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PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇAO EM EDUCAÇAO - MESTRADO
Fátima Cleonice de Souza
O LUGAR DO BRINCAR DOS BEBÊS,
UMA REFLEXÃO DA PSICANÁLISE À EDUCAÇÃO
Santa Cruz do Sul, maio de 2010
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Fátima Cleonice de Souza
O LUGAR DO BRINCAR DOS BEBÊS,
UMA REFLEXÃO DA PSICANÁLISE À EDUCAÇÃO
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em Educação Mestrado, Linha de
Pesquisa - Aprendizagem, Tecnologias e
Linguagens na Educação, Universidade de
Santa Cruz do Sul UNISC para obtenção do
título de Mestre em Educação.
Orientadora: Prof. Dra.Sandra Regina Simonis
Richter
Santa Cruz do Sul, maio de 2010
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Fátima Cleonice de Souza
O LUGAR DO BRINCAR DOS BEBÊS,
UMA REFLEXÃO DA PSICANÁLISE À EDUCAÇÃO
Esta dissertação foi submetida ao Programa de
Pós-Graduação em Educação – Mestrado,
Linha de Pesquisa - Aprendizagem,
Tecnologias e Linguagens na Educação,
Universidade de Santa Cruz do Sul UNISC,
como requisito parcial para obtenção do título
de Mestre em Educação.
Dra.Sandra Regina Simonis Richter
Professora Orientadora
Prof. Dra. Maria da Graça Souza Horn
Prof. Dra. Betina Hillesheim
Prof. Dra. Nize Maria Campos Pellanda
4
À minha filha Clara Valentina, meu melhor laboratório,
constante inspiração
5
AGRADECIMENTOS
A Deus pelo dom da Vida nos encontros e desencontros...
A meus pais, pela infância que me proporcionaram, pelo apoio em todos os
momentos, pelo amor suficientemente bom e incondicional.
A minha irmã Clarice, pelo amor nos cuidados com a minha filha, permitindo
que eu concluísse a dissertação.
A meu esposo Claus, onde me perco e me encontro por acreditar nos meus e
nossos sonhos.
À minha orientadora Profa. Dra. Sandra Regina Simonis Richter, por sua
competência e pela confiança em mim depositada.
Ao Programa de Pós Graduação em Educação: UNISC, pela oportunidade de
aprendizado.
A todos os meus amigos, colegas e professores, que de certa forma
contribuíram para a realização deste trabalho.
À Diretora, funcionários e crianças do EMEI Margarida Aurora, por terem me
acolhido de forma tão carinhosa.
Aos meus pacientes, com quem aprendo sempre mais a cada dia.
6
SLEEP
Let down your tap root
To the center of your soul
Suck up the sap
From the infinite source
Of your unconscious
And
Be evergreen*
(WINNICOTT, D. W., 1983)
___________
*Sonho. Deixa penetrar a raiz/ no centro de tua alma/ aspira a seiva/ da fonte infinita/ de teu
inconsciente/ e/ conserva ter verdor.
7
RESUMO
Esta dissertação realiza uma abordagem exploratória em torno do lugar do brincar
nos bebês a partir da permeabilidade entre diferentes campos do saber, com o
objetivo de afirmar a necessária aproximação entre adultos e bebês enquanto
encontro fundamental nos ambientes coletivos de aprendizagem. Trata-se de
aproximar psicanálise e educação para problematizar a generalizada
desconsideração pelo brincar dos bebês e sua ação autônoma na atual sociedade
de consumo. O estudo parte dos conhecimentos da psicanálise, fundamentados na
relação mãe-bebê em Donald Winnicott, para apontar tanto o equívoco psicanalítico
de deter-se no brinquedo e não na criança que brinca quanto no equívoco
educacional de considerar que devemos ensinar as crianças a brincarem. O que a
psicanálise e a educação esquecem é a potencialidade lúdica de interação dos
bebês quando estes nos mostram a força criadora que pode emergir da experiência
cultural de brincar. Esquecimento que se agrava na sociedade de consumo pelo
desencontro entre crianças pequenas e adultos, promovido pela desconsideração ao
brincar como espaço de ilusão: espaço potencial ou intermediário que é o lugar do
brincar na criança, ou seja, da complexidade de seu fazer. A filosofia contribui para
recuperarmos este lugar do jogo, ao expandir a visão sobre os processos sensíveis
de aprender a decifrar e interpretar o vivido e permitir a compreensão da experiência
de brincar como o lugar onde se instaura a potência criadora, lugar cultural que pode
ser o ponto de encontro também entre adultos e crianças na educação.
Palavras-chave: Brincar, bebês, ação autônoma, educação da infância
8
ABSTRACT
The present dissertation takes an exploratory approach to examine play among
babies from the overlapping between different fields of knowledge in order to assert
the need of a close relationship between adults and babies in collective learning
environments. Psychoanalysis and education are addressed to discuss the
widespread disregard for the play of babies and its autonomous action in the modern
consumer society. The present study is based on the knowledge of psychoanalysis
on the mother-infant relationship described by Donald Winnicott, pointing to both the
psychoanalytic misconception to focus on the toy rather than the playing child and
the educational misconception that we should teach children to play. Psychoanalysis
and education are both overlooking the potential ability of ludic interaction of babies
when they show us the creative force that can emerge from the cultural experience of
playing. This ability is further overlooked in a consumer society due to divergent
stands between young children and adults. The latter disregard the play as a space
of illusion, an intermediary or potential space that is the place of playing of the child,
and thus disregard the complexity of its making. Philosophy has helped us reclaim
this space for game by broadening our view of the sensitive processes of learning to
decipher and interpret what we experience and enabling us to understand the
experience of playing as the space where the creative power develops, a cultural
space that can be also a point of convergence between adults and children in
education.
Keywords: Playing, babies, autonomous action, education of children
9
SUMÁRIO
A PESQUISADORA E OS BEBÊS............................................................................11
INTRODUÇÃO...........................................................................................................18
1 A PESQUISA EDUCACIONAL COM BEBÊS........................................................21
1.1 Dimensionando o lúdico....................................................................................27
1.2 O poder de interação dos bebês......................................................................29
2 O LUGAR DO BRINCAR DOS BEBÊS NA PSICANÁLISE..................................37
2.1 Teoria de Winnicott ...........................................................................................37
2.1.1Espaço potencial..............................................................................................37
2.1.2 Objeto transicional..........................................................................................41
2.1.3 O brincar e a criatividade................................................................................46
2.2 O brincar como técnica terapêutica.................................................................48
3 O LUGAR DO BRINCAR DOS BEBÊS NA EDUCAÇÃO......................................52
3.1 Os bebês e as crianças pequenas não sabem brincar...................................52
3.1.1 Isadora, o pote e eu.........................................................................................55
3.1.2 Ação autônoma................................................................................................58
3.1.3 Educar bebês na creche.................................................................................59
3.2 Aprender brincando...........................................................................................61
3.2.1 Adulto e bebês: um jogo de interações........................................................61
3.2.2 Ambiente suficientemente bom.....................................................................63
3.3 A creche como ambiente coletivo de aprendizagens lúdicas......................66
3.3.1 Explorando os limites.....................................................................................67
3.4 O adulto como co ator ou como ator...............................................................69
3.4.1 Direcionando o brincar: o adulto como ator................................................69
3.4.2 Brincar de faz de conta...................................................................................73
3.4.3 O adulto como co autor..................................................................................74
10
4 O ESPAÇO E O LUGAR DO BRINCAR NA SOCIEDADE DE CONSUMO.........79
4.1 Sociedade de consumo x Espaço potencial....................................................79
4.1.1 Novos lugares..................................................................................................79
4.1.2 O desencontro.................................................................................................80
4.1.3 Novos desejos.................................................................................................83
4.1.4 A infância perdida...........................................................................................85
4.2 Imaginação criadora ..........................................................................................88
4.2.1 Filosofia e psicanálise....................................................................................89
4.2.2 Brincando de ser artista.................................................................................91
5 PARA NÃO CONCLUIR.........................................................................................96
5.1 Buscando o encontro.........................................................................................97
5.2 O lugar do encontro...........................................................................................99
5.3 Promovendo outros encontros.......................................................................101
5.4 Recuperando a infância...................................................................................102
REFERÊNCIAS........................................................................................................105
11
A PESQUISADORA E OS BEBÊS
A criança sempre esteve em primeiro lugar nos meus estudos. Talvez, porque
me encantasse, dentre inúmeros fatores, com sua espontaneidade, com sua
incansável busca, com seu prazer nas pequenas conquistas. Admito, a cada dia que
vou aprendendo o quanto é maravilhoso estar neste mundo e entrar no mundo da
infância, pois só acolhendo a criança que fomos, e a criança que somos, poderemos
compreender, apreender e sintonizar com a criança que convivemos.
Minha trajetória aproximou-me de crianças da fase inicial de vida a a idade
em que passam para o mundo dos adultos, sendo desvinculadas do seu Pediatra,
como se isto representasse o final da infância. Lembro-me de adolescentes
constrangidos no consultório por serem muito grandes no meio de todos aqueles
brinquedos e que, com vergonha, compartilhavam a vontade de ainda brincar ou
“confessavam” que, a portas fechadas, permitiam descer os carrinhos ou bonecas
do armário. O que diriam os colegas?
Sempre estive em uma posição confortável, podendo perpetuar a minha
infância neste mundo que escolhi, com direito a sentar no chão e elaborar mil
estórias. Com certeza a minha infância foi repleta de bons momentos e a criança
que fui continua integrando o meu viver. Brincar era o nosso direito, tudo era
diversão, tínhamos o mundo no nosso quintal e a rua como extensão dos nossos
limites.
Desde os tempos de formação acadêmica, cerca de 20 anos, quando a
Pediatria exercia fascínio sobre mim, era muito prazeroso conversar com os
bebês. As mudanças no tom de voz, os gestos e caretas, configuravam uma
brincadeira e uma comunicação, na qual era imprescindível a sintonia e o ritmo para
acontecer o entendimento. Isto chamava a atenção e provocava comentários de
colegas. Diziam, com espanto, que eu conversava com os bebês como se eles me
entendessem. Nunca tive dúvidas de que estávamos nos comunicando, mas foi
através do Dr. Salvador Célia
1
, Psiquiatra Infantil falecido recentemente, que entrei
de forma mais consistente neste universo constituído pelo bebê e suas interações no
1
Salvador Célia idealizou a Semana do Bebê, realizada em Gramado, que está em sua 10ª edição e
que acabou adotada em outras cidades. No evento, um dos principais focos de estudo do psiquiatra
era colocado em prática, o reforço do apego entre mãe e bebê. Para ele, essa ligação podia aumentar
a resiliência da criança e do futuro adulto, termo oriundo da Física, mas que foi adotado para
descrever a capacidade de resistir aos impactos negativos da vida.
12
mundo e com o mundo. Salvador Célia foi uma destas pessoas grandiosas e
humildes, agregadoras, preocupado com a promoção da saúde mental pelos
diferentes profissionais. Sua vida era o seu trabalho. Comecei a familiarizar-me com
autores como John Bowlby, Bertrand Cramer, Terry B. Brazelton, Renè Spitz,
Donald Winnicott, entre outros. Tive o privilégio de conhecer Terry B. Brazelton
2
e
Bertrand Cramer
3
.
Pelos caminhos que fui escolhendo, aproximei-me de outras pessoas
interessantes e interessadas nos bebês que consideram esta fase como sendo a
base do psiquismo e de toda as relações futuras, devendo o trabalho de prevenção
da saúde ser iniciado com as gestantes. O atendimento pode ser, portanto,
integral, envolvendo os cuidadores, o meio em que está inserido este bebê e uma
equipe multiprofissional. que haver diálogo entre as diferentes áreas do
conhecimento.
Em 1992, realizei um trabalho no Curso de Saúde Mental do Instituto Léo
Kanner, sob supervisão do Dr. Salvador Célia, no qual entrevistei mães de recém
nascidos e funcionários do berçário. Naquela época, os recém nascidos ficavam no
berçário por várias horas, às vezes por mais de 12 horas, para que as mães
pudessem recuperar-se do trabalho de parto. Chamou-me atenção, na época, o fato
da maioria dos participantes pensar que estes bebês não enxergassem e, mais
impactante ainda, é constatar que, transcorridos todos estes anos, suas
potencialidades ainda são desconhecidas ou desprezadas. Muitos continuam
desconsiderando todo potencial que um recém nascido possui desde os primeiros
minutos de vida. São mitos que cercam os bebês: a impotência, a incapacidade, a
passividade. A interação nos primeiros minutos e horas de vida é negligenciada e
muitas vezes, perdida. Momentos preciosos que, como profissional, procuro
ressaltar e informar, fortalecendo assim, os laços de apego nesta família em
formação.
2
T. Berry Brazelton, fundador da Unidade de Desenvolvimento da Criança no Hospital da Criança de
Boston, é professor emérito de pediatria na Escola de Medicina de Harvard. Professor de Pediatria e
Desenvolvimento Humano na Universidade Brown, ele também é ex-presidente da Sociedade para
Pesquisa e Desenvolvimento da Criança e do Zero a Três (BRAZELTON, 2002).
3
Bertrand Cramer, médico, formado pela Universidade de Genebra, psiquiatra infantil e psicanalista.
Autor de vários trabalhos traduzidos para o Brasil. Dentre suas ideias mais importantes, destaca-se a
compreensão de como as comunicações entre pais e bebês afetam este último (CRAMER,1993).
13
Dr. Berry T. Brazelton (1995), pediatra e psiquiatra infantil criou uma escala
para avaliar as capacidades do recém-nascido e participei do curso para formação
de treinadores que é difundido por todo o mundo. Ele orienta que o exame seja feito
na presença dos pais para que percebam o potencial que seu filho manifesta no
início de vida, aumentando o vínculo necessário para que esta relação flua com
naturalidade. Este potencial inclui a capacidade de ação, que é o brincar, o fazer.
Segundo Winnicott (1971), a brincadeira começa no espaço de interação
formado entre o bebê e a mãe ao qual denominou espaço potencial. Lins (1998)
comenta que Winnicott, em seu artigo sobre os fenômenos transicionais em 1951
introduziu a ideia de um momento a partir do qual a capacidade para brincar se
instaura: o momento da concepção do objeto, da ilusão de onipotência permitida ao
bebê pela adaptação quase perfeita da mãe a suas necessidades.
Os anos foram passando e resolvi fazer especialização em Psicoterapia da
Infância e Adolescência por ter observado e constatado a importância entre os
fatores emocionais e o contexto em que a criança está inserida no aparecimento de
sintomas físicos. As crianças reagem com o corpo, expressando nele o que não está
bem, o que não conseguem ou não podem falar e, muitas vezes, isto é reflexo de
suas interações. Por exemplo, o choro de um bebê com diagnóstico de “cólica”,
pode representar sua tentativa de estimular uma mãe deprimida.
Tive a oportunidade de fazer Observação da Relação Mãe-Bebê (ORMB) pelo
Método Esther Bick
4
. Pelo período de um ano acompanhei um bebê e sua família,
observando-o semanalmente pelo período de 1 hora. Éramos orientados a não
interferir, não interagir, apenas observar e posteriormente relatar no grupo de
supervisão as anotações minuciosamente feitas. Hoje percebo quanto esforço fazia
para não expressar minhas emoções e, mesmo assim, era descoberta pelo bebê ou
não continha meu encantamento com suas façanhas, pois eu fazia parte do
contexto. Era impossível não fazer parte daquele espaço, no qual eu era
constantemente solicitada a participar da brincadeira. Como não responder?
Nessa experiência, foi surpreendente observar as ações e descobertas dos
bebês, os momentos de superação quando ele admirava-se com as conquistas, a
persistência, a alegria, o aprendizado. Foi uma experiência enriquecedora, além da
postura mais passiva que tive que aprender a tomar, sendo paciente, sem interferir.
4
A prática de observação de bebês foi incluída por Esther Bick, em 1948, como parte do curso de
formação para psicoterapeutas de criança na Clínica Tavistock, em Londres. Em 1960 foi incorporado
ao plano de estudos no Instituto de Psicanálise de Londres (CARON, 2000 p.9-18).
14
Para mim, prestar atenção aos detalhes, às expressões, às mudanças de tom deste
pequeno ser que a cada semana ampliava seu mundo de descobertas e ia
constituindo-se, foi o mais importante. Um dos objetivos era tentar entender os
aspectos inconscientes do comportamento e padrões de comunicação, o
desenvolvimento da relação entre o bebê e o meio ambiente, mas entender os
sentimentos despertados em mim também foi fundamental. Passei a ver coisas que
antes não via, a enxergar de outra maneira, a entender com mais clareza a
comunicação sem palavras e isto é muito importante. Penso que deve ser familiar
aos profissionais, sejam da saúde ou da educação, que têm, sob sua
responsabilidade bebês e crianças pequenas. É preciso sintonia como na dupla
mãe-bebê e isto envolve empatia, disponibilidade e percepção, enquanto qualidades
que podem ser desenvolvidas na interação. O conhecimento das potencialidades
dos bebês permite uma forma diferente de olhá-los e de entendê-los.
Apoderei-me então do brincar como técnica na Psicoterapia. O uso que se faz
do brincar nas sessões é universalmente aceito desde 1923, quando Melanie Klein
afirma sua posição de que o brincar é o método que possibilita a condução do
processo psicanalítico com crianças, isto é como precondição para que este possa
se realizar (ROZA, 1999 p. 120). Winnicott (1971) imprime importância muito
maior ao brincar: não é prioritário como técnica da consulta, mas também na
constituição do ser e na sua forma de viver.
Nestes anos de trabalho, aproximei-me de crianças em sofrimento físico e
psíquico de diferentes níveis e gravidade, mas também de crianças saudáveis e de
famílias em formação. Observava nos atendimentos que a criança, seja qual for sua
idade, estabelece contato com o olhar, expressando-se por movimentos do corpo,
sons ou uma simples batida na mesa, aguardando a interação. Quando ocorre uma
reposta, uma batida no mesmo ritmo, um sorriso, uma palavra, um olhar, uma
mudança na expressão, inicia-se uma relação de confiança, que vai progredindo em
um crescendo, permitindo uma intrusão, um toque que não é sentido como invasivo
ou agressor. Sinto-me autorizada a prosseguir na consulta, nesta experiência
sempre nova dada pelo brincar.
Winnicott (1971), comentando sobre suas convicções, diz que seu interesse
pela brincadeira, no relacionamento de confiança que pode desenvolver-se entre o
bebê e sua mãe, sempre constituiu característica de sua técnica de consulta, como
destacou em seu primeiro livro escrito em 1931.
15
Como Pediatra sou também educadora. Esta considero a função mais nobre
da Pediatria: estar à disposição dos pais, principalmente no período inicial da vida de
seus filhos, desta nova família em formação para auxiliá-los, reforçando suas
potencialidades e as do recém-nascido. Quando distúrbios no vínculo da mãe com
seu bebê são identificados precoce e adequadamente considerados, darão um novo
rumo a esta relação. É preciso aprender a ver o que está por trás do motivo da
consulta, muitas vezes a criança é porta voz de um desajuste nas relações
familiares e mostra no corpo o que não está bem em casa. Talvez, por este motivo,
muitos pediatras envolvam-se também com a psiquiatria infantil e a psicanálise. Para
mim foi uma necessidade.
O prazer que sinto na minha atuação profissional levou-me a optar também
pela docência no curso de Medicina, na área de Pediatria, e foi assim que cheguei
ao Mestrado em Educação: para qualificar-me. Procuro compartilhar com meus
alunos meu encantamento com os bebês. Salvador Célia sempre se empenhou para
que os estudantes de Medicina começassem seus estudos interagindo com os
bebês, com a vida, e não somente com os cadáveres, com a morte. Penso que
conseguiu. Emmi Pikler, pediatra e com licenciatura em pediatria nos anos 20 do
século passado em Viena, considerava que os jovens médicos e futuros pediatras
tinham que aprender, em primeiro lugar, a atender os bebês e as crianças pequenas
e, mais especificamente, a fazê-lo da maneira menos desagradável possível para a
criança (FALK, 2004).
É desafiador trabalhar com bebês e crianças pequenas. É preciso conhecê-
los, entender as mensagens somatossensoriais, a linguagem corporal, acolher os
cuidadores. É desafiador transmitir este mundo para os estudantes de medicina,
também futuros cuidadores, no início de sua formação, quando muitas vezes a
tecnologia e a comunicação verbal dominam os interesses acadêmicos.
Foi preparando uma palestra sobre criança hospitalizada e revisando alguns
autores que voltei à Winnicott e à importância atribuída ao brincar. O brincar
terapêutico e as brinquedotecas nos hospitais são amplamente estudados e poucos
têm dúvida de seus benefícios. que o brincar, para Winnicott, é mais do que uma
forma de elaboração das angústias, medos e dúvidas. A origem do brincar e sua
relação com a criatividade são conceitos que exigem ser difundidos, por sua
importância na constituição do ser e na sua forma de viver.
16
A teoria condiciona e conduz o olhar. Escolhi estudar Winnicott, inicialmente,
pela importância que ele confere ao desenvolvimento emocional com ênfase na
relação mãe-bebê. Acompanhando famílias em formação, faço das teorias deste
autor e de outros, como T. Berry Brazelton, o meu dia-a-dia, sendo o suporte, para
as orientações e apoio que procuro aliar à experiência. Não devemos ter a
pretensão de ensinar as es a serem mães, mas podemos reforçar atitudes
positivas e, principalmente, formar uma relação de confiança; assim,
conseguiremos a sintonia necessária para que sejamos entendidos e que os
entendamos. Nas palavras de Tyzard (1981), comentando Winnicott, “dizer que ele
compreendia as crianças parece-me soar falso e algo padronizado; na verdade as
crianças o compreendiam e ele era um a mais com elas”.
Nas disciplinas da Pós Graduação estabelecendo interlocuções com outros
autores e outros conceitos, fui ampliando e modificando as concepções,
encontrando o meu lugar como pesquisadora, mas sempre tendo como foco
principal o brincar na perspectiva de Winnicott. Em um primeiro momento, tive a
intenção de frisar a necessidade vital do brincar, mas seria repetitiva. Esforcei-me,
então, por relacioná-lo com a aprendizagem por estar desenvolvendo o estudo na
área da Educação. É claro que não consegui separar a pesquisadora da área da
educação e a da área da saúde, pois está tudo integrado em mim. Para abordar o
lugar do brincar e encontrar a metodologia foi necessário primeiro entender o meu
lugar neste processo.
Essa breve apresentação algumas pinceladas sobre a minha trajetória
profissional até aqui. Depois de um tempo considerável de estudos e elaboração das
leituras e reflexões, tendo esta vivência e estes conceitos como integrantes da
minha rotina, foi impactante ouvir de uma pedagoga, em uma reunião da Escola de
Educação Infantil
5
, para pais em uma Pré Escola que “as crianças não sabem
brincar, precisamos ensiná-las” e da Psicanalista da escola afirmar que “as crianças
nascem como uma folha de papel em branco”. Isto foi exposto como verdade e não
questionado por um grupo grande de pais e educadoras que aceitou e, calando,
consentiu. Estas duas frases serviram de provocação para que eu prosseguisse
estudando o tema a partir de duas perguntas: Como considerar a criança pequena
um ser passivo? É necessário ensinar a brincar? O encontro com a Escola de
5
Escola de Educação Infantil, enquanto 1ª etapa da Educação Básica, é composta pela creche (0-3
anos) e pela Pré-Escola (4-6 anos), conforme LDBEN 9394/96 art. 30
17
Educação Infantil motivou-me a prosseguir e deu novo rumo a minha caminhada.
Precisei de um tempo de enclausuramento, que não posso deixar de ser pediatra,
terapeuta, professora nem mãe, neste enriquecedor momento da escrita. Assim fui
transformando, deletando, acrescentando, modificando os parágrafos e, ao mesmo
tempo, constituindo-me, modificando-me, vendo mais longe, vendo o que não via,
não com outros olhos, mas com outro olhar, mais complexo, mais abrangente,
simplesmente diferente.
INTRODUÇÃO
Para propor uma reflexão sobre o lugar do brincar na primeira infância,
destaco a pesquisa educacional com bebês traçando o caminho por mim percorrido.
18
Justifico a escolha dos autores e a metodologia empregada. Amplio o conceito de
brincar no tópico dimensionando o lúdico fazendo uma breve interlocução com
outros autores como Verden Zöller (2004). Discuto o poder de interação dos bebês
trazendo diferentes áreas como psicologia, psicanálise, pediatria, biologia e
fisiologia. A permeabilidade entre estas disciplina é necessária para realizar a
complexa aproximação ao poder lúdico dos bebês e para aprender com eles
(CUNHA, 2001).
No capítulo, trago o Brincar na Psicanálise iniciando com a teoria de
Winnicott (1971), através de seus estudos da relação mãe bebê e destacando a
relação do brincar com a criatividade. Winnicott (1971) coloca o bebê, desde os
primeiros dias de vida, como fundamental na condução deste processo. Termino a
primeira parte com o brincar como terapêutica, trazendo o lugar dado ao brincar na
sessão de psicoterapia.
No próximo, avanço com considerações sobre o lugar do brincar na educação
dos bebês e crianças pequenas, considerando que a provocação partiu de uma Pré-
Escola. Com os autores escolhidos e a metodologia empregada, realizo uma
reflexão sobre o comentário da educadora que me perturbou: “As crianças não
sabem brincar, precisamos ensiná-las”. Devemos ensinar as crianças a brincarem?
Para insistir na importância das interações (e não da ação dirigida), abordo a ação
autônoma da criança e a interferência do adulto, reforçando com conceitos de
Winnicott (1971) sobre espaço potencial e confiança. Sigo o diálogo com
educadores italianos como Bondioli e Mantovani (1998), com a inglesa Janet
Moyles
6
(2006) que relaciona o brincar com a aprendizagem, assim como a
experiência da húngara Emmi Pikler
7
que nos anos 60 revolucionou a noção de
cuidado nos três primeiros anos. Para argumentar a inseparabilidade entre aprender
e brincar, no tópico Aprender brincando, além dos autores já mencionados, aproximo
a teoria de Winnicott (1971) à Maturana (1998, 2001) e Moraes (2003), reforçando a
importância das emoções e dos relacionamentos nos processos de aprendizagem.
No tópico seguinte falo da creche como ambiente coletivo de aprendizagem e
finalizo este capítulo afirmando a participação do adulto, sua intervenção, seu papel
no brincar e nos processos de aprender. O adulto participa como coautor, seja na
Pré-Escola, na creche, no consultório, no hospital, ou mesmo no convívio com
6
Professora titular de educação na University of Leicester.
7
In Falk, 2004.
19
nossos filhos, que, muitas vezes, este adulto intervém no jogo exclusivamente
para guiar e controlar as atitudes e o uso que as crianças fazem dos objetos sem
participar da criação nem do desenvolvimento da atividade lúdica.
Após esta aproximação aos questionamentos iniciais, para destacar a
responsabilidade do adulto no brincar infantil, afirmo a importância da dimensão
lúdica no viver, para a vida em si e para a cultura, através de uma reflexão sobre o
lugar do brincar na sociedade de consumo. Apoio-me nos estudos de Lúcia Rabello
de Castro (1998) e Solange Jobim e Souza (1994) para discutir como a cultura do
consumo promove mudanças nas subjetividades. Convido a uma reflexão sobre o
brincar na atualidade, como interferimos no viver das crianças ao apresentarmos
uma realidade na qual parece que nada é suficiente. Em contraponto, trago o
pensamento de Gaston Bachelard (2006) e Fayga Ostrower (1987) que, dialogando
com Winnicott (1971) apontam a força criadora que temos e que pode emergir nos
modos mais adversos reafirmando o conceito do brincar como fazer e sua
importância vital na constituição de cada um no coletivo. Viver criativamente supõe
uma forma saudável de transformar o viver.
