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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC-SP
NADIR LARA JUNIOR
A MÍSTICA DO MST COMO LAÇO SOCIAL
DOUTORADO EM PSICOLOGIA SOCIAL
SÃO PAULO
2010
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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC-SP
NADIR LARA JUNIOR
A MÍSTICA DO MST COMO LAÇO SOCIAL
DOUTORADO EM PSICOLOGIA SOCIAL
Tese apresentada à Banca Examinadora da
Pontifícia Universidade Católica de São
Paulo, como exigência parcial para
obtenção do título de Doutor em Psicologia
Social, sob orientação do Prof. Dr. Raul
Albino Pacheco Filho.
SÃO PAULO
2010
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BANCA EXAMINADORA
___________________________________________________
___________________________________________________
___________________________________________________
____________________________________________________
____________________________________________________
4
Dedico este trabalho:
À minha esposa pelo carinho e apoio
nos momentos de dúvida.
Aos meus professores e amigos pelo
incentivo e respeito.
5
Agradecimentos
Muitas pessoas construíram comigo esse trabalho, deixo registrado minha
lembrança de que são importantes para mim.
A Andréa pelo carinho e compreensão como viveu comigo esses anos.
Ao Prof. Raul Pacheco pelas orientações e apoio recebido.
Ao Prof. Conrado Ramos - muito de minhas reflexões foram estimuladas por
ele.
Ao Prof. Ian Parker que me recebeu na Universidade Metropolitana de
Manchester para fazer o estágio de doutorado (bolsa sanduíche). Sou grato por
todo apoio recebido.
À Profª Ilana Mountian pelas conversas sempre amistosas que me estimulam a
pensar.
Aos amigos: Aluisio, Tiago e Netto pelas conversas que me fazem continuar a
buscar uma psicologia mais crítica.
A minha família que se mostra solidária em momentos importantes.
Ao Núcleo de Psicanálise e Sociedade agradeço os comentários e sugestões.
Aos professores da PUC-SP pelas idéias e questionamentos.
A todos os membros da banca examinadora pelos comentários e sugestões.
Ao CNPq que fez valer o direito ao estudo e a pesquisa.
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Nadir Lara Junior
A Mística do MST Como Laço Social
RESUMO
O presente trabalho visa perceber se é possível entender a mística do
Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) a partir dos quatro
discursos (mestre, universitário, histérica e analista) propostos por Lacan. O
segundo objetivo é analisar se as diversas possibilidades discursivas podem
ser estabelecidas na mística e que diferentes consequências têm para os
sujeitos que participam dessa ação coletiva. Dividimos nosso trabalho em duas
partes, a saber: A primeira se refere a estruturação do MST como movimento
social. Para isso analisamos o contexto histórico de seu surgimento, assim
como as principais correntes teológicas e políticas que influenciaram essa
estruturação. Discutimos ainda se toda teologia leva o sujeito a alienação ou
não. Também descrevemos como se estruturou a mística do MST e como ela
acontece no movimento. A segunda parte visa analisar a mística do MST a
partir da teoria lacaniana, dando destaque à teoria dos quatro discursos. Nesse
instante da pesquisa, veremos como os quatro discursos atuam nessa ação
coletiva e como, especialmente, a política desses discursos convoca os
sujeitos que participam da mística. Constatamos nessa tese que a mística pode
ser entendida como um espaço para constituição de laço social e também uma
estratégia de constituição do campo discursivo da política. Todos os conteúdos
discursivos produzidos nessa ação coletiva possibilitam a esse sujeito se
posicionar dentro dos quatro discursos.
Palavras-chave: quatro discursos, psicanálise lacaniana, religião, política, MST.
8
Nadir Lara Junior
Mística of the MST like Social Bond
ABSTRACT
This study aims to notice if it’s possible to understand the “mística” of The Rural
Workers without Land Movement (MST) from of the four discourses proposed
by Lacan. The second aim is to analyse if the different discursive possibilities
can be established in the “mística” and that different consequences have to the
subjects that participate of this collective action. We divided our work in two
parts, such as: First, is about the structuring of the MST like a social movement.
For this reason, we analysed the historical context of your appearance and also
the main theological and political approaches that influenced in this structuring.
We discussed still if all theology takes the subject one to alienation or not. We
also describe as the “mística” of the MST was structured and as it happens in
the movement. The second part aims to analyse the "mística" of the MST to
start the lacanian theory, giving distinction to the theory of four discourses. In
this part of the research, we will see like how the four discourses act in this
collective action and how, specially, the politics of these discourses calls the
subjects that participate of the "mística". We note in this doctorate thesis that
the "mística" can be understood like a space for constitution of social bond and
also a strategy of constitution of the discursive field of the politics. All the
discursive contents produced in this collective action make possible to the
subject to position himself inside four discourses.
Key-words: four discourses, lacanian psychoanalysis, religion, politics, MST.
9
Sumário
SumárioSumário
Sumário
Introdução ................................................................................................ 11
I – Parte : O MST e sua Estruturação como Movimento Social ............... 17
Capítulo 1: Histórico do MST .............................................................. 19
Capítulo 2: Principais Correntes Religiosas e Políticas que
Constituem o MST .................................................................................. 24
2.1- Teologia da Libertação (TdL) ....................................................... 24
2.2- Religiosidade Popular .................................................................. 30
2.3- Teologia Pentecostal ................................................................... 35
2.4- O Marxismo do MST .................................................................... 44
Capítulo 3: Toda Teologia é Alienadora? ........................................ 50
Capítulo 4: A Mística do MST como Ação Coletiva ....................... 62
II – Parte: Psicanálise e a Mística como Forma de Ordenamento do
Gozo ........................................................................................................... 72
Capítulo 1: A Contribuição da Psicanálise para a Compreensão
dos Acontecimentos Sociais .............................................................. 74
Capítulo 2: Freud e a Religião como Ilusão .................................... 83
Capítulo 3: Religião, Ciência e Psicanálise .................................. 100
Capítulo 4: Lacan e os Quatro Discursos ..................................... 111
4.1- Discurso do mestre ............................................................... 112
4.2- Discurso universitário ............................................................ 113
4.3- Discurso da histérica ............................................................. 115
4.4- Discurso do analista .............................................................. 116
Capítulo 5: Psicanálise: O Saber Posto na Berlinda .................. 121
10
Capítulo 6: A Mística do MST e os Quatro Discursos ................ 129
6.1- A possibilidade do discurso do mestre na mística do MST ....... 129
6.2- Discurso universitário: a herança religiosa da mística .............. 133
6.3- Discurso da histérica e a mística: o questionamento da verdade
opressora .......................................................................................... 136
6.4- Discurso do analista: enigma, silêncio e o mistério da mística 139
Considerações Finais ......................................................................... 145
Bibliografia ............................................................................................. 154
11
Introdução
IntroduçãoIntrodução
Introdução
“Assim, não tenho coragem de me erguer
diante de meus semelhantes como um
profeta; curvo-me à sua censura de que não
lhes posso oferecer consolo algum, pois no
fundo, é isso que todos estão exigindo, e os
mais arrebatados revolucionários não
menos apaixonadamente do que os mais
virtuosos crentes
(Freud: 1930/1997:111)
Esse estudo visa perceber se é possível entender a mística do
Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) a partir dos quatro
discursos propostos por Lacan. O segundo objetivo é analisar se as diversas
possibilidades discursivas podem ser estabelecidas na mística e que diferentes
consequências têm para os sujeitos que participam dessa ação coletiva.
Para que nossos objetivos sejam alcançados, entendemos que a
psicanálise se torna de fundamental importância em nossa pesquisa, pois se
opõe aos discursos totalizantes, seja da ciência, da religião ou do próprio
capitalismo, e aponta justamente para a possibilidade de os sujeitos estarem
mais comprometidos com seu desejo e com a realidade histórica a que estão
envolvidos.
Como veremos nesse trabalho, a psicanálise questiona a ciência quando
essa se coloca como verdade absoluta sobre a realidade. Como nos diz
Roudinesco (2000), a psicanálise foi a única doutrina psicológica que
aproximou a questão psíquica da ideia filosófica da liberdade, propondo assim
um avanço da civilização sobre a barbárie. A barbárie proposta e
fundamentada pela sociedade capitalista neoliberal reduz o ser humano a uma
máquina desprovida de afeto e desejo.
12
Para isso, a sociedade capitalista torna os sujeitos mórbidos e
depressivos sem implicação com o desejo, e as questões políticas e
econômicas envolvidas em seu cotidiano passam a ser ignoradas ou evitadas.
Um dos meios para se conseguir esse estado de torpor é o uso da psiquiatria e
psicologia que estimulam o consumo de remédios e terapias que se tornam
uma “camisa-de-força invisível” para encarcerar qualquer manifestação de
rebeldia contra o sistema capitalista; forma eficaz de manter o status quo sem
que as pessoas percebam que estão presas, enquanto permanecem
entorpecidas.
O sujeito defendido pela psicanálise é avesso ao do capitalismo, pois
passa pela ideia de que essa liberdade é possível à medida que se concebe
um sujeito do inconsciente, que “só é livre porque concorda em aceitar o
desafio dessa liberdade restritiva e porque reconstrói sua significação”
(Roudinesco, 2000:70).
Pensamos ainda que esse sujeito livre seja capaz de criar sua própria
significação de liberdade, pois é um sujeito da fala apto para se implicar com
seu desejo, para analisar seus sonhos que supõe uma singularidade nesse
processo de elaboração.
O sujeito freudiano é um sujeito livre, dotado de razão, mas cuja razão
vacila no interior de si mesma. É de sua fala e seus atos, e não de cuja
consciência alienada, que pode surgir o horizonte de sua própria cura.
Esse sujeito não é nem o autômato dos psicólogos nem o cérebro-
espinhal dos fisiologistas, nem tampouco o sonâmbulo dos
hipnotizadores, nem o animal ético dos teóricos da raça e da
hereditariedade. É um ser falante, capaz de analisar a significação de
seus sonhos, em vez de encará-los como o vestígio de uma memória
genética. Sem dúvida, ele recebe seus limites de uma determinação
fisiológica, química, ou biológica, mas também de um inconsciente
concebido em termos de universalidade e singularidade
(Idem,
2000:69).
13
A psicanálise, portanto, considera o sujeito dentro de um múltiplo de
possibilidades, ou seja, um sujeito vazio em um constante vir a ser, nunca
cristalizado e sedimentado em modelos pré-definidos. Nesse sentido, é o
sujeito habilitado para elaborar suas questões, sendo capaz de se
responsabilizar por aquilo que constrói no laço social. Essa concepção de
sujeito é oposta à ideia do sujeito da crença da religião e da ciência.
A psicanálise nesse ambiente possibilita outro olhar para outras
configurações discursivas que estão atreladas e constituídas a partir do
inconsciente do sujeito que o convoca constantemente a uma relação com o
Outro. Diante disso, esse sujeito responde se posicionando de diferentes
maneiras, girando, para Lacan, em torno de quatro discursos que possibilitam a
esse sujeito constituir laço social.
Para compreendermos as diferentes possibilidades de laço social que
podem ser estabelecidas na mística, a primeira parte do nosso trabalho
apresenta uma contextualização do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem
Terra (MST) e da mística que faz parte desse movimento social.
Destacamos, nesse primeiro instante da pesquisa, os elementos
religiosos e políticos (Teologia da Libertação, Religiosidade Popular, Teologia
Pentecostal e o Marxismo) que se apresentam no movimento e na mística de
maneira sincrética. No caso dos elementos religiosos, são mescladas
diferentes teologias em sua estruturação como um movimento social.
Destacamos, na formação do movimento, a influência das correntes
marxistas diluídas no discurso da teologia da libertação ou nos diversos
14
pensadores de esquerda que são assumidos de modo eclético pelo próprio
movimento, resultando assim em uma concepção muito peculiar desses
elementos ideológicos. Por isso chamamos essa influência política de
“Marxismo do MST”, como poderá ser constatado no capítulo 2 dessa parte.
No quarto capítulo apresentaremos a mística do MST que decorre
justamente da articulação entre os vários elementos apresentados. Assim
sendo, poderemos perceber que a mística é uma ação coletiva muito peculiar
desse movimento que serve principalmente como um ponto de sutura no
processo de pertencimento grupal.
Poderemos perceber que a mística é permeada por elementos políticos
presentes por meio dos discursos de conteúdos de cidadania (direitos e
deveres de todos os cidadãos); estabelecimento de estratégias de ocupação de
fazendas; protestos, greves, paralisações, congressos para debates e muitos
outros. Também faz parte do processo de constituição da mística os elementos
religiosos, tais como: ritos, símbolos, encenações, cantos, dança etc.
É perceptível na mística, ainda, os elementos que constituem o cotidiano
do homem do campo, como os mitos, os causos (histórias de vida, mensagens,
questões triviais do cotidiano), as poesias, o contato com a terra, relação com
as mudanças climáticas tão importantes para o desenvolvimento das plantas e
principalmente como historicamente essas pessoas fazem política.
Para isso, faremos uma revisão de literatura tentando resgatar o sentido
da palavra mística na religião e como essa ideia passa para um movimento
social e caracteriza uma ação coletiva tão importante para o movimento.
15
Veremos que a teologia da libertação influencia muito nesse processo,
especialmente por meio dos seus teólogos Leonardo Boff e Frei Betto.
Essa apresentação da mística situa o objeto de nosso estudo dentro do
MST e assim se pode avançar na leitura dessa tese sabendo, por meio da
literatura, como essa ação coletiva acontece no movimento e por quais razões
resolvem realizá-la.
Na terceira parte, apresentamos como a psicanálise pode nos ajudar a
compreender os acontecimentos sociais no contexto capitalista atual. Podemos
verificar que o sujeito proposto pela psicanálise é um sujeito do inconsciente
implicado com seu desejo e capaz de construir laço social sem desprezar os
elementos históricos de sua realidade.
Em outro capítulo destacamos que Freud compreende a religião como
ilusão em algumas de suas obras (Totem e Tabu; O Futuro de uma Ilusão; O
Mal Estar na Cultura) e propõe a ciência aliada à psicanálise como uma forma
de superar o infantilismo provocado pela religião. Nessa parte, trazemos alguns
elementos lacanianos para ampliar essa discussão da relação entre
psicanálise, ciência e religião.
Ainda nesse momento do trabalho, fazemos uma apresentação teórica
do que são os quatro discursos na teoria psicanalítica, depois nos propomos a
analisar se as diferentes possibilidades de laço social podem ser estabelecidas
na mística e que diferentes consequências têm essas distintas possibilidades
para os sujeitos.
Os quatro discursos postulados por Lacan (1969-1970/1992) se mostram
dentro da estrutura de todo laço social, ou seja, estão na ordem do
16
posicionamento inconsciente do sujeito em relação ao Outro. Atentos às
peculiaridades apresentadas por estas propostas de Lacan, esses conceitos
serão utilizados, nessa tese, como referência de análise, pois são
fundamentais para nossa compreensão da mística do MST em todas as suas
possibilidades.
E por fim, mostraremos que os quatro discursos de Lacan colocam em
jogo uma questão política, pois cada discurso se apresenta numa relação de
poder. o discurso do analista busca se apresentar como aquele que
descompleta os discursos autoritários e histericiza os discursos dos sujeitos
para que busquem seu compromisso com o desejo que os constitui e não
fiquem na demanda incessante. Veremos se essas políticas podem atuar ou
não na mística.
17
I
I I
I
Parte : O MST e sua Estruturação como Movimento Social
Parte : O MST e sua Estruturação como Movimento SocialParte : O MST e sua Estruturação como Movimento Social
Parte : O MST e sua Estruturação como Movimento Social
O medo dá origem ao mal
O homem coletivo sente a necessidade de lutar
O orgulho, a arrogância, a glória
Enche a imaginação de domínio
São demônios os que destroem o poder
Bravio da humanidade
Viva Zapata!
Viva Sandino!
Viva Zumbi
Antônio Conselheiro!
Todos os panteras negras
Lampião sua imagem e semelhança
Eu tenho certeza eles também cantaram um dia.
(Chico Sciense
1
)
Žižek (2003:14), ao analisar o acontecimento dos aviões atirados ao
World Trade Center nos EUA, diz que essa ação foi a exposição da ideologia
em estado puro para o povo norte-americano foi o encontro desse povo com
o Real escondido – aquilo que é insuportável para o sujeito.
O Real que retorna tem o status de outro semblante: exatamente por
ser real, ou seja, em razão de seu caráter traumático e excessivo, não
somos capazes de integrá-lo na nossa realidade (no que sentimos
como tal), e, portanto somos forçados a senti-lo como um pesadelo
fantasmático. A impressionante imagem, um semblante, um ‘efeito’ que,
ao mesmo tempo, ofereceu a coisa em si (Idem, 2003:34-35).
Para o sujeito, a forma de enfrentar o confronto com o Real de sua
existência é criando fantasias para tentar driblar a realidade última a falta, a
incompletude. Podemos pensar que o capitalismo busca tamponar essa falta
criando artifícios para que esse sistema seja hegemônico. Percebemos que,
quando algum movimento social expõe o “insuportável” para a sociedade
capitalista, em geral observamos o uso da violência direta àqueles que
“importunam” a ordem estabelecida.
1
Essa é parte da letra da música “Monólogo ao do Ouvido”, composta por Chico Sciense.
Consultado em 06 de janeiro de 2010. http://letras.terra.com.br/chico-science/173422/
18
Nesse sentido, é comum vermos que as greves e outras reivindicações
realizadas nos espaços públicos são fortemente rechaçadas pela polícia que
trata essas ações coletivas como algo que atrapalha a ordem social, criando
assim um discurso que legitima o uso da violência contra os sujeitos que
ocupam um lugar público para se manifestar.
Nesse sentido, diversas vezes o Brasil tem registro do emprego da
violência para tratar de questões políticas e o alvo mais frequente são as
lideranças populares. Podemos recordar aqui a morte de Zumbi dos Palmares,
Antônio Conselheiro, Tiradentes e muitos outros, no entanto, percebemos que
ainda hoje, principalmente nas áreas rurais, muitos trabalhadores que se
organizam sofrem as consequências da violência, como foi a chacina dos
trabalhadores rurais de Eldorado dos Carajás no Estado do Pará
2
.
Esse cenário de violência e a tentativa de se constituir como um
movimento social para enfrentar um estado capitalista marca a história do MST.
E o mais peculiar desse movimento é como ele vai incorporando, em sua
organização, elementos típicos da realidade brasileira os quais destacamos: a
presença de elementos religiosos (teologia da libertação, pentecostal e
religiosidade popular) e políticos (marxismo) como veremos com mais detalhes
nos capítulos seguintes.
2
“O massacre de Eldorado dos Carajás, em que 19 sem-terras foram mortos por 155 policiais da Polícia
Militar de Marabá e de Parauapebas, completa 10 anos. O Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-
Terra, MST, montou um acampamento na PA-150 desde o início de abril para relembrar os mortos e
feridos neste confronto com a Polícia Militar. No dia 17 de abril de 1996, cerca de três mil famílias sem
terra ocuparam a rodovia PA-150 para exigir do Incra urgência na desocupação de um latifúndio
improdutivo onde eles haviam montado o acampamento Macaxeira. Durante o protesto, os trabalhadores
foram cercados pelas tropas militares que abriram fogo contra eles. Além dos 19 mortos, mais três
pessoas morreram em seguida em decorrência dos graves ferimentos. Totalizando, assim, 22 mortos no
massacre. O dia 17 de abril foi instituído pela Via Campesina e reconhecido pelo governo brasileiro como
o Dia Nacional de Luta pela Reforma Agrária”.
(http://www.cptnac.com.br/?system=news&action=read&id=1546&eid=8
) Reportagem do dia 17/04/2006
14:56 – Massacre de Eldorado dos Carajás Completa Dez Anos – consulta 15/11/2008
19
Capítulo 1: Histórico do MST
Capítulo 1: Histórico do MSTCapítulo 1: Histórico do MST
Capítulo 1: Histórico do MST
O Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) surgiu no Rio
Grande do Sul, em 1980, como uma forma que os trabalhadores rurais
encontraram para enfrentar a grave crise agrária que, historicamente, se
estabelecera no Brasil, especialmente na época da ditadura militar iniciada em
1964.
Nesse período, a crise no campo se agravara devido a uma política de
defesa aos grandes latifúndios, pois esse governo entendia que o Brasil iria
produzir se tivesse um aumento da tecnologia no campo e um maior apoio aos
grandes produtores rurais (Lara Junior, 2005).
Com isso, muitos meeiros não tinham emprego devido à mecanização
das lavouras; os pequenos proprietários tiveram que vender suas propriedades
ou perdiam-nas para os latifundiários (grilagem de terras); outros tinham que
vendê-las para sanar as dívidas com os bancos que financiavam as
plantações. Consequentemente esses trabalhadores foram obrigados a migrar
para as grandes cidades em busca de emprego, ou ficar acampados em lonas
de plástico, lançados à sorte, à beira das rodovias (Fernandes, 1998). Tanto
que nos dias atuais temos uma população urbana, segundo o CENSO de 2000,
de 138 milhões de pessoas e a população rural de apenas 32 milhões
3
.
Naquela época a igreja católica e as igrejas protestantes históricas
(luteranos, metodistas, batistas, anglicanos, presbiterianos) perceberam a
grave crise que havia no campo e o aumento de trabalhadores à beira das
3 Fonte: IBGE, Censos Demográficos 1991/2000
http://www.ibge.gov.br/7a12/conhecer_brasil/default.php?id_tema_menu=2&id_tema_submenu=5 30/08/08 consulta
20
rodovias. Resolveram, então, criar em 1975 a Comissão Pastoral da Terra
(CPT) para atender a demanda dos trabalhadores desempregados na área
rural.
A CPT estava fundamentada na teologia da libertação o que direcionava
seu trabalho para uma relação intrínseca entre os elementos ideológicos do
cristianismo e do marxismo. Foi a CPT que começou a organizar os
trabalhadores rurais sem terra acampados em várias partes do Brasil.
Assim sendo, no bojo da CPT desponta o MST que, ao longo dos anos,
começa a trilhar seu próprio caminho, no entanto, levando como herança uma
forte influência dessa Pastoral no modo de se organizar, como nos lembra
Stédile sobre a ligação do MST com a CPT. Ele nos diz:
Sempre tivemos vinculações com a CPT e com outros setores
progressistas das chamadas igrejas cristãs históricas. A CPT teve um
papel importante na fundação do movimento e foi ela que fez o primeiro
trabalho de conscientização dos camponeses. De certa forma, o MST é
um filhote da CPT. Dificilmente os camponeses teriam adquirido
consciência se a CPT não tivesse feito aquele trabalho. A CPT, nos
primórdios de 1975 a 1984, ia para o interior fazer o trabalho de base e
diziam assim: “Deus ajuda a quem se organiza, não pensem que
Deus vai ajudar vocês se ficarem rezando...”. Isso motivou que os
camponeses começassem a se organizar, seja no sindicato, seja no
partido Político, seja no MST. No início a CPT tinha uma participação
mais ativa nas ocupações de terra, porque os lavradores não tinham
ainda suas organizações. A partir de 1984, surgiram outros movimentos
também resultantes desse trabalho
(Stédile, 1997:87)
.
Sabemos que no Rio Grande do Sul tanto a igreja católica quanto as
igrejas protestantes históricas estavam muito presentes na vida daquele povo
devido a influência dos imigrantes europeus, tais como alemães, italianos,
poloneses etc. Também outro elemento histórico a se considerar naquela
época é que o ecumenismo estava começando entre essas igrejas cristãs e a
ideia ecumênica estava muito apoiada nos escritos do Concílio Vaticano II e na
21
teologia da libertação, o que proporcionou um diálogo mais próximo e
iniciativas conjuntas nas ações pastorais. Uma dessas iniciativas foi a CPT
(Lara Junior & Prado, 2004; Lara Junior, 2005).
Portanto, especificamente no norte do Rio Grande Sul a CPT tinha um
trabalho iniciado com os trabalhadores rurais acampados ao longo das
rodovias. O trabalho consistia em celebração de missas e cultos, assim como
celebrações ecumênicas. Também através das mensagens cristãs iniciaram
um processo de politização, entendido fundamentalmente dentro de uma
concepção marxista, como um processo de tomada de consciência da
realidade em que estavam inseridos e tomada de posição diante da opressão.
Como decorrência desse trabalho da CPT:
No dia 7 de setembro de 1979 um grupo de 185 famílias Sem Terra
ocupou as granjas Macali (1.630 hectares) e Brilhante (1.433 hectares),
duas fatias de um imenso latifúndio, a Fazenda Sarandi, no Norte
gaúcho. (...) Essa foi a primeira ocupação dos trabalhadores rurais bem
sucedida durante o período da ditadura militar
(http://www.mst.org.br/mst/pagina.php?cd=3892. Acesso em 13/10/08).
Essa movimentação dos trabalhadores no norte do Estado gaúcho logo
chama a atenção dos militares que, em 1981, destacam para Encruzilhada
Natalino – município de Ronda Alta – o Coronel Sebastião Rodrigues de
Moura, que tinha o apelido de Curió, para dissipar aquele grupo de
trabalhadores que começava a se organizar naquela região.
Depois de várias tentativas do “Coronel Curió” para dissipar os
trabalhadores, esses, por sua vez, resistem bravamente às investidas dos
militares. Para os autores Fernandes (1998; 1999; 2001), Medeiros et all (org.)
(1999) e Lara Junior (2005), esse fato de resistir aos militares e ocupar a
22
primeira fazenda marca o início da organização social e política daqueles
trabalhadores que viria a se chamar MST em 1984.
Desde 1981, os Trabalhadores Rurais Sem Terra foram se organizando
e reunindo-se no Brasil todo para ocupar as terras improdutivas. Porém,
foi somente em 1984, em Cascavel (Paraná), que os trabalhadores
rurais conseguiram seu primeiro Encontro Nacional, quando
oficializaram o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST)
e, logo depois, no ano de 1985, em Curitiba, realizaram o I Congresso
Nacional do MST (Lara Junior, 2005:57).
No entanto, vale destacar que desde antes das investidas do Coronel
Curió contra o MST, a violência no campo sempre ganhou destaque nos
capítulos de nossa história seja com a violência contra os índios, negros ou
mestiços
4
. Salientamos que nos últimos anos a violência no campo continua
acontecendo como nos mostram os dados fornecidos pelo MST
(http://www.mst.org.br/mst/listagem.php?sc=9 consultado em 14/11/2008): de
1980 a 1989
5
foram assassinados 909 trabalhadores rurais no interior do Brasil;
de 1991 a 1999
6
foram 367 assassinatos; de 2000 a 2005 foram assassinados
223 trabalhadores rurais em todo Brasil. Foram assassinados, nesses últimos
25 anos, cerca de 1499 trabalhadores. Ainda nesse site consta que somente
em 2004 foram presos 39 militantes em todo Brasil e em 2005 foram presos 29
militantes.
Desde os primeiros trabalhos iniciados pela CPT com os trabalhadores
rurais do norte gaúcho, constatamos que os elementos celebrativos estavam
presentes na organização daquele povo, como mostramos em pesquisa
4
Desenvolvemos a pesquisa dos principais combates históricos no campo em nossa dissertação de
mestrado. Cf. Lara Junior, 2005.
5
Nesse período não constam os dados referentes a 1985.
6
Nesse período não constam os dados referentes a 1990.
23
realizada (Lara Junior e Prado, 2004) quando entrevistamos as pessoas que
participaram desse momento histórico para o MST.
Em outras pesquisas (Lara Junior e Prado, 2004; Lara Junior, 2005; Lara
Junior 2007) constatamos que os elementos formulados pela teologia da
libertação, marxismo e religiosidade popular estavam presentes na constituição
do movimento. No entanto, nos últimos anos se faz notar também a influência
da teologia pentecostal por meio das igrejas evangélicas (Congregação Cristã
no Brasil, Universal do Reino de Deus, Deus é Amor, Renascer em Cristo,
Assembleia de Deus entre outras). Propomos nessa tese que esses elementos
vão constituindo o movimento e influenciando a constituição da sua mística.
24
Capítulo 2: Principais Correntes Religiosas e Políticas que
Capítulo 2: Principais Correntes Religiosas e Políticas que Capítulo 2: Principais Correntes Religiosas e Políticas que
Capítulo 2: Principais Correntes Religiosas e Políticas que
Constituem o MST
Constituem o MSTConstituem o MST
Constituem o MST
2.1- Teologia da Libertação (TdL)
Na cada de 1960, o contexto da América Latina era de pobreza e
violência principalmente praticada pelos regimes militares impostos em vários
países, tais como Brasil, Paraguai, Argentina e Chile. Essa dura realidade
convoca ainda mais a população em busca de direitos e de libertação desse
tipo de opressão.
Ainda nesse contexto, começa uma série de organizações populares
que se mostravam descontentes com a dominação histórica das elites. Essas
lutas populares encontraram uma fundamentação teológica que legitimava
suas ações para se libertar da opressão que os esmagava durante séculos.
Deus iria libertar o povo pobre da América Latina como fizera no Egito. Em
Jesus viam o ideal de revolucionário, como nos diz Gebara a saber:
Da mesma forma apresentava-se Jesus como um combatente por
causas sociais, um comprometido com a libertação de seu povo do jugo
romano. E mais uma vez se insistia na ideia de que quem trabalha na
luta dos pobres, na sua libertação social está continuando o mesmo
movimento libertário de Jesus e está, através de suas ações, tornando
possível o reinado de Deus na história humana. As lutas populares
encontravam assim uma fundamentação teórica que legitimava todos os
esforços de criação de relações de justiça e solidariedade
(Gebara,
2006:57)
.
Ainda na década de 1960, houve um movimento dos intelectuais
brasileiros, influenciados principalmente pelo marxismo, que começou a
repensar e reler toda a história da América Latina, especialmente a brasileira,
não mais do ponto de vista do dominador, mas do dominado. Nessa busca de
25
releitura da realidade latino-americana, surge o termo libertação com os
sociólogos Fernando Henrique Cardoso e Enzo Faletto. Para Libâneo e Murad,
esses sociólogos
elaboraram a teoria da dependência e da libertação, em oposição à
então vigente teoria do desenvolvimento. Surgiu, portanto, no cenário o
termo Libertação no sentido restrito político-econômico. A Teologia da
libertação pretende responder teologicamente à pergunta da libertação
dos povos em relação aos países centrais, das camadas dependentes
diante das estreitas faixas das sociedades ricas e desenvolvidas
(Libâneo e Murad, 1996:163).
Outro elemento que também contribui para o surgimento da TdL foram
os religiosos (jesuítas, dominicanos, franciscanos, capuchinhos), religiosas (de
várias ordens femininas) e o clero regular que estava sensível às questões
sociais, pois estavam em contato com as Comunidades Eclesiais de Base
(CEBs). Muitos desses religiosos eram missionários europeus (destaque aos
espanhóis e franceses) e norte-americanos que ajudaram a refletir e a construir
a teologia da libertação (Löwy,1991; 2000).
Outros dados que marcam a origem da teologia da libertação (TdL) são
as propostas de mudanças internas na igreja católica propostas no concílio
Vaticano II (realizado de 1962 a 1965), os documentos dos Conselhos
Episcopais Latino Americanos (CELAM) realizado em Medelín – Colômbia
(1968) e em Puebla México (1979) nos quais os bispos, influenciados pela
TdL, assumem uma opção preferencial pelos pobres em suas ações pastorais.
Essa opção, a princípio religiosa, também se torna uma opção claramente
política, pois eles não se propõem mais a estar somente ao lado das elites.
Em 1971, um jesuíta peruano chamado Gustavo Gutierrez, sensível a
toda essa movimentação dos intelectuais, da igreja católica e do povo, como
26
também o contexto histórico da América Latina, sistematiza todas essas
experiências em livro, Teologia da Libertação Perspectivas, que acaba se
tornando um marco para o início da TdL (Löwy, 1991).
A partir do conceito de libertação, os teólogos latino-americanos ganham
mais força para refletir sobre as noções centrais do cristianismo como, por
exemplo, a salvação. Esse elemento doutrinal foi compreendido à luz do
contexto social da América Latina. Eles propõem não mais uma salvação
etérea e desvinculada da realidade como a Igreja conservadora propunha até
então, mas, pelo contrário, afirmam que a salvação acontece dentro da história,
do cotidiano do povo que luta por sua libertação.
