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Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
MÔNICA ANECHINI CAMPEDELLI
A identidade do velho no mundo contemporâneo
DOUTORADO EM PSICOLOGIA SOCIAL
SÃO PAULO
2009
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Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
SETOR DE PÓS-GRADUAÇÃO
MÔNICA ANECHINI CAMPEDELLI
A identidade do velho no mundo contemporâneo
DOUTORADO EM PSICOLOGIA SOCIAL
SÃO PAULO
2009
Tese
apresentada à Banca
Examinador da Pontifícia
Universidade Católica de São
Paulo, como exigência parcial
para obtenção do título de Doutor
em Psicologia Social sob a
orientação do Prof. Doutor
Antonio da Costa Ciampa
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Campedelli, Mônica Anechini.
A questão da identidade do velho mo mundocontemporâneo /
Mônica Anechini Campedelli. – São Paulo, 2009.
237 f.
Orientador: Antonio da Costa Ciampa
Tese (Doutorado em Psicologia Social) – Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo
1. Velho. 2. Identidade. 3. Metamorfose. 4.
Memória. I. Título.
Banca Examinadora
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DEDICATÓRIA
DEDICATÓRIADEDICATÓRIA
DEDICATÓRIA
"Somos feitos de carne, mas temos que
viver como se fossemos feitos de ferro." (
Sigmund Freud)
Dedico esta tese principalmente a minha querida APARECIDA
ANECCHINI, pelo seu apoio incondicional na realização desta; o que sinto hoje,
em meu coração, existe porque pessoas especiais olharam por mim, cuidaram,
acreditaram em mim, e assim permanecem presentes na memória de minha
vida e de meu coração.
Aos meus pais NANCY ANECHINI E RONAN CAMPEDELLI (in memorian),
das lembranças que eu guardo na vida, vocês são a saudade que eu gosto de
ter, só assim sinto vocês bem perto de mim, outra vez;
AOS VELHOS DO MUNDO CONTEMPORÂNEO, e aos entrevistados
OLIVINA, BELA VALSA E BITUCA; que ao contar sobre a memória fizeram ecos
com as reminiscências do passado e do presente, se metamorfoseando
sempre.
AGRADECIMENTOS
AGRADECIMENTOSAGRADECIMENTOS
AGRADECIMENTOS
A DEUS que mais uma vez em sua infinita bondade possibilitou-me a
realização deste trabalho.
UMA TESE é sempre uma construção de momentos pontuados no tempo e com
o tempo. Neste tempo várias pessoas chegaram, outras foram embora e muitas
permaneceram entre o presente e o passado, com apoio e compreensão, com
afeto e maternagem, com cumplicidade; enfim puxar da memória e dar “nome
aos bois”, correria o risco de esquecer todos os nomes. Então, aos AMIGOS,
aos MESTRES, aos ALUNOS, aos COLEGAS do passado e do presente, que
souberam escutar, ler, ensinar, aplaudir, confortar, sobretudo acreditar, o meu
muito obrigada! Valeu à pena!
A TODOS DA MINHA FAMÍLIA que estiveram comigo nesta aposta: meus
TIOS, minhas TIAS, PRIMOS (as), meus IRMÃOS, ao meu sobrinho GUSTAVO.
AOS AMIGOS que devo gratidão e respeito que de certa forma
participaram diretamente desta conquista e compartilharam de generosidade
ímpar: NORIDA, PADRE JÉSUS, EDILEUSA, CIAMPA E FLAMÍNIA...
AGRADEÇO DE FORMA ESPECIAL a minha prima, Dra. MARIA ALICE
MAGNANI que com zelo e generosa disponibilidade, pronto acolhimento fez a
correção e a garimpagem deste trabalho, minha sincera gratidão e profundo
respeito.
AGRADEÇO DE FORMA SINGULAR ao professor e orientador, Dr.
ANTONIO DA COSTA CIAMPA, pela escuta atenta e pela troca generosa que
dispensou neste tempo de convivência e de muitas metamorfoses.
AOS ALUNOS, AOS COLEGAS E AOS FUNCIONÁRIOS DA UNIVAS,
especialmente aqueles que são próximos; e que se aproximaram cada vez
mais, meu muito obrigada, LUCILENE da Biblioteca, LUCIENE do CAP, ROSANA
(Rosinha) da Secretaria. E a MARLENE, secretária da Pós Graduação em
Psicologia Social da PUC/SP;
PARA HELENA, a maternagem” e o cuidado com o respeito em nossa
convivência; para MEME, CELSO E ERNANI que com ouvidos atentos
dispensaram horas de conversas;
AOS COLEGAS DE DOUTORADO, Padre Jésus, Edileusa, Juracy, Aluísio, Noeli e
Denise;
AO ASILO BETHÂNIA DA PROVIDÊNCIA E ASILO NOSSA SENHORA
AUXILIADORA, nas pessoas de Irmã INÁCIA, ELEN E TARCISIO, que nos
abriram espaço e dedica-se em prol dos velhos carentes na Cidade de Pouso
Alegre.
AOS MEMBROS DA BANCA EXAMINADORA: Dra. Maria do Carmo
Guedes, Dra. Flaminia Manzano Lodovicci, Dr. Lélio M. Lourenço, pelas
preciosas discussões e encaminhamentos na Qualificação, Dr. Juracy Mariano
Almeida, aos suplentes, Dr.a Norida T. de Castro e Dr. Odair Furtado, meus
agradecimentos pela disposição em aceitar nosso convite para a finalização
desta tese.
