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Universidade do Estado do Pa
Pró-Reitoria de Pesquisa e Pós-Graduação
Centro de Ciências Sociais e Educação
Programa de Pós-Graduação em Educação-Mestrado
Giza Carla de Melo Bandeira
Rituais Associados à Colheita do Milho-verde na Aldeia dos
Índios Gavião Kikatêjê
aprendizagens em processos educativos interdimensionais
Belém
2009
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Giza Carla de Melo Bandeira
Rituais Associados à Colheita do Milho-verde na Aldeia dos Índios Gavião
Kikatêjê
aprendizagens em processos educativos interdimensionais
Dissertação apresentada como requisito para a obtenção
do título de Mestre em Educação no Programa de Pós-
graduação em Educação, Universidade do Estado do
Pará.
Área de concentração: Saberes Culturais e Educação na
Amazônia.
Orientadora: Prof. Drª Maria de Jesus da Conceição
Ferreira Fonseca.
Belém
2009
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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação
Biblioteca do Centro de Ciências Sociais e Educação da UEPA
Bandeira, Giza Carla de Melo
Rituais Associados a Colheita do Milho-verde na Aldeia dos Índios Gavião
K
ikatêjê: aprendizagens em processos educativos interdimensionais / Giza Carla de
Melo Bandeira, orientação de Maria de Jesus da Conceição Ferreira Fonseca. Belém,
2009.
Dissertação (Mestrado em Educação) – Universidade do Estado do Pará, Belém,
2009.
1. Índios – vida e costumes 2. Índios – cultura I. Título.
CDD: 21 ed. 306.08
Giza Carla de Melo Bandeira
Rituais Associados à Colheita do Milho-verde na Aldeia dos Índios Gavião
Kikatêjê
aprendizagens em processos educativos interdimensionais
Dissertação apresentada como requisito para a
obtenção do título de Mestre em Educação no
Programa de Pós – Graduação em Educação.
Universidade do Estado do Pará
Área de concentração: Saberes Culturais e
Educação na Amazônia
Data de aprovação: ____/____/_____
Banca Examinadora:
_____________________________
Profª. Maria de Jesus da Conceição Ferreira Fonseca - Orientadora
Drª. em Ciências Biológicas
Universidade do Estado do Pará
_____________________________
Profª. Ivanilde Apoluceno de Oliveira – Examinadora Membro Interno
Drª. em Educação (Currículo)
Universidade do Estado do Pará
_____________________________
Profª. Denise Pahl Schaan – Examinadora Membro Externo
Drª. em Antropologia Social
Universidade Federal do Pará
Para Tia Onélia (in memoriam).
Agradecimentos
À Tia Onélia (in memoriam), que um dia comprou os livros de leitura obrigatória deste
mestrado e me pediu para que os lessem, incentivando-me à inscrição para o processo seletivo.
Infelizmente, aproximadamente três meses após o resultado final dessa seleção, ela dormiu e não
acordou para continuar nesta vida terrena, deixando-me este legado de valorização aos estudos.
À minha mãe, a quem devo a luz e tudo o mais que ela tem me dado nestes nossos 24 anos
de convivência. Além disso, agradeço imensamente por ela ter me ensinado não apenas as letras,
mas, também, algumas coisas da vida.
Ao meu pai, irmãos, sobrinho e o restante da minha família, em geral, por acreditarem nos
meus empreendimentos de pesquisa, por compreenderem as minhas repetidas ausências.
A minha avó Luiza (in memoriam), pelas bênçãos que me dava todas vezes em que eu saía de
casa, rumo à universidade, além de suas orações e cuidados, desde que eu era bem pequena.
Infelizmente, “vó Luiza” não está mais entre nós desde 23 de julho de 2008, fato que me trouxe
grande dor durante o mestrado.
Aos meus amigos, que são poucos, mas são tesouros, com os quais eu sei que posso contar.
Aos amigos da aldeia Kỳikatêjê, especialmente Sr. Ropré, sua esposa Dona Vanda, Sr. Kokoire
(o cacique), Rosani e família, pela acolhida em sua casa, Mamãe-grande (minha ĩx), Prekrut, Krỳt,
Kwainõ, Papaiti, entre outros.
À Profª Maria de Jesus, a orientadora, por sua dedicação junto a construção desta etapa de
minha pesquisa e, principalmente, pela amizade.
À banca examinadora, Profª. Denise e Profª. Ivanilde, por sua disponibilidade, tanto na
qualificação quanto na defesa desta pesquisa, com contribuições sempre pertinentes.
À Profª. Maria do Socorro Reis Lima, por ter favorecido minhas pesquisas com o
empréstimo de muitos livros sobre os grupos Jê-Timbira e orientações na área de Antropologia Social
e Cultural, incentivando-me nesses estudos.
Aos Necapianos (integrantes do Necaps – Núcleo de Educação Cientifica, Ambiental e
Práticas Sociais), pelo ânimo e companheirismo no cotidiano de nossas vivências em atividades
acadêmicas na UEPA.
Ao grupo de trabalho “Sociobiodiversidade e Educação”, o qual tem valorizado e difundido
esta pesquisa por meio das ações do Necaps.
À direção da escola Estadual Profª. Placídia Cardoso, especialmente profª Maria do Rosário e
profª Rita Costa, por terem compreendido algumas ausências minhas na escola em função de
atividades de pesquisa para este trabalho.
À Fundação de Amparo à Pesquisa no Estado do Pará (FAPESPA), por apoiar o
desenvolvimento desta com bolsa de mestrado.
À 3ª turma deste mestrado, pelas socializações de saberes.
Ao corpo docente e administrativo do PPGEd – UEPA.
À todos que direta ou indiretamente contribuíram para que este trabalho fosse desenvolvido.
Agradeço, sobretudo, a Deus, por ter me proporcionado esta oportunidade.
Porque a educação existe de mais modos do que se pensa e, aqui
mesmo, alguns deles podem servir ao trabalho de construir um outro
tipo de mundo.
(Carlos Rodrigues Brandão)
RESUMO
BANDEIRA, Giza Carla de Melo. Rituais Associados à Colheita de Milho-verde na
Aldeia dos Índios Gavião Kikatêjê: Aprendizagens em processos educativos
interdimensionais. Dissertação de Mestrado em Educação Universidade do Estado do
Pará, Belém, 2009.
O presente estudo identifica como os fazeres e dizeres, presentes nos rituais
associados a colheita do milho-verde dos índios Gavião Kikatê-Jê (Bom Jesus do
Tocantins Pará - Brasil), integram elementos da Biodiversidade Amazônica e que
processos educativos ensejam. Nesse sentido, tomei como “pano de fundo” para a
investigação os rituais Tuti K e Hõprykrã, que são ritos do ciclo anual celebrados por
esse povo durante a estação chuvosa. Trata-se de um Estudo de Caso do tipo
Etnográfico, em que os dados foram gerados por meio de técnicas de Observação
Participante, conversas informais, diário de campo, fotografias, desenhos, além de
entrevistas semi-estruturadas e sistematizados por meio de Análise de Conteúdo.
Contou com a participação de seis sujeitos identificados como conhecedores e atuantes
nas práticas indígenas estudadas. A análise realizada possibilitou compreender a
relação intrínseca que existe entre saberes indígenas emergentes dos referidos rituais e
elementos da biodiversidade local, em várias formas de aplicabilidade, coadunando
com a percepção de que a “megadiversidade amazônica” é um construto
interdimensional, pois o mundo “natural” é indissociável do social e cultural. Essa
interdimensionalidade contextualiza processos educativos que se dão em vivências
individuais e coletivas que atualizam a cultura indígena por meio de práticas
educacionais diversas. Com isso, refiro que esses fazeres e dizeres indígenas ensejam
aprendizagens enquanto referência para pensar ações de educar que se dão de
maneira compartilhada, no “estar-junto”, ressaltando noções educacionais próprias das
diversas populações amazônidas como uma etnopedagogia ambiental construída nas
relações com o “outro” e por meio do diálogo.
Palavras-chave: Educação; Biodiversidade; Processos Educativos; Amazônia; Gavião
Kikatêjê.
ABSTRACT
BANDEIRA, Giza Carla de Melo. Rituals Associated with Harvesting Corn-Green in
the Village of Indian Hawk Kikatêjê: Learning in educational processes
interdimensional. Dissertation education - Universidade do Estado do Pará, Belém,
2009.
This study identifies as the doings and sayings, found in rituals associated with
harvesting of green corn from the Indians Hawk Kikatêjê (Bom Jesus do Tocantins -
Pará - Brazil), incorporating elements of Amazonian Biodiversity and educational
processes requires. In that sense, I took as "background" to research the rituals and Tuti
Krã e Hõprykrã , which are rites of the annual contracts for these people during the rainy
season. This is a case study of type Ethnography, where the data were generated
through participant observation, informal conversations, field diary, photographs,
drawings, and semi-structured and documented by means of analysis content. It was
attended by six subjects identified as knowledgeable and active in indigenous practices
studied. The analysis allowed us to understand the intrinsic relationship that exists
between emerging indigenous knowledge of these rituals and elements of local
biodiversity, in various forms of application, remaining consistent with the perception that
"megabiodiversity Amazon" is an inter-dimensional construct, for the world "natural" is
inseparable from social and cultural. This interdimensionality contextualizes educational
processes that take place in individual and collective experiences that update the
indigenous culture through various educational practices. With that, I believe that these
doings and sayings ensejam indigenous learning and which are refer to think of
educating actions that take place in a shared manner, the "being-together", emphasizing
educational concepts peculiar to the various Amazonian population as a built
etnopedagogy environmental relations with the "other" and through dialogue.
Keywords: Education, Biodiversity; Educational Processes; Amazon; Hawk Kyikatêjê.
LISTA DE FIGURAS
Figura 1
Uma aldeia Timbira. Fonte. Vincente Carelli.
38
Figura 2
Flechas com penas de aves, produzidas por homens da aldeia
Kikatêjê. Fonte. Giza Bandeira. Acervo pessoal (2009).
43
Figura 3
Fragmento de imagem de satélite da Terra Indígena Mãe Maria.
Fonte. LANDSAT 223-63 e 223-64 (2005).
46
Figura 4
Aldeia Gavião Kikatêjê – casas construídas pela Vale. Fonte. Giza
Bandeira. Acervo pessoal (2008).
47
Figura 5
Acampamento dos velhos – casa tradicional Timbira. Fonte. Giza
Bandeira. Acervo pessoal (2009).
48
Figura 6
Casa dos segmentos domésticos, de alvenaria, e casa tradicional,
de material orgânico. Fonte. Giza Bandeira. Acervo pessoal (2008).
49
Figura 7
O artefato do jogo de corrida de toras, transformado em mobília no
acampamento. Fonte. Giza Bandeira. Acervo pessoal (2009).
53
Figura 8
Tora confeccionada para corrida, sendo reaproveitada como objeto
doméstico.
Fonte. Giza Bandeira. Acervo pessoal (2009).
53
Figura 9
Máscara Kokrit-Ho sendo usada durante o ritual do baile das
máscaras Kokrit.
Fonte. Nimuendajú (1935).
54
Figura 10
Corrida de toras na iniciação dos meninos. Fonte. ENTE (2006).
55
Figura 11
Corrida de toras entre as mulheres. Fonte. Thiago Kunz. Acervo
pessoal (2007).
55
Figura 12
Jovens correndo para a mata, no ritual de iniciação. Fonte. ENTE
(2006).
56
Figura 13
Jogo de flecha. Fonte. Thiago Kunz. Acervo pessoal (2007).
56
Figura 14
Brincadeira de Petecas Fonte. Giza Bandeira. Acervo pessoal
(2009).
57
Figura 15
Máscara do grupo dos “Lontra”, sendo confeccionada para o rito do
Tuti Krã. Fonte. Arquivo da Escola da Aldeia Gavião Kikatêjê.
58
Figura 16
Mulher da aldeia Gavião, pintando o corpo com grafismo
característico do grupo “Gavião”
Fonte. Giza Bandeira. Acervo pessoal (2009).
79
Figura 17
Ancião da aldeia Gavião, exibindo sua pintura corporal com grafismo
característico do grupo “Arara”.
Fonte. Giza Bandeira. Acervo
pessoal (2009).
79
Figura 18
Ancião da aldeia Gavião, confeccionando petecas com palha de
80
milho-verde.
Fonte. Fonte. Giza Bandeira. Acervo pessoal (2009).
Figura 19
Mulher banhando as petecas com água e urucum. Fonte. Giza
Bandeira. Acervo pessoal (2009).
81
Figura 20
Petecas, confeccionadas com palha de milho-verde, recebendo
coloração vermelha de urucum para ficarem bonitas. Fonte. Giza
Bandeira. Acervo pessoal (2009).
81
Figura 21
Ancião chamando para iniciar a brincadeira de petecas. Fonte. Giza
Bandeira. Acervo pessoal (2009).
82
Figura 22
Homem da aldeia Gavião Kikatêjê, jogando peteca. Fonte. Giza
Bandeira. Acervo pessoal (2009).
82
Figura 23
Homem da aldeia Gavião Kikatêjê se esforçando para não deixar
cair a peteca. Fonte. Giza Bandeira. Acervo pessoal (2009).
83
Figura 24
Crianças treinando a brincadeira de petecas. Fonte. Giza Bandeira.
Acervo pessoal (2009).
83
Figura 25
Homem do grupo “Gavião” emitindo sons de canto após brincadeira
de petecas. Fonte. Giza Bandeira. Acervo pessoal (2009).
84
Figura 26
Velhos, jovens e crianças em movimentos de canto e dança no
centro da aldeia.
Fonte. Giza Bandeira. Acervo pessoal (2009).
85
Figura 27
Jovem Kikatêjê exibindo sua pintura corporal do grupo “Peixe”.
Fonte. Giza Bandeira. Acervo pessoal (2009).
86
Figura 28
Vista de cima, do barranco que precedia o local onde estavam as
toras de corrida na mata.
Fonte. Giza Bandeira. Acervo pessoal (2009).
87
Figura 29
Vista de cima, do barranco que precedia o local onde estavam as
toras de corrida na mata.
Fonte. Giza Bandeira. Acervo pessoal (2009).
88
Figura 30
Desenho de Krt sobre sua máscara (“cabeça de peixe”), usada no
ritual Tuti Krã. Fonte. Giza Bandeira. Acervo pessoal (2008)
101
Figura 31
Desenho de máscara construído sob orientação de Sr. Ropré. Fonte.
Giza Bandeira. Acervo pessoal (2008).
102
Figura 32
Desenho do tipo de pintura corporal do grupo “Arraia”, sob
orientação de Kwainõ. Fonte. Giza Bandeira. Acervo pessoal (2009).
103
Figura 33
Desenho do tipo de pintura corporal do grupo “Lontra”, sob
orientação de Kwainõ. Fonte. Giza Bandeira. Acervo pessoal (2009).
104
Figura 34
Desenho do tipo de pintura corporal do grupo “Peixe”, sob
orientação de Kwainõ. Fonte. Giza Bandeira. Acervo pessoal
(2009).
104
Figura 35
Roça tradicional de milho em novembro de 2008. Fonte. Giza
Bandeira. Acervo pessoal (2008).
107
Figura 36
Roça tradicional de milho em janeiro de 2009. Fonte. Giza Bandeira.
Acervo pessoal (2009).
107
Figura 37
Roça tradicional de milho em fevereiro de 2009.
108
Fonte. Giza Bandeira. Acervo pessoal (2009).
Figura 38
Coleta de frutos da roça tradicional. Fonte. Giza Bandeira. Acervo
pessoal (2009).
109
Figura 39
Desenho do tipo de pintura corporal do grupo “Arara”, sob
orientação de Kwainõ. Fonte. Giza Bandeira. Acervo pessoal (2009).
111
Figura 40
Desenho do tipo de pintura corporal do grupo “Gavião”, sob
orientação de Kwainõ. Fonte. Giza Bandeira. Acervo pessoal (2009).
112
Figura 41
Criança tendo seu corpo pintado por sua avó. Fonte. Giza Bandeira.
Acervo pessoal (2009).
113
Figura 42
Um ancião e um jovem da aldeia com seus corpos pintados dos
tipos “Arara” e “Peixe”, respectivamente. Fonte. Giza Bandeira.
Acervo pessoal (2009).
113
Figura 43
Homem da liderança da aldeia e jovens, com pinturas corporais.
Fonte. Giza Bandeira. Acervo pessoal (2009).
114
Figura 44
Ancião confeccionando petecas de palha de milho-verde e crianças
observando. Fonte. Giza Bandeira. Acervo pessoal (2009).
116
Figura 45
Homem jogando peteca, o percurso do movimento de jogo e
crianças acompanhando. Fonte. Giza Bandeira. Acervo pessoal
(2009).
118
Figura 46
Jovens assando espigas de milho. Fonte.
Giza Bandeira. Acervo pessoal (2009).
119
Figura 47
Mulheres, homens, velhos e jovens assando espigas de milho.
Fonte. Giza Bandeira. Acervo pessoal (2009).
120
Figura 48
Homens, jovens, mulheres e crianças na dança do Hõprykrã. Fonte.
Giza Bandeira. Acervo pessoal (2009).
123
Figura 49
Mapa dos processos educativos da / na aldeia Gavião Kikatêjê.
Fonte. Giza Bandeira. Acervo pessoal (2009).
126
LISTA DE QUADROS
QUADRO 1 Elementos da Biodiversidade, formas de apropriação e saberes do mito do Tuti
Krã
93
QUADRO 2 Elementos da Biodiversidade, formas de apropriação e saberes da confecção
das máscaras do Tuti Krã
97
QUADRO 3 Elementos da Biodiversidade, formas de apropriação e saberes da corrida de
toras do Tuti Krã
99
QUADRO 4 Processos educativos, práticas de aprendizagem e elementos da
Biodiversidade envolvidos.
124
SUMÁRIO
POR ONDE CAMINHEI
15
COM QUEM CAMINHEI
22
COMO REGISTREI E ANALISEI A CAMINHADA
25
SEÇÃO I
ESPAÇO-AMBIENTE-NATUREZA AMAZÔNICO
33
1.1
“NA ALDEIA KIKATÊJÊ A GENTE É ÍNDIO TIMBIRA QUE
FALA
36
1.2
“ERA UMA NAÇÃO CHAMADO TIMBIRA, ERA NUMEROSA
TIMBIRA
42
1.3
A ALDEIA KIKATÊJÊ
46
SEÇÃO II
RITUAIS ASSOCIADOS À COLHEITA DO MILHO-VERDE,
MOSAICO DE UMA EDUCAÇÃO DIALÓGICA
60
2.1 RITO 63
2.2 MITO COMO PRÁTICA PEDAGÓGICA 66
2.3 MITO DE ORIGEM DA CELEBRAÇÃO DE COLHEITA DO
MILHO-VERDE NA ALDEIA GAVIÃO KIKATÊJÊ
71
2.4
HÕPRKRÃ, A BRINCADEIRA DAS PETECAS: MOMENTO DE
MÚLTIPLAS VIVÊNCIAS
78
SEÇÃO III
PROCESSOS EDUCATIVOS DA VIVÊNCIA NOS RITUAIS
91
3.1
PROCESSOS EDUCATIVOS, ELEMENTOS DA
BIODIVERSIDADE E SABERES DO TUTI KRÃ
92
3.1.1
O mito de origem
92
3.1.2
C
onfecção das “cabeça de peixe”
96
3.1.3
Corrida de toras
98
3.1.4
Pinturas
101
3.2
PROCESSOS EDUCATIVOS, ELEMENTOS DA
BIODIVERSIDADE E SABERES DO HÕPRKRÃ
105
3.2.1
A roça tradicional
106
3.2.2
Pinturas Corporais
111
3.2.3
Jogo de petecas
115
3.2.4
Corrida de Toras
120
3.2.5
Dança
122
3.3 PRÁTICAS DE APRENDIZAGEM EM PROCESSOS
EDUCATIVOS SOLTOS NA VIDA INDÍGENA
124
CONSIDERAÇÕES QUE NÃO PRETENDEM SER FINAIS
128
Referências
131
ANEXO
ANCIDES
BANDEIRA G. C. M. Rituais Associados à Colheita de Milho-verde na Aldeia dos Índios Gavião Kikatêjê 15
POR ONDE CAMINHEI
Minha formação científica inicial, tanto em Pedagogia (2003 2005) quanto em
Arte (2003 – 2007), me conduziu ao interesse por questões culturais e educação.
Porém, na área de Arte, em busca do diferente, do que “era” distinto de mim, da minha
cultura, do meu mundo, iniciei pesquisas sobre objetos rituais indígenas.
Essa forma, curiosa, de atuar diante do diferente está marcada na minha própria
história de vida, pois me lembro, que quando adolescente, me identificava com as
aventuras do “Pequeno Príncipe” sobre coisas que apareciam em seu pequeno planeta
e lhe indicavam a existência de outros planetas (SAINT-EXUPÉRY, 2002). “Imaginem
como eu ficava intrigado com aquela simples menção sobre ‘os outros planetas’.
Esforcei-me, então, por saber um pouco mais” (Idem. p. 16).
Assim, durante a graduação, no folhear de livros dos acervos do Museu
Paraense Emílio Goeldi (Belém PA) e na construção de desenhos de observação das
fotografias dos livros, se deu meu interesse por máscaras indígenas. Depois, a
curiosidade se estendeu para o estudo de rituais que envolvem máscaras feitas de
palha. E, assim, os elementos visuais desses objetos se tornaram muito presentes na
minha produção em Arte.
Além da sedução pela visualidade desses objetos, o estudo de mitos de origem
de rituais que envolvem o uso de máscaras de palha, por meio da leitura de escritos
etnográficos de viajantes, como Nimuendajú (1883 1945) e Júlio César Melatti
(1938...), tornou-se imprescindível na apropriação de conhecimentos sobre essas
materialidades e sua relação com a dimensão social e cultural.
Dessa forma, dei origem, no meu segundo TCC, este para o curso de
Licenciatura em Educação Artística, intitulado “Máscaras Kokrit-Ho: a obra é o ato”, ao
estudo de dimensões ligadas à Arte e que envolvem o uso de máscaras indígenas em
seus respectivos ritos
1
.
O ritual Kokrit, dos índios Canela Ramkokamekrá (comunidade Jê-Timbira de
terras demarcadas ao sul do Estado do Maranhão), foi escolhido para esse estudo de
1
Os ritos refletem a organização interna de uma sociedade e as relações que esta mantém com o meio
ambiente em que está inserida (MELATTI, 1978).
BANDEIRA G. C. M. Rituais Associados à Colheita de Milho-verde na Aldeia dos Índios Gavião Kikatêjê 16
TCC por ser um cerimonial no qual participam grupos rituais de mascarados, os Kokrit-
Ho
2
. Aprendi, com esse estudo, que um ritual envolve tantas outras dimensões que não
apenas a materialidade de seus artefatos, construídos com uma tecnologia própria e a
partir de noções apreendidas na realidade.
Esse contato documental com os estudos sobre culturas de povos indígenas, do
tronco lingüístico Macro-Jê, especialmente os Canela Ramkokamekrá, proporcionou-me
maior propriedade sobre conhecimento em relação à práticas culturais desses grupos,
visto que os povos da família lingüística e sub-grupo étnico Jê-Timbira
3
, mesmo
habitando aldeias distintas, possuem a mesma língua (com poucas variações) e
sistemas rituais complexos que se assemelham entre si.
Como se vê, meus estudos sobre o ritual dos Kokrit, foram cruciais para
compreender diversas dimensões que emergem e constituem um rito: memória,
imaginário, biodiversidade, educação, poder, tecnologia, arte, etc. Construí esse ângulo
de observação por intermédio de concepções como: a semiótica de Charles Peirce,
através da leitura de Lúcia Santaella (2006), a qual me fez ver a cultura como mediação
da própria vida e, compreendi também, por meio dos estudos de Boas (1996), a
igualdade dos processos mentais de todas as raças, e a negação de um etnocentrismo
exacerbado com o qual a cultura ocidental julgou, por tanto tempo, os povos, ditos
“nativos”, indígenas. Dessa forma, compreendi o caráter interdisciplinar, inteligível,
simbólico e tecnológico das culturas, especialmente na Amazônia, o que caracteriza
sua diversidade.
Todas essas relações, teóricas e empíricas, bem como a percepção da
necessidade de conhecer e difundir a cultura dos povos Jê-Timbira se tornou condição
relevante para pensar a pesquisa social e educacional, especialmente na Amazônia.
Não obstante, por coincidência ou, quem sabe, movida por forças do cosmo
Timbira, em abril de 2007, na ocasião de estar participando de uma monitoria numa
oficina de construção de habitações indígenas, no evento da Semana dos Povos
Indígenas (Belém PA), promovido pelo Governo do Estado do Pará e a Fundação
2
o sufixo “Ho” se refere à palha.
3
Os indígenas do Brasil são reconhecidos e diferenciados, dentre outros, pela caracterização lingüística.
Classificados em troncos lingüísticos, os sub-grupos étnicos se diferenciam culturalmente por meio de
tradições milenares, próprias do grupo: organização social, mitologia, organização do trabalho, ordens de
culto, cerimoniais, artefatos, etc.
BANDEIRA G. C. M. Rituais Associados à Colheita de Milho-verde na Aldeia dos Índios Gavião Kikatêjê 17
Tancredo Neves, conheci um senhor indígena chamado Ropré. Levei uma tarde inteira
me doando à conversa com esse senhor que, muito gentilmente e falando fluentemente
em língua portuguesa, me explicava sobre os costumes de seu povo, os Gavião
Kikatêjê.
Visto meu interesse, e para a minha surpresa, recebi um convite desse senhor
indígena para ir até sua aldeia e, algum tempo depois, passei um dia na referida aldeia,
na qual tive contato com o povo de Sr. Ropré e com fragmentos da cultura local.
Naquela época, retornei à Belém cheia de ideias e vontade de pesquisar sobre
rituais da comunidade Gavião Kikatêjê, que acabara de conhecer pessoalmente.
Busquei, então, a pesquisa documental, a fim de me inteirar sobre as origens desse
povo e não foi difícil descobrir, em descrições etnográficas, que são da família Jê-
Timbira, assim como os Canela, que eu estava estudando durante a graduação em
Arte, o que facilitou na compreensão das atribuições de sentidos nesses contextos,
visto que eu já tinha certo conhecimento sobre esses povos.
Nessa busca, percebi a escassez de estudos realizados sobre essas culturas,
especialmente relacionados à educação. Esta constatação motivou construção do meu
projeto de pesquisa no Mestrado em Educação, relacionado à cultura do povo Gavião
Kikatêjê. Assim, iniciei contatos mais estreitos junto à comunidade Gavião, de Sr.
Ropré.
Numa fase exploratória da pesquisa, visitei a “Casa de Apoio ao Índio Gavião”
(Ananindeua PA), onde se abrigam as lideranças da aldeia, quando vão participar de
eventos relacionados aos povos indígenas do Pará, e indígenas doentes, quando
precisam de tratamentos médicos da capital do Estado, Belém.
Nessas ocasiões, aproveitava para fazer contatos, saber sobre a organização e
administração da aldeia e levantar minhas possibilidades de pesquisa, visto que uma
sociedade indígena se configura com práticas diversas e havia necessidade de fazer
“um recorte” para a investigação pretendida. Além disso, eu tinha em vista que o
recorte, para o meu estudo, precisava estabelecer alguma relação com o que eu
conhecia sobre as práticas culturais dos índios Canela Ramkokamekrá, pelo fato de
serem do mesmo tronco lingüístico e sub-grupo étnico.
BANDEIRA G. C. M. Rituais Associados à Colheita de Milho-verde na Aldeia dos Índios Gavião Kikatêjê 18
Outro momento decisivo para definição deste estudo foi quando estive, na aldeia
Kikatêjê (Bom Jesus do Tocantins PA) durante 11 (onze) dias e, nesse período,
obtive conhecimentos sobre seu contexto, suas práticas cotidianas e períodos rituais,
dentre estes, cerimoniais em que o uso de máscaras relacionadas à colheita do
milho-verde, descritos em conversas informais com o Sr. Ropré. Nessas, identifiquei
relações simbólicas ligadas a elementos da biodiversidade local, integrando aspectos
de meu interesse de pesquisa.
Foram esses relatos que me fizeram ver a potencialidade desses rituais
indígenas e suas dimensões como pertinentes à pesquisa em Educação. Percebi, nas
atitudes mitológicas relatadas, situações educacionais, corroborando o que Brandão
(2007) diz sobre o ato de ensinar na comunidade:
Assim, tudo o que é importante para a comunidade, e existe como algum tipo de
saber, existe também como algum modo de ensinar. [...] cada tipo de grupo
humano cria e desenvolve situações, recursos e métodos empregados para
ensinar às crianças, aos adolescentes, e também aos jovens e mesmo aos
adultos, o saber, a crença e os gestos que os tornarão um dia o modelo de
homem ou de mulher que o imaginário de cada sociedade idealiza, projeta e
procura realizar (p. 22).
É fato que as sociedades indígenas têm suas ideias próprias de compreensão do
Universo, o que se configura em concepções da gênese da vida, do princípio da cultura
das plantações, dos instrumentos, dos artefatos, das relações sociais dentro e fora da
aldeia, da natureza dos bichos selvagens, da astronomia, etc. Esses conhecimentos
regem a vida nessas sociedades e instituem identificações culturais em que a
biodiversidade local se faz presente.
Isso reflete na concepção de humanidade, entre os indígenas, a qual é
reconhecida numa ética estreitamente ligada à memória ancestral, em que os
ensinamentos da vida natural são persistentes, e também os valores que vão surgindo
das suas próprias condições de vida, dentre eles os valores como respeito, tolerância,
paciência, passam a ser provenientes de sua leitura acerca dos processos naturais
(LEFF, 2003).
BANDEIRA G. C. M. Rituais Associados à Colheita de Milho-verde na Aldeia dos Índios Gavião Kikatêjê 19
Dessa forma, entre os indígenas, os modos de compreender o universo
implicam em atuar nele, isso expressa processos educativos decorrentes da noção de
vida indígena que se (re) produz através das gerações.
Na aldeia Gavião Kikatêjê, as vivências indígenas em rituais, e, neste caso os
de celebração associados à colheita do milho-verde, traduzem-se em fazeres e dizeres
que integram elementos materiais e imateriais, inclusive relacionados à biodiversidade
amazônica local e engendram processos educativos que precisam ser estudados.
Tais reflexões me instigaram a investigar, nesta pesquisa: Como os fazeres e
dizeres, presentes nos rituais associados à colheita do milho-verde dos índios Gavião
Kikatêjê, integram elementos da Biodiversidade Amazônica e que processos
educativos ensejam?
De modo a orientar esta investigação, defini as seguintes questões norteadoras:
a) Como se concebe, organiza-se e se realiza o período ritual associado à
colheita do milho-verde?
b) Que fazeres e dizeres próprios do período ritual se fazem processos
educativos imbuídos de sentidos e significados pelo indígena da aldeia Gavião
Kikatêjê.?
c) Como processos educativos relacionados ao referido período ritual,
incorporam elementos da biodiversidade local?
Estas questões norteadoras foram (re) construídas a partir da minha inserção e
aceitação pelo povo da aldeia Gavião Kikatêjê. Além disso, ao conhecer sobre os ritos
associados ao período anual de colheita do milho-verde, pude ampliar a pesquisa para
além dos ritos que envolvem o uso de máscaras e também perceber outros fazeres
presentes no mito de origem desse período ritual e na preparação e na execução dos
rituais. Esses fatores foram determinantes para repensar a realização deste trabalho.
Desse modo, tenho como objetivo geral da pesquisa: Identificar os fazeres e
dizeres, presentes nos rituais associados à colheita do milho-verde dos índios
Gavião Kikatêjê, que integram elementos da Biodiversidade Amazônica e os
processos educativos a estes vinculados.
E, como objetivos específicos: a) Descrever os processos de concepção,
organização e realização dos ritos associados à colheita do milho-verde; b) Mapear
BANDEIRA G. C. M. Rituais Associados à Colheita de Milho-verde na Aldeia dos Índios Gavião Kikatêjê 20
processos educativos, ligados a elementos da biodiversidade local, presentes nos
fazeres e dizeres do referido ritual; c) Discutir os fazeres e dizeres enquanto processos
educativos imbuídos de sentidos e significados pelo indígena Gavião Kikatêjê.
Esclareço que esta pesquisa não se trata de um estudo ritualístico, comparativo
entre sociedades Jê-Timbira, mitológico e nem baseado em análise de estrutura social.
Trata-se de uma investigação sobre a educação presente em rituais indígenas,
associados à colheita do milho-verde, no contexto da aldeia dos índios Gavião
Kikatêjê.
A noção de educação, aqui trabalhada, pode até correr o risco de se confundir
com a noção de cultura
4
, pois compreende a própria socialização da vida como um
processo educativo, neste aspecto, coaduna com Brandão (2007, p. 20-1) quando diz
que
Esparramadas pelos cantos do cotidiano, todas as situações entre pessoas, e
entre pessoas e a natureza situações sempre mediadas pelas regras,
símbolos e valores da cultura do grupo têm, em menor ou maior escala a sua
dimensão pedagógica. Ali, todos os que convivem aprendem, aprendem da
sabedoria do grupo social e da força da norma dos costumes da tribo, o saber
que torna todos e cada um pessoalmente aptos e socialmente reconhecidos e
legitimados para a convivência social, o trabalho, as artes da guerra e os
ofícios do amor.
