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UNIVERSIDADE FEDERAL DE GOIÁS
FACULDADE DE CIÊNCIAS HUMANAS E FILOSOFIA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA
João Paulo de Paula Silveira
A Seicho-no-Ie do Brasil e o “Autêntico Paraíso Terrestre”: o matiz
religioso da nipo-brasilidade (1966-1970).
GOIÂNIA
2008
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Dados Internacionais de Catalogação-na-Publicação (CIP)
(GPT/BC/UFG)
Silveira, João Paulo de Paula.
S587s A Seicho-no-le do Brasil e o “Autêntico Paraíso Terrestre”
[manuscrito]: o matiz religioso da nipo-brasilidade (1966-1970) /
João Paulo de Paula Silveira. 2008.
129 f. : il., color., figs., tabs.
Orientador: Prof. Dr. Élio Cantalício Serpa.
Dissertação (Mestrado) Universidade Federal de Goiás, Fa-
culdade de Ciências Humanas e Filosofia, 2008.
.
Bibliografia: f.125-129.
1. Seicho-no-le 2. Nipo Brasileiros 3. Identidade étnica
4. Religiões japonesas I. Serpa, Élio Cantalício II. Universidade
Federal de Goiás, Faculdade de Ciências Humanas e Filosofia
III. Título.
CDU: 299.52:308(520:81)
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João Paulo de Paula Silveira
A Seicho-no-Ie do Brasil e o “Autêntico Paraíso Terrestre”: o matiz
religioso da nipo-brasilidade (1966-1970).
Dissertação apresentada ao
Programa de Pós-Graduação em
História da Faculdade de Ciências
Humanas e Filosofia da
Universidade Federal de Goiás, para
a obtenção do grau de mestre em
História.
Área de Concentração: Culturas,
Fronteiras e Identidades.
Linha de Pesquisa: História,
Memória e Imaginários Sociais.
Orientador: Prof. Dr. Élio Cantalício
Serpa.
GOIÂNIA
2008
A Seicho-no-Ie do Brasil e o “Autêntico Paraíso Terrestre”: o matiz
religioso da nipo-brasilidade (1966-1970).
Dissertação defendida pelo Programa de Pós-Graduação em História, nível
Mestrado, da Faculdade de Ciências Humanas e Filosofia da Universidade
Federal de Goiás, aprovada em_______de__________________ de______
pela banca examinadora constituída pelos seguintes professores:
________________________________
Prof. Dr. Élio Cantalício Serpa (UFG)
Presidente
________________________________
Prof.ª Dr.ª Leila Marrach Basto de Albuquerque (UNESP-FRANCA)
Membro Externo
________________________________
Prof.ª Dr.ª Libertad Borges Bittencourt (UFG)
Membro
________________________________
Prof.ª Dr. ª Fabiana de Souza Fedrigo (UFG)
Suplente
GOIÂNIA
2008
Termo de Ciência e de Autorização para Disponibilizar as Teses e Dissertações
Eletrônicas (TEDE) na Biblioteca Digital da UFG.
Na qualidade de titular dos direitos de autor, autorizo a Universidade Federal de
GoiásUFG a disponibilizar gratuitamente através da Biblioteca Digital de Teses e
Dissertações BDTD/UFG, sem ressarcimento dos direitos autorais, de acordo com a Lei
9610/98, o documento conforme permissões assinaladas abaixo, para fins de leitura,
impressão e/ou download, a título de divulgação da produção científica brasileira, a partir
desta data.
1. Identificação do material bibliográfico: [x] Dissertação [ ] Tese
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Autor(a):
João Paulo de Paula Silveira
CPF:
001.197.401-09
jpsilveirahistoria@gmail.com
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gatício do autor
Professor
Agência de fomento:
Sigla:
País:
Brasil
UF:
GO
CNPJ:
Título:
A Seicho-no-Ie do Brasil e o “Autêntico Paraíso Terrestre”: o matiz religioso da nipo-
brasilidade.
Palavras-chave:
Seicho-no-Ie, Nipo-Brasilidade, Identidade.
Título em outra língua:
Seicho-no-Ie do Brasil and the “True World Paradise”: the religious hue of
the Japanese-Brasilian Identity.
Palavras-chave em outra língua:
Seicho-no-Ie, Japanese-Brasilian, Identity.
Área de concentração:
Data defesa: (10/11/2008)
Programa de Pós-Graduação:
História
Orientador(a):
Élio Cantalício Serpa
CPF:
E-mail:
ecserpa@gmail.com
Co-orientador(a):
Libertad Borges Bittencourt
CPF:
E-mail:
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Em caso de restrição, esta poderá ser mantida por até um ano a partir da data de defesa. A extensão deste
prazo suscita justificativa junto à coordenação do curso. Todo resumo e meta dados ficao sempre
disponibilizados.
O sofrimento decorre do apego nos manter
prisioneiros da suposição de um Eu.
Supondo que o somos, nos persegue
implacável frustração. Sonhamos que no Eu
permanecemos sendo quem éramos mas
quando sobre ele nos voltamos, o
descobrimos transformado pelo tempo e
suas experiências. Sempre outra vez se
desvanece quem cremos ser e o que
imaginávamos que tudo fosse. De uma para
outra imagem vai vagando, fugindo e
buscando a si o que não é, girando no
círculo vicioso de nascimento e morte
(Samsara). Rev. Shaku Shogyo (Gustavo
Corrêa Pinto)
Agradecimentos
A lida acadêmica não é uma ação solitária e nem exclui o mundo
exterior à universidade. Muitas pessoas foram importantes para a confecção
desse trabalho, professores, amigos e familiares que de diferentes formas
colaboraram para sua realização. Em meio às inúmeras dificuldades, a falta de
confiança na capacidade pessoal, os momentos em que tudo parecia mero
devaneio, as pessoas queridas sempre estiveram por perto. O alento foi
importante para seguir em frente.
Gostaria de agradecer primeiramente a minha família, minha mãe
guerreira Ana Maria Silva de Paula, meu pai Paulo de Paula Silveira e meu
irmão Ronaldo de Paula Silveira, que me acolheram em momentos de
ansiedade e sempre confiaram em mim. Agradeço tamm meus bons e
insubstituíveis companheiros André Luis Oliveira, Dona Ilma e Sr. “Canarinho”,
Eternozalem dos Santos, Antônio Bettanin, Adriano Cunha, Lorrana Oliveira,
Fabrício Clemente, Alessandro e Rita Lima, Raul e Lucas Isaías, pessoas de
humor e inteligência que me acompanharam de perto e que deixavam
manifesto o desejo em me verem exitoso.
Sou grato aos professores e amigos do Programa de Pós-Graduação
em História da UFG, em especial o meu orientador Élio Cantalício Serpa e a
co-orientadora Libertad Bittencourt. Agradeço a minha professora de japonês,
Sensei Marley Lima, que pacientemente me ajudou a aprender alguns
rudimentos da língua japonesa, ao professor Ronam Alves Pereira, que me
enviou textos seus da Nova Zelândia e à prestativa pesquisadora Ediléia Diniz.
Sou muito grato à convivência com a família Momonuki do município de
Inhumas (Go), especialmente à Jaqueliny Tam D. Momonuki, uma das
inspirações desse trabalho.
Agradeço ainda aos Colégios Zênite, sob direção da Professora Marisa
Nascimento, ao Colégio OLY, sob direção e coordenação dos professores
Gustavo e Daniel Soares, que entenderam que meu aperfeiçoamento
profissional era importante. Sou grato também à companheira profissional e
amiga Professora Ms. Marciária Bezerra, exemplo maior em toda minha vida
profissional.
Por fim, agradeço a confiança e compreensão da inestimável e querida
companheira Ana Carolina Soares, paciente diante minhas dificuldades e
ausências e foram tantas.
Diante todas as dificuldades, reforço meu apreço pelas pessoas que
aqui citei e deixo impresso para sempre que sem suas companhias nem o
trabalho nem os estudos nem a vida seriam tão alegres.
RESUMO
A presente pesquisa tem como objeto a instituição religiosa Seicho-no-
Ie do Brasil, de origem japonesa, enquanto “zona de contato” produtora de uma
das variáveis da identidade nipo-brasileira. Fundada no Japão em 1930, por
Masaharu Taniguchi, e trazida para o Brasil pelos imigrantes, a Seicho-no-Ie, a
partir da década de 1960, vivenciou o processo de abertura ao público
brasileiro.
Encaramos a abertura enquanto estratégia que favorecia o
envolvimento de setores da colônia japonesa com a sociedade brasileira e,
conseqüentemente, a elaboração da identidade nipo-brasileira baseada na
utensilagem religiosa. A doutrina da Seicho-no-Ie traz consigo elementos do
nacionalismo oficial japonês do período anterior à Segunda Guerra Mundial,
arranjos simbólicos que permitiram a ressemantização de formas de
pertencimento ao Brasil, mitos fundacionais, e do discurso nacionalistas
desenvolvido pelo Estado Militar (1964-1985).
A Seicho-no-Ie do Brasil respondia à necessidade de envolvimento da
colônia japonesa com a sociedade nacional. Ao definir o Brasil enquanto
“Autêntico Paraíso Terrestre”, a expressão religiosa revestiu o Brasil de
representações oriundas da cultura japonesa, em especial o que diz respeito às
hierarquias e à cooperação com o governo.
Palavras Chave: Seicho-no-Ie, Nipo-Brasilidade, Identidade.
ABSTRACT
The present research has as object the religious institution Seicho-no-Ie do
Brasil. It has a Japanese origin and it is seen as a “contact zone” that produces one of
the variables of the Japanese Brazilian identities. It was found in Japan in 1930 by
Masaharu Taniguchi and it was brought to Brazil by immigrants. Since the 1960‟s, it
has lived an opening process to Brazilian public.
We face that opening as a strategy that helped the involvement of sectors
from Japanese colony with Brazilian society and therefore the building of Japanese-
Brazilian identity based in religious utensil. The Seicho-no-Ie philosophy brings with
itself elements of the Japanese official nationalism from the period before the II World
War, symbolic arrangements which allowed the re-significance of forms related to
Brazil, foundation myths and the nationalist speech developed by the Brazil‟s Military
State.
The Seicho-no-Ie do Brasil answered a necessity of involvement of the
Japanese colony with the national society. In defining Brazil as “True World Paradise”,
the religious expression dressed Brazil of representations from the Japanese culture,
specialty related to hierarchy and cooperation with the government.
Key Words: Seicho-no-Ie, Japanese-Brazilian, Identity.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ................................................................................................. 11
CAPÍTULO 01 TNSITOS E SONHOS: OS JAPONESES NO BRASIL 22
1.1- JAPONESES NO BRASIL E OS FRUTOS DE OURO ...................... 22
1.2- NA COLÔNIA ................................................................................ 40
CAPÍTULO 2 - VIVÊNCIAS: JAPONESES, CRISE E A IDENTIDADES EM
TRÂNSITO ....................................................................................................... 45
2.1- IDENTIDADES ..................................................................................... 45
2.2- A “NIPONICIDADE” E A IDENTIFICAÇÃO DO GRUPO ...................... 51
2.3- O PROBLEMA DOS NISSEIS ............................................................. 60
2.3.1 - As associações juvenis ............................................................ 64
CAPÍTULO 03 - A SEICHO-NO-IE DO BRASIL E O “AUTÊNTICO PARAÍSO
TERRESTRE”. ................................................................................................. 72
3.1 - SEICHO-NO-IE ENQUANTO “ZONA DE CONTATO” CULTURAL. . 72
3.2 - A RELIGIOSIDADE NA COLÔNIA ANTES DA SEGUNDA GUERRA
MUNDIAL. ................................................................................................... 74
3.3 AS NOVAS RELIGIÕES JAPONESAS. ............................................. 81
3.4- O SURGIMENTO DA SEICHO-NO-IE.................................................. 87
3.4.1 - A doutrina ............................................................................... 92
3.5- A COOPERAÇÃO E O AUTÊNTICO PARAÍSO”:
RESSEMANTIZAÇÃO E IDENTIDADE HIFENIZADA .................................. 97
3.5.1 - A ressemantização e a “cooperação” .................................... 101
3.5.2 A ameaça comunista e o ideal de “Ordem e Progresso” ....... 107
CONCLUSÃO ................................................................................................. 120
FONTES E REFERENCIAS ........................................................................... 124
BIBLIOGRAFIA .............................................................................................. 125
11
INTRODUÇÃO
No presente ano, a comunidade nipo-brasileira comemora o centenário
da imigração japonesa. Programas de TV e revistas de circulação nacional
apresentam matérias que tematizam a presença dos imigrantes, a identidade
nipônica e o legado cultural japonês na sociedade brasileira. O centenário
significa êxito, concretização e certeza da contribuição nipônica para o Brasil.
A partir de 1908, e em diferentes momentos do século XX,
especialmente no período anterior à Segunda Guerra Mundial, milhares de
japoneses se estabeleceram no Brasil e se espalharam por diversos Estados,
trazendo consigo sua utensilagem cultural, sua culinária, sua religiosidade, sua
engenhosidade na lida agrária e, como é comum aos imigrados, sua disposição
em vencer na vida. Com o passar do tempo vieram os descendentes, os
sanseis, nisseis, yonseis
2
que desenvolveram uma intricada rede pertença
cultural, ora ao Japão (se definem enquanto japoneses, são chamados de
japoneses), ora ao Brasil. Os imigrantes japoneses e suas descendências
cuidaram de criaram vínculos com o Brasil e, ainda assim, manter algum tipo
de vínculo com a cultura japonesa.
A condição dos imigrantes, de suas identidades, das fronteiras culturais
e o envolvimento com a sociedade hospedeira ganham cada vez mais espaço
nas ciências sociais. Na medida em que áreas diferentes do globo são postas
em conexão ocorre uma “revolução transnacional” que tem impacto tanto no
país de origem quanto no país receptor. O imigrante desliza entre dois
espaços. Em um novo mundo, suas referências serão mobilizadas a fim de
atender suas contingências particulares, tendo sempre que negociar com
outros referenciais.
Os imigrantes mantêm o vínculo com a terra natal, localizando-se
através daquilo que ela lhes oferece, seja sob o aspecto regional ou do Estado-
Nação. No entanto, situados em um espaço liminar”, os sujeitos são
2
Designações às gerações posteriores aos imigrantes, os mais velhos ou issei. Nissei é o filho
de imigrante, o sansei é neto e o yonsei é bisneto. No geral, são também designados por
nikkeis.
12
traduzidos, aprendendo a habitar entre diferentes identidades (HALL, 2001, p.
88-89).
O Imigrado é aquele que abandona o lar e ruma para o relativo, para
um espaço não enquadrado, onde “nasce” enquanto imigrante, onde espera
ganhar algum pecúlio para, posteriormente, voltar ao lar. Abdelmaleck Sayad
apresenta o imigrante como sujeito que vive não o deslocamento do espaço
físico, mas, também, do espaço qualificado” em vários sentidos, repleto de
realizações culturais, em especial a língua e a religião (SAYAD, 1998, p. 15).
Os sabores e cheiros de seu mundo, as idiossincrasias e os quadros de
referências estão presentes sob a meia luz da terra do outro e são eles que
servem de moeda de barganha com o espaço relativo, local onde os sujeitos
“nascem” como imigrantes. Homi Bhabha apresenta o imigrado enquanto
aquele que se reúne com seus pares nas fronteiras, na meia vida da cultura
estrangeira (BHABHA, 2005, p. 198), e que fala a partir do espaço do meio”,
entre várias tradições culturais além daquelas que ele trouxe consigo.
Em meio a isso, a sociedade receptora cria contingências que obrigam
o imigrante e sua descendência a reordenarem sua relação com a terra
ancestral e com a nova morada. Diante do inesperado, o imigrado problematiza
o tipo de envolvimento que pretende com o mundo que o recebeu. No princípio,
o desejo de retorno para casa desestimula o imigrante a se relacionar de
maneira profunda com a sociedade receptora. Porém, as gerações seguintes
são mais expostas ao mundo fora da rotura étnica e cultural imposta pelos pais.
Isso ocorre porque o sonho de retorno para a terra natal se empalidece devido
às dificuldades em acumular o pecúlio esperado e, também, porque os mais
jovens se envolvem com as esferas culturais, econômicas e institucionais do
mundo do outro, como a vizinhança, o cartório e a escola. Temos então uma
situação reflexiva inter-geracional, pais e filhos, que favorece maior
envolvimento com a comunidade receptora evitando principalmente o prejuízo
das gerações mais jovens, que passarão toda sua vida em um mundo outrora
tido por morada provisória pelos seus pais.
Falamos em envolvimento pensando no exercício de acomodação dos
sujeitos imigrados a um mundo diferente do seu. Portadores de identidades
13
nacionais, regionais ou étnicas, se deparam com a necessidade de
flexibilizarem as fronteiras culturais a fim de alcançarem seus objetivos. A
identidade cultural construída a partir da rotura e que até então era o meio de
orientação diante da diferença tende a se flexibilizar e, até, a se hibridizar,
dependendo da situação em que se encontra o grupo.
A intensidade e o tipo de envolvimento variam de acordo com as
circunstâncias em que se encontram o imigrado e sua descendência. Pode
estar relacionado ao simples desejo de estabelecer contratos de trabalho e
compra de mercadorias essenciais ao sustento ou à necessidade de afastar
estigmas culturais desenvolvidos pela sociedade receptora que favorecem o
isolamento e exclusão social dos sujeitos. As gerações posteriores aos
imigrantes tentam se engajar no mundo; o enquistamento, que pode ter existido
na época de seus pais, se tornam o principal obstáculo a ser superado em
nome da sobrevivência.
O imigrante esinscrito em duas tradições ou dois mundos, o da terra
natal, no sentido de lugar de onde o sujeito acredita que veio, seja
objetivamente ou uma referência da ancestralidade enfatizada no cotidiano, e
na sociedade receptora. No princípio, sua identidade está presa aos critérios
étnicos que servem como índice diferenciador do mundo alheio. As eventuais
mudanças levam os imigrados e seus descendentes a refletirem sobre essa
identidade com o intuito de evitar embaraços que, no fim, podem trazer
prejuízos para o grupo como um todo. Lidar com o conjunto de representações
que constituem sua identidade implica em negociá-las sem que haja qualquer
prejuízo ao ponto do grupo se sentir afastado da tradição ancestral ou em
desacordo com a sociedade receptora.
Ainda que tratemos de uma das várias possibilidades de envolvimento
de povos diaspóricos com a sociedade que os recebeu, temos que ter em
mente que as gerações seguintes ao imigrante ou os mais jovens são os
principais responsáveis pelas estratégias que buscam evitar o enquistamento e
que também respondem às suas necessidades intimas, já que são eles os mais
expostos à sedução da sociedade receptora.
14
A partir dessas considerações preliminares, intentamos compreender o
papel da instituição religiosa japonesa Seicho-no-Ie do Brasil (Lar do Progredir
Infinito) enquanto “Zona de Contato” (HALL, 2006, p.31) onde o envolvimento
dos imigrantes japoneses e sua descendência com a comunidade receptora, o
Brasil, se desenrola.
Inquirimos, portanto, sobre as estratégias adotadas pela instituição
referida para a acomodação dos japoneses ao Brasil e as representações
alocadas na produção de uma das variáveis da identidade nipo-brasileira.
Nosso recorte temporal é entre 1966-1970 e nossa referência documental são
textos apologéticos da Seicho-no-Ie e os exemplares da principal revista de
propagação da doutrinária naquele momento, a revista Acendedor.
A Seicho-no-Ie (SNI) surgiu no Japão no início da década de 1930 e é
enquadrada no grupo denominado novas religiões japonesas (Shin-Shukyô),
expressões religiosas que surgiram no Japão na transição dos novecentos para
o século XX e que respondiam à conjuntura de um país que se modernizava
3
.
Fundada por Masaharu Taniguchi, a SNI retoma traços da tradição religiosa
japonesa e os amalgama com elementos oriundos da filosofia e religiosidade
ocidental. Sua intimidade com a filosofia alemã, com a “Ciência Cristã” e com o
cristianismo permitiu ao fundador desenvolver um sistema religioso que
pretendia a universalidade. Traço comum às novas religiões japonesas, a SNI
reinterpreta a tradição religiosa nipônica e lhe confere o status universal ao
compor sua utensilagem hibridizando diferentes tradições religiosas e formas
de pensamentos ocidentais e nipônicos.
Pesquisas anteriores servem como referência para esse trabalho. Em
sua maioria, as principais pesquisas sobre as novas religiões japonesas, em
especial a Seicho-no-Ie, foram desenvolvidas sob o prisma da Ciência da
Religião, como é o caso do trabalho de Leila Marach Bastos Albuquerque e
Ediléia Diniz. Esses trabalhos são de grande valia por permitir maior
proximidade com o pensamento religioso em questão, especialmente a
3
O termo “novas religiões japonesas” (shin shunkyô) surgiu na década de 1950 para designar
o movimento religioso emergente no final do século XIX e durante as primeiras décadas do
culo XX.
15
produção de Diniz
4
. Outros trabalhos e artigos, como os do professor Takashi
Maeyama e do professor Ronan Alves Pereira nos permitem compreender o
surgimento das novas religiões japonesas no arquilago nipônico e o
processo de instalação das mesmas em território brasileiro. As pesquisas de
Maeyama nos servem para entender o desenvolvimento da Seicho-no-Ie no
Brasil no seio da colônia. o trabalho de Albuquerque dá conta do
envolvimento de brasileiros com a doutrina. A presente pesquisa, no entanto,
trata especificadamente do papel da religião em questão enquanto espaço que
hibridiza tradições culturais, a japonesa e a brasileira, a fim da acomodação
dos imigrantes, principalmente dos descendentes, à sociedade brasileira na
década de 1960
5
.
Em fins de 1929, Masaharu Taniguchi recebeu a revelação divina que
lhe dizia: “Matéria não existe, o corpo não existe, nem existe alma. O único que
existe é Jissô. Jissô é Deus. Apenas Deus existe. O espírito de Deus e sua
manifestação são a única realidade. Isso é Jissô
6
(HERBERT Apud:
ALBUQUERQUE, 1999, p.20). Mais tarde, na revista de fundação da SNI,
Taniguchi se apresenta como messias responsável pela salvação da
humanidade:
Levanto-me e coloco-me diante da humanidade, erguendo alto a
chama da Verdade. Tornou-se inevivel levantar-me. Amigos e
companheiros, venham aderir a mim. A humanidade encontra-se
agora diante do perigo. Variadas formas de miséria avançam sobre a
humanidade, que é arrastada como um pequeno barco prestes a ser
tragado por ondas bravias. Hesitei-me em levantar e tornar-me um
líder, pois temia ser acusado de presunçoso. Queria permanecer
sempre humilde como um simples perseguidor da Verdade. Porém, o
desejo de permanecer na humildade me parece tentação para levar
uma vida sossegada. Preciso vencer essa tentação e salvar a
humanidade. Preciso salvar a humanidade como toda chama que
possuo. Por menor que seja a minha chama, não deixarei de iluminar
4
Outros trabalhos, como o de Andréia Gomes Santiago Tomita estão preocupados com o
papel das novas religiões japonesas enquanto transmissoras da religiosidade nipônica.
5
Em sua dissertação, Maeyama vislumbra atitudes no sentido de maior envolvimento da
Seicho-no-Ie com a sociedade brasileira no sentido de se adequar à situação sócio-política de
então.
6
A apreciação da doutrina, que se melhor explorada no terceiro capítulo, é resultado da
leitura de trabalhos do professor Takashi Maeyama, Leila March Albuquerque ,Ediléia Diniz e
textos de escritores da própria Seicho-no-Ie.
16
o caminho que a humanidade deve seguir. É a chama da verdade
que desceu dos céus. É chama ardente. Toquem em mim (...)
(Revista Seicho-no-Ie, 1993, p.4)
Em outras publicações, como pontua Leila Marach Bastos
Albuquerque, a SNI é apresentada como responsável por sintetizar outras
religiões, uma “super-religião” que albergaria as religiões mundiais:
É impossível que haja pessoas que pensem ser a Seicho-no-Ie uma
seita do Cristianismo porque ela faz conferências da Bíblia. Porém a
Seicho-no-Ie apresentou há alguns dias a peça de iluminação da
humanidade Sakya (Buda) e Vimalakirte. É possível que haja
pessoas que tendo assistido àquela peça pensem ser a Seicho-no-Ie
uma seita do Budismo. Todas m razão. A Seicho-no-Ie é Budismo,
é Cristianismo, é Xintoísmo, é também qualquer ensinamento ao
mesmo tempo. Isto porque, quando se segue a essência de todas as
religiões, chega-se a um ponto em que todas elas se identificam, e a
esse ponto de identidade é que foi dado o nome Seicho-no-Ie.
Portanto, a Seicho-no-Ie não converte a nenhuma das religiões em
particular. A Seicho-no-Ie é o ensinamento que leva à perfeição todas
as religiões, é o ensinamento que ascende a luz a todas as religiões,
as quais o os faróis que iluminam o mundo.
Todas as religiões até agora apareceram sob variadas feições em
adaptação ao ambiente e à época de seus aparecimentos, e todas
elas estão adequadas a cada época de seu aparecimento, por isso
para a época atual torna-se necessário o aparecimento de uma
religião que tenha uma feição em adaptação com a atualidade. E,
numa época como a atual, que há disputas entre uma religião e outra,
torna-se necessário o aparecimento de uma religião de caráter
sintético, que faça harmonizar todas as religiões em que se dê vida a
todas as religiões, atingindo a essência de todas elas, e que faça com
que todas elas dêem as mãos mutuamente. Esta é, afinal, a Seicho-
no-Ie (TANIGUCHI Apud: ALBUQUERQUE, 1999, p.34-35).
Grosso modo, as novas religiões Japonesas afirmam que o Japão é o
solo sagrado capaz de conduzir a humanidade rumo à harmonia; evidente
quando Taniguchi define a Seicho-no-Ie como resposta aos problemas do
mundo. As observações de estudiosos como Peter Clarke, Roland Robterson e
Ronan Alves Pereira nos permite dizer que as novas religiões têm sua textura
religiosa definida a partir da reelaboração do sagrado tradicional à luz da
17
modernização. Essas religiões respondiam às necessidades de um mundo em
transformação, adaptando traços da cultura religiosa japonesa aos novos
momentos. Percebemos essas expressões religiosas como instrumentos de
inovação cultural capazes de oferecer saídas e orientação em situações
contingenciais. Isso não implica abandonar o “tradicional”, mas uma
reordenação à nova dinâmica cultural que o Japão vivia (PEREIRA, 1995,
p.184). Partidária de opinião semelhante, Catarine Cornille anota que “as
Novas Religiões quase sempre procuram suas bases de legitimação nas
antigas religiões” (CORNILLE, 2006, p.94). O fundador da SNI deixa claro essa
posição ao afirmar:
Através do movimento espiritual Seicho-no-Ie, desejamos que o
correto modo de viver (negrito do autor) do Japão da antiguidade
seja revivido na mente das pessoas em forma de novas idéias e
vivificado na prática de cada pessoa (Revista Seicho-no-Ie, 1993,
p.8).
Ao se referir ao Japão da antiguidade como possuidor do correto modo
de viver, Masaharu Taniguchi revela a influência do pensamento nacionalista
que marcava o contexto da fundação da religião. Leila Marach Bastos
Albuquerque nos afirma que a doutrina da Seicho-no-Ie foi elaborada à luz da
estrutura ideológica familista do Estado Nação Japonês, predominante no
período anterior à guerra (ALBUQUERQUE, 1999, p.32). O Nacionalismo
Oficial nipônico ou Xintoísmo de Estado elabora sua “comunidade imaginada”
retomando pontos da tradição nipônica e reordenando-os ao novo contexto do
país. O território nacional e a figura do Imperador são deificados e o último é
apresentado como pai e centro mantedor da harmonia do Japão e do mundo.
As Novas religiões, conforme anota Peter Clarke, tomam o Japão enquanto
centro orientador do mundo; é do arquipélago nipônico que emana a salvação
(CLARKE, 2006, p.3).
As Novas Religiões japonesas foram transportadas para outros países
pelos imigrantes japoneses e servia de espaço de dramatização da
niponicidade. Contudo, após a Segunda Guerra Mundial e especialmente a
18
partir da década de 1960, essas expressões religiosas ganharam adeptos não
japoneses. Isso ocorreu devido às novas condições de vida das várias colônias
e comunidades japonesas espalhadas pelo mundo, que não se fiavam nos
mesmos cririos de etnicidade de antes
7
, e também devido mudanças no
quadro religioso ocidental que tornava as religiões orientais mais atrativas
(GONÇALVES, S/D, p.28).
Apesar de sua presença no Brasil por intermédio dos imigrantes desde
a década de 1930, é a partir de 1950 que a religião prospera em solo brasileiro.
Tomamos a segunda metade da década de 1960 como recorte temporal
porque foi nesse momento que a instituição, que até então era do tipo étnica,
se torna uma religião de conversão. Entendemos que essa mudança de atitude
é uma resposta dos imigrados e descendentes à nova conjuntura em que se
encontravam os japoneses. Abandonado o sonho de retorno ao Japão, os
Japoneses criaram diferentes configurações simbólicas para sua acomodação
no mundo fora da colônia. Portanto, a Seicho-no-Ie é parte da nova
configuração étnica dos japoneses e dos descendentes no Brasil e sua
estruturação está condicionada à nova condição social, especialmente das
gerações mais novas, os nisseis, posterior à Segunda Guerra Mundial.
Conforme afirmamos, nossa fonte documental são textos apologéticos
e, principalmente, textos produzidos pelas lideranças da Seicho-no-Ie, tanto do
Brasil quanto do Japão, publicados na revista Acendedor. Em linhas gerais, seu
conteúdo tem como eixo temático as discussões sobre nacionalismo e como
ser um bom cidadão. Reparamos que esses dois tópicos são constantemente
tratados tanto pelos textos produzidos no Brasil quando por aqueles produzidos
na sede.
8
A recorrência a esses temas não era gratuita; na verdade, era a
manifestação do interesse na SNI em estabelecer pontes entre significados da
cultura japonesa que marcaram o Xintoísmo de Estado, o Nacionalismo Oficial
7
Referimos à identidade étnica anterior à derrota do Império Japonês que estabelecia uma
rotura étnica mais rígida ancorada nos valores do Xintoísmo de Estado.
8
Os documentos são divididos em publicações feitas pelas lideranças da central brasileira da
SNI e textos publicados no Japão e traduzidos para a língua portuguesa. O primeiro grupo
analisado, base maior desse trabalho, o textos escritos pelos deres da SNI, sendo todos
estes preletores nipo-brasileiros. Tais textos falam mais diretamente aos leitores por
relacionarem o papel da doutrina como colaboradora da ordem e desenvolvimento nacional
através de seus preceitos.
19
japonês e a identidade étnica anterior à guerra e a situação política brasileira
daquele momento, a saber, a consolidação do Estado Militar:
Com a revolução de março de 1964, foram dadas decisões efetivas à
política da corrupção que até então era a célula cancerosa da nação
(...). Nós os membros da Associação dos Moços da Seicho-no-Ie do
Brasil, com os profundos respeitos, procuramos colaborar para a
concretização integral do ideal do governo (Acendedor, 1968, nº3,
p.41).
Qual o ideal do governo recém estabelecido? De que maneira
pretendem colaborar para sua concretização? O que a SNI entende por um
bom governo? Em que medida essa posição se difere da identidade étnica de
outrora? São nas referências trazidas do Japão e que serviam de orientação no
período anterior à derrota de 1945 que encontram a maneira de “colaborar”
com o ideal de um governo autoritário que não aceitava nenhum tipo de
oposição.
É mister pontuar que no momento em que a Seicho-no-Ie se abriu para
o público brasileiro, o Governo militar, recém empossado por um Golpe de
Estado, estabelecia sua “Doutrina de Segurança Nacional”. A ideologia do
Estado, engendrada no contexto da Guerra Fria nos Estados Unidos e
apropriado pelo Brasil e outras nações latino-americanas, se fia na existência
de um inimigo externo, mas, principalmente interno, o comunismo, como
elemento de desequilíbrio à sociedade cristã ocidental. O par oposto da
Doutrina é o quisto subversivo que deveria ser extirpado. Segundo Nilson
Borges, a existência de um inimigo externo cria um clima de guerra
permanente que tem como principal objetivo manter a coesão e o espírito do
grupo que se mantêm no poder (BORGES, 2003, p.30). Temos então um
conjunto ideológico que ambiciona o estabelecimento de um corpo nacional
harmônico necessário ao tão sonhado e certo progresso nacional (um dos
mitos fundacionais) que o aceita qualquer tipo de oposição que lhe impeça a
concretização do “destino manifesto brasileiro”.
20
Partimos da premissa de que a identidade étnica nipônica após a
derrota em 1945, passou pelo que Katryn Woodward denonimou “crise
identitária”, (WOODWARD, 2000, p.50) um momento em que os alicerces
identitários de um determinado grupo são colocados em cheque por
contingências, em nosso caso o desmantelamento da antiga niponicidade e a
conseqüente necessidade da colônia afirmar seus laços afetivos com o Brasil.