AO PROF. DR. ANTONIO DA COSTA CIAMPA pela intervenção junto à
CAPES na bolsa de estudos concedida, sem esta talvez não fosse possível
chegar até aqui, obrigada, sempre!
O ESPELHO A MINHA FRENTE É COISA MUDA,
MAS DE SUA MUDEZ ELE ME FALA:
A IMAGEM ALHEIA DO OUTRO LADO
ME CONTEMPLA LONGÍNQUA E INTERROGANTE,
PARTE DE MIM, EM MIM MULTIPLICADA,
E POSTA FORA DO QUE SOU, TEXTURA
DE OUTRA PESSOA, DE OUTRO SONHO E FORMA
(NO LARGO SONO DE UM DEUS TRANQÜILO,
A VOZ SE CALA E DEIXA QUE O CRISTAL
A MEMÓRIA DE UM VAGO SER RECRIE)
ILUSÓRIA ASSIM COMO QUALQUER CIFRA.
EXISTIMOS, INÚTEIS, REFLETIDOS.
UM TEATRO DE SOMBRAS, SIGILOSO:
O QUE SOMOS, EM NOSSO ALTO CREPÚSCULO.
(IN: JORGE LUIS
BORGES)
RESUMO
CAMPEDELLI, Mônica Anechini. A identidade do velho no mundo contemporâneo.
2009. 237 f. Tese (Doutorado em Psicologia Social)- PUC/SP, São Paulo, Brasil, 2009.
Esta tese procurou compreender a identidade do velho no mundo contemporâneo.
Sabe-se que as pessoas velhas, em nosso país, ainda fazem parte de minorias
sociais, mas que, nas últimas décadas, vêm-se destacando a olhos vistos nas
pesquisas e no noticiário midiático e nos despertando para a continuidade deste
processo. E isso se em razão especificamente de lutas pela afirmação e
reconhecimento de suas identidades, bem como pela tentativa de superação de suas
problemáticas, como a miserabilidade de sua condição de vida. Assim, pretendemos
obter subsídios que permitam problematizar a compreensão dos processos
psicossociais que envolvem a questão da identidade do velho no mundo
contemporâneo bem como o possível sentido de uma metamorfose emancipatória,
que ocorreria (ou não) na compreensão de suas identidades. Os velhos se alimentam
do passado para atualizarem seu presente. Da sua trajetória histórico-social se origina
sua própria identidade, constituída pela representação de papéis sociais, papéis esses
que vão dimensionar essa identidade sob os efeitos de sua memória. Ao mesmo
tempo a narrativa provoca mudanças na forma como as pessoas compreendem a si
próprias e aos outros. Ao produzir as narrativas é possível ao velho "ouvir" a si mesmo
e teorizar sobre a sua própria experiência. Este pode ser um processo profundamente
emancipatório contido na noção de identidade como metamorfose, em que o sujeito
aprende a construir sua própria história, o seu projeto de vida, auto-determinando a
sua trajetória.
Palavras-chaves: Velho, Identidade, Metamorfose, Memória
ABSTRACT
CAMPEDELLI, Mônica Anechini. The identity of the oldman in the contemporary
world. 2009. 235 p. Thesis (Doctorate in Social Psychology)-PUC/SP, São Paulo,
Brazil, 2009.
This thesis tried to understand the identity of the oldman in the contemporary world. It
is known that the old people, in our country, still do part of social minorities, but in the
last decades, they are getting great attention in the researches and in the news of
media and open up our eyes for the continuity of this process. And that specifically
happens in reason of fights for the statement and recognition of their identities, as well
the attempt of getting over their problems, and their miserable life condition. Therefore,
we intended to obtain subsidies that allow to describe the problems of the
understanding of the psyco socials processes that involves the subject of the identity of
the oldman in the contemporary world as well as the possible sense of a emancipating
metamorphosis, that would happen (or not) in the understanding of their identities. The
old ones use the past to update their present. From their historical-social path
originates their own identity, constituted by the representation of social papers, papers
that will model that identity under the effects of their memory. At the same time the
narrative provokes changes in the way as the people understand themselves and the
other ones. When producing the narratives it is possible to the oldman "to hear" himself
and to speculate about his own experience. This can be a deeply emancipating
process contained in the idea of identity as metamorphosis, that the person learns how
to build your own history, your life project, creating your own path.
Keywords: Old, Identity, Metamorphosis, Memory
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ................................................................................. 12
CAPÍTULO I
O VELHO NO MUNDO MODERNO E O DISCURSO DA
MODERNIDADE: IDENTIDADE E CONTEMPORANEIDADE
1.1 Introdução ........................................................................................ 23
1.2 Por que falar de velho e não de idoso? O que isso quer dizer? ...... 24
1.3 Falar de velho, envelhecimento, idoso, identidade .......................... 31
1.4 A identidade na contemporaneidade: é possível delimitar a
identidade do velho? ........................................................................
41
1.5 Identidade, modernidade, mundo sistêmico .................................... 47
1.6 A identidade do eu e o mundo pós-moderno ................................... 52
1.7 Políticas de identidade e identidades políticas ................................ 54
1.8 A identidade pessoal, cultural e social ............................................. 58
CAPÍTULO II
IDENTIDADE, MEMÓRIA E SUBJETIVIDADE
2.1 Introdução ........................................................................................ 62
2.2 Identidade do velho e memória ....................................................... 63
2.2.1 O velho e a aparência de identidade fixa ........................................ 63
2.2.2 Os discursos dos velhos na compreensão de sua identidade ......... 69
2.2.3 A identidade do velho e a memória-hábito ...................................... 71
2.2.4 A função social do velho .................................................................. 74
2.3 Identidade e metamorfose do velho na contemporaneidade ........... 75
2.4 O velho tecendo a sua relação com o passado ............................... 80
2.5 Os feitos da memória entre o passado e o presente ....................... 84
2.6 O papel da memória na construção da identidade do velho ........... 86
2.7 O velho como fio condutor da identidade e da memória ................. 89
2.8 Memória, velhice e família ............................................................... 93
2.9 Os papéis sociais e a memória ........................................................ 96
2.10 Tempo coletivo e memória ............................................................... 99
CAPÍTULO III
ABORDAGEM METODOLÓGICA
3.1 Introdução ........................................................................................ 102
3.2 Compreender a identidade, a questão do método .......................... 103
3.2.1 A compreensão da identidade/metamorfose/emancipação no
método de pesquisa da construção da identidade do velho ............
