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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC - SP
Ricardo Mrad
Repercussão Geral e Súmula Vinculante
em matéria tributária
MESTRADO EM DIREITO TRIBUTÁRIO
SÃO PAULO
2010
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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC - SP
Ricardo Mrad
Repercussão Geral e Súmula Vinculante
em matéria tributária
MESTRADO EM DIREITO TRIBUTÁRIO
Dissertação apresentada à Banca Examinadora como
exigência parcial para a obtenção do título de Mestre em
Direito Tributário pela Pontifícia Universidade Católica
de São Paulo, sob a orientação da Prof. Dra. Fabiana Del
Padre Tomé.
SÃO PAULO
2010
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Banca Examinadora
________________________________________________
________________________________________________
________________________________________________
Dedico este trabalho à todas as
mentes inteligentes que,
de uma forma ou de outra,
me auxiliaram nesta jornada.
RESUMO
O presente trabalho tem como escopo o estudo dos institutos da repercussão geral
e da súmula vinculante visando aplicá-los a alguns casos práticos de direito tributário.
Com este intuito, algumas premissas metodológicas foram traçadas, como a
concepção do direito como um sistema comunicacional. Assim, mesmo aceitando e aplicando a
distinção entre o sistema do direito positivo e o sistema da Ciência do Direito, vislumbra-se a
existência de comunicação entre os referidos sistemas, o que acaba criando outro sistema
comunicacional, autopoiético, denominado de sistema jurídico. Outrossim, também foi analisada
a teoria comunicacional proposta por Luhmann e concluímos que o que se passa na consciência
humana se encontra fora do plano comunicacional e, ainda segundo os ensinamentos de
Luhmann, a norma jurídica foi situada no ato de entender, enunciado por um aplicador do direito.
Em um segundo momento, foram enfatizadas as diferenças entre os dois grandes
sistemas jurídicos do ocidente (common law e civil) para se demonstrar que os mesmos se
encontram cada vez mais próximos. Nesta etapa, estudou-se o sistema de controle incidental e
difuso da constitucionalidade dos atos normativos, desenvolvido na common law e o sistema
concentrado, desenvolvido na civil law. Após, identificou-se que o Brasil, país da civil law,
adotou um sistema de controle de constitucionalidade típico dos países da common law, fato este
que acarretou na ineficiência do sistema, que evoluiu paulatinamente ao longo do Século XX até
alcançar o estágio atual, híbrido.
Depois, demonstrou-se que no Brasil, não obstante a livre convicção do juiz ser a
regra geral, é crescente o número de regras que conferem as mais diversas decisões judiciais
significativa eficácia extraprocessual para a solução de outros processos, alcançando, em certos
casos constitucionalmente delineados, inclusive a vinculação.
Feito isso, analisou-se detidamente o tema da repercussão geral, em sua acepção
constitucional e infraconstitucional e da súmula vinculante, visando a demonstrar suas
particularidades e funções precípuas, principalmente no tocante às tarefas de uniformizar a
jurisprudência, racionalizar e conferir maior eficácia ao trabalho desenvolvido pelo Supremo
Tribunal Federal.
Por último, estudou-se alguns casos de direito tributário à luz de todos os
conhecimentos e ferramentas desenvolvidos ao longo do estudo, que não tem como escopo a
construção de teorias sobre o direito material tributário, mas sim, demonstrar como tais teorias
são criadas, desenvolvidas e descartadas. Em suma, demonstrar como funciona a dinâmica do
sistema jurídico, visando a compreender a coordenação existente entre a doutrina e os
aplicadores do direito.
Palavras-chave: repercussão geral, súmula vinculante e direito tributário
ABSTRACT
The present work has as an aim to analyze the general repercussion institutes and the
entailed emulate and to apply them for some tributary law practical cases.
With this purpose, some methodological premises were draught, as the law conception as
a communicational system. Not-withstanding the distinction between the positive law system and
the system of the Law Science were accepted and applied, glimming the existence of the
communication between both, the referred system which can constitute in another
communicational system, called judiciary system. Furthermore, the communicational theory
proposed by Luhmann was analyzed and it was concluded that what passes in human
consciousness it is found outside the communicational plan, and, according to the Luhmann
teachings, the judicial rule is set in the understanding act, which is enunciated by a law applicant.
In a second moment, it was emphasized the difference between the two western judiciary
systems (common and civil) and demonstrated that the same were becoming much closer. In this
stage, it was focused the system of incidental control and diffused of the constitutionality of the
normative acts, and it was also developed in the common law and the concentrated system,
which was developed in the civil law. After, it was identified that Brazil, the country of the civil
law, adopted a typical system of the constitutionality control of the common law countries. This
fact caused the inefficiency of the system, which gradually evolved during the 20
th
century until
it reaches the present time, hybrid.
Also, it was demonstrated that in Brazil, the free conviction of the judge in being the
general rule is increasing the rules numbers that check the most various judicial decisions and
extra proceeding relevant efficacy to the other process solutions, reaching, in certain cases
draught constitutionally, including the entail.
Following, it was analyzed the theme of general repercussion, in its constitutional and
infra constitutional meaning and the entailed emulate, aiming to demonstrate its particularities
and the principal functions, mainly what concerns the tasks of unifying the jurisprudence,
rationalizing and checking the efficacy to the work which is developed by “Supremo Tribunal
Federal”.
Finally, some tributary law cases were analyzed under all the knowledge and tools that
were developed during this study, which does not have the purpose the construction of the
theories, but it was aimed how these theories are created, developed and discarded. Then, this
study was focused at demonstrating how the dynamics of the judicial system works, aiming the
understanding of the existent coordination between the doctrine and the law professionals.
Key-words: general repercussion; entailed emulate; tax law.
Repercussão geral e Súmula Vinculante
em matéria tributária
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO .......................................................................................................................... 10
CAPÍTULO 1. PROPEDÊUTICA GERAL
1.1. A revolução filosófica do Século XX ................................................................................... 12
1.2. Teoria da comunicação e direito ........................................................................................... 24
1.3. Da distinção entre o sistema do direito positivo e a Ciência do Direito ............................... 30
1.4. Do ciclo de positivação do direito ........................................................................................ 34
1.5. Algumas conclusões iniciais ................................................................................................. 37
CAPÍTULO 2. DOS DIVERSOS TIPOS DE SISTEMAS JURÍDICOS MUNDIAIS
2.1. Introdução ............................................................................................................................. 49
2.2. Da origem e desenvolvimento da common law na Inglaterra ............................................... 50
2.3. Da introdução e evolução da common law nos Estados Unidos da América ....................... 54
2.4. Do direito romano-germânico, ou civil law .......................................................................... 56
2.5. Da principal distinção entre a civil law e a common law ..................................................... 59
CAPÍTULO 3 DO CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE DOS ATOS
NORMATIVOS
3.1. Do controle de constitucionalidade dos atos normativos na common law ............................ 64
3.2. Do controle de constitucionalidade dos atos normativos na civil law .................................. 66
3.3. Da evolução do controle de constitucionalidade dos atos normativos no Brasil .................. 70
3.4. Síntese conclusiva sobre as etapas da evolução do controle de constitucionalidade
dos atos normativos no Brasil ...................................................................................................... 83
3.5. Da teoria geral acerca da inconstitucionalidade dos atos normativos ................................... 84
3.6. Dos efeitos temporais das decisões de inconstitucionalidade (ou não)
dos atos normativos ...................................................................................................................... 95
CAPÍTULO 4. DA EFICÁCIA QUE AS DECISÕES JUDICIAIS POSSUEM PARA
ATUAREM COMO PRECEDENTES NO SISTEMA JURIDICO BRASILEIRO
4.1. Introdução ........................................................................................................................... 103
4.2. Da classificação elaborada por Patrícia Perrone e a nossa proposta
Classificatória ............................................................................................................................ 105
4.3. Alguns precedentes vinculantes .......................................................................................... 108
4.4. Da eficácia extraprocessual das decisões de inconstitucionalidade proferidas
pelo plenário do Supremo Tribunal federal pela via incidental e difusa ................................... 112
4.5. Da eficácia extraprocessual da jurisprudência dominante e das súmulas ........................... 118
4.6. Do incidente de uniformização da jurisprudência dos tribunais ......................................... 121
CAPÍTULO 5. DA REPERCUSSÃO GERAL
5.1. Introdução ........................................................................................................................... 128
5.2. Origens do instituto ............................................................................................................. 134
5.3. Aspectos constitucionais ..................................................................................................... 137
5.4. Da regulamentação infraconstitucional ............................................................................... 140
5.4.1. Algumas particularidades da Lei 11.418/06 .................................................................... 140
5.4.2. Da dimensão semântica do termo repercussão geral ....................................................... 143
5.4.3. Do regime jurídico processual estabelecido pela repercussão geral ................................ 149
5.4.4. Da irrecorribilidade das decisões sobre a repercussão geral ............................................ 154
5.5. Dos recursos repetitivos no âmbito do Superior Tribunal de Justiça .................................. 158
5.6. Do distanciamento quanto à eficácia das decisões judiciais proferidas pelo
Supremo Tribunal Federal e pelo Superior Tribunal de Justiça ................................................ 160
CAPÍTULO 6. DA SÚMULA VINCULANTE
6.1. Origem ................................................................................................................................ 165
6.2. Da previsão constitucional .................................................................................................. 173
6.3. Súmula Vinculante e repercussão geral .............................................................................. 178
CAPÍTULO 7. ANÁLISE DE ALGUNS CASOS PRÁTICOS EM MATÉRIA DE
DIREITO TRIBUTÁRIO
7.1. Ainda a controvertida questão das normas gerais em matéria tributária e a exigência quanto a
sua veiculação por lei complementar ......................................................................................... 183
7.1.1. Da edição da súmula vinculante 8 e do julgamento dos recursos extraordinários que lhe
deram origem ............................................................................................................................. 198
7.1.2. Da incidência da COFINS sobre a atividade das sociedades civis de profissão
regulamentada ............................................................................................................................ 211
7.2. Da Súmula Vinculante n° 28 .............................................................................................. 216
CONCLUSÕES ........................................................................................................................ 222
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ................................................................................... 242
INTRODUCÃO
Muito se tem dito pela univocidade do direito, que, segundo esta concepção,
seria uno e indecomponível. Este trabalho é uma prova de que tal assertiva é correta, na
medida em que flui sobre temas constitucionais, processuais e de teoria geral do direito
para analisar intrigadas questões jurídicas tributárias.
O escopo do presente trabalho não é construir uma teoria sobre determinada
questão de direito material tributária, mas sim, procurar demonstrar como as teorias são
construídas, empregadas e afastadas. Procuramos analisar o sistema jurídico do ponto de
vista dinâmico, demonstrando que existe uma íntima e constante comunicação entre todos
os participantes deste sistema. Assim, legisladores, magistrados, administradores públicos,
doutrinadores e cidadãos (através de seus advogados) todos participam do sistema jurídico
no sentido de que emitem sucessivos atos de comunicar e atos de entender que dinamizam
o jogo do direito (no sentido dos jogos de linguagem de Wittgenstein).
Também procuramos demonstrar a importância do estudo da formação
histórica dos atuais institutos em vigor em nosso ordenamento jurídico, pois, sendo o
direito um objeto cultural, o estudo de suas origens nos parece fundamental para melhor
compreendê-lo no presente.
11
Com relação a aplicação das decisões judiciais como precedentes,
procuramos explicar que diversos fatores vem contribuindo para uma substancial alteração
em nossa legislação processual no sentido de conferir uma eficácia extraprocessual cada
vez maior às decisões judiciais, principalmente no tocante àquelas proferidas pelo Supremo
Tribunal Federal, visando a conferir uma maior segurança jurídica ao ordenamento, assim
como racionalizar o trabalho do Poder Judiciário.
12
CAPÍTULO 1. PROPEDÊUTICA GERAL
1.1. A revolução filosófica do Século XX
Mesmo cientes de que o termo revolução possui uma maior precisão
semântica quando empregado para designar a violenta e rápida destruição de um regime
político ,
1
ele também pode ser empregado para designar uma radical mudança de uma
determinada situação cultural.
2
Assim, justificamos seu uso no título deste subcapítulo,
pois entendemos que o século XX produziu uma verdadeira revolução no pensamento
filosófico ocidental ao descartar a filosofia da consciência e adotar a filosofia da linguagem,
mediante um movimento denominado giro linguístico, ou viragem linguística.
Longe de pretender analisar, mesmo que resumidamente, a evolução do
pensamento filosófico ocidental desde a Grécia Antiga, para nós, claro está que, desde
então, os pensadores do ocidente vem travando uma árdua batalha contra a metafísica
desenvolvida por Aristóteles, que, em apertada síntese, coloca a linguagem em segundo
plano (como o fez Platão), uma vez que descarta a idéia de uma linguagem autônoma com
relação às coisas. Antes, pressupõe uma ontologia, na medida em que as palavras
possuíam um sentido porque as coisas possuíam uma essência.
3
Assim, a linguagem passa
a ser vista como um mero instrumento, utilizado pelo sujeito cognoscente, para alcançar seu
objeto de estudo, que já o é em sua essência.
1
ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia, pág. 858.
2
Idem, pág. 859.
3
STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica jurídica e(m) crise, pág. 122.
13
Segundo este paradigma, vitorioso é o entendimento segundo o qual a
verdade se por correspondência, na medida em que pressupõe uma identidade entre a
proposição afirmativa ou negativa de algo e a realidade por ela referida.
4
A partir deste contexto filosófico, observamos, ao longo dos últimos dois
mil anos, o surgimento de diversas escolas filosóficas no ocidente, que, pouco a pouco, vem
construindo uma série de argumentos lógicos para derrocar a ontologia acima descrita.
Podemos citar, dentre outras, algumas destacadas escolas filosóficas, tais como o
nominalismo, o materialismo, o ceticismo, o empirismo moderno e o conceitualismo. É
interessante notar que, com o passar dos anos, os próprios pensadores metafísicos acabaram
por desenvolver argumentos que, posteriormente, darão embasamento ao giro linguístico.
5
no século XIX, Joham Georg Hamann, Johan Gottfried Herder e Wilhelm
Von Humbolt (este é considerado por muitos como o fundador da filosofia da linguagem),
tornaram-se os precursores da filosofia da linguagem. As idéias desenvolvidas por tais
cientistas são primordiais para a quebra do paradigma da filosofia da consciência, uma vez
que trazem a linguagem para o centro da teoria do conhecimento. Contudo, à época, tendo
em vista o deslumbramento da comunidade filosófica com o idealismo transcendental de
Kant e Hegel, a incipiente filosofia da linguagem foi relegada ao segundo plano.
Entre o final do século XIX e o início do século XX a linguística moderna,
principalmente através dos estudos de Saussure (Semiologia) e Peirce (Semiótica), também
4
TOMÈ, Fabiana Del Padre. A prova no direito tributário, pág. 11.
5
Tudo como muito bem explicado por STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica jurídica e(m) crise, pág. 125 e
seguintes.
14
contribui sobremaneira para a evolução do pensamento filosófico e a consequente quebra
do paradigma ontológico, estabelecido pela metafísica, na medida em que demonstra a
inexistência de qualquer vínculo natural entre o signo e seu significado (Saussure). Aliás,
neste sentido, também são muito relevantes as críticas que Peirce elabora acerca da filosofia
da consciência de Kant, principalmente no que diz respeito às suas doze categorias
fundamentais.
6
Não obstante o desenvolvimento de todas as escolas filosóficas acima
descritas, foi somente na metade do século XX que, efetivamente, a filosofia da linguagem
se sobrepõe à filosofia da consciência. Neste sentido, ainda com Streck,
7
podemos afirmar
que o giro linguístico ocorreu em três frentes.
A primeira frente é observada com o neopositivismo lógico que, ao reduzir a
filosofia à epistemologia e esta à semiótica, acaba conferindo soberba importância a
linguagem como instrumento do saber científico por excelência. Ademais, para tal corrente
de pensamento, os problemas da filosofia devem ser resolvidos à luz da linguística e não da
metafísica. Neste sentido, aduz-se que a linguagem, quando mal empregada, pode
obscurecer o conhecimento humano, logo, o rigor semântico e sintático da linguagem
científica se impõe, em detrimento da pragmática.
8
Destarte que o neopositivismo lógico ainda é um pensamento ontológico por
excelência, pois não aceita como verdadeiro o enunciado linguístico que não é passível de
6
Conforme nos ensina STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica jurídica e(m) crise, pág. 145, passim.
7
Idem, pág. 161.
8
CARVALHO, Paulo de Barros. Direito Tributário e Método, pág. 27, passim.
15
constatação empírica (com exceção das tautologias). Assim, temos que sua relevância para
o giro lingüístico consiste justamente na importância que confere à linguagem, afastando as
questões metafísicas do pensamento filosófico.
Insta frisarmos que o neopositivismo lógico está fundamentado na primeira
fase do pensamento do filósofo austríaco Ludwing Josef Johann Wittgenstein, que foi
exposto no Tractatus Logico-philosophicus, uma vez que nesta obra se realiza
uma reformulação da teoria tradicional da semelhança entre
linguagem e mundo. que a linguagem não passa de um
reflexo, de uma cópia do mundo, o decisivo é a estrutura
ontológica do mundo que a linguagem de anunciar. A
essência da linguagem depende, assim, em última análise, da
estrutura ontológica do real. Existe um mundo em si que nos
é dado independente da linguagem, mas que a linguagem tem
a função de exprimir.
Foi por ter radicalizado no Tractatus tal posição
que Wittgenstein se deixou guiar pelo ideal de uma
linguagem perfeita, capaz de reproduzir com absoluta
exatidão a estrutura ontológica do mundo.
9
É justamente este ideal por uma linguagem perfeita, tanto perseguido por
Wittgenstein, que irá determinar o rigor semântico e sintático da linguagem científica
empregada pelo neopositivismo lógico.
Se a primeira frente do giro linguístico se deu com o neopositivismo lógico,
fundamentado na primeira fase do pensamento de Wittgenstein, é interessante notar que a
segunda frente também se deu em função deste inestimável filósofo austríaco, porém,
9
OLIVEIRA, Manfredo Araújo de. Reviravolta linguístico-pragmática na filosofia contemporânea, pág. 121.
16
agora, com a segunda fase do seu pensamento, compilado em sua obra póstuma:
Investigações Filosóficas.
Nesta segunda, fase Wittgenstein se torna um dos maiores críticos da
filosofia da consciência. O mundo fora da linguagem não existe. temos o mundo na
linguagem. Assim, a linguagem assume novo status na filosofia, pois deixa de ser o
instrumento de comunicação do conhecimento para tornar-se a própria condição de
possibilidade para a constituição do pensamento. Não qualquer essência comum entre as
coisas no mundo.
10
Com este novo pensamento, Wittgenstein abandona o ideal de uma
linguagem perfeita, tão caro em sua primeira fase e passa a entender tal ideal como um mito
filosófico, uma vez que a linguagem é indeterminada, melhor dizendo, é impossível
determinar a significação das palavras sem uma consideração do contexto socioprático em
que são usadas. As palavras são sempre ambíguas, sem um significado definitivo.
Pretender uma exatidão linguística é cair numa ilusão metafísica.
11
Ademais, nesta segunda fase, Wittgenstein deixa claro que com a linguagem
o homem é capaz de fazer muito mais coisas do que simplesmente descrever o mundo.
Quem assim acredita possui uma visão reduzida das múltiplas funções da linguagem, pois
diversas são as atividades humanas realizáveis tão somente mediante o emprego da
10
Tudo conforme STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica jurídica e(m) crise, pág. 164.
11
Idem, pág. 164.
17
linguagem.
12
A estes múltiplos usos da linguagem Wittgenstein denomina de jogos de
linguagem. Assim, a linguagem comum passa a ter prevalência sobre a linguagem lógica,
exatamente por seus múltiplos usos. Os diferentes jogos de linguagem são como diferentes
formas de vida, considerando-se o contexto social em que são empregados. Cada atividade
humana utiliza uma determinada linguagem comum que somente neste contexto pode ser
entendida, dando, assim, eficácia à comunicação.
13
A importância que Wittgenstein, em sua segunda fase, confere à pragmática
é latente. Por isso, esta segunda frente do giro linguístico também é conhecida como giro
linguístico-pragmático. Adota-se, agora, o paradigma comunicacional, em detrimento do
verificacional, adotado por Frege.
14
A teoria dos jogos de linguagem repele a tradição
semântica de que a significação de uma palavra depende de sua ordenação-objetiva, pois
entende que os problemas semânticos são resolvidos na medida em que atingidos por
uma dimensão pragmática.
15
Os seguidores da segunda fase de Wittgenstein foram os responsáveis pela
terceira frente de ataque à filosofia da linguagem. Tal escola é conhecida como filosofia
analítica inglesa e seu nome mais expressivo é o de John Langshaw Austin, autor do livro
Quando dizer é fazer (How to do things with words).
16
12
OLIVEIRA, Manfredo Araújo de. Reviravolta lingüístico-pragmática na filosofia contemporânea, pág.
129.
13
MENDES, Sonia Maria Broglia. A validade jurídica e o giro linguístico, pág. 62.
14
Idem, pág. 55.
15
STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica jurídica e(m) crise, g. 166.
16
MENDES, Sonia Maria Broglia. A validade jurídica e o giro linguístico, pág. 69.
18
Partindo da premissa estabelecida por Wittgenstein de que os enunciados
linguísticos não se prestam tão somente para descrever um estado de coisas, Austin
classifica os enunciados como constatativos ou performativos. Constatativos são os
enunciados que apenas relatam um estado de coisas. Já os performativos são os enunciados
que produzem uma ação. Austin deixa claro que muitas vezes, ao falarmos, fazemos coisas.
Eis uma das grandes inovações trazidas por Austin à filosofia da linguagem. Determinadas
sentenças, como batizo este navio com o nome de Rainha Elizabeth, caso ditas de forma
apropriada, não descrevem o ato que se estaria praticando ao dizer o que se disse, muito
menos declaram que o estou praticando, antes de mais nada, é fazê-lo.
17
Austin diz que os enunciados performativos não se submetem aos critérios
de verdade e falsidade, aplicáveis aos enunciados constatativos, mas sim aos critérios de
felicidade ou infelicidade. Para que uma ação seja praticada, além do proferimento das
palavras chamadas performativas, muitas outras coisas em geral têm que ocorrer de modo
adequado para podermos dizer que realizamos, com êxito, a nossa ação.
18
Justamente
neste contexto é que Austin desenvolve, de forma sistematizada, um conjunto de seis regras
que devem ser obedecidas para que o pronunciamento performativo possa realizar a ação
desejada, ou seja, assumir o status de um ato feliz.
Adiante, Austin constrói a teoria dos atos de fala (locução, ilocução e
perlocução), muito bem sintetizada por Tárek Moysés Moussallem:
19
17
AUSTIN, John Langshaw. Quando dizer é fazer, pág. 21, passim.
18
Idem, g. 21, passim.
19
Revogação em Matéria Tributária, pág. 16.
19
O ato locucionário consiste no próprio dizer. O ato
ilocucionário consiste naquilo que se faz ao falar alguma
coisa, ou, de acordo com AUSTIN, é “a realização de um ato
ao dizer algo, em oposição à realização de um ato de dizer
algo”. E, por fim, o ato perlocucionário, que é o efeito
provocado no destinatário pelo fato de dizer alguma coisa, é
o resultado produzido pela ação de dizer algo.
Neste contexto, se concretiza a revolução filosófica do Séc. XX que alterou
de forma radical a filosofia contemporânea. A ontologia e a metafísica perdem espaço para
uma filosofia focada na linguagem, que deixa de ser vista como instrumento do
conhecimento e passa a ser entendida como condição necessária para o próprio
conhecimento.
O giro linguístico é aceito e utilizado como fundamento filosófico de nossa
escola de Direito, autodenominada “Constructivismo Lógico-Semântico”.
20
Contudo,
mesmo entre nós, percebemos que nem todos possuem as mesmas premissas
epistemológicas.
Mesmo sabendo que tais considerações são irrelevantes para a Dogmática
Jurídica, visto que o Direito é um objeto cultural, criado e desenvolvido por meio da
linguagem, por amor ao debate, consideramos relevante tecer algumas considerações sobre
o tema.
A leitura do primeiro capítulo da festejada dissertação de mestrado de Tárek
Moysés Moussallem demonstra sua irrestrita adesão ao giro linguístico como
20
Conforme CARVALHO, Paulo de Barros, no prefácio da obra Direito Penal Tributário, de Aurora
Tomazini de Carvalho.
20
fundamentação filosófica do seu pensar. Assim, em determinada passagem, afirma o
referido Autor que a linguagem é o universo humano, universo existe pela linguagem,
que neste sentido passa a ter status de criação.
21
Por outro lado, no primeiro capítulo de
sua tese de doutorado, este inestimável professor evidencia uma sutil alteração em sua
forma de pensar, principalmente ao afirmar que: por ser o meio pelo qual a cultura se
manifesta, a linguagem é responsável por instaurar a realidade no homem. É a via de
acesso do sujeito à realidade mesma. Agora, instaurar não significa criar.
22
Em outras
palavras, Tárek abandona a premissa de que a linguagem cria o mundo, pois compreende
que as coisas da natureza não são criadas pela linguagem, uma vez existentes antes da
linguagem humana tê-las descrito, e passa a entender que a linguagem é responsável pelo
acesso do homem à realidade física.
Neste sentido, distinguindo as coisas no mundo-das-coisas (coisa natural)
com a coisa no mundo-social (coisa no mundo-circundante), Tárek Moysés Moussallem
adota o conceito de fatos brutos e fatos institucionais desenvolvido por John Searle. Os
fatos brutos seriam aqueles que independem da vontade humana e não necessitam de
linguagem para existir, como o fogo, ou os animais. os fatos institucionais dependem da
convenção humana para existir, como o dinheiro e o teatro.
Nos fatos brutos, a relação entre linguagem e
coisas não é direta. A linguagem se conecta, prima facie,
com o pensamento para, a partir daí, ir à coisa mesma. De
maneira diferente, ocorre com os fatos institucionais, nos
quais a linguagem é parte constituinte do objeto. Duas
linguagens se manifestam: uma do próprio objeto (fato
21
As fontes do Direito Tributário, pág. 26.
22
Revogação em Matéria Tributária, pág. 6.
21
institucional) e outra da descrição do objeto (fato
institucional de sobrenível).
23
Concordamos em parte com as formulações acima articuladas por Tárek
Moysés Moussallem.
Antes de tudo, gostaríamos de deixar claro que não utilizamos a expressão
“fato bruto” para denominar as coisas da natureza, cuja ocorrência independe da ação do
Homem, pois entendemos que todo fato é uma articulação linguística descritiva de um
acontecimento, ou seja, de um evento.
Os eventos podem ser linguísticos ou não. Os eventos linguísticos são os
enunciados performativos de Austin. São os objetos culturais criados pelo Homem, que
dependem de linguagem para acontecerem, ou seja, cuja ocorrência está vinculada a uma
linguagem. Tal como uma peça de teatro, um casamento e etc. Destarte, sobre um evento
linguístico pode se debruçar outra linguagem, metalinguagem descritiva, que irá, a partir
dele, produzir um fato social.
Por outro lado, os eventos não linguísticos podem depender ou não da ação
do Homem. Chamaremos de evento não linguístico natural, aquele acontecimento que
independe tanto da linguagem quanto da ação humana para acontecer, são as coisas da
natureza, os fatos brutos, na acepção de Searle. os eventos não linguísticos que
dependem da ação humana serão por nós denominados de evento não lingüístico humano.
23
Revogação em Matéria Tributária, pág. 9.
22
Tal classificação se impõe, pois, ao afirmarmos que o Homem é capaz de
fazer coisas falando, mediante o emprego de um enunciado performativo, não podemos nos
esquecer que o mesmo Homem também é capaz de fazer coisas sem falar. Nem toda ação
humana depende da linguagem. Um homem não precisa de linguagem para ferir seu
corpo ou comer. Aliás, um homem não precisa de linguagem alguma para retirar a vida de
outro ser-humano. Porém, para tomar contato com tais eventos, para perceber tais eventos,
o Homem depende de uma linguagem que os descreva.
Se não vejamos, uma vez entendido que a consciência humana se manifesta
pela linguagem, é cediço que todos os eventos não linguísticos necessitam de uma
linguagem para que possam ser por ele assimilados. Sem um revestimento linguístico os
eventos não linguísticos são imperceptíveis ao Homem. Mas isso não quer dizer que tais
eventos dependam da linguagem para ocorrerem na natureza. Não são os eventos não
linguísticos naturais que dependem da linguagem para ocorrerem, mas sim, é o
Homem quem depende de uma linguagem para perceber que um evento não
linguístico natural ocorreu. Neste sentido, o Homem se torna escravo de sua linguagem,
na medida em que o conhecimento que possui dos eventos não linguísticos é limitado a sua
capacidade linguística de descrevê-los. Ademais, não podemos perder de vista que ao
pretender descrever os eventos não linguísticos, o Homem acaba promovendo a construção
lingüística dos mesmos.
Assim, podemos afirmar que o Homem constrói linguisticamente o seu
próprio mundo, pois tudo que lhe é perceptível o é linguisticamente reduzido. Mas isso não
quer dizer que o mundo seja restrito aos eventos perceptíveis pelo Homem e reduzido a
23
linguagem. Pelo contrário, entendemos que esta assertiva implica o reconhecimento da
existência de um universo de eventos que nos são imperceptíveis, neste momento, e a cada
novo avanço das ciências naturais eventos não linguísticos naturais, até então
imperceptíveis ou ininteligíveis ao Homem passam a ser descritos e interpretados, ou seja
linguisticamente construídos.
Se o universo do discurso das ciências naturais encontra-se em expansão,
levando a percepção lingüística humana a eventos não linguísticos então desconhecidos, é
cediço que outros eventos não lingüísticos naturais existem, mas que nós não os
conhecemos.
Com relação aos eventos não linguísticos humanos algo semelhante se dá.
Como são provocados pelo próprio homem, partiremos do pressuposto de que algum ser -
humano os tenha praticado e ou presenciado. Assim, tais eventos são, automaticamente,
percebidos pelas pessoas que presenciaram sua ocorrência. Passo seguinte, estas pessoas
constroem em suas mentes uma concepção fática de tais eventos. Trata-se de algo que se
encontra dentro da consciência do homem. Após, o ser cognoscente verbalizar sua
concepção fática do evento, por meio da escrita ou da fala, a terceiros, faz dele um fato
social. Não é preciso ir muito longe para entender que duas pessoas que presenciaram o
mesmo evento não lingüístico podem produzir fatos completamente distintos, cada um
conforme sua percepção dos acontecimentos.
Ante o exposto, assim podemos sistematizar o nosso pensamento sobre o
tema em debate:
24
--------------------------- Evento -----------------------------
I I
I I
evento não lingüístico evento lingüístico
I I
------------------ I -------------------- I
I I I
I I I
Dependente da ação humana não dependente sempre dependente
da da ação humana
ação humana ação do humana
1.2. Teoria da comunicação e direito
Como visto, o giro linguístico-pragmático proporcionou à filosofia da
linguagem o estabelecimento de um paradigma comunicacional, em detrimento de seu
antigo paradigma verificacional. Assim, é cediço que este novo paradigma confere
fundamentação para que a teoria do conhecimento passe a operar entre termos, entre
significações, e não mais entre sujeito e objeto, como outrora.
Este contexto faz com que os estudos dos fenômenos comunicacionais
ganhem cada vez mais espaço entre os cientistas. Entender como se opera a comunicação
tornou-se extremamente importante e faz com que os estudiosos dêem cada vez mais
atenção ao desenvolvimento de uma satisfatória teoria da comunicação. Se o conhecimento
humano se entre significações, em um ambiente comunicacional, a compreensão de
como se opera tal fenômeno torna-se vital para a teoria do conhecimento.
25
Um modelo comunicacional bastante difundido desenvolvida por Roman
Jakobson. Resumi-lo-emos, nos seguintes termos: verifica-se, no processo comunicacional,
a existência de um emissor que envia uma mensagem para o receptor; o envio desta
mensagem, para ser eficaz, requer um contexto apreensível pelo receptor; também se
mostra relevante à existência de um código que seja comum aos participantes da
comunicação e, finalmente, um canal físico (contacto) e uma conexão psicológica entre
emissor e receptor, capacitando-os a permanecerem em comunicação.
24
Neste contexto, o fenômeno jurídico pode ser entendido como um processo
comunicacional. Para tanto, a norma jurídica deve ser entendida como uma mensagem, na
medida em que ela deflagra um significado mediata ou imediatamente relacionado com a
ordenação das condutas humanas em sociedade. Ou seja, o seu significado é a informação
que elas transmitem.
25
Exemplificando: o Poder Legislativo, ao criar as normas jurídicas, envia
uma mensagem aos cidadãos de um determinado País, dentro do contexto de um Estado
Democrático de Direito, mediante o emprego de um código comum, a ngua deste País,
através da impressão no Diário Oficial (canal), visando ordenar suas relações de
intersubjetividade. Esta mensagem deve ser recepcionada pelos referidos cidadãos, que
compreendem que as regras ali estabelecidas devem ser obedecidas, sob pena de sanção.
24
JAKOBSON Roman. Linguistica e comunicação, pág. 123.
25
ARAUJO, Clarice von Oertzen de. Semiótica do Direito, pág. 45.
26
Como visto, o modelo comunicacional acima exposto é perfeitamente
aplicável ao direito. No entanto, ele confere especial atenção ao emissor, em detrimento do
receptor, na medida em que vislumbra na mensagem uma informação que é transmitida
pelo emissor ao receptor. Assim, entendemos, com a devida vênia àqueles que pensam
diferente, que a sua adoção deve ser repensada, pois se assim não for teremos enormes
dificuldades em elucidar o fenômeno da hermenêutica jurídica. Neste contexto, achamos
pertinente ingressarmos em alguns aspectos da teoria da comunicação elaborada por Niklas
Luhmann, que pode nos conferir novos subsídios para a compreensão do fenômeno
jurídico.
Antes de qualquer coisa, devemos esclarecer que Luhmann não aceita a
tradicional concepção científica sobre a comunicação acima exposta, e se conclui que o
processo de comunicação se mediante a transmissão de informações. Para Luhmann, a
visão tradicional sobre a comunicação fundamenta-se em uma falsa premissa, por ele
denominada “metáfora da comunicação”.
26
Ainda segundo o autor, a adoção de tal metáfora
nos leva a pensar que mediante um processo de comunicação se transfere informação, o que
é um equívoco. Sinteticamente, assim se manifesta Luhmann:
27
la metáfora de la transmisión no es útil porque
implica demasiada ontologia. Sugiere que el emisor
transmite algo que es recibido por el receptor. Este no es el
caso, simplemente porque el emisor no da nada, em el
sentido de que pierda él algo. La metáfora Del poseer, tener,
dar y recibir no sirve para compreender la comunicación.
26
LUHMANN. Niklas. Introducción a La Teoria de Sistemas, pág. 302.
27
Idem, pág. 305.
27
A teoria clássica da comunicação, segundo Luhmann, enfatiza, de forma
equivocada, o ato de transmitir informação. Confere especial atenção ao papel do emissor,
que, na verdade, apenas sugere, propõe uma escolha, uma vez que a comunicação se
observa após o processamento de tal estímulo, quando a proposta é retomada pelo receptor.
É importante frisarmos que Luhmann também afasta a tradicional concepção
de identidade da mensagem, pois a considera exagerada. Com isso não está querendo dizer
que tal identidade nunca ocorra, mas sim, pretende enfatizar que ela não é garantida, como
pensa a linguística tradicional, e frequentemente não é alcançada.
28
Por último, na visão de Luhmann, a chamada metáfora da transmissão”
sugere que o processo de comunicação se entre dois pólos, emissor e receptor, onde o
primeiro participa algo ao segundo.
Em substituição a esta metáfora, Luhmann propõe um novo conceito de
comunicação. Afirma, assim, que o processo comunicacional é sempre uma ação seletiva
que se comporta como uma realidade emergente, um estado de coisas, mediante a síntese de
três diferentes escolhas: i) a escolha da informação; ii) a escolha do ato de comunicar; e iii)
a escolha que se realiza no ato de entender (ou no ato de não entender) a informação.
29
Nesse sentido, não há comunicação quando estes três componentes
encontram-se isolados. É a síntese destes três componentes que proporciona a
28
LUHMANN. Niklas. Sistemas sociales: Lineamentos para uma teoria general, pág. 142.
29
LUHMANN. Niklas. Introducción a La Teoria de Sistemas, pág. 306.
28
comunicação. Para Luhmann, somente teremos um ato de entender quando levamos em
consideração a distinção entre informação e ato de comunicar. É justamente tal distinção
que torna possível distinguirmos a comunicação da mera percepção. Na continuidade do
processo comunicativo, o ato de entender pode questionar o conteúdo da informação ou as
razões que levaram o emissor a participar tal conteúdo informativo, porém, para que se dê à
comunicação o ato de entender tem que levar em consideração a distinção entre estes dois
elementos. Se assim não for teremos pura percepção e não comunicação.
30
Distinguir percepção e comunicação é fundamental para Luhmann, pois a
percepção é entendida como mero efeito físico, que não requer comunicação. Aquilo que
foi percebido pelo outro não pode ser afirmado nem negado por ninguém, não pode sequer
ser posto em questão, uma vez que se encontra enclausurado em sua consciência, que é
invisível para o sistema de comunicação e para a consciência dos outros. Frise-se, aquilo
que se passa na consciência dos interlocutores encontra-se fora do sistema comunicacional
para Luhmann.
31
Porém, destarte, a percepção, enclausurada na consciência, pode e é, no mais
das vezes, o ponto de partida para a realização de comunicações sucessivas. Sua
exteriorização, contudo, pode ser efetivada quando as próprias leis do sistema
comunicacional são observadas, ou seja, mediante linguagem, mediante a escolha de um
novo ato de comunicar, que é o ato de entender, que sintetiza a informação e o ato de
30
LUHMANN. Niklas. Introducción a La Teoria de Sistemas, pág. 306
31
Idem, pág. 306.
29
comunicar prévio. Eis a autopoiese do sistema comunicacional, levada a cabo pelo ato de
entender.
Concluindo, a teoria comunicacional de Luhmann, pretende enfatizar a
verdadeira emergência da comunicação, sem propriamente a transmissão de alguma coisa,
mas sim, se puede imaginar, entonces, el sistema como um pulsar constante: com cada
creación de redundância y com cada selección el sistema se expande y se contrae
permanentemente.
32
Assim, o processo de comunicação deve ser entendido como uma série
de escolhas realizadas pela própria comunicação. Eis a razão pela qual Luhmann qualifica o
sistema comunicativo como um sistema autopoiético.
Ademais, tem-se que os sistemas comunicacionais são operativamente
fechados, apesar de cognitivamente abertos, uma vez que crea los elementos mediante los
cuales él mismo se reproduce.
33
Aqui reside, também, sua autopoiese, pois ao reproduzir
suas unidades elementares, reproduz-se a si mesmo. Tudo isso considerado em função do
ambiente em que o sistema comunicacional encontra-se inserido. Os sistemas
comunicacionais autopoiéticos criam seus elementos (unidades de comunicação) e suas
estruturas (expectativas).
Fora do sistema comunicacional não informação, nem participação na
comunicação, nem ato de entender a comunicação. Assim, o ato de entender pode ser
32
LUHMANN. Niklas. Introducción a La Teoria de Sistemas, pág. 308.
33
Idem, pág. 309.
30
compreensível dentro do sistema comunicacional, e consubstancia-se na condição para que
uma comunicação possa prosseguir adiante.
1.3. Da distinção entre o sistema do direito positivo e a Ciência do Direito
O que é o Direito? Esta pergunta, segundo Tárek Moysés Moussallem, não é
pertinente, uma vez que, por sua falta de clareza, causa perplexidade. Trata-se de um signo
utilizado em contextos distintos, ambíguo, vago e que carrega consigo uma considerável
carga emotiva.
34
Observamos que o cientista, ao fazer Ciência, acaba construindo o seu
próprio objeto de estudo mediante o emprego da linguagem, assim, procura trabalhar com
uma linguagem precisa, especificando o significado dos signos que emprega, para que
embaraços como o acima exposto não ocorram.
Neste sentido, observamos que diversos são os conceitos de Direito, assim
como diversas são as escolas jurídicas. Em outras palavras, cada linha filosófica que se
debruça sobre o Direito, para o desenvolvimento de uma Teoria Geral, acaba construindo
um conceito próprio e distinto para o vocábulo em apreço.
Não é demasiado dizer que o conteúdo do conceito de Direito, elaborado por
uma determinada escola jurídica, é de suma importância: (i) primeiro por demonstrar a
maneira pela qual a referida escola apreende os fenômenos jurídicos; (ii) segundo pelo fato
34
Conforme sua posição firmada no livro As fontes do Direito Tributário, pág. 52.
31
de que as principais conclusões alcançadas pelos juristas de uma determinada escola
sempre levam em consideração o conceito de Direito por ela adotado.
Hans Kelsen, influenciado pelas idéias do círculo de Viena e na ânsia de
isolar o Direito das influências da ideologia política e das ciências naturais, elabora a sua
Teoria Pura do Direito, vazada, resumidamente, nos seguintes termos: o objeto de estudo da
Ciência do Direito, ou da Dogmática Jurídica
35
, não é a conduta humana, mas sim as
normas jurídicas. A conduta humana se torna relevante para a Dogmática Jurídica na
medida em que constitui o conteúdo das normas jurídicas, seja no antecedente ou no
consequente. As normas jurídicas são produzidas pelos órgãos jurídicos a fim de por eles
serem aplicadas e serem observadas pelos destinatários do Direito. Por outro lado, as
proposições jurídicas, produzidas pelos juristas e não pelos órgãos jurídicos, descrevem as
normas jurídicas. São, na visão de Kelsen:
juízos hipotéticos que enunciam ou traduzem
que, de conformidade com o sentido de uma ordem jurídica
nacional ou internacional dada ao conhecimento jurídico,
sob certas condições ou pressupostos ficados por esse
ordenamento, devem intervir certas conseqüências pelo
mesmo ordenamento determinadas.
36
Resta demonstrado, assim, que, segundo Kelsen:
a ciência jurídica tem por missão conhecer
de fora, por assim dizer o Direito e descrevê-lo com base
no seu conhecimento . Os órgãos jurídicos têm como
autoridade jurídica antes de tudo por missão produzir o
35
Para os lindes deste trabalho as expressões são sinônimas.
36
Teoria Pura do Direito, pág. 80.
32
Direito para que ele possa então ser conhecido e descrito
pela ciência jurídica.
37
Partindo da Teoria Pura do Direito observamos que o professor Lourival
Vilanova enriqueceu sobremaneira os postulados do mestre de Viena. Dentre outras
contribuições, gostaríamos de frisar seus profundos conhecimentos de lógica jurídica
(deôntica), que lhe proporcionaram a elaboração da norma jurídica completa
38
e, segundo,
por ter tratado tanto a Ciência do Direito quanto o direito positivo como sistemas.
39
Seguindo esta linha de raciocínio, sucintamente assim se manifesta o
Professor Paulo de Barros Carvalho: onde houver um conjunto de elementos relacionados
entre si e aglutinados perante uma referência determinada, teremos a noção fundamental
de sistema.
40
Ademais, ainda segundo o ínclito professor paulista, não conhecimento
sem linguagem. Assim, todos os sistemas são proposicionais, na medida em que a
linguagem é o instrumento constitutivo da própria realidade do ser humano. Neste sentido,
os sistemas proposicionais podem ser classificados em nomológicos, que partem de
axiomas e se desenvolvem mediante operações lógicas dedutivas no interior do próprio
sistema (matemática e lógica) e nomoempíricos, formados por proposições com referência
empírica. Por sua vez, os sistemas nomoempíricos podem ser descritivos ou prescritivos; os
primeiros são constituídos de proposições descritivas, com função de produzir
conhecimento, como no caso do sistema da Ciência do Direito; os segundos são
37
Teoria Pura do Direito, pág. 81.
38
As estruturas lógicas e o sistema do direito positivo, pág. 64, passim.
39
Idem, pág. 108, passim.
40
CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de Direito Tributário, pág. 130.
33
constituídos de proposições prescritivas, que possuem a função reguladora de condutas
intersubjetivas, como no caso do sistema do Direito Positivo.
41
Como bem explicado por Tárek Moussallem: o sistema do direito positivo
dirige-se à linguagem social com o fim de regulá-la, e o sistema da Ciência do Direito
refere-se à linguagem do sistema do direito positivo a fim de estudá-lo.
42
Destarte que não
são poucos aqueles que, não se apercebendo da existência dos dois referidos sistemas
proposicionais, utilizam o mesmo vocábulo (direito) para ora indicarem o sistema do direito
positivo e ora o sistema da Ciência do Direito.
Com profundos conhecimentos em lógica e semiótica, o constructivismo
lógico-semântico refinou a distinção entre estes dois sistemas proposicionais. Abaixo, um
quadro sintético, muito bem produzido por Aurora Tomazini de Carvalho, que resume as
principais diferenças entre as linguagens do direito positivo e da Ciência do Direito:
43
Direito Positivo
Ciência do Direito
Linguagem prescritiva
Linguagem descritiva
Linguagem objeto
Metalinguagem
Linguagem técnica
Linguagem científica
Lógica Deôntica (dever-ser)
Lógica Alética (ser)
Valências válidas ou não-válidas
Valências falsas ou verdadeiras
41
CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de Direito Tributário, pág. 131.
42
As Fontes do Direito Tributário, pág. 68.
43
Direito Penal Tributário, pág. 49.
34
Modais (O) obrigatório,
(V) proibido ou (P) permitido
Admite antinomias
Não admite antinomias
Objeto: condutas humanas
intersubjetivas
Objeto: direito positivo
Consideramos desnecessária a profunda e detalhada descrição dos dois
sistemas linguísticos em apreço tendo em vista a vasta bibliografia produzida sobre o
tema, principalmente pela PUC-SP, que sobre ele já se debruçou sobremaneira.
Por último, gostaríamos de ressaltar que consideramos bastante pertinente a
distinção entre os dois sistemas linguísticos em apreço. No entanto, neste trabalho,
pretendemos demonstrar a existência do fenômeno da comunicação entre eles, e que tal
comunicação também é sobremaneira relevante para a compreensão do Direito. Como será
demonstrado adiante, nas conclusões deste capítulo.
1.4. Do ciclo de positivação do direito
Consoante a sólida doutrina formulada por Paulo de Barros Carvalho, para a
Ciência do Direito
descrever o direito positivo tal como ele se apresenta é
necessário observá-lo na sua feição estática e no seu aspecto
dinâmico, que se perfaz com o processo de positivação, em
35
que a norma editada hoje será o fundamento de validade de
outras regras, até o ponto terminal da cadeira de
elaboração, que se consubstancia no último ato de aplicação,
que norma individual de máxima concretude.
