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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL
FACULDADE DE EDUCAÇÃO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO
PATRÍCIA CAMINI
Das ortopedias (cali)gráficas:
um estudo sobre modos de disciplinamento
e normalização da escrita
Dissertação de Mestrado em Educação
Porto Alegre
2010
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2
Patrícia Camini
Das ortopedias (cali)gráficas:
um estudo sobre modos de disciplinamento
e normalização da escrita
Dissertação apresentada ao Programa de
Pós-Graduação em Educação da Faculdade
de Educação da Universidade Federal do
Rio Grande do Sul, como requisito parcial
para obtenção do título de Mestre em
Educação.
Orientadora:
Profª. Drª. Iole Maria Faviero Trindade
Linha de pesquisa: Estudos Culturais em
Educação
Capa: Método de amarrar os dedos para ensinar a escrever corretamente, de Joseph Carstairs século
XIX. Fonte: SASSOON, Rosemary. Handwriting of the Twentieth Century. London: Routledge, 1999.
Porto Alegre
2010
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Patrícia Camini
DAS ORTOPEDIAS (CALI)GRÁFICAS:
UM ESTUDO SOBRE MODOS DE DISCIPLINAMENTO E
NORMALIZAÇÃO DA ESCRITA
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em
Educação da Faculdade de Educação da Universidade Federal
do Rio Grande do Sul, como requisito parcial para obtenção do
título de Mestre em Educação.
Aprovada em _________________________
Banca avaliadora:
_______________________________________________
Profª. Drª. Iole Maria Faviero Trindade – Orientadora
_______________________________________________
Prof. Dr. Alfredo José da Veiga-Neto – PPGEdu/UFRGS
_______________________________________________
Profª. Drª. Leni Vieira Dornelles – PPGEdu/UFRGS
_______________________________________________
Profª. Drª. Maria Helena Câmara Bastos – PPGEdu/PUCRS
_______________________________________________
4
AGRADECIMENTOS
O estudo que hoje apresento é fruto não apenas do meu trabalho mas também do
investimento de muitas pessoas que acreditaram nele e de diferentes formas
contribuíram para que ele se realizasse. Gostaria de agradecer:
...à minha orientadora, professora Dra. Iole Maria Faviero Trindade,
pesquisadora rigorosa e necessária aos estudos sobre alfabetização, pela parceria ao
longo destes anos; por tudo o que gentilmente compartilhou comigo, por ter acreditado
no meu trabalho e me incentivado a seguir pesquisando. Por tudo o que aprendi com ela,
desde quando ainda o nos conhecíamos e seus textos me despertavam admiração,
vontade de ler e escrever mais, questionar, olhar ao avesso a educação e suas formas...
...aos professores Dr. Alfredo Veiga-Neto, Dra. Leni Vieira Dornelles e Dra.
Maria Helena Câmara Bastos, pela imensa generosidade na apreciação desta pesquisa,
quando ela ainda encontrava-se bastante embrionária. Agradeço à leitura cuidadosa que
fizeram do meu trabalho, indicando preciosos rumos que me auxiliaram sobremaneira a
compor a pesquisa que hoje aqui apresento. Deixo registrada aqui a minha admiração.
...às queridas colegas Darlize Teixeira de Mello, Letícia Germano, Renata
Sperrhake, Sandra Monteiro Lemos e Thaíse da Silva, por todas as parcerias realizadas
no cotidiano da pesquisa acadêmica no grupo de orientação coordenado pela professora
Iole.
...à professora Dra. Luciana Piccoli, pela amizade e apoio em todos os momentos
da pesquisa. Obrigada por todas as parcerias, e-mails, telefonemas...
...à Faculdade de Educação da UFRGS Licenciatura em Pedagogia e PPGEdu
– e seu qualificado corpo docente. Foi muito bom ter estudado tantos anos em suas salas
de aula, com professores sempre tão interessados e que apostam alto em seus alunos.
Foram muitos os professores e professoras que despertaram em mim a vontade de saber
mais, pesquisar, reinventar meus próprios modos de lecionar. Especialmente, agradeço à
Dra. Norma Regina Marzola e seu grupo de orientação, pelos ótimos seminários que
partilhamos entre 2008 e 2009; e à Dra. Nádia Geisa Silveira de Souza, por ter me
ensinado muito sobre Estudos Culturais ainda no curso de graduação, orientando meu
estágio docente.
...à Biblioteca Setorial da Faculdade de Educação, em especial ao acervo
Memória da Cartilha, e à Biblioteca Setorial de Ciências Sociais e Humanidades, da
UFRGS.
...à Secretaria do PPGEdu/UFRGS, pelo atendimento sempre rápido, organizado
e eficiente.
...às editoras Ática e Scipione, que gentilmente forneceram os volumes dos
livros de caligrafia destinados aos professores, permitindo, dessa forma, que eu tivesse
acesso ao manual do professor que acompanha os livros e que não é comercializado.
...às escolas em que trabalhei; não destaco uma em especial, pois todas me
ensinaram muito em diferentes períodos da minha vida.
...à família do meu amado Tiago, o meu muito obrigada por todos esses anos em
que me apoiaram na realização do mestrado acadêmico. um espaço muito especial
em meu coração para vocês.
...à minha família, minhas joias... em especial, Glecy, Angelo, Luci, Tatiana,
Felipe, Valmir e pequena Gabi avó, pais, irmãos, cunhado e sobrinha. Nossas
diferenças nos ensinam todos os dias novos modos de aprender, novos modos de amar.
E é isso o que nos torna mais fortes, perseverantes e unidos. Agradeço a todo o esforço
que fizeram para compreender que este curso era realmente importante para mim e que,
sim, eu precisava não estar presente em muitos momentos; por todos os alegres
churrascos que, por mais que me deixassem com peso na consciência por o estar
envolvida com estas páginas, davam-me mais forças para continuar escrevendo. Meu
6
querido irmão Felipe, ou “Pipe”, como o chamamos quando nasceu, merece uma
reverência especial: obrigada por nos últimos tempos ter compreendido a difícil tarefa
que era escrever ao belo, porém alto, som de sua guitarra no amplificador!
...e por último, para quem escreverei de forma direta: obrigada, Tiago, pelo
quase sobrenatural companheirismo e amor que me dedicas todos os dias, em todos
esses doces anos. Eu poderia escrever tudo no superlativo para falar de ti. Restrinjo-me
a dizer que a tua companhia é sempre maravilhosa em minha vida; obrigada por
entender que, seja indo a Gramado ou a Torres, sim, eu precisava levar uns “livrinhos”
e, nos passeios ao shopping, sim, eu acabava entrando naquela sedutora livraria por
longo tempo (mesmo prometendo não entrar). Nesses pequenos fragmentos do nosso
cotidiano vejo todo o teu amor... Obrigada por ter sido um incentivador em tempo
integral deste trabalho e por eu e você tanto tempo sermos esse nós” que me faz tão
feliz.
Todas essas histórias se enredam de alguma forma nessa outra história que
escrevi nas páginas que seguem...
7
m corpo disciplinado é a base de um gesto eficiente.
(FOUCAULT, 2008c, p. 130)
U
8
RESUMO
Esta pesquisa procura investigar as regras que dão contornos à caligrafia que chega às
escolas brasileiras hoje por meio de livros didáticos. Para analisar essas regras, foi
necessário um olhar genealógico, buscando conexões com as condições de possibilidade
que permitiram a enunciação, a circulação e o caráter de verdade dos discursos que hoje
constituem a caligrafia que ganha visibilidade na arquitetura montada nos livros
didáticos; uma arquitetura que, como discutirei, opera para fabricar escritas legíveis e
ágeis, agora não mais necessariamente belas, como por muito tempo a escola brasileira
primou. O estudo analisa quatro coleções de livros de caligrafia, de grande vendagem
no Brasil, recomendados para uso nas ries iniciais do Ensino Fundamental.
Totalizando dezenove volumes, as quatro coleções escolhidas para análise são: da
editora Ática, Assim se aprende caligrafia; da editora Scipione, Marcha criança e
Ziguezague; e da editora FTD, No capricho. Como referencial teórico, utilizo
contribuições dos estudos de Michel Foucault e de outros autores pós-estruturalistas, no
que se refere a possibilitar a análise dos discursos e a examinar os mecanismos que
operam a normalização das escritas infantis por meio da caligrafia escolar. Conceitos
como discurso, enunciado, saber, poder, normalização, estratégia e tática foram
especialmente úteis ao trabalho. A pesquisa destacou três grandes táticas em movimento
nos materiais analisados: 1) o funcionamento maciço de regras fornecidas pela
psicomotricidade para conduzir a organização dos exercícios caligráficos; 2) a
disposição em séries de complexidade crescente dos exercícios, partindo de unidades
menores, como a letra, até a solicitação regular de cópias de textos em fonte cursiva; e
3) o jogo discursivo que envolve brincadeira, infância e caligrafia com vistas a
interessar as crianças ao trabalho estético sobre suas escritas. Olhar para as táticas
significou examinar como o poder se exerce sobre os sujeitos infantis em relação à
produção de padrões estéticos de escrita. E o que fiz foi colocar em evidência
determinadas operações que pretendem fazer com que a criança governe seus próprios
traçados na escrita, por meio da aparelhagem fornecida pelos livros de caligrafia.
Palavras-chave: Caligrafia. Escrita. Normalização. Disciplina. Livros Didáticos.
Foucault, Michel.
CAMINI, Patrícia. Das ortopedias (cali)gráficas: um estudo sobre modos de disciplinamento e
normalização da escrita. Porto Alegre, 2010. 180 f. Dissertação (Mestrado em Educação)
Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Faculdade de Educação. Programa de Pós-Graduação em
Educação, Porto Alegre, 2010.
9
ABSTRACT
The present study aims to investigate the rules that give shape to the handwriting that is
delivered to Brazilian schools through handwriting textbooks. In order to analyze such
rules, I have cast a genealogical view while searching for connections to the conditions
of possibility that allowed the enunciation, the circulation and the character of truth in
the discourses that have construed the handwriting that gains visibility in the
architecture created for the textbooks; this architecture, as will be discussed in this
study, operates for the production of legible and speedy handwriting, which no longer
has to be necessarily beautiful or decorative, as it had been advocated by the Brazilian
school for a long time. This study analyzes four collections of handwriting textbooks
that are highly popular in Brazil, and that are recommended for teaching in the first
grades of Elementary School. These collections comprehend a total of nineteen volumes
and are as follows: by Ática Publishers: Assim se aprende caligrafia; by Scipione
Publishers: Marcha criança and Ziguezague; and by FTD Publishers: No capricho. As
theoretical references, I have relied on the contribution from Michel Foucault’s studies,
as well as from other post-structuralist writers, with regard to the enabling of discourse
analysis and the examination of the mechanisms that operate the normalization of
children writings through school handwriting. Concepts such as discourse, statement,
knowledge, power, normalization, strategy, and tactics have been especially useful for
this study. The research has highlighted three major moving tactics in the material under
analysis: 1) the massive functioning of the rules dictated by psychomotricity to guide
the organization of handwriting exercises; 2) the disposition of exercises in series of
rising complexity levels, starting from smaller units, like letters, up to the regular
demand of copying texts using cursive handwriting; and 3) the discursive game that
engages playing, childhood and handwriting aiming at getting the children interested in
the aesthetic work applied to their handwriting. Looking into such tactics has meant
investigating how power operates upon child subjects regarding the production of
aesthetic writing patterns. In this sense, the contribution of this work is to highlight
some operations that are intended to allow the children to self-govern their own
handwriting, through the means supplied by handwriting textbooks.
Keywords: Handwriting. Writing. Normalization. Discipline. Textbooks. Foucault,
Michel.
CAMINI, Patrícia. Das ortopedias (cali)gráficas: um estudo sobre modos de disciplinamento e
normalização da escrita. Porto Alegre, 2010. 180 f. Dissertação (Mestrado em Educação)
Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Faculdade de Educação. Programa de Pós-Graduação em
Educação, Porto Alegre, 2010.
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LISTA DE FIGURAS
Fig. 1: La trahison des images, obra de Renné Magritte (1898-1967), pintada em 1928 ........................... 14
Fig. 2: Alquimista, obra do holandês Adriaen van Ostade (1610-1685), pintada em 1661 ........................ 23
Fig. 3: Las meninas, obra do espanhol Diego Velásquez (1599-1660), pintada em 1656 .......................... 35
Fig. 4: O dentista, obra do holandês Jan Victors (1619-1676), pintada em 1654 ....................................... 39
Fig. 5: A operação, obra do flamengo Adriaen Brouwer (1605-1638), pintada em 1630 .......................... 40
Fig. 6: O mestre-escola, obra do já citado pintor Jansz van Ostade (1610-1685), de 1662 ........................ 41
Fig. 7: Escola de aldeia, obra do holandês Jan Steen (1626-1679), pintada em 1662 ............................... 41
Fig. 8: A árvore de Andry” ...................................................................................................................... 52
Fig. 9: Art de l’écriture, de Diderot e d’Alembert ...................................................................................... 52
Fig.10: Equipamento Writetrue .................................................................................................................. 53
Fig. 11: Texto médico em escrita cuneiforme, registrado por volta do ano 300 a.C .................................. 68
Fig. 12: Derivação do alfabeto latino ......................................................................................................... 69
Fig. 13: Exemplo de escrita na forma boustrophedon na Grécia Antiga .................................................... 75
Fig. 14: Libraire ambulant ......................................................................................................................... 77
Fig. 15: Caderno de caligrafia espanhol do século XIX, utilizado nas escolas e também por calígrafos ... 82
Fig. 16: Escrita espontânea, sem cópia de modelos, proposta por Montessori ........................................... 84
Fig. 17: Materiais montessorianos.............................................................................................................. 85
Fig. 18: Fontes caligráficas mais notáveis entre as correntemente utilizadas até o século XIX ................. 87
Fig. 19: Fonte Garamond. Matrizes tipográficas originais utilizadas por Claude Garamond no século
XVI ............................................................................................................................................................. 89
Fig. 20: Fontes com e sem serifas............................................................................................................... 90
Fig. 21: Fonte Helvetica ............................................................................................................................. 91
Fig. 22: Sala de aula da Escola Primária Caetano de Campos, em São Paulo, 1908, usando a caligrafia
vertical ........................................................................................................................................................ 93
Fig. 23: Capa e exemplo de lição do volume 1 dos cadernos Escrita Brasileira, de caligrafia muscular, de
autoria de Orminda Marques ...................................................................................................................... 96
Fig. 24: Capa e exemplo de lição do manual de Grosso e Bellotti ............................................................. 97
Fig. 25: Anúncio da máquina de escrever elétrica Underwood Standard ................................................... 99
Fig. 26: Anúncio da caneta BIC esferográfica na década de 1960 em revista portuguesa ....................... 101
Fig. 27: Capa do primeiro volume de cada coleção analisada .................................................................. 110
Fig. 28: Instrução sobre letra legível no volume C da coleção No capricho ............................................ 114
Fig. 29: Padrões para classificação de grafias legíveis e ilegíveis em lição da coleção No capricho volume
E ............................................................................................................................................................... 115
Fig. 30: Atividade para desenvolvimento da discriminação visual constante no volume 1 da coleção Assim
se aprende caligrafia ................................................................................................................................ 122
Fig. 31: Exercício de lateralidade, envolvendo a formação da progressão esquerda-direita, do volume
Alfabetização, da coleção Ziguezague ...................................................................................................... 123
Fig. 32: Exemplo de exercício do volume A da coleção No capricho...................................................... 125
Fig. 33: Exemplo de exercício de transparência, para desenvolvimento da estruturação espacial, sugerido
por De Meur e Staes ................................................................................................................................. 126
Fig. 34: Exemplo de exercício de percepção de um modelo em um conjunto, para desenvolvimento da
estruturação espacial, sugerido por De Meur e Staes ............................................................................... 126
Fig. 35: Exemplo de exercício de topologia, para desenvolvimento da estruturação espacial, sugerido por
De Meur e Staes ....................................................................................................................................... 127
Fig. 36: Exercício de transparência, proposto no volume 2 da coleção Ziguezague................................. 127
Fig. 37: Exercício de percepção de modelos em um conjunto, proposto no volume 2 da coleção Marcha
criança ...................................................................................................................................................... 128
Fig. 38: Exercício de topologia, proposto no volume 1 da coleção Assim se aprende caligrafia ............ 128
Fig. 39: Exemplo de atividade que possibilitaria desenvolver a orientação temporal .............................. 129
Fig. 40: Atividades que possibilitariam desenvolver a orientação temporal ............................................ 130
Fig. 41: Exercício para treino de movimentos em onda e em espiral, proposto no volume 1 da coleção
Assim se aprende caligrafia ..................................................................................................................... 133
11
Fig. 42: Exercício de ligar pontos, proposto no volume 3 da coleção Ziguezague ................................... 134
Fig. 43: Progressão dos procedimentos de cobrir e imitar nos volumes da coleção Marcha criança ...... 137
Fig. 44: Progressão dos procedimentos de cobrir e imitar nos volumes da coleção Assim se aprende
caligrafia .................................................................................................................................................. 138
Fig. 45: Exclusividade do procedimento de imitação nos volumes da coleção No capricho ................... 138
Fig. 46: Progressão dos procedimentos de cobrir e imitar nos volumes da coleção Ziguezague .............. 139
Fig. 47: Apresentação do alfabeto em fontes cursiva e bastão nas coleções, nas primeiras lições ........... 141
Fig. 48: Recursos utilizados pelas coleções para orientar a direção do traçado das letras ........................ 142
Fig. 49: Exercícios de caligrafia da coleção Ziguezague envolvendo palavras escritas com “ch” ........... 143
Fig. 50: Divisão das lições de caligrafia apresentada pelos sumários de No capricho e Marcha
criança ...................................................................................................................................................... 145
Fig. 51: Lições referentes à coleção Marcha criança, abordando os fonemas /b/ e/p/, respectivamente,
sonoro e surdo .......................................................................................................................................... 148
Fig. 52: “Labirintos” da coleção Assim se aprende caligrafia ................................................................. 149
Fig. 53: Atividades para treino da memorização do traçado das letras, sugeridas no manual do professor
da coleção Marcha criança ...................................................................................................................... 155
Fig. 54: Espaços destinados à prática do desenho nas coleções Marcha criança e Assim se aprende
caligrafia .................................................................................................................................................. 156
Fig. 55: Exemplo de atividade proposta na seção “Só pra divertir”, da coleção No capricho .................. 158
Fig. 56: Exemplo de atividade proposta na seção pra divertir”, da coleção No capricho, em que os
quadrinhos que sempre o destaque na seção o aproveitados para atividades que aliam exercícios de
caligrafia e gramática ............................................................................................................................... 159
Fig. 57: Exemplos de atividades propostas na seção “Criatividade e alegria”, da coleção Marcha
criança ...................................................................................................................................................... 160
Fig. 58: Exemplos de atividades propostas na seção “Vamos brincar de escrever”, da coleção
Ziguezague ............................................................................................................................................... 161
12
LISTA DE QUADROS
Quadro 1: Livros didáticos para ensino da caligrafia analisados ............................................................. 109
Quadro 2: Elementos discursivos que se repetem em cada manual do professor .................................... 116
13
SUMÁRIO
À MODO DE APRESENTAÇÃO ............................................................................ 14
SEÇÃO I: SITUANDO O LEITOR ............................................................................ 14
SEÇÃO II: A PESQUISADORA E A CALIGRAFIA ................................................. 18
PARTE I
1 DAS PARCERIAS TEÓRICAS ............................................................................ 22
1.1 FERRAMENTAS TEÓRICAS E METODOLÓGICAS ........................................ 23
1.1.1 Dos Estudos Culturais aos Estudos Foucaultianos ......................................... 24
1.1.2 Discutindo a metodologia ................................................................................. 26
1.1.3 Saber e poder .................................................................................................... 28
1.1.4 Normação e normalização ................................................................................ 29
1.1.5 Enunciado, discurso e formação discursiva .................................................... 34
1.2 ESCOLA, PEDAGOGIA E INFÂNCIA: RELAÇÕES COM A CALIGRAFIA
ESCOLAR .................................................................................................................. 38
1.2.1 A caligrafia escolar como prática pedagógica e terapêutica ........................... 48
PARTE II
2 TRAJETÓRIAS DA ESCOLARIZAÇÃO DA ESCRITA E DA CALIGRAFIA 55
2.1 CONDIÇÕES DE POSSIBILIDADE .................................................................... 56
2.2 ESCRITA E GOVERNAMENTALIZAÇÃO DO ESTADO MODERNO ............. 57
2.2.1 O problema da liberdade ................................................................................. 58
2.2.2 O problema da escrita ...................................................................................... 63
2.3 DAS DISCUSSÕES ACERCA DOS EFEITOS DA ESCRITA ALFABÉTICA
SOBRE OS MODOS DE COGNIÇÃO ....................................................................... 67
2.4 NORMATIZANDO A ESCRITA (OU DA INVENÇÃO DA TEXTUALIDADE) 73
2.5 DA ESCRITA ORNAMENTAL À INSTRUMENTAL ........................................ 79
2.6 ESCRITA E CALIGRAFIA: DESLOCAMENTOS .............................................. 94
PARTE III
3 NORMALIZANDO AS ESCRITAS INFANTIS: MAPEANDO A GRAMÁTICA
DOS LIVROS DE CALIGRAFIA ESCOLAR ...................................................... 106
3.1 FABRICANDO ESCRITAS LEGÍVEIS E ÁGEIS, NÃO NECESSARIAMENTE
BELAS ..................................................................................................................... 107
3.2 TÁTICA 1: COLOCANDO EM FUNCIONAMENTO PRINCÍPIOS DA
PSICOMOTRICIDADE ........................................................................................... 118
3.3 TÁTICA 2: A ORGANIZAÇÃO DOS EXERCÍCIOS EM SÉRIES DE
COMPLEXIDADE CRESCENTE ............................................................................ 136
3.4 TÁTICA 3: CALIGRAFAR E BRINCAR ......................................................... 152
DAS ORTOPEDIAS (CALI)GRÁFICAS: CONSIDERAÇÕES FINAIS ............ 164
REFERÊNCIAS ...................................................................................................... 169
FONTES CONSULTADAS .................................................................................... 179
À MODO DE APRESENTAÇÃO
SEÇÃO 1:
SITUANDO O LEITOR*
.
Fig. 1: La trahison des images, obra de Renné Magritte (1898-1967), pintada em 1928.
e no projeto que antecedeu esta Dissertação escolhi a imagem de Las
meninas, do pintor espanhol Diego Velásquez, para iniciar o leitor no
problema colocado por mim para investigação, na versão final da
pesquisa não fui original. Escolhi outra obra que despertou a atenção analítica de
Foucault em relação ao papel constitutivo desempenhado pela linguagem, para além do
que as palavras tentam aprisionar em sentido unívoco. “Isto o é um cachimbo”, diz a
inscrição em francês em delicada caligrafia, efetuada por Renné Magritte, pintor belga,
em sua obra La trahison des images, de 1928, reproduzida na abertura desta introdução
1
(fig. 1). Mas se “isto não é um cachimbo”, como a imagem insiste em afirmar aos
nossos olhares, o que pode ser visto para além da fixidez entre palavras e coisas que nos
acostumamos a perceber?
*A Dissertação está escrita conforme o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa vigente desde janeiro
de 2009.
1
Foucault (1989) analisa em seu texto a primeira versão da pintura de Magritte, datada de 1926, em que
a inscrição aparece acima do cachimbo, assim como o cachimbo aparece menor. Não foi possível
encontrar essa primeira versão a qual Foucault teve acesso. No entanto, vale destacar que Foucault
também considera essa segunda e final versão da obra em sua análise.
S
15
Essa foi uma das grandes inquietações teóricas de Michel Foucault, filósofo
francês que serve importantes subsídios para a pesquisa que apresentarei. E não poderia
ser outra imagem além da pintura de Magritte a escolhida para abrir a pesquisa,
empurrando para mais à frente a de Velásquez. Por muitas vezes olhei os livros de
caligrafia que servem de objeto de análise a esta pesquisa e, ao ver suas inscrições,
explicações aos professores e alunos, lembrei-me de Magritte; mais precisamente,
lembrei-me da análise que Foucault fez da obra do pintor, relacionando a inscrição da
tela às inscrições que servem como modelo em cadernos, quadros ou manuais escolares
aos alunos. Além disso, ao olhar a pintura, Foucault nos diz que somos perseguidos
constantemente por uma espécie de dedo indicador de um mestre aos moldes escolares,
a indicar a forte marcação do sentido a ser atribuído à imagem pela escrita. Ao mesmo
tempo, somos perseguidos por um forte que insiste em ser atado entre o que a figura
nos parece, mas que esbarra na afirmação que Magritte pintou logo abaixo da figura do
cachimbo. Não se trataria, enfim, de um cachimbo, mas de uma representação de um
cachimbo, como o próprio Magritte sugeriu:
O famoso cachimbo... como fui repreendido! E entretanto... alguém poderia
encher o meu cachimbo? Não, ele o passa de uma representação, o é
mesmo? Então, se eu tivesse escrito sob minha pintura Isto é um cachimbo,
eu teria mentido (MAGRITTE, 1979 apud ARBEX, 2007, p. 158).
É para insistir nesse questionamento que não ata facilmente palavras e coisas e
nem pretende atar que olho para a caligrafia escolar e para os livros que a
operacionalizam atualmente como um aparato pedagógico que objetiva disciplinar e
normalizar as escritas infantis pelas ações que fazem o sujeito realizar sobre si mesmo.
Tal perspectiva se desloca de um possível ponto de chegada em que fosse possível
responder, afinal, o que é a caligrafia escolar. Interessam, ao contrário, as práticas que
produzem a caligrafia no âmbito dos livros, que táticas colocam em funcionamento, que
efeitos de sentido, portanto, produzem e como esses efeitos são possíveis. Com esse
foco delineado, trato de rastrear as regras que permitem determinadas configurações da
caligrafia escolar nas 4 coleções, que somam 19 livros didáticos, destinadas às séries
iniciais do Ensino Fundamental, que constituíram o corpus analítico desta pesquisa.
Como discutirei mais adiante, a caligrafia escolar na atualidade faz parte dos
tópicos relegados pela pesquisa acadêmica a partir da década de 1980 no Brasil. Poucos
16
pesquisadores na atualidade m abordado o tema em suas pesquisas. Bastos e
Stephanou (2008) estão entre as exceções, pois vêm estudando as memórias em relação
à prática da caligrafia escolar, atentando para diferentes exercícios propostos em
cadernos e manuais durante o século XX em nosso País. Vidal e Gvirtz (1998) também
elaboraram importante contribuição durante a década de 1990 acerca da caligrafia
escolar do início do século XX, no Brasil e na Argentina.
Sobre a caligrafia escolar que se pratica nas escolas na atualidade, creio,
muito a ser pesquisado, indo na contramão do quase silêncio que assolou os professores
sobre o assunto após a “onda construtivista”, que, como também discutirei adiante,
tratou-se de singular fenômeno a ser mapeado para entender-se o deslocamento das
práticas caligráficas especialmente durante a alfabetização nas escolas. “Escrever do seu
jeito” seria mais importante do que escrever conforme regras mais precisas. Mas até
quando a criança deveria escrever do seu jeito é o questionamento que ainda ronda
muitos professores. A ampla variedade de livros didáticos de caligrafia, comercializados
em coleções que organizam em sequência os livros de exercícios, indicam o ainda
constante funcionamento da caligrafia nas escolas, assim como também indicam a
mesma direção listas de materiais escolares disponíveis para acesso via web de escolas
particulares de Porto Alegre, que mostram o consumo de muitas dessas coleções
convivendo com cadernos tradicionais e polígrafos artesanais de caligrafia elaborados
pelas próprias escolas.
Para a finalidade anunciada, a Dissertação está organizada em duas seções
introdutórias e em três partes principais
2
.
Nas seções introdutórias, apresento brevemente aos leitores o objeto de estudo,
com informações sobre o problema de pesquisa, a justificativa e o objetivo, trazendo
também um pequeno relato sobre as trajetórias que me levaram à problematização da
caligrafia escolar.
Na Parte 1, intitulada Das parcerias teóricas, apresento minhas “parcerias
primárias”, designando com tal expressão os conceitos que me forneceram subsídios de
primeira ordem para a execução da pesquisa. Nesse caso, trabalharei centralmente com
conceitos de Michel Foucault, sendo também relevante destacar que outros autores,
2
Organizei a pesquisa em partes, que não devem ser entendidas como capítulos, mas como grandes
blocos temáticos que agrupam estrategicamente determinadas seções. Considerei mais produtiva e,
portanto, mais didática tal organização, tendo em vista que possibilita mais visibilidade aos leitores em
relação aos grandes eixos que conduzem as discussões que realizei.
17
como Alfredo Veiga-Neto, Edgardo Castro, Gilles Deleuze, Leni Dornelles, Maria
Isabel Bujes e Philippe Artières, me forneceram parcerias paralelas complementares às
que fui estabelecendo com Michel Foucault para analisar as regras de formação da
caligrafia escolar nos livros didáticos. Nessa parte, delineio o problema de pesquisa e
discuto a metodologia utilizada, mostrando como os conceitos escolhidos serão úteis à
problemática em análise.
Na Parte 2, Trajetórias da escolarização da escrita e da caligrafia, procuro
mapear algumas condições de possibilidade que permitiram a emergência das táticas
que hoje são colocadas em funcionamento pelos livros de caligrafia escolar no Brasil
com vistas a normalizar as escritas infantis. Discuto a crença comum na escrita como
produtora de progressos cognitivos e sociais; algumas relações da escrita com a
governamentalização do Estado moderno; o “descolamento” entre escrita e caligrafia na
escola, que por muito tempo foram compreendidas em uma mesma prática; assim como
o deslocamento da escrita ornamental em prol da escrita instrumental no âmbito escolar
em nosso País.
Na Parte 3, Normalizando as escritas infantis: mapeando a gramática dos livros
de caligrafia escolar, analiso quatro coleções de livros didáticos de caligrafia que
circulam atualmente em escolas brasileiras. Procurando por suas regras de
funcionamento, analiso três ticas que operam centralmente para normalizar as escritas
por meio da caligrafia: o funcionamento de princípios da psicomotricidade; a
organização de séries de exercícios em complexidade crescente; e a utilização do
brincar e elementos que remetam à ludicidade como meio de captar o interesse das
crianças para o trabalho estético sobre suas escritas.
18
SEÇÃO II:
A PESQUISADORA E A CALIGRAFIA
ificilmente alguém que poderá ler este texto não terá entre suas
vivências a caligrafia. Ela faz parte do repertório de práticas tornadas
escolares desde os primórdios da escola moderna e, como esta
Dissertação abordará, sua prática há pouco tempo no Brasil vem se separando da
alfabetização. Por muito tempo foi comum caligrafar para se alfabetizar e, ao mesmo
tempo, disciplinar os gestos empreendidos no traçado das letras, no domínio de suportes
de escrita e de materiais que possibilitem grafar, como pena, lápis e caneta.
Entre minhas memórias, lembro de ter feito muitas atividades em casa no final
dos anos 1980, a título de divertimento, oriundas de sobras de materiais mimeografados
das aulas ministradas por minha e na antiga série do grau. no início dos anos
1990, tive os primeiros contatos com o caderno de caligrafia, prescrito pela minha
professora da série para, entre outros motivos, fazer minhas enormes letras entrarem
nas linhas e também para aprender a uni-las em um traçado cursivo que, segundo ela,
me faria escrever rápido, sem levantar a mão do papel. Lembro de gostar de fazer
exercícios no caderno de caligrafia quando se tratava de copiar palavras e frases; as
letras, essas demoravam muito para preencher uma linha inteira. Era necessário fazer
uma letra um pouco maior e espaçar mais para terminar logo.
Deparei-me novamente com a caligrafia anos mais tarde, ao cursar a
Licenciatura em Pedagogia, nesta Universidade. o lembro ter lido nenhum texto que
falasse especificamente sobre caligrafia escolar, mas lembro perfeitamente de associá-la
com ensino tradicional, por julgá-la um ensino mecânico, pois pautado na cópia. Cabe
esclarecer que me refiro a ensino tradicional aqui como algo que, àquela época, não tão
distante, significava algo que eu não queria ver associado ao meu trabalho.
Trabalhando na Educação Infantil por muitos anos, o encontrei em seus
espaços os exercícios psicomotores preparatórios para a alfabetização que zelavam
pela boa grafia das crianças no futuro que por muitas vezes realizei quando
frequentava esse nível de ensino como aluna.
na minha primeira experiência nas Séries Iniciais do Ensino Fundamental, eu
não imaginara solicitar o uso do caderno de caligrafia para meus alunos da série.
D
19
Tampouco havia ouvido falar de livros de caligrafia, mas provavelmente também não os
aprovasse. Porém, nesse mesmo estágio passei a deparar-me com cobranças dos pais de
alguns alunos em relação à aprendizagem da letra cursiva. E ao olhar a grafia dos meus
alunos, eu achava que deveria fazer algo. Mas o quê, por exemplo? Sem visualizar
muitas opções, passei a pensar que talvez o caderno de caligrafia não fosse tão ruim
assim. Talvez se eu partisse da grafia de palavras dos projetos de aprendizagem que
estávamos trabalhando, de partes de histórias, de trava-línguas que brincávamos em
aula... O excerto abaixo, oriundo de meu trabalho de conclusão de curso, faz referência
à situação que ora relato:
Em algumas situações, meus registros [do diário de classe do estágio
realizado] expressam um certo desamparo com relação às teorias que me
sentia filiada à época, pois o meu entendimento era o de que todo o trabalho
que objetivasse ensinar o traçado das letras aos alunos estava relacionado aos
métodos tradicionais [...]. Minha visão sobre eles era pejorativa, o que pode
ser explicado, em parte, por muitos artigos acadêmicos, como os que constam
no documento Ensino Fundamental de nove anos:orientações para a
inclusão da criança de seis anos, do MEC, relacionarem os métodos ao
fracasso da alfabetização no Brasil. Porém, o traçado das letras me pareceu
ser uma necessidade de aprendizagem dos alunos, que os aprimoravam após
intervenções. E tais intervenções, na minha provisória concepção, para se
distanciarem do praticado tradicionalmente, deveriam ser realizadas
ludicamente (CAMINI, 2007, p. 42).
Essa passagem relata momentos em que passei a questionar a validade dos
pressupostos sobre a caligrafia em que eu acreditava. Apropriei-me dos cadernos de
caligrafia, fiz propostas de exercícios com táticas lúdicas, semelhantes às que hoje são
colocadas em funcionamento nos livros de caligrafia, como mostro na parte final desta
Dissertação. Percebo que, naquela época, organizei uma espécie de ortopedia caligráfica
através dos cadernos, nem sempre específicos para caligrafia. Na falta de cadernos para
esse fim, peguei-me traçando linhas com o auxílio de uma régua entre as linhas dos
cadernos convencionais. Dessa forma, foi possível fabricar páginas artesanais de
caligrafia objetivando disciplinar o tamanho e a forma das escritas dos meus alunos. Ao
ver as escritas tornando-se mais legíveis, as crianças e seus pais ficando satisfeitos com
os resultados, eu passava a suspeitar que esse poder disciplinar não só poria limites, não
apenas censuraria: ele também produziria efeitos, talvez não tão negativos quanto eu
imaginara. Algum tempo mais tarde, ao ver uma colega ser preterida em uma seleção
para professor das Séries Iniciais do Ensino Fundamental por o ter uma “letra
20
adequada” para escrever no quadro-negro e, consequentemente, para ensinar os alunos a
escrever, eu pensaria um pouco mais sobre a produtividade da prática da caligrafia
escolar. Ela possui um significado cultural que, como minhas reminiscências permitem
vislumbrar, nem sempre foi o mesmo, o é uno, talvez nem sempre coerente, e, para
grande parte das pessoas, traz lembranças não muito boas.
Hoje questiono: que discursos teriam me interpelado para que, do divertimento
com os exercícios caligráficos na infância, eu passasse a demonizá-los e, mais tarde, a
repensá-los? Creio que esta Dissertação faça parte desse terceiro momento: o de
repensar, não para achar a chave que abrirá todas as portas do problema, mas para olhar
pelo avesso a prática da caligrafia que chega às escolas hoje em formato de livro e para
colocar lentes sobre um tópico tão silenciado na atualidade pela pedagogia. Em cursos
de formação de professores, presenciei muitas vezes profissionais serem censurados
pelos colegas por admitirem praticar a caligrafia em suas turmas. O emprego da palavra
“admitir”, na passagem anterior, foi intencional; é um termo que expressa a ideia do que
tenho presenciado: em conversas entre professores, admitir a prática da caligrafia em
suas salas de aula é, muitas vezes, um ato de confissão perante o grupo.
Como referi anteriormente, não lembro ter lido algo específico sobre caligrafia
em meu tempo de graduanda em Pedagogia. Todavia, essa particularidade nos mostra a
força dos discursos e sua circulação além da escrita. A abundância de outrora de fontes
referentes à caligrafia, como entre o final do século XIX e início do século XX, quando
muito se escreveu sobre caligrafia a despeito de discussões acerca do tipo de letra que
deveria ser ensinada nas escolas, hoje não é a mesma. A caligrafia estaria sendo
interditada? A quantidade de livros de caligrafia disponíveis para compra me faz
suspeitar que sua prática não es tão em desuso nas escolas como o silêncio da
literatura acadêmica me fez pensar, como referi na seção anterior.
Ao acessar o Banco de Teses
3
da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal
de Nível Superior (CAPES), buscando pelo descritor caligrafia”, é possível encontrar
uma série de registros; entretanto, refinando um pouco mais a pesquisa, constata-se que
apenas um trabalho dedica-se ao estudo da caligrafia escolar: trata-se da Dissertação de
mestrado de Rosa Maria Souza Braga, intitulada Caligrafia em pauta: a legitimação de
Orminda Marques no campo educacional, produzida na Universidade do Estado do Rio
3
Cf.: http://capesdw.capes.gov.br/capesdw/
21
de Janeiro e concluída em agosto de 2008. Nesse trabalho, a autora empreende um
estudo biográfico sobre Orminda Marques, professora que criou os cadernos Escrita
brasileira, pautados no método conhecido como caligrafia muscular”, na década de
1930.
Outro exemplo do silêncio da literatura acadêmica sobre a caligrafia pode ser
percebido em consulta ao acervo das bibliotecas desta Universidade
4
. Em busca no
catálogo digital pelo descritor “caligrafia”, dezenove registros podem ser encontrados:
nove referem-se à caligrafia escolar, sendo seis cartilhas pertencentes ao projeto
“Memória da cartilha”, um artigo publicado em revista nacional
5
, um trabalho
apresentado em evento
6
e um trabalho de conclusão de curso
7
.
O que venho mencionando até aqui como “silêncio” da literatura acadêmica
sobre a caligrafia escolar me instiga a ampliar essa discussão. A seguir, na Parte I,
detalharei as modalidades de análise que pretendo empreender ao examinar as coleções
de caligrafia selecionadas, as quais serão apresentadas devidamente na parte III.
.
4
O catálogo digital do acervo de bibliotecas da UFRGS pode ser acessado pelo endereço eletrônico
http://www.sabi.ufrgs.br/. Informo que a consulta em que encontrei dezenove registros para o descritor
“caligrafia” foi realizada em junho de 2010.
5
Cf. Pereira (1986).
6
Cf. Stephanou e Bastos (2008).
7
Cf. Monteiro (2009).
PARTE I
1 DAS PARCERIAS TEÓRICAS
E conforme formos dando as marteladas no nosso pensamento, retorcendo-o naquilo
que nos dizem ser a verdade, naquilo que pensamos ser as nossas certezas, iremos
colocando tudo sob suspeita: desde as nossas maneiras de pensar, nossas verdades e
certezas até mesmo o martelo com que martelamos a nós mesmos ou a chave-de-fenda
com que torcemos nossas idéias (VEIGA-NETO, 2006, p. 84).
1.1 FERRAMENTAS TEÓRICAS E METODOLÓGICAS
Fig. 2: Alquimista, obra do holandês Adriaen van Ostade (1610-1685), pintada em 1661.
ejo uma certa analogia entre as palavras de Veiga-Neto, que abrem esta
parte da Dissertação, e o óleo de Adriaen van Ostade. Testar algumas
ferramentas, escolher algumas, deixar de lado outras tantas. Alguns
ensaios vão sendo necessários, uma ferramenta começa a mostrar-se mais útil para o que
me proponho do que outras. Não deixa de ser um campo de batalha: batalha de ideias
que se cruzam, se contestam, se afinam... Eis o cenário ou os bastidores da escrita
que vai se desenrolando neste espaço: uma alquimia de ideias que o seria possível
sem uma série de escolhas e incursões na oficina montada por outros. Por vezes, as
oficinas visitadas são complexas: queres um martelo? Há dúzias deles. Minúsculos,
pequenos, médios, grandes, enormes; verdes, amarelos, cinzas, vermelhos. Às vezes
também inventamos que queremos confeccionar nosso próprio martelo, talvez mais
adaptado e sob medida para o prego da vez. E então o que poderia ser feito em um
período menor de tempo, leva-nos a horas e mais horas de trabalho.
Se faço uso dessas imagens, é para ilustrar o que vem pela frente. Apresento
neste espaço as ferramentas que me pareceram apropriadas para fazer uma incursão a
partir do presente nos aspectos genealógicos que permitem que hoje, nas escolas
V
24
brasileiras, a caligrafia se apresente com as configurações que os livros lhe atribuem. Há
delimitações históricas que foram sendo operadas para que hoje seja possível aceitar e
consumir a caligrafia em determinada apresentação e não outra.
A tela de van Ostade nos permite enxergar a representação do alquimista
utilizando uma ferramenta para manipular o fogo. No chão, nas paredes do ambiente,
assim como sobre a mesa, dentro de vasos e vasilhames, há vestígios de outros possíveis
auxiliares da tarefa em que tanto se empenha o alquimista. Por vezes, certa ferramenta
pode o servir a um propósito; mas, às vezes, pode ter servido de singular andaime
para o intento que outras ferramentas viriam a auxiliá-lo com mais utilidade. Fazendo
uso dessa alegoria, de início, esclareço alguns deslocamentos conceituais importantes
efetuados nas rotas traçadas para esta pesquisa a partir do exame de qualificação. Os
Estudos Culturais, apresentados como possíveis norteadores teóricos desta pesquisa,
cederam espaço a um maior investimento na obra de Michel Foucault, que já constituía
importante solo para o estudo.