O brincar é um tema amplo, complexo e apaixonante. Percorri diferentes
áreas e os mais diversos autores e pensadores para melhor compreensão dos
bebês, para abarcar a complexidade de um sistema ainda pouco explorado na
educação. Os bebês nos interrogam e exigem respostas. Implica não limitar-se a
admitir sua demanda, a não limitar-se a escutar, mas a responder a sua demanda:
El outro se expressa y yo no me limito a admitir su demanda, no me limito a
escuchar su demanda, sino que soy respuesta a su demanda. Éste es El
gran principio ético: La responsabilidad. La responsabilid quiere decir
respustea a outro que apela a mi, que me cuestopna. (...) Se trata de uma
respuesta atenta com La demanda Del outro, uma respusta que se ofrece
sin esperar nada a cambio. (MÈLICH y eds, 2001, p.29).
Uma abordagem multidisiplinar não é suficiente, é preciso romper as barreiras
disciplinares e promover uma interlocução entre os diferentes campos do
conhecimento se quisermos nos aproximar do problema contemporâneo posto pela
educação de bebês. É inadmissível que a teoria da tabula rasa
8
ainda seja aceita e
8
Tábula se refere a uma superfície de pedra para escrever, Rasa, feminino de Rasus, significa
apagado, i.e. “em branco”.
20
sirva de base para educação de crianças pequenas. É necessário, na educação
infantil, optar por uma ética da responsabilidade.
Talvez, o que esteja faltando, seja um ponto de união entre estas diferentes
áreas do conhecimento e a necessidade de nos encontrarmos nele com os bebês e
as crianças também na educação. Onde se dará este encontro?
Deixo reflexões a serem ainda exploradas, interrogações a serem ainda
formuladas. Tanto na área da Psicanálise como na área da Educação, na sociedade
contemporânea, em nossas casas, com nossos filhos, talvez seja importante
observarmos mais como eles brincam, reaprendermos com eles a brincar. Espero
compartilhar estas ideias com educadores e pesquisadores interessados pelas
questões da infância.
1 A PESQUISA EDUCACIONAL COM BEBÊS
A pesquisa educacional com bebês é um campo em constituição na
academia. o poucos os debates em torno da ação educativa na creche. O bebê
apresenta uma radical integração entre corpo e mente e nos coloca diante do
desafio de reintegrar o que foi fragmentado pela modernidade.
21
Nessa perspectiva, torna-se relevante trazer a teoria de Winnicott sobre o
brincar para área da Educação e procurar o pensamento de alguns educadores para
entender o posicionamento das profissionais na reunião da Escola de Educação
Infantil, profissionais com as quais bebês e crianças pequenas passam várias horas
do seu dia. Parti da seguinte questão: As crianças precisam ser ensinadas a
brincar? Com estas perturbações, sinto-me desafiada e autorizada a transitar por
uma área menos familiar, trazendo um olhar diferente, assim como autores variados,
pois é uma necessidade para entender a complexidade dos bebês. Cunha (2001),
diz que o pensamento científico contemporâneo tem se caracterizado por aumentar
o contato entre as diferentes áreas do conhecimento criando maior permeabilidade
entre as disciplinas a fim de entender estruturas e sistemas complexos como, por
exemplo, o sistema nervoso central, a função mental e o comportamento de
interação da mãe com o bebê.
Brazelton (1990) consegue transmitir sua paixão pelo estudo dos bebês.
Quando o conheci e perguntei-lhe de onde tirava tanta energia com seus 80 anos,
respondeu-me sorrindo que era do nosso olhar. Falou de reciprocidade, sintonia,
cumplicidade. Ele brincava com as palavras, assim como com os bebês, transmitia
felicidade, integração do que falava e fazia com a pessoa que era. Imagino uma
semelhança até física entre ele e Winnicott que também foi uma destas pessoas que
era sua própria teoria. Mesmo com seus estudos e trabalho na área da Psicanálise
nunca deixou de ser Pediatra. Fiquei contagiada com o entusiasmo destes dois
pesquisadores e com a densidade de seus posicionamentos, ao mesmo tempo, com
sua humildade e simplicidade. Justifico assim a escolha destes autores para
fundamentar este estudo, com quem aprendo mais a cada dia que leio e releio.
Winnicott, segundo Mello Filho (1989), teve uma família integrada e feliz, uma
infância com liberdade para explorar todos os espaços disponíveis. Experimentou
em seu lar uma segurança que se podia considerar como natural. Era deste lugar
que falava. Seu livro mais fecundo e original, segundo comentário de vários autores,
foi O Brincar e a Realidade que deu um fecho a sua obra em 1971.
Brazelton e Cramer (1992) trazem Winnicott ao afirmar que o bebê é
essencialmente parte de uma relação: “Aquele que tenta descrever um bebê, logo
descobre estar descrevendo um bebê e mais alguém (grifo seu). Um bebê nunca
existe sozinho, mas é essencialmente um dos termos de uma relação”
22
(WINNICOTT, 1987). A afirmação é coerente com a origem latina da palavra brincar
que é vinculum e quer dizer laço, algema e é derivada do verbo vincire que significa
prender, seduzir, encantar. Vinculum virou brinco e originou o verbo brincar,
sinônimo de divertir-se.
Afinal, qual é o lugar do brincar? Realizei um trabalho exploratório partindo
destes questionamentos, tentando respondê-los, entendê-los, pois o que parecia
óbvio para mim talvez fosse desconhecido para muitos educadores e profissionais
que cotidianamente convivem com crianças pequenas. O lugar destes cuidadores é
muito importante e espero que este estudo possa contribuir com ações educativas
que considerem com mais atenção o encontro entre crianças e adultos e a
importância do ambiente de confiança. O adulto é fundamental, mas não deve ser
intrusivo a ponto de prejudicar a ação autônoma da criança. O ambiente interativo
permite à criança descobrir, paulatinamente, o mundo em que vive, incluindo sua
própria existência. Sem entender o lugar do brincar e sua importância em todo
processo de viver, não há como proporcionar este espaço.
O brincar terapêutico é usado em hospitais para ensinar as crianças sobre os
procedimentos a que será submetida, é uma forma de comunicação, tem uma finali-
dade. O brincar na área da Educação não é diferente, também tem uma finalidade,
as crianças aprendem o que os adultos consideram que devem aprender, como sen-
do uma preparação para o futuro. Desde a creche o brincar, na maior parte do tem-
po, é dirigido. Ocorre uma pedagogização do brincar: a preocupação está mais rela-
cionada aos resultados do que à promoção da autonomia e da exploração. mui-
tas pesquisas com bebês no campo da Psicanálise, da Psiquiatria e da Psicologia.
Há também estudos sobre o brincar na área da Educação, mas poucos sobre o brin-
car dos bebês. Vou deter minhas discussões no grupo de zero a três anos
9
por ser o
período fundamental na formação e constituição da condição humana como sujeitos
potentes de emoções, de movimentos, de interações; condições muitas vezes es-
quecidas nos diferentes campos de saber.
Durante muitos anos, na educação brasileira, tratamos os conceitos de infân-
cia e crianças como semelhantes. Os estudos, no campo da história da infância, fo-
ram os primeiros a apontar a diferença entre esses dois conceitos mostrando como
eles foram formulados em momentos distintos. Sabemos que as crianças sempre
existiram como seres humanos de pouca idade, mas que as sociedades, em mo-
9
Referências no texto a bebês e crianças pequenas
23
mentos diferentes da história, criaram formas de pensar sobre o que é ou como deve
ser a vida nesta faixa de idade.
Nos últimos anos, temos concebido as crianças como seres humanos con-
cretos, um corpo presente no aqui e agora em interação com outros, portan-
to, com direitos civis. As infâncias, temos pensado como a forma específica
de conceber, produzir e legitimar as experiências das crianças. Assim, fala-
mos em infâncias no plural, pois elas são vividas de modo muito diverso.
Ser criança não implica em ter que vivenciar um único tipo de infância. As
crianças, por serem crianças, não estão condicionadas as mesmas expe-
riências (BRASIL, 2009, p.22-23).
Os estabelecimentos de educação infantil ocupam atualmente, na sociedade,
importante lugar como produtores e divulgadores de uma cultura de defesa da infân-
cia, ou seja, possuem o compromisso político social de garantir as especificidades
das infâncias na sociedade contemporânea. Para Kohan (2004, p.52) “infância é en-
tendida em primeira instância como potencialidade”.
Em Pediatria, Murahovschi (2006) classifica como primeira infância o período
compreendido do nascimento aos 2 anos de idade e segunda infância dos 2 aos 10
anos de idade. Conforme o período de crescimento, o mesmo autor divide em perío-
do neonatal: do nascimento aos 28 dias e período da infância: dos 29 dias aos 10
anos de idade, sendo que este último é subdividido em lactente: 29 dias aos 2 anos
de idade; pré escolar: 2 a 7 anos e escolar: 7 a 10 anos.
Conforme documento do Ministério da Educação, práticas cotidianas para
educação infantil (2009), bebês englobaria o grupo de crianças entre zero e 18 me-
ses; crianças bem pequenas entre 19 meses e 3 anos e 11 meses; crianças peque-
nas como crianças entre 4 anos e 6 anos e 11 meses. A denominação de crianças
maiores seria reservada para as crianças entre 7 e 12 anos incompletos.
É preciso mais do que uma abordagem multidisciplinar para entender os
bebês e suas relações, suas interações. Cunha (2001), diz que é preciso entrar num
novo paradigma. Wilson (1998) estabeleceu a teoria chamada “consiliência” como
sendo o primeiro pilar do novo paradigma. A abordagem consiliente propõe um
encontro modificador, que funcione como um teste de percepção de realidade entre
as partes, enquanto na abordagem multidisciplinar pode haver um trabalho conjunto
e até próximo, mas pouca permeabilidade das teorias como consequência dessa
aproximação.
24
Não proponho uma nova teoria, nem afirmar o que é certo ou errado, muito
menos transformar educadores em psicanalistas. Tenho como objetivo principal a
abordagem consiliente, isto é, compartilhar alguns conhecimentos da psicanálise,
principalmente em relação aos estudos de Winnicott sobre o brincar e suas
implicações na autonomia, na criatividade e no conviver com educadores,
profissionais fundamentais em sua responsabilidade em proporcionar este espaço
aos bebês e crianças pequenas. Espero provocar reflexões, questionamentos,
perturbações.
Predispor-se a escrever algo sobre bebês e crianças na área da educação é
um desafio, especialmente para quem está distante do âmbito das Escolas de
Educação Infantil. Porém, é essa distância que permite lançar interrogações. Decidi
então, como parte da metodologia, realizar observação participante em uma Escola
Municipal de Educação Infantil da Rede Pública. A observação foi realizada em uma
sala do Maternal, composta por 12 a 15 crianças entre seis meses e 1ano e oito
meses de idade. As observações foram realizadas no período da manhã e eu
mantinha um registro dos comportamentos e das interações, daquilo que “prendia”
minha atenção, estando meu olhar voltado às crianças. Como eu estava mais livre
para interagir do que quando fiz a observação de bebês, conforme relatado, foi
relevante esta interação, as trocas, o espaço criado entre eu e as crianças no qual
podemos brincar: simplesmente pelo prazer de brincar. Para Minayo (2007 p.70), “o
observador faz parte do contexto sob sua observação e, sem dúvida, modifica esse
contexto, pois interfere nele, assim como é modificado pessoalmente.”.
Falk (2004) cita que, em 1946, Emmi Pikler, ao ser encarregada de organizar
e dirigir o orfanato da Rua czy, ensinava as jovens funcionárias contratadas sem
formação profissional a observar as crianças, a tentar compreender tudo o que
expressa a posição de seu corpo, seus gestos e sua voz, a dedicar sempre bastante
tempo a entendê-las sem ter pressa e a satisfazer suas necessidades segundo as
exigências individuais. Também orientava que mantivessem um registro individual
de cada criança, tomando nota não apenas do peso de cada criança, de suas
refeições, mas de tudo que lhe tivesse acontecido e de tudo que pode observar nela.
Não faço uma análise das interações das crianças na creche, recorro a alguns
momentos registrados no diário de campo como “provocação”: interlocuções e
reflexões. Como diz Faria (2002, p. 13), “tudo na pesquisa faz parte da pesquisa e
deve ser considerado na análise, especialmente quando se trata de crianças”. Para
25
Ludke (1986), o que cada pessoa seleciona para “ver” depende muito mais de sua
história pessoal e principalmente de sua bagagem cultural.
A escolha do tema se justifica pela constatação da desconsideração do
brincar pelos profissionais que convivem com crianças pequenas, tanto na área da
saúde como da educação, principalmente em relação à interação com bebês. Desta
maneira, desconsideram também o potencial dos bebês e crianças pequenas em
seu poder de ação autônoma.
A relevância social deste trabalho está em contribuir com argumentos aos
profissionais da saúde, educadores e pais sobre o lugar que pode ocupar o brincar,
para que respeitem a criança e compreendam o significado e a importância da ação
de brincar sem intencionalidade, da dimensão lúdica do viver, do aprendizado, da
criação e da constituição do sujeito nesta sociedade técnico-racional na qual o
consumo é prioridade.
Aceitei o desafio, como pesquisadora, de escrever na pessoa, assumindo
integralmente o que digito e escrevo, colocando-me entre as palavras. Fui
explorando os autores, o meu ambiente escolar, profissional, familiar e as
orientações acadêmicas. Na observação fui aumentando os questionamentos,
enriquecendo as leituras, complementando, divertindo-me. Tive que relatar um
pouco de mim, da minha trajetória para explicitar os caminhos que tomei, que sou
parte da pesquisa. Agrupei tudo e estas folhas são parte de todo este processo de
minha transformação. Assim como meu trabalho não é mais o mesmo do início,
também não sou mais a mesma pessoa. Aprendo muito a cada dia também com as
crianças, que não são frágeis, podem suportar suas interrogações e suas
expectativas diante do desconhecido ainda, desde que o adulto tenha coragem e
confiança para acompanhá-los nesta aventura do humano. A criança nos desafia em
nossa humana fragilidade diante do imprevisível que é viver. Elas estão comigo todo
o tempo. Assim, desafio-o a iniciar esta leitura e espero que não ao término, mas
no percurso, eu provoque alguma perturbação e que o mobilize a comigo pensar a
educação de bebês, a interação com bebês, o encontro entre adultos e bebês.
Para tanto, considero importante a aproximação entre a psicanálise e a
educação de bebês e crianças pequenas. A intenção é destacar a responsabilidade
das instituições voltadas para o atendimento da primeira infância, assim como o
investimento na formação de profissionais sensíveis para compreenderem e
acolherem seu papel na formação de um ambiente de fidedignidade onde possa
26
emergir o potencial criativo de cada criança no coletivo. que entender a
dimensão lúdica e cultural do brincar: pouca consciência do que tem realmente
valor lúdico (HORTÉLIO, 2003).
Aprendo e muito com os bebês e crianças, com meus pacientes, mas a
maternidade está sendo para mim o melhor aprendizado. Em primeiro lugar estou
confirmando a importância e o prazer do brincar desde os primeiros dias de vida, de
como temos que nos “entregar” ao faz de conta, de como é importante observar,
mostrar-se interessado sem interferir no roteiro. É preciso parceria,
comprometimento, há que saber compartilhar. Agora com três anos, minha filha está
no auge do faz de conta, mas ela não faz de conta que é determinado personagem,
ela é o personagem. Ler sobre isto é excelente, mas fazer parte do roteiro e da
teoria é fantástico. Outro dia eu havia voltado ao mundo das preocupações e na
janta, perguntei se ela queria cenoura. Ela olhou-me séria e disse: - O Bolt come
osso. (esqueci que estávamos brincando que ela era o Bolt, ela ainda era o super-
cão). Isto que é encantador e difícil, muitas vezes, o adulto entender, respeitar e
participar.
A menina avoada, personagem de Manoel de Barros em seus Exercícios de
ser criança (1999), ao relatar as aventuras vespertinas nas quais se envolvia,
mencionava um rio inventado que tinha de ser atravessado. Na travessia, o carro
afundou e os bois morreram afogados. “Eu não morri”, afirma a menina porque o rio
era inventado. Assim como a menina, fui inventando o modo de chegar ao meu
intento: o curso foi móvel e mutante. Alterações foram necessárias e novas maneiras
de continuá-lo foram criadas. Não me submeti a uma forma, afinal sou inventora do
percurso. Se ler, bem como escrever, caracteriza-se pela construção de sentidos,
então, poderemos elaborar um modo diferente de pensar a pesquisa e descrevê-la a
nós mesmos como modo rigoroso de compartilhar aprendizagens e experiências de
pensamento
1.1 Dimensionando o lúdico
A origem latina da palavra brincar é vinculum que quer dizer laço algema,
união e é derivada do verbo vincire que significa prender, seduzir, encantar.
Vinculum virou brinco e originou o verbo brincar, sinônimo de divertir-se (CUNHA,
1982). Nas principais línguas européias não possui um termo equivalente: os verbos
27
spielen (alemão), to play (inglês), jouer (francês) e jugar (espanhol) significam tanto
brincar quanto jogar e são utilizados também para definir outras atividades como a
interpretação teatral e musical. O termo brincar do português oriundo do latim
vinculum, possui uma especificidade que as palavras de outras línguas que o
recobrem não apresentam.
Segundo o dicionário de Aurélio Buarque de Holanda (1975), o termo brincar
é definido em primeiro lugar como divertir-se infantilmente, entreter-se com jogos de
crianças. O nosso termo jogar é extensivo tanto às definições de brincar quanto a
outras atividades, de modo semelhante ao das línguas mencionadas, sendo,
contudo, mais frequentemente empregado para definir os passatempos e
divertimentos sujeitos a regras.
O termo que possui maior abrangência é sem dúvida o ludus, do latim. Ele
remete às brincadeiras, aos jogos de regras, às competições, recreação e deriva do
termo lúdico, significando aquilo que se refere tanto ao brincar quanto ao jogar.
Considerando a aproximação entre brincar e vínculo, pensa-se logo no outro, na
dupla, no contexto, na relação, na interação. Brincando eu prendo o outro, eu
seduzo e encanto. Seduzindo eu brinco e o outro fica preso ao encantamento.
Encantando eu algemo-o na brincadeira. Tudo é diversão. Não pretendo aqui
abraçar toda esta significação, mas chamar atenção para o fato de que, da maneira
como muitas vezes é usado, o termo brincar, pode não estar no seu devido lugar.
Winnicott insiste na importância de a análise do brincar não ser restringida ao
conteúdo do jogo como é feito por muitos autores, e ressalta a necessidade de se
falar dele no infinitivo. Brincar é antes de tudo um movimento, a ação de uma
engrenagem que vai girar infinitamente no sentido de originar interpretações. Ao
contrário de ser constituído pela realidade psíquica ele é o seu constituinte. O
enunciado winnicottiano de espaço potencial área onde o fenômeno lúdico se
opera diz respeito justamente à existência de uma região de potencialidades
universo simbólico capaz de promover o estabelecimento das relações do sujeito
com a realidade. Segundo Winnicott é no espaço potencial que se estabelece um
“casamento” entre a realidade psíquica e a realidade externa, funcionando como um
playground entre o subjetivo e o objetivo. O brincar, ao se processar nesse espaço,
não é realidade psíquica nem realidade externa. É o encontro destas duas formas de
realidade (ROZA, 1999, p.92).
28
O brincar é uma necessidade vital para o desenvolvimento assim como o
sono e a alimentação. Brincar é atentar para o presente. Brinca-se, quando se está
atento ao que se faz no momento em que se faz. O brincar nada tem a ver com o
futuro. Brincar não é uma preparação para nada, é fazer o que se faz em total
aceitação, sem considerações que neguem sua legitimidade. Nós, adultos, em geral
não brincamos e, frequentemente não o fazemos quando afirmamos que brincamos
com nossos filhos.
Verden-Zöller (1982), após uma longa pesquisa com bebês, conclui que as
consciências, individual e social da criança, surgem mediante suas interações
corporais com as mães, numa dinâmica de total aceitação mútua na intimidade do
brincar. Revelou o papel fundamental que o brincar (em especial os jogos materno-
infantis) tem na criança em crescimento também para o desenvolvimento de seu
auto-respeito e auto-aceitação.
Segundo Ceccim (1997), a mágica das crianças no brinquedo é que elas não
imitam, elas se tornam aquilo que jogam, entram em zonas de vizinhança entre o
que são e o que simulam nas brincadeiras. Para Roza (1999), as crianças
transformam-se diante de nós em personagens heroicos, possuidores de
superpoderes ou em monstros ou vampiros. Alternam-se em diferentes momentos,
convivendo nos roteiros do faz de conta e possibilitando o exercício de uma série de
existências.
Este estado lúdico é o mesmo que leva o artista à produção de arte, a entrar
em zonas de indiscernibilidade entre o racional e o sensível. O artista pode tornar
visíveis as sensações que ele mesmo experimentou. A simulação da criança é o
aprendizado que os artistas entendem e que os adultos deviam se permitir para
produzir a própria vida da mesma maneira que o artista produz suas obras de arte.
É da criança produzir a vida, seu desígnio é crescer, desenvolver-se, inventar
figuras para ser, abandonar estas figuras, inventar novas, experimentar personagens
de maneira que aprenda sobre si, seus afetos e seu poder de vida, experimentar
amigos imaginários para experimentar o desafio à lógica racional e aos valores
morais e explorar o mundo com expedições cartográficas.
No brinquedo a criança pode imaginar comportamentos, atuar experiências
vividas e investir em ações competências mais avançadas do que as que consegue
agir cotidianamente. Efeitos de subjetividade emergem destas experiências.
29
Conforme Verden-Zöller (1982), brincadeira é toda atitude vivida sem
propósitos ulteriores e sem outra intenção além de sua própria prática. Deixamos de
brincar quando perdemos a inocência e a perdemos quando deixamos de atentar
para o que fazemos e voltamos nossa atenção para as consequências de nossas
ações ou para algo além delas-, enquanto ainda estamos no processo de realizá-
las. Adquirimos consciência individual e social por meio da consciência corporal
operacional. Esta, por sua vez, é por nós, adquirida no livre brincar com nossas
mães e pais ao crescermos na intimidade de nossa convivência com eles. Perdemos
nossa consciência social individual à medida que deixamos de brincar. E assim
transformamos nossas vidas numa contínua justificação de nossas ações em função
de suas consequências, num processo que nos torna insensíveis em relação a nós
mesmos e aos demais.
Roza (1999), compara a capacidade surrealista de lidar com as coisas, tão
frequente na infância, à mudança do estado mental, que semelhante ao que
acontece na mente de um jogador, transforma-o magicamente. Somente num
segundo momento os objetos e o mundo são transformados funcionalmente, em
sequência à metamorfose do jogador: um pedaço de madeira é convertido em
uma espingarda porque a criança já se transformou num soldado. “Através do jogo o
homem pode viver a experiência de uma criação particular: ali todas as
possibilidades se lhe oferecem, ele pode ser tudo” (ROZA, 1999, p. 40).
1.2 O poder de interação dos bebês
Os bebês nos mostram o que de mais complexo no ser humano. Não
nascem como uma folha de papel em branco. Desde os primeiros minutos de vida,
podemos identificar movimentos, ações e reações que indicam sua autonomia, sua
adaptação, sua busca por um relacionamento. Não estando nosso olhar dirigido,
talvez o bebê o busque ou talvez percamos a oportunidade desta primeira interação.
Donald Winnicott dedicou grande parte de seus estudos às condições
necessárias e envolvidas na formação do psiquismo com ênfase ao período inicial
de vida. Valorizou a participação do bebê, dotado de atributos, o considerou capaz
de comandar a relação com sua mãe, assim como influenciar o seu meio.
Na década de 40, Bowlby escrevia sobre a relação entre separações
prolongadas da figura materna e o desenvolvimento de um caráter especial. Em
30
1969 desenvolveu a Teoria do Apego frisando a importância de uma base segura,
da experiência partilhada instigada pela ação espontânea da criança no meio
ambiente, mas estabelecida por uma mãe que permita ser conduzida pelo bebê
(BRAZELTON, 1988).
Um recém-nascido é capaz de encontrar o seio da mãe totalmente sem ajuda
e decidir por si mesmo quando quer começar a mamar. Nos primeiros momentos
após o nascimento, no estado alerta tranquilo
10
, ele consegue acompanhar com os
olhos uma bola vermelha, olhar para um rosto, virar a cabeça quando ouve uma voz
e pode, inclusive, imitar a expressão facial dos pais. no estado de alerta ativo ele
olha ao redor, emite sons e movimenta-se continuamente, mas em um ritmo
especial. Ritmo ao qual a mãe tem que se adaptar para proporcionar-lhe a
segurança necessária, a sua presença, para que sinta-se confiante para explorar e
descobrir-se. Este movimento tem um propósito adaptativo, é uma forma de
comunicação, assim como o choro. O bebê mostra interesse, tenta compreender o
seu mundo, é curioso. Usa a linguagem corporal e tem que ser entendido para que
possa entender-se, tem que ser protegido, contido, para que posso buscar, receber
o retorno, rèverie
i
e assim vai constituindo-se.
Winnicott postulava que a mãe tem função de espelho, quer dizer que o bebê
enxerga-se nela, vai conhecendo-se e identificando-se através do seu semblante,
vai entendendo-se pelas suas expressões. “O que o bebê quando olha para o
rosto da mãe? Sugiro que é muitas vezes a si mesmo que o bebê vê” (WINNICOTT,
1971, p.154).
Uma das mais importantes realizações do Dr. Brazelton (1995) é a Escala de
Avaliação Comportamental Neonatal Behavioral Assesment Scale- NBAS.
Conhecida como Escala Brazelton, ela é usada no mundo todo, clinicamente e em
pesquisas para avaliar não as respostas neurológicas e físicas de recém-
nascidos, mas também seu bem estar emocional e as diferenças individuais. Através
dela, comprova-se que o nenonato não é um receptor passivo dos estímulos do
ambiente, mas é competente, complexo, social, com capacidade inata para interagir
e, por isto, desperta e provoca reações no meio ambiente. Observou, dentre
10
Klaus (2001, p.32), descreve seis estados de consciência no bebê: sono tranquilo, sono ativo,
alerta tranqüilo, alerta ativo, choro e sonolência. No estado alerta tranquilo, os bebês raramente se
movem. Seus olhos estão abertos, atentos e brilhantes. “Neste estado, é especialmente divertido
brincar com um recém-nascido.”
31
inúmeros aspectos, que o bebê tem flexibilidade, uma habilidade de modular-se ao
estímulo. Por exemplo, ao incidirmos o foco de uma lanterna nos olhos de um bebê,
mesmo dormindo, repetidas vezes, ele vai diminuindo a reação gradativamente até
não responder mais. A esta competência, Brazelton denominou habituação (1995).
Procurava realizar o exame na presença dos pais para que visualizassem as
capacidades do seu filho, ao mesmo tempo em que interpretava o significado do
comportamento do bebê e suas implicações para o cuidado. Deixava espaço para os
pais esclarecerem suas dúvidas aliviando angústias e preocupações, deixando-os
mais fortalecidos e confiantes.
Klaus (2001) comenta estudos em bebês realizados em 1960 pelo Dr Robert
Frantz o qual observou, em relação à visão, que eles manifestam preferência,
mesmo entre padrões abstratos, sendo especialmente atraídos por contornos nítidos
e pelo contrate claro/escuro. Caso estejam tomando mamadeira enquanto olham
para o padrão, eles param de sugar. Observam por mais tempo círculos e listras do
que superfícies lisas. Além disso, preferem padrões complexos, com mais elementos
a padrões mais simples e com menos detalhes. Através de suas experiências
visuais, o bebê está sempre aprendendo novas imagens, memorizando e
familiarizando-se com elas.
O rosto humano chama atenção dos recém-nascidos. na primeira hora de
vida, conseguem imitar e responder a várias expressões faciais complexas e são
atraídos pelos detalhes do rosto dos pais. Desde muito cedo, são especialmente
responsivos a mudanças sutis no rosto da mãe. Até uma mudança como colocar
óculos de aro escuro pode deixar o bebê confuso. O encontro olho no olho é um
elemento vital na interação humana. Nesse olhar mútuo, tem início o primeiro
diálogo: a mãe e o bebê são magneticamente atraídos para a comunicação (KLAUS,
2001).
