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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO
FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS
DEPARTAMENTO DE FILOSOFIA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM FILOSOFIA
Cynthia Sampaio de Gusmão
A harmônica na Antiguidade grega
São Paulo
2010
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Cynthia S. de Gusmão
1
Cynthia Sampaio de Gusmão
A harmônica na Antiguidade grega
Dissertação apresentada ao
programa de Pós-Graduação em
Filosofia do Departamento de
Filosofia da Faculdade de Filosofia,
Letras e Ciências Humanas da
Universidade de São Paulo, para
obtenção do título de Mestre em
Filosofia sob a orientação do Prof.
Dr. Pablo Rubén Mariconda.
São Paulo
2010
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Cynthia S. de Gusmão
2
À minha bisavó Sophia Gaertner e sua filha
Djanira, a muito amada Mami.
Cynthia S. de Gusmão
3
AGRADECIMENTOS
Ao querido Professor Pablo Rubén Mariconda, por sua visão dinâmica
e apaixonada do conhecimento, pelas sucessivas e poderosas
intervenções e pela oportunidade.
À minha querida Silvana Issa Afram, pelas leituras cuidadosas, pela
revisão do texto, pelo carinho e paciência.
À querida Professora Marília Pini, por ter aberto a minha visão em
perspectiva.
Ao querido e saudoso Ricardo Rizek, por muitas coisas, dentre elas,
por assumir o amor pela beleza da cosmologia pitagórica.
À querida Professora Annie Bélis, por me proporcionar o mergulho no
contraponto aristoxeniano.
Cynthia S. de Gusmão
4
RESUMO
Gusmão, Cynthia Sampaio de. A harmônica na Antiguidade grega.
2010. 101f. Dissertação de Mestrado, Faculdade de Filosofia, Letras e
Ciências Humanas. Departamento de Filosofia, Universidade de São
Paulo, São Paulo, 2010.
O presente trabalho apresenta as ideias centrais relacionadas às duas
principais teorias acerca do som musical na Antiguidade grega, entre
o final do século VI a.C. e o início do século III a.C. O estudo analisa,
em primeiro lugar, as circunstâncias históricas e materiais que
propiciaram o desenvolvimento da teoria musical grega, chamada
harmônica, e a sua relação com a prática musical do período em
questão. A primeira teoria analisada está inserida no contexto da
escola pitagórica, em que a cosmologia é o referencial de uma visão
de mundo que se expande conectando todas as áreas do
pensamento, e um dos pontos de origem é a harmônica matemática.
São apresentadas a seguir as demonstrações feitas a partir do cálculo
das médias proporcionais e sua relação com o princípio da coesão
harmônica da oitava. No segundo capítulo são estudadas as teorias
acústicas da Antiguidade, que se originaram das razões pitagóricas e
se desenvolveram no âmbito das ciências naturais, aprofundando-se
com a filosofia aristotélica. No terceiro capítulo, são analisados os
principais pontos de confronto promovidos pela corrente
aristoxeniana, que se insere no quadro epistemológico aristotélico, e
que foram levantados contra os pitagóricos. Nessa nova forma de
pensamento, a harmônica é estudada como uma tékne, que tem uma
linguagem especializada particular e um objeto específico, o mélos.
Ganha importância especial o conceito de aisthésis e, para colocá-lo
em prática, a idéia de dynamis torna-se central. Por fim, é
apresentada a persistência da concepção pitagórica nos cálculos dos
intervalos musicais a partir da divisão do cânone.
Palavras-chaves: harmônica, pitagorismo, música, cosmologia,
harmonía, proporção, acústica, Aristóxeno, aisthésis , dynamis,
mélos.
Cynthia S. de Gusmão
5
ABSTRACT
Gusmão, Cynthia Sampaio de. Harmonics in greek Antiquity. 2010.
101f. Thesis (Master Degree) Faculdade de Filosofia, Letras e
Ciências Humanas. Departamento de Filosofia, Universidade de São
Paulo, São Paulo, 2010.
This work presents the central ideas related to two main theories
about musical sound in greek Antiquity between the end of VI century
and the beginning of III B.C. First, the historical and material
contexts that lead to the development of greek musical theory, called
Harmonics, are investigated, and its relationship with the musical
practice of the period. The first theory analyzed comes from the
pythagorean school, in which cosmology is the framework of a world
view that expands connecting all areas of thought and one of its
departure point is mathematical Harmonics. Afterwards, I discuss the
demonstrations that are done from the calculations of proportional
medias and their relations with the octave harmonic cohesion
principle. In the second chapter, it’s exposed the acoustic theories of
Antiquity which originated from the musical ratios and had developed
in the branch of natural sciences, deepening by the Aristotelian
Philosophy. In the third chapter, I presented the most important
issues concerning the differences between the aristoxenian current,
which belongs to the aristotelian epistemological framework, against
the pythagoreans. In this new way of thought, Harmonics is studied
as a tékne that has a particular range of specialized terms and a
specific object, the mélos. The concept of aisthésis assumes
relevance and to put it into practice, the idea of dynamis becomes
central. At last, the persistency of the pythagorean conception it is
presented in the calculations of the musical intervals in the division of
the canon.
Key-words: Harmonics, pythagorism, music, cosmology, harmonía,
proportion, acoustics, Aristoxenus, aisthésis , dynamis, mélos.
Cynthia S. de Gusmão
6
SUMÁRIO
Introdução 8
Capítulo I – Os meios técnicos e a estrutura da música grega
14
1. As origens musicais da Harmônica 14
2. Os instrumentos musicais gregos 16
3. Aspectos da terminologia musical grega 18
4. As cordas e a estrutura musical grega 20
5. O epigoneon e a pandora 23
6. A afinação e os gêneros musicais 26
Capítulo II – As origens matemáticas da harmônica 29
1. As disciplinas matemáticas 29
2. As razões numéricas musicais 32
3. A coesão harmônica da natureza 34
4. A fixação da escala 37
5. A coma pitagórica 41
6. A cosmologia pitagórica 43
7. Os desdobramentos da harmônica: Arquitas 47
8. As médias proporcionais 48
9. A média geométrica e os incomensuráveis 51
Capítulo III – Teorias acústicas da Antiguidade 56
1. Os primórdios da investigação do som 56
2. A propagação do som e sua audição 57
3. Os avanços da escola peripatética 59
4. O experimento de Pitágoras 60
5. A persistência da concepção pitagórica 63
6. As relações da acústica com a harmônica 64
Cynthia S. de Gusmão
7
Capítulo IV – Aristóxeno e o lugar da aisthésis na
harmônica
66
1. Pequena nota biográfica 66
2. A proposta aristoxeniana 67
3. A organização do estudo 69
4. A aisthésis 72
5. Diálogo com Aristóteles 73
6. O espaço geométrico do los 75
7. As partes da harmônica 76
8. Ressonâncias do Elementos de harmônica 78
Capítulo V – A divisão ideal do cânone 81
1. O rigor do Sectio Canonis 81
2. O apogeu da ciência pitagórica 83
Considerações finais 85
Bibliografia
93
Cynthia S. de Gusmão
8
INTRODUÇÃO
O tema do presente estudo são as abordagens teóricas que
recebeu o som musical na Antiguidade grega entre o final do século
VI a.C. e o início do século III a.C. A investigação ocorre no âmbito
da Harmônica, um dos ramos da teoria musical grega, que, no
entanto, difere do que se conhece por esse termo nos dias atuais. O
musicólogo Carl Dahlhaus
1
fez uma classificação tripartite dos
grandes campos teóricos da música ocidental: o analítico, o
regulativo e o especulativo. A via anatica estuda as obras musicais
como modelos para a prática da composição e da apreciação crítica. A
teoria regulativa abarca os escritos de instrução sobre as regras
sintáticas da música, constituindo o assunto dos manuais dos
musicógrafos que eclodiram a partir do século II a.C., e que foram os
precursores daquilo que hoje é chamado de “teoria musical”. O ramo
especulativo é aquele que considera o aspecto ontológico da música,
sua essência e matéria-prima. Esse último aspecto, sobre o qual se
debruça a dissertação, teve presença marcante em mil anos de
debates filosóficos e científicos da Antiguidade. Contudo, foi nos
primeiros dois séculos que as questões cruciais foram colocadas,
tendo o restante do minio se dedicado a mexer as mesmas peças
no tabuleiro musical.
Os escritos musicais antigos, tanto gregos quanto latinos, em
sua grande maioria, são especulativos e inserem-se no quadro geral
de pensamento das escolas filosóficas; cada uma delas forja a teoria
de acordo com seus métodos e princípios.
1
Em Die Musiktheorie im 18. und 19. Jahrhundert: I, Grundzüge einer Systematik,
Darmstadt, 1984, p.9-13. Apud Christensen, 2007, p.11.
Cynthia S. de Gusmão
9
O filósofo Aristóxeno de Tarento, do século IV a.C, é um
autêntico representante da escola peripatética, tendo sido aluno
direto de Aristóteles. Sua obra Elementos de Harmônica é o mais
completo dos antigos tratados musicais gregos que chegaram até
nós. No primeiro parágrafo, ele define o campo de investigação da
Harmônica: “A ciência do mélos é multifacetada e divide-se em
muitos ramos; um deles é preciso tomar como base: o estudo da
chamada Harmônica, primeira na ordem e com função elementar. De
fato, sendo a primeira das matérias teóricas, ela abarca tudo que diz
respeito ao estudo dos tons e das escalas. Sendo esta a finalidade do
seu estudo, convém, pois, não considerá-la para além disso”
(Meibom, 1, 11-25).
2
Rosetta da Rios aponta em nota a sua tradução
italiana do tratado: “Assim como, de fato, a qualidade dos sons é o
elemento específico da música, pois o ritmo está presente na poesia e
no canto, assim, no uso técnico de Aristóxeno e de seus seguidores,
mélos passa a ser usado para significar exclusivamente a parte tonal
da música ou a melodia no sentido comum, considerada como uma
sucessão de notas de alturas diferentes, em contraposição ao ritmo.
De fato, mais tarde quando se quiser designar melodia no sentido
antigo, será acrescentada a palavra leion à mélos para indicar a
melodia acabada, com a presença do ritmo” (Rios, 1954, p.3, nota 2).
Portanto, Aristóxeno dá à palavra grega mélos um sentido
especificamente tonal, modificando a concepção anterior que a referia
a uma combinação de palavra, ritmo e melodia. Ela é distinta desse
mélos composto ao qual poderíamos incluir elementos de coreografia,
e que Platão e Aristóteles mencionaram ao atribuir efeitos da música
ao comportamento humano, falando do ponto de vista do ethos
musical. A música grega antiga, e especialmente a defendida por
Platão, era eminentemente vocal – portanto, ligada a um texto
2
Neste estudo, utilizamos a mesma numeração que Rios como referência para a
obra de Aristóxeno. Ela advém da compilação de Marcus Meibom, Antiquae Musicae
Auctores, Amsterdam, 1652.
Cynthia S. de Gusmão
10
poético e também circunstancial, ou seja, destinada a ocasiões
determinadas. Por isso, parece-nos um exagero alguns autores
modernos considerarem que existiu algo como uma ciência secreta do
poder vibratório das estruturas. Winnington-Ingram, por exemplo,
analisou a questão da seguinte forma: “Essa concepção de um
caráter inerente dos modos não está restrita à Grécia; mas é visível
aqui devido à fama de alguns autores e à interpretação moral que
colocavam no caráter dos modos. (...) É mais relevante expressar
algum ceticismo, se os elementos musicais podem em si mesmos
possuir tais caracteres tão marcados. Muitos outros fatores estão em
jogo” (1968, p.3). Parece-nos necessário, portanto, não cair no erro
de justapor uma concepção de música eminentemente instrumental,
que se firmou no Ocidente a partir do século XVIII, a um
fenômeno da Antiguidade.
Aristóxeno prossegue na passagem em questão: “Todos os
assuntos que forem estudados em um nível mais abrangente, a partir
da arte das escalas e dos tons, não pertencem mais à Harmônica,
mas àquele conhecimento que abarca essa ciência e outras, pelo qual
são estudadas todas as partes da música. Essa é a conquista do
músico.”
(Meibom, 2, 1-5). Ou seja, apesar de ser “primeira na
ordem”, ela não compreende tudo, e mais, a totalidade da música
pode ser considerada a partir de um sujeito aqui incluído, o músico.
Contudo, é necessário observar que essa totalidade de que fala
Aristóxeno não abarca aqueles assuntos que ocuparam a mente de
seus antecessores pitagóricos e que constituem igualmente objetos
da Harmônica, ou Canônica. Para o autor, não está em questão a
causa das alturas musicais e de seus intervalos, o que importa é
como elas se organizam em um sistema de escalas enquanto
linguagem tonal. para os pitagóricos, com quem se inicia a ciência
da Harmônica, a importância estava na origem primeira dos
intervalos musicais, muito antes de sua organização em escalas ou de
Cynthia S. de Gusmão
11
sua função no los. Eles estabeleceram uma expressão racional da
matéria sonora, por meio da aritmética, sua principal ferramenta
teórica, alinhada analogicamente à totalidade do cosmo. Essa
corrente, nascida no século VI a.C., e que terá consequências
importantes no âmbito da física acústica e das matemáticas, não
deixou nenhum tratado e sua reconstituição deve ser feita a partir de
fragmentos como os de Filolau e Arquitas e comentadores
posteriores.
Max Weber, como explica seu tradutor brasileiro Leopoldo
Waizbort na introdução à obra, defendeu que “a autonomização da
esfera artística engendra a legalidade própria dessa esfera, que é
justamente a sua racionalização específica” (Weber, 1995, p.39). O
pensamento pitagórico se processava por analogias, considerando,
portanto, domínios extrínsecos à música para a sua explicação. Desse
modo, poderia parecer paradoxal o fato de ele ser o ponto de partida
do processo de racionalização da música ocidental e da sua
caminhada rumo à autonomização. A aritmética, como instância
extra-musical, foi determinante para o primeiro distanciamento em
relação à matéria prima tonal, o som musical, o que não ocorria
quando o mélos estava mesclado à linguagem e ao ritmo, domínios
não restritos à música, como apontamos: a linguagem, mesmo
poética, é fortemente referencial e o ritmo pode ser encontrado nos
ciclos e fluxos da natureza.
No século III a.C., as duas correntes, aristoxeniana e
pitagórica, serão vistas como antagônicas e essa dicotomia
perpetuar-se-á nas discussões musicológicas medievais e
renascentistas. Neste estudo, elas serão apresentadas com suas
distinções, mas também como integrantes do mesmo quadro geral
que tem como ponto de referência a natureza para construir os seus
princípios; para descobri-los e demonstrá-los cada escola integra a
Harmônica ora às ciências matemáticas, ora às ciências naturais ou
Cynthia S. de Gusmão
12
físicas. E cada uma delas contribuiu a seu modo para o corpus teórico
da música ocidental. O trabalho é delicado, haja vista que o
alinhamento de posição dos pensamentos subjacentes às duas
correntes sofre sucessivas inversões, talvez porque a música participe
de maneira intensa de dois campos: o da ciência e o da arte. Isso faz
dela um lugar privilegiado para observar as suas tensões.
Na dissertação, a opção pela via de investigação da Harmônica
justifica-se por ter sido a partir dela que se iniciou propriamente o
processo de racionalização do material sonoro, tal como enfatizado
por Max Weber, ou seja, o fato de a música ter sistematizado seu
material e seus meios levou-a a alcançar a autonomia de sua esfera
de existência. Nesse processo, será também importante olhar para o
desenvolvimento dos meios técnicos da música, como, por exemplo,
seus instrumentos: “A racionalização dos sons parte historicamente e,
de modo regular, dos instrumentos” (Weber, 1995, p.127), além das
formas musicais, da notação e ainda dos instrumentistas e virtuoses.
A harmônica, dentre as disciplinas da música, foi a que se
dedicou às questões de afinação dos instrumentos e das estruturas
das escalas. Ao dedilhar a sua lira, era importante para o
instrumentista grego saber que as cordas estavam afinadas
adequadamente ao modo e gênero musical e ainda ao cantor que
usualmente acompanhava. Os teóricos começaram a estudar e definir
as múltiplas estruturas musicais gregas a partir das quais uma
melodia poderia ser realizada e, ao fazer essa descrição,
desenvolveram a linguagem própria da Harmônica.
Algumas questões surgem no âmbito deste estudo. Por
exemplo, os princípios da harmônica pertencem à natureza humana,
a algo independente dela ou às duas instâncias? O som musical é
essencialmente humano, visto que é produzido pela voz humana ou
pelos instrumentos musicais. Contudo, assim que uma nota é gerada,
entra em ação uma cadeia de ressonâncias físicas, a chamada série
Cynthia S. de Gusmão
13
harmônica. Ela não é produzida deliberadamente pelo ser humano,
mas parece conduzir as suas escolhas musicais. O padrão recorrente
da série harmônica que é gerada pelo som musical, ou tom, insere-se
no quadro geral da natureza, que nós, como parte dela,
apreendemos.
As escalas musicais representam o primeiro grau de abstração
da música, antes da verificação experimental da série harmônica, que
será realizada no século XVII por Marin Mersenne. Podemos dizer
que a música produzida desde a remota Antiguidade foi guiada pela
percepção desses harmônicos, depois abstraída em escalas, muito
antes dessa medição. Aristóxeno relacionou as propriedades do som
musical à percepção humana, enquanto os pitagóricos buscaram os
padrões intrínsecos de sua estrutura.
Nesta dissertação, serão incorporados elementos advindos da
prática musical e da construção de instrumentos, pois, de fato, o
pensamento sobre a arte em geral, e a música em especial, não está
desvinculado da técnica e da ciência de seu tempo. Desse modo,
será matizada a postura de alguns musicólogos e pesquisadores que
consideram que, na Antiguidade, havia uma separação total entre a
teoria e a prática musical, baseados em especial no argumento de
que os escritos que chegaram até nós não oferecem nenhum trecho
de música, nem fazem qualquer referência à prática musical.
3
Essa é
uma dificuldade de fato; contudo, serão feitos esforços para atenuá-
la.
3
Bélis, em seu artigo “L’harmonique comme science dans l’antiquité grecque”,
defende que teria havido um divórcio total entre as áreas prática e teórica na
Antiguidade (1992, p.201-8). Contudo, no curso “De La Pierre au son: archéo-
éthnomusicologie de l’Antiquité Classique”, ministrado de 14 a 30 de agosto de
2001 no Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo, atenuou
sua posição, considerando que haveria uma hierarquia de valores, não uma
separação absoluta. Já Barker considera que existia uma interação entre as partes:
“sua relação [da harmônica] com a filosofia e as ciências naturais são mais
distantes e suas interações com o mundo real do fazer musical mais próximo do
que frequentemente se supõe” (2007, p.4).
Cynthia S. de Gusmão
14
CAPÍTULO I
OS MEIOS TÉCNICOS E A ESTRUTURA DA MÚSICA GREGA
1. As origens musicais da harmônica
O tom musical é um som discreto que se define pela relação
intervalar que mantém com outros sons de alturas determinadas.
Esses intervalos constituem o ponto de partida da Harmônica. Cada
cultura encontrou seus intervalos musicais e os fez soar por meio das
vozes, dos tubos de instrumentos de sopros, nas cordas, em
instrumentos de percussão como litofones, xilofones e metalofones,
até chegarmos à atual geração por dispositivos eletrônicos.
A contrapartida material dos instrumentos tem um papel crucial
no desenvolvimento da teoria musical, ainda que não seja possível
determinar de modo absoluto em quais situações um procedimento
técnico faz avançar o campo artístico ou, vice-versa, se a necessidade
estética antecede a busca por um avanço técnico, ou ainda, se são
acontecimentos sincrônicos.
As distâncias intervalares são a base da afinação dos
instrumentos. Em alguns casos, elas foram organizadas em sistemas
de escalas, modos e gêneros. Os intervalos geram sensações ao
serem ouvidos, descritas como prazer ou incômodo, suavidade ou
estridência, doçura ou aspereza. De acordo com essas características,
foram agrupados em symphoniai ou diaphoniai, consonâncias ou
dissonâncias.
4
O quanto essa qualificação dos intervalos é um
elemento cultural, ou não, transcende o escopo deste estudo;
4
Os intervalos considerados consonantes foram os de oitava, quinta e quarta. Em
uma escala musical ascendente com a nota como início, a oitava é a distância
entre essa nota e o dó acima, a quinta entre o dó e o sol, e a quarta entre o dó e o
fá. A nomenclatura das notas como dó, ré, mi, fá, sol, lá, si, dó surge na história da
música somente na Idade Média, mas utilizo aqui para simplificar os termos gregos.
Cynthia S. de Gusmão
15
contudo, muitos povos buscaram formas de definir com exatidão os
intervalos musicais.
Entre as grandes civilizações anteriores ao período arcaico
grego (800 a 500 a.C.), os chineses deram muita ênfase à precisão
dos intervalos musicais, que estabeleceram possivelmente por volta
de 2.600 a.C. a partir de uma sequência de bambus cortados em
exatos intervalos de quinta, os tubos-diapasões lyu. Na Mesopotâmia,
cerca de 3.000 a.C., os sumérios possuíam uma apurada técnica de
construção de instrumentos. Ali, em um baixo-relevo das ruínas da
cidade de Lagash (sul do Iraque atual) está representado um músico
tocando uma cítara aparentemente de 11 cordas. Os impérios assírio
e babilônio, fundados por volta de 2000 a.C., foram fecundados pela
civilização suméria. Nas escavações da cidade de Ur (também no
Iraque) foram encontradas flautas, harpas, liras de 5 a 11 cordas,
alaúdes e uma harpa de cordas percutidas por baquetas.
5
Uma descoberta importante para a teoria musical foi a de três
tábuas em escrita cuneiforme contendo um método de afinação de
uma espécie de lira de nove cordas.
6
A partir delas foi possível
decifrar um sofisticado mecanismo de afinação alternando quartas e
quintas consonantes com o objetivo de formar escalas que dividem a
oitava em sete partes. Esse sistema mostrou-se semelhante ao
grego, que talvez tenha aí a sua origem, mas o mais importante é
que a descoberta das tábuas babilônicas apresenta a mesma
predominância de quartas e quintas que se encontra na teoria e na
prática musical do Ocidente.
Desde a Idade do bronze, a península grega não era uma
região isolada, mas fazia parte do complexo do mar Egeu, rota entre
5
Ver, a esse respeito, Candé, 2001, vol. 1, p. 102-148.
6
As tábuas foram decifradas pela Profa. Anne Draffkorn Kilmer, do Centro de
Estudos do Oriente Médio da Universidade de Berkeley, Califórnia, que descreveu a
teoria da afinação babilônica em 1971: “The discovery of an ancient mesopotamian
theory of music”. In: Proceedings of the American Philosophical Society, n
o
. 115, p.
131-149, apud Franklin, 2002, p. 441-442.
Cynthia S. de Gusmão
16
o Egito e o Oriente Próximo, a leste, e a península itálica, a ocidente.
O povoamento grego na costa da Ásia Menor e das ilhas próximas
iniciou-se por volta de 1050 a.C. As tradições da Mesopotâmia
alcançaram as regiões da Síria e da Fenícia, mais tarde chegaram à
Ásia Menor e dali à Grécia. Além disso, entre 750 a 700 a.C, ocorreu
a expansão do império assírio em direção a Ocidente no período
conhecido como orientalizante. Entre os elementos culturais
mesopotâmicos que penetraram mais profundamente na região
egeana nesse momento estão os instrumentos musicais e suas
formas de afinação.
2. Os instrumentos musicais gregos
Um dos instrumentos mais importantes para a cultura musical
grega foi o aulos, um instrumento de sopros que utilizava uma
palheta, tal como o oboé. Os tubos dos primeiros auloi apresentavam
apenas quatro orifícios, portanto, era necessário trocar de
instrumento de acordo com a escala (modo) em que a peça musical
era executada. Ateneu narra, em sua obra Deipnosophistae, que foi
Pronomus de Tebas “o primeiro a construir auloi adequados a vários
tipos de harmonía e a tocar no mesmo aulos melodias bem
diferentes. Diz-se que ele deleitava a audiência ao extremo com suas
expressões faciais e o movimento de todo o corpo” (631e apud
Mathiesen, p. 184).
O aulos demorou para ser aceito como um legítimo instrumento
grego, como demonstram os mitos associando-o aos cultos de Cibele
e Dioniso, deuses considerados originários da Ásia Menor. Aos
poucos, ele foi ganhando espaço e, no século V a.C., figurava como o
instrumento da orquestra nas apresentações teatrais, possivelmente
pela capacidade expressiva e também por sua potência de som. As
competições auléticas foram importantes para o desenvolvimento da
Cynthia S. de Gusmão
17
música instrumental. O aulos possuía uma grande flexibilidade,
possibilitando as sutilezas das múltiplas escalas descritas nos
tratados musicais, e é provável que os auloi duplos permitissem a
execução de intervalos diferentes simultâneos, produzindo uma
espécie de diafonia primitiva.
Aristóxeno, em Elementos de Harmônica, será um crítico da
flexibilidade do aulos devido à ausência de estabilidade de seus tons.
A busca do tarentino será por um conjunto de sons estáveis e
organizados, condição do discurso científico aristotélico: “A aquisição
inicial do conhecimento não ocorre pelo vir a ser; pois, de acordo
conosco, a razão conhece e pensa por meio do repouso e da
imobilidade” (Física, VII, 3, 247b 10-13. Apudlis, 1986).
Motivos similares levarão também Platão a colocá-lo na lista de
instrumentos que deverão ser expulsos da sua Politéia. Além da
própria característica variável do sopro que produz o som no aulos,
são documentados os movimentos de corpo e expressões faciais dos
auletistas ao executarem as peças musicais, o que era acentuado
pela própria dificuldade de execução do instrumento que, em peças
mais longas, exigia um acessório, a phorbéia, uma faixa feita de pele
de animal que acomodava o instrumento duplo. Em uma escultura de
Praxíteles (por volta de 360 a.C.), está retratada a disputa na qual a
música de Apolo, representada pela cítara, é julgada superior à de
Marsyas, esculpido nu portando um aulos duplo. Como perdedor, na
história, Marsyas é enforcado e esfolado uma demonstração,
esperamos, exagerada, de como os gregos levavam a sério a sua
superioridade.
Mas, embora visto com desconfiança pelo fato de ser um
instrumento estrangeiro e por ter introduzido muita sofisticação às
tradições sagradas dos gregos, o aulos tornar-se-á um dos três
instrumentos mais importantes do período clássico grego, junto com
Cynthia S. de Gusmão
18
a lira e a cítara, participando do teatro, dos festivais, da educação e
da vida cotidiana.
Ainda que os instrumentos de sopros e percussão fossem
indispensáveis à música grega, a classe de cordófonos foi o seu
fundamento, principalmente no que se refere à ciência musical. Essa
ênfase nos instrumentos de cordas vai prevalecer no mundo ocidental
quando o assunto for teoria e sistemas de afinação. No século XVII,
Marin Mersenne, no “Primeiro livro dos instrumentos” de sua obra
Harmonia universal, iniciará o estudo dos instrumentos musicais
pelos instrumentos de cordas, considerando que eles “são mais
simples e fáceis de compreender, pois as cordas representam as
linhas e servem para explicar e demonstrar tudo o que pertence à
música” (1986, p.2). Também Max Weber irá observar que “nas
cordas há uma maior racionalização do sistema de tons”
(1995,
p.73).
E a música ocidental terá de esperar até o século XX para que
os compositores concedam aos instrumentos de sopro e percussão o
mesmo status daqueles de corda e teclado.
Na Grécia, possuíam importância especial os diversos tipos de
liras como a kélis lira, o barbitos e a cítara. Nas liras, as cordas são
tocadas com um plectro, diferente dos psaltérios, ou harpas, que são
dedilhados. As liras possuíam cordas mais ou menos iguais em
comprimento, enquanto as harpas possuíam cordas graduadas. As
cordas, em geral feitas de tripa de carneiro, não resistiram ao tempo,
mas seu número nos instrumentos é bem documentado em fontes
literárias e iconográficas. É possível observar também a presença de
cravelhas para uma maior precisão na afinação dos instrumentos.
3. Aspectos da terminologia musical grega
Em grego, o tom musical, dizia-se tonos. A raiz da palavra é a
mesma do verbo grego teíno, que significa esticar ou tensionar.
Cynthia S. de Gusmão
19
Considera-se que a palavra tonos tenha sua origem no ato de
tensionar a corda de uma lira, alterando sua relação com outra corda
de um intervalo de quinta para quarta, marcando a diferença de um
tom entre ambas
7
.
Os nomes das notas (phtongos) estavam diretamente
relacionados a sua posição na corda e, até mesmo, ao dedo que a
tocava, pois líkanos é o nome de uma nota e do dedo indicador. É
bom relembrar que, no caso das liras, as cordas não eram dedilhadas
e sim, tangidas por um plectro; portanto, essa terminologia talvez
fosse oriunda dos instrumentos de cordas dedilhadas, da classe dos
psaltérios. Para West, os nomes de outras notas também poderiam
estar relacionados a sua posição: mése seria referente ao dedo médio
e tríte, ao terceiro dedo, anular (Cf. 1981, p.120-1). Essa concepção
enfatiza a perspectiva de uma origem material para o sistema grego
em tetracordes, sequências de quatro notas, em que cada nota
corresponderia a uma corda do instrumento. De qualquer modo, a
forma de nomear as notas era diferente das que conhecemos hoje.
Nossa nota é um tom específico ou frequência, em linguagem
moderna. as notas gregas referiam-se a uma posição dentro do
tetracorde ou do instrumento.
Outros termos musicais estariam associados à prática
instrumental, por exemplo, a oposição entre tom “alto” (ano) e
“baixo” (kato). Inversamente ao que estamos acostumados, o
primeiro referia-se ao som mais grave e o segundo, ao mais agudo.
Isso porque mais “alta” era a corda mais distante do instrumentista
em posição de execução da lira ou da harpa, e vice-versa.
Essas denominações advindas da prática instrumental não eram
acolhidas por teóricos como Aristóxeno. Como observa Bélis,
“Aristóxeno não utiliza os termos ano e kato; ele diz sempre grave e
agudo, talvez por sua firmeza doutrinal: repugnar-lhe-ia trazer
7
Ver, a esse respeito, West, 1981, p.119-120.
Cynthia S. de Gusmão
20
emprestado denominações da prática instrumental, uma vez que se
recusava a tomar por critério de julgamento tanto o aulos como a
lira” (1986, p.136).
4. As cordas e a estrutura musical grega
Franklin (2002, p.444) defende que teria havido, no início da
era arcaica grega, um confronto entre a poesia épica, cantada com a
lira de quatro cordas, e a poesia lírica, cantada com a lira de sete
cordas. Essa transição entre os dois gêneros poéticos é significativa
nos poemas homéricos, feitos provavelmente por cantores
profissionais que se apresentavam nos festivais. Sua forma definitiva
ocorre no período arcaico, mas eles pertencem ainda à tradição
anterior, épica aristocrática, e mantiveram a métrica e a forma do
gênero. Cada poema era dedicado a um deus do panteão grego. No
poema dedicado a Hermes, o poeta conta como o deus inventou” a
lira de sete cordas para dar de presente a Apolo, o deus da tradição
épica. No hino, são descritos detalhes da construção da lira, o
material utilizado (casco de tartaruga, couro de boi, cordas de tripa),
assim como a forma de execução com o plectro. Contudo, essa
interpretação de que a lira do período épico teria quatro cordas não é
aceita por estudiosas como Martha Maas e Jane McIntosh Snyder,
que descreveram detalhadamente os instrumentos de cordas gregos.
De acordo com as autoras, “o número de cordas nos instrumentos do
tipo lira, desde as liras minóicas antes do século XI até a tara, o
barbitos, e a kélis lira dos séculos V e IV provavelmente
permaneceram as mesmas” (1989, p. xvi). Para elas, o mero de
cordas que aparece nas iconografias está relacionado ao material
empregado, ao espaço disponível para a reprodução no artefato e ao
grau de realismo do artista. “A confusão, prosseguem elas, foi
construída pela interpretação influente de Deubner das linhas
Cynthia S. de Gusmão
21
atribuídas a Terpandro nas quais o poeta se refere à phorminx de
sete tons” como opostas à “canção de quatro vozes”. Portanto, a lira
de sete cordas teria existido, no mínimo, desde a Guerra de Tróia, até
Alexandre, o Grande.
De qualquer forma, os tetracordes foram o núcleo da música
grega e é certo que Terpandro, poeta lírico do século VII a.C.
originário da ilha de Lesbos, acompanhava-se de um instrumento de
sete cordas.
8
A lira de sete cordas possibilitou ao músico ampliar a
execução musical até uma oitava entrelaçando dois tetracordes. O
texto aristotélico Problemas Musicais registra que foi Terpandro quem
afinou a lira de sete cordas, de modo que ela abrangesse uma oitava,
que, por isso, chamava-se diapason, pois passava por todas as
cordas, e não diokto, pelas oito cordas (XIX, 32, 920a 14-18). Os
nomes dados às consonâncias diapason para a oitava, diapente, a
quinta e diatessaron, a quarta eram uma abreviação de diá pason
chordon symphonia, a consonância produzida passando por todas as
cordas; diá pente chordon symphonia, a consonância produzida por
cinco cordas, e diá tessaron chordon symphonia, por quatro cordas. O
que fica evidente com essa terminologia é que os instrumentos de
cordas eram afinados nessas consonâncias e, mais do que isso, eles
eram a própria referência para a afinação.
O número de cordas ultrapassa a simples busca por um efeito
sonoro, relacionando-se com a estrutura de todo o sistema. Os
heptacordes teriam evoluído para octocordes. De acordo com os
Problemas aristotélicos, a prova de que antes a escala era heptacorde
é a denominação da nota mése, média. Como poderia haver uma
nota média em oito cordas se o mero oito não tem meio? A
denominação mése, portanto, viria de uma escala heptacorde
(XIX,
8
Plutarco, em sua obra De musica, narra que Terpandro ficou conhecido por ter
feito uma inovação nessa lira homérica, aumentando o número de cordas de quatro
para sete. Apud Mathiesen, 1999, p. 243.
Cynthia S. de Gusmão
22
25, 919b 20-22).
9
Essa afirmação enfatiza uma concepção aritmética
do sistema e parece anular a hipótese de West de que a denominação
mése referir-se-ia ao dedo médio que tangia a corda. Bélis considera
que a conclusão aristotélica, no entanto, é uma prova de que os
teóricos estavam afastados da prática musical e que, ao buscarem
construir seus sistemas, ficavam confusos com a terminologia
advinda da prática (Bélis, 1986, p.136-137).
Para Winningtom-Ingram, mais importante que determinar a
origem do termo mése é perceber que ela funcionava como um
centro tonal da melodia. Ele considera plausível a hipótese de que o
tetracorde primitivo tenha desenvolvido para um heptacorde, por
meio do encaixe de dois tetracordes: “se no tetracorde sozinho a nota
superior da quarta atraía a atenção sobre si, dentro do heptacorde, a
mése, verdadeiramente assim chamada por estar na junção dos
tetracordes, era o foco da melodia. Mais tarde, a consonância da
oitava foi percebida e o heptacorde tornou-se um octocorde. A
tendência melódica descendente (tal como podemos postular para a
música primitiva) fez com que o tetracorde superior fosse alcançado a
partir do limite superior [ou seja, saltando para a oitava e descendo]
o que levou a criar um tom disjunto entre os tetracordes” (1968,
p.26).
Em algum momento, portanto, dois tetracordes foram
separados por um tom inteiro, provavelmente a partir da inserção de
mais uma corda musical na lira. O importante é que essa corda, ou
esse tom, foi inserido entre os tetracordes, e não em uma das
extremidades da escala musical. E essa alteração teve consequências
profundas na teoria musical grega. A oitava passou a ser percebida e
considerada o ponto de partida da teoria musical, dividida em dois
intervalos desiguais: uma quarta e uma quinta. O sofisticado sistema
9
Nicômaco de Gerasa, no Manual de harmônica, cap. V, narra que Pitágoras teria
colocado uma oitava corda na lira criando a escala de oito notas.
Cynthia S. de Gusmão
23
de modos gregos (harmoniai) organizou-se a partir das posições
desses intervalos.
Podemos ver a escala octocorde, de oito notas, como a reunião
de dois tetracordes como um tom no meio ou, como prefere Del
Grande, “um tetracorde mais um pentacorde” (1960, p.406). As
notas extremas eram então néte, a última nota, mais aguda, e
hypate, a primeira, mais grave, formando um intervalo de oitava. A
néte era a corda que ficava mais próxima do instrumentista na
posição de tocar a lira, a tara, a harpa. Hypate era a mais distante.
As escalas eram organizadas de modo descendente e, portanto, a
partir da néte, ficavam paranéte (ao lado da néte), tríte (a terceira),
a nota inserida ao lado e acima da mése (paramése), em seguida,
mése, likanós, parypate e hypate.
5. O epigoneon e a pandora
No período clássico, as liras estiveram na base da educação
musical grega, levando os cidadãos a um alto vel de exigência
crítica em relação a seus executantes. O tipo de lira preferido pelos
profissionais era a cítara, com sua ampla caixa de ressonância. Ela
era utilizada pelos citaredos, combinação das palavras cítara e aedo,
cantores.
Os psaltérios, ou harpas, possuíam grande número de cordas e
eram tocados por virtuoses que provavelmente começaram a
desenvolver uma música instrumental, tal como os auletistas. De
acordo com Mathiesen (1999, p.270), alguns tipos parecem ter sido
exclusivos das mulheres e também é possível que esses instrumentos
estivessem associados aos cientistas musicais que surgiram no século
VI a.C. O epigoneion possuía 40 cordas e era tocado na posição da
harpa como conhecemos, em pé. O nome adveio de seu construtor,
Epígono de Sycion, mencionado por Aristóxeno (Meibom,3,20-24)
Cynthia S. de Gusmão
24
como um músico-téorico que, junto com Lasos de Hermíone, achava
que o som musical possuía largura.
Mathiesen aponta ainda o fato de que o autor grego Atheneu,
na sua obra Deipnosophsitae, diz que a escola de Epígono era
conhecida por sua música complexa, dramática e expressiva e que o
estilo foi adotado por citaristas que, entre outras coisas, passaram a
esticar mais as cordas para alcançar um volume maior de som.
Na mesma passagem, Mathiesen observa que o termo utilizado
por Atheneu para descrever esse fato, psilokitharistiké, lembra a
objeção de Platão à psilé kithárisis na sua discussão sobre mimesis na
obra Leis. Ali, Platão rejeita a música puramente instrumental,
considerando que o texto é essencial para a mimesis: “e eles usam
música solo de cítara e aulos, que é difícil de entender sem um texto
para compreender a intenção do ritmo e da melodia e com qual dos
modelos eles se parecem. Mas é preciso perceber que a coisa é
também cheia de grosseria. Pelo fato de serem excessivamente
amantes da velocidade, das minúcias e dos sons bestiais, eles
praticam o aulos e a cítara sem dança ou canção. Qualquer pessoa
que utilize um dos dois instrumentos solo é dado a feitiços e a anti-
música” (amousía kaí thaumaturgía) (Platão, Leis, 669d-670a. Apud
Mathiesen, 1999, p.270).
Outro instrumento de cordas que apareceu na música grega
vindo do Oriente foi a pandora, da classe dos alaúdes.
Surpreendentemente, apesar de haver indícios da presença desse
tipo de instrumento no lado oriental do Mediterrâneo, sua
representação nas figuras e relevos gregos que chegaram até nós, só
ocorre no período das campanhas persas de Alexandre, em torno de
330 a.C. Parece que o instrumento, chamado também de skindapsos,
foi trazido nesse momento. Segundo Mathiesen, existe ainda uma
referência de lux, em seu livro Onomasticon, de que a pandora
havia sido inventada pelos assírios e que possuía três cordas. Para o
Cynthia S. de Gusmão
25
autor de Apollo’s Lyre, o braço da pandora era trasteado, as cordas
eram três e o instrumento possuía algumas vantagens sobre as liras:
“Um instrumento com braço trasteado poderia facilmente produzir
com grande precisão muito mais tons em três cordas do que qualquer
instrumento multicordas. Além disso, por possuir apenas três cordas,
era mais fácil afinar e sua afinação como um todo seria mais estável”
(1999, p.285).
Esse tipo de instrumento certamente era mais propício à
descoberta dos princípios matemáticos na música, pois a afinação
seria feita por divisão da corda, algo impossível na lira. No entanto, o
instrumento teve papel inexpressivo na cultura musical grega. Seria
por sua pequena intensidade sonora comparando-se às cordas que
vibravam mais livremente e à grande caixa de ressonância da cítara?
É possível que os gregos, aficionados das grandes apresentações ao
ar livre, não achassem o instrumento adequado a suas competições e
festivais. Outra hipótese é a dificuldade de mudança de todo um
sistema que, como vimos, apoiava-se nos instrumentos de cordas do
tipo lira e harpa.
Curiosamente, a classe das liras não se desenvolverá na
história da música ocidental, ficando restrita à música dos povos
africanos e asiáticos. os instrumentos do tipo psaltério terão uma
longa trajetória no Ocidente. Além da presença marcante na música
renascentista, serão importantes no impulso da ciência musical com
Vincenzo Galilei, que era alaudista e discutiu questões de afinação a
partir de seu instrumento. Marin Mersenne, no Segundo livro dos
instrumentos da sua obra Harmonia Universal, dedicado mais
amplamente a questões de afinação, inicia o trabalho pelo estudo
detalhado do alaúde.
Cynthia S. de Gusmão
26
6. A afinação e os gêneros musicais
A prática de afinação dos instrumentos de sete, oito ou mais
cordas gregos provavelmente assemelhava-se ao mecanismo
babilônico mencionado anteriormente, partindo das consonâncias de
quartas e quintas. Os músicos conhecem a praticidade desse tipo de
sistema, registrada por Aristóxeno: “nossa percepção é mais
confiável no que diz respeito aos intervalos de tamanhos consonantes
que dos não consonantes e a afinação dos intervalos não consonantes
será mais precisa quando for alcançado através de uma consonância”
(Meibom, 55, 4-7). Esse processo de afinação era chamada do
lépsis diá symphonious, ou seja, a “pegada” da afinação pela
consonância.
O sistema musical grego desenvolveu-se admiravelmente e
alcançou uma enorme sofisticação, como demonstra a classificação
dos gêneros musicais, definidos pela distribuição dos intervalos nos
tetracordes que, por sua vez, formavam as escalas ou os modos.
Esses modos podiam organizar-se em tropos a partir de
transposições.
No gênero diatônico, o tetracorde era dividido em dois tons e
um semitom. Os outros dois gêneros, cromático e enarmônico,
apresentavam distâncias de tom e meio e meio-tom (cromático) e de
dois tons e quarto de tom (enarmônico). Aristóxeno vai considerar o
gênero diatônico o mais “natural”: “o diatônico deve ser considerado
o primeiro e mais antigo, pois a natureza do homem o conduziu a ele
primeiro, depois ao cromático e, por último, ao enarmônico, que é o
último com o qual a nossa percepção acostuma-se e depois de muito
esforço” (Meibom, 19, 14-17).
Essa definição aristoxeniana acerca do gênero diatônico, no
entanto, entra em contradição com outro trecho um tanto obscuro do
Elementos de harmônica no qual o autor fala dos “antigos modos de
Cynthia S. de Gusmão
27
composição” (Meibom,23,7-9), provavelmente referindo-se ao gênero
enarmônico
10
. A pequena confusão histórica deve-se ao fato de não
existir ainda uma concepção de abordagem rigorosa da história da
música, disciplina que Aristóxeno iniciava propriamente a delimitação.
De qualquer modo, sua preocupação, ao definir a ciência do mélos,
era estabelecer pontos fixos e, para tal, o gênero diatônico era
exemplar. Como veremos, a afinação proposta pelos pitagóricos
também estava centrada no gênero diatônico.
No século IV a.C., as escalas abrangiam quinze ou onze tons,
formando o “Grande Sistema Perfeito”, com quatro tetracordes
encaixados e o “Pequeno Sistema Perfeito”, com três tetracordes.
Quando iniciamos o estudo da música grega da Antiguidade,
chama a atenção a inexistência de uma transmissão direta, que
ocorreu em outras civilizações de cultura musical muito antiga e
altamente sofisticada, como a da Índia, por exemplo. A música grega
e os instrumentos musicais de época tiveram de ser reconstituídos
por meio de estudos empreendidos por especialistas em refazer os
parcos papiros, decifrar a escrita musical em muros ou em
fragmentos esparsos. E isso só teve início no século XIX.
Com o desenvolvimento da escrita alfabética, no século V a.C.,
os antiquíssimos poemas homéricos foram cristalizados no aspecto
visual da letra. Os jovens estudantes de música seguiam aprendendo
de memória, sem fazer uso da escrita. Os profissionais contratavam
os melógrafos que se encarregavam da escrita musical. A escrita
musical facilitava o intercâmbio nessa época em que era grande a
curiosidade, por exemplo, em saber qual a última ária de Eurípides;
por outro lado, fez ruir o processo de transmissão oral, e a música
praticada na Grécia ficou restrita a frágeis suportes sujeitos às
intempéries do tempo. Os fragmentos de escrita musical grega que
10
Ver, a esse respeito, Rosetta da Rios (1954, p.34, nota 2). Del Grande cita o
Fragmento W.85 de Aristóxeno, no qual ele reconheceria também a anterioridade
do gênero enarmônico (1960, p. 402) .
Cynthia S. de Gusmão
28
sobreviveram estão basicamente relacionados ao teatro e à poesia. A
música instrumental, por ser mais complexa e mais virtuosística,
quase não foi preservada.
Assim, a música grega praticamente desapareceu no contato
com a força do Cristianismo, que, no entanto, manteve a tradição dos
modos sistematizados apesar das conhecidas – e talvez deliberadas –
alterações nas denominações dos modos. Os padres da Igreja talvez
tivessem em alta consideração as recomendações de Platão e
Aristóteles sobre o poder da música e inverteram os modos pagãos,
esperando, assim, inverter os mundos.
Mas se a música grega permanece enevoada no tempo, o
mesmo não aconteceu com a ciência musical grega, que influenciou
radical e silenciosamente a música ocidental como um todo. O início
se com Pitágoras, cujos experimentos lançaram os fundamentos
de toda a especulação físico-matemática da música do Ocidente,
muito embora a redução da música à matemática tenha colocado
problemas para serem resolvidos pela teoria musical subsequente.
Cynthia S. de Gusmão
29
CAPÍTULO II
AS ORIGENS MATEMÁTICAS DA HARMÔNICA
1. As disciplinas matemáticas
No século VI a.C., ocorre a primeira explicação matemática dos
tons musicais, mais especificamente das consonâncias, symphoniai. A
descoberta, que se deu no âmbito da escola pitagórica, marca o início
da harmônica. Os estudos são dificultados tanto pela falta de
documentos quanto pelo excesso de lendas e anedotas sobre
Pitágoras (c. 580/78 497/6 a.C.). Assim, o legado da escola
pitagórica é reconstituído a partir de alguns poucos fragmentos do
século V a.C., textos dos séculos IV e III a.C. e comentadores
posteriores.
As especulações sobre a natureza empreendidas pelos
primeiros pitagóricos eram puramente matemáticas. Por exemplo,
nos sistemas astronômicos que desenvolveram, tudo se movia em
um espaço geométrico perfeito: os corpos celestes eram descritos
como esferas que se moviam em círculos, figuras e movimentos
matematicamente perfeitos. Como observa Thomas Heath, a
astronomia pitagórica “é pura matemática, é geometria combinada
com aritmética e harmonia (...). As matemáticas pitagóricas,
portanto, são uma ciência única, e a sua ciência é toda matemática”
(1981, p.165).
Esse corpo de disciplinas estava entrelaçado pela concepção de
número, formando um grupo denominado na Antiguidade de ciências
irmãs. Uma das referências mais antigas a esse conjunto está no
fragmento da obra Harmonia de Arquitas de Tarento (c. de 400 a 365
a.C.): “De fato, sobre a velocidade dos astros, sua ascensão e
Cynthia S. de Gusmão
30
declínio, transmitiram-nos (os matemáticos) claros conhecimentos;
também sobre geometria, ciência dos corpos celestes e não menos
sobre música. Pois essas ciências parecem ser afins; pois se ocupam
de coisas afins: as duas formas primeiras do ser” (DK 47, B 1).
O termo grego máthema significava em sua origem estudo,
conhecimento. Para os pitagóricos, o conhecimento estava
diretamente relacionado à ciência dos números. A música era
considerada uma das matemáticas por se ocupar das razões e das
proporções numéricas. É esse sentido original que está presente na
obra de Platão, onde aparece pela primeira vez o termo harmônica,
no neutro plural grego harmoniká (Cf. Barker, 2007, p. 6, nota 1).
No diálogo Fedro, Sócrates explica que saber se uma corda é mais
grave ou mais aguda faz parte da mathémata necessária, ou seja, do
aprendizado da música. Mas para que alguém seja verdadeiramente
músico, deve conhecer tá harmoniká (268e).
11
No período clássico, as disciplinas matemáticas estarão
integradas à educação básica. No diálogo platônico Teeteto, Sócrates
questiona o jovem Teeteto sobre as disciplinas que aprende com seu
professor Teodoro. Teeteto afirma que estuda as quatro disciplinas
matemáticas geometria, astronomia, música (harmonias) e
aritmética (logísmous) e ainda técnicas (téknai) como o ofício de
sapateiro e outros (145a-d). Em Leis, a ideia de tría mathémata
surge mais definida (817e, apud Heath, 1981, p. 19). Seria o grupo
da aritmética, geometria e astronomia. No Epinomís é acrescentada a
música (990c-991a).
Em seu livro Timeu, Platão descreve como a alma do mundo tece
o mundo corpóreo “sem música nem ruído” (aneu phtongou kái
ekes), sem nenhuma referência também a ritmo. A narrativa
terrificante é a descrição dessa música teórica, que seria irmã da
11
No trecho do Fedro em questão, o músico diria ao não músico: “Conheces o
estudo básico da harmonia, mas não a harmônica” (ta gár pro harmonias anankaia
mathémata epístasai all’ou tá harmoniká).
Cynthia S. de Gusmão
31
astronomia teórica, tal como apresentadas por Sócrates no Livro VII
da República: “tal como os olhos fixam-se na astronomia, assim os
ouvidos fixam-se no movimento harmônico, essas duas ciências são
irmãs, tal como dizem os pitagóricos, e nós concordamos” (530d).
Platão defendia que deveríamos nos concentrar não nas estrelas
e seus movimentos, mas no céu abstrato da matemática, ou seja,
não na beleza do céu, mas na beleza da teoria que os astros
imitam. A astronomia estuda o movimento dos corpos, o
movimento “harmonioso” (enarmónious phorá) ocorre a partir das
leis da harmonia. Contudo, esse movimento harmônico não é uma
referência aos movimentos dos tons no tempo, mas a uma ideia
imanente do som musical, em que cada tom possui uma velocidade
de movimento determinada.
Na filosofia aristotélica haverá uma primeira ruptura com essa
concepção de ciência exclusivamente ligada às matemáticas. No
segundo capítulo do Livro II da Física, Aristóteles faz a distinção entre
as disciplinas físicas e matemáticas: os objetos matemáticos podem
ser estudados de maneira abstrata, mas não os corpos naturais ou
físicos, que devem ser investigados pela física.
Aristóteles observa, no entanto, que existem ciências que
trabalham com objetos naturais, de maneira matemática, como
acontece com o som musical: “isso aparece nas mais físicas dentre as
matemáticas: a óptica, a harmônica e a astronomia, pois, de certo
modo, elas se comportam de maneira inversa à geometria; pois a
geometria estuda a linha física, mas ela não é física ao contrário, a
óptica estuda a linha matemática, não enquanto matemática, mas
enquanto física” (Física, II, 2, 194a 7). É conhecida a posição de
Aristóteles no que diz respeito à contestação do pitagorismo. Mas
suas objeções referem-se à metafísica e à astronomia; no que tange
às razões pitagóricas, ele estava de acordo que elas fossem os
princípios dos intervalos musicais e das consonâncias.
Cynthia S. de Gusmão
32
No final do século IV d.C., o autor romano Boécio, em sua obra
Institutione musica incluirá a música no grupo de ciências do
quadrivium, aquelas que lidam com o número, estabelecendo uma
oposição com o que chamou de trivium, que representava as ciências
da linguagem: lógica, gramática e retórica.
12
A música foi dividida em
três partes musica mundana: a harmonia das esferas, dos
elementos e das estações; musica humana: harmonia da alma e do
corpo humano; e musica in instrumentis constituta, que era a música
produzida pelos instrumentos de sopros, cordas e percussão. Essa
divisão criava uma hierarquia de valores e aprofundou a divisão entre
a especulação teórica da música e sua prática. Em um eco da filosofia
platônica, para Boécio, apenas aquele que conhecia os princípios da
musica mundana poderia ser chamado musicus.
Essa busca pela “verdadeira ciência” produzirá efeitos colaterais
negativos flagrantes na prática musical pois tão logo o que é
simples e ideal interage com a multiplicidade, instauram-se os
conflitos. O encaixe harmônico entre os dois mundos não está dado.
Um exemplo disso ocorrerá no século XVI, quando um problema
técnico de afinação levará à contestação de todo o pensamento
subjacente à teoria musical pitagórica.
2. As razões numéricas musicais
Pitágoras nasceu na ilha de Samos, um dos povoamentos
gregos na costa da Ásia Menor. A partir dessa posição geográfica
privilegiada, relatos de que ele teria visitado o Egito, a
Mesopotâmia e mesmo a Índia, até transferir-se, por volta dos seus
50 anos, para o ocidente grego (Cf. Jâmblico, 2003, p. 29-36.). Tanto
a matemática egípcia quanto a babilônica utilizava como constitutiva
12
O quadrivium reunia a aritmética, que trabalha com o número em si mesmo; a
geometria, com as magnitudes imóveis; a astronomia, com as magnitudes móveis,
e a música, com as razões e proporções.
Cynthia S. de Gusmão
33
da ideia de número o conceito de frações como representação das
divisões de um todo. Contudo, na Grécia, uma fração era vista como
uma razão, ou seja, uma relação entre números inteiros. Como
explica Boyer, “um tal ponto de vista, que focaliza a atenção sobre a
conexão entre pares de números, tende a por em relevo os aspectos
teóricos do conceito de mero e a reduzir a ênfase no papel do
número como instrumento de cálculo ou de aproximação de medidas”
(1999, p.36).
O ponto de partida da Harmônica ocorre justamente quando as
consonâncias são descritas como relações entre números ou razões
numéricas: 2:1, a oitava; 3:2, a quinta e 4:3, a quarta.
13
A teoria é
atraente por sua beleza e simplicidade, pois desvela com os quatro
primeiros meros o fato das consonâncias serem agradáveis ao
ouvido.
Com a tradução do som musical, mais precisamente, dos
intervalos musicais, em razões numéricas, Pitágoras ou os pitagóricos
descobriram as mais antigas leis quantitativas da acústica e, talvez,
da física matemática: a proporcionalidade inversa entre a altura e o
comprimento de uma corda vibrante. Teria a descoberta partido de
uma observação empírica? E se a resposta for afirmativa, em que tipo
de aparato científico ou instrumento musical foi feita a observação?
Ou teria partido de uma hipótese absolutamente teórica? De qualquer
maneira, as razões numéricas realizaram uma síntese que, para os
pitagóricos, confirmava a existência de uma analogia entre a
harmonia e toda a natureza por meio de um princípio de unidade e
coesão: o número.
O discurso pitagórico tinha também caráter sagrado. Um
aspecto que costuma ser relacionado à descoberta das razões das
consonâncias é de origem simbólica. Os números 1, 2, 3 e 4
13
A atribuição desse feito a Pitágoras é dada não só por seus seguidores, mas
também por representantes de outras escolas. Ver Delatte (1974, p. 258).
Cynthia S. de Gusmão
34
formavam a tetráctys, uma das partes essenciais da aritmologia
pitagórica. A tetráctys era considerada o princípio organizador do
cosmo. Várias analogias eram estabelecidas a partir dela. Na
natureza, as coisas estariam dispostas em conjuntos de quatro. Era
possível desenhar o primeiro sólido com quatro pontos no plano. A
soma dos quatro primeiros números resulta no número dez,
considerado perfeito por vários motivos, por exemplo, por reunir as
quatro dimensões: um: o ponto; dois: a reta; três, o triângulo e
quatro, o primeiro poliedro, o tetraedro. É difícil saber exatamente
como esse simbolismo místico impulsionou a descoberta das razões
das consonâncias mas a tetráctys talvez possa ser considerada a
chave da descoberta das leis acústicas dos intervalos musicais. A
coincidência das razões dos quatro primeiros números com a
harmonia consonante confirmava a aritmologia pitagórica, que
determinou, dessa forma, o caminho da ciência musical do Ocidente.
3. A coesão harmônica da natureza
A primeira fonte escrita que chegou até nós dessa proto-ciência
pitagórica são os fragmentos do livro Sobre a natureza, de Filolau de
Crotona, que viveu aproximadamente de 470 a 385 a.C., na cidade
de Crotona, sul da Itália, onde floresceu a escola pitagórica e na qual,
de acordo com a tradição, viveu o próprio Pitágoras. Segundo
Diógenes Laércio, Filolau foi identificado por Aristóxeno que tinha
conexões fortes com os pitagóricos, pois seu pai pertenceu à escola –
como sendo da última geração de pitagóricos (D.L. VIII 46, apud
Huffmann, 2005, p.2.). Nos fragmentos de Filolau, encontramos
também temas comuns à filosofia pré-socrática, como o conceito de
harmonia.
Na filosofia de Empédocles de Agrigento (c. 490-435 a.C.), a
harmonia é um princípio de coesão dos elementos e tem seu oposto
Cynthia S. de Gusmão
35
em neíkos, princípio de separação e destruição. Para Heráclito de
Éfeso (c. 540-470 a.C.), o elemento contrário é parte da estrutura
harmônica: “não compreendem como o divergente consigo mesmo
concorda; harmonia de tensões contrárias como a do arco e da lira”
(DK 22 B 51). A palavra grega palíntonos, traduzida aqui pela
expressão de tensões contrárias, enfatiza a noção de simetria de
tensões, presente no termo harmonia que, até hoje, traz subjacente
essa concepção de equilíbrio de forças.
A raiz grega da palavra harmonia, >har, define um campo
semântico relacionado às ações de ajustar, articular, encaixar. O
substantivo harmós, portanto, pode ser traduzido por articulação,
junção, encaixe e pertence também à esfera da visão e do tato como
palavra técnica utilizada por carpinteiros e construtores. Para alguns
autores essa seria sua primeira acepção, depois passando a
integrar o campo da acústica (Spitzer, 2009, p. 160, nota 8). Entre os
vários empregos na música grega, harmonia é um sistema de
afinação, no qual o músico “encaixa” auditivamente um padrão de
notas no momento em que afina o instrumento.
No primeiro fragmento da obra Sobre a natureza, de Filolau,
encontra-se uma definição de natureza baseada na harmonia: “a
natureza (physis) no kósmos foi harmonizada (harmonizein) a partir
de coisas ilimitadas e limitadas, tanto o kósmos em seu todo, quanto
tudo que há nele” (DK 44 - B-1). É um topos da filosofia pré-socrática
o questionamento acerca dos princípios da natureza, além de
concebê-la como ordem; a sua constituição se a partir de
elementos como água, fogo, ar, ou de pares como quente/frio,
denso/rarefeito. Também o par limitado/ilimitado aparece, como em
um fragmento de Anaxímenes em que o ar é a origem da natureza, e
ilimitado (DK 13 A 5). Filolau, no entanto, não aceita relacionar o
ilimitado com qualquer elemento ou identificá-lo com o princípio do
kósmos. A chave está no conceito de harmonia.
Cynthia S. de Gusmão
36
No fragmento seguinte, Filolau explicita o papel da harmonia no
encaixe entre ilimitado e limitado: “Visto que esses dois princípios
(limitado e ilimitado) não são iguais, nem de iguais famílias, seria
impossível criar-se um kósmos com eles, se não se acrescentasse a
harmonia, de qualquer maneira que ela tenha vindo a ser. As coisas
iguais e de iguais famílias em nada precisam, pois, de harmonia; mas
as desiguais (como os dois princípios) não de famílias iguais e não
igualmente dispostas, são necessariamente fechadas em tal harmonia
que se destina a conter-se em uma ordem” (DK 44 B 6).
O tratado de Filolau foi bastante respeitado em seu tempo e foi
lido, ao que parece com muito cuidado, por Platão. No diálogo Filebo,
Platão adapta a cosmologia de Filolau a seus propósitos,
desenvolvendo a ideia dos dois princípios - limitado e ilimitado no
âmbito da alma humana. Sócrates, Filebo e Protarcus discutem qual é
o maior bem: o prazer (hedoné) ou a prudência (frónesis). Em defesa
do conhecimento, Sócrates argumenta que o prazer, e seu oposto, a
dor, por possuírem graus de intensidade, pertencem à classe do
ilimitado. a prudência, que traz implícita a ideia de número e
medida, ao limitado. E, em uma ressonância pitagórica, Sócrates
um exemplo de limitado e ilimitado na música. O som é uma coisa só,
e ilimitado, pois admite gradações: é possível perceber se um som é
grave, agudo ou intermediário. No entanto, isso não torna ninguém
músico; apenas “quando tiveres alcançado o número e a qualidade
dos intervalos da voz com relação ao tom agudo e grave, e os limites
dos intervalos (tous hórous ton diastémata) e todas as combinações
(systémata) derivadas deles, as harmonias, e ainda os efeitos
correspondentes nos movimentos do corpo (...) medidos pelo
número, chamados de ritmos e medidas (...) terás te tornado
músico” (Filebo, 17 b-e). Ou seja, quando o som é (de)limitado pelo
número, torna-se tom musical. Argumento semelhante encontramos
no Fedro, como apontamos no início deste capítulo.