Visualizar esses fazeres e dizeres eminentemente culturais como processos
educativos implicou, durante toda a pesquisa, em uma interpretação que envolve os
sentidos e os significados que permeiam sua prática. Nesse sentido, do ponto de vista
teórico-metodológico, o presente estudo foi construído a partir de uma abordagem de
pesquisa qualitativa, caracterizada como uma prática de Etnopesquisa.
Esse modo de fazer pesquisa qualitativa empreende uma atividade constante de
interpretação do contexto pesquisado, na qual a análise se dá em todo o processo,
devendo se intensificar na relação entre teoria e dados coletados, oriundos dos diversos
métodos aplicados (MACEDO, 2000).
4
Sistema de formas simbólicas (GEERTZ, 2007).
BANDEIRA G. C. M. Rituais Associados à Colheita de Milho-verde na Aldeia dos Índios Gavião Kikatêjê 21
Inserida nos estudos de “Etnociência
5
”, a prática de Etnopesquisa compreende o
fenômeno social e cultural em estudo como uma manifestação de significados e
sentidos, regidos por uma maneira própria de ver o mundo e atuar nele.
Dessa forma, os fazeres e dizeres investigados, como se tratam de fenômenos
culturais (o período ritual associado à colheita de milho-verde), então, exigem um
contato direto com a realidade dos ambientes onde se constroem esses fenômenos.
Esse contato com a realidade caracteriza uma necessidade pelo uso de metodologias
qualitativas, ou seja, “a justificativa para que o pesquisador mantenha um contato
estreito e direto com a situação onde os fenômenos ocorrem naturalmente é a que eles
são muito influenciados pelo seu contexto” (LÜDKE e ANDRÉ, 1986, p. 12).
Além disso, pelo fato dos rituais relatados na pesquisa serem, na comunidade
Gavião Kikatê-Jê, apreendidos por meio de um “mito de origem” e associado à colheita
de milho-verde, caracteriza um caso singular, pois “quando queremos estudar algo
singular, que tenha um valor em si mesmo, devemos escolher o estudo de caso”. Dessa
forma, esta pesquisa se define como um “estudo de caso do tipo etnográfico” (LÜDKE e
ANDRÉ, 1986, p. 17). Faz-se Estudo de Caso Etnográfico nas seguintes condições:
(1) quando se está interessado numa instância em particular, isto é, numa
determinada instituição, numa pessoa ou num específico programa ou currículo;
(2) quando se deseja conhecer profundamente essa instância particular em sua
complexidade e em sua totalidade; (3) quando se estiver mais interessado
naquilo que está ocorrendo e no como es ocorrendo do que nos seus
resultados; (4) quando se busca descobrir novas hipóteses teóricas, novas
relações, novos conceitos sobre um determinado fenômeno; e (5) quando se
quer retratar o dinamismo de uma situação numa forma muito próxima do seu
acontecer natural (ANDRÉ, 2005, p. 50-1)
.
Segundo Ludke e André (1986, p. 18), “os estudos de caso enfatizam a
interpretação em contexto”, o que irradia para uma busca em retratar concisamente a
realidade em questão. Essa busca, conseqüentemente, gerou uma variedade de dados
e fontes de informação, resultado de um envolvimento direto com o objeto de estudo.
A definição dos sujeitos desta pesquisa teve, inicialmente, por critérios: sua
participação concreta nos fazeres e dizeres implicados, que fazem parte dos rituais
5
[...] um campo de estudos interdisciplinares que estuda o modo como populações humanas inserem-se
culturalmente em ecossistemas, tanto através de processos cognitivos, como de reações emocionais e
comportamentais, no qual interpretam-se conexões que emergem como um interpretar-se de sociedade e
natureza que se contradiz e se complementa”. (MARQUES, apud AMOROSO, 2002, p. 32).
BANDEIRA G. C. M. Rituais Associados à Colheita de Milho-verde na Aldeia dos Índios Gavião Kikatêjê 22
associados a colheita de milho-verde e, sobretudo, aquelas pessoas apontadas pela
comunidade indígena como detentores do conhecimentos relacionados ao pesquisado.
Contudo, percebi que as relações afetivas construídas em torno de valores de confiança
mútua também foram contribuições cruciais para a definição dos sujeitos da pesquisa,
pessoas com as quais caminhei para a construção deste trabalho.
COM QUEM CAMINHEI
Os sujeitos da pesquisa, com os quais caminhei, são pessoas que me
acolheram, com quem participei de vivências para além das atividades restritas ao
estudo. Nesse sentido, Ropré, Papaiti, Prekrut, Krt, Kwainõ, Mamãe-grande e Jõpeyre
foram pessoas que possibilitaram o desenvolvimento desta pesquisa e, de alguma
maneira, auxiliaram nesta construção, os quais apresento a seguir:
Sr. Ropré é uma liderança na aldeia Kikatêjê, que exerce um papel muito
importante na comunidade, visto que é o tradutor do cacique, pois o mesmo não fala e
compreende pouco a língua portuguesa. Assim, ele sempre está presente em todas as
tomadas de decisões pela liderança, nos eventos estaduais e nacionais em que
necessidade de ir representar a aldeia e em conversas com o cacique, o qual é seu
amigo particular.
O Sr. Ropré me relatou várias vezes sobre momentos de doença do cacique em
que ele esteve presente, acompanhando e o representando, pois é um homem de
confiança. Isso reflete seu cargo na Associação Kikatêjê Amitãti, onde ele é o
tesoureiro, responsável pela prestação de contas de toda a renda que entra e sai da
comunidade, pela compra dos alimentos que vêm da cidade, o chamado “rancho”, que
alimenta cada seguimento residencial da aldeia. Além disso, o Sr. Ropré é um
participante ativo dos fazeres relacionados à cultura indígena da aldeia, do grupo dos
“Lontra”. O Sr. Ropré é o usuário da única máscara, chamada cabeça de peixe, de seu
grupo ritual, também “corre tora”, caça e é considerado o melhor jogador de petecas de
sua aldeia.
Identifiquei-me muito com o Sr. Ropré, desde o nosso primeiro encontro, em
2007, na Semana dos Povos Indígenas. Essa minha aproximação a ele favoreceu a
BANDEIRA G. C. M. Rituais Associados à Colheita de Milho-verde na Aldeia dos Índios Gavião Kikatêjê 23
pesquisa no sentido prático da vivência, pois o Sr. Ropré, promoveu a minha
apresentação junto aos anciãos da aldeia e, desse modo, também foi o meu tradutor,
visto que eu falo quase nada em língua Jê. Além disso, a família de Sr. Ropré me
acolheu em sua casa, na aldeia, e sua esposa sempre demonstrou muito carinho por
mim e, até hoje, guarda a minha rede e sandálias que sempre deixei como sinal de
retorno. Esse ato representa uma aliança estabelecida entre nós.
Papaiti, também sujeito desta pesquisa, é um ancião. Ele não sabe dizer sua
idade e ninguém da comunidade sabe informar, porque na época em que ele nasceu os
índios não tinham o compromisso, nem interesse, de registrar em cartório, como têm
hoje, principalmente em função de matricular as crianças na Escola. Papaiti aparenta
ter cerca de 75 anos, tem filhos, netos e bisnetos, todos morando na aldeia Kikatêjê.
Ele fala pouco em língua portuguesa, geralmente tenta falar e, misturando a língua Jê
com português e na velocidade com que os indígenas pronunciam as palavras, chegou
a me confundir. Essa limitação gerou, por vezes, dificuldades para explicar o que eu
queria saber. Algumas vezes eu explicava por gestos e demonstrações de imagens, e
Papaiti adotava o mesmo método para me responder. As anotações de conversas que
tive com ele parecem totalmente corrigidas porque não há como escrever o modo como
pronunciava as palavras, com rapidez, sons misturados, cantos e demonstrações de
imagens.
Minha relação com Papaiti se deu por meio da minha vivência no acampamento
dos velhos, onde ele sempre se encontrava reformando suas flechas que estavam com
as penas roídas por barata. Ele é tocador de apito e cantor, experiente jogador de
flechas. Na brincadeira de petecas ele é do grupo “Arara”, além de confeccionar
petecas com palha de milho-verde.
A maior contribuição de Papaiti a esta pesquisa se apresenta no momento em
que ele me levou para conhecer a roça de milho, ensinando-me sobre o tempo de
colheita, sobre as outras espécies plantadas na roça de milho, dentre outras
informações que me forneceu durante nossa conversa informal na trilha rumo à roça.
Prekrut é outro sujeito da pesquisa, que também faz parte da liderança da aldeia.
Aparenta ter a mesma faixa etária do Sr. Ropré. Ele não chega a ser considerado
ancião, mas é referido como alguém experiente na aldeia, pois conhece sobre as
BANDEIRA G. C. M. Rituais Associados à Colheita de Milho-verde na Aldeia dos Índios Gavião Kikatêjê 24
histórias do povo, fala bem a língua e compreende parcialmente a língua portuguesa.
Prekrut é o cortador de toras da aldeia, responsável por preparar o tronco de árvore,
cortar as toras em igual tamanho, cavar para deixar oco (parte do tronco) e pintá-las
com urucum. Ele faz parte do grupo ritual “Lontra”, também “corre tora”, caça e é
jogador de petecas. Esse indígena forneceu a esta pesquisa informações importantes
sobre sua atividade de cortador de toras, além de promover a minha apresentação para
outras pessoas da aldeia.
Krt, um jovem de 21 anos, também é um dos participantes desta pesquisa, pois
sempre se mostrou solícito para conversar sobre os rituais de sua aldeia, e até
contribuiu com a feitura de desenhos sobre a máscara de seu grupo ritual. Eu já o
conhecia desde 2007, em Belém, quando fomos apresentados no mesmo evento de
Semana dos Povos Indígenas em que conheci o Sr. Ropré. Então, quando cheguei na
aldeia, Krt foi uma das pessoas que promoveu a minha apresentação junto a outros
jovens e, ao me relatar sobre sua participação nos rituais, ensinava-me sobre sua
cultura. Assim, confirmou que ele é do grupo “Peixe”, e também participa da brincadeira
de petecas e de corrida de toras.
Kwainõ é mulher jovem, tem um filho com um indígena de uma aldeia Carajá, de
Tocantins (TO). É uma participante imprescindível à pesquisa, pois é conhecida na
aldeia como uma jovem que sabe fazer todos os tipos de pinturas corporais.
Conhecemo-nos por meio da esposa do Sr. Ropré, a qual é sua sogra. Kwainõ chegou
a fazer várias pinturas corporais em meu corpo, ensinando-me o que representavam e,
ao mesmo tempo, conversando sobre como ela aprendeu a fazer. Algumas dessas
pinturas eu não consegui fotografar, porque eu desempenhava vários papéis:
pesquisadora, sujeito da pesquisa e fotógrafa. Em alguns momentos, isso se configurou
em limitações no contexto da pesquisa.
Ronoré, comumente chamada na aldeia de “Mamãe-grande”, é uma anciã muito
respeitada.Vários de seus filhos e netos fazem parte da liderança da aldeia. Um de
seus filhos é líder da associação Apito, a qual coordena as ações de outro povo Gavião,
os Akrãtikatêjê. Minha relação com Mamãe-grande se deu de forma muito especial, pois
desde minha primeira ida à aldeia sempre estive com ela, em seu acampamento de
palha, onde ela passa o dia inteiro confeccionando adornos, fazendo comida e/ou
BANDEIRA G. C. M. Rituais Associados à Colheita de Milho-verde na Aldeia dos Índios Gavião Kikatêjê 25
conversando com suas amigas, também anciãs, que moram nessa aldeia ou vêm da
aldeia, dos índios Parkatêjê.
Estabeleci, com Mamãe-grande, uma forte relação afetiva em momentos de
socialização de alimento, de sorrisos, de companhia, etc. Mamãe-grande me adotou
como sua filha no momento em que me deu um nome: Jõpeyre Kapreré.
Jõpeyre Kapreré sou eu. A minha nomeação e adoção, por Mamãe-grande,
proporcionou-me a oportunidade de ser um dos sujeitos da pesquisa, pois no contexto
desta pesquisa, Jõpeyre é uma pessoa menos kup
6
do que os demais não-índios que
transitam na aldeia Gavião Kikatêjê. Penso que não é nem uma pessoa nativa e nem a
pesquisadora, mas alguém que se construiu, nesse contexto, para diminuir o fosso
entre a figura do pesquisador e a figura do indígena, num momento em que a Mamãe-
grande me conheceu o suficiente para estabelecer uma relação significativa e imbuída
de sentidos referentes a nossa convivência. Essa vivência com a Mamãe-grande é
relatada com mais detalhes na segunda seção deste trabalho.
Assim, outros sujeitos contribuíram para que eu compreendesse concepção,
organização e realização dos rituais apresentados neste trabalho, porém a participação
dos acima referidos foi determinante, pois, suas falas, desenhos, pinturas e companhia
em atividades recorrentes da aldeia, deram-me condições para registrar dados
significativos à pesquisa, além de auxiliar na configuração desta com métodos de
Observação Participante (OP), visto as relações de trocas que estabeleci com os
sujeitos durante a caminhada.
COMO REGISTREI E ANALISEI A CAMINHADA
Os registros da pesquisa originados de OP, como recurso de um Estudo de
Caso, possibilitaram um conhecimento gerado na prática participativa de interação entre
pesquisador e pesquisado (MACEDO, 2006). Dessa forma, a minha presença e
participação em rodas de conversa, momentos formais e informais no contexto da
aldeia Kikatêjê, foram importantes para eu entender noções que regem o pensamento
6
Kup: palavra de origem Macro-jê, usada para designar a categoria das pessoas “não-índias”, “brancos”
ou de outra raça que não pertence a nenhuma etnia indígena.
BANDEIRA G. C. M. Rituais Associados à Colheita de Milho-verde na Aldeia dos Índios Gavião Kikatêjê 26
indígena, o que configurou um constante processo educativo para mim, enquanto
pesquisadora e, sobretudo, aprendiz daquelas “novas” formas de compreensão do
universo que, no lócus da pesquisa, apresentavam-se. Assim,
os nós de incompreensão percebidos pelo pesquisador pouco a pouco vão se
dissolvendo por um complexo processo de aprender fazendo”, permitindo-lhe
compreender com mais profundidade sentidos até então não detectados de
seus referenciais culturais dos seus observados (AMOROSO, 2002, p. 16).
Em consonância com a prática de OP, utilizei o caderno de campo como um
instrumento essencial na observação do cotidiano, compondo-se principalmente de
minhas impressões subjetivas em que, fora do ambiente de participação, registrei dados
adquiridos através das atribuições de sentidos, sentimentos, particularidades de meu
interesse enquanto pesquisadora. Os registros no diário de campo me possibilitaram
compreender um bojo de significações próprias, adquiridas durante minha história de
vida e também durante minha vivência na aldeia, num processo dialético constante,
coadunando com o que diz Macedo (2006, p.134): “ao elaborar seu diário, o
pesquisador constitui-se um sujeito entre outros sujeitos, humaniza-se, dialetiza-se [...]”.
Dar voz aos sujeitos da pesquisa foi também um passo muito importante. Tendo
em vista o objetivo de compreender uma realidade educacional própria de uma cultura
indígena, através de uma concepção humanista, referindo-me a homens e mulheres,
que fazem parte dos fazeres e dizeres culturais associados à colheita de milho-verde,
enquanto autores e sujeitos do mundo (SANTOS, 2006).
Nesse sentido, tendo em vista o olhar sobre os dados êmicos (do sujeito) e os
dados éticos (do pesquisador), optei ainda por realizar entrevista com cinco sujeitos, as
quais foram utilizadas como interação mútua, de participação, na modalidade de
entrevista semi-estruturada ou parcialmente estruturada, possibilitando o diálogo entre
os sujeitos que interagem no processo de pesquisa em busca de dados mais autênticos
e, por vezes, inusitados ao pesquisador, dados que, geralmente, só aparecem em
momentos de conversas informais (AMOROSO, 2002), como, por exemplo, o fato de
que, no início da pesquisa, eu tinha uma idéia de que iria tomar como pano de fundo o
BANDEIRA G. C. M. Rituais Associados à Colheita de Milho-verde na Aldeia dos Índios Gavião Kikatêjê 27
ritual Tep Krã
7
. Porém, após as conversas informais e parcialmente estruturadas,
compreendi que existem outros rituais associados à colheita de milho-verde e que,
esses rituais, de alguma maneira, se relacionam e integram elementos da
biodiverdidade local, informações que configuraram meus interesses de pesquisa e
contribuíram para mudanças inusitadas nos caminhos da mesma.
Ressalto ainda, que, durante minha vivência na aldeia, percebi a presença de
desenhos em vários ambientes, com os quais alguns indígenas me apresentavam sua
maneira de perceber a realidade, como forma de ensinar sobre como ocorrem alguns
processos de feitura de artefatos rituais, apresentando formas, cores e usos de
elementos naturais diversos, além do significado de seus grafismos em pinturas
corporais, por isso os desenhos foram incorporados na pesquisa.
Esse recurso visual, aliado às falas dos sujeitos, possibilitou compreender a
necessidade de inclui-os neste trabalho, para mostrar as relações que se estabelecem
sobre os processos educativos implícitos na cultura do povo em estudo, pois,
“representações gráficas feitas pelos informantes, seja em papel ou na areia, são de
imensa valia, e são muitas vezes utilizadas para ensinar àqueles que não sabem: os
jovens e os pesquisadores” (AMOROSO, 2002, p. 18).
Durante a construção e execução dos fazeres rituais associados à colheita do
milho-verde, utilizei ainda registros fotográficos que serviam para contextualizar o lócus
da pesquisa e dar visibilidade a situações diversas relacionadas ao estudado. As
imagens favorecem a experiência perceptiva através da linguagem visual, que configura
o texto não-verbal, o qual se aglutina às informações verbais sobre o pesquisado.
“Apreendem-se formas, volumes, cores, movimentos, que adquirem num primeiro
momento, estruturas frásicas e significantes” (MACEDO, 2006, p. 125). O flash adquire
uma semântica no instantâneo fotográfico, imbuído de significados interpretáveis, ao se
relacionar com outros dados da pesquisa.
Dessa forma, procurei não fazer da dissertação um mero álbum fotográfico,
ilustrativo, do que se apresentou na aldeia Kikatêjê, mas utilizei imagens
7
Equivalente a Tep Krã Tep ou Tuti: peixe; Krã: cabeça. Inicialmente o Sr. Ropré se referiu a
“brincadeira de peixe”, a qual envolve o uso de máscaras, como Tep Krã. Isso foi repreendido, depois,
pelo cacique da aldeia, informando-me que o povo Kikatêjê se acostumou a chamar essa sociabilidade
de Tep Krã por que viviam junto ao povo Parkatêjê. Então, aprendi que entre os Kikatêjê se deve
chamar Tuti Krã, uma palavra variante Macro-Jê.
BANDEIRA G. C. M. Rituais Associados à Colheita de Milho-verde na Aldeia dos Índios Gavião Kikatêjê 28
principalmente como registros coerentes com os objetivos desta pesquisa e passíveis
de percepção e interpretação. Logo, busquei selecionar imagens que caracterizam o
contexto da aldeia Gavião Kyikatêjê, mostrando várias formas de apropriação da
realidade por esse povo, imagens que caracterizam suas formas de comunicação e,
ainda, de atividades relacionais que expressam, dentre outros, os processos educativos
recorrentes aos fazeres e dizeres discutidos.
Importa-me esclarecer que não mostro, nesta pesquisa, tudo o que é possível ler
nos dizeres e fazeres estudados. Enfatizo apenas uma das formas de perceber a
realidade presenciada na aldeia, revelando o olhar do interpretante
8
que percebe,
extrapola o campo dos sentidos sob a realidade latente, pois:
a percepção é sempre um processo seletivo de apreensão. Se a realidade é
apenas uma, cada pessoa a de forma diferenciada; dessa forma, a visão
pelo homem das coisas materiais é sempre deformada. Nossa tarefa é a de
ultrapassar a paisagem como aspecto, para chegar ao seu significado. A
percepção não é ainda o conhecimento, que depende de sua interpretação e
esta será tanto mais válida quanto mais limitarmos o risco de tomar por
verdadeiro o que é só aparência (SANTOS, 2008, p. 62).
Contudo, a proposta metodológica desta pesquisa não se afasta da
compreensão de que o modo de pensar o universo Timbira, especificamente na aldeia
Gavião Kikatêjê, está imbuído de significados, linguagens sociais, narrativas visuais,
míticas, simbolismos que “borram linhas de contorno” na realidade das práticas de
(re)produção do fenômeno cultural.
Por esses aspectos, tive a preocupação com os processos que se dão em torno
dos fazeres e dizeres próprios dos rituais associados à colheita do milho-verde, que
(re)produzem signos interpretáveis e contextualizados. Assim, em todos os aspectos da
pesquisa, busquei um caráter processual, em que se (re)constrói, continuamente, essa
manifestação cultural singular interrelacionada com contexto diverso da vida na aldeia.
Tendo em vista as conexões do espaço habitado (SANTOS, 2008), no contexto
dos fazeres e dizeres indígenas estudados, entendi que a análise de conteúdo seria
apropriada para discutir os dados gerados, pois possibilita a leitura e interpretação de
diversas fontes. Esse procedimento de análise foi adotado para a sistematização dos
8
Numa perspectiva semiótica, o termo “interpretante” é apresentado aqui sob a definição de interpretante
dinâmico, isto é, aquilo que o signo efetivamente produz na sua, na minha, em cada mente singular
(SANTAELLA, 2006, p. 60).
BANDEIRA G. C. M. Rituais Associados à Colheita de Milho-verde na Aldeia dos Índios Gavião Kikatêjê 29
dados coletados, a fim de mostrar os processos educativos e compreender como os
elementos da biodiversidade local são incorporados nesses fazeres e dizeres que são
culturais.
Ou seja, não me detive em fazer uma classificação de elementos da
biodiversidade local, nem listar conhecimentos indígenas, como numa lista
enciclopédica ou suma etnológica, mas mapear e analisar os referidos elementos, suas
formas de aplicabilidade e os saberes envolvidos, a fim de discutir processos
educativos que se estabelecem junto a elementos da fauna, da flora, do cosmo, e de
outras relações intrínsecas à vida indígena, tendo como principal foco o conteúdo
presente nas diversas fontes estudantes.
Essa análise foi permeada por informações adquiridas no caminhar da pesquisa,
junto aos sujeitos participantes, o que é possível num processo de análise de conteúdo,
como afirma Franco (2007):
são perfeitamente possíveis e necessários o conhecimento e a utilização da
análise de conteúdo, enquanto procedimento de pesquisa, no âmbito de uma
abordagem metodológica crítica e epistemologicamente apoiada numa
concepção de ciência que reconhece o papel ativo do sujeito na produção do
conhecimento (p. 10).
A adoção por esse tipo de análise levou em conta que os dados apresentam
significados culturais. Assim, procurei olhar com cuidado para interpretá-los não apenas
a partir de minha percepção, mas, sobretudo, tendo em vista as categorias de contexto
definidas: o Tuti Krã e o Hõprykrã, de onde os dados emergiram.
Nesse sentido, a partir de Moraes (1999), defini os passos para a análise, os
quais apresento a seguir:
1º) Reuni e li os dados coletados, gravações das falas, fotos, desenhos e escritos
de diário de campo e separei apenas os que estavam estreitamente relacionados aos
objetivos da pesquisa e, de alguma forma, respondiam as questões norteadoras;
2º) Após ter filtrado, da miscelânea de informações registradas, apenas o que
seria importante para discutir neste trabalho, codifiquei os tipos de dados para fins de
organização, da seguinte maneira: as falas transcritas e digitadas. Após serem lidas,
foram formatadas com cores diferentes para distinguir as informações de cada
BANDEIRA G. C. M. Rituais Associados à Colheita de Milho-verde na Aldeia dos Índios Gavião Kikatêjê 30
categoria de contexto – o que era referente ao Tuti Krã de uma cor e o que era
referente ao Hõprkrã de outra cor;
3º) Em seguida, trabalhei por categoria de contexto. Reli os dados para identificar
“unidades de análise” e defini as seguintes: “O Mito de Origem”, “Confecção das
Cabeça de Peixe”, “Corrida de Toras” e “Pinturas”, presentes no contexto do Tuti Krã; e
ainda, “A Roça Tradicional”, “Pinturas Corporais”, “Jogo de Petecas”, “Corrida de Toras”
e “Dança”, estes últimos, presente no contexto do Hõprykrã. Essas categorias foram
definidas, pois são etapas significativas dos rituais associados à colheita do milho-verde
na aldeia Gavião Kyikatêjê e possibilitam discutir processos educativos a elas
recorrentes.
4º) Definidas essas unidades de análise, isolei nas falas, fotos e desenhos,
informações referentes a elas e que, de alguma maneira, ensejam processos
educativos que incluem elementos da biodiversidade local. Em algumas dessas
unidades (“O Mito de Origem”, “Confecção das Cabeça de Peixe”, “Corrida de Toras”),
para melhor visualização das informações, construí quadros demonstrativos contendo
elementos da biodiversidade local, suas aplicabilidades e saberes envolvidos, os quais
foram, em seguida, discutidos conforme as escolhas teóricas desta pesquisa. Em outras
unidades de análise, foram apresentadas imagens e falas que se expressam fazeres e
dizeres decorrentes de modos de educar, discutindo os processos educativos
identificados e suas práticas próprias de aprendizagem.
Esse trabalho de sistematização e análise de dados implicou, durante toda o
caminhar da pesquisa, “idas e vindas” nas “unidades de contexto”, às quais voltei
constantemente, a fim de não perder o sentido originário das informações, ou seja, a
noção e apreensão do universo pela pessoa indígena;
Esse movimento de releituras dos dados, nas “idas e vindas” às categorias de
contexto e unidades de análise, me permitiu uma interpretação dos fazeres e dizeres
que não os descaracteriza no seu contexto de formas simbólicas, mas os valoriza nesse
movimento. Portanto, adotei uma vertente interpretativa própria de uma proposta de
análise de conteúdo, em que se discute as unidades de análise e seus elementos, sem
perder a perspectiva de seu conjunto de significados e, ainda, construindo as relações
teóricas necessárias para a interpretação e compreensão do estudado
.
Assim, “a teoria
BANDEIRA G. C. M. Rituais Associados à Colheita de Milho-verde na Aldeia dos Índios Gavião Kikatêjê 31
é construída com base nos dados e nas categorias de análise [...]”, possibilitando que a
própria construção da teoria seja uma interpretação (MORAES, 1999, p. 25).
Nesta pesquisa, a teorização é feita a partir das mensagens do investigado, o
que caracteriza esta análise de conteúdo como de “nível latente”, em que o pesquisador
busca sentidos implícitos às mensagens. Portanto, trata-se de uma abordagem
caracteristicamente indutiva, construtiva e subjetiva, reconstruindo as categorias usadas
pelos sujeitos para expressarem suas próprias experiências e sua visão de mundo, e
assim, chegar à teoria. Logo, “teorização, interpretação e compreensão constituem um
movimento espiral em que, a cada retomada do ciclo, se procura atingir mais
profundidade na análise” (op. cit.).
Nessa abordagem, as experiências e noções de visão de mundo dos sujeitos
foram, de alguma maneira, captadas e tomadas como imprescindíveis no processo de
teorização, interpretação e compreensão do estudado. As expressões, verbais e não-
verbais, relacionadas a elementos de cultura material e/ou imaterial, traduzem
mensagens diretamente articuladas ao contexto social, histórico, cultural e biológico do
estudado, valorizando sujeitos, que tanto tempo foram silenciados pelas agruras de
uma ciência dogmatizada, e que atualmente são considerados detentores de
conhecimentos significativos à vida (OLIVEIRA, 2008).
Para melhor compreensão deste estudo e seu processo de construção,
organizei-o da seguinte forma:
a) Introdução, construída em partes: POR ONDE CAMINHEI, na qual consta o
histórico da pesquisa; COM QUEM CAMINHEI, em que forneço informações sobre os
sujeitos participantes; e, COMO REGISTREI E ANALISEI A CAMINHADA, momento
da introdução em que ofereço ao leitor informações sobre os passos metodológicos da
pesquisa e a forma como os dados foram tratados, analisados e apresentados nas
Seções da dissertação.
b) Na Seção I, intitulada ESPAÇO-AMBIENTE-NATUREZA AMAZÔNICO,
discuto o modo de apreensão da realidade na referida aldeia lócus da pesquisa, a
maneira indígena de se identificar, a história de suas terras e o contexto característico
da aldeia, a fim de compreender essa realidade dentro do mosaico de formas em que o
“amazônico” se apresenta em sua diversidade.
BANDEIRA G. C. M. Rituais Associados à Colheita de Milho-verde na Aldeia dos Índios Gavião Kikatêjê 32
c) Na Seção II, denominada RITUAIS ASSOCIADOS A COLHEITA DO MILHO-
VERDE, MOSAICO DE UMA EDUCAÇÃO DIALÓGICA, está posto, de modo geral, os
rituais associados à colheita do milho-verde, e nesta, discuto o mito enquanto prática
pedagógica, além de mostrar toda a narrativa mitológica do mito de origem dos rituais
estudados na fala do Sr. Ropré, descrevo também as etapas de realização da
“brincadeira de petecas”, presenciadas durante minha vivência na aldeia.
Essas duas primeiras seções respondem a uma das questões norteadoras desta
pesquisa que trata sobre compreender a forma de concepção, organização e realização
dos rituais estudados.
d) Na Seção III, PROCESSOS EDUCATIVOS DA VIVÊNCIA NOS RITUAIS fo
mapeamento e discussão dos fazeres e dizeres presentes nos referidos rituais,
sobretudo, os associados a elementos da biodiversidade local, compreendidos e
analisados aqui em vários processos educativos e suas práticas de aprendizagem.
Por fim, nas CONSIDERAÇÕES QUE NÃO PRETENDEM SER FINAIS, trato do
que aprendi com o estudo, suas contribuições para os meios envolvidos na investigação
e, principalmente, aponta possibilidades de continuidade de pesquisa e sua relevância
para a área de Educação, especialmente na Amazônia. Nessa parte do texto, não me
proponho finalizar a pesquisa, nem digo que aqui se esgotam as análises sobre o
estudado, muito menos proponho notas de conclusão, pois considero que o caminho
dessa discussão foi apenas iniciado.
BANDEIRA G. C. M. Rituais Associados à Colheita de Milho-verde na Aldeia dos Índios Gavião Kikatêjê 33
Seção I. ESPAÇO-AMBIENTE-NATUREZA AMAZÔNICO
Sempre que alguém trata à respeito de um fenômeno da/na Amazônia,
preocupa-se em situar o leitor sobre sua dimensão territorial: a Amazônia, além de ser
uma região de natureza privilegiada por sua diversidade, possui cerca de seis milhões
de quilômetros quadrados que se estendem do Atlântico às bases da Cordilheira dos
Andes, inclui Brasil, Bolívia, Colômbia, Equador, Guiana, Peru, Suriname e Venezuela,
sendo que o Brasil exerce “soberania” sobre 64% dessa dimensão. Além da importância
referente a exuberância de seu bioma, que constitui 20% da biodiversidade do mundo,
a “megadiversidade amazônica”. “Estima-se a existência de 1,8 milhão de espécies
distintas de plantas, animais e microorganismos em território brasileiro, uma diversidade
genética colossal, daí o termo megadiversidade” (BECKER, 2008, p.40).
Esses dados, de certo modo, repetem-se em textos que fazem alguma relação
com o assunto. Não questiono o mérito de tais textos, mas percebo que é como se a
Amazônia fosse comparada apenas a uma reserva biológica, onde tantos reinos da
biota estivessem guardados nela.
No entanto, compreendo a Amazônia enquanto espaço de possibilidades, que se
metamorfoseia, se transforma e “borra” fronteiras ao se fundir numa idéia chamada
“amazônias”. Esse espaço não é apenas a dimensão territorial em que os reinos se
dispõem ou estão simplesmente postos, mas é o meio pelo qual a vida se torna
possível. Refiro-me à vida levando em consideração suas complexas nuances, sua
diversidade, pois penso o espaço como a potência de suas conexões (MERLEAU-
PONTY, 1994).
“O espaço não é nem uma coisa nem um sistema de coisas, senão uma
realidade relacional: coisas e relações juntas” (SANTOS, 2008, p. 27). Essas coisas,
que são os bens materiais e imateriais, caracterizam-se como formas que,
relacionando-se, constituem o ambiente. A partir de Leff (2003, p. 24), o ambiente é um
“conceito que abre a possibilidade do ser como construção social”. Portanto, o espaço-
BANDEIRA G. C. M. Rituais Associados à Colheita de Milho-verde na Aldeia dos Índios Gavião Kikatêjê 34
ambiente é o lugar onde se relacionam esses bens num conjunto de possibilidades,
enquanto totalidade
9
.
A partir dessa concepção, falo de “amazônias” enquanto totalidade que, quanto
mais diversa mais singular, considerando sua variedade de elementos vivos e não-
vivos, de ritmos, gostos, cheiros, paisagens; de pessoas, crenças, línguas, artes e de
muitas formas de ver o “outro”, ou seja:
Não existe uma cultura, uma identidade amazônica no singular. A concepção
deste espaço é plural. As diferentes manifestações culturais trazem marcas do
híbrido e da mestiçagem e reconhecem as presenças indígenas, africanas,
libanesas, nipônicas, entre tantas outras (FARES, 2004, p. 86).
Neste sentido, essas “amazônias”, se apresentam em modos tangidos por
cosmologias diversas, ritos fundamentados em mitos singulares e de origem milenar,
contrastando com os modos globalizados das cidades que crescem relativamente perto
das aldeias “nativas” e comunidades ribeirinhas, criam um mosaico
10
com “matizes de
um disco cromático” ainda pouco conhecido.