1.1.1 Dos Estudos Culturais aos Estudos Foucaultianos
erei breve. Teço aqui apenas alguns esclarecimentos aos leitores quanto
às alterações que efetuei em termos de rotas conceituais desde o projeto
que deu origem a esta Dissertação. Se com os Estudos Culturais, esse
polimorfo campo de estudos criticado por muitos por seu amplo espectro que lhe faz
assemelhar-se a um grande guarda-chuva teórico, foi possível enxergar e questionar
uma visão que localizava o que fosse da ordem do cultural como produto de
reconhecidas expressões da humanidade, meu problema de pesquisa passou a exigir-me
cada vez mais ferramentas.
Mostrar os polimorfos movimentos de constituição das representações sociais e
seus enredamentos com as práticas pedagógicas, e vice-versa, é de grande valia
especialmente para que o que se apresenta hoje não assuma um pedestal como grande
verdade inquestionável, provocando sectarismos e pequenos fascismos cotidianos. O
problema surge quando, ao levarmos ao da letra a metáfora da pesquisa como “um
olhar pelo avesso” do nosso objeto, passamos a buscar focos que permitam enxergar
como um determinado problema se constituiu e quais foram as condições de
S
25
possibilidade o de suficiência para sua emergência. O amplo espectro referido
dos Estudos Culturais abre margem para que busquemos diálogos com diversas teorias
que possibilitem uma problematização que envolva cultura, agora com esse uso no
singular questionado, e manifestações de poder que produzem determinados lugares
sociais. Todavia, um mergulho mais afoito em determinada teoria pode significar um
distanciamento de mares antes navegados, mas não que seus respingos não sejam ainda
sentidos. A própria forma de enxergar o problema se redefine nesse mergulho. E chega
a hora de reconhecer que determinadas ferramentas foram revelando-se mais úteis para
esta pesquisa.
Se utilizei nesta seção, até aqui, o recurso do distanciamento ao não escrever em
primeira pessoa do singular, como vinha fazendo, foi proposital, com vistas a relatar
uma experiência compartilhada com muitos outros pesquisadores que venho
conhecendo no âmbito da pós-graduação stricto sensu. E se hoje me arrisco a escrever
estas linhas (ninguém disse que pesquisar não envolve correr riscos...), é para dizer
justamente que esta experiência me soa como um eco do que tentaram nos dizer os
precursores do Center of Contemporary Cultural Studies (CCCS), em Birmingham, na
Inglaterra da década de 1960, como Richard Hoggart, Raymond Williams, Edward
Thompson e, um pouco depois, Stuart Hall: se você tem um problema, e o problema te
leva para outros caminhos, não são os enquadramentos disciplinares que devem ser
entraves à pesquisa; não são as metodologias ossificadas (BUJES, 2002) que devem
limitar a abrangência de um problema de pesquisa. O que aprendi com o legado
construído na pesquisa pelos Estudos Culturais pode ser resumido em uma frase que se
encontra na capa da publicação do curso de Michel Foucault, referente aos anos 1978-
1979, Nascimento da biopolítica (2008e): “O que permite tornar legível o real é mostrar
simplesmente que ele foi possível”.
A citação antecipa ao leitor muitas afinidades que encontrei entre essa
abordagem cultural e o pensamento de Michel Foucault. Mostrar como a caligrafia que
se faz na escola hoje foi possível, requer mais do que um olhar para as condições
culturais que permitiram a emergência e a visibilidade dessas práticas: requer uma
postura genealógica do pesquisador, revirando acervos, juntando falas aparentemente
distantes e avulsas, sem preconceitos quanto às fontes, o que não quer dizer relativizar o
rigor com o qual às interrogaremos. Mas isso significa ampliar o leque de opções que
26
possam nos informar sobre como chegamos a pensar e aceitar o que pensamos e
aceitamos.
Situado esse importante deslocamento, na seção seguinte delineio os referenciais
teóricos que orientarão a pesquisa.
1.1.2 Discutindo a metodologia
os cursos ministrados no Collège de France entre as décadas de 1970
e início da década de 1980, transcritos de gravações e publicados
mais recentemente em forma de livros no Brasil, fica especialmente
nítido para o leitor o quanto Michel Foucault se preocupava em expor o método que
estava sendo utilizado em suas pesquisas. Rever rotas, conceitos, até mesmo voltar atrás
sobre alguma formulação realizada, mesmo que anos depois, foi comum. O método era
inventado e frequentemente revisto, como se, ao cartografar o terreno, as falhas, as
ervas daninhas mais problemáticas fossem aparecendo e exigindo novos esforços que
não poderiam ser previstos de antemão. O método
8
, no sentido corrente na
modernidade, como um conjunto de estratégias universalmente aplicável e passível de
comprovação de uma suposta realidade, é severamente questionado na perspectiva aqui
adotada.
Veiga-Neto (1996a, p. 184) tece importante análise sobre os aspectos
metodológicos colocados em funcionamento por Foucault em seus trabalhos:
[...] parece-me haver como que um gradiente, ainda que descontínuo, que vai
da arqueologia à ética, passando pela genealogia. Ao longo desse gradiente, o
que já o era grande, ou talvez até vestigial – a saber, o compromisso com o
formalismo da técnica, da definição, do procedimento , se reduz e quase
desaparece. Simetricamente, se acentua a leveza de um estilo de investigação
que, mesmo rigorosa, se abre para suas próprias fronteiras na esperança de
ultrapassar a si mesma e de conseguir ver nas regiões de indecidibilidade que
até então estavam na penumbra.
Arqueologia, genealogia e ética, mencionadas pelo autor na passagem acima, são
consideradas como grandes linhas teórico-metodológicas da obra de Foucault. Veiga-
8
De origem grega methodos , “método” advém da junção do prefixo meta, que significa “através de”,
ao radical hodos, que significa “caminho”. Dessa forma, método” pode ser entendido como um meio
para ir em direção a determinado fim.
N
27
Neto (2007, p. 38) também nos fala sobre o quanto é problemática tal classificação, pois
“tal periodização leva a pensar que cada fase encerre uma teoria e um conjunto de
técnicas suficientes e independentes uma da outra”. Diferentemente de raciocinarmos
em termos classificatórios como nossos ímpetos modernos desejariam, o que Veiga-
Neto (ibid.) propõe é que se observe a agregação de ferramentas de uma metodologia
pela outra nos trabalhos de Foucault. Assim como a arqueologia o teria sido deixada
de lado pelo filósofo e a genealogia não teria sido inventada após o questionamento
daquele método, o autor (ibid.) nos mostra que é possível reconhecer traços do método
genealógico em obras geralmente classificadas como pertencentes a um período
arqueológico, como em As palavras e as coisas e em A arqueologia do saber, assim
como também é possível ver o quanto Foucault serve-se de ferramentas arqueológicas
para empreender a genealogia.
Mas o que une essas transformações operadas por Foucault em seus métodos é a
obstinação por empreender uma história do presente. Para isso, o questionamento dos
cânones tradicionais da História enquanto disciplina foram emblemáticos, como relata
Veyne (1992) em Foucault revoluciona a História. Foucault estranha os métodos de
trabalho pelos quais se pretendeu narrar uma história global. No lugar da busca pelas
continuidades e do olhar que localiza os fenômenos como “à espera” do seu
descobridor, Foucault prefere as rupturas, prefere andar pelas margens, soltando “todos
os fios ligados pela paciência dos historiadores” (FOUCAULT, 2008a, p. 191).
Essa trajetória foucaultiana me inspira a combinar ferramentas mais descritas
por Foucault na arqueologia a algumas ferramentas que foram desenvolvidas por ele na
genealogia. Com isso, estou entendendo que, para fazer uma incursão genealógica, é
necessário também analisar as condições de produção e circulação dos discursos. Tal
pretensão faz borrar um suposto intervalo entre arqueologia e genealogia neste trabalho
de pesquisa.
Tal incursão pretende localizar em funcionamento nos livros de caligrafia
comercializados contemporaneamente no Brasil, para caráter escolar, mecanismos de
normalização das escritas infantis que operam através de técnicas que operacionalizam
os saberes disponíveis e considerados verdadeiros sobre as escritas infantis. Mas por
que a forma da escrita das crianças se tornou um problema a ser alvo de atenção por
parte das práticas pedagógicas? Desde quando as escritas infantis são alvo das práticas
pedagógicas? De que formas? Foram sempre as mesmas? Como foram se
28
transformando e por quê? Essas perguntas me conduziram a buscar amparo também na
genealogia, pois, se a análise arqueológica busca “investigar as condições que
possibilitaram o surgimento e a transformação de um saber” (VEIGA-NETO, 2007, p.
49), determinando as regras de formação dos discursos e suas formas específicas de
articulação (FOUCAULT, 2008a), a genealogia procura também utilizar tais
ferramentas, mas de modo a manter os discursos em constante tensão com práticas de
poder” (VEIGA-NETO, 2007, p. 59). A genealogia mostra que as verdades são
históricas; seu compromisso é com “uma descrição da história das muitas interpretações
que nos são contadas e que nos têm sido impostas. Com isso, ela consegue
desnaturalizar, desessencializar enunciados que são repetidos como se tivessem sido
descobertas e não invenções” (id., ibid., p. 60).
Eis que chega o momento de, com mais detalhes, situar algumas ferramentas
teóricas em que apostei como mais produtivas para a pesquisa.
1.1.3 Saber e poder
oi difícil a decisão de dividir em seções e agrupar os conceitos que
discutirei nesta parte da pesquisa. Fá-lo-ei para fins didáticos e para
explicitar o recorte dos conceitos que me interessa, tendo em vista que
abordá-los no contexto da obra de Michel Foucault exigiria mostrar as relações que se
estabelecem entre esses conceitos e como eles o se transformando à medida que o
filósofo se debruça sobre diferentes problemas teóricos.
Optei primeiramente por abordar as relações entre saber e poder, que são de
suma importância para compreender o problema que está sendo colocado por esta
Dissertação. Ao olhar os livros de caligrafia e encontrar neles uma série de exercícios
semelhantes de um livro a outro, entendo que uma ordem em funcionamento nesses
materiais sobre o que é ou não aceitável no instrumental de táticas que visam a
disciplinar as escritas infantis. E nesse ponto fica claro que estou enxergando meu
objeto de pesquisa entendendo que, primeiro, saber e conhecimento não são
semelhantes. Não se trata de investigar uma relação entre o sujeito e seu objeto de
conhecimento; ao contrário, trata-se de investigar a relação do sujeito com ele mesmo e
como se opera essa relação. Um sujeito inventado em movimentos constantes de uma
F
29
estética de si mesmo nas relações de saber-poder. Um sujeito que escreve com uma
caligrafia considerada aceitável para a sua época e para seu contexto social
9
é efeito de
um trabalho intenso sobre si mesmo operado por múltiplos dispositivos que enquadram
a escrita em padrões de normalidade flutuantes. O que estou querendo dizer com isso é
que o foco está nos regimes que produzem sistemas de veridição apoiado em relações
com múltiplos focos de poder, o que é inversamente proporcional à ideia de que,
trazendo à tona uma verdade supostamente mais verdadeira ou maquiada, seria possível
combater um poder repressivo, entendido em uma acepção negativa e centralizadora.
Onde saber, portanto, poder em funcionamento, e onde houver um poder
em funcionamento, haverá saberes que o colocam em funcionamento em correlação
com outras relações poder-saber. Mas, antes de dar por encerrada esta seção, um
esclarecimento se faz importante ao falar em poder-saber. E abro espaço para que as
próprias palavras de Foucault (1983 apud GORE, 1994, p. 11) o façam:
Quando leio e eu sei que ela me tem sido atribuída a tese de que ‘saber é
poder’ ou ‘poder é saber’, começo a dar risadas, uma vez que estudar sua
relação é precisamente o meu problema. Se eles fossem idênticos, eu o
teria que estudá-los e, como resultado, eu me teria poupado um bocado de
cansaço. O próprio fato de que eu coloco a questão de sua relação prova
claramente que eu não os tenho como idênticos.
1.1.4 Normação e normalização
entando ir um pouco além de suas análises sobre o poder disciplinar em
Vigiar e punir
10
, no curso Segurança, território, população
11
, Foucault
nos mostra como esse poder existe muito tempo, cabendo algumas
explicações sobre as condições que possibilitaram às sociedades organizarem cada vez
mais espaços disciplinares. Nesse curso, Foucault (2008d, p. 156) se refere à obra
9
É importante sublinhar as influências culturais sobre o que é uma grafia adequada para cada tempo e
lugar, pois as exigências caligráficas o são as mesmas em qualquer espaço, como veremos aqui mais
detalhadamente em relação ao Brasil; mas se pensarmos em relação a outros países, as exigências
ornamentais em relação à caligrafia escolar continuam sendo muito fortes em países de escrita árabe,
chinesa e japonesa.
10
Michel Senellart (2008, p. 514) aponta uma passagem da aula de 17 de março de 1976 do curso Em
defesa da sociedade em que Foucault sinaliza a sua insatisfação com a sua hipótese de uma sociedade
disciplinar generalizada: “Essa o é, acho eu, senão uma primeira interpretação, e insuficiente, de uma
sociedade de normalização”.
11
Curso ministrado no Collège de France em 1978.
T
30
Vigiar e punir como “um projeto um pouco mais geral”, no qual ele teria pretendido
efetuar três deslocamentos: 1) [...] “passar por fora da instituição para substituí-la pelo
ponto de vista global da tecnologia de poder” (id., ibid., p. 157); 2) deslocar a visão de
funcionalidade das instituições. Ou seja: “substituir o ponto de vista interno da função
pelo ponto de vista externo das estratégias e táticas” (id., ibid., p. 158), pois a disfunção
também seria funcional ao sistema; 3) recusar a adoção de um objeto pronto, como a
loucura em si. Em vez disso, tratava-se “de apreender o movimento pelo qual se
constituía através dessas tecnologias movediças um campo de verdade com objetos de
saber” (id., ibid.).
Pensando em termos de ênfases, e não em desaparecimento das formas de poder,
em Segurança, território, população, Foucault procurou entender quando e como outras
formas de poder já utilizadas na história da humanidade passaram a ser pensadas dentro
de uma economia de poder que possibilitasse a circulação das multiplicidades na cidade.
A emergência dessas técnicas é uma questão trazida pelo desenvolvimento do comércio
a partir do século XV: seria possível fazer comércio além dos muros das cidades sem
permitir a circulação das pessoas? Permitir a circulação seria uma questão a ser
colocada em prática a partir do cálculo dos riscos
12
. Os riscos, segundo ele, não
poderiam ser anulados, mas controlados. O lculo desses riscos assinala a emergência,
na Europa do século XVIII, do estudo das regularidades das multiplicidades. E é tal
estudo que aos poucos irá distinguindo o que é do âmbito das multiplicidades e o que é
do âmbito da população, sendo este último âmbito o pertinente à ação do governo.
Punir e disciplinar para diminuir os riscos, nesse sentido, é uma questão de
seguridade. A seguridade
13
passa a ser outra forma de racionalidade para defender a
sociedade, que continua necessitando disciplinar e punir. Diferentemente de apenas
preservar o território (soberania) ou ensinar a utilizar um determinado espaço dando
uma função a cada elemento (disciplina), a seguridade vai lidar com um espaço
construído, com elementos já dados, pensando em como maximizar as possibilidades e
12
Conforme Ewald (1993), risco o deve ser entendido em uma acepção semelhante a perigo. Na
modernidade, o risco tornou-se uma medida calculável a partir de fenômenos próprios a determinada
população, com vistas a prever determinados acontecimentos. Já o perigo assombra e acomete a qualquer
um, como fatalidades isoladas.
13
Utilizo o termo “seguridade”, em vez de segurança, quando o sentido for o de disposição/ativação de
mecanismos para segurança do Estado, tendo em vista que “seguridade” sugere uma ação em sentido
mais amplo que “segurança”, embora este último seja o termo utilizado na tradução para a língua
portuguesa dos cursos Segurança, território, população e Nascimento da biopolítica.
31
minimizar os riscos (FOUCAULT, 2008d). Isso faz com que a disciplina seja
amplamente ativada pelos mecanismos de seguridade, havendo articulação e
necessidade de um para o desenvolvimento do outro. O que vai mudar é a ênfase dos
mecanismos na sociedade, não o desaparecimento de um em prol do outro. A
seguridade é um modo de fazer funcionar a lei e a disciplina aplicadas a uma noção de
população (id., ibid.).
A partir da emergência das sociedades voltadas para a seguridade, as ações
passam a preocupar-se com os indivíduos com base em uma lógica pautada na xima
“fazer viver e deixar morrer”. Os problemas sociais são alvos de debate, constituindo
objetos de saber que invistam no controle dos indivíduos como espécie. Essas
tecnologias que atuam no corpo social visando à regulação dos fenômenos relativos à
população fazem parte do conjunto de ações referentes ao que Foucault denominou
biopolítica.
Para exercer esse governo sobre as populações, Foucault (2003) nos diz que é
necessária uma ação sobre todos e, ao mesmo tempo, sobre cada um. Essa ação sobre
cada um requer lançar mão de tecnologias que ajam no individual, tornando possível
normalizar as condutas que possam gerar algum risco. Isso significa dizer que um corpo
disciplinado é um corpo que oferece um risco menor ao Estado em termos de
seguridade. Dizer isso significa que estamos trabalhando com a ideia de que duas
séries: “a série corpo organismo disciplina instituições; e a série população
processos biológicos mecanismos regulamentadores Estado” (FOUCAULT, 1999,
p. 298).
Foucault (id., ibid.) argumenta que esses dois tipos de tecnologias, as centradas
no corpo e as centradas na vida, se sobrepuseram durante o século XVIII na Europa,
mas foram introduzidas com certa defasagem cronológica:
Foi para recuperar o detalhe que se deu uma primeira acomodação: a
acomodação dos mecanismos de poder sobre o corpo individual, com
vigilância e treinamento isso foi a disciplina. É claro, essa foi a
acomodação mais fácil, mais cômoda de realizar. É por isso que ela se
realizou mais cedo – já no século XVII, início do século XVIII [...]. E,
depois, vocês têm em seguida, no final do século XVIII, uma segunda
acomodação, sobre os fenômenos globais, sobre os fenômenos de população,
com os processos biológicos ou bio-sociológicos das massas humanas.
Acomodação muito mais difícil, pois, é claro, ela implicava órgãos
complexos de coordenação e de centralização.
32
a articulação entre mecanismos disciplinares e mecanismos regulamentadores
está na esfera de atuação da norma. A norma se aplica tanto sobre um corpo que se quer
disciplinar quanto a uma população que se quer regulamentar. Trata-se, portanto, de
“um princípio de comparação, de comparabilidade, uma medida comum, que se institui
na pura referência de um grupo a si próprio, a partir do momento em que só se relaciona
consigo mesmo, sem exterioridade, sem verticalidade” (EWALD, 1993, p. 86). Assim, a
norma produz a medida comum e o cria espaços de exterioridade, daí o anormal
também ser considerado como uma produção da norma.
Na aula de 25 de janeiro de 1978, Foucault considera importante distinguir entre
processos de normação e o que ele vinha chamando de normalização. No caso da
normação, parte-se da norma para distinguir o normal do anormal; em relação à
normalização, o ponto de referência será dado pela
identificação de diferentes curvas de normalidade, e a operação de
normalização vai consistir em fazer essas diferentes distribuições de
normalidade funcionarem em relação às outras e [em] fazer de sorte que as
mais desfavoráveis sejam trazidas às que são mais favoráveis. [...] São essas
distribuições que vão servir de norma. A norma está em jogo no interior das
normalidades diferenciais (FOUCAULT, 2008d, p. 83).
A norma disciplinar, portanto, é prescritiva e anterior ao grupo ao qual se aplica;
enquanto a norma biopolítica o é proibitiva, mas é produzida a partir de saberes
formulados pelo estudo das regularidades dos grupos populacionais e agirá por
mecanismos que regulem os fatores que produzem riscos (FONSECA, 2002).
Cabe ainda mencionar que, na perspectiva aqui utilizada, deve ficar clara a
diferença entre regular e regulamentar. No caso da regulação, trata-se da ação por
excelência da biopolítica, enquanto a regulamentação está associada à normatização, à
criação de normas no sentido de padronizações estáveis.
No caso da caligrafia escolar, é importante compreender como uma rie de
expertises faz funcionar os padrões de normalidade em determinado tempo e espaço. Há
uma produção social que procura demarcar os limites do aceitável ou não em relação à
forma da escrita. E a pergunta que cabe aqui é: a forma da escrita poderia trazer riscos
ao Estado?
Chartier (1999) argumenta que o temor da perda durante muito tempo mediou a
relação dos homens com a cultura escrita. Do temor da perda de textos considerados
33
sagrados à perda de documentos importantes para a administração do Estado, foi-se
investindo cada vez mais nas técnicas gráficas capazes de auxiliar no acúmulo e
armazenamento de informações. Como saber o nome da pessoa com quem se fez um
acordo comercial? Sabe-se que esse foi um fator considerável para a caminhada em
direção à escrita alfabética em detrimento da pictográfica, que, especialmente no caso
dos nomes próprios, dava margem para que diferentes nomes fossem grafados de
maneiras semelhantes, o que acarretava imprecisões nos registros comerciais.
Além dessa preocupação, também é importante considerar, como abordarei com
mais detalhes na parte II, que o investimento nas técnicas gráficas teve papel importante
no processo de governamentalização do Estado moderno. Para gerir a população, foi
cada vez mais central a montagem de aparatos que permitissem registrar e armazenar
uma série de informações que mostrasse a regularidade dos fenômenos próprios a essa
população. Mas para chegar a essa concepção de governo desenvolvida na modernidade
europeia, outros usos da escrita na intersecção da gestão dos negócios do Estado foram
sendo experimentados e colocados em funcionamento. Manguel (1997), por exemplo,
relata o grande fluxo de documentos produzidos em Alexandria na metade do século
III a.C.. Os gregos, segundo o mesmo autor (ibid., p. 216), acreditavam que a sociedade
requeria um intenso registro de suas transações:
Há exemplos de documentos para todo tipo de tarefa, não importa quão
pequena fosse: cuidar de porcos, vender cerveja, negociar com lentilhas
torradas, manter uma casa de banhos, fazer uma pintura. Um documento
datado de 258-257 a.C. mostra que os escritórios de contabilidade do
ministro das finanças Apolônio receberam 434 rolos de papiro em 33 dias.
Com cada vez mais ações sendo registradas, a preocupação com a forma da
escrita tornou-se cada vez mais relevante para que não houvesse dúvidas em relação às
informações que dissessem respeito aos negócios do Estado. Uma série de processos,
como abordarei mais à frente, foram se desenvolvendo tendo em vista instrumentalizar
os sujeitos para utilizar a leitura e a escrita no contexto de uma sociedade que foi
desenvolvendo tecnologias para calcular os riscos à população e potencializar a ação do
Estado. Não se escreve de qualquer maneira e em qualquer lugar. E para que os
indivíduos saibam disso, desde o que se convencionou chamar infância”, e se
instrumentalizem para executar a ação da escrita conforme os padrões de normalidade, a
34
escola é o lugar encarregado na contemporaneidade de colocar em funcionamento
dispositivos que normalizem as escritas infantis.
No caso da caligrafia escolar que hoje é operacionalizada nos livros, é necessário
um olhar que investigue os mecanismos de poder como técnicas que, por sua vez,
formam um conjunto de tecnologias inventadas e em constante aperfeiçoamento. Castro
(2009, p. 412) pontua que, ao falar em técnicas e tecnologias, “Foucault quer mostrar
como um saber do corpo que o é somente um conhecimento do funcionamento,
mas cálculo, organização, e um manejo de suas forças que é muito mais que a
capacidade de vencê-lo (como no suplício), é, antes, a capacidade de manejá-lo”.
Um olhar aguçado nos permite ver em funcionamento uma série de saberes que
dão sentido à necessidade de caligrafar, de dispor as letras, palavras, frases e textos
continuamente em um sistema de linhas gradualmente organizado; é possível analisar
como o poder se organiza em um conjunto de estratégias e táticas que visam à
normalização da escrita e do sujeito que escreve. E é através da análise dos discursos
que visualizamos esses saberes em funcionamento.
1.1.5 Enunciado, discurso e formação discursiva
“[...] sob a fina superfície do discurso, toda a massa de um devir em parte silencioso”
(FOUCAULT, 2008a, p. 85).
e nas seções anteriores procurei mostrar como a problematização
produzida por Foucault acerca dos processos de normação e
normalização na produção dos sujeitos em suas relações com saberes e,
invariavelmente, com poderes podem ser úteis à investigação que se quer produzir nesta
Dissertação, remeto agora a como os conceitos de enunciado, discurso e formação
discursiva também podem auxiliar a entender como o passado emerge hoje nos
mecanismos colocados em funcionamento na caligrafia escolar.
Ao falarmos em discurso, algumas precauções devem ser tomadas. Como bem
indica Maingueneau (2008), tanto a noção de discurso quanto a de análise do discurso
podem conferir acepções muito diferentes, tanto mais restritivas quanto mais
abrangentes. Para este estudo, primeiramente interessa definir com que concepção de
linguagem estou trabalhando, a qual foi em parte antecipada pela introdução deste
S
35
trabalho. A concepção de linguagem é importante para delinear os demais conceitos
com os quais trabalharei, como enunciado, discurso e formação discursiva. Dessa
forma, peço apoio à análise que Foucault fez do quadro conhecido como Las meninas,
de Diego Velásquez, e que foi intitulado originalmente como La familia de Felipe IV.
Na análise que fez da pintura reproduzida logo abaixo (fig. 3), pergunta Foucault
no início de As palavras e as coisas: “Somos vistos ou vemos?”. A pergunta faz sentido
ao analisarmos o quadro detidamente: Velásquez engenhosamente desloca o eixo da
pintura e, através de um espelho, recurso posicionado estrategicamente, traz à tona
indícios do que estava fora do quadro mas também o compondo. Para Foucault, tudo se
resume à disposição da luz, distribuída pelo pincel do pintor. Será possível o quadro, a
representação aprisionar o seu conteúdo? Em outras palavras: será possível essa relação
entre palavras e coisas? Foucault (2000, p. 22) dirá que o quadro “não faz ver nada do
que o próprio quadro representa” e que
em vez de girar em torno de objetos visíveis, esse espelho atravessa todo o
campo da representação, negligenciando o que poderia captar, e restitui a
visibilidade ao que permanece de fora de todo olhar. Mas essa invisibilidade
que ele supera o é a do oculto [...], endereça-se ao que é invisível ao
mesmo tempo pela estrutura do quadro e por sua existência como pintura
(id., ibid., p. 23).
Fig. 3: Las meninas, obra do espanhol Diego Velásquez (1599-1660), pintada em 1656.
36
Com essa argumentação, Foucault quer nos dizer que devemos interrogar o que
vemos e o que dizemos, pois estes o lugares definidos pela sintaxe, longe de ser
reflexo de uma suposta realidade. Qualquer quadro estará ad aeternum incompleto, para
além do que as visibilidades possam nos dizer. Interpretando Foucault, Deleuze (2006,
p. 61) nos diz que “é preciso então rachar, abrir as palavras, as frases e as proposições
para extrair delas os enunciados” que atravessariam as unidades linguísticas como
significante, palavra, frase.
Foucault nos convoca a juntar pedaços, excertos linguísticos que nos permitam
ver onde historicamente foi investido poder, tornando legítimos determinados saberes e
não outros. Fazendo uso desse viés analítico, a análise de livros didáticos de caligrafia
comercializados atualmente para uso nos primeiros anos do Ensino Fundamental presta
grande auxílio, já que entendo tais materiais como visibilidades produzidas por jogos de
verdade presentes culturalmente. Traçando uma analogia entre meu objeto de análise e o
quadro de Velásquez que abre esta seção, questiono que outros elementos estariam fora
das linhas que enquadram as letras nos livros atuais, mas também as compondo, e que
conferem sentido à produção dos modos de disciplina da escrita que ora esses livros
propõem. Poderiam ser outros modos, outras formas, mas por que emergiram essas e
não outras?
É preciso situar que, ao interrogar os livros de caligrafia, mostrarei que saberes
sobre a escrita constituem os exercícios propostos e a forma de apresentação desses
materiais. Tais saberes são acessíveis através dos discursos que constituem e circulam
através desses livros. Para ser mais clara, sublinho que estou entendendo discurso
14
como uma prática que resulta de diversos sistemas de controle das palavras
(FOUCAULT, 2008b). E, por prática discursiva, não se deve entender uma atividade do
sujeito, mas sim a existência de determinadas regras anônimas e históricas que se
obedece ao falar (id., 2008a).
14
Conceituar discurso em uma acepção foucaultiana não é tarefa fácil. Em A arqueologia do saber, por
exemplo, o conceito aparece pulverizado em várias definições diferentes, mas complementares. Veyne
(1992), em nota escrita no conhecido ensaio Foucault revoluciona a História, considera A arqueologia do
saber como um livro “desajeitado”, mas ao mesmo tempo “genial”. O que o autor classifica como
desajeitado, segundo ele, seria efeito de uma obra que foi escrita em pleno calor das discussões
estruturalistas na década de 1960. Sobre essa mesma obra de Foucault, também vale lembrar as
considerações de Veiga-Neto (2007, p. 25): “[...] não há como não notar as várias passagens quase
jocosas, como se Foucault se mostrasse meio entediado em ter de escrever um livro para, digamos,
justificar o monumental As palavras e as coisas perante seus críticos”.
37
Além disso, Foucault (ibid.) também assinala que os discursos são compostos
por conjuntos de enunciados que se apóiam em um mesmo sistema de formação. Ao
falar desses sistemas, Foucault está se referindo ao conceito de formação discursiva.
Quanto aos enunciados, Castro (2009) cita que podemos entendê-los como
“átomos” do discurso. É pelos enunciados que os discursos são colocados em
funcionamento. Mas é preciso diferenciá-los dos atos de fala e das frases, mais
abundantes cotidianamente e o tão raros quanto os enunciados; no entanto, o
enunciado faz uso dessas unidades. Ou seja: interrogar os discursos em busca dos
enunciados não se trata de isolar performances verbais e buscar o seu sentido oculto; os
enunciados se relacionam a um domínio de objetos e a posições passíveis de ser
ocupadas pelos sujeitos (FOUCAULT, 2008a). Além disso, os enunciados referem-se a
materialidades repetíveis, sendo que a formação discursiva é quem define a lei de
formação dessas séries que se repetem. Dessa forma, “o que permitirá situar um
emaranhado de enunciados numa certa organização é justamente o fato de eles
pertencerem a uma certa formação discursiva” (FISCHER, 2001, p. 202).
Antes de encerrar esta seção, por considerar relevante ao uso que farei das
ferramentas para análise do discurso, lembro ainda o que Foucault chamou de “regra da
polivalência tática dos discursos” quando expôs questões de método ao descrever a
formação do dispositivo de sexualidade no Ocidente entre os séculos XVIII e XIX, no
volume 1 de História da sexualidade. Para o autor (1988), os discursos funcionam em
séries descontínuas de segmentos, que podem entrar em estratégias diferentes, com
funções ticas que não são uniformes nem estáveis. Trata-se, portanto, de um jogo
complexo e móvel de correlações de força, sendo possível “existir discursos diferentes e
mesmo contraditórios dentro de uma mesma estratégia; [e que também podem], ao
contrário, circular sem mudar de forma entre estratégias opostas” (id., ibid., p. 112-113).
Assim, trata-se de interrogar os discursos em relação à caligrafia, como fez
Foucault em relação ao sexo, em dois níveis: “o de sua produtividade tática (que efeitos
recíprocos de poder e saber proporcionam) e o de sua integração estratégica (que
conjuntura e que correlação de forças torna necessária sua utilização em tal ou qual
episódio dos diversos confrontos produzidos)” (id., ibid., p. 113).
38
1.2 ESCOLA, PEDAGOGIA E INFÂNCIA: RELAÇÕES COM A CALIGRAFIA
ESCOLAR
ecorrer à iconografia pode ser importante para remontar a
determinados períodos históricos e pinçar as formas como em tempos
e lugares específicos uma prática foi narrada. Que o diga Philippe
Ariès (1981), que, recorrendo especialmente a pinturas da época medieval e dos
primórdios da modernidade, elaborou renomada pesquisa
15
acerca da emergência do
sentimento de infância
16
.
Se foi na modernidade que Ariès constatou uma diferenciação entre as
representações iconográficas de adultos e crianças, quando até o século XVII corpo,
utensílios, roupas e espaços frequentados tanto por adultos quanto por crianças
apareciam como similares, outras pinturas também permitem vislumbrar transformações
sociais consideráveis, possibilitando problematizar como emergiram relações hoje
entendidas como naturais entre infância, escola e pedagogia. Primeiramente, é
importante compreender essas transformações em relação ao que Foucault (2008c)
chamou de intensa disciplinarização das sociedades ocidentais na modernidade. Como
foi dito em seção anterior, a disciplinarização foi uma espécie de ajuste nas técnicas
empregadas para o governo das populações, individualizando cada vez mais os sujeitos,
mas, ao mesmo tempo, fazendo-os funcionar em um regime de governo em que o corpo
coletivo é mais importante do que o individual. A partir do século XVII, uma intensa
racionalização dos modos de ver e interpretar o mundo foram buscadas, concomitante a
um consequente processo de classificação dos saberes, fruto de uma outra racionalidade
surgida do declínio do sujeito sagrado (VEIGA-NETO, 1996a) que tinha lugar na Idade
Média. Para administrar e também dar sentido a esse novo sujeito racional, que se
despede das explicações metafísicas, os espaços sociais foram sendo ordenados e
tomados por uma série de discursos que lhe produziam funções e expectativas. Assim
foram sendo criados métodos pautados na observação e na experimentação. O homem
15
A pesquisa foi publicada na década de 1960 em forma de livro e ganhou uma versão brasileira na
década de 1970, com o nome História social da criança e da família.
16
Considero relevante destacar que Heywood (2004) questiona as fontes iconográficas utilizadas por
Ariès em sua pesquisa sobre a infância. O autor afirma que artistas medievais se ocupavam mais com
outras temáticas em suas pinturas, ocorrendo o mesmo com a literatura, o que, para ele, significaria outras
formas de compreender a infância, diferentemente da modernidade, mas não que a infância fosse tão
insignificante quanto faria supor Ariès. Vale lembrar também que Ariès foi bastante criticado por outros
autores especialmente no que se refere à sua leitura por vezes linear da história da infância desde o século
XV.
R
39
deveria ver e comprovar os fenômenos para poder agir sobre eles e tomar as rédeas do
governo das coisas. Nesse contexto é que surgiram as Ciências Humanas, como
argumenta Foucault em As palavras e as coisas.
As figuras 4 e 5 são ilustrativas do período anterior à intensa institucionalização
das práticas e da hierarquização e classificação dos saberes ocorridos na modernidade.
Para citar alguns exemplos antes de chegarmos à pedagogia
17
, a primeira figura mostra a
ação de um dentista, enquanto a segunda mostra uma pequena intervenção cirúrgica
sendo realizada no de um indivíduo. Retratadas em meados do século XVII, as duas
imagens nos mostram situações cotidianas das cidades
18
anteriores ao intenso processo
de disciplinarização dos saberes e dos corpos que se organizou na modernidade em
torno dessas práticas, prescrevendo-lhes formas específicas de atuação, em espaços
bastante específicos.
Fig. 4: O dentista, obra do holandês Jan Victors (1619-1676), pintada em 1654.
17
Nesta pesquisa, destaco que utilizo o termo “pedagogia” na acepção empregada por Narodowski
(2001). Para o referido autor (ibid., p. 21), a pedagogia é entendida como “produção discursiva destinada
a regrar e explicar a produção de conhecimentos no âmbito educativo-escolar”.
18
É importante salientar que não podemos entender que tais transformações nas cidades tenham ocorrido
de forma homogênea em diferentes sociedades e no mesmo período. Foucault toma como base grandes
linhas de transformações que foram ocorrendo em várias sociedades europeias a partir do século XVII e
que tiveram efeitos na emergência de situações do presente estudadas por ele.
40
Fig. 5: A operação, obra do flamengo Adriaen Brouwer (1605-1638), pintada em 1630.
em relação à escola, outras imagens permitem retomar o período anterior à
constituição da escola moderna pela pedagogia, correlacionada às mudanças na
organização familiar, agora com outro sentimento em relação à linhagem, o que alterou
as práticas em relação às crianças, que agora seriam cuidadas e paparicadas
19
, para usar
um termo empregado por Ariès ao descrever o novo lugar ocupado pela criança na
família. À criança começa a desenhar-se um lugar a ser ocupado: a infância.
Narodowski (2001), por exemplo, nos diz que, ao mesmo tempo em que a pedagogia
produziu essa infância-modelo, carente de cuidados em seu desenvolvimento específico
e diferenciado do mundo adulto, ela também foi produzida para dar um lugar na
sociedade moderna a esse recorte populacional dos quais as crianças faziam parte. A
modernidade produziu esse diagrama que relaciona criança, infância, família, escola e
pedagogia. Poderíamos dizer aqui que, assim como Foucault (1997) entende que o
hospital é anterior à medicina, também a escola é anterior à pedagogia; e, assim como o
discurso da medicina transformou e continua transformando as práticas que se dão no
âmbito médico de um hospital, semelhante fenômeno ocorreu e ocorre em relação à
escola e à pedagogia. A seguir (figs. 6 e 7), obras de autoria, respectivamente, dos
19
O termo utilizado por Ariès no original, em francês, é mignotage.
41
pintores Adriaen van Ostade e Jan Steen, nos mostram recortes de espaços escolares
anteriores aos moldes que conhecemos na modernidade.
Fig. 6: O mestre-escola, obra do já citado pintor Jansz van Ostade (1610-1685), de 1662.
Fig. 7: Escola de aldeia, obra do holandês Jan Steen (1626-1679), pintada em 1662.
42
Nas duas imagens, um aspecto parece evidente: o local para a prática educativa
lembra uma situação de improviso. Utensílios o-escolares convivem com o espaço
das aulas, como os utensílios de cozinha que são visíveis especialmente na obra de Jan
Steen. Algumas crianças realizam tarefas em pé, outras sentadas, outras parecem brigar,
outras dormem; enfim, cada criança parece escolher a sua posição no espaço dado às
aulas. Que instrumentos utilizar, como sentar, quando levantar, o que o professor deve
fazer, em qual espaço ensinar e como esse espaço deve ser: esses serão alguns dos
esforços modernos para organizar esse caos que as figuras aparentam aos nossos olhares
deveras acostumados com a configuração escolar que se constituiu e se mantém até os
nossos dias atuais.
Se os espaços educativos ilustrados nas pinturas parecem improvisados na casa
dos professores, como foi muito comum em diferentes países a tempos não muito
distantes, inclusive no Brasil
20
, também foi comum o professor lecionar na casa das
crianças, como preceptores, ou até mesmo ser tratado como um criado da casa da
família, conforme relatado por Hansen (2002, p. 87), ao analisar manuscritos do culo
XVI de Palmyreno, mestre-escola espanhol:
[...] os pais costumam usá-lo [o professor] para servir à mesa, retirar os
pratos, tomar conta da mula, comprar pescado, envolvendo-o tantas vezes em
outras encomendas variadas que o mestre tem efetivamente pouco tempo para
ensinar o que convém às crianças da casa.
Que saberes seriam necessários ao professor que se encarregará da educação das
crianças? Muitos relatos sugerem lenta organização dos saberes que constituíram a
pedagogia como campo de atuação desse professor. Relatos do século XVIII, na
Venezuela, estudados por Prado (2002), mostram que qualquer pessoa de um vilarejo
poderia tornar-se mestre de primeiras letras, sendo comum a profissão entre barbeiros,
20
O termo “escolas de improviso” foi utilizado por Faria Filho e Vidal (2000) ao estudarem a história da
escola primária no Brasil, detendo-se especialmente na análise dos espaços físico-arquitetônicos ocupados
pelas escolas e na organização temporal das aulas. Para os autores (ibid.), as escolas de improviso
retratariam o modelo de educação escolar premente no Brasil entre os séculos XVIII e XIX: Grosso
modo pode-se dizer que tais escolas utilizavam-se de [sic] espaços cedidos e organizados pelos pais das
crianças e jovens aos quais os professores deveriam ensinar. Não raramente, ao lado dos filhos e/ou filhas
dos contratantes vamos encontrar seus vizinhos e parentes. O pagamento do professor era de
responsabilidade do chefe de família que o contratava, em geral um fazendeiro.” Trindade (2001) também
descreve o caso das escolas de improviso no Rio Grande do Sul, que vigoraram ainda no início do século
XX, apesar dos esforços vindos da esfera governamental desde o final do século XIX para oferecer
melhores condições estruturais às escolas, tendo em vista a onda de preocupações higienistas que circulou
no Brasil em tal época.
43
artesãos e outros que, ao se aposentarem, passavam a se dedicar à educação das
crianças. A continuação do relato de Prado (ibid., p. 212) nos mostra certa semelhança
entre os espaços educativos europeus retratados nas pinturas que introduziram esta
seção e relatos de aulas no século XVIII, agora na Venezuela:
Quanto aos alunos, não cumpriam horários estabelecidos para entrar ou sair.
Iam chegando, sentando-se em seus banquinhos e com a tablilla sobre as
pernas estavam prontos para as aulas. Qualquer livro, pena, tinteiro ou papel
constituíam o material escolar considerado sempre suficiente. Contentavam-
se em aprender a ler, em qualquer livro [...].
Pelo exposto até aqui, é possível inferir que não há uma cronologia precisa tanto
para o aparecimento do sentimento de infância em diferentes contextos culturais e
geográficos, assim como para a constituição da pedagogia e da escola moderna, como já
exposto por Narodowski (2001). No entanto, não é à toa que falamos em sentimento
moderno de infância e constituição da escola moderna. Grandes linhas podem ser
traçadas que unem e mostram efeitos de determinados discursos sobre os
acontecimentos que foram se desenrolando em diferentes contextos culturais na
modernidade e que envolvem infância, escola e pedagogia. Procurando por essas
grandes linhas, Varela e Álvarez-Uria (1992) realizaram um estudo de bastante
repercussão no qual delimitaram cinco grandes condições que possibilitaram a
emergência da escola moderna. Entre elas, os autores citam a criação de um estatuto
para a infância, como relatado nesta pesquisa. Entre as características da infância que
justificariam a sua tutela pelo aparelho escolar estariam a maleabilidade, a fragilidade, a
rudeza e a fraqueza de juízo (id., ibid.).