Passam a acentuar uma noção diferente de salvação a partir da qual ela
passa a ser um processo intramundano, ou seja, algo que se a partir
de nossas relações aqui e agora. É no aqui e agora que nos fechamos
às necessidades uns dos outros, é no aqui e agora que construímos
relações sociais, econômicas e políticas injustas capazes de manter
nossos semelhantes em condições sub-humanas, é no aqui que somos
capazes de tirar a vida uns dos outros pela manutenção do sistema de
privilégios de classe, de raça ou de sexo. Estes tipos de
comportamentos foram denominados de pecado. Por isso se falou muito
nesse período dos pecados sociais, dos quais todas e todos somos
mais ou menos cúmplices e, para sanar-nos deles, para libertar-nos de
nossas próprias ações más, necessitamos criar processos sociais
coletivos na linha da construção de relações de justiça nos diferentes
níveis de nossa vida. A salvação passa a ser um processo de libertação
vivido nos limites de nossa história
(Gebara, 2006:55).
Outra questão central que a TdL tratou foi a posição dos pobres
como aqueles que deveriam ser atendidos preferencialmente devido a sua
situação de abandono e miséria. Eles deveriam lutar por sua libertação
apoiados pelos cristãos, pois, para essa teologia, Jesus Cristo veio ao mundo
para libertar os pobres e oprimidos do jugo da exploração social dos romanos,
e os teólogos atualizavam essa lógica dizendo que os romanos eram as
ditaduras militares, latifundiários etc... Nessa lógica os pobres saem do papel
27
de objeto da atenção caridosa e passam a ser protagonistas de sua própria
história de libertação. A organização dos pobres deve provocar mudanças
substanciais na sociedade, pois essa não deve favorecer as elites que
historicamente governaram os países latino-americanos.
Para sustentar essa visão de classe social, os teólogos da libertação
buscam no marxismo um instrumento sócio-analítico a fim de entender as
contradições do capitalismo e propor uma luta de classe. Löwy (1991) alerta
que essa relação entre cristãos e marxistas revolucionários apagava a divisão
entre duas facções (crentes e não crentes), que com a TdL, estavam do
mesmo lado, lutando pela emancipação do povo oprimido.
Apesar da TdL ter a influência dos documentos da igreja e do marxismo,
vale destacar que essa teologia não estava presa aos domínios de Roma e de
Moscou. Por isso Löwy (2000) irá chamar esse movimento provocado pela TdL
de “igreja dos pobres”.
A TdL contava com o apoio dos teólogos e leigos da igreja católica, dos
teólogos e leigos das igrejas protestantes históricas, de intelectuais de
esquerda, de militantes de várias facções de esquerda do povo latino-
americano que se puseram como aliados na luta pela libertação da opressão,
tendo como referências os valores cristãos e marxistas.
A partir da TdL surgiram teorias e metodologias de trabalho e estudo
pensadas com e para a realidade da América Latina, tais como: a Pedagogia
da Libertação sistematizada por Paulo Freire, a Psicologia da Libertação por
Ignácio Martin-Baró, a Filosofia da Libertação por Enrique Domingos Dussel.
28
A TdL supõe que os ideais cristãos de libertação estavam presentes
na cultura do povo latino-americano e, com a politização das relações sociais,
por meio da Bíblia, ajudaria o povo a refletir sobre sua realidade social e
política, assim como a se posicionar politicamente na sociedade. Essa ação
política forneceu um suporte ideológico para que as classes populares
estruturassem suas organizações políticas.
Para que essa mobilização popular ocorresse, criaram as Comunidades
Eclesiais de Base (CEBs) como um ponto de referência para o povo pobre se
organizar e refletir sobre sua realidade.
Com relação à igreja como estrutura institucional, a grande mudança
que ocorreu a partir da década de 60 foi o surgimento das
Comunidades Eclesiais de Base, as CEBs sobretudo no Brasil, onde
elas reúnem centenas de milhares (talvez milhões) de cristãos, e, em
menor escala, em todo o continente. A comunidade de base é um
pequeno grupo de vizinhos que pertencem à mesma comunidade,
favela, aldeia ou zona rural popular e que se reúnem regularmente para
rezar, contar, comemorar, ler a Bíblia e discuti-la à luz de sua própria
experiência de vida. É preciso enfatizar que as CEBs são muito mais
convencionalmente religiosas do que se imagina geralmente: elas
apreciam e praticam uma série de orações e ritos tradicionais (o rosário,
vigílias noturnas, adoração e comemorações como procissões e
peregrinações) que pertencem à religião popular (Löwy, 2000:82-83).
As CEBs se organizam em pastorais que são trabalhos de organização
popular e religiosa de acordo com áreas prioritárias da comunidade, por
exemplo: saúde (pastoral da saúde); jovens (pastoral da juventude); criança
(pastoral da criança) etc. Nessas pastorais, as pessoas que querem realizar
algum tipo de trabalho político-religioso irão se filiar para militar de acordo com
cada necessidade.
29
A partir da ação dessas pastorais das CEBs inauguram-se importantes
organizações sociais no Brasil, a saber: o MST surge a partir da Comissão
Pastoral da Terra (CPT); o Partido dos Trabalhadores (PT) da ação pastoral de
várias pastorais da igreja católica; A Central Única dos Trabalhadores (CUT) da
ação da Pastoral Operária.
No caso específico do MST essa influência das CEBs se deu,
obviamente, por meio da CPT que influenciou diretamente na constituição do
movimento. Mesmo depois que o movimento se tornou autônomo da Igreja,
certos elementos permaneceram no movimento, como a mística, o projeto
político que mantém traços desse modelo cristão, como nos diz Löwy:
A imensa maioria dos dirigentes ou ativistas do MST procedem das
CEBs ou da Pastoral da Terra: sua formação religiosa moral, social e,
em certa forma, política, efetuou-se nas filas da Igreja dos Pobres”. No
entanto, desde sua origem, nos anos 70, o MST optou por ser um
movimento leigo, secular e autônomo e independente com relação à
Igreja. A doutrina (socialista) e a cultura do MST não fazem referência
ao cristianismo; porém, podemos dizer que o estilo de militância, a fé na
causa e a disposição ao sacrifício de seus membros, muitos têm sido
vítimas de assassinatos e até matanças coletivas durante muitos anos,
têm, provavelmente, fontes religiosas
(2008:4).
Assim sendo, podemos dizer que a TdL está presente na estruturação
do MST e da mística, pois esse conceito foi formulado no interior dessa
teologia e foram os teólogos Leonardo Boff e Frei Betto que sistematizaram
essa passagem da mística católica para a mística do MST (Lara Junior, 2007).
30
2.2- Religiosidade Popular
Para Martin-Baró (1998) o processo de dominação e exploração,
principalmente dos portugueses e espanhóis na América Latina, ocorreu a
partir da combinação entre a cruz (símbolo da religião cristã) e a espada
(símbolo dos dominadores europeus). Dessa maneira, tentavam colonizar os
povos que aqui estavam por meio do confronto armado e também se usando
da estratégia de imposição do Deus cristão aos outros povos considerados
pagãos. Cientes de que os povos indígenas possuíam uma forte relação com
os deuses, os europeus usaram desse dado para ampliar sua área de
colonização.
Vale destacar, assim como o faz Martin-Baró (1998), que, por mais que
essa dominação social e espiritual tenha se instalado nos países da América
Latina, os indígenas (depois os negros) nunca se submeteram totalmente aos
domínios da coroa espanhola e portuguesa e ao Deus cristão que traziam junto
consigo. Dessa maneira, os povos latino-americanos, ao preservar seus
deuses (indígenas e africanos), encontraram uma forma de resistir
politicamente ao processo de colonização, além de cultural e religiosamente,.
Desta mescla de imposição e de rechaço surge a religiosidade popular,
que se torna depósito de identidade social, independência cultural e
rebeldia política. Nossa tese é que as sementes latentes na
religiosidade popular tem alimentado uma surda, porém constante
resistência a toda forma de dominação cultural, e que , ao germinar
organizativamente, tem animado movimentos de rebeldia e ainda de
revolução
(Idem, 1998:203-204).
Nesse sentido, a religiosidade popular possui elementos discursivos
provindos das diversas religiões, tais como: candomblé, umbanda, religiões
31
indígenas, cristianismo etc., que estruturaram a cultura do povo latino-
americano, destaque ao povo brasileiro, e que ainda não foram apropriadas
pelas instituições oficiais como Estado e Igrejas.
A religiosidade popular no Brasil se estabeleceu, em grande parte, em
paralelo aos sistemas oficiais pelo fato de a grande maioria da população
formada por índios, negros e mestiços ter sido excluída pelo Estado das
políticas públicas que consideravam os índios e negros como escravos,
portanto, não cidadãos; os mestiços eram considerados cidadãos de
segunda categoria destinados a viver no abandono e na pobreza.
Essa população também era excluída pela Igreja das práticas “religiosas
oficiais”, pois ela não tinha padres o suficiente para atender a todas as cidades
e povoados do Brasil. Portanto, nessas localidades a religiosidade popular foi
se estruturando a partir de elementos sincréticos existentes em cada
comunidade.
Isso estimulou as crenças sincréticas desses grupos longínquos, pois
não sofreram um controle tão gido da Igreja, com isso, construíram
novos ritos, novas crenças que ganham características regionais, de
acordo com os grupos étnicos que formam o povoado ou arraial. Essa
inovação nas práticas ritualísticas facilita o acolhimento das revelações
místicas que se tornam, muitas vezes, parte do cotidiano das pessoas.
Nesse contexto, surgem os sacerdotes e sacerdotisas populares para
liderar os cultos e até mesmo para coordenar os povoados. Esses, por
sua vez, não dispunham da formação teológica dos membros da
hierarquia, apenas possuíam a vivência dentro de uma determinada
cultura impregnada de mbolos e ritos provindos dos vários povos que
compunham os povoados e arraiais
(Lara Junior, 2005:39).
Nesse sentido, Martin-Baró (1998) nos diz que historicamente a igreja
católica estava envolvida e apoiando o processo de colonização na América
Latina, com isso se torna cúmplice das elites e dos governos que exploraram e
32
mataram muitas pessoas, exterminaram várias nações indígenas, escravizaram
índios e negros. Dessa forma, são co-responsáveis pelo processo de opressão
e miséria instaurada nesse continente. Esse autor nos mostra ainda que a
religiosidade popular não faz alianças com o poder instituído, pelo contrário, ela
serve como uma forma de questionamento do poder que reproduz a gica de
opressão construída historicamente.
No entanto, com o advento da teologia da libertação um
reposicionamento da igreja católica em relação a esse processo histórico de
opressão, como vimos no item anterior. Essa teologia forneceu componentes
para que os elementos da fossem redimensionados também para as
questões políticas, nesse sentido foi de grande valia para ajudar a romper com
o fatalismo que constitui também a religiosidade popular.
O impacto mais significativo da nova orientação religiosa (TdL)
constituiu a ruptura da consciência fatalista das grandes massas
populares, em particular os campesinos. O fatalismo constitui um
elemento incorporado à religiosidade popular, pela necessidade de dar
sentido a uma situação historicamente imóvel: o universo simbólico dos
campesinos salvadorenhos assumia que a ordem estabelecida era uma
ordem natural e, por conseguinte, querida por Deus. O descobrimento
através da predicação religiosa que os homens e não Deus eram os
únicos responsáveis da situação de injustiça e opressão existentes no
país e de que inclusive aos olhos de Deus essa era uma ordem social
má, pecaminosa, contrária a sua vontade salvífica, constituiu um
verdadeiro efeito de coincidências
(Martin-Baró, 1998:211)
A TdL, por meio das CEBs, ocuparam um papel fundamental nesse
processo de politização do latino-americano, assim como no fortalecimento dos
elementos “rebeldes” constitutivos da religiosidade popular, pois nas CEBs a
leitura da Bíblia e da história era feita a partir dos pobres. Isso foi uma
mudança analítica de suma importância, pois antes essa leitura era feita de
33
maneira alienadora, era usada para manter os pobres no lugar em que sempre
estiveram, ou seja, no lugar de explorados e assim o fatalismo era mantido.
Portanto, a chamada “libertação”, pedida pelos pobres latino-
americanos, é a libertação da opressão que se instituiu historicamente por meio
da espada e da cruz. Eles exigem que possam gozar de seus direitos como
cidadãos e como seres humanos. Por meio da libertação, buscam emergir
como protagonistas de sua própria história.
Também a estratégia usada para ampliar essa ação contra o fatalismo
foi o uso da teoria e método de alfabetização elaborado por Paulo Freire que
auxiliava os povos latino-americanos a ler e escrever não as letras como a
própria história.
Na perspectiva da pedagogia freiriana, o processo libertador pressupõe
muito mais que a alfabetização, é um processo de formação da consciência
crítica. Na Educação Libertadora, não dicotomia s x eles, educador x
educando, escola x mundo etc., pois a educação é construída dialeticamente.
A alfabetização não é um jogo de palavras, é a consciência reflexiva da
cultura, a reconstrução crítica do mundo humano, a abertura de novos
caminhos, o projeto histórico de um mundo comum, a bravura de dizer
a sua palavra (Freire, 2000: 20).
Nessa perspectiva, o conhecimento vem acompanhado da consciência
de si mesmo em sua relação com o mundo, e também das relações que se
estabelecem nele: portanto, conhecer é apropriar-se da realidade na qual se
está inserido e transformá-la. Conhecer para se libertar da opressão e se tornar
mais humano, se humanizar. O conhecimento é praxiológico (argumentação
34
crítica e ação transformadora), por isso, não pode ser confundido com
conteúdo.
Outro elemento importante no processo de conhecimento, ao qual
fizemos referência, é a consciência crítica, entendida por Freire (2000; 1978)
como aquilo que recoloca a pessoa no uso pleno de sua humanidade; é a
capacidade de o sujeito ler e entender o mundo no qual vive. A consciência
crítica também é reflexão, pensar a transformação da sociedade e argumentar
com criticidade a respeito dela.
A importância do educador se torna fundamental no processo de
construção da Educação Popular, pois é ele que auxilia o educando a se tornar
um “alfabetizado político” capaz de lutar por seus direitos e assim construir uma
nova página da história por meio da ação praxiológica.
A perspectiva epistemológica de Paulo Freire está baseada no
humanismo e no marxismo-cristão que valoriza a história de vida e o
conhecimento que todas as pessoas possuem. Por isso que, para Freire, o
amor, a humildade, a esperança, a liberdade e a utopia são elementos do
humano permeando as relações com o conhecimento.
O MST, ao se constituir a partir dos trabalhadores rurais, traz consigo
elementos da religiosidade popular para o movimento e para a mística, como
nos diz João Pedro Stedile, respondendo a uma pergunta de Bernardo
Mançano Fernandes a respeito da relação do MST com a religiosidade:
É um aspecto interessante que deve chamar a atenção da sociedade.
Como é que nós, que somos de esquerda, vamos sempre à missa?
Para nós, não existe contradição nenhuma nisso. Ao contrário: a nossa
base usa a fé religiosa que tem para alimentar a nossa luta, que é uma
35
luta de esquerda, que é uma luta contra o Estado e contra o capital
(Fernandes e Stedile, 2001:131).
Portanto, a religiosidade popular está presente em práticas coletivas do
MST, tais como: a mística, ocupações, debates, resistência política (ao não se
submeter ao poder instituído) e também nas vezes em que as pessoas são
fatalistas diante da realidade.
2.3- Teologia Pentecostal
A Teologia Pentecostal, como nos mostra Lima (1987) e Campos Junior
(1995), surge nos EUA (desde 1900) a partir de uma série de
desmembramentos e divisões das Igrejas Protestantes Históricas,
especialmente Presbiterianos, Batistas e Metodistas. Desse desmembramento
decorrem novas igrejas e seitas que se autodenominam pentecostais e
encontram espaço para se desenvolver junto às camadas dos negros pobres
dos EUA que enfrentavam principalmente o problema do racismo.
A imprensa norte-americana acusava esse tipo de manifestação
pentecostal (glossolalia oração em nguas diferentes; oração em voz alta,
cantos, danças, orações espontâneas, batismo no Espírito Santo etc.) de
“africanização da cultura norte-americana”, como nos diz Campos Junior, a
saber:
No entanto, o fato ocorreu com pessoas pertencentes a um segmento
da população marginalizada pela discriminação racial e social, e que
encontraram na religião de cunho popular, uma maneira de enfrentar
essas dificuldades
(Campos Junior, 1995:23)
.
36
A palavra pentecostal se refere a “pentecostes” cinquenta dias depois
da Páscoa dos cristãos em que os discípulos de Jesus recebem o Espírito
Santo, fechando assim o ciclo da manifestação trinitária
7
do Deus cristão na
história da humanidade.
Os negros encontram, nessa religiosidade, uma forma de se manifestar
enquanto sujeitos que lutavam contra o preconceito, o racismo, a pobreza. À
medida que essa manifestação religiosa foi ganhando mais adeptos e se
tornando importante junto à população negra norte-americana, surge seu líder,
o pastor batista Martin Luther King
8
, uma referência de luta por direitos.
A partir do assassinato de Martin Luther King, certamente a população
negra e pobre perdeu uma importante referência política. Logo em seguida a
esse fato, houve a abertura do Estado para garantir alguns direitos aos negros.
De certa forma, esses dois fatores contribuíram para que as manifestações
religiosas tomassem outra tonalidade, bem menos contestatória.
Dessa maneira, podemos pensar que o pragmatismo e individualismo
como estratégias ideológicas estadunidense fizeram com que o conteúdo
contestatório dessa teologia fosse se tornando intimista que, por sua vez,
enfoca a relação da pessoa com Deus não precisando passar pela comunidade
7
O Pai criador que se revela na criação da humanidade, e é registrada essa ideia em todo o Primeiro
Testamento da Bíblia cristã e na Torá judaica. Depois, no Segundo Testamento da Bíblia cristã, se
registra a manifestação do Filho (Jesus Cristo) como redentor da humanidade e, por fim, o Espírito Santo
que se manifesta em forma de línguas de fogo para congregar todos os cristãos (ver na Bíblia cristã o
livro do Ato dos Apóstolos capítulo 2).
8
Martin Luther King, Jr. (Atlanta, 15 de janeiro de 1929 Memphis, 4 de abril de 1968) foi um pastor
protestante e ativista político estadunidense. Membro da Igreja Batista, tornou-se um dos mais
importantes líderes do ativismo pelos direitos civis (para negros e mulheres, principalmente) nos Estados
Unidos e no mundo, através de uma campanha de não violência e de amor para com o próximo. Tornou-
se a pessoa mais jovem a receber o Prêmio Nobel da Paz em 1964, pouco antes de seu assassinato. Seu
discurso mais famoso e lembrado é "Eu Tenho Um Sonho". Consultado em 07/08/2009.
http://pt.wikipedia.org/wiki/Martin_Luther_King_Jr
.
37
ou pela luta social. O Espírito Santo se torna a estratégia de distanciamento e
desconexão com a realidade, pois é tratado, nessa teologia, como o grande
mensageiro dos dons e dos milagres, pois basta orar para os milagres
acontecerem na vida dos sujeitos e na sociedade, inviabilizando assim as
tentativas de mudanças sociais por meio da política.
Cada vez mais a ideologia capitalista se aproveitava dessa teologia. O
dinheiro passa a ser valorizado e o enriquecimento não era mais um pecado da
usura, mas uma graça de Deus. Essa valorização do dinheiro faz com que as
igrejas invistam em tecnologia de marketing e de mídia para garantir que seus
fiéis sejam assistidos e enriqueçam para que o dízimo (10 % do salário) seja
doado para a igreja regularmente.
Em um primeiro momento, as igrejas pentecostais começaram a se
espalhar principalmente pela América Latina e no Brasil vinham
acompanhando, muitas vezes, os imigrantes europeus que tinham influência
das igrejas protestantes históricas e viviam essas divisões em seus países de
origem.
Tanto a Congregação Cristã no Brasil, de origem norte-america e que
chegou ao Brasil em 1909, como a Assembléia de Deus, fundada por
missionários suecos aqui chegados em 1910, vieram a ocupar um
espaço significativo no espectro religioso a partir da década de 50.
se dava nesse momento a implantação de novas denominações
pentecostais, antecipando o boom evangélico do início da década de 80
(...) (Prandi e Souza, 1996:60).
Em um segundo momento, durante a guerra fria, as igrejas pentecostais,
influenciadas em sua maioria não mais por referenciais contestatórios e sim
pelas ideologias capitalistas, se tornaram uma estratégia do governo norte-
38
americano para expandir a cultura capitalista liberal e aplacar qualquer
manifestação comunista.
Para isso, o governo estadunidense usou a “onda pentecostal” para
garantir que os países latino-americanos não se tornassem comunistas. Nesse
sentido, a teologia da libertação era uma ameaça para esse governo que
começava a incentivar a vinda de missionários das igrejas pentecostais que,
junto com a proposta evangélica, traziam um modelo de sociedade liberal
defendida através dos princípios religiosos (Lima, 1987).
Na década de 1950 a igreja católica começa a se organizar de maneira
mais efetiva, pois via o crescimento dos pentecostais no Brasil. Nesse período
cria várias iniciativas como a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, a
Juventude Universitária Católica e outros movimentos.
No entanto, foi na década de 1960 que, impelida pelas ideias do Concílio
Vaticano II, a igreja católica começa a gestar em seu seio uma teologia de
esquerda (TdL) e uma teologia de direita (Renovação Carismática Católica),
ambas reivindicando serem “filhas” das ideias e concepções do Vaticano II
(Prandi e Souza, 1996).
Na década de 1970, essa concepção de que a teologia da libertação era
uma ameaça, foi também compartilhada pela igreja católica, que, no pontificado
de João Paulo II, intensificou a ofensiva para enfraquecer as CEBs e
restabelecer a centralidade do poder na hierarquia e não mais nos leigos.
Esses por sua vez, se tornariam apenas colaboradores e não mais agentes.
39
A Teologia Conservadora
9
, entendida como a conservação dos poderes
do Papa, dos dogmas e cânones para manter o poder sobre os cristãos, é a
teologia produzida pelos teólogos da hierarquia que defendem os dogmas e a
ortodoxia da igreja católica. Sua relação com a realidade social e política é de
retomada dos poderes da igreja que foram perdidos ao longo dos tempos para
que assim ela retome sua força ideológica de regulação dos sujeitos, ou seja,
visa a retomada da hegemonia católica sem grandes preocupações com a
realidade social, mas somente com a alma dos cristãos (Martin-Baró, 1998).
Na década de 1980, a teologia da libertação foi perdendo seu espaço
dentro da igreja católica à medida que o Papa João Paulo II conhecido como o
“Papa do anti-comunismo”, ao iniciar seu Pontificado (1979), tratou logo de
tomar algumas medidas em relação ao padres brasileiros, pois tinham uma
clara opção religiosa-política pelos pobres e pela consequente organização dos
trabalhadores. Essas opções foram consideradas pelo Vaticano como
perigosas aos católicos, pois o novo papa temia uma “comunização” da igreja
no maior país católico do mundo.
Um exemplo de algumas figuras da igreja brasileira que deram atenção
aos menos favorecidos é Dom Paulo Evaristo Arns Arcebispo da cidade de
São Paulo de 1970 a 1998 (maior arquidiocese católica do Brasil) e seus
bispos auxiliares. Estes tinham um trabalho de luta contra a ditadura militar e
de auxílio na organização dos trabalhadores das fábricas em São Paulo e no
ABC
10
. Sabendo dessa força que os bispos, clero e leigos tinham junto a
população mais empobrecida e o claro enfrentamento ao regime militar, fizeram
9
Teologia oficial da Igreja Católica Apostólica Romana.
10
Santo André, São Bernardo e São Caetano. Cidades ligadas a Grande São Paulo.
40
o Vaticano tomar algumas medidas para desmobilizar a arquidiocese de São
Paulo, como transferir os bispos que auxiliavam Dom Paulo Evaristo para
pequenas dioceses do interior do Brasil em que o conservadorismo das
práticas imperava e assim suas vozes poderiam ser caladas.
Naquele mesmo ano (1979), esse panorama sofreria uma reviravolta
quando o cardeal polonês Karol Wojtyla assumiu o trono pontifical.
Tendo adotado o nome de João Paulo II, seu papado imprimiu diretrizes
claramente conservadoras em relação à Igreja. Medidas punitivas
passaram a atingir o clero progressista e foram impostas limitações à
Teologia da Libertação. Além disso, antigos dirigentes eclesiásticos
foram substituídos por cardeais e bispos afinados com as posições
conservadoras do papado (Rodrigo Feyth de Negreiros
, in:
http://www.historia.uff.br/nec/dezembro2005/teolliberta.htm. Consulta em 24/11/2008)
Outra decisão do Vaticano foi a de não mais ordenar bispos da teologia
da libertação para que esses não tivessem mais influências sobre os
seminários e assim não formassem mais padres dessa teologia, concentrando
assim o poder nas mãos de bispos conservadores ligados à direta ou
indiretamente à teologia pentecostal.
Outra medida tomada pelo Vaticano era de perseguir os teólogos da
teologia da libertação para que recuassem em suas produções e defendessem
os interesses da igreja oficial. Um caso emblemático nesse caso foi o do então
frei franciscano Leonardo Boff que publicou a obra: Igreja, Carisma e Poder,
questionando o autoritarismo da igreja católica em suas diversas formas de
relação, a saber:
Em 1981, Leonardo Boff publica o livro Igreja, Carisma e Poder uma
reviravolta na história da Teologia da Libertação: por primeira vez desde
a reforma protestante, um sacerdote católico coloca em xeque, de
maneira direta, a autoridade hierárquica da Igreja, seu estilo de poder
romano-imperial, sua tradição de intolerância e dogmatismo
simbolizada durante vários séculos pela Inquisição, pela repressão de
toda crítica vinda de baixo e o rechaço da liberdade de pensamento.
Denuncia também a pretensão de infalibilidade da Igreja e o poder
41
pessoal excessivo dos papas, que compara, não sem ironia, com o
poder do secretário geral do Partido Comunista soviético
(Löwy,
2008:2).
Diante dessa investida do Vaticano contra a teologia da libertação e
contra os evangélicos, a Renovação Carismática Católica (RCC) surge como
uma possibilidade importante de reagrupar os católicos em função das
diretrizes do Vaticano, pois a RCC nascia na igreja católica pouco crítica e era
conservadora dos poderes hierárquicos. Também surgia influenciada pela
teologia pentecostal pós-influencia da ideologia capitalista.
Na década de 1990, a igreja católica percebe que as igrejas
pentecostais prosperavam no Brasil, pois
em 1991 os evangélicos (seguidores
da teologia pentecostal não católicos) já possuíam uma população de 9%
11
que
continuava a crescer. Nesse mesmo sentido, percebiam também um aumento
das Comunidades Eclesiais de Base. Diante dessa realidade, a igreja católica
reage incentivando a ampla divulgação da Renovação Carismática Católica
(que se apoia também na teologia pentecostal) para garantir seus fiéis; também
sancionam os bispos, padres, religiosos e religiosas da TdL, fazendo com que
essa ficasse enfraquecida.
Essas medidas começaram a atrapalhar os passos da igreja popular.
Seminários vigiados, teólogos desautorizados, livros censurados, troca
de bispos, divisão de grandes e progressistas dioceses e paróquias.
Muitos foram os fatores que convergiram para o enfraquecimento da
igreja popular, um deles, sem dúvida, o próprio processo de
desmobilização da sociedade brasileira que coincide com a transição
democrática, que implicou uma nova ordem político-partidária
(Prandi e
Souza, 1996:62).
11
A população de evangélicos chegou em 2000 a 15,4%. Fonte: IBGE, Censos Demográficos 1991/2000.
http://www.ibge.gov.br/7a12/conhecer_brasil/default.php?id_tema_menu=2&id_tema_submenu=5
Consulta em 30/08/08.
42
Quando chegaram ao Brasil, os carismáticos, como o conhecidos os
seguidores da RCC, encontraram muitos problemas para penetrar nas igrejas
católicas, pois justamente traziam consigo a teologia pentecostal em toda a sua
complexidade que se parecia muito com as igrejas evangélicas.
Por um lado, os padres da teologia da libertação consideravam a RCC
um movimento alienante, porque ignora a realidade social e política do povo
brasileiro, concentrando-se apenas nas dimensões espirituais. Por outro lado, a
RCC era vista pelos teólogos conservadores como sendo pouco ortodoxa, pois
trazia para a igreja práticas relegadas como a glossolalia, oração em voz alta,
batismo no Espírito Santo entre outras.
No entanto, de movimento relegado na sua chegada ao Brasil, a RCC
recebe um grande impulso do Papa João Paulo II para que defendesse os
interesses da hierarquia da Igreja e das elites nacionais.
Na mão contrária (a da TdL), vinha a RCC com todo o apoio do
Vaticano. O incentivo político de Roma e financeiro das associações
internacionais facilitavam o caminho. Na mesma época, em um de seus
discursos, o papa insistia que na América Latina era preciso optar por
uma Igreja despolitizada (...). O Papa, de fato, se mostrava bastante
alinhado às tendências carismáticas e bem distante da opção pelos
pobres da Teologia da Libertação. Ainda que muitos bispos, padres e
teólogos se tenham mostrado opostos à Renovação, não como
negar que a Igreja Oficial tinha sim abraçado um grande projeto de
mudança
(Prandi e Souza, 1996:63).
Além de ser uma opção para aglutinar os cristãos em trânsito, a igreja
católica acabou privilegiando uma teologia que serve como um suporte para o
capitalismo em que o individualismo e a negação do sofrimento se tornam
estratégias de dominação por meio dos bens de consumo, criando a ilusão de
43
plenitude e de gozo, distanciando os sujeitos de sua realidade social, política e
econômica.
Com o Movimento da Renovação carismática (RCC), o catolicismo
conseguiu frear, de certa forma, a fuga de fiéis para outras religiões
pentecostais e aglutinou católicos em trânsito. O Brasil adquiriu um
novo rosto religioso, um rosto pentecostal e diversificado. (...) O
conteúdo de sua doutrina é intimista e pessoal. (...). Dentre as muitas
semelhanças entre a RCC e as igrejas neopentecostais, Renascer em
Cristo e Universal do Reino de Deus, por exemplo, encontramos o
combate ao demônio, o apelo emocional, o pensar positivo (energia
para mudar as circunstâncias), cultos mais animados acompanhados de
cantos e uso exaustivo da mídia. O pano de fundo (seduzir o sujeito) da
nova religiosidade coincide com o capitalismo vigente no qual existe
uma procura por soluções rápidas e superficiais. Nega-se o sofrimento
(Amaral, 2004:16).
Devido ao evidente enfraquecimento da teologia da libertação e a
eminente formação de um clero conservador, o aumento no número de
evangélicos favoreceu que a teologia pentecostal se aproximasse da
população mais empobrecida e assim disseminasse suas doutrinas. Pelo fato
do MST trabalhar com essa classe social é evidente que o número de
evangélicos pentecostais aumentou também no movimento, principalmente nos
últimos anos, como pudemos perceber em pesquisa realizada (Lara Junior,
2007).
Nessa pesquisa, constatamos que uma das lideranças do Assentamento
Zumbi dos Palmares no município paulista de Iaras era também uma liderança
de uma igreja evangélica. Destacamos que havia a presença de pastores que
realizavam cultos entre os assentados e também entre os acampados que
estavam perto do assentamento de Iaras SP. As lideranças do MST tinham
que negociar com os pastores alguns atos políticos que iriam realizar para que
não houvesse proibições que impedissem as ações coletivas. No entanto,
44
percebemos que durante a mística todos os membros do movimento
participavam, independente da religião.
Destacamos ainda que, naquele momento em que visitamos o
assentamento, pudemos perceber o surgimento de grupos religiosos
(evangélicos e católicos) que se reuniam não mais somente para rezar, mas
também para organizar os trabalhadores em torno do plantio, colheita e
distribuição dos produtos. O MST não conseguia reuni-los em torno de seus
objetivos.