Essas façanhas da percepção visual e da memória indicam que o poder visual
do bebê não se baseia apenas no movimento reflexo do olho. O bebê está
aprendendo para onde olhar e o que esperar; está operando informações sobre a
sequência dos eventos e escolhendo para onde vai olhar. Para Charlot (2000, p. 59)
“nascer é estar submetido à obrigação de aprender.”.
Quanto à audição, por análise de exames de imagens como ecografias, sabe-
se que a partir da 25ª semana, os fetos reagem com sobressalto a sons altos. Os
recém-nascidos são capazes de identificar a voz da mãe, de distinguir tipos de sons,
32
assim como sicas ou estórias que eram ouvidas nas últimas semanas de
gestação. Klaus (2001) traz a experiência de Dr. De Casper que, trabalhando com
bebês de um e dois dias de vida no estado de alerta tranquilo, colocou uma chupeta
na boca de cada um e um par de fones de ouvidos. A chupeta estava conectada a
um aparelho que dava início a diferentes gravações. Aprenderam rapidamente que
sua maneira de sugar determinava o que eles ouviam, preferiam vozes femininas, e
dentre estas, a da mãe. Bebês com um e dois dias de vida, interagindo em seu
poder de opção, da mesma forma como os adultos ao escolher Mozart ao invés de
rock.
A mobilização do bebê para aprender e responder ao esforço natural dos pais
para ensinar une-se de maneira eficaz na interação e na compreensão do outro.
Esta compreensão/comunicação envolve o corpo, o movimento, o ritmo. Charlot traz
que o conceito de mobilização implica a ideia de movimento.
Mobilizar-se é por-se em movimento. (...) A mobilização implica mobilizar-se
(“de dentro”), enquanto que a motivação enfatiza o fato de que se é
motivado por alguém ou por algo (“de fora”). (...) A criança mobiliza-se, em
uma atividade, quando investe nela, quando faz uso de si mesma como de
um recurso (...) que remetem a um desejo, um sentido, um valor. A atividade
possui, então, uma dinâmica interna. Não se deve esquecer, entretanto, que
essa dinâmica supõe uma troca com o mundo (...) (CHARLOT, 2000, p. 55).
Desde o período intra-útero o movimento é essencial, para o crescimento e
desenvolvimento dos músculos, ossos e até das células nervosas. Antes que o bebê
possa falar alguma palavra, seu corpo está preparado para conversar. Ele é capaz
de rituais comunicativos, sequências ritmadas de interações, pausas, interações
cada vez mais intencionais chamadas pseudodiálogos, até a articulação diferenciada
de mecanismos comunicativos como o chorar e o sorrir. Quase que,
imperceptivelmente, o corpo do recém-nascido move-se no ritmo da voz da mãe,
fazendo uma espécie de dança enquanto a e fala. É importante que os dois
estejam em sintonia e que a mãe esteja sensibilizada com as necessidades e ritmos
do bebê para favorecer o ambiente ideal para a constituição da confiança,
fundamental para o bebê aprender sobre ele mesmo e sobre o mundo que o cerca.
A pesquisa na área sócio cognitiva coloca em evidência o modo pelo qual a
criança, desde os primeiros dias de vida, deva ser considerada um parceiro ativo e
competente no jogo interativo e relacional. Já, durante as primeiras refeições, a
sucção é organizada de acordo com o modelo de alternância de atividade e pausa: a
33
mãe estimula o recém-nascido induzida pelas pausas deste último e o recém-
nascido é estimulado a retomar a sucção pela interrupção das solicitações da mãe.
A capacidade de adaptação da criança é altíssima nas primeiras semanas de vida e
torna-se eficaz em função de um estilo comportamental coerente da mãe. O bebê
tem uma predisposição à interação com o parceiro humano adulto e logo apresenta
um padrão diferente de respostas conforme o parceiro seja o pai ou a mãe.
A perspectiva relacional, surgida nos anos 60, no âmbito da psicologia, não é
voltada às características individuais da criança, mas desloca-se para a relação,
para os jogos relacionais, para os relacionamentos intersubjetivos (BONDIOLI e
MANTOVANI, 1998).
Nessa ótica, a criança (e o recém-nascido em particular) não é mais
considerada como ser passivo em posição prevalentemente receptora, no
interior da relação adulto criança, mas é percebida como um sujeito ativo e
competente, dotado desde o momento do nascimento de complexas
habilidades funcionais e de esquemas interativos, em virtude dos quais
consegue inserir-se de maneira significativa na relação com o adulto.
(BONDIOLI e MANTOVANI, 1998, p.282).
Cunha (2001), em seu artigo sobre a Revolução dos bebês, coloca que a
segunda metade do século XX viu o estudo do bebê passar por grandes
modificações. Comenta que Freud, conferiu personalidade ao recém-nascido
quando afirmou ser ele um narcisista incapaz de se comunicar. Melanie Klein,
pouco depois, o descrevia como um ser que se comunica com o objeto (entendido
como o cuidador, mãe-objeto) desde o início, mas com extrema aflição e incapaz de
idealizar. Mas para os egressos da graduação, os futuros pediatras e
neonatologistas, permanecia o senso de que o psiquismo se iniciaria a partir dos
três meses, reforçando a ideia do bebê como tábula rasa.
Com a institucionalização do parto e do nascimento, o convívio mais íntimo
permitiu aos cuidadores primários perceber o bebê como indivíduo. Junto com os
trabalhos pioneiros de T. B. Brazelton (1995), conforme comentado acima,
aprendeu-se sobre suas habilidades e competências, seu ritmos comportamentais e
de como estes se referiam ao desenvolvimento. Recentemente a nova disciplina da
neurociência, ao se ocupar do estudo da natureza primordial das primeiras relações
pais-bebê, trouxe importantes contribuições ao entendimento de como o que ocorre
34
na estrutura diádica do vínculo atua sobre o crescimento cerebral e o
comportamento futuro do indivíduo.
Cunha (2001) cita vários autores que, neste contexto, abriram novas
perspectivas para entender quem realmente é o bebê, como através do estudo das
emoções no desenvolvimento das redes neurais que constituirão a base
biomolecular dos comportamentos. “De tábula rasa o bebê passa a ter status de
indivíduo, emergente é verdade, mas com competências e características próprias;
incapaz de articular a palavra, mas hábil em se expressar por uma sutil
somatossensorialidade” (CUNHA, 2001, p.103). Esta somatossensorialidade permite
ao bebê expressar-se e comunicar-se pelas mais sutis manifestações corporais, com
o olhar, o tônus muscular, os odores, a postura corporal e as expressões do sistema
nervoso autônomo.
Isto pressupõe um subsistema somatossensorial maduro, permitindo uma
bem desenvolvida categorização perceptual, entendida como a capacidade
de percepção pela emoção, capaz de usar a linguagem corporal para se
comunicar e sobreviver. (...) O bebê está inatamente habilitado desde o
nascimento a trocar emoções empáticas e intersubjetivas com o cuidador
(CUNHA, 2001, p.104 e 1118).
Talvez o bebê fosse considerado uma tábula rasa por não verbalizar, que
no paradigma cartesiano o surgimento da linguagem está ligado à própria origem da
mente. Também era considerado sem psiquismo e sem dor. Lembro que há 20 anos
os cursos de Terapia Intensiva davam ênfase à valorização da dor e a necessidade
do uso de analgésicos pré-procedimentos, já que não era prescrição de rotina.
O recém-nascido é um indivíduo com todos os sentidos prontos para perceber
o mundo desde a vida pré-natal, com poder inato para a comunicação, mas foi
percebido como tal a partir dos distúrbios de desenvolvimento observados nos
bebês que ficavam tempo prolongado em unidades de terapia intensiva. A
humanização do atendimento tenta minimizar estes danos. Foi necessário admitir
que o sentimento de segurança constituído pelo bebê em interação com o cuidador,
é fator intrínseco e imprescindível para a saúde conquanto determinante dos
caminhos neurais adequados.
Cunha (2001) traz o filósofo italiano Giovanni Baptista Vico (1668-1744) para
afirmar que “no coração da razão está a emoção” contrariando, assim, a visão de
seu famoso contemporâneo Descartes que considerava as emoções como
35
perturbações prejudiciais da razão. Foi a ideologia cartesiana que plasmou o
coração e a mente de parcela considerável de médicos. Mas, no atual enfoque do
conhecimento, as emoções readquirem seu importante papel como promotores do
crescimento do cérebro e na organização das sinapses, pelo menos até os três anos
de idade. As emoções agem como estabilizadores do equilíbrio orgânico, permitindo
a fixação das estruturas neuroquímicas que formarão as memórias.
Não é objetivo deste trabalho transcorrer pela neurofisiologia, porém
considero importante também destacar, além do potencial dos bebês, a importância
do adulto nos três primeiros anos, quando a criança está no auge do
desenvolvimento cerebral.
Há um consenso hoje de que a dinâmica relação entre a previsão genética e
os primeiros cuidados, tem um impacto decisivo e duradouro sobre o modo
como os bebês se desenvolvem, sua capacidade de aprender e regular as
próprias emoções (...). Uma experiência interativa segura, empática e de
afetos positivos, pode fazer grande diferença no desenvolvimento futuro
(CUNHA, 2001, p.113).
A intenção é afirmar o poder dos bebês, sua capacidade de interação com o
outro, de interpretação e comunicação, sua autonomia na tomada de decisões como
para onde olhar ou qual som selecionar; suas preferências, sua operatividade. O
desenvolvimento deste potencial inato e particular não se dá sozinho, depende das
respostas que o bebê vai obter, do olhar de aprovação, da confiabilidade no
ambiente e nos adultos. É importante que os pais saibam disto, também os
educadores, pois décadas após estes estudos ainda um considerável
desconhecimento e, consequentemente, um descaso destes aspectos. Assim como
os pais ficam encantados ao constatar que nos primeiros minutos de vida seu filho
enxerga, escuta e pode imitar suas expressões faciais, também gostaria que este
encantamento pudesse ser estendido a todos os profissionais que têm sob sua
responsabilidade crianças pequenas. Isto não é em relação às potencialidades
dos bebês, mas também em relação à importância do ambiente de confiança, do
espaço potencial, para seu crescimento. A criança precisa sentir-se segura e
amparada para que possa acreditar que consegue fazer sozinha, andar sozinha,
criar, interpretar e significar suas experiências no coletivo.
As possibilidades interativas do bebê, como mencionado, a comunicação
sem palavras, a linguagem corporal, as expressões, as respostas ao investimento do
36
adulto, nos fazem pensar sobre o caráter da mediação do adulto na relação entre a
criança e o mundo. Nessa perspectiva, há tudo por fazer na educação com bebês.
2 O BRINCAR DOS BEBÊS NA PSICANÁLISE
2.1 Teorias de Winnicott
Donald W. Winnicott é um autor complexo sob sua aparente simplicidade. Sua
obra transcende a Psicanálise e insere-se nos campos da educação, assistência
social, pediatria e saúde mental. Na busca de uma técnica que lhe permitisse ajudar
pacientes “borderline”, esquizóides e de outras categorias que tinham sido
analisados em uma ou mais oportunidades com as práticas analíticas habituais, ele
37
observou a necessidade de acompanhá-los em uma regressão até etapas muito
prematuras do desenvolvimento. Esta tarefa analítica, unida a sua ampla experiência
como pediatra, permitiu-lhe estabelecer uma teoria inovadora a respeito do
desenvolvimento emocional primitivo do ser humano.
Winnicott utilizou sua experiência de vida de modo fecundo nos seus escritos
e no seu modo de trabalhar, enquanto pesquisador implicado na sua pesquisa. Deu
relevância à família na estruturação de um indivíduo e considerou o brincar, como
forma de chegar ao apogeu de uma vida cultural, aspecto que considerou como
fundamental na plena posse de nossa saúde mental.
2.1.1 Espaço potencial
A fim de destacar o lugar do brincar, Winnicott (1971) postulou a existência de
um espaço potencial. Desenvolveu então a teoria do brincar, partindo dos estudos
sobre a relação das mães e seus bebês. Deu ênfase à indissociabilidade durante a
fase inicial de vida, período que chamou de dependência absoluta e que é
necessária para que possa ocorrer posteriormente a independência. A mãe é muito
importante no começo da vida do bebê, momento em que ela não é percebida pelo
bebê como um outro, como uma exterioridade. A mãe que é, que está presente, é
concebida onipotentemente; mas para isto, é preciso que esteja lá, que exista. Ela é
um objeto subjetivo, afirma Winnicott (1971), exprimindo assim o primeiro paradoxo:
o paradoxo de um objeto que habita, ao mesmo tempo, o mesmo espaço que o
sujeito. O bebê é o objeto que está presente na área de indiferenciação.
Podemos, portanto, na concepção winnicottiana, falar de três espaços ou
mundos onde habitam os objetos. O primeiro, o mundo da indiferenciação entre o Eu
e o não Eu, lugar onde reina o princípio do prazer, a onipotência. Nele os objetos
são subjetivos, pois são o próprio sujeito. Criados pelo bebê, dele não se
distinguem. Inventados a partir do que estava lá, são com isto, originalmente
confundidos.
Estes objetos não são a mãe total nem parcial, nem o bom nem o mau objeto,
são a mãe ambiente. À sua constância, o bebê reage simplesmente existindo. Lins
(1998), não fala em mãe perfeita, mas adequada, no limite de sua contingência.
Citando Winnicott, diz que o atendimento às necessidades do bebê leva à criação
onipotente do primeiro objeto, um objeto que é inteiramente subjetivo.
38
No mundo da indiferenciação, a partir de um elemento somatopsíquico, corpo
e força vital, tem início o processo de constituição do Eu (self)
11
. Um Eu que se
constitui como entidade autônoma, a partir e através dos processos de identificação
com os objetos subjetivos. Com esses objetos ele se comunica de maneira direta e
implícita numa relação de ser. Dessa relação nasce o sentimento de existir. First,
being”, nos termos de Winnicott (LINS, 1998, p.4).
No segundo espaço, “área de ilusão”, essa mãe objeto subjetivo- será, em
seguida, utilizada como um objeto transicional; um objeto não Eu, mas que ainda
não é um outro; criado desde que exista, igualmente está lá, disponível para ser
criado. Segundo paradoxo: o bebê faz ou cria o objeto que está presente nesta área
intermediária. O bebê evoluiu de um estado de indiferenciação ou dependência
absoluta a um estado de dependência relativa. A área intermediária é um lugar de
repouso, onde o indivíduo busca manter ligadas e separadas as realidades
denominadas em psicanálise de interna e externa. começa o jogo. Denominada
“espaço potencial”, seu fundamento está na confiança que a mãe inspira ao bebê.
Neste lugar, a mãe é percebida criativamente pelo bebê.
Se a mãe, em tempo razoável, satisfizer o impulso da criança, ela contribuirá
para que se crie na criança a ilusão de ter ela mesma criado o objeto. Quando a
adaptação da mãe às necessidades da criança é suficientemente boa
12
, ela fornece
à criança a ilusão de que existe uma realidade externa que corresponde à
capacidade da criança de criar. Em outras palavras, a mãe propicia ao bebê a
oportunidade de que o seio dela faça parte do bebê, e esteja sob seu controle
mágico. O bebê cria o seio que está ali pronto para ser encontrado, seria o objeto
subjetivo e o paradoxo que não tem que ser resolvido. O bebê pode dedicar-se ao
jogo criativo desde que não seja obrigado a decidir se o objeto pertence ao mundo
de suas fantasias ou ao mundo das coisas objetivamente existentes. A repetição
11
Para Zimmermann (2001, p. 376), conforme a Escola de Psicologia do Ego (Hartmann), o termo
self é conceituado como “a imagem de si mesmo”, sendo composto de estruturas entre as quais
consta não somente o ego, mas também o superego, o id e, inclusive, a imagem do corpo, ou seja, a
personalidade total. Winnicott sempre valorizou a formação de um self total o qual implica uma
diferenciação entre eu e não-eu numa crescente integração, até permitir uma imagem unificada de si
mesmo e do mundo exterior. Isso acontece a partir de um “ambiente suficientemente bom” que
possibilite as potencialidades de um self rudimentar que existe desde o nascimento
12
Zimmermann (2001, p. 255): Suficiente boa sendo definido para Winnicott como a mãe adaptada a
seu filho, que satisfaça suas necessidades físicas e psíquicas, mas que também o frustre
adequadamente, de sorte a permitir a desilusão das ilusões.
39
desta experiência edifica no bebê o sentimento de ser capaz de fazer aparecer o
que está disponível. Assim, é a mãe quem possibilita esta experiência de ilusão
(LINS, 1998, p. 47).
Este espaço de ilusão e o sentimento de onipotência que provoca na
criança constitui a base da experiência lúdica. Paradoxalmente, é justamente essa
ilusão inicial, que fornecendo um grande reforço do Eu embrionário infantil, permite
suportar mais tarde a desilusão, isto é, a descoberta da e como um ser fora da
criança, como não Eu, como objeto separado. Para que esta ilusão se na mente
do bebê, um ser humano precisa dar-se ao trabalho permanente de trazer o mundo
para ele num formato compreensível e de modo limitado, adequado às suas
necessidades. Por esta razão, não é possível um bebê existir sozinho, física ou
psicologicamente.
A expressão “mãe suficientemente boa” surgiu dos escritos da tese de
Winnicott sobre Preocupação Materna Primária, no ano de 1956. O ambiente
facilitador ou suficientemente bom nos primeiros momentos de vida da criança está
representado por uma mãe adaptada às necessidades do bebê. Implica uma
condição psiquiátrica muito especial, na qual existe uma sensibilidade exacerbada
durante e principalmente o final da gravidez e que dura algumas semanas após o
nascimento do bebê. Poderia ser comparado a um estado de retraimento, em estado
que lhe possibilita a adaptação sensível e delicada às necessidades do bebê já nos
primeiros momentos, permitindo a ela sentir-se no lugar do bebê, e assim
corresponder às suas solicitações. A e consegue preocupar-se com seu bebê a
ponto de excluir quaisquer outros interesses, de maneira normal e temporária. À
medida que o bebê a libera, pode recuperar-se deste estado (WINNICOTT, 2000).
Nas notas clínicas sobre o desenvolvimento infantil no tópico Integração do
Ego, datada de 1962, Winnicott destaca que se a mãe pode desempenhar bem este
papel por certo tempo, o bebê tem certa experiência de controle mágico, isto é,
experiência daquilo que é chamado ‘onipotência’ na descrição de processos
intrapsíquicos (WINNICOTT, 1971).
No estado de confiança que se desenvolve quando a mãe pode
desempenhar-se bem dessa difícil tarefa( não se for incapaz de fazê-la), o
bebê começa a fruir de experiências baseadas num ‘casamento’ da
onipotência dos processos intrapsíquicos com o controle que tem do real. A
confiança na mãe cria um playground intermediário, onde a idéia da magia
se origina, visto que o bebê, até certo ponto, experimenta onipotência.
Chamo isto de playground porque a brincadeira começa aqui. O playground
40
é um espaço potencial entre a mãe e o bebê ou que une mãe e bebê
(WINNICOTT, 1971 p.71).
Essa área intermediária não é questionada quanto a pertencer à realidade
interna ou externa (compartilhada) e constitui a parte maior da experiência do bebê,
mantendo-se como o lugar das experiências intensas no campo da arte, da religião,
da imaginação e também do trabalho científico criador( WINNICOTT, 1971). Essa
área intermediária é necessária para o início de um relacionamento da criança com
o mundo. Persistindo ao longo da vida como espaço potencial, o espaço
intermediário é o lugar do jogo da criança e de toda experiência cultural, lugar onde,
segundo Winnicott, passamos a maior parte de nosso tempo (LINS, 1998).
O psicanalista emprega o termo ‘experiência cultural’ como uma ampliação da
ideia dos fenômenos transicionais e da brincadeira: “Parto da hipótese de que as
experiências culturais estão em continuidade direta com a brincadeira”
(WINNICOTT, 1971, p.147).
Porém, essencial a esse processo de começar-se do bebê, é a continuidade
do ambiente emocional externo e de elementos específicos no ambiente físico, tais
como o objeto ou os fenômenos transicionais. Estes pertencem, para Winnicott
(2000), ao domínio da ilusão que está na base do início da experiência. Não é o
objeto naturalmente que é transicional, ele representa a transição do bebê de um
estado em que este está fundido com sua mãe para um estado em que está em
relação com ela como algo externo e separado.
Portanto, o lugar em que a experiência cultural se localiza está no espaço
potencial existente entre o indivíduo e o meio ambiente. O mesmo se pode dizer do
brincar. A experiência criativa começa com o viver criativo, manifestado
primeiramente na brincadeira. Para todo o indivíduo, o uso deste espaço é
determinado pelas experiências de vida que se efetuam nos estádios primais de sua
existência.
O espaço potencial acontece apenas em relação a um sentimento de
confiança por parte do bebê em relação à figura materna ou a elementos do
ambiente. Em circunstâncias favoráveis, o espaço potencial se preenche com os
produtos da própria imaginação criativa do bebê.
Após a concepção mais ou menos onipotente, enquanto objeto subjetivo e
objeto transicional, a mãe real é, em um terceiro momento, “percebida” como outro,
mas não como um objeto do mundo externo. Enquanto objeto de cultura que ela é,
41
sua natureza é definida pelo espaço que habita: o mundo compartilhado, este seria o
terceiro espaço. A “percepção” dos objetos do mundo compartilhado é sempre
criativa, pois ocorre no encontro do mundo interno pessoal do indivíduo com a
realidade entendida como exterioridade. A criança usa criativamente o objeto que
está presente no mundo compartilhado. É preciso entender que a utilização da
expressão objeto do mundo compartilhado significa que, para Winnicott, a
objetividade é um termo relativo, o que se percebe objetivamente é até certo ponto
concebido subjetivamente. Winnicott (1971) chama a atenção para o fato de que o
mais subjetivo dos objetos depende, quanto a sua gênese, do que está fora, mesmo
se o exterior não é percebido como tal, enquanto o mais objetivo dos objetos traz a
marca da subjetividade.
2.1.2 Objeto transicional
O objeto transicional (um pedaço de lençol, a franja de um cobertor e, mais
adiante, um bicho de pelúcia, um brinquedo)- e o seu uso por parte da criança-
assinala a passagem de um estado de fusão com a mãe a um estado no qual,
vendo-a como algo separado, pode entrar em relação com ela. Este objeto é para a
criança, ao mesmo tempo Eu e não Eu; é um objeto possuído, mas que parece
gozar de vida própria. O seu valor lúdico é simbólico, substitui a mãe na sua
ausência, está no lugar da mãe ao mesmo tempo em que não é a mãe, é um objeto
independente dela. Se os cuidados maternos são suficientemente favoráveis e dão
segurança à criança, o objeto vai tornando-se mais importante que a própria mãe e
contribui para o nascimento de uma independência afetiva e para o interesse em
relação ao mundo externo (BONDIOLI e MANTOVANI, 1998).
Os fenômenos transicionais são permissíveis ao bebê por causa do
reconhecimento intuitivo que os pais têm da tensão inerente à percepção objetiva, e
não contestamos o bebê a respeito da subjetividade ou objetividade exatamente
neste ponto em que está o objeto transicional. Para Winnicott (2000, p.321):
È verdade que a ponta do cobertor (ou o que quer que seja) é simbólica de
algum objeto parcial como o seio. No entanto, o importante não é tanto o
seu valor simbólico, mas sua realidade. O fato de ele não ser o seio (ou a
mãe), embora real, é tão importante quanto o fato de representar o seio (ou
a mãe).
42
Continuando com o pensamento de Winnicott, o objeto é repudiado, aceito de
novo e objetivamente percebido. Esse processo complexo é altamente dependente
da mãe ou figura materna preparada para participar e devolver o que é abandonado.
Isso significa que a mãe se acha em um permanente oscilar entre ser o que o bebê
tem capacidade de encontrar e ser ela própria, aguardando ser encontrada.
Este percurso, se bem realizado, leva à construção do Eu que confere ao
indivíduo o sentido de ser real. Bondioli e Mantovani (1998), citando Winnicot, dizem
que é no jogo recíproco entre mãe e criança que, de forma totalmente paradoxal, a
criança encontra o Eu através da descoberta do outro (a mãe), experimentando a
frustração consequente à perda da sensação inicial de fusão. Tal frustração é
compensada por um sentimento de onipotência que dá à criança a impressão de ela
mesma ter criado o objeto de que tinha necessidade.
A brincadeira é extremamente excitante. A importância do brincar é sempre a
precariedade do inter jogo entre a realidade psíquica pessoal e a experiência de
controle de objetos reais. É a precariedade da própria magia, magia que se origina
na intimidade, num relacionamento que está sendo descoberto como digno de
confiança. A precariedade da brincadeira está no fato de que ela se acha na linha
teórica existente entre o subjetivo e o que é objetivamente percebido. Winnicott
concretiza sua ideia sobre a brincadeira, reivindicando que:
...o brincar tem um lugar e um tempo. Não é dentro, em nenhum emprego
da palavra (e infelizmente é verdade que a palavra “dentro” possui muitos e
variados usos no estudo psicanalítico). Tampouco é fora, o que equivale a
dizer que não constitui parte do mundo repudiado, do não eu, aquilo que o
indivíduo decidiu identificar (com dificuldade e até mesmo sofrimento) como
verdadeiramente externo, fora do controle mágico. Para controlar o que está
fora há de fazer coisas, não simplesmente pensar ou desejar, e fazer coisas
toma tempo. Brincar é fazer (WINNICOTT, 1971, p.62).
No início, a mãe vai satisfazendo as necessidades do bebê de forma quase
perfeita, para posteriormente ir frustrando-o de maneira gradativa e de acordo com a
tolerância do bebê. O importante é que a mãe siga o ritmo do bebê, permitindo que
ele dirija este processo. Winnicott (1971) e Brazelton (1988) destacam
insistentemente a necessidade que o bebê tem de estabelecer seu direito a uma
ação autônoma desde o começo.
As pequenas frustrações são sentidas como ameaças de aniquilamento que
não chegam a se cumprir, e das quais, repetidamente, o bebê se recupera. A partir
43
dessas experiências, a confiança na recuperação começa a transformar-se em algo
que leva ao ego e à capacidade do ego de suportar frustrações.
Aos poucos o bebê começa a tomar contato com a realidade externa, a fazer
a diferenciação Eu, não Eu. Desde o nascimento, o ser humano está envolvido com
o problema da relação entre o que é subjetivamente concebido e o que é
objetivamente percebido. A experiência a respeito do objeto subjetivo abre caminho
para o sujeito objetivo, isto é, a ideia de um Eu (self) e a sensação de real que se
origina de um sentimento de possuir identidade Winnicott (1971, p. 28-29):
A tarefa de aceitação da realidade nunca é completada e nenhum ser
humano está livre da tensão de relacionar a realidade interna e externa,
sendo o alívio desta tensão proporcionado por uma área intermediária de
experiência. Esta área intermediária está em continuidade direta com a área
do brincar da criança pequena que se “perde” no brincar.
A área intermediária é necessária para o início de um relacionamento da
criança com o mundo. Essencial a tudo isto é a continuidade do ambiente emocional
externo e de elementos específicos no ambiente físico, tais como o objeto ou os
fenômenos transicionais. Estes pertenceriam ao domínio da ilusão que está na base
do início da experiência. Não é o objeto naturalmente que é transicional, ele
representa a transição do bebê de um estado em que este está fundido com sua
mãe para um estado em que está em relação com ela como algo externo e
separado.
O fornecimento de um ambiente suficientemente bom na fase mais primal
autoriza o bebê a começar a existir, a ter experiências, a constituir um ego pessoal,
a dominar os instintos e a defrontar-se com todas as dificuldades inerentes à vida. O
intercâmbio entre este meio ambiente favorável e o que o sujeito traz como herança,
permite que se vá construindo um indivíduo.
De um estado de dependência absoluta o bebê passa à dependência relativa
até chegar à independência. A atenção da mãe não significaria apenas um
atendimento às necessidades de dependência, mas vem a significar a concessão de
oportunidade que permite ao bebê, passar da dependência para a autonomia. O
domínio que se tem sobre estes espaços de ilusão e de realidade, a capacidade de
entrar e sair deles, é índice de saúde.
