ensaios que o compõem, os cinco primeiros
489
podem ser
considerados como propedêuticos, enquanto os demais se voltam ao exame “prático”,
propriamente dito, das questões que decorrem do fato de o homem ter se convertido em
objeto das biotecnologias, como o sujeito de experimentação ou o alvo de sua aplicação.
A única exceção é o ensaio 9 intitulado “Micróbios, gametas e zigotos: mais sobre
o novo papel criador do ser humano”, em que ele investiga a aplicação biotecnológica
em microorganismos, mas, ainda assim, tendo em vista a utilidade humana.
Pouco depois de TME, foi publicada uma versão desse ensaio intitulada “Ethics
and Biogenetic”
490
, que inicia com uma referência à tecnologia tradicional, dirigida aos
objetos inanimados, dos quais o homem seria o princípio motor, para estabelecer uma
contraposição com a biotecnologia, mesmo aquela praticada milenarmente, cujo objeto
não se limita apenas a seres inanimados. Mas, Jonas chama a nossa atenção, sobretudo,
para as novas biotecnologias, cujas criações são, precisamente, os organismos vivos, ou
novas criaturas vivas. Tais criaturas, como Aristóteles disse há muito
tempo, contém dentro de si a origem e o princípio de seu movimento e
489. No ensaio 1, Jonas justifica (formal e materialmente) o fato de a filosofia tomar a técnica por objeto.
No ensaio 2, ele expõe 5 motivos para justificar o fato de a técnica ter se convertido em objeto (também)
da reflexão ética. No ensaio 3, ele faz uma espécie de “balanço axiológico”, refletindo sobre os valores
passados e antecipando alguns valores futuros (apesar da crise atual de valores). No ensaio 4, ele propõe
uma questão acerca da compatibilidade entre a ciência destituída de valores e a responsabilidade referente
à auto-censura da pesquisa. No ensaio 5, ele discute a relação entre liberdade da pesquisa e a noção de
bem público, além de propor a questão: se a moral ofusca a ciência. Para concluir, ele volta à questão da
“fusão da teoria e prática na ciência moderna”
(pp. 67-75)
mencionada na introdução acima
(pp. 303-307).
490. H. Jonas. “Ethics and Biogenetic”, in Social Research, vol. 71, n. 3, Fall 2004, pp. 569-582.
Originariamente publicado em Social Research, vol. 52, n. 3, (Autumn 1985).
322
este movimento inclui não apenas seu funcionamento continuado - seu
comportamento vivo - mas igualmente sua propagação e, através da
corrente da reprodução, mesmo seu posterior desenvolvimento
possível em novas formas. Em tais criações - agora verdadeiras
criaturas, com as quais ultrapassou qualitativamente sua faculdade
criadora precedente no domínio inanimado - o homo faber renuncia a
ser o único agente causal. O trabalho de suas mãos cria uma vida
com sua própria força independente, não figurativa, mas
literalmente. Neste início da nova arte, a potencial fonte original de
evoluções prolongadas, estabelece que o homem deve se deter um
momento para uma reflexão fundamental. (Op. cit. p. 570)
É justamente dessa reflexão fundamental que ele pretende se ocupar em TME,
levando em conta, de maneira especial, que com essa nova tecnologia entra em jogo
a criação planejada de novas formas de vida pela intervenção direta
no plano hereditário molecularmente codificado das espécies dadas.
Isto não é o mesmo que a criação de animais e de plantas domésticos
a partir de formas selvagens antepassadas o que, como uma mistura
de arte e de sorte, foi praticado no mundo inteiro desde o alvorecer
da agricultura. Tal criação opera através dos fenótipos e conta com
os caprichos intrínsecos da substância do germe (micróbio) que
ocorrem para manifestá-los nesta ou naquela propriedade somática.
A variabilidade natural da reprodução produz as características
desejadas do genótipo original pela seleção dos fenótipos sobre as
gerações, isto é, para aumentar certas características pela soma dos
pequenos e espontâneos desvios na direção preferida. Isto é
artificialmente dirigido e a evolução é acelerada, na qual a
deliberada seleção de reserva toma o lugar do estatisticamente lento
323
trabalho de seleção mecânica da natureza e permite vir à existência
formas que a natureza não permitiria, uma vez que prosperam
somente sob o cultivo (como o milho americano, que morreria logo no
ambiente natural). Não obstante, ainda é a natureza que fornece o
material da seleção: o que está evoluindo sob a mão do homem é a
própria variedade através de seus próprios mutantes, que o produtor
seleciona; e a conexão genética com a forma selvagem, a capacidade
de ser cruzada de volta com essa última, geralmente não se quebra. O
homem, em outras palavras, está manipulando o que a escala das
espécies existentes torna disponível para ele com a distribuição de seu
mutante acervo e de suas futuras mutações. (Ibidem. pp. 570-571)
Assim, até aqui, pode-se considerar que o papel do homem nesse processo,
embora ativo, que nele interferindo diretamente, não seria muito diferente do papel
desempenhado por um catalisador numa reação química, que altera a velocidade da
reação sem alterar sua própria natureza ou interferir substancialmente nos produtos
finais. Entretanto, o que ocorre no interior do novo procedimento
“que é conhecido como
tecnologia do DNA recombinante é um tema muito diferente.” (Ibidem. p. 571)
Essa nova tecnologia permite o processo de manipulação direta dos genes de um
organismo e quase sempre altera o seu processo normal de reprodução. Começando,
frequentemente, pelo isolamento, a manipulação se pela inserção do DNA de um
organismo “estrangeiro” num chamado “corpo de prova”, geralmente, para nele
introduzir novas características, com o objetivo de aumentar a sua “utilidade”. Por
exemplo, tornando-o capaz de produzir alguma substância vital para o ser humano que,
precisamente por esse motivo, possui elevado valor de mercado. Esse procedimento tem
como resultado a produção de organismos antes não existentes na natureza,
324
cada um dos quais representa uma nova auto-propagadora forma de
vida - e aquela que foi “manufaturada”, não “criada” - agora pode
até mesmo ser patenteada nos EUA. O que está ocorrendo é que de
um único golpe, com um único passo, uma posteridade inteira de
organismos alterados, enriquecida por uma característica nova, está
sendo introduzida sobre o palco da vida pela adição de material
genético estranho na bagagem cromossômica de uma célula
reprodutiva. Nós podemos chamar este processo de cirurgia genética
ou de manipulação do gene ou mesmo de reconstrução do núcleo,
todas essas frases expressam o elemento de habilidade mecânica, o
manuseio a partir do mais íntimo para, aos poucos, reformar o todo.
Em todo caso, o processo contorna o soma e vai total e literalmente
em linha reta ao core(âmago) - o núcleo celular que contém em
seu alfabeto molecular a informação causal para o desempenho da
vida da célula e a constituição de sua progênie. A alteração de uma
letra, o intercâmbio de uma palavra (=gene), a adição de uma nova
(palavra) modifica o texto e inicia uma seqüência hereditária nova.
Exatamente este rearranjo do DNA no ponto chave da vida pode
agora ser efetuado com a ajuda da micro-tecnologia, e a “palavra”
recentemente introduzida pode ser tomada do texto hereditário de um
organismo completamente diferente. Nós estamos tratando, então, da
biologia nuclear aplicada. Como a física nuclear aplicada, isto
conduz a um território demasiadamente desconhecido e imprevisível,
onde tesouros jamais sonhados acenam e perigos espreitam, nos quais
em seu próprio modo poderiam cair um pouco bruscamente (também)
aqueles da física nuclear aplicada. (Ibidem.)
É precisamente por seu aspecto inédito e suas conseqüências ainda desconhecidas
e imprevisíveis, que Jonas aconselha a se avançar nas pesquisas em torno dessa nova
325
tecnologia e a empregar seus resultados com a máxima cautela. Não obstante, o que se
observa é, ao contrário, o seu uso crescente e cada vez mais amplo. Tanto assim que,
Uma realidade atual (além do trabalho que está sendo feito com
vírus) é a remodelação genética das bactérias. Os genes animais ou
humanos responsáveis pela produção de hormônios específicos são
transplantados nas bactérias e transmitem a mesma capacidade ao
organismo anfitrião como uma propriedade hereditária. Uma vez que
as bactérias reproduzem rapidamente e em grande escala, culturas
auto-regeneradoras são logo obtidas, e a substância que é valiosa
para finalidades médicas pode ser colhida continuamente delas. Em
conseqüência, a extremamente necessária insulina, o hormônio de
crescimento humano, o agente de coagulação, o raro Interferon para
a imunidade estão mais abundante, barata e constantemente
disponíveis do que seriam obtendo-os das fontes orgânicas naturais
ou pela síntese. O perigo de tais micróbios novos escaparem para o
mundo exterior, com conseqüências ecológicas imprevisíveis, foi
discutido muito inicialmente, mas parece não existir neste caso
porque os organismos referidos pereceriam logo em um ambiente
aberto. (Ibidem.)
Em princípio, esse balanço absolutamente positivo, que contabiliza por um lado a
produção de substâncias essenciais para a manutenção da vida de inúmeras pessoas e,
por outro, um risco bastante reduzido, revela apenas a face atraente das biotecnologias,
colocando-as numa posição extremamente inacessível às críticas. Porém, Jonas adverte:
Este pensamento de conforto não se aplica ao caso daqueles neo-
micróbios (...) [de fato, utilizados] para executar sua função
bioquímica nesse próprio ambiente e conseqüentemente (...)
equipados para sobreviverem nele. Os tentadores objetivos da
326
pesquisa incluem a bactéria que fará para as variedades do cereal o
que natureza faz para leguminosas por meio das bactérias
simbióticas com suas raízes: a saber, supri-lo com o nitrogênio (do
ar) que, de outro modo, precisariam de fertilizantes químicos. Ou,
ainda mais livremente espalhadas pelo ambiente, as bactérias que
decompõem o óleo cru e (...) usadas para controlar as gigantescas
manchas de óleo marinhos causadas por acidentes de petroleiros. É
imprevisível se tais servidores imaginados do homem não poderiam se
emancipar dos limites estreitos de suas tarefas, romper com suas
próprias carreiras ambientais e mutacionais e perturbar
drasticamente um equilíbrio ecológico despreparado para elas. É
permissível jogar tais jogos de azar com o ambiente? (pp. 572-573)
491
Temos, aqui, uma situação inteiramente diferente por envolver microrganismos
que podem, ou melhor, que são criados para sobreviver no ambiente aberto. Nesse
caso, mesmo que sua finalidade seja extremamente relevante para a própria preservação
ambiental, o balanço precisa ser feito mais cautelosa e demoradamente. E pode ser que
o saldo não seja tão positivo quanto no exemplo anterior, nesse caso, será forçoso
reconhecer a forte evidência do caráter paradoxal dessa aplicação das biotecnologias.
Nesse sentido, Jonas chama nossa atenção, voltando
mais uma vez às bactérias do hormônio, que (se de fato
permanecerem cativas) são ecologicamente indiscutíveis, desde que
somente seu produto inerte encontre seu caminho para o mundo
exterior, não nenhuma dúvida quanto a seu valor medicinal para
compensar deficiências inatas ou adquiridas. [Mas,] Nem tudo que
pode ser feito neste campo é do mesmo nível de importância que a
491. À época da escrita, esses “neo-micróbios” eram mera possibilidade, por isso toda a construção do
parágrafo foi feita de forma hipotética. Deliberadamente, porém, alterou-se sua formulação, visto que
atualmente tais microorganismos já existem e são efetivamente utilizados como previsto. Resta saber se já
existem dados suficientes para avaliar o impacto que sua introdução tem causado no ambiente.
327
insulina que, de fato, mantém os diabéticos literalmente vivos [pois,]
algumas das possibilidades menos vitais têm também seus lados
duvidosos no acotovelar dos não-sempre-sábios desejos humanos. O
hormônio de crescimento pode impedir um atrofiado crescimento nas
crianças que têm o defeito genético correspondente, e embora esta
não seja exatamente uma questão de vida ou morte, [a solução de tal
deficiência] é com certeza altamente desejável. Mas o mesmo
hormônio poderia igualmente ser usado frivolamente para tratar o
que não é de modo algum uma deficiência, mas, por exemplo,
simplesmente uma baixa estatura familiar ou étnica em comparação
com a maioria dominante, ou [mera] vaidade parental primitiva
[ser] alto é bonito!”- combinado com todo tipo concebível de
preconceito racial, de classe e de status. (Nós podemos pensar na
mania de um famoso rei prussiano por soldados mais altos, ou de um
moderno esporte, o basquetebol, cujos jogadores são os mais altos.)
Se isto se reduz a uma simples questão de dinheiro, loucuras deste
tipo serão praticamente impossíveis de prevenir e todo dano orgânico
se tornaria evidente posteriormente. Deixo a cada leitor imaginar
por si mesmo os usos que a bacteriana produção em massa de
hormônios sexuais de ambos os gêneros poderiam inaugurar, como a
prolongação das capacidades sexuais e reprodutivas até idades mais
avançadas, para o que, não dúvida, a demanda masculina seria
especialmente intensa. (Ibidem. pp. 573-574)
Jonas tem consciência de que, a favor desse suposto abuso dos produtos
biotecnológicos, pode-se alegar que
“toda droga, inclusive o mais benéfico dos
medicamentos, (...) pode ser objeto de abuso e a responsabilidade não é dos descobridores e
fabricantes, mas dos consumidores e dos mediadores entre os grupos, os médicos.”
(Ibidem. p.
328
574)
Ele deixa de lado o problema da divisão da responsabilidade que, segundo pensa, na
verdade
“se estende, com diferenças, a todos os que participam dessa síndrome social”.
(Ibidem.)
Ao fazer todas essas considerações, Jonas não visa, porém, uma crítica radical das
biotecnologias, pois, como ele explicita, logo a seguir, sua
“intenção foi simplesmente
mostrar que o desenvolvimento de técnicas biogenéticas nos conduziu ao que, do ponto de vista
ético, é um país inexplorado; levantando perguntas que nunca foram antes colocadas e para as
quais a teoria ética precedente nos deixou despreparados.” (Ibidem.)
492
Jonas admite que a técnica biogenética constitui a mais recente ampliação do
poder humano proveniente da ciência, cuja
“novidade excita os ânimos como poucas coisas
e, como nenhuma antes, requer o pensamento filosófico... mais por sua forma de ação do que
pela eventual magnitude de seus efeitos, que ainda não podemos prever.” (TME, 135)
Sendo assim, a questão ética principal e fundamental, que Jonas levanta é
se se
faz justiça ou injustiça a seus objetos diretos com sua recriação arbitrária; porque ante os
micróbios nos sentimos livres de tais perguntas.” (TME, 139)
Contudo, uma vez que tudo o
que a técnica do DNA recombinante possibilita realizar com seres unicelulares, em
princípio, também é possível com pluricelulares,
“assim, teoricamente, a porta já está aberta
para os animais superiores até chegar ao homem.” (Ibidem.)
Com a menção à tal possibilidade transpomos a barreira das biotecnologias em
geral e, quase imperceptivelmente, passamos à sua relação com os seres humanos.
Por
isso, é preciso demarcar tal fronteira e antecipando-nos à prática, por meio de uma
reflexão ética, avaliar o que pode ser e talvez esteja sendo feito sem que saibamos,
mas que, ainda assim, nos diz respeito (saibamos disso ou não) diretamente.
492. Até aqui, seguimos a análise que Jonas propõe no texto “Ethics and Biogenetics Art” e, como se
tratam de textos praticamente idênticos, a partir daqui, a referência será a reflexão desenvolvida no
Capítulo 9 de TME.
329
Após essa exposição inicial, sobre a reflexão de Jonas com relação às pesquisas
biotecnológicas em geral, cabe considerar uma crítica endereçada por Becchi ao
pressuposto básico desse argumento jonassiano. Uma vez que, sua
ética da técnica funda-se sobre a seguinte premissa: a técnica é o
exercício de um poder humano, logo uma forma do agir, e todo agir
humano está sujeito a um exame moral. Nessa primeira cadeia de
associações se oculta já um mal entendido de fundo. Não é necessário
demonstrar que a técnica é uma forma de agir humano. Mas que ela
seja, por ela mesma, sujeita a considerações de natureza ética não é
tão evidente quanto Jonas parece nos fazer crer. O trabalho da terra,
a produção de mercadorias, por exemplo, eles são também formas do
agir humano implicando um desenvolvimento específico da técnica.
Eles são sujeitos às transformações devidas à descoberta de novas
tecnologias. Como tais, entretanto, tais atividades não levantam de
imediato uma questão ética. Nos dois casos, somos confrontados a
tais atividades de produção orientadas à realização de objetivos
específicos. (Op. cit. p. 53)
Embora interessante, essa crítica de Becchi parece ignorar dois importantes
aspectos. Primeiramente, a distinção que, todavia, ele próprio mencionará adiante
(p. 54)
entre fazer e agir. Distinção que Aristóteles apontava entre poiésis e práxis
493
. Sem
essa distinção, de fato, não faz sentido que, de saída, Jonas busque demonstrar que a
técnica atual se tornou, ela própria, uma forma de agir. Visto que, diferentemente da
técnica tradicional que apenas resultava em objetos, a técnica atual tem conseqüências
também nos seus próprios agentes (mais precisamente, em toda humanidade). Ademais,
493. Aristóteles diferencia a poiésis, enquanto processo de fabricação ou produção, independentemente de
o resultado ser uma mesa ou um poema, importando apenas que se produza algo, a ênfase sendo dada,
portanto, ao objeto resultante do processo. Em contrapartida, o conceito de praxis, que significa a
ação, que não produz um objeto concreto, e o seu resultado atinge, sobretudo, ao próprio agente. Fonte:
http://www.hottopos.com/harvard3/jmarist.htm - Acesso em 16/09/08.
330
tomando-se seriamente tal distinção, não faz sentido comparar, sem mais, a técnica atual
às atividades como a agricultura ou à produção de mercadorias no contexto tradicional.
Contudo, se tais atividades - de sua remota origem até o século passado -
obedeciam à lógica dessa distinção, atualmente, graças ao recurso intensivo à
tecnologia, mesmo elas, que antes podiam ser consideradas neutras do ponto de vista
ético, também começam a revelar suas implicações éticas
494
. Nesse sentido, na nossa
civilização tecnológica, poucas atividades humanas podem, ainda, ser consideradas
genuína e inteiramente neutras do ponto de vista ético.
O segundo aspecto que Becchi desconsidera em sua crítica é o fato de que,
sobretudo em TME, Jonas está se referindo às biotecnologias e, mais especificamente,
àquelas destinadas aos seres humanos. Isso equivale a dizer que, aqui não mais se tratam
de meras “atividades técnicas” em geral, mas, precisamente: 1) daquelas que tomam o
homem por objeto e 2) que visam uma interferência direta e irreversível no patrimônio
genético humano, com alguns objetivos defensáveis, outros nem tanto.
Desse modo, fica claro porque, primeiro, foi
“necessário demonstrar que [atualmente]
a técnica é uma forma de agir humano”
e, em segundo lugar, porque
“ela mesma [encontra-
se] sujeita a considerações de natureza ética”,
assim como Jonas buscou evidenciar.
Cabe ainda dizer que, embora Jonas se preocupe principalmente com a questão
humana, ele reconhece que a mera possibilidade de criar quimeras pela combinação
genética de diferentes espécies de
“animais de nosso tamanho e proximidade evolutiva”
(Ibidem.)
provoca
“calafrios”.
E pensa que sobre isso inda muito que discutir, dado
que
“o respeito à ordem da natureza tornou-se algo bastante alheio ao espírito ocidental”
.
(Ibidem.)
Mas em se tratando do homem a gravidade se impõe acima
“de todo cálculo de
494. No caso da agricultura, pode-se questionar se é correto recorrer ao nocivo uso de agrotóxicos ou às
sementes transgênicas que envolvem vários aspectos desde o monopólio das sementes e da extinção das
sementes tradicionais, até os desconhecidos efeitos de tal uso para o meio ambiente. E no caso da
produção das mercadorias, se é justo manter o enorme desgaste natural para extração de matéria-prima, o
consumo insustentável e a crescente produção de lixo “tecnológico”, em detrimento das futuras gerações?
331
utilidade e dano, [e se eleva aos] últimos aspectos morais, existenciais, inclusive metafísicos.”
(Ibidem.)
Apesar de todas essas considerações, Jonas se pergunta se ainda é possível manter
fechada a caixa de Pandora. Isto é, se
“é possível evitar o passo da cirurgia genética
bacteriana à humana... o umbral no qual ainda se poderia assentar o principiis obsta?(TME,
143)
Ele acredita que não. Uma vez que o imperativo do progresso que rege todo o
processo, tem aqui a seu favor um forte e bem intencionado álibi:
“A medicina, que quer
ajudar, não se deixará privar no curto prazo de tão legítima possibilidade de «reparação» e por
estará aberta a ‘brecha’.” (Ibidem.)
Nesse sentido, ele defende que talvez o mais sensato
fosse resistir até mesmo à tentação caritativa, o que é certamente impossível diante da
pressão do sofrimento humano.
O problema, segundo Jonas, é que a partir desta perigosa área “de sombra”
entre o já permitido e o proibido se manifestam os outros dons de Pandora, para os quais
nos impulsiona a necessidade, mas também o instinto prometeico. Contra tais tentativas,
inclusive, a do homúnculo de Goethe e de Wagner, nós, homens de hoje,
estamos mais
desarmados que todos os anteriores, e, todavia, necessitaríamos mais que todos os demais do
orgulhoso domínio sobre os demônios de nosso próprio poder.” (Ibidem.)
Jonas conclui o ensaio 9 afirmando que:
Nosso mundo completamente destituído de “tabus”, terá que lançar
espontaneamente novos tabus
495
em relação à nossa forma de poder.
Precisamos saber que fomos longe demais e reaprender que existe
um longe demais e que começa na integridade da imagem do homem
que para nós deveria ser inviolável. como ignorantes poderíamos
tocá-la e nesse caso não poderíamos ser mestres. Precisamos
reaprender a temer e a tremer e, inclusive, sem Deus, a respeito do
495. Contrariando autores como Peter Singer e Helga Kuhse que são completamente avessos a tal noção.
332
sagrado. tarefas suficientes deste lado do limite que este
estabelece.
O estado do homem clama constantemente por sua melhora, mas o
tentemos ser criadores na raiz de nossa existência, na sede
primogênita de seu segredo. (Ibidem.)
Tomando essa formulação como uma advertência, passamos ao tópico seguinte,
onde focalizaremos, mais especificamente, os aspectos éticos que emergem quando
seres humanos são tomados como objetos experimentais das biotecnologias.
6.2 - A reflexão jonassiana acerca das pesquisas com seres humanos
Embora no texto “Ethics and Biogenetics Art”, Jonas tenha antecipado a discussão
sobre a qual vamos agora nos deter, é no capítulo 6 de TME, intitulado
“Ao serviço do
progresso médico: sobre os experimentos em sujeitos humanos”
496
,
que encontramos uma
reflexão inteiramente voltada para essa questão.
Trata-se de um texto relativamente curto
(p. 77 a 98)
, considerando a
complexidade do tema tratado, extremamente bem articulado, e subdividido em vários
itens (19), que expressam a gama de questões envolvidas. Não por acaso, ainda hoje,
(40 anos depois de sua primeira publicação) permanece como uma referência
importante para vários comitês de ética em pesquisa de diversos lugares do mundo.
Em seu exame crítico desse aspecto do pensamento jonassiano, apresentado no
texto “Nature humaine ou expérimentation humaine”, M.-G. Pinsart, levando em conta
alguns textos anteriores
497
sugere que
“Jonas considera a experimentação humana no quadro
mais amplo de uma reflexão apoiada sobre os fundamentos onto-biológicos do ser humano e
sobre o tipo de responsabilidade que daí decorre necessariamente.” (Op. cit. p. 69)
496. Que na verdade é a versão definitiva do texto escrito em 1969, mencionado no início do presente
capítulo, que inaugura a reflexão jonassiana sobre essas questões.
497. Em especial, aqueles referentes à sua biologia filosófica reunidos no PhL e, ainda, o texto
“Biological Foundation of Individuality”, escrito em 1968, publicado primeiramente in International
Philosophical Quarterly, 8, pp. 231-251 e reeditado com o mesmo título em PE.
333
Tal observação é relevante visto que ela remete à
“fundação biológica da identidade”
sobre a qual Jonas formula sua concepção de natureza humana, o que torna mais
compreensível a abordagem que fará da relação entre biotecnologia e seres humanos.
Segundo a autora:
Essa fundação biológica da identidade própria ao reino do ser vivo
integra o ser humano no todo orgânico, mas sublinha ao mesmo
tempo uma dualidade essencial opondo-o à matéria inerte. O ser vivo
é essencialmente um sujeito centrado sobre sua própria
perpetuação
498
enquanto que a matéria inerte é um objeto, um meio
que o sujeito utiliza em vista de seu próprio fim. Finalismo e
tecnologia estão em proximidade essencial dado que eles
caracterizam ontologicamente o indivíduo. Esse ponto merece ser
sublinhado: os problemas éticos colocados pela tecnologia atual
resultam de desvios e alterações ou da ignorância em relação ao
finalismo que, originariamente, a tecnologia tinha por missão servir.
A resolução dessas dificuldades passa, nós veremos, por um retorno
introspectivo e terapêutico à noção de «imagem do homem». (Ibidem.
pp. 69-70)
Veremos que, com base nessa noção, Jonas defenderá certas restrições. Com
relação à discussão sobre o uso de seres humanos em experimentações, temos no item 1
intitulado:
“A especificidade dos experimentos humanos”,
uma exposição lembrando que,
enquanto metodologia, a origem da experimentação remonta às ciências naturais que,
classicamente, lidavam com seres inanimados e, por conseguinte, podiam se considerar
neutras do ponto de vista moral. Tal perspectiva muda, porém, quando a biologia adota
esse procedimento com seres vivos e se agrava, ainda mais, no contexto da pesquisa
498. Que, como Jonas enfatiza, se dá através do metabolismo: pela troca entre os meios interno e externo.
334
médica que, por se dirigir a seres humanos, não pode mais pretender tal neutralidade,
levantando, assim, uma série de questões, inclusive, de ordem religiosa
499
.
Como Jonas destaca, um dos aspectos que distinguem os experimentos físicos dos
biológicos é o fato de que nos primeiros sempre é possível utilizar réplicas para realizar
simulações; nos outros, porém, isso quase nunca é possível. Os experimentos biológicos
requerem o uso de um exemplar original, que não dispõe de uma réplica como tal,
impossibilitando qualquer forma de simulação, especialmente, em se tratando da
pesquisa com seres humanos. Além disso, toda pesquisa envolvendo o ser humano, que
é sempre singular, produz efeitos sobre o(s) indivíduo(s) pesquisado(s), o que, por sua
vez, implica a responsabilidade do pesquisador em relação àquele(s) que ele pesquisa.
reside, segundo Jonas, a raiz do problema que ele pretende discutir, uma vez
que surgem assim as seguintes questões: é possível conciliar os interesses da pesquisa
com os do indivíduo pesquisado? A finalidade da pesquisa com a responsabilidade do
pesquisador para com o pesquisado? Um conflito é assim detectado uma vez que, apesar
da regra de não lidar com seres humanos como simples cobaias, cada vez mais se
constata o recurso a tal procedimento, com base em
“considerações que também fazem
apelo aos princípios, dando-lhes energia para superar as objeções”. (TME, 78)
E uma vez que tal posição é defendida por um importante segmento
500
, Jonas
admite a necessidade de examiná-la minuciosamente, o que ele faz levando em conta
um preceito tácito da cultura ocidental, segundo o qual:
“a regra que proíbe é para esta
forma de pensar a primária e axiomática; a contra-regra que permite, limitando a primeira, é
secundária e precisa de justificação.” (Ibidem.)
Ele estabelece ainda que tal justificação deverá embasar-se sobre valores e
necessidades do mesmo nível daqueles confrontados. E acrescenta que o pior no tocante
499. Justamente, por sua interferência na noção de “imagem do homem”, mencionada acima por Pinsart.
500. Nada menos que os representantes mais respeitados da pesquisa biomédica internacional.
335
aos experimentos com seres humanos não é o fato de as pessoas a eles submetidas
serem, mesmo que temporariamente, tratadas como meios (o que, segundo ele, ocorre
inadvertidamente em quase todas as relações sociais), mas o fato de que
“a convertemos
em uma coisa, em algo meramente passivo submetido à intervenção de atos que nem sequer são
ações sérias, mas testes para atuar verdadeiramente em outra parte e no futuro.” (Ibidem)
Assim, a pessoa submetida a um experimento torna-se mero caso simulado ou
exemplo, o que Jonas distingue das reais situações, mesmo as mais exploradoras, onde o
sujeito, ainda que submetido a um poder unilateral, como ocorre com o soldado, não se
converte em mero objeto, pois suas ações a ele pertencem e, eventualmente, pode ser
em função delas recompensado.
Compensações que não existem no caso da pessoa que se submete a um
experimento, cujos resultados nada têm a ver com ela mesma. Algo que, para Jonas, o
mero «consentimento» não pode tornar eticamente correto.
“Somente a autêntica
voluntariedade, plenamente motivada e consciente, pode retificar o estado de «coisidade» ao
que o sujeito se submete” (Ibidem),
e cujos critérios serão discutidos ao longo do capítulo.
No item
2, “«Individuo e sociedade» como marco conceitual”,
de saída, Jonas se
pergunta:
“quais são as pretensões que se contrapõem às da sacralidade pessoal?” (TME, 78)
Sua resposta, com base na visão geral, é que são as pretensões do
“bem comum, entendido
no sentido de progresso”. (Ibidem)
Esse sentido de bem comum, por sinal, é um traço que
difere o momento atual do anterior, quando a sociedade confiava, ao «contrato social», a
tarefa de garantir a segurança e os direitos individuais por meio de um ordenamento
jurídico. Tarefa, que por sua relevância, faz a atual parecer meramente facultativa. Mas,
atendo-se ao par conceitual «indivíduo e sociedade», Jonas quer saber o que se pode
declarar sobre a relação entre eles, em geral, e sobre os direitos que o interesse público
pode alegar a respeito do nosso corpo, em particular.
336
Jonas afirma que, quase sempre, tende-se a conceder ao bem comum uma
primazia em relação ao bem individual. O que é manifesto na prática, mesmo
considerando que o primeiro está identificado ao “interesse social”, que remete ao
conceito abstrato de “sociedade”, em contraste com o “indivíduo” que, embora concreto
e anterior àquela, muitas vezes, é levado a se sacrificar em nome dela. Assim, as
questões levantadas aqui visam saber sobre o direito da sociedade ao sacrifício
individual” e se o consentimento do sacrificado está aí necessariamente incluído.
Ele enfatiza que «consentimento» é outro conceito freqüentemente empregado nas
discussões éticas acerca dessa questão, o que conduz à suspeita de que o puro interesse
social não é suficiente, para estabelecer o sacrifício individual. se coloca a diferença
entre aquilo que apela à adesão voluntária (emocional, espontânea) e aquilo que se
impõe socialmente. Com base no que Jonas distingue entre
“a pretensão moral de um bem
comunitário e o direito da sociedade a esse bem e aos meios para sua realização.” (TME, 79)
Pois
“uma pretensão moral pede nosso consentimento, e sem ele não se pode responder a ela.
Um direito pode seguir sem ele, e seu cumprimento se impõe com ajuda da lei: o consentimento
é, portanto, questão de obediência, e não tem porque ser vontade espontânea”. (TME, 79-80).
Isso mostra que o (aparente) consentimento pode ocorrer mesmo que
involuntariamente, o que cria um problema para o âmbito da pesquisa médica, que se
apóia nessa exigência para legitimar sua prática sobre seres humanos. Jonas insiste que
trocar o termo “direito” por “interesse” ou aplicar o critério quantitativo (“direito” ou
“interesse” de poucos x de muitos) também não resolve a questão.
Esses aspectos apontam para algumas das dificuldades subjacentes ao esquema
conceitual que Jonas traçou em torno das expressões «indivíduo-sociedade», «interesse»
e «direito». E ele sugere que a saída desse impasse pode estar no fato de que para o
“verdadeiro sacrifício (...) não nem leis nem regras, exceto a de que tem que ser
absolutamente livre”. (TME, 80)
337
Assim, ninguém pode exigir que alguém se sacrifique em nome da ciência, mas,
igualmente, ninguém pode evitar que alguém, como vários cientistas fizeram
exemplarmente ao longo da história, se sacrifique por verdadeiro amor à ciência.
No item 3, Jonas discute
o tema do sacrifício
”, reconhecendo que a vida em
sociedade sempre exigiu dos indivíduos algum sacrifício. O caso mais extremo remete
às sociedades antigas em que vítimas humanas eram escolhidas, nem sempre entre os
inimigos, mas entre a própria comunidade, para serem sacrificadas em rituais sagrados,
visando obter boas colheitas ou simplesmente para aplacar a fúria dos deuses.
Ele cita ainda a situação de guerra, em que, sobretudo, os jovens são chamados a
se sacrificar pelo seu país, caso em que o papel de vítima é enobrecido pelo do “herói”.