2.4- O Marxismo do MST
Na concepção chamada por Löwy (2000) de marxismo cristão, a igreja
não é somente um templo religioso, mas passa a ser também um centro
comunitário de discussão de assuntos sociais, políticos, econômicos e
religiosos. Um dos locais para se realizar esses encontros dos marxistas
cristãos são as CEB's.
Mas é preciso deixar claro que as comunidades de base ajudaram a
criar uma nova cultura política no Brasil, “a democracia das bases”, em
oposição não só ao autoritarismo militar, como também às três tradições
políticas principais do país: o clientelismo praticado tradicionalmente
nas áreas rurais pelos proprietários de terra e nos centros urbanos por
políticos profissionais que distribuem favores (empregos, dinheiro);
populismo que, sob Vargas e seus seguidores, permitiu que o governo
criasse “de cima” o movimento sindical e popular; e o verticalismo,
muitas vezes utilizado pelas forças principais da “velha” Esquerda,
seguindo o exemplo soviético ou chinês. Graças a essa nova cultura, os
militantes das CEBs, com o apoio de teólogos e bispos radicais,
contribuíram para construir o movimento trabalhista de massas maior e
mais radical de toda a história do Brasil
(Löwy, 2000:148).
45
Vale destacar ainda que no período de ditadura militar (1962 a 1988)
havia muitos movimentos se organizando no Brasil, principalmente apoiados
pelas CEBs. Nesse sentido, temos no campo o MST (1980) que começava a se
organizar e nesse mesmo período tivemos nas grandes cidades a CUT (Central
Única dos Trabalhadores) e o PT (Partido dos Trabalhadores).
As lutas populares que se desenvolveram nesse período contribuíram
muito nas mudanças das estruturas tradicionais das organizações
políticas, especialmente da Igreja Católica, do novo sindicalismo
representado pela CUT e na construção do partido dos trabalhadores
(PT). Estas instituições foram, no transcorrer do tempo, as principais
matrizes político-culturais do movimento de trabalhadores rurais que
emergia (Fernandes, 1999:67)
.
A proximidade ideológica entre o PT e o MST era inegável pelo
movimento que, em muitos lugares do Brasil, acaba fundando o partido (PT) e
tenta intervir na política, principalmente dos municípios. No entanto, o
movimento faz questão de ser autônomo das decisões do PT, pois, apesar da
proximidade, o MST deveria ter sua própria perspectiva ideológica. Essa
decisão de se tornar um movimento independente foi assumida no primeiro
encontro realizado em Cascavel – PR (de 21 a 24 de janeiro de 1984).
Após três dias de intenso debate, estabeleceram-se os princípios do
novo movimento: ser conduzido pelos próprios trabalhadores sem terra,
independente da igreja, dos sindicatos e dos partidos políticos; ser
aberto a toda família; ser um movimento de massa. E foram definidos
quatro objetivos: Lutar pela reforma agrária; lutar por uma sociedade
justa, fraternal e pelo fim do capitalismo; incluir todos os trabalhadores
rurais, arrendatários, meeiros e pequenos agricultores na categoria de
trabalhadores sem terra; e garantir que a terra seja de quem nela
trabalha e dela viva
(Brandfort & Rocha, 2004:42).
Para Stedile, em reposta a uma pergunta feita por Fernades (2001), a
perspectiva ideológica do MST se estrutura a partir de dois elementos básicos:
46
o primeiro é a preocupação com a realidade, ou seja, não cair em abstrações
que não respondam às necessidades imediatas do movimento, levando em
consideração as condições sociais em que vivem os acampados e assentados.
O segundo elemento é a teologia da libertação que se vincula à ideologia
marxista e consequentemente os elementos de cunho político são concebidos,
inicialmente no MST, a partir desse referencial.
O segundo fator que nos influenciou veio, digamos, da Teologia da
Libertação. A maioria dos militantes mais preparados do movimento
teve uma formação progressista nos seminários da Igreja. Essa base
cristã não veio por um viés do catolicismo ou da fraternidade. A
contribuição que a Teologia da Libertação trouxe foi a de ter abertura
para várias ideias. Se tu fizeres uma análise crítica da Teologia da
Libertação, ela é uma espécie de simbiose de várias correntes
doutrinárias. Ela mistura o cristianismo com o marxismo e com o latino-
americanismo. Não é por acaso que ela nasceu na América Latina. Em
suma, incorporamos dela a disposição de estar abertos a todas as
verdades e não somente a uma, porque esta única pode não ser a
verdadeira. Todos os que se abasteciam na Teologia da Libertação o
pessoal da CPT, os católicos, os luteranos – nos ensinaram a prática de
estar abertos a todas as doutrinas em favor do povo. Essa concepção
de ver o mundo é que nos deu abertura suficiente para perceber quem
poderia nos ajudar (Fernandes & Stedile, 2001:59).
Esse processo de abertura e percepção das pessoas e ideologias que
poderiam ajudá-los, estimulado pela Teologia Libertação, é decorrente de certo
ecletismo marxista que estrutura a teologia da libertação (Löwy, 2000) e do
sincretismo religioso. Não foi difícil para os militantes entrarem em contato com
os textos clássicos do marxismo e formular uma proposta ideológica também
eclética, como nos diz Stedile em entrevista a Fernandes (2001), a saber:
A partir dessa concepção, fomos buscar nos pensadores clássicos de
várias matrizes que pudesse contribuir com nossa luta. Lemos Lenin,
Marx, Engels, Mao Tsé-Tung, Rosa Luxemburgo. De forma ou de outra,
captamos alguma coisa de todos eles. Sempre tivemos uma luta
ideológica e pedagógica dentro do movimento de combater rótulos. Se
Lenin descobriu uma coisa que pode ser universalizada na luta de
classes, vamos aproveitá-la; se Mao Tsé-Tung, naquela experiência de
organizar uma revolução camponesa, descobriu coisas que podem ser
47
universalizadas ou aproveitadas, vamos assimilar. Isso não quer dizer
que vamos copiar tudo o que foi feito na China, o que seria um absurdo,
uma ignorância. Aliás, o PC do B tentou isso no passado e não deu
certo
(Fernandes & Stedile, 2001:59-60).
E para exemplificar mais essa ideia da influência marxista eclética na
estruturação ideológica do movimento, Stédile encerra sua fala mencionando o
Evangelho como sendo outro elemento que influencia “a mística” do
movimento, como se essa fosse uma espécie de arcabouço ideológico que os
permitisse “ver diferente”. “O próprio Evangelho, não como uma religião mas
como uma doutrina, também tem uma influência sobre nossos valores, nossa
cultura, na forma de ver a mística, na forma de ver diferente...” (Fernandes &
Stedile, 2001:60).
Quando questionado por Fernandes (2001) sobre os pensadores
brasileiros que são referências para o movimento, Stedile cita: Josué de
Castro, Manuel Correia de Andrade, Celso Furtado, Florestan Fernandes,
Paulo Freire, Darcy Ribeiro, Leonardo Boff, Clodovis Boff, Dom Tomás
Balduíno, Pedro Casaldáliga, Luis Carlos Prestes. Na América Latina cita:
Ernesto Che Guevara, José Martí, Fidel Castro, Sandino, Emiliano Zapata. Ele
cita também Nelson Mandela, Samora Machel, Amílcar Cabral, Patrice
Lumumba, Agostinho Neto, Martin Luther King entre outros.
Podemos verificar que a lista de pessoas que servem de referência
ideológica para o MST é bastante significativa e eclética. Pensamos que com
essas várias influências ideológicas, o movimento foi construindo sua própria
maneira de conceber o marxismo.
48
Dessa maneira, foi estruturando por si mesmo a formação política do
seu quadro de militantes, especialmente nos cursos e congressos, onde os
intelectuais simpatizantes à causa do movimento foram transmitindo e
sistematizando essa experiência política do movimento. Hoje o MST tem
parcerias com importantes universidades, tais como: UNICAMP (Universidade
de Campinas – SP); várias UNESP (Destaque para a Universidade Estadual de
São Paulo campus Presidente Prudente onde trabalha o professor Bernardo
Mançano Fernandes, um dos principais estudiosos do MST no Brasil);
Universidades Federais dentre outras.
Essas instituições, em parceria com o movimento, montam cursos de
formação profissional e política para os militantes. O MST também fundou a
escola Florestan Fernandes no município paulista de Guararema, visando
prover uma formação técnica e política aos seus quadros, pois o estudo se
torna uma forma de conceber as próprias ideias.
O estudo é outro princípio que aprendemos e procuramos aplicá-lo da
melhor forma possível. Se tu não aprenderes, não basta a luta ser justa.
Se não estudares, consequentemente nem tu nem a organização irão
longe. O estudo nos ajuda a combater o voluntarismo, esse negócio de
“deixa que eu chuto”. Isso não resolve. O jogador de futebol, por mais
craque que seja, tem que treinar pênalti todos os dias depois do treino
tático. Senão vai errar. Na luta social é a mesma coisa: tem que
estudar. Isso nos disseram todos os líderes com quem conversamos e
que possuem uma experiência histórica de lutas (Fernandes & Stedile,
2001:42).
Sabedor da importância de estudar e se apropriar do conhecimento, não
acadêmico, como também das experiências das outras organizações
campesinas e políticas que antecederam o MST, o movimento constrói sua
própria maneira de fazer política e de elaborar suas ideologias.
49
Essas ideologias políticas do MST são permeadas pelo sincretismo
religioso e pelo ecletismo marxista herdado da teologia da libertação. Isso
demonstra que o MST não é um movimento social exclusivamente marxista de
uma corrente ideológica definida, ou uma extensão da teologia da libertação.
Ele é um movimento que possui sua própria característica ideológica, que
compõe o pensamento de esquerda no Brasil.
Destacamos que esses elementos políticos estão presentes na mística,
que, por sua vez, se tornam um espaço privilegiado para que essas ideologias
políticas sejam transmitidas e formuladas.
50
Capítulo 3: Toda
Capítulo 3: Toda Capítulo 3: Toda
Capítulo 3: Toda Teologia é Alienadora?
Teologia é Alienadora?Teologia é Alienadora?
Teologia é Alienadora?
Para tentarmos responder a essa questão, abordaremos agora a crítica
que Habermas (1991) faz a Max Horkheimer da escola de Frankfurt, quando
esse trata de temas ligados à religião. Obviamente não temos como objetivo
nesse trabalho focar nos meandros de uma discussão entre dois pensadores
importantes como Habermas e Horkheimer e sim perceber nas ideias de
Habermas conceitos que nos ajudem a responder a questão posta por nós no
título deste capítulo.
Para Habermas (1991), Horkheimer, ao se referir à religião, se
fundamenta basicamente na metafísica negativa de Schopenhauer, no
judaísmo e cristianismo assim como nos princípios da razão iluminista. Essas
influências deixaram Horkheimer produzindo conceitos baseados em uma
razão cética, o que o impede de considerar em suas formulações a
solidariedade e a justiça como ideias racionais que deveriam ser consideradas
no mundo secularizado. Por outro lado, Habermas afirma que solidariedade e
justiça fazem parte da ética da compaixão e que, portanto, não negam a justiça
e que por isso não devem ser excluídas da razão. Então, por que ficar somente
com o deserto da razão de Horkheimer?
Para Habermas, teóricos como Horkheimer se usam da filosofia para
criticar a religião em prol da razão, argumentando que a teologia não usa de
todos os atributos que a razão pode oferecer se apegando, assim, a elementos
que dispersam o puro uso da razão. A consequência desse fato é que a
filosofia abandonou os conteúdos religiosos da moral, de Deus e se apegou
numa forma de releitura laica desses conteúdos. Isso faz com esses conteúdos
51
estejam prontos para serem usados pela razão apego ao iluminismo e ao
idealismo pessimista de Schopenhauer que proporciona assim uma leitura
materialista pessimista da religião.
Após o iluminismo, o verdadeiro na religião pode ser salvo por meios
que eliminam a verdade. Nesta situação, incômoda, encontra-se uma
teoria crítica que deve “substituir” a teologia, pois após a concepção
Horkheimer, tudo aquilo que se relaciona com a moral tem, por último, a
sua origem na teologia. A supressão racional da teologia e dos seus
conteúdos essenciais modernamente, como pode isto ainda ser
possível de realizar sob condicionalismos de uma crítica da metafísica
não mais anulável, sem ser de fato necessário destruir o sentido dos
conteúdos religioso nem a razão propriamente dita? Horkheimer, o
materialista pessimista dirige esta pergunta a Schopenhauer, o idealista
pessimista. Após surpreendente interpretação de Horkheimer, a
contemporaneidade de Schopenhauer consiste de fato de que seu
negativismo consequente salva o “espírito do evangélico”.
Schopenhauer parece ter conseguido o impossível, isto é, fundamentar
de forma ateísta aquela moral baseada na teologia portanto, reter a
religião sob a dedução de Deus (Habermas, 1991:107).
A dialética entre justiça e solidariedade foi uma forma cristã de fazer os
indivíduos se responsabilizarem historicamente por seus atos, seja para prestar
contas a Deus ou quando essa religião assumiu sua culpabilidade histórica.
Com isso houve um agrupamento de leigos e teólogos de esquerda tentando
libertar a igreja de sua relação amorosa com o Estado. Nesse sentido, as
questões sociais e políticas são acrescidas às preocupações religiosas e com
isso forma-se a figura do engajamento religioso.
Com um entendimento pouco dogmático entre transcendência e crença,
este engajamento toma a sério os objetivos deste mundo de
emancipação social e dignidade humana, e anexa-se numa arena de
múltiplas vozes, a outros, a favor de uma democratização radical nas
forças que se impõem (Habermas, 1991:122).
52
Com isso surge uma teologia crítica que supõe uma práxis sem
necessariamente quebrar as ligações com a linguagem e culturas seculares. As
tramas morais contextualizadas, de certa maneira, estão amarradas a
princípios religiosos reguladores que os colocam ligados a um elemento
universal. Neste sentido, indivíduos encontram em ricas tradições constituintes
de identidades um apoio para a auto-certificação de suas questões
fundamentais. E a pergunta pela própria identidade está ligada, certamente, a
um conceito de bom que influencia cada partido político que, juntos com os
outros partidos devem buscar um referencial de vida boa e digna As igrejas
hoje são comunidades de interpretação onde se discutem abertamente as
questões relativas ao bom e à justiça (Habermas, 1991).
No entanto, as comunidades eclesiásticas concorrem com outras
comunidades de interpretação para que releituras da experiência religiosa
aconteçam. Vale destacar que, segundo Habermas, são essas comunidades
eclesiásticas com seus teólogos que, em tese, dominam essa linguagem para
ler e interpretar as experiências religiosas.
A filosofia, ao tentar ler uma experiência religiosa no contexto religioso
não consegue expressá-la plenamente, pois a experiência tem um estatuto
religioso e não filosófico. Quando aparecem vocábulos como luz messiânica,
redenção etc., a filosofia não consegue lidar com esse contexto religioso e não
pode apresentar um discurso que saiba tratar dessa experiência que passa a
ser reduzida, pela filosofia, a mera citação.
A filosofia não pode apoderar-se daquilo que é tratado no discurso
religioso enquanto experiência religiosa; esta é admitida no aparato
das experiências da filosofia e reconhecida com seu próprio suporte de
experiência, quando a filosofia a identifica sob uma descrição que não
53
foi tomada da linguagem de uma determinada tradição religiosa, mas
que pertence ao universo da fala justificativa, desligada do evento da
revelação (Habermas, 1991:127).
Também essa lógica se aplica à teologia quando essa não reconhece
mais a experiência religiosa como sua base e fundamento, perdendo assim sua
identidade.
(...) De modo análogo, a teologia perde igualmente sua identidade a
partir do momento em que só cita experiências religiosas, e não mais as
reconhece como base própria, entre descrições do próprio discurso
religioso. Por isso mesmo, sou da opinião de que um diálogo tem, entre
uma teologia e uma filosofia que se servem da linguagem dos autores
religiosos e se encontram por intermédio de experiências religiosas, que
se tornaram literárias, necessariamente de falhar (Habermas,
1991:127).
Para Habermas os discursos religiosos estão irmanados com uma práxis
ritual na qual a fé é protegida pelo culto de problematizações radicais
regulação e renovação das verdades fundamentais da fé. o discurso
teológico é diferente do discurso religioso, pois este se liberta da práxis ritual
na medida em que busca explicar essa práxis.
Também a teologia procura enunciações de verdades. Apesar das
reflexões do discurso teológico esse não representa perigo ao culto da
comunidade enquanto esse se servir dos conceitos metafísicos que assim
garantem as bases de um discurso universal desgarrado da necessidade de
validação e comprovação empírica, visto que a base está na experiência
religiosa. Todavia, com o desmoronamento da metafísica
quem hoje tem uma pretensão de verdade sob as condições do
pensamento pós-metafísico tem, necessariamente, de transpor aquelas
experiências que têm o seu assento no discurso religioso, para a
54
linguagem de uma cultura científica de peritos e, a partir daí, traduzir
de volta para a práxis (Habermas, 1991:128).
Neste sentido, a filosofia ocupa o papel de intérprete que fornece
conteúdos essenciais à práxis cotidiana de uma cultura de peritos, e, com isso,
se aproxima da teologia, deixando tênue sua diferenciação. A partir disso se
estrutura o que Habermas chama de ateísmo metódico interpretação
teológica dos discursos religiosos, desmistificação que iguala a experiência
religiosa a uma mera experiência do cotidiano, esvaziada de seu sentido
original. Mesmo assim, ainda o discurso religioso oferece, de alguma maneira,
coragem e engajamento para que os desgraçados e humilhados possam lutar
por seus direitos. Que outra comunidade oferece isso? Pois perguntar-se sobre
o sentido da vida não é uma questão absurda.
Para superar essa discussão sobre religião posta na filosofia e na
teologia, Habermas propõe a ação comunicativa como uma práxis capaz de
fornecer esperança para se obter um diálogo com amplo princípio para
investigação da razão comunicativa.
Enquanto sujeitos ativos comunicativos, nós estamos sujeitos a uma
transcendência introduzida nas condições linguísticas de reprodução,
porém, sem lhe ficarmos entregues. Esta concepção rima mal com
aquela ilusão produtiva de uma espécie autocriadora que toma o lugar
de um absoluto renegado. A intersubjetividade linguística excede os
sujeitos, contudo, sem os tornar submissos. Ela não representa uma
subjetividade superior e pode, por isso mesmo, e sem abandono de
uma transcendência, prescindir do interior do conceito de um absoluto.
Podemos identicamente renunciar tanto a herança do cristianismo
helenizado, como aquela construção sucessora dos hegelianos de
direita (...) (Habermas, 1991:144-145).
55
Nesse sentido, a ação comunicativa surge como uma forma conciliadora
de se ter o pleno uso da razão, como afirmava Horkheimer, sem abandonar ou
renegar em sua formulação os elementos do discurso religioso, principalmente
no que tange a formulação de universais que possam ser comunicados a todos
os indivíduos.
Dessa maneira, se evita a rota de colisão com o idealismo pessimista de
Schopenhauer, e o deserto da razão iluminista. Ação comunicativa busca, no
discurso religioso, aqueles elementos que ainda fornecem elementos para os
humilhados e desgraçados, como nos diz Habermas (1991), encontrarem
sentido para seu existir cotidiano. Se não houvesse esse discurso, onde
encontrariam forças para resistir politicamente? Também não descarta o rigor
filosófico da razão capaz de trazer para os indivíduos condições de crítica e
revisão dos elementos religiosos e políticos.
Seguindo esse raciocínio de Habermas, podemos verificar que a teologia
entendida como uma forma de produção de enunciado, baseada no discurso e
na experiência religiosa, estrutura e atualiza as mais variadas formas de
crenças. Sobre esses aspectos ela produz seus enunciados não somente
sobre a divindade, como também sobre questões morais.
Habermas (1991) também abre a possibilidade de considerarmos alguns
elementos religiosos para se compreender a moral, assinalando, assim, que a
razão não fica descartada dessa consideração. Em nada isso invalida o uso da
razão, pois o discurso teologal nos oferece universais capazes de salvaguardar
direitos (justiça e solidariedade).
56
Essa compreensão dos discursos teologais se refere, evidentemente, às
igrejas consideradas de tradição histórica (cristianismo, judaísmo, islamismo
etc.), desconsiderando igrejas sem esse acúmulo secular de experiência
religiosa.
Habermas, por um lado, está preocupado em trazer para a discussão
filosófica certos aspectos do discurso religioso, e para isso foi incisivo na crítica
à razão cética, a Horkheimer e ao pessimismo de Schopenhauer. Por outro
lado, os trabalhos de Michael Löwy (1991, 2000) mostram que Marx e sua
referência mais popularizada sobre a religião
12
precisa ser entendida em seu
contexto teórico. Nesse sentido, vale destacar que Marx (2005), quando
escreveu sobre religião como ópio, era apenas um discípulo de Feuerbach e
ainda não tinha formulada sua tese marxista. Porém ele preserva em seu
pensamento a dialética, e com isso aponta também para as contradições que a
religião traz.
Somente mais tarde – e em particular com a Ideologia Alemã (1846) – é
que começou o estudo estritamente marxista da religião como realidade
social e histórica. Em outros termos, uma análise da religião como uma
das numerosas formas de ideologia, de produção espiritual do povo, da
sua produção de ideias, de representações e de consciência
necessariamente condicionada pela produção material e pelas relações
sociais correspondentes. Ora, a partir desse momento, Marx não dedica
senão uma atenção muito reduzia à religião enquanto tal, como
universo cultural/ideológico de significação específica. Friedrich Engels
manifesta um interesse bem maior do que Marx pelos fenômenos
religiosos e seu papel histórico (Löwy, 1991:12).
Foi Engels que apresentou a religião como uma forma cultural sujeita a
transformações e usos ideológicos de acordo com cada momento histórico e
12
“A angústia religiosa constitui ao mesmo tempo a expressão da miséria real e o protesto contra a
miséria real. A religião é o suspiro da criatura oprimida, o ânimo de um mundo sem coração e a alma de
situações sem alma. Ela é o ópio o povo” (Marx, 2005: 145).
57
que sempre está atrelada à questão da luta de classes. Nesse sentido, não
necessariamente a religião sempre se identifica com toda causa reacionária. O
fenômeno religioso era visto como portador de uma dualidade fundamental
importante, pois ora defendia a ordem estabelecida, ora fornecia elementos
ideológicos para causas revolucionárias.
Ainda Engels em sua análise, apresenta um paralelo entre o cristianismo
primitivo entendido como a religião daquelas pessoas dos mais baixos níveis
da sociedade (pobres, escravos alforriados etc.) que começavam a se
organizar em torno da religião cristã. E Löwy nos mostra um paralelo que
Engels faz entre religião cristã primitiva e socialismo. Vejamos:
a) Esses dois grandes movimentos não foram criados por chefes ou
profetas – se bem que os profetas não faltem nem em um nem em outro
desses movimentos – mas eram movimentos de massa; b) eram ambos
movimentos de homens e mulheres oprimidos; sujeitos a perseguição,
seus membros eram proscritos e perseguidos pelos poderes públicos; c)
todos os dois anunciavam uma libertação iminente da escravidão e da
miséria. (...) A diferença essencial entre esses dois movimentos,
segundo Engels, era que os cristãos primitivos postergavam a libertação
para além da morte, enquanto o socialismo colocava neste mundo
(Löwy, 1991:14-15).
Portanto, ainda nessa revisão da relação entre marxismo e religião Löwy
(1991, 2000) vai mostrando que nem todos os marxistas eram simpáticos a
essa aproximação com o cristianismo como é o caso de Otto Bauer e Max
Adler e outros. Nessa relação do marxismo e da religião não queremos ser
simplistas ao enfocar essa questão, pois reconhecemos a dimensão dessa
discussão nas ciências sociais nos últimos anos, no entanto deixamos a
menção de que essa relação é possível para alguns e abominável para outros.
Nesse sentido, wy (1991, 2000) faz uma revisão da literatura marxista
e vai apontando como Marx e Engels, apesar de críticos e irreconciliáveis com
a religião, não se mostram tão hostis à questão da religião como, muitas vezes,
58
uma leitura rápida e desatenta desses autores nos leva a concluir. Nesse
sentido, alguns marxistas vão tecendo suas relações com a religião sejam elas
de modo crítico, como de certa aproximação como é o caso de Rosa
Luxemburgo. A esse respeito vejamos o que nos diz
Löwy
:
Em um opúsculo de 1905 intitulado: A Igreja e o Socialismo, afirma que
os socialistas modernos eram mais fiéis aos preceitos originais do
cristianismo que o clero conservador de hoje (...) Os primeiros
apóstolos do cristianismo eram comunistas apaixonados e os padres e
primeiros doutores da Igreja (como Basílio, O magno e João
Crisóstomo) denunciavam a injustiça social. Hoje essa causa tem sido
assumida pelo movimento socialista que leva aos pobres o evangelho
da fraternidade e da igualdade, e chama o povo para estabelecer, sobre
a terra, o reino da liberdade e do amor ao vizinho (Löwy, 1991:17).
para a autora Agnes Heller a religião é considerada como sinônimo
de alienação, pois os sujeitos que se utilizam dos elementos religiosos para
estruturarem seu cotidiano não conseguem perceber quem domina os meios
de produção e, consequentemente o quanto são explorados ao vender, sua
mão de obra.
A religião é um fenômeno de alienação, porém secundário: é uma
consequência, uma projeção ideológica da alienação social. A forma
mais corrente dessa alienação é a ideia de dependência do
transcendente
(Heller, 1991:162).
Na lógica de Agnes Heller, a religião ajuda a formar os “passivos
fatalistas” e os “emudecidos” diante das contradições do capitalismo, pois
transmite certas ideologias, tais como: comunidade ideal, céu, inferno,
reencarnação, ressurreição etc., que acabam impulsionando o sujeito a se
desvincular das lutas materiais (luta de classe), de um contexto material para
se vincular a algo que está fora dessa realidade material, ou seja, para além
dos conflitos do cotidiano.
59
Todavia, a religião pode induzir os sujeitos a emitir juízos religiosos-
políticos, principalmente quando uma sociedade específica se sente
ameaçada. Como a religião atua na formação do núcleo ideológico do
cotidiano, os sujeitos são capazes de se unir e até morrer por esses ideais.
Vale lembrar as guerras santas no Oriente Médio, as Cruzadas da Igreja
Católica etc.
Todavia, wy (2000) afirma que essa análise de Marx (2005) é
aplicável aos movimentos conservadores e fundamentalistas do cristianismo,
judaísmo e islamismo e às correntes evangélicas e outras igrejas interessadas
em explorar os fiéis com as taxas de dízimo, por exemplo. Esse autor faz
questão de enfocar que, com o advento da teologia, a libertação no interior da
igreja católica coloca em questão a afirmação marxista de que a religião é o
ópio do povo.
Entretanto a emergência do cristianismo revolucionário e a teologia da
libertação na América Latina (e algures) abre um novo capítulo histórico
e coloca questões novas e estimulantes às quais não se pode
responder sem renovar a análise marxista da religião
(Löwy, 1991:07).
Por isso, ao se tratar de religião no Brasil é preciso também conhecer os
diferentes discursos teologais que a estruturam, especialmente na igreja
católica, pois isso define não somente a crença, prática religiosa e a opção
política. Por isso aderir a uma religião e sua correspondente teologia, em última
instância, é uma opção religiosa-política (Lara Junior, 2007).
Podemos verificar nesse contexto latino-americano uma série de padres,
religiosos, religiosas e leigos aderindo às mais diferentes formas de luta
revolucionária, seja ela armada ou não. Também muitos desses se engajaram
60
em partidos políticos visando uma participação mais efetiva nos cenários
políticos locais
13
.
A partir desses pontos que citamos, a nossa realidade latino-americana
nos mostra que essa perspectiva de relacionar a religião com o marxismo se
configurou em uma forma de fazer teologia que foi chamada de “teologia da
libertação”, formulada pela igreja católica e algumas igrejas protestantes
históricas que se põem como aliadas dos pobres em sua luta pela libertação da
opressão. Dessa tomada de posição política dessas igrejas, muitos
movimentos populares surgiram com suas próprias metodologias de trabalho e
estudo. Destacamos no Brasil a “Pedagogia da Libertação” sistematizada por
Paulo Freire, a partir da leitura de mundo feita pelos pobres.
Ainda nessa perspectiva, fruto desse trabalho de organização do povo
em torno do referencial religioso-marxista, muitos sindicatos, partidos políticos,
movimentos populares e alguns movimentos sociais (destaque ao MST)
surgem desse referencial e entram no cenário político nacional e latino-
americano em busca dos direitos das maiorias exploradas ou oprimidas.
Nesse sentido, vale destacar que, no contexto da América Latina,
também crescente número de evangélicos neo-pentecostais que fazem
questão de defender políticas conservadoras, principalmente de cunho moral,
com o propósito de regular comportamentos de seus fiéis e, para isso, um
caminho encontrado foi a via da política institucional. Isso mostra certo retorno
ao mais alienante da religião como muitos autores criticam. Dessa maneira,
13
Recentemente o ex-bispo católico Fernando Lugo foi eleito presidente do Paraguai em 2009.
61
portanto, pertencer a uma religião neste continente é possuir um
posicionamento político.
62
Capítulo
Capítulo Capítulo
Capítulo 4
44
4: A Mística do MST como Ação C
: A Mística do MST como Ação C: A Mística do MST como Ação C
: A Mística do MST como Ação Coletiva
oletivaoletiva
oletiva
No MST há uma ação coletiva
14
que conjuga, em sua estruturação,
cantos de contestação, religiosos, sicas regionais; danças (em geral danças
típicas de cada região); rituais (procissões, caminhadas etc.); encenações
(performances que, em geral, representam um personagem importante da
história de luta social); símbolos do movimento (bandeira, boné, camiseta entre
outros), símbolos da luta pela terra (ferramentas, frutos da terra), discursos
políticos (em geral com conteúdo marxista), orações e preces religiosas. A
esse tipo de ação coletiva o MST denomina mística.
Não existe uma ortodoxia imposta pelo MST para se ter um único
modelo de mística, não um cânone, como, por exemplo, o da missa católica
que segue o mesmo padrão em qualquer parte do mundo. Dessa maneira,
essa ação coletiva realizada no movimento se estrutura com contornos
específicos, dependendo dos objetivos do movimento e do grupo, realidade
local em que é feita e, principalmente, se estrutura a partir das características
das pessoas que participam da mística.
Mas a mística também evoca a materialização (geralmente simbólica)
deste sentimento na beleza da ambientação dos encontros, nas
celebrações, na animação proporcionada pelo canto, pela poesia, pela
dança, pelas encenações de vivências que devem ser perpetuadas na
14
Ação coletiva é um conceito bastante utilizado na análise de movimentos sociais para demonstrar a
ação que representa os objetivos, recursos e limites do movimento construídos por meio de relações
sociais, e essas também servem para ativar e reatualizar as próprias relações assim como para prover
sentido aos objetivos e também ao agir comum do movimento. Nesse sentido, Melucci (2001:46), nos diz:
“A ação coletiva é um sistema de ação multipolar que combina orientações diversas, envolvendo atores
múltiplos e implica um sistema de oportunidades e de vínculos que forma às suas relações. Os atores
produzem a ação coletiva porque são capazes de definir-se e de definir a sua relação com o ambiente
(outros atores, recursos disponíveis, possibilidades e obstáculos). A definição que os atores constroem
não é linear, mas produzida por meio da interação, da negociação, da oposição entre orientações
diversas. Os atores formam um ‘nós’ colocando em comum e ajustando laboriosamente três orientações:
aquelas relativas aos fins da ação (isto é, do sentido que a ação tem para o ator). O sistema multipolar da
ação de um ator coletivo se organiza, por isso, em torno de três eixos (fins, meios, ambiente), que devem
ser considerados como um conjunto de vetores interdependentes e em tensão entre eles”.