Para o psicanalista, os objetos ou fenômenos transicionais pertencem ao
domínio da ilusão que constitui a sustentação para o início da experiência de ser no
44
mundo. Esse momento inaugural de sentidos é tornado possível pela capacidade
especial, por parte da mãe, de efetuar adequações às necessidades de seu bebê,
permitindo-lhe assim a ilusão de que aquilo que ele cria realmente existe.
Winnicott (2000) considera o uso que a criança faz do objeto transicional sua
primeira experiência de brincadeira e a criatividade primária como inaugural na
nossa experiência. O autor considera parte essencial, de sua formulação dos
fenômenos transicionais, nunca desafiar o bebê com a questão: você criou esse
objeto ou o encontrou? Isso equivale a dizer que uma característica essencial dos
fenômenos e objetos transicionais reside na qualidade de nossa atitude quando os
observamos. Para Winnicott (1971, p. 92):
Experimentamos a vida na área dos fenômenos transicionais, no excitante
entrelaçamento da subjetividade e da observação objetiva, e numa área
intermediária entre a realidade interna do indivíduo e a realidade
compartilhada do mundo externo ao indivíduo.
O sujeito tem uma relação de posse com os objetos transicionais que
asseguram a vida imaginativa e sua adequação à realidade. Essas são suas duas
mais importantes funções. São criados pelo sujeito, desde que estejam para
serem criados. Depois de ser fazer e aceitar que se aja sobre você. Mas primeiro
ser. “After beingdoing and being done to. But first being”
13
é a expressão completa
de Winnicott para descrever as relações objetais (LINS, 1998, p. 6).
O instaurar-se da relação com o objeto, realizada através da área de jogo que
une a mãe à criança, permite o brincar sozinho com base na suposição de que a
pessoa a quem ama e que, portanto, é digna de confiança e lhe segurança, está
disponível e permanece disponível quando é lembrada após ter sido esquecida.
Essa pessoa é sentida como se refletisse de volta o brincar (WINNICOTT, 1971).
A partir deste momento, a criança está suficientemente segura para se
permitir e fruir uma superposição de duas áreas de brincadeira. Em primeiro lugar,
naturalmente, é a mãe quem brinca com o bebê, mas com cuidado suficiente para
ajustar-se à suas atividades lúdicas. Mais cedo ou mais tarde, a criança introduz seu
próprio brincar e é muito variada a capacidade dos bebês de aceitar ou não a
introdução de ideias que o lhe são próprias. Desta maneira está preparando
caminho para um brincar conjunto num relacionamento.
13
Winnicott D. W. “Creativity and its origins”. Playing and Reality. London: Penguin Books, 1971.
45
O mundo compartilhado é o espaço da exterioridade, no qual o sujeito cria os
símbolos e os objetos são percebidos como Não Eu, embora essa percepção traga,
em cada indivíduo, a marca da subjetividade; por isto mesmo eles não são
chamados de externos, mas de objetos do mundo compartilhado. Neste mundo, os
dois terrenos de jogo, o da mãe e o da criança, se entrecruzam. Com os objetos do
mundo compartilhado as trocas são constantes.
Winnicott (1971), sendo psicanalista e pediatra, dizia que os psicanalistas
olhavam para o brinquedo da criança e não para a criança que brinca. Quis dizer
com isto que a importância era dada ao uso do brinquedo e não à ação de brincar
em si. Postulou que o brincar é muito mais do que manipular ou usar brinquedos ou
objetos. A criança vai constituindo-se, aprendendo sobre si e sobre o mundo, vai
vivendo criativamente.
2.1.3 O brincar e a criatividade
A partir da teoria de Winnicott, podemos afirmar a íntima relação entre o
brincar e a criatividade, isto é, com a maneira de viver. A capacidade do bebê de
criar o seio, se a mãe estiver disponível para ser encontrada no momento em que
ele a procurar, início a um sentimento de pode fazer, de criar e, assim, chega-se
ao sentimento de ser e de existir. A forma como vivemos depende de nossas
primeiras relações, de nossas primeiras brincadeiras, do jogo com nossas mães e
da continuidade da confiança proporcionada por este ambiente suficientemente bom.
Winnicott (1971) sustenta que, para que haja um desenvolvimento pleno do
indivíduo, para que viva com prazer e criatividade, é fundamental que, desde bebê,
se encontre imerso em um ambiente facilitador. Convém frisar que o termo facilitador
não quer dizer, de maneira nenhuma, diminuir a busca, o esforço, mas mostrar
caminhos, dar suporte e sustentação para o desenvolvimento emocional adequado,
proporcionar um espaço potencial. Só assim a potencialidade e a criatividade podem
emergir. Winnicott, visando valorizar os aspectos sadios do ser humano, apresentou
o conceito denominado de “viver criativo”. Relacionou sempre o viver criativo com a
46
sensação de ser alguém, com a percepção de que se está vivo e que a vida tem um
sentido. Diz Winnicott (1971, p.100): “(...) ou que as pessoas vivem em forma criativa
e sentem que a vida é digna de ser vivida, ou que não podem fazê-lo e duvidam do
valor de viver”. Então, criatividade, seria um aspecto saudável do humano e
diretamente ligado a sua capacidade de sentir-se existindo. Para ser criativa, a
pessoa tem que ter sentimento de existência, não só de estar viva, mas de viver.
Fayga Ostrower (1977), escritora e artista plástica, mesmo sem citar
Winnicott, compartilha de suas ideias quando diz que criar representa uma
intensificação do viver, um vivenciar-se no fazer; e, em vez de substituir a realidade,
é a realidade; é a realidade nova que adquire dimensões novas pelo fato de nos
articularmos, em nós e perante nós mesmos, em níveis de consciência mais
elevados e mais complexos. Somos, nós, a realidade nova. Daí o sentimento do
essencial e necessário no criar, o sentimento de um crescimento interior, em que
nos ampliamos em nossa abertura para a vida, em nossa capacidade de viver.
Winnicott (1971), a fim de examinar a teoria utilizada pelos analistas em seu
trabalho, e perceber onde a criatividade encontrava seu lugar, achou necessário
separar a ideia da criação das obras de arte. Dizia que uma criação poderia ser um
quadro, uma escultura, um jardim, um vestido, uma sinfonia e até uma comida
preparada em casa, mas a criatividade que lhe interessava relacionava-se ao estar
vivo, à maneira como o indivíduo aborda a realidade externa. À medida em que o
indivíduo torna-se uma pessoa ativa e toma parte na vida da comunidade, tudo o
que acontece é criativo, exceto se o indivíduo for doente ou foi prejudicado por
fatores ambientais que sufocaram seus processos criativos.
Ostrower (1977) denomina de vício o fato generalizado de considerar que a
criatividade existe nas artes e afirma que isto deforma toda natureza humana e
exclui do fazer o sensível, a participação interior, a possibilidade de escolha, de
crescimento e de transformação.
Contrário a esta maneira de relacionar-se, existiria um sentimento de
submissão à realidade, pelo qual o mundo seria reconhecido apenas como algo a
ajustar-se ou a exigir adaptação. A submissão traz consigo a ideia de que nada
importa e de que não vale à pena viver a vida. Seria “viver em acatamento com a
realidade”, uma forma doentia, um viver esquizofrênico, que se com aqueles que
não conseguem modificar as circunstâncias vitais que foram colocadas. Viver
47
criativamente constitui um estado saudável e a submissão é uma base doentia para
a vida.
Para Ostrower (1977), os conflitos emocionais podem tolher as
potencialidades básicas, pois podem assumir proporções tamanhas que em torno
deles gire toda a existência afetiva de uma pessoa. A pessoa então talvez nem seja
capaz de criar; talvez não seja nem mesmo capaz de viver.
Campos (1998) comenta que Winnicott considera a impossibilidade de uma
destruição completa da capacidade de um indivíduo humano para o viver criativo,
pois mesmo no caso mais extremo de submissão, e no estabelecimento de uma
falsa personalidade, oculta em alguma parte, existe uma vida secreta satisfatória,
pela sua qualidade criativa ou original a este ser humano. Por outro lado, permanece
a insatisfação em virtude daquilo que está oculto, carente por isto mesmo, do
enriquecimento propiciado pela experiência do viver.
Segundo Campos (1998), Winnicott parece conceber a vida como um grande
jogo de rabisco
14
, onde cada qual e cada dia vamos pondo (ou não) nosso traço e no
final... Bom... O final é o final. Dependeria do desenho. O que caracteriza
criativamente a filosofia de uma pessoa, em seu viver, são a integridade das
concepções e a confiança no transcurso do caminho. No viver criativo, a pessoa sai
da mesmice do cotidiano através de interrogações e soluções originais, produzindo
uma complexização no ambiente. Cria vida.
2.2 O brincar como técnica terapêutica
Em 1918, a propósito da análise do “Homem dos lobos”, Freud tece um
comentário sobre a psicanálise de crianças, campo não desenvolvido ainda naquela
época. Diz que o material trazido pela criança seria “mais confiável”, na medida em
que estaria livre das distorções e elaborações construídas ao longo da vida, mas
considera como desvantagem dessa prática os limites da verbalização próprios da
condição infantil.
14
Squiggle game- Winnicott utiliza esse jogo como uma técnica de comunicação com a criança. O
terapeuta e o paciente executam, alternadamente, traços livres; cada parceiro deve modificar o
rabisco do outro à medida que forem sendo realizados. Um espaço intermediário se constitui. O
procedimento engendra um processo que vai da experiência de algo informe ao gesto do criador e à
criatividade. (LINS, 1998, p. 57).
48
Na década de 1920, teve início a psicanálise de crianças com um método
baseado no brincar, tendo como primeiros representantes Hermine Von Hug-
Hellmuth, Anna Freud e Melanie Klein. Hermine Von Hug-Hellmuth foi a primeira
psicanalista a ocupar-se regularmente de crianças. Para ela e Anna Freud, o papel
principal das brincadeiras na psicanálise seria o de agente facilitador da relação
criança-analista e o de despertar o interesse da criança pelo tratamento.
Melanie Klein foi a responsável pela sistematização desse ramo da
psicanálise. Firmou sua posição de que o brincar é o método que possibilita a
condução do processo analítico, vendo-o como movimento associativo, como uma
articulação permanente entre imagens, ações e palavras (ROZA, 1999).
A psicanálise de crianças, portanto, deve sua existência à introdução do
método lúdico, através do qual Klein pode analisar crianças muito pequenas,
ampliando o campo de analisabilidade à infância e extraindo dessas análises,
fundamentos para uma teoria sobre os estádios primitivos da constituição psíquica.
Graças a ela e ao brincar, hoje não se discute mais a viabilidade da abordagem
psicanalítica no tratamento de crianças nem os porquês de um tratamento
psicanalítico precoce.
Winnicott (1971) comentando a obra de Melanie Klein diz que em seus
escritos, ela mantinha seu interesse centrado quase que inteiramente no uso do
brincar. O terapeuta busca a comunicação da criança e sabe que geralmente ela
não possui um domínio da linguagem capaz de transmitir as infinitas sutilezas que
podem ser encontradas na brincadeira por aqueles que a procuram. Para Winnicott,
os psicanalistas estavam mais ocupados com o conteúdo da brincadeira do que em
olhar a criança que brinca e escrever sobre o brincar como uma coisa em si. Ele
desejava afastar a atenção da sequência psicanálise, psicoterapia, material da
brincadeira, brincar, e propor tudo isso novamente ao inverso. Em outros termos,
é a brincadeira que é universal e que é própria da saúde: o brincar facilita o
crescimento e, portanto, a saúde; o brincar conduz aos relacionamentos
grupais; o brincar pode ser uma forma de comunicação na psicoterapia;
finalmente, a psicanálise foi desenvolvida como forma altamente
especializada do brincar, a serviço da comunicação consigo mesmo e com
os outros. O natural é o brincar e o fenômeno altamente especializado do
século XX é a psicanálise. (WINNICOTT, 1917, p. 63)
Assim, o brincar também se aplica nas análises de adultos; apenas a
descrição torna-se mais difícil quando o material do paciente aparece principalmente
49
em termos de comunicação verbal. Manifesta-se na escolha das palavras, nas
inflexões de voz, e, na verdade, no senso de humor (WINNICOTT, 1971, p. 61).
Roza (1999), discorrendo sobre os efeitos do brincar como linguagem em
seu livro Brincar é dizer, comenta que Melanie Klein ao interpretar as resistências e
defesas do ego impede os efeitos de significação do brincar, a realização do
inconsciente, desmantelando o trajeto pelo qual o brincar viria a produzir um sentido.
A partir de uma postura autoritária, de um lugar de saber, a interpretação kleiniana,
como diz Lacan, “enxerta brutalmente” na criança as simbolizações da situação
edípica (LACAN, 1979, p. 103). Klein autoriza-se a ocupar o lugar de mestre,
calcando-se na insuficiência verbal da criança.
Roza (1999), comentando o trabalho de Françoise Dolto
15
, diz que a função
do analista é a de possibilitar que a brincadeira cumpra o seu papel, ou seja, que
faça circular na linguagem os significantes, desatrelando os significados constituídos
pelo ego, mobilizando a fixidez que configurou o quadro sintomático. Dolto, com
mais de vinte anos de experiência na clínica psicanalítica de crianças, introduziu a
boneca-flor na análise de uma menina que conseguia exprimir, em nome do objeto,
emoções pelas quais não se reconhecia conscientemente responsável.
O processo interpretativo que o brincar é capaz de promover por conter em
si múltiplos sentidos que permanecem flutuantes, potencialmente evocadores - é
favorecido pelo analista não apenas pelo que ele diz, mas também e principalmente
pelo que ele brinca. Falamos então de uma interpretação que se no plano do
jogo: com ela é possível propor questões, ressaltar e sublinhar determinados
movimentos da brincadeira pela imitação, inverter papéis e produzir cortes (ROZA,
1999, p.137).
É dessa forma que compreendemos a importância que Winnicott atribui à
capacidade de brincar do terapeuta, afirmando que não está preparado para a tarefa
de analisar crianças aquele que dela não dispuser. O processo psicanalítico se
efetua na sobreposição de duas áreas do brincar: a da criança e do terapeuta. O
terapeuta interessa-se pela remoção de bloqueios ao desenvolvimento que se
tornaram evidentes (ROZA, 1999).
Ao mesmo tempo, Winnicott (1971) afirma que o brincar é por si mesmo uma
terapia e que constituiria visão estreita supor que a psicanálise é o único meio de
fazer uso terapêutico do brincar na criança. Quando o paciente não pode brincar, o
15
Exposto no livro de Roza, No jogo do desejo. Rio de Janeiro, Zahar, 1984.
50
psicoterapeuta tem de atender a esse sintoma principal, antes de interpretar
fragmentos de conduta. Conseguir que as crianças possam brincar é em si mesmo
uma psicoterapia que possui aplicação imediata e universal e inclui o
estabelecimento de uma atitude social positiva com respeito ao brincar.
Minha intenção aqui é simplesmente recordar que o brincar das crianças
possui tudo em si, embora o psicoterapeuta trabalhe com o material, o
conteúdo do brincar. Naturalmente numa hora marcada, ou profissional,
manifesta-se uma constelação mais precisa do que a que se apresentaria
numa experiência atemporal no assoalho do lar, mas a compreensão sobre
o nosso trabalho será auxiliada se nos inteirarmos de que a base do que
fazemos é o brincar do paciente, uma experiência criativa a consumir
espaço e tempo, intensamente real para ele. Essa observação ajuda-nos a
compreender também como uma psicoterapia de tipo profundo pode ser
efetuada sem trabalho interpretativo (WINICOTT, 1971, p.75).
Para Winnicott era muito claro que a função do analista deveria ser a
promoção de um ambiente de confiança, um ambiente facilitador, um espaço
potencial no qual a criança pudesse ser capaz de brincar no sentido criativo. “O
momento significativo é aquele em que a criança se surpreende a si mesma, e não o
momento de minha arguta interpretação” (WINNICOTT, 1971, p.75).
No momento em que o encontro terapêutico atinge um clima de confiança – o
qual Winnicott (1971), chama de momento sagrado- estabelece-se uma
comunicação que leva a criança a exprimir criativamente suas fantasias, sua
problemática, seus sonhos. O terapeuta recebe esta comunicação e reenvia à
criança de maneira igualmente criativa. Assim, nessa espécie de intimidade, o ato
espontâneo entre ambos aparece. A espontaneidade possibilita o imprevisto, a
surpresa: “As experiências realizadas em um setting
16
confiável são mais
importantes que a interpretação” (LINS, 1998, p.55).
O terapeuta encontra-se disponível e espera ser solicitado no brinquedo.
Caso ingresse, numa posição de administrador, a criança pode ser incapaz de
brincar no sentido criativo e de comunicar-se. Interpretação fora do tempo
necessário é doutrinação e produz submissão. Em consequência, a resistência
surge da interpretação dada fora da área da superposição do brincar em comum da
criança e analista. Interpretar quando a criança não tem capacidade para brincar
simplesmente não é produtivo ou causa confusão. Quando existe um brincar mútuo,
então a interpretação, segundo os princípios psicanalíticos aceitos, pode levar
16
Comumente traduzido com enquadre, o setting pode ser conceituado como a soma de todos os
procedimentos que organizam, normatizam e possibilitam o processo psicanalítico.
51
adiante o trabalho terapêutico. Esse brincar tem de ser espontâneo, e não submisso
ou aquiescente, se é que se quer fazer psicoterapia (WINNICOTT, 1971, p. 76).
Muitos pais trazem os filhos para terapia esperando que sejam disciplinados
e, conforme o método talvez seja, mas mais importante que o método, é o setting.
De acordo com Winnicott, na área de superposição entre o brincar da criança e do
adulto, a possibilidade de introduzir enriquecimentos, mas isto não significa
ensinar a criança a brincar ou discipliná-la, nem extrair da brincadeira o que este
adulto quiser. Reforço mais uma vez a importância da criança na condução deste
processo, fazendo um paralelo com a relação da mãe e seu bebê, da confiança, do
ambiente acolhedor, do setting analítico, onde o terapeuta deve estar pronto para
ser encontrado no brincar. Nesse caso, será que o brincar tem realmente esse (o
seu) lugar na clínica psicanalítica de crianças? Ou o lugar que queria Winnicott?
3 O LUGAR DO BRINCAR NA EDUCAÇÃO DE BEBÊS
A imagem da creche como primeira escola corresponde a um comportamento
de aproveitamento sistemático de ocasiões de aprendizagem que se configuram
mais como atividades guiadas e reguladas pelo adulto do que por aquilo que
especifica a ação dos bebês: “fazer coisas” (WINNICOTT, 1971). Parece ainda
haver muitas certezas sobre a educação nos anos iniciais. que o modelo de
ensino é apenas uma forma de instrução escolar na qual dominam as exigências de
fases etárias posteriores.
Cabem aqui muitas reflexões sobre o ensinar e a valorização da ação
autônoma da criança, o papel do adulto neste processo e o significado do processo
de aprender, sempre considerando o brincar como base das discussões. Falk
(2004), afirma que o adulto ao pré condicionar este tipo de comportamento na
criança, obstrui sua curiosidade e criatividade:
muitas vezes involuntariamente, outras com bons argumentos, o adulto
impede que a criança atue fora dos momentos concretos que ele tenha
previsto. Sendo assim, a criança passa uma parte do seu tempo esperando:
esperando que alguém venha até ela, esperando que chegue o momento da
atividade, esperando crescer para variar a atividade, esperando
passivamente (FALK, 2004, p.34-35).
3.1 Os bebês e as crianças pequenas não sabem brincar
52
Por trás desta afirmação imagino o educador diante de uma criança
puramente receptiva e necessitada, acreditando ser ela incapaz de brincar e criar,
sem intencionalidade em suas ações, alguém a quem temos que ensinar tudo, ou
pelo menos, alguém a quem temos que fazer exercitar suas capacidades segundo
nos pareça importante para seu desenvolvimento. Justificativa, talvez, para o fato de
serem chamados de professores pelos pequenos de 2, 3 anos e a instituição de
“Escolinha”. Tais estereótipos são ainda muito difundidos entre profissionais da
educação infantil.
Desde a relação mãe-bebê, Verden-Zöller (2004) comenta que nem sempre
as interações fluem como não intencionais. Isso se deve a nossa imersão alienante,
quanto na separação de corpo espírito não estando por inteiro e integrado àquele
momento, quanto na atitude de estarmos sempre tratando de controlar nossas
circunstâncias por meio da busca de resultados.
Tal ocorre com o objetivo de realizar, em tudo que fazemos a descrição de
nossos desejos ou a imagem que temos de como as coisas devem ser, num
processo próprio de nossa cultura patriarcal que continuamente nos
aprisiona na mera aparência (VERDEN-ZÖLLER, 2004, p.136).
Esta é, muitas vezes, a relação da criança com seu educador que tem que
cumprir os objetivos, as datas e os prazos. O pensamento está no depois, em
apresentar para os pais os “trabalhinhos” e ensaiar o show com a “profe”.
É urgente resgatar no espaço da educação de crianças pequenas as suas
manifestações próprias, o espaço da brincadeira, da interação, do afeto como
primeira referência para o trabalho pedagógico, ou seja, o que importa é a criança e
não o aluno. Não mais como sustentar o objetivo da criança pequena ser o
conteúdo escolar, muito menos em sua versão “escolarizada”. Trata-se de um
equívoco dado pelas pré-concepções escolares dos adultos. Nessa perspectiva, os
bebês colocam um problema para a educação porque interrogam nossas
concepções de aprendizagem, de conhecimento e de infância! Educação escolar,
historicamente constituída para alfabetizar e promover a inserção no mundo letrado
está historicamente ancorada em “atitudes sérias” na qual não nem espaço nem
tempo para “brincar”, sem lugar para o riso nem para a alegria; historicamente
sustentada no “aluno” passivo, na “ordem” e no produto.
O brincar envolve aqueles que brincam no seu contexto. Mais
especificamente, aqui, a criança e o educador, não estado restrito a uma faixa etária.
53
Bondioli e Mantovani (1998) trazem a expressão “Pedagogia da relação”, por ela
frequentemente utilizada para designar a especificidade educativa da creche. Nas
suas palavras:
Aderir a esta pedagogia significa dizer não a uma relação
educadoras/criança que não permite uma relação individualizada e,
sobretudo, personalizada. Significa dizer não a atividades que mais se
parecem com pequenas lições do que com brincadeiras de livre descoberta.
Significa dizer não a uma organização demasiado rígida dos tempos, dos
espaços, dos grupos infantis que pode enfraquecer a espontaneidade das
relações (BONDIOLI e MANTOVANI, 1998, p.29).
Para Bondioli e Mantovani (1998, p.30), o parceiro adulto na escola infantil
tem um papel decisivo e essencial, diferente do papel de pai, babá ou professor.
“Não é professor, pois não ensina, mas simplesmente favorece e mantém o
desenvolvimento de conhecimentos e competências”. A criança deve explorar os
objetos e materiais, este processo de investigação e descoberta pode ser solicitado
ou favorecido, mas não imposto ou ensinado.
Felizmente é crescente a percepção da criança pequena como ativa por si
própria e potente desde o nascimento, rica de iniciativas e de interesse espontâneo
pelo que a cerca. As condições que a rodeiam, determinam as possibilidades de
realizar estas experiências. Por isso o educador pode, a exemplo da mãe
suficientemente boa, fornecer o espaço de confiança necessário para que as
crianças possam arriscar-se a ir mais longe, ajudando-as a enfrentarem o
desconhecido ainda. A criança envolve todas as suas emoções e funções em cada
ato desde o nascimento, ela está inteira no brincar, diferentemente da maioria dos
adultos.
Moyles (2006) lembra que incontáveis pesquisadores e educadores
salientaram e continuam salientando a questão importantíssima de que a educação
de crianças pequenas fundamenta-se no brincar. Entretanto, nem sempre veem com
clareza as implicações disto para o seu trabalho cotidiano.
É surpreendente a frequência com que os adultos que afirmam valorizar o
brincar na primeira infância na verdade mostram por aquilo que fazem ou
por aquilo que não fazem- que eles realmente não acreditam no que
afirmam (...) isto leva a uma desvalorização do brincar: os profissionais,
muitas vezes, utilizam as oportunidades que as crianças estão brincando
livremente como uma ocasião para fazerem alguma outra coisa (MOYLES,
2006, p.203)
54
Perdem um momento riquíssimo que pode favorecer uma observação e uma
escuta mais sensível aos processos de aprendizagem que ocorrem.
Ao observar o brincar, os profissionais podem ficar mais sensíveis ao
envolvimento cognitivo das crianças com diferentes maneiras de explorar,
compreender e representar diferentes aspectos do mundo. A observação
como instrumento de ensino ainda não é amplamente reconhecida na
educação infantil de um modo geral. A observação do brincar, em particular,
é o aspecto mais crucial de todos (MOYLES, 2006, p.202).
3.1.1 Isadora, o pote e eu
Isadora, 1ano e três meses, pega a tampa de um pote e
esconde o rosto. Olha para mim e sorri, depois tenta colocar o
rosto dentro do pote. Analisa, observa pacientemente, coloca o
pote na cabeça e sorri buscando meu olhar. Outra criança da
sala aproxima-se curiosa e tenta pegar o pote, coloca-o
também na cabeça e Isadora chora. Uma das cuidadoras
aproxima-se e repreende-os porque estavam batendo com o
pote um na cabeça do outro.
Neste trecho da observação eu estava integrada ao brincar da criança sem
interferir. Como observadora, prestando atenção aos detalhes, procurando não
desviar o olhar para os outros que choravam, engatinhavam, dormiam ou para
música que tocava no rádio enquanto as cuidadoras cantarolavam. Meu olhar de
aprovação permitia que ela prosseguisse concentrada explorando o pote,
descobrindo que ela não caberia dentro dele, que ele serviria como um lindo chapéu
ou que poderia desaparecer cobrindo o rosto. Ela estava brincando e,
consequentemente, aprendendo sobre o pote e sobre si. Ela estava confiante e
agindo espontaneamente. Enquanto ninguém está tentando lhe ensinar algo ou
chamando sua atenção, pode ocupar-se do pote o tempo todo. O adulto interferiu
55
tentando auxiliar, mas não entendeu a brincadeira por estar envolvido em outras
atividades.
Quando mostramos um respeito profundo por aquilo que a criança faz, por
aquilo que ela se interessa mais por ela mesma que por seus atos- todas
as nossas ações se tornam impregnadas de um conteúdo que enriquece a
personalidade: desenvolve a segurança afetiva, a consciência e a auto-
estima da criança (TARDOS e STANZO, 2004, p.45).
Tardos e Szanto (2004) dizem que, na complexidade de fenômenos que
determinam o desejo que a criança tem de ser ativa, é importante destacar a atitude
de respeito por parte do adulto por essa atividade, adulto que se encarrega de cuidar
e educar a criança: esse respeito se torna um componente importante de sua ação
educativa.
Assim como ocorre com o recém-nascido, também com a criança na creche
ocorrem muitos momentos importantes e ações que passam despercebidos, pois os
olhos dos adultos estão desviados para coisas “mais importantes”. Assim como na
experiência de Isadora com o pote, a criança pequena pode, de tempos em tempos,
parar para descansar, pegar outros brinquedos, engatinhar, arrastar-se, voltar ao
pote. A mudança de planos faz parte da experiência de aprendizagem com o pote.
Tardos e Szanto (2004, p.40) colocam que “o bebê cada vez se faz mais hábil, cada
vez aprende mais coisas sobre os objetos que o rodeiam, sobre suas dimensões,
suas formas, suas qualidades. Mas, sobretudo, aperfeiçoa as suas competências
aprendendo a estar atento aos resultados de seus atos, aprende a aprender (...)
cada criança segue seu próprio ritmo e curiosidade”.