44
Assim, pode a Ciência do Direito analisar estaticamente o sistema do direito
positivo, surpreendendo as unidades normativas em um determinado momento, como se
fossem fotografadas. Como também pode lhe dar enfoque dinâmico, acompanhando
o ordenamento nas suas constantes mutações, quer no que
diz com a criação de regras novas, quer no que atina às
transformações internas que o complexo de normas tem
idoneidade para produzir.
45
Também foi Kelsen quem primeiro sintetizou estas duas formas de
abordagem do direito positivo pela Ciência do Direito, concluindo, então, que o
fundamento de validade de uma norma apenas pode ser a validade de uma outra norma.
46
Neste contexto, tem-se que a norma que fundamenta a validade de uma outra norma lhe é
superior. Assim como o ponto de partida de um determinado sistema de direito positivo é a
sua Constituição, que confere fundamento de validade para todas as demais normas
jurídicas produzidas pelo direito positivo. Neste ponto, Kelsen se depara com uma questão
importantíssima para sua teoria: Se a Constituição é o ponto de partida do sistema de direito
positivo, qual a norma jurídica que lhe confere fundamento de validade? Respondendo esta
questão e conferindo unidade e um axioma para a Ciência do Direito, Kelsen elabora o
44
CARVALHO, Paulo de Barros, Curso de Direito Tributário, pág. 13.
45
CARVALHO, Paulo de Barros, Fundamentos Jurídicos da Incidência, pág. 48.
46
Teoria Pura do Direito, pág. 215.
36
conceito da norma fundamental, que consiste em uma pressuposição lógico-transcendental
que confere fundamento de validade à Constituição.
47
Analisando o sistema do direito positivo do ponto de vista dinâmico, o
constructivismo lógico-semântico construiu uma convincente teoria sobre as fontes do
direito. Assim, teremos normas gerais e abstratas; gerais e concretas; individuais e abstratas
e individuais e concretas, tudo conforme a composição tanto do antecedente quanto do
consequente normativo. Ademais, esta doutrina demonstrou, de forma clara e precisa, que
não que se confundir os veículos introdutores de normas (enunciação-enunciada), que
também são normas, geralmente gerais e concretas, com as normas por eles introduzidas
(enunciado-enunciado) no sistema do direito positivo.
48
É justamente neste contexto que se insere o processo de positivação do
direito positivo, responsável pela produção de normas jurídicas de maior concretude e
individualidade a partir de normas jurídicas gerais e abstratas. Destarte que tal processo se
mediante atos de aplicação do direito positivo, atos linguísticos, produzidos por pessoas
credenciadas pelo próprio sistema, que acabam produzindo novo direito positivo. Parte-se
da Constituição Federal, onde se situam as normas jurídicas de máxima abstração e
generalidade, passa-se pelos códigos, onde encontramos as mais importantes normas gerais
e abstratas, até alcançarmos as normas jurídicas individuais e concretas, que disciplinam a
conduta de uma determinada pessoa específica, em função de um fato jurídico. Neste ponto
o professor Paulo de Barros Carvalho é enfático:
47
Teoria Pura do Direito, pág. 224.
48
Por todos: As Fontes do Direito Tributário de MOUSSALLEM, Tárek Moysés..
37
a norma geral e abstrata, para alcançar o inteiro teor de sua
juridicidade, reivindica, incisivamente, a edição de norma
individual e concreta. Uma ordem jurídica não se realiza de
modo efetivo, motivando alterações no terreno da realidade
social, sem que os comandos gerais e abstratos ganhem
concreção em normas individuais.
49
Aliás, neste aspecto, a doutrina formulada pelo Professor Paulo de Barros
Carvalho também quebrou um antigo paradigma dominante em nossa Teoria Geral do
Direito, estabelecido principalmente por Pontes de Miranda (na qual resta clara a distinção
entre incidência e aplicação do direito), ao afirmar que a incidência de uma norma jurídica
geral e abstrata depende de um ato linguístico de aplicação do direito, mediante a produção
de uma norma individual e concreta. Tudo filosoficamente fundamentado no giro
linguístico. Afasta-se, assim, aquela dicotomia incidência/aplicação, tão marcante em nosso
Código Tributário Nacional, que acarretou na insustentável distinção entre obrigação e
crédito tributário.
50
1.5. Algumas conclusões iniciais
É interessante notar que, sobre o sistema do direito positivo, assim se
manifesta o Professor Paulo de Barros Carvalho:
51
Se pensarmos no conjunto de todas as normas
jurídicas válidas, num determinado intervalo de tempo sobre
específico espaço territorial, inter-relacionadas sintática e
49
CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de Direito Tributário, pág. 365.
50
CARVALHO, Paulo de Barros. Fundamentos Jurídicos da Incidência, pág. 217, passim.
51
Idem, pág. 45.
38
semanticamente, segundo um princípio unificador, teremos o
direito positivo que aparece no mundo integrado numa
camada de linguagem prescritiva, pertencente à região
ôntica dos objetos culturais, visto que é produzido pelo
homem para disciplinar a convivência social, dirigindo-se,
finalisticamente, ao campo material das condutas subjetivas.
Em outras palavras, para o Professor Paulo de Barros Carvalho, o sistema do
direito positivo é constituído pelo conjunto de normas jurídicas válidas. Contudo, o insigne
professor paulista reconhece, também, que as normas jurídicas situam-se no plano da
significação, encontrando sua base empírica na literalidade dos enunciados prescritivos, os
textos de direito positivo. Uma coisa são os enunciados prescritivos, usados na função
pragmática de prescrever condutas; outra, as normas jurídicas, como significações
construídas a partir dos textos positivados e estruturados consoante a forma lógica dos
juízos condicionais, compostos pela associação de duas ou mais proposições prescritivas.
52
Levando-se em consideração a autopoiese da teoria da comunicação
elaborada por Luhmann, aqui resumidamente exposta, restou entendido que tudo que se
passa na consciência humana encontra-se fora do processo de comunicação. Logo, as
significações que construímos a partir da interpretação dos textos de direito positivo não
podem ser objeto de estudo de nenhuma Ciência, uma vez que se encontram enclausuradas
em nossa consciência. Somente mediante a expedição de um ato de entender, mediante a
utilização de uma linguagem (eis aqui a mais clara manifestação da autopoiese do sistema
comunicacional) é que podemos tomar contato com a interpretação formulada pelo
aplicador do Direito. Assim, vislumbramos duas assertivas inconciliáveis: (i) a de que as
normas jurídicas situam-se no plano da significação, e (ii) a de que as normas jurídicas são
52
CARVALHO, Paulo de Barros. Fundamentos Jurídicos da Incidência , pág. 22.
39
o objeto de estudo da Ciência do Direito. Se as normas jurídicas situam-se no plano da
significação as mesmas não podem ser objeto de estudo de Ciência alguma, pois se
encontram fora do sistema comunicacional.
Aliás, ao dissertarmos sobre o giro linguístico, concluímos que o objeto de
estudo de uma Ciência também é linguisticamente construído, ou seja, a relação entre uma
ciência e o seu objeto de estudo é uma relação entre termos. Tal assertiva corrobora o que
acabamos de dizer, que aquilo que se passa no plano da significação não pode ser adotado
como objeto de estudo de ciência alguma. Tal como não podemos alcançar a finalidade que
o legislador pretendeu conferir a determinada lei, também não podemos alcançar o
entendimento do aplicador do direito ao produzir um texto de enunciado prescritivo, no
máximo, podemos deduzir suas idéias a partir do texto por ele enunciado.
Neste ponto, gostaríamos de voltar à teoria da comunicação de Luhmann,
para aplicá-la ao Direito. Vimos que a comunicação é uma realidade emergente alcançada
mediante a síntese de três escolhas distintas: a informação, o ato de comunicar e o ato de
entender. A comunicação, como realidade emergente, pressupõe o ato de entender, que não
pode ser confundido com a percepção (enclausurada na consciência humana). Contudo,
destarte, o ato de entender sempre será um novo ato de comunicar, que fica à mercê de um
ato de entender subsequente para o estabelecimento de uma nova comunicação, uma nova
realidade emergente, aqui resta demonstrada a autopoiese do sistema comunicacional, que
cria seus elementos mediante os quais ele mesmo se reproduz.
53
53
LUHMANN. Niklas. Introducción a La Teoria de Sistemas, pág. 311.
40
Desta maneira, temos que o plano da significação da semiótica é equivalente
ao plano da percepção da teoria comunicacional de Luhmann. A comunicação pressupõe a
percepção (fenômeno físico), porém, esta é imperceptível para aquela, pois somente o ato
de entender faz parte do sistema comunicacional.
É cediço que a interpretação de um determinado texto de lei desperta na
consciência do aplicador do direito a possibilidade deste construir uma série de normas
jurídicas distintas. Trata-se da percepção, enclausurada em sua consciência. Destarte que
até este momento ainda não temos o estabelecimento de uma comunicação, pois não o
ato de entender. No momento seguinte, contudo, mediante atos de enunciação, o aplicador
do Direito produz novos enunciados prescritivos de direito positivo e introduz no sistema
uma série de normas jurídicas. Aqui o processo comunicacional se aperfeiçoa, pois tais
enunciados prescritivos devem ser vistos como ato de entender. Temos então a emergência
de uma nova realidade jurídica, um novo estado de coisas jurídico. Neste sentido,
vislumbramos o referido ato de entender como a norma jurídica.
Com estas palavras, não pretendemos infirmar a assertiva semiótica segundo
a qual a comunicação é estabelecida com a emissão da mensagem e o seu recebimento pelo
destinatário, mesmo que este reste calado. Não é isso. O que gostaríamos de frisar é que
diante do silêncio do receptor ainda não possuímos meios de saber qual foi a realidade que
emergiu a partir de tal comunicação, na medida em que o entendimento do receptor ainda
está enclausurado em sua mente e não foi linguisticamente exposto. Antes do ato de
entender temos suposições, mas ainda não podemos afirmar qual foi o resultado da
comunicação, por isso acompanhamos Luhmann ao denominar o fenômeno como
41
perceptivo, que poderíamos dizer tratar-se de uma fase pré-comunicativa, na medida em
que é pressuposto para o estabelecimento da comunicação.
O processo de interpretação, realizado a partir de um texto de direito
positivo, pode despertar na consciência do aplicador do direito a possibilidade de
construção de diversas normas jurídicas distintas. A significação que os signos empregados
no referido texto legal despertam na consciência do aplicador do direito é fundamental para
determinar qual será a norma jurídica enunciada pelo mesmo, diante de uma série de
interpretações possíveis. Assim, dentre estas inúmeras possibilidades, o aplicador fará a
seleção de apenas uma, e irá expô-la quando da enunciação de seu ato de entender. Por isso
a insistência de Luhmann em relacionar a comunicação com diversos processos de escolha.
Ademais, ressalte-se que o aplicador do direito, na tarefa interpretativa
acima descrita, não pode levar em consideração somente um determinado texto legal, pois o
mesmo se encontra inserido no sistema do direito positivo, logo deve ser compatível às
normas jurídicas que lhe conferem fundamento de validade e que, por isso mesmo, lhe são
hierarquicamente superiores. Neste sentido, o aplicador do direito deve interpretar o texto
legal que pretende aplicar em conformidade com as demais normas jurídicas postas no
ordenamento jurídico, que, a rigor, também podem ser por ele mesmo construídas.
Quais são as normas jurídicas prescritas pela Constituição Federal? Esta
resposta não pode ser obtida somente a partir da leitura do texto constitucional, mas sim,
deve ser buscada nos atos de entender expedidos pelos órgãos credenciados pelo sistema
para aplicá-la. Por outro lado, tais órgãos, para construir o exato sentido dos textos
42
constitucionais, valer-se-ão dos ensinamentos da Ciência do Direito, que arduamente
constrói diferentes e relevantes significados para o texto constitucional.
Destarte, somente com a prática de tais atos, sejam eles produzidos pela
doutrina ou pelos órgãos responsáveis pela aplicação da Constituição, é que podemos dizer
que o processo comunicacional, a partir do texto constitucional, se aperfeiçoou. Antes
deles, ao nosso sentir, não há comunicação, mas apenas percepção, na exata medida em que
como a referida percepção ainda não foi enunciada não podemos saber qual o seu conteúdo.
Deste modo, a enunciação de um ato de entender, a partir do texto
constitucional, também é fruto de um processo de seleção de informação e de ato de falar,
ou seja, início a uma nova comunicação, que irá se aperfeiçoar quando, a partir dele
tivermos, um novo ato de entender. Eis o processo autopoiético de positivação do direito.
Comumente, afirmamos que as normas gerais e abstratas são encontradas nas
leis e as normas individuais e concretas podem ser vistas nos atos administrativos
(lançamento tributário) ou nas decisões judiciais. Nada mais falso. As normas gerais e
abstratas são construídas pelas autoridades administrativas e ou judiciais responsáveis pela
elaboração das normas individuais e concretas, quando da enunciação destas.
Os atos administrativos, assim como as decisões judiciais, carecem de
fundamentação. Mas o que faz o aplicador do Direito ao fundamentar? Simples, ele enuncia
a norma geral e abstrata que ele construiu a partir de um texto de lei. Tomando os
enunciados prescritivos de um texto legal como a seleção de um ato de comunicar e a
43
seleção de uma informação, o aplicador do Direito, após um trabalho mental de
interpretação (percepção), enuncia um ato de entender, que é a norma geral e abstrata por
ele construída. Não que se falar em norma geral e abstrata sem a enunciação de um ato
de entender. E o que estamos pretendendo demonstrar é que este ato de entender não é
enunciado pelo legislador, mas sim que ele parte de enunciados produzidos pelo legislador.
Em um segundo momento, na parte dispositiva do ato, o aplicador do direito
toma o ato de entender que ele mesmo enunciou como ato de comunicar e informação e, a
partir dele, enuncia um novo ato de entender, que é a norma individual e concreta que ele
introduz no sistema. Neste momento o aplicador do direito também se utiliza da situação
fática que lhe é apresentada.
Mesmo sendo repetitivos, gostaríamos de frisar mais uma vez: somente com
a enunciação de um ato de entender é que a comunicação jurídica se aperfeiçoa e somente
neste momento é que podemos falar em norma jurídica, antes dele há, apenas, a
possibilidade de construção desta ou daquela norma.
Também é interessante notar que, no mais das vezes, o trabalho da
Dogmática Jurídica consiste na enunciação de atos de entender a partir dos enunciados
prescritivos do direito positivo. É sabido que tais atos não possuem a força prescritiva
daqueles produzidos pelos aplicadores do Direito, porém, isso não quer dizer que eles não
possam ser usados por estes últimos como atos de comunicar.
44
Vimos que o sistema da Ciência do Direito não se confunde com o sistema
do direito positivo. Dentre outras diferenças, restou demonstrado que os enunciados deste
último sistema possuem uma força prescritiva não encontrada no primeiro. No entanto,
temos que admitir a emergência da comunicação entre os termos de ambos os sistemas.
Ao interpretar e sistematizar os textos legais a Dogmática jurídica nada mais
faz do que enunciar atos de entender que possuem em contrapartida os atos de comunicar e
a informação enunciada naqueles textos legais. Trata-se da mesma enunciação realizada
pelo aplicador do Direito quando enuncia o seu primeiro ato de entender, ou seja, a sua
norma geral e abstrata. Aliás, destarte, muitas vezes o aplicador do Direito, ao fundamentar
seu ato, o faz com base no ato de entender enunciado pela Dogmática. Toma emprestado
aquele ato de entender e o aplica ao caso concreto, produzindo o seu segundo ato de
entender.
Exemplificando, recentemente o Código de Processo Civil foi alterado pela
Lei 11.382/05 que nele introduziu enunciados prescritivos que dizem respeito à execução
de títulos extrajudiciais. Concomitantemente, o Jurista Humberto Teodoro Júnior publicou
um estudo sobre a nova sistemática de execução de tulos extrajudiciais. Destarte que tal
estudo estabelece uma comunicação, uma vez que enuncia atos de entender que tomam a
legislação em comento como um ato de comunicar e informação. Percebam que o ato de
comunicar e a informação foram selecionados pelo doutrinador em questão a partir dos
enunciados prescritivos de direito positivo contidos na lei em comento, já os atos de
entender foram enunciados pela Dogmática e não possuem força prescritiva. As linguagens
45
são distintas, suas funções também, mas isto não impede que elas sejam partes integrantes
de um processo comunicacional.
Prosseguindo, vamos supor que um magistrado, diante de um processo de
execução de título extrajudicial, tenha que aplicar a nova legislação em comento. Neste
mister, deverá tomar a legislação como ato de comunicar e informação e produzir o seu ato
de entender, a sua norma geral e abstrata, para posteriormente aplicá-la ao caso concreto,
produzindo a norma individual e concreta. Naquele primeiro momento é perfeitamente
factível que o magistrado até a Dogmática e tome o ato de entender por ela produzido e
o aplique. Neste momento, novamente observamos o estabelecimento de uma comunicação
entre termos que compõem o sistema do direito positivo e o sistema da Dogmática Jurídica.
Para nós, indubitavelmente, a função da Dogmática Jurídica não se restringe
meramente a descrever o sistema do direito positivo tal como ele se apresenta, mas sim,
influenciar, persuadir o aplicador do Direito, para que ele se convença de que a norma geral
e abstrata, construída pela doutrina, seja aquela que ele irá aplicar, uma vez tratar-se da
melhor interpretação para o texto legal em comento.
Por isso que gostaríamos de frisar a existência de um sistema
comunicacional que engloba tanto os enunciados prescritivos do direito positivo como os
enunciados descritivos da Ciência do Direito. Chamaremos tal sistema comunicacional de
Sistema Jurídico, nos aproximando, assim, do conceito de sistema autopoiético de
Luhmann. Logo, ao falarmos de Sistema jurídico, estamos nos referindo a um plexo de
comunicações que envolvem tanto os termos do direito positivo quanto da dogmática
46
Jurídica. Por outro lado, quando quisermos nos referir ao sistema do direito positivo
utilizaremos a expressão ordenamento jurídico.
Neste sentido é que Luhmann afirma que a Dogmática Jurídica pertence ao
plano mais elevado e abstrato do sistema jurídico, in litteris
54
:
La dogmática jurídica define dentro del
marco de esta función lãs condiciones de lo juridicamente
posible, em concreto lãs posibilidades de la construcción
jurídica de casos jurídicos. - Las condiciones de lo posible
son fijadas en el plano más elevado de cada sistema. Así, La
dogmática jurídica constituye el plano más elevado y más
abstracto de las posibles determinaciones de sentido del
derecho dentro del próprio sistema jurídico.
Ademais, o sistema jurídico, na concepção Luhmanniana, consiste em um
subsistema social que se diferencia com a função de generalizar expectativas normativas de
forma congruente na sociedade. Para cumprir tal objetivo, o sistema jurídico é dotado de
mecanismos que possibilitam a estabilização e a manutenção de fluxos comunicacionais
contrafáticos.
55
Assim, o direito se diferencia dos demais subsistemas sociais por ser um
sistema funcional especializado para promover o controle do código-diferença
“lícito/ilícito”. Eis o fechamento operativo do sistema jurídico, na medida em que somente
ele pode realizar o controle acima citado e o faz através da positivação, que pode ser
entendida como “autodeterminidade”. Por outro lado, o sistema jurídico é cognitivamente
54
LUHMANN. Niklas. Dogmática Jurídica e Sistema Jurídico, pág. 34.
55
Conforme VALVERDE, Gustavo Sampaio. Coisa julgada em matéria tributária, pág. 61.
47
aberto para o ambiente, na medida em que pode assimilar, através de critérios próprios, os
fatores do ambiente, sem ser diretamente influenciado pelos mesmos.
56
As assertivas acima produzidas podem ser entendidas como contraditórias
com aquelas outras, feitas páginas atrás, quando afirmamos que a Dogmática Jurídica se
encontra no interior do sistema jurídico, segundo a proposta de Luhmann. Dizemos isso,
pois, como os enunciados da Dogmática Jurídica não possuem a força prescritiva observada
nos enunciados do direito positivo, muitos poderiam supor que o referido discurso seria
incapaz de promover o controle do código binário “lícito/ilícito” e por isso mesmo estariam
fora do sistema jurídico. No entanto, consoante o pensamento de Luhmann não é isso que
se dá, pois a Dogmática jurídica é responsável pela promoção da reflexão do sistema
jurídico.
O conceito do direito, enquanto sistema social autopoiético, é dado por sua
auto-referência elementar, que consiste na sua (i) autonomia, preservando a sua auto-
organização, (ii) na sua identidade, que se através da diferenciação funcional para com o
ambiente e (iii) ausência de inputs e outputs, na medida em que o ambiente não influi
diretamente no sistema jurídico, como visto.
57
No entanto, esta auto-referência básica é
insuficiente para caracterizar a autopoiese do sistema jurídico que, segundo Luhmann,
ocorre em três momentos distintos: a auto-referência, a reflexividade e a reflexão. Na
reflexividade, temos a referência de um processo a si mesmo e na reflexão o que se busca é
56
NEVES, Marcelo. Entre Têmis e Leviatã: uma relação difícil, pág. 79 e seguintes.
57
TOMÉ, Fabiana Del Padre. A prova no direito tributário, pág. 43.
48
a própria identidade do sistema, como bem explicado pelo professor Marcelo Neves,
citando Luhmann em diversas oportunidades:
Na reflexão, que pressupõe auto-
referência elementar e reflexividade, é ao próprio sistema
como um todo que se atribui a operação auto-referencial,
não apenas aos elementos ou processos sistêmicos. Definida
também como autodescrição, significa a “exposição da
unidade do sistema no sistema”. Como “teoria do sistema no
sistema”, ela implica a elaboração conceitual da
“identidade do sistema em oposição ao seu ambiente”.
Trata-se, pois, de “uma forma concentrada de auto-
referência”, que possibilita a problematização da própria
identidade do sistema.
58
Assim, resta demonstrado que a Dogmática jurídica, não obstante serem os
seus enunciados desprovidos de força prescritiva, se encontra no interior do sistema
autopoiético de Luhmann na medida em que responsável, em grande parte, pela sua
reflexão, pois confere ao sistema jurídico a sua autodescrição, expondo a sua unidade e lhe
conferindo e problematizando a sua identidade.
58
NEVES, Marcelo. Entre Têmis e Leviatã: uma relação difícil, pág. 65 e 66.
49
CAPÍTULO 2. DOS DIVERSOS SISTEMAS JURÍDICOS MUNDIAIS
2.1. Introdução
A rigor, podemos dizer que cada país possui um sistema jurídico distinto,
cujo direito positivo é inaugurado por uma Constituição. Assim, seus atos de comunicar
partem do texto constitucional e se desenvolvem, mediante a enunciação de novas regras
jurídicas, cada vez mais concretas, através do processo de positivação do direito, mantendo
uma saudável e constante comunicação com atos de comunicar enunciados pela Dogmática
Jurídica, tudo com o escopo de regular as condutas de intersubjetividade da sociedade,
como exposto no capítulo anterior.
René David, em obra clássica, com o escopo de facilitar o estudo dos
inúmeros sistemas jurídicos encontrados no mundo, achou por bem classificá-los em
grandes famílias, aglutinando-os conforme a semelhança de suas estruturas. Assim,
apresentou três grandes famílias jurídicas: (i) a common law, (ii) a romano-germânica, ou
civil law, e (iii) os direitos socialistas.
59
O presente trabalho não tem como escopo a
realização de uma profunda análise histórica, estrutural e conceptual, sobre tais sistemas
jurídicos. Pretendemos, apenas, demonstrar algumas das principais características dos
grandes sistemas jurídicos do ocidente (common Law e civil Law) que consideramos
relevantes para o estudo da origem e do desenvolvimento dos institutos jurídicos que serão
por nós analisados nos capítulos finais.
59
DAVID, RENÉ. Os grandes sistemas do direito contemporâneo, pág. 23.
50
2.2. Da origem e desenvolvimento da common law na Inglaterra
A origem da common law remonta à Inglaterra medieval. Antes da conquista
normanda, no ano de 1066, comandada por Guilherme, o Conquistador, o Direito inglês era
bastante fragmentado e basicamente era constituído por uma série de costumes locais.
Contudo, com a conquista normanda, tem inicio um processo de centralização do poder.
Assim, a necessidade do rei em impor a sua autoridade por toda a Inglaterra abre caminho
para o estabelecimento de um conjunto de regras que seria comum (common law) em toda a
Inglaterra. Neste contexto, no culo XII, observa-se uma constante expansão das
jurisdições dos Tribunais Reais, que, paulatinamente, foram ampliando suas competências
sobre as antigas cortes senhoriais, que possuíam ampla discricionariedade para julgar
mediante a aplicação dos costumes locais. Destarte que este direito, desenvolvido pelos
Tribunais Reais, tinha como base normas de direito processual fazendo com que o sistema
jurídico inglês se tornasse extremamente formal. Tudo pela inexistência, época, de um
conjunto de normas abstratas de direito material suficientemente abrangente.
60
A expansão dos Tribunais Reais se deu através de um processo técnico
utilizado para requerer a sua jurisdição. As pessoas poderiam solicitar a justiça do rei
mediante a elaboração de um pedido que era analisado pelo Chanceler.
61
Caso o pedido
fosse fundamentado, uma ordem ao xerife ou a um senhor, chamada de writ, era enviada ao
réu para dar satisfação ao queixoso e assim iniciava-se o processo. Com o passar do tempo
os writs tornaram-se formas estereotipadas, passadas pelo Chanceler, mediante pagamento,
60
Tudo conforme MELLO, Patrícia Perrone Campos. Precedentes, pág. 13 e ss.
61
O Chanceler era um dos principais colaboradores do rei.
51
sem um exame prévio aprofundado, atraindo, assim, um maior número de litígios para as
jurisdições reais. Neste contexto tentam os senhores feudais evitar a expansão dos
Tribunais Reais, culminando com a elaboração do Statue of Westminster II (1285), que
impede o Chanceler de criar novos writs, mas o permite a passá-los em casos semelhantes.
Desde então o direito inglês tem como base a lista de writs. Até mesmo na atualidade a
busca do writ adequado ao caso concreto se faz necessária.
62
Neste contexto, as decisões judiciárias dos Tribunais de Westminster foram
sendo catalogadas nos Years Books. Já no século XVI tais compilações eram impressas e
passaram a constituir os chamados Law Reports¸ que são os documentos mais importantes
dos juízes e advogados na Inglaterra a nortear a aplicação dos precedentes.
63
A compreensão de que a common law foi desenvolvida pelos Tribunais
Reais, sem um corpo significativo de normas abstratas de direito material, é relevante para
entendermos a emergência da jurisprudência como foco irradiador de normas jurídicas de
direto material no direito inglês. Assim, após a solução de um caso concreto, os Tribunais
Reais passaram a adotar uma técnica indutiva peculiar, qual seja a construção de normas
gerais e abstratas a partir da enunciação de normas individuais e concretas. Desta forma,
desenvolveu-se o chamado stare decisis onde os juízes são obrigados a aplicar as normas
construídas por suas cortes superiores, mediante o processo indutivo acima indicado. Com
o passar do tempo, é interessante notar que este sistema ganhou tamanha força na Inglaterra
que acabou por impor a obediência aos precedentes às próprias cortes que o haviam
62
Conforme GILISSEN, John. Introdução histórica ao direito, pág. 210.
63
Idem, pág. 211.
52
enunciado (auto-vinculação), engessando-as de certa forma por um lado, mas conferindo
certeza ao direito por outro. Somente em 1966 é que o mais alto tribunal britânico, a
Câmara dos Lordes (House of Lords
64
), atenuou esta regra e permitiu àquela corte a
modificação e a revogação de seus precedentes.
65
Neste contexto, na gênese da common law, parece ser diminuta a
importância conferida à Dogmática. Trata-se de um direito eminentemente prático, o qual, a
rigor, os juristas não eram formados pelas Universidades. Um direito de juízes e não de
professores. Mesmo assim, não podemos nos esquecer de importantes doutrinadores
ingleses como Bracton, Sir Edward Coke e Sir Willian Blacstone, autores de obras valiosas,
sobre princípios de ordem geral nas quais comentam as decisões judiciais. Ademais, pouco
a pouco, com a supressão do formalismo excessivo, a partir do século XIX, o papel da
Ciência do Direito no sistema jurídico inglês vem se ampliando e ganhando novas funções,
principalmente na formação dos juristas.
66
Diante do exposto, somos levados a crer que na common law a comunicação
estabelecida entre a Dogmática Jurídica e os aplicadores do direito não parece ter a mesma
força e importância que encontramos na civil law. No entanto, não podemos subestimá-la.
Como bem demonstrado por José Rogério Cruz e Tucci, antes mesmo da consolidação da
regra do efeito vinculante aos precedentes, encontramos, na obra de Henrique de Bracton,
uma notória preocupação com o problema dos julgados contraditórios, que poderia colocar
64
Recentemente, em 2005, por influência da Comunidade Européia, foi aprovada a Constitucional Reform
Act, onde foi criada uma nova Corte Suprema.
65
MELLO, Patrícia Perrone Campos. Precedentes, pág. 20 e ss.
66
DAVID, René. Os grandes sistemas do direito contemporâneo, pág. 445.
53
em perigo a questão da certeza do direito.
67
Ademais, ainda segundo o autor, a moderna
teoria do stare decisis foi inicialmente cogitada na obra de um dos maiores juristas ingleses
de todos os tempos, Sir Baron Parke J..
68
Com a revolução gloriosa temos o fim da prevalência da autoridade real e a
afirmação da supremacia do Parlamento. Este, após uma fase aristocrática, tornou-se
democrático, mediante a transferência do poder à Câmara dos Comuns e a ampliação do
sufrágio, em 1832. Tais fatos passaram a legitimar o desenvolvimento do direito através das
leis. Ademais, o advento do Estado de bem-estar social fomentou o desenvolvimento de
uma ampla legislação capaz de implantar uma série de rápidas mudanças sociais. Por
último, temos a entrada da Inglaterra na Comunidade Européia forçando-a a adotar uma
série de leis, principalmente no tocante aos direitos humanos (Human Rights Act, 1998) e
ao estabelecimento de uma Suprema Corte independente do Parlamento (Constitucional
Reform Act, 2005).
69
Em suma, na Inglaterra, o stare decisis se impõe. Contudo, nos últimos anos,
principalmente durante os séculos XIX e XX, observamos uma explosão legislativa naquele
país, aproximando-o, de certa forma, do direito exercido na civil Law. Ademais, o seu
ingresso na Comunidade Européia, que é basicamente formada por países de base
romanista, também é um importante ingrediente na aproximação do direito inglês das
estruturas típicas da civil Law.
67
TUCCI, José Rogério Cruz e. Precedente judicial como fonte do direito, pág. 153.
68
Idem, pág. 160.
69
MELLO, Patrícia Perrone Campos. Precedentes, pág. 27.
54
2.3. Da introdução e evolução da common law nos Estados unidos da América
Como os ingleses foram os responsáveis pela colonização de grande parte da
América do Norte, pretenderam introduzir, em suas colônias americanas, a common law.
Contudo, em um primeiro momento, este sistema jurídico se mostrou bastante inapropriado
às condições de vida dos colonos. Assim, durante o século XVII, tem inicio, em algumas
colônias, um incipiente processo de codificação. Contudo, a partir do culo XVIII até a
independência das colônias inglesas, o sistema da common law ganha força na América,
principalmente por ser visto como um instrumento de proteção das liberdades públicas
frente ao absolutismo real. Porém, com a independência das colônias e o estabelecimento
dos Estados Unidos da América, este novo país se influenciado pela França, uma aliada
importante, que o faz tender novamente ao sistema da civil law. Após a Declaração dos
Direitos do Homem e a promulgação de uma Constituição, a adoção dos códigos parecia
ser o caminho natural para os norte-americanos, inclusive isto chegou a ser posto em
prática em alguns Estados. Porém, a forte influência cultural da Inglaterra sobre os Estados
Unidos da América prevaleceu, fazendo com que os americanos definitivamente adotassem
o modelo jurídico inglês da common law.
70
Apesar de inquestionável, não se pode afirmar que o triunfo do sistema
jurídico da common law na América do Norte foi completo. O embate com a civil law, que
rapidamente acabamos de descrever, acabou por dotar o sistema jurídico norte-americano
de algumas estruturas particulares que o aproximou da civil law. Ademais, algumas
características sócio-culturais dos norte-americanos acabaram por conferir a este sistema
70
DAVID, René. Os grandes sistemas do direito contemporâneo, pág. 449, passim.
55
jurídico contornos próprios, que o distanciaram ainda mais do tradicional sistema jurídico
inglês. Assim, o republicanismo, o federalismo, o presidencialismo, a preocupação com a
divisão do exercício do poder e a preservação das liberdades individuais, levaram a adoção
de uma Constituição escrita, abstrata, geral e rígida, portanto, uma lei, no estilo romano,
que funcionou como seu ato de fundação e que dominaria todo o seu sistema jurídico.
71
Assim, enquanto na Inglaterra vigorava a absoluta supremacia do
Parlamento, os norte-americanos criaram um dos modelos de constitucionalismo mais
destacados da atualidade, com o qual nasceram as idéias de supremacia da constituição e
de controle judicial da constitucionalidade das normas,
72
que em última instância foi
entregue à Suprema Corte norte-americana. Por último, destarte que tal controle judicial,
porquanto desenvolvido na América do Norte, somente em um momento posterior foi
introduzido na Europa Continental, como veremos oportunamente.
Nos Estados Unidos da América também é comum a edição de Law Reports,
tendo o primeiro deles sido publicado em Conecticut, em 1789. Contudo, a força que os
precedentes possuem na América é bem inferior àquela observada na Inglaterra. Dizemos
isso uma vez que se verifica, mesmo com uma baixa freqüência, a revisão dos precedentes
nos tribunais americanos, quando os mesmos se encontrem ultrapassados (overruled) ou
são considerados ultrapassados. Assim, na clássica visão dos juristas americanos, no
sistema da common Law o direito não pode ser livremente criado por força de um soberano,
71
MELLO, Patrícia Perrone Campos. Precedentes, pág. 34.
72
Idem, pág. 35.
56
mas sim, é fruto da experiência judicial baseada em regras e princípios que no passado
alcançaram uma solução justa ou não.
73
2.4. Do direito romano-germânico, ou civil law
O denominado sistema da civil law teve sua origem no antigo direito
romano, historicamente composto de três períodos distintos. O primeiro deles foi o arcaico,
onde predominavam as legis actiones. Após, veio o período clássico, que vai da República
ao Principado, quando foi adotado o processo formular. E, por último, veio a fase tardia.
Destarte, assim como na common law, a princípio, o direito romano também era casuístico
e se fundamentava em normas processuais. Contudo, durante o último período, ou seja,
após séculos de evolução, quando o Imperador era visto como único legislador e intérprete
do direito, é que tem início o processo de produção e utilização de normas materiais de
cunho abstrato que irá culminar, no ano 530 d.c., com a publicação, promovida pelo
Imperador Justiniano, de um conjunto de livros denominado Corpus Iuris Civilis, assim
composto: Digesto e Pandectas (obras de juristas clássicos), Codex (legislação imperial de
seus antecessores), Institutas (manual de introdução) e o Novellae (leis promulgadas pelo
próprio Justiniano). Assim, é interessante notar que após o declínio do Império Romano,
durante o Século XII e XIII, foi justamente sobre o Corpus Iuris Civilis que as florescentes
Universidades Européias se debruçaram e produziram um modelo de organização social e
de justiça substancial que pode ser entendido como o princípio da sistematização do direito
73
Conforme TUCCI, José Rogério Cruz e. Precedente judicial como fonte do direito, citando Pound, Roscoe,
g. 168.
57
romano-germânico, no qual, desde o início, se observa a relevância do papel conferido a
doutrina.
74
Neste sentido, desde o século XII, observamos o desenvolvimento, dentro
das universidades européias, de uma comunidade jurídica (cientistas do direito) que
buscavam o desenvolvimento de um direito justo e que também promoviam o treinamento e
a formação dos futuros operadores do direito. Neste período, não obstante a inexistência de
um poder central na Europa, as idéias das academias jurídicas se espalham e se
uniformizam por todo o continente.
Neste contexto, surge a necessidade da elaboração de uma teoria capaz de
explicar os fenômenos jurídicos. Dentre as diversas teorias desenvolvidas ao longo dos
anos seguintes foi no século XVIII que triunfa, nas universidades européias, a teoria do
direito natural que, ao se espalhar por toda a Europa, abriu caminho para a proliferação dos
códigos, já no século XIX. Com estes, a função das universidades, que consistia
basicamente na elaboração de um direito justo, se altera substancialmente, passando, então,
a promoção da interpretação dos textos legais. Assim, temos que o positivismo legislativo,
aliado ao nacionalismo europeu continental, acabou por fragmentar a civil law em diversos
direitos nacionais codificados.
75
74
Tudo conforme MELLO, Patrícia Perrone Campos. Precedentes, pág. 34 e DAVID, René. Os grandes
sistemas do direito contemporâneo, pág. 35 e seguintes.
75
DAVID, René. Os grandes sistemas do direito contemporâneo, pág. 45.
58
Concluindo, temos que na civil law os juízes, ao promoverem o ciclo de
positivação do direito, aplicam a legislação. Contudo, para tanto, a interpretação dos textos
legais se mostra indispensável. Nesta tarefa, apóiam-se os magistrados, principalmente, nas
proposições formuladas pela Ciência do Direito. Neste sistema, a rigor, as proposições
formuladas pelos tribunais não possuem força vinculante, como visto na common Law, mas
nem por isso são desprezadas pelos magistrados, possuindo uma boa dose de persuasão
sobre os mesmos.
Tal sistemática, no século XVI, produzia na Europa Continental alguns
problemas de ordem jurídica processual que foram em certa parte ocasionados pela adoção
do sistema da civil Law, naquilo que ficou conhecido como “despotismo dos tribunais”, que
pode ser assim resumido:
com o passar do tempo, nota-se que a atividade forense
desenvolvida nos países da Europa continental conhecia
grande desorganização e insegurança, devidas ao excesso de
correntes doutrinárias e à morosidade da tramitação dos
processos, causada pelo rito solene ditado pelas ordines
iudiciarri medievais. Os tribunais também apresentavam
complicada organização interna, inerente à variedade de
juízos, fator que ensejava imensa desconfiança na justiça.
76
Assim, diversos tribunais centralizados foram criados sob o lema “Um
Estado, um único direito”. Pouco a pouco, a jurisprudência de tais tribunais foi-se
consolidando pela via recursal e se impondo, mesmo com dificuldade, como precedentes
vinculantes. Contudo, com as revoluções burguesas do fim do século XVIII, o ideal de
soberania do povo, expresso na legislação, ganhou grande força na Europa Continental.
76
TUCCI, José Rogério Cruz e. Precedente judicial como fonte do direito, pág. 190.
59
Neste cenário a codificação, que representa a “vontade geral”, ganhou força, passando os
juízes a serem meros aplicadores das leis. Diante da nova realidade, novamente a
jurisprudência perde a força outrora adquirida, sucumbindo perante a lei, a única fonte do
direito.
77
2.5. Da principal distinção entre a civil law e a common law
Uma das principais características da common law foi assim descrita por
René David:
78
O direito, quer para um jurista americano,
quer para um jurista inglês, é concebido essencialmente sob
a forma de um direito jurisprudencial; as regras formuladas
pelo legislador, por mais numerosas que sejam, são
consideradas com uma certa dificuldade pelo jurista que não
nelas o tipo normal da regra de direito; estas regras
são verdadeiramente assimiladas ao sistema de direito
americano quando tiverem sido interpretadas e aplicadas
pelos tribunais e quando se tornar possível, em lugar de se
referirem a elas, referirem-se às decisões judiciárias que as
aplicaram. Quando não existe precedente, o jurista
americano dirá naturalmente: “There is no law on the point”
(Não direito sobre a questão), mesmo se existir,
aparentemente, uma disposição de lei que a preveja (sic).
Já sobre a civil law assim se manifesta Patrícia Perrone Campos Mello.
79
:
O civil law concebe a regra de direito como
um comando normativo geral, abstrato, enunciado, em parte,
com base em considerações sobre justiça, moral e política e,
77
Idem, pág. 201.
78
Os grandes sistemas do direito contemporâneo, pág. 459.
79
Precedentes, pág. 46.
60
em parte, como fruto de uma reflexão sistemática
empreendida a partir da prática. Ela não é tão precisa e
determinada, tampouco é casuística, como no common law.
Propõe-se, ao contrário, a abarcar, em sua moldura, a
variedade dos casos futuros. Estes deverão encontrar na
norma a sua solução, por um método de dedução, que parte
do comando geral para regular a situação particular
Neste contexto, fazendo uso do arcabouço teórico delineado no primeiro
capítulo, procuraremos demonstrar que a grande diferença entre os dois sistemas jurídicos
em apreço pode ser resumida pelo fato de que na civil law geralmente o magistrado possui
liberdade para julgar conforme um entendimento formulado pela doutrina, ou por ele
mesmo, em detrimento de uma posição estabelecida pelos tribunais. Já na common Law,
por seu turno, tal postura não é aceita facilmente, tendo em vista a força vinculante das
decisões jurisprudenciais que funcionam como precedentes.
Na civil law, para levar a cabo o processo de positivação do direito, seu
aplicador constrói uma norma jurídica geral e abstrata a partir dos atos de comunicar
enunciados tanto pelos textos legais quanto pela Ciência do Direito e, em seguida, aplica a
norma por ele adotada, ou construída, ao litígio levado a sua solução, mediante a
construção de uma norma jurídica individual e concreta. Neste processo, na maioria dos
casos, para o aplicador do direito da civil law¸ as normas jurídicas construídas pelos
tribunais não lhe vinculam. Em outras palavras, na civil law é comum verificarmos que os
diversos órgãos tanto do Poder Judiciário, quanto da administração pública, constroem
normas jurídicas distintas a partir dos mesmos textos legais. Isto porque estabelecem
comunicações com a Ciência do Direito para interpretar os textos legais.
61
Não queremos com isso dizer que os magistrados da civil law não podem
fundamentar suas decisões na jurisprudência e não o façam. Isto também é possível e
bastante comum, principalmente nos tribunais, em sede de segunda instância. O que
gostaríamos de frisar é a existência de interpretações distintas, a partir dos mesmos textos
legais, construídas tanto pelos tribunais quanto pela Ciência do Direito (sem força
prescritiva). Assim, na civil law, é comum verificarmos a construção de normas jurídicas
individuais e concretas distintas, por órgãos distintos, com fundamento no mesmo texto
legal.
Neste contexto, é comum termos pessoas em situações fáticas análogas, mas
regidas por normas jurídicas distintas, na medida em que distintos também são os
magistrados responsáveis por seus casos. Tal situação estabelece uma grave sensação de
insegurança jurídica e descrédito para com o Poder Judiciário.
na common law tal postura não é aceita, pois, a partir da solução de um
caso concreto, por um determinado tribunal, constrói-se uma norma geral e abstrata que
deve ser obedecida por todos os juízes que lhe são subordinados. Mais, como visto, na
common law, a comunidade jurídica possui grande dificuldade em indicar o conteúdo
semântico de uma norma jurídica antes de sua aplicação ao caso concreto.
Assim, verificamos que na civil law o Poder judiciário deve aplicar as leis
(que são as mesmas para todos) ao caso concreto. Contudo, aos magistrados é conferida
uma boa dose de liberdade para interpretar os textos legais de acordo com o seu livre
62
convencimento, mediante auxílio da Ciência do Direito, vez que, a rigor, os magistrados
não estão obrigados a adotarem o posicionamento dos tribunais que lhe são superiores. De
forma fundamentada, o que se dá principalmente mediante a utilização de argumentos
provenientes da Ciência do Direito, os magistrados possuem liberdade para a construção de
normas jurídicas distintas daquelas adotadas pelos tribunais, sempre a partir do mesmo
corpo de linguagem que compreende as leis.
Quanto ao sistema da civil Law, é comum a critica de que o mesmo traz
insegurança jurídica. com relação à common Law, a crítica mais comum diz respeito a
sua pequena capacidade em se adaptar às constantes alterações nos padrões da sociedade
moderna. A imperfeição é uma das mais marcantes características do Homem, logo, o
direito, enquanto objeto cultural criado pelo Homem, também o é (imperfeito). Os distintos
sistemas em análise possuem vantagens e desvantagens, que são exploradas por aqueles que
entram em contato com o sistema jurídico. Aliás, mediante o rápido estudo histórico acima
realizado, observamos que a tendência de tais sistemas é a sua mútua aproximação,
buscando cada qual o que é de melhor do outro. Na common Law, a produção legislativa é
crescente, na civil law, o que cresce é a força das decisões judiciais, cada vez mais
atuando como precedentes vinculantes. Portanto, não melhor nem pior, apenas dois
sistemas jurídicos distintos, com características distintas e, consequentemente problemas
também distintos.
Ademais, para terminarmos este tópico, não podemos nos esquecer que o
direito é fruto da cultura da sociedade que o produz. Assim, verifica-se que os padrões
culturais da sociedade influenciam sobremaneira sobre as características do ordenamento
63
jurídico produzido por tal sociedade. Logo, o fato de a common law ser um sistema jurídico
eminentemente prático é fruto das peculiares características da sociedade britânica que lhe
deu origem. Neste sistema jurídico não há o apego a diversas questões de ordem processual
que são tão comuns na civil law. O processo na common law fluiu com muito menos
entraves daqueles verificados na civil law. Este fenômeno, als, não passou despercebido
por Piero Calamandrei:
80
Estou cada vez mais convencido de que
entre o rito judiciário e o rito religioso existem parentescos
históricos muito mais próximos do que a igualdade da
palavra indica. Quem fizesse um estudo comparado do
cerimonial litúrgico e das formas processuais perceberia na
história certo paralelismo de evolução. Quase se poderia
dizer que, nos tribunais e nas igrejas, a religião degenerou
em conformismo.
A sentença era, originalmente, um ato
sobre-humano, o juízo de Deus; as defesas eram preces. Mas
com o passar dos séculos o espírito voltou para o céu, e na
terra ficaram as formas exteriores de um culto em que
ninguém mais acredita. Ao assistirmos ao cansaço distraído
de certas audiências, somos levados a pensar na indiferença
com que tanta gente boa, nos feriados religiosos, continua
indo à missa por força do hábito e para ostentar em público
uma fé que já não tem no coração.
Talvez as profundas diferenças que se
notam entre a simplicidade e a lealdade dos juízes nos países
anglo-saxões e o complicado e dispendioso formalismo do
nosso processo tenham seu fundamento numa resistência
diferente do espírito religioso. No procedimento judiciário
inglês, tão rápido e leal, traduziu-se a Reforma; o nosso
ainda é um procedimento católico romano.
80
CALAMANDREI, Piero. Eles, os Juízes, vistos por um advogado, pág. 257.