Na época da abertura à comunidade brasileira, a Seicho-no-Ie apresenta uma
alternativa à crise de referencial estabelecendo negociações com os mitos da
tradição nacional brasileira, mas também com o regime militar que oferecia a
partir de seu discurso os critérios delimitadores da brasilidade, a preocupação
com o progresso e a eliminação de qualquer obstáculo para tal os mitos
fundacionais do Brasil são enfatizados pelo governo militar, especialmente o
ideal de grandeza e progresso inexorável.
Nossa problemática é que a Seicho-no-Ie (SNI) foi responsável pela
produção de uma variável da identidade hifenizada nipo-brasileira através de
um processo de ressemantização e tradução das formas de pertencimento que
constituem nossa “comunidade imaginada” a partir da utensilagem religiosa
japonesa. Temos então o desenvolvimento de um dos matizes da identidade
nipo-brasileira que leva em conta a necessidade do envolvimento com a
comunidade nacional e tamm, os interesses em manter “vivo” o sentimento
de pertença à sociedade japonesa.
Para resolver o nosso problema cabe-nos explorar o tipo de
envolvimento e identidade dos japoneses no período que antecede o recorte de
nosso trabalho. Nossa incursão às primeiras décadas após a chegada dos
imigrantes japoneses ao Brasil é um método profícuo para que possamos ao
mesmo tempo entender as condições de produção simlica que geraram a
construção de uma identidade hifenizada e em que medida ela pode ser
considerada diferente da identidade étnica que orientou a colônia japonesa no
período que antecede a Segunda Guerra. De antemão, pontuamos que a
Segunda Guerra Mundial foi um marco divisor da percepção que os japoneses
tinham de si mesmos e de suas relações com o Brasil. Contudo, a nova postura
assumida pela colônia nipônica diante do mundo não implicava na negação dos
valores tradicionais que antes serviam de índice da niponicidade.
21
No primeiro capítulo pontuamos brevemente sobre a imigração e
estabelecimento dos japoneses no Brasil, os estigmas que marcavam os
japoneses, o sentimento de provisoriedade, as referências trazidas do
arquipélago e seu contato com um mundo estranho. No capítulo seguinte
intentamos dar conta do desenvolvimento da identidade japonesa no pré-
guerra e as transformações por que essa passou após 1945, o que favoreceu a
integração do imigrado e sua descendência, uma virada identitária, na
sociedade receptora. Posteriormente, já no terceiro capítulo, sendo esse o
objeto de nosso trabalho, buscamos compreender os elementos culturais
alocados a favor da integração a partir da instituição religiosa de origem
japonesa, Seicho-no-Ie do Brasil. Tomamo-na enquanto espaço de negociação
ou “Zona de Contato, que estabelece “convergências” ou “afinidades” entre
imagens oriundas de diferentes tradições (BURKE, 2003, p. 26-27), japonesa e
brasileira, expressando a ressemantização (locus tradutor) intrínseca ao
processo de integração
9
9
Preferimos o conceito integração à assimilação no intuito de afastarmos considerações que
tratam as minorias ou grupos periféricos enquanto sujeitos passivos, cápsulas vazias a serem
preenchidas, diante dos significados dos grupos “hegemônicos”. Nathan Wachtel, ao conceituar
“integração (WATCHTEL, 1995, p. 118), chama atenção para a “aceitação seletiva” de
representações do “outro”, geralmente hegemônicas, a partir de semelhanças sentidas entre
estas e as representações da cultura do “eu”. Cabe-nos sondar essas representações
perscrutando como é operacionalizada essa “aceitação seletiva”. Fugimos assim da antiga
noção de aculturação em favor de uma vio transculturalizadora (PRATT, 1999, p. 34).
22
CAPÍTULO 01 TRÂNSITOS E SONHOS: OS JAPONESES NO BRASIL.
1.1 - Japoneses no Brasil e os “frutos de ouro”.
Tomamos a condição dos imigrados japoneses e especialmente seus
descendentes enquanto sujeitos que se estabelecem no novo mundo, mas que
não mantêm uma identidade suspensa, imuvel, tendo que negociar sempre
com o mundo do outro. Daí a dificuldade em nos referirmos a eles enquanto
“japoneses”, definição que usualmente atribuímos genericamente às pessoas
com “olhos puxados”. Sua identidade, a percepção de si e da outridade, variou
circunstancialmente, em especial quando os nisseis sentiram a necessidade de
estabelecer maior intimidade com a comunidade brasileira
10
.
Compreendemos identidade enquanto um construto simbólico sobre si
mesmo, que orienta os sujeitos nela investidos mediante uma amarra
promovida retrospectivamente e prospectivamente (o que éramos, continuamos
a ser e seremos) (VELHO, 1998, p.101), tendo como referência a diferenciação
eu/outro (GIORGIS, 1993, p.03). Entendemos o sentimento de pertencimento à
tradição japonesa como algo maleável. No decorrer de décadas, o universo do
“outro” acaba sendo “absorvido” e resignificado, traduzido, deixando de ser
encarado como uma terra estrangeira e, através de uma série de trocas
simbólicas, passa a ser concebido como morada definitiva, “terra adotiva”
(yokoku).
Após a Segunda Guerra Mundial, a colônia japonesa estabelecida no
Brasil se viu diante de um dilema identitário. O término da guerra e a derrota
japonesa finda o sonho de retorno ao Japão, um dos pilares que mantinham a
identidade étnica até então. Daí em diante, foram estabelecidas “estratégias”
que garantissem o envolvimento dos japoneses, especialmente das gerações
mais jovens, com a sociedade brasileira. Esse processo ocorreu em vários
10
Nosso recorte, a cada de 1960, privilegia os descendentes dos japoneses que imigraram
para o Brasil antes da Segunda Guerra Mundial. Optamos pelos descendentes, pela latência
do duplo pertencimento, já que esses sujeitos nasceram no Brasil e foram educados na família
japonesa e em escolas brasileiras.
23
setores. A antiga rotura étnica se flexibilizou para garantir a inserção dos
japoneses no quadro econômico e sócio cultural brasileiro.
Sair da terra de origem significa buscar no exterior, na terra do outro, o
que não se consegue em casa. A aventura em terras estrangeiras é
justificada quando a sociedade de origem não fornece as condições
necessárias para sobrevivência (WAWZYNIAK, 2004, p. 46). A
emigração/imigração é possível quando existe, de um lado, demanda por
mão-de-obra no país receptor e, por outro, condições de atendimento do país
remetedor que corresponda a essa demanda (TSUKAMOTO, 1973, p. 14).
Segundo Maria Tereza Petrone, a emigração transoceânica do final do
século XIX estava intimamente relacionada, no caso europeu, com as
profundas transformações ocorridas a partir do século XVIII, com a
industrialização e a nova configuração social surgida após as revoluções
liberais (PETRONE, 2000, p. 95 O imigrante, segundo Hebert Klein, não
pretende mudar de casa; é a dificuldade de sobreviver que o faz cogitar a
saída. Não obstante, o processo de migração depende do equilíbrio entre
fatores de saída da sociedade de emigração e a atração exercida pela
sociedade receptora (KLEIN, 2000, p. 13) podemos tamm, acrescentando
ao pensamento de Klein, considerar a existência de casos do tipo “aventureiro”,
quando sujeitos desejam conhecer outras terras.
Klein aponta o crescimento demográfico ocorrido na Europa na
transição do século XVIII para o culo XIX como o principal responsável pela
migração interna e transoceânica. O fenômeno conhecido por “transição
demográfica” foi resultado da diminuição dos índices de mortalidade e da
manutenção do alto índice de natalidade; higienismo, a vacinação em massa e
uma melhor dieta promoveram o aumento populacional. A transição
demográfica é parte da modernização capitalista; desenvolve-se primeiro no
norte europeu, estendendo-se para o sul e leste durante os novecentos
(KLEIN, 2000, p. 14). Um culo depois, o Japão viveu o mesmo fenômeno
industrial e demográfico, responsável pela emigração.
Para atender às grandes demandas, especialmente alimentares,
surgiram novas formas de organização da terra através de melhores cnicas
24
no cultivo. Com isso, muitos perderam o acesso a terra diante da criação de
maiores unidades de cultivo e pecuária. O desemprego aumentou com a
mecanização agrícola, o que somado ao desemprego urbano colaborou para o
surgimento de grande excedente de mão-de-obra (KLEIN, 2000, p.14). No
mundo rural, o crescimento demográfico promoveu ainda o fracionamento das
terras do pequeno camponês. Mesmo em países onde a herança era apenas
do primogênito (caso japonês), se tornou difícil o sustento de uma família
extensa.
Grande parte dos imigrantes que se dirigiram para o Brasil se
dedicaram ao trabalho na lavoura de café, substituindo a mão-de-obra
escrava
11
(PETRONE, 2000, p. 96); a imigração aumentava na mesma
proporção que aumentava o interesse dos cafeicultores por novos mercados
consumidores. Um bom exemplo é a imigração japonesa, vista com bons olhos
11
Desde a metade dos novecentos coexistiram e, muitas vezes se opuseram, duas posições
acerca da importância da imigração para o Brasil. Essa dicotomia perpassou o período
republicano. De um lado, se encontravam defensores da imigração com o intuito de ocupar
regiões de fronteira através da constituição de pequenas propriedades. De outro lado se
posicionavam os partidários da imigração enquanto maneira de substituir gradativamente o
trabalho escravo na grande lavoura cafeeira (PETRONE, 2000, p. 97).Na última década do
regime imperial foram fundadas duas sociedades de imigração a partir dessa perspectiva
antagônica. Em 1883 foi fundada a Sociedade Central de Imigração; seus idealizadores foram
intelectuais liberais como o Visconde de Taunay, And Rebouças, Orville Derby e outros.
Defendiam que a imigração deveria ser orientada a partir da necessidade de se constituir
pequenas propriedades e um campesinato à européia. Acreditavam que assim estariam
contribuindo para a superação de uma sociedade atrasada, latifundiária e escravocrata. Do
outro lado, e com melhores resultados, foi fundada em 1886, por fazendeiros paulistas, sob
inspiração do então Presidente da Província de São Paulo, o Conde de Parnaíba, a Sociedade
Promotora de Imigração (PETRONE, 2000, p.97). O papel do governo na imigração se deu de
acordo com sua política econômico-financeira. Durante o Império a responsabilidade pela
imigração era do governo, cabendo-lhe a definição de diretrizes, planejamento e investimento
no processo. Nos primeiros anos da República, precisamente entre 1894 e 1907, o federalismo
vigente delegou aos Estados essa responsabilidade, o que incluía a subvenção do imigrante. A
Inspetoria Geral de Terras e Colonização, órgão imperial destinado a assuntos da migração, foi
reorganizada na transição para a República, significando o controle do governo imperial sobre
o fluxo de imigrantes. Sua existência no período republicano foi breve devido à oposição que
lhe fazia o federalismo. Em 1884, a lei orçamentária previa que a imigração e o
estabelecimento de colônias seriam atribuições estaduais e o do governo central, conforme
estabelecia a “Lei Glicério” de 1890. Porém, a falta de apoio financeiro da União atingiu a
maioria dos Estados que se interessavam pelo trabalhador estrangeiro, excetuando São Paulo,
o que mais demandava força de trabalho. A União teve que rever sua posição em relação à
questão imigratória e reassumir o papel central no processo (PETRONE, 2007, p. 98).
25
pelos cafeicultores porque significava, entre outras coisas, a possibilidade de
atingir o mercado nipônico (NOGUEIRA, 1973, p. 59-60).
O Estado de São Paulo foi o que mais demandou mão-de-obra
estrangeira (PETRONE, 2000, p. 103) devido especialmente ao café. O
subsídio pago pelo governo paulista foi viável graças às condições
financeiras do Estado. Entre 1880 e o final da década de 1920 o crescimento
da imigração foi diretamente proporcional a da lavoura do café, passando por
declínio na década seguinte. Os investimentos brasileiros se tornaram maiores
na medida em que os países remetedores, até então financiadores das
viagens, abandonaram o subsidio dos emigrados (Itália, 1902; Espanha, 1910)
ou em momentos de crises da economia cafeeira. O Convênio de Tauba
(1906), por exemplo, estabeleceu metas de apoio, desde o subsidio à viagem
do imigrante até o investimento na propaganda internacional do café
12
(PETRONE, 2000, p. 104).
As transformações no Japão a partir da Restauração Meiji
13
(1868)
foram as grandes responsáveis pela saída derios grupos de japoneses rumo
a outros países. O processo emigratório está intimamente ligado às
dificuldades em se estabelecer o equilíbrio social necessário entre o recém
inaugurado Estado-Nação moderno
14
e setores da população que não se
compatibilizavam com as novas bases econômicas e sociais implantadas no
12
Petrone explica que a grande demanda dos fazendeiros paulistas tamm se devia ao
barateamento da mão-de-obra, ocasionado pelo grande contingente de força de trabalho
ofertada. Quanto mais trabalhadores mais fácil seria conseguir alguém que trabalhasse por um
salário menor. Geralmente os trabalhadores eram contratados na Hospedaria de Imigrantes, na
capital paulista, onde se alojavam gratuitamente até serem empregados. Era ali que discutiam
com o possível patrão as questões de salário (PETRONE, 2000, p. 108-109).
13
Apesar de suas particularidades, em especial a orientação política no contexto imperialista,
podemos fazer uma breve analogia entre a Restauração Meiji e as Revoluções Liberais
européias no sentido de que promoveram profundo impacto ao desfazer formas de
solidariedade anteriormente estabelecidas,em especial devido a industrialização decorrente
dos processos revolucionários.
14
Por Estado Moderno nos referimos ao tipo de dominação burocrático-objetivo pontuado por
Max Weber. Nesse governo prevalece a submissão à autoridade legal baseada em relações
impessoais e a um “dever de ofício” que estabelece racionalmente as leis e regulamentos, ao
invés de outras relações baseadas no carisma (dom extraordinário) do governante ou no
tradicionalismo, especialmente o patriarcalista, que considera invioláveis os sistemas de
normas. Weber ainda anota a presença em alguns casos empíricos da combinação ou estado
de transição entre diferentes tipos de autoridade (WEBER, 1973, p. 340 346).
26
país. Sofrendo com as mudanças econômicas, inúmeros camponeses que
tinham acesso às terras se viram prejudicados e obrigados a arrendá-las ou
vendê-las, que muitas vezes não conseguiam pagar impostos, o que
provocou o aumento dos latifúndios. A prática do arrendamento aumentou em
pelo menos 40%, uma vez que os agricultores pobres não podiam pagar suas
dívidas (HENSHALL, 2005, p. 111).
Tomoo Handa afirma que os japoneses ao não se adequarem ao
Japão moderno se viram impelidos a buscar novos caminhos (HANDA, 1987,
p.72-77). Sindinalva Wawzyniak enfatiza tamm que o empobrecimento dos
camponeses os obrigavam a ir para centros urbanos em busca de alternativas,
o que nem sempre significava melhoria (WAWZYNIAK, 2004, p. 41). O
crescimento demográfico colaborou ainda mais para os problemas sociais,
motivando o governo a buscar alternativas na migração para regiões mais
distantes do arquipélago, como para Hokkaido, para seus domínios imperiais
ou para outros países, como o Havaí, Estados Unidos, Peru e Brasil
(STANIFORD, 1973, p.32-43). O Japão viveu o equivalente à transição
demográfica ocorrida na Europa.
O governo japonês, bem antes de 1868, criara mecanismos legais
para garantir a indivisibilidade da terra, de forma que fosse reservada à
primogenitura a heranças das posses da “família”, o ie
15
. Os filhos não
sucessores eram obrigados a se estabelecerem nas dependências do irmão
sucessor constituindo um ie tronco”, adjacente, ou a buscar meios de construir
o seu próprio ie. A família rural tinha em média três filhos, sendo que,
geralmente, o primogênito, por ser sucessor, continuaria vivendo na
propriedade familiar. Ele era o responsável pela continuação da linhagem,
portanto o filho proeminente da família (STANIFORD, 1973, p. 34).
Philip Staniford pontua que, desde 1868, quatro tipos de emigrações
se tornaram possíveis para os japoneses da zona rural: recrutamento militar
15
Takashi Maeyama afirma que o ie era a principal célula da sociedade japonesa, constituída
em torno da liderança do mais velho. A autoridade se assenta na primogenitura e na obrigação
deste para com os deveres espirituais de culto aos antepassados. O primogênito é o herdeiro
do ie especialmente por ser herdeiro de obrigações religiosas, o que tamm lhe confere o
controle territorial. (MAEYAMA, 1973, p. 421).
27
para seguir a carreira (referindo-se à presença japonesa no sudeste asiático);
migração para outras áreas como trabalhador não-especializado para o
comércio ou para a indústria; migração para áreas urbanas com capital e/ou
instrução suficiente para obtenção de algum cargo ou função; estabelecimento
em terras de litígio, de fronteiras (STANIFORD, 1973, p. 36). Hokkaido foi uma
das regiões limítrofes do Japão ocupadas por levas de migrantes. Pode-se
dizer que a ilha ao norte do Japão serviu como protótipo para os padrões
subseqüentes de emigração para além mar. Muitos daqueles que foram para
territórios imperiais ou para terras estrangeiras adquiririam alguma experiência
ali (STANIFORD, 1973, p. 37).
Inicialmente as terras em Hokkaido foram oferecidas a grandes
fazendeiros, muitos deles sendo da estirpe de antigos samurais. A necessidade
de arranjar mão-de-obra os obrigou a buscar trabalhadores, que para lá
migraram em grandes levas (migração de grupo). Alguns incentivos eram
concedidos pelo governo ou por particulares, estes últimos dando garantia de
empréstimos para os trabalhadores que, após findar o contrato, iniciariam seu
próprio negócio (STANIFORD, 1973, p. 38). Posteriormente, levas de
emigrantes seguiram para domínios e zonas de influência do Império Japonês
no extremo Oriente (STANIFORD, 1973, p. 39).
No esteio da modernização
16
e na necessidade de se afirmar enquanto
“nação civilizada”, o Japão estabelece princípios que tinham como objetivo
proteger seus súditos. Célia Sakurai anota que essa cautela com o emigrante
serve como marcação da diferença entre Japão e China (SAKURAI, 2000, p.
204-205). Buscava-se fugir dos estigmas do “orientalismo” através da
apropriação de padrões políticos do ocidente”; o cuidado com o destino do
emigrado é, assim como a Constituição japonesa de 1889, a expressão do
desejo de uma nação em se inserir no rol das potências mundiais e não
sucumbir diante das representações que marcavam todo continente asiático.
16
Entendemos por modernização japonesa o período posterior à Revolução Meiji (1868),
quando se tornou um imperativo político e cultural sobreviver ao Imperialismo europeu e
estadunidense. Nesse momento, estruturas administravas e dominação foram apropriadas pelo
Estado japonês afim de não sucumbirem ao mesmo destino de países asiáticos vizinhos ao
Japão, especialmente a China (HOBSBWAM, 1988, p.119).
28
Mesmo assim, “para países ocidentais, o Japão é tal como a China, mais um
país fornecedor de mão-de-obra” (SAKURAI, 2000, p.205).
No final do século XIX, foram estabelecidos acordos de amizade que
viabilizaram a emigração para países que demandavam mão-de-obra, em
especial para o Havaí, posteriormente anexado aos EUA; mais tarde para
Califórnia, Peru e para o Brasil. O processo emigratório contou com parcerias
entre empresas privadas japonesas e os Estados envolvidos.
As primeiras
levas de emigrantes partiram para o Ocidente em 1868, recrutados para
trabalhar alguns meses no Havaí. No entanto, devido ao tratamento recebido
no exterior, o governo proibiu a emigração até 1885. Posteriormente, o Estado
nipônico perdeu parte do controle da emigração. A partir de 1890, os japoneses
rumaram para os EUA. Dez anos depois para o Peru, para trabalharem nas
haciendas de algodão. Em 1908 atracaram no Brasil para trabalharem nas
plantações de café (STANIFORD, 1973, p. 40-41).
Em linhas gerais, o emigrado pretendia se estabelecer em outro
território temporariamente para que pudesse ter condições, após o retorno à
terra natal, de estabelecer seu ie o imaginário de se instalar apenas
provisoriamente fora de casa e, como diz Célia Sakurai, voltar rico para a terra
natal” (SAKURAI, 2000, p.211). Staniford, ao contrastar os emigrados
estabelecidos em domínios imperiais e aqueles que rumaram para o hemisfério
ocidental, afirma que aqueles que se deslocaram para a América possuíam
laços mais tênues com a terra natal por não terem emigrado como membros de
um grupo conquistador
17
(STANIFORD, 1973, p, 39), o que não significava o
abandono do sonho de retorno ou o sentimento de pertencimento à
comunidade nacional. Este, aliás, se manteve presente enquanto grande
referente cultural, marcando profundamente a experiência nipônica e de seus
descendentes no exterior.
A imigração de povos oriundos do extremo oriente” o era bem
vista por várias sociedades receptoras, pelo menos até o momento em que não
havia verdadeiras vantagens econômicas. Tanto chineses quanto japoneses
17
Referimo-nos ao Imperialismo japonês responsável pela dominação de territórios no sudeste
asiático e na Oceania. Convêm mencionar que o Japão, assim com as nações européias, se
lança à dominação de outras regiões em busca de vantagens econômicas se fiando na idéia de
um projeto civilizatório.
29
eram vistos como possíveis ameaças devido às profundas diferenças culturais
que lhes eram atribuídas e o orientalismo” como um todo mantém o “outro”
no nível na incompreensão, sujeito obscuro e diferente (mais que outros povos)
do nosso grupo. Presentes em um novo mundo, eram sempre apontados como
seres inassimiláveis e portadores de idéias estranhas, além de serem muitas
vezes, por trabalharem por salários irrisórios, considerados concorrentes de
trabalhadores nativos. Temia-se a multiplicação desses povos nas sociedades
de imigração, como no caso dos EUA, onde acreditam que a presença asiática
ocasionaria a dominação de toda costa oeste. Com freqüência, a reação contra
os japoneses era marcada por teorias raciológicas que estigmatizavam o
japonês enquanto povo desordeiro e pouco civilizado (SAKURAI, 2000, p.205).
No caso específico dos japoneses foi assinado nos EUA, em 1907, o
“Gentlem‟s Agreement”, que limitava a entrada nipônica em território
estadunidense, até então livre
18
. Medidas semelhantes foram tomadas por
outros países, como Austrália, Guatemala e Canadá
19
. No Brasil, foram muitos
aqueles que fizeram oposição à presença japonesa, argumentando que se
outras nações se precaviam diante do “perigo amarelo” cabia também ao país
tomar medidas semelhantes (NOGUEIRA, 1973, p. 56-57)
20
A importância do Brasil para o Japão se ampliou na medida em que
outros países se negavam a receber imigrados provenientes do Império
(NOGUEIRA, 1973, p. 57). Data de 1895 a assinatura do acordo de amizade e
comércio entre Brasil e Japão, quando as duas nações iniciaram suas relações
18
Mesmo gozando de uma posição privilegiada, se comparada a outros povos do extremo
leste, o Japão ainda se sentia em situação de desigualdade na comunidade internacional. Após
a criação da Liga das Nações, o Japão propôs o princípio da isonomia internacional o que não
foi acatado pelo órgão internacional. Posteriormente, o país sofreu com os limites impostos
pelas potências para seu desenvolvimento naval e também a novos limites para imigração
nipônica nos EUA, imposto em 1924 devido o chamado “Yellow Peril” (Perigo Amarelo).
Henshall anota que tais situações colaboraram para um contínuo acirramento de ânimos por
parte dos japoneses contra nações estrangeiras. O Japão “poderia fazer as coisas ao estilo
ocidental para todo o sempre, mas nunca seria uma verdadeira nação branca(HENSHALL,
2000, p. 154-155).
19
Os japoneses sofreram constrangimentos nos EUA, como a proibição de reivindicações
trabalhistas (1907) e a proibição de posse de propriedade (1907); no Canadá os japoneses
tiveram moradias e estabelecimentos comerciais atacados (SAKURAI, 2000, p.208).
20
É o caso do encarregado dos Negócios do Brasil no Japão, Luís Guimarães, que afirmava,
com base em seu entendimento da situação japonesa nos EUA, que o Brasil “se mete
voluntariamente numa aventura perigosa”, receando que a mão-de-obra imigrada competisse
com a nacional (NOGUEIRA, 1973, p. 57).
30
diplomáticas em busca também de novos mercados o café brasileiro, assim
com a propaganda a favor da emigração para o Brasil, se fizeram presentes
nas primeiras décadas posteriores ao acordo. No entanto, a imigração
japonesa era vista com reservas naquele momento devido ao fluxo contínuo de
imigrantes europeus (SAKURAI, 2000, p.206).
O interesse pela mão-de-obra japonesa no início do século XX se deu
devido ao plantio do café no Estado de São Paulo. Com o fim da escravidão e
a inserção de trabalhadores estrangeiros, os cafeicultores lidaram pela primeira
vez com a escassez de força de trabalho, que muitas vezes os imigrantes
europeus, preferíveis a quaisquer outros, não ficavam por muito tempo na
fazenda ou re-emigravam para outros países. Na constituição de 1891 ficou
proibida a entrada de mão-de-obra proveniente da África e da Ásia. Contudo, o
déficit posterior de trabalhadores oriundos da Europa, graças às restrições,
como o fim da subvenção na Itália em 1902 e na Espanha em 1910, e à
mobilidade do imigrante europeu, ora para outras regiões ora para países que
climaticamente e culturalmente lhes pareciam mais adequadas, provocou
mudanças na questão de aceitar ou não a presença do japonês. Os
fazendeiros e demais apologistas do uso de mão-de-obra “oriental” afirmavam
que o japonês aqui estabelecido teria maiores dificuldades para se adaptar à
cultura nacional, o que consequentemente dificultaria o abandono da fazenda
tanto o discurso favorável como contra a presença japonesa destacaram a
profunda diferença cultural. Também acreditavam que a aceitação da mão-de-
obra oriental poderia abrir espaço junto ao mercado consumidor de suas
nações de origem (NOGUEIRA, 1973, p. 59-60).
Em junho de 1908 (ano 41 da era Meiji), atracou em Santos o vapor
Kasatu Maru, trazendo a bordo a primeira leva de imigrantes japoneses. O
Brasil era representado, graças à propaganda em outros países, como a terra
da oportunidade, do futuro, que carecia de mão-de-obra, local de fácil
enriquecimento e, também, terra de liberdade e de ausência de preconceitos
raciais e religiosos (TSUKAMOTO, 1973, p.15).
As companhias de emigração Japonesas vendiam o sonho de que no
Brasil os japoneses enriqueceriam na lavoura do café, onde adquiririam o
31
pecúlio e um dia voltariam para casa. Segundo Zélia Demartini a propaganda
era marcada por slogans como “no Brasil existe a árvore que ouro que é o
cafeeiro. É colher com as mãos” (DEMARTINI, 2000, p.82). O Brasil
ganhava a preferência dos japoneses devido tamm ao fato de ser possível
emigrar com toda a família, desde que estivessem dispostos ao trabalho nos
cafezais
21
(WAWZYNIAK 2004, p. 53-55). O governo japonês era o mais
interessado na imigração para o Brasil. Analisando sua própria experiência no
processo imigratório e também a experiência de outras nações, o governo
elaborava medidas de tutela que facilitassem o trânsito e o estabelecimento do
emigrante.
Célia Sakurai define o período entre 1908 e 1924 como “experimental”.
Isso se deve às contingências que impediam o fluxo contínuo de imigrantes
como o que notamos nas fases seguintes. Cortes nos subsídios das viagens
pelo governo paulista são os principais fatores para a limitação da mão-de-obra
nipônica. Em 1913, o governo brasileiro decide, pela primeira vez, cortar a
subvenção aos japoneses com o objetivo de favorecer a vinda do imigrante
“oriundo de países a que nos prende a afinidade de raça” (SAKURAI, 2000,
p.214) uma clara expressão da política do branqueamento que marcou o
processo imigratório. A Primeira Guerra faz o governo retomar os investimentos
da imigração dos japoneses, já que se tornara difícil o translado dos imigrantes.
Por fim, em 1923, os paulistas abandonam de vez todos os subsídios, ficando
esses ao encargo das companhias de emigração do Japão (SAKURAI, 2000, p.
214-215).
A chegada das primeiras levas é encarada com insegurança pelo
governo, mas, principalmente, pelos fazendeiros de café (SAKURAI, 2000,
p.208-209). De forma alguma a instalação do japonês foi fácil. Problemas com
a alimentação e a relação com a língua portuguesa foram as primeiras
dificuldades encaradas pelo imigrado (HANDA, 1973, p. 74). Arlinda Nogueira
21
Teiiti Suzuki divide a imigração japonesa para o Brasil em três fases: Primeira fase (1908-
1922); Segunda fase (1923-1947); Terceira fase (1948-1958) (SUZUKI, 1973, p.229). A
corrente imigratória japonesa atinge o auge na década de 1930 (PETRONE, 2000, p. 106). De
1908 em diante cerca de 234 mil imigrantes entraram no país. No início da década de 1990 os
nipo-descendentes somavam 1,2 milhões (SAKURAI, 2000, p.201).
32
mostra que as opiniões sobre a presença nipônica variavam. Comparando
jornais da época e tamm cartas dos fazendeiros que faziam uso do imigrado,
notamos as representações ambíguas sobre os japoneses em solo nacional,
ora apresentados como incapazes do trabalho na lavoura e desertores
22
(fugas), ora valorizados pela dedicação, por serem higiênicos e ordeiros
(NOGUEIRA, 1973, p. 62-64).
Tomoo Handa ressalta as dificuldades das famílias que
desembarcaram em 1908. Segundo o autor, um dos pontos marcantes foi a
“desilusão” sentida pelo trabalhador diante da realidade salarial no Brasil. As
dificuldades e desentendimentos surgidos nas fazendas quase sempre exigiam
a intervenção da Companhia de Emigração. Trabalhadores recorriam a ela em
busca de melhores salários e condições de vida. A maioria dos imigrantes
ignorava o fato de que a viagem subsidiada deveria ser paga para o fazendeiro
(DEMARTINI, 1997, p.83). Da mesma forma, os cafeicultores recorriam à
mesma Companhia para acalmar os imigrantes exaltados. Cabe mencionar as
dificuldades em se adaptar ao novo mundo, as dificuldades financeiras
decorrentes da má safra que se registrou naquele ano, da explorão feita
pelos armazéns (pequenas lojas onde se compravam alimentação), das
doenças, das péssimas condições de suas instalações e, principalmente, o
idioma. Os poucos intérpretes que existiam tamm eram recém chegados ao
Brasil, não conhecendo bem a língua. A “árvore dos frutos de ouro” se tornou
menos dourada (HANDA, 1973, p.110-114).
Em 1910, atracou no Brasil o segundo navio de imigrantes japoneses.
O novo grupo partiu do Japão após assinar um contrato comercial que
estabelecia a estadia de no, mínimo, dois anos na fazenda do contratante.
Tentava-se com isso inibir a evasão de mão-de-obra que se observou nas
primeiras experiências. Diferente dos primeiros imigrados, o novo grupo
encontrou melhor safra, o que favoreceu sua sedentarização na lavoura. No
entanto, ocorreram fugas pelos mesmos motivos de outrora (HANDA, 1987, p.
61-65).
22
As fugas estavam relacionadas, segundo Tomoo Handa, às dificuldades encontradas pelos
imigrantes. Os percalços iam desde a insatisfação com o salário que ganhavam, geralmente
comparado com rumores de outros trabalhadores que ganhavam mais em outras regiões, até a
preocupação com os surtos de maleita na época das chuvas (HANDA, 1973, p. 98-100). No
geral, japoneses e europeus empreendiam fugas devido à desilusão com as condições de vida.
33
A grande maioria dos imigrantes se fixou no interior de São Paulo,
dando origem aos primeiros cleos coloniais japoneses no Brasil. Os
primeiros núcleos, segundo Zeila Demartini, foram formados na região noroeste
do Estado de São Paulo, como Cafelilândia na Fazenda Hirano (1916); núcleos
das Fazendas Bujão e Vai-bem na Alta Sorocaba; Fazenda Vetsuka, em
Promissão; Primeira e Segunda Aliança, em Araraquara, entre outros
(DEMARTINI, 1997, p.83)
23
.
O descontentamento com a lida e condições de vida motivou a fuga
dos trabalhadores, ação comum entre imigrantes de todas as nacionalidades.
Em 1914, insatisfeito com os japoneses, o governo de São Paulo rescinde o
contrato com a Companhia de Emigração. Porém, a Primeira Guerra dificultava
o translado de imigrantes de nacionalidade européia, favorecendo o retorno da
mão-de-obra nipônica (PETRONE, 2000, p. 105).