Essa diversidade de “matizes” se apresenta nas correlações da
biosociodiversidade, compreendida como o natural em suas múltiplas dimensões
integradas, como totalidade biológica, social, econômica, política, histórica e cultural
(FONSECA, 2009). A “natureza” histórica e socialmente construída na interação dos
entes com o meio sico, considera uma concepção essencialmente histórica da
ecologia humana (VIVEIROS DE CASTRO, 2002), a partir de uma noção da
antropologia ambiental
11
.
Essa “natureza”, referida, construída histórico e socialmente, é substrato de
relações de ões, ou seja, é um conjunto de coisas e relações que não se reduz
9
Compreendo, aqui, “totalidade” como categoria epistemológica para apreender a complexidade
ambiental, esta entendida como o “entrelaçamento da ordem física, biológica e cultural; a hibridização
entre a economia, a tecnologia, a vida e o simbólico” (LEFF, 2003, p.39).
10
Mosaico é uma palavra de origem grega – mouseín: mesmo vocábulo que deu origem à palavra música
– significa que é próprio das musas. Foi criado na época do apogeu Greco-romano. Os primeiros
registros de mosaicos encontrados são datados de 3.500 anos a. C., na região da Mesopotâmia. Em
sacórfagos das mais antigas múmias do Egito também são encontrados mosaicos, em sua decoração
externa. Mosaico é um tipo de arte visual cuja cnica consiste em embutir pequenas peças de pedra ou
outros materiais (vidro, mármore, cerâmica, etc) para, a partir da união e integração das pequenas formas
embutidas, formar uma imagem maior, preenchendo sobre um plano, um suporte.
11
“[...] empenhada em revelar o caráter transformador do homem em sociedade diante do ambiente
natural, no caso, instigado particularmente pela dimensão da cultura, da sociedade e das suas dinâmicas
(WALDMAN, 2006, p. 36).
BANDEIRA G. C. M. Rituais Associados à Colheita de Milho-verde na Aldeia dos Índios Gavião Kikatêjê 35
apenas à categoria das coisas que são biológicas, mas de uma totalidade, tratada
anteriormente, enquanto conjunto de possibilidades. Nesse sentido, os termos “espaço”,
“ambiente” e natureza” se completam sem distinções e o tratados aqui enquanto
composto de objetos teóricos que caracterizam o conceito mais completo que tenho
para pensar uma realidade que é dialética, múltipla, interdimensional e complexa
12
.
Este trabalho trata sobre o “espaço-ambiente-natureza” de uma sociedade que
se apresenta com modos de vivência próprios dessa região, ou seja, de um
ecossistema e de uma sociedade de etnia
13
indígena
14
, fundamentados numa maneira
própria de ver o mundo e atualizar-se para a cultura local, por meio de processos que
podem ser considerados atos educativos imbuídos de sentidos e significados
ameríndios.
Olhar uma sociedade enquanto totalidade requer identificar como as coisas e as
relações se tornam possíveis nesse espaço-ambiente-natureza”. No caso deste
estudo, essa identificação se inicia pela compreensão da pessoa pertencente a uma
etnia indígena, o que requer compreender quem são os povos Jê-Timbira e o que os
caracteriza, pois o pano de fundo desta pesquisa incorpora a cultura do povo que habita
a aldeia Gavião Kikatêjê, índios de herança sócio-cultural dos sub-grupos étnicos Jê-
Timbira (grupo mais amplo), ou seja, caracterizados como índios Timbira e falantes da
língua nativa .
Conhecer as formas de apropriação do espaço por esse povo e o que caracteriza
como grupo étnico Timbira, é condição necessária para me aproximar da compreensão
da noção nativa de concepção do cosmo, organização e realização de seus rituais, fator
de suma importância em estudos sobre fenômenos culturais indígenas, pois, “conhecer
12
A complexidade aqui se trata de uma escolha epistemológica que implica um processo de
desconstrução do pensado, é uma resposta ao constrangimento causado pela unificação ideológica,
tecnológica e econômica sobre a natureza (compreendida como natureza-mundo). A partir da concepção
de “complexidade ambiental”, que abre a possibilidade do diálogo de saberes e, sobretudo, concebe as
subjetividades de valores e interesses nas diversas estratégias de apropriação da natureza (LEFF, 2003).
13
Compreendo etnia enquanto grupo mais amplo que caracteriza os grupos étnicos localizados em
aldeias distintas, enquanto grupo de pessoas que compartilham uma cultura distinta e comum entre si,
comungam instituições, ideologias e costumes, configurando um sentido de homogeneidade. A etnia está
no campo da representação coletiva (POUTIGNAT, 1998).
14
São chamados indígenas os povos a habitarem por essas terras da América antes da invasão
européia, por ocasião dos invasores terem chegado a “nova terra” imaginando terem encontrado um novo
caminho para as Índias. Essa explicação define o emprego da palavra, talvez pelo equívoco da esquadra
de Pedro Álvares Cabral, em 1500, mas não define o que é a pessoa indígena como ser culturalmente
diferenciado das sociedades ditas ocidentais.
BANDEIRA G. C. M. Rituais Associados à Colheita de Milho-verde na Aldeia dos Índios Gavião Kikatêjê 36
o conhecimento indígena passa pelo conhecimento de suas estruturas sociais”
(VIVEIROS DE CASTRO, 1995, p. 116). Assim, no item seguinte trago algumas
reflexões sobre a percepção da pessoa indígena, especialmente pertencente à nação
Timbira.
1.1 “NA ALDEIA KIKATÊJÊ A GENTE É ÍNDIO TIMBIRA QUE FALA
A titulação deste item traduz a fala de um indígena da aldeia Kikatêjê em que o
reconhecimento de si e do outro está presente. (Re)afirma uma identificação enquanto
pertencente a uma raça
15
, a uma etnia, a um lugar, a uma cultura e tradicionalmente
falante de uma língua que lhe é própria.
Visto a variedade de concepções, atualmente, sobre o que é ser índio e pela
distinção de povos indígenas ainda resistentes e militantes em prol da identificação
territorial-cultural e os conflitos nas relações inter-étnicas vivenciadas com os não-índios
(kup) e seus objetos de consumo, restam muitas dúvidas sobre a pergunta que não
cala: O que é ser índio?
Pela variedade de respostas que podemos encontrar, para esta pergunta, nas
sociedades indígenas e não-indígenas, a questão pode se transformar em confusão.
Assim, neste trabalho, legitimo a identificação dos habitantes da aldeia Gavião
Kikatêjê, que se reconhecem enquanto povo de herança cultural indígena dos grupos
Timbira.
Atualmente, ser índio requer estar ligado a um grupo étnico indígena e ligado a
um tronco lingüístico; incorporar as lutas indigenistas por direitos de seus povos, residir
ou estar ligado a uma aldeia (porque hoje muitos indígenas vão para as grandes
cidades cursar graduação, se especializar em alguma área de conhecimento que seja
de interesse de seu povo); e manter sociabilidades entre as famílias, seus pares e o
ecossistema local.
Esses povos, prováveis primeiros habitantes do território geográfico americano,
se caracterizam distintamente e se diferenciam entre si por processos múltiplos de
15
Conceito de “raça” para relacionar ao parentesco biológico efetivo em diferenças percebidas no
fenótipo (POUTIGNAT, 1998).
BANDEIRA G. C. M. Rituais Associados à Colheita de Milho-verde na Aldeia dos Índios Gavião Kikatêjê 37
apreensão da realidade, de concepção do universo, de relações sociais e culturais
locais que dialogam com os ecossistemas.
Entretanto, ao longo da história de contato entre povos indígenas e outros povos
habitantes da América, construiu-se concepções dotadas de incertezas e
silenciamentos gerados por armadilhas de um etnocentrismo exacerbado. Algumas
dessas concepções se tornaram generalizadas, movidas por forças de poder das
sociedades dominantes – os colonizadores de terras e, consequentemente, de culturas.
Uma dessas armadilhas do etnocentrismo, talvez a maior de todos os tempos, é
a “ilusão do primitivismo”, legado de uma notável prosperidade da visão evolucionista
de Darwin, na segunda metade do século XIX, com a idéia de que esses povos eram
“[...] fósseis vivos que testemunhavam do passado das sociedades ocidentais”, os
civilizados (CARNEIRO DA CUNHA, 1992, p. 11). Assim, eram considerados povos de
“culturas arcaicas”, sem escrita (prevalecendo a cultura oral) e de organização social
simples e, se por definição o simples é mais fácil de ser estudado, então era preciso
começar o estudo das culturas por esses povos (CUCHE, 2002).
Assim, a história dos povos considerados indígenas, por muito tempo fora
contada a partir do ângulo de observação de seu colonizador, dotada de etnocentrismo
e noções científicas que circulam no mundo ocidental. Conscientes disso, hoje em dia,
várias aldeias indígenas possuem escola. Os velhos querem aprender a ler e
escrever em português, para poderem contar a história de seu povo, para resolverem o
problema que tantos séculos se arrasta: a concepção de que as comunidades de
cultura oral não tem história, simplesmente por que não a escrevem e/ou acumulam
dados.
Gersem Luciano Baniwa (2006, p. 38), indígena, professor e doutorando na UNB,
afirma o orgulho de ser índio enquanto reconhecimento de uma cidadania indígena
brasileira, quando diz: “Ser índio transformou-se em sinônimo de orgulho identitário”.
Além disso, em sua obra - “O Índio Brasileiro: o que você precisa saber sobre os povos
indígenas no Brasil de hoje” - ressalta a importância de trabalhar esse orgulho de sua
raça com as novas gerações, a fim de contribuir para a atualização dos modos de ser
da pessoa indígena.
BANDEIRA G. C. M. Rituais Associados à Colheita de Milho-verde na Aldeia dos Índios Gavião Kikatêjê 38
Como mostrei anteriormente, a identificação indígena perpassa a ligação com a
vida em uma aldeia. A Aldeia (krĩ, em língua Jê), como codificação marcada na
sociedade ocidental, e principalmente no Brasil, é comumente um termo que significa
um pequeno povoado de índios, o que não significa ser um condomínio residencial para
índios, pois os processos de construção das mentalidades ecológicas-culturais, que são
atividades vitais das culturas indígenas, foram desenvolvidos durante milhares de anos
em espaços geográficos e ecossistemas caracteristicamente diversos e imbuídos de
sentidos e significados que dão vida e simbologia aos espaços indígenas nos territórios
nacionais.
O “espaço-ambiente-natureza” indígena é interdimensional e complexo. Envolve
relações de objetos materiais e imateriais na sua dinâmica cultural relacionada a uma
maneira própria de pensar o universo. Assim, é o bojo de possibilidades objetivas e
subjetivas que caracterizam a existência desse espaço, ou seja, é sua totalidade
enquanto etnia Jê-Timbira.
Segundo Lima (2003), os Jê-Timbira falam línguas muito semelhantes e talvez
mutuamente inteligíveis, além de se assemelharem culturalmente, distinguem-se pelo
corte de cabelo (linha
na região das
têmporas), prática de
corridas de toras e,
caracteristicamente,
por se organizarem em
aldeias circulares (fig.
1), cuja espacialidade
sintetiza o cosmo do
grupo étnico Timbira.
Figura 1. Uma aldeia Timbira.
Fonte. Vincente Carelli.
Esta foto (fig. 1), de Vicente Carelli, mostra uma aldeia Timbira localizada em
região de cerrado que apresenta um bioma campestre, com vegetação rasteira e
BANDEIRA G. C. M. Rituais Associados à Colheita de Milho-verde na Aldeia dos Índios Gavião Kikatêjê 39
pequenas faixas de floresta, diferente das aldeias Timbira localizadas no Estado do
Pará, que são circuladas por floresta tropical fechada, de mata alta e diversificada, fato
que não altera a organização espacial das aldeias caracterizadas desse grupo étnico.
Nimuendajú
16
, por ter realizados estudos junto aos Jê-Timbira, caracteriza-os
como detentores de “[...] uma organização social complexa e um sistema ritual
altamente desenvolvido” (GORDON, 1996, p.07).
As comunidades Timbira organizam suas sociabilidades com base nas relações
de parentesco. Assim, de modo geral, para que um indivíduo participe de uma
sociedade cerimonial dentro das atividades rituais, é necessário que ele receba
nomeação, através de seus segmentos residenciais (domésticos), os quais se
relacionam ao parentesco organização social pertinente no cotidiano e nas relações
cerimoniais do grupo. Esse sistema vale para estabelecer todas as formas de
relacionamento no krĩ, ou seja, é a partir de seus laços familiares que o indivíduo
reconhece sua posição adequada na realidade social (LIMA, 2003).
De modo geral, nos grupos Jê-Timbira, a realidade é construída socialmente num
processo dinâmico. O conhecimento dessa realidade se na interpretação do
processo de sociabilidades entre as categorias coletivas (sociedades internas,
específicas da linhagem), as quais constituem organização, práticas e saberes locais.
Seeger (1987, p. 15) pontua a noção dessas categorias coletivas:
[...] ao trabalhar sobre e com as categorias nativas, faz uma opção
epistemológica que nos parece definir a especificidade da Antropologia. Tomar
a noção de pessoa como uma categoria é tomá-la como instrumento de
organização da experiência social, como construção coletiva que significado
ao vivido.
Nesse sentido, Seeger está fazendo uma referência à concepção de categorias
coletivas de Marcel Mauss (1872-1950), o qual, como constituinte de uma linha
francesa de pensamento antropológico, compreende que analisar antropologicamente o
16
Etnógrafo Curt Unkel (1883 1945), nominado Nimuendaju pelos índios Guarani, pesquisador que a
partir de seus estudos, no Brasil, traz os povos de língua para compor o universo antropológico “[...]
nas décadas de 40 e 50 entram efetivamente para a literatura etnológica da América do Sul(GORDON,
1996, p.01). A primeira monografia de Nimuendajú, publicada em português, foi “Os Apinayé”, refere-se a
uma descrição minuciosa ocasionada por sua vivência entre os índios , Apinayé, pelas margens do rio
Tocantins.
BANDEIRA G. C. M. Rituais Associados à Colheita de Milho-verde na Aldeia dos Índios Gavião Kikatêjê 40
conceito de pessoa é, sobretudo, estudar formas simbólicas, comunicação implícita de
uma cultura específica e seu processo social dinâmico.
Portanto, o sistema de parentesco adotado pelas sociedades Timbira, torna o
estudo isoladamente específico de uma identificação cultural local distinta, diferente do
modo de vida ocidental. Desse sistema, origina-se a imposição e/ou transmissão de
nomes através das relações de parentesco entre tios (as) e sobrinhos (as). As metades
matrilineares e matrilocais (LÉVI-STRAUSS, 1975), características na organização das
aldeias Timbira Orientais
17
, possuem nomes pessoais femininos e masculinos
apropriados.
Essas metades são definidas pela linhagem (ligações por parentesco), a qual se
relaciona à localização e ocupação desses grupos no cotidiano da aldeia. Nimuendajú
(1983), em sua etnografia sobre os Apinayé (também um grupo de etnia Timbira)
explica que essa organização por metades não tem relação alguma com aspectos
religiosos ou econômicos, quando assim se refere:
Nos jogos e esportes, especialmente nas corridas de tora, formam as metades
os dois partidos competidores. No mais, suas funções são, sobretudo de
natureza cerimonial. Não cabe às metades nenhuma função religiosa ou
econômica (NIMUENDAJU, 1983, p. 19).
O fato de que a sociedade se fragmenta em grupos internos menores
(domésticos), e a partir dos segmentos residenciais configura papéis sociais distintos,
estabelece um paradoxo crucial, isto é, ao mesmo tempo em que o todo se fragmenta
nas individualidades. Tais fragmentos coexistem e constituem o todo na infra-estrutura
da realidade social, como um mosaico em constante construção.
Isto se porque os povos se apropriam da realidade de modos distintos. Estou
tratando da “noção social de indivíduo, quando ele é tomado pelo seu lado coletivo:
como instrumento de uma relação complementar com a realidade social” (SEEGER,
1987, p. 13).
Essa noção pode se aplicar à configuração das sociedades indígenas Timbira,
de maneira que em outras sociedades (indígenas ou não) essa noção de pessoa pode
17
Os povos de etnia I Orientais no Brasil são: Kreyé (de Bacabal e de Cajuapará), Kukokamekrá, Krikatí,
Pukobye (Gaviões, Gaviões do Oeste (Parakateye), Krepukateye, Krahô, Porekamekra, Canela
(Kenkateye, Apanyekra) e Xakamekra (NIMUENDAJÚ apud. GORDON, 1996, p. 06).
BANDEIRA G. C. M. Rituais Associados à Colheita de Milho-verde na Aldeia dos Índios Gavião Kikatêjê 41
ser totalmente distinta. Desse modo, a linhagem se torna um idioma definidor da noção
ideal de pessoa nas relações socioculturais dos povos ligados a esse grupo étnico.
O sistema de linguagem de códigos sociais configura o que Seeger (1987)
chama de originalidade das sociedades tribais brasileiras, cuja elaboração consiste na
noção de pessoa como categoria relacionada à corporalidade, enquanto linguagem, em
que o corpo fala por meio de seus papéis sociais demarcados numa territorialidade
trans-específica.
Compreendo, como Santos (2008, p. 84), que “[...] a configuração territorial é
sempre um sistema, ou melhor, uma totalidade, ainda que inerte”. Essa totalidade é
uma sistema de medidas em que coexistem os elementos da natureza natural e
elementos da natureza transformada, criada, em relação de dependência. Enquanto, o
diálogo trans-específico que se na configuração territorial é compreendido por
Viveiros de Castro (2002:357) como conjunto de conteúdos imateriais: suas crenças,
mitos, afetos, etc, principalmente o conteúdo das crenças, o qual toma por base o
“xamanismo” que rege o modo de conhecer as coisas e se relacionar com elas.
Esse aspecto está associado ao perspectivismo ameríndio
18
, possível a partir de
relações de ações implícitas no cotidiano, o que desvela a forma de ser da pessoa
indígena no corpo social.
Essa forma de organização irradia para as práticas culturais como um todo, ou
seja, cria uma trama de conhecimentos práticos que tecem o corpo social. Dessa forma,
o corpo não se constitui tão somente de material genético, mas também, e
principalmente, de uma linguagem simbólica que permeia e estrutura um idioma, formas
de comunicação por gestos, imagens, modos e etc.
Nesse sistema de linguagem simbólica para construção da práxis do corpo, a
noção de pessoa no âmbito da linhagem, delineia o espaço do coletivo social na
sociedade indígena de que estamos tratando aqui. “[...] O corpo humano, entre os Jê-
Timbira, parece dividido da mesma forma: aspectos internos, ligados ao sangue e ao
sêmen, à reprodução física, e aspectos externos, ligados ao nome, aos papéis públicos,
ao cerimonial ao mundo social [...]” (SEEGER, 1987, p. 21). Esses conhecimentos
18
Cf._Perspectivismo e Multiculturalismo na América Indígena” (VIVEIROS DE CASTRO, 2002).
BANDEIRA G. C. M. Rituais Associados à Colheita de Milho-verde na Aldeia dos Índios Gavião Kikatêjê 42
orientam práticas cotidianas relacionadas à sua visão de mundo e classificação dos
elementos constituintes do universo.
A noção de universo apreendida pelos grupos étnicos Jê-Timbira, implica uma
maneira de atuar no mundo e conhecê-lo, pois configura saberes que, sendo
praticados, atualizam sua cultura, valores e padrões de vida característicos dessa etnia.
As características mencionadas estão presentes, de algum modo, nas práticas
cotidianas das aldeias Timbira. Não significa que todos os indígenas brasileiros pensem
e se organizem da mesma forma. Fique claro que, para cada grupo étnico e cada tronco
lingüístico existem maneiras diferentes de apreensão do Universo e construção
particular da noção de pessoa. Essas características, tratadas aqui, são próprias dos
grupos étnicos de herança cultural Timbira, configuram o “espaço-ambiente-natureza“
onde todas as coisas se tornam possíveis e interconectadas, propiciando uma
historicidade distinta para cada povo, conforme sua história cultural, fator que
empreende um olhar contextualizado e crítico de quem se debruça em estudos sobre o
assunto (SANTOS, 2003). A seguir trato de características que, de certo modo,
identificam os Jê-Timbira que habitam atualmente o território paraense.
1.2 “ERA UMA NAÇÃO CHAMADO TIMBIRA, ERA NUMEROSA TIMBIRA
Segundo um senhor que constitui uma liderança entre o povo Akrãtikatêjê, no
passado, existia apenas o povo Timbira. Aconteceram muitas guerras entre vários
grupos do povo Timbira, em que morreram muitos homens, sobretudo os mais velhos,
como os pais e avós que detinham maior conhecimento sobre a cultura Timbira. Por
causa dessas guerras, o povo Timbira se separou por vários Estados, inclusive pelo
Pará.
Desde então, em território paraense, os Timbira passaram a ser reconhecidos
em três povos, os Parkatêjê, os Kikatêjê e os Akrãtikatêjê. Esses três povos foram
denominados por viajantes etnógrafos, no início do séc. XIX, como Gavião por usarem
BANDEIRA G. C. M. Rituais Associados à Colheita de Milho-verde na Aldeia dos Índios Gavião Kikatêjê 43
penas de gavião em seus adornos e flechas (fig. 2), assim como, por, em determinados
ritos, emitirem sons de arara e/ou gavião
19
(ARNAUD, 1964;1976; 1989).
Figura 2. Flechas com penas de aves, produzidas por homens da aldeia Kỳikatêjê.
Fonte. Giza Bandeira. Acervo pessoal (2009).
Esses indígenas, chamado Gavião, habitam uma terra legalmente demarca e
regularizada como “Área Indígena”, no sudeste do estado do Pará. A história dos
territórios Gavião, no sudeste paraense, se mistura violentamente com a história da
exploração de castanha-do-pará, pois os mais ricos e cobiçados castanhais, localizados
nas áreas da margem direita do rio Tocantins, deram origem aos mais antigos conflitos
dessa região, entre os índios Gavião e os castanheiros. Esses indígenas
representavam um obstáculo perigoso aos exportadores e comerciantes de castanha,
em meados do século XIX, pois defendiam suas terras agressivamente contra os
trabalhadores dos castanheiros, que entravam na mata para coletar castanhas
19
Arara e Gavião são denominações de metades matrilineares definidas por relações de parentesco,
associadas a períodos cerimoniais como as “brincadeiras de arara e gavião”: corrida de toras, jogo de
varinhas, brincadeira de petecas, etc.
BANDEIRA G. C. M. Rituais Associados à Colheita de Milho-verde na Aldeia dos Índios Gavião Kikatêjê 44
(LARAIA, 1978). Essa situação contribuiu para o início de um crescente contato desses
indígenas com os kup.
Essa situação de contato, nesse contexto, aumentou na medida em que novos
castanhais eram descobertos na grande mata de floresta tropical da margem direita do
médio Tocantins. Por isso, o Estado começou a intervir na situação, quando “as
palavras pacificação, catequização ou simplesmente extermínio, passaram a se
construir em projetos de ações que moviam pessoas mais interessadas em estabelecer
relações com os índios” (LARAIA, 1978:140), os exploradores dessas terras.
Isso retrata com clareza a enorme diferença da noção de valor tida por uma
sociedade “ocidental” em relação a uma sociedade indígena. Trata-se de um
etnocentrismo exacerbado que gera o problema da incomunicabilidade entre duas
sociedades distintas, capaz de ocasionar fatos como esse, relatado por Laraia (1978, p.
140):
Se no século XIX e nas primeiras décadas do atual, os Gaviões apareciam para
os brasileiros como mais um grupo indígena que inspirava terror, agora, com o
desenvolvimento da produção de castanha, o surgimento dos Gavião como um
obstáculo ao “progresso” e à “civilização” era algo concreto. [...] Deste modo,
vinte anos depois das declarações transcritas acima, o prefeito de Marabá
repetia agora num jornal da capital: “a região do Tocantins está ameaçada de
um colapso econômico o que advirá forçosamente se continuar o atual estado
de coisas, com os índios Gaviões atacando, freqüentemente, os castanheiros
que atemorizados abandonam os trabalhos.
Esses fatos marcaram apenas um início de expropriação cultural por causa da
ganância pelas ricas terras do médio Tocantins. A história dos anos 1500 se repetia
continuamente, pois as terras descobertas eram boas, férteis, mas seus habitantes
eram “selvagens”.
Sem a noção de que a sobrevivência do “espaço-ambiente-natureza” dos povos
Gavião é intrínseco à Biodiversidade local do ecossistema típico do médio Tocantins, os
tidos como brasileiros traçaram suas metas de invasão em prol do “progresso” pelo
desenvolvimento econômico da região, o que gerou muitos conflitos durante várias
décadas, levando o governo a pensar numa forma de pacificação.
Essa pacificação, apoiada pelo governo em parceria com os castanheiros,
representou para os indígenas uma vida de dependência das cidades de Itupiranga e
Marabá. Nesse contexto, o Serviço de Proteção ao Índio (S.P.I.) entrou em ação,
BANDEIRA G. C. M. Rituais Associados à Colheita de Milho-verde na Aldeia dos Índios Gavião Kikatêjê 45
cabendo-lhe a tarefa de garantir qualquer porção de terra aos Gavião (Idem), como se
os indígenas fossem crianças que precisam de proteção e de quem fale por eles!
Tão cobiçada, a pacificação se deu de maneira lenta, pois, aos conflitos
relacionados à exploração de castanha-do-pará, se somaram às frentes indígenas
contra ações da ELETRONORTE e da Companhia Vale do Rio Doce (CVRD - atual
Vale) que na década de 1940 iniciaram as pressões para a instalação de hidrelétricas
no Tocantins e a atividade de garimpo, respectivamente. Em 1945, o SPI conseguiu
uma gleba de terra para os Gavião, no Arumateuzinho (atual cidade de Tucurui), por
meio do decreto nº252/45, área esta que hoje se encontra submersa pelo lago da Usina
Hidrelétrica de Tucurui (ENTE, 2006).
Logo, até que os povos Gavião conquistassem legalmente terras em igual
tamanho e em condições ambientais equivalentes às terras que habitavam antes da
construção da hidrelétrica e da exploração de castanha, ainda demorou cerca de 40
(quarenta) anos, após a inundação de suas antigas terras, quando a Área Indígena Mãe
Maria foi demarcada.
Finalmente, o decreto 93148 de 20 de agosto de 1986 homologou a
demarcação administrativa da Área Indígena Mãe Maria. A demarcação da terra
foi levada a efeito pelo Convênio 059/82 estabelecido com a CVRD, como
condicionante imposta por agências multilaterais externas para a chamada
“área de influência” de Carajás, para apoiar projetos de assistência e ações de
regularização fundiária (ENTE, op. cit., p. 41).
O artigo desse decreto exclui do domínio indígena as faixas territoriais que
correspondem à linha de transmissão da ELETRONORTE e à Estrada Ferro Carajás,
as quais “cortam” as terras de Mãe Maria, fator que ocasiona um atual
descontentamento por parte dos índios Gavião.
Atualmente, nas extensões da Terra Indígena (TI) Mãe Maria (fig. 3), encontram-
se: a denominada Aldeia do Trinta, onde moram juntos os Parkatê-Jê e Akrãtikatê-Jê, e
a aldeia Kikatê-Jê. Essa terra possui aproximadamente 62.488 ha, (compreendidos
entre os rios Jacundá e Flecheiras, afluentes da margem direita do rio Tocantins),
localizada no município de Bom Jesus do Tocantins (sudeste do estado do Pará), a
nordeste de Marabá (principal ponto de referência).
BANDEIRA G. C. M. Rituais Associados à Colheita de Milho-verde na Aldeia dos Índios Gavião Kikatêjê 46
Figura 3. Fragmento de imagem de satélite da Terra Indígena Mãe Maria
Fonte. LANDSAT 223-63 e 223-64 (2005).
A TI Mãe Maria abriga, atualmente, apenas duas aldeias Gavião, pois na Aldeia
do Trinta ainda moram juntos os Parkatê-Jê e os Akrãtikatê-Jê. Estes últimos estão se
organizando, através da associação Apito, para constituírem sua aldeia independente,
assim como os Kikatê-Jê fizeram em 2006, quando, organizados, constituíram
liderança, por meio da associação Kikatê-Jê Amtatí, que possibilitou a criação de uma
nova aldeia sob sua administração. Essa nova aldeia é apresentada no item seguinte.
1.3 A ALDEIA KIKATÊJÊ
Maior parte das informações contidas neste item, fundamentam-se nas minhas
observações de pesquisa de campo, realizadas entre 2007 e 2009, e relatos de sujeitos
da pesquisa, registrados durante os períodos de minha vivência na aldeia dos índios
Kikatêjê, posto que, por se tratar de uma aldeia nova, não foram encontradas, em
BANDEIRA G. C. M. Rituais Associados à Colheita de Milho-verde na Aldeia dos Índios Gavião Kikatêjê 47
publicações acadêmicas, descrições sobre a mesma. A informação que tenho é de que,
anteriormente, esse grupo se fixava na aldeia de outro grupo vizinho que também
habita em terras indígenas Mãe Maria, os Parkatêjê, povo também Timbira.
Atualmente, a aldeia Kikatêjê está localizada às margens da rodovia BR-222, há
25 Km de Morada Nova (Marabá PA). Foi criada desde 2006, num terreno onde
existia um grande bananal, sobre essa criação o Sr. Ropré assim se refere: “Aqui, que
hoje é aldeia, aqui era roça de bananal, rapaz, mas era bunito!”
A aldeia tem suas casas dispostas em forma de um circulo composto por 38
habitações de
alvenaria (fig. 4)
envoltas por uma
rua circular, que
configura a região
dos segmentos
domésticos
20
.
Figura 4. Aldeia Gavião Kỳikatêjê – casas construídas pela Vale
21
Fonte. Giza Bandeira. Acervo pessoal (2008).
Cada casa da aldeia se liga ao pátio circular (o centro da aldeia) por um caminho
capinado - com poucas formações herbáceas rasteiras que é denominado kàpê pry
jikwa. Além desse caminho, que liga as casas ao pátio, usa-se também a rua circular
onde as corridas de toras e procissões rituais de dança e canto tomam sempre a
direção contrária aos ponteiros do relógio. Isso me leva a constatar que, é
predominante o uso da rua circular no sentido anti-horário.
20
Locais de moradia das famílias.
21
A Vale é uma mineradora multinacional que atua no mundo todo, “produz e comercializa minério de
ferro, pelotas, níquel, concentrado de cobre, carvão, bauxita, alumina, alumínio, potássio, caulim,
manganês e ferroligas” [...] no Brasil, tem mais de 100 mil empregados, entre próprios e terceirizados”
<http://www.vale.com/vale/cgi/cgilua.exe/sys/start.htm?sid=2
> Acesso em 05 de outubro de 2008.
BANDEIRA G. C. M. Rituais Associados à Colheita de Milho-verde na Aldeia dos Índios Gavião Kikatêjê 48
Em toda a área que envolve a circunferência de casas e no pátio da aldeia, não
existem árvores, nem arbustos, dando-se a perceber que o terreno escolhido para a
construção da aldeia é inteiramente nivelado.
No entorno da rua circular existem outras casas de alvenaria, dentre estas a
sede da Associação KikatêJê Amtatí, o prédio da escola indígena, a casa que abriga a
secretaria da escola e o dormitório dos professores-kup (professores o-índios que
não residem na aldeia, mas permanecem lá durante os dias da semana em que
ministram aulas na escola ).
Além disso, ao lado da casa que abriga a sede da Associação fica o
acampamento dos velhos (fig. 5), uma habitação coberta por palha de babaçu, feita de
estacas fincadas e alinhadas ao chão, amarradas às estacas do teto às da lateral com
embira, sem paredes, onde os homens velhos normalmente passam o dia inteiro
fazendo flechas, reformando arcos, tecendo esteiras que são usadas para dormir e /ou
cobrir utensílio, etc. Além disso, o acampamento é o local onde os homens se reúnem
para decidirem sobre rituais, visitas a outras aldeias, despesas mensais da
comunidade, ou seja, é a sala de reuniões dos homens quando os homens mais
velhos estão
decidindo coisas
mais importantes.
Durante a minha
estada a esse
espaço, observei
que as mulheres
que estão por ali,
em segundo plano,
ou se retiram para
suas casas.
Figura 5. Acampamento dos velhos – casa tradicional Timbira.
Fonte. Giza Bandeira. Acervo pessoal (2009).
BANDEIRA G. C. M. Rituais Associados à Colheita de Milho-verde na Aldeia dos Índios Gavião Kikatêjê 49
A forma das casas onde moram os habitantes da aldeia Kikatêjê, atualmente, é
de inteira influência dos kup: feitas de alvenaria, padronizadas, com o financiamento
total da Vale, que fornece energia, suprimentos alimentares, quota em dinheiro para
manter os projetos da lavoura, da escola e as despesas normais de cerca de 50
famílias que residem na aldeia.
Contudo, é possível verificar que as casas de alvenaria acompanham alguns
traços das habitações tradicionais das antigas aldeias Timbira, como é possível ver na
comparação das imagens (fig. 6), pois o prolongamento de varanda, na parte de trás e
da frente, onde recebem visitas, é comum entre ambas habitações (a antiga e a atual).
Além disso, o estilo de casa retangular, com cobertura em forma triangular, hoje feita de
telhas de barro, anteriormente feita de palha de babaçu, é construída conforme o estilo
do acampamento dos velhos, que ainda preserva a tradição.