Cynthia S. de Gusmão
37
4. A fixação da escala
A harmonia “fechada em uma ordem” é descrita no segundo
parágrafo do fragmento acima referido, tal como disposto na edição
Diels-Kranz,
14
e a sua tradução apresenta algumas peculiaridades
importantes. Em geral, o início costuma ser traduzido assim: “A
harmonia abrange uma quarta e uma quinta; a quinta é maior que a
quarta por um tom” (DK 44 B 6). Poderíamos fazer uma tradução
mais literal do texto: “O tamanho (mégethos) da harmonia é quarta e
quinta”, mas ainda assim estaríamos longe do seu significado preciso.
A harmonia, aqui, refere-se à oitava. Filolau utiliza o termo harmonia,
em vez de diapason, o que enfatiza a coerência e unidade do sistema.
Além disso, não aparecem os termos diapente para a quinta e
diatessaron para a quarta. A harmonía é formada por syllaba e
di’okseian. Syllaba na linguagem corrente musical antiga equivalia ao
intervalo de quarta, substantivo do verbo syllambánoi, pegar junto,
reunir.
15
Esse termo refere-se a algo bem concreto: as cordas abaixo
dos dedos do músico em uma posição inicial na lira ou na cítara, e
abrangendo uma quarta. O mesmo para di’okseian, que significa:
através das cordas mais agudas e seriam as cordas restantes, mais
agudas, tangidas a partir da syllaba, formando um intervalo de
quinta.
Andrew Barker fez um estudo detalhado desse parágrafo do
fragmento e suas conclusões são oportunas para o desenvolvimento
das questões suscitadas no decorrer deste trabalho. De acordo com
Barker, essas expressões no texto de Filolau “parecem vir da
14
Existem dúvidas filológicas a respeito da reunião dos dois parágrafos.
15
Em português a sílaba, em geral, é a reunião de uma consoante e uma vocal.
Eram comuns, no período clássico grego, as analogias entre a linguagem verbal e a
musical; no Filebo, o personagem Protarcus diz que compreendeu melhor o
argumento socrático, que se havia utilizado da música para desenvolvê-lo, quando
isso é feito tomando por base o alfabeto.
Cynthia S. de Gusmão
38
linguagem dos músicos, em vez dos filósofos e cientistas, e harmonia
habita ambas as esferas”. Ou seja, a linguagem nesse trecho não
envolveria lculos matemáticos, fazendo uma “referência direta aos
componentes da afinação que se apóiam em posições específicas, e
não a tamanhos de intervalos que independem das suas posições das
cordas no instrumento” (2007, p.275-8).
A afirmação é adequada no que diz respeito à primeira oração,
contudo, na segunda: “a quinta é maior que a quarta por um tom”, o
termo grego utilizado para tom não é tonos, mas epógdon. Em grego
ogdóos significa oitavo e epógdoos é o que contém um inteiro mais
um oitavo, ou seja, a razão 9:8. A razão do tom também foi
apresentada pelos pitagóricos, apesar de fugir do esquema dos
quatro primeiros números inteiros, pois o intervalo não era elencado
entre as consonâncias. De qualquer maneira, parece-nos que se está
presente o termo oitavo, é porque a escala está claramente dividida
em oito. A menção a essa localização do epógdoon retorna adiante no
fragmento com um significado ligeiramente diferente.
Para compreender a escala de Filolau, é preciso saber que,
nesse sistema, as consonâncias são nitidamente distintas dos outros
sons do tetracorde, com exceção do tom inteiro. De acordo com
Cleônides, teórico do século I d.C., “os intervalos sinfônicos são
diatessaron [a quarta], diapente [a quinta], diapason [a oitava] e os
assemelhados [provavelmente os compostos: quinta ou quarta mais
uma oitava]. Os intervalos diafônicos são todos aqueles menores que
diatessaron e aqueles que ficam entre os intervalos sinfônicos” (Apud
Grande, 1960, p.403). Esses outros sons, para os pitagóricos,
pertenceriam à classe do apeíron, do ilimitado (ou indefinido). As
quatro notas do tetracorde dividiam-se em fixas e móveis. As
consonâncias eram formadas pelas fixas (ou fixadas por elas). Como
comenta Paul Tannery: “ele (Pitágoras) se satisfez em determinar os
sons fixos (do sistema musical grego); e deixou de lado, na classe do
Cynthia S. de Gusmão
39
indefinido (apeíron), a múltipla variedade dos sons móveis” (1912, p.
80).
Assim, Filolau inicia a construção da escala pelas consonâncias
(notas fixas): “Da hypate subindo até a mése, temos uma quarta, da
mése até a te, uma quinta, da néte descendo até a tríte, uma
quarta, da tríte ahypate, uma quinta.” (DK, 44 B 6). Aqui, o mais
importante não é o nome das notas e a sua posição, mas o fato de
Filolau descrever os sons fixos consonantes da escala. A ênfase está
na demonstração de que os intervalos consonantes podem ser
formados com qualquer combinação de notas, ou seja, os intervalos
são elementos autônomos. A escala pode ser ascendente ou
descendente, não importa, o modelo é coeso, harmônico, pois as
quartas e quintas entrelaçam (“fecham”) a oitava. E suporta
inversões, basta os intervalos (diásthemata) manterem o seu
tamanho (mégethos).
De acordo com Winnington-Ingram, nem todas as escalas
antigas abrangiam uma oitava, existiram muitas formações de
escalas. Para ele, o “sentimento da oitava não é um desenvolvimento
primitivo da consciência”
(1968, p. 23). Se for assim, a partir de
um determinado momento a oitava começou a ser percebida como
uma consonância importante e, mais do que isso, como um intervalo
musical. E o mesmo deve ter ocorrido com os intervalos de quarta e
quinta. O fato é que após terem sido percebidos como tais poderia
ocorrer o salto fundamental: a sua tradução em razões numéricas.
Mas, no momento em que Filolau escreve, havia essa
consciência, portanto, o texto não exporia nada de novo. Porque é
perfeitamente possível saber de maneira empírica que a oitava é a
reunião da quarta e da quinta e que a quinta é maior que a quarta. O
autor parece falar em uma linguagem intermediária, preparando o
discurso para introduzir as razões numéricas, que talvez ainda fossem
uma novidade. O kósmos era percebido como beleza ordenada,
Cynthia S. de Gusmão
40
essa ideia estava colocada. O assunto agora era da maior
importância: as razões musicais confirmariam a lei da harmonia como
raiz fundante da natureza. De acordo com a concepção pitagórica,
tudo que existe poderia ser expresso por um número, mas a música
revelava que as coisas eram, elas mesmas, invisível e intimamente,
números. O número seria de fato o elo entre todas as coisas,
revelador dos princípios de analogia e semelhança.
E partindo desse ponto, acessível a qualquer cidadão grego com
sua educação musical básica, Filolau avança firme no terreno
matemático: “Entre a mése e a tríte, um tom. A quarta é epitríte
(4:3) a quinta (3:2) hemíolion e a oitava é dupla (2:1)” (DK, 44 B 6).
Como no início, o termo grego utilizado para tom não é tonos (a
diferença de tensão da corda entre os intervalos de quarta e quinta),
mas epógdon, que se refere à razão 9:8.
É importante fazer um parêntese para ressaltar a observação
de Szabó de que Filolau ao dizer que a diferença entre 3:2 e 4:3 é
igual a 9:8, está se referindo a operações efetuadas no cânone, pois
matematicamente não é a subtração que resulta 9:8, mas a divisão
de 4:3 e 3:2 (2000, p.114-5).
16
De acordo com o autor romeno, no
cânone seria possível examinar o intervalo como uma diferença, o
mesmo acontecendo com a inversão entre adição e multiplicação: “da
mesma maneira, é devido à referência a uma operação efetuada no
cânone que se explicam as expressões da música teórica que
exprimem a multiplicação de duas razões como uma adição” (2000,
p.132-3).
16
Cânone é o instrumento que teria sido criado pelos pitagóricos para as
demonstrações visuais das razões numéricas. Diferente de Szabó, autores como
Flora Levin consideram que o cânone seja uma invenção posterior visto que nem
Platão nem Aristóteles falam dele. Consideramos aqui a hipótese de Szabó, pois,
dados nossos insuficientes conhecimentos de matemática, pareceu-nos a única
explicação para as inversões entre subtração e divisão e adição e multiplicação, que
ocorre tamm no Manual de harmônica de Nicômaco de Gerasa. Para uma
explicação detalhada, ver Szabó, 2000, p. 114-5.
Cynthia S. de Gusmão
41
À parte a correção das sutilezas dos cálculos matemáticos, a
construção diferente da frase que repete a razão do tom parece
enfatizar agora a simetria do sistema, em que é necessário ter um
ponto de equilíbrio, justamente o tom inserido “entre a mése e a
tríte”. O épogdon agora não está sendo definido pela diferença entre
a quinta e a quarta, mas é o núcleo da escala e a define.
Esses são os primórdios da teoria musical, tal como praticada
nos círculos pitagóricos. Antes da sistematização pitagórica não
nenhuma evidência de uma base teórica fixa para a afinação das
escalas. Agora, o princípio passava a ser matemático, pois, citando
novamente Szabó: “a empiria não apreende que a diferença entre a
quinta e a quarta é 9:8 e que se deve atribuir à quarta uma razão 4:3
e, à quinta, a razão 3:2” (2000, p.133). Aos poucos não será mais
necessário tocar, medir, ouvir, mas apenas calcular.
5. A coma pitagórica
Filolau formula então o tamanho da oitava e da quarta: “assim
a harmonía abrange cinco tons e duas diésis, e a quarta, dois tons e
uma diésis.Diésis significa a ação de passar, em latim, transitus. A
diésis, na música grega, antiga era o intervalo mínimo de uma
escala; no caso da escala diatônica pitagórica, que é a referência de
Filolau, muito próximo do meio-tom. que o tom não podia ser
dividido ao meio, pois levava a um número irracional, o que era
inconcebível para os pitagóricos, que consideravam a ausência de um
número racional comprometedora da inteligibilidade de algo. Para
contornar esse problema, serão feitos cálculos complicados, buscando
acomodar a dificuldade e assim completar a escala musical.
Assim, o tom deveria ser dividido em duas diésis (expressa pela
simpática razão de 256:243) e mais uma coma (531441:524288!).
Como podemos ver, relacionar alturas apenas a números racionais
Cynthia S. de Gusmão
42
acaba por introduzir alguns problemas, fazendo despontar a
fragilidade do sistema. Por exemplo, se tocarmos 12 intervalos de
quintas na razão 3:2, em série, a última nota deverá ser (3:2)
12
;
ao tocarmos sete oitavas (que corresponderiam ao intervalo das 12
quintas) a última nota seria (2:1)
7
. As duas notas são quase a
mesma, entre elas há uma diferença minúscula, que produz um
intervalo dissonante, a coma pitagórica.
Essa dificuldade será solucionada mais tarde com a divisão
da escala em meios-tons, o temperamento igual, baseado nos
números irracionais. Mas como observa Abdounour: “o experimento
de Pitágoras contribui com a ideia de temperamento na medida em
que propicia a construção de uma escala que não se “fecha”
resultando na coma pitagórica. As diversas tentativas de distribuir tal
diferença culminam com a repartição logaritmicamente equivalente,
correspondente ao temperamento igual” (1999, p. 201).
O que importa agora é considerar o significado como um todo
desse sistema inicial. A música começou a descolar-se da sua origem
em tetracordes e essa nova estrutura matemática será a base da
música ocidental nos próximos dois mil anos, até ser substituída pelo
sistema temperado moderno, que, no entanto, manterá nas relações
sistêmicas da harmonia aspectos da estrutura matemática. A gama
diatônica, tão apreciada pelos pitagóricos por sua simetria, irá tornar-
se, gradativamente e com variações de afinação, a escala de
referência da música ocidental.
O destaque aos intervalos de quintas é um prenúncio do ciclo
da quintas do sistema tonal, quando a quarta será tratada como
dissonância, ou semi-dissonância. Além disso, é importante o fato de
a oitava ser “encaixada” pelas quartas e quintas tanto de cima para
baixo quanto de maneira inversa. Essa concepção da organização
escalar como modelo matemático ressoará no século XVIII na teoria
da inversão dos acordes de Jean-Philippe Rameau (1682-1764).
Cynthia S. de Gusmão
43
6. A cosmologia pitagórica
O livro de Filolau é o testemunho do nascimento da ciência
harmônica que, buscando padrões numéricos simples de articulação
entre o visível e o invisível (por exemplo, corda/som), reduz a
multiplicidade à unidade, dando inteligibilidade à natureza: “sem ele
(o número) todas as coisas são ilimitadas, obscuras e imperceptíveis”
(DK 44 B 11). Em vez de buscar uma substância primordial, como
outros pensadores da época, os pitagóricos encontraram um princípio
imaterial com forte potencial de organização hierárquica. Nas
palavras de Aristóteles: “como vissem nos números as modificações e
as proporções da harmonia e, enfim, como todas as outras coisas
lhes parecessem, na natureza inteira, formadas à semelhança dos
números, e os meros as realidades primordiais do universo,
pensaram eles que os elementos dos números fossem também os
elementos de todos os seres, e que o céu inteiro fosse harmonia e
número.”
17
Para Filolau, “tudo que é possível de ser conhecido tem um
número”, a inteligibilidade das coisas é dada pelo número: “pode-se
ver a natureza do número e sua potência em atividade, não nas
(coisas) sobrenaturais e divinas, mas ainda em todos os atos e
palavras humanos, em qualquer parte, em todas as produções
técnicas e na música”
(
DK 44 B 11). As especulações musicais
estavam inseridas no contexto de uma cosmologia, que era na
verdade uma filosofia que, por sua vez, fazia a conexão entre várias
áreas do conhecimento, da astronomia à medicina.
A teoria astronômica pitagórica tem o seu lugar na história da
astronomia como um todo. Os pitagóricos teriam sido os primeiros a
sustentar a ideia de que a Terra e o universo tinham a forma esférica
17
Metafísica, I, Cap. V. Trad. de Vinzenzo Cocco. Coleção “Os Pensadores”. São
Paulo, Abril, Cultural, 1979, p. 21.
Cynthia S. de Gusmão
44
(Cf. Heath, 1981).
18
É difícil verificar como eles teriam chegado a
essa conclusão, talvez pela observação dos eclipses. Contudo,
considerando o caráter essencialmente matemático de sua filosofia da
natureza, é possível que a suposição fosse “puramente matemática”,
como diz Heath, “ou estético-matemática; ou seja, Pitágoras atribuiu
a forma esférica à Terra (assim como ao universo) pela simples razão
de que a esfera é a mais bela das figuras sólidas” (1981, p.162-3).
O pitagorismo desenvolveu uma cosmologia não-geocêntrica e,
na Renascença, Copérnico fez referência aos pitagóricos ao defender
o heliocentrismo. Filolau, em seu livro, diz que a Terra e os sete
planetas, o que incluía a Lua e o Sol, giravam em torno de um fogo
central. Haveria ainda uma contraterra, colinear à Terra, perfazendo
o número dez (DK 44 B 17). Para Aristóteles, a inclusão dessa
contraterra destinava-se a perfazer o número 10, ou seja, por um
motivo matemático, estético e simbólico, o kósmos seria mais
perfeito assim.
Nessa teoria cosmogônica de Filolau “o kósmos é um e
começou a vir a ser a partir do centro, e do centro para cima, nos
mesmos intervalos (diásthemata) que os de baixo” (DK 44 B 17). Os
corpos celestes são esferas e movem-se em círculos, um espaço
ideal, em que suas distâncias são intervalos, diasthemáta, como
vimos, termo também utilizado para os intervalos musicais. Tal como
a escala musical, a teoria astronômica é perfeitamente simétrica.
Para Heath, a astronomia pitagórica “é pura matemática,
combinada com aritmética e harmonia. A descoberta capital de
Pitágoras da dependência dos intervalos musicais das proporções
numéricas levou seus sucessores à doutrina da “harmonia das
esferas” (1981, p. 165).
18
Contudo, de acordo com Boyer (1999, p. 38), existem contestações acerca dessa
tradição, que atribui o conceito de terra esférica aos pitagóricos.
Cynthia S. de Gusmão
45
As teorias acústicas que relacionavam a velocidade com a
característica do som estendiam-se ao movimento dos planetas: os
mais velozes produziriam sons mais agudos que os mais lentos. E as
distâncias entre eles corresponderiam às razões numéricas musicais.
Apesar de combatida por Aristóteles
19
, detalhes dessa cosmologia são
descritos por seu comentador Alexandre de Afrodísias, do século III
d.C.,
conhecido como o último comentador peripatético, “esse som
que eles (os planetas) produzem durante seu movimento é profundo
no caso dos mais lentos e alto no caso dos mais rápidos; esses sons
então, dependendo da razão das distâncias, soam de modo que seu
efeito combinado é harmonioso”
(
Apud Hunt, 1978, p.12).
Esse mito é relatado na República de Platão como o mito de Er,
o soldado armênio que narra uma cosmologia fantástica que ficou
conhecida como o mito da harmonia das esferas (614b-617d). No
Timeu (35b-36c), a escala musical pitagórica é descrita como um
princípio cosmogônico e relaciona-se à escala de Filolau no que diz
respeito à presença dos intervalos (diasthemata) entre os planetas.
No trecho da criação da alma do mundo, o amalgamador
(ksundesantos) cria o universo corpóreo
visível e tangível (31b-
32c), conjugando-o por um elo, o melhor deles: a proporção natural
(pephugen analogia). Em seguida, é criada a alma do mundo, o que
acontece por philia, que pode ser traduzida por amor. Essa criação se
pelo entrelaçamento de números duplos e triplos, quadrados e
cúbicos caracterizando uma criação musical, harmônica. Depois, o
amalgamador preenche os intervalos (diásthemata) aplicando as
médias proporcionais: as médias harmônicas geram intervalos de
quartas e aritméticas, os intervalos de quintas. Por fim, completa os
intervalos de 4:3 com os intervalos de 9:8 deixando uma parte de
cada um deles. O tom será dividido em dois intervalos desiguais,
duas diésis de tamanhos diferentes, chamados léimma (243:256), a
19
Posição esta explicitada, por exemplo, em De Caelo, Livro II, 9, 16-32.
Cynthia S. de Gusmão
46
razão que está em Filolau, e apotomé (2187:2048) (Timeu, 31b-
36b). A escala avança de maneira ortodoxa por quatro oitavas, muito
além do que é acessível à voz humana. Os números
surpreendentemente correspondem à posição dos primeiros
harmônicos.
A cosmologia pitagórica está presente na medicina da época. É
bem provável que Filolau conhecesse a obra do médico, também de
Crotona, Alcméon (c. 560-500 a.C.), que teria sido contemporâneo
do próprio Pitágoras. Foi ele que elaborou a teoria da desarmonia
como causa das enfermidades e pode ter sido um pioneiro da
embriologia (Huffman, 2005). Barker, a propósito de seu argumento
de que o discurso de Filolau aproxima-se mais do conhecimento
comum dos músicos que dos matemáticos, chama a atenção para
uma passagem no tratado médico hipocrático De victu, em que o
autor discute o desenvolvimento do feto humano: “quando se
movimenta para um lugar diferente, alcança-se a harmonia correta
contendo as três consonâncias: syllaba, di’okseian e diapason, ele
vive e cresce utilizando os mesmos nutrientes que antes. Mas se ele
não alcançar a harmonia e os elementos graves não foram
consonantes com os agudos, na primeira consonância, na segunda,
ou naquela que passa por tudo [diapason, ou seja, a oitava], se uma
delas estiver faltando, toda a afinação (tonos) é inútil(Apud Barker,
2000, p.280).
Se Filolau ou os mais antigos pitagóricos estavam mais
próximos dos músicos práticos e de uma ciência mais empírica, não
temos como avaliar; contudo, é surpreendente a semelhança do texto
médico com a escala de Filolau, o que reafirma o caráter organicista
da cosmologia pré-socrática e pitagórica. Como observou Max Weber:
“o fenômeno da mensurabilidade dos intervalos “justos” [leia-se
consonantes] foi, uma vez reconhecido, de extraordinária impressão
Cynthia S. de Gusmão
47
sobre a imaginação, como demonstra a imensa mística dos números
ligada a isto” (1995, p. 85).
7. Os desdobramentos da harmônica: Arquitas
Arquitas de Tarento viveu na primeira metade do século IV a.C
e foi contemporâneo de Platão. Além de matemático e filósofo,
Arquitas foi também um aclamado líder político e, segundo contam,
prestava atenção especial às crianças, pois teria sido o inventor de
um pequeno chocalho para acalmá-las. No ano de 361 a.C., Arquitas
foi o responsável pelo envio de um navio para resgatar Platão das
mãos do tirano de Siracusa, Dionísio II. Segundo alguns estudiosos, a
Sétima carta de Platão, em que ele narra a experiência em Siracusa,
seria endereçada ao próprio Arquitas (338a-339d). Apesar disso, os
dois tinham desentendimentos em questões matemáticas, filosóficas
e políticas.
Arquitas esteve envolvido em vários ramos da atividade
científica, todos eles interligados pelas propriedades do mero. Ele
radicalizou o pensamento analógico pitagórico, estendendo-o às
téknai como a mecânica. Dedicou-se intensamente à música,
avançando nas questões de afinação da lira e sofisticando os cálculos
das razões numéricas e das médias proporcionais. De certa forma,
ele aproximou a harmônica do fenômeno da experiência musical. Ao
mesmo tempo em que avançou no campo da física acústica, Arquitas
introduziu mais rigor ao lculo das razões numéricas musicais e
propôs novas afinações da escala, calculadas por meio das chamadas
médias proporcionais.
Na harmônica pitagórica não é possível dividir os intervalos
básicos na metade. Portanto, a oitava não pode ser dividida em duas
partes iguais, deve ser dividida em uma quarta e uma quinta. Em
linguagem tonal moderna, podemos exemplificar isso dizendo que a
Cynthia S. de Gusmão
48
oitava não poderia ser dividida por seu trítono (aliás, a grande
dissonância, responsável pelo desenvolvimento da tonalidade), assim
como o tom. Por outro lado, é possível dividir a dupla oitava na
metade. Baseando-se nessas duas propriedades, Arquitas produziu
uma rigorosa prova para as razões epimóricas ou superparticulares
(2:1, 4:3, 3:2 e 9:8), razões do tipo n+1:n, dizendo que elas não
poderiam ser divididas em duas partes iguais. Essa afirmação será
apresentada ligeiramente modificada no início do século III a.C. na
famosa e problemática Proposição 3 da obra A divisão do cânone,
como veremos adiante.
8. As médias proporcionais
O sistema cosmológico pitagórico de encaixes articulados
harmonicamente tinha sua expressão matemática nas médias
proporcionais que, no âmbito da teoria das proporções, promoviam a
união entre as disciplinas matemáticas (Szabó, 1977, p.107).
A teoria das proporções relação entre duas razões
desempenhou papel crucial na epistemologia pitagórica e, de acordo
com Heath, foi desenvolvida “muito cedo na sua escola com
referência à teoria da música e aritmética”
(1981, p. 85). Dizem que
foi entre os babilônios que Pitágoras teria conhecido as médias
aritmética, geométrica e subcontrária, a qual Arquitas mais tarde
renomearia para harmônica, e ainda, a proporção áurea.
Uma média proporcional é uma relação matemática constante
que cria uma analogia entre dois termos, através de um terceiro. Os
pitagóricos generalizaram o conceito de média proporcional e
chegaram ao número de dez médias proporcionais. Coincidentemente
ou não, duas delas, quando aplicadas ao comprimento de uma corda,
geram duas das consonâncias perfeitas: a quarta e a quinta. A razão
Cynthia S. de Gusmão
49
4:3, o intervalo de quarta, é obtida pela média harmônica da divisão
da oitava (2:1). O intervalo de quinta (3:2) é a sua média aritmética.
Como esclarece Barker: “quando a oitava é dividida no modo
familiar de duas quartas separadas por um tom, a estrutura é
demarcada em quatro notas, das quais a segunda está para a
primeira na razão 4:3. A terceira nota está para a segunda na razão
9:8. E a última nota está para a terceira na razão 4:3. Portanto, a
razão da terceira nota para a primeira e da última para a segunda é
de 3:2 e a razão da última para a primeira, 2:1. Os menores números
inteiros que captam esse arranjo são 6, 8, 9 e 12” (2000, p. 302). A
média aritmética dos quatro números é 9 (9:6=12:9) e a média
harmônica, 8 (12:8 = um terço de 12 e 8:6 = um terço de 6).
Luigi Borzacchini (2007, p.278) defende que a logística de
Arquitas, que ele proclama como sendo o núcleo das matemáticas,
não era uma arte prática do cálculo, como querem alguns, mas a
ciência das relações entre os números, no sentido dado por Tannery:
“é uma característica da tradição pitagórica que ela apreende os
números em si no mundo visível, mas suas razões no mundo audível”
(2002, p. 70).
O segundo fragmento de Arquitas relaciona três médias, como
pertencentes à música: “a música tem três médias, uma é a
aritmética, a segunda é a geométrica e a terceira é a contraposta que
chamamos de harmônica”
(DK 47 B 2). E segue formulando cada uma
delas. As médias aritmética e harmônica estão relacionadas à divisão
da oitava respectivamente nos intervalos de quinta e quarta.
20
Convém lembrar que as afinações utilizadas na música grega no
tempo de Arquitas e Platão eram bastante sofisticadas e as razões
numéricas de Filolau não davam conta da música real praticada. Além
de formalizar a questão das médias proporcionais, Arquitas introduziu
20
A média aritmética é expressa pela fórmula b=a+c/ 2, a média harmônica
b=2ac/a+c e a média geométrica b
2
=a.b
Cynthia S. de Gusmão
50
essas mesmas médias entre as quartas e as quintas, que, por
analogia, deveriam produzir consonâncias menores.
O procedimento aproximou a escala de novas ressonâncias
presentes na série harmônica musical. Como diz Abdounour, “o
intervalo de terça maior obtido por Arquitas concorda com aquele
presente na série harmônica. Tal fenômeno levar-nos-ia a imaginar
que Arquitas possuísse um ouvido sensível ao perceber que a terça
correspondente a 4:5, mais baixa que a pitagórica, soava mais
natural, uma vez que se fundia exatamente dentro dos harmônicos
naturais de uma nota. Enquanto Pitágoras calcula frações subjacentes
à escala utilizando apenas percursos de quintas, Arquitas considera
fortemente lculos de médias aritméticas e harmônicas na geração
de seu sistema musical” (1999, p. 17).
O matemático e filósofo foi ainda ao interior do tetracorde para
calcular as suas divisões nas três espécies ou gêneros: diatônico,
cromático e enarmônico. Ele busca descrever matematicamente as
escalas então em uso a partir da observação da forma como os
músicos afinavam os instrumentos, distanciando-se da escala
diatônica pitagórica simplesmente porque ela não era utilizada, ao
menos em sua época. A escala de Filolau será constituída das razões
9:8 / 9:8 / 256:243 (três intervalos formando uma quarta) e 9:8 /
9:8 / 9:8 / 256:243 (quatro intervalos formando uma quinta) e
abrangendo a tessitura de uma oitava. A estrutura de Arquitas
mantém-se coesa com o fulcro do epogdoon em seu centro, mas os
intervalos são bem mais complexos.
21
Esses novos lculos dos intervalos foram provavelmente
motivo de desentendimento com Platão, para quem mudar uma
escala faria tremer os muros da sua pólis e introduzir a desordem no
kósmos, visto que, na filosofia platônica, as relações harmônicas
21
Para o gênero enarmônico: 5:4 / 36:55 / 28:27 / 9:8 / 5:4 / 36:55 / 28:27. Para
o gênero cromático: 32:27/ 243:224 / 28:27 / 9:8 / 32:27 / 243:224 / 28:27. Para
o diatônico: 9:8 / 8:7 / 28:27 / 9:8 / 9:8 / 8:7 / 28:27.
Cynthia S. de Gusmão
51
estavam presentes na geometria, na estereometria, através da
analogia entre a superfíce e o volume (Epinomis, 990c-991a) e na
astronomia (Timeu 47 a-b), nos movimentos das órbitas dos astros.
Segundo Barker (2007, p.307), talvez tenha sido endereçado a
Arquitas o comentário sarcástico de Platão no diálogo entre Sócrates
e Glauco na República: “O comportamento deles é ridículo (...)
esticando os ouvidos como que para ouvir a conversa dos vizinhos,
alguns deles dizendo que conseguem ouvir um som entre dois, (...)
colocando os ouvidos antes da mente (noûs). Você está falando eu
disse daquelas pessoas que torturam as cordas do instrumento
esticando-as com as cravelhas para interrogá-las (...)”.
22
Em Platão, a ciência do número distancia-se da técnica e da
arte. No diálogo Epinomis, o personagem estrangeiro de Atenas, após
pedir perdão aos predecessores, faz uma extensa relação das ciências
que não levam à virtude e à sabedoria. No catálogo, estão listadas a
fabricação de farinhas e fermento e sua transformação em alimento,
a agricultura, a construção, a marcenaria, a serralheria e a fabricação
de ferramentas aa caça, a medicina, o teatro, a pintura, a prática
musical e a adivinhação, “trabalhos úteis para a sociedade, mas que
não entram em consideração quando se trata da virtude (areté)”
(Epinomis, 975 a-976c).
9. A média geométrica e os incomensuráveis
As fórmulas de Arquitas para as médias proporcionais
mencionam, além das médias aritmética e harmônica, a geométrica.
Contudo, não haveria lugar para a média geométrica na divisão da
oitava, que ela não poderia ser dividida em dois subintervalos por
um número inteiro. A questão não se resume ao lculo.
22
Trecho completo na República de Platão, 531a-531c. Vale lembrar que a raiz
indo-européia de tonos é a mesma de stéinen, gemer.
Cynthia S. de Gusmão
52
Musicalmente, a divisão geométrica da oitava o intervalo de uma
quarta aumentada ou uma quinta diminuta, o chamado trítono,
distância de três tons considerada extremamente dissonante. No
contraponto medieval, o trítono levará o sugestivo nome de diabolus,
por dividir a oitava em duas partes. Essa divisão, no entanto, será o
motor da música tonal, que se fixará a partir do século XVII, pois é
uma cisão energética, conduzindo a oitava a duas direções diferentes.
Contudo, se mais tarde o intervalo foi considerado precioso
exatamente por seu caráter dissonante, não era o caso da música
antiga grega. Isso nos leva a considerar as conexões entre a teoria
musical das proporções e a descoberta da incomensurabilidade ou, no
plano das disciplinas matemáticas, entre música e geometria.
Não se sabe ao certo quando e como aconteceu a descoberta
da incomensurabilidade ou ainda a constatação de que os números
inteiros e suas razões eram insuficientes para descrever propriedades
muito simples da geometria, tais como a relação entre o lado e a
diagonal de um quadrado. No final do século XIX, Paul Tannery
investigou o papel da música grega no desenvolvimento da
matemática pura. De acordo ele, em suas Mémoires scientifiques, a
harmônica, assim como as outras três ciências matemáticas, havia
sido contemplada nos Livros 5 e 6 dos Elementos de Euclides. A
ciência musical estaria na teoria das proporções (Livro 5) e na
aplicação dessa teoria (Livro 6). Contudo, as razões entre números
inteiros a propósito dos intervalos musicais teriam sido elaboradas
nos escritos matemáticos anteriores a Eudoxo de Cnido, a quem são
atribuídas as teorias presentes nos dois livros.
Eudoxo desenvolveu
uma teoria das proporções aplicável também às magnitudes
incomensuráveis, correlacionando segmentos de reta sem a utilização
de números.
Para Tannery, a origem da concepção grega de razão é
essencialmente musical. A harmônica teria ainda exercido papel
Cynthia S. de Gusmão
53
considerável na noção de incomensurável e na criação dos
procedimentos de cálculo por aproximação de valor das raízes
quadradas (1902, p. 68-69).
No final da década de 1970, Arpád Szabó também propôs que a
teoria das proporções houvesse surgido na teoria musical pitagórica.
Para ele, Arquitas fala em média geométrica no fragmento 2 porque
ela teria nascido no contexto da música teórica, em princípio como
um problema insolúvel, do ponto de vista da aritmética (2000, p.105-
11).
Para Szabó, a teoria harmônica seria, assim, um capítulo da
teoria das proporções. Isso teria ocorrido pelo fato de os números
serem representados por segmentos de retas, tal como na obra A
divisão do cânone, atribuída a Euclides. Nela, diásthema, intervalo, é
o termo técnico para logos, razão. E, nos diagramas, (sobre os quais,
no entanto, existem controvérsias sobre quando teriam sido
incorporados à obra) cada intervalo é representado por dois
segmentos de reta, buscando reproduzir a tradução das razões do
monocórdio para um instrumento em que as notas eram produzidas
por cada corda, como a lira, a cítara, o psaltério, ou seja,
instrumentos multicordas.
Outros autores reconhecem uma fase musical na descoberta da
incomensurabilidade. Para Luigi Borzacchini, “a tradução do problema
da música para a geometria foi feita no tempo de Arquitas, Eudoxo e
Teeteto, e foi isso que deu um fundamento para o termo média
geométrica, que não produzia consonâncias musicais, mas tinha
instâncias geométricas fáceis e precisas” (2007, p. 297).
Arquitas foi professor de Eudoxo, que também manteve
contatos com a Academia platônica. Para Borzacchini, no entanto, na
Academia teria havido uma “desmusicalização” da teoria das
proporções e, por isso, ela tornou-se conhecida como um problema
apenas da geometria.
Cynthia S. de Gusmão
54
O autor italiano introduz a questão do par de opostos
discreto/contínuo, ou adição infinita e divisão infinita. A música, que
era considerada pelos primeiros pitagóricos uma ciência da
quantidade discreta, do número, poderia ter sido estendida às
quantidades contínuas (sunékés). Para Borzachinni, “quando a teoria
musical pavimentou a estrada em direção à incomensurabilidade, a
ideia de continuidade geométrica era muito incipiente para
desenvolver ou mesmo compreender tal descoberta. Talvez tenha
sido exatamente a possibilidade do desenho geométrico de um
intervalo musical não existente que promoveu o desenvolvimento da
ideia aristotélica de continuidade” (2007, p. 293). Acreditamos que
aqui haja um exagero do autor; contudo, é possível que a descoberta
dos incomensuráveis tenha ocorrido no contexto de uma relação,
ainda não elucidada, entre música e geometria.
No século XVIII, no Prefácio do Livro III de Harmonia dos
mundos, Kepler uma breve história da afinação musical. O
astrônomo critica os pitagóricos por não terem percebido que os
fundamentos das consonâncias deveriam ter sido investigados no
âmbito da geometria e não da aritmética (Apud Walker, p.42-43).
Para Kepler, como o som é um fenômeno contínuo e a harmonia dá-
se por meio do movimento, os termos das razões musicais são
contínuos e não discretos. Suas causas devem ser buscadas nas
figuras geométricas, o que ele fará.
Uma possibilidade para a presença da média geométrica no
fragmento de Arquitas seria que ele estivesse pensando na divisão de
duas oitavas ao meio, o que resultaria em uma oitava. Mas será que
Arquitas não buscaria uma resposta a partir da geometria? Se assim
for, ele poderia estar fazendo referência a uma média proporcional
que é própria da geometria, pois produz um número irracional, a
proporção áurea. Ela foi definida por Euclides: “dividir em razão
extrema e média uma reta finita dada” (Elementos, Livros II, 11 e VI,
Cynthia S. de Gusmão
55
30, apud Heath, 1981, p.304). Essa proporção correlaciona duas
médias: “o primeiro de dois números está para a sua média
aritmética, assim como a média harmônica está para o segundo
número” (Boyer, 1999, p.38).
Para Boyer essa proporção poderia configurar-se como uma
hipótese para a descoberta dos irracionais. O historiador da
matemática mostra uma propriedade interessante dessa proporção
áurea: ela se autopropaga, sendo o germe de um modo de
crescimento logarítmico. Por exemplo, ela gera a duplicação infinita
de pentágonos. Se traçarmos as cinco diagonais de um pentágono
regular, as cinco linhas formam um pentágono menor, e isso pode ser
feito indefinidamente (Boyer, 1999, p.35).
Como vimos, um dos problemas enfrentados pela afinação
pitagórica dizia respeito à duplicação das quintas e oitavas que
geravam ao fim um intervalo dissonante, a coma pitagórica. Arquitas,
certamente, conhecia o papel da divisão áurea na duplicação dos
lados do pentágono. Não teria ele pensado em aplicar, por analogia,
esse modelo geométrico aos tons musicais?
De qualquer modo, a solução final para a falha da afinação
pitagórica viria com a descoberta dos logaritmos, que possibilitou
a realização completa do temperamento. O procedimento foi criado
pelo matemático escocês John Napier (1550-1617). Como chamou
atenção Tannery, a etimologia do termo logaritmo é o “número da
proporção”,
noção que não foi derivada das progressões de potências
inteiras, mas sim da geometria (1902, p. 68-9).
Arquitas buscou ouvir as ressonâncias dos instrumentos e, com
um poderoso aparato de cálculo, aproximar-se dos números que as
governam. Mas se a harmônica buscava a coerência racional das
consonâncias, o fenômeno acústico pertence, antes de mais nada, ao
reino da sensação e do infinito.
Cynthia S. de Gusmão
56
CAPÍTULO III
TEORIAS ACÚSTICAS DA ANTIGUIDADE
1. Os primórdios da investigação do som
Uma das primeiras referências à natureza propriamente física
do som, independente da música, está no Fragmento 1 de Arquitas,
que fala do resultado do impacto do ar na produção do som: “é
impossível haver som, se não houver um choque entre os corpos”
(DK 47 B 1). A afirmação está correta e era bem aceita no mundo
grego. Mas Arquitas errará no diagnóstico dos sons graves e agudos.
Segundo ele, se um bastão for vibrado rapidamente produzirá um
som agudo devido à grande velocidade com que o som viaja pelo ar
até nós. Quanto mais rápido, mais agudo e vice-versa. É evidente
que uma confusão entre a produção do som, que está até certo
ponto correta, e a sua propagação. A altura não está relacionada à
velocidade com que o som nos atinge. Contudo, podemos ver aqui
um prenúncio da relação entre frequência de som e altura musical,
que só será explicada em 1638 por Galileu.
De modo um pouco paradoxal, segundo um comentário de
Porfírio, Arquitas pensava que as consonâncias seriam produzidas por
dois ou mais sons percebidos como um único (apud Hunt, 1978,
p.14). Essa confusão será desfeita por Teofrasto de Eresus (372-288
a.C.), aluno de Aristóteles. Ele escreveu uma obra sobre música, que
se perdeu, restando apenas citações também em Porfírio: “a nota
mais aguda não difere em velocidade da mais grave, pois senão não
haveria consonância. Se há consonância, ambas as notas têm a
mesma velocidade” (Apud Hunt, 1978, p.15).
Platão afasta-se da descrição numérica da consonância para
apresentar, no Timeu, uma teoria acústica, ao mesmo tempo física e
Cynthia S. de Gusmão
57
geométrica (80a-b). Ele descreve duas cordas que vibram de modo
circular, uma mais rapidamente que a outra. Elas têm uma amplitude
desigual, mas coincidirão como dois redemoinhos que se adaptam um
ao outro. A descrição é detalhada como resume Wersinger: “como
consequência, a consonância realiza-se desde que os dois
redemoinhos adaptem-se um ao outro, como exprime com precisão o
verbo prosapsantes. Nesse sentido, é necessário que um dos anéis da
primeira espiral coincida com um anel da segunda espiral para
desenhar um círculo que coincide geometricamente com a
consonância” (2001, p.54). Em suma, a consonância será produzida
ao final do movimento pelos dois sons que, separados no seu início,
vão adaptando-se no tempo, até que o agudo e o grave mesclem-se
na impressão de um único som. Vemos que a preocupação aqui não é
com a comensurabilidade, mas com uma simetria geométrica entre
as duas espirais que irão produzir a consonância.
2.
A propagação do som e sua audição
Havia duas posições divergentes quanto à teoria da propagação
do som, questão especialmente importante para os gregos, amantes
que eram dos grandes discursos e apresentações artísticas ao ar
livre. Para os atomistas, o som possuía uma forma corpórea que
imprimia o ar como pequenas partículas que viajavam da fonte
geradora de som até o ouvido. Demócrito sustentava que “o ar é
fragmentado em pedaços de formas similares e flui com os
fragmentos de som” (Apud Hunt, 1978, p.24). Teofrasto atacou a
concepção: “como alguns fragmentos de vento preencheriam por
completo um teatro contendo dez mil homens?”.
23
Parece que nem
23
Teofrasto citado por Porfírio no Comentário sobre a Harmônica de Ptolomeu
(61.16-61.20), apud Barker, 1989, p.112-113.
Cynthia S. de Gusmão
58
Demócrito nem os engenheiros acústicos modernos conseguiram
responder a essa pergunta.
Para outra posição, não era o ar, mas seu movimento que
produziria os sons e a transmissão se daria por meio de uma
pulsação em propagação em um meio elástico. A metáfora mais
comum era a dos círculos concêntricos produzidos por uma pedra
lançada na água. Nesse caso, o som seria propagado do mesmo
modo que as ondas. Essa imagem estará presente em vários autores
antigos como o filósofo estóico Chrysippus (c. 280-207 a.C.): “a
audição ocorre quando o ar, que está entre aquilo que soa e o que
recebe o som, é agitado, ondulando esfericamente e chegando aos
ouvidos, como a água em um lago ondula em círculos, quando nela é
jogada uma pedra” (Apud Hunt, 1978, p.24).
Aristóteles distinguiu claramente duas instâncias: Existem dois
tipos de som, um atual, outro potencial (o men energéia tis, o de
dynamis), pois dizemos que algumas coisas não possuem som, como
a esponja ou a lã, mas outras sim, como o bronze e todas as coisas
que são sólidas e lisas, pois elas podem projetar o som. Ou seja, elas
podem realmente produzir o som entre o objeto e o órgão da
audição” (De anima, 419b, 5-9).
Teofrasto compilou algumas teorias sobre o mecanismo da
audição, entre elas a do médico Alcmeon de Crotona: “a audição é
feita pelos ouvidos, porque dentro deles existe um espaço vazio, e
esse espaço vazio ressoa”. Para Aristóteles, “o órgão da audição é
fisicamente unido ao ar, e porque está no ar, o ar de dentro é movido
simultaneamente ao ar de fora” (420a). Essa seria também uma
percepção pré-socrática, tal como encontramos no fragmento de
Empédocles: “A audição ocorre pelo choque do ar contra a concha em
caracol (kokliódes), que dizem estar suspensa dentro do ouvido,
levantada e badalada como um sino” (citado por Teofrasto em Da
Sensação, DK 31 A 86). Contudo, de acordo com Hunt, a afirmação
Cynthia S. de Gusmão
59
de Aristóteles tem um interesse a mais “como uma sugestão
antecipada da transmissão do som por conta da ação do ar no ar”
(1978, p. 21-3).
3. Os avanços da escola peripatética
A obra Problemas é atribuída à escola peripatética e consiste de
perguntas agrupadas em livros com suas respectivas respostas.
Apesar de não ter autoria confirmada, muitas citações atribuem as
questões ao próprio Aristóteles. No Livro XIX, encontramos perguntas
sobre acústica, escalas, intervalos, afinação, percepção das
consonâncias e dissonâncias e outros assuntos de importância para a
ciência musical, assim como discussões sobre o papel da música na
educação e na sociedade.
Em Problemas Musicais, o autor transpõe um princípio da ótica,
que diz respeito aos ângulos de reflexão da luz, para o som: “Por que
a corda grave encerra o som da aguda? Será porque a corda grave é
maior? Ela, com efeito, compara-se a um ângulo obtuso, mas a
aguda a um ângulo agudo” (XIX, 8, 918a 19-21). A partir dessa
analogia geométrica, considera que o som mais grave contém o mais
agudo. Trata-se de uma referência ao fenômeno da ressonância, que
será descrito no século XVII na série harmônica, mas vemos que a
ideia já estava presente no mundo grego antigo.
O tratado De audibilibus, escrito provavelmente por volta do
século III a.C, também de autoria incerta, é outra obra representante
das ideias da escola peripatética. Nela, encontramos discussões a
respeito da produção e transmissão do som, da fisiologia da emissão
vocal, das causas das várias modificações nas qualidades perceptíveis
do som (distância ou proximidade, brilho, claridade, opacidade,
aspereza). Não exposições sobre consonância ou altura musical, o
que talvez obrigasse o autor a escolher entre as posturas conflitantes
Cynthia S. de Gusmão
60
da época. O interesse é pela voz humana e suas analogias com os
instrumentos musicais, o que faz do De audibilibus uma fonte
importante de conhecimento dos antigos instrumentos musicais
gregos.
No primeiro parágrafo da obra encontra-se uma exposição da
física da produção e da propagação do som: “É um fato que todas as
vozes e todos os sons surgem do choque entre os corpos ou do ar
colidindo com eles; não é porque o ar toma uma forma como alguns
pensam, mas porque ele se move da mesma maneira que os corpos:
por contração, expansão e compressão e como resultado dos
impactos do ar ou das cordas musicais. Pois o ar ao ser movido,
impinge sopros sucessivos ao ar próximo dele, forçando-o a mover-
se, de modo que o som viaja inalterado em qualidade até o limite da
distância que alcança o movimento do ar. O distúrbio inicia sua força
em um ponto e espalha-se por uma área mais ampla, como a brisa
que sopra dos rios e das montanhas” (Apud Barker, 1989, p.99).
Outro fragmento de Demócrito mostra uma concepção parecida:
“uma vez que o movimento teve início, é enviado longe por causa da
velocidade, pois o som surge com a condensação do ar” (Apud Hunt,
1978, p. 27). Hunt não deixa dúvidas sobre o alcance desses autores:
“temos que considerar com humildade como notadamente pouca
modernização da linguagem desses escritos antigos é necessária para
qualificá-los a ainda servir como descrições elementares admiráveis
do mecanismo físico de geração e propagação do som” (1978, p. 27-
28).
4. O experimento de Pitágoras
As primeiras investigações acerca da natureza física e dos
atributos do som aconteceram no âmbito da harmônica, a partir da
descoberta da proporcionalidade inversa entre a altura e o
Cynthia S. de Gusmão
61
comprimento de uma corda, expressa pelas razões musicais. Autores
tardios da Antiguidade buscarão inserir o fato em uma narrativa
histórica, sendo a mais comum a lenda dos martelos narrada, pela
primeira vez, por Xenócrates e reproduzida por Nicômaco de Gerasa
em seu Manual de harmônica, escrito no início do século II d.C.
24
Nicômaco conta que Pitágoras pensava como conseguir “algum
tipo de ajuda instrumental para os ouvidos tal como a visão obtém da
régua, do compasso e do transferidor e o tato, da balança e do
sistema de pesos e medidas”.
25
Enquanto caminhava absorto nesses pensamentos, Pitágoras
começou a ouvir sons que eram produzidos pelos golpes de quatro
martelos em uma forja. Percebeu (com os ouvidos) que alguns eram
belos, as consonâncias musicais de oitava, de quinta e de quarta. Ele
pesou os martelos: um pesava 12 unidades, o outro 9, o terceiro 8 e
o quarto, 6. Pitágoras associou os sons musicais consonantes à
diferença de pesos entre os martelos. Os martelos com 12 e 6 quilos,
quando golpeados juntos, produziam um intervalo musical de oitava,
os martelos com peso 9 e 6, um intervalo de quinta e os martelos
com peso 12 e 9, assim como os de 8 e 6 quilos, soavam um
intervalo de quarta. Essa sequência de números estará sempre
presente nos lculos de comentadores tardios e refere-se às médias
aritmética e harmônica, desenvolvidas pelos pitagóricos.
Pitagóras teria então combinado esses números nas seguintes
razões: 2:1 para a oitava, 3:2 para a quinta e 4:3 para a quarta. Em
seguida, pendurou em um pedaço de madeira, por cordas de
tamanhos iguais, pesos iguais aos dos martelos. Ao tangê-las,
observou as mesmas relações intervalares. Pitágoras não teria
considerado nada além do peso na produção daquelas notas; nem a
força, nem a bigorna, nem a forma dos martelos. Prosseguindo com o
24
Boécio também narra a história em Institutione musica ii, 3, citado em Bower,
2002, p.143).
25
Nicômaco, Manual de harmônica, Cap. VI, p.83.
Cynthia S. de Gusmão
62
experimento, transferiu as mesmas razões para as tensões das
cordas em um cavalete de um instrumento musical; testou-as
também em outros tipos de instrumentos musicais, de sopro e
percussão. Finalmente, chegou ao monocórdio ou cânon, um
instrumento horizontal de cordas, no qual Pitágoras pôde visualizar
geometricamente as razões do comprimento das cordas, que
concordavam com as consonâncias musicais.
26
Subtraiu 4/3 de 3/2 (já vimos que não é a subtração) para
achar a razão entre a quinta e a quarta, chegando à razão da
dissonância: 9/8, o tom inteiro produzido pela diferença entre a
quinta e a quarta. Estariam, assim, decifrados matematicamente os
principais intervalos do antigo sistema musical grego.
O experimento não deve ter sido reproduzido por aqueles que
narraram a história. Caso o fizessem, perceberiam que os fatores que
determinam o tom do som de um martelo em uma bigorna são
complexos e que a variação tonal é produzida pelo objeto percutido e
não o contrário, que gera uma diferença pouco perceptível (Hunt,
1978). Além disso, as razões matemáticas não correspondem à
relação entre a altura da nota e a quantidade de tensão. Isso será
totalmente demonstrado no século XVII. Segundo Flora Levin, nos
comentários à sua tradução do Manual de harmônica de Nicômaco, há
indícios de que Claudio Ptolomeu tenha buscado fazer a experiência e
percebido o erro, mas não desenvolveu a questão (1994, p.93). Mas,
no caso do comprimento da corda, as proporções pitagóricas estão
corretas. É bem possível que a lenda dos martelos tenha surgido num
momento posterior, dominado pela doxografia latina, quando se
percebeu que outros fatores estavam em jogo na determinação das
alturas, como pesos e tensões e, assim, foram criadas maneiras de
dar veracidade à descoberta aritmética original.
26
Em Nicômaco o nome pandoura aparece associado a esse instrumento. Ver
Nicômaco, Manual de harmônica, Cap. IV, p.61.
Cynthia S. de Gusmão
63
O único fato incontestável na história é o julgamento do ouvido
ter sido o primeiro critério para o estabelecimento das razões
numéricas, visto que elas buscam revelar consonâncias. Mas essa
evidência será descartada em favor de uma interpretação apenas
matemática.
Hipaso de Metaponte, contemporâneo de Pitágoras, teria feito
experimentos com discos de bronze de mesmo diâmetro, cuja
espessura estava na mesma relação das razões das consonâncias;
percutindo os discos era possível ouvir as consonâncias. De acordo
com Burkert: “a experiência é fisicamente correta, pois para discos
que podem vibrar livremente, o mero de vibrações é diretamente
proporcional a sua espessura. Portanto, é possível confiar que Hipaso
conhecia e tenha experimentado as razões numéricas das
consonâncias” (Apud Szabó, 1977, p.122
).
5. A persistência da concepção pitagórica
Por trás do cânone de Pitágoras havia uma ideia original: a de
um instrumento construído para a realização de um experimento
científico, e que partia de uma premissa sensorial, a consonância
musical. Os fragmentos que nos restaram dos seguidores de
Pitágoras não aprofundaram a tensão entre a sensação acústica e sua
tradução em números. Como dissemos, a corrente pitagórica
acabou caracterizando-se por abandonar o julgamento dos sentidos,
concentrando-se na interpretação de todos os fenômenos como
manifestações da matemática, mais precisamente, dos números. No
caso da música, na aritmética dos intervalos.
Por volta de 300 a.C., surge a obra A divisão do cânone,
Katatomé Kanonos, que é referida em alguns escritos da Antiguidade
como sendo de autoria de Euclides de Alexandria. Nela, o autor
recoloca a importância das relações musicais pitagóricas; contudo, de
Cynthia S. de Gusmão
64
modo bem especializado, evitando qualquer conexão com a
cosmologia. O autor busca retomar as concepções pitagóricas em um
diálogo com as ideias contemporâneas. Antes de dedicar-se às notas
musicais, faz uma breve exposição sobre a natureza do som. A
primeira frase é considerada por alguns autores como remontando ao
próprio Pitágoras: “Se houver completo repouso e imobilidade,
haverá silêncio (siópe)”. O autor prossegue: “Se há silêncio e nada se
move, nada se ouve. Se, no entanto, alguma coisa for ouvida, é
necessário haver antes percussão (plégue) e movimento” (Barbera,
1991, p. 49).
Mais adiante, as notas são definidas como uma sequência de
movimentos, que possuem partes (moirai). Se o movimento é mais
rápido, a tensão na corda é maior e o resultado é uma qualidade de
som mais agudo; ao contrário, se o movimento for rarefeito, ou em
linguagem moderna, se a frequência da vibração da corda for mais
baixa, a tensão será menor, e o som será mais grave. Sabemos que
não é possível ao olho humano perceber esses movimentos, muito
menos identificar suas partes, mas na obra elas têm um número. Isso
leva à conclusão de que, quando esses sons tiverem uma altura
precisa como uma nota musical, será possível descrever os intervalos
(diástemata) entre elas como razões numéricas. Após essa descrição
física do som, a obra parte para uma análise dos tons musicais
rigorosamente do ponto de vista matemático.
6. As relações da acústica com a harmônica
A harmônica foi a responsável por conduzir as primeiras
investigações acerca da natureza física e dos atributos do som.
A questão das consonâncias e dissonâncias foi colocada em
termos matemáticos e físicos: o que definiria as razões simples e sua
coordenação e que tipo de interação física as constituiriam? O que
Cynthia S. de Gusmão
65
estava em jogo, por exemplo, em uma relação de oitava? Havia a
necessidade de uma complementação física que mediasse os
conceitos matemáticos e a sua presença no mundo concreto. No
entanto, na Itália do século XVI essa questão resultará em uma
interação maior entre a natureza do som e os problemas musicais.
Em duas cartas que escreveu ao compositor renascentista Cipriano de
Rore, Giovanni Battista Benedetti (1530-1590) incluirá algumas
propriedades do som na sua teoria da consonância dos intervalos
musicais, começando a reunir a física acústica e a harmônica.
Cynthia S. de Gusmão
66
CAPÍTULO IV
ARISTÓXENO E O LUGAR DA AISTHESIS NA HARMÔNICA
1. Pequena nota biográfica
Na segunda metade do século IV a.C., o estudo da harmônica
sofre uma profunda transformação com as concepções de Aristóxeno
de Tarento (c. 375 c. 300 a.C.) tais como contidas na sua obra
Elementos de harmônica.
Aristóxeno nasceu em Tarento durante os anos em que vivia
Arquitas, na época, um político influente da cidade. Ele iniciou os
estudos de música com seu pai, Spintharos, amigo de Arquitas e que
compartilhava das ideias da escola pitagórica. Ainda jovem,
Aristóxeno foi para Atenas, onde passou a estudar com Xenófilo de
Cálcis, aluno de Filolau, até tornar-se um dos mais eminentes aluno
de Aristóteles, a ponto de pleitear ser o seu sucessor, o que não
ocorreu, tendo a posição sido ocupada por Teofrasto.
De acordo com a compilação enciclopédica Suda
27
, Aristóxeno
escreveu 453 livros sobre música, filosofia, história e educação. Pela
amplitude de seu pensamento musical, na Antiguidade, Aristóxeno
ficou conhecido como o mousikós.
Quatro obras de Aristóxeno abordam o tema do pitagorismo:
Sobre Pitágoras e seus seguidores, Sobre a vida pitagórica, Preceitos
pitagóricos e Vida de Arquitas. Nenhuma sobreviveu completa, mas
são encontrados fragmentos delas em autores posteriores. Esses
fragmentos são considerados valiosos para o estudo do pitagorismo
pelo fato de Aristóxeno ter vivenciado de perto o ambiente em que se
27
A Enciclopédia Suda está disponível on-line em www.stoa.org/sol.
Cynthia S. de Gusmão
67
debatiam tais ideias e por ele ter sido também um peripatético. Os
estudiosos consideram que por esse motivo seus comentários
apresentam uma visão mais próxima da realidade da escola
pitagórica do que aquela difundida pelos sucessores de Platão.
28
O
fato é que isso proporciona ainda mais autoridade às críticas que
Aristóxeno fará aos procedimentos pitagóricos aplicados à música.
Além de se dedicar às notas do los, Aristóxeno escreveu
sobre métrica e instrumentos, mas muito pouco restou desses
escritos. Sobreviveu, no entanto, um grande trecho a respeito da
rítmica, de data posterior aos Elementos de harmônica. Autores como
Gibson consideram que foi Aristóxeno quem estabeleceu a distinção
entre rítmica e métrica (2005, p. 77).
No que tange aos Elementos, vários estudiosos discutiram a
ordem dos três livros que compõem a obra, colocando em cheque a
tradição manuscrita que os agrupou dessa forma. No entanto, para
este estudo, consideraremos a ordem tradicional, estruturada em três
livros, tal como editada por Rosetta da Rios, e as referências
apresentadas serão as da catalogação feita por Meibom
29
.
2. A proposta aristoxeniana
Em Elementos de harmônica fica evidente a escolha de
Aristóxeno em favor da filosofia aristotélica, desse modo avançando e
marcando uma ruptura com suas origens pitagóricas. Aristóxeno
move a harmônica de uma perspectiva cosmológica universalista para
um quadro especializado, mais claramente técnico.
28
Ver, a esse respeito, o verbete "Pythagoreanism", de Carl Huffman. In: The
Stanford Encyclopedia of Philosophy, 2008.
29
Para um histórico detalhado das propostas de organização do livro, estrutura do
texto e origens dos manuscritos, ver Bélis, 1986, p.24-52.
Cynthia S. de Gusmão
68
Um trecho do primeiro parágrafo do Livro II dos Elementos de
harmônica que nos dá uma visão clara e precisa das mudanças
propostas pela teoria musical de Aristóxeno:
“Como um todo, entendemos a Harmônica como a teoria de todos
os mélos e de como a voz estabelece, de maneira natural, os
intervalos, tensionando-se ou relaxando-se. Para nós, o movimento
da voz ocorre de acordo com a natureza (peri phíseos) e os
intervalos não se estabelecem ao acaso.
“Acerca dessas coisas, tentamos apontar demonstrações de acordo
com os fenômenos, não como os antecessores, que divagavam e
desviavam-se da percepção sensível (aisthésis ) como se ela não
fosse precisa, maquinando causas no âmbito do intelecto (noétas
aitías) e declarando ser nas razões (logous) de alguns números e na
velocidade de outros que surgem o grave e o agudo, elucubrando
discursos confusos e contrários aos fenômenos. Eles dão respostas
oraculares sem causa nem demonstração em relação a cada coisa, e
nem bem enumeram os fenômenos. Nós buscamos adotar os
princípios que são evidentes aos que conhecem a sica e
demonstrar o que procede a partir deles.” (Meibom, 32, 6-22)
Nesse parágrafo, estão contidas as críticas às teorias
matemáticas e acústicas que, para Aristóxeno, não deveriam fazer
parte da harmônica. Ao mesmo tempo, ele define seus princípios a
partir da natureza, de acordo com o modelo de ciência natural
preconizado por Aristóteles.
Aristóxeno não vai procurar resolver os impasses da teoria
pitagórica, sua ciência será construída sobre uma nova base. Para
ele, a natureza do mélos nada tem a ver com a produção, emissão,
propagação ou audição do som. O movimento da voz, sua tensão e
seu repouso, irá ocorrer em um espaço especificamente musical e
geométrico.
Cynthia S. de Gusmão
69
O primeiro ponto analisado em Elementos de harmônica é a
voz, definida segundo o lugar que preenche, o topos. A voz falada é
diferenciada da voz cantada, segundo a continuidade ou
descontinuidade dos tons. Ou seja, a voz falada é contínua e a
cantada move-se de maneira descontínua, parando em tons
determinados. Fica claro que não é a propagação do som, ou seu
desempenho sico que vai importar para o estudo de Aristóxeno. A
sua preocupação será com a delimitação de um espaço específico do
acontecer musical, incorporando a percepção do ouvinte.
3. A organização do estudo
Aristóxeno define a harmônica como uma ciência que tem como
objeto o mélos hermosménos, ou seja, o mélos organizado,
harmonioso, articulado, formoso. Como dissemos na Introdução
desta dissertação, para Aristóxeno, esse mélos refere-se à parte tonal
da música.
A harmônica deve proceder de modo organizado para realizar
suas demonstrações. Aristóxeno um exemplo de como isso deve
ser feito e, como é característico de seu estilo, apresenta um retrato
em negativo do processo
e um quadro vivo das aulas de Platão e
Aristóteles:
“É melhor haver exposto, de início uniformemente, o modo de
condução do estudo a fim de que, conhecendo de antemão o
caminho que trilharemos e sabendo em qual parte dele estamos, o
percorramos mais facilmente, e não ocorra de captarmos
erroneamente o assunto.