104
3.3 Mas como explicar o método fenomenológico? ............................... 105
3.4 Procedimento ................................................................................... 109
3.5 Sistematização, análise e discussão dos resultados ....................... 105
4
CONCLUSÃO .................................................................................. 112
REFERÊNCIAS.................................................................................
121
ANEXOS
Anexo 1 - Entrevistas
Anexo 1.1 – Entrevista n. 1 .............................................................. 132
Anexo 1.2 – Entrevista n. 2 .............................................................. 149
Anexo 1.3 – Entrevista n. 3 .............................................................. 173
Anexo 2 - Análise das histórias de vida
Anexo 2.1 ........................................................................................ 182
Anexo 2.2 ........................................................................................ 202
Anexo 2.3 ........................................................................................ 215
INTRODUÇÃO
Esta tese surgiu da convivência com pessoas velhas na minha infância e,
posteriormente, foi fruto de vinte anos de experiência. Da experiência acadêmica às
diversas formas de atividades como disciplinas, estágios, extensão, mestrado, o que
germinou nosso interesse pela área do envelhecimento e seus entornos.
Quando este interesse se manifestou, nos primeiros anos da faculdade, a
literatura era escassa e proveniente do saber médico, associava-se velhice com
doença, portanto, através de experiências no próprio ambiente de trabalho e na
clínica, nossa escuta foi tomando outro direcionamento para as questões da
subjetividade e da história de pessoas velhas, tanto na família, como no meio
acadêmico, na comunidade e nas instituições asilares.
Em nossa escolha, optamos pelo emprego da palavra velho, que desde criança
escutávamos em relação às pessoas que envelheciam como “nossos avós”, tios e
vizinhos, até mesmo os estranhos que sempre eram nomeados como os “nossos
velhos” e agora, no presente, há “outros velhos” aos quais sempre dirigimos o olhar da
escuta e da memória.
Velhos fazem parte de minorias sociais que vêm se destacando nas pesquisas
e no noticiário nacional em razão de suas lutas pela afirmação e reconhecimento de
suas identidades, bem como pela superação da miserabilidade de suas condições de
vida. Ao se oporem a formas opressivas e excludentes típicas de nossa sociedade
(geradoras de desamparo e negadoras de suas diferenças) e recusarem a
sociabilidade restrita e sem autonomia que lhes são impingidas, estas minorias são
emblemáticas para o estudo de processos de emancipação. Em seu conjunto, elas
expõem os obstáculos existentes à realização de seus anseios por uma vida digna e
melhor, bem como por direitos e participação no espaço público e para a manutenção
de suas identidades no processo psicossocial.
Estes obstáculos, por sua vez, reproduzem e reafirmam estigmas que recaem
sobre os velhos e abrem caminho para adoção de práticas pessoais que mitiguem o
sofrimento e a desesperança, aliviando o sentimento de desamparo frente à realidade.
Exemplos disso são, no caso dos velhos asilados ou não, o apelo à religiosidade como
resposta a angustia de perda iminentes ou efetivas, como uma forma de fugir à
opressão existente. As apresentações criticam o caráter alienante de algumas dessas
práticas e, ao mesmo tempo, destacam as possibilidades de que elas possam
representar mecanismos saudáveis de recuperação da confiança em si e da
elaboração de angustias, bem como de articulação do trabalho da memória com o
processo de atualização histórica e de afirmação de uma identidade-metamorfose.
Na escolha do tema, ao ingressar no Curso de Psicologia, começamos a
estudar as disciplinas que retratavam a relevância da problemática psicossocial do
idoso. Iniciamos várias participações em ações relativas a esse assunto, tais como
estágios, projetos de extensão e de pesquisa tanto dentro como fora da universidade.
Também. fizemos trabalhos voluntários em instituições asilares e fora delas, em
especial com os idosos mais empobrecidos. Começamos a conhecer uma prática que
nos deu sustentabilidade para a continuidade desse desejo, e ao terminar a
graduação, iniciamos um percurso para a pós-graduação.
Percebemos que outra realidade é possível de ser construída; que dentro das
instituições asilares, e também fora delas, há formas de convivência entre os velhos, e
que as instituições não são vistas como lugares de exclusão e de opressão. É o que
queremos demonstrar.
Critica-se, também, as percepções e práticas presentes em nosso cotidiano
que, por um lado, induzem ao não reconhecimento dessas minorias e, por outro lado,
dificultam a formação de identidades políticas e a mobilização de seus integrantes.
Juntas, elas pretendem contribuir para a desmistificação de formas de dominação e
exclusão existentes em nossa sociedade; pretendem, também, apontar elementos que
desvendem alguns caminhos para a Psicologia Social.
Muitas coisas aconteceram, esta escolha foi se aproximando cada vez mais de
objetivos científicos e de práticas transformadoras e tomando outros espaços, como o
movimento por educação, saúde, cidadania, grupos e outros.