Figura 6– Casa dos segmentos domésticos, de alvenaria, e casa tradicional, de material orgânico.
Fonte. Giza Bandeira. Acervo pessoal (2008).
BANDEIRA G. C. M. Rituais Associados à Colheita de Milho-verde na Aldeia dos Índios Gavião Kikatêjê 50
Com 262 habitantes, entre estes estão alguns de outras etnias, que residem ali
por um período curto (para ajudarem em tempos de colheitas de cupuaçu, castanha-do-
pará e milho-verde) ou por período longo, quando são ligados por laços matrimoniais.
Nessa aldeia existem várias ligações matrimoniais entre homens Kikatêjê e mulheres
de outras etnias, como Kaigang, Guarani, Carajá, entre outras. Mesmo com as
diferenças étnicas, as semelhanças lingüísticas, e o sentimento de pertencimento de
povo chamado “indígena”, tornam as relações possíveis entre os habitantes da aldeia,
pois todos os indígenas que ali habitam compreendem e/ou falam o , dos sub-grupos
étnicos Timbira, e compreendem, de algum modo, a língua portuguesa, a qual faz parte
do cotidiano. Além disso, estão juntos na mesma causa, pois atualmente os grupos
étnicos se unem a fim de requererem seus direitos e defenderem seu povo da
exploração de suas terras e sua gente.
É comum o uso corrente da língua portuguesa no cotidiano dos índios Gavião.
Essa incorporação da língua nacional se deu por vários fatores, o principal foi a
pacificação por meio do trabalho de missionários e funcionários do SPI (posteriormente
FUNAI) que incentivaram ações educacionais no intuito de integrá-los à sociedade
nacional, tornando-os “civilizados”, com base na “velha” noção, calcada numa visão
evolucionista, de que o índio não é índio mas está índio e que precisa “evoluir” para se
integrar aos “costumes nacionais”, os quais envolve o uso corrente da língua
portuguesa, a educação escolar e o consumo de materiais industrializados
(dependência das cidades). Além disso, a relação com os agentes externos, como
comerciantes de castanha-do-pará, Eletronorte e Vale, se constituem num
condicionante para o crescente uso da língua oficial nacional (ENTE, 2006).
Hoje, na aldeia Kikatêjê, a língua portuguesa é usada sem restrições,
principalmente entre os de meia idade e os jovens, que freqüentam a escola desde
criança. A maior parte dos homens de meia idade, além de compreenderem, falam com
fluência o português. as mulheres, principalmente as mais velhas, compreendem o
idioma português, porém o falam com menor frequência.
A língua nativa, de herança do tronco linguístico Macro-Jê, é constantemente
usada nas vivências do acampamento, principalmente. No acampamento, os mais
velhos se encontram e conversam apenas em Jê, durante as reuniões da liderança da
BANDEIRA G. C. M. Rituais Associados à Colheita de Milho-verde na Aldeia dos Índios Gavião Kikatêjê 51
aldeia, composta predominantemente de homens de meia idade (entre 35 e 55 anos) e
velhos, que tem costume de falar “na linguage”.
Todos pessoa daqui falavam na linguage. Quando chegava né, que falava na
linguage, os pessoa começavam a mangar. Aí foi criando assim vergonha, foi
indo... começou a estudar... falando meio português, pronto!
esqueceram... a linguage nossa e deixa pra falar a linguage da cultura do kup.
Aí ficou difícil! (Ropré, 2009. Comunicação oral).
certa preocupação, por parte das lideranças da Associação, sobre o uso e
disseminação da Língua Portuguesa entre os Kikatêjê, em detrimento da língua nativa,
ocasionando, na visão dos mesmos, uma perda de sua cultura, como exclamou um
índio que compõe a liderança da Associação Kikatêjê Amtãtyi:
[...] quem não entende na língua não entende nada da nossa cultura, das
nossas histórias, dos nomes, das coisas que os véio conta! [...] Tem que
resgatar essa cultura né, pra num acabar, pra num perder, principalmente a
linguage né! (2009)
Entre jovens e crianças ocorre um parcial abandono da ngua , por causa do
contato com os kup da cidade que agem com preconceito em relação ao índio e,
principalmente, por causa do contato com novas tecnologias (televisão, rádio, meios de
comunicação eletrônicos, a musicalidade dos kup, etc., que, além de serem
importantes para o processo de contato e negociações junto aos kup, seduzem e
educam a juventude indígena para os modos de vida da cidade.
muitas crianças e jovens na aldeia, todos conhecem a cidade de Marabá,
pela facilidade que se tem de chegar (25 Km) e pela adoção dos ritos da cidade, ao
espelharem-se nos programas de TV e nos costumes dos kup com quem mantêm
contato, copiam seus modos de dormir, vestir, andar, comer, etc.
Atualmente, as refeições diárias são muito semelhantes ao estilo de vida na
cidade, pois todo o povo tem acesso ao comércio de Marabá, ocasionando certa perda
do costume de caça e pesca, o que é justificado pelos mais velhos também como causa
da escassez – a mata já não tem mais caça como antigamente, os igarapés que
recebem influencia do Rio Tocantins estão manchados de ferro por causa da
exploração das usinas da Vale.
BANDEIRA G. C. M. Rituais Associados à Colheita de Milho-verde na Aldeia dos Índios Gavião Kikatêjê 52
Contudo, os velhos da comunidade não revelam grande valor e costume
voltados à prática da pesca, mas sim a caça, além disso, criam porcos-queixada,
plantam macaxeira, mandioca, abóbora, arroz, para subsistência, criam abelhas para
atender à produção de remédios na farmácia da aldeia e investem nas roças
mecanizadas de milho (projeto em convênio com a Vale) para alimentarem os animais,
o que faz da pesca atividade secundária.
Ainda, eles cultivam, ano após ano, uma pequena roça de milho, que costumam
chamar de “roça tradicional”, pois queimam a mata, limpam o terreno e plantam à mão,
grão-por-grão. Essa roça é utilizada apenas para a celebração da “Colheita do Milho-
Verde”, a qual inicio ao período ritual da estação das chuvas, quando já é tempo de
colheita. Esse período ritual pode ser celebrado com a “Brincadeira de Arara e Gavião”
(as duas metades divididas por laços de parentesco), o Hõprkrã
22
ou com o Tuti Krã
(tuti: peixe; Krã: cabeça cabeça de peixe, referente a brincadeira que envolve uso de
máscaras por três sociedades cerimoniais internas a esse ritual). Essa decisão cabe
aos anciãos da aldeia, pois concordam, em reunião no acampamento, qual desses dois
rituais acontecerá. Essa reunião é feita apenas quando se aproxima o período de
colheita do milho-verde, da roça tradicional.
Dos costumes mais recorrentes na aldeia, se destacam a “Corrida de Toras” e o
“Jogo de Flechas”. Normalmente, todos os dias tem alguém fabricando ou reformando
flechas no acampamento, uma atividade masculina. Reforma-se a flecha quando as
penas da parte inferior se mostram desgastadas ou roídas por barata, cabendo-lhe a
troca de penas, que pode ser de arara, mutum e/ou gavião. Com maior freqüência
usam, nas flechas, penas de arara e gavião, pois representam as metades matrilineares
regidas por laços de parentesco na aldeia, as quais disputam, no jogo de flecha, a
maior astúcia em atirar mais distante. O prêmio do jogo é a flecha do adversário.
O povo Gavião Kikatêjê, em certas ocasiões, disputa jogo de flechas contra o
povo Gavião Parkatêjê, assim como em corrida de toras. Mais comum do que o jogo de
flechas ainda é a corrida de toras, pois envolve toda a comunidade, inclusive as
22
Hõpr, relativo a Apr: palha de milho; Krã: cabeça (neste caso, designa-se este vocábulo à parte
redonda da peteca, a qual o jogador bate impulsionando para cima). Hõprkrã é um vocábulo, de variante
da ngua Jê, que se usa para especificar que a “Festa de Colheita do Milho-verde” será celebrada com
Brincadeira de Petecas.
BANDEIRA G. C. M. Rituais Associados à Colheita de Milho-verde na Aldeia dos Índios Gavião Kikatêjê 53
mulheres, jovens e velhos, e se pratica quase todos os dias, nas primeiras horas do dia,
faça sol ou chuva - “Índio que é índio, tem que correr tora!” – exclama um dos anciãos.
As toras são feitas por um homem mais
velho e forte (nem ancião e nem jovem), o qual
corta a árvore no mato e deixa as toras meio
escondidas, para que os competidores a
procurem e tragam para o pátio da aldeia. Para
a competição do dia-a-dia é usada tora de
tronco de árvore de côco babaçu, para
competição em período cerimonial de rituais
tradicionais das estações climáticas é usada
tora feita de tronco de árvore de samaúma. As
toras quase sempre são reaproveitadas e até
usadas como mobília no acampamento (fig.7-8).
Figura 7. O artefato do jogo de corrida de toras,
transformado em mobília no acampamento.
Fonte. Giza Bandeira. Acervo pessoal (2009).
É interessante verificar que os objetos rituais são usados para um determinado
fim simbólico e cerimonial, porém, depois disso, despem-
se de sua função ritual, indicando que o simbólico está
naquele momento em que os objetos são personificados
durante o rito. A exemplo disso, podemos citar: a
despersonificação das toras, que durante a corrida
representam força para o guerreiro que a carrega em
suas costas, mas tendo concluído o percurso da corrida,
após a chegada, se metamorfoseiam em objetos
domésticos, como mostram as figuras 7 e 8.
Figura 8. Tora confeccionada para corrida, sendo
reaproveitada como objeto doméstico.
Fonte. Giza Bandeira. Acervo pessoal (2009).
BANDEIRA G. C. M. Rituais Associados à Colheita de Milho-verde na Aldeia dos Índios Gavião Kikatêjê 54
Outro exemplo são as máscaras Kokrit, objetos rituais do povo Canela
Ramkokamekrá, também Timbira (fig. 9), que durante o baile no centro da aldeia,
personificam seres mitológicos, mas após o rito são desmanchadas e reaproveitadas
como abanos, esteiras de dormir, cobertura para utensílios domésticos, etc.
Figura 9. Máscara Kokrit-Ho sendo usada durante o ritual do baile das
máscaras Kokrit.
Fonte. Nimuendajú (1935)
Das práticas indígenas mais importantes, da comunidade Gavião Kikatêjê,
estão: a corrida de toras (m krowa taihê), a furação dos beiços, que é a iniciação
dos meninos (mkwatwa mkupron makru maipm jahê), o jogo de flechas e a
celebração de colheita do milho-verde, que pode ser feita com a “brincadeira de peixe” -
período cerimonial que compreende várias sociabilidades, inclusive o Tuti Krãou com
a “brincadeira de petecas” (Hõprkrã).
Em todas essas sociabilidades existe, intrinsecamente, uma relação com o
ecossistema local. Por exemplo, nas corridas de toras (fig. 10), duas metades, “os
Arara” e os Gavião”, disputam quem chega primeiro no centro da aldeia carregando
uma tora de árvore (que pode pesar até 100 kg) nos ombros. Várias pessoas de cada
metade vão buscar a trazem em revezamento.
BANDEIRA G. C. M. Rituais Associados à Colheita de Milho-verde na Aldeia dos Índios Gavião Kikatêjê 55
Durante vivência na aldeia Kikatê-Jê, percebi que, no cotidiano, quase todos os
dias os homens e as mulheres correm
tora”
23
(fig. 11). No caso de ser apenas a
corrida regular do cotidiano, sem fazer
parte de um período cerimonial, os
indígenas não têm o hábito de pintar o
corpo e portar adornos, como costumam
fazer durante os cerimoniais.
Figura 10. Corrida de toras na iniciação dos meninos.
Fonte. ENTE (2006).
Na iniciação dos meninos é necessário que os jovens permaneçam durante
algum tempo em um retiro próximo a um curso d’água, para que, em todas as manhãs,
eles possam ir, antes do Sol nascente, mergulhar a cabeça na água e resistir o maior
tempo possível, depois devem ir buscar toras na mata, colocá-las em seus ombros até
levarem ao centro da aldeia, em revezamento (fig. 12). Assim, os meninos aprendem a
ter resistência física, o que é uma característica marcante nas pessoas das
comunidades
Gavião e,
sobretudo, é uma
marca dos povos
Timbira.
Figura 11- Corrida de toras entre as mulheres.
Fonte. Thiago Kunz. Acervo pessoal (2007).
23
Como os índios da comunidade se referem à corrida de toras.
BANDEIRA G. C. M. Rituais Associados à Colheita de Milho-verde na Aldeia dos Índios Gavião Kikatêjê 56
Figura 12. Jovens correndo para a mata, no ritual de iniciação.
Fonte. ENTE (2006).
No jogo de flechas (fig. 13), os jogadores atiram a flecha no chão, a mais ou
menos um metro de distância, para que a flecha atinja a superfície e suba, passando
por cima da área destinada ao lance, alcance
o lugar mais distante possível. Quem
conseguir atirar mais longe, fica com a flecha
do adversário. É um jogo de demonstração de
força, destreza, concentração, coordenação
motora, e, além disso, tecnologia, pois cada
atirador confecciona sua própria flecha com
materiais orgânicos que consegue na floresta
aos arredores da aldeia.
Figura 13- Jogo de flecha.
Fonte. Thiago Kunz. Acervo pessoal (2007).
Entre os rituais cerimoniais, existe a celebração à colheita do milho-verde. Trata-
se de um rito que tem seu fundamento no mito de origem das plantações - contou-me
um dos homens que participa da liderança da aldeia:
“No início de tudo, tinha uma grande árvore, com todo tipo de frutos, no centro
da aldeia circular, o homem (que diz ser um homem que sabia de tudo) mandou
que cada índio pegasse um fruto diferente e fosse fazer uma roça. Depois, no
seu devido tempo, quando a roça de milho-verde estava pronta para a colheita,
BANDEIRA G. C. M. Rituais Associados à Colheita de Milho-verde na Aldeia dos Índios Gavião Kikatêjê 57
o homem mandou que os demais homens, e depois as mulheres, colhessem
espigas de milho e tirassem a palha para fazerem petecas (Ropré,
comunicação oral, 2008).
Assim, a “brincadeira de petecas”
- prkrã denominada na aldeia - (fig.
14), consiste em confecção e
sociabilidade masculina que início ao
período ritual de celebração da colheita
do milho-verde, na aldeia Kikatê-Jê o
brincante tem direito a apenas uma
peteca e deve bater, sem deixar cair no
chão, o máximo de vezes que conseguir.
Figura 14. Brincadeira de Petecas
Fonte. Giza Bandeira. Acervo pessoal (2009).
Seguido a essa informação, com base no mito de origem das plantações, o
“homem ensinou também a fazer as cabeças de peixe, com trançados de palha de
palmeiras que tem água no pé” – explicou o informante. A feitura e uso das “cabeças de
peixes” configura a parte da celebração à colheita da roça de milho, chamada Tuti K
24
(Tuti: peixe; Krã: cabeça) que consiste em máscaras feitas de palha de tucumã e de
babaçu, objetos rituais que cobrem o corpo inteiro do usuário, para dança e canto no
centro da aldeia. As mácaras Tuti Krã (fig. 15) se distinguem em três grupos
cerimoniais: “os Lontra”, “os Peixe” e os Raia” que dançam e cantam ao som de
maracás no centro da rua circular.
24
Na aldeia dos índios Gavião Parkatêjê, o ritual Tuti Krã é chamado Tep Krã. Como os Kikatêjê
moraram durante muito tempo com os Parkatêjê, passaram a inutilizar as formas de falar de seu povo e
aderiram às formas dos “donos da casa”. Atualmente, os mais velhos da aldeia Kikatêjê tentam resgatar
essas perdas, ensinando as expressões de seu povo de origem. Neste caso, Tuti Krã é vocábulo, de
variante da língua Jê, próprio do povo Kikatêjê.
BANDEIRA G. C. M. Rituais Associados à Colheita de Milho-verde na Aldeia dos Índios Gavião Kikatêjê 58
Figura 15- Máscara do grupo dos “Lontra”, sendo confeccionada para o rito do Tuti
Krã.
Fonte. Arquivo da Escola da Aldeia Gavião Kỳikatêjê
Atualmente, nessa aldeia, faz-se escolha entre dois tipos de rituais para
celebração da colheita da roça de milho: os homens mais velhos e o cacique se reúnem
para decidirem se vão realizar o Hõprkrã ou o Tuti Krã.
Nesses rituais, o berarubu - bolo de carne de caça e mandioca, assado em
folhas de bananeira é comida típica e faz parte de vários cerimoniais Timbira, descrito
em etnografias, como a de Melatti (1978) entre os índios Krahó (grupo Timbira do
Maranhão). É uma prática que estabelece relação intrínseca com elementos e
BANDEIRA G. C. M. Rituais Associados à Colheita de Milho-verde na Aldeia dos Índios Gavião Kikatêjê 59
fenômenos da biodiversidade local e empreende um saber cultural das mulheres da
aldeia.
Todos os que participam, todos os que brincam, todos os que jogam, se
(re)afirmam enquanto pessoa indígena Timbira, enquanto indivíduos produtores de uma
maneira própria de compreender a vida e, assim, compor o seu lugar no mundo por
meio de práticas naturais, compreendidas nas interdimensionalidades presentes num
ambiente amazônico singular.
A ética dos saberes indígenas Kikatêjê se revela nas práticas intrínsecas à
vivência da comunidade (LEFF, 2003). “Os saberes são o conjunto de dizeres/fazeres
significados em múltiplas vivências, apresentam-se nas narrativas orais e escritas, na
produção técnico-científica e no baú das sabedorias do vivido” (FONSECA, 2009).
Esses saberes adquirem sentido nas vivências, na atualização de seus ritos, nos modos
característicos dessa cultura Timbira.
Analiso essas vivências enquanto práticas educativas, pois vivificam os saberes
que compõe a sabedoria indígena. Trata-se de uma racionalidade substantiva que
incorpora processos educativos construídos na realidade, que precisam ser conhecidos
na sua dinâmica, ocorrência, maneira como se apresentam, considerando-se que se
constitui como forma própria de aprender e construir conhecimentos.
Procuro, na sessão seguinte, a partir da minha experiência em campo, na aldeia
Kikatêjê, mostrar as construções de sentidos e significados que dão vida e pano de
fundo para o objeto desta pesquisa, que são os processos educativos pertinentes na
vivência em um ritual indígena: a celebração da “Colheita do Milho-verde”.
BANDEIRA G. C. M. Rituais Associados à Colheita de Milho-verde na Aldeia dos Índios Gavião Kikatêjê 60
Seção II. RITUAIS ASSOCIADOS À COLHEITA DO MILHO-VERDE, MOSAICO DE
UMA EDUCAÇÃO DIALÓGICA
O espaço-ambiente-natureza compreendido como um mosaico de relações,
de formas e sentidos, como foi trabalhado na sessão anterior, apresenta-se em
diversas composições de objetos materiais e imateriais, dentre outras, se em
celebrações de festas, na coletividade dos diversos povos amazônicos.
Na Amazônia, existem muitas festividades compreendidas enquanto
representação da coletividade, como a celebração da festa é o momento em que a
mesma acontece. “Celebrando-se uma festa, a festa sempre está lá o tempo todo”.
Então, a celebração codifica o caráter temporal da festa (GADAMER, 1985, p. 63).
A celebração da colheita de milho-verde, da aldeia Gavião Kikatêjê, é uma
composição presente no referido mosaico material e imaterial, a qual tomo como
referência, a fim de compreender sua concepção, organização, realização e ainda os
processos educativos que emergem desse ritual indígena como situações de uma
educação do diálogo (FREIRE, 1987).
Essa celebração é realizada uma vez ao ano, durante a estação chuvosa, e
se configura como um dos principais períodos cerimoniais da referida aldeia, envolve
grupos cerimoniais internos e toma por base um mito de origem. Durante sua
preparação e realização, apresenta relações simbólicas que se expressam em
composições de cores, formas, cantos, cheiros, gestos técnicos
25
, etc.,
possibilitando visualizar, dentre outros, processos educacionais diversos, entre os
quais: mito de origem, confecção das “cabeça de peixe”, corrida de toras, pinturas, a
roça tradicional, jogo de petecas e dança.
Conceber esse processo educacional exige conhecê-lo, por isso, descrevo a
celebração e ações a ela relacionadas, a partir de como se apresentou durante
minha vivência na aldeia.
As informações que trago neste texto foram registradas na aldeia e se deu
entre os anos de 2007 e 2009, durante a coleta de dados deste estudo, em que
observei, fotografei e tirei dúvidas sobre situações decorrentes da referida
celebração, que exigiam esclarecimentos no momento de sua realização. Minha
25
Compreendo gesto técnico como ação de “eficácia simbólica”, pois garante harmonia entre a noção
do pensamento com base nos mitos e os fazeres práticos do grupo (LÉVI-STRAUSS, 1975).
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presença durante sua preparação e execução me oportunizou participar de
momentos em que é consentido a presença feminina.
É importante esclarecer que uma demarcação de tarefas em função do
gênero nas ações de construção e realização desse ritual, o que, de certo modo,
facilitou a minha inserção em determinadas atividades e limitou em outras, cuja
participação é exclusivamente masculina.
Ao apresentar a celebração da colheita do milho-verde da aldeia Gavião
Kikatêjê, trago esse rito pela sua descrição do mito de origem e as duas formas de
celebração da colheita: Tuti Krã e Hõprkrã e, ainda, refiro sua potencialidade como
prática pedagógica (FREIRE, 2004) e indicadores de uma etnopedagogia
ambiental
26
.
A oportunidade para conhecer, descrever e analisar essa celebração foi
possibilitada pela minha inserção na aldeia, uma inserção que se deu na perspectiva
de uma vivência concreta na comunidade indígena Kikatêjê e não apenas com
intuito de coletar dados necessários à pesquisa. Essa inserção, estabelecida em
dias e noites compartilhadas no “espaço-ambiente-natureza” da aldeia, me
favoreceu partilhar de situações impares, como o fato de ter sido adotada por uma
senhora, conhecida pelo nome Mamãe-grande. Seu nome é Rõnoré, de idade
bastante avançada, uma velha respeitadíssima na aldeia, pois nomeou muitos
filhos e netos de filhos.
A adoção se deu por meio da nominação, que ocorreu dia 6 de fevereiro de
2009, quando Mamãe-grande me chamou em seu acampamento (casa tradicional
Timbira) e me disse que já sabia qual seria meu nome: Jõpeyre Kãprere (pessoa que
sabe fazer berarubu gostoso comida cerimonial). Este foi o nome que recebi e, a
partir de então, Rõnoré passou a ser a minha mãe (minha ĩx), e seus filhos
passaram a ser meus filhos de criação.
Na aldeia, pessoas estranhas a minha família (família a qual pertence minha
mãe) me chamavam de “vovó”, é a forma como chamam minha mãe, pois a partir do
momento em que Mamãe-grande me deu nome, eu passei a personificar o papel
social dela, minha ĩx, que me instruía sobre tudo o que eu deveria fazer, como
deveria fazer, e me dava ordens sobre os deveres domésticos. Os da minha família,
26
Com base no conceito de Etnopesquisa, trabalhado por Macedo (2006) e a partir dos estudos
analisados por Fonseca (2009).
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me chamavam pelo nome e, se fosse irmão, por atoum. Mas, é curioso observar
que, na relação intra-familiar de irmã e irmão, o contato é apenas de cuidar,
limitando-se as ações mais próximas de conversa de modo a evitar laços
matrimoniais entre irmãos.
Como se vê, tornei-me parte de uma família, o que foi possível a partir de
minha relação com minha ĩx, desde minha primeira ida à aldeia, em 2007, em que
me acolheu com comida e um lugar para eu sentar durante o dia, e eu sempre lhe
fornecia companhia e ajuda no preparo aos alimentos, dinfiro que o nome a mim
atribuído tenha essa origem.
Essa minha inserção como membro de uma família, me presenteou com a
condição de ser alguém que se tornou credenciado a participar do cotidiano das
vivências. Não quero dizer que me tornei alheia a minha própria cultura de origem,
que neutralizei minhas convicções construídas histórica e socialmente, mas me
tornei um pouco menos kup do que aqueles que circulam o “espaço-ambiente-
natureza” a aldeia - sem estabelecer interlocução simbólica em seu cerne, pois,
sendo por ela acolhida, me senti na e com a comunidade, o que facilitou minha
percepção do mosaico de relações existentes e, dessa forma, coaduna com as
lições de Geertz, sobre o estudo das culturas por meios usuais de suas pesquisas
etnográficas, quando diz:
Para descobrir quem as pessoas pensam que são, o que pensam que estão
fazendo, e com que finalidade pensam que o estão fazendo, é necessário
adquirir uma familiaridade operacional com os conjuntos de significado em
meio aos quais elas levam suas vidas. Isso não requer sentir como os
outros ou pensar como eles, o que é simplesmente impossível. Nem virar
nativo, o que é uma idéia impraticável e inevitavelmente falsa. Requer
aprender como viver com eles, sendo de um outro lugar e tendo um mundo
próprio diferente (2001, p. 26).
Vale ressaltar que todos, na aldeia, reconheciam a minha posição de
pesquisadora, pois antes de iniciar a coleta de dados, solicitei permissão para a
execução deste trabalho às lideranças (homens mais velhos e coordenadores da
Associação Kikatêjê Amitatí) e recebi autorização para realizar o estudo (ANEXO).
Nessa condição é que apresento a experiência ritual indígena da celebração
de colheita do milho-verde, imersa num clima estético de emoções, sentimentos e
afetos compartilhados que ensinam sobre a doutrina do “estar-junto” (MAFFESOLI,
1998), o que não significa dizer que todas as nuances do vivenciado possam ser
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consideradas acabadas e esgotadas por este estudo, mas se trata de uma forma de
apreensão dessa realidade.
Assim, as descrições e suas análises apresentadas, fundamentam-se numa
(re) leitura do contexto, nas teorias adotadas na abordagem da pesquisa e na forma
de ler o mundo e apropriar-me deste, num complexo de relações imbuídas de
significados e estabelecidas pelas linguagens presentes no vivenciado.
O movimento de significações nesse “espaço-ambiente-natureza”, se constitui
em relações entre mito e ritual
27
. No caso, a celebração de colheita de milho-verde,
caracteriza-se como rito relacionado a um mito. De modo a esclarecer o leitor, trago
uma discussão sobre o caráter de um rito e de um mito, o que os faz como tal, para
compreendê-los no contexto deste trabalho.
2.1. RITO
Rituais são ações de caráter simbólico, que têm equivalentes significativos
num determinado bojo de noções, relacionando o indivíduo que pratica a referida
ação com o local onde esta é praticada, as relações estabelecidas entre as pessoas
nesse contexto, seus papéis socioculturais e as relações cosmológicas pertinentes
(LÉVI-STRAUSS, 1975). Os aspectos técnicos materiais e imateriais, utilizados
nessas ações, constituem um fazer, um ato ou consecutivos atos que podem ser
caracterizadas como ritos.
Os indígenas do Brasil realizam diversos tipos de ritos: ritos de passagem,
ritos de gestação e nascimento, ritos de iniciação, ritos de casamento, ritos
funerários, entre outros (MELATTI, 1978). Mas, nem sempre, o rito está ligado à
esfera religiosa. O prkrã e o Tuti Krã, por exemplo, são celebrações que, com
base em Melatti (Idem), caracterizam-se como ritos do ciclo anual, pois se associa a
uma estação climática, nesse caso a estação chuvosa (amkôti), ao plantio,
crescimento e colheita de um determinado vegetal que nesse caso é o milho-verde.
Os rituais constituem parte das culturas de diversos povos, não apenas na
vida indígena, mas os povos de origem ocidental também praticam rituais, como
27
Mito e rito se reproduzem um ao outro, numa relação dialética em que um corresponde às noções e
o outro corresponde às ações (LÉVI-STRAUSS, 1975).
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trabalhar, exercer uma função em uma empresa, ministrar aula, fazer parte de uma
escola, tomar banho, fazer uma reunião familiar, comer a mesa, etc. São ritos,
presentes na vida cotidiana ocidental, imbuídos de aspectos simbólicos e são
associados a significados e valores da vida nas cidades urbanas, o que revela o
sistema de formas simbólicas desse contexto, sua cultura.
Nesse sentido, as pessoas aprendem, passam a vida inteira apreendendo e
significando valores que fundamentam sua cultura, o que constitui processo
educativo da vida. MCLaren (1991) trabalha o conceito de educação como sistema
cultural, articulando-o a outros termos como cultura e cotidiano, o que revela que a
educação o está restrita apenas a rituais escolares, mas está em qualquer outro
ritual onde se possa perceber saberes e práticas educativas presentes em
processos de apreensão de normas, regras, condutas construídas social e
culturalmente.
Os ritos, por vezes, assemelham-se a regras a serem obedecidas, para que
se a manutenção de uma maneira de ser e se identificar com um grupo de
pessoas e/ou lugares.
Por conseguinte, uma parte das regras a serem obedecidas no ato de
comer constitui atos simbólicos que dizem alguma coisa das relações
sociais que os participantes mantém entre si. Esses atos simbólicos
constituem o espaço ritual da refeição. Observando-se um grupo de
pessoas a mesa de uma casa, pode-se dizer quem é o chefe da família,
quem é a criada, quem é a visita, quem é da casa, simplesmente pela
maneira de se comportarem em torno da mesa (MELATTI, 1938, p. 120)
Mas os atos rituais se apresentam em nossa realidade de maneira tão
“natural” que geralmente não o percebemos enquanto rituais. Assim, é comum não
sabermos explicar os valores simbólicos dos ritos que corriqueiramente atualizamos
em nosso cotidiano, assim como os indígenas nem sempre sabem explicar por que o
praticam ou, quando explicam, contam histórias que aprenderam com os mais
velhos sobre a origem dessas ações, que são os mitos. Isso parece acontecer por
que a vida promove uma participação tão profunda do indivíduo com seus meios
rituais que, esta participação, acaba nos desnudando de estranhamentos sobre suas
ações simbólicas.
Os ritos caracterizam contextos de vida, espaços dinâmicos de interconexões.
Nesses espaços, consistem as possibilidades, os meios, as potencialidades e inter-
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relações entre os bens materiais e imateriais. O “espaço-ambiente-natureza”, como
trama de processos históricos e culturais relacionados, é onde as “coisas” e as
pessoas constituem significado e sentido.
O significado de um objeto pode ser absorvido, compreendido e
generalizado a partir de suas características definidoras e pelo seu corpus
de significação.o sentido implica a atribuição de um significado pessoal e
objetivado que se concretiza na prática social e que se manifesta a partir
das Representações Sociais, cognitivas, subjetivas, valorativas e
emocionais, necessariamente contextualizadas (FRANCO, 2007, p. 13).
Posso considerar uma das diferenças dos ritos indígenas em relação aos ritos
dos povos de origem ocidental: são constructo de uma relação de coexistências
entre o mundo cosmológico, social e biológico, o que propicia à pessoa indígena um
saber ímpar e geralmente relacionado a conhecimentos a cerca de elementos da
biodiversidade local.
Segundo Fonseca (2009), essa relação interdimensional gera saberes,
entendidos como um conjunto de dizeres/fazeres significados em múltiplas
vivências. Assim, compreendo que os saberes que os indígenas possuem sobre os
seres vivos e suas relações no “espaço-ambiente-natureza”, os conhecimentos
sobre a “medicina” natural dos pajés e feitiçarias dos xamãs, a astronomia, a
preparação dos venenos e dos alucinógenos, a feitura das habitações, a confecção
dos objetos rituais, etc., estão expressos nas narrativas orais e escritas, na produção
dos gestos técnicos e no baú das sabedorias do vivido.
Esses saberes norteiam a vida cotidiana indígena e, de alguma maneira, se
atualizam por meio de processos educativos que valorizam, dentre outros, a
biodiversidade local, calcados no animismo perspectivismos baseado num
multiculturalismo espiritual, como explica Viveiros de Castro (2002, p. 358):
Vendo os seres não-humanos como estes se vêem (como humanos), os
xamãs são capazes de assumir o papel de interlocutores ativos no diálogo
transespecífico; sobretudo, eles são capazes de voltar para contar a
história, algo que dificilmente os leigos podem fazer. O encontro ou
intercâmbio de perspectivas é um processo perigoso, e uma arte política
uma diplomacia. Se o ‘multiculturalismo’ ocidental é o relativismo como
política pública, o perspectivismo xamânico ameríndio é o multiculturalismo
como política cósmica.
BANDEIRA G. C. M. Rituais Associados à Colheita de Milho-verde na Aldeia dos Índios Gavião Kikatêjê 66
Dessa maneira, nos ritos os elementos materiais e imateriais ganham
classificação no contexto do sistema de formas simbólicas, o qual normalmente
costumamos denominar cultura (GEERTZ, 2007). No sistema cultural das formas
simbólicas dos grupos Timbira, a valorização da biodiversidade local surge no
cotidiano e ritos tradicionais, incutida nas práticas culturais por meio de processos
educativos e, sobretudo, da memória dos mais velhos.
[...] Entre os Timbira, a instituição do conselho dos anciãos, realizado pela
manhã e ao final da tarde, permite que a memória do grupo seja restaurada
para as gerações atuais. Os ritos são escolhidos e planejados nessas
reuniões tendo como referência os ritos anteriores. Lyinton (1991:82)
salienta o papel dos objetos como evocadores da memória, de coisas que
devem ser feitas ou evitadas, e recursos mnemônicos exigidos pelas
iniciações [...]. O mito tende a reafirmar o respeito aos mais velhos e a seus
ensinamentos das tradições ancestrais (LIMA, 2003, p. 108-109).