O estudo dos fenômenos regulares à população, preocupação das novas formas
de governo, mostrou que a infância deveria ser alvo de cuidados, e os pais cada vez
mais passariam a ser estimulados a colocarem seus filhos nas escolas. Cuidar da
educação das crianças passou, então, a ser um problema de seguridade para o Estado
(FOUCAULT, 2008d).
A organização de espaços próprios à educação, a formação de um corpo de
especialistas, a destruição de outros espaços de educação e a institucionalização da
escola obrigatória completam o rol descrito no estudo de Varela e Álvarez-Uria (1992).
A formação de um corpo de especialista segue lenta trajetória. Podemos citar
como textos seminais que dão testemunho dos primórdios da pedagogia moderna as
44
obras de Jan Amos Comenius, em especial Didática magna e Orbis sensualium pictus,
esse último também conhecido como Mundo ilustrado, e a obra Emílio, de Jean-
Jacques Rousseau. Escritas no século XVII, as obras de Comenius marcam a
preocupação com o investimento em métodos que possam conduzir de uma forma mais
organizada a educação das crianças. Mas, como destaca Narodowski (2001), em
Comenius trata-se de uma infância para ser conduzida, educada, mas não amada, como
veremos em Emílio, um século mais tarde. Para Narodowski (ibid., p. 30), “[Emílio]
produz efeitos inequívocos na configuração da pedagogia moderna ao delinear a criança
mas, sobretudo, ao delineá-la em sua educabilidade, em sua capacidade natural de ser
formada”.
Um lugar cada vez mais projetado para receber e produzir a infância passa a ser
desejável em um contexto de preocupação do Estado em calcular os riscos envolvidos
na circulação das multidões. Às crianças, cria-se um espaço que as separa por boa parte
dos seus dias das tarefas rotineiras dos adultos e no qual elas vivenciarão tarefas que se
passará a considerar adequadas para corpos e almas
21
agora considerados em formação.
A costumeira formação educativa ministrada em casa aos filhos do sexo masculino das
elites durante a Idade Média e início da modernidade, baseada na preparação para a
utilização das armas em caçadas e possíveis guerras, no ensino de bons costumes e
virtudes, assim como na alfabetização para a apreciação especialmente de literatura
religiosa (HANSEN, 2002), cede espaço para a educação escolar. Segundo Hansen
(ibid.), a nobreza substituiu um modelo de educação para as armas por um modelo de
educação para o culto às letras, posteriormente acessível também à plebe. Ou seja: havia
outras formas de educação não escolares que foram cedendo aos apelos modernos de
formação e preparação da infância na escola
22
.
21
Refiro-me à alma não em uma acepção metafísica, mas no sentido que lhe Foucault (2008c). Para o
autor, a alma possui uma realidade produzida permanentemente, sendo objeto de saber e de intervenção
técnica. A alma seria produzida em torno, na superfície, no interior do corpo pelo funcionamento de um
poder que se exerce sobre os que são punidos de uma maneira mais geral sobre os que são vigiados,
treinados e corrigidos, sobre os loucos, as crianças, os escolares, os colonizados, sobre os que são fixados
a um aparelho de produção e controlados durante toda a existência” (id., ibid., p. 28). A alma, portanto,
como produção histórica, “efeito e instrumento de uma anatomia política; a alma, prisão do corpo” (id.,
ibid., p 29). Dessa forma, é sobre a alma que agem as verdades para ter acesso ao corpo.
22
É preciso assinalar, ainda, que tanto o novo estatuto da infância quanto o da família, no caso das classes
populares, apareceram com uma certa defasagem cronológica em relação à nobreza. Varela e Álvarez-
Uria (1992) apontam que tal promoção às classes populares será realizada principalmente pela escola no
século XIX. Ariès (1981) também aponta a existência, no século XVIII, de dois tipos de sistemas de
ensino em países da Europa: um voltado para a educação do povo, e outro para as camadas aristocráticas.
45
Ao entrarem no cálculo dos mecanismos de seguridade do Estado, a escola,
especialmente a partir da institucionalização obrigatória, e tantas outras instituições
organizadas na modernidade fazem uso de uma série de mecanismos disciplinares que
funcionam no nível individual:
Na oficina, na escola, no exército funciona como repressora toda uma
micropenalidade do tempo (atrasos, ausências, interrupções das tarefas), da
atividade (desatenção, negligência, falta de zelo), da maneira de ser
(grosseria, desobediência), dos discursos (tagarelice, insolência), do corpo
(atitudes “incorretas”, gestos o conformes, sujeira), da sexualidade
(imodéstia, indecência). Ao mesmo tempo é utilizada, a título de punição,
toda uma série de processos sutis, que vão do castigo físico leve a privações
ligeiras e a pequenas humilhações. Trata-se ao mesmo tempo de tornar
penalizáveis as frações mais tênues da conduta, e de dar uma função punitiva
aos elementos aparentemente indiferentes do aparelho disciplinar
(FOUCAULT, 2008c, p. 149).
Nas instituições em que a tônica é a atuação do poder disciplinar, como o caso
da escola, o corpo assume a centralidade das ações. Foucault (ibid., p. 118) define
disciplina como “métodos que permitem o controle minucioso das operações do corpo,
que realizam a sujeição constante de suas forças e lhes impõem uma relação de
docilidade-utilidade”. Logo, visando a aumentar “o domínio de cada um sobre seu
próprio corpo” (id., ibid., p. 119), não se trata apenas de potencializar as habilidades dos
indivíduos; Foucault refere-se a uma equação das disciplinas para tornar o corpo “tanto
mais obediente quanto é útil” (ibid.), o que significa aumentar as forças no sentido da
utilidade econômica, mas ao mesmo tempo estabelecer limites para que as ações dos
indivíduos não escapem a um padrão. Em outras palavras, trata-se de disciplinar os
corpos para que sejam tanto úteis quanto obedientes. É a isso que o autor se refere ao
falar em relação de docilidade-utilidade do corpo.
Sobre esse aspecto, é conveniente lembrar que, no culo XVIII, Kant (1996, p.
13) atentava marcadamente para a ão disciplinar da escola sobre o corpo infantil
como uma experiência fundamental a ser vivenciada pelas crianças nesse espaço:
[...] as crianças são mandadas cedo à escola, não para que aí aprendam
alguma coisa, mas para que aí se acostumem a ficar sentadas tranquilamente
e a obedecer pontualmente àquilo que lhes é mandado, a fim de que no futuro
elas não sigam de fato e imediatamente cada um de seus caprichos.
Leitor de Rousseau, em Sobre a pedagogia também é notável a preocupação de
Kant com a infância que deve ser cuidada, protegida e educada. Para o filósofo, o
46
homem é o que a educação faz dele, e, como primeiro aspecto apontado como dever da
ação educativa, Kant (ibid., p. 26) assinala o disciplinamento, no sentido de procurar
impedir que a animalidade prejudique o caráter humano, tanto no indivíduo como na
sociedade. Portanto, a disciplina consiste em domar a selvageria”.
Ao final do século XVIII, período em que Kant proferiu os excertos acima,
estenografados em aula por seu aluno Friedrich Theodor Rink, Foucault (2008c) relata a
emergência de uma nova economia do corpo. Buscava-se criar mecanismos que
proporcionassem garantias de que o menor número possível de delitos fosse praticado
em sociedade. Organizar o espaço, controlar o tempo e obter um registro ininterrupto do
indivíduo e de sua conduta fariam parte desses mecanismos. Cabe ressalvar que o autor
nos diz que as disciplinas existiam, por exemplo, nos conventos e exércitos, mas
espraiaram-se pela sociedade a partir do século XVIII. Ou seja, não foi a primeira vez
que a sociedade passou a investir sobre o corpo dos indivíduos; a novidade estaria no
esquadrinhamento detalhado do corpo, que entra cada vez mais em uma rede de poder
que prescreve constantemente quais seriam as melhores ações. No caso da escola, outra
novidade seria o investimento sobre os corpos das crianças a partir de saberes
específicos sobre eles, produzidos por redes de saberes compostas não somente pela
pedagogia, mas em sua conjunção especialmente com a medicina e, mais tarde, com a
psicologia
23
.
Prescrever as melhores ações significa submeter o corpo a uma série de
tecnologias que possibilitem a limpeza dos movimentos imprecisos dos gestos. Ao
mostrar nesta seção uma reconstituição possível de alguns elementos históricos que nos
apontam para a organização da escola moderna em conjunção à emergência de novas
referências em relação às crianças nas sociedades ocidentais e com uma nova
organização da família em torno do cuidado à infância, tive por objetivo preparar o
olhar dos meus leitores para compreender de que forma foi possível pensar práticas de
caligrafia escolar especialmente organizada para as crianças na modernidade,
diferenciada da praticada pelos adultos calígrafos em um ambiente não escolar. A
caligrafia escolar hoje, como abordarei mais adiante, lança mão de uma série de blocos
táticos para conduzir as escritas infantis a um nível de normalidade. Seduzir as crianças
23
Abordarei mais adiante as relações entre a pedagogia e a psicologia que se relacionam com a
aprendizagem da caligrafia escolar.
47
a um trabalho sobre suas escritas a partir de uma promessa que envolve escrever e
brincar é uma das táticas em funcionamento nos livros que analisarei nesta pesquisa.
Tanto Bujes (2002) quanto Dornelles (2007a) nos mostram que a atividade do brincar
foi construída discursivamente, especialmente a partir do século XIX pela psicologia e
outras ciências psi, como natural, inerente ao desenvolvimento considerado saudável da
criança. Pela brincadeira, como postulado por Winnicott (1975), a criança teria espaços
de liberdade que permitiriam, por exemplo, o desenvolvimento da criatividade e a
estruturação de sua personalidade com base na experimentação de papéis sociais. Cito
aqui Winnicott pelo grande efeito de verdade que suas pesquisas tiveram nas práticas
pedagógicas; entretanto, é preciso considerar que ele é um falante em meio a uma teia
de discursividades que na modernidade produziram e ataram fortemente a criança e o
brincar.
Mais à frente, torno a essa discussão, tendo em vista ser fundamental um olhar
mais detalhado para como a psicologia e outras ciências psi forneceram linguagens de
análise e explicação à pedagogia sobre a criança, assim como forneceram os meios
pelos quais a subjetividade e a intersubjetividade puderam começar a fazer parte dos
cálculos das autoridades” (ROSE, 1998, p. 38). Rose (ibid.) também destaca que, dessa
forma, foi possível passar a considerar as características subjetivas da vida humana
como “elementos no interior de compreensões da economia, da organização, da prisão,
da escola, da fábrica, do mercado de trabalho”, o que tornou possível compreender a
psique humana como um domínio possível de governo sistemático.
O investimento na disciplina dos gestos, realizado pelas práticas caligráficas
escolares, pode ser entendido como uma forma de conduzir as escritas à normalização.
Essa condução à norma possibilita traçar alguns paralelos entre as práticas pedagógicas
e as práticas terapêuticas, o que nos leva à discussão da seção seguinte, que fecha esta
primeira parte da Dissertação.
48
1.2.1 A caligrafia escolar como prática pedagógica e terapêutica
m Inventando nossos eus, Nikolas Rose (2001, p. 166-167) sublinha
que analisar o modo pelo qual os sujeitos tornam-se sujeitos é olhar
também como eles são dotados de determinadas capacidades:
Aquilo que os humanos estão capacitados a fazer não é intrínseco à carne, ao
corpo, à psique, à mente ou à alma: está constantemente deslocando-se e
mudando de lugar para lugar, de época para época, com a ligação dos
humanos a aparatos de pensamento e ação desde a mais simples conexão
entre um órgão (ou uma parte do corpo) e outro em termos de uma ‘anatomia
imaginária’ até aos fluxos de força tornados possíveis pelas ligações de um
órgão com uma ferramenta, com uma máquina, com partes de outro ser
humano ou de outros seres humanos, em um espaço montado tal como um
quarto de dormir ou uma sala de aula.
Em outra passagem do mesmo texto, Rose questiona como nos tornamos o que ele
chama de “máquinas escreventes”, por que tipo de treinamento nós passamos, utilizando
quais suportes de escrita, quais instrumentos, em que lugares. Questionamento
semelhante é o que mobiliza minha escrita nesta Dissertação; entretanto, faço um outro
recorte analítico: como nos tornamos sujeitos que escrevem com determinados padrões
estéticos de grafia. Não para apenas buscar conexões com as práticas escolares para
analisar a problemática que coloco; é preciso tentar compreender de que forma se
produz esses padrões estéticos e, para isso, pedindo auxílio teórico à Deleuze (1992),
trata-se de compreender uma situação de causalidade imanente, na qual não apenas a
escola participa da produção desses padrões, mas também os padrões são atualizados a
partir dos próprios efeitos que produzem (id., ibid.).
Que linhas de força, cabe perguntar, fazem com que o sujeito se relacione com
sua própria escrita na escola? Para examinar essas linhas de força, é útil o conceito de
dispositivo pedagógico, conforme teorizado por Larrosa (1994, p. 57), no sentido de
“qualquer lugar no qual se constitui ou se transforma a experiência de si. Qualquer lugar
no qual se aprendem ou se modificam as relações que o sujeito estabelece consigo
mesmo”. Descrever esses dispositivos pedagógicos que atuam sobre a escrita das
crianças é descrever como atuam sobre a subjetividade. Mostrando o funcionamento dos
dispositivos, é possível mapear as formas pelas quais o poder atua sobre as escritas
infantis. Tais dispositivos pedagógicos atuam no encarceramento dos grafismos infantis,
indicando-lhes formas mais adequadas de produzi-los, a partir do investimento em uma
E
49
postura adequada, por exemplo, ou no uso de um material mais apropriado. É
importante localizar, portanto, que “é de acordo com uma regra terapêutica que as linhas
de força são flexionadas para se transformar em um espaço moldado de acordo com o
eu em nossa existência e experiência” (ROSE, 2001, p. 188). Um certo entrelaçamento
entre os discursos pedagógicos e terapêuticos é possível notar, como o fez Larrosa
(1994), para quem a educação funcionaria muitas vezes como terapia, e a terapia, por
sua vez, funcionaria como educação ou reeducação.
Terapia e terapêutica
24
, que muitos dicionários de língua portuguesa remetem
como sinônimos, não são compreendidos aqui como
um privilégio concedido à própria ‘psicoterapia’ [...]. ‘Terapêutica’, em vez
disso, no sentido de que a relação consigo mesmo é, ela própria, dobrada em
termos terapêuticos problematizando a si mesmo de acordo com os valores
da normalidade e da patologia [...] (ROSE, 2001, p. 188).
Não apenas à proliferação dos saberes psi deve fazer-se referência: a emergência da
pedagogia cada vez mais como terapêutica pode ser compreendida, muito antes,
também no entrelaçamento com o sentimento moderno de infância, abordado em
seção anterior. A educação pelo cuidado e pela vigilância ocupará cada vez mais o lugar
por tanto tempo destinado aos castigos violentos nos ambientes escolares. No século
XVI, por exemplo, Erasmo de Rotterdam cita em De pueris (2008) sua contrariedade
com o que ele classifica como exagero nos castigos empregados na educação dos
meninos. Entre o que ele cita como exageros, seguem alguns exemplos:
Dir-se-ia que, ali, não existe escola e, sim, ergástulo. Apenas se ouvem o
crepitar das palmatórias, o estrépito das varas, as lamentações e os soluços
em meio à balbúrdia de ameaças ferozes (p. 67);
Para os escoceses, os mestres-escolas de França são especialistas em
pancadaria. Quando questionados a respeito, respondem que aquele povo, tal
como dizem dos frígios, só se corrige a paulada (p. 70);
Narram os livros judiciários que certo indivíduo deixou no occipício do
aprendiz o desenho do formato do tamanco de madeira, fazendo saltar para
fora um dos olhos (p. 74-75).
24
Nas raízes etimológicas da palavra terapia está a ação de ocupar-se com uma estética de si mesmo,
como indica Foucault na conferência ministrada em 1982 na Universidade de Vermont, intitulada
Technologies of the self. Nessa conferência, Foucault (1995d) cita como exemplo de prática de cuidado de
si na Grécia Antiga o grupo therapeutae, referido por Philon de Alexandria em “De vita contemplativa”.
O grupo seguia uma rígida rotina de leitura, meditação e preces coletivas e individuais. Cunha (1999)
também esclarece que a palavra terapia advém do vocábulo grego therapeuein, cujo sentido remete à ação
de curar ou de prestar assistência.
50
Hoje, tais práticas causam estranhamentos e podem ser severamente punidas
juridicamente. Proliferam-se casos em diferentes mídias sobre maus tratos a crianças
por professores, e logo o clamor popular os julga e condena. Um recente caso na região
metropolitana de Porto Alegre
25
chamou a atenção porque a vice-diretora de uma escola
pública exigiu que um aluno que havia pichado os muros da escola, recém pintados por
um mutirão de pais, pintasse novamente a escola. O vídeo da sanção foi gravado por
alunos e divulgado na web. O fato de a vice-diretora xingar o aluno, assim como a
sanção, foi motivo de divisão de opiniões na discussão que se estabeleceu na sociedade,
mediada por jornais e veículos televisivos. Deu-se espaço na mídia para que pais que
pintaram a escola se manifestassem, assim como para o aluno envolvido na polêmica,
sua mãe, a vice-diretora da escola, especialistas de diferentes áreas, colunistas de
diferentes jornais, etc. Aqui não interessa dar razão a uma parte ou outra; o que interessa
é que tal situação local ilustra o quão hoje são vigiadas as atitudes que se dão na escola
não só sobre as crianças mas também sobre os adolescentes.
A palmada dada em casa pelos pais ou responsáveis também é alvo recente de
discussões no Brasil pela tramitação do Projeto de Lei 2.654/03
26
, que pretende punir
quem aplicar castigos que envolvam violência e situações vexatórias às crianças e
adolescentes. Nesse caso, convém assinalar que, como argumentou Foucault (2008c),
um corpo disciplinado é mais produtivo que um corpo supliciado. É mais econômico,
portanto, investir terapeuticamente nas falhas dos indivíduos do que tentar corrigi-las
pela exclusão ou pelo castigo corporal. No lugar do castigo, passa-se a investir cada vez
mais na alma dos sujeitos para a realização dos ajustamentos; buscam-se suas vontades
e disposições, seu intelecto, seu “eu interior”, como faz crer o complexo de ciências psi.
Hoje, a caligrafia escolar tenta aparecer associada ao prazer e à diversão pelo
recurso a jogos e brincadeiras, conforme mostram os excertos abaixo
27
, pertencentes às
descrições feitas por editoras sobre suas propostas para caligrafia em livros didáticos:
25
A notícia pode ser conferida no link: http://oglobo.globo.com/cidades/mat/2009/09/22/punicao-aluno-
que-pichou-escola-logo-apos-mutirao-de-pintura-gera-polemica-em-cidade-do-rio-grande-do-sul-767721
137.asp. Acesso em: março de 2010.
26
O Projeto de Lei foi assinado pelo presidente Luis Inácio Lula da Silva em 14 de julho de 2010 e
aguarda aprovação do poder legislativo. Se aprovada, a proposta integrará o Estatuto da Criança e do
Adolescente (ECA).
27
As descrições que constam no quadro são parte das análises empreendidas no projeto que antecedeu
esta Dissertação.
51
Integra os exercícios de caligrafia e ortografia a atividades divertidas como caça-
palavras, adivinhas, fazer desenhos, recortar-e-colar etc, de forma que as aulas
fiquem gostosas como uma brincadeira
28
.
Os livros de Caligrafia e Ortografia do Novo Eu Gosto têm a característica marcante
dessa educadora [a autora]: comunicação com as crianças, de maneira atraente e
lúdica
29
.
As lições são totalmente ilustradas e para trabalhar o som das letras são usadas
músicas que divertem e entretêm os alunos
30
.
A coleção traz jogos, desafios, charadas, leituras de entretenimento que tornam o
trabalho mais prazeroso. Leituras variadas são apresentadas com bom humor além de
curiosidades sobre diversos assuntos
31
.
Uma criança que brinca poderia ter um rendimento mais apropriado na
caligrafia? Brincando, o cansaço e/ou a distração no investimento sobre sua própria
escrita na caligrafia seria menor? Hoje, proliferam-se outras formas no âmbito da
pedagogia para trazer à norma o que se considera desviante. Não à toa utilizo como
metáfora no título deste trabalho o disciplinamento e a normalização das escritas
infantis como fortemente relacionado a um aparato de ortopedia tanto gráfica quanto
caligráfica. A metáfora adquire mais sentido se nos reportarmos ao médico francês
Nicholas Andry, a quem é atribuída a criação do termo “ortopedia”, a partir da
publicação, em 1741, do livro L'Orthopedie, ou l'art de prevenir et de corriger, dans les
enfants, les defformites du corp
32
. O vocábulo “ortopedia”, um neologismo à época de
Andry, deriva dos prefixos gregos orthós, que significa correto ou reto, e paidós, que
significa criança, além do sufixo –ia, que denota qualidade. Se Andry propunha uma
especialidade dica para corrigir ou prevenir deformidades congênitas ou adquiridas
das crianças, hoje é conhecido que a atuação da ortopedia vai além do tratamento das
crianças, havendo quem proponha a revisão do termo, alterando para ortologia
(LUCAS, 2005).
Andry estudou a anatomia humana e propôs modos de corrigir determinadas
deformidades físicas. Não por acaso, a árvore de Andry” (fig. 8), figura utilizada por
ele no livro citado, ficou bastante conhecida a partir da sua inclusão em Vigiar e
punir, por Michel Foucault. Na mesma coleção de imagens incluídas no início do livro
na edição brasileira, Foucault apresenta imagens utilizadas por Diderot e d’Alembert em
28
Labriola e Labriola (2003).
29
Neves (2006).
30
Azevedo (1988).
31
Azevedo (1998).
32
“A Ortopedia, ou a arte de prevenir e corrigir, nas crianças, as deformidades do corpo”.
52
Art de l’écriture, mostrando uma referência do século XVIII sobre um correto
posicionamento do corpo ao escrever e, em detalhe, o posicionamento da mão e dos
dedos ao pegar a pena. Mais adiante, na mesma obra, Foucault (2008c, p. 130) afirma:
“Um corpo bem disciplinado forma o contexto de realização do mínimo gesto. Uma boa
caligrafia, por exemplo, supõe uma ginástica uma rotina cujo rigoroso código abrange
o corpo por inteiro, da ponta do pé à extremidade do indicador”.
Fig. 8: A imagem que ficou conhecida como “árvore de Andry”, do livro L'Orthopedie, ou l'art de
prevenir et de corriger, dans les enfants, les defformites du corp, de Nicholas Andry, publicado em 1741.
Fig. 9: Imagem da obra Art de l’écriture, de Diderot e d’Alembert, indicando o posicionamento da mão
para escrever. A imagem foi incluída por Foucault em Vigiar e punir, mostrando a preocupação com as
formas de disciplinamento dos detalhes entre os séculos XVIII e XIX.
53
O ponto a ser destacado é: para produzir uma escrita mais produtiva investir-se-á
na organização de técnicas que permitam classificá-la, hierarquizá-la, produzir saberes
sobre ela. A caligrafia na escola foi se constituindo como um campo de ação que
procura organizar uma espécie de terapêutica para as escritas disformes, anormais. No
entanto, é necessário mapear de que forma se deu o deslocamento das práticas de escrita
na escola com forte acento disciplinar, como foi pico de um momento histórico que
produziu equipamentos para correção do modo de segurar o pis como o mostrado na
figura 10, às práticas que propõem agora modulações estéticas para as escritas infantis.
Quando por muito tempo foi impensável nas escolas alguém não aprender a letra
cursiva, hoje é cogitável o praticá-la, como anuncia o título de recente reportagem
do jornal Folha de São Paulo: Quem tem letra feia pode ter de trocar a de mão pela de
forma”
33
(REWALD, 2010).
Fig. 10: Equipamento Writetrue, para corrigir o modo de segurar a caneta ou o pis, comercializado nos
Estados Unidos e na Inglaterra em catálogo de 1909. Em destaque na parte de cima da figura, lê-se:
“Toda escola deveria adotar a ‘escrita correta’”. Fonte: SASSOON (1999).
A ortopedia das escritas infantis operada pela caligrafia dos livros escolares é o
problema sobre o qual me debruço neste trabalho, o que implica rastrear visibilidades e
33
A reportagem refere-se a trocar a letra cursiva pela letra solta. Referente ao dia 17 de maio de 2010, a
reportagem pode ser conferida em: http://www1.folha.uol.com.br/folha/educacao/ult305u735158.shtml
Acesso em: maio de 2010.
54
enunciados, procurando ver os modos de funcionamento das táticas e os saberes que dão
sentido às formas que operam o disciplinamento e a normalização das escritas infantis e
dos sujeitos.
PARTE II
2 TRAJETÓRIAS DA ESCOLARIZAÇÃO DA ESCRITA E
DA CALIGRAFIA
Cada época diz tudo o que pode dizer em função de suas condições de enunciado
(DELEUZE, 1992, p. 63).
2.1 CONDIÇÕES DE POSSIBILIDADE
esta parte da pesquisa, não tenho por pretensão fazer um inventário
linear sobre o objeto bruto da minha pesquisa: a caligrafia; o que
proponho é levantar alguns indícios que me permitiram pensar em
termos de uma composição de efeitos históricos em relação à caligrafia no âmbito
escolar. Procurar mapear momentos exatos de aparecimento de diferentes visibilidades
da caligrafia se trata de uma quimera, tendo em vista que os momentos de emergência
retratam redes de relações que já se estabeleciam antes que fosse possível saber delas.
Tais ideias nos remetem a Alexis de Tocqueville, um dos primeiros teóricos a
opor-se à ideia de ruptura para interpretar os acontecimentos sociais, ainda no século
XIX, tendo em vista que estes não irromperiam inesperadamente. Frias Filho (2005
apud MEDEIROS, 2005, p. 44), interpretando os escritos de Tocqueville sobre a
Revolução Francesa, nos diz que: “a imagem que ele usa é a de um edifício novo e
invisível que fora construído aos poucos por baixo do velho. Quando sobreveio a
revolução, em 1789, tudo o que ela precisou fazer foi sacudir o edifício antigo, que se
desmanchou em pó”. As ideias de Tocqueville encontram eco nos usos que Foucault faz
da genealogia, a partir das diferenciações que Nietzsche havia desenvolvido entre
proveniência (herkunft) e emergência (entestehung), rejeitando uma pesquisa pautada na
busca das origens (ursprung), tão ao gosto dos historiadores tradicionais. A
proveniência não busca novas fundações; ela busca fragmentar o que se percebia imóvel
e mostrar a heterogeneidade que foi sendo apagada, mostrando as falhas, os acidentes,
as inversões que tornaram naturais o modo como hoje percebemos os acontecimentos
(FOUCAULT, 1995c). ao falar em emergência, trata-se da entrada em cena das
forças, “o salto pelo qual elas passam dos bastidores ao palco”; a emergência, portanto,
como “o princípio e a lei singular de um aparecimento que acontece num determinado
estado de forças” (FOUCAULT, 2005, p. 267). Por isso Foucault (1995c) retoma as
palavras de Nietzsche, em Nietzsche, a genealogia e a história, ao dizer que a
genealogia é cinza. O que ele quer nos dizer é que o objeto estudado deve ser tratado
como algo que provém de misturas, de várias combinações, interferências,
reestruturações, e que obtém como resultado perspectivas múltiplas,
tonalidades, matizes. O trabalho do genealogista é cinzento, porque se faz
presente nas filigranas, é esmiuçador, escrupuloso, detalhista, paciente
(OROPALLO, 2005, p. 26-27).
N
57
No lugar de um conjunto ordenado de fatos, portanto, buscam-se os conjuntos de
acidentes. E, com essas inspirações, o que faço nesta parte da pesquisa é buscar relações
entre redes discursivas sobre a caligrafia escolar no Brasil, assim como tentar pinçar
quais seriam os seus efeitos de verdade, para que seja possível compreender as
condições de emergência das táticas que hoje são colocadas em funcionamento nos
livros de caligrafia para normalizar as escritas infantis. Para isso, são necessárias
conexões com outros acontecimentos em relação às trajetórias da escrita e da caligrafia
anteriores à chegada dessas práticas no Brasil e às transformações pelas quais aqui
passaram.
2.2 ESCRITA E GOVERNAMENTALIZAÇÃO DO ESTADO MODERNO
nalisando relatórios da polícia de Paris do século XIX, Philippe
Artières (2006, p. 38) lança a seguinte pergunta ao encontrar uma
série de registros acerca de práticas urbanas de escrita: “Por que de
repente esse homem que escreve em público torna-se suspeito?” É nesse período em que
Artières a efervescência de registros policiais que procuram catalogar quem escreve,
o quê e em que lugares no espaço público. Em trabalho recentemente publicado no
Brasil, o mesmo autor argumenta que a história do anonimato pode ser lida como uma
história da resistência à sociedade de controle (id., 2009). Por que escrever
anonimamente classificados de jornais, cartas de denúncia à polícia ou em muros das
ruas tornaram-se um problema em Paris no século XIX?
Quem nos oferece um exemplo mais próximo é Karasch (2000). A pesquisadora
norte-americana estudou por quase duas décadas documentos sobre escravos que
viveram no Rio de Janeiro durante a primeira metade do século XIX. À época, estima-se
que havia no Rio de Janeiro uma população de oitenta mil escravos, a maior
concentração em toda a América Latina. No interessante estudo, a autora relata que
muitos escravos já desembarcaram no Brasil falando, lendo e escrevendo em português,
seja por serem provenientes de regiões de colonização portuguesa, como a Angola, ou
pela preparação por intermédio de outros escravos que sabiam o idioma. Outros também
aprendiam a ler e a escrever em português ao acompanharem os filhos dos seus senhores
à escola. Também é preciso citar os escravos muçulmanos que eram alfabetizados em
A
58
língua árabe. Karasch (2000) encontrou documentos que mostravam a ão vigilante da
polícia do Rio de Janeiro sobre as práticas de escrita dos escravos, pois havia receio de
que a escrita fosse utilizada para planejar levantes. A escrita em árabe era a que mais
preocupava, fazendo a polícia contar com os serviços de outros negros que soubessem o
idioma para interpretar os registros.
Além de dar visibilidade a narrativas marginais, questionando a crença comum
de que os escravos que viveram no Brasil seriam todos analfabetos, o relato de Karasch
(ibid.) torna-se especialmente interessante ao mostrar que a preocupação com a escrita
não se restringia aos ditos cidadãos livres, mas também aos cativos.
Falar em quando a escrita se tornou um problema a ser gerido nas cidades
significa nos reportarmos a outro problema: o problema da liberdade.
2.2.1 O problema da liberdade
o ler os cursos de Michel Foucault no Collège de France,
especialmente os ministrados nos anos 1978 e 1979, nos deparamos
com uma ampla argumentação que mostra a produção da liberdade
pela nova razão governamental que surgia ao final do século XVIII. Foucault mostra
que os problemas relativos ao comércio de grãos na Europa no século XVII foram fator
central para a crítica e posterior deslocamento dos métodos de governo utilizados pelo
Estado. Em tal época, o modelo de gestão do Estado europeu funcionava em um sistema
de polícia, não no sentido que corriqueiramente entendemos na contemporaneidade, mas
como “o cálculo e a técnica que possibilitarão estabelecer uma relação móvel, mas
apesar de tudo estável e controlável, entre a ordem interna do Estado e o crescimento de
suas forças” (id., 2008d, p. 421). Se para zelar contra a escassez alimentar o Estado de
polícia funcionava em um regime de intervenção constante no mercado, a crítica dos
economistas da época postulará o que ficou conhecido como laissez-faire. Para os
economistas, a escassez alimentar seria uma quimera e o próprio mercado teria
condições de se autorregular.
Na última aula do curso Segurança, território, população, Foucault localiza
cinco modificações principais nas formas de governar o Estado ocorridas a partir da
crítica do pensamento liberal que se constituía: a primeira trata de que a própria
A
59
sociedade naturalmente conseguiria controlar a alta dos preços, contrariamente aos
procedimentos artificiais da polícia para esse fim; a segunda trata da reivindicação de
uma racionalidade científica, a qual seria indispensável a um bom governo. A economia
passa a requerer um status de cientificidade, assim como a requerer que os governos a
levem em consideração para tomar suas decisões; a terceira trata de que existiria uma
realidade intrínseca à população, assim como uma mecânica de interesses no interior
dela. Assumindo a população em sua naturalidade, o Estado passaria a desenvolver
certos tipos de intervenção a partir da segunda metade do século XVIII com vistas a agir
sobre problemas como os de demografia e de saúde pública. Nas palavras de Foucault
(2008d, p. 473), “a população como coleção de súditos é substituída pela população
como conjunto de fenômenos naturais”; já a quarta modificação trata da emergência de
novas formas de intervenção estatal. Tendo em vista que se deveria respeitar a
naturalidade da população, em lugar de procurar regulamentar as ações, vai-se procurar
implementar movimentos de gestão que possibilitem regulações naturais. Estamos
falando da implementação de mecanismos de seguridade: “Vai ser preciso portanto
enquadrar os fenômenos naturais de tal modo que eles não se desviem ou que uma
intervenção desastrada, arbitrária, cega, não os faça desviar” (id., ibid., p. 474); e, por
fim, a quinta modificação aborda um novo estatuto para a liberdade a partir da
desarticulação do grande aparato regulador da polícia. A liberdade passa a ser
compreendida como fundamental à governamentalidade. Outros mecanismos passarão a
regular os fenômenos relativos à população, como a economia, e haverá um aparato
jurídico para pôr em funcionamento o respeito às liberdades. A partir de então, institui-
se a função da polícia com o sentido moderno conhecido: o de atuar sobre a produção de
desordens (id., ibid.).
Entretanto, o se deve entender que a liberdade tenha aumentado no culo
XVIII; sobre isso, Foucault (2008e, p. 86) argumenta o seguinte: “Se utilizo a palavra
‘liberal’, é, primeiramente, porque essa prática governamental que está se estabelecendo
não se contenta em respeitar essa ou aquela liberdade, garantir esta ou aquela liberdade.
Mais profundamente, ela é consumidora de liberdade”. Logo, trata-se de uma prática
governamental que precisa produzir e organizar a liberdade para poder funcionar. Ela é,
portanto, gestora da liberdade: da “liberdade de mercado, liberdade do vendedor e do
comprador, livre exercício do direito de propriedade, liberdade de discussão,
eventualmente liberdade de expressão, etc” (id., ibid.).
60
Mas ao mesmo tempo em que é necessário produzir a liberdade, é necessário
produzir limitações. Haverá, portanto, uma série de intervenções governamentais para
produzir a liberdade tanto do mercado como a de todos e a de cada um. O princípio de
cálculo do custo dessa fabricação da liberdade será a seguridade: “a arte liberal de
governar vai ver-se obrigada a determinar exatamente em que medida e até que ponto o
interesse individual, os diferentes interesses [...] não constituirão um perigo para o
interesse de todos. Problema da segurança: proteger o interesse coletivo contra os
interesses individuais. Inversamente, a mesma coisa: será necessário proteger os
interesses individuais contra tudo o que puder revelar, em relação a eles, como um
abuso vindo do poder coletivo. É necessário também que a liberdade dos processos
econômicos não seja um perigo” (id., ibid., p. 89).
Nesse processo de regulamentação das liberdades individuais e coletivas,
tecnologias de poder empregadas pela soberania e pela disciplina são associadas às
tecnologias utilizadas por essa nova racionalidade de governo que analisa os processos
biológicos dos corpos em conjunto (FOUCAULT, 1999). Para isso, esse conjunto de
tecnologias foi sendo organizado em uma série de instituições que procuram capturar e
produzir os sujeitos e suas capacidades técnicas, assim como um controle minucioso das
ações necessitará cada vez mais do aperfeiçoamento dos sistemas de armazenamento de
dados. Consequentemente, a ampliação do acesso à leitura e à escrita e dos modos de
utilizá-las entrará cada vez mais no conjunto de ações que competem ao Estado.
Retrocedendo um pouco mais no tempo, é interessante mostrarmos o relato de
Blay (1997) sobre uma das funções mais importantes da escrita na administração da
monarquia expansionista espanhola ainda no culo XVI. Conforme informa o autor,
havia professores que ensinavam a arte da escrita para os escrivães encarregados dos
registros da monarquia. Nesse período, podemos observar movimentações no sentido
de regular a escrita para que fosse possível um registro mais eficaz para o governo que
se exercia:
Diversas ações de governo da monarquia espanhola, ao longo do século XVI,
mostram de que forma era consciente a importância política da escrita.
Talvez convenha situar o início da mudança de atitude no famoso Decreto de
31 de março de 1503, através do qual os Reis Católicos exigiam dos escrivães
que abandonassem a escrita processada
34
, por ser incompreensível, e
34
A escrita processada propunha o traçado das letras de forma encadeada, com reduzido espaço entre os
caracteres, diferente do proposto pela escrita cortesã. Sem o recurso à imagem, é difícil descrever os dois
61
empregassem a escrita cortesã para facilitar a compreensão dos documentos
oficiais. Os segredos da administração cada vez mais complexos o
poderiam tolerar a presença de escritas incompreensíveis
35
(id., ibid., p. 298).
O relato de Marques (2002, p. 79-80) é ainda mais específico quanto ao
crescimento vertiginoso da preocupação com a escrita a partir do desenvolvimento das
operações mercantis e coloniais, agora tendo Portugal dos séculos XV e XVI como
cenário:
[...] o recurso ao poder e funções da escrita tornou-se cada vez mais intenso
por motivos jurídicos e económicos, face à crescente recuperação da crise,
traduzida no volume de transações comerciais com a Europa e, em especial,
com a Flandres, com os portos do Levante e com as próprias Ilhas Atlânticas,
recém descobertas. Neste contexto, foi-se apurando a técnica e a prática
contabilística e incrementou-se o uso dos livros de recibo, com as devidas
cartas de quitação, e aumentou o contencioso judicial, cujo volume crescente
exigia maior celeridade dos serviços, etc. Estas mudanças sociais e
económicas reflectiram-se numa maior rapidez do ductus, na redução das
hastes descendentes, na desmesura do sinal de abreviatura mais comum,
reduzido a um traço horizontal, na evolução que as letras d, h, p, v, t, s, e na
freqüente inclinação da escrita para a direita
36
.
É importante ter em vista que esse desenvolvimento comercial efervescente do
qual Marques (ibid.) fala tornou obsoletas práticas como, por exemplo, o emprego de
muros ao redor das cidades para controlar a circulação. Aos longo dos séculos, a
circulação fez-se cada vez mais necessária, e os métodos de controle precisaram ser
reajustados. Não a inscrição dos sujeitos, agora cada vez mais móveis, foi se
consolidando em uma série de registros, como a organização dos espaços também foi
sendo alvo de investimento constante. Exemplo disso é o relato de Roche (1996) sobre o
início da numeração das casas em Paris em meados do século XVIII. Assim como a
testagem do novo método de localização dos indivíduos em suas respectivas casas
trouxe desconfianças, o aparecimento em 1729 de folhas de ferro branco com os nomes
das ruas grafados em cor negra, cravadas em esquinas das ruas parisienses, também
surpreendeu a população. Instalava-se uma nova forma de ler a cidade (id., ibid.). E tais
práticas de registro estenderam-se para diversas práticas cotidianas do homem moderno.
tipos de letra citados nessa passagem do texto de Blay (1997). A escrita processada também era utilizada
pela chancelaria portuguesa e pode ser citada como exemplo de emprego desse tipo de letra a carta de
Pero Vaz de Caminha comunicando ao Rei Dom Manuel I o descobrimento do Brasil. Uma imagem dos
originais da carta pode ser visualizada no seguinte endereço eletrônico:
http://www.museuhistoriconacional.com.br/mh-e-31i.htm. Acesso em: janeiro de 2010.
35
Todas as traduções livres da língua espanhola para a portuguesa são de minha responsabilidade.
36
A escrita em português de Portugal na citação direta de Marques (2002) foi mantida, conforme o
original.
62
Cabe aqui também lembrar os protestos ocorridos em Paris da mesma época, quando
teve início a implantação de registros como o que hoje conhecemos como carteira de
trabalho, também relatado por Roche (1996). O registro seria um entrave ao trânsito
entre diferentes ocupações trabalhistas, como reclamavam muitos trabalhadores quanto
ao novo registro, implementado primeiramente em Paris. Esse seria um dos preços da
seguridade e de sua constante alimentação pelos saberes que começaram a ser
produzidos sobre a população. Paradoxalmente, como argumenta Foucault (1995, p.
244), o sujeito ao submeter-se a essa malha de controles ramificados, torna-se livre,
tendo em vista que devemos entender a liberdade não como oposta ao poder; ao
contrário,
o poder se exerce sobre “sujeitos livres”, enquanto “livres” entendendo-
se por isso sujeitos individuais ou coletivos que têm diante de si um campo
de possibilidade onde diversas condutas, diversas reações e diversos modos
de comportamento podem acontecer. o relação de poder onde as
determinações estão saturadas [...], mas apenas quando ele pode se deslocar
e, no limite, escapar. Não há, portanto, um confronto entre poder e liberdade,
numa relação de exclusão (onde o poder se exerce, a liberdade desaparece);
mas um jogo muito mais complexo: neste jogo, a liberdade aparececomo
condição de existência do poder [...].
Pelo exposto, torna-se mais cil compreender porque Foucault, em Vigiar e
Punir (2008c, p. 157), quando seus estudos ainda focavam especialmente a
disciplinarização das sociedades modernas ocidentais, nos fala em um poder de
escrita” que foi se constituindo e enredando os sujeitos numa espécie de “panóptico
gráfico”, como chamou Artières (2006).
Cabe assinalar também que, se a escrita tornou-se um instrumento fundamental
para o funcionamento da nova forma de governar o Estado, tornou-se um problema cada
vez maior a forma de ensinar a escrita nas escolas. A ampliação do acesso à escrita
ainda trouxe uma série de atritos em diferentes lugares entre a escola e calígrafos e
escrivães, esses últimos querendo salvaguardar o seu nicho de trabalho quanto a uma
obsolescência da procura por esses profissionais provocada pelo acesso mais facilitado à
escrita. Desse atrito, veremos surgir uma série de tentativas tanto da escola quanto por
parte dos profissionais da escrita em diferenciar as escritas praticadas em seus espaços
de trabalho: a escola aos poucos deixando de lado a escrita ornamental e dando à escrita
um caráter mais instrumental, enquanto os calígrafos farão o movimento inverso,
procurando preservar e aprimorar a escrita ornamental.