A estadia na fazenda de café se revelou pouco lucrativa. Ainda
mantendo o sonho de adquirir alguma riqueza e voltar para o Japão, muitos
buscaram novas ocupações ou novas formas para ganharem a vida. Alguns
conseguiram empregos nas cidades e outros, após anos de economia,
compraram ou arrendaram pequenas porções de terras, dando origem a seus
próprios núcleos de colonização (HANDA, 1987, p. 205). Em geral o
trabalhador ficava até cinco anos trabalhando nos cafezais dos proprietários.
Conseguindo algum dinheiro, cuidava de adquirir seu quinhão.
No período de 1924-1941, ocorre a imigração em massa dos
japoneses. Nesse momento, segundo Sakurai, o governo nipônico, em parceria
com companhias de emigração, desenvolve uma política de “imigração tutela”,
cuidando do processo de imigração desde a saída da vila no Japão até o de
estabelecimento no Brasil. Nesse período vieram para o Brasil mais da metade
dos imigrantes durante o século XX (SAKURAI, 2000, p.219).
23
Takashi Maeyama, a partir de pesquisas da década de 1960, feitas por Hiroshi Saito e pela
Comiso de Recenseamento da Colônia Japonesa, afirma que 92,3% dos imigrantes
japoneses de antes da guerra se estabeleceram no Estado de São Paulo, especialmente na
zona rural. As posições ocupadas variam ao longo das cadas anteriores à Segunda Guerra
Mundial. Até 1922, cerca de 32,5% dos imigrantes eram colonos e 28,7% eram lavradores
proprietários, sendo o restante arrendatários. em 1958, quando a população ativa de
imigrantes e descendentes era de 151.177 japoneses e 42,4% já não se dedicavam à
agricultura, notamos a mudança nas posições ocupadas, sendo que 51,9% daqueles que
viviam no campo eram proprietários de terras (MAEYAMA, 1967, p.78-83).
34
Quadro da Imigração Japonesa (1908-1941)
(SUZUKI Apud: DEMARTINI, 1997, p.85)
A emigração japonesa era também um negócio. O processo migratório
como um todo é parte do circuito econômico. Sobre isso, afirma Petrone:
Imigração e migração desempenham, portanto, papel na integração
econômica capitalista dos países de repulsão e atração. Essa
integração se faz pelo próprio imigrante como mão-de-obra e como
produtor e consumidor. O próprio imigrante funciona como
mercadoria na medida em que terá que ser transportado pra além-
mar, consumindo, portanto, capitais para seu transporte e instalação.
Não se deve esquecer, também, que o imigrante, às vezes, leva
algum capital e muitas vezes remete poupanças para sua terra de
origem. Com seu trabalho, o imigrante funciona como agente da
valorização fundiária” (PETRONE Apud: SAKURAI, 2000, p.
221).
As companhias de emigração, sob tutela da estatal Kaigai Kogyo
Kabushiki Kaisha (K.K.K.K.), são as responsáveis pela subvenção do japonês.
O objetivo da K.K.K.K. situava-se além do translado do japonês. A companhia
visava se instalar no Brasil enquanto empresa capitalista, aproveitando a
PERÍODO DE CHEGADA
TOTAL
RETORNO
1908-1912
4.672
-x-
1913-1917
14.767
-x-
1918-1922
12.394
-x-
1923-1927
24.967
92
1928-1932
56.976
375
1933-1937
65.685
813
1938-1941
6.811
748
35
quantidade de terras disponíveis para implantar colônias. As colônias seriam
eminentemente capitalistas. A companhia favoreceria o desenvolvimento de
infra-estrutura e bem-feitorias, além de favorecer a organização de
cooperativas e escolas. Esses núcleos coloniais eram explorados com o
objetivo de tirar o máximo proveito dos recursos humanos e naturais,
compatibilizando o empreendimento empresarial com o espírito comunitário
que envolvia o grupo de imigrantes (SAKURAI, 2000, p.224)
24
.
O debate em torno dos povos asiáticos, o “perigo amarelo”, também
apareceu no Brasil. Data do segundo império as discussões para a inserção de
mão-de-obra asiática, nesse caso chineses, nas lavouras de café. Temia-se
desde então que a presença asiática promovesse a degeneração da população
nacional (SAKURAI, 2000, p.205). A discussão ganhou maior fôlego na medida
em que a idéia de trazer japoneses para o Brasil se fortalecia, ou seja, no
momento em que a economia cafeeira necessitava de mais mão-de-obra
(SAKURAI, 2000, p.206).
Ainda em junho de 1892, o governo, através de um decreto sobre a
imigração, expressava a aversão sentida pelos asiáticos como um todo: os
indivíduos válidos para o trabalho, não criminosos, não mendigos e indigentes,
não indígenas da Ásia e África, m a livre entrada nos portos” (OLIVEIRA
Apud: SAKURAI, 2000, p.223). O asiático e o africano eram associados a tipos
sociais proscritos. As falas que se seguem sobre os japoneses, desde então,
são devedoras do que Eduard Said chamou de “orientalismo”, considerações
que essencializam os povos asiáticos sob um prisma excludente e estabelecem
uma dicotomia meta-histórica ocidente/oriente onde o primeiro é concebido
enquanto expoente da razão diante de um oriente lânguido, misterioso,
irracional e despótico. Nessa concepção, o oriente é uma entidade eterna
situada a partir de uma “geografia imaginativa” que cumpre importante papel,
marcar a diferença a favor da identidade civilizada da Europa (SAID, 2007,
p.64).
24
A intensificação da política colonizadora se torna mais viável com a fundação, com capital
japonês, da Sociedade Colonizadora do Brasil (BRATAC) em 1928 (SAKURAI, 2000, p.226).
36
Desde o século XIX, fora sugerida atitudes que coibissem qualquer tipo
de manifestação de etnicidade em nome da homogeneidade nacionalista.
Contudo, é durante o Estado Novo que se desenvolve uma campanha de
nacionalização” que foi responsável por tolher práticas que manifestavam
algum tipo de filiação étnica, encaradas como um cisto, no Brasil. Assim,
clubes de recreação, escola onde se ministravam aulas na língua materna do
imigrante, jornais e demais publicações em línguas estrangeiras foram
proibidas. Giralda Seyferth, a partir de Willems, menciona que em toda América
Latina exigia-se que os grupos não nativos fossem “diluídos”, que deixassem
de existir enquanto unidades socioculturais distintas. Buscava-se superar as
identidades tidas por espúrias e que conspiravam contra os critérios de
nacionalidade (SEYFERTH, 2005, p.17-18).
A expressão “enquistamento étnico estava presente no discurso
assimilacionista do Estado Novo. As querelas se originaram devido à lentidão
da assimilação que era esperada pelo Estado. A expressão “abrasileiramento”
foi desenvolvida a partir da expressão “americanização” de Henry Fairchild
(1933), autor citado nos receituários do abrasileiramento durante o Estado
Novo e que definia a americanização como processo de integração cultural e
social de imigrantes europeus nos EUA e, também, de transferência da
lealdade política ao governo daquele país (SEYFERTH, 2005, p.19)
Teorias da superioridade branca, inspiradas pelo pensamento de
europeus como Ratzel, Gobineu, Aggassiz e outros, circulavam entre
intelectuais naquele momento. Boris Fausto argumenta que o branqueamento
foi defendido como estratégia que evitaria os embaraços da miscigenação
vividos nos séculos anteriores. Intelectuais como Oliveira Viana e Azevedo
Amaral são fiadores de uma política que deveria ser promovida pelo Estado,
com o objetivo de livrar o Brasil de qualquer “força revulsiva e perturbadora”, ou
seja, aqueles que não eram brancos (FAUSTO, 2001, p.42). Para Azevedo
Amaral era dever do Estado a formação de um tipo étnico à altura da tarefa de
construção de uma nação industrializada e desenvolvida. Caberia, então, ao
governo promover a eugenia incentivando a miscigenação com etnias
desejáveis, que correspondessem ao ideal de progresso que a indústria
37
poderia promover
25
. Para Amaral, anota Fausto, o princípio do branqueamento
é a chave para o destino da nação (FAUSTO, 2001, p. 43).
O nacionalismo europeu surge a partir de um esforço pela integração.
A “comunidade imaginada” existe quando se imagina uma unidade, onde a
língua é o maior princípio. Inspirado pelo pensamento nacionalista, o governo
de Getúlio Vargas estipulou limites para a imigração, restringindo-a a 2% em
relação ao total de trabalhadores estrangeiros de mesma nacionalidade
instalados no país. Segundo Roney Citrynowicz, o objetivo maior das cotas de
imigrantes era conter a entrada especialmente de japoneses (CITRYNOWICZ
Apud: WAWZYNIAK, 2004, p.65); dessa forma, o “perigo amarelo”
representava o japonês enquanto ameaça em potencial. Interessava apenas
aqueles que pudessem contribuir para o desenvolvimento étnico da nação.
Contribuía também para a indisposição em relação ao japonês o fato deste ser
associado ao imperialismo nipônico (WAZWYNIAK, 2004, p. 57).
A nação brasileira na Era Vargas era concebida a partir da noção do
tipo corpo, unidade imaculada de quistos que impedissem o desenvolvimento
do país, que tinha como “cabeça” o Estado. Segundo Marcia Yumi Takeuchi, os
japoneses eram tratados como inassimiláveis, portanto inaptos ao projeto
nacionalista de então. A queda brusca de imigrantes europeus na década de
1920 pôs em discussão, inclusive em termos constitucionais, a problemática do
imigrante o europeu, dando margens a teorias conspiratórias. Arthur Neiva,
intelectual do governo Vargas e integrante do Conselho de Imigração e
Colonização, foi autor da Emenda 1053, proposta na Constituinte de 1934,
que alertava sobre o suposto perigo da presença de povos que o fossem
brancos, portadores de germes da discórdia que poderiam impedir a
concretização do projeto nacional (TAKEUCHI, 2002, p.15-16).
Posições raciológicas como a de Arthur Neiva eram reforçadas pelo
pensamento médico. Miguel Couto, membro da Academia de Medicina e
idealizador do I Congresso Brasileiro de Eugenia (1929), publicou um artigo em
1925 onde narrava uma possível invasão dos japoneses ao Brasil. Couto
empregava o termo “coreanização”, alusão à conquista japonesa da península
coreana, para se referir ao risco que o país corria:
25
Daí a crítica de Amaral aos limites impostos a imigração na Carta de 1934 e 1937 (FAUSTO,
2001, p.43).
38
“(...) eles [os japoneses] foram chegando, não em imigração, mas em
migração, aos milheiros, aos milhões, a serviço de um único
pensamento Shin Nihon, o novo Japão em obediência a uma
vontade: a do seu imperador. E veio o mbolo sagrado, e vieram os
canhões para defendê-los e os couraçados para garanti-los: depois
as nusgas, as rusgas, as lutas, com a vitória do mais forte: primeiro, a
coreanização, seguida da japonização daquele belo país. Foi assim
que nas cartas geográficas se apagou o nome da República dos
Estados Unidos do Brasil e apareceram com a mesma cor dois
Impérios do Sol, o do Sol Levante e o do Sol Poente” (CARNEIRO
Apud: TAKEUCHI, 2002, p.17).
.
Mais tarde, em 1942, ano em o Brasil declara guerra ao Eixo, o Perigo
Amarelo” deixa de ser apenas perigo étnico para se tornar perigo militar. No
prefácio da obra O Perigo Japonês (1942), Vivaldo Coaracy supõe a existência
de espiões japoneses travestidos de pescadores, agricultores e cnicos, que
tramavam a invasão nipônica sobre as Américas (COARACY, Apud:
TAKEUCHI, 2002, p.17). Opiniões como essa instigaram a perseguição contra
os japoneses através do fechamento de jornais que serviam a colônia e
também da proibição do ensino da língua através dos decretos estaduais e
federais emitidos entre 1938 e 1939, que fechavam escolas etnicamente
orientadas e proibiam o uso de língua estrangeira em público.
A situação se tornou mais tensa a partir da Segunda Guerra. Takeuchi
menciona a existência de “Termos de advertência” (ver imagem abaixo), salvo-
condutos e processos aplicados aos japoneses pela Delegacia de Ordem
Política e Social (DEOPS), responsável pela fiscalização do trânsito de
japoneses e descendentes por território brasileiro e pela punição daqueles que
desrespeitassem as normas estabelecidas pelo governo. Alimentava-se, assim,
o sentimento xenófobo que reproduzia a idéia de ameaça perene dos
japoneses ao Estado Brasileiro (TAKEUCHI, 2002, p.22).
39
Termo de Advertência
(TAKEUCHI, 2002, p.23)
40
1.2 - Na colônia.
Em linhas gerais, existiram três tipos de “núcleos de colonização”. O
primeiro era do tipo oficial, construído de antemão para atender às demandas
dos cafezais e se localizando nas próprias terras do fazendeiro. Era esse
núcleo o alvo de repúdio dos imigrados. O segundo núcleo era construído pelos
próprios imigrantes, tinha liderança central, e era constituído de trabalhadores
que já tinham passado pelos cafezais. O terceiro tipo era fruto da simples
aquisição de terra pelo japonês (HANDA, 1987, p. 211). A estadia no Brasil,
como anotado anteriomente, era marcada pela esperança em acumular
riquezas e voltar para a terra de origem, o “espaço poético” da casa.
Handa afirma que o tipo de vida que o imigrante tinha na fazenda
estava, naturalmente, em desacordo com o universo japonês. O tradicional
banho de furô, assim como o cultivo de flores para a distração e mesmo o
cultivo e preparo de hortaliças à japonesa não eram possíveis. O autor reitera
ainda a grande preocupação com a educação das crianças e dos jovens, em
especial, o aprendizado da língua. Habituados com o Rescrito Imperial, os
japoneses estavam insatisfeitos com a educação oferecida aos mais jovens
nas escolas, nos limites das fazendas (HANDA, 1987, p.205).
As colônias que surgiam fora dos cafezais marcaram um novo
momento na história do imigrante japonês. A colônia constituía, apesar dos
sacrifícios, um lugar de liberdade, de tranqüilidade. Ali, anota Handa, poderia
seguir sua vida sem se preocupar com os fiscais da lavoura de café. A colônia
se torna um espaço qualificado” na medida em que nele se pode vivenciar o
que o imigrante denomina “Espírito Japonês” (Yamato Damachi). Porém,
mesmo se sentindo em melhores condições que antes, ainda sonhava com o
retorno para a terra natal (HANDA, 1987, p.206). Ainda se considerava
“viajante” (zairyu-min) ou “passageiro” (tabi-bito) (DEMARTINI, 1997, p.85).
41
Formava-se no núcleo de colonização a Associação Japonesa
26
. O
grupo era composto pelos chefes de família e tinha como meta o
desenvolvimento da colônia, desde a implantação de escolas até a
manutenção de estradas. Ainda cabia à Associação organizar eventos festivos,
de confraternização, principalmente os festejos de aniversário do Imperador
(Tenchôssetsu). Porém, a maior preocupação da Associação era com a escola
(HANDA, 1987, p. 281-297).
Um dito popular entre japoneses afirmava que, quando europeus e
brasileiros se estabelecem em um novo lugar, constroem primeiramente uma
Igreja. os japoneses constroem escolas. O adágio evidencia a preocupação
dos japoneses com a educação de seus filhos e jovens; imaginavam que não
poderiam, um dia, voltar para o Japão com filhos não educados. A escola não
servia somente para o aprendizado das disciplinas; é nela que os japoneses
aprendem a língua materna, aprendem sobre a casa” distante para onde ,um
dia acreditavam que voltariam (HANDA, 1987, p. 291-297). Conforme o
costume é na escola que se tornariam japoneses (STANIFORD, 1963, p. 27).
A escola ocupa no Japão moderno um lugar especial na construção do
“nacionalismo oficial japonês”, também chamado de Xintoísmo de Estado. Era
na escola, lendo o Rescrito Imperial, que o sujeito aprenderia sobre moral, o
respeito filial devido ao país, naturalmente o Japão, e especialmente ao Tennô
(Imperador):
“Sabei, súditos Nossos,
Os nossos Antepassados Imperiais fundaram o Nosso Império numa
base ampla e duradoura e nele implantaram fundo e firmemente a
virtude: Os Nossos súditos, sempre unidos na lealdade e na devoção
filial, ilustraram, de geração em geração, a sua beleza. Esta é a
gloria do caráter fundamental do Nosso Império e também aqui
reside a fonte da Nossa Educação. Vós, Nossos súditos, sede filiais
com os vossos pais, afetuosos com os vossos irmãos e irmãs; como
maridos e mulheres, sede harmoniosos, como verdadeiros amigos;
comportai-vos com modéstia e moderação; espalhai por todos a
vossa benevolência; continuai a aprender e cultivai as artes e, desse
modo, desenvolvei as vossas faculdades intelectuais e aperfeiçoai as
26
Outras formas de associação apareceram, atendendo jovens e mulheres das colônias
(Handa, 1987, p.281-287).
42
vossas capacidades morais; para, além disso, promovei o bem
público e os interesse comuns, respeitai sempre a Constituição e
observai as leis; em caso de emergência, oferecei-vos
corajosamente ao Estado; e, assim, guardai e mantende a
prosperidade do Nosso Trono Imperial, tão antigo como o céu e a
terra. Assim, não sereis apenas Nossos bons fiéisditos, mas
tornareis ilustres as melhores tradições dos vossos antepassados.
O Caminho que aqui se delineia é, de fato, o ensino legado pelos
Nossos Antepassados Imperiais para ser observado quer pelos Seus
Descendentes, quer pelos ditos, infalível em todas as épocas e
verdadeiro em todos os lugares. É Nosso desejo assumirmos
reverentemente, em conjunto convosco, Nossos súditos, o objetivo
de alcançarmos todos a mesma virtude( HENSHALL, 2005, p,
120 121)
27
.
O Rescrito é de grande importância para nosso trabalho por ser ele o
maior documento do Xintoísmo de Estado. Ali encontramos a base da
identidade étnica que se desenvolveu entre os imigrantes japoneses no Brasil
e, quiçá, no mundo. A deificação do Imperador e a sacralização do solo
nipônico são construções simbólicas “herdadas” pelos imigrados e definem
pelo modo de ser nipônico que acompanhou os que imigraram em sua viagem,
servindo também de índice diferenciador dentro da comunidade receptora.
Notamos que, mesmo quando a identidade étnica se arrefeceu, os preceitos
familistas se mantiveram presentes em clubes étnicos e, também, nas novas
religiões japonesas, no caso a Seicho-no-Ie, engendrando o caminho para a
elaboração dos critérios de pertencimento à sociedade brasileira.
27
A educação foi um grande instrumento para a difusão da ideologia nacionalista Meiji. Sempre
preocupado com a influência ocidental nesse setor, o governo nipônico tratou de exercer forte
controle sobre o sistema educacional que se tornou o principal campo de disputa entre
apologistas do ocidente e aqueles que temiam a presença de suas idéias. Vários textos tiveram
forte repercussão intelectual, especialmente os que falavam sobre a capacidade individual e o
“espírito empreendedor”. Nessa época, textos de literatos, filósofos e cientistas consagrados,
como Goethe, Mill, Rousseau, Spencer e Darwin, estavam sendo publicados no Japão. Outros
textos, que valorizavam o igualitarismo e os direitos humanos, também transitavam não
entre intelectuais, que a educação no Japão se estendera a toda sociedade (HENSHALL,
2005, 117- 120). A preocupação com os “excessos” ocidentais exigia medidas que
aprofundariam e reforçariam o nacionalismo nipônico. No ano de 1890, foi publicado o Rescrito
Imperial sobre a Educação. No Rescrito os valoresfamilistas foram preconizados, assim
como a sacralidade do Imperador (HENSHALL, 2005, 120-121).
43
A educação fornecida pelos japoneses revelava o interesse pela o
integração à cultura brasileira. Estava em questão a manutenção do “Espírito
Japonês”, da identidade nipônica, entre os mais jovens
28
(HANDA, 1987, p.
477). Demarti afirma que, no âmbito educacional, o japonês revelava seu
dilema, o estar entre mundos”. A escola, além de espaço de filiação étnica,
também servia para desenvolver habilidades, como, por exemplo, corte e
costura, com o intuito de permitir a entrada e permanência no mercado
nacional. Orientavam-se então a partir do desejo de retorno, mas
demonstravam o interesse de ascenderem economicamente na sociedade
receptora (DEMARTI, 1994, p.89).
Na medida em que novas levas de imigrantes chegavam, em especial
no auge da imigração japonesa (década de 1930), o sentimento de
pertencimento ao Japão ganhava maior expressão. Novos imigrantes traziam
consigo representações “atualizadas” do que era ser japonês; traziam e
reforçavam o sentimento de pertença a um Japão forte, grande, destinado a
liderar a Ásia (Panasianismo)
29
, que tinha como líder o descendente da
deidade xintoísta Amaterasu, o sacro Imperador
30
Showa (Hiroito). Assim, o
nacionalismo japonês foi renovado entre os japoneses no Brasil e se manteve
como traço identitário diferenciador na sociedade receptora (HANDA, 1987, p.
476).
28
Apesar do Tennô de fato se encontrar em uma posição ambivalente, tendo que negociar com
aqueles que compunham a classe dirigente, as representações em torno da lealdade devida a
ele são profundamente endossadas em 1936 através do Kokutai no Hongi (Princípios
Fundamentais da Nação), complementando a noção de piedade filial e seu papel na harmonia
da sociedade (HENSHALL, 2004, P 161).
29
Desenvolveram-se no Japão daquele momento teorias pan-asiaticas que defendiam o
“Renascimento da Ásia”. Apesar de diversas concepções sobre tal processo, em geral
contrastavam o modo de vida ocidental ao asiático, apontando o Japão como síntese das duas
culturas e responsável por conduzir a resistência continental e a superação do pensamento
considerado ocidentalizante. Autores como Ikki Kita e Tenshin Okakura chegavam a defender
a hipótese de uma guerra final contra o ocidente, que garantiria a autonomia asiática (NAJITA,
1990, p. 112).
30
Os principais textos mitológicos japoneses apropriados pelo Xintoísmo de Estado foram os
“Anais de assuntos antigos (Kojiki) e as “Crônicas do Japão Antigo” (Nihonji). Neles
encontramos a criação do arquipélago pelas deidades xintoístas Izanagi, “o macho que
convida” e Izanami, “a fêmea que convida”. De Izanagi proveio a deusa solar Amaterasu e de
sua linhagem Jinmu, o primeiro Tennô, responsável pelo estabelecimento da ininterrupta
linhagem real. A tradição considera o ano de 660 aC. o ano da fundação do Japão por Jinmu
(YUSA, 2002, p. 22-25).
44
As associações influenciadas pelas novas imigrações e pelos mais
velhos, mais tradicionais, colaboraram com o desejo de não serem integrados,
contrastando inclusive com a política nacional brasileira, que tentava inviabilizar
manifestações ou organizações culturais estrangeiras (WAWZYNIAK, 2004, p.
64). Sendo partidários da essência japonesa”, repudiavam nas gerações mais
jovens, nos nisseis, hábitos ligados à cultura brasileira, elementos que sob
essa perspectiva destruiriam a família japonesa. A endogamia, prática comum
aos grupos étnicos em geral, era usual, manifestando o desejo de o
envolvimento com a sociedade brasileira (HANDA, 1987, p. 492-494).
45
CAPÍTULO 2 - VIVÊNCIAS: JAPONESES, CRISE E A IDENTIDADES EM
TRÂNSITO.
2.1 - Identidades
Ao nos dedicarmos a pontuar sobre a constituição da identidade étnica
japonesa buscamos traçar um panorama da história do imigrante japonês no
que se refere aos alicerces dessa identidade e à negociação entre tradições
culturais envolvidas nesse processo. Acreditamos serem importantes esses
apontamentos para elucidarmos o processo de negociação identitária ocorrida
após a Segunda Guerra mundial entre os Japoneses e a sociedade brasileira
assim como, também, entender como uma identidade étnica vai passar por
transformações que permitiram o desenvolvimento de outra identidade, do tipo
hifenizada, a identidade nipo-brasileira. Nossas observações posteriores feitas
sobre a Seicho-no-Ie do Brasil consideram sua atuação e dinâmica dentro do
cenário nacional, na órbita do desenvolvimento da identidade hifenizada. A SNI
elabora um tipo de identidade hifenizada que amalgama traços da identidade
étnica que orientavam os japoneses no período anterior à guerra, adaptando-os
às necessidades da colônia, naquele momento.
Como foi afirmado, concebemos a atuação da SNI, sua abertura à
comunidade brasileira e sua passagem de uma religião étnica para uma
religião de conversão, como manifestação de um novo momento vivido por
determinados espaços e grupos da colônia japonesa e onde surgiram
caminhos para o envolvimento dos japoneses e seus descentes com o Brasil
sem que o sentimento de pertencimento ao Japão fosse abandonado. A
identidade étnica de antes é que engendra a identidade nipo-brasileira
posteriormente, é nela que se encontram os ideais de harmonia que se
hibridizam com o civismo e patriotismo de então.
É difícil definir o que é identidade. Talvez a variedade delas, nacional,
étnica, de nero, profissional, religiosa, etc, colabore para nossa dificuldade
em defini-la e ordenar suas relações, ou seja, compreender a dinâmica social
46
que as envolve, simultaneamente, na sociedade. Não podemos conside-la
algo imutável, essencial, e, tampouco, tomá-la simplesmente como algo
evidente, plasmada ao longo da existência, como mera senda de
comportamentos sem que seja considerada a questão das fronteiras que as
envolvem e que constituem sua dinâmica.
Stuart Hall (2001) e Katryn Woodward (2000) evocam sempre o papel
da diferenciação enquanto condição necessária para nos definirmos no mundo,
ou seja, para que possamos desenvolver nossas identidades. A diferenciação
evoca o contraste que permite ao sujeito ou ao grupo se auto-afirmar enquanto
sujeito ou grupo singular. Portanto, só é possível pensar a identidade em
situação de contraste, o que implica em abandonar qualquer perspectiva
“substancialista”, pelo menos no âmbito epistemológico já que, na práxis, é
assim que o grupo se define, como algo perene. Evitamos, assim, qualquer
compreensão que tome a identidade objetivamente.
Os apontamentos de Fredrik Barth insistem nas fronteiras enquanto
responsáveis pelas “marcações das diferenças”, que, através da diferenciação
eu/outro, promovem a confecção de sistemas identitários. Em suas
considerações, Barth crê ser mais profícuo consideramos o papel das fronteiras
na confecção das identidades do que simplesmente lançar mãos de dados
etnográficos, taxonomias, que dão conta dos elementos que constituem a
cultura de um povo e a partir de então, definir determinada identidade (BARTH,
1998, p.190). Quando Barth fala em grupos étnicos, subtende-se grupos que
têm dimensão de si, que constroem sistemas categóricos que definem as
relações intra-grupais, e que, acima de tudo, afirmam ou “conservam” sua
identidade em uma situação contrastiva (BARTH, 1998, p.195-196). Partimos
então da compreensão da identidade como sistema simbólico que orienta as
ações das pessoas em situação de interação com outros grupos
31
.
31
Poutignat & Streiff-Fenart, a partir de cânones contemporâneos, Leach, Moermam e Barth,
apontam três pontos polêmicos outrora defendidos pela antropologia cultural no que diz
respeito ao estuda da identidade: 01 Identidade étnica definida através de traços culturais.
São criticadas as iniciativas que tentam associar cultura a identidade, o que é conhecido como
“suporte de cultura”. Para Barth, nem a variação cultural nem traços culturais comumente
compartilhados podem definir a fronteira étnica. Identidades distintivas podem ser mantidas na
ausência de traços culturais comuns a um mesmo grupo assim como o inverso, mesmo
47
Porém, é importante entender que a fronteira não é uma rotura rígida e
intransponível. A partir do conceito derridariano differance conforme trata
Woodward (2000) e Hall (2001) assumimos a posição de que a fronteira,
definidora da identidade, é fluída, o que implica em tornar qualquer percepção
que o grupo tem de si, como mutante. A differance adia uma significação
absoluta porque o processo diferenciador manifesta esquemas diferentes que
respondem a contingências de determinados grupos em momentos diversos. O
caráter essencial definidor de um grupo é um construto que só existe na
subjetividade do mesmo, tecido através de uma narrativa identitária, ancorada
nas necessidades e no esquema das relações de poder que envolve o grupo
em uma situação pluricultural
32
.
havendo semelhanças culturais pode haver identidades distintas como caso dos Pathans. A
crítica nesse ponto recai, portanto, na impossibilidade de correspondência entre unidade
cultural e identidade étnica; 02 Acreditar que o isolamento geográfico e social esteja na base
da diversidade étnica. A crítica de Barth pontua que as fronteiras étnicas persistem apesar do
fluxo de pessoas que as atravessam. Além disso, as fronteiras assumem importância vital, para
a manutenção da identidade étnica. Dessa forma, “A interpenetração e a interdependência
entre os grupos não devem ser vistas como dispersões das identidades étnicas, mas como
condições de sua perpetuação” (POUTIGANT & FERNAT, 1998, p.62). No estudo de um grupo
devemos evitar percepções isolacionistas (isolat social), defendido pela antropologia cultural
estadunidense, em favor de considerá-los como parte de um sistema mais amplo que inclui
vizinhos; 03 Roto étnico igual um modo de vida igual um grupo real de pessoas. Critica-se
aqui a atitude do estudioso em reproduzir a percepção que o grupo estudado tem de si
enquanto grupo singular marcado por bitos próprios, tais como a língua e outros
comportamentos. Esses critérios assumem o papel de delimitadores da substância ou essência
que define um grupo. O estudioso acaba desenvolvendo cumplicidade com certo sentimento de
homogeneidade e singularidade cultural. A crítica combate a idéia de que uma identidade
implica no somatório de atributos culturais, desconsiderando a circunstâncialidade dessa
identidade. Em geral, Poutignat e Streiff-Fenart afirmam que a ênfase analítica dos estudos
identitários recai sobre aspectos dinâmicos e contrastivos ao invés de preocupações do tipo
“substâncialismo cultural”. A forma toma lugar da essência, “processo mais importante que
estrutura” (POUTIGNAT & STREIFF-FENART, 1998, p.62-64).
32
Katryn Woodward aponta que relação fixa entre significado e significante defendido por
Saussure e Strauss foi questionada por autores como Derrida. O significado deixa de ser
estático: “ a relação entre significado e significante não é algo fixo (...) O significado é
produzido por meio de um processo de deferimento ou adiamento. O que parece determinado
é, na verdade, fluído e inseguro, sem nenhum ponto de fechamento (WOODWARD, 2000,
p.53). Tomamos a identidade como representação que constrói categorias, portanto
significados, amparadas em uma lógica binária. Nesse sentido, compreendemos que a relação
com a outridade e o processo diferenciador sofre transformações que não nos permite albergar
a identidade étnica japonesa ou qualquer outra expressão identitária em termos
substancialistas. Assim, a percepção dos sujeitos sobre si mesmos deve ser analisada
enquanto construto mutante. Se as fronteiras e a lida com o outro estão condicionados à
contingências, a identidade, como o significado, é maleável. Woodward nos diz que em vez de
48
Ao pensarmos em japoneses enquanto grupo étnico, temos que ter em
consideração que a identidade étnica existe em situação de pluralidade
cultural. Philippe Poutigant e Jocelyne Streiff-Fenart afirmam que o faz
sentido tomarmos algumas posições que associam a identidade étnica à
cultura. Tais pressupostos definem que os indivíduos que possuem
características sócio-culturais em comum sejam automaticamente membros de
um grupo étnico (POUTIGANT & STREIFF-FENARD, 1998, p.83).
Ao tomarmos a Segunda Guerra como marco divisor da percepção dos
japoneses sobre si mesmos, como afirmam Takashi Maeyama (1973) e Ruth
Cardoso (1973), consideramos que uma situação de crise fez vacilar
representações identitárias tecidas em torno da noção de provisoriedade,
construto que definia a fronteira étnica dos japoneses antes da Segunda
Guerra. Um novo desenho surgiu atendendo as contingências do novo
momento, o envolvimento com a sociedade nacional. Isso não significa o fim da
fronteira étnica. Surge uma nova configuração que vai manter o sentimento de
pertença ao grupo étnico, mas com uma roupagem diferente que manifesta
uma situação de “tradução”, obrigando a colônia a associar e tomar para si
representações do mundo que antes era o ukyo (lado de fora), o mundo do
gaijin. Traduzir implica em viver em diferentes tradições e com elas negociar,
através de um processo ressemantizador dos traços culturais do grupo do
outro, a partir da utensilagem cultural disponível. Ao invés de habitar apenas
uma casa, esses grupos que viveram processos diaspóricos, como os
imigrantes japoneses, habitam em várias casas. A diáspora, como sugere
Stuart Hall, tornam as identidades múltiplas (HALL, 2006, p.26-27). Trata-se da
emergência de culturas hibridas que marcam a modernidade tardia (HALL,
2001, p.89).