Emmi Pikler, pediatra e educadora, nos anos 30, valorizava a relação
afetiva de qualidade entre adulto e criança, assim como a regularidade nos fatos,
nos espaços e no tempo como base do conhecimento de si próprio e do entorno,
sendo a atividade autônoma da criança motor de seu próprio processo de conhecer.
Isto antes mesmo dos estudos de Bowlby e Spitz que falavam dos perigos que
ameaçam a vida e a personalidade em plena formação do bebê e das crianças
pequenas sem família e sem apego (FALK, 2004).
Assim como Winnicott, Pikler não via o bebê como um ser passivo e não
acreditava que ele se tornasse uma pessoa ativa pelo impulso do adulto, mas que
este deveria proporcionar-lhe, desde o início, todas as possibilidades de ter
56
iniciativas autônomas, de movimento livre e de jogo independente. Portanto, não o
via como uma folha de papel em branco.
No ano de 1946, em Budapeste- Hungria, Emmi Pikler foi encarregada de
organizar e dirigir o orfanato da Rua Lóczy. Contratou jovens sem formação
profissional, mas interessadas na educação de crianças e ensinou-lhes não somente
a dar atenção, mas a perceber a maneira como as crianças se sentiam confortáveis
enquanto eram atendidas. Ela acreditava que a criança é sensível a tudo o que lhe
acontece: sente, observa, memoriza e compreende as coisas ou compreenderá com
o tempo, sempre que lhe dermos a oportunidade. Pedia que as jovens
conversassem com as crianças, inclusive com os bebês menores, explicando tudo
que fossem fazendo e que não deviam impor nada à criança, mas que haviam de
fazer esforços para que as crianças tivessem vontade de fazer o que se esperava
que elas fizessem (FALK, 2004).
As educadoras tinham um registro individual de cada criança e
acompanhavam atentamente todas as tentativas e as menores manifestações do
desenvolvimento da criança. Observavam e compreendiam que a criança pequena
saudável e equilibrada não precisa ser ensinada a andar ou brincar, mas por suas
próprias experiências, era capaz de desenvolver-se com alegria e harmonia.
A proposta de Pikler era demonstrar que, mesmo no interior de uma
instituição, ainda que fosse mais difícil que em uma família, era possível criar as
condições para que os bebês e as crianças pequenas se desenvolvessem
favoravelmente, tanto do ponto de vista físico quanto psíquico. No seu modo de agir
e de pensar integravam-se indissociada e naturalmente, desde o primeiro momento
a saúde somática, psíquica e a noção de interação do indivíduo com seu meio.
Emmi Pikler atribui o bem estar do bebê a uma e contente e satisfeita
compartilhando o pensamento de Winnicott. O sistema de educação por ela
proposto exigia dos pais uma maior organização das suas vidas e do entorno, para
que os filhos estivessem e se sentissem realmente seguros (FALK, 2004).
As educadoras constataram e compreenderam que o desejo de atividade
da criança além do sistema de vida adequado, do horário estudado
atentamente, das condições materiais adequadas, do espaço, das roupas
convenientes, das brincadeiras, etc.- dependem em grande medida, da
alegria, da intimidade e do sentimento de segurança que a criança
experimenta em relação ao adulto sentimento este que é construído
enquanto o adulto se ocupa dela. Também constataram e aprenderam
sobre outro aspecto da estreita relação existente entre dois fatores nos
quais se baseia essa relação pessoal: a atividade independente da criança
57
e a relação carinhosa que a educadora podia estabelecer individualmente
com cada criança durante os cuidados; e sobre o caráter inseparável destes
dois fatores (FALK, 2004, p. 21).
Creio ser a confiança a tradução do sentimento entre criança e educador que
para Winnicott é o espaço potencial, a área de ilusão, o playground onde a
brincadeira acontece, o lugar do brincar. Era este espaço que Emmi Pikler pretendia
que se criasse no orfanato através da ação das educadoras. Foi mais eficaz
“começar do zero” do que desfazer conceitos dos antigos funcionários que
acabaram sendo demitidos após três meses de tentativas de mudança (FALK,
2004).
3.1.2 Ação autônoma
Para Winnicott (1971), o bebê evolui para o brincar sozinho na presença de
alguém. Assim, também na sua clínica pediátrica, Emmi Pikler observava que as
crianças que se ocupavam com suas próprias tentativas e atividades autônomas não
exigiam a presença direta e permanente, a participação ou a ajuda constante dos
pais, sem eles não se sentiam impotentes. Estes pais, assim como as educadoras
do orfanato, permitiam o livre movimento das crianças, a possibilidade de espaços e
de brinquedos que oferecessem experiências adequadas, que a criança os usasse
com independência e que, sentindo sempre o afeto dos pais, tivesse vontade de
experimentar todo tipo de atividade, conhecer o mundo e conhecer-se a si própria.
Naturalmente, Emmi Pikler não teria se decidido a fazer tal “experimento” se
não estivesse convencida do acerto de sua hipótese. Segundo sua opinião,
naquelas circunstâncias, uma criança que seguisse seu ritmo e seus desejos seria
capaz de aprender tudo sentar, colocar-se em pé, caminhar, brincar, falar, refletir,
etc. melhor que aquela que estivesse diretamente influenciada para chegar aos
diferentes graus de desenvolvimento que os adultos consideram adequados ao
momento em que vivem (FALK, 2004, p.13).
Esta não interferência, respeitando a autonomia da criança também é frisada
por Winnicott ao afirmar que diz que a mãe deve ajustar-se ao ritmo do bebê. Falk
(2004), comentando o trabalho de Emmi Pikler, diz que graças à ajuda que deu aos
58
pais com seus conselhos refletidos e minuciosos, baseados em observações
regulares e permanentes, ensinou-os em primeiro lugar a ter confiança na
capacidade de aprender de seus filhos. Para tanto, foi necessário antes ensinar a
não intervir diretamente nas brincadeiras nem nos movimentos das crianças e como
podiam criar e transformar as condições materiais e subjetivas através de uma ação,
cada vez mais variada iniciada pela própria criança. Esta mesma orientação era
dada às educadoras para que aprendessem a observar, registrar, entender e
valorizar a criança que tinham sob seus cuidados para que ela pudesse criar,
brincar, conhecer-se, construir-se e seguir seu ritmo de crescimento.
Considerando o pensamento de Maturana e Varela (1995), o ser vivo
necessita ser autônomo, transformar a matéria em si mesmo, de modo que o seu
produto seja sua própria organização, em constante processo de adaptação e de
autoprodução.
Moyles (2006), ao abordar a sensibilidade dos educadores em relação ao
brincar das crianças, sustenta que para manter seu status como uma atividade de
brincar é necessário que a atividade continue centrada naquele que brinca, isto é,
seja iniciada, ritmada e estilizada pela criança. O envolvimento profundo, por parte
da criança, é necessário e pode ser permitido e incentivado pelos adultos para que o
brincar seja efetivamente desafiador e complexificador dos processos de
aprendizagem de si e do mundo.
3.1.3 Educar bebês na creche
O termo educador subentende a função de educar. O que seria educar? Para
Moraes (2003, p.47),
educar é enriquecer a capacidade de ação e reflexão do aprendente; é
desenvolver-se em parceria com outros seres; é desenvolver-se na biologia
do amor que traduz a dinâmica relacional constitutiva do humano e que se
expressa na aceitação do outro em seu legítimo outro. Amor como emoção,
como conduta relacional dos seres viventes; como modo de viver uma vida
com respeito mútuo, na justiça e na solidariedade.
Nessa perspectiva, educar supõe cuidar e cuidar implica educar. Supõe
compreender com Maturana, que
educar se constitui no processo em que a criança ou o adulto convive com o
outro e, ao conviver com o outro, se transforma espontaneamente, de
59
maneira que seu modo de viver se faz progressivamente mais congruente
com o do outro no espaço de convivência. O educar ocorre, portanto, todo o
tempo e de maneira recíproca. A educação como “sistema educacional”
configura um mundo, e os educandos confirmam em seu viver o mundo que
viveram em sua educação (MATURANA, 1998, p.29).
Assmann (1998) argumenta que educar significa recriar novas condições
iniciais para a auto-organização das experiências de aprendizagem. Aprender é
sempre a descoberta do novo. Aprender é sempre pela primeira vez, senão não é
aprender. Educar é ir criando continuamente novas condições iniciais que
transformam todo espectro de possibilidades pela frente. “Este é o ponto chave que
a pedagogia deveria aprender da teoria do caos: processos auto-organizativos
emergem do caos com novos níveis de arranjo das condições de sobrevivência”
(ASSMANN, 1998, p.65). Aprender é um processo auto-organizativo no sentido de
criação do novo.
Para Brazelton (2002), a criança necessita de relacionamentos sustentadores
contínuos para que possa crescer, aprender e desenvolver-se, com respeito às
diferenças individuais. Bondioli e Mantovani (1998, p. 282), sustenta esta ideia
frente à posição teórica da perspectiva “relacional” do desenvolvimento infantil, que
focaliza a atenção sobre a interação entre dois ou mais sujeitos, e não sobre o
indivíduo enquanto tal. Trata-se do surgimento de um novo ponto de vista que
salienta a importância fundamental da relação intersubjetiva, para acionar as
potencialidades presentes na criança. Fala da capacidade de “plasticidade” da
criança e de adaptação por parte do recém-nascido que assume papel ativo na
relação, na dependência de um estilo comportamental coerente por parte da mãe
17
.
Assim, a atenção dessa perspectiva não é voltada à análise das
características individuais,(...) mas se desloca para os “jogos relacionais”,
para os relacionamentos intersubjetivos no interior dos quais a criança
assimila esquemas de interação sociais (...), aprende modelos cognitivos e
comunicativo linguísticos, tanto universais quanto específicos, do ambiente
social ao qual pertence (BONDIOLI e MANTOVANI, 1998, p. 283).
Para Verden-Zöller (2004), uma criança em crescimento requer uma vida de
atividades válidas em si mesmas e que se realizem sem nenhum propósito externo a
elas. Em tal modo de vida, a atenção da criança pode estar plenamente nas próprias
17
Isto vai de encontro ao conceito de Mãe suficientemente boa de Winnicott (2000) que irá
proporcionar um espaço potencial.
60
atividades e não em seus resultados. Uma criança que brinca está envolvida no que
faz, enquanto faz.
Nós, seres humanos, existimos num domínio relacional que constitui nosso
espaço psíquico como âmbito operacional no qual todo o nosso viver biológico, toda
a nossa fisiologia, fazem sentido como forma de viver humano. O espaço psíquico é
o domínio em que ocorre a existência humana como modo de relacionamento com
os outros e consigo mesmo. “Não se ensina às crianças o espaço psíquico de sua
cultura – elas se formam neste espaço” (VERDEN-ZÖLLER, 2004, p.23).
Para a criança o que importa é o presente, não se trata de preparar o futuro,
mas de esgotar suas possibilidades atuais. Estas possibilidades dependem do
estado de desenvolvimento em que se encontra, do entorno sobre o qual pode ter
influência e do seu estado psíquico (FALK, 2004). O importante a destacar é que
A criança pode brincar sozinha e tirar proveito disto. A hipótese é esta: a
atividade autônoma, escolhida e realizada pela criança – atividade originada
de seu próprio desejo é uma necessidade fundamental do ser humano
desde seu nascimento. A motricidade em liberdade (segundo Pikler) e um
ambiente rico e adequado que corresponda ao nível dessa atividade são as
duas condições sine qua non da satisfação dessa necessidade (TARDOS e
STANZO, 2004, p.46).
3.2 Aprender brincando
3.2.1 Adultos e bebês: um jogo de interações
Kevin, 1ano e 2 meses elevou os braços quando entrei na sala.
Sentei em uma cadeira pequena, ele aproximou-se e alcançou-
me um pote vazio de yogurte. Peguei, devolvi, ele colocava-o
no dedo, girava, mordia, atirava, engatinhava para pegar
novamente, mostrava para mim e sorria. Mais uma vez girava
no dedo, dava para mim e sorria. “Conversava” e eu respondia.
Atirou-o mais longe. Pegou um carrinho, empurrou-o,
engatinhou até ele. Encontrou o pote de yogurte em baixo da
cama. Pegou-o, olhou-me, colocou-o no dedo para girar,
“conversava comigo” e atirava. E assim continuava, ficando
próximo a mim. Engatinhou a o colchão, parou, conversou
61
comigo duas vezes, olhava-me, dizia algo, mostrava o carrinho,
veio empurrando, trouxe até os meus pés e sorriu.
Neste pequeno relato não como separar o brincar do aprender. A criança
está explorando, criando, buscando, repetindo, experimentando, arriscando, ao
mesmo tempo está interagindo, confiando, trocando, dividindo, sempre buscando o
meu olhar, a aproximação, a aprovação do adulto. Ela, o pote e eu. Descobrindo-me
e conhecendo-se, constituindo-se. Total integração. O meu envolvimento foi
fundamental. A segurança permitia o afastamento e a reaproximação, como na
dupla mãe-bebê. Muitas vezes momentos de tamanha riqueza são perdidos por não
estarmos voltados inteiramente para as crianças, até, no caso da creche, pela
sobrecarga de trabalho devido ao número insuficiente de profissionais, com tarefas
e uma rotina a cumprir. Eu estava em uma situação privilegiada, podendo
simplesmente deixar-me levar.
Se Maturana e Varela (2001), consideram que o aprender resulta de uma
história de interações recorrentes, na qual dois ou mais sistemas interagem em
diferentes momentos da vida. Organismo e meio coexistem mediante processos de
interdependência. Para esse autor, o aprender teria que ser algo diferente de captar
um objeto externo, que num processo interativo o que se passa em um indivíduo
depende de sua estrutura, de sua ação e atuação sobre seu contexto. O fenômeno
da educação e da aprendizagem é também um fenômeno de transformação na
convivência e o aprender se na transformação estrutural que ocorre a partir da
convivência social. uma total integração do ser com o fazer e, quando isto não
ocorre, para os autores, se produz alienação e perda do sentido social e individual
no viver.
O pensamento de Maturana e Varela (2001) aproxima-se coerentemente da
teoria de Winnicott (1971), pois se para os primeiros “Todo fazer é conhecer e todo
conhecer é fazer” (MATURANA e VARELA, 2001, p.68), para o segundo, “brincar é
fazer” (WINNICOTT, 1971, p.63). Ao mesmo tempo em que a criança vai no brincar
experimentando algo novo a cada momento, vai construindo e desconstruindo seus
pensamentos, vai aprendendo sobre suas capacidades e constituindo-se, está em
constante processo de viver.
A vida nada mais é do que um processo de contínua aprendizagem, através
do qual construímos a realidade e o saber. Viver e aprender são coisas que
62
não se separam, que vida, experiência e aprendizagem estão
intrinsecamente ligadas, uma colaborando com a outra. Simultaneamente,
vivemos, experimentamos, aprendemos e conhecemos. No mesmo instante
em que vivemos, convivemos e nos comunicamos através de diferentes
tipos de linguagens e do entrelaçamento dessas linguagens com o
emocional que integra o nosso viver [...]. Na verdade, não existe uma
aprendizagem formal circunscrita a um determinado momento da vida e a
um lugar específico. O processo de desenvolvimento é integrado, amplo e
muito mais rico do que se supunha até então (MORAES, 2003, p.49).
O chamamento ao “fazer” é, segundo Bondioli e Mantovani (1998), pelo seu
destinatário infantil, um convite a explorar o mundo dos objetos, a tocá-lo, olhá-lo,
manipulá-lo e transformá-lo. Comentando sobre a didática do “fazer” com as
crianças pequenas, apesar de reconhecer que são necessários mais estudos
teóricos. As autoras destacam a ludicidade como ponto mais importante. Este
processo de investigação e descoberta do mundo pela criança será favorecido pelo
clima de relativa liberdade permitido pelo ambiente no qual se encontra inserida e
pelo qual manterá sua curiosidade para manipular, juntar e construir. A atividade
exploratória combina-se com a atividade criativa, estando a atenção voltada ao
processo, àquilo que se está fazendo:aqui importa o prazer que o “fazer”
intrinsecamente proporciona e não os produtos da ação. Além disto, o jogo enquanto
atividade de simulação, contínuo retorno a uma realidade “outra”, permite
“experimentar” sem temor pelas consequências das próprias ações: o erro torna-se
uma informação a ser considerada e não uma culpa a ser carregada.
Para o adulto, é uma didática ativa onde a ação concreta da criança é
premissa de mais elaboradas capacidades intelectuais com as quais
construir a realidade. Trata-se portanto de uma “didática” que não se refere,
em primeiro lugar, a atividades específicas por meio das quais se
incentivam particulares aprendizagens e cuja meta não é constituída pela
obtenção de habilidades parceladas, mas por um convite à ação com o
objetivo de fazer com que se adquiram formas sempre mais complexas de
descentralização cognitivo/social (BONDIOLI e MANTOVANI, 1998, p.31).
Contudo, Bondioli e Mantovani (1998), considera que a ludicidade não é
critério suficiente para manter o processo de crescimento em relação à construção
do mundo exterior, é preciso garantir a continuidade das experiências.
O mundo da criança é dominado pelo aqui e pelo agora, sem sólidos nexos
temporais e limitada a poucos e desligados cenários espaciais. A qualidade da
experiência da criança caracteriza-se, portanto, por intensidade e por fragilidade. A
essa necessidade pode-se responder estabelecendo hábitos, isto é, momentos
reconhecíveis pela sua identidade e repetitividade, ou ainda favorecendo um
63
continuum experimental, ou seja, prestando atenção às possibilidades intrínsecas de
cada experiência, de demonstrar-se passível de ampliação, de generalização,
aprofundamento, criando assim uma cadeia que transforma em percurso aquilo que,
de outra forma, aparece como conjunto caótico de ações desconexas (BONDIOLI,
1998, p.32).
3.2.2 Ambiente suficientemente bom
Favorecer a continuidade exige do adulto o compromisso de prestar atenção
ao significado que para uma determinada criança uma experiência possui e daí partir
para individualizar outras experiências que a consolidem e a reforcem. “Trata-se de
tornar significativas as experiências escolhendo as que fornecem possibilidade de
crescimento, que ativam qualidade e habilidade infantil recém esboçadas, em estado
embrionário, permitindo a sua expressão e explicitação” (BONDIOLI e MANTOVANI,
1998, p.32).
Não existe uma mensagem no vazio, sem contexto
18
. O adulto pode mudar o
contexto. É preciso estar atento ao fazer da criança, ao brincar, pois ao selecionar
as experiências pode dirigir a ação conforme algum resultado esperado. Muitas
vezes o adulto age como um senhor detentor do saber que tem o poder de colocar
ordem no caos, como se o caos fosse causar danos. Segundo Morin (2005, p.221),
“ordem demais asfixia a possibilidade de ação [...]”.
Moyles (2006) destaca a interrogação de alguns autores sobre a
compreensão que a criança extrai do mundo a partir do “brincar livre” imaginativo e
da brincadeira orientada pelo adulto. As situações lúdicas que os adultos criam
enriquecem o entendimento da criança e educadores têm valiosos insights sobre o
pensamento infantil ao observar sua maneira de explorar as possibilidades
oferecidas. O brincar que é totalmente dirigido pelas crianças pode dar insigths
ainda mais valiosos, porque as crianças estabeleceram alguns entendimentos
compartilhados com os adultos e brincam para promover seus próprios objetivos. O
brincar tem origem nas crianças, no cotidiano das instituições educacionais, a
elas a liberdade e a segurança necessária para se expressarem imaginativamente e
18
Bondioli e Mantovani (1998) classificam “contexto” como o conjunto de coordenadas espaciais,
temporais e setoriais (isto é, a direção “eu-tu-os outros” de acordo com a qual acontece a
comunicação). O conceito “contexto” assume um valor fundamental, pois representa a matriz do
significado de qualquer ato comunicativo, seja este verbal ou não verbal.
64
fornece aos educadores oportunidades para observações de como as crianças
elaboram suas interpretações do vivido.
A observação é quase impossível se os adultos tiverem de intervir
constantemente para prevenir danos e é improvável que as crianças brinquem
imaginativamente por um certo período de tempo se o contexto for inseguro e
desconfortável. O gradual estabelecimento de certas regras de respeito e
entendimento mútuo entre as crianças e o adulto e entre as próprias crianças é uma
necessidade. Como afirma Morin (2005, p.221), “desordens demais transformam a
ação em tempestade”.
Moyles (2006), comentando sobre os princípios da educação inicial, cita
Froebel, que no século XIX, estava ciente de que certos aspectos que os seres
humanos têm em comum, os quais os unem como espécie no mundo todo. Segundo
o autor, Froebel considerava o brincar de fluxo livre como um desses aspectos
importantes e via cada criança como indivíduo único que precisava de ajuda
sensível e apropriada para crescer e aprender com qualidade.
Para Moyles (2006), o brincar de fluxo livre foi adotado como termo por
expressar uma visão do brincar apoiada por 12 características, extraídas da
literatura. Algumas dessas seriam: um processo ativo, sem produto; intrinsecamente
motivado; não exerce nenhuma pressão externa no sentido de conformar-se a
regras, pressões, objetivos, tarefas ou direção definida; tem a ver com mundos
possíveis e alternativos que levam a pessoa a seus níveis mais elevados de
funcionamento; tem a ver com mergulhar em ideias, sentimentos e relacionamentos;
utiliza ativamente experiências prévias incluindo esforço, manipulação, exploração,
descoberta e prática; é um mecanismo integrador que une tudo o que aprendemos,
sabemos, sentimos e entendemos.
O bebê pelo que faz na direção de seus movimentos e na aquisição de
experiências sobre ele mesmo e sobre seu entorno sempre a partir
daquilo que consegue fazer é capaz de agir adequadamente e de
aprender de maneira independente. Para o desenvolvimento da
independência e da autonomia da criança, é necessário além da relação
de segurança – que ela tenha a experiência de competência pelos seus atos
independentes. A intervenção do adulto ensinando ou simplesmente
interferindo nos movimentos e nos jogos do bebê, não apenas perturba a
situação de independência, substituindo o interesse do bebê por seus
próprios objetivos, como também aumenta artificialmente a dependência da
criança, enquanto que a atitude de respeito à autonomia coloca, em lugar de
um comportamento possessivo e autocrático dos pais, o fundamento de um
sistema de relações pais filhos em que ambos se consideram e confiam
mutuamente (FALK, 2004, p.31).
65
Moyles (2006) reuniu em alguns princípios, o pensamento de grandes
educadores pioneiros como Froebel, Steiner e Montessori. Nesses, traz a infância
como válida em si mesma, como uma parte da vida e não como uma preparação
para a idade adulta. Em sua perspectiva, a educação, é algo do presente e não
treinamento para o futuro. A criança, inteira, é considerada importante. A saúde
física e mental é enfatizada, assim como a importância dos sentimentos, do
pensamento e dos aspectos espirituais. Assim, também a aprendizagem não é
compartimentalizada, pois tudo liga-se a tudo. É valorizada a motivação intrínseca
que resulta em atividades iniciadas e dirigidas pela criança, sendo o ponto de partida
na educação infantil aquilo que as crianças são capazes de fazer (em vez de aquilo
que não são capazes). A autodisciplina é enfatizada. Existe uma estrutura interna na
criança que inclui a imaginação e emerge, especialmente, em condições favoráveis.
As pessoas com as quais a criança interage (tanto adultos como crianças) são de
central importância. A educação infantil é, portanto, vista como uma interação entre
a criança e o contexto em que ela está – incluindo, em particular, outras pessoas e a
própria ação de conhecer.
Para Lydia Hortélio (2003), todo sistema armado nas escolas para receber as
crianças é antiquado. Porém muita gente despertando para a ação de brincar na
infância. Brincar é preciso e favorecer espaços e tempos para levar a criança a
brincar é uma tarefa inadiável. Deve-se brincar para se divertir, para ser feliz, para
afirmar a vida.
Se alguém quiser brincar para aprender, não é mais brinquedo, porque o
brinquedo tem um fim nele mesmo. Por que brincar de roda? Porque é uma
maravilha: mão na mão, esquecer quem é você, embarcar no sonho
daquela hora... Brincar é só isso. Mas isso não significa que as crianças não
estão aprendendo, estão aprendendo e muito mais do que a gente
consegue ver. O brinquedo é múltiplo. Ele mexe na alma. Na hora em que a
gente entende isso, não tem mais medo de dizer que está brincando
(HORTÉLIO, 2003, p.22).
A autora sente que na formação do educador ainda o existe uma
compreensão do significado e da importância da cultura da criança, pois encontra
educadores aprisionados num sistema de educação que não leva em conta o
sensível, a inteligência sensível, a inteligência do corpo. A espontaneidade é a força
que a criança tem.
66
3.3 A creche como ambiente coletivo de aprendizagens lúdicas
Nos últimos 30 anos, com homens e mulheres compartilhando o mercado de
trabalho na classe média urbana , passamos por uma fase de transição onde a
educação dos filhos é delegada a outras pessoas. Homens e mulheres assumem
carreiras competitivas, então deveria se esperar que os dois também assumissem a
criação dos filhos. Conhecemos a importância e os benefícios de longo prazo de um
envolvimento estreito dos pais na vida de uma criança.
Aproximadamente 50% das crianças pequenas são agora cuidadas, durante
boa parte do dia, por outra pessoa que não os pais biológicos (...) Em outras
palavras, um grande número de bebês, crianças pequenas e pré escolares
está passando a maior parte de seus dias sem o cuidado de seus pais
(...)Sabemos que o cuidado de qualidade é fundamental para o ótimo
desenvolvimento de crianças pequenas. (BRAZELTON, 2002, p.14).
Um cuidado de qualidade envolve os relacionamentos. Compreendendo
melhor a dinâmica da vida, provavelmente compreenderemos melhor a dinâmica da
aprendizagem e o funcionamento de organizações complexas como a creche, a
escola, a sociedade e a cultura (MORAES, 2003).
uma ideia bem difundida de que a creche, enquanto local onde se
oferecem às crianças ocasiões de vida social com outras crianças e com uma
pluraridade de figuras adultas, seja por si só, um ambiente educativo. Em função
disto, Bondioli (1998, p.29), traz o termo “Pedagogia da relação” como uma
expressão pouco clara usada para designar a especificidade educativa da creche.
Esta é definida, em primeiro lugar, em contraposição a uma pedagogia que
considera a creche uma versão miniaturizada da escola materna. Nela, a
intervenção educativa age sobre o sistema de trocas sociais, utilizando-o como
instrumento de crescimento. As relações progressivamente se entrelaçam e se
complexificam, seja entre criança e adulto ou entre crianças no grupo de jogo: cria-
se um conjunto de significados compartilhados.
3.3.1 Explorando os limites
Estava chovendo aquela manhã quando cheguei à creche.
Encontro Mariana chorando e apontando para a rua. Gabriel
67
rola no colchão e Ricardo tenta pegá-lo. Mariana acalma-se
olhando os colegas. A porta para o pátio coberto estava aberta.
Tainara, Gabriel e Vinícius dirigem-se até e ficam parados
observando a chuva. Ricardo desce o degrau e sorrindo bate
palmas. Tainara aponta para chuva e olha para mim. Vinícius
sapateia sorrindo. Manuela desce do colo da profissional,
“conversa” comigo e vai para porta. Mariana aponta a chuva,
“chama a chuva” com a mão. Manuela e Samira vão até a
porta. Samira “fala com a chuva” e desce o degrau correndo no
pátio. Mariana engatinhando desce o degrau, fica feliz,
sorrindo, cantando.
Neste trecho da observação, vemos a exploração, a autonomia, o
aprendizado com o grupo, o arriscar-se, o ir mais longe, o prazer na conquista, a
ludicidade. Isto foi possível pela permissividade, pelo olhar atento e de aprovação
do adulto. O contexto deve permitir que a criança progressivamente conquiste sua
autonomia, apropriando-se, elaborando, brincando, construindo-se, usufruindo de
experiências diversificadas.
Conforme Bondioli e Mantovani (1998) autonomia não significa separação,
significa, pelo contrário, segurança na relação e capacidade de modular, por parte
da criança, as suas exigências de contato ou de controle à distância do adulto.