64
CAPÍTULO 3. DO CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE DOS ATOS
NORMATIVOS
3.1. Do controle de constitucionalidade dos atos normativos na common law
Linhas atrás, afirmamos que uma das grandes diferenças entre o sistema
jurídico inglês e o norte-americano residia no fato de que enquanto na Inglaterra vigorava a
absoluta supremacia do Parlamento, nos Estados Unidos da América foi criada a idéia da
supremacia da Constituição. Assim, para garantir tal supremacia, foi desenvolvido, nos
Estados Unidos da América, um peculiar sistema de controle de constitucionalidade das
normas.
O controle de constitucionalidade no direito norte-americano teve origem no
famoso caso Marbury versus Madison. Este caso foi muito bem narrado, em seus
pormenores, pelo professor Luís Roberto Barroso. Aqui, faremos apenas um breve relato.
Em 1789 foi publicada, nos EUA, uma Lei Federal (the Judiciary Act) que conferia a
Suprema Corte daquele país competência originária para processar e julgar ões de uma
determinada natureza. em 1800, os Federalistas (partido político do então Presidente
John Adams) perderam as eleições presidenciais para Thomas Jefferson, do parido
republicano. Assim, para manter sua influencia política através do Poder Judiciário, os
Federalistas aprovaram uma lei autorizando o Presidente da República a nomear quarenta e
dois juízes de paz. Assim, no último dia de seu mandato, o Presidente John Adams assinou
os atos de investidura dos novos juízes, porém, seu Secretário de Estado não teve tempo
hábil de entregá-los a todos os investidos, restando alguns nomeados sem recebê-los. Ao
65
tomar posse, Thomas Jefferson não autorizou seu Secretário de Estado James Madison a
entregar os últimos atos de investidura. William Marbury, um dos nomeados que não
recebeu sua investidura, resolveu, com fundamento naquela Lei Federal de 1789, impetrar,
originalmente na Suprema Corte, um writ of mandamus”, com o escopo de ser investido
no cargo. Porém, ao julgar o caso, a Suprema Corte afirmou que o parágrafo 13, da Lei
Judiciária de 1789, ao criar uma hipótese de competência originária da Suprema Corte
fora das que estavam previstas no art. da Constituição incorria em uma
inconstitucionalidade.
81
A referida decisão da Suprema Corte Norte-Americana estabeleceu algumas
das mais importantes premissas do constitucionalismo moderno: (i) a Constituição é
suprema; (ii) um ato do Poder Legislativo contrário a Constituição é nulo; e, por último,
(iii) o Poder judiciário é o intérprete final da Constituição.
É interessante notar que somente cinquenta anos depois a Suprema Corte
dos Estados Unidos da América voltou a declarar uma lei inconstitucional, no caso Dred
Scott v. Sandford, ao afirmar que o Congresso exorbitou de seus poderes e violou a
propriedade privada ao proibir ou abolir a escravidão em determinadas áreas.
82
Ademais,
ainda nesta decisão, a Suprema Corte afirmou que os negros não eram cidadãos dos Estados
Unidos da América e, portanto, não poderiam ajuizar ações perante os Tribunais Federais.
Trata-se de uma das mais deploráveis decisões tomadas pela Suprema Corte Norte-
Americana, que foi superada pelas Emendas Constitucionais de nº. 13 e 14.
81
Tudo conforme BARROSO, Luís Roberto. O controle de constitucionalidade no Direito Brasileiro, pág. 8.
82
Idem pág. 10.
66
Seja como for, é cediço que o caso Marbury versus Madison deu início ao
controle judiciário da constitucionalidade das leis nos Estados Unidos da América,
denominado judicial review. Tal controle também ficou conhecido como incidental e
difuso. Difuso, pois pode ser exercido por qualquer órgão do Poder Judiciário e incidental
porque a pronúncia sobre a inconstitucionalidade da norma é uma questão prejudicial para
o julgamento de um caso concreto. Em outras palavras, neste sistema, tendo em vista a
supremacia da Constituição, para a solução de uma lide, qualquer órgão do Poder Judiciário
pode negar aplicação a uma determinada norma por considerá-la inconstitucional e por fim
a controvérsia com fundamento na inconstitucionalidade de um ato normativo.
Por último, corroborando com os estudos empregados neste trabalho, o
professor Luís Roberto Barroso afirma que antes da decisão do caso Marbury x Madison as
teses jurídicas ali expostas haviam sido defendidas, em sede doutrinária, por Alexander
Hamilton, no Federalist n. 78.
83
Novamente, verifica-se o estabelecimento de uma
importante comunicação entre aqueles que aplicam o direito e a Ciência do Direito.
3.2. Do controle de constitucionalidade dos atos normativos na civil law
Diferentemente dos Estados Unidos da América, na Europa Continental,
onde o sistema jurídico adotado é o da civil law, o controle de constitucionalidade das leis é
tardio. Somente com a Constituição da Áustria, em 1920, é que foi estabelecido um
mecanismo de controle de constitucionalidade dos atos normativos. Ademais, destarte que
83
O controle de constitucionalidade no Direito Brasileiro, pág. 6.
67
este sistema apenas se expandiu para os demais países da Europa Continental após a
segunda guerra mundial.
Uma das razões deste desenvolvimento tardio pode ser resumida pela
seguinte frase, enunciada por Louis Favoreu: Nos Estados Unidos a Constituição é
sagrada; na Europa é a lei que é sagrada.
84
Percebe-se, assim, que após a revolução
francesa, o dogma de Rousseau sobre infabilidade das leis tornou-se muito caro aos
europeus.
Seja como for, o fato é que o modelo de controle de constitucionalidade
adotado pela Constituição austríaca em 1920 foi fruto do trabalho realizado por Hans
Kelsen.
85
Trata-se de um sistema completamente distinto daquele desenvolvido na América
do Norte.
Em primeiro lugar, o controle de constitucionalidade das leis é conferido a
um órgão específico, as Cortes Constitucionais, que não podem ser entendidas como um
órgão do Poder Judiciário. Eis o sistema concentrado, em oposição ao sistema difuso,
desenvolvido nos Estados Unidos da América.
Na verdade, sob as premissas estabelecidas por Kelsen, o controle de
constitucionalidade não seria propriamente uma atividade judicial, mas uma função
84
FAVOREU, Louis. As Cortes Constitucionais, pág. 20.
85
Idem, pág. 17.
68
constitucional, que melhor se caracterizaria como atividade legislativa negativa.
86
Isto,
pois, para Kelsen, as leis, até o pronunciamento de sua inconstitucionalidade, são válidas e
devem ser aplicadas pelo Poder Judiciário. Somente após tal pronunciamento é que as
mesmas são retiradas do mundo jurídico.
O referido posicionamento de Hans Kelsen é oposto aquele desenvolvido na
América do Norte, uma vez que neste último País a lei inconstitucional é tida como nula,
na visão de Kelsen ela é anulável. Conhecido é o posicionamento de Kelsen que diz: toda
norma jurídica existente é válida, até que outra norma a retire do sistema.
87
Assim, a
natureza jurídica da pronúncia de inconstitucionalidade de uma norma, para Kelsen, é
constitutiva, enquanto que para o sistema desenvolvido nos Estados Unidos da América é
declaratória. Indispensável afirmar, neste momento, que no Brasil é majoritário o
entendimento da natureza declaratória do pronunciamento de inconstitucionalidade de um
ato normativo.
Destarte que o controle de constitucionalidade realizado de forma
concentrada traz um grande benefício para a segurança jurídica dos Países da civil law.
Como nestes sistemas jurídicos, via de regra, os magistrados não estão vinculados às
decisões proferidas pelos Tribunais que lhe são superiores, a criação de um único órgão
encarregado de promover o controle de constitucionalidade das leis é pertinente, pois, desta
forma, evita-se a tomada de decisões contraditórias por tribunais distintos em matéria
86
Conforme BARROSO, Luís Roberto. O controle de constitucionalidade no Direito Brasileiro, pág. 19.
87
CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de Direito Tributário, pág. 79.
69
constitucional. Somente um órgão é competente para controlar a constitucionalidade das
leis e a sua decisão possui força vinculante sobre todo o Poder judiciário.
Analisando a questão sobre outro aspecto, verificamos outra consequência
jurídica que a adoção do modelo incidental e difuso nos países da civil law pode acarretar,
sempre considerando que neste modelo os efeitos das decisões judiciais só produzem
efeitos entre as partes envolvidas no processo. Vejamos: determinada sociedade empresária
propõe uma ação judicial com o escopo de ver declarado inconstitucional determinado
dispositivo legal que institui um tributo sobre a sua atividade empresarial. Julgada
procedente a demanda, a referida sociedade fica juridicamente desobrigada de pagar o
tributo. Porém, uma sociedade empresária concorrente continuará obrigada ao recolhimento
do mesmo tributo e mais, caso intente a mesma ação judicial, nenhum instituto jurídico lhe
garante que o Poder Judiciário irá julgar sua demanda no mesmo sentido da primeira. Neste
caso, se a segunda demanda for julgada improcedente, teremos um dispositivo legal
considerado inconstitucional para uma pessoa e constitucional para outra, ou seja, um grave
afronta ao princípio da isonomia que, em última análise, provoca uma concorrência desleal
entre as sociedades empresárias envolvidas.
Para evitar tais contradições, nos países da Europa Continental a
competência para o pronunciamento sobre a constitucionalidade de um ato normativo
geralmente é entregue a uma Corte Constitucional.
Na República Federal da Alemanha, por exemplo, a jurisdição constitucional
foi entregue ao Tribunal Constitucional Federal Bundesverfassungsgericht para
70
solucionar casos nos quais, supostamente, exista uma violação à Lei Fundamental e aos
Tribunais Constitucionais dos Estados Lander para solucionar violações referentes à
Constituição de um Estado. Assim, quando a solução de um caso concreto depender da
aferição da constitucionalidade de um ato normativo, o processo será suspenso e o caso
remetido ao competente tribunal para deliberar sobre a questão constitucional. Após, o
tribunal de origem julga o feito de acordo com a decisão constitucional proferida pela Corte
constitucional. Também existe a possibilidade de se por a questão constitucional
diretamente ao Tribunal Constitucional. Por último, saliente-se que as decisões proferidas
pelo Bundesverfassungsgericht possuem força vinculante perante todos os órgãos da
Federação e dos Estados, bem como para todos os tribunais e autoridades. Em alguns casos,
a decisão do referido tribunal tem força de lei.
88
3.3. Da evolução do controle de constitucionalidade dos atos normativos no
Brasil
No Brasil, o controle de constitucionalidade dos atos normativos pelo Poder
Judiciário foi inaugurado pela Constituição Provisória de 1890, uma vez que a Constituição
do Império (1824), fortemente influenciada pela ideologia francesa, nada dispunha sobre o
tema, outorgando ao Poder Legislativo a atribuição de “fazer leis, interpretá-las, suspendê-
las e revogá-las”, bem como “velar na guarda da Constituição” (art. 15, n°. 8° e 9°).
89
88
Tudo conforme STRECK. Lenio Luiz. Jurisdição constitucional e hermenêutica: uma nova crítica do
direito, pág. 356 e seguintes.
89
MENDES, Gilmar Ferreira. Direitos fundamentais e controle de constitucionalidade: estudos de direito
constitucional, pág.189.
71
Assim, a possibilidade de ser examinada judicialmente a constitucionalidade
de leis e atos do poder público foi prescrita, pela primeira vez em nosso ordenamento
jurídico, pelo art. 58, § 1°, alínea “a” e “b”, da denominada Constituição Provisória de
1890, quando da regulamentação da competência do Supremo Tribunal Federal. Ademais,
no mesmo ano, foi publicado o Decreto n°. 848, de 11 de outubro de 1890, que, ao
organizar a Justiça Federal, em seu art. 3°, determinou que: na guarda e aplicação da
Constituição e leis federais, a magistratura federal intervirá em espécie e por
provocação de parte. Consagrando, mesmo que provisoriamente, o controle pela via
incidental e difusa.
90
Após, o governo provisório do Marechal Deodoro da Fonseca criou a
“comissão dos cinco” com o escopo de elaborar o anteprojeto da Constituição Republicana.
Findos os trabalhos, o anteprojeto foi entregue a Rui Barbosa para revisão, antes da sua
publicação em decreto, ad referendum da Assembléia Constituinte. Assim, o eminente
jurista baiano, fortemente influenciado pela idéias norteadoras da Constituição dos Estados
Unidos da América, afastou do nosso primeiro texto constitucional republicano as
vitoriosas idéias políticas da Revolução Francesa, consagradas pela “comissão dos cinco” e
que conferiam supremacia ao Poder Legislativo. Nas palavras de Lenio Luiz Streck, Rui
Barbosa, na qualidade de revisor do texto constitucional de 1891:
suprimiu as atribuições do Legislativo de
estabelecer a interpretação autêntica e de velar pela guarda
da Constituição; ampliou a competência do Supremo
Tribunal Federal para todas as questões decididas pelos
90
BARBI, Celso Agrícola. Evolução do controle da constitucionalidade das leis no Brasil. RDP, n°. 4, pág.
37.
72
juízes e tribunais estaduais que negassem a validade das leis
federais, que afirmassem a validade de leis e atos dos
governos estaduais contestados em face da Constituição ou
das leis federais, ampliação essa que foi estendida aos juízes
federais, que passaram a ter a competência para julgar as
causas em que alguma das partes baseasse-se em disposições
da Constituição.
91
Dúvidas não de que o pensamento de Rui Barbosa segue rigorosamente
as teorias formuladas na América do Norte sobre a inconstitucionalidade dos atos
normativos.
Trabalhando como advogado, Rui Barbosa patrocinou a causa de dois
Oficiais do exército brasileiro de alta patente, arguindo a inconstitucionalidade de dois
Decretos expedidos pelo Poder Executivo, que, em suma, haviam reduzido os soldos de tais
Oficiais. É digno de registro a singeleza norteadora da petição inicial formulada por Rui
Barbosa, que se restringe a descrever os fatos e fundamentar o seu pedido na
inconstitucionalidade dos respectivos atos administrativos. Contudo, após a manifestação
do eminente Procurador da República, em suas razões finais, Rui Barbosa nos brinda com a
excelência do seu pensamento jurídico, rebatendo as afirmações do douto Procurador com
fundamento, principalmente, no direito comparado. Assim, analisa o direito constitucional
inglês, para depois descrever o norte-americano, aqui introduzido pela Carta Republicana
de 1891, passando pelo direito mexicano, belga, venezuelano, dentre outros. Ao concluir o
seu arrazoado final, afirma o notório jurista brasileiro que a ação deveria ser julgada
procedente se, e somente se:
91
STRECK. Lenio Luiz. Jurisdição constitucional e hermenêutica: uma nova crítica do direito, pág. 426.
73
Se o poder de fazer a lei não compreende o de
reformar a Constituição;
Se toda lei, que cerceie instituições, ou direitos,
consagrados na Constituição, é inconstitucional;
Se, por maioria de razão, inconstitucionais são as
deliberações, não legislativas, de uma câmara, ou de ambas,
que interessarem esfera vedada ao poder legislativo (1);
Se toda medida executiva, ou legislativa, que fôr
inconstitucional, é, de sua essência, nula;
Se atos nulos da legislatura não podem conferir
poderes válidos ao executivo (2);
Se aos tribunais federais compete declarar a nulidade
dos atos legislativos, eivados de inconstitucionalidade (3);
Se a nulidade dos atos inconstitucionais do poder
executivo, ou do legislativo, certifica-se por declaração
judicial (4);
Se no caso de violação de direitos constitucionais do
indivíduo, perpetrada a pretexto de funções políticas, aos
tribunais compete verificar se a atribuição política invocada
abrange em seus limites a faculdade exercida (5);
Se a declaração de nulidade, por quebra de direitos
constitucionais, uma vez regularmente provocada, é, para as
justiças da União, além de um direito legal, um dever
indeclinável (6);
Se o meio constitucional de provocar e exercer essa
função judiciária são as ações regulares, instauradas e
decididas, segundo as formas técnicas do processo, contanto
que se aduza a inconstitucionalidade, não como objeto do
litígio, mas simplesmente como fundamento da reclamação, e
que esta pretenda, não a revogação do ato executivo, ou
legislativo, mas a inibição dos seus efeitos no caso vertente
(7);
92
92
BARBOSA, Rui. Obras seletas de Rui Barbosa. Vol. XI, pág. 156.
74
As ações acima mencionadas foram julgadas procedentes e tais decisões
foram mantidas pelo Supremo Tribunal Federal.
93
Independentemente disto, colacionamos
o presente caso para conferir uma demonstração prática de que a Carta Política de 1891,
inspirada na Constituição dos Estados Unidos da América, introduziu no Brasil o controle
de constitucionalidade judicial dos atos normativos pelo sistema incidental e difuso, típico
dos países da common law.
Assim, observamos que, inicialmente, nosso sistema jurídico não
contemplou o sistema direto e concentrado de controle de constitucionalidade das leis,
desenvolvido na Europa continental, mediante a criação das Cortes Constitucionais. Aliás,
de outra forma não poderia ser, pois o referido sistema de controle de constitucionalidade
foi desenvolvido nas primeiras décadas do século passado (notadamente com a
Constituição da Áustria de 1920), enquanto nossa primeira Constituição Republicana foi
promulgada, como é cediço, em 1891.
O Brasil foi um dos primeiros países da civil law a possuir mecanismos
judiciais de controle da constitucionalidade dos atos normativos. Por outro lado, este
pioneirismo fez com que o sistema aqui adotado fosse aquele característico dos países da
common law, que, uma vez aplicado ente nós, acabou se demonstrando ineficiente,
colaborando com a proliferação de um número cada vez mais excessivo de recursos
extraordinários junto ao Supremo Tribunal Federal, e também como fonte de insegurança
jurídica.
93
BARBOSA, Rui. Obras seletas de Rui Barbosa. Vol. XI, pág. 171 e seguintes.
75
As conclusões acima expostas foram muito bem observadas por Mauro
Cappelletti:
94
Pois bem, a introdução, nos sistemas de civil
law, do método “americano” de controle, levaria à
conseqüência de que uma mesma lei ou disposição de lei
poderia não ser aplicada, porque julgada inconstitucional,
por alguns juízes, enquanto poderia, ao invés, ser aplicada,
porque não julgada em contraste com a Constituição, por
outros. ... Poderiam, certamente, formar-se verdadeiros
“contrastes de tendências” entre órgãos judiciários de tipo
diverso que se manifestam, por exemplo, em perigosos
contrastes entre órgãos da justiça ordinária e os da justiça
administrativa, - ou entre órgãos judiciários de diverso grau
...
Assim sendo, com o tempo, o fato de o Brasil possuir um sistema jurídico
estruturado sobre os fundamentos do direito romano germânico e um controle de
constitucionalidade desenvolvido em um país da common law mostrou-se inadequado,
obrigando o legislador brasileiro a alterar, reiterada vezes, o nosso controle de
constitucionalidade das normas, nele embutindo características do controle direto e
concentrado.
Consequentemente, na Constituição de 1934, foi criada a chamada
“representação interventiva”, que é o primeiro instituto do modelo de controle direto em
nosso sistema jurídico. Assim, a lei federal que decretasse a intervenção da União em um
dos Estados-Membros, pelo descumprimento dos denominados princípios constitucionais
“sensíveis”, deveria ser previamente submetida à apreciação do Supremo Tribunal Federal,
para que sua constitucionalidade fosse declarada.
94
O controle judicial de constitucionalidade das leis no direito comparado, pág. 77.
76
Ademais, a Carta de 1934 também alterou significativamente o controle
incidental e difuso, principalmente em dois aspectos: (i) primeiro criou a chamada reserva
de plenário, ao determinar que toda declaração de inconstitucionalidade a ser proferida por
um tribunal deveria sê-la pela maioria absoluta de seus membros; (ii) ademais, conferiu
poderes ao Senado Federal para suspender a execução de lei ou ato que haja sido declarado
inconstitucional pelo Poder Judiciário.
As alterações acima indicadas visam a amenizar alguns problemas
verificados à época em função da inadequação do controle incidental e difuso em nosso
ordenamento jurídico. Com relação aos poderes conferidos ao Senado Federal, estes
visavam, principalmente, conferir efeitos erga omnes às decisões do Supremo Tribunal
Federal, amenizando, em certo ponto, as dificuldades encontradas por aquele Tribunal para
conferir eficácia extraprocessual as suas decisões de inconstitucionalidade. Já a reserva de
plenário foi imposta com o escopo de se evitar a insegurança jurídica decorrente das
contínuas flutuações de entendimento dos tribunais (art. 179).
95
Após o golpe militar de Getúlio Vargas em 1937 e a consequente outorga da
Carta Constitucional de 10 de novembro de 1937, denominada de “Polaca”, o controle
judicial de constitucionalidade dos atos normativos no Brasil sofreu grande retrocesso. O
mandado de segurança foi relegado ao plano infraconstitucional e o Código de Processo
Civil de 1939 vedou o seu uso em face dos atos emanados por diversos órgãos do Poder
95
MENDES, Gilmar Ferreira. Direitos fundamentais e controle de constitucionalidade: estudos de direito
constitucional, pág.193.
77
Executivo, principalmente do Presidente da República, minimizando, assim, o uso do
referido instrumento processual como meio de se requerer o controle judicial da
constitucionalidade dos atos normativos.
96
Ademais, o referido texto constitucional
permitia ao Presidente da República, caso fosse necessário ao bem-estar do povo, à
promoção ou defesa do interesse nacional de alta monta, submeter uma lei declarada
inconstitucional pelo Poder judiciário novamente à apreciação do Parlamento, para sobre
ela deliberar, podendo o mesmo, por dois terços dos membros de cada uma de suas
câmaras, tornar insubsistente a decisão do Tribunal mediante a convalidação da validade do
respectivo texto legal. Tal dispositivo causou grande controvérsia na doutrina,
principalmente após o seu uso pelo Presidente Getúlio Vargas, uma vez que desautorizava
explicitamente uma decisão judicial.
97
Sob a égide da Constituição de 1946 é restabelecido o controle judicial de
constitucionalidade dos atos normativos tal como prescrito, em linhas gerais, pela Carta
Política de 1934. Neste contexto restou revigorada a denominada “arguição de
inconstitucionalidade”, ou “representação interventiva. Tal como na Constituição de 1934,
a Carta de 1946 também previa a possibilidade de intervenção federal nos Estados para
assegurar a preservação dos chamados “princípios sensíveis”. Contudo, a questão deveria
ser previamente submetida ao Supremo Tribunal Federal, privativamente pelo Procurador
Geral da República. Após a declaração de inconstitucionalidade do ato ou da lei estadual, a
decisão era imediatamente comunicada aos órgãos estaduais interessados. com a
96
BARBI, Celso Agrícola. Evolução do controle da constitucionalidade das leis no Brasil. RDP, n°. 4, pág.
39.
97
MENDES, Gilmar Ferreira. Direitos fundamentais e controle de constitucionalidade: estudos de direito
constitucional, pág.196.
78
publicação do acórdão, este era remetido ao Congresso Nacional para simplesmente
suspender a execução do ato declarado inconstitucional, caso tal medida se mostrasse
suficiente para o restabelecimento da normalidade no Estado, ou decretar a intervenção,
caso a primeira medida se mostrasse insuficiente. Insta frisar que o instituto foi largamente
utilizado, mostrando-se a suspensão do ato medida suficiente para o restabelecimento da
normalidade nos Estados, sem a necessidade da intervenção federal.
98
Esta ação é um marco em nosso controle de inconstitucionalidade, uma vez
tratar-se da primeira hipótese de controle judicial abstrato de um ato normativo em nosso
ordenamento jurídico.
Dando continuidade à evolução do controle de constitucionalidade em nosso
ordenamento jurídico, a Emenda Constitucional de n°. 16/65 conferiu maior amplitude ao
instituto em análise ao conferir ao Supremo Tribunal Federal competência para julgar
representação contra inconstitucionalidade de lei ou ato de natureza normativa, federal ou
estadual, encaminhada pelo Procurador-Geral da República (art. da Emenda
Constitucional 16/65). Ao conferir maior amplitude ao instituto, na verdade, a referida
Emenda Constitucional acabou criando uma ação para o controle da constitucionalidade
dos atos normativos federais e estaduais pela via direta e concentrada que não guarda
relação alguma com a questão a intervenção federal acima debatida. Assim teve início no
Brasil o controle genérico da constitucionalidade dos atos normativos.
98
BARBI, Celso Agrícola. Evolução do controle da constitucionalidade das leis no Brasil. RDP, n°. 4, pág.
40.
79
Mas foi com a promulgação da Constituição Federal de 1988 que realmente
observamos o estabelecimento de uma verdadeira sistemática de controle de
constitucionalidade pela via direta e de forma concentrada, segundo o modelo europeu
continental, criando-se, assim, uma verdadeira jurisdição constitucional cuja competência
restou concentrada no âmbito do Supremo Tribunal Federal. Por outro lado, o controle
incidental e difuso permaneceu intacto, podendo ser exercido por qualquer órgão do Poder
Judiciário para a solução de um caso concreto, de forma incidental.
Diversas foram as inovações trazidas pela Carta Política de 1988 no tocante
ao sistema de controle direto e concentrado. Inicialmente, devemos salientar a significativa
ampliação do rol dos legitimados para a propositura da ação direta de inconstitucionalidade
(vide art. 103 da CF). Ademais, ao lado da ação direta de inconstitucionalidade (art. 102, I,
alínea “a”) e da ação direta interventiva (art. 36, III), foram criadas a ação direta de
inconstitucionalidade por omissão (art. 103, § 2°) e a arguição de descumprimento de
preceito fundamental (art. 102, § 1°). Mais tarde, com a Emenda Constitucional de n°.
03/93, foi criada a ação direta de constitucionalidade, gerando severas críticas doutrinárias
quanto a sua constitucionalidade. Também o podemos nos esquecer que os atos
normativos estaduais e municipais podem ter a sua constitucionalidade, em face da
Constituição do Estado, judicialmente questionada perante os Tribunais de Justiça dos
Estados, mediante representação de inconstitucionalidade (art. 125, § 2°). Eis, em linhas
gerais, o quadro da jurisdição constitucional estabelecida pela Carta Política de 1988, com a
Emenda Constitucional de n. 03/93.
99
99
Tudo conforme BARROSO. Luís Roberto. O controle de constitucionalidade no direito brasileiro, pág. 64
e seguintes.
80
Mas a evolução do controle de constitucionalidade dos atos normativos no
Brasil não se encerrou com a Emenda Constitucional de n°. 03/93, pelo contrário, ela se
acentuou bastante com a Emenda Constitucional de n°. 45/04, denominada “reforma do
Poder judiciário”, que criou a Súmula Vinculante e a repercussão geral, e, também, pelo
processo de objetivação que passa o recurso extraordinário. Temas estes que serão,
posteriormente, por nós analisados em capítulos próprios.
Como visto, o controle de constitucionalidade incidental e difuso puro, ao
estilo norte-americano (common law), se mostrou insuficiente entre nós, principalmente em
função da ausência de força vinculante das nossas decisões judiciais, acarretando,
basicamente, dois efeitos colaterais: (i) uma sensação de insegurança jurídica ocasionada
em função da coexistência de decisões judiciais antagônicas em matéria constitucional; e
(ii) um volume excessivo do número de recursos extraordinários em trâmite pelo Supremo
Tribunal Federal tratando da mesma matéria.
Assim, ao longo do século XX, observamos a gradual introdução, em nosso
ordenamento jurídico, do controle direto e concentrado, tal como desenvolvido na Europa
Continental, culminando com a ampla jurisdição constitucional estabelecida pela atual
Constituição Federal, que nos parece pronta e acabada, merecendo apenas alguns ajustes.
100
100
Como aqueles prescritos pela Emenda Constitucional de n°. 45/04, principalmente ao conferir isonomia
aos legitimados para propor a ADIN e a ADC (art. 103, caput) e ao prescrever explicitamente que as decisões
definitivas de mérito, proferidas pelo Supremo Tribunal Federal, nas ações diretas de inconstitucionalidade e
nas ações declaratórias de constitucionalidade produzirão eficácia contra todos e efeito vinculante,
relativamente aos demais órgãos do Poder Judiciário e à administração pública direta e indireta, nas esferas
federal, estadual e municipal (art. 103, § 2°).
81
Neste sentido, observamos, desde 1988, a coexistência dos dois sistemas de controle de
constitucionalidade em nosso ordenamento jurídico.
Contudo, quinze anos após a consolidação do atual sistema híbrido, é
facilmente verificável que a mera introdução do controle pela via direta e concentrada não
foi capaz de solucionar os referidos efeitos colaterais ocasionados pela inicial adoção do
controle incidental e difuso. Com relação ao problema da segurança jurídica, a melhora foi
sensível, uma vez que as decisões proferidas em sede de controle direto e concentrado
possuem força vinculante e efeitos erga omnes. Contudo, a referida crise do Supremo
Tribunal Federal não foi sanada, pelo contrário, foi agravada, principalmente pela
ampliação da competência da Corte, vez que agora, além do elevado número de recursos
extraordinários que lhe são submetidos, também tem que lidar com os processos oriundos
da vida direta e concentrada.
neste século, após o estabelecimento do controle direto e concentrado, se
mostrou imprescindível entre nós a reformulação do controle incidental e difuso para dotá-
lo de maior eficácia extraprocessual, ou seja, de força vinculante. E neste sentido caminham
todas as reformas constitucionais, pelo menos no âmbito do Supremo Tribunal Federal.
não faz mais sentido o entendimento firmado tanto pela doutrina quanto pela
jurisprudência, após a promulgação da Carta de 1988, de que uma decisão do plenário do
Supremo Tribunal Federal em sede de recurso extraordinário produz efeitos inter pars e
quando o mesmo órgão se reúne em sede de controle direto e concentrado sua decisão
produza efeitos erga omnes e força vinculante.
82
Até a introdução do controle direto e concentrado, o sistema jurídico
brasileiro não admitia que uma decisão do Supremo Tribunal Federal, declarando a
inconstitucionalidade de um ato normativo, mesmo que proferida pelo Plenário, em sede de
recurso extraordinário, fosse capaz de gerar efeitos jurídicos em face de pessoas que não
eram parte no recurso. Para tanto, se fazia necessária a edição de uma Resolução pelo
Senado Federal. Contudo, após a consolidação do controle direto e concentrado, que
conferiu força vinculante a determinadas decisões do Supremo Tribunal Federal, os valores
se invertem e não nos aprece mais fazer sentido que uma decisão do Plenário de nossa
Corte Suprema não produza mais força vinculante, mesmo sendo proferida em sede de
recurso extraordinário.
Insistimos mais uma vez na questão, para sintetizar. O Brasil adotou o
controle incidental e difuso sem força vinculante e a experiência nos mostrou que este
controle não funciona sem tal predicado. Para solucionar o problema, adotamos outra
sistemática de controle de constitucionalidade, diametralmente oposta, mas com força
vinculante, que passou a coexistir com o antigo controle incidental e difuso. Contudo, tal
adoção não solucionou o problema, jamais poderia solucionar, pois o controle incidental e
difuso permaneceu sem força vinculante. Agora, no século XXI, as luzes se acenderam e
percebemos a necessidade de dotar o controle incidental e difuso de força vinculante, pelo
menos no âmbito do Supremo Tribunal Federal.
Este trabalho, em linhas gerais, visa exatamente ao estudo dos institutos
recentemente criados para conferir eficácia vinculante às decisões do Supremo Tribunal
Federal, em sede de controle incidental e difuso, notadamente a Súmula Vinculante e a
83
Repercussão geral (neste caso ainda não podemos falar em força vinculante) e aplicar tais
conhecimentos às questões tributárias, que serão fortemente influenciadas por esta nova
sistemática. Ademais, analisaremos, também, alguns aspectos relevantes do julgamento do
recurso especial, pelo Superior Tribunal de Justiça, em sede de recursos repetitivos.
3.4. Síntese conclusiva sobre as etapas da evolução do controle de
constitucionalidade dos atos normativos no Brasil
Analisada a evolução do controle de constitucionalidade no Brasil, podemos
identificar três etapas distintas:
i) a primeira etapa tem início com a promulgação da República e vai até
o fim da era Vargas, quando o controle de constitucionalidade, a rigor, era exercido de
forma incidental e difusa, abrangendo, assim, as Cartas Políticas de 1891, 1934 e 1937.
Tendo em vista que as decisões judiciais no Brasil não possuíam, como ainda não possuem
por completo, a força vinculante verificada nos países da common law, o referido controle
se mostrou insuficiente, merecendo reformas sistemáticas;
ii) a segunda fase tem início com a Constituição de 1946 e se prorroga
até a Emenda Constitucional de 03/93, sob a égide da atual Carta de 1988. Neste
período, para conferir maior eficácia ao controle judicial de constitucionalidade, uma vez
observada a insuficiência do sistema incidental e difuso, foi introduzido, no Brasil, o
sistema direto e concentrado, exercido pelo Supremo Tribunal Federal e desenvolvido na
84
Europa Continental, a partir das idéias de Hans Kelsen, e cujas decisões possuem força
vinculante e eficácia erga omnes;
iii) por último, uma vez que a introdução do sistema direto e concentrado
não solucionou a “crise do Supremo Tribunal Federal”, temos a terceira etapa, que se inicia
com a Emenda Constitucional n°. 45/04, denominada “reforma do Poder Judiciário”, que
institui a Súmula Vinculante, que possui força vinculante perante todo o Poder Judiciário e
cuja não observância pode ser atacada pela via da reclamação e a Repercussão Geral, que
apesar de não dotar o recurso extraordinário de força vinculante, lhe confere especiais
efeitos extraprocessuais, como será visto em capítulo próprio. Ademais, não podemos
deixar de citar, o processo de objetivação por que passa o recurso extraordinário, que
também é um elemento importante desta terceira etapa na evolução do controle de
constitucionalidade dos atos normativos no Brasil, uma vez que visa a conferir efeitos
vinculantes às decisões do Plenário em sede de recurso extraordinário.
3.5. Da teoria geral acerca da inconstitucionalidade dos atos normativos
Pontes de Miranda, um dos maiores juristas que o Brasil produziu,
elaborou uma teoria sobre o ato jurídico que restou bastante difundida entre nós. Logo,
consoante segundo a sua concepção, o mundo jurídico seria integrado por três planos: o da
existência, o da validade e o da eficácia. O professor Marcelo Neves, em breve comentário
sobre o tema, expõe o pensamento de Pontes de Miranda nos seguintes termos:
85
A “existência” de um ato ou norma jurídica, segundo
Pontes de Miranda, constitui-se por sua entrada no mundo
jurídico, podendo isto ocorrer regular ou irregularmente.
Quando o ato jurídico ou a norma jurídica entra
defeituosamente no mundo jurídico”, existência sem
validade. Portanto, distinguem-se os planos da “existência”
e da validade. Os atos e normas jurídicos são válidos quando
produzidos regularmente pelos agentes do sistema (órgão em
sentido estrito ou particulares). A invalidade resulta da
integração ao “mundo jurídico” de atos e normas
produzidos defeituosamente pelos agentes do sistema.
101
Assim, para esta corrente doutrinária, tem-se que a existência de uma norma
jurídica é pressuposto para a verificação de sua validade. Toda norma jurídica posta no
sistema existe, mas isso não implica a sua validade, pois esta qualidade apenas estará
presente nas normas criadas em conformidade com a norma superior que lhe confere
fundamento de validade, seja pelo aspecto formal ou material. Ademais, sob este prisma, é
possível, e frequente, que uma norma inválida mantenha relação de pertinencialidade com
um determinado sistema jurídico até que seja revogada ou expulsa por um ato normativo
emanado de um órgão do sistema, que declare a sua invalidade.
Sob tais premissas e levando em consideração diferentes graus de eficiência
que uma norma pode apresentar, foram construídos, pela doutrina, os conceitos de nulidade
e anulabilidade. Neste contexto, caso o grau de deficiência de uma norma seja elevado, a
mesma não poderá ser convalidada, dando origem a uma nulidade, que importa na eficácia
ex-tunc da decretação de sua invalidade. Por outro lado, na anulabilidade, o defeito da
101
NEVES, Marcelo. Teoria da inconstitucionalidade das leis, pág. 41.
86
norma não é tão grave, podendo a mesma ser convalidada, logo, a decretação de sua
invalidade produz eficácia ex-nunc.
102
Ainda segundo o modelo teórico em análise, temos a eficácia, que não se
confunde com a existência, muito menos com a validade. A eficácia tem sido associada à
produção de efeitos jurídicos, com três sentidos distintos: a eficácia técnica que pode ser
entendida como a possibilidade de atuação da norma, uma vez presentes os elementos
normativos essenciais à produção de efeitos jurídicos concretos; a semântica, que é a
possibilidade fática de atuação da norma; e a social verificável quando a norma é cumprida
por seus destinatários.
103
Se assim for, o pronunciamento de inconstitucionalidade de um ato
normativo possui natureza jurídica declaratória, pois apenas traz à tona um defeito jurídico
que a norma possuía desde a sua criação, qual seja, a sua incompatibilidade com o texto
constitucional que lhe confere fundamento de validade. Assim, a norma é nula de pleno
direito, pois seu defeito, a inconstitucionalidade, não é sanável, logo, todos os efeitos
jurídicos produzidos por tal norma devem ser desfeitos, ou seja, a eficácia da declaração de
inconstitucionalidade é ex-tunc.
Oposto é o modelo teórico preconizado por Hans Kelsen, no qual a validade
é vista como uma relação de pertinencialidade com um determinado ordenamento jurídico,
tornando validade e existência conceitos equivalentes. Neste modelo, a validade não é,
102
NEVES, Marcelo. Teoria da inconstitucionalidade das leis, pág. 45.
103
Tudo como bem resumido por PIMENTA, Paulo Roberto Lyrio. Efeitos da decisão de
inconstitucionalidade em direito tributário, pág. 25.
87
portanto, atributo que qualifica a norma jurídica, tendo status de relação.
104
Ademais,
insta frisar que, sob a ótica de Kelsen, toda norma jurídica introduzida no sistema do direito
positivo, mediante órgão competente e procedimento previsto em lei, é válida. Na
concepção Kelseniana, o preenchimento dos requisitos formais acima expostos é suficiente
para validar a norma, que permanecerá no sistema até que seja expulsa por uma outra
norma. Neste sentido, verifica-se que Kelsen não confere relevância, para efeito da
determinação da validade, à compatibilidade material da regra jurídica inserida com as
demais regras superiores do sistema normativo.
105
Como não poderia deixar de ser, Hans Kelsen, ao promover a introdução do
controle de constitucionalidade na Europa Continental, através da Constituição da Áustria
(1920), o fez de acordo com o modelo teórico por ele preconizado. Neste sentido, como
Kelsen entendia que o preenchimento dos requisitos formais era suficiente para a validade
da norma jurídica, o controle de constitucionalidade não era visto como uma atividade
judicial, mas sim, como uma atividade legislativa negativa, que, por isso mesmo, tornou-se
de competência exclusiva de um órgão específico. Temos, então, a criação do sistema
concentrado, com a entrega do controle de constitucionalidade à Corte Constitucional.
Como visto, no modelo teórico de Kelsen, existência equivale à validade.
Logo, a Corte Constitucional, ao se pronunciar pela inconstitucionalidade de uma
determinada norma, a expulsa do sistema. Assim, a decisão da corte ganha contornos
constitutivos, uma vez que, até a sua pronúncia, a norma jurídica era válida. Ademais, sob
104
CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de Direito Tributário, pág. 80.
105
Como bem exposto por CERQUEIRA, Marcelo Fortes de. Repetição do indébito tributário, pág. 118.
88
tais premissas, a norma tida como inconstitucional não é nula, mas sim meramente
anulável. Consequentemente, a decisão de inconstitucionalidade, de natureza constitutiva
negativa, é apta apenas para produzir efeitos ex nunc.
106
Trata-se, em verdade, de dois modelos teóricos distintos, duas diferentes
formas de depreender o fenômeno jurídico, que acabaram por produzir dois distintos
sistemas de controle de constitucionalidade, cada qual coerente com as premissas traçadas
por seus modelos teóricos. Porém, de se ressaltar que a função destes modelos de controle
de constitucionalidade é sempre a mesma, qual seja, proteger a Constituição Federal de
toda e qualquer violação as suas normas por intermédios de atos normativos
infraconstitucionais. Aliás, sem este controle, de nada adiantaria a mera afirmação de
supremacia do texto constitucional diante dos demais atos normativos que compõem o
sistema do direito positivo.
Diante deste contexto, interessantes são as conclusões apontadas por Tácio
Lacerda Gama acerca dos dois modelos teóricos acima apontados. Partindo da
plurivocidade do termo “validade das normas jurídicas”, que acabamos de ver, afirma o
Doutor em Direito Tributário pela PUC/SP que cada um desses sentidos corresponde a um
ponto de vista possível, que se referem a modos distintos de compreender o que seja o
direito. Assim, não existe contradição entre as distintas concepções de validade acima
apresentadas, pois a contradição pressupõe que as duas assertivas não possam ser
simultaneamente verdadeiras e, no caso:
106
Com exposto por BARROSO. Luís Roberto. O controle de constitucionalidade no direito brasileiro, pág.
19.
89
Os dois modos de explicar a validade são,
simultaneamente, possíveis, pois refletem pontos de vista
distintos sobre o sistema jurídico. Um é o ponto de vista de
quem para descrever e o outro, de quem prescreve
normas, disciplinando condutas.
107
Ademais, o autor supracitado conclui que: quem equipara existência e
validade decide descrever o direito sob a perspectiva de quem decide, como se fosse um
órgão julgador.
108
Por outro lado, quem entende que a classe das normas jurídicas
(existentes) pode ser sub-classificada em normas jurídicas válidas e inválidas, o faz sob o
ponto de vista dos observadores do direito.
Por último, concluindo que os conflitos existentes entre as formas de
compreender a validade da norma, são, em verdade, conflitos de pontos de vista, o autor em
apreço propõe um critério funcional para qualificar uma norma como sendo jurídica (ou
não): a possibilidade de ser aplicada por ato do Poder Judiciário. Esse atributo, de ser
objeto de um processo judicial, é o critério por excelência para saber se uma norma está
ou não no sistema jurídico.
109
Ou seja, estamos diante de um critério pragmático, a efetividade
(possibilidade de aplicação), mas que não se refere à validade da norma que, como visto, é
de competência exclusiva dos órgãos do sistema com tal credenciamento. Assim, se a
107
GAMA, Tácio Lacerda. Competência Tributária. Fundamentos para uma teoria da nulidade. Tese de
Doutorado em Direito Tributário defendida na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo PUC/SP, em
2008, pág. 332.
108
Idem, pág. 333.
109
Ibidem, pág. 336.
90
norma não pode ser levada ao conhecimento do Poder Judiciário ela não existe e a validade
para ela é irrelevante. Por outro lado, se a norma existe, são os próprios órgãos do sistema
que irão determinar a sua validade (ou não).
Segundo a proposta formulada no primeiro capítulo deste estudo, podemos
considerar como sistema jurídico o conjunto de comunicações estabelecidas tanto pela
linguagem prescritiva do direito positivo, quanto pela linguagem descritiva da Dogmática
jurídica. A comunidade jurídica é formada pelo conjunto de pessoas que produzem os dois
diferentes tipos de linguagem acima descritos. Neste sentido é que corroboramos com o
exposto pelo professor Tácio Lacerda Gama, pois a validade podem entendida tanto do
ponto de vista dos participantes quanto dos expectadores. Trata-se de diferentes visões
sobre o mesmo fenômeno. Neste contexto, as duas formas de entender a natureza jurídica
das decisões judiciais sobre a inconstitucionalidade das normas, também são possíveis.
De nossa parte, partimos da premissa metodológica segundo a qual o
ordenamento jurídico é composto por um corpo de linguagem prescritiva produzido pelos
órgãos credenciados pelo próprio ordenamento jurídico. Porém, existe outro corpo de
linguagem, descritiva, construtiva de sentido, persuasiva, que se debruça sobre os
enunciados prescritivos lhes conferindo sentido, promovendo a sua interpretação e reflexão
abstrata, trata-se da Dogmática Jurídica. É interessante notar que, como visto no primeiro
capítulo, se estabelece uma constante comunicação entre os agentes dos dois corpos de
linguagem acima descritos que chamamos de sistema jurídico.
91
Quando a dogmática Jurídica, ao analisar o direito positivo, constrói uma
teoria que acaba convencendo a grande maioria da comunidade jurídica,
110
esta teoria
ganha status de verdadeira, na medida em que suas proposições passam a ser aceitas por tal
comunidade sem maiores reflexões. Na visão de Becker, são aqueles fundamentos que
costumam ser aceitos como demasiados “óbvios” para merecerem a análise crítica.
111
Foi
exatamente o que aconteceu com a teoria declaratória das decisões judiciais sobre a
inconstitucionalidade dos atos normativos.
112
Tal situação permanece inalterada até que a
Ciência do Direito se volte para os fundamentos considerados “óbvios”, os questione
seriamente, quebre os paradigmas anteriormente fixados, estabeleça novas premissas e
construa uma nova teoria, que dará origem a uma nova maneira de ver as coisas.
Neste contexto, partimos da premissa de que a sociedade é construída
linguisticamente, na medida em que a linguagem é a única forma de expressão do
conhecimento humano. Assim, como não poderia deixar de ser, a forma de manifestação do
direito é a linguagem. Tanto a linguagem prescritiva do direito positivo, quanto a
linguagem descritiva da Dogmática Jurídica, possuem como função precípua disciplinar as
relações de intersubjetividade no seio de uma sociedade, levando em consideração os
valores considerados como pertinentes pela sociedade.
Nesta medida, quando uma série de enunciados prescritivos são postos no
ordenamento jurídico, se tornam objeto de uma série de interpretações que visam deles
110
Aqui entendido como o conjunto de pessoas envolvidas pelo sistema jurídico, tais como: os magistrados,
os advogados, os doutrinadores, os professores de direito e etc.
111
BECKER, Alfredo Augusto. Teoria Geral do Direito Tributário, pág. 12.
112
O mesmo se deu com a teoria declaratória do crédito tributário.
92
extrair o sentido, o conteúdo semântico, para a construção de uma norma jurídica a partir de
tais textos. Ademais, neste processo interpretativo, também será questionado se a novel
norma jurídica é compatível ou não com a Constituição Federal. Assim, quando uma nova
lei é introduzida no sistema, tanto os seus enunciados-enunciados, quanto a sua enunciação-
enunciada, são analisados para verificar sua compatibilidade com a Constituição Federal.
Caso alguém vislumbre a presença de uma determinada inconstitucionalidade, caso seja
pessoa competente para tanto, lhe é lícito acionar o Poder Judiciário para se manifestar
sobre a possível inconstitucionalidade.
Assim, seja em controle incidental e difuso, ou direito e concentrado, fato é
que o órgão do Poder Judiciário acionado deverá se manifestar sobre a constitucionalidade
(ou não) do novel diploma legal.