“Isso acontecia tal como Aristóteles sempre narrava a respeito do
que havia se passado com a maioria dos que ouviam a palestra
sobre o bem de Platão. Cada um vinha pensando captar algo acerca
das coisas consideradas como o bem das pessoas, como, por
Cynthia S. de Gusmão
70
exemplo, riqueza, saúde, força, em suma, alguma felicidade total
extraordinária.
“E, quando as palavras iam surgindo, sobre assuntos matemáticos,
aritméticos, geométricos e astrológicos e mais a conclusão final de
que o bem é uma unidade, isso parecia ser algo tão contrário à
expectativa que alguns negligenciavam o assunto, outros
censuravam. E por qual motivo? Pelo fato de não saberem com
antecedência a natureza do objeto tratado, precipitavam-se atraídos
pelo título da palestra, à moda dos sofistas, e ficavam todos
boquiabertos.
“Mas se alguém, penso eu, tivesse estabelecido de antemão o todo,
o aspirante à palestra poderia abandoná-la ou, se gostasse, ficaria
com base no que foi proposto. O próprio Aristóteles por isso mesmo
fazia um prólogo, para os que tinham intenção de ouvi-lo acerca das
coisas que versava o estudo e o que ele era.
“Portanto, a nós parece melhor, tal como dissemos no princípio,
expor antecipadamente o modo de condução do estudo” (Meibom,
30.15 – 31.13).
Aristóxeno quer organizar o conhecimento, decompor o
conjunto, distinguir suas partes. Trata-se de obter uma visão clara,
buscando os pontos fixos que servirão de pilastras para a construção
do seu edifício harmônico. Contudo, essa coesão, como ele mesmo já
disse, não deve vir do aparato pitagórico. Aristóxeno terá de buscar
outras soluções para erigir essa nova estrutura da harmônica.
A primeira tentativa será feita com as ideias de continuidade
(sunékes) e sucessão (hékses). As duas noções estão presentes de
modo bastante complexo na Física e na Metafísica de Aristóteles
(Apud Bélis, 1986, p.153-154). A hékses ocorre quando os termos
sucedem-se um após o outro em uma ordem determinada, já a
sunékes pressupõe uma inclinação entre as partes, que se tocam
como elos em uma corrente, e também segundo uma ordem.
Cynthia S. de Gusmão
71
Aristóxeno explica a sunékes na harmônica a partir do senso
comum. Ele a compara com as letras que ordenamos no ato de falar.
Pela “lei natural” colocamos em cada sílaba, primeiro uma letra,
depois outra e assim vai. Igualmente, na melodia, a voz ordena os
intervalos e as notas de acordo com a continuidade.
A escolha das duas noções, de novo, enfatiza a ordem natural e
necessária da melodia. Mais adiante, Aristóxeno reforça que não
devemos ver a origem da continuidade e da sucessão na semelhança
ou dessemelhança dos intervalos sucessivos, mas na natureza da
melodia e perguntar-nos qual intervalo a voz coloca em sequência de
maneira natural.
Na busca por essa coesão do sistema, Aristóxeno desdobrará
essas duas noções no conceito de dynamis. Na dynamis, cada nota é
definida pelo seu contexto ou, em termos modernos, pela sua função.
A medida de um intervalo ou de um conjunto deles pode ser
diferente, mas suas funções iguais. Inversamente, intervalos de
mesmo tamanho podem ser ouvidos de modo diferente, pois suas
funções diferem.
Na organização harmônica da música moderna, notas iguais e
principalmente acordes conjuntos de três notas ou mais possuem
essa potencialidade de desempenhar papéis diferentes, às vezes
dentro de uma mesma música. Fazendo uma associação com as cores
é fácil perceber que um amarelo “soa” de maneira diferente ao lado
de um azul ou de um vermelho.
Esse aspecto relacional que Aristóxeno introduz na teoria
musical pode também estar na origem da sua rejeição à existência de
um ethos próprio de cada modo grego. Com a noção de dynamis,
Aristóxeno à percepção o papel de amalgamadora de seu sistema.
A percepção de uma estrutura é mais importante que sua medida.
A representação da música pela matemática é rejeitada porque
ela não ilumina as estruturas; pelo contrário, obscurece o que foi
Cynthia S. de Gusmão
72
percebido. Referindo-se a isso, ele diz: “é evidente que nenhum
desses procedimentos corresponde ao modo de representação da
percepção sensível, porque essa distingue o gênero enarmônico e o
cromático, considerando a semelhança de uma certa forma, não a
grandeza de um certo intervalo” (Meibom, 48, 14-17).
4. A aisthésis
A noção de dynamis está encrustada no princípio aristoxeniano
de aisthésis e na relação com a música. Ele não deixa dúvidas sobre
o papel do sentido da audição no estudo da harmônica: “Para o
músico, a exatidão da percepção sensível está quase na ordem de um
princípio. Tanto é verdade que é impossível, quando não se tem o
ouvido treinado, falar corretamente sobre aquilo que não se percebe”
Meibom (33, 21-26).
Aristóxeno acusa de allotrioloyountes, ou seja, argumentos
estranhos, as soluções apresentadas por seus antecessores, pois elas
são contrárias aos fenômenos, ou seja, àquilo que se apresenta aos
sentidos. A ideia de uma oitava ser representada pela razão 2:1 é
completamente estranha a essa ciência que Aristóxeno está buscando
construir, para não dizer totalmente inútil. Aqui, a oitava é aquela
consonância característica que ouvimos. Os discursos são confusos
porque não tomam como base a aisthésis .
Os princípios da harmônica tal como preconizados na obra de
Aristóxeno devem ser evidentes para aqueles experientes em música.
O autor Gaudêncio, da Antiguidade tardia (século III ou IV d.C.),
reuniu em sua Harmonica introductio aspectos das teorias
pitagóricas. Na abertura da obra, ele escreve: “aquele que não ouve
uma nota claramente e não exercitou a sua audição e veio ouvir estas
palavras, deixe-o ir embora e fechar a porta para estes sons, pois
seus ouvidos, embora presentes, serão interrompidos por um sentido
Cynthia S. de Gusmão
73
que não conhece, antes destas palavras. Ao iniciarmos, falemos na
voz daqueles treinados de maneira precisa pela experiência” (Apud
Mathiesen, 1999, p.500).
O objetivo do exercício do ouvido é o aperfeiçoamento da
prática, pois a harmônica de Aristóxeno era uma tékne destinada aos
músicos. No que diz respeito à importância dada ao ouvido treinado,
Bélis comenta: “Aristóxeno é, sem dúvida, um dos primeiros a
abordar esse tema, e não sob forma de recomendação pragmática,
mas dentro de uma argumentação filosófica” (Bélis, 1986, p. 205).
Como diz Aristóxeno: “É necessário acostumar-se a julgar cada coisa
com precisão; de fato, não podemos dizer, como se faz a propósito
das figuras geométricas: ‘seja esta linha reta’; não! Devemos
abandonar esse hábito ao falarmos dos intervalos. Pois o geômetra
não faz uso da faculdade da sensação (tei tens aisthéseos dynamei) e
nem acostuma a sua visão a julgar bem ou mal, à reta, ao círculo, ou
a outra destas figuras, isto sendo mais da competência do
carpinteiro, do que trabalha no torno, ou outros técnicos que se
exercitam nessas coisas” (Meibom, 33,10-21).
5. O diálogo com Aristóteles
O modo aristotélico de conceber o som e a escuta abriu novas
perspectivas para a harmônica. Aristóteles ensaiou penetrar em seus
domínios, mas foi claro ao dizer que não tinha pretensões à música,
deixando essa função para alguém com mais competência. Ele fez
uso dos instrumentos musicais como recurso de metáfora em sua
Metafísica (1046a), chamando a atenção para uma relação dialética
entre duas partes, como, por exemplo, entre o instrumentista e o
instrumento, o primeiro apresentando uma dynamis tou poiein, o
segundo, uma dynamis tou páskein.
Cynthia S. de Gusmão
74
Zingano, na análise da doutrina da sensação no De anima, diz
que Aristóteles analisa a percepção como “uma atividade da alma
(metá tou somatos) vinculada ao corpo”. E segue: “Embora a
percepção não possa ocorrer sem certas alterações de certos órgãos,
em função de um objeto específico, a percepção de algo não é
unicamente (ou idêntica a) estas alterações. Aristóteles assinala com
frequência que a percepção é ‘uma certa afecção’, páskein ti,
querendo dizer com isto que não se reduz ou não é somente esta
afecção. Ela é, e isto fundamentalmente, uma alteração ou afecção
dos órgãos sensitivos em que se realiza uma faculdade ou dynamis
específica da alma, através da qual o sujeito apreende (e é
consciente desta apreensão) a forma sensível dos objetos” (Zingano,
1998, p. 54).
Aristóxeno talvez tenha buscado elucidar esse processo a partir
da aplicação da dynamis à música, concebida verdadeiramente como
um aesthetón, um objeto percebido pelo ouvido. No que diz respeito
à anatomia e à fisiologia do ouvido, o conhecimento de Aristóteles era
bastante avançado, como mostra a sua descrição no De anima (420
a, 13-16), na qual se percebe que o filósofo conhecia bem o labirinto
e a cóclea.
O ouvido que é afetado, movido pelo som musical, é o princípio
da Harmônica de Aristóxeno, mas há uma intervenção de outra
instância para que se complete o processo da percepção musical: “a
teoria refere-se a todos os mélos da música, que ocorrem na voz e
nos instrumentos. O estudo encaminha-se de modo duplo: em
direção à escuta e à inteligência. Pela escuta, (akóen), distinguimos
as magnitudes (meguéthe) dos intervalos; com o intelecto, (diánoia),
contemplamos as suas funções (dynamei)
(
Meibom 33, 2-6).
A aisthésis identifica os intervalos, e a memória (mnéme) retém
as impressões, a diánoia capta a configuração das notas e das
estruturas uma em relação às outras, ou seja, a sua dynamis.
Cynthia S. de Gusmão
75
Portanto, esse é um conceito-chave da teoria de Aristóxeno, que deve
advir das discussões sobre a natureza da percepção em Aristóteles.
Esse conceito está no fundamento da diferença entre a filosofia
aristoxeniana e a pitagórica. Por exemplo, Aristóxeno vai ter
necessidade de definir um métron, uma unidade de medida, para a
harmônica. Aristóteles havia sugerido como métron da música a
diésis de um quarto de tom, por ser o menor intervalo da música
grega antiga (Metafísica, 1053a,10a-32b). Aristóxeno, no entanto, vai
estabelecer o tom como sua unidade de medida. Esse tom será
definido a partir da diferença entre a quarta e a quinta, mas essa
diferença não advém da subtração, da divisão ou de qualquer outra
operação aritmética. A diferença que produz o tom, para Aristóxeno,
é aquela que ouvimos claramente entre a quarta e a quinta. O fato de
os intervalos serem duas consonâncias faz com que eles sejam mais
facilmente reconhecidos e julgados pelo ouvido treinado.
6. O espaço geométrico do mélos
A dynamis permite uma divisão do espaço musical em que a
voz movimenta-se de maneira geométrica. E esse espaço é muito
mais flexível que o dos cálculos aritméticos pitagóricos.
Como havíamos dito, Aristóxeno abre seu tratado enfatizando
que a harmônica é apenas um dos ramos da ciência musical (los
epistéme). Outro aspecto é o ritmo. A voz, para realizar o mélos,
precisará de dois movimentos: katá tón krónon, de acordo com o
tempo, e katá tón tópon, de acordo com o lugar. A rítmica ocupa-se
do primeiro movimento, a harmônica, do segundo. Os dois
movimentos, temporal e local, desenvolvem-se no mélos até o
silêncio. Contudo, esse movimento da voz não ocorre por acaso, mas
pela necessidade natural que rege los hermosménon, a melodia
bem articulada ou formosa ou eficiente.
Cynthia S. de Gusmão
76
A concepção de necessidade da natureza está em perfeita
consonância com a filosofia aristotélica, que encontramos, por
exemplo, no tratado Sobre os céus: “O deus e a natureza não fazem
nada inutilmente” (Apud lis, 1986, p. 140). Há uma diferença
fundamental entre essa necessidade de ordem aristotélica e o kósmos
matemático pitagórico: o céu de Aristóteles é o céu que se apresenta
aos sentidos, assim como a música de Aristóxeno.
7. As partes da harmônica
A natureza dispõe, de acordo com a necessidade do mélos
hermosmenos, os intervalos musicais em uma ordem hierárquica
(táksis), estabelecendo notas fixas e móveis, tal como era dado no
sistema musical grego. Diz o mousikós: “tendo a música esta
natureza, é necessário no que se refere ao mélos hermosmenos
habituar conjuntamente a inteligência e a sensação a julgar bem o
que permanece e o que se movimenta” (Meibom, 34,19-21). E
propõe a classificação da harmônica em sete categorias.
A primeira parte é formada pelos gêneros, que percebemos a
partir das notas que se entrelaçam, fixas, e das que se movimentam.
São eles: diatônico, cromático e enarmônico. Em seguida, vêm os
intervalos, que se dividem em consonantes (quarta, quinta, oitava e
seus compostos) e os dissonantes. Aqui, Aristóxeno, por rejeitar as
razões numéricas em favor de uma divisão em partes, ou seja,
geométrica da escala, propõe: “as partes do tom que se seguem (a
partir da sua diferença entre a quarta e a quinta) são: a metade, dita
semi-tom, a terça parte, dita diésis cromática; a quarta parte, dita
mínima diésis enarmônica”
(
Meibom, 46, 1-5).
Desse modo, vemos que Aristóxeno foi um dos primeiros
teóricos a defender uma distância homogênea entre os intervalos,
posição precursora do temperamento igual, afinação que voltará a ser
Cynthia S. de Gusmão
77
debatida no século XVI, particularmente nos escritos de Vincenzo
Galilei, que teve acesso à primeira tradução dos Elementos de
harmônica de Aristóxeno.
30
Na verdade, Aristóxeno não desenvolve muito a questão do
meio-tom, mas ela será retomada por autores como Aristides
Quintilianus, que viveu entre os séculos II e IV d.C. (Mathiesen,
1999, p.529).
Na sequência da classificação das partes da harmônica, vêm as
notas e depois as escalas quantas o, de que natureza e de quais
intervalos e notas são compostas.
A quinta parte é constituída das tonalidades ou trópoi. As
escalas eram oito, mas na prática os músicos e cantores não se
valiam tanto dela quanto dos trópoi, ou transposições das escalas a
outros tons. Aqui Aristóxeno critica um outro grupo de músicos, os
harmonicistas, que não levavam em conta nenhuma sistematização:
“a doutrina dos harmonicistas sobre as tonalidades é análoga ao
modo como se contam os dias dos meses: assim por exemplo,
quando para os coríntios são dez, para os atenienses são cinco e
ainda para outros oito”
(
Meibom, 37, 7-12). É possível que Aristóxeno
faça referência aos harmonicistas porque as tonalidades eram muito
utilizadas por eles na prática musical.
31
A sexta parte é a modulação
e, por fim, a composição melódica, o objetivo final da harmônica.
Após definir o escopo da harmônica, Aristóxeno enumera as
partes que não fazem parte dessa ciência. Por exemplo, a notação
musical e a teoria do aulos, por suas limitações. Apesar de haver
referências de que o tarentino tenha escrito uma obra dedicada ao
aulos, ele considera que não devemos basear-nos em um
instrumento para conhecer as leis naturais do mélos, pois a sua
30
A primeira tradução dos Elementos de harmônica de Aristóxeno foi editada em
latim em Veneza, no ano de 1562. A segunda, em italiano, é de 1593, e foi editada
em Bolonha.
31
Ver, a esse respeito, Rios, 1954, p.54, nota 1.
Cynthia S. de Gusmão
78
ordem não depende de nenhuma propriedade dos instrumentos: “De
fato, a essência e a ordem, que se mostram no
mélos hermosménon,
não dependem de nenhuma propriedade dos instrumentos” (Meibom,
41, 20-22).
8. Ressonâncias de Elementos de harmônica
Os teóricos subsequentes da Antiguidade como Cleônides,
Gaudêncio, Aristides Quintiliano vão adotar o estudo de Aristóxeno
como fonte de conhecimento da música grega antiga, mas, com
exceção de Ptolomeu
32
, vão deixar de lado a sua filosofia. Quando ela
aparece muitas vezes é mal interpretada ressaltando apenas a sua
ênfase na sensação. Contudo, como bem observa Bélis: “Aristóxeno
está tão longe de negligenciar o exercício do pensamento (apesar dos
ditos de Boécio), assim como de relegar um lugar modesto à
sensação. E por duas razões: primeiro, ele acredita ser necessário
que em cada coisa haja uma análise teórica ou uma definição pela
sensação, mas se a impressão auditiva e a teoria estão em
contradição, a teoria deve ceder” (1986, p. 210). Essa postura está
em acordo com o princípio empirista de Aristóteles: se a experiência
se opõe à teoria, é preciso modificar a teoria.
Boécio, nas Institutione musicae, afirma que Aristóxeno não
usa a razão e concede à sensação todo o crédito (Apud Bélis, 1986,
p.227 nota 65). Talvez em parte devido ao predomínio da
interpretação de Boécio, no século XVI os escritos desse autor
maior serão estudados abertamente e com a merecida atenção.
A divisão da Harmônica em sete partes será o fundamento de
um programa de musicologia e de ensino para as próximas gerações.
32
Ptolomeu buscará contemplar a percepção musical na sua Harmônica, mantendo-
se, no entanto, fiel às razões matemáticas pitagóricas.
Cynthia S. de Gusmão
79
Por isso, a divisão em partes é de cunho lógico e pedagógico, o que
não significa que as partes sejam anteriores ao todo. O mélos
hermosménon não será constituído da soma dos elementos, mas,
antes de tudo, será uma síntese. Como comenta lis a respeito da
physique synthesis, o objetivo final da harmônica, “enquanto fato da
natureza, de uma necessidade absoluta e de uma perfeição absoluta,
tem a mesma importância dentro do sistema de Aristóxeno que a
noção de harmonia para os pitagóricos” (1986, p. 150).
A harmônica de Aristóxeno será um divisor de águas na teoria
musical da Antiguidade. Suas críticas às influentes concepções
pitagóricas colocaram em cheque alguns pressupostos teóricos da
ciência daquele tempo. Mesmo a posição de Aristóteles, no que dizia
respeito à contestação do pitagorismo limitava-se à metafísica e à
astronomia (Metafísica, 986a) no que tange às razões pitagóricas, ele
estava de acordo que elas fossem as causas das consonâncias. É
interessante que Aristóxeno em nenhum momento questiona as
causas das consonâncias, ele apenas afirma que não é disso que trata
a ciência particular da harmônica.
Essa ciência independente exclui de suas análises os
instrumentos, a performance, a escrita e as razões numéricas,
dizendo que a percepção da estrutura musical é mais importante que
sua medida. Ao invés de falar em comprimento da corda, refere-se a
partes da escala, insinuando uma contaminação da música, com seus
números discretos, pela ciência das magnitudes contínuas e, por sua
vez, pela ideia de infinito e incomensurável. E o que era mais
ameaçador: clamava por um fundamento na natureza. Em uma época
em que a música era vista como a própria afinação do mundo, isso
deve ter tido um impacto considerável.
A obra de Aristóxeno irá forçar uma especialização do discurso
pitagórico e, no final do século III a.C., surge o texto Sectio canonis
(A divisão do cânone). Nele, não nenhuma referência à
Cynthia S. de Gusmão
80
cosmologia, é um discurso objetivo que busca demonstrar a evidência
da perspectiva pitagórica.
Cynthia S. de Gusmão
81
CAPÍTULO V
A DIVISÃO IDEAL DO CÂNONE
1. O rigor do Sectio canonis
A obra A divisão do cânone foi escrita por volta de 300 a.C. e
evoluiu até sua forma final, que chegou à Renascença, entre os
séculos IV e VI d.C. Nas duas versões existentes em grego, é referida
como sendo de autoria de Euclides: uma forma mais longa, nos
manuscritos que acompanham a Harmonica introductio de Cleônides,
e outra mais breve no comentário de Porfírio à Harmônica de
Ptolomeu, do século III d.C. Uma versão mais curta, em latim, está
presente no Institutione musica de Boécio, que não atribui a obra a
ninguém.
Os pitagóricos buscavam uma afinação musical ideal que
complementasse a sua filosofia dos números e criaram um
instrumento para esse fim: o monocórdio, ou cânone, no qual era
possível visualizar a proporcionalidade inversa entre a altura musical
e a corda vibrante como segmentos em uma régua. Por trás do
cânone havia uma ideia original: a de uma ferramenta construída
para a realização de um experimento científico, que partia de um fato
sensorial, a percepção musical. No monocórdio, era possível esquecer
totalmente outros fatores ligados à produção do som musical. Isolar
um fato, apenas a altura, como em um espaço ideal.
Na sua forma final, A divisão do cânone divide-se em quatro
partes: uma introdução, nove proposições puramente matemáticas,
sem nenhuma referência musical, os corolários musicais e um guia
para a localização das notas no cânone. Na Introdução, o autor
Cynthia S. de Gusmão
82
apresenta a concepção acústica pitagórica que já expusemos no
capítulo das teorias acústicas da Antiguidade.
No final da Introdução, com a exposição das causas físicas do
som musical, o autor faz uma classificação das razões em múltiplas,
superparticulares e superpatientes. Essa classificação é importante,
pois levará à demonstração de que apenas as razões múltiplas e
superparticulares podem ser consonantes. As ltiplas (mn:n)
referem-se às oitavas e as superparticulares (n+1:n) às quartas e
quintas. As razões musicais podiam ser demonstradas nas distâncias
(intervalos) entre dois pontos numerados no cânone, mas na obra
elas são demonstradas por segmentos de reta como em um
instrumento multicordas. Existem, no entanto, dúvidas sobre a data
em que esses diagramas tenham sido feitos (Barbera, 1991).
As primeiras nove proposições expõem teoremas concernentes
às razões entre os intervalos, sem fazer nenhuma referência à
música, mas fica claro que sua função é preparar o caminho para as
concepções musicais que aparecerão a partir da proposição 10,
quando será traduzido em linguagem matemática aquilo que é
percebido empiricamente pela audição.
Na proposição 16, no entanto, a aritmética sobrepõe-se aos
fatos musicais e determina a impossibilidade da divisão do tom em
dois ou mais intervalos musicais. Essa proposição está conectada à
proposição 3: “em uma razão superparticular não existe número,
nem um, nem mais de um que o divida proporcionalmente”. Essa
prova havia sido apresentada por Arquitas, ou seja, se não um
termo médio entre dois de uma razão epimórica, não é possível
dividir o tom (9:8). Como dissemos, esse cálculo levaria a um
número irracional, ou seja, não redutível a uma razão.
Se até este ponto poderíamos ter dúvida se estávamos falando
de intervalos em termos geométricos ou aritméticos, agora tudo
converge para a última opção, ecoando a tonalidade pitagórica. Ou
Cynthia S. de Gusmão
83
seja, apesar dos comprimentos visíveis serem transformados em
segmentos de reta, à aritmética é concedida uma posição principal.
Em uma oitava, é possível perceber que a quinta é maior que a
quarta auditivamente, mas não apreendemos sensivelmente que a
diferença entre elas é de 9:8, nem que a quarta é 4:3 e a quinta 3:2.
Cabia à aritmética desvelar essas relações.
As duas proposições finais de A divisão do cânone são um
método para a localização das notas no instrumento, apenas no
gênero diatônico.
Apesar do caráter teórico da obra, A divisão do cânone é de
uma época em que a matemática pitagórica era o modelo de ciência
ainda em uso e tinha aplicações práticas bem determinadas.
2. O apogeu da ciência pitagórica
É conhecida a adoração e o entusiasmo que os gregos tinham
pelo teatro. Como as representações eram feitas ao ar livre, havia
uma preocupação especial com a construção dos anfiteatros, que
deveriam abrigar milhares de espectadores. Em geral, eles eram
construídos ao longo de uma colina, com uma inclinação de mais ou
menos 45 graus com o auditório fazendo um semicírculo em torno do
espaço de performance.
Um dos teatros mais famosos é o de Epidauros, construído
dentro do santuário de Asclepius, o deus da saúde e da medicina,
entre 330-320 a.C. É conhecida a eficiência acústica do seu espaço,
seja quanto à audibilidade ou à compreensão da voz solista ou em
coro, seja para a audição de um único instrumento, como era o caso
das representações teatrais gregas, que utilizavam apenas o aulos. O
teatro de Epidauro acomoda 14.000 pessoas e seu desenho faz com
que todas elas ouçam e vejam com perfeição. Talvez porque suas
Cynthia S. de Gusmão
84
proporções sejam calculadas a partir de uma unidade de medida
relacionada ao corpo humano, o cúbito.
De acordo com o cenógrafo grego Vovolis (2000, p.79), a
construção é feita com base nas proporções matemáticas tal como
desenvolvidas pela escola pitagórica. Por exemplo, a relação entre o
número de fileiras de assentos, acima (34) e abaixo (21) do corredor
central e o conjunto total forma uma proporção áurea 55:34::34:21,
que, como vimos é a proporção em que o todo está para a parte
maior, assim como esta última está para o todo
(Proposição VI.36 de
Euclides, Os Elementos). Por fim, o plano horizontal da orquestra está
baseado no pentagrama, figura que representava saúde para os
pitagóricos.
Vovolis afirma que também o arquiteto Vitruvius, do século I
d.C., propunha a colocação de vasos de bronze ou argila nas laterais
dos teatros para aperfeiçoar a qualidade de timbre da voz. Os
artefatos deveriam estar em proporções matemáticas entre si,
levando em conta o tamanho do teatro
Esse modelo em que a harmônica e a natureza considerando
o ser humano como parte dela estão em uma relação de
comensurabilidade, ou de proporção, manter-se-á no mundo grego,
permanecerá bem vivo na Idade Média e alcançará a Renascença,
com outras ramificações tanto na arte quanto na ciência.
Cynthia S. de Gusmão
85
CONSIDERAÇÕES FINAIS
As razões numéricas musicais, tal como elaboradas pela escola
pitagórica, tiveram um papel importante no desenvolvimento inicial
da ciência grega. os princípios aristoxenianos darão impulso à
tékne musical, no sentido aristotélico do termo, a capacidade de
fabricar ou fazer algo com conhecimento dos princípios envolvidos.
Essa eficiência da arte musical promovida por Aristóxeno
insere-se no quadro de uma das concepções gregas de kalós: o
critério estético é o da obra bem feita. Aristóxeno não se refere a
nenhuma função social para a música, a sua filosofia volta-se toda
para a qualidade de realização do mélos hermosménon, de acordo
com a sua própria natureza.
Essa ligação primeira da música com a natureza está presente
tanto na filosofia de Aristóxeno, como herdeiro de Aristóteles, quanto
na de Pitágoras. Na obra de arte, há uma reorganização das coisas tal
como dispostas na natureza. Mas no termo kósmos, cujo significado
primeiro é ordem, está impressa uma percepção de que esse sentido
estético está na natureza e surge da sua contemplação. Já na palavra
harmonia, o sentido de que o prazer estético pode surgir da
reciprocidade dos elementos, ou seja, a dissonância é integrada no
todo harmônico consonante.
Que a religiosidade mágica pitagórica seja o ponto de partida
do processo de racionalização da música ocidental pode parecer
paradoxal, mas as escolhas feitas no desenvolvimento dessa arte-
ciência são bastante coerentes com as construções poéticas e
científicas de seus empreendedores.
Cabe aqui sublinhar o papel fundamental da analogia como
procedimento epistemológico, em especial no pensamento pré-
socrático. Esse aspecto é explorado em profundidade por Abdounour,
que enfatiza como “os pitagóricos contribuíram fortemente para o
Cynthia S. de Gusmão
86
desenvolvimento categorial dessa forma de comparação” (Abdounour,
1999, p.116) dando a ele um caráter matemático. Para o autor, o
pensamento moderno supervaloriza o pensamento lógico-formal em
detrimento do analógico.
No século das Luzes, uma troca de ênfase do objeto para o
sujeito. Um exemplo no âmbito da estética está no texto Standard of
taste, do filósofo escocês David Hume (1711-1776): “O belo não é
uma qualidade intrínseca aos objetos; ele existe dentro dos espíritos
que os contempla, e cada espírito percebe uma beleza diferente”
(Apud Chouillet, 1974, p. 65). Esse pensamento digno de um
Protágoras, é contraposto na Antiguidade grega a uma teoria da
beleza embasada em um substrato ontológico. Mas, de qualquer
modo, é no sujeito que acontecerá a ação da aisthésis , a partir da
qual ocorre a distinção entre a consonância e a dissonância.
Os pensamentos subjacentes às duas correntes aristoxeniana
e pitagórica – participarão ativamente da história da música no
Ocidente. A geometria musical de Aristóxeno será importante para o
desenvolvimento da arte musical, entre outras coisas, por estar em
sintonia com uma posição precursora do temperamento igual, por sua
vez, responsável pelo desenvolvimento da harmonia e da tonalidade.
Mas a supremacia da melodia defendida pelos novos teóricos dos
séculos XVI, que conclamavam ideias aristoxenianas, foi possível
por causa do desenvolvimento dos meios advindos do progresso dos
questionamentos iniciados pelos pitagóricos.
A pergunta pitagórica rechaçada por Aristóxeno, que não se
interessava pela acústica musical – sobre a causa primeira dos
intervalos continuou ressoando e será essa mesma questão que
Galileu se fará em 1638. A resposta não utilizará os procedimentos da
aritmética pitagórica e, tampouco, da lógica das abordagens
qualitativas aristotélicas. Galileu marca o início da sica da música ao
pensar o fenômeno da altura como frequência de vibrações e
Cynthia S. de Gusmão
87
impactos no mpano humano, ideia que levaria logo mais ao
entendimento do fenômeno da ressonância e da existência dos
harmônicos, sons parciais, na composição de um tom musical.
A música seguirá tendo papel preponderante na trajetória dos
experimentos acústicos. Mas a realização completa do temperamento
será possível devido a um procedimento matemático, os
logaritmos.
Quase quinhentos anos depois da morte de Aristóxeno, em
meados do século II d.C., o astrônomo, matemático e geógrafo
Cláudio Ptolomeu (100-179 d.C.) escreve a obra Harmônica em três
livros nos quais expõe toda a teoria musical da Antiguidade, amplia
significativamente os lculos numéricos pitagóricos e busca
incorporar alguns aspectos da filosofia aristoxeniana. Para Ptolomeu,
a aritmética e a geometria são “instrumentos de autoridade
indiscutível”, empregados pela astronomia e pela harmônica “para
descobrir a quantidade e a qualidade dos movimentos primários”. A
ciência dos astros e a musical são “primas, nascidas das irmãs visão
e audição, e educadas pela aritmética e a geometria
.
(Ptolomeu, 94,
13-20, apud Barker, 2000, p 6)
Aristides Quintiliano (séculos III e IV d.C.) em seu De musica,
irá reunir considerações musicais, filosóficas, médicas e gramaticais,
com forte influência neoplatônica, tal como o Manual de harmônica,
do matemático Nicômaco de Gerasa (II d. C.), que também se insere
nessa tradição.
Boécio (480-525/26) encerra os primeiros mil anos de
especulação teórica da música, fazendo a ponte para a Alta Idade
Média. Na introdução de sua obra Institutione arithmetica, o autor
romano define um programa educacional para os estudantes das
artes liberais no qual deveriam estar presentes as quatro ciências
matemáticas: a astronomia, a aritmética, a geometria e a música. Ele
chamou a esse conjunto de quadrivium: trata-se do conjunto de
Cynthia S. de Gusmão
88
disciplinas que deveriam levar o ser humano ao conhecimento das
essências imutáveis na natureza. Para o filósofo cristão, as ciências
do quadrivium apareciam na seção do estudo dos seres naturais,
também chamado de fisiologia ou física. Como estudioso e tradutor
dos escritos lógicos de Aristóteles, o autor distinguia a categoria de
quantidade em dois gêneros: discreto e contínuo. Na quantidade
discreta, a espécie é o número; e a aritmética e a música são as
disciplinas matemáticas que lidam com as quantidades discretas, pois
a primeira trabalha com o número em si mesmo e a outra, com as
relações entre os números (razões e proporções). As outras duas
ciências, a geometria e a astronomia, lidam com as quantidades
contínuas, as magnitudes geométricas ligadas ao movimento e ao
repouso. Suas espécies são a forma imóvel (geometria) ou móvel
(astronomia). Uma magnitude pode ser infinitamente dividida, mas a
unidade, a origem da quantidade discreta, é indivisível.
Os eruditos concentrados no império de Carlos Magno, na
segunda metade do século VIII, seguiram estudando a música como
disciplina científica e as anotações nos manuscritos das obras
revelam uma verdadeira obsessão com inumeráveis cálculos de
razões matemáticas. Em 814, com a dissolução do império carolíngio,
essas obras dispersaram-se pelos mosteiros e caíram nas mãos dos
religiosos, que deram início à diluição das fronteiras entre a teoria e a
prática musical. Os monges passaram a dominar os escritos teóricos
mas também a prática musical, de que necessitavam para a rotina
diária de entoação dos cantos ritualísticos. Entre os tratados musicais
dessa época está a Epistola de armonica institutione, do religioso
alemão Regino de Prum (c.842-915), que reúne a matemática
musical da época com um tonário, um livro para o estudo sistemático
dos modos utilizados nos cantos.
No século XII, em cidades prósperas, surgiram as escolas
catedrais, nas quais era incentivado o estudo das artes liberais. A
Cynthia S. de Gusmão
89
escola de Chartres ficará conhecida por cultivar as disciplinas do
quadrivium boeciano. Ali eram lidos os fragmentos (17a-53c) do
Timeu de Platão, conhecidos através dos comentários do escritor do
século IV, Calcídio. Neles estava a passagem em que Platão descreve
a criação da alma do mundo com base na escala musical pitagórica.
Segundo Alain de Libera, os chartrenses, apesar de não conhecerem
nada de Platão além desse fragmento, davam ao autor “um crédito
tanto mais intenso quanto mais a sua obra parecia destinada a selar
o acordo entre a ciência sagrada, a matemática e os saberes
naturais” (2004, p.314). Na mesma época, em Paris, Hugo de São
Vítor expunha a classificação em quatro partes de sua filosofia:
teórica, prática, mecânica e lógica. A música mantinha-se na parte
teórica, como uma das quatro matemáticas, aquelas que deveriam
tratar das formas invisíveis (no caso da música, inaudíveis) das
coisas visíveis (audíveis).
Com o desenvolvimento do humanismo na Itália, no início do
século XV, assuntos e práticas relacionados ao estudo das
humanidades, como a retórica e a poesia, foram penetrando nas
reflexões e nos escritos sobre a música, afastando-a de sua estreita
vinculação às matemáticas. No século XVI, essas ideias adentraram a
obra dos compositores madrigalistas, em geral flamencos, que
vinham para a Itália em busca de trabalho. Um deles foi Adrian
Willaert (1490-1562), diretor musical da Igreja de São Marcos em
Veneza de 1527 até 1562 e grande responsável pelo estabelecimento
do magnífico idioma coral da escola veneziana. Willaert reunia as
qualidades do músico teórico com uma profunda experiência da arte
musical. A partir dele, os compositores começam a influenciar mais
diretamente a teoria musical. A hierarquia de Boécio desmoronava e
suas três “músicas” se fundiam em uma só.
Nesse período, que tem como pano de fundo a preparação de
um novo ciclo do pensamento ocidental, a obra Elementos de
Cynthia S. de Gusmão
90
harmônica é traduzida para o italiano, levando a tensão criada entre
as correntes da matemática e da sensação ao seu ápice.
No século XVII, a ideia de harmonia universal continua
presente: analogia viva entre os elementos da natureza que deviam
ressoar entre si por simpatias. Essa visão está representada na
imagem do livro de Robert Fludd, Utriusque cosmi, de 1617: um
imenso monocórdio, cuja cravelha é ajustada por uma “mão cósmica”
envolta em uma nuvem. As proporções matemáticas afinam as
consonâncias musicais, os planetas e os elementos.
A ideia de que todas as partes do universo estão conectadas
harmônica e simpateticamente, que todos os seres constituem uma
imensa cadeia contínua, é um fenômeno facilmente demonstrável nas
propriedades de ressonância de instrumentos musicais,
especialmente daqueles de cordas; por exemplo, com dois alaúdes:
tangendo as cordas de um, o outro vibra. Segundo Gouk, “embora o
experimento tenha sua origem no contexto da magia natural, no
século XVII, ele será incorporado pela nova filosofia experimental
como uma maneira de visualizar outras espécies de vibrações
ocultas, mas naturais” (2002, p.231).
O modelo de harmonia universal segue presente nas
investigações do astrônomo alemão Johannes Kepler (1571-1630), ao
mesmo tempo em que sofrerá rupturas mais profundas com a
filosofia de René Descartes (1596-1650). O pensamento cartesiano
ecoará, no século XVIII, na teoria musical de Jean-Philippe Rameau
(1683-1764), que introduzirá a ideia de forças naturais nas relações
sistêmicas da linguagem musical, enfatizando não mais os intervalos
entre dois tons, mas formações de acordes, conjunto de três tons ou
mais. Contemporâneo de Rameau, Johann Sebastian Bach (1685-
1750) irá sintetizar em sua arte toda a tradição ocidental até então,
reunindo organologia, técnica, matemática e poesia de modo que
Cynthia S. de Gusmão
91
nenhum grego pudera sequer imaginar. Em seu tempo, a música
alcançará sua completa autonomia.
Ao lado das transformações que começam a ocorrer na história
da teoria musical, a música segue sendo estudada como disciplina
científica dentro do currículo da educação superior na Europa até o
século XVIII. Isso explica a sua presença, às vezes determinante, na
obra de cientistas e filósofos como Kepler, Galileu, Mersenne,
Descartes, Huygens, Leibniz, Bacon, Newton, entre outros, que
escreveram com desenvoltura sobre a música e a utilizaram como
base de suas teorias e experimentos. Nesse momento, novas
concepções e experimentos relacionados ao som musical darão
impulso à física em geral e à acústica em particular.
A partir do século XVIII, o foco da música desloca-se
completamente do âmbito científico para o estético, mas a música
segue guiando os estudos em acústica. Em 1701, Joseph Sauveur
(1653-1716) publica sua obra Princípios de acústica e de música, na
qual expõe a noção de frequência musical. Por volta de 1739, o
matemático Leonard Euler (1707-1783) apresenta sua teoria da
consonância baseada em leis matemáticas no livro Tentamen novae
theoriae musicae, ex certissimis harmoniae principiis dilucidae
expositae.
O médico, físico e matemático Hermann von Helmholtz (1821-
1894), no século XIX, funda o estudo da fisiologia do ouvido e leva
adiante inúmeras pesquisas relacionadas à música, explicando o
papel dos harmônicos no timbre e a natureza dos pulsos nas
consonâncias e dissonâncias. O som passa a ser considerado não
como vibração, mas como onda, e a matemática volta à cena
musical, quando Fourier faz a representação matemática de curvas
periódicas através da superposição de senóides, mostrando que elas
correspondiam a uma série de 1,2, 3, 4 vezes a frequência da curva
Cynthia S. de Gusmão
92
original. Essa Série de Fourier correspondia à sequência ordenada dos
harmônicos, do grave ao agudo.
Com o desenvolvimento da fisiologia foi possível demonstrar
que o ouvido humano analisa sons complexos através de
componentes mais simples, as senóides. Seria possível fazer uma
analogia dessa descoberta com a perplexidade que deve ter atingido
o coração dos pitagóricos ao se depararem com as razões dos quatro
primeiros números inteiros como explicação para as consonâncias? O
fato é que algumas questões ainda não foram totalmente
compreendidas, entre elas, exatamente a origem da consonância e da
dissonância, problema central da harmônica de Pitágoras (Taylor &
Campbell, 2009)
33
.
O desenvolvimento das técnicas de gravação e o surgimento
das músicas concreta e eletrônica, no início do século XX, agregaram
novos ingredientes à música e à ciência musical. Eimert encerra seu
prefácio ao livro Que es la música eletrônica? dizendo: “A relação
com o som nunca foi tão direta como hoje. O som segue sendo, para
o teórico, a fonte principal” (Eimert, 1973, p.21).
Aristóxeno, o mousikós, teria dito de outro modo. O que
interessa à música é o som musical. A altura ou, a frequência do
som, só interessa a partir do momento em que se transforma em tom
e desabrocha no ritmo. Com a noção de tom podemos explicar a
transposição de melodias, algo tão inerente à natureza humana. Pois,
no mélos hermosménon, ouvimos, o o som, mas as qualidades
dinâmicas inerentes ao tom, movendo-se em um espaço
intermediário, o mundo da aisthésis .
33
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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO
FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS
DEPARTAMENTO DE FILOSOFIA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM FILOSOFIA
Cynthia Sampaio de Gusmão
A harmônica na Antiguidade grega
São Paulo
2010
Cynthia S. de Gusmão
1
Cynthia Sampaio de Gusmão
A harmônica na Antiguidade grega
Dissertação apresentada ao
programa de Pós-Graduação em
Filosofia do Departamento de
Filosofia da Faculdade de Filosofia,
Letras e Ciências Humanas da
Universidade de São Paulo, para
obtenção do título de Mestre em
Filosofia sob a orientação do Prof.
Dr. Pablo Rubén Mariconda.
São Paulo
2010
Cynthia S. de Gusmão
2
À minha bisavó Sophia Gaertner e sua filha
Djanira, a muito amada Mami.
Cynthia S. de Gusmão
3
AGRADECIMENTOS
Ao querido Professor Pablo Rubén Mariconda, por sua visão dinâmica
e apaixonada do conhecimento, pelas sucessivas e poderosas
intervenções e pela oportunidade.
À minha querida Silvana Issa Afram, pelas leituras cuidadosas, pela
revisão do texto, pelo carinho e paciência.
À querida Professora Marília Pini, por ter aberto a minha visão em
perspectiva.
Ao querido e saudoso Ricardo Rizek, por muitas coisas, dentre elas,
por assumir o amor pela beleza da cosmologia pitagórica.
À querida Professora Annie Bélis, por me proporcionar o mergulho no
contraponto aristoxeniano.
Cynthia S. de Gusmão
4
RESUMO
Gusmão, Cynthia Sampaio de. A harmônica na Antiguidade grega.
2010. 101f. Dissertação de Mestrado, Faculdade de Filosofia, Letras e
Ciências Humanas. Departamento de Filosofia, Universidade de São
Paulo, São Paulo, 2010.
O presente trabalho apresenta as ideias centrais relacionadas às duas
principais teorias acerca do som musical na Antiguidade grega, entre
o final do século VI a.C. e o início do século III a.C. O estudo analisa,
em primeiro lugar, as circunstâncias históricas e materiais que
propiciaram o desenvolvimento da teoria musical grega, chamada
harmônica, e a sua relação com a prática musical do período em
questão. A primeira teoria analisada está inserida no contexto da
escola pitagórica, em que a cosmologia é o referencial de uma visão
de mundo que se expande conectando todas as áreas do
pensamento, e um dos pontos de origem é a harmônica matemática.
São apresentadas a seguir as demonstrações feitas a partir do cálculo
das médias proporcionais e sua relação com o princípio da coesão
harmônica da oitava. No segundo capítulo são estudadas as teorias
acústicas da Antiguidade, que se originaram das razões pitagóricas e
se desenvolveram no âmbito das ciências naturais, aprofundando-se
com a filosofia aristotélica. No terceiro capítulo, são analisados os
principais pontos de confronto promovidos pela corrente
aristoxeniana, que se insere no quadro epistemológico aristotélico, e
que foram levantados contra os pitagóricos. Nessa nova forma de
pensamento, a harmônica é estudada como uma tékne, que tem uma
linguagem especializada particular e um objeto específico, o mélos.
Ganha importância especial o conceito de aisthésis e, para colocá-lo
em prática, a idéia de dynamis torna-se central. Por fim, é
apresentada a persistência da concepção pitagórica nos cálculos dos
intervalos musicais a partir da divisão do cânone.
Palavras-chaves: harmônica, pitagorismo, música, cosmologia,
harmonía, proporção, acústica, Aristóxeno, aisthésis , dynamis,
mélos.
Cynthia S. de Gusmão
5
ABSTRACT
Gusmão, Cynthia Sampaio de. Harmonics in greek Antiquity. 2010.
101f. Thesis (Master Degree) Faculdade de Filosofia, Letras e
Ciências Humanas. Departamento de Filosofia, Universidade de São
Paulo, São Paulo, 2010.
This work presents the central ideas related to two main theories
about musical sound in greek Antiquity between the end of VI century
and the beginning of III B.C. First, the historical and material
contexts that lead to the development of greek musical theory, called
Harmonics, are investigated, and its relationship with the musical
practice of the period. The first theory analyzed comes from the
pythagorean school, in which cosmology is the framework of a world
view that expands connecting all areas of thought and one of its
departure point is mathematical Harmonics. Afterwards, I discuss the
demonstrations that are done from the calculations of proportional
medias and their relations with the octave harmonic cohesion
principle. In the second chapter, it’s exposed the acoustic theories of
Antiquity which originated from the musical ratios and had developed
in the branch of natural sciences, deepening by the Aristotelian
Philosophy. In the third chapter, I presented the most important
issues concerning the differences between the aristoxenian current,
which belongs to the aristotelian epistemological framework, against
the pythagoreans. In this new way of thought, Harmonics is studied
as a tékne that has a particular range of specialized terms and a
specific object, the mélos. The concept of aisthésis assumes
relevance and to put it into practice, the idea of dynamis becomes
central. At last, the persistency of the pythagorean conception it is
presented in the calculations of the musical intervals in the division of
the canon.
Key-words: Harmonics, pythagorism, music, cosmology, harmonía,
proportion, acoustics, Aristoxenus, aisthésis , dynamis, mélos.
Cynthia S. de Gusmão
6
SUMÁRIO
Introdução 8
Capítulo I – Os meios técnicos e a estrutura da música grega
14
1. As origens musicais da Harmônica 14
2. Os instrumentos musicais gregos 16
3. Aspectos da terminologia musical grega 18
4. As cordas e a estrutura musical grega 20
5. O epigoneon e a pandora 23
6. A afinação e os gêneros musicais 26
Capítulo II – As origens matemáticas da harmônica 29
1. As disciplinas matemáticas 29
2. As razões numéricas musicais 32
3. A coesão harmônica da natureza 34
4. A fixação da escala 37
5. A coma pitagórica 41
6. A cosmologia pitagórica 43
7. Os desdobramentos da harmônica: Arquitas 47
8. As médias proporcionais 48
9. A média geométrica e os incomensuráveis 51
Capítulo III – Teorias acústicas da Antiguidade 56
1. Os primórdios da investigação do som 56
2. A propagação do som e sua audição 57
3. Os avanços da escola peripatética 59
4. O experimento de Pitágoras 60
5. A persistência da concepção pitagórica 63
6. As relações da acústica com a harmônica 64
Cynthia S. de Gusmão
7
Capítulo IV – Aristóxeno e o lugar da aisthésis na
harmônica
66
1. Pequena nota biográfica 66
2. A proposta aristoxeniana 67
3. A organização do estudo 69
4. A aisthésis 72
5. Diálogo com Aristóteles 73
6. O espaço geométrico do los 75
7. As partes da harmônica 76
8. Ressonâncias do Elementos de harmônica 78
Capítulo V – A divisão ideal do cânone 81
1. O rigor do Sectio Canonis 81
2. O apogeu da ciência pitagórica 83
Considerações finais 85
Bibliografia
93
Cynthia S. de Gusmão
8
INTRODUÇÃO
O tema do presente estudo são as abordagens teóricas que
recebeu o som musical na Antiguidade grega entre o final do século
VI a.C. e o início do século III a.C. A investigação ocorre no âmbito
da Harmônica, um dos ramos da teoria musical grega, que, no
entanto, difere do que se conhece por esse termo nos dias atuais. O
musicólogo Carl Dahlhaus
1
fez uma classificação tripartite dos
grandes campos teóricos da música ocidental: o analítico, o
regulativo e o especulativo. A via anatica estuda as obras musicais
como modelos para a prática da composição e da apreciação crítica. A
teoria regulativa abarca os escritos de instrução sobre as regras
sintáticas da música, constituindo o assunto dos manuais dos
musicógrafos que eclodiram a partir do século II a.C., e que foram os
precursores daquilo que hoje é chamado de “teoria musical”. O ramo
especulativo é aquele que considera o aspecto ontológico da música,
sua essência e matéria-prima. Esse último aspecto, sobre o qual se
debruça a dissertação, teve presença marcante em mil anos de
debates filosóficos e científicos da Antiguidade. Contudo, foi nos
primeiros dois séculos que as questões cruciais foram colocadas,
tendo o restante do minio se dedicado a mexer as mesmas peças
no tabuleiro musical.
Os escritos musicais antigos, tanto gregos quanto latinos, em
sua grande maioria, são especulativos e inserem-se no quadro geral
de pensamento das escolas filosóficas; cada uma delas forja a teoria
de acordo com seus métodos e princípios.
1
Em Die Musiktheorie im 18. und 19. Jahrhundert: I, Grundzüge einer Systematik,
Darmstadt, 1984, p.9-13. Apud Christensen, 2007, p.11.
Cynthia S. de Gusmão
9
O filósofo Aristóxeno de Tarento, do século IV a.C, é um
autêntico representante da escola peripatética, tendo sido aluno
direto de Aristóteles. Sua obra Elementos de Harmônica é o mais
completo dos antigos tratados musicais gregos que chegaram até
nós. No primeiro parágrafo, ele define o campo de investigação da
Harmônica: “A ciência do mélos é multifacetada e divide-se em
muitos ramos; um deles é preciso tomar como base: o estudo da
chamada Harmônica, primeira na ordem e com função elementar. De
fato, sendo a primeira das matérias teóricas, ela abarca tudo que diz
respeito ao estudo dos tons e das escalas. Sendo esta a finalidade do
seu estudo, convém, pois, não considerá-la para além disso”
(Meibom, 1, 11-25).
2
Rosetta da Rios aponta em nota a sua tradução
italiana do tratado: “Assim como, de fato, a qualidade dos sons é o
elemento específico da música, pois o ritmo está presente na poesia e
no canto, assim, no uso técnico de Aristóxeno e de seus seguidores,
mélos passa a ser usado para significar exclusivamente a parte tonal
da música ou a melodia no sentido comum, considerada como uma
sucessão de notas de alturas diferentes, em contraposição ao ritmo.
De fato, mais tarde quando se quiser designar melodia no sentido
antigo, será acrescentada a palavra leion à mélos para indicar a
melodia acabada, com a presença do ritmo” (Rios, 1954, p.3, nota 2).
Portanto, Aristóxeno dá à palavra grega mélos um sentido
especificamente tonal, modificando a concepção anterior que a referia
a uma combinação de palavra, ritmo e melodia. Ela é distinta desse
mélos composto ao qual poderíamos incluir elementos de coreografia,
e que Platão e Aristóteles mencionaram ao atribuir efeitos da música
ao comportamento humano, falando do ponto de vista do ethos
musical. A música grega antiga, e especialmente a defendida por
Platão, era eminentemente vocal – portanto, ligada a um texto
2
Neste estudo, utilizamos a mesma numeração que Rios como referência para a
obra de Aristóxeno. Ela advém da compilação de Marcus Meibom, Antiquae Musicae
Auctores, Amsterdam, 1652.
Cynthia S. de Gusmão
10
poético e também circunstancial, ou seja, destinada a ocasiões
determinadas. Por isso, parece-nos um exagero alguns autores
modernos considerarem que existiu algo como uma ciência secreta do
poder vibratório das estruturas. Winnington-Ingram, por exemplo,
analisou a questão da seguinte forma: “Essa concepção de um
caráter inerente dos modos não está restrita à Grécia; mas é visível
aqui devido à fama de alguns autores e à interpretação moral que
colocavam no caráter dos modos. (...) É mais relevante expressar
algum ceticismo, se os elementos musicais podem em si mesmos
possuir tais caracteres tão marcados. Muitos outros fatores estão em
jogo” (1968, p.3). Parece-nos necessário, portanto, não cair no erro
de justapor uma concepção de música eminentemente instrumental,
que se firmou no Ocidente a partir do século XVIII, a um
fenômeno da Antiguidade.
Aristóxeno prossegue na passagem em questão: “Todos os
assuntos que forem estudados em um nível mais abrangente, a partir
da arte das escalas e dos tons, não pertencem mais à Harmônica,
mas àquele conhecimento que abarca essa ciência e outras, pelo qual
são estudadas todas as partes da música. Essa é a conquista do
músico.”
(Meibom, 2, 1-5). Ou seja, apesar de ser “primeira na
ordem”, ela não compreende tudo, e mais, a totalidade da música
pode ser considerada a partir de um sujeito aqui incluído, o músico.
Contudo, é necessário observar que essa totalidade de que fala
Aristóxeno não abarca aqueles assuntos que ocuparam a mente de
seus antecessores pitagóricos e que constituem igualmente objetos
da Harmônica, ou Canônica. Para o autor, não está em questão a
causa das alturas musicais e de seus intervalos, o que importa é
como elas se organizam em um sistema de escalas enquanto
linguagem tonal. para os pitagóricos, com quem se inicia a ciência
da Harmônica, a importância estava na origem primeira dos
intervalos musicais, muito antes de sua organização em escalas ou de
Cynthia S. de Gusmão
11
sua função no los. Eles estabeleceram uma expressão racional da
matéria sonora, por meio da aritmética, sua principal ferramenta
teórica, alinhada analogicamente à totalidade do cosmo. Essa
corrente, nascida no século VI a.C., e que terá consequências
importantes no âmbito da física acústica e das matemáticas, não
deixou nenhum tratado e sua reconstituição deve ser feita a partir de
fragmentos como os de Filolau e Arquitas e comentadores
posteriores.
Max Weber, como explica seu tradutor brasileiro Leopoldo
Waizbort na introdução à obra, defendeu que “a autonomização da
esfera artística engendra a legalidade própria dessa esfera, que é
justamente a sua racionalização específica” (Weber, 1995, p.39). O
pensamento pitagórico se processava por analogias, considerando,
portanto, domínios extrínsecos à música para a sua explicação. Desse
modo, poderia parecer paradoxal o fato de ele ser o ponto de partida
do processo de racionalização da música ocidental e da sua
caminhada rumo à autonomização. A aritmética, como instância
extra-musical, foi determinante para o primeiro distanciamento em
relação à matéria prima tonal, o som musical, o que não ocorria
quando o mélos estava mesclado à linguagem e ao ritmo, domínios
não restritos à música, como apontamos: a linguagem, mesmo
poética, é fortemente referencial e o ritmo pode ser encontrado nos
ciclos e fluxos da natureza.
No século III a.C., as duas correntes, aristoxeniana e
pitagórica, serão vistas como antagônicas e essa dicotomia
perpetuar-se-á nas discussões musicológicas medievais e
renascentistas. Neste estudo, elas serão apresentadas com suas
distinções, mas também como integrantes do mesmo quadro geral
que tem como ponto de referência a natureza para construir os seus
princípios; para descobri-los e demonstrá-los cada escola integra a
Harmônica ora às ciências matemáticas, ora às ciências naturais ou
Cynthia S. de Gusmão
12
físicas. E cada uma delas contribuiu a seu modo para o corpus teórico
da música ocidental. O trabalho é delicado, haja vista que o
alinhamento de posição dos pensamentos subjacentes às duas
correntes sofre sucessivas inversões, talvez porque a música participe
de maneira intensa de dois campos: o da ciência e o da arte. Isso faz
dela um lugar privilegiado para observar as suas tensões.
Na dissertação, a opção pela via de investigação da Harmônica
justifica-se por ter sido a partir dela que se iniciou propriamente o
processo de racionalização do material sonoro, tal como enfatizado
por Max Weber, ou seja, o fato de a música ter sistematizado seu
material e seus meios levou-a a alcançar a autonomia de sua esfera
de existência. Nesse processo, será também importante olhar para o
desenvolvimento dos meios técnicos da música, como, por exemplo,
seus instrumentos: “A racionalização dos sons parte historicamente e,
de modo regular, dos instrumentos” (Weber, 1995, p.127), além das
formas musicais, da notação e ainda dos instrumentistas e virtuoses.
A harmônica, dentre as disciplinas da música, foi a que se
dedicou às questões de afinação dos instrumentos e das estruturas
das escalas. Ao dedilhar a sua lira, era importante para o
instrumentista grego saber que as cordas estavam afinadas
adequadamente ao modo e gênero musical e ainda ao cantor que
usualmente acompanhava. Os teóricos começaram a estudar e definir
as múltiplas estruturas musicais gregas a partir das quais uma
melodia poderia ser realizada e, ao fazer essa descrição,
desenvolveram a linguagem própria da Harmônica.
Algumas questões surgem no âmbito deste estudo. Por
exemplo, os princípios da harmônica pertencem à natureza humana,
a algo independente dela ou às duas instâncias? O som musical é
essencialmente humano, visto que é produzido pela voz humana ou
pelos instrumentos musicais. Contudo, assim que uma nota é gerada,
entra em ação uma cadeia de ressonâncias físicas, a chamada série
Cynthia S. de Gusmão
13
harmônica. Ela não é produzida deliberadamente pelo ser humano,
mas parece conduzir as suas escolhas musicais. O padrão recorrente
da série harmônica que é gerada pelo som musical, ou tom, insere-se
no quadro geral da natureza, que nós, como parte dela,
apreendemos.
As escalas musicais representam o primeiro grau de abstração
da música, antes da verificação experimental da série harmônica, que
será realizada no século XVII por Marin Mersenne. Podemos dizer
que a música produzida desde a remota Antiguidade foi guiada pela
percepção desses harmônicos, depois abstraída em escalas, muito
antes dessa medição. Aristóxeno relacionou as propriedades do som
musical à percepção humana, enquanto os pitagóricos buscaram os
padrões intrínsecos de sua estrutura.
Nesta dissertação, serão incorporados elementos advindos da
prática musical e da construção de instrumentos, pois, de fato, o
pensamento sobre a arte em geral, e a música em especial, não está
desvinculado da técnica e da ciência de seu tempo. Desse modo,
será matizada a postura de alguns musicólogos e pesquisadores que
consideram que, na Antiguidade, havia uma separação total entre a
teoria e a prática musical, baseados em especial no argumento de
que os escritos que chegaram até nós não oferecem nenhum trecho
de música, nem fazem qualquer referência à prática musical.
3
Essa é
uma dificuldade de fato; contudo, serão feitos esforços para atenuá-
la.
3
Bélis, em seu artigo “L’harmonique comme science dans l’antiquité grecque”,
defende que teria havido um divórcio total entre as áreas prática e teórica na
Antiguidade (1992, p.201-8). Contudo, no curso “De La Pierre au son: archéo-
éthnomusicologie de l’Antiquité Classique”, ministrado de 14 a 30 de agosto de
2001 no Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo, atenuou
sua posição, considerando que haveria uma hierarquia de valores, não uma
separação absoluta. Já Barker considera que existia uma interação entre as partes:
“sua relação [da harmônica] com a filosofia e as ciências naturais são mais
distantes e suas interações com o mundo real do fazer musical mais próximo do
que frequentemente se supõe” (2007, p.4).
Cynthia S. de Gusmão
14
CAPÍTULO I
OS MEIOS TÉCNICOS E A ESTRUTURA DA MÚSICA GREGA
1. As origens musicais da harmônica
O tom musical é um som discreto que se define pela relação
intervalar que mantém com outros sons de alturas determinadas.
Esses intervalos constituem o ponto de partida da Harmônica. Cada
cultura encontrou seus intervalos musicais e os fez soar por meio das
vozes, dos tubos de instrumentos de sopros, nas cordas, em
instrumentos de percussão como litofones, xilofones e metalofones,
até chegarmos à atual geração por dispositivos eletrônicos.
A contrapartida material dos instrumentos tem um papel crucial
no desenvolvimento da teoria musical, ainda que não seja possível
determinar de modo absoluto em quais situações um procedimento
técnico faz avançar o campo artístico ou, vice-versa, se a necessidade
estética antecede a busca por um avanço técnico, ou ainda, se são
acontecimentos sincrônicos.
As distâncias intervalares são a base da afinação dos
instrumentos. Em alguns casos, elas foram organizadas em sistemas
de escalas, modos e gêneros. Os intervalos geram sensações ao
serem ouvidos, descritas como prazer ou incômodo, suavidade ou
estridência, doçura ou aspereza. De acordo com essas características,
foram agrupados em symphoniai ou diaphoniai, consonâncias ou
dissonâncias.
4
O quanto essa qualificação dos intervalos é um
elemento cultural, ou não, transcende o escopo deste estudo;
4
Os intervalos considerados consonantes foram os de oitava, quinta e quarta. Em
uma escala musical ascendente com a nota como início, a oitava é a distância
entre essa nota e o dó acima, a quinta entre o dó e o sol, e a quarta entre o dó e o
fá. A nomenclatura das notas como dó, ré, mi, fá, sol, lá, si, dó surge na história da
música somente na Idade Média, mas utilizo aqui para simplificar os termos gregos.