Permitir que as crianças tomem iniciativas, realizem ações autônomas, favorece um
comportamento mais estável em que a motivação intrínseca àquilo que se faz é
confirmada e reforçada.
Na creche, muitas vezes o número de crianças não permite constantes
intervenções lúdicas do adulto e isto torna-se preferível, a observação participante,
na qual os materiais são provocativos e o ambiente, seguro. Assim, a criança terá o
espaço adequado para realização e experimentação de ações autônomas
entendidas como o prazer da criança de escolher e de estar com os outros e de
brincar, de pedir ajuda do adulto ou de experimentar por si mesma (BONDIOLI,
1998).
No âmbito da “pedagogia da relação”, as interações das crianças não são
vistas como a capacidade de adequar-se a regras estabelecidas, mas pode ser
compreendido, em um sentido mais amplo, como tudo aquilo que permite, favorece,
68
ajuda na construção, por parte da criança, da própria identidade pessoal. Para
Bondioli e Mantovani (1998) a creche deve colocar-se como um contentor afetivo em
sua função de integrador de múltiplas experiências entre crianças e adultos.
No contentor relacional/afetivo da creche, as crianças elaboram e constroem
significados compartilhados e, utilizando os coetâneos e os adultos, espaços e
percursos, onde se movimentam, e objetos com os quais brincam. A criança tem
uma ação concreta e isso implica também em uma cuidadosa organização do
ambiente e dos objetos. O adulto direciona os objetos em atividades que os tornem
significativos. Para Bondioli e Mantovani (1998), trata-se de uma “didática” do fazer
que não refere-se a atividades específicas por meio das quais se incentivam
particulares aprendizagens e cuja meta não é constituída pela obtenção de
habilidades parceladas, mas por um convite à ação autônoma. Neste processo, é
fundamental a manipulação e a exploração dos objetos e dos diferentes materiais.
Mas trata-se de exploração e descoberta que pode ser solicitado, não imposto ou
ensinado.
Moyles (2006) traz o diálogo de uma criança de 5 anos:
Criança: Quando eu brinco com meus amigos nós nos divertimos muito...
fazemos um montão de coisas... pensamos tanta coisa... e... hã. Adulto:
Você acha que aprende alguma coisa?Criança: Montes e montes de coisas
não tipo contas de somar, livros e coisas assim... mas coisas... hã...
coisas de verdade!
3.4 O adulto como co ator ou como autor
O papel do adulto na creche é decisivo e essencial, embora diferente do papel
de babá, dos pais ou do professor. Tem a vantagem de possuir uma experiência
cotidiana e continuada com a criança pequena e seus pais. Sua intervenção deveria
ser muito próxima à lógica lúdica da criança. Segundo Bondioli (1998), a mais
“interna” possível à experiência infantil, evitando rupturas, mas sem perder a função
de sustentação e de guia. O adulto deve ter capacidade de entrar no jogo infantil
como um companheiro que deixa a criança livre na escolha dos temas, na
distribuição dos papéis, no controle do andamento e, ao mesmo tempo ter um papel
ativo de coautor. Essa capacidade depende da possibilidade que o adulto possui de
brincar com o seu próprio papel. Para entrar no jogo “na medida da criança”, o
adulto é obrigado a abandonar o papel de ‘adulto que brinca com a criança’. Sem
69
entrar no mérito dos processos intra-psíquicos aqui implicados, instaurar-se-ia,
então, entre o adulto que brinca “como se fosse criança” e a própria criança, uma
dialética mágica e lógica que enriqueceria a experiência lúdica de ambos.
3.4.1 Direcionando o brincar: o adulto como ator
Estava um dia lindo, chego e atravesso a sala, as crianças
maiores estão no pátio, Mariana, 11meses consegue descer
o degrau de pé agarrando-se à porta. Para e olha-me, sinto um
ar de vitória e satisfação em seu olhar que quis compartilhar
comigo. Engatinha até onde estou, agarra-se nas minhas
pernas pedindo colo, conversa e aponta para um gato que
estava no pátio ao lado. Ricardo1ano e 2 meses vem correndo
e junta-se a nós, agarra-se ao portão e procura o gato. Uma
das educadoras traz uma caixa de papelão cheia de bolas e vai
distribuindo. Mariana caminhando trazia a bola para mim,
sempre sorrindo. Ia até o portão, jogava a bola e mostrava para
mim. Manuela começou a jogar a bola para mim, olhando-me
mais séria, esperando minha reação, devolvi a bola para ela.
Ricardo e Gabriel corriam chutando as bolas até o muro e
voltavam. Todos estávamos nos divertindo. Kevin engatinhava,
depois levantava agarrando-se ao muro sempre conduzindo a
bola. Nisto veio a educadora, recolheu as bolas e reuniu todos
no colchão dentro da sala, sentados, para cantarem(senti como
se fosse uma apresentação para mim). Alguns choraram,
outros tiveram que ser levados. Eu também queria ter brincado
mais.
Cria-se uma cumplicidade entre adulto e criança que brincam juntos que irá
oferecer à criança uma gama de possibilidades lúdicas posteriores em relação
àquela que poderia experimentar sozinha ou com colegas, segundo Bondioli e
Mantovani (1998), além de permitir ao adulto a redescoberta de aspectos de sua
infância esquecida.
70
A redescoberta, a compreensão, o reconciliar-se com sua própria infância
talvez seja um dos aspectos do profissionalismo dos educadores mais descuidado,
menos estudado que, no controle do jogo, possui um papel central, pois sem a
identificação da realidade infantil, torna-se difícil, senão impossível, permitir, facilitar,
potencializar também nas crianças aquele relacionamento satisfatório e criativo com
o mundo que é ativado pela dimensão lúdica (BONDIOLI, 1998, p. 227).
Em relação à intervenção do adulto, autores que a consideram não
importante, mas necessária referindo-se, por exemplo, ao brincar de faz de conta
como Kitson, (apud MOYLES, 2006, p.119) quando diz:
Não estamos de forma alguma sugerindo que as crianças devam ser
privadas do brincar de faz de conta de ‘fluxo livre’. O que estamos dizendo é
que este brincar pode ser expandido por meio da intervenção direta do
adulto com mínimas mudanças qualitativas na atividade, mas com
diferenças muito significativas no potencial de aprendizagem para a criança.
Entende o envolvimento do adulto como a maior contribuição que ele possa
dar ao brincar imaginativo da criança. O jogo que é regido pela ambiguidade entre a
magia e a realidade, entre símbolo e coisa representada, resultaria potencializado,
pois o adulto saberia, de maneira controlada, introduzir no jogo, sem alterar a
qualidade, elementos novos e variados. Para que isto aconteça é necessário que o
adulto preste muita atenção na progressão evolutiva da criança com quem brinca,
que saiba reconhecer não somente as atividades lúdicas imediatamente satisfatórias
para a criança, mas que saiba intuir quando a criança está pronta para um salto de
qualidade, intervindo com propostas de jogo inéditas ou mais complexas (BONDIOLI
e MANTOVANI, 1998, p.227).
Observei opiniões completamente opostas em relação ao brincar por parte
dos educadores, muitos concordando com a opinião da professora sobre “a
necessidade das crianças serem ensinadas a brincar” e que foi uma das
perturbações que deu início à minha pesquisa. Convém aqui, sublinhar alguns
comentários sobre os tipos de brincar considerados na educação. Smith (2006) traz
Piaget que distingue o brincar simbólico que inclui o brincar de faz de conta, de
fantasia e sócio dramático e ocorre dos 2 aos 6 anos; o brincar prático
especialmente dos 6 meses aos 2 anos abrangendo o brincar sensório motor e
exploratório e os jogos com regras das crianças a partir de 6, 7 anos. Não foi
considerado o brincar antes dos 6 meses de idade.
71
Smitth (apud MOYLES, 2006) cita autores como Angela Anning e Tina Bruce
que argumentam que as atividades do brincar podem promover a maioria dos
objetivos da educação nos primeiros anos em todos os seus principais aspectos:
social, intelectual, criativo e físico. No entanto, considera que estes objetivos podem
ser facilitados por muitas outras atividades mais estruturadas e didáticas, jogos
organizados, exercícios físicos, narração de histórias e tarefas da vida real.
Essas atividades não são necessariamente brincar (a menos que
ampliemos a definição de brincar de modo inaceitável, incluindo nela todos
os comportamentos das crianças pequenas!). Os benefícios do brincar
precisam ser comparados com os benefícios das atividades de não brincar
(SMITH apud MOYLES, 2006, p. 28).
O brincar não era visto como valioso em termos educacionais quando as
escolas de educação infantil começaram a ser introduzidas na Europa Ocidental nos
séculos XVIII e XIX. Acreditava-se que as crianças precisavam de instrução e, no
caso, de doutrinas religiosas. Alguns autores e educadores como Comenius,
Rousseau e os primeiros reformadores sociais e educadores como Owen (Reino
Unido), Pestalozzi (Suíça), Froebel (Alemanha) e Montessori (Itália) começaram a
valorizar, no crescimento da criança, a espontaneidade aparecendo o brincar
espontâneo como elemento importante na educação. Além disso, o valor do
envolvimento ativo dos professores era enfatizado, variando conforme o tipo de
atividades recomendadas. Montessori, por exemplo, priorizava as atividades do
brincar construtivo com materiais planejados, mas não incentivava o brincar de faz
de conta ou o jogo simbólico (MOYLES, 2006).
No período de 1930 a 1970 o brincar espontâneo e o brincar dramático
ganharam destaque na educação inicial da Europa Ocidental. O brincar espontâneo
passou a ser visto como componente essencial do processo social e intelectual da
criança e de seu desenvolvimento criativo e pessoal. Esse ponto de vista pode ser
chamado de “etos do brincar” e pode ser apoiado por argumentos de perspectivas
teóricas como a psicanálise e a teoria evolutiva (MOYLES, 2006).
Nós sabemos agora que o brincar- no sentido de fazer alguma coisa, quer
com objetos materiais quer com outras crianças, e de criar fantasias – é vital
para a aprendizagem das crianças e, portanto, vital na escola. Os adultos
que criticam os professores por permitir que as crianças brinquem não
sabem que o brincar é o principal meio de aprendizagem na primeira
infância (MOYLES, 2006, p.29).
72
Para Smith (2006) não existem muitas evidências sólidas confirmando esta
visão positiva do brincar espontâneo. Muitos educadores e psicólogos infantis
continuam divididos e inseguros a respeito da importância do brincar espontâneo na
educação das crianças e a respeito do papel do adulto. Embora o “etos do brincar”
continue influente, houve um certo retorno às atividades curriculares mais
estruturadas na Europa Ocidental, especialmente desde o advento do Currículo
Nacional, com o Education Reform Act
19
de 1988, no Reino Unido.
Apesar da diversão e da aprendizagem que podem ocorrer pelo brincar
livre, certas formas de brincar podem se tornar muito repetitivas. Portanto,
os educadores tem o papel chave de ajudar as crianças a desenvolver o seu
brincar. O adulto pode, por assim dizer, estimular, encorajar ou desafiar a
criança a brincar de formas mais desenvolvidas e maduras. (SMITH apud
MOYLES, 2006, p.30)
3.4.2 Brincar de faz de conta
Quanto ao brincar de faz de conta, sócio dramático ou imaginativo, Kitson
(apud MOYLES, 2006) reconhece suas funções terapêuticas, diagnósticas e
cognitivas. Ajuda a criança a assimilar informações a esquemas existentes e a
começar a acomodar novas informações para se preparar para situações
desconhecidas, a desenvolver habilidades sociais das quais precisarão mais tarde
na vida, assim como auxilia no desenvolvimento da moralidade e no da função social
dentro da criança. “Com a intervenção do adulto, no brincar imaginativo, nós
podemos ajudar as crianças a lidar com os elementos que não pareçam se encaixar
e a procurar razões por trás do óbvio.” O adulto, ao participar do brincar, pode
facilitar a implementação das regras e agir como um modelo comportamental a ser
copiado pelas crianças. Kitson (apud MOYLES, 2006) que salienta que para brincar,
nós precisamos compreender o que não é brincar. Parte disto é ajudar a criança a
diferenciar fantasia e realidade, para que saibam claramente quando estão e quando
não estão envolvidas na fantasia e também quando a brincadeira encerrou.
Ao participar do brincar sociodramático, o adulto pode aproveitar este
grande potencial de aprendizagem como uma maneira de trabalhar para
possibilitar às crianças suas maiores realizações realizações que amanhã
se tornarão o seu nível básico de ação real e raciocínio moral [...] não é o
envolvimento no brincar imaginativo o que é significativo para o
desenvolvimento da criança, e sim a intervenção ativa dos adultos nesse
brincar. As crianças precisam ser estimuladas a brincar com idéias,
conceitos e moralidade (MOYLES, 2006, p.116).
19
Ato de Reforma Curricular no Reino Unido em 1988 (MOYLES, 2006, p.30).
73
A mesma autora, considerando as crianças pequenas naturalmente
egocêntricas e com dificuldade de compartilhar, diz que o adulto pode agir como
facilitador, pois qualquer episódio de brincar sociodramático envolve exercícios de
imaginação compartilhada. Por meio de intervenções seletivas o adulto pode
monitorar a negociação de ideias infantis e ajudar as crianças a desempenharem
consistentemente o seu papel, isto é, pode auxiliar o desenvolvimento da história.
Uma das grandes vantagens dessa maneira de trabalhar é que, por meio da ficção,
muitas áreas de aprendizagem podem ser exploradas.
É importante lembrar que embora o adulto possa orientar e, em certa
extensão ampliar o brincar sociodramático, o brincar e a ação precisam ser
essencialmente das crianças. As suas idéias devem ser usadas [...]. Talvez
o adulto entre em uma ‘brincadeira’ sem a intenção de simplesmente fazer
parte do grupo, mas com o objetivo de fazer avançar a aprendizagem
infantil, de colocar obstáculos no caminho de sua história para que, pela
superação desses obstáculos, sejam criadas oportunidades de
aprendizagem (KITSON apud MOYLES, 2006, p.119)
O brincar sociodramático oferece um grande potencial de aprendizagem
para aqueles que trabalham com crianças pequenas. Estruturar o brincar
nos permite ampliar e intensificar a aprendizagem infantil. Por meio do
brincar sociodramático os educadores podem criar uma situação e uma
motivação que estimularão as crianças a se comportarem e a funcionarem
em um nível cognitivo acima da sua norma. A maneira mais efetiva de fazer
isso é o adulto intervir de forma simpática e, especialmente de forma
interativa, Ao participar do brincar sociodramático, os educadores podem
estimular, motivar e facilitar o brincar, encorajando as crianças a
funcionarem em um nível mais profundo do que aquele em que
funcionariam se fossem entregues a si mesmas (MOYLES, 2006, p 119
-120).
Smith (apud MOYLES, 2006) considera o tutoramento do brincar quando o
adulto ou professor iniciam a dramatização ajudando e sustentando a atividade das
crianças. Pesquisas desenvolvidas sugerem que o fator crucial é o envolvimento
adulto e não o encorajamento da fantasia.
Outro modelo para estruturar o brincar é o do High/Scope Curriculum,
desenvolvido nos Estados Unidos nos quais adultos e crianças planejam e iniciam
as atividades, trabalhado juntos ativamente. Parte da ênfase é que o adulto não
deve ser excessivamente invasivo; as crianças o devem ficar cercadas pela falta
do adulto nem dominadas por instruções, mas devem ter liberdade de ação para
desenvolver suas próprias ideias e ter sucesso ou para fracassar (MOYLES, 2006).
Não quero aqui discutir os currículos da educação infantil, mas tecer
comentários que permita destacar as divergentes opiniões principalmente quanto ao
74
papel do adulto e do educador na ação de brincar das crianças. “A importância disso
foi especialmente enfatizada por dois influentes psicólogos e educadores: Vygotsky,
na Rússia e Bruner, nos Estados Unidos. Suas ideias complementam as de Piaget
que não enfatiza muito o papel do adulto e da comunidade social como apoio à
aprendizagem” (MOYLES, 2006).
3.4.3 O adulto como co ator
Vygotsky argumentou que o adulto desempenha um papel chave como
auxiliar da aprendizagem infantil e lançou a ideia da zona de desenvolvimento
proximal (ZDP), área de desenvolvimento que a criança tem capacidade de manejar
e compreender com a ajuda do adulto (MOYLES, 2006).
Ideias semelhantes foram propostas por Bruner em seu conceito de
scaffolding. O adulto seria um andaime, um apoio necessário naquele momento,
podendo ser retirado mais tarde, quando a criança deixar de precisar dele. O apoio
deve ser adequado ao nível atual de desenvolvimento da criança e pode ser
removido depois que ela dominou aquela tarefa específica. Vem de encontro ao
conceito de Mãe suficientemente boa de Winnicott e sua tarefa de permitir que o
bebê torne-se independente.
As ideias de Vygotsky e Bruner são valiosas para quem trabalha em
educação infantil, ao indicar como os adultos podem de modo muito ativo,
intensificar e apoiar o brincar e o desenvolvimento da criança. Seja qual for o valor
dos currículos baseados no livre brincar, por um lado, ou das atividades estruturadas
por outro, também deve haver espaço para o adulto trabalhar com as crianças
individualmente ou em pequenos grupos, estruturando o seu brincar ou suas
atividades de uma maneira adequada em termos de desenvolvimento (MOYLES,
2006, p.38).
Verden-Zöller (2004, p.147), tem outro ponto de vista sobre o brincar. Diz que
vivemos o brincar quando brincamos. Conforme introduzimos propósitos e
intencionalidade na descrição de nossas ações ou nas reflexões que fazemos sobre
elas, dirigimos nossa atenção para além do presente do nosso fazer: nós a
desviamos para o que esperamos como resultado do nosso fazer. Ao proceder
assim, enquanto interagimos com outros seres humanos que não se movem como
75
nós, deixamos de vê-los, pois entramos num domínio de ações (num emocionar)
incongruente com eles.
A criança deve viver na dignidade de ser respeitada e respeitar o outro para
que chegue a ser um adulto com o mesmo comportamento, mas não é
restringindo de uma forma ou de outra a conduta da criança que vamos
conseguir isto. O respeito forçado nega a si próprio. A criança deve crescer
na biologia do amor e não da exigência e da obediência” (VERDEN-
ZÖLLER, 2004, p.19-20).
Conforme salienta Brazelton (1969, p.281), a criança pequena “demonstra
resistência a ser empurrada para hábitos que não combinam com o seu estilo, uma
resistência apoiada por todas as forças e capacidades inerentes a uma
personalidade bem organizada, seja ela de um bebê ou de um adulto”.
momentos em que a ação mais adequada é ficar de lado e deixar que a
criança tome a iniciativa. A intervenção do adulto pode realçar ou desvalorizar o
brincar da criança, por isto devemos esperar até que precise de ajuda, mas ela o
virá nos avisar que o momento chegou. Perceber este momento é promover o
encontro entre a criança e o adulto, é a arte de ensinar crianças pequenas
(MOYLES, 2006; BONDIOLI e MANTOVANI, 1998).
Nas creches e escolas da infância italianas hoje, o adulto também é
convocado a aprender sobre a dinâmica do desenvolvimento infantil e sobre suas
próprias potencialidades artísticas, científicas e lúdicas. Ao mesmo tempo em que
sai do lugar de espectador das ações, dirigente ou ainda supridor das crianças
posições assumidas em outros momentos da história ocupa o papel de cenógrafo,
organizador de ambientes ricos e diversificados, parceiro mais experiente da criança
na produção de conhecimento.
Moraes (2003) destaca duas repercussões das ideias de Maturana e Varela
no âmbito da educação: uma que afeta a relação de aprendizagem, e a outra, a que
afeta as relações sociais que criam oportunidades de aprendizagem. A
aprendizagem não é vista como uma relação unilateral, mas como uma rede de
cooperação, onde todos aprendem e podem colocar de maneira aberta seus
talentos, potencialidades e deficiências. Para que a rede de cooperação seja
formada, é necessário que os envolvidos estejam presentes por inteiro.
Se, como adultos, nós estamos realmente “ligados nas crianças”, temos de
estar ligados no brincar como um processo que atravessa esse continuum
de experiências. A maioria das pessoas parece concordar que toda criança
tem o direito de brincar de fato, o Artigo 31 da United Nations Convention
76
on the Rights of Child (Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da
Criança) deixa isto muito claro. O que parece estar em discussão é se elas
tem o direito de fazer isto em contextos educacionais (MOYLES, 2006,
p.14).
Segundo Moyles (2006), “talvez um dos maiores atributos do brincar seja as
oportunidades que ele possibilita de aprendermos a conviver com o não saber” e
que o brincar é uma maneira não ameaçadora de manejarmos novas aprendizagens
mantendo, ao mesmo tempo, nossa auto estima e auto imagem.
O educador geralmente programa as atividades com as crianças dirigindo e
focando o trabalho em função dos resultados, quer preparar a criança para o futuro,
isto representa um paradoxo na educação infantil, porque a atenção da criança está
plenamente nas próprias atividades. A preocupação do adulto gira em torno do que
se quer ser e não do que se é. Quando o adulto recorre ao controle, geralmente
obtém um fracasso maior, porque na insensibilidade sobre o presente, gerada pela
manutenção da atenção no futuro, nega a criança.
Brincar é atentar para o presente. Uma criança que brinca está envolvida no
que faz enquanto faz. Se brinca de médico, é médico; se brinca de montra
num cavalo, é isso que ela faz. O brincar não tem nada a ver com o futuro.
Brincar não é uma preparação para nada, é fazer o que se faz em total
aceitação, sem considerações que neguem sua legitimidade. Nós, adultos,
em geral não brincamos, e frequentemente não o fazemos quando
afirmamos que brincamos com nossos filhos. Para aprender a brincar,
devemos entrar numa situação na qual não podemos senão atentar para o
presente (VERDEN- ZOLLER, 2004, p. 231).
Para Belotti (1979, p.106) a pedagogia dos pequenos deveria possibilitar
“meios e recursos para as suas explorações, e também seria necessário respeitá-las
e deixá-las em paz.“ A pesquisadora faz duras críticas ao intervencionismo do adulto
na relação “autoritária e unidirecional” que estabelece com a criança salientando a
urgência de uma revisão, especialmente no que concerne ao papel do educador.
A Proposta Pedagógica Nacional Italiana pontua que cabe ao profissional de
educação infantil “compreender a lógica que está na base de suas (das crianças)
respostas.” (BELOTTI, 1979, p.87). Para Gianni Rodari (1982), lógica e imaginação
caminham juntas. Cagliari Galli (apud FARIA, 1993, p.150) explicita a necessidade
dos educadores equilibrarem um “tempo maior necessário para o desenvolvimento
da fantasia, com outros tempos diferenciados, para outros tipos de atividade.” Para
ela adultos e crianças devem ter a oportunidade de agir esta ação é conceituada
como o poder humano de gerar o novo, mover novos processos através da rede de
relações humanas. No ambiente das instituições de educação infantil um
77
constante chamamento ao fazer “as crianças elaboram e constroem significados,
compartilhando e utilizando os coetâneos e os adultos, espaços e percursos onde se
movimentam e objetos com os quais brincam. (BONDIOLLI e MANTOVANI, 1998
p.31). A construção coletiva e troca de experiências no grupo dão corpo ao dia-a-dia
na creche colocando em ação interativa adultos e crianças.
O educador é convocado a favorecer as condições de ação das crianças, ter
sensibilidade e disponibilidade, estabelecer cumplicidade. Assim, a ludicidade, a
continuidade e a diversificação das experiências garantirão a produção de
significados, fundamental na estruturação das aprendizagens. O profissional deve
dispor de elementos de competência necessários para intervir adequadamente no
desenvolvimento de suas capacidades, aspirações e tendências.
Quem dera tenhamos escolas de educação infantil que possibilitem a adultos,
professores, diretores, gestores, orientadores, enfim, a quem seja, encontrar esses
devires minoritários que inspiram a interromper o que está dado e propiciar novos
inícios.
78
4 O ESPAÇO E O LUGAR DO BRINCAR NA SOCIEDADE DE CONSUMO
4.1 Sociedade de consumo x Espaço potencial
Considero importante, neste momento do estudo, interrogar o contexto atual
em que o bebê a criança pequena chegam inseridos, sabendo de toda a influência
que tem as informações, as mensagens e o afeto na significação de suas
experiências, no esforço das suas tentativas, na constituição dos seus fazeres com
outros, suas brincadeiras.
Em uma organização viva, autonomia é sempre relativa, como nos ensina
Morin, pois depende do que está acontecendo ao seu redor, da sua
interdependência em relação ao meio na qual está acoplada. Como seres vivos
estamos determinados em nossas estruturas, ao mesmo tempo em que
codependentes das circunstâncias que nos envolvem. Nossa autonomia depende de
nossa profunda dependência exterior. Somos relativamente autônomos e
profundamente dependentes de nossos fluidos nutridores, das informações que
circulam e do conhecimento que construímos, desconstruímos e reconstruímos a
cada instante. Isolado do contexto onde foi criado, nenhum modelo faz sentido
(MORAES, 2003, p.265).
4.1.1 Novos lugares
79
A criança contemporânea está inserida em condições de história e de cultura
que produzem uma infância diferente da infância do início do século, ou seja,
diferente da infância de Winnicott. A condição sócia histórica e cultural recente, a
falta do espaço ao ar livre da população urbana, a crescente ocupação da criança
pela televisão, o que favorece a política do consumo, instaura novas percepções e
reconhecimentos que a criança pode fazer a respeito de si mesma e do mundo que
a rodeia (CASTRO, 1998).
Mudaram os espaços que estamos oferecendo para os bebês e os pequenos.
Contemporaneamente, as crianças, assim como os jovens e adultos, passam a
circular em espaços cada vez mais diferenciados e compartimentalizados, tornando
possível que novas socialidades se configurem nestes espaços. Os espaços livres
das ruas outrora utilizadas pelas crianças urbanas para suas brincadeiras agora se
tornaram extremamente habitados pelos carros parados ou em movimento e palco
de violência. A rua perde assim, o lugar onde a expressão coletiva do lúdico
através das brincadeiras entre as crianças- ganhava acolhimento. A criança expulsa
das ruas, principalmente dos bairros mais centrais da cidade grande, vão se
restringir aos espaços fechados, onde muda a natureza da brincadeira (CASTRO,
1998).
As ruas deixam de ser palco de convivência e se tornam caminhos a seres
percorridos para se chegar a outro lugar, lugares de trânsito e circulação,
onde reaprendemos a olhar e a perceber de modo a nos distanciar afetiva,
gestual e fisicamente dos demais e das coisas. A rua torna-se paisagem
olhada à distância e com “calculada” indiferença (CASTRO, 1998, p.59).
Brazelton (2003) traz um relato feito pela fundação Kaiser
20
que revelou que
as crianças passam cinco a seis horas por dia na frente da televisão ou da tela do
computador. Durante este tempo as crianças não recebem afeto ou interações
sociais ou intelectuais adequadas a sua idade. Diz que isto é apenas um sinal do
movimento em direção ao cuidado impessoal. Muitas famílias estão excessivamente
ocupadas e em seus relacionamentos uns com os outros também estão se voltando
para formas mais impessoais de comunicação. E-mails, estão substituindo almoços
juntos e o tempo na frente da tela toma o lugar de muitas formas de interação
pessoal.
20
Kaiser Foundation Kids and the Media in the New Millennium, Publication Nº 1536, Menlo Park, CA,
2000 (in BRAZELTON, 2002, p.15).
80
4.1.2 O desencontro
Diminuem os encontros, a criança fica desassistida mesmo com adultos por
perto. Na classe média e alta, cada um no seu quarto, não há trocas, a comunicação
televisiva vai se sobressaindo a qualquer outro tipo de comunicação, substituindo a
interação com os pares e com os adultos, de modo que a informação que a criança
obtém da tevê passa, muitas vezes a se constituir como o único e prevalente
instrumento de construção da realidade (CASTRO, 1998).