Com base nesses exemplos, Jonas reconhece que
“o sacrifício humano parece fazer parte da
mera existência e desenvolvimento da comunidade humana.” (TME, 81)
Porém, as questões
que se colocam no âmbito do sacrifício aqui discutido são:
“quem deve ser mártir? Ao
serviço de que causa? E escolhido por quem?” (Ibidem)
Jonas não pretende estabelecer uma comparação entre os exemplos de sacrifícios
citados e os experimentos médicos em seres humanos, seu objetivo é apenas aguçar o
olhar para identificar algumas das
“obrigações e coações normais que o conjunto social
impõe ao indivíduo em troca das vantagens da sociedade.” (TME, 82)
No item 4, está em questão “o
tema do «contrato social»
e Jonas recorda que tal
conceito exclui o sacrifício unilateral. Pois, o contrato social é regido pelo princípio de
que as limitações à liberdade individual se fazem em observância geral e em benefício
de todos. Assim, todas as obrigações são aqui recíprocas e gerais e se referem às ações
públicas eo às privadas. Exceção feita à educação obrigatória das crianças que,
embora faça parte da esfera privada, é um assunto delegado ao poder público. Há,
porém, situações de emergência em que se concede ao Estado o direito de impor certas
restrições aos cidadãos. Por exemplo, a já mencionada declaração do estado de guerra.
338
Segundo Jonas, os experimentos médicos se situam a meio caminho entre a
situação normal e a situação extrema. Pois, se por um lado, não se trata de uma situação
concreta de vida ou morte, por outro, se exige algo mais do que se exige dos indivíduos
em situações ditas normais, uma vez que se trata de se autorizar a
“invasão e utilização do
âmbito mais íntimo do próprio corpo (...) o que só um objetivo de valor superior ou de
imperativa urgência poderia torná-lo aceitável.” (TME, 83-84)
O item
5, “A saúde como «bem público»”,
corrobora que, nesse contexto,
“O fim em
questão é a saúde e (...) a própria vida”,
bens, para
Jonas,
evidentemente elevados, aos quais
o médico serve diretamente mediante a cura e a o pesquisador indiretamente mediante o
conhecimento que obtém de seus experimentos. Não dúvida nem sobre o bem (...) que se
promove nem sobre o mal que se combate (...). Mas, um bem e um mal para quem?” (TME, 84)
Todavia, Jonas reconhece que tal questão não é nada simples e que,
“Para os fins de
nosso problema, pode-se contrapor interesse público a interesse privado, bem comum a bem
individual.” (Ibidem.)
Para demonstrar a obscuridade de tais conceitos, Jonas lança mão de uma
formulação usada insistentemente numa conferência sobre o tema, em que esteve
presente, nos EUA, colocada inicialmente sob a
“forma de uma pergunta retórica: Pode a
sociedade se permitir «desperdiçar» os tecidos e órgãos de um paciente que perdeu
irreversivelmente a consciência quando poderiam ser utilizados para restabelecer um indivíduo
enfermo sem esperança, mas ainda resgatável?” (Ibidem.)
Com freqüência, tal pergunta é respondida negativamente alegando-se
“como
finalidade o aproveitamento dos tecidos e órgãos, além da salvação de outros pacientes, a
investigação e a experimentação.” (Ibidem.)
O que impõe a reflexão em torno da questão
“o que a sociedade pode se permitir”
com relação à vida e à morte de seus integrantes, que Jonas examina no item 6. E, tendo
em vista que faz parte da própria sociedade o equilíbrio entre a morte e o nascimento,
339
ele considera
“que na questão da prolongação da vida, através de transplante de órgãos, não se
deve incluir o bem da sociedade” (TME, 85),
pois isso seria um exagero.
No entanto, situações que a sociedade não pode mesmo permitir. Por exemplo,
deixar que uma epidemia se espalhe, nem que a mortalidade supere demasiadamente a
natalidade ou vice-versa, ou que a longevidade excessiva comprometa o surgimento das
novas gerações, nem admitir um nível de saúde abaixo do tolerável. Pois, em todos
esses casos,
“o estado geral da sociedade se criticamente comprometido, e o interesse
público pode apresentar suas reclamações imperativas.” (Ibidem.)
Tais situações inadmissíveis, por suas proporções, podem exigir que a sociedade
tome atitudes extremas, inclusive, invadindo
“os sacrossantos âmbitos privados.” (Ibidem.)
Jonas, porém, adverte que o caráter problemático não se atém meramente à
questão numérica. Pois, situações das quais a sociedade não pode permitir nem um
caso sequer, como por exemplo,
“um único assassinato judicial, uma única distorção do
direito, nem uma única infração dos direitos humanos (...) porque isso mina a base moral sobre
a qual repousa a existência da [própria] sociedade.” (Ibidem.)
Mas, pelo mesmo motivo, a sociedade não pode permitir a falta de compaixão
nem negligenciar os esforços para reduzir o sofrimento quer atinjam um grande ou
pequeno número de pessoas. Em outras palavras,
“a sociedade não pode permitir a falta de
virtude (...)” (Ibidem.),
tantas vezes idealista, capaz de motivar alguns a se dedicarem e
outros a se sacrificarem para se alcançar a cura ou o lenitivo para alguma enfermidade.
Assim, surge a questão
“para que fins a esfera biomédica (...) [poderia] solicitar e
utilizar os serviços de sujeitos humanos para a experimentação?” (Ibidem.)
Jonas considera
“que tem que se tratar não só de fins que contem com o assentimento geral, (...) mas fins que
tenham a aspiração superior à sanção social (...) [especialmente aqueles casos] que afetam de
forma crítica a todo o estado atual e futuro da comunidade” (TME, 85-86)
340
Nesses casos extremos,
“pode-se declarar um estado de emergência pública comparável
ao estado de guerra, no qual se levantam temporariamente certas proibições e tabus
normalmente invioláveis.” (TME, 86)
Além disso, ele é taxativo ao considerar que se somente
Um risco extraordinário justifica recursos extraordinários. Isto vale
também para os experimentos físicos em pessoas, que dever-se-ia
incluir antes entre as formas extraordinárias do que entre as
ordinárias de serviço publicamente exigido ao bem comum. (...) dado
que a previsão e a responsabilidade ante ao futuro fazem parte da
essência da sociedade institucional, a defesa contra as catástrofes se
estende também à prevenção no longo prazo, embora sua menor
urgência permita exigências menos radicais. (Ibidem.)
Assim, no item 7,
A sociedade e a causa do progresso”,
tal argumento se
enfraquece quando, ao invés de questões de vida e morte, se trata da constante melhoria
da sociedade. Jonas considera que grande parte das questões biomédicas encontra-se
nessa categoria. Ele propõe a distinção entre risco social e tragédia pessoal e, mesmo
considerando que um pedido de ajuda na dimensão pessoal seja tão relevante quanto na
esfera social, defende que
seria errôneo equiparar tal resposta (...), a que se deve à sociedade;
esta resposta é devida de pessoa a pessoa (...) enquanto a adequada
provisão das necessidades (...) se converte em mandato público.
desta forma a sociedade assume a responsabilidade da atenção
médica, a pesquisa, o cuidado dos idosos e um sem número de coisas
que originariamente não entravam no domínio público, e agora se
converteram em verdadeiras obrigações frente à sociedade (...)
precisamente porque agora são administradas pela sociedade.
(Ibidem.)
341
Entretanto, a situação muda quando não se trata de atender às necessidades
essenciais, mas de promover a melhoria ou, noutras palavras, o progresso que, embora
possa ser visto como uma causa nobre, sempre impulsionando adiante, de forma alguma
se trata de algo urgente, ainda que exija também certo sacrifício. Por isso, a questão é
saber até que ponto a sociedade permite um sacrifício para além de toda necessidade.
Jonas admite que, progressivamente,
“a fidelidade a tais objetivos se tornou um
mandato oficial, permanente e institucionalizado pelo organismo político.” (Ibidem.)
E que, em
alguns aspectos, o sacrifício exigido pelo objetivo do progresso é até maior e uma vez
que a sociedade atual padece do que ele chama de
“síndrome do progresso”,
é forçoso
admitir que
“o progresso é (...) um interesse reconhecido da sociedade, de cujos benefícios
[nós] os indivíduos participamos em distintos graus: a pesquisa é um instrumento necessário do
progresso; na medicina, a experimentação em sujeitos humanos é um instrumento necessário da
pesquisa: logo a pesquisa humana se converteu num interesse social.” (TME, 87)
A incômoda, mas pertinente questão que aqui se coloca é se
“pode realmente a
sociedade, em nome de algum interesse público, exigir a contribuição de meu ser físico? O
chamado «contrato social» legitima exigências sobre nossos atos visíveis e públicos, não
sobre nosso ser invisível, secreto, oculto inclusive para nós mesmos.” (Ibidem.)
Sobretudo porque, como Jonas faz ressaltar,
no limite entre o mundo exterior comum, compartilhado com outros, e
o interior mais íntimo (...) todo direito público se detém. (...) Isto é o
mais privado do privado, a esfera íntima, não comunal, inalienável.
(...) o contrato social tem pouco a fazer nessa questão e a
voluntariedade é dela inseparável. Existe (...) uma diferença entre a
aspiração moral a um bem comum (como sem dúvida é toda vitória
sobre uma enfermidade) e um direito da sociedade a este bem e aos
meios para sua realização. (Ibidem.)
342
Com base nesse ponto é que Jonas, considerando a determinação da pesquisa
como essencialmente melhorista, pode estabelecer que
“exceto quando a situação atual é
insuportável, o objetivo melhorista não é necessário: é facultativo e não só do ponto de vista do
presente. Nossos descendentes têm direito a que leguemos um planeta sem pilhar; não têm
direito a novas curas milagrosas...”. (Ibidem.)
Por isso, no item 8, Jonas analisa a relação entre
“Meliorismo, pesquisa médica e
obrigação individual”
e constata que, contrariamente ao que ele afirmou acima
Em nenhum terreno o objetivo melhorista é mais inerente à essência
do caso que na medicina. Para o médico, é todo o contrário que
facultativo. Curar, quer dizer, melhorar o paciente é sua profissão e,
portanto, também a melhora da capacidade de curar é uma parte de
sua obrigação. (...) [Ainda assim,] Como objetivo social (...) a
constante melhora é facultativa. Tem que apoiar-se em sua nobreza
interior. (...) liberdade de escolha e nobreza têm, pois, que determinar
a forma em que se apela a e se aceita no campo médico o sentido do
sacrifício de terceiros ao serviço do progresso. A liberdade é sem
dúvida a primeira condição que é preciso observar aqui. A cessão do
próprio corpo para experimentos médicos está totalmente fora do
«contrato social» exigível. (TME, 88. Grifos nossos.)
Logo, embora a medicina, naturalmente, tenha essa vocação melhorista, isso não
lhe o direito de exigir um sacrifício a qualquer indivíduo, com base nos termos do
«contrato social», já que sua pretensão ultrapassa aquilo que tal pacto prevê. Assim,
temos que buscar fora da esfera do contrato social, fora de todo o
âmbito de direitos e obrigações públicos, os motivos e normas dos
quais podemos esperar que produzam a vontade de dar algo a que
ninguém tem direito: nem a sociedade, nem o próximo, nem a
posteridade. Tais fontes trans-sociais do comportamento estão no ser
343
humano, e (...) mais além da lei pública do contrato social.
(TME, 88-
89)
Isso significa que tal sacrifício é assumido pelo indivíduo por razões pessoais,
quase sempre morais, independentemente de qualquer imposição social ou mesmo de
alguma imediata reciprocidade. Dado que,
“A reciprocidade, essencial para a lei social, não
é uma condição da lei moral. Sem dúvida uma expectativa mais sutil do «benefício próprio»,
mas já pertencente à ordem moral (...)”. (TME, 89)
Donde, a seguir, no item 9, Jonas discute a relação entre
Lei moral e entrega
transmoral”
, partindo da pergunta:
“Posso então ver-me chamado, em nome da lei moral, à
prática de experimentos médicos sobre mim mesmo?” (Ibidem.)
Levando em conta a regra de
ouro, ele considera que,
Em princípio, [ela] (...) parece aplicável aqui. (...) Mas, (...)
[efetivamente,] a forma negativa da regra de ouro («não faças a
outro o que não queres que façam a ti») tem plena força prescritiva. A
forma positiva («faz aos outros o que desejaria que fizessem a ti»),
dentro do qual entra nossa pergunta, aponta a um horizonte
infinitamente aberto, no qual prontamente cessa a força prescritiva.
(Ibidem.)
Com efeito, a rigor, a regra de ouro se converte em obrigação, quando aplicada
em sua forma negativa, “de não fazer” algo a alguém. a recomendação de se “fazer”
algo (ainda que por alguém) presente em sua forma positiva -, excede a alçada da
obrigação, mesmo que se trate de uma ação altamente louvável.
Em outras palavras, temos que distinguir entre obrigação moral e a
muito mais ampla esfera do valor moral. (...) Os valores supremos se
encontram numa região situada mais além da obrigação e da
exigência. A dimensão ética vai muito além da lei moral e chega até a
344
sublime solidão da entrega e a escolha última, longe de todo cálculo e
regra... em poucas palavras, à esfera do sagrado. (TME, 89-90)
Nesse sentido, Jonas mostra os vários estratos da esfera íntima de deliberação do
agir, que não se limitam às normas sociais, mas atendem a preceitos mais exigentes: por
um lado, da obrigação moral e, por outro, do valor moral que, em última instância,
tange à dimensão sacra. Ações altruístas, como o caso do sacrifício
501
pessoal podem
emergir dessas camadas mais profundas do indivíduo. E, uma vez que,
“Só a partir daí
pode partir a oferta do sacrifício de si mesmo (...) esta fonte tem que ser protegida da maneira
mais cuidadosa. Como? A primeira obrigação que surge daqui à comunidade pesquisadora é
garantir uma verdadeira autenticidade e espontaneidade por parte dos sujeitos.” (TME, 90)
Sendo assim, no item 10, Jonas examina
O problema do «consentimento»”,
a partir
de duas questões:
“Quem pode recrutar e ser recrutado? Ou expresso com mais suavidade:
Quem deve fazer o chamamento a quem?” (Ibidem.)
A resposta à primeira parte da primeira questão é bastante óbvia. Pois, ninguém se
surpreenderia com a afirmação de que
“O emissor naturalmente qualificado do chamamento
é o próprio pesquisador, coletivamente o titular principal do impulso e o único com competência
técnica para julgar.” (Ibidem.)
Porém, Jonas aponta alguns pontos problemáticos, desse outro papel do
pesquisador
dado que também é parte interessada em alto grau (e interessada não
no bem público, mas também na empresa científica como tal, em
«seu» projeto, inclusive em sua carreira), [ele] não é uma testemunha
acima de qualquer suspeita. A dialética desta situação um delicado
problema de compatibilidade faz necessários especiais controles
por parte da comunidade pesquisadora e das autoridades públicas,
501. A interessante proximidade etimológica entre as palavras: sacro e sacrifício, remonta às práticas
rituais de sacrifico já mencionadas e confirma essa fonte mais profunda de sua motivação.
345
(...). Os controles podem atenuar o problema, mas não superá-lo.
Temos que conviver com a ambigüidade de todo o humano. (Ibidem.)
Aspectos para os quais, os comitês de ética das instituições de pesquisa deveriam
se voltar com especial atenção. Contudo, o que causa mais admiração é a resposta à
segunda parte da pergunta com relação a quem deve ser recrutado. Aqui, Jonas
realmente surpreende, ao defender no item 11, o “
Auto-recrutamento da comunidade
científica”.
De fato, soa bastante incomum, a resposta dada à questão:
“A quem deve se
dirigir o chamamento?”,
na qual Jonas afirma:
O seu emissor natural é também seu primeiro destinatário natural: o
próprio médico pesquisador e a equipe científica em seu conjunto. Em
tal coincidência de fato a nobre tradição com a qual começou o
capítulo inteiro dos experimentos humanos desaparecem quase
todos os demais problemas legais, éticos e metafísicos. Se uma
plena e autônoma identificação do sujeito com o objetivo da pesquisa
que tem que legitimar seu papel no experimento, é esta; se uma
compreensão plena (não só do objetivo, mas também do procedimento
da experimentação, e de suas possibilidades) é esta; se uma
motivação forte, é esta; se uma decisão livre é esta; se uma
integração com todo o esforço e a ação da pessoa, é esta. O auto-
recrutamento subtrai per se o problema do consentimento, com sua
insolúvel ambigüidade. (Ibidem.)
Jonas justifica sua posição, afirmando que
“o pesquisador é livre (...) [e] enquanto se
expõe a si mesmo e a outros consagrados da comunidade pesquisadora ao desafio do
experimento, ainda não se pisa em terreno problemático.” (TME, 91)
Pinsart, ainda no texto supracitado
(p. 321)
, reprova o fato de Jonas considerar tal
adesão como espontânea, ignorando as fortes pressões profissionais, políticas e
econômicas que, até mesmo os pesquisadores, sobretudo os em início de carreira, ou
346
integrantes de equipes em disputa com outras pela primazia de certas descobertas, sejam
forçados a aderir a um experimento, visando acelerar os resultados de suas pesquisas.
De fato, Jonas não considera esse aspecto. Entretanto, ele reconhece que mesmo
que o auto-recrutamento da comunidade científica transponha os problemas de ordem
ética, isso não significa a solução mais satisfatória, uma vez que,
naturalmente, inclusive com a disponibilidade ideal deste círculo
íntimo (...). Este potencial não basta, nem em número nem em
dispersão qualitativa do material, para o múltiplo, sistemático e
constante ataque à enfermidade de todo tipo à altura do qual estavam
os atos solitários dos antigos investigadores. As necessidades
estatísticas colocam suas vorazes exigências. Se toda a empresa do
progresso não fosse facultativa, comparada com o obrigado respeito
a uma esfera privada inviolável, a solução mais simples seria
inscrever toda a população em «padrões» e decidir, por exemplo, por
sorteio quem de cada categoria é chamado ao «serviço». (Ibidem.)
Ainda que essa medida extrema resolvesse o problema quantitativo do contingente
a ser pesquisado, evidentemente, não se poderia aprová-la, muito menos defender a sua
compatibilidade com o critério do livre consentimento. Isso mostra que, efetivamente,
não se conseguiu responder à segunda parte da pergunta. Por isso Jonas recomenda que
se repita
“simplesmente a pergunta anterior: a quem deve se dirigir o chamamento?” (Ibidem.)
E no item 12, ele propõe a
«Identificação» como princípio de seleção em geral”.
Portanto, mantendo os critérios que tornaram a comunidade científica a mais indicada,
mas tentando resolver o problema quantitativo, ele pondera que,
Se ampliamos a critérios gerais de seleção as condições que
qualificam preferentemente aos membros da comunidade científica
para o papel em questão, dever-se-ia buscar outros sujeitos entre
347
aqueles que se espere um máximo de identificação, compreensão e
espontaneidade... quer dizer, entre as parcelas da população melhor
formadas e menos manipuláveis por sua situação econômica. Desta
reserva por natureza escassa, uma escala descendente de
admissibilidade ideal leva à crescente abundância real da oferta, cuja
utilização deveria ser tanto mais contida quanto mais se relaxam os
critérios de exclusão. Isto leva a uma inversão da «conduta de
mercado» normal e racional, na que a oferta mais barata é a primeira
que se emprega e a mais cara se emprega em todo caso ao final.
(Ibidem.)
Assim, Jonas encontra um critério nada convencional para suprir a demanda de
sujeitos para as pesquisas com seres humanos, postulando que,
O princípio condutor destas considerações é que à «injustiça» da
coisificação só se pode fazer «justiça» com uma identificação tão
autêntica com o objetivo da investigação que faça a este um objetivo
tanto do sujeito do experimento como do pesquisador. (...) o papel
experimental do sujeito não é simplesmente permitido, mas
positivamente querido. Esta sua vontade soberana, que torna seu o
objetivo, garante sua condição de pessoa nessa situação o contrário
despersonalizadora. Para ser válida, essa vontade tem que ser
autônoma e informada. Esta última condição poderá se cumprir
num certo grau fora da comunidade pesquisadora. (TME, 91-92)
Desse modo, depois da comunidade científica, os mais indicados a se colocarem
como sujeitos voluntários da pesquisa, seriam as pessoas com melhor condição
econômica e maior grau de escolaridade, pois, segundo Jonas,
quanto maior for o grau de compreensão em relação ao objetivo e à
técnica, tanto mais válido será o consentimento da vontade. Uma
348
margem de mera confiança segue sendo inevitável. Em última
instância, o chamamento aos voluntários deveria buscar esse livre e
alegre consentimento. A apropriação do objetivo da pesquisa no
próprio esquema de objetivos da pessoa. (...) Todas essas motivações
(...) pode utilizá-las o pesquisador se o objeto da pesquisa é bastante
digno; e é uma obrigação prioritária da comunidade pesquisadora
(especialmente com vistas ao que chamei de «margem de confiança»)
prestar atenção a que esta valiosa fonte nunca seja objeto de abuso
com fins pouco sérios. Nem a mais livre e espontânea das ofertas
deveria ser aceita para um objetivo menos que pleno. (TME, 92)
Com base nesse raciocínio, Jonas defende no item 13,
A regra da «série
descendente» e seu sentido anti-utilitário”.
Porém, antes de qualquer coisa, ele admite ter
estabelecido
“uma regra que não pode resultar muito agradável à indústria da pesquisa, faminta
de números.” (Ibidem.)
Ele tem consciência das objeções que ela pode levantar. Mas,
ainda assim, ele se mostra otimista e declara:
Dado que tenho confiança no potencial transcendente dos homens,
não temo que essa «fonte» venha a faltar à sociedade que não se
autodestrói... e uma sociedade assim merece os benefícios do
progresso. Em todo caso, esta regra é «elitista» (...) e as elites são,
por natureza, pequenas. O atributo conjugado de motivação e
informação, mais liberdade de pressão exterior, costuma estar
socialmente tão circunscrito que a estrita observância da regra
poderia matar numericamente por inanição o processo de pesquisa.
Por isso, falamos de uma série descendente de admissibilidade, que
permite precisamente relaxar a regra, mas na qual a consciência de
que sua legitimação diminui não carece de conseqüências práticas.
(...) «Consentimento» e «voluntariedade» em sentido formal cobrem
349
todo o espectro, mas chegamos a zonas de penumbra nas quais seu
conteúdo se torna questionável, talvez ilusório. Por exemplo, no caso
de necessitados, quando intervém a compensação econômica; ou no
caso de pessoas dependentes, que temem perder com um não um favor
de seu superior ou esperam ganhá-lo com um sim. (Ibidem.)
Nesse sentido, a proposta de Jonas é bastante lúcida, porque plenamente
consciente dos vários fatores que podem interferir no “livre” consentimento de um
indivíduo que se submete a uma pesquisa. Além disso, ele sabe que tais zonas de
sombra nem sempre podem ser evitadas, mas aconselha que se tenha consciência delas e
em relação a elas a maior cautela possível. Exatamente por isso, a sua série descendente
de admissibilidade estabelece que
“O limite inferior é a capacidade de compreensão e de
consentimento (quer dizer, também de negativa) como tal. Isto inclui tanto aos débeis mentais
quanto às relações de obediência militar.” (TME, 93)
Logo, sem entrar numa casuística, Jonas apenas se propõe a apresentar o princípio
da ordem de preferências, agora do ponto de vista negativo:
“quanto mais pobre em
conhecimento, motivação e liberdade de decisão é o grupo de sujeitos (e isso significa também,
infelizmente, o grupo mais amplo e mais disponível), tanto mais cautelosamente, inclusive com
resistência, terá de ser empregada esta reserva, e tanto mais coativa tem que ser a justificação
compensatória através do objetivo.” (Ibidem.)
Contudo, ele próprio admite que tal princípio
é o contrário de um padrão de utilidade social, a inversão da ordem
de «disponibilidade e empregabilidade»: os elementos mais valiosos e
mais escassos, os mais difíceis de substituir, do organismo social,
devem ser os primeiros candidatos ao risco e ao sacrifício. É o
padrão da nobreza [que] obriga; e apesar de sua tendência contrária
à utilidade e a seu aparente desperdício, sentimos que tem sua
correção e inclusive uma «utilidade» superior, porque a alma da
350
comunidade vive deste espírito. É também o contrário do que exigem
as necessidades cotidianas da investigação, e sua observância exige
da comunidade científica que combata a forte tentação de ater-se
rotineiramente à fonte mais facilmente utilizável... os sugestionáveis,
os ignorantes, os dependentes, os «presos» em múltiplos sentidos.
(Ibidem.)
Jonas considera que não se trata de paralisar as pesquisas, mas que, ainda que o
preço de se evitar tal tentação fosse torná-la um pouco mais lenta, tal risco valeria à
pena em relação ao que se pretende preservar.
No item 14, Jonas discute a realização de
Experimentos com pacientes”.
Até aqui,
Jonas conduziu sua reflexão partindo da
“tácita aceitação de que os sujeitos da pesquisa se
tomam dentre as pessoas sãs.” (Ibidem.)
Todavia, outro lado da questão se coloca, dado que
os doentes são
precisamente os mais disponíveis de todos, já que de todo modo estão
em tratamento e sob observação. (...) [Ademais,] o objetivo da
pesquisa médica, a vitória sobre a doença, requer em seu estágio
decisivo o experimento verificador em pacientes desta doença, e o
deixar de levá-lo a cabo poria a perder o objetivo. Com o
reconhecimento desta necessidade inegável entramos na zona mais
sensível de todo o complexo, porque tal acontecimento afeta aqui o
núcleo da relação médico–paciente e põe à prova suas obrigações
mais solenes. (TME, 93-94)
Por isso, no item 15, ele reflete sobre “
O privilégio fundamental do enfermo”,
partindo de uma análise da relação entre o médico e o seu paciente, constatando que
No curso do tratamento, o médico está obrigado ao paciente e a
ninguém mais. (...) conta o paciente quando está sob a custódia do
médico. (...) [que] esobrigado a não permitir que outros interesses
351
entrem em concorrência com o interesse do paciente em sua cura. (...)
Estritamente nesse sentido, o médico espor assim dizer com o
paciente e com Deus. (TME, 94)
Em outros termos, o médico está comprometido exclusivamente com seu paciente
e a zelar por seus interesses fundamentais, isto é, sua saúde, sua integridade física e sua
vida. Em princípio, nada mais pode intervir nessa relação. Porém Jonas admite que
uma exceção normal à regra de que o doutor não é o
administrador da sociedade frente ao paciente, mas unicamente o
fiduciário de seus interesses: o isolamento do doente contagioso. Isso
não se faz evidentemente no interesse do paciente, mas no de outros
que estão ameaçados por ele. (...) Mas impedir ao paciente que
prejudique a outros não é o mesmo que explorá-lo em benefício de
outros. (...) Não se pode estabelecer regras para revogar regras em
situações extremas. (...) Mas o que se admite provisoriamente e se
oculta depois com um silêncio expiatório não pode valer como
precedente. Em nossa análise temos que vê-las sob condições não
extremas, não de emergência, onde os princípios sejam escutados e as
pretensões sejam ponderadas entre si sem coações. Admitimos que
existem tais pretensões além do tratamento e que, se é que deve haver
progresso médico, nem sequer o privilégio superlativo do paciente
pode permanecer inteiramente intacto frente à intrusão de tais
pretensões. (Ibidem.)
Por esse motivo, no item 16, Jonas discute
O princípio de «identificação» aplicado
aos pacientes”,
apontando especialmente para as diferenças de tal princípio em sua
aplicação às pessoas sãs. Dado que, segundo ele,
No conjunto parecem reger aqui os mesmos princípios estabelecidos
para os objetos normais de pesquisa: identificação, motivação,
352
compreensão por parte do sujeito. Mas é claro que estas condições
são particularmente difíceis de cumprir no caso de um paciente. (...)
tudo o que tem a ver com sua condição e estado faz do paciente uma
pessoa menos soberana do que o são. Também é preciso pensar no
‘quase autismo’ da fixação na enfermidade e o interesse pela cura.
Quase é preciso excluir a espontaneidade da própria oferta, e o
consentimento está reduzido pela diminuída liberdade. De fato, todos
os fatores que tornam o paciente (...) tão excepcionalmente acessível e
bem-vindo aos experimentos comprometem ao mesmo tempo a
qualidade da resposta afirmativa, que é exigida para justificar
moralmente sua utilização. Isso, junto com a primazia da tarefa
médica, faz que para o médico e o cientista reunidos numa mesma
pessoa seja uma elevada obrigação empregar seu enorme poder
para os mais dignos objetivos de investigação e, naturalmente,
aplicar um mínimo de convencimento da pessoa. (TME, 95)
Reforçando ainda mais tal obrigação, coerentemente, Jonas aplica também ao
princípio de identificação a sua série descendente de admissibilidade, considerando que,
todas essas limitações deixam espaço para observar também entre os
pacientes a «escala descendente de admissibilidade» que postulamos
com caráter geral. Conforme a ela, estão em primeiro lugar os
pacientes que mais poderiam identificar-se com a causa da pesquisa e
melhor a entendam: membros da profissão médica e de seu entorno
científico-natural, que às vezes também são pacientes; imediatamente
depois, entre os pacientes leigos, os motivados em alto grau e capazes
de compreender por sua formação, ao mesmo tempo também os
menos dependentes; e assim sucessivamente escala abaixo. Uma
consideração suplementar é aqui a gravidade de seu estado, que por
353
sua vez atua em proporção inversa. Neste caso, a profissão tem que
resistir ao sedutor sofisma de que o caso mais desesperado é o mais
«consumível» (porque se deu por perdido de antemão) e, portanto,
disponível preferentemente; e em geral a idéia de que quanto piores
forem as possibilidades do paciente tanto mais justificado está seu
recrutamento para experimentos que não foram pensados diretamente
para o seu próprio bem. O certo é o contrário. (Ibidem.)
A escala “invertida” que Jonas propõe visa, então, corrigir os eventuais excessos
cometidos em relação às pessoas mais vulneráveis: as menos esclarecidas e as mais
indefesas ante o (suposto) saber e a intimidante autoridade inspirada pela “venerável”
figura do médico que, inadvertidamente, pode abusar de seu poder, principalmente,
sobre um paciente, em especial, aquele em estado mais grave e sem muitas esperanças.
Outro importante aspecto a ser observado na experimentação com seres humanos
é abordado no item 17, que trata “
O segredo como caso limite”.
Aqui, Jonas discute
o caso em que o desconhecimento, inclusive o engano do sujeito faz
parte do experimento (estatisticamente, por exemplo, nos grupos de
controle e aplicações de placebo). (...) Em sujeitos sadios, que deram
previamente seu assentimento ao segredo, pode-se defender a ética do
caso. Mas, frente ao doente, que cque está sendo tratado (o que
incluiria também a experimentação com um novo medicamento) e em
vez disso administram-lhe um placebo, estamos pura e simplesmente
frente uma traição médica.
502
(...) De qualquer ponto de vista, se
502. Da qual se tornou um exemplo paradigmático, a pesquisa sobre a filis realizada no Institute de
Tuskegee, no Alabama, iniciada em 1932 e interrompida em 1972, por ordem judicial. Nesta pesquisa,
para estudar a história natural da doença, quatrocentos homens negros com sífilis foram deixados sem
tratamento. Porém, eles pensavam que estavam sendo tratados pelo serviço de saúde pública. E mesmo
depois de 1940, quando a penicilina passou a ser usada com eficácia no tratamento da sífilis, eles
permaneceram excluídos do tratamento e foram a mesmo dispensados do serviço militar obrigatório
para que não houvesse o risco de receberem tratamento dos médicos do exército. Esse episódio de
Tuskegee levou o governo dos EUA a criar a National Commission for the Protection of Human Subjects
of Biomedical and Behavioral Research que, em 1978, elaborou o Belmont Report, em observância aos
354
desprende que os experimentos ocultos em pacientes sob a máscara
de seu tratamento são moralmente inadmissíveis. (TME, 95-96)
Segundo Jonas, certos casos criam um problema limite, quando o segredo é
relevante para o resultado da pesquisa. Porém, isso não basta para legitimar a decisão de
não se tratar os doentes, principalmente, quando os meios eficazes estão disponíveis.
Ele considera que,
“Em contrapartida, não é nenhum problema limite a outra variante da
necessária ignorância do paciente: a do sujeito inconsciente, comatoso. Empregá-lo para
experimentos não terapêuticos é simplesmente inaceitável, sem limitações.” (TME, 96)
Ou seja, se no caso anterior os pacientes podiam ser empregados nos
experimentos, desde que atendendo às exigências: da identificação, motivação e
compreensão por parte do sujeito dos procedimentos do experimento; no caso de
pacientes em coma, em hipótese alguma podem ser tomados como sujeitos de
experimentação. Justamente porque não estão aptos a cumprir as exigências acima, que
pressupõem o livre uso da vontade e o pleno exercício da consciência.
Por todos esses aspectos, Jonas reconhece que,
o conjunto dos experimentos em pacientes é uma zona de sombra da
qual não se pode sair sem compromissos. Os matizes são infinitos, e
o médico e pesquisador em uma pessoa podem distingui-los
corretamente em cada caso. Em suas mãos se encontra a decisão. A
regra filosófica, (...) não pode especificar sua própria aplicação. O
que pode comunicar ao prático é só uma máxima geral ou uma
postura para o exercício de seu juízo e consciência nos assuntos
concretos de seu trabalho. Em nosso caso isso significa (...) tornar a
vida difícil. (Ibidem.)
Direitos Humanos, estabelecendo que os princípios éticos básicos autonomia, beneficência e justiça
distributiva deveriam nortear a conduta em todas as pesquisas com seres humanos.
Fonte: http://www.actamedicaportuguesa.com/pdf/2005-18/3/221-226.pdf - Acesso em 04/12/2008.