113
Para tanto, o órgão judicial deverá (i) construir a norma
jurídica constitucional, a partir da interpretação dos enunciados prescritivos que compõem a
Constituição Federal;
114
(ii) construir a norma jurídica que passará pelo crivo da
constitucionalidade, a partir da interpretação do texto legal chamado de inconstitucional
pelo autor da ação;
115
(iii) decidir se ou não compatibilidade entre a norma jurídica
constitucional, construída pelo órgão do Poder Judiciário em (i), e a norma jurídica
infraconstitucional, construída em (ii).
Claro está que este modelo teórico pode sofrer algumas variações em função
das múltiplas situações fáticas e de direito em que o Poder Judiciário pode ser chamado
113
É interessante notar que, a rigor, o Poder Judiciário deve ser provocado para se pronunciar sobre a
inconstitucionalidade do ato normativo questionado. Se assim não for, o mesmo continuará no sistema
produzindo os efeitos jurídicos que lhe são peculiares.
114
Neste mister, é comum que o órgão invoque os enunciados descritivos da Ciência do Direito.
115
Em caso de inconstitucionalidade sem redução de texto, o sentido da norma jurídica que deve ser declarada
inconstitucional é dado pelo Autor da ação.
93
para decidir sobre a constitucionalidade (ou não) de um ato normativo. Contudo, a rigor, a
sistemática é sempre a mesma. Sempre que se afirma ser um ato normativo
inconstitucional, se afirma a partir da interpretação de um dispositivo constitucional e a
partir da interpretação do próprio ato normativo.
Existem situações em que a inconstitucionalidade é flagrante, como no caso
dos vícios formais, porém, mesmo assim, nestas situações, o que se tem é um expressivo
aumento da probabilidade de que o órgão do Poder Judiciário, encarregado de julgar o
processo, irá se pronunciar positivamente sobre à inconstitucionalidade formal
(enunciaçãoenunciada) da lei atacada. Não há certeza quanto à inconstitucionalidade,
antes do pronunciamento judicial que a afirme. Mesmo que toda a doutrina clame pela
inconstitucionalidade do ato, devemos aguardar o pronunciamento do Poder Judiciário, que
é a linguagem credenciada pelo sistema para enunciar a inconstitucionalidade.
Esta questão será melhor compreendida quando analisada à luz do modelo
proposto pelo professor Paulo de Barros Carvalho, no qual, devemos fazer uma distinção
entre o tempo do fato, que é o momento em que o fato jurídico (da inconstitucionalidade no
caso) é constituído e o momento no fato, que é a data atribuída à realização do evento
relatado no fato jurídico.
116
É interessante notar que a doutrina tradicional irá qualificar
como declaratória toda decisão judicial que se reporta a um evento ocorrido no passado e
de constitutiva quando não houver descrição de evento pretérito. Assim se no caso da
sentença que extingue a execução sob o fundamento de que o crédito tributário, plasmado
na certidão de dívida ativa que instrui a inicial, está prescrito, pois o mesmo já o era desde o
116
CARVALHO, Paulo de Barros. Direito Tributário: fundamentos jurídicos da incidência, pág. 107.
94
dia em que ocorreu o término do curso de tal prazo, tendo o Poder Judiciário apenas
reconhecido a ocorrência da prescrição.
Neste sentido, como os pronunciamentos de inconstitucionalidade, a rigor,
se reportam a eventos pretéritos, na medida em que verificam a compatibilidade entre um
determinado texto legal e a Constituição, ambos introduzidos no sistema em data anterior
ao julgamento, a doutrina tradicional acabou por entender que tais decisões possuem
natureza jurídica declaratória. Porém, partindo da premissa de que o direito positivo é
constituído por linguagem prescritiva competente, todos os pronunciamentos judiciais
passam a ser considerados constitutivos, pois sem a sua enunciação não podem afirmar a
sua existência jurídica.
Neste contexto, do ponto de vista do sistema do direito positivo, só podemos
afirmar que um ato normativo é inconstitucional após a sua proclamação pelo Poder
Judiciário. E mesmo assim, pode ocorrer de um órgão do Poder judiciário entender pela
inconstitucionalidade do ato normativo e outro entender pela constitucionalidade, criando
decisões antagônicas no interior do sistema do direito positivo. Esta observação não passou
despercebida do professor Paulo de Barros Carvalho, o que lhe fez afirmar que a declaração
judicial de inconstitucionalidade pela via incidental e difusa não retira a validade, mas sim
a eficácia da norma, pois tal declaração não impede a aplicação da norma considerada
inconstitucional em outras oportunidades.
117
117
CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de Direito Tributário, pág. 80.
95
Porém, como bem percebido por Tácio Lacerda Gama, do ponto de vista da
Dogmática Jurídica, é perfeitamente factível a assertiva de que um determinado dispositivo
legal é inconstitucional, desde o dia da sua publicação no Diário Oficial, mas nem por isso
o dispositivo deixa de existir e ter validade para o sistema do direito positivo, pois os
enunciados descritivos da doutrina não possuem força prescritiva.
Por último, cumpre salientar que o fenômeno da inconstitucionalidade dos
atos normativos também pode ser analisado do ponto de vista normativo. Assim, a partir do
princípio da Supremacia da Constituição, podemos extrair duas normas jurídicas: (i) a
primeira prescrevendo que todo ato normativo contrário, conflitante, com as normas
constitucionais não pode permanecer no sistema, assim, não pode mais ser aplicado; (ii) a
segunda norma prescreve que, diante da aplicação da primeira norma, todas as
consequências jurídicas produzidas pela norma tida como inconstitucional devem ser
desfeitos.
3.6. Dos efeitos temporais das decisões de inconstitucionalidade (ou não) dos
atos normativos
No tópico anterior, demonstramos a existência de duas distintas teorias a
explicar o fenômeno da inconstitucionalidade das leis, que conferem distintas naturezas
jurídicas a uma decisão judicial que pronuncia a inconstitucionalidade de um ato
normativo.
96
A primeira delas, que ganhou ampla aceitação no sistema jurídico brasileiro,
situa a inconstitucionalidade no campo da nulidade. Assim, a decisão judicial que prescreve
a inconstitucionalidade de um ato normativo possui natureza jurídica declaratória, pois se
limita a reconhecer a existência de um vício preexistente no ato tido como inconstitucional.
Consequentemente, tal ato normativo não pode produzir efeitos no ordenamento jurídico,
logo, a referida decisão judicial deve produzir eficácia retroativa no tempo, ou seja, ex-
tunc.
118
Já para aqueles que preconizam a natureza constitutiva para as decisões
judiciais que prescrevem a inconstitucionalidade dos atos normativos, tal qual uma
atividade legislativa negativa, necessariamente devem admitir que tais decisões judiciais
produzam efeitos para o futuro, ex-nunc, pois os referidos atos normativos foram
invalidados pelas decisões judiciais constitutivas.
119
Como visto, a primeira teoria retrata o ponto de vista dos participantes do
direito positivo, enquanto a segunda diz respeito à visão dos espectadores.
De nossa parte, partimos do pressuposto de que o ordenamento jurídico é
construído pela linguagem prescritiva do direito positivo, assim, nesta medida, devemos
diferençar o que está no plano da linguagem jurídica, daquilo que se encontra no plano da
linguagem social. Enquanto não existir um enunciado prescritivo que proclame a
inconstitucionalidade de outro enunciado prescritivo, não que se falar em
118
BARROSO, Luís Roberto. O controle de constitucionalidade no direito brasileiro, pág. 116.
119
Idem, pág. 15.
97
inconstitucionalidade deste último. Logo, todos os enunciados prescritivos que compõem o
direito positivo são presumivelmente válidos, na medida em que foram produzidos por
sujeito competente, mediante procedimento prescrito em lei.
Assim, o Poder Judiciário poderá aplicar as normas jurídicas sobre a
inconstitucionalidade de um ato normativo determinando que o mesmo não seja mais
aplicado e que todos os efeitos jurídicos produzidos por tal ato sejam desfeitos. Neste
sentido, resta saber se a referida decisão do Poder Judiciário possui eficácia extraprocessual
ou não.
Como visto, a teoria declaratória da inconstitucionalidade dos atos
normativos ganhou ampla aceitação de nossa comunidade jurídica, logo, tem-se que os
efeitos produzidos pela declaração de inconstitucionalidade possui efeito “ex-tunc”, ou seja,
são retroativos, justamente para alcançar todas as consequências jurídicas produzidas pelo
ato normativo inconstitucional.
120
Observando o sistema jurídico de diversos países do ocidente, é cediço que a
teoria declaratória da inconstitucionalidade dos atos normativos obteve uma aceitação
muito mais ampla do que a teoria constitutivista, consequentemente, a eficácia retroativa de
tais decisões passou a ser considerada como regra. Contudo, nos últimos anos, temos
observado que diversos ordenamentos jurídicos, em casos excepcionais (principalmente
para a preservação de outros preceitos constitucionais de extrema relevância), possibilitam
ao Poder Judiciário a mitigação dos efeitos retroativos nas decisões de
120
Como nos da notícia: MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional, pág. 624.
98
inconstitucionalidades, como nos notícia o Presidente do Supremo Tribunal Federal,
Ministro Gilmar Mendes, em seu famoso voto-vista proferido na ADIN de n. 2.240-BA.
Seguindo esta linha de raciocínio, o art. 27 da Lei 9.868/99, que disciplina
processualmente o exercício do controle de constitucionalidade pela via direta e
concentrada perante o Supremo Tribunal Federal, prescreve a possibilidade daquilo que
ficou conhecido como “modulação dos efeitos” das decisões sobre a inconstitucionalidade
dos atos normativos, nos seguintes termos:
Art. 27. Ao declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato
normativo, e tendo em vista razões de segurança jurídica ou
de excepcional interesse social, poderá o Supremo Tribunal
Federal, por maioria de dois terços de seus membros,
restringir os efeitos daquela declaração ou decidir que ela só
tenha eficácia a partir de seu trânsito em julgado ou de outro
momento que venha a ser fixado.
Ou seja, o referido dispositivo legal impõe duas condições para a modulação
dos efeitos das decisões de inconstitucionalidade: (i) a primeira é de ordem formal, ao
exigir o voto de dois terços dos membros do Supremo Tribunal Federal; (ii) a segunda é
de ordem material, pois impõe a necessidade de preservação da segurança jurídica ou de
excepcional interesse social.
Sobre as condições de ordem material algumas palavras são necessárias.
Segurança jurídica e excepcional interesse social são conceitos jurídicos amplos e
indeterminados que, aliados ao fato de que, a rigor, as decisões proferidas pelo Supremo
Tribunal Federal não podem ser atacadas por nenhum outro órgão do Poder judiciário, estas
99
condições conferem uma boa dose de discricionariedade a Corte Suprema para mitigar os
efeitos ex-tunc dos pronunciamentos sobre a inconstitucionalidade dos atos normativos.
Assim, ao nosso sentir, a condição de ordem formal (2/3 dos votos do tribunal) veio em boa
hora, pois exige que os Ministros estejam mais coesos para a modulação dos efeitos.
Ademais, é importante não perdermos de vista que o dispositivo legal em
comento, além de permitir a restrição da eficácia ex-tunc das decisões de
inconstitucionalidade, também permite que tais decisões só produzam efeitos a partir de um
determinado momento futuro, fixado pelo Supremo Tribunal Federal.
A lei 11.417/06, ao disciplinar a edição das súmulas vinculantes, em seu art.
4°, também confere ao Supremo Tribunal Federal a faculdade de modular os efeitos dos
verbetes vinculantes sob as mesmas condições acima apontadas e prescritas pela Lei
9.868/99, medida esta, aliás, que merece elogios, na medida em que confere coerência ao
ordenamento jurídico, pois ambos os institutos em questão possuem força vinculante e
efeitos erga omnes.
Outrossim, a modulação dos efeitos da decisão de inconstitucionalidade
também é utilizada pelo Supremo Tribunal Federal, analogicamente, no exercício do
controle de inconstitucionalidade pela via incidental e difusa, em sede de recurso
extraordinário.
121
Sobre a questão, aliás, sempre presente é o voto vencido do Ministro
Marco Aurélio, que não aceita a modulação dos efeitos em processo subjetivo.
122
Com o
121
Como nos dá notícia NERY JUNIOR, Nelson. Efeito ex-nunc e as decisões do STJ. 2008, pág. 100.
122
DJE n°. 232, divulgado em 04/12/08 e publicado em 05/12/08, pág. 929.
100
devido respeito, não podemos concordar com o eminente Ministro justamente pelo fato de
não mais aceitarmos a premissa de que o recurso extraordinário seja um mero processo
subjetivo. Mesmo tratando-se de exame incidental sob a luz de um caso concreto, com a
repercussão geral, tais processos passaram a possuir um escopo muito mais amplo do que
simplesmente por fim ao litigo das partes no processo.
De resto, note-se que nem sempre é possível conferir a uma decisão de
inconstitucionalidade eficácia retroativa plena, na medida em que alguns efeitos jurídicos
produzidos pelas normas tidas como inconstitucionais não podem ser alterados pela decisão
de inconstitucionalidade, mesmo que ela parta do Supremo Tribunal Federal. Como é o
caso das decisões judiciais protegidas pelo manto da coisa julgada material, onde boa parte
da doutrina, clamando por segurança jurídica, defende a sua prevalência diante da
declaração de inconstitucionalidade pela via direta e concentrada.
123
Mesmo assim, a Lei
11.232/05, ao criar o art. 475-L, inciso II e § e conferir nova redação ao art. 741, inciso
II e parágrafo único, ambos do Código de Processo Civil, passaram a considerar inexigível
o título judicial baseado em lei ou ato normativo posteriormente declarado inconstitucional
pelo Supremo Tribunal Federal, ou fundado em aplicação ou interpretação tida pela Corte
como incompatível com a Constituição, permitindo, no caso, a desconstituição da coisa
julgada. Ademais, em alguns casos específicos, tem-se considerado a relativização da coisa
julgada inconstitucional, mediante a ponderação do princípio da segurança jurídica com
outros princípios constitucionais.
124
123
Consoante entendimento de MARINONI, Luiz Guilherme. Coisa julgada inconstitucional, pág. 84.
124
BARROSO, Luís Roberto. O controle de constitucionalidade no Direito Brasileiro, pág. 184 e seguintes.
101
Por outro lado, o professor Eurico Marcos Diniz de Santi afirma que as
decisões de inconstitucionalidade proferidas pelo Supremo Tribunal Federal, em sede de
controle concentrado e direto, não podem alcançar os fatos jurídicos protegidos pela
decadência e prescrição, que são temas preciosos para o Direito Tributário. Assim, o autor
supracitado, não acolhe o entendimento firmado pela Primeira Seção do Superior Tribunal
de Justiça no sentido de que a procedência de uma ação declaratória de
inconstitucionalidade tenha o condão de reabrir o prazo prescricional do tributo tido por
inconstitucional. Isto, pois, ao sentir do autor, como os processos objetivos da via direita e
concentrada são imprescritíveis, caso fosse cito as suas sentenças promoverem a
reabertura do prazo prescricional tais prazos também o seriam.
125
Como será amplamente demonstrado ao longo deste trabalho, observamos
que, atualmente, a tendência do direito processual brasileiro, por inúmeras razões, é
aumentar a eficácia extraprocessual das decisões judiciais, que, principalmente no âmbito
dos tribunais superiores e do Supremo Tribunal Federal, tendem a possuir eficácia
vinculante. Nesta medida, a modulação dos efeitos das decisões judiciais proferidas pelos
nossos tribunais superiores, seja em matéria constitucional ou não, ganhou a atenção de
renomados juristas brasileiros que, ao vislumbrarem nas decisões judiciais efeitos
extraprocessuais cada vez maiores, passaram a se preocupar com a modulação dos efeitos
no tempo de tais decisões quando da mudança de postura de um determinado tribunal sobre
uma matéria específica. Assim, tem-se sustentado que os tribunais, ao mudarem a sua
orientação jurisprudencial, devem, necessariamente, conferir a tais decisões efeitos ex-
125
SANTI, Eurico Marcos Diniz de. Decadência e prescrição no Direito Tributário, pág. 270 e seguintes.
102
nunc, principalmente com supedâneo no princípio da segurança jurídica, como assim se
manifesta o professor Roque Carrazza:
126
Para que não reste comprometido o princípio
da segurança jurídica, com seus corolários de proteção à
confiança e à boa-fé das pessoas, a alteração
jurisprudencial, após longo período de prevalecimento, deve
produzir apenas efeitos prospectivos e, em alguns casos, até
diferidos, permitindo a sobrevivência da interpretação a
final invalidada.
Assim, resta demonstrado, mesmo que rapidamente, que a modulação dos
efeitos temporais das decisões dos tribunais superiores é uma medida que se impõe em caso
de alteração de sua orientação jurisprudência, na medida em que tais decisões estão
deixando de ser meras orientações e estão ganhando, cada vez mais, uma maior eficácia
extraprocessual.
126
CARRAZZA, Roque Antonio. Efeito Ex-nunc e as decisões do STJ, 2008, pág.70.
103
CAPÍTULO 4. DA EFICÁCIA QUE AS DECISÕES JUDICIAIS POSSUEM
PARA ATUAREM COMO PRECEDENTES NO SISTEMA JURÍDICO
BRASILEIRO
4.1. Introdução
Neste capítulo iremos analisar de que forma as decisões judiciais podem ser
utilizadas, em nosso sistema jurídico, como instrumento de solução de casos análogos.
Antes de qualquer coisa, gostaríamos de esclarecer o emprego dos vocábulos
decisão judicial e precedente. Uma decisão judicial é um ato de entender, produzido por um
órgão do Poder Judiciário, no bojo de um processo judicial, que introduz uma nova norma
jurídica no sistema de direito positivo. A rigor, a eficácia jurídica produzida por tais normas
se restringe às partes envolvidas no processo.
127
Assim, dizemos que os processos judiciais no Brasil são subjetivos, uma vez
que as decisões judiciais neles produzidas geram efeitos tão somente com relação às partes
nele envolvidas. Ademais, como tais decisões são produzidas a partir da constituição de um
fato, dizemos tratar-se de uma norma jurídica concreta e individual. Contudo, outro órgão
do Poder judiciário poderá tomar tal norma jurídica e aplicá-la para solução de um caso
análogo ou idêntico. Neste momento a referida decisão judicial passa a ser compreendida
como um precedente, pois foi utilizada como parâmetro para a solução de outro caso.
127
Exceto, é claro, o processo objetivo, típico do controle concentrado, direto e abstrato de
constitucionalidade das normas, e algumas ações que abrangem direitos difusos e coletivos.
104
O presente capítulo tem como escopo o estudo da eficácia que as decisões
judiciais possuem no sistema jurídico brasileiro para servirem de parâmetro para a solução
de casos análogos ou idênticos, ou seja, para servirem como precedente. Logo, não iremos
nos preocupar com os efeitos que as decisões judiciais produzem dentro dos processos em
que são proferidas (força intraprocessual), mas sim na eficácia que possuem para a solução
de outros processos (força extraprocessual).
demonstramos que o sistema jurídico brasileiro é tipicamente da civil law.
Assim, a rigor, os litígios levados ao conhecimento do Poder Judiciário devem ser
solucionados a partir dos textos legais. Contudo, como visto no primeiro capítulo, a
assertiva de que o Magistrado deve decidir de acordo com a lei deve ser vista com cautela,
uma vez que os textos legais, como qualquer texto, são aptos à produção de interpretações
distintas e, consequentemente, com fundamento no mesmo texto de direito positivo, dois
Juízes podem produzir normas jurídicas individuais e concretas distintas, pois produziram
atos de entender distintos a partir do mesmo ato de comunicar, legalmente enunciado.
Também discorremos sobre a influência que a doutrina possui para
interpretação dos textos legais. No mais das vezes, as decisões judiciais são fundamentadas
nos atos de entender construídos pela doutrina. Por outro lado, neste capítulo, estudaremos
a eficácia impositiva extraprocessual que as decisões judiciais possuem em nosso
ordenamento jurídico.
105
4.2. Da classificação elaborada por Patrícia Perrone e a nossa proposta de
classificatória
Em excelente trabalho acadêmico, Patrícia Perrone Campos Mello, levando
em consideração a eficácia das decisões judiciais no sistema jurídico brasileiro, as
classificou em três categorias principais: (i) precedentes com eficácia normativa, nos quais
a norma jurídica construída em uma decisão judicial, que põe fim ao processo,
obrigatoriamente deverá ser aplicada aos casos análogos. Trata-se daquele conhecido
processo de indução, tão comum na common law, pois, a partir de uma norma individual e
concreta saca-se uma norma geral e abstrata. Em suma, trata-se da força vinculante de uma
decisão judicial, ou seja, quer dizer que estamos diante de um precedente que deve ser
observado pelos demais órgãos do Poder Judiciário, tal como uma lei; (ii) precedentes com
eficácia impositiva intermediária, são aqueles julgados que, apesar de não possuírem força
vinculante sua não aplicação é profundamente criticada e provavelmente se sujeitará à
revisão. Ademais, tais decisões judiciais podem produzir efeitos impositivos mais brandos,
para além do processo. É o caso da existência de jurisprudência dominante sobre uma
determinada matéria, nos países da civil law; e, por último, temos (iii) os precedentes com
eficácia meramente persuasiva, nos quais os julgados podem ser utilizados somente para
influenciar a formação da convicção do magistrado, que irá julgar um caso semelhante.
128
A classificação acima exposta, elaborada pela insigne Mestre em Direito
Público pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), é bastante útil, e podemos
afirmar que norteou nossas investigações sobre o tema. Contudo, a ela faremos alguns
128
Tudo conforme MELLO, Patrícia Perrone Campos. Precedentes, pág. 61, passim.
106
ajustes de ordem teórica para readequá-la à teoria das classes, na forma como vem sendo
empregada pelo constructivismo lógico semântico.
O ato de classificar é uma operação gica. É, portanto, criação do intelecto
humano, que se expressa mediante linguagem. Trata-se do agrupamento de determinados
elementos, conforme suas semelhanças. Assim, para criarmos uma classe devemos eleger
um critério, uma característica, que deve estar presente em todos os elementos que
pretendem pertencer àquela classe. Trata-se de uma operação infinita, como bem
demonstrada por Fabiana Del Padre Tomé:
129
Essa divisão dos objetos em classes resulta no
aparecimento de gêneros, espécies e sbespécies. Os gêneros
consistem em grupos maiores que contém outros menores,
denominados espécies. Estas, por sua vez, abrangem grupos
ainda menos extensos, que são as subespécies. E, como toda
classe é suscetível de ser dividida em novas classes, as
subespécies podem abranger grupos menores, os quais
também são passíveis de serem divididos, numa atividade
interminável.
Quando criamos uma classe, mediante a adoção de um critério, podemos
dividir esta classe em duas, basta, para tanto, adotarmos outro critério e assim por diante.
Ademais, é muito importante não confundirmos a classe com os elementos
que a ela pertencem. O conceito de classe (coleção) difere do conceito de coletividade
(denotação). A denotação não é a classe, mas sim a coletividade dos membros.
130
A classe
dos satélites naturais da Terra, ao que tudo indica, é formada de um elemento, a Lua.
129
Contribuições para a seguridade social, á luz da Constituição Federal, pág. 61.
130
MOUSSALLEM, Tárek Moysés. Revogação em Matéria Tributária, pág. 41.
107
Contudo, não que se confundir a referida classe com o seu elemento. Trata-se, em suma
de uma classe unitária.
Neste contexto científico, iremos classificar as decisões judiciais quanto a
sua eficácia jurídica para impor a solução de casos análogos. O que se investiga aqui não
são os efeitos que as decisões judiciais produzem no processo em que são proferidas, mas
sim, àqueles efeitos produzidos em processos que possuem situação fática análoga.
Assim, tomando as decisões judiciais como o universo do nosso discurso, ou
seja, como nossa classe universal,
131
vamos dividi-la em duas classes distintas, mediante a
utilização de um critério, qual seja, a vinculação. Logo, teremos a classe das decisões
judiciais que, necessariamente, devem ser observadas pelos demais órgãos do Poder
Judiciário e da administração pública e as decisões que não produzem tal obrigação.
Tais decisões, como visto, foram definidas por Patrícia Perrone como
“precedentes de eficácia normativa”.
132
Neste trabalho não adotaremos tal nomenclatura
tendo em vista o conceito de norma jurídica que adotamos no primeiro capítulo.
Entendemos que todas as decisões judiciais introduzem normas jurídicas no sistema de
direito positivo. Logo, chamaremos esta classe de decisão judicial vinculante, ou
precedente vinculante. Trata-se de textos de direito positivo que produzem efeitos
semelhantes ao de um texto legal, uma vez que sua observância é obrigatória em todos os
casos idênticos. Sobre a força vinculante falaremos mais adiante.
131
MOUSSALLEM, Tárek Moysés. Revogação em Matéria Tributária, pág. 45
132
Não podemos adotar tal conceito tendo em vista nossa definição de norma jurídica.
108
Posto isto, iremos agora nos voltar à classe dos precedentes que não
possuem força vinculante e ali realizar nova operação lógica classificadora, mediante
adoção de critério jurídico distinto. Assim, indaga-se: tais precedentes, apesar de não
possuírem força vinculante, são capazes de produzir algum efeito, alguma consequência,
jurídica para a solução de outros processos? Insta frisar que não estamos nos referindo à
propriedade que toda decisão jurídica possui de ser invocada persuasivamente para a
solução de casos análogos.
Se a resposta for positiva, então estaremos diante de uma subclasse de
decisões judiciais não vinculantes que foi denominada por Patrícia Perrone de “precedentes
com eficácia impositiva intermediaria”, que sepor nós denominada de precedentes não
vinculantes, mas capazes de produzir outros efeitos jurídicos para a solução de casos. E
por último teremos a classe das decisões judiciais não vinculantes e que não produzem
outros efeitos jurídicos para a solução de casos análogos, a não ser a persuasiva, comum a
todas as decisões jurídicas, como dito por Patrícia Perrone “precedentes de eficácia
meramente persuasiva”.
4.3. Alguns precedentes vinculantes
Sendo o Brasil um País cuja estrutura é característica da civil law, a rigor, as
decisões judiciais não possuem eficácia vinculante, pois as normas gerais e abstratas são
construídas a partir da interpretação dos textos legais e não das decisões judiciais. Ademais,
entre nós, a regra geral é a do livre convencimento do juiz.
109
Como bem demonstrado por Robson Maia Lins, o termo força vinculante é
tratado pela doutrina através de um critério pragmático, ou seja, as decisões vinculantes
possuem força de lei. Seja como for, o insigne Doutor em Direito Tributário pela PUC/SP,
descortina três diferentes acepções para o termo, levando em consideração a dimensão
sintática da linguagem: (i) norma primária dispositiva; (ii) norma primária sancionatória;
(iii) norma secundária, ou processual.
133
Para fins deste trabalho a força vinculante das
decisões judiciais somente será reconhecida quando se tratar de norma primária cujo
descumprimento tenha como sanção o ajuizamento de reclamação perante o Supremo
Tribunal Federal, como se nas decisões pela via direta e concentrada e pela súmula
vinculante.
Contudo, tendo em vista uma série de fatores,
134
que serão detidamente
analisados adiante, verifica-se, em nosso sistema jurídico, uma gradual introdução de
institutos que conferem eficácia vinculante às decisões judiciais, desde que com base
constitucional. De outra forma, em nosso sistema jurídico as decisões judiciais podem
ter eficácia vinculante por expressa disposição constitucional.
135
Assim, temos que as decisões judiciais proferidas pelo Supremo Tribunal
Federal em sede de controle concentrado e direto de constitucionalidade possuem eficácia
vinculante e efeito erga omnes, ou seja, todos os órgãos do Poder Judiciário e da
133
LINS. Robson Maia. Controle de Constitucionalidade da Norma Tributária Decadência e Prescrição,
pág. 152.
134
Sendo os mais relevantes: a produção de decisões jurídicas antagônicas e o elevado número de recursos
interpostos em nossos tribunais versando sobre a mesma questão jurídica.
135
TUCCI, José Rogério Cruz e. Precedente judicial como fonte do direito, pág. 240.
110
administração pública devem ser curvar ante a referida decisão, que, também é oponível a
todos.
Basicamente, quatro são as ações que possibilitam a manifestação do
Supremo Tribunal Federal em sede de controle concentrado e direto de constitucionalidade
das normas, são eles: (i) ação direta de inconstitucionalidade (art. 102, I, a, da CF), (ii) ação
declaratória de constitucionalidade (art. 102, I, a, da CF), (iii) ação direta de
inconstitucionalidade por omissão (art. 103, § 2°, da CF), (iv) arguição de descumprimento
de preceito fundamental (art. 102, § 1°, da CF).
Trata-se de uma função jurisdicional atípica, uma vez que não se presta para
solucionar um litígio, uma controvérsia existente entre pessoas com pretensões distintas,
mas sim, para proteção do próprio sistema jurídico, visando dele extrair dispositivos que
não se mostrem em harmonia com a constituição Federal. Trata-se de um processo
objetivo, sem partes, que não se presta à tutela de direitos subjetivos, de situações jurídicas
individuais.
136
A eficácia vinculante de tais decisões, proferidas pelo Supremo Tribunal
Federal, era obtida a partir do entendimento da doutrina e do próprio Supremo Tribunal
federal, contudo, restou explicitamente positivada com a Emenda Constitucional de n°.
45/04, ao alterar a redação do art. 102, § da CF. De mais a mais, insta frisar que as
decisões cautelares, tomadas no bojo de um processo objetivo, também possuem eficácia
vinculante.
136
BARROSO, Luís Roberto. O controle de constitucionalidade no direito brasileiro, pág. 146.
111
Com relação à ação direta de inconstitucionalidade por omissão (art. 103, §
2°, da CF), observamos que o Supremo Tribunal Federal, em caso de procedência da ação,
tem-se restringindo a considerar que o Poder Legislativo encontra-se em mora, mediante
ciência da omissão constitucional. Nestes casos não que se falar em eficácia vinculante
do julgado, uma vez que apenas se verifica a omissão do Poder Legislativo.
O art. 125, § da CF, confere competência legislativa às Constituições
Estaduais para instituição da chamada representação de inconstitucionalidade. Trata-se de
uma ação cuja competência é privativa dos Tribunais de Justiça Estaduais onde se pode
questionar a inconstitucionalidade de leis ou atos normativos estaduais ou municipais, em
face da Constituição Estadual, pela via direta e concentrada. Destarte que tais decisões
possuem eficácia vinculante no âmbito de cada unidade da federação. Ademais, tais
decisões são passíveis, ainda, de apreciação pelo Supremo Tribunal Federal. Nestes casos,
se a decisão do Supremo Tribunal Federal infirmar a decisão proferida pelo Tribunal de
Justiça Estadual, aquela primeira decisão prevalecerá sobre a segunda.
137
As chamadas súmulas vinculantes, introduzidas no direito positivo brasileiro
pela Emenda Constitucional n°. 45/2004 e regulamentada pela Lei 11.417/2006, também
possuem eficácia vinculante e serão por nós analisadas em capítulo próprio.
137
BARROSO, Luís Roberto. O controle de constitucionalidade no direito brasileiro, pág. 149.
112
4.4. Da eficácia extraprocessual das decisões de inconstitucionalidade
proferidas pelo plenário do Supremo Tribunal Federal pela via incidental e difusa
Neste trabalho já nos referimos ao tradicional posicionamento, tanto da
doutrina, quanto da jurisprudência, em considerar que as decisões proferidas em sede de
controle incidental e difuso de constitucionalidade dos atos normativos, ou seja, via recurso
extraordinário perante o Supremo Tribunal Federal, produzem efeitos tão somente em
relação às partes envolvidas no processo. Contudo, tendo em vista a evolução legislativa,
jurisprudencial e doutrinária dos últimos anos, tal assertiva não nos parece mais
sustentável. Assim, podemos observar que tais decisões não possuem, apenas, eficácia
meramente persuasiva e caminham francamente em direção aos efeitos vinculantes, como
será adiante demonstrado. No mínimo, possuem, indiretamente, força vinculante.
Como já exposto neste trabalho, é lícito aos magistrados de primeiro grau de
jurisdição pronunciar-se sobre a inconstitucionalidade de uma determinada norma, de
forma incidental, para a solução de um caso concreto. Contudo, aos órgãos fracionados dos
tribunais tal faculdade é vedada por força da regra da reserva de plenário, esculpida pelo
art. 97 da CF, que impõe a tal pronunciamento de inconstitucionalidade sua aprovação por
maioria absoluta do plenário do tribunal, ou de seu órgão especial. Assim, diante de uma
arguição de inconstitucionalidade, o relator do recurso deverá submeter a questão aos
demais membros da câmara ou turma. Em caso de rejeição, o julgamento deverá prosseguir
normalmente, porém, caso a referida arguição seja acolhida, um acórdão deverá ser lavrado
e a arguição deverá ser remetida ao plenário do tribunal, ou ao seu órgão especial, para
apreciação. Após, o recurso retorna ao órgão fracionário para julgamento. Destarte que
113
neste caso o órgão fracionário deve julgar o recurso em conformidade com a decisão
proferida pelo plenário ou pelo órgão especial do tribunal. Neste sentido observa-se que a
decisão do plenário ou do órgão especial, sobre a arguição de inconstitucionalidade, possui
eficácia vinculadora perante o órgão fracionário.
Ocorre que o parágrafo único do art. 481 do CPC, com redação conferida
pela Lei 9.756/98, determina que: os órgãos fracionários dos tribunais o submeterão ao
plenário, ou ao órgão especial, a arguição de inconstitucionalidade, quando houver
pronunciamento destes, ou do plenário do Supremo Tribunal Federal sobre a questão.
É cediço que a regra da reserva de plenário também se aplica ao Supremo
Tribunal Federal. Logo, toda decisão sobre a inconstitucionalidade de um ato normativo,
proferida pela Corte, deve possuir a aquiescência de seu plenário, seja ela pela via direta,
mediante processo objetivo, ou pela via incidental, mediante recurso extraordinário.
Deste modo, temos que admitir que os pronunciamentos sobre a
inconstitucionalidade de lei ou ato normativo, proferidos pelo plenário do Supremo
Tribunal Federal, pela via incidental e difusa, acarretam consequências para a solução de
casos análogos, quando apreciados por qualquer tribunal brasileiro, uma vez que autoriza
seus órgãos fracionários a acompanhar o entendimento da corte sem a intervenção do
plenário ou do órgão especial destes tribunais.
138
138
Este entendimento restou pacificado pela jurisprudência do STF, como nos da notícia BARROSO, Luís
Roberto, O controle de constitucionalidade no direito brasileiro, pág. 89.
114
Tal medida, aliás, veio em boa hora, pois tem como escopo aliviar a pauta de
julgamento dos tribunais, impedindo que seu plenário ou órgão especial seja repetidas
vezes chamado para deliberar sobre questões constitucionais que foram objeto de
apreciação pelos referidos órgãos dos tribunais ou pelo Plenário do Supremo Tribunal
Federal.
Não obstante reconhecer que o novel instituto em apreço confere uma
substancial economia processual ao julgamento de inúmeros recursos por nossos tribunais,
o professor José Carlos Barbosa Moreira não concorda com a assertiva de que um
pronunciamento de inconstitucionalidade pela via incidental, mesmo que proferido pelo
Plenário do Supremo Tribunal Federal, tenha o condão de afastar a regra da reserva de
plenário. Para o notável processualista carioca, somente a resolução do Senado Federal,
prevista no art. 52, X, da CF, tem o condão de conferir efeitos erga omnes às decisões do
Supremo Tribunal Federal proferidas pela via incidental.
139
Neste ponto, é interessante notar o quão relevante é a determinação do
efetivo papel que a Resolução do Senado Federal, prevista no art. 52, X, da CF, exerce
sobre os pronunciamentos de inconstitucionalidade pela via incidental em nosso sistema
jurídico. Principalmente após a introdução de um amplo controle de constitucionalidade
direto e concentrado por nossa atual Constituição Federal.
139
MOREIRA, José Carlos Barbosa. Comentários ao Código de Processo Civil, Vol. V, pág. 44.
115
Não podemos nos esquecer que a referida Resolução do Senado Federal foi
introduzida em nosso sistema jurídico pela Constituição de 1934, em um momento em que
inexistia qualquer espécie de controle concentrado e direito de controle de
constitucionalidade. Assim, diante das deficiências do controle incidental e difuso aqui
apontada, surge a referida Resolução como medida apta a conferir maior eficácia às
decisões do Supremo Tribunal Federal, na medida em que ao suspender a eficácia da lei
declarada inconstitucional, torna erga omnes os efeitos da decisão de inconstitucionalidade
proferida pela via incidental e difusa.
Atualmente, contudo, após a introdução em nosso sistema jurídico de um
amplo sistema de controle de constitucionalidade concentrado e direto, boa parte da
doutrina se insurgiu contra o instituto, afirmando ser o mesmo obsoleto. Afirmam tratar-se
de um caso típico de mutação constitucional, no qual a Resolução do Senado Federal já não
seria mais necessária para conferir efeitos erga omnes aos pronunciamentos de
inconstitucionalidade proferidos pelo plenário do Supremo Tribunal Federal, servindo,
apenas, para conferir publicidade às referidas decisões.
Após analisar a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal e constatar que
o mesmo vem, em diversos casos, conferindo efeitos erga omnes a um número cada vez
maior de julgados do plenário e, analisando ainda a novel legislação processual, que
também confere eficácia extraprocessual às decisões proferidas pelo plenário do Supremo
Tribunal Federal, o Ministro Gilmar Mendes é enfático ao afirmar a mutação
116
constitucional
140
do papel do Senado Federal em nosso controle de constitucionalidade.
Para o eminente Ministro do STF:
141
A natureza idêntica do controle de
constitucionalidade, quanto às suas finalidades e aos
procedimentos comuns dominantes para os modelos difuso e
concentrado, não mais parece legitimar a distinção quanto
aos efeitos das decisões proferidas no controle direto e no
controle incidental.
Seja como for, ainda não podemos afirmar que as decisões judiciais
proferidas pelo plenário do Supremo Tribunal Federal, pela via incidental e difusa, possuem
força vinculante, tal qual aquelas proferidas no controle direto, com faz crer o eminente
Ministro Gilmar Mendes.
Dizemos isso, pois, na Reclamação n°. 4.335, que tem como relator o
Ministro Gilmar Mendes, o mesmo conheceu e deu provimento à referida reclamação que
invocava um pronunciamento de inconstitucionalidade proferido pelo plenário do Supremo
Tribunal Federal em sede de controle incidental e difuso. Após o voto do relator, seguiu-se
o voto do Ministro Eros Roberto Grau, que o acompanhou. Contudo, os Ministros Joaquim
Barbosa e Sepúlveda Pertence, mesmo conferindo Habeas-Corpus de ofício, não
concordaram com a proposta do relator em aceitar a interposição de Reclamação em face de
decisão de inconstitucionalidade proferida pela via incidental e difusa, que seria a
consagração da tese do Ministro Relator, aqui exposta.
140
Entende-se por mutação constitucional a reforma da Constituição sem expressa modificação do seu texto.
Em verdade, trata-se da alteração da interpretação de um determinado texto legal. Em outras palavras, e
seguindo os postulados teóricos aqui adotados, diz respeito a construção de um ato de entender distinto a
partir do mesmo ato de comunicar.
141
MENDES, Gilmar Ferreira. A reclamação constitucional no Supremo Tribunal Federal. In Leituras
complementares de Direito Constitucional, org. NOVELINO, Marcelo, pág. 431.
117
De nossa parte, acreditamos que a evolução do nosso sistema jurídico
acarretará na equiparação entre os efeitos das decisões do Supremo Tribunal Federal pela
via incidental e difusa e concentrada e direta, com uma distinção, para estas últimas não
caberá a via da reclamação. Se assim não for, rapidamente a pauta do plenário da Corte
estará entulhada de reclamações.
Concluímos, então, que ainda não há que se falar em eficácia vinculante aos
pronunciamentos de inconstitucionalidade proferidos pelo Supremo Tribunal Federal em
sede de controle incidental e difuso. Atualmente, como visto, tais decisões produzem
efeitos extraprocessual especiais, mas não vinculantes. Contudo, parece-nos que a
jurisprudência do tribunal caminha neste sentido, tendendo a aceitar tal vinculação desde
que a decisão pela via incidental e difusa seja definitiva.
Ademais, devemos salientar que analisaremos, em capítulo próprio, o novo
requisito de admissibilidade do recurso extraordinário denominado repercussão geral.
Contudo, gostaríamos aqui de adiantar uma das conclusões alcançadas em tal estudo,
qual seja, o reconhecimento de que o novel instituto confere aos acórdãos proferidos em
sede de recurso extraordinário eficácia extraprocessual especial perante todos os tribunais
do país, dado que caso um determinado tribunal julgue em desacordo com o
posicionamento firmado pelo Supremo Tribunal Federal, deverá se retratar, sob pena de ter
o seu acórdão liminarmente reformado, como será bem demonstrado em seus pormenores
no capítulo 05.
118
4.5. Da eficácia extraprocessual da jurisprudência dominante e das súmulas
Como até aqui estudado, raras são, em nosso ordenamento jurídico, as
decisões judiciais que possuem eficácia vinculante, geralmente restringindo-se a questões
constitucionais. Assim sendo, ainda possui grande força entre nós o primado da livre
convicção dos juízes, que lhes confere uma ampla liberdade para a interpretação dos textos
legais. Observamos, então, que tal liberdade fomenta a proliferação de uma série de
decisões judiciais antagônicas, frutos de interpretações díspares, realizadas por juízes
distintos, a partir do mesmo texto legal, tudo em prejuízo da segurança jurídica.
Seja como for, tal antagonismo, quando diante dos tribunais, se torna
tormentoso, pois a comunidade jurídica anseia em saber qual é o posicionamento do mesmo
sobre uma determinada matéria. Para tanto, existem os procedimentos de uniformização da
jurisprudência, que serão adiante analisados.
Neste contexto, comumente, podemos observar em nossos tribunais o
estabelecimento da chamada “jurisprudência dominante”, que pode ser entendida como a
construção de uma norma jurídica, geralmente fruto da combinação entre a ocorrência
reiterada de uma situação fática e da interpretação de um texto legal, que é aceita e aplicada
pela grande maioria dos órgãos de julgamento de um determinado tribunal. Por outro lado,
quando se afirma que jurisprudência dominante, também se afirma que julgados em
sentido contrário, pois, se assim não fosse, estaríamos diante da jurisprudência unânime e
não dominante. Assim, não obstante a existência de reiteradas decisões sobre uma
determinada matéria, sempre no mesmo sentido, co-existem entendimentos distintos, no
119
seio de um mesmo tribunal, prejudicando consideravelmente o primado da segurança
jurídica.
Visando a solucionar tal problemática é que existem os procedimentos de
uniformização da jurisprudência e a edição de súmulas
142
.
Neste sentido, o caput do art. 557 do Código de Processo Civil, com redação
dada pela Lei 9.756/98, impõe ao relator negar seguimento ao recurso se a decisão
recorrida, dentre outras hipóteses, estiver em conformidade com súmula ou com
jurisprudência dominante do respectivo tribunal, do Supremo Tribunal Federal, ou de outro
tribunal superior. Mais inovador ainda é o § 1°-A do referido dispositivo legal, também
acrescentado pela Lei 9.756/98, que conferiu poderes ao relator para dar provimento ao
recurso, caso a decisão recorrida seja conflitante com súmula ou jurisprudência dominante
do respectivo tribunal, ou dos tribunais superiores.
Nestes casos, é nítida a produção de efeitos extraprocessuais das súmulas e
da jurisprudência dominante dos tribunais, ao permitir que uma decisão monocrática do
relator venha a por fim a um determinado recurso. Sendo certo, também, que desta decisão
cabe agravo, para submeter o julgamento à câmara ou turma do tribunal, que a princípio é o
órgão fracionado que possui competência para julgar o recurso.
142
Não se trata da súmula vinculante, introduzida em nosso sistema jurídico pela Emenda Constitucional de
n°. 45/04.
120
No caso do § -A, do art. 557, do Código de Processo Civil, não estamos
diante de um dispositivo que confere força vinculante à súmula ou jurisprudência
dominante, uma vez tratar-se de uma faculdade conferida ao relator do recurso. com
relação ao caput do referido dispositivo legal, o modal deôntico utilizado foi o obrigatório,
pois a redação afirma que o relator negará seguimento a recurso ... . Se realmente
entendermos que, no caso, o modal deôntico utilizado é o obrigatório, então não nos resta
outra conclusão a não ser aceitar que ambas as decisões (a sumulada ou da jurisprudência
dominante) possuem força vinculante perante os relatores dos demais tribunais. Contudo,
este não nos parece ser a melhor interpretação para o referido dispositivo legal, devendo, ao
nosso sentir, prevalecer a tese de que o modal deôntico utilizado é o facultativo e não
obrigatório.
A lei 10.352/01 acrescentou o § 3°, ao art. 475, do Código de Processo Civil,
afastando a regra do duplo grau de jurisdição obrigatório para as decisões contra a Fazenda
Pública, quando estas forem consonantes com a jurisprudência do plenário do Supremo
Tribunal Federal ou em súmula deste Tribunal ou do Tribunal Superior competente.
o art. 475-L, inciso II e § 1° e o art. 741, inciso II e parágrafo único,
ambos do Código de Processo Civil e com redação conferida pela Lei 11.232/05,
determinam a inexigibilidade de tulo executivo judicial fundado em lei ou ato normativo
declarados inconstitucionais pelo Supremo Tribunal Federal, ou fundado em aplicação ou
interpretação da lei ou ato normativo tidas pelo Supremo Tribunal Federal com
incompatíveis com a constituição Federal.
121
a Lei 11.418/06, que acrescentou o art. 543-A ao Código de Processo
Civil, determina a presunção da existência da repercussão geral sempre que o recurso
impugnar decisão contrária a súmula ou jurisprudência dominante do Supremo Tribunal
Federal. Sobre o tema, trataremos em capítulo específico.
Estes são os novos mecanismos processuais que visam a conferir eficácia
extraprocessual às súmulas e à jurisprudência dominante nos tribunais sem, contudo, lhes
outorgar força vinculante. A rigor, trata-se de institutos que visam conferir uma maior
agilidade no processamento dos recursos no âmbito dos nossos tribunais, que em nossos
dias possuem uma extraordinária sobrecarga de trabalho, tendo em vista o extraordinário
número de recursos que lhe são enviados anualmente, principalmente sobre questões
idênticas.
4.6. Do incidente de uniformização da jurisprudência dos tribunais
Trata-se de um mecanismo de uniformização de jurisprudência, inicialmente
previsto pelo art. 476 e seguintes do Código de Processo Civil, mas que, posteriormente,
ganhou novos contornos pela Lei 10.352/01 que conferiu nova redação ao caput do art. 555
do Código de Processo Civil e lhe acrescentou mais dois parágrafos.