Cynthia S. de Gusmão
15
contudo, muitos povos buscaram formas de definir com exatidão os
intervalos musicais.
Entre as grandes civilizações anteriores ao período arcaico
grego (800 a 500 a.C.), os chineses deram muita ênfase à precisão
dos intervalos musicais, que estabeleceram possivelmente por volta
de 2.600 a.C. a partir de uma sequência de bambus cortados em
exatos intervalos de quinta, os tubos-diapasões lyu. Na Mesopotâmia,
cerca de 3.000 a.C., os sumérios possuíam uma apurada técnica de
construção de instrumentos. Ali, em um baixo-relevo das ruínas da
cidade de Lagash (sul do Iraque atual) está representado um músico
tocando uma cítara aparentemente de 11 cordas. Os impérios assírio
e babilônio, fundados por volta de 2000 a.C., foram fecundados pela
civilização suméria. Nas escavações da cidade de Ur (também no
Iraque) foram encontradas flautas, harpas, liras de 5 a 11 cordas,
alaúdes e uma harpa de cordas percutidas por baquetas.
5
Uma descoberta importante para a teoria musical foi a de três
tábuas em escrita cuneiforme contendo um método de afinação de
uma espécie de lira de nove cordas.
6
A partir delas foi possível
decifrar um sofisticado mecanismo de afinação alternando quartas e
quintas consonantes com o objetivo de formar escalas que dividem a
oitava em sete partes. Esse sistema mostrou-se semelhante ao
grego, que talvez tenha aí a sua origem, mas o mais importante é
que a descoberta das tábuas babilônicas apresenta a mesma
predominância de quartas e quintas que se encontra na teoria e na
prática musical do Ocidente.
Desde a Idade do bronze, a península grega não era uma
região isolada, mas fazia parte do complexo do mar Egeu, rota entre
5
Ver, a esse respeito, Candé, 2001, vol. 1, p. 102-148.
6
As tábuas foram decifradas pela Profa. Anne Draffkorn Kilmer, do Centro de
Estudos do Oriente Médio da Universidade de Berkeley, Califórnia, que descreveu a
teoria da afinação babilônica em 1971: “The discovery of an ancient mesopotamian
theory of music”. In: Proceedings of the American Philosophical Society, n
o
. 115, p.
131-149, apud Franklin, 2002, p. 441-442.
Cynthia S. de Gusmão
16
o Egito e o Oriente Próximo, a leste, e a península itálica, a ocidente.
O povoamento grego na costa da Ásia Menor e das ilhas próximas
iniciou-se por volta de 1050 a.C. As tradições da Mesopotâmia
alcançaram as regiões da Síria e da Fenícia, mais tarde chegaram à
Ásia Menor e dali à Grécia. Além disso, entre 750 a 700 a.C, ocorreu
a expansão do império assírio em direção a Ocidente no período
conhecido como orientalizante. Entre os elementos culturais
mesopotâmicos que penetraram mais profundamente na região
egeana nesse momento estão os instrumentos musicais e suas
formas de afinação.
2. Os instrumentos musicais gregos
Um dos instrumentos mais importantes para a cultura musical
grega foi o aulos, um instrumento de sopros que utilizava uma
palheta, tal como o oboé. Os tubos dos primeiros auloi apresentavam
apenas quatro orifícios, portanto, era necessário trocar de
instrumento de acordo com a escala (modo) em que a peça musical
era executada. Ateneu narra, em sua obra Deipnosophistae, que foi
Pronomus de Tebas “o primeiro a construir auloi adequados a vários
tipos de harmonía e a tocar no mesmo aulos melodias bem
diferentes. Diz-se que ele deleitava a audiência ao extremo com suas
expressões faciais e o movimento de todo o corpo” (631e apud
Mathiesen, p. 184).
O aulos demorou para ser aceito como um legítimo instrumento
grego, como demonstram os mitos associando-o aos cultos de Cibele
e Dioniso, deuses considerados originários da Ásia Menor. Aos
poucos, ele foi ganhando espaço e, no século V a.C., figurava como o
instrumento da orquestra nas apresentações teatrais, possivelmente
pela capacidade expressiva e também por sua potência de som. As
competições auléticas foram importantes para o desenvolvimento da
Cynthia S. de Gusmão
17
música instrumental. O aulos possuía uma grande flexibilidade,
possibilitando as sutilezas das múltiplas escalas descritas nos
tratados musicais, e é provável que os auloi duplos permitissem a
execução de intervalos diferentes simultâneos, produzindo uma
espécie de diafonia primitiva.
Aristóxeno, em Elementos de Harmônica, será um crítico da
flexibilidade do aulos devido à ausência de estabilidade de seus tons.
A busca do tarentino será por um conjunto de sons estáveis e
organizados, condição do discurso científico aristotélico: “A aquisição
inicial do conhecimento não ocorre pelo vir a ser; pois, de acordo
conosco, a razão conhece e pensa por meio do repouso e da
imobilidade” (Física, VII, 3, 247b 10-13. Apudlis, 1986).
Motivos similares levarão também Platão a colocá-lo na lista de
instrumentos que deverão ser expulsos da sua Politéia. Além da
própria característica variável do sopro que produz o som no aulos,
são documentados os movimentos de corpo e expressões faciais dos
auletistas ao executarem as peças musicais, o que era acentuado
pela própria dificuldade de execução do instrumento que, em peças
mais longas, exigia um acessório, a phorbéia, uma faixa feita de pele
de animal que acomodava o instrumento duplo. Em uma escultura de
Praxíteles (por volta de 360 a.C.), está retratada a disputa na qual a
música de Apolo, representada pela cítara, é julgada superior à de
Marsyas, esculpido nu portando um aulos duplo. Como perdedor, na
história, Marsyas é enforcado e esfolado uma demonstração,
esperamos, exagerada, de como os gregos levavam a sério a sua
superioridade.
Mas, embora visto com desconfiança pelo fato de ser um
instrumento estrangeiro e por ter introduzido muita sofisticação às
tradições sagradas dos gregos, o aulos tornar-se-á um dos três
instrumentos mais importantes do período clássico grego, junto com
Cynthia S. de Gusmão
18
a lira e a cítara, participando do teatro, dos festivais, da educação e
da vida cotidiana.
Ainda que os instrumentos de sopros e percussão fossem
indispensáveis à música grega, a classe de cordófonos foi o seu
fundamento, principalmente no que se refere à ciência musical. Essa
ênfase nos instrumentos de cordas vai prevalecer no mundo ocidental
quando o assunto for teoria e sistemas de afinação. No século XVII,
Marin Mersenne, no “Primeiro livro dos instrumentos” de sua obra
Harmonia universal, iniciará o estudo dos instrumentos musicais
pelos instrumentos de cordas, considerando que eles “são mais
simples e fáceis de compreender, pois as cordas representam as
linhas e servem para explicar e demonstrar tudo o que pertence à
música” (1986, p.2). Também Max Weber irá observar que “nas
cordas há uma maior racionalização do sistema de tons”
(1995,
p.73).
E a música ocidental terá de esperar até o século XX para que
os compositores concedam aos instrumentos de sopro e percussão o
mesmo status daqueles de corda e teclado.
Na Grécia, possuíam importância especial os diversos tipos de
liras como a kélis lira, o barbitos e a cítara. Nas liras, as cordas são
tocadas com um plectro, diferente dos psaltérios, ou harpas, que são
dedilhados. As liras possuíam cordas mais ou menos iguais em
comprimento, enquanto as harpas possuíam cordas graduadas. As
cordas, em geral feitas de tripa de carneiro, não resistiram ao tempo,
mas seu número nos instrumentos é bem documentado em fontes
literárias e iconográficas. É possível observar também a presença de
cravelhas para uma maior precisão na afinação dos instrumentos.
3. Aspectos da terminologia musical grega
Em grego, o tom musical, dizia-se tonos. A raiz da palavra é a
mesma do verbo grego teíno, que significa esticar ou tensionar.
Cynthia S. de Gusmão
19
Considera-se que a palavra tonos tenha sua origem no ato de
tensionar a corda de uma lira, alterando sua relação com outra corda
de um intervalo de quinta para quarta, marcando a diferença de um
tom entre ambas
7
.
Os nomes das notas (phtongos) estavam diretamente
relacionados a sua posição na corda e, até mesmo, ao dedo que a
tocava, pois líkanos é o nome de uma nota e do dedo indicador. É
bom relembrar que, no caso das liras, as cordas não eram dedilhadas
e sim, tangidas por um plectro; portanto, essa terminologia talvez
fosse oriunda dos instrumentos de cordas dedilhadas, da classe dos
psaltérios. Para West, os nomes de outras notas também poderiam
estar relacionados a sua posição: mése seria referente ao dedo médio
e tríte, ao terceiro dedo, anular (Cf. 1981, p.120-1). Essa concepção
enfatiza a perspectiva de uma origem material para o sistema grego
em tetracordes, sequências de quatro notas, em que cada nota
corresponderia a uma corda do instrumento. De qualquer modo, a
forma de nomear as notas era diferente das que conhecemos hoje.
Nossa nota é um tom específico ou frequência, em linguagem
moderna. as notas gregas referiam-se a uma posição dentro do
tetracorde ou do instrumento.
Outros termos musicais estariam associados à prática
instrumental, por exemplo, a oposição entre tom “alto” (ano) e
“baixo” (kato). Inversamente ao que estamos acostumados, o
primeiro referia-se ao som mais grave e o segundo, ao mais agudo.
Isso porque mais “alta” era a corda mais distante do instrumentista
em posição de execução da lira ou da harpa, e vice-versa.
Essas denominações advindas da prática instrumental não eram
acolhidas por teóricos como Aristóxeno. Como observa Bélis,
“Aristóxeno não utiliza os termos ano e kato; ele diz sempre grave e
agudo, talvez por sua firmeza doutrinal: repugnar-lhe-ia trazer
7
Ver, a esse respeito, West, 1981, p.119-120.
Cynthia S. de Gusmão
20
emprestado denominações da prática instrumental, uma vez que se
recusava a tomar por critério de julgamento tanto o aulos como a
lira” (1986, p.136).
4. As cordas e a estrutura musical grega
Franklin (2002, p.444) defende que teria havido, no início da
era arcaica grega, um confronto entre a poesia épica, cantada com a
lira de quatro cordas, e a poesia lírica, cantada com a lira de sete
cordas. Essa transição entre os dois gêneros poéticos é significativa
nos poemas homéricos, feitos provavelmente por cantores
profissionais que se apresentavam nos festivais. Sua forma definitiva
ocorre no período arcaico, mas eles pertencem ainda à tradição
anterior, épica aristocrática, e mantiveram a métrica e a forma do
gênero. Cada poema era dedicado a um deus do panteão grego. No
poema dedicado a Hermes, o poeta conta como o deus inventou” a
lira de sete cordas para dar de presente a Apolo, o deus da tradição
épica. No hino, são descritos detalhes da construção da lira, o
material utilizado (casco de tartaruga, couro de boi, cordas de tripa),
assim como a forma de execução com o plectro. Contudo, essa
interpretação de que a lira do período épico teria quatro cordas não é
aceita por estudiosas como Martha Maas e Jane McIntosh Snyder,
que descreveram detalhadamente os instrumentos de cordas gregos.
De acordo com as autoras, “o número de cordas nos instrumentos do
tipo lira, desde as liras minóicas antes do século XI até a tara, o
barbitos, e a kélis lira dos séculos V e IV provavelmente
permaneceram as mesmas” (1989, p. xvi). Para elas, o mero de
cordas que aparece nas iconografias está relacionado ao material
empregado, ao espaço disponível para a reprodução no artefato e ao
grau de realismo do artista. “A confusão, prosseguem elas, foi
construída pela interpretação influente de Deubner das linhas
Cynthia S. de Gusmão
21
atribuídas a Terpandro nas quais o poeta se refere à phorminx de
sete tons” como opostas à “canção de quatro vozes”. Portanto, a lira
de sete cordas teria existido, no mínimo, desde a Guerra de Tróia, até
Alexandre, o Grande.
De qualquer forma, os tetracordes foram o núcleo da música
grega e é certo que Terpandro, poeta lírico do século VII a.C.
originário da ilha de Lesbos, acompanhava-se de um instrumento de
sete cordas.
8
A lira de sete cordas possibilitou ao músico ampliar a
execução musical até uma oitava entrelaçando dois tetracordes. O
texto aristotélico Problemas Musicais registra que foi Terpandro quem
afinou a lira de sete cordas, de modo que ela abrangesse uma oitava,
que, por isso, chamava-se diapason, pois passava por todas as
cordas, e não diokto, pelas oito cordas (XIX, 32, 920a 14-18). Os
nomes dados às consonâncias diapason para a oitava, diapente, a
quinta e diatessaron, a quarta eram uma abreviação de diá pason
chordon symphonia, a consonância produzida passando por todas as
cordas; diá pente chordon symphonia, a consonância produzida por
cinco cordas, e diá tessaron chordon symphonia, por quatro cordas. O
que fica evidente com essa terminologia é que os instrumentos de
cordas eram afinados nessas consonâncias e, mais do que isso, eles
eram a própria referência para a afinação.
O número de cordas ultrapassa a simples busca por um efeito
sonoro, relacionando-se com a estrutura de todo o sistema. Os
heptacordes teriam evoluído para octocordes. De acordo com os
Problemas aristotélicos, a prova de que antes a escala era heptacorde
é a denominação da nota mése, média. Como poderia haver uma
nota média em oito cordas se o mero oito não tem meio? A
denominação mése, portanto, viria de uma escala heptacorde
(XIX,
8
Plutarco, em sua obra De musica, narra que Terpandro ficou conhecido por ter
feito uma inovação nessa lira homérica, aumentando o número de cordas de quatro
para sete. Apud Mathiesen, 1999, p. 243.
Cynthia S. de Gusmão
22
25, 919b 20-22).
9
Essa afirmação enfatiza uma concepção aritmética
do sistema e parece anular a hipótese de West de que a denominação
mése referir-se-ia ao dedo médio que tangia a corda. Bélis considera
que a conclusão aristotélica, no entanto, é uma prova de que os
teóricos estavam afastados da prática musical e que, ao buscarem
construir seus sistemas, ficavam confusos com a terminologia
advinda da prática (Bélis, 1986, p.136-137).
Para Winningtom-Ingram, mais importante que determinar a
origem do termo mése é perceber que ela funcionava como um
centro tonal da melodia. Ele considera plausível a hipótese de que o
tetracorde primitivo tenha desenvolvido para um heptacorde, por
meio do encaixe de dois tetracordes: “se no tetracorde sozinho a nota
superior da quarta atraía a atenção sobre si, dentro do heptacorde, a
mése, verdadeiramente assim chamada por estar na junção dos
tetracordes, era o foco da melodia. Mais tarde, a consonância da
oitava foi percebida e o heptacorde tornou-se um octocorde. A
tendência melódica descendente (tal como podemos postular para a
música primitiva) fez com que o tetracorde superior fosse alcançado a
partir do limite superior [ou seja, saltando para a oitava e descendo]
o que levou a criar um tom disjunto entre os tetracordes” (1968,
p.26).
Em algum momento, portanto, dois tetracordes foram
separados por um tom inteiro, provavelmente a partir da inserção de
mais uma corda musical na lira. O importante é que essa corda, ou
esse tom, foi inserido entre os tetracordes, e não em uma das
extremidades da escala musical. E essa alteração teve consequências
profundas na teoria musical grega. A oitava passou a ser percebida e
considerada o ponto de partida da teoria musical, dividida em dois
intervalos desiguais: uma quarta e uma quinta. O sofisticado sistema
9
Nicômaco de Gerasa, no Manual de harmônica, cap. V, narra que Pitágoras teria
colocado uma oitava corda na lira criando a escala de oito notas.
Cynthia S. de Gusmão
23
de modos gregos (harmoniai) organizou-se a partir das posições
desses intervalos.
Podemos ver a escala octocorde, de oito notas, como a reunião
de dois tetracordes como um tom no meio ou, como prefere Del
Grande, “um tetracorde mais um pentacorde” (1960, p.406). As
notas extremas eram então néte, a última nota, mais aguda, e
hypate, a primeira, mais grave, formando um intervalo de oitava. A
néte era a corda que ficava mais próxima do instrumentista na
posição de tocar a lira, a tara, a harpa. Hypate era a mais distante.
As escalas eram organizadas de modo descendente e, portanto, a
partir da néte, ficavam paranéte (ao lado da néte), tríte (a terceira),
a nota inserida ao lado e acima da mése (paramése), em seguida,
mése, likanós, parypate e hypate.
5. O epigoneon e a pandora
No período clássico, as liras estiveram na base da educação
musical grega, levando os cidadãos a um alto vel de exigência
crítica em relação a seus executantes. O tipo de lira preferido pelos
profissionais era a cítara, com sua ampla caixa de ressonância. Ela
era utilizada pelos citaredos, combinação das palavras cítara e aedo,
cantores.
Os psaltérios, ou harpas, possuíam grande número de cordas e
eram tocados por virtuoses que provavelmente começaram a
desenvolver uma música instrumental, tal como os auletistas. De
acordo com Mathiesen (1999, p.270), alguns tipos parecem ter sido
exclusivos das mulheres e também é possível que esses instrumentos
estivessem associados aos cientistas musicais que surgiram no século
VI a.C. O epigoneion possuía 40 cordas e era tocado na posição da
harpa como conhecemos, em pé. O nome adveio de seu construtor,
Epígono de Sycion, mencionado por Aristóxeno (Meibom,3,20-24)
Cynthia S. de Gusmão
24
como um músico-téorico que, junto com Lasos de Hermíone, achava
que o som musical possuía largura.
Mathiesen aponta ainda o fato de que o autor grego Atheneu,
na sua obra Deipnosophsitae, diz que a escola de Epígono era
conhecida por sua música complexa, dramática e expressiva e que o
estilo foi adotado por citaristas que, entre outras coisas, passaram a
esticar mais as cordas para alcançar um volume maior de som.
Na mesma passagem, Mathiesen observa que o termo utilizado
por Atheneu para descrever esse fato, psilokitharistiké, lembra a
objeção de Platão à psilé kithárisis na sua discussão sobre mimesis na
obra Leis. Ali, Platão rejeita a música puramente instrumental,
considerando que o texto é essencial para a mimesis: “e eles usam
música solo de cítara e aulos, que é difícil de entender sem um texto
para compreender a intenção do ritmo e da melodia e com qual dos
modelos eles se parecem. Mas é preciso perceber que a coisa é
também cheia de grosseria. Pelo fato de serem excessivamente
amantes da velocidade, das minúcias e dos sons bestiais, eles
praticam o aulos e a cítara sem dança ou canção. Qualquer pessoa
que utilize um dos dois instrumentos solo é dado a feitiços e a anti-
música” (amousía kaí thaumaturgía) (Platão, Leis, 669d-670a. Apud
Mathiesen, 1999, p.270).
Outro instrumento de cordas que apareceu na música grega
vindo do Oriente foi a pandora, da classe dos alaúdes.
Surpreendentemente, apesar de haver indícios da presença desse
tipo de instrumento no lado oriental do Mediterrâneo, sua
representação nas figuras e relevos gregos que chegaram até nós, só
ocorre no período das campanhas persas de Alexandre, em torno de
330 a.C. Parece que o instrumento, chamado também de skindapsos,
foi trazido nesse momento. Segundo Mathiesen, existe ainda uma
referência de lux, em seu livro Onomasticon, de que a pandora
havia sido inventada pelos assírios e que possuía três cordas. Para o
Cynthia S. de Gusmão
25
autor de Apollo’s Lyre, o braço da pandora era trasteado, as cordas
eram três e o instrumento possuía algumas vantagens sobre as liras:
“Um instrumento com braço trasteado poderia facilmente produzir
com grande precisão muito mais tons em três cordas do que qualquer
instrumento multicordas. Além disso, por possuir apenas três cordas,
era mais fácil afinar e sua afinação como um todo seria mais estável”
(1999, p.285).
Esse tipo de instrumento certamente era mais propício à
descoberta dos princípios matemáticos na música, pois a afinação
seria feita por divisão da corda, algo impossível na lira. No entanto, o
instrumento teve papel inexpressivo na cultura musical grega. Seria
por sua pequena intensidade sonora comparando-se às cordas que
vibravam mais livremente e à grande caixa de ressonância da cítara?
É possível que os gregos, aficionados das grandes apresentações ao
ar livre, não achassem o instrumento adequado a suas competições e
festivais. Outra hipótese é a dificuldade de mudança de todo um
sistema que, como vimos, apoiava-se nos instrumentos de cordas do
tipo lira e harpa.
Curiosamente, a classe das liras não se desenvolverá na
história da música ocidental, ficando restrita à música dos povos
africanos e asiáticos. os instrumentos do tipo psaltério terão uma
longa trajetória no Ocidente. Além da presença marcante na música
renascentista, serão importantes no impulso da ciência musical com
Vincenzo Galilei, que era alaudista e discutiu questões de afinação a
partir de seu instrumento. Marin Mersenne, no Segundo livro dos
instrumentos da sua obra Harmonia Universal, dedicado mais
amplamente a questões de afinação, inicia o trabalho pelo estudo
detalhado do alaúde.
Cynthia S. de Gusmão
26
6. A afinação e os gêneros musicais
A prática de afinação dos instrumentos de sete, oito ou mais
cordas gregos provavelmente assemelhava-se ao mecanismo
babilônico mencionado anteriormente, partindo das consonâncias de
quartas e quintas. Os músicos conhecem a praticidade desse tipo de
sistema, registrada por Aristóxeno: “nossa percepção é mais
confiável no que diz respeito aos intervalos de tamanhos consonantes
que dos não consonantes e a afinação dos intervalos não consonantes
será mais precisa quando for alcançado através de uma consonância”
(Meibom, 55, 4-7). Esse processo de afinação era chamada do
lépsis diá symphonious, ou seja, a “pegada” da afinação pela
consonância.
O sistema musical grego desenvolveu-se admiravelmente e
alcançou uma enorme sofisticação, como demonstra a classificação
dos gêneros musicais, definidos pela distribuição dos intervalos nos
tetracordes que, por sua vez, formavam as escalas ou os modos.
Esses modos podiam organizar-se em tropos a partir de
transposições.
No gênero diatônico, o tetracorde era dividido em dois tons e
um semitom. Os outros dois gêneros, cromático e enarmônico,
apresentavam distâncias de tom e meio e meio-tom (cromático) e de
dois tons e quarto de tom (enarmônico). Aristóxeno vai considerar o
gênero diatônico o mais “natural”: “o diatônico deve ser considerado
o primeiro e mais antigo, pois a natureza do homem o conduziu a ele
primeiro, depois ao cromático e, por último, ao enarmônico, que é o
último com o qual a nossa percepção acostuma-se e depois de muito
esforço” (Meibom, 19, 14-17).
Essa definição aristoxeniana acerca do gênero diatônico, no
entanto, entra em contradição com outro trecho um tanto obscuro do
Elementos de harmônica no qual o autor fala dos “antigos modos de
Cynthia S. de Gusmão
27
composição” (Meibom,23,7-9), provavelmente referindo-se ao gênero
enarmônico
10
. A pequena confusão histórica deve-se ao fato de não
existir ainda uma concepção de abordagem rigorosa da história da
música, disciplina que Aristóxeno iniciava propriamente a delimitação.
De qualquer modo, sua preocupação, ao definir a ciência do mélos,
era estabelecer pontos fixos e, para tal, o gênero diatônico era
exemplar. Como veremos, a afinação proposta pelos pitagóricos
também estava centrada no gênero diatônico.
No século IV a.C., as escalas abrangiam quinze ou onze tons,
formando o “Grande Sistema Perfeito”, com quatro tetracordes
encaixados e o “Pequeno Sistema Perfeito”, com três tetracordes.
Quando iniciamos o estudo da música grega da Antiguidade,
chama a atenção a inexistência de uma transmissão direta, que
ocorreu em outras civilizações de cultura musical muito antiga e
altamente sofisticada, como a da Índia, por exemplo. A música grega
e os instrumentos musicais de época tiveram de ser reconstituídos
por meio de estudos empreendidos por especialistas em refazer os
parcos papiros, decifrar a escrita musical em muros ou em
fragmentos esparsos. E isso só teve início no século XIX.
Com o desenvolvimento da escrita alfabética, no século V a.C.,
os antiquíssimos poemas homéricos foram cristalizados no aspecto
visual da letra. Os jovens estudantes de música seguiam aprendendo
de memória, sem fazer uso da escrita. Os profissionais contratavam
os melógrafos que se encarregavam da escrita musical. A escrita
musical facilitava o intercâmbio nessa época em que era grande a
curiosidade, por exemplo, em saber qual a última ária de Eurípides;
por outro lado, fez ruir o processo de transmissão oral, e a música
praticada na Grécia ficou restrita a frágeis suportes sujeitos às
intempéries do tempo. Os fragmentos de escrita musical grega que
10
Ver, a esse respeito, Rosetta da Rios (1954, p.34, nota 2). Del Grande cita o
Fragmento W.85 de Aristóxeno, no qual ele reconheceria também a anterioridade
do gênero enarmônico (1960, p. 402) .
Cynthia S. de Gusmão
28
sobreviveram estão basicamente relacionados ao teatro e à poesia. A
música instrumental, por ser mais complexa e mais virtuosística,
quase não foi preservada.
Assim, a música grega praticamente desapareceu no contato
com a força do Cristianismo, que, no entanto, manteve a tradição dos
modos sistematizados apesar das conhecidas – e talvez deliberadas –
alterações nas denominações dos modos. Os padres da Igreja talvez
tivessem em alta consideração as recomendações de Platão e
Aristóteles sobre o poder da música e inverteram os modos pagãos,
esperando, assim, inverter os mundos.
Mas se a música grega permanece enevoada no tempo, o
mesmo não aconteceu com a ciência musical grega, que influenciou
radical e silenciosamente a música ocidental como um todo. O início
se com Pitágoras, cujos experimentos lançaram os fundamentos
de toda a especulação físico-matemática da música do Ocidente,
muito embora a redução da música à matemática tenha colocado
problemas para serem resolvidos pela teoria musical subsequente.
Cynthia S. de Gusmão
29
CAPÍTULO II
AS ORIGENS MATEMÁTICAS DA HARMÔNICA
1. As disciplinas matemáticas
No século VI a.C., ocorre a primeira explicação matemática dos
tons musicais, mais especificamente das consonâncias, symphoniai. A
descoberta, que se deu no âmbito da escola pitagórica, marca o início
da harmônica. Os estudos são dificultados tanto pela falta de
documentos quanto pelo excesso de lendas e anedotas sobre
Pitágoras (c. 580/78 497/6 a.C.). Assim, o legado da escola
pitagórica é reconstituído a partir de alguns poucos fragmentos do
século V a.C., textos dos séculos IV e III a.C. e comentadores
posteriores.
As especulações sobre a natureza empreendidas pelos
primeiros pitagóricos eram puramente matemáticas. Por exemplo,
nos sistemas astronômicos que desenvolveram, tudo se movia em
um espaço geométrico perfeito: os corpos celestes eram descritos
como esferas que se moviam em círculos, figuras e movimentos
matematicamente perfeitos. Como observa Thomas Heath, a
astronomia pitagórica “é pura matemática, é geometria combinada
com aritmética e harmonia (...). As matemáticas pitagóricas,
portanto, são uma ciência única, e a sua ciência é toda matemática”
(1981, p.165).
Esse corpo de disciplinas estava entrelaçado pela concepção de
número, formando um grupo denominado na Antiguidade de ciências
irmãs. Uma das referências mais antigas a esse conjunto está no
fragmento da obra Harmonia de Arquitas de Tarento (c. de 400 a 365
a.C.): “De fato, sobre a velocidade dos astros, sua ascensão e
Cynthia S. de Gusmão
30
declínio, transmitiram-nos (os matemáticos) claros conhecimentos;
também sobre geometria, ciência dos corpos celestes e não menos
sobre música. Pois essas ciências parecem ser afins; pois se ocupam
de coisas afins: as duas formas primeiras do ser” (DK 47, B 1).
O termo grego máthema significava em sua origem estudo,
conhecimento. Para os pitagóricos, o conhecimento estava
diretamente relacionado à ciência dos números. A música era
considerada uma das matemáticas por se ocupar das razões e das
proporções numéricas. É esse sentido original que está presente na
obra de Platão, onde aparece pela primeira vez o termo harmônica,
no neutro plural grego harmoniká (Cf. Barker, 2007, p. 6, nota 1).
No diálogo Fedro, Sócrates explica que saber se uma corda é mais
grave ou mais aguda faz parte da mathémata necessária, ou seja, do
aprendizado da música. Mas para que alguém seja verdadeiramente
músico, deve conhecer tá harmoniká (268e).
11
No período clássico, as disciplinas matemáticas estarão
integradas à educação básica. No diálogo platônico Teeteto, Sócrates
questiona o jovem Teeteto sobre as disciplinas que aprende com seu
professor Teodoro. Teeteto afirma que estuda as quatro disciplinas
matemáticas geometria, astronomia, música (harmonias) e
aritmética (logísmous) e ainda técnicas (téknai) como o ofício de
sapateiro e outros (145a-d). Em Leis, a ideia de tría mathémata
surge mais definida (817e, apud Heath, 1981, p. 19). Seria o grupo
da aritmética, geometria e astronomia. No Epinomís é acrescentada a
música (990c-991a).
Em seu livro Timeu, Platão descreve como a alma do mundo tece
o mundo corpóreo “sem música nem ruído” (aneu phtongou kái
ekes), sem nenhuma referência também a ritmo. A narrativa
terrificante é a descrição dessa música teórica, que seria irmã da
11
No trecho do Fedro em questão, o músico diria ao não músico: “Conheces o
estudo básico da harmonia, mas não a harmônica” (ta gár pro harmonias anankaia
mathémata epístasai all’ou tá harmoniká).
Cynthia S. de Gusmão
31
astronomia teórica, tal como apresentadas por Sócrates no Livro VII
da República: “tal como os olhos fixam-se na astronomia, assim os
ouvidos fixam-se no movimento harmônico, essas duas ciências são
irmãs, tal como dizem os pitagóricos, e nós concordamos” (530d).
Platão defendia que deveríamos nos concentrar não nas estrelas
e seus movimentos, mas no céu abstrato da matemática, ou seja,
não na beleza do céu, mas na beleza da teoria que os astros
imitam. A astronomia estuda o movimento dos corpos, o
movimento “harmonioso” (enarmónious phorá) ocorre a partir das
leis da harmonia. Contudo, esse movimento harmônico não é uma
referência aos movimentos dos tons no tempo, mas a uma ideia
imanente do som musical, em que cada tom possui uma velocidade
de movimento determinada.
Na filosofia aristotélica haverá uma primeira ruptura com essa
concepção de ciência exclusivamente ligada às matemáticas. No
segundo capítulo do Livro II da Física, Aristóteles faz a distinção entre
as disciplinas físicas e matemáticas: os objetos matemáticos podem
ser estudados de maneira abstrata, mas não os corpos naturais ou
físicos, que devem ser investigados pela física.
Aristóteles observa, no entanto, que existem ciências que
trabalham com objetos naturais, de maneira matemática, como
acontece com o som musical: “isso aparece nas mais físicas dentre as
matemáticas: a óptica, a harmônica e a astronomia, pois, de certo
modo, elas se comportam de maneira inversa à geometria; pois a
geometria estuda a linha física, mas ela não é física ao contrário, a
óptica estuda a linha matemática, não enquanto matemática, mas
enquanto física” (Física, II, 2, 194a 7). É conhecida a posição de
Aristóteles no que diz respeito à contestação do pitagorismo. Mas
suas objeções referem-se à metafísica e à astronomia; no que tange
às razões pitagóricas, ele estava de acordo que elas fossem os
princípios dos intervalos musicais e das consonâncias.
Cynthia S. de Gusmão
32
No final do século IV d.C., o autor romano Boécio, em sua obra
Institutione musica incluirá a música no grupo de ciências do
quadrivium, aquelas que lidam com o número, estabelecendo uma
oposição com o que chamou de trivium, que representava as ciências
da linguagem: lógica, gramática e retórica.
12
A música foi dividida em
três partes musica mundana: a harmonia das esferas, dos
elementos e das estações; musica humana: harmonia da alma e do
corpo humano; e musica in instrumentis constituta, que era a música
produzida pelos instrumentos de sopros, cordas e percussão. Essa
divisão criava uma hierarquia de valores e aprofundou a divisão entre
a especulação teórica da música e sua prática. Em um eco da filosofia
platônica, para Boécio, apenas aquele que conhecia os princípios da
musica mundana poderia ser chamado musicus.
Essa busca pela “verdadeira ciência” produzirá efeitos colaterais
negativos flagrantes na prática musical pois tão logo o que é
simples e ideal interage com a multiplicidade, instauram-se os
conflitos. O encaixe harmônico entre os dois mundos não está dado.
Um exemplo disso ocorrerá no século XVI, quando um problema
técnico de afinação levará à contestação de todo o pensamento
subjacente à teoria musical pitagórica.
2. As razões numéricas musicais
Pitágoras nasceu na ilha de Samos, um dos povoamentos
gregos na costa da Ásia Menor. A partir dessa posição geográfica
privilegiada, relatos de que ele teria visitado o Egito, a
Mesopotâmia e mesmo a Índia, até transferir-se, por volta dos seus
50 anos, para o ocidente grego (Cf. Jâmblico, 2003, p. 29-36.). Tanto
a matemática egípcia quanto a babilônica utilizava como constitutiva
12
O quadrivium reunia a aritmética, que trabalha com o número em si mesmo; a
geometria, com as magnitudes imóveis; a astronomia, com as magnitudes móveis,
e a música, com as razões e proporções.
Cynthia S. de Gusmão
33
da ideia de número o conceito de frações como representação das
divisões de um todo. Contudo, na Grécia, uma fração era vista como
uma razão, ou seja, uma relação entre números inteiros. Como
explica Boyer, “um tal ponto de vista, que focaliza a atenção sobre a
conexão entre pares de números, tende a por em relevo os aspectos
teóricos do conceito de mero e a reduzir a ênfase no papel do
número como instrumento de cálculo ou de aproximação de medidas”
(1999, p.36).
O ponto de partida da Harmônica ocorre justamente quando as
consonâncias são descritas como relações entre números ou razões
numéricas: 2:1, a oitava; 3:2, a quinta e 4:3, a quarta.
13
A teoria é
atraente por sua beleza e simplicidade, pois desvela com os quatro
primeiros meros o fato das consonâncias serem agradáveis ao
ouvido.
Com a tradução do som musical, mais precisamente, dos
intervalos musicais, em razões numéricas, Pitágoras ou os pitagóricos
descobriram as mais antigas leis quantitativas da acústica e, talvez,
da física matemática: a proporcionalidade inversa entre a altura e o
comprimento de uma corda vibrante. Teria a descoberta partido de
uma observação empírica? E se a resposta for afirmativa, em que tipo
de aparato científico ou instrumento musical foi feita a observação?
Ou teria partido de uma hipótese absolutamente teórica? De qualquer
maneira, as razões numéricas realizaram uma síntese que, para os
pitagóricos, confirmava a existência de uma analogia entre a
harmonia e toda a natureza por meio de um princípio de unidade e
coesão: o número.
O discurso pitagórico tinha também caráter sagrado. Um
aspecto que costuma ser relacionado à descoberta das razões das
consonâncias é de origem simbólica. Os números 1, 2, 3 e 4
13
A atribuição desse feito a Pitágoras é dada não por seus seguidores, mas
também por representantes de outras escolas. Ver Delatte (1974, p. 258).
Cynthia S. de Gusmão
34
formavam a tetráctys, uma das partes essenciais da aritmologia
pitagórica. A tetráctys era considerada o princípio organizador do
cosmo. Várias analogias eram estabelecidas a partir dela. Na
natureza, as coisas estariam dispostas em conjuntos de quatro. Era
possível desenhar o primeiro sólido com quatro pontos no plano. A
soma dos quatro primeiros números resulta no número dez,
considerado perfeito por vários motivos, por exemplo, por reunir as
quatro dimensões: um: o ponto; dois: a reta; três, o triângulo e
quatro, o primeiro poliedro, o tetraedro. É difícil saber exatamente
como esse simbolismo místico impulsionou a descoberta das razões
das consonâncias mas a tetráctys talvez possa ser considerada a
chave da descoberta das leis acústicas dos intervalos musicais. A
coincidência das razões dos quatro primeiros números com a
harmonia consonante confirmava a aritmologia pitagórica, que
determinou, dessa forma, o caminho da ciência musical do Ocidente.
3. A coesão harmônica da natureza
A primeira fonte escrita que chegou até nós dessa proto-ciência
pitagórica são os fragmentos do livro Sobre a natureza, de Filolau de
Crotona, que viveu aproximadamente de 470 a 385 a.C., na cidade
de Crotona, sul da Itália, onde floresceu a escola pitagórica e na qual,
de acordo com a tradição, viveu o próprio Pitágoras. Segundo
Diógenes Laércio, Filolau foi identificado por Aristóxeno que tinha
conexões fortes com os pitagóricos, pois seu pai pertenceu à escola –
como sendo da última geração de pitagóricos (D.L. VIII 46, apud
Huffmann, 2005, p.2.). Nos fragmentos de Filolau, encontramos
também temas comuns à filosofia pré-socrática, como o conceito de
harmonia.
Na filosofia de Empédocles de Agrigento (c. 490-435 a.C.), a
harmonia é um princípio de coesão dos elementos e tem seu oposto
Cynthia S. de Gusmão
35
em neíkos, princípio de separação e destruição. Para Heráclito de
Éfeso (c. 540-470 a.C.), o elemento contrário é parte da estrutura
harmônica: “não compreendem como o divergente consigo mesmo
concorda; harmonia de tensões contrárias como a do arco e da lira”
(DK 22 B 51). A palavra grega palíntonos, traduzida aqui pela
expressão de tensões contrárias, enfatiza a noção de simetria de
tensões, presente no termo harmonia que, até hoje, traz subjacente
essa concepção de equilíbrio de forças.
A raiz grega da palavra harmonia, >har, define um campo
semântico relacionado às ações de ajustar, articular, encaixar. O
substantivo harmós, portanto, pode ser traduzido por articulação,
junção, encaixe e pertence também à esfera da visão e do tato como
palavra técnica utilizada por carpinteiros e construtores. Para alguns
autores essa seria sua primeira acepção, depois passando a
integrar o campo da acústica (Spitzer, 2009, p. 160, nota 8). Entre os
vários empregos na música grega, harmonia é um sistema de
afinação, no qual o músico “encaixa” auditivamente um padrão de
notas no momento em que afina o instrumento.
No primeiro fragmento da obra Sobre a natureza, de Filolau,
encontra-se uma definição de natureza baseada na harmonia: “a
natureza (physis) no kósmos foi harmonizada (harmonizein) a partir
de coisas ilimitadas e limitadas, tanto o kósmos em seu todo, quanto
tudo que há nele” (DK 44 - B-1). É um topos da filosofia pré-socrática
o questionamento acerca dos princípios da natureza, além de
concebê-la como ordem; a sua constituição se a partir de
elementos como água, fogo, ar, ou de pares como quente/frio,
denso/rarefeito. Também o par limitado/ilimitado aparece, como em
um fragmento de Anaxímenes em que o ar é a origem da natureza, e
ilimitado (DK 13 A 5). Filolau, no entanto, não aceita relacionar o
ilimitado com qualquer elemento ou identificá-lo com o princípio do
kósmos. A chave está no conceito de harmonia.
Cynthia S. de Gusmão
36
No fragmento seguinte, Filolau explicita o papel da harmonia no
encaixe entre ilimitado e limitado: “Visto que esses dois princípios
(limitado e ilimitado) não são iguais, nem de iguais famílias, seria
impossível criar-se um kósmos com eles, se não se acrescentasse a
harmonia, de qualquer maneira que ela tenha vindo a ser. As coisas
iguais e de iguais famílias em nada precisam, pois, de harmonia; mas
as desiguais (como os dois princípios) não de famílias iguais e não
igualmente dispostas, são necessariamente fechadas em tal harmonia
que se destina a conter-se em uma ordem” (DK 44 B 6).
O tratado de Filolau foi bastante respeitado em seu tempo e foi
lido, ao que parece com muito cuidado, por Platão. No diálogo Filebo,
Platão adapta a cosmologia de Filolau a seus propósitos,
desenvolvendo a ideia dos dois princípios limitado e ilimitado no
âmbito da alma humana. Sócrates, Filebo e Protarcus discutem qual é
o maior bem: o prazer (hedoné) ou a prudência (frónesis). Em defesa
do conhecimento, Sócrates argumenta que o prazer, e seu oposto, a
dor, por possuírem graus de intensidade, pertencem à classe do
ilimitado. a prudência, que traz implícita a ideia de número e
medida, ao limitado. E, em uma ressonância pitagórica, Sócrates
um exemplo de limitado e ilimitado na música. O som é uma coisa só,
e ilimitado, pois admite gradações: é possível perceber se um som é
grave, agudo ou intermediário. No entanto, isso não torna ninguém
músico; apenas “quando tiveres alcançado o número e a qualidade
dos intervalos da voz com relação ao tom agudo e grave, e os limites
dos intervalos (tous hórous ton diastémata) e todas as combinações
(systémata) derivadas deles, as harmonias, e ainda os efeitos
correspondentes nos movimentos do corpo (...) medidos pelo
número, chamados de ritmos e medidas (...) terás te tornado
músico” (Filebo, 17 b-e). Ou seja, quando o som é (de)limitado pelo
número, torna-se tom musical. Argumento semelhante encontramos
no Fedro, como apontamos no início deste capítulo.
Cynthia S. de Gusmão
37
4. A fixação da escala
A harmonia “fechada em uma ordem” é descrita no segundo
parágrafo do fragmento acima referido, tal como disposto na edição
Diels-Kranz,
14
e a sua tradução apresenta algumas peculiaridades
importantes. Em geral, o início costuma ser traduzido assim: “A
harmonia abrange uma quarta e uma quinta; a quinta é maior que a
quarta por um tom” (DK 44 B 6). Poderíamos fazer uma tradução
mais literal do texto: “O tamanho (mégethos) da harmonia é quarta e
quinta”, mas ainda assim estaríamos longe do seu significado preciso.
A harmonia, aqui, refere-se à oitava. Filolau utiliza o termo harmonia,
em vez de diapason, o que enfatiza a coerência e unidade do sistema.
Além disso, não aparecem os termos diapente para a quinta e
diatessaron para a quarta. A harmonía é formada por syllaba e
di’okseian. Syllaba na linguagem corrente musical antiga equivalia ao
intervalo de quarta, substantivo do verbo syllambánoi, pegar junto,
reunir.
15
Esse termo refere-se a algo bem concreto: as cordas abaixo
dos dedos do músico em uma posição inicial na lira ou na cítara, e
abrangendo uma quarta. O mesmo para di’okseian, que significa:
através das cordas mais agudas e seriam as cordas restantes, mais
agudas, tangidas a partir da syllaba, formando um intervalo de
quinta.
Andrew Barker fez um estudo detalhado desse parágrafo do
fragmento e suas conclusões são oportunas para o desenvolvimento
das questões suscitadas no decorrer deste trabalho. De acordo com
Barker, essas expressões no texto de Filolau “parecem vir da
14
Existem dúvidas filológicas a respeito da reunião dos dois parágrafos.
15
Em português a sílaba, em geral, é a reunião de uma consoante e uma vocal.
Eram comuns, no período clássico grego, as analogias entre a linguagem verbal e a
musical; no Filebo, o personagem Protarcus diz que compreendeu melhor o
argumento socrático, que se havia utilizado da música para desenvolvê-lo, quando
isso é feito tomando por base o alfabeto.
Cynthia S. de Gusmão
38
linguagem dos músicos, em vez dos filósofos e cientistas, e harmonia
habita ambas as esferas”. Ou seja, a linguagem nesse trecho não
envolveria lculos matemáticos, fazendo uma “referência direta aos
componentes da afinação que se apóiam em posições específicas, e
não a tamanhos de intervalos que independem das suas posições das
cordas no instrumento” (2007, p.275-8).
A afirmação é adequada no que diz respeito à primeira oração,
contudo, na segunda: “a quinta é maior que a quarta por um tom”, o
termo grego utilizado para tom não é tonos, mas epógdon. Em grego
ogdóos significa oitavo e epógdoos é o que contém um inteiro mais
um oitavo, ou seja, a razão 9:8. A razão do tom também foi
apresentada pelos pitagóricos, apesar de fugir do esquema dos
quatro primeiros números inteiros, pois o intervalo não era elencado
entre as consonâncias. De qualquer maneira, parece-nos que se está
presente o termo oitavo, é porque a escala está claramente dividida
em oito. A menção a essa localização do epógdoon retorna adiante no
fragmento com um significado ligeiramente diferente.
Para compreender a escala de Filolau, é preciso saber que,
nesse sistema, as consonâncias são nitidamente distintas dos outros
sons do tetracorde, com exceção do tom inteiro. De acordo com
Cleônides, teórico do século I d.C., “os intervalos sinfônicos são
diatessaron [a quarta], diapente [a quinta], diapason [a oitava] e os
assemelhados [provavelmente os compostos: quinta ou quarta mais
uma oitava]. Os intervalos diafônicos são todos aqueles menores que
diatessaron e aqueles que ficam entre os intervalos sinfônicos” (Apud
Grande, 1960, p.403). Esses outros sons, para os pitagóricos,
pertenceriam à classe do apeíron, do ilimitado (ou indefinido). As
quatro notas do tetracorde dividiam-se em fixas e móveis. As
consonâncias eram formadas pelas fixas (ou fixadas por elas). Como
comenta Paul Tannery: “ele (Pitágoras) se satisfez em determinar os
sons fixos (do sistema musical grego); e deixou de lado, na classe do
Cynthia S. de Gusmão
39
indefinido (apeíron), a múltipla variedade dos sons móveis” (1912, p.
80).
Assim, Filolau inicia a construção da escala pelas consonâncias
(notas fixas): “Da hypate subindo até a mése, temos uma quarta, da
mése até a te, uma quinta, da néte descendo até a tríte, uma
quarta, da tríte ahypate, uma quinta.” (DK, 44 B 6). Aqui, o mais
importante não é o nome das notas e a sua posição, mas o fato de
Filolau descrever os sons fixos consonantes da escala. A ênfase está
na demonstração de que os intervalos consonantes podem ser
formados com qualquer combinação de notas, ou seja, os intervalos
são elementos autônomos. A escala pode ser ascendente ou
descendente, não importa, o modelo é coeso, harmônico, pois as
quartas e quintas entrelaçam (“fecham”) a oitava. E suporta
inversões, basta os intervalos (diásthemata) manterem o seu
tamanho (mégethos).
De acordo com Winnington-Ingram, nem todas as escalas
antigas abrangiam uma oitava, existiram muitas formações de
escalas. Para ele, o “sentimento da oitava não é um desenvolvimento
primitivo da consciência”
(1968, p. 23). Se for assim, a partir de
um determinado momento a oitava começou a ser percebida como
uma consonância importante e, mais do que isso, como um intervalo
musical. E o mesmo deve ter ocorrido com os intervalos de quarta e
quinta. O fato é que após terem sido percebidos como tais poderia
ocorrer o salto fundamental: a sua tradução em razões numéricas.
Mas, no momento em que Filolau escreve, havia essa
consciência, portanto, o texto não exporia nada de novo. Porque é
perfeitamente possível saber de maneira empírica que a oitava é a
reunião da quarta e da quinta e que a quinta é maior que a quarta. O
autor parece falar em uma linguagem intermediária, preparando o
discurso para introduzir as razões numéricas, que talvez ainda fossem
uma novidade. O kósmos era percebido como beleza ordenada,
Cynthia S. de Gusmão
40
essa ideia estava colocada. O assunto agora era da maior
importância: as razões musicais confirmariam a lei da harmonia como
raiz fundante da natureza. De acordo com a concepção pitagórica,
tudo que existe poderia ser expresso por um número, mas a música
revelava que as coisas eram, elas mesmas, invisível e intimamente,
números. O número seria de fato o elo entre todas as coisas,
revelador dos princípios de analogia e semelhança.
E partindo desse ponto, acessível a qualquer cidadão grego com
sua educação musical básica, Filolau avança firme no terreno
matemático: “Entre a mése e a tríte, um tom. A quarta é epitríte
(4:3) a quinta (3:2) hemíolion e a oitava é dupla (2:1)” (DK, 44 B 6).
Como no início, o termo grego utilizado para tom não é tonos (a
diferença de tensão da corda entre os intervalos de quarta e quinta),
mas epógdon, que se refere à razão 9:8.
É importante fazer um parêntese para ressaltar a observação
de Szabó de que Filolau ao dizer que a diferença entre 3:2 e 4:3 é
igual a 9:8, está se referindo a operações efetuadas no cânone, pois
matematicamente não é a subtração que resulta 9:8, mas a divisão
de 4:3 e 3:2 (2000, p.114-5).
16
De acordo com o autor romeno, no
cânone seria possível examinar o intervalo como uma diferença, o
mesmo acontecendo com a inversão entre adição e multiplicação: “da
mesma maneira, é devido à referência a uma operação efetuada no
cânone que se explicam as expressões da música teórica que
exprimem a multiplicação de duas razões como uma adição” (2000,
p.132-3).
16
Cânone é o instrumento que teria sido criado pelos pitagóricos para as
demonstrações visuais das razões numéricas. Diferente de Szabó, autores como
Flora Levin consideram que o cânone seja uma invenção posterior visto que nem
Platão nem Aristóteles falam dele. Consideramos aqui a hipótese de Szabó, pois,
dados nossos insuficientes conhecimentos de matemática, pareceu-nos a única
explicação para as inversões entre subtração e divisão e adição e multiplicação, que
ocorre tamm no Manual de harmônica de Nicômaco de Gerasa. Para uma
explicação detalhada, ver Szabó, 2000, p. 114-5.
Cynthia S. de Gusmão
41
À parte a correção das sutilezas dos cálculos matemáticos, a
construção diferente da frase que repete a razão do tom parece
enfatizar agora a simetria do sistema, em que é necessário ter um
ponto de equilíbrio, justamente o tom inserido “entre a mése e a
tríte”. O épogdon agora não está sendo definido pela diferença entre
a quinta e a quarta, mas é o núcleo da escala e a define.
Esses são os primórdios da teoria musical, tal como praticada
nos círculos pitagóricos. Antes da sistematização pitagórica não
nenhuma evidência de uma base teórica fixa para a afinação das
escalas. Agora, o princípio passava a ser matemático, pois, citando
novamente Szabó: “a empiria não apreende que a diferença entre a
quinta e a quarta é 9:8 e que se deve atribuir à quarta uma razão 4:3
e, à quinta, a razão 3:2” (2000, p.133). Aos poucos não será mais
necessário tocar, medir, ouvir, mas apenas calcular.
5. A coma pitagórica
Filolau formula então o tamanho da oitava e da quarta: “assim
a harmonía abrange cinco tons e duas diésis, e a quarta, dois tons e
uma diésis.Diésis significa a ação de passar, em latim, transitus. A
diésis, na música grega, antiga era o intervalo mínimo de uma
escala; no caso da escala diatônica pitagórica, que é a referência de
Filolau, muito próximo do meio-tom. que o tom não podia ser
dividido ao meio, pois levava a um número irracional, o que era
inconcebível para os pitagóricos, que consideravam a ausência de um
número racional comprometedora da inteligibilidade de algo. Para
contornar esse problema, serão feitos cálculos complicados, buscando
acomodar a dificuldade e assim completar a escala musical.
Assim, o tom deveria ser dividido em duas diésis (expressa pela
simpática razão de 256:243) e mais uma coma (531441:524288!).
Como podemos ver, relacionar alturas apenas a números racionais
Cynthia S. de Gusmão
42
acaba por introduzir alguns problemas, fazendo despontar a
fragilidade do sistema. Por exemplo, se tocarmos 12 intervalos de
quintas na razão 3:2, em série, a última nota deverá ser (3:2)
12
;
ao tocarmos sete oitavas (que corresponderiam ao intervalo das 12
quintas) a última nota seria (2:1)
7
. As duas notas são quase a
mesma, entre elas há uma diferença minúscula, que produz um
intervalo dissonante, a coma pitagórica.
Essa dificuldade será solucionada mais tarde com a divisão
da escala em meios-tons, o temperamento igual, baseado nos
números irracionais. Mas como observa Abdounour: “o experimento
de Pitágoras contribui com a ideia de temperamento na medida em
que propicia a construção de uma escala que não se “fecha”
resultando na coma pitagórica. As diversas tentativas de distribuir tal
diferença culminam com a repartição logaritmicamente equivalente,
correspondente ao temperamento igual” (1999, p. 201).
O que importa agora é considerar o significado como um todo
desse sistema inicial. A música começou a descolar-se da sua origem
em tetracordes e essa nova estrutura matemática será a base da
música ocidental nos próximos dois mil anos, até ser substituída pelo
sistema temperado moderno, que, no entanto, manterá nas relações
sistêmicas da harmonia aspectos da estrutura matemática. A gama
diatônica, tão apreciada pelos pitagóricos por sua simetria, irá tornar-
se, gradativamente e com variações de afinação, a escala de
referência da música ocidental.
O destaque aos intervalos de quintas é um prenúncio do ciclo
da quintas do sistema tonal, quando a quarta será tratada como
dissonância, ou semi-dissonância. Além disso, é importante o fato de
a oitava ser “encaixada” pelas quartas e quintas tanto de cima para
baixo quanto de maneira inversa. Essa concepção da organização
escalar como modelo matemático ressoará no século XVIII na teoria
da inversão dos acordes de Jean-Philippe Rameau (1682-1764).
Cynthia S. de Gusmão
43
6. A cosmologia pitagórica
O livro de Filolau é o testemunho do nascimento da ciência
harmônica que, buscando padrões numéricos simples de articulação
entre o visível e o invisível (por exemplo, corda/som), reduz a
multiplicidade à unidade, dando inteligibilidade à natureza: “sem ele
(o número) todas as coisas são ilimitadas, obscuras e imperceptíveis”
(DK 44 B 11). Em vez de buscar uma substância primordial, como
outros pensadores da época, os pitagóricos encontraram um princípio
imaterial com forte potencial de organização hierárquica. Nas
palavras de Aristóteles: “como vissem nos números as modificações e
as proporções da harmonia e, enfim, como todas as outras coisas
lhes parecessem, na natureza inteira, formadas à semelhança dos
números, e os meros as realidades primordiais do universo,
pensaram eles que os elementos dos números fossem também os
elementos de todos os seres, e que o céu inteiro fosse harmonia e
número.”
17
Para Filolau, “tudo que é possível de ser conhecido tem um
número”, a inteligibilidade das coisas é dada pelo número: “pode-se
ver a natureza do número e sua potência em atividade, não nas
(coisas) sobrenaturais e divinas, mas ainda em todos os atos e
palavras humanos, em qualquer parte, em todas as produções
técnicas e na música”
(
DK 44 B 11). As especulações musicais
estavam inseridas no contexto de uma cosmologia, que era na
verdade uma filosofia que, por sua vez, fazia a conexão entre várias
áreas do conhecimento, da astronomia à medicina.
A teoria astronômica pitagórica tem o seu lugar na história da
astronomia como um todo. Os pitagóricos teriam sido os primeiros a
sustentar a ideia de que a Terra e o universo tinham a forma esférica
17
Metafísica, I, Cap. V. Trad. de Vinzenzo Cocco. Coleção “Os Pensadores”. São
Paulo, Abril, Cultural, 1979, p. 21.
Cynthia S. de Gusmão
44
(Cf. Heath, 1981).
18
É difícil verificar como eles teriam chegado a
essa conclusão, talvez pela observação dos eclipses. Contudo,
considerando o caráter essencialmente matemático de sua filosofia da
natureza, é possível que a suposição fosse “puramente matemática”,
como diz Heath, “ou estético-matemática; ou seja, Pitágoras atribuiu
a forma esférica à Terra (assim como ao universo) pela simples razão
de que a esfera é a mais bela das figuras sólidas” (1981, p.162-3).
O pitagorismo desenvolveu uma cosmologia não-geocêntrica e,
na Renascença, Copérnico fez referência aos pitagóricos ao defender
o heliocentrismo. Filolau, em seu livro, diz que a Terra e os sete
planetas, o que incluía a Lua e o Sol, giravam em torno de um fogo
central. Haveria ainda uma contraterra, colinear à Terra, perfazendo
o número dez (DK 44 B 17). Para Aristóteles, a inclusão dessa
contraterra destinava-se a perfazer o número 10, ou seja, por um
motivo matemático, estético e simbólico, o kósmos seria mais
perfeito assim.
Nessa teoria cosmogônica de Filolau “o kósmos é um e
começou a vir a ser a partir do centro, e do centro para cima, nos
mesmos intervalos (diásthemata) que os de baixo” (DK 44 B 17). Os
corpos celestes são esferas e movem-se em círculos, um espaço
ideal, em que suas distâncias são intervalos, diasthemáta, como
vimos, termo também utilizado para os intervalos musicais. Tal como
a escala musical, a teoria astronômica é perfeitamente simétrica.
Para Heath, a astronomia pitagórica “é pura matemática,
combinada com aritmética e harmonia. A descoberta capital de
Pitágoras da dependência dos intervalos musicais das proporções
numéricas levou seus sucessores à doutrina da “harmonia das
esferas” (1981, p. 165).
18
Contudo, de acordo com Boyer (1999, p. 38), existem contestações acerca dessa
tradição, que atribui o conceito de terra esférica aos pitagóricos.
Cynthia S. de Gusmão
45
As teorias acústicas que relacionavam a velocidade com a
característica do som estendiam-se ao movimento dos planetas: os
mais velozes produziriam sons mais agudos que os mais lentos. E as
distâncias entre eles corresponderiam às razões numéricas musicais.
Apesar de combatida por Aristóteles
19
, detalhes dessa cosmologia são
descritos por seu comentador Alexandre de Afrodísias, do século III
d.C.,
conhecido como o último comentador peripatético, “esse som
que eles (os planetas) produzem durante seu movimento é profundo
no caso dos mais lentos e alto no caso dos mais rápidos; esses sons
então, dependendo da razão das distâncias, soam de modo que seu
efeito combinado é harmonioso”
(
Apud Hunt, 1978, p.12).
Esse mito é relatado na República de Platão como o mito de Er,
o soldado armênio que narra uma cosmologia fantástica que ficou
conhecida como o mito da harmonia das esferas (614b-617d). No
Timeu (35b-36c), a escala musical pitagórica é descrita como um
princípio cosmogônico e relaciona-se à escala de Filolau no que diz
respeito à presença dos intervalos (diasthemata) entre os planetas.
No trecho da criação da alma do mundo, o amalgamador
(ksundesantos) cria o universo corpóreo
visível e tangível (31b-
32c), conjugando-o por um elo, o melhor deles: a proporção natural
(pephugen analogia). Em seguida, é criada a alma do mundo, o que
acontece por philia, que pode ser traduzida por amor. Essa criação se
pelo entrelaçamento de números duplos e triplos, quadrados e
cúbicos caracterizando uma criação musical, harmônica. Depois, o
amalgamador preenche os intervalos (diásthemata) aplicando as
médias proporcionais: as médias harmônicas geram intervalos de
quartas e aritméticas, os intervalos de quintas. Por fim, completa os
intervalos de 4:3 com os intervalos de 9:8 deixando uma parte de
cada um deles. O tom será dividido em dois intervalos desiguais,
duas diésis de tamanhos diferentes, chamados léimma (243:256), a
19
Posição esta explicitada, por exemplo, em De Caelo, Livro II, 9, 16-32.
Cynthia S. de Gusmão
46
razão que está em Filolau, e apotomé (2187:2048) (Timeu, 31b-
36b). A escala avança de maneira ortodoxa por quatro oitavas, muito
além do que é acessível à voz humana. Os números
surpreendentemente correspondem à posição dos primeiros
harmônicos.
A cosmologia pitagórica está presente na medicina da época. É
bem provável que Filolau conhecesse a obra do médico, também de
Crotona, Alcméon (c. 560-500 a.C.), que teria sido contemporâneo
do próprio Pitágoras. Foi ele que elaborou a teoria da desarmonia
como causa das enfermidades e pode ter sido um pioneiro da
embriologia (Huffman, 2005). Barker, a propósito de seu argumento
de que o discurso de Filolau aproxima-se mais do conhecimento
comum dos músicos que dos matemáticos, chama a atenção para
uma passagem no tratado médico hipocrático De victu, em que o
autor discute o desenvolvimento do feto humano: “quando se
movimenta para um lugar diferente, alcança-se a harmonia correta
contendo as três consonâncias: syllaba, di’okseian e diapason, ele
vive e cresce utilizando os mesmos nutrientes que antes. Mas se ele
não alcançar a harmonia e os elementos graves não foram
consonantes com os agudos, na primeira consonância, na segunda,
ou naquela que passa por tudo [diapason, ou seja, a oitava], se uma
delas estiver faltando, toda a afinação (tonos) é inútil(Apud Barker,
2000, p.280).
Se Filolau ou os mais antigos pitagóricos estavam mais
próximos dos músicos práticos e de uma ciência mais empírica, não
temos como avaliar; contudo, é surpreendente a semelhança do texto
médico com a escala de Filolau, o que reafirma o caráter organicista
da cosmologia pré-socrática e pitagórica. Como observou Max Weber:
“o fenômeno da mensurabilidade dos intervalos “justos” [leia-se
consonantes] foi, uma vez reconhecido, de extraordinária impressão
Cynthia S. de Gusmão
47
sobre a imaginação, como demonstra a imensa mística dos números
ligada a isto” (1995, p. 85).