355
Na tentativa de minimizar tal dificuldade, no item 18, Jonas acrescenta que
Os
experimentos com pacientes têm que se referir à sua própria doença”.
Assim, se constitui
a enfática regra de que os pacientes, se [for o] caso, podem ser
submetidos àqueles experimentos que têm relação com sua própria
doença. (...) Isto se desprende simplesmente do que estabelecemos
como única desculpa para a lesão do especial direito do doente, a
saber: que a guerra científica contra a enfermidade não possa
cumprir sua missão sem levar ao procedimento de pesquisa aos que
padecem a enfermidade correspondente. Se se buscam sujeitos de
experimentação recorrendo a esta disciplina, tem que ser
precisamente por - e só por – sua doença. (TME, 96-97)
Desse modo, evitar-se-ia que o paciente fosse utilizado simplesmente como um
meio em nome do conhecimento científico ou do interesse de terceiros em detrimento
de seu próprio interesse, visto que
é certo que o paciente não pode obter utilidade terapêutica alguma do
experimento não ligado a sua enfermidade, enquanto isto seria
possível com um experimento que fosse a ela ligado.(...) O médico que
após o fracasso das terapias tradicionais propõe ao paciente tentar
uma nova que ainda não foi testada atua como médico, esperando o
melhor para ele. Inclusive se o experimento fracassa, foi um
experimento en pro do paciente e não meramente sobre ele. (TME, 97.
sic)
Considerando as exigências colocadas nos dois últimos itens: o 17 que estabelece
a regra de que é completamente inaceitável utilizar pacientes para experimentos não
terapêuticos, e o 18 que determina que
“Os experimentos com pacientes têm que se referir à
sua própria doença” (TME, 96),
Pinsart sugere em seu texto
(op. cit. pp. 82-83)
a distinção
entre a experimentação com finalidade terapêutica e a experimentação com finalidade
356
cognitiva. Esse segundo seria sempre inaceitável, uma vez que nele o princípio de
identificação não pode ser aplicado e o paciente é usado como simples meio. Já o
primeiro, é dividido em dois tipos, que Jonas identifica: a) àqueles em que o próprio
doente pode se beneficiar com os resultados obtidos e o b) àqueles em que o doente não
desfrutará dos benefícios, sendo, assim, utilizado como meio para beneficiar outras
vítimas da mesma doença, mas ele pode, ao menos, se identificar com o experimento
que pretende vencer tal doença e com o qual ele tem a oportunidade de contribuir.
Nesse contexto, e desde que atendendo a todas as exigências anteriores, o médico,
como pesquisador, estaria agindo em acedência ao compromisso que sua profissão exige
em relação ao paciente; o que conviria ao objetivo de ampliar o conhecimento sem, no
entanto, ferir a integridade física e moral do sujeito pesquisado.
Por conseguinte, se pode servir muito bem, tanto ao interesse do
paciente, quanto ao interesse da ciência médica, se de seu tratamento
se aprende algo que beneficia a outras vítimas da mesma doença. Mas
o benefício para a ciência e para uma futura terapia é então em
benefício acessório do tratamento de bona fide do paciente atual. Este
tem direito a esperar que seu médico não fará nada em nome do
tratamento, com mera finalidade de aprender algo para outros.
(Ibidem.)
Esse é, porém, um ponto bastante complexo, uma vez que, pode acontecer que o
conhecimento obtido com a ajuda do paciente não chegue a tempo de salvá-lo. Ainda
assim, Jonas reitera que
inclusive nesse caso, - o do experimento en e não en pro do paciente –
segue sendo sua própria doença a que se põe ao serviço da luta futura
precisamente contra essa doença. Outra coisa é, de novo, sugerir nas
mesmas condições ao doente incurável que se entregue a qualquer
357
pesquisa de outra importância para a medicina. (...) do ponto de vista
do sujeito e de sua dignidade existe uma diferença cardinal, que
separa o permitido do não permitido... e isso conforme ao mesmo
princípio de «identificação» que temos evocado continuamente.
(Ibidem. sic.)
De fato, ainda que não se beneficie diretamente dos resultados obtidos pela
pesquisa da qual participou, para o paciente é mais gratificante conceder o seu livre
consentimento por estar identificado e mais motivado a contribuir com um experimento
direcionado à doença que o vitima do que a qualquer outra. Jonas afirma que nesse caso
se deixa ao paciente ao menos esse resíduo de identificação que é sua
própria doença, com a qual pode contribuir a superá-la nos outros, e
assim, segue tratando-se em certo sentido de sua própria causa. É
completamente indefensável roubar ao infeliz essa intimidade com o
objetivo para fazer de seu infortúnio um cômodo meio para alcançar
fins que lhe são alheios. Honrar esta regra, creio eu, é essencial para
atenuar ao menos a injustiça que representa em todo caso a
experimentação não terapêutica em pacientes. (TME, 98)
Enfim, no item 19, Jonas expõe a sua
Conclusão
acerca dessa intricada questão
atinente à experimentação com seres humanos.
Ele reconhece que, num primeiro
momento, pode parecer que algumas de suas considerações defendam o
“adiamento do
progresso médico” (Ibidem.)
. Quando, na verdade o que ele nos solicita é que
não esqueçamos que o progresso é um objetivo facultativo, não
forçosamente obrigatório, e que especialmente seu ritmo (...) não tem
nada de sagrado. Pensemos ademais que um progresso mais lento em
luta contra a doença não ameaça a sociedade, por mais doloroso que
possa ser para aqueles que têm que lamentar que precisamente sua
doença não tenha sido superada em seu momento. (...) Pensemos por fim
358
que não pode ser objetivo do progresso erradicar o destino da
mortalidade. Cada um de nós morrerá desta ou daquela doença. Nossa
condição mortal pesa sobre nós com sua dureza, mas também com sua
sabedoria, porque sem ela não haveria a eternamente nova promessa de
frescor, originalidade e benevolência da juventude; nenhum de nós
sentiria o impulso de contar nossos dias e fazê-los contar. Com todo
nosso esforço por arrancar à mortalidade o que podemos, devemos saber
levar seu peso com paciência e dignidade. (Ibidem.)
Assim, ele encerra sua reflexão do capítulo 6, que examinou em detalhes a
questão do ser humano como sujeito de pesquisa. Após tal apresentação, é interessante
avaliar se esses critérios estabelecidos por Jonas são compatíveis com os princípios
éticos básicos que, em estrita observância aos Direitos Humanos, foram adotados pelo
Belmont Report, de 1978, para nortear a conduta em todas as pesquisas com seres
humanos, cabe lembrar: autonomia, beneficência e justiça distributiva. Os quais, no ano
seguinte, serviram de inspiração aos princípios intermediários
503
de Beauchamp e
Childress, que acrescentaram a esses três princípios um quarto baseado no lema
hipocrático de
nunca para causar dano ou mal a alguém,
denominado de princípio da não
maleficência. Assim, como visto, seus quatro princípio seriam: a) respeito à
autonomia, b) não maleficência, c) beneficência e d) eqüidade e justiça.
Curiosamente, embora Jonas tenha escrito sua proposta 10 anos antes dos autores
acima, é possível identificar uma correlação com cada um desses princípios. Senão
vejamos. O princípio de respeito à autonomia é subtendido quando, por exemplo, no
item 2, ele defende que a sociedade não pode exigir que um indivíduo se sacrifique,
nem mesmo em nome da ciência. Mas, por outro lado, que ninguém pode evitar que
alguém, como vários cientistas heroicamente fizeram ao longo da história, se sacrifique
503. Vide Cap. 3, p. 137.
359
por legítimo amor à ciência. Tal princípio também poderia ser identificado com os itens
3, 4, 5, 6, 8 e 9 que, por serem muitos, não serão aqui retomados.
O segundo princípio, da não maleficência, pode ser relacionado à questão
colocada pelo item 7 se
“pode realmente a sociedade, em nome de algum interesse público,
exigir a contribuição de meu ser físico?” (TME. p. 87)
e ao tema do item 17 que trata do
“segredo como caso limite”,
em que Jonas assevera que o argumento de que o segredo é
relevante para o resultado da pesquisa não legitima a decisão de se deixar de tratar os
doentes, principalmente, quando os meios eficazes já estão disponíveis.
O terceiro princípio, da beneficência, pode ser associado ao item 14, em que Jonas
discute a realização de
“Experimentos com pacientes”;
ao 15, que trata do
“privilégio
fundamental do enfermo”,
com base na análise da relação entre o médico e o seu paciente,
ao 16 em que Jonas focaliza
“O princípio de «identificação» aplicado aos pacientes”,
considerando especialmente as diferenças de tal princípio em sua aplicação às pessoas
sãs e relacionando-o com sua
série descendente de admissibilidade
e ao 18 no qual Jonas
acrescenta que
“Os experimentos com pacientes têm que se referir à sua própria doença”,
constituindo, assim,
a enfática regra de que os pacientes, se [for o] caso, podem ser
submetidos àqueles experimentos que têm relação com sua própria doença.” (TME. p. 96).
Por fim, o quarto e último princípio, da eqüidade e justiça, pode ser associado ao
item 11, onde Jonas propõe o
“Auto-recrutamento da comunidade científica”,
ao item 13 em
que Jonas defende
“A regra da «série descendente» e seu sentido anti-utilitário”.
Segundo o
qual
“quanto mais pobre em conhecimento, motivação e liberdade de decisão é o grupo de
sujeitos (...), tanto mais cautelosamente, inclusive com resistência, terá de ser empregada esta
reserva, e tanto mais coativa tem que ser a justificação compensatória através do objetivo.”
(TME, 93)
Mas também, por suas conseqüências, a itens mencionados: o 16 que
fornece uma escala “invertida” que visa corrigir os eventuais abusos cometidos sobre as
pessoas mais vulneráveis: as menos esclarecidas e as mais indefesas diante do médico
360
que, mesmo involuntariamente, pode exercer seu poder de forma abusiva, especialmente
com relação àquele paciente em estado mais grave e sem grandes esperanças e o 18 que
pretende evitar que o paciente seja utilizado como simples meio em nome do
conhecimento científico ou do interesse de terceiros em detrimento de seu próprio.
Essa aproximação entre tais princípios e os critérios de Jonas mostra que, na
verdade, a formulação jonassiana, ainda que anterior, pode ser compatibilizada ou
considerada na mesma perspectiva. Nesse sentido, os critérios que ele propõe, embora
distintos, não são necessariamente discordantes daqueles que se tornaram a referência
mundial para embasar a reflexão ética a respeito dos experimentos com seres humanos.
Tal aspecto é relevante por ressaltar, por um lado, a anterioridade e a originalidade
dos critérios elaborados por Jonas, mas, por outro, a possibilidade de sua convergência
com princípios, posteriormente, utilizados
504
como parâmetros para as experimentações
na esfera biotecnológica, que necessitam utilizar as “cobaias”
505
humanas.
A seguir, será apresentada a sua exposição do problema, ainda mais complexo, do
homem se converter em objeto da aplicação das novas biotecnologias.
6.3 - A reflexão jonassiana quanto às aplicações das biotecnologias em seres humanos
Para a presente exposição, a referência se o capítulo 8 de TME, intitulado:
“Façamos um clone humano: Da eugenia à tecnologia genética”
506
,
no qual Jonas parte da
constatação de que, com a biologia molecular, as ciências biológicas alcançam o nível
tecnológico ou o potencial
de engenharia
507
alcançado pelas demais ciências naturais.
504. A aproximação com o princípio de precaução será feita no próximo tópico referente à aplicação.
505. Apesar de seu aspecto pejorativo, o termo designa “qualquer animal, objeto, pessoa ou campo usado para
fins experimentais.” Fonte: http://www.priberam.pt/dlpo/definir_resultados.aspx - Acesso em 12/12/08.
506. Na versão em língua espanhola, pp. 109-134.
507. No original, o termo empregado por Jonas é Ingenieurspotential (TME, 162), palavra formada pelo
radical “Ingenieur” incorporado ao vocabulário alemão a partir do século XVII, (segundo Deutsches
Wörterbuch von Jacob Grimm und Wilhelm Grimm. 16 Bde. [in 32 Teilbänden]. Leipzig: S. Hirzel
1854-1960. -- Quellenverzeichnis 1971. Fonte: http://germazope.uni-
trier.de/Projects/WBB/woerterbuecher/dwb/wbgui?mode=hierarchy&textsize=600&lemid=GI00393&que
ry_start=1&totalhits=0&textword=&locpattern=&textpattern=&lemmapattern=&verspattern=#GI00393L
361
Assim, advém a capacidade de interferir na constituição genética do homem. As
possibilidades práticas de tal capacidade mostram-se tão atraentes quanto às das
técnicas anteriores. Mas, dado que suas conseqüências não são ainda totalmente
conhecidas, exige-se uma cordata reflexão antes que seja, efetivamente, aplicada.
O controle biológico do ser humano, sobretudo genético, coloca questões
inteiramente novas para as quais nem a reflexão nem a prática anteriores nos
prepararam. Visto que, pela primeira vez, a natureza do homem é colocada como objeto
do poder de interferência humano. Por isso, Jonas estabelece: 1) a cautela como o
primeiro mandamento moral e 2) o pensamento hipotético como nossa primeira tarefa.
Ele ainda ressalta que
“pensar nas conseqüências antes de agir não é mais do que
inteligência comum.”
(TME, 109)
A diferença é que, nesse contexto específico,
“a
sabedoria nos impõe ir mais longe e examinar o uso eventual das capacidades antes que estejam
completamente prontas para o uso”. (Ibidem.)
Um resultado possível dessa avaliação seria o sensato conselho de não deixar
amadurecer totalmente algumas capacidades, o que significa não prosseguir certos tipos
de pesquisa, dada a facilidade do ser humano de se deixar seduzir por qualquer nova
capacidade. Sobretudo, tratando-se de pesquisas cujos próprios experimentos exigem
ações consideradas inadmissíveis. Por exemplo, quando tal
“capacidade pode ser
adquirida pelo experimento real com «material» autêntico”
(Ibidem.),
obedecendo à lógica de
«tentativa e erro» que, para chegar à manipulação biológica sem erros, extrairia seus
ensinamentos de repetidas manipulações errôneas, o que significa produzir inúmeros
seres anômalos. Jonas considera que somente isso deveria bastar para vetar a aquisição
dessa “arte”, mesmo que, a seguir, os frutos esperados pudessem realmente ser obtidos.
0 - Acesso em 25/11/08.) cujo sentido a versão espanhola buscou preservar com o termo ingeniería, que
tem como primeiro significado o “Estudio y aplicación, por especialistas, de las diversas ramas de la
tecnología.” Segundo o DICCIONARIO DE LA LENGUA ESPAÑOLA - Vigésima segunda edición - da
Real Academia Española. Fonte:
http://buscon.rae.es/draeI/SrvltConsulta?TIPO_BUS=3&LEMA=ingenier%EDa - Acesso em 25/11/08.
362
Embora admitindo que a ingerência na liberdade de pesquisa também se expõe a
uma justa oposição ética, Jonas adverte que tal objeção não é nada frente à gravidade
das questões éticas colocadas pelo eventual sucesso de tais pesquisas.
Por isso, de saída, a simples possibilidade de sua detenção voluntária, segundo
ele,
“pode servir de medida para o caráter único dos perigos que uma engenharia biológica
plenamente madura e socialmente dotada de poderes pode trazer sobre nossas cabeças.
Estejamos ao menos prevenidos. Serão necessárias as máximas fontes de ajuda de nossa razão
para lidar com este objeto, o mais delicado que se possa imaginar...”
(TME, 110)
Ao reconhecer que, infelizmente, em nossa época, mais do que em qualquer outra,
a ética está insegura de si mesma; Jonas lança um alerta, quase em forma de desabafo e
admite que sua proposta ética não pretende mais do que ser uma tentativa provisória
para enfrentar o problema colocado por aquilo que ele examina a seguir, vem a ser,
“A
novidade da técnica biológica”.
Jonas começa questionando:
“Em que sentido pode-se falar
de técnica biológica por analogia e diferença com outra técnica ou «engenharia»?” (Ibidem.)
O modelo de comparação é a engenharia mecânica, com a qual se constrói
complexos aparelhos para realizar fins humanos bem definidos. Ele destaca o uso do
termo «construção» para expressar a
“confecção de um todo sistemático permanente e
compositivo pertinente” (Ibidem.)
aplicado, por exemplo, para designar: a construção de
máquinas, pontes, ou barcos, etc.
A função do projeto (subjacente à idéia de construção) é, entre outras, modificar -
no sentido de desenvolver -, os modelos existentes ou adaptar obras posteriores a fins
não previstos anteriormente. O que permite falar conotativamente de “gerações”
sucessivas de computadores, aviões, armas, etc. enfatizando que o objetivo final é
sempre o benefício dos homens, até mesmo no caso do último exemplo, onde se busca
causar a morte de seres humanos, para atender aos interesses de outros seres humanos.
363
Cabe ressaltar que, até então, a técnica manejava materiais inertes (sobretudo
metais) com os quais construía auxiliares não humanos para o uso humano. A fronteira
era bem definida: o homem sujeito, a natureza objeto do domínio técnico (mesmo
quando o homem se tornava o objeto direto de alguma aplicação). O advento da técnica
biológica, que não amplia, mas modifica os «projetos» das espécies vivas, entre os
quais o projeto da própria espécie humana, impõe um desvio radical daquela clara
demarcação e, até, uma ruptura de potencial relevância metafísica:
“o homem pode ser o
objetivo direto de sua própria arquitetura e isso em sua constituição física herdada.” (Ibidem.)
Mas antes mesmo de considerar sua aplicação em relação às pessoas e as questões
meta-técnicas que isso levanta, Jonas ressalta a diferença entre a cnica orgânica e a
mecânica em 8 importantes aspectos formais:
1) No que tange à dimensão de fabricação em questão: a construção mecânica
utiliza matéria «morta», a fabricação envolve todo o trajeto desde a extração da matéria
prima até o produto final, compondo-o totalmente, partindo de peças independentes.
Logo, toda a estrutura, a partir de cada uma de suas partes, é produzida
intencionalmente conforme o projeto. Como apenas a matéria é dada sem forma, e todo
o processo desde a planificação é estabelecido pelo construtor, temos que a
«fabricação» aqui é total.
Não obstante, por sua vez, a técnica biológica busca transformar estruturas já
existentes, os organismos, com realidades autônomas e morfologias completas, que
constituem o «dado» precedente, de modo que seu «projeto» (isto, é sua forma e
organização) tem que ser primeiramente descoberto não inventado
508
para posterior
«melhoria» inventiva em qualquer de suas manifestações individuais.
508. Em nota, Jonas acrescenta o comentário de que, justamente por isso, aqui “não se pode falar de seres
«artificiais» (...). Isto deveria ser levado em conta na questão jurídica das patentes”. (TME. p. 111, n. 1)
364
Isso impõe a descoberta da «margem de jogo»
509
desse
sistema de funções internas
altamente determinado” (TME, 111),
com a condição de que se preserve sua capacidade
vital. Por isso, Jonas afirma que aqui, se trata, quando muito, de «fabricação» parcial e
nunca total, alteração de projeto e não planificação completa ex novo, resultando que
apenas uma pequena parcela do organismo «sofre» uma «construção de artefato»,
enquanto no geral permanece «uma criação da natureza»
510
.
2) Daí, Jonas extrai uma importante diferença qualitativa na relação do «fazer»
com seu substrato. No caso da natureza morta, o fabricante é o único a atuar diante da
matéria passiva. Mas, no organismo, a atividade se depara com outra atividade, a
técnica biológica atua na própria atividade de uma «matéria» ativa: o sistema biológico,
que atua naturalmente e no interior do qual se introduz um novo determinante que lhe é
imposto, mas também lhe preenche. Sua incerteza no todo determinado originário cabe
ao próprio sistema que pode aceitar os rejeitos ou acréscimos, conforme sua própria
autonomia, que quase sempre é usada como agente interativo para alcançar a
modificação desejada. Por esse motivo, nesse contexto, a ação técnica tem o aspecto da
intervenção, não da construção.
3) Esse aspecto, segundo Jonas, influencia a relevante questão da previsibilidade.
Na construção tradicional, partindo de materiais estáveis e homogêneos, o número de
fatores desconhecidos é quase zero e o engenheiro pode prever com precisão as
propriedades de sua obra. Caso contrário, não se poderia confiar, por exemplo, numa
ponte. Desse modo, inversamente, também é possível, com base em cálculos, escolher
conforme as propriedades desejadas, o procedimento mais adequado para a construção.
a «engenharia» biológica precisa assumir praticamente «às cegas» a
preocupante complexidade dos fatores determinantes existentes, com sua dinâmica
509. No original Spielraum (TME, 165), que em francês pode ser traduzido por “marge de manoeuvre”.
510. O que aponta para a realização do projeto de “hibridação”, defendido por Marchesini. (Vide Cap. 1)
365
própria, ainda parcialmente ocultos e cujo número, no plano geral, é enorme. Aqui se
trabalha com incógnitas nas quais se precisa confiar e assentar a probabilidade de um
resultado esperado da ão. Por esse motivo, a previsão do resultado no conjunto está
quase no plano da «adivinhação» e a planificação na esfera da «aposta». A mudança
intencional do projeto, isto é, a transformação ou melhoria de um organismo não passa
de um experimento e seu amplo desenvolvimento ao menos no âmbito geral no
resultado final (quando nitidamente identificável), quase sempre, se encontra além da
capacidade de determinar do experimento.
4) Esse traço, por sua vez, altera completamente a relação tradicional entre
simples experimento e ação real. Na tecnologia tradicional: 1. Os experimentos não são
vinculantes e 2. São realizados com modelos representativos, que podem ser: a)
modificados ou b) convertidos em sucata, c) usados para provar e/ou tornar a provar
quantas vezes necessárias, antes que o processo de produção alcance um modelo
satisfatório: só então a atividade torna-se vinculante: passa à aplicação efetiva (no
mundo real).
Na manipulação biológica não existe um caso em que seja possível utilizar um
«modelo» substituto, especialmente do ser humano. Para que o experimento tenha
validade, é preciso empregar o próprio organismo,
“o objeto real e autônomo no mais pleno
dos sentidos”. (TME. 112)
Assim, tudo que se passa, do início ao fim do experimento, ocorre efetivamente na
vida real dos indivíduos, até de populações inteiras. Isso elimina toda diferença entre
mero experimento e fato real. Desaparecendo a «protetora» divisão entre eles,
desaparece também a anterior inocuidade do experimento separado.
“O experimento é o
fato verdadeiro e o fato verdadeiro o experimento.” (Ibidem.)
5) Jonas acrescenta a tudo isso o caráter da irreversibilidade que diferencia os
processos mecânicos dos orgânicos. Enquanto tudo na construção mecânica é reversível,
366
na dimensão orgânica todas as mudanças estruturais são irreversíveis. No âmbito
prático, isso implica que na engenharia tradicional constantemente é possível corrigir
erros desde a fase da planificação, de prova e mesmo depois de concluída a
construção.
511
na tecnologia biológica, as ações são irrevogáveis em cada uma de suas fases.
Quando os resultados tornam-se visíveis é tarde demais para qualquer correção.
“O
que está feito, feito está”
.
(Ibidem.)
Não se pode devolver as pessoas ao fabricante, ou
levar as populações para os «desmanches». Daí as questões: o que se deve fazer com os
inevitáveis erros na intervenção genética, com os equívocos, com os abortos? Deve-se
inserir o conceito de «peça defeituosa» na equação humana, ao que certas formas de
conceber a intervenção genética certamente levariam? Questões éticas que Jonas indica
como sendo preliminares à decisão de se dar o primeiro passo nessa temerária direção.
6) A seguir, ele afirma que a possibilidade de a manipulação biológica ocorrer
sobretudo no plano genético, estabelece outra diferença com a técnica tradicional. Nas
máquinas não existe nada semelhante à reprodução e à herança.
Do ponto de vista da fabricação, isto significa a diferença entre
relação causal direta e indireta com o resultado final. Na tecnologia
biogenética, o caminho para os objetivos é indireto, através da
injeção do novo fator causal na série herdada, que manifesta seus
efeitos na sucessão das gerações. «Fabricar» significa aqui liberar na
corrente do devir na qual também nada o fabricante. (Ibidem.)
7) Isso conduz à questão do poder tão estreitamente referida à técnica. A fórmula
baconiana preconizava que a ciência e a técnica ampliam o poder humano sobre a
natureza. Mas, Jonas mostra que algo não previsto por ela é também acrescentado:
“o
511. Por exemplo, os famosos recalls freqüentes, sobretudo na indústria automobilística.
367
poder do homem sobre o homem, e o inevitável sujeitar de alguns ao poder de outros, sem falar
da comum sujeição às necessidades e dependência criadas pela própria técnica.” (Ibidem.)
Contudo, no geral, prevalece o fato de que no âmbito coletivo, o poder humano
aumenta incessantemente em função da técnica, principalmente, sobre a «natureza
extra-humana». E o iminente controle do homem sobre a natureza de sua própria
espécie emerge como o triunfo que coroa este poder. Assim, a natureza inclui na
condição de dominado pela técnica o homem que havia se colocado diante dela como
senhor. Jonas, porém, questiona
“de quem é o poder e sobre quem e que?” (TME. 113)
Espantosamente, o poder a que ele se refere pertence aos homens presentes em
relação aos futuros, como objetos indefesos frente às antecipadas decisões de
planificação atuais. A contrapartida desse poder será a futura servidão dos vivos de
amanhã frente aos mortos (nós). Tal poder totalmente unilateral não encontra uma força
que pese a favor dos sujeitos a ele expostos, pois supostamente tais sujeitos serão suas
vítimas/criaturas e, independentemente do que façam ou desejem, apenas cumprirão os
ditames da lei que lhes impôs o poder que determinou sua origem.
512
Ao menos é o que
defende a diretiva da arte genética criadora.
Dado que, como já indicado, ao ser exercido, o poder escapa da mão que o criou e
percorre
“seus próprios caminhos no laboratório da transbordante realidade do vivo, que resiste
à completa análise e predição”. (Ibidem.)
E ainda, a constatação de que o poder por mais
orientado e predeterminado que seja é, por definição, cego ou não, capaz ou não,
levanta-se aqui a questão, inexistente para a técnica do material inanimado:
“que direito
tem alguém de predeterminar de tal modo os homens futuros, e se tal direito, em princípio,
existisse que sabedoria autoriza-o a ser exercido?” (Ibidem.)
Jonas identifica, então, duas
classes de direito, das quais a segunda -
“a do exercício de um direito abstrato talvez vigente
512. Jonas faz alusão ao livro de C. S. Lewis, The Abolition of Man, Macmillan, New York, 1947, pp. 69-
72, como fonte dessas idéias discutidas aqui.
368
está ligado à posse da sabedoria como sua condição necessária. Precisamente essa posse, (...),
poderia levar a desejar a suposição do primeiro direito junto com os objetivos que persegue.
Mas a atribuição mesma de tal sabedoria é quase uma prova segura de sua ausência.” (Ibidem.)
8) O que conduz ao último item da comparação entre técnica convencional e
biológica: a questão dos objetivos buscados. Para sua avaliação e seleção é previamente
exigida sabedoria
513
. Na técnica convencional o objetivo, mesmo o mais questionável
por qualquer razão que seja está sempre definido por alguma espécie de utilidade.
Nenhuma construção técnica é seu próprio objetivo. O fim da utilidade se mantém,
inclusive, na técnica biológica endereçada à modificação de plantas e animais.
O termo utilidade pressupõe algo ‘em benefício do homem’. Por isso, Jonas alerta
que,
“quando o próprio homem é tomado como existente para o uso humano a determinação
utilitária de toda a técnica fracassa, (...) [opera-se] um choque tecnológico com a substância
humana biológica, por exemplo, em sua reconstrução genética.” (TME. 114)
E, afinal, quais
seriam seus objetivos? Desde a antiguidade, existe uma atividade dirigida ao corpo
humano, que poderia nos responder: a medicina, que serviria como modelo de uma
técnica com a qual conseguimos enxergar “
o ser e não a utilidade de seu objeto”. (Ibidem.)
Contudo, a medicina visa, essencialmente, conservar e restabelecer, não modificar
o indivíduo. Seu objetivo coincide com a norma da própria natureza. Daí que Jonas se
pergunta:
“Qual pode ser a finalidade de tal arquitetura que se libera desta norma para criar
sobre o substrato humano?” (Ibidem.)
Certamente, não é criar o homem, que existe
afinal,
“Talvez, criar um homem melhor?” (Ibidem.)
Mas, nesse caso, qual seria o critério
do «melhor»? Seria a adaptação? Mas a quê? Isso mostra que nesse ponto chega-se a
questões extremamente complexas e absolutamente metafísicas ao ousar colocar a mão
513. Isso significa que na avaliação da técnica biológica não pode prevalecer o cálculo meramente
utilitário ou o raciocínio pragmático que considera apenas os fins.
369
criadora sobre a constituição física do próprio homem. Tudo isso sugere, por fim, a
pergunta definitiva: «segundo que modelo?»
Para tentar encontrar uma resposta a essa questão, a seguir, Jonas examina
“As
formas de construção genética”,
trilhando a via descendente: do geral ao particular, da
forma ao conteúdo e indicando os diferentes tipos de tecnologia antropo-biológica,
segundo seus objetivos e procedimentos. Seu exame limita-se aos esforços no campo
genético, quer dizer, da manipulação metódica da substância humana hereditária, para
obter propriedades desejadas ou eliminar propriedades indesejadas da descendência.
Ele admite que, talvez, os objetivos tenham sido estabelecidos somente depois que
os caminhos foram abertos para isso. Ou seja, dada a disponibilidade dos recursos,
buscou-se uma aplicação para eles. Logo, o método antecede sua eventual finalidade.
Jonas ainda afirma que em vários casos, não na técnica, mas também nos diversos
tipos de prática, os objetivos surgem somente quando se tornam realizáveis. Por isso, os
próprios objetivos possíveis podem ajudar a designar os métodos.
De acordo com os procedimentos, Jonas estabelece que as técnicas genéticas se
dividem em tradicional e nova ou em antigas e futuristas, e podem ser identificadas à
macrobiologia e à biologia molecular. A macrobiologia lida com organismos completos
e opera através da escolha de indivíduos para o cruzamento ou na seleção de fetos in
utero. Já a biologia molecular lida
“com cromossomos no núcleo celular e seus componentes
elementares, as moléculas de DNA. Seu objeto específico é o «gene» (...) [cuja] modificação,
supressão ou substituição no germe de um futuro organismo gerará, pois, uma modificação
genética, quer dizer, hereditária do mesmo”. (Ibidem.)
Às vezes, a própria natureza provoca esse efeito casualmente, sem planificação,
produzindo mutações espontâneas que são submetidas à seleção natural. Agora, o
homem começa, então, a produzi-las de forma planejada, podendo também fixar o novo
dado. Pois, uma vez que aos fatores hereditários se localizam no núcleo celular, é
370
possível então falar de «biologia nuclear», ressaltando que da mesma forma que a física
nuclear abriu
“toda uma nova dimensão da física junto com a uma técnica que a utiliza, o
mesmo de se pode dizer dessa mais recente biologia nuclear.”
(TME. 115)
Os dois territórios inexplorados revelam ao lado do instigante aspecto teórico,
seus aspectos práticos sinistros. Segundo Jonas,
“É algo que a penetração no núcleo das
coisas parece levar consigo.” (Ibidem.)
A divisão da biotecnologia por procedimentos se vê abalada pela classificação por
objetivos. De acordo com estes, cabe reforçar, a arte genética visa: conservar, melhorar
e criar - classificação que equivale à ousadia das metas e sem dúvida também dos
métodos. Somente o terceiro objetivo o «criador», está reservado à tecnologia genética
futurista. Assim, Jonas pretende partir de formas mais fracas até as mais fortes de
manipulação, conforme aos objetivos mais modestos ou aos mais ambiciosos.
O ponto de partida, pouco modesto, é precisamente o da eugenia negativa ou
preventiva. Jonas inicia sua avaliação com o que ele chama de «controle biológico
protetor ou preventivo»
“cuja forma mais conhecida é a chamada eugenia negativa: quer
dizer, um controle de ‘acasalamento’ que tenta evitar a transmissão de genes patógenos ou
nocivos de qualquer outro modo afastando os seus portadores da reprodução.”
514
(Ibidem.)
Ele não pretende discutir, aqui, os inúmeros procedimentos que podem ser
utilizados para alcançar tal objetivo, mas apenas se limitar à idéia da finalidade
motivadora que é dupla: humanitária e evolucionista tomadas em separado ou em
conjunto. A justificativa humanitária alega o
“bem-estar individual do possível descendente
e impõe... prevenir [todo] sofrimento futuro”
(Ibidem.)
de um indivíduo abstrato hipotético,
mas sujeito a um sofrimento concreto.
Segundo Jonas, a decisão de evitar tal sofrimento pode prescindir da consulta ao
sujeito em questão e, até aí, ser eticamente impecável, o que não significa ser
514. Definição já apresentada no capítulo 1, à página 54.
371
eticamente imposta.
“Nenhum direito de tal potencial descendente é infringido por deixar de
gerá-lo, porque não existe um direito à existência por parte de indivíduos hipotéticos que nem
sequer foram concebidos.” (Ibidem.)
Ao contrário, poder-se-ia alegar que seu direito seria lesado caso fosse gerado
mesmo com grandes chances de que sua existência fosse extremamente penosa.