Um tribunal, a rigor, possui vários órgãos judicantes. Assim, devem tais
órgãos aplicar a legislação aos casos concretos que lhe são apresentados. Como visto, para
lograr êxito em sua tarefa jurisdicional, os órgãos judiciais constroem normas jurídicas
individuais e concretas a partir da interpretação dos textos legais, sempre com o auxílio das
122
lições doutrinárias. A interpretação dos textos legais leva em consideração uma série de
fatores, tais como: o contexto histórico e os valores considerados relevantes pela sociedade
e pelo Poder Judiciário. Neste contexto, não raras vezes observamos diferentes órgãos
judiciais de um mesmo tribunal construindo normas jurídicas distintas, a partir de uma
mesma situação fática. Trata-se de normas jurídicas cujos antecedentes lhes são comuns,
mas com consequentes distintos. Assim, diante de tais situações, que não raro semeiam,
entre os membros da comunidade, o descrédito e o cepticismo quanto à efetividade da
garantia jurisprudencial,
143
é que se impõe o incidente de uniformização da jurisprudência
dos tribunais como mecanismo apto a evitar, na medida do possível, que a sorte dos
litigantes e afinal a própria unidade do sistema jurídico vigente fiquem na dependência
exclusiva da distribuição do feito ou do recurso a este ou àquele órgão.
144
Deste modo, é interessante notar que o incidente de uniformização da
jurisprudência dos tribunais pode ser invocado por um magistrado, que faz parte de um
órgão colegiado, ou por uma das partes.
145
Assim, é cediço que, no mais das vezes, a
necessidade em uniformizar a jurisprudência de um tribunal parte de um de seus membros,
que sente a necessidade de uniformização da jurisprudência, por não tolerar julgamentos
díspares com relação a situações fáticas análogas.
Seja como for, qualquer um dos integrantes de um órgão colegiado
fracionário de um tribunal, ao proferir seu voto no julgamento de um recurso ou de uma
143
MOREIRA, José Carlos Barbosa. Comentários ao Código de Processo Civil, Vol. V, pág. 05.
144
Idem, pág. 05.
145
Qualquer uma das partes do recurso, se assim o desejarem, poderão requerer a instauração do incidente de
uniformização da jurisprudência, de maneira fundamentada, consoante dicção do parágrafo primeiro do art.
476 do CPC.
123
ação de competência originária do tribunal, poderá solicitar o pronunciamento prévio do
tribunal acerca da matéria em questão quando: (i) sobre ela houver divergência, ou (ii)
quando um outro órgão colegiado fracionário do mesmo tribunal conferir interpretação
distinta àquela conferida no processo em curso. O pressuposto é bem amplo e permite sua
invocação sempre que outro órgão fracionário do mesmo tribunal construir norma jurídica
distinta daquela levada a cabo no processo em curso.
A divergência jurisprudencial deverá ser reconhecida mediante lavratura de
acórdão, que será remetido ao presidente do tribunal para inclusão de seu julgamento na
pauta das sessões do plenário ou do órgão especial. Este julgamento deverá ser tomado pelo
voto da maioria absoluta dos membros que integram o tribunal, será objeto de súmula e
constituirá precedente na uniformização da jurisprudência (art. 479, caput, do CPC).
Consoante as preciosas lições do professor Barbosa Moreira, o quorum
exigível para a solução da divergência será determinado pelo regimento interno do tribunal,
contudo, para que a tese vencedora possa ser sumulada e venha a ser entendida como
precedente de uniformização de jurisprudência, serão necessários os votos da maioria
absoluta dos membros do órgão colegiado competente para o julgamento.
146
De uma maneira ou de outra, decidida a divergência pelo órgão julgador
competente, selavrado um acórdão e o processo deverá retornar ao órgão fracionário
originário para a conclusão de seu julgamento. Deste modo, notório é que o órgão
146
MOREIRA, José Carlos Barbosa. Comentários ao Código de Processo Civil, Vol. V, pág. 25.
124
fracionário originário encontra-se vinculado à decisão da divergência jurisprudencial
proferida pelo plenário ou pelo órgão especial do tribunal.
Eis aqui um ponto de suma importância para este trabalho. A norma jurídica
sufragada pela maioria absoluta dos membros do tribunal será objeto de súmula e
constituirá precedente na uniformização da jurisprudência, mas quais os efeitos
extraprocessuais que tais institutos conferem as normas jurídicas neles consagrada?
elencamos, no subcapítulo anterior, alguns dos efeitos gerados pela
jurisprudência dominante e pelas súmulas no julgamento, pelo mesmo tribunal, de casos
análogos. Contudo, neste momento, indaga-se: após a edição de uma súmula ou do
estabelecimento da jurisprudência dominante podem os membros deste tribunal decidir de
forma contrária a tese jurídica ali prescrita?
Para responder a tal questionamento, novamente trazemos à baila as lições
do professor Barbosa Moreira. Sobre o tema, ele é enfático, as súmulas (a par das
vinculantes), não obrigam os membros de um determinado tribunal a seguir suas teses
jurídicas, mas tão somente facilitam o julgamento realizado por aqueles que a
acompanham. Considera um erro imobilizar a natural evolução da jurisprudência mediante
a edição de súmulas. Ademais, demonstra a inconstitucionalidade em se conferir efeito
vinculador a tais súmulas e, por último, demonstra que o entendimento sumulado vem
sendo, reiterada vezes, abandonado pelos próprios tribunais que a editam.
147
147
MOREIRA, José Carlos Barbosa. Comentários ao Código de Processo Civil, Vol. V, pág. 25.
125
o professor Eduardo Domingos Bottallo, nos idos de 1974, lecionou de
forma distinta, ao afirmar que as súmulas emitidas por um tribunal não possuem plena
eficácia vinculadora perante os juízos e tribunais que lhe são inferiores, mas sim perante as
decisões da própria corte, se reportando às decisões do Supremo Tribunal Federal.
148
Aliás, de outro modo não poderia ser. Considerando que o Código de
Processo Civil prevê a existência de um incidente para a uniformização da jurisprudência
dos tribunais, com quórum qualificado, de competência do plenário ou do órgão especial, e
determina que tal decisão deve nortear o julgamento do caso que deu origem ao incidente,
não nos parece, com a devida vênia aos que pensam diferente, cito aos demais órgãos do
respectivo tribunal julgar de forma distinta do disposto no incidente. Dizemos isso, pois
entendemos que a finalidade da instauração do incidente não é meramente decidir a causa
que lhe deu origem, mas sim, unificar a jurisprudência do tribunal. Se as referidas decisões
não possuírem força vinculadora perante os demais órgãos do tribunal, tal objetivo jamais
será alcançado.
Com isso, não entendemos que reste imobilizada a referida natural evolução
da jurisprudência, pois, a súmula pode ser revista pelo tribunal, desde que respeitado o seu
procedimento. A edição de súmula requer, como visto, procedimento formal especialmente
qualificado para a sua edição que deverá ser atendido para a sua revogação e que não pode
ser desrespeitado por qualquer órgão judicante do mesmo tribunal que a editou. Seja como
148
BOTTALLO, Eduardo Domingos. A natureza normativa das Súmulas do STF, segundo as concepções de
direito e de norma de Kelsen, Ross, Hart e Miguel Reale. Revista de Direito Público, São Paulo, n. 29, ano 7,
maio-junho, 1974. Ed. Revista dos Tribunais, pág. 19.
126
for, não raras vezes observamos um tribunal proferir julgamento distinto da determinação
por ele mesmo sumulada.
Vamos além, com o devido respeito àqueles que pensam de forma diferente,
entendemos que a norma jurídica construída seja pelo plenário ou pelo órgão especial de
um determinado tribunal, além de vincular aos demais órgãos fracionários que compõem o
tribunal, também deve vincular os órgãos judicantes inferiores, subordinados àquele
tribunal. Dizemos isso, pois um tribunal não pode ter diversas vozes, assim como não o
pode a lei, mas é exatamente o que ocorre quando existe uma divergência jurisprudencial
no âmbito da jurisdição de um determinado tribunal, pois as interpretações díspares partem
do mesmo corpo de leis.
Por fim, vamos analisar o caput, do art. 555 do código de Processo Civil,
com a redação dada pela Lei 10.352/01.
Consoante o referido dispositivo legal, tratando-se de julgamento de
apelação ou agravo, ocorrendo relevante questão de direito, no qual se verifica a ocorrência
de uma divergência jurisprudencial, ou a sua iminência, o relator poderá propor que o
recurso seja julgado pelo órgão indicado pelo regimento interno do tribunal, uma vez
reconhecido o interesse público na assunção da competência.
Destarte que neste caso o julgamento é finalizado pelo próprio órgão
indicado pelo regimento interno. Aqui, não se observa a cisão na competência funcional
jurisdicional, como ocorre nos casos do art. 476 do CPC, ou nos incidentes de
127
inconstitucionalidade. Tal inovação visa a conferir maior agilidade ao julgamento do
recurso, que não retorna ao órgão fracionário originário para julgamento. Por último, tanto
a doutrina quanto a jurisprudência não conferem eficácia vinculadora à decisão do órgão
indicado pelo regimento interno.
149
149
MOREIRA, José Carlos Barbosa. Comentários ao Código de Processo Civil, Vol. V, pág. 658.
128
CAPÍTULO 5. DA REPERCUSSÃO GERAL
5.1. Introdução
De uma maneira geral, podemos observar a existência, tanto nos países da
common law, como os países da civil law, de um órgão de cúpula competente para conferir
a última palavra em termos de interpretação do direito, principalmente em se tratando de
matéria constitucional. Mesmo possuindo tais órgãos as características mais diversas, a sua
finalidade é basicamente a mesma, conferir unidade a interpretação dos textos legais,
principalmente dos textos constitucionais.
De mais a mais, observa-se a eficácia vinculante que as decisões tomadas
por tais órgãos de cúpula devem possuir, pois, se assim não for, a atividade dos mesmos
restaria comprometida, eivada de ineficácia jurídica, conferindo, ao invés de segurança,
temeridade. Somente com a imposição de tais decisões perante toda a sociedade é que
podemos falar em um órgão uniformizador da interpretação do direito.
O Brasil, mesmo possuindo o Supremo Tribunal Federal como órgão de
cúpula em matéria constitucional e os Tribunais Superiores em termos da legislação federal
infraconstitucional, pouquíssimas são as decisões destas Cortes que possuem eficácia
vinculante. Somente após a Constituição federal de 1988 e as posteriores alterações na
legislação processual, estudada no capítulo anterior, é que se abriu espaço para que as
decisões destas Cortes começassem a produzir efeitos extraprocessuais, como visto.
129
Tal postura, aliada a falta de estrutura adequada do Poder Judiciário
Brasileiro, ao excesso de exigências formais, aos inúmeros recursos processuais e ao fato
de que com a atual Carta Política o acesso ao Poder Judiciário se tornou mais irrestrito, é
cada vez mais crescente o número de processos que são anualmente protocolados junto ao
Poder Judiciário. Neste contexto, a sobrecarga de trabalho do Poder Judiciário é tamanha
que a efetividade da prestação jurisdicional passou a ser a maior preocupação dos
processualistas modernos.
150
No Brasil a excessiva demora no trâmite dos processos perante o Poder
Judiciário é notória e inúmeras o as causas que contribuem para a morosidade na
prestação da tutela jurisdicional. Com relação à falta de estrutura do Poder Judiciário, esta
não é uma questão passível de solucionada pela doutrina. Seu único remédio é o
investimento em melhores instalações, na capacitação do funcionário público, na melhor
administração dos tribunais, no aumento do número de juízes e na melhoria das condições
básicas para o desenvolvimento de seu trabalho. Seja como for, os investimentos em
informática realizados nos últimos anos geraram resultados positivos quanto ao
funcionamento dos tribunais.
Ademais, como visto no capítulo 3, nosso sistema jurídico, mesmo
possuindo as características elementares da civil law, adotou um sistema de controle de
constitucionalidade tipicamente dos países da common law, ou seja, conferiu ao seu órgão
de cúpula em matéria constitucional (Supremo Tribunal Federal), dentre outras
150
BEDAQUE. José Roberto dos Santos. Tutela cautelar e tutela antecipada: tutelas sumárias e de urgência,
pág. 21.
130
competências específicas, competência para julgar o recurso extraordinário, que,
originalmente, era responsável em resolver tanto as questões federais quanto
constitucionais, mas sem eficácia vinculante perante os demais órgãos do Poder Judiciário.
Neste contexto, a demora excessiva no julgamento dos processos de competência do
Supremo Tribunal Federal tornou-se crônica, crescente e ficou conhecida como “crise do
Supremo”.
151
para o Ex- Ministro José Carlos Moreira Alves, a crise do Supremo” é a
“crise do recurso extraordinário.
152
Já que este recurso e os agravos de instrumentos deles
oriundos são responsáveis por mais de 90% dos processos em trâmite pela Corte.
Visando à solução da crise acima mencionada, em mil novecentos e
sessenta e três, José Afonso da silva, em obra clássica sobre o tema, preconizara a
criação de um Tribunal Superior de Justiça, nos moldes do TST e TSE, com competência
para decidir em última instância as questões federais de direito comum, fiscal e do interesse
da União. E falou mais, que as matérias acima elencadas chegariam até o referido Tribunal
Superior mediante um recurso que deveria se chamar especial ou de revista.
153
E as idéias do inestimável constitucionalista brasileiro vingaram, pois foi
criado, pela Constituição Federal de 1988, o Superior Tribunal de Justiça, com a função
precípua de conferir a última palavra em sede de direito federal infraconstitucional. Assim,
ocorreu a chamada cisão do recurso extraordinário. Agora, com a criação do Superior
Tribunal de Justiça, as causas decididas em única ou última instância pelos Tribunais
Regionais Federais, ou pelos Tribunais de Justiça Estaduais, que envolvessem a legislação
151
MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Recurso extraordinário e recurso especial, pág. 74.
152
Idem, pág. 76.
153
SILVA, José Afonso da. Do recurso extraordinário, pág. 456.
131
federal infraconstitucional (divergência quanto a sua interpretação, contrariedade de tratado
ou lei federal, ou, ainda, a sua negação quanto a sua vigência) deveriam ser levadas ao
conhecimento deste novo tribunal, mediante interposição do recurso especial. as causas
decididas em única ou última instância por qualquer órgão do Poder judiciário continuam
sendo levadas à apreciação do Supremo Tribunal Federal desde que envolvam questões
constitucionais, ou conflitos entre a legislação federal e estadual, que, em última análise,
melhor devam ser resolvidas à luz da Constituição federal.
A idéia da criação de mais um tribunal de cúpula do Poder judiciário não foi
poupada de críticas por boa parte da doutrina. Em síntese, afirmaram os críticos que mais
uma instância de julgamento seria criada, antes da decisão final do Supremo Tribunal
Federal, aumentando ainda mais a procrastinação excessiva dos processos. Ademais, temia-
se, também pela impetração de um elevado número de recursos especiais atravancando,
assim, a pauta de julgamentos do novo tribunal.
154
De fato, atualmente é comum a
interposição simultânea dos dois recursos (especial e extraordinário), sendo a matéria
disciplinada pelo art. 543 e seguinte do Código de Processo Civil.
Não obstante as referidas críticas, tendo em vista a já citada “crise do
Supremo”, a criação do Superior Tribunal de Justiça foi inevitável. Contudo, o temor do
Ministro Moreira Alves, citado por Rodolfo de Camargo Mancuso, tornou-se realidade, eis
suas palavras:
não Corte alguma que, sem algumas
centenas de juízes, possa julgar, em terceiro grau de
154
Como nos da notícia MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Recurso extraordinário e recurso especial, pág.
112.
132
jurisdição, todas as questões de direito apreciadas pelo
duplo grau de jurisdição ordinária, aplicando, ademais, ao
caso concreto, a interpretação dos textos legais pertinentes
que se lhe afigura melhor.
155
De fato, após a promulgação da constituição Federal de 1988, o volume de
processos, anualmente, protocolados na secretaria do Supremo Tribunal Federal não parou
de crescer até a entrada em vigor da repercussão geral. Como visto, a avassaladora massa
de processos ajuizados no Pretório Excelso são compostos de recursos extraordinários e de
agravos de instrumentos deles oriundos. Como bem demonstrado por Bruno Dantas, que se
utilizou das estatísticas produzidas pelo Banco Nacional de Dados do Poder judiciário
(BNDPJ), em mil novecentos e noventa (1990), foram distribuídos no STF cerca de
dezesseis mil processos (16.000), sendo 81,6% deles compostos de recursos extraordinários
ou agravos de instrumento; no ano de mil novecentos e noventa e nove (1999), foram
distribuídos cerca de cinquenta e quatro mil processos (54.000), sendo 95% de recursos
extraordinários e agravos de instrumentos; no ano dois mil (2000) foram noventa mil
processos (90.000); e em dois mil e seis (2006), mais de cento e dezesseis mil processos
(116.000), sendo mais de 95% nestes dois últimos casos compostos de recursos
extraordinários e de agravos de instrumento.
156
Contudo, com a entrada em vigor da repercussão geral, caiu
consideravelmente o número de recursos extraordinários interpostos junto ao Supremo
Tribunal Federal. Entre abril de dois mil e oito e março de dois mil e nove foram
protocolados 91.544 (noventa e um mil, quinhentos e quarenta e quatro) processos, dos
155
MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Recurso extraordinário e recurso especial, pág. 112.
156
DANTAS, Bruno. Repercussão Geral, perspectivas histórica, dogmática e de direito comparado, pág. 82
133
quais apenas 56.537 (cinqüenta e seis mil, quinhentos e trinta e sete) processos foram
distribuídos. Já no ano anterior, 119.300 (cento e dezenove mil e trezentos) processos foram
recebidos e 113.000 (cento e treze mil) processos foram distribuídos.
157
Assim, resta
demonstrado que além da diminuição do número de processos protocolados, também
diminuiu o número de processos distribuídos, tudo em função da regulamentação da
repercussão geral junto ao regimento interno do Supremo Tribunal Federal, que confere
poderes ao Presidente, para, atuando como relator, antes da distribuição, negar seguimento
ao recurso extraordinário, liminarmente, quando desprovido de repercussão geral, como
será detidamente analisado por nós adiante.
Por outro lado, não podemos nos esquecer que é crescente o número de
reclamação que são anualmente protocoladas junto ao Supremo Tribunal Federal. Como
será discutido em capítulo próprio.
Também podemos verificar um aumento expressivo no número de processos
ajuizados junto ao Superior Tribunal de justiça, principalmente em se tratando de recursos
especiais. No ano de dois mil e seis (2006), o então Presidente da Casa, Ministro Edson
Vidigal, informou que mais de meio milhão de processos foram julgados pelo Superior
Tribunal de justiça nos dois anos anteriores.
158
Diante dos números acima apresentados, outra solução não restou ao
legislador brasileiro (influenciado pelos membros do Poder judiciário) do que adotar
157
Conforme site do STF (WWW.stf.jus.br), acessado em 30/01/2010, sob o endereço
www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=106425.
158
MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Recurso extraordinário e recurso especial, pág. 80.
134
medidas que, por um lado, confere efeitos extraprocessuais especiais a diversas decisões do
Supremo Tribunal Federal e, por outro lado, freiar a subida de um número excessivo de
recursos aos nossos tribunais superiores, principalmente em se tratando de causas
repetitivas. É neste contexto que emerge a repercussão geral como mais um requisito de
admissibilidade do recurso extraordinário e que será objeto de nosso estudo neste capítulo.
Ademais, também será objeto do nosso estudo a sistemática, introduzida no
âmbito do Superior Tribunal de Justiça, que restou conhecida como regime de recursos
repetitivos, prescrito pelo art. 543-C do Código de Processo civil, com redação dada pela
Lei 11.672/08, com a finalidade de diminuir o número de recursos especiais que tratam
sobre o mesmo tema.
5.2. Origens do instituto
A repercussão geral pode ser entendida como um mecanismo apto a filtrar o
acesso ao Supremo Tribunal Federal via recurso extraordinário, evitando que a Corte se
reúna mais de uma vez para a discussão de casos idênticos. A utilização de filtros para
racionalizar o trabalho das Cortes Supremas não é novidade no mundo, muito menos no
Brasil.
Entre nós, várias foram as medidas tomadas ao longo do século passado com
o escopo de amenizar o volume crescente de processos ajuizados perante o Supremo
Tribunal Federal, um dos mais polêmicos e mais parecidos com a repercussão geral foi a
135
arguição de relevância. Assim, tem-se entendido que é neste instituto que devemos buscar
as origens da repercussão geral.
A arguição de relevância foi inspirada no direito norte-americano, no qual a
Suprema Corte possui, ao apreciar as petittions for certiorari, o poder discricionário para
decidir quais processos irá julgar, em sessão secreta, conforme a relevância que a matéria
trazida ao seu conhecimento possui para a sociedade.
Foi com a Emenda Regimental n°. 3 de 1975, consagrada pela Emenda
Constitucional de n°. 7 de 1977, que se deu a introdução da arguição de relevância em
nosso sistema jurídico. Assim, o art. 327, § 1°, do Regimento Interno do Supremo Tribunal
Federal, com redação dada pela Emenda Regimental n°. 2 de 1985, assim a definia pelos
reflexos na ordem jurídica e considerados os aspectos morais, econômicos, políticos ou
sociais da causa exigir a apreciação do recurso extraordinário pelo Tribunal. Em outras
palavras, os recursos extraordinários eram conhecidos pelo Supremo Tribunal Federal
caso o impetrante demonstrasse a relevância da matéria aventada no recurso, mediante
realce de sua importância jurídica, social, política ou econômica.
De se ver tratar-se de um requisito de admissibilidade do recurso
extraordinário. Mas um requisito especial, pois sua apreciação era irrecorrível, secreta e não
motivada. Em síntese, conferia amplos poderes ao Supremo Tribunal Federal para julgar
somente os recursos extraordinários que lhe aprouvessem, tal como na Suprema Corte
Norte-Americana.
136
O fato é que, treze (13) anos após a sua entrada em vigor, a arguição de
relevância foi descartada pela Constituição Federal de 1988. Seja como for, não são poucos
aqueles que vislumbram na repercussão geral a volta da arguição de relevância. Neste
contexto, assim se manifesta o professor Barbosa Moreira sobre a necessidade de se
demonstrar a repercussão geral para o conhecimento do recurso extraordinário:
159
Se ressuscitou, de certo modo, mas em termos
diferentes, a antiga “arguição de relevância da questão
federal”, que a Corte Suprema, no exercício do poder então
constitucionalmente previsto, regulava em seu Regimento
Interno (Emenda 3, de 12.06.1975; depois Emenda 2, de
04.12.1985). A fonte inspiradora é sempre a prática da
Supreme Court norte-amerciana, na apreciação das petitions
for certiorari.
Seja como for, é cediço que os julgamentos da repercussão geral não serão
secretos e desmotivados, como eram os da arguição de relevância. Tal fato, ao nosso sentir,
deve ser entendido como uma saudável evolução do sistema jurídico brasileiro. Aliás, a
publicidade e a motivação dos atos públicos, em especial dos atos do Poder judiciário, são
garantias constitucionalmente delineadas e que não podem ser colocadas de lado, mesmo
diante da necessidade de introdução de um filtro para a apreciação de recursos
extraordinários junto ao Supremo Tribunal Federal.
159
MOREIRA, José Carlos Barbosa. Comentários ao Código de Processo Civil, Vol. V, pág. 591.
137
5.3. Aspectos Constitucionais
A Emenda Constitucional n°. 45/04, denominada de reforma do Poder
Judiciário, dentre outras medidas, acrescentou, ao art. 101 da CF, o § , com a seguinte
redação:
no recurso extraordinário o recorrente deverá demonstrar a
repercussão geral das questões constitucionais discutidas no
caso, nos termos da lei, a fim de que o Tribunal examine a
admissão do recurso, somente podendo recusá-lo pela
manifestação de dois terços de seus membros.
A partir da análise do dispositivo constitucional acima transcrito, podemos
afirmar que, basicamente, quatro são os pilares sobre os quais se sustenta a repercussão
geral, a saber:
a) Trata-se de mais um requisito de admissibilidade do recurso
extraordinário, uma vez que, por determinação expressa do texto constitucional em análise,
o Supremo Tribunal Federal somente poderá conhecer do recurso caso a repercussão geral
esteja presente, cabendo ao recorrente demonstrá-la;
b) o novel instituto requer disciplina infraconstitucional para ser aplicado.
Consoante as lições de José Afonso da Silva, trata-se de uma norma jurídica de
aplicabilidade mediata.
160
160
SILVA, José Afonso. Aplicabilidade das normas constitucionais, pág. 91.
138
c) a expressão repercussão geral, tendo em vista sua polissemia, é um caso
típico de conceito jurídico indeterminado, na medida em que a Constituição Federal cria o
conceito, mas não o define, ou seja, não determina sua dimensão semântica jurídica. Neste
sentido, como a matéria carece de regulamentação legislativa infraconstitucional, tal
legislação acabou sendo responsável por conferir ao vocábulo uma definição jurídica, como
será adiante por nós demonstrado. Tal medida, contudo, não afasta do Supremo Tribunal
Federal a possibilidade de conferir novos delineamentos semânticos à expressão, quando da
sua aplicação aos casos concretos, assim como também não o impede de aferir a
constitucionalidade de tais dispositivos legais, caso seja provocado; ressalte-se, também, o
papel que a doutrina possui para a definição do termo;
d) A recusa no conhecimento do recurso extraordinário, pela não presença
da repercussão geral, parece ser de competência exclusiva dos membros do Supremo
Tribunal Federal, mediante quorum específico, altamente qualificado, de pelo menos dois
terços dos membros do Supremo Tribunal Federal, ou seja, somente pela recusa de oito
Ministros é que um recurso extraordinário não pode ser admitido pela ausência da
repercussão geral.
Em suma, do ponto de vista constitucional, a repercussão geral pode ser
entendida como um requisito de admissibilidade do recurso extraordinário, que necessita de
regulamentação legislativa infraconstitucional para ser aplicado, cujo conteúdo semântico-
jurídico é indeterminado pela Constituição Federal e que requer um quórum específico para
impedir o conhecimento do recurso extraordinário.
139
Neste sentido poderíamos, apressadamente, concluir pela dificílima
aplicação de tal requisito de admissibilidade, tendo em vista que o texto constitucional
determina que a recusa no conhecimento do recurso extraordinário, motivada pela não
demonstração da repercussão geral, necessita da aprovação de dois terços dos membros do
Supremo Tribunal Federal, ou seja, é de competência exclusiva do Plenário, mediante
quórum específico.
Nada mais falso, principalmente quando analisamos o instituto em questão à
luz da Lei 11.418/06, que acrescentou os artigos 543-A e 543-B ao Código de Processo
Civil e da Emenda Constitucional n°. 21/07, que disciplinou a repercussão geral no âmbito
do Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal.
Adiante, iremos analisar os dispositivos legais infraconstitucionais acima
ventilados, que acabaram por conferir uma ampla aplicabilidade à repercussão geral.
Ademais, não seria impróprio afirmar que, do ponto de vista desta
regulamentação infraconstitucional, o termo repercussão geral não pode mais ser
empregado somente para denotar um requisito de admissibilidade do recurso
extraordinário, uma vez que, com fundamento de validade na repercussão geral, uma série
de normas jurídicas de cunho processual foram criadas, sempre com o escopo de diminuir o
elevado número de recursos extraordinários em trâmite pelo Supremo Tribunal Federal,
principalmente, nos casos decididos pelo plenário. Neste intuito, tais normas processuais
acabaram por conferir às decisões proferidas pelo Supremo Tribunal Federal uma eficácia
140
extraprocessual especial, que beira à vinculação. Sempre, é claro, em se tratando da mesma
situação fática, como iremos adiante demonstrar.
5.4. Da regulamentação infraconstitucional
Assentadas as principais características da repercussão geral no âmbito
constitucional vamos agora analisar sua regulamentação infraconstitucional, com o escopo
de demonstrar, em seus pormenores, no que consiste a aludida ampliação da aplicabilidade
do instituto, conferida tanto pela Lei 11.418/06, quanto pela Emenda Regimental n. 21/07,
do Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal.
5.4.1 Algumas particularidades da Lei 11.418/06
O art. 7°, da Emenda Constitucional n°. 45/04, determinou ao Congresso
Nacional, imediatamente após a sua entrada em vigor, a criação de uma comissão especial
mista com o escopo de elaborar, em cento e oitenta dias, os projetos de lei necessários para
a regulamentação da matéria nela tratada.
Assim foi feito e a relatoria de tal comissão foi entregue ao Senador José
Jorge. Durante os trabalhos da comissão eminentes processualistas foram consultados,
dentre eles o professor José Manuel Arruda Alvim. Ademais, uma audiência pública e um
seminário foram realizados e até mesmo um evento, com a presença de ilustres
processualistas, foi promovido pelo Instituto Brasileiro de Direito Processual (IBDP), com
a intenção de debater sobre o tema em comento. Neste período, os eminentes Ministros do
141
STF, Gilmar Mendes e Cezar Peluso, foram bastante consultados e até mesmo chegaram a
apresentar um anteprojeto de lei, que, inicialmente, não foi acolhido. Os trabalhos da
comissão tiveram término com a elaboração e proposta de um projeto de lei cuja tramitação
teve início no Senado Federal sob o título: projeto de lei do Senado n°. 12, de 2006. Por
último, saliente-se que o referido projeto de lei era bastante detalhista e, assim, deixava
pouco espaço para a regulamentação suplementar da matéria pelo Regimento Interno do
STF.
161
Assim, o projeto de lei apresentado pela comissão mista especial iniciou sua
tramitação pelo Senado Federal e, mediante requerimento do então Senador Antonio Carlos
Magalhães, foi remetido à comissão de constituição e justiça, na qual o mesmo Senador
José Jorge foi nomeado relator. Neste momento, o referido relator optou por adotar um
substitutivo elaborado pelos Ministros do STF Gilmar Mendes e Cezar Peluso, alterando
substancialmente o conteúdo do projeto de lei inicialmente elaborado pela comissão mista
especial. Após sua aprovação pela comissão de constituição e justiça o projeto de lei sofreu
uma Emenda, oferecida pelo Senador Demóstenes Torres, e foi aprovado em plenário. Já na
Câmara dos Deputados, após algumas pequenas alterações de natureza redacional, o projeto
de lei foi rapidamente aprovado e recebeu a sanção presidencial.
162
Inicialmente, merecem menção duas características básicas da Lei
11.418/06: (i) a primeira consiste na opção feita pelo legislador ordinário que, ao redigir a
Lei 11.418/06, preferiu acrescentar dois artigos ao Código de Processo Civil ao invés de
161
Tudo como nos dá notícia DANTAS, Bruno. Repercussão geral, perspectiva histórica, dogmática e de
direito comparado, pág. 270.
162
Idem, pág. 272 e seguintes.
142
criar uma legislação extravagante, como previsto pelo projeto de lei elaborado pela
comissão mista especial. Trata-se de uma questão pertinente e não meramente de técnica
redacional, pois, como a regulamentação infraconstitucional da repercussão geral se deu
através do Código de Processo Civil, dúvidas poderiam surgir sobre o cabimento do
instituto em questões de direito penal. Tal problemática, contudo, parece já ter sido afastada
pelo Supremo Tribunal Federal que afirmou a necessidade na demonstração da repercussão
geral nos recursos extraordinários que versem sobre matéria de direito penal, como visto na
questão de ordem no agravo de instrumento n°. 664.567/RS, relatada pelo Ministro
Sepúlveda Pertence; (ii) a segunda questão diz respeito à necessidade de regulamentação da
Lei 11.418/06, agora em sede de Emenda ao Regime Interno do STF, para que a
repercussão geral pudesse ser aplicada. De fato, o Supremo Tribunal Federal, no mesmo
julgado acima citado, decidiu que somente as intimações dos acórdãos recorridos realizadas
após a entrada em vigor da Emenda Regimental n°. 21/07, ocorrida no dia três de maio de
dois mil e sete, é que passariam pelo crivo do novo requisito de admissibilidade do recurso
extraordinário.
Após estas palavras iniciais, iniciaremos a interpretação propriamente dita
dos artigos 543-A e 543-B do Código de Processo Civil, assim como dos dispositivos legais
que compõem a Emenda Regimental 21/07, que alterou o Regimento interno do Supremo
Tribunal Federal. Em um primeiro momento iremos nos preocupar com a dimensão
semântica do termo repercussão geral e posteriormente nos valeremos das normas jurídicas
de cunho processual, que estabelecem um peculiar regime procedimental para os recursos
extraordinários, sempre com fundamento na repercussão geral.
143
5.4.2. Da dimensão semântica do termo repercussão geral
Sobre a delimitação conceitual do termo repercussão geral, remetemos o
leitor aos parágrafos e do art. 543-A do CPC. O primeiro dispositivo legal determina
que a repercussão geral somente estará presente nas causas que apresentem questões
relevantes do ponto de vista econômico, político, social ou jurídico, que ultrapassem os
interesses subjetivos da causa. Já o segundo parágrafo prescreve um critério jurídico
bastante objetivo e simples: haverá repercussão geral sempre que o recurso impugnar
decisão contrária a súmula ou jurisprudência dominante no Tribunal.
Assim, dois são os critérios utilizados pelo legislador infraconstitucional
para delimitar o conceito do termo repercussão geral. O primeiro é subjetivo, uma vez que
o recorrente deve convencer a Corte de que a relevância da questão jurídica que lhe é
submetida ultrapassa os interesses das partes envolvidas no processo. o segundo critério
é objetivo e muito relevante, pois determina a presença da repercussão geral sempre que o
recurso extraordinário atacar uma decisão que seja contrária à súmula ou jurisprudência
dominante no Tribunal. Em outras palavras, independentemente do conteúdo da questão de
direito material sobre a qual se debruçou a decisão proferida pelo juízo a quo, nela sempre
estará presente a repercussão geral, sempre que a mesma for contrária à súmula ou à
jurisprudência dominante no Supremo Tribunal Federal.
163
163
Tem-se entendido que a referida jurisprudência dominante diz respeito aos casos já julgados pelo Supremo
Tribunal Federal em sede de recurso extraordinário à luz da repercussão geral, ou as decisões tomadas em
sede de controle direito.
144
Cientes de que as decisões recorridas que forem contrárias ao
posicionamento de nossa Corte Suprema sempre serão dotadas de repercussão geral,
indaga-se: no caso contrário, ou seja, quando a decisão recorrida estiver em conformidade
com súmula ou jurisprudência do Supremo Tribunal Federal ela necessariamente será
desprovida de repercussão geral?
Trata-se de uma importante e delicada questão que acreditamos ainda será
causa de acirrados debates. Seja como for, caso o mérito da relação jurídica de direito
material, que é objeto do recurso extraordinário, tiver sido anteriormente julgado pela
Corte, à luz da repercussão geral, então tal requisito de admissibilidade não estará
novamente presente neste último recurso e sobre ele o Supremo Tribunal Federal não se
debruçará mais, a não ser que algum Ministro deseje alterar a jurisprudência da Corte
e consiga convencer seus pares a fazerem o mesmo.
Nestes termos, não seria demasiado afirmar que toda decisão proferida por
um juiz a quo, que seja contrária à súmula ou à jurisprudência dominante no Supremo
Tribunal Federal, possui uma relevância jurídica que transcende ao interesse das partes e,
portanto, nela a repercussão geral estará sempre presente. Mas no que consiste tal
relevância jurídica? Justamente no entendimento de que todos os tribunais existentes no
país sempre deverão decidir as causas levadas ao seu conhecimento de acordo com o
posicionamento firmado pelo Supremo Tribunal Federal. Caso assim não procedam, suas
decisões serão liminarmente reformadas por nossa Corte Suprema, quando atacadas pelo
recurso extraordinário. E repetimos, a não ser que seja desejo da Corte alterar a sua
jurisprudência.
145
Sobre o § do art. 543-A do CPC, não podemos perder de vista que a
sistemática do recurso extraordinário, tal como posta antes da Emenda Constitucional n°.
45/04, prescrevia ao Supremo Tribunal federal uma verdadeira jurisdição obrigatória,
quando presentes as hipóteses do inciso III do art. 102 da CF. Já com a repercussão geral
cria-se um requisito de admissibilidade extraprocessual ao recurso extraordinário, uma vez
que sua presença não necessariamente se encontra na relação jurídica processual. Parece-
nos que o foco do recurso extraordinário foi alterado. Antes, focado nas partes do processo,
agora, se volta para o sistema jurídico.
Discorrendo sobre o dispositivo processual em comento, Luiz Guilherme
Marinoni e Daniel Mitidiero asseveram que:
164
nosso legislador alçou mão de uma rmula
que conjuga relevância e transcendência (repercussão geral
= relevância + transcendência). A questão debatida tem de
ser relevante do ponto de vista econômico, político, social,
ou jurídico, além de transcender para além do interesse
subjetivo das partes na causa. Tem de contribuir, em outras
palavras, para persecução da unidade do Direito no Estado
Constitucional brasileiro, compatibilizando e/ou
desenvolvendo soluções de problemas de ordem
constitucional. Presente o binômio, caracterizada está a
repercussão geral da controvérsia.
Assim, no entendimento acima exposto, a relação jurídica de direito material
discutida no bojo do recurso extraordinário levado ao conhecimento do Supremo Tribunal
Federal somente será relevante na medida em que tal decisão possa ser utilizada em
164
MARINONI, Luiz Guilherme e MITIDIERO, Daniel. Repercussão Geral no Recurso Extraordinário, pág.
33.
146
diversos casos idênticos, promovendo a unidade das decisões do Poder judiciário sobre uma
determinada questão jurídica. A transcendência encontra-se justamente no fato de que tal
decisão servirá para promover a unidade das controvertidas questões de direito
constitucional que assolam o Poder judiciário e não somente para solucionar um litígio
entre as partes.
Afastando-se do posicionamento acima exposto, nestes termos se manifesta
Bruno Dantas:
165
Repercussão geral é o pressuposto especial de
cabimento do recurso extraordinário, estabelecido por
comando constitucional, que impõe que o juízo de
admissibilidade do recurso leve em consideração o impacto
indireto que eventual solução das questões constitucionais
em discussão terá na coletividade, de modo que se lho terá
por presente apenas no caso de a decisão de mérito
emergente do recurso ostentar a qualidade de fazer com que
parcela representativa de um determinado grupo de pessoas
experimente, indiretamente, sua influência, considerados os
legítimos interesses sociais extraídos do sistema normativo e
da conjuntura política, econômica e social reinante num
dado momento histórico.
Seja como for, neste caso iremos encontrar, como sempre ocorre, a
sistemática comunicacional enunciada no primeiro capítulo deste trabalho, qual seja, os
enunciados prescritivos contidos no § do art. 543-A do CPC, em um primeiro momento,
são interpretados pela doutrina, que deles procurará extrair e construir seu sentido, em
um segundo momento, tais enunciados serão aplicados pelo Supremo Tribunal Federal,
levando-se em consideração, em maior ou menor grau, ao disposto pela doutrina.
165
DANTAS, Bruno. Repercussão geral, perspectiva histórica, dogmática e de direito comparado, pág. 246.
147
De nossa parte, pensamos que dificilmente o Supremo Tribunal Federal irá
negar conhecimento a recurso extraordinário, com fundamento na ausência de repercussão
geral, caso a matéria constitucional ventilada no recurso ainda não tenha sido debatida pela
Corte. É comum o não conhecimento do recurso extraordinário uma vez entendido que não
houve violação direta à Constituição Federal. Trata-se, contudo, de outro requisito de
admissibilidade do recurso extraordinário. Porém, uma vez vislumbrada a potencial ofensa
ao texto constitucional, com relação à determinada matéria que ainda não foi objeto de
discussão pela Corte, cremos que o conhecimento do recurso dificilmente será negado com
fundamento na repercussão geral.
Dizemos isso, pois vislumbramos que duas importantes funções foram
acrescidas ao recurso extraordinário após a entrada em vigor da repercussão geral: (i) a
função unificadora da jurisprudência e (ii) a função de impor aos tribunais a quo o respeito
as suas decisões, sob pena de reforma liminar das mesmas.
Assim, não nos parecegico que o Supremo Tribunal Federal ao vislumbrar
que um determinado recurso extraordinário traga uma questão que contenha uma potencial
ofensa à Constituição Federal, que ainda não foi debatida pela Corte, venha dele não
conhecer, com fundamento na ausência de repercussão geral. Pois, se assim for, o Pretório
Excelso estará relegando o seu papel de guardião da Constituição Federal aos tribunais a
quo, na medida em que caberá a tais tribunais conferir a interpretação final sobre tema
constitucional. Ademais, a pluralidade de tribunais certamente acarretará no proferimento
148
de decisões jurídicas antagônicas, o que infirma a função unificadora da jurisprudência do
recurso extraordinário.
Pela atual postura adotada pelo Supremo Tribunal Federal nos parece muito
mais provável que a Corte venha a se manifestar sobre todas as questões constitucionais
que lhe forem remetidas inicialmente e, a partir de então, venha a negar seguimento aos
recursos extraordinários cujas decisões recorridas estejam de acordo com a posição firmada
pela Corte, ou lhes dar provimento monocraticamente, caso a decisão recorrida desafie o
posicionamento firmado pela Corte, como será a seguir demonstrado em seus pormenores.
Para corroborar o que acabamos de afirmar, trazemos a lume o pensamento
do Ministro Marco Aurélio, relator do recurso extraordinário n°. 599.316-7/SC, quando de
seu voto, em plenário “virtual”, pela presença da repercussão geral, no caso da limitação
pelo tempo, imposta pelo art. 31 da Lei 10.865/05, para o uso dos créditos da PIS e da
COFINS:
2. O simples fato de a pecha de inconstitucionalidade ter sido
colada a certo preceito de lei sugere, a mais não poder, a
relevância do tema, a ensejar o crivo do guardião maior da
Carta da República o Supremo. Na vida gregária, deve-se
marchar com segurança jurídica, evitando-se que, a partir
do mesmo enfoque, haja decisões conflitantes, as quais
sempre provocam descrédito. A unidade do Direito
pressupõe pronunciamentos em idêntico sentido.
3. Admito como configurada a repercussão geral da matéria
versada nas razões do extraordinário.
4. Publiquem.
Brasília residência , 29 de novembro de 2009, às 11h30.
149
5.4.3. Do regime jurídico processual estabelecido pela repercussão geral
Analisaremos, agora, a forma como se processa um recurso extraordinário à
luz da repercussão geral, quando a matéria nele versada ainda não tiver sido tratada pelo
Supremo Tribunal Federal.
A rigor, o recurso extraordinário deve ser interposto junto à presidência ou à
vice-presidência do tribunal onde foi proferida a decisão recorrida, devendo a parte
contrária ser intimada para oferecer contrarrazões. Após, o referido órgão jurisdicional irá
promover o prévio juízo de admissibilidade do recurso, caso seja negado seguimento ao
mesmo, tal decisão poderá ser atacada por agravo, caso contrário o recurso extraordinário é
remetido ao Supremo Tribunal Federal.
É interessante notar que diante de inúmeros recursos com causas
controvertidas idênticas, deverá o Tribunal a quo enviar ao Supremo Tribunal Federal
somente uma pequena amostra de tais recursos, sobestando-se os demais. Destarte, o
Tribunal a quo deverá, entre os inúmeros recursos que versam sobre a mesma matéria,
escolher os que melhor representam a matéria controvertida e encaminhá-los ao Supremo
Tribunal Federal, devendo os demais aguardar o julgamento de nossa Corte Suprema.
Uma vez alcançado o Supremo Tribunal Federal, o recurso extraordinário
será recebido pela Presidência da Corte para eventual distribuição. Em se tratando de
matéria que ainda não foi debatida pela Corte, o poderá a Presidência negar seguimento
150
ao recurso sobre o pretexto de inexistência da repercussão geral, pois ainda não prévio
posicionamento do Tribunal sobre o tema. Assim, o recurso deverá se distribuído a uma das
turmas para julgamento.
Após a distribuição, o relator irá verificar a presença dos demais requisitos
de admissibilidade do recurso extraordinário, após, se debruçará sobre a repercussão geral.
Como nos primeiros casos sob análise do tribunal o não conhecimento do recurso
extraordinário, por carência de repercussão geral, depende da vontade de pelo menos dois
terços de seus membros, deverá o relator se manifestar sobre a presença ou não da
repercussão geral e remeter, por via eletrônica, aos demais ministros da Corte, o seu
entendimento para deliberação. Tal comunicação é conhecida no Supremo Tribunal Federal
como “plenário virtual”. Assim, os demais ministros da Corte irão votar sobre a
repercussão geral, acompanhando ou não o entendimento do relator. Caso não haja votos
suficientes (dois terços) para o não conhecimento do recurso, seu julgamento deverá
prosseguir sob o comando do relator, em sua respectiva turma. Após a lavratura de acórdão.
A presença da repercussão geral também pode ser realizada pelo plenário
presencial, contudo, a rigor, será realizada pelo “plenário virtual”, para uma melhor
racionalização dos trabalhos da Corte. Deste modo, é salutar lembrarmos que aos referidos
procedimentos “virtuais” deve ser conferida ampla e irrestrita publicidade, através do site
do Supremo Tribunal Federal (www.stf.jus.br), como bem lecionado por José Miguel
Garcia Medina:
151
Tanto a manifestação do relator (favorável ou
contria à repercussão geral) quanto a do ministro que dele
divergir deverão ser fundamentadas, e tornadas públicas ao
longo do procedimento, de modo a tornar conhecidas tais
razões de imediato, e não apenas ao final da deliberação
pelo plenário, acerca da presença (ou não) de repercussão
geral (cf. § do art. 543-A do CPC). Neste sentido, o art.
329 do Regimento Interno do STF impõe a “ampla e
específica divulgação do teor das decisões sobre repercussão
geral”.
166
Destarte, após a pronúncia do “plenário virtual” sobre a repercussão geral
não é lícito a turma se manifestar sobre o tema, devendo o referido órgão julgador se ater ao
mérito do recurso.
Ademais, consoante dicção do caput art. 324 do Regimento Interno do STF,
com redação dada pela Emenda Regimental n. 21/07, os demais Ministros da Corte
possuem prazo de vinte dias para encaminharem, por meio eletrônico, suas decisões sobre a
questão da repercussão geral. Contudo, o parágrafo único do referido dispositivo regimental
é enfático ao prescrever que: decorrido o prazo sem manifestações suficientes para recusa
do recurso, reputar-se existente a repercussão geral. Neste tema, acompanhamos o
entendimento de Bruno Dantas, ao lecionar que o Regimento interno do STF não pode
permitir que os ministros do tribunal se abstenham de votar, assim:
167
Apenas pelas vias da autodeclaração de
impedimento e suspeição, além do licenciamento provisório e
da ausência eventual, pode um ministro deixar de votar em
ação, recurso ou incidente submetido ao seu crivo. É
166
MEDINA. José Miguel Garcia. Prequestionamento e repercussão geral e outras questões relativas aos
recursos especial e extraordinário, pág. 343.