Na graduação em Psicologia, encaminhamos uma proposta à coordenadora de
curso para que se abrisse um espaço de estágio na instituição asilar para que nós
alunos, iniciássemos uma prática voltada para uma instituição que cuida de idosos; e
também, para que pudéssemos entrar em contato com essa fase da vida adulta
madura. Aceita a sugestão, caminhamos em direção a esse objetivo. Tivemos muita
resistência no início, mas fomos conquistando o espaço paulatinamente e também a
confiança da instituição e dos idosos ali estabelecidos.
No primeiro relatório de estágio nossa escrita voltou-se mais para a instituição
do que para a prática com os idosos, por indicação de um professor que na época era
o professor-supervisor. Iniciamos nossa carreira acadêmica na universidade sendo
convidada a ministrar aulas sobre a Psicologia do Desenvolvimento com ênfase no
Envelhecimento, a partir daí, nosso desejo acresceu-se de diversas formas de
trabalhos e pesquisas nesta temática, começando assim nossa trajetória profissional e
o caminho para o doutorado.
De acordo com o Pequeno Dicionário Brasileiro da Língua Portuguesa de 1951,
idoso é uma pessoa “Que tem bastante idade; velho”. Atualmente muitos conceitos
mudaram sobre a velhice, mas ainda é notável a discriminação aos velhos. Neste
sentido, esta tese tem como proposta buscar explorar a questão da identidade do
velho no mundo contemporâneo.
Face a isto, muitas das nossas aulas foram inspiradas nos poemas, poesias,
filmes, literatura específica e geral que registravam a velhice não como perda, mas
como transmissibilidade de acontecimentos advindos da história, da memória e da
própria construção da identidade de pessoas que foram tornando-se cúmplices dos
fatos históricos de sua época, de sua vida, de sua tradição. Como diz Jeanne Marie
Gagnebin (2006), “ouvir o apelo do passado significa também estar atento a esse
apelo de felicidade e, portanto, de transformação do presente, mesmo quando ele
parece estar sufocado e ressoar de maneira quase inaudível”.
Esta pesquisa trata de explorar a questão da identidade do velho no mundo
contemporâneo nos aportes da Psicologia Social, referindo-se ao sintagma da
identidade, metamorfose e emancipação, de Antonio da Costa Ciampa (2005). Dentro
dessa perspectiva tomamos a memória como uma categoria embutida nas narrativas
desses velhos, como objeto de nosso trabalho, portanto, cabe-nos dar enfoque aos
estudos advindos da Psicologia Social, considerando a identidade no mundo
contemporâneo, os movimentos sociais e seus contextos, os grupos, a formação do
indivíduo, a socialização e a identidade coletiva na modernidade.
Como pressupostos teóricos para se pensar a identidade do velho no mundo
contemporâneo, Ciampa (2005) nos explica que a identidade é construída num
processo constante de metamorfose e emancipação o que implica não uma identidade
pensada como “mesmice”, mas como um processo permanente de transformação. De
certa forma também estabelecer relações entre políticas de identidade e identidades
políticas, antes de se constituir em simples trocadilho, para Ciampa (2002, p. 133)
estas discussões de aspectos, tanto regulatórios como emancipatórios, de ações e
discursos tendo em vista as assimetrias de poder presentes nas relações sociais, ao
serem discutidas em nosso trabalho, implicam uma abertura para o processo de
secularização da sociedade moderna.
Desta forma pretendemos obter subsídios que permitam uma discussão para a
compreensão dos processos psicossociais que envolvem a questão da identidade do
velho no mundo contemporâneo bem como o possível sentido de uma metamorfose
emancipatória que teria (ou não) na compreensão de suas identidades.
Temos visto pesquisas no campo psicológico e sociológico que vêm
confirmando que o processo de desenvolvimento da identidade individual ocorre
dentro de uma relação circular com um sistema de delimitações (MELUCCI, 2004).
Para este autor o indivíduo consegue identificar-se quando se torna distinto do
ambiente, neste sentido podemos pensar que a identidade define, portanto, nossa
capacidade de falar e de agir, diferenciando-nos dos outros e permanecendo nós
mesmos.
È difícil falar de identidade sem fazer referências às suas raízes relacionais e
sociais, portanto, a identidade define, nossa capacidade de agir e de falar,
diferenciando-nos e nos igualando uns aos outros. A construção da identidade se
produz e se mantêm na possibilidade de auto-identificação, encontra-se apoiada no
grupo ao qual pertencemos e nos situa de acordo com o sistema de relações que
vamos produzindo e efetivando ao longo do tempo.
Podemos também falar também de muitas identidades nos quais pertencemos:
a pessoal, a familiar, a social, a relacional, e assim por diante dependendo do grau de
sua complexidade, portanto, a identidade é, em cada caso, uma relação que
compreende nossa capacidade de nos reconhecermos e na possibilidade de sermos
reconhecidos pelos outros.
Nosso estudo enfoca a identidade do velho, e, envelhecer, nos dias de hoje,
não é mais exceção, é regra. Vivemos em um momento caracterizado pela transição
demográfica e pelo rápido envelhecimento populacional. O envelhecimento é vitalício.
Não começa num tempo específico tal como aos 60, 70 anos. É um processo cujo
início se no momento do primeiro grito de vida do ser humano. O envelhecimento é
acompanhado de mudanças com grau acentuado de variação entre os indivíduos,
entretanto, tanto Berger e Luckmann (C.f. obras), Habermas (C.f. obras) como Ciampa
(C.f. obras), mediadores de nossas discussões acerca da identidade, não tratam em
seus trabalhos de discussões voltadas para essa categoria, mas se referem a sujeitos
sociais; é a partir daí que problematizaremos nossas questões frente à perspectiva do
sintagma: identidade, metamorfose e emancipação, na questão da identidade do velho
no mundo contemporâneo.