Dessa forma, rito e mito se apresentam como formas de aprender e significar
elementos da cultura local, pois “[...] entre os índios Timbira, para cada rito há
geralmente um mito que narra como os índios aprenderam a realizá-lo”. (MELATTI,
1938, p. 137). Esse é um dos aspectos que ressalta o caráter pedagógico dos ritos e
mitos nas culturas indígenas.
Não é comum trabalhar mito como prática pedagógica e sim como sabedoria
popular, relacionada ao folclore. Entretanto, vários autores apontam essa
possibilidade de conexão inter-cultural, que adoto para minhas reflexões neste
trabalho a fim de entender essas práticas como processo educativo. Por isso
considero importante discutir o mito como prática pedagógica, o que faço a seguir.
2.2 MITO COMO PRÁTICA PEDAGÓGICA
Para os que pensam que os mitos falam de um tempo remoto e que o se
referem ao presente, Júlio Cezar Melatti (1938, p. 133-6) afirma:
Embora as narrativas míticas sempre coloquem os acontecimentos de que
tratam em tempos pretéritos, remotos, elas não deixam de refletir o
presente, seja no que toca aos costumes, seja no que toca a elementos tão
palpáveis como os artefatos. [...] Entre os índios Timbira, o mito de Sol e de
Lua conta as peripécias desses heróis, astros personificados, sobre a
superfície da terra e como delas resultaram a criação do homem, o
aparecimento do trabalho, o aparecimento da morte. [...] O mito reflete tanto
BANDEIRA G. C. M. Rituais Associados à Colheita de Milho-verde na Aldeia dos Índios Gavião Kikatêjê 67
a situação social presente em que está inserido que se modifica quando é
transmitido de uma sociedade para outra.
Nessa perspectiva, os mitos são narrativas jamais postas em dúvida pelos
membros das sociedades que os tomam por base, mas recorrentemente se
atualizam nas situações sociais. A maioria dos povos indígenas baseia suas
sociabilidades em contações de mitos, entendidos enquanto verdades absolutas. O
processo de compreensão e atualização do mito nessas sociedades se constituem
em ato pedagógico, pois ensejam regras, valores, juízo de gosto, etc.
Nesse sentido, o educativo se por meio de diversos processos, entre os
quais “o uso de estórias é absolutamente pedagógico” (FREIRE, 2004, p.43) e, é
interessante perceber que envolvem uma série de elementos da biodiversidade
local, numa perspectiva que pode até se compreender como teoria para educação
ambiental.
Lévi-Strauss (1997) já atestou a familiaridade e paixão que os ditos “nativos”
dedicam ao meio biológico, o que diferencia muito da atitude dos “brancos”. Isso não
implica dizer que os indígenas conhecem o meio biológico em que vivem porque
este lhe é útil, mas que consideram úteis, determinados elementos do meio, porque
o conhecem e estabelecem algum sentido para a existência desses elementos,
baseado em significados que se fundamentam nas relações práticas da vida,
construídos histórico, social e culturalmente.
Percebo que, para os indígenas, não nisso uma teoria, o que é o
mundo como ele é e como é compreendido, portanto considero essas culturas
eminentemente pedagógicas, pois o ato de educar para a cultura e para o espaço-
ambiente-natureza é totalmente intrínseco à própria vida e essencial para a
compreensão ideal da noção de pessoa indígena, como vimos na seção anterior.
Essa perspectiva possibilita pensar e propor “novas” ações educativas em
contextos de educação escolar, visto que “as tradições indígenas englobam uma
série de conhecimentos técnicos, por vezes complexos, que produzem efeitos reais.
“Tais conhecimentos viriam enriquecer a própria ciência dos civilizados” (MELATTI,
1938, p. 149).
Portanto, os modos de concepção do universo dos povos indígenas, com
base nos mitos, podem ser apontados como indicadores de sustentabilidade
ambiental, pois o “olhar amigo” sobre a “natureza”, nessas sociedades, se
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comparado a atitude cultural das sociedades ocidentais, tem grande valia em
ensinamentos para uma melhor qualidade de vida. Nesse sentido, seria melhor
endeusar o ecossistema, (re)criar seres protetores das matas, das águas e da terra,
por meio de narrativas mitológicas e, portanto educativas, do que dominar essa
biodiversidade com tecnologias que destroem a vida. Seguir instruções de Marcos
Terena
28
, por exemplo, parece mais salutar:
A minha prece em nome dos povos indígenas, é que vocês tenham
oportunidades de conhecer vários caminhos. Que vocês possam, nos
estudos, nas suas lutas, ter capacidade espiritual para vencer as
dificuldades. Vocês não podem abandonar o espírito de vocês; o espírito é a
maior força que o ser humano possui. Se nós não fortalecermos o nosso
espírito, seremos fracos. Podemos ter força física, mas o espírito não vai
responder na hora que precisarmos dele. Cada dia, cada tarde, que vocês
possam aprender e ensinar aos seus irmãos mais novos, aos seus filhos a
amar a Terra. Isto não é poesia, é verdadeiro: a terra de vocês tem que ser
sagrada para vocês. Por isso eu disse que nós amamos o Brasil, porque
aqui estão os nossos antepassados: no vento, nas estrelas, na lua, no sol.
(MORIN, 2004, p. 63-4).
Esses costumes, saberes, valores e práticas mitológicas que regem a vida
nessas sociedades e instituem a identificação cultural, evidencia que “a diversidade
biológica não é simplesmente um conceito pertencente ao mundo natural. É também
uma construção cultural e social” (DIEGUES, 2000, p. 4).
Essa perspectiva ameríndia traz uma noção diversa de humanidade, nega a
separação dicotômica entre o que é social e o que é natural, quase sempre presente
nos compêndios de biologia. Assim, me detenho, quando trato de natureza, na
noção explicitada na seção anterior, enquanto espaço-ambiente-natureza, pois
coloco a pessoa como sujeito e autor do mundo, visto que [...]“não natureza
humana porque toda a natureza é humana” (SANTOS, 2006, p. 72).
Nesse sentido, os espaços peculiares das sociedades indígenas brasileiras se
configuram por meio dessa construção particular da noção de pessoa, o que delineia
um “leque” de diversidades biosociológicas e cosmológicas indissociáveis, dentre
elas a percepção de natureza por meio dos mitos. Tomando por base a noção de
pessoa indígena no contexto estudado e, sobretudo fazendo referência à nação
28
“Índio brasileiro do Pantanal do Mato Grosso do Sul, fundador do primeiro movimento indígena a
União das Nações Indígenas UNI, piloto de aeronaves, autor do livro O índio aviador e
coordenador-geral dos direitos indígenas” (MORIN, 2004, p. 24).
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Timbira e sua tradicional elaboração social, elejo o princípio das cosmologias
29
como
construto de reflexão sobre a corporalidade na estrutura social o corpo da
sociedade Timbira (SEEGER, 1987) que é possível identificar por meio dos mitos.
Com base em Lévi-Strauss (2004, p. 37), explica-se a absorção do sobrenatural na
tradição do mito:
É, pois, compreensível que a unidade do mito seja projetada num foco
virtual: para além da percepção consciente do ouvinte, que ele apenas
atravessa, até um ponto onde a energia que irradia será consumida pelo
trabalho de reorganização inconsciente, previamente desencadeado por ele.
Essa “reorganização inconsciente” pode se configurar na personificação ou
codificação material do sobrenatural, presente nas manifestações cerimoniais e nos
gestos técnicos que propiciam humanidade ao Outro.
Desse modo, torna-se possível pensar objetos como máscaras, cocares,
instrumentos musicais, toras de corridas, petecas, etc., confeccionados com base
em narrativas orais descritivas - mito que origem ao rito como apresentação de
seres e valores imbuídos de humanidade, durante os rituais. Assim, o objeto ganha
sentido de humanidade a partir de sua relação simbólica e cosmológica, e passa a
se relacionar a uma noção de “outro”, por meio de processos educativos.
Com relação a essa noção de “outro” e, partindo do pressuposto de que a
perspectiva ameríndia enfatiza a importância do xamanismo, não podemos perder
de vista a seguinte noção: “[...] o conhecimento xamânico visa um algo que é um
alguém, um outro sujeito ou agente. A forma do Outro é pessoa” (VIVEIROS DE
CASTRO, 2002, p. 358). O Outro pode ser um ser mítico, um bicho brabo, um
animal, uma planta, uma pedra, um objeto que codifica a noção de força, sabedoria,
etc.
Nas sociedades ameríndias, os mitos fundamentam as práticas e dão
personalidade ao Outro, outro este que, em seu valor simbólico, possui linguagem e
um papel próprio em determinada sociabilidade. Esse “outro” se situa na noção de
outridade, cujo ideal se encontra em aprender a complexidade ambiental, abrindo
uma outra alternativa de reflexão sobre a natureza do ser, do saber e do conhecer
29
Por definição, cosmologia é: “1. Narrativa ou doutrina a respeito dos princípios que governam o
mundo, o universo. 2. Ciência que estuda as grandes estruturas do universo e sua evolução”
(FERREIRA, 2001). Nesse sentido, a doutrina narrada para governar os princípios morais e
cerimoniais da vida indígena está nos mitos: formas de pensar o universo e, não havendo origem
“real” acabamos lhe atribuindo o caráter sobrenatural.
BANDEIRA G. C. M. Rituais Associados à Colheita de Milho-verde na Aldeia dos Índios Gavião Kikatêjê 70
(LEFF, 2003) e, portanto, da educação em suas dimensões - social, histórica e
cultural - na qual os processos educativos estão inseridos.
Por exemplo, Lima (2003) relaciona a cultura material, máscaras de um
cerimonial mítico de um determinado povo Timbira, à estrutura de ordenação do
universo, quando assim relata: “Os objetos feitos para reafirmar a sociabilidade
Timbira apresentam o trançado diagonal sarjado. Ao trançar uma esteira, o artesão
trança os pares e as tríades que formam a rede social Timbira (p.113) e, esse
trançar, é momento de educar e se educar.
Isto significa que, tudo o que personifica determinado valor afetivo, moral,
espiritual, etc., onde reside o simbólico, constitui-se em “outro” e, ao constituir esse
“outro”, estabelece relação com esses valores e (re) cria sua humanidade. Quero
dizer que os objetos de cultura material e imaterial não estão submetidos apenas a
tecnologia e/ou economia, tomando-os num sentido utilitário, mas que se constituem
num sistema de formas criativas e simbólicas. Ao compreender as personalidades
que exercem seus papéis nas sociabilidades, a pessoa se educa e é educada na
dinâmica de relações de fazeres e dizeres.
Trata-se de uma educação da cultura e do ambiente, que se por meio do
diálogo consigo e com o “outro”, em que a pessoa indígena Timbira é (re) afirmada e
atualiza suas práticas culturais próprias. Práticas estas, codificadas em mitos que
regem ões e associam, dentre outros, elementos da biodiversidade local
intrínsecos.
Observo a atualização dos mitos nos fazeres e dizeres que se expressam por
meio da cultura da oralidade e pela sua materialização em rituais, enquanto ato
pedagógico (FREIRE, 2004), traduzindo-se em “educação da cultura”, cujo ideal
considera que a finalidade da educação (seja escolar ou não-escolar) é recriar
mundos entre as pessoas, a fim de que a socialização se perpetue. Nesse sentido, a
cultura é uma obrigação criativa da construção social de sistemas de atribuição de
sentidos e de orientação de condutas interativas (BRANDÃO, 2002).
Paulo Freire (1987) chama atenção para a importância da educação pelo
diálogo”, como prática de liberdade, fator que traz as diversas formas de apropriação
das realidades, por diversos povos de culturas diferenciadas, os “oprimidos”, para
um primeiro plano. Essa prática voz ao sujeito na sua especificidade, na sua
noção própria de concepção do universo e considera sua perspectiva de ver o
“outro”, sua maneira própria de conhecer as coisas e as relações.
BANDEIRA G. C. M. Rituais Associados à Colheita de Milho-verde na Aldeia dos Índios Gavião Kikatêjê 71
Para conhecer as relações que se dão no contexto da celebração da colheita
de milho-verde, na aldeia Gavião Kikatêjê, conta-se uma história sobre como deve
ser realizada. Trata-se do mito de sua origem, como surgiu, o que mostro no item
seguinte.
2.3. MITO DE ORIGEM DA CELEBRAÇÃO DE COLHEITA DO MILHO-VERDE NA
ALDEIA GAVIÃO KIKATÊJÊ
Minha descoberta sobre a existência do mito de origem da celebração da
colheita de milho-verde, na aldeia, se deu em conversas com Sr. Ropré, em duas
ocasiões diferentes. Vale ressaltar que, antes dessa conversa, minhas informações
sobre rituais Timbira se limitavam apenas aos que envolvem o uso de máscaras e
até nossa conversa, inicialmente, não tinha idéia da existência de rituais desse
grupo étnico relacionados a colheita do milho-verde.
Assim, na primeira conversa que tivemos sobre rituais associados ao uso de
máscaras, percebi que Sr. Ropré não compreendeu o termo. Então, mostrei-lhe
imagens de máscaras utilizadas em rituais de outras aldeias Timbira e, nesse
momento, verifiquei que ele associou a imagem ao termo “cabeça de peixe” (Tuti
Krã, em sua língua), afirmando a feitura e utilização desses objetos em rituais de sua
aldeia. Em seguida, perguntei se havia uma história que contasse como surgiram
essas “cabeça de peixe”, e ele me relatou o seguinte:
[...] Na época, né, ninguém sabia de nada, só que, quenem to falando,
então um homem apareceu, chegou o homem, foi fazer, falou: Rapaz,
borá fazer, né, uma brincadeira pra gente brincar que a gente ta muito
parado. Aí falou assim, mas como assim?
Aí foi e falou assim, falou: Rapaz, eu vou fazer aí vocês vão me acumpanhá.
[...] ele pegou e chamou, no final da tarde, reuniu todo mundo no meio
de campo. o pessoal tava em conversando sobre brincadeira.
ele pegou e falou assim: Olhe, amanhã nós vamo cortar tora, vamo inventar
a brincadeira, vai ser peixe, arraia e lontra. foi né, ele falou: Olhe vocês
vão
cortar três tora.
Aí eles foi e cortou três tora, aí eles chegou e falou: E agora?
Ele disse: Agora? Agora vocês vão tirar aquele palha de tucum né [...].
[...] ele tirou a palha dela e tira pra fazer e tava ensinando a fazer. eles
falou, mas como assim? ele começou a explicar, até que terminou.
terminou né, eles falou assim: e agora? Ele falou assim: Rapaz, agora
vocês num pode usar assim qualquer tipo de palha, usa palha de bacaba
[...].
ele foi né, e começou fazer, disse: Pra isso tem que ter o pequeno
também, pra todas pessoa dançar dentro. ele chamou todo mundo e
falou. Aí cada um né, fez pra cada um.
foi e falou assim: Pois olha, eu to falando, vocês ficam parado, não tem
uma alegria pra vocês... [porque isso é verdade, se fica parado não tem
alegria, não sabe o que que vai fazer, não tem animação] ...então pra isso
BANDEIRA G. C. M. Rituais Associados à Colheita de Milho-verde na Aldeia dos Índios Gavião Kikatêjê 72
que eu to ensinando pra vocês fazer a brincadeira pra correr, brincar, não
ficar o pessoal parado.
Aí ele fez tudo: mandou pegar palha...
[...] então, depois que fez tudinho com a palha, colocou, amarrou tudinho
né, ele fez tipo um chifre né, com pau. ele pintou, mandou pintar,
pintou tudinho e deixou tudo pronto.
Aí eles falou assim: E agora?
Aí ele falou assim: Agora vocês vão dançar.
Aí falou: Todo mundo?
ele falou: Não, é você. Depois de você, que você vai ta no centro
pra dançar [...].
Como se pode perceber, quando Sr Ropré inicia seu relato se referindo a um
outro tempo - “Na época, né [...]” - articula e distingue o tempo da história contada do
tempo presente, o que demonstra o caráter mitológico que a mesma assume, pois é
um tempo em suspensão, não tem data definida. Além disso, quando se refere à
presença de alguém de fora da aldeia, quando diz que um homem apareceu” -
alguém que ensina a fazer, que mostra como fazer e por que fazer - atribui a esse
“homem” a eficácia simbólica da sabedoria (LÈVI-STRAUSS, 1975), pois ele “tava
ensinando a fazer” e “começou a explicar”.
Essas informações me propiciaram o entendimento de que, relacionado ao
uso das “cabeça de peixe”, na aldeia Gavião Kikatêjê, existe uma relação
mitológica. Dessa forma, continuei a conversa, no intuito de compreender que
fazeres esses dados mitológicos ensejam, no contexto da aldeia, e foi então que
perguntei sobre as três toras referidas na história contada, e então Ropré disse:
“Olhe, amanhã nós vamo cortar tora, vamo inventar a brincadeira, vai ser peixe,
arraia e lontra. Aí foi né, ele falou: Olhe vocês vão cortar três tora”.
Então, explicou-me: “[...] porque nós tem dois tipo de brincadeira, que a gente
fala: ‘raia, peixe e lontra’ e ‘arara e gavião’, essas que são principal”. E, dessa forma,
entendi que existem duas formas rituais distintas e que cada uma destas envolve
grupos distintos, cujos nomes dos grupos estão presentes nas falas que
demonstram a sabedoria do personagem mitológico que ensina a fazer e, além
disso, são os principais rituais da aldeia.
Interessei-me em saber se as duas formas rituais são feitas juntas, seguidas
uma da outra e ele explicou: “Faz separada. É por que do “Peixe, Arraia e Lontra”,
né... é uma coisa só. Agora do “Arara e Gavião” é separada dessa outra. Porque a
gente faz anos e anos”. Assim, afirmou que são dois rituais diferentes, acontecem
separadamente e faz parte da tradição milenar de seu povo, aferível de geração em
BANDEIRA G. C. M. Rituais Associados à Colheita de Milho-verde na Aldeia dos Índios Gavião Kikatêjê 73
geração, em que todos da aldeia devem se envolver, pois “tem que todo mundo,
senão fica sem graça, todo mundo ali, [...] porque assim não perde a brincadeira, fica
sempre tendo gente em todos os grupo, e nunca acaba” .
Assim, com grande expectativa em presenciar esses rituais, referidos como
“brincadeiras”, que o povo da aldeia de Sr. Ropré (re)cria. Perguntei-lhe, ainda,
sobre qual o período de sua realização, ele respondeu: Olha, esse ano a gente vai
fazer, agora num sei se vai ser o peixe’ ou é ‘arara’, né”. Sobre isso, entendi que
não realizam os dois rituais num mesmo ano e que as duas formas atuam como
opções de celebração. Então, ele continuou explicando:
Ainda o sei qual é que vão fazer esse ano.[...] É assim, oh! Nós tamo é,
nesse ano agora, nós temo roça bem aqui oh [apontou na direção onde fica
a roça], tem milho, mandioca, macaxeira...Aí quando o milho já fica no ponto
de comer, que as pessoa não vai tirar né, o milho, logo não! Tem que
ter paciência, né, que vocês chamam! Quando vê que o milho bom, vai
derribar a tora, a gente vai correr. Quando terminar nós chama “tora de
milho-verde”[...] que vem isso que eu to falando, que vai escolher ou
“peixe” ou “arara”, um desses dois tem que ser!
A partir deste relato, finalmente, entendi que o período de realização das duas
brincadeiras referidas, está associado ao tempo da roça de milho-verde. Portanto, na
segunda ocasião em que conversei com Sr. Ropré sobre rituais de sua aldeia, o
me detive somente em falar sobre fazeres que envolve máscaras, mas perguntei-lhe
se havia uma história que contasse como surgiram as brincadeiras associadas à
roça de milho-verde. Ele me respondeu com uma longa narrativa:
Isso que eu falando, que eu contei naquele dia lá, né. Que aquela árvore
de milho, batata,... essas coisas,... Isso foi amostrado primeiro. quando
começaram a plantar milho, mandioca, abóbora, essas coisas mais, né! Eles
plantavam tudinho. Aí foi através disso que começou. E esse homem falou: -
Rapaz, bora inventar né, uma corrida, fazer uma brincadeira pra nós
inventar uma corrida de tora!
o pessoal não sabia o que era, o pessoal falou mermu assim: - Mas
como assim!?
o homem disse, eu vou fazer pra vocês vêem como é que faz. ele
chamou as pessoas, né, pra explicar.
Não sei se é Deus, se é o homem, sei que é o homem! Aí foi...
Nessa época o pessoal não tinha machado nenhum, de repente esse
homem pegou um machado e foi... Aí derribou, né, a tora. ele fez dois.
ele fez, né, as duas tora ele fez!
Aí ele foi caçar com o pessoal, né! Aí ele foi caçar primeiro.
o pessoal foram caçar, passaram uma semana! Aí chegaram, ele falou
assim: - Pessoal, as pessoas têm que tirar é jinipapo pra pintar.o pessoal
disseram, não nós vai fazer do jeito que ele ta colocando, né! Nós quer ver
como é que é!
Aí foram.... O pessoal foram tirar jinipapo pra se pintar.
Ele disse mermu assim: - Vocês pintam com jinipapo, mas deixa lugar pra
pintar com urucu!
BANDEIRA G. C. M. Rituais Associados à Colheita de Milho-verde na Aldeia dos Índios Gavião Kikatêjê 74
pintaram de preto, tudinho! quando amanheceu o dia, esse rapaz
falou assim: - Pessoal, eu não falei isso, mas alguém tem que ir buscar
milho!
Aí eles falou: - Mas como assim!?
Aí ele falou: - Olhe tem dois, pra bem dizer ou do “arara” ou do “gavião”!
Mas como assim?
ele disse assim: - Olhe, alguém vai ter que ir tirar milho pra colocar no
meio de campo.
Aí eles falou assim, ta bom.
Primeiro é do “gavião”, “gavião” foi primeiro tirou milho tudinho, amarrou... e
deixou bem no meio de campo.
Aí eles falou assim: - Rapaz, e agora!?
Aí ele disse: Agora não é homem que vai tirar mais, é as mulher.
Aí mandou as muié e as muié foi lá. Tiraram o milho e trouxe.
Aí ele disse: - Agora vocês tiram tudinho a palha.
eles foram, tiraram a palha tudinho, deixou... Aí eles perguntaram: E
agora!?
Ele disse: - Agora vocês tem que fazer peteca.
Eles falaram, mas como assim?
ele pegou o imbigo, né, da palha de milho, fez uma peteca, né.
deixou. Aí ensinou eles a fazer, aí terminou.
Aí eles falou: - E agora?!
Agora vocês vão pegar cuia, que naquele tempo não tinha prato né, joga
água dentro e pega o peteca dentro, pra molhar, que quando molha fica
pesado. pegaram cuia com água, pegaram as peteca e jogaram as
peteca lá dentro, aí pegaram e pintaram tudinho com urucu.
eles perguntaram, e agora? Ele respondeu, e agora nós vamo chamar os
home tudo pro campo, né, vamo tudinho pro campo! Fica ao redor lá, fica
esperando lá...
Aí ele disse assim, você vai jogar a peteca, pro pessoal.
Ele disse: - Eu vou ensinar aqui pra vocês ficar sabendo.
Ele explicava tudinho, ele disse: - Tem grupo dos “arara”, tem grupo dos
“gavião”. Então quem botou primeiro foi o grupo do “gavião”, então “arara”
que tirou, “arara” que fez. você, como “arara”, você vai lá. Primeiro
você vai correr ao redor, aí você vai correr no meio de campo lá.
esse homem foi,... Pegou uma peteca que foi feita da palha do milho e
correu... Correu ao redor tudinho!
Aí perguntou, e agora? Aí ele disse: - Agora tu deixa.
ele foi e explicou, ele disse: - Olha, primeiro vai ser “gavião”. Vocês vão
sair, vocês vão ficar bem ali, bem no meio do campo, eles vão jogar pra
vocês!
um do “arara” veio e tava jogando peteca, né. ele veio e pegou,
quando ele pega, ele começa a jogar assim, porque isso é uma disputa
também, né, de peteca. Aí fica jogando todo mundo, até cair no chão,
porque são muitas peteca que eles faz.
terminou, aí foi... Ele chamou as pessoas e disse assim: - Olha, agora de
tarde agente vai dançar agora!
ele mermu tinha feito maracá, né. Com uma cabaça deste tamanho ele
tinha feito.
foi né,... chamou o cantor, né... aí o cantor ficou cantando né. Aí
terminou.
Ali mermu ele disse: - Agora vocês vão cantar de um por um!
Ta! Aí eles foram cantar de um por um, até amanhecer o dia.
quando amanheceu o dia, né, que deu umas 6, não, umas 5 horas da
madrugada... o pessoal foram todo mundo pra tora, saíram umas 5h da
madrugada, amanheceram o dia na tora. “arara” e “gavião”, todo mundo
foram... pegaram a tora e veio correndo até... Aí ele falou assim olha isso
aqui é uma disputa, tem que correr mermu, quem correr tem mais fôlego
chega primeiro. o pessoal correram né, aí chegaram com a tora. Aí ele foi
BANDEIRA G. C. M. Rituais Associados à Colheita de Milho-verde na Aldeia dos Índios Gavião Kikatêjê 75
e tornou falar de novo pra tirar milho, e tiraram o milho e trouxe, botaram
do mermu jeito, lá no meio.
foi o “gavião” agora que fizeram as peteca pros da turma dele não joga,
vai lá entregar na mão, aí começa a jogar. Aí com isso termina.
Quando terminar que vem, ele falou assim: nós vamo inventar agora.
Rapaz, nós vamo inventar agora é “brincadeira de peixe”, que três tora né, é
mais bonito. Tudo bem!
começa, de manhã cedo todo mundo vai pro garapé. É frio! nós
vamos banhar, ele chega, ele falou: olha pessoal vocês divide “peixe”,
“raia” e “lontra”, e não pode se misturar, é uma disputa, tem que correr
mermu. Quem ganhou, ganhou, quem perdeu, perdeu!
eles vão correr né, com torinha pequena. Eles chegam e vão tirar a palha
de côco [babaçu], vão fazer quatro casa [estilo tapiri] no centro da aldeia
quem nem aqui tem o pátio [fez um rabisco em papel], vão fazer uma
aqui, outra aqui, outra aqui e outra bem aqui, são quatro casa que eles faz.
de tarde eles começam a cantar, cortam varinha desse tamanho [fez um
gesto com as duas mãos mostrando o tamanho aproximado de
comprimento das varinhas], tira três e deixa. Aí vão cantar e dançar
também, e começa a corrida dentro do pátio... com varinha mermu.
quando termina tem aquele tora de najá que chama, é, eles
começam fazer, vão pro mato um dia, quando chegar vão caça pra
fazer berarubu, vão comer depois da corrida. disso termina, isso é
só um.
terminou, falou pronto, agora é com uma semana alguém cortar
tora dessa altura aqui [fez o gesto com a mão esquerda, mostrando a altura
da tora], chama sumaúma que chama. derriba uma, vão cortar três.
vai cavar, deixa tudo pronto! [...]três pedaço. que vão buscar essa palha
que eu tava falando! ele disse, corto a tora, nós vamo caçar palha
primeiro! vai todo mundo, se num né, vai ter que ir pelo menos cinco,
dez pessoa buscar palha. Dái traz, daí as pessoa começa a fazer assim
[apontou para os desenhos que nhamos feito anteriormente, das máscaras
Tep Krã]. Aí ele pergunto, ta tudo pronto? Aì ta tudo pronto!
Aí nós vamo pro mato, quando chegar vamo tirar palha lá no mato,
quando chegar começa a fazer, que é palha de bacaba que é mais fácil né.
vamo caçar, passado uma semana eles chegam, vem trazendo a
palha de bacaba.eles chega e começa a pintar.
quando termina tudinho a pintura, cada homem vai pegar carne de
caça pra dividir pra dá pra muié fazer berarubú, aí vão dá. Aí quando
terminar, pega a máscara e vou sair com ela, pra dançar... todo
mundo vai pegar sua máscara, que eu vou ficar lá no centro [ele é
Lontra] e “peixe” e “raia” fica dançando ao redor assim.
É como eu tava falando, de primeiro o pessoal aqui não tinha horário, mas
aqui pelo horário eu tiro uma base, de começar das sete, termina dez
hora.
das dez tem mais uma dança, com maracá as pessoa dançam também,
dança de “peixe” mesmo”.
depois o cacique manda as muié pra roça. É mais com as muié a parte
da roça. vai tirar batata, inhame, banana, macaxeira, tudo... mudubim,
milho,... nós, homi, ele manda, diz: Pessoal vão pro mato, vão caçar,
matar porco né, viado, jabuti... aí a gente traz. Aí as pessoa vai fazer
berarubú, muié vai fazer berarubú, assar batata, inhame também.
as muié vão juntar tudinho e vão botar em cada casa, porque quando é
na época do verão o garapé seca, a gente vai pra pegar peixe e tem
aquele poraquê lá na beira, e não deixa nós pegar peixe, é assim.
Aí então a gente pega batata, caça , tudo... aí vamos botar em cada casa.
elas vão pintar com urucu, cortar cabelo, pra ficar tudo pronto, né. nós
começa a cantar bem cedo, as coisa ficam reservado, nós faz fogo
grande e começa a cantar direto, só pára pra comer, sem dormir.dança a
noite todinha, até de manhã.
BANDEIRA G. C. M. Rituais Associados à Colheita de Milho-verde na Aldeia dos Índios Gavião Kikatêjê 76
quando amanhecer o dia vamo chamar, a turma do “peixe” que
vamo chamar. vamo espalhando, vamo espalhar. Como tava falando, se
tem batata né, nós vamo tomando até terminar, vamo batendo de casa
em casa, só os “lontra”. Aí termina o primeiro.
Aí vai ser a “raia”. E já vai a “lontra” de novo, só a “lontra”, pegar berarubú, o
“raia” corre com berarubú e a gente corre atrás pra tomar, de um por um,
toma tudinho!
quando termina, o ultimo é a lontra”, que é diferente. a gente vai
chamar a nossa turma. tem o inhame que fica tudo separado ali,
nós vai pegar. As pessoa fica com arco e flecha vem atacar só com
inhame mermu, não pega outras coisa.
as pessoa ficam com medo né, de flechar a gente. eles ficam
esperando né, armado. nós vamo pro muié, elas jogam em nós o
inhame e a gente pega e corre no mato, se esconde. Mas né, se o
pessoal for esperto né, toma tudinho de nós, aí termina, aí acaba.
Aí vão inventar brincadeira de borboleta, que chamam...
vamo começar, né, aí vamo gritar, as muié vai escutar né, vai correr
pro rumo das criança, aí vai pegar as criança né, aí vai ficar.
Quando for no outro dia, o que pode acontecer! Pega as criança de novo, aí
as pessoa vai tirar ou arrancar inhame, ou batata, ou banana, essas
coisa pra pagar a criança. Porque eles pegam a criança, eles pintam,
pinta a criança, banha primeiro, depois pinta. a mãe da criança vai trazer
qualquer coisa, ou batata, ou banana, qualquer coisa, ela vai ter que trazer
pra praquelas pessoa que pintou a criança, deixa pra ele, pra pegar a
criança de volta. Quem pega as criança é só as muié.
Enquanto isso os homem vão ta ajudando, vai caçar. O homem ta ajudando
nisso, mas o homem não vai lá pra entregar, é muié que vai.
A brincadeira de “peixe” é essa [...].
Neste relato, o Sr. Ropré me forneceu outros conhecimentos, numa estrutura
de informações que refletem conexões com o que foi dito na contação mitológica de
nossa conversa anterior. Em sua narrativa, pode-se perceber a presença do “homem
que ensina”, o qual ele não sabe se é um deus e nem sabe quem é, mas sabe que é
um homem que explica todas as coisas, como devem ser realizadas, seus sentidos e
significados. Essa (re) organização inconsciente que se dá no mito e em função
deste, afirma a absorção do sobrenatural nessa tradição, com base em Lévi-Strauss
(2004).
Em mitos de vários povos do trono , é possível encontrar episódios em que
há presença de um “outro” que ensina, em alguns mitos esse “outro” engana,
noutras narrativas mitológicas o “outro” é um herói, etc (Idem).
Nesses casos, uma relação de diálogo com esse “outro” que pode ser
codificado como homem, como animal, como bicho brabo, dentre outros. O
interessante é perceber que esse outro é pessoa, a partir da perspectiva xamânica
ameríndia, pois é um alguém, um agente (VIVEIROS DE CASTRO, 2002).
BANDEIRA G. C. M. Rituais Associados à Colheita de Milho-verde na Aldeia dos Índios Gavião Kikatêjê 77
O “outro”, nesse diálogo transespecífico, próprio das narrativas mitológicas,
constitui-se em persona
30
por meio de seu valor simbólico, suas práticas comunicam
pela sua corporalidade cosmológica enquanto linguagem e está presente no mito,
como referi no item anterior deste texto.
Além disso, pude reafirmar a existência do mito associado à colheita de milho-
verde e perceber a semelhança dos fazeres presentes nesse mito, em relação a
rituais de outros grupos Timbira que também são associados à roça de milho: o
Põhipré, por exemplo, dos índios Krahó, é relatado por Melatti (1978) como rito do
ciclo anual.
Os ritos do ciclo anual, entre os grupos Timbira, estão geralmente
“associados seja a fenômenos climáticos, como as estações seca e chuvosa, seja ao
plantio, crescimento e colheita de determinados vegetais, como a batata doce e o
milho” (Idem).