Sem que percam o senso identitário que os define como japoneses, as
gerações mais jovens não são os mesmos japoneses do pré-II Guerra. Como
ocorreram com povos diaspóricos, os japoneses introjetaram referenciais do
mundo que os acolheu” para nele conseguirem os recursos que garantissem
fixidez o que existe é a contingência e o significado (nomeador e classificador do mundo) está
sujeito ao deslizamento (WOODWARD, 2000, p.53).
49
não a sobrevivência, mas, tamm, a aceitação na terra que se tornou sua
nova morada desses povos.
Ainda que o debate sobre a identidade tome a fronteira como elemento
essencial, é importante ressaltar que a cultura e os hábitos decorrentes dela
são obviamente portadores de sentido. Ao invés de tomarmos a identidade
étnica apenas como estratégia ou manipulação em situação de contraste,
temos que observar a roupagem cultural que nela é investida. Longe de evocar
visões substancialistas, a identidade étnica, como compreendemos, reivindica
os traços culturais que fazem parte de um determinado grupo, exercendo sobre
tais níveis de intervenção ou aprimoramento consoantes a situação de
contraste. Os estudos da etnicidade não se atêm nas diferenças culturais
empiricamente observadas, mas nas condições nas quais certas diferenças
são mobilizadas como índices de contraste entre os grupos étnicos
(POUTINGAT & FENART, 1998, p.128). Quando Barth nos chama atenção
para as fronteiras, enquanto delimitadoras da identidade étnica, ele pretende
afastar a tese de que as diferenças culturais observadas pelo antropólogo ou
historiador cultural são de fato o que define a identidade étnica. Sem
desconsiderar os valores culturais socialmente herdados, Barth defende que a
identidade depende do contraste e que, por sua vez, ela recolhe na
utensilagem cultural do grupo os traços emblemáticos que servem como
elementos diferenciadores do in-group e out-group (POUTINGAT & FENART,
1998, p.128).
A colônia japonesa se referendava em traços culturais herdados do
Japão. Em seu cotidiano, hábitos oriundos de sua terra de origem, eram
compartilhados pelo grupo. Contudo, é o fato de estar fora de casa que dava a
esses comportamentos a atribuição identitária
33
expressa pelo “espírito
nipônico”. O término da guerra teve como conseqüência maior a necessidade
de lidarem com a nova condição de estabelecimento definitivo no país, o que
gerou a necessidade de criar outros mecanismos para o envolvimento com a
33
É indiscutível a importância da atenção dada às fronteiras por parte dos antropólogos sociais
para a desubstancialização da identidade étnica. Porém, “o ponto de partida em todas as
pesquisas reside na distinção analítica entre a organização das relações étnicas e o conjunto
dos modos de vida e dos costumes compartilhados por uma população” (POUTIGNAT &
FENART, 1998, p.128).
50
comunidade brasileira. A nova situação implica em adequar as referências
culturais de outrora, emblemas de identificação, ao inevitável envolvimento com
a sociedade de acolhimento. A identidade hifenizada, nipo-brasileira, surge não
como desestabilizadora do sentimento de pertença à cultura japonesa, mas,
sim, como manifestação da habilidade em sintetizar vivências que outrora
pareciam irreconciliáveis. Desenvolveu-se, a partir de então, expressões que
marcavam o sentimento de membros da colônia, especialmente por parte das
gerações mais jovens, enquanto brasileiros.
A identidade enquanto sistema simbólico constitui os “limites do nosso
mundo”, linguagem que orienta nossas relações diante da contingência.
Apenas a taxonomia cultural, como fora feita por certo culturalismo de outrora,
não nos permite compreender como surgem e se mantêm as identidades. Mais
que evidenciar a teia de símbolos, temos que nos perguntar por que razão, em
que contexto, a identidade de um grupo, os japoneses, se apóia em termos
étnicos (HERZOG Apud: PONTIGNAT & STREIFF FENART, 1998, p.84).
Ao compreendermos a natureza da identidade étnica nipônica, sua
relação com a sociedade de acolhimento, precisamente no período anterior à
Segunda Guerra Mundial, teremos condições de constatar, pelo menos é nisso
que esse trabalho aposta, a importância dos componentes da etnicidade
daquele momento como referenciais alocados pela Seicho-no-Ie do Brasil na
confecção do sentimento de pertença à sociedade Brasileira. A expressão
religiosa japonesa cuidará de operacionalizar a ressemantização consoante a
identidade hifenizada que emergia nas décadas posteriores à Segunda Guerra.
A SNI cuidou de negociar diferentes dimensões do mundo no intuito de
desenvolver certo nível de pertencimento a sociedade brasileira que não
implicasse no abandono do sentimento de pertença à comunidade nipônica. Ao
contrário, ao instigar a acomodação à comunidade brasileira, a SNI propõe o
ethos nipônico da piedade filial, desenvolvido especialmente após a
Restauração Meiji (1868), como elemento garantidor de verdadeiro
envolvimento cívico e patriótico com a sociedade nacional.
51
2.2 - A “niponicidade” e a identificação do grupo.
Por volta da década de 1930 os japoneses se encontravam em
situação econômica diferente dos anos anteriores. Muitos possuíam terras ou
arrendavam-nas, dedicando-se a atividades agrícolas. A partir de então,
estabeleciam aqui variações do antigo sistema de ie deixado no Japão
(MAEYAMA, 1973, p. 429). Mesmo desejando retornar para o arquipélago um
dia
34
, criam laços de solidariedade e relações familiares “fictícias” dentro da
colônia, tomando como referência o fato de serem da mesma província no
Japão, terem vindo no mesmo navio ou terem trabalhado no mesmo cafezal
(MAEYAMA, 1973, p. 432). Apesar do estabelecimento de variáveis do ie em
solo brasileiro, prevalecia o sentimento de provisoriedade.
É necessário fazermos breves observações sobre o ie para que
possamos entender os elementos simbólicos que o constituem, em especial em
relação ao culto aos antepassados; buscando compreender como eram
definidas as relações entre os familiares e, posteriormente, o comportamento
dos imigrantes diante do Imperador, já que ele se tornou a referência maior da
identidade étnica nipônica no Brasil no período que antecede a guerra.
As relações dentro do ie eram orientadas a partir do Oyabun Kobun,
“articulando preceitos religiosos à obediência e ao respeito aos mais velhos”
(ORTIZ, 2000, p. 58). Oyabun significa, literalmente, aquele que exerce a
função de pai, e Kobun aquele que desempenha função de filho (ORTIZ, 2000,
p. 58-59).
35
Essas relações foram transmitidas aos descendentes, em especial
34
Segundo Y. Kumasaka e H.Saito fora feita uma pesquisa em 1939 que indicou que cera de
90% dos imigrantes desejavam o retorno para o Japão (KUMASAKA E SAITO, 1973, p.451).
35
Este tipo de organização sofrerá metamorfoses durante o início da modernidade através da
persistência das relações “familísticas”, já que atendiam o propósito do governo japonês. A
organização do ie fora associada por Mark Fruin à noção de corporação. A idéia de uma
unidade doméstica como uma organização corporativa relativamente distinta do lar acabou se
identificando com a idéia de chefe da empresa doméstica (FRUIN Apud: ORTIZ, 2000, p. 58).
O ie na modernidade tem seu chefe da unidade doméstica baseado mais no mérito do que na
hereditariedade, apesar de na zona rural ter prevalecido um estrutura menos modificada,
mantendo certo “espírito de comunidade”. De qualquer forma o ie associado à idéia de
coorporação tem sua liderança preenchida por um executante capaz de exercer funções
coorporativas, o que permitiu a continuidade de genealogias empresariais perpetuando os
52
para o filho mais velho. Desde cedo, o primogênito recebe maior atenção dos
familiares, é ele o herdeiro da casa. Sua responsabilidade dentro da casa, ao
se tornar liderança, não é apenas dar conta da manutenção material, mas
também conduzir o culto aos antepassados (MAEYAMA, 1973, p. 421).
A moral que conduz as relações entre os membros da “família” ,acima
mencionada, teve impacto em toda sociedade japonesa. A “família” significa
segurança ante um mundo turbulento, confuso, um mundo impermanente
(ukyo). Tais relações foram um dos principais pontos da elaboração do
Nacional-Xintoísmo ou do Xintoísmo de Estado. O Estado Meiji soube lidar com
as tradições que o precederam no intuito de garantir sua legitimidade.
Vincularam a tradição a interesses políticos e econômicos “construindo uma
versão convincente da existência de um ie nacional” (ORTIZ, 2000, p. 182). O
Rescrito Imperial nos permite compreender a concepção do Estado enquanto
uma casa onde todos devem cumprir suas obrigações, ocupando as “posições
devidas”, reverenciando os ancestrais que constituíram o Japão e o Tennô
36
.
Tadashi Fukutake entende que a sociedade japonesa foi construída
por uma série de relações familísticas. O Oyabun Kobun se realizava em outras
instâncias que não fossem a familiar, “alguém encontrava sempre alguém mais
negócios familiares por anos foi assim que grandes famílias de comerciantes conseguiram
manter os negócios durante anos (ORTIZ, 2000, p. 59).
36
As representações em torno do Ie, remanejadas e ressemantizadas pelo Estado Nacional,
conferem ao Japão o status de grande casa, família, centraliza-o enquanto “centro ordenador
do mundo” (Chûchin Kiitsu) (MAEYAMA, 1967, p. 57-58), “axis mundi(ELIADE, 2001, p. 51),
que albergam sob o teto do pagode nipônico e do poder augusto e paternal do Tennô o povo
japonês. Se paga o Oyabun ao grande governante, representa-se o mundo sob o prisma da
harmonia do lar e do respeito aos superiores cumprindo cada um a parte que lhe cabe para a
manutenção do “Estado Família”.
53
poderoso que pudesse ser tratado de Oyabun
37
(FUKUTAKE Apud: ORTIZ,
2000, p. 61-62).
O filho sucessor era o único que poderia assumir o ie na falta do pai.
Era ele que herdava as obrigações materiais e espirituais do grupo. Desde
pequeno, o primogênito é tratado de forma diferenciada pela família. Nas
famílias pobres os não sucessores provavam da insegurança, de preocupação
pela subsistência futura (STANIFORD, 1973, p.44-45). A saída para muitos foi
a migração.
Emigravam para o Brasil os não primogênitos. Os ritos devidos aos
antepassados não tinham a mesma importância como no Japão, afinal esse
dever ficara apenas para o irmão herdeiro. Porém, a estadia do imigrante é
repleta de desilusões e imprevistos, como a morte. Como tratar os mortos? A
morte fora de casa, em uma terra em que se consideravam viajantes, o Brasil,
era encarada como algo não esperado, chamavam-na de “morte alheia” (Kyaku
shi, literalmente “morte como visitante”). Podiam entender que a alma do finado
retornaria para o Japão se reunindo à comunidade ancestral. Maeyama
destaca que os imigrantes japoneses acreditavam que a alma talvez se
sentisse impelida a ficar junto aos que permanecem vivos ou, então, que
retornasse ao Japão se antecipando aos outros, já que o retorno seria
inevitável. Construíam muitas vezes os tabletes ancestrais” (ihai) dedicados à
memória e ao culto do antepassado, nesse caso o parente morto no Brasil.
O ihai, no entanto, era provisório, sem acabamento, não havendo a
necessidade de um tablete bem elaborado, tendo em vista a percepção que
não ficariam muito tempo no país. De acordo com algumas crenças, a alma
não teria, necessariamente, que morar no tablete. Ela poderia morar no céu,
junto com os antepassados japoneses, visitando a antiga morada no Japão,
37
Da mesma forma Iwao Ishino pontua que as relações do Oyabun Kobun se apresentaram
inclusive no meio dos movimentos políticos e organizações partidárias, assim como nas
fábricas, regulando algumas relações de trabalho do capitalismo japonês (ISHINO Apud:
ORTIZ, 2000, p. 61). Nos dizeres do próprio Renato Ortiz, “a firma passa a ser vista como um
prolongamento do ie, unidade orgânica no interior da qual eles deveriam se inserir com
disciplina e devoção” (ORTIZ, 2000, p. 61).
54
durante a festa budista dos mortos (bon) no mês de agosto, e a colônia,
durante novembro, no dia de finados
38
(MAEYAMA, 1973, p. 430).
Mesmo negligenciando muitas práticas religiosas, reservadas ao irmão
mais velho, sucessor, que ficou no Japão (MAEYAMA, 1973, p. 428), era
necessário algum consenso no processo de formação do grupo. No Japão
existiam várias expressões religiosas e deidades, tanto no âmbito do ie quanto
da comunidade local e mesmo do Estado, que tinham como função a
identificação e integração grupal (MAEYAMA, 1973, p. 434). No Brasil, a
solidariedade do ie se baseava em um sistema de parentesco fictício pelo
menos a o momento onde abandonaram o desejo de retorno para a terra
natal. A comunidade local era formada em termos étnicos. A “niponicidade” era
enfatizada enquanto princípio básico da identificação de grupo; diante de uma
cultura diferente é que vieram a se identificar como japoneses. Nesse contexto
contrastivo é que foram pela primeira vez chamados de japoneses (MAEYAMA,
1973, p. 434-435).
Maeyama anota que o Imperador era o símbolo máximo da
niponicidade, a pedra angular do Japão” até o fim da Segunda Guerra. Ele se
tornou o substituto do culto dos antepassados na colônia e seu culto atuava
“como uma dramatização da identificação de grupo entre japoneses no Brasil”
(MAEYAMA, 1973, p. 435). Naquele momento, o Japão era concebido
enquanto um grande ie e o Imperador enquanto grande pai da nação
(MAEYAMA, 1973, p.435). Essa era a base ideológica do Estado Nação
Japonês que começou a ganhar forma desde a Restauração e se aprofunda
depois da década de 1930. Marshall Henshall aponta que o culto ao
governante sacro é “o clímax de harmonia no sacrifício da vida de um dito
pelo Imperador” (HENSHALL, 2004, p. 1262). O regime japonês desenvolveu
uma pseudo-teocracia” onde a ênfase recaia na lealdade ao Imperador. Essa
percepção se fortaleceu entre os imigrantes no Brasil graças às levas que
chegaram entre 1926-1936 (MAEYAMA, 1973, p. 435).
38
O bom budista foi associado ao dia de finados da tradição católica (MAEYAMA, 1973, p.
430).
55
Na colônia, a escola era o centro do culto ao Imperador. Durante o
período que precede a guerra, a escola não era apenas o espaço onde se
aprendia a língua japonesa. Era nela que jovens e mesmo adultos aprendiam o
que, de fato, os tornavam japoneses, isto é, “um real ser humano” (MAEYAMA,
1973, p.436). A existência do sujeito na comunidade só era relevada, ou seja, a
existência dele era considerada, quando se tornava participante das
atividades promovidas pela escola (MAEYAMA, 1973, p. 436).
No Rescrito se encontravam as virtudes máximas da niponicidade, a
piedade filial que garantiria a harmonia no lar e especialmente no Japão, já que
o Imperador era representado como grande pai dos japoneses. A leitura do
Rescrito era ritualizada, feita como se lessem algum Sutra. Várias cerimônias
eram realizadas nas escolas em reverência ao governante e ao Japão. A
escola na colônia era um ambiente sagrado, um centro espiritual semelhante
aos templos do Japão onde se cultuava alguma divindade padroeira (uji-gami)
da comunidade (uji). Nesse sentido, o culto ao Imperador acabava se
assemelhando ao culto aos antepassados no ie, era ele o grande elo com o
Japão, simbolizando a longevidade do povo japonês e a força do Imrio para
onde voltariam um dia (MAEYAMA, 1973, p. 437). A antropóloga Mary Douglas
afirma, a partir de Durkheim, que a cultura, na forma do ritual, do simbólico e da
classificação, é central à produção do significado e da reprodução das relações
sociais nesse caso da diferenciação étnica. Para Douglas esses rituais se
estendem a todos os aspectos da vida cotidiana, desde a comida até a fala
os rituais atuam como marcadores da diferença (WOODWARD, 2001, p.42).
A partir das observações feitas por Maeyama (1973), a Escola (Gakko)
torna-se o espaço por excelência da niponicidade, no sentido de demarcar o
mundo do eu, da cultura nipônica, diante da outridade, da cultura brasileira.
Não estar envolvido com a “tradição” implica em fugir das marcações que
definem a identidade étnica do grupo, deixar de ser um verdadeiro japonês. Era
necessário ser devidamente educados a partir de sua cultura para que
pudessem retornar para o Japão.
A niponicidade implica em uma identidade étnica construída diante do
contraste sentido no Brasil. Este é o lado de fora de uma rotura étnica, o Ukyo
56
que nos fala Ortiz. Concebida diante a pluralidade, a identidade estabelece
fronteiras que articulam a negociação com a cultura do outro. A ênfase dada à
língua e mesmo a relativa palidez religiosa, ligada ao sentimento de estadia
provisória, são marcas culturais que ganham inteligibilidade quando levamos
em consideração o papel do ambiente pluricultural e as fronteiras por ele
definido como responsáveis pela articulação simbólica da etnicidade. A posição
de Barth sobre Ethnic boundaries compreende que as fronteiras étnicas
persistem apesar do fluxo de pessoas que as atravessam (POUNTIGNAC &
STREEIF-FANART, 1998, p.62). As continncias tornam as relações étnicas e
a identidade que as define, mais plásticas. Morrer no Brasil, por exemplo, torna
necessário os ritos nipônicos, mas estabelece uma nova postura em relação ao
país receptor; é em solo brasileiro que se sepultou os antepassados. No
mesmo sentido, os demais filhos não primogênitos se sentiam impelidos a
ultrapassar o mundo da colônia em busca de novas oportunidades,
estabelecendo, assim, relações mais intensas com a sociedade nacional.
Contudo, o trânsito não significa o abandono das referências étnicas. Elas
passam a ser mobilizadas a partir dos espaços ocupados, de acordo com as
situações. Na colônia, na escola ou no ie o que referendava as ações era a
tradição japonesa, no espaço público mobilizavam aspectos da cultura nacional
inculcados durante o período que aqui estavam estabelecidos para atingirem
seus objetivos. Falar a língua do país receptor é o passo essencial para os
imigrantes e sua descendência garantir sua sobrevivência, é ela o que
disponibilizará o capital simbólico necessário para a negociação entre o espaço
da colônia e da cultura brasileira.
Mais que observar elementos da cultura japonesa compartilhados
pelos japoneses e seus descendentes, ou seja, mais importante que
simplesmente inventar-los, nos cabe conceber a identidade japonesa de
então como sistema de orientação que tem sua razão de existir baseada no
sentimento de diferença socialmente compartilhado. Esse sentimento deve
substancialmente à crença de retorno ao Japão, ao local poético, que por sua
vez tem sua carnadura moldada a partir do Nacionalismo de Estado Japonês.
O contraste parte especialmente do sentimento de provisoriedade que com o
passar dos anos, e especialmente após a derrota japonesa, se esvaece.
57
Célia Sakurai em livro dedicada à obras literárias de teor memorialista
escritos por imigrantes, principalmente mulheres, anota a existência de um
código de conduta adotado pelos imigrantes diante das dificuldades, o
Gambarê. Segundo a autora, o Gambarê é um sentimento de determinação
que permitia à família japonesa suportar a vida difícil no Brasil, encarar o
destino (SAKURAI, s/d, p.45). O sentimento estabelece um padrão de
comportamento baseado na persistência diante dos entraves da vida. Além de
um índice cultural, o Gambarê nos permite entender o papel de elementos
definidores da etnicidade enquanto mecanismos que permitem maior
envolvimento com a sociedade de acolhimento. Diferentemente de uma postura
essencialista, temos que considerar que os traços culturais das identidades
étnicas não se restringem ao isolamento de um grupo. Eles vão permitir maior
envolvimento com a sociedade onde vive o imigrante e sua família, servem
como um trampolim na sociedade de acolhimento (POUNTIGNAT & STREIFF-
FENART, 1998, p. 66). O Gambarê torna-se um ethos que instiga o imigrado a
vencer na vida, ou seja, permite ao japonês aprofundar as relações com o
mundo externo sem que isso implique em deixar de se sentir japonês. Na lida
diária, diante da necessidade de manter relações com o mundo, o Gambarê faz
com que os sujeitos mantenham seu envolvimento com o outro.
Adotando essa perspectiva, podemos compreender a moral ou a
cultura de um grupo étnico mais que simplesmente um traço diferenciador,
podemos observar que as identidades estão baseadas em situações de
interpenetração e interdependência. Vencer na vida implica em buscar
melhores condições de vida no Brasil através do esforço e sacrifício no trabalho
e nos estudos(SAKURAI, S/D, p.24). O Gambarê é um exemplo do papel de
traços culturais de um grupo enquanto estabelecedora de possibilidades de
envolvimento e acomodação à sociedade receptora. Reparemos que o
Gambarê é uma conduta que diz respeito à orientação pai-filho. O êxito do filho
orgulha o pai, é uma forma de agradecê-los por tudo que foi feito aos filhos
piedade filial, segundo a tradição nipônica. Nesse sentido, podemos observar
que antes mesmo da derrota japonesa um quadro de envolvimento mais
intenso já estava desenhado.
58
A derrota em 1945 provocou o colapso simbólico da solidariedade das
colônias (MAEYAMA, 1973, p. 437). O Imperador perde o status de deidade
anunciando-se humano a todo povo japonês. A crise de orientação, de
identidade, é visível nos trágicos incidentes e atentados envolvendo colonos
que o aceitavam a derrota japonesa (HANDA, 1987, p.668-671). O colapso
das representações em torno do Imperador, de sua longevidade, do Japão
invencível, alterou as referencias dos japoneses no Brasil, em especial a
percepção de si mesmos enquanto habitantes temporários do Brasil. Seu
status de provisoriedade recebe o derradeiro golpe quando o Japão perde a
guerra.
Os desdobramentos da derrota japonesa no seio da colônia marcam o
mais trágico episódio da história da imigração japonesa. Naquela época viviam
no Brasil cerca de trezentos mil imigrantes japoneses e descendentes
(KUMASAKA & SAITO, 1973, p.448). A derrota promoveu a divisão da colônia
japonesa entre aqueles que o a aceitavam, o grupo dos “vitoristas”
(Kachigumi) e o grupo que admitia a vitória dos aliados, chamados de
“derrotistas” (Makegumi). Seguiu-se, até no início da década de 1950, uma
acirrada disputa entre os dois grupos, marcada por atentados cometidos pelo
kachigumi contra o Makegumi. Os “vitoristas” defendiam a hipótese de que o
Japão vencera a guerra contra os aliados. Não foi a primeira vez que houve
incidentes envolvendo facções nipônicas influenciadas pela ideologia do
nacionalismo japonês. Kurumasaka e Saito anotam que em 1943 ocorreram
contendas e atentados terroristas dentro da colônia cujos responsáveis eram
denominados de “executores do castigo de Deus” (tenchugumi). Esse incidente
seria o prelúdio para as querelas do pós-guerra (KUMASAKA & SAITO, 1973,
p.453).
Em agosto de 1945, o Imperador Hiroito Showa anunciava pela
primeira vez a derrota japonesa para os japoneses que se encontravam além
mar. Curiosamente, correu na colônia outra notícia, que afirma que a frota dos
países aliados havia sido afundada no mar do Japão. Muitos imigrantes
jubilosos comemoraram o que seria a vitória japonesa, chegando inclusive a
fazerem as malas, pois o governo japonês não tardaria a mandar navios para
buscá-los. As notícias eram falseadas pelos vitoristas:
59
7 de outubro de 1945. Segundo as informações procedentes de
Nova York o presidente Trumam anunciou sua decisão de abolir
todas as forças militares dos Estados Unidos para o bem da paz
mundial. O canal do Panamá está sendo reparado por contingentes
representados por 65 mil soldados americanos sob a supervisão das
forças japonesas (...) Convocados pelo Japão, cinqüenta e três
países devem comparecer à Conferência Mundial de Paz, estando
prevista sua abertura em Tóquio a 30 de novembro de 1945. Noticia-
se que todos os japoneses residentes na América do Norte devem
retornar ao Japão num futuro próximo” (KUMASAKA & SAITO,
1973, p.455-456).
Organizações secretas que anteriormente eram reprimidas tiveram a
oportunidade de agir ao término da guerra. Um desses grupos foi a “Liga dos
súditos fiéis” (Shindo-Renmei), responsável por atentados contra os derrotistas,
ocasionando a morte de alguns. A Shindo-Renmei defendia as virtudes do
“espírito nipônico” e deve ser entendida como expressão do transtorno
identitário vivido pela colônia diante da crise das representações que
marcavam a identidade étnica a então. Foi necessária a intervenção do
governo brasileiro e, principalmente, a disposição para o diálogo por parte dos
Makegumi para a reconciliação. Mesmo assim, alguns “vitoristas” insistiram em
suas posições, o que ocasionou seu isolamento. Outros acabaram se
aproximando das novas religiões japonesas que começavam a ganhar espaço
naquele momento.
As novas religiões representavam para os ex-vitoristas a manutenção
dos valores japoneses. Juntos a outras esferas da colônia, como as
associações de jovens, Novas Religiões, como a Seicho-no-Ie, serviam de
espaço onde a niponicidade era dramatizada nos diversos rituais e orientações.
Contudo, essas instituições tiveram em suas direções grupos de japoneses de
gerações posteriores aos imigrantes preocupados em promover maior
envolvimento com a comunidade nacional dando seqüência ao processo de
acomodação que se tornou mais intenso após a derrota japonesa. Os nisseis,
as novas gerações, mais suscetíveis às influências da cultura brasileira e a
seus imperativos sócio-econômicos, cuidaram de promover o tipo de
envolvimento que trouxe mudanças no tipo de relação da colônia e a
60
comunidade nacional evitando possíveis danos decorrentes de qualquer
postura isolacionista.
Em meio a isso, a Seicho-no-Ie se apresenta enquanto uma
possibilidade de envolvimento com o mundo externo. Esse envolvimento,
resultado do processo de acomodação mais geral por que passa a colônia, tem
como resultado o desenvolvimento da identidade hifenizada que recolhe seus
elementos constituidores a partir das duas tradições em que se insere o
imigrante. Consoante à moral familiar que define o respeito à figura paterna, a
nipo-brasilidade implica em ser brasileiro acima de tudo, mas isso ocorre
graças aos valores da niponicidade, como veremos.
2.3- O problema dos nisseis
Hommi K. Bhabha nos adverte da importância de superar as narrativas
de subjetividades originárias e iniciais em nome de processos que são
produzidos na articulação de diferenças culturais. Estabelecem-se assim os
“entre-lugares” enquanto espaços de estratégias e negociações simbólicas,
coletivas ou individuais, que dão início a novos signos de identidade (BHABHA,
2005, p.20). É no entre-lugares, a posição ocupada pelas minorias, que são
reinventadas as identidades dos grupos que recolhem das teias de significados
que os circundam os que o mais importantes para sua sobrevivência. É nele
que o “tradicional” se reinscreve através das contingências que presidem as
vidas das minorias (BHABHA, 2005, p.21). Sendo assim, o “entre-lugaresse
constitui como um espaço liminar onde a identidade se hibridiza. O homem
diaspórico está inscrito no entre-lugares, onde ele constrói por oposição sua
identidade cultural. Ao invés de procurarmos por “origens” no sentido de traço
perene, entendemos a identidade étnica japonesa em termos de construção
que se deu mediante o contraste. Mesmo assim, essa identidade não poderia
permanecer incólume diante das inevitáveis transformações. No entre-lugares
os japoneses cuidaram de se inventar. O fim da guerra favoreceu um novo
61
deslizamento do significado de “ser japonês”, que se impunha também a
necessidade de “ser brasileiro”.
A educação sempre foi uma preocupação dos imigrantes japoneses. A
educação implica na formação do verdadeiro japonês. A geração pioneira, os
mais velhos, isseis, desejavam que os filhos, nisseis, fossem herdeiros da
tradição nipônica. A escola servia como complemento da educação tradicional
familiar e era baseada em uma grade curricular do Japão. Ruth Cardoso afirma
que a função principal da escola era ensinar a língua japonesa, informar o
alunado sobre o Japão e desenvolver neles o sentimento de superioridade
racial e cultural. Apesar da iniciativa dos pais, os jovens estavam impelidos a
ultrapassar o círculo da colônia. Isso ocorria especialmente com aqueles que
viviam na zona urbana e que freqüentavam paralela a escola japonesa a escola
brasileira, já que no campo o sujeito se encontrava mais ligado ao núcleo
familiar (CARDOSO, 1973, p.319-321).
Desde cedo o nissei se via diante a necessidade de se ajustar a
convivência com o mundo fora da colônia, como na escola. Gradativamente, os
sujeitos iam se adequando à vida em dois mundos. Porém, nos adverte
Cardoso, não devemos exagerar admitindo a existência de dois los opostos,
a família e a sociedade de acolhimento. Na própria família existiam estímulos
para maior entrosamento dos filhos com o meio brasileiro, traduzido
especialmente pela exigência de êxito profissional. Como todo imigrante, o
japonês desejava melhorar seu status, o que levava os isseis a admitirem
maior envolvimento com o mundo fora da colônia (CARDOSO, 1973, p.321).
Apesar de não ser uma regra absoluta, o estímulo para uma “nova
vida” era maior aos filhos não primogênitos. O mais velho era concebido
enquanto aquele que deveria cuidar dos negócios da família e se tornar
herdeiro dos padrões tradicionais. Aos outros filhos apareciam maiores
oportunidades para tentar uma nova vida profissional. Os nisseis transitavam
em uma dupla orientação dada dentro da família: tornar-se um membro da
comunidade japonesa e ao mesmo tempo adquirir formação profissional que
facilitasse sua ascensão social. Cardoso afirma que a designação “nissei”
62
revela uma posição particular em que não se espera do sujeito a mesma
relação dos pais com a cultura nipônica (CARDOSO, 1973, p.321).
A relação issei-nissei era concebida na tradição japonesa a partir da
submissão do último ao primeiro (SAITO Apud: CARDOSO, 1973, p.322).
Porém, as novas condições no pós-guerra dos japoneses fazem com os mais
velhos mudem algumas de suas atitudes, admitindo que os filhos sejam de fato
brasileiros (uma verdade jurídica) e que esses devem apenas manter certos
padrões japoneses, em especial aqueles que não impeçam o crescimento
econômico (CARDOSO, 1973, p.327). O issei redimensiona sua posição
substituindo o “Wakon yosai (alma japonesa com sabedoria ocidental) ou
Wakon hakusai” (alma japonesa com sabedoria brasiliana) por “Hakushu nitiju
(brasileiro em primeiro lugar e japonês em segundo plano) (SAITO Apud:
CARDOSO, 1973, p.322).
Ruth Cardoso reconhece duas fases nítidas da vida social dos
imigrantes, divididas pela Segunda Guerra. Durante o conflito mundial a colônia
sofreu com restrições governamentais que mais tarde desencadearam os
conflitos entre o grupo “derrotista” e o vitorista”. Em conseqüência, ocorreram
perseguições e crises de referenciais que fazem com os japoneses redefinam
sua relação com a sociedade de acolhimento:
“O desmoronamento do Japão Imperial, guerreiro e invencível, e a
fixação cada vez maior no Brasil, onde os imigrantes conseguiram
algum sucesso, foram os fatores imediatos que obrigaram a uma
conscientização da ligação do nissei com o Brasil” (CARDOSO,
1973, p.323).
O Jornal Paulista surge após a guerra, quando novamente foi possível
aos japoneses a publicação em sua língua materna. Em seu editorial de
inauguração, no dia 1 de janeiro de 1947, se encontrava expresso seu
programa em consonância com as novas condições dos japoneses,
especialmente do nissei:
63
“... A colônia japonesa necessita encontrar uma diretriz acertada,
baseada no conhecimento objetivo da realidade na qual se encontra.
Deverá nascer daí uma nova cultura, uma nova mentalidade,
coerente com o envolver da nova era. Outro problema que a colônia
deve encarar com seriedade diz respeito ao nissei. O nosso futuro
esintimamente ligado com o que será o nissei doravante. Nisso, o
ponto essencial está em convencermo-nos de que o nissei é
brasileiro. É necessário formá-lo digno cidadão brasileiro e
empenharmo-nos na sua completa assimilação na sociedade
brasileira.” (CARDOSO, 1973, p.323-324).
Os imigrantes japoneses se apercebendo da marginalidade em que se
encontravam os nisseis, assumem maior tolerância com a mudança dos
hábitos destes, o que favoreceu o envolvimento dos mais jovens em clubes e
associações e também e também a liberdade de falarem português diante dos
mais velhos. Permitia-se que os nisseis estabelecessem formas de
organização e atividades que, apesar de certos desconfortos, prepararam o
jovem à nova vida no Brasil (CARDOSO, 1973, p.324).
Analisando o quadro familiar apontado por Cardoso, notamos que a
tradicional percepção de um grupo étnico, enquanto grupo que se define
identitariamente em uma situação de isolat social, é inócua. Os jovens
japoneses desde cedo, mas, especialmente após a Segunda Guerra, não estão
presos a uma rotura cultural impermeável e essencialmente sectária. A
fronteira cultural aqui observada é facilmente trespassada sem que isso
signifique prejuízo ao sentimento de pertencimento à colônia japonesa ou
mesmo de descrédito diante o ethos promovido pelo espírito nipônico”.