Segundo Beauvoir (1990), a velhice enquanto destino biológico é uma
realidade inquestionável, embora o destino psicossocial da pessoa velha seja uma
realidade socialmente construída a partir de um contexto sócio-político-cultural no qual
se insere.
Ao retratarmos a questão da “identidade” sob o prisma do envelhecimento, a
partir de algumas abordagens psicossociais da velhice, explica-se que, desde os
tempos antigos até os dias atuais, o conceito de velhice e, conseqüentemente, a
identidade do velho vêm sendo mostrados de forma pejorativa ou elevada,
dependendo do contexto social e da cultura (NERI, 2001). A identidade é relacional,
marcada pela diferença e, no caso da identidade do velho, a diferença é sustentada
pela exclusão, pois a imagem exigida pela mídia e internalizada pelo coletivo é aquela
que é moldada dentro dos padrões muito rigorosos, nos quais o envelhecimento não
se firma, pois hoje vivemos uma busca incessante pela beleza e pela satisfação. No
caso do processo da velhice e do envelhecimento a construção da identidade depende
do retorno de informações vindas do olhar dos outros. Neste sentido afirmamos que ao
ser reconhecido pelo outro é que existirá a reciprocidade no reconhecimento
intersubjetivo (“O eu de mim mesmo”, conforme aponta CIAMPA, 2005).
Também para Almeida (2006) se a identidade se forma na dialética entre o
indivíduo e seu contexto social, podemos dizer que a identidade é algo que se
estabelece em conseqüência das experiências e das relações vivenciadas pelo
indivíduo, das quais, por outro lado, é condição da manutenção.
Os estudos a respeito do envelhecimento ou da teoria da velhice são muito
recentes. Mesmo a pesquisa científica do processo de envelhecimento, da velhice ou
de sua projeção se discutia sobre esta categoria no modelo médico, associando-se
velhice com doença.
Mas, de acordo com Lodovici e Lodovici Neto (1998) nos últimos anos, altera-
se a concepção de idoso, de sua imagem identitária na mídia, na sociedade e na
família. O idoso sempre existiu identificado como o avozinho querido na sua função
acolhedora aos mais novos, com laços afetivos bastante sólidos entre ambos, a
despeito do progressivo afrouxamento dos laços afetivos sociais e das inúmeras
perdas advindas do envelhecimento. Durante algumas décadas, o idoso foi reduzido a
um ser sem voz e de opinião não-relevável, visto como um ser de idéias
ultrapassadas, justamente pela sua precedência etária e pelo fato de estar, via de
regra, fora do mercado de trabalho e dos avanços científico-tecnológicos; reservar-se,
assim, um lugar triste ao idoso, despojado de sua condição de sujeito, sendo criada
uma imagem negativa e equivocada de velhice.
Entretanto, neste mundo globalizado e conectado em rede lança-se um novo
olhar para este segmento do sujeito velho. E assim como a vida exige hoje uma
constante atualização, assim também deve ser o nosso olhar em direção ao sujeito
velho e sua identidade. Enquanto há inúmeros clichês para a auto-imagem dos jovens,
não na propaganda como também nos filmes, na literatura e na história, o homem
em envelhecimento não tem literalmente nenhuma pré-imagem. A partir de certo
momento. Ele fica cercado por um vazio estranho que raramente ousa preencher, pois
de certa forma qual a direção dar para o segmento do envelhecimento e da velhice
atualmente? Mas, ao mesmo tempo, percebemos que a sociedade precisa se preparar
para uma nova construção: um novo envelhecimento social e a troca das gerações.
Concebemos que “podemos ser velhos, ver-nos como velhos sem nunca nos
sentirmos velhos”. Esta é uma realidade cada vez mais presente nos dias atuais, o
culto a um envelhecimento saudável e ativo, a construção de uma nova identidade
para o segmento idoso em nossa sociedade e em nossa cultura. No entanto, ao
falarmos de identidade, isto implica processos e questionamentos de como hoje se
concebe psicossocialmente o envelhecimento, a velhice, as manifestações da
individualidade e que imagem é esta que queremos focar ao falarmos de identidade
para este sujeito.
De acordo com Ciampa (2005)
1
, na perspectiva da Psicologia Social, o estudo
da identidade pretende contribuir para a compreensão da questão do desenvolvimento
do sujeito, vendo-o como formação que vai se dando, sob condições materiais e
históricas determinadas, ao longo dos processos de socialização e de individuação, na
medida em que natureza e cultura se integram como humanidade, num processo
histórico e emancipador.
Ciampa é o autor sobre a noção de identidade que pretendemos mostrar,
particularmente quando diz respeito à idéia de metamorfose humana. Para ele, a
formação da identidade é um processo determinado e dinâmico que ocorre com o
indivíduo durante toda a sua vida e o determina como expressão e interação com o
mundo.
Menucci (2004, p. 46), afirma que na história individual, a identidade apresenta-
se como um processo de aprendizagem que leva à autonomia do sujeito, referindo-se
constantemente aos processos culturais e pessoais que leva o sujeito capaz de
produzir formas autônomas de produção e de reconhecimento do nosso eu.
O autor aponta que a identidade adulta é, portanto, a capacidade de produzir
novas identidades, integrando passado e presente, além dos múltiplos elementos do
presente, na unidade e na continuidade de uma história individual, no caso ao velho no
qual nos referirmos objeto de nossos estudos.