Deliberadamente, Jonas deixa em aberto essa questão por sua ambigüidade, dado que tal
hipótese só pode ser avaliada “post factum”. Pois, ainda que o provável descendente não
tenha direito à existência, coloca-se em questão o direito daqueles que são impedidos de
gerar descendentes.
Deles se exige a renúncia a tal direito e estes podem aduzir a seu favor que eles
como “vítimas” de tal doença são os mais indicados para avaliar se tal vida vale ou não
a pena, o que Jonas admite ter sua razão de ser. Além do aspecto individual, o aspecto
humanitário é reforçado pelo argumento evolucionista que considera a necessidade de
se
“proteger não tanto o indivíduo, mas a espécie, (ou população) concretamente do perigo de
que aumente progressivamente a porcentagem de fatores nocivos em sua dotação genética (...)
que de outro modo seriam mantidos em xeque pela seleção natural.”
(TME. 116)
No caso do diabético, por exemplo, sua candidatura à reprodução se tornou
possível pela intervenção da medicina que, mediante a aplicação de insulina, permitiu
que chegasse à idade fértil. Logo, como é possível exigir dele a renúncia a esse direito?
No plano individual, pode ser moralmente correto que o receptor de um grande
benefício retribua o benefício recebido se sacrificando. Mas, no plano populacional, a
eugenia negativa revela-se literalmente conservadora, orientada à conservação e não à
melhoria, o que também parece correto se o temor de uma raça enfraquecida pelo efeito
da cultura é realista, o que Jonas se abstém de avaliar. Desse modo, a eugenia negativa
mostra-se mais como
“uma extensão da medicina preventiva do que o começo da manipulação
biológica projetiva.” (Ibidem.)
372
Entretanto, em seguida, Jonas revela que em nome da cautela certos aspectos que
precisam ser considerados poderão turvar essa imagem tão clara. Pois, facilmente, pode
acontecer que na hora de escolher qual gene ou conjunto de genes deve ser excluído, se
estenda o critério do patogênico ao “indesejado”, por exemplo, no sentido social. Todo
desvio dos aspectos estritamente médicos são passíveis de crítica, tanto na perspectiva
ética quanto biológica. Pois,
uma sentença de morte genética (...) mediante a exclusão da
reprodução não pode afirmar estar em consonância com a auto-
regulação da mecânica de seleção natural (...) querer superá-la entra
na modificação manipulativa do catálogo genético coletivo,
biologicamente questionável em seu efeito sobre a espécie e
eticamente intolerável em sua exigência de renúncia ao indivíduo.
(TME. 116-117)
A filtragem e reestruturação do catálogo genético da população são distintas de
sua proteção contra o empobrecimento e, segundo Jonas, não temos nenhuma ordem
evidente para levá-las a cabo. Com essa variação da eugenia preventiva que, a despeito
de sua mecânica de exclusão, mantém-se ainda negativa, ele percebe que, assim, se
teria invadido os limites do território mais delicado e complexo da eugenia positiva ou
melhorista, cuja finalidade é «melhorar a espécie».
Em seguida, Jonas examina a prática da “Seleção pré-natal”
,
na qual detecta outra
passagem imperceptível da estratégia hereditária defensiva à melhorista. Pois, segundo
ele, por meio do diagnóstico pré-natal com seu objetivo declarado, a exclusão do
embrião danificado, entra-se no terreno da eugenia da compaixão preventiva, dentro da
qual o aborto passa a ser, mesmo que apenas em casos extremos, tolerável. Sem se ater
ao polêmico tema do aborto, entretanto, ele reconhece que, enquanto se limita apenas
373
aos casos graves, o uso de tal procedimento ainda mantém-se claramente no âmbito da
eugenia negativa.
Todavia, o desejo dos pais de ter uma descendência perfeita, pode levar a que o
diagnóstico pré-natal seja usado para outros fins, o que somente contribui para diminuir
a rejeição da morte intencional do feto, até se tornar uma prática socialmente aceita.
Desse modo,
“o objetivo da temerosa prevenção de um mal maior teria se transformado na
insolente busca do bem maior... e nos encontraríamos na metade da zona, tão objetável moral
quanto biologicamente da eugenia positiva, que ademais zomba dos limites de nosso saber.”
(TME. 117)
Assim, Jonas passa ao polêmico tema da “eugenia positiva” e, partindo da trágica
experiência histórica alemã, define a eugenia positiva como a
“seleção genética humana
planificada com o objetivo de melhorar a espécie” (Ibidem.),
considerando desnecessário
explicitar, no seu país natal, as razões de
“seu descrédito moral e político”. (Ibidem.)
Mas, ainda assim, ele vê a necessidade de tecer alguns comentários
“sobre a
essencial cegueira do intento, inclusive, na mais bondosa política de seleção, o manchada de
vaidade, maldade nem arbitrariedade axiológica.” (TME. 118)
Jonas sabe que todo o processo iniciaria pela escolha de exemplares de ambos os
sexos, o que aconteceria com base em sua «cartografia» genética completa
515
, mas, em
princípio, a partir das propriedades evidentes do fenótipo individual. Pois,
“a dotação
genética invisível que por trás e que poderia ser acrescentada, no máximo mediante a uma
investigação irrealizável e amplíssima dos antepassados – e isso parcialmente -, ao estado da
geração em cada momento, teria que ser aceita em bloco, sem exame.” (Ibidem.)
Isso quer dizer que não se sabe, ao certo, o que virá à luz nas futuras gerações.
Desse modo, todo o resultado terá que ser submetido à nova seleção dos fenótipos, pois
é preciso considerar as inevitáveis mudanças de gosto ocorridas até lá.
“Dado que
515. O que hoje já é, tecnicamente, possível.
374
nenhuma «secção» genética individual na série das gerações é realmente ‘cartografável’
516
, o
procedimento tem que ser subjetivamente ilusório e objetivamente cego.”
517
(Ibidem.)
Ainda assim, Jonas propõe uma interessante questão, pois, mesmo que
soubéssemos mais, inclusive o bastante para alcançar probabilidades
no longo prazo; e que tivéssemos em mãos partes suficientemente
consideráveis da população em ‘cartotecas’
518
genéticas de alguma
fiabilidade; e que tivéssemos mediante criação oficial ou bancos de
sêmen e óvulos os necessários controles sobre a seleção e
combinação dos doadores eugenicamente certificados ([com o que]
desaparece a escolha amorosa aficionada): quem decidirá sobre a
excelência dos exemplares e com que critérios? (Ibidem.)
Ele volta ao adágio de que é muito mais fácil reconhecer o que não se deseja do
que aquilo que se deseja:
“o malum que o bonum. É indiscutível que não desejamos – nem os
doentes, nem seus congêneres – o diabetes, a esquizofrenia ou a hemofilia.” (Ibidem.)
Contudo, em relação a outros aspectos, como determinar o que é melhor:
uma cabeça fria ou um coração quente, uma elevada sensibilidade ou
um corpo robusto, um temperamento dócil ou rebelde? E nesta ou
naquela distribuição proporcional entre a população? Quem decidirá
e baseando-se em quais conhecimentos? A afirmação de tal
conhecimento deveria ser motivo suficiente para desqualificar a quem
afirma tê-lo. E se se pudesse chegar a um acordo sobre os padrões de
seleção fossem pelas razões que fossem... é desejável a padronização
como tal? (Ibidem.)
Abstraindo-se dos valores humanistas, sempre discutíveis e ultrapassando os
domínios da ciência natural, biólogos concordam que
“o excesso de multiplicidade no
516. Será que, em nossos dias, ainda não?
517. Eis um ponto que mereceria uma discussão mais atualizada com geneticistas.
518. O que hoje é plenamente viável utilizando-se bancos de dados informatizados.
375
fundo genético coletivo” (Ibidem.)
constitui uma clara vantagem biológica, dado que, com
sua ampla reserva de propriedades atualmente «inúteis»(Ibidem.)
, mantém-se a constante
abertura da
futura adaptação a novas condições de seleção.” (Ibidem.)
Nesse sentido,
qualquer padronização, por menor que fosse
“estreitaria esta zona de sombra da
indeterminação mediante as apressadas determinações de efêmeras preferências.” (Ibidem.)
A este aspecto da sobrevivência, meramente técnico e «isento de valores» em si,
Jonas acrescenta a limitação humana de realizar
“uma criação sobre tipos que alcança seu
objetivo positivo, como toda seleção, mediante a exclusão de alternativas, quer dizer, dos
muitos indefinidos a favor dos pouco definidos.” (Ibidem.)
Além disso, a possibilidade de uma padronização ameaça diretamente
O ponto biológica e metafisicamente forte da evolução humana (...)
que evitava, de algum modo, as vantagens no curto prazo da
especialização, que no mais domina a evolução das espécies. O fato
de que o homem não seja especializado o «animal não
determinado», como dizia Nietzsche constitui uma virtude essencial
de seu ser. (Ibidem.)
Por isso, ao contrário do que se pretende com uma interferência no curso da
seleção genética humana, Jonas afirma que
“se a seleção positiva não for cega, é
necessariamente curta de vista.” (TME. p.119)
Isso não só pelo fato de que, por mais que se alcance conhecimento nessa área, os
resultados obtidos sempre poderão surpreender, mas em função das razões que motivam
tal interferência. Nesse sentido, Jonas declara que
A estreiteza de vista é característica inapelável de toda intervenção
consciente no curso inconsciente da natureza, e terá que ser aceita
normalmente como preço e risco, porque temos que continuar
intervindo em inumeráveis aspectos. No desenvolvimento,
incalculavelmente amplo, da genética humana, a estreiteza de visão
376
se elevaria à enésima potência sem a desculpa desta obrigação.
Porque o super-homem é um desejo da insolência, não da
necessidade, como pode reclamar a eugenia negativa. (Ibidem.)
Ademais, Jonas considera que este desejo obstinado de melhorar a espécie
humana ignora
“que essa, tal como é, contém já em si a dimensão na qual tem seu espaço tanto
o melhor quanto o pior, tanto a ascensão como a queda, sem estar submetidos a nenhuma
barreira reconhecível, nem impulsora para cima, nem protetora por baixo.” (Ibidem.)
Daí, afirma que
Nenhum sonho zoológico, nenhum truque de criação, pode ocupar o
lugar desta opção essencial e seu imenso campo de jogo.
519
(Ibidem.)
A pretensão de levar
tal projeto adiante é, a um tempo, desmedida, inepta e, sobretudo, irresponsável. No
melhor dos casos, só pode gerar uma ofensa à dignidade humana, e no pior o infortúnio.
Este último se política, humana e eticamente (e
independentemente de que termine bem), nos métodos de gestação
assistida, com sua despersonalização da relação sexual reprodutiva, a
separação do amor da reprodução, do casamento, da paternidade
livremente desejada, a intervenção dessacralizadora do poder público
na secreta dimensão de futuro da interlocução mais intima concedida
pela natureza à constituição humana. (Ibidem.)
Com base em toda essa reflexão, Jonas avalia que, exceção feita
“aos objetos mais
inequívocos da eugenia negativa, onde um elevado preço humano por tal ingerência ainda es
por justificar, (...) sem dúvida no território de sonho da perfectibilidade genética positiva, não
adquirimos maior segurança com a mudança do imprevisto pelo planejado.” (Ibidem.)
Por isso, sobre esse aspecto, em nota de rodapé ele situa que
O lugar da planificação com vistas à perfectibilidade, e com isso à
estreiteza de visão que pende de todos os planos, é a educação. Ali de
fato impomos nossa imagem inevitavelmente míope ao futuro
519. A versão espanhola aqui usou “campo de jogo” para traduzir o mesmo termo Spielraums (TME,
178). Ver p. 352 nota 508.
377
indivíduo, e cometemos nossos pecados junto com nossas bondades
conforme a vigente «verdade» do momento. Mas, ali onde
condicionamos, em parte correta, em parte erroneamente,
transmitimos ao sujeito no mesmo pacote a possibilidade da posterior
revisão a cargo de si mesmo, pelo menos não a bloqueamos, dado que
deixamos inalterada a natureza herdada, a sede originária de tal
possibilidade. (Ibidem.)
Não obstante, com relação às duas modalidades de eugenia, ele considera que
Ambas as coisas são diletantes... uma em consonância, a outra em
contradição consigo mesma. Abandonar o diletantismo da bendita
ignorância, da escolha do amor pessoal pelo do conhecimento louco
de uma arte arrogante é uma petulância impertinente pela qual o
mundo e a posteridade terão que pagar. (Ibidem.)
O que não parece justo, uma vez que não serão eles que farão tais escolhas.
A seguir, ele se dirige à análise daquilo que ele denomina “Métodos futuristas”
divididos em dois momentos, o primeiro dedicado ao tema da clonagem, que não será
retomado aqui e o segundo dedicado à técnica que ele denomina de “Arquitetura do
DNA”, que vamos abordar por sua relação direta com nossa questão.
Jonas afirma que “até agora”,
(isto é, até o momento em que ele escreveu o presente
ensaio)
520
, não se pode estabelecer uma estrita analogia entre o biológico e o engenheiro.
Segundo pensa, a analogia entre eles é ainda fraca e apenas parcial, pois a analogia total
implicaria
“a plena construção de entidades biológicas, quer dizer, organismos vivos, a partir
da matéria prima e conforme a um desenho próprio, ou também a reestruturação planificada dos
tipos já existentes com fins de melhoria.” (TME. 130)
520. Cuja primeira versão foi escrita em 1974, republicada em 1980, a versão alemã em 1982, e a
publicação em TME em 1985. Caberia questionar, porém, se essa visão ainda pode ser sustentada
hodiernamente.
378
Essa analogia integral como
“primeira e radical modalidade” (Ibidem.)
que exigiria
“o
verdadeiro novo desenho e síntese de organismos avançados mediante construção
cromossômica dos elementos moleculares” (Ibidem.),
segundo Jonas,
“está praticamente
excluída, dado que a enorme complexidade do sistema supera provavelmente a capacidade de
qualquer computador humano”. (Ibidem.)
Mas, a questão não se limita a um circunstancial domínio técnico insatisfatório,
pois, ele afirma que
“mesmo que fosse possível, seria um puro desperdício em vista da
superabundante oferta natural de material genético já pronto para sua modificação praticamente
infinita mediante intervenção da arte.” (Ibidem.)
Por isso, ele considera que,
“não é a nova construção, mas a reestruturação por
intervenção, o caminho realista que se abre às habilidades similares à ingerência no campo
biológico, em especial no genético.” (Ibidem.)
Contudo, esse caminho pode nos levar muito
longe e produzir uma analogia mais estrita com a verdadeira «feitura» concebida no
terreno da construção mecânica.
Todos os métodos, até o momento, analisados por Jonas, sobretudo a clonagem e
a eugenia, podem ser considerados conservadores, visto que
selecionam genótipos já
dados tal como aparecem por si mesmos na população, quer dizer, que sem dúvida guiam à
natureza, mas não introduzem nela tipos de nova criação.” (Ibidem.)
Com esse procedimento é possível
“modificar estatisticamente a macro-estrutura da
espécie, mas a microestrutura dos indivíduos continuará surgindo do acontecer biológico e seus
«caprichos».” (Ibidem.)
O que autoriza a aposta de que
em todos os casos a arte só se encarregue de um fator causal da evolução
natural, a seleção entre a variada oferta, mas não da produção mesma
das diferenças, as mudanças e enriquecimentos germinais que se
produzem nessa oferta mediante mutações. Pode-se arrebatar também
379
isto ao acaso da natureza e «fazê-lo» de forma planificada?
521
isto
aproximaria a biologia prática à engenharia. (Ibidem.)
Jonas avalia a seguir o
“potencial de engenharia da biologia molecular”
começando
pelo “conceito de cirurgia genética”.
(TME. 131)
Ele reconhece que desde o surgimento da biologia molecular, sobretudo a partir
da decifração do código genético impresso no DNA, que possibilitou, mais
recentemente, o seqüenciamento do genoma humano, abriu-se uma série de
possibilidades, tornando realizáveis esses e outros projetos ainda mais ambiciosos
522
:
“intervenções diretas nos genótipos mediante «cirurgia genética», que à continuação a seleção
submete também à arte a outro fator causal mutante da evolução natural.” (Ibidem.)
Num primeiro momento, essa técnica somente foi aplicada em microorganismos e
algumas espécies vegetais, quando então se podia considerar «futurista» a sua aplicação
em seres humanos e, mesmo nesse caso, concebida inicialmente para ser utilizada
apenas no âmbito da medicina, por meio da retirada, correção ou substituição de genes
patológicos por sadios, realizando, assim, uma função curativa e não criativa. Mas daí
se seguiu em direção à modificação do DNA por meio da
modificação do modelo dado do
DNA mediante adição, exclusão e reordenação de elementos... uma re-escrita por assim dizer do
texto genético, que torna possível em princípio (...) uma espécie de arquitetura do DNA.”
(Ibidem.)
Levando
“a novos tipos de seres vivos, «desvios» premeditados e séries inteiras
delas.” (Ibidem.)
Contudo, Jonas afirma que se tentada com seres humanos, tal aventura degradaria
a imagem da unicidade «do» ser humano como objeto de respeito último e aboliria a
exigência de fidelidade à sua integridade. Seria uma ruptura metafísica com a
«essência» normativa do ser humano e, ao mesmo tempo, em função da
521. A resposta a esse ponto específico cabe apenas aos geneticistas, com base no estágio atual de suas
pesquisas.
522 Entre os quais o s-humano, que Jonas não chegou a abordar.
380
imprevisibilidade das conseqüências,
“o mais frívolo dos jogos de azar... a brincadeira de um
demiurgo cego e arrogante com o coração mais sensível da Criação.” (Ibidem.)
Aqui, Jonas menciona o aspecto da engenhara convencional que até agora faltava
à técnica biológica. Embora tenha ainda como ponto de partida as estruturas dadas, ela
pode aplicar através da manipulação a livre invenção ao invés do mero filtro e com isso
alcançar a arbitrariedade da planificação com vistas a fins totalmente aleatórios. Quais
fins seriam estes? No caso de plantas e animais, benefícios traduzidos como utilidade
para os seres humanos por meio de novas qualidades ou incremento das já existentes
Mas e no caso do próprio homem? Sem considerar o vazio jogo de «l’art-pour-l’art»
que confia à curiosidade e à paixão dos cientistas pelo experimento, segundo Jonas,
também aqui, o objetivo terá que ser em última instância utilitário,
quer dizer, uma projetada utilidade da modificação biológica para
esta ou aquela nova tarefa da sociedade. Não pode ser o bem dos
indivíduos modificados, porque para novas espécies de seres não
podemos fazer idéia [do que seja] seu bem ou sua felicidade (no
máximo podemos fazer idéia da infelicidade de ser diferentes). (TME.
131-132)
Pode-se até imaginar
“que o resultado será a atrofia de determinadas qualidades e a
hipertrofia de outras, a adição em terceiro lugar de uma elevada habilidade para determinadas
tarefas especiais de um mundo tecnológico (por exemplo, viagens espaciais) para as quais, até
agora, a evolução não adaptou o homem.” (TME. 132)
Entretanto, Jonas prefere abster-se de mencionar
“os extravagantes sonhos”
que os
pioneiros do progresso podem manifestar com esperança ou, em certos casos, mesmo
com temor. Sobre o que ele fará apenas umas considerações iniciais, buscando fornecer
alguns
“Elementos de uma critica”
.
381
Assim, ele menciona
“Primeiro, o aspecto conciliador da clonagem: a honra que se faz
à espécie existente com o desejo comovedor, embora também infantil, de manter seus
‘exemplares’ mais afortunados por cima da fugacidade, mais além da paisagem de uma vida
humana, está vetado aos objetivos que agora estamos ponderando.” (Ibidem.)
Ocorre, porém, que, a defesa da clonagem apóia-se sobre a noção de que, tal como
é, a espécie humana não passa de
“mero fato da natureza material, que não tem nenhuma
sanção superior à de outros resultados do acaso evolutivo, e portanto, como todos, é terra de
ninguém para o cultivo de alternativas elegíveis à vontade.” (Ibidem.)
Em outros termos, essa
perspectiva, não leva em conta
“nenhuma idéia de dignidade transcendente «do» ser humano,
e em conseqüência nenhuma idéia de obrigação moral derivada dela, pode sobreviver a esta
renúncia à inviolabilidade de uma «margem» genérica.” (Ibidem.)
Isso significa que, considerada dessa maneira, não existe qualquer diferença em se
fazer clones humanos ou, por exemplo, de “vacas campeãs”. Os dois casos representam
somente a intenção de repetir indefinidamente um espécime bem sucedido. E, de acordo
com esse ponto de vista, por que não? Jonas opõe-se, porém, a essa visão uma vez que,
Independentemente desta desvalorização interior, também se
romperia a unidade da espécie como tal (que até agora nem sempre
consegue o devido respeito), e inclusive o nome «homem» tornar-se-ia
ambíguo. Que são as criaturas derivadas, quais são seus direitos,
qual seu status na comunidade humana? (Poder-se-ia formular a
pergunta ao contrário, se algum dia eles pudessem ditar as
condições). (Ibidem.)
Numa crítica mais próxima e menos especulativa, Jonas considera que tal técnica
produzirá além dos «desvios» desejados, inevitavelmente outros não desejados, ou seja,
malformações, das quais seria preciso se livrar e até mesmo as bem sucedidas se depois
se mostrassem problemáticas. E até mesmo aquilo que se criou por sua finalidade pode
382
ser eliminado quando não mais atender a tal finalidade. Isso significa que uma vez
adquirido o habito da eliminação utilitária - a outra face da aquisição utilitária -, nada
mais poderia deter uma ou outra. Além disso,
que direito superior pode aspirar o produto natural em relação ao
artificial? Certamente não o do mero acaso de sua origem no
processo evolutivo, isento de objetivos. Por definição, nenhum
produto da técnica biológica inventora terá sido gerada por si
mesmo: a utilidade foi a única razão para serem inventados. A partir
daqui se estende de forma irresistível a opinião de que as pessoas
estão apenas para serem úteis às pessoas e ninguém mais será um
fim em si mesmo. (Ibidem.)
Algo que leva à constrangedora questão:
“Mas se nenhum membro da espécie, por
que a espécie? A própria existência da humanidade perderia sua razão ontológica.” (TME. 133)
Jonas não ignora
“que além desse descarado argumento da utilidade, nesta zona de
penumbra da ciência também pode ocorrer a alguns sonhadores o «fantasma do super homem»
como um fim em si.”
(Ibidem.)
Porém, ele aposta que, ao contrário do gido pragmatismo
do primeiro tipo, este ‘sonho’ será certamente tomado como um delírio infantil.
Porque teria que perguntar aos autores por sua qualificação: e se
pudesse demonstrar saber o que por cima do homem (a única
qualificação válida), então o super homem, tal como o podemos
desejar, já estaria aí em pessoa e a espécie que o tivesse produzido na
figura desse conhecimento ter-se-ia demonstrado biologicamente
adequada. Mas se só se trata da pretensão de um conhecimento (como
não pode ser de outra maneira), quem dessa maneira se engana e nos
enganam serão os últimos aos que teria que confiar o destino do ser
humano. (Ibidem.)
383
Por fim, em sua
“Observação final”,
Jonas discute a relação entre “Criação e
moral”. Ele afirma que nessa parte «futurista» de suas considerações, fomos levados ao
“limite do humano e da possível discussão sobre ele”
.
(Ibidem.)
E adverte que o sentimento
de irrealidade que tais considerações despertam, acerca de possibilidades às quais
poderiam acrescentar-se outras ainda mais extravagantes, não pode ofuscar o seu risco
real. Pois, efetivamente,
“Existe o risco de que escorreguemos sem percebermos em sinistros
começos, de modo por assim dizer inocente, sob o estandarte da ciência pura e da pesquisa
livre.” (Ibidem.)
Jonas tenta evitar o “calafrio metafísico” que sente ao pensar nas quimeras
homem-animais que poderão surgir como conseqüência da prática da biologia
molecular, graças à técnica de recombinação do DNA. Ele afirma ser
“possível imaginar
que o modelo genético da imago Dei de uma temerária arquitetura molecular se converta em
objeto de um jogo criador.” (Ibidem.)
Algo que, atualmente, não é mais restrito ao campo
da imaginação.
523
Segundo pensa,
“O objeto não possibilita manter distante de sua discussão a categoria
do sagrado.”
(Ibidem.)
E embora a cientificidade não a tolere, Jonas a ela se rende. Assim,
para concluir, referindo-se a todo o campo da manipulação biológica, Jonas recorre
àquele que ele considera como o mais sóbrio dos argumentos morais:
“os atos cometidos
sobre outros pelos quais não se pode render-lhes conta são injustos.” (Ibidem.)
Coerentemente, com esse argumento, ele finaliza sua exposição afirmando que:
O dilema moral de toda manipulação biológico-humana que mais
além do puramente negativo da prevenção de defeitos hereditários é
precisamente esse: que a possível acusação da descendência contra
seu criador não encontra a ninguém que possa responder e purgar
por ela, nem nenhum instrumento de indenização. Aqui um campo
523. Pois, tendo em vista que, recentemente, o Parlamento britânico autorizou a criação de «quimeras»,
está aberto o precedente para que esse quadro, muito em breve, deixe de ser futurista ou ficcional.
384
para o crime com total impunidade, da que as pessoas atuais que
serão passadas estão seguras frente a suas futura timas. isso
(nos) obriga à mais extrema e temerosa cautela em qualquer
aplicação do crescente poder da arte biológica sobre os homens. O
único permitido é a prevenção à desgraça não a prova de uma
felicidade de novo tipo.
O objetivo é o homem: não o super-homem. Embora haja mais coisas,
e metafísicas, em jogo, basta a simples ética da decência das coisas
para proibir em seus começos as liberdades artísticas [poéticas]
com genótipos humanos... por pior que soe ao ouvido moderno: na
república da pesquisa experimental. (TME. 133-134)
Becchi, no texto já mencionado, apesar das várias ressalvas feitas à posição
defendida por Jonas, parece conceder a ele certa razão no que tange à questão da
eugenia positiva, por reconhecer que
A engenharia genética veicula precisamente os riscos mais elevados,
menos no curto que no longo prazo. Certamente, ela pode ter uma
função eugênica preventiva, evitando ou, ao menos, reduzindo a
predisposição a doenças hereditárias. Nesse sentido, não se pode
negar seus efeitos benéficos. Todavia, a engenharia genética pode ir
bem além disso, e dar-se como finalidade a modificação ou mesmo a
mutação radical da estrutural biológica do ser humano. Os perigos,
que Jonas bem evidencia, começam a se manifestar quando, das
intervenções destinadas à conservação da espécie, se passa assim ao
projeto de seres humanos melhorados sob o ângulo das faculdades
intelectuais e da beleza. A vida foi até o presente uma grande loteria,
onde cada um tirava um bilhete que podia ser premiado ou não. A
engenharia genética poderia, a partir de amanhã, dar a cada
385
indivíduo um bilhete premiado. Mas se nós podemos duvidar do
sentido de um jogo em que todo mundo é ganhador, nós podemos
também nos perguntar qual sentido teria a beleza e a inteligência se
elas fossem qualidades que todo mundo tivesse. (p. 60)
No fundo, essa ainda é uma visão ingênua da questão. Pois, quem garante que essa
tecnologia seria disponibilizada a “todos”? O mais provável, para não dizer, o certo é que
(como de praxe) somente aqueles que podem pagar (e muito bem) por ela, tenham acesso. O
que promoverá uma forma inédita e ainda mais injusta de discriminação: os descendentes
dos mais ricos serão geneticamente programados para serem os “mais belos, mais
inteligentes,” etc., o que fará desses atributos um indicativo ainda mais eloqüente do status,
aumentando ainda mais o poder daqueles que os possuírem.
Será criada assim uma nova forma de hierarquização social (como descrita no
Admirável mundo Novo: os seres alfa, beta e épsilon) ou de exclusão (como descrita no
filme Gattacca, onde certas funções só podem ser exercidas pelos geneticamente superiores,
ou melhor, pelos modificados geneticamente) ou de classificação como aquela proposta por
Lee Silver, biólogo molecular da Universidade de Princeton, que previu que, num futuro
próximo, existirão apenas duas diferentes classes biológicas na sociedade humana, que ele
chamou de Gene Rico e Gene Natural. A classe Gene Rico, formada por um grupo de
pessoas enriquecidas com genes re-engenhados, limitada à apenas 10% da população,
comporia, então,
“a cabeça da sociedade”. (Vide cap. 1, p. 52)
Ademais, poder-se-ia também perguntar qual seria a posição de Jonas com relação ao
projeto do pós-humano. Embora não tenha sido especificamente tematizado por ele, pode-se
defender que essa questão seria facilmente aproximada de um tema que ele menciona: o do
super homem.
De fato, não seria absurdo considerar que as mesmas críticas que Jonas endereça ao
super homem e muitas daquelas endereçadas à eugenia positiva, poderiam ser alegadas
também como sua objeção ao pós-humano.
386
Mencionando apenas as mais contundentes, poderíamos considerar o projeto pós
humano eticamente questionável pelo fato de a transformação ou melhoria de um
organismo, que ele pressupõe, não passar de um experimento, cuja ampla determinação de
seu resultado final, certamente, se encontrar além da capacidade de previsão do
experimento. Com o agravante de que, por sua própria finalidade, não mais diferença
entre o experimento e o fato verdadeiro. Assim, em caso de falhas, não se poderia devolver
as “pessoas” ao fabricante. Daí, a preocupação de estabelecer o que fazer com os inevitáveis
erros dessa intervenção genética, sobretudo quando o problema não ficar restrito apenas ao
indivíduo que sofreu a intervenção, que, como bem apontado por Jonas o
novo fator
causal na série herdada, (...) só manifesta seus efeitos na sucessão das gerações.” (TME, 112.)
O que leva ao ponto, por ele denunciado, do poder dos homens presentes em relação
aos futuros, como objetos indefesos frente às precipitadas decisões de planificação atuais.
Um poder totalmente unilateral, cuja única contrapartida será a futura servidão dos vivos de
amanhã frente aos mortos (nós). Isso levanta, então, a questão:
“que direito tem alguém de
predeterminar de tal modo os homens futuros, e se tal direito em princípio existisse que
sabedoria autoriza-o a ser exercido?” (Ibidem.)
Além disso, com que intento afinal, tal projeto seria levado adiante? Quem decidiria
quais hibridações poderiam (deveriam?) ser feitas? Quais os critérios seriam utilizados?
Enfim, uma longa série de questões poderia ser colocada na perspectiva de Jonas. Mas se
não quisermos ficar presos a ela, poderíamos recorrer ao célebre princípio de precaução,
proposto formalmente na Conferência RIO 92, cuja definição preliminar, de 14 de junho de
1992, o definia como:
“a garantia contra os riscos potenciais que, de acordo com o estado atual
do conhecimento, não podem ser ainda identificados. Este Princípio afirma que a ausência da
certeza científica formal, a existência de um risco de um dano sério ou irreversível requer a
implementação de medidas que possam prever este dano.”
524
524. Fonte: www.ufrgs.br/bioetica/precau.htm
387
Mas, posteriormente, como afirmou o Prof. Hugh Lacey, no texto “O Princípio da
Precaução e a autonomia da ciência”, foram propostas inúmeras versões desse princípio. Ele
adotou a “definição de trabalho” recomendada pela Comissão Mundial sobre Ética da
Ciência e da Tecnologia da Unesco (Comest), e essa estabelece que:
Quando atividades podem conduzir a dano moralmente inaceitável,
que seja cientificamente plausível, ainda que incerto, devem ser
empreendidas ações para evitar ou diminuir aquele dano. “Dano
moralmente inaceitável” refere-se a dano para os seres humanos ou
para o ambiente, que seja uma ameaça à vida ou à saúde humanas,
ou que seja sério e efetivamente irreversível, ou injusto com as
gerações presentes e futuras, ou imposto sem a adequada
consideração dos direitos humanos daqueles afetados.
525
Esse princípio explicita aspectos que o princípio responsabilidade deixa apenas
entrever, como por exemplo: a idéia de dano, considerado moralmente inaceitável, mesmo
que incerto e apenas provável do ponto de vista científico, recomendando que ações sejam
empreendidas para evitar ou diminuir o suposto dano.
Embora não seja um imperativo categórico, no sentido forte de Kant ou Jonas, esse
princípio, ainda que meramente hipotético, tem a sua força e tem sido bastante útil para
conduzir as discussões nos órgãos competentes, entre os quais, os conselhos de ética em
pesquisa. O que é um bom começo, ao menos quando se tratarem de questões nas quais
os riscos sejam prováveis, mesmo que incertos.
No entanto, se os danos forem detectados, ainda que o possam ser previstos, tanto
na perspectiva de sua extensão quanto da profundidade, o mais sensato parece ser evitar que
tais riscos possam se concretizar e, nesse caso, aceitar a sugestão de Jonas:
proibir em
seus começos as liberdades artísticas [poéticas] com genótipos humanos.” (TME, 134)
525. H. Lacey. “O Princípio da Precaução e a autonomia da ciência”. In Scientiæ studia, São Paulo, v. 4,
n. 3, p. 373-92, 2006, pp. 373-374.
388
CAPÍTULO 7 – CONTRIBUIÇÕES, CRÍTICAS E LIMITAÇÕES DA FORMULAÇÃO
JONASSIANA AO ENFRENTAMENTO DO DESAFIO BIOTECNOLÓGICO
7.1 - Contribuições da ética da responsabilidade à discussão do tema
Para avaliar a contribuição da reflexão de Jonas, será feita uma breve
reconstituição dos pontos mais importantes de sua trajetória, aqui apresentada,
lembrando que ele próprio a definiu como uma
démarche filosófica inteiramente
consagrada à resolução do dualismo, para pensar a dignidade do homem agindo no interior do
mundo onde ele se encontra”.