Conspira ainda contra o isolat social étnico a iniciativa da família japonesa em
instigar o envolvimento com a sociedade brasileira em busca de melhores
condições de existência, que após a Segunda Guerra a idéia de retornar
para o Japão se empalideceu. Cardoso afirma que a tolerância na família
japonesa não implica que o nissei vivia em dois mundos (CARDOSO, 1973,
p.323-324). O padrão das relações familiares naquele momento não
apresenta a mesma coerência de antes. Não é o nissei que se encontra sob
influência da nova situação, a colônia, como um todo, sente as alterações em
seu cotidiano, o que criava condições especiais de vida para os jovens que
estavam colocados em dois mundos culturais superpostos e não paralelos:
64
“Continuam os isseis a pensar em termos da „alma nipônica‟ que
querem transmitir aos seus filhos, mas ao mesmo tempo a ambição
de êxito econômico que trouxeram como imigrantes e a valorização
das profissões liberais e das atividades intelectuais fazem deles
educadores vacilantes e não rígidos impositores das „virtudes
nipônicascomo nos primórdios da imigração(CARDOSO, 1973,
p.326).
O “problema no nissei diz respeito à necessidade de racionalizar o
retrocesso do issei (SAITO Apud: CARDOSO, 1973, p.326). Isso implica em
reordenar o envolvimento com a sociedade nacional sem que haja algum
inconveniente junto à colônia e aos mais velhos. O sentimento de fazer parte
do grupo étnico não deixa de existir. “O êxito do nissei é medido dentro e com
relação à colônia japonesa” (CARDOSO, 1973, p.326). Contudo, para sua
formação e para que possa gozar certos direitos, ele deve viver como
brasileiro. É sua relação com o mundo de fora da colônia que lhes garantiam
sucesso e prestígio dentro do grupo familiar. Dessa forma, se reproduzia com
uma roupagem diferente os valores determinados pela conduta da piedade
filial. O filho honrava o pai na medida em que fosse exitoso e para tal se fazia
necessário lidar com os instrumentos cabíveis para sua inserção na
comunidade brasileira. O que a primeira vista poderia ser paradoxal se
desconsiderássemos a relevância da outridade para o desenvolvimento de uma
identidade étnica, se revela um curioso mecanismo de reforço e reprodução de
uma lógica de filiação que se mantêm na medida em que as fronteiras étnicas
se tornam mais maleáveis.
2.3.1 - As associações juvenis.
O crescente prestígio dos mais jovens permitiu que se construíssem
associações juvenis (Seinen-Kai) sem maior participação dos isseis. Essas
associações reuniam grupos com identificação e ambições semelhantes e que
tinham como meta promover a convivência. Esse tipo de agremiação existia
65
no Japão militarizado e no Brasil assume novas atribuições. Segundo Cardoso,
essas associações não surgiram apenas pelo desejo dos isseis, mas tamm
para promoverem maior envolvimento dos nisseis com a sociedade brasileira,
adquirindo um formato diferente daquele que existia em solo japonês
(CARDOSO, 1973, p.327-328).
Essas associações ofereciam soluções aceitas tanto por isseis quanto
por nisseis. Existiam diferentes formas de agremiação. Havia clubes mais
conhecidos, geralmente, urbanos, e também grupos menores que reuniam
especialmente isseis
39
. As associações de nisseis geralmente aglomeravam um
grande grupo de jovens, inclusive aqueles recém-chegados do interior,
procurando maior integração e tamm selecionar e impor certos
comportamentos sociais que atendiam as contingências daquele momento
(CARDOSO, 1973, p.328).
Durante o período que antecede a Segunda Guerra, o Seinen Kai era
controlado pelos isseis, o que motiva o interesse dos pais pela participação de
seus filhos. A guerra foi um marco, também, nas associações. Sabendo das
discriminações quase legalmente aceitas durante o período do conflito,
ocorreram transformações no seio das associações com o objetivo de extirpar
estereótipos especialmente através de maior envolvimento com a comunidade
nacional. A preocupação com as novas condições de vida faz com que o
Seinen Kai saia da tutela dos mais velhos (CARDOSO, 1973, p.329). Os
diretores das novas associações, poderiam ser brasileiros, atualizando as
atividades do grupo. A valorização da identidade brasileira se tornou essencial.
Esses grupos, independentes da autoridade dos isseis, se tornaram
importantes órgãos para a definição da nacionalidade imposta a associação
respondia à necessidade de integração, o que não ocorria de forma adequada
pela família, permitindo aos nisseis um maior “ajustamento” à cultura brasileira:
O êxito profissional dos jovens, que é uma meta na educação familiar do nissei,
depende desta integração aos ideais de comportamento da sociedade brasileira; para
possibilitá-la, as associações oferecem aos nisseis oportunidades para se adaptarem
a seus pais ocidentais” (CARDOSO, 1973, p.329-330).
39
O campo de pesquisa de Ruth Cardoso se restringiu à cidade de São Paulo.
66
Einsentadt afirma que grupos de jovens m a função de proporcionar
nível de envolvimento com a sociedade e suas esferas institucionalizadas mais
do que a família (EINSENTADT Apud: CARDOSO, 1973, p.330). A dissolução
da família patriarcal, enquanto unidade econômica sob pressão do processo
urbanizador, faz com que os filhos procurem novas carreiras profissionais para
além da pequena propriedade familiar. Apesar de a família incentivar a
ascensão social e a integração do jovem na sociedade brasileira, ela não
obtêm êxito (CARDOSO, 1973, p.330). As associações servem, portanto, para
facilitar a acomodação do nissei, permitindo-lhe práticas que antes eram
vetadas por conta das imposições dos mais velhos, como dançar, participar de
festas brasileiras, etc. Permitia tamm o domínio e exercício da língua
portuguesa, condição necessária para o sucesso profissional dos nisseis
(CARDOSO, 1973, p.331) e até debates sobre casamentos mistos
(CARDOSO, 1973, p.338-341).
Muitos grupos se fundiram formando associações maiores, com maior
representatividade diante da colônia. Algumas formas de segregacionismo
eram criticadas por não garantir o envolvimento adequado dos nisseis com os
assuntos da sociedade nacional, restingindo-se à simples promoção dentro da
colônia (CARDOSO, 1973, p.332). Estimulava-se que o nissei aceitasse o
convívio com a sociedade brasileira ao invés de se isolar. Mesmo com tal
estímulo, esses grupos mantêm seu caráter segregacionista e etnocêntrico,
permitindo apenas a participação de japoneses. O prestígio das associações
estaria em perigo perante os mais velhos se existisse maior abertura. O
envolvimento, apesar de estimulado, ocorria de fato se não houvesse
agravos aos isseis. O Seinen Kai não perdia a colônia de vista, suas ações
tinham em mira o grupo de origem e o a sociedade mais ampla (CARDOSO,
1973, p.332).
Não obstante, existia a intenção de modificar alguns aspectos da
colônia e não abandoná-la. O nissei ao se envolver com a comunidade
brasileira, ao reivindicar a identidade brasileira, o pretende cortar ligações
com a colônia ou com a família, mas aumentar seu prestígio aos olhos dos
isseis através do êxito profissional. Cardoso afirma que a condição preliminar
para a melhora das condições de vida era o sentimento de amor ao Brasil. Tal
67
condição faz com que as associações se tornem responsáveis por reorientar a
colônia. Seu papel essencial é preparar a colônia japonesa, independente da
facha etária, mas especialmente os nisseis, para o novo momento vivido pelos
japoneses no Brasil.
Muitos membros desses grupos saiam do interior de São Paulo rumo à
capital paulista. Por conta da mudança de ambiente, do familiar para o urbano
e moderno, as dificuldades dos nisseis aumentavam. Era o Seinen-Kai que
cuidava de instruir esses sujeitos a se adequarem ao nicho urbano. Segundo
Cardoso, as associações contavam especialmente com membros vindos do
interior, porém, não eram dirigidos pelos mesmos (CARDOSO, 1973, p.337-
341).
Em geral, o Seinen-Kai servia como um espaço de racionalização da
situação de contato, já que era nele que eram definidas as principais diretrizes
comportamentais da colônia. Apreendendo como se comportarem de maneira
adequada à nova condição da colônia, as associações buscavam abolir
estigmas que foram aventados nas décadas anteriores em torno do Perigo
Amarelo” e seu principal esteio ideológico, a inaptidão dos asiáticos em serem
assimilados pela sociedade receptora. Sem abandonar a colônia como
referencial de suas ações, intentavam redefinir a presença nipônica
acentuando que o nissei era brasileiro e que deveria viver como tal (falar a
língua portuguesa, lidar com a rotina social e econômica nacional e quiçá o
envolvimento interétnico no âmbito matrimonial).
A fronteira ganha uma nova configuração. Ela permanece enquanto
delimitadora do espaço japonês, mas é ultrapassada quando notam a
necessidade de lutar por espaço social (status). É nessa flexibilização da
condição de japoneses que se define uma identidade hifenizada, nipo-
brasileiros. Conhecedores do mundo de fora, adequam-se a suas prescrições
amalgamando-as à bagagem cultural que possuíam. Ao invés de considerar a
diferenciação enquanto algo que impede o envolvimento, que torna a fronteira
intransponível, é conveniente observar que a travessia ou trânsito não impede
a existência de critérios étnicos como definidores da conduta coletiva. Ao
contrário, a travessia pode servir tamm como atitude que reforça certos
68
critérios de filiação a determinada identidade étnica. Os nisseis, ao
ultrapassarem os limites da colônia através das “pontes” estabelecidas pelas
Associações, têm em mente reforçarem seu prestígio junto à colônia e à
família. Ao atravessar as fronteiras étnicas os japoneses se tornaram tamm
brasileiros, o que implicava em criar condições para serem bem sucedidos.
Logo, ser brasileiro e bem sucedido era uma forma de ser grato aos pais,
reproduzindo assim os valores da piedade filial nipônica.
Essas considerações têm como objetivo expulsarmos o fantasma
assimilacionista ou da aculturação que insiste em defender a absorção das
minorias aos quadros culturais da sociedade receptora. A expressão entre -
lugares se torna importante recurso analítico ao tratar os sujeitos para além de
idéias de esvaziamento identitário em nome da condição limiar que favorece o
processo de negociação entre culturas. O Estado Varguista, preocupado com
uma ampla política de nacionalização para a produção de um corpo nacional,
livre de cistos quaisquer, projetava uma unidade sócio-cultural tributária ao
pensamento teleologizante da modernidade. Esse pensamento sustenta uma
visão ideal de uma marcha inexorável para formação de uma fraternidade
humana, no caso a nação, sem fronteiras ou formas de mobilização e pertença,
entendidas como tradicionais e arcaicas. Porém, essa política sofre com o fato
de que as prescrições e estereótipos, que m o objetivo de eliminar e
condenar a diferença, promovem conseqüências contrárias
40
. Estar à margem
pode reforçar a solidariedade de um grupo, ainda que em paralelo se
desenvolvam estratégias que busquem superar aquilo que dificulta a
sobrevivência e manutenção do mesmo.
Observaremos que a Seicho-no-Ie adotará estratégias ao amalgamar
as duas tradições culturais em que se inseria a colônia em prol do sentimento
de pertencimento ao Brasil, haja vista que os símbolos que constituem a
comunidade imaginada brasileira e do discurso cívico de então foram
rearranjados a partir de traços que demarcavam a identidade étnica do período
anterior à Segunda Guerra Mundial.
40
“Mais o imprevivel no quadro de análise das teorias da modernização era que, a despeito
desse processo de uniformização cultural, as antigas distinções étnicas não somente não
foram abolidas, mas tornaram-se fontes de mobilização coletiva” (POUTIGNAT & STREIFF-
FENART, 1998, p. 70).
69
O processo tradutor, pertinente àqueles que vivem na condição de
povos diaspóricos, se realiza dentro da SNI. Porém, o significado o vem
pronto e nem é algo portátil que carregamos através do divisor de mundos. O
processo tradutor tem dupla mão, implica também em (re) construir o
significado que compunha as referências de outrora e depois “imagi-lo e
modelá-lo uma segunda vez nos materiais da língua com a qual ele ou ela o
está transmitindo” (MAHARAJ Apud: HALL, 2006, p.40). Nesse mesmo sentido,
Gilberto Velho nos apresenta o binômio prospecção/retrospecção. A
identidade, no momento de sua elaboração, lida com o vaivém dos anseios
futuros e daretomada” dos símbolos do passado condicionados a projeção do
grupo. O passado, aquilo que o compõem, é reinventado atendendo as
necessidades de determinado grupo.
Isso significa que ao buscar se reorientar no novo contexto, os
japoneses tiveram que, simultaneamente, reinventar a tradição
41
e se adequar
às necessidades do momento. Os membros da colônia, diante da crise de
orientação pós-II Guerra, tiveram que reinventar o significado de “ser japonês”
consoante à sua condição, enquanto membro da comunidade nacional. De
maneira complexa, a reinvenção da tradição tinha que construir pontes
simbólicas com outra tradição inventada, a que delimitava a comunidade
nacional brasileira. Um processo dialético resulta em uma percepção de
brasilidade.
As preocupações das associações de moços (Seinen-Kai) não
diferenciavam das da Seicho-no-Ie. Aliás, a SNI possuía sua própria
Associação de Jovens e foi ele o maior responsável por tecer a teia de contato
com a cultura brasileira. A revista Acendedor, editada a partir de 1966 contendo
textos que refletiam os anseios dos japoneses e descendentes e textos
apologéticos, no princípio era de responsabilidade da Associação de Moços da
41
“(...) a cultura não é apenas uma viagem de redescoberta, uma viagem de retorno. Não é
uma „arqueologia‟. A cultura é uma produção. Tem sua matéria-prima, seus recursos, seu
„trabalho produtivo‟. Depende de um conhecimento enquanto „o mesmo em mutação‟ é de um
conjunto efetivo de genealogias. Mas o que esse desvio através de seus passadosfaz é nos
capacitar, através da cultura, a nos produzir a nós mesmos de novo, como novos tipos de
sujeitos. Portanto, não é uma questão do que as tradições fazem de nós, mas daquilo que nós
fazemos de nossas tradições. Paradoxalmente, nossas identidades culturais, em qualquer
forma acabada, estão à nossa frente. Estamos sempre em processo de formação cultural. A
cultura não é uma questão de ontologia, de ser, mas de se tornar” (HALL, 2006, p.43).
70
Seicho-no-Ie. Como os outros grupos de moços, a preocupação era evitar
qualquer tipo de comportamento que levasse ao enquistamento. A Seicho-no-Ie
abandona sua postura étnica nesse momento. A mudança de postura pode ser
encarada como parte da resposta da colônia desejosa de abandonar qualquer
tipo de obstáculo que impeça o envolvimento mais amplo com a sociedade
brasileira.
A atuação da SNI consistia em manifestar seu apoio ao governo militar
brasileiro e enfatizar as representações que constituem nossa comunidade
imaginada. A instituição afirma o comprometimento com o país a fim de retribuir
o que o Brasil proporcionou para os japoneses imigrantes e para os nisseis e
demais gerações, que, aliás, são definidos como brasileiros. O maior nome da
SNI e fundador da religião no Brasil, Miyoshi Matsuda, justifica sua
naturalização no Brasil da seguinte forma:
Em de outubro de 1965 naturalizei-me brasileiro. Há pessoas que
me indagam o porque dessa atitude. Mas mesmo que me naturalizei
, irei naturalmente possuir o espírito japonês até à morte e creio que
não perderei o orgulho de ser japonês. Então, porque me
naturalizei? Acontece que eu vivo desfrutando dos bens deste país
nada menos de 36 anos e foram-me concedido sete filhos
brasileiros. Pensando que estes filhos embora sendo legítimos filhos
japoneses, são cidadãos brasileiros e possuem todo o direito e dever
como brasileiros; pensando também que eu próprio serei sepultado
nesta terra, quero retribuir de alguma forma a esta terra que
sustentou mais de dois terços de minha vida. Por isso achei melhor
possuir a cidadania deste país (ACENDEDOR 1967, nº 7,
p.35).
As falas de Matsuda parecem atender às preocupações do Jornal
Paulista. Não ele, um issei, se declara brasileiro, mas, tamm, enfatiza a
nacionalidade de seus sete filhos. Notemos que Matsuda fala em “espírito
japonês” e mesmo seus filhos são definidos como legítimos filhos de
japoneses, o que deixa visível o duplo pertencimento. A naturalização de
Matsuda é pontuada como forma de retribuição ao país que o sustentou e
acolheu. Esse aspecto de seu discurso também se orienta a partir de um dos
71
mitos fundacionais brasileiros, o do congraçamento étnico. No mesmo
documento o autor completa:
„Haverá algum outro país tão esplêndido quanto este Brasil? é o
que penso depois de ter vivido aqui durante mais de trinta anos. Não
posso crer que haja um outro (sic) país como este que, acolhendo
carinhosamente em seus braços os estrangeiros como nós, concede
quase os mesmos direitos possuídos pelos habitantes e os ampara
permitindo que vivam livremente. Não havendo preconceito racial, é
realmente um verdadeiro paraíso da liberdade (ACENDEDOR,
1967, nº 7, p. 36).
Matsuda parece ignorar as restrições feitas pelo governo Vargas à
imigração japonesa, as falas eugenistas e as imposições do governo que
proibiam o funcionamento das escolas de língua japonesa, assim como
reuniões de japoneses que, inclusive, dificultava a vida religiosa da ainda
pouco expressiva SNI. É que ao evocar os mitos fundacionais é necessário
abandonar os vestígios da perseguição em nome da acomodação. A memória
do imigrante e de seus descendentes fica condicionada às contingências do
pós-guerra, à necessidade de se afirmarem brasileiros e o comprometimento
com a pátria receptora, levando-os a assimilarem os traços que definem o
pertencimento ao Brasil e ignorar eventos que possam, de alguma forma, trazer
à tona qualquer tipo de contraste. O contraste, aliás, é o que realmente
desejam evitar, que isso seria um obstáculo à concretização do ideal da
colônia em se acomodar à sociedade nacional.
Os fragmentos acima o manifestações da necessidade de
envolvimento com a comunidade nacional. As estratégias encontradas pela SNI
fazem parte de uma preocupação geral da colônia. É certo que já na década de
1960 o envolvimento da colônia com ao Brasil era bastante expressivo em
todas as esferas. Contudo, o sagrado era uma instância da intimidade nipônica
que ainda se encontrava restrito à colônia. Cabe-nos explorar melhor a
utensilagem religiosa da Seicho-no-Ie com o objetivo de entender como o
processo ressemantizador cuidou de criar uma variável da identidade nipo-
brasileira, mediante um processo de ressemantização.
72
CAPÍTULO 03 - A SEICHO-NO-IE DO BRASIL E O AUTÊNTICO PARAÍSO
TERRESTRE”
3.1 - Seicho-no-Ie enquanto “Zona de Contato” cultural.
Até aqui temos tratado especialmente da identidade étnica japonesa e
as transformações por que essa passou ao término da guerra. Ao analisarmos
a atuação da Seicho-no-Ie do Brasil após a Segunda Guerra, temos em mente
seu papel enquanto “ponte” entre aspectos da cultura japonesa e brasileira no
que tange em amalgamar ambas as culturas mediante uma série de
percepções que cuidaram de confeccionar representações sobre “o que é ser
brasileiro” ou o “que é um governo ideal” que atendessem a condição dos
japoneses e de seus descendentes quando se produzia a identidade hifenizada
no seio da colônia. Até a década de 1960, a religião era essencialmente étnica,
composta exclusivamente por japoneses. Sua abertura” deve ser entendida
como uma mudança de atitude em relação ao Brasil, sendo uma das faces do
processo de envolvimento dos japoneses e descendentes, com o país. Por
outro lado, as mudanças vividas pelo Japão, onde se encontra a sede do grupo
religioso, tamm devem ser entendidas como relevantes para tal processo.
O trabalho de Leila M. Albuquerque trata da difusão da doutrina de
diferentes expressões religiosas enquadradas na categoria novas religiões
japonesas, entre os brasileiros. Esse evento, como anota Koichi Mori, implica
em um processo de adaptação do teor doutrinário em busca da eficácia do
proselitismo (MORI, 1988, 588-591). Contudo, o presente trabalho, ainda que
se valha muito das observações feitas por estudos do tipo mencionado acima,
trata da mudança da atuação das novas religiões, especificamente a Seicho-
no-Ie, na órbita da ambientação dos japoneses e descendentes à sociedade
nacional, sem que isso implique na eliminação de traços de pertencimento
étnico.
Nossa análise parte dos instrumentos da ciência História, sendo nossa
preocupação maior entender a expressão religiosa e suas percepções
73
enquanto forma de organização de um grupo diante as contingências daquele
momento, a saber, a necessidade de se inserir a sociedade nacional em seu
todo. Contextualizado o momento de abertura religiosa e seus motivos,
tentamos responder sobre as estratégias adotadas pela instituição para a
acomodação dos japoneses ao Brasil. Entendemos que é importante pontuar
sobre as condições políticas daquele momento que a ditadura militar (1964-
1985) cuidou de operacionalizar os símbolos de pertença nacional a partir de
seu projeto ideológico.
As representações da brasilidade se tornaram para a SNI referências
as serem enfatizadas como meio de atestar seu envolvimento e o de seus
adeptos com o Brasil. Usamos o conceito representação levando em conta que
sua existência, enquanto forma de percepção do social, não é neutra. A partir
de Roger Chartier, entendemos que as representações estão sempre em um
campo de concorrência e disputa de poder, legitimando, reforçando ou
justificando algum projeto. O conflito entre as representações manifestam os
mecanismos pelas quais um grupo tenta impor seus valores, percepções e
domínio: “As representações do mundo social assim construídas, embora
aspirem à universalidade de um diagnóstico fundando na razão, sãos sempre
determinadas pelo interesses de grupos que as forjam” (CHARTIER, 1988,
p.17).
Nossas observações partem da premissa de que a abertura da SNI,
ocorrida da década de 1960, é parte da etno-história do imigrante japonês e
seus descendentes. Os documentos analisados, textos apologéticos e
doutrinários e artigos da Revista Acendedor, são frutos da nova situação dos
japoneses no país enquanto portadores de uma identidade hifenizada e tratam,
especialmente, de temas relacionados ao patriotismo. A razão disso reside no
fato de que, durante os primeiros anos do Governo Militar, o patriotismo
ganhou vigor por conta das propagandas feitas a favor da adesão ao projeto do
Estado. Portanto, as representações tomadas e rearranjadas pela SNI a favor
do maior envolvimento com a comunidade nacional e do fortalecimento da
identidade hifenizada eram aquelas elaboradas especialmente a partir da
esfera elitista e oficial daquele momento, tomadas aqui enquanto centro
irradiador do discurso nacionalista. Mitos fundacionais em torno da grandeza
74
do país, do congraçamento étnico e do inegável futuro de glórias reservado ao
Brasil estão presentes nos documentos analisados. Além disso, a falas que
marcavam a ideologia dos militares enquanto fomentadores da ordem e do
desenvolvimento eram endossadas e associadas a alguns aspectos da
doutrina religiosa enquanto forma de evidenciar o comprometimento da SNI
com a situação nacional.
Tratavam, pois, de tomar os símbolos do nacionalismo de então e os
envolver com os traços religiosos e culturais que orientavam o grupo religioso.
As representações que outrora marcavam o “Xintoísmo de Estado”,
especialmente no que diz respeito à obediência ao poder do governante em
nome da harmonia um modelo de estado-família e que influenciaram a
identidade étnica no período anterior a derrota, dialogam com a ideologia
centralizadora. A SNI manteve viva a conduta prescrita pelo familismo japonês
e conseqüentemente, as considerações em torno do poder e estabilidade
social. É dessa “bagagemcultural que a SNI desenvolveu um dos matizes da
identidade nipo-brasileira.
3.2 - A religiosidade na colônia antes da Segunda Guerra Mundial.
Os estudos feitos por Takashi Maeyama na década de 1960 acerca da
religiosidade dos japoneses no Brasil são basilares para o presente trabalho,
especialmente porque seu objeto de estudo foi a Seicho-no-Ie do Brasil. É
consenso em vários trabalhos que o pós guerra marca uma transformação na
vida religiosa dos imigrantes e seus descendentes. No período anterior, a
religiosidade se expressava especialmente através do culto aos antepassados
e tamm da “etnicidade ritualizada” mediante o culto de reverência prestado
ao Imperador (MAEYAMA, 1973, p.245). Tanto o budismo como o xintoísmo,
as novas religiões e mesmo o catolicismo estiveram presentes na vida das
pessoas. Contudo, é a partir do desmoronamento do sonho de retorno ao
Japão e da consciência da estadia definitiva no país que as diversas
expressões religiosas se firmaram dentro da colônia (MAEYAMA, 1973, p.245).
75
Nesse momento, as crenças japonesas serviram, especialmente para os mais
velhos e os descendentes primogênitos, como referência espiritual da tradição
nipônica.
A religião japonesa no pós-guerra ofereceu um novo tipo de
niponicidade. Como disse Maeyama, esse sentimento não é mais sustentado
pelo Japão propriamente dito (MAEYAMA, 1973, p.246). Essa transformação
ocorreu paralela à mudança sócio-econômica dos japoneses, de forma que
religião, parentesco, etnicidade e classe social estão imbricados na constituição
da nova etnicidade desenvolvida no seio da colônia. No geral, os nisseis e
demais gerações se ligaram aos vários Seinen-Kai enquanto os mais velhos e
também os primogênitos, mais ligados à tradição cultural japonesa, se
tornaram acólitos das novas religiões japonesas
Maeyama afirma que algo em torno de 90% dos japoneses que
entraram no Brasil tinham o budismo como filiação religiosa. Contudo, não se
verificou a presença de atividades doutrinárias mais intensas dentro da colônia,
salvo o catolicismo e algumas outras exceções, até a década de 1950
(MAEYAMA, 1967, p.84). A partir de 1950, período de restabelecimento da
imigração, é que notamos as atividades budistas, xintoístas e das novas
religiões japonesas de forma mais sistemática
42
.
Poucos pregadores budistas ou de outras religiões vieram para o Brasil
antes da Segunda Guerra. Isso se deu por três razões. A primeira razão deve-
se às restrições do governo japonês e também da legação japonesa no Brasil
autocontimento, segundo Koichi Mori
43
(MORI, 1988, 564). Usavam como
42
Koichi Nori divide a história da religiosidade na colônia da seguinte forma: 01- “Ausência” de
religião (1908 1920); 02 Atividades religiosas na Colônia (1920 1930); 03 Período de
imigração urbana (final da década de 1930 até 1950); 03 Época urbana “Ressurreição” das
religiões japonesas e seu desenvolvimento posterior (1950-1980). Em linhas gerais, essa
divisão, cotejada com a posição de Maeyama, nos permite aferir que a religiosidade japonesa
ganha maior vigor depois da Segunda Guerra. Porém, como adverte Ronam Alves Pereira, não
podemos afirmar que no período anterior ao conflito não existiam expressões religiosas na
colônia (PEREIRA, 1999, p.92).
43
Mori, a partir de Nakamaki, aponta quatro motivos para a contenção: 01 O envio de
sacerdotes de determinada seita abriria precedentes para que outras denominações religiosas
também tentassem o mesmo; 02 Ausência de condições econômicas para manutenção do
76
principal argumento o fato de que a presença de religiões japonesas reforçaria
a imagem de que o japonês é um estranho inassimilável, o que poderia causar
embaraços à colônia. Receavam a intensificação do movimento anti-japonês
que já se verifica no Brasil, apesar desse movimento criticar a presença de
núcleos étnicos e tamm as prescrições contra o casamento inter-étnico e não
necessariamente a religiosidade. Ryôji Noda, um dos membros da delegação
japonesa no Brasil, deixa claro sua preocupação com a presença de
pregadores vindos do Japão. Em resposta à consulta feita pelo Ministério de
Relações Exteriores do Japão em 1918 acerca da possibilidade de sacerdotes
de determinada seita budista serem enviados para o Brasil, o representante da
delegação menciona o fato do Brasil ser católico e que a presença de religiões
diferentes chamaria a atenção. Além disso, ele manifesta a necessidade de dar
provas da capacidade japonesa de integração à vida no Brasil, buscando evitar
assim, qualquer forma de atrito:
“Com a vinda dos bonzos e pregadores para as comunidades de
origem japonesa no Brasil e conseqüentemente doutrina pública
destes elementos, pode fornecer as provas da não integração dos
japoneses, justamente agora que este assunto está em baila neste
país. Desejamos que os pregadores das religiões japonesas,
estranhas aos brasileiros, continuem proibidos de para viajarem
(NODA Apud: MAEYAMA, 1967, p.86)
44
.
A segunda razão deve-se à pressão cultural do Catolicismo Romano,
que havia conseguido a adesão de alguns imigrantes. É importante
mencionar que o envolvimento de japoneses, especialmente os mais jovens,
com o catolicismo e seus rituais estava também na órbita da necessidade de
maior aceitação dentro da sociedade brasileira. Maeyama enfoca o batismo
católico para defender a idéia que esse ritual era uma evidência do interesse
da família japonesa em evitar qualquer tipo de obstáculo para maior
pregador; 03 Pouco interesse da colônia pelo envio de pregadores; 04 Existência de
sentimento anti-nipônico (MORI, 1988, p.563).
44
Talvez as falas de Noda manifestem relativa consciência dos elementos provenientes do
discurso do “Perigo Amarelo”, já que a ênfase deste se encontre no aspecto da não
assimilação do oriental.
77
envolvimento com comunidade nacional (MAEYAMA, 1967, p.97)
45
. O
envolvimento com o catolicismo era relativamente superficial, manifestando
muito mais a necessidade de entrosamento com a sociedade fora da colônia do
que a internalização da religião católica, identificada por muitos como a religião
do povo brasileiro. Maeyama nos traz os seguintes relatos sobre as
preocupações dos mais jovens inseridos no sistema educacional brasileiro:
“O professor disse para ser batizado. Se não for batizado é
inconveniente para a escola. Os companheiros desprezam-me
dizendo que aquele que não for batizado não é gente. Um amigo
brasileiro disse para batizar os filhos porque ele se encarregaria de
ser o compadre” (MAEYAMA, 1967, p.97)
46
.
Essas falas nos oferecem uma evidência da percepção dos imigrantes
e descendentes acerca do papel da religiosidade católica enquanto um dos
traços da cultura brasileira. Ainda assim, temos que considerar que o
catolicismo supriu certa carência espiritual sentida por alguns indivíduos dentro
da colônia conforme afirmou um estudo feito por Kumao Takaoka (TAKAOKA
Apud: MAEYAMA, 1967, p.87). Entretanto, a identificação como católico em
alguns casos não excluía, especialmente entre os chefes de família, a prática
de certos rituais religiosos da tradição japonesa, em especial o culto aos
45
A presença dos japoneses na sociedade brasileira favoreceu a disseminação entre esses
das diversas formas de religiosidades encontradas no país. No recenseamento feito em 1958,
dentre 350.591 japoneses e seus descendentes maiores de sete anos, 43,5% adotaram
religiões que conheceram no Brasil. Por outro lado, 48,9% eram acólitos de religiões de origem
japonesa. Vista sob o ângulo das gerações, 76,6% dos isseis eram seguidores das religiões
japonesas, assim como 35% dos nisseis e 21% dos sanseis e yonseis (terceira e quarta
geração) (MAEYAMA, 1967, p.96).
46
Em entrevistas feitas por Maeyama foram identificados as seguintes razões para o batismo:
“01- Prevenir qualquer dificuldade possível para a ascensão social dos filhos no futuro dentro
do contexto brasileiro; 02 Simplesmente responder à sugestão ou indicação dos professores
dos filhos nas escolas; 03 Atender, como bons vizinhos aos vizinhos ou amigos brasileiros
que se volutarizavam a ser padrinhos de seus filhos, porque não era „boa política‟ recusar
„gentil oferecimento; 04 Conseguir boas oportunidades e prestígio social através do
compadresco;05 Proteger seus filhos das freqüentes instigações pelos companheiros de
folguedos, dizendo que um pagão é um pecador e não mais que um bicho; 06 Realizar
cerimônia de casamento na Igreja Católica; etc” (MAEYAMA, 1973, p.253). Em outros casos,
especialmente entre os mais jovens, a conversão significava também a aquisição da
“cidadania” (MAEYAMA, 1973, p.254).
78
antepassados
47
(MAEYAMA, 1973, p.253).