Com certeza é mais fácil deixar o filho na frente da televisão ou do vídeo,
vir do trabalho com o último lançamento para ter sossego ou poder dar continuidade
aos negócios e tarefas domiciliares. Pode parecer muito difícil sentar no chão e
brincar de casinha ou até mesmo ficar ao lado para assistir ao filme respondendo a
uma série de perguntas e indagações. Depois de um dia sobrecarregado de
atividades e problemas ainda ter que dar atenção aos filhos pode ser exigir demais,
às vezes estamos com eles pensando no que nos espera no trabalho amanhã. É
esta parceria que as crianças estão perdendo.
Verden-Zöller (2004), explica que se estou com minha filha pensando no
trabalho ou vice versa, vivo uma contradição emocional. O problema suscitado por
esta circunstância é que se a mãe está com sua filha sentindo falta de sua
realização profissional, ela e a criança não estão juntas, pois se rompeu a aceitação
mútua.
Se a atenção da e muda continuamente para outra parte, distante de sua
filha, a criança desaparece. Pode ser que a mãe a tenha em seus braços e pense
que está brincando com ela, mas tal não acontece. A mãe exerce uma conduta
descrita como brincadeira, mas não está brincando. Quando isso ocorre a uma
pessoa, ela está consciente de que algo falta em sua relação e culpa a si mesma ou
à criança. A criança pequena não consegue expressar em palavras o que lhe
acontece, apenas desaparece pouco a pouco e se transforma em um ser distante:
então chora ou fica doente (VERDEN ZÖLLER, 2004).
Com frequência, dificuldades no comportamento de algumas crianças e até
sintomas físicos tem origem em problemas na relação com seus pais. Distúrbios na
sintonia, no tom, como se não se encontrassem, não estivessem no mesmo lugar e
no mesmo tempo; talvez o melhor termo seja espaço, pois segundo Michel de
Certeau (1994, p. 201),
81
Um lugar é a ordem (seja qual for) segundo a qual se distribuem elementos
nas relações de coexistência. se acha, portanto excluída a possibilidade,
para duas coisas, de ocuparem o mesmo lugar. impera a lei do “próprio”:
os elementos considerados se acham uns ao lado dos outros, cada situado
num lugar “próprio” e distinto que define. Um lugar é, portanto uma
configuração instantânea de posições. Implica uma indicação de
estabilidade.
[...] Existe espaço sempre que se tomam em conta vetores de direção,
quantidades de velocidade e a variável tempo. É de certo modo animado
pelo conjunto de movimentos que se desdobram. Espaço é o efeito
produzido pelas operações que o orientam, o circunstanciam, o
temporalizam e o levam a funcionar em unidade polivalente de programas
conflituais ou de proximidades contratuais. Diversamente do lugar, não tem,
portanto nem a univocidade nem a estabilidade de um “próprio”. Em suma, o
espaço é um lugar praticado.
Penso que mãe e bebê não se encontram no mesmo espaço. Winnicott
(1971), diria que não se formou o espaço potencial entre eles. A mãe não estava
sincronizada com as necessidades da criança para atribuir significado à
intencionalidade e à expressão, não estava no lugar onde o bebê precisava
encontrá-la para achar que a criou. Não houve espaço para o brincar.
Vivemos numa cultura que continuamente nos exige que prestemos atenção a
algo diferente do que estamos fazendo num dado momento. Isso acontece, por
exemplo, quando faço o que faço com minha atenção posta no que vou obter.
Verden Zöller (2004, p.241) mostrou que na relação materno infantil sadia, a mãe,
ao brincar com seu filho, está realmente com ele. “Sua atenção não se separa da
criança mesmo quando, em seu olhar sistêmico, tenha presente todo o entorno
doméstico. Brincar não é de maneira alguma uma preparação para ações futuras.” A
autora destaca a relação materna infantil se dá no brincar como uma relação de total
aceitação e confiança no encontro corporal da criança e da mãe, com a atenção
desta posta no encontro e não no futuro ou na saúde do filho; não no que virá, mas
sim no simples fluxo da relação; atenção essa, fundamental para o desenvolvimento
da consciência corporal e para lidar com o espaço.
Na cultura ocidental muitos de nós perdemos a capacidade de brincar pelo
fato de estarmos continuamente submetidos às exigências do competir,
projetar uma imagem ou obter êxitos numa forma de vida onde lutamos pela
existência. Para que uma mãe esteja no presente com seus filhos, deve
voltar sua atenção para o que ocorre nesse instante. Ela pode fazer isso por
meio de interações com seus filhos que ocorram no brincar, ou seja, na
mútua e total aceitação, sem expectativas que desviem o olhar para longe
desse presente (VERDEN ZOLLER, 2004, p.140).
82
Castro (1998, p.15) coloca a relação da criança com a televisão e os meios de
comunicação em massa como que concorrendo com a autoridade e a experiência
materna e paterna e inserindo em outras redes simbólicas de subordinação cultural.
No entanto, esta relação distancia-se do modelo pedagógico de educação familiar e
“diferentemente do apelo à autoridade e à tradição utilizam-se do apelo ao consumo
e do apelo ao arrebatamento pelo olhar”.
4.1.3 Novos desejos
“Ser” criança neste final de século significa constituir-se a partir das condições
singulares que hoje se tornaram presentes e significativas no nosso cotidiano. Nesse
sentido, a cultura de consumo promoveu uma vertiginosa expansão e diversificação
de mercadorias e bens, como também instalou uma nova compreensão a respeito
do “mundo das coisas”. Assim, de meros objetos, as coisas se tornaram porta vozes
dos gostos, dos interesses e dos valores subjetivos. A demanda, a oferta e a
distribuição destes bens determinam estilos de vida e a posição estrutural dos
sujeitos e dos grupos nas interações sociais. Consequentemente, grandes
mudanças podem também ser observadas no âmbito das identidades. “Nesse
sentido, consumir, e o que consumir, adquire uma importância decisiva para definir
“quem é quem” no mundo social” (CASTRO, 1998, p.58).
Além do ato de adquirir, a cultura do consumo também cria e perpetua
desejos em relação ao que não se tem e se articula à condição de que o desejo
humano não se satisfaz jamais, sendo constantemente ativado pela ausência de
algo que nos falta. Os sujeitos humanos são então susceptíveis à falta, o que incita a
novas necessidades de consumo. É importante lembrar que as crianças de hoje
nasceram e estão crescendo neste meio cultural, sendo constituídos pela
experiência de que as demandas de consumo se renovam constante e
permanentemente (CASTRO, 1998).
Parece, então, que a construção do sentido de realidade na
contemporaneidade, revela-se por um antecipar da dissolução dando lugar
a expectativas de esvaimento acelerado do que se apresenta ao mesmo
tempo em que favorece a aceitação prazerosa de tudo que se desmancha
83
rapidamente e não deixa resíduo. Assim, o sentido de realidade perde sua
consistência mais lida de outrora para dissipar-se na volatização do
momento. Este processo é tematizado, na teorização atual sobre a
contemporaneidade em torno da saliência da imagem [...] o mundo parece
repleto de cenas a serem devoradas pelo olhar (CASTRO, 1998, p.59).
A cultura do consumo é apoiada pelas imagens veiculadas na mídia, as quais
constato ao assistir canais infantis com a minha filha de três anos: É intenso o
bombardeio de propagandas e anúncios atraentes, maravilhosos, ousados e
hipnóticos de produtos, brinquedos e filmes. Consequentemente, ela quer tudo ou
“quase tudo” (pelo menos mostra interesse em adquirir) e, confirmando a narrativa
de Castro (1998, p. 60), passa a consumidora, “uma consumidora em potencial”,
que não tem o poder aquisitivo para adquirir, ela mesma, os bens, necessitando da
aquiescência dos pais para tornar o consumo realidade.
Castro (1998) considera que desta forma, não mais como futuros cidadãos, os
novos sujeitos consumidores usufruem de reconhecimento social e de um lugar
indisputável na cultura, agora não mais invisíveis por não poderem trabalhar ou
produzir, mas eminentemente agentes, porque podem consumir. Neste sentido, as
crianças aparecem adquirindo potência e agência, enquanto novos atores da cultura
contemporânea.
O caráter sedutor e apelativo das práticas de consumo reside, justamente,
na oferta de um caminho encurtado para a criança se tornar visível e
reconhecível para os demais. Enfim, as práticas de consumo curto circuitam
o longo e demorado caminho baseado na promessa de recompensa tardia e
na identificação com os mais velhos e, portanto, na construção de si
mesmo. A ideologia consumista garante o ser por uma contingência
imediata que é a do possuir. Na verdade, o caráter constitutivo de ser,
enquanto um processo laborioso perde sua importância frente às demandas
do transformismo imediatista obtido pela simples exibição de objetos. [...] As
coisas capacitam os sujeitos e se convertem no critério absoluto de
definição do valor subjetivo (CASTRO, 1998. p.63).
Diante desta afirmação, e pensando no tema dessa pesquisa objeto da
pesquisa que é o brincar, retomo o pensamento de Winnicott (1971, p.63) que “ser é
fazer, brincar é fazer, porém primeiro ser.” Talvez, o modo de viver em sociedade
esteja tirando das crianças o direito ao brincar. Não muitos espaços para que
elas possam fazer, possam criar, não há tempo nem para olhá-las. Muitas vezes,
nem nos preocupamos em selecionar os programas mais adequados na televisão e
passamos para a creche ou a pré-escola a responsabilidade pelas opções e pela
educação, a “disciplina”, escolhendo ao oferecer o “melhor” programa pedagógico,
84
os melhores atrativos e mais altos resultados. Estamos nos voltando para caminhos
impessoais de interação com as crianças sempre pensando em trabalhar para poder
comprar tudo que pedirem, tudo que precisarem, tudo que lhes falta, até antes que
peçam para suprir a ausência, o afastamento, o cansaço ou para que não reclamem,
fiquem quietinhos “brincando”, sozinhos e adormeçam assistindo a televisão.
A passagem de um papel passivo para um papel ativo é básico em muitas
ações lúdicas. Temos que pensar como a criança pode assumir este papel no
contexto atual. “Quando o contexto muda, as brincadeiras mudam. Pode-se dizer
então que o ambiente é a condição para a brincadeira e, por conseguinte, a
condiciona” (KISHIMOTO, 1999, p.68).
4.1.4 A infância perdida
É imprescindível recuperar este tempo da criança, este espaço do brincar.
Como a criança pode ter papel ativo recebendo tudo pronto na frente da televisão?
Castro (1998, p.178) constata que a imagem da criança “caçador”, “explorador” é
parte de um cenário que vem se perdendo quando observa os efeitos da mídia e da
sociedade de consumo que hoje determinam no mundo infantil os novos jogos,
novos brinquedos e novos programas.
Assim como “abandonada” na frente da televisão, perante os brinquedos cada
vez mais sofisticados que fazem tudo, a criança também fica como um espectador
simplesmente assistindo passivamente. Apertando um botão e a maravilha
eletrônica deixa poucas alternativas à experimentação da criança, talvez uma atitude
mais ativa seja desmontá-lo e destruí-lo. Os brinquedos de hoje caracterizam a
“pedagogia do prazer” que se antecipa ao próprio desejo da criança ou corresponde
ao desejo dos adultos que direcionam a indústria do lazer e da diversão (CASTRO,
1998, p.178).
Conforme Benjamin (2002, p.91), uma emancipação do brinquedo põe-se a
caminho; quanto mais a industrialização avança, tanto mais decididamente o
brinquedo se subtrai ao controle da família tornando-se cada vez mais estranho não
só às crianças, mas também aos pais.
A criança não sabe esperar e estas mensagens do imediatismo são os
adultos que transmitem. Antes mesmo da criança pedir, o brinquedo aparece, ele
não precisa imaginar. Antes mesmo da noite de Natal os presentes são distribuídos
e muitas vezes não agradam plenamente as crianças que se divertem mais com o
85
papel ou a embalagem, frustrando a expectativa dos pais que se sentem
desvalorizados. Mais uma vez vemos um desencontro nas relações entre as
crianças e os adultos. A atitude da criança poderia ter deixado a mensagem de que
“basta, não quero mais, quero inventar meus brinquedos.” Os pais compram em
excesso traduzindo o afeto em presentes.
Para Benjamin (2002, p.100), se até hoje o brinquedo tem sido
demasiadamente considerado como criação para a criança, quando não criação da
criança, assim como o brincar tem sido visto em demasia sob a perspectiva do
adulto. Sob a ótica do adulto, Belli (1998) faz uma análise do espetáculo em que
foram transformadas as festas infantis na sociedade capitalista. O tempo está
programado, o adulto direciona as brincadeiras, geralmente jogos competitivos.
Tudo tem hora marcada, não se pode atrasar abrindo os presentes que ficam
guardados para outro momento. A surpresa é adiada, o imprevisível é recusado.
A autora afirma que o espaço de liberdade, espontaneidade e
descompromisso na infância parece estar cada vez estreitando mais. A questão da
competição é forte e autorizada, estimulada. Com os pais ausentes do cotidiano dos
filhos, este “espetáculo do sonho” surge como ilusão do preenchimento das faltas, a
promessa de alegria, sem, no entanto considerar uma reflexão anterior acerca do
desejo ou adequação da criança. Muitos não aproveitam, choram e a exuberância
da técnica impede o lugar da experiência, do contato, das descobertas.
Outra reflexão apontada é a expansão que toma este mundo dos objetos que
saem do espaço restrito das lojas de brinquedos e roupas infantis para entrarem nos
produtos alimentícios, de material escolar entre outros. Cada nova superprodução
de filmes ou seriados infantis invade o mercado apelando para compra de mais
produtos. A “febre do consumo” instala-se muito cedo nas crianças devido à
violência do mercado publicitário. Muitas vezes, diante de tantos objetos, a criança
acaba se desinteressando rapidamente e querendo outras novidades.
A existência de uma pluralidade de faltas e desejos é tão avassaladora, que
transforma a experiência e propõe outros caminhos de subjetivação que se instituem
a partir de novos espaços, como o da mídia, do consumo e da supervalorização da
técnica. A criança aos 2, 3 anos, está inserida na sociedade de consumo,
frequenta shoppings, compra tudo o que deseja, comemora aniversários com
superprodução, televisão sem que haja uma seleção ou uma participação do
adulto.
86
Em uma época de demandas da mídia que vem em progressão acelerada
por meio dos programas de qualidade total e com o conhecimento de que o
brincar está sendo substituído pela televisão em muitas famílias, existe um
modo genuíno de que as crianças estão perdendo seu direito à infância
(MOYLES, 2006, p.131).
Mais fácil do que entender as demandas e necessidades da criança é
incorporá-las às demandas e necessidades dos adultos. Assim, rapidamente a
criança incorpora seus desejos às possibilidades de realização oferecidas pelo
consumo. A sociedade se solidariza, convencida em garantir à criança o crescimento
e o desenvolvimento acelerados, passaporte para o mundo adulto, mundo da
produção, da eficiência e dos processos de prazer intermediados pelo mundo da
fantasia e do consumo. É o tempo dos megabytes, onde o acoplamento da fantasia
com a realidade, desencanta quando o controle remoto, ao mudar de canal,
lembra-se da fragmentação da experiência e reflete o silêncio do sujeito, que é,
antes de tudo, espectador (BELLI, 1998, p.186-187).
As crianças ficam perdidas, extraviadas, fora do lugar, em uma sociedade de
adultos! O fascínio da televisão se apresenta para elas como um objeto total, não
frustra e não se ausenta. Winnicott (2000) lembra que o fornecimento de um
ambiente suficientemente bom na fase mais primal capacita o bebê a começar a
existir, a ter experiências, a dominar os instintos e se defrontar-se com todas as
dificuldades inerentes à vida. Quando não caos, surge um falso Eu que esconde
o Eu verdadeiro. O bebê, após o tempo de dependência absoluta, é exigido a passar
por pequenas frustrações para chegar à independência e à autonomia. Tudo ocorre
no espaço potencial.
Em circunstâncias favoráveis, o espaço potencial que é o espaço da
brincadeira, se preenche com produtos da própria imaginação criativa do
bebê. Nos desfavoráveis ausência do uso criativo de objetos ou seu uso
é incerto. Surge um eu falso e submisso e um fracasso prematuro da
fidedignidade ambiental; ocorre um perigo alternativo, o de que esse espaço
potencial possa ser preenchido com o que nele é injetado a partir de outrem
que não o bebê. Parece que tudo o que provenha de outrem, nesse espaço,
constitui material persecutório, sem que o bebê disponha de meios para
rejeitá-lo (WINNICOTT, 1971, p.141).
Não sabemos mais o lugar das crianças nem o nosso lugar em relação a elas.
Não mais espaço para o brincar livre, para o imaginar, para o ser alguém que
procura, para o “fazer” nesta sociedade massificada pelo “ter”. “O espaço para a
dúvida e para a angústia são fatores básicos na construção do eu e o indivíduo vai
87
assim se estruturado na lógica de realização de desejos, que universaliza o
imaginário [...]” (BELLI, 1998, p.186).
Para Tonucci (2005), a criança a ser considerada, a ser ouvida, a ser
defendida e amada é a criança de hoje com aquilo que sabe e que sabe fazer, com
seus sentimentos. A nova cultura da infância é a cultura do presente, da criança de
hoje.
Quem sabe possamos encontrar um tipo de sociedade que busca promover,
desencadear, provocar nas crianças e em nós mesmos essas intensidades criadoras
que podem surgir na abertura do espaço, no encontro entre uma criança e um
adulto (KOHAN, 2004). Oxalá possamos olhar mais para nossos filhos, sentarmos
junto, selecionarmos os melhores programas, encarnarmos os personagens e
pacientemente esperarmos para que descubram os seus caminhos. A criança tem
direito à infância na contemporaneidade.
Conforme crônica publicada no Correio Braziliense
21
por Dioclécio Ramos,
Presidente da Sociedade Brasileira de Pediatria, “infância é tempo projetado para o
ser humano viver na dimensão do lúdico, da liberdade criativa, do riso solto, da
imaginação livre. Brincar é doce magia que encanta o roteiro da evolução infantil.”
Eu digo que é o encontro entre crianças e adultos no mesmo mundo e a ponte entre
eles é o brincar. O autor segue dizendo que “não é apenas consumir brinquedos
que a indústria produz para entulhar o quarto das crianças e endinheirar o bolso dos
empresários. Não é crescer em brinquedotecas insalubres, entregues a cuidados
terceirizados. Nem reféns da virtualidade televisiva” Conclui que a infância está
seriamente ameaçada e pede socorro. Traz o diálogo entre os dois personagens
centrais do Sítio do Pica-Pau Amarelo que considera muito atual. Emília diz:
“Pedrinho, nós precisamos mudar o mundo”. “Nós quem, Emília?”, pergunta o
garoto. “Nós, as crianças, s que temos imaginação”, explica a brasileirinha
saudável.
4.2Imaginação criadora
Roza (1999, p.76-77) comenta que Freud, em seu artigo “O criador literário e
a fantasia” de 1908, destaca uma detalhada elaboração do conceito de fantasia e
suas expressões nos fenômenos lúdicos e na criação artística. Nessa comunicação
21
Adulteração da Infância, em 07.03.2010
88
Freud aponta o caráter de irrealidade dos jogos infantis e estabelece um elo de
continuidade entre estes e a criação literária. O brincar é concebido como uma
das primeiras manifestações da fantasia, um precursor da atividade imaginativa que
rege a produção literária e poética.
Nessa perspectiva torna-se relevante interrogar o espaço da imaginação no
encontro entre crianças e adultos, enquanto encontro que é propulsor da criatividade
e da ação lúdica representada pelo brincar, aproximando o pensamento do filósofo
Gaston Bachelard do pensamento de Winnicott.
4.2.1 Filosofia e psicanálise
Gastón Bachelard (1994), na década em que Winnicott apresentava seus
trabalhos na British Psycho-Analytical Society, faz uma distinção entre imaginação
formal e imaginação material. A imaginação formal seria resultado da postura do
homem como mero espectador do mundo, do mundo-teatro, do mundo-espetáculo,
exposto à contemplação do olhar analítico. Penso ser este conceito muito próximo à
definição dada por Winnicott (1971) de viver em submissão à realidade.
a imaginação material, seria uma forma de recuperar o mundo como
provocação concreta e como resistência a solicitar a intervenção ativa e
modificadora do homem: do homem artesão, manipulador, obreiro e
fundamentalmente criador, tanto na ciência como na arte. Winnicott continua nesta
linha de pensamento na formulação do conceito de viver criativo.
Winnicott apesar de ter tido contato com a psicanálise pelos estudos de
Freud, introduziu questionamentos e novas abordagens, considerando mais o lado
sadio do paciente do que o patológico. Segundo Júlio Campos (1996), Winnicott diz
que a psicanálise, na tentativa de abordar o tema da criatividade perdeu de vista o
aspecto principal: sempre a indagação é focaliza o lado negativo. O tema principal, o
do próprio impulso criativo continua sendo contornado. Cita as elaborações
psicopatológicas que concluíram ser a obra de Leonardo da Vinci derivada da
sublimação de seus desejos homossexuais e perverso ou que a criatividade de
grandes artistas com Vincent van Gogh e Salvador Dali era proveniente do fato de
terem enfrentado a morte de irmãos primogênitos muito precocemente em suas
vidas. Estas teorias reconhecem como propulsores da criação fatos como morte,
separação, tristezas e decepções em geral. Entendem que a criação se produz
89
através de um processo de superação, por exorcismo, destes acontecimentos
nefastos. O impulso criador se daria por superação do ódio e posterior
transformação (sublimação) em amor. Para Freud é a frustração que possibilita o
aparecimento do desejo. Diz ainda que a disposição para o viver criativo não está
ligado nem a idade nem a nenhum tipo de condição psicopatológica.
Bachelard (1994) não aceitava a visão psicanalítica freudiana que traduzia as
imagens, considerando-as como símbolos, esquecendo o domínio da imaginação.
Dizia que a psicanálise negligenciava muito frequentemente o aspecto realista, o
aspecto materialista da vontade humana e que o trabalho sobre os objetos, contra a
matéria não nos permite que nos enganemos a respeito de nossas próprias forças.
Para Bachelard, esta força transformadora e criadora é que comanda a mão,
entendo também o nosso agir, nesta resistência imposta pelo mundo. Mundo, não
entendido somente como espetáculo para visão. Para Bachelard as duas grandes
funções psíquicas são a imaginação e a vontade.
Winnicott (1971) sempre acreditou no amor como emoção humana
fundamental. Preocupava-se com a felicidade e a realização integral do ser, não
somente com sua cura. Apesar de nunca negar a destrutividade, o trágico, o caótico
na condição humana, sempre acreditou na recuperabilidade do homem ao afirmar
que o sentimento de que se é possibilita à pessoa e predominância do fazer por
impulso sobre o fazer reativo. Para ser criativa a pessoa tem que ter sentimento de
existência.
O paralelo entre estes dois autores, unindo psicanálise e filosofia, se mantém
quando Bachelard (2006) fala do trabalhador-artista que cria a partir de seus
próprios devaneios, autodeterminado por seus sonhos, por sua vontade de poder.
Por isto também a matéria que ele procura dominar não é vista como hostil e
causadora de penas e fadigas. É, ao contrário, oportunidade de realização pessoal,
de expansão do universo interior, de demonstração da força da vontade, incentivo à
imaginação criadora. A mão operante e trabalhadora é a mão feliz, a serviço das
“forças felizes” porque forças criadoras. Penso que Winnicott (1971), mudando
apenas uma letra diria, o que fiz ao digitar, talvez por estar mergulhada em seus
conceitos: a mãe operante e trabalhadora é a mãe feliz, a serviço de forças felizes
porque forças criadoras, “ou seja, a mãe suficientemente boa que a seu filho o
Direito de Sonhar”, de ser e de fazer.
90
Imaginação imaginante, imaginação que cria e molda o mundo, os limites que
a realidade nos impõe, modificando-o, ampliando-o e, assim, fazendo-se,
compondo-se. Em outras palavras, o viver criativo é “uma forma de funcionamento
que se caracteriza pela atitude explícita da pessoa considerada que, não estando
conforme com uma mesmice cotidiana, através de soluções originais produz uma
complexização no ambiente. Cria vida” (CAMPOS, 1996, p. 57).
Hoje, como reafirmado com as colocações sobre a organização de nossas
vidas, acolher nossa sociedade e ancorada em Winnicott e Bachelard considero
relevante acolher o momento inicial de vida como fundante de experiências nas
quais o bebê e a criança aproveitem o que é oferecido moldando conforme seus
recursos. Estes recursos não podem continuar sendo negligenciados. Cabe a nós
adultos estarmos próximos e disponíveis.
Winnicott coloca a confiabilidade como o fator mais importante relacionado
aos primeiros cuidados do bebê. Ela se manifesta na presença de cuidados
contínuos e seguros que protegem o bebê da interferência imprevista e excessiva do
meio. Assim como Winnicott, acredito na força criadora e não é a massificação dos
meios de comunicação que vai destruí-la por completo. A criança de hoje brinca e
brinca muito. Diferente de que como brincávamos, mas podemos estabelecer a
interlocução com o nosso brincar neste espaço.
Minha filha vê televisão, já se interessa pelo computador, mora em
apartamento, mas brinca com personagens que não domino, tem crítica em relação
aos bons e maus, integra as estórias, relaciona a fatos do dia a dia, enriquece seu
vocabulário, dramatiza, representa, cria situações, vai se constituindo, transita sem
problemas entre ser a Clara ou ser o Bolt, a Branca de Neve ou a Lola. Aprendi a ser
a Bêni, amiga do Bolt; o príncipe que beija a Branca de Neve e o Charlie, irmão da
Lola. Sei que ela precisa de mim para dar sentido a muitas cenas, mas o que mais
importa é que é nesta área de experiência que nos sentimos reais e sentimos real o
mundo em que vivemos. “O lugar em que realmente vivemos é nesta área
intermediária”, inova Winnicott (1971, p.139). O autor privilegia o aspecto
experiencial e compara a vida psíquica a uma gradual associação entre o estado de
sono e o estado de vigília. Essa associação se através da brincadeira, num
espaço potencial ou campo de jogo (LINS, 1998, p.208). Winnicott (1990) pensava
em um Van Gogh experimentando, isto é, sentindo-se real, enquanto pinta um de
91
seus quadros, mas se sentindo irreal em suas relações com a realidade externa e
em sua vida interna retraída.
4.2.2 Brincando de ser artista
Ostrower (1987), diz que o criar pode ser visto num sentido global, como
um agir integrado em um viver humano. De fato, criar e viver se interligam. Criar é
basicamente formar. Formar implica em transformar. Todo processo de elaboração e
desenvolvimento abrange um processo dinâmico de transformação, em que a
matéria, que orienta a função criativa, é transformada pela mesma ação. Ao fazer,
isto é, ao seguir certos rumos a fim de configurar a matéria, o próprio homem com
isso se configura. Seguindo a matéria e sondando-a quanto à “essência de ser”, o
homem impregnou-a com a presença de sua vida, com a carga de suas emoções e
de seus conhecimentos. Dando forma à argila, ele deu a fluidez fugida do seu
próprio existir, captou-o e configurou-o. Estruturando a matéria, também dentro de
si, ele se estruturou. Criando, ele se recriou (OSTROWER, 1987, p.51).
A autora sublinhando que compreendemos que todos os processos de
criação representam na origem, tentativas de estruturação, de experimentação e
controle, processos produtivos no qual o homem se descobre, no qual ele próprio se
articula à medida que passa a identificar-se com a matéria. Formando a matéria,
ordenando-a, configurando-a, dominando-a, também o homem vem a se ordenar
interiormente e a dominar-se. Vem a se conhecer um pouco melhor e a ampliar sua
consciência nesse processo dinâmico em que recria suas potencialidades
essenciais. “Criatividade e os processos de criação são estados e comportamentos
naturais da humanidade” (OSTROWER, 1987, p.53). São naturais, no sentido do
próprio homem e também do espontâneo em que todo fazer do torna-se um formar.