63
2.2.2 O problema da escrita
Uma rie de procedimentos articulados tendo em vista o sujeito que escreve:
esse será um dos principais investimentos da escola na educação dos sujeitos. Como
tecnologias
37
, esses procedimentos são constituídos por uma rede de saberes que
procuram fazer o sujeito pensar sobre a sua própria escrita e a si mesmo enquanto
sujeito escritor, pois, ao mesmo tempo que se vai procurar mostrar como devem ser
grafadas as letras, em tempo e espaço adequados, mostrar-se-á como não se deve grafá-
las. Com essa finalidade, dispositivos são organizados pelo maquinário escolar, que não
apenas produz mas também responde a uma exigência cultural de enquadrar
determinadas escritas em um jogo de verdade entre o que pode ser considerado normal
ou patológico ao iniciar-se na escrita. Mede-se o modo de segurar os instrumentos da
escrita, a pressão empregada sobre eles, a postura daquele que escreve e,
prioritariamente, prescreve-se um trabalho contínuo sobre si mesmo em comparação
com as escritas-referência oferecidas, por exemplo, pela grafia do professor no caderno
de caligrafia e, mais recentemente, pelos livros didáticos para esse fim. Insucessos nesse
percurso de A a Z estão previstos: disgrafia, disortografia, dislexia e outros
conjuntos de características avessas a tais proposições escolares foram catalogadas
por um conjunto de saberes psicomédicos e vigiam constantemente as fronteiras que
separam as escritas normais das ameaçadoras.
Outros efeitos de poder serão produzidos a partir do que se disse sobre a escrita.
E, nesse caso, não se trata apenas das escritas infantis. Receitas médicas servem como
um bom exemplo para ilustrar como cotidianamente nos movimentamos entre uma série
de normas também para a escrita: quem não se deparou com uma receita indecifrável
até para os olhares treinados dos balconistas de farmácias? O perigo que separa um
remédio de um veneno, oferecido pelas escritas ilegíveis dos receituários médicos, nos
mostra que, mesmo havendo margens para a invenção pessoal sobre as próprias escritas,
37
Tecnologia é aqui utilizada no sentido de “qualquer agenciamento ou qualquer conjunto estruturado por
uma racionalidade prática e governado por um objetivo [...]. As tecnologias humanas o montagens
híbridas de saberes, instrumentos, pessoas, sistemas de julgamento, edifícios e espaços orientados, no
nível programático, por certos pressupostos e objetivos sobre os seres humanos” (ROSE, 2001, p. 38).
64
não somos tão livres quanto pensamos em relação a isso. Como exemplo, cito a lei
5.911, de 1973, em seu artigo 35, que dispunha o seguinte sobre o receituário médico
38
:
Art. 35 - Somente será aviada a receita:
a) que estiver escrita a tinta, em vernáculo, por extenso e de modo legível,
observados a nomenclatura e o sistema de pesos e medidas oficiais;
b) que contiver o nome e o endereço residencial do paciente e,
expressamente, o modo de usar a medicação;
c) que contiver a data e a assinatura do profissional, endereço do consultório
ou da residência, e o número de inscrição no respectivo Conselho
profissional.
A leitura da legislação nos remete também à preocupação com o caráter
localizável do sujeito que possa prescrever um receituário com caligrafia ilegível.
Registros como nome, endereço e número de inscrição no órgão regulador da categoria
profissional dão um exemplo de que não se trata apenas da forma: dependendo do
potencial de ação sobre a vida dos outros, mais localizáveis devem ser os sujeitos, que
devem estar autorizados a exercer essa função por instituições que por largos anos irão
atestar que eles estão preparados para exercer tal poder sobre os outros. No caso de
infrações nessa rota, como a falsificação de receituário, a assinatura pode trazer indícios
à perícia grafoscópica, tão desenvolvida no século XX.
A escrita, assim, nos traz informações sobre os sujeitos. A intersecção cada vez
maior entre a grafologia, a psicologia, a psiquiatria e a neurologia produz uma rede de
saberes que inventa modos de ler a personalidade de cada indivíduo pelo modo de calcar
o lápis, pelo calibre, pela proporção e pelo espaçamento de seus caracteres escritos.
Cada traço pode enquadrá-lo em uma rede de referências que pretendem ler suas
disposições comportamentais. Sobre o assunto, o jornal Folha de São Paulo publicava a
seguinte reportagem, no dia 08 de janeiro de 2010: “Escrever ‘m’ e ‘n’ muito grande
38
Em 13 de abril de 2010, entrou em vigor um novo Código de Ética Médica no Brasil, reforçando o que
estava previsto na lei de 1973, assim como no digo de Ética anterior, de 1988. No entanto, foi
necessário reforçar a determinação sobre a letra legível nos receituários médicos. Em 08 de maio de 2009,
anteriormente à aprovação do novo Código, o jornal Estado de São Paulo, em seu site, noticiava:
“Médicos o multados por letra ilegível em receita no PR”. Três médicos teriam sido multados pela
Vigilância Sanitária de Londrina em R$2 mil por prescreverem receitas com letra ilegível, em denúncia
feita por pacientes e farmacêuticos. O diretor da Vigilância Sanitária do município “acentuou que as
multas foram aplicadas com base no artigo 35, letra a, da Lei 5.991/73, que prevê somente o aviamento de
receita que ‘estiver escrita a tinta, em vernáculo, por extenso e de modo legível’”. É o mesmo diretor que
explica ainda: "Não cobramos caligrafia bonita, mas letra de fácil entendimento". Cf.:
http://www.estadao.com.br/noticias/geral,medicos-sao-multados-por-letra-ilegivel-em-receita-no-pr,3669
3,0.htm. Acesso em: abril de 2010.
65
indica personalidade amoral”
39
(FOLHA DE SÃO PAULO, 2010). A breve reportagem
indica a leitura do livro Perfil de uma mente perigosa, de Brian Hines, que procura
mostrar como a polícia se organiza para traçar um perfil de criminosos para combater
futuros crimes, passando pela análise da caligrafia dos envolvidos. No episódio
envolvendo o envio de cartas nos Estados Unidos com bacilo de Antraz, após os
atentados terroristas de 11 de setembro de 2001, a grafologia também forneceu uma
rede de pistas que auxiliou o FBI, agência de inteligência norte-americana, a encontrar
os autores da carta e do crime. As cartas estariam “escritas em letras maiúsculas e,
aparentemente, segundo dois grafologistas, foram escritas por uma ou mais pessoas que
não [seriam] nem americanos nem ocidentais” (FOLHA DE SÃO PAULO, 2001).
Com a operacionalização de departamentos para gerir recursos humanos no
início do século XX, as empresas cada vez mais lançaram mão da grafologia como
tática para recrutar profissionais, apostando em um risco menor de desvio das
disposições comportamentais esperadas para cada vaga disponível.
A via é de mão dupla: uma escola que produz e que é produzida por
necessidades como as que foram panoramicamente discutidas neste espaço. Escrever
legivelmente, o que inclui escrever proporcionalmente, higienicamente, da esquerda
para a direita, enfim, está na ordem do dia. Normalizar as escritas infantis por um
aparato de regulação escolar significa investir no controle dos riscos que as escritas fora
de um nível de normalidade possam gerar à sociedade.
Escrever legivelmente é uma norma. Vemos escolas ainda investirem na
caligrafia hoje porque é produtivo: permite ao sujeito adentrar nessa curva de
normalidade que, para dar um exemplo corriqueiro, o levará a não ser reprovado em um
concurso, como o vestibular, por sua escrita não ser legível aos corretores, como é
possível inferir a partir da leitura do edital do concurso para vestibular da Universidade
Federal do Rio Grande do Sul, em 2010, em seu item 5.15.5: “O texto da Redação
deverá ser elaborado com letra legível, respeitando o número mínimo de linhas
estabelecido no caderno de provas, e não deverá ultrapassar o limite das linhas
constantes na folha de respostas” (p. 6).
Hoje vemos muitos materiais diferentes circulando nas escolas para ensinar a
escrever legivelmente, contudo, com o mesmo objetivo; os caminhos é que podem ser
39
A referida reportagem pode ser conferida no seguinte endereço: http://www1.folha.uol.com.br/
folha/livrariadafolha/ult10082u668790.shtml. Acesso em: janeiro de 2010.
66
diferentes. E esses escritores que vêm sendo formados pelas escolas cada vez mais farão
uso de tecnologias digitais para se relacionar com a escrita: mais um desafio à escrita
manuscrita, especialmente resguardada pelas práticas escolares, em um tempo em que
lemos cada vez mais letras soltas do eclético cardápio de fontes tipográficas
40
oferecido
pelas tecnologias digitais.
Se “os anéis de uma serpente são ainda mais complicados que os buracos de uma
toupeira”, como Deleuze (1992, p. 226) referiu-se à passagem da sociedade disciplinar à
sociedade de controle, torna-se mais fácil compreender por que optei anteriormente por
trazer as palavras de Artières (2009) sobre a possibilidade de lermos a história do
anonimato como uma história de resistência à sociedade de controle. Um controle que
não é recente, mas que deriva de outras tecnologias de poder utilizadas na história do
Estado moderno. É difícil tornar-se anônimo hoje, em tempos em que nossos rastros por
um mundo cibernético basicamente pautado na leitura e na escrita estão por todos os
lados. Saberes sobre nossas escritas são produzidos por diferentes disciplinas: se
procurarmos atentamente, encontraremos a escrita falada o pela pedagogia mas
também pela psicologia, pela medicina, pelas tecnologias da informação, pela
criminologia, pela área de recursos humanos, por estudos esotéricos, entre outros.
Especialmente no que se refere à pedagogia, se o muitos anos a escrita era
pensada como um momento franqueado a partir da alfabetização dos sujeitos, cada vez
mais o desenho das crianças também passou a entrar em uma rede discursiva sobre a
escrita. Os grafismos infantis, primeiramente traçados com força e em todas as direções,
pouco a pouco vão sendo canalizados pelas máquinas pedagógicas, até que vemos
emergir a escrita alfabética. Inspirando-nos em Larrosa (1994, p. 81), podemos dizer
que aprender a escrever é também aprender a olhar, pois
aprender a olhar é racionalizar e estabilizar tanto o olhar quanto o espaço. É
acostumar o olho a deslocar-se ordenadamente, a focalizar de forma
conveniente, a capturar os detalhes significativos. É também converter o
espaço, uma simples cintilação, em uma série de contornos, de formas
reconhecíveis, de fundos e figuras, de continuidades e transformações. [...]
Aprender a olhar é, portanto, reduzir a indeterminação e a fluidez das formas:
uma arte da espacialização ordenada, da constituição de singularidades
especializadas, a criação de ‘quadros’.
40
Fonte ou tipo, de acordo com Fernandes (2001, p. 56), “designa a coleção completa de todos os
caracteres de um tipo em um tamanho. Uma fonte inclui as letras maiúsculas, as minúsculas, os números,
os sinais, etc”.
67
Aprender a caligrafar e, assim, operar uma ortopedia sobre a sua própria grafia,
também é aprender a olhar e a olhar-se. Mas por enquanto, continuarei falando sobre a
escrita, para depois chegar à caligrafia.
2.3 DAS DISCUSSÕES ACERCA DOS EFEITOS DA ESCRITA ALFABÉTICA
SOBRE OS MODOS DE COGNIÇÃO
ara a compreensão do problema colocado por esta Dissertação, é
necessário um recuo estratégico para remontar a práticas mais distantes
que possibilitem um olhar mais agudo para as formas pelas quais a
caligrafia hoje se apresenta na escola.
Ao olhar os livros de caligrafia que hoje tenho em mãos para análise, as regras
tão encaixadas de um livro a outro, começando o ensino da grafia das letras por
princípios semelhantes, busquei ir mapeando esses nós entre os fios que fazem emergir
essas práticas, como foram ligando-se uns aos outros, se aproximando ou distanciando.
E esta seção é parte importante desse exercício, que me levou a buscar as regras de
formação histórica dos discursos que hoje o sentido às práticas da caligrafia escolar.
O primeiro recuo a ser feito é perguntar-se que escrita é essa que se ensina a caligrafar e
por que caligrafar.
Pesquisando diferentes autores que se debruçaram sobre o estudo das escritas
entre povos da Antiguidade, uma referência se repete: as necessidades comerciais estão
entre as principais motivações para o aperfeiçoamento dos registros escritos. Sampson
(1996) nos diz que as questões relativas à contabilidade dos processos comerciais e ao
estabelecimento de contratos estiveram entre os primeiros usos da escrita entre
diferentes povos; crônicas e textos ritualísticos apareceriam mais tarde e, muito
posteriormente, apareceriam as escritas para fins de instrução e entretenimento. É
também o mesmo autor que localiza nas necessidades comerciais entre os povos a
preocupação que levou à procura por mais estabilidade entre as formas gráficas
utilizadas.
As primeiras formas de escrita são costumeiramente classificadas como
pictográficas ou ideográficas. As primeiras utilizavam o registro de cenas figuradas,
enquanto as segundas registravam por meio de símbolos gráficos que representassem
P
68
ideias. Os primeiros registros encontrados seriam pictográficos, datados do ano 3200
a.C., entre o povo sumério, na Mesopotâmia. As ambiguidades desses registros, como
no caso de um mesmo signo ser utilizado para palavras homófonas, são relacionadas
como condições para o desenvolvimento de outro tipo de escrita entre os sumérios, que
ficou conhecida como cuneiforme, devido à forma da cunha utilizada para o registro.
Com a escrita cuneiforme e sua grande parte de sequências silábicas, têm início os
primeiros registros de fonetização da escrita, ou seja, de registro de signos com valores
sonoros estáveis.
Fig. 11: Texto dico em escrita cuneiforme, registrado por volta do ano 300 a.C. Fonte: Imagens da
exposição “História da escrita”, organizada no ano de 2009 pelo Museu de Topografia da UFRGS
Outro marco importante a ser referenciado trata-se da invenção de um conjunto
de 22 consoantes pelos fenícios por volta do ano 2000 a.C.. Já por volta de 1200 a.C., os
gregos adaptaram o alfabeto fenício aos sons da língua grega e acrescentaram sons
vocálicos aos caracteres sobressalentes. O alfabeto latino, que hoje utilizamos na escrita
em Língua Portuguesa, deriva do alfabeto grego, como a figura 12 ilustra.
69
Fig. 12: Derivação do alfabeto latino. Fonte: Imagens da exposição “História da escrita”, organizada no
ano de 2009 pelo Museu de Topografia da UFRGS
São muitos os estudiosos que se perguntaram sobre os efeitos cognitivos do
desenvolvimento da escrita alfabética. Eric Havelock (1996), para citar um dos estudos
de maior repercussão, postulou o que chamou de estado da “mente alfabética”, que teria
surgido a partir do uso da escrita alfabética na Grécia Antiga. Os modos de
funcionamento cognitivos teriam se transformado radicalmente desde então, ao longo de
muitos séculos, a partir do uso do econômico sistema de escrita grego, que permitiria
escrever com menos signos um maior número de referências. Com o apoio do registro
escrito, a energia gasta com a intensa memorização dos conhecimentos de um povo
poderia ser investida em outras atividades. Todo um modo de vida cotidiano teria se
ressignificado com a convivência com o que Havelock (1986, p. 147) chamou de “uma
nova sintaxe alfabética”
41
:
O fato é que a sintaxe conceitual (que significa a sintaxe alfabética) ampara
as estruturas sociais que sustentam a civilização ocidental em sua presente
forma. Sem ela, o estilo de vida da modernidade poderia não existir; sem ela,
não existiria ciência física, não haveria revolução industrial, nem medicina
científica substituindo superstições do passado, e eu acrescentaria sem
literatura ou lei como nós conhecemos, lemos e usamos.
Bastante influenciado pelo trabalho de Havelock, Walter Ong também foi outro
teórico cujos estudos afirmaram haver grandes e positivos efeitos cognitivos do
alfabetismo sobre o funcionamento da mente dos indivíduos
42
. Para Ong (1998), a
escrita é uma tecnologia, já que faz uso de ferramentas, como a caneta ou a pena, e
41
Todas as traduções livres da língua inglesa para a portuguesa são de minha responsabilidade.
42
Bagno (2005, p. 79) nota na fraseologia popular brasileira a supervalorização da escrita sobre a fala.
Teríamos, por exemplo: ‘O que Fulano diz não se escreve’, para depreciar as enunciações de
determinado falante, que o merecem elevar-se ao status de língua escrita. Correspondentemente, para
alguma afirmação ter valor é preciso que ela apareça ‘preto no branco’, isto é, impressa em papel,
grafada, escrita”.
FENÍCIO
GREGO
CLÁSSICO
LATIM
70
outros equipamentos, como papéis, peles e tintas. O caso da oralidade não seria o
mesmo, tendo em vista que condições biológicas e culturais tratariam de desenvolver
naturalmente tal habilidade. Além disso, ao considerar a oralidade, Ong criou os
conceitos de oralidade primária e oralidade secundária. Em relação à primária, Ong
refere ser desenvolvida em sociedades que não faziam uso da escrita, as quais ele
define, entre outras características, como mais situacionais do que abstratas, tendo em
vista que raciocinariam dentro de um padrão mínimo de abstração, mais ligado a
problemáticas concretas do cotidiano. a oralidade secundária transformaria
irreversivelmente as características da oralidade primária ao se desenvolver em
sociedades em que o contato com a escrita é intenso e organizador de atividades
cotidianas. A oralidade secundária seria característica especialmente da cultura
eletrônica” ou “pós-tipográfica”, que reforçaria o processo de tecnologização da
palavra.
Outros estudos, como o de Marshall McLuhan (1972) e o de Jack Goody (1977),
também enxergaram um efeito de uma “grande divisão”
43
entre culturas orais e culturas
escritas a partir do impacto da alfabetização nas sociedades. Clarisse Herrenschmidt
(1995), linguista e antropóloga, em O todo, o enigma e a ilusão, seu único trabalho
publicado no Brasil, também estudou a tese acerca dos efeitos cognitivos do uso do
alfabeto. Para a autora, apenas após a invenção e instrumentalização do alfabeto na
Grécia Antiga foi possível potencializar a criação de imagens mentais que levassem os
gregos ao desenvolvimento de conceitos geométricos. Pela escrita, o usuário seria
colocado em uma certa relação visível com o mundo, o que não aconteceria nas culturas
ágrafas; uma relação visível que teria o diferencial de não ser perecível como o recurso
à memória. Conservar o que se escreve em um suporte traria outras formas de relação
com o tempo e com o espaço, diferentes das relações mantidas pelas culturas orais.
Em contraste, entre as décadas de 1970 e 1980, pesquisadores como David
Olson defenderam a existência de um continuum entre oralidade e escrita. Muitos
estudos se desenvolveram por diferentes grupos de pesquisa americanos e europeus,
efervescendo as discussões acerca dos possíveis efeitos cognitivos da convivência com
a cultura escrita. Entre os estudos de maior repercussão, encontram-se o de Sylvia
Scribner e Michael Cole (1978, 1981) e o de Harvey Graff (1979). Os primeiros
43
O termo “grande divisão” é atribuído a Brian Street (1984). No original, o termo é the great divide.
71
procuraram testar a tese da grande divisão a partir de um estudo antropológico com o
povo vai, da Libéria, que convivia com três tipos de escrita: árabe, aprendido em
contextos religiosos; inglês, aprendido na escola; e vai, aprendido em situações
informais, como em família. A metodologia da pesquisa de Scribner e Cole (ibid.)
procurava testar a capacidade intelectual dos indivíduos em cinco aspectos: pensamento
abstrato, categorização taxionômica, memória, raciocínio lógico e conhecimento
reflexivo sobre a linguagem. Os autores concluíram que não havia evidências que
levassem a crer em um tipo de desenvolvimento intelectual mais capaz entre grupos que
utilizavam diferentes tipos de escrita. A tese dos autores é de que o tipo de prática social
em que o indivíduo utiliza a escrita é que definirá o desenvolvimento das habilidades
intelectuais testadas. Outra questão apontada foi o fato de que os indivíduos que
aprendiam inglês na escola conseguiam explicar os princípios que utilizavam ao
resolver as tarefas dos testes. Scribner e Cole concluíram, então, que comumente são
atribuídas à escrita capacidades em que a escolarização é que investe fortemente, já que
os indivíduos que utilizavam outras formas de escrita sem escolarização também
formulavam raciocínios complexos para resolver as tarefas, embora não conseguissem
explicar consistentemente como haviam chegado às respostas.
o estudo de Graff (1979) acerca das relações entre cultura escrita e
desenvolvimento de sociedades ocidentais, especialmente durante o século XIX,
postulou que o valor das habilidades de ler e escrever seriam superestimadas.
Pesquisando a fundo documentos históricos de países europeus, dos Estados Unidos e
do Canadá, questionou o cenário de afirmações que relacionavam os altos índices de
alfabetização de um povo como requisito para o desenvolvimento de altos padrões
econômicos, para o desenvolvimento da modernização, do controle da fertilidade, entre
outros. Graff deteve-se especialmente no estudo de Egil Johansson sobre a Suécia, que
relacionou os altos índices de alfabetização do país como resultado da ação da Igreja
Luterana, que exigia o alfabetismo da leitura como condição para que os fiéis
recebessem os sacramentos, inclusive para que pudessem casar. Leis foram instituídas
para reforçar a restrição do casamento apenas aos que fossem alfabetizados. A partir
desse ponto, Graff argumenta que o que deve interessar é o alfabetismo em uso, uma
vez que altas taxas de alfabetização não seriam capazes de mostrar o quanto as pessoas
conseguem fazer uso efetivo dessas capacidades. No caso da Suécia, grande parte da
população não seria capaz de compreender o que lia. As equações entre alfabetização e
72
escolarização e alfabetização e desenvolvimento, a partir de então, teriam mais dados
para serem questionadas. Baseado nas discussões que aqui foram ligeiramente
resumidas, Graff nomeou como “mito do alfabetismo”
44
os efeitos positivos que vinham
sendo maciçamente relacionados à alfabetização pelas pesquisas acadêmicas.
Também merecem referência os estudos de Brian Street (1984, 1995), que
formulou os conceitos de modelo autônomo de letramento”, que incluiria tanto os
estudos da grande divisão como os da visão de continuum, e “modelo ideológico de
letramento”
45
, sendo este último uma visão que consideraria as práticas de leitura,
escrita e oralidade em seus contextos específicos de uso, variáveis de cultura para
cultura. Street (ibid.) também destaca que o modelo ideológico incluiria referências do
modelo autônomo, como aspectos cognitivos envolvidos nas práticas culturais da leitura
e da escrita, desde que vistos em relação com a cultura e as relações de poder que os
produz.
Se faço referência a tais estudos, é porque considero relevante situar que tais
formas de narrar a escrita se relacionam com as formas possíveis de a escola administrar
essas práticas em seus domínios de atuação. Se, como Graff (1990, p. 30) ressalta, “na
imaginação popular, o alfabetismo é a característica distintiva mais importante de um
homem civilizado e de uma sociedade civilizada”, isso se deve à crença sobre as
benesses que a escrita promoveria sobre o pensamento. Não à toa o Índice de
Desenvolvimento Humano (IDH), desenvolvido a partir da década de 1990 pela
Organização das Nações Unidas (ONU), além de avaliar a renda per capita e a
expectativa de vida da população, considera também os índices de analfabetismo e as
taxas de escolarização de cada país. Uma rede de referências, portanto, sugerem a
seguinte equação: quanto mais indivíduos forem alfabetizados, maior será a
possibilidade de desenvolvimento humano e, assim, maiores serão as forças de um
44
No original, o termo é literacy myth. No Brasil, o termo foi traduzido tanto como mito do
alfabetismo”, por Tomaz Tadeu da Silva, e como “mito do letramento”, por Angela Kleiman. A tradução
de literacy para o português se constitui em um desafio para os pesquisadores da área da alfabetização.
Em nota, Viñao Frago (1993, p. 101) sublinha que o termo inglês ‘literacy’ é muito mais amplo e
significativo, a esse respeito, que ‘alfabetização’, sua tradução usual em português, termo restrito mais ao
conhecimento do código lingüístico com exclusão de seus usos”. Ferreiro (2001), no livro de entrevistas
Cultura escrita e educação, explica longamente o porqde sua preferência pelo termo “cultura escrita”
para tradução de literacy, rejeitando o termo “letramento”. Para ela, literacy carece de precisão e vem
sendo pulverizado para a compreensão de uma série de outras habilidades para além da leitura, da escrita
e da oralidade. O fato de americanos hoje em dia referirem-se a TV literacy, music literacy, baseball
literacy, por exemplo, estaria fazendo com que o termo venha deixando de ser útil para compreender os
fenômenos da cultura escrita.
45
Os termos utilizados no original são autonomous model of literacy e ideological model of literacy.
73
Estado em um mercado internacional em que a alfabetização da população é
posicionada como uma das engrenagens da rede de inteligibilidade que calcula os riscos
de investimento em determinado mercado.
Feitas essas considerações, também é viável considerarmos que, durante muito
tempo, o investimento na elegância na forma de grafar a escrita também estará
associado à civilidade. A esse respeito, o relato de Stephanou e Bastos (2009, p. 2) vem
a contribuir:
Desde o século XIX, nas culturas ocidentais, a instituição escolar assumiu
lugar preponderante na difusão de modelos de escrita eleitos como desejáveis
ou imperativos, prescrevendo modos, tipos, suportes, condenando outros e
conferindo aos sujeitos por ela formados atributos identitários. A escrita
escolar pode denotar distinção social, posse de um capital cultural, indiciando
o grau de escolaridade e, enfim, a condição social do escrevente, pelo maior
ou menor domínio da habilidade gráfica, sua qualidade e estilo.
Mignot (2005, p. 11) também lembra o que assinalou Francisco Alves em 1926, na
primeira edição do livro Leitura manuscripta, adotado em escolas públicas brasileiras:
“A caligraphia é um bom dote no homem”. Ainda hoje uma escrita manuscrita
caprichada é capaz de impressionar positivamente seus leitores.
Na seção a seguir, a normatização da escrita no Ocidente entra em pauta.
2.4 NORMATIZANDO A ESCRITA (OU DA INVENÇÃO DA TEXTUALIDADE)
m interessante estudo publicado no Brasil em 1995, Ken Morrison
procura estabelecer relações entre modelos de organização textual que
foram sendo adotados desde a Antiguidade, sobretudo na Idade Média,
e modos de formação do conhecimento. Para o autor (1995), os modos de organização
textual seriam determinantes sobre as formas de processamento do sentido das
informações lidas. Retomando os métodos de organização textual utilizados na Grécia
Antiga, Morrison entende que os gregos procuravam aproximar a escrita ao máximo
possível da oralidade. A escrita passaria a um fenômeno da ordem do visual a partir da
invenção de normas de textualidade, que abririam caminho para o deslocamento do
apoio oral para a leitura dos textos, tendo em vista que pontuação, ortografia, títulos,
divisão em capítulos, por exemplo, são criações que apareceriam a partir da Idade
Média.
E
74
A passagem da tecnologia dos rolos de papiro para os códices
46
é apontada pelo
autor como um marco importante na história da escrita. A dobra efetuada nos rolos, que
posteriormente foi sendo modificada até o formato dos códices, permitiu organizar dois
espaços sequenciais para a escrita, que posteriormente seriam numerados. Citando o
estudo do paleógrafo americano Elias Avery Lowe (1972), Morrison (1995) afirma que
o texto pôde começar a existir depois que a gina tornou-se a unidade padrão de
organização da escrita
47
. Como exemplo, ele aborda o que chamou de “processo de
apresentação de um Aristóteles textualmente coerente” (id., ibid., p.179), que teria
ocorrido entre os séculos IV e XVI d.C., no qual mostra o trabalho de séculos na
formulação de uma “apresentação pedagógica” às obras do filósofo. Nesse processo,
cita a tradução dos originais gregos para o latim, a adição de comentários para que
determinadas passagens se tornassem mais claras, a adição de títulos, a divisão em
capítulos e parágrafos, assim como a separação das palavras.
Para compreendermos o que Morrison chama de “processo de textualização da
escrita”, outros elementos auxiliam na ilustração. Sampson (1996) nos diz que foi muito
comum até o século IV na Grécia Antiga a forma boustrophedon para escrever (fig. 13),
que ficou conhecida como “a volta do boi”, que alternava a escrita da direita à
esquerda em linhas sucessivas, evitando saltos de uma linha para a outra. A grafia das
letras, nesse tipo de escrita, seguia a direção em que se estava escrevendo, de modo que
a linha de baixo apresentava grafias espelhadas em relação à linha de cima. Séculos
mais tarde, especialmente pela ação dos monges copistas, na Idade Média, a forma da
escrita da direita à esquerda, sem “a volta do boi”, espalhar-se-ia pelo Ocidente
48
.
46
Livro composto por folhas dobradas que compunham uma espécie de caderno (CHARTIER, 2002).
Esclareço que o códice havia aparecido na Europa no século IV; todavia, o pergaminho e o códice
ainda conviveram por muitos séculos como suporte de escrita. Sobre esses dois suportes da escrita, vale a
pena ainda citar as palavras de Zilberman (2001, p. 2): O códice prefigura o livro, de formato retangular;
mas, enquanto dependeu da manufatura do pergaminho, correspondeu a um produto caro e de difícil
circulação. O papel, inventado pelos chineses no século II a.C. e já conhecido pelos árabes desde o século
VIII d.C., foi introduzido na Europa no século XIII, datando de 1270 a construção, na Itália, do primeiro
moinho para sua fabricação. Até o século XIV, não apenas o suporte material pergaminho e papel
consistia em mercadoria de preço elevado, mas também o custo do copista era dispendioso”.
47
Sobre o assunto, ver também o estudo de Medeiros (2005).
48
No Oriente, é comum a escrita seguir outras orientações. Chineses e japoneses, por exemplo, escrevem
da direita para a esquerda, seguindo colunas verticais. Muitos povos árabes também escrevem da direita
para a esquerda, mas em linhas de cima para baixo.
75
Fig. 13: Exemplo de escrita na forma boustrophedon na Grécia Antiga. Fonte: www.clas.ufl.edu/.../
summergreek.html Acesso em: maio/2010
A preocupação com a forma do texto deve ser situada em relação a um momento
histórico em que a grafia das letras já estava mais estabilizada do que em outros tempos,
quando os materiais de escrita impunham mais restrições à escrita. Era comum, por
exemplo, um escriba alterar grafias em função do seu modo de segurar o instrumento de
escrita, como o estilete. As grafias iam sofrendo rotações e iam sendo simplificadas
(SAMPSON, 1996).
Manguel (1997) nos mostra como ainda no século XV a leitura e a escrita
lentamente encontravam normatização. Abreviar as palavras era prática constante e,
frequentemente, não fazia sentido até mesmo para o autor da escrita. Letras maiúsculas
e minúsculas misturavam-se sem critérios.
Quanto à pontuação, Higounet (2003) argumenta que tanto a forma quanto o uso
dos sinais de pontuação foram se firmar a partir do culo XVI, com o
desenvolvimento intensivo da imprensa. O autor também afirma que a partir do século
VII podem ser encontrados manuscritos com sinais gráficos que indicavam pausas
longas ou breves para a leitura, o que mostra o início do uso da pontuação como índice
para o leitor acerca de quais unidades deveriam ser processadas juntas e quais deveriam
ser processadas separadamente. No século VIII, o ponto de interrogação já era
encontrado com frequência nos manuscritos medievais. Outros sinais de pontuação
foram usados durante a Idade dia de diferentes formas, sem um uso convencional.
76
Sobre isso, Higounet (2003) afirma que se deve ao fato de que, em tal período, a
pontuação servia mais para marcar elementos rítmicos em relação à leitura, migrando
aos poucos para o uso como forma de distinção de elementos lógicos e gramaticais, que
se tornará convencional na modernidade.
O rápido desenvolvimento da imprensa, a partir do século XV, teve amplos
efeitos sobre a normatização da escrita e, consequentemente, sobre o desenvolvimento
da textualidade. A clareza com que era possível ler na impressão por tipos móveis
chamava a atenção, que a preocupação com a estética caligráfica na Idade Média era
superior à preocupação com a legibilidade. É curioso o relato do cardeal Enea Silvio
Piccolomini, em carta de 12 de março de 1455 ao seu superior, na qual conta a
impressão que teve ao ver a blia impressa por Gutenberg em exposição na Feira
Comercial de Frankfurt:
Não vi nenhuma Bíblia completa, mas vi um certo número de livretes
[cadernos] de cinco páginas de vários livros da Bíblia, com letras muito
claras e dignas, sem quaisquer erros, que Vossa Eminência teria sido capaz
de ler sem esforço e sem óculos [...] Vários desses livretes de cinco páginas
foram mandados para o próprio imperador. Tentarei, tanto quanto possível,
conseguir que uma dessas Bíblias seja posta à venda e comprarei um
exemplar para vós. Mas temo que isso não seja possível, devido à distância e
porque, dizem, antes mesmo de os livros ficarem prontos havia clientes a
postos para comprá-los (apud MANGUEL, 1997, p. 158).
Se antes, pela ação dos copistas, não era possível encontrar um exemplar de livro
igual ao outro, a busca pela uniformidade da grafia das palavras será impulsionada pela
ampla circulação de textos escritos provocada pela imprensa. Depois de um século de
invenção da prensa tipográfica por Johannes Gutenberg, a Europa havia produzido mais
de 8 milhões de livros impressos, talvez mais do que todos os escribas teriam produzido
desde o século IV, a partir da fundação de Constantinopla (MANGUEL, ibid.). Os
textos iam tornando-se acessados e disponíveis para um número maior de leitores. No
entanto, os livros manuscritos continuaram valorizados ainda por muito tempo.
Frequentemente adornados com ouro nas iluminuras, os manuscritos eram cobiçados
por ladrões de livros, que causavam muita dor de cabeça ainda no século XVIII.
Manguel (ibid.) lembra que a excomunhão dos ladrões de livros chegou a ser prevista
pela Bula Papal de 1752.
A imagem a seguir (fig. 14), que retrata um vendedor de pequenas lições
impressas de leitura e de orações, datada do início do século XVI, também se constitui
77
em um pequeno exemplo da circulação cada vez maior da leitura e da escrita além dos
meios eclesiásticos. A inscrição Beaulx abc belles heures, em letra gótica, também nos
remete à caligrafia comum à época. Em tradução livre, a inscrição pode ser entendida
em português como “Belos ABCs, belas horas”.
Fig. 14: Libraire ambulant, [s/d]. Fonte: Bibliothèque de l’Arsenal, França. Disponível em: http://
blog.bnf.fr/lecteurs/index.php/2009/02/16/lhistoire-du-livre-en-un-cycle-de-decouverte-a-la-bnf/. Acesso
em: maio de 2010.
Com o estabelecimento do princípio de livre-concorrência entre os Estados na
modernidade
49
, saindo do ciclo apogeu-decadência comum a uma visão imperialista
(FOUCAULT, 2008d), a língua passou a ser alvo de mais atenção por parte dos
governos. Organizar normas que unificassem as formas de uso da língua e da escrita
tornaram-se ações importantes para fortalecer um Estado. Sobre o assunto, Barbosa
(1994, p. 39) pontua que:
A língua e a escrita constituem símbolos externos de uma nação e esta é a
razão pela qual os tesouros escritos o o principal alvo de destruição dos
conquistadores. Cortez, ao conquistar o México, queimou os livros astecas
que podiam trazer à população nativa recordações do seu passado glorioso. A
inquisição espanhola queimou os judeus e seus livros talmúdicos em
fogueiras. Os nazistas [...] queimaram os livros dos inimigos. Os aliados,
49
Foucault (2008d) questiona se essa relação de concorrência entre os Estados seria realmente algo novo
a partir do século XVI. Para ele, interessa sublinhar o momento em que se passou a perceber essa
concorrência e a organizar estratégias para atuar em uma economia aberta e em um tempo indefinido.
Esse momento teria sido a partir dos séculos XVI e XVII.
78
vitoriosos da Segunda Guerra Mundial, ordenaram a queima de toda
literatura contaminada pelo nazismo.
Com cada vez mais pessoas se alfabetizando, mais urgente se tornava a criação
de normas para ensinar a escrever. No entanto, como afirma Desbordes (1995), apenas
no século XIX é que muitos países firmarão uma uniformidade ortográfica para suas
línguas, em grande parte pela pressão exercida pelas escolas de primeiras letras. Nesse
mesmo período, muitos países passarão por movimentos de simplificação da grafia das
palavras, substituindo especialmente influências etimológicas por fonéticas, com vistas
a tornar a escrita mais funcional e acessível à população que, em massa, começava a se
alfabetizar. Na modernidade, tanto para escrever quanto para ler, cada vez será mais
necessário ser disciplinado. E no que tange à ortografia, não se trata de afirmar que não
havia movimentos anteriores à modernidade em relação ao estabelecimento de uma
forma comum à grafia das palavras aos falantes de uma mesma língua; não se pode
esquecer a série de tratados sobre gramática e ortografia encontrados por pesquisadores
especialmente na Grécia e na Roma Antigas (DESBORDERS, ibid.). No entanto, cabe
marcar que é na modernidade que se organizarão formas de fazer com que a forma de
escrever as palavras se constitua como uma norma que se articular com dispositivos
que a façam funcionar e ser colocada em funcionamento por todos. É esse diferencial
nas práticas ortográficas que é característico da modernidade. Desbordes (ibid.) afirma
que os primeiros pesquisadores das escritas grega e latina registravam em seus trabalhos
tratar-se de uma incoerência encontrarem tantos tratados sobre gramática e ortografia,
mas, ao analisarem os manuscritos e as escritas em monumentos, ser possível encontrar
escritas com as mais diferentes grafias para uma mesma palavra.
Nas palavras de Foucault (2000), o século XIX culminará em um período em
que o estudo da linguagem emergirá como uma forma de pensar sobre si mesma e
organizar suas fronteiras epistemológicas. A partir desse período,
a linguagem se dobra sobre si mesma, adquire uma espessura própria,
desenvolve uma história, leis e uma objetividade que a ela pertencem.
Tornou-se um objeto de conhecimento entre tantos outros; ao lado dos seres
vivos, ao lado das riquezas e do valor, ao lado da história dos acontecimentos
e dos homens (id., ibid., p. 410).
Conhecer melhor a linguagem, e também língua escrita, como parte dela, constitui
engrenagem da racionalidade moderna que busca governar populações.
79
2.5 DA ESCRITA ORNAMENTAL À INSTRUMENTAL
á foi mencionada em seção anterior a hostilidade de escrivães e calígrafos
em relação à ampliação do acesso às tecnologias da escrita tanto à época
da popularização da impressão mecânica quanto à época em que muitas
escolas europeias passaram a investir mais no ensino da escrita, além do ensino da
leitura. Uma série de condições históricas nos fornece algumas pistas para compreender
o porquê do investimento posterior da escola no ensino da escrita, assim como para
visibilizar algumas grandes linhas dessa trajetória que nos levem às práticas da
caligrafia escolar no presente.
Tomando por base a Europa, Blay (1997) afirma que os modelos de ensino da
escrita deram continuidade aos todos medievais até o século XIX nas escolas,
quando o Estado passou a organizar mais ostensivamente um sistema de ensino público.
Por muito tempo, escrever foi sinônimo de uma boa execução no design das letras. O
mesmo autor (ibid., p. 302) mostra como a escrita era definida em um manual de
caligrafia espanhol no século XVIII: “A escrita é a arte que ensina a formar,
proporcionar, juntar e colocar conforme regras suficientes e seguras as letras, palavras e
linhas de acordo com cada modo de escrever”. Outra passagem garimpada por Blay
(ibid., p. 304) no manual de caligrafia Arte de escribir por reglas y con muestras
50
,
publicado em 1781 e circulante em escolas espanholas, também mostra que tipo de
discurso circulava à época e dava sentido à desarticulação entre o ensino da escrita e o
da leitura:
É um erro pensar que para escrever seja necessário saber ler bem e ter um
pulso forte. Para entender as regras de escrever basta o mero conhecimento
das letras e, para formá-las, a idade de sete anos e até mesmo um pouco
menos tem na mão a força e disposição necessárias.
O que durante muito tempo se assistiu foi à tentativa de transpor a prática
profissional da escrita para as escolas, ensinando a escrever a partir de manuais de
caligrafia elaborados por calígrafos. Na medida em que escola e pedagogia vão se
constituindo, a escrita vai sendo capturada e transformada em uma prática escolarizada.
Os métodos de ensino individual se chocaram com os ideais iluministas de uma escola
50
Em tradução livre, “Arte de escrever por regras e com modelos”.
J
80
laica e com acesso universal; seria preciso repensar os métodos para que mais pessoas
pudessem estar na escola e para que houvesse mais controle sobre o que se estava
ensinando. A racionalização do tempo também se soma às necessidades de organização
de um sistema de ensino escolar oferecido pelo Estado. O método proposto por
Lancaster no século XIX, conhecido como ensino mútuo ou monitorial, ofereceu outro
repertório de técnicas às escolas frente às necessidades apontadas anteriormente. O
diferencial de Lancaster foi propor a utilização de alunos que estivessem mais
avançados nos conteúdos, incluindo-se aí tanto a leitura quanto a escrita, para ensinar os
que estivessem mais atrasados. Dessa forma, era possível ensinar um maior número de
alunos ao mesmo tempo.
Narodowski (2001) aponta que os jesuítas já faziam uso de monitores, chamados
“decuriões”, séculos antes no ensino escolar; a diferença residiria no protagonismo que
os alunos-ajudantes foram chamados a desempenhar no método lancasteriano. Os
monitores é que sustentaram o ensino, havendo relatos de que apenas os alunos-
ajudantes (ou “mestres”) teriam acesso ao professor.
No Brasil, o primeiro Decreto-lei sobre a instrução pública no período imperial,
de 15 de novembro de 1827, previa o uso do todo de ensino mútuo nas escolas.