7. Os desdobramentos da harmônica: Arquitas
Arquitas de Tarento viveu na primeira metade do século IV a.C
e foi contemporâneo de Platão. Além de matemático e filósofo,
Arquitas foi também um aclamado líder político e, segundo contam,
prestava atenção especial às crianças, pois teria sido o inventor de
um pequeno chocalho para acalmá-las. No ano de 361 a.C., Arquitas
foi o responsável pelo envio de um navio para resgatar Platão das
mãos do tirano de Siracusa, Dionísio II. Segundo alguns estudiosos, a
Sétima carta de Platão, em que ele narra a experiência em Siracusa,
seria endereçada ao próprio Arquitas (338a-339d). Apesar disso, os
dois tinham desentendimentos em questões matemáticas, filosóficas
e políticas.
Arquitas esteve envolvido em vários ramos da atividade
científica, todos eles interligados pelas propriedades do mero. Ele
radicalizou o pensamento analógico pitagórico, estendendo-o às
téknai como a mecânica. Dedicou-se intensamente à música,
avançando nas questões de afinação da lira e sofisticando os cálculos
das razões numéricas e das médias proporcionais. De certa forma,
ele aproximou a harmônica do fenômeno da experiência musical. Ao
mesmo tempo em que avançou no campo da física acústica, Arquitas
introduziu mais rigor ao lculo das razões numéricas musicais e
propôs novas afinações da escala, calculadas por meio das chamadas
médias proporcionais.
Na harmônica pitagórica não é possível dividir os intervalos
básicos na metade. Portanto, a oitava não pode ser dividida em duas
partes iguais, deve ser dividida em uma quarta e uma quinta. Em
linguagem tonal moderna, podemos exemplificar isso dizendo que a
Cynthia S. de Gusmão
48
oitava não poderia ser dividida por seu trítono (aliás, a grande
dissonância, responsável pelo desenvolvimento da tonalidade), assim
como o tom. Por outro lado, é possível dividir a dupla oitava na
metade. Baseando-se nessas duas propriedades, Arquitas produziu
uma rigorosa prova para as razões epimóricas ou superparticulares
(2:1, 4:3, 3:2 e 9:8), razões do tipo n+1:n, dizendo que elas não
poderiam ser divididas em duas partes iguais. Essa afirmação será
apresentada ligeiramente modificada no início do século III a.C. na
famosa e problemática Proposição 3 da obra A divisão do cânone,
como veremos adiante.
8. As médias proporcionais
O sistema cosmológico pitagórico de encaixes articulados
harmonicamente tinha sua expressão matemática nas médias
proporcionais que, no âmbito da teoria das proporções, promoviam a
união entre as disciplinas matemáticas (Szabó, 1977, p.107).
A teoria das proporções relação entre duas razões
desempenhou papel crucial na epistemologia pitagórica e, de acordo
com Heath, foi desenvolvida “muito cedo na sua escola com
referência à teoria da música e aritmética”
(1981, p. 85). Dizem que
foi entre os babilônios que Pitágoras teria conhecido as médias
aritmética, geométrica e subcontrária, a qual Arquitas mais tarde
renomearia para harmônica, e ainda, a proporção áurea.
Uma média proporcional é uma relação matemática constante
que cria uma analogia entre dois termos, através de um terceiro. Os
pitagóricos generalizaram o conceito de média proporcional e
chegaram ao número de dez médias proporcionais. Coincidentemente
ou não, duas delas, quando aplicadas ao comprimento de uma corda,
geram duas das consonâncias perfeitas: a quarta e a quinta. A razão
Cynthia S. de Gusmão
49
4:3, o intervalo de quarta, é obtida pela média harmônica da divisão
da oitava (2:1). O intervalo de quinta (3:2) é a sua média aritmética.
Como esclarece Barker: “quando a oitava é dividida no modo
familiar de duas quartas separadas por um tom, a estrutura é
demarcada em quatro notas, das quais a segunda está para a
primeira na razão 4:3. A terceira nota está para a segunda na razão
9:8. E a última nota está para a terceira na razão 4:3. Portanto, a
razão da terceira nota para a primeira e da última para a segunda é
de 3:2 e a razão da última para a primeira, 2:1. Os menores números
inteiros que captam esse arranjo são 6, 8, 9 e 12” (2000, p. 302). A
média aritmética dos quatro números é 9 (9:6=12:9) e a média
harmônica, 8 (12:8 = um terço de 12 e 8:6 = um terço de 6).
Luigi Borzacchini (2007, p.278) defende que a logística de
Arquitas, que ele proclama como sendo o núcleo das matemáticas,
não era uma arte prática do cálculo, como querem alguns, mas a
ciência das relações entre os números, no sentido dado por Tannery:
“é uma característica da tradição pitagórica que ela apreende os
números em si no mundo visível, mas suas razões no mundo audível”
(2002, p. 70).
O segundo fragmento de Arquitas relaciona três médias, como
pertencentes à música: “a música tem três médias, uma é a
aritmética, a segunda é a geométrica e a terceira é a contraposta que
chamamos de harmônica”
(DK 47 B 2). E segue formulando cada uma
delas. As médias aritmética e harmônica estão relacionadas à divisão
da oitava respectivamente nos intervalos de quinta e quarta.
20
Convém lembrar que as afinações utilizadas na música grega no
tempo de Arquitas e Platão eram bastante sofisticadas e as razões
numéricas de Filolau não davam conta da música real praticada. Além
de formalizar a questão das médias proporcionais, Arquitas introduziu
20
A média aritmética é expressa pela fórmula b=a+c/ 2, a média harmônica
b=2ac/a+c e a média geométrica b
2
=a.b
Cynthia S. de Gusmão
50
essas mesmas médias entre as quartas e as quintas, que, por
analogia, deveriam produzir consonâncias menores.
O procedimento aproximou a escala de novas ressonâncias
presentes na série harmônica musical. Como diz Abdounour, “o
intervalo de terça maior obtido por Arquitas concorda com aquele
presente na série harmônica. Tal fenômeno levar-nos-ia a imaginar
que Arquitas possuísse um ouvido sensível ao perceber que a terça
correspondente a 4:5, mais baixa que a pitagórica, soava mais
natural, uma vez que se fundia exatamente dentro dos harmônicos
naturais de uma nota. Enquanto Pitágoras calcula frações subjacentes
à escala utilizando apenas percursos de quintas, Arquitas considera
fortemente lculos de médias aritméticas e harmônicas na geração
de seu sistema musical” (1999, p. 17).
O matemático e filósofo foi ainda ao interior do tetracorde para
calcular as suas divisões nas três espécies ou gêneros: diatônico,
cromático e enarmônico. Ele busca descrever matematicamente as
escalas então em uso a partir da observação da forma como os
músicos afinavam os instrumentos, distanciando-se da escala
diatônica pitagórica simplesmente porque ela não era utilizada, ao
menos em sua época. A escala de Filolau será constituída das razões
9:8 / 9:8 / 256:243 (três intervalos formando uma quarta) e 9:8 /
9:8 / 9:8 / 256:243 (quatro intervalos formando uma quinta) e
abrangendo a tessitura de uma oitava. A estrutura de Arquitas
mantém-se coesa com o fulcro do epogdoon em seu centro, mas os
intervalos são bem mais complexos.
21
Esses novos lculos dos intervalos foram provavelmente
motivo de desentendimento com Platão, para quem mudar uma
escala faria tremer os muros da sua pólis e introduzir a desordem no
kósmos, visto que, na filosofia platônica, as relações harmônicas
21
Para o gênero enarmônico: 5:4 / 36:55 / 28:27 / 9:8 / 5:4 / 36:55 / 28:27. Para
o gênero cromático: 32:27/ 243:224 / 28:27 / 9:8 / 32:27 / 243:224 / 28:27. Para
o diatônico: 9:8 / 8:7 / 28:27 / 9:8 / 9:8 / 8:7 / 28:27.
Cynthia S. de Gusmão
51
estavam presentes na geometria, na estereometria, através da
analogia entre a superfíce e o volume (Epinomis, 990c-991a) e na
astronomia (Timeu 47 a-b), nos movimentos das órbitas dos astros.
Segundo Barker (2007, p.307), talvez tenha sido endereçado a
Arquitas o comentário sarcástico de Platão no diálogo entre Sócrates
e Glauco na República: “O comportamento deles é ridículo (...)
esticando os ouvidos como que para ouvir a conversa dos vizinhos,
alguns deles dizendo que conseguem ouvir um som entre dois, (...)
colocando os ouvidos antes da mente (noûs). Você está falando eu
disse daquelas pessoas que torturam as cordas do instrumento
esticando-as com as cravelhas para interrogá-las (...)”.
22
Em Platão, a ciência do número distancia-se da técnica e da
arte. No diálogo Epinomis, o personagem estrangeiro de Atenas, após
pedir perdão aos predecessores, faz uma extensa relação das ciências
que não levam à virtude e à sabedoria. No catálogo, estão listadas a
fabricação de farinhas e fermento e sua transformação em alimento,
a agricultura, a construção, a marcenaria, a serralheria e a fabricação
de ferramentas aa caça, a medicina, o teatro, a pintura, a prática
musical e a adivinhação, “trabalhos úteis para a sociedade, mas que
não entram em consideração quando se trata da virtude (areté)”
(Epinomis, 975 a-976c).
9. A média geométrica e os incomensuráveis
As fórmulas de Arquitas para as médias proporcionais
mencionam, além das médias aritmética e harmônica, a geométrica.
Contudo, não haveria lugar para a média geométrica na divisão da
oitava, que ela não poderia ser dividida em dois subintervalos por
um número inteiro. A questão não se resume ao lculo.
22
Trecho completo na República de Platão, 531a-531c. Vale lembrar que a raiz
indo-européia de tonos é a mesma de stéinen, gemer.
Cynthia S. de Gusmão
52
Musicalmente, a divisão geométrica da oitava o intervalo de uma
quarta aumentada ou uma quinta diminuta, o chamado trítono,
distância de três tons considerada extremamente dissonante. No
contraponto medieval, o trítono levará o sugestivo nome de diabolus,
por dividir a oitava em duas partes. Essa divisão, no entanto, será o
motor da música tonal, que se fixará a partir do século XVII, pois é
uma cisão energética, conduzindo a oitava a duas direções diferentes.
Contudo, se mais tarde o intervalo foi considerado precioso
exatamente por seu caráter dissonante, não era o caso da música
antiga grega. Isso nos leva a considerar as conexões entre a teoria
musical das proporções e a descoberta da incomensurabilidade ou, no
plano das disciplinas matemáticas, entre música e geometria.
Não se sabe ao certo quando e como aconteceu a descoberta
da incomensurabilidade ou ainda a constatação de que os números
inteiros e suas razões eram insuficientes para descrever propriedades
muito simples da geometria, tais como a relação entre o lado e a
diagonal de um quadrado. No final do século XIX, Paul Tannery
investigou o papel da música grega no desenvolvimento da
matemática pura. De acordo ele, em suas Mémoires scientifiques, a
harmônica, assim como as outras três ciências matemáticas, havia
sido contemplada nos Livros 5 e 6 dos Elementos de Euclides. A
ciência musical estaria na teoria das proporções (Livro 5) e na
aplicação dessa teoria (Livro 6). Contudo, as razões entre números
inteiros a propósito dos intervalos musicais teriam sido elaboradas
nos escritos matemáticos anteriores a Eudoxo de Cnido, a quem são
atribuídas as teorias presentes nos dois livros.
Eudoxo desenvolveu
uma teoria das proporções aplicável também às magnitudes
incomensuráveis, correlacionando segmentos de reta sem a utilização
de números.
Para Tannery, a origem da concepção grega de razão é
essencialmente musical. A harmônica teria ainda exercido papel
Cynthia S. de Gusmão
53
considerável na noção de incomensurável e na criação dos
procedimentos de cálculo por aproximação de valor das raízes
quadradas (1902, p. 68-69).
No final da década de 1970, Arpád Szabó também propôs que a
teoria das proporções houvesse surgido na teoria musical pitagórica.
Para ele, Arquitas fala em média geométrica no fragmento 2 porque
ela teria nascido no contexto da música teórica, em princípio como
um problema insolúvel, do ponto de vista da aritmética (2000, p.105-
11).
Para Szabó, a teoria harmônica seria, assim, um capítulo da
teoria das proporções. Isso teria ocorrido pelo fato de os números
serem representados por segmentos de retas, tal como na obra A
divisão do cânone, atribuída a Euclides. Nela, diásthema, intervalo, é
o termo técnico para logos, razão. E, nos diagramas, (sobre os quais,
no entanto, existem controvérsias sobre quando teriam sido
incorporados à obra) cada intervalo é representado por dois
segmentos de reta, buscando reproduzir a tradução das razões do
monocórdio para um instrumento em que as notas eram produzidas
por cada corda, como a lira, a cítara, o psaltério, ou seja,
instrumentos multicordas.
Outros autores reconhecem uma fase musical na descoberta da
incomensurabilidade. Para Luigi Borzacchini, “a tradução do problema
da música para a geometria foi feita no tempo de Arquitas, Eudoxo e
Teeteto, e foi isso que deu um fundamento para o termo média
geométrica, que não produzia consonâncias musicais, mas tinha
instâncias geométricas fáceis e precisas” (2007, p. 297).
Arquitas foi professor de Eudoxo, que também manteve
contatos com a Academia platônica. Para Borzacchini, no entanto, na
Academia teria havido uma “desmusicalização” da teoria das
proporções e, por isso, ela tornou-se conhecida como um problema
apenas da geometria.
Cynthia S. de Gusmão
54
O autor italiano introduz a questão do par de opostos
discreto/contínuo, ou adição infinita e divisão infinita. A música, que
era considerada pelos primeiros pitagóricos uma ciência da
quantidade discreta, do número, poderia ter sido estendida às
quantidades contínuas (sunékés). Para Borzachinni, “quando a teoria
musical pavimentou a estrada em direção à incomensurabilidade, a
ideia de continuidade geométrica era muito incipiente para
desenvolver ou mesmo compreender tal descoberta. Talvez tenha
sido exatamente a possibilidade do desenho geométrico de um
intervalo musical não existente que promoveu o desenvolvimento da
ideia aristotélica de continuidade” (2007, p. 293). Acreditamos que
aqui haja um exagero do autor; contudo, é possível que a descoberta
dos incomensuráveis tenha ocorrido no contexto de uma relação,
ainda não elucidada, entre música e geometria.
No século XVIII, no Prefácio do Livro III de Harmonia dos
mundos, Kepler uma breve história da afinação musical. O
astrônomo critica os pitagóricos por não terem percebido que os
fundamentos das consonâncias deveriam ter sido investigados no
âmbito da geometria e não da aritmética (Apud Walker, p.42-43).
Para Kepler, como o som é um fenômeno contínuo e a harmonia dá-
se por meio do movimento, os termos das razões musicais são
contínuos e não discretos. Suas causas devem ser buscadas nas
figuras geométricas, o que ele fará.
Uma possibilidade para a presença da média geométrica no
fragmento de Arquitas seria que ele estivesse pensando na divisão de
duas oitavas ao meio, o que resultaria em uma oitava. Mas será que
Arquitas não buscaria uma resposta a partir da geometria? Se assim
for, ele poderia estar fazendo referência a uma média proporcional
que é própria da geometria, pois produz um número irracional, a
proporção áurea. Ela foi definida por Euclides: “dividir em razão
extrema e média uma reta finita dada” (Elementos, Livros II, 11 e VI,
Cynthia S. de Gusmão
55
30, apud Heath, 1981, p.304). Essa proporção correlaciona duas
médias: “o primeiro de dois números está para a sua média
aritmética, assim como a média harmônica está para o segundo
número” (Boyer, 1999, p.38).
Para Boyer essa proporção poderia configurar-se como uma
hipótese para a descoberta dos irracionais. O historiador da
matemática mostra uma propriedade interessante dessa proporção
áurea: ela se autopropaga, sendo o germe de um modo de
crescimento logarítmico. Por exemplo, ela gera a duplicação infinita
de pentágonos. Se traçarmos as cinco diagonais de um pentágono
regular, as cinco linhas formam um pentágono menor, e isso pode ser
feito indefinidamente (Boyer, 1999, p.35).
Como vimos, um dos problemas enfrentados pela afinação
pitagórica dizia respeito à duplicação das quintas e oitavas que
geravam ao fim um intervalo dissonante, a coma pitagórica. Arquitas,
certamente, conhecia o papel da divisão áurea na duplicação dos
lados do pentágono. Não teria ele pensado em aplicar, por analogia,
esse modelo geométrico aos tons musicais?
De qualquer modo, a solução final para a falha da afinação
pitagórica viria com a descoberta dos logaritmos, que possibilitou
a realização completa do temperamento. O procedimento foi criado
pelo matemático escocês John Napier (1550-1617). Como chamou
atenção Tannery, a etimologia do termo logaritmo é o “número da
proporção”,
noção que não foi derivada das progressões de potências
inteiras, mas sim da geometria (1902, p. 68-9).
Arquitas buscou ouvir as ressonâncias dos instrumentos e, com
um poderoso aparato de cálculo, aproximar-se dos números que as
governam. Mas se a harmônica buscava a coerência racional das
consonâncias, o fenômeno acústico pertence, antes de mais nada, ao
reino da sensação e do infinito.
Cynthia S. de Gusmão
56
CAPÍTULO III
TEORIAS ACÚSTICAS DA ANTIGUIDADE
1. Os primórdios da investigação do som
Uma das primeiras referências à natureza propriamente física
do som, independente da música, está no Fragmento 1 de Arquitas,
que fala do resultado do impacto do ar na produção do som: “é
impossível haver som, se não houver um choque entre os corpos”
(DK 47 B 1). A afirmação está correta e era bem aceita no mundo
grego. Mas Arquitas errará no diagnóstico dos sons graves e agudos.
Segundo ele, se um bastão for vibrado rapidamente produzirá um
som agudo devido à grande velocidade com que o som viaja pelo ar
até nós. Quanto mais rápido, mais agudo e vice-versa. É evidente
que uma confusão entre a produção do som, que está até certo
ponto correta, e a sua propagação. A altura não está relacionada à
velocidade com que o som nos atinge. Contudo, podemos ver aqui
um prenúncio da relação entre frequência de som e altura musical,
que só será explicada em 1638 por Galileu.
De modo um pouco paradoxal, segundo um comentário de
Porfírio, Arquitas pensava que as consonâncias seriam produzidas por
dois ou mais sons percebidos como um único (apud Hunt, 1978,
p.14). Essa confusão será desfeita por Teofrasto de Eresus (372-288
a.C.), aluno de Aristóteles. Ele escreveu uma obra sobre música, que
se perdeu, restando apenas citações também em Porfírio: “a nota
mais aguda não difere em velocidade da mais grave, pois senão não
haveria consonância. Se há consonância, ambas as notas têm a
mesma velocidade” (Apud Hunt, 1978, p.15).
Platão afasta-se da descrição numérica da consonância para
apresentar, no Timeu, uma teoria acústica, ao mesmo tempo física e
Cynthia S. de Gusmão
57
geométrica (80a-b). Ele descreve duas cordas que vibram de modo
circular, uma mais rapidamente que a outra. Elas têm uma amplitude
desigual, mas coincidirão como dois redemoinhos que se adaptam um
ao outro. A descrição é detalhada como resume Wersinger: “como
consequência, a consonância realiza-se desde que os dois
redemoinhos adaptem-se um ao outro, como exprime com precisão o
verbo prosapsantes. Nesse sentido, é necessário que um dos anéis da
primeira espiral coincida com um anel da segunda espiral para
desenhar um círculo que coincide geometricamente com a
consonância” (2001, p.54). Em suma, a consonância será produzida
ao final do movimento pelos dois sons que, separados no seu início,
vão adaptando-se no tempo, até que o agudo e o grave mesclem-se
na impressão de um único som. Vemos que a preocupação aqui não é
com a comensurabilidade, mas com uma simetria geométrica entre
as duas espirais que irão produzir a consonância.
2.
A propagação do som e sua audição
Havia duas posições divergentes quanto à teoria da propagação
do som, questão especialmente importante para os gregos, amantes
que eram dos grandes discursos e apresentações artísticas ao ar
livre. Para os atomistas, o som possuía uma forma corpórea que
imprimia o ar como pequenas partículas que viajavam da fonte
geradora de som até o ouvido. Demócrito sustentava que “o ar é
fragmentado em pedaços de formas similares e flui com os
fragmentos de som” (Apud Hunt, 1978, p.24). Teofrasto atacou a
concepção: “como alguns fragmentos de vento preencheriam por
completo um teatro contendo dez mil homens?”.
23
Parece que nem
23
Teofrasto citado por Porfírio no Comentário sobre a Harmônica de Ptolomeu
(61.16-61.20), apud Barker, 1989, p.112-113.
Cynthia S. de Gusmão
58
Demócrito nem os engenheiros acústicos modernos conseguiram
responder a essa pergunta.
Para outra posição, não era o ar, mas seu movimento que
produziria os sons e a transmissão se daria por meio de uma
pulsação em propagação em um meio elástico. A metáfora mais
comum era a dos círculos concêntricos produzidos por uma pedra
lançada na água. Nesse caso, o som seria propagado do mesmo
modo que as ondas. Essa imagem estará presente em vários autores
antigos como o filósofo estóico Chrysippus (c. 280-207 a.C.): “a
audição ocorre quando o ar, que está entre aquilo que soa e o que
recebe o som, é agitado, ondulando esfericamente e chegando aos
ouvidos, como a água em um lago ondula em círculos, quando nela é
jogada uma pedra” (Apud Hunt, 1978, p.24).
Aristóteles distinguiu claramente duas instâncias: Existem dois
tipos de som, um atual, outro potencial (o men energéia tis, o de
dynamis), pois dizemos que algumas coisas não possuem som, como
a esponja ou a lã, mas outras sim, como o bronze e todas as coisas
que são sólidas e lisas, pois elas podem projetar o som. Ou seja, elas
podem realmente produzir o som entre o objeto e o órgão da
audição” (De anima, 419b, 5-9).
Teofrasto compilou algumas teorias sobre o mecanismo da
audição, entre elas a do médico Alcmeon de Crotona: “a audição é
feita pelos ouvidos, porque dentro deles existe um espaço vazio, e
esse espaço vazio ressoa”. Para Aristóteles, “o órgão da audição é
fisicamente unido ao ar, e porque está no ar, o ar de dentro é movido
simultaneamente ao ar de fora” (420a). Essa seria também uma
percepção pré-socrática, tal como encontramos no fragmento de
Empédocles: “A audição ocorre pelo choque do ar contra a concha em
caracol (kokliódes), que dizem estar suspensa dentro do ouvido,
levantada e badalada como um sino” (citado por Teofrasto em Da
Sensação, DK 31 A 86). Contudo, de acordo com Hunt, a afirmação
Cynthia S. de Gusmão
59
de Aristóteles tem um interesse a mais “como uma sugestão
antecipada da transmissão do som por conta da ação do ar no ar”
(1978, p. 21-3).
3. Os avanços da escola peripatética
A obra Problemas é atribuída à escola peripatética e consiste de
perguntas agrupadas em livros com suas respectivas respostas.
Apesar de não ter autoria confirmada, muitas citações atribuem as
questões ao próprio Aristóteles. No Livro XIX, encontramos perguntas
sobre acústica, escalas, intervalos, afinação, percepção das
consonâncias e dissonâncias e outros assuntos de importância para a
ciência musical, assim como discussões sobre o papel da música na
educação e na sociedade.
Em Problemas Musicais, o autor transpõe um princípio da ótica,
que diz respeito aos ângulos de reflexão da luz, para o som: “Por que
a corda grave encerra o som da aguda? Será porque a corda grave é
maior? Ela, com efeito, compara-se a um ângulo obtuso, mas a
aguda a um ângulo agudo” (XIX, 8, 918a 19-21). A partir dessa
analogia geométrica, considera que o som mais grave contém o mais
agudo. Trata-se de uma referência ao fenômeno da ressonância, que
será descrito no século XVII na série harmônica, mas vemos que a
ideia já estava presente no mundo grego antigo.
O tratado De audibilibus, escrito provavelmente por volta do
século III a.C, também de autoria incerta, é outra obra representante
das ideias da escola peripatética. Nela, encontramos discussões a
respeito da produção e transmissão do som, da fisiologia da emissão
vocal, das causas das várias modificações nas qualidades perceptíveis
do som (distância ou proximidade, brilho, claridade, opacidade,
aspereza). Não exposições sobre consonância ou altura musical, o
que talvez obrigasse o autor a escolher entre as posturas conflitantes
Cynthia S. de Gusmão
60
da época. O interesse é pela voz humana e suas analogias com os
instrumentos musicais, o que faz do De audibilibus uma fonte
importante de conhecimento dos antigos instrumentos musicais
gregos.
No primeiro parágrafo da obra encontra-se uma exposição da
física da produção e da propagação do som: “É um fato que todas as
vozes e todos os sons surgem do choque entre os corpos ou do ar
colidindo com eles; não é porque o ar toma uma forma como alguns
pensam, mas porque ele se move da mesma maneira que os corpos:
por contração, expansão e compressão e como resultado dos
impactos do ar ou das cordas musicais. Pois o ar ao ser movido,
impinge sopros sucessivos ao ar próximo dele, forçando-o a mover-
se, de modo que o som viaja inalterado em qualidade até o limite da
distância que alcança o movimento do ar. O distúrbio inicia sua força
em um ponto e espalha-se por uma área mais ampla, como a brisa
que sopra dos rios e das montanhas” (Apud Barker, 1989, p.99).
Outro fragmento de Demócrito mostra uma concepção parecida:
“uma vez que o movimento teve início, é enviado longe por causa da
velocidade, pois o som surge com a condensação do ar” (Apud Hunt,
1978, p. 27). Hunt não deixa dúvidas sobre o alcance desses autores:
“temos que considerar com humildade como notadamente pouca
modernização da linguagem desses escritos antigos é necessária para
qualificá-los a ainda servir como descrições elementares admiráveis
do mecanismo físico de geração e propagação do som” (1978, p. 27-
28).
4. O experimento de Pitágoras
As primeiras investigações acerca da natureza física e dos
atributos do som aconteceram no âmbito da harmônica, a partir da
descoberta da proporcionalidade inversa entre a altura e o
Cynthia S. de Gusmão
61
comprimento de uma corda, expressa pelas razões musicais. Autores
tardios da Antiguidade buscarão inserir o fato em uma narrativa
histórica, sendo a mais comum a lenda dos martelos narrada, pela
primeira vez, por Xenócrates e reproduzida por Nicômaco de Gerasa
em seu Manual de harmônica, escrito no início do século II d.C.
24
Nicômaco conta que Pitágoras pensava como conseguir “algum
tipo de ajuda instrumental para os ouvidos tal como a visão obtém da
régua, do compasso e do transferidor e o tato, da balança e do
sistema de pesos e medidas”.
25
Enquanto caminhava absorto nesses pensamentos, Pitágoras
começou a ouvir sons que eram produzidos pelos golpes de quatro
martelos em uma forja. Percebeu (com os ouvidos) que alguns eram
belos, as consonâncias musicais de oitava, de quinta e de quarta. Ele
pesou os martelos: um pesava 12 unidades, o outro 9, o terceiro 8 e
o quarto, 6. Pitágoras associou os sons musicais consonantes à
diferença de pesos entre os martelos. Os martelos com 12 e 6 quilos,
quando golpeados juntos, produziam um intervalo musical de oitava,
os martelos com peso 9 e 6, um intervalo de quinta e os martelos
com peso 12 e 9, assim como os de 8 e 6 quilos, soavam um
intervalo de quarta. Essa sequência de números estará sempre
presente nos lculos de comentadores tardios e refere-se às médias
aritmética e harmônica, desenvolvidas pelos pitagóricos.
Pitagóras teria então combinado esses números nas seguintes
razões: 2:1 para a oitava, 3:2 para a quinta e 4:3 para a quarta. Em
seguida, pendurou em um pedaço de madeira, por cordas de
tamanhos iguais, pesos iguais aos dos martelos. Ao tangê-las,
observou as mesmas relações intervalares. Pitágoras não teria
considerado nada além do peso na produção daquelas notas; nem a
força, nem a bigorna, nem a forma dos martelos. Prosseguindo com o
24
Boécio também narra a história em Institutione musica ii, 3, citado em Bower,
2002, p.143.
25
Nicômaco, Manual de harmônica, Cap. VI, p.83.
Cynthia S. de Gusmão
62
experimento, transferiu as mesmas razões para as tensões das
cordas em um cavalete de um instrumento musical; testou-as
também em outros tipos de instrumentos musicais, de sopro e
percussão. Finalmente, chegou ao monocórdio ou cânon, um
instrumento horizontal de cordas, no qual Pitágoras pôde visualizar
geometricamente as razões do comprimento das cordas, que
concordavam com as consonâncias musicais.
26
Subtraiu 4/3 de 3/2 (já vimos que não é a subtração) para
achar a razão entre a quinta e a quarta, chegando à razão da
dissonância: 9/8, o tom inteiro produzido pela diferença entre a
quinta e a quarta. Estariam, assim, decifrados matematicamente os
principais intervalos do antigo sistema musical grego.
O experimento não deve ter sido reproduzido por aqueles que
narraram a história. Caso o fizessem, perceberiam que os fatores que
determinam o tom do som de um martelo em uma bigorna são
complexos e que a variação tonal é produzida pelo objeto percutido e
não o contrário, que gera uma diferença pouco perceptível (Hunt,
1978). Além disso, as razões matemáticas não correspondem à
relação entre a altura da nota e a quantidade de tensão. Isso será
totalmente demonstrado no século XVII. Segundo Flora Levin, nos
comentários à sua tradução do Manual de harmônica de Nicômaco, há
indícios de que Claudio Ptolomeu tenha buscado fazer a experiência e
percebido o erro, mas não desenvolveu a questão (1994, p.93). Mas,
no caso do comprimento da corda, as proporções pitagóricas estão
corretas. É bem possível que a lenda dos martelos tenha surgido num
momento posterior, dominado pela doxografia latina, quando se
percebeu que outros fatores estavam em jogo na determinação das
alturas, como pesos e tensões e, assim, foram criadas maneiras de
dar veracidade à descoberta aritmética original.
26
Em Nicômaco o nome pandoura aparece associado a esse instrumento. Ver
Nicômaco, Manual de harmônica, Cap. IV, p.61.
Cynthia S. de Gusmão
63
O único fato incontestável na história é o julgamento do ouvido
ter sido o primeiro critério para o estabelecimento das razões
numéricas, visto que elas buscam revelar consonâncias. Mas essa
evidência será descartada em favor de uma interpretação apenas
matemática.
Hipaso de Metaponte, contemporâneo de Pitágoras, teria feito
experimentos com discos de bronze de mesmo diâmetro, cuja
espessura estava na mesma relação das razões das consonâncias;
percutindo os discos era possível ouvir as consonâncias. De acordo
com Burkert: “a experiência é fisicamente correta, pois para discos
que podem vibrar livremente, o mero de vibrações é diretamente
proporcional a sua espessura. Portanto, é possível confiar que Hipaso
conhecia e tenha experimentado as razões numéricas das
consonâncias” (Apud Szabó, 1977, p.122
).
5. A persistência da concepção pitagórica
Por trás do cânone de Pitágoras havia uma ideia original: a de
um instrumento construído para a realização de um experimento
científico, e que partia de uma premissa sensorial, a consonância
musical. Os fragmentos que nos restaram dos seguidores de
Pitágoras não aprofundaram a tensão entre a sensação acústica e sua
tradução em números. Como dissemos, a corrente pitagórica
acabou caracterizando-se por abandonar o julgamento dos sentidos,
concentrando-se na interpretação de todos os fenômenos como
manifestações da matemática, mais precisamente, dos números. No
caso da música, na aritmética dos intervalos.
Por volta de 300 a.C., surge a obra A divisão do cânone,
Katatomé Kanonos, que é referida em alguns escritos da Antiguidade
como sendo de autoria de Euclides de Alexandria. Nela, o autor
recoloca a importância das relações musicais pitagóricas; contudo, de
Cynthia S. de Gusmão
64
modo bem especializado, evitando qualquer conexão com a
cosmologia. O autor busca retomar as concepções pitagóricas em um
diálogo com as ideias contemporâneas. Antes de dedicar-se às notas
musicais, faz uma breve exposição sobre a natureza do som. A
primeira frase é considerada por alguns autores como remontando ao
próprio Pitágoras: “Se houver completo repouso e imobilidade,
haverá silêncio (siópe)”. O autor prossegue: “Se há silêncio e nada se
move, nada se ouve. Se, no entanto, alguma coisa for ouvida, é
necessário haver antes percussão (plégue) e movimento” (Barbera,
1991, p. 49).
Mais adiante, as notas são definidas como uma sequência de
movimentos, que possuem partes (moirai). Se o movimento é mais
rápido, a tensão na corda é maior e o resultado é uma qualidade de
som mais agudo; ao contrário, se o movimento for rarefeito, ou em
linguagem moderna, se a frequência da vibração da corda for mais
baixa, a tensão será menor, e o som será mais grave. Sabemos que
não é possível ao olho humano perceber esses movimentos, muito
menos identificar suas partes, mas na obra elas têm um número. Isso
leva à conclusão de que, quando esses sons tiverem uma altura
precisa como uma nota musical, será possível descrever os intervalos
(diástemata) entre elas como razões numéricas. Após essa descrição
física do som, a obra parte para uma análise dos tons musicais
rigorosamente do ponto de vista matemático.
6. As relações da acústica com a harmônica
A harmônica foi a responsável por conduzir as primeiras
investigações acerca da natureza física e dos atributos do som.
A questão das consonâncias e dissonâncias foi colocada em
termos matemáticos e físicos: o que definiria as razões simples e sua
coordenação e que tipo de interação física as constituiriam? O que
Cynthia S. de Gusmão
65
estava em jogo, por exemplo, em uma relação de oitava? Havia a
necessidade de uma complementação física que mediasse os
conceitos matemáticos e a sua presença no mundo concreto. No
entanto, na Itália do século XVI essa questão resultará em uma
interação maior entre a natureza do som e os problemas musicais.
Em duas cartas que escreveu ao compositor renascentista Cipriano de
Rore, Giovanni Battista Benedetti (1530-1590) incluirá algumas
propriedades do som na sua teoria da consonância dos intervalos
musicais, começando a reunir a física acústica e a harmônica.
Cynthia S. de Gusmão
66
CAPÍTULO IV
ARISTÓXENO E O LUGAR DA AISTHESIS NA HARMÔNICA
1. Pequena nota biográfica
Na segunda metade do século IV a.C., o estudo da harmônica
sofre uma profunda transformação com as concepções de Aristóxeno
de Tarento (c. 375 c. 300 a.C.) tais como contidas na sua obra
Elementos de harmônica.
Aristóxeno nasceu em Tarento durante os anos em que vivia
Arquitas, na época, um político influente da cidade. Ele iniciou os
estudos de música com seu pai, Spintharos, amigo de Arquitas e que
compartilhava das ideias da escola pitagórica. Ainda jovem,
Aristóxeno foi para Atenas, onde passou a estudar com Xenófilo de
Cálcis, aluno de Filolau, até tornar-se um dos mais eminentes aluno
de Aristóteles, a ponto de pleitear ser o seu sucessor, o que não
ocorreu, tendo a posição sido ocupada por Teofrasto.
De acordo com a compilação enciclopédica Suda
27
, Aristóxeno
escreveu 453 livros sobre música, filosofia, história e educação. Pela
amplitude de seu pensamento musical, na Antiguidade, Aristóxeno
ficou conhecido como o mousikós.
Quatro obras de Aristóxeno abordam o tema do pitagorismo:
Sobre Pitágoras e seus seguidores, Sobre a vida pitagórica, Preceitos
pitagóricos e Vida de Arquitas. Nenhuma sobreviveu completa, mas
são encontrados fragmentos delas em autores posteriores. Esses
fragmentos são considerados valiosos para o estudo do pitagorismo
pelo fato de Aristóxeno ter vivenciado de perto o ambiente em que se
27
A Enciclopédia Suda está disponível on-line em www.stoa.org/sol.
Cynthia S. de Gusmão
67
debatiam tais ideias e por ele ter sido também um peripatético. Os
estudiosos consideram que por esse motivo seus comentários
apresentam uma visão mais próxima da realidade da escola
pitagórica do que aquela difundida pelos sucessores de Platão.
28
O
fato é que isso proporciona ainda mais autoridade às críticas que
Aristóxeno fará aos procedimentos pitagóricos aplicados à música.
Além de se dedicar às notas do los, Aristóxeno escreveu
sobre métrica e instrumentos, mas muito pouco restou desses
escritos. Sobreviveu, no entanto, um grande trecho a respeito da
rítmica, de data posterior aos Elementos de harmônica. Autores como
Gibson consideram que foi Aristóxeno quem estabeleceu a distinção
entre rítmica e métrica (2005, p. 77).
No que tange aos Elementos, vários estudiosos discutiram a
ordem dos três livros que compõem a obra, colocando em cheque a
tradição manuscrita que os agrupou dessa forma. No entanto, para
este estudo, consideraremos a ordem tradicional, estruturada em três
livros, tal como editada por Rosetta da Rios, e as referências
apresentadas serão as da catalogação feita por Meibom
29
.
2. A proposta aristoxeniana
Em Elementos de harmônica fica evidente a escolha de
Aristóxeno em favor da filosofia aristotélica, desse modo avançando e
marcando uma ruptura com suas origens pitagóricas. Aristóxeno
move a harmônica de uma perspectiva cosmológica universalista para
um quadro especializado, mais claramente técnico.
28
Ver, a esse respeito, o verbete "Pythagoreanism", de Carl Huffman. In: The
Stanford Encyclopedia of Philosophy, 2008.
29
Para um histórico detalhado das propostas de organização do livro, estrutura do
texto e origens dos manuscritos, ver Bélis, 1986, p.24-52.
Cynthia S. de Gusmão
68
Um trecho do primeiro parágrafo do Livro II dos Elementos de
harmônica que nos dá uma visão clara e precisa das mudanças
propostas pela teoria musical de Aristóxeno:
“Como um todo, entendemos a Harmônica como a teoria de todos
os mélos e de como a voz estabelece, de maneira natural, os
intervalos, tensionando-se ou relaxando-se. Para nós, o movimento
da voz ocorre de acordo com a natureza (peri phíseos) e os
intervalos não se estabelecem ao acaso.
“Acerca dessas coisas, tentamos apontar demonstrações de acordo
com os fenômenos, não como os antecessores, que divagavam e
desviavam-se da percepção sensível (aisthésis ) como se ela não
fosse precisa, maquinando causas no âmbito do intelecto (noétas
aitías) e declarando ser nas razões (logous) de alguns números e na
velocidade de outros que surgem o grave e o agudo, elucubrando
discursos confusos e contrários aos fenômenos. Eles dão respostas
oraculares sem causa nem demonstração em relação a cada coisa, e
nem bem enumeram os fenômenos. Nós buscamos adotar os
princípios que são evidentes aos que conhecem a sica e
demonstrar o que procede a partir deles.” (Meibom, 32, 6-22)
Nesse parágrafo, estão contidas as críticas às teorias
matemáticas e acústicas que, para Aristóxeno, não deveriam fazer
parte da harmônica. Ao mesmo tempo, ele define seus princípios a
partir da natureza, de acordo com o modelo de ciência natural
preconizado por Aristóteles.
Aristóxeno não vai procurar resolver os impasses da teoria
pitagórica, sua ciência será construída sobre uma nova base. Para
ele, a natureza do mélos nada tem a ver com a produção, emissão,
propagação ou audição do som. O movimento da voz, sua tensão e
seu repouso, irá ocorrer em um espaço especificamente musical e
geométrico.
Cynthia S. de Gusmão
69
O primeiro ponto analisado em Elementos de harmônica é a
voz, definida segundo o lugar que preenche, o topos. A voz falada é
diferenciada da voz cantada, segundo a continuidade ou
descontinuidade dos tons. Ou seja, a voz falada é contínua e a
cantada move-se de maneira descontínua, parando em tons
determinados. Fica claro que não é a propagação do som, ou seu
desempenho sico que vai importar para o estudo de Aristóxeno. A
sua preocupação será com a delimitação de um espaço específico do
acontecer musical, incorporando a percepção do ouvinte.
3. A organização do estudo
Aristóxeno define a harmônica como uma ciência que tem como
objeto o mélos hermosménos, ou seja, o mélos organizado,
harmonioso, articulado, formoso. Como dissemos na Introdução
desta dissertação, para Aristóxeno, esse mélos refere-se à parte tonal
da música.
A harmônica deve proceder de modo organizado para realizar
suas demonstrações. Aristóxeno um exemplo de como isso deve
ser feito e, como é característico de seu estilo, apresenta um retrato
em negativo do processo
e um quadro vivo das aulas de Platão e
Aristóteles:
“É melhor haver exposto, de início uniformemente, o modo de
condução do estudo a fim de que, conhecendo de antemão o
caminho que trilharemos e sabendo em qual parte dele estamos, o
percorramos mais facilmente, e não ocorra de captarmos
erroneamente o assunto.
“Isso acontecia tal como Aristóteles sempre narrava a respeito do
que havia se passado com a maioria dos que ouviam a palestra
sobre o bem de Platão. Cada um vinha pensando captar algo acerca
das coisas consideradas como o bem das pessoas, como, por
Cynthia S. de Gusmão
70
exemplo, riqueza, saúde, força, em suma, alguma felicidade total
extraordinária.
“E, quando as palavras iam surgindo, sobre assuntos matemáticos,
aritméticos, geométricos e astrológicos e mais a conclusão final de
que o bem é uma unidade, isso parecia ser algo tão contrário à
expectativa que alguns negligenciavam o assunto, outros
censuravam. E por qual motivo? Pelo fato de não saberem com
antecedência a natureza do objeto tratado, precipitavam-se atraídos
pelo título da palestra, à moda dos sofistas, e ficavam todos
boquiabertos.
“Mas se alguém, penso eu, tivesse estabelecido de antemão o todo,
o aspirante à palestra poderia abandoná-la ou, se gostasse, ficaria
com base no que foi proposto. O próprio Aristóteles por isso mesmo
fazia um prólogo, para os que tinham intenção de ouvi-lo acerca das
coisas que versava o estudo e o que ele era.
“Portanto, a nós parece melhor, tal como dissemos no princípio,
expor antecipadamente o modo de condução do estudo” (Meibom,
30.15 – 31.13).
Aristóxeno quer organizar o conhecimento, decompor o
conjunto, distinguir suas partes. Trata-se de obter uma visão clara,
buscando os pontos fixos que servirão de pilastras para a construção
do seu edifício harmônico. Contudo, essa coesão, como ele mesmo já
disse, não deve vir do aparato pitagórico. Aristóxeno terá de buscar
outras soluções para erigir essa nova estrutura da harmônica.
A primeira tentativa será feita com as ideias de continuidade
(sunékes) e sucessão (hékses). As duas noções estão presentes de
modo bastante complexo na Física e na Metafísica de Aristóteles
(Apud Bélis, 1986, p.153-154). A hékses ocorre quando os termos
sucedem-se um após o outro em uma ordem determinada, já a
sunékes pressupõe uma inclinação entre as partes, que se tocam
como elos em uma corrente, e também segundo uma ordem.
Cynthia S. de Gusmão
71
Aristóxeno explica a sunékes na harmônica a partir do senso
comum. Ele a compara com as letras que ordenamos no ato de falar.
Pela “lei natural” colocamos em cada sílaba, primeiro uma letra,
depois outra e assim vai. Igualmente, na melodia, a voz ordena os
intervalos e as notas de acordo com a continuidade.
A escolha das duas noções, de novo, enfatiza a ordem natural e
necessária da melodia. Mais adiante, Aristóxeno reforça que não
devemos ver a origem da continuidade e da sucessão na semelhança
ou dessemelhança dos intervalos sucessivos, mas na natureza da
melodia e perguntar-nos qual intervalo a voz coloca em sequência de
maneira natural.
Na busca por essa coesão do sistema, Aristóxeno desdobrará
essas duas noções no conceito de dynamis. Na dynamis, cada nota é
definida pelo seu contexto ou, em termos modernos, pela sua função.
A medida de um intervalo ou de um conjunto deles pode ser
diferente, mas suas funções iguais. Inversamente, intervalos de
mesmo tamanho podem ser ouvidos de modo diferente, pois suas
funções diferem.
Na organização harmônica da música moderna, notas iguais e
principalmente acordes conjuntos de três notas ou mais possuem
essa potencialidade de desempenhar papéis diferentes, às vezes
dentro de uma mesma música. Fazendo uma associação com as cores
é fácil perceber que um amarelo “soa” de maneira diferente ao lado
de um azul ou de um vermelho.
Esse aspecto relacional que Aristóxeno introduz na teoria
musical pode também estar na origem da sua rejeição à existência de
um ethos próprio de cada modo grego. Com a noção de dynamis,
Aristóxeno à percepção o papel de amalgamadora de seu sistema.
A percepção de uma estrutura é mais importante que sua medida.
A representação da música pela matemática é rejeitada porque
ela não ilumina as estruturas; pelo contrário, obscurece o que foi
Cynthia S. de Gusmão
72
percebido. Referindo-se a isso, ele diz: “é evidente que nenhum
desses procedimentos corresponde ao modo de representação da
percepção sensível, porque essa distingue o gênero enarmônico e o
cromático, considerando a semelhança de uma certa forma, não a
grandeza de um certo intervalo” (Meibom, 48, 14-17).
4. A aisthésis
A noção de dynamis está encrustada no princípio aristoxeniano
de aisthésis e na relação com a música. Ele não deixa dúvidas sobre
o papel do sentido da audição no estudo da harmônica: “Para o
músico, a exatidão da percepção sensível está quase na ordem de um
princípio. Tanto é verdade que é impossível, quando não se tem o
ouvido treinado, falar corretamente sobre aquilo que não se percebe”
Meibom (33, 21-26).
Aristóxeno acusa de allotrioloyountes, ou seja, argumentos
estranhos, as soluções apresentadas por seus antecessores, pois elas
são contrárias aos fenômenos, ou seja, àquilo que se apresenta aos
sentidos. A ideia de uma oitava ser representada pela razão 2:1 é
completamente estranha a essa ciência que Aristóxeno está buscando
construir, para não dizer totalmente inútil. Aqui, a oitava é aquela
consonância característica que ouvimos. Os discursos são confusos
porque não tomam como base a aisthésis .
Os princípios da harmônica tal como preconizados na obra de
Aristóxeno devem ser evidentes para aqueles experientes em música.
O autor Gaudêncio, da Antiguidade tardia (século III ou IV d.C.),
reuniu em sua Harmonica introductio aspectos das teorias
pitagóricas. Na abertura da obra, ele escreve: “aquele que não ouve
uma nota claramente e não exercitou a sua audição e veio ouvir estas
palavras, deixe-o ir embora e fechar a porta para estes sons, pois
seus ouvidos, embora presentes, serão interrompidos por um sentido
Cynthia S. de Gusmão
73
que não conhece, antes destas palavras. Ao iniciarmos, falemos na
voz daqueles treinados de maneira precisa pela experiência” (Apud
Mathiesen, 1999, p.500).
O objetivo do exercício do ouvido é o aperfeiçoamento da
prática, pois a harmônica de Aristóxeno era uma tékne destinada aos
músicos. No que diz respeito à importância dada ao ouvido treinado,
Bélis comenta: “Aristóxeno é, sem dúvida, um dos primeiros a
abordar esse tema, e não sob forma de recomendação pragmática,
mas dentro de uma argumentação filosófica” (Bélis, 1986, p. 205).
Como diz Aristóxeno: “É necessário acostumar-se a julgar cada coisa
com precisão; de fato, não podemos dizer, como se faz a propósito
das figuras geométricas: ‘seja esta linha reta’; não! Devemos
abandonar esse hábito ao falarmos dos intervalos. Pois o geômetra
não faz uso da faculdade da sensação (tei tens aisthéseos dynamei) e
nem acostuma a sua visão a julgar bem ou mal, à reta, ao círculo, ou
a outra destas figuras, isto sendo mais da competência do
carpinteiro, do que trabalha no torno, ou outros técnicos que se
exercitam nessas coisas” (Meibom, 33,10-21).
5. O diálogo com Aristóteles
O modo aristotélico de conceber o som e a escuta abriu novas
perspectivas para a harmônica. Aristóteles ensaiou penetrar em seus
domínios, mas foi claro ao dizer que não tinha pretensões à música,
deixando essa função para alguém com mais competência. Ele fez
uso dos instrumentos musicais como recurso de metáfora em sua
Metafísica (1046a), chamando a atenção para uma relação dialética
entre duas partes, como, por exemplo, entre o instrumentista e o
instrumento, o primeiro apresentando uma dynamis tou poiein, o
segundo, uma dynamis tou páskein.
Cynthia S. de Gusmão
74
Zingano, na análise da doutrina da sensação no De anima, diz
que Aristóteles analisa a percepção como “uma atividade da alma
(metá tou somatos) vinculada ao corpo”. E segue: “Embora a
percepção não possa ocorrer sem certas alterações de certos órgãos,
em função de um objeto específico, a percepção de algo não é
unicamente (ou idêntica a) estas alterações. Aristóteles assinala com
frequência que a percepção é ‘uma certa afecção’, páskein ti,
querendo dizer com isto que não se reduz ou não é somente esta
afecção. Ela é, e isto fundamentalmente, uma alteração ou afecção
dos órgãos sensitivos em que se realiza uma faculdade ou dynamis
específica da alma, através da qual o sujeito apreende (e é
consciente desta apreensão) a forma sensível dos objetos” (Zingano,
1998, p. 54).
Aristóxeno talvez tenha buscado elucidar esse processo a partir
da aplicação da dynamis à música, concebida verdadeiramente como
um aesthetón, um objeto percebido pelo ouvido. No que diz respeito
à anatomia e à fisiologia do ouvido, o conhecimento de Aristóteles era
bastante avançado, como mostra a sua descrição no De anima (420
a, 13-16), na qual se percebe que o filósofo conhecia bem o labirinto
e a cóclea.
O ouvido que é afetado, movido pelo som musical, é o princípio
da Harmônica de Aristóxeno, mas há uma intervenção de outra
instância para que se complete o processo da percepção musical: “a
teoria refere-se a todos os mélos da música, que ocorrem na voz e
nos instrumentos. O estudo encaminha-se de modo duplo: em
direção à escuta e à inteligência. Pela escuta, (akóen), distinguimos
as magnitudes (meguéthe) dos intervalos; com o intelecto, (diánoia),
contemplamos as suas funções (dynamei)
(
Meibom 33, 2-6).
A aisthésis identifica os intervalos, e a memória (mnéme) retém
as impressões, a diánoia capta a configuração das notas e das
estruturas uma em relação às outras, ou seja, a sua dynamis.
Cynthia S. de Gusmão
75
Portanto, esse é um conceito-chave da teoria de Aristóxeno, que deve
advir das discussões sobre a natureza da percepção em Aristóteles.
Esse conceito está no fundamento da diferença entre a filosofia
aristoxeniana e a pitagórica. Por exemplo, Aristóxeno vai ter
necessidade de definir um métron, uma unidade de medida, para a
harmônica. Aristóteles havia sugerido como métron da música a
diésis de um quarto de tom, por ser o menor intervalo da música
grega antiga (Metafísica, 1053a,10a-32b). Aristóxeno, no entanto, vai
estabelecer o tom como sua unidade de medida. Esse tom será
definido a partir da diferença entre a quarta e a quinta, mas essa
diferença não advém da subtração, da divisão ou de qualquer outra
operação aritmética. A diferença que produz o tom, para Aristóxeno,
é aquela que ouvimos claramente entre a quarta e a quinta. O fato de
os intervalos serem duas consonâncias faz com que eles sejam mais
facilmente reconhecidos e julgados pelo ouvido treinado.
6. O espaço geométrico do mélos
A dynamis permite uma divisão do espaço musical em que a
voz movimenta-se de maneira geométrica. E esse espaço é muito
mais flexível que o dos cálculos aritméticos pitagóricos.
Como havíamos dito, Aristóxeno abre seu tratado enfatizando
que a harmônica é apenas um dos ramos da ciência musical (los
epistéme). Outro aspecto é o ritmo. A voz, para realizar o mélos,
precisará de dois movimentos: katá tón krónon, de acordo com o
tempo, e katá tón tópon, de acordo com o lugar. A rítmica ocupa-se
do primeiro movimento, a harmônica, do segundo. Os dois
movimentos, temporal e local, desenvolvem-se no mélos até o
silêncio. Contudo, esse movimento da voz não ocorre por acaso, mas
pela necessidade natural que rege los hermosménon, a melodia
bem articulada ou formosa ou eficiente.
Cynthia S. de Gusmão
76
A concepção de necessidade da natureza está em perfeita
consonância com a filosofia aristotélica, que encontramos, por
exemplo, no tratado Sobre os céus: “O deus e a natureza não fazem
nada inutilmente” (Apud lis, 1986, p. 140). Há uma diferença
fundamental entre essa necessidade de ordem aristotélica e o kósmos
matemático pitagórico: o céu de Aristóteles é o céu que se apresenta
aos sentidos, assim como a música de Aristóxeno.
7. As partes da harmônica
A natureza dispõe, de acordo com a necessidade do mélos
hermosmenos, os intervalos musicais em uma ordem hierárquica
(táksis), estabelecendo notas fixas e móveis, tal como era dado no
sistema musical grego. Diz o mousikós: “tendo a música esta
natureza, é necessário no que se refere ao mélos hermosmenos
habituar conjuntamente a inteligência e a sensação a julgar bem o
que permanece e o que se movimenta” (Meibom, 34,19-21). E
propõe a classificação da harmônica em sete categorias.
A primeira parte é formada pelos gêneros, que percebemos a
partir das notas que se entrelaçam, fixas, e das que se movimentam.
São eles: diatônico, cromático e enarmônico. Em seguida, vêm os
intervalos, que se dividem em consonantes (quarta, quinta, oitava e
seus compostos) e os dissonantes. Aqui, Aristóxeno, por rejeitar as
razões numéricas em favor de uma divisão em partes, ou seja,
geométrica da escala, propõe: “as partes do tom que se seguem (a
partir da sua diferença entre a quarta e a quinta) são: a metade, dita
semi-tom, a terça parte, dita diésis cromática; a quarta parte, dita
mínima diésis enarmônica”
(
Meibom, 46, 1-5).
Desse modo, vemos que Aristóxeno foi um dos primeiros
teóricos a defender uma distância homogênea entre os intervalos,
posição precursora do temperamento igual, afinação que voltará a ser
Cynthia S. de Gusmão
77
debatida no século XVI, particularmente nos escritos de Vincenzo
Galilei, que teve acesso à primeira tradução dos Elementos de
harmônica de Aristóxeno.
30
Na verdade, Aristóxeno não desenvolve muito a questão do
meio-tom, mas ela será retomada por autores como Aristides
Quintilianus, que viveu entre os séculos II e IV d.C. (Mathiesen,
1999, p.529).
Na sequência da classificação das partes da harmônica, vêm as
notas e depois as escalas quantas o, de que natureza e de quais
intervalos e notas são compostas.
A quinta parte é constituída das tonalidades ou trópoi. As
escalas eram oito, mas na prática os músicos e cantores não se
valiam tanto dela quanto dos trópoi, ou transposições das escalas a
outros tons. Aqui Aristóxeno critica um outro grupo de músicos, os
harmonicistas, que não levavam em conta nenhuma sistematização:
“a doutrina dos harmonicistas sobre as tonalidades é análoga ao
modo como se contam os dias dos meses: assim por exemplo,
quando para os coríntios são dez, para os atenienses são cinco e
ainda para outros oito”
(
Meibom, 37, 7-12). É possível que Aristóxeno
faça referência aos harmonicistas porque as tonalidades eram muito
utilizadas por eles na prática musical.
31
A sexta parte é a modulação
e, por fim, a composição melódica, o objetivo final da harmônica.
Após definir o escopo da harmônica, Aristóxeno enumera as
partes que não fazem parte dessa ciência. Por exemplo, a notação
musical e a teoria do aulos, por suas limitações. Apesar de haver
referências de que o tarentino tenha escrito uma obra dedicada ao
aulos, ele considera que não devemos basear-nos em um
instrumento para conhecer as leis naturais do mélos, pois a sua
30
A primeira tradução dos Elementos de harmônica de Aristóxeno foi editada em
latim em Veneza, no ano de 1562. A segunda, em italiano, é de 1593, e foi editada
em Bolonha.
31
Ver, a esse respeito, Rios, 1954, p.54, nota 1.
Cynthia S. de Gusmão
78
ordem não depende de nenhuma propriedade dos instrumentos: “De
fato, a essência e a ordem, que se mostram no
mélos hermosménon,
não dependem de nenhuma propriedade dos instrumentos” (Meibom,
41, 20-22).
8. Ressonâncias de Elementos de harmônica
Os teóricos subsequentes da Antiguidade como Cleônides,
Gaudêncio, Aristides Quintiliano vão adotar o estudo de Aristóxeno
como fonte de conhecimento da música grega antiga, mas, com
exceção de Ptolomeu
32
, vão deixar de lado a sua filosofia. Quando ela
aparece muitas vezes é mal interpretada ressaltando apenas a sua
ênfase na sensação. Contudo, como bem observa Bélis: “Aristóxeno
está tão longe de negligenciar o exercício do pensamento (apesar dos
ditos de Boécio), assim como de relegar um lugar modesto à
sensação. E por duas razões: primeiro, ele acredita ser necessário
que em cada coisa haja uma análise teórica ou uma definição pela
sensação, mas se a impressão auditiva e a teoria estão em
contradição, a teoria deve ceder” (1986, p. 210). Essa postura está
em acordo com o princípio empirista de Aristóteles: se a experiência
se opõe à teoria, é preciso modificar a teoria.
Boécio, nas Institutione musicae, afirma que Aristóxeno não
usa a razão e concede à sensação todo o crédito (Apud Bélis, 1986,
p.227 nota 65). Talvez em parte devido ao predomínio da
interpretação de Boécio, no século XVI os escritos desse autor
maior serão estudados abertamente e com a merecida atenção.
A divisão da Harmônica em sete partes será o fundamento de
um programa de musicologia e de ensino para as próximas gerações.
32
Ptolomeu buscará contemplar a percepção musical na sua Harmônica, mantendo-
se, no entanto, fiel às razões matemáticas pitagóricas.
Cynthia S. de Gusmão
79
Por isso, a divisão em partes é de cunho lógico e pedagógico, o que
não significa que as partes sejam anteriores ao todo. O mélos
hermosménon não será constituído da soma dos elementos, mas,
antes de tudo, será uma síntese. Como comenta lis a respeito da
physique synthesis, o objetivo final da harmônica, “enquanto fato da
natureza, de uma necessidade absoluta e de uma perfeição absoluta,
tem a mesma importância dentro do sistema de Aristóxeno que a
noção de harmonia para os pitagóricos” (1986, p. 150).
A harmônica de Aristóxeno será um divisor de águas na teoria
musical da Antiguidade. Suas críticas às influentes concepções
pitagóricas colocaram em cheque alguns pressupostos teóricos da
ciência daquele tempo. Mesmo a posição de Aristóteles, no que dizia
respeito à contestação do pitagorismo limitava-se à metafísica e à
astronomia (Metafísica, 986a) no que tange às razões pitagóricas, ele
estava de acordo que elas fossem as causas das consonâncias. É
interessante que Aristóxeno em nenhum momento questiona as
causas das consonâncias, ele apenas afirma que não é disso que trata
a ciência particular da harmônica.
Essa ciência independente exclui de suas análises os
instrumentos, a performance, a escrita e as razões numéricas,
dizendo que a percepção da estrutura musical é mais importante que
sua medida. Ao invés de falar em comprimento da corda, refere-se a
partes da escala, insinuando uma contaminação da música, com seus
números discretos, pela ciência das magnitudes contínuas e, por sua
vez, pela ideia de infinito e incomensurável. E o que era mais
ameaçador: clamava por um fundamento na natureza. Em uma época
em que a música era vista como a própria afinação do mundo, isso
deve ter tido um impacto considerável.
A obra de Aristóxeno irá forçar uma especialização do discurso
pitagórico e, no final do século III a.C., surge o texto Sectio canonis
(A divisão do cânone). Nele, não nenhuma referência à
Cynthia S. de Gusmão
80
cosmologia, é um discurso objetivo que busca demonstrar a evidência
da perspectiva pitagórica.
Cynthia S. de Gusmão
81
CAPÍTULO V
A DIVISÃO IDEAL DO CÂNONE
1. O rigor do Sectio canonis
A obra A divisão do cânone foi escrita por volta de 300 a.C. e
evoluiu até sua forma final, que chegou à Renascença, entre os
séculos IV e VI d.C. Nas duas versões existentes em grego, é referida
como sendo de autoria de Euclides: uma forma mais longa, nos
manuscritos que acompanham a Harmonica introductio de Cleônides,
e outra mais breve no comentário de Porfírio à Harmônica de
Ptolomeu, do século III d.C. Uma versão mais curta, em latim, está
presente no Institutione musica de Boécio, que não atribui a obra a
ninguém.