167
DANTAS, Bruno. Repercussão geral, perspectiva histórica, dogmática e de direito comparado, pág. 313 e
seguintes.
152
estranha ao Poder Judiciário a figura da abstenção,
corriqueira nas deliberações colegiadas do Poder
Legislativo.
Concluímos então, com o Autor supracitado, que o incidente de aferição da
repercussão geral apenas se conclui após a manifestação de todos os Ministros habilitados,
sendo que o prazo estabelecido pelo Regimento Interno do STF (vinte dias) é da classe dos
impróprios, ou seja, que não geram preclusão, uma vez que seu teor é meramente
organizacional.
É importante frisarmos, também, que é admitida a manifestação de terceiros,
como “Amicus Curie”, no julgamento da repercussão geral (art. 543-A § do CPC), assim
como, tal decisão valerá como acórdão e será publicada no diário oficial (art. 543-A § 7° do
CPC).
Assim, uma vez reconhecida a repercussão geral, o recurso seguirá seu curso
para julgamento, que é de competência da turma. Porém, não nos esqueçamos que a
questão constitucional nela versada é de competência do plenário, caso haja entendimento
da turma sobre a sua inconstitucionalidade e que tal entendimento ainda não tenha sido
julgado pelo plenário.
Caso o recurso extraordinário seja conhecido e julgado pelo Supremo
Tribunal Federal, todos os demais recursos que ficaram sobrestados nos tribunais a quo
deverão lhe seguir a mesma sorte. Caso as decisões dos tribunais a quo estejam em
conformidade com o julgamento proferido pelo Supremo Tribunal Federal, tais recursos
153
serão considerados prejudicados, ou seja, lhe será negado seguimento (art. 543-B § do
CPC). Contudo, caso as decisões dos Tribunais a quo sejam contrárias ao entendimento
proferido pelo Supremo Tribunal Federal, duas soluções se impõem: (i) a primeira é a
retratação do tribunal a quo¸ mediante alteração de seu julgado, para adequá-lo ao
posicionamento proferido pelo tribunal a quem.
168
Após tal procedimento, a decisão do
tribunal a quo passa a ser coerente com a decisão proferida pelo tribunal a quem, logo a
subida do recurso extraordinário deve ser negada, por ausência de repercussão geral (art.
543-B, § do CPC); (ii) a segunda é a manutenção, pelo tribunal a quo, de sua decisão,
neste caso o recurso deve ser remetido ao Supremo Tribunal Federal para cassação ou
reforma liminar do acórdão recorrido, nos termos do Regimento Interno do Tribunal (art.
543-B, § 4° do CPC).
Ante o exposto, observamos que as decisões dos tribunais a quo que não
sigam o posicionamento firmado pelo Supremo Tribunal federal, caso sejam atacadas
mediante recurso extraordinário, serão monocraticamente reformadas pelo Supremo
Tribunal Federal. Vislumbramos aqui uma eficácia extraprocessual que beira a vinculação
na medida em que regra impondo a retratação dos tribunais a quo ou a reforma de suas
decisões monocraticamente. Só não vislumbramos eficácia vinculante, em função de
acreditarmos que o desrespeito a tais decisões não podem ser atacadas pela via da
reclamação.
168
Trata-se de regra sui generis, nunca antes vista em nosso sistema processual.
154
5.4.4. Da irrecorribilidade das decisões sobre a repercussão geral
A constituição Federal prescreve que a decisão sobre a presença (ou não) de
repercussão geral depende da aprovação de dois terços (2/3) dos membros do Supremo
Tribunal Federal (art. 102, § 3°). o caput do art. 543-A do Código de Processo Civil é
enfático ao afirmar que as decisões do Supremo Tribunal Federal sobre a presença (ou não)
de repercussão geral são irrecorríveis. Por outro lado, o mesmo dispositivo legal, em seu §
5°, determina que: negada a existência de repercussão geral, a decisão valerá para todos
os recursos sobre matéria idêntica, que serão indeferidos liminarmente, ... . Assim, uma
tormentosa questão se apresenta, qual seja: as decisões, tomadas monocraticamente, sobre a
repercussão geral, são irrecorríveis?
Tal indagação se faz necessária, pois, caso a decisão sobre a presença (ou
não) da repercussão geral tenha sido proferida pelo plenário do Supremo Tribunal Federal,
seja ele “virtual’ ou presencial, não caberá recurso algum, salvo os embargos de declaração,
que, a rigor, podem ser interpostos contra qualquer decisão judicial, mesmo aquelas tidas
por irrecorríveis pela legislação, desde que tenha havido obscuridade, dúvida ou
contradição, ou omissão.
169
Situação bastante diferente é aquela na qual a decisão sobre a repercussão
geral é proferida monocraticamente, precisamente quando é negado seguimento ao recurso,
monocraticamente, em função da ausência de repercussão geral, uma vez que a matéria nele
169
Conforme PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Comentários ao Código de Processo Civil.
Tomo VII, pág. 401.
155
versada já foi objeto de julgamento pelo Supremo Tribunal Federal e a decisão recorrida se
encontra alinhada com o posicionamento firmado pela Corte. Por outro lado, o recurso
também pode ser julgado procedente, monocraticamente, caso a decisão recorrida seja
contrária a súmula ou jurisprudência dominante no Supremo Tribunal Federal (art. 543-B, §
4°, do Código de Processo Civil).
Como visto a competência conferida pelo legislador infraconstitucional ao
relator, para exame monocrático da repercussão geral, ou o seu julgamento liminar, é
restrito aos casos, nos quais a matéria versada no recurso analisado for IDÊNTICA ao caso
decidido pelo plenário do Supremo Tribunal Federal. Ou seja, pelo menos em tese, seria
vedada a sua aplicação para casos assemelhados, uma vez indispensável à identidade da
tese jurídica em discussão.
Assim, nas referidas decisões monocráticas, estamos com Bruno Dantas, ao
afirmar que elas podem ser combatidas pelo agravo interno, como prescrito pelo art. 557, §
do Código de Processo civil, corroborado pelo art. 327 § 2°, do Regimento interno do
Supremo Tribunal Federal, contudo, neste caso o fundamento único do agravo interno é a
distinção entre o precedente firmado pelo Plenário e o caso em apreciação.
170
Caso o
órgão colegiado entenda não se tratar de questões idênticas, assiste ao agravante o direito
público subjetivo de ver a questão examinada pelo Plenário,
171
sob pena de subversão do
dispositivo constitucional que estabelece a necessidade de rejeição do recurso
170
DANTAS, Bruno. Repercussão geral, perspectiva histórica, dogmática e de direito comparado, pág. 306.
171
Idem, pág. 306.
156
extraordinário, por ausência de repercussão geral, mediante o voto de dois terços (2/3) dos
membros do Supremo Tribunal Federal.
Se assim for, entendemos que o mesmo raciocínio deva ser aplicado para os
recursos extraordinários cuja remessa ao Supremo Tribunal Federal foi negada pelos
tribunais a quo, uma vez que não admitimos a subtração do recorrente em ver a
admissibilidade do seu recurso extraordinário ser analisada pelo Pretório Excelso.
Contudo, recentemente, o Supremo Tribunal Federal firmou posicionamento
com o seguinte conteúdo, exposto na página da Corte na internet:
172
D) EFEITOS DA REPERCUSSÃO GERAL SOBRE
OS AGRAVOS DE INSTRUMENTO:
I- ...
IV- Não cabe Agravo de Instrumento (CPC, art. 544)
nem Reclamação contra decisão monocrática da origem que
inadmite Recurso Extraordinário, aplicando entendimento do
STF sobre tema com Repercussão Geral.
Não cabe o Agravo de Instrumento do art. 544 do
CPC contra decisão do Tribunal ou Turma de origem que
inadmite Recurso Extraordinário, aplicando,
equivocadamente, entendimento do STF a respeito de tema
com repercussão geral. Tampouco cabe Reclamação, sob
pena de desvirtuar o sistema da repercussão geral.
Tratando-se de decisão monocrática, cabe Agravo
Regimental na origem, na forma do respectivo Regimento
Interno. (AI 760.358-QO, Rel. Min. Gilmar Mendes, e
Reclamações 7.547 e 7.569, Rel. Min. Ellen Gracie,
julgamento em 19/11/2009)..
172
Acessado em 30/03/10:
http://www.stf.jus.br/portal/cms/verTexto.asp?servico=jurisprudenciaRepercussaoGeral&pagina=processame
ntoMultiplo
157
O posicionamento acima exposto denota a tendência do Supremo Tribunal
Federal em cada vez mais dificultar a subida de recursos extraordinários e dos agravos de
instrumento deles oriundos, que tratem de questões pacificadas pelo plenário.
Observamos, no caso, que compete ao tribunal a quo analisar a identidade entre a matéria
debatida no recurso e aquela presente no precedente do Supremo Tribunal Federal, que
sequer, se digna a analisar a identidade entre elas.
De mais a mais, o dispositivo em comento traz mais uma tormentosa
questão, qual seja, saber quais serão os critérios utilizados pelo Poder judiciário para
determinar a identidade entre a matéria versada no recurso e aquela existente do precedente.
Diante desta nova perspectiva jurisprudencial, podemos entender que o
trabalho das partes envolvidas em um determinado processo deverá se encaminhar muito
mais no sentido de demonstrar a existência ou não da referida identidade, como visto no
agravo de instrumento 760.358 acima citado. No caso, a Turma Recursal fez uso de um
precedente do Supremo Tribunal Federal sobre a GDASST (gratificação de atividade de
seguridade social e do trabalho) e negou seguimento a recurso extraordinário que tratava da
concessão de outra gratificação a GDPGTAS, usou, portanto, de analogia e não de
identidade. Assim, tal argumento foi utilizado pela União, em sede de agravo de
instrumento, pleiteando a análise pelo Pretório Excelso sobre a GDPGTAS. Contudo, o
referido agravo de instrumento não foi conhecido pela Corte, que afirmou a competência do
tribunal a quo para proferir o julgamento sobre a identidade das questões, assim, fez o
recurso retornar ao tribunal a quo para que fosse processado como agravo interno, dado que
a decisão pelo não cabimento do recurso extraordinário era monocrática.
158
5.5. Dos recursos repetitivos no âmbito do Superior Tribunal de Justiça
Mesmo não sendo o nosso objeto de estudo específico, consideramos
pertinentes alguns comentários, mesmo que breves, sobre os recursos repetitivos no âmbito
do Superior Tribunal de Justiça.
No dia oito de maio de dois mil e oito (08/05/08) foi sancionada a Lei
11.672/08, que, adicionou o art. 543-C ao Código de Processo Civil e estabeleceu o
procedimento para o julgamento de recursos repetitivos no âmbito do Superior Tribunal de
Justiça. Posteriormente, foi editada, pelo próprio Superior Tribunal de Justiça, a Resolução
n°. 8, de sete de agosto de dois mil e oito (07/08/08), regulamentando a matéria no âmbito
daquela Corte. Destarte que o tema, mesmo não possuindo identidade, possui uma relativa
semelhança com o disposto no art. 543-B do Código de Processo Civil, uma vez que os
dois institutos em apreço visam a racionalizar o trabalho dos respectivos tribunais, servindo
como filtro para que questões idênticas não fiquem sistematicamente sendo remetidas
novamente para análise das Cortes.
Assim, quando houver multiplicidade de recursos especiais com fundamento
em idêntica questão de direito, o Presidente do Tribunal a quo deverá encaminhar ao
Superior Tribunal de Justiça apenas um ou mais recursos representativos da controvérsia,
sobrestando-se os demais até o julgamento final daquele Tribunal Superior. Depois, o
recurso deveser levado a julgamento pela respectiva Seção ou Corte Especial, conforme
159
a matéria, em regime de preferência sobre os demais casos, ressalvados os que envolvam
réu preso ou habeas corpus.
Após o julgamento do recurso, com a publicação do seu respectivo acórdão,
os recursos sobrestados na origem terão o seguimento negado, caso ataquem decisões em
consonância com o entendimento estabelecido pelo Superior Tribunal de Justiça. Por outro
lado, os recursos que tenham por objeto decisões contrárias ao posicionamento firmado
pelo tribunal deverão ser novamente analisados pelos tribunais a quo que poderão manter
ou alterar as suas decisões. Em caso de alteração do julgado, o recurso especial terá
seguimento negado, no caso da sua manutenção o recurso terá prosseguimento,
ensejando a análise dos demais requisitos de admissibilidade do recurso especial.
Recentemente, a Corte Especial do Superior Tribunal de
Justiça, ao decidir sobre questão de ordem levantada pelo Ministro Aldir Passarinho Junior,
determinou que as decisões tomadas pelos tribunais a quo que mantém o posicionamento
contrário ao entendimento firmado pelo Superior Tribunal de Justiça pelo rito dos recursos
repetitivos, devem ser fundamentadas. Ocorre que em diversos casos, todos com origem no
Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, a reapreciação das apelações pelas respectivas
câmaras, após o julgamento pelo Superior Tribunal de justiça, era mera ratificação, uma vez
feita mediante simples “tira” do julgamento. Agora, contudo, conforme entendimento do
referido Ministro, uma nova apreciação deve ocorrer mediante a exposição da
argumentação em contrário, rebatendo, objetivamente, as conclusões aqui firmadas.
173
173
Como nos dá notícia o site migalhas.com.br. Acessado em 16/12/09:
http://www.migalhas.com.br/mig_imprimir_sem_imagem.aspx?cod=99286.
160
Insta frisar que não vislumbramos nas decisões tomadas pelo
Superior Tribunal de Justiça, em sede de recurso especial, pelo rito dos recursos repetitivos,
a mesma eficácia extraprocessual verificada nas decisões tomadas pelo Supremo Tribunal
Federal, em sede de recursos extraordinários, à luz da repercussão geral, uma vez que a
legislação em comento não obriga os tribunais a quo a se retratarem. Contudo, uma vez
firmado o precedente pela Seção ou Corte Especial, os demais recursos especiais fundados
em idêntica controvérsia serão julgados monocraticamente pelo Presidente do Tribunal,
caso ainda não tenham sido distribuídos, ou pelo relator, caso a distribuição já tenha
ocorrido, como se observa no procedimento adotado para análise da repercussão geral.
Ademais, o mesmo vale para os agravos de instrumento que ataquem a não admissão do
recurso especial, tudo nos termos da Resolução n°. 08 do Superior Tribunal de Justiça.
Neste contexto, caso o tribunal a quo não se curve ao entendimento firmado
pelo Superior Tribunal de Justiça, apenas irá postergar a decisão final do processo, uma vez
que o recurso especial será monocraticamente julgado pelo Superior Tribunal de Justiça, ou
seja, apenas impõe às partes litigantes uma maior demora na obtenção da prestação
jurisdicional. Assim, nos parece mais lógico que caminhou mal a legislação processual ao
não determinar a retratação do tribunal a quo, como verificado na disciplina da repercussão
geral.
161
5.5. Do distanciamento quanto à eficácia das decisões judiciais proferidas pelo
Supremo Tribunal Federal e pelo Superior Tribunal de Justiça
Como é cediço o Supremo Tribunal Federal é o órgão de cúpula do Poder
Judiciário Brasileiro na medida em que, dentre outras competência, é o órgão encarregado
de conferir a última palavra prescritiva em matéria constitucional e são os dispositivos
constitucionais que conferem fundamento de validade para todas as normas jurídicas do
nosso ordenamento jurídico.
Por outro lado, o Superior Tribunal de Justiça, assim como os demais
tribunais superiores (Tribunal Superior do Trabalho, Tribunal Superior Eleitoral, Tribunal
Superior Militar), são os tribunais encarregados de promover a unificação do direito federal
infraconstitucional, na medida em que, na atual estrutura do Poder judiciário Brasileiro, é
da competência destes tribunais conferirem a última palavra prescritiva para a aplicação da
legislação federal infraconstitucional.
174
Aliás, como exposto neste trabalho, em linhas gerais, a atual competência
jurisdicional do Superior Tribunal de Justiça, à luz da Constituição de 1967, era outorgada
ao Supremo Tribunal Federal, tendo ocorrido, com a atual Carta Política, uma nova
distribuição de competências com a criação daquele tribunal superior, principalmente com a
criação do recurso especial.
174
FILHO. Vicente Greco. Direito processual civil brasileiro, vol. 02, pág.367.
162
O que gostaríamos de frisar, neste tópico, é que tanto a repercussão geral,
quanto a súmula vinculante são mecanismo que possuem a função precípua de uniformizar
a jurisprudência, seja conferindo eficácia vinculante ou eficácia extraprocessual especial às
decisões do Supremo Tribunal Federal. Porém, os efeitos produzidos por tais institutos
ainda não estão presentes na esfera de competência dos demais tribunais superiores.
Se não, vejamos, com a Emenda Constitucional 42/03, foi atribuído, ao
Supremo Tribunal Federal, competência para instituir a súmula vinculante, que são verbetes
eficazes contra todos os órgãos do Poder Judiciário e da administração pública direta e
indireta, cuja não observância pode ser atacada pela reclamação. Contudo, no caso dos
tribunais superiores, suas súmulas não ganharam tal status. Como será visto adiante,
uma grande distinção, do ponto de vista da eficácia jurídica, entre uma súmula e a súmula
vinculante.
Esta questão merece uma reflexão.
Se ao Supremo Tribunal Federal foram conferidos poderes para a instituição
da súmula vinculante, uma vez que se trata do tribunal que confere a última palavra
prescritiva sobre a matéria constitucional e, por isso mesmo, suas decisões devem ser mais
eficazes e eficientes, qual a razão para que o mesmo pensamento não fosse aplicado aos
tribunais superiores, em especial ao Superior Tribunal de Justiça, na medida em que tais
tribunais conferem a uniformização da legislação federal?
163
A nosso ver, nenhuma. Todos os argumentos utilizados para justificar a
instituição da súmula vinculante, no âmbito de competência do Supremo Tribunal Federal,
podem e devem ser utilizados a ensejar a criação da súmula vinculante no âmbito de
competência do Superior Tribunal de Justiça. Os dois tribunais encontram-se
sobrecarregados, possuem as mesmas funções, atuando o primeiro no âmbito constitucional
e o segundo no âmbito da legislação federal, suas decisões devem ser eficazes para
promover a unificação da jurisprudência em nossos tribunais e assim por diante.
Pode-se dizer o mesmo a respeito do procedimento da repercussão geral
(STF) e a sistemática dos recursos repetitivos (STJ). Por que o primeiro se impõe perante os
tribunais a quo (na medida em que tais tribunais são obrigados a se retratarem caso julguem
de forma contrária ao decidido pelo Supremo Tribunal Federal) e a segunda não? Se a
função é conferir uniformidade à jurisprudência, por que as decisões do Superior Tribunal
de justiça também não podem se impor perante os tribunais a quo?
Seja como for, a sistemática dos recursos repetitivos, no âmbito do Superior
Tribunal de Justiça, apesar de não se impor aos tribunais a quo, possui uma característica
básica presente a repercussão geral, que é servir de filtro para o conhecimento,
processamento e julgamento dos recursos especiais que são direcionados àquela corte
superior.
O sistema processual brasileiro passa por uma franca e constante evolução,
na medida em que, gradualmente, vai introduzindo institutos assemelhados àqueles
observados nos países da common law, e ou criando novos institutos, que conferem, cada
164
vez, uma maior eficácia extraprocessual às decisões judiciais emanadas dos tribunais
superiores, podendo, atém mesmo, em determinados casos, possuírem a eficácia vinculante.
Como dissemos, não obstante ser franca e constante, a evolução do sistema
processual brasileiro é gradual. Assim, neste momento, observamos que existe um
distanciamento, um descompasso, entre a eficácia extraprocessual conferida às decisões do
Supremo Tribunal Federal e às do Superior Tribunal de Justiça, valendo o mesmo para o
instituto da súmula, como visto. No entanto, acreditamos que tal distanciamento é
passageiro. Na medida em que ocorrer, com o passar do tempo, uma consolidação quanto à
aplicação da repercussão geral e da súmula vinculante, no âmbito do Supremo Tribunal
Federal, não restará outra alternativa viável ao processo brasileiro a não ser conferir a
mesma eficácia as decisões emanadas dos tribunais superiores, em especial ao Superior
Tribunal de Justiça.
165
CAPÍTULO 6. DA SÚMULA VINCULANTE
6.1. Origem
Parece-nos que é estudando o direito português, mais precisamente o
instituto desenvolvido e denominado como “assentos”, que encontraremos as origens da
súmula em nosso ordenamento jurídico.
No início da monarquia portuguesa, a autêntica interpretação das leis era
uma prerrogativa exclusiva do monarca, que a exercia mediante a publicação de leis
interpretativas, ao presidir os julgamentos proferidos pela Casa de Suplicação. Com o
passar dos anos, contudo, ao que tudo indica, tendo em vista a multiplicidade de funções
administrativas atribuídas aos reis portugueses, D. Manuel conferiu ao tribunal superior do
reino competência para proferir a chamada interpretação autêntica, resguardando sua
competência para tal mister somente para alguns casos específicos. É de se notar que tais
julgamentos possuíam eficácia vinculante, possuindo, assim, valor normativo idêntico ao
das leis.
175
o alvará de 10 de dezembro de 1518, que posteriormente foi adotado e
ampliado pelas Ordenações Filipinas, estabeleceu um procedimento para a interpretação da
lei com eficácia vinculante consubstanciado em quatro regras básicas: (i) diante de dúvida
quanto à aplicação de uma lei, a questão deveria ser submetida a alguns desembargadores
da Corte perante a “mesa grande”; (ii) persistindo a dúvida, mesmo diante aquele órgão, a
175
TUCCI, José Rogério Cruz e. Precedente judicial como fonte do direito, pág. 131.
166
questão deveria ser submetida ao crivo do rei; (iii) em todo caso, a decisão era inserida em
um “livrinho” para evitar dúvidas futuras e por último; (iv) se algum juiz desobedecesse a
tal determinação seria suspenso até quando obtivesse remissão pela graça real.
176
Assim, o tal “livrinho” passou a ser chamado de “Livro dos Assentos da
Relação”, pois as decisões nele inscritas foram denominadas de “assentos”.
Assim, os assentos da Casa de Lisboa geravam efeitos no Brasil quando
colônia e no início de nossa fase imperial, pois mesmo após a proclamação da
independência as ordenações filipinas continuaram a vigorar no Império do Brasil. Neste
contexto, mesmo diante do silêncio da Carta Imperial sobre os assentos, o Decreto
Legislativo 2.684/75 promoveu a expressa recepção dos mesmos ao ordenamento jurídico
pátrio imperial, conferindo-lhes força de lei e impondo ao então Supremo Tribunal de
Justiça levá-los na devida conta. Finalmente, o Decreto 6.142/76, regulamentou a edição de
assentos pelo mencionado Tribunal. Destarte, somente com a primeira Carta Republicana
de 1891 é que teve fim a aplicação dos assentos entre nós.
177
Ainda segundo os ensinamentos de Rodolfo de Camargo Mancuso, a
averbação dos assentos no Livro das Relações possuía função dúplice, a saber: (i) a função
documental, para que a lembrança do julgado, como sendo a melhor interpretação a ser
conferida a determinado dispositivo das ordenações não fosse perdida; (ii) a função
operacional, viabilizando a pesquisa dos operadores do direito e a sua respectiva aplicação
176
TUCCI, José Rogério Cruz e. Precedente judicial como fonte do direito, pág. 134.
177
MANCUSO. Rodolfo de Camargo. Divergência Jurisprudencial e Súmula Vinculante, pág. 199.
167
para a solução de casos análogos.
178
Não é demasiado afirmar que as funções dos assentos,
acima expostas, até hoje estão presentes em nosso direito sumular,
É digno de nota que a figura dos assentos perseverou no direito português
até recentemente, mais precisamente até o ano de 1995, quando o art. do Código Civil
português, que o prescrevia, foi revogado pelo Decreto-Lei n°. 329-A/95. Já entre nós,
como visto, os assentos foram extirpados de nosso ordenamento jurídico com a primeira
Carta Republicana (1891), que previa outros mecanismos para a uniformização da
jurisprudência.
Contudo, tais mecanismos não surtiram os efeitos desejados e com o
desenrolar do Século XX a insegurança jurídica causada pelas díspares decisões judiciais,
aliada ao acúmulo de processos no Poder Judiciário, notadamente com a interposição de um
elevado número de recursos perante os tribunais, no mais das vezes tratando sobre questões
idênticas, ensejaram que o insigne processualista, Prof. Alfredo Buzaid, quando da
elaboração do anteprojeto do Código de Processo Civil de 1973, ainda em vigor,
novamente previsse os assentos obrigatórios, com força de lei, quando de decisão da
maioria absoluta dos membros do Supremo Tribunal Federal ou dos Tribunais de Justiça.
Porém, após veemente ataque por parte da doutrina, a referida proposta foi rejeitada pela
comissão revisora, que optou por estabelecer o incidente de uniformização de
jurisprudência tal como prescrito no art. 476 e seguintes do atual Código de Processo Civil
(1973). Esta decisão acabou por revelar-se uma solução tacanha, a meio caminho entre a
178
MANCUSO. Rodolfo de Camargo. Divergência Jurisprudencial e Súmula Vinculante, pág. 202.
168
força persuasiva e a força vinculativa, que efetivamente não solucionou os problemas acima
expostos.
179
Como visto, a idéia dos assentos obrigatórios sempre foi rechaçada em
nosso ordenamento jurídico desde a primeira Carta Republicana. No entanto, em mil
novecentos e sessenta e três (1963), por meio de normas regimentais, foi criada a Súmula
da Jurisprudência Predominante do Supremo Tribunal federal, com o escopo de atenuar a já
excessiva carga de trabalho da Corte Suprema. Assim, após a sua criação, relevante foi o
papel desempenhado por tal súmula como mecanismo auxiliador e agilizador do trabalho da
Corte. Tudo conforme o disposto em seu Regimento Interno, várias vezes alterado ao longo
dos anos.
180
Após a criação da Súmula da Jurisprudência predominante do Supremo
Tribunal Federal, foi editada a Lei 5.010/66, onde o art. 63 autorizava ao então Tribunal
Federal de Recursos emitir súmula para a orientação da Justiça Federal de primeira
instância. No entanto, foi com a edição do atual Código de Processo Civil, em 1973, que o
instituo da súmula foi adotado junto aos demais tribunais da União e dos Estados da
Federação. Segundo o caput do art. 479 do Código de Processo Civil: o julgamento tomado
pelo voto da maioria absoluta dos membros que integram o tribunal, será objeto de súmula
e constituirá precedente na uniformização da jurisprudência.
179
MANCUSO. Rodolfo de Camargo. Divergência Jurisprudencial e Súmula Vinculante, pág. 205.
180
Conforme lições de MOREIRA, José Carlos Barbosa. Temas de Direito Processual. Nona Série, pág. 300.
169
Como visto, a intenção do Professor Alfredo Buzaid, ao redigir o anteprojeto
do atual Código de Processo Civil, era conferir eficácia vinculante à súmula, no entanto,
como a sua idéia não foi aceita, a rigor, a única eficácia que inicialmente a súmula possuía
em nosso ordenamento jurídico era a persuasiva.
Contudo, valendo-se da existência das súmulas, algumas sucessivas
reformas legislativas processuais acabaram por aumentar sensivelmente a competência do
relator dos recursos para decidir sozinho sobre as questões de direito sumuladas. Assim,
o art. 38, da Lei 8.038/90, lhe conferiu poderes para, no âmbito do Supremo Tribunal
Federal e do Superior Tribunal de Justiça, negar seguimento ao recurso contrário ao
entendimento sumulado pelo respectivo tribunal. a Lei 9.139/95, dando nova redação ao
art. 557 do Código de Processo Civil, estendeu a todos os tribunais a competência acima
descrita para o relator. Por seu turno, a Lei 9.756/98, alterando os artigos 544 e 557 do
Código de Processo civil, dentre outras medidas, conferiu competência ao relator para, em
alguns casos, monocraticamente, dar provimento ao recurso quando a decisão recorrida
estiver em manifesto confronto com Súmula ou jurisprudência dominante do Supremo
Tribunal Federal, ou de Tribunal Superior (art. 544, § 1°-A).
-se, portanto, que, após tais reformas, a súmula passou a servir como
fundamento para o relator tomar importantes decisões monocráticas, tornando mais célere o
trabalho dos tribunais. Assim, passa a súmula a possuir novo status dentro do ordenamento
jurídico brasileiro, na medida em que sua eficácia deixa, definitivamente, de ser meramente
persuasiva.
170
Por outro lado, não obstante serem as súmulas desprovidas de eficácia
vinculadora, na prática, suas proposições exercem enorme influência nos julgamentos
realizados pelos mais diversos órgãos do Poder judiciário no Brasil, seja em primeiro ou
segundo grau de jurisdição.
Aliás, com o passar do tempo, observamos, cada vez com maior frequência,
que em muitos casos a fundamentação das decisões judiciais restringe-se à citação de uma
súmula ou de julgados dos tribunais, como se tal prática fosse suficiente para fazer cumprir
o disposto no inciso IX, do art. 93, da Constituição Federal. Ademais, lembre-se que a
referida prática forense é muito mais comum nos juízos de segunda do que de primeira
instância e geralmente é justificada pela sobrecarga de trabalho e pelas existências de
controvérsias repetitivas.
Acerca desta questão, trazemos a lume uma interessante reflexão de Alfredo
Augusto Becker:
181
Outro fenômeno contemporâneo é o da
contração dos textos escritos e a substituição do Verbo por
um Sinal. Um exemplo: a Súmula do Supremo Tribunal
Federal substituiu as fundamentações doutrinárias.
Substituiu até mesmo a citação dos textos legais aplicáveis
ao caso. Por sua vez, o próprio texto da Súmula é substituído
por um Signo: a cifra numérica.
As afirmações acima descritas partem de pressupostos teóricos científicos
que não são abertamente tratados neste estudo e sua citação pode parecer um tanto quanto
181
BECKER. Alfredo Augusto. Carnaval Tributário, pág. 90.
171
fora de contexto. Contudo, com ela gostaríamos de trazer a lume o pensamento do mestre
gaúcho no sentido de que a fundamentação de uma decisão judicial não pode se restringir a
mera citação de uma súmula, sob pena de se perder a cognição do efeito jurídico, mediante
a reflexão do raciocínio, restando tão somente o choque psíquico: sensação-ação.
Concluindo seu raciocínio, assim se manifesta Becker:
182
Ora, quando para a apreensão (ou
transmissão) das idéias se elimina a fase intermediária da
reflexão pelo raciocínio e se utiliza o mecanismo psíquico da
ligação direta: sensação-ação, o indivíduo humano perde a
possibilidade de ajuizar sobre a qualidade sadia ou nociva
da conduta que lhe está sendo imposta (ou que ele pretende
impor a outros). Perde a oportunidade de aperfeiçoar o
instrumental jurídico e substituir o que se tornou obsoleto
(ou prejudicial) por novas regras jurídicas. Perde a
humanidade. Coisifica-se.
A preocupação exposta pelo saudoso jurista gaúcho é, aliás, o centro de toda
a discussão que envolve os instrumentos jurídicos que pretendem vincular uma decisão
judicial a outra, emanada de órgão jurídico superior, qual seja, o risco de engessamento do
pensamento jurídico. Trata-se da sempre presente inquietação que a imposição dos
precedentes causa na doutrina, em função do seu potencial inibir da mutabilidade do
pensamento jurídico, tendo em vista a constante evolução dos valores sociais. A
uniformização da jurisprudência é necessária para conferir segurança e isonomia ao sistema
jurídico, no entanto, tal sistemática não pode impedir a evolução do pensamento jurídico.
182
BECKER. Alfredo Augusto. Carnaval Tributário, pág. 94.
172
Parece-nos que o grande desafio dos sistemas jurídicos da atualidade é encontrar o
equilíbrio entre estes dois relevantes argumentos.
183
Seja como for, o tema da vinculariedade da mula voltou à tona em mil
novecentos e noventa e três (1993), quando da Revisão Constitucional, na qual um projeto
de Emenda Constitucional encabeçado pelo então Deputado Federal Nelson Jobim, previa a
adoção de Súmula, com eficácia vinculadora, mediante decisão de três quintos dos
membros dos respectivos tribunais. No entanto, a tentativa de conferir eficácia vinculadora
à súmula fracassa novamente, principalmente em função de generalizados protestos da
comunidade jurídica brasileira, encabeçados pelas associações de classe dos magistrados,
que vislumbravam na súmula vinculadora um mecanismo a ferir gravemente a autonomia
do Poder Judiciário, uma verdadeira camisa de força.
184
Dez anos depois, com a aprovação da Emenda Constitucional 45/04,
denominada “reforma do Poder Judiciário”, foi introduzido o art. 103-A na Constituição
Federal, prevendo, finalmente, a edição de súmula com eficácia vinculadora. No entanto,
tal eficácia circunscreve-se, única e exclusivamente, às súmulas editadas pelo Supremo
Tribunal Federal, como será adiante debatido.
183
Talvez este seja um dos maiores motivos a causar a aproximação dos sistemas jurídicos típicos da common
law e da civil law.
184
Tudo conforme STRECK. Lenio Luiz. Súmulas no Direito brasileiro, pág. 177 e seguintes.
173
6.2. Da previsão constitucional
Como visto, nos últimos anos, diversas foram as alterações na legislação
processual brasileira no sentido de conferir maior eficácia aos precedentes, sempre com o
escopo de tornar a jornada processual mais curta e a prestação jurisdicional mais efetiva.
Assim, os mecanismos de uniformização da jurisprudência ganharam cada vez mais
importância, principalmente nas questões constitucionais. O controle direito e abstrato de
constitucionalidade dos atos normativos sempre gozou de eficácia erga omnes e força
vinculante.
185
Contudo, o mesmo não se observa com o controle incidental e difuso, mesmo
diante do processo de objetivação por que passa o recurso extraordinário, aqui
debatido.
186
Assim, a Emenda constitucional de n°. 45/04, ao acrescentar a Constituição
Federal o art. 103-A, acabou por criar um novo mecanismo para conferir eficácia erga
omnes e força vinculadora as questões constitucionais decididas pelo Supremo Tribunal
Federal, principalmente pela via incidental e difusa.
Consoante dicção do dispositivo constitucional supracitado, o Supremo
Tribunal Federal, de ofício ou por provocação, depois de reiteradas decisões sobre um tema
constitucional, poderá, mediante aprovação de dois terços (2/3) dos seus membros, editar e
aprovar súmula que, após a sua publicação, terá força vinculante perante todos os demais
órgãos do Poder Judiciário e da administração pública direta e indireta, federal, estadual,
185
Mesmo antes da Emenda Constitucional de n. 45/04 a doutrina era praticamente unânime em afirmar a
força vinculante de tais julgados. Seja como for, a referida Emenda Constitucional foi explícita neste sentido,
para que não pairem mais dúvidas sobre a questão.
186
Vide item 4.4.
174
distrital ou municipal, competindo à legislação infraconstitucional disciplinar sua
elaboração, revisão ou cancelamento.
Ademais, a elaboração de uma súmula vinculante pressupõe que a questão
por ela prescrita seja controvertida no âmbito do Poder Judiciário ou da administração
pública, acarretando, assim, insegurança jurídica e multiplicidade de processos com
idênticas questões (§1°, do art. 103-A da CF).
Por último, ressalte-se que qualquer ato administrativo ou decisão judicial
contrário à súmula vinculante poderá ser atacada por um remédio jurídico constitucional
próprio, a Reclamação, que será proposta diretamente junto ao Supremo Tribunal Federal
(§3°, do art. 103-A da CF).
Como bem demonstrado por Tárek Moysés Moussallem, a súmula
vinculante
187
é um enunciado prescritivo com força ilocucionária de ordem normativa.
Aliás, enunciado prescritivo também em nível constitucional.
188
Eis a grande inovação do
instituto em questão com relação às súmulas tradicionais, cujos enunciados possuíam
eficácia apenas persuasiva, como visto no item 4.5 deste estudo. O vocábulo vinculante
denota a força prescritiva dos enunciados que compõem a súmula vinculante, que,
inclusive, ultrapassa os limites do Poder judiciário alcançando, também, toda a
administração pública.
187
O Autor utiliza a expressão vinculadora, ao contrário de vinculante, uma vez que este último vocábulo não
foi por ele encontrado em diversos dicionários, todos mencionados no artigo citado.
188
MOUSSALLEM. Tárek Moysés. Função das súmulas e critérios para aferir sua validade, vigência e
aplicabilidade. In: III Congresso Nacional de Estudos Tributários “Interpretação e Estado de Direito”, pág.
863.
175
As decisões do Supremo Tribunal Federal em sede de controle direto e
abstrato de constitucionalidade dos atos normativos possuem força vinculante e efeito erga
omnes. Contudo, o mesmo não ocorre com as decisões proferidas no controle incidental e
difuso, mesmo diante do processo de objetivação por que passa o recurso extraordinário
(item 4.4).
189
Assim, após sucessivos julgamentos sobre uma questão constitucional pela
via incidental e difusa, poderá o Supremo Tribunal Federal editar uma súmula vinculante
conferindo ao entendimento pacificado pela via incidental força vinculante e efeito erga
omnes. Trata-se daquele processo de indução, tão conhecido na common law, o qual a partir
de uma norma individual e concreta se constrói uma geral e abstrata. Sobre o tema, assim se
posicionou André Ramos Tavares:
190
Compreende-se, no presente estudo, que a
súmula vinculante seja ou pretenda ser uma espécie de
ponte de ligação entre decisões (especialmente de controle
de constitucionalidade ou interpretativas) proferidas numa
dimensão concreta e uma decisão (sumulada) proferida em
caráter geral (abstrato).
Neste sentido, ainda segundo o professor acima citado, entendido que a
súmula vinculante é uma forma de transposição do concreto para o abstrato-geral, não se
pode perder de vista que os detalhes, interesses e particularidades dos casos concretos
apreciados pela Corte serão perdidos, quando da criação de enunciados abstratos. Assim, a
189
Como visto no capítulo anterior, mesmo com o advento da repercussão geral, ainda não podemos afirmar
que as decisões proferidas pelo plenário do Supremo Tribunal Federal, em sede de recurso extraordinário com
repercussão geral, possuem força vinculante.
190
TAVARES. André Ramos. Nova lei da súmula vinculante, pág. 15.
176
abstratividade é alcançada com a eliminação dos fatores concretos que deflagraram a
formulação da súmula vinculante.
191
Não nos restam dúvidas de que tal transposição, realizada mediante a
enunciação de enunciados linguísticos, não é tarefa das mais fáceis e pode acarretar
inúmeras controvérsias. Dizemos isso, pois, como todo enunciado linguístico, os
enunciados-enunciados que compõem a súmula vinculante também são passíveis de
interpretação, que poderão ser díspares, principalmente na medida em que tais enunciados
se afastam das particularidades fáticas que ensejaram a sua edição. Neste sentido, estamos
com Tárek Moysés Moussallem ao afirmar que:
192
Como todo enunciado prescritivo requer a
construção de sua significação para a posterior aplicação, a
súmula vinculante é novo enunciado no sistema de direito
positivo susceptível de interpretação. Se a súmula carece de
interpretação, certamente acarretará desencontros entre os
intérpretes.
Esta é uma questão bastante interessante. O conteúdo semântico da súmula
vinculante, na medida em que se afasta da concretude da situação fática que lhe deu origem
para buscar abstratividade, acaba se assemelhando em muito com o observado em um texto
de lei. Trata-se, em verdade, de enunciado linguístico que cria a estrutura que um fato deve
possuir para a ela subsumir-se. A única diferença essencial com um texto legal, diz respeito
ao fato de que a súmula vinculante é expedida pelo Poder judiciário, após uma série de
191
TAVARES. André Ramos. Nova lei da súmula vinculante, pág. 15.
192
MOUSSALLEM. Tárek Moysés. Função das súmulas e critérios para aferir sua validade, vigência e
aplicabilidade. In: III Congresso Nacional de Estudos Tributários “Interpretação e Estado de Direito”, pág.
863.
177
decisões judiciais em um mesmo sentido. Neste contexto, verifica-se plenamente factível
que o texto de uma súmula vinculante pode despertar, no espírito do aplicador do direito,
inúmeras interpretações jurídicas possíveis e como a não observância de tais súmulas
vinculantes é passível de ataque via reclamação, a tendência é o aumento do número dessas
ações junto ao Supremo Tribunal Federal, como já vem ocorrendo.
Tais conclusões não passaram despercebidas por Tárek Moysés Moussallem,
in litteris:
193
Toda vez que se ejeta novo enunciado
prescritivo no sistema aumenta a possibilidade de demandas.
Imagine-se agora que qualquer localidade do Brasil onde
houver decisão administrativa ou judicial cujos destinatários
entrevejam indícios de violação à súmula, tal sujeito poderá
provocar diretamente o Supremo Tribunal Federal via
reclamação (artigo 103-A, § 3°). A conseqüência disso é a
nociva multiplicação de processos no Supremo Tribunal
Federal.
Outra questão interessante, no que diz respeito à súmula vinculante, é o fato
dela também poder ser utilizada a partir de decisões em sede de controle direto e abstrato.
Como se observa na Súmula Vinculante n°. 02, onde o Supremo Tribunal Federal ampliou
a eficácia de decisões proferidas no âmbito do controle direto e abstrato. No caso, as
decisões do Supremo Tribunal Federal atingiam somente algumas legislações estaduais,
com a Súmula Vinculante n°. 02 passaram a alcançar todos os Estados da Federação,
193
MOUSSALLEM. Tárek Moysés. Função das súmulas e critérios para aferir sua validade, vigência e
aplicabilidade. In: III Congresso Nacional de Estudos Tributários “Interpretação e Estado de Direito”, pág.
865.
178
evitando-se, assim, a multiplicação de processos sobre a mesma questão, tendo como
diferencial o Estado da Federação onde foi produzida.
194
6.3. Súmula vinculante e repercussão geral
No momento, achamos por oportuno cotejar a súmula vinculante com a
repercussão geral. Como visto, os dois institutos visam a conferir uma maior eficácia
extraprocessual às decisões tomadas pelo Supremo Tribunal Federal em sede de recurso
extraordinário, ou seja, pela via incidental e difusa de controle de constitucionalidade dos
atos normativos. No caso da súmula vinculante, a partir de reiteradas decisões sobre uma
mesma situação fática, a Corte produz um enunciado prescritivo de caráter abstrato e geral,
uma vez que possui eficácia erga omnes e efeito vinculante. no caso da repercussão
geral, procura-se impor as decisões proferidas pelo supremo Tribunal Federal, em sede de
recurso extraordinário, aos tribunais a quo, promovendo, assim, a uniformização da
jurisprudência e evitando a subida de um grande número de causas que tem como objeto
uma questão jurídica já decidida e pacificada no âmbito do Supremo Tribunal Federal.
É interessante notar que a eficácia da súmula vinculante alcança todos os
órgãos do Poder Judiciário e da administração pública direta e indireta, o mesmo não
ocorre com as decisões tomadas à luz da repercussão geral, uma vez que tais decisões
geram efeitos extraprocessuais tão somente perante os tribunais a quo. Dizemos isso, pois
não encontramos qualquer dispositivo legal que obrigue um magistrado de primeira
194
Como bem anotado por TAVARES. André Ramos. Nova lei da súmula vinculante, pág. 16.
179
instância a julgar em conformidade com uma decisão tomada pelo Supremo Tribunal
Federal, à luz da repercussão geral.
Seja como for, dado ao caráter cada vez mais objetivo que é conferido ao
recurso extraordinário, é muito provável que os juízes de primeira instância passem a
seguir, cada vez com mais frequência, o posicionamento firmado pelo Supremo Tribunal
Federal em sede de controle incidental e difuso de constitucionalidade. Ademais, se assim
não se comportarem, estarão, em certa medida, apenas postergando o resultado do processo,
na medida em que os tribunais estão obrigados a decidir conforme o entendimento fixado
pelo Supremo Tribunal Federal, como visto.
Ademais, saliente-se que a nova sistemática processual imposta ao recurso
extraordinário, pela repercussão geral, é incompatível com um dos pressupostos da súmula
vinculadora, qual seja, a obrigatoriedade de que a súmula vinculadora poder ser editada
após reiteradas decisões sobre matéria constitucional (caput, do art. 103-A da CF).
Dizemos isso, pois a sistemática imposta pela repercussão geral visa
justamente evitar a proliferação de recursos extraordinários que tratem do mesmo tema
constitucional. Atualmente, é comum o julgamento de questões reiteradas vezes
decididas pela Corte, à luz da repercussão geral, somente para lhes conferir os efeitos
jurídicos que lhes são próprios. Por outro lado, quando uma nova e controvertida questão de
direito constitucional alcançar o Supremo Tribunal Federal, pela via incidental e difusa,
não mais espaço para reiteradas decisões sobre o tema, uma vez que após a deliberação
do Plenário da Corte sobre a questão, todos os demais processos deverão lhe seguir a
180
mesma sorte e já não mais serão remetidos ao Supremo Tribunal Federal, ou serão nele
julgados monocraticamente, de acordo com o leading case.
Assim, resta demonstrado que a precípua função da repercussão geral é
justamente evitar que o Supremo Tribunal Federal tenha que proferir reiteradas decisões
sobre uma determinada matéria constitucional. O que se quer é a reunião do plenário para a
solução, em uma única oportunidade, de uma série de casos cujas controvertidas questões
jurídicas constitucionais sejam idênticas.
Aliás, virou prática rotineira no Supremo Tribunal Federal a edição de
uma súmula vinculadora após o julgamento, pelo plenário, de um recurso extraordinário à
luz da repercussão geral.
Neste momento, é importante frisarmos que não deve existir contradição
entre o conteúdo de uma súmula vinculante e conteúdo da decisão de plenário tomada em
sede de recurso extraordinário com repercussão geral que lhe confere fundamento de
validade, pois, se assim for, teremos um foco potencial de insegurança jurídica, como
veremos oportunamente no capítulo seguinte ao analisarmos a Súmula Vinculante n°. 8,
que trata dos prazos de decadência e prescrição das contribuições previdenciárias.
Outra questão de vital importância é saber se o Supremo Tribunal Federal
pode ir além do decidido em sede de recurso extraordinário, ou deve se restringir ao
conteúdo da decisão proferida pela via incidental e difusa. Tal pergunta se impõe uma vez
181
que a edição da súmula vinculante tem como fundamento de validade uma decisão prévia,
geralmente tomada em sede de recurso extraordinário.