Dessa forma, percebi que o tempo dos rituais, na aldeia Kyikatêjê, está
associado ao ciclo biológico da roça e, por este aspecto, compreendo que o sentido
da práxis indígena não dissocia às dimensões do social, do cultural e do biológico,
pois sua humanidade está calcada numa maneira de pensar o universo em que
essas dimensões são indissociáveis e constituem seu “espaço-ambiente-natureza”
enquanto totalidade.
Contudo, tendo compreendido o diálogo transespecífico na personificação do
“homem que ensina”, a presença de outras formas rituais associadas a colheita de
milho (não apenas o ritual que envolve máscaras) e a noção de tempo, no contexto
do mito, continuei a inquirir o Sr. Ropré, agora sobre os dois rituais. Perguntei-lhe
como é possível saber qual seria o ritual a ser realizado nesse ano (2009), daí ele
afirmou: “[...] a gente faz anos e anos, mas ninguém sabe se vai ser ‘Peixe, Raia e
Lontra’ ou se vai ser ‘Arara e Gavião”.
Sua resposta foi uma indicação clara de que o ritual de celebração da colheita
de milho-verde, como prática que ocorre muito tempo entre o povo Kikatêjê,
pode ser realizado de duas maneiras distintas. Com a continuidade da conversa
compreendi que podem realizar o Tuti Krã, “brincadeira de peixe” que envolve os
grupos cerimoniais “peixe”, “raia” e “lontra”, ou ainda o Hõprkrã, “brincadeira de
30
Termo de origem da Grécia Antiga, designado ao nome das máscaras que o atores do teatro grego
usavam; de personare que significa “soar através de”; designado também ao papel social ou o papel
de um intérprete.
BANDEIRA G. C. M. Rituais Associados à Colheita de Milho-verde na Aldeia dos Índios Gavião Kikatêjê 78
petecas” a qual envolve os grupos cerimoniais “arara” e “gavião” e que a decisão de
realizar uma ou outra brincadeira, e quando realizar, ocorre quando a roça
tradicional
31
de milho está boa para a colheita (para ser consumido), sendo que na
mesma é tomada a decisão, em reunião entre os homens anciãos e lideranças do
povo. Após esta, o cortador de tora deve ir para a floresta cortar uma árvore de
samaúma e preparar tora grande - a “tora do milho-verde”.
Então perguntei se é feita a reunião, para a tomada de decisão sobre qual
seria a brincadeira, assim que o milho já começa a aparecer e ele me respondeu: “É,
é sim. A ispiga já ta grande”.
Assim, minha expectativa era saber qual cerimonial seria realizado de modo a
poder acompanhar sua forma de organização e execução. Presenciar a realização
do ritual associado a colheita de milho-verde na aldeia povo Kikatêjê, passou a ser
o passo seguinte para compreensão do mesmo. E, o fato de “Estar-junto” da
colheita de milho-verde, permitiu-me experienciar vivências que se dão em
processos de apreensão dessa realidade e que envolvem múltiplas dimensões do
Espaço-ambiente-natureza, entre eles a decisão das lideranças sobre qual
cerimonial realizar. Definido o cerimonial, passei a acompanhar os diversos
momentos que o constituem, os quais apresento e discuto, a seguir
2.4. HÕPRKRÃ, A BRINCADEIRA DAS PETECAS: MOMENTO DE MÚLTIPLAS
VIVÊNCIAS
Na estação chuvosa do ano de 2009, quando a roça de milho estava quase
pronta, pude presenciar a realização da celebração da colheita do milho-verde na
aldeia. Nesse ano, a liderança da aldeia decidiu realizar a “brincadeira de petecas”
(Hõprkrã), em detrimento da “brincadeira de peixe” (Tuti Krã).
31
Existem dois tipos de roça na aldeia: a roça mecanizada, feita por máquinas, em que a terra é
preparada por tratores e a roça tradicional, a qual é preparada manualmente pelos homens da aldeia:
derrubam as árvores do local, mantendo os limites da floresta no entorno, queimam e retiram os
restos de troncos e abrem pequenos buracos na terra onde semeiam 2 ou 3 grãos de milho, das
espigas chamadas “milho-macho” para a germinação de um milharal com grandes espigas.
Geralmente na roça tradicional de milho, dos indígenas Kikatêjê, não se semeia os grãos em ordem
de fileiras e entre o milho se semeia também outros frutos cabaça rasteira, macaxeira, abóbora,
batata-doce, cará, amendoim, etc.
BANDEIRA G. C. M. Rituais Associados à Colheita de Milho-verde na Aldeia dos Índios Gavião Kikatêjê 79
A informação de que o cortador de toras havia ido para a mata me causou
ansiedade, pois indicava que a celebração estava em curso. Essa ansiedade se
devia a minha expectativa em
presenciar a execução do ritual. Nos
dois dias seguintes, o cortador esteve
indo à mata, portando machadinha e
facão, para preparar as toras de
samaúma (cortar, cavar e pintar com
urucum). Quando as duas toras ficam
prontas, a tora do grupo dos “arara” e a
tora do grupo dos “gavião”, o cortador
avisa para que todos (homens e
mulheres) comecem a pintar o corpo
para a festa
32
(fig. 16 e 17).
Figura 16. Mulher da aldeia Gavião, pintando o corpo com grafismo
característico do grupo “Gavião”
Fonte. Giza Bandeira. Acervo pessoal (2009).
Obedecendo ordem dos anciãos, os
jovens também começam as pinturas corporais
com jenipapo (pigmentação escura, quase preta),
isso anuncia que no próximo dia a “festa do
milho-verde” terá seu início.
Figura 17. Ancião da aldeia Gavião, exibindo sua
pintura corporal com grafismo característico do
grupo “Arara”.
Fonte. Giza Bandeira. Acervo pessoal (2009).
32
“Se algo relacionado com toda a experiência da festa, este algo é o que impede todo isolamento
de alguém frente a outrem. Festa é coletividade e é a representação da própria coletividade, em sua
forma acabada. Uma festa é sempre para todos” (GADAMER, 1985, p. 61).
BANDEIRA G. C. M. Rituais Associados à Colheita de Milho-verde na Aldeia dos Índios Gavião Kikatêjê 80
Um dia após a feitura das pinturas com jenipapo, os velhos levantam cedo de
manhã, antes do sol se mostrar completamente. Um dos velhos segue até o milharal
e busca uma espiga de milho e a traz para os demais velhos, no acampamento (ou
casa de reunião). Percebi que nesse momento se dá o início da festa.
Então, os homens mais velhos, com os corpos pintados com jenipapo e
urucum, vão até a roça tradicional buscar mais espigas de milho. Essas espigas têm
por finalidade primeira a extração da palha (que recobre a espiga de milho-verde)
para feitura de petecas.
Tendo chegado as espigas, os velhos começam a confeccionar petecas,
amarrando as lascas da palha de milho em fios de embira (fig.18)
Figura 18. Ancião da aldeia Gavião, confeccionando petecas com palha de milho-verde.
Fonte. Fonte. Giza Bandeira. Acervo pessoal (2009).
BANDEIRA G. C. M. Rituais Associados à Colheita de Milho-verde na Aldeia dos Índios Gavião Kikatêjê 81
Após os velhos terem feito um número considerável de petecas (em torno de
dez unidades) uma mulher senta em uma tora e, portando uma bacia com urucum e
água sobre as pernas, ela banha as petecas, dando-lhes coloração avermelhada
(fig. 19 e 20). Eu perguntei por que ela banha as petecas em urucum e ela responde
que “é para ficar bonita” (as petecas). Nesse momento, percebi que várias crianças
ficaram ao redor, elas queriam brincar com as petecas e comer os milhos dos velhos
(que já estavam assando na brasa que os aquecia). Mas, a velha que banhava as
petecas me explicou que as crianças não podem pegar, antes que os homens
velhos brinquem com as petecas e carreguem a tora do milho-verde - se elas
pegarem, antes
da brincadeira
dos velhos, e/ou
comerem do
milho antes do
tempo, adquirem
doenças.
F
i
Figura 19. Mulher banhando as petecas com água e urucum.
Fonte. Giza Bandeira. Acervo pessoal (2009).
Figura 20. Petecas, confeccionadas com palha de milho-verde, recebendo
coloração vermelha de urucum para ficarem bonitas.
Fonte. Giza Bandeira. Acervo pessoal (2009).
BANDEIRA G. C. M. Rituais Associados à Colheita de Milho-verde na Aldeia dos Índios Gavião Kikatêjê 82
Após a confecção das petecas, o
ancião de mais idade, o qual a comunidade
costuma chamar “Baixinho”, toca um apito
(buzina) feito de bambu e chama em voz
forte, em língua : Amjikĩn!esse grito se
refere à chamada de todas as brincadeiras
(fig. 21). Assim, os velhos e seus afilhados
(para quem deram o nome) se colocam em
volta, se reúnem em rculo, em um grande
círculo, para que no centro se posicione o
jogador de petecas.
Figura 21. Ancião chamando para iniciar a
brincadeira de petecas.
Fonte. Giza Bandeira. Acervo pessoal (2009).
A regra da brincadeira de petecas é bater
na cabeça (krã) da peteca, de baixo para cima,
com a palma da mão e não deixá-la cair ao chão
(fig. 22 e 23). Quem consegue ficar com a peteca
no ar por mais tempo ganha a honra de ser o
melhor da brincadeira, e todos da aldeia ficam
sabendo disso.
Figura 22. Homem da aldeia Gavião Kỳikatêjê,
jogando peteca.
Fonte. Giza Bandeira. Acervo pessoal (2009).
BANDEIRA G. C. M. Rituais Associados à Colheita de Milho-verde na Aldeia dos Índios Gavião Kikatêjê 83
São cerca de dez petecas, uma para cada jogador. A peteca não pode ser
usada mais de uma vez no jogo, assim que cair ao chão, não será mais
aproveitada para a brincadeira dos velhos.
Quando a peteca cai no
chão, uma criança corre para pegá-
la. A partir daí, várias crianças
pegam as petecas que vão caindo
durante o jogo dos mais velhos e
começam a fazer a brincadeira
delas, ao lado do círculo da
brincadeira de seus pais, tios,
padrinhos, etc. As crianças parecem
treinar para serem jogadores de
petecas, quando crescerem, elas
observam e tentam fazer como os
homens mais velhos. Assim,
concomitante a brincadeira dos
velhos, forma-se uma brincadeira de
crianças (fig. 24).
Figura 23. Homem da aldeia Gavião Kỳikatêjê se
esforçando para não deixar cair a peteca.
Fonte. Giza Bandeira. Acervo pessoal (2009).
Quando acabam todas as petecas dos velhos, se inicia uma cantoria
exclusivamente masculina, puxada por um cantador e dois anciãos que tocam
buzinas de bambu. As metades “Arara”
e Gavião”, divididas em dois grupos
de homens de várias faixas etárias,
têm seus gritos próprios, que
reproduzem durante o momento de
canto (fig. 25).
Figura 24. Crianças treinando a brincadeira de petecas.
Fonte. Giza Bandeira. Acervo pessoal (2009).
BANDEIRA G. C. M. Rituais Associados à Colheita de Milho-verde na Aldeia dos Índios Gavião Kikatêjê 84
Figura 25. Homem do grupo “Gavião” emitindo sons de canto após
brincadeira de petecas.
Fonte. Giza Bandeira. Acervo pessoal (2009).
Depois disso, o povo dispersa, alguns homens vão caçar. Nesse dia, no fim
da tarde, uma das mulheres anciãs chegou ao acampamento de posse de um
paneiro cheio de urucum, que ela foi buscar na outra aldeia Gavião (Parkatêjê), pois
“o urucu daqui já está quase se acabando”. Uma das mulheres reclama dizendo que
ela planta urucum ali por perto, mas o vento o derruba. Prestei-me a ajudá-las a tirar
as sementes de urucum das cascas, ajudei minha ĩx. Depois as mulheres se
pintaram, algumas pintaram suas crianças (meninas) para dançarem, os homens
pintaram o centro do busto, o rosto, os braços e as pernas até os pés. Ao fim da
tarde, por volta de 17horas, os tocadores de apitos um destes é o cacique
BANDEIRA G. C. M. Rituais Associados à Colheita de Milho-verde na Aldeia dos Índios Gavião Kikatêjê 85
começaram a chamar e, caminhando para o centro do pátio, reuniram-se em dança
e canto, em língua nativa
33
.
Aos poucos, os jovens foram chegando e se juntando à procissão que seguia
os cantadores e os tocadores de apito, os quais puxavam a marcha em dança no
centro da aldeia circular. Por vezes, se percebia alguns velhos fazendo movimentos
que lembram pássaros, os mais novos não cantavam, porém acompanhavam os
movimentos dos mais velhos a passos miúdos e ritmados (fig. 26).
Figura 26. Velhos, jovens e crianças em movimentos de canto e dança no centro da aldeia.
Fonte. Giza Bandeira. Acervo pessoal (2009).
Eu perguntei a uma jovem, por que ela estava dançando daquele jeito (com
passos miúdos), ela respondeu: “É por causa que faz parte da vida do índio e faz
parte da cultura”. Fiz a mesma pergunta a dois rapazes, e eles disseram: “A cultura
do índio é assim, a gente tem que fazer o que os mais véio faz”. No meio da
conversa, outro rapaz enfatizou: “Quem é índio faz essas coisa, pinta o corpo de
arara, gavião, peixe, lontra, raia, cobra
34
... e tem que fazer essas coisa que são do
índio”.
33
Umas das limitações dessa pesquisa se encontra no fato de não dominar a língua Jê, usada pelos
mais velhos e situações de reuniões e canto, além de não ter a tradução dos cantos.
34
Motivos representativos que fazem parte da cosmologia desse povo.
BANDEIRA G. C. M. Rituais Associados à Colheita de Milho-verde na Aldeia dos Índios Gavião Kikatêjê 86
Perguntei para Kwai (uma jovem casada que é conhecida na aldeia por
fazer pinturas bonitas de todas as representações desse povo) sobre como ela
aprendeu a pintar aqueles desenhos, ela explica que “desde criança as mães pintam
as meninas, os meninos e o marido, daí os filhos vão crescendo e aprendendo a ser
assim, faz parte da vida do índio” (fig. 27).
Figura 27. Joven Kỳikatêjê exibindo sua pintura corporal do grupo “Peixe”.
Fonte. Giza Bandeira. Acervo pessoal (2009).
A dança durou cerca de duas horas, até que o Sol do fim da tarde sumiu
completamente e o povo começou a dispersar. Ficaram apenas os homens mais
velhos no pátio (no centro da aldeia circular), reuniram-se para definir sobre a corrida
da “tora do milho-verde” que aconteceria no próximo dia e que, de fato, aconteceu.
Outro dia (15/02), logo no início da manhã, um caminhão buzinou bastante
em torno da aldeia. Era o caminhão da Associação Amitãti Kyikatêjê isso
aconteceu quando os jovens não se levantam cedo apenas com o som do apito de
bambu, o caminhão buzina em torno das casas para despertá-los. Nesse dia, a
chamada era para a corrida da “tora do milho-verde”, que foi preparada com tronco
de samaúma, pelo cortador.
Eu também me levantei e aproveitei que o caminhão acompanhou os
corredores, e fui também ver a corrida desde da floresta. Era por volta das seis
horas da manhã, ainda tinha neblina sobre as casas, fazia frio. Fui em direção ao
acampamento, mas “Mamãe Grande” (Ronoré), minha
ĩx, me mandou ir para o
BANDEIRA G. C. M. Rituais Associados à Colheita de Milho-verde na Aldeia dos Índios Gavião Kikatêjê 87
caminhão acompanhar a corrida e tirar fotos. Percebo que pelo fato de ter levado
algumas fotos impressas, da minha visita anterior, eles ficaram mais solícitos à
câmera fotográfica.
Então, subi, fui em cima do caminhão. O cortador da tora (Prekrut) foi também
encima do caminhão e me explicou que havia deixado a tora bem longe, “por que a
juventude de hoje em dia [da aldeia] está muito preguiçosa” [ele falou rindo].
Na medida em que entrávamos mais na floresta, numa estrada de chão
arenoso que parecia não ter fim, o clima e o cheiro de mato me envolvia ainda mais.
A tora estava acerca de 6 km de distância do acampamento dos velhos (local de
chegada dos corredores), cada uma tora pesava cerca de 80 Kg.
O caminhão
seguiu até certo ponto
da estrada, antes de
um barranco que
precede o local em
que estavam as toras
dos dois grupos. Ao
olhar de cima do
barranco, a paisagem
é linda, com árvores
grandes e pequenas,
que se misturavam a
neblina fina que cobria
os galhos altos das
grandes árvores (fig.
28).
Figura 28. Vista de cima, do barranco que precedia o local onde estavam as toras de
corrida na mata.
Fonte. Giza Bandeira. Acervo pessoal (2009).
BANDEIRA G. C. M. Rituais Associados à Colheita de Milho-verde na Aldeia dos Índios Gavião Kikatêjê 88
Demorou cerca de 15 minutos até que, quando despontou a primeira tora, a
dos casados. Despontou da baixada, nas costas de um dos homens, o qual assim
que se sentiu cansado revezou, passando-a para outro companheiro casado. Logo
depois subiu na baixada a tora do grupo dos homens solteiros. Entre o grupo de
solteiros tinha, inclusive, meninos de 13 anos. A tora pesava mais do que eles, mas
chegaram a suportá-la várias vezes sobre seus ombros, é claro, com mais
dificuldade do que os homens mais velhos e mais fortes. Perguntei a dois meninos
por que eles “correm tora”, eles me responderam que é por que os velhos mandam e
eles têm que obedecer, senão os velhos ficam brabos com eles.
Os solteiros chegaram a se aproximar do grupo dos casados, na corrida, mas
não conseguiram ultrapassá-los (fig. 29).
Figura 29. O grupo dos homens solteiros na corrida de toras.
Fonte. Giza Bandeira. Acervo pessoal (2009).
Os casados ganharam essa corrida. Eles chegaram primeiro no
acampamento, derrubaram as toras e permaneceram descansando sentados e
esperando o banho d’água fria dado pelas mulheres da aldeia. Algumas mulheres
estavam no local com seus baldes cheios de água para refrescar o marido, os filhos,
os sobrinhos, entre outros, numa atitude de carinho, cuidado e solidariedade.
BANDEIRA G. C. M. Rituais Associados à Colheita de Milho-verde na Aldeia dos Índios Gavião Kikatêjê 89
Após o banho, os mais jovens (principalmente) ficaram comentando uns com
os outros sobre a corrida: quem correu mais, quem suportou mais, quem pegou
carona no caminhão porque estava cansado, quem aguentou por pouco tempo a
tora no ombro e elogios para quem correu muito. Compreendi, ao escutar tais
comentários, que os elogios são muito importantes, legitimam os melhores e os mais
fortes, o que parece ser motivo de grande honra e auto-estima.
Entre o grupo dos mais velhos, escutei um comentário sobre a técnica usada
para ganharem, visto que o grupo deles era menor. Um dos casados mais jovens
disse que tem que posicionar a parte “ocada” (cavada) da tora sobre o ombro e a
parte mais pesada, que é maciça, empinar (inclinar) para cima e para frente. Desse
modo, o peso da tora impulsiona o corpo do corredor para frente - se a tora ficar com
o peso distribuído mais para trás, poderá cair. Isso ocorreu no grupo dos jovens
solteiros que, por vezes, mesmo sendo mais numerosos, não conseguiram ganhar
do grupo dos casados, embora, estes, mais velhos e em menor quantidade.
Percebi certo orgulho dos dois meninos mais novos (na faixa dos 13 anos)
que foram com o grupo dos solteiros, por terem participado da competição. Eles
exibiam o fato de terem carregado a tora no ombro, como se isso lhes tornassem
guerreiros, homens fortes.
Após o banho dado pelas mulheres e alguns minutos de descanso, os velhos
mandaram os jovens irem buscar milho na roça tradicional. Foram dois grupos com
paneiros para a roça: os solteiros e os casados. Os demais, que ficaram no
acampamento, fizeram duas fogueiras.
Os dois primeiros paneiros de milho que chegaram foram para a “casa de
reunião”, no acampamento, onde os velhos iniciaram a feitura das petecas. Os
outros paneiros de milho, que restaram, foram para as duas fogueiras, dos homens
solteiros e dos homens casados. Enquanto isso, houve “encarnação” (zombaria)
entre os grupos, uns zoavam dos outros dizendo que não sabiam fazer fogo
[momento de riso e descontração].
Em seguida, começaram a assar as espigas de milho, retirando apenas a
palha mais externa das espigas, deixando ainda algumas camadas de palha sobre o
milho e em contato direto com o fogo o cheiro de milho assado na palha é
imprescindível, doce e típico. Quando o milho começa a estalar na fogueira e a palha
que recobre a espiga fica bem escura, significa que já está bom para comer.
BANDEIRA G. C. M. Rituais Associados à Colheita de Milho-verde na Aldeia dos Índios Gavião Kikatêjê 90
Todos estavam com muita fome, pelo jeito, os milhos assados foram o
desjejum de todos. Enquanto isso, alguns homens mais velhos confeccionavam as
petecas, com as palhas de milho, até que ficaram prontas e, já tendo comido
algumas espigas e, portanto, estando alimentados, começaram a jogar petecas.
Ropré é considerado o melhor jogador, ele é quem consegue manter por maior
tempo a peteca no ar em algumas vezes que o vi jogando observei que ele teve
que derrubar a peteca propositadamente, senão passaria a manhã inteira jogando.
Assim, novamente se repetiu a brincadeira, que havia acontecido no dia
anterior, sendo que neste dia aconteceu após a corrida da “tora do milho-verde”. As
crianças e algumas mulheres jovens e velhas estavam ali em torno da brincadeira,
mas não participam oficialmente com os homens. As crianças esperam que as
petecas caiam ao chão para tomá-las para si e fazerem sua própria brincadeira.
Após a brincadeira de petecas, as mulheres mais velhas continuam a comer
as espigas de milho assado que ainda sobraram. E, o cacique chama os homens
(casados e solteiros presentes) para reunião, percebi que o assunto se trata de caça
Ropré (meu principal informante) confirmou que o cacique mandou todo mundo
caçar e coletar frutos para darem para as esposas e mães da aldeia para que, no dia
seguinte, possam trocar as caças como presentes em troca de seus filhos, num ritual
que eu comecei a chamar de banho das comadres”. Depois da conversa com o
cacique, cada qual retornou para sua casa, ficaram apenas os mais velhos no
acampamento. Assim, tem-se o fim do Hõprkrã, parte da celebração de colheita do
milho-verde onde se faz a brincadeira de petecas.
Verifiquei que a brincadeira, descrita acima, envolve diversas aprendizagens
de saberes, valores e habilidades, presentes nos fazeres e dizeres relativos a pintura
corporal, corrida de toras, colheita de milho, jogo de petecas em relações com o
“outro”, e que as mesmas se dão em situações de vivências coletivas e individuais,
na apropriação de saberes presentes e intrínsecos a elementos da biodiversidade
local.
A partir da compreensão de que a celebração da colheita do milho-verde se
constitui como processo de educar, dou a conhecer algumas situações de
aprendizagens singulares, próprias da vivência indígena.
BANDEIRA G. C. M. Rituais Associados à Colheita de Milho-verde na Aldeia dos Índios Gavião Kikatêjê 91
Seção III. PROCESSOS EDUCATIVOS DA VIVÊNCIA NOS RITUAIS
Ao compreender os rituais de celebração de colheita de milho-verde enquanto
educação faz-se necessário apresentar processos educativos a ela recorrentes.
Neste sentido, analiso a referida celebração indígena diferentemente das análises
antropológicas que, na maioria das vezes, buscam entender, a partir desses
contextos rituais, a estrutura social e sistemas culturais. Neste estudo, meu olhar se
centrou na compreensão dos aspectos educativos pertinentes a essa celebração.
Por haver conhecido a forma de concepção, organização e realização dos
rituais associados à colheita do milho-verde, na aldeia Gavião Kikatêjê, percebi que
a atualização do mito de origem por meio de fazeres e dizeres expressados na
feitura de seus rituais e na oralidade, se dão, dentre outros aspectos, enquanto ato
pedagógico (FREIRE, 2004).
Dessa maneira, identifico os dois rituais de celebração da colheita do milho
(Tuti Krã e Hõprkrã) como mosaico de relações de sentidos e significados que se
constrói em situações de aprendizagem para e por meio da cultura Timbira, bem
como processos educativos de uma educação que existe solta entre os homens e na
vida (BRANDÂO, 2007) relacionados intrinsecamente, por fatores simbólicos, a
elementos da biodiversidade local.
Essas relações configuram-se enquanto processos educativos, pois são
elementos e noções que os sujeitos apreendem, o que lhes tornam membros de
uma aldeia de etnia indígena Timbira, Kikatêjê (CALEFFI, 2004), configurando uma
aprendizagem da/na vivência.
A aprendizagem por meio da vivência é reconhecida socialmente – vários são
os ditos populares que a referendam afirmando que “é vivendo que se aprende”, “a
vida ensina”, dentre outros. Entretanto, identificar os elementos numa análise
sistemática ajuda a visualizá-la e compreender seus processos.
Especificamente neste estudo, analiso processos educativos em duas
categorias de contexto que são os dois rituais de celebração do ciclo anual
associados à colheita do milho-verde, que são as duas formas de se realizar a
referida celebração: o Tuti Krã e o Hõprkrã.
BANDEIRA G. C. M. Rituais Associados à Colheita de Milho-verde na Aldeia dos Índios Gavião Kikatêjê 92
3.1. PROCESSOS EDUCATIVOS, ELEMENTOS DA BIODIVERSIDADE E
SABERES DO TUTI KRÃ
O Tuti Krã, descrito na seção anterior, na contação do mito (por Sr. Ropré),
demarca, em diferentes momentos, situações de aprendizagens. Neste, percebi que
processos de aprender-ensinar se dão na relação com o “outro”, a partir da noção de
“outridade” (LEFF, 2003). Além disso, esses processos são vivenciados
coletivamente e individualmente. Recorto e analiso alguns fazeres e dizeres que
evidenciam tais processos.
Reconheço que qualquer tentativa de mapeamento desses processos, o que
implica isolamento de dados a fim de torná-los perceptíveis para as categorias de
análise, fragmenta o contexto do vivido. Entretanto, a adoção pela análise de
conteúdo enseja esta forma de tratá-los, mas ao mesmo tempo valoriza os
processos educativos que apresentam significação no contexto do sistema cultural
de formas simbólicas da aldeia.
Nessa perspectiva, apresento os referidos processos educativos e os saberes
relacionados à biodiversidade local em algumas práticas que se dão em diversas
vivências: o “mito de origem”, a “confecção das ‘cabeça de peixe’”, as “pinturas” e a
“corrida de toras”, considerando que são representativas na contação do mito de
origem.
3.1.1 O mito de origem
Após ter verificado, na seção anterior, que o relato de Sr. Ropré sobre o
surgimento das máscaras - “cabeça de peixe” - se tratava do mito de origem da
celebração da colheita do milho-verde e que os elementos expressos no relato
demonstravam a “eficácia simbólica” das ações descritas (LÈVI-STRAUSS, 1975),
percebi que existe uma relação intrínseca entre a biodiversidade local e o mito,
conforme Sr. Ropré me falou:
Isso que eu falando, que eu contei naquele dia lá, né. Que aquela árvore
de milho, batata,... essas coisas,... isso foi amostrado primeiro. quando
começaram a plantar milho, mandioca, abóbora, essas coisas mais, né! Eles
plantavam tudinho. Aí foi através disso que começou. E esse homem falou: -
Rapaz, bora inventar né, uma corrida, fazer uma brincadeira pra nós
inventar uma corrida de tora! [...]
BANDEIRA G. C. M. Rituais Associados à Colheita de Milho-verde na Aldeia dos Índios Gavião Kikatêjê 93
A presença marcante das roças, especificamente da roça de milho (que
envolve outras espécies em seu plantio), é significativa na fala do Sr. Ropré e
demarca a origem da celebração da colheita do milho, demonstrando que os ritos
originados desse mito estão relacionados ao ciclo anual por que são associados ao
plantio, crescimento e colheita da roça (MELATTI, 1978). Essas informações,
presentes na forma de pensar dos indígenas, influenciam seus fazeres e coadunam
com o que Diegues (2000) fala sobre a biodiversidade não ser um conceito para
discutir apenas nas suas relações com o mundo natural, visto que é uma construção
cultural e social. É possível, ainda, perceber os saberes que emergem desse
processo de educar e a sua apropriação no mito, estes apresento no quadro a
seguir:
Quadro 1. Elementos da Biodiversidade, formas de apropriação e saberes do
mito do Tuti Krã
Elementos da
biodiversidade
Formas de
apropriação
Expressão de saberes envolvidos
Milho
Pla
ntio;
Mito de origem da
“brincadeira”.
“Aí quando começaram a plantar milho, mandioca, abóbora,
essas coisas mais, né! Eles plantavam tudinho. foi através
disso que começou . E esse homem falou: - Rapaz, bora
inventar né, uma corrida, fazer uma brincadeira pra nós
inventar uma corrida de tora! [...]” (Sr.Ropré)
Batata
Mandioca
Abóbora
Homem
Por meio dessa relação intrínseca entre o plantio das roças e o surgimento
das brincadeiras”, posso afirmar que os ritos ligados aos fazeres expressos nesse
mito são “ritos do ciclo anual” (MELATTI, 1978). Esse fato empreende valores de
Educação Ambiental
35
incorporados à própria vida, ou seja, o plantio e, portanto, o
ambiente está associado à própria forma de identificação da pessoa indígena e suas
práticas.
Nesse aspecto, a educação ambiental se num processo educativo
vivenciado coletivamente e individualmente, pois o plantio das roças são atividades
que se faz geralmente em grupos de pessoas, mas, também, são formas de
apreensão de saberes que se dão na relação que a pessoa tem com os fazeres na
roça, numa prática de interação e observação.
Ao observar o crescimento dos vegetais, o sujeito aprende, dentre outros,
sobre o tempo de colheita e valores relativos à tolerância, quando da espera do
35
Com base na noção de Complexidade Ambiental (LEFF, 2003), a qual considera as diversas
formas do ser, do saber e do conhecer em suas estratégias de apropriação do Espaço-ambiente-
natureza pelos povos.
BANDEIRA G. C. M. Rituais Associados à Colheita de Milho-verde na Aldeia dos Índios Gavião Kikatêjê 94
tempo do “outro”, outro este que é a própria roça enquanto personalidade imbuída
de valor simbólico, presente no mito.
Esse valor de eficácia simbólica (LÉVI-STRAUSS, 1975), presente no mito e
refletido nos ritos, me conduz à compreensão de que os processos educativos
ensinam esses fazeres culturais, incorporando os processos biológicos envolvidos e
outros, configurando uma educação interdimensional, pois agrega saberes diversos
com práticas diversas, reafirmando o “espaço-ambiente-natureza amazônico”
compreendido enquanto totalidade.
Além disso, o mito de origem do Tuti Krã apresenta também processos
educativos que se dão nas relações entre os outros da aldeia e o ser mitológico que
ensina como fazer, como se percebe no relato Sr. Ropré:
[...] Na época, né, ninguém sabia de nada, só que, quenem to falando,
então um homem apareceu, chegou o homem, foi fazer, falou: Rapaz,
bora fazer, né, uma brincadeira pra gente brincar que a gente tá muito
parado. Aí falou assim, mas como assim?
O tempo mitológico expresso na introdução do mito se segue da informação
de que, antes do “homem” ensinar, ninguém sabia de nada, as pessoas da aldeia
não conheciam uma maneira de mudar a situação de “tá muito parado”, o que seria
resolvido com a invenção da “brincadeira”. Dessa forma, estabelece-se a relação
com o saber, quando é preciso aprender sobre algo para então mudar uma situação
indesejada.
A relação com o “homem que ensina” está no saber que ele traz para as
outras pessoas. “Procurar o saber é instalar-se num certo tipo de relação com o
mundo”, o que torna os homens e as mulheres sujeitos de saber (CHARLOT, 2000,
p. 60). O saber, presente no mito, enquanto forma de pensamento indígena, herdado
de várias gerações, denota o seu caráter educativo, presente na figura do
personagem mitológico simbólico, “o homem que apareceu e ensinou fazer”.
Esse personagem tem sua maneira de ensinar: ele não somente foi fazer, ele
também falou e convocou todos a uma brincadeira e, os que não entendiam do que
se tratava, lhe pediram explicações:
Aí foi e falou assim, falou: Rapaz, eu vou fazer aí vocês vão me acumpanhá.
[...] ele pegou e chamou, no final da tarde, reuniu todo mundo no meio
de campo. o pessoal tava em conversando sobre brincadeira.
ele pegou e falou assim: Olhe, amanhã nós vamo cortar tora, vamo inventar
a brincadeira, vai ser peixe, arraia e lontra. foi né, ele falou: Olhe vocês
vão cortar três tora (Sr.Ropré).
BANDEIRA G. C. M. Rituais Associados à Colheita de Milho-verde na Aldeia dos Índios Gavião Kikatêjê 95
A forma de ensinar do personagem mitológico, demonstra claramente um
processo educativo que se dá em ambientes práticos de partilha de dizeres e
fazeres. Observo que o “homem” foi fazer e convocou os demais a lhe “acumpanhá”,
a fazer com ele, o que se caracteriza como processo educativo vivenciado em
situação coletiva, no “Estar-junto”, enquanto diálogo, pois o “homem” não apenas
falou como se faz e mandou ir cortar a tora, mas disse: “nós vamo cortar tora”,
enfatizando sua presença no fazer.