A terceira razão se deve ao tipo de imigrado vindo para o Brasil. Por
serem em sua maior parte filhos “não sucessores” do ie (casa, família), não
estavam obrigados, como os irmãos mais velhos que ficaram no Japão, a
cuidar da manutenção dos rituais religiosos. Não se sentiam obrigados a
conduzir a vida religiosa aos moldes da vida rural que tinham na terra natal,
cabendo essa responsabilidade apenas aos mais velhos, pelo menos a o
retorno. Por se verem como trabalhadores temporários, os imigrantes deixaram
como incumbência dos mais velhos que ficaram em casa, os deveres com a
religiosidade (MORI, 1988, p 562). Sobre isso, Maeyama afirma que:
“Mesmo que continuando a viver, por longo período, dentro do
balizamento da sociedade brasileira, era forte o pensamento de que
pertencia, como membro regular e de origem, à sociedade japonesa,
e que não passava de seu membro temporariamente ausente,
permanecendo no Brasil, apenas, na qualidade de visitante‟
(MAEYAMA Apud: MORI, 1988, p.564).
Ediléia Mota Diniz afirma que o tipo de religiosidade que se
desenvolveu dentro da colônia, mesmo diante as dificuldades acima
apontadas, era um meio para manter alguma relação com o regime paternalista
japonês (DINIZ, 2006, p.99). Nesse sentido, a religiosidade estava consoante
às representações da comunidade imaginada japonesa no que tange à piedade
filial e especialmente reverência ao Imperador que, como afirmou Maeyama,
era o fundamento da niponicidade até o término da Segunda Guerra Mundial
(MAEYAMA, 1973, p.)
Mesmo com a ausência de bonzos (sacerdotes budistas), os japoneses
improvisavam ritos no intuito de manterem as cosmovisões trazidas da terra
47
Maeyama tomou como exemplo o depoimento de um japonês chefe de família que mesmo
vivendo em uma família católica sentia falta do tablete de culto aos antepassados (ihai) e que
por isso se decidiu participar de cultos da Seicho-no-Ie por conta da ênfase dada por essa
religião ao culto aos antepassados. Os japoneses desenvolveram uma conduta dualista em
termos de religiosidade (MAEYAMA, 1973, p.253). Em algumas observações corriqueiras, é
possível observar ainda entre japoneses mais velhos práticas que revelem esse dualismo,
como a manutenção do ihai, mesmo em famílias onde o cristianismo é a orientação religiosa,
assim como em alguns túmulos em que encontramos, ao lado das cruzes católicas, objetos
japoneses, como pequenas tigelas, dedicados à reverência aos mortos.
79
natal. Quando ocorria a morte de algum imigrante, algo inesperado por conta
do sonho de retorno, os japoneses cuidavam dos rituais fúnebres
especialmente com a leitura do Okyô (uma oração budista) que era feita pelos
Okyô-Yomi (leitores do Okyô). Poucos conheciam bem essas orações e
geralmente, algum membro mais velho da colônia servia como uma espécie de
sacerdote improvisado (MAEYAMA, 1967, p. 96). na década de 1930,
surgiram iniciativas em favor da religiosidade japonesa através de palestras
sobre o budismo na colônia de Hirano (SP), e também da construção de
templos xintoístas na colônia de Uestsuka, em Promissão (SP), e na Colônia
de Bastos (SP). Koichi Mori afirma que a construção de templos eram formas
de reorganização do habitat brasileiro em favor da instituição de divindades
aldeãs como existiam no Japão (MORI, 1988, p.568-569).
No período que vai de 1924 à 1941, cerca de 150.000 japoneses
entraram no Brasil mesmo com as barreiras do sistema de cota dos imigrantes.
Durante esse período, as atividades religiosas dentro da colônia aumentaram.
Desde 1919, o Catolicismo, através de padres missionários, iniciou suas
atividades dentro da colônia com o intuito de conter as religiões japonesas.
Durante o Estado Novo (1937-1945), a expansão do Catolicismo entre os
japoneses fazia parte das tentativas de “abrasileiramento dos imigrantes de
diversos países (MORI Apud: DINIZ, 2006, p.100), o que era mais viável entre
os imigrados vindos da Europa católica. Contudo, Mori destaca tamm que as
atividades das novas religiões japonesas aumentaram (MORI Apud: Diniz,
2006, p.100).
Mori analisa a dinâmica da religiosidade japonesa a partir de etapas
referentes à vivência da colônia em solo brasileiro. Ele afirma que ao longo de
quatro etapas, as expressões religiosas passam de uma condição de palidez
para o de “ressurreição”. No entendimento do autor, essas etapas são
consoantes às condições de vida, em termos econômicos, e ao envolvimento
dos japoneses com a sociedade brasileira. Predominava no momento imediato
à imigração um momento de relativa “palidezreligiosa, denominado pelo autor
de “ausência de religião”, devido, especialmente, à crença de retorno breve ao
Japão e, tamm, no tipo de imigrante que veio para o Brasil. No segundo e
terceiro momentos, entre 1920 e 1950, algumas manifestações religiosas
80
surgiram assim como também a idéia de permanência definitiva no Brasil. A
idéia de permanência deve ser encarada a partir das transformações ocorridas
na colônia a partir do final da década de 1930 e início da década de 1950,
momento em que notamos a ascensão social de membros da colônia, a
migração urbana e também o enfraquecimento dos critérios de etnicidade
baseadas no Nacionalismo de Estado” japonês. Esses elementos mudaram o
comportamento religioso entre os japoneses e seus descendentes, conforme
afirma o autor:
A desintegração da mundivisão visão do mundo em torno do culto
ao Imperador que existia como abrigo espiritual dos imigrantes
japoneses do pós-guerra; a migração urbana e conseqüentemente
mudanças de camada social e adaptação às condições urbanas; o
surgimento do conceito „permanência definitiva‟, etc. foram os fatores
que induziram a „ressurreição‟ das religiões japonesas” (MORI,
1988, p.561).
Foi nesse momento que algumas novas religiões Japonesas
apareceram no Brasil, como a Ômotokyô, a Tenrykyô e a Seicho-no-Ie. Suas
atividades eram, contudo, exclusivamente voltadas para a colônia japonesa.
O quarto período, denominado de Ressurreição das Religiões
Japonesas” se deu no momento em que a idéia de permanência definitiva no
Brasil se solidificou. Naquele momento, os japoneses vivenciavam o processo
de êxodo rural e a partir de então outras novas religiões japonesas floresceram
em solo brasileiro nas décadas posteriores, abandonando o exclusivismo étnico
e conquistando adeptos não japoneses. É difícil estabelecer com precisão o
número de adeptos das novas religiões japonesas no Brasil devido o fato de
que o senso daquela época incluía o grupo na categoria “religiões orientais”.
Outra dificuldade é que em alguns casos os grupos religiosos adotam critérios
não científicos para mensurarem a quantidade de membros. A partir de Mori
usamos os seguintes índices:
81
EVOLUÇAO DAS FORÇAS DAS PRINCIPAIS
RELIGIÕES JAPONESAS 1968/1988
N.º de
adeptos
Descendentes
Não-
descendentes
1968
1988
1968
1988
1968
1988
[1000]
[%]
[%]
Tenry-kyô
4
10
100
99
0
1
Seichô-no-
15
2.400
99
15
1
85
Sekai Kyusei-kai
7
153,8
40
3
60
97
PL
10
30
90
10
10
90
Nichiren shôshu
20
200
100
40
0
60
(Sôka-gakkai)
(NORI, 1988, p.585).
3.3 As novas religiões japonesas.
As chamadas novas religiões japonesas (NRJ) compreendem
expressões religiosas surgidas no final do século XIX e início do século XX.
Essas religiões atendem as condições dos indivíduos que vivem em centros
urbanos e que estão cada vez mais distantes dos antigos laços de
solidariedade que balizavam a sociedade japonesa tradicional. O corpo
doutrinário das novas religiões especial atenção para o culto dos
antepassados, para a pacificação dos ancestrais, acreditando que assim
podem adquirir felicidade, sucesso financeiro e evitar problemas de saúde
82
notemos que existe a preocupação com a vida no plano terreno. Em meio ao
processo urbanizador japonês, se encontravam ainda preocupações
pertinentes à tradição religiosa nipônica com a noção de causalidade
espiritual”, que serve como explicação para inúmeros desassossegos dessa
vida (CLARKE, 2006, p.7).
Em geral, essas religiões retomam determinados pontos da longeva
tradição religiosa adaptando-as às contingências do Japão moderno. Peter
Clarke afirma que essas religiões não correspondem às novas formas
religiosas de origem indiana ou filosofias religiosas de auto-ajuda populares em
nosso dia-a-dia. Para Clarke, as novas religiões japonesas se parecem com os
movimentos de revitalização encontrados na cristandade contemporânea.
Representam a revitalização do tradicional de acordo com a vivência diária e
com as mudanças que ocorriam em todas as esferas, na sociedade nipônica:
"(...) A sua principal preocupação é com a prestação de uma
moderna e relevante fé em meio a uma sociedade cujos sistemas de
crenças tradicionais não são facilmente acomodados dentro d as
novas condições criadas pelo rápido processo de urbanização e
industrialização que o Japão tem experimentado ao longo dos
últimos cento e cinqüenta anos e, particularmente desde a Segunda
Guerra Mundial (…) Elas estão em busca de uma nova maneira de
responder a modernidade e oferecer aos japoneses - talvez a cerca
de quarenta por cento deles - crenças e práticas que lhes permitam
responder ao rápido crescimento econômico, político e cultural (…)
(CLARKE 2006, p.3-7).
Leila Amaral Bastos Albuquerque pontua sobre elementos básicos que
permeiam as novas religiões japonesas: 01 Corpo doutrinário sincrético,
amalgamando tradições diversas como budismo, cristianismo, xintoísmo,
crenças populares e correntes do pensamento ocidental; 02 Em troca da
aceitação de sua doutrina, as novas religiões japonesas prometem benefícios
nesse mundo, como saúde, prosperidade e harmonia familiar; 03
Secularismo organizacional, que não há uma divisão entre o corpo clérico e
os leigos; mas somente uma hierarquia religiosa; 04 A organização desses
grupos é semelhante ao empreendimento empresarial, já que a ascensão na
83
hierarquia depende da participação ativa na religião; 05 Por conta das últimas
características, esses grupos são marcados por forte vitalidade e disposição
para a expansão doutrinária (ALBUQUERQUE, 1999, p.12).
Clarke destaca ainda mais três traços característicos desses
movimentos religiosos: 01 - crítica às tradições; 02 - novas interpretações; 03 -
universalismo. A critica feita às velhas tradições foi responsável por
perseguições conduzidas pelo Estado japonês.As novas interpretações dizem
respeito à capacidade dos fundadores das novas religiões japonesas em
retomar pontos dos textos tradicionais, xintoísmo e budismo, e reinterpretá-los
à luz de necessidades religiosas daquele momento, elaborando novas visões e
suprindo a incapacidade da religiosidade tradicional em atender às
contingências da população. Se comparada às religiões tradicionais, essas
expressões são mais atentas à universalidade, o que é visível a princípio no
discurso de paz mundial adotada por muita dessas religiões. O processo de
universalização ou internacionalização acompanha, ainda que em menor
escala, a posterior expansão econômica e tecnológica japonesa (CLARKE,
2006, p.5-6).
O professor Ronan Alves Pereira em um texto dedicado a analisar a
experiência religiosa de fundadoras de duas outras novas religiões, Ômotokyô
e Tenrikyô, tem conclusões semelhantes à de Clarke. Para Pereira, as novas
religiões japonesas expressam a necessidade de reorientação da sociedade
japonesa diante a modernização do país (PEREIRA, 1995, p.170-185)
48
Sob a
perspectiva de Pereira, podemos perceber tais expressões religiosas como
instrumento de inovação cultural, o que não implica em abandonar o
“tradicional”, mas sim reordená-lo à nova dinâmica cultural que o Japão vivia
48
Pereira, em artigo intitulado Possessão por Espírito e Inovação Cultural: O Caso de Duas
Líderes Religiosas do Japão” (1985), trata do surgimento de duas novas religiões pioneiras: a
Tenrikyô, fundada por Miki Nakayama (1798-1887) e a Ômotokyô, fundada por Nao Deguchi. O
autor enfatiza que os sujeitos não devem ser vistos como passivos com relação ao sistema
cultural.As idiossincrasias pessoais atuam na manipulação de representações que compõem a
utensilagem cultural. Por outro lado, a vivência pessoal não foge ao contexto em que o sujeito
se encontra inserido, ou seja, a percepção do mundo o esdesvinculada da matriz cultural
onde se encontra o sujeito. Essa via de “mão dupla” nos permite entender que as novas
religiões japonesas ao mesmo tempo que promovem certo nível de renovação ao se apropriar
da bagagem religiosa tradicional, reproduzem elementos da mesma, ou, como diz o autor ao
analizar a experiência religiosa de Miki e Nao, se expressam a partir do “idioma possessional”
pertencente à cultura japonesa o manipulando de maneira original (PEREREIRA, 1995, p.184).
84
naquele momento. Partidária de opinião semelhante, Catarine Cornille anota
que “as novas religiões quase sempre procuram suas bases de legitimação nas
antigas religiões” (CORNILLE, 2006, p.94).
Roland Robertson destaca que essas religiões cuidaram de promover
uma visão que toma o Japão como centro do mundo. Isso significa que no
período de seu desenvolvimento alguns traços do Regime Imperial,
especialmente no que diz respeito à primazia do Japão enquanto eixo do
mundo,foram absorvidos por esses grupos (ROBERTSON, 1999, p.127).
Existe entre essas expressões um apelo em nome da “Paz Mundial”.
Contudo, essa paz mundial erradia do Japão para o resto do globo (CLARKE,
2006 12), o que deixa claro a posição do arquipélago nipônico enquanto
espécie de solo sagrado e também irradiador do ethos capaz de melhorar a
condução do mundo. Isso nos revela que o Japão moderno tenta se inserir na
ordem global sem se sentir tolido pelo que chamamos de “ocidentalização”.
Menos vulnerável que outras regiões da Ásia, como a Índia e a China, o
“Nacionalismo de Estado” nipônico após 1868 criou artifícios na tentativa de
manter o que entendiam por tradição japonesa” - tradição inventada, é claro
se apossando e reconfigurando certos elementos oriundos do Ocidente”. As
novas religiões se apropriam de diversos sistemas religiosos construindo novos
arranjos devocionais:
"Embora a maior parte das novas religiões expressem os principais
componentes da sua e ensinamentos a partir do sincretismo das
religiões tradicionais, xintoísmo, budismo ou cristianismo, elas
deixam impressas suas contribuições religiosas (MELTON &
JONES, 2006, p.36).
No esteio desse pensamento, Catherine Cornille, em um texto
dedicado ao estudo de uma expressão religiosa surgida após a Segunda
Guerra, Sukyô Mahikari, (Organização Religiosa da Luz Verdadeira), pontua
sobre a apropriação do cristianismo e o desenvolvimento de um sistema
religioso sincrético. A Marikari reconta a vida de Cristo tomando como
referência textos xintoístas. Em sua versão, Jesus Cristo teria nascido em 37
85
aC, viajado pela Índia, China e chegado ao Japão aos dezoito anos. No Japão,
ele teria adquirido conhecimento e poderes mágicos junto aos sacerdotes xintô
e aos ascetas das montanhas. Antes de retornar para Palestina, Cristo ainda
teria feito muitos milagres, a partir do que aprendera em solo japonês. Esses
milagres lhe custaram, posteriormente, a condenação à cruz. No entanto, o
irmão de Cristo, Isukiri, voluntariamente tomou o lugar de Jesus. Mais tarde,
Cristo teria viajado por todos os continentes pregando a sua doutrina, indo
morrer no Japão aos 118 anos (CORNILLE, 2006, p.95-96).
A Mahikari reconta a narrativa da vida de Cristo a partir de uma
perspectiva etnocêntrica e nacionalista (CORNILLE, 2006, p.96), onde as
cosmovisões tradicionais servem como esteio para a apropriação de elementos
da cultura “ocidental”. Estratégias como essa testificam o interesse em
universalizar traços da cultura japonesa (CLARKE, 2006, p.11).
O exemplo de apropriação da Mahikari nos permite compreender a
textura religiosa de algumas outras novas religiões. O Japão é um país que
tradicionalmente, lida com diferentes expressões religiosas, em especial o
xintoísmo e o budismo. A chegada do cristianismo colaborou para a
multiplicidade religiosa, favorecendo sua apropriação mediante referências
tradicionais. O cristianismo favoreceu ainda o desenvolvimento de certas
posições de cunho monoteístas, presentes em algumas novas religiões,
apropriadas pelo pensamento neo-confucionistas e budistas (CLARKE, 2006,
p.11-12) Sob esse assunto, J. H. Kamstra destaca que o politeísmo sempre foi
um dos pilares do xintoísmo e da religiosidade japonesa no geral. Ele pontua o
papel da religiosidade xamã ancestral e das crenças em forças maiores que
viviam nas montanhas, rios, etc., na constituição do politeísmo nipônico.
Porém, Kamstra identifica o desenvolvimento de noções do tipo monoteístas
em algumas das novas religiões pioneiras, a Omotokyô, Tenrikyô e Konkôkyô,
que influenciaram outros grupos como a P.L. Kyôdan e a Seicho-no-Ie. Esses
grupos passaram então a considerar a existência de um “deus criador de todo
universo” (KAMSTRA, 2006, p.104-109)
49
.
49
Em seu artigo, o autor sonda as influências do pensamento cristão e a apropriação do
mesmo por escolas religiosas japonesas que durante o culo XIX serviram de alicerce para a
construção da utensilagem religiosa das primeiras Novas Religiões.
86
As novas religiões japonesas foram levadas para outros lugares do
mundo graças aos imigrantes. Em países como os EUA e o Brasil, os que mais
receberam imigrantes do Japão, encontramos, em nossos dias, inúmeros
templos erigidos pelos imigrantes e que, hoje, atendem às necessidades de
acólitos não japoneses. Durante as primeiras décadas do culo passado, as
novas religiões japonesas serviam como rotura étnica. Somente nos anos
posteriores à Segunda Guerra Mundial, findada a perseguição contra os
japoneses e sua cultura (especialmente nos EUA por conta do episódio de
Pearl Harbor)
50
é que as várias denominações chamam a atenção de o
japoneses. A abertura dessas religiões e a aceitação de suas doutrinas pela
sociedade receptora devem tanto à mudança das relações entre os imigrantes
e seus descendentes com o país que os acolheu, assim como as mudanças de
valores causadas pelo processo de urbanização, industrialização e liberdade
religiosa (SHIMAZONO Apud: MATSUE, 2002, p.02).
No Brasil, as expressões religiosas em questão serviam como espaço
onde a etnicidade era vivida e rotinizada. Algumas grupos se encontravam
esparsamente presentes no Brasil desde as primeiras décadas da imigração.
Adeptos da Butsuryushu, Hompa Honganji, Ômotokyô, Ternrykyô e da Seicho-
no-Ie faziam alguns trabalhos de divulgação de suas doutrinas dentro da
colônia e alguns templos também foram erigidos. Esses templos e as reuniões
religiosas sofreram com as perseguições durante a Segunda Guerra, mas, foi
a partir do que Mori chamou de “Época Urbana” que essas religiões
ganharam vigor. Mori e Maeyama anotam que a ascensão econômica
constituiu o pano de fundo para a o fortalecimento das religiões japonesas
(MORI, 1988, p.578-579). Outras religiões como a Perfect Liberty, a Nichiren
Shôshu e a Igreja Messiânica posteriormente se enraizaram no Brasil
51
.
50
J. Gordon Melton e Constance A. Jones nos contam que o bombardeio em Pearl Harbor
desencadeou perseguições contra japoneses e suas formas de solidariedade. Muitos deres
das novas religiões japonesas foram encarcerados e templos foram fechados (MELTON &
CONSTANCE, 2006, p.35).
51
Mori afirma que essas religiões podem ser divididas em duas categorias, as que
conseguiram a adesão de membros não descendentes e as que não conseguiram. O autor
afirma que as mudanças sócio-econômicas brasileiras favoreciam a difusão das doutrinas
japonesas. Porém, as estratégias adotadas para a difusão e tamm o conteúdo religioso
foram os responsáveis pelo sucesso de expressões como a Perfect Libert e a Seicho-no-Ie
(MORI, 1988, p.588-591).
87
Esses movimentos religiosos até a década de cinqüenta mantiveram
atividades rarefeitas e pouco superviosadas pelas sedes japonesas. Outro
traço a ser destacado é que as novas religiões japonesas preenchiam as
lacunas deixadas pela crise da identidade étnica vivida com a derrota japonesa.
Mori afirma que os elementos da cultura japonesa eram enfatizados pelas
novas religiões, mantendo vívidos alguns dos traços da niponicidade de outrora
(MORI, 1988, p.586). Portanto, esses grupos se apresentavam para muitos
japoneses como uma resposta à crise da etnicidade e, ao mesmo tempo, à
nova condição sócio-econômica em que se encontravam.
Em meio às transformações culturais e religiosas, em especial a temas
associados a “New Age”, as novas religiões japonesas, que eram as
principais expressões religiosas de origem asiática no Brasil, ganharam o
interesse de acólitos brasileiros (PEREIRA, 1999, p.91). Por outro lado,
religiões de origem japonesa sincretizaram elementos da cultura religiosa
nacional, permitindo maior familiaridade junto ao público brasileiro
52
.
3.4- O surgimento da Seicho-no-Ie
As atividades da Seicho-no-Ie se iniciaram no Japão em 1929 quando
seu fundador, Masaharu Taniguchi, vivenciou as primeiras revelações divinas.
Em princípio, conforme afirma o estudo de Takashi Maeyama, o propósito do
fundador não tinha um formato religioso. A situação política e econômica do
Japão daquele momento reverberou no processo de engendramento da
doutrina. O “tenoísmo” (referente ao culto ao Imperador), e também a crise
econômica mundial foram determinantes na conduta da religião e na
constituição de seu corpo doutrinário (MAEYAMA, 1967, p.43).
Taniguchi nasceu em uma família pobre de lavradores em 1893 na
52
Ronan Alves Pereira divide em dois momentos a presença das novas religiões japonesas no
Brasil, uma anterior e outra posterior à guerra. Na primeira etapa essas religiões mantêm seu
teor étnico. No outro momento, quando a permanência no Brasil era inevitável, esses grupos
religiosos buscam se afirmar junto à cultura nacional buscando acólitos brasileiros (PEREIRA
Apud: TOMITA, 2004, p.89).
88
Província de Hyôgo, região central do Japão. Por causa de sua condição
financeira, foi adotado pelos tios que tiveram condições de financiar o seus
estudos e o seu ingresso em um curso superior de Literatura Inglesa, onde
pôde se aproximar do pensamento filosófico, literário e religioso do ocidente
53
.
O apoio financeiro da família findou devido a um caso amoroso de Taniguchi, o
que o obrigou ao trabalho braçal permitindo-lhe conhecer o cotidiano dos
operários japoneses (MAEYAMA, 1967, p.44).
Mesmo em dificuldades financeiras, o Taniguchi manteve envolvimento
com o conhecimento ocidental, com a filosofia de Arthur Schopenhauer, de
George Hegel e de Willian James e com a literatura de Oscar Wilde. Nesse
momento tomou conhecimento de correntes religiosas norte americanas, o
"New Thought”
54
, além do hipnotismo e do espiritismo. O envolvimento com a
religiosidade se torna maior quando Taniguchi se tornou membro de uma das
primeiras novas religiões japonesas, a Ômotokyô, onde escreveu alguns textos
e tamm teve a oportunidade de ampliar seu conhecimento sobre o budismo.
Sua permanência nesse grupo religioso findou em 1921, quando a Ômotokyô
passou a sofrer, assim como algumas outras novas religiões, perseguições por
parte do governo nipônico. Posteriormente, o autor aprofundou seus estudos
sobre o cristianismo e a “Ciência Cristã”
55
(MAEYAMA, 1967, p.44).
Em fins de 1929, época que havia concebido seu único filho,
Taniguchi vivenciou as primeiras revelações inspirados nas leituras religiosas
feitas anteriormente e que constituíram o arcabouço doutrinário da nova fé:
Matéria não existe, o corpo não existe, nem existe alma, o único que
existe é Jissô. Jissô é Deus. Apenas Deus existe. O espírito de Deus
e sua manifestação é a única realidade. Isso é Jissô (TANIGUCHI
Apud: MAEYAMA, 1967, p.45)
56
.
53
O envolvimento com o mundo acadêmico, segundo Maeyama, é uma exceção entre a maior
parte dos fundadores das Novas Religiões Japonesas (MAEYMA, 1967, p.43).
54
Corrente mística que defendia a primazia da mente sobre o corpo, do espírito sobre a
matéria. Seu maior representante foi Fewick Holmes, autor da obra “A lei da Mente em Ação”
(DAVIS, 1986, p.26).
55
Corrente mística estadunidense do início do século XX que associa o pensamento religioso à
ciência.
56
Grifo nosso.
89
Posteriormente, Taniguchi se chamado à difusão de sua nova
doutrina, encarada como capaz de solucionar os males do mundo
contemporâneo:
Levanto-me e coloco-me diante da humanidade, erguendo alto a
chama da Verdade. Tornou-se inevitável levantar-me. Amigos e
companheiros, venham aderir a mim. A humanidade encontra-se
agora diante do perigo. Variadas formas de miséria avançam sobre a
humanidade, que é arrastada como um pequeno barco prestes a ser
tragado por ondas bravias. Hesitei-me em levantar e tornar-me um
líder, pois temia ser acusado de presunçoso. Queria permanecer
sempre humilde como um simples perseguidor da Verdade. Porém, o
desejo de permanecer na humildade parece-me tentação para levar
uma vida sossegada. Preciso vencer essa tentação e salvar a
humanidade. Preciso salvar a humanidade como toda chama que
possuo. Por menor que seja a minha chama, não deixarei de iluminar
o caminho que a humanidade deve seguir. É a chama da verdade
que desceu dos céus. É chama ardente. Toquem em mim (...)
(Revista Seicho-no-Ie, 1993, p.4)
.
No final de março de 1930, Taniguchi inicia a difusão religiosa através
da revista Seicho-no-Ie e posteriormente através de vários livros,
especialmente a coleção Seimei no Jissô (A Verdade da Vida). Com o
surgimento e aumento de adeptos, Taniguchi se transfere para a capital,
Tóquio, em 1934 e registra a SNI como religião em 1940. Nesse período, o
fundador da SNI cuidou de estreitar seus laços com o “tenoísmoafastando a
possibilidade de perseguição sofrida por outros grupos religiosos. Sobre esse
período e a composição ideológica do “Xintoísmo de Estado” e que influenciou
a utensilagem doutrinária de Taniguchi, nos esclarece Renato Ortiz:
“A „esfera pública‟, construída em torno do Estado nacional foi, desde
a revolução Meiji, trabalhada pelos valores de piedade filial, respeito
à autoridade, conformismo às regras estabelecidas (o culto ao
Imperador antes da derrota de 1945; a submissão à autoridade sem
questionamento por parte dos indivíduos (ORTIZ, 2001, p.10)
57
.
57
Em sua obra dedicada à cultura japonesa Ortiz anota sobre a importância do confucionismo
japonês para a elaboração do Xintoísmo de Estado. Segundo o autor, o governo imperial
retoma as noções de lealdade e disciplina da tradição confucionista e os transfere para o
90
Maeyama anota que após o término da guerra, Taniguchi buscou
enfatizar a capacidade de adaptação ao novo mundo tentando acompanhar os
rumos democráticos que o Japão seguia. Os princípios cristãos, inclusive,
passaram a ocupar uma posição de destaque dentro da doutrina (MAEYAMA,
1967, p. 47).
FIGURA 02 MASAHARU TANIGUCHI
58
Segundo Ediléia Diniz, Taniguchi, mesmo mantendo ainda elementos
da ideologia pré-guerra, promove mudanças nas estratégias de difusão de sua
doutrina com o objetivo de ampliar o número de acólitos. Várias viagens feitas
ao exterior deram forma ao “Movimento pela paz Mundial” promovido pela SNI.
A doutrina busca se mundializar e atingir o blico não japonês. Em viagens
feitas aos Estados Unidos, Taniguchi se aproximou de vários grupos religiosos,
especialmente da Ciência Cristãe do “New thought”, conseguindo o respeito
de várias lideranças religiosas mundo a fora. Na Europa, Taniguchi conseguiu
domínio da esfera pública. A lealdade e a disciplina constituem a base ética no confucionismo,
ajustando os indivíduos e os estratos dentro de sua concepção de harmonia celeste e social.
Essas virtudes éticas seriam exitosas quando os sujeitos ocupassem a posição que lhes é
cabida, vinculando-se ao bem estar comum e à ordem dirigida pelo Imperador (ORTIZ, 2000, p.
75-76).
58
Extraído de: http://br.geocities.com/logica_reencarnacao/seicho_no_ie.htm. Acesso em 10 de
julho de 2008.
91
audiência com o Papa e no Brasil foi recebido pelo Arcebispo Dom Jaime
mara (1894-1971), realizando, também, palestras no Rio de Janeiro, São
Paulo, Brasília e outras cidades (DINIZ, 2006, p. 43). Mais tarde, o legado
religioso-cultural de Masaharu Taniguchi, como sugere Diniz, se estendeu a
seus familiares, especialmente à sua esposa Teriko e a seu genro Seicho,
liderança mundial da Seicho-no-Ie após a morte do fundador, em 1975 (DINIZ,
2006, p.68)
59
.
A Seicho-no-Ie chega ao Brasil no ano de 1932, tendo como primeiros
difusores os irmãos Matsuda, Daijiro e Miyoshi. A princípio, a divulgação da
doutrina ocorria individualmente e sem nenhum suporte da sede central. Os
primeiros adeptos procuravam na doutrina a cura para doenças e seus
difusores faziam suas pregações a partir da livre interpretação dos textos
vindos do Japão. Durante a Segunda Guerra, as atividades religiosas sofrem
com pressões do governo brasileiro, sendo restabelecidas com o rmino da
guerra.
A partir de 1950 observamos a sistematização e a institucionalização
da doutrina graças à ligação direta com a sede central, expressa pelo envio de
Miyoshi Matsuda ao Japão para complementar seus estudos e a vinda para o
Brasil do instrutor Katsumi Tokuhisa. Em 1955 foi fundada a Academia de
Ascetismo de Ibiúna (SP) e na década seguinte, recorte do presente trabalho,
Masaharu Taniguchi veio ao Brasil. Esse momento marcou o surgimento do
Departamento de Divulgação em Português e conseqüentemente o
aprofundamento do proselitismo entre brasileiros
60
(ALBUQUERQUE, 1999,
p.21-23).
59
Isso marca o que Diniz chama de “Liderança Organizacional Familiar”. Conforme a autora, a
sucessão de Masaharu Taniguchi se deu mediante as prescrições do familismo japonês e o
princípio da primogenitura que confere ao filho (Seicho era o genro, mas herdeiro do carisma
de Masaharu) as responsabilidades na direção do ie. Acentuava-se a naturalidade e o exemplo
do familismo japonês (DINIZ, 2006, p.60-78). Para melhor apreciação sobre o carisma das
lideranças da Seicho-no-Ie ver a fabulosa dissertação de Mestrado de Ediléia Diniz: Carisma e
poder no discurso religioso: um estudo do legado de Masaharu Taniguchi A Seicho-no-Ie do
Brasil (2006, PUC-SP).
60
O Takashi Maeyama afirma que a SNI passou por quatro etapas: germinação e difusão
individual (1933 1941); colapso, ocasionado pela guerra e conseqüências desta que
abalaram a comunidade japonesa (1942 1949); estruturação e avanço da doutrina (1950
1960); diversificação das atividades e segunda fase de avanço (a partir de 1960) (MAEYAMA,
1967, p. 131-141).
92
Outros departamentos foram criados posteriormente a partir das
diretrizes da sede no Japão, dedicados a grupos etários, Shiyu-Sooa
(Associação dos Chefes de Família), e de gênero, Shirohato (Associação
Pomba Branca) (ALBUQUERQUE, 1999, p.62) com publicações específicas a
cada um desses subgrupos.
3.4.1 - A doutrina
A importância desse tópico deve ser entendida a partir da necessidade
de inventariar os principais traços da doutrina da SNI a fim de buscarmos os
referenciais responsáveis pelo processo de tradução e ressemantização das
representações de pertencimento ao Brasil promovido pela instituição. Não
devemos perder de vista o contexto da elaboração da doutrina de Taniguchi
devido à presença do centralismo imposto pelo “Nacionalismo de Estado”
japonês, absorvido pelo fundador. Cabe-nos mencionar que nossa relação com
a doutrina se deu a partir da leitura de periódicos e livros da Seicho-no-Ie, mas
principalmente, a partir do que nos apresenta os trabalhos de Sociologia das
Religiões, em especial, conforme ficou evidente, os estudos de Maeyama,
Albuquerque e Diniz. Contudo, concentramo-nos especialmente naqueles
elementos que se referem mais diretamente a nossos documentos e à
problemática de nosso trabalho, os meios para a construção da identidade
hifenizada e as representações alocadas nesse processo.