Os pitagóricos buscavam uma afinação musical ideal que
complementasse a sua filosofia dos números e criaram um
instrumento para esse fim: o monocórdio, ou cânone, no qual era
possível visualizar a proporcionalidade inversa entre a altura musical
e a corda vibrante como segmentos em uma régua. Por trás do
cânone havia uma ideia original: a de uma ferramenta construída
para a realização de um experimento científico, que partia de um fato
sensorial, a percepção musical. No monocórdio, era possível esquecer
totalmente outros fatores ligados à produção do som musical. Isolar
um fato, apenas a altura, como em um espaço ideal.
Na sua forma final, A divisão do cânone divide-se em quatro
partes: uma introdução, nove proposições puramente matemáticas,
sem nenhuma referência musical, os corolários musicais e um guia
para a localização das notas no cânone. Na Introdução, o autor
Cynthia S. de Gusmão
82
apresenta a concepção acústica pitagórica que já expusemos no
capítulo das teorias acústicas da Antiguidade.
No final da Introdução, com a exposição das causas físicas do
som musical, o autor faz uma classificação das razões em múltiplas,
superparticulares e superpatientes. Essa classificação é importante,
pois levará à demonstração de que apenas as razões múltiplas e
superparticulares podem ser consonantes. As ltiplas (mn:n)
referem-se às oitavas e as superparticulares (n+1:n) às quartas e
quintas. As razões musicais podiam ser demonstradas nas distâncias
(intervalos) entre dois pontos numerados no cânone, mas na obra
elas são demonstradas por segmentos de reta como em um
instrumento multicordas. Existem, no entanto, dúvidas sobre a data
em que esses diagramas tenham sido feitos (Barbera, 1991).
As primeiras nove proposições expõem teoremas concernentes
às razões entre os intervalos, sem fazer nenhuma referência à
música, mas fica claro que sua função é preparar o caminho para as
concepções musicais que aparecerão a partir da proposição 10,
quando será traduzido em linguagem matemática aquilo que é
percebido empiricamente pela audição.
Na proposição 16, no entanto, a aritmética sobrepõe-se aos
fatos musicais e determina a impossibilidade da divisão do tom em
dois ou mais intervalos musicais. Essa proposição está conectada à
proposição 3: “em uma razão superparticular não existe número,
nem um, nem mais de um que o divida proporcionalmente”. Essa
prova havia sido apresentada por Arquitas, ou seja, se não um
termo médio entre dois de uma razão epimórica, não é possível
dividir o tom (9:8). Como dissemos, esse cálculo levaria a um
número irracional, ou seja, não redutível a uma razão.
Se até este ponto poderíamos ter dúvida se estávamos falando
de intervalos em termos geométricos ou aritméticos, agora tudo
converge para a última opção, ecoando a tonalidade pitagórica. Ou
Cynthia S. de Gusmão
83
seja, apesar dos comprimentos visíveis serem transformados em
segmentos de reta, à aritmética é concedida uma posição principal.
Em uma oitava, é possível perceber que a quinta é maior que a
quarta auditivamente, mas não apreendemos sensivelmente que a
diferença entre elas é de 9:8, nem que a quarta é 4:3 e a quinta 3:2.
Cabia à aritmética desvelar essas relações.
As duas proposições finais de A divisão do cânone são um
método para a localização das notas no instrumento, apenas no
gênero diatônico.
Apesar do caráter teórico da obra, A divisão do cânone é de
uma época em que a matemática pitagórica era o modelo de ciência
ainda em uso e tinha aplicações práticas bem determinadas.
2. O apogeu da ciência pitagórica
É conhecida a adoração e o entusiasmo que os gregos tinham
pelo teatro. Como as representações eram feitas ao ar livre, havia
uma preocupação especial com a construção dos anfiteatros, que
deveriam abrigar milhares de espectadores. Em geral, eles eram
construídos ao longo de uma colina, com uma inclinação de mais ou
menos 45 graus com o auditório fazendo um semicírculo em torno do
espaço de performance.
Um dos teatros mais famosos é o de Epidauros, construído
dentro do santuário de Asclepius, o deus da saúde e da medicina,
entre 330-320 a.C. É conhecida a eficiência acústica do seu espaço,
seja quanto à audibilidade ou à compreensão da voz solista ou em
coro, seja para a audição de um único instrumento, como era o caso
das representações teatrais gregas, que utilizavam apenas o aulos. O
teatro de Epidauro acomoda 14.000 pessoas e seu desenho faz com
que todas elas ouçam e vejam com perfeição. Talvez porque suas
Cynthia S. de Gusmão
84
proporções sejam calculadas a partir de uma unidade de medida
relacionada ao corpo humano, o cúbito.
De acordo com o cenógrafo grego Vovolis (2000, p.79), a
construção é feita com base nas proporções matemáticas tal como
desenvolvidas pela escola pitagórica. Por exemplo, a relação entre o
número de fileiras de assentos, acima (34) e abaixo (21) do corredor
central e o conjunto total forma uma proporção áurea 55:34::34:21,
que, como vimos é a proporção em que o todo está para a parte
maior, assim como esta última está para o todo
(Proposição VI.36 de
Euclides, Os Elementos). Por fim, o plano horizontal da orquestra está
baseado no pentagrama, figura que representava saúde para os
pitagóricos.
Vovolis afirma que também o arquiteto Vitruvius, do século I
d.C., propunha a colocação de vasos de bronze ou argila nas laterais
dos teatros para aperfeiçoar a qualidade de timbre da voz. Os
artefatos deveriam estar em proporções matemáticas entre si,
levando em conta o tamanho do teatro
Esse modelo em que a harmônica e a natureza considerando
o ser humano como parte dela estão em uma relação de
comensurabilidade, ou de proporção, manter-se-á no mundo grego,
permanecerá bem vivo na Idade Média e alcançará a Renascença,
com outras ramificações tanto na arte quanto na ciência.
Cynthia S. de Gusmão
85
CONSIDERAÇÕES FINAIS
As razões numéricas musicais, tal como elaboradas pela escola
pitagórica, tiveram um papel importante no desenvolvimento inicial
da ciência grega. os princípios aristoxenianos darão impulso à
tékne musical, no sentido aristotélico do termo, a capacidade de
fabricar ou fazer algo com conhecimento dos princípios envolvidos.
Essa eficiência da arte musical promovida por Aristóxeno
insere-se no quadro de uma das concepções gregas de kalós: o
critério estético é o da obra bem feita. Aristóxeno não se refere a
nenhuma função social para a música, a sua filosofia volta-se toda
para a qualidade de realização do mélos hermosménon, de acordo
com a sua própria natureza.
Essa ligação primeira da música com a natureza está presente
tanto na filosofia de Aristóxeno, como herdeiro de Aristóteles, quanto
na de Pitágoras. Na obra de arte, há uma reorganização das coisas tal
como dispostas na natureza. Mas no termo kósmos, cujo significado
primeiro é ordem, está impressa uma percepção de que esse sentido
estético está na natureza e surge da sua contemplação. Já na palavra
harmonia, o sentido de que o prazer estético pode surgir da
reciprocidade dos elementos, ou seja, a dissonância é integrada no
todo harmônico consonante.
Que a religiosidade mágica pitagórica seja o ponto de partida
do processo de racionalização da música ocidental pode parecer
paradoxal, mas as escolhas feitas no desenvolvimento dessa arte-
ciência são bastante coerentes com as construções poéticas e
científicas de seus empreendedores.
Cabe aqui sublinhar o papel fundamental da analogia como
procedimento epistemológico, em especial no pensamento pré-
socrático. Esse aspecto é explorado em profundidade por Abdounour,
que enfatiza como “os pitagóricos contribuíram fortemente para o
Cynthia S. de Gusmão
86
desenvolvimento categorial dessa forma de comparação” (Abdounour,
1999, p.116) dando a ele um caráter matemático. Para o autor, o
pensamento moderno supervaloriza o pensamento lógico-formal em
detrimento do analógico.
No século das Luzes, uma troca de ênfase do objeto para o
sujeito. Um exemplo no âmbito da estética está no texto Standard of
taste, do filósofo escocês David Hume (1711-1776): “O belo não é
uma qualidade intrínseca aos objetos; ele existe dentro dos espíritos
que os contempla, e cada espírito percebe uma beleza diferente”
(Apud Chouillet, 1974, p. 65). Esse pensamento digno de um
Protágoras, é contraposto na Antiguidade grega a uma teoria da
beleza embasada em um substrato ontológico. Mas, de qualquer
modo, é no sujeito que acontecerá a ação da aisthésis , a partir da
qual ocorre a distinção entre a consonância e a dissonância.
Os pensamentos subjacentes às duas correntes aristoxeniana
e pitagórica – participarão ativamente da história da música no
Ocidente. A geometria musical de Aristóxeno será importante para o
desenvolvimento da arte musical, entre outras coisas, por estar em
sintonia com uma posição precursora do temperamento igual, por sua
vez, responsável pelo desenvolvimento da harmonia e da tonalidade.
Mas a supremacia da melodia defendida pelos novos teóricos dos
séculos XVI, que conclamavam ideias aristoxenianas, foi possível
por causa do desenvolvimento dos meios advindos do progresso dos
questionamentos iniciados pelos pitagóricos.
A pergunta pitagórica rechaçada por Aristóxeno, que não se
interessava pela acústica musical – sobre a causa primeira dos
intervalos continuou ressoando e será essa mesma questão que
Galileu se fará em 1638. A resposta não utilizará os procedimentos da
aritmética pitagórica e, tampouco, da lógica das abordagens
qualitativas aristotélicas. Galileu marca o início da sica da música ao
pensar o fenômeno da altura como frequência de vibrações e
Cynthia S. de Gusmão
87
impactos no mpano humano, ideia que levaria logo mais ao
entendimento do fenômeno da ressonância e da existência dos
harmônicos, sons parciais, na composição de um tom musical.
A música seguirá tendo papel preponderante na trajetória dos
experimentos acústicos. Mas a realização completa do temperamento
será possível devido a um procedimento matemático, os
logaritmos.
Quase quinhentos anos depois da morte de Aristóxeno, em
meados do século II d.C., o astrônomo, matemático e geógrafo
Cláudio Ptolomeu (100-179 d.C.) escreve a obra Harmônica em três
livros nos quais expõe toda a teoria musical da Antiguidade, amplia
significativamente os lculos numéricos pitagóricos e busca
incorporar alguns aspectos da filosofia aristoxeniana. Para Ptolomeu,
a aritmética e a geometria são “instrumentos de autoridade
indiscutível”, empregados pela astronomia e pela harmônica “para
descobrir a quantidade e a qualidade dos movimentos primários”. A
ciência dos astros e a musical são “primas, nascidas das irmãs visão
e audição, e educadas pela aritmética e a geometria
.
(Ptolomeu, 94,
13-20, apud Barker, 2000, p 6)
Aristides Quintiliano (séculos III e IV d.C.) em seu De musica,
irá reunir considerações musicais, filosóficas, médicas e gramaticais,
com forte influência neoplatônica, tal como o Manual de harmônica,
do matemático Nicômaco de Gerasa (II d. C.), que também se insere
nessa tradição.
Boécio (480-525/26) encerra os primeiros mil anos de
especulação teórica da música, fazendo a ponte para a Alta Idade
Média. Na introdução de sua obra Institutione arithmetica, o autor
romano define um programa educacional para os estudantes das
artes liberais no qual deveriam estar presentes as quatro ciências
matemáticas: a astronomia, a aritmética, a geometria e a música. Ele
chamou a esse conjunto de quadrivium: trata-se do conjunto de
Cynthia S. de Gusmão
88
disciplinas que deveriam levar o ser humano ao conhecimento das
essências imutáveis na natureza. Para o filósofo cristão, as ciências
do quadrivium apareciam na seção do estudo dos seres naturais,
também chamado de fisiologia ou física. Como estudioso e tradutor
dos escritos lógicos de Aristóteles, o autor distinguia a categoria de
quantidade em dois gêneros: discreto e contínuo. Na quantidade
discreta, a espécie é o número; e a aritmética e a música são as
disciplinas matemáticas que lidam com as quantidades discretas, pois
a primeira trabalha com o número em si mesmo e a outra, com as
relações entre os números (razões e proporções). As outras duas
ciências, a geometria e a astronomia, lidam com as quantidades
contínuas, as magnitudes geométricas ligadas ao movimento e ao
repouso. Suas espécies são a forma imóvel (geometria) ou móvel
(astronomia). Uma magnitude pode ser infinitamente dividida, mas a
unidade, a origem da quantidade discreta, é indivisível.
Os eruditos concentrados no império de Carlos Magno, na
segunda metade do século VIII, seguiram estudando a música como
disciplina científica e as anotações nos manuscritos das obras
revelam uma verdadeira obsessão com inumeráveis cálculos de
razões matemáticas. Em 814, com a dissolução do império carolíngio,
essas obras dispersaram-se pelos mosteiros e caíram nas mãos dos
religiosos, que deram início à diluição das fronteiras entre a teoria e a
prática musical. Os monges passaram a dominar os escritos teóricos
mas também a prática musical, de que necessitavam para a rotina
diária de entoação dos cantos ritualísticos. Entre os tratados musicais
dessa época está a Epistola de armonica institutione, do religioso
alemão Regino de Prum (c.842-915), que reúne a matemática
musical da época com um tonário, um livro para o estudo sistemático
dos modos utilizados nos cantos.
No século XII, em cidades prósperas, surgiram as escolas
catedrais, nas quais era incentivado o estudo das artes liberais. A
Cynthia S. de Gusmão
89
escola de Chartres ficará conhecida por cultivar as disciplinas do
quadrivium boeciano. Ali eram lidos os fragmentos (17a-53c) do
Timeu de Platão, conhecidos através dos comentários do escritor do
século IV, Calcídio. Neles estava a passagem em que Platão descreve
a criação da alma do mundo com base na escala musical pitagórica.
Segundo Alain de Libera, os chartrenses, apesar de não conhecerem
nada de Platão além desse fragmento, davam ao autor “um crédito
tanto mais intenso quanto mais a sua obra parecia destinada a selar
o acordo entre a ciência sagrada, a matemática e os saberes
naturais” (2004, p.314). Na mesma época, em Paris, Hugo de São
Vítor expunha a classificação em quatro partes de sua filosofia:
teórica, prática, mecânica e lógica. A música mantinha-se na parte
teórica, como uma das quatro matemáticas, aquelas que deveriam
tratar das formas invisíveis (no caso da música, inaudíveis) das
coisas visíveis (audíveis).
Com o desenvolvimento do humanismo na Itália, no início do
século XV, assuntos e práticas relacionados ao estudo das
humanidades, como a retórica e a poesia, foram penetrando nas
reflexões e nos escritos sobre a música, afastando-a de sua estreita
vinculação às matemáticas. No século XVI, essas ideias adentraram a
obra dos compositores madrigalistas, em geral flamencos, que
vinham para a Itália em busca de trabalho. Um deles foi Adrian
Willaert (1490-1562), diretor musical da Igreja de São Marcos em
Veneza de 1527 até 1562 e grande responsável pelo estabelecimento
do magnífico idioma coral da escola veneziana. Willaert reunia as
qualidades do músico teórico com uma profunda experiência da arte
musical. A partir dele, os compositores começam a influenciar mais
diretamente a teoria musical. A hierarquia de Boécio desmoronava e
suas três “músicas” se fundiam em uma só.
Nesse período, que tem como pano de fundo a preparação de
um novo ciclo do pensamento ocidental, a obra Elementos de
Cynthia S. de Gusmão
90
harmônica é traduzida para o italiano, levando a tensão criada entre
as correntes da matemática e da sensação ao seu ápice.
No século XVII, a ideia de harmonia universal continua
presente: analogia viva entre os elementos da natureza que deviam
ressoar entre si por simpatias. Essa visão está representada na
imagem do livro de Robert Fludd, Utriusque cosmi, de 1617: um
imenso monocórdio, cuja cravelha é ajustada por uma “mão cósmica”
envolta em uma nuvem. As proporções matemáticas afinam as
consonâncias musicais, os planetas e os elementos.
A ideia de que todas as partes do universo estão conectadas
harmônica e simpateticamente, que todos os seres constituem uma
imensa cadeia contínua, é um fenômeno facilmente demonstrável nas
propriedades de ressonância de instrumentos musicais,
especialmente daqueles de cordas; por exemplo, com dois alaúdes:
tangendo as cordas de um, o outro vibra. Segundo Gouk, “embora o
experimento tenha sua origem no contexto da magia natural, no
século XVII, ele será incorporado pela nova filosofia experimental
como uma maneira de visualizar outras espécies de vibrações
ocultas, mas naturais” (2002, p.231).
O modelo de harmonia universal segue presente nas
investigações do astrônomo alemão Johannes Kepler (1571-1630), ao
mesmo tempo em que sofrerá rupturas mais profundas com a
filosofia de René Descartes (1596-1650). O pensamento cartesiano
ecoará, no século XVIII, na teoria musical de Jean-Philippe Rameau
(1683-1764), que introduzirá a ideia de forças naturais nas relações
sistêmicas da linguagem musical, enfatizando não mais os intervalos
entre dois tons, mas formações de acordes, conjunto de três tons ou
mais. Contemporâneo de Rameau, Johann Sebastian Bach (1685-
1750) irá sintetizar em sua arte toda a tradição ocidental até então,
reunindo organologia, técnica, matemática e poesia de modo que
Cynthia S. de Gusmão
91
nenhum grego pudera sequer imaginar. Em seu tempo, a música
alcançará sua completa autonomia.
Ao lado das transformações que começam a ocorrer na história
da teoria musical, a música segue sendo estudada como disciplina
científica dentro do currículo da educação superior na Europa até o
século XVIII. Isso explica a sua presença, às vezes determinante, na
obra de cientistas e filósofos como Kepler, Galileu, Mersenne,
Descartes, Huygens, Leibniz, Bacon, Newton, entre outros, que
escreveram com desenvoltura sobre a música e a utilizaram como
base de suas teorias e experimentos. Nesse momento, novas
concepções e experimentos relacionados ao som musical darão
impulso à física em geral e à acústica em particular.
A partir do século XVIII, o foco da música desloca-se
completamente do âmbito científico para o estético, mas a música
segue guiando os estudos em acústica. Em 1701, Joseph Sauveur
(1653-1716) publica sua obra Princípios de acústica e de música, na
qual expõe a noção de frequência musical. Por volta de 1739, o
matemático Leonard Euler (1707-1783) apresenta sua teoria da
consonância baseada em leis matemáticas no livro Tentamen novae
theoriae musicae, ex certissimis harmoniae principiis dilucidae
expositae.
O médico, físico e matemático Hermann von Helmholtz (1821-
1894), no século XIX, funda o estudo da fisiologia do ouvido e leva
adiante inúmeras pesquisas relacionadas à música, explicando o
papel dos harmônicos no timbre e a natureza dos pulsos nas
consonâncias e dissonâncias. O som passa a ser considerado não
como vibração, mas como onda, e a matemática volta à cena
musical, quando Fourier faz a representação matemática de curvas
periódicas através da superposição de senóides, mostrando que elas
correspondiam a uma série de 1,2, 3, 4 vezes a frequência da curva
Cynthia S. de Gusmão
92
original. Essa Série de Fourier correspondia à sequência ordenada dos
harmônicos, do grave ao agudo.
Com o desenvolvimento da fisiologia foi possível demonstrar
que o ouvido humano analisa sons complexos através de
componentes mais simples, as senóides. Seria possível fazer uma
analogia dessa descoberta com a perplexidade que deve ter atingido
o coração dos pitagóricos ao se depararem com as razões dos quatro
primeiros números inteiros como explicação para as consonâncias? O
fato é que algumas questões ainda não foram totalmente
compreendidas, entre elas, exatamente a origem da consonância e da
dissonância, problema central da harmônica de Pitágoras (Taylor &
Campbell, 2009)
33
.
O desenvolvimento das técnicas de gravação e o surgimento
das músicas concreta e eletrônica, no início do século XX, agregaram
novos ingredientes à música e à ciência musical. Eimert encerra seu
prefácio ao livro Que es la música eletrônica? dizendo: “A relação
com o som nunca foi tão direta como hoje. O som segue sendo, para
o teórico, a fonte principal” (Eimert, 1973, p.21).
Aristóxeno, o mousikós, teria dito de outro modo. O que
interessa à música é o som musical. A altura ou, a frequência do
som, só interessa a partir do momento em que se transforma em tom
e desabrocha no ritmo. Com a noção de tom podemos explicar a
transposição de melodias, algo tão inerente à natureza humana. Pois,
no mélos hermosménon, ouvimos, o o som, mas as qualidades
dinâmicas inerentes ao tom, movendo-se em um espaço
intermediário, o mundo da aisthésis .
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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO
FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS
DEPARTAMENTO DE FILOSOFIA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM FILOSOFIA
Cynthia Sampaio de Gusmão
A harmônica na Antiguidade grega
São Paulo
2010
Cynthia S. de Gusmão
1
Cynthia Sampaio de Gusmão
A harmônica na Antiguidade grega
Dissertação apresentada ao
programa de Pós-Graduação em
Filosofia do Departamento de
Filosofia da Faculdade de Filosofia,
Letras e Ciências Humanas da
Universidade de São Paulo, para
obtenção do título de Mestre em
Filosofia sob a orientação do Prof.
Dr. Pablo Rubén Mariconda.
São Paulo
2010
Cynthia S. de Gusmão
2
À minha bisavó Sophia Gaertner e sua filha
Djanira, a muito amada Mami.
Cynthia S. de Gusmão
3
AGRADECIMENTOS
Ao querido Professor Pablo Rubén Mariconda, por sua visão dinâmica
e apaixonada do conhecimento, pelas sucessivas e poderosas
intervenções e pela oportunidade.
À minha querida Silvana Issa Afram, pelas leituras cuidadosas, pela
revisão do texto, pelo carinho e paciência.
À querida Professora Marília Pini, por ter aberto a minha visão em
perspectiva.
Ao querido e saudoso Ricardo Rizek, por muitas coisas, dentre elas,
por assumir o amor pela beleza da cosmologia pitagórica.
À querida Professora Annie Bélis, por me proporcionar o mergulho no
contraponto aristoxeniano.
Cynthia S. de Gusmão
4
RESUMO
Gusmão, Cynthia Sampaio de. A harmônica na Antiguidade grega.
2010. 101f. Dissertação de Mestrado, Faculdade de Filosofia, Letras e
Ciências Humanas. Departamento de Filosofia, Universidade de São
Paulo, São Paulo, 2010.
O presente trabalho apresenta as ideias centrais relacionadas às duas
principais teorias acerca do som musical na Antiguidade grega, entre
o final do século VI a.C. e o início do século III a.C. O estudo analisa,
em primeiro lugar, as circunstâncias históricas e materiais que
propiciaram o desenvolvimento da teoria musical grega, chamada
harmônica, e a sua relação com a prática musical do período em
questão. A primeira teoria analisada está inserida no contexto da
escola pitagórica, em que a cosmologia é o referencial de uma visão
de mundo que se expande conectando todas as áreas do
pensamento, e um dos pontos de origem é a harmônica matemática.
São apresentadas a seguir as demonstrações feitas a partir do cálculo
das médias proporcionais e sua relação com o princípio da coesão
harmônica da oitava. No segundo capítulo são estudadas as teorias
acústicas da Antiguidade, que se originaram das razões pitagóricas e
se desenvolveram no âmbito das ciências naturais, aprofundando-se
com a filosofia aristotélica. No terceiro capítulo, são analisados os
principais pontos de confronto promovidos pela corrente
aristoxeniana, que se insere no quadro epistemológico aristotélico, e
que foram levantados contra os pitagóricos. Nessa nova forma de
pensamento, a harmônica é estudada como uma tékne, que tem uma
linguagem especializada particular e um objeto específico, o mélos.
Ganha importância especial o conceito de aisthésis e, para colocá-lo
em prática, a idéia de dynamis torna-se central. Por fim, é
apresentada a persistência da concepção pitagórica nos cálculos dos
intervalos musicais a partir da divisão do cânone.
Palavras-chaves: harmônica, pitagorismo, música, cosmologia,
harmonía, proporção, acústica, Aristóxeno, aisthésis , dynamis,
mélos.
Cynthia S. de Gusmão
5
ABSTRACT
Gusmão, Cynthia Sampaio de. Harmonics in greek Antiquity. 2010.
101f. Thesis (Master Degree) Faculdade de Filosofia, Letras e
Ciências Humanas. Departamento de Filosofia, Universidade de São
Paulo, São Paulo, 2010.
This work presents the central ideas related to two main theories
about musical sound in greek Antiquity between the end of VI century
and the beginning of III B.C. First, the historical and material
contexts that lead to the development of greek musical theory, called
Harmonics, are investigated, and its relationship with the musical
practice of the period. The first theory analyzed comes from the
pythagorean school, in which cosmology is the framework of a world
view that expands connecting all areas of thought and one of its
departure point is mathematical Harmonics. Afterwards, I discuss the
demonstrations that are done from the calculations of proportional
medias and their relations with the octave harmonic cohesion
principle. In the second chapter, it’s exposed the acoustic theories of
Antiquity which originated from the musical ratios and had developed
in the branch of natural sciences, deepening by the Aristotelian
Philosophy. In the third chapter, I presented the most important
issues concerning the differences between the aristoxenian current,
which belongs to the aristotelian epistemological framework, against
the pythagoreans. In this new way of thought, Harmonics is studied
as a tékne that has a particular range of specialized terms and a
specific object, the mélos. The concept of aisthésis assumes
relevance and to put it into practice, the idea of dynamis becomes
central. At last, the persistency of the pythagorean conception it is
presented in the calculations of the musical intervals in the division of
the canon.
Key-words: Harmonics, pythagorism, music, cosmology, harmonía,
proportion, acoustics, Aristoxenus, aisthésis , dynamis, mélos.
Cynthia S. de Gusmão
6
SUMÁRIO
Introdução 8
Capítulo I – Os meios técnicos e a estrutura da música grega
14
1. As origens musicais da Harmônica 14
2. Os instrumentos musicais gregos 16
3. Aspectos da terminologia musical grega 18
4. As cordas e a estrutura musical grega 20
5. O epigoneon e a pandora 23
6. A afinação e os gêneros musicais 26
Capítulo II – As origens matemáticas da harmônica 29
1. As disciplinas matemáticas 29
2. As razões numéricas musicais 32
3. A coesão harmônica da natureza 34
4. A fixação da escala 37
5. A coma pitagórica 41
6. A cosmologia pitagórica 43
7. Os desdobramentos da harmônica: Arquitas 47
8. As médias proporcionais 48
9. A média geométrica e os incomensuráveis 51
Capítulo III – Teorias acústicas da Antiguidade 56
1. Os primórdios da investigação do som 56
2. A propagação do som e sua audição 57
3. Os avanços da escola peripatética 59
4. O experimento de Pitágoras 60
5. A persistência da concepção pitagórica 63
6. As relações da acústica com a harmônica 64
Cynthia S. de Gusmão
7
Capítulo IV – Aristóxeno e o lugar da aisthésis na
harmônica
66
1. Pequena nota biográfica 66
2. A proposta aristoxeniana 67
3. A organização do estudo 69
4. A aisthésis 72
5. Diálogo com Aristóteles 73
6. O espaço geométrico do los 75
7. As partes da harmônica 76
8. Ressonâncias do Elementos de harmônica 78
Capítulo V – A divisão ideal do cânone 81
1. O rigor do Sectio Canonis 81
2. O apogeu da ciência pitagórica 83
Considerações finais 85
Bibliografia
93
Cynthia S. de Gusmão
8
INTRODUÇÃO
O tema do presente estudo são as abordagens teóricas que
recebeu o som musical na Antiguidade grega entre o final do século
VI a.C. e o início do século III a.C. A investigação ocorre no âmbito
da Harmônica, um dos ramos da teoria musical grega, que, no
entanto, difere do que se conhece por esse termo nos dias atuais. O
musicólogo Carl Dahlhaus
1
fez uma classificação tripartite dos
grandes campos teóricos da música ocidental: o analítico, o
regulativo e o especulativo. A via anatica estuda as obras musicais
como modelos para a prática da composição e da apreciação crítica. A
teoria regulativa abarca os escritos de instrução sobre as regras
sintáticas da música, constituindo o assunto dos manuais dos
musicógrafos que eclodiram a partir do século II a.C., e que foram os
precursores daquilo que hoje é chamado de “teoria musical”. O ramo
especulativo é aquele que considera o aspecto ontológico da música,
sua essência e matéria-prima. Esse último aspecto, sobre o qual se
debruça a dissertação, teve presença marcante em mil anos de
debates filosóficos e científicos da Antiguidade. Contudo, foi nos
primeiros dois séculos que as questões cruciais foram colocadas,
tendo o restante do minio se dedicado a mexer as mesmas peças
no tabuleiro musical.
Os escritos musicais antigos, tanto gregos quanto latinos, em
sua grande maioria, são especulativos e inserem-se no quadro geral
de pensamento das escolas filosóficas; cada uma delas forja a teoria
de acordo com seus métodos e princípios.
1
Em Die Musiktheorie im 18. und 19. Jahrhundert: I, Grundzüge einer Systematik,
Darmstadt, 1984, p.9-13. Apud Christensen, 2007, p.11.
Cynthia S. de Gusmão
9
O filósofo Aristóxeno de Tarento, do século IV a.C, é um
autêntico representante da escola peripatética, tendo sido aluno
direto de Aristóteles. Sua obra Elementos de Harmônica é o mais
completo dos antigos tratados musicais gregos que chegaram até
nós. No primeiro parágrafo, ele define o campo de investigação da
Harmônica: “A ciência do mélos é multifacetada e divide-se em
muitos ramos; um deles é preciso tomar como base: o estudo da
chamada Harmônica, primeira na ordem e com função elementar. De
fato, sendo a primeira das matérias teóricas, ela abarca tudo que diz
respeito ao estudo dos tons e das escalas. Sendo esta a finalidade do
seu estudo, convém, pois, não considerá-la para além disso”
(Meibom, 1, 11-25).
2
Rosetta da Rios aponta em nota a sua tradução
italiana do tratado: “Assim como, de fato, a qualidade dos sons é o
elemento específico da música, pois o ritmo está presente na poesia e
no canto, assim, no uso técnico de Aristóxeno e de seus seguidores,
mélos passa a ser usado para significar exclusivamente a parte tonal
da música ou a melodia no sentido comum, considerada como uma
sucessão de notas de alturas diferentes, em contraposição ao ritmo.
De fato, mais tarde quando se quiser designar melodia no sentido
antigo, será acrescentada a palavra leion à mélos para indicar a
melodia acabada, com a presença do ritmo” (Rios, 1954, p.3, nota 2).
Portanto, Aristóxeno dá à palavra grega mélos um sentido
especificamente tonal, modificando a concepção anterior que a referia
a uma combinação de palavra, ritmo e melodia. Ela é distinta desse
mélos composto ao qual poderíamos incluir elementos de coreografia,
e que Platão e Aristóteles mencionaram ao atribuir efeitos da música
ao comportamento humano, falando do ponto de vista do ethos
musical. A música grega antiga, e especialmente a defendida por
Platão, era eminentemente vocal – portanto, ligada a um texto
2
Neste estudo, utilizamos a mesma numeração que Rios como referência para a
obra de Aristóxeno. Ela advém da compilação de Marcus Meibom, Antiquae Musicae
Auctores, Amsterdam, 1652.
Cynthia S. de Gusmão
10
poético e também circunstancial, ou seja, destinada a ocasiões
determinadas. Por isso, parece-nos um exagero alguns autores
modernos considerarem que existiu algo como uma ciência secreta do
poder vibratório das estruturas. Winnington-Ingram, por exemplo,
analisou a questão da seguinte forma: “Essa concepção de um
caráter inerente dos modos não está restrita à Grécia; mas é visível
aqui devido à fama de alguns autores e à interpretação moral que
colocavam no caráter dos modos. (...) É mais relevante expressar
algum ceticismo, se os elementos musicais podem em si mesmos
possuir tais caracteres tão marcados. Muitos outros fatores estão em
jogo” (1968, p.3). Parece-nos necessário, portanto, não cair no erro
de justapor uma concepção de música eminentemente instrumental,
que se firmou no Ocidente a partir do século XVIII, a um
fenômeno da Antiguidade.
Aristóxeno prossegue na passagem em questão: “Todos os
assuntos que forem estudados em um nível mais abrangente, a partir
da arte das escalas e dos tons, não pertencem mais à Harmônica,
mas àquele conhecimento que abarca essa ciência e outras, pelo qual
são estudadas todas as partes da música. Essa é a conquista do
músico.”
(Meibom, 2, 1-5). Ou seja, apesar de ser “primeira na
ordem”, ela não compreende tudo, e mais, a totalidade da música
pode ser considerada a partir de um sujeito aqui incluído, o músico.
Contudo, é necessário observar que essa totalidade de que fala
Aristóxeno não abarca aqueles assuntos que ocuparam a mente de
seus antecessores pitagóricos e que constituem igualmente objetos
da Harmônica, ou Canônica. Para o autor, não está em questão a
causa das alturas musicais e de seus intervalos, o que importa é
como elas se organizam em um sistema de escalas enquanto
linguagem tonal. para os pitagóricos, com quem se inicia a ciência
da Harmônica, a importância estava na origem primeira dos
intervalos musicais, muito antes de sua organização em escalas ou de
Cynthia S. de Gusmão
11
sua função no los. Eles estabeleceram uma expressão racional da
matéria sonora, por meio da aritmética, sua principal ferramenta
teórica, alinhada analogicamente à totalidade do cosmo. Essa
corrente, nascida no século VI a.C., e que terá consequências
importantes no âmbito da física acústica e das matemáticas, não
deixou nenhum tratado e sua reconstituição deve ser feita a partir de
fragmentos como os de Filolau e Arquitas e comentadores
posteriores.
Max Weber, como explica seu tradutor brasileiro Leopoldo
Waizbort na introdução à obra, defendeu que “a autonomização da
esfera artística engendra a legalidade própria dessa esfera, que é
justamente a sua racionalização específica” (Weber, 1995, p.39). O
pensamento pitagórico se processava por analogias, considerando,
portanto, domínios extrínsecos à música para a sua explicação. Desse
modo, poderia parecer paradoxal o fato de ele ser o ponto de partida
do processo de racionalização da música ocidental e da sua
caminhada rumo à autonomização. A aritmética, como instância
extra-musical, foi determinante para o primeiro distanciamento em
relação à matéria prima tonal, o som musical, o que não ocorria
quando o mélos estava mesclado à linguagem e ao ritmo, domínios
não restritos à música, como apontamos: a linguagem, mesmo
poética, é fortemente referencial e o ritmo pode ser encontrado nos
ciclos e fluxos da natureza.
No século III a.C., as duas correntes, aristoxeniana e
pitagórica, serão vistas como antagônicas e essa dicotomia
perpetuar-se-á nas discussões musicológicas medievais e
renascentistas. Neste estudo, elas serão apresentadas com suas
distinções, mas também como integrantes do mesmo quadro geral
que tem como ponto de referência a natureza para construir os seus
princípios; para descobri-los e demonstrá-los cada escola integra a
Harmônica ora às ciências matemáticas, ora às ciências naturais ou
Cynthia S. de Gusmão
12
físicas. E cada uma delas contribuiu a seu modo para o corpus teórico
da música ocidental. O trabalho é delicado, haja vista que o
alinhamento de posição dos pensamentos subjacentes às duas
correntes sofre sucessivas inversões, talvez porque a música participe
de maneira intensa de dois campos: o da ciência e o da arte. Isso faz
dela um lugar privilegiado para observar as suas tensões.
Na dissertação, a opção pela via de investigação da Harmônica
justifica-se por ter sido a partir dela que se iniciou propriamente o
processo de racionalização do material sonoro, tal como enfatizado
por Max Weber, ou seja, o fato de a música ter sistematizado seu
material e seus meios levou-a a alcançar a autonomia de sua esfera
de existência. Nesse processo, será também importante olhar para o
desenvolvimento dos meios técnicos da música, como, por exemplo,
seus instrumentos: “A racionalização dos sons parte historicamente e,
de modo regular, dos instrumentos” (Weber, 1995, p.127), além das
formas musicais, da notação e ainda dos instrumentistas e virtuoses.
A harmônica, dentre as disciplinas da música, foi a que se
dedicou às questões de afinação dos instrumentos e das estruturas
das escalas. Ao dedilhar a sua lira, era importante para o
instrumentista grego saber que as cordas estavam afinadas
adequadamente ao modo e gênero musical e ainda ao cantor que
usualmente acompanhava. Os teóricos começaram a estudar e definir
as múltiplas estruturas musicais gregas a partir das quais uma
melodia poderia ser realizada e, ao fazer essa descrição,
desenvolveram a linguagem própria da Harmônica.
Algumas questões surgem no âmbito deste estudo. Por
exemplo, os princípios da harmônica pertencem à natureza humana,
a algo independente dela ou às duas instâncias? O som musical é
essencialmente humano, visto que é produzido pela voz humana ou
pelos instrumentos musicais. Contudo, assim que uma nota é gerada,
entra em ação uma cadeia de ressonâncias físicas, a chamada série
Cynthia S. de Gusmão
13
harmônica. Ela não é produzida deliberadamente pelo ser humano,
mas parece conduzir as suas escolhas musicais. O padrão recorrente
da série harmônica que é gerada pelo som musical, ou tom, insere-se
no quadro geral da natureza, que nós, como parte dela,
apreendemos.
As escalas musicais representam o primeiro grau de abstração
da música, antes da verificação experimental da série harmônica, que
será realizada no século XVII por Marin Mersenne. Podemos dizer
que a música produzida desde a remota Antiguidade foi guiada pela
percepção desses harmônicos, depois abstraída em escalas, muito
antes dessa medição. Aristóxeno relacionou as propriedades do som
musical à percepção humana, enquanto os pitagóricos buscaram os
padrões intrínsecos de sua estrutura.
Nesta dissertação, serão incorporados elementos advindos da
prática musical e da construção de instrumentos, pois, de fato, o
pensamento sobre a arte em geral, e a música em especial, não está
desvinculado da técnica e da ciência de seu tempo. Desse modo,
será matizada a postura de alguns musicólogos e pesquisadores que
consideram que, na Antiguidade, havia uma separação total entre a
teoria e a prática musical, baseados em especial no argumento de
que os escritos que chegaram até nós não oferecem nenhum trecho
de música, nem fazem qualquer referência à prática musical.
3
Essa é
uma dificuldade de fato; contudo, serão feitos esforços para atenuá-
la.
3
Bélis, em seu artigo “L’harmonique comme science dans l’antiquité grecque”,
defende que teria havido um divórcio total entre as áreas prática e teórica na
Antiguidade (1992, p.201-8). Contudo, no curso “De La Pierre au son: archéo-
éthnomusicologie de l’Antiqui Classique”, ministrado de 14 a 30 de agosto de
2001 no Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo, atenuou
sua posição, considerando que haveria uma hierarquia de valores, não uma
separação absoluta. Já Barker considera que existia uma interação entre as partes:
“sua relação [da harmônica] com a filosofia e as ciências naturais são mais
distantes e suas interações com o mundo real do fazer musical mais próximo do
que frequentemente se supõe” (2007, p.4).
Cynthia S. de Gusmão
14
CAPÍTULO I
OS MEIOS TÉCNICOS E A ESTRUTURA DA MÚSICA GREGA
1. As origens musicais da harmônica
O tom musical é um som discreto que se define pela relação
intervalar que mantém com outros sons de alturas determinadas.
Esses intervalos constituem o ponto de partida da Harmônica. Cada
cultura encontrou seus intervalos musicais e os fez soar por meio das
vozes, dos tubos de instrumentos de sopros, nas cordas, em
instrumentos de percussão como litofones, xilofones e metalofones,
até chegarmos à atual geração por dispositivos eletrônicos.
A contrapartida material dos instrumentos tem um papel crucial
no desenvolvimento da teoria musical, ainda que não seja possível
determinar de modo absoluto em quais situações um procedimento
técnico faz avançar o campo artístico ou, vice-versa, se a necessidade
estética antecede a busca por um avanço técnico, ou ainda, se são
acontecimentos sincrônicos.
As distâncias intervalares são a base da afinação dos
instrumentos. Em alguns casos, elas foram organizadas em sistemas
de escalas, modos e gêneros. Os intervalos geram sensações ao
serem ouvidos, descritas como prazer ou incômodo, suavidade ou
estridência, doçura ou aspereza. De acordo com essas características,
foram agrupados em symphoniai ou diaphoniai, consonâncias ou
dissonâncias.
4
O quanto essa qualificação dos intervalos é um
elemento cultural, ou não, transcende o escopo deste estudo;
4
Os intervalos considerados consonantes foram os de oitava, quinta e quarta. Em
uma escala musical ascendente com a nota como início, a oitava é a distância
entre essa nota e o dó acima, a quinta entre o dó e o sol, e a quarta entre o dó e o
fá. A nomenclatura das notas como dó, ré, mi, fá, sol, lá, si, dó surge na história da
música somente na Idade Média, mas utilizo aqui para simplificar os termos gregos.
Cynthia S. de Gusmão
15
contudo, muitos povos buscaram formas de definir com exatidão os
intervalos musicais.
Entre as grandes civilizações anteriores ao período arcaico
grego (800 a 500 a.C.), os chineses deram muita ênfase à precisão
dos intervalos musicais, que estabeleceram possivelmente por volta
de 2.600 a.C. a partir de uma sequência de bambus cortados em
exatos intervalos de quinta, os tubos-diapasões lyu. Na Mesopotâmia,
cerca de 3.000 a.C., os sumérios possuíam uma apurada técnica de
construção de instrumentos. Ali, em um baixo-relevo das ruínas da
cidade de Lagash (sul do Iraque atual) está representado um músico
tocando uma cítara aparentemente de 11 cordas. Os impérios assírio
e babilônio, fundados por volta de 2000 a.C., foram fecundados pela
civilização suméria. Nas escavações da cidade de Ur (também no
Iraque) foram encontradas flautas, harpas, liras de 5 a 11 cordas,
alaúdes e uma harpa de cordas percutidas por baquetas.
5
Uma descoberta importante para a teoria musical foi a de três
tábuas em escrita cuneiforme contendo um método de afinação de
uma espécie de lira de nove cordas.
6
A partir delas foi possível
decifrar um sofisticado mecanismo de afinação alternando quartas e
quintas consonantes com o objetivo de formar escalas que dividem a
oitava em sete partes. Esse sistema mostrou-se semelhante ao
grego, que talvez tenha aí a sua origem, mas o mais importante é
que a descoberta das tábuas babilônicas apresenta a mesma
predominância de quartas e quintas que se encontra na teoria e na
prática musical do Ocidente.
Desde a Idade do bronze, a península grega não era uma
região isolada, mas fazia parte do complexo do mar Egeu, rota entre
5
Ver, a esse respeito, Candé, 2001, vol. 1, p. 102-148.
6
As tábuas foram decifradas pela Profa. Anne Draffkorn Kilmer, do Centro de
Estudos do Oriente Médio da Universidade de Berkeley, Califórnia, que descreveu a
teoria da afinação babilônica em 1971: “The discovery of an ancient mesopotamian
theory of music”. In: Proceedings of the American Philosophical Society, n
o
. 115, p.
131-149, apud Franklin, 2002, p. 441-442.
Cynthia S. de Gusmão
16
o Egito e o Oriente Próximo, a leste, e a península itálica, a ocidente.
O povoamento grego na costa da Ásia Menor e das ilhas próximas
iniciou-se por volta de 1050 a.C. As tradições da Mesopotâmia
alcançaram as regiões da Síria e da Fenícia, mais tarde chegaram à
Ásia Menor e dali à Grécia. Além disso, entre 750 a 700 a.C, ocorreu
a expansão do império assírio em direção a Ocidente no período
conhecido como orientalizante. Entre os elementos culturais
mesopotâmicos que penetraram mais profundamente na região
egeana nesse momento estão os instrumentos musicais e suas
formas de afinação.
2. Os instrumentos musicais gregos
Um dos instrumentos mais importantes para a cultura musical
grega foi o aulos, um instrumento de sopros que utilizava uma
palheta, tal como o oboé. Os tubos dos primeiros auloi apresentavam
apenas quatro orifícios, portanto, era necessário trocar de
instrumento de acordo com a escala (modo) em que a peça musical
era executada. Ateneu narra, em sua obra Deipnosophistae, que foi
Pronomus de Tebas “o primeiro a construir auloi adequados a vários
tipos de harmonía e a tocar no mesmo aulos melodias bem
diferentes. Diz-se que ele deleitava a audiência ao extremo com suas
expressões faciais e o movimento de todo o corpo” (631e apud
Mathiesen, p. 184).
O aulos demorou para ser aceito como um legítimo instrumento
grego, como demonstram os mitos associando-o aos cultos de Cibele
e Dioniso, deuses considerados originários da Ásia Menor. Aos
poucos, ele foi ganhando espaço e, no século V a.C., figurava como o
instrumento da orquestra nas apresentações teatrais, possivelmente
pela capacidade expressiva e também por sua potência de som. As
competições auléticas foram importantes para o desenvolvimento da
Cynthia S. de Gusmão
17
música instrumental. O aulos possuía uma grande flexibilidade,
possibilitando as sutilezas das múltiplas escalas descritas nos
tratados musicais, e é provável que os auloi duplos permitissem a
execução de intervalos diferentes simultâneos, produzindo uma
espécie de diafonia primitiva.
Aristóxeno, em Elementos de Harmônica, será um crítico da
flexibilidade do aulos devido à ausência de estabilidade de seus tons.
A busca do tarentino será por um conjunto de sons estáveis e
organizados, condição do discurso científico aristotélico: “A aquisição
inicial do conhecimento não ocorre pelo vir a ser; pois, de acordo
conosco, a razão conhece e pensa por meio do repouso e da
imobilidade” (Física, VII, 3, 247b 10-13. Apudlis, 1986).
Motivos similares levarão também Platão a colocá-lo na lista de
instrumentos que deverão ser expulsos da sua Politéia. Além da
própria característica variável do sopro que produz o som no aulos,
são documentados os movimentos de corpo e expressões faciais dos
auletistas ao executarem as peças musicais, o que era acentuado
pela própria dificuldade de execução do instrumento que, em peças
mais longas, exigia um acessório, a phorbéia, uma faixa feita de pele
de animal que acomodava o instrumento duplo. Em uma escultura de
Praxíteles (por volta de 360 a.C.), está retratada a disputa na qual a
música de Apolo, representada pela cítara, é julgada superior à de
Marsyas, esculpido nu portando um aulos duplo. Como perdedor, na
história, Marsyas é enforcado e esfolado uma demonstração,
esperamos, exagerada, de como os gregos levavam a sério a sua
superioridade.
Mas, embora visto com desconfiança pelo fato de ser um
instrumento estrangeiro e por ter introduzido muita sofisticação às
tradições sagradas dos gregos, o aulos tornar-se-á um dos três
instrumentos mais importantes do período clássico grego, junto com
Cynthia S. de Gusmão
18
a lira e a cítara, participando do teatro, dos festivais, da educação e
da vida cotidiana.
Ainda que os instrumentos de sopros e percussão fossem
indispensáveis à música grega, a classe de cordófonos foi o seu
fundamento, principalmente no que se refere à ciência musical. Essa
ênfase nos instrumentos de cordas vai prevalecer no mundo ocidental
quando o assunto for teoria e sistemas de afinação. No século XVII,
Marin Mersenne, no “Primeiro livro dos instrumentos” de sua obra
Harmonia universal, iniciará o estudo dos instrumentos musicais
pelos instrumentos de cordas, considerando que eles “são mais
simples e fáceis de compreender, pois as cordas representam as
linhas e servem para explicar e demonstrar tudo o que pertence à
música” (1986, p.2). Também Max Weber irá observar que “nas
cordas há uma maior racionalização do sistema de tons”
(1995,
p.73).
E a música ocidental terá de esperar até o século XX para que
os compositores concedam aos instrumentos de sopro e percussão o
mesmo status daqueles de corda e teclado.
Na Grécia, possuíam importância especial os diversos tipos de
liras como a kélis lira, o barbitos e a cítara. Nas liras, as cordas são
tocadas com um plectro, diferente dos psaltérios, ou harpas, que são
dedilhados. As liras possuíam cordas mais ou menos iguais em
comprimento, enquanto as harpas possuíam cordas graduadas. As
cordas, em geral feitas de tripa de carneiro, não resistiram ao tempo,
mas seu número nos instrumentos é bem documentado em fontes
literárias e iconográficas. É possível observar também a presença de
cravelhas para uma maior precisão na afinação dos instrumentos.
3. Aspectos da terminologia musical grega
Em grego, o tom musical, dizia-se tonos. A raiz da palavra é a
mesma do verbo grego teíno, que significa esticar ou tensionar.
Cynthia S. de Gusmão
19
Considera-se que a palavra tonos tenha sua origem no ato de
tensionar a corda de uma lira, alterando sua relação com outra corda
de um intervalo de quinta para quarta, marcando a diferença de um
tom entre ambas
7
.
Os nomes das notas (phtongos) estavam diretamente
relacionados a sua posição na corda e, até mesmo, ao dedo que a
tocava, pois líkanos é o nome de uma nota e do dedo indicador. É
bom relembrar que, no caso das liras, as cordas não eram dedilhadas
e sim, tangidas por um plectro; portanto, essa terminologia talvez
fosse oriunda dos instrumentos de cordas dedilhadas, da classe dos
psaltérios. Para West, os nomes de outras notas também poderiam
estar relacionados a sua posição: mése seria referente ao dedo médio
e tríte, ao terceiro dedo, anular (Cf. 1981, p.120-1). Essa concepção
enfatiza a perspectiva de uma origem material para o sistema grego
em tetracordes, sequências de quatro notas, em que cada nota
corresponderia a uma corda do instrumento. De qualquer modo, a
forma de nomear as notas era diferente das que conhecemos hoje.
Nossa nota é um tom específico ou frequência, em linguagem
moderna. as notas gregas referiam-se a uma posição dentro do
tetracorde ou do instrumento.
Outros termos musicais estariam associados à prática
instrumental, por exemplo, a oposição entre tom “alto” (ano) e
“baixo” (kato). Inversamente ao que estamos acostumados, o
primeiro referia-se ao som mais grave e o segundo, ao mais agudo.
Isso porque mais “alta” era a corda mais distante do instrumentista
em posição de execução da lira ou da harpa, e vice-versa.
Essas denominações advindas da prática instrumental não eram
acolhidas por teóricos como Aristóxeno. Como observa Bélis,
“Aristóxeno não utiliza os termos ano e kato; ele diz sempre grave e
agudo, talvez por sua firmeza doutrinal: repugnar-lhe-ia trazer
7
Ver, a esse respeito, West, 1981, p.119-120.
Cynthia S. de Gusmão
20
emprestado denominações da prática instrumental, uma vez que se
recusava a tomar por critério de julgamento tanto o aulos como a
lira” (1986, p.136).
4. As cordas e a estrutura musical grega
Franklin (2002, p.444) defende que teria havido, no início da
era arcaica grega, um confronto entre a poesia épica, cantada com a
lira de quatro cordas, e a poesia lírica, cantada com a lira de sete
cordas. Essa transição entre os dois gêneros poéticos é significativa
nos poemas homéricos, feitos provavelmente por cantores
profissionais que se apresentavam nos festivais. Sua forma definitiva
ocorre no período arcaico, mas eles pertencem ainda à tradição
anterior, épica aristocrática, e mantiveram a métrica e a forma do
gênero. Cada poema era dedicado a um deus do panteão grego. No
poema dedicado a Hermes, o poeta conta como o deus inventou” a
lira de sete cordas para dar de presente a Apolo, o deus da tradição
épica. No hino, são descritos detalhes da construção da lira, o
material utilizado (casco de tartaruga, couro de boi, cordas de tripa),
assim como a forma de execução com o plectro. Contudo, essa
interpretação de que a lira do período épico teria quatro cordas não é
aceita por estudiosas como Martha Maas e Jane McIntosh Snyder,
que descreveram detalhadamente os instrumentos de cordas gregos.
De acordo com as autoras, “o número de cordas nos instrumentos do
tipo lira, desde as liras minóicas antes do século XI até a tara, o
barbitos, e a kélis lira dos séculos V e IV provavelmente
permaneceram as mesmas” (1989, p. xvi). Para elas, o mero de
cordas que aparece nas iconografias está relacionado ao material
empregado, ao espaço disponível para a reprodução no artefato e ao
grau de realismo do artista. “A confusão, prosseguem elas, foi
construída pela interpretação influente de Deubner das linhas
Cynthia S. de Gusmão
21
atribuídas a Terpandro nas quais o poeta se refere à phorminx de
sete tons” como opostas à “canção de quatro vozes”. Portanto, a lira
de sete cordas teria existido, no mínimo, desde a Guerra de Tróia, até
Alexandre, o Grande.
De qualquer forma, os tetracordes foram o núcleo da música
grega e é certo que Terpandro, poeta lírico do século VII a.C.
originário da ilha de Lesbos, acompanhava-se de um instrumento de
sete cordas.
8
A lira de sete cordas possibilitou ao músico ampliar a
execução musical até uma oitava entrelaçando dois tetracordes. O
texto aristotélico Problemas Musicais registra que foi Terpandro quem
afinou a lira de sete cordas, de modo que ela abrangesse uma oitava,
que, por isso, chamava-se diapason, pois passava por todas as
cordas, e não diokto, pelas oito cordas (XIX, 32, 920a 14-18). Os
nomes dados às consonâncias diapason para a oitava, diapente, a
quinta e diatessaron, a quarta eram uma abreviação de diá pason
chordon symphonia, a consonância produzida passando por todas as
cordas; diá pente chordon symphonia, a consonância produzida por
cinco cordas, e diá tessaron chordon symphonia, por quatro cordas. O
que fica evidente com essa terminologia é que os instrumentos de
cordas eram afinados nessas consonâncias e, mais do que isso, eles
eram a própria referência para a afinação.
O número de cordas ultrapassa a simples busca por um efeito
sonoro, relacionando-se com a estrutura de todo o sistema. Os
heptacordes teriam evoluído para octocordes. De acordo com os
Problemas aristotélicos, a prova de que antes a escala era heptacorde
é a denominação da nota mése, média. Como poderia haver uma
nota média em oito cordas se o mero oito não tem meio? A
denominação mése, portanto, viria de uma escala heptacorde
(XIX,
8
Plutarco, em sua obra De musica, narra que Terpandro ficou conhecido por ter
feito uma inovação nessa lira homérica, aumentando o número de cordas de quatro
para sete. Apud Mathiesen, 1999, p. 243.
Cynthia S. de Gusmão
22
25, 919b 20-22).
9
Essa afirmação enfatiza uma concepção aritmética
do sistema e parece anular a hipótese de West de que a denominação
mése referir-se-ia ao dedo médio que tangia a corda. Bélis considera
que a conclusão aristotélica, no entanto, é uma prova de que os
teóricos estavam afastados da prática musical e que, ao buscarem
construir seus sistemas, ficavam confusos com a terminologia
advinda da prática (Bélis, 1986, p.136-137).
Para Winningtom-Ingram, mais importante que determinar a
origem do termo mése é perceber que ela funcionava como um
centro tonal da melodia. Ele considera plausível a hipótese de que o
tetracorde primitivo tenha desenvolvido para um heptacorde, por
meio do encaixe de dois tetracordes: “se no tetracorde sozinho a nota
superior da quarta atraía a atenção sobre si, dentro do heptacorde, a
mése, verdadeiramente assim chamada por estar na junção dos
tetracordes, era o foco da melodia. Mais tarde, a consonância da
oitava foi percebida e o heptacorde tornou-se um octocorde. A
tendência melódica descendente (tal como podemos postular para a
música primitiva) fez com que o tetracorde superior fosse alcançado a
partir do limite superior [ou seja, saltando para a oitava e descendo]
o que levou a criar um tom disjunto entre os tetracordes” (1968,
p.26).
Em algum momento, portanto, dois tetracordes foram
separados por um tom inteiro, provavelmente a partir da inserção de
mais uma corda musical na lira. O importante é que essa corda, ou
esse tom, foi inserido entre os tetracordes, e não em uma das
extremidades da escala musical. E essa alteração teve consequências
profundas na teoria musical grega. A oitava passou a ser percebida e
considerada o ponto de partida da teoria musical, dividida em dois
intervalos desiguais: uma quarta e uma quinta. O sofisticado sistema
9
Nicômaco de Gerasa, no Manual de harmônica, cap. V, narra que Pitágoras teria
colocado uma oitava corda na lira criando a escala de oito notas.
Cynthia S. de Gusmão
23
de modos gregos (harmoniai) organizou-se a partir das posições
desses intervalos.
Podemos ver a escala octocorde, de oito notas, como a reunião
de dois tetracordes como um tom no meio ou, como prefere Del
Grande, “um tetracorde mais um pentacorde” (1960, p.406). As
notas extremas eram então néte, a última nota, mais aguda, e
hypate, a primeira, mais grave, formando um intervalo de oitava. A
néte era a corda que ficava mais próxima do instrumentista na
posição de tocar a lira, a tara, a harpa. Hypate era a mais distante.
As escalas eram organizadas de modo descendente e, portanto, a
partir da néte, ficavam paranéte (ao lado da néte), tríte (a terceira),
a nota inserida ao lado e acima da mése (paramése), em seguida,
mése, likanós, parypate e hypate.
5. O epigoneon e a pandora
No período clássico, as liras estiveram na base da educação
musical grega, levando os cidadãos a um alto vel de exigência
crítica em relação a seus executantes. O tipo de lira preferido pelos
profissionais era a cítara, com sua ampla caixa de ressonância. Ela
era utilizada pelos citaredos, combinação das palavras cítara e aedo,
cantores.
Os psaltérios, ou harpas, possuíam grande número de cordas e
eram tocados por virtuoses que provavelmente começaram a
desenvolver uma música instrumental, tal como os auletistas. De
acordo com Mathiesen (1999, p.270), alguns tipos parecem ter sido
exclusivos das mulheres e também é possível que esses instrumentos
estivessem associados aos cientistas musicais que surgiram no século
VI a.C. O epigoneion possuía 40 cordas e era tocado na posição da
harpa como conhecemos, em pé. O nome adveio de seu construtor,
Epígono de Sycion, mencionado por Aristóxeno (Meibom,3,20-24)
Cynthia S. de Gusmão
24
como um músico-téorico que, junto com Lasos de Hermíone, achava
que o som musical possuía largura.
Mathiesen aponta ainda o fato de que o autor grego Atheneu,
na sua obra Deipnosophsitae, diz que a escola de Epígono era
conhecida por sua música complexa, dramática e expressiva e que o
estilo foi adotado por citaristas que, entre outras coisas, passaram a
esticar mais as cordas para alcançar um volume maior de som.
Na mesma passagem, Mathiesen observa que o termo utilizado
por Atheneu para descrever esse fato, psilokitharistiké, lembra a
objeção de Platão à psilé kithárisis na sua discussão sobre mimesis na
obra Leis. Ali, Platão rejeita a música puramente instrumental,
considerando que o texto é essencial para a mimesis: “e eles usam
música solo de cítara e aulos, que é difícil de entender sem um texto
para compreender a intenção do ritmo e da melodia e com qual dos
modelos eles se parecem. Mas é preciso perceber que a coisa é
também cheia de grosseria. Pelo fato de serem excessivamente
amantes da velocidade, das minúcias e dos sons bestiais, eles
praticam o aulos e a cítara sem dança ou canção. Qualquer pessoa
que utilize um dos dois instrumentos solo é dado a feitiços e a anti-
música” (amousía kaí thaumaturgía) (Platão, Leis, 669d-670a. Apud
Mathiesen, 1999, p.270).
Outro instrumento de cordas que apareceu na música grega
vindo do Oriente foi a pandora, da classe dos alaúdes.
Surpreendentemente, apesar de haver indícios da presença desse
tipo de instrumento no lado oriental do Mediterrâneo, sua
representação nas figuras e relevos gregos que chegaram até nós, só
ocorre no período das campanhas persas de Alexandre, em torno de
330 a.C. Parece que o instrumento, chamado também de skindapsos,
foi trazido nesse momento. Segundo Mathiesen, existe ainda uma
referência de lux, em seu livro Onomasticon, de que a pandora
havia sido inventada pelos assírios e que possuía três cordas. Para o
Cynthia S. de Gusmão
25
autor de Apollo’s Lyre, o braço da pandora era trasteado, as cordas
eram três e o instrumento possuía algumas vantagens sobre as liras:
“Um instrumento com braço trasteado poderia facilmente produzir
com grande precisão muito mais tons em três cordas do que qualquer
instrumento multicordas. Além disso, por possuir apenas três cordas,
era mais fácil afinar e sua afinação como um todo seria mais estável”
(1999, p.285).
Esse tipo de instrumento certamente era mais propício à
descoberta dos princípios matemáticos na música, pois a afinação
seria feita por divisão da corda, algo impossível na lira. No entanto, o
instrumento teve papel inexpressivo na cultura musical grega. Seria
por sua pequena intensidade sonora comparando-se às cordas que
vibravam mais livremente e à grande caixa de ressonância da cítara?
É possível que os gregos, aficionados das grandes apresentações ao
ar livre, não achassem o instrumento adequado a suas competições e
festivais. Outra hipótese é a dificuldade de mudança de todo um
sistema que, como vimos, apoiava-se nos instrumentos de cordas do
tipo lira e harpa.