Muitos dos trabalhos desenvolvidos junto ao segmento psicossocial do idoso,
por vezes, podem instrumentalizá-lo, no entanto, deveriam criar condições favoráveis
que viessem a contribuir para sua organização, para que ele fosse sujeito de sua
história, e não capturado pela instrumentalização.
Bosi (1987) mostra que destruindo os suportes da memória, a sociedade
capitalista bloqueou os caminhos da lembrança, arrancou seus marcos e apagou seus
rastros:
1
CIAMPA, A. C. Anotações sobre “fundamentos filosóficos” da linha de pesquisa, para sistematizar a
abordagem teórica adotada. In: IDENTIDADE SOCIAL COMO METAMORFOSE HUMANA. Linha de
Pesquisa: Março de 2005.
“A memória das sociedades antigas se apoiava na estabilidade
espacial e na confiança que os seres de nossa convivência não
se perderiam não se afastariam. Constituíam-se valores ligados à
práxis coletiva como a vizinhança (versus mobilidade), à família
larga, extensa (versus ilhamento da família restrita), apego a
certas coisas, a certos objetos biográficos (versus objetos de
consumo). Eis aí, alguns arrimos em que a memória se apoiava”.
Portanto, a memória do indivíduo depende do seu relacionamento com a
família, com a classe social, com a escola, com a Igreja, com a profissão; enfim, com
os grupos de convívio e com os grupos de referência peculiares a esse indivíduo
(CHAUÍ apud BOSI, 2005)
2
. Para estas autoras nada mais pungentes do que a
demolição das paisagens de uma vida inteira.
O velho vem se transformando e se metamorfoseando psicossocialmente na
inscrição de sua história, de sua memória e de suas identidades, carregadas de afeto,
sedimentadas pelo sentimento de pertencimento aos lugares em que foi tecendo um
novo mercado de consumo, uma nova comunidade (DEBERT, 1999, p. 83). Ainda
também, Bosi (1987) nos mostra em seu estudo sobre as lembranças de velhos que
estes recuperam um tempo, reconstroem um momento social coletivo, cosendo
retalhos de lembranças individuais e evocando a memória.
Todavia, para Chauí apud Bosi (1987, p. XIX), a memória não é oprimida
apenas porque lhe foram roubados suportes materiais, nem porque o velho foi
reduzido à monotonia da repetição, mas também porque uma outra ação, mais
daninha e sinistra, sufoca a lembrança: a história oficial celebrativa cujo triunfalismo é
a vitória do vencedor a pisotear a tradição dos vencidos .
No nosso trabalho de mestrado percebemos que Halbwachs (1990, p. 71)
“enfatiza que uma diferença entre a história que escutamos ou que lemos e a
2
No prefácio do livro de Ecléa Bosi (2005), João Alexandre Barbosa, refere-se que em nossa
sociedade de classes, dilacerada até as raízes pelas mais cruéis contradições, a mulher, a
criança e o velho são, por assim dizer, instâncias privilegiadas daquelas crueldades
traduções do dilaceramento e da culpa. Continuando, nos dizeres do autor; a mulher, a criança
e o velho não são classes: são antes aspectos diversificados e embutidos por entre as classes
sociais. Assim como não se pode falar, com propriedade, em classes de artistas ou de
cientistas, como menciona o autor, também para nós, definir os velhos como uma classe social
em busca de emancipação é que estas questões têm em comum conhecer estes indivíduos e
os grupos dos quais fazem parte, identificando-os e ao mesmo tempo diferenciando-os,
conhecer suas condições de existência, suas reivindicações, suas lutas sociais, seus contexto
social e sua identidade no mundo contemporâneo. É uma forma de mostrar etapas
intermediárias do envelhecimento e como isso veio se recompondo. Estes, como aqueles,
pertencem a uma ou outra classe social que os configura e deles exige definições.
história que vivemos”. Hoje defrontamo-nos psicossocialmente com um novo olhar
para o envelhecimento, para uma nova subjetivação da identidade do velho, para os
processos nos quais vem ganhando ressonância e aumento de sua longevidade.
Estas questões têm em comum conhecer estes indivíduos e os grupos dos quais
fazem parte, identificando-os e ao mesmo tempo diferenciando-os, conhecer suas
condições de existência, suas reivindicações, suas lutas sociais, seus contexto social
e sua identidade no mundo contemporâneo. É uma forma de mostrar etapas
intermediárias do envelhecimento e como isso veio se recompondo.
Segundo Debert (1999, p. 32): “as transformações do envelhecimento em
objeto de saber científico põem em jogo múltiplas dimensões, como o desgaste
fisiológico e o prolongamento da vida, o desequilíbrio demográfico e o custo financeiro
das políticas sociais”.
Assim, na questão psicossocial da identidade do velho é importante pensarmos
de um outro jeito a velhice, pois isso tem a ver com as mudanças culturais, com as
mudanças sociais e políticas e com a sua intersubjetividade. Contudo compreender
sua identidade como intersubjetividade e como transformadora de uma realidade
historicamente metamorfoseada é de certa forma ir ao encontro das pesquisas, de
uma nova auto-imagem, de um olhar a mais para este velho e sua identidade.
Para Menucci (2004, p. 47), hoje, podemos constatar que, na passagem da
sociedade tradicional à sociedade moderno-industrial, os processos de identificação
transferiram-se progressivamente de fora para dentro da sociedade, isto é na medida
em reconhecemos a identidade como produto social, também são criadas as
condições para uma individualização dos processos de atribuição e de
reconhecimento. Conseqüentemente, somos nós mesmos, como indivíduos, que
adquirimos a capacidade autônoma de nos definir como indivíduos.