Taniguchi reproduz sua revelação: Não existe matéria, o que existe é
Jissô. Jissô é Deus”. A partir de suas rias referências religiosas,
especialmente o budismo e o xintoísmo, Taniguchi desenvolve sua cosmologia
baseado na existência de duas esferas, o Jissô (Mundo da Imagem
Verdadeira) e outra esfera de teor ilusório, sem substância, que seria o mundo
dos sentidos ou dos fenômenos. O Jissô é a essência divina de Deus e está
presente em toda Sua criação. De outro lado, o mundo dos sentidos é uma
projeção distorcida que temos da realidade diretamente proporcional a nosso
afastamento do Mundo da Imagem Verdadeira. Semelhantemente a alguns
93
princípios do budismo, Taniguchi define um dualismo em torno de um mundo
metafísico imune às casualidades que marcam o impermanente mundo dos
sentidos.
Nosso distanciamento da Imagem Verdadeira faz com que surjam as
impressões falsas que temos da realidade e, em ultima instância, a existência
de todo problema na vida das pessoas, de doenças a problemas familiares e,
até mesmo, a morte. É notório nos textos apologéticos do fundador falas que
neguem inclusive a existência de doenças, sempre entendidas como projeção
ilusória da mente que se distanciou da consubstancia com o Jissô. O adepto da
Seicho-no-Ie deve despertar para o Jissô como forma de se afastar das ilusões
desse mundo:
Ver a perfeição Jissô eis o caminho para se livrar de todas as
infelicidades. Jissô é o aspecto verdadeiro, é o aspecto tal qual foi
criado por Deus. Existem no homem o aspecto verdadeiro e o
aspecto aparente. Aquilo que é visto pelos olhos carnais é o
fenômeno, isto é, a imagem aparente que se modifica conforme o
ângulo pelo qual é visto. É, portanto, o aspecto aparente. Seja qual
for o aspecto aparente de uma pessoa, esse não é seu Jissô. (...) No
mundo do fenômeno reflete-se o estado mental daquele que o vê.
Por isso, a felicidade ou infelicidade de uma pessoa depende da
forma como ela vê as coisas. Vendo o homem como realidade
espiritual, como filho de Deus, como originariamente perfeito e
reverenciando-se mutuamente, surgirão um mundo perfeito e
homens perfeitos exatamente como foram vistos (TANIGUCHI
Apud: Albuquerque, 1999, p.36).
O homem verdadeiro” desperta quando seu Jissô é manifesto. Nas
revistas difundidas pela SNI são comuns relatos de cura graças à consciência
da verdadeira natureza humana. Aliás, desde sua fundação no Japão, a cura é
uma das primeiras manifestações da revelação do Jissô na vida das pessoas:
Conscientize que todos são filhos de Deus (...) Aprofunde a
conscientização da Natureza Divina, expressando isso em palavras.
O ser humano consegue agir realmente como um Filho de Deus
quando conscientiza sua Natureza Divina, expressando isso em
palavras (...) Pode um filho de Deus sentir temor? Pode um filho de
94
Deus deixar-se abater pelas vicissitudes da vida? Pode um Filho de
Deus deixar-se vencer pelas doenças? A resposta é: NÃO. Se,
nesse momento, você esenfrentando dificuldades ou doenças, é
porque estão brotando agora as sementes que você havia plantado
no „mundo da mente‟, no passado, quando ainda não tinha
conscientizado sua Natureza Divina (TANIGUCHI, 1989, p.50).
Os textos de Taniguchi trazem sempre citações dos sistemas
religiosos dos quais se apropria e tamm descobertas científicas que atestam
o papel do psiquismo na manutenção de uma vida serena. Notamos que a idéia
de que a mente rege o corpo e que a auto-sugestão ancorada na idéia de que
somos filhos de Deus e participantes de sua natureza imutável e incorrupta, o
Jissô, permite a superação de todos os males e da idéia de que o homem é
pecador. A mentalização é um importante elemento da doutrina através do ato
constante de auto-sugestão
61
.
Os textos do fundador trazem sempre referências religiosas diversas,
caracterizando o hibridismo da doutrina. São comuns passagens retiradas do
budismo, xintoísmo e cristianismo, usados sempre para reforçar seu caráter
universal e a idéia da existência do imaculado Mundo da Imagem Verdadeira
62
.
O mbolo da Seicho-no-Ie, segundo Seicho Taniguchi, genro e vice-
presidente até a morte de da Masaharu Taniguchi, é uma referência à
utensilagem religiosa da doutrina que reúne a essência das grandes religiões
mundiais.
61
Nossas experiências, como anota Albuquerque, são explicadas como manifestação da
mente. Em casos de doença, miséria e morte, a mente es distante da verdadeira natureza do
Jissô (ALBUQUERQUE, 1999, p.36).
62
No “credo da Seicho-no-Ie” lê se o seguinte: “Nós acreditamos que o padroeiro da salvação é
Deus (ou Buda), embora varie sua denominação segundo cada povo e cada religião”
(TANIGUCHI, M. e TANIGUCHI, S. 1999, p.115-116).
95
Figura 03: Logotipo da Seicho-no-Ie
63
O símbolo enfatiza a Seicho-no-Ie enquanto expressão religiosa maior
que alberga a essência das principais religiões:
O emblema da Seicho-no-Ie traz os mbolos das três grandes
religiões do mundo Cristianismo, Budismo e Xintoísmo para
exprimir a unicidade da essência dos ensinamentos religiosos: todas
as religiões contêm na essência uma única Verdade. E a missão da
Seicho-no-Ie é transmitir essa Verdade única, vivificando e
esclarecendo os ensinamentos tanto de Cristo quanto de Buda ou do
Xintoísmo. Estes são os significados que encerra o emblema da
Seicho-no-Ie (TANIGUCHI Apud: DINIZ, 2006, p.49).
A via para a superação do mundo do fenômeno é a auto-sugestão,
proporcionada especialmente pelo método de meditação Shinsokan. No Sutra
Kanro no Houu (A chuva Nectária das Doutrinas Sagradas), Taniguchi afirma
que a conscientização mediante a prática meditativa nos permite superar o
estado físico desse mundo, a sombra percebida por nossa alma:
63
DINIZ, 2006, p.49.
96
Tudo é espírito e alma. Nada que seja formado pela matéria. A
matéria é apenas a sombra da alma e, julgá-la verdadeira, vendo a
sombra, é ilusão (TANIGUCHI Apud: MAEYAMA, 1967,
p.52).
A aceitação da verdadeira essência do homem é suficiente para a
superação do males, da concepção do pecado e mesmo da doutrina do carma,
que confere à vida, no presente, penalidades cometidas em vidas anteriores.
Outro ponto a ser destacado é a importância do culto aos antepassados. O
culto aos mortos e a crença de que a não realização devida desse pode trazer
malefícios à vida, é uma herança do xintoísmo
64
Segundo Maeyama, o Deus fundamental de Taniguchi é expresso pelo
Mioyagami, manifestação de um tipo de trindade composta por Ame no
Minakanuchi no Kami, segundo a mitologia japonesa a primeira divindade a se
revelar, Amaterasu, deidade solar maior do xintoísmo, e o Tennô, o Imperador
japonês, primogênito de Amaterasu e também sua personificação (MAEYAMA,
1967, p.56). Apesar de não ser uma recorrência no período posterior à Guerra,
Taniguchi afirma que o dever de todos cristãos é cultuar o Mioyagami,
deixando claro que é do Japão que provm a sustentação espiritual do
mundo
65
.O ponto mais importante do conjunto doutrinário de Taniguchi diz
respeito ao centro do universo ou ao “princípio do qual todos os seres
convergem para o centro”, Chûshin Kiitsu (MAEYAMA, 1967, p.58). Esse
princípio é a manifestação divina impressa no Jissô. O centro é o fundamento
imutável que sustenta toda Terra. Provêm desse princípio a crença da mitologia
do “Xintoísmo de Estado”, que trata o Japão e o Imperador como eixo de
sustentação da vida:
64
O xintoísmo é talvez a mais antiga religião do Japão. Em linhas gerais, cultua-se vários Kami,
deidades que regem o universo e as forças da natureza. Também é comum o culto aos
antepassados em busca de uma vida melhor para os indivíduos e para sua comunidade
(GAARDER, 2006, p.82-86).
65
Maeyama afirma que Deus ainda se manifesta a partir da crença popular em Sumiyoshi no
Ookami, e também através da imagem cristã de um Deus de barba branca. O Imperador,
contudo, é identificado como “Rei do Reis”, montado em um cavalo branco conforme o
Apocalipse da Bíblia (MAYEMA, 1967, p.56-57).
97
O centro é a fonte, é o fundamento donde se originam e convergem
todas as coisas, e que, uma vez controladas segundo as exigências
desse centro, surgirá então uma perfeita ordem universal;
desaparecerão as contradições de cada nação e finalmente surgirá o
fenômeno de uma vida real (TANIGUCHI Apud: MAEYAMA,
1967, p.58).
As falas de Taniguchi estão em sintonia com as prescrições adotadas
pelo governo japonês que subsistiu até 1945. Por essa razão, a SNI não foi
perseguida como outras novas religiões japonesas. O Chûshin Kiitsu influi em
todo sistema moral, manifestando-se especialmente no princípio do Oyabun
Kobun, que, como foi dito anteriormente, prescrevia a obediência às
autoridades tanto no âmbito privado quanto no âmbito público, na política e no
trabalho. As idiossincrasias individuais e qualquer outro tipo de oposição ao
corpo harmônico, seja a família (ie), a empresa ou o Estado, é um ato de
desestabilidade que conspira contra a cosmologia celeste manifesta no Jissô.
O Japão é o centro do poder imperial para onde deve convergir todo
esforço coletivo em nome da harmonia nacional. Cada um ocupa a “posição
que lhe é devidadentro das esferas relacionamentais em que estão inseridos
em nome da harmonia: o filho obedece ao pai, o trabalhador ao patrão, a
mulher ao homem e todos ao Imperador, a pedra angular do nacionalismo
nipônico, em nome do equilíbrio celestial.
3.5 A cooperação e o Autêntico Paraíso”: ressemantização e identidade
hifenizada.
A SNI fora trazido pelos imigrantes para o Brasil na mesma cada de
sua fundação, apesar da pouca difusão, como já dissemos. Seus cultos eram
realizados na casa dos próprios fiéis em língua japonesa. O semanário da SNI
teria chegado às mãos do Sr. Katsuzô Tanigaki, morado de Lins (PR) e a partir
de então foi importada periodicamente. Em 1932, o Sr. Hisae Sakiyama,
98
residente no Estado do Amazonas, adquiriu o primeiro volume da obra balizar
da doutrina, “A verdade da Vida” (Seimei no Jisso) e com isso formou um grupo
de estudos em sua região. De qualquer forma, a religiosidade japonesa não
cativava os imigrantes naquele momento. Somente após a Segunda Guerra
Mundial que a doutrina de Taniguchi ganhou vigor entre imigrantes e
descendentes. Diante da crise de orientação manifesta no conflito entre
“vitoristas” e “derrotistas”, a SNI teve o papel de pacificadora servindo de
intermediária na conversação entre os dois grupos (MÓDULO I DE ESTUDO
DA SEICHO NO IE, 4ª aula Unidade A, S/D, p.22).
Leila Albuquerque destaca o papel dos irmãos Miyoshi e Daijiro
Matsuda, residentes próximos a Duartina (SP) para a consolidação da doutrina
de Taniguchi no Brasil. Segunda a autora, Daijiro teria se recuperado de uma
enfermidade depois de ter lido “A Verdade da Vida” e junto com o irmão se
comunica com a sede japonesa para obter a assinatura da revista Seicho-no-
Ie. Os irmãos iniciaram a propagação da religião realçando seu aspecto
terapêutico entre imigrantes doentes, atraindo a atenção de imigrantes de Gália
e Duartina. Em 1934, o movimento disseminava-se na região noroeste de São
Paulo e na alta paulista. Contudo, as atividades nesse momento não contavam
ainda com a supervisão da sede central no Japão e nem com unidade
institucional. Diamantina e Gália se tornaram o centro de atividades dos
leitores-adeptos da doutrina de Taniguchi (ALBUQUERQUE, 1999, p.21).
Durante a guerra, as atividades religiosas se rarefizeram devido a
eventuais perseguições do governo
66
. Em 1946, as atividades foram
restabelecidas seguindo o movimento migratório dos japoneses rumo à cidade
de São Paulo. A partir de 1950 iniciou-se o avanço significativo da doutrina
através da revista Mustsumi (Harmonia), responsável por extinguir as cismas
dentro da colônia e fortalecer a unidade do grupo religioso. Em 1951, a SNI
brasileira foi reconhecida pela sede japonesa e no ano seguinte chegou ao
Brasil um membro da sede central, Katsumi Tokuhisa, que de julho a outubro
66
Maeyama nos apresenta relatos em que as reuniões familiares, ocorridas em secreto devido
às perseguições, eram vistas como uma espécie de apoio espiritual para seus membros. O
autor ainda anota que alguns exemplares da revista “A Verdade da Vida” foram apreendidos
pelo governo brasileiro (MEAYMA, 1967, p.136).
99
percorre os núcleos paulistas cuidando de unificar os vários grupos
existentes
67
.
Ainda em 1952, foi estabelecida oficialmente a Sociedade Religiosa
Seicho-no-Ie do Brasil, quando foram habilitados 39 pregadores regionais e se
deu a viagem de Miyoshi Matsuda ao Japão a fim de maior treinamento. Ao
retornar, Matsuda adquire o título de pregador residente” e a orientação da
sede no Japão se intensifica. Em 1955, foi fundada a Academia de Ascetismo
para Treinamento, em Ibiúna, fornecendo sustentação para a instalação da
Associação dos Moços da Seicho-no-Ie. No ano seguinte se realizou o primeiro
Congresso Nacional da Associação de Senhoras (Shirohato-kai) e o genro do
fundador e vice-presidente da Seicho-no-Ie, Seicho Tanguchi, visita o Brasil
habilitando mais 85 pregadores. A partir de então, anota Diniz, o alcance da
doutrina ultrapassa o aspecto curativo e inicia-se a pregação sistemática
(DINIZ, 1999, p. 24).
Na etapa seguinte, a partir da década de 1960, momento de nosso
recorte, a SNI inicia suas atividades de pregação fora da colônia. Até 1966 a
quantidade de adeptos passava de 15.000 pessoas, entre eles mulheres e
jovens, o que evidencia a diversificação da doutrinação para além dos chefes
de família, como se fazia outrora (ALBUQUERQUE, 1999, p.22-23).
Em 1963, Masaharu Taniguchi veio ao Brasil e passa três meses
dando palestras e cursos sobre sua doutrina. Surgiam os primeiros adeptos
não-japoneses, ligados especialmente ao Espiritismo Kardecista e à Teosofia,
tornando-se necessário organizar reuniões que atendiam esse novo público.
Em 1966, quando criado o Departamento de Divulgação em Português, foi
publicada a revista em língua portuguesa Acendedor (ALBUQUERQUE, 1999,
p.23).
O trabalho de Leila Albuquerque, sob o prisma da Sociologia das
Religiões, trata especialmente da adesão do blico brasileiro à doutrina da
SNI, resultado de uma nova conjuntura sócio-cultrual do Brasil. As divulgações
em português são apresentadas como resposta à necessidade de atingir os
67
Maeyama anota a existência de grupos dissensões entre os adeptos da SNI (Maeyama,
1967, p.192).
100
brasileiros, prescrição de Masaharu Taniguchi. Sem negar o esclarecedor e
essencial trabalho de Albuquerque, optamos por uma análise que, ao invés de
tratar as publicações em língua portuguesa como artifício de difusão, toma a
difusão da doutrina enquanto artifício cultural a favor da integração dos
japoneses e seus descentes à sociedade brasileira e a confecção de uma das
variáveis da identidade nipo-brasileira. Entendemos que a adesão do público
brasileiro implica na confirmação a percepção de que sagrado japonês
enquanto resposta às necessidades dos povos de todo mundo. Isso é, a
doutrina de Taniguchi, eivada das prescrições moralistas do Japão pré-guerra,
se torna a solução para as dificuldades de todos os povos, reforçando assim
representações que outrora norteavam a identidade étnica da colônia, em
especial o familismo e seus desdobramentos na esfera pública
68
. A adesão de
brasileiros significa o reforço e ou reabilitação de elementos da cultura
japonesa servindo também como favorecedores do envolvimento com a
sociedade brasileira e seus critérios de pertencimento.
É importante mencionar que o desejo pelo envolvimento com a
sociedade nacional naquele momento ainda esbarrava em prescrições morais
presentes desde o início da imigração. O casamento entre japoneses e ou
nisseis com brasileiros (Gaijin) ainda era um tabu. Na verdade, segundo o
próprio Masaharu Taniguchi a miscigenação étnica o era positiva. Um
boletim da Associação dos Moços nos traz algumas palavras de Taniguchi
sobre a miscigenação e sua conseqüência para o Brasil:
(...) uma vez que a feição seja a de japonês, não se aconselha
tornar-se brasileiro, perdendo todas as suas características próprias,
a razão de ser filho de japonês estaria no elevado espírito moral e
construtivo.
Caros irmãos, Mestre Masaharu Taniguchi proferiu em altos brados o
seguinte ensinamento:
„A pobreza do nordeste deve-se ao clima e temperatura lá dominante,
e também ao tipo de solo. Mas, outro fator de grande importância é a
68
Como dissemos anteriormente, as novas religiões buscam se universalizar, o que é evidente
também no Movimento Pela Paz Mundial promovido pela SNI.
101
perda da pureza de sangue do povo, com a excessiva miscigenação,
entre a raça branca e preta, observando entre os habitantes daquela
região. A característica do povo é uma dádiva de Deus. Todos os
seres devem possuir suas característica própria (...) Observem que
até a glicínia abre as flores de glicínia e as cerejeiras o flor de
cerejeira. É vontade de Deus, que todo o povo japonês mantenha
pureza de sangue, pois, isso seria tamm uma forma de ser para o
bem do Brasil. O fato de encontrar 600.000 japoneses no Brasil, na
outra face da terra, é a manifestação da vontade inestimável de Deus‟
(MAEYAMA, 1967, p.277).
A opinião contrária à miscigenação é encarada como um desejo de
cooperar com o Brasil, para se evitar o que Taniguchi entendia ser uma das
razões para o subdesenvolvimento da região Nordeste a “cooperação” e o
“agradecimento” são tópicos comuns nas publicações e reuniões da Seicho-no-
Ie.
3.5.1 - A ressemantização e a “Cooperação”
Compete-nos agora tratar com mais clareza sobre as estratégias
adotadas pela SNI na produção de sua variável da identidade hifenizada nipo-
brasileira. A partir de então inquirimos sobre quais as representações, de
ambas as culturas, japonesa e brasileira, foram alocadas nesse processo.
Os líderes, à frente da Associação de Moços da SNI, tratam em seus
textos da condição dos japoneses naquele novo contexto enquanto
contribuidores da ordem social desejada pela ideologia do Estado Militar. A
“Doutrina de Segurança Nacional”, eixo ideológico do Estado Militar (1964-
1985), prescrevia a necessidade de extirpar qualquer ameaça à ordem
almejada. Os militares, representantes da elite nacional, implantaram um
aparelho administrativo consoante à política anticomunista desenvolvida
durante a Guerra Fria pelos Estados Unidos. Estabeleceram uma ordem
político-administrativa que estigmatizava qualquer comportamento dissonante
102
ou de contestação com a marca da subversão. O pensamento contrário à
ideologia dos militares tornou-se sinônimo de comunismo e ameaça
69
.
Os militares cuidaram de se apresentar como colaboradores do
inevitável crescimento que o país, por sua grandeza territorial e riqueza natural,
trilhada desde seus primórdios. Porém, o perigo comunista ameaçava o destino
manifesto brasileiro e, por isso, da intervenção militar; os militares, presentes
em vários momentos da história republicana do Brasil, se apresentaram como
mantedores da ordem que deveria recolocar o Brasil na trilha do
desenvolvimento inevitável. Representações, tais como a “grandeza territorial”,
a “riqueza nacional”, o “congraçamento étnico” e o inevitável desenvolvimento
do país que foi denominado de nação do futuro”, fazem parte da tradição
nacionalista gestada desde o século XIX e fortalecida durante o período
republicano. Constituem o que a filósofa Marilene Cha chamou de mitos
fundacionais” que sustentavam a “comunidade imaginária” brasileira (Chauí,
2006, p. 09-10).
O mito fundador instituí um vínculo interno com um passado enquanto
origem essencial que tem seus desdobramentos no presente e no futuro. Chauí
afirma que o mito fundador não cessa de encontrar novos meios para exprimir-
se, novas linguagens, valores e idéias (CHAUÍ, 2006, p.09). O mito fundacional
sacraliza a história tornando-a providencial, o Brasil é “terra abençoada por
Deus”. O passado original, do tipo edênico relatado pelos conquistadores e,
posteriormente, enfatizado por intelectuais nacionalistas, assegura um
continuun temporal que se desdobra no porvir, tornando o Brasil “um país do
futuro” (CHAUÍ, 2006, p.75).
Os símbolos que constituíam nossa “comunidade imaginada” eram
reforçados a partir do ideal de progresso, especialmente econômico. Em
oposição, a ameaça comunista era sempre enfatizada dando vazão a uma
percepção de perigo iminente que demandava constante vigilância. As
agencias de propaganda oficial retomavam o pensamento otimista referente ao
desenvolvimento do país e cuidam de apresentar os militares como
69
A “Doutrina de Segurança Nacional” se desenvolveu a partir da Escola Superior de Guerra
(ESG), criada em 1949. A partir dos estudos desenvolvidos pela instituição, foram traçados os
meios para garantir a presença militar no interior do aparelho nacional (BORGES, 2003, p.36).
103
contribuidores desse processo. A ameaça externa, o comunismo internacional,
e suas reverberações no plano nacional, deveriam ser eliminadas porque
conspiravam contra a idéia de uma nação em harmonia, tal como um corpo
saudável, onde cada um deveria fazer sua parte colaborando para o
desenvolvimento da nação como um todo.
A propaganda oficial retoma da tradição nacional o “otimismo” que,
segundo Carlo Fico, implicava na confiança da inserção do Brasil no rol das
grandes nações do primeiro mundo. Para Fico, o “otimismo” era uma corrente
de pensamento ufanista que se desenvolveu paralelo ao pensamento
“pessimista” especialmente no século XX. O pensamento foi, portanto,
apropriado e adaptado pelos militares à conjuntura política da Guerra Fria
(FICO s/d, p.44). O “otimismose configura a partir dos interesses da Doutrina
de Segurança Nacional em combater o inimigo comunista que durante a
Guerra Fria era concebido como ameaça à civilização cristã ocidental.
O Tenente Coronel Enjolras José de Castro Camargo, em uma obra
em que debate sobre o sentimento patriótico, entende que o patriotismo,
desdobramento do civismo, e o caráter são aspectos da existência humana
vinculados à esfera divina. Sua obra era consoante ao pensamento da Doutrina
de Segurança Nacional e manifestava os desdobramentos desta no currículo
educacional brasileiro. Para Castro e Camargo o patriotismo era um sentimento
supremo de amor ao país:
(...) Patriotismo (grifo do autor) é amor à tria e às suas tradições,
como espírito de renúncia. Não é amor platônico, ou maternal, ou
filial, ou qualquer outro. É o amor total, na sua mais alta expressão
ou significado. Amar com capacidade de não desejar nada em troca.
Quem ama pede e não o julga. Ajuda e compreende. Esse amor se
estende:
- Aos antepassados, pelo amor à terra onde viveram e repousam,
pelo conhecimento do patrimônio moral e intelectual que nos
legaram e pela disposição de continuarmos sua obra, enriquecendo-
a.
104
- Aos demais membros da sociedade contemporânea, por serem
pessoas provenientes dos mesmos ascendentes, educadas nos
mesmo costumes e unidas por laços de recordações comuns e
interesses afins.
(...) O homem cívico tem espírito de iniciativa e responsabilidade,
tem espírito de justiça, é ajustado às boas normas de convivência,
pratica os preceitos éticos que regem o dever em todas as
acepções, tem participação ativa nas atividades da vida comunitária,
respeita as leis, é leal nas atitudes, trata com respeit a família, ama
o trabalho e aproveita sadiamente o lazer.
Possui, enfim, todos os requisitos e sentimentos que dignificam o
indivíduo na vida em sociedade na família, na escola, na
profissão, na Igreja, na Pátria e na humanidade (CAMARGO,
1970, p. 18-19).
A máquina propagandista do Estado Militar, junto a outros centros
discursivos, como a ala conservadora da Igreja Católica, enfatizou a ameaça
do inimigo interno aos bons valores e ao progresso do Brasil. Os militares se
projetavam enquanto defensores da civilização cristã-ocidental e responsáveis
por “resgatar o desejo secular do Brasil de se tornar uma potência mundial
(SERBIN Apud: BORGES, 2003, p.36-37). Tal sentimento se apoiou em uma
conjuntura econômica favorável ao Brasil e que mais tarde ficou conhecido
como milagre brasileiro”. A propaganda oficial analisada por Fico manifesta o
discurso ufanista de nossa tradição, enfatizando a força e benevolência do
povo brasileiro, os benefícios da miscigenação, o valor do trabalho e da nação
enquanto conjunto social coeso e cooperante entre si em nome do
desenvolvimento do país (SILVA, S/D, p.01). A Aerp (Assessoria Especial de
Relações Públicas 1968) cuidou de construir a imagem dos militares
enquanto moralizadores de uma sociedade à beira da corrupção e do
comunismo perturbador da moral. A agência buscava com isso, fomentar o
civismo entre os brasileiros e o desejo de cooperação através do trabalho, em
oposição ao classismo perturbador da ordem.
105
É na ordem deste discurso que a SNI se insere e se movimenta e que
sua variável da “nipo-brasilidade” se configura. Nas primeiras edições do
periódico Acendedor, o proeminente líder e precursor da doutrina no Brasil,
Miyoshi Matsuda, e o pregador Shiguemi Murakami, definem os propósitos da
instituição enquanto colaboradora da ordem nacional, afirmando tamm que a
religião de Masaharu Taniguchi é uma forma de retribuição dos japoneses ao
país. Diz-nos Matsuda sobre a retribuição da doutrina japonesa ao povo
brasileiro:
Devemos agradecer de toda alma,à dedicação deste nobre país em
que, apesar de sermos estrangeiros pudemo-nos, sem nenhuma
humilhação, sentir seguros como se estivéssemos na nossa própria
terra. Ao estarmos sob o cuidado desta nação, nasceram os nossos
filhos, por sinal brasileiros a despeito de serem filhos de
japoneses.[...] O movimento do mestre Dr. Masaharu Taniguchi é o
movimento de iluminação de toda humanidade [...] Nós decidimos,
como retribuição de favor ao Brasil e ao seu povo, progredi-los,
tornado-os felizes um por um, transmitindo o ensinamento que faz a
humanidade se reconciliar. (ACENDEDOR, 1966, nº1, p16).
A retribuição se apresenta como traço da hifenização. Ao pretender
“progredir o povo brasileiro”, Matsuda se ancora na posição de que a SNI é
uma dádiva japonesa para o Brasil por trazer em seu bojo o verdadeiro ethos
de dedicação ao país. Ainda no mesmo ano, Murakami afirma a concordância
com o golpe e o repúdio por noções que contrariariam a espiritualidade e a
harmonia do “centro ordenador” (Chûshin Kiitsu):
Com a revolução de março de 1964, foram dada decisões efetivas à
política da corrupção, que até então era a célula cancerosa da
nação, e para a realização da idéia revolucionária o Governo Castelo
Branco decretou o Ato Institucional a fim de restaurar a paz eterna
no Brasil. Nós os membros da Associação dos Moços da Seicho-no-
Ie do Brasil, com os profundos respeitos, prometemos colaborar para
a concretização integral do ideal do governo. [...] O ideal do Brasil,
penso eu que seja o de uma Nação onde predomine a paz, como é
simbolizado nas palavras „Ordem e Progresso‟. [...] A vontade de
Deus, portando, é que todos vivam em perfeita harmonia, amando e
ajudando os próximos mutuamente. Desta verdade surgirá uma
106
nação ideal de „Ordem e Progresso‟. Assim como não nasce luz de
uma escuridão, das idéias materialistas jamais surgirá um mundo
ideal. [...] Nós somos amantes eternos do Brasil. Amor não quer
dizer tirar dos outros e sim oferecer o que desejam. O que será que
o nosso querido Brasil busca? Penso não ser uma luta de partidos
buscando o poder, nem provocação de greves para o aumento do
salário. Creio que atualmente há necessidade de um espírito de
cooperação e unificação na consciência do povo em construir uma
nação perfeita, suportando todas as dificuldades e sofrimentos
(ACENDEDOR 1966, nº3, p. 41).
“Iluminação”, Progresso”, “Nação Ideal”, ou “tornar o Brasil um
verdadeiro paraíso”, são eixos temáticos das publicações durante o momento
de negociação com os símbolos nacionais. Representações de nossa
“comunidade imaginada” são retomadas nos textos. O congraçamento étnico,
por exemplo, define o Brasil como “Autêntico Paraíso”. Assim, o Brasil é a terra
que acolheu o povo japonês. Outras representações, que constituem o
“Otimismo” (FICO, 1997, p.40), relacionado ao progresso inexorável do Brasil,
também são tratadas nas publicações. A doutrina, defronte às representações
políticas daquele contexto, recorre à sua tradição para se inserir no discurso
nacionalista. É em seu espaço, enquanto “Zona de Contato” que as duas
tradições se sobrepõem e se articulam, que ocorre a tradução, elaborando o
arcabouço identitário àqueles que se inscreviam em dois mundos.
Ainda nesse sentido, Maeyama pontua que os atributos do Imperador,
centro da identidade étnica de outrora, são transferidos às instituições e
mbolos nacionais:
“O centro do Japão e do povo japonês é o Imperador [Tennô], e o
centro do mundo é o Japão; a iluminação do mundo vem do Japão e
do Imperador assim é interpretado. Os nisseis o filhos de
japoneses e são japoneses, portanto, veneram o Imperador e oram
„sejam gratos ao Imperador‟. Mas essa interpretação encontrou muita
oposição dos fiéis nisseis e não se adaptava para sua pregação entre
os brasileiros em geral, sendo „adaptado‟ o termo „ terra brasileira‟ (...)
Na verdade, muitos fiéis nisseis opinaram que aquele termo devia ser
substituído naturalmente por Presidente do Brasil, Costa e Silva, mas
devido à determinação da doutrina de que o „centro‟ é imutável, foi
apresentado a proposta de mudar para a bandeira nacional, ao invés
do presidente” (MAEYAMA, 1967, p. 276)
107
3.5.2 A ameaça comunista e o ideal de Ordem e Progresso
Marshall Sahlins trabalha a relação dialética, e não contraditória, entre
mudança e estrutura, presente em situações em que universos culturais
distintos entram em contato. O autor anota que as relações interculturais são
mediadas por referenciais historicamente construídos. O evento, entendido
enquanto novidade, mudança ou contingência, é vistos pelo “olho da tradição”,
o que permite a reprodução de elementos da estrutura cultural pré-existente.
Por outro lado, o evento promove alterações nessa estrutura ao introduzir o
contingente, promovendo novos arranjos, de forma que reprodução e mudança
são aspectos culturais imbricados. Significados culturais sobrecarregados pelo
mundo promoveriam reavaliações funcionais dos signos, produzindo
simultaneamente mudança e reprodução (SAHLINS, 1990, p. 174-176).
Em nosso plano, a sobrecarga se manifesta quando o nipo-
descendente se considera parte da comunidade nacional. A utensilagem
religiosa que até então servia como espaço contrastivo determinante da
identidade japonesa, se obrigada a reavaliar a funcionalidade dos signos e
do próprio contraste que a compõe atendendo às demandas externas. Nesse
espaço, a religião, que outrora delimitava a identidade nipônica, ou pelo menos
servia de espaço onde ele se sentia verdadeiramente japonês, se tornou
também um espaço de afirmação de brasilidade. Nesse caso, a novidade
então é se afirmar como brasileiro. A reprodução cultural implica em cambiar
com o contingente a partir de uma referência anteriormente dada. As
reavaliações decorrentes do contato aparecem como extensões lógicas dos
conceitos tradicionais (SAHLINS, 1990, p. 176).
Reproduzir não significa repetição, mas sim a adaptabilidade dos
sistemas culturais diante das contingências, elaborando novos referenciais que
amalgamam cosmologias. Nos dizeres de Sahlins, toda reprodução é um
alteração graças à assimilação de elementos empíricos (SAHLINS, 1990, p.
181). A SNI reproduziria então, ao considerar o governo militar brasileiro como
apto a promover a ordem nacional, o status cósmico do governo do “Xintoísmo
de Estado”, preconizando a idéia de um cidadão colaborador do crescimento
108
nacional e afastado de qualquer posição classista. Mesmo assim, a alteração
referencial, ser brasileiro, implica em uma nova forma de se relacionar com o
mundo.