Bastos (2005) destaca que o método mútuo iniciou uma transformação da arquitetura do
espaço escolar, que mobiliários e novos instrumentos eram requeridos para que o
método obtivesse sucesso. O quadro-negro constitui-se como singular exemplo dessas
transformações: no método de ensino mútuo veremos a ampla utilização de lousas
individuais, às vezes acom linhas formando quadros para orientar os traçados tanto
nas lições de caligrafia quanto de desenho e geometria. As lousas ou pedras
51
eram
posicionadas sobre os joelhos dos alunos e, mais tarde, sobre banquinhos e mesas; com
o estabelecimento do ensino simultâneo, a lousa ganhará destaque e espaço central nas
salas de aula ao final do século XIX, possibilitando um auxílio visual às lições agora
simultâneas do professor (id., ibid.). Bastos (ibid.) também ressalta a importância da
lousa, à época, como auxiliar indispensável às lições orais para leitura e escrita.
Na Espanha do século XIX, Esteban (1997) cita o seguinte itinerário do ensino
da escrita sobre os suportes nas escolas: os alunos primeiro escreviam sobre lousas
pequenas, passando após para lousas de tamanho maior; em momento apropriado, os
51
Trindade (2001) indica que, no Rio Grande do Sul, as lousas eram correntemente chamadas de pedras.
81
alunos passariam a escrever em lousas pautadas e, posteriormente, ao papel pautado,
papel quadriculado e, por fim, ao papel sem pauta.
Os cadernos ou quadernos, como foram chamados, devido à forma dada
pelas folhas dobradas em caráter artesanal e utilizadas nas escolas ainda demorariam a
popularizar-se na escola; pelo alto custo do papel e sua irregularidade e grossura à
época, as lousas e/ou mesas com areia ainda seriam muito utilizadas até o início do
século XX para a realização de exercícios de aprendizagem do traçado das letras
(FERNANDES, 2008). O papel seria utilizado após muito treino da escrita sobre as
lousas e/ou sobre a areia
52
.
Como a trajetória da escrita na escola permite visibilizar, uma nova economia do
corpo em relação ao tempo e ao espaço é possível ver em funcionamento na escola
moderna, especialmente a partir do todo mútuo (NARODOWSKI, 2001). A escola
foi ganhando contornos mais disciplinares, de forma a
fazer crescer a utilidade singular de cada elemento na multiplicidade, mas por
meios que sejam os mais pidos e menos custosos, ou seja, utilizando a
própria multiplicidade como instrumento desse crescimento; daí, para extrair
dos corpos o ximo de tempo e de forças, esses métodos de conjunto que
são os horários, os treinamentos coletivos, os exercícios, a vigilância ao
mesmo tempo global e minuciosa. [...] É para fazer crescer os efeitos
utilizáveis do múltiplo que as disciplinas definem ticas de distribuição, de
ajustamento recíproco dos corpos, dos gestos e dos ritmos, de diferenciação
das capacidades, de coordenação recíproca em relação a aparelhos ou a
tarefas (FOUCAULT, 2008c, p. 181).
Nesse ponto, é preciso destacar que a escrita ornamental praticada pelos
calígrafos e ensinada nas escolas exigia um treinamento muito preciso do corpo: a
fronteira entre uma escrita elegante ou não era extremamente rígida e infinitesimal.
Pequenas sutilezas dos traçados mereciam grande investimento em exercícios
musculares na escola (fig. 15), o que levava a um dispêndio grande de tempo. Foi
preciso ajustar as táticas e possibilitar à escrita um caráter mais instrumental, cotidiano.
Ao mesmo tempo, não se tratou de simplesmente dar mais liberdade à escrita, mas de
produzir uma liberdade regulada em relação aos novos parâmetros de utilidade da
escrita, cada vez mais incorporada às ações cotidianas.
52
Nos Estados Unidos ainda é bastante comum a utilização de lousas individuais para o ensino da
caligrafia. Em sites como o da organização o-governamental Handwriting without tears (“Caligrafia
sem lágrimas”, em tradução livre), é possível encontrar à venda por $7.25 esse tipo de material,
recomendado para crianças a partir dos 4 anos de idade. Cf.: http://shopping.hwtears.com/product/96/
Acesso em: janeiro de 2010.
82
Fig. 15: Caderno de caligrafia espanhol do século XIX, utilizado nas escolas e também por calígrafos. As
linhas são bem marcadas para a grafia com inclinação adequada das letras pelo aprendiz. Fonte: Esteban
(1997, p. 319).
Sobre a produção da necessidade da escrita instrumental, muitos pontos podem
ser destacados. Destacarei alguns que considero mais relevantes em relação aos efeitos
que produziram. Primeiramente, falemos do todo de ensino intuitivo e dos
movimentos da Escola Nova.
Trindade (2001) esclarece que, apesar de o método intuitivo ser discutido na
Europa desde a metade do século XIX e ter sido proposto no Brasil por um projeto
reformista de Rui Barbosa durante o período imperial, foi durante a república que o
método começou a funcionar nas escolas brasileiras. O método propunha um
deslocamento da pedagogia centrada na fala do professor à educação centrada nos
sentidos, especialmente no olhar, na percepção do espaço. Buscava-se um ensino que
desse à criança mais chances de experimentação do ambiente. Nesse contexto, emergem
fortemente visitas a museus e outros lugares fora da sala de aula que permitissem o
contato com conhecimentos formulados a partir da observação.
É o método intuitivo também que tornará a insistir sobre algo que Comenius já
havia postulado no século XVII, em seu Orbis sensualium pictus: o ensino deveria
utilizar fortemente as imagens como recurso didático-pedagógico. Se Comenius, na obra
citada, já propunha o seu alfabeto onomatopeico ilustrado, veremos essa prática de
associação entre letras e palavras a imagens ganhar força nas práticas em alfabetização
83
especialmente a partir do desenvolvimento sem precedentes do mercado editorial, com o
aperfeiçoamento das técnicas de impressão, o barateamento da impressão a cores e a
invenção da fotografia (ROTGER, 1997).
O método intuitivo associou-se aos postulados da Escola Nova. E não é possível
falarmos desse movimento sem nos reportarmos às ideias do médico e psicólogo
Édouard Claparède, que entre o final do século XIX e início do XX, influenciado pelo
darwinismo, procurava desenvolver uma teoria sobre os modos de adaptação da criança
ao ambiente. Ele desejava desenvolver uma teoria científica sobre a infância que
fornecesse instrumentos à ação da pedagogia. Em 1905, Claparède publicou Psicologia
da criança e pedagogia experimental e, em 1912, criou e dirigiu um instituto para
estudo da psicologia infantil, no qual foi sucedido por Jean Piaget, com quem trabalhou.
Os estudos de Claparède tiveram intensa repercussão no movimento em prol da
Escola Nova. Muitos dos seus estudos forneceram argumentos para o questionamento
das práticas da escola tradicional. A “escola sob medida”, defendida por ele, deveria
centrar a aprendizagem no interesse dos alunos, que esse seria o motor pelo qual a
criança mobilizaria suas energias na aprendizagem.
Outros ainda, como John Dewey, Ovide Decroly e Maria Montessori, também
argumentaram a favor do que se convencionou chamar de “escola ativa” nas primeiras
décadas do século XX; uma escola em que a ação da criança guiasse o ensino, como nos
“centros de interesse”, proposto por Decroly. Pela prática, a criança desenvolveria
habilidades científicas, como a observação e a experimentação, formularia hipóteses,
confirmaria algumas e refutaria outras. Dessa forma, a sala de aula aparece cada vez
mais narrada como um laboratório em que materiais concretos deverão ser apresentados
desde muito cedo às crianças, para que os encaixem, empilhem, amarrem, abotoem,
explorem suas propriedades olfativas, gustativas, teis, como extensivamente defendeu
Montessori (1965). Esses exercícios treinariam o corpo da criança, especialmente as
mãos, como no uso de massas para modelagem, e desenvolveriam a concentração; no
caso do ensino da escrita, essas atividades poderiam substituir exercícios musculares
que eram realizados exaustivamente com foco na cópia de modelos. Em escolas
montessorianas, ainda hoje, são bastante utilizadas placas de madeira com letras
cursivas em relevo, geralmente feito com lixa, para iniciar a criança no traçado das
letras. Também deve ser referenciada a proposta de Montessori que ficou conhecida
84
como alfabeto móvel”
53
, por meio do qual as crianças aprenderiam a compor palavras
manipulando as letras, geralmente confeccionadas em madeira, e trocando-as de lugar
com facilidade.
Montessori também postulou que as crianças tivessem liberdade para escrever
espontaneamente, criticando o ensino da escrita pela cópia de modelos. A figura abaixo
(fig. 16), parte integrante do livro The Montessori Manual: for teachers and parents
54
,
publicado originalmente em 1913 nos Estados Unidos por Dorothy Canfield Fisher, nos
mostra como as crianças eram incentivadas a escrever espontaneamente e, por vezes,
coletivamente em quadros. Ao chão, crianças escrevem utilizando letras móveis, como
referenciado no parágrafo anterior.
Fig. 16: Escrita espontânea, sem cópia de modelos, proposta por Montessori. À esquerda, lê-se: “Uma
lição de escrita espontânea. Estas crianças atingiram o ponto em que, como Montessori diz, elas
‘explodem em direção à escrita’”. Fonte: Fisher (1964, p. 55).
53
Atualmente, são raras as escolas no Brasil que não utilizam alfabeto móvel na alfabetização. Nos
últimos anos da Educação Infantil, também é comum encontrarmos o uso desse material. Comumente
vejo professoras confeccionando seu próprio alfabeto vel, como eu mesma fiz em alguns anos,
recortando e colando as letras em material resistente, como as placas feitas de E.V.A. (abreviatura dos
materiais etil, vinil e acetato).
54
“O manual Montessori: para professores e pais”, em tradução livre.
85
Fig. 17: Materiais montessorianos. Abaixo e ao centro, placas de madeira com letras cursivas em relevo,
com textura, para que a criança passe o dedo sobre elas e crie uma imagem mental ou “memória
muscular”, como Montessori se refere da letra a partir da exploração tátil. Fonte:
http://earlychildcare.files.wordpress.com/2009/09/montessori-materials.jpg Acesso em: maio de 2010.
Assim como Montessori, Dewey (1969) propunha que se criassem espaços nas
escolas para oficinas de trabalhos manuais ligados a problemas práticos do cotidiano,
como assar um pão, construir uma escada ou bordar uma toalha.
A proposta de uma “imprensa escolar”, de Freinet, também nos mostra como os
discursos que apregoavam uma pedagogia ativa deslocaram a necessidade do ensino da
escrita na escola estritamente por meio de exercícios grafomotores. Um jornal escrito e
editado pelo conjunto de alunos seria produzido constantemente na proposta pedagógica
de Freinet. As pautas seriam pesquisadas de acordo com o que despertasse o interesse
dos alunos. As chamadas “aulas-passeio” e as entrevistas eram recomendadas para a
produção das pautas.
Fica claro que estar em atividade ou em movimento na escola passa a ser
frequentemente repetido pelas diferentes propostas escolanovistas que foram aqui
brevemente destacadas. Os métodos de aprendizagem da leitura e da escrita deveriam
ser renovados, deslocando as cartilhas do espaço central que possuíam na alfabetização.
Para os defensores da Escola Nova, os livros em geral deveriam ser auxiliares da
aprendizagem, não um único e imperativo recurso didático. A cartilha fica tão
marcada como parte de um todo eminentemente diretivo que, ao final do século XX,
veremos essa palavra em português ser utilizada apenas em manuais prescritivos, como
86
os que comumente vemos ser distribuídos por órgãos públicos à população com
orientações sobre saúde e higiene. Livros para alfabetizar passarão a ser referenciados
basicamente como livros didáticos”, geralmente compondo coleções com os livros
destinados às demais séries do Ensino Fundamental.
Como é possível visibilizar em propostas como as de Claparède, Decroly,
Dewey, Montessori e Freinet, a Escola Nova engendrou uma nova forma de liberdade
das crianças dentro da escola, mas uma liberdade com vistas a fazer a criança aumentar
suas capacidades. Um maior número de atividades é prescrito para a criança dentro da
escola e também fora dela. Essas atividades multiplicaram também o aparato de exames
escolares. As técnicas de exame, segundo Foucault (2008c), permitem ao professor
produzir um campo de conhecimentos em relação aos alunos, fazendo com que eles
entrem em uma rede de anotações escritas e acumulação documentária. Por isso
veremos cada vez mais durante o século XX se popularizarem discussões como as que
versam sobre a avaliação processual. Pareceres descritivos ou portfólios de
aprendizagem, especialmente na Educação Infantil e nas turmas de alfabetização,
substituirão com frequência as notas ou as fichas de habilidades, que ao professor
bastava preencher com um X. Os pareceres exigirão que o professor descreva as
aprendizagens dos alunos, geralmente em uma perspectiva evolutiva, e reúna uma série
maior de registros sobre seus alunos, que lhe forneçam elementos para avaliar as
aprendizagens. Trata-se, portanto, de multiplicar as técnicas que permitam tornar visível
uma subjetividade que se pretende medir, pois, como complementa Rose (1998, p. 39),
o exame transcreve “os atributos e suas variações em formas codificadas, possibilitando
que eles sejam acumulados, somados, normalizados, que se tire sua média e que sejam
normalizados – em suma, documentados”.
Nesse cenário discursivo, o que se assiste é uma otimização da aprendizagem da
escrita. Da perfeição da escrita, conquistada com extensos exercícios caligráficos, a
partir do século XX veremos alargarem-se os níveis considerados aceitáveis pela escola
como uma boa escrita. É um cenário de escritas mais flexíveis que vemos emergir
durante o século XX. Indivíduos mais criativos, que aprendam rápido e se adaptem
facilmente a novas funções é o que as formas de ação da racionalidade neoliberal que
foi se desenvolvendo nesse período histórico produzirão (FOUCAULT, 2008e). Escritas
ossificadas, extremamente geometrizadas, extrapolarão o novo cálculo temporal das
atividades feito pela escola, pois se tornará imperativo que as escritas circulem mais.
87
Enquanto a escrita ornamental limitava, proliferava fronteiras, a escrita instrumental
funcionará em uma economia de fabricação e gestão das liberdades escritoras. Nesse
ponto, veremos a caligrafia funcionar cada vez mais como um recurso terapêutico às
escritas infantis que escaparem dos gradientes de normalidade ou, também, como
recurso para auxiliar na produção dessa escrita que, agora, deverá ser legível, não
necessariamente bela.
Além das discussões sobre os métodos de ensino urdidas entre os séculos XIX e
XX, também é relevante destacar outro cenário de discussões que nos fornecem mais
elementos para compreender por que fontes caligráficas que durante muito tempo foram
consideradas adequadas para o ensino da escrita acabaram perdendo espaço durante o
século XIX e especialmente no século XX: vamos às discussões sobre leiturabilidade
(readability), que emergiram a partir do desenvolvimento maciço de estudos sobre
comunicação visual e ganharam mais espaço com os estudos da Psicologia da forma.
Antes, cito rapidamente que, entre as fontes que foram perdendo espaço na iniciação da
escrita escolar, encontram-se a gótica, a inglesa e a francesa (fig. 18). A cursiva,
exemplificada no quadro abaixo junto às demais fontes citadas, não era considerada
ornamental; era uma escrita mais vulgar em relação às outras: “É a que se escreve ao
correr da pena, sem outra preocupação que o seja a de a fazer bem legível” (LAGE,
1924, p. 72-73). A letra cursiva, mais instrumental do que ornamental, é a letra que
assumirá um posto hegemônico nas escolas a partir do deslocamento da caligrafia
ornamental.
Fig. 18: Fontes caligráficas mais notáveis entre as correntemente utilizadas até o século XIX, de acordo
com Lage (1924). O autor ainda inclui as fontes bastarda e redonda.
88
Sobre a leiturabilidade, é preciso situar que passou a discutir-se o assunto a
partir do questionamento do conceito de legibilidade da escrita. Seria suficiente uma
escrita ser legível? Spencer (1969 apud RUMJANEK, 2008) mostra que a preocupação
com a legibilidade das fontes tipográficas não é recente. Ele afirma que os primeiros
testes preocupados com a legibilidade dos textos que se tem registro foram realizados
em Paris, no século XVIII, pela Imprimerie Nationale
55
. Em uma folha, foram
impressos textos com letra Didot e, em outra, o mesmo texto com Garamond. Testando
a leitura das folhas em diferentes distâncias, a Impremerie Nationale concluiu que a
letra Garamond (fig. 19) oferecia mais legibilidade à distância do que a Didot. no
século XX, será questionado o foco da escrita apenas na forma e clareza dos caracteres
tipográficos: além da legibilidade, a leiturabilidade também passará a ser discutida,
como um conceito mais amplo para referir-se à facilidade e velocidade proporcionada
pelos caracteres à leitura. Rumjanek (2008, p. 1233) afirma que um texto pode ser
legível, mas não ter boa leiturabilidade, o que significa que sua leitura não é confortável
e torna-se cansativa”. O espaço entre as letras e palavras, a simetria e o desenho das
letras, assim como o espaço entre linhas são condições que, devidamente organizadas,
permitiriam um grau maior de leiturabilidade. No caso das escritas ornamentais, estudos
de diferentes áreas, como a comunicação, a pedagogia e a psicologia, argumentaram que
o excesso de decorações causaria tensão entre as informações visual e verbal,
dispersando o leitor.
55
Fundada no século XVI por decreto real, a Imprimerie Nationale tinha por objetivo devolver à
tipografia francesa o esplendor alcançado no século XVI com a popularização por toda a Europa dos
caracteres tipográficos encomendados a Claude Garamond pelo rei François I.
89
Fig. 19: Fonte Garamond. Matrizes tipográficas originais utilizadas por Claude Garamond no século XVI.
Fonte: http://museum.antwerpen.be/plantin_moretus/index_eng.html. Acesso em: maio/2010
Benatti (2008) mostra em seu estudo discussões que ocorreram nesse mesmo
período entre profissionais da comunicação visual acerca do uso das fontes tipográficas.
Para o autor, um forte espírito racionalista emergia na época, com um intenso
questionamento das fontes clássicas utilizadas na tipografia. Os ornamentos
concorreriam com a sutileza e leveza que o comércio vinha buscando para a imagem
dos seus produtos. Buscava-se, então, uma nova tipografia que “retornasse à essência
elementar das letras” (id., ibid., p. 9), como rudimentarmente poderia ser visto nas
inscrições em monumentos na Grécia Antiga, com letras pouco angulosas. Buscava-se
uma letra mais funcional e que fosse acessível à leitura da população com pouca
escolarização (SAMPSON, 1996).
As fontes sem serifas
56
, ou sans-serif, passaram a ser amplamente desenvolvidas
e empregadas em anúncios. Sampson (ibid., p. 125) nos diz que, no período
entreguerras, “os tipógrafos alemães e suíços começaram a elevar a sans-serif à
condição de tipo-de-livro. O tipo sans-serif, despojado de todos os enfeites
desnecessários, foi proposto como ideal para o homem do 20s [sic]”.
56
Serifas são os prolongamentos que algumas fontes possuem em suas extremidades (Cf. fig. 20).
90
Fig. 20: Fontes com e sem serifas. À esquerda, fonte Times New Roman, com serifas, marcada pelo
prolongamento das extremidades. À direita, fonte Arial, sem serifas (sans serif). Fonte:
http://www.colaborativo.org/blog. Acesso em: maio de 2010.
A discussão sobre o uso das serifas será constante durante o século XX. A
Psicologia da forma ou Gestalt argumentou que a presença das serifas produziria um
efeito maior de leiturabilidade, devido à linha imaginária traçada pelo leitor em função
dos arremates das letras, o que levaria a um efeito de continuidade. Entre seus
princípios, a Gestalt destacava que a mente humana tenderia a analisar as informações
visuais recebidas como completas, mesmo quando houvesse partes ausentes (princípio
do fechamento), assim como tenderia a dar mais importância ao todo do que às partes
que seguem um mesmo padrão (princípio da continuidade). Desde seu
desenvolvimento, a Gestalt vem sendo amplamente estudada e aplicada por
profissionais da comunicação visual, sendo elemento de estudo nos cursos de formação
superior.
A polêmica sobre o uso das fontes serifadas e a promoção da leiturabilidade
ganhou mais visibilidade com o desenvolvimento da informática e a popularização dos
editores digitais de texto, que oferecem amplo repertório de fontes ao usuário. A
Microsoft, multinacional líder no mercado mundial de softwares, desde o lançamento do
Windows, seu produto mais vendido, comercializa em seus programas a fonte serifada
Times New Roman como fonte padrão. A partir do pacote Office 2007, a mesma
empresa passou a indicar a fonte Calibri, sem serifas, como padrão. Uma gama de testes
de legibilidade e leiturabilidade é realizada até chegar a uma fonte que se entenda como
adequada para ser oferecida como padrão; por que agora a Microsoft teria aderido a uma
fonte sem serifas é um questionamento ainda sem resposta, mas que nos mostra uma
91
revisão de conceitos que afeta milhões de usuários escritores e leitores dos textos que
se produzem com o auxílio do Word, o editor de textos do Office.
Outro aspecto a ser destacado é o investimento conjunto da psicologia e da
comunicação visual sobre o estudo de associações emocionais que as fontes tipográficas
poderiam remeter a um maior número de pessoas, de forma que fosse possível vincular
tais emoções a uma marca comercial. No documentário Helvetica
57
(HUSTWIT, 2007),
a fala do designer gráfico Neville Brody, transcrita abaixo, nos mostra a produtividade
desses estudos no trabalho com fontes tipográficas para a comunicação visual de uma
marca:
O modo como algo é apresentado define o modo como você reage. Então
você pode escolher a mesma mensagem e apresentá-la com três tipos
diferentes, e a resposta a isto, a imediata resposta emocional será diferente. A
escolha do tipo é a primeira arma, se quiser, naquela comunicação. E eu digo
arma amplamente porque em marketing comercial e propaganda, a maneira
como a mensagem é apresentada definirá a nossa reação à mensagem do
anúncio. Se ele disser ‘compre estes jeanscom uma fonte grunge, você
está preparando para algum tipo de jeans surrado ou para ser vendido em
algum tipo de loja de roupas alternativas. Se você essa mesma mensagem
em Helvetica, é provável que esteja à venda na GAP
58
. [Você] sabe que será
limpo, que cairá bem em você, que você o chamará muita atenção. [...] De
certo modo, Helvetica é um clube. É uma marca de associação; é um crachá
que diz que fazemos parte da sociedade moderna.
Fig. 21: Fonte Helvetica, que deu origem ao documentário homônimo, em homenagem aos cinquenta
anos da criação dessa fonte.
57
O documentário Helvetica é uma produção independente suíça, dirigida por Gary Hustwit e lançada em
2007, em comemoração ao cinquentenário da fonte tipográfica que empresta nome ao filme. A fonte foi
criada em 1957 pelos suíços Max Miedinger e Eduard Hoffmann e é considerada uma das fontes mais
presentes nas paisagens urbanas, concorrendo com a fonte Arial. Já a Arial é considerada uma derivação
da Helvetica e foi projetada pela empresa Monotype, em 1982, a pedido da Microsoft, interessada em
adquirir uma fonte parecida com a Helvetica a baixo custo. Desde 1993, a Microsoft distribui a Arial
como uma das fontes dos seus softwares. Em tempo: a Helvetica era a fonte padrão da Apple, empresa
rival da Microsoft na produção de softwares. Cf.: http://www.helveticafilm.com/ e
http://arteevicio.com/design/inspiracao/inspiracao-8-especial-helvetica-o-filme/.
58
Famosa loja de roupas norte-americana, com franquias em vários países.
92
A fala do designer gráfico transcrita acima não interessa aqui por si só, mas pela
rede de relações que mantém com outros movimentos em relação à escrita em diferentes
espaços sociais nos últimos séculos. A escrita foi capturada e é continuamente
produzida em um jogo de verdades que atravessa as fronteiras disciplinares que tanto a
modernidade trabalhou para delinear. Os livros escolares que hoje ensinam caligrafia
emergem em meio a essa malha discursiva que envolve essa confluência de saberes
sobre a escrita. Pelo exposto, fica mais claro por que a cursiva ganhou espaço
hegemônico no ensino da escrita atualmente nas escolas brasileiras
59
. Os adornos das
fontes ornamentais foram sendo classificados como poluentes quando utilizados em um
texto na íntegra. Ainda no século XIX, discursos higienistas também reforçariam a lenta
interdição da escrita ornamental que se processou nas escolas primárias.
Sobre o assunto, é importante situar que a modernidade urdiu “um complexo e
descontínuo projeto de higienização da sociedade, visando a atender códigos de um
mundo civilizado, os quais são construídos e reconstruídos por intermédio de operações
de empréstimo e afastamento entre homens ancorados em racionalidades distintas, como
a ordem médica e a ordem eclesiástica” (GONDRA, 2002, p. 316). Nesse processo, o
século XIX assistiu a uma progressiva “extensão dos saberes médico-fisiológicos para o
campo pedagógico”, o que resultou em críticas aos métodos empregados nas escolas e
em prescrições sanitárias por parte dos médicos às práticas escolares (STEPHANOU,
2000, p. 4).
Entre as práticas criticadas estava a do ensino da caligrafia inclinada, em voga
no Brasil à época. Artigos em revistas especializadas em medicina chegaram a publicar
estudos relacionando a prática da caligrafia inclinada ao desenvolvimento de moléstias
como a miopia e a escoliose (FARIA FILHO, 1998). Em vista disso, a caligrafia
vertical, que havia sido utilizada em muitas escolas cristãs, logo ganhou defensores
entre os médicos em diversas partes do mundo, tornando-se obrigatória em muitas
escolas pela repercussão dos estudos que condenavam a caligrafia inclinada. Para
escrever com a caligrafia vertical, o aluno deveria posicionar seu antebraço sobre a
59
Na atualidade, a cursiva pode ser entendida como uma letra eminentemente escolar. Ferreiro e
Teberosky (2008), por exemplo, repararam que crianças argentinas e espanholas sem escolarização,
quando solicitadas para que escrevessem, faziam-no utilizando letras de imprensa maiúsculas. Para esse
grupo de crianças, a letra cursiva seria “a letra com que os adultos escrevem”. Na pesquisa das autoras, a
letra cursiva começa a aparecer nas amostras de escritas de crianças já em escolarização inicial.
93
mesa formando um ângulo inferior a 45°, enquanto as laterais do papel deveriam formar
ângulos retos em relação às laterais da mesa.
Essa nova fonte caligráfica foi apresentada como mais rápida e como promotora
de escritas mais legíveis. Além disso, foi considerada mais salutar por recomendar aos
alunos o posicionamento do tronco ereto, condenando a prática habitual dos alunos de
debruçar-se, encostando a barriga na mesa. “Papel direito, corpo direito, escrita direita”
era a prescrição que circulava na época e que resumia o ideal higienista de seus
defensores. Políticos das primeiras décadas do século XX não demoraram a recomendar
a adoção da escrita vertical nas escolas, como mostram os estudos de Faria Filho (1998)
sobre a escola mineira, de Vidal (1998) sobre a escola paulista e de Trindade (2001)
sobre a escola gaúcha.
Fig. 22: Sala de aula da Escola Primária Caetano de Campos, em o Paulo, 1908. O posicionamento do
papel sobre as mesas dos alunos, bem como suas posturas, indicam o uso da caligrafia vertical na sala de
aula retratada na fotografia acima. Fonte: Vidal (2009).
Uma escrita que dispensasse adornos e inclinações, como postularam os
discursos higienistas, preservaria a saúde ocular das crianças, assim como evitaria
disfunções posturais. Em circulação junto a outros discursos, como os que foram neste
espaço discutidos, a caligrafia ornamental foi perdendo espaço, e a escrita instrumental,
94
vulgarizada e em estilo vertical, ganhará o espaço hegemônico que veremos nos livros
de caligrafia analisados a seguir, na parte III. E é interessante que hoje a fonte cursiva
seja compreendida popularmente como sinônimo de caligrafia, como se a caligrafia
pudesse ser praticada apenas com essa fonte ou não pudesse ser praticada com fontes
soltas, sem ligação, como também o foi por muito tempo em algumas escolas europeias
antes do século XIX
60
. O que é preciso mostrar é como esse poder se organiza na escola
para agir sobre o sujeito que escreve, que, ao falarmos em normalização das escritas
infantis pela caligrafia didatizada nos livros, estamos falando da normalização do
sujeito.
2.6 ESCRITA E CALIGRAFIA: DESLOCAMENTOS
oje, parece-nos natural a diferenciação entre escrita e caligrafia nas
práticas escolares; mas, não muito tempo, aprender a escrever era
aprender a caligrafar: alfabetizava-se ao mesmo tempo em que se
aprendia um rigoroso traçado das letras do alfabeto por meio de intensos exercícios
musculares, com materiais não tão deslizantes sobre a folha não o lisa quanto hoje
estamos acostumados.
O Decreto de 5 de junho de 1899, que determinava o programa para a escola
elementar no Rio Grande do Sul, em seu 16º artigo, nos permite retomar os discursos
que circulavam à época sobre o ensino da escrita nas escolas gaúchas: “Todos os
trabalhos escriptos serão considerados exercícios de calligraphia, devendo, para este
fim, depois de corrigidos pelo professor, ser passados a limpo” (apud TRINDADE,
2001, p. 269).
no início do século XX, o professor português Bernardino Lage (1924, p. 63-
64), da Escola Primária de Coimbra, em manual cujas ideias também repercutiam no
Brasil, assim considerava o ensino da escrita:
À semelhança do que sucede com a leitura, a escrita é a princípio um trabalho
mecânico. Ao ser iniciada na escrita, a criança não pensa no significado do
que escreve, porque toda a sua atenção é pouca para atender à forma dos
60
Sobre o assunto, conferir os trabalhos de Blay (1997) e Esteban (1997).
H
95
elementos a escrever. Por mais inteligentemente que o ensino seja feito, o
principal esfôrço do principiante é sempre de natureza física.
Quando, porém, depois de certa prática, o aluno tenha adquirido seguro
conhecimento da forma das letras e as trace com facilidade, a sua principal
preocupação passa a consistir em saber quais as letras com que deve escrever
cada palavra e como ligar entre si essas letras para que as palavras fiquem
corretamente formadas. [...]
Não tendo dificuldades em traçar as letras e conhecendo regularmente a
ortografia das diversas palavras, a criança passa a atender ao significado do
que escreve e, portanto, à pontuação que até aí lhe era indiferente.
A concepção de escrita visível nos excertos da obra de Lage nos permite associar escrita
à cópia: primeiro o aluno aprendia a traçar as letras em ordem crescente de dificuldade;
depois, decorava a escrita das palavras para copiá-las e, por último, investir-se-ia sobre
o significado do que se estava escrevendo. O ensino da escrita, assim como se percebe
na leitura do excerto do Decreto de 1899, é definido principalmente a partir de um
trabalho estético que o aluno deverá realizar sobre sua escrita.
A ênfase no ensino do traçado as letras ainda será por muito tempo um forte
investimento escolar, o que nos mostra que não transformações a um golpe dos
discursos escolanovistas, discutidos na seção anterior. Na década de 1920, Vidal e
Gvirtz (1998) relatam a emergência de debates em São Paulo acerca da caligrafia
muscular
61
, que fora adotada pelo colégio americano Mackenzie. Interessado no
assunto, Lourenço Filho incentivou as primeiras experiências com a caligrafia muscular
no Instituto de Educação do Rio de Janeiro, que estava sob sua direção. Tais
experiências foram coordenadas pela diretora da escola primária desse Instituto, a
professora Orminda Marques, que se propôs a investigar entre os anos de 1933 e 1936
técnicas para o que pudesse ser chamado de uma boa escrita”, que, para ela, “escola
moderna não poderia ser sinônimo de caligrafia ruim” (PERES, 2003, p. 84). Orminda
61
A caligrafia muscular propunha o ensino da escrita por tração, e o por pressão, pelo uso sistemático
do músculo do antebraço e deixando a mão livre (VIDAL; GVIRTZ, 1998). É importante destacar que a
preocupação com o aprimoramento das técnicas de escrita manuscrita para que permitissem um traçado
mais rápido é bastante visível no século XX; no entanto, não deve ser esquecido que suas condições de
possibilidade devem ser buscadas em períodos anteriores. A caligrafia muscular proposta por Orminda
Marques trata-se de uma adaptação do método desenvolvido primeiramente pelo inglês Joseph Carstairs,
na década de 1830, e popularizado por Austin Norman Palmer, criador do conhecido Método Palmer, no
final do século XIX. Carstairs apresentou um estudo baseado na análise de padrões de movimento de
escrivães considerados eficientes, demonstrando que o movimento do antebraço, apoiado sobre a mesa,
permitia mais agilidade à escrita. Palmer desenvolveu uma fonte que entendia ser mais adequada aos
movimentos musculares exigidos pela escrita, assim como também desenvolveu um sistema de exercícios
ritmados para o aprendizado da caligrafia muscular. A fonte ficou popularmente conhecida pelo
problemático termo “alfabeto de Palmer”; no entanto, não foi inventado um novo alfabeto, mas uma nova
fonte para escrita, baseada na fonte inglesa. Palmer prometia legibilidade e rapidez na escrita sem
sofrimento, começando o ensino pelas posturas adequadas ao escrever.
96
propunha o ensino ritmado dos traçados das letras de forma lúdica às crianças,
assimcomo o ensino de conteúdos cívicos por meio da caligrafia. A bela forma e a
velocidade da escrita muscular, essa última considerada característica necessária à
população no contexto de industrialização brasileira, foram aspectos que fizeram
Orminda concluir que esse seria o tipo de escrita ideal a ser ensinado nas escolas
brasileiras.
Fig. 23: Capa e exemplo de lição do volume 1 dos cadernos Escrita Brasileira, de caligrafia muscular, de
autoria de Orminda Marques (1953). Fonte: Acervo Memória da Cartilha.
Vidal e Gvirtz (1998) referem que a experiência na escola primária rendeu a
publicação de cadernos seriados de caligrafia, entre 1940 e 1960, elaborados por
Orminda. Os cadernos chegaram a ter tiragem de 250 mil exemplares anuais. Todavia,
“apesar de divulgadas a todo território nacional, não conseguiram [as experiências com
a caligrafia muscular] impor um novo modelo de escrita, permanecendo o uso do tipo
vertical nas escolas brasileiras” (id., ibid., p. 23).
Também na década de 1930, quando surgia a proposta da caligrafia muscular no
Brasil, ganhariam força atividades que promovessem a discriminação de semelhanças e
diferenças entre figuras, a orientação espacial, a formação da progressão esquerda-
direita, entre outras, a partir da implementação dos Testes ABC, formulado por
Lourenço Filho, em intenso trabalho de costura de contribuições da psicologia ao campo
97
da pedagogia. Preocupado com o alto índice de reprovação de alunos na série da
escolarização inicial, Lourenço Filho organizou um conjunto de testes que procurava
verificar o vel de habilidades das crianças em diferentes áreas, como visomotora e
auditivomotora, de forma a organizar os alunos em turmas homogêneas em suas
habilidades, visando a, possivelmente, favorecer a alfabetização. A grande circulação
dos Testes ABC entre os educadores, não só brasileiros mas também estrangeiros,
sugere uma organização da prática pedagógica para preparar as crianças para esse tipo
de teste. Não é exagero pensarmos que, ao mesmo tempo em que um teste aplicado
sobre qualquer nicho populacional procura aferir em linguagem matemática o potencial
de cada indivíduo, ele também coloca em funcionamento o que é tido como referência
ou, em outras palavras, como normal para os conhecimentos aferidos. Assim, nas
cartilhas contemporâneas aos Testes ABC, veremos uma crescente incorporação de
atividades de discriminação visual. É possível localizar efeitos desses discursos também
em manuais direcionados à pré-escola, como o de autoria de Lia Dalva Grosso e de
Thelma Bellotti (1978), de grande vendagem na década de 1970. A imagem a seguir
(fig. 24) ilustra algumas das orientações dessas autoras para preparar a criança pré-
escolar para a escrita.
Fig. 24: Capa e exemplo de lição do manual de Grosso e Bellotti (1978). Na imagem à direita, interessa
destacar os movimentos retos e em espirais que o manual prescreve como necessários à aprendizagem da
escrita. Fonte: Biblioteca Setorial da Faculdade de Educação da UFRGS.
98
O trabalho de Peres (2003) nos reportará ao ensino da escrita na década de 1950,
também no Rio Grande do Sul. A autora nos mostra as orientações do Centro de
Pesquisas e Orientações Educacionais (CPOE), órgão vinculado à Secretaria de
Educação e Cultura do estado, em relação ao ensino da escrita nas escolas primárias:
Pode-se agrupar nos seguintes os objetivos da ‘Escrita’ na escola primária:
1. permitir legibilidade, isto é, clareza, uniformidade no traçado de modo a
facilitar a leitura, considerando-se ser a escrita meio de comunicação;
2. desenvolver rapidez, atendendo, assim, às exigências da vida moderna;
3. dar o hábito da disposição elegante e apresentação cuidadosa dos títulos
e textos, o que virá concorrer para a educação estética da criança (CPOE.
Comunicado nº 4, 15/04/1950 apud PERES, 2003, p. 82-83).
Em relação ao excerto acima, faço duas considerações: em primeiro lugar, destaco que
os três objetivos do ensino da escrita envolvem estritamente preocupações estéticas e
motoras. Repara-se uma preocupação bem presente com a forma da escrita, o que
justifica o corriqueiro uso dos cadernos de caligrafia nessa época para todos os alunos
em fase inicial de escolarização, havendo até mesmo uma disciplina chamada Caligrafia
não muitas décadas nas escolas gaúchas. Em segundo lugar, o item 2 faz referência à
uma preocupação que se avolumava à época: a rapidez com que a escrita manuscrita
deveria dotar-se cada vez mais. A concorrência que muitos viam entre a quina de
escrever e a escrita manuscrita, semelhante à que hoje assistimos em relação à escrita no
teclado dos computadores, aumentava a urgência por uma escrita mais veloz e
instrumental do que lenta e ornamental. Com o advento das máquinas auxiliando a
escrita, transfere-se também para elas o que por muito tempo foi possível
domesticamente apenas pela mão humana: um traçado com acabamento mais uniforme
e elegante. A propaganda abaixo, veiculada em revistas brasileiras possivelmente entre
as décadas de 1940 e 1950
62
, nos permite ver a agilidade da escrita à máquina elétrica
ser anunciada como um dos grandes trunfos do produto, já que o prometidos 26%
menos de esforço do que ao utilizar, suponho, outras máquinas com teclas não tão
62
Não foi possível precisar a data de circulação do anúncio, nem a revista em que foi publicado. A
Olivetti, que posteriormente comprou a Underwood, informa que as primeiras máquinas elétricas da
Underwood foram produzidas a partir de 1940. O site que postou o anúncio referenciado na figura 25
carece de fontes que permitam localizar melhor cronologicamente o período em que tal propaganda
circulou.
99
macias. Economizar esforço e produzir mais pela escrita, portanto, como um imperativo
forte durante o século XX
63
.
Fig. 25: Anúncio da máquina de escrever elétrica Underwood Standard. À esquerda da máquina de
escrever, no pequeno quadro em destaque, lê-se: “Desenhada para secretárias exigentes – sinta a diferença
escreva com 26% menos de esfôrço. Se deseja uma coisa realmente diferente experimente a nova
Underwood com ‘Toque de Ouro’”. Fonte: http://alanabrinker.wordpress.com/2009/11/01/voce-faz-parte-
da-geracao-y-entao-qual-seu-diferencial-no-mercado/maquina-de-escrever/ Acesso em: abril/2010.
Se trago esses acontecimentos para a discussão, não se trata de mera ilustração,
mas de situar esse deslocamento cada vez maior da caligrafia ornamental para a
instrumental nas práticas escolares de ensino da escrita vinculado também aos efeitos
proporcionados pela necessidade crescente de automação, miniaturização, portabilidade
e popularização de produtos já existentes que foi emergindo durante o século XX.
Produzir mais e em menos tempo foi tomando proporções cada vez maiores nas formas
63
Deve ser considerado que, em países como Japão e China, a escrita manuscrita continua possuindo
grande prestígio. Sampson (1996, p. 209) alerta que “nessas sociedades a escrita à o tem um papel
relativamente mais importante que no Ocidente. As máquinas de escrevero são comuns e, por
exemplo, as letras de um cartaz, que na Europa normalmente imitam a regularidade da imprensa, no leste
asiático procuram simular a escrita com pincel e tinta. Além disso, as normas sociais e os padrões
estéticos aplicáveis à escrita à mão não levam em conta a clareza e a regularidade; muito pelo contrário”.
100
de capitalismo que foram se desenvolvendo nesse período. E essas condições tornaram
possível o aperfeiçoamento dos instrumentos de escrita. Muitas profissões passavam a
requerer o aperfeiçoamento das técnicas utilizadas para escrever. No caso do
jornalismo, o relato do jornalista e publicitário Nelson Cadena (2008, s/p), em seu
Almanaque da Comunicação
64
, ilustra bem o cálculo do tempo que se pretendia
economizar migrando de práticas de escrita manuscrita para práticas mediadas pelas
máquinas:
Desde a última década do século XIX o teclado “infernal” que assustava os
jornalistas com a sua incompreensível combinação de letras era realidade
nas oficinas desde a introdução do linotipo. [...] O jornalista escrevia a mão e
o linotipista, que muitas vezes era obrigado a interpretar garranchos, fazia a
digitação mecânica. Redatores mais experientes sentavam-se ao lado do
linotipista e ditavam o seu texto de cabeça; as correções feitas, ali mesmo, na
hora.
[...] a Folha de o Paulo adquiriu em 1983 os primeiros computadores para
substituir as antes rejeitadas e naquele momento imprescindíveis máquinas de
escrever. O objetivo era o mesmo, compatibilizar os processos de pré-
impressão, tanto que uma vez consolidada a mudança, alguns anos depois, a
Folha calculava em 40 minutos o ganho de tempo. E tempo era moeda
calculada pelo departamento industrial e a expedição.
As práticas pedagógicas aos poucos também vão deixando de lado complexos
instrumentos de escrita, como as penas de origem animal que precisavam ser aparadas e
utilizadas junto a mata-borrões e tinteiros. A invenção da caneta esferográfica no final
da década de 1930 também prometeu revolucionar as práticas de escrita pela praticidade
de reunir instrumento de escrita e tinta em uma peça e com um custo acessível. A
leveza do material e a distribuição uniforme da tinta pela esfera gráfica situada na
extremidade que toca o papel também constituíram atrativos ao consumo da novidade,
que se popularizou a partir da década de 1950. Com a esferográfica, veremos as
escritas manuscritas cada vez mais personalizadas, diferentemente do que acontecia
com as penas, cujos formatos do talhe traziam mais limites à forma da escrita. O
anúncio da figura 26, veiculado na década de 1960, nos mostra como a esfera, situada
na extremidade da caneta, é apresentada em destaque aos consumidores, mostrando o
diferencial que proporcionaria os efeitos tão procurados de rapidez, suavidade e leveza à
escrita.