Levando-se em consideração a postura adotada pelo Supremo Tribunal
Federal, desde a entrada em vigor da súmula vinculante, não nos restam dúvidas de que a
Corte não hesitará em conferir delineamentos mais amplos ao conteúdo das súmulas
vinculantes do que aqueles proferidos nas decisões que conferem fundamento de validade
para a sua edição. Em outras palavras, verifica-se que a tendência do Supremo Tribunal
Federal, ao elaborar uma súmula vinculante, é criar hipóteses que sejam capazes de
disciplinar situações fáticas ou de direito muito mais amplas do que aquelas situações
julgadas pela Corte e que fundamentaram a edição da súmula vinculante, sempre que o
Supremo Tribunal Federal entender ser esta a solução mais eficaz para espancar, de uma
vez por todas, quaisquer dúvidas de interpretação que possam surgir em função dos temas
por ela decididos.
É o que se verifica na edição da Súmula Vinculadora n°. 23, ao prescrever
que a competência para o julgamento das ações possessórias, ajuizadas em decorrência do
exercício do direito de greve, pelos trabalhadores da iniciativa privada, é da Justiça do
Trabalho. O precedente da Corte diz respeito ao interdito proibitório (RE 579.648-5),
porém, o Supremo Tribunal Federal pretendeu conferir maior abstração à hipótese da
súmula vinculadora e a estendeu para todas as ações possessórias envolvendo o exercício
de greve dos trabalhadores da iniciativa privada. E, ao nosso sentir agiu bem, pois com tal
verbete eliminou a possibilidade da mesma questão vir a ser novamente discutida na Corte,
mas agora sob o título de reintegração de posse, por exemplo.
182
Se por um lado tal postura é louvável, na medida em que evita que a matéria
volte a ser discutida em casos análogos, que, apesar de não serem idênticos, são albergados
pela essência da decisão que confere fundamento de validade à súmula vinculante, não
podemos nos esquecer, também, que este agir em muito se assemelha, para não empregar o
vocábulo identidade, à atividade legislativa. Na medida em que o Supremo Tribunal
Federal se afasta da concretude do fato que enseja a súmula vinculante sua atividade torna-
se cada vez mais similar àquela desenvolvida pelo Poder Legislativo, na medida em que
não decisão judicial anterior no mesmo sentido daquele prescrito pela súmula
vinculante.
183
CAPÍTULO 7. ANÁLISE DE ALGUNS CASOS PRÁTICOS EM MATÉRIA DE
DIREITO TRIBUTÁRIO
7.1. Ainda a controvertida questão das normas gerais em matéria tributária e a
exigência quanto a sua veiculação por lei complementar
A Constituição Federal, ao disciplinar o processo legislativo brasileiro,
diferencia as leis complementares das leis ordinárias sob dois aspectos: (i) o formal, na
medida em que exige os votos da maioria (absoluta) dos membros da Casa Legislativa para
aprovação das leis complementares e somente os votos da maioria (simples) dos presentes à
sessão legislativa para aprovação das leis ordinárias; e (ii) o material, pois a Constituição
Federal determina que algumas matérias, necessariamente, devam ser tratadas em sede de
lei complementar. Dentre estas matérias encontramos as normas gerais em matéria de
direito tributário (art. 146 da CF).
Sob a égide da Constituição de 1946, ainda não havia qualquer distinção
entre os diplomas legais em apreço. Assim, apenas se cogitava falar de lei complementar
em sentido amplo, uma vez que, na exata e precisa lição de José Afonso da Silva, sempre
que uma norma constitucional de eficácia limitada exigir, para sua aplicação, outra lei, esta
pode ser considerada complementar, porque integra, completa, a eficácia daquela.
195
Porém, se assim for, segundo Victor Nunes Leal, todas as leis, em certa medida, são
195
SILVA, José Afonso da. Aplicabilidade das normas constitucionais, pág. 235.
184
complementares à Constituição, pois basicamente possuem a função de complementar os
princípios enunciados pela Constituição.
196
Seja como for, a Emenda Constitucional nº. 04, de 2 de setembro de 1961,
denominada de Ato Adicional, ao instituir o sistema Parlamentar de Governo, previa, em
seu art. 22, que a complementação do novo sistema de governo deveria seria feita por meio
de lei cuja aprovação dependeria dos votos da maioria absoluta dos membros das duas
Casas do Congresso. Contudo, o referido Ato Adicional não denominou tal lei como
complementar. Em verdade, a figura da lei complementar foi criada pela Emenda
Constitucional nº. 18/65, mas sem nenhuma distinção formal com relação às leis ordinárias.
Já com a Constituição de 1967, no que foi seguida pela Constituição de 1988, a lei
complementar ganha sua atual estrutura e se diferencia da lei ordinária sob o aspecto
material e formal, como acima exposto.
197
Este é um tema bastante rotineiro em matéria tributária, na medida em que,
desde a Constituição de 1967, a lei complementar é o instrumento hábil para inserir normas
gerais em matéria de direito tributário em nosso ordenamento jurídico. A dimensão
semântica pragmática desta atribuição, constitucionalmente entregue às leis
complementares, acarretou acirradas discussões acadêmicas, fazendo com que duas
correntes doutrinárias distintas fossem construídas.
196
LEAL, Victor Nunes. Leis complementares da Constituição. Revista de Direito Administrativo nº. 7, pág.
381
197
Tudo conforme. ESTEVES. Maria do Rosário. Normas gerais de Direito Tributário, pág. 76.
185
De se ver que a problemática interpretativa em questão é presente desde a
superada Constituição de 1967, onde restava prescrito, no art. 18, §1°, que:
Lei complementar estabelecerá normas gerais de direito
tributário, dispo sobre conflitos de competência nessa
matéria entre União, os Estados, o Distrito Federal e os
Municípios e regulará as limitações constitucionais ao poder
de tributar.
Assim, interpretando o dispositivo constitucional acima citado e não se
preocupando em demasia com a sua literalidade, mas sim, antes de tudo, prestigiando as
grandes diretrizes do sistema, principalmente o pacto federativo e autonomia dos
Municípios, assim se pronuncia o professor Paulo de Barros Carvalho:
A lei complementar do art. 18, § 1°, da
Constituição anterior, tinha uma única finalidade: veicular
normas gerais de direito tributário. Estas, por seu turno,
exerciam, duas funções: dispor sobre conflitos de
competência entre as entidades tributantes e regular as
limitações constitucionais ao poder de tributar.
198
A contrário senso, ainda à luz da constituição de 1967, emergiu outra
corrente doutrinária, mais apegada à interpretação literal da Constituição, afirmando
que as normas gerais em matéria tributária possuíam três diferentes funções: (i) emitir
normas gerais de direito tributário; (ii) dispor sobre conflitos de competência
tributária entre os entes tributantes; (iii) regular as limitações constitucionais ao poder
de tributar.
198
CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de Direito Tributário, pág. 196.
186
Pronto, estava estabelecida a divergência. Uns conferindo campo mais
restrito às normas gerais em matéria tributária prestigiando o pacto federativo e a
autonomia dos Municípios (corrente dicotômica) e outros pregando um papel mais
amplo às referidas normas gerais com fundamento em uma interpretação literal do
texto constitucional de 1967 (corrente tricotômica).
Esta, contudo, é uma questão histórica, na medida em que o tema, na
atualidade, deve ser analisado à luz da Constituição Federal de 1998, que tratou da
matéria no art. 146, com a seguinte redação:
Art. 146 Cabe à lei complementar:
I dispor sobre conflitos de competência, em
matéria tributária, entre a União, os Estados, o Distrito
Federal e os Municípios;
II regular as limitações constitucionais ao
poder de tributar;
III estabelecer normas gerais em matéria de
legislação tributária, especialmente sobre:
a) definição de tributos e de suas espécies,
bem como em relação aos impostos discriminados nesta
Constituição, a dos respectivos fatos geradores, bases de
cálculo e contribuintes;
b) obrigação, lançamento, crédito,
prescrição e decadência tributários;
c) adequado tratamento tributário ao ato
cooperativo praticado pelas sociedades cooperativas;
d) definição de tratamento diferenciado e
favorecido para as microempresas e para as empresas de
pequeno porte, inclusive regimes especiais ou simplificados
no caso do imposto previsto no art. 155, II, das contribuições
previstas no art. 195, I e § 12 e 13, e da contribuição a que
se refere o art. 239.
Parágrafo único. A lei complementar de que
trata o inciso III, d, também poderá instituir um regime único
de arrecadação dos impostos e contribuições da União, dos
Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, observando
que: ....
187
Mesmo com a atual dicção da Constituição Federal, que, inequivocamente,
prestigia a “corrente tricotômica”,
199
o professor Paulo de Barros Carvalho ainda mantém o
seu posicionamento, como, aliás, também o faz, de forma geral, os doutrinadores
pertencentes à “corrente dicotômica”. Em síntese, o referido autor enuncia que as normas
gerais em matéria de direito tributário são aquelas que dispõem sobre conflitos de
competência entre os entes tributantes e regulam as limitações constitucionais ao poder de
tributar.
200
E com relação ao inciso III, do art. 146 da Constituição Federal, assim se
manifesta:
201
Vejamos. Pode o legislador complementar,
invocando a disposição do art. 146, III, “a”, definir um
tributo e suas espécies? Sim, desde que seja para dispor
sobre conflitos de competência. Ser-lhe-á possível mexer no
fato gerador, na base de cálculo e nos contribuintes de
determinado imposto? Novamente sim, no pressuposto que o
faça para dispor sobre conflitos. E quanto à obrigação,
lançamento, crédito, prescrição e decadência tributários?
Igualmente, na condição de satisfazer àquela finalidade
primordial.
Assim, resta demonstrado que, para a chamada “corrente dicotômica”, o
prestígio conferido ao pacto federativo e a autonomia dos Municípios é incompatível à
interpretação literal do inciso III, do art. 146, da Constituição Federal, logo, confere às
normas gerais em matéria de direito tributário campo de atuação restrito, como visto.
199
Como reconhecido por CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de Direito Tributário, pág. 200.
200
Idem, pág. 208.
201
Ibidem, pág. 209.
188
Seja como for, uma nova geração de doutrinadores, ao interpretarem a atual
Constituição Federal, não vislumbram nas idéias propagadas pela “corrente tricotômica”
uma ofensa ao pacto federativo, como pode ser visto na obra de Eurico Marcos Diniz de
Santi, in litteris:
Note-se que, com esse sentido, a expressão
cunhada por ALIOMAR BALEEIRO, de que derivou a
expressão normas gerais em matéria de legislação tributária,
não arranha o pacto federativo, como querem aqueles que
levam em consideração apenas os incisos I e II do art. 146.
Pelo contrário, funcionam como expediente demarcador
deste pacto, posto que, com sua generalidade, além de
uniformizar a legislação, evitando eventuais conflitos
interpretativos entre as pessoas políticas, garante o
postulado da isonomia, entre União, Estado, Distrito Federal
e Municípios.
202
Não restam dúvidas, de que, esta nova postura doutrinária é fortemente
influenciada pelas idéias do professor Tércio Sampaio Ferraz Júnior, para quem, a estrutura
administrativa fechada brasileira, típica da Europa continental, favorece a função certeza,
exigindo, assim, homogeneidade e centralização do sistema tributário brasileiro, que
pode ser alcançado através das normas gerais padronizadoras da tributação da União, dos
Estados, do Distrito Federal e dos Municípios.
203
Como visto, o legislador constituinte conferiu maior prestígio à “corrente
tricotômica” e como demonstraremos a seguir a jurisprudência também seguiu o mesmo
caminho, na medida em que àquela função certeza, alcançada pela padronização da
202
SANTI, Eurico Diniz de. Decadência e Prescrição no Direito Tributário, pág. 88.
203
FERRAZ JÚNIOR, Tércio Sampaio. Segurança jurídica e normas gerais tributárias. Revista de Direito
Tributário, n° 17/18, pág. 50 e seguintes.
189
tributação, via centralização das normas gerais tributárias, a que se referia o professor
Tércio Sampaio Ferraz júnior, ganhou grande prestígio em um país com mais de vinte
Estados e cinco mil Municípios.
Seja como for, com maior ou menor campo de atuação, jamais se cogitou na
possibilidade de uma norma geral ter competência para instituir um tributo, ainda mais de
competência dos Estados, do Distrito Federal ou dos Municípios. Porém, ao que tudo
indica, após a consagração jurisprudencial da “corrente tricotômica”, o legislador
constituinte derivado não perdeu tempo em ampliar a ainda mais a competência das
referidas normas gerais ao acrescentar a alínea “d”, ao inciso III, do art. 146 e o parágrafo
único ao mesmo dispositivo constitucional. Dizemos isso, pois, com a Emenda
Constitucional n°. 42/03, as referidas normas gerais passaram a possuir duas novas
funções, quais sejam: (i) a definição do conceito de empresas de micro e pequeno porte e
(ii) o estabelecimento de um regime único de tributação para tais empresas,
204
inclusive
disciplinando tributos de competência dos Estados (ICMS) e dos Municípios (ISS).
205
Antes da Emenda Constitucional n°. 42/03 os entes tributantes possuíam
autonomia para criar, cada qual, um diferente conceito de empresas de micro e pequeno
porte. Assim, inúmeros conceitos de empresa de micro e pequeno porte foram criados
Brasil afora e serviram para disciplinar a tributação de tais empresas no âmbito da
competência tributária da respectiva pessoa política legiferante. Porém, com a entrada em
204
O SIMPLES NACIONAL ou SUPERSIMPLES, como ficou conhecida a sistemática de tributação
imposta pela Lei Complementar 126/07.
205
GUERREIRO, Mariana de Loiola. Empresas de micro e pequeno porte: regime constitucional e tributário,
pág. 186.
190
vigor da referida Emenda Constitucional, tal competência passou a ser das normas gerais,
consoante a linha de raciocínio centralizadora e padronizadora acima exposta.
No entanto, a Emenda Constitucional n° 42/03 foi mais longe, na medida em
que confere competência às normas gerais tributárias para a instituição de um sistema único
de arrecadação tributária, em face das empresas de micro e pequeno porte, que poderá,
inclusive, alcançar os referidos impostos (ICMS e ISS) de competência dos Estados,
Distrito Federal e Municípios.
Neste contexto, é perceptível que o rígido campo da repartição das
competências tributárias, tradicionalmente delineada pela Constituição, foi alterado.
Primeiro porque, conforme dispõe o art. da Emenda Constitucional 42/03, que
acrescentou o art. 94 ao Ato das Disposições constitucionais Provisórias:
Os regimes especiais de tributação para
microempresas e empresas de pequeno porte da União, dos
Estados do Distrito Federal e dos Municípios cessarão a
partir da entrada em vigor do regime previsto no art. 146,
III, “d” da Constituição.
Ademais, nos aprece que a competência tributária para a instituição do
IMCS e do ISS pelos Estados, Distrito Federal e Municípios, sobre as empresas de micro e
pequeno porte, ficou bastante prejudicada, para não dizer aniquilada, pois a lei
Complementar 126/07 ainda pressupõe uma pequena atividade legislativa de tais pessoas
políticas sobre a tributação das empresas em questão.
191
Em todo caso, também o nos restam dúvidas de que, sob a égide da nova
sistemática tributária adotada para as empresas de micro e pequeno porte, o Brasil se
comporta muito mais como um Estado Unitário, descentralizado administrativamente, do
que como um Estado Federal. É claro que o tema merece reflexões mais profundas, que não
compõem o escopo do presente trabalho. No entanto, a assertiva acima exposta nos faz
lembrar as lições do Professor Paulo de Barros Carvalho, que, ao defender um campo mais
restrito para a atuação das normas gerais tributárias o fazia em defesa do pacto federativo e
da autonomia dos Municípios, princípios estes bastante mitigados, para, repetimos, não
dizer aniquilados, pela nova sistemática de tributação imposta pela Emenda Constitucional
42/03, conjuntamente pela Lei Complementar 126/07, para as empresas de micro e
pequeno porte.
Retornando ao rumo de nossa jornada, do ponto de vista sintático, a
controvertida questão das normas gerais tributárias também chamou a atenção dos
tributaristas para o estudo das leis complementares, que se tornaram o veículo introdutor
das normas gerais tributárias. E o fizeram com afinco, com o escopo de elucidar a sua
natureza jurídica, determinando, assim, a sua verdadeira posição hierárquica dentro do
ordenamento jurídico.
Quando da entrada em vigor da Constituição de 1967, a doutrina
constitucional brasileira se apressou em concluir pela superioridade hierárquica da lei
complementar, em face da lei ordinária, tendo em vista o quórum qualificado imposto para
a aprovação daquela primeira espécie legislativa. Contudo, com o passar do tempo, este
ponto de vista não se sustentou, principalmente em função de alguns estudos que foram
192
realizados, principalmente, por eminentes tributaristas, como bem demonstrado por José
Afonso da Silva:
Na edição desta monografia dissemos, sem
maior distinção, que “as leis ordinárias são inferiores às leis
complementares, pelo quê têm que respeitá-las”. Após a
publicação do texto surgiram importantes trabalhos sobre as
leis complementares da Constituição, cabendo destacar as
monografias de Geraldo Ataliba e de Souto Maior Borges.
Alguns desses trabalhos procuraram refutar a tese da
relação hierárquica entre lei complementar e lei ordinária,
afirmando que antes se trataria de relação de competência
ratione materiae. Poder-se-ia, então, dizer que a questão é
de reserva legal qualificada, na medida em que certas
matérias são reservadas pela Constituição à lei
complementar, vedada, assim, sua regulamentação por lei
ordinária.
206
A transcrição foi longa, mas deveras importante, na medida em que
demonstra a evolução do pensamento doutrinário, que, sem sombra de dúvidas irá refletir
no processo de positivação do direito positivo, como demonstrado no primeiro capítulo
deste trabalho.
É cediço que uma lei ordinária não pode tratar de matérias
constitucionalmente reservadas à lei complementar, mas nada obsta que este último
diploma legal trate de matérias que não lhe foram reservadas. Ou seja, é lícito as leis
complementares tratarem de qualquer assunto passível de disciplina pelas leis ordinárias.
Assim sendo, indaga-se: caso a lei complementar trate de uma matéria que não lhe foi
constitucionalmente reservada, ela poderá ser revogada por uma lei ordinária? Em outros
206
SILVA. José Afonso da. Aplicabilidade das normas constitucionais, pág. 246.
193
termos: a lei ordinária está apta a revogar uma lei complementar que não trata de matéria a
ela reservada?
A consagração da superioridade hierárquica da lei complementar, sobre a lei
ordinária, nos leva a uma resposta negativa. Contudo, como visto, não foi neste sentido que
evoluiu o pensamento doutrinário, segundo Geraldo Ataliba:
... a lei complementar, fora de seu campo
específico que é aquêle expressamente estabelecido pelo
constituinte nada mais é que lei ordinária. A natureza das
normas jurídicas em sistema positivos como o nosso, objeto
de quase exaustivo tratamento constitucional é dada
conjuntamente pela forma (no caso, de elaboração) e pelo
conteúdo. Êste sem aquela não configura a entidade, da
mesma maneira que aquela sem êste. Só lei complementar
válida e eficaz, quando concorrem os dois elementos citados
para configurá-la.
207
Na insigne lição de Geraldo Ataliba, resta demonstrado que lei
complementar, àquela constitucionalmente delineada, quando presentes os dois aspectos
constitucionais que lhe são peculiares, quais sejam: o formal e o material. Sem o aspecto
material, a lei complementar não se subsume a hipótese delineada na Constituição Federal,
sendo, portanto, lei complementar apenas em sentido formal, ou seja, trata-se de uma figura
distinta daquela outra, prescrita pela Constituição e, por isso mesmo, é passível de
revogação por lei ordinária. Tais conclusões são importantes na medida em que
demonstram que a lei complementar não é necessariamente superior à lei ordinária.
207
ATALIBA, Geraldo. Lei complementar na Constituição, pág. 36.
194
Ademais, não podemos confundir a lei complementar, instrumento
introdutor de normas (enunciação-enunciada), com as normas por ela introduzidas no
sistema (enunciado-enunciado).
208
Assim, é cediço que algumas normas jurídicas,
introduzidas por lei complementar, são superiores a outras normas jurídicas introduzidas
por lei ordinária. Mas tal distinção hierárquica não decorre do instrumento introdutor de
normas, mas sim da própria natureza jurídica da norma introduzida, como bem
demonstrado por José Souto Maior Borges, que, à luz da Constituição de 1967, classifica as
normas introduzidas por lei complementar em dois grupos:
209
1º grupo:
Leis complementares que fundamentam a
validade de atos normativos (leis ordinárias, decretos
legislativos e convênios).
...
Art. 18 (omissis).
§ - Lei complementar estabelecerá normas
gerais de direito tributário, disporá sobre os conflitos de
competência nessa matéria entre a União, os Estados, o
Distrito Federal e os Municípios e regulará as limitações
constitucionais ao poder de tributar.
Ato normativo cuja validade depende de lei
complementar: leis ordinárias federal (arts. 18, §5º, 21 e 22),
estadual (art. 23) e municipal (art. 24).
...
2º grupo:
Leis complementares que não fundamentam a
validade de outros atos normativos.
210
208
A rigor, para guardar coerência com as premissas traçadas no primeiro capítulo deste estudo, não podemos
falar em normas introduzidas pelos textos legais até a sua aplicação, mas sim, em um conjunto de normas
possíveis de serem construídas a partir da interpretação/aplicação dos textos legais.
209
O Catedrático em Direito Tributário pela Faculdade de Direito do Recife não faz menção expressa às
normas introduzidas por lei complementar, limitando-se a classificar as leis complementares quanto a sua
hierarquia.
210
BORGES. José Souto Maior. Lei complementar tributária, pág. 87, 88 e 89.
195
Em outras palavras, se a norma jurídica introduzida pela lei complementar
conferir fundamento de validade para a produção de outra norma geral e abstrata, então
aquela será hierarquicamente superior a esta, caso contrário não.
Esta questão também é relevante, à luz da atual Constituição federal, na
medida em que guarda estrita relação com a medida provisória, que não pode tratar de
matérias reservadas à lei complementar. Assim, levando-se em consideração os
ensinamentos acima expostos, é perfeitamente possível que uma medida provisória venha a
suspender a eficácia de uma lei complementar, desde que este último diploma legal trate de
matéria que não lhe seja reservada pela Constituição Federal.
Por outro lado, observamos que o professor Hugo de Brito Machado possui
pensamento diametralmente oposto. Clamando por segurança jurídica, afirma o Catedrático
em Direito Tributário pela Universidade Federal do Ceará que a rigorosa delimitação das
matérias reservadas à lei complementar não é tarefa das mais fáceis e que, por isso mesmo,
pode causar sérias discussões jurídicas. Assim, preconiza a superioridade da lei
complementar frente à lei ordinária. No seu sentir, uma vez que determinada matéria foi
tratada em sede de lei complementar, somente outro texto legal do mesmo quilate é
instrumento hábil para revogá-lo. Coerentemente, afirma o autor, ainda, que as medidas
provisórias, além de não poderem tratar de matérias reservadas à lei complementar,
também, não podem tratar de matérias já disciplinadas por lei complementar.
211
211
MACHADO, Hugo de Brito. Curso de Direito Tributário, pág. 107 e 112.
196
Caso aceitemos a proposta acima formulada pelo professor Hugo de Brito
Machado, seremos forçados a concluir que o Congresso Nacional possui poderes para
restringir a disciplina de uma determinada matéria à lei complementar e,
consequentemente, impedir que tal matéria seja tratada por medida provisória. Esta,
todavia, não nos parece ser a melhor solução interpretativa para o caso em tela, na medida
em que, para nós, claro está que a competência para restringir a disciplina de uma
determinada matéria à lei complementar foi entregue à Constituição Federal e não ao
Congresso Nacional. Nesta linha de raciocínio, para que o nosso discurso seja coerente, o
referido órgão do Poder Legislativo também não pode impedir que uma matéria seja tratada
por medida provisória, em função de -la sobre ela debruçado em sede de lei
complementar.
Esta é uma questão emblemática e corrobora com as premissas
metodológicas desenvolvidas no primeiro capítulo deste trabalho. Se não, vejamos, os
dispositivos constitucionais que criaram a lei complementar e determinaram que este
instrumento normativo é o único apto a introduzir normas gerais em matéria de direito
tributário em nosso sistema jurídico, pertencem ao sistema do direito positivo. Contudo, e
como não poderia deixar de ser, tais enunciados prescritivos foram analisados,
interpretados e sistematizados pela doutrina, que sobre eles emitiu uma série de enunciados
descritivos. É cediço que o discurso científico deve ser coerente, evitando-se, assim,
antagonismos, porém, na medida em que diversos são os cientistas e múltiplas as correntes
doutrinárias preconizadas por tais cientistas, observamos o surgimento de discursos
científicos contraditórios entre si. Assim, como visto, a posição doutrinária preconizada por
Geraldo Ataliba e José Souto Maior Borges é incompatível com o entendimento firmado
197
por Hugo de Brito Machado. Paralelamente à discussão doutrinária, o ciclo de positivação
do direito segue seu curso e diversos dispositivos legais infraconstitucionais vão sendo
introduzidos no ordenamento jurídico com fundamento de validade nas normas
constitucionais em comento. Neste momento, podemos falar em norma jurídica
constitucional, pois a sua aplicação pressupõe interpretação e construção de sentido do
texto constitucional. Nesta medida, os novos enunciados prescritivos introduzidos no
ordenamento podem ser considerados inconstitucionais, caso os dispositivos constitucionais
que lhe conferem fundamento de validade sejam interpretados à luz de uma determinada
corrente doutrinária. Por outro lado, a compatibilidade constitucional de tais enunciados é
perfeitamente verificável à luz da corrente doutrinária antagônica.
Tudo é uma questão de interpretação. O texto constitucional é único, porém,
produz múltiplas interpretações antagônicas, realizadas por inúmeros cientistas e por
inúmeros aplicadores do direito no ciclo de positivação. De se ver que a interpretação da
Constituição é construída tanto pela linguagem prescritiva do direito positivo, quanto pela
linguagem descritiva da Dogmática Jurídica.
É exatamente neste contexto que emergem os principais litígios em matéria
de direito tributário. Na medida em que um determinado tributo pode ser tido como
inconstitucional, à luz de uma corrente doutrinária específica, é facultado ao contribuinte
acionar o Poder Judiciário, requerendo a tutela jurisdicional do Estado, para que o mesmo
prescreva a referida inconstitucionalidade e afaste do postulante a possibilidade de sofrer as
consequências da incidência tributária. Neste momento, a Fazenda Pública é chamada em
juízo para se defender e fatalmente fará uso da posição doutrinária antagônica, caso exista,
198
se não, produzirá um entendimento para afirmar a constitucionalidade do tributo. É a sua
tarefa, defender os interesses arrecadatórios do ente tributante.
Uma vez estabelecida a relação jurídica conflituosa, é obrigação do Poder
Judiciário resolvê-la. Para tanto, deverá, dentre as teses jurídicas que lhe são apresentadas,
acolher apenas uma delas, que será tida como “vitoriosa”. Trata-se da interpretação que, aos
olhos do Magistrado responsável pela solução da lide, é a mais acertada. Neste momento a
função persuasiva dos argumentos jurídicos formulados pela doutrina é imprescindível.
No entanto, inúmeros são os órgãos do Poder Judiciário, logo, alguns podem
escolher por uma solução e outros por outras. Neste momento entra o fundamental papel de
nossas cortes superiores, notadamente do Supremo Tribunal Federal, em determinar qual é
a interpretação constitucional que deverá prevalecer e impô-la aos demais órgãos do Poder
Judiciário e da administração pública.
Por outro lado, é sempre bom lembrarmos que os enunciados prescritivos do
direito positivo não podem calar a doutrina. Logo, mesmo tendo uma determinada corrente
doutrinária prevalecido no órgão de cúpula do Poder judiciário, nada obsta que os
defensores da posição contrária continuem a fazê-lo, através de seus estudos.
Neste contexto alguns casos práticos merecem nossa especial atenção e serão
analisados a seguir.
199
7.1.1. Da edição da Súmula Vinculante n°. 8 e do julgamento dos recursos
extraordinários que lhe deram origem
No dia onze de junho de dois mil e oito (11/06/08), o plenário do Supremo
Tribunal Federal, após reconhecer a presença da repercussão geral sobre a matéria em
questão, se reuniu para julgar, conjuntamente, os Recursos Extraordinários de nº. 560.626,
556.664, 559882 e 559.943. Os referidos recursos extraordinários foram interpostos pela
União, em face de julgamentos proferidos em sede de recurso apelação, realizados pelo
Tribunal Federal da 4ª Região, onde foi reconhecida a inconstitucionalidade dos art. 45 e 46
da Lei 8.212/91 e do parágrafo único, do art. 5º, do Decreto Lei 1.569/77.
O caput do art. 45, da Lei 8.212./91, prescrevia que o prazo (decadencial)
para a constituição dos créditos tributários das contribuições para a seguridade social
expirava em dez (10) anos. Já o caput do art. 46, do mesmo diploma legal, impunha prazo
(prescricional) de dez (10) anos para a cobrança dos referidos créditos tributários. Já o
parágrafo único, do art. 5º, do Decreto Lei 1.569/77, prescreve uma causa suspensiva do
curso do prazo prescricional para os créditos tributários. Dizemos que o dispositivo do
Decreto Lei prescreve e os da Lei 8.212./91 prescreviam, pois estes últimos foram
revogados pelo art. 13, inciso I, alínea “a”, da Lei Complementar 128/08.
212
Na origem, os referidos dispositivos legais foram considerados
inconstitucionais, uma vez que restou reconhecida a invasão de área (matéria) reservada à
212
A revogação de um dispositivo legal, após o mesmo ter sido objeto de declaração de inconstitucionalidade
por súmula vinculante, pode ser objeto de futuras reflexões. Quais seriam os efeitos jurídicos de tal
revogação?
200
lei complementar, uma vez que o art. 146, inciso III, alínea “b”, da Constituição Federal,
determina que tanto a prescrição quanto a decadência, em matéria de Direito Tributário, são
temas reservados à lei complementar.
Como bem demonstrado pelo Ministro Gilmar Mendes, relator de três dos
quatros recursos extraordinários em julgamento, diversos foram os argumentos
colacionados pela Fazenda Pública, nas razões dos referidos recursos extraordinários,
sustentando a constitucionalidade dos dispositivos legais em questão. Dentre eles, podemos
citar: (i) que os referidos preceitos legais não se qualificam como normas gerais de direito
tributário, mas sim como normas de cunho específico e que por isso mesmo não são
sujeitas à edição, ou alteração, pela via da lei complementar; (ii) que a exata extensão do
termo normas gerais em matéria de Direito Tributário ainda não foi bem definido pela
doutrina; (iii) que consoante as lições de Humberto Teodoro Júnior, as causas interruptivas
do prazo prescricional, tendo um processo em curso, são de natureza processual e não de
direito material tributário; (iv) que não há hierarquia entre lei complementar e ordinária; (v)
que o Código Tributário Nacional prevê a possibilidade de lei conferir prazo superior a
cinco (5) anos para homologação do crédito tributário (art. 150, § do CTN); e, por
último, (v) que consoante as lições doutrinárias de Roque Antonio Carrazza, a
determinação tanto dos prazos decadências, quanto prescricionais, não está albergada pelo
conceito de normas gerais em direito tributário.
213
213
Tudo conforme o relatório do recurso extraordinário 560.626/RS, publicado no DJ em 05/12/08, página
868 e seguintes. Também disponível no site do Supremo Tribunal Federal na internet:
HTTP://www.stf.jus.br/portal/inteiroteor/obterInteiroTeor.asp?numero=560626&classe=RE.
201
Neste momento, é bom esclarecermos o posicionamento firmado pelo
professor Roque Antonio Carrazza, para que sobre ele não pairem dúvidas. Segundo o
autor, tanto a prescrição quanto a decadência tributárias devem ser disciplinadas por meio
das normas gerais de direito tributário e, consequentemente, pela lei complementar.
Contudo, a alínea “b”, do inciso III, do art. 146, da Constituição Federal, deve se coadunar
com o princípio federativo, da autonomia municipal e da autonomia distrital. Assim,
entende que as normas gerais não podem tudo e devem se restringir a apontar diretrizes e
regras gerais, tais como estabelecer as causas extintivas do crédito tributário, determinar o
dies a quo destes fenômenos e estabelecer as causas impeditivas, suspensivas e
interruptivas da prescrição tributária, conforme as particularidades do direito tributário. No
entanto, não podem as normas gerais adentrar aos assuntos de peculiar interesse das pessoas
políticas, como o são o estabelecimento dos prazos prescricionais e decadências em matéria
de direito tributário, que, segundo ele, não se encontram sob a reserva legal da lei
complementar.
214
O Tribunal Pleno julgou improcedentes os recursos extraordinários em
apreço. Confirmando, assim, as decisões de inconstitucionalidade dos dispositivos legais
em comento, anteriormente proferidas pelo Tribunal Federal da Região. Contudo,
algumas questões relacionadas a este julgamento são bastante interessantes e merecem
nossa análise.
Em seu voto, o Ministro Gilmar Mendes, para rebater os argumentos
colacionados pela Fazenda Pública, com fundamento na doutrina lecionada pelo professor
214
CARRAZZA, Roque Antonio. Curso de Direito constitucional Tributário, pág. 793 e 794.
202
Roque Antonio Carrazza, traz à lume as lições da professora Mizabel Derzi, em suas
anotações a obra de Aliomar Baleeiro (Direito Tributário Brasileiro), como se necessário
fosse a existência de uma corrente doutrinária antagônica para justificar sua decisão.
Ademais, mesmo reconhecendo que a doutrina ainda não avançou satisfatoriamente na
delimitação de sentido preciso para a expressão “normas gerais”, o Ministro Gilmar
Mendes, vislumbra, nos dispositivos constitucionais em apreço, a função uniformizadora
das normas gerais, que devem ser obedecidas em âmbito nacional, se impondo perante
todas as pessoas políticas e cita consagrada doutrina lecionada, entre nós, por Geraldo
Ataliba, sobre as leis nacionais e federais.
Defendendo os interesses da Fazenda Nacional, falou na tribuna do Supremo
Tribunal Federal, o Dr. Fabrício da Soller, que reforçou os argumentos colacionados nas
razões dos recursos extraordinários. Porém, ao final de sua palavra, o Douto Procurador da
Fazenda Nacional requereu, caso a Corte julgasse improcedente os recursos extraordinários
em questão, a aplicação do art. 27, da Lei 9.868/99, que prevê a modulação dos efeitos da
declaração de inconstitucionalidade em função de razões de segurança jurídica ou de
excepcional interesse social. Assim, neste sentido, afirmou que a arrecadação das
contribuições previdenciárias é fundamental para o pagamento dos benefícios da
previdência social, assim como para promover assistência social e saúde para a população
de baixa renda. Ao final, afirmou ainda que o excepcional interesse social era presente para
justificar a modulação dos efeitos, caso os recursos fossem desprovidos, na medida em que,
segundo cálculos realizados pela Secretaria da Receita Federal do Brasil, tal decisão
afetaria diretamente a cobrança administrativa de vinte e um (21) bilhões de reais, de
créditos parcelados seriam mais vinte (20) bilhões de reais, de créditos pagos seriam
203
mais doze (12) doze bilhões de reais e, por último, em cobrança na dívida ativa da união
seriam mais quarenta e dois (42) bilhões de reais, totalizando em noventa e cinco (95)
bilhões de reais, que todos estes valores estariam relacionados com às situações
discutidas nos respectivos recursos extraordinários.
Em verdade, a matéria em questão desde muito fora pacificada no seio
do Supremo Tribunal Federal. Inúmeros são os precedentes da corte no sentido de que os
prazos de decadência e prescrição, em matéria de direito tributário, devem ser disciplinados
por lei complementar. Aliás, parece-nos que este julgamento tinha como escopo apenas
conferir os peculiares efeitos da repercussão geral sobre o tema, evitando-se, assim, novos
julgamentos sobre o caso. Inclusive, quando desta sessão plenária, era evidente o desejo
da Corte em emitir uma súmula vinculante sobre o tema. Ademais, quando de sua fala na
tribuna, era expressa a preocupação do Douto Procurador da República com a eminência
da elaboração de uma súmula vinculante sobre o tema, fato este que sepultaria, de uma vez
por todas, a tese afirmada pela Fazenda pública. Assim é que, falando da tribuna, o
defensor dos interesses da União expõe seus últimos argumentos, de ordem econômica, e
proclama que a improcedência dos recursos extraordinários acarretaria um prejuízo de
noventa e cinco (95) bilhões de reais aos cofres da União.
Insta frisar que não prova alguma, nos autos, de que estes dados sejam
verídicos, sequer existem indícios. Trata-se da enunciação de um suposto estudo formulado
pela Secretaria da Receita Federal do Brasil, que não se sabe em que bases foi realizado,
nem sequer quem foi o responsável por tal levantamento, aliás, com o devido respeito, não
204
sabemos até mesmo se a referida Secretaria reúne condições estruturais para levar a cabo tal
levantamento. Mas os números enunciados impressionam em muito.
Após as palavras do defensor dos interesses dos contribuintes, todos os
demais Ministros presentes à sessão plenária do Supremo Tribunal Federal proferiram seus
votos com argumentos eloquentes. Assim, por unanimidade, o plenário do Supremo
Tribunal Federal julgou improcedentes os recursos extraordinários em apreço com a
consequente declaração de inconstitucionalidade dos artigos legais em debate. Insta frisar,
que os eminentes Ministros usaram de diversos e brilhantes argumentos por eles mesmos
formulados, assim como de preciosas lições doutrinárias. De mais a mais, diversos foram os
precedentes invocados pelos eminentes Ministros, sejam do próprio Supremo Tribunal
Federal, como das demais Cortes Judicantes neste País, notadamente do Superior Tribunal
de justiça, citado pelo Ministro Menezes Direito.
No entanto, ao final da sessão, pretendeu o presidente do Supremo Tribunal
Federal, Ministro Gilmar Mendes, levar a julgamento a modulação dos efeitos da decisão
de inconstitucionalidade que a corte acabara de formular. Porém, não havia mais quórum na
Corte, uma vez que diversos Ministros se abstiveram, após proferirem seus votos.
Imediatamente, o Ministro Marco Aurélio pregou a conclusão do julgamento, sem a
modulação dos efeitos, por falta de quórum. Contudo, os demais ministros que ainda se
encontravam presente ao plenário foram contra e afirmando tratar-se de um julgamento em
etapas, deixaram para a sessão do dia seguinte o debate sobre a modulação dos efeitos.
205
No dia seguinte, ao iniciar os trabalhos, o Presidente da sessão plenária, de
pronto, levou a julgamento o pedido de modulação dos efeitos das decisões de
inconstitucionalidades proferidas no dia anterior. Preliminarmente, foi rejeitado um pedido,
formulado pelo defensor dos contribuintes, para a realização de nova sustentação oral,
tratando única e exclusivamente da modulação dos efeitos. Contudo, o pleito foi negado,
sob o argumento de que o mesmo não era necessário, porque, quando se coloca a questão
constitucional, já esta implícita esta possibilidade.
215
Após, passou o Presidente da corte a proferir seu voto com relação à
modulação dos efeitos. Assim, considerando a presença da repercussão geral, resolveu o
ministro relator acolher parcialmente o pedido de modulação dos efeitos, no que foi seguido
pelos demais Ministros à exceção do Ministro Marco Aurélio. Eis o conteúdo da decisão
extraído da ata da sessão plenária em apreço:
O Tribunal, por maioria, vencido o Senhor
Ministro Marco Aurélio, deliberou aplicar efeitos ex nunc à
decisão, esclarecendo que a modulação aplica-se tão-
somente em relação a eventuais repetições de indébitos
ajuizadas após a decisão assentada na sessão do dia
11/06/2008, não abrangendo, portanto, os questionamentos e
os processos em curso, nos termos do voto do relator,
Ministro Gilmar Mendes (Presidente), 12.06.2008.
o Ministro Marco Aurélio, ao divergir dos demais Ministros proferiu, ao
nosso sentir, voto histórico. Assim, transcrevemos parte significativa de seu voto, que, após
expor exaustivamente que o plenário da corte, desde a edição da Emenda Constitucional de
215
Consoante pronunciamento do presidente do Supremo tribunal Federal Ministro Gilmar Mendes, DJE n°.
232, divulgado em 04/12/08 e publicado em 05/12/08, pág. 924.
206
n°. 01/69, sempre afirmou que os institutos da decadência e da prescrição tributária devem
ser regrados via Lei Complementar, assim se manifestou:
216
Ministro Marco Aurélio: indaga-se: nós
podemos cogitar de um contexto a autorizar a modulação? A
meu ver, não. E decidimos pouco. que aqui os ventos
beneficiam o Estado. No caso anterior, o Estado também foi
beneficiado, mas o pleito se mostrou dos contribuintes.
Decidimos pouco numa situação mais favorável a
modulação e a modulação foi rechaçada quando julgamos a
questão da alíquota zero e do IPI. O Tribunal, nesta
oportunidade, e buscavam os contribuintes a modulação,
aqui quem quer a modulação é o Estado, o Tribunal apontou
que não haveria como se cogitar de insegurança jurídica,
porque os pronunciamentos anteriores, esses sim a favor dos
contribuintes, dos beneficiários do pleito de modulação, não
teriam transitado em julgado. Ora Presidente, neste caso
concreto, em que a jurisprudência do Supremo, desde 1969,
sempre foi no sentido de ter-se com indispensável no trato da
matéria mediante Lei Complementar, e a Lei 8.212, repito, é
de noventa e um, não há, ao meu ver, premissa que leve o
Tribunal a quase que sinalizar no sentido de que vale a
pena editar normas inconstitucionais, porque,
posteriormente, ante a morosidade da justiça, se acaba
chegando ao meio termo que, em última análise, ao invés
de homenagear a Constituição, de torná-la realmente
observada por todos amada por todos, passa a mitigá-la,
solapá-la, a feri-la praticamente de morte. Os contribuintes
que recolheram eles o terão o prazo de dez anos para a
ação de repetição de indébito. Eles terão o prazo de cinco
anos, o que já afasta aqui uma gama enorme de contribuintes
que teriam o direito a devolução do que indevido, porque
satisfeito a margem da ordem jurídica e considerada toda a
sorte de medida coercitiva do próprio Estado. Não vejo com
bons olhos Presidente a modulação. A modulação
especialmente em caso que acaba por diminuir a eficácia da
Constituição Federal. A modulação quando em última
análise se tem o prejuízo dos contribuintes exasperados
com a carga tributária. Locupletamento do Estado. Por isso
eu peço venha para, no caso, votar contra a modulação, com
a devida vênia, repito, dos colegas que entendem de forma
diversa.
216
DJE n°. 232, divulgado em 04/12/08 e publicado em 05/12/08, pág. 930.
207
Concordamos com o Ministro Marco Aurélio na medida em que a
modulação dos efeitos realizada pelo plenário do Supremo Tribunal Federal não condiz
com os eloquentes pronunciamentos realizados quando do julgamento do mérito dos
recursos extraordinários em tela. Em seu voto, o eminente Ministro relator cita Konrad
Hesse
217
para enfatizar a necessidade em se conferir força normativa e concretizadora à
Constituição, pois, no sentir daquele autor: um ótimo desenvolvimento da força normativa
da Constituição depende não apenas de seu conteúdo, mas também de sua práxis. Contudo,
a modulação dos efeitos, no caso em tela, alcança objetivo diametralmente oposto ao
pretendido pelo autor alemão supracitado.
A única razão para o Supremo Tribunal Federal modular os efeitos do caso
em tela é econômico. Não outra razão plausível. Assim, passa-se por cima de todos os
demais valores vetoriais de nosso sistema jurídico para proferir julgamento com a
finalidade de proteger o erário público. Pensamos de forma distinta, com o devido respeito.
Os valores pecuniários enunciados pelo Douto Procurador da Fazenda Nacional deveriam
provocar efeito inverso, pois demonstram, caso sejam verdadeiros, que um grande número
de contribuintes teve parte de seu patrimônio subtraído pela Fazenda Pública de forma
inconstitucional. E não foi pouco, como bem disse o defensor da Fazenda Pública. Este
fato, por si só, deveria ensejar, ao nosso sentir, uma enérgica tomada de posição do
Supremo Tribunal Federal, mas em sentido contrário, ordenando à União a devolução de
todo o indébito tributário e não impedindo os contribuintes de pleitearem a repetição.
217
DJE n°. 232, divulgado em 04/12/08 e publicado em 05/12/08, pág. 882.
208
Insta frisar que a modulação dos efeitos, realizada pelo plenário do Supremo
Tribunal Federal, no julgamento em tela, não produz efeitos com relação aos recursos
extraordinários julgados na sessão, mas tão somente com relação aos casos idênticos, aos
quais deve ser aplicado o procedimento da repercussão geral.
No entanto, uma vez encerrada a votação da modulação dos efeitos em
apreço, o Ministro Cézar Peluso, propôs a edição da Súmula Vinculante de n°. 8.
Novamente o Ministro Marco Aurélio se opôs, na medida em que possui como princípio
que todas as propostas de verbetes vinculantes devem, necessariamente, passar pela
comissão de jurisprudência do tribunal, para uma maior reflexão sobre a matéria a fim de
que se evitar até mesmo alguns percalços.
218
Contudo, a referida súmula vinculante acabou
sendo aprovada com a seguinte redação:
São inconstitucionais o parágrafo único do
artigo do Decreto-Lei 1.569/1977 e os artigos 45 e 46
da Lei n° 8.212/1991, que tratam de prescrição e decadência
de crédito tributário.
Ao que tudo indica, razão assistia ao Ministro Marco Aurélio, quando da
necessidade de uma melhor reflexão sobre súmula vinculante em tela. Se não, vejamos, a
Súmula Vinculante n°. 8, não leva em consideração a modulação dos efeitos realizada no
julgamento dos recursos extraordinários que lhe conferem fundamento de validade. Assim,
consoante sua eficácia prescritiva, ela deve ser obedecida pelos demais órgãos do Poder
Judiciário e da administração pública, sob pena de propositura de reclamação perante o
Supremo Tribunal Federal. Já a decisão em recurso extraordinário, com repercussão geral,
218
DJE n°. 232, divulgado em 04/12/08 e publicado em 05/12/08, pág. 942.
209
não possui a mesma eficácia vinculante, como visto em capítulo próprio, ao nosso sentir, tal
decisão vincula tão somente os tribunais a quo.
Se assim for, temos uma verdadeira incompatibilidade jurídica entre a
Súmula Vinculante n°. 8 e o julgamento do recurso extraordinário que a precedeu e que lhe
confere fundamento de validade, na medida em que somente nesta segunda decisão temos a
modulação dos efeitos, que, a rigor, também poderia e deveria ter sido conferida à Súmula
Vinculante n°. 8,
219
mas não o foi.
Esta é uma questão delicadíssima, pois provoca insegurança jurídica no
sistema. Aliás, trata-se de uso equivocado de instrumentos jurídicos que foram criados com
a finalidade de conferir segurança ao sistema e não o contrário. Por isso, afirmamos. As
decisões em sede de recurso extraordinário com repercussão geral e as súmulas
vinculantes, ao tratarem do mesmo tema, não podem ter conteúdos normativos
diversos, inclusive no que diz respeito à modulação de seus efeitos.
