Em 1961, Debord colaborou com o “Grupo de pesquisa sobre a vida cotidiana” reunido
por Lefebvre no CNRS.
A intervenção de Debord resume o estado das discussões sobre o
tema: o cotidiano, definido nos mesmos termos de Lefebvre, “é o que resta quando se retiram
do vivido todas as atividades especializadas” (I.S., 1997: 218).
Para Debord, o projeto de
criações de níveis mais elevados de participação na vida implica que se tome o cotidiano
como a “medida de tudo”: ele é a medida da não-realização das possibilidades de emprego
consciente do tempo. Por isso, Debord retoma a idéia lefebvreana do cotidiano como lugar de
“atraso” em relação às potencialidades técnicas (sobretudo no que diz respeito à capacidade
de ampliação do tempo livre) desenvolvidas de forma inconsciente pela sociedade. Produz-se,
assim, uma assimetria entre o caráter “unitário” da vida cotidiana e as diferentes
especializações: “a sociedade moderna se constitui de fragmentos especializados,
praticamente intransmissíveis, e a vida cotidiana, na qual todas as questões surgem de modo
unitário, torna-se, portanto, o domínio da ignorância”. Mas, esse atraso não obscurece o fato
de que “todos os desejos impedidos pelo funcionamento da vida social, residiam nela, e não
nas atividades ou distrações especializadas” (I.S. 1997: 221). Para Debord, a arte e a filosofia,
como domínios especializados, são impotentes para a transformação do cotidiano. Se a vida
cotidiana é o que “sobra” quando abstraímos as atividades especializadas que lhe escapam,
então, conclui Debord, a crítica da vida cotidiana só pode ser a crítica que o próprio cotidiano
exerce sobre tudo o que se tornou exterior a ele. Debord identifica outros problemas relativos
à vida cotidiana, como a forma pela qual a “sociedade da alienação” manipula o desejo de
intensificação da vida, a partir de imagens publicitárias do sexo e do consumo de mercadorias
ou ainda através do uso das drogas.
Outro problema era o da apropriação capitalista dos
“momentos” de não-trabalho (o consumo, repouso, lazer, etc.), definidos como a “passividade
cotidiana” fabricada e administrada pelo capitalismo (I.S., 1997: 223). Debord conclui suas
observações com outra idéia importante: o descompasso entre o real e o possível produz uma
A participação de Debord na reunião do grupo de estudos resumiu-se a uma palestra, feita por meio de um gravador, em
maio de 1961. Foi a primeira vez que Debord apresentou suas idéias em um contexto institucional. A palestra foi publicada
no número 6 da revista I.S., com o título “Perspectivas de modificações conscientes da vida cotidiana”.
Cf. também o texto “Introdução à psicosociologia da vida cotidiana”. Nele encontramos elementos que nos aproximam de
uma definição (não-sistemática) do cotidiano: “se eliminarmos as atividades delimitadas e especializadas (técnicas, trabalhos
parcelares, cultura, ética) e os valores admitidos, o que nos resta? Nada, dirão alguns, os positivistas, os cientificistas. Tudo, a
saber, o ser profundo, a essência, a existência, dirão certos filósofos e metafísicos. Nós diremos: „Algo, a substância do
homem, a matéria humana, o que lhe permite viver, resíduo e totalidade há um só tempo, seus desejos, suas capacidades, suas
possibilidades, suas relações essenciais com os bens e com os outros homens, seus ritmos, através dos quais é possível passar
de uma atividade delimitada à outra totalmente distinta, seu tempo e seu espaço ou seus espaços, seus conflitos‟...” (1973:
88).
A esse respeito, Debord lembra as palavras do moralista francês La Rochefoucauld, para quem “o que nos impede de
entregarmo-nos a um vício é o fato de termos vários”, observando que esta idéia, uma vez despojada dos pressupostos
moralistas, poderia se tornar a “base de um programa de realização das capacidades humanas” (I.S., 1997: 222).