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do homem – que é o estado de caído –, todos estão doentes e, por causa dessa doença, que é o
pecado, todos estão destinados à morte. Mas a obediência à receita de Cristo, conforme
enumeradas no Sermão da montanha e, em síntese, nas bem-aventuranças, traz a cura e a vida
para além da vida: vida verdadeira, na eternidade com Deus. A fé das bem-aventuranças é,
por todos os meios, a fé da ação, e a ação da fé
108
. Há, nessa dualidade, fides et praxis, toda
uma metodologia que nos lembra, evidentemente, a teoria platônica – ou neoplatônica –, e
isso perpassa toda a obra, seja falando da fides e aquilo que dela é objeto, seja falando da
praxis, e aquilo que, medido por sua intenção, se relaciona à verdade e, assim, liga-se à fides,
retornando ao seu grau mais sublime
109
. Essa praxis da fides faz o homem reconhecer no
Outro o que, nele e no Outro, há de Deus – revelação de Deus: o que, em Agostinho, nos
referimos como antropoteologia. O resultado é a fraternidade que elimina as diferenças sociais
e culturais
110
. Se essa sociedade perfeita, anunciada pelo Senhor no Sermão da montanha, é
possível ou não, isso não entra, aqui, em questão; mas o padrão moral que é exigido pelo
Senhor não é dado somente para ser dado, como se fosse apenas mais um belo discurso.
Parece que, com Agostinho (também com Lutero), temos de reconhecer que esse padrão serve
para, acima de tudo, nos fazer dependentes da graça
111
. “Cristo fala aqui [no Sermão] somente
(aos quais darão a coisa mais preciosa, o nome do Senhor), evitando os ricos. Os apóstolos aceitam a missão,
prosternam-se, e o Senhor se afasta” (MORESCHINI; NORELLI, 200, p. 281). Como se vê, a figura do Cristo
como médico já era, antes de Agostinho, bastante difundida.
108
“Pois”, diz Agostinho, “não se pode dar solidez ao que se ouve e entende senão ao se pôr em prática. E sendo
Cristo a rocha, como apregoam muitos testemunhos das Escrituras (ICor 10,4), edificar sobre Cristo é pôr em
prática seus ensinamentos” (De serm. Dom., II, 25,87).
109
Uma relação das vezes em que Agostinho emprega esses dualismos metodológicos no De Sermone, seria,
aqui, demasiado grande e, também, demasiado desnecessário. Como exemplo, mencionamos o sentido que ele dá
para o céu em oposição à terra – ou mundo material e mundo espiritual – (cf. De serm. Dom., I, 11,30); lei e
graça – ou velha e nova justiça – (De serm. Dom., I, 9,21); Deus (Perfeito/Modelo) e homem
(imperfeito/imagem, cópia ou simulacro do Modelo) (I, 21,69); mão direita e mão esquerda – símbolos para o
melhor e o pior, ou o certo e o errado (De serm. Dom., I, 13,37); o temporal e o eterno (De serm. Dom., II,
17,56); a aparência exterior e o olho interior (De serm. Dom., II, 25,81); o todo e a parte (De serm. Dom., II,
16,55); a ação (= vida bem-aventurada) e o conhecimento (De serm. Dom., II, 21,72), etc.
110
Cf. De serm. Dom., I, 15,41. Mais adiante, Agostinho diz: “Nessa mesma ordem de idéias, são admoestados
os homens ricos e até mesmo os de pobre condição, conforme o mundo em que, ao se fazerem cristãos, não se
enchem de orgulho diante dos pobres de origem humilde, porque é justamente em companhia deles que haverão
de dizer a Deus „Nosso Pai‟. E não poderão dizê-lo, verdadeira e piedosamente, a não ser que se reconheçam
como irmãos” (De serm. Dom., II, 4,16). Antes, em De serm. Dom., I, 19, 59, ele, falando sobre o trato que o
senhor deveria ter para com os seus escravos, diz: “Porque cristão não deve equiparar um escravo a um cavalo
ou qualquer soma de dinheiro, inda que possa ser pago menos por um escravo do que por um cavalo”. Aí,
Agostinho não trata sobre a legitimidade da escravidão, mas do tratamento cristão que deve ser dado ao escravo.
111
“Como vimos”, diz Lutero, “nesse sermão Cristo nada diz a respeito de como nos tornamos cristãos, e, sim,
fala somente das obras que ninguém pode realizar e dos frutos que ninguém pode produzir, senão aquele que já é
cristão e se encontra na graça. Isso o mostram as referências à pobreza, à miséria, à perseguição que haverão de
sofrer pelo fato de serem cristãos e por terem o Reino dos céus, etc.” (OSel 9, 277, 10). E Stott, em relação ao
comentário de Lutero, diz: “Todo o Sermão realmente pressupõe uma aceitação do evangelho (como Crisóstomo
e Agostinho o entenderam), uma experiência de conversão e de novo nascimento, e a habitação do Espírito
Santo. Descreve as pessoas nascidas de novo que os cristãos são (ou deveriam ser)” (STOTT, 1989, p. 26).