Curiosamente, a classe das liras não se desenvolverá na
história da música ocidental, ficando restrita à música dos povos
africanos e asiáticos. os instrumentos do tipo psaltério terão uma
longa trajetória no Ocidente. Além da presença marcante na música
renascentista, serão importantes no impulso da ciência musical com
Vincenzo Galilei, que era alaudista e discutiu questões de afinação a
partir de seu instrumento. Marin Mersenne, no Segundo livro dos
instrumentos da sua obra Harmonia Universal, dedicado mais
amplamente a questões de afinação, inicia o trabalho pelo estudo
detalhado do alaúde.
Cynthia S. de Gusmão
26
6. A afinação e os gêneros musicais
A prática de afinação dos instrumentos de sete, oito ou mais
cordas gregos provavelmente assemelhava-se ao mecanismo
babilônico mencionado anteriormente, partindo das consonâncias de
quartas e quintas. Os músicos conhecem a praticidade desse tipo de
sistema, registrada por Aristóxeno: “nossa percepção é mais
confiável no que diz respeito aos intervalos de tamanhos consonantes
que dos não consonantes e a afinação dos intervalos não consonantes
será mais precisa quando for alcançado através de uma consonância”
(Meibom, 55, 4-7). Esse processo de afinação era chamada do
lépsis diá symphonious, ou seja, a “pegada” da afinação pela
consonância.
O sistema musical grego desenvolveu-se admiravelmente e
alcançou uma enorme sofisticação, como demonstra a classificação
dos gêneros musicais, definidos pela distribuição dos intervalos nos
tetracordes que, por sua vez, formavam as escalas ou os modos.
Esses modos podiam organizar-se em tropos a partir de
transposições.
No gênero diatônico, o tetracorde era dividido em dois tons e
um semitom. Os outros dois gêneros, cromático e enarmônico,
apresentavam distâncias de tom e meio e meio-tom (cromático) e de
dois tons e quarto de tom (enarmônico). Aristóxeno vai considerar o
gênero diatônico o mais “natural”: “o diatônico deve ser considerado
o primeiro e mais antigo, pois a natureza do homem o conduziu a ele
primeiro, depois ao cromático e, por último, ao enarmônico, que é o
último com o qual a nossa percepção acostuma-se e depois de muito
esforço” (Meibom, 19, 14-17).
Essa definição aristoxeniana acerca do gênero diatônico, no
entanto, entra em contradição com outro trecho um tanto obscuro do
Elementos de harmônica no qual o autor fala dos “antigos modos de
Cynthia S. de Gusmão
27
composição” (Meibom,23,7-9), provavelmente referindo-se ao gênero
enarmônico
10
. A pequena confusão histórica deve-se ao fato de não
existir ainda uma concepção de abordagem rigorosa da história da
música, disciplina que Aristóxeno iniciava propriamente a delimitação.
De qualquer modo, sua preocupação, ao definir a ciência do mélos,
era estabelecer pontos fixos e, para tal, o gênero diatônico era
exemplar. Como veremos, a afinação proposta pelos pitagóricos
também estava centrada no gênero diatônico.
No século IV a.C., as escalas abrangiam quinze ou onze tons,
formando o “Grande Sistema Perfeito”, com quatro tetracordes
encaixados e o “Pequeno Sistema Perfeito”, com três tetracordes.
Quando iniciamos o estudo da música grega da Antiguidade,
chama a atenção a inexistência de uma transmissão direta, que
ocorreu em outras civilizações de cultura musical muito antiga e
altamente sofisticada, como a da Índia, por exemplo. A música grega
e os instrumentos musicais de época tiveram de ser reconstituídos
por meio de estudos empreendidos por especialistas em refazer os
parcos papiros, decifrar a escrita musical em muros ou em
fragmentos esparsos. E isso só teve início no século XIX.
Com o desenvolvimento da escrita alfabética, no século V a.C.,
os antiquíssimos poemas homéricos foram cristalizados no aspecto
visual da letra. Os jovens estudantes de música seguiam aprendendo
de memória, sem fazer uso da escrita. Os profissionais contratavam
os melógrafos que se encarregavam da escrita musical. A escrita
musical facilitava o intercâmbio nessa época em que era grande a
curiosidade, por exemplo, em saber qual a última ária de Eurípides;
por outro lado, fez ruir o processo de transmissão oral, e a música
praticada na Grécia ficou restrita a frágeis suportes sujeitos às
intempéries do tempo. Os fragmentos de escrita musical grega que
10
Ver, a esse respeito, Rosetta da Rios (1954, p.34, nota 2). Del Grande cita o
Fragmento W.85 de Aristóxeno, no qual ele reconheceria também a anterioridade
do gênero enarmônico (1960, p. 402) .
Cynthia S. de Gusmão
28
sobreviveram estão basicamente relacionados ao teatro e à poesia. A
música instrumental, por ser mais complexa e mais virtuosística,
quase não foi preservada.
Assim, a música grega praticamente desapareceu no contato
com a força do Cristianismo, que, no entanto, manteve a tradição dos
modos sistematizados apesar das conhecidas – e talvez deliberadas –
alterações nas denominações dos modos. Os padres da Igreja talvez
tivessem em alta consideração as recomendações de Platão e
Aristóteles sobre o poder da música e inverteram os modos pagãos,
esperando, assim, inverter os mundos.
Mas se a música grega permanece enevoada no tempo, o
mesmo não aconteceu com a ciência musical grega, que influenciou
radical e silenciosamente a música ocidental como um todo. O início
se com Pitágoras, cujos experimentos lançaram os fundamentos
de toda a especulação físico-matemática da música do Ocidente,
muito embora a redução da música à matemática tenha colocado
problemas para serem resolvidos pela teoria musical subsequente.
Cynthia S. de Gusmão
29
CAPÍTULO II
AS ORIGENS MATEMÁTICAS DA HARMÔNICA
1. As disciplinas matemáticas
No século VI a.C., ocorre a primeira explicação matemática dos
tons musicais, mais especificamente das consonâncias, symphoniai. A
descoberta, que se deu no âmbito da escola pitagórica, marca o início
da harmônica. Os estudos são dificultados tanto pela falta de
documentos quanto pelo excesso de lendas e anedotas sobre
Pitágoras (c. 580/78 497/6 a.C.). Assim, o legado da escola
pitagórica é reconstituído a partir de alguns poucos fragmentos do
século V a.C., textos dos séculos IV e III a.C. e comentadores
posteriores.
As especulações sobre a natureza empreendidas pelos
primeiros pitagóricos eram puramente matemáticas. Por exemplo,
nos sistemas astronômicos que desenvolveram, tudo se movia em
um espaço geométrico perfeito: os corpos celestes eram descritos
como esferas que se moviam em círculos, figuras e movimentos
matematicamente perfeitos. Como observa Thomas Heath, a
astronomia pitagórica “é pura matemática, é geometria combinada
com aritmética e harmonia (...). As matemáticas pitagóricas,
portanto, são uma ciência única, e a sua ciência é toda matemática”
(1981, p.165).
Esse corpo de disciplinas estava entrelaçado pela concepção de
número, formando um grupo denominado na Antiguidade de ciências
irmãs. Uma das referências mais antigas a esse conjunto está no
fragmento da obra Harmonia de Arquitas de Tarento (c. de 400 a 365
a.C.): “De fato, sobre a velocidade dos astros, sua ascensão e
Cynthia S. de Gusmão
30
declínio, transmitiram-nos (os matemáticos) claros conhecimentos;
também sobre geometria, ciência dos corpos celestes e não menos
sobre música. Pois essas ciências parecem ser afins; pois se ocupam
de coisas afins: as duas formas primeiras do ser” (DK 47, B 1).
O termo grego máthema significava em sua origem estudo,
conhecimento. Para os pitagóricos, o conhecimento estava
diretamente relacionado à ciência dos números. A música era
considerada uma das matemáticas por se ocupar das razões e das
proporções numéricas. É esse sentido original que está presente na
obra de Platão, onde aparece pela primeira vez o termo harmônica,
no neutro plural grego harmoniká (Cf. Barker, 2007, p. 6, nota 1).
No diálogo Fedro, Sócrates explica que saber se uma corda é mais
grave ou mais aguda faz parte da mathémata necessária, ou seja, do
aprendizado da música. Mas para que alguém seja verdadeiramente
músico, deve conhecer tá harmoniká (268e).
11
No período clássico, as disciplinas matemáticas estarão
integradas à educação básica. No diálogo platônico Teeteto, Sócrates
questiona o jovem Teeteto sobre as disciplinas que aprende com seu
professor Teodoro. Teeteto afirma que estuda as quatro disciplinas
matemáticas geometria, astronomia, música (harmonias) e
aritmética (logísmous) e ainda técnicas (téknai) como o ofício de
sapateiro e outros (145a-d). Em Leis, a ideia de tría mathémata
surge mais definida (817e, apud Heath, 1981, p. 19). Seria o grupo
da aritmética, geometria e astronomia. No Epinomís é acrescentada a
música (990c-991a).
Em seu livro Timeu, Platão descreve como a alma do mundo tece
o mundo corpóreo “sem música nem ruído” (aneu phtongou kái
ekes), sem nenhuma referência também a ritmo. A narrativa
terrificante é a descrição dessa música teórica, que seria irmã da
11
No trecho do Fedro em questão, o músico diria ao não músico: “Conheces o
estudo básico da harmonia, mas não a harmônica” (ta gár pro harmonias anankaia
mathémata epístasai all’ou tá harmoniká).
Cynthia S. de Gusmão
31
astronomia teórica, tal como apresentadas por Sócrates no Livro VII
da República: “tal como os olhos fixam-se na astronomia, assim os
ouvidos fixam-se no movimento harmônico, essas duas ciências são
irmãs, tal como dizem os pitagóricos, e nós concordamos” (530d).
Platão defendia que deveríamos nos concentrar não nas estrelas
e seus movimentos, mas no céu abstrato da matemática, ou seja,
não na beleza do céu, mas na beleza da teoria que os astros
imitam. A astronomia estuda o movimento dos corpos, o
movimento “harmonioso” (enarmónious phorá) ocorre a partir das
leis da harmonia. Contudo, esse movimento harmônico não é uma
referência aos movimentos dos tons no tempo, mas a uma ideia
imanente do som musical, em que cada tom possui uma velocidade
de movimento determinada.
Na filosofia aristotélica haverá uma primeira ruptura com essa
concepção de ciência exclusivamente ligada às matemáticas. No
segundo capítulo do Livro II da Física, Aristóteles faz a distinção entre
as disciplinas físicas e matemáticas: os objetos matemáticos podem
ser estudados de maneira abstrata, mas não os corpos naturais ou
físicos, que devem ser investigados pela física.
Aristóteles observa, no entanto, que existem ciências que
trabalham com objetos naturais, de maneira matemática, como
acontece com o som musical: “isso aparece nas mais físicas dentre as
matemáticas: a óptica, a harmônica e a astronomia, pois, de certo
modo, elas se comportam de maneira inversa à geometria; pois a
geometria estuda a linha física, mas ela não é física ao contrário, a
óptica estuda a linha matemática, não enquanto matemática, mas
enquanto física” (Física, II, 2, 194a 7). É conhecida a posição de
Aristóteles no que diz respeito à contestação do pitagorismo. Mas
suas objeções referem-se à metafísica e à astronomia; no que tange
às razões pitagóricas, ele estava de acordo que elas fossem os
princípios dos intervalos musicais e das consonâncias.
Cynthia S. de Gusmão
32
No final do século IV d.C., o autor romano Boécio, em sua obra
Institutione musica incluirá a música no grupo de ciências do
quadrivium, aquelas que lidam com o número, estabelecendo uma
oposição com o que chamou de trivium, que representava as ciências
da linguagem: lógica, gramática e retórica.
12
A música foi dividida em
três partes musica mundana: a harmonia das esferas, dos
elementos e das estações; musica humana: harmonia da alma e do
corpo humano; e musica in instrumentis constituta, que era a música
produzida pelos instrumentos de sopros, cordas e percussão. Essa
divisão criava uma hierarquia de valores e aprofundou a divisão entre
a especulação teórica da música e sua prática. Em um eco da filosofia
platônica, para Boécio, apenas aquele que conhecia os princípios da
musica mundana poderia ser chamado musicus.
Essa busca pela “verdadeira ciência” produzirá efeitos colaterais
negativos flagrantes na prática musical pois tão logo o que é
simples e ideal interage com a multiplicidade, instauram-se os
conflitos. O encaixe harmônico entre os dois mundos não está dado.
Um exemplo disso ocorrerá no século XVI, quando um problema
técnico de afinação levará à contestação de todo o pensamento
subjacente à teoria musical pitagórica.
2. As razões numéricas musicais
Pitágoras nasceu na ilha de Samos, um dos povoamentos
gregos na costa da Ásia Menor. A partir dessa posição geográfica
privilegiada, relatos de que ele teria visitado o Egito, a
Mesopotâmia e mesmo a Índia, até transferir-se, por volta dos seus
50 anos, para o ocidente grego (Cf. Jâmblico, 2003, p. 29-36.). Tanto
a matemática egípcia quanto a babilônica utilizava como constitutiva
12
O quadrivium reunia a aritmética, que trabalha com o número em si mesmo; a
geometria, com as magnitudes imóveis; a astronomia, com as magnitudes móveis,
e a música, com as razões e proporções.
Cynthia S. de Gusmão
33
da ideia de número o conceito de frações como representação das
divisões de um todo. Contudo, na Grécia, uma fração era vista como
uma razão, ou seja, uma relação entre números inteiros. Como
explica Boyer, “um tal ponto de vista, que focaliza a atenção sobre a
conexão entre pares de números, tende a por em relevo os aspectos
teóricos do conceito de mero e a reduzir a ênfase no papel do
número como instrumento de cálculo ou de aproximação de medidas”
(1999, p.36).
O ponto de partida da Harmônica ocorre justamente quando as
consonâncias são descritas como relações entre números ou razões
numéricas: 2:1, a oitava; 3:2, a quinta e 4:3, a quarta.
13
A teoria é
atraente por sua beleza e simplicidade, pois desvela com os quatro
primeiros meros o fato das consonâncias serem agradáveis ao
ouvido.
Com a tradução do som musical, mais precisamente, dos
intervalos musicais, em razões numéricas, Pitágoras ou os pitagóricos
descobriram as mais antigas leis quantitativas da acústica e, talvez,
da física matemática: a proporcionalidade inversa entre a altura e o
comprimento de uma corda vibrante. Teria a descoberta partido de
uma observação empírica? E se a resposta for afirmativa, em que tipo
de aparato científico ou instrumento musical foi feita a observação?
Ou teria partido de uma hipótese absolutamente teórica? De qualquer
maneira, as razões numéricas realizaram uma síntese que, para os
pitagóricos, confirmava a existência de uma analogia entre a
harmonia e toda a natureza por meio de um princípio de unidade e
coesão: o número.
O discurso pitagórico tinha também caráter sagrado. Um
aspecto que costuma ser relacionado à descoberta das razões das
consonâncias é de origem simbólica. Os números 1, 2, 3 e 4
13
A atribuição desse feito a Pitágoras é dada não por seus seguidores, mas
também por representantes de outras escolas. Ver Delatte (1974, p. 258).
Cynthia S. de Gusmão
34
formavam a tetráctys, uma das partes essenciais da aritmologia
pitagórica. A tetráctys era considerada o princípio organizador do
cosmo. Várias analogias eram estabelecidas a partir dela. Na
natureza, as coisas estariam dispostas em conjuntos de quatro. Era
possível desenhar o primeiro sólido com quatro pontos no plano. A
soma dos quatro primeiros números resulta no número dez,
considerado perfeito por vários motivos, por exemplo, por reunir as
quatro dimensões: um: o ponto; dois: a reta; três, o triângulo e
quatro, o primeiro poliedro, o tetraedro. É difícil saber exatamente
como esse simbolismo místico impulsionou a descoberta das razões
das consonâncias mas a tetráctys talvez possa ser considerada a
chave da descoberta das leis acústicas dos intervalos musicais. A
coincidência das razões dos quatro primeiros números com a
harmonia consonante confirmava a aritmologia pitagórica, que
determinou, dessa forma, o caminho da ciência musical do Ocidente.
3. A coesão harmônica da natureza
A primeira fonte escrita que chegou até nós dessa proto-ciência
pitagórica são os fragmentos do livro Sobre a natureza, de Filolau de
Crotona, que viveu aproximadamente de 470 a 385 a.C., na cidade
de Crotona, sul da Itália, onde floresceu a escola pitagórica e na qual,
de acordo com a tradição, viveu o próprio Pitágoras. Segundo
Diógenes Laércio, Filolau foi identificado por Aristóxeno que tinha
conexões fortes com os pitagóricos, pois seu pai pertenceu à escola –
como sendo da última geração de pitagóricos (D.L. VIII 46, apud
Huffmann, 2005, p.2.). Nos fragmentos de Filolau, encontramos
também temas comuns à filosofia pré-socrática, como o conceito de
harmonia.
Na filosofia de Empédocles de Agrigento (c. 490-435 a.C.), a
harmonia é um princípio de coesão dos elementos e tem seu oposto
Cynthia S. de Gusmão
35
em neíkos, princípio de separação e destruição. Para Heráclito de
Éfeso (c. 540-470 a.C.), o elemento contrário é parte da estrutura
harmônica: “não compreendem como o divergente consigo mesmo
concorda; harmonia de tensões contrárias como a do arco e da lira”
(DK 22 B 51). A palavra grega palíntonos, traduzida aqui pela
expressão de tensões contrárias, enfatiza a noção de simetria de
tensões, presente no termo harmonia que, até hoje, traz subjacente
essa concepção de equilíbrio de forças.
A raiz grega da palavra harmonia, >har, define um campo
semântico relacionado às ações de ajustar, articular, encaixar. O
substantivo harmós, portanto, pode ser traduzido por articulação,
junção, encaixe e pertence também à esfera da visão e do tato como
palavra técnica utilizada por carpinteiros e construtores. Para alguns
autores essa seria sua primeira acepção, depois passando a
integrar o campo da acústica (Spitzer, 2009, p. 160, nota 8). Entre os
vários empregos na música grega, harmonia é um sistema de
afinação, no qual o músico “encaixa” auditivamente um padrão de
notas no momento em que afina o instrumento.
No primeiro fragmento da obra Sobre a natureza, de Filolau,
encontra-se uma definição de natureza baseada na harmonia: “a
natureza (physis) no kósmos foi harmonizada (harmonizein) a partir
de coisas ilimitadas e limitadas, tanto o kósmos em seu todo, quanto
tudo que há nele” (DK 44 - B-1). É um topos da filosofia pré-socrática
o questionamento acerca dos princípios da natureza, além de
concebê-la como ordem; a sua constituição se a partir de
elementos como água, fogo, ar, ou de pares como quente/frio,
denso/rarefeito. Também o par limitado/ilimitado aparece, como em
um fragmento de Anaxímenes em que o ar é a origem da natureza, e
ilimitado (DK 13 A 5). Filolau, no entanto, não aceita relacionar o
ilimitado com qualquer elemento ou identificá-lo com o princípio do
kósmos. A chave está no conceito de harmonia.
Cynthia S. de Gusmão
36
No fragmento seguinte, Filolau explicita o papel da harmonia no
encaixe entre ilimitado e limitado: “Visto que esses dois princípios
(limitado e ilimitado) não são iguais, nem de iguais famílias, seria
impossível criar-se um kósmos com eles, se não se acrescentasse a
harmonia, de qualquer maneira que ela tenha vindo a ser. As coisas
iguais e de iguais famílias em nada precisam, pois, de harmonia; mas
as desiguais (como os dois princípios) não de famílias iguais e não
igualmente dispostas, são necessariamente fechadas em tal harmonia
que se destina a conter-se em uma ordem” (DK 44 B 6).
O tratado de Filolau foi bastante respeitado em seu tempo e foi
lido, ao que parece com muito cuidado, por Platão. No diálogo Filebo,
Platão adapta a cosmologia de Filolau a seus propósitos,
desenvolvendo a ideia dos dois princípios limitado e ilimitado no
âmbito da alma humana. Sócrates, Filebo e Protarcus discutem qual é
o maior bem: o prazer (hedoné) ou a prudência (frónesis). Em defesa
do conhecimento, Sócrates argumenta que o prazer, e seu oposto, a
dor, por possuírem graus de intensidade, pertencem à classe do
ilimitado. a prudência, que traz implícita a ideia de número e
medida, ao limitado. E, em uma ressonância pitagórica, Sócrates
um exemplo de limitado e ilimitado na música. O som é uma coisa só,
e ilimitado, pois admite gradações: é possível perceber se um som é
grave, agudo ou intermediário. No entanto, isso não torna ninguém
músico; apenas “quando tiveres alcançado o número e a qualidade
dos intervalos da voz com relação ao tom agudo e grave, e os limites
dos intervalos (tous hórous ton diastémata) e todas as combinações
(systémata) derivadas deles, as harmonias, e ainda os efeitos
correspondentes nos movimentos do corpo (...) medidos pelo
número, chamados de ritmos e medidas (...) terás te tornado
músico” (Filebo, 17 b-e). Ou seja, quando o som é (de)limitado pelo
número, torna-se tom musical. Argumento semelhante encontramos
no Fedro, como apontamos no início deste capítulo.
Cynthia S. de Gusmão
37
4. A fixação da escala
A harmonia “fechada em uma ordem” é descrita no segundo
parágrafo do fragmento acima referido, tal como disposto na edição
Diels-Kranz,
14
e a sua tradução apresenta algumas peculiaridades
importantes. Em geral, o início costuma ser traduzido assim: “A
harmonia abrange uma quarta e uma quinta; a quinta é maior que a
quarta por um tom” (DK 44 B 6). Poderíamos fazer uma tradução
mais literal do texto: “O tamanho (mégethos) da harmonia é quarta e
quinta”, mas ainda assim estaríamos longe do seu significado preciso.
A harmonia, aqui, refere-se à oitava. Filolau utiliza o termo harmonia,
em vez de diapason, o que enfatiza a coerência e unidade do sistema.
Além disso, não aparecem os termos diapente para a quinta e
diatessaron para a quarta. A harmonía é formada por syllaba e
di’okseian. Syllaba na linguagem corrente musical antiga equivalia ao
intervalo de quarta, substantivo do verbo syllambánoi, pegar junto,
reunir.
15
Esse termo refere-se a algo bem concreto: as cordas abaixo
dos dedos do músico em uma posição inicial na lira ou na cítara, e
abrangendo uma quarta. O mesmo para di’okseian, que significa:
através das cordas mais agudas e seriam as cordas restantes, mais
agudas, tangidas a partir da syllaba, formando um intervalo de
quinta.
Andrew Barker fez um estudo detalhado desse parágrafo do
fragmento e suas conclusões são oportunas para o desenvolvimento
das questões suscitadas no decorrer deste trabalho. De acordo com
Barker, essas expressões no texto de Filolau “parecem vir da
14
Existem dúvidas filológicas a respeito da reunião dos dois parágrafos.
15
Em português a sílaba, em geral, é a reunião de uma consoante e uma vocal.
Eram comuns, no período clássico grego, as analogias entre a linguagem verbal e a
musical; no Filebo, o personagem Protarcus diz que compreendeu melhor o
argumento socrático, que se havia utilizado da música para desenvolvê-lo, quando
isso é feito tomando por base o alfabeto.
Cynthia S. de Gusmão
38
linguagem dos músicos, em vez dos filósofos e cientistas, e harmonia
habita ambas as esferas”. Ou seja, a linguagem nesse trecho não
envolveria lculos matemáticos, fazendo uma “referência direta aos
componentes da afinação que se apóiam em posições específicas, e
não a tamanhos de intervalos que independem das suas posições das
cordas no instrumento” (2007, p.275-8).
A afirmação é adequada no que diz respeito à primeira oração,
contudo, na segunda: “a quinta é maior que a quarta por um tom”, o
termo grego utilizado para tom não é tonos, mas epógdon. Em grego
ogdóos significa oitavo e epógdoos é o que contém um inteiro mais
um oitavo, ou seja, a razão 9:8. A razão do tom também foi
apresentada pelos pitagóricos, apesar de fugir do esquema dos
quatro primeiros números inteiros, pois o intervalo não era elencado
entre as consonâncias. De qualquer maneira, parece-nos que se está
presente o termo oitavo, é porque a escala está claramente dividida
em oito. A menção a essa localização do epógdoon retorna adiante no
fragmento com um significado ligeiramente diferente.
Para compreender a escala de Filolau, é preciso saber que,
nesse sistema, as consonâncias são nitidamente distintas dos outros
sons do tetracorde, com exceção do tom inteiro. De acordo com
Cleônides, teórico do século I d.C., “os intervalos sinfônicos são
diatessaron [a quarta], diapente [a quinta], diapason [a oitava] e os
assemelhados [provavelmente os compostos: quinta ou quarta mais
uma oitava]. Os intervalos diafônicos são todos aqueles menores que
diatessaron e aqueles que ficam entre os intervalos sinfônicos” (Apud
Grande, 1960, p.403). Esses outros sons, para os pitagóricos,
pertenceriam à classe do apeíron, do ilimitado (ou indefinido). As
quatro notas do tetracorde dividiam-se em fixas e móveis. As
consonâncias eram formadas pelas fixas (ou fixadas por elas). Como
comenta Paul Tannery: “ele (Pitágoras) se satisfez em determinar os
sons fixos (do sistema musical grego); e deixou de lado, na classe do
Cynthia S. de Gusmão
39
indefinido (apeíron), a múltipla variedade dos sons móveis” (1912, p.
80).
Assim, Filolau inicia a construção da escala pelas consonâncias
(notas fixas): “Da hypate subindo até a mése, temos uma quarta, da
mése até a te, uma quinta, da néte descendo até a tríte, uma
quarta, da tríte ahypate, uma quinta.” (DK, 44 B 6). Aqui, o mais
importante não é o nome das notas e a sua posição, mas o fato de
Filolau descrever os sons fixos consonantes da escala. A ênfase está
na demonstração de que os intervalos consonantes podem ser
formados com qualquer combinação de notas, ou seja, os intervalos
são elementos autônomos. A escala pode ser ascendente ou
descendente, não importa, o modelo é coeso, harmônico, pois as
quartas e quintas entrelaçam (“fecham”) a oitava. E suporta
inversões, basta os intervalos (diásthemata) manterem o seu
tamanho (mégethos).
De acordo com Winnington-Ingram, nem todas as escalas
antigas abrangiam uma oitava, existiram muitas formações de
escalas. Para ele, o “sentimento da oitava não é um desenvolvimento
primitivo da consciência”
(1968, p. 23). Se for assim, a partir de
um determinado momento a oitava começou a ser percebida como
uma consonância importante e, mais do que isso, como um intervalo
musical. E o mesmo deve ter ocorrido com os intervalos de quarta e
quinta. O fato é que após terem sido percebidos como tais poderia
ocorrer o salto fundamental: a sua tradução em razões numéricas.
Mas, no momento em que Filolau escreve, havia essa
consciência, portanto, o texto não exporia nada de novo. Porque é
perfeitamente possível saber de maneira empírica que a oitava é a
reunião da quarta e da quinta e que a quinta é maior que a quarta. O
autor parece falar em uma linguagem intermediária, preparando o
discurso para introduzir as razões numéricas, que talvez ainda fossem
uma novidade. O kósmos era percebido como beleza ordenada,
Cynthia S. de Gusmão
40
essa ideia estava colocada. O assunto agora era da maior
importância: as razões musicais confirmariam a lei da harmonia como
raiz fundante da natureza. De acordo com a concepção pitagórica,
tudo que existe poderia ser expresso por um número, mas a música
revelava que as coisas eram, elas mesmas, invisível e intimamente,
números. O número seria de fato o elo entre todas as coisas,
revelador dos princípios de analogia e semelhança.
E partindo desse ponto, acessível a qualquer cidadão grego com
sua educação musical básica, Filolau avança firme no terreno
matemático: “Entre a mése e a tríte, um tom. A quarta é epitríte
(4:3) a quinta (3:2) hemíolion e a oitava é dupla (2:1)” (DK, 44 B 6).
Como no início, o termo grego utilizado para tom não é tonos (a
diferença de tensão da corda entre os intervalos de quarta e quinta),
mas epógdon, que se refere à razão 9:8.
É importante fazer um parêntese para ressaltar a observação
de Szabó de que Filolau ao dizer que a diferença entre 3:2 e 4:3 é
igual a 9:8, está se referindo a operações efetuadas no cânone, pois
matematicamente não é a subtração que resulta 9:8, mas a divisão
de 4:3 e 3:2 (2000, p.114-5).
16
De acordo com o autor romeno, no
cânone seria possível examinar o intervalo como uma diferença, o
mesmo acontecendo com a inversão entre adição e multiplicação: “da
mesma maneira, é devido à referência a uma operação efetuada no
cânone que se explicam as expressões da música teórica que
exprimem a multiplicação de duas razões como uma adição” (2000,
p.132-3).
16
Cânone é o instrumento que teria sido criado pelos pitagóricos para as
demonstrações visuais das razões numéricas. Diferente de Szabó, autores como
Flora Levin consideram que o cânone seja uma invenção posterior visto que nem
Platão nem Aristóteles falam dele. Consideramos aqui a hipótese de Szabó, pois,
dados nossos insuficientes conhecimentos de matemática, pareceu-nos a única
explicação para as inversões entre subtração e divisão e adição e multiplicação, que
ocorre tamm no Manual de harmônica de Nicômaco de Gerasa. Para uma
explicação detalhada, ver Szabó, 2000, p. 114-5.
Cynthia S. de Gusmão
41
À parte a correção das sutilezas dos cálculos matemáticos, a
construção diferente da frase que repete a razão do tom parece
enfatizar agora a simetria do sistema, em que é necessário ter um
ponto de equilíbrio, justamente o tom inserido “entre a mése e a
tríte”. O épogdon agora não está sendo definido pela diferença entre
a quinta e a quarta, mas é o núcleo da escala e a define.
Esses são os primórdios da teoria musical, tal como praticada
nos círculos pitagóricos. Antes da sistematização pitagórica não
nenhuma evidência de uma base teórica fixa para a afinação das
escalas. Agora, o princípio passava a ser matemático, pois, citando
novamente Szabó: “a empiria não apreende que a diferença entre a
quinta e a quarta é 9:8 e que se deve atribuir à quarta uma razão 4:3
e, à quinta, a razão 3:2” (2000, p.133). Aos poucos não será mais
necessário tocar, medir, ouvir, mas apenas calcular.
5. A coma pitagórica
Filolau formula então o tamanho da oitava e da quarta: “assim
a harmonía abrange cinco tons e duas diésis, e a quarta, dois tons e
uma diésis.Diésis significa a ação de passar, em latim, transitus. A
diésis, na música grega, antiga era o intervalo mínimo de uma
escala; no caso da escala diatônica pitagórica, que é a referência de
Filolau, muito próximo do meio-tom. que o tom não podia ser
dividido ao meio, pois levava a um número irracional, o que era
inconcebível para os pitagóricos, que consideravam a ausência de um
número racional comprometedora da inteligibilidade de algo. Para
contornar esse problema, serão feitos cálculos complicados, buscando
acomodar a dificuldade e assim completar a escala musical.
Assim, o tom deveria ser dividido em duas diésis (expressa pela
simpática razão de 256:243) e mais uma coma (531441:524288!).
Como podemos ver, relacionar alturas apenas a números racionais
Cynthia S. de Gusmão
42
acaba por introduzir alguns problemas, fazendo despontar a
fragilidade do sistema. Por exemplo, se tocarmos 12 intervalos de
quintas na razão 3:2, em série, a última nota deverá ser (3:2)
12
;
ao tocarmos sete oitavas (que corresponderiam ao intervalo das 12
quintas) a última nota seria (2:1)
7
. As duas notas são quase a
mesma, entre elas há uma diferença minúscula, que produz um
intervalo dissonante, a coma pitagórica.
Essa dificuldade será solucionada mais tarde com a divisão
da escala em meios-tons, o temperamento igual, baseado nos
números irracionais. Mas como observa Abdounour: “o experimento
de Pitágoras contribui com a ideia de temperamento na medida em
que propicia a construção de uma escala que não se “fecha”
resultando na coma pitagórica. As diversas tentativas de distribuir tal
diferença culminam com a repartição logaritmicamente equivalente,
correspondente ao temperamento igual” (1999, p. 201).
O que importa agora é considerar o significado como um todo
desse sistema inicial. A música começou a descolar-se da sua origem
em tetracordes e essa nova estrutura matemática será a base da
música ocidental nos próximos dois mil anos, até ser substituída pelo
sistema temperado moderno, que, no entanto, manterá nas relações
sistêmicas da harmonia aspectos da estrutura matemática. A gama
diatônica, tão apreciada pelos pitagóricos por sua simetria, irá tornar-
se, gradativamente e com variações de afinação, a escala de
referência da música ocidental.
O destaque aos intervalos de quintas é um prenúncio do ciclo
da quintas do sistema tonal, quando a quarta será tratada como
dissonância, ou semi-dissonância. Além disso, é importante o fato de
a oitava ser “encaixada” pelas quartas e quintas tanto de cima para
baixo quanto de maneira inversa. Essa concepção da organização
escalar como modelo matemático ressoará no século XVIII na teoria
da inversão dos acordes de Jean-Philippe Rameau (1682-1764).
Cynthia S. de Gusmão
43
6. A cosmologia pitagórica
O livro de Filolau é o testemunho do nascimento da ciência
harmônica que, buscando padrões numéricos simples de articulação
entre o visível e o invisível (por exemplo, corda/som), reduz a
multiplicidade à unidade, dando inteligibilidade à natureza: “sem ele
(o número) todas as coisas são ilimitadas, obscuras e imperceptíveis”
(DK 44 B 11). Em vez de buscar uma substância primordial, como
outros pensadores da época, os pitagóricos encontraram um princípio
imaterial com forte potencial de organização hierárquica. Nas
palavras de Aristóteles: “como vissem nos números as modificações e
as proporções da harmonia e, enfim, como todas as outras coisas
lhes parecessem, na natureza inteira, formadas à semelhança dos
números, e os meros as realidades primordiais do universo,
pensaram eles que os elementos dos números fossem também os
elementos de todos os seres, e que o céu inteiro fosse harmonia e
número.”
17
Para Filolau, “tudo que é possível de ser conhecido tem um
número”, a inteligibilidade das coisas é dada pelo número: “pode-se
ver a natureza do número e sua potência em atividade, não nas
(coisas) sobrenaturais e divinas, mas ainda em todos os atos e
palavras humanos, em qualquer parte, em todas as produções
técnicas e na música”
(
DK 44 B 11). As especulações musicais
estavam inseridas no contexto de uma cosmologia, que era na
verdade uma filosofia que, por sua vez, fazia a conexão entre várias
áreas do conhecimento, da astronomia à medicina.
A teoria astronômica pitagórica tem o seu lugar na história da
astronomia como um todo. Os pitagóricos teriam sido os primeiros a
sustentar a ideia de que a Terra e o universo tinham a forma esférica
17
Metafísica, I, Cap. V. Trad. de Vinzenzo Cocco. Coleção “Os Pensadores”. São
Paulo, Abril, Cultural, 1979, p. 21.
Cynthia S. de Gusmão
44
(Cf. Heath, 1981).
18
É difícil verificar como eles teriam chegado a
essa conclusão, talvez pela observação dos eclipses. Contudo,
considerando o caráter essencialmente matemático de sua filosofia da
natureza, é possível que a suposição fosse “puramente matemática”,
como diz Heath, “ou estético-matemática; ou seja, Pitágoras atribuiu
a forma esférica à Terra (assim como ao universo) pela simples razão
de que a esfera é a mais bela das figuras sólidas” (1981, p.162-3).
O pitagorismo desenvolveu uma cosmologia não-geocêntrica e,
na Renascença, Copérnico fez referência aos pitagóricos ao defender
o heliocentrismo. Filolau, em seu livro, diz que a Terra e os sete
planetas, o que incluía a Lua e o Sol, giravam em torno de um fogo
central. Haveria ainda uma contraterra, colinear à Terra, perfazendo
o número dez (DK 44 B 17). Para Aristóteles, a inclusão dessa
contraterra destinava-se a perfazer o número 10, ou seja, por um
motivo matemático, estético e simbólico, o kósmos seria mais
perfeito assim.
Nessa teoria cosmogônica de Filolau “o kósmos é um e
começou a vir a ser a partir do centro, e do centro para cima, nos
mesmos intervalos (diásthemata) que os de baixo” (DK 44 B 17). Os
corpos celestes são esferas e movem-se em círculos, um espaço
ideal, em que suas distâncias são intervalos, diasthemáta, como
vimos, termo também utilizado para os intervalos musicais. Tal como
a escala musical, a teoria astronômica é perfeitamente simétrica.
Para Heath, a astronomia pitagórica “é pura matemática,
combinada com aritmética e harmonia. A descoberta capital de
Pitágoras da dependência dos intervalos musicais das proporções
numéricas levou seus sucessores à doutrina da “harmonia das
esferas” (1981, p. 165).
18
Contudo, de acordo com Boyer (1999, p. 38), existem contestações acerca dessa
tradição, que atribui o conceito de terra esférica aos pitagóricos.
Cynthia S. de Gusmão
45
As teorias acústicas que relacionavam a velocidade com a
característica do som estendiam-se ao movimento dos planetas: os
mais velozes produziriam sons mais agudos que os mais lentos. E as
distâncias entre eles corresponderiam às razões numéricas musicais.
Apesar de combatida por Aristóteles
19
, detalhes dessa cosmologia são
descritos por seu comentador Alexandre de Afrodísias, do século III
d.C.,
conhecido como o último comentador peripatético, “esse som
que eles (os planetas) produzem durante seu movimento é profundo
no caso dos mais lentos e alto no caso dos mais rápidos; esses sons
então, dependendo da razão das distâncias, soam de modo que seu
efeito combinado é harmonioso”
(
Apud Hunt, 1978, p.12).
Esse mito é relatado na República de Platão como o mito de Er,
o soldado armênio que narra uma cosmologia fantástica que ficou
conhecida como o mito da harmonia das esferas (614b-617d). No
Timeu (35b-36c), a escala musical pitagórica é descrita como um
princípio cosmogônico e relaciona-se à escala de Filolau no que diz
respeito à presença dos intervalos (diasthemata) entre os planetas.
No trecho da criação da alma do mundo, o amalgamador
(ksundesantos) cria o universo corpóreo
visível e tangível (31b-
32c), conjugando-o por um elo, o melhor deles: a proporção natural
(pephugen analogia). Em seguida, é criada a alma do mundo, o que
acontece por philia, que pode ser traduzida por amor. Essa criação se
pelo entrelaçamento de números duplos e triplos, quadrados e
cúbicos caracterizando uma criação musical, harmônica. Depois, o
amalgamador preenche os intervalos (diásthemata) aplicando as
médias proporcionais: as médias harmônicas geram intervalos de
quartas e aritméticas, os intervalos de quintas. Por fim, completa os
intervalos de 4:3 com os intervalos de 9:8 deixando uma parte de
cada um deles. O tom será dividido em dois intervalos desiguais,
duas diésis de tamanhos diferentes, chamados léimma (243:256), a
19
Posição esta explicitada, por exemplo, em De Caelo, Livro II, 9, 16-32.
Cynthia S. de Gusmão
46
razão que está em Filolau, e apotomé (2187:2048) (Timeu, 31b-
36b). A escala avança de maneira ortodoxa por quatro oitavas, muito
além do que é acessível à voz humana. Os números
surpreendentemente correspondem à posição dos primeiros
harmônicos.
A cosmologia pitagórica está presente na medicina da época. É
bem provável que Filolau conhecesse a obra do médico, também de
Crotona, Alcméon (c. 560-500 a.C.), que teria sido contemporâneo
do próprio Pitágoras. Foi ele que elaborou a teoria da desarmonia
como causa das enfermidades e pode ter sido um pioneiro da
embriologia (Huffman, 2005). Barker, a propósito de seu argumento
de que o discurso de Filolau aproxima-se mais do conhecimento
comum dos músicos que dos matemáticos, chama a atenção para
uma passagem no tratado médico hipocrático De victu, em que o
autor discute o desenvolvimento do feto humano: “quando se
movimenta para um lugar diferente, alcança-se a harmonia correta
contendo as três consonâncias: syllaba, di’okseian e diapason, ele
vive e cresce utilizando os mesmos nutrientes que antes. Mas se ele
não alcançar a harmonia e os elementos graves não foram
consonantes com os agudos, na primeira consonância, na segunda,
ou naquela que passa por tudo [diapason, ou seja, a oitava], se uma
delas estiver faltando, toda a afinação (tonos) é inútil(Apud Barker,
2000, p.280).
Se Filolau ou os mais antigos pitagóricos estavam mais
próximos dos músicos práticos e de uma ciência mais empírica, não
temos como avaliar; contudo, é surpreendente a semelhança do texto
médico com a escala de Filolau, o que reafirma o caráter organicista
da cosmologia pré-socrática e pitagórica. Como observou Max Weber:
“o fenômeno da mensurabilidade dos intervalos “justos” [leia-se
consonantes] foi, uma vez reconhecido, de extraordinária impressão
Cynthia S. de Gusmão
47
sobre a imaginação, como demonstra a imensa mística dos números
ligada a isto” (1995, p. 85).
7. Os desdobramentos da harmônica: Arquitas
Arquitas de Tarento viveu na primeira metade do século IV a.C
e foi contemporâneo de Platão. Além de matemático e filósofo,
Arquitas foi também um aclamado líder político e, segundo contam,
prestava atenção especial às crianças, pois teria sido o inventor de
um pequeno chocalho para acalmá-las. No ano de 361 a.C., Arquitas
foi o responsável pelo envio de um navio para resgatar Platão das
mãos do tirano de Siracusa, Dionísio II. Segundo alguns estudiosos, a
Sétima carta de Platão, em que ele narra a experiência em Siracusa,
seria endereçada ao próprio Arquitas (338a-339d). Apesar disso, os
dois tinham desentendimentos em questões matemáticas, filosóficas
e políticas.
Arquitas esteve envolvido em vários ramos da atividade
científica, todos eles interligados pelas propriedades do mero. Ele
radicalizou o pensamento analógico pitagórico, estendendo-o às
téknai como a mecânica. Dedicou-se intensamente à música,
avançando nas questões de afinação da lira e sofisticando os cálculos
das razões numéricas e das médias proporcionais. De certa forma,
ele aproximou a harmônica do fenômeno da experiência musical. Ao
mesmo tempo em que avançou no campo da física acústica, Arquitas
introduziu mais rigor ao lculo das razões numéricas musicais e
propôs novas afinações da escala, calculadas por meio das chamadas
médias proporcionais.
Na harmônica pitagórica não é possível dividir os intervalos
básicos na metade. Portanto, a oitava não pode ser dividida em duas
partes iguais, deve ser dividida em uma quarta e uma quinta. Em
linguagem tonal moderna, podemos exemplificar isso dizendo que a
Cynthia S. de Gusmão
48
oitava não poderia ser dividida por seu trítono (aliás, a grande
dissonância, responsável pelo desenvolvimento da tonalidade), assim
como o tom. Por outro lado, é possível dividir a dupla oitava na
metade. Baseando-se nessas duas propriedades, Arquitas produziu
uma rigorosa prova para as razões epimóricas ou superparticulares
(2:1, 4:3, 3:2 e 9:8), razões do tipo n+1:n, dizendo que elas não
poderiam ser divididas em duas partes iguais. Essa afirmação será
apresentada ligeiramente modificada no início do século III a.C. na
famosa e problemática Proposição 3 da obra A divisão do cânone,
como veremos adiante.
8. As médias proporcionais
O sistema cosmológico pitagórico de encaixes articulados
harmonicamente tinha sua expressão matemática nas médias
proporcionais que, no âmbito da teoria das proporções, promoviam a
união entre as disciplinas matemáticas (Szabó, 1977, p.107).
A teoria das proporções relação entre duas razões
desempenhou papel crucial na epistemologia pitagórica e, de acordo
com Heath, foi desenvolvida “muito cedo na sua escola com
referência à teoria da música e aritmética”
(1981, p. 85). Dizem que
foi entre os babilônios que Pitágoras teria conhecido as médias
aritmética, geométrica e subcontrária, a qual Arquitas mais tarde
renomearia para harmônica, e ainda, a proporção áurea.
Uma média proporcional é uma relação matemática constante
que cria uma analogia entre dois termos, através de um terceiro. Os
pitagóricos generalizaram o conceito de média proporcional e
chegaram ao número de dez médias proporcionais. Coincidentemente
ou não, duas delas, quando aplicadas ao comprimento de uma corda,
geram duas das consonâncias perfeitas: a quarta e a quinta. A razão
Cynthia S. de Gusmão
49
4:3, o intervalo de quarta, é obtida pela média harmônica da divisão
da oitava (2:1). O intervalo de quinta (3:2) é a sua média aritmética.
Como esclarece Barker: “quando a oitava é dividida no modo
familiar de duas quartas separadas por um tom, a estrutura é
demarcada em quatro notas, das quais a segunda está para a
primeira na razão 4:3. A terceira nota está para a segunda na razão
9:8. E a última nota está para a terceira na razão 4:3. Portanto, a
razão da terceira nota para a primeira e da última para a segunda é
de 3:2 e a razão da última para a primeira, 2:1. Os menores números
inteiros que captam esse arranjo são 6, 8, 9 e 12” (2000, p. 302). A
média aritmética dos quatro números é 9 (9:6=12:9) e a média
harmônica, 8 (12:8 = um terço de 12 e 8:6 = um terço de 6).
Luigi Borzacchini (2007, p.278) defende que a logística de
Arquitas, que ele proclama como sendo o núcleo das matemáticas,
não era uma arte prática do cálculo, como querem alguns, mas a
ciência das relações entre os números, no sentido dado por Tannery:
“é uma característica da tradição pitagórica que ela apreende os
números em si no mundo visível, mas suas razões no mundo audível”
(2002, p. 70).
O segundo fragmento de Arquitas relaciona três médias, como
pertencentes à música: “a música tem três médias, uma é a
aritmética, a segunda é a geométrica e a terceira é a contraposta que
chamamos de harmônica”
(DK 47 B 2). E segue formulando cada uma
delas. As médias aritmética e harmônica estão relacionadas à divisão
da oitava respectivamente nos intervalos de quinta e quarta.
20
Convém lembrar que as afinações utilizadas na música grega no
tempo de Arquitas e Platão eram bastante sofisticadas e as razões
numéricas de Filolau não davam conta da música real praticada. Além
de formalizar a questão das médias proporcionais, Arquitas introduziu
20
A média aritmética é expressa pela fórmula b=a+c/ 2, a média harmônica
b=2ac/a+c e a média geométrica b
2
=a.b
Cynthia S. de Gusmão
50
essas mesmas médias entre as quartas e as quintas, que, por
analogia, deveriam produzir consonâncias menores.
O procedimento aproximou a escala de novas ressonâncias
presentes na série harmônica musical. Como diz Abdounour, “o
intervalo de terça maior obtido por Arquitas concorda com aquele
presente na série harmônica. Tal fenômeno levar-nos-ia a imaginar
que Arquitas possuísse um ouvido sensível ao perceber que a terça
correspondente a 4:5, mais baixa que a pitagórica, soava mais
natural, uma vez que se fundia exatamente dentro dos harmônicos
naturais de uma nota. Enquanto Pitágoras calcula frações subjacentes
à escala utilizando apenas percursos de quintas, Arquitas considera
fortemente lculos de médias aritméticas e harmônicas na geração
de seu sistema musical” (1999, p. 17).
O matemático e filósofo foi ainda ao interior do tetracorde para
calcular as suas divisões nas três espécies ou gêneros: diatônico,
cromático e enarmônico. Ele busca descrever matematicamente as
escalas então em uso a partir da observação da forma como os
músicos afinavam os instrumentos, distanciando-se da escala
diatônica pitagórica simplesmente porque ela não era utilizada, ao
menos em sua época. A escala de Filolau será constituída das razões
9:8 / 9:8 / 256:243 (três intervalos formando uma quarta) e 9:8 /
9:8 / 9:8 / 256:243 (quatro intervalos formando uma quinta) e
abrangendo a tessitura de uma oitava. A estrutura de Arquitas
mantém-se coesa com o fulcro do epogdoon em seu centro, mas os
intervalos são bem mais complexos.
21
Esses novos lculos dos intervalos foram provavelmente
motivo de desentendimento com Platão, para quem mudar uma
escala faria tremer os muros da sua pólis e introduzir a desordem no
kósmos, visto que, na filosofia platônica, as relações harmônicas
21
Para o gênero enarmônico: 5:4 / 36:55 / 28:27 / 9:8 / 5:4 / 36:55 / 28:27. Para
o gênero cromático: 32:27/ 243:224 / 28:27 / 9:8 / 32:27 / 243:224 / 28:27. Para
o diatônico: 9:8 / 8:7 / 28:27 / 9:8 / 9:8 / 8:7 / 28:27.
Cynthia S. de Gusmão
51
estavam presentes na geometria, na estereometria, através da
analogia entre a superfíce e o volume (Epinomis, 990c-991a) e na
astronomia (Timeu 47 a-b), nos movimentos das órbitas dos astros.
Segundo Barker (2007, p.307), talvez tenha sido endereçado a
Arquitas o comentário sarcástico de Platão no diálogo entre Sócrates
e Glauco na República: “O comportamento deles é ridículo (...)
esticando os ouvidos como que para ouvir a conversa dos vizinhos,
alguns deles dizendo que conseguem ouvir um som entre dois, (...)
colocando os ouvidos antes da mente (noûs). Você está falando eu
disse daquelas pessoas que torturam as cordas do instrumento
esticando-as com as cravelhas para interrogá-las (...)”.
22
Em Platão, a ciência do número distancia-se da técnica e da
arte. No diálogo Epinomis, o personagem estrangeiro de Atenas, após
pedir perdão aos predecessores, faz uma extensa relação das ciências
que não levam à virtude e à sabedoria. No catálogo, estão listadas a
fabricação de farinhas e fermento e sua transformação em alimento,
a agricultura, a construção, a marcenaria, a serralheria e a fabricação
de ferramentas aa caça, a medicina, o teatro, a pintura, a prática
musical e a adivinhação, “trabalhos úteis para a sociedade, mas que
não entram em consideração quando se trata da virtude (areté)”
(Epinomis, 975 a-976c).
9. A média geométrica e os incomensuráveis
As fórmulas de Arquitas para as médias proporcionais
mencionam, além das médias aritmética e harmônica, a geométrica.
Contudo, não haveria lugar para a média geométrica na divisão da
oitava, que ela não poderia ser dividida em dois subintervalos por
um número inteiro. A questão não se resume ao lculo.
22
Trecho completo na República de Platão, 531a-531c. Vale lembrar que a raiz
indo-européia de tonos é a mesma de stéinen, gemer.
Cynthia S. de Gusmão
52
Musicalmente, a divisão geométrica da oitava o intervalo de uma
quarta aumentada ou uma quinta diminuta, o chamado trítono,
distância de três tons considerada extremamente dissonante. No
contraponto medieval, o trítono levará o sugestivo nome de diabolus,
por dividir a oitava em duas partes. Essa divisão, no entanto, será o
motor da música tonal, que se fixará a partir do século XVII, pois é
uma cisão energética, conduzindo a oitava a duas direções diferentes.
Contudo, se mais tarde o intervalo foi considerado precioso
exatamente por seu caráter dissonante, não era o caso da música
antiga grega. Isso nos leva a considerar as conexões entre a teoria
musical das proporções e a descoberta da incomensurabilidade ou, no
plano das disciplinas matemáticas, entre música e geometria.
Não se sabe ao certo quando e como aconteceu a descoberta
da incomensurabilidade ou ainda a constatação de que os números
inteiros e suas razões eram insuficientes para descrever propriedades
muito simples da geometria, tais como a relação entre o lado e a
diagonal de um quadrado. No final do século XIX, Paul Tannery
investigou o papel da música grega no desenvolvimento da
matemática pura. De acordo ele, em suas Mémoires scientifiques, a
harmônica, assim como as outras três ciências matemáticas, havia
sido contemplada nos Livros 5 e 6 dos Elementos de Euclides. A
ciência musical estaria na teoria das proporções (Livro 5) e na
aplicação dessa teoria (Livro 6). Contudo, as razões entre números
inteiros a propósito dos intervalos musicais teriam sido elaboradas
nos escritos matemáticos anteriores a Eudoxo de Cnido, a quem são
atribuídas as teorias presentes nos dois livros.
Eudoxo desenvolveu
uma teoria das proporções aplicável também às magnitudes
incomensuráveis, correlacionando segmentos de reta sem a utilização
de números.
Para Tannery, a origem da concepção grega de razão é
essencialmente musical. A harmônica teria ainda exercido papel
Cynthia S. de Gusmão
53
considerável na noção de incomensurável e na criação dos
procedimentos de cálculo por aproximação de valor das raízes
quadradas (1902, p. 68-69).
No final da década de 1970, Arpád Szabó também propôs que a
teoria das proporções houvesse surgido na teoria musical pitagórica.
Para ele, Arquitas fala em média geométrica no fragmento 2 porque
ela teria nascido no contexto da música teórica, em princípio como
um problema insolúvel, do ponto de vista da aritmética (2000, p.105-
11).
Para Szabó, a teoria harmônica seria, assim, um capítulo da
teoria das proporções. Isso teria ocorrido pelo fato de os números
serem representados por segmentos de retas, tal como na obra A
divisão do cânone, atribuída a Euclides. Nela, diásthema, intervalo, é
o termo técnico para logos, razão. E, nos diagramas, (sobre os quais,
no entanto, existem controvérsias sobre quando teriam sido
incorporados à obra) cada intervalo é representado por dois
segmentos de reta, buscando reproduzir a tradução das razões do
monocórdio para um instrumento em que as notas eram produzidas
por cada corda, como a lira, a cítara, o psaltério, ou seja,
instrumentos multicordas.
Outros autores reconhecem uma fase musical na descoberta da
incomensurabilidade. Para Luigi Borzacchini, “a tradução do problema
da música para a geometria foi feita no tempo de Arquitas, Eudoxo e
Teeteto, e foi isso que deu um fundamento para o termo média
geométrica, que não produzia consonâncias musicais, mas tinha
instâncias geométricas fáceis e precisas” (2007, p. 297).
Arquitas foi professor de Eudoxo, que também manteve
contatos com a Academia platônica. Para Borzacchini, no entanto, na
Academia teria havido uma “desmusicalização” da teoria das
proporções e, por isso, ela tornou-se conhecida como um problema
apenas da geometria.
Cynthia S. de Gusmão
54
O autor italiano introduz a questão do par de opostos
discreto/contínuo, ou adição infinita e divisão infinita. A música, que
era considerada pelos primeiros pitagóricos uma ciência da
quantidade discreta, do número, poderia ter sido estendida às
quantidades contínuas (sunékés). Para Borzachinni, “quando a teoria
musical pavimentou a estrada em direção à incomensurabilidade, a
ideia de continuidade geométrica era muito incipiente para
desenvolver ou mesmo compreender tal descoberta. Talvez tenha
sido exatamente a possibilidade do desenho geométrico de um
intervalo musical não existente que promoveu o desenvolvimento da
ideia aristotélica de continuidade” (2007, p. 293). Acreditamos que
aqui haja um exagero do autor; contudo, é possível que a descoberta
dos incomensuráveis tenha ocorrido no contexto de uma relação,
ainda não elucidada, entre música e geometria.
No século XVIII, no Prefácio do Livro III de Harmonia dos
mundos, Kepler uma breve história da afinação musical. O
astrônomo critica os pitagóricos por não terem percebido que os
fundamentos das consonâncias deveriam ter sido investigados no
âmbito da geometria e não da aritmética (Apud Walker, p.42-43).
Para Kepler, como o som é um fenômeno contínuo e a harmonia dá-
se por meio do movimento, os termos das razões musicais são
contínuos e não discretos. Suas causas devem ser buscadas nas
figuras geométricas, o que ele fará.
Uma possibilidade para a presença da média geométrica no
fragmento de Arquitas seria que ele estivesse pensando na divisão de
duas oitavas ao meio, o que resultaria em uma oitava. Mas será que
Arquitas não buscaria uma resposta a partir da geometria? Se assim
for, ele poderia estar fazendo referência a uma média proporcional
que é própria da geometria, pois produz um número irracional, a
proporção áurea. Ela foi definida por Euclides: “dividir em razão
extrema e média uma reta finita dada” (Elementos, Livros II, 11 e VI,
Cynthia S. de Gusmão
55
30, apud Heath, 1981, p.304). Essa proporção correlaciona duas
médias: “o primeiro de dois números está para a sua média
aritmética, assim como a média harmônica está para o segundo
número” (Boyer, 1999, p.38).
Para Boyer essa proporção poderia configurar-se como uma
hipótese para a descoberta dos irracionais. O historiador da
matemática mostra uma propriedade interessante dessa proporção
áurea: ela se autopropaga, sendo o germe de um modo de
crescimento logarítmico. Por exemplo, ela gera a duplicação infinita
de pentágonos. Se traçarmos as cinco diagonais de um pentágono
regular, as cinco linhas formam um pentágono menor, e isso pode ser
feito indefinidamente (Boyer, 1999, p.35).
Como vimos, um dos problemas enfrentados pela afinação
pitagórica dizia respeito à duplicação das quintas e oitavas que
geravam ao fim um intervalo dissonante, a coma pitagórica. Arquitas,
certamente, conhecia o papel da divisão áurea na duplicação dos
lados do pentágono. Não teria ele pensado em aplicar, por analogia,
esse modelo geométrico aos tons musicais?
De qualquer modo, a solução final para a falha da afinação
pitagórica viria com a descoberta dos logaritmos, que possibilitou
a realização completa do temperamento. O procedimento foi criado
pelo matemático escocês John Napier (1550-1617). Como chamou
atenção Tannery, a etimologia do termo logaritmo é o “número da
proporção”,
noção que não foi derivada das progressões de potências
inteiras, mas sim da geometria (1902, p. 68-9).
Arquitas buscou ouvir as ressonâncias dos instrumentos e, com
um poderoso aparato de cálculo, aproximar-se dos números que as
governam. Mas se a harmônica buscava a coerência racional das
consonâncias, o fenômeno acústico pertence, antes de mais nada, ao
reino da sensação e do infinito.
Cynthia S. de Gusmão
56
CAPÍTULO III
TEORIAS ACÚSTICAS DA ANTIGUIDADE
1. Os primórdios da investigação do som
Uma das primeiras referências à natureza propriamente física
do som, independente da música, está no Fragmento 1 de Arquitas,
que fala do resultado do impacto do ar na produção do som: “é
impossível haver som, se não houver um choque entre os corpos”
(DK 47 B 1). A afirmação está correta e era bem aceita no mundo
grego. Mas Arquitas errará no diagnóstico dos sons graves e agudos.
Segundo ele, se um bastão for vibrado rapidamente produzirá um
som agudo devido à grande velocidade com que o som viaja pelo ar
até nós. Quanto mais rápido, mais agudo e vice-versa. É evidente
que uma confusão entre a produção do som, que está até certo
ponto correta, e a sua propagação. A altura não está relacionada à
velocidade com que o som nos atinge. Contudo, podemos ver aqui
um prenúncio da relação entre frequência de som e altura musical,
que só será explicada em 1638 por Galileu.
De modo um pouco paradoxal, segundo um comentário de
Porfírio, Arquitas pensava que as consonâncias seriam produzidas por
dois ou mais sons percebidos como um único (apud Hunt, 1978,
p.14). Essa confusão será desfeita por Teofrasto de Eresus (372-288
a.C.), aluno de Aristóteles. Ele escreveu uma obra sobre música, que
se perdeu, restando apenas citações também em Porfírio: “a nota
mais aguda não difere em velocidade da mais grave, pois senão não
haveria consonância. Se há consonância, ambas as notas têm a
mesma velocidade” (Apud Hunt, 1978, p.15).
Platão afasta-se da descrição numérica da consonância para
apresentar, no Timeu, uma teoria acústica, ao mesmo tempo física e
Cynthia S. de Gusmão
57
geométrica (80a-b). Ele descreve duas cordas que vibram de modo
circular, uma mais rapidamente que a outra. Elas têm uma amplitude
desigual, mas coincidirão como dois redemoinhos que se adaptam um
ao outro. A descrição é detalhada como resume Wersinger: “como
consequência, a consonância realiza-se desde que os dois
redemoinhos adaptem-se um ao outro, como exprime com precisão o
verbo prosapsantes. Nesse sentido, é necessário que um dos anéis da
primeira espiral coincida com um anel da segunda espiral para
desenhar um círculo que coincide geometricamente com a
consonância” (2001, p.54). Em suma, a consonância será produzida
ao final do movimento pelos dois sons que, separados no seu início,
vão adaptando-se no tempo, até que o agudo e o grave mesclem-se
na impressão de um único som. Vemos que a preocupação aqui não é
com a comensurabilidade, mas com uma simetria geométrica entre
as duas espirais que irão produzir a consonância.
2.
A propagação do som e sua audição
Havia duas posições divergentes quanto à teoria da propagação
do som, questão especialmente importante para os gregos, amantes
que eram dos grandes discursos e apresentações artísticas ao ar
livre. Para os atomistas, o som possuía uma forma corpórea que
imprimia o ar como pequenas partículas que viajavam da fonte
geradora de som até o ouvido. Demócrito sustentava que “o ar é
fragmentado em pedaços de formas similares e flui com os
fragmentos de som” (Apud Hunt, 1978, p.24). Teofrasto atacou a
concepção: “como alguns fragmentos de vento preencheriam por
completo um teatro contendo dez mil homens?”.