63
memória, pelos gestos fortes, pelas homenagens solenes que se presta
aos combatentes do povo. Lembra os mbolos do movimento, seus
instrumentos de trabalho e de resistência, seus gritos de ordem, sua
agitação, sua arte. A palavra e boa parte do seu sentido o MST trouxe
como herança de sua relação de origem com a Igreja, por sua vez
misturada com a própria cultura camponesa, acostumada a atribuir
novos significados às coisas da natureza com as quais convive e
trabalha todo dia, geralmente vinculados a sonhos de uma vida melhor.
Se a terra é mais do que terra, uma bandeira pode ser mais que uma
bandeira; uma cruz pode ser mais que uma cruz; uma foice... uma
canção... um grito... uma escola... (...)
(Caldart, 2000:134)
No entanto, em outro estudo realizado (Lara Junior, 2007)
demonstramos a origem etimológica e conceitual da mística na filosofia,
teologia, antropologia, dicionário da língua portuguesa e no MST. Demarcamos
nesse estudo os pontos de intersecção entre essas várias ciências no que
tange à compreensão da mística em todas as suas possibilidades e onde a
mística do MST resgatava esses elementos conceituais da mística religiosa.
No catolicismo a mística é definida de várias maneiras dependendo da
corrente teológica, no entanto em um trabalho realizado (Lara Junior, 2007)
fizemos uma revisão de literatura a esse respeito e verificamos que a mística
religiosa católica, reconhecida pelo Vaticano, se fundamenta em uma
experiência individual do sujeito com a divindade. Nessa concepção, portanto,
a experiência mística não pode ser expressa totalmente por meio das palavras;
ela precisa das várias formas de simbologia, vivências e sentimentos para se
ter ideia da experiência vivida pelo místico.
Outro elemento a se ressaltar na mística do catolicismo é que essa
necessita do contorno da religião para ser aceita pela igreja, pois supõem que
uma experiência mística, para ser verdadeira, precisa estar ligada à mensagem
de Jesus e da Igreja, caso contrário essa experiência é relegada.
64
Também vale destacar que a experiência mística nessa análise fica
sempre restrita a um sujeito e que, em geral, está ligado ao êxtase religioso. A
coletividade, em geral, recebe ou rechaça essa manifestação colocando no
místico a figura daquele que se relaciona com a divindade (do bem ou do mal)
e que assim pode interceder pelos demais. A repercussão da manifestação do
místico reverbera em ações coletivas diversas, tais como: fundar uma nova
religião; mudança de hábitos e costumes, mudança de status social adquirida a
partir do suposto contato do interlocutor com a divindade etc. (Lara Junior,
2007)
Os teólogos da libertação, destacamos Leonardo Boff e Frei Betto
(1994), fazem um esforço teórico para que a concepção de mística saia dos
domínios da igreja católica e chegue aos movimentos sociais. Diferentemente
da concepção oficial da igreja, esses autores dizem que o místico é aquele
que, diante do mistério, capta a mensagem de Deus e se põe a caminho para
lutar por libertação. A experiência mística, portanto, é individual e coletiva.
Para os católicos da teologia da libertação, Jesus Cristo é o ícone do
místico Deus-Homem, comprometido com as causas de seu povo. Essa
crença religiosa faz com que o místico não se aliene de sua realidade e,
mais ainda, por coerência com seu Deus, que é comprometido com os
empobrecidos, torne-se um referencial de luta e resistência em sua
comunidade (Lara Junior, 2007:12).
Para Leonardo Boff e Frei Betto (1994), a força do militante advém da
mística (mystérion mistério) que provoca esse processo de encontro com o
divino e com as causas sociais. Com essa concepção, os autores trazem o
elemento fundamental para a mística nos movimentos sociais que é justamente
o contorno comunitário e menos individual, ponto de vista diferente da teologia
oficial da igreja.
65
A pessoa é levada a experimentar, por meio de celebrações, cânticos,
danças, dramatizações e realização de gestos rituais, uma revelação ou
uma iluminação conservada por um grupo determinado e fechado.
Importa enfatizar que o mistério está ligado a esta vivência/experiência
globalizante (Boff & Frei Betto, 1994: 12).
Essa concepção de mística sistematizada por Boff e Frei Betto (1994)
influencia a formação do MST, como consta em toda a primeira parte desse
trabalho. Nesse sentido, Lara Junior (2007) nos mostra que a mística do MST é
fruto de uma influência da Igreja misturada à experiência cultural e religiosa dos
camponeses. No entanto, hoje a mística no MST foi re-significada de acordo
com seus próprios referenciais, pois ela expressa os valores e convicções do
movimento. Portanto, a mística do MST é uma experiência individual, conforme
herança trazida da mística religiosa, no entanto feita no coletivo. Os militantes
afirmam sentirem-se fortes pessoal e coletivamente para enfrentar as
adversidades. É essa força sentida pelos militantes no grupo que os motivam a
lutar por uma causa.
O MST trata da mística como sendo o tempero da luta ou a paixão que
anima os militantes. Não é simples explicá-la exatamente porque sua
lógica de significação não se expressa tanto em palavras, mas muito
mais em gestos, em símbolos, em emoções. Na própria palavra está
contido o limite de sua compreensão: stica quer dizer mistério, ou
seja, se for completamente desvelada perderá a essência de seu
sentido. É por isto que, no movimento, se costuma concordar com a
afirmação de que a mística é uma realidade que mais se vive do que se
fala sobre ela. Mas, de qualquer modo, é possível identificar alguns
elementos deste sentido para podermos compreender como participam
da formação dos Sem Terra (Caldart, 2000:133-4).
66
Um elemento importante que aparece na mística do MST, e que foi
apontado em pesquisa anterior (Lara Junior e Prado, 2004), é a forte influência
do sincretismo religioso e da religiosidade popular, que faz com que essa
mística ganhe contornos peculiares, pois nessas concepções os elementos
políticos se misturam com a religião no cotidiano do camponês brasileiro e
latino-americano.
Dessa forma a mística do MST se constitui a partir da articulação de
vários elementos discursivos provindos não da religião como também da
política. Pensamos que nesse ponto incide a peculiaridade e a singularidade da
mística do MST. Ela nasce da influência religiosa, no entanto a experiência se
faz individualmente circunscrita pela ideologia religiosa, mas também é coletiva
à medida que se relaciona com os elementos políticos. Por esses motivos a
mística do MST se constitui em um movimento social e não em um movimento
religioso.
Vale destacar que não foi percebido até agora nas literaturas
pesquisadas para esse estudo e também em nossas pesquisas a ocorrência do
êxtase individual e coletivo na mística do MST como nos moldes da mística
religiosa.
Outra peculiaridade é que a mística do MST pode acontecer em vários
locais, não ficando restrito a um templo ou a um lugar sagrado. Em geral, o
movimento realiza essa ação coletiva em acampamentos (local provisório, em
geral na beira das autopistas, em que os acampados se preparam para a
ocupação ou assentamento); em assentamentos (local onde os sem-terras
ocupam para plantar de maneira provisória ou definitiva); em cursos; em
67
congressos; em festas; em aulas etc. A mística não tem hora marcada para
acontecer, pois, na maioria das vezes, as manifestações surgem de modo
espontâneo.
Outro exemplo que podemos citar parte do meu estudo anterior, A
Mística no Cotidiano do MST: a Interface entre a Religiosidade Popular e a
Política, que demonstra a mística do MST como um fenômeno político-
religioso, pois prescinde da figura de um “iluminado” que divulga sua
mensagem aos demais. A experiência é feita individualmente, pois é própria de
cada sujeito que participa da mística, e também é coletiva, pois só é possível a
realização dessa experiência junto com os demais integrantes do movimento.
No estudo citado acima, entrevistamos pessoas que são lideranças do
MST, outras que organizam a mística do cotidiano do assentamento e pessoas
que são simplesmente participantes do movimento e da mística.
Percebemos que para as lideranças
15
a mística era uma forma de
articulação política para se alcançar os objetivos do movimento. Quando
entrevistados, demonstravam que essa ação coletiva servia como uma espécie
de campo político no qual as ideologias políticas do movimento iam se
alicerçando e ganhando contornos práticos. Tanto que falavam da importância
da mística antes de se realizar um ato político: ocupação, marchas, greves,
congressos etc. As lideranças fazem parte desse grupo que organiza a
mística quando possuem certas habilidades artísticas ou religiosas para isso,
se não for esse o caso elas cumprem o encargo organizativo somente das
questões mais gerais do grupo.
15
Lideranças são as pessoas escolhidas pelo movimento para serem seus representantes oficiais nas
diversas instâncias da sociedade e do próprio movimento.
68
Os organizadores da mística do cotidiano são pessoas geralmente
ligadas à área educacional do movimento e, muitas delas, pertencem a algum
grupo religioso. Para os organizadores a stica tem uma função educativa,
pois auxilia as pessoas a compreenderem as formas de se conviver em grupo e
assimilarem o conteúdo normativo do movimento. Esses sujeitos
demonstraram claramente, em suas entrevistas, preocupação de que a mística
fosse um momento importante para que as pessoas se mantivessem unidas
para conseguir os objetos comunitários do movimento. Elas são pessoas
preocupadas em fazer da mística um momento de educação para a
coletividade, pois abordam temas do cotidiano daquele determinado grupo
onde se realiza a mística. Indo mais além, elas resgatam a memória política do
movimento por meio da história de luta dos povos latino-americanos.
Para os participantes, a mística tem uma função reivindicatória para
suprir as necessidades emergenciais, tais como comida, roupas etc. e também
se estabelece como uma forma de receber as autoridades que, de certa
maneira, poderiam lhes ajudar a alcançar seus objetivos. A mística é
considerada, além disso, como uma extensão do culto religioso (católico ou
evangélico), pois como muitos dos organizadores são ligados a algum tipo de
religião, essa associação não se torna difícil.
Todos os participantes de uma mística se sentem convidados a
contribuir com gestos, palavras, encenações, testemunhos, falas de incentivo,
canto, dança. Cada sujeito poderá usar de elementos de expressão de acordo
com suas experiências, valores, crenças, sonhos. Dessa forma, o sujeito
religioso se expressa por meio da religiosidade, o político por meio da
69
politização, o artista por meio da arte e assim por diante... De forma geral, os
participantes se sentem envolvidos com as atividades da mística.
Dessa maneira, a mística se torna um momento para lembrar a todos os
participantes da necessidade de lutar por direitos políticos na sociedade
brasileira tais como os direitos à terra, saúde, educação etc. e também se
constitui como força de motivação para a luta, gerando uma sensação de
pertencimento ao movimento que os leva a lutar por seus direitos como
cidadãos. (Lambiasi e Lara Junior, 2005).
Na mística, muitas vezes, os participantes trazem à tona ícones
importante para o MST e para a história de resistência política dos movimentos
sociais brasileiros e da América Latina. Zumbi dos Palmares, Paulo Freire, Karl
Marx, Jesus Cristo, Ernesto Che Guevara e outros constituem a memória de
sua história de luta pelos direitos sociais e isso, muitas vezes, se torna
inspiração e motivação para continuarem na busca pelos objetivos pessoais e
do movimento.
Motivação para a luta (sentimento que motiva); sensação de pertença
ao movimento; ampliação do sentimento de luta por direitos sociais e
políticos; resgate em forma de celebração do passado histórico do
movimento e de ícones que lutaram por justiça social; abertura para o
novo, para aquilo que de vir a partir do processo da realidade atual;
utopia como a busca daquele ideal que está no presente, mas não
totalmente
(síntese retirada de Bogo, 2000:70-71; Melo, 2003:116).
Alguns autores importantes do próprio MST (Bogo, 2000; Caldart, 2000;
e Fernandes & Stédile, 2001), ao se referirem à mística, dizem que essa está
impregnada pela influência judaico-cristã. Os autores adotam insistentemente a
ideia de mistério como algo que se revela, mas não inteiramente, e por isso
mobiliza as pessoas, emocional e ideologicamente, para a conquista da terra.
70
O projeto está sempre inacabado, uma eterna utopia, palavra que significa “não
lugar”. Sobre essa noção de utopia interminável assim reflete Caldart, a saber:
A mística é exatamente a capacidade de produzir significados para
dimensões da realidade que estão presentes, e que geralmente
remetem as pessoas ao futuro, à utopia do que ainda não é mas que
pode vir a ser, com a perseverança e o sacrifício de cada um. É uma
experiência pessoal, mas necessariamente produzida em uma
coletividade, porque o sentimento que lhe gera é fruto de convicções e
valores construídos no convívio em torno de causas comuns. Neste
sentido, se pode dizer que o MST re-significou a própria experiência da
mística, ainda que mantenha sua raiz cultural e utilize símbolos muito
semelhantes aos dos grupos que lhe deram origem (Caldart, 2000:134-
135).
Se pessoas que fazem parte de algum órgão de decisão (INCRA
16
,
ITESP
17
, Secretarias Estaduais ou Municipais de Agricultura etc.) são
recepcionadas pelos membros do movimento, muitas vezes elas o o com
uma mística, que serve como uma forma de iniciar uma negociação e concede
mais elementos para o momento das reivindicações. Mas não
representantes de órgãos de decisão são recebidos com uma mística. Ela pode
também atuar como instante de encontro e acolhimento de pessoas
significativas para o movimento.
Em outro estudo (Lara Júnior e Prado, 2004) verificamos que as
atividades propostas na mística permite envolver todos os membros das
famílias que estão no movimento, mesmo que essas pessoas sejam de
diferentes idades, religiões e ideologias políticas. A mística se torna um espaço
no qual todas as pessoas podem exprimir suas experiências do cotidiano e
essas vão se re-significando por meio das atividades realizadas durante a
mesma, a saber:
16
Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária.
17
Fundação Instituto de Terras do Estado de São Paulo
71
As místicas serão compreendidas nesse estudo como práticas
celebrativas formadas por diferentes discursos sociais, religiosos e ritos,
bem como conjunto de crenças e valores que buscam interpretar a
realidade vivida e significá-la a partir das atividades coletivas
desenvolvidas em torno de temáticas e práticas grupais específicas. Os
trabalhadores rurais Sem Terra conjugam, nesses encontros
celebrativos, vários momentos que se alternam entre depoimentos de
algum membro do movimento; encenações de alguma história de
resistência na luta pelos direitos cidadãos; rituais religiosos, rezas;
utilizam-se de símbolos como a bandeira do MST e muitos outros
ícones, alguns deles religiosos, que são propostos de acordo com a
prática de místicas específicas. É importante destacar que as místicas
configuram-se de acordo com a temática a qual o movimento quer
enfocar e colocar em debate entre seus participantes (Lara Junior &
Prado, 2004:04).
Também a mística serve como um elemento importante para o processo
de constituição da identidade coletiva Sem Terra, principalmente porque ela
vincula um sentimento de pertença grupal que auxilia os militantes a se
identificarem como um movimento social que se apresenta para o cenário
político nacional, trazendo questionamentos e alternativas para o trabalhador
do campo.
72
II
IIII
II
Parte: Psicanálise e a Mística como Forma de
Parte: Psicanálise e a Mística como Forma de Parte: Psicanálise e a Mística como Forma de
Parte: Psicanálise e a Mística como Forma de
Ordenamento do Gozo
Ordenamento do GozoOrdenamento do Gozo
Ordenamento do Gozo
Não esperem, portanto, de meu discurso
nada mais subversivo do que não pretender
a solução (Lacan,1969-70/1992).
Os sujeitos do inconsciente se relacionam e se conflitam entre si,
estabelecendo assim seus laços sociais, segundo Lacan (1969-1970/1992) por
meio de quatro discursos: mestre, histérica, universitário e analista.
Esses discursos, na sociedade, têm diferentes formas de aparelhar o
gozo no laço social, por isso essa relação deve ser atendida e olhada na
singularidade de cada sujeito e cada cultura. Isso faz também, nesse contexto,
um sujeito além de estrutural também múltiplo, comprometido com a estrutura e
com sua relação com o Outro e outros com suas determinações sociais. Assim
não como entrar no laço social sem uma alienação ao discurso do mestre,
logo, uma mudança na subjetivação ocorre sempre por meio do Outro. O
sujeito se constitui pelo olhar do outro, assim como Lacan descreve no estádio
do espelho. E é alienado ao olhar desse outro que o sujeito se identifica como
tal.
Esses discursos possibilitam ao sujeito estabelecer laços sociais que
são formas dos sujeitos participarem da realidade social. É também política
porque, através do laço social, buscam-se possibilidades de organização social
que acabam com essa lógica capitalista, por exemplo, o discurso do analista.
Nesse sentido, os movimentos sociais surgem (como o discurso da histérica)
73
para questionar algo dessa lógica capitalista, talvez por isso sejam tão
rechaçados pela sociedade.
Dessa maneira, entendemos que os quatro discursos de Lacan
possibilitam analisar na mística se as diferentes possibilidades de laço social
podem ser estabelecidas e que diferentes consequências têm essas distintas
possibilidades para os sujeitos.
A psicanálise nesse ambiente possibilita outro olhar para outras
configurações discursivas que estão atreladas e constituídas a partir do
inconsciente do sujeito que o convoca constantemente a uma relação com o
Outro. Diante disso, esse sujeito responde se posicionando de diferentes
maneiras, que, para Lacan, giram em torno de quatro discursos que
possibilitam a esse sujeito criar laço social.
74
Capítulo 1: A Contribuição da Psicanálise para a
Capítulo 1: A Contribuição da Psicanálise para a Capítulo 1: A Contribuição da Psicanálise para a
Capítulo 1: A Contribuição da Psicanálise para a
Compreensão dos Acontecimentos Sociais
Compreensão dos Acontecimentos SociaisCompreensão dos Acontecimentos Sociais
Compreensão dos Acontecimentos Sociais
O sujeito da psicanálise é estrutural e constituído também por uma
subjetividade histórica, “sustentada sobre categorias de discurso e de saber”. O
sujeito tem um estatuto de um “falaser”
18
, pois está submetido à linguagem, na
qual um significante está relacionado ao Outro e assim constituem cadeias que,
de certa maneira, estruturam o inconsciente como linguagem.
O sujeito em psicanálise, o sujeito para a psicanálise é o sujeito do
significante. Ele é o efeito, sem dúvida ativo, mas o efeito do significante;
dito de outro modo, da linguagem. Ora, a linguagem, que se define como o
sistema material dos significantes ou como o poder de simbolização que
faz passar o real ao ser, é o que especifica o humano. O homem, portanto,
é um “falaser”, um ser que fala, alguém que sustenta seu ser da fala.
Deduz-se daí, então, quase matematicamente, seria um sujeito todo ser
que é tomado na linguagem e que exerce a eminente função da fala
(Askofaré,2009:167).
Dessa forma, as construções discursivas marcam uma determinada
época e com isso certos aspectos desse discurso são mais relevados, por
exemplo, Askofaré (2009) fala de um sujeito de outro momento histórico que
era mais marcado pela magia e pela religião e, atualmente, temos um sujeito
da ciência, pois é atravessado por um discurso científico que, de certa maneira,
influencia esse sujeito em sua relação com o Outro e os outros, pois esse
sujeito demanda um saber que se encontra sempre em um Outro.
A psicanálise compreende o sujeito como estrutural, ou seja, o que
muda nesse contexto é o conteúdo discursivo que o sujeito produz que, de
certa maneira, o influencia em sua relação com os outros, porém a relação que
18
Ser submetido à fala. Lacan (1966/1998).
75
esse estabelece com o Outro permanece em qualquer contexto histórico, pois é
estrutural do sujeito.
O sujeito da psicanálise apresentado por Askofaré (2009) sempre
existirá enquanto houver linguagem, pois o sujeito que ao mesmo tempo fala,
também é falado pelo Outro. Na linguagem encontra espaço para que se
estruture enquanto um sujeito inconsciente. Esse Outro fala para o sujeito
como simbólico, pois não está somente reduzido na relação com os pais, mas
abre a possibilidade de relação para um discurso universal que coloca o
inconsciente como “trans-individual”, logo a relação com o Outro, que inaugura
esse sujeito como tal, sofre certas mudanças na forma como esse sujeito é
compreendido e não na função que esse Outro exerce no sujeito, pois esse
Outro é um discurso.
Ao se referir a essa historicidade do sujeito, Askofaré (2009), baseado
em Lacan, diferencia indivíduo de individualismo e para isso cita duas noções
fundamentais. A primeira o indivíduo é entendido como aquele que, uma vez
afetado pelo inconsciente, é sujeito de um significante. Esse indivíduo,
portanto, está descompletado do objeto “a”, da causa do desejo, ao contrário
da ideia de sujeito desejante.
A segunda noção se refere ao individualismo como ideologia do
indivíduo que provê assim condições históricas para a emergência do sujeito.
Podemos pensar então que o individualismo é uma ideologia moderna que
apregoa a subordinação do individuo à totalidade social, assim se divulga um
ser moral independente e autônomo sem qualquer responsabilidade ou
76
implicação com as questões sociais e políticas, características essas, por
assim dizer, do indivíduo moderno.
Esse indivíduo é atravessado pelo discurso da ciência, e não mais
somente por um discurso da magia ou religião, no entanto continua
demandando um saber que se encontra sempre no Outro. Nesse sentido, para
a psicanálise as determinações históricas dão forma ao sujeito em seu contexto
específico, pois esse é um sujeito da linguagem e, por assim se constituir, não
é abstrato, sem história ou cultura em que está implicado. Com isso, marca-se
que o sujeito da psicanálise não pode ser confundido com outro sujeito da
linguística, lógica ou como um indivíduo moderno.
Na atualidade esse sujeito que fala sobre si se utiliza do discurso da
ciência, pois de certa maneira a ciência ordena a sociedade moderna, que
busca propor a esse “falaser” um “novo” Outro, o Outro da modernidade que
não exerce seu poder de pai, verdade, amor e de crença.
O que ele (Lacan) propõe são as coordenadas de uma verdadeira
subjetividade, quer dizer, de uma forma histórica e determinada de
traços, de posições e de valores que os sujeitos de uma época têm em
comum, em suas relações com o Outro, como discurso; no presente
caso, o discurso da ciência
(Askofaré, 2009:170).
A ciência, muitas vezes, assume um discurso de racionalidade e
objetividade que diz romper com elementos religiosos. No entanto, com o
advento do capitalismo, temos uma ciência englobando elementos da
religiosidade e da magia, pois propõe práticas como a psiquiatria biológica,
neurociência, terapias comportamentais etc. como uma fórmula quase mágica
para resolver as questões inerentes ao sofrimento humano. Nessa lógica, o
sujeito inconsciente e suas questões não são tratados. O sujeito é reduzido a
77
uma máquina que processa informações, ferindo assim o que chamamos de
ética da psicanálise.
Essa ética se opõe veementemente a esse sujeito da ciência, pois trata
desse sujeito que fala e se apropria da linguagem para se manifestar enquanto
um sujeito do inconsciente. A psicanálise trata das questões do sujeito e
possibilita que esse assuma o seu desejo que está posto na relação com o
Outro, com nos diz Lacan, a saber:
Eis por que a pergunta do Outro, que retorna para o sujeito do lugar de
onde ele espera um oráculo, formulada como um Che vuoi que quer
você?”, é a que melhor conduz ao caminho de seu próprio desejo
caso ele se ponha, graças à habilidade de um parceiro chamado
psicanalista, a retomá-la, mesmo sem saber disso muito bem, no
sentido de um “que quer ele de mim”
(Lacan,1966/1998:829).
Nesse âmbito, a psicanálise proporciona ao sujeito possibilidades para
lidar com as questões relativas ao seu desejo que está imbricado com o Outro.
A partir do momento que o sujeito vai assumindo seu desejo ele começa a se
reposicionar diante do Outro no laço social. Por isso esse sujeito proposto pela
psicanálise:
Não é e não seria uma essência eterna, o conceito vazio e a-histórico
do ser falante. Que o sujeito sobre o qual ela opera seja o sujeito da
ciência, segundo uma fórmula em vias de tornar-se um refrão, não quer
dizer nada além de que a invenção da psicanálise, bem como seu
exercício e sua transmissão, são determinadas pelas condições do
discurso. Isso pôde ser verificado no fato de que foi o advento da
ciência moderna que tornou possível a invenção da psicanálise, fazendo
o inconsciente passar de seu status de “hieróglifo no deserto” àquele
texto decifrável e interpretável. Se o inconsciente ainda está consagrado
pela tradição, e com ele o sujeito que lhe é suposto, isso decorre dele
ex-sistir no discurso analítico (Askofaré, 2009:174).
A magia, a religião e a ciência fornecem elementos ideológicos para
construir um Outro suficientemente forte para manter os sujeitos sempre presos
78
a um sistema de dominação deixando-os em uma constante demanda
insaciável de amor e longe de seu desejo.
O desejo se esboça na margem em que a demanda se rasga da
necessidade: essa margem é da demanda, cujo apelo não pode ser
incondicional senão em relação ao outro, abre sob a forma da possível
falha que a necessidade pode introduzir, por não haver uma
satisfação universal (o que é chamado de angústia). Margem que,
embora sendo linear, deixa transparecer sua vertigem, por mais que
seja coberta pelo pisoteio do elefante do capricho do Outro. É esse
capricho, no entanto, que introduz o fantasma da Onipotência, não do
sujeito, mas do Outro em que se instala sua demanda (já era tempo
desse clichê imbecil ser recolocado, de uma vez por todas, e por todos,
em seu devido lugar), e, justamente com esse fantasma, a necessidade
de seu refreamento da Lei. Ainda nos detemos nisso, porém, para voltar
ao status do desejo que se apresenta como autônomo em relação a
essa mediação da Lei, por ser no desejo que ela se origina, no fato de
que, através de uma simetria singular, ele inverte o incondicional da
demanda amor pela qual o sujeito permanece na sujeição ao Outro,
para elevá-lo à potência da condição absoluta (onde o absoluto também
quer dizer desprendimento)
(Lacan,1966/1998:828).
Uma vez produzido no capitalismo a ideia do sujeito autônomo, capaz de
se satisfazer sem a regulação da Lei, ele é compelido a gozar a todo custo e a
buscar o paraíso não mais depois da morte, mas no aqui e agora. O acesso a
esse gozo incomensurável será adquirido por meio do dinheiro que compra o
prazer que o mundo pode oferecer. Isso tudo acaba empurrando os sujeitos
não à “liberdade” prometida, mas sim à fantasia do Outro onipotente a qual se
submetem.
Nessa lógica, não é mais preciso seguir os dogmas religiosos para se
chegar ao paraíso, basta ser um “empreendedor”, um ser com iniciativas para
conseguir o “passaporte” para o paraíso, ou seja, o pleno gozo. A virtude está
não mais no ato em favor da polis, da coletividade, agora está na ilusão
individualista da completude da falta – ter dinheiro e sucesso.
79
Dessa maneira, no capitalismo o Outro é apresentado como um engodo,
pois os capitalistas dizem ser esse não-castrado, sem falta, onipotente, que
tudo permite, com isso “vende-se” a fantasia, por meio dos objetos de
consumo, de que não há limite para o gozo.
Como toda lógica capitalista, qualquer prestação de serviços tem um
preço, dessa maneira, oferecer um “pai” não castrado que não regula mais a
horda custa o abrir mão de um comprometimento do sujeito com seu desejo,
ficando assim insaciavelmente numa demanda interminável. Essa construção é
ideológica, pois existe uma dupla relação cínica. Daquele sujeito que vende o
pai não castrado, pois, em última instância, ele sabe que a castração, em
segundo aqueles que compram e gozam na posição ilusória que possuem a
opção de escolha.
O modelo político capitalista, portanto, ao se estruturar de forma
ideológica, falseia a consciência, pois cria uma representação ilusória da
realidade, evitando transparecer os conflitos inerentes a toda relação política,
impedindo assim que se possa se gerir a sociedade em que estamos inseridos.
A efetividade social do processo de troca é um tipo de realidade que
é possível sob a condição de que os indivíduos que dela participam não
estejam cientes de sua lógica própria, ou seja, é um tipo de realidade
cuja própria consistência ontológica implica um certo não
conhecimento, de seus participantes – se viéssemos a “saber demais” a
desvendar o verdadeiro funcionamento da realidade social, essa se
dissolveria (Žižek et all, 1999:305).
Nesse ponto do “não saber” sobre a realidade é que o autor situa a
ideologia, pois muitos elementos da realidade social que o sujeito
desconhece. Nunca é possível saber tudo, sempre algo que escapa da
80
consciência. O sistema capitalista cria estratégias para lidar com isso, muitas
vezes passando a ideia de que possui a verdade plena, e com isso aliena os
sujeitos de sua própria realidade.
Assim sendo, fica mais fácil mentir sob o disfarce da verdade. Essa
mentira em forma de verdade se torna uma estratégia importante de
dominação para que os sujeitos se deixem facilmente manipular a si próprios
ou a realidade em que vivem. Por exemplo: Quando um país rico invade outro
mais pobre, em geral traz para esse campo o discurso que luta contra o
“terrorismo” e sistemas totalitários.
Justificam que, com sua presença nesse país, os direitos humanos e a
democracia irão existir para todos os cidadãos. Os planos de dominação
política, social, econômica etc. ficam distorcidos em forma de verdade para que
todos passem a acreditar que a dominação é, na verdade, um projeto
humanitário movido a bombas, morteiros e granadas. A mentira (da
dominação) fica distorcida em forma de verdade (dos direitos humanos e
democracia).
Nesse sentido, Laclau (2002) insiste que não é possível abandonar nas
análises sobre a ideologia o conceito de distorção, pois este evita que
afirmemos a existência de análises incomensuráveis da realidade, transferindo
assim para o campo da discursividade uma positividade plena que cria outra
ilusão discursiva. Dessa maneira, perdemos a autonomia e a responsabilidade
sobre a realidade se essa parecer em nossas análises como incomensurável e
que se situa somente na ordem do discurso. Neste ponto, não se pode perder a
dimensão histórica do sujeito.
81
Por isso que a noção de distorção deve ser mantida como uma categoria
importante no desmantelamento de toda operação ideológica meta-linguística
(entendido como aquele discurso que está para além das batalhas ideológicas
do cotidiano). Por esse motivo as críticas e análises da ideologia devem se
instalar na dimensão do ideológico propriamente dito, dimensão esta que
constitui a realidade criada por sujeitos implicados com seu desejo e não por
indivíduos morais independentes e autônomos sem implicação com as
questões sociais e políticas, presos assim a categorias extra-ideológicas.
A estratégia capitalista de deslocar o ideológico das relações cotidianas
de dominação, instaladas nas relações de trabalho, para uma categoria extra-
ideológica, faz-nos “ver atolados a os joelhos no mencionado campo
obscuro em que a realidade é indistinguível da ideologia” (Žižek et all,
1999:20).
Assim sendo, deslocando o conflito para além das lutas de classe, e
apresentando a opressão como algo intrinsecamente direcionada a um
trabalhador, como se essa fosse uma herança cultural ou genética, perde-se a
possibilidade desse sujeito se implicar com seu desejo, constituindo assim
indivíduos completados por seu mais-de-gozar.
Outra maneira, talvez mais atual, de deslocar o conflito de classes, se dá
através dos meios de comunicação. Esses, por sua vez, são responsáveis,
muitas vezes, por divulgar as ideologias do capitalista
19
. Para isso, os meios de
19
Getúlio Vargas se destaca como o primeiro líder da América Latina a usar o rádio nos moldes
nazistas de dominação ideológica do povo. Através do rádio se tornava onipresente em todos
os lares dos brasileiros, por meio do programa A Voz do Brasil”. Assim pessoaliza a figura do
líder que se mostra como o “pai dos pobres”, aquele que cuida do povo, ocultando assim o
rastro de dominação (Lenharo, 1986).
82
comunicação pulverizam a noção de realidade e também da própria ideologia,
pois deslocam os acontecimentos sociais de suas contingências materiais de
tempo e espaço. Com isso, dificulta-se que o sujeito se aproprie de sua
historicidade, e assim os embates materiais cotidianos parecem que estão na
ordem do inatingível, logo, impossível
20
. É preciso, portanto, manter a tensão
da crítica à ideologia para se criar outra possibilidade articulatória nesse
campo, como nos diz Žižek:
Embora nenhuma linha demarcatória clara separe a ideologia e a
realidade, embora a ideologia já esteja em ação em tudo o que
vivenciamos como “realidade”, devemos, assim mesmo, sustentar a
tensão que mantém viva a crítica da ideologia
(Žižek, 1999:22).