64
Almanaque da Comunicação é o nome do site que Nelson Cadena mantém na internet e que serviu de
fonte para esta parte da Dissertação. Cf.: http://www.almanaquedacomunicacao.com.br/. Acesso em:
fevereiro de 2010.
101
Fig. 26: Anúncio da caneta BIC esferográfica na década de 1960 em revista portuguesa. No canto inferior
esquerdo, lê-se: “Experimente uma BIC Mistério! Nunca poderá escrever mais depressa do que com ela.
A nova esfera <poli-glace> - em carbureto de tungstênio desliza suavemente sem faltas de tinta nem
defeitos. E a sua última palavra será tão nítida quanto a primeira”. Fonte:
http://diasquevoam.blogspot.com/2008/12/para-o-vizinho-bic.html. Acesso em: outubro de 2009.
Para compreendermos como se produziu a marcada diferença que hoje soa como
natural aos educadores entre escrita e caligrafia, é importante também nos reportarmos
ao impacto da circulação da pesquisa do grupo coordenado pela argentina Emília
Ferreiro e pela espanhola Ana Teberosky, que ficou conhecida no Brasil como
Psicogênese da língua escrita (2008). Os enunciados colocados em circulação pela obra
das pesquisadoras deslocaram o status de verdade que até então possuíam as práticas
escolares da escrita como cópia e também do período preparatório que passou a
anteceder essa aprendizagem. no início da obra, ao apresentar a pesquisa, as autoras
salientam:
Partindo do nosso ponto de vista, não se trata de partir do conceito de
‘maturação’ [...], nem de estabelecer uma lista de aptidões e de habilidades.
Fundamentalmente, porém, o se trata de definir as respostas das crianças
em termos do que lhe falta’ para receber um ensino. Ao contrário,
102
procuramos colocar em evidência os aspectos positivos do conhecimento. Em
cada um dos Capítulos deste livro, e em cada análise dos diferentes níveis de
respostas, este princípio será reencontrado: a conduta infantil definida como
uma maneira de aproximação ao objeto de conhecimento [...], que supõe um
caminho de longa construção (FERREIRO; TEBEROSKY, 2008, p. 36).
Os grafismos infantis outrora considerados sem nexo ou imaturos pelos professores são
alçados a outro patamar de classificação pela linguagem fornecida pela Psicogênese da
língua escrita. Seguindo ensinamentos obtidos sob orientação de Jean Piaget durante a
década de 1970, em Genebra, Ferreiro adaptou o método clínico piagetiano junto com
outras pesquisadoras para analisar como crianças entre 4 e 6 anos de idade, com e sem
escolarização, se apropriavam da escrita como objeto de conhecimento. Nesse
movimento, as pesquisadoras reuniram conjuntos de hipóteses sobre a escrita
formuladas por crianças argentinas e mexicanas nas situações de teste. Cada hipótese
65
seria equivalente a um nível cognitivo. Cabe destacar, ainda, que as crianças
participantes dos testes possuíam o espanhol como língua materna. O estudo foi, então,
publicado pela primeira vez em 1979 com o título Los sistemas de escritura em el
desarrollo del niño e teve sua primeira edição no Brasil em 1985.
Ao final da pesquisa, Ferreiro e Teberosky (2008) fazem três afirmações teóricas
que entendem terem sido comprovadas pela pesquisa realizada: primeiro, a leitura não
deveria ser identificada como decifrado; segundo, o se deveria identificar escrita com
cópia de um modelo externo; e, por fim, o se deveria identificar avanços tanto na
leitura como na escrita com avanços no decifrado e na exatidão da cópia gráfica. Ao
copiar e decifrar, a criança não teria oportunidades de testar suas hipóteses sobre o
65
Ferreiro e Teberosky (2008) postularam cinco níveis evolutivos em relação à aprendizagem da escrita
pela criança. Indico, a seguir, os níveis postulados pelas autoras: Nível 1: escrever seria reproduzir os
traços típicos da escrita, os quais a criança identificaria como uma forma básica para escrever; Nível 2:
seriam agregadas novas hipóteses sobre a escrita, como a ideia de que para poder ler coisas diferentes
deve haver uma diferença objetiva nas escritas, o que faria a criança investir no desenvolvimento dos seus
grafismos, aproximando-os das letras. A criança, então, poderia passar a escrever com uma quantidade
mínima de caracteres, assim como procurando variar os caracteres utilizados; Nível 3: hipótese silábica.
Esse nível seria marcado pela tentativa de atribuir um valor sonoro a cada uma das letras que compõem
uma escrita: cada letra valeria por uma sílaba, sendo que as letras poderiam ou não ser utilizadas com um
valor sonoro estável; Nível 4: hipótese silábico-alfabética. Marcado pelo conflito entre a hipótese silábica
e a exigência de uma quantidade mínima de caracteres, o que geraria a necessidade de fazer uma análise
da palavra que fosse além da sílaba, culminando no vel seguinte de aprendizagem, quando a criança
abandonaria a hipótese silábica; Nível 5: hipótese alfabética. A escrita alfabética constituiria o final dessa
evolução. Nesse último nível, a criança compreenderia que cada um dos caracteres da escrita
corresponderia a valores sonoros menores que a sílaba. A partir de então, a criança passaria a se defrontar
com problemas referentes à ortografia. Convém assinalar ainda que, anos após a publicação da pesquisa,
conforme explicitado por Grossi (2008), Ferreiro e Teberosky teriam excluído a hipótese silábico-
alfabética como um dos níveis, que a oscilação entre duas hipóteses corresponderia a um conflito entre
duas estruturas diferentes e não a uma nova estrutura cognitiva.
103
funcionamento da língua escrita e de formular outras que a auxiliassem a avançar na
compreensão do código alfabético. Reconhecer os traçados das crianças como tentativas
de escrita, postulado pelas autoras, desestabilizou a hegemonia das atividades
classificadas como preparatórias à alfabetização. As práticas de ensino da escrita
também passaram em revista pelo campo pedagógico, especialmente no Brasil, onde a
pesquisa de Ferreiro e Teberosky teve mais repercussão do que em qualquer outro lugar,
mais, até mesmo, do que na Argentina e na Espanha, países de origem das autoras.
Para tamanha receptividade dessa obra na área da educação no Brasil, deve ser
considerado o trabalho de questionamento das práticas pedagógicas em relação à escrita
realizado por Paulo Freire
66
, que já vinha, mais de duas décadas antes da publicação
da Psicogênese, destacando que a alfabetização deveria trabalhar, inicialmente, com
palavras de um universo vocabular que mantivesse relações imediatas com vivências
dos alunos e que pudessem se transformar em temas geradores de questionamento da
realidade vivida. Ao enfatizar a exploração do sentido que a escrita pode trazer ao aluno
em fase de alfabetização, Freire, como já vinham fazendo os teóricos da Escola Nova,
critica atividades mecânicas, como o caso da cópia, que para ele funcionariam como
práticas de alienação da realidade. Em 1981, Freire profere a palestra, mais tarde
publicada com mais dois artigos no livro A importância do ato de ler, em que
desenvolve o conceito de palavramundo, convocando os educadores a pensarem que
a leitura do mundo precede a leitura da palavra, daí que a posterior leitura
desta não possa prescindir da continuidade da leitura daquele. Linguagem e
realidade se prendem dinamicamente. A compreensão do texto a ser
alcançada por sua leitura crítica implica a percepção das relações entre o
texto e o contexto (id., 1997, p. 11).
66
Por um viés marxista, Freire via a alfabetização como uma forma de acesso a um capital cultural que
permitiria aos alunos questionar uma realidade de opressão. A alfabetização seria um meio de sair da
consciência ingênua e desenvolver a consciência crítica. No entanto, como afirma Street (2009, p. 89), “a
noção de conscientização’ parece implicar que alguns têm e que a leva [sic] para aqueles que não a
possuem”. Tal visão se torna problemática se pensarmos que não há uma realidade estável e mais
verdadeira que outra; não entra em jogo pensar sobre uma suposta realidade do mundo simplesmente
porque o que interessa é o sentido que damos para as coisas que estão no mundo; e podemos dar
sentido por meio da linguagem. [...] Então, isso que dizemos ser a realidade do mundo que estaria fora
de nós e à qual se teria acesso graças ao correto uso de nossa racionalidade – não passa de uma
construção do nosso pensamento. E essa construção é feita pela linguagem” (VEIGA-NETO, 1996b, p.
168). Além disso, caberiam outros questionamentos quanto a tal forma de conceitualização da
aprendizagem da escrita, começando pelos conceitos de cultura, poder e verdade que podem ser vistos em
funcionamento na obra de Freire e que são revirados teoricamente pelas perspectivas às quais esta
Dissertação se afina. No entanto, limito-me aqui a considerar alguns efeitos de verdade que as teorizações
do referido autor angariaram no campo da educação ao falar sobre alfabetização e, consequentemente,
sobre a aprendizagem da escrita.
104
Ao situar como parte fundamental da alfabetização a relação que o professor
deveria proporcionar ao aluno entre “ler o mundo” e “ler a palavra”, e vice-versa, Freire
anos antes da circulação dos discursos da Psicogênese já procurava interditar as práticas
de ensino da escrita pautadas na cópia. A conjunção dessas forças discursivas, com todo
o movimento já iniciado pela Escola Nova no século XX, produzirá a interdição – não o
apagamento, deve ser ressaltado no âmbito dos discursos da associação entre cópia e
ensino da escrita como uma prática válida e eficaz a ser realizada na escola. A
caligrafia, geralmente praticada como cópia de modelos escritos, é afetada por esses
discursos. É notável que, por exemplo, no volume de Língua Portuguesa dos
Parâmetros Curriculares Nacionais, voltado para as Séries Iniciais do Ensino
Fundamental, e publicado em 1997, não seja mencionada em nenhum momento a
prática da caligrafia. Sobre o ensino do traçado das letras, também não há informações.
Também deve ser mencionado que, a partir dos estudos de Ferreiro e Teberosky
sobre as hipóteses de escrita formuladas pelas crianças, disseminou-se a ideia de que o
uso de letras soltas (de fôrma ou script) no início da alfabetização seria ideal, tendo em
vista que a criança utilizaria entre seus critérios de raciocínio sobre a escrita a
quantidade e a variedade de caracteres grafados ao escrever. Com o uso da escrita
cursiva, o raciocínio sobre a quantidade de caracteres escritos poderia ficar
comprometido pela emenda entre as letras, como aconselha a especialista Cristiane
Pelissari, ouvida pela Revista Nova Escola em novembro de 2008, a partir da pergunta
“Por que as crianças devem escrever com letra de fôrma para depois passar para a letra
cursiva?”:
Esta escolha está relacionada ao processo de construção das hipóteses da
escrita. Durante a alfabetização inicial, os pequenos trabalham pensando
quais e quantas letras são necessárias para escrever as palavras. As letras de
fôrma maiúsculas são as ideais para essa tarefa, já que são caracteres isolados
e com traçado simples - diferentemente das cursivas, emendadas umas às
outras. O aprendizado das chamadas "letras de mão" deve ser trabalhado com
crianças alfabéticas, que têm a lógica do sistema de escrita organizada
(PELISSARI, 2008, p. 24).
Pelo exposto, a alfabetização deveria se reinventar a partir da década de 1980, no
Brasil, a partir das turbulências teóricas que culminaram durante esse período histórico.
Durante esses períodos em que as aparentes homogeneidades discursivas em um campo
de saber encontram-se tumultuadas, Senellart (2006, p. 48) nos explica que “os fluxos
discursivos perdem sua individualidade, decompõem-se e misturam-se entre si”,
105
procurando outros rearranjos que produzirão novas linhas de inclinação, as quais, por
sua vez, conduzirão a outros efeitos de verdade.
Para terminar esta seção, ressalto que uma situação interessante foi se
desenhando na segunda metade do século XX, estendendo-se em muitas escolas
brasileiras durante o século XXI: atividades de caligrafia, seja em cadernos ou livros,
serão frequentemente vistas recomendadas pelos professores como tarefa para ser
realizada em casa, como “tema” ou “reforço”, como se diz popularmente. Aperfeiçoar o
traçado das letras, atividade que demanda tempo e paciência, parece encaixar-se cada
vez menos no concorrido tempo escolar, que assume um número maior de atividades ao
longo dos anos.
Situo os acontecimentos narrados nesta seção como basilares para que se possa
empreender uma hipótese de leitura, entre outras possíveis, sobre como foi possível hoje
a caligrafia “migrar” para os livros didáticos e ser utilizada como uma prática
complementar ao ensino da escrita e, muitas vezes, não sendo recomendada a todos os
alunos, mas apenas às crianças que escreveriam fora de um padrão estético deslizante
historicamente, cujo exame é realizado pela professora.
106
PARTE III
3 NORMALIZANDO AS ESCRITAS INFANTIS:
MAPEANDO A GRAMÁTICA DOS LIVROS DE
CALIGRAFIA ESCOLAR
É preciso pegar as coisas para extrair delas as visibilidades. E a visibilidade de uma
época é o regime de luz, e as cintilações, os reflexos, os clarões que se produzem no
contato da luz com as coisas (DELEUZE, 1992, p. 120).
107
3.1 FABRICANDO ESCRITAS LEGÍVEIS E ÁGEIS, NÃO NECESSARIAMENTE
BELAS
Cada vez mais me parece que a formação dos discursos e a genealogia do saber devem ser analisadas a
partir não dos tipos de consciência, das modalidades de percepção ou das formas de ideologia,
mas das táticas e estratégias de poder
(FOUCAULT, 1995a, p. 164-165.).
etáforas que remetam à guerra ou à luta recorrentemente podem
ser vistas na obra de Foucault. Como bem destaca Castro (2009), é
uma visão de poder como luta e enfrentamento que leva o autor a
operar largamente com conceitos como estratégia e tática, como também nos mostra a
passagem da entrevista que serviu de epígrafe a esta seção.
Foucault (1995b, p. 247) afirma que o termo estratégia é geralmente utilizado
em três acepções: primeiramente, como “a escolha dos meios empregados para se
chegar a um fim”; em uma segunda acepção, como o modo em que, em um jogo, age-se
“em função daquilo que [se] pensa dever ser a ação dos outros, e daquilo que [se]
acredita que os outros pensarão ser [a sua ação]”; e por fim, como “o conjunto de
procedimentos utilizados em um confronto para privar o adversário dos seus meios de
combate e reduzi-lo a renunciar à luta”. Esses três sentidos apontariam para uma ideia
de estratégia como uma “escolha das soluções vencedoras”, o que suporia um “conjunto
de meios operados para fazer funcionar ou para manter um dispositivo de poder” (id.,
ibid., p. 248).
Em relação às táticas, Foucault (1995a) afirma que elas são inventadas e
organizadas a partir de urgências particulares. Em seus escritos, o autor frequentemente
relaciona as táticas às ações disciplinares; para ele (ibid.), as táticas agiriam para
realizar a combinação de forças necessárias à produção das aptidões. Em função disso,
as ações disciplinares e táticas prescreveriam manobras e proporiam exercícios. Mais
especificamente, podemos falar em tática como “a arte de construir, com os corpos
localizados, atividades codificadas e as aptidões formadas, aparelhos em que o produto
das diferentes forças se encontra majorado por sua combinação calculada”, sendo assim
“a forma mais elevada da prática disciplinar” (id., ibid., p. 141).
E neste trabalho, os conceitos de estratégia e tática me interessam na medida em
que possibilitam pensar como um aparato
estratégico, como os livros didáticos para as
práticas caligráficas escolares, é organizado para produzir o sujeito infantil que escreve
M
108
legível e agilmente. Os livros colocam em funcionamento uma série de táticas que
operam em conjunto; entre elas, destaquei três que considerei com bastante visibilidade
para análise nesta parte da pesquisa. Antes de chegarmos a elas, alguns esclarecimentos
aos leitores tornam-se necessários.
No projeto que antecedeu a feitura final desta pesquisa, mapeei um conjunto de
17 coleções de livros didáticos de caligrafia à venda em uma grande rede de livrarias
nacional, até junho de 2009, por meio de seu catálogo digital. As coleções pertenciam a
nove editoras. Se durante as análises preliminares que envolveram a escrita do projeto
comprei duas das coleções mais vendidas
67
pelo portal na internet da livraria consultada,
além de outros exemplares avulsos de outras coleções em lojas de livros usados, para o
empreendimento final da pesquisa entrei em contato com as editoras Ática, FTD e
Scipione, líderes no mercado editorial, para negociar a aquisição das coleções dos livros
de caligrafia voltados para os professores, de forma que fosse possível ter acesso às
instruções
68
que são fornecidas para o uso dos livros. Os livros que contêm tais
instruções são disponibilizados para análise por parte dos professores, sendo geralmente
distribuídos às escolas pelas editoras e, portanto, não comercializáveis. As referidas
editoras atenderam-me prontamente, prometendo a disponibilização das coleções por
meio de seus representantes locais; no entanto, na data marcada, a editora FTD afirmou
não possuir mais coleções para serem distribuídas. Dessa forma, limitei-me à análise de
três coleções de livros de caligrafia com instruções aos professores, sendo duas
disponibilizadas pela editora Scipione e uma pela editora Ática, e mais uma coleção da
editora FTD que adquiri à época da escrita do projeto, esta última sem o manual para
uso do professor
69
. Considerei relevante não descartar essa última coleção para que
fosse possível ter um corpus mais numeroso para visibilizar as regularidades e
dispersões nos saberes sobre a escrita e a caligrafia, assim como para ver as ticas
colocadas em funcionamento. As quatro coleções somam um total de 19 volumes de
67
Dados fornecidos pela Livraria Saraiva. A propósito, informo que as duas coleções adquiridas à época
foram No capricho (CARPANEDA; BRAGANÇA, 2005) e Assim se aprende caligrafia (RANDO;
SANTOS, 2006).
68
As instruções aos professores geralmente localizam-se em um apêndice ao final de cada livro,
referenciadas como “manual do professor”, na coleção da editora Ática, ou “assessoria pedagógica”, nas
coleções da editora Scipione. Adiante, farei referência a tais instruções pelo termo “manual do professor”,
mais corrente nas escolas por seu amplo uso, advindo da época em que tais instruções costumavam vir
organizadas em um livro à parte. Também esclareço que as instruções são as mesmas para todos os
volumes de cada coleção.
69
Sem o manual da coleção No capricho, procurei utilizar também como fonte a descrição dos livros feita
pela editora FTD em seu site.
109
caligrafia, como especifico no quadro abaixo, e são recomendadas para uso entre o e
o 5º ano do Ensino Fundamental.
Nome da coleção Autores Editora
Ano da
publicação
Nº de
livros
Nº de
págs. por
volume
70
Assim se aprende
caligrafia
Lizette Rando e
Sonia Aparecida
dos Santos
Ática
2007
5
70
Marcha criança
Mª Teresa Marsico
e Armando
Carvalho Neto
Scipione
2004
4
120
No capricho
Isabella Carpaneda
e Angiolina
Bragança
FTD
2005
5
64
Ziguezague
sem autor
especificado
Scipione 2006 5 62
Quadro 1: Livros didáticos para ensino da caligrafia analisados.
70
O número de páginas por volume de cada coleção costuma ser o mesmo. o estão incluídas na
contagem as páginas do manual de instruções que acompanha cada livro.
110
Fig. 27: As quatro coleções analisadas (a partir de cima, em sentido horário): Assim se aprende caligrafia,
Marcha criança, No capricho e Ziguezague. A figura mostra o primeiro volume de cada coleção.
Feitas as devidas considerações sobre os livros didáticos selecionados, considero
necessário situar que as análises que terão espaço nesta parte da Dissertação aqui se
encontram por questões didáticas, tendo em vista que vêm sendo tecidas durante todo o
período da pesquisa. O que antecedeu esta parte trata-se de movimentos teóricos que
considerei necessários não apenas à leitura que fiz das táticas que analisarei a seguir
mas também como forma de guiar os leitores pelos caminhos que foram sendo
inventados para falar da caligrafia escolar como um conjunto de saberes que operam por
meio de estratégias e táticas.
111
Neste ponto, retomo algo que antecipei no início desta seção: por que digo que
os livros funcionam como um aparato estratégico para educar o sujeito para produzir
uma escrita legível e ágil? Considerando a discussão da parte II deste trabalho, em que
foi abordado o deslocamento da escrita ornamental nas escolas em prol da prática mais
instrumental, é necessário lembrar que o que as disciplinas farão cada vez mais a partir
do século XVIII nas instituições é a fabricação do indivíduo apto para determinadas
tarefas; apto no sentido de ser capaz de utilizar o seu corpo e, consequentemente, os
seus gestos de forma econômica, o que significa aprender os melhores gestos para cada
atividade, em tempo e espaço adequados. É de um corpo dócil que nos fala Foucault
(2008c, p. 118), na medida em que “pode ser submetido, [...] pode ser transformado e
aperfeiçoado”. O corpo ao ingressar na escola encontra-se submetido a um conjunto de
interdições e autorizações que ordenam o seu campo de possibilidades. Em instituições
disciplinares como essa, “as relações de poder têm alcance imediato sobre ele [o corpo];
elas o investem, o marcam, o dirigem, o supliciam, sujeitam-no a trabalhos, obrigam-no
a cerimônias, exigem-lhe sinais” (id., ibid., p. 28).
Para atuar sobre o corpo, as disciplinas lançam mão de procedimentos
minuciosos de gestão dos usos do tempo e do espaço, de estabelecimento de séries
sucessivas e de composição das forças com vistas ao alcance do que é tido por eficiente
para cada função. Assim como Foucault descreve em Vigiar e punir a fabricação do
corpo do soldado, o ajuste de sua postura ao fuzil, também é possível pensar na
fabricação da postura daquele que escreve, o ajuste do corpo à cadeira, à mesa, ao
suporte de escrita, à pena, ao lápis, à caneta. Trata-se de pensar em uma articulação
entre corpo-objeto, tendo em vista que “a disciplina define cada uma das relações que o
corpo deve manter com o objeto que manipula. Ela estabelece cuidadosa engrenagem
entre um e outro” (id., ibid., p. 130). Além de lapidar os gestos imprecisos, faz-se
necessário colocá-los na melhor relação com “a atitude global do corpo” (id., ibid.) para
que haja um bom emprego do tempo. Nos manuais dos livros de caligrafia analisados,
por exemplo, a agilidade e a coordenação dos movimentos aparecem em destaque como
objetivos a serem atingidos:
Desenvolver na criança o traçado contínuo das letras, possibilitando maior agilidade
ao escrever (Ziguezague, 2008, p. 5)
71
;
71
Para tornar a leitura mais direta, doravante indicarei a proveniência dos excertos destacados para
análise privilegiando a referência ao nome das coleções.
112
Desenvolver na criança a legibilidade e a agilidade ao traçar as letras, promovendo o
domínio dos movimentos necessários (id.; ibid.);
O aluno escreverá com mais rapidez e terá uma escrita legível (No capricho, 2005a,
s/p)
A escrita é um instrumento pessoal, uma forma particular de comunicação que a
criança utiliza no seu dia-a-dia. Para ser eficiente, é preciso que se escreva de forma
clara e legível, dominando o traçado das letras com certa agilidade. A habilidade da
escrita parte, principalmente, da aquisição e do desenvolvimento das percepções e
coordenações. A criança tem de ser estimulada a usar as mãos como um artista: os
movimentos coordenados levam à perfeição da obra ou à escrita com a grafia correta
(Marcha criança, 2004a, p. 2).
Legibilidade e clareza no século XX estarão crescentemente mais associadas ao
ensino da escrita escolar do que a referência à beleza, como já visto na parte II. Vidal
(1998), por exemplo, afirma que se produziu outro padrão estético para a escrita nas
escolas, urdido no enlace entre traçado disciplinado e conteúdo racionalizado. Nas
primeiras décadas do século XX é possível ver como a legibilidade estava mais em
pauta do que a produção de escritas infantis belas “belas”, nesse caso, no sentido mais
ornamental do que instrumental. Na rie de cadernos Caligrafia vertical, de Francisco
Viana, publicada em 1908 e comercializada até 1997, nas instruções presentes na
contracapa lê-se o seguinte:
A caligrafia vertical apresenta, sôbre outras formas de escritas, vantagens
incontestáveis: uniformidade, por haver uma única posição; clareza,
porquanto a posição das letras não origem a confusões; facilidade, pois
fica tudo reportado a uma direção fixa que é a perpendicular à pauta. Porém,
a sua principal qualidade está em ser mais legível, o que pode ser facilmente
constatado por uma comparação com as demais formas de escrita (VIANA,
1956, s/p). [grifos do autor]
Viana (ibid.) também destaca que o feitio e o talhe das letras devem ser alvo de correção
por parte dos professores para que a letra da criança se torne legível. No entanto, nas
últimas séries de exercícios da coleção de cadernos, quando fosse possível reparar que a
criança não se distanciava muito do modelo caligráfico apresentado pelo autor, Viana
(ibid., s/p) recomenda que o professor não exija perfeição na execução da tarefa, que,
de outra forma, a criança estaria “a desenhar e não a escrever”.
Não à toa foi possível encontrar tais cadernos à venda há tão pouco tempo. Além
de privilegiar legibilidade, uniformidade e clareza na execução da escrita, que também
aparecem entre os critérios dos livros mais recentes, a fonte cursiva em traçado vertical
é a mesma que encontrei sendo utilizada como modelo em todos os livros de caligrafia
113
comercializados no Brasil que tive contato, incluindo os que são analisados nesta
pesquisa. No entanto, é preciso marcar que um maior espaço de invenção hoje se quer
permitir aos sujeitos em relação às suas escritas desde a infância. No manual da coleção
Assim se aprende caligrafia (2007a, p. 2), por exemplo, lê-se:
Acreditamos que o objetivo do trabalho com caligrafia não é promover a uniformização
da escrita, tendo como base um modelo único, nem forçar o aluno a ter letra bonita.
Os principais objetivos a serem atingidos com os exercícios de caligrafia são a
legibilidade, a uniformidade do traçado das letras e a apresentação clara e limpa do
texto na página. [...]
Assim, valoriza-se nesta coleção o domínio motor e o domínio do espaço a página
do livro , e não a “letra bonita” ou o traçado da letra segundo este ou aquele modelo.
A nós não importa se o aluno escreve
Importa, sim, que ele escreva de maneira que todos compreendam a sua mensagem.
Em relação aos modelos oferecidos, agora há a fabricação de um gradiente que o
professor deve ter em vista para saber se os seus alunos precisam de intervenções que
possam ir além do que os livros de caligrafia podem oferecer como proposta pedagógica
e terapêutica.
A coleção No capricho mostra às crianças em diversos espaços dos seus
diferentes volumes que é a letra legível que deve ser desenvolvida por meio do treino
oferecido pelos exercícios caligráficos. Isso pode ser percebido, por exemplo, em uma
nota do volume C, mostrada na figura seguinte (fig. 28). No topo da página, abrindo um
exercício de revisão do alfabeto em letra cursiva, lê-se a seguinte instrução (No
capricho, 2005c, p. 12):
Fazer letra bem legível não é nenhum bicho-papão. Basta treinar um pouquinho.
Aproveite a revisão.
114
Fig. 28: Instrução sobre letra legível no volume C da coleção No capricho (2005c, p. 12).
Ainda vale a pena mostrar outro recurso utilizado por No capricho na primeira
página do volume E, com vistas a fazer as crianças avaliarem suas próprias escritas em
relação a padrões sobre o que pode ser considerado legível e ilegível. Na figura 29,
mostrada a seguir, vemos as seguintes instruções:
Você ouviu falar de pessoas que tomaram remédio errado porque o farmacêutico
não entendeu a letra do médico?
ouviu algum professor reclamar que não conseguiu ler o que o aluno escreveu
devido ao traçado de sua letra?
Leia o texto abaixo. [Cf.: fig. 29]
Que tal, deu pra entender?
Agora leia o mesmo texto escrito com letra bem traçada e observe como a leitura
torna-se mais agradável, fácil e rápida. [Cf.: fig. 29]
É importante fazer letra legível para que o leitor consiga entender o que foi escrito.
Pelo modo como a lição é apresentada às crianças, é possível perceber que enquanto a
escrita considerada ilegível es para “tomar remédio errado” e para reclamação do
professor”, a escrita legível do bilhete que pode ser conferido na figura a seguir muito
próxima ao modelo de fonte cursiva oferecido pelos livros dessa coleção está para
“leitura agradável, fácil e rápida”.
115
Fig. 29: Padrões para classificação de grafias legíveis e ilegíveis em lição da coleção No capricho,
volume E (2005e, p. 4).
Deseja-se que as escritas infantis sejam especialmente legíveis e ágeis, foi o que
discutimos até aqui. Mas é preciso colocar outra questão: que táticas ou mecanismos são
colocados em funcionamento nos livros para produzir sujeitos infantis que possam ir
adquirindo determinadas aptidões que transformem suas escritas? Além disso, é preciso
rastrear o jogo de verdades que faz com que essas táticas funcionem. Na esteira dessa
problemática, o quadro a seguir foi sendo construído por mim ao longo da análise dos
livros de caligrafia para que fosse possível visualizar melhor os elementos discursivos
que se repetiam na apresentação dos livros, assim como nas instruções de trabalho
apresentadas aos professores nos manuais. Reproduzo o quadro a seguir a fim de
auxiliar os leitores a acompanhar as séries de elementos discursivos que foi possível
agrupar por sua insistência em “falar” sobre as práticas da caligrafia escolar.
116
ASSIM SE APRENDE
CALIGRAFIA
MARCHA
CRIANÇA
NO
CAPRICHO
ZIGUEZAGUE
Clareza Clareza Clareza
Agilidade Agilidade Rapidez Agilidade
Legibilidade Legibilidade Legibilidade Legibilidade
Coordenação/domínio
motor
Movimentos
coordenados/
coordenação visomotora
Desenvolvimento
motor/
desenvolvimento
muscular
Postura Postura
Ortografia Ortografia Ortografia Ortografia
Expressão Expressão Expressão
Treino Treino Treino
Proporção das letras
Proporção entre as
letras
Domínio do espaço Domínio do espaço
Lúdico Lúdico Lúdico Lúdico
Limpeza
Percepção visual
Traçar com ritmo Traçado contínuo
Liberdade Liberdade
Força (ao segurar o lápis)
Esquema corporal
Participação ativa
Universo da criança
Traçado correto
Lateralidade
Quadro 2: Elementos discursivos que se repetem em cada manual do professor (ou na descrição da
coleção pela editora, no caso de No capricho).
O quadro deve ser entendido como um operador didático. Não é possível
encontrar tais elementos discursivos funcionando isoladamente; ao contrário, eles
117
funcionam coordenadamente em diferentes enunciados, atravessando os discursos
presentes nos livros. E é necessário salientar que não interessam apenas as instruções
que falam sobre a proposta de cada livro; todo o jogo de exercícios que se propõe, suas
sequências não aleatórias e todos os tipos de recurso que se lança mão para disciplinar e
normalizar as escritas nos mostram a imbricada relação entre discursivo e não-
discursivo, tendo em vista que, como nos diz Foucault (2008a), as práticas discursivas
tomam corpo por meio de técnicas e efeitos.
O quadro permite aproximar alguns elementos dos discursos que circulam nos
livros didáticos de caligrafia e visibilizar uma certa ordem no que se refere ao domínio
de práticas da caligrafia escolar. Elementos que encontram bastante espaço de
enunciação em um livro, mas não em outros, também receberam a minha atenção na
medida em que alguns me pareceram presentes também nos outros livros, embora não
enunciados, enquanto outros me pareceram vestígios de formas discursivas que por
muito tempo ocuparam um destacado espaço de verdade para falar da caligrafia escolar.
Nesse último caso, é importante considerar que os discursos não somem simplesmente,
mas compõem arquivos que podem ser permanentemente ativados; o caso da referência
à “força ao segurar o lápis”, em Assim se aprende caligrafia, como critério sugerido aos
professores para que observem e orientem os alunos, permite visibilizar uma sugestão
que em alguns livros não parece importante embora não seja possível precisar se tal
item aparece no manual de No capricho –, mas que teve presença constante em
manuais de caligrafia escolar há não muitas décadas.
Como uma gramática, no sentido de um domínio em que funciona um
determinado conjunto de regras, os livros agem como gerenciadores das escritas infantis
que se aliam às possíveis ações docente e discente. E para entender como os discursos
encontrados no material analisado trabalham para gerir a escrita que se quer transformar
em ágil e legível, conforme anunciado pelos livros, debrucei-me especialmente sobre
três táticas
72
principais encontradas em funcionamento, as quais foram nomeadas da
seguinte forma: tática 1: colocando em funcionamento princípios da psicomotricidade;
tática 2: a organização dos exercícios em séries de complexidade crescente; tática 3:
caligrafar e brincar.
72
A ordenação numerada das táticas funciona como operador didático, não se tratando de relações de
precedência ou importância entre elas que eu pretenda estabelecer.
118
3.2 TÁTICA 1: COLOCANDO EM FUNCIONAMENTO PRINCÍPIOS DA
PSICOMOTRICIDADE
ão encontrei nada melhor do que a cena descrita abaixo para trazer a
esta pesquisa o que se diz sobre a área de atuação da
psicomotricidade:
Observemos uma criança de dois anos que brinca com um jogo de ovos que
se encaixam.
A criança segura o ovo e sente-o com as mãos, com a boca, que esse objeto é
duro, liso e de forma arredondada.
A criança olha o ovo e a visão confirma as impressões teis: não existem
pontas nem arestas; o objeto não muda de forma quando tocado; é colorido.
A criança joga-o no chão: ouve o barulho da queda do objeto, o vê rolar.
A criança apanha o ovo, gira-o em todos os sentidos... eis que o ovo se abre
e um ovo menor sai de dentro... Aproxima as duas partes e quase prende os
dedos... Algumas manipulações levaram-na a descobrir que o ovo é composto
de duas partes que ela pode aproximar ou afastar. [...]
Dessa observação podemos concluir que a partir de uma experiência simples
de origem motora a criança vai receber informações que classificará
paulatinamente em um conjunto de indicações similares percebidas em outras
circunstâncias. Assim adquirirá uma noção clara, por exemplo de forma
“arredondada”, de “dentro” ou “pequeno”.
Portanto a função motora, o desenvolvimento intelectual e o desenvolvimento
afetivo estão intimamente ligados na criança: a psicomotricidade quer
justamente destacar a relação existente entre a motricidade, a mente e a
afetividade e facilitar a abordagem global da criança por meio de uma
técnica (DE MEUR; STAES, 1991, p. 5). [grifos dos autores]
O que foi dito acima costuma ser familiar aos ouvidos dos pedagogos,
especialmente pelas conexões com o trabalho de Jean Piaget sobre os modos de
aprendizagem da criança pela exploração do ambiente e suas relações com o
desenvolvimento afetivo. No entanto, tal interface da psicomotricidade com a pedagogia
trata-se de um enfoque mais recente dessa área surgida no seio das pesquisas
neuropsiquiátricas no início do século XX. Ao médico francês Ernest Dupré são
atribuídas as primeiras pesquisas estabelecendo um paralelismo entre atividades
motoras e psíquicas, que depois incorporarão contribuições de, entre outros, Henri
Wallon, médico e psicólogo, e Julian de Ajuriaguerra, médico psiquiatra. Aos últimos
são atribuídos os movimentos que estabeleceram aproximações entre a psicomotricidade
e a pedagogia, procurando delimitá-la como uma área à parte da medicina, com
especificidades próprias.
Negrine (2002) afirma que dois enfoques podem ser observados na história da
psicomotricidade como um campo de saberes: um primeiro enfoque baseado na
N
119
psicomotricidade funcional, surgida com Dupré, e um segundo baseado no que vem
sendo designado como psicomotricidade relacional. A psicomotricidade relacional teria
surgido na década de 1960 pelo trabalho de André Lapierre, inspirado nas teorias de
Wallon e Ajuriaguerra. Para ele, o enfoque deveria ser menos terapêutico e mais
educativo e profilático. Em contraste aos métodos diretivos propostos pela escola
funcionalista da psicomotricidade, pautados em coleções de exercícios para o
treinamento de determinados movimentos micro e macro musculares, a
psicomotricidade relacional propôs, especialmente para as crianças, o uso de elementos
pedagógicos designados como não-diretivos, como a brincadeira; nas palavras de
Negrine (ibid., p. 63-64), “utiliza-se a ação do brincar como elemento motivador para
provocar a exteriorização corporal, permitindo, dessa forma, movimentos, ões e
interações diversificadas”. No entanto, para ambos os enfoques, existirá sempre uma
inter-relação de fatores internos (maturação) e externos (aprendizagem) no processo de
desenvolvimento da motricidade humana desde o nascimento” (id., ibid., p. 65).
Nesta seção, importa analisar como esses saberes da psicomotricidade, que
comungam elementos discursivos da medicina, da psicologia e da pedagogia, formam
um sistema que sustentação a mecanismos como os exercícios que são propostos nos
livros de caligrafia. Para esse fim, também utilizarei como fonte de referências o manual
de psicomotricidade de De Meur e Staes (1991), intitulado Psicomotricidade: educação
e reeducação, publicado originalmente em francês no início da década de 1980. Para a
escolha desse material, levei em consideração sua grande circulação na área da
educação, que o referido manual consta sempre como referência primeira em
publicações que relacionam psicomotricidade e educação, sendo também citado no
manual do professor de uma das coleções que analisei Marcha criança.
Coloco aqui visibilidade sobre o vocabulário que relaciona corpo, alma e escrita
fornecido pela psicomotricidade e que é ativado pelos livros. Elementos relacionados no
quadro da seção anterior nos fornecem uma pequena amostra desse vocabulário,
como ao falar-se em esquema corporal, domínio do espaço, coordenação visomotora e
domínio motor, vocabulário esse que vai aparecer articulado aos discursos que postulam
o brincar como linguagem inerente à criança e como forma de ação pedagógica não-
diretiva. No entanto, é possível perceber que não uma desativação dos discursos da
psicomotricidade funcionalista nos livros, mas uma convivência entre as correntes
120
discursivas
73
na medida em que, ao mesmo tempo em que agregam sugestões aos
professores para que realizem atividades lúdicas com as crianças, como brincadeiras de
roda que auxiliem no desenvolvimento motor, também se fala em treino de habilidades
necessárias à escrita legível e ágil por meio de coleções de exercícios sistemáticos.
Segundo De Meur e Staes (1991), haveria cinco elementos básicos da
psicomotricidade infantil que deveriam ser observados e bem desenvolvidos pela ação
pedagógica: 1) esquema corporal; 2) lateralidade; 3) estruturação espacial; 4) orientação
temporal; 5) pré-escrita. A coordenação dessas capacidades incidiria sobre o
desenvolvimento saudável da personalidade da criança, tendo em vista que esta obteria
mais sucessos nas atividades cotidianas, escolares ou não. Vejamos como esses cinco
elementos
74
considerados básicos pela psicomotricidade aparecem nos livros de
caligrafia.
Primeiro, quanto à noção de esquema corporal. Conhecer seu corpo, suas partes
e suas funções e possibilidades comporia o que se espera da criança em relação à sua
percepção como ser dotado de um corpo. De Meur e Staes (ibid., p. 10) dizem que,
“após a percepção global do corpo, vem a etapa da tomada de consciência de cada
segmento corporal”. O esquema corporal daria sustentação às noções espaço-temporais,
que, conhecendo-se melhor e, em vista disso, coordenando com mais precisão seus
movimentos, a criança perceberia mais produtivamente de que forma situar-se em
relação ao espaço e tempo ocupados.
Para o desenvolvimento do esquema corporal, diversos exercícios motores e
percepto-motores são sugeridos, como nos mostra o manual de psicomotricidade de De
Meur e Staes (ibid.): reproduzir uma figura humana, nomear as partes do corpo,
reproduzir determinadas posições corporais, associar objetos a partes do corpo, prever o
gesto adequado a cada circunstância, assim como associar determinados movimentos ao
uso de materiais, são algumas das atividades sugeridas pelos autores para desenvolver
os grandes músculos ou motricidade ampla, assim como os pequenos músculos ou
73
Saliento que, neste trabalho, exponho a concepção teórica circulante acerca das escolas funcionalista e
relacional da psicomotricidade sem aceitar a distinção que fazem entre prática terapêutica, como resultado
da ação da primeira escola, e prática educativa ou reeducativa, como ão da segunda. Como
argumentei na parte I, partilho da exposição de Larrosa (1994) acerca das semelhanças entre as práticas
pedagógicas e terapêuticas; não entendo como práticas redutíveis umas às outras, mas como semelhantes
no que tange a ação de trazer à norma. Dessa forma, não compartilho aqui com a ideia de que a prática
terapêutica ou educativa seja privilégio da ação de um enfoque sobre o outro. Se falarmos em termos de
ênfases, a proposição me parece mais aceitável.
74
Destacarei em itálico à medida que for abordando tais elementos da psicomotricidade.
121
motricidade fina, como no caso dos movimentos coordenados da mão e dos dedos
necessários à escrita. Quanto a esse aspecto, a coleção Ziguezague (2006a, p. 3-4) tece a
seguinte orientação:
Para aprimorar o desenvolvimento psicomotor dos grandes músculos – braços, pernas
e tronco -, que deve preceder o dos pequenos músculos, podem-se propor aos alunos
jogos e brincadeiras ao ar livre, como barra-manteiga, coelho na toca e queimada.
Podem ser propostas, também, atividades de recreação no pátio da escola, como
pular corda [...]. Essas atividades visam desenvolver toda a musculatura do corpo.
Com o objetivo de propiciar o desenvolvimento motor dos pequenos músculos das
mãos, a fim de melhorar a agilidade, a coordenação dos movimentos e a coordenação
visomotora, podem-se promover atividades de modelagem (com massinha de modelar
ou argila), recortes (com ou sem tesoura), pintura (com os dedos ou com pincel) e
desenhos (com lápis de cor, giz de cera ou canetinhas). A realização dessas
atividades, de maneira lúdica, proporciona o desenvolvimento de movimentos precisos
e coordenados.