(DH, p. 16 / VM, XIII n. 2)
Seu ponto de partida foi, então, o dualismo gnóstico que ele via como
“uma ruptura
absoluta (...) da cadeia do ser [chegando às] raízes mesmas da vida humana no mundo”
(VM, p.
27).
Essa ruptura produzia um sentimento de isolamento do homem como um ser
solitário, num mundo natural hostil e mau. A conseqüência mais nefasta desse dualismo
homem / mundo, é o niilismo, que Jonas identificou como o traço comum ao
pensamento gnóstico antigo e ao existencialismo moderno. Tal niilismo se manifestava
numa
“metafísica do ser-no-mundo que, em sua raiz, torna[va] a ão vã, tanto para o homem
que a realiza[va] quanto para o mundo que a sofr[ia]”.
(VM, 31)
Assim, foi visto que, na base de sua crítica ao dualismo gnóstico encontravam-se,
de fato, a crítica ao niilismo, mas também ao ceticismo moral. Donde Frogneux pôde
inferir que, a crítica jonassiana
dirigia-se “menos ao dualismo como tal que a seu alcance
cético e niilista para a antropologia e à ação”
(VM, 101).
Por esse motivo, a autora afirmou
que a “tarefa filosófica” de Jonas foi, então, naquele momento:
“reencontrar uma medida
comum entre o homem e o mundo sem, entretanto, jamais reduzir um ao outro.”
(DH, p. 09)
Como se viu, além desse dualismo
homem / mundo (ou cósmico-antropológico)
,
Jonas enfrentou ainda outro dualismo, o dualismo
espírito / matéria (ou psicofísico)
retomado vigorosamente por Descartes, com a separação radical entre res cogitans e
res extensa conforme a qual a natureza se restringia exclusivamente à segunda, o que
389
possibilitou uma abordagem
“puramente mecânica e quantitativa do mundo natural”
(PhL, 72 /
VM, 121)
e uma representação simplesmente mecanicista do próprio homem.
Deste modo, vimos que, Jonas buscou superar o dualismo para combater as
conseqüências indesejadas, tanto do pensamento gnóstico, que afirmava a vaidade da
ação humana no mundo, quanto do cartesiano que - ao separar as dimensões: psíquica e
física - criou o problema da ação do próprio corpo, impedindo a real apreensão do
organismo. Nos dois casos, porém, o que estava em jogo era a possibilidade da
emergência da liberdade e, como indicado, não somente a humana, no mundo.
Mostrou-se que, a engenhosa solução proposta por Jonas não foi tentar negar a
polaridade, mas, ao contrário, ampliá-la até as mais remotas fronteiras da vida,
declarando que:
As grandes contradições que o ser humano descobre nele mesmo – liberdade
e necessidade, autonomia e dependência, eu e mundo, relação e isolamento, criatividade e
mortalidade- têm já sua prefiguração (...) nas formas mais primitivas da vida, cada uma
oscilando perigosamente entre ser e não-ser e portando já em si um horizonte interno de
transcendência.”
(EL, p. 26)
Com tal formulação, Jonas revelou não apenas o caráter eminentemente contínuo
e dual da vida em si mesma, mas também o co-pertencimento do ser humano a essa
condição. Desde então, o homem não poderia mais se considerar sozinho ou isolado
numa condição insular, ontologicamente superior. Pois, revelou-se que toda a
contradição por ele experienciada, afinal, não é mera prerrogativa humana. Ao
contrário, é um traço
comum a toda forma de vida e pode ser identificado em toda a escala da
evolução, nas funções orgânicas, partindo do metabolismo até as faculdades superiores.
No nível orgânico mais básico, Jonas identificou tais funções - que se manifestam
de modo
elementar nas formas mais primitivas da vida e se tornam gradualmente mais
complexas até alcançar um grau mais elevado no ser humano -
à percepção e mobilidade.
Especialmente digno de nota, neste contexto, foi o surgimento do conceito de liberdade,
390
que Jonas relacionou ao perceber e ao agir, já na esfera mais primordial da vida, embora
ele próprio tenha reconhecido o quão surpreendente pôde parecer afirmá-la antes do
“domínio do espírito e da vontade”.
(EL, p. 27)
Apesar disso, foi o que ele fez e, a partir daí, Jonas revelou toda a originalidade de
sua formulação, pois, ele não apenas relacionou a liberdade às formas mais elementares
da vida, como ainda identificou essa primeira manifestação da liberdade à mais
elementar atividade realizada por todo ser-vivo: o metabolismo. E chegou mesmo a
“afirmar que já o metabolismo (...) é a primeira forma de liberdade.”
(EL, pp. 27-28)
Não obstante, Jonas admitiu que, para compreender tal conceito em sua nova
amplitude, seria preciso afastar todas as suas concepções tradicionais e entender a
liberdade como a
“prerrogativa do orgânico per se, que todos os membros da classe
‘organismo’ e, por conseqüência, somente eles, receberam em partilha”.
(Ibidem.)
Desse modo, a liberdade foi revelada como um fenômeno crescente, que surge
nas mais remotas e elementares formas de vida. Por isso, Jonas afirmou que
“tomado
nesse sentido fundamental, o conceito de liberdade pode servir de fio de Ariadne para a
interpretação do que nós chamamos «vida»”
. (EL, p. 29)
Razão pela qual o conceito de
liberdade se tornou um conceito fundamental de sua formulação.
Entretanto, mostrou-se que a liberdade não foi concebida por Jonas de forma
absoluta, pois ele descreveu o “fenômeno vida”, como uma crescente tensão entre ser e
não-ser. Assim, a liberdade, que emerge e se amplia ao longo de todo esse processo, traz
consigo o perigo, em idêntica proporção. Ele concebeu, portanto, uma “liberdade
dialética”, que tem o risco permanentemente crescente como a sua outra face.
Jonas propôs, então, a distinção entre e o metabolismo e a atividade mecânica
realizada pelo motor de uma máquina qualquer. Ele mostrou que, diferentemente dos
seres não-vivos, todo ser-vivo realiza uma tarefa constante que é a sua própria produção
391
e manutenção e que pode ser assegurada mediante a execução do próprio
metabolismo, compreendido como sua permanente troca de matéria com o meio.
526
Com isso, Jonas pôde explicitar a outra face do metabolismo, revelando que este
não é somente expressão da liberdade, que caracteriza todo ser-vivo, mas também da
necessidade, que impõe que todo organismo o realize constantemente para manter-se
vivo. Desse modo, a liberdade foi concebida em relação à esfera que, normalmente, é
vista como a sua diametralmente oposta: a necessidade. Embora seja uma formulação
inusitada, ela contém elementos essenciais para compreender a concepção jonassiana.
Pois, ela estabelece a importante conexão entre liberdade e necessidade.
Ademais, ele sugeriu que a dimensão espacial está para o inorgânico, assim como
a dimensão temporal está para o orgânico, ao afirmar que
É o tempo, e o o espaço
concomitante, que é o medium da totalidade formal do vivente”.
(EL, p. 40)
Traço que nos
permitiu identificá-lo, ainda que de uma forma original, à tradição heideggeriana do
Sein und Zeit.
Com base no que se retomou até aqui, é possível recuperar os cinco interessantes
aspectos que Frogneux destacou dessa parte da formulação jonassiana, cabe lembrar:
1. Transposição do abismo que separava o homem e o mundo, restituindo ao homem sua
condição de integrante do mundo, em estreita relação com todos os demais seres vivos.
2. Afirmação “no nível ético” de “uma dialética equivalente àquela que ele tinha evidenciado no
nível orgânico. À dialética da liberdade e da necessidade metabólica corresponderia a dialética
do valor e da obrigação ética se impondo à liberdade humana.” (VM, p. 274)
3. Com base no que, ela afirmou que, após afrontar
“o dualismo em [diferentes] níveis: em
primeiro lugar, o dualismo cosmológico que opõe o homem à natureza, em seguida, o dualismo
antropológico que opõe a causalidade física à intenção subjetiva, [ele poderia], enfim, [afrontar]
o dualismo moral que opõe o ser ao dever-ser”.
(Ibidem.)
526. O que tornou ainda mais insatisfatória a metáfora do homem-máquina, tão recorrente à época de
Descartes.
392
4. Para a autora o que tornou tudo isso possível foi o
“princípio da continuidade, [segundo
o qual] a liberdade se manifesta cada vez mais claramente no mundo do vivente, onde ela faz
aumentar ao mesmo tempo em que ela [própria,] a precariedade e o risco.”
(VM, p. 275)
5. Por fim, a importante transformação realizada no conceito de liberdade, ampliado a
todo ser-vivo que, embora desempenhando um papel absolutamente central em sua
formulação, não se expôs ao risco de se tornar uma liberdade absoluta, pois ele
determinou que
ela somente pode se compreender autenticamente numa relação estreita com
a necessidade e em seu caráter relativo à exterioridade”.
(Ibidem.)
Desse modo, Jonas pôde ultrapassar tais dualismos, pela mediação do conceito de
ser-aí orgânico no qual interior e exterior se “interpenetram”. Foi essa intuição que
possibilitou inaugurar um modo inteiramente novo de filosofar, que o conduziu da
gnose à filosofia da biologia antes de se debruçar sobre as questões propriamente éticas.
Assim, como se reviu, ele alcançou seu objetivo de superar o dualismo, realizando
a ampliação do conceito de liberdade, num duplo sentido. Primeiro, no sentido de
considerar que além da liberdade humana existe também a liberdade “ontológica” e,
num segundo sentido, fazendo com que a raiz da própria liberdade humana se fixasse
“no coração das leis da natureza”. A partir dessa aproximação entre liberdade e ‘leis da
natureza’ foi superado o primeiro dualismo supracitado: o cosmológico, mas, ainda, foi
abalada a clássica dicotomia kantiana entre reino da liberdade e reino da necessidade.
Jonas também superou o dualismo cartesiano, por levar em conta a própria
realidade orgânica, transpondo, a uma só vez, a radical separação estabelecida entre
alma e corpo e as suas mais diferentes variações (entre as quais o próprio dualismo
cosmológico: homem x mundo ou entre o homem e as demais formas de vida), ao
expandir os conceitos de espírito, consciência e liberdade para o âmbito do ser-vivo em
geral e estabelecer uma escala ontológica contínua.
393
Além do mais, a particularidade do engenho jonassiano, cujo propósito era
ultrapassar o dualismo, foi alcançar seu objetivo sem recorrer - como outros fizeram - a
monismos parciais, que buscavam, antes, anular a polaridade. Ao contrário, ele forneceu
uma solução mais elaborada, encontrando um monismo integral, isto é, uma unidade
que sintetizou, ao invés de neutralizar, a dualidade.
Com tal concepção, Jonas ofereceu a possibilidade de superar outra divisão,
aquela no campo metaético, entre duas diferentes modalidades de moral: as
deontológicas e as conseqüencialistas (ou teleológicas), até então, consideradas não
apenas antagônicas, mas, excludentes.
Aqui, o mais essencial foi que Jonas ofereceu uma resposta aos dualismos: -
cosmológico, que opõe o homem à natureza (ou ao mundo), e – antropológico, que opõe
o corpo à alma, o que preparou o caminho para a solução do terceiro, o dualismo ético
entre ser e dever-ser
527
.
O que ele buscou realizar em seu PR, no qual vimos que o ponto de partida de
Jonas foi a constatação da transformação da essência o agir humano em função das
tecnologias que ampliaram os efeitos das ações do homem nas perspectivas do espaço e
do tempo, exigindo um novo tipo de reflexão ética capaz de fazer frente a essa
ampliação.
Após analisar as éticas anteriores, com especial atenção ao imperativo categórico
(IC) kantiano, Jonas propôs seu
“imperativo, adaptado ao novo tipo do agir humano e que se
endereça ao novo tipo de sujeitos do agir,
(...) [que foi enunciado]
mais ou menos assim: Age de
tal modo que os efeitos de tua ação sejam compatíveis com a permanência de uma vida
autenticamente humana na Terra.
(PR p. 40)
Mostrou-se que, a exemplo do IC kantiano, sua formulação permite outras três
diferentes variações, cabe recordar:
527. Que foi apresentado no Capítulo 5, no contexto da fundamentação de pr.
394
1. Age de tal modo que os efeitos de tua ação não sejam destrutivos para a possibilidade futura
de uma tal vida.
2. Não comprometa as condições para a continuidade indefinida da humanidade na Terra.
3. Inclui em tua escolha atual a integridade futura do homem como objeto secundário de teu
querer.
(PR, pp. 39-40)
Tais formulações evidenciaram que a concepção ética defendida por Jonas,
diferentemente da ética kantiana, não leva em conta apenas os princípios, mas também
as conseqüências das ações realizadas e que, ao cálculo moral, acrescenta o horizonte
temporal que está totalmente ausente na operação lógica instantânea do imperativo
categórico.
Ademais, a ética de Jonas exige que uma vida autenticamente humana exista
depois de nós, dado que sua maior prioridade é a existência do homem.
Jonas estabeleceu o vínculo originário entre vida e responsabilidade e com o
conceito de continuidade enfatizou a dimensão histórica ou temporal da
responsabilidade. E uma vez que ela se prolonga no tempo e se estende, em especial, a
todos nossos semelhantes (seres humanos), sem se ater aos nossos “próximos”,
compreendidos como aqueles com os quais desfrutamos uma convivência espaço-
temporal, concluiu-se que o seu foco é, portanto, a humanidade em geral. Desse modo,
Jonas propôs uma ampliação não do conceito de liberdade, mas também do conceito
de responsabilidade.
Um dos aspectos mais interessantes da formulação jonassiana foi mostrar que a
constatação da hipertrofia do poder humano trouxe consigo a exigência do dever de
responsabilidade como tentativa de controlar esse mesmo poder. E declarar que o
primeiro dever do agir humano coletivo, na era da civilização cnica, é o futuro da
humanidade.
395
E embora tenha atribuído ao programa baconiano (usar o saber para dominar a
natureza em benefício do homem) a culpa pela crise a que chegamos, Jonas afirmou que
isso ocorreu devido à sua apropriação por parte do capitalismo, que o privou de toda
racionalidade e justiça, elementos que o teriam tornado mais compatível e até
coerente.
Ademais, Jonas apontou para o fato de que o risco de catástrofe associado ao ideal
baconiano, por ironia, reside na grandeza de seu êxito que é, essencialmente, de dois
tipos: econômico e biológico, afirmando que, nos dias atuais, está mais do que provado
que a junção dos dois fatores conduz necessariamente à crise.
Todavia, o mérito de Jonas, aqui, deveu-se ao fato de ter levado a sério a
incômoda visão heideggeriana acerca da técnica - como um poder autônomo que se
desprendeu das mãos do homem para dominá-lo -, ter refletido sobre tal situação e
demonstrado que a
“dialética do poder sobre a natureza [inclusive no que tange ao próprio
homem, exige] um controle para seu exercício”
(PV, p. 253; PR, p. 235).
Nesse contexto, ele afirmou que, para controlar esse poder, atualmente
descontrolado, é necessária outra ordem de poder capaz de estabelecer um limite, antes
que o pior - a destruição ou deformação do homem e/ou da biosfera - aconteça.
Isso exige, como ele formulou em sua heurística do medo, que se mais atenção
aos maus prognósticos que aos bons, único meio de evitar que os primeiros se
concretizem. O que se aplica especialmente à recomendação de se preservar nossa
herança recebida da evolução anterior, mesmo diante da possibilidade de seu suposto
melhoramento. Pois, mesmo que, se tudo corresse bem e fosse possível obter algum
avanço, caso algo desse errado, o risco ameaçaria esse patrimônio longamente
elaborado pela evolução. Risco que não vale a pena, sobretudo quando se constata que
tão perigoso empreendimento é animado unicamente pelo orgulho e capricho, que ele
396
definiu como o arriscar coisas relevantes por objetivos fúteis. E que o levou a afirmar
que,
“nenhum ganho vale o preço, nenhuma chance de sucesso autoriza o risco”
. (PR. 77)
Tal herança foi tratada por Jonas como
“um absoluto que, enquanto um bem
fiduciário supremo e vulnerável, nos impõe a obrigação da conservação. (...) [que] ultrapassa
incomparavelmente todos os comandos e todas as aspirações do ‘meliorismo’”.
(PR. 78)
Além disso, seu princípio ético estabeleceu que:
“jamais a existência ou a essência
do homem em sua integralidade devem ser colocadas em jogo nas apostas do agir”
.
(PR. 84)
Ele, ainda, afirmou que precisamos zelar tanto pelo direito dos homens que virão,
isto é, o direito à felicidade, quanto pela obrigação de ser uma humanidade verdadeira.
E ainda que,
“zelar é nossa obrigação fundamental em relação ao futuro da humanidade, da
qual derivam todas as outras obrigações em relação aos homens que virão.”
(PR. 91)
Preparando o caminho no sentido de resolver o terceiro dualismo, aquele do
âmbito ético, instituído desde Hume, entre o ser e o dever, Jonas começou por clarificar
a relação entre valores e fins - ou objetivos que quase sempre são confundidos,
embora não sejam a mesma coisa. Em busca de uma distinção, ele se ocupou
inicialmente do fim definindo que
“um fim é aquilo em vista de que uma coisa existe e para a
produção ou a conservação da qual tem lugar um processo ou é empreendida uma ação”.
(PR.
107)
Destacou-se o fato de Jonas introduzir, já na definição de fim, a noção de conservação.
Nesse contexto, ele demonstrou que os juízos de valor não derivam de uma
apreciação subjetiva, mas da avaliação do desempenho relativo ao fim inerente à própria
coisa. Desse modo, ele firmou que o valor é, portanto, atribuído em virtude do fim.
Baseando-se nisto, ele pôde estabelecer que a natureza cultiva valores, dado que ela
cultiva fins e que, portanto,
ela é tudo menos livre de valores,
sobretudo porque,
inegavelmente, os valores são postos e validados por ela própria.
Jonas, então, explicitou que para transpor o pretenso abismo entre o ser e o dever
é preciso
“Fundar o «Bem» ou o «Valor» no ser
(PR. 157).
Pois, como ele demonstrou, o
397
bem ou o que tem valor, sempre que ele existe por si mesmo e não devido a um desejo,
necessidade ou escolha, é, conforme seu próprio conceito, precisamente aquilo cuja
mera possibilidade já implica a exigência de sua realidade, tornando-se assim um dever,
desde que em presença de uma vontade que seja capaz de perceber tal exigência e de
convertê-la em agir. Ao que ele acrescentou que
“falar do ser-em-si do bem ou do valor,
isso quer dizer que o bem ou o valor fazem parte da bagagem do ser (não necessariamente,
entretanto, da atualidade particular do existente), de modo que a axiologia torna-se assim uma
parte da ontologia.”
(Ibidem.)
Além disso, ele demonstrou ainda que, por ser capaz de comportar fins e de ter
objetivos, a natureza também é portadora de valores e, mediante um dado fim,
“sua
obtenção em cada caso torna-se um bem e seu impedimento um mal, e com esta diferença
começa a imputabilidade do valor.”
(PR. 158)
Em outros termos, dado que os fins estão presentes na natureza, inclusive na
nossa, Jonas considerou que, em princípio, sua dignidade consiste em serem realizados,
de modo que, segundo sua força motivante, eles poderiam ser avaliados ou conforme ao
prazer provocado por sua obtenção ou à dor decorrente de sua obstrução. Ademais,
embora seja possível classificar um fim como melhor ou pior, ele enfatiza que um bem
em si é aquele que jamais
“reclama nosso assentimento.”
(Ibidem)
Por esse motivo, frente à questão se sentido em dizer que alguma coisa deve
ser, mesmo quando sua realização não visa satisfazer a pulsão, o instinto ou a vontade,
Jonas aponta que isso corresponde precisamente ao “bem em si”, cujo reconhecimento
do seu direito prioritário a ser, constitui a primeira exigência endereçada a todo aquele
que o percebe. (EF, 79)
Por conseguinte, a exigência de um Ser de valor torna-se concreta, endereçando-se
a nós enquanto sujeitos práticos: a) se o Ser é vulnerável, dada a fragilidade de todo ser
vivo ou b) se está exposto ao poder de nosso agir. Surge assim, devido ao aspecto geral
398
de todo ser de valor precário, um comando ou mandamento que nos compromete com
todo ser exposto e ao mesmo tempo confiado ao nosso poder, que deve ser submetido a
essa hierarquia de valores, que se apresenta, quase sempre, nas condições da realidade.
Frogneux esclareceu a articulação dessa formulação jonassiana afirmando que seu
raciocínio é o seguinte: o ser não é neutro e pode por conseqüência
constituir a ancoragem ontológica de uma norma que fará
autoridade, quer dizer, que podeigualmente sancionar a liberdade;
além de que, o valor manifesta uma adesão subjetiva a um fim que
aparece desde então como auto-referencial; enfim, o dever ético
repousa sobre um sentimento de responsabilidade.”
(VM. p. 305. Grifos
nossos.)
E, como se viu, segundo Jonas, responsabilidade porque poder. Sendo
assim,
“a responsabilidade é o aspecto complementar do poder”. Por isso, a responsabilidade
tem que ser proporcional ao poder.
Dado que, com esse novo poder de ação, surgiu a possibilidade de que o homem
desapareça definitivamente do planeta ou que transforme sua própria essência ao usar
em si mesmo as novas possibilidades oferecidas pelas biotecnologias, Jonas mostrou
que o homem atual é dotado de uma responsabilidade inédita, porque inédito é seu
poder de aniquilação.
Além disso, se antes, aquele argumento que defendia a suposta neutralidade moral
no campo das ciências era aceitável, agora, devido aos avanços biotecnológicos que
ampliaram incrivelmente o poder de alterar não só a estrutura genética vegetal e animal,
mas também a humana, tal argumentação tornou-se inadmissível. Assim, exige-se,
agora, uma ética capaz de impor a todos os implicados, isto é, a todos nós, a
responsabilidade por todas as alterações que venham a ser realizadas em nossa
constituição genética atual e por seus efeitos futuros.
399
Jonas também identificou a responsabilidade como o traço distintivo do homem,
dado que ele é capaz de ter responsabilidade, motivo pelo qual ele deve exercer tal
responsabilidade em relação a seus semelhantes, inclusive aqueles que são meros
sujeitos potenciais de responsabilidade, o que se aplica tanto aos filhos, quanto às
gerações futuras.
Isso explica porque, Jonas, distanciando-se de Kant, afirmou que não é a forma,
mas o conteúdo do agir que tem prioridade. E, ainda, que a lei moral nos impõe como
dever aquilo que a intelecção nos aponta que, por si, merece existir e por isso pode
exigir o nosso agir. Mas, para nos influenciar e mobilizar nossa vontade devemos ser
capazes de ser afetados por tais coisas. Ou seja, nosso lado emocional também precisa
intervir. Por isso ele disse que,
“a essência de nossa natureza moral implica que o apelo, tal
qual a intelecção nos transmite, encontre uma resposta em nosso sentimento. É o sentimento de
responsabilidade.”
(PR. 169)
Assim, não a teoria da responsabilidade, mas toda teoria ética precisa refletir
sobre dois aspectos igualmente relevantes:
“o fundamento racional da obrigação, (...), [ou] o
princípio legitimante por trás da reivindicação de um «se deve» que obriga, e o fundamento
psicológico de sua faculdade de abalar o querer, [isto é,] a causa que faz que [o sujeito] (...)
determin[e] seu agir por ele.”
(Ibidem)
Isso evidencia que a ética que Jonas estabeleceu tem duas faces: uma objetiva e
uma subjetiva, sendo que a primeira tem a ver com a razão e a segunda com o
sentimento. Jonas afirmou, porém, que a condição subjetiva não afeta a validade,
apenas, a eficácia do comando moral e que a lacuna entre
“a sanção abstrata e a motivação
concreta deve ser transposta pelo arco do sentimento único que pode abalar a vontade.”
(PR.
170-171)
E se o propósito da reflexão ética anterior era aproximar o homem de seu objeto
supremo, que era atemporal e imperecível (por exemplo, a idéia de Bem), Jonas mostrou
400
que, quando o sentimento em foco é a responsabilidade, seu objeto não é mais o
imperecível, mas, precisamente, o
“perecível enquanto que perecível”.
(PR. 173)
Uma vez que esse
“objeto contingente em sua faticidade, apreendido precisamente em
seu caráter perecível, em seu estado de necessidade e na sua incerteza, é tomado como tendo a
potência de mobilizar pela simples existência (...) a disponibilização de minha pessoa, ao abrigo
de todo desejo de apropriação.”
(Ibidem.)
Sabe-se que, ser responsável significa responder por seu ato e por suas
conseqüências. E que, em alguns casos, é preciso fazer com que o ator assuma sua
responsabilidade. Tal medida tem origem no âmbito jurídico e não exatamente no
moral. Nesse sentido, Jonas não ignorou a procedência jurídic
a
da responsabilidade
528
.
Ele destacou, porém, o segundo momento em que
“misturou-se à idéia da compensação
jurídica aquela da punição que tem uma significação moral e que qualifica o ato causal como
sendo moralmente culpável.
(PR. 180)
Nesse sentido, a responsabilidade é um conceito que transita entre a esfera moral e
jurídica e a ação humana é, em diversos casos, não apenas passível de reprovação
moral, mas, também de sanção jurídica.
Outro aspecto relevante é que
“A «responsabilidade» se refere aos atos cometidos e
que ela se torna real pelo fato de que o ator é tomado como responsável pelo exterior.”
(PR. 181)
Aspecto digno de nota, pois, em função dele Jonas declarou algo muito importante para
a discussão de nosso tema, cabe frisar:
No fim das contas, quanto menos se faz as coisas, menos se assume a
responsabilidade, e na ausência de obrigação positiva evitar a ação
pode se tornar um conselho de prudência
529
. Em suma, a
528. Discutida magistralmente por Ricœur no texto “Le concept de responsabilité”, in Le Juste, pp. 41-70.
529. Cabe esclarecer que, o termo prudência remete a Aristóteles, por ser a tradução do termo latino
prudentia que, por sua vez, traduz a palavra grega phronésis que o Estagirita usou para designar a virtude
intelectual, relacionada, portanto, à verdade, ao conhecimento e à razão. Já a expressão conselhos de
prudência foi estabelecida por Kant, para designar tipos de juízo que indicam os meios para alcançar
determinados fins. Todavia, o sentido em que a expressão aparece, aqui, tende a aproximá-la menos dos
401
«responsabilidade» assim compreendida por si mesma não fixa fins,
mas ela é a imposição totalmente formal sobre todo agir causal entre
os homens, exigindo que se possa pedir as contas. Ela é assim a
condição prévia da moral, mas não é ainda ela mesma a moral.
(Ibidem)
Vale destacar, então, a recomendação de que, em certos casos, é mais prudente
deixar de agir, caso contrário, será preciso prestar contas não apenas pelos atos
cometidos, mas, também e principalmente, por suas conseqüências, tenham sido
desejadas ou não.
Entretanto, Jonas inovou, ainda uma vez, ao inserir outro conceito de
responsabilidade que o diz respeito
“ao cálculo ex post facto do que foi feito, mas à
determinação do que está a fazer; um conceito em virtude do qual eu me sinto então responsável
não em primeiro lugar por meu comportamento e por suas conseqüências, mas pela coisa que
reivindica meu agir.”
(Ibidem)
E ao afirmar que “O que é dependente, por seu direito próprio,
torna-se o que comanda, o poderoso com seu poder causal torna-se o que é submetido à
obrigação. O poder torna-se objetivamente responsável pelo que lhe é confiado”.
(PR. 182)
Jonas esclareceu, porém, que a origem dessa tomada de partido do sentimento não
é a idéia geral de responsabilidade, mas
“o reconhecimento da bondade intrínseca da coisa,
tal qual ela afeta a sensibilidade e tal como ela humilha o puro egoísmo do poder.”
(PR. 182-183)
Assim, quando se trata da ética da responsabilidade pelo futuro, que precisamos
assumir hoje, o que está em jogo não é a tradicional, formal e vazia «responsabilidade»
de um ator qualquer em relação à sua ação, mas esse tipo de responsabilidade e de
sentimento de responsabilidade, a partir do qual Jonas pôde afirmar, sem contradição,
que somos responsáveis, até por nossos atos mais irresponsáveis. Considerando que
«um agir irresponsável» não se limita mais ao sentido formal do termo «irresponsável»,
sentidos indicados acima, que da recomendação expressa pelo princípio de precaução, segundo o qual, a
incerteza científica, com relação a um risco de um dano sério ou irreversível, exige medidas capazes de
evitar este dano. Nesse caso, o mais “prudente” seria evitar a própria ação.
402
que significa
“ser incapaz de assumir a responsabilidade, logo não poder ser considerado como
responsável”. (Ibidem)
Pois, conforme ele afirmou, somente aquele que possui a
capacidade de ser responsável pode agir irresponsavelmente.
Aqui, merece ser feita uma breve incursão ao texto de Ricœur, supracitado, no
qual ele discute o conceito de responsabilidade, espantando-se com a diversidade de
sentidos que o conceito adquiriu contemporaneamente e tecendo uma crítica ao conceito
jonassiano de responsabilidade, sobretudo, por considerar que tal como foi formulado,
torna-se muito difícil identificar o responsável no sentido do autor (propriamente dito)
dos efeitos nocivos causados.
De fato, mas o que Jonas estabelece em sua formulação oferece uma pista mais do
que evidente para identificar os responsáveis, no caso específico das biotecnologias aqui
discutidas. Pois, uma vez que a responsabilidade atrela-se ao poder e ao saber, ao ponto
de a responsabilidade ser proporcional ao poder, e dado que, por sua vez, o saber
biotecnológico amplia o poder; temos que, com relação aos efeitos nocivos da
“discutível” aplicação biotecnológica em seres humanos, os responsáveis diretos seriam:
em primeiro lugar os próprios cientistas (indivíduos ou equipes) que levarem adiante as
pesquisas que venham a viabilizar tais aplicações; em segundo lugar, todas as esferas de
poder político (legislativo, executivo, judiciário) que venham a autorizar, legitimar ou
sancionar tais práticas, em terceiro lugar os representantes do poder econômico que
venham a financiar tais pesquisas e, por fim, embora não de forma direta, toda a
população, ou melhor, a opinião pública atual que, embora esclarecida sobre as
intenções, possibilidades e riscos envolvidos em tais pesquisas e suas eventuais
aplicações, não se mobilize a tempo de impedir que as leis específicas sejam
sancionadas e tais práticas efetivamente aplicadas. Ou seja, ainda que em diferentes
graus, todos os seres humanos atuais estão voluntária ou involuntariamente, consciente
403
ou inconscientemente implicados nas conseqüências nocivas de tais aplicações. Por isso,
trata-se de uma responsabilidade coletiva, mesmo que observando a ordem acima. De
modo que, o ônus pela ação irresponsável teria que ser assumido, ainda que em
diferentes graus, por todos os envolvidos diretos e indiretos.
Revimos pouco, o que Jonas entende por isso e que ele pressupõe a situação
em que
“O bem-estar, o interesse, o destino de outrem é colocado em minhas [nossas] mãos
devido às circunstâncias ou por uma convenção, o que quer dizer que meu [nosso] controle
sobre isso inclui ao mesmo tempo minha [nossa] obrigação por isso.”
(PR. 184)
Essa é precisamente a situação dos pais em relação aos filhos, do governante em
relação aos cidadãos e a nossa em relação às gerações futuras. Em tais circunstâncias, o
“Exercer o poder sem observar a obrigação é então «irresponsável», quer dizer, uma ruptura na
relação de confiança da responsabilidade.”
(Ibidem)
Embora Jonas não ignorasse as relações nas quais se estabelece um tipo de
responsabilidade recíproca entre todos os envolvidos, por exemplo, nas tarefas coletivas
em que todos os integrantes correm perigo e com a qual todos são responsáveis uns
pelos outros, para o sucesso do empreendimento e a sobrevivência do grupo, vimos que
o tipo de responsabilidade que ele postulou em sua ética foge a esse modelo, tanto
quanto do modelo de responsabilidade «horizontal» encontrado na relação entre iguais,
como, por exemplo, entre companheiros e irmãos.
A responsabilidade que ele estabeleceu é mais próxima, sobretudo, daquela
«vertical» que existe dos pais com relação aos filhos e que, além de não pressupor
qualquer reciprocidade, não é específica, mas global, não é ocasional, mas permanente,
ao menos, enquanto forem crianças e dependentes. E cuja ausência implica omissão e
uma forma ética e, mesmo, juridicamente condenável de irresponsabilidade.
Diferentemente da responsabilidade dos pais, cujo objeto é da esfera privada, no
que tange ao político,
“o objeto da responsabilidade é a res publica, a «coisa pública» que
404
numa república é potencialmente assunto de todos (...) [ressaltando que,] ninguém é
formalmente considerado obrigado a exercer as funções públicas”.