No capitalismo não é cada vez mais complicado explicar a realidade
cotidiana, pois a relação entre os sujeitos é posta como “individual”, ou seja, o
outro serve enquanto objeto de prazer (sexo, diversão, violência) o que cria a
ilusão de que nada pode faltar para a autossatisfação, mesmo que o outro se
torne um objeto de consumo. Nessa relação os outros se tornam objetos
“fetichizados”. Prova disso são as marcas, as grifes que acoplam ao objeto
mulheres e homens que serão fantasiosamente consumidos.
20
Por isso que Žižek, em conversa com Glyn Daly (2006), vai insistir que diante do impossível
imposto pelo capitalismo, precisamos arriscar o impossível se quisermos enfrentar essa lógica.
83
Capítulo 2:
Capítulo 2: Capítulo 2:
Capítulo 2: Freud e a Religião como Ilusão
Freud e a Religião como IlusãoFreud e a Religião como Ilusão
Freud e a Religião como Ilusão
Freud vai construindo em suas obras toda uma reflexão acerca da
religião e como essa vai se constituindo como ilusão para os sujeitos e, em
contrapartida, aponta para a ciência como verdade para superar a ilusão
religiosa. Vejamos como o pensamento de Freud foi se estruturando ao longo
de algumas de suas obras. Apresentaremos, então, o que ele nos diz
primeiramente na obra Totem e Tabu escrita em 1913.
Freud (1913/2005) se refere a alguns tipos de tabus (inimigos,
governantes e mortos) que apresentam a ambivalência como um ponto em
comum entre eles, pois ora se odeia o inimigo, ora se tem remorso de sua
destruição; ora o governante deve ser protegido, ora proteger-se dele; ora se
ama a pessoa que morreu, ora se sente hostilidade. Nessa compreensão a
ambivalência provoca autocensura obsessiva, pois esta se torna uma proteção
contra o ato proibido. A neurose obsessiva nos apresenta os determinantes
psicológicos do tabu (desejo inconsciente de violar a lei). As cerimônias que
cercam esses tabus ajudam a disfarçar a hostilidade da lei.
Em quase todos os casos em que existe uma intensa ligação emocional
com uma pessoa em particular, descobrimos que por trás do termo
amor há uma hostilidade oculta no inconsciente. Esse é o exemplo
clássico, o protótipo, da ambivalência das emoções humanas. Essa
ambivalência está presente em maior ou menor grau na disposição
inata de cada um; normalmente não é tanta que para produzir as
autocensuras obsessivas que estamos considerando. No entanto,
quando existe em abundância na disposição, manifestar-se-á
precisamente na relação da pessoa com aqueles de quem mais gosta,
ou seja, exatamente ali onde, na realidade, menos esperaríamos
encontrá-la. Deve-se supor que a presença de um grau particularmente
elevado dessa ambivalência emocional original é característica da
disposição dos neuróticos obsessivos – a quem tão frequentemente
trouxe para comparação nesse exame tabu”
(Freud, 1913/2005:69)
.
84
No caso do tabu aos mortos, Freud menciona a projeção como uma
forma de defesa, pois esse tabu gera o sofrimento consciente, e a satisfação
inconsciente. Diante do conflito gerado pela ambivalência, os sujeitos buscam
os rituais e as cerimônias para reparar sua culpa pela hostilidade aos mortos.
Esse conflito emocional provocado pela ambivalência faz com que se estruture
as relações neuróticas repetições e autocensuras obsessivas que acabam
reproduzindo os impulsos psíquicos herdados dos homens primitivos.
Os neuróticos herdaram uma constituição arcaica que os leva a
compensar a perda do objeto de amor e o tabu surge, portanto, como o mais
remoto da consciência. Nos neuróticos a culpa povoa a consciência, pois
desejam sempre aquilo que é proibido e por isso sua libido reprimida se torna
ansiedade. “Onde existe uma proibição tem de haver um desejo subjacente”
(Freud, 1913/2005:78).
O desejo subjacente dos indivíduos é desejar a morte para os demais.
Como isso é inaceitável na sociedade, surge o sentimento altruísta e o medo
da morte para refrear essa violência que pode ser desprendida contra os
demais e assim é tamponado o desejo que uns possuem pela morte dos outros
indivíduos o que os permite viver em sociedade. Nesse processo a fantasia se
torna uma estratégia do neurótico para fugir dessa realidade de insatisfação e
de desejo que as outras pessoas sejam mortas.
Parte da construção fantasiosa do homem primitivo é tentar concretizar
seus desejos passando pelos rituais e pela magia e, nesse aspecto, a e
ações de piedade são fundamentais para a magia funcionar. Os neuróticos
85
obsessivos “cultuam” uma espécie de onipotência do pensamento que alimenta
crenças supersticiosas carregadas de desejos reprimidos.
É nas neuroses obsessivas que a sobrevivência da onipotência dos
pensamentos é mais claramente visível e que as consequências desse
modo primitivo de pensar mais se aproximam da consciência. Mas não
devemos nos iludir supondo que se trata de uma característica distinta
dessa neurose específica, porque a investigação analítica revela a
mesma coisa também nas outras neuroses. Em todas elas, o que
determina a formação dos sintomas é a realidade, não da experiência,
mas do pensamento. Os neuróticos vivem um mundo à parte, onde,
como já disse antes, somente a “moeda neurótica” é moeda corrente,
isto é, eles são afetados apenas pelo que é pensado com intensidade e
imaginado com emoção, ao passo que a concordância com a realidade
externa não tem importância (Freud, 1913/2005:93).
Nesse sentido, os neuróticos e os homens primitivos supervalorizam os
atos psíquicos que, por sua vez, estão relacionados com o narcisismo que é o
processo de pensar sexualizado, por isso sua fé na onipotência dos
pensamentos. Para Freud o narcisismo é a fase animista; a fase religiosa na
qual as crianças estão ligadas aos pais. Em contraposição a essa fase, ele
destaca a fase científica como o momento da maturidade em que as pessoas
adultas não mais irão precisar dessa relação infantil com os pais transpostos
na fase adulta aos deuses.
Todavia, a arte criada em nossa sociedade direciona a onipotência do
pensamento para as criações artísticas e manifestações de sentimentos e
impulsos intrinsecamente ligados a instintos gicos que faz a pessoa lidar de
uma forma peculiar com a realidade.
Somente na arte acontece ainda que um homem consumido por
desejos efetue algo que se assemelha à realização desses desejos e o
que faça com um sentimento lúdico produza efeitos emocionais
graças a ilusão artística como se fosse algo real. As pessoas falam
com justiça da “magia da arte” e comparam os artistas aos mágicos.
Mas a comparação talvez seja mais significativa do que pretende ser.
Não pode haver dúvida de que a arte não começou como arte por amor
86
à arte. Ela funcionou originalmente a serviço de impulsos que estão
hoje, em sua maior parte, extintos. E entre eles podemos suspeitar da
presença de muitos intuitos mágicos (Freud, 1913/2005: 97).
Esse sentimento impulsiona as pessoas em busca daquilo que
denominam de ideal ou utopia, sentimento que se desprende da realidade
opressora e austera e se visualiza num futuro de mudanças e de realizações.
Nesse sentido, o tabu surge com os contornos das proibições para não
se matar o totem que os reúne e, portanto, devem se responsabilizar
mutuamente para que não se destruam e também não se deixem destruir.
Vejamos agora como Freud apresenta essa compreensão sobre religião
na obra O Futuro de uma Ilusão escrita em 1927.
Para Freud (1927/2001) os seres humanos foram constituídos, em seus
primórdios, com desejos instintuais como o canibalismo, o incesto e ânsia de
matar. A civilização, para se constituir, precisou proibir o incesto, criar regras
para se matar a outra pessoa. Por causa de todo o processo de
desenvolvimento pelo qual a mente humana passou ao longo dos anos, esse
processo coercitivo foi gradualmente sendo internalizado e o superego se torna
um argumento de como esse processo está preservado, o que torna possível
uma criança participar de uma cultura, pois o superego a torna um ser moral e
social.
Esse fortalecimento do superego constitui uma vantagem cultural muito
preciosa no campo psicológico. Aqueles em que se realizou são
transformados de opositores em veículos da civilização. Quanto mais é
o seu número numa unidade cultural, mais segura é a sua altura e mais
ela pode passar por medidas externas de coerção (Freud,
1927/2001:19).
87
O nível de internalização dessas proibições e restrições variam de
pessoa para pessoa, pois essa busca por satisfazer os instintos se manifestam
de diversas maneiras. Para Freud, aquelas pessoas que evitam o assassinato,
o incesto e a relação sexual fazem da mentira, da fraude e da calunia uma
estratégia de satisfação dos instintos pessoais com possibilidades de
permanecerem impunes às ações praticadas.
À medida que essa civilização vai se constituindo, as pessoas percebem
certas vantagens em permanecer em grupo. Os ideais aos quais seus esforços
devem ser direcionados trazem uma satisfação de se perceber uma unidade
cultural de realizações que devem ser levadas adiante pelo fato de combinarem
elementos internos e externos da cultura. Essa satisfação é de natureza
narcísica e serve para combater e regular a hostilidade entre pessoas e classes
sociais dentro da unidade cultural.
Freud ainda destaca que a arte se torna um elemento importante para
elevar os sentimentos de identificação entre as pessoas e também contribui
para a satisfação narcísica das pessoas.
Como descobrimos muito tempo, a arte oferece satisfações
substitutivas para as mais antigas e mais profundamente sentidas
renúncias culturais, e, por esse motivo, ela serve, como nenhuma outra,
para reconciliar o homem com os sacrifícios que tem de fazer em
benefício da civilização. Por outro lado, as criações da arte elevam seus
sentimentos de identificação, de que toda unidade cultural carece tanto,
proporcionando uma ocasião de partilha de expressões emocionais
altamente valorizadas. E quando essas criações retratam as realizações
de sua cultura específica e lhe trazem à mente os ideais dela de
maneira impressiva, contribuem também para a satisfação narcísica
(Freud, 1927/2001:23).
A origem das ideias religiosas para Freud (1927/2001) reside no fato de
as pessoas não suportarem a fraqueza e o desamparo. Mesmo trabalhando e
88
se privando para se proteger dos infortúnios da natureza, essa, por sua vez,
sempre se mostra indomada e age de maneira rigorosa contra a segurança
buscada pelas pessoas, gerando uma ansiedade diante das ameaças
constantes.
Também o desamparo tem sua origem psicológica, ou seja, a criança
mostra um temor considerável diante da força do pai exercida na relação
edípica e esse mesmo pai é capaz de proteger a criança contra os perigos.
Dessa maneira, os deuses se transformam em uma construção fantasiosa que
remonta esse desamparo e a busca das pessoas por conforto junto a um pai
protetor que os proteja da fúria da natureza.
O desamparo do homem, porém, permanece e, junto com ele, seu
anseio pelo pai e pelos deuses. Este mantém sua tríplice missão:
exorcizar os terrores da natureza, reconciliar os homens com a
crueldade do Destino, particularmente a que é demonstrada na morte, e
compensá-los pelos sofrimentos e privações que uma vida civilizada em
comum lhe impôs (Freud, 1927/2001:30-31).
Neste caso a função dos deuses passa a ser a de vigiar a ação das
pessoas dentro da civilização, observando como estão procedendo na relação
de umas com as outras, ou seja, se estão evitando se matar, cometer incesto
ou praticar canibalismo. Também cabe aos deuses punir as pessoas se os
preceitos não estão sendo seguidos. Dessa maneira, os deuses ocupam um
papel de amparar as pessoas que são lançadas à sorte em meio às
intempéries da natureza e da ação violenta entre as pessoas.
Assim sendo, ser dependente dos deuses na ordenação da vida no
interior da civilização nos remete ao conceito das ideias religiosas que
constituem a realidade das civilizações, pois essas são criadas pelas pessoas
89
para buscar o amparo paterno, tanto na fase infantil durante a vivência do
Édipo, quanto na fase adulta com a criação da religião.
Quando o indivíduo em crescimento descobre que está destinado a
permanecer uma criança para sempre, que nunca poderá passar sem
proteção contra estranhos poderes superiores empresta a esses
poderes as características pertencentes à figura do pai, cria para si
próprio os deuses a quem teme, a quem procura propiciar e a quem,
não obstante, confia sua própria proteção. Assim, seu anseio por um pai
constitui um motivo idêntico à sua necessidade de proteção contra as
consequências de sua debilidade humana. É a defesa contra o
desamparo infantil que empresta suas feições características à reação
do adulto ao desamparo que ele tem de reconhecer reação que é,
exatamente, a formação da religião
(Freud, 1927/2001:39).
Essas estratégias humanas (sejam elas infantis ou adultas) de lidar com
o desamparo remontam à necessidade das pessoas de ter um pai poderoso
que forneça uma sensação de proteção e cuidado que nenhum outro ser
humano poderá proporcionar. Para Freud, isso passa a ser chamado de ilusão,
pois esta necessidade está atrelada ao desejo que não está conectado com a
realidade, como um delírio, e as doutrinas religiosas se mostram como uma
forma dessa não correlação com a realidade.
A religião tenta ocultar a falta e o desamparo fundamental e quando uma
pessoa assume para si a religião cria-se a ilusão de que, quando se está
próximo de Deus se está próximo do pai protetor todo-poderoso. Dessa
maneira, a religião se especializou em criar estratégias para sempre atualizar
essa sensação ilusória de proteção de amparo para continuar atraindo
seguidores ao longo dos séculos. Tanto que nossa sociedade se estruturou em
torno dessas crenças religiosos, o que faz muitas pessoas se tornarem
dependentes das doutrinas religiosas para suportarem a vida.
90
Deus se tornou a simbolização da relação das pessoas com o pai
primevo como uma tentativa de se desviar da falta fundamental. As pessoas
criam um Deus regulador e a religião passa a exercer o papel de instituição que
se torna a “neurose obsessiva da humanidade” (Freud, 1927/2001:69), porque
traz restrições obsessivas ao indivíduo; abrange um sistema pleno de ilusões
de desejo; e alimenta o repúdio à realidade, nutrindo alucinações.
Assim, a religião seria a neurose obsessiva universal da humanidade;
tal como a neurose obsessiva das crianças, ela surgiu do complexo de
Édipo, do relacionamento com o pai. A ser correta essa conceituação, o
afastamento da religião está fadado a ocorrer como a fatal
inevitabilidade de um processo de crescimento, e nos encontramos
exatamente nessa junção, no meio dessa fase de desenvolvimento. (...)
Se, por um lado, a religião traz consigo restrições obsessivas,
exatamente como, num indivíduo, faz a neurose obsessiva, por outro,
ela abrange um sistema de ilusões plenas de desejo juntamente com
um repúdio da realidade, tal como não encontramos, em forma isolada,
em parte alguma senão na amência, num estado de confusão
alucinatória beatífica (Freud,1927/2001:70-71).
A crítica de Freud à religião é o fato de essa infantilizar as pessoas ao
tentar remontar a busca delas pelo amparo paterno perdido no complexo de
Édipo. Ele critica ainda a potência da religião por criar ilusões e delírios que
afastam as pessoas do contato direto com a realidade, impedindo justamente
as pessoas de se responsabilizarem e se implicarem no mundo e na sociedade
que estão construindo e formando. Não há, por exemplo, um Deus responsável
pelo ódio mútuo e pelo desejo de matar. Esses elementos são parte da
natureza humana.
Esse desamparo dos sujeitos muitas vezes os leva a uma busca pelo pai
e pelos deuses como uma tentativa de encontrar uma plena felicidade, onde
os filhos se sentiam plenos da presença da mãe e da proteção imaginária do
pai. Essa plenitude é reconstruída, muitas vezes, em sentimentos oceânicos ou
91
em tentativas imaginárias de recompor o que está na ordem do impossível.
Nesse sentido, as pessoas se tornam vulneráveis a aderir a discursos que
prometem a felicidade total, livre de todos os males, a sociedade perfeita em
que as pessoas se amam e não se matam, aquele lugar em que o controle da
natureza e do psiquismo indomável do ser humano garante a ordem e a
segurança.
“O desamparo do homem, porém, permanece e, junto com ele, seu
anseio pelo pai e pelos deuses. Estes mantêm sua tríplice missão:
exorcizar os terrores da natureza, reconciliar os homens com a
crueldade do Destino, particularmente a que é demonstrada na morte, e
compensá-los pelos sofrimentos e privações que uma vida civilizada em
comum lhes impôs
(Freud, 1927/2001:29-30).
Freud, ao criticar essa dependência dos sujeitos aos deuses e a
demanda de um pai poderoso, faz com que evitem seu desamparo
fundamental projetando e demandando um amparo que remonta o drama do
Édipo. Isso nos traz a ideia de que esses sujeitos devem se responsabilizar por
suas ações em relação aos outros sujeitos, pois essa busca aos deuses-pais
faz com que os sujeitos perseverem em um infantilismo, que os leva a se
sentirem irresponsáveis por aquilo que constroem. Essa gica infantil no
campo da política se quando os sujeitos esperam a vinda de um “salvador”
para resgatá-los da opressão social e, deste modo, ao se consentrarem na
espera, não iniciam seu processo de luta social.
Em nossa sociedade o capitalismo se propõe a acabar com a
necessidade de religião, mas, na verdade, busca se utilizar dessa necessidade
do ser humano de evitar o desamparo e propõe o consumo como uma espécie
de religião que precisa sempre ser atualizada através de ritos de consumo e
doutrinas ditadas pela moda e pela mídia que anunciam às pessoas qual o
92
novo “gadjet” que deverá ser usado para acabar com o desamparo e se tornar
tão poderoso quanto o pai primevo.
Agora veremos como essa discussão aparece no texto O Mal Estar na
Civilização, escrito em 1930.
Freud (1930/1997) analisa o sentimento oceânico como uma fonte das
necessidades religiosas e essas, por sua vez, representam o desamparo do
bebê e seu anseio pelo pai protetor de toda ameaça que o ego sente do mundo
exterior. Essa ameaça sempre permeia a busca pela ambivalência
representada através do Édipo (desejar o pai x desejar matá-lo). Dessa
maneira, a atitude religiosa remonta o sentimento de desamparo infantil
primordial, pois através de sua estrutura ritualística busca atualizar esse desejo
pela busca protetora do pai diante de um destino ameaçador.
A religião, portanto, serve como um anteparo para sustentar a angústia
infantil da busca pelo pai, o que acaba servindo como um engodo capaz de
proporcionar a ilusão às pessoas de que se está amparado por um pai todo-
poderoso, senhor da vida e da morte, servindo, então, como uma espécie de
entorpecente para evitar que as pessoas entrem em contato com realidade.
Freud (1930/1997) também aponta que a arte, assim como a religião, é
uma espécie de uma ilusão. Todavia a arte, por meio da fantasia, apresenta
uma maneira diferente de lidar com a realidade, pois apresenta uma forma de
satisfação substitutiva capaz de revelar algo do artista e da realidade em que
ele vive.
As satisfações substitutivas, tal como oferecidas pela arte, são ilusões,
em contraste com a realidade; nem por isso, contudo, se revelam
menos eficazes psiquicamente, graças ao papel que a fantasia assumiu
93
na vida mental. As substâncias tóxicas influenciam nosso corpo e
alteram sua química. Não é simples perceber onde a religião encontra o
seu lugar nessa série (Freud, 1930/1997:23).
A busca pela felicidade faz o homem entrar em uma empreitada para
não se deparar com a infelicidade que causa sofrimento, pois o homem é
regido pelo princípio do prazer que orienta e domina o funcionamento psíquico.
A religião é um meio para evitar o sofrimento, por isso encoraja a superação do
sofrimento e da dor por meio de uma recompensa: o encontro eterno com o pai
o gozo plenificado. Portanto, matar ou morrer pela religião é uma forma de
ganhar essa recompensa.
O sofrimento ameaça as pessoas, segundo Freud (1930/1997), a partir
de três direções, sendo o corpo a primeira ameaça, pois está condenado à
decadência e à dissolução. Como defesa a essa efemeridade do corpo, por
exemplo, temos as descobertas científicas da medicina e o uso de drogas
como forma de obter prazer imediato e se refugiar no próprio mundo, evitando-
se assim o contato com a realidade;
A segunda ameaça é o mundo externo com sua força destruidora
(terremotos, maremotos, furacões etc.) e como defesa os homens se usam do
domínio e das previsões dos fenômenos da natureza;
A terceira e última ameaça está no relacionamento com os outros
homens, sendo essa a mais penosa das dificuldades enfrentadas. Como
defesa dessa relação o homem se utiliza do isolamento voluntário e da
felicidade da quietude.
94
Também a civilização com seu conjunto de normas e leis serve como um
recurso para regular os impulsos agressivos das pessoas. Dessa maneira, a lei
e a justiça surgem como uma exigência mínima para garantir que as pessoas
não se matem. Prova disso é que muitas lutas sociais buscam propor e
construir uma sociedade que ofereça uma sensação de felicidade diferente da
que é oferecida no momento do descontentamento.
Outra forma de se evitar o sofrimento é por meio da ciência e da arte,
que para Freud (1930/1997) é uma maneira mais refinada do que os impulsos
instintivos primários, porque iludem as frustrações do mundo externo e acabam
satisfazendo os processos psíquicos internos. Para obter esse efeito, a ciência
e a arte se utilizam da sublimação:
“Outra técnica para afastar o sofrimento reside no emprego dos
deslocamentos de libido que nosso aparelho mental possibilita e através
dos quais sua função ganha tanta flexibilidade. A tarefa aqui consiste
em reorientar os objetivos instintivos de maneira que iludam a frustração
do mundo externo. Para isso ela conta com a sublimação dos instintos.
Obtém-se o máximo quando se consegue intensificar suficientemente a
produção de prazer a partir das fontes de trabalho psíquico e intelectual
(Freud, 1930/1997:28).
Todavia, esse método de evitar o sofrimento é reservado para poucas
pessoas, pois necessita que essas possuam certos dotes e habilidades
especiais para ser, por exemplo, um artista ou intelectual. Também diante do
sofrimento gerado pelo próprio corpo esse mecanismo se mostra pouco eficaz.
Nesse sentido, o avanço tecnológico com seu domínio “extra-ordinário” da
natureza se tornou uma promessa de aplacar o sofrimento. Todavia, não
aumentou a sensação de completude, amparo e proteção, proporcionando
ainda uma busca pelo pai que livre o homem de toda dor e sofrimento.
95
Para evitar um contato direto com a realidade insuportável, as pessoas
desenvolvem mecanismos de lidar com ela. Mais uma vez queremos destacar
a arte como portadora dessa finalidade através da fantasia que apresenta uma
maneira de afastar a pessoa do contato direto com a realidade. Porém a arte
não se mostra forte o suficiente para essa empreitada:
À frente das satisfações obtidas através da fantasia ergue-se a fruição
das obras de arte, fruição que, por intermédio do artista, é tornada
acessível inclusive àqueles que não são criadores. As pessoas
receptivas à influência da arte não podem lhe atribuir um valor alto
demais como fonte de prazer e consolação na vida. Não obstante, a
suave narcose a que a arte nos induz não faz nada mais do que
ocasionar um afastamento passageiro das pressões das necessidades
vitais, não sendo suficientemente forte para nos levar a esquecer a
aflição vital (Freud, 1930/1997:30).
Também o amor, que cria o movimento de amar e ser amado, se mostra
como fonte para se encontrar prazer e felicidade, e, além disso, é meio que
leva o homem a se defender do sofrimento. Esse amor es ligado ao amor
sexual que é capaz de proporcionar uma intensa sensação de prazer. Todavia,
a relação sexual como um caminho para a felicidade fez do sujeito dependente
da outra pessoa como objeto amoroso do outro o que o deixou exposto a um
sofrimento. Portanto, quando amamos nos sentimos fragilizados e indefesos,
principalmente quando perdemos nosso objeto de amor, pois é uma relação
estabelecida com o outro sem garantias.
Uma minoria é capaz de destinar seu amor mais para o desejo de amar
do que o de ser amado, voltando seu amor ao mundo, às pessoas, e sentem
prazer ao deslocar esse impulso inibido em sua finalidade. Talvez seja essa
busca por felicidade vinculada ao amor que mereça uma atenção especial, pois
preza pela preservação da humanidade e do mundo.
96
Essas pessoas se tornam independentes da aquiescência de seu
objeto, deslocando o que mais valorizam do ser amado para o amar;
protegem-se contra a perda do objeto, voltando seu amor, não para os
objetos isolados, mas para todos os homens, e, do mesmo modo,
evitam as incertezas e as decepções do amor genital, desviando-se de
seus objetivos sexuais e transformando o instinto num impulso com uma
finalidade inibida. Ocasionam assim, nelas mesmas, um estado de
sentimento uniformemente suspenso, constante e afetuoso, que tem
pouca semelhança externa com as tempestuosas agitações do amor
genital, do qual, não obstante, deriva. Talvez São Francisco de Assis
tenha sido quem mais longe foi na utilização do amor para beneficiar um
sentimento interno de felicidade (Freud, 1930/1997:56).
Para a psicanálise a busca pela felicidade também passa pela beleza
das formas, artes, gestos humanos, paisagens etc.
O amor da beleza parece um exemplo perfeito de um impulso inibido
em sua finalidade. Beleza e atração” são, originalmente, atributos do
objeto sexual. Vale a pena observar que os próprios órgãos genitais,
cuja visão é sempre excitante, dificilmente são julgados belos; a
qualidade da beleza, ao contrário, parece ligar-se a certos caracteres
sexuais secundários (Freud, 1930/1997:33).
Por outro lado, a religião se apresenta também como uma forma de lidar
com a realidade insuportável, todavia a religião se mostra como um meio para
que as pessoas, ao se encontrarem, tornem real um delírio, ou seja, de forma
paranoica introduzam um delírio na realidade para evitar o sofrimento, pois
buscam certezas de felicidade que os protejam e os guardem em situações de
prazer narcísico fundamental, seja no presente na partilha de um delírio
coletivo, ou prorrogado para o destino post-mortem.
A religião restringe esse jogo de escolha e adaptação, desde que impõe
igualmente a todos o seu próprio caminho para a aquisição da felicidade
e da proteção contra o sofrimento. Sua técnica consiste em depreciar o
valor da vida e deformar o quadro do mundo real de maneira delirante –
maneira que pressupõe uma intimidação da inteligência. A esse preço,
por fixá-las à força num estado de infantilismo psicológico e por arrastá-
las a um delírio de massa, a religião consegue poupar a muitas pessoas
uma neurose quase individual. Dificilmente, porém, algo mais. Existem,
como dissemos, muitos caminhos que podem levar a felicidade passível
97
de ser atingida pelos homens, mas nenhum que o faça com toda
segurança. Mesmo a religião não consegue manter sua promessa. Se,
finalmente, o crente se vê obrigado a falar dos “desígnios inescrutáveis”
de Deus, está admitindo que tudo que lhe sobrou, como último consolo
e fonte de prazer possíveis em seu sofrimento, foi uma submissão
incondicional. E, se está preparado para isso, provavelmente poderia
ter-se poupado o détour que efetuou (Freud, 1930/1997:35).
Freud (1930/1997) vai mostrando, em sua argumentação, que a máxima
do cristianismo “ama teu próximo e teu inimigo”, é inviável do ponto vista lógico,
pois, em última instância, o a mesma coisa, porque o outro (inimigo e o
próximo) são considerados pelo sujeito como objeto sexual, receptor da
agressividade; explorado em seu trabalho. Isso reforça a necessidade da
civilização controlar o instituto destrutivo das pessoas. Nesse sentido, Freud
ainda critica os comunistas que propõe o fim da propriedade privada, o que não
resolve a hostilidade entre os homens.
A pulsão de morte fundamenta o instinto de destruição do mundo
externo com ações contra a natureza e contra o próprio homem, assim como
destruições endereçadas internamente ao próprio ego, contando com o apoio
da sexualidade como, por exemplo, no masoquismo. E quando esse instinto de
destruição é inibido em sua finalidade, causa ao ego satisfação de
necessidades vitais, assim como sugere um certo controle da natureza.
A agressão que deveria ser usada contra os outros indivíduos é
introjetada, ficando no superego que se volta com toda ação destruidora contra
o ego, gerando uma sensação de culpa.
A tensão entre o severo superego e o ego, que ele se acha sujeito, é
por nós chamada de sentimento de culpa; expressa-se como uma
necessidade de punição. A civilização, portanto, consegue dominar o
perigoso desejo de agressão do indivíduo, enfraquecendo-o,
desarmando-o e estabelecendo no seu interior um agente para cuidar
98
dele, como um guardião numa cidade conquistada (Freud,
1930/1997:84).
O superego se estrutura quando a figura da autoridade é internalizada o
que aumenta a sensação de culpa, pois nada pode ser escondido do superego,
pois nele está a autoridade representada pela moral que o torna sempre
vigilante para que as pessoas sempre sigam o caminho dito correto, caso
contrário punições legais do próprio superego contra o ego. Isso faz com a
pessoa renuncie aos próprios instintos para não perder o amor da autoridade,
tampouco para ser punido por ela. A culpa surge porque o medo ao superego é
diferente, pois a renúncia instintiva não basta, o desejo não pode ser omitido ao
superego. Dessa maneira, o sujeito acaba se punindo para aliviar as cobranças
do superego.
Mas, se o sentimento humano de culpa remonta à morte do pai primevo,
trata-se, afinal de contas, de um caso de “remorso”. (...) esse remorso
constituiu o resultado da ambivalência primordial de sentimentos para
com o pai. Seus filhos o odiavam, mas também o amavam. Depois que
o ódio foi satisfeito pelo ato de agressão, o amor veio para o primeiro
plano, no remorso dos filhos pelo ato. Criou o superego pela
identificação com o pai; deu a esse agente o poder paterno, como uma
punição pelo ato de agressão que haviam cometido contra dele, e criou
restrições destinadas a impedir uma repetição do ato. E, visto que a
inclinação à agressividade contra o pai se repetiu nas gerações
seguintes, o sentimento de culpa também persistiu, cada vez mais
fortalecido por cada parcela de agressividade que era reprimida e
transferida ao superego (Freud, 1930/1997:95).
Esse sentimento de culpa é prolongado na comunidade na qual as
pessoas estão interligadas, e essa comunidade usa do conflito da ambivalência
morte e vida (pulsão de vida e de morte) posto na relação entre as pessoas
para obter um maior controle dos instintos que, por conseqüência, nos leva a
uma perda de felicidade.
99
Aquilo que a religião chama de pecado, a psicanálise entende como
sentimento de culpa, pois o cristianismo afirma que com a morte de Jesus
todos os pecados do mundo foram expiados, de modo que ele assume a culpa
de todos, passando assim uma sensação de que o sentimento de culpa é
menor.
100
Capítulo 3: Religião, Ciência e Ps
Capítulo 3: Religião, Ciência e PsCapítulo 3: Religião, Ciência e Ps
Capítulo 3: Religião, Ciência e Psicanálise
icanáliseicanálise
icanálise
Podemos verificar que nas três obras apresentadas (1913;1927;1930) a
perspectiva de Freud é a de achar que a ciência trará a luz e a maturidade aos
homens. Ele sugere enfaticamente a ciência como uma saída para superar a
ilusão da religião, pois supõe ser a ciência a detentora da verdade sobre a
realidade. Também aponta que a psicanálise oferece uma possibilidade de
esclarecimento aos sujeitos. Nesse sentido, Freud demarca uma oposição
irreconciliável entre a ética da psicanálise e a religião. Assim nos diz Souza, a
saber:
Para Freud, essa guerra era equivalente ao conflito entre ilusão e
realidade. A psicanálise, aliada à ciência, ela mesma uma ciência
natural, é fruto da ultrapassagem de uma etapa no progresso evolutivo
do conhecimento da natureza, progresso este equiparável ao próprio
desenvolvimento do psiquismo humano, que segue a linha que conduz
do princípio do prazer ao princípio de realidade. Tendo abandonado o
princípio do prazer que orienta o pensamento religioso e dado as mãos
ao princípio de realidade, a psicanálise se revela científica, e a religião
infantil (Souza, 1994:05).