Como argumentado na parte II, recortar, desenhar e modelar, por exemplo,
vão sendo sugeridos como alternativa para que a criança desenvolva os movimentos
necessários à escrita, no lugar dos exercícios que decompunham as letras em seus
movimentos básicos, como utilizado pela escola por largo tempo no ensino da escrita
pela caligrafia. Brincadeiras ao ar livre o propostas e vistas como auxiliares das
atividades de caligrafia. No entanto, deve ser sublinhado que a percepção do seu próprio
corpo e suas partes já estaria bem desenvolvida até os seis anos de idade, de acordo com
De Meur e Staes (1991), de modo que, no início do Ensino Fundamental, o investimento
deveria incidir mais quanto aos aspectos percepto-motores, como os exercícios de
discriminação visual que propõem que a criança descubra que elementos estão faltando
em uma figura. Abaixo, vemos um exemplo desse tipo de exercício, proposto no
volume 1 da coleção Assim se aprende caligrafia (2007a).
122
Fig. 30: Atividade para desenvolvimento da discriminação visual constante no volume 1 da coleção Assim
se aprende caligrafia (2007a, p. 6).
Em relação à lateralidade, trata-se da percepção dos lados esquerdo e direito do
corpo e da tendência a utilizar um ou outro em relação às mãos, aos pés e aos olhos. O
desenvolvimento da lateralidade da criança envolveria a dominância de um dos lados ou
a dominância cruzada como, por exemplo, em casos em que uma criança desenha ou
escreve com a mão direita, mas chuta com o esquerdo (DE MEUR; STAES, 1991).
O lado dominante executaria as ações com mais rapidez e precisão. Tanto aspectos
neurogenéticos como aspectos sociais, nesse último caso pela promoção de treinos
específicos, estariam envolvidos no desenvolvimento da percepção lateral. No que tange
à escrita, a lateralidade estaria envolvida no desenvolvimento da progressão esquerda-
direita em que se introduz a criança nos sistemas de escrita ocidentais. De Meur e Staes
(ibid.) afirmam ser necessário lançar mão de exercícios que possam desenvolver o
automatismo da progressão esquerda-direita na criança em relação à leitura e à escrita,
como é exemplo a imagem a seguir (fig. 31), da coleção Ziguezague (2006a, p. 6).
123
Fig. 31: Exercício de lateralidade, envolvendo a formação da progressão esquerda-direita, do volume
Alfabetização, da coleção Ziguezague (2006a, p.6). Deve ser sublinhado que os exercícios se prestam a
diferentes finalidades. No exercício acima, por exemplo, além da exploração da progressão esquerda-
direita, percebe-se não o investimento na orientação espacial, quando a criança deverá seguir o traçado
pontilhado com o instrumento de escrita, mas também no refinamento dos movimentos envolvidos no
traçado proposto em sequência pelo exercício.
Ainda sobre o desenvolvimento da lateralidade, apenas uma referência foi
encontrada nos manuais de instrução das coleções. A coleção Marcha criança (2004a,
p. 5) cita De Meur e Staes (1991, p. 8) para falar sobre o assunto:
Uma criança cuja lateralidade não está bem definida encontra problemas de ordem
espacial, não percebe diferença entre seu lado dominante e o outro lado, não distingue
a diferença entre a esquerda e a direita, é incapaz de seguir a direção gráfica (leitura
começando pela esquerda). Igualmente não consegue reconhecer a ordem em um
quadro. Como, nessas condições, poderia ler um quadro com dupla entrada e colocar
corretamente um título ou data em seu caderno?
a estruturação espacial é um problema-chave para a intervenção didática dos
livros de caligrafia, tendo em vista que tanto o esquema corporal e a lateralidade,
abordados anteriormente, costumariam chegar ao Ensino Fundamental em
desenvolvimento avançado. A escrita lida centralmente com a disposição dos caracteres
gráficos em posição, tamanho e espaço adequados. Espaço entre as letras, entre as
124
palavras, entre as linhas são examinados e avaliados pelo professor que ensina a criança
a escrever, assim como a proporção das letras. Nos livros, a criança vai sendo ensinada
a conduzir seus traçados pelo espaço da folha com linhas, distribuindo-os
adequadamente, como é possível inferir também a partir da leitura de alguns objetivos
das coleções analisadas, listados pelas editoras nos manuais:
[Desenvolver] a percepção sobre os diferentes tamanhos e formas das letras
maiúsculas e minúsculas (Ziguezague, 2006a, p. 5);
[Desenvolver] a dinâmica do traçado das letras, com a identificação do começo e do
final de cada uma delas (id., ibid.);
[Desenvolver] a observação da segmentação das palavras, evitando aglutinação (id.,
ibid.);
Manter a proporção entre letras manuscritas maiúsculas e minúsculas (Assim se
aprende caligrafia, 2007a, p. 3);
Escrever palavras e frases de maneira legível e uniforme, dominando o espaço da
página e os movimentos envolvidos na escrita (id., ibid.).
Recorrendo novamente ao manual de De Meur e Staes (1991, p. 13), vemos que
os autores definem estruturação espacial como
a tomada de consciência da situação de seu próprio corpo em um meio
ambiente, isto é, do lugar e da orientação que pode ter em relação às pessoas
e coisas;
– a tomada de consciência da situação das coisas entre si;
a possibilidade, para o sujeito, de organizar-se perante o mundo que o
cerca, de organizar as coisas entre si, de colocá-las em um lugar, de
movimentá-las.
Orientar-se para frente ou para trás, formar filas, levantar ou sentar, orientar os objetos
para um determinado fim, ordenar letras, palavras e frases, por exemplo, são atividades
que exigiriam estruturação espacial. Em relação à escrita, a coleção Marcha criança
(2004a, p. 5) afirma ser necessário um bom desenvolvimento da estruturação espacial da
criança para que ela seja capaz de distinguir corretamente um “b” de um “d”, assim
como um “p” de um “q”. Ter consolidadas as diferenças entre as noções de “para cima”
e para baixo” auxiliaria a criança a perceber as diferenças entre as grafias, por
exemplo, de um “p” e um “b” e de um “n” e um “u”.
Para salientar as diferentes proporções das letras, as coleções Assim se aprende
caligrafia e No capricho utilizam um recurso adicional em relação às outras coleções
analisadas: no primeiro volume, as palavras que aparecem em destaque nas lições que
vão apresentando a grafia do alfabeto às crianças são mostradas com um contorno
125
colorido, o qual destaca a diferença de proporção das hastes ascendentes e descendentes
das letras em relação à porção mediana em que geralmente se concentra a grafia
75
. Essa
porção mediana das letras também aparece destacada por uma linha em cor diferente
das demais em todos os volumes das coleções analisadas, sendo Ziguezague exceção
nesse sentido. As linhas em destaque oferecem um apoio visual para que a criança
atenha seus traçados a tal eixo, escapando apenas para grafar as hastes. A figura abaixo
mostra o emprego dos dois recursos mencionados: o contorno da proporção das letras
em uma palavra e o destaque das linhas centrais.
Fig. 32: Exemplo de exercício do volume A da coleção No capricho (2005a, p. 15). No quadrante
superior direito, a coleção destaca uma palavra que inicie com a letra ao qual o exercício se refere com
um contorno que salienta as hastes superiores e inferiores das letras. Na imagem, também é visível a
marcação destacada das linhas (em amarelo claro) em que devem ser grafadas as porções medianas das
letras.
O foco em determinados elementos em um conjunto também é uma aptidão
considerada em desenvolvimento na criança, tanto a pré-escolar quanto a que frequenta
as ries iniciais do Ensino Fundamental. O manual de De Meur e Staes (1991) propõe
várias atividades nesse sentido. Destaquei três que aparecem com mais frequência nas
propostas das coleções analisadas: 1) exercícios de transparência, em que é solicitado à
criança que siga por um trajeto correto embaraçado em outros; 2) exercícios de
percepção de um modelo em um conjunto; 3) exercícios de topologia, em que é
solicitado que a criança reproduza um modelo ligando pontos equidistantes.
Primeiramente, vejamos os modelos de exercícios de De Meur e Staes (ibid.):
75
O mesmo recurso já foi sugerido por Grossi (2008) entre o final da década de 1980 e início de 1990, na
primeira publicação da Didática dos níveis pré-silábicos, e vem sendo utilizado no ensino da escrita pelas
propostas de alfabetização da ONG Grupo de Estudos sobre Educação, Metodologia de Pesquisa e Ação
(GEEMPA).
126
Fig. 33: Exemplo de exercício de transparência, para desenvolvimento da estruturação espacial, sugerido
por De Meur e Staes (1991, p. 141).
Fig. 34: Exemplo de exercício de percepção de um modelo em um conjunto, para desenvolvimento da
estruturação espacial, sugerido por De Meur e Staes (1991, p. 140).
127
Fig. 35: Exemplo de exercício de topologia, para desenvolvimento da estruturação espacial, sugerido por
De Meur e Staes (1991, p. 147).
Agora vejamos como esses três modelos de exercícios propostos por De Meur e
Staes (1991) são propostos nos livros de caligrafia aqui em análise, em uma pequena
amostra oferecida pelas imagens seguintes:
Fig. 36: Exercício de transparência, proposto no volume 2 da coleção Ziguezague (2006c, p. 58-59).
128
Fig. 37: Exercício de percepção de modelos em um conjunto, proposto no volume 2 da coleção Marcha
criança (2004b, p. 20).
Fig. 38: Exercício de topologia, proposto no volume 1 da coleção Assim se aprende caligrafia (2007a, p.
6).
Se o espaço vai sendo didatizado para que os grafismos infantis possam ir se
ajustando por meio dos exercícios aos modelos oferecidos, a psicomotricidade também
oferece recursos para que a orientação temporal seja desenvolvida. Vejamos primeiro o
que comportaria a noção de orientação temporal:
129
A orientação temporal é a capacidade de situar-se em função:
– da sucessão dos acontecimentos: antes, após, durante;
– da duração dos intervalos [...];
da renovação cíclica de certos períodos: os dias da semana, os meses, as
estações;
– do caráter irreversível do tempo (DE MEUR; STAES, 1991, p. 15).
Em relação à escrita, a orientação temporal, aliada à estruturação espacial, seria
fundamental para que a criança seja capaz de acompanhar a sucessão de sons que
compõem as palavras para depois decompô-los ao escrever, percebendo qual letra é
escrita antes ou depois de outra, assim como percebendo intervalos necessários para não
aglutinar a escrita de palavras diferentes.
Como exercícios, De Meur e Staes (1991) propõem diversas atividades; entre
elas, destacam especialmente atividades em que a criança deve descobrir uma sequência
lógica ou ordenar elementos de uma cena de acordo com uma ordem de sucessão. Nas
coleções analisadas, esse tipo de exercício aparece com mais frequência nos primeiros
livros, desaparecendo nos últimos livros de cada coleção. As atividades a seguir (figs.
39 e 40) nos permitem ver de que forma os livros de caligrafia operacionalizam
mecanismos para que a criança adapte a escrita às noções de tempo, seja reproduzindo
uma sequência de cores, ordenando sílabas de uma mesma palavra adequadamente ou
relacionando figuras a frases sequenciais.
Fig. 39: Exemplo de atividade que possibilitaria desenvolver a orientação temporal (Assim se aprende
caligrafia, 2007a, p. 66). A escrita em azul claro nos espaços em branco do pião refere-se a anotações
pertencentes apenas ao livro do professor.
130
Fig. 40: Atividades que possibilitariam desenvolver a orientação temporal. A imagem à esquerda compõe
o volume 2 da coleção Ziguezague (2006c, p. 42), e à direita é parte da coleção No capricho (2005a,
p.19), volume A.
Por fim, a psicomotricidade descreve a pré-escrita da criança como outra esfera
da sua atuação. De Meur e Staes (1991, p. 17) afirmam que exercícios de pré-escrita são
necessários para que a criança aprenda a escrever, tendo como finalidade “fazer com
que a criança atinja o domínio do gesto e do instrumento [de escrita], a percepção e a
compreensão da imagem a reproduzir”. Os autores (ibid.) sugerem um conjunto de
exercícios que auxilie a criança a equilibrar “forças musculares, flexibilidade e agilidade
de cada articulação do membro superior” envolvidas nas práticas de desenho e escrita.
No lugar de movimentos amplos, que envolvam principalmente o emprego do ombro e
do cotovelo na ação de desenhar ou escrever, a criança deveria ser ensinada a coordenar
adequadamente as ações do ombro, do punho e de cada um dos dedos para que adquira
domínio de seus traçados. Entre os exercícios sugeridos, estão conjuntos de movimentos
a serem reproduzidos sem levantar o pis, giz ou pincel do papel, como espirais, ondas
131
e “telhados”
76
, assim como também são sugeridos exercícios em que a criança deve
ligar pontos numerados em ordem crescente para formar uma determinada figura.
As coleções analisadas não mencionam um período de pré-escrita em nenhum
momento em suas instruções. Quanto a isso, cabem algumas palavras que retomem
algumas discussões já realizadas na parte II deste trabalho, tendo em vista que, a partir
da ampla circulação dos estudos da Psicogênese da língua escrita, de Ferreiro e
Teberosky, no Brasil, exercícios preparatórios para a escrita foram duramente criticados
e foram sumindo das salas de aula a partir dos discursos colocados em funcionamento
pelas autoras. O trabalho das pesquisadoras projetou os mais rudimentares grafismos
infantis ao patamar de escrita, já que a criança estaria colocando hipóteses em
funcionamento em suas tentativas de elaboração de conhecimentos sobre a escrita. É
possível argumentar que a Psicogênese forneceu um instrumental estratégico para que
se passasse a intervir por outras formas na condução da criança à escrita alfabética a
partir de seus grafismos. A escrita legível deveria ir se desenvolvendo a partir de
propostas de escrita para comunicação efetiva e em situações semelhantes às
vivenciadas cotidianamente, como proposto Teberosky e Colomer (2003) em obra
posterior à Psicogênese. A produtividade dos discursos da Psicogênese nesse sentido
pode ser vista, por exemplo, vinte anos após a sua publicação no Brasil, na resposta que
a Revista Nova Escola (CAVALCANTE, 2006, p. 27), de ampla circulação nacional, dá
à seguinte pergunta: “Quando posso pedir que as crianças escrevam?”. Abaixo, segue a
reposta:
Elas devem escrever sempre, mesmo quando a escrita parece apenas rabiscos.
Ao pegar o lápis e imitar os adultos, elas criam um “comportamento
escritor”. E, ao ter contato com textos e conhecer a estrutura deles, podem
começar a elaborar os seus.
Segundo a revista, mesmo que a escrita pareça rabiscos, tais rabiscos não devem ser
ignorados; ao contrário, as crianças deveriam ser incentivadas a escrever textos antes de
saber escrever alfabeticamente. Tal jogo de verdades sobre a escrita nos mostra uma
outra rede de inteligibilidade acerca dos grafismos infantis em funcionamento, a mesma
rede que deslocou a necessidade do período preparatório para alfabetização na década
de 1980, como já mencionado na parte II.
76
Ao falar em “telhados”, De Meur e Staes (1991) referem-se ao movimento proposto por alguns
exercícios psicomotores que solicitam à criança que siga traçados subindo e descendo linhas retas.
132
Sobre a formação dessa outra rede de inteligibilidade sobre os grafismos infantis
em direção à alfabetização, deve ser mencionado, ainda, o trabalho de Alexander Luria,
pesquisador colaborador de Lev Vigotski
77
, que, em 1929, publicou uma pesquisa
dedicada a investigar o que ele chamou pré-história da escrita na criança”. A partir da
pesquisa realizada com crianças entre 4 e 6 anos, Luria (1988, p. 143-144) postulou que
a história da escrita na criança começa muito antes da primeira vez em que o
professor coloca um lápis em sua mão e lhe mostra como formar letras. O
momento em que uma criança começa a escrever seus primeiros exercícios
escolares em seu caderno de anotações não é, na realidade, o primeiro estágio
de desenvolvimento da escrita. As origens deste processo remontam a muito
antes, ainda na pré-história do desenvolvimento das formas superiores do
comportamento infantil; [...] podemos razoavelmente presumir que mesmo
antes de atingir a idade escolar, durante, por assim dizer, esta ‘pré-história’
individual, a criança tinha desenvolvido, por si mesma, um certo número
de técnicas primitivas, semelhantes àquilo que chamamos escrita e capazes
de, até mesmo, desempenhar funções semelhantes, mas que são perdidas
assim que a escola proporciona à criança um sistema de signos padronizado e
econômico, culturalmente elaborado. Estas técnicas primitivas, porém,
serviram como estágios necessários ao longo do caminho.
Para Luria (ibid.), a criança antes de fazer uso funcional da escrita colocaria em
funcionamento determinadas hipóteses que a levariam a conceitualizar a escrita como
método de registro. Portanto, apesar da publicação da Psicogênese no Brasil ter
despertado o interesse na tradução para a língua portuguesa do trabalho de Luria
78
sobre
a escrita, eram conhecidas internacionalmente suas proposições quanto a considerar
as hipóteses que as crianças poderiam formular antes de aprender a utilizar
funcionalmente a escrita
79
.
As propostas para caligrafia escolar, na confluência desses discursos, foram
agregando elementos didáticos que possibilitassem o apenas treinar movimentos para
agilizar e tornar a escrita legível mas também para fazer as crianças pensarem sobre o
modo de funcionamento da escrita alfabética, sobre a ortografia da língua materna,
assim como suas regras gramaticais.
77
O nome do autor Lev Vigotski pode ser encontrado grafado de diversas maneiras na literatura
acadêmica produzida no Brasil: Vygotsky, Vygotski, Vigotsky e Vigotski o alguns exemplos. Nesta
pesquisa, optei pela grafia “Vigotski” por ser a que vem sendo utilizada nas novas edições dos livros
desse autor no Brasil.
78
Rocco (1990) esclarece que as obras dos psicólogos soviéticos começaram a ser publicadas em
outros países na década de 1960 devido a restrições colocadas pelo regime stalinista. Dessa forma, o
estudo de Luria sobre a escrita, produzido ao final da década de 1920, obteve divulgação internacional
quase quarenta anos depois de sua realização.
79
Ferreiro (1994), no entanto, afirma que só teve contato com as pesquisas de Luria no final da década de
1970, quando os estudos que originaram a Psicogênese estavam em fase de conclusão.
133
Em manuais de psicomotricidade voltados para a educação escolar publicados
mais recentemente no Brasil
80
, são poucas as referências à ideia de pré-escrita; no
entanto, é possível encontrar exercícios como os propostos por De Meur e Staes (1991)
para desenvolver capacidades que preparem para a escrita funcionando taticamente em
algumas coleções de caligrafia analisadas. Deve-se ter em vista que, agora, os exercícios
não funcionam como preparatórios para uma escrita que se realizaria posteriormente.
Algumas dessas propostas podem ser vistas nas imagens a seguir, que mostram uma
atividade para exercitar movimentos espirais e em onda, assim como uma atividade de
ligar pontos. Cabe registrar que esse tipo de proposta aparece em todas as coleções
analisadas, exceto em No capricho; além disso, tais atividades costumam ser propostas
nos dois primeiros volumes das coleções. Destaco que entendo que não desapareceram
exercícios que antes eram frequentemente descritos em língua portuguesa como para
desenvolvimento de uma pré-escrita; no caso da caligrafia, vemos muitos desses
exercícios funcionando agora em outras discursividades que consideram que a criança
escreve desde que começa a fazer qualquer marca gráfica com função mnemônica, no
caso dos estudos de Luria (1988), ou desde quando ela já imita movimentos da escrita
com traçados arbitrários, no caso de Ferreiro e Teberosky (2008).
Fig. 41: Exercício para treino de movimentos em onda e em espiral, proposto no volume 1 da coleção
Assim se aprende caligrafia (2007a, p. 5).
80
Conferir, por exemplo, Bastos Filho e Sá (2001).
134
Fig. 42: Exercício de ligar pontos, proposto no volume 3 da coleção Ziguezague (2006d, p. 19).
As análises empreendidas nesta seção poderiam se estender por um espaço maior
do que seria razoável para esta Dissertação, tendo em vista que muito para ser
estudado sobre as relações entre caligrafia e psicomotricidade. No entanto, ainda
gostaria de destacar que entendo tal enredamento entre os discursos da caligrafia e da
psicomotricidade como uma espécie de braço da ação cada vez mais ostensiva das áreas
psi durante os séculos XX e XXI na área da pedagogia, relacionado especialmente às
noções de criança em desenvolvimento e de um eu interior que emerge nas ações do
sujeito. Ajuriaguerra (1988, p. 11), mencionado no início desta seção como um dos
pesquisadores que procuraram aproximar estudos de psicomotricidade à educação, em
obra publicada originalmente em francês sobre a escrita infantil
81
, em 1964, nos permite
ver um pequeno recorte de como as áreas psi foram cercando a escrita infantil:
A escrita, como aprendizagem, entra no domínio da Pedagogia, mas os
psicólogos e os fisiologistas devem se interessar pelo estudo do mecanismo
desta função expressiva e por seu modo de organização. Os clínicos devem se
ater ao estudo de suas dificuldades.
81
A referida pesquisa de Ajuriaguerra e colaboradores (1988, p. 11) compreende três partes: “a primeira
estuda a gênese da escrita, a segunda se atém às dificuldades da aprendizagem gráfica e a terceira expõe
os métodos de reeducação que permitem remediar isso”.
135
A psicomotricidade oferece um conjunto de saberes sobre a criança, que, como
vimos, operacionaliza uma série de regras que ganham corpo nos exercícios de
caligrafia escolar propostos pelas coleções analisadas. Uma memória de “já-ditos” sobre
a caligrafia escolar encontra-se em um jogo de ativação, desativação e reatualização de
conjuntos de enunciados na confluência de saberes como os oferecidos pela
psicomotricidade que foram discutidos neste espaço. Sob tais regras, o sujeito vai
aprendendo o que deve ou o fazer em relação à sua escrita, o que se enquadra dentro
do que é permitido e o que não é, em que aspectos da sua escrita deve investir mais ou
não. E pela repetição, novos contornos vão sendo adquiridos pelas escritas que se
exercitam nas coleções de caligrafia.
Não se trata apenas de uma estética da escrita. Vimos na parte II que as
propostas envolvendo a caligrafia escolar tomaram outros contornos a partir das críticas
da Escola Nova e do construtivismo pedagógico, nesse último caso, especialmente pelas
discussões da Psicogênese da língua escrita. As propostas da caligrafia escolar que
chegam à escola via mercado editorial tiveram que oferecer outros diferenciais
progressivamente a partir da década de 1980 para que houvesse uma sobrevivência
desse segmento de vendas das editoras, já que os livros que simulavam uma espécie de
caderno impresso, com exercícios baseados na repetição de movimentos musculares,
letras e frases, foram sendo considerados como inapropriados frente às discussões que
ganhavam espaço sobre a aprendizagem da escrita. Recorrendo a tais movimentações
teóricas, podemos vislumbrar por que hoje os livros de caligrafia oferecem como
diferenciais, em destaque nas capas, também a prática da ortografia e da gramática. Na
seção seguinte, abro espaço também para tal discussão, continuando a mapear as formas
de ação dos micropoderes colocados em ação pelas coleções de livros analisados. O que
vai sendo acrescentado ou deixado de lado nos mecanismos pedagógicos e terapêuticos
na sequência de livros de cada coleção é o que interessa centralmente à discussão da
próxima seção.
136
3.3 TÁTICA 2: A ORGANIZAÇÃO DOS EXERCÍCIOS EM SÉRIES DE
COMPLEXIDADE CRESCENTE
Cada classe terá seus livros didáticos, que conterão e desenvolverão todo o
material necessário àquela classe (para as letras, os costumes e a piedade).
[...] Portanto, esses livros didáticos serão seis, um para cada classe, diferentes
um do outro não no que se refere ao conteúdo, mas à forma. Todos deverão
tratar de tudo, mas o da primeira classe exporá as noções mais gerais, comuns
e fáceis (COMENIUS, 2006, p. 337).
mais do que um lugar-comum reportarmo-nos a Comenius para falar
das primeiras obras que abordaram o uso do livro didático como
ferramenta pedagógica. Ao mesmo tempo, negligenciar tal referência
nos dispersaria de uma fatia singular da história da pedagogia e do tipo de suporte
textual que os exercícios caligráficos em análise fazem uso
82
. Interessa-me sublinhar
que a hierarquização dos exercícios escolares nos livros didáticos, como a epígrafe nos
mostra, nos remonta à época comeniana, período de ebulição do afã moderno que deu
origem à intensa disciplinarização dos saberes. Partir do simples para o complexo, como
proposto por Comenius, constituiu-se como um traço distintivo da pedagogia moderna,
o que não quer dizer que tal método não fosse empregado em ocasiões isoladas em
outros períodos e espaços. Seria redundante, portanto, intentar distinguir ou “desvendar”
tal forma de organização dos materiais didáticos atuais, tendo em vista que certamente
encontraremos tal forma sequencial de dispor as aprendizagens. O que me parece
relevante, ao contrário, é mostrar o que se considera como menos ou mais complexo em
relação à caligrafia e como vai sendo construído o caminho de captura das escritas nos
livros de caligrafia pelo investimento em diversas cnicas. Interessa, portanto, mostrar
nesta seção que técnicas vão sendo agregadas ou deixadas de lado ao longo das coleções
analisadas.
Não tenho como pretensão esgotar as possibilidades de análise das coleções pelo
recorte proposto; o que proponho nesta seção é destacar apenas alguns aspectos que
considerei mais relevantes às análises, tendo em vista tratar-se de quatro coleções,
82
Como aponta Marcuschi (2003), não se trata de entendermos que o tipo de suporte determine o nero
textual que será inscrito nele, mas que os gêneros requerem suportes determinados que auxiliem na sua
distinção de outro gênero. Sobre o assunto, o autor (ibid., p. 10) oferece um exemplo contundente:
“Tome-se o caso deste breve texto: ‘Paulo, te amo, me ligue o mais rápido que puder. Te espero no fone
55 44 33 22. Verônica’. Se estiver escrito num papel colocado sobre a mesa da pessoa indicada (Paulo),
pode ser um bilhete; se for passado pela secretária eletrônica é um recado; remetido pelos correios num
formulário próprio, pode ser um telegrama; exposto num outdoor pode ser uma declaração de amor”. O
gênero, portanto, é passível de identificação em uma rede de referências em relação ao suporte.
É
137
totalizando dezenove livros, o que extrapolaria uma extensão razoável para esta parte da
pesquisa da forma como a organizei se todos os detalhes percebidos fossem trazidos à
discussão. Inicialmente, vejamos de que forma são montadas séries progressivas de
exercícios caligráficos.
É possível dizer que os tipos de exercícios propostos para caligrafia dos volumes
iniciais aos finais das coleções seguem um padrão: o procedimento de cobrir as letras é
empregado geralmente no início do primeiro volume de cada coleção e esporadicamente
no segundo e no terceiro; no entanto, nota-se a primazia do processo de imitar ou copiar
o modelo escrito em todos os volumes. Apenas a coleção No capricho não utiliza o
procedimento de cobrir as letras; a imitação é o procedimento padrão em todos os livros
dessa coleção. As imagens a seguir (figs. 43, 44, 45 e 46) nos mostram o emprego
desses dois procedimentos imitar/copiar e cobrir no ensino da caligrafia nas
coleções analisadas. As imagens restringir-se-ão aos três primeiros volumes, tendo em
vista que, em geral, o procedimento de cópia é o único utilizado nos volumes finais das
coleções.
Fig. 43: Progressão dos procedimentos de cobrir e imitar nos volumes da coleção Marcha criança. Na
parte superior, da esquerda à direita, primeiras lições dos volumes 1 e 2 (2004a, p. 6; 2004b, p. 6), e na
parte inferior está a primeira lição do volume 3 (2004c, p. 5). No volume 1, percebe-se o emprego do
procedimento de cobrir as letras; nos volumes 2 e 3, as lições são iniciadas pelo procedimento de
imitação dos modelos das letras. Na imagem 2, os exercícios encontram-se preenchidos em azul.
138
Fig. 44: Progressão dos procedimentos de cobrir e imitar nos volumes da coleção Assim se aprende
caligrafia. Na parte superior, da esquerda à direita, temos as primeiras lições dos volumes 1 e 2 (2007a, p.
8; 2007b, p. 5), e na parte inferior está uma das primeiras lições do volume 3 (2007c, p. 5). O volume 1
apresenta todas as letras do alfabeto seguindo um mesmo esquema: primeiro a criança deve cobrir os
traçados dispostos das letras e, depois, copiá-los na linha de baixo. A partir do volume 2, o
procedimento padrão é o da imitação, sendo que, vez ou outra, o procedimento de cobrir ainda é
empregado, como mostra o primeiro exercício do volume 3 na figura da parte inferior.
Fig. 45: Exclusividade do procedimento de imitação nos volumes da coleção No capricho. Na parte
superior, da esquerda à direita, temos um recorte das primeiras lições dos volumes A e B (2005a, p. 6;
2005b, p.7). Na parte inferior, encontra-se uma das primeiras lições do volume C (2005c, p.5).
139
Fig. 46: Progressão dos procedimentos de cobrir e imitar nos volumes da coleção Ziguezague. Na parte
superior, da esquerda à direita, primeiras lições dos volumes Alfabetização e 1 (2006a, p. 11; 2006b, p.
4), e na parte inferior está a primeira lição do volume 2 (2006c, p.6). Os volumes Alfabetização e 1 dessa
coleção são muito semelhantes: todas as lições apresentam as letras do alfabeto e algumas palavras que
iniciam com a letra de cada lição. A criança primeiro deverá cobrir as letras e, depois, copiá-las na linha
de baixo. A partir do volume 2, os livros empregam apenas o procedimento da imitação.
É interessante notar que Lage (1924), já citado nas outras duas partes da
pesquisa, indicava quatro procedimentos ou processos pelos quais a escrita, ainda pouco
diferenciada dos objetivos da caligrafia, costumava ser ensinada: cobrir, calcar, imitar e
o misto de cobrir-imitar. Abaixo, a descrição feita por Lage (ibid., p. 59-60):
a) O processo de cobrir consiste em fazer passar a tinta, pelo aluno, os
exercícios impressos a côres desmaiadas ou feitos a lápis pelo professor
num caderno apropriado.
b) O processo de calcar consiste em colocar por baixo do papel em que o
aluno deve escrever que neste caso deve ser papel bem transparente
uma folha de papel em que se encontra escrito, a tinta bem visível,
todo o objecto da lição de escrita. Assentando bem, com a mão esquerda,
o papel transparente sôbre o modelo que fica por baixo, o aluno vai
cobrindo a tinta o que por transparência vê no papel.
c) O processo de imitar consiste em fazer copiar ao aluno, no seu caderno,
a lição de escrita que o professor lhe apresenta feita no quadro preto ou
num papel que o aluno coloca à sua frente.
d) O processo mixto de cobrir-imitar consiste em dar ao aluno apenas uma
parte da escrita preparada para êle cobrir, e obrigá-lo a continuar, por
imitação, os exercícios cobertos, na parte do papel em branco.
140
Em seguida, o autor aconselha o uso do procedimento da imitação, tendo em vista que
seria mais adequado às ideias pedagógicas da época e ao modo de compreender a
aprendizagem das crianças. Como as imagens nos mostraram anteriormente, os livros de
caligrafia também vêm confiando no procedimento de imitação/cópia como padrão mas
também lançam mão do misto de cobrir-imitar em volumes iniciais. Os livros de
caligrafia em análise, diferentemente da proposta de Lage, trazem espaço para cópia
logo abaixo das letras, palavras, frases e textos apresentados às crianças, não em uma
folha à parte como foi comum antes do boom do mercado editorial no século XX.
As imagens ainda nos mostram um padrão no tamanho das linhas utilizadas nos
exercícios de caligrafia. A coleção Assim se aprende caligrafia, como mostrou a fig. 44,
apresenta um procedimento diferencial nesse sentido: no primeiro volume, as letras do
alfabeto são caligrafadas em linhas com amplo espaço, sem linhas adjacentes para as
porções inferior e superior das letras; em seguida, o mesmo exercício propõe a mesma
grafia da letra no conjunto de linhas padrão, utilizado em todos os outros livros. De tal
forma, a criança vai sendo conduzida gradativamente à utilização dos espaços mais
reduzidos das linhas padrão.
Nos quatro conjuntos de imagens anteriores (figs. 43, 44, 45 e 46), também é
visível que os autores têm dado preferência por iniciar os exercícios caligráficos no
primeiro volume das coleções por lições dos traçados de cada uma das letras do
alfabeto. Nos volumes posteriores das coleções, a primeira lição retoma a grafia das
letras do alfabeto na fonte cursiva utilizada pelo livro, possivelmente não apenas para
que a criança que já utilizava volumes anteriores retome o tipo de traçado utilizado mas
também para apresentar a fonte utilizada desde o início para as crianças que possam
estar tendo o primeiro contato com o livro em qualquer volume da coleção, não
necessariamente desde o primeiro.
O primeiro volume das coleções geralmente traz mais procedimentos auxiliares
às crianças para a aprendizagem da letra cursiva que os demais volumes. Destaco dois
procedimentos bastante visíveis no primeiro volume das coleções e que não são
utilizados nos volumes seguintes: 1) a preocupação em associar o alfabeto em letra
bastão ou em letra de imprensa, maiúscula e minúscula, ao alfabeto em letra cursiva no
início do volume (fig. 47), possivelmente porque grande parte dos professores hoje
alfabetiza utilizando a letra bastão. A coleção Ziguezague é exceção nesse sentido,
tendo em vista que utiliza apenas a letra cursiva em todos os volumes; e 2) a utilização
141
de setas ou lápis que mostram a direção em que a criança deve conduzir seus
movimentos para grafar as letras cursivas (fig. 48).
Fig. 47: Apresentação do alfabeto em fontes cursiva e bastão nas coleções, nas primeiras lições. Na parte
superior, da esquerda à direita, as primeiras lições das coleções Marcha criança (2004a, p. 5) e Assim se
aprende caligrafia (2007a, p. 7) associando o alfabeto em letra bastão ou de imprensa ao alfabeto em letra
cursiva. Na parte inferior, No capricho (2005a, p. 4), em seu primeiro volume, também associa as fontes
cursiva e bastão. No caso de Assim se aprende caligrafia, o alfabeto cursivo é apresentado na página
seguinte, sem uma comparação mais explícita como acontece nas outras coleções. A coleção Ziguezague
não é mostrada, pois trabalha apenas com a letra cursiva.
142
Fig. 48: Recursos utilizados pelas coleções para orientar a direção do traçado das letras. Nas quatro
figuras, observa-se que as coleções Assim se aprende caligrafia (2007a, p. 22), Marcha criança (2004a,
p. 23) – ambas nos quadrantes superiores, da esquerda à direita – e Ziguezague (2006a, p. 22) – embaixo e
à esquerda utilizam setas como recurso auxiliar para situar a criança em relação à direção e ordem em
que os traçados das letras cursivas devem ser realizados. Embaixo e à direita, a figura mostra a sequência
dos pis que vão colorindo as letras minúsculas e maiúsculas cursivas, utilizado como recurso pela
coleção No capricho (2005a, p. 12). Os destaques em vermelho são de minha autoria.
Nas imagens acima (fig. 48), também é possível ver que os livros iniciais
investem bastante em exercícios explorando letras e palavras. Algumas frases também
podem ser vistas em exercícios no volume inicial de cada coleção. A partir do volume 2,
a ênfase recai sobre a escrita de frases; quanto à escrita/cópia de textos, veremos tal
ênfase aparecer nos volumes finais – no quarto ou quinto de cada coleção.
Por vezes, também é possível encontrar lições muito semelhantes de um volume
ao seguinte de cada coleção. As imagens a seguir nos mostram lições que abordam o
emprego de “ch” em determinadas palavras, em três volumes sequenciais da coleção
143
Ziguezague. O número de palavras e, consequentemente, o número de linhas a serem
grafadas pelas crianças aumenta progressivamente à medida que aumenta o tempo em
que cada um ocupa-se com a sua própria escrita.
Fig. 49: Exercícios de caligrafia da coleção Ziguezague envolvendo palavras escritas com “ch”. Na parte
superior, da esquerda à direita, lições referentes aos volumes 2 (2006c, p. 52) e 3 (2006d, p. 24). Na parte
inferior, lição referente ao volume 4 (2006e, p. 24-25).
144
A figura 49 nos leva à discussão sobre a forma como a ortografia é colocada em
funcionamento nos livros, articulada à caligrafia. A coleção em destaque acima emprega
um recurso comum às outras coleções em análise: a repetição, em frases isoladas ou
textos, de palavras que contenham um problema ortográfico em comum. Por exemplo,
no caso da única lição que aborda o emprego do “ch” em determinadas palavras no
volume 3, a coleção Ziguezague (2006d, p. 24) traz o seguinte texto para cópia
caligráfica:
A chuva encheu a rua e me encharcou todinha. Que chateação! Ainda bem que eu
estava usando galochas. [grifos meus]
Recurso semelhante foi por muito tempo utilizado pelas cartilhas na alfabetização e foi
deixando de ser utilizado depois das críticas da Psicogênese da língua escrita e dos
estudos sobre letramento, que ganharam espaço no Brasil a partir da década de 1990,
postulando a importância da aprendizagem da leitura e da escrita levar em conta os usos
sociais dessas técnicas. Em vista disso, os textos das cartilhas foram criticados por
possuírem uma estrutura textual incomum a qualquer outro tipo de texto que a criança
teria contato em espaços não escolares. Embora não se trate de um livro voltado para o
ensino da caligrafia, transcrevo a seguir o texto trazido na cartilha Caminho suave
83
(LIMA, 1989, p. 82), que destaca a sílaba “cha” associada à imagem de um chapéu, pela
semelhança com o procedimento utilizado pelas coleções de caligrafia nas lições que
pretendem ensinar ortografia:
chapéu
cha
O chapéu é de “Seu” Chico.
Ele chegou e tirou o chapéu.
“Seu” Chico é educado. [grifos meus, exceto o uso da cor vermelha, reproduzida
conforme consta na cartilha]
Tudo se passa como se o uso de textos associados a lições de caligrafia com
palavras que contenham uma mesma regularidade ou irregularidade ortográfica, como
os grafos no primeiro caso ou o uso do “s com som de “z”, no segundo,
83
A cartilha Caminho suave foi editada pela primeira vez na década de 1940 e foi comercializada até o
final da década de 1990. Foram vendidos mais de 40 milhões de exemplares da Caminho suave, a maior
vendagem de uma mesma cartilha no Brasil. Recentemente, no início de 2010, a editora Edipro lançou
uma edição ampliada dessa cartilha.
145
contextualizasse as atividades de caligrafia. Utilizei a expressão contextualização” por
ser uma preocupação das editoras ao apresentar as coleções aos professores nas
instruções do manual:
A abordagem de termos gramaticais e ortográficos é feita por meio de atividades
lúdicas que envolvem diferentes tipos de texto, inserindo a caligrafia em um contexto
vinculado à leitura, à ortografia, à produção textual, à linguagem oral e à
psicomotricidade, com o objetivo de auxiliar a criança na aquisição do traçado gráfico
convencional na comunicação escrita (Marcha criança, 2004a, p. 4).
As palavras, frases e pequenos textos que constituem os exercícios de caligrafia
versam sempre sobre o tema tratado no texto inicial. Dessa forma, ganham um sentido
que não teriam se estivessem isolados (Ziguezague, 2006a, p. 5).
Pela forma como são organizados e apresentados os sumários dos livros das
coleções em análise, é possível vermos que as lições de grafia das letras do alfabeto, no
caso do primeiro volume, e as lições de ortografia e gramática são os índices utilizados
para fracionar e agrupar os exercícios caligráficos, como é possível ver nas imagens
selecionadas abaixo.
Fig. 50: Divisões das lições de caligrafia apresentadas pelos sumários de No capricho (2005a), à
esquerda, e Marcha criança (2004b), à direita.
146
Exercícios que também destaquem a aprendizagem da ortografia começam a
aparecer nas coleções a partir da metade do volume 1, depois das lições com exercícios
para cada letra do alfabeto, que geralmente apresentam as vogais em destaque, antes das
lições com as consoantes.
Cagliari (2002) refere que a ortografia esteve entre as preocupações mais
basilares das cartilhas tanto no século XIX quanto no XX, tendo em vista neutralizar as
variações linguísticas na leitura e na escrita. Em 1924, por exemplo, Lage propunha o
seguinte:
Quando [...], depois de certa prática, o aluno tenha adquirido seguro
conhecimento da forma das letras e as trace com facilidade, a sua principal
preocupação passa a consistir em saber quais as letras com que deve escrever
cada palavra e como ligar entre si essas letras para que as palavras fiquem
corretamente formadas. o tendo dificuldades em traçar as letras e
conhecendo já regularmente a ortografia das diversas palavras, a criança
passa a atender ao significado do que escreve (p. 63-64).
Ou seja, o investimento estaria primeiramente em ensinar o traçado das letras, a ligação
entre elas e a grafia correta das palavras, para depois investir-se no significado das
palavras. Tal prática em relação à ortografia, na década de 1980, seria bastante
questionada pelos estudos psicogenéticos de Ferreiro e Teberosky (2008), tendo em
vista que, para as autoras, tal ensino só teria sentido para a criança que escreve
alfabeticamente. Antes disso, os alunos deveriam ter liberdade para grafar as palavras
conforme suas hipóteses de escrita, como salientam as autoras: “parece-nos importante
fazer esta distinção, que amiúde se confundem as dificuldades ortográficas com as
dificuldades de compreensão do sistema de escrita” (id., ibid., p. 219).
Os estudos de Morais (1998, 1999), ex-aluno de Teberosky na Universidade de
Barcelona, atualmente também têm repercutido bastante na literatura acadêmica. Para
ele, os erros ortográficos teriam causas diferentes, que haveria os aspectos regulares,
aqueles que poderiam ser compreendidos pela criança por meio de uma regra comum à
formação das palavras, e os aspectos irregulares, que careceriam de memorização. A
única referência ao ensino da ortografia encontrada nos manuais do professor que
acompanham as coleções em análise ampara sua proposta nas contribuições das
pesquisas de Morais (ibid.), como é possível depreender na passagem transcrita abaixo.