Moldar o barro, pintar, escrever, dançar, brincar, expressões do criar, do
experimentar. Mas moldar com prazer, aproveitando a resistência imposta para criar
novas formas e assim, descobrir-se, ajustar-se ao ritmo, envolver-se, ser um só com
aquela matéria, fundir-se. Dar-se ao direito de ser o barro, não sendo, ou ser o
pincel, a tinta, assim como o bebê é a mãe e não é, supõe um paradoxo que não
tem que ser resolvido. Tem que ser vivido, experimentado. Esta zona de experiência
é o espaço potencial que as crianças e os artistas conhecem muito bem. Uma
92
loucura? Para Bachelard, trata-se de uma experiência permanente de passagem a
uma existência lúdica, criadora do sujeito e do mundo. Em suas palavras:
Na nossa infância o devaneio nos dava liberdade. Apreender essa liberdade
quando ela intervém num devaneio de criança é um paradoxo quando
nos esquecemos de que ainda pensamos na liberdade tal como a
sonhávamos quando éramos crianças. Psicologicamente falando, é no
devaneio que somos livres. [...] Uma infância potencial habita em nós
(BACHELARD 2006, p.95).
Para o filósofo, compreender o nosso apego ao mundo significa juntar a um
arquétipo uma infância, a nossa infância. “Todas essas belezas do mundo, [...] nós
as amamos numa infância redescoberta. Numa infância reanimada a partir dessa
infância que está latente em cada um de nós” (BACHELARD, 2006, p.12).
Bachelard não fala da mãe suficientemente boa, mas fala da infância, um
estado que temos que conservar e ao qual temos que retornar para chegar ao
cosmos. Diz que a infância sempre é um ponto de recomeçar e que a infância
testemunha a glória do viver. Cita Guyon que estava em um estado de infância
quando precisava falar ou escrever,
não havia nada maior que eu; parecia-me que estava cheio de Deus; e, no
entanto nada de menor nem de mais fraco do que eu, pois eu era como uma
criancinha. (...) dificilmente se acreditaria no esforço que tive de fazer para
deixar-me conduzir a este estado de infância; pois minha razão se perdia
nele, e parecia-me que era eu quem me proporcionava esse estado (...) tão
logo eu me abandonava, via-me dentro de uma candura, de uma inocência,
de uma simplicidade de criança, algo divino (BACHELARD, 2006, p.126).
Winnicotianamente, falando, entremeia-se nestas linhas o conceito de viver
criativo, da importância da fase inicial da vida na estruturação do sujeito, do
ambiente facilitador para emergência do potencial criador, do espaço potencial, da
área de experiência e do paradoxo, da loucura permitida, essa sensação de estar
não estando. Difícil explicar há que antes sentir.
Richter (2003), fala da inseparabilidade entre uno e múltiplo, entre parte e
todo, entre dentro e fora, pois ambos se exigem, são mutuamente condição de
existência de um e de outro. Nosso corpo é matéria permeável para entre uma
interioridade e uma exterioridade, ponto de passagem para a produção de outros
sentidos, exigindo o ato de produzir significados que nos signifiquem. Sendo
pensamento em ato, é experiência subjetiva que me vincula ao mundo. Que vai ao
real.
93
A autora fala também do paradoxo, do que é objetivamente percebido e do
que é subjetivamente concebido, da aceitação da realidade, do criar e do fazer-se,
que seria o ato de produzir significados que nos signifiquem.
Se um adulto nos reivindicar a aceitação da objetividade de seus fenômenos
subjetivos, discerniremos ou diagnosticaremos nele loucura. Se, contudo, o
adulto consegue extrair prazer da área pessoal intermediária sem fazer
reivindicações, podemos então reconhecer nossas próprias e
correspondentes áreas intermediárias, sendo que nos apraz descobrir certo
grau de sobreposição, isto é, de experiência comum entre membros de um
grupo na arte, na religião ou na filosofia (WINNICOTT, 1971, p. 29).
Lins (1998, p. 208), diz que a produção de sentido não é uma atividade
meramente representativa ou imaginária, mas um fazer de natureza poética, que
engaja o corpo e cria os laços de um mundo compartilhado. Comenta, segundo a
teoria de Winnicott, que a relação entre as concepções e as percepções, isto é,
entre o objetivamente percebido e o subjetivamente concebido é uma relação
criativa, é uma experiência poética. Afirma que a originalidade de Winnicott vem do
fato de ele ter tomado por parâmetro da constituição da subjetividade um modelo
estético então, por exemplo, energético, linguístico ou lógico-matemático. A
atualidade de Winnicott está em refletir sobre a prevalência da dimensão poética – o
gesto formativo sobre a matéria sensível-, na gênese e na estruturação do sujeito
frente aos protocolos já estabelecidos da experiência cultural.
Bachelard (1994, p.30) nos aponta a imagem poética enquanto algo novo,
pura presença, inovadora. Deseja captar o poético, apenas o poético, ter o prazer,
somente o prazer, do poético. Algo que prosseguiu até o final de sua obra. “[...]
seguir fascinado- à procura dos instantes poéticos, aqueles instantes nos quais a
dramaticidade inerente a um tempo irremissivelmente esfacelado é substituída pela
felicidade e pela libertação do trabalho criador.”
Dizia ainda, que a poesia possui uma felicidade que lhe é própria, qualquer
que seja o drama que ela seja levada a ilustrar. Esta era a ênfase dada por
Winnicott, o sujeito se processa no encontro do gesto espontâneo, erótico e
agressivo, com a concretude do mundo ordenado pela tradição cultural e histórica.
Nessa perspectiva interessa a ênfase que Winnicott coloca na relação
necessariamente criativa em que o sujeito se processa. Fora disto, não é um
princípio de modificação, mas a repetição patológica de padrões dados. Ele
94
pretende chamar atenção para a intensificação das forças vitais a partir de um fazer
poético que é obra do sujeito, um viver criativo.
Winnicott, assim como Bachelard, também buscou o prazer e o poético até o
final de sua obra. Mesmo doente, nos últimos dez anos, continuava escrevendo e,
segundo os versos de Elliot, morreu bem vivo, debruçado sobre os originais de O
Brincar e a Realidade, que ele corrigia para serem publicados. Tentando prever
como seria este momento, escreveu:
Chegou o momento, eu sabia tudo acerca de meu pulmão cheio d’água.
Meu coração não fazia mais seu trabalho [...] porém devo reconhecer que
minha carreira foi longa; não que resmungar como dizia nosso velho
jardineiro...” E, logo depois: “Que se passou quando morri? Meu pedido
havia sido ouvido. Estava vivo no momento de morrer. Isso era tudo o que
eu havia pedido e que obtive (WINNICOTT apud MELLO, 1995, p.17).
Outro paradoxo que Winnicott nos deixou ao morrer não morrendo. Achei
interessante trazer este final, que no início da teoria, as reflexões foram acerca da
importância do período inicial de vida para constituição do sujeito. Não me parece
nada deprimente, muito pelo contrário, deixa claro que Winnicott era sua teoria viva.
Foi um grande criador, mostrou que não existe nada mais fundamental e gratificante
que o viver criativo, oferecendo-se como modelo por sua fórmula de viver
intensamente.
Nada mais poético e criador, um toque que nos leva simplesmente ao infinito.
Criatividade, um modelo do viver. É uma viagem com um sentido, o caminho da
realização sobre nós mesmos.
Apesar destas colocações que nos preocupam, dos exageros que possamos
estar cometendo tentando acertar e superar algumas faltas, lembro mais uma vez de
Winnicott e da criança como ser ativo e capaz desde os primeiros minutos de vida.
Não podemos subestimar sua capacidade criadora. O bebê é participante e também
pode provocar alterações no seu meio. Mais uma vez ressalto a observação, a
cumplicidade e o afeto como prioritário nos relacionamentos.
Winnicott e Bachelard ampliam o conhecimento sobre a criação, expandem a
visão sobre os processos de aprender a decifrar e interpretar as crises e o vivido.
Não o deterministas. Winnicott não queria que formassem uma escola
winnicottiana. Queria deixar suas ideias, mas negou-se a fundar uma escola ou a ser
líder de um grupo. Sabia que não estava escrevendo para aquele tempo, mas que
levaria talvez algumas décadas para ser entendido. A afirmação feita em 1935, que
95
“a maior causa de consultas em pediatria é a ansiedade ou depressão das mães”
abalou os alicerces da pediatria inglesa e lhe valeu grandes batalhas nesta
especialidade (MELLO, 1995, p.20). Quantas décadas precisaremos para entender a
criança como um todo, se após 73 anos esta afirmação ainda causa incômodo e
desconfiança?
5 PARA NÃO CONCLUIR
Parece ser muito demorado mudar concepções. O que será que falta para
entendermos e atendermos à criança na integralidade? Não tenho a pretensão de
concluir nem ditar normas. Minha intenção foi e continua sendo, entender o
posicionamento de profissionais tanto da educação infantil quanto da psicanálise na
desconsideração pelo brincar, pela ação autônoma e pelo potencial ativo dos bebês,
provocada pelas concepções de uma Escola de Educação Infantil. Sendo
desconsideradas na educação as capacidades dos bebês afirmadas há muitos anos,
creio estarmos andando em círculos. Assim, tentei contextualizar, trazer
argumentos, questionamentos e reflexões sobre o brincar, tendo os conceitos de
Winnicott como principal subsídio. Sobrevoei a psicanálise e a educação,
aterrisando na sociedade contemporânea. Fui constituindo-me durante a pesquisa e
espero que algumas transformações resultem de sua leitura.
Considero a teoria sobre o Brincar de Winnicott importante para os
educadores dos primeiros anos, assim como para os psicoterapeutas, pediatras,
neonatologistas e estudante de Medicina que estão iniciando seu contato com bebês
e suas es. Todos somos educadores. É grande a nossa responsabilidade e
temos que entender as crianças e suas relações para podermos efetivamente
contribuir com o nosso trabalho. Conceitos como de espaço potencial, área
intermediária ou de ilusão, reafirmam a importância da confiança, do papel do adulto
dando suporte sem interferir na intencionalidade lúdica dos pequenos. A íntima
relação do brincar com a criatividade está implicada com o complexo processo de
aprendizado em relação à vida. O bebê precisa ser valorizado nas suas conquistas
para que se sinta confiante e possa exercer sua autonomia, mas isto não se
restringe à relação mãe-bebê, amplia-se para todos os relacionamentos, como na
96
creche e na Escola, no consultório de pediatria ou de psicoterapia. Conforme nossa
atitude, o bebê ou a criança podem ir adiante ou voltar, criar, brincar ou bloquear sua
capacidade para o viver criativo; depende da fidedignidade, do ambiente
suficientemente bom, da sintonia no encontro com os adultos. Por isso, nosso
compromisso enquanto educadores.
A experiência com bebês me faz melhor compreender o humano e a
humanidade. uma riqueza de ações que não prestamos atenção: o bebê é muito
ágil e criativo, é poderoso em sua capacidade básica de escolher e tomar decisões.
Esse poder de busca, sua ação autônoma, não é reconhecido/valorizado nas
crianças pequenas. Pelo contrário, a criança pequena é insistentemente
desencorajada a aprender e ir mais longe do que o previsto pelo adulto.
O educador é convocado a favorecer as condições de ação das crianças, ter
sensibilidade e disponibilidade, estabelecer cumplicidade neste espaço no qual a
confiança é fundamental. Assim, a ludicidade, a continuidade e a diversificação das
experiências poderão garantir a produção de significados, fundamental na
estruturação das aprendizagens.
5.1 Buscando o encontro
Pensando na sintonia mãe-bebê, é sabido que esta também deve ser
buscada na relação educador-bebê, quanto à questão de adaptarem-se ao ritmo,
seguirem o mesmo tom. Minha filha deu uma definição perfeita para sintonia quando
disse ao estarmos cantando, tendo ficado uma vibração no ar: -“Mãe, sua voz entrou
na minha e a minha na sua.” É preciso promover este encontro.
Temos que também aprender com os bebês e com as crianças, ao invés de
somente tentar ensiná-los. Eles transcendem a psicanálise, a saúde mental, a
pediatria, a educação. A observação é um excelente recurso e pouco explorada na
área da Educação. Podemos prestar mais atenção ao brincar dos bebês. Podemos
aprender sobre suas potencialidades e sair do lugar de dirigente ou ainda supridor
das crianças para ocupar o papel de cenógrafo, organizador de ambientes ricos e
diversificados, parceiro. Somos também sujeitos de aprendizagem no encontro com
bebês.
que haver envolvimento, isto incluiu afeto, amor, comprometimento,
sentimentos que devem ser resgatados em nossa sociedade, em nossos
97
consultórios, em nossas escolas, nas creches, em nossas salas de aula. É muito
grandioso e complexo. Leal (apud KOHAN, 2004, p. 29), diz que se “a
emocionalidade é inseparável da atividade humana como temos pensado, faz-se
impossível uma relação dialógica fora da emoção”.
A racionalidade técnica é movida por resultados rápidos e eficazes, a nova
forma de amor se traduz em objetos de satisfação. Conforme Verden-Zöller (2004),
vivemos em uma sociedade que desvaloriza as emoções em favor da razão e da
racionalidade. Devido à limitação diante das emoções, gerada em nós por nossa
cultura, temos sido, no mundo ocidental, geralmente incapazes de perceber que o
amor – como emoção que especifica o domínio dos comportamentos que constituem
o outro como um legítimo outro em coexistência conosco- é a emoção que
fundamenta e constitui o domínio social.
Os bebês podem nos mostrar como observá-los, podem nos ensinar a usar os
meios disponíveis para vê-los sob outros ângulos, com mais profundidade. É
passado o momento de fazer um intercâmbio. Todas as áreas do conhecimento têm
contribuições pertinentes que devem ser divulgadas e estudadas. “O objetivo do
conhecimento não é descobrir o segredo do mundo ou a equação chave, mas
dialogar com o mundo” diz Morin (2005, p.205).
O be é um ser consiliente, que exige este transitar, por isto atrevo-me a
explorar inúmeros autores de diferentes áreas. Este é o objetivo principal desta
pesquisa, a permeabilidade das teorias. O bebê nos ensina a ir além, nos obriga a
novas formas de pensamento e de ação. Exige um pensar complexo. Para Morin
(2005, p.206), “complexidade não é pensar o uno e o múltiplo conjuntamente; é
também pensar conjuntamente o incerto e o certo, o lógico e o contraditório, e é a
inclusão do observador na observação”.
Quero compartilhar o meu estranhamento, a minha perturbação, o meu
entusiasmo pela Revolução dos bebês, parafraseando o título do artigo de Cunha
(2001). Esta revolução deve se estender, ultrapassar fronteiras. Revolução é sinal
de mudança, desequilíbrio, desordem. “A Revolução dos Bebês levantou novas
questões, uma revolução diferente de uma simples revolta, uma modificação de
conhecimento e de atuação para um novo paradigma” (CUNHA, 2001, p.104).
Implica compreender com Morin,
98
Um universo estritamente determinista que fosse apenas ordem, seria um
universo sem devir, sem inovação, sem criação; um universo que fosse
apenas desordem, entretanto, não conseguiria constituir organização,
sendo, portanto, incapaz de conservar a novidade e, por conseguinte, a
evolução e o desenvolvimento. Um mundo absolutamente determinado,
tanto quanto um completamente aleatório, é pobre e mutilado; o primeiro
incapaz de evoluir, e o segundo, de nascer (2005, p.202).
Uma abordagem multidisciplinar não é suficiente para promovermos este
encontro, é preciso romper as barreiras disciplinares e promover uma interlocução
entre os diferentes campos do conhecimento se quisermos nos aproximar do
problema contemporâneo posto pela educação dos bebês. É inadmissível que a
teoria da tabula rasa ainda seja aceita e sirva de base para a educação de nossas
crianças.
Torna-se importante, não apenas no campo da educação, repensar nossas
concepções sobre os bebês, o brincar, a aprendizagem, o conhecimento e a
infância. Para Leal (apud KOHAN, 2004, p.22), “Se não mais o que dizer sobre a
infância, talvez tenha chegado o momento de aprendermos com as crianças o que a
infância tem a nos dizer. Talvez a infância como a poesia, não precisa ser analisada,
mas sentida.” Comentando sobre a poesia de Manoel de Barros, O menino que
carregava água na peneira,
Ele gostava dos vazios por serem maiores que os cheios. Travesso, viu que
podia fazer peraltragens, (brincar, digo eu) com as palavras. Foi capaz de
interromper o vôo de um pássaro botando ponto no final da frase. Este
aparente sem sentido das coisas infantis [...] Esta curiosidade, admiração e
espanto, a disposição do novo na descoberta, essencial a qualquer
aprendizagem [...]. Este modo próprio das crianças de buscar sentidos sem
a preocupação em ensiná-los ou aprendê-lo [...] É nesta busca que nos
aproximamos das crianças, daquilo que em nós resiste e ainda nos faz
infantis. Buscar a infância em nós a fim de que possamos aprender de novo
(LEAL apud KOHAN, 2004 p.24-25).
Voltando à pergunta: O que nos falta para entendermos e atendermos melhor
as crianças? Em primeiro lugar a perturbação para irmos em busca do
conhecimento, das teorias, dos estudos sobre os bebês, suas capacidades, sua
potencialidades, seu brincar, seu aprender e nossa participação, a confiança, a
cumplicidade, a sintonia, a emocionalidade. Por que isto é tão difícil? Como “juntar”
tudo isto?
5.2 O lugar do encontro
99
Talvez o que esteja faltando seja um ponto de encontro entre as áreas do
conhecimento, um lugar onde os adultos encontrem-se com os bebês e com as
crianças também na educação. Considero este ponto como o lugar onde se o
brincar, o espaço potencial, também denominado área de ilusão (WINNICOTT,
1971). Como chegar até lá?
Os poetas, assim como Manoel de Barros, entendem melhor as crianças por
transitarem pelo espaço intermediário, pelo espaço de ilusão com mais liberdade e
permissão para poderem brincar e criar. Assim também os artistas são familiares a
este espaço, como Winnicott (1990) exemplifica através de Van Gogh. Leal diz que
as crianças e o poeta se encontram em um espaço indefinido onde as
características humanas, vegetais, animais e minerais fundem-se
Um lugar anterior às características próprias ao saber científico adulto. Tal
subversão rompe os limites dos sentidos usuais. A linguagem poética do
autor aproxima-se do jeito de ser das crianças. elas conseguem
performar as coisas transmutando-se nelas, ao mesmo tempo conhecendo
e sendo tudo. As crianças transfundem-se em animais, em plantas, em
pedras e em brinquedos. “agora sou isto ou aquilo”, costuma afirmar a
criança e internalizar o que diz. A coisa passa a ser constitutiva do sujeito
criança. Os verbos confundem-se nesta área transgressora infantil. a
criança ultrapassa as marcas da percepção e cria figurações sinestésicas
do tipo “ver com o ouvido”, “escutar com a boca”, “escrever com o corpo”.
Só as crianças e Manoel de Barros (LEAL apud KOHAN, 2004, p.27).
O espaço potencial ou espaço intermediário é o lugar do jogo da criança e de
toda a experiência cultural, lugar onde, segundo Winnicott, passamos a maior parte
do nosso tempo. A importância dos objetos ou fenômenos transicionais decorre de
sua localização na área intermediária, O que importa para Winnicott é a experiência
que aí se dá: a experiência de ilusão, onde o gesto ou a alucinação tornam-se reais.
Trago uma passagem da introdução do livro A arte cavalheiresca do arqueiro
Zen (HERRIGEL, 1975, p.12) escrita por Diasetz Suzuki em 1953, autoridade em
Zen-Budismo, que também aproxima-se da definição de espaço potencial ou de
ilusão de Winnicott:
O homem é definido como um ser pensante, mas suas grandes obras se
realizam quando não pensa e não calcula. Devemos reconquistar a
ingenuidade infantil, através de muitos anos de exercício na arte de nos
esquecermos de nós próprios. Nesse estágio, o homem pensa sem pensar.
Ele pensa como a chuva que cai do céu, como as ondas que se alteiam
sobre os oceanos, como as estrelas que iluminam o céu noturno, como a
verde folhagem que brota na paz do frescor primaveril. Na verdade, ele é as
ondas, o oceano, as estrelas, as folhas.
100
Uma vez que o homem alcance esse estado de evolução espiritual, ele se
torna um artista Zen da vida. Ele não precisa como o pintor, de telas, pincéis
e tintas, nem como o arqueiro, do arco, da flecha, do alvo e dos demais
acessórios. Ele tem seus membros, seu corpo, sua cabeça e os órgãos que
constituem seu corpo. Sua vida, no Zen, se expressa por meio de todos
esses instrumentos importantes, como manifestações suas. Suas mãos e os
seus pés são os pincéis. O universo é a tela sobre a qual ele pinta sua vida
durante setenta, oitenta, noventa anos. Esse quadro se chama a história.
Este é o ponto de conexão que trago entre a poesia, a filosofia, a psicanálise
e o zen-budismo: o espaço onde se o brincar, o espaço onde podemos nos
encontramos com a criança, no seu tempo. São muitas combinações possíveis.
Assim como não limites para compartilhar informações entre as áreas do
conhecimento, também não para a criatividade da criança que emerge. Leal
(apud KOHAN, 2004), pergunta como a educação poderia se inserir na mistura entre
filosofia e poesia e respondo que é através do brincar. Diz ainda que a transposição
de um contexto literário para o ambiente educacional transformaria o fazer educativo
em um ato poético e, portanto, criador. Complemento dizendo que haveria uma
integração com o lúdico.
5.3 Promovendo outros encontros
O brincar permite este intercâmbio, seria um elo entre a Psicanálise,
Educação e Pediatria. Moyles (2006) diz que quaisquer divisões, reais ou
imaginadas, precisam ser superadas pelo entendimento e coerência
multidisciplinares, mesmo que seja pelo bem das crianças. Podemos aprender
com os bebês e as crianças, abandonar velhos conceitos e resgatar a nossa infância
muitas vezes extraviada e perdida, a nossa lúdica meninice. Desta maneira,
estaremos por inteiro neste espaço e completamente presentes, deixando o
momento nos levar. Alcançaremos o mesmo tom, inventaremos a melhor cor,
estabeleceremos contato para que falemos a mesma linguagem mesmo que não
haja articulação de palavras. O brincar é a linguagem universal. Assim poderemos
criar juntos, experimentar, sendo o que nossa imaginação permitir a exemplo dos
pequenos, dos poetas e artistas.
Desejo que tanto as crianças quanto o poeta realizam tão bem... Esta mania
de animar pedras, sucatas, sentimentos e pensamentos...Este modo lúdico
de disfarçar-se nas coisas, de criar palavras e gerar ideias, de inaugurar
sentidos e expressões...As crianças e Manoel de Barros brincam com a
seriedade e sisudez dos sentidos, mudam os significados de lugar e
101
mostram a quantos puderem perceber quão arbitrários os sentidos e
significados tem sido (LEAL, 2004, p.23).
A criança sabe muito bem quando está brincando, transita bem por estes
espaços. É esta capacidade, sinal de saúde. “Toda criança sabe perfeitamente
quando está fazendo de conta ou quando está brincando” (HUIZINGA, 2004,
p.11). Temos que aprender com elas. “Sabemos que temos dificuldade de tolerar o
que não sabemos (...) as qualidades da interação ajudam: poder olhar, tocar e...
sobretudo, poder narrar, contar. E, sobretudo outra vez, poder brincar. Brincar é
encontrar sentidos” (GUTFREIND, 2009, p.149).
5.4 Recuperando a infância
As crianças nos fazem retornar à infância, recuperar o nosso brincar. No
espaço de ilusão está a infância de todos nós. “Lugar a ser investigado [...] É nesta
busca que nos aproximamos das crianças, daquilo que em nós resiste e ainda nos
faz infantis. Buscar a infância em nós a fim de que possamos aprender de novo”
(LEAL apud KOHAN, 2004, p.24). “[...] crianças e adultos aprendendo juntos por
meio do brincar, para benefício de ambos” (MOYLES, 2006, p.230).
O conceito de “devir criança”, inventado por Deleuze e Guattari (1997, p.41),
refere-se ao encontro entre um adulto e uma criança. O devir criança não é tornar-se
uma criança, infantilizar-se, nem sequer retroceder à própria infância cronológica.
Devir é um encontro entre duas pessoas, acontecimentos, movimentos, ideias,
entidades, multiplicidades, que provoca uma terceira coisa entre ambas, algo sem
passado, presente ou futuro; algo sem temporalidade cronológica, mas com
geografia, com intensidade e direção próprias (DELEUZE e PARNET, 1988, p.10-
15). Winnicottianamente falando, esta terceira coisa seria o espaço potencial, a área
de ilusão. “Devir criança é, assim, uma força que extrai da idade que se tem, do
corpo que se é, os fluxos e as partículas que dão lugar a uma “involução criadora”, a
uma força que não se espera, que irrompe sem ser convidada ou antecipada”
(KOHAN, 2004, p.64).
“Sou hoje um caçador de achadouros da infância”, declara Manoel de Barros,
“vou meio dementado e enxada às costas cavar no meu quintal vestígios de
meninos que fomos” (BARROS apud KOHAN, 2003, p.39). Podemos acolher e
devolver o lugar do brincar a nossas crianças e recuperar o nosso brincar. “É no
102
brincar e somente no brincar, que adulto e criança fruem sua liberdade de criação”
(WINNICOTT, 1971, p.80).
Na trajetória desta investigação, durante as leituras, observações, a escrita,
senti-me autorizada a explorar autores tão diversos, pois o brincar permite esta
permeabilidade e os bebês exigem este compartilhar. Os filósofos, artistas e poetas
facilitam o entendimento da teoria de Winnicott e permeiam o dialogar. Espero que
nos ajudem a encontrar novos modos de pensar a educação dos bebês, talvez
mudar o discurso pedagógico. Quem sabe ampliar o conceito de espaço potencial
para nossos lares, para nossas faculdades formadoras de cuidadores, para nossos
consultórios. Isto é promoção de saúde. Tudo envolve a educação, também são
setores diversos, não há como simplificar. O bebê é complexo e está tudo integrado,
não como separar a parte do todo. Por isto, talvez, atrapalhemos as crianças ao
não conseguirmos instaurar o espaço de encontro criador, por não reaprendermos a
brincar.
Assim, podemos, a exemplo da irmã de Alice ficar fora do País das
Maravilhas
22
por termos nos tornado adultos demais para entendê-lo. A outra opção
é fazer como Alice que decidiu jamais esquecê-lo por mais adulta que viesse a ser
um dia.
Parece difícil? Talvez não se passarmos a prestar mais atenção aos bebês e
às crianças para que seu brincar contribua para interromper o que está dado e
propiciar novos inícios. Eles podem ter a resposta.
Essa criança tão distante de nós e tão necessitada de nossa ajuda e de
nosso afeto, difícil de ouvir e compreender, possui em si uma força
revolucionária. Se estivermos dispostos a colocarmo-nos na altura dela, a
lhe dar a palavra, ela será capaz de nos ajudar a compreender o mundo e
nos dará a força para a mudança (TONUCCI, 2005, p. 207).
Durante meus estudos, mergulhada na pesquisa, fui buscar minha filha de 3
anos na avó e com o pensamento no “Brincar”, estacionei o carro na garagem e
atendi a seu apelo de sentar no banco do motorista enquanto eu sentava no banco
22
Alice no País das Maravilhas (título original em inglês: Alice's Adventures in Wonderland,
frequentemente abreviado para "Alice in Wonderland") é a obra mais conhecida do professor de
matemática inglês Charles Lutwidge Dodgson, sob o pseudónimo de Lewis Carroll, que a publicou a 4
de julho de 1865, e uma das mais célebres do gênero literário nonsense ou do surrealismo, sendo
considerada a obra clássica da literatura inglesa. O livro conta a história de uma menina chamada
Alice que cai numa toca de coelho que a transporta para um lugar fantástico povoado por criaturas
peculiares e antropomórficas, revelando uma lógica do absurdo característica dos sonhos.
103
de trás. Olhei-a seriamente e perguntei:- “Filha, o que é brincar para você?” E ela
prontamente respondeu:- “É dirigir, mãe!” Mostrou com toda a sua perspicácia e
em poucos segundos, o que estou anos estudando: o que importa no brincar é
somente brincar.
104
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