(PR. 189)
Assim, vimos que, se a responsabilidade dos pais é comum a todos que, mediante
escolha ou não, tornam-se pais, a responsabilidade política apenas concerne àqueles que
optam pela vida política. A primeira se dirige aos indivíduos singulares que nós mesmos
geramos e a segunda aos numerosos indivíduos anônimos da sociedade existente. A
origem da primeira é o fato de se tornar, voluntariamente ou não, autor imediato de tais
existências totalmente dependentes; da segunda, é a disposição de assumir um cargo
público com o objetivo de zelar pelo interesse coletivo, com ou sem o consentimento
dos concernidos. A primeira é inteiramente natural e se dirige a objetos próximos e a
segunda, instituída da forma mais artificial, endereçada a objetos mais distantes.
Jonas ainda estabeleceu que
“o arquétipo de toda responsabilidade é aquela do homem
em relação ao homem”.
(PR. 193)
E, sobretudo, no caso dos pais, trata-se de zelar pela
criança até que ela alcance a vida adulta que, por sua vez, resulta do processo de
educação, cujo objetivo é a autonomia do indivíduo e a sua própria assunção, como
sujeito de responsabilidade. Por isso ele disse que,
“o «cidadão» é um objetivo imanente da
educação”
(PR. 202)
Aspecto no qual a responsabilidade dos pais se encontra com a dos
governantes.
Desse modo ele pôde afirmar que
“o bem verdadeiro do indivíduo (mesmo que ele não
seja obrigatoriamente aquele de todos os indivíduos) e o bem pragmático do Estado coincidem,
[isso] faz do Estado uma instituição intrinsecamente moral, e não somente utilitária.”
(PR. 239)
Jonas estabeleceu, ainda, que o principal imperativo da atividade política declara a
obrigação de
“não produzir, nem no nível do objetivo, nem no nível do caminho em direção ao
objetivo, uma situação na qual os candidatos possíveis à repetição de seu próprio papel serão
tornados lacaios ou robôs.”
(PR.229)
Risco que, ele bem advertiu, nenhum homem de
Estado, em nome da responsabilidade que seu cargo comporta, está autorizado a correr.
405
Como ele demonstrou, a responsabilidade está diretamente implicada na relação,
nada simples, entre poder e saber, que
“eram anteriormente de tal modo limitados que, com
relação ao futuro, a maior parte das coisas devia ser abandonada ao destino e à estabilidade da
ordem natural e que toda atenção se dirigia para a tarefa de bem fazer o que se impunha aqui e
agora.”
(PR. 238)
Isso explica porque, na perspectiva da política antiga, considerava-se
“A
melhor constituição, a mais durável, e a virtude, a melhor garantia da permanência.”
(Ibidem.)
E
porque, na perspectiva da ética antiga, a
responsabilidade pelo que virá» não era uma
norma natural do agir ele não teria tido objeto comparável ao nosso e ela seria considerada
como uma hybris mais do que uma virtude.
(Ibidem.)
Atualmente, porém, uma vez que ele explicitou que,
“a responsabilidade é um
correlato do poder, de modo que, a extensão e o tipo do poder determinam a extensão e o tipo de
responsabilidade.”
(PR. 247)
Disso decorre que, se o poder e seu freqüentemente exercício
aumentam ao ponto de atingir certas dimensões,
“não é somente o tamanho, mas igualmente
a natureza qualitativa da responsabilidade que se transforma de tal forma que os atos do poder
engendram o conteúdo do dever, que é então essencialmente uma resposta ao que ocorre.”
(Ibidem.)
Por fim, cabe ainda destacar a afirmação de que:
“Da humanidade não se pode jamais
dizer (...) que ela «não é ainda»; ... [pois,] a cada vez, o ser humano, mesmo se ele foi de outro
modo, não era mais «inacabado» do que ele é hoje.”
(PR. 214)
Também na perspectiva da aplicação, vale a pena retomar algumas importantes
considerações de Jonas, sobretudo no contexto do TME, em que ele se pergunta com
relação às supostas melhorias pretendidas pela eugenia positiva quem decidirá sobre a
excelência dos exemplares e com que critérios?
(TME. p. 118)
Advertindo ainda que, na
tentativa de se estabelecer um fenótipo como o melhor para inspirar a programação dos
futuros indivíduos, qualquer padronização, por menor que fosse
“estreitaria esta zona de
sombra da indeterminação mediante as apressadas determinações de efêmeras preferências.”
(Ibidem.)
406
Com relação à possibilidade de combinar os genes de outras espécies, ele alerta
quanto ao fato de que as conseqüências de tais procedimentos ainda são pouco
conhecidas. Sabe-se apenas da possibilidade, em si já perturbadora, de que isso resulte
em
“novos tipos de seres vivos, «desvios» premeditados e séries inteiras delas.” (TME. p. 131)
Contudo, Jonas afirma que se tentada com seres humanos, tal aventura degradaria
a imagem da unicidade «do» ser humano como objeto de respeito último e aboliria a
exigência de fidelidade à sua integridade. Seria uma ruptura metafísica com a
«essência» normativa do ser humano e, ao mesmo tempo, em função da
imprevisibilidade das conseqüências,
“o mais frívolo dos jogos de azar... a brincadeira de um
demiurgo cego e arrogante com o coração mais sensível da Criação.” (Ibidem.)
Além do que, isso criaria um problema de ordem política e jurídica, pois, afinal
Que são as criaturas derivadas, quais são seus direitos, qual seu status na comunidade
humana?
(TME. p. 132)
Ele acrescentou ainda a hipótese de que essa pergunta venha a ser
formulada na perspectiva dessas criaturas, caso algum dia elas possam ditar as regras.
Numa crítica mais real e menos especulativa, Jonas considerou a possibilidade de
a técnica produzir além dos «desvios» desejados, inevitavelmente outros não desejados,
ou seja, malformações, das quais seja preciso se livrar e até mesmo das bem sucedidas,
caso depois de um tempo se mostrem problemáticas. Ou seja, mesmo aquilo que se crie
para certa finalidade poderá ser eliminado quando não mais atender a tal finalidade. Ele
denunciou, portanto, o fato de que uma vez adquirido o habito da eliminação utilitária -
a outra face da aquisição utilitária -, nada mais poderá deter uma ou outra.
Por isso, Jonas recorreu àquele que considera o mais sóbrio dos argumentos
morais:
“os atos cometidos sobre outros pelos quais não se pode render-lhes conta são
injustos.” (Ibidem.)
Coerentemente, com esse argumento, ele finalizou sua exposição afirmando que:
407
O dilema moral de toda manipulação biológico-humana que mais
além do puramente negativo da prevenção de defeitos hereditários é
precisamente esse: que a possível acusação da descendência contra
seu criador não encontra a ninguém que possa responder e purgar
por ela, nem nenhum instrumento de indenização. Aqui um campo
para o crime com total impunidade, da que as pessoas atuais que
serão passadas estão seguras frente a suas futura timas. isso
(nos) obriga à mais extrema e temerosa cautela em qualquer
aplicação do crescente poder da arte biológica sobre os homens. O
único permitido é a prevenção à desgraça não a prova de uma
felicidade de novo tipo.
O objetivo é o homem: não o super-homem. Embora haja mais coisas,
e metafísicas, em jogo, basta a simples ética da decência das coisas
para proibir em seus começos as liberdades artísticas [poéticas]
com genótipos humanos... por pior que soe ao ouvido moderno: na
república da pesquisa experimental. (TME. 133-134)
7.2 Crí t i c as à form u l a ção ética j o n assi a na
É preciso aqui considerar que a formulação e, sobretudo, a fundamentação da
ética jonassiana suscitaram e ainda suscitam inúmeras críticas. A expressão mais
eloqüente delas foi reunida num evento - promovido pelo Institut de Philosophie et
Sciences Morales de La Université Libre de Bruxelles, em 1991, sob a coordenação do
seu então presidente, Gilbert Hottois, com a colaboração de Marie-Geneviève Pinsart -,
que congregou os críticos mais representativos de Jonas, entre os quais K.-O. Apel,
Hans Achterhuis, Mathias Rath, Anne-Marie Roviello, sem esquecer, naturalmente, dos
próprios organizadores.
408
Desse evento resultou uma publicação intitulada Nature et Responsabilité
530
, que
pode ser considerada como uma espécie de antologia das principais críticas endereçadas
ao empreendimento jonassiano.
Por seu caráter emblemático, esses textos aqui serão a cardinal referência para
avaliar as principais críticas, especialmente aquelas endereçadas à fundamentação.
Ainda assim, por motivos evidentes, não será possível focalizar todas as críticas em
todas as suas nuances. Razão pela qual, será preciso retomar apenas aquelas mais
importantes, tanto por sua maior recorrência, quanto por sua gravidade, isto é, pelo risco
que representam à viabilidade da elaboração jonassiana.
Para facilitar a exposição, as críticas serão divididas em três grupos, de acordo
com o aspecto que visam, a saber: 1. Aspecto conceitual; 2. Aspecto metodológico e 3.
Aspecto prático. Os dois primeiros momentos serão divididos em três pontos e o
terceiro em dois.
1. Aspecto conceitual:
Trata-se de apresentar aqui algumas críticas que se centraram na forma pela qual
Jonas elabora alguns conceitos, o que pode resultar em ambigüidade ou mesmo numa
exposição insatisfatória. É o caso dos conceitos de «valor», «homem» e «natureza».
a. Os tripla significação do termo «valor»
A crítica aos três diferentes sentidos que Jonas atribui ao termo «valor» é
formulada por Mathias Rath
531
, por considerar que no PR esse conceito é de tal modo
ampliado, ao ponto de ele assumir três diferentes significados, segundo o autor,
incompatíveis.
Assim, segundo Rath, as três diferentes definições do termo valor que se pode
extrair dos textos jonassianos são os seguintes:
530. G. Hottois & M.-G. Pinsart (org.). Hans Jonas – Nature et Responsabilité. Paris : Vrin, 1991, 189 p.
531. M. Rath. "La triple signification du mot «valeur» dans Das Prinzip Verantwortung de Hans Jonas et
la Psychologisation en éthique. " in Nature et Responsabilité, pp. 131-140.
409
- a primeira definição pertence à categoria descritiva, não normativa:
uma coisa recebe um valor se ela é utilizada em vista de um fim;
- a segunda faz do valor um conceito teleológico. Para que uma
finalidade requeira nosso cuidado, é preciso que ela seja um valor em
si. A análise detalhada desta definição faz aparecer um círculo
vicioso, entre as noções de valor, de existência e de finalidade;
- enfim, segundo a terceira acepção, uma finalidade torna-se um valor
se ela é uma finalidade para nós. O valor é, então, a medida de uma
vontade subjetiva.
(op. cit. p. 14)
Mesmo considerando que essa tripla significação constitui, na verdade,
“três passos
indo de um conceito descritivo do valor, em direção a um conceito normativo do valor”
(Ibidem.
p. 135)
Rath pretende
“mostrar que há uma falha no raciocínio de Jonas e que ela se situa... em
seu conceito de finalidade”.
(Ibidem.)
Melhor dizendo, segundo ele, as definições de valor são contraditórias porque as
considerações jonassianas sobre as finalidades são circulares. Mais exatamente, segundo
ele,
“a definição, «um fim é o em vista de que uma coisa existe», não pode ser utilizada se se
quer falar da finalidade fundamental de todos os seres.”
(Ibidem.)
Pois,
Todo valor é válido por realizar um fim. Todo fim deve ser útil a outro
fim se ele deve ser marcado pelo selo do valor. Essa «cascata de fins»
(Rombach) somente pode ser interrompida se houver um fim que
possa ser considerado como um valor em si. Esse fim deve ser útil a si
mesmo. Jonas encontra essa utilidade para si mesma na finalidade
«existência».
(Ibidem.)
Rath afirma que ao seguirmos tal raciocínio contatamos o círculo no conceito da
finalidade fundamental e, por extensão, na segunda definição de valor. Uma vez que
“Se
é a finalidade fundamental de tudo o que existe a de existir, e se um fim é o para que alguma
coisa existe, tudo o que existe, existe no objetivo de existir. Tudo o que existe é válido e é então
410
bom, porque existe. A existência enquanto meio útil e, portanto, válido torna-se sua própria
finalidade.”
(Ibidem.)
Desse modo, da utilidade da existência, enquanto meio para realizar fins, Jonas
concluiria o valor da existência, enquanto um fim em si absoluto. Logo,
“o juízo de valor:
«a existência é um valor», está fundada no ser-bom de uma finalidade, que é justamente
legitimada por esse valor. A conclusão é circular.”
(Ibidem. pp. 135-136)
Frogneux discorda de Rath, porém, considerando que ainda que
Jonas utilize efetivamente o termo «valor» como sinônimo de fim, não
nos parece necessário manter sob o mesmo termo significações que o
próprio Jonas tenta separar. Assim preferimos designar a primeira
acepção do termo valor por «utilidade» relativa, e a terceira por
«valorização» subjetiva (Wertung; PR, 113), enquanto que
reservaremos o termo «valor» ao fim auto-referencial do existente.
Seria preciso ainda acrescentar o valor moral que resulta de uma
adequação da vontade ao conhecimento dos fins e dos valores
objetivos. Esse valor moral supõe a virtude que consiste em
reconhecer como valores os fins em si e a se submeter à injunção do
bem.
(NF, 307)
Essa sugestão parece resolver o problema da plurivocidade e incompatibilidade
entre os sentidos do termo valor e também da circularidade das definições. Pois, ela leva
em conta todas as nuanças da exposição que Jonas faz sobre o valor e, embora ele
mesmo não o faça, explicita a diversidade e confere a cada um dos sentidos atribuídos
ao conceito a sua especificidade. Com o que se pode considerar que a crítica de Rath,
embora em parte pertinente, pode ser respondida e, mesmo, suficientemente superada.
b. A ambigüidade do estatuto do «homem»
411
Esse constitui um dos aspectos problemáticos da formulação jonassiana apontados
por G. Hottois
532
, pois segundo ele:
O eminente valor da humanidade engendrado pelo processo,
finalizado nela, da evolução deve-se ao fato de que o ser humano é o
ser vivo finalizador por excelência, quer dizer, um ser de liberdade,
de escolha, de sentido, um sujeito consciente e autônomo. ... [Razão
pela qual] é formalmente coerente (no sentido kantiano) e
substancialmente fundado (pela ontologia finalista de Jonas) exigir
que essa capacidade finalizadora da humanidade não se autodestrua,
seja diretamente (auto-aniquilição da humanidade), seja pela
deterioração de seu substrato indispensável (a natureza). Mas é muito
difícil concordar com o conteúdo preciso desses interditos
anunciando o que a liberdade pode e não pode fazer sob pena de se
autodestruir. Os interditos muito sistemáticos e massivos, como os
sugeridos pela heurística do medo (...) correm o risco de sufocar a
liberdade... .
(Op. cit. p. 31)
A parte final dessa crítica sobre o conceito de homem é, apenas parcialmente,
pertinente. Porque, na verdade, trata-se de um paradoxo da própria condição humana. A
liberdade se não limitada se autodestrói, mas se limitada demasiadamente, pode ser
sufocada. O problema é achar o justo meio, o que constitui nosso desafio permanente.
Porém, o mais complexo na formulação jonassiana sobre o ser humano - como
apontado anteriormente
(6.3 p. 367)
- é o recurso que ele faz à noção de imagem do
homem para sustentar sua restrição à manipulação do homem pelas biotecnologias.
Como se sabe, o termo “imagem”, empregado por Jonas, tem origem no contexto
judaico-cristão e está associado à imago Dei.
532. G. Hottois. "Le néo-finalisme dans la philosophie de Jonas", in Nature et Responsabilité. Paris: Vrin,
1991, pp. 17-33.
412
É importante ressaltar o significativo trajeto que o termo imagem realiza no
interior da obra jonassiana. Ele aparece com especial destaque no texto Homo pictor
and the differentia of man”
533
, no qual a capacidade de fazer imagens é definida como
uma diferença antropológica, ou seja, como um atributo exclusivamente humano.
O tema é retomado no ensaio VII do PhL intitulado “A produção de imagem e a
liberdade humana”
534
. Razão pela qual M.G. Pinsart
535
não exagera quando afirma que
“temos na noção de imagem o fundamento e a chave de compreensão de toda a reflexão
jonassiana, notadamente, em matéria de bioética.”
(p. 72)
Isso explica o tom de indignação de Jonas frente à proposta de se fabricar seres
humanos e ao questionar “com base em qual imagem?Explica também porque “o mal
tecnológico” surge assim que se interfere, de algum modo, na dimensão simbólica do
ser humano.
Todas essas questões são absolutamente pertinentes e a noção de imagem mais do
que consistente no interior do pensamento jonassiano. Também não são desprezíveis as
suas repercussões, na consciência daqueles que reverenciam a imagem do homem por
sua referência à imago Dei.
O problema é que, para aqueles que estão dispostos a dar início às pesquisas que
envolvem a manipulação tanto para fins da eugenia positiva, quanto para a realização do
pós-humano, essa imagem não passa de um conceito vago e sem sentido. Por esse
motivo, será preciso buscar, no tópico seguinte, outro conceito capaz de se impor e,
inclusive, de dar suporte, se tal for o caso, a uma legislação que possa regular essa
atividade.
533. Homo pictor and the differentia of man”, - Social Research, 29, 1962, pp. 201-220.
534. “La production d’image et la liberte humaine”, - Le phénomène de la vie, pp. 167-190.
535. M.-G. Pinsart. "Nature humaine ou expérimentation humaine." in Nature et Responsabilité, pp. 69-
91.
413
c. Um conceito limitado de «natureza»
Esse constitui outro aspecto problemático da formulação jonassiana apontado por
G. Hottois, que afirma que os conceitos de natureza e evolução jonassianos
“não estão à
altura da tecnociência: eles se caracterizam por um confinamento antropocêntrico surpreendente
na medida em que Jonas combate precisamente o antropocentrismo.”
(p. 29)
Por esse motivo, Hottois considera que as conclusões jonassianas extraídas a
partir de tais conceitos são pouco convincentes. Além disso, ele critica o fato de a
definição de natureza se restringir à natureza terrestre em contraste com a natureza
tecnocientífica que foi ampliada à dimensão da natureza cósmica como espaço infinito
de experiências da humanidade.
Com relação à crítica ao “confinamento antropocêntrico”, é preciso levar em
conta os textos anteriores ao PV, especialmente aqueles reunidos no PhL ou no EL, em
que Jonas propõe uma abordagem da natureza, de fato surpreendente, ao considerar o
metabolismo presente nas formas mais elementares de vida como uma manifestação
da liberdade. Embora tal noção possa ser associada a uma visão antropocêntrica,
dificilmente pode-se identificar qualquer tipo de “confinamento”. Pois, conferir uma
relevância incomum àquela atividade considerada a mais basal e primária, o que ele faz
ao identificar o metabolismo à liberdade, não se trata de um confinamento, mas de uma
expansão, tanto do conceito de metabolismo, quanto do conceito de liberdade, retendo
ainda uma concepção de evolução. O aspecto antropocêntrico residiria nessa projeção
de um traço, até então, referido apenas à dimensão humana, a toda a esfera natural.
Porém, o propósito de Jonas seria demonstrar que, justamente, por conter em si
o “princípio” da liberdade, a natureza mereceria um tratamento diferente daquele que
tem recebido desde o advento da ciência moderna. Nesse sentido, embora o
procedimento possa ser antropocêntrico melhor seria aqui dizer antropomórfico - o
objetivo visado, efetivamente, não é.
414
Quanto à critica de a definição de natureza jonassiana se restringir à natureza
terrestre, de fato, o conceito de natureza tecnocientífica é muito mais “operatório” e
abrangente. Todavia é necessário admitir que, verdadeiramente, não dispomos da
natureza cósmica, pois, só temos acesso e só podemos contar com a natureza terrestre.
Precisamente por isso, é com ela que devemos nos preocupar. O horizonte da
natureza cósmica é tão amplo quanto remoto e incerto e de nada adiantaria para
humanidade presente ou vindoura confirmar a possibilidade de vida noutro planeta
desse vasto universo, se com isso e por isso precisássemos comprometer a vida terrestre.
Ademais, a possibilidade de vida e, sobretudo, de vida inteligente, implicaria que
tal(is) planeta(s) já estaria(m) habitado(s) o que significa que não seria uma tarefa
simples ocupá-lo(s) em caso de uma hecatombe na Terra, como alguns parecem apostar.
Nesse sentido, deve prevalecer o lema ecológico do “pensar global, mas agir
localmente” isto é, considerar o todo, (a natureza cósmica) mas se ocupar da porção que
nos cabe: a natureza terrestre, em si já tão vasta e imensa e, em parte, não conhecida.
2. Aspecto metodológico:
Nesse ponto serão apontadas as críticas que se ativeram ao modo pelo qual Jonas
elabora sua ética, em especial quando ele recorre à «heurística do medo», ou à
«fundamentação ontológica» ou quando ele não recua frente à dimensão subjetiva,
incorrendo, segundo alguns, num «subjetivismo», segundo outros, por conseguinte, num
«psicologismo».
a. O recurso à «heurística do medo»
Nosso ponto de partida será essa polêmica formulação, talvez a mais incômoda,
considerando as inúmeras críticas levantadas, pois não foram poucos os autores que a
escolheram como alvo de suas reprovações.
415
No Nature e responsabilité, é Hans Achterhuis
536
quem mais diretamente a ataca,
apontando, sobretudo, um problema na argumentação de Jonas quando ele, por um lado,
estabelece a heurística do medo como base de sua formulação ética e, por outro, critica
toda e qualquer utopia.
A base do argumento de Achterhuis para criticar o que ele considera um contra-
senso é primeiramente a concepção, inspirada em John Locke, segundo a qual,
“as
noções de progresso, de crescimento e de expansão surgiram em resposta aos medos ligados ao
universo hobbesiano”
(Op. cit. p. 42)
que, como se sabe, é totalmente
“dominado pelo medo e
pela busca de segurança”.
(Ibidem. p. 40)
A menção a Hobbes é especialmente importante, pois, ele, que se auto-intitula
“gêmeo do medo”
537
, foi considerado por Jonas como o único filósofo que teria
antecipado a sua “heurística do medo”.
Mas o fato é que, em função das diferenças históricas, as formas de abordar o
medo em Hobbes e Jonas são inteiramente diferentes. Hobbes insere o medo no
contexto do estado de natureza, onde os homens viveriam sob um “medo contínuo” e
sob “o perigo de uma morte violenta” e em constante “guerra de todos contra todos”.
Hobbes sugere duas possíveis saídas para a humanidade dessa situação, a mais
conhecida é a criação do Estado que deteria o monopólio do uso da força e da violência
e a segunda, menos comentada, seria a ciência e a tecnologia, que forneceriam
“os meios
para preservar a vida o maior tempo possível”
. (Ibidem. p. 41)
É nesse debate que o jovem Locke insere suas primeiras obras que tematizam
“o medo
da guerra civil e do reino dominante da escassez obscena”
(Ibidem. p. 42)
numa perspectiva
536. H. Achterhuis. "La responsabilité entre la crainte el l’utopie." in Nature et Responsabilité, pp. 37-47.
537. Esta expressão, utilizada por Hobbes para retratar o contexto de seu nascimento, marcado por uma
série de disputas políticas e ameaças de invasões do território inglês, título ao primeiro capítulo da tese
de doutoramento de Renato Janine Ribeiro sobre Hobbes, defendida em 1984 e publicada no mesmo ano
pela editora Brasiliense e reimpressa em 1999, pela Editora da UFMG, com o título Ao leitor sem medo.
416
muito próxima àquela do próprio Hobbes, defendendo a necessidade de um Estado forte
capaz de administrar as fontes escassas e de, inclusive, determinar a religião de seus súditos.
Não obstante, suas obras de maturidade tratarão desses temas numa perspectiva
bem diferente, a começar pela questão religiosa, onde a tolerância será a palavra de
ordem. E para solucionar os problemas da escassez,
“As promessas do progresso e do
crescimento são claramente para Locke as respostas aos medos e às ansiedades”
(Ibidem. p. 43)
antecipando, aliás, o contexto iluminista, no qual
“o mito do progresso... [será] concebido
como uma resposta a todas as grandes ansiedades que ocupavam as populações européias”
(Ibidem).
Resposta inspirada, em grande medida, pela Nova Atlântida de Bacon, que
constitui para Achterhuis o modelo de todas as utopias
538
uma vez que é a obra que
transmite a idéia de progresso aos “iluministas”, entre os quais, Condorcet, célebre autor
do Fragmento sobre a Atlântida.
Nesse contexto, portanto, Achterhuis defende que a utopia seria
“uma resposta aos
medos suscitados por uma situação apocalíptica. ... indicando às pessoas da época uma saída à
angústia e ao medo”.
(Ibidem. p. 44)
Achterhuis coloca, então, três objeções à maneira que Jonas concebe sua
heurística do medo:
1. Ele não pensa que a heurística do medo ajudará estabelecendo
“limites à
expansão e ao crescimento e ... um fim ao impulso utópico”
(Ibidem.),
dado que
historicamente foi a heurística do medo que deu origem a tal realidade.
2. Além disso, ainda hoje, o medo é
“considerado como a principal força motriz do
crescimento econômico e tecnológico. O tema da escassez, do medo de uma guerra de todos
contra todos, (...) parece a causa principal de nossa incapacidade de colocar limites a essa
marcha desastrosa da humanidade”
(Ibidem.)
538. Seria preciso, porém, especificar melhor: “modelo para as utopias modernas”, pois, antes de Bacon,
Platão já havia concebido um modelo de sociedade ideal, que também pode ser considerada “utópica”.
417
3. Por fim, seguindo esse raciocínio, o autor afirma que
“a ligação entre o medo do
apocalipse e a utopia não é unicamente um fato histórico. As duas realidades estão
intrinsecamente ligadas.”
(Ibidem.)
Toda a literatura utópica conhecida retira sua força de
persuasão do confronto com alguma realidade apocalíptica. Sendo assim,
A utopia que Jonas define em termos de objetivação do ser humano,
não se reduz ao movimento marxista que ele rejeita mais constitui
uma tendência maior da civilização ocidental. Nossa sociedade vive
há muito tempo sob o signo da utopia descrita desde o século XVI por
More, Bacon, ou Campanella. O princípio base da abordagem
utópica é o mesmo que deu nascimento à ciência, à tecnologia, e à
noção de progresso: o medo.
(Ibidem, 10)
Preparando a conclusão desse tópico destinado à crítica da heurística do medo, é
interessante, apresentar uma passagem de M.G. Pinsart
539
, onde ela resume com
bastante propriedade o cerne dessa crítica de Achterhuis:
Jonas parece não compreender que ao fazer da heurística do medo
um meio de frear os desenvolvimentos científicos «apocalípticos», ele
tenta destruir o mal (o mal ligado à tecnologia) utilizando a causa (o
sentimento de medo) desse mal. Jonas não se contenta em assinalar
que o progresso científico é o fruto de um medo irracional em relação
a elementos que escapam a todo controle. Ele não imagina que o
medo enquanto fonte irracional de uma vontade de controle tornar-
se-á excessiva e então perigosa. Mas, ao mesmo tempo, ele nele busca
o remédio para essa dinâmica fatal: buscando pelo medo controlar a
vontade de controlar engendrada pelo medo.
(pp. 8-9)
539. M.-G. Pinsart. "Introduction." in Nature et Responsabilité, pp. 7-16.
418
Isso exige uma contraposição a duas importantes observações de Jean Greisch
540
com relação ao que ele considera como o ponto do PR que mais despertou medo em
inúmeros críticos, particularmente franceses
541
, precisamente, a «heurística do medo».
Em primeiro lugar, Greisch adverte que as críticas se fixaram no termo «medo» e
perderam de vista o termo: «heurística» da expressão. Assim, ele enfatiza que:
Uma simples análise semântica somada a uma leitura atenta do texto
de Jonas permite verificar que o termo «heurística» designa
realmente um poder, a faculdade de se pôr as boas questões
produtivas que fazem avançar os problemas em lugar de tudo
paralisar numa atitude de recusa petrificada.
(Cf. p. 75)
Em segundo lugar, o medo que Jonas “prescreve” não é de natureza “patológica”
do sujeito que teme apenas por si, como era o medo em Hobbes, mas aquele de um
sujeito que teme pelo destino do outro. Greisch ainda assinala que:
“somente aquele que
aceita tremer diante de certas possibilidades pode pôr-se as questões decisivas: é disso que se
trata com a heurística do medo que Jonas denomina «detectora»” (Ibidem. p. 77).
Sendo assim, se os críticos estão certos e é o medo que está por trás de todos os
problemas atuais, resultantes da tentativa de realizar o ideal utópico moderno, quando
Jonas atribui à «heurística do medo» a importante tarefa de detectar e evitar um perigo
eminente, representado pelo risco de auto-deformação da humanidade, deve-se
considerar em primeiro lugar que não se trata aqui de um medo egoísta, como aquele
postulado por Hobbes e, em segundo lugar que ele propõe, empregando uma metáfora
médica, o mesmo princípio usado pelo soro que extrai do próprio veneno o seu antídoto.
É um princípio paradoxal, mas, comprovadamente eficaz.
540. Jean Greisch: - "L’amour du monde et le principe responsabilité." In Autrement séries morales, 14
(1994), n° sur le Responsabilité, pp. 72-93.
541. Entre os quais: Bernard Sève e Dominique Bourg.
419
b. Viabilidade de uma fundamentação ontológica
K.-O. Apel, embora reconheça o mérito da formulação jonassiana, tece, entre
outras, uma crítica à sua fundamentação dizendo que Jonas,
“de maneira explícita e
intencional retorna antes da crítica ka
n
tiana da metafísica ontológica, [e com isso] revela uma
lacuna característica de toda fundação ontológica possível da ética”.
(Op. cit. p. 113)
Ele critica a fundamentação ontológica, mas não se refere aqui ao contexto de
derivação pressuposta
“do «dever» a partir do «ser»”. (Ibidem)
Uma vez que entende que
o conceito jonassiano do ser é intencionalmente oposto ao conceito
moderno da faticidade axiologicamente neutra da natureza, por
conseqüência, a crítica lógica do que se chama a “falácia
naturalista” não pode ser a ele aplicada. Prevalece somente de fato
o veredicto crítico kantiano contra a «metafísica dogmática».
(Ibidem)
Entretanto, a despeito da interdição kantiana, Jonas não hesita e nem recua diante
da tarefa fundacional a qual se incumbiu, pois nas palavras de Ricœur
542
Essa fundamentação, segundo Jonas, pode ser ontológica, na
medida em que o que deve ser justificado é a continuação de uma
existência e não a racionalidade de um princípio de moralidade. O
que deve ser demonstrado é que uma vida humana ainda deve existir
depois de nós. É no quadro deste empreendimento de fundamentação
ontológica do novo imperativo que é preciso...
(p. 235)
Portanto, compreender a extensão e a ousadia da empreitada jonassiana que,
desconsiderando todas as interdições das filosofias kantiana, positivista e analítica,
sustenta a necessidade e a possibilidade de, hodiernamente, se fundar a ética sobre uma
ontologia.
542. P. Ricœur. “Ética e Filosofia da Biologia em Hans Jonas”. A Região dos Filósofos. SP: Loyola,
1996, pp. 229-244.
420
c. Uma ética subjetivista: rumo ao «psicologismo»?
A questão do subjetivismo e do psicologismo da ética jonassiana é apontada por
dois autores com propósitos e pontos de vistas completamente diferentes. Mathias Rath,
no texto supracitado, aponta os
“aspectos subjetivos da teoria da responsabilidade de Jonas”
(Op. cit. 136-138)
e questiona se ele empreende
“uma nova psicologização em ética?”
(Ibidem.
138-140)
,
mas tal pergunta não visa uma crítica a esse aspecto da formulação jonassiana.
Em contrapartida, Sergio Caruso
543
afirma que algo que o incomoda no PR é a
relação oportunista que a filosofia de Jonas estabelece com a psicologia, que é sempre
evocada quando surgem dificuldades teóricas, mas sem que ela seja efetivamente
reconhecida, embora amplamente utilizada. Cada vez que Jonas se depara com um
problema filosófico, ele lança mão de conceitos psicológicos “genéricos” do tipo:
«sentimento», «medo», «sentimento de culpa», ou mais especializados como:
«identificação», «arquétipo» e «par parental».
(Op. cit.. p. 235)
Mas isso não é tudo, Caruso afirma que não haveria problema
“se se tratasse de uma
verdadeira e boa psicologia, Mas não é”.
(Ibidem).
Como equacionar essas duas posições: a de Rath que reconhece na formulação de
Jonas os elementos subjetivos, mas não nisso, necessariamente, um problema e a de
Caruso, que vê essa presença de um modo extremamente negativo?
É preciso considerar que Rath parte de uma abordagem mais filosófica, lembrando
que Jonas, em 1977, distingue duas vertentes da ética: 1) objetiva: que estabelece a
responsabilidade sobre o indivíduo e 2) subjetiva: que pressupõe a aceitação voluntária
da responsabilidade pelo indivíduo, o que é importante para o exercício da
responsabilidade, sobretudo, daquela em relação ao futuro.
543. Sergio Caruso. "Hans Jonas: gli equivoci della “responsabilitá." In Iride. 6, nuova serie, gennaio-
giugno, 1991, pp. 235-242.
421
Assim, ele admite a necessidade do recurso aos elementos essencialmente
subjetivos como a heurística do medo, o sentimento e a intuição, para possibilitar a
resposta à pergunta
“de saber por que alguém deveria assumir uma responsabilidade”
(Ibidem.
p. 137)
Questão cuja resposta, por sua própria natureza, não pode ser objetiva.
Além disso, ele concorda com Alfred Schültz
544
quando ele declara que
“o lado
objetivo da responsabilidade é sempre fundado sobre o lado subjetivo, sobre a evidência de ser
responsável”.