Sabemos que esse raciocínio de Freud ainda está sendo influenciado
pelo positivismo de sua época em que o conflito ético fica colocado numa
relação bipolar religião x psicanálise, ou seja, entre infantilidade x
esclarecimento. Sabemos que, mais tarde, Lacan apresenta esse conflito ético
de modo triangular, trazendo para a reflexão, de modo mais consistente, o
posicionamento da ciência em relação à psicanálise.
A psicanálise passa a fazer frente não apenas à religião, mas à ciência
também. A religião continua a fazer frente não apenas à psicanálise e,
supostamente a questão, como veremos, é um pouco ambígua fará
frente também à ciência. a ciência, por seu lado, não precisa se
preocupar nem com a psicanálise, nem com a religião: seu modo de
proceder é automático
(Souza, 1994:06).
101
Vale destacar que o psicanalista trata o sujeito em sua práxis como
fenda (Spaltung)
21
, pois admite a fenda na base de sua compreensão do
sujeito, o qual não é completo e pleno. Dessa maneira a psicanálise evita
concepções essencialistas e totalizantes acerca do sujeito.
A psicanálise se posiciona como ciência, apontando justamente para a
Spaltung e isso a coloca numa posição diferenciada em sua concepção práxica
a respeito do sujeito, gerando assim, muitas vezes, uma série de controvérsias
com as ciências alinhadas ao capitalismo, principalmente porque essas
insistem em uma concepção de sujeito que esteja adaptado ao modo de
produção capitalista, dimensão essa contestada pela psicanálise (Lacan, 1969-
1970/1992).
Nesse sentido a psicanálise está na ciência, pois Freud sinaliza a
importância de os conhecimentos da psicanálise receberem certo
reconhecimento científico, por isso ele não se desvinculou da ciência e ainda
lhe inferiu um caráter essencial. Nessa perspectiva, Lacan posiciona a
psicanálise no campo da ciência, pois sua práxis implica o sujeito da ciência.
Todavia, alguma coisa fica fora desse campo científico, um resto que a
linguagem não consegue simbolizar. Esse resto a psicanálise chama de objeto
“a”.
21
A psicanálise considera que o sujeito que passou pela castração sempre será faltante,
incompleto, por isso sua ideia de Spaltung para justamente se contrapor à ideia de um sujeito
pleno de alma ou qualquer essência.
102
Para melhor exemplificar essa ideia Lacan articula as concepções sobre
saber e verdade com a banda moebius
22
, pois a topologia dessa figura
geométrica nos faz perceber que o lado externo é ao mesmo tempo o interno
“que leva a entender que não é de uma distinção originária que deve provir a
divisão em que esses dois termos (saber e verdade) se vêm juntar”
(Lacan,1966/1998:870).
Esse sujeito da linguagem podeexplicar o sujeito como objeto da
ciência somente pelo uso da própria linguagem, pois esse objeto se encontra
nesse campo, caso contrário, reforça-se a lógica de que um Outro que fala
sobre o sujeito. Por outro lado, a ciência moderna trata o sujeito como não
dividido, unívoco, concepção esta baseada no cogito cartesiano que se ancora
no ser.
Portanto não é inútil repetir que, na experiência de escrever: penso:
“logo existo”, com aspas ao redor da segunda oração, lê-se que o
pensamento funda o ser ao se vincular à fala, onde toda a operação
toca na essência da linguagem (Lacan, 1966/1998:879).
Nessa lógica “cogito sum” e “cogito ergo” evidencia-se certa lógica
algébrica em que tudo o que é falado está apoiado em uma causa. Essa causa,
freudianamente pensando, assume o inverso do cartesianismo “devo eu” e
assim aponta para o paradoxo que pressiona o sujeito a assumir sua própria
causalidade, ou seja, ele não é causa de si mesmo ele é uma Coisa diferente
do Todo, por exemplo, de Deus. Descartes preserva em Deus o privilégio das
verdades eternas, por ser Ele o criador delas (Lacan, 1966/1998).
22
Cf. http://pt.wikipedia.org/wiki/Revir%C3%A3o. Consultado em 10/02/2010.
103
A Coisa freudiana é considerada como aquilo que “sai do poço” e se
pronuncia para o sujeito no horror da verdade e esse, por sua vez, busca lidar
com esse desvelamento com os recursos que possui.
Eu a verdade vos falo... e a prosopopéia continua. Pensem na coisa
inominável que, por poder pronunciar essas palavras, atingisse o ser da
linguagem, para ouvi-las tal como devem ser pronunciadas, no horror
(Lacan, 1966/1998:881).
Lacan (1966/1998:880-881), ao continuar sua reflexão, situa a
psicanálise no campo da tensão para não cair nas questões capciosas
apresentadas, por exemplo, pela IPA (International Psychoanalisis Association)
que ora se ampara na verdade da religião, ora no saber da ciência. A
psicanálise apresentada por Lacan é de justamente permanecer na tensão,
como Coisa (horror) que apresente para a sociedade uma questão, pois aponta
para a Spaltung. Isso incomoda as relações a ponto de tentar aplacar o
confronto com o horror.
A posição revolucionária não é a de se constituir como verdade, como
causa, mas de justamente apontar para o objeto como causa do desejo. Isso
faz com os sujeitos estejam implicados nesse campo, não demandando assim
um Nome-do-Pai que fala por ele. No campo do desejo o sujeito possui
maiores possibilidades de manter essa tensão, sem estar permanentemente
sustentando a verdade como causa o Nome-do-Pai. Todo rompimento com o
sistema hegemônico mantém a verdade como causa, o rompimento do
significante com o significado apontando para o sintoma.
Em meio a uma apresentação dessa ideia da coisa, Lacan recebe uma
pergunta: “Por que ele não diz o verdadeiro sobre o verdadeiro?” (Lacan,
104
1966/1998:882). Para Lacan não há uma metalinguagem para explicar o
verdadeiro sobre o verdadeiro, pois a verdade se funda pelo fato de que o
sujeito fala. É por isso que o inconsciente é estruturado como linguagem, pois é
ele quem deixa a verdade falar.
A falta da verdade é o fracasso da metalinguagem, pois ela oculta o
recalque originário e atrai para si também o sujeito da ciência. Os nomes
próprios (Freud, Lacan etc.) e textos de cunho moral encobrem a falsa pretensa
de se alcançar o verdadeiro sobre o verdadeiro. Essa recusa pela verdade é
justamente para o se fixar à religião (por que ele não fala?) que oferece a
verdade. Na psicanálise é preciso renunciar a ideia de que cada verdade
corresponde a seu saber. Nesse ponto, a psicanálise se articula na intersecção
da verdade como causa (esquecida pela ciência) e do saber abandonado pela
religião.
Não duvidem, em todo caso, de que é por esse ponto (verdade) ser
velado na ciência que vocês conservam esse lugar espantosamente
preservado naquilo que faz as vezes de esperança, na consciência
errante que acompanha em conjunto as revoluções do pensamento (...)
... A ciência se examinarmos de perto, não tem memória. Ela esquece
as peripécias em que nasceu uma vez constituída, ou seja, uma
dimensão da verdade, que é exercida em alto grau pela psicanálise
(Lacan, 1966/1998:884).
O drama tratado pela psicanálise é o subjetivo inscrito no mito de Édipo
o qual os cientistas também estão inscritos evitando a lógica positivista de que
o cientista é neutro em relação ao fenômeno em questão. Cria-se até uma
linguagem específica “pura” para descrever o fenômeno observado. Na lógica
psicanalítica não há essa neutralidade, pois todos estão ligados no drama
edípico, pois falam sempre em relação ao Outro que os constitui no laço social.
105
A questão da verdade é trazida pela magia, religião e psicanálise. A
magia se presta criar a significantes que respondam às demandas do sujeito
para que esse evite o contato com a Coisa. A magia ainda apresenta ao sujeito
da ciência um saber velado e dissimulado enquanto tal. No entanto, Lacan nos
coloca que a psicanálise deve interrogar se esse sujeito está implicado com
seu desejo.
Concluo por dois pontos que devem reter a escuta de vocês: a magia é
a verdade como causa sob seu aspecto de causa eficiente. O saber
caracteriza-se nela não apenas por se manter velado para o sujeito da
ciência, mas por se dissimular como tal, tanto na tradição operatória
quanto em seu ato. Essa é a condição da magia
(Lacan,
1966/1998:886).
O xamã toma os fenômenos naturais (chuva, trovão, raios etc.) como
significantes, já a religião produz significados da relação do sujeito com a
natureza projetando para uma transcendência seu ordenador da cadeia
significante. Está em Deus o ordenamento de seu gozo.
Supõe-se que na relação da religião com a ciência, a religião ocupa um
lugar mais franco, pois possui uma posição mais englobadora, no entanto,
Lacan nos adverte que o sujeito religioso faz uma denegação
23
da verdade
como causa, nesse sentido, ele denega o que dá ao sujeito a possibilidade de
se tornar participante ativo do processo, passando a
Deus a incumbência da causa, mas nisso corta seu próprio acesso à
verdade. Por isso ele é levado a atribuir a Deus a causa de seu desejo,
o que é propriamente o objeto do sacrifício. Sua demanda é submetida
ao desejo suposto de um Deus que, por conseguinte, é preciso seduzir.
O jogo de amor entra por aí (Lacan, 1966/1998:887).
23
O termo “denegação” foi proposto por Freud para caracterizar um mecanismo de defesa
através do qual o sujeito exprime negativamente um desejo ou uma ideia cuja presença ou
existência ele recalca. (...). O recalcado é reconhecido de maneira negativa, sem ser aceito”
(Roudinesco & Plon, 1998, p. 144-145).
106
A verdade se instala como culpa, pois está posta como causa final no
final dos tempos, na hora do julgamento final. O racionalismo que organiza a
teologia não é um simples devaneio, pois se existe fantasia essa está no real
que cobre a verdade.
A ciência o quer saber da verdade como causa, e cabe aqui um
questionamento de qual verdade ela não quer saber nada. Lacan diz que na
ciência uma foraclusão (Verwerfung)
24
do Nome-do-Pai, decorrendo assim
uma paranoia bem-sucedida e a psicanálise vem justamente reintroduzir na
consideração científica o Nome-do-Pai.
Na experiência psicanalítica os sujeitos vão se confrontando com o seu
pensamento mágico e irracional. Nessa experiência a fala se torna um símbolo,
pois é parte inaugural de toda realidade humana, pois mostra algo para além
do objeto que significa algo da identidade do sujeito, por isso não
necessariamente esses símbolos estão inscritos e confirmados na realidade.
“O pai é de fato o genitor. Mas, antes que o saibamos de fonte segura, o nome
do pai cria a função do pai” (Lacan, 1963-1964/2005:47).
Na relação entre dois sujeitos sempre a presença de um terceiro
elemento que possibilita a mediação entre os sujeitos para que assim
estabeleçam a construção de um laço social que os une e os possibilita de se
relacionar entre si. Esse personagem transcendente abre a possibilidade da
instauração do registro da lei ou da culpa.
24
“Conceito forjado por Jacques Lacan para designar um mecanismo específico da psicose,
através do qual se produz a rejeição de um significante fundamental para fora do universo
simbólico do sujeito. Quando essa rejeição se produz, o significante é foracluído. Não é
integrado no inconsciente, como no recalque, e retorna sob forma alucinatória no real do
sujeito. No Brasil também se usam forclusão, repúdio, rejeição e perclusão” (Plon e
Roudinesco, 1998).
107
Isso quer dizer que toda relação a dois é sempre mais ou menos
marcada pelo estilo imaginário. Para que uma relação assuma seu valor
simbólico é preciso haver a mediação de um terceiro personagem que
realize, em relação ao sujeito, o elemento transcendente graças ao qual
sua relação com o objeto pode ser sustentada a certa distância
(Lacan,
1963-1964/2005:33).
No falar, portanto, os sujeitos manifestam seu imaginário produzindo
discursos permeados de fantasias. Na análise os sujeitos manifestam a
fantasia da busca por um senhor que tem a verdade sobre ele.
A angústia marca que o sujeito foi afetado pelo desejo do Outro e pelo
objeto “a” entendido como aquilo que caiu do sujeito na angústia, também
apresentado como causa do desejo. Na fantasia o objeto “a” ocupa a função de
ser o suporte do desejo, “na medida em que o desejo é o mais intensivo do que
é dado ao sujeito atingir no nível da consciência, em sua realização de sujeito.
É por essa cadeia que mais uma vez se afirmam as dependências do desejo
em relação ao desejo do Outro” (Lacan,1963-1964/2005:60-61).
Na relação do sujeito com o objeto algo cai dessa relação e é o que
denominamos de objeto “a” objeto perdido. A angústia surge no esforço do
sujeito em recuperar o objeto perdido, muitas vezes inominável, pois assume
formas variadas, mas que marca como o desejo do Outro é apropriado pelo
sujeito, que por sua vez é um ser desejante e por isso está implicado nessa
relação com o Outro na tentativa de resgatar o que nunca irá ser encontrado.
Para demarcar como esse desejo foi se estruturando no sujeito, Lacan
explica a função do objeto oral como o momento em que a criança comete o
engodo ao pensar que o seio da mãe lhe pertence, quando na verdade
pertence à mãe e o que está em jogo em última instância é o desejo da mãe.
108
Esta (função do objeto oral) pode ser compreendida se o objeto que
se separa do sujeito introduz-se, nesse momento, na demanda do
Outro, no apelo em direção à mãe, e desenha esse além onde, sob um
véu, está o desejo da mãe
(Lacan, 1963-1964/2005:66).
Como segunda parte desse engodo, Lacan cita o objeto anal no qual, de
forma ambivalente, a criança acha que as fezes irão dominar a demanda do
Outro, como uma espécie de oferta para aquele que i de alguma forma
recompensá-la pela oferta, mas que também poderá puni-la causando
angústia.
Na pulsão escópica Lacan pontua que a imagem especular parece ter
caído do objeto “a”, e nesse engodo o sujeito fica detido na função do desejo,
pois o sujeito se torna atraído pelo olhar do Outro, acreditando ver nele a sua
imagem. “Ele acredita desejar porque se como desejado e não que o
Outro quer lhe arrancar é o olhar” (Lacan, 1963-1964/2005:69). O sujeito
desconhece o objeto causa do desejo e o objeto que ele persegue nada mais é
do que a própria imagem.
A função do “a” do Outro é testemunhar que o lugar do Outro não é
apenas uma miragem, mas justamente busca criar em um Outro que fala sobre
si, portanto, a voz do Outro que se torna um objeto caído. O Outro nessa
relação ocupa o lugar onde isso fala, por isso não é de se admirar as razões
pelas quais Freud coloca o pai como elemento fundamental para a inauguração
do sujeito (Lacan, 1963-1964/2005).
Nas construções de Freud sobre o pai totêmico abre-se a possibilidade
de se pensar sobre o sujeito e sua construção na expectativa de conceber um
pai de gozo puro que é colocado pelos neuróticos como algo velado e
109
insondável, preocupado na ordenação do mundo e na regulação dos
comportamentos. No misticismo um mergulho no gozo puro do pai,
transmutado para Deus; fazendo assim um paralelo com a neurose que busca
incessantemente esse pai.
Lacan pontua que o Deus judaico-cristão é considerado como aquele
que se define “eu sou aquele que sou”, ou seja, um Deus que se define como o
próprio Nome. Nessa relação com esse Deus os sujeitos desejam um Deus
que fala em nome de todos e cada sujeito goza na prática daquilo que supõem
ser o desejo de Deus. O Nome marca o sujeito que fala, portanto na
transferência esse sujeito se utiliza dessa marca para se dirigir ao Outro que
não tem Nome.
A psicanálise apresenta o sujeito do significante que é diferente do
indivíduo biológico e não pode ser confundido com qualquer evolução
psicológica para se compreender o mesmo. Nesse sentido a linguagem
apresenta um vazio, no qual a teoria do objeto “a” também se posiciona, pois
essa integra a função do saber e do sujeito da verdade como causa. Com isso
o sujeito da ciência psicanalítica deve resistir à relação da verdade como
causa. O psicanalista tomará esse referencial da magia quando projeta suas
características no sujeito que escuta e assim psicologiza esse trabalho
passando a desconhecer o sujeito que se propõem a escutar. O pensamento
mágico não explica nada.
A religião preserva em sua hierarquia a verdade como causa e esse
modelo devemos evitar, porque essa relação já está em uma certa organização
internacional psicanalítica (IPA) conforme nos diz Lacan (1966/1998).
110
O saber sobre o objeto “a” (gozo perdido) será a ciência da psicanálise,
pois ela ao mesmo tempo em que está no campo da ciência está foracluído,
pois estará justamente tratando daquilo que está apartado do discurso da
ciência. Dessa maneira, o saber que a psicanálise propõe remete à estrutura
(simbólico, imaginário) dos sujeitos que irão construir um saber sobre si
mesmos, capaz de colocá-los numa relação diferente com a verdade, pois
durante o processo analítico verão que a verdade não existe.
O sujeito contemporâneo busca o conforto da verdade na ciência e o
saber na religião. Dessa forma, esse sujeito produz sintomas os quais a
psicanálise questiona e assim interpela o sujeito a formular uma questão a
respeito desse posicionamento reconfortante e alienador do saber e da
verdade. A psicanálise oferece ao sujeito uma não verdade absoluta.
111
Capítulo 4: Lacan e os Quatro Discursos
Capítulo 4: Lacan e os Quatro DiscursosCapítulo 4: Lacan e os Quatro Discursos
Capítulo 4: Lacan e os Quatro Discursos
Antes de fazermos a relação da mística com os quatro discursos, se faz
mister uma breve apresentação desses discursos, para que os conceitos de
Lacan (1969-1970/1992) sejam mais bem apropriados.
Lacan usa letras (álgebra lacaniana) e a combinação dessas letras
(matema lacaniano) para mostrar todo o processo de estruturação dos
discursos, pois acredita que a partir dessas representações matemáticas,
consegue demonstrar com toda propriedade a lógica inconsciente dos
discursos. Prefere esse recurso para que seu ensino não se perca na
inexatidão das palavras (Jorge, 2002). As letras dispostas no matema possuem
suas significações específicas, como veremos agora:
S
1
– significante mestre;
S
2
– todos os outros significantes que não representam o S
1
, ou seja, é a
bateria de significantes (S
2
,S
3
,S
4
...);
Objeto “a” – mais-de-gozar; aquilo que sobra; o resto;
$ - sujeito barrado ou castrado.
Nessa relação exposta por meio das setas, a verdade é aquilo que fará o
sujeito acreditar que o dizer do agente é digno de crédito, que, por sua vez, é
sempre dominante sobre o outro que ratifica esse domínio. Dessa relação
surge um produto.
CAMPOS
agente
outro
verdade produto
Pensamos que a cerimônia da mística, por criar laço social e assim
possibilitar o sujeito a dizer por meio de gestos, palavras, encenações,
testemunhos, falas de incentivo, canto, dança etc., possibilita que o
circulem dentro dos quatro discursos, de acordo com o posicionamento de
cada um em relação ao seu Outro.
4.1-
Discurso do mestre
Vejamos agora como esse matema se aplica aos discursos, começando
pelo discurso do mestre, pois é entendido como o
sujeito, porque marca a entrada do mesmo na linguagem.
O lugar do agente é ocupado pelo senhor (S
lei,
dos projetos, programas de um governo e, por isso, se diz detentor do
poder, justificando assim o domínio totalizante sobre o outro (S
barrado ($) aqui é o próprio mestre, que é castrado e que por isso está no
campo da verdade. Essa realidade
escravo, precisa, por isso, do saber do escravo (S
outro para produzir a mais
Essa noção de totalidade é imanente ao político como tal. Essa noção é
sempre usada na pregação dos partidos políticos para transmitir a ideia
de satisfação e completude, ideia essa que devemos nos opor, pois se
Senhor (agente)
Sujeito barrado (verdade)
112
Pensamos que a cerimônia da mística, por criar laço social e assim
possibilitar o sujeito a dizer por meio de gestos, palavras, encenações,
testemunhos, falas de incentivo, canto, dança etc., possibilita que o
circulem dentro dos quatro discursos, de acordo com o posicionamento de
cada um em relação ao seu Outro.
Discurso do mestre
Vejamos agora como esse matema se aplica aos discursos, começando
pelo discurso do mestre, pois é entendido como o
discurso fundador de todo o
sujeito, porque marca a entrada do mesmo na linguagem.
O lugar do agente é ocupado pelo senhor (S
1
) que é o representante da
dos projetos, programas de um governo e, por isso, se diz detentor do
poder, justificando assim o domínio totalizante sobre o outro (S
barrado ($) aqui é o próprio mestre, que é castrado e que por isso está no
campo da verdade. Essa realidade
(castração), que o senhor quer ocultar do
escravo, precisa, por isso, do saber do escravo (S
2
), que está no campo do
outro para produzir a mais
-valia ou o mais-de-gozar (a).
Essa noção de totalidade é imanente ao político como tal. Essa noção é
sempre usada na pregação dos partidos políticos para transmitir a ideia
de satisfação e completude, ideia essa que devemos nos opor, pois se
escravo (outro)
Sujeito barrado (verdade)
mais-de-gozar (produto)
Pensamos que a cerimônia da mística, por criar laço social e assim
possibilitar o sujeito a dizer por meio de gestos, palavras, encenações,
testemunhos, falas de incentivo, canto, dança etc., possibilita que o
s sujeitos
circulem dentro dos quatro discursos, de acordo com o posicionamento de
Vejamos agora como esse matema se aplica aos discursos, começando
discurso fundador de todo o
) que é o representante da
dos projetos, programas de um governo e, por isso, se diz detentor do
poder, justificando assim o domínio totalizante sobre o outro (S
2
). O sujeito
barrado ($) aqui é o próprio mestre, que é castrado e que por isso está no
(castração), que o senhor quer ocultar do
), que está no campo do
Essa noção de totalidade é imanente ao político como tal. Essa noção é
sempre usada na pregação dos partidos políticos para transmitir a ideia
de satisfação e completude, ideia essa que devemos nos opor, pois se
perde a direção
1969-
1970 / 1992:29).
É o discurso do mestre que serve como referência para os outros
discursos que se seguirão, pois para Lacan (1969
inaugura em suas relações a partir dessa alienação primeira com o me
detentor do poder.
A mística, nessa perspectiva, também oferece a esses
sujeitos uma indicação da presença da lei, da interdição como aquela que
produz a falta, ou seja, o retorno do pai da horda (ícones/mestre)
dos sujeitos que esses est
4.2-
Discurso universitário
Vejamos o matema lacaniano desse discurso:
No discurso do universitário está em jogo o saber e a verdade. No
campo do agente está o douto (S
burocraticamente, que sempre fala em nome de um sistema, instituição e de
outros mestres. No campo do outro o sujeito se apresenta como resto (a),
aquele que não sabe e por isso atribui ao douto o papel de dominar o saber
sobre
si e a natureza. O
tratadas e reduzidas a meros objetos da ciência a serem conhecidos e
113
perde a direção
isso faz a manutenção do d
iscurso do senhor (Lacan,
1970 / 1992:29).
É o discurso do mestre que serve como referência para os outros
discursos que se seguirão, pois para Lacan (1969
-
1970 / 1992) o sujeito se
inaugura em suas relações a partir dessa alienação primeira com o me
A mística, nessa perspectiva, também oferece a esses
sujeitos uma indicação da presença da lei, da interdição como aquela que
produz a falta, ou seja, o retorno do pai da horda (ícones/mestre)
dos sujeitos que esses est
ejam ligados entre si e obedeçam ao líder.
Discurso universitário
Vejamos o matema lacaniano desse discurso:
No discurso do universitário está em jogo o saber e a verdade. No
campo do agente está o douto (S
2
), como aquele que reproduz
burocraticamente, que sempre fala em nome de um sistema, instituição e de
outros mestres. No campo do outro o sujeito se apresenta como resto (a),
aquele que não sabe e por isso atribui ao douto o papel de dominar o saber
si e a natureza. O
objeto “a”
também representa as pessoas que são
tratadas e reduzidas a meros objetos da ciência a serem conhecidos e
iscurso do senhor (Lacan,
É o discurso do mestre que serve como referência para os outros
1970 / 1992) o sujeito se
inaugura em suas relações a partir dessa alienação primeira com o me
stre
A mística, nessa perspectiva, também oferece a esses
sujeitos uma indicação da presença da lei, da interdição como aquela que
produz a falta, ou seja, o retorno do pai da horda (ícones/mestre)
O pai quer
ejam ligados entre si e obedeçam ao líder.
No discurso do universitário está em jogo o saber e a verdade. No
), como aquele que reproduz
burocraticamente, que sempre fala em nome de um sistema, instituição e de
outros mestres. No campo do outro o sujeito se apresenta como resto (a),
aquele que não sabe e por isso atribui ao douto o papel de dominar o saber
também representa as pessoas que são
tratadas e reduzidas a meros objetos da ciência a serem conhecidos e
114
decifrados. O produto dessa relação é o ($) que se mostra um sujeito da
crença, respondendo e bancando essa relação.
Nesse discurso, portanto, o douto veiculará um saber posto como
absoluto e inquestionável para o outro (a) que se coloca como objeto a ser
tomado alienadamente ao saber veiculado. Como produto dessa relação
discursiva temos o sujeito barrado, alienado e desejante de um saber sempre
mais:
O discurso do universitário tem como objeto dominante o saber que é
acionado sobre o outro considerado como um objeto, a partir do qual se
produzirá um sujeito bem pensante, um sujeito conforme o saber que o
produziu. O campo do sujeito do universitário está desabitado pelo
sujeito e preenchido pela articulação significante do saber sustentado
pelo falo, o que faz com que ele pareça um sujeito sem furo (Jorge,
2002:31).
Nessa relação não espaço para vida, pois o douto, que sempre
fala em nome de alguém e assim reproduz burocraticamente um saber, é
acreditado fielmente e quem está envolvido nessa relação discursiva passa a
reproduzir seus ensinamentos sem questioná-lo.
Qual é o sujeito que corresponde ao discurso da ciência universitária?
Surpreendentemente é o sujeito da crença, o crente. Ao universal da
ciência responde não o sujeito da ciência, mas o sujeito da Igreja
Universal. Pois é que o sujeito encontra prêt-à-porter o máximo da
totalidade do saber: aquele que tudo sabe, o Onisciente. Eis a
divinização do saber promulgada pela idealização do discurso
universitário da ciência. Deus é o cúmulo do saber (Quinet, 2006:21).
A religião se mostra nesse discurso como a instituição que se propõe a
proclamar as verdades dogmas, e os fiéis apenas devem acatar e seguir
esses ensinamentos e para isso usam ritos e mitos para que os ensinamentos
estejam sempre atualizados e assim a relação de dominação permaneça.
4.3-
Discurso da histérica
Nesse discurso está em jogo a
em função do desejo da histérica. Ela deseja e ele se oferece para sanar essa
busca, que é sempre fracassada, pois a histérica nunca se por satisfeita
com as ofertas desse que trabalha. Portanto, nessa relação
provisoriedade no saber produzido, ao contrário do saber totalizante do
universitário.
Para esse discurso temos o seguinte matema, a saber:
No campo do agente a histérica se coloca como sujeito barrado ($), tem
valor de sintoma que pede de
ocultando com a barra o
dirigir ao campo do outro, esse ($) encontra o mestre (S
mesmo um saber nunca realizado em sua totalidade. Dessa re
como produto (S
2
) a insatisfação da demanda não realizada.
115
esses ensinamentos e para isso usam ritos e mitos para que os ensinamentos
estejam sempre atualizados e assim a relação de dominação permaneça.
Discurso da histérica
Nesse discurso está em jogo a
posição do mestre que se põe a trabalhar
em função do desejo da histérica. Ela deseja e ele se oferece para sanar essa
busca, que é sempre fracassada, pois a histérica nunca se por satisfeita
com as ofertas desse que trabalha. Portanto, nessa relação
provisoriedade no saber produzido, ao contrário do saber totalizante do
Para esse discurso temos o seguinte matema, a saber:
No campo do agente a histérica se coloca como sujeito barrado ($), tem
valor de sintoma que pede de
cifração e, para tal, ela se dirige ao mestre (S
ocultando com a barra o
objeto “a”
como verdade e causa do desejo. Ao se
dirigir ao campo do outro, esse ($) encontra o mestre (S
1
) e demanda do
mesmo um saber nunca realizado em sua totalidade. Dessa re
) a insatisfação da demanda não realizada.
esses ensinamentos e para isso usam ritos e mitos para que os ensinamentos
estejam sempre atualizados e assim a relação de dominação permaneça.
posição do mestre que se põe a trabalhar
em função do desejo da histérica. Ela deseja e ele se oferece para sanar essa
busca, que é sempre fracassada, pois a histérica nunca se por satisfeita
com as ofertas desse que trabalha. Portanto, nessa relação
sempre uma
provisoriedade no saber produzido, ao contrário do saber totalizante do
No campo do agente a histérica se coloca como sujeito barrado ($), tem
cifração e, para tal, ela se dirige ao mestre (S
1
),
como verdade e causa do desejo. Ao se
) e demanda do
mesmo um saber nunca realizado em sua totalidade. Dessa re
lação surge
Nesse discurso, portanto, a histérica ($) demanda um mestre (S
produza um saber, mas que não governe, que seja sempre precário em sua
condição. “Vemos então a histérica fabricar,
movido pelo desejo de saber” (Jorge, 2002:31).
Lacan (1969-
1970/1992) nos diz que o discurso filosófico possui um
“parentesco” com o discurso da histérica, pois ambas, de certa maneira,
motivam no senhor o desejo de saber, ap
analítica; ao se histericizar o discurso do analisando, possibilita
emergência de um sujeito que produza seus próprios significantes.
O que a histérica quer que se saiba é, indo a um extremo, que a
linguagem
derrapa na amplidão daquilo que ela, como mulher, pode
abrir para o gozo. Mas não é isto que importa à histérica. O que lhe
importa é que o outro chamado homem saiba que objeto precioso ela
se torna nesse contexto de discurso. Não estará aí, afinal, o próp
fundamento da experiência analítica? Pois digo que ela se ao outro,
como sujeito, o lugar dominante no discurso da histérica, histericiza seu
discurso, faz dele um sujeito a quem se solicita que abandone qualquer
refêrencia que não seja a das quatro
produza significantes que constituam a associação livre soberana, em
suma, do campo
Nesse discurso o saber é inconcluso e provisório para que a busca
nunca cesse.
4.4-
Discurso do analista
Temo
s nesse discurso o seguinte matema:
116
Nesse discurso, portanto, a histérica ($) demanda um mestre (S
produza um saber, mas que não governe, que seja sempre precário em sua
condição. “Vemos então a histérica fabricar,
como pode, um homem que seria
movido pelo desejo de saber” (Jorge, 2002:31).
1970/1992) nos diz que o discurso filosófico possui um
“parentesco” com o discurso da histérica, pois ambas, de certa maneira,
motivam no senhor o desejo de saber, ap
roximando essa lógica da experiência
analítica; ao se histericizar o discurso do analisando, possibilita
emergência de um sujeito que produza seus próprios significantes.
O que a histérica quer que se saiba é, indo a um extremo, que a
derrapa na amplidão daquilo que ela, como mulher, pode
abrir para o gozo. Mas não é isto que importa à histérica. O que lhe
importa é que o outro chamado homem saiba que objeto precioso ela
se torna nesse contexto de discurso. Não estará aí, afinal, o próp
fundamento da experiência analítica? Pois digo que ela se ao outro,
como sujeito, o lugar dominante no discurso da histérica, histericiza seu
discurso, faz dele um sujeito a quem se solicita que abandone qualquer
refêrencia que não seja a das quatro
paredes que o envolvem, e que
produza significantes que constituam a associação livre soberana, em
suma, do campo
(Lacan, 1969-1970/1992:32).