147
O aspecto ortográfico foi priorizado, permitindo ao aluno levantar hipóteses e descobrir
regularidades a partir das quais poderá formular regras. Desse modo, ele estuda a
ortografia sem ser avaliado. Trata-se, portanto, de uma coleção que enfatiza o aspecto
caligráfico sem menosprezar o ortográfico, já que de nada vale “escrever bonito” sem
consonância com as normas da língua escrita (Assim se aprende caligrafia, 2007a, p.
3).
Em todas as coleções, os primeiros volumes geralmente exploram as regularidades
ortográficas, mas também é possível encontrar uma ou outra lição que aborde
irregularidades, como o uso do ch” ou do “ç”. O segundo volume de todas as coleções
inicia com lições explorando diferenças entre consoantes que soam como fonemas
surdos ou sonoros
84
, como nos casos de trocas comuns na escrita inicial das crianças
entre g/c, t/d, f/v e p/b. Em algumas coleções, como Assim se aprende caligrafia e
Marcha criança, as lições com os fonemas surdos e sonoros são retomadas no terceiro
volume, mas, em vez sílabas, o terceiro volume traz palavras com os fonemas em
destaque, como vemos nas imagens a seguir. Já as irregularidades ortográficas começam
a ocupar um espaço maciço nas lições a partir do terceiro volume.
84
De acordo com a função das cordas vocais na pronúncia, os fonemas são classificados como surdos
quando as cordas vocais não vibram e como sonoros no caso contrário.
148
Fig. 51: Lições referentes à coleção Marcha criança, abordando os fonemas /b/ e/p/, respectivamente,
sonoro e surdo. As duas imagens superiores mostram uma lição do volume 2 (2004b, p. 35-36), enquanto
as duas imagens inferiores mostram a retomada dessa lição no volume 3 (2004c, p. 16-17).
149
Algumas coleções ainda oferecem lições de gramática da língua portuguesa
associadas aos exercícios de caligrafia. A coleção No capricho traz lições desse tipo
desde o segundo volume, ensinando sobre acentuação e classes gramaticais, por
exemplo. a coleção Marcha criança oferece algumas lições de gramática em seu
último volume, como sobre usos dos porquês e usos de mau/mal, mas/mais, entre
outros.
Por fim, ainda destaco que exercícios percepto-motores como os que foram
abordados na seção anterior são propostos em todos os volumes das coleções Assim se
aprende caligrafia, Marcha criança e Ziguezague com diferentes níveis de
complexidade. No capricho é a única coleção analisada que não faz uso desses
exercícios. A coleção Assim se aprende caligrafia é a que mais aposta em atividades
percepto-motoras como as que foram discutidas na seção anterior. Acompanhemos nas
imagens a seguir (fig. 52) como exercícios conhecidos como “labirintos” vão ganhando
complexidade a cada volume dessa coleção pelo acréscimo de novos elementos de um
volume a outro.
Fig. 52: “Labirintos” da coleção Assim se aprende caligrafia. À esquerda, de cima para baixo, lições dos
volumes 1 e 2 (2007a, p. 10; 2007b, p. 37). À direita, lição do volume 5 (2007e, p. 60), o último da
coleção.
150
Não se trata apenas de encontrar e seguir o trajeto correto dos labirintos; as
coleções procuram adicionar outras variáveis que devem ser resolvidas pelas crianças
como forma de dar acesso ao caminho correto a ser seguido. Na atividade do volume 1
de Assim se aprende caligrafia, que aparece nas imagens anteriores, a direção correta do
traçado da letra “E” é enfatizada pelo exercício; na atividade do volume 2, a busca
por uma palavra que possua sentido é que ganha ênfase; e a partir do volume 3, os
labirintos funcionam em lições que exploram aspectos ortográficos da ngua
portuguesa, geralmente recebendo continuidade em lições de cópia caligráfica
posteriores, nas quais as palavras que apareceram nos labirintos são utilizadas para, por
exemplo, formar frases ou serem classificadas e escritas em quadros pelas crianças de
acordo com a regra ortográfica que se aplica a cada palavra encontrada nos labirintos.
Pelo enfoque das áreas psi, Ajuriaguerra (1988, p. 193) explica da seguinte
forma por que, com os exercícios auxiliando a criança a planejar seus movimentos e a
empregá-los de forma mais econômica, assistimos a uma regularização e a uma
progressão da escrita:
Os movimentos de progressão tendem a uma regularização e a uma certa
economia que se manifesta por uma diminuição das oscilações e da
amplitude dos movimentos do braço. Os movimentos mais distais assumem
progressivamente mais importância, o papel da progressão cursiva sendo
assumido pelo antebraço, assim como pela mão (mas em menos escala). A
economia se faz também pela evolução dos movimentos em direção à
continuidade. desaparecimento progressivo da decomposição dos
movimentos e aparecimento de outras formas de organização que permitem
esta continuidade. Esta organização ritmada dos movimentos gráficos parece-
nos ser função: - do exercício, - das possibilidades de adaptação de cada
pessoa no plano motor (possibilidades que, por um lado, dependem da idade),
- e também, sem dúvida, das facilidades de previsão e de antecipação do
movimento que dependem do nível intelectual.
Colocar os movimentos adequados à escrita em engrenagem é o que faz a prática
pedagógica, organizando sequências temporais como as que ganham espaço em cada
livro e que foram discutidas nesta seção da pesquisa. Foucault (2008c, p. 135-136)
observa que “a colocação em ‘série’ das atividades sucessivas permite todo um
investimento da duração pelo poder: possibilidade de um controle detalhado e de uma
intervenção pontual (de diferenciação, de correção, de castigo, de eliminação) a cada
momento do tempo [...]”. No cerne da seriação do tempo nas práticas pedagógicas
estaria o exercício,
151
a técnica pela qual se impõe aos corpos tarefas ao mesmo tempo repetitivas e
diferentes, mas sempre graduadas. Dirigindo o comportamento para um
estado terminal, o exercício permite uma perpétua caracterização do
indivíduo seja em relação a esse termo, seja em relação aos outros indivíduos,
seja em relação a um tipo de percurso. Assim, realiza, na forma da
continuidade e da coerção, um crescimento, uma observação, uma
qualificação (id., ibid., p. 136-137).
E o exercício é elemento essencial das tecnologias que investem os corpos e procuram
suas falhas. Modos de tornar-se mais apto em determinadas tarefas são organizados em
percursos. No entanto, como argumenta Foucault (2008c), ninguém jamais franqueia a
norma; a tese da imperfeição permanente faz com que sempre haja uma nova forma de
aprimorar detalhes da escrita. Os sistemas de expertise produzem sempre outras formas
de narrar a aprendizagem e o ensino da escrita pela criança e, o que hoje é considerado
um aspecto simples da escrita, ideal para aprendizagens iniciais, outrora provavelmente
foi considerado complexo ou ainda pode vir a ser visto de tal forma, alterando os
cenários de estratégias e táticas que se articulam na produção de técnicas que promovem
o disciplinamento e a normalização das escritas infantis. Lage (1924), por exemplo,
citava como essencial ensinar primeiramente a criança a escrever por meio de exercícios
que empregassem movimentos que são envolvidos na grafia das letras do alfabeto em
diferentes direções. Paralelamente, as letras deveriam ser ensinadas seguindo uma
ordem de parecença no traçado:
Assim, logo que a criança saiba escrever o elemento l, ensina-se-lhe a formar
com êle i, u, t, iu, ui, tiu, lui etc. Passa-se depois aos elementos n e m, e com
os três elementos agora conhecidos, ensina-se-lhe a escrever n, m, ni, mi,
mui, niu, mil, in, im, tim, etc. Passa-se seguidamente a outros elementos de
mais difícil execução, com os quais se procede do mesmo modo (LAGE,
1924, p. 58).
Os livros de caligrafia em análise nos mostraram outra forma de organizar o trajeto
entre formas graduadas de aprender a caligrafar, diferentemente do que postulou Lage
(ibid.) quase um século. Como sugere Narodowski (2001, p. 99), as práticas
pedagógicas estão sempre em trânsito, tendo em vista que os discursos pedagógicos
modernos operam tipicamente da seguinte forma: diagnóstico de uma realidade
anterior sempre e necessariamente negativa ou prejudicial; enunciação de um ponto
utópico de chegada, ou ao menos reafirmação crítica dos existentes, e fundação de um
novo e superador modelo para alcançá-la”. E como vimos, sempre uma economia
152
dos discursos produzindo e sendo produzida nos espaços em que os poderes se
exercitam, nesse caso, sobre as escritas infantis.
3.4 TÁTICA 3: CALIGRAFAR E BRINCAR
Brincadeira sf. 1. Ato ou efeito de brincar. 2. Brinquedo (2). 3.
Entretenimento, passatempo, divertimento; brinquedo. 4. Gracejo, pilhéria.
(FERREIRA, 2004, p. 188)
Lúdico adj Relativo a jogos, brinquedos e divertimentos.
(id., ibid., p. 524)
o projeto que antecedeu a apresentação final desta pesquisa, eu
argumentava que era bastante frequente a associação entre lúdico,
infância e caligrafia nas descrições que as editoras faziam para
apresentar as dezessete coleções que, à época, mapeei à venda no mercado editorial
brasileiro. Como se dão tais aproximações no material analisado é o foco desta seção.
Conforme argumentado na parte I desta pesquisa, trata-se aqui de colocar sob
suspeita os saberes que narram a brincadeira como uma atividade natural à criança,
assim como a infância como um período também natural e específico de
desenvolvimento; ao contrário, trata-se de ajustar as lentes para que seja possível pensar
como se produz esses lugares para as crianças ou como se produz posições a serem
ocupadas por elas. Como bem observa Dornelles (2007a, p. 25), na modernidade
ocidental
o corpo da criança torna-se visível e sobre ele constroem-se novas
tecnologias de individuação, através do controle, da regulação, do
esquadrinhamento acerca de seu desenvolvimento. Múltiplos dispositivos
disciplinares passam a vigiar seus corpos. Essa vigilância o provém de um
único ponto, instituição, cultura ou lugar: é exercida por múltiplas
materialidades, por múltiplas forças e grupos que regulam e normatizam a
existência das crianças. A partir daí, são criados instrumentos e locais de
vigilância da criança. São criadas ‘ínfimas materialidades’ ou dispositivos
panópticos para vigiá-la dentre eles as escolas, quartos, espaços, olhares,
fichas, exames, provas, livros, todos eles munidos de saberes e ciências.
No recorte que me interessa, a questão é pensar como a brincadeira e o lúdico
são utilizados como recursos ticos para fazer com que as crianças trabalhem sobre
suas próprias escritas, ajustando-as a padrões específicos. Assim como as crianças, as
escritas infantis também são descritas como em desenvolvimento e, para que isso ocorra
N
153
adequadamente, prescreve-se uma espécie de “engenharia das letras”, organizada nos
livros de caligrafia.
Tanto nos manuais de instruções aos professores
85
quanto nas descrições das
coleções, a caligrafia aparece narrada como uma prática prazerosa por estar associada a
brincadeiras e diversões. Nas descrições, por exemplo, encontram-se alguns registros
interessantes:
Ao apresentar atividades lúdicas, que mostram o ato de ler e de escrever como uma
prática prazerosa no seu dia-a-dia, esta coleção procura estabelecer um diálogo com a
criança (Marcha criança, 2004a, s/p);
Os pequenos textos são ilustrados e abrangem vários gêneros, como o narrativo, por
histórias em quadrinhos; poético, com poemas, quadrinhas e letras de música;
folclóricos, com parlendas, cantigas de roda, adivinhas; informativo, de jornais, revistas
e enciclopédias (Ziguezague, 2006a, s/p);
A gramática e a ortografia também são trabalhadas por meio de quadrinhas,
curiosidades, piadas, adivinhas etc (No capricho, 2005a, s/p).
Os excertos das descrições das coleções apontam para o ato de brincar como uma
linguagem universal das crianças. Dornelles (2007b) salienta que a modernidade
inventou brinquedos, brincadeiras e atividades infantis como instrumentos pedagógicos
de modo a produzir o desenvolvimento da criança, narrada como ser de natureza
incompleta e que requer interferências do mundo adulto em suas práticas. A autora
(ibid., p. 156) também destaca que, durante muito tempo, “o brincar infantil foi
considerado algo natural, prazeroso, neutro, desinteressado e fazendo parte da ‘essência’
infantil, por isso mesmo ‘livre’ de qualquer interesse ou imposição cultural, passando a
ser utilizado como possibilidade para estimular o desenvolvimento físico, mental, social
e intelectual de crianças”. E, como já discutido na parte I deste trabalho, os discursos psi
tornaram-se fundamento explicativo para o uso pedagógico das práticas de brincar e
jogar, consideradas fundamentais para a evolução cognitiva das crianças (BUJES,
2004). O manual de Marcha criança, por exemplo, cita o conceito de zona de
desenvolvimento proximal, cunhado por Vigotski, para justificar a sugestão de alguns
jogos e brincadeiras que o professor deveria realizar com a sua turma para auxiliar na
85
O manual da coleção Assim se aprende caligrafia não aparecerá nas análises tendo em vista que não
referências nele que possam ser aproveitadas nesta seção do trabalho. No entanto, saliento que, por não
haver enunciação nas instruções aos professores sobre o recorte aqui analisado, o entendo que não haja
semelhanças nas formas de utilização do brincar e do lúdico como tática no ensino da caligrafia em
relação às demais coleções em análise. Informo, ainda, que o manual de Assim se aprende caligrafia
contém apenas 4 ginas, iguais para todos os volumes da coleção, possuindo poucas informações em
relação à metodologia utilizada pela coleção.
154
aprendizagem da caligrafia. Por meio dessas atividades, o manual afirma que a criança
conseguiria se expressar e se comunicar com o mundo; e para o educador, jogos e
brincadeiras seriam “uma fonte de dados para compreender como seu aluno vem se
desenvolvendo” (Marcha criança, 2004a, p. 7). Tal noção de que a criança necessita de
espaços para se expressar, como aparece repetidamente nos manuais analisados, é bem
observada por Bujes (2001) como uma nítida separação entre um âmbito interior e outro
exterior, havendo uma confiança na linguagem como mediadora desses dois universos
e, por isso, haveria a reiteração de discursos associando práticas como desenhar,
escrever, pintar e dançar como formas de permitir às crianças se expressarem.
O manual de Marcha criança ainda cita a brincadeira como forma privilegiada
de a criança elaborar a sua relação com a realidade vivenciada. Não se trata apenas de
brincar como forma de expressão: Marcha criança propõe jogos e brincadeiras que
envolvem correr, saltar, dançar, etc, recomendando aos professores que os realizem
antes do ensino da escrita como forma de aprimorar o desenvolvimento motor das
crianças. E como vimos na seção 3.2, as prescrições da psicomotricidade relacional, que
enfoca o uso do brincar como uma espécie de terapêutica psicomotora, estão imbricadas
nessas instruções que chegam aos professores em relação ao ensino da caligrafia.
Exercícios que por muito tempo ganharam espaço em cadernos de caligrafia, produzidos
pelos próprios professores, e que atualmente perderam espaço na caligrafia proposta nos
livros, aparecem de outra forma propostos em brincadeiras a serem realizadas em
espaços abertos, sendo recomendado que as crianças caminhem sobre diferentes
traçados que simulem movimentos necessários à escrita, como mostra a imagem a
seguir (fig. 53), da coleção Marcha criança. A mesma coleção ainda indica, ao lado de
exemplos de cada traçado, quadrinhas que podem ser cantadas pelas crianças para
memorizar os traçados enquanto realizam as brincadeiras.
155
Fig. 53: Atividades para treino da memorização do traçado das letras, sugeridas no manual do professor
da coleção Marcha criança (2004a, p. 10).
Deixando de lado as brincadeiras propostas para além da utilização dos livros de
caligrafia, é questionável o quanto a criança brinca durante a prática dos exercícios de
caligrafia. O que pode ser encontrado em todos os livros analisados são quadrinhas e
pequenos textos às vezes bem humorados , pequenos espaços para desenho – que vão
diminuindo à medida que vai se chegando ao final de cada coleção –, espaço para
pintura de desenhos que ilustram os textos no caso de Ziguezague , assim como
muitas atividades apresentadas como “diversão” ou “desafio”, que fazem a criança, por
exemplo, procurar a saída de um labirinto, procurar o que está faltando em uma figura
ou qual a imagem semelhante a outra em destaque, como vimos na seção 3.2. Não
estamos falando de um brincar por brincar; um espaço bastante condicionado de
possibilidades nesse tipo de atividade, que geralmente almeja algum tipo de objetivo
psicomotor ou percepto-motor.
156
O fato de encontrarmos espaço para desenhar nos livros de caligrafia (fig. 54)
também é um aspecto a ser observado com atenção. Durante o século XX, as
pedagogias ativas criticaram o uso de modelos para cópia ou pintura pelas crianças;
expressar-se livremente, também pelo desenho, seria condição para o desenvolvimento
de um indivíduo mais criativo. Noções de perspectiva, escala e relações topológicas
entre os objetos representados nos desenhos também estariam entre as capacidades
favorecidas pela expressão plástica. Além disso, no que se refere à escrita, muito se
falou durante o século XX sobre os grafismos das crianças em uma perspectiva de
progressividade, em que as garatujas em diferentes direções, ao serem canalizadas pelas
máquinas pedagógicas, pouco a pouco dariam lugar à escrita alfabética. E, como
apontaram diversos teóricos das áreas psi, a criança aprenderia melhor pela ação. Nesse
sentido, Luria (1988, p. 188) é exemplo, em um recorte mais específico sobre a escrita:
“Uma coisa parece clara a partir de nossa análise do uso dos signos e suas origens na
criança: não é a compreensão que gera o ato, mas é muito mais o ato que produz a
compreensão na verdade, o ato frequentemente precede a compreensão”. Desenhar e
tentar escrever com grafismos ao acaso o se trataria, então, apenas de aprimoramento
do desenvolvimento motor mas também da construção de hipóteses sobre o
funcionamento da escrita alfabética convencional.
Fig. 54: Espaços destinados à prática do desenho. À esquerda, vemos um exemplo do volume 1 de
Marcha criança (2004a, p. 61), e, à direita, um exemplo do volume 1 de Assim se aprende caligrafia
(2007a, p. 69). O destaque em vermelho, na imagem à direita, é de minha autoria.
157
Mas no que se refere aos espaços para desenho oferecidos pelas coleções em
análise, trata-se também de considerar o desenho como motivação para a caligrafia.
Nesse sentido, o manual de Ziguezague (2006a, p. 7) tece a seguinte consideração, ao
prescrever a realização de atividades plásticas a partir dos pequenos textos oferecidos
pela coleção:
Estimuladas e deixadas livres para se expressarem, as crianças certamente serão
levadas pela fantasia e também ficarão motivadas para a atividade caligráfica.
É interessante notar também que as coleções, com exceção de Assim se aprende
caligrafia, possuem seções específicas em que é dada bastante visibilidade a elementos
que associem prazer, diversão e brincadeira às atividades de caligrafia. A coleção No
capricho, a partir do seu segundo volume, apresenta cinco seções por livro intituladas
“Só pra divertir”; Marcha criança apresenta desde o volume inicial a seção
“Criatividade e alegria”, incluída entre sete e dez vezes por volume; e, por último,
Ziguezague possui a seção “Vamos brincar de escrever”, que apresenta quatro lições
diferentes por volume. Vejamos como cada uma dessas seções é organizada
86
.
Em No capricho, a seção “Só pra divertir” em geral pede a leitura de excertos de
histórias em quadrinhos. Leia e copie” são as instruções que corriqueiramente
acompanham essa seção, na qual é solicitado que a criança copie com letra cursiva
frases ou pequenos textos que possuem relação com os quadrinhos que introduzem a
seção (fig. 55).
86
Esclareço que os manuais do professor não tecem nenhuma consideração acerca das referidas seções.
158
Fig. 55: Exemplo de atividade proposta na seção “Só pra divertir”, da coleção No capricho. A atividade
da imagem integra o volume B da coleção (2005b, p. 32).
Algumas vezes, a história em quadrinhos trazida por tal seção é aproveitada em
exercício conjugando lição de caligrafia e lição de gramática. Na imagem seguinte (fig.
56), vemos uma lição que aborda o emprego de “por que, porque, por quê e porquê”, de
acordo com as normas gramaticais da língua portuguesa. A seção é inserida como
complementar à lição sobre mesmo tema, oferecida em página anterior.
159
Fig. 56: Exemplo de atividade proposta na seção “Só pra divertir”, da coleção No capricho (2005e, p. 26),
em que os quadrinhos que sempre são destaque na seção são aproveitados para atividades que aliam
exercícios de caligrafia e gramática.
a seção “Criatividade e alegria”, de Marcha criança, alterna diferentes
propostas de atividades nos quatro volumes da coleção (fig. 57). atividades em que
se propõe a ilustração de um texto, cantigas para brincadeiras de roda a serem realizadas
em espaço externo à sala de aula, e ainda exercícios psicomotores como os já mostrados
na seção 3.2 e que propõem, por exemplo, achar um trajeto correto em um labirinto e
percepção de modelos em um conjunto. As atividades dessa seção que constam no
primeiro volume não propõem exercícios de escrita caligráfica cursiva; a partir do
segundo volume, a escrita cursiva passa a ser integrada a algumas atividades dessa
mesma seção. Escrever uma história com letra cursiva, a partir de uma imagem inicial
fornecida pelo livro, também ganha espaço nos volumes finais.
160
Fig. 57: Exemplos de atividades propostas na seção “Criatividade e alegria”, da coleção Marcha criança.
A atividade à esquerda integra o volume 1 (2004a, p. 120), e a atividade à direita, o volume 4 (2004d, p.
105).
Por fim, na coleção Ziguezague, a seção “Vamos brincar de escrever” agrupa
diferentes atividades de um livro a outro da coleção (fig. 58). Geralmente, trata-se de
atividades que retomam a escrita cursiva de palavras que apareceram em lições de
ortografia que constam no mesmo volume, organizadas em forma de cruzadinhas,
adivinhações, caça-palavras e decifração de códigos fornecidos para cada letra do
alfabeto. Depois de preencher as cruzadinhas ou descobrir respostas para as
adivinhações, espaços para que a criança copie as palavras com letra cursiva. Por
vezes, essa seção também traz alguns exercícios psicomotores, como os que foram
mostrados na seção 3.2 e que também aparecem na seção Criatividade e alegria” da
coleção Marcha criança.
161
Fig. 58: Exemplos de atividades propostas na seção “Vamos brincar de escrever”, da coleção Ziguezague.
A atividade à esquerda, que traz um exercício psicomotor já visto na seção 3.2, integra o volume
Alfabetização (2006a, p. 38), e a atividade à direita, o volume 3 (2006d, p. 42).
Levanto a possibilidade de lermos a organização de seções como essas, que
tentam se apresentar mais como uma tarefa de diversão do que de estudo, como táticas
no que se refere a associar prazer à prática da caligrafia escolar, captando a atenção da
criança também por meio de atividades que quebram, por vezes, a insistência na cópia
de modelos cursivos, que é a grande forma de funcionamento dos exercícios propostos
pelos livros. Outrora bastante utilizada por professores como forma de punição aos
alunos, a caligrafia parece ter acumulado ao longo do tempo uma carga semântica
pejorativa, associada a uma prática mecânica e enfadonha, na contramão das prescrições
das pedagogias ativas em prol de práticas que despertem o interesse das crianças.
Associar a caligrafia à brincadeira pode ser entendido como uma forma de tentar
desvincular a ideia de passividade e enfado em relação ao investimento da escola na
caligrafia. E a associação com o prazer talvez também possa ser vista como uma aposta
na captura das crianças às atividades caligráficas, que as faz investir sobre suas escritas
durante até 4 ou 5 anos pelo percurso proposto pelas coleções. Nessa direção, vejamos
um excerto do manual de Ziguezague (2006a, p. 5):
162
Nesta obra, a caligrafia é vista como uma atividade que pode ter uma face lúdica e
plena de sentido e não como uma longa e penosa tarefa de intermináveis exercícios.
Como bem observam Saraiva e Veiga-Neto (2009), interessar as crianças está
entre as grandes preocupações da escola a partir do século XX. Se “a satisfação prevista
pela escola disciplinar era adiada para o final do ano, para o final do ciclo, para a vida
adulta, para o futuro”, nos últimos anos temos visto “as teorias e as metodologias que
vêm orientando o trabalho pedagógico” cada vez mais buscarem a satisfação imediata
das crianças (id., ibid., p. 198). Os autores ainda lembram que, no neoliberalismo, a
noção de interesse continua sendo fundamental como fora para o liberalismo; no
entanto, no neoliberalismo, o interesse é visto como uma produção a partir de
intervenções sobre o meio. No caso da escola, vemos o interesse da criança também
sendo produzido por intervenções e recortes estabelecidos pelo professor (id., ibid.) e
também pelos materiais didáticos que chegam às escolas, como os livros de caligrafia.
Deve ficar claro, ainda, o que ressalta Bujes (2000): os mesmos saberes que procuram
descrever a infância e dizer quais são os seus interesses também estão implicados na
produção desses mesmos sujeitos que “habitam” a infância. E, dessa forma, a infância
como aparece narrada nos diferentes artefatos produzidos por e/ou para a escola é
representada como um fenômeno universal, que ocorreria da mesma forma com todas as
crianças, em diferentes culturas (DORNELLES, 2007b).
O brincar, portanto, é engrenagem discursiva fundamental na atualidade nos
regimes de visibilidade que permitem enunciar o que é relativo ou não às atividades das
crianças. Há uma intrincada rede discursiva que hoje ata fortemente a criança à
brincadeira e coloca como imperativo e até como um direito essa prática. Comenius
(2006, p. 338), nos primórdios da modernidade pedagógica apontava o seguinte sobre o
assunto:
É preciso atentar para que tudo se ajuste à capacidade de compreensão das
crianças, que por natureza são mais propensas à brincadeira, ao jogo, ao
divertimento, que às coisas sérias e austeras. Portanto, será proveitoso
misturar o útil ao agradável, para que elas possam aprender com facilidade e
alegria as coisas sérias, que poderão ser efetivamente úteis, de modo que os
engenhos sejam conduzidos para onde desejarmos, como se atraídos por um
prazer contínuo.
Desde a época comeniana, muito ainda viria a acontecer para que a brincadeira
ganhasse a força discursiva que hoje possui em relação às crianças, como foi
163
discutido neste trabalho. Interessa sublinhar o apontado uso do brincar para fins
pedagógicos feito por Comenius e redescoberto fortemente pela escola a partir do século
XX, com as intervenções das áreas psi que, a exemplo do que argumentou Vigotski
(2003, p. 131), disseram à escola, sob um regime de cientificidade, que “as maiores
aquisições de uma criança o conseguidas no brinquedo”. No caso do ensino da
caligrafia, vemos que a escolarização da caligrafia, durante o século XX, encontrou na
hibridização com práticas prescritas pela psicomotricidade, assim como com elementos
de uma cultura infantil estandardizada, um caminho com contornos diferentes da
caligrafia profissional, da qual inicialmente se derivou.
DAS ORTOPEDIAS (CALI)GRÁFICAS: CONSIDERAÇÕES FINAIS
Não cabe temer ou esperar, mas buscar novas armas
DELEUZE (1992, p. 220).
Um fascínio pela escrita me trouxe até aqui: uma técnica que encanta alguns e é
temida por outros; difícil é ser indiferente a ela. Palavra, palavra (digo exasperado), se me
desafias, aceito o combate”, dizia Carlos Drummond de Andrade (2003, p. 99) no lebre
poema “O lutador”. Olhar para alguns modos de produção da estética das escritas infantis por
meio da técnica por excelência inventada para esse fim, a caligrafia do grego, kallos
(beleza) + graphos (escrita) , foi um doloroso e, ao mesmo tempo, delicioso caminho que fui
construindo ao longo desses quase dois anos e meio de curso. Muitas opções deixadas de lado
ou escritas de outro modo que não o planejado, algumas sacadas quase automáticas, de última
hora, tamanho o impulso de dominar os instrumentos de escrita e preencher com centenas de
linhas as antipáticas páginas em branco. Mas a certeza é a de que sempre se trata de uma
trajetória inventada, como muitos que me antecederam disseram. Muitas outras poderiam
ser as formas de contar um pouco dessas histórias que enredam sujeito, poder, escola, escrita e
caligrafia.
O que procurei investigar foram as regras que dão contornos à caligrafia escolar, que
discursos e saberes estão implicados na arquitetura montada nos livros didáticos para fabricar
escritas legíveis e ágeis, agora não mais necessariamente belas, como por muito tempo a
escola brasileira primou. Vimos que as regras são mais ou menos recorrentes na amostra de
livros analisada, o que permitiu vislumbrar alguns movimentos táticos, discutidos na última
parte da pesquisa: o funcionamento maciço de regras fornecidas pela psicomotricidade para
conduzir a organização dos exercícios caligráficos; a disposição em séries de complexidade
crescente dos exercícios, partindo de unidades menores, como a letra, até a solicitação regular
de cópias de textos em fonte cursiva; e o jogo discursivo que envolve brincadeira, infância e
caligrafia. Essas táticas são apenas algumas que podem funcionar na maquinaria pedagógica
que produz escritas legíveis e ágeis e que procura, para esse fim, agenciar os corpos e
produzir essas aptidões. E como discuti ao longo da pesquisa, a caligrafia como prática
pedagógica e terapêutica envolve uma série de técnicas que vão além do enquadramento das
letras em linhas, seu elemento mais visível. Um jogo de traçados possíveis das crianças vai
sendo previsto e capturado pelos exercícios, que vão ensinando parâmetros e formas de
formatar as escritas por meio da repetição e da comparação com modelos fornecidos. Ensina-
165
se, então, o que é uma boa letra e como se pode escrever de forma mais econômica em termos
espaciais e temporais.
À medida que a pesquisa tomava corpo, um ponto ficou bastante evidente e é relevante
destacá-lo aqui: os manuais que acompanham os livros, com vistas a fornecer instruções e
assessoria pedagógica aos professores para utilização das coleções, fornecem mais
explicações genéricas sobre a proposta dos livros do que instruções sobre como proceder em
relação à prática da caligrafia. Mais especificamente, o que se encontra nos manuais são
explicações como, por exemplo, quais são os objetivos de cada coleção, o que é domínio
motor e que relações possui com a caligrafia escolar, a importância da brincadeira para as
crianças, entre outras. Sob a designação de “sugestões”, é possível encontrar ainda atividades
recreativas sendo sugeridas como complementares ao desenvolvimento motor que se espera
da criança para a execução de uma grafia legível.
Cadernos seriados de exercícios de caligrafia foram comercializados com amplas
instruções aos professores, especialmente no que se refere ao trabalho pedagógico de correção
da postura dos alunos ao escrever. Hoje, pouco se fala sobre o assunto. As coleções analisadas
não fornecem sugestões ou informações aos professores que relacionem corpo e escrita. Duas
coleções, Assim se aprende caligrafia e Marcha criança, mencionam apenas brevemente que
a postura poderia intervir na execução de uma boa grafia. O silêncio, no entanto, também é
discursivo, como afirmava Foucault. O corpo continua sendo disciplinado com vistas à
produção de sujeitos que escrevam dentro de padrões estéticos aceitáveis para sua época e
contexto cultural desde a infância; ele ingressa em uma rede de interdições e autorizações que
ordenam seu campo de possibilidades em relação à escrita. A questão é por que o corpo
deixou de ser abundantemente falado pela caligrafia escolar hoje. A disciplina e a
normalização das escritas infantis, entendidas aqui como modos de operar ortopedias
(cali)gráficas, agora agem cada vez por formas mais sutis, não o visíveis como na época em
que se produziam aparelhos como o Writetrue, mostrado na figura 10, ou como o método de
amarrar os dedos, mostrado na capa desta pesquisa.
Os títulos de algumas coleções analisadas indicavam um cenário discursivo que
relaciona a escrita caligráfica a uma disciplina que requer uma longa caminhada, como o
título Marcha criança pode nos remeter e é difícil não associar uma conotação militar ao
vermos o emprego do verbo marchar; uma longa caminhada que prime pela ordem e pela
limpeza e que, assim, possa produzir o capricho comercializado já no nome da coleção No
capricho.
166
Olhar para as táticas foi olhar para como o poder se exerce sobre os sujeitos infantis
em relação à produção de padrões estéticos de escrita. E o que fiz foi colocar em evidência
determinadas operações que pretendem fazer com que a criança governe seus próprios
traçados na escrita, por meio da aparelhagem fornecida pelos livros de caligrafia. O que ainda
deve ser ressaltado em relação às materialidades que encontraram espaço nesta pesquisa é
que, como acontece com todos os dispositivos de poder, não uma ação uniforme, simétrica
sobre todos os sujeitos, assim como há sempre espaços de transgressão e margens de invenção
pessoal. Por isso os dispositivos vão se transformando e respondendo a novas demandas.
sempre porosidades que permitem ao sujeito, no caso da escrita, ir imprimindo sua marca
pessoal a tal técnica.
Destaco também outro aspecto abordado brevemente na pesquisa e que, por vilania do
tempo e do espaço, o pude olhar com mais cuidado: por que a caligrafia escolar é hoje uma
prática quase sempre recomendada às crianças como tarefa para ser realizada em casa? Como
professora, essa é a prática que corriqueiramente tenho visto nas escolas. Otimizar as escritas
infantis pela caligrafia parece não se encaixar no tempo escolar, como mencionei ao final da
parte II, quando retomei uma memória de “já-ditos” sobre a caligrafia. Penso que ainda
muito para ser analisado sobre essa particularidade do ensino da caligrafia nas escolas
brasileiras.
Outro aspecto a ser destacado é quanto à falta de fontes sobre caligrafia escolar, um
entrave inicial a esta pesquisa. Especialmente no que se refere ao Rio Grande do Sul, poucos
autores que tiveram tempo e condições de acesso adequados a fontes sobre o assunto trazem
pistas que contribuam para a investigação histórica sobre a prática escolar da caligrafia em
nosso Estado. Trindade (2001) e Peres (2003) são as exceções que encontrei nesse sentido e
que contribuíram para trazer algumas referências a este trabalho. No entanto, quero destacar
que a falta de fontes foi também um grande estímulo a juntar algumas referências
aparentemente soltas e lançar algumas hipóteses sobre os deslocamentos e rearranjos que fui
observando entre exercícios de caligrafia contemporâneos e exercícios mais antigos. Muitas
histórias sobre a caligrafia escolar em escolas gaúchas ainda podem e merecem ser contadas
por pesquisadores sensíveis ao tema e, quem sabe, ainda por mim.
No momento, vemos alguns materiais de caligrafia chegando às escolas gaúchas
durante a gestão executiva do nosso Estado em vigor no quadriênio 2007-2010. Organizações
não-governamentais (ONGs), como o Instituto Alfa e Beto e o GEEMPA, fornecem materiais
didáticos que são comprados pela Secretaria Estadual de Educação e repassados às escolas. Se
os materiais continuarão a ser repassados às escolas em uma futura gestão, é uma resposta que
167
pertence ao futuro. Tive a oportunidade de ter um contato tardio com partes das propostas
para o ensino da caligrafia e da letra cursiva das ONGs mencionadas e, por isso, o
aproveitei esses materiais neste estudo. O Instituto Alfa e Beto possui dois livros específicos
para o ensino da caligrafia, enquanto o mesmo não ocorre na proposta do GEEMPA, que traz
algumas propostas isoladas para o ensino da letra cursiva que não é a mesma coisa que
caligrafia, como abordei na pesquisa em meio a outros materiais utilizados para a
alfabetização. Essa poderia ser uma outra forma de investigar o presente da caligrafia hoje em
um outro recorte, focando uma parcela das escolas gaúchas que vem fazendo uso das
propostas didáticas das ONGs citadas.
Por fim, o estudo que apresentei também permitiu vislumbrar algumas direções que a
caligrafia foi tomando nas escolas brasileiras no século XX e que tornaram maiores as
diferenças entre a caligrafia profissional, hoje chamada “artística”, e a caligrafia escolar. Um
curso de caligrafia profissional, oferecido à distância pelo Instituto Universal Brasileiro,
adquirido por mim em meio à realização deste trabalho, permitiu vislumbrar muitas
semelhanças e diferenças entre as formas de hoje ensinar-se a caligrafar em caráter
ornamental ou instrumental. Esse poderia ter sido um outro prolongamento deste estudo e que
considero bastante interessante para, quem sabe, estudá-lo em outro momento. Por ora, afirmo
que a pedagogização da caligrafia para a infância se trata de um movimento recente. Tal
preocupação não existia nos primórdios da caligrafia escolar, quando o sentimento moderno
de infância ainda não era tão difuso. A caligrafia pensada para a infância, sem caráter
ornamental, me parece o principal indício a ser rastreado para uma pesquisa que invista em
olhar genealogicamente o descolamento entre caligrafia profissional e caligrafia escolar, tendo
em vista que a última derivou-se das práticas da primeira.
Destaco, ainda, que pode ser interessante que se desconfie mais da sinonímia
frequentemente estabelecida entre ensino da letra cursiva e ensino da caligrafia no Brasil.
Como apontei durante a pesquisa, a caligrafia não é o único modo possível de ensino da letra
cursiva, assim como a caligrafia escolar pode ser utilizada para aprendizagem de outros tipos
de letras. Para citar um exemplo, não para exaltar como melhor, mas apenas para ampliar o
horizonte de possibilidades, na língua inglesa temos o termo handwriting para fazer referência
ao ensino da escrita cursiva ou de imprensa as mais comumente utilizadas nas escolas norte-
americanas e inglesas , enquanto calligraphy é termo utilizado para fazer referência à escrita
ornamental, própria aos profissionais da caligrafia. O dicionário Oxford (HORNBY, 2000),
por exemplo, remete o termo calligraphy à arte de produzir escritas decorativas, nada além
disso. Já os livros de exercícios escolares em língua inglesa que se detém apenas no ensino da
168
letra cursiva costumam indicar com precisão o foco nesse tipo de letra, empregando a
expressão cursive writing practice. Fico na expectativa por ver tão logo mais questionamentos
a esse respeito que possam sacudir um pouco da poeira das discussões sobre caligrafia escolar
no Brasil.
Ainda gostaria de escrever algumas palavras sobre um ponto que me parece
importante. outros métodos para disciplinar e normalizar as escritas colocados em
operação pela escola para além da caligrafia. Especialmente interessante é como a escola
procurou capturar cada vez mais o desenho infantil em uma rede de inteligibilidade sobre a
escrita infantil nas últimas décadas. No desenho, estariam as gêneses da escrita. Intervir,
canalizar e disciplinar os gestos infantis o mais cedo possível é prescrito às ações docentes
sobre as crianças desde a Educação Infantil. Desenhando, a criança estaria pensando sobre
modos de produzir registros e aprimorando suas técnicas particulares. E essa captura do
desenho por outras formas de narrar a aprendizagem da escrita, produzindo modos de
disciplinar e normalizar a escrita cada vez mais cedo, também se trata de um aspecto que
inquieta esta pesquisadora e talvez se constitua em um porvir possível a merecer atenção.
Feitas essas considerações, dou por terminada a escrita que não quer terminar,
esperando que este trabalho contribua para desacomodar algumas ideias e fazer pensar por
outros ângulos o que se tem por verdades sobre escrita, caligrafia e infância. As cartas estão
lançadas...
“E o inútil duelo jamais se resolve.
O teu rosto belo,
ó palavra, esplende
na curva da noite
que toda me envolve.
Tamanha paixão
e nenhum pecúlio.
Cerradas as portas,
a luta prossegue
nas ruas do sono”.
(ANDRADE, 2003, p. 100)
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COLEÇÃO Ziguezague. Vol. 3. São Paulo: Scipione, 2006d.
COLEÇÃO Ziguezague. Vol. 4. São Paulo: Scipione, 2006e.
MARSICO, Maria Teresa; NETO, Armando Coelho de Carvalho. Marcha criança. Vol.
1. São Paulo: Scipione, 2004a.
MARSICO, Maria Teresa; NETO, Armando Coelho de Carvalho. Marcha criança. Vol.
2. São Paulo: Scipione, 2004b.
MARSICO, Maria Teresa; NETO, Armando Coelho de Carvalho. Marcha criança. Vol.
3. São Paulo: Scipione, 2004c.
MARSICO, Maria Teresa; NETO, Armando Coelho de Carvalho. Marcha criança. Vol.
4. São Paulo: Scipione, 2004d.
RANDO, Lizette Geny; SANTOS, Sonia Aparecida dos. Assim se aprende caligrafia.
Vol. 1. São Paulo: Ática, 2007a.
RANDO, Lizette Geny; SANTOS, Sonia Aparecida dos. Assim se aprende caligrafia.
Vol. 2. São Paulo: Ática, 2007b.
RANDO, Lizette Geny; SANTOS, Sonia Aparecida dos. Assim se aprende caligrafia.
Vol. 3. São Paulo: Ática, 2007c.
RANDO, Lizette Geny; SANTOS, Sonia Aparecida dos. Assim se aprende caligrafia.
Vol. 4. São Paulo: Ática, 2007d.
RANDO, Lizette Geny; SANTOS, Sonia Aparecida dos. Assim se aprende caligrafia.
Vol. 5. São Paulo: Ática, 2007e.
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OUTRAS FONTES CONSULTADAS
AZEVEDO, Dirce Guedes de. Caligrafia divertida. São Paulo: FTD, 1988.
______. Um jeito de aprender caligrafia. São Paulo: FTD, 1998.
GROSSO, Lya Dalva; Bellotti, Thelma. Como preparar a criança para ler e escrever.
Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 1978.
LABRIOLA, Maria José; LABRIOLA, Olívia. Linhas mágicas. São Paulo: Saraiva
Didáticos, 2003.
LIMA, Branca Alves de. Caminho suave: comunicação e expressão. São Paulo: Editora
Caminho Suave, 1989.
MARQUES, Orminda. Cadernos escrita brasileira. São Paulo: Edições
Melhoramentos, vol. 1, 1953.
NEVES, Deborah Pádua Mello. Novo eu gosto: caligrafia e ortografia. São Paulo:
IBEP, 2006.
VIANA, Francisco. Caligrafia vertical. São Paulo: Edições Melhoramentos, vol. 1,
1956.
ACERVOS CONSULTADOS
Acervo Memória da Cartilha Biblioteca Setorial da Faculdade de Educação da
UFRGS, Porto Alegre, Rio Grande do Sul. Cf.: http://www.ufrgs.br/faced/extensao/
memoria/
Livros Grátis
( http://www.livrosgratis.com.br )
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