(Ibidem. p. 138)
Entretanto, Rath reconhece que o aspecto puramente subjetivo não basta, por isso,
o próprio Jonas, frente à ameaça do puro subjetivismo ou psicologismo, precisa
encontrar uma categoria mais objetiva para estabelecer se algo justifica que se seja por
ele responsável.
Enquanto medida de nossa vontade, o valor implica somente uma medida de
nosso empenho para agir, não uma medida de nosso dever de agir. Porém, Jonas
encontra que
valer realmente a pena significa que o objeto da pena é bom independente da
apreciação de minhas inclinações ou tendências.”
(PV, 161. Cf. p. 135)
Ou seja, ele é um bem.
Assim, o arco que transpõe o fosso entre a dimensão meramente subjetiva e a
objetiva é a esfera do valor, sobre uma base bem conhecida: “o Bem”.
Esse seria, portanto, o principal motivo pelo qual alguém faz isso ou aquilo. Tal
aspecto objetivo da responsabilidade, que constitui um tema desde sempre de interesse
filosófico não poderia ser deixado à psicologia moral.
Ademais, o filósofo cético alemão Odo Marquard
545
, em 1985, sugeriu uma
diferença importante e de grande interesse para a psique humana. Tal interesse em geral
ele chama de psicologizar, algo que, segundo ele, não é sempre legítimo. Pois,
544. Cf. Alfred Shültz. «Einige Äquivokationen im Begriff der Verantwortung», in Alfred SHÜLTZ,
Gesammelte Aufsätze, vol. 2, Studien zur soziologischen Theorie, Den Haag, 1972, p. 256-257. Citado
por Mathias Rath.
545. Cf. Odo Marquard. «Wirklichkeitshunger und Alibibedarf. Psychologisierung zwischen Psychologie
und Psychologismus». In Psychologie, Psycholosierung, Psychologismus, Munich, 1985, p. 1-16.
(Schriften der Carl Friedrich-von- Siemens-Stiftung, vol. 9). Citado por Mathias Rath.
422
“evidentemente, no sentido científico, psicologizar é a maneira normal de fazer psicologia. Mas
psicologizar em filosofia é - ao menos após as Investigações Lógicas de E. Husserl - uma
incursão arrogante e inaceitável no campo da filosofia.
(Op.cit. p. 138)
Assim,
“desde 1900, o psicologismo em filosofia não é mais admitido (...) mas na vida
cotidiana nós temos o hábito de fazer psicologismo.”
(Ibidem. p. 139)
Conforme a definição mais pragmática da boa e da psicologização de
Marquard:
“Psicologizar é de maneira predominante problemática e má, quando é utilizada
para mascarar a necessidade de um álibi, psicologizar é de maneira predominante não
problemática e boa quando, revelando um sentido da finitude, ela é utilizada para estancar a
sede de realidade.”
(Ibidem)
Segundo o autor, tal definição não está muito distante do pensamento de Jonas,
pois
“a heurística do medo pode ser vista como uma boa psicologização no sentido em que ela
«revela o sentido da finitude» e «estanca a sede de realidade».”
(Ibidem.)
Já Caruso tece ao longo de seu texto, inúmeros comentários depreciativos à
formulação de Jonas, criticando-o, sobretudo, por utilizar conceitos (na verdade, mais
antigos na reflexão filosófica, do que a própria ciência da psicologia) sem aprofundar na
análise psicológica dos conceitos empregados.
Enfim, seguindo Rath, podemos ver o esforço jonassiano de tratar dos aspectos
subjetivos sem cair numa psicologização enquanto que, com Caruso, vemos uma
reprovação ao filósofo Jonas por não ter se tornado um psicólogo. Ou seja, por não ter
tratado dos conceitos apontados na perspectiva estritamente psicológica e sim no
contexto filosófico, que é o que Jonas efetivamente faz.
3. Aspecto prático
Por fim, aqui, serão focalizadas as críticas que se voltaram às conseqüências
práticas da ética jonassiana, levando em conta uma importante consideração de Hottois,
quando ele diz que:
423
avaliar de um ponto de vista pragmático um discurso teórico ou
especulativo significa interrogá-lo sobre as conseqüências e efeitos
práticos... que ele acarreta. ...a avaliação pragmática do PR suscita
dois conjuntos importantes de objeções ou de reservas... O primeiro
conjunto concerne à política e o segundo às tecnociências.
(p. 35)
Curiosamente, esses dois aspectos coincidem com o que foi apontado como soluções
ao medo, discutidas no tópico referente à heurística do medo. Sobre o que, um comentário
de Pinsart, não utilizado ali, poderia muito bem ser incluído aqui, quando ela se refere às
duas conseqüências desencadeadas pelo sentimento de medo:
A primeira desempenha a função da normalização repressiva onde a
política e a religião
546
são encarregadas de enquadrar rigorosamente
os feitos e gestos do cidadão.
A segunda se apóia sobre o homo faber para criar um dispositivo
político destinado a garantir a paz e a segurança (Hobbes) ou para
ver no progresso tecno-científico e no crescimento econômico das
respostas ao medo da escassez que provoca a luta de cada um contra
cada um (Locke).
(Op. cit. p.11)
De fato, o medo postulado por Jonas provocaria conseqüências do segundo tipo,
sobretudo o âmbito político. Sendo assim, sepreciso considerar, primeiramente o modo
pelo qual ele defenderia um regime político forte. Por isso, a primeira questão que se coloca
é se se pode afirmar que a proposta jonassiana consistiria numa espécie de...
a. Apologia ao totalitarismo político?
Essa crítica foi apontada no final do capítulo 5, como a primeira tese polêmica de
Jonas. Ela é quase o “calcanhar de Aquiles” de sua formulação. Pois, embora ele tenha
razão em apontar os problemas, a sua solução não parece compatível com o momento
histórico atual onde se rejeita toda
“desconfiança em relação à democracia e a uma rie de
546. Obviamente essa parte do comentário não se aplica à formulação jonassiana.
424
valores a ela associados”
(Ibidem. p. 35)
e que, segundo Hottois e tanto outros críticos, a
posição jonassiana encoraja.
De fato, essa é outra crítica difícil de rebater fixando-se à letra do texto jonassiano.
Por esse motivo, no último tópico, buscando ser fiel ao seu espírito, será tentada uma nova
saída para a crítica situação que ele tão bem diagnostica.
b. Contra a liberdade da ciência?
Pode-se antecipar que, segundo Hottois, as conseqüências práticas da formulação
jonassiana para as tecnociências - sobretudo a limitação ético-política dogmática da
pesquisa e do desenvolvimento científicos - são inaceitáveis.
Ainda no final do capítulo 5, vimos que essa constitui a segunda tese mais polêmica
de Jonas. Umas das quais, sem sombra de dúvidas, mais críticas suscita e que contribuiu
para que sua recepção no meio científico não fosse aquela merecida.
Entretanto, Jonas não está sozinho quando ele defende a necessidade de estabelecer
um limite a essa “liberdade científica” que se converteu no mundo atual, ao lado da
famigerada “lei de mercado”, num «valor absoluto», intocável e inatacável.
Anne-Marie Roviello
547
aponta que é preciso
“lembrar que o direito de livre pesquisa
da verdade, o fato de que a ciência tem sua deontologia, sua legalidade própria... está submetida
como toda outra atividade humana à condição restritiva do imperativo”
548
. (Op. cit. p. 58)
Nesse sentido, a autora afirma que
É preciso deixar à ciência sua autonomia, mas é não somente lícito,
mas eticamente obrigatório estabelecer limites a esse direito à
autonomia... Pois o que Jonas evidencia é que, ao se servir, por
exemplo, de seres humanos como meros fins de experimentação, a
547. A.-M. Roviello. "L’impératif kantien face aux technologies nouvelles." in Nature et Responsabilité,
pp. 49-68.
548. A autora refere-se aqui ao imperativo kantiano, especialmente, na fórmula do fim em si, mas o que
interessa ao nosso argumento é o fato de ela defender a necessidade de se estabelecer um critério para
restringir a liberdade “absoluta” reivindicada pela ciência.
425
ciência desinteressada da verdade se volta contra ela própria e contra
seu próprio princípio.
(Ibidem.)
Por isso, sempre que o pesquisador age por puro interesse e trata
“a humanidade
como um objeto de seu poder teórico, como um mero objeto de manipulação, está claro que ele
contradiz o imperativo, e que em verdade, vale para ele algo além da pesquisa do verdadeir
o
,
bem antes
,
a afirmação desmedida de uma vontade de potência.”
(Ibidem. p. 59)
Por isso, Roviello defende a necessidade de se proteger os interesses e direitos da
ciência contra a própria desmedida e contra sua auto-destruição pela hybris. Nesse
sentido, para ela, estabelecer o limite a tal liberdade desmesurada significa negar a
desmedida, evitar a ruptura que se introduz no nível dos princípios e recusar a atitude
fundamentalista denunciada por Jonas. No tópico, a seguir, enfrentaremos aquelas teses
polêmicas que, nesse contexto, se mostraram insolúveis.
7.3 Para v encer os l i mites d a fo rm ula ç ã o éti c a jonassian a
No capítulo 5, foram destacadas três teses da formulação ética jonassiana, sobre as
quais incidiram importantes críticas, vistas no tópico anterior. De fato, constituem as
mais polêmicas posições defendidas por Jonas, cabe lembrar: a primeira preconizava
severas medidas no âmbito econômico: a restrição do consumo atual e a diminuição do
voraz nível de vida “ocidental”, levando ao empobrecimento, mesmo que temporário,
devido à redução do consumo; e no âmbito propriamente político:
“a intervenção pública
na esfera mais privada, a da procriação, para tentar conter o problema demográfico.”
(EF. 106)
Medidas apresentadas como inevitáveis e urgentes, dado que, quanto mais adiadas
forem, mais difícil será a resolução dos problemas ambientais d decorrentes, pela
simples razão de que uma Terra limitada não pode sustentar um crescimento ilimitado.
Sua segunda tese mais polêmica defendia que não mais se conceda à pesquisa a
liberdade de realizar experiências, que tenham por objetivo uma transformação genética
426
no ser humano, restringindo, assim, a tão resguardada liberdade da ciência tanto sob a
perspectiva do fim quanto do meio.
(EF, 112)
Por fim, sua terceira tese suscitou polêmica ao sustentar a concepção dos seres
humanos como imagem de Deus e a expectativa de que ela seja suficiente para fazer
admissível a suspensão da liberdade nos assuntos externos da humanidade, como preço
necessário pela nossa salvação física.
(EF, 115)
Com efeito, embora os críticos de Jonas vejam muitos outros aspectos como
problemáticos em sua formulação
549
, do nosso ponto de vista, esses três constituem,
efetivamente, aqueles que realmente podem comprometer, em maior ou menor grau, a
sua proposta. Razão pela qual, reservamos esse momento para oferecer uma resposta ou,
mesmo, uma alternativa, com o propósito de contrapor as críticas e salvar, se tais
soluções forem bem sucedidas, o conjunto da elaboração ética jonassiana.
Para facilitar a lógica de nossa argumentação, vamos modificar a ordem em que
essas teses apareceram. Começaremos, assim, pela discussão da segunda, em seguida,
passaremos à discussão da terceira e, por fim, da primeira tese.
A segunda tese - que visa cercear a liberdade de pesquisa que envolva
experiências com objetivo de possibilitar a transformação genética no ser humano,
restringindo, assim, essa atividade científica, tanto sob a perspectiva
“do fim quanto do
meio”
(EF, 112)
-, faz jus às críticas, uma vez que, ali, Jonas não se preocupou em
distinguir os usos, em princípio benéficos e desejáveis de tais pesquisas, daqueles
questionáveis e, mesmo, nocivos. Colocada dessa maneira, a posição de Jonas parece
ser mais radical do que ela realmente é, como se evidencia no seu TME, onde ele aborda
mais detidamente as questões referentes à pesquisa biomédica.
Por esse motivo, nossa sugestão seria no sentido de precisar melhor sua
formulação, estabelecendo que a restrição deve ser aplicada aos casos em que as
549. Como apresentado no tópico anterior.
427
pesquisas não tenham fins terapêuticos (como é, por exemplo, a clonagem reprodutiva
ou a eugenia positiva) ou visem a transgenia, isto é, a fusão de genes humanos com os
de outras espécies, com o objetivo de produzir embriões quiméricos para serem
implantados
550
ou para simplesmente se avançar na direção do projeto pós-humano.
Com tais ressalvas, pensamos ser possível preservar o essencial dessa tese de
Jonas e, ao mesmo tempo, resguardá-lo da crítica de que estaria obstruindo o avanço de
pesquisas que possam, eventualmente, contribuir para a descoberta da cura de várias
doenças que afligem um sem número de pessoas em todo o mundo.
Atemo-nos, agora, à terceira tese que propôs a concepção do seres humanos à imagem
de Deus como suficiente para tornar aceitável a suspensão da liberdade em favor da nossa
salvação física, avaliando a eficiência desse conceito para realizar tal fim.
Esse ponto é bastante delicado, pois, apesar de não atingir aqueles que mais
precisariam, a noção de imago Dei desempenha uma função essencial não em suas
principais obras éticas (PR e TME), mas na economia geral da obra de Jonas. Por isso,
não se pode ignorar que tocar nessa concepção é atingir um elemento crucial da
formulação jonassiana como um todo.
Por esse motivo, não se pretende, aqui, retirar ou substituir esse conceito, mas
adicionar outro conceito de homem, como uma espécie de noção auxiliar com o objetivo
de fortalecer e afastar o viés teológico, sem alterar o cerne de sua argumentação.
Na verdade, o conceito de homem que se propõe incluir será retirado do próprio
Jonas, quem o sugere, embora sem o devido destaque, ao longo de sua obra.
550. Dado que, em 2008, o Parlamento Inglês, autorizou a criação de quimeras, por meio da “técnica de
embriões híbridos” que “consiste em retirar o núcleo de uma célula bovina para se inserir material
genético humano que serão destruídos ao fim de 14 dias. O resultado é um clone parcialmente humano e
bovino (...) para a formação das células-tronco.” Em favor dessa prática, os cientistas alegam que tal
procedimento é vital para o avanço da pesquisa e que, afinal, "Trata-se de um processo de laboratório e
esses embriões nunca serão implantados em ninguém".
Fonte: http://www.pesquisasedocumentos.com.br/UKLeiFertilizacaoHumana.txt
428
Não se discute que o marco conceitual-antropológico
551
jonassiano é o homem
autêntico, implícito na primeira formulação de pr e apresentado ao final do PR,
“com seus
altos e baixos, sua grandeza e sua miséria, sua felicidade e tormentos, sua justificação e
culpabilidade – em suma, em toda sua ambivalência que é dele inseparável.”
(PR, 410)
Porém, esse homem autêntico, mergulhado na ambigüidade, pode assegurar sua
própria preservação se for capaz de equilibrar em suas ações os dois conceitos basilares da
formulação filosófica jonassiana: a liberdade e a responsabilidade. Segundo o filósofo, a
liberdade é o traço distintivo de todo ser vivo e a responsabilidade, o traço distintivo do ser
humano. As duas vão juntas, com efeito, pois, ele afirmou além do mais que
“a
responsabilidade é complementária da liberdade.”
(EF, 76)
Cabe lembrar que, noutro contexto, Jonas assinalou a relação intrínseca existente
entre responsabilidade e poder, mostrando que quanto mais extenso o poder, mais extensa
deve ser a responsabilidade. Todavia, ele introduziu, ainda, um terceiro elemento, dizendo
que a responsabilidade
“só pode se exercer estando ligada a um saber”.
(EF, 70)
Assim, Jonas sugeriu um tripé, que pode ser ilustrado com o seguinte esquema:
RESPONSABILIDADE
PODER ———————————— SABER
Isto é, o saber gera um poder que exige a responsabilidade que, por sua vez, exige um saber.
Jonas estabeleceu, ainda, outra relação, entre “os dois pólos ontológicos da
responsabilidade” (EF, 81): de um lado o valor inerente ao Ser e de outro a liberdade humana
sobre os quais a responsabilidade - enquanto mediação ética - deve atuar.
Representando mais uma vez, esquematicamente, temos:
RESPONSABILIDADE
VALOR ——————————————— LIBERDADE
INERENTE AO SER INERENTE AO HOMEM
551. Não se afirma com isso que Jonas tenha formulado uma antropologia própria e acabada, o que
Frogneux discute muito bem no texto “Hans Jonas développe-t-il une anthropologie arendtienne? in
Revue Philosophique de Louvain, 94 (1996), pp. 677-686. Apenas se defende que, a partir de suas
próprias indicações, é possível elaborar um conceito “auxiliar” de homem”, com Jonas, além de Jonas.
429
A respeito dessa segunda relação, Jonas afirmou que:
“Complementar de um e de
outro, ela é função comum aos dois. Eis o que é fundamental quanto ao que é em sua essência a
responsabilidade tal qual eu a compreendo.”
(Ibidem.)
Essas relações foram retomadas com o objetivo de mostrar que Jonas propôs
diferentes triangulações envolvendo o conceito de responsabilidade. Para o conceito de
homem que buscamos, é especialmente interessante a segunda, que correlaciona a
liberdade e a responsabilidade, em conexão com o terceiro termo representado ali pelo
valor inerente ao ser. Mas, como se trata de pensar o homem, qual poderia ser o terceiro
termo para completar a triangulação? Ou melhor, qual o terceiro termo ocuparia, no
âmbito humano, o lugar do “valor inerente ao ser”? Ou ainda, qual é o “valor inerente
ao ser humano”? A resposta, de inspiração kantiana, não pode ser outra que a dignidade.
Assim, no âmbito humano, o esquema resultante seria o seguinte:
D I G N I D A D E
LIBERDADE ——————————— RESPONSABILIDADE
Nessa nova triangulação, o pólo do “valor inerente ao ser”, por se referir
especificamente ao ser humano, foi identificado à dignidade e, levando em conta a
definição de Jonas, segundo a qual, a liberdade é o conceito complementar da
responsabilidade, esse par conceitual foi colocado na base, elevando a dignidade ao
vértice mais alto. Com esse esquema, representa-se a nova definição buscada de
Homem como um ser dotado de três qualidades principais: liberdade, responsabilidade e
dignidade
552
, o que, de fato, nada modifica ou acrescenta à formulação jonassiana
original, apenas explicita, por meio de uma visualização, os elementos ali já presentes.
552. Importante mencionar a proximidade com a formulação de Lévinas que atribui ao homem liberdade,
responsabilidade e bondade. Apud. P. S. Pivatto. “Ética da alteridade”. In Correntes fundamentais da
Ética Contemporânea. Petrópolis: Vozes, 2000, pp. 79-97. (Aqui, p. 91)
430
Para compreender melhor como tais conceitos podem contribuir para a nossa
reflexão, a seguir, as respectivas definições serão retomadas do próprio texto jonassiano
e, quando isso não for possível, será proposta uma definição compatível com o seu
pensamento.
O conceito de liberdade, em Jonas, assume diferentes sentidos, como se pode
verificar na cuidadosa relação apresentada por Frogneux em seu “Index”
553
.
Obviamente, nos interessa, em particular, o conceito de liberdade humana, do qual
retomaremos, aqui, apenas quatro de suas principais referências, a saber:
1) A Liberdade humana é ambígua (VM. 321) e “potencialmente inconseqüente”. (VM. 312)
2) É a “prerrogativa da liberdade humana poder dizer não ao mundo.” (PR. 111 e VM. 312)
3) O caráter auto-finalizador da liberdade humana lhe permite abrir-se não somente a outros
fins que aqueles de sua própria perseverança no ser e aos fins do outro, mas mesmo à sua
própria destruição e ao suicídio (VM. 308)
4) “A liberdade tem o dever de se mobilizar para que no futuro um mundo exista, um mundo
que preserve a humanidade tal qual nós a conhecemos hoje.” (VM. p. 312)
Assim, tal conceito mostra-se bastante complexo, uma vez que, sendo
essencialmente ambígua e inconseqüente, a liberdade humana pode tanto realizar o
necessário fim de assegurar a preservação, quanto, por sua capacidade de negar a si
mesma e ao mundo, conduzir à autodestruição da espécie e, mesmo, da biosfera. Por
isso, para realizar a tarefa indicada no item 4, a liberdade necessita recorrer à
responsabilidade, que passamos a explicitar, partindo da afirmação de que:
1. “a responsabilidade é complementária da liberdade.” (EF, 76)
2. Existe um vínculo originário entre vida e responsabilidade.
3. Ela possui uma dimensão histórica ou temporal, associada ao conceito de continuidade.
553. Onde podemos encontrar, qualificando-a, adjetivos como: absoluta, abissal, anômica, dialética,
finita, humana, orgânica, originária, soberana, subversiva; sem esquecer a liberdade tout court. (VM. p.
379)
431
4. Sendo a responsabilidade o aspecto complementar do poder, ela tem que ser proporcional a
ele e representa uma possibilidade de controlá-lo.
5. Sobre um sentimento de responsabilidade repousa o dever ético.
6. A responsabilidade constitui o traço distintivo do homem
554
.
7. A responsabilidade tem o “perecível” por seu objeto.
8. A responsabilidade transita entre a esfera moral e jurídica.
9. A responsabilidade se refere aos atos cometidos sobre os quais se pode pedir contas, mas,
10. outro tipo de responsabilidade que, não se refere “ao cálculo ex post facto do que foi
feito, mas à determinação do que está a fazer; um conceito em virtude do qual eu me sinto então
responsável não em primeiro lugar por meu comportamento e por suas conseqüências, mas pela
coisa que reivindica meu agir.”
(PR. 182)
Embora todos esses aspectos mencionados sobre a responsabilidade constituam
apenas uma parte - a mais interessante para a discussão do tema - do que é dito sobre ela
ao longo da obra jonassiana, ainda assim, Jonas o considera um conceito inacabado.
Razão pela qual, Frogneux levanta a hipótese de que ele confia aos filósofos posteriores,
a tarefa de
“repensar a responsabilidade”
(VM. 315),
cuja construção ele considera ter sido
apenas iniciada.
(VM. 316)
Frogneux observa ainda que se, por um lado, Jonas maximiza a responsabilidade,
por outro,
“ele deixa impensadas as estruturas contratuais e institucionais que poderiam intervir
entre o indivíduo e a massa à qual ele pertence. Jonas passa de certo modo da responsabilidade
individual e homeopática à responsabilidade de massa.”
555
(VM. 301. n. 28)
Talvez, seja essa lacuna apontada por Frogneux, o motivo de Jonas afirmar o
“inacabamento” de seu conceito. Ainda assim, embora não se encontre uma definição
“acabada” de responsabilidade e uma única e completa de liberdade, vimos que existem
inúmeros indícios ao longo dos textos a partir dos quais é possível propor uma noção
554. Enquanto a liberdade foi apontada como o traço distintivo de todo ser vivo.
555. Na discussão da terceira e última tese, tentaremos propor uma mediação entre esses dois momentos.
432
mais ou menos satisfatória de tais conceitos. Entretanto, quanto ao termo dignidade
humana, ainda que apareça algumas vezes no texto jonassiano, não se encontra ali uma
definição ou algum esclarecimento do sentido que Jonas atribui a ele.
556
Para tentar suprir essa lacuna, pode-se tentar compor um conceito de dignidade
adequado ou, ao menos, compatível com o pensamento jonassiano como um todo.
Para tanto, a dignidade não pode se restringir ao sentido trivial
557
, como Nick
Bostrom faz em seu artigo,
“In defense of Posthuman Dignity”
,
nem ao sentido de Pico
della Mirandola, no célebre Discurso sobre a Dignidade do Homem (De hominis
dignitate oratio). Segundo o eclético erudito italiano, o homem constitui o maior
milagre e a mais admirável de todas as criaturas pelo fato de Deus tê-lo criado com o
objetivo de contemplar
558
a Sua criação, mas como todos os outros seres criados
haviam recebido um lugar, um dom ou uma finalidade peculiar, foi conferida ao homem
a prerrogativa de acolher em si um pouco de cada um dos atributos dos demais e, o mais
importante, enquanto os outros foram limitados por leis estritas, o homem recebeu a
possibilidade de não ser limitado por nada, a não ser seu próprio arbítrio, com base no
quê ele pode então definir sua própria natureza.
559
Em outros termos, em sua liberdade
556. Jonas associa a dignidade humana com a sua capacidade de ação efetiva no mundo, como Frogneux
destaca no seu texto que introduz a tradução francesa de PIS.
557. Que ele retira do Oxford English Dictionary, mas, consultando-se um dicionário de língua
portuguesa, encontra-se: “qualidade de quem ou daquilo que é digno; respeitabilidade; nobreza; elevação
de sentimentos; pundonor; seriedade; honraria; título; posto eminente ou cargo elevado; autoridade
moral”.
Fonte: http://www.priberam.pt/dlpo/definir_resultados.aspx
558. De fato, mais que isso, pois, no original: “Sed, opere consumato, desiderabat artifex esse aliquem qui
tanti operis rationem perpenderet, pulchritudinem amaret, magnitudinem admiraretur.” Na tradução para
o inglês: “But when the work was finished, the Craftsman still longed that there were someone to ponder
the meaning of so great a work, to love its beauty, and to wonder at its vastness.” Ênfase nos verbos: to
ponder, to love, to wonder, isto é, refletir (julgar), amar e maravilhar-se (admirar).
559. No final do § 5 de sua Oratio, que apresenta o discurso de Deus a Adão no ato mesmo de sua criação
pode-se ler:
“22. Non ti abbiamo fatto celeste terreno, mortale immortale, perc come libero,
straordinario* plasmatore e scultore di te stesso, tu ti possa foggiare da te stesso nella forma che avrai
preferito.
23. Potrai degenerare nei esseri inferiori, che sono i bruti; potrai rigenerarti, secondo la tua decisione,
negli esseri superiori, che sono divini».”
* Nel senso che Dio è il creatore «normale», «ordinario», cfr. la nota al testo latino.
433
reside, portanto, a sua dignidade que consiste em ser um faber sui,
560
, isto é, construtor
de si mesmo.
Embora muito mais rica que a definição trivial, o conceito de dignidade aqui
buscado, não pode se pautar unicamente por esse que enfatiza o seu vínculo exclusivo
com a liberdade, pois, como indicamos, a dignidade tem que abrir espaço também para
a responsabilidade. Nesse sentido, precisamos recorrer àquele que firmou as mais
sólidas bases do conceito filosófico de dignidade humana.
Numa das mais célebres passagens da Fundamentação da Metafísica dos
Costumes, Kant declara, que:
“No reino dos fins tudo tem ou um preço ou uma dignidade.
Quando uma coisa tem um preço, pode-se pôr em vez dela qualquer outra como equivalente;
mas quando uma coisa está acima de todo o preço e, portanto, não permite equivalente, então
tem ela dignidade.” (FMC, p. 234)
A dignidade é, assim, estabelecida como atributo do que é insubstituível. Kant
distingue, então, dois tipos diferentes de valor:
“aquilo (...) que constitui a condição graças
somente à qual qualquer coisa pode ser um fim em si mesma, o tem somente um valor
relativo, isto é, um preço, mas um valor íntimo, isto é dignidade.”
(Ibidem. Grifos nossos.)
Na verdade, essa passagem anuncia, sobretudo, a existência única de algo capaz
de fazer com que alguma coisa seja um fim em si e atribuir-lhe dignidade, como um
valor ‘intrínseco’. E na passagem seguinte ele esclarece:
“Ora, a moralidade é a única
condição que pode fazer de um ser racional um fim em si mesmo, pois, só por ela lhe é possível
ser membro legislador no reino dos fins. Portanto, a moralidade e a humanidade, enquanto
capaz de moralidade, são as únicas coisas que têm dignidade.
(Ibidem.)
Essa interessante formulação estabelece a moralidade, ao mesmo tempo, como
condição e como a única portadora da dignidade, além da própria humanidade. Vale
ainda acrescentar que:
560. Interessante notar, em Mirandola, essa exaltação ao aspecto faber do ser humano, que no contexto
atual resulta na supremacia do Homo faber em relação ao Homo sapiens, denunciada por Jonas.
434
A dignidade é esse «valor interior absoluto» pelo qual o homem
«força ao respeito de si mesmo todas as outras criaturas razoáveis»
(...) «A própria humanidade é uma dignidade; com efeito, o homem
não pode ser utilizado por nenhum homem (nem por outro, nem
mesmo por ele) simplesmente como meio, mas deve sempre ser
tratado ao mesmo tempo como fim, e é nisso que consiste
precisamente sua dignidade (a personalidade)
»
(...).
561
Eis aqui, o famoso trecho que exige que o homem, em função de sua dignidade, seja
tratado, inclusive por ele próprio, sempre, ao mesmo tempo, como fim, mais exatamente,
como fim-em-si. Para completar, é interessante adicionar ainda um último trecho que diz:
“Cabe também à educação sublinhar que «o homem possui no seu íntimo uma certa dignidade
que o enobrece em relação a toda as outras criaturas, e é seu dever jamais ignorar esta dignidade
da humanidade em sua pessoa». O dever em relação a si mesmo consiste para o homem em
preservar em sua pessoa a dignidade da humanidade.” (LK.p281)
De todas as passagens acima, a maioria bastante conhecidas, vamos destacar,
especialmente a última por estabelecer o dever de o homem jamais ignorar e, mesmo, de
preservar a dignidade humana em sua própria pessoa. Pois esse dever, associado àquela
exigência de tratar todo ser humano com fim em si, introduz uma dimensão da
dignidade que, embora não se identifique à noção de responsabilidade de Jonas, de fato,
tem em comum com ela as noções de dever em relação à preservação da dignidade da
humanidade. Esses pontos serão importantes para o seguimento de nossa discussão.
Levando-se em conta o conceito proposto de homem, como um ser livre,
responsável e digno, pode-se com relação às práticas biotecnológicas, consideradas
mais discutíveis: a eugenia positiva e o pós-humano
562
afirmar que é com base no
561. Lexikon Kantien. (LK. p. 281).
562. Embora Jonas tenha se pronunciado apenas acerca da eugenia positiva, é possível afirmar que ele
teceria críticas severas e tão incisivas, quanto aquelas endereçadas à eugenia positiva, ao projeto s-
humano.
435
“ambíguo e inconseqüente” aspecto da liberdade que tais propostas podem ser feitas
com tal veemência e, mesmo podendo implicar riscos, como os apontados por Jonas
563
,
seus defensores (que sequer admitem tais possibilidades ou que elas representem um
risco real) insistem em advogá-las como (se fossem) algo vital para a humanidade. E,
efetivamente, o argumento que mais utilizam é a defesa da liberdade.
Eles ignoram ou preferem ignorar, porém, que a liberdade absoluta se torna auto-
destrutiva, deixando de ser o maior dom e se convertendo numa ameaça à humanidade.
Pois, graças a ela tanto
“O homem pode degenerar em seres inferiores, que são os animais,
[quanto] regenerar-se, conforme sua decisão, em seres superiores, que são divinos.”
564
Por isso,
ela precisa de seu complemento: a responsabilidade, para evitar que os homens se
degenerem e - apesar de sua natureza ambígua e inconseqüente -, realizar a tarefa que
Jonas lhe atribuiu: a de
“se mobilizar para que no futuro um mundo exista, um mundo que
preserve a humanidade tal qual nós a conhecemos hoje.”
(VM. p. 312)
A liberdade encontra-se assim com a responsabilidade. E conforme visto, Jonas
atribui a ela uma série de atributos como o seu vínculo originário com a vida, que se
prolonga indefinidamente no tempo; sua referência ao poder, que exige que ela seja tão
ampla quanto ele, em vista de controlá-lo; o seu caráter de traço distintivo do homem, o
“perecível” como seu objeto, a sua transição entre a esfera moral e jurídica, sua relação
com atos cometidos sobre os quais se podem pedir contas, sem se limitar “ao cálculo ex
post facto do que foi feito, mas à determinação do que está a fazer”, originando um
conceito segundo o qual alguém se sente responsável não pelo ato e por suas
conseqüências, mas pela coisa que reivindica o agir; e enfim, o fato de ser, na forma de
um sentimento, a base de todo dever ético.
563. De aniquilação da existência e deformação da essência humana.
564. Pico della Mirandola. Oratio. § 5, 23. In
http://www.brown.edu/Departments/Italian_Studies/pico/text/bori/frame2.html
436
Nesse sentido, é a responsabilidade que pode tornar a liberdade compatível com a
dignidade no sentido aqui proposto. Pois, tomada no sentido trivial, seria possível fazer
o que Bostrom recomenda, isto é, ampliar a dignidade também aos pós-humanos. Não
que isso seja errado, como ele argumenta, por diminuir a dignidade humana
565
.
Entretanto, para começar, ele aproxima, embora para criticar, o conceito de
“dignidade humana” ao de “idéias claras”. Segundo ele: “Dignidade humana algumas
vezes é invocada como um polêmico substituto para as idéias claras.” (p.5) E, após
afirmar a necessidade de definir o que se tem em mente quando se usa tal conceito,
Bostrom apresenta dois diferentes sentidos para o termo dignidade:
“1. Dignidade como status moral, em particular o direito inalienável de ser tratado com um nível
básico de respeito e
2. Dignidade como qualidade de ser respeitável, ou honorável; respeito, valor, nobreza,
excelência. (The Oxford English Dictionary)”
(Ibidem)
Ocorre que esse conceito “genérico” de dignidade é não apenas mais pobre, mas
também mais vago do que aquele estabelecido por Kant. Tanto que ele pode ser
aplicado não aos trans-humanos, como quer Bostrom, mas a diferentes seres ou
coisas: por exemplo, à natureza como um todo, à vida, como um direito, a uma
instituição ou ainda a um princípio, como a Justiça, etc. o conceito kantiano, além de
mais rico é bem mais rigoroso. Obviamente, Bostrom não quis empregá-lo pelo fato de
ele estabelecer a dignidade como uma prerrogativa essencialmente humana. E,
conforme tal definição, sua ampliação aos pós ou trans-humanos
566
seria mais delicada.