23
Parece que nem
23
Teofrasto citado por Porfírio no Comentário sobre a Harmônica de Ptolomeu
(61.16-61.20), apud Barker, 1989, p.112-113.
Cynthia S. de Gusmão
58
Demócrito nem os engenheiros acústicos modernos conseguiram
responder a essa pergunta.
Para outra posição, não era o ar, mas seu movimento que
produziria os sons e a transmissão se daria por meio de uma
pulsação em propagação em um meio elástico. A metáfora mais
comum era a dos círculos concêntricos produzidos por uma pedra
lançada na água. Nesse caso, o som seria propagado do mesmo
modo que as ondas. Essa imagem estará presente em vários autores
antigos como o filósofo estóico Chrysippus (c. 280-207 a.C.): “a
audição ocorre quando o ar, que está entre aquilo que soa e o que
recebe o som, é agitado, ondulando esfericamente e chegando aos
ouvidos, como a água em um lago ondula em círculos, quando nela é
jogada uma pedra” (Apud Hunt, 1978, p.24).
Aristóteles distinguiu claramente duas instâncias: Existem dois
tipos de som, um atual, outro potencial (o men energéia tis, o de
dynamis), pois dizemos que algumas coisas não possuem som, como
a esponja ou a lã, mas outras sim, como o bronze e todas as coisas
que são sólidas e lisas, pois elas podem projetar o som. Ou seja, elas
podem realmente produzir o som entre o objeto e o órgão da
audição” (De anima, 419b, 5-9).
Teofrasto compilou algumas teorias sobre o mecanismo da
audição, entre elas a do médico Alcmeon de Crotona: “a audição é
feita pelos ouvidos, porque dentro deles existe um espaço vazio, e
esse espaço vazio ressoa”. Para Aristóteles, “o órgão da audição é
fisicamente unido ao ar, e porque está no ar, o ar de dentro é movido
simultaneamente ao ar de fora” (420a). Essa seria também uma
percepção pré-socrática, tal como encontramos no fragmento de
Empédocles: “A audição ocorre pelo choque do ar contra a concha em
caracol (kokliódes), que dizem estar suspensa dentro do ouvido,
levantada e badalada como um sino” (citado por Teofrasto em Da
Sensação, DK 31 A 86). Contudo, de acordo com Hunt, a afirmação
Cynthia S. de Gusmão
59
de Aristóteles tem um interesse a mais “como uma sugestão
antecipada da transmissão do som por conta da ação do ar no ar”
(1978, p. 21-3).
3. Os avanços da escola peripatética
A obra Problemas é atribuída à escola peripatética e consiste de
perguntas agrupadas em livros com suas respectivas respostas.
Apesar de não ter autoria confirmada, muitas citações atribuem as
questões ao próprio Aristóteles. No Livro XIX, encontramos perguntas
sobre acústica, escalas, intervalos, afinação, percepção das
consonâncias e dissonâncias e outros assuntos de importância para a
ciência musical, assim como discussões sobre o papel da música na
educação e na sociedade.
Em Problemas Musicais, o autor transpõe um princípio da ótica,
que diz respeito aos ângulos de reflexão da luz, para o som: “Por que
a corda grave encerra o som da aguda? Será porque a corda grave é
maior? Ela, com efeito, compara-se a um ângulo obtuso, mas a
aguda a um ângulo agudo” (XIX, 8, 918a 19-21). A partir dessa
analogia geométrica, considera que o som mais grave contém o mais
agudo. Trata-se de uma referência ao fenômeno da ressonância, que
será descrito no século XVII na série harmônica, mas vemos que a
ideia já estava presente no mundo grego antigo.
O tratado De audibilibus, escrito provavelmente por volta do
século III a.C, também de autoria incerta, é outra obra representante
das ideias da escola peripatética. Nela, encontramos discussões a
respeito da produção e transmissão do som, da fisiologia da emissão
vocal, das causas das várias modificações nas qualidades perceptíveis
do som (distância ou proximidade, brilho, claridade, opacidade,
aspereza). Não exposições sobre consonância ou altura musical, o
que talvez obrigasse o autor a escolher entre as posturas conflitantes
Cynthia S. de Gusmão
60
da época. O interesse é pela voz humana e suas analogias com os
instrumentos musicais, o que faz do De audibilibus uma fonte
importante de conhecimento dos antigos instrumentos musicais
gregos.
No primeiro parágrafo da obra encontra-se uma exposição da
física da produção e da propagação do som: “É um fato que todas as
vozes e todos os sons surgem do choque entre os corpos ou do ar
colidindo com eles; não é porque o ar toma uma forma como alguns
pensam, mas porque ele se move da mesma maneira que os corpos:
por contração, expansão e compressão e como resultado dos
impactos do ar ou das cordas musicais. Pois o ar ao ser movido,
impinge sopros sucessivos ao ar próximo dele, forçando-o a mover-
se, de modo que o som viaja inalterado em qualidade até o limite da
distância que alcança o movimento do ar. O distúrbio inicia sua força
em um ponto e espalha-se por uma área mais ampla, como a brisa
que sopra dos rios e das montanhas” (Apud Barker, 1989, p.99).
Outro fragmento de Demócrito mostra uma concepção parecida:
“uma vez que o movimento teve início, é enviado longe por causa da
velocidade, pois o som surge com a condensação do ar” (Apud Hunt,
1978, p. 27). Hunt não deixa dúvidas sobre o alcance desses autores:
“temos que considerar com humildade como notadamente pouca
modernização da linguagem desses escritos antigos é necessária para
qualificá-los a ainda servir como descrições elementares admiráveis
do mecanismo físico de geração e propagação do som” (1978, p. 27-
28).
4. O experimento de Pitágoras
As primeiras investigações acerca da natureza física e dos
atributos do som aconteceram no âmbito da harmônica, a partir da
descoberta da proporcionalidade inversa entre a altura e o
Cynthia S. de Gusmão
61
comprimento de uma corda, expressa pelas razões musicais. Autores
tardios da Antiguidade buscarão inserir o fato em uma narrativa
histórica, sendo a mais comum a lenda dos martelos narrada, pela
primeira vez, por Xenócrates e reproduzida por Nicômaco de Gerasa
em seu Manual de harmônica, escrito no início do século II d.C.
24
Nicômaco conta que Pitágoras pensava como conseguir “algum
tipo de ajuda instrumental para os ouvidos tal como a visão obtém da
régua, do compasso e do transferidor e o tato, da balança e do
sistema de pesos e medidas”.
25
Enquanto caminhava absorto nesses pensamentos, Pitágoras
começou a ouvir sons que eram produzidos pelos golpes de quatro
martelos em uma forja. Percebeu (com os ouvidos) que alguns eram
belos, as consonâncias musicais de oitava, de quinta e de quarta. Ele
pesou os martelos: um pesava 12 unidades, o outro 9, o terceiro 8 e
o quarto, 6. Pitágoras associou os sons musicais consonantes à
diferença de pesos entre os martelos. Os martelos com 12 e 6 quilos,
quando golpeados juntos, produziam um intervalo musical de oitava,
os martelos com peso 9 e 6, um intervalo de quinta e os martelos
com peso 12 e 9, assim como os de 8 e 6 quilos, soavam um
intervalo de quarta. Essa sequência de números estará sempre
presente nos lculos de comentadores tardios e refere-se às médias
aritmética e harmônica, desenvolvidas pelos pitagóricos.
Pitagóras teria então combinado esses números nas seguintes
razões: 2:1 para a oitava, 3:2 para a quinta e 4:3 para a quarta. Em
seguida, pendurou em um pedaço de madeira, por cordas de
tamanhos iguais, pesos iguais aos dos martelos. Ao tangê-las,
observou as mesmas relações intervalares. Pitágoras não teria
considerado nada além do peso na produção daquelas notas; nem a
força, nem a bigorna, nem a forma dos martelos. Prosseguindo com o
24
Boécio também narra a história em Institutione musica ii, 3, citado em Bower,
2002, p.143.
25
Nicômaco, Manual de harmônica, Cap. VI, p.83.
Cynthia S. de Gusmão
62
experimento, transferiu as mesmas razões para as tensões das
cordas em um cavalete de um instrumento musical; testou-as
também em outros tipos de instrumentos musicais, de sopro e
percussão. Finalmente, chegou ao monocórdio ou cânon, um
instrumento horizontal de cordas, no qual Pitágoras pôde visualizar
geometricamente as razões do comprimento das cordas, que
concordavam com as consonâncias musicais.
26
Subtraiu 4/3 de 3/2 (já vimos que não é a subtração) para
achar a razão entre a quinta e a quarta, chegando à razão da
dissonância: 9/8, o tom inteiro produzido pela diferença entre a
quinta e a quarta. Estariam, assim, decifrados matematicamente os
principais intervalos do antigo sistema musical grego.
O experimento não deve ter sido reproduzido por aqueles que
narraram a história. Caso o fizessem, perceberiam que os fatores que
determinam o tom do som de um martelo em uma bigorna são
complexos e que a variação tonal é produzida pelo objeto percutido e
não o contrário, que gera uma diferença pouco perceptível (Hunt,
1978). Além disso, as razões matemáticas não correspondem à
relação entre a altura da nota e a quantidade de tensão. Isso será
totalmente demonstrado no século XVII. Segundo Flora Levin, nos
comentários à sua tradução do Manual de harmônica de Nicômaco, há
indícios de que Claudio Ptolomeu tenha buscado fazer a experiência e
percebido o erro, mas não desenvolveu a questão (1994, p.93). Mas,
no caso do comprimento da corda, as proporções pitagóricas estão
corretas. É bem possível que a lenda dos martelos tenha surgido num
momento posterior, dominado pela doxografia latina, quando se
percebeu que outros fatores estavam em jogo na determinação das
alturas, como pesos e tensões e, assim, foram criadas maneiras de
dar veracidade à descoberta aritmética original.
26
Em Nicômaco o nome pandoura aparece associado a esse instrumento. Ver
Nicômaco, Manual de harmônica, Cap. IV, p.61.
Cynthia S. de Gusmão
63
O único fato incontestável na história é o julgamento do ouvido
ter sido o primeiro critério para o estabelecimento das razões
numéricas, visto que elas buscam revelar consonâncias. Mas essa
evidência será descartada em favor de uma interpretação apenas
matemática.
Hipaso de Metaponte, contemporâneo de Pitágoras, teria feito
experimentos com discos de bronze de mesmo diâmetro, cuja
espessura estava na mesma relação das razões das consonâncias;
percutindo os discos era possível ouvir as consonâncias. De acordo
com Burkert: “a experiência é fisicamente correta, pois para discos
que podem vibrar livremente, o mero de vibrações é diretamente
proporcional a sua espessura. Portanto, é possível confiar que Hipaso
conhecia e tenha experimentado as razões numéricas das
consonâncias” (Apud Szabó, 1977, p.122
).
5. A persistência da concepção pitagórica
Por trás do cânone de Pitágoras havia uma ideia original: a de
um instrumento construído para a realização de um experimento
científico, e que partia de uma premissa sensorial, a consonância
musical. Os fragmentos que nos restaram dos seguidores de
Pitágoras não aprofundaram a tensão entre a sensação acústica e sua
tradução em números. Como dissemos, a corrente pitagórica
acabou caracterizando-se por abandonar o julgamento dos sentidos,
concentrando-se na interpretação de todos os fenômenos como
manifestações da matemática, mais precisamente, dos números. No
caso da música, na aritmética dos intervalos.
Por volta de 300 a.C., surge a obra A divisão do cânone,
Katatomé Kanonos, que é referida em alguns escritos da Antiguidade
como sendo de autoria de Euclides de Alexandria. Nela, o autor
recoloca a importância das relações musicais pitagóricas; contudo, de
Cynthia S. de Gusmão
64
modo bem especializado, evitando qualquer conexão com a
cosmologia. O autor busca retomar as concepções pitagóricas em um
diálogo com as ideias contemporâneas. Antes de dedicar-se às notas
musicais, faz uma breve exposição sobre a natureza do som. A
primeira frase é considerada por alguns autores como remontando ao
próprio Pitágoras: “Se houver completo repouso e imobilidade,
haverá silêncio (siópe)”. O autor prossegue: “Se há silêncio e nada se
move, nada se ouve. Se, no entanto, alguma coisa for ouvida, é
necessário haver antes percussão (plégue) e movimento” (Barbera,
1991, p. 49).
Mais adiante, as notas são definidas como uma sequência de
movimentos, que possuem partes (moirai). Se o movimento é mais
rápido, a tensão na corda é maior e o resultado é uma qualidade de
som mais agudo; ao contrário, se o movimento for rarefeito, ou em
linguagem moderna, se a frequência da vibração da corda for mais
baixa, a tensão será menor, e o som será mais grave. Sabemos que
não é possível ao olho humano perceber esses movimentos, muito
menos identificar suas partes, mas na obra elas têm um número. Isso
leva à conclusão de que, quando esses sons tiverem uma altura
precisa como uma nota musical, será possível descrever os intervalos
(diástemata) entre elas como razões numéricas. Após essa descrição
física do som, a obra parte para uma análise dos tons musicais
rigorosamente do ponto de vista matemático.
6. As relações da acústica com a harmônica
A harmônica foi a responsável por conduzir as primeiras
investigações acerca da natureza física e dos atributos do som.
A questão das consonâncias e dissonâncias foi colocada em
termos matemáticos e físicos: o que definiria as razões simples e sua
coordenação e que tipo de interação física as constituiriam? O que
Cynthia S. de Gusmão
65
estava em jogo, por exemplo, em uma relação de oitava? Havia a
necessidade de uma complementação física que mediasse os
conceitos matemáticos e a sua presença no mundo concreto. No
entanto, na Itália do século XVI essa questão resultará em uma
interação maior entre a natureza do som e os problemas musicais.
Em duas cartas que escreveu ao compositor renascentista Cipriano de
Rore, Giovanni Battista Benedetti (1530-1590) incluirá algumas
propriedades do som na sua teoria da consonância dos intervalos
musicais, começando a reunir a física acústica e a harmônica.
Cynthia S. de Gusmão
66
CAPÍTULO IV
ARISTÓXENO E O LUGAR DA AISTHESIS NA HARMÔNICA
1. Pequena nota biográfica
Na segunda metade do século IV a.C., o estudo da harmônica
sofre uma profunda transformação com as concepções de Aristóxeno
de Tarento (c. 375 c. 300 a.C.) tais como contidas na sua obra
Elementos de harmônica.
Aristóxeno nasceu em Tarento durante os anos em que vivia
Arquitas, na época, um político influente da cidade. Ele iniciou os
estudos de música com seu pai, Spintharos, amigo de Arquitas e que
compartilhava das ideias da escola pitagórica. Ainda jovem,
Aristóxeno foi para Atenas, onde passou a estudar com Xenófilo de
Cálcis, aluno de Filolau, até tornar-se um dos mais eminentes aluno
de Aristóteles, a ponto de pleitear ser o seu sucessor, o que não
ocorreu, tendo a posição sido ocupada por Teofrasto.
De acordo com a compilação enciclopédica Suda
27
, Aristóxeno
escreveu 453 livros sobre música, filosofia, história e educação. Pela
amplitude de seu pensamento musical, na Antiguidade, Aristóxeno
ficou conhecido como o mousikós.
Quatro obras de Aristóxeno abordam o tema do pitagorismo:
Sobre Pitágoras e seus seguidores, Sobre a vida pitagórica, Preceitos
pitagóricos e Vida de Arquitas. Nenhuma sobreviveu completa, mas
são encontrados fragmentos delas em autores posteriores. Esses
fragmentos são considerados valiosos para o estudo do pitagorismo
pelo fato de Aristóxeno ter vivenciado de perto o ambiente em que se
27
A Enciclopédia Suda está disponível on-line em www.stoa.org/sol.
Cynthia S. de Gusmão
67
debatiam tais ideias e por ele ter sido também um peripatético. Os
estudiosos consideram que por esse motivo seus comentários
apresentam uma visão mais próxima da realidade da escola
pitagórica do que aquela difundida pelos sucessores de Platão.
28
O
fato é que isso proporciona ainda mais autoridade às críticas que
Aristóxeno fará aos procedimentos pitagóricos aplicados à música.
Além de se dedicar às notas do los, Aristóxeno escreveu
sobre métrica e instrumentos, mas muito pouco restou desses
escritos. Sobreviveu, no entanto, um grande trecho a respeito da
rítmica, de data posterior aos Elementos de harmônica. Autores como
Gibson consideram que foi Aristóxeno quem estabeleceu a distinção
entre rítmica e métrica (2005, p. 77).
No que tange aos Elementos, vários estudiosos discutiram a
ordem dos três livros que compõem a obra, colocando em cheque a
tradição manuscrita que os agrupou dessa forma. No entanto, para
este estudo, consideraremos a ordem tradicional, estruturada em três
livros, tal como editada por Rosetta da Rios, e as referências
apresentadas serão as da catalogação feita por Meibom
29
.
2. A proposta aristoxeniana
Em Elementos de harmônica fica evidente a escolha de
Aristóxeno em favor da filosofia aristotélica, desse modo avançando e
marcando uma ruptura com suas origens pitagóricas. Aristóxeno
move a harmônica de uma perspectiva cosmológica universalista para
um quadro especializado, mais claramente técnico.
28
Ver, a esse respeito, o verbete "Pythagoreanism", de Carl Huffman. In: The
Stanford Encyclopedia of Philosophy, 2008.
29
Para um histórico detalhado das propostas de organização do livro, estrutura do
texto e origens dos manuscritos, ver Bélis, 1986, p.24-52.
Cynthia S. de Gusmão
68
Um trecho do primeiro parágrafo do Livro II dos Elementos de
harmônica que nos dá uma visão clara e precisa das mudanças
propostas pela teoria musical de Aristóxeno:
“Como um todo, entendemos a Harmônica como a teoria de todos
os mélos e de como a voz estabelece, de maneira natural, os
intervalos, tensionando-se ou relaxando-se. Para nós, o movimento
da voz ocorre de acordo com a natureza (peri phíseos) e os
intervalos não se estabelecem ao acaso.
“Acerca dessas coisas, tentamos apontar demonstrações de acordo
com os fenômenos, não como os antecessores, que divagavam e
desviavam-se da percepção sensível (aisthésis ) como se ela não
fosse precisa, maquinando causas no âmbito do intelecto (noétas
aitías) e declarando ser nas razões (logous) de alguns números e na
velocidade de outros que surgem o grave e o agudo, elucubrando
discursos confusos e contrários aos fenômenos. Eles dão respostas
oraculares sem causa nem demonstração em relação a cada coisa, e
nem bem enumeram os fenômenos. Nós buscamos adotar os
princípios que são evidentes aos que conhecem a sica e
demonstrar o que procede a partir deles.” (Meibom, 32, 6-22)
Nesse parágrafo, estão contidas as críticas às teorias
matemáticas e acústicas que, para Aristóxeno, não deveriam fazer
parte da harmônica. Ao mesmo tempo, ele define seus princípios a
partir da natureza, de acordo com o modelo de ciência natural
preconizado por Aristóteles.
Aristóxeno não vai procurar resolver os impasses da teoria
pitagórica, sua ciência será construída sobre uma nova base. Para
ele, a natureza do mélos nada tem a ver com a produção, emissão,
propagação ou audição do som. O movimento da voz, sua tensão e
seu repouso, irá ocorrer em um espaço especificamente musical e
geométrico.
Cynthia S. de Gusmão
69
O primeiro ponto analisado em Elementos de harmônica é a
voz, definida segundo o lugar que preenche, o topos. A voz falada é
diferenciada da voz cantada, segundo a continuidade ou
descontinuidade dos tons. Ou seja, a voz falada é contínua e a
cantada move-se de maneira descontínua, parando em tons
determinados. Fica claro que não é a propagação do som, ou seu
desempenho sico que vai importar para o estudo de Aristóxeno. A
sua preocupação será com a delimitação de um espaço específico do
acontecer musical, incorporando a percepção do ouvinte.
3. A organização do estudo
Aristóxeno define a harmônica como uma ciência que tem como
objeto o mélos hermosménos, ou seja, o mélos organizado,
harmonioso, articulado, formoso. Como dissemos na Introdução
desta dissertação, para Aristóxeno, esse mélos refere-se à parte tonal
da música.
A harmônica deve proceder de modo organizado para realizar
suas demonstrações. Aristóxeno um exemplo de como isso deve
ser feito e, como é característico de seu estilo, apresenta um retrato
em negativo do processo
e um quadro vivo das aulas de Platão e
Aristóteles:
“É melhor haver exposto, de início uniformemente, o modo de
condução do estudo a fim de que, conhecendo de antemão o
caminho que trilharemos e sabendo em qual parte dele estamos, o
percorramos mais facilmente, e não ocorra de captarmos
erroneamente o assunto.
“Isso acontecia tal como Aristóteles sempre narrava a respeito do
que havia se passado com a maioria dos que ouviam a palestra
sobre o bem de Platão. Cada um vinha pensando captar algo acerca
das coisas consideradas como o bem das pessoas, como, por
Cynthia S. de Gusmão
70
exemplo, riqueza, saúde, força, em suma, alguma felicidade total
extraordinária.
“E, quando as palavras iam surgindo, sobre assuntos matemáticos,
aritméticos, geométricos e astrológicos e mais a conclusão final de
que o bem é uma unidade, isso parecia ser algo tão contrário à
expectativa que alguns negligenciavam o assunto, outros
censuravam. E por qual motivo? Pelo fato de não saberem com
antecedência a natureza do objeto tratado, precipitavam-se atraídos
pelo título da palestra, à moda dos sofistas, e ficavam todos
boquiabertos.
“Mas se alguém, penso eu, tivesse estabelecido de antemão o todo,
o aspirante à palestra poderia abandoná-la ou, se gostasse, ficaria
com base no que foi proposto. O próprio Aristóteles por isso mesmo
fazia um prólogo, para os que tinham intenção de ouvi-lo acerca das
coisas que versava o estudo e o que ele era.
“Portanto, a nós parece melhor, tal como dissemos no princípio,
expor antecipadamente o modo de condução do estudo” (Meibom,
30.15 – 31.13).
Aristóxeno quer organizar o conhecimento, decompor o
conjunto, distinguir suas partes. Trata-se de obter uma visão clara,
buscando os pontos fixos que servirão de pilastras para a construção
do seu edifício harmônico. Contudo, essa coesão, como ele mesmo já
disse, não deve vir do aparato pitagórico. Aristóxeno terá de buscar
outras soluções para erigir essa nova estrutura da harmônica.
A primeira tentativa será feita com as ideias de continuidade
(sunékes) e sucessão (hékses). As duas noções estão presentes de
modo bastante complexo na Física e na Metafísica de Aristóteles
(Apud Bélis, 1986, p.153-154). A hékses ocorre quando os termos
sucedem-se um após o outro em uma ordem determinada, já a
sunékes pressupõe uma inclinação entre as partes, que se tocam
como elos em uma corrente, e também segundo uma ordem.
Cynthia S. de Gusmão
71
Aristóxeno explica a sunékes na harmônica a partir do senso
comum. Ele a compara com as letras que ordenamos no ato de falar.
Pela “lei natural” colocamos em cada sílaba, primeiro uma letra,
depois outra e assim vai. Igualmente, na melodia, a voz ordena os
intervalos e as notas de acordo com a continuidade.
A escolha das duas noções, de novo, enfatiza a ordem natural e
necessária da melodia. Mais adiante, Aristóxeno reforça que não
devemos ver a origem da continuidade e da sucessão na semelhança
ou dessemelhança dos intervalos sucessivos, mas na natureza da
melodia e perguntar-nos qual intervalo a voz coloca em sequência de
maneira natural.
Na busca por essa coesão do sistema, Aristóxeno desdobrará
essas duas noções no conceito de dynamis. Na dynamis, cada nota é
definida pelo seu contexto ou, em termos modernos, pela sua função.
A medida de um intervalo ou de um conjunto deles pode ser
diferente, mas suas funções iguais. Inversamente, intervalos de
mesmo tamanho podem ser ouvidos de modo diferente, pois suas
funções diferem.
Na organização harmônica da música moderna, notas iguais e
principalmente acordes conjuntos de três notas ou mais possuem
essa potencialidade de desempenhar papéis diferentes, às vezes
dentro de uma mesma música. Fazendo uma associação com as cores
é fácil perceber que um amarelo “soa” de maneira diferente ao lado
de um azul ou de um vermelho.
Esse aspecto relacional que Aristóxeno introduz na teoria
musical pode também estar na origem da sua rejeição à existência de
um ethos próprio de cada modo grego. Com a noção de dynamis,
Aristóxeno à percepção o papel de amalgamadora de seu sistema.
A percepção de uma estrutura é mais importante que sua medida.
A representação da música pela matemática é rejeitada porque
ela não ilumina as estruturas; pelo contrário, obscurece o que foi
Cynthia S. de Gusmão
72
percebido. Referindo-se a isso, ele diz: “é evidente que nenhum
desses procedimentos corresponde ao modo de representação da
percepção sensível, porque essa distingue o gênero enarmônico e o
cromático, considerando a semelhança de uma certa forma, não a
grandeza de um certo intervalo” (Meibom, 48, 14-17).
4. A aisthésis
A noção de dynamis está encrustada no princípio aristoxeniano
de aisthésis e na relação com a música. Ele não deixa dúvidas sobre
o papel do sentido da audição no estudo da harmônica: “Para o
músico, a exatidão da percepção sensível está quase na ordem de um
princípio. Tanto é verdade que é impossível, quando não se tem o
ouvido treinado, falar corretamente sobre aquilo que não se percebe”
Meibom (33, 21-26).
Aristóxeno acusa de allotrioloyountes, ou seja, argumentos
estranhos, as soluções apresentadas por seus antecessores, pois elas
são contrárias aos fenômenos, ou seja, àquilo que se apresenta aos
sentidos. A ideia de uma oitava ser representada pela razão 2:1 é
completamente estranha a essa ciência que Aristóxeno está buscando
construir, para não dizer totalmente inútil. Aqui, a oitava é aquela
consonância característica que ouvimos. Os discursos são confusos
porque não tomam como base a aisthésis .
Os princípios da harmônica tal como preconizados na obra de
Aristóxeno devem ser evidentes para aqueles experientes em música.
O autor Gaudêncio, da Antiguidade tardia (século III ou IV d.C.),
reuniu em sua Harmonica introductio aspectos das teorias
pitagóricas. Na abertura da obra, ele escreve: “aquele que não ouve
uma nota claramente e não exercitou a sua audição e veio ouvir estas
palavras, deixe-o ir embora e fechar a porta para estes sons, pois
seus ouvidos, embora presentes, serão interrompidos por um sentido
Cynthia S. de Gusmão
73
que não conhece, antes destas palavras. Ao iniciarmos, falemos na
voz daqueles treinados de maneira precisa pela experiência” (Apud
Mathiesen, 1999, p.500).
O objetivo do exercício do ouvido é o aperfeiçoamento da
prática, pois a harmônica de Aristóxeno era uma tékne destinada aos
músicos. No que diz respeito à importância dada ao ouvido treinado,
Bélis comenta: “Aristóxeno é, sem dúvida, um dos primeiros a
abordar esse tema, e não sob forma de recomendação pragmática,
mas dentro de uma argumentação filosófica” (Bélis, 1986, p. 205).
Como diz Aristóxeno: “É necessário acostumar-se a julgar cada coisa
com precisão; de fato, não podemos dizer, como se faz a propósito
das figuras geométricas: ‘seja esta linha reta’; não! Devemos
abandonar esse hábito ao falarmos dos intervalos. Pois o geômetra
não faz uso da faculdade da sensação (tei tens aisthéseos dynamei) e
nem acostuma a sua visão a julgar bem ou mal, à reta, ao círculo, ou
a outra destas figuras, isto sendo mais da competência do
carpinteiro, do que trabalha no torno, ou outros técnicos que se
exercitam nessas coisas” (Meibom, 33,10-21).
5. O diálogo com Aristóteles
O modo aristotélico de conceber o som e a escuta abriu novas
perspectivas para a harmônica. Aristóteles ensaiou penetrar em seus
domínios, mas foi claro ao dizer que não tinha pretensões à música,
deixando essa função para alguém com mais competência. Ele fez
uso dos instrumentos musicais como recurso de metáfora em sua
Metafísica (1046a), chamando a atenção para uma relação dialética
entre duas partes, como, por exemplo, entre o instrumentista e o
instrumento, o primeiro apresentando uma dynamis tou poiein, o
segundo, uma dynamis tou páskein.
Cynthia S. de Gusmão
74
Zingano, na análise da doutrina da sensação no De anima, diz
que Aristóteles analisa a percepção como “uma atividade da alma
(metá tou somatos) vinculada ao corpo”. E segue: “Embora a
percepção não possa ocorrer sem certas alterações de certos órgãos,
em função de um objeto específico, a percepção de algo não é
unicamente (ou idêntica a) estas alterações. Aristóteles assinala com
frequência que a percepção é ‘uma certa afecção’, páskein ti,
querendo dizer com isto que não se reduz ou não é somente esta
afecção. Ela é, e isto fundamentalmente, uma alteração ou afecção
dos órgãos sensitivos em que se realiza uma faculdade ou dynamis
específica da alma, através da qual o sujeito apreende (e é
consciente desta apreensão) a forma sensível dos objetos” (Zingano,
1998, p. 54).
Aristóxeno talvez tenha buscado elucidar esse processo a partir
da aplicação da dynamis à música, concebida verdadeiramente como
um aesthetón, um objeto percebido pelo ouvido. No que diz respeito
à anatomia e à fisiologia do ouvido, o conhecimento de Aristóteles era
bastante avançado, como mostra a sua descrição no De anima (420
a, 13-16), na qual se percebe que o filósofo conhecia bem o labirinto
e a cóclea.
O ouvido que é afetado, movido pelo som musical, é o princípio
da Harmônica de Aristóxeno, mas há uma intervenção de outra
instância para que se complete o processo da percepção musical: “a
teoria refere-se a todos os mélos da música, que ocorrem na voz e
nos instrumentos. O estudo encaminha-se de modo duplo: em
direção à escuta e à inteligência. Pela escuta, (akóen), distinguimos
as magnitudes (meguéthe) dos intervalos; com o intelecto, (diánoia),
contemplamos as suas funções (dynamei)
(
Meibom 33, 2-6).
A aisthésis identifica os intervalos, e a memória (mnéme) retém
as impressões, a diánoia capta a configuração das notas e das
estruturas uma em relação às outras, ou seja, a sua dynamis.
Cynthia S. de Gusmão
75
Portanto, esse é um conceito-chave da teoria de Aristóxeno, que deve
advir das discussões sobre a natureza da percepção em Aristóteles.
Esse conceito está no fundamento da diferença entre a filosofia
aristoxeniana e a pitagórica. Por exemplo, Aristóxeno vai ter
necessidade de definir um métron, uma unidade de medida, para a
harmônica. Aristóteles havia sugerido como métron da música a
diésis de um quarto de tom, por ser o menor intervalo da música
grega antiga (Metafísica, 1053a,10a-32b). Aristóxeno, no entanto, vai
estabelecer o tom como sua unidade de medida. Esse tom será
definido a partir da diferença entre a quarta e a quinta, mas essa
diferença não advém da subtração, da divisão ou de qualquer outra
operação aritmética. A diferença que produz o tom, para Aristóxeno,
é aquela que ouvimos claramente entre a quarta e a quinta. O fato de
os intervalos serem duas consonâncias faz com que eles sejam mais
facilmente reconhecidos e julgados pelo ouvido treinado.
6. O espaço geométrico do mélos
A dynamis permite uma divisão do espaço musical em que a
voz movimenta-se de maneira geométrica. E esse espaço é muito
mais flexível que o dos cálculos aritméticos pitagóricos.
Como havíamos dito, Aristóxeno abre seu tratado enfatizando
que a harmônica é apenas um dos ramos da ciência musical (los
epistéme). Outro aspecto é o ritmo. A voz, para realizar o mélos,
precisará de dois movimentos: katá tón krónon, de acordo com o
tempo, e katá tón tópon, de acordo com o lugar. A rítmica ocupa-se
do primeiro movimento, a harmônica, do segundo. Os dois
movimentos, temporal e local, desenvolvem-se no mélos até o
silêncio. Contudo, esse movimento da voz não ocorre por acaso, mas
pela necessidade natural que rege los hermosménon, a melodia
bem articulada ou formosa ou eficiente.
Cynthia S. de Gusmão
76
A concepção de necessidade da natureza está em perfeita
consonância com a filosofia aristotélica, que encontramos, por
exemplo, no tratado Sobre os céus: “O deus e a natureza não fazem
nada inutilmente” (Apud lis, 1986, p. 140). Há uma diferença
fundamental entre essa necessidade de ordem aristotélica e o kósmos
matemático pitagórico: o céu de Aristóteles é o céu que se apresenta
aos sentidos, assim como a música de Aristóxeno.
7. As partes da harmônica
A natureza dispõe, de acordo com a necessidade do mélos
hermosmenos, os intervalos musicais em uma ordem hierárquica
(táksis), estabelecendo notas fixas e móveis, tal como era dado no
sistema musical grego. Diz o mousikós: “tendo a música esta
natureza, é necessário no que se refere ao mélos hermosmenos
habituar conjuntamente a inteligência e a sensação a julgar bem o
que permanece e o que se movimenta” (Meibom, 34,19-21). E
propõe a classificação da harmônica em sete categorias.
A primeira parte é formada pelos gêneros, que percebemos a
partir das notas que se entrelaçam, fixas, e das que se movimentam.
São eles: diatônico, cromático e enarmônico. Em seguida, vêm os
intervalos, que se dividem em consonantes (quarta, quinta, oitava e
seus compostos) e os dissonantes. Aqui, Aristóxeno, por rejeitar as
razões numéricas em favor de uma divisão em partes, ou seja,
geométrica da escala, propõe: “as partes do tom que se seguem (a
partir da sua diferença entre a quarta e a quinta) são: a metade, dita
semi-tom, a terça parte, dita diésis cromática; a quarta parte, dita
mínima diésis enarmônica”
(
Meibom, 46, 1-5).
Desse modo, vemos que Aristóxeno foi um dos primeiros
teóricos a defender uma distância homogênea entre os intervalos,
posição precursora do temperamento igual, afinação que voltará a ser
Cynthia S. de Gusmão
77
debatida no século XVI, particularmente nos escritos de Vincenzo
Galilei, que teve acesso à primeira tradução dos Elementos de
harmônica de Aristóxeno.
30
Na verdade, Aristóxeno não desenvolve muito a questão do
meio-tom, mas ela será retomada por autores como Aristides
Quintilianus, que viveu entre os séculos II e IV d.C. (Mathiesen,
1999, p.529).
Na sequência da classificação das partes da harmônica, vêm as
notas e depois as escalas quantas o, de que natureza e de quais
intervalos e notas são compostas.
A quinta parte é constituída das tonalidades ou trópoi. As
escalas eram oito, mas na prática os músicos e cantores não se
valiam tanto dela quanto dos trópoi, ou transposições das escalas a
outros tons. Aqui Aristóxeno critica um outro grupo de músicos, os
harmonicistas, que não levavam em conta nenhuma sistematização:
“a doutrina dos harmonicistas sobre as tonalidades é análoga ao
modo como se contam os dias dos meses: assim por exemplo,
quando para os coríntios são dez, para os atenienses são cinco e
ainda para outros oito”
(
Meibom, 37, 7-12). É possível que Aristóxeno
faça referência aos harmonicistas porque as tonalidades eram muito
utilizadas por eles na prática musical.
31
A sexta parte é a modulação
e, por fim, a composição melódica, o objetivo final da harmônica.
Após definir o escopo da harmônica, Aristóxeno enumera as
partes que não fazem parte dessa ciência. Por exemplo, a notação
musical e a teoria do aulos, por suas limitações. Apesar de haver
referências de que o tarentino tenha escrito uma obra dedicada ao
aulos, ele considera que não devemos basear-nos em um
instrumento para conhecer as leis naturais do mélos, pois a sua
30
A primeira tradução dos Elementos de harmônica de Aristóxeno foi editada em
latim em Veneza, no ano de 1562. A segunda, em italiano, é de 1593, e foi editada
em Bolonha.
31
Ver, a esse respeito, Rios, 1954, p.54, nota 1.
Cynthia S. de Gusmão
78
ordem não depende de nenhuma propriedade dos instrumentos: “De
fato, a essência e a ordem, que se mostram no
mélos hermosménon,
não dependem de nenhuma propriedade dos instrumentos” (Meibom,
41, 20-22).
8. Ressonâncias de Elementos de harmônica
Os teóricos subsequentes da Antiguidade como Cleônides,
Gaudêncio, Aristides Quintiliano vão adotar o estudo de Aristóxeno
como fonte de conhecimento da música grega antiga, mas, com
exceção de Ptolomeu
32
, vão deixar de lado a sua filosofia. Quando ela
aparece muitas vezes é mal interpretada ressaltando apenas a sua
ênfase na sensação. Contudo, como bem observa Bélis: “Aristóxeno
está tão longe de negligenciar o exercício do pensamento (apesar dos
ditos de Boécio), assim como de relegar um lugar modesto à
sensação. E por duas razões: primeiro, ele acredita ser necessário
que em cada coisa haja uma análise teórica ou uma definição pela
sensação, mas se a impressão auditiva e a teoria estão em
contradição, a teoria deve ceder” (1986, p. 210). Essa postura está
em acordo com o princípio empirista de Aristóteles: se a experiência
se opõe à teoria, é preciso modificar a teoria.
Boécio, nas Institutione musicae, afirma que Aristóxeno não
usa a razão e concede à sensação todo o crédito (Apud Bélis, 1986,
p.227 nota 65). Talvez em parte devido ao predomínio da
interpretação de Boécio, no século XVI os escritos desse autor
maior serão estudados abertamente e com a merecida atenção.
A divisão da Harmônica em sete partes será o fundamento de
um programa de musicologia e de ensino para as próximas gerações.
32
Ptolomeu buscará contemplar a percepção musical na sua Harmônica, mantendo-
se, no entanto, fiel às razões matemáticas pitagóricas.
Cynthia S. de Gusmão
79
Por isso, a divisão em partes é de cunho lógico e pedagógico, o que
não significa que as partes sejam anteriores ao todo. O mélos
hermosménon não será constituído da soma dos elementos, mas,
antes de tudo, será uma síntese. Como comenta lis a respeito da
physique synthesis, o objetivo final da harmônica, “enquanto fato da
natureza, de uma necessidade absoluta e de uma perfeição absoluta,
tem a mesma importância dentro do sistema de Aristóxeno que a
noção de harmonia para os pitagóricos” (1986, p. 150).
A harmônica de Aristóxeno será um divisor de águas na teoria
musical da Antiguidade. Suas críticas às influentes concepções
pitagóricas colocaram em cheque alguns pressupostos teóricos da
ciência daquele tempo. Mesmo a posição de Aristóteles, no que dizia
respeito à contestação do pitagorismo limitava-se à metafísica e à
astronomia (Metafísica, 986a) no que tange às razões pitagóricas, ele
estava de acordo que elas fossem as causas das consonâncias. É
interessante que Aristóxeno em nenhum momento questiona as
causas das consonâncias, ele apenas afirma que não é disso que trata
a ciência particular da harmônica.
Essa ciência independente exclui de suas análises os
instrumentos, a performance, a escrita e as razões numéricas,
dizendo que a percepção da estrutura musical é mais importante que
sua medida. Ao invés de falar em comprimento da corda, refere-se a
partes da escala, insinuando uma contaminação da música, com seus
números discretos, pela ciência das magnitudes contínuas e, por sua
vez, pela ideia de infinito e incomensurável. E o que era mais
ameaçador: clamava por um fundamento na natureza. Em uma época
em que a música era vista como a própria afinação do mundo, isso
deve ter tido um impacto considerável.
A obra de Aristóxeno irá forçar uma especialização do discurso
pitagórico e, no final do século III a.C., surge o texto Sectio canonis
(A divisão do cânone). Nele, não nenhuma referência à
Cynthia S. de Gusmão
80
cosmologia, é um discurso objetivo que busca demonstrar a evidência
da perspectiva pitagórica.
Cynthia S. de Gusmão
81
CAPÍTULO V
A DIVISÃO IDEAL DO CÂNONE
1. O rigor do Sectio canonis
A obra A divisão do cânone foi escrita por volta de 300 a.C. e
evoluiu até sua forma final, que chegou à Renascença, entre os
séculos IV e VI d.C. Nas duas versões existentes em grego, é referida
como sendo de autoria de Euclides: uma forma mais longa, nos
manuscritos que acompanham a Harmonica introductio de Cleônides,
e outra mais breve no comentário de Porfírio à Harmônica de
Ptolomeu, do século III d.C. Uma versão mais curta, em latim, está
presente no Institutione musica de Boécio, que não atribui a obra a
ninguém.
Os pitagóricos buscavam uma afinação musical ideal que
complementasse a sua filosofia dos números e criaram um
instrumento para esse fim: o monocórdio, ou cânone, no qual era
possível visualizar a proporcionalidade inversa entre a altura musical
e a corda vibrante como segmentos em uma régua. Por trás do
cânone havia uma ideia original: a de uma ferramenta construída
para a realização de um experimento científico, que partia de um fato
sensorial, a percepção musical. No monocórdio, era possível esquecer
totalmente outros fatores ligados à produção do som musical. Isolar
um fato, apenas a altura, como em um espaço ideal.
Na sua forma final, A divisão do cânone divide-se em quatro
partes: uma introdução, nove proposições puramente matemáticas,
sem nenhuma referência musical, os corolários musicais e um guia
para a localização das notas no cânone. Na Introdução, o autor
Cynthia S. de Gusmão
82
apresenta a concepção acústica pitagórica que já expusemos no
capítulo das teorias acústicas da Antiguidade.
No final da Introdução, com a exposição das causas físicas do
som musical, o autor faz uma classificação das razões em múltiplas,
superparticulares e superpatientes. Essa classificação é importante,
pois levará à demonstração de que apenas as razões múltiplas e
superparticulares podem ser consonantes. As ltiplas (mn:n)
referem-se às oitavas e as superparticulares (n+1:n) às quartas e
quintas. As razões musicais podiam ser demonstradas nas distâncias
(intervalos) entre dois pontos numerados no cânone, mas na obra
elas são demonstradas por segmentos de reta como em um
instrumento multicordas. Existem, no entanto, dúvidas sobre a data
em que esses diagramas tenham sido feitos (Barbera, 1991).
As primeiras nove proposições expõem teoremas concernentes
às razões entre os intervalos, sem fazer nenhuma referência à
música, mas fica claro que sua função é preparar o caminho para as
concepções musicais que aparecerão a partir da proposição 10,
quando será traduzido em linguagem matemática aquilo que é
percebido empiricamente pela audição.
Na proposição 16, no entanto, a aritmética sobrepõe-se aos
fatos musicais e determina a impossibilidade da divisão do tom em
dois ou mais intervalos musicais. Essa proposição está conectada à
proposição 3: “em uma razão superparticular não existe número,
nem um, nem mais de um que o divida proporcionalmente”. Essa
prova havia sido apresentada por Arquitas, ou seja, se não um
termo médio entre dois de uma razão epimórica, não é possível
dividir o tom (9:8). Como dissemos, esse cálculo levaria a um
número irracional, ou seja, não redutível a uma razão.
Se até este ponto poderíamos ter dúvida se estávamos falando
de intervalos em termos geométricos ou aritméticos, agora tudo
converge para a última opção, ecoando a tonalidade pitagórica. Ou
Cynthia S. de Gusmão
83
seja, apesar dos comprimentos visíveis serem transformados em
segmentos de reta, à aritmética é concedida uma posição principal.
Em uma oitava, é possível perceber que a quinta é maior que a
quarta auditivamente, mas não apreendemos sensivelmente que a
diferença entre elas é de 9:8, nem que a quarta é 4:3 e a quinta 3:2.
Cabia à aritmética desvelar essas relações.
As duas proposições finais de A divisão do cânone são um
método para a localização das notas no instrumento, apenas no
gênero diatônico.
Apesar do caráter teórico da obra, A divisão do cânone é de
uma época em que a matemática pitagórica era o modelo de ciência
ainda em uso e tinha aplicações práticas bem determinadas.
2. O apogeu da ciência pitagórica
É conhecida a adoração e o entusiasmo que os gregos tinham
pelo teatro. Como as representações eram feitas ao ar livre, havia
uma preocupação especial com a construção dos anfiteatros, que
deveriam abrigar milhares de espectadores. Em geral, eles eram
construídos ao longo de uma colina, com uma inclinação de mais ou
menos 45 graus com o auditório fazendo um semicírculo em torno do
espaço de performance.
Um dos teatros mais famosos é o de Epidauros, construído
dentro do santuário de Asclepius, o deus da saúde e da medicina,
entre 330-320 a.C. É conhecida a eficiência acústica do seu espaço,
seja quanto à audibilidade ou à compreensão da voz solista ou em
coro, seja para a audição de um único instrumento, como era o caso
das representações teatrais gregas, que utilizavam apenas o aulos. O
teatro de Epidauro acomoda 14.000 pessoas e seu desenho faz com
que todas elas ouçam e vejam com perfeição. Talvez porque suas
Cynthia S. de Gusmão
84
proporções sejam calculadas a partir de uma unidade de medida
relacionada ao corpo humano, o cúbito.
De acordo com o cenógrafo grego Vovolis (2000, p.79), a
construção é feita com base nas proporções matemáticas tal como
desenvolvidas pela escola pitagórica. Por exemplo, a relação entre o
número de fileiras de assentos, acima (34) e abaixo (21) do corredor
central e o conjunto total forma uma proporção áurea 55:34::34:21,
que, como vimos é a proporção em que o todo está para a parte
maior, assim como esta última está para o todo
(Proposição VI.36 de
Euclides, Os Elementos). Por fim, o plano horizontal da orquestra está
baseado no pentagrama, figura que representava saúde para os
pitagóricos.
Vovolis afirma que também o arquiteto Vitruvius, do século I
d.C., propunha a colocação de vasos de bronze ou argila nas laterais
dos teatros para aperfeiçoar a qualidade de timbre da voz. Os
artefatos deveriam estar em proporções matemáticas entre si,
levando em conta o tamanho do teatro
Esse modelo em que a harmônica e a natureza considerando
o ser humano como parte dela estão em uma relação de
comensurabilidade, ou de proporção, manter-se-á no mundo grego,
permanecerá bem vivo na Idade Média e alcançará a Renascença,
com outras ramificações tanto na arte quanto na ciência.
Cynthia S. de Gusmão
85
CONSIDERAÇÕES FINAIS
As razões numéricas musicais, tal como elaboradas pela escola
pitagórica, tiveram um papel importante no desenvolvimento inicial
da ciência grega. os princípios aristoxenianos darão impulso à
tékne musical, no sentido aristotélico do termo, a capacidade de
fabricar ou fazer algo com conhecimento dos princípios envolvidos.
Essa eficiência da arte musical promovida por Aristóxeno
insere-se no quadro de uma das concepções gregas de kalós: o
critério estético é o da obra bem feita. Aristóxeno não se refere a
nenhuma função social para a música, a sua filosofia volta-se toda
para a qualidade de realização do mélos hermosménon, de acordo
com a sua própria natureza.
Essa ligação primeira da música com a natureza está presente
tanto na filosofia de Aristóxeno, como herdeiro de Aristóteles, quanto
na de Pitágoras. Na obra de arte, há uma reorganização das coisas tal
como dispostas na natureza. Mas no termo kósmos, cujo significado
primeiro é ordem, está impressa uma percepção de que esse sentido
estético está na natureza e surge da sua contemplação. Já na palavra
harmonia, o sentido de que o prazer estético pode surgir da
reciprocidade dos elementos, ou seja, a dissonância é integrada no
todo harmônico consonante.
Que a religiosidade mágica pitagórica seja o ponto de partida
do processo de racionalização da música ocidental pode parecer
paradoxal, mas as escolhas feitas no desenvolvimento dessa arte-
ciência são bastante coerentes com as construções poéticas e
científicas de seus empreendedores.
Cabe aqui sublinhar o papel fundamental da analogia como
procedimento epistemológico, em especial no pensamento pré-
socrático. Esse aspecto é explorado em profundidade por Abdounour,
que enfatiza como “os pitagóricos contribuíram fortemente para o
Cynthia S. de Gusmão
86
desenvolvimento categorial dessa forma de comparação” (Abdounour,
1999, p.116) dando a ele um caráter matemático. Para o autor, o
pensamento moderno supervaloriza o pensamento lógico-formal em
detrimento do analógico.
No século das Luzes, uma troca de ênfase do objeto para o
sujeito. Um exemplo no âmbito da estética está no texto Standard of
taste, do filósofo escocês David Hume (1711-1776): “O belo não é
uma qualidade intrínseca aos objetos; ele existe dentro dos espíritos
que os contempla, e cada espírito percebe uma beleza diferente”
(Apud Chouillet, 1974, p. 65). Esse pensamento digno de um
Protágoras, é contraposto na Antiguidade grega a uma teoria da
beleza embasada em um substrato ontológico. Mas, de qualquer
modo, é no sujeito que acontecerá a ação da aisthésis , a partir da
qual ocorre a distinção entre a consonância e a dissonância.
Os pensamentos subjacentes às duas correntes aristoxeniana
e pitagórica – participarão ativamente da história da música no
Ocidente. A geometria musical de Aristóxeno será importante para o
desenvolvimento da arte musical, entre outras coisas, por estar em
sintonia com uma posição precursora do temperamento igual, por sua
vez, responsável pelo desenvolvimento da harmonia e da tonalidade.
Mas a supremacia da melodia defendida pelos novos teóricos dos
séculos XVI, que conclamavam ideias aristoxenianas, foi possível
por causa do desenvolvimento dos meios advindos do progresso dos
questionamentos iniciados pelos pitagóricos.
A pergunta pitagórica rechaçada por Aristóxeno, que não se
interessava pela acústica musical – sobre a causa primeira dos
intervalos continuou ressoando e será essa mesma questão que
Galileu se fará em 1638. A resposta não utilizará os procedimentos da
aritmética pitagórica e, tampouco, da lógica das abordagens
qualitativas aristotélicas. Galileu marca o início da sica da música ao
pensar o fenômeno da altura como frequência de vibrações e
Cynthia S. de Gusmão
87
impactos no mpano humano, ideia que levaria logo mais ao
entendimento do fenômeno da ressonância e da existência dos
harmônicos, sons parciais, na composição de um tom musical.
A música seguirá tendo papel preponderante na trajetória dos
experimentos acústicos. Mas a realização completa do temperamento
será possível devido a um procedimento matemático, os
logaritmos.
Quase quinhentos anos depois da morte de Aristóxeno, em
meados do século II d.C., o astrônomo, matemático e geógrafo
Cláudio Ptolomeu (100-179 d.C.) escreve a obra Harmônica em três
livros nos quais expõe toda a teoria musical da Antiguidade, amplia
significativamente os lculos numéricos pitagóricos e busca
incorporar alguns aspectos da filosofia aristoxeniana. Para Ptolomeu,
a aritmética e a geometria são “instrumentos de autoridade
indiscutível”, empregados pela astronomia e pela harmônica “para
descobrir a quantidade e a qualidade dos movimentos primários”. A
ciência dos astros e a musical são “primas, nascidas das irmãs visão
e audição, e educadas pela aritmética e a geometria
.
(Ptolomeu, 94,
13-20, apud Barker, 2000, p 6)
Aristides Quintiliano (séculos III e IV d.C.) em seu De musica,
irá reunir considerações musicais, filosóficas, médicas e gramaticais,
com forte influência neoplatônica, tal como o Manual de harmônica,
do matemático Nicômaco de Gerasa (II d. C.), que também se insere
nessa tradição.
Boécio (480-525/26) encerra os primeiros mil anos de
especulação teórica da música, fazendo a ponte para a Alta Idade
Média. Na introdução de sua obra Institutione arithmetica, o autor
romano define um programa educacional para os estudantes das
artes liberais no qual deveriam estar presentes as quatro ciências
matemáticas: a astronomia, a aritmética, a geometria e a música. Ele
chamou a esse conjunto de quadrivium: trata-se do conjunto de
Cynthia S. de Gusmão
88
disciplinas que deveriam levar o ser humano ao conhecimento das
essências imutáveis na natureza. Para o filósofo cristão, as ciências
do quadrivium apareciam na seção do estudo dos seres naturais,
também chamado de fisiologia ou física. Como estudioso e tradutor
dos escritos lógicos de Aristóteles, o autor distinguia a categoria de
quantidade em dois gêneros: discreto e contínuo. Na quantidade
discreta, a espécie é o número; e a aritmética e a música são as
disciplinas matemáticas que lidam com as quantidades discretas, pois
a primeira trabalha com o número em si mesmo e a outra, com as
relações entre os números (razões e proporções). As outras duas
ciências, a geometria e a astronomia, lidam com as quantidades
contínuas, as magnitudes geométricas ligadas ao movimento e ao
repouso. Suas espécies são a forma imóvel (geometria) ou móvel
(astronomia). Uma magnitude pode ser infinitamente dividida, mas a
unidade, a origem da quantidade discreta, é indivisível.
Os eruditos concentrados no império de Carlos Magno, na
segunda metade do século VIII, seguiram estudando a música como
disciplina científica e as anotações nos manuscritos das obras
revelam uma verdadeira obsessão com inumeráveis cálculos de
razões matemáticas. Em 814, com a dissolução do império carolíngio,
essas obras dispersaram-se pelos mosteiros e caíram nas mãos dos
religiosos, que deram início à diluição das fronteiras entre a teoria e a
prática musical. Os monges passaram a dominar os escritos teóricos
mas também a prática musical, de que necessitavam para a rotina
diária de entoação dos cantos ritualísticos. Entre os tratados musicais
dessa época está a Epistola de armonica institutione, do religioso
alemão Regino de Prum (c.842-915), que reúne a matemática
musical da época com um tonário, um livro para o estudo sistemático
dos modos utilizados nos cantos.
No século XII, em cidades prósperas, surgiram as escolas
catedrais, nas quais era incentivado o estudo das artes liberais. A
Cynthia S. de Gusmão
89
escola de Chartres ficará conhecida por cultivar as disciplinas do
quadrivium boeciano. Ali eram lidos os fragmentos (17a-53c) do
Timeu de Platão, conhecidos através dos comentários do escritor do
século IV, Calcídio. Neles estava a passagem em que Platão descreve
a criação da alma do mundo com base na escala musical pitagórica.
Segundo Alain de Libera, os chartrenses, apesar de não conhecerem
nada de Platão além desse fragmento, davam ao autor “um crédito
tanto mais intenso quanto mais a sua obra parecia destinada a selar
o acordo entre a ciência sagrada, a matemática e os saberes
naturais” (2004, p.314). Na mesma época, em Paris, Hugo de São
Vítor expunha a classificação em quatro partes de sua filosofia:
teórica, prática, mecânica e lógica. A música mantinha-se na parte
teórica, como uma das quatro matemáticas, aquelas que deveriam
tratar das formas invisíveis (no caso da música, inaudíveis) das
coisas visíveis (audíveis).
Com o desenvolvimento do humanismo na Itália, no início do
século XV, assuntos e práticas relacionados ao estudo das
humanidades, como a retórica e a poesia, foram penetrando nas
reflexões e nos escritos sobre a música, afastando-a de sua estreita
vinculação às matemáticas. No século XVI, essas ideias adentraram a
obra dos compositores madrigalistas, em geral flamencos, que
vinham para a Itália em busca de trabalho. Um deles foi Adrian
Willaert (1490-1562), diretor musical da Igreja de São Marcos em
Veneza de 1527 até 1562 e grande responsável pelo estabelecimento
do magnífico idioma coral da escola veneziana. Willaert reunia as
qualidades do músico teórico com uma profunda experiência da arte
musical. A partir dele, os compositores começam a influenciar mais
diretamente a teoria musical. A hierarquia de Boécio desmoronava e
suas três “músicas” se fundiam em uma só.
Nesse período, que tem como pano de fundo a preparação de
um novo ciclo do pensamento ocidental, a obra Elementos de
Cynthia S. de Gusmão
90
harmônica é traduzida para o italiano, levando a tensão criada entre
as correntes da matemática e da sensação ao seu ápice.
No século XVII, a ideia de harmonia universal continua
presente: analogia viva entre os elementos da natureza que deviam
ressoar entre si por simpatias. Essa visão está representada na
imagem do livro de Robert Fludd, Utriusque cosmi, de 1617: um
imenso monocórdio, cuja cravelha é ajustada por uma “mão cósmica”
envolta em uma nuvem. As proporções matemáticas afinam as
consonâncias musicais, os planetas e os elementos.
A ideia de que todas as partes do universo estão conectadas
harmônica e simpateticamente, que todos os seres constituem uma
imensa cadeia contínua, é um fenômeno facilmente demonstrável nas
propriedades de ressonância de instrumentos musicais,
especialmente daqueles de cordas; por exemplo, com dois alaúdes:
tangendo as cordas de um, o outro vibra. Segundo Gouk, “embora o
experimento tenha sua origem no contexto da magia natural, no
século XVII, ele será incorporado pela nova filosofia experimental
como uma maneira de visualizar outras espécies de vibrações
ocultas, mas naturais” (2002, p.231).
O modelo de harmonia universal segue presente nas
investigações do astrônomo alemão Johannes Kepler (1571-1630), ao
mesmo tempo em que sofrerá rupturas mais profundas com a
filosofia de René Descartes (1596-1650). O pensamento cartesiano
ecoará, no século XVIII, na teoria musical de Jean-Philippe Rameau
(1683-1764), que introduzirá a ideia de forças naturais nas relações
sistêmicas da linguagem musical, enfatizando não mais os intervalos
entre dois tons, mas formações de acordes, conjunto de três tons ou
mais. Contemporâneo de Rameau, Johann Sebastian Bach (1685-
1750) irá sintetizar em sua arte toda a tradição ocidental até então,
reunindo organologia, técnica, matemática e poesia de modo que
Cynthia S. de Gusmão
91
nenhum grego pudera sequer imaginar. Em seu tempo, a música
alcançará sua completa autonomia.
Ao lado das transformações que começam a ocorrer na história
da teoria musical, a música segue sendo estudada como disciplina
científica dentro do currículo da educação superior na Europa até o
século XVIII. Isso explica a sua presença, às vezes determinante, na
obra de cientistas e filósofos como Kepler, Galileu, Mersenne,
Descartes, Huygens, Leibniz, Bacon, Newton, entre outros, que
escreveram com desenvoltura sobre a música e a utilizaram como
base de suas teorias e experimentos. Nesse momento, novas
concepções e experimentos relacionados ao som musical darão
impulso à física em geral e à acústica em particular.
A partir do século XVIII, o foco da música desloca-se
completamente do âmbito científico para o estético, mas a música
segue guiando os estudos em acústica. Em 1701, Joseph Sauveur
(1653-1716) publica sua obra Princípios de acústica e de música, na
qual expõe a noção de frequência musical. Por volta de 1739, o
matemático Leonard Euler (1707-1783) apresenta sua teoria da
consonância baseada em leis matemáticas no livro Tentamen novae
theoriae musicae, ex certissimis harmoniae principiis dilucidae
expositae.
O médico, físico e matemático Hermann von Helmholtz (1821-
1894), no século XIX, funda o estudo da fisiologia do ouvido e leva
adiante inúmeras pesquisas relacionadas à música, explicando o
papel dos harmônicos no timbre e a natureza dos pulsos nas
consonâncias e dissonâncias. O som passa a ser considerado não
como vibração, mas como onda, e a matemática volta à cena
musical, quando Fourier faz a representação matemática de curvas
periódicas através da superposição de senóides, mostrando que elas
correspondiam a uma série de 1,2, 3, 4 vezes a frequência da curva
Cynthia S. de Gusmão
92
original. Essa Série de Fourier correspondia à sequência ordenada dos
harmônicos, do grave ao agudo.
Com o desenvolvimento da fisiologia foi possível demonstrar
que o ouvido humano analisa sons complexos através de
componentes mais simples, as senóides. Seria possível fazer uma
analogia dessa descoberta com a perplexidade que deve ter atingido
o coração dos pitagóricos ao se depararem com as razões dos quatro
primeiros números inteiros como explicação para as consonâncias? O
fato é que algumas questões ainda não foram totalmente
compreendidas, entre elas, exatamente a origem da consonância e da
dissonância, problema central da harmônica de Pitágoras (Taylor &
Campbell, 2009)
33
.
O desenvolvimento das técnicas de gravação e o surgimento
das músicas concreta e eletrônica, no início do século XX, agregaram
novos ingredientes à música e à ciência musical. Eimert encerra seu
prefácio ao livro Que es la música eletrônica? dizendo: “A relação
com o som nunca foi tão direta como hoje. O som segue sendo, para
o teórico, a fonte principal” (Eimert, 1973, p.21).
Aristóxeno, o mousikós, teria dito de outro modo. O que
interessa à música é o som musical. A altura ou, a frequência do
som, só interessa a partir do momento em que se transforma em tom
e desabrocha no ritmo. Com a noção de tom podemos explicar a
transposição de melodias, algo tão inerente à natureza humana. Pois,
no mélos hermosménon, ouvimos, o o som, mas as qualidades
dinâmicas inerentes ao tom, movendo-se em um espaço
intermediário, o mundo da aisthésis .
33
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of consonance and dissonance, the precise way in which ear and brain respond to
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