Em seguida, as pessoas continuaram a argumentação sobre o novo” saber
trazido pelo “homem que ensina”:
Aí eles foi e cortou três tora, aí eles chegou e falou: E agora?
Ele disse: Agora? Agora vocês vão tirar aquele palha de tucum né [...].
[...] ele tirou a palha dela e tira pra fazer e tava ensinando a fazer. eles
falou, mas como assim? ele começou a explicar, até que terminou.
terminou né, eles falou assim: e agora? Ele falou assim: Rapaz, agora
vocês num pode usar assim qualquer tipo de palha, usa palha de bacaba
[...] (Sr.Ropré).
Percebo, na descrição, que após terminarem uma etapa dos fazeres as
pessoas argumentavam sobre a próxima etapa e, nisto, o “homem” continua a
demonstração de fazeres ao mesmo tempo em que explica como usar os materiais
(da biodiversidade) para os fazeres. Com relação ao uso de materiais da
biodiversidade, para os fazeres, é curioso observar que o “homem” enfatiza a
existência de vários tipos de palha e ensina a usar palha de “bacaba”.
Portanto, os processos educativos presentes nesse fragmento do mito,
deixam claro a importância do trabalho coletivo e das formas de apropriação do
saber por argumentação, por demonstração e por explicação. Esses fatores
demonstram o que Charlot (2000) chama de engajamento com o saber, o que é
possível perceber na relação que os sujeitos estabelecem com o mesmo.
Neste sentido, o homem” se preocupa em explicar sobre a importância dos
saberes que ele estava ensinando:
foi e falou assim: Pois olha, eu to falando, vocês ficam parado, não tem
uma alegria pra vocês... [porque isso é verdade, se fica parado não tem
alegria, não sabe o que que vai fazer, não tem animação] ...então pra isso
que eu to ensinando pra vocês fazer a brincadeira pra correr, brincar, não
ficar o pessoal parado (Sr.Ropré).
Neste trecho do mito, o Sr. Ropré intercala a contação mitológica com sua
fala, dando ênfase à justificativa dos fazeres compartilhados. O saber, apreendido
no engajamento dos sujeitos com os fazeres e dizeres, ensina sobre a importância
BANDEIRA G. C. M. Rituais Associados à Colheita de Milho-verde na Aldeia dos Índios Gavião Kikatêjê 96
de (re) recriar a “brincadeira”, a fim de não ficarem parados, pois o “estar parado” é
uma situação indesejada que não traz alegria. Então constato que esse saber,
expresso no fazeres e dizeres, são relevantes, principalmente, para ensinar sobre
valores da alegria”, o que se nas relações de “estar-junto”. O valor atribuído a
alegria, na narrativa mitológica, me faz lembrar aquela atmosfera de alegria de que
Paulo Freire (1996) se refere como imprescindível ao espaço de educar.
Dessa forma, a construção do saber, presente na narrativa mitológica, reflete-
se, de alguma maneira, nos fazeres práticos dos rituais indígenas. Quero dizer que
todas as informações (re)passadas na atualização do mito de origem do ritual Tuti
Krã, resultam em saber fazer a “brincadeira de peixe”, o que é possível perceber nas
informações dos próximos itens que mostram relatos sobre os fazeres do ritual
36
e
seus processos educativos intrínsecos.
3.1.2- Confecção das “cabeça de peixe”
Uma das primeiras etapas de realização da “brincadeira de peixe” (Tuti Krã) é
a confecção das chamadas “cabeça de peixe”, as máscaras. No que se refere à
organização da confecção desses objetos rituais, Sr. Ropré diz:
Aí agente vai fazendo né, agente não faz as coisas de qualquer jeito, agente
somos bem organizados.vamo fazer! Aí se tem pessoas que atrasado,
vai ter que esperar também. quando todo mundo termina a sua, nós
vamo dizer que todo mundo tá com tudo pronto, vamo dizer: Então vai
começar a brincadeira de peixe! as pessoas vai: corta tora três toras:
arraia, peixe e lontra tem que cortar três toras. E também a pessoa vai
cortar e não vai dançar logo no mesmo dia não! A pessoa vai pro mato
caçar, passa uma semana no mato. É assim, vai cortar tora numa semana,
na outra semana é que vai caçar, chega em casa na sexta-feira. Aí
chega e vão começar a aprontar aquela máscara de brincadeira de peixe,
vamo pintar, vamo aprontar tudinho).
O momento de construção da estrutura das máscaras feitas de palha se
caracteriza como uma situação coletiva em que todos estão fazendo juntos. Pode-se
perceber que o trabalho coletivo não está posto simplesmente no âmbito quantitativo
de ser coletivo por que envolve várias pessoas, mas é intrínseco a uma noção
coletiva de trabalho por interação e troca de experiências, pois quando tem pessoas
atrasadas, os demais esperam. A ética dessa ação compreende que aqueles que já
concluíram seu trabalho não podem passar para uma próxima etapa e deixar os
36
Visto que o Tuti Krã não foi possível presenciar, pois no ano de 2009 a liderança da aldeia resolveu
realizar o Hõprkrã. Portanto, as informações que possuo sobre os fazeres do ritual Tuti Krã se
constituem apenas de relatos e desenhos.
BANDEIRA G. C. M. Rituais Associados à Colheita de Milho-verde na Aldeia dos Índios Gavião Kikatêjê 97
demais integrantes do grupo realizando sozinhos o que ainda está por ser feito.
Esses fatores se configuram enquanto elementos de um processo educativo
vivenciado em situação coletiva que se dão durante a vivência no ritual, na tarefa de
feitura das “cabeça de peixe”, as máscaras usadas no Tuti Krã.
Nessa vivência, relatada nos fazeres e dizeres do mito, vários saberes
intrínsecos à biodiversidade local são compartilhados e, além disso, compõem o
mosaico de relações. Durante as conversas com Sr. Ropré, quando eu lhe
perguntava sobre os materiais de confecção dos objetos rituais relatados, percebia
os saberes relacionados à escolha desses materiais.
Sr. Ropré me falou sobre os materiais para a confecção das “cabeça de
peixe” e eu lhe perguntava o porquê da escolha desses materiais. Essas relações,
para melhor percepção do leitor, estão organizadas no seguinte quadro:
Quadro 2. Elementos da Biodiversidade, formas de apropriação e saberes da
confecção das máscaras do Tuti Krã
Elementos da
biodiversidade
Formas de apropriação
Expressão de saberes envolvidos
Palha de tucum
Corda de arco, para lançar flechas;
Construção das franjas das scaras,
chamadas “cabeça de peixe.
“Agente sempre usa essa palha por que ela
também é boa, porque ela é forte, aí agente
usa também pra tirar o fio dela [...]Não tora
assim fácil, não!”.
Penas de papagaio
Decoração de máscara;
“Aí atrás [da máscara] tem outra pintura
assim, mas nós não vamo pintar, nós vamos
fazer de pena de papagaio. Aí fica bonita,
porque fica bem verdinho”.
Resina de tatajuba
Aplicar penas de papagaio na máscara.
Enfeita com a pena. Quem nem aqui, pega a
cola, passa a cola e começa a colar desse
jeito[...]Tipo uma cola mesmo! [...]É mas
agente usa é tipo um leite. Leite do...
“tatajuba”, que é igual cola. Agente passa na
palha o “tatajuba” e fica tudo branco, é
espalhar as peninhas de papagaio. fica
tipo um grude.
Ipê
Confecção do chifre da máscara
É dum pau qu
e agente chamaipê”. [...], tem
é muito aqui! Agente tira elas e começa a
afinar, tem que ficar bem fininho!
A leitura do quadro propicia perceber que os sujeitos estabelecem relações
com os saberes envolvidos nas formas de apropriação dos elementos da
biodiversidade local, por meio dos valores que esses saberes representam no
contexto de sua aplicabilidade.
Como observei, a palha de tucum é referida pelo Sr. Ropré com valor de
força; a aplicação de penas de papagaio, na parte de trás das “cabeça de peixe”,
BANDEIRA G. C. M. Rituais Associados à Colheita de Milho-verde na Aldeia dos Índios Gavião Kikatêjê 98
demonstra uma referência de beleza em seu valor estético; a tatajuba, por sua vez,
tem um valor de uso em prol do estético, pois serve para colar as penas de papagaio
nas máscaras; e o ipê é uma madeira da qual se faz o chifre das “cabeça de peixe”,
uma forma de apresentação da informação mitológica sobre a confecção de
máscaras que se faz presente nos fazeres. A confecção das “cabeça de peixe”, a
partir desses elementos da biodiversidade local, intrínseca a dimensão social e
cultural, constitui-se em processo educativo que se coletivamente em práticas de
interação e experimentação de materiais.
Portanto, vejo que é inviável não pensar a “megadiversidade amazônica”
(BECKER, 2008) como uma construção cultural e social, pois os processos
educativos emergem na teia de relações simbólicas e interdimensionais que auxiliam
na atualização da cultura, especialmente a cultura indígena, em fazeres e dizeres
diversos, que continuo observando enquanto ato pedagógico no item seguinte.
3.1.3- Corrida de toras
Discuto a corrida de toras referida no mito, como uma das etapas do Tuti Krã,
também como processo educativo de apreensão de significados e relações que se
dão em situações coletivas desde a sua preparação até a realização.
Em relação a preparação Sr. Ropré assim se refere:
as pessoas vai corta tora três toras: arraia, peixe e lontra tem que
cortar três toras. E também a pessoa vai cortar e não vai dançar logo no
mesmo dia não! A pessoa vai pro mato caçar, passa uma semana no mato.
É assim, vai cortar tora numa semana, na outra semana é que vai caçar,
chega em casa na sexta-feira
As ações descritas na fala do Sr. Ropré revelam que não se trata
simplesmente da construção de produtos, mas da significação de práticas que
codificam a forma herdada das gerações indígenas, pois as três toras especificadas
são “batizadas” com nomes próprios das ligações matrilineares, propiciam relações
intrínsecas a essa organização e aos elementos da biodiversidade representados
nas categorias dos grupos internos ao rito (“os Arraia”, “os Peixe” e “os Lontra”),
incluindo o material (madeira) que constitui as toras, pois no mito de origem, está
evidenciado, inclusive, o tipo de árvore com que se faz as toras para a corrida que
se realiza associada ao ritual Tuti Krã, como se pode perceber no relato a seguir:
BANDEIRA G. C. M. Rituais Associados à Colheita de Milho-verde na Aldeia dos Índios Gavião Kikatêjê 99
[...] falou pronto, agora é com uma semana alguém corta tora dessa
altura aqui [fez o gesto com a mão esquerda, mostrando a altura da tora],
chama sumaúma que chama. derriba uma, vão cortar três. vai
cavar, deixa tudo pronto! [...] três pedaço (Sr.Ropré).
Os três pedaços em que é fatiada a tora de tronco de samaúma, são usados
na corrida de toras. Cada pedaço é carregado individualmente pelos integrantes dos
grupos internos à “brincadeira”, por revezamento. Aqui, também, é possível perceber
elementos da biodiversidade que ensejam saberes engajados numa relação de
atribuição de valores, o que ilustro a partir do quadro seguinte:
Quadro 3. Elementos da Biodiversidade, formas de apropriação e saberes da
corrida de toras do Tuti Krã
Elementos da
biodiversidade
Formas de apropriação
Expressão de saberes envolvidos
Samaúma
Confecção de toras para uso na
corrida
“Rapaz, nós vamo inventar agora é “brincadeira de
peixe”, que três tora né, é mais bonito [...] chama
sumaúma que chama. Aí derriba uma, vão cortar três.
Aí vai cavar, deixa tudo pronto! [...]três pedaço”.
“Aí nós vamos banhar, ele chega, ele falou: olha
pessoal vocês divide “peixe”, “raia” e “lontra”, e não
pode se misturar, é uma disputa, tem que correr mermu
Quem ganhou, ganhou, quem perdeu, perdeu!”(Ropré).
Raia
Nomeação de grupos internos ao
ritual ligados a nominação
matrilinear da aldeia Timbira.
“Aí as pessoas vai corta tora
três toras: arraia, peixe e
lontra – tem que cortar três toras” (Ropré).
Peixe
Lontra
Sr. Ropré demonstra certa preferência pela “brincadeira de peixe”, quando
afirma a presença de três toras e, a isto, atribui valor estético, em que a beleza se
encontra num fazer que envolve mais grupos internos à celebração.Tais grupos
interagem e se relacionam durante a corrida por meio de um valor ensinado desde a
contação do mito, o valor de saber competir, como assim se refere: “[...] vocês divide
“peixe”, “raia” e “lontra”, e não pode se misturar, é uma disputa, tem que correr
mermu. . Quem ganhou, ganhou, quem perdeu, perdeu!”.
Essa apreensão de saberes se por meio de processos educativos
vivenciados em situações coletivas, no “estar-junto” aos grupo cerimoniais internos
ao Tuti Krã. Percebo que nessa realidade relacional em que os sujeitos se apropriam
das informações na prática, nos fazeres, faz com que os mesmos interajam com o
“espaço-ambiente-natureza” que os envolve e de que são parte.
BANDEIRA G. C. M. Rituais Associados à Colheita de Milho-verde na Aldeia dos Índios Gavião Kikatêjê 100
O “Estar-junto” que refiro como emergente da vivência, compreende o diálogo
com o ambiente, entendido enquanto o mundo ao redor do sujeito, construindo com
este uma teia de relações de significados e sentidos. “Estar-junto”, é, pois, criar
linguagem com “palavras verdadeiras”, no sentido de transformar o mundo, ou seja,
é modificá-lo num ciclo permanente de (re) criação da existência (FREIRE, 1987).
Poderia-se questionar o fato de que, na corrida de toras, corte de uma
árvore como a samaúma, árvore de tronco largo, frondosa, uma das mais altas da
floresta tropical amazônica. Entretanto, carregar toras de samaúma para os índios
da aldeia Kikatêjê, representa força, pois é comum os homens da comunidade
relatarem e fazerem gestos para demonstrar o tamanho da tora
37
que carregam com
orgulho de terem suportado o peso e ajudado seu grupo a chegar até o fim da
“brincadeira”.
Na tradição milenar indígena, rituais que utilizam corte de árvores da floresta
parece não ter impactos relevantes no ecossistema, pois o corte não se em larga
escala como em casos típicos de devastação da floresta amazônica, ligados à
exploração capitalista que a mesma está submetida atualmente. Viveiros de Castro
(1995, p.116) afirma:
Não há dúvida que os povos amazônicos encontraram, ao longo de séculos,
estratégias de convivência com seu ambiente que se mostraram com valor
adaptativo; que para tal desenvolveram um saber técnico sofisticado e
infinitamente menos disruptivo das grandes regulações ecológicas da
floresta que as técnicas brutalmente míopes utilizadas pela sociedade
ocidental; que este saber deve ser estudado, difundido e valorizado
urgentemente.
Imaginem, se o corte de árvores para a venda em busca do capital fosse uma
cultura milenar?! O planeta Terra já estaria morto há muito tempo! Dessa forma, vejo
que a corrida de toras, mesmo envolvendo o corte de árvores, é uma forma de
Educação Ambiental, pois está presente em muitas culturas indígenas e nem por
isso, atestam desmatamento relacionado a esse fazer.
É importante ressaltar que entre os grupos Jê-Timbira, ora as corridas de tora
são referidas como recreativas, ora são ligadas a situações cerimoniais e, noutras
ocasiões, também podem estar presentes nos mitos (como neste caso estudado).
Mesmo assim, em algumas aldeias desse grupo étnico, essas corridas também
podem não estar ligadas ao mito (LÉVI-STRAUSS, 2004).
37
Chegam a pesar de 80 a 100kg.
BANDEIRA G. C. M. Rituais Associados à Colheita de Milho-verde na Aldeia dos Índios Gavião Kikatêjê 101
Neste caso, dos rituais que celebram a colheita do milho-verde na aldeia dos
índios Gavião Kikatêjê, as três toras feitas de samaúma, presentes na narrativa
mitológica, identificam o rito como cerimonial, diferente das outras corridas de toras
que se realizam cotidianamente na aldeia, em que são usadas toras de outras
espécies da biodiversidade local.
Assim como há relação de linguagem , que se estabelece entre as três toras e
os grupos cerimoniais internos ao Tuti Krã, as pinturas, presentes no corpo dos
sujeitos e nas máscaras, também são tomadas como linguagem que identifica os
participantes da “brincadeira” em seus grupos. Sobre as pinturas, trato no próximo
item.
3.1.4- Pinturas
A distinção entre categorias coletivas internas ao Tuti Krã, se dá, dentre
outras, numa prática pedagógica de decodificação (leitura) de imagens que o
expressas nas pinturas do corpo e das máscaras (cabeça de peixe), pois “da parte
do peixe, pinta dum jeito, né, dum jeito que é tipo um peixe, pinta de vários
tipos de peixe. Agora, a turma do “arraia” é dum jeito, é daquele jeito” (Sr.
Ropré).
Os ícones que apresentam a identificação de cada grupo cerimonial são
saberes que estão presentes nas pinturas e confecção de adornos e objetos rituais
que envolvem, intrinsecamente, o uso de elementos da biodiversidade local. Em
conversa com Krt, um
jovem participante da
“brincadeira de peixe”,
ele me explicou como é
confeccionada a sua
máscara. Desenhando-
a, me mostrou a
iconografia que o
identifica no ritual como
pertencente ao grupo
dos “Peixe” (fig. 30).
Figura 30. Desenho de Krỳt sobre sua máscara (“cabeça de peixe”), usada no ritual Tuti Krã.
Fonte. Giza Bandeira. Acervo pessoal (2008)
BANDEIRA G. C. M. Rituais Associados à Colheita de Milho-verde na Aldeia dos Índios Gavião Kikatêjê 102
Outros aspectos de identificação de grupos cerimoniais por imagens, pude
perceber quando, apontando para desenhos de máscaras Tuti krã, Sr. Ropré me
explicou como é o processo de acabamento na feitura da máscara do grupo dos
lontra”, o qual ele faz parte, dizendo: “agora aqui passa uma tira vermelha bem aqui,
e aqui de preto”. Então eu perguntei se o vermelho faz com urucum e o preto com
jenipapo, ele continua a explicação:
É. duas tira preta no lado e uma vermelha no meio. Mas não é pequeno
assim, é grandão, a pintura tem que ser desse jeito assim. atrás tem
outra pintura assim, mas s não vamo pintar, nós vamos pintar de pena de
papagaio. Aí fica bonita, porque fica bem verdinho (Sr.Ropré).
Neste sentido, educa-se para a aquisição de valores estéticos que são
atribuídos aos objetos rituais, a partir da experimentação de misturas e composições
de cores com produtos fornecidos pela floresta. A cor vermelha, conseguida das
sementes do urucum; a cor preta, propiciada pela semente e fruto de jenipapo e a
cor verde das penas de papagaio. As penas verdes se contrastam às outra cores.
Sr.Ropré me explicou essas características das “cabeça de peixe”, instruindo-me na
construção de um desenho (Fig.31).
Figura 31. Desenho de máscara construído sob orientação de Sr. Ropré.
Fonte. Giza Bandeira. Acervo pessoal (2008).
BANDEIRA G. C. M. Rituais Associados à Colheita de Milho-verde na Aldeia dos Índios Gavião Kikatêjê 103
Concluído o desenho, percebi que se cria uma iconografia nos referidos
objetos rituais e que estes personificam valores cerimoniais, educando toda a
comunidade da aldeia sobre propriedades distintas dos elementos da biodiversidade
local. Educa-se sobre uma estética relacionada à ética do grupo e sobre a
comunicação que identifica o objeto ritual dentro de um contexto cerimonial em que
estão envolvidos outros ícones diversos.
Kwainõ, uma jovem indígena da aldeia é conhecida por fazer belas pinturas
corporais, pois tem boa coordenação motora e não erra a direção das linhas do
desenho. Ela me instruiu na construção de desenhos (em diário de campo) e sobre
os tipos de pinturas corporais que identificam os três grupos cerimoniais internos ao
Tuti Krã, como se pode ver nas imagens das figuras 32, 33 e 34.
Figura 32. Desenho do tipo de pintura corporal do grupo “Arraia”, sob orientação de Kwainõ.
Fonte. Giza Bandeira. Acervo pessoal (2009).
BANDEIRA G. C. M. Rituais Associados à Colheita de Milho-verde na Aldeia dos Índios Gavião Kikatêjê 104
Figura 33. Desenho do tipo de pintura corporal do grupo “Lontra”, sob orientação de Kwainõ.
Fonte. Giza Bandeira. Acervo pessoal (2009).
Figura 34. Desenho do tipo de pintura corporal do grupo “Peixe”, sob orientação de Kwainõ.
Fonte. Giza Bandeira. Acervo pessoal (2009).
Percebo ainda que, ao atribuir valor estético expresso nas cores, extraídas de
elementos da Biodiversidade Amazônica local, não se está referindo somente ao seu
valor utilitário, mas esses elementos (jenipapo, urucum e penas de papagaio, por
BANDEIRA G. C. M. Rituais Associados à Colheita de Milho-verde na Aldeia dos Índios Gavião Kikatêjê 105
exemplo) são compreendidos intrínsecos a valores cerimoniais e nisso reside sua
eficácia simbólica (LÉVI-STRAUSS, 1975), assim, devem ser conservados.
A preocupação com a conservação dos elementos da biodiversidade local,
imbuídos de valores simbólicos para o grupo, é exemplificada pelo Sr. Ropré,
quando diz: “[...] como tava falando, até jinipapo ta difícil de encontrar já, assim!
Jinipapo, urucu,... hoje, não faz muito tempo a gente plantou, porque a gente
precisa”. Esse dizer reflete a necessidade de considerar os elementos da
biodiversidade local para além da percepção econômica, e sim por estarem inseridos
na cultura material e imaterial dos povos amazônicos, ensejando uma
etnopedagogia ambiental (FONSECA, 2009) que se faz no diálogo das relações com
o “outro”, em práticas interativas de aprendizagem.
Os processos educativos, discutidos neste item, estão presentes em toda a
narrativa do mito de origem dos rituais associados à colheita do milho-verde, na
aldeia Kikatêjê, não apenas nos relatos referentes ao Tuti Krã, mas, também, nas
informações que obtive (falas, fotos e vivências) sobre o Hõprykrã que é outro ritual
associado à referida colheita.
3.2 PROCESSOS EDUCATIVOS, ELEMENTOS DA BIODIVERSIDADE E
SABERES DO HÕPRKRÃ
Neste item, dou prosseguimento às discussões sobre os rituais de celebração
da colheita do milho-verde.Portanto, apresento o Hõprkrã a partir dos adventos que
se apresentaram durante minha vivência na aldeia, quando presenciei a realização
mesmo.
Trago informações de vários sujeitos que auxiliaram na caminhada desta
pesquisa, além de fotografias do ritual em curso, das minhas percepções do campo
adquiridas na vivência e os aprendizados construídos.
O Hõprkrã já foi descrito na seção anterior quando da contação do mito de
origem (por Sr. Ropré), em que demarca situações de aprendizagens presentes na
narrativa mitológica. Porém, agora, trago, além das informações mitológicas, o
substrato dos fazeres e dizeres presenciados nas práticas ligadas ao referido rito, a
forma com que o mesmo se apresentou durante minha estada na aldeia Kikatêjê.
Embora tenha percebido que existem várias etapas de realização desse ritual,
neste trabalho destaco as significativas para discutir seus fazeres e dizeres
BANDEIRA G. C. M. Rituais Associados à Colheita de Milho-verde na Aldeia dos Índios Gavião Kikatêjê 106
integrados a biodiversidade local enquanto processos educativos: a “roça
tradicional”, as “pinturas corporais”, o “jogo de petecas”, a “corrida de toras” e a
“dança”.
3.2.1- A roça tradicional
38
Existem vários rituais de grupos associados a colheita de vegetais. Alguns
desses rituais se tornam quase impossíveis de serem presenciados por
pesquisadores, pois geralmente não são celebrados todos os anos, isso acontece
por que as lideranças das aldeias escolhem qual ritual irão realizar, no ano em
curso (MELATTI, 1978).
No ano de 2009, período de realização da minha pesquisa de campo, quando
a roça do milho-verde estava ponta para a colheita (boa para o alimento) a liderança
da aldeia optou pela realização do Hõprkrã.
Nesse sentido, a roça de milho codifica a noção de tempo para a construção
do calendário ritual da estação chuvosa na aldeia Kikatêjê. O tempo de colheita é
demarcado pelo estado do fruto bom para comer. Além disso, estando na aldeia,
percebi que várias pessoas relacionam o tempo de colheita do milho com o tempo
chuvoso, fatores estes que demonstram saberes sobre a flora amazônica e sua
relação com as estações climáticas do ciclo anual.
Estive na aldeia em vários momentos de crescimento da roça do milho (fig.
35, 36 e 37) quando pude acompanhar e, portanto, aprender sobre essa relação.
38
Existem dois tipos de roça na aldeia: a roça mecanizada, feita por máquinas, em que a terra é
preparada por tratores e a roça tradicional, a qual é preparada manualmente pelos homens da aldeia:
derrubam as árvores do local, mantendo os limites da floresta no entorno, queimam e retiram os
restos de troncos e abrem pequenos buracos na terra onde semeiam 2 ou 3 grãos de milho, das
espigas chamadas “milho-macho” para a germinação de um milharal com grandes espigas.
Geralmente na roça tradicional de milho, dos indígenas Kikatêjê, não se semeia os grãos em ordem
de fileiras e entre o milho se semeia também outros frutos cabaça rasteira, macaxeira, abóbora,
batata-doce, cará, amendoim, etc.
BANDEIRA G. C. M. Rituais Associados à Colheita de Milho-verde na Aldeia dos Índios Gavião Kikatêjê 107
Figura 35. Roça tradicional de milho em novembro de 2008.
Fonte. Giza Bandeira. Acervo pessoal (2008).
Figura 36. Roça tradicional de milho em janeiro de 2009.
Fonte. Giza Bandeira. Acervo pessoal (2009).
BANDEIRA G. C. M. Rituais Associados à Colheita de Milho-verde na Aldeia dos Índios Gavião Kikatêjê 108
Figura 37. Roça tradicional de milho em fevereiro de 2009.
Fonte. Giza Bandeira. Acervo pessoal (2009).
Várias pessoas da aldeia me disseram que no ano de 2008, a chuva estava
demorando a chegar, mas que, quando a chuva chegasse a roça de milho logo
estaria pronta e então começariam as “brincadeiras”. Foi possível eu perceber o
avanço no crescimento da roça do mês de janeiro para fevereiro de 2009, quando
chegou o período de chuvas, o que confirma o saber do povo da aldeia.
Em relação ao tempo, é impressionante o constante uso de relógio,
principalmente entre os mais velhos da aldeia, porém alguns não sabem informar as
horas. Dessa forma, constato que, embora todo o processo de contato dos grupos
Gavião com os kup não seja recente, mesmo assim, o tempo continua sendo
determinado pelo saber que se tem sobre as estações climáticas e pelo crescimento
das roças, sendo que, o relógio, para alguns da aldeia, é apenas um enfeite kĩnĩnĩre
(bonito).
A aprendizagem do tempo pela roça tradicional se constitui por interação e
observação em um processo educativo que se na vivência, pois na aldeia
ninguém ensina sobre o tempo. Esse saber é aprendido na vida, na relação que as
pessoas estabelecem com o mundo, em situações coletivas e individuais. O saber
BANDEIRA G. C. M. Rituais Associados à Colheita de Milho-verde na Aldeia dos Índios Gavião Kikatêjê 109
sobre o tempo é propiciado pelo saber ambiental, a partir da complexidade. Sobre
isso, Leff (2003, p. 45) afirma:
É neste sentido que o saber ambiental é entrecruzamento de tempos; dos
tempos cósmicos, físicos e biológicos, mas também dos temos que
configuram as concepções e teorias sobre o mundo, e as cosmovisões das
diversas culturas através da história.
Esse saber do tempo e, portanto, do ambiente, compreende aprender sobre
tolerância, no sentido de aprender a esperar as possibilidades do “outro”. Esse
“outro” é a roça. Não se pode consumir o alimento que nela é produzido sem que ela
esteja pronta, sem que o fruto esteja bom, como afirma Papaiti: “Tem que esperar
até ficar grande o pé, até dá o alimento bom pra nós fazer petecas e pra nós comer”.
Papaiti me explicou que, primeiro o alimento tem que ficar bom, o que implica
o crescimento do vegetal e seu amadurecimento, depois disso, fazem petecas para
o ritual e só após se pode comer
dos alimentos que estão prontos na
roça tradicional.
Fui à referida roça na
companhia de Papaiti, onde
verifiquei, além do milho, várias
espécies típicas da região:
abóbora, macaxeira, mandioca,
melancia, cuia rasteira, amendoim,
batata doce, entre outros que
talvez tenham passado
despercebidos pela minha
inexperiência com a mata. De
trouxemos alguns frutos (fig.38)
Figura 38. Coleta de frutos da roça tradicional.
Fonte. Giza Bandeira. Acervo pessoal (2009).
Além dos saberes sobre o tempo, a relação com a roça propicia saberes
sobre os vegetais: sua biologia, formas de crescimento, tempo de colheita, rotação
de cultura, entre outros. Neste aspecto, chamo a atenção para a produção de
BANDEIRA G. C. M. Rituais Associados à Colheita de Milho-verde na Aldeia dos Índios Gavião Kikatêjê 110
petecas em que é necessário palha do milho-verde da roça tradicional, mas não de
qualquer espiga, como explica Papaiti:
O milho tá bom quando assim [mostrou-me os fiapos esbranquiçados
das espigas de milho]. Os veio sabe que ta bom, mas os novo vem e pega
tudo seco. As muié que vem buscar pra fazer berarubu de milho, fica
gostoso, rapá, fica forte pra buscar cupu no mato, caça e correr tora!
Na fala, Papaiti enfatiza e valoriza a experiência dos mais velhos da aldeia.
Além disso, ele me ensina, mostra-me as características da espiga boa para a
colheita, para que eu identifique o bom fruto. Entretanto, ainda assim, senti
dificuldades de compreender os procedimentos de colheita. Parece até que os
“fiapos” do milho me enganavam!
Depois de ter colhido cerca de quinze espigas, Papaiti olhou minhas espigas
colhidas e me reprovou, pois algumas eu colhi antes do tempo e, ainda me disse
que eu não sabia fazer aquilo, o que demonstra uma prática de avaliação do
processo educativo. Nesse sentido, a educabilidade exige apreensão da realidade
numa prática permanente de se sentir em constante (re) criação, como explica Freire
(1996, p. 28):
O melhor ponto de partida para estas reflexões é a incompletude do ser
humano de que se tornou consciente. Como vimos, aí radica a nossa
educabilidade bem como a nossa inserção num permanente movimento de
busca em que, curiosos e indagadores, não apenas nos damos conta das
coisas, mas, também, delas podemos ter um conhecimento cabal.
Apenas a consciência sobre a incompletude do ser é capaz de propiciar
esses modos de educar e se educar no ato de (re) criação das realidades. Então,
experimentei um processo continuo de aprendizagens quando Papaiti se fez meu
“professor” (hapên Kate) e passou a me chamar para ver as espigas que ele
coletava, numa prática de aprendizagem que se deu por interação e observação. Ao
vê-las, percebi que ele tinha um jeito diferente, ele abria um pouco a palha da espiga
de milho, antes de arrancar do “pé” e eu as arrancava sem abri-las, sem saber se
estavam boas, arrancando-as antes do tempo necessário para a colheita.
Mais uma vez, observei o saber da tolerância com o tempo do “outro” nos
processos educativos de “estar-junto”, na (com) vivência das pessoas no Espaço-
ambiente-natureza, possíveis de perceber nos fazeres e dizeres indígenas. O ato de
não arrancar o fruto sem antes saber se realmente estava bom para a colheita,
BANDEIRA G. C. M. Rituais Associados à Colheita de Milho-verde na Aldeia dos Índios Gavião Kikatêjê 111
configura uma educação que coaduna com o “aprender a complexidade ambiental”,
entendido como “apreender um saber ser com a ‘outridade’”. (LEFF, 2003, p. 61).
Como se vê, esses processos educativos integrados a biodiversidade local
estão presentes nos fazeres e dizeres relacionados ao Hõprkrã e se configura em
Educação da Complexidade Ambiental. Percebo esses processos também nas
pinturas corporais, o que mostro a seguir.
3.2.2 Pinturas Corporais
Compreendo as pinturas corporais feitas para a realização do ritual Hõprkrã
enquanto processos educativos que se dão na decodificação de imagens, essa
compreensão se estende às pinturas referidas no item 3.1.4, deste trabalho.
Porém, no ritual Hõprkrã os tipos de pinturas identificam os dois grupos
internos ao mesmo, os “Gavião” e os “Arraia. Kwainõ também me ensinou sobre
esses outros tipos de pintura e me instruiu na construção dos desenhos (fig.39 e 40).
Figura 39. Desenho do tipo de pintura corporal do grupo “Arara”, sob orientação de Kwainõ.
Fonte. Giza Bandeira. Acervo pessoal (2009).
BANDEIRA G. C. M. Rituais Associados à Colheita de Milho-verde na Aldeia dos Índios Gavião Kikatêjê 112
Figura 40. Desenho do tipo de pintura corporal do grupo “Gavião”, sob orientação de Kwainõ.
Fonte. Giza Bandeira. Acervo pessoal (2009).