No seu aspecto dinâmico, a identidade apresenta-se assim, como um processo
de individuação e de crescimento da autonomia, gerando então a capacidade de auto-
reflexão e de efeitos sobre a nossa temporalidade de sujeitos humanos.
Voltando a Menucci (2004, p. 49), a participação em ações de mobilização
coletiva e em movimentos sociais, o engajamento em atividades de inovação cultural e
ações voluntárias de cunho altruísta assentam seus alicerces sobre essa necessidade
de identidade e contribuem para respondê-la.
Também, por outro lado, sabe-se que o rápido envelhecimento da população
brasileira vem se dando no interior de um quadro de sucessivas crises econômicas,
que aprofundam as desigualdades sócio-econômicas; Monteiro (2005) afirma que
uma necessidade de estabelecermos ações em prol dos interesses das pessoas
velhas, tal qual a atenção que tem sido dirigida a outros segmentos pauperizados da
sociedade.
Assim, podemos discutir uma auto-imagem construída socialmente do velho e
de seu entorno, inscritos na temporalidade e no discurso.
Ao buscarmos refletir sobre os trabalhos de Bosi (1987) em que esta voz
aos velhos, convida-os a exporem suas lembranças mais antigas e, com elas,
recupera um tempo e um modo de viver que, de outra forma, estariam perdidos para
sempre, aproximamo-nos de trabalhos tendo como categoria a memória.
Para Halbwachs (1990), a memória aparentemente mais particular remete a
um grupo. O indivíduo carrega em si a lembrança, mas está sempre interagindo com a
sociedade, seus grupos e instituições”.
E para Le Goff (1996), “A memória é um elemento essencial do que se
costuma chamar identidade, seja ela individual ou coletiva, cuja busca é uma das
atividades fundamentais dos indivíduos e das sociedades de hoje (...)”.
No sentido de trabalhar com a memória individual e com a memória coletiva
percorreremos a trajetória do velho, o seu caminho psicossocial que é fonte de nossas
investigações, na expressão de sua singularidade, de sua identidade e do contexto
social em que está inserido.
Assim, nosso intuito é descobrir e desvelar o que é importante especialmente
sobre a constituição da identidade humana. O velho também se pergunta: Afinal, quem
sou eu, quem somos nós neste mundo de constantes e aceleradas transformações?
No contexto proposto por Habermas (1983) este autor afirma que uma
sociedade produz a sua identidade de um modo determinado: e depende dela não
perder tal identidade. Assim, quanto maior for a complexidade da sociedade tanto
maior será a pluralização de formas de vida, visto que a cultura e a sociedade se
interagem tanto na inclusão quanto na exclusão.
Também para o autor citado acima:
a identidade é gerada pela socialização, ou seja, vai se
processando na medida em que o sujeito apropriando-se dos
universos simbólicos integra-se, antes de tudo, num certo
sistema social, ao passo que mais tarde ela é garantida e
desenvolvida pela individualização, ou seja, precisamente por
uma crescente independência com relação aos sistemas sociais.
No processo de metamorfose, relacionando-o com o conceito que Ciampa
(2002) estabelece, Baptista (2002, p. 145) leva em conta que por “identidade,
estaremos nos referindo a uma totalidade que é fruto de processos complexos no nível
biológico de cada indivíduo, no vel intraindividual através da consciência e da
atividade e no nível interindividual, considerando as relações de indivíduos e grupos”.
Na perspectiva de trabalhar com velhos, em um processo de metamorfose,
outro aspecto importante que perpassa a questão apresentada seria o processo de
identidade. Para Ciampa (2005,, p. 148) há dois pontos importantes:
1) a questão da identidade é uma questão central, porque problematiza a
própria natureza do real;
2) a questão da identidade posta como metamorfose se inverte no contrário:
a não–metamorfose.
Segundo Baptista (2002, p. 145), a complexidade destes processos envolve
ainda a questão de estarem eles em interação, através de composições e oposições, o
que confere o caráter de semelhança e diferença tanto em relação a si mesmo como
na relação de cada um com os outros que guardam entre si pequenas e /ou grandes
semelhanças ou diferenças.
Neste sentido, procuraremos embasar como o velho está tomando consciência
desta transformação, pois o significado de identidade é formado pela relação de
processos de igualdade e de diferença, que indicam o entendimento destes sujeitos
velhos a respeito dos aspectos de emancipação e de metamorfose humana.
Ciampa (2005) ao citar Heller (1992) mostra-nos nessa tarefa de determinar
os processos sociais, que “a importância social dos papéis está na possibilidade que
eles criam para que as pessoas automatizem sua participação no mundo cotidiano”.
Percebe-se que uma nova categoria para este envelhecimento social, pois hoje o
velho não é visto como estorvo, mas como um sujeito participativo no mundo
contemporâneo, nos aspectos do cuidado com a saúde, com a cidadania, com as
conquistas e com os espaços sociais nos quais transita e que envolvem a construção
da identidade e de sua intersubjetividade.
Voltando ao nosso trabalho de mestrado, ao pensarmos no contexto do velho e
de sua memória, vimos que é possível redimensionar a sua memória, a sua própria
história, valorizando este em sua dignidade, em seu despojamento de contar, de
reviver, pois, nesta reconstrução, neste fazer é que buscaremos a metamorfose
humana, nos relatos das lembranças, das narrativas, na forte religiosidade que o velho
traz em sua vida, nesta transformação em que o sujeito velho foi sendo
redimensionado em seu papel social, na diferença, na singularidade, na normatividade
dos papéis apreendidos (CAMPEDELLI, 2000).