Ao tomarmos a posição de Sahlins, entendemos que a identidade,
sempre fluída e cambiável do ponto de vista antropológico, busca formas de
reordenação responsáveis por uma narrativa que ignora o processo histórico e
se fia em um discurso essencialista. Notemos que os documentos tratam
sempre da contribuição japonesa promovida pela SNI, uma essência que é
apresentada como traço imutável dos japoneses e seus descendentes e que
serve de meio para o desenvolvimento do Brasil inclusive se adotados pelos
brasileiros. O progresso nacional, sempre enfatizado, é tratado como
obrigação de todos brasileiros e da SNI, que contribui com sua doutrina à
cooperação necessária defendida pela ideologia militar.
Stuart Hall busca definir as identidades para além da simples
dicotomia interno/externo e, em conseqüência desta, a dicotomia original/não
original. Hall entende que a cultura está sempre em situação dialógica e que
estratégias de afirmação e de poder fazem com que ocorram mbios que
atendam especialmente as minorias que, de alguma forma, se sentem
proscritas. Nesse sentido, o autor trabalha com o conceito “Zona de Contato”,
espaço responsável pelo mbio cultural e também de ressemantização
(HALL, 2006, p.31). Sob esse prisma é que entendemos a SNI, uma zona de
contado que favorece o cambio e a ressemantização cultural de maneira que a
traços da cultura brasileira, já rearranjados pelo Estado Militar, seja anexado à
utensilagem religiosa da doutrina com o objetivo de, ao mesmo tempo, evitar a
perca do sentimento de pertencimento ao grupo étnico japonês e manifestar o
sentimento de pertencimento ao Brasil.
Ser um japonês” não significa, portanto, possuir uma essência
nipônica, apesar de esta ser reforçada tanto pelo discurso étnico da colônia e
da SNI, quanto pelos que não são japoneses, nem se manter fiel a uma
tradição para se evitar a perca da originalidade. As contingências encaradas
pelo grupo étnico provocam mudanças nos critérios de niponicidade sem que
haja uma ruptura profunda com a identidade que possuíam antes. A “Zona de
109
Contato” se encarrega de reelaborar o significado, entendido em termos
derridarianos, de ser japonês a partir da necessidade de cooperação com o
Brasil.
Alguns dos documentos analisados recorrem à situações vividas pela
sociedade japonesa e servem como meios pedagógicos em favor das noções
de civismo, cooperação e de amor à pátria brasileira. Em seu artigo “Incito aos
Jovens Patriotas do Brasil”, onde tamm se encontra uma gravura em que
membros da SNI dão exemplares de sua revista aos bombeiros (gesto de
envolvimento cívico com o Brasil), Matsuda expõe umpico denominado “Veja
esta lamentável ignorância”:
(...) os novos educadores do Japão de após guerra dizem „amar o
Japão e estão negando a significativa mitologia japonesa, a
magnificente origem deste país, e o patriotismo de seu povo. E
ainda sendo japoneses, consideram-se um povo inferior e ocupando
um sublime cargo de educar as crianças, que serão os futuros
dirigentes da pátria, por si mesmo se rebaixam para um simples
operário. Pedindo o aumento de salário, ocasionaram manifestações
nas congestionadas ruas da cidade, dificultando ainda mais o
trânsito. Observando estes fatos temos que considerá-los como
pessoas desprovidas do senso comum, e não poderíamos dizer de
maneira alguma que são atitudes louváveis de amor à pátria (...)
(ACENDEDOR, 1966, Nº5, p. 40).
A SNI desenvolve um projeto educacional e doutrinário para o povo
brasileiro ancorado na doutrina de Taniguchi. Em nossa compreensão, a
passagem acima é um exemplo que contraria o patriotismo que deve ser
inculcado nas crianças nessa época os militares implantavam a disciplina de
Moral e Cívica com esse propósito. Atitudes de contestação o encaradas
como obstáculo ao progresso nacional. O caso japonês serve, por analogia, à
situação dos trabalhadores brasileiros e, especialmente, ao pensamento de
esquerda favorável às greves por melhoria de salários. A greve é entendida
pela Seicho-no-Ie como atitude que vai ao encontro do ideal de uma nação
harmoniosa. No esteio desses comentários, o vice-presidente Seicho
Taniguchi apresenta o professor enquanto sujeito que deve se afastar do
pensamento classista em nome de uma educação mais harmônica, entendido
110
no sentido cooperativista. Criticando uma convocação de greve feita pela
União Japonesa dos Professores (Nikkyoso), Seicho Taniguchi nos apresenta
o papel do professorado segundo esse grupo, de orientação socialista, e o
rebate a partir da doutrina da SNI:
(...) „ O professor é um operário que tem a escola como seu local de
trabalho. Como o professor sabe que o trabalho é a base
fundamental da sociedade, ele se orgulha de seu um operário.
Dentro da atual etapa histórica, a realização de uma nova sociedade
humana que traz a felicidade a todos, que respeita os direitos
humanos básicos, não em palavras, mas realmente utilizando
matérias primas e a ciência, é possível através da força da massa
operária que tem por centro a classe operária. O professor deverá
ter consciência do seu papel como um operário, viverá
vigorosamente o ideal do progresso histórico da humanidade e terá
como inimigo toda estagnação e reação”. O professor através do
movimento sindical, unir-secom todos professores e operários do
mundo. A união é realmente o ponto mais importante da étnica do
professor‟.
Este é claramente um compêndio ético que se baseia na vio
marxista de antagonismo de classes, e pela pedagogia dessa
espécie, serão fabricados „guerreiros mirins de conflitosque vêe no
mal da sociedade, da família, da nação e que mutuamente atacam
as falhas individuais.
Sendo assim, gostaria de finalmente aqui clamar:
- A ética suprema do educador não é em absoluto unir-se ao
operário. É unir-se a Deus, tornar-se um com Deus, observar e fazer
externar a natureza divina que se aloja em cada pessoa e unir-se
fortemente com a natureza divina que se aloja em toda humanidade
(ASCENDEDOR, 1968, Nº15, p.27-28).
Em outro artigo, publicado no Brasil em 1970, o próprio Masaharu
Taniguchi enfatiza a importância do sentimento patriótico para o
desenvolvimento espiritual de um povo. O carisma do fundador-profeta mais
uma vez reveste o patriotismo com a roupagem do sagrado. O carisma
religioso se apresenta como legitimador maior do patriotismo, visto que parte
do mentor espiritual da SNI. Em um de seus artigos publicados no Brasil no
final de 1970, o “mestre” Taniguchi apresenta a questão patriótica vivida por um
jovem estudante japonês mais um exemplo pedagógico:
111
Na escola, eu não aprendi o hino nacional, nunca o cantei. Entre nós
do terceiro ano do curso colegial, apesar de todos sermos pessoas
de uma mesma nação, são muitos os que desconhecem o hino
nacional. Eu, no entanto, desde que participei do seminário da
Seicho-no-Ie para ginasianos e agora durante esta conferência,
quando juntamente como prof. Taniguchi e todos os senhores, cantei
o hino nacional, nem sei expressar direito, mas senti (...) que bom ter
nascido aqui nessa terra! Quero muito bem a este meu país
(ACENDEDOR, 1970, Nº27, p.37)
70
.
A partir desses princípios, Shigemi Murakami, tomando o cristianismo
como referência, associa a luta por direitos ao materialismo. O líder se
posiciona a partir da dicotomia cristã luz (a doutrina da SNI) e trevas (a
imperfeição materialista):
Os materialistas e os comunistas sonham poder concretizar a paz
mundial por meio do materialismo e lutas, mas isso é uma tolice
como de quere conseguir luz por meio das trevas. Por que na põem
em ação os ensinamentos de Cristo e não mudam a concepção
humana? Realmente, é uma verdade dizer que não pode ver o reino
de Deus quem não nascer de novo (...) O movimento de iluminação
desenvolvido pela Seicho-no-Ie é a divulgação desta verdade que
diz ser o homem perfeito e imaculado filho de Deus.Para ser feliz, o
homem deverá partir do amor à própria família, à coletividade onde
pertence e à nação em que vive (...) Os assalariados terão
aumentos e promoções quando dedicarem `a firma onde trabalham
com afinco, como que estivessem fazendo um serviço próprio. Mas
quando for grande o número de empregados que somente insistem
no aumento salarial e que produzem pouco, a firma i ser
prejudicada, chegando a abrir falência e, conseqüentemente, todos
se acharão desempregados e infelizes. De maneira análoga, não
70
Nesse artigo notamos ainda desenhos onde jovens cantam o hino nacional tendo ao fundo o
símbolo da SNI e a bandeira do Brasil.
112
haverá a felicidade do povo se não amar a pátria e não cooperar
com a política nacional (ACENDEDOR, 1966, Nº5, p.44).
71
Notemos que a ameaça é apresentada em termos cristãos, como algo
que visa corromper a ordem divina. O Estado e o sentimento patriótico estão
associados a aspectos religiosos que outrora revestiam o governo nipônico
antes da Guerra e se encontram sintetizados no Reescrito Imperial (capítulo
01) Suas falas partem da conduta estabelecida pelo princípio do Oyabun
Kobun, que determina que cada um ocupe seu lugar e aja de acordo com as
atribuições predefinidas em nome da cooperação, seja na família, na empresa
ou na nação
72
.
A Seicho-no-Ie busca manifestar o Jissô na sociedade Brasileira. Um
novo critério de sacralidade, apresentado como contribuição japonesa ao
mundo, passa a investir o Estado brasileiro e se torna o meio maior do
envolvimento dos japoneses e seus descendentes com o Brasil. A harmonia é
a manifestação do Jissô, da esfera divina do Mundo da Imagem Verdadeira:
71
O materialismo é entendido pela SNI como premissa que define que tudo no mundo tem sua
origem a partir da matéria, entendido em termos de realidade objetiva. A doutrina da SNI
define que o Espírito precede a matéria, e que o amor e a sabedoria não podem ser
manifestações da simples matéria, mais provêm diretamente de Deus, presente em todos os
seres vivos graças ao inato Jissô (ASCENDEDOR, 1968, Nº14, P.24-25).
72
Poderíamos nos perguntar o que acontecia no Japão naquele momento, já que era da sede
japonesa que provinha a abominação maior ao pensamento de esquerda. Sem nos delongar,
ressurgia naquele momento teorias que enfatizam o espírito cooperativo do povo japonês,
entendido como uma essência cultural sui-generis daquele povo, definido pelo termo
Nihonjiron (teoria dos japoneses). Esse conjunto de saberes, retomados de princípios do
nacionalismo nipônico a partir da Era Meiji e na contramão do pensamento classista, definia
que o povo japonês tem como traço cultural a cooperação em qualquer esfera em que ele
estiver inserido. Essa essência era entendida como a responsável pelo surto de
desenvolvimento nacional verificado a partir das décadas de 1960-1970. Idiossincrasias
pessoais são vistas como malévolas para o progresso industrial e nacional (RONAN, 1997,
p.97-101). Portanto, seria razoável pensar que essas teorias são transplantadas pela SNI para
o Brasil servindo também de sustentáculo referencial para a constituição da identidade
hifenizada.
113
O mundo vivel, pleno de desgraças e sofrimentos, não é o mundo
Real (Jissô), ou o que realmente existe. Este mundo cheio de
desgraça é a sombra da mente do homem e não o Mundo Ideal,
criado pelo Deus real. O Mundo Real, criado pela infinita sabedoria
de Deus, pelo seu amor e vida, es repleto de harmonia eterna
(ACENDEDOR, 1969, Nº16, p.03).
Como foi dito anteriormente, o Estado Militar é o centro irradiador dos
critérios de patriotismo e civismo. Os elementos do discurso oficial são
associados pela SNI aos princípios do Chûchin Kiitsu e do Oyabun Kobun e o
avesso disso é o subversivo, o contrário do progresso brasileiro, os “elementos
indesejáveis”. Amor” e cooperação” são as bases morais que sustentam a
nação diante da “broca chamada comunismo”. Associando a nação a uma
árvore e a um corpo, Murakami define a importância de uma nova educação
afim da cooperação enquanto responsável pela produção de frutos, mantedora
da “Ordem e Progresso”:
Uma nação pode ser comparada a uma árvore. A vida do povo é
mantida com os seus frutos, todavia, se dei-la de amar, esquecer
de regrar e de adubar ( amor e cooperação), ela seatacada pela
broca chamada comunismo‟ ou „elementos indesejáveis‟. Não
haverá, assim, mais frutos para sanar a fome do povo.Ouvimos dizer
que no Brasil quem não rouba sai prejudicado, e que não adiantaria
uma só pessoa ser honesta. É realmente lastimável. E não obstante,
tais atos e tais pensamentos proliferam de cima a baixo, tal qual os
bacilos que tiram a vida dos homens sugando todos os nutritivos,
sem saberem que se acabar com o homem, ele pruriu não poderá
sobreviver. (...) E para realizar o ideal do Brasil „ORDEM E
PROGRESSO‟, é indispensável que haja uma reeducação do povo,
pois caso contrário mesmo que surjam eminentes políticos não
haveria progresso (ACENDEDOR, 1966, Nº05, p.45).
Ao imbricar os diferentes referencias culturais, a SNI constrói uma
variável da identidade hifenizada ancorada em princípios religiosos. O ideal de
“Ordem e Progresso” é a manifestação do Jissô e só seria possível estabelecer
esse estado com a eliminação de formas de pensamento e ação que
contrariam o espírito de cooperação defendido pela doutrina.
114
Um dos traços comuns às novas religiões japonesas é o otimismo. A
SNI manifesta esse sentimento a partir da consciência adquirida sobre o Jissô.
O elogio e o agradecimento constante são ações que provêm do espírito
desperto: O que está me influenciando agora é uma vibração que não é
minha, e como sou filho de Deus não fico triste nem pessimista. Meu coração
está alegre e feliz‟ (ASCENDEDOR, 1968, nº 14, p.09). Essa perspectiva
associa a alegria e otimismo à manifestação da verdadeira essência e, por
diferença, a tristeza e o pessimismo o manifestação da realidade ilusória, do
mundo do fenômeno. Notamos em outras passagens de nossos documentos a
necessidade do pensamento otimista para o desenvolvimento da vida,
inclusive na esfera pública, o que implicava em acreditar e cooperar com o
desenvolvimento nacional.
A idéia de cooperação ao Brasil, ancorada nesse sentimento de
otimismo religioso, é contrária ao pensamento crítico da época, tratado como
obstáculo à iluminação do povo brasileiro, um desvio do caminho espiritual
necessário ao desenvolvimento da pátria. Vivenciar o otimismo do Jissô parece
afastar qualquer perspectiva divergente do desenvolvimento brasileiro,
identificado pela Doutrina de Segurança Nacional e pela propaganda oficial
com o pensamento de esquerda e o comunismo mundial.
O “Movimento de Iluminação da Humanidade”, desenvolvido pela
sede da SNI, afirma ser necessário reeducar o homem a partir de princípios
não materialistas e em nome da idéia de que todos s somos filhos de Deus,
perfeitos como Ele, como Deus, criaturas espirituais ontologicamente
diferentes do mundo físico entenda-se realidade contrárias à harmonia do
Jissô. A SNI recomenda àqueles que desejam cooperar com o Brasil os
ensinamentos de Masaharu Taniguchi a fim de entenderem a verdadeira
natureza humana, o Jissô, e dessa forma colaborar para a concretização da
“Ordem e Progresso”.
O processo tradutor retoma o significado do nacionalismo a partir da
doutrina do Jissô e do Chûshin Kiitsu e com isso acreditam construir o
“autêntico paraíso na terra”. A associação do Brasil ao paraíso cristão não é
estranha à história de nosso país poderíamos remontar ao período colonial.
115
Contudo, essa percepção recebe um novo verniz ao ser envolvido nos
ensinamentos da SNI e seu ethos de cooperação. Da mesma forma que fica
claro que os japoneses devem agradecer e cooperar com país que os acolheu,
os brasileiros como um todo, o que inclui os japoneses naturalizados e os nipo-
descendentes, devem agradecer aos governantes e se posicionarem enquanto
colaboradores do projeto nacional:
Nós, o povo brasileiro, agradecemos aos membros governamentais
que servem para o bem estar da população e que se esforçam para a
grandeza da nação. Por sua vez, os governantes também devem
agradecer ao povo, como sendo ele o membro que traz o progresso
da nação. É destes agradecimentos e respeitos mútuos que se torna
realidade um Brasil pacífico e progressivo. Sinto a glória de ver a
revista ACENDEDOR publicada pela Associação de Moços da
Seicho-no-Ie, estar colaborando para a construção de um mundo
ideal. Caros irmãos, convençamo-nos de que o Brasil vive somente
pela cristalização do nosso espírito de sinceridade, dedicação,
fidelidade e amor (ACENDEDOR, 1967, nº6, p43-44).
Quando pensamos em uma “comunidade imaginada”, conceito
desenvolvido por Benedict Anderson, a entendemos enquanto conjuntos de
representações que buscam inculcar símbolos de pertencimento a um território
denominado Estado-Nação (ANDERSON, S/D, p.110). Sabemos, no entanto,
que as representações são determinadas pelo jogo das relações de poder e
que elas ganham projeção a partir de centros de poder irradiadores de
determinado discurso. Quando afirmarmos que a Seicho-no-Ie se apropria do
discurso nacionalista do contexto do Estado Militar entendemos que a religião
soube tomar o discurso oficial que naquele momento pretendia ser o único e
legítimo critério que definia o verdadeiro pertencimento ao país.
O Estado Militar camuflava as diferenças sociais históricas do Brasil e
tornava qualquer inspiração significativa de mudança enquanto atitude
contrária e subversiva ao espírito de cooperação e de corpo nacional.
Apropriar-se desse discurso foi a estratégia mais eficaz para atestar o papel da
SNI enquanto real colaboradora do desenvolvimento nacional. Aliás, a idéia de
desenvolvimento era um dos traços do discurso do regime e to-lo para si,
116
como fez a SNI, implicava em fomentar o sentimento de brasilidade almejado
pelos nisseis na colônia tornando-o um sentimento legítimo se confrontado com
o que o regime propagandeava sobre o sentimento patriótico.
Na ordem do discurso, como nos apresenta Michael Foucault, o
sentimento nacionalista e todos os traços morais que o cercavam, foi
apoderado pelo Estado Militar. Como diz o filósofo, “o discurso não é
simplesmente aquilo que traduz as lutas ou os sistemas de dominação, mas
aquilo pelo que se luta, o poder do qual nós queremos apoderar” (FOUCAULT,
2005, p.10). O Estado Militar rearranja o discurso nacionalista, que definia
nossa comunidade imaginada ao longo dos séculos XIX e XX, a partir de seus
interesses e cuida de se apresentar como defensor do progresso histórico e
inexorável do Brasil. A máquina de propaganda cuida de tornar o evento, o
golpe, em Revolução, e os Militares, os agentes, em “salvadores do país”
diante do perigo internacional, o comunismo. Submete-se o acontecimento e o
acaso à ordenação de um discurso que busca ser inculcado ou interiorizado e
que se sustenta a partir das percepções que marcaram nossa “comunidade
imaginada”.
Segundo Chauí, o poder político, ao longo da história do Brasil, é
sacralizado. A sagração do governante, presente na história do Brasil desde o
período colonial, reverberou nas representações políticas do período
contemporâneo. No passado, o rei representava Deus e não os governados.
Na política brasileira, os governantes eleitos são percebidos como
representantes do Estado em face do povo, este que se dirige aos
representantes para solicitar favores ou obter privilégios. Assim, a relação
governo-povo é a de favor, clientela e tutela (CHAUÍ, 2006, p.86). O governo
assume o status de salvador do povo, sendo o questionamento, muita das
vezes vetado.
A imagem do Governo Militar instituída pela propaganda oficial cuidou
de apresentar o governo enquanto restaurador do devir histórico brasileiro
livrando a nação da suposta ameaça comunista. Reminiscências da
sacralidade do governante que, em momentos anteriores, serviram ao
117
populismo foram transferidas para o corpo militar, em especial, a percepção da
tutela e da transcendência diante das disputas classistas.
Por outro lado, existia uma predisposição simbólica na utensilagem
religiosa da SNI ao discurso nacionalista do Regime Militar. Como dissemos
anteriormente, a SNI reproduzia os critérios de etnicidade anterior à guerra e
que eram sustentados pelo “Xintoísmo de Estado” (sacralização do governo e
respeitos à hierarquia, tanto no plano privado quanto no público), contexto da
criação da doutrina. Temos, portanto, uma situação cultural onde a
ressemantização parte da semelhança entre o sistema cultural da SNI, atrativo
aos japoneses e seus descendentes por o discrepar totalmente da noção do
“Espírito Nipônico”, e o discurso cívico e de brasilidade do Estado Militar.
Orientar-se a partir desse discurso e ressemanti-lo a partir do aparato
religioso da doutrina de Taniguchi é uma estratégia de afirmação da brasilidade
do grupo religioso e de seus acólitos. Não seria exagero afirmar que ao se
manterem fiéis à antiga orientação étnica estariam mais próximos da solução
do problema do envolvimento com a comunidade brasileira, encarado
especialmente pelos mais jovens.
Essa situação, do ponto de vista antropológico, nos leva a superar a
posição defendida por alguns intelectuais a favor da inevitável assimilação dos
povos imigrados à cultura receptora. Pelo contrário, a cultura do imigrante,
rearranjada estrategicamente pela identidade étnica, não encontra formas
de sobrevivência como tamm não se mostra tão rija a ponto de não se
apropriar de elementos culturais do mundo que o “acolheu” - a sobrevivência
de traços culturais é possível por esses rearranjos de acordo com as
contingências. A cultura, através das manobras da identidade diante das
vicissitudes, é devidamente mobilizada a favor dos interesses dos grupos
envolvidos; em nosso caso, o interesse de envolvimento da colônia e das
gerações mais jovens com o Brasil a fim da construção do pertencimento
nacional sem que isso implicasse em deixar de se sentir de alguma forma
japoneses.
A fronteira étnica, como a definiu Barth (2006), é imprescindível para a
construção da identidade étnica. Contudo, ela é mais ou menos plástica,
118
permitindo reordenamentos que favoreçam a superação de qualquer estigma
situação vivida por minorias sem deixar de preservar algum índice de
diferenciação que em momentos anteriores, em nosso caso, quando o retorno
ao Japão era tomado como certo, mantiveram o critério de coesão do grupo
étnico. Como foi dito, a identidade prescinde dos elementos culturais; ela
necessita do arcabouço cultural para manter algum significado para o grupo
étnico que o instrumentaliza de forma que determinados interesses sejam
atendidos. Assim, podemos entender que a diferenciação assume um novo
caráter; a religião japonesa é apontada com a saída para os males do mundo
contemporâneo e também contra obstáculos ao desenvolvimento nacional. O
“materialismo”, entendido pela SNI de forma simplificada, como algo contrário
ao desenvolvimento espiritual, torna-se sinônimo de erro e “ocidente”,
responsável pelos conflitos e desarmonia do mundo contemporâneo. A
diferenciação se mantém quando a religião japonesa e não a política ocidental
é capaz de sanar os problemas do mundo contemporâneo e do Brasil.
Entendemos, é claro, que a SNI não estava sozinha no processo de
desenvolvimento da identidade nipo-brasileira. Outras novas religiões
japonesas também encontraram estratégias para o envolvimento com a
sociedade brasileira em um contexto de mudança desta. Da mesma forma, os
vários clubes e associações trilhavam o mesmo caminho. A diferença maior,
contudo, é o revestimento cultura-relgioso que a SNI dava para o
pertencimento à sociedade nacional. O sagrado japonês expresso pela doutrina
oferece o significado capaz de abarcar a condição política nacional em favor
das necessidades da colônia japonesa em torno do envolvimento e do
“abrasileiramento”. O inimigo da pátria, a ameaça comunista, desordeira e
contrária ao progresso, é tamm corruptora da verdadeira natureza humana,
do Jissô, da moral familista e do cooperativismo embutido nela.
“Cooperação” e “amor à tria”, sentimentos cívicos estimulados pela
propaganda do regime, são endossados pela SNI enquanto pertinentes à
ordem sagrada. A cooperação não é apenas um dever cívico, é um dever
religioso a favor do crescimento espiritual da sociedade brasileira, uma
119
“contribuição”, para usarmos a expressão de Miyoshi Matsuda, ao povo
brasileiro e ao governo que os “acolheu”
73
.
.
73
Talvez o que temos aqui é o mesmo paradigma de Estado Nação enquanto membros de uma
comunidade que se guia sempre pelos mesmos referenciais. Em suma, isso significa que ao
definir a relação com o governo em termos de cooperação, a SNI tenta utilizar o modelo de
civismo que marcou o Xintoísmo de Estado”, inspirado pelo “Nacionalismo Oficial” europeu e
que tamm se mantinha vivo no discurso do Estado Militar brasileiro durante a Guerra Fria,
onde o “perigo vermelho” conspirava contra a ordem social.
120
CONCLUSÃO
Estudos sobre povos oriundos do “oriente”, seus hábitos e traços
culturais, correm o risco de se perderem na margem do exótico, do
“orientalismo”, conforme pontuou Edward Said. Essa foi uma grande
preocupação que marcou o desenvolvimento desse trabalho. Em nosso
cotidiano, ouvimos falas que dizem respeito à capacidade íntima do povo
japonês, sua perseverança e força de vontade, sua disciplina. Mesmo os
japoneses, em sentido amplo, incluindo seus descendentes, muitas vezes se
fiam em uma percepção de si mesmos enquanto pessoas obstinadas, com
capacidades e comportamentos diferentes do povo brasileiro e também
portadores de uma cultura original a cultura do povo brasileiro seria apenas a
junção de diversos elementos oriundos de outras regiões do mundo.
No início dessa pesquisa, um membro da Seicho-no-Ie lançou a
seguinte questão: “Será que um brasileiro pode mesmo entender um japonês”?
A pergunta reverberou em cada linha lida, em cada referência cuidadosamente
analisada e em cada parágrafo aqui impresso. Seria a cultura japonesa
insondável para alguém que não participasse dela?
Apesar de o tratarmos de japoneses em sentido estrito, ou seja, o
trabalho conta especialmente dos descendentes nascidos no Brasil e, por
isso mesmo, inseridos mais profundamente em duas tradições culturais, nos
precavemos diante do risco em tomar a cultura e identidade nipônica enquanto
algo fixo ou essencial. A questão fica mais complicada quando tomamos como
objeto de pesquisa identitária um grupo religioso, já que a religião parece ser
um dos sistemas culturais que mais se fiam em essencialismos.
Precavemo-nos, contudo, nos fiando em referências teóricas que lidam
com a identidade enquanto construção simbólica que tem como referência a
existência do outro. Fica mais claro que a idéia que os japoneses e
descendentes tinham e têm de si mesmos não pode existir sem que um
contraste seja sentido. Além disso, as contingências vividas por todos
imigrantes e seus descentes os levam a um inevitável envolvimento com a
121
cultura receptora. Assumindo esses dois pontos ficou claro que existe uma
identidade japonesa a partir da diferença e que esta não pode deixar de
negociar com o mundo fora da rotura étnica; aliás, talvez essa expressão seja
inadequada por parecer sólida e intransponível.
No esteio dessas percepções, a Seicho-no-Ie do Brasil é encarada como
espaço de negociação ou “zona de contato” que permitiu à colônia japonesa
desenvolver um tipo de envolvimento com a sociedade brasileira que
atendesse as necessidades do grupo, a garantia da inclusão no quadro sócio-
cultural brasileiro. Obviamente se faz necessário inserir esse processo à
situação que vivia a colônia como um todo, especialmente com o fim da
Segunda Guerra Mundial. Os japoneses e seus descendentes não podiam
mais manter viva a crença no retorno à terra natal. Os referenciais de outrora
vacilaram e o Japão não era a nação invencível. Por outro lado, os
japoneses viviam mudanças em sua condição sócio-econômica. Os filhos
vieram, foram registrados como brasileiros, aprenderam a língua da nação que
outrora era entendida como morada provisória. Tudo isso promove um novo
tipo de envolvimento com o Brasil, era aqui que deveriam morar
definitivamente.
Mas como lidar com a morada definitiva? Como lidar com uma cultura
que não é a sua? Como educar os filhos? A educação deveria seguir o padrão
japonês ou o brasileiro? Quais as conseqüências de se educar um filho em
algum desses modelos tanto para a vida do mesmo na colônia quanto fora
dela? Essas dúvidas, talvez, marcaram muitos imigrantes japoneses. À
primeira vista poderíamos supor que inevitavelmente as gerações mais jovens
deveriam abandonar o código moral que antes da guerra marcava a colônia
para que pudessem atingir seus objetivos. Afinal, como seria possível a um
nissei e a outros descendentes manter o mesmo comportamento de seus
genitores, o desejo de não se envolverem com a cultura brasileira, sem que
isso significasse prejuízo à sua ascensão social?
Um sistema cultural não pode ser encarado como uma estrutura rija que
diante de qualquer possibilidade de mudança se desfaz permitindo que outro
sistema o substitua. Há interstícios que garantem certa flexibilidade e que
122
estabelecem pontos de convergência entre aspectos que a primeira vista
parecem irreconciliáveis. A flexibilidade é determinada pelo contexto em que se
encontra os grupos em questão. As necessidades criam “canais de
comunicação” entre universos simlicos diferentes. É nesse momento, pelo
menos no caso de povos imigrados e seus descendentes, que a identidade
étnica do tipo hifenizada se apresenta como estratégia que favorece a
permeabilidade acima mencionada. Longe de associar identidade à cultura,
entendemos que diante alguma contingência a identidade hibridizada constrói
pontes de comunicação entre universos culturais a fim de atender aos
interesses do grupo minoritário. A identidade hifenizada cuida de enfatizar
alguns traços culturais, os atualiza, para que sejam alcançados determinados
objetivos, ao mesmo tempo em que se desfazem” de outros traços que
possam servir de obstáculos à concretização das metas grupais.
A partir de então, o envolvimento com o lado de fora se torna possível.
A identidade enfatiza determinado aspecto cultural em detrimento de outro.
Enfatiza-se aquilo que pode atender às demandas cotidianas sem que isso
signifique abandonar as referências de outrora. O consagrado conceito
“tradução” serve bem para esclarecer a operação cultural realizada pelas
identidades hibridas. Referências alheias são adaptadas ou ressemantizadas a
partir da cultura do grupo a fim de atenderem a seus interesses de
envolvimento com a cultura majoritária. Ao invés de simples ruptura com o
passado, o novo, o evento, no sentido que lhe atribuiu Marshall Sahlins, é
tomado a partir da estrutura que o precedeu. No entanto, a novidade também
provoca mudanças no aparato cultural receptor. O novo exige uma operação
simbólica que provoca modificações na bagagem cultural anterior e é a
identidade hifenizada que executa esse processo.
Em nosso trabalho percebemos a Seicho-no-Ie do Brasil enquanto
espaço de negociação que viabilizava a identidade hifenizada nipo-brasileira.
Essa negociação ocorria em outros setores ou espaços no seio da colônia.
Contudo, o que difere o tipo de identidade nipo-brasileira desenvolvida pela SNI
é o verniz religioso que a envolve.
123
A novidade ou contingência que se apresentava a toda colônia desde o
término da Segunda Guerra era a permanência definitiva e a necessidade de
garantir o envolvimento com a sociedade brasileira a fim de viabilizar os
interesses dos membros da colônia, em especial as gerações mais novas. A
SNI desenvolveu um projeto identitário de brasilidade ancorado no sentimento
de gratidão e na necessidade de contribuir como a sociedade brasileira.
Contribuir com o “verdadeiro paraíso” significa dar provas da brasilidade de
seus membros. A contribuição parte do referencial identitário étnico que
precedeu a guerra e envolve os mitos que constituíram ao longo de nossa
história a comunidade imaginada brasileira. O envolvimento com o Brasil, a
novidade de que falamos anteriormente, é apropriado pelas noções de piedade
filial do Oyabun Kobun, onde a nova tria é encarada pela necessidade de
cada sujeito ocupar sua posição devida em nome do desenvolvimento do todo,
e pelo Chûchin Kiitsu, centro que ordena o mundo, nesse caso o Estado Militar.
Estende-se para a esfera pública brasileira o código moral que ordenava o ie
(família ou casa); ou seja, a utensilagem cultural da colônia foi devidamente
reordenada para que a identidade nipo-brasileira se legitimasse em um
contexto em que o patriotismo do tipo ufanista passou a ser enfatizado pelo
centro do poder nacional uma semelhança entre o nacionalismo japonês
anterior à Segunda Guerra e o discurso do Estado Militar em torno da
associação entre Estado e corpo.
Por fim, entendemos que a Seicho-no-Ie embebe o Brasil no sagrado
nipônico transferindo-lhe as representações que outrora tornam o Japão o
espaço qualificado ou poético que o definia como casa. O Brasil se tornou a
nova casa, o novo ie, e, se posicionar na morada definitiva partir do digo
moral trago do Japão, é legitimar a brasilidade capaz de atender às
necessidades de alguns setores da colônia.
124
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