Nesse discurso o saber é inconcluso e provisório para que a busca
Discurso do analista
s nesse discurso o seguinte matema:
Nesse discurso, portanto, a histérica ($) demanda um mestre (S
1
) que
produza um saber, mas que não governe, que seja sempre precário em sua
como pode, um homem que seria
1970/1992) nos diz que o discurso filosófico possui um
“parentesco” com o discurso da histérica, pois ambas, de certa maneira,
roximando essa lógica da experiência
analítica; ao se histericizar o discurso do analisando, possibilita
-se a
emergência de um sujeito que produza seus próprios significantes.
O que a histérica quer que se saiba é, indo a um extremo, que a
derrapa na amplidão daquilo que ela, como mulher, pode
abrir para o gozo. Mas não é isto que importa à histérica. O que lhe
importa é que o outro chamado homem saiba que objeto precioso ela
se torna nesse contexto de discurso. Não estará aí, afinal, o próp
rio
fundamento da experiência analítica? Pois digo que ela se ao outro,
como sujeito, o lugar dominante no discurso da histérica, histericiza seu
discurso, faz dele um sujeito a quem se solicita que abandone qualquer
paredes que o envolvem, e que
produza significantes que constituam a associação livre soberana, em
Nesse discurso o saber é inconcluso e provisório para que a busca
Nesse matema o analista se apresenta no campo do agente
, que traz consigo um saber “não
sabe da castração desse outro e esse saber é sustentado nessa relação
discursiva, diferenciado-
se assim do discurso do mestre que promete um saber
total sobre o sujeito. Por mais que esse sujeito demande tal saber, nessa
relação não o terá.
O avesso da psicanálise é o discurso do mestre, porque no discurso do
analista se coloca no lugar de
demanda uma plenitude não correspondida pelo analista que oferece como
verdade (S2) um enigma, uma verdade semi
da fala é dada para o sujeito dizer tudo o que lhe advir à mente e assim
construir a sua verdade de acordo com suas peculiaridades, pois o S
vazio de saber.
no discurso do mestre existe a oferta de um saber totali
parte do senhor e a aceitação do escravo ao domínio do mestre. Tanto que o
produto dessa relação é o
Tomando o outro como sujeito falante, o discurso do psicanalista leva o
sujeito bem
-
operações que se acham escritas nesse discurso: $
analista é analista por ser objeto para seu analisando, como sujeito,
atravessar a fantasia. Por isso, pode
psican
alista o desejo do psicanalista, definido por Lacan como o desejo
de obter a diferença absoluta
barrado
(Jorge, 2002:30).
117
Nesse matema o analista se apresenta no campo do agente
, que traz consigo um saber “não
-
todo” sobre o outro ($), porque justamente
sabe da castração desse outro e esse saber é sustentado nessa relação
se assim do discurso do mestre que promete um saber
total sobre o sujeito. Por mais que esse sujeito demande tal saber, nessa
O avesso da psicanálise é o discurso do mestre, porque no discurso do
analista se coloca no lugar de
objeto “a”
um suposto saber, pois o sujeito
demanda uma plenitude não correspondida pelo analista que oferece como
verdade (S2) um enigma, uma verdade semi
-
dita, dessa maneira a liberdade
da fala é dada para o sujeito dizer tudo o que lhe advir à mente e assim
construir a sua verdade de acordo com suas peculiaridades, pois o S
no discurso do mestre existe a oferta de um saber totali
parte do senhor e a aceitação do escravo ao domínio do mestre. Tanto que o
produto dessa relação é o
objeto “a” – mais-de-gozar, a mais-
valia.
Tomando o outro como sujeito falante, o discurso do psicanalista leva o
-
dizer o próprio sin
toma e a atravessar sua fantasia, ambas
operações que se acham escritas nesse discurso: $
analista é analista por ser objeto para seu analisando, como sujeito,
atravessar a fantasia. Por isso, pode
-
se ler igualmente no discurso do
alista o desejo do psicanalista, definido por Lacan como o desejo
de obter a diferença absoluta
entenda-
se, a posição radical do sujeito
(Jorge, 2002:30).
Nesse matema o analista se apresenta no campo do agente
objeto “a”
todo” sobre o outro ($), porque justamente
sabe da castração desse outro e esse saber é sustentado nessa relação
se assim do discurso do mestre que promete um saber
total sobre o sujeito. Por mais que esse sujeito demande tal saber, nessa
O avesso da psicanálise é o discurso do mestre, porque no discurso do
um suposto saber, pois o sujeito
demanda uma plenitude não correspondida pelo analista que oferece como
dita, dessa maneira a liberdade
da fala é dada para o sujeito dizer tudo o que lhe advir à mente e assim
construir a sua verdade de acordo com suas peculiaridades, pois o S
1
está
no discurso do mestre existe a oferta de um saber totali
zante por
parte do senhor e a aceitação do escravo ao domínio do mestre. Tanto que o
valia.
Tomando o outro como sujeito falante, o discurso do psicanalista leva o
toma e a atravessar sua fantasia, ambas
S
1
e a $. O
analista é analista por ser objeto para seu analisando, como sujeito,
se ler igualmente no discurso do
alista o desejo do psicanalista, definido por Lacan como o desejo
se, a posição radical do sujeito
118
O analista, ocupando o lugar do objeto “a, permite que, quando o sujeito
($) se dirija ao lugar do suposto saber (a), o analista, por meio da escuta e da
interpretação seja capaz de disparar uma troca discursiva na cadeia de
significantes produzidas por esse ($). Dessa forma o analista serve como uma
barra entre o significante e o significado. A barra serve para revelar o sujeito
que fala e não aquele que acha que está falando, pois assim nesse corte é
possível a emergência do sujeito do inconsciente. Na sessão analítica o
discurso tem seu valor por tropeçar ou a se interromper para não
perseverar na lógica do falso discurso que não revela aquele que fala.
Esse corte na cadeia de significante é o único para verificar a estrutura
do sujeito como descontinuidade do real. Se a linguistica nos promove o
significante, ao ver nele o determinante do significado, a análise revela
a verdade dessa relação, do fazer furos do sentido aos determinantes
de seu discurso (Lacan, 1966/1998: 815).
Nesse sentido, podemos pensar que o analista ocupa a função de shifter
no discurso do analisando, pois como shifter
25
é capaz de operar uma mudança
de pólo na elaboração discursiva daquele que fala e assim o ato analítico
produz o sintoma e a travessia da fantasia.
Sobre esses quatro discursos, Lacan observou algumas coisas
fundamentais: que todo liame social se sustenta neles; que os
“quadrípodes” são um aparelho de “quatro patas” com quatro posições,
que definem quatro discursos radicais”; que foi o surgimento do
discurso psicanalítico que permitiu que houvesse o destacamento dos
outros discursos, que o discurso psicanalítico emerge a cada vez que
a passagem de um discurso a outro, acrescentando que isso
equivale afirmar que o amor é o signo de que trocamos de discurso
(Jorge, 2002:18).
25
Shifter significa a barra que provoca a mudança, deslocamento. Por exemplo, a barra que opera a
mudança de canal do rádio ou da TV.
119
Para que ocorra essa mudança de polaridade discursiva, o analista se
utiliza de enigmas que têm por função, segundo Lacan (1969-1970/1992),
mostrar a verdade pela metade, um semi-dizer, ou seja, o enigma se torna uma
enunciação e cabe ao sujeito transformá-lo em enunciado à medida que os
enigmas são apresentados. Nesse sentido, o enigma como um semi-dizer se
mostra o suficiente para poder desaparecer assim que esse sujeito comece o
processo para decifrá-lo. “A função de enigma nesse discurso tem a função de
um semi-dizer, como a Quimera fez aparecer um corpo, pronto para
desaparecer completamente quando se deu a solução” (Lacan, 1969-
1970/1992:34).
A citação em um texto também se refere a um semi-dizer, pois, segundo
Lacan (1969-1970/1992), quando o escritor traz para seu texto referências de
outros autores para justificar sua opinião, esse fragmento se torna válido à
medida que conta com a participação de quem está escrevendo. A ideia da
citação se assemelha ao processo analítico. A partir da interpretação são
lançados pelo analista a citação e o enigma, que terão validade com a
participação daquele que fala.
Pois bem, esses dois registro, na medida em que participam do semi-
dizer, eis o que o meio e, por assim dizer, o título sob o qual a
interpretação intervém. A interpretação aqueles que a usam se dão
conta é com frequência estabelecida por um enigma. Enigma colhido,
tanto quanto possível, na trama do discurso do psicanalisante e que
você, o intérprete, de modo algum pode completar por si mesmo, nem
considerar, sem mentir, como confissão. Citação, por outro lado, às
vezes tirada do mesmo texto, tal como foi enunciado. Que é aquele que
pode ser considerado uma confissão, desde que o ajuntem a todo o
contexto. Mas estão recorrendo, então, “aquele que é seu autor”
(Lacan, 1969-1970/1992:35).
120
Como vimos até o momento, Lacan formula o discurso do analista e o
descreve direcionando para a realidade circunscrita da análise. Seria possível
esse discurso atuar fora do cenário psicanalítico? Seria a mística uma
possibilidade de visualizarmos traços desse discurso em uma prática coletiva?
É atrás do desvelamento desse enigma que nos colocamos a partir de agora.
121
Capítulo 5: Psicanálise: O Saber Posto na Berlinda
Capítulo 5: Psicanálise: O Saber Posto na BerlindaCapítulo 5: Psicanálise: O Saber Posto na Berlinda
Capítulo 5: Psicanálise: O Saber Posto na Berlinda
No discurso do mestre o S
1
está a função significante que apoia o
senhor em seu processo de dominação sobre o escravo. No campo do S
2
está
o escravo que possui o “savoir-faire”. Marx delineia, em suas formulações
teóricas, a função da luta de classes e a consequente lógica de manutenção do
discurso do senhor. No entanto, Lacan (1969-1970/1992) destaca que uma
mudança no lugar do saber no discurso do senhor feudal em relação ao senhor
capitalista que coloca o proletariado como despossuído da propriedade
comunal que justifica o empreendimento quanto ao sucesso da revolução.
Não se sabe que o que lhe é restituído não é, forçosamente, a sua
parte? Seu saber, a exploração capitalista efetivamente o frustra,
tornando-o inútil. Mas o que lhe é devolvido, em uma espécie de
subversão, é outra coisa – um saber de senhor. E é por isto que ele não
fez mais do que trocar de senhor. O que sobra é exatamente, com
efeito, a essência do senhor – a saber, o fato de que ele não sabe o que
quer. Eis o que constitui a verdadeira estrutura do discurso do senhor. O
escravo sabe muitas coisas, mas o que sabe muito mais ainda é que o
senhor quer, mesmo que este não o saiba, o que é o caso mais comum,
pois sem isto ele não seria um senhor. O escravo o sabe, e é isto sua
função de escravo. É também por isto que a coisa funciona, porque, de
qualquer maneira, funcionou durante muito tempo (Lacan 1969-
1970/1992:30).
Na gica do discurso do mestre, o escravo sabe muitas coisas,
especialmente “savoir-faire”, todavia o senhor quer que este não saiba de fato
as tramas dessa relação para que assim a dominância do senhor continue, pois
na lógica do senhor a verdade está opaca (tamponada por uma barra). Nessa
tirania do saber uma impossibilidade que surge no curso do movimento
histórico – a verdade –, pois essa foi deslocada para outro lugar, o que faz com
122
que ela continue sendo produzida pelos que substituem o antigo escravo feudal
– o proletário.
Nesta relação senhor / escravo encontra-se um lugar que sempre
permite que o saber se torne um saber de senhor para assim perpetuar a lógica
de dominação submissão. No entanto, o escravo, ao ser questionado nessa
relação, por suas respostas, ele mostra que sabe, todavia trata-se apenas de
arrebatar do escravo sua função no plano do saber.
(...), porém vejamos, o escravo, mas que venha, o pequenino, vocês
veem, ele sabe. Faz-se-lhe perguntas, perguntas de senhor, de mestre,
obviamente, e o escravo responde com naturalidade às perguntas o que
as perguntas ditam como respostas. Acha-se uma forma de
derrisão. É um modo de escarnecer do personagem que está virando
no espeto. Mostram que o importante, a finalidade, é mostrar que o
escravo sabe, mas, ao confessar isto apenas por este viés de derrisão,
o que se oculta é que trata-se exclusivamente de arrebatar do escravo
sua função no plano do saber (Lacan 1969-1970/1992:19-20).
Todos dizem que o gozo é privilégio somente do senhor, porém
sabemos que o, pois o senhor impõe sua vontade ao escravo por meio de
um consentimento, sendo que este teme a morte. Por isso um enigma na
função exercida pelo senhor, porque todo saber não se revela imediatamente,
mas vai se dando a conhecer ao longo do processo, principalmente quando
essa lógica enguiça “ali está a irrupção de toda a fase de lapsos e tropeços
em que se revela o inconsciente. Mas é bem melhor e vai bem mais longe do
que à luz da experiência analítica” (Lacan 1969-1970/1992:28)
Nesse sentido, o sujeito desconhece o saber, porque no saber
inconsciente decanta tudo o que verdadeiramente acreditou ser, por isso
nenhum saber se sabe. O saber que não se sabe está no S
2
como outro
123
significante, pois no Outro muitos S
2
, o que base à fantasia de um saber
total. Para que essa relação seja deflagrada é preciso que algo seja instituído,
o discurso do analista. O que esse discurso institui? Vejamos o que nos diz
Lacan:
Escuto falarem muito de discurso da psicanálise, como se isso quisesse
dizer alguma coisa. Se caracterizamos um discurso centrando-nos no
que é predominante, existe o discurso do analista, e este não se
confunde com o discurso psicanalisante, com o discurso proferido
efetivamente na experiência analítica. O que o analista institui como
experiência analítica pode-se dizer simplesmente é a histerização do
discurso. Em outras palavras, é a introdução estrutural, mediante
condições artificiais, do discurso da histérica, aquele que está indicando
aqui com um H maiúsculo (Lacan,1969-1970/1992:31).
Nesse trecho Lacan acentua que o discurso do analista cria condições
artificiais para histericizar o discurso do sujeito para que esse passe a fazer
sintoma. Nesse sentido, Lacan avança dizendo que o discurso do analista
existiria de qualquer maneira, quer a psicanálise existisse ou não. Sabemos
que o discurso da histérica não é privilégio da mulher, todos os sujeitos que
passam pela análise são forçados pelo discurso da histérica, que, por sua vez,
é industriosa, pois fabrica um homem movido pelo desejo de saber.
No discurso do analista o “savoir-faire” psicanalítico está justamente na
escuta do analisando. Nesse discurso o S
2
está no lugar da verdade e no
discurso do mestre o S
2
é o escravo. O trabalho escravo, portanto, constitui o
inconsciente não revelado, o que nos faz falar e pensar sobre a vida em suas
mais vastas gamas de ficções, desvios e erros. Por isso que na experiência
analítica o saber instituído é sempre posto na berlinda, é sempre interrogado.
124
No discurso do analista, portanto, é impossível dizer a verdade
totalmente, pois ela é possível pela metade, por isso a função do enigma é
oferecer ao sujeito um semi-dizer que surge e desaparece quando se chega a
uma solução. A interpretação seria um saber como verdade. O Enigma é uma
enunciação que o analista encarrega seu analisante de convertê-lo em
enunciado. A citação (Freud, Marx, Lacan etc.) é um semi-dizer que provoca o
analisante a se responsabilizar com o enunciado.
No processo analítico a palavra é dada ao sujeito para que fale
livremente. Na transferência o analista é colocado no lugar do suposto saber
ao qual o analisante se prende e recorre, pensando ter encontrado ali aquilo
que tanto procurava: saber. No entanto, o produto gerado dessa relação é a
perda, a eliminação do processo.
O analista consegue ocupar esse lugar (suposto saber), porque o sujeito
entra na linguagem via discurso do mestre e nessa relação senhor e escravo, o
desejo do senhor é o desejo do Outro, pois é o desejo que o escravo
predispõe. Nesse lugar o analista consegue “desencadear o movimento de
investimento do sujeito suposto saber sujeito que, por ser reconhecido como
tal, é rtil de antemão, em seu recanto, daquilo que chamamos transferência”
(Lacan 1969-1970/1992:35-36).
No discurso do analista, no lugar do agente está o objeto “a”, que por
sua vez marca a posição do analista no discurso. O objeto “a” designa o efeito
do discurso como opaco, rechaço. O discurso ordena porque o objeto “a” é
dominante. No discurso do mestre o lugar dominante é dominado pelo S
1
. A lei
inscrita na estrutura justamente pela entrada do Outro no discurso, faz com que
125
o sujeito encontre na lei seu abrigo e proteção. no discurso da histérica o
dominante aparece como sintoma, que por sua vez ordena toda lógica nesse
discurso.
Isto nos dá oportunidade para uma observação. Se esse lugar ainda é o
mesmo, e se, em tal discurso, ele é o do sintoma, isso nos levará a
perguntar como é que, sendo o lugar do sintoma o mesmo, pode ele
servir em um outro discurso. É exatamente o que vemos, de fato, em
nossa época a lei questionada com sintoma. E não basta dizer que
isso surge para nós à luz da época para reconhecer suas razões (Lacan
1969-1970/1992:41)
O gozo necessita de repetição para que se inscreva enquanto tal e
Lacan (1969-1970/1992) lembra que Freud articula a repetição com o instinto
de morte, entendido como defeito, fracasso. Nessa lógica, em qualquer
repetição algo se perde (velocidade, força etc.). Para a psicanálise, na
repetição um desperdício de gozo, como aquilo que se perde. É no lugar da
perda (repetição) que aparece a função do objeto “a” (objeto perdido).
Seguindo a ideia psicanalítica, o saber é visto como meio de gozo, pois
trabalhando produz entropia, sendo nesse despedaçamento que o significante
se introduz como aparelho de gozo. A entropia busca recuperar um mais-de-
gozar, pois esse aponta para uma perda, um número negativo que insiste em
repetir e se fazer gozar.
Tal saber é meio de gozo. E quando ele trabalha, repito, o que produz é
entropia. Essa entropia, esse ponto de perda, é o único ponto, o único
ponto regular por onde temos acesso ao que está em jogo no gozo.
Nisto se traduz, se arremata e se motiva o que pertence à incidência do
significante no destino do ser falante (Lacan 1969-1970/1992:48).
No discurso do mestre, o saber como meio de gozo se porque o
saber está no nível do escravo, pois seu trabalho fornece a verdade do senhor,
126
a qual o S
1
busca ocultá-la com uma barra. A verdade do senhor é que ele é
castrado.
Por outro lado, na experiência analítica pode-se perceber que a verdade
só é acessível por um semi-dizer, só pode ser dita pela metade. Nesse aspecto
estão os pontos fundamentais da interpretação analítica na tentativa de
desvelar a verdade do senhor encoberta pela barra (S
1
/$). no discurso do
analista, a verdade é a impotência, fraqueza... “Como disse, o amor é dar o
que se o tem, ou seja, aquilo que poderia reparar essa fraqueza original”
(Lacan 1969-1970/1992:49).
Na transferência o analista se coloca como sujeito do suposto saber,
cabendo a ele, então, fazer funcionar o seu saber em termos da verdade,
confinada em um semi-dizer. Ao proferir um ato analítico, o analista deve estar
no lugar de objeto “a” gozo do outro. O sujeito chega à análise sedento pela
verdade, quando percebe, encontra ali nesse lugar da verdade o não-saber ao
qual ele tem que suportar.
A verdade, portanto, impressiona por certa falta de sentido, percebida no
sonho, chiste e ato falho. Essas manifestações, aparentemente sem sentido,
trazem à luz a verdade ausente decantada no inconsciente. Portanto, o sujeito
sempre está numa relação com a verdade, que, por sua vez, não cessa em
denunciá-lo, pois o sujeito não a administra inteiramente.
A verdade é inseparável dos efeitos de linguagem, sendo possível ser
localizada no campo onde ela se enuncia e, neste ponto, podemos incluir o
inconsciente, pois esse é condição sine qua non da linguagem, quando se
exige que da linguagem se produza um sentido absoluto. No discurso do
127
universitário a verdade absoluta surge para justamente um não querer sobre a
verdade escondida, para não entrar em contato com aquilo que o douto
esconde como verdade (S
1
). A psicanálise se usa desse discurso para fazer
suas proposições, no entanto, não pode se prender a ele, caso contrário vende
verdades absolutas que não possui.
Todos os discursos possuem e colocam em jogo um gozo, pois em
todos eles se espera o trabalho da verdade. Por isso podemos supor a inclusão
da psicanálise na política. No discurso do mestre a verdade está oculta, mas
não está ocultado o discurso do senhor, posto que neste está colocada a
relação de trabalho entre senhor e escravo. O discurso do analista vem colocar
em dúvida qualquer possibilidade do trabalho engendrar um saber absoluto, ou
qualquer saber. Lacan enfatiza que deste ponto é possível apreender o que
vem a ser a subversão psicanalítica, vejamos:
Se o saber é meio de gozo, o trabalho é outra coisa. Mesmo sendo feito
por quem tem o saber, o que ele engendra pode até certamente ser a
verdade, mas nunca é o saber – nenhum trabalho jamais engendrou um
saber. Algo ali faz objeção, algo que permite uma observação mais
rigorosa do que vem a ser nossa cultura as relações do discurso do
senhor com uma coisa que surgiu, e de onde é refutado o exame
daquilo que, do ponto de vista de Hegel, circundava esse discurso a
evitação do gozo absoluto, na medida em que este é determinado pelo
fato de que a convivência social, ao fixar a criança à mãe, faz deste a
sede preferencial das interdições
(Lacan, 1969-1970/1992:74-75).
Lacan nos mostra que na constituição do laço social uma economia
de gozo posta nas relações discursivas. No discurso do mestre, que envolve a
relação senhor-escravo, está colocado o gozo como um mais-de-gozar,
extraído do trabalho. No discurso do universitário, que envolve a relação douto-
estudante, o gozo está colocado no saber totalizante e absoluto. No discurso
128
da histérica está em jogo o gozo em fazer desejar, o sintoma incessante da
insatisfação o qual não cessa de interpelar o mestre em seu poderio. No
discurso do analista, esse por sua vez se apresenta como objeto causa do
desejo e assim rompe com as verdades absolutas, provoca no sujeito a busca
não mais por um gozo incessante, mas para que esse se comprometa com seu
desejo.
129
Capítulo 6: A Mística do MST e os Quatro Discursos
Capítulo 6: A Mística do MST e os Quatro DiscursosCapítulo 6: A Mística do MST e os Quatro Discursos
Capítulo 6: A Mística do MST e os Quatro Discursos
6.1- A possibilidade do discurso do mestre na mística do MST
Em pesquisas realizadas anteriormente (Lara Junior e Prado, 2004;
Lambiasi e Lara Junior, 2005; Lara Junior, 2005; Lara Junior, 2006; Lara Junior,
2007;), percebemos que durante a mística sempre um ícone da história
(Zumbi dos Palmares; Paulo Freire, Karl Marx, Jesus Cristo, Ernesto Che
Guevara etc.), ou uma pessoa dando seu testemunho
26
que é trazido como
referência na construção discursiva de uma determinada mística.
Nesse sentido, pensamos que esses ícones ocupam o lugar do S
1
, pois
são eles que detêm o discurso político articulado para orientar, organizar e
executar ações dentro de um projeto mais totalizante, porque são colocados no
lugar de quem sabe qual projeto ou estratégia seguir e o período do
acampamento (que antecede a ocupação) é um momento propício para que os
lugares sejam definidos. Por isso, os ícones são apresentados na mística como
uma referência à qual todos devem se identificar para construir suas práticas e
ideologias.
Os Sem Terra conjugam, na mística, vários ritos que se alternam entre
depoimentos de algum membro do movimento; encenações de alguma
história de resistência na luta pelos direitos de cidadão; fazem memória
de uma pessoa que seria uma espécie de “modelo” para se seguir (Lara
Junior & Prado, 2004:12).
26
Num dos significados dados pelo dicionário Houaiss (2001), o testemunho é a “Ação de
certas faculdades que nos conduzem ao conhecimento da verdade”.
130
Dessa forma, a partir do momento em que a mística resgata seus ícones
e os colocam em uma posição de destaque, de modelo a ser seguido, nos
trazem a possibilidade de pensar que produzem um discurso capaz de criar
laço social entre os sujeitos, porque eles colocam os ícones no lugar do ideal
de eu, fazendo assim que crie uma coesão grupal.
Freud (1921/1993), no livro Psicologia das Massas e Análise do Eu,
relacionou o ideal de eu de cada sujeito ao ideal do grupo. Entendemos que o
ideal de eu mantém os membros do grupo libidinalmente ligados entre si.
Nesse sentido, a perda do objeto amado causa a fragmentação do eu, e essas
partes se voltam umas contra as outras. A esse fragmento de eu, Freud
denomina ideal de eu a herança do narcisismo infantil encarregado da
censura e repressão. Influenciado pela exigência do meio, o ideal de eu
pressiona o eu que nem sempre consegue realizar essas exigências causando
certos delírios como defesa.
(...) atribuimos ao ideal de eu as funções da observação de si, a
consciência moral, a censura onírica e o exercício da principal influência
na repressão. Dizemos que era a herança do narcisismo originário, no
qual o eu infantil se contentava a si mesmo (Freud, 1921/1993103).
O marco do enamoramento dos sujeitos em relação ao objeto amado
passa por um feito de que esse objeto não é alvo de críticas severas como se
faz a outro objeto qualquer, pois a idealização do objeto se passa pelo fato
desse ser considerado como o próprio eu, como numa ação de um certo
espelhamento narcísico. Nesse sentido, o objeto serve para substituir o ideal
de eu não encontrado. Esse objeto, portanto, serve para satisfazer seu
narcisismo inerente à eleição do objeto de amor.
131
À medida que há um investimento para uma satisfação sexual, o objeto
passa a ser mais grandioso, valioso e superestimado, fazendo com que o eu se
anule diante do mesmo, fazendo com que traços de autossacrifício em nome
desse objeto amoroso se justifique. Nesse super investimento no objeto, esse,
por sua vez, passa a ser inalcançável e o eu se entrega ao objeto.
Contemporaneamente a essa entrega do eu ao objeto, que não mais
se distingue da entrega sublimada a uma ideia abstrata, falham por
inteiro as funções que recaem sobre o ideal de eu. Cala-se toda a crítica
que é exercida por essa instância; tudo que o objeto faz e pede é justo e
íntegro. A consciência moral não se aplica a nada do que acontece em
favor do objeto; na cegueira do amor, um se converte em criminoso sem
remorsos. A situação pode resumir-se cabalmente em uma fórmula: o
objeto se coloca no lugar do ideal de eu (Freud, 1921/1993:106).
No processo identificatório o objeto é posto no lugar do eu e do ideal de
eu. Quando isso ocorre, a consequência é a submissão humilhada, obediência
cega e a falta de crítica em relação ao objeto. Quando o lugar do objeto é
ocupado por uma pessoa, no caso o líder, esse se torna o objeto único dos
sujeitos das massas que buscam através desse a plena satisfação de seus
instintos. Essa aspiração sexual inibida faz criar laços entre os seres humanos,
portanto, qualquer promessa de satisfação plena desses instintos é vista pelos
sujeitos como a possibilidade de gozo.
Uma massa primária desta índole é uma multidão de indivíduos que
puseram um objeto, um e o mesmo, no lugar de seu ideal de eu, a
consequência é eles se identificarem entre si em seu eu (Freud,
1921/1993:110).
Dessa maneira, na mística os ícones são colocados como o objeto a ser
posto no lugar de ideal de eu que faz com que os membros do movimento se
identifiquem entre si, logo sendo capazes de formar laço social.
132
Sabemos que como decorrência desse processo político, o escravo goza
no cumprimento das leis e o senhor sabe disso. A barra que separa o S
1
do $
escamoteia a verdade do discurso, ou seja, o senhor é castrado. O escravo
acredita no escamoteamento e aceita o jugo, pois se sente na obrigação do
cumprimento das normas para assim sustentar o senhor em sua posição de
domínio.
Assim a barra da primeira fração é aquilo que indica o representante e o
representado em cada laço social. O representado, escamoteado pela
barra, é o que sustenta a verdade de cada discurso. O agente de cada
laço social é o agente da verdade para o outro produzir alguma coisa
(Quinet, 2006:33).
Do S
2
que está no campo do outro, podemos entender que os membros
do movimento ocupam esse lugar, com isso gozam neste lugar que visa a
completude, como na primeira experiência de satisfação com o Outro e que por
nunca alcançá-la repetem-na. Neste caso, o MST (significante mestre) oferece,
por meio da mística, uma terra onde corre leite e mel, como uma alusão à terra
prometida por Deus aos hebreus, descrita no livro do Êxodo (Lara Junior,
2005).
Por isso, os sujeitos partem numa busca incessante e sempre
fracassada pelo S
1
(aquele que detém a promessa da terra prometida). Esse
fato do S
2
se posicionar no lugar de quem repete, faz com que tenha uma base
para a fantasia de um saber totalizante depositado no S
1
.
O S
2
como saber é “um meio de gozo” tal como se pode verificar na
relação senhor-escravo da dialética hegeliana, a partir da qual Lacan
extrai a escritura do matema do discurso do mestre. O mestre/senhor
(S
1
) comanda o escravo (S
2
) a produzir os objetos (a) dos quais ele irá
gozar. É o escravo que detém o saber para produzir os objetos, e esse
saber constitui seus meios de gozo (Quinet, 2006:31).
133
O gozo fracassado gera a repetição, o objeto “a” (mais-de-gozar)
entendido como o excedente gerado pelo trabalho do escravo, ideia essa que
Lacan resgata de Marx quando esse se refere à mais-valia o lucro do patrão
a partir do trabalho proletário que não é contabilizado. No matema do discurso
do mestre o objeto “a” representa o mais-de-gozar, o excedente na produção
submissa do escravo.
O que surge desse formalismo para continuar seguindo Lacan é
que, como dissemos pouco, perda de gozo. É no lugar dessa
perda, introduzida pela repetição, que vemos aparecer a função do
objeto perdido, disso que chamo “a”. O que é que isso nos impõe? Não
pode ser outra coisa senão essa fórmula pela qual, no nível mais
elementar, o da imposição do traço unário, o saber trabalhando produz,
digamos, uma entropia (Lacan, 1969/1970:46).
Como podemos ver, nesse discurso a evocação dos ícones dentro do
ritual da mística se tornam um referencial importante para os membros do
movimento se identificarem entre si para fazer laço social.
Também em decorrência desse tipo de laço social, a mística pode
legitimar certas lideranças com tendência autoritária, que se colocam como
aquele que detém a verdade sobre os demais e que acaba reproduzindo a
lógica do discurso do mestre.
6.2- Discurso universitário: a herança religiosa da mística
Os sujeitos são convocados pelo discurso universitário através do
discurso religioso de verdades absolutas e também de apelos políticos que
134
propagam soluções mágicas às questões materiais do cotidiano. Dessa forma
começam a tecer laços sociais.
Nesse sentido, na mística do MST, o elemento religioso é algo sempre
presente, começando pelas origens do movimento que é atravessada pela
ação da CPT (Comissão Pastoral da Terra), comissão esta formada pela Igreja
Católica e as Protestantes históricas como luteranos, presbiterianos,
metodistas etc. e também pela ação das Comunidades Eclesiais de Base
(CEBs) que protagonizaram o surgimento e estruturação da teologia da
libertação, como vimos com mais detalhes nos capítulos anteriores desta tese.
Também o termo mística empregado pelo MST nos remete às tradições
de várias religiões como mencionamos anteriormente. Essas tradições
religiosas oferecem elementos para a passagem de uma mística restrita aos
dogmas religiosos para a militância nos movimentos. No entanto, quem
primeiro teorizou essa passagem da mística religiosa para os movimentos
populares foram os teólogos Leonardo Boff e Frei Betto, a saber:
É nesse contexto (lutas dos movimentos de resistência política na
América Latina e no Brasil) que cabe falar de mística do engajamento e
da luta, sem constrangimento ou pruridos motivados pelas ressonâncias
religiosas desta palavra. Pelo contrário, cresce dia-a-dia o número
daqueles que se entendem dentro de uma perspectiva holística e
integral da existência humana. Procuram descobrir em si várias
dimensões do mistério da vida e os níveis de profundidade da
indagação humana. Identificam os grandes sonhos e visões de um
novo mundo e de relações humanas e sociais mais benevolentes e
amorosas que povoam nosso imaginário e que, de tempos em tempos,
incendeiam os corações. Nesse contexto, ganha sentido falar-se de
espiritualidade e de Deus, não como realidades pensadas em si
mesmas, mas como referências presentes nos embates, nas grandes
decisões, nos avanços e recuos, enfim, no drama humano e histórico.