Enquanto Kwainõ me ensinava sobre os desenhos, perguntei a ela como
havia aprendido a fazer as pinturas corporais. Disse-me que aprendeu com uma tia,
irmã de sua mãe: “Desde que eu era bem piquena, ela pintava o marido, os filho, os
subrinho e até eu ela pintava. Aí eu fui sabendo como era as pintura.”
A partir do relato dessa jovem, reconhecida na aldeia por suas belas pinturas
corporais, entendi que ela estabelece uma relação com o saber que é passado de
geração para geração e que, sobre essa prática, ela recebeu o exemplo de sua tia.
A corporeidade do exemplo é imprescindível no ato de educar. Nesse sentido,
Kwainõ foi testemunha das práticas de sua tia, durante anos de sua infância e
juventude, em que observava, interagia e decodificava as imagens pintadas no
corpo, reconhecendo o que cada pintura representava nos contextos rituais e,
portanto, aprendendo sobre as mesmas, pois a prática testemunhal re-diz o
pensamento que se quer imprimir com eficácia (FREIRE, 1996).
Ainda durante minha vivência na aldeia, percebi que Kwainõ produz as
pinturas corporais de seu marido, filho, sobrinhos, o que demonstra a eficácia da
prática educativa, de caráter não intencional, empregada por sua tia em processos
de vivência intergeracionais.
BANDEIRA G. C. M. Rituais Associados à Colheita de Milho-verde na Aldeia dos Índios Gavião Kikatêjê 113
Durante o Hõprkrã , as pinturas corporais foram reproduzidas no corpo de
quase todas as pessoas da comunidade, de todas as faixas etárias (fig.41, 42 e 43).
Figura 41. Criança tendo seu corpo pintado por sua avó.
Fonte. Giza Bandeira. Acervo pessoal (2009).
Figura 42.Um ancião e um jovem da aldeia com seus corpos
pintados dos tipos “Arara” e “Peixe”, respectivamente.
Fonte. Giza Bandeira. Acervo pessoal (2009).
BANDEIRA G. C. M. Rituais Associados à Colheita de Milho-verde na Aldeia dos Índios Gavião Kikatêjê 114
Figura 43. Homem da liderança da aldeia e jovens, com pinturas corporais.
Fonte. Giza Bandeira. Acervo pessoal (2009).
A reprodução das imagens dos tipos de pinturas corporais, feitos com
jenipapo e urucum, por todas as gerações da aldeia, reafirma a prática educativa
testemunhal (FREIRE, 1996) e todos que são índios na comunidade Kikatêjê
reafirmam a sua identificação indígena com o próprio corpo.
Esses fazeres não tratam apenas de apreensão de leitura de imagens por
decodificação e em situações coletivas e individuais. Implica aprender a
complexidade ambiental, isso “contribui para um processo de construção coletiva do
saber, no qual cada um aprende de seu particular” (LEFF, 2003, p. 61).
Esse ser, em permanente construção, “[...] diverso por natureza’, re-significa
e re-codifica o saber ambiental para dar-lhe sua marca pessoal, inscrever seu estilo
cultural e reconfigura identidades coletivas” (Idem). Nesse sentido, as pinturas
corporais educam, pois são processos educativos que tratam sobre o estilo cultural e
a construção das identidades numa perspectiva geracional, que se na vivência
das pessoas. Isso é possível perceber quando os sujeitos, de várias faixas etárias,
BANDEIRA G. C. M. Rituais Associados à Colheita de Milho-verde na Aldeia dos Índios Gavião Kikatêjê 115
gêneros e em seus papeis sociais, as usam em diversos contextos da vida indígena,
no cotidiano e em cerimoniais, inclusive no “jogo de petecas” (Hõprkrã).
3.2.3 Jogo de petecas
A Peteca é uma invenção indígena, referida por Cascudo (2001; 2002) nos
escritos de viajantes do primeiro período de colonização dessas terras que hoje
chamamos Brasil, “pequena bola achatada, revestida com palha de milho ou outro
material, que se joga para o alto, cuidando para não cair. Pode ser jogada por uma,
duas pessoas ou uma roda” (Idem, 2001).
Na aldeia Kikatêjê, o jogo de petecas se em uma roda de homens. Meu
primeiro contato com informações sobre as “petecas” se deu por meio da contação
da narrativa mitológica, em que Sr. Ropré assim se referiu:
ele disse: - Agora vocês tiram tudinho a palha [de milho]. eles foram,
tiraram a palha tudinho, deixou... Aí eles perguntaram: E agora!? Ele disse: -
Agora vocês tem que fazer peteca.
Como se vê a peteca é uma aprendizagem do mito de origem. O “homem”
ensina a fazer brincadeiras a fim de que o povo não fique triste, como referi
anteriormente. Além disso, esse homem” também ensina fazer as petecas:
demonstrou como fazer, com o que fazer e ainda explicou sobre as técnicas e sua
finalidade:
Eles falaram, mas como assim?
ele pegou o imbigo, né, da palha de milho, fez uma peteca, né.
deixou. Aí ensinou eles a fazer, aí terminou.
Aí eles falou: - E agora?!
Agora vocês vão pegar cuia [que naquele tempo não tinha prato né], joga
água dentro e pega o peteca dentro, pra molhar, que quando molha fica
pesado. pegaram cuia com água, pegaram as peteca e jogaram as
peteca lá dentro, aí pegaram e pintaram tudinho com urucu.
eles perguntaram, e agora? Ele respondeu, e agora nós vamo chamar os
home tudo pro campo, né, vamo tudinho pro campo! Fica ao redor lá, fica
esperando lá...
É interessante perceber que muitos aspectos relatados nesses dizeres do
mito de origem dos rituais estudados coadunam com os fazeres que presenciei, no
contexto do Hõprkrã, o que se pode perceber em imagens que expressam esses
fazeres (fig. 44).
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Figura 44. Ancião confeccionando petecas de palha de milho-verde e crianças observando.
Fonte. Giza Bandeira. Acervo pessoal (2009).
Vale ressaltar que nesta imagem estão presentes dois fazeres do Hõprkrã, a
confecção das petecas, pelo ancião sentado à esquerda, e a pintura das petecas,
pela mulher sentada à direita. A imagem expressa um processo educativo latente
que se numa prática testemunhal (FREIRE, 1996), pois a presença das crianças
no ambiente dos fazeres e dizeres do ritual educa para o aprendizado de tais
práticas. Nestas, o pensamento mitológico está presente e imprime, nas várias
gerações, os saberes da cultura, do ambiente, e, portanto, da “natureza” enquanto
totalidade, fatores que me levam à compreensão de processos educativos
interdimensionais.
Esse processo educativo é vivenciado em situação coletiva, porém, é também
uma vivência individual, visto que as crianças observam, não confeccionam, mas
testemunham da confecção, em que as palavras do mito são corporeificadas pelo
exemplo. Nesse contexto, todos aprendem, os que fazem e os que observam, visto
que todos estabelecem, individualmente, uma relação de apreensão da realidade
(Idem).
BANDEIRA G. C. M. Rituais Associados à Colheita de Milho-verde na Aldeia dos Índios Gavião Kikatêjê 117
A prática educativa testemunhal não se encontra apenas na confecção de
petecas, mas também durante o jogo, cujas regras foram aprendidas por meio do
mito, como afirma Sr. Ropré no relato:
Aí ele disse assim, você vai jogar a peteca, pro pessoal.
Ele disse: - Eu vou ensinar aqui pra vocês ficar sabendo.
um do “arara” veio e tava jogando peteca, né. ele veio e pegou,
quando ele pega, ele começa a jogar assim, porque isso é uma disputa
também, né, de peteca. Aí fica jogando todo mundo, até cair no chão,
porque são muitas peteca que eles faz.
Percebe-se que, a noção mitológica define o tipo de jogo, que, nesse caso, se
trata de disputa. Existem vários tipos de jogo, como é possível observar nos termos
como “jogo de luz”, “jogo de pratos” ou o “jogar das ondas”, “em que há um
constante ir e vir, ou seja, um movimento que não está ligado a uma finalidade
ultima” (GADAMER, 1985, p. 38).
O jogo é uma atividade elementar da vida. É difícil pensar a cultura humana
sem o elemento “jogo”, pois neste, se expressa a capacidade dos homens e
mulheres criarem agrupamentos, que podem ser de pessoas, de peças, de luzes, de
pratos, de cartas, etc. O objetivo do jogo é o seu movimento, podendo se dar
consciente ou inconscientemente, como afirma Gadamer (1985). Nesse sentido,
jogar exige necessariamente uma relação com o “outro”, seja este espectador,
jogador, adversário, peças de tabuleiro, petecas, pessoas, etc.
Tal definição do movimento do jogo significa ao mesmo tempo que o jogar
exige sempre aquele que vai jogar junto. Mesmo o espectador que olha,
digamos, uma criança que joga para e para a bola, não escapa a isso.
Quando ele realmente “vai junto” não se trata de outra coisa senão da
participation, da participação interior nesse movimento que se repete.[...]
Ninguém pode deixar de jogar junto (Idem, 1985: 40).
O “jogar junto” é um fazer comunicativo entre aqueles que jogam, aqueles que
observam e os elementos materiais e imateriais que constituem a “brincadeira de
petecas”. As crianças, não apenas testemunham da confecção dos objetos, mas
também do jogar de petecas (fig. 45).
BANDEIRA G. C. M. Rituais Associados à Colheita de Milho-verde na Aldeia dos Índios Gavião Kikatêjê 118
Figura 45. Homem jogando peteca, o percurso do movimento de jogo e crianças acompanhando.
Fonte. Giza Bandeira. Acervo pessoal (2009).
“O espectador é notadamente mais que um mero observador que o que se
passa diante de si; ele é, como alguém que participa do jogo, uma parte dele”
(GADAMER, 1985, p. 40). Dessa forma, o jogo é uma forma de comunicação e
expressão compartilhada pela “outridade”, em que as crianças aprendem jogar
petecas por meio do processo educativo da vivência, que se dá no “Estar-junto”.
Perguntei ao Sr. Ropré, por ser considerado o melhor jogador de petecas da
aldeia, como ele aprendeu a jogar petecas, e ele me respondeu dizendo que sempre
via os homens mais velhos jogarem e quando as petecas caíam no chão ele corria
para ajuntá-las e com elas ficava brincando, até que se tornou adulto e começou a
jogar entre os homens. Essa vivência do Sr. Ropré parece se atualizar nos
momentos da “brincadeira de petecas” que acontece atualmente, como expressa o
movimento visualizado na figura 45 (acima).
Um dos momentos mais marcantes desta pesquisa se deu em conversa com
Papaiti, um dos anciãos que confecciona petecas para o Hõprkrã, quando perguntei
por que ele participa do Hõprkrã. Na sua limitação de não falar bem na minha
língua e, compreendendo a minha limitação de não falar em , ele silenciou, olhou
ao redor, me apontou a copa de uma árvore bem alta e deu um grito semelhante a
BANDEIRA G. C. M. Rituais Associados à Colheita de Milho-verde na Aldeia dos Índios Gavião Kikatêjê 119
um canto de arara, depois bateu no peito apontando para si e dizendo: “Arara, é
arara!”.
Com essa experiência, entendi, mais do que nunca, que as sociedades
indígenas se afirmam como parte da “natureza”. As sociedades modernas tendem
afirmar que “índio é bicho”, porém, não entendem a relação de reciprocidade que,
nesse contexto, os homens estabelecem com os elementos da biodiversidade local.
Podemos dizer que as culturas indígenas tendem a ver a natureza como ela
mesma parte da sociedade, ou antes, como mergulhada, tanto quanto a
sociedade humana, em um meio universalmente social – o que não é
menos verdade (VIVEIROS DE CASTRO, 1995, p. 117).
Papaiti havia me dito que aprendera a fazer petecas com seu pai. Porém,
num outro momento, perguntei novamente sobre como ele aprendeu a fazer as
petecas com palha do milho e Papaiti disse que ficava olhando seu pai, mas depois
enfatizou que aprendeu sozinho – “Só eu mermu”! Essas informações demonstram a
eficácia do jogo de petecas enquanto processo educativo que se coletivamente e
individualmente na cultura indígena, numa relação interdimensional de
aprendizagens, inclusive geracionais.
Após o jogo de petecas, houve socialização de alimento, quando os milhos
foram assados. Isso se deu num ambiente de alegria e descontração entre as várias
gerações da aldeia (fig. 46 e 47), fato que reafirma a justificativa do “homem que
ensina”, no mito, de que Sr. Ropré se refere:
foi e falou assim: Pois olha, eu to falando, vocês ficam parado, não tem
uma alegria pra vocês... [porque isso é verdade, se fica parado não tem
alegria, não sabe o que que vai fazer, não tem animação] ...então pra isso
que eu to ensinando pra vocês fazer a brincadeira pra correr, brincar, não
ficar o pessoal parado.
Figura 46. Jovens assando espigas de milho.
Fonte. Giza Bandeira. Acervo pessoal (2009).
BANDEIRA G. C. M. Rituais Associados à Colheita de Milho-verde na Aldeia dos Índios Gavião Kikatêjê 120
Figura 47. Mulheres, homens, velhos e jovens assando espigas de
milho.
Fonte. Giza Bandeira. Acervo pessoal (2009).
Isso demonstra que o mito é tão atual quanto à vivência em curso e que os
fazeres e dizeres imbricados entre mito e rito, se fazem presentes, também, no jogo
de petecas, o que confirma que a cultura, enquanto sistema simbólico, é
eminentemente pedagógica (FREIRE, 2004). Da mesma forma, é possível perceber,
também, na corrida de toras, referida anteriormente nos processos educativos do
Tuti Krã e presenciada no contexto do Hõprykrã, conforme mostro a seguir.
3.2.4- Corrida de Toras
No contexto dos fazeres e dizeres relacionados ao Hõprkrã, a corrida de
toras se realiza com duas toras que são “batizadas” com nomes próprios das
ligações matrilineares, especificadas para esse ritual como “Arara” e “Gavião”.
Assim, como no contexto da corrida de toras do Tuti Krã, essa nomeação dos
objetos simbólicos (toras) pelas ligações matrilineares, propicia relações intrínsecas
entre essa forma de organização social e os elementos da biodiversidade, fato que
mantém relação com o mito de origem, como se pode perceber no relato a seguir:
quando amanheceu o dia, né, que deu umas seis, não, umas cinco horas
da madrugada... aí o pessoal foram todo mundo pra tora, saíram umas cinco
da madrugada, amanheceram o dia na tora. Aí arara” e gavião”, todo
mundo foram... pegaram a tora e veio correndo até... ele falou assim
olha isso aqui é uma disputa, tem que correr mermu, quem correr tem mais
fôlego chega primeiro (Sr. Ropré).
O relato mostra a corrida de toras, no Hõprkrã, enquanto “jogo”, tendo em
vista a definição de jogo trabalhada na categoria “jogo de petecas” deste texto (
GADAMER, 1985) e, além disso, afirma a relação entre os grupos de “jogadores”
BANDEIRA G. C. M. Rituais Associados à Colheita de Milho-verde na Aldeia dos Índios Gavião Kikatêjê 121
que disputam e os grupos internos ao ritual, os quais recebem o nome de “animais”
presentes na biodiversidade amazônica. A disputa, de fato, se na realização da
corrida de toras e é preciso fôlego para chegar até a finalidade ultima: derrubar a
tora ao lado do acampamento dos velhos ou no centro da aldeia.
Discuto a corrida de toras enquanto processo educativo, visto que, nesta se
a apreensão de significados em situações coletivas, inclusive na preparação das
toras. A preparação dessa corrida empreende, além das pinturas corporais de seus
participantes, a preparação do tronco da árvore, o que é feito pelo “cortador de tora”
que é Prekrut.
Durante minha vivência na aldeia, tive uma conversa com Prekrut, nesta elegi
alguns pontos de meu interesse para a pesquisa, em que perguntei como é feita a
escolha da árvore para o corte e ele explicou: “Tem que conhecer pela folha da
samaúma. Quando os velho cortavam eu vi com meu olho e aprendi que é
samaúma”. Também perguntei sobre como se prepara as toras e Prekrut respondeu:
“Traça com machado em dois [para brincadeira de “Arara” e “Gavião”]. depois vai
cavar pra aprontar. Cava com machado, tudo em dois, tudo igual, depois pega urucu
pra pintá”. Ainda quis saber por que se pintam as toras com urucum e Prekrut
exclamou sorrindo: “Porque branco fica feio, com urucu fica tudo bunito!” Depois
continuou me explicando:
Eu aprendi tudo isso que to falando com as pessoa mais velho. Eu procurei
ficar olhando os mais velho prepara a tora. Ninguém me chamou pra
aprender, eu que ficava olhando”. [...] Eu gosto de corta tora, de fazer tora,
porque as pessoa querem saber como corta.
É possível perceber nos fazeres e dizeres do “cortador de tora”, vários
processos educativos presentes. Os saberes sobre “botânica” aparecem em sua
prática porque foram construídos na vivência com as gerações da aldeia, em que as
aprendizagens se fizeram por meio de observação. Prekrut aprendeu sobre
reconhecer as árvores da floresta, sobre a técnica de preparo das toras e sobre
noções de estética relacionadas ao uso de cor, assim como Kwainõ aprendeu sobre
pinturas corporais, por uma prática educativa testemunhal (FREIRE, 1996).
É interessante ver que Prekrut tem relação de afeto com o saber construído,
quando exibe o fato de que ninguém o chamou para aprender. Em algum momento
de nossa conversa ele chega a dizer que aprendeu sozinho, o que o sujeito conclui
ao entender que ninguém o impôs o saber. Nesse sentido se constrói o
BANDEIRA G. C. M. Rituais Associados à Colheita de Milho-verde na Aldeia dos Índios Gavião Kikatêjê 122
protagonismo do sujeito que aprende, o qual se sente autor de seu próprio
conhecimento na corrida de toras enquanto processo educativo.
Vejo claramente o que Freire (2004) diz sobre a Educação ser um ato político.
O papel de educadores, que os velhos da aldeia representam e representaram na
vida de Prekrut, é interdimensional visto que se faz político, artista e técnico,
construído social, biológico e culturalmente. A política desses educadores é feita
com um discurso intrínseco aos fazeres e dizeres da/na vida. “É interessante, há
pessoas em quem a identidade entre a prática e o discurso é tal que elas são um
discurso” (Idem, 2004, p. 35). Nesse aspecto, não me refiro ao processo educativo
como exercício de poder, mas ao papel social que o sujeito apresenta em seu
ambiente, em sua relação com / no mundo, se (re) faz processo educativo.
Dessa forma, o cortador de toras se sente construtor de seu próprio saber,
por que sua forma de saber se dá na relação com /no mundo e essa é uma forma de
relação com o saber, um saber prático e processual que é uma forma indígena
específica de relação com o ambiente de vivência, considerando o que Charlot
(2000, p. 60) diz: “o saber é relação”.
Essa construção do saber se por meio de processos educativos
vivenciados no “estar-junto”. Trata-se de uma realidade relacional em que se o
saber propicia interação com/no “espaço-ambiente-natureza”. Neste, a vivência é um
espaço de diálogo, em que se (re)cria a existência de maneira que os sujeitos
passam a se sentir transformadores de realidades (FREIRE, 1987).
Assim como em situações relacionadas à corrida de toras, na dança do
Hõprkrã também relação com o saber em aprendizagens que se dão nesses
processos educativos, do que trato a seguir.
3.2.5 Dança
Nos fazeres e dizeres relacionados à dança, está presente o canto, desde o
relato da narrativa mitológica:
Ele chamou as pessoas e disse assim: - Olha, agora de tarde a gente vai
dançar agora!
ele mermu tinha feito maracá, né. Com uma cabaça deste tamanho ele
tinha feito.
foi né,... chamou o cantor, né... aí o cantor ficou cantando né. Aí
terminou (Sr.Ropré).
BANDEIRA G. C. M. Rituais Associados à Colheita de Milho-verde na Aldeia dos Índios Gavião Kikatêjê 123
Presenciei uma tarde de canto e dança no centro da aldeia, durante a
realização do Hõprkrã. Nessa tarde, os homens mais velhos puxavam uma cantoria
em língua e dançavam com passos miúdos. Observei que o mito, a todo
momento, se atualizava nos fazeres e dizeres do ritual. Os jovens, as mulheres e as
crianças acompanhavam os homens, que, por vezes davam gritos que imitavam
sons de pássaros Arara” e “Gavião”. Sujeitos mais jovens afirmam que tem que
dançar por que faz parte da vida do índio, reafirma a forma herdada pelas gerações.
O saber, enquanto relação, se de forma prática e interativa, na vivência e ainda,
no “estar-junto” (fig. 48).
Figura 48. Homens, jovens, mulheres e crianças na dança do Hõprykrã.
Fonte. Giza Bandeira. Acervo pessoal (2009).
Nessa vivência, o saber se dá em processos educativos de repetição de
gestos, de observação e identificação de cores, formas, sons, sorrisos, afetos,
ligações familiares e, ainda, de reciprocidade com os elementos biosociodiversos do
ambiente amazônico, quando a educação se solta entre os homens e na vida
(BRANDÃO, 2007).
BANDEIRA G. C. M. Rituais Associados à Colheita de Milho-verde na Aldeia dos Índios Gavião Kikatêjê 124
3.3 PRÁTICAS DE APRENDIZAGEM EM PROCESSOS EDUCATIVOS SOLTOS NA
VIDA INDÍGENA
O mapeamento de processos educativos revelados nos fazeres e dizeres
relacionados à celebração de colheita do milho-verde, de certa forma, atualizam a
cultura indígena e sua relação com a biodiversidade amazônica. Além de que,
possibilitam perceber práticas de aprendizagem diversas, que não se fazem em
sistemas curriculares de “Educação” e sim em sistemas simbólicos da cultura, em
que a Educação “não existe para difundir o saber, mas para reforçar o existir”
(BRANDÃO, 2007, p. 106).
Como se refere Brandão (2007), as situações entre pessoas e entre pessoas
e as “coisas”, em que se identificam regras, símbolos e valores do grupo social,
estão ali esparramadas pela vida contendo sua dimensão pedagógica. Nesse
sentido, o conhecimento e mapeamento dos processos educativos presentes na vida
indígena, propícia à identificação de várias práticas de aprendizagem soltas na
cultura, coexistindo com elementos da biodiversidade amazônica, como
demonstrado no quadro a seguir:
Quadro 4. Processos educativos, práticas de aprendizagem e elementos da
Biodiversidade envolvidos
Processos Educativos
Práticas de Aprendizagem
Elementos da Biodiversidade envolvidos
Mito de origem - Observação;
- “Estar-junto” – diálogo;
- Argumentação; Demonstração;
- Explicação;
- Contação de história;
- Vivência.
Milho;
Batata;
Mandioca;
Abóbora;
Bacaba;
Tucum;
Papagaio;
Tatajuba;
Ipê;
Samaúma;
Raia;
Peixe;
Lontra;
Arara;
Gavião;
Urucum;
Jenipapo;
Amendoim;
Batata-doce;
Melancia;
Cuia-rasteira – cabaça;
Homem;
Confecção das “cabeça de peixe” - Interação; Observação;
- Experimentação;
-
Vivência.
Corrida de toras - Interação;
- Observação;
- “Estar-junto” – diálogo;
- Vivência.
Pinturas - Decodificação (leitura) de
imagens;
- Interação;
- Observação;
- Vivência.
A roça tradicional - Observação;
- Interação;
- “Estar-junto” – diálogo;
-
Vivência.
Jogo de petecas - Observação; Interação;-
Vivência.
Dança - “Estar-junto” diálogo;
Interação; Repetição;
-Observação;
- Vivência.
BANDEIRA G. C. M. Rituais Associados à Colheita de Milho-verde na Aldeia dos Índios Gavião Kikatêjê 125
Diante do exposto, é possível afirmar que etapas dos rituais Tuti Krã e
Hõprkrã, próprios da cultura indígena Timbira, se configuram como processos
educativos que se dão com diversas práticas de aprendizagem mostradas na
segunda coluna do quadro 4. Dessa forma, a cultura, em seus sistemas simbólicos
(GEERTZ, 2007), que envolvem várias dimensões da vida, é eminentemente
pedagógica. Os processos educativos próprios da cultura e, portanto, da vida
indígena Gavião Kikatêjê estão presentes por toda parte na aldeia (fig. 49),
“esparramadas” na vivência dos entes.
BANDEIRA G. C. M. Rituais Associados à Colheita de Milho-verde na Aldeia dos Índios Gavião Kikatêjê 126
Figura 49. Mapa dos processos educativos da / na aldeia Gavião Kỳikatêjê.
Fonte. Giza Bandeira. Acervo pessoal (2009).
BANDEIRA G. C. M. Rituais Associados à Colheita de Milho-verde na Aldeia dos Índios Gavião Kikatêjê 127
No desenho do mapa da aldeia (fig. 49), criado por peyre, o mito de origem
está em toda parte, permeando os fazeres e dizeres do povo. A confecção das
“cabeça de peixe” está presente no acampamento dos velhos, a corrida de toras é
localizada numa trilha que “corta” a mata; as pinturas estão presentes nas casas dos
segmentos domésticos, e também no acampamento dos velhos; o jogo de petecas
acontece também próximo ao acampamento dos velhos e as danças no centro da
aldeia circular. A roça tradicional é feita no meio da mata e por trás do acampamento
dos velhos, próximo a aldeia circular.
Nesses processos, é imprescindível a presença dos elementos da
biodiversidade amazônica, pois são necessários à vida indígena e contribuem para a
(re) afirmação da identificação cultural e da forma Jê-Timbira de vivência, fatos que
revelam uma vivência em educação (BANDEIRA, 2008).
Como é possível perceber, os processos educativos estão em todos os
lugares de vivência indígena com / no “espaço-ambiente-natureza”, realizados a todo
momento em situações coletivas e individuais de apreensão da realidade, que é
construída histórico, social, biológico e culturalmente, portanto, em contextos
interdimensionais.
BANDEIRA G. C. M. Rituais Associados à Colheita de Milho-verde na Aldeia dos Índios Gavião Kikatêjê 128
CONSIDERAÇÕES QUE NÃO PRETENDEM SER FINAIS
Os processos de concepção, organização e realização dos rituais associados
à colheita do milho-verde se inserem nas tramas de relações interdimensionais da
vivência indígena do povo Gavião Kikatêjê. Os atos pedagógicos ali encerrados
ensejam propriedades simbólicas que tomam por base seus referenciais culturais do
universo material e imaterial.
Os gestos técnicos adotados nesses processos rituais, que são do ciclo
anual, consideram tais referenciais desde as etapas de preparação até à execução
da celebração de colheita do milho-verde, realizados com o Tuti Krã ou com o
Hõprykrã, a cada ano e atualizados nos fazeres e dizeres que perpassam de
geração em geração.
Nesses fazeres e dizeres é possível perceber potencialidade educativa,
enquanto prática de aprendizagens que ensina as gerações da referida aldeia sobre
a forma de apropriação do “espaço-ambiente-natureza” amazônico, como também
pela e para a construção da pessoa indígena Jê-Timbira.
A atualização dessas relações de apropriação do espaço se em ações
culturais possíveis de serem discutidas enquanto processos educativos, haja vista as
possibilidades de educabilidade que permite aos sujeitos.
Os processos educativos identificados possibilitam a afirmação da pessoa
indígena na atualização de ações específicas e baseadas na forma de pensar do
povo, pois decodifica seu universo cosmológico histórico, social e cultural. Nesse
sentido, as ações se caracterizam como processos educativos: o mito de origem”,
“confecção das cabeça de peixe”, “corrida de toras”, “pinturas”, “a roça tradicional”,
“pinturas corporais”, “o jogo de petecas” e a “dança”. Estas se dão nas mais variadas
práticas de educar coletivas e / ou individuais de argumentação, demonstração,
explicação, interação, observação, decodificação de imagens, contação de histórias,
etc, que são alguns do processos de educar identificados no estudo, não
significando que não existam outros possíveis de ser mapeados.
Para o indígena, não educabilidade legítima (por ausência de instituição)
nessas ações, pois aprenderam, ao longo do processo de contato com os kup, que
“Educação” se na escola e / ou na Igreja. Porém, atestam relação com o saber, o
que é possível compreender em vários fazeres e dizeres, e inclusive pelo fato de que
possuem uma equivalente linguística para o termo “professor”: hapên katê (alguém
BANDEIRA G. C. M. Rituais Associados à Colheita de Milho-verde na Aldeia dos Índios Gavião Kikatêjê 129
que conhece sobre determinada coisa ou é especialista nisso), designado a pessoas
que detém um determinado saber.
A percepção do saber, nesse contexto, levou-me a perceber que existe um
aprender e isso se numa forma de fazer-aprender, em que residem os processos
educativos próprios das práticas milenares indígenas e têm sido reinventados por
intermédio de uma educação que se num ambiente não institucionalizado de
ensino, um ambiente chamado “vivência dos entes”. No ambiente da vivência, a
ação de educar deve ser compartilhada, por meio de uma educação do diálogo e
permeada por aprendizagens interdimensionais, visto que ao aprender sobre
práticas da vida indígena a pessoa apreende saberes de múltiplas dimensões do
vivido, a saber: biológica, social, cultural, política, etc.
Nesse sentido, o “espaço-ambiente-natureza”, compreendido enquanto
totalidade auxilia a pensar a biosociodiversidade amazônica nesses fazeres e
dizeres que ensejam educação entre os povos ditos “da floresta”. O saber indígena
sobre o meio biosociológico apresenta integração simbólica de coexistência entre os
entes materiais e imateriais no ambiente natural-cultural, em que os modos de
conhecer o mundo implicam modos de atuar nele, revelando processos educativos,
imbricados e necessários ao sistema cultural, capazes de produzir,
conseqüentemente, sustentabilidade ao espaço habitado por meio de sua relação
com o cosmo do grupo.
Na interação simbólica, em que coexistem os entes, se dá a “outridade” para
pensar a relação do ser, do saber e do conhecer o mundo nas múltiplas formas de
apreensão da realidade, nisso reside a educabilidade do ser no “Estar-junto”, no
relacionar-se com o que há no mundo e com o que há em si.
Tais processos educativos imbricados ao sistema cultural, os quais existem
como forma de educação compartilhada, auxiliam na permanente construção do
corpo social Timbira, implicando num modo de conhecer o mundo, o qual é herdado
pela tradição
39
. Vale ressaltar que a tradição se atualiza com vista na (re)criação do
sujeito inacabado e nisso também reside a educabilidade do ser indígena, que se
na (com) vivência.
39
Entretanto, a tradição não pode ser entendida como algo estático, mas dinâmico no sentido de se
(re) construir para garantir os resultados simbólicos do sistema cultural, mesmo quando os meios
não existam ou os objetos sofram modificações. A cultura “[...] não lida com coisas, mas com
significados” (BOSI, 1987, p. 47).
BANDEIRA G. C. M. Rituais Associados à Colheita de Milho-verde na Aldeia dos Índios Gavião Kikatêjê 130
As estratégias de convivência indígena com o ambiente em que vive,
compreende um devir de coexistência, de tal modo, que é possível dizer que o índio
existe ao mesmo tempo que existe o seu ambiente (a floresta, o cerrado, o campo,
etc). Na Amazônia, a relação entre os povos indígenas e a floresta é mediada pelas
formas de organização das múltiplas dimensões do vivido em relações de
aprendizagens com e sobre elementos do social, do cosmológico, do cultural e,
também, da biodiversidade local.
Práticas de aprendizagens decorrentes de processos educativos com e na
“Natureza”, em que residem sentidos e significados para a vida dos diversos povos,
podem ser consideradas ações de Etnopedagogia Ambiental, pois “circunscreve
saberes e práticas significados na/com a natureza, compreendida na sua diversidade
enquanto totalidade” (FONSECA, 2009).
Essas práticas que decodificam outra forma de fazer-aprender podem até ser
incorporadas por outros ambientes de educação (escolar ou não-escolar) como uma
“nova” perspectiva educativa, ou seja, se os ciclos naturais da biodiversidade e os
fazeres dizeres a estes associados, têm possibilitado educar para a cultura e para o
ambiente na aldeia Gavião Kikatê-Jê, então, percebo: podem se constituir numa
referência para pensar ações de Educação Ambiental de amplo alcance,
favorecendo a construção de saberes e valores diversos e significativos à vida.
REFERÊNCIAS
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<http://www.vale.com/vale/cgi/cgilua.exe/sys/start.htm?sid=2> Acesso em 05 de
outubro de 2008.
ANEXO
APÊNDICE 1- Carta de apresentação da Pesquisa à Liderança da aldeia
APÊNDICE 2- Termo de Consentimento livre e esclarecido
APÊNDICE 3- ROTEIRO DE ENTREVISTA SEMI-ESTRUTURADA
*
1- Como você aprendeu?
2- Com quem você aprendeu?
3- Por que você realiza essa atividade?
4- Quais materiais são utilizados para a realização dessa atividade?
5- O que os elementos (visuais, sonoros, materiais) significam?
*
Após identificar fazeres, que ensejam processos educativos presentes nos rituais associados a Colheita do
Milho-verde, elaborei um breve roteiro para coletar dados significativos à percepção de aprendizagens oriundas
dos referidos fazeres: brincadeira de petecas, pinturas corporais, corrida de tora, dança. Dessa forma, esse roteiro
foi utilizado em conversas com sujeitos conhecedores e participantes de tais fazeres.
Universidade do Estado do Pará
Centro de Ciências Sociais e Educação
Programa de Pós-Graduação em Educação
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