Mas se, em princípio, se restringisse a dignidade àquela formulada por Pico della
Mirandola, que designa o homem como faber sui
567
, não haveria um impedimento
565. Pois, aliás, o próprio Jonas apresentou argumento semelhante, quando expandiu a liberdade, que se
manifestaria gradualmente desde as formas mais elementares de vida.
566. Há outros aspectos discutíveis no texto de Bostrom, mas, por ora, vamos nos deter a esse ponto.
567. Cabe notar que, enquanto a dignidade do homem, para Mirandola, refere-se ao conceito de faber sui,
ou “auto-construtor”, para Kant, ela se refere ao conceito de “auto-legislador”: auto-nomos.
437
consistente para as alterações genéticas dirigidas à eugenia positiva ou ao projeto pós-
humano. Aliás, nada estaria mais em acordo com tal concepção. Isto é, ao menos, em
princípio, pois, é preciso retomar a passagem que ele adverte que pela liberdade o
homem pode tanto regenerar-se quanto degenerar-se. E é esse aspecto do conceito de
Mirandola que é preciso ressaltar, uma vez que ele coincide com o comentário de Jonas
a respeito do conceito de liberdade humana, como ambígua e “potencialmente
inconseqüente”.
Por isso, para fortalecer ainda mais a dignidade, acrescentou-se o conceito de
Kant, quem a definiu como um valor interno absoluto, atribuído apenas à humanidade
e à moralidade, que exige que se trate o ser humano sempre como um fim-em-si.
Aplicando-se, agora, esse conceito à proposta da eugenia positiva, poder-se-ia
considerar sua incompatibilidade com a dignidade humana, sob duas perspectivas.
Primeiro, se se considerasse que a eugenia positiva seria feita para melhorar” o
patrimônio genético do indivíduo, para o seu próprio benefício, poder-se-ia alegar que
tal procedimento estaria desconsiderando o aspecto da dignidade, enquanto um valor
interno absoluto. Dado que, a noção de “melhor” ou “pior” são juízos de valores
relativos exigindo, portanto, se questionar: “melhor” ou “pior” em relação a quê? A
dignidade humana é, assim, suprimida em prol de “valores” secundários e imprecisos.
Mas, ainda que se defendesse que a eugenia positiva seria feita para “melhorar” o
patrimônio genético do indivíduo, em benefício da espécie humana, poder-se-ia alegar
que tal procedimento estaria desconsiderando o aspecto da dignidade que estabelece o
dever de sempre tratar todo ser humano como um fim-em-si.
Podemos, enfim, abordar a primeira tese que preconizava severas medidas
restritivas no âmbito econômico e intervencionistas no âmbito propriamente
568
político.
568. “Propriamente”, uma vez que, tanto as medidas para restringir o consumo, quanto as destinadas a
conter a o problema demográfico teriam que passar necessariamente por uma decisão política.
438
A defesa de tais medidas, embora apresentadas como inevitáveis e urgentes para a
solução dos problemas ambientais que nos ameaçam globalmente, valeu a Jonas a
crítica de ser antidemocrático e de fazer apologia ao totalitarismo ou ser “inimigo da
sociedade aberta”, em termos popperianos.
Inicialmente, é preciso dizer que a análise política apresentada no PR, embora
forneça um rico material para compreender o pensamento global de Jonas, não pode
mais ser vista como uma proposta aplicável nos dias atuais. Trata-se de um exame
datado que, simbolicamente, “ruiu” junto com o muro de Berlim. Razão pela qual, como
se disse, sequer foi considerado no contexto da aplicação de pr, discutida no capítulo 6.
Nesse sentido, focalizaremos - não a comparação entre as sociedades socialista e
capitalista, que Jonas expõe com o objetivo de estabelecer qual delas seria mais
compatível com sua proposta, mas, a tese oferecida no EF, (obviamente, tendo como
pano de fundo, toda aquela discussão de PR), já que ali ele não entra no mérito da
disputa: socialismo x capitalismo, tão presente no texto maior e tão distante de nossas
questões hodiernas.
De qualquer modo, é forçoso admitir que este ponto constitui o mais criticável de
toda a formulação jonassiana
569
, sobretudo, levando-se em conta a sua própria biografia.
É quase impossível não indagar: como ele, obstinado opositor do Nacional Socialismo,
foi capaz de tal posicionamento?
Contudo, é preciso considerar que ele vislumbra essa possibilidade como
alternativa a uma situação extrema, e ele a defende por não ter a menor ilusão de que
as pessoas, apenas por sua “boa vontade”, serão capazes de se sacrificar
570
em favor do
próximo, quanto menos em favor dos pósteros.
569. Embora no final do Capítulo V de PR, ele admita os “efeitos desmoralizantes do despotismo” (pp.
317-318) e como traços do “«bom Estado»: a liberdade política e a moralidade civil” (p. 321-326).
570. Na verdade, uma grande parte não está disposta a se sacrificar nem mesmo em seu próprio benefício.
A dificuldade de se estabelecer uma autodisciplina é um ótimo exemplo disso.
439
Assim, sua visão pode chocar, mas, lamentavelmente, ela tem por fundamento,
uma apreciação realista quanto à predisposição humana de agir visando o “benefício”
imediato em detrimento do futuro. Por isso, ele admitiu a necessidade de se estabelecer
tais imposições.
Ainda assim, é de todo incoerente que um pensador que estabelece a liberdade
como traço distintivo do ser vivo e a responsabilidade como traço distintivo do ser
humano, tenha sido capaz de defender, mesmo que por uma “justa causa”, o recurso ao
autoritarismo.
Nesse sentido, é preciso aceitar a pertinência das críticas endereçadas a Jonas,
com relação a esse aspecto de sua formulação, sobretudo, porque ele contradiz os
conceitos basilares de sua concepção. Vale enfatizar: a liberdade e a responsabilidade.
De fato, todo regime autoritário (de direita ou de esquerda) suprime não somente a
liberdade, mas o seu complemento, a responsabilidade e, por extensão, fere a dignidade
humana.
Por esse motivo, trata-se, então, de reivindicar uma solução coerente
571
com o
conceito de homem mencionado, que leve em conta, portanto, suas três dimensões,
solapadas pelo autoritarismo. O único regime compatível com essa reivindicação seria
um humanismo democrático participativo ou, para evitar a crítica ao antropocentrismo,
uma democracia participativa-humanista
572
. Democracia, para preservar a liberdade;
participativa, para promover o exercício constante da responsabilidade e humanista,
para jamais prescindir da dignidade.
O texto “El principio de responsabilidad: ¿Una etica impracticable?. Reflexiones
en torno a la propuesta política de Hans Jonas”
573
, de Mario Glück, em que o autor
571. Sobretudo, com o próprio Jonas, uma vez que no PR ele mesmo defende uma ética republicana.
572. Não se trata, porém, de uma proposta dirigida apenas a um Estado em particular, mas, para toda
forma de organização destinada à tomada de decisões, desde o âmbito mais local até o mais global.
573. M. Glück. In Revista de Filosofia. Curitiba, v. 18, n. 22, pp. 37-55. jan./jun. 2006.
440
propõe uma lúcida avaliação da formulação ética jonassiana em geral e uma crítica à sua
proposta política, em particular, fornece alguns elementos que serão utilizados para
corroborar essa sugestão. Pois, Glück contrapõe à formulação de Jonas, duas análises
fecundas e bem spares, a saber, a de Jürgen Habermas
574
que, constatando o
abatimento do modelo baseado na supremacia do Estado nacional provocado pela
globalização econômica, afirma que
“As funções do Estado social (...) podem ser
cumpridas se forem transferidas do Estado nacional para unidades políticas que, de certa forma,
alcancem e se ponham no mesmo nível que a economia transnacional.”
575
Por outro lado, Peter Sloterdijk
576
, segundo Glück, propõe que
“os novo problemas
que se apresentam à humanidade deveriam resolver-se no seio de pequenas unidades, ao estilo
das hordas humanas da chamada pré-história”.
(op. cit. p. 51)
Assim, enquanto a proposta de Habermas tenderia a estabelecer que imperativos
éticos regulem
“organismos transnacionais como a ONU, a OMS, o FMI, ou a União Européia
(...) Sloterdijk (...) provavelmente proporia a assunção de uma ética por pequenas unidades
humanas, [para] que logo busquem uma nova forma de convivência humana”.
(Ibidem. p. 52)
Glück se detém nessa confrontação das duas posições, mas nós daremos um passo
além, no sentido de sugerir que, ao invés de serem tratadas como propostas,
simplesmente, díspares
577
, que elas sejam retiradas dos contextos antagônicos que lhes
deram origem, e tomadas como complementares. Com efeito, embora se expresse de
uma forma radical, quando compara as suas “pequenas unidades” políticas às hordas
primitivas, o que Sloterdijk sugere é que as decisões cruciais e imediatas sejam tomadas
pela e na comunidade, o que é absolutamente consoante com o modelo denominado de
574. J. Habermas. ¿Aprender de las catástrofes? Um diagnóstico retrospectivo del corto siglo XX. In La
constelación posnacional. Ensayos políticos. Barcelona: Paidós, 2000.
575. Habermas, op. cit. p. 74. Apud. Glück, op. cit. p. 50.
576. Do qual não vamos, aqui, analisar as polêmicas posições defendidas em seu Regras para o parque
humano, por merecerem um estudo à parte.
577. Uma vez que as divergências entre eles não se restringem a esse específico pormenor.
441
democracia participativa humanista
578
. Certas decisões cabem mesmo aos pequenos
grupos e esse procedimento, além de mais simples, é bem mais eficiente. Ele já é
praticado por todas as pequenas organizações, especialmente, aquelas que representam o
importante segmento denominado de “terceiro setor.”
Há, porém, várias outras esferas
579
de decisão: desde aquelas que envolvem a
organização de uma cidade (o antigo modelo grego), alcançando o desgastado modelo
do Estado nacional, desaguando, atualmente, nas organizações transnacionais, que
Habermas mencionou.
A política revela-se, hoje, muito mais complexa do que seus criadores gregos
poderiam conceber, pois não se trata mais de uma esfera, mais de várias esferas não
concêntricas, em alguns pontos, superpostas e com dinâmicas próprias, mas, ao mesmo
tempo, interdependentes.
Como aplicar, então, a sugestão a essa dinâmica tão complexa? Somente dois
caminhos se mostram como, verdadeiramente, capazes de torná-la possível, num futuro
mais ou menos próximo: a educação e a institucionalização jurídica no plano nacional e
transnacional.
Assim, começando pela Educação, é preciso levar a sério não somente a indicação
de Jonas quando ele afirma que a educação é a condição para a formação do cidadão
responsável, mas também a de Kant citada há pouco
580
, e a de todos os grandes filósofos
que, para viabilizar suas proposições políticas, estabeleceram um modelo educacional
com elas compatível
581
.
578. Termo que Sloterdijk, certamente, não aprovaria.
579. Não se trata de uma alusão intencional ao título da trilogia de Sloterdijk.
580. “Cabe também à educação sublinhar que «o homem possui no seu íntimo uma certa dignidade que o
enobrece em relação a toda as outras criaturas, e é seu dever jamais ignorar esta dignidade da humanidade
em sua pessoa». O dever em relação a si mesmo consiste para o homem em preservar em sua pessoa a
dignidade da humanidade.” (LK. p.281)
581. Contrariando a visão de Sloterdijk de inspiração nietzschiana, que atribui à educação duas tarefas a
seleção e a domesticação, que é discutida por Giacoia no texto “Corpos em fabricação”.
442
Entretanto, a educação aqui pensada poderia ser identificada a uma paidética
582
que -
com licença do neologismo - teria por objetivo formar os cidadãos, desde a sua mais tenra
infância
583
, não fornecendo conteúdos, o que o sistema educacional tradicional oferece
em demasia. Mas, propondo uma educação inspirada nos princípios, começando por aqueles
que estabelecem nossa filiação à família humana, única composta por seres livres,
responsáveis e dignos. Ensinar essas três noções como princípios norteadores de toda
conduta que mereça ser chamada de humana, os prepararia para, na vida adulta,
participarem livre e responsavelmente de decisões nos vários níveis aos quais tivessem
acesso, fornecendo parâmetros - para refletir sobre questões complexas, como a eugenia
positiva e o pós-humano -, menos imediatistas, casuísticos ou mercadológicos, do que os
que têm sido empregados para defendê-los.
Como se trata, porém, de uma medida para médio e longo prazo, a institucionalização
jurídica no plano nacional e transnacional pode evitar que as decisões inspiradas no puro
imediatismo possam permitir que aquelas aplicações contestáveis sejam colocadas em
prática. Para tanto, caberá às sociedades democráticas mais avançadas, a tarefa de iniciar o
processo de discussão dos projetos de leis que possam regulamentar as pesquisas e as
aplicações biotecnológicas em seres humanos, condizentes com os princípios de liberdade,
responsabilidade e dignidade. E uma vez que tais leis sejam criadas e homologadas em tais
sociedades, serem propostas pelas organizações trans-nacionais (ONU, OMS, UE, etc.) para
serem discutidas no plano mundial
584
visando sua adoção no maior número de nações
possível, para evitar discrepâncias, ao se constituir “zonas livres”, onde reine a “regra do no
rule” e a permissividade excessiva torne as leis estabelecidas por outros países inócuas.
582. Embora o sentido original da paidéia trouxesse o sentido de uma educação moral do cidadão, a
adoção do neologismo se deve ao fato de esse sentido ter se perdido no contexto atual em que a educação
privilegia apenas o conteúdo, esquecendo-se, quase sempre, da questão dos princípios.
583. Inspirando-se na teoria dos estágios morais de Lawrence Kohlberg.
584. Nesse sentido, o fórum social mundial pode exercer uma função especialmente importante caso
enfatize a necessidade de se estabelecer uma legislação específica nas esferas nacionais e transnacionais
para regulamentar a aplicação das biotecnologias não terapêuticas em seres humanos.
443
Para esse processo muito pode contribuir a formulação teórica habermasiana que
propõe o discurso (debate) como forma racional de discussão e institucionalização de
normas (morais ou jurídicas) que aspirem uma validade universal. Pois, através de
um amplo debate nas mais diferentes esferas de decisão será possível estabelecer regras
que possam a um tempo respeitar a liberdade, exigir a responsabilidade e promover a
dignidade humana.
Com essas poucas sugestões, ainda incipientes, tentamos fortalecer a formulação
ética jonassiana, no tocante a esse aspecto que possibilitou aos críticos colocar sob
suspeita toda a sua laboriosa construção.
Não é possível saber o que o próprio Jonas pensaria dessas sugestões, mas de
qualquer modo, nossa intenção foi demonstrar que, efetivamente, sua contribuição é
maior que as limitações apontadas, valendo todo o esforço no sentido de tentar aparar
certas arestas, com o objetivo de resguardar o conjunto.
Para concluir o capítulo e com ele toda essa longa reflexão, será importante checar
se a proposta ética jonassiana respondeu a todas as questões colocadas na primeira parte
que levantou os diferentes problemas que se pretendia enfrentar ao longo de nossa
discussão.
Começando pela questão colocada no capítulo 3, quanto a definir se a ética de
Jonas poderia ser classificada como metaética, ética normativa, ou ética aplicada,
espera-se ter ficado claro que, de forma alguma se trata de uma metaética. Quanto a
saber se ela seria uma ética aplicada, nossa posição é, seguindo Frogneux
585
, que não se
trata de uma ética aplicada, muito menos de uma bioética. Embora o próprio Jonas tenha
proposto uma reflexão “prática” para complementar sua formulação teórica
586
.
585. Questão discutida em um de nosso encontros, durante o Estágio Sandwich, proporcionado pela concessão de
uma bolsa da Capes, na UCL – Louvain-la-Neuve, Bélgica, durante o ano de 2006.
586. Embora, como vimos, ele sugere uma aplicação para sua ética, ao mostrar a sua relação com questões concretas.
Talvez seja possível pensar que Jonas, sem explicitar, tenha dividido sua formulação ética em duas partes que
Habermas e Apel identificaram, no interior de suas respectivas Éticas do Discurso, como Parte A, referente à
444
Assim, decididamente, ela pode ser identificada a um tipo de ética normativa,
uma vez que o próprio Jonas afirma que
“Uma ética deve nos ensinar como nos
comportar”
587
,
que é o que as éticas normativas, cada uma ao seu modo, buscam realizar.
Quanto às questões colocadas no capítulo 2, esperamos ter demonstrado,
suficientemente, que todos os dualismos ali indicados foram solucionados por Jonas em
diferentes momentos de sua reflexão. Com relação à falácia naturalista, endossamos, aqui, a
posição de Apel
588
ao afirmar que ela não se aplica à ética jonassiana. Pois, Jonas não parte
de objetos “naturais”, mas de uma perspectiva ontológica, para fundar sua ética. Ou melhor,
embora ele tenha partido da natureza, não foi de sua observação empírica, mas de sua
compreensão fenomenológica (PhV) para, em seguida, (PR) chegar a uma abordagem
teleológica, axiológica e, finalmente, deontológica. Jonas não poderia, jamais, ser incluído
entre os naturalistas, no sentido que Moore atribuiu ao termo.
Com relação ao capítulo 1, que apresentou o problema específico das aplicações
biotecnológicas mais controversas: a eugenia positiva e o projeto pós-humano, será
interessante, após tudo o que foi dito, confrontar tais propostas com as diferentes
formulações do pr, começando por sua fórmula geral:
Age de tal modo que os efeitos de tua ação sejam compatíveis com a permanência de
uma vida autenticamente humana na Terra.
(PR p. 40)
Levando em conta a definição de autêntico como sendo o aspecto da ambivalência
humana, parece que a eugenia positiva, que tenta produzir o “super humano” curado de
todas as suas imperfeições, não é compatível com esse princípio jonassiano.
Tomando a seguir, as três outras formulações:
fundamentação e Parte B, referente à aplicação; sem, no entanto, pretender torná-la uma “ética aplicada”
propriamente dita.
587. H. Jonas. "La compassion à elle seule ne fonde aucune éthique", in Une éthique pour la nature. p. 91.
588. Nas palavras de Apel: “o conceito jonassiano do ser é intencionalmente oposto ao conceito moderno
da faticidade axiologicamente neutra da natureza, por conseqüência, a crítica lógica do que se chama a
“falácia naturalista” não pode ser a ele aplicada.” (Ver acima p. 407)
445
1. Age de tal modo que os efeitos de tua ação não sejam destrutivos para a possibilidade futura
de uma tal vida.
2. Não comprometa as condições para a continuidade indefinida da humanidade na Terra.
3. Inclui em tua escolha atual a integridade futura do homem como objeto secundário de teu
querer.
(PR, pp. 39-40)
Ao considerar o projeto pós-humano, ele parece estar em total desacordo, sobretudo,
com a última formulação, pois o que ele ameaça é, justamente, a integridade futura do
homem, o próprio termo pós-humano evidencia isso.
Além disso, o que consideramos como o mais problemático nessas duas propostas é
que ambas estabeleceriam uma profunda e, provavelmente, irreversível cisão. A eugenia
positiva provocaria uma clivagem antropológica entre seres humanos modificados e não-
modificados
(leia-se “melhorados” e “não-melhorados”)
geneticamente. E a realização do
projeto pós ou trans-humano
(como querem alguns como Bostrom)
provocaria uma clivagem
ontológica, porque ainda mais radical, entre os seres humanos e os pós ou trans-humanos.
Nos dois casos, estabelecer-se-ia não uma cisão, em si perniciosa, mas uma
hierarquia: modificados = superiores aos não-modificados e pós ou trans-humanos
superiores aos humanos. Por mais benéficos que possam ser os efeitos visados, (para os
indivíduos, de um modo geral) os malefícios para a espécie como um todo seriam
indiscutivelmente mais relevantes.
Ademais, os dois casos ainda feririam o Artigo I da Declaração Universal dos
Direitos Humanos que diz:
“Todas as pessoas nascem livres e iguais em dignidade e direitos.
Nesse sentido, se não quisermos dar ganho de causa a Jonas, quando ele postula o
regime totalitário como única maneia de colocar em prática medidas efetivas para se evitar
o pior, será preciso apostar no processo mais lento da educação e no mais imediato da
legislação, para barrar essas aplicações que não tendem a melhorar o ser humano, mas a
torná-lo mais arrogante e menos sensível ao sofrimento alheio (afinal como um ser
446
“perfeito”, que jamais experimentou a dor, por exemplo, poderia se sensibilizar com a dor
do outro?).
Não sem razão, Günther Anders, primeiro marido de Hannah Arendt e amigo pessoal
de Jonas
589
, em seu excepcional A obsolescência do homem - a partir de um episódio vivido
por um amigo que, após visitar uma exposição técnica (em 1942!), descreveu
a vergonha
que se apossa do homem diante da humilhante qualidade das coisas que ele mesmo fabricou” –
cunhou a expressão vergonha prometeica, para exprimir esse sentimento - de fato, tão
humano -diante de suas próprias obras.
Talvez essa vergonha explique a intenção de todos os defensores, especialmente, do
projeto pós-humano que não se conformam em ser “humanos meramente humanos” e
aspirem não apena hibridar-se, mas, também, criar seres híbridos, com o objetivo de
transpor essa “jaula de ferro”
590
que é, para eles, a sua própria humanidade.
É o próprio Anders que chama, ainda, a nossa atenção para o termo híbrido, cuja
origem remonta ao termo hybris (op. cit. pp. 62-68). Nada mais significativo e sintomático,
pois, de fato, as propostas da eugenia positiva e, sobretudo, do pós-humano que defende a
hibridação, têm em seu cerne a desmedida, a falta de limite, a própria hybris grega.
É preciso lembrar, porém, que a hybris desperta a nêmesis, ou o castigo divino. E,
mesmo que não haja deuses para nos punir, nesse caso, pode acontecer como no episódio de
Ícaro, se não observamos o limite e ousarmos voar mais alto que nossas “asas de cera” são
capazes de alcançar.
Talvez, seja hora de a filosofia se identificar menos com a ave de Minerva, como quis
Hegel e, lembrando as últimas palavras de Sócrates, colocar-se como a ave de Esculápio,
para anunciar a todos que ainda não de deram conta do que está por vir: É hora de
despertar!!
589. Citado mais de uma vez em suas Memórias.
590. Tomando de empréstimo a expressão de Weber, que ele aplica ao capitalismo.
447
CONCLUSÃO
Para concluir, faremos uma breve reconstituição dos principais momentos de
nossa exposição, que foi dividida em duas partes.
A parte I apresentou os diferentes aspectos do problema, em três diferentes
capítulos. No Capítulo 1, discutiu-se a questão das biotecnologias em geral, indicando
seus usos, em princípio, benéficos e os riscos neles eventualmente envolvidos; e aqueles
destinados, em especial, à aplicação em seres humanos, distinguindo aqueles que visam
um objetivo terapêutico daqueles que se destinam a finalidades questionáveis. Dentre
esses, a eugenia positiva e o projeto pós-humano mobilizaram nossa atenção por não
pretenderem fins terapêuticos, apenas um suposto “melhoramento” da constituição
genética humana. Algo que pode ser considerado como um “capricho”, definido por
Jonas como toda ação que pode colocar em risco aspectos relevantes em nome de
objetivos fúteis. Esses dois usos mostraram-se, portanto, como o principal desafio
colocado à reflexão ética contemporânea em relação à questão biotecnológica, e a
respeito do qual é preciso encontrar um ponto de vista eticamente consistente para
confrontar aqueles que defendem a sua realização efetiva.
Contudo, o Capítulo 2 mostrou que tal desafio torna-se ainda maior, uma vez que,
existem alguns obstáculos de ordem conceitual colocados, principalmente, pela reflexão
moderna, consistindo basicamente pelos dualismos: homem e mundo, corpo e alma, ser
e dever-ser, ao qual se atrela a divisão entre juízos de fato e juízos de valor e entre razão
teórica e razão prática que resulta na divisão entre reino da necessidade e reino da
liberdade, por um lado; e pelas concepções da falácia naturalista e da neutralidade
axiológica, por outro. Todas essas noções resultaram uma desarticulação entre os
conceitos de ética, ciência e tecnologia, criando uma espécie de barreira conceitual ao
enfrentamento satisfatório desse desafio, na perspectiva ética contemporânea.
448
Na seqüência, o Capítulo 3 buscou mapear, ainda que sumariamente, o painel da
reflexão ética contemporânea, apresentando sua diversidade de correntes e, em função
disso, a dificuldade de se classificá-las. Adotou-se, para simplificação, a divisão entre:
metaética, ética normativa e éticas aplicadas e, ao final do capítulo, levantou-se a
questão de saber em qual dessas categorias a ética jonassiana poderia ser incluída.
A Parte II, composta por quatro capítulos, foi inteiramente consagrada à
exposição da ética jonassiana.
No Capítulo 4, primeiramente, foi realizada uma retrospectiva de sua vida e obra
com o objetivo de situar o contexto pessoal e intelectual no qual emerge a sua reflexão
ética. Em seguida, focalizou-se a importância da questão dos dualismos no interior da
obra jonassiana como um todo, antes mesmo de se colocar como um problema de ordem
ética. Mostrou-se, assim, a solução que Jonas propõe não ao dualismo psicofísico
(corpo e alma), mas, antes, a outro de teor essencialmente gnóstico entre homem e
mundo. A solução foi alcançada pela introdução da liberdade no mundo do ser vivo
através da realização da atividade elementar do metabolismo que, a um tempo, é
expressão da liberdade e da necessidade de todo vivente. Com isso, ele equacionou os
principais dualismos apontados no capítulo 2, abrindo caminho ao enfrentamento do
dualismo ser e dever do âmbito da reflexão ética propriamente dita.
Ainda nesse capítulo, apresentou-se o contexto em que o princípio
responsabilidade é formulado, partindo da constatação da transformação, graças à
técnica moderna (tecnologia), do agir humano, cujos efeitos foram incrivelmente
ampliados, atingindo não apenas os próprios seres humanos e projetando-se
indefinidamente em direção ao futuro. Daí, Jonas extraiu a necessidade de uma nova
reflexão ética que fosse capaz de estender sua preocupação com relação a tais efeitos
nessa mesma proporção. Assim, ele analisou as éticas anteriores e percebeu que
449
nenhuma delas fornece os elementos necessários para enfrentar essa questão. Pois, todas
elas se prendem aos efeitos imediatos da ação cuja incidência limite-se à esfera humana.
Ele focalizou, em especial, a formulação do imperativo categórico, para evidenciar que
mesmo esse importante princípio da filosofia moral não pode nos valer, sobretudo,
porque o critério por ele proposto é de ordem lógica e não propriamente de ordem ética.
Surge, então, a necessidade de se elaborar um novo imperativo que é, justamente, o seu
princípio responsabilidade, para o qual propõe, como Kant, quatro diferentes versões.
O Capítulo 5 mostrou o difícil empreendimento da fundamentação de tal
princípio, o que passa, necessariamente, pela superação do dualismo ser e dever. Essa
tarefa é preparada pela discussão metodológica e epistemológica, com a proposta da
hermenêutica do medo como o caminho necessário para despertar e suficiente para
mobilizar o sentimento adequado para conduzir o agir no sentido de realizar o que seu
princípio prescreve.
Atendo-se à fundamentação, propriamente dita, de início, ele se dedica a “teoria
dos fins no ser”, vale dizer, à demonstração da existência de fins no ser. Mais
exatamente, ele demonstra a existência de fins na natureza e, com isso, conclui que a
natureza não pode ser considerada neutra do ponto de vista axiológico, pois da
existência de fins pode-se deduzir o valor. Em outras palavras, a natureza tem valor por
abrigar fins. Momento importante para preparar a difícil demonstração realizada, a
seguir, a da possibilidade de se passar do ser ao dever, desde que feitas as devidas
mediações.
A seguir, ele pode se dedicar à questão do valor. Ele começa definindo o que seria
o bem e o mal na perspectiva do ser e do fim. Donde, dado um fim no ser, realizá-lo
constitui um bem e não realizá-lo constitui um mal. Com essa definição, ele estabelece
uma divisão entre dois momentos, o da pura positividade onde:
450
O Ser identificado ao Fim Valor
O Ser ao realizar o Fim Bem
E o da mera negatividade, na qual:
O não-ser dada a ausência de fim sem valor
O não-ser ao levar a não realização de um fim Mal
Donde, podem-se deduzir a superioridade absoluta do ser em relação ao não-ser e
do fim e do valor em relação às respectivas ausências e, por extensão, do bem em
relação ao mal, cuja realização se torna, portanto, uma exigência, logo, um Dever.
Com a longa exposição dessa formulação, demonstrou-se que a passagem do ser
ao dever, não ocorre de forma imediata, mas se realiza através da mediação das noções
de Fim, Valor e Bem, passagem à qual não se pode aplicar a célebre objeção de Hume.
Com isso afasta-se também a ameaça da falácia naturalista, que Jonas não parte
de objetos naturais e demonstra a impossibilidade de aplicar a noção de neutralidade
axiológica à esfera da natureza.
O Capítulo 6 expõe a questão da aplicação, tal qual apresentada no TME,
focalizando, especialmente, as discussões com relação aos experimentos com seres
humanos e às biotecnologias a eles endereçadas. A esse respeito, Jonas demonstra que a
geração atual não tem o direito de - mesmo com a melhor das intenções -, comprometer
o patrimônio genético da humanidade por mero capricho, arrogância ou imprudência.
Por fim, o Capítulo 7, demonstrou num primeiro momento as contribuições e, em
seguida, as críticas e os limites da proposta ética jonassiana, para no fim, numa
abordagem pessoal, sugerir uma possível saída para os impasses e limites apontados.
As contribuições podem ser sumariadas dizendo que seu grande feito foi indicar a
possibilidade de superar as grandes dicotomias do pensamento moderno e
contemporâneo nos quadros do chamado monismo integral.
451
Na medida do possível, buscou-se responder às críticas, restando, porém, três delas
que não puderam ser contestadas no interior mesmo da formulação jonassiana; apontadas,
então, como três de suas importantes limitações, cabe lembrar, aquelas concernentes às
propostas de reduzir a liberdade da ciência, de limitar o conceito de homem à noção de
imago Dei e, por fim, de defender o totalitarismo político para resolver problemas como os
de ordem ambiental relacionados ao desmedido crescimento populacional.
As soluções propostas para superar tais aspectos da formulação jonassiana foram,
primeiramente, restringir a necessidade de limitar a liberdade da ciência apenas nos
casos em que as manipulações genéticas extrapolem os fins terapêuticos. Em seguida,
propôs-se a explicitação de uma idéia de homem com base nos conceitos de liberdade,
responsabilidade e dignidade retirados do próprio texto jonassiano, com o intuito de dar
uma alternativa à sua limitada visão de natureza humana compreendida como essência
fixa. E, por fim, no plano político, ao invés de uma perspectiva totalitária, com base no
conceito do homem livre responsável e digno, propôs-se trabalhar no sentido de se
constituir uma democracia participativa humanista. A saída será procurada, então,
investindo no médio e longo prazos, na educação, no modelo de uma paidética e, no
curto prazo, na institucionalização jurídica nos planos: local, nacional e transnacional.
Com isso, pretendeu-se salvar o conjunto da formulação ética jonassiana,
“neutralizando”, na medida do possível, os seus pontos mais criticáveis, para torná-la
uma concepção mais aceitável e, assim, tornar evidente toda sua contribuição, não
potencial, mas efetiva ao enfrentamento do desafio colocado pela proposta de aplicar as
biotecnologias em seres humanos visando realizar seja a eugenia positiva seja o projeto
pós-humano. Pois, o principal ensinamento de Jonas é o de que o homem não deve
existir no futuro, mas existir tal qual é, o que não significa que ele não possa modificar
sua constituição genética para curar doenças, mas que ele não deve alterá-la para reduzir
a sua condição essencialmente humana. O que significa extirpar a sua ambigüidade
452
essencial e a sua singularidade de espécie, que somadas constituem a integridade
humana.
Nesse sentido, as futuras gerações têm o direito de nascer de modo livre e igual e
de forma tal que possam se sentir incluídas no quadro da família humana. Mas, para
isso, precisam ser protegidas tanto dos supostos melhoramentos que podem criar uma
“sub-classe” dentro da espécie humana, quanto das supostas hibridações ou
“contaminações”, defendidas por Marchesini, que podem tornar difícil o
reconhecimento do autêntico humano. Tais situações, além de criar uma clivagem no
coração da espécie, podem gerar indivíduos geneticamente “superiores”, mas
existencialmente infelizes por pertencerem ou a uma espécie cindida ou a uma classe
“ornitorrínica” de seres que nem são inteiramente humanos, nem absolutamente nada.
453
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Tome premier: De la Renaissance à Kant. Deuxième édition revue et augmentée avec
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Desclée de Brouwer, 1951, pp. 103-148.
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Poche, 2005, 252 p.
- HUXLEY, Adous. Le meilleur des mondes. Paris: Pocket, 2005. 285 p.
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