Particularmente forte é seu significado, onde as pessoas e grupos se
confrontam com o fracasso e com a derrota e, ao mesmo tempo,
mantêm a coragem para resistir, protestar empenhar-se, arriscar-se em
135
prol das causas dignas. Donde lhes vêm tal energia vital e entusiasmo?
(...) Espiritualidade e mística pertencem à vida em sua integralidade e
em sua sacralidade. Daí nascem o dinamismo da resistência e a
permanente vontade de libertação
(Boff e Frei Betto, 1994:21).
É por isso que, durante o ritual da mística, os elementos da religião e da
religiosidade popular são incorporados, tanto que alguns membros do
movimento acham que o ritual da mística é uma extensão do culto religioso,
pois os cantos religiosos, orações e devoções populares são trazidos e
trabalhados durante a mística. Dessa maneira, algumas pessoas do movimento
entendem a mística como espaço sagrado (Lara Junior, 2005).
Outro aspecto que aparece nesse discurso é a dimensão educativa.
Durante a mística os organizadores, muitas vezes, fazem-na justamente para
transmitir informações e orientações a respeito do convívio em grupo, dos
direitos de cada cidadão. Essas são apresentadas com um forte conteúdo
ideológico político e religioso.
Para os organizadores das místicas, essas têm a função didática de
ensinar e regular comportamentos para que esses possam facilitar a
vida em grupo e também estejam adequados às exigências do
movimento. Dessa forma, fica claro que para esse grupo cumpre uma
tarefa importante de preparar as pessoas para as ações dentro dos
acampamentos e assentamentos do MST. (...) Com isso, os
organizadores cumprem a função de educar as pessoas para as
práticas coletivas do movimento. Se, por acaso, esse grupo parar de
realizar suas atividades, o funcionamento interno do movimento fica
comprometido (Lara Junior, 2005:119).
Ao trazer para a mística os elementos educacionais e religiosos,
colocam os sujeitos no limiar do saber totalizante desses discursos, prendendo
assim as pessoas na lógica do douto e do universitário, pastor e fiel. Por isso a
136
importância do discurso da histérica, para propor questões a essa relação, e do
analista, para buscar outros posicionamentos na relação.
Vale destacar que, estrategicamente antes de cada ocupação ou ação
importante do movimento, acontece a mística colocada nesse contexto como
uma esfera organizacional e burocrática do grupo, elementos próprios do
discurso universitário que através do saber reproduzido pelo mestre se tornam
fundamentais para que a empreitada seja conquistada. Um grupo desordenado
facilmente é intimidado quando encontra algum tipo de oposição.
6.3- Discurso da histérica e a mística: o questionamento da verdade
opressora
Essa relação discursiva, podemos entendê-la de algumas maneiras,
mostrando assim as possibilidades da existência do discurso da histérica na
mística. Por um lado podemos entender os militantes na posição de sintoma ($)
que encontra o mestre (S1) que podemos entender ser o governo que
demanda terra, saúde, educação etc., no entanto essa demanda nunca é
realizada totalmente. Dessa relação, portanto, surge como produto (s2) a
insatisfação da demanda não realizada em sua plenitude, o que provoca
sempre manifestações de insatisfação por parte dos militantes que se traduz
através das marchas, protestos e ocupações de prédios públicos.
Por outro lado, podemos ainda supor que o mestre (S
1
) pode ser
entendido como o capitalismo que se obrigado a trabalhar, quando
questionado pelos sujeitos ($) que apontam suas contradições e questionam
137
também o fato do capitalismo buscar se estabelecer como um modelo que
apresenta a verdade como absoluta e incontestável.
Nesse modelo capitalista não espaço para a dúvida e o debate, por
isso o MST causa tanto desconforto a essa sociedade, pois questiona essa
lógica opressora a partir do próprio significante que o constitui Sem Terra,
denunciando a falha no modelo totalizante , falta de terra para muitas
pessoas, consequentemente, denuncia de que há poucos latifundiários detendo
imensas quantidades de terras improdutivas, impedindo assim o acesso a um
direito que é a terra para todos. Portanto, inscrever no próprio nome do
movimento a falta, aponta para um buraco e uma falha nesse modelo que
deseja ser hegemônico. Também está inscrito na mística o significante MST:
M
í
ST
ica. Nessa significação está presente a falta da terra.
Nesse sentido, a mística do MST se constituí a partir da religiosidade
popular e por isso pode ser considerada como uma possibilidade de resistência
política, porque expõe a contradição do modelo ideológico capitalista e desafia
o sujeito a falar dessas contradições através das diversas possibilidades que a
mística apresenta: cantos, danças, encenações, ritos etc.
Outro dado a acrescentar é que o discurso da histérica está na ordem do
fazer desejar. Vemos que na denúncia da falta de terra o movimento se põe em
busca de sua terra. Para isso a mística resgata a ideia da “terra prometida” do
livro bíblico Êxodo terra onde corre leite e mel, ou seja, uma terra onde tudo
aquilo que sempre buscaram poderá se realizar.
Todavia quando alguns militantes conseguem seu lote de terra, tão
sonhado e desejado (terra prometida), abandonam tudo e voltam para os
138
acampamentos ou, principalmente, para as periferias das grandes cidades.
Ficam assim na posição da repetição do gozo, ou seja, continuam desejando a
terra que nunca chega. Outros permanecem na terra, se desligam do
movimento e se tornam “pequenos proprietários de terra”, refazendo a lógica
capitalista, tão criticada por eles. Assim remontam o cenário de desejar dias
melhores. Ao permanecer nessa posição histérica, os militantes convocam
outro mestre para trabalhar por eles, ficando assim nesse gozo histérico.
Em dados levantados em outra pesquisa (Lara Junior, 2007) verificamos
que a mística acontece com mais frequência quando os militantes estão no
acampamento, na fase em que ainda não possuem a terra. Nesse momento de
luta pela terra a mística se torna uma das principais estratégias de constituição
de um grupo e movimento. Dessa forma, as pessoas demandam sempre pela
presença de um mestre que os convoque para atuar de alguma maneira no
laço social.
Nesse sentido, pudemos verificar (Lara Junior, 2007) que místicas
acontecem com menos frequência nos assentamentos e em muitos deles nem
acontecem mais. Ouvimos, nas entrevistas, militantes se lamentando pela falta
da mística e pela falta de uma maior proximidade com o movimento. Nos
parece, a partir dessa constatação, que uma intrínseca realização entre a
mística e o sentimento de pertença ao movimento. Logo, se a frequência da
mística e a sua qualidade diminuem, aumenta a sensação de distanciamento
do movimento em relação a seus membros.
Em muitas situações a presença do movimento se restringe às
lideranças apenas e, com isso, as contradições dos que lutavam contra
139
começam a ser incorporadas no cotidiano dos militantes, como, por exemplo,
eles passam a se considerar não mais como Sem Terras e sim como pequenos
agricultores que produzem para sobreviver seguindo a lógica do mercado
capitalista e, assim, em muitos casos, eles abandonam a ideia de
cooperativismo, trabalho compartilhado.
Também ficam vulneráveis às investidas do governo e dos grandes
latifundiários e, algumas vezes, reproduzem a lógica de arrendar a terra para
outro produtor co o intuito de buscar emprego nas cidades. Nesse mesmo
sentido, muitos assentamentos ficam vulneráveis à presença das igrejas e
seitas que passam a dividir os militantes por ideologia religiosa, como foi o
caso do assentamento Zumbi dos Palmares em Iaras – SP, visitado por nós em
2007.
A religiosidade popular pode ser entendida como o elemento religioso na
cultura popular que apresenta possibilidades capazes de formar uma cadeia de
significantes que oferece uma espécie de discurso de resistência política
traduzida em práticas coletivas como a mística, greves, ocupações, debates,
enfim, atividades hábeis para questionar o poder instituído, fazendo-o trabalhar.
6.4- Discurso do analista: enigma, silêncio e o mistério da mística
Partimos da etimologia da palavra mística como uma primeira pista para
tentar responder a essas questões. O primeiro sentido que essa palavra nos
remete é mistério, como salienta Boff & Frei Betto (1994), não sendo algo
pejorativo que está na ordem daquilo que está escondido. Uma vez encontrado
140
o que está escondido, dissolve-se o mistério. Mas o que está escondido é algo
que está se revelando e se escondendo ao mesmo tempo e que exige do
místico essa busca por algo que está na realidade, mas não totalmente
decifrado.
O indecifrável para Boff e Frei Betto são as pessoas que, mesmo com o
convívio diário, nunca a conhecemos totalmente, sempre havendo um mistério
desafiador a ser descoberto. Isso mantém sempre aberta a possibilidade para
um vir a ser constante dos seres humano. Por isso, esse autor sustenta o
caráter indecifrável como uma postura diante do outro, ou seja, não
conhecemos totalmente o outro, por isso não podemos reduzi-lo a um mero
objeto. A relação cotidiana vai revelando as dimensões de cada ser humano.
Nesse sentido ainda, o autor critica a ciência por tentar se absolutizar na
modernidade como a detentora da verdade sobre as pessoas e sobre a
natureza, sendo que ela consegue apenas falar sobre aquilo que está ao
alcance do crivo experimental, esquecendo assim de outras dimensões e
possibilidades que a realidade nos apresenta.
Aquilo a que chamamos realidade apresenta-se incomensuravelmente
maior que nossa razão e nossa vontade de dominar pelo conhecimento.
A pessoa humana, a fortiori, é mais do que sistemas de compreensão
ou formas de convívio social. Ela surge como um mistério, que se
entrega sob as formas mais ambíguas. Por um lado, pode também se
revelar sinistro e aterrador por sua capacidade de destruir, excluir e
comportar-se com lobo para seu semelhante
(Boff & Frei Betto,
1994:15).
Para Boff e Frei Betto, o enigma é algo que uma vez decifrado
desaparece, e o indecifrável está sob o conceito de mistério. “Mistério não
equivale a enigma que, decifrado, desaparece. Mistério designa a dimensão de
141
profundidade que se inscreve em cada pessoa, em cada ser e na totalidade da
realidade e que possui um caráter definitivamente indecifrável (Boff & Frei
Betto, 1994:14)”.
Essa ideia de enigma não se assemelha ao conceito de enigma proposto
por Lacan, que justamente se refere ao caráter indecifrável do mesmo. Sendo
assim, o enigma de Lacan se torna semelhante ao que Boff e Frei Betto
chamam de mistério, pois ambos possuem a ideia do indecifrável totalmente.
No entanto, tomamos os devidos cuidados para afirmar que
teoricamente os autores estão se referindo a objetos diferentes, porém, o
indecifrável dos dois conceitos traz para nós uma possibilidade de verificarmos
se na mística do MST esse caráter enigmático ou misterioso aparece para que
sujeitos possam ir decifrando suas questões.
Aqui temos uma chave conceitual: mística-mistério-enigma que permite
efetivamente pensar a mística como um dispositivo de emergência do sujeito
do inconsciente. A mística tem algo da ordem do oráculo (isso fala) no qual um
sujeito deve advir. Se a mística se coloca como tal dispositivo, então alguma
possibilidade é dada ao sujeito para que esse possa construir sobre a própria
significação de pertencimento ao movimento, sem abrir mão de seu desejo. A
mística, portanto, parece corresponder aos rituais que valorizam a hiância entre
desejo e gozo, desta forma, talvez possam ancorar algo da separação que põe
o desejo em movimento.
Trazemos agora uma “citação” de Roseli Salete Caldart, uma das
lideranças e sistematizadoras da educação no MST, a saber:
142
A ideia de mística no movimento evoca dois significados combinados.
Mística quer dizer um sentimento muito forte que une as pessoas em
torno de objetivos comuns, e que se manifesta naquele “arrepio da
alma” que se materializou em choro incontido nos caminhantes da
Marcha Nacional quando se encontraram no abraço demorado sob o
vermelho da bandeira que os levou a Brasília naquele 17 de abril de
1987. No plano do mistério evoca a pergunta: o que manteve essas
pessoas em Marcha, tomando chuva, fazendo bolhas nos pés,
exaurindo sua força física, mesmo sabendo que ainda não era para sua
terra que caminhavam? (Caldart, 2000:134).
Vemos que nessa narrativa de Caldart duas dimensões da mística a
serem ressaltadas. Na primeira a autora fala de um “arrepio na alma” que se
materializa no choro e no abraço sob a bandeira do movimento. algo do
mistério que se revela pelos gestos, rito, símbolo etc. Esses elementos não
estariam aqui funcionando como um shifter para auxiliar os sujeitos a mudarem
de polaridade discursiva?
Na segunda dimensão a autora encerra sua colocação deixando para
seu leitor um enigma/mistério. Afinal o que move essas pessoas a lutarem
diante de tantas adversidades?
A segunda pista que seguimos está ancorada em outro sentido
etimológico da palavra mística que tem sua origem no grego mythos e myéo
fechar os bio ou olhos” (Bazán, 2002:86). Isso nos remete a uma dimensão
daquilo que é vivenciado além das palavras (lábios) e para além dos olhos
(imagens). A pergunta que fazemos é a seguinte: O que existe em nossa
mente, quando tiramos as palavras e as imagens? O que nos resta?
143
Vejamos o que nos diz esse trecho do poema místico intitulado “O
mundo além das palavras”, escrito por Jalal Rumi
27
:
Dentro deste mundo há outro mundo
impermeável às palavras.
Nele, nem a vida teme a morte,
Nem a primavera dá lugar ao outono.
Histórias e lendas surgem dos tetos e paredes,
Até mesmo as rochas e árvores exalam poesia.
Aqui, a coruja transforma-se em pavão,
O lobo, em belo pastor.
Para mudar a paisagem,
Basta mudar o que sentes;
E se queres passear por esses lugares,
Basta expressar o desejo.
(...) (Jalal Rumi, 1996:54)
Outro elemento que podemos acrescentar a esse enigma do que está
para além das palavras é o silêncio parar diante daquilo que está vazio e
suportar o que não pode ser preenchido com nada. Nem com consumo, frases
prontas, teorias, Deus etc.
O silêncio na análise é fundamental para que o sujeito possa falar sobre
si e se confrontar com suas questões. Se o analista preenche esse silêncio
27
Jalal ud-Din Rumi (1207-1273), o maior dos místicos islâmicos e extraordinário poeta do amor. Ele
nasceu no Afeganistão, passou pelo Irã, viveu e morreu em Konia, Turquia. Era um erudito professor de
teologia, zeloso em seus exercícios espirituais. Tudo mudou em sua vida quando se encontrou com a
figura misteriosa e fascinante do monge errante Shams de Tabriz. Como se diz na tradição sufi, foi “um
encontro entre dois oceanos”. Esse mestre misterioso iniciou Rumi na experiência mística do amor. Sua
gratidão foi tão grande que lhe dedicou um livro de 3.239 versos, o Divan de Shams de Tabriz. “Divan”
significa coleção de poemas. http://www.islam.org.br/al_rumi.htm
. Acesso em 01/03/2010.
144
com sua fala ou conselhos perde-se um momento importante para que apareça
tudo aquilo que povoa o mundo além das palavras.
Durante a mística há alguns momentos de silêncio para que os
participantes possam entrar em contato com os enigmas lançados por meio de
gestos, símbolos, discursos, performances etc. Pensamos que o mistério na
mística se dá pelos silêncios contemplativos e reflexivos da espiritualidade
posta em contato com a realidade social a qual estão inseridos.
Como nos diz Boff e Frei Betto (1994), durante a mística é que mais
desenvolvem essa habilidade de contemplar para entender o que se passa
consigo, com os outros e com o mundo e, ao mesmo tempo, agir na
transformação social da realidade. Essa ação deve ter fé e ação, ou seja, deve-
se contemplar os mistérios divinos para melhor entender a realidade e agir na
realidade social para entender a divindade, o mundo e a si mesmos.
Pensamos que esses momentos de silêncio diante do enigma servem
também para que o sujeito confronte suas questões pessoais e as questões
sociais, políticas e econômicas, fazendo assim, do seu silêncio, um momento
que propicie seu posicionamento diante do Outro segundo seu desejo.
145
Considerações Finais
Considerações FinaisConsiderações Finais
Considerações Finais
“Eu despedi o meu patrão!
Eu despedi o meu patrão
Desde o meu primeiro emprego
Trabalho eu não quero não
Eu pago pelo meu sossego...(2x)
Ele roubava o que eu mais valia
E eu não gosto de ladrão
Ninguém pode pagar
Nem pela vida mais vazia
Eu despedi o meu patrão...
-Eu Despedi O Meu Patrão!
(Zeca Baleiro
28
)
Sabemos que, desde Freud, o espaço privilegiado para o discurso da
psicanálise é o setting psicanalítico. Nele a transferência e interpretação se
tornam fundamentais para que a análise aconteça. Todavia, seria possível
conceber a ação do discurso analista fora do setting analítico? Seria possível
na mística atuar o discurso do analista?
Cada discurso postulado por Lacan põe em jogo uma questão política
no laço social, pois neles está posta uma relação de poder que ordena as
posições de sujeito em relação ao Outro. No discurso do mestre “a causa é o
poder, e a verdade é o sujeito do desejo escondido sob o significante mestre.
Aqui tudo o que interessa é o poder” (Quinet, 2009:34). Esse discurso marca a
manutenção do poder pela relação senhor-escravo. O que conta é a mais-valia;
as relações exploratórias mantidas pela relação senhor-escravo (patrão-
empregado).
No discurso universitário a questão política se assenta na causa do
como saber e na verdade como poder, pois o saber se apresenta como total e
28
Essa é parte da letra da música “Eu despedi o meu patrão”, composta por Zeca Baleiro.
Consultado em 27 de fevereiro de 2010 http://letras.terra.com.br/zeca-baleiro/96732/
146
completo, sem espaço para dúvidas ou questionamentos, com isso não se tem
brecha para o furo no saber, “a particularidade do que causa o sujeito. Isso faz
retornar essa particularidade do sujeito do desejo ($) como sintoma na falha do
saber do Outro. Eis o produto desse discurso: o revoltado, o reivindicador que
é, por excelência, o estudante” (Quinet, 2009:35).
No discurso da histérica a política é a do falta-a-ser em que o sujeito
não se contenta com a verdade do mestre e o faz trabalhar. um sintoma
como agente e, como verdade, o objeto causa do desejo.
A política do falta-a-ser do discurso da histérica é condição para o
discurso do analista, que por sua vez não se resume a esse discurso, pois
aponta justamente para a inconsistência do Outro.
O discurso do analista é o único em que a causa do laço social coincide
com a causa do sujeito. E a verdade que o sustenta é o saber
inconsciente. A causa política do discurso do analista é o objeto causa
de desejo (Quinet, 2009:36).
Para o analista permanecer no lugar de objeto “a” (causa de desejo), é
necessário que ele se abdique como sujeito para causar o desejo do analisante
no processo transferencial. Para isso ser possível o analista precisa ter
passado pela experiência analítica (como analisante), pois nesse processo
experimenta sua destituição subjetiva. Nesse sentido, no final do processo
analítico surge um sujeito comprometido com seu desejo como causa.
No processo analítico, portanto, o sujeito não é passivo como no
discurso do mestre e universitário, mas busca algo mais e assim subverte os
ideais hegemônicos de uma sociedade (capitalismo, cristianismo etc.). Por isso,
147
para Quinet, o discurso do analista pode operar em qualquer lugar, desde que
haja a figura do analista, a saber:
à utopia totalizante e unificante do Outro se opõe a atopia da causa
analítica, que, por não ser sitiada no Outro, pode surgir e operar em
qualquer lugar produzindo surpresa, espanto, indiferença ou nojo e até
mesmo horror, mas sempre fazendo valer o particular do desejo e o
saber do Inconsciente onde analista para introduzir a função da
causa. O consultório não é seu laboratório, nem tampouco a escola o
santuário da causa analítica. A experiência analítica é a experiência da
causa sexual, a escola, o lugar da demonstração da passagem da
causa sexual à causa analítica (Quinet, 2009:38).
Entendemos que a função da psicanálise se expande para além do
setting, porque aponta para a falta e para ações em que essa falta esteja
estabelecida no laço social, na oposição ao discurso totalizante do mestre. Em
seus objetivos a psicanálise também visa histericizar os discursos para que os
sujeitos possam fazer uma questão sobre o seu sintoma como um sintoma
social.
Sabemos que o problema do sintoma é importante na teoria lacaniana,
pois Lacan trabalha essa questão por muito tempo em seu ensino. Porém não
iremos explicitar todo esse percurso, pois esse não é o objetivo deste trabalho.
Destacamos, no entanto, que Lacan, a partir de 1970, se refere ao
sintoma ligado ao discurso do mestre, especificamente ao desejo do mestre
fazer com que tudo funcione e, nessa economia discursiva, o trabalho ocupa
papel importante, pois a relação senhor x escravo se baseia numa relação que
produz mais-valia e um mais-de-gozar.
Nessa perspectiva, o sintoma surge como retorno da verdade na falha
de um saber, pois justamente faz desordem na articulação da verdade na
cadeia do saber, produzindo assim um não-sentido nessa ordem. No discurso
148
do Mestre, o sintoma seria como a objeção ao seu desejo que causa um não
sentido nessa ordem. O exemplo que podemos citar é a greve do proletariado
que causa uma “pane” na cadeia significante do discurso do mestre.
O valor que Lacan atribui à greve enquanto sintoma liga-se ao fato que
ela é ao mesmo tempo “entrada em pane”, parada do funcionamento do
discurso, sinal de que alguma coisa não vai bem no campo do real e
profundo respeito pelo laço social. (...) A verdade certamente se impõe
no descrédito da razão e certas racionalidades se denunciam como
puras racionalizações, basta ver a repressão com sangue da greve dos
ferroviários, que vem desmentir o universalismo do direito de greve,
mas jamais o laço social do próprio trabalho que faz manter os corpos
juntos é posto em causa pela greve; a selvageria da exploração, os
abusos ou os excessos na espoliação do gozo, sim (Askofaré,
1997:175-176).
A greve, portanto, impede a produção do mais-de-gozar que faz função
de causa do desejo do capitalista e, com isso, gera um impedimento ao desejo
do mestre. Por isso muitas vezes a reação é violenta para que a ordem seja
mantida. Nesse sentido, o proletariado ocupa a função histérica, enquanto
sintoma social, pois é no social que a greve é produzida, remete um
questionamento ao poder do senhor, gera assim uma insegurança que deixa
de garantir que o status quo continue operando.
Askofaré (1997), comentando um texto de Lacan chamado a A
Terceira, nos mostra que o sintoma social se caracteriza em cada indivíduo
como proletário, pois o nenhum discurso para fazer laço social. Lacan
situa a origem da noção de sintoma em Marx, dessa forma é na história que os
conflitos de classe acontecem, é nesse campo que o proletariado pode fazer
greve e assim mostrar para a sociedade capitalista que algo falha, mostrando o
“horror” desse sistema que não é perfeito.
149
No proletariado o real insiste em dizer a verdade sobre o capitalismo,
pois o proletariado visto por Marx é aquele despojado pela expropriação
capitalista, com seu sofrimento, assumindo, portanto, um caráter universal e,
assim, sua função histórica de estar promovendo emancipação dessa
exploração. Com isso esse sujeito fica fora do laço social, como coisa.
O proletário foi despojado de sua função de saber e é colocado como
mera força de trabalho que faz mover as engrenagens do sistema capitalista,
que, por sua vez, se utiliza dos aparatos da ciência para instrumentalizar essa
exploração. Para Lacan, na lógica do discurso do mestre, o proletário é aquele
que foi expropriado do mais-de-gozar.
Dessa maneira a psicanálise se apresenta como o avesso ao discurso
do mestre, pois deflagra a relação autoritária do senhor e a relação de
subordinação do escravo. Ela se propõe a mostrar justamente aquela verdade
que o escravo sabe (savoir-faire), mas que insiste em não saber. Mostra à
sociedade aquilo que é próprio do humano. A esse respeito Pacheco Filho nos
diz:
Desde a sua inauguração, a Psicanálise surgiu questionando os
fundamentos da moral sexual de sua época: sujeitos dotados de
sexualidade, ciúmes e agressividade contra seus pais e irmãos
(complexo de Édipo), onde se encontravam apenas criancinhas
assexuais; e um lado dark, sombrio, agressivo, violento e egoísta do ser
humano (alimentado por uma pulsão de morte), onde a sociedade quer
ver apenas lirismo, bondade, boa vontade e impulso de vida
(Pacheco
Filho, 2009:02)
29
.
29
Esse texto é o editorial da revista A Peste. Nesse texto, Raul Albino Pacheco Filho explica a
ironia e a ácida intenção psicanalítica em provocar o capitalismo com suas verdades absolutas.
O autor apresenta uma psicanálise que, desde Freud, de fato se preocupa em propor questões
a uma sociedade judaico-cristã que espera da humanidade gestos do mais puro amor
universal, aspecto esse refutado pela psicanálise, porque essa ideologia seria mais uma
estratégia de alienação desse sujeito no laço social.
150
Seguindo o raciocínio do autor, cabe à psicanálise deflagrar esse lado sombrio
da sociedade, para que a verdade não seja dissimulada ou negada como uma
forma de se relacionar com a realidade. Essa alienação é evitada pela
psicanálise, pois sua meta é justamente estar próxima da verdade do sujeito
que, como responsável por seus atos, cria estratégias para manter o status quo
operando, mesmo diante das mais claras evidências do engodo.
O discurso do analista se estrutura a partir da separação entre o sujeito
e o Outro para que o sujeito justamente busque o desejo como causa. Neste
ponto se opõe ao discurso do mestre que justamente busca a alienação do
sujeito para que esse continue a produzir o mais-de-gozar. A presença do
discurso do analista em instituições provoca nesses ambientes questões para
os outros discursos que alienam e negam o sujeito como causa do desejo.
No discurso do mestre, o Outro é colocado pelo sujeito como aquele a
quem deve obedecer e trabalhar para sustentá-lo em sua posição de mando e
domínio, pois o sujeito considera o Outro como completo e onipotente.
Portanto, em sua demanda de amor pelo Outro, o sujeito se prende a “Ele”,
sustentado, obviamente, pela fantasia.
no discurso do analista, é na transferência que o analisante
transfere para o analista essa demanda de amor, e o analista é chamado então
não só a encarnar o sujeito do suposto saber, mas também o sujeito do
suposto poder. Vejamos o que nos diz Quinet a esse respeito.
Nesse lugar instaurado do analista emerge a articulação entre
significante mestre (S1) do poder, que o analisante atribui ao analista, e
o saber (S2), que a este ele supõe, instaurando o lugar do Outro, como
bateria significante (S1 S2), na poltrona do analista, que fica então o
sítio de saber e poder. Com o par S1 S2, Lacan se diferencia de
Foucault, o qual identifica o poder com o saber. S1, siginificante do
151
poder, se distingue do saber (S2), apesar de se articularem. A função
de cada um deles é mais evidente na teoria dos discursos como laços
sociais (Quinet, 2009:44).
Na relação analista-analisante a falta do Outro é suprida pelo
semblante do analista e, com isso, o analisante age como se ali estivesse o
Outro a quem sempre amorosamente buscou. O analisante atribui ao analista o
lugar do suposto saber e poder, já o analista deflagra, aos poucos, essa
articulação entre significante mestre (S
1
)-poder com o S
2
(bateria significante)
para aproximar o analisante de seu desejo, pois é no desejo que a falta está
implicada, porque esse sujeito não pode desejar o impossível, sendo assim, a
“política da falta” corresponde à ética do desejo.
O dever ético que orienta a política da psicanálise é: onde estava o
Pai, o “pior” deve advir. Reconhecer o pior, sustentar que o pior do
gozo, o impossível a suportar, delinear o pior do mal-estar, é a função
do analista, que leva outros sujeitos a se confrontarem com o que têm
de pior. O papel político da psicanálise no mundo é o de se opor à
tentativa do discurso do mestre de dominar ou excluir o gozo dos
outros. E também fazer objeção à degradação desumana de tomar o
outro como um objeto de gozo. onde se encontra o Nome-do-Pai, a
psicanálise faz advir o objeto que, se é o pior para o sujeito, é também o
objeto causa de desejo e que sustenta para o analista a causa que o
move, a causa analítica. (Quinet, 2009:52).
Pensamos que a contribuição da psicanálise no campo da política é
justamente sustentar a tensão do “sombrio” (como afirma Pacheco Filho, 2009)
ou do “pior” (como diz Quinet, 2009) da sociedade capitalista, sem compactuar
com discursos autoritários como o discurso do mestre ou do douto. Nessa
tensão seria possível um questionamento para esse sujeito em relação ao seu
desejo. Nesse discurso o objeto causa do desejo (objeto “a”) é apresentado
para que esse sujeito faça questões à verdade como causa apresentada pela
religião e não cristalize Nomes-do-Pai como ordenadores do laço social.
152
Nesse sentido, nossa tese aponta para a mística, pois propomos que
estas mantêm alguns Nomes-do-Pai para fazer laço social e assim os
participantes da mística ficam presos à verdade como causa da religião. Com
isso os sujeitos demandam um Outro que os ajude a enfrentar o horror da
Coisa (a morte eminente devido às ações violentas no campo) ou os auxiliem a
apenas encobrir esse horror, fazendo, portanto, esses sujeitos gozarem na
prática daquilo que supõem ser o desejo de Deus.
Como nos referimos anteriormente, nesse contexto da mística o Nome
pode marcar os sujeitos que falam, portanto, na transferência, se utilizam
dessa marca para se dirigir ao Outro que não tem Nome. No avesso está o
discurso do analista, pois no lugar do Nome-do-Pai há um furo, há somente um
sujeito do suposto saber que profere meias verdades, que busca manter a
incompletude ficando no lugar de um resto (objeto “a”). Talvez aí esteja a
dimensão do mistério da mística como aquilo que não tem nome (inominável) e
ao qual os militantes do MST se referem ao falar da mística (Caldart, 2000 e
Boff & Frei Betto, 1994).
Pensamos que essa dimensão do mistério obviamente não seria um
espaço privilegiado, tal como o setting analítico, ou outros locais que possuem
a presença do psicanalista exercendo esse discurso e suportando o lugar de
resto (objeto “a”). Porém na mística do MST enigmas são disparados pela
constituição dessa ação coletiva (gestos, palavras, silêncios, reflexões) e serão
decifrados ou não pelos sujeitos de acordo com suas posições em relação ao
Outro.
153
Na mística não o semblante do analista para que haja a transferência
e aconteça o processo analítico como formulado por Freud e Lacan. Tampouco
ao final de anos de frequência na mística os militantes do MST farão a
travessia da fantasia e, com isso, não se autorizarão a analisar outras pessoas,
pois sua causa não é a do analista.
Porém, algo da política do discurso do analista é possível de ser notado,
pois os participantes saem com seus discursos mais histericizados e fazem o
mestre capitalista trabalhar e agir. Algo da política da falta do analista se
mostra ao se aproximarem do objeto como causa do desejo. Quando se
mostram como o “pior” ou “sombrio” ao discurso do mestre capitalista.
Também entram em contato com a política do falta-a-ser da histérica,
pois esses sujeitos fazem sintoma social, justamente questionam um modelo
político e econômico que se oferece como total e que insiste em tamponar a
falta dos sujeitos, criando incessantemente produtos a serem consumidos.
Diante disso, entendemos que a mística seria um campo discursivo da
política, pois nessa ação coletiva os sujeitos entram em contato com a política
do poder hegemônico do mestre e com o saber absoluto do douto. Desta
forma, os sujeitos são capturados pela lógica do discurso do mestre e da
universidade, sendo que devido a fortes características religiosas e políticas, a
mística pode contribuir para a constituição de um grupo não mais identificado
com o S
1
Sem Terra, mas com outros significantes como dinheiro, poder,
prestígio etc.
154
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