Suponhamos que a União tenha constituído, em face de um determinado
contribuinte, crédito tributário exigindo o pagamento das contribuições previdenciárias
devidas nos últimos dez anos. O contribuinte realiza o pagamento e fica sabendo, dias
depois, das decisões do Supremo Tribunal Federal acima debatidas. Mesmo inconformado,
pois à luz da modulação dos efeitos levada a cabo no julgamento dos recursos
extraordinários em apreço, ele não pode mais propor a ação de repetição do indébito
219
A Lei 11.417/2006, ao disciplinar a edição das súmulas vinculantes, prevê, em seu art.4°, a possibilidade
de modulação dos seus efeitos.
210
tributário, o contribuinte decide propor a respectiva demanda na Justiça Federal. Pergunta-
se: como deverá proceder o Juiz Federal de primeira instância? Caso ele se submeta a
Súmula vinculante n°. 8, deverá julgar procedente o pleito do contribuinte e condenar a
União ao pagamento do indébito tributário. Caso verta para o lado da modulação dos
efeitos, realizada nos recursos extraordinários em análise, deverá julgar improcedente a
ação, pois proposta fora do prazo estabelecido pela modulação dos efeitos em questão.
Como anteriormente afirmado, entendemos que os magistrados de primeira
instância não estão submetidos ao teor dos julgamentos proferidos em sede de recurso
extraordinário, por outro lado, devem obediência às súmulas vinculantes, logo, a demanda
em questão deverá ser julgada procedente.
Julgada procedente a demanda, a Fazenda Nacional interpõe recurso de
apelação, consubstanciado na modulação dos efeitos no julgamento dos recursos
extraordinários em questão. Em sede de contrarrazões, continua o contribuinte
fundamentando seu pedido na Súmula Vinculante n°. 8. E agora, como deverá proceder o
competente Tribunal Federal? Inevitavelmente, a questão deverá ser devolvida ao Supremo
Tribunal Federal, que sobre ela deverá tomar partido.
Existe, também, outro caminho passível de ser percorrido pelo contribuinte.
Trata-se do protocolo de pedido administrativo de repetição do indébito tributário ou de
compensação. Caso seu pedido seja negado pela Secretaria da Receita Federal do Brasil, o
que, na atual situação jurídica do tema, é ilícito, na medida em que a administração pública
211
deve se submeter às Sumulas Vinculantes, poderá o contribuinte propor reclamação
diretamente no Supremo Tribunal Federal.
Se assim ocorrer, é bastante provável que o plenário do Supremo Tribunal
Federal venha a reformular a Súmula Vinculante n°. 8, para nela constar a modulação dos
efeitos em debate.
Seja como for, o tema é emblemático e nos demonstra como os novos
institutos jurídicos em questão (súmula vinculante e repercussão geral) podem gerar
insegurança jurídica caso não sejam utilizados com o devido cuidado.
7.1.2. Da incidência da COFINS sobre a atividade das sociedades civis de profissão
regulamentada
Como é de conhecimento geral, a contribuição social para o financiamento
da seguridade social (COFINS) foi instituída pela Lei Complementar 70/91. Todavia, o
inciso II, do art. 6°, do mesmo diploma complementar, acabou isentando as sociedades
civis de que trata o art. 1° do Decreto-Lei n. 2.397/87 da incidência da referida contribuição
social. o referido Decreto-Lei, por seu turno, qualifica tais sociedades como sociedades
civis de prestação de serviços profissionais relativos ao exercício de profissão legalmente
regulamentada, registradas no registro civil das pessoas jurídicas e constituídas
exclusivamente por pessoa física domiciliada neste país.
212
Insta frisarmos que a COFINS, instituída pela lei complementar em
comento, foi objeto da ação declaratória de constitucionalidade 1-1/DF e teve a sua
constitucionalidade “declarada”, uma vez que restou consignado, pelo Supremo Tribunal
Federal, que o tributo em questão possui fundamento de validade no art. 195, inciso I e não
no art. 195, § 4°, ambos da Constituição Federal. A Corte afirmou que o fato de a COFINS
ter sido instituída por lei complementar não lhe confere natureza jurídica de contribuição
nova. Assim, no mesmo julgamento, mantendo coerência ao seu discurso, foi assentado
pela Corte que a instituição da COFINS independia de lei complementar, podendo a mesma
ser instituída por lei ordinária. Por último, no voto do Ministro Relator Moreira Alves, foi
ventilada a questão de que lei complementar que não trata de matéria a ela reservada possui
status de lei ordinária.
Passo seguinte, a Lei 9.430/96, em seu artigo 56, prescreve que as referidas
sociedades civis passam a contribuir para a seguridade social, com base na receita bruta da
prestação de serviços, observadas as normas da lei complementar 70/91. Ademais, o
referido diploma legal, em seu art. 88, inciso XIV, revoga os artigos e do decreto-lei
2.397/87.
Neste contexto, levando-se em consideração as premissas elaboradas no item
anterior, segundo o qual os dispositivos de uma lei complementar podem ser revogados por
lei ordinária, desde que tratem de matérias que não foram restritas, pela Constituição
Federal, à lei complementar. Seria intuito afirmar que o art. 56, da Lei 9.430/95, por ser
incompatível com o disposto no inciso II, do art. da Lei Complementar 70/91, ensejou a
aplicação da regra da revogação disposta no art. 2°, § 1°, da Lei de Introdução ao Código
213
Civil, na medida em que Lex posterius derrogat priori, tudo conforme a precisa descrição
do fenômeno realizada por Tárek Moysés Moussallem.
220
Contudo, se levarmos em consideração a teoria da superioridade hierárquica
da lei complementar em face da lei ordinária, preconizada, dentre outros, pelo professor
Hugo de Brito Machado, a lei ordinária em questão não possui o condão de ensejar a
aplicação da referida regra revogadora, assim, a isenção concedida pela lei complementar
70/91 continuaria em pleno vigor.
Diante da situação acima exposta, não dúvidas de que os contribuintes
fariam com que a tese da superioridade hierárquica da lei complementar frente a lei
ordinária fosse analisada pelo Poder Judiciário, requerendo a sua aplicação ao caso
concreto em comento.
E assim se deu e várias decisões judiciais foram proferidas nos dois sentidos,
até que a questão alcançou o Superior Tribunal de Justiça que, na qualidade de intérprete
autêntico da legislação federal, acabou dando guarida à tese da superioridade hierárquica da
lei complementar, frente à lei ordinária, independente do conteúdo daquele primeiro tipo de
diploma legal, assim sendo, revelou que a aludida revogação da isenção em comento era
ilegítima.
220
Revogação em matéria tributária, pág. 274.
214
Para conferir uma maior eficácia extraprocessual ao posicionamento acima
exposto, o Superior Tribunal de Justiça editou, no dia dois de junho de dois mil e três
(02/06/03), a Súmula de n° 276, com o seguinte conteúdo:
As sociedades civis de prestação de serviços
profissionais são isentas da COFINS, irrelevante o regime
tributário adotado.
221
Insta frisar que, para decidir o caso em questão e editar a referida Súmula, o
Superior Tribunal de Justiça possuía entendimento segundo o qual a matéria em questão
não possuía caráter constitucional, pois: a aplicação de norma supralegal, in casu, a lei de
introdução ao Código Civil, torna desnecessária a análise de matéria de índole
constitucional.
222
Mas a Fazenda Pública, não se conformando com a derrota no Superior
Tribunal de Justiça, passou a levar o tema ao conhecimento do Supremo Tribunal Federal
via recurso extraordinário. Acontece que, ao se pronunciar sobre a questão, mesmo tendo a
mesma sido ventilada no voto do Ministro Moreira Alves, quando do julgamento da ADC
1-1/DF
223
, a Corte passou a negar conhecimento aos respectivos recursos, sedimentando
entendimento no sentido de que a matéria era de caráter infraconstitucional, sufragando, em
certa medida, o posicionamento cravado pelo Superior Tribunal de Justiça na súmula n°.
221
A primeira seção do Superior Tribunal de Justiça, ao julgar o AR 3.761-PR, na sessão de 12/11/2008,
deliberou pelo cancelamento da Súmula n° 276.
222
Transcrição da parte final da ementa do julgamento do AgRESp. 637.967/RS; Rel. Ministro Luiz Fux,
Primeira Turma, DJ 30/09/2004, p.232.
223
No julgamento do Agravo Regimental na Reclamação n°. 2.475-0/MG, o Supremo Tribunal Federal
consignou que a questão da hierarquia entre as leis complementares e ordinárias não foi decidida quando do
julgamento da Ação Declaratória de Constitucionalidade n°. 1-1/DF. Como nos notícia o Ministro Marco
Aurélio em seu voto vista no julgamento do recurso extraordinário 377.457-3/PR, dje n°. 241, divulgado em
18/12/2008, pág. 1886.
215
276. Somente no ano de dois mil e seis (2006) o Supremo Tribunal Federal alterou o seu
posicionamento e passou a conhecer os respectivos recursos extraordinários.
224
Esta nova postura do Supremo Tribunal Federal culminou com o julgamento
do recurso extraordinário 377.457-3/PR, que visava a conferir a espécie os efeitos da
repercussão geral. No caso, tratava-se de recurso extraordinário interposto por contribuinte
inconformado com uma decisão, proferida pelo Tribunal Regional Federal da Região,
que, contrariamente ao disposto na Súmula 276 do Superior Tribunal Federal,
prescreveu a revogação da isenção à incidência da COFINS, as sociedades civis de
profissão regulamentada, conferida pela Lei Complementar 70/91.
Quanto ao mérito, vencidos os eminentes Ministros Eros Grau e Marco
Aurélio, o plenário do Supremo Tribunal Federal julgou improcedente o recurso
extraordinário, impondo a tese de que a lei complementar quando, ao tratar de matéria que
não lhe é reservada, possui status de lei ordinária, podendo ser revogada pela mesma.
No entanto, o impetrante do recurso extraordinário requereu a modulação
dos efeitos da decisão do Supremo Tribunal Federal. É interessante notar que se trata de
pedido de modulação de efeitos de uma decisão sobre a constitucionalidade de uma norma
e não sobre a sua inconstitucionalidade. Seja como for, mesmo entendendo ser teoricamente
possível a modulação dos efeitos de uma decisão sobre a constitucionalidade de um ato
normativo em sede de julgamento de recurso extraordinário, a Corte, na espécie, vencidos
224
Como nos dá noticio o eminente Ministro Celso de Mello, no julgamento do recurso extraordinário
377.457-3/PR, dje n°. 241, divulgado em 18/12/2008, pág. 1.915.
216
os eminentes Ministros Celso de Mello, Menezes Direito, Eros Grau, Carlos Britto e
Ricardo Lewandowski, rechaçou a modulação dos efeitos proposta pelos impetrantes do
recurso extraordinário.
De qualquer sorte e com o devido respeito, entendemos que o Supremo
Tribunal Federal agiu mal ao não modular os efeitos da decisão em comento. E dizemos
isso não em função da edição da Súmula n° 276 pelo Superior Tribunal de Justiça, mas sim
em função da alteração na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal quando o mesmo,
em dois mil e seis (2006), passou a conhecer dos recursos extraordinários que versavam
sobre a matéria.
Entendemos que o Supremo Tribunal Federal não está obrigado a modular
os efeitos temporais de uma decisão sempre que esta reverta um posicionamento
jurisprudencial firmado pelo Superior Tribunal de Justiça. Não é disso que se trata. O que
gostaríamos de afirmar é que o Supremo Tribunal Federal, em respeito ao primado da
segurança jurídica, deverá conferir somente efeitos prospectivos para as decisões por ele
produzidas que reverta um posicionamento anteriormente sedimentado pela corte. Foi
justamente o que aconteceu no caso em análise, na medida em que a corte entendia que a
matéria em debate não possuía índole constitucional.
7.2. Da Súmula Vinculante n° 28
Gostaríamos de tecer alguns comentários sobre o julgamento
que culminou com a edição da Súmula Vinculante 28 na medida em que o mesmo
217
demonstra as enormes armadilhas que a linguagem empregada na edição de uma Súmula
Vinculante pode acarretar ao trabalho desenvolvido pelo Supremo Tribunal Federal.
O caput, do art. 19, da Lei 8.870/94, possui a seguinte redação:
Art. 19. As ações judiciais, inclusive as cautelares, que
tenham por objeto a discussão de débito para com o INSS
serão, obrigatoriamente, precedidas do depósito
preparatório do valor do mesmo, monetariamente corrigido
até a data de efetivação, acrescido dos juros, multa de mora
e demais encargos.
Como é de conhecimento geral, o depósito do montante integral do tributo é
um direito subjetivo do contribuinte que ocasiona a suspensão da exigibilidade do crédito
tributário (art. 151, inciso I, do CTN). De maneira alguma o depósito do montante integral
pode ser uma condição para que se leve ao conhecimento do Poder Judiciário uma
discussão jurídica envolvendo um crédito tributário, por flagrante violação ao disposto no
art. 5º, inciso XXXV, da Constituição Federal, que proclama o princípio da inafastabilidade
do acesso ao Poder Judiciário.
Neste contexto, a Confederação Nacional da Indústria CNI - , propôs ação
declaratória de inconstitucionalidade do referido dispositivo legal, que recebeu o número
1.074-3/DF. Em sede liminar, o então Ministro Relator Francisco Rezek, ordenou a
suspensão da eficácia da norma em comento, por entender que a mesma impunha uma
considerável restrição ao acesso dos contribuintes ao Poder Judiciário.
218
Passo seguinte, agora já sob a relatoria do Ministro Eros Grau, o plenário do
Supremo Tribunal Federal, em vinte e oito de março de dois mil e sete (28/03/07), julgou
procedente a ação declaratória de inconstitucionalidade em questão, proclamando a
inconstitucionalidade do caput, do art. 19 da Lei 8.870/94.
Assim, o Ministro Joaquim Barbosa levou ao plenário a proposta de súmula
vinculante de nº 37 com a seguinte redação:
É inconstitucional a exigência de depósito prévio de
quantia em dinheiro, previsto no art. 19 da Lei Federal 8.870
de 1994, como condição a propositura de ação judicial que
visa à discussão da validade de crédito tributário
Já o Ministro César Peluso propôs a seguinte redação ao verbete:
É inconstitucional a exigência de depósito
prevista no art. 19 da Lei Federal 8.870 de 1994, para
admissibilidade de ão que tenha como objeto a
exigibilidade do crédito tributário
Por sua vez, a Ministra Ellen Gracie, de forma acertada, afirmou em plenário
que as propostas acima transcritas referiam-se exclusivamente ao art. 19 da Lei Federal
8.8870/94, que, com o julgamento da ação declaratória de inconstitucionalidade 1.074-
3/DF, havia sido “declarado” inconstitucionalidade pela corte em decisão que possuía
eficácia vinculante e efeitos erga omnes. Logo, propôs nova redação para o verbete, que
capte do precedente não somente a inconstitucionalidade específica do referido dispositivo
legal, mas sim o comando normativo abstrato nele contido, nos seguintes termos:
219
É inconstitucional a exigência de depósito
prévio de quantia correspondente ao débito apurado como
requisito de admissibilidade de ação judicial em que se
pretenda discutir a exigibilidade do crédito tributário.
Tal proposta não faz referência ao art. 19, da Lei Federal 8.870/94, e,
portanto, amplia a incidência normativa da respectiva súmula vinculante, que, se assim for
editada, acaba proibindo a edição de outro diploma legal visando a restringir o acesso dos
contribuintes ao Poder Judiciário, mediante a exigência do prévio depósito do montante
integral do tributo a ser judicialmente discutido.
Idéia esta que, aliás, acabou prevalecendo quando da elaboração da Súmula
Vinculante 21, que acabou impedindo a edição, por parte de qualquer pessoa jurídica de
direito público interno, de diploma legal impondo a exigência de depósito prévio, ou
arrolamento de prévio de dinheiro ou bens, para a interposição de recurso na esfera
administrativa para a discussão do crédito tributário, in litteris:
É inconstitucional a exigência de depósito ou
arrolamento prévios de dinheiro ou bens para
admissibilidade de recurso administrativo.
Todavia, a proposta formulada pela Ministra Ellen Gracie chamou a atenção
do Ministro Ricardo Lewandowski pelo fato de que ela veda a exigência de depósito prévio
de quantia correspondente ao débito apurado. Ou seja, se um diploma legal impuser a
exigência do depósito prévio de uma quantia inferior ao montante integral do crédito
tributário, trinta por cento 30% por exemplo, ele não será contrário à respectiva súmula
vinculante e, na visão do eminente Ministro, este não parece ser o conteúdo semântico mais
220
adequado para a súmula, pois a Corte decidiu que a imposição legal de qualquer depósito
obsta o acesso ao Poder Judiciário, assim nova redação ao verbete foi proposta nos
seguintes termos:
É inconstitucional a exigência de depósito
prévio como requisito de admissibilidade de ação judicial em
que se pretenda discutir a exigibilidade do crédito tributário.
Arguta a intervenção do Ministro Ricardo Lewandowski que foi
prontamente aceita pelos demais Ministros presentes na sessão plenária. Porém, o Ministro
César Peluso propôs a realização de uma pequena alteração na redação do verbete
vinculante nos seguintes termos:
É inconstitucional a exigência de depósito prévio
para a admissibilidade de ação que tenha por objeto a
exigibilidade de crédito tributário.
Neste momento, o Ministro Ayres Brito, demonstrando intimidade com as
questões tributárias, afirmou que o objeto das ações judiciais em questão não é a
exigibilidade do crédito tributário, mas sim a sua validade.
Pensamos da mesma forma que o referido Ministro. Quando da propositura
de ação judicial que combata a constituição do crédito tributário o que se pede é a anulação
do respectivo crédito tributário,
225
se pretende, assim, buscar o reconhecimento judicial de
que o crédito tributário é inválido. Todavia, como é comum nessas ações, geralmente se
225
Daí falar-se em “ação anulatória do débito fiscal”, como o faz o SABBAG, Eduardo de Moraes. Prática
Tributária. Volume II, pág. 13.
221
requer, em sede liminar, a suspensão da exigibilidade do crédito tributário como medida
antecipatória de tutela para se evitar a imposição da regra do solve et repete.
É juridicamente possível, mesmo que faticamente improvável, que
determinado contribuinte venha a propor “ação anulatória de débito fiscal” e não formule
pedido liminar de suspensão da exigibilidade do crédito tributário. Se assim for, teremos
ação judicial cujo objeto é única e exclusivamente à validade do crédito tributário, sem
passar pela questão da suspensão da exigibilidade do crédito tributário. Neste caso,
contudo, não nos parece que o Supremo Tribunal Federal deseje permitir a adoção de
medida legal visando a exigir prévio depósito em dinheiro para a propositura da demanda.
Note-se, que, mesmo diante do referido aparte do Ministro Ayres Brito, a
Corte não lhe deu ouvidos, restando assentada a redação abaixo transcrita, proposta pela
Ministra Ellen Gracie, com emenda do Ministro Ricardo Lewandowski, assim redigida:
Súmula Vinculante 28. É inconstitucional a exigência de
depósito prévio como requisito de admissibilidade de ação
judicial na qual se pretenda discutir a exigibilidade do
crédito tributário.
Assim, resta demonstrado que a edição de uma Súmula Vinculante requer
muitos cuidados por parte dos membros do Supremo Tribunal Federal uma vez que o texto
aprovado pode provocar múltiplas interpretações e inclusive infirmar o posicionamento
firmado pela Corte quando do julgamento do processo que confere fundamento de validade
à Súmula Vinculante.
222
CONCLUSÕES
Conclusões sobre a propedêutica geral
1. No Século XX ocorreu a quebra de um importante paradigma da
filosofia na medida em que a filosofia da linguagem triunfa sobre a filosofia da consciência,
trazendo a linguagem para o centro da teoria do conhecimento, que se dá entre termos.
2. No contexto da filosofia da linguagem encontramos o giro
lingüístico, no qual o mundo é constituído pela linguagem do ser cognoscente e o realismo,
que afirma ser a linguagem responsável pelo acesso do homem à realidade física.
3. Os acontecimentos do mundo são por nós denominados de eventos.
Alguns eventos dependem da linguagem humana para ocorrerem (atos performativos),
outros, contudo, ocorrem independentemente da linguagem, porém, sua percepção, pelo ser
cognoscente, depende de linguagem, que, nesta medida, constitui o universo deste ser.
4. Os eventos não lingüísticos podem ou não depender da ação do
Homem. Os eventos linguísticos que independem da ação do Homem são os eventos não
linguísticos naturais, em contrapartida aos eventos não linguísticos Humanos. Nem toda
ação do Homem depende da linguagem.
5. Sem a linguagem todos os eventos não linguísticos são
imperceptíveis para o ser cognoscente, mas isso não quer dizer que eles dependam da
223
linguagem para ocorrerem. Não são os eventos não linguísticos naturais que dependem
da linguagem para ocorrerem, mas sim, é o Homem que depende de uma linguagem
para perceber que um evento não lingüístico ocorreu.
6. O fenômeno jurídico pode ser entendido como um processo
comunicacional. O modelo comunicacional desenvolvido por Roman Jakobson confere
especial atenção ao emissor, em detrimento do receptor, na medida em que propõe a
transferência de informação daquele para este. o modelo comunicacional proposto por
Luhmann confere uma maior ênfase ao receptor na medida em que afirma que o processo
comunicacional somente se aperfeiçoa quando a proposta formulada pelo emissor é
retomada pelo receptor, antes, temos apenas a percepção deste último. Assim, o conceito de
comunicação desenvolvido por Luhmann leva em consideração que o processo
comunicacional é sempre uma ação seletiva que se comporta como uma realidade
emergente, um estado de coisas, mediante a síntese de três diferentes escolhas: i) a escolha
da informação; ii) a escolha do ato de comunicar; e iii) a escolha que se realiza no ato de
entender (ou no ato de não entender) a informação.
7. Neste contexto Luhmann desenvolve sua teoria autopoiética da
comunicação, na medida em que a comunicação, como realidade emergente, pressupõe o
ato de entender, contudo, o ato de entender sempre será um novo ato de comunicar, que fica
à mercê de um ato de entender subsequente para o estabelecimento de uma nova
comunicação, uma nova realidade emergente, ou seja, o sistema comunicacional cria seus
elementos nos quais ele mesmo se reproduz.
224
8. Devemos levar em consideração a distinção entre o sistema do direito
positivo e o sistema da Ciência do Direito ou Dogmática Jurídica, tal como proposto pelo
Constructivismo Lógico-Semântico. Contudo, entendemos que existe comunicação entre
estes dois sistemas linguísticos.
9. Considerando que o que se passa na consciência se encontra fora do
processo comunicacional não podemos situar as normas jurídicas no plano da significação.
Assim, o objeto de estudo da Ciência do Direito são os textos de direito positivo e as
normas jurídicas são os atos de entender enunciados pelos aplicadores do direito, que
acabam produzindo um novo estado de coisas jurídico. Exemplificando: as normas
constitucionais são construídas pelos aplicadores do direito, quando produzem atos de
entender, a partir do ato de comunicar enunciado pela Carta Magna, estabelecendo um novo
estado de coisas jurídico-normativo. Tais atos de entender são, por outro lado, novos atos
de comunicar que podem produzir novos atos de entender e novas realidades jurídicas
normativas, eis a autopoiese do sistema jurídico, suas unidades se autorreproduzem através
dos elementos que lhe são próprios.
10. As normas gerais e abstratas são os atos de entender construídos
pelos aplicadores do direito, que serão pelos mesmos tomados como ato de comunicar para
a produção de um novo ato de entender que são as normas individuais e concretas.
11. A Dogmática Jurídica também produz atos de entender a partir dos
textos legais, contudo, sem força prescritiva. Mesmo assim, produzem novas realidades
jurídico-normativas que, mesmo não possuindo força prescritiva, poderão ser utilizadas
225
pelos aplicadores do direito para a produção das normas individuais e concretas. Isso ocorre
quando os aplicadores do direito fundamentam suas decisões nas lições fornecidas pela
doutrina.
12. Nos aproximando do sistema comunicacional de Luhmann
chamaremos de sistema jurídico o conjunto de enunciados linguísticos que compõem tanto
o direito positivo quanto a Ciência do Direito. Isto, pois, os enunciados da Dogmática
Jurídica, apesar de não possuírem força prescritiva, são responsáveis pela elaboração dos
atos de entender que acabam por sistematizar o direito positivo em seu plano mais elevado
e abstrato, sempre visando a generalizar as expectativas normativas no seio da sociedade.
13. Para a teoria dos sistemas sociais sua autopoiese ocorre em três
momentos distintos: (i) na auto-referência básica, acima mencionada; (ii) na reflexividade;
e (iii) na reflexão, onde o sistema busca a sua identidade em contraposição com seu
ambiente, onde se possibilita a problematização da sua própria identidade. Assim, podemos
concluir que a Dogmática Jurídica se encontra inserida no sistema jurídico autopoiético, na
medida em que ela é responsável por sua reflexão.
Conclusões sobre os diversos tipos de sistemas jurídicos
14. Na common Law a força vinculante das decisões judiciais se impõe
como regra geral. O stare decisis obriga os magistrados a respeitar e aplicar as normas
jurídicas construídas por suas cortes superiores. Assim, trata-se de um sistema jurídico
eminentemente prático, focado na jurisprudência e onde a Dogmática Jurídica não possui a
226
mesma influência verificada em outros sistemas jurídicos. Ademais, na common Law, os
juristas costumam visualizar nas normas jurídicas a partir das decisões judiciais e não a
partir dos textos de lei.
15. nos países da civil Law (romano-germânico) a regra geral é a livre
convicção do juiz para interpretar e aplicar os textos legais, que são números e são
considerados como a principal fonte do direito. Nesta tarefa apóiam-se os magistrados nas
importantes lições formuladas pela doutrina.
16. Seja como for, atualmente, observamos uma aproximação entre os
dois sistemas jurídicos supracitados. Nos países da common Law verifica-se uma explosão
legislativa e uma certa flexibilização do stare decisis, principalmente na Inglaterra. Já nos
países da civil law, por seu turno, a força vinculante das decisões judiciais é cada vez
maior.
Conclusões sobre o controle de constitucionalidade dos atos normativos
17. Nos Estados Unidos da América, país que adota o sistema da
common law, foi desenvolvida a teoria da supremacia da constituição, assim, para proteger
a Constituição, um controle judicial, incidental e difuso sobre a constitucionalidade dos atos
normativos foi implantado.
18. Já na Europa Continental, onde a maioria dos países adotaram o
sistema da civil law, o dogma de Rousseau sobre a infabilidade das leis tornou-se muito
227
caro, logo, o desenvolvimento de um controle judicial da constitucionalidade dos atos
normativos é tardio e só foi inaugurado em 1920, pela Constituição da Áustria, após
magnífico trabalho desenvolvido por Hans Kelsen. Levando-se em consideração as
características dos sistemas jurídicos da civil law, nestes países foi desenvolvido um
sistema concentrado, no qual o controle de constitucionalidade é entregue a um órgão
específico, as Cortes Constitucionais, cujas decisões possuem força vinculante.
19. O controle de constitucionalidade dos atos normativos no Brasil foi
inaugurado pela nossa primeira Constituição Republicana (1891), ou seja, antes do
desenvolvimento do controle concentrado na Europa Continental. Assim, inicialmente, foi
adotado no Brasil o sistema incidental e difuso, tal como desenvolvido nos Estados Unidos
da América. Contudo, pouco a pouco, tal sistema se mostrou pouco eficaz em um país de
estrutura romano germânica obrigando nossos legisladores a promoverem sucessivas
alterações no controle de constitucionalidade pátrio.
20. Em suma, observamos três distintas etapas na evolução do controle
de constitucionalidade dos atos normativos no Brasil:
i) a primeira etapa tem início com a promulgação da República e vai até
o fim da era Vargas, quando o controle de constitucionalidade, a rigor, era exercido de
forma incidental e difusa, abrangendo, assim, as Cartas Políticas de 1891, 1934 e 1937;
ii) a segunda fase tem início com a Constituição de 1946 e prorroga-se
até a Emenda Constitucional de 03/93, sob a égide da atual Carta de 1988. Neste
228
período, para conferir maior eficácia ao controle judicial de constitucionalidade, uma vez
observada a insuficiência do sistema incidental e difuso, foi introduzido, no Brasil, o
sistema direto e concentrado, exercido pelo Supremo Tribunal Federal e cujas decisões
possuem força vinculante e eficácia erga omnes;
iii) por último, uma vez que a introdução do sistema direto e concentrado
não solucionou a “crise do Supremo Tribunal Federal”, temos a terceira fase, que se inicia
com a Emenda Constitucional n°. 45/04, denominada “reforma do Poder Judiciário”, que
institui a Súmula Vinculante, que possui força vinculante perante todo o Poder Judiciário e
cuja não observância pode ser atacada pela via da reclamação e a Repercussão Geral, que
apesar de não dotar o recurso extraordinário de força vinculante, lhe confere especiais
efeitos extraprocessuais, como será visto em capitulo próprio. Por outro lado, não podemos
deixar de citar o processo de objetivação por que passa o recurso extraordinário, que
também é um elemento importante desta terceira etapa na evolução no controle de
constitucionalidade dos atos normativos brasileiros, uma vez que visa a conferir efeitos
vinculantes às decisões do plenário em sede de recurso extraordinário.
21. A natureza jurídica do pronunciamento de inconstitucionalidade de
um ato normativo é matéria controvertida. Consoante proposta desenvolvida nos Estados
Unidos da América trata-se de decisão declaratória, na medida em que os atos
inconstitucionais são nulos, desde sua formulação. Já para a teoria desenvolvida por Hans
Kelsen, a natureza jurídica é constitutiva, pois os atos inconstitucionais são anuláveis.
Guardando coerência com as suas premissas a primeira corrente doutrinária acima exposta
229
afirma que os efeitos das decisões de inconstitucionalidade são “ex-tunc”, já para a segunda
corrente são “ex-nunc”.
22. Consoante assertiva formulada por Tácio Lacerda Gama, as duas
posições doutrinárias acima expostas não são contraditórias, mas sim possíveis, desde que
levemos em consideração o ponto de vista de quem afirma. Uma posição reflete o ponto de
vista de quem vê para descrever e o outro de quem prescreve normas.
23. A rigor, tem-se entendido que as decisões judiciais sobre a
inconstitucionalidade de um ato normativo possuem efeitos “ex-tunc”, mesmo sem perder
de vista que nem todos os efeitos jurídicos produzidos por uma norma tida como
inconstitucional podem ser desfeitos, como no caso das decisões judiciais transitadas em
julgado, ou no caso do transcurso do prazo decadencial e prescricional.
24. Seja como for, foi introduzido em nosso direito positivo um
mecanismo de mitigação do primado da eficácia “ex tunc” das decisões judiciais sobre a
inconstitucionalidade dos atos normativos, trata-se da conhecida “modulação dos efeitos”.
Assim, para preservar um excepcional interesse social, ou a segurança jurídica, o Supremo
Tribunal Federal pode modular os efeitos no tempo das decisões de inconstitucionalidade.
Ademais, tal expediente vem sendo utilizado tanto no sistema concentrado, quanto no
sistema incidental, de controle de constitucionalidade dos atos normativos.
25. Em caso de alteração da orientação jurisprudencial de um tribunal a
modulação dos efeitos é medida que se impõe, principalmente em função da crescente
eficácia extraprocessual que as decisões dos tribunais ganhando a cada dia.
230
Conclusões sobre a eficácia das decisões judiciais para atuarem como precedentes
26. As normas jurídicas introduzidas pelo Poder Judiciário, ou seja, as
decisões judiciais quando tomadas como parâmetro para a decisão de casos análogos ou
idênticos são qualificadas como precedentes.
27. As decisões judiciais podem ser classificadas quanto a sua
capacidade de vincular os demais órgãos do Poder Judiciário. Assim, temos a classe das
decisões judiciais vinculantes e a classe das decisões judiciais não vinculantes. Esta última
classe pode novamente ser dividida em precedentes não vinculantes, mas capazes de
produzir alguns efeitos jurídicos extraprocessuais para a solução de outros casos e
precedentes não vinculantes que não são capazes de produzir qualquer efeito jurídico para a
solução de outros casos, a não ser a comentada força persuasiva de que é dotada toda
decisão judicial.
28. A regra do livre convencimento dos juízes produz decisões judiciais
antagônicas na medida em que permite a diferentes juízes a construção de normas jurídicas
distintas a partir do mesmo texto de lei, prejudicando, assim, o primado da segurança
jurídica.
29. Somente a Constituição Federal é veículo introdutor de normas capaz
de dotar um determinado tipo de decisão judicial de força vinculante. Assim, são
vinculantes as decisões judiciais proferidas pelo Supremo Tribunal Federal em sede de
231
controle concentrado e direito e as súmulas vinculantes, quanto às decisões proferidas pelo
Supremo Tribunal Federal, sob o regime da repercussão geral, sua força vinculante é
questionável, como será visto adiante.
30. As decisões proferidas pelo plenário Supremo Tribunal Federal pela
via incidental e difusa produzem efeitos jurídicos especiais para a solução de outros
processos, desde que tratem da mesma questão jurídica.
31. Na visão do Ministro Gilmar Mendes a regra prescrita no art. 52,
inciso X da Constituição Federal sofreu mutação constitucional, assim, após a introdução
do sistema concentrado e direto de controle de constitucionalidade dos atos normativos
não se sustenta mais a antiga distinção entre os efeitos produzidos pelas decisões do
plenário da Corte proferidas no controle direto e no controle incidental. Porém, tal
posicionamento ainda não se encontra consolidado no âmbito do Supremo Tribunal
Federal.
32. Seja como for, ainda não podemos afirmar que as decisões do
plenário do Supremo tribunal Federal possuem força vinculante, mesmo entendendo que a
evolução de nosso sistema jurídico caminha neste sentido. Ademais, se isso acabar
ocorrendo, acreditamos que as decisões pela via incidental e difusa não poderão ser
atacadas pela via da reclamação, sob pena de entulhar a pauta de julgamento do Corte com
tal espécie de ação.
232
33. Apesar das recentes alterações na legislação processual conferirem
uma eficácia cada vez maior à jurisprudência dominante dos tribunais, assim como para as
suas súmulas, principalmente, no que diz respeito aos poderes conferidos ao relator dos
recursos, tal sistemática se mostrou insuficiente para uniformizar a jurisprudência e tornar a
prestação jurisdicional mais ágil e eficaz.
Conclusões sobre a repercussão geral
34. O excessivo número de recursos extraordinários, anualmente,
protocolados no Supremo Tribunal Federal, aliado à falta de eficácia extraprocessual que as
decisões tomadas em seu bojo possuíam, tornou imperiosa a criação de um novo requisito
de admissibilidade do recurso extraordinário, assim como o aumento da eficácia
extraprocessual de tais recursos.
35. O Superior Tribunal de Justiça também sofre com uma carga
excessiva de processos, ainda, foi criada a sistemática de recursos repetitivos, visando a
diminuir o número de feitos protocolados naquela Corte Superior.
36. Apesar de existirem profundas semelhanças entre a repercussão geral
e a antiga arguição de relevância, os institutos não se confundem, dentre outros motivos,
pelo fato de as decisões tomadas em sede de repercussão geral não serem secretas e
necessitar de fundamentação.
233
37. A repercussão geral pode ser analisada do ponto de vista
constitucional e do ponto de vista infraconstitucional.
38. Do ponto de vista constitucional a repercussão geral pode ser
entendida como um requisito de admissibilidade do recurso extraordinário, que necessita de
regulamentação infraconstitucional para ser aplicado, cujo conteúdo semântico-jurídico é
indeterminado pela Constituição Federal e que requer um quórum específico para impedir o
conhecimento do recurso extraordinário.
39. do ponto de vista infraconstitucional, sob o manto da repercussão
geral, foram criadas uma série de normas jurídicas de cunho processual que vão muito além
de disciplinar um requisito de admissibilidade, visando ampliar a eficácia extraprocessual
das decisões tomadas pelo Supremo Tribunal Federal, beirando à vinculação.
40. A regulamentação infraconstitucional da repercussão geral foi
realizada pela Lei 11.418/06 que acrescentou os artigos 543-A e 543-B ao Código de
Processo Civil. Mesmo assim, o Supremo Tribunal Federal vem aceitando o emprego do
instituto nos recursos extraordinários que versem sobre matéria penal.
41. A delimitação semântica do termo repercussão geral possui dois
critérios distintos: um subjetivo, que impõe a causa relevância que ultrapassa os interesses
subjetivos das partes envolvidas no processo do ponto de vista político, econômico, social
ou jurídico; e outro objetivo, pois todos os recursos que impugnam decisão contrária à
234
súmula ou à jurisprudência dominante do Supremo Tribunal Federal são dotadas de
repercussão geral.
42. Assim, toda a decisão proferida pelo tribunal a quo que seja contrária
à súmula ou à jurisprudência dominante no Supremo Tribunal Federal possui relevância
jurídica que transcende o interesse das partes e, portanto, nela a repercussão geral sempre
estará presente. Tal relevância consiste no entendimento de que todos os tribunais
existentes no País deverão decidir as causas levadas ao seu conhecimento de acordo com o
posicionamento firmado pelo Supremo Tribunal Federal, sob pena de verem as suas
decisões serem liminarmente reformadas pelo Presidente da Corte, na qualidade de relator
do recurso extraordinário, a não ser que o Pretório Excelso pretenda alterar a sua
jurisprudência.
43. O foco do recurso extraordinário não é mais somente solucionar o
litígio entre as partes do processo, mas sim, promover a uniformização da jurisprudência.
Neste sentido, impõe aos tribunais a quo a obediência as suas decisões sob pena de reforma
liminar. Mas não que se falar em efeito vinculante, uma vez que tal decisão não é
atacável pela reclamação.
44. Dificilmente, o Supremo Tribunal Federal o irá conhecer de
recurso extraordinário, em função da ausência de repercussão geral, caso a questão
constitucional nele ventilada ainda não tiver sido apreciada pela Corte. Por outro lado, uma
vez apreciada e decidida a questão constitucional, à luz da repercussão geral, o plenário não
se reunirá mais para debater sobre o mesmo tema, devendo todos os demais recursos
235
extraordinários seguir a mesma sorte do leading case, salvo proposta de alteração da
jurisprudência da corte.
45. O conhecimento do recurso extraordinário poderá ser negado pelo
Supremo Tribunal Federal, com fundamento na ausência de repercussão geral, mediante
voto de dois terços de seus membros, reunidos em plenário virtual ou presencial. Contudo,
tal regra se impõe, apenas, para o leading case, pois todos os demais recursos, caso versem
sobre matéria idêntica ao leading case, lhe seguirão a mesma sorte, mediante decisões
monocráticas.
46. As decisões de plenário sobre a presença (ou não) de repercussão
geral são irrecorríveis. Contudo, as decisões monocráticas sobre a repercussão geral podem
ser atacadas mediante recurso de agravo, com um único fundamento, a não identidade entre
a matéria discutida no plenário e àquela decidida monocraticamente, na medida em que
somente a identidade entre as causas confere ao relator poderes para decidir
monocraticamente sobre a repercussão geral.
47. O procedimento dos recursos repetitivos junto ao Superior Tribunal
de justiça não possui a mesma eficácia extraprocessual verificada nas decisões do Supremo
Tribunal federal com repercussão geral, pois não imposição de juízo de retratação.
Contudo, os efeitos práticos em ambos os casos é o mesmo, pois, quando o tribunal a quo
não se curvar ao posicionamento firmado pelo tribunal a quem¸ sua decisão deverá ser
liminarmente reformada pelo relator do recurso no tribunal a quem.
236
48. Por tudo quanto exposto neste trabalho, observamos que, atualmente,
as decisões do Supremo Tribunal Federal possuem uma maior eficácia extraprocessual do
que as decisões proferidas pelos Tribunais Superiores.
Conclusões sobre a súmula vinculante
49. A figura dos “assentos” no direito português deu origem às súmulas
no direito pátrio, contudo, no ordenamento jurídico português, os “assentos” possuíam
força de lei.
50. No Brasil, em 1963, mediante a introdução de novas normas ao seu
regimento interno, foi criada a súmula da jurisprudência dominante do Supremo Tribunal
Federal, mas sem eficácia vinculante.
51. em 1973, o professor Alfredo Buzaid, ao elaborar o anteprojeto do
atual Código de Processo Civil, previu a súmula com eficácia vinculante, porém, sua idéia
foi rechaçada e vingou o atual incidente de uniformização da jurisprudência (art. 476 e
seguintes do Código de Processo Civil), que previa as súmulas, mas sem eficácia
vinculante, que acabou por se revelar em uma solução tacanha, a meio caminho entre a
força persuasiva e a vinculante.
52. Inicialmente, as súmulas possuíam, apenas, força persuasiva, mesmo
assim constituíram-se em importante mecanismo de uniformização da jurisprudência,
porém, insuficiente para uniformizar satisfatoriamente a jurisprudência. Assim, com o
237
passar dos anos, sucessivas reformas processuais passaram a conferir ao relator dos
recursos poderes para tomar importantes decisões monocráticas no tocante às questões
sumuladas.
53. Finalmente, a súmula vinculante foi introduzida em nosso
ordenamento jurídico, com a Emenda Constitucional de n. 45/04, no âmbito do Supremo
Tribunal Federal.
54. Apesar do texto constitucional afirmar que a súmula vinculante será
editada após sucessivos julgamentos de uma questão constitucional, à luz da repercussão
geral, o Supremo Tribunal Federal poderá editar a súmula após um único julgamento, com
repercussão geral. Como visto, uma das funções da repercussão geral é justamente impedir
o plenário do Supremo Tribunal Federal de se reunir várias vezes para tratar sobre o mesmo
tema.
55. Ao editar uma súmula vinculante, através do processo de indução, o
Supremo Tribunal Federal promove a transposição do julgamento de um caso individual e
concreto para o plano geral e abstrato. Porém, tal abstração pode acabar gerando
controvertidas interpretações para os enunciados-enunciados que compõem a súmula
vinculante, como se dá com os textos de lei.
56. As diferentes interpretações acerca do conteúdo normativo das
súmulas vinculantes podem aumentar em muito o número de reclamações junto ao
Supremo Tribunal Federal, fato este que já vem ocorrendo.
238
57. Ademais, o conteúdo normativo da súmula vinculante não é adstrito
ao que foi decidido no caso concreto. Geralmente, o conteúdo normativo da decisão
individual e concreta é ampliado pela súmula vinculante. Na medida em que se distancia
das decisões tomadas no caso concreto, o Supremo Tribunal Federal, ao editar súmulas
vinculantes, se aproxima da atividade tipicamente legislativa.
58. Não podem existir contradições normativas entre as decisões
judiciais tomadas pela via incidental e difusa, com repercussão geral e as situações
disciplinadas nas súmulas vinculantes, mesmo em se tratando de modulação dos efeitos,
sob pena de produção de insegurança jurídica no âmbito da atividade do Supremo Tribunal
Federal.
Conclusões sobre os casos práticos em matéria tributária
59. No âmbito da tributação das empresas de micro e pequeno porte,
após a Emenda Constitucional n. 42/03 e a entrada em vigor da Lei Complementar 126/07,
que instituiu um regime único e centralizado de tributação, vislumbramos uma relevante
ausência de autonomia dos Estados e do Municípios que faz com que o Brasil se apresente,
neste contexto, como um Estado Unitário descentralizado administrativamente e não como
uma Federação.
60. O Supremo Tribunal Federal restou assentado que as leis
complementares não o, necessariamente, superiores às leis ordinárias, podendo as
239
primeiras serem revogadas pelas segundas, nos casos em que a matéria versada nas
primeiras não forem a elas restritas.
61. No julgamento dos recursos extraordinários 560.626, 556.664,
559.882 e 559.943, que conferem fundamento de validade para a edição da súmula
vinculante n. 8, houve o reconhecimento da inconstitucionalidade dos artigos 45 e 46 da Lei
8.212/91 e do parágrafo único do art. 5, do Decreto Lei 1.569/77. Contudo, neste
julgamento os efeitos jurídicos desta decisão foram modulados, restringindo o ajuizamento
da ação de repetição do indébito tributário até a data do julgamento em tela. Já no texto
sumulado não qualquer menção à referida modulação de efeitos. Assim, tais decisões
podem acarretar insegurança jurídica, pois o Poder Judiciário, ao analisar uma ação de
repetição do indébito, ajuizada após o julgamento dos referidos recursos extraordinários,
não poderá obedecer à súmula vinculante e à decisão com repercussão geral
concomitantemente.
62. Ademais, o único motivo para a modulação dos efeitos nos recursos
acima ventilados é a substancial economia que ele é capaz de produzir aos cofres públicos
da União, segundo dados fornecidos pela Secretaria da Receita Federal do Brasil, uma vez
que a matéria em questão havia sido pacificada pelo Supremo Tribunal Federal desde
muito tempo.
63. Neste sentido, a modulação dos efeitos no caso acima exposto acabou
por diminuir à eficácia normativa do texto constitucional em função das necessidades
arrecadatórias da União. Assim, vislumbra-se uma contradição entre os eloquentes
240
fundamentos ventilados na decisão de mérito, qual seja, sobre a inconstitucionalidade dos
referidos dispositivos legais, com os argumentos trazidos a lume para a modulação dos
efeitos.
64. A Lei Complementar 70/91, ao instituir a COFINS, isentou as
sociedades civis de prestação de serviços profissionais, da incidência do tributo. Contudo, a
Lei 9.430/96 prescreve que as referidas sociedades civis são devedoras da COFINS. Mesmo
não sendo a CONFINS reservada à lei complementar, o Superior Tribunal de Justiça
sumulou entendimento no sentido de que a lei ordinária não pode ser revogada por lei
complementar, uma vez que os referidos textos legais encontram-se em patamares
hierárquico-legislativos distintos. Trata-se de posição oposta àquela formulada pelo
Supremo Tribunal Federal, que, contudo, não se manifestava sobre o caso em tela,
afirmando nele não visualizar matéria constitucional.
65. Seja como for, no ano de dois mil e seis (2006), o Supremo Tribunal
Federal passou a conhecer os recursos extraordinários sobre a matéria e ao julgar o
processo n. 377.457 determinou que, no caso, a legislação ordinária tem o condão de
revogar a legislação complementar, uma vez que a matéria versada neste último diploma
legal não era a ela reservada. Neste caso, contudo, não houve modulação dos efeitos.
66. A redação da Súmula Vinculante n. 28 encontra-se equivocada, pois,
a rigor, as ações judiciais visam a discutir a validade do crédito tributário e não a sua
exigibilidade. No mais das vezes, requer-se, liminarmente, a suspensão da exigibilidade do
241
crédito tributário como medida de tutela antecipada, mas o objeto da ação, geralmente, é a
validade do crédito.
242
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