Neste sentido, a condição de emancipação do ser humano só ocorrerá quando,
através do agir comunicativo, houver possibilidade de se estabelecerem projetos
coletivos que conduzam a um estado em que realmente os homens como um todo
sejam responsáveis pela construção de sua história (BAPTISTA, 2002, p. 148), pois,
segundo Debert (1999, p.11) o “velho” é um ator que não mais está ausente do
conjunto de discursos produzidos, para nós. “Os velhos são como um conjunto
autônomo e coerente que impõe outro recorte à geografia social”, pois podemos
pensar que o envelhecimento não acontece mais no entorno dos 60 anos de idade,
por que hoje se têm vantagens que aparecem na sociedade, na política, na mídia.
Nossa justificativa é que a questão da identidade do velho no mundo
contemporâneo implica as mudanças processadas em sua história pessoal e em sua
intersubjetividade, implica também o seu projeto de vida e seus papéis sociais, sendo
que a identidade é um contínuo processo de igualdade e diferença, de movimento e
dialética.
O velho, devido ao seu maior tempo de vida, acumula mais elementos que
formam a memória coletiva do que uma pessoa jovem. O passado interage com o
presente e vice – versa. A temporalidade neste processo somente é possível quando é
ligada a uma ou a várias formas de narrativas, sejam elas da memória individual ou da
memória coletiva, portanto, tenderiam a justificar tanto os aspectos regulatórios como
os emancipatórios.
O objetivo geral desta tese busca compreender o processo da identidade do
velho no mundo contemporâneo.
Desejamos que ela não seja apenas mais uma leitura de cunho individual, mas
que sirva de encaminhamentos para maior efetivação do velho no mundo
contemporâneo na questão da identidade e que seja pertinente a todos aqueles que a
usufruírem.
CAPÍTULO I
O VELHO NO MUNDO MODERNO E O DISCURSO DA MODERNIDADE:
IDENTIDADE E CONTEMPORANEIDADE
1.1 Introdução
No capítulo I pretendemos abordar questões que nos atravessam que nos
afetam de modos diferenciados, que exigem uma nova escuta e que ainda precisam
ser mais bem elaboradas, até para poderem ser respondida. Partindo da concepção
de que o contexto social, cultural e histórico é fator determinante das relações sociais,
procuramos com esta tese contribuir com o processo de envelhecimento e da velhice
na sociedade brasileira atual, sendo que os participantes velhos constroem
significados, compartilhando de um mesmo universo simbólico, através de uma rede
de normas, dentro de determinada cultura, da assunção de papéis sociais, articulando
interesses vários, e vivendo em um mundo em transformação.
Para estas questões cabem algumas perguntas: Como os sujeitos estão
envelhecendo na atualidade? Que velhices estão sendo produzidas na
contemporaneidade? Como falar de velho, de envelhecimento, de idoso, de identidade
e de memória. É possível delimitar a identidade do velho?
De que forma podemos pensar e discutir a identidade do velho no mundo
contemporâneo?
Conforme tem nos apontado os estudiosos (da identidade, da memória),
inseridos na área da Psicologia social, vivenciamos hoje uma dada realidade que
impera em nosso cotidiano, e que de certa forma, gera a falência de nossas
instituições. Neste sentido, percebemos que a falência das instituições, cada vez mais,
produz à desigualdade social, a exclusão, a violência e sem falar do empobrecimento
do pensamento. O homem moderno, é levado cada vez mais, a gerir um
individualismo exacerbado na sua forma de comunicação e de relacionamentos,
perdendo os laços sociais de filiações de natureza simbólicas e paternas. As
exigências de sucesso provocam um enorme desgaste. As pessoas sentem-se
obrigadas a atingir metas idealizadas e a ultrapassarem a qualquer custo as suas
limitações. Instala-se um conflito entre o ideal de ego” e o eu” que nos leva a
desenvolvermos a crença de que valemos mais pelo que temos ou aparentamos ser
do que pelo que realmente somos.
A ânsia de reconhecimento faz com que a aparência tenha um enorme valor
neste mundo de imagens e que enfim é chamado de “mundo pós moderno”; quando
somos confrontados com a diferença entre aquilo que pretendemos ser e aquilo que
somos verdadeiramente a nossa auto-estima sofre, sofremos também um
esvaziamento da interioridade, da devastação do pensamento reflexivo, etc. e esta
diminuição da auto-estima torna-nos vulneráveis, assim também parece acontecer
com os velhos na sociedade do qual faz parte.
Com todas as instâncias protetoras em crise, não há mais centro que se
sustente nas relações contemporâneas e que, conseqüentemente, as sustente.
Por sua vez, essa realidade é muito diferente da que ocorria nas sociedades
tradicionais, onde as estruturas simbólicas de parentesco eram estáveis e conferia aos
sujeitos, ao longo de suas vidas, um nome, um lugar, um destino, uma tradição.
Nessas, a velhice tinha um lugar positivo, os velhos ocupavam um lugar de
respeito, de sabedoria, em diferentes sociedades dos quais fazia parte, e, suas
produções e histórias, fazeres e dizeres davam significados e sentidos à vida. Para
Messina (2003), hoje, não se conta mais com referências fixas de tempo e de espaço,
de presente e de futuro.
Assim sendo, que laços sociais são necessários ou possíveis de se fazer a fim
de convocar os sujeitos a fazerem uso do pensamento como mediador de suas
relações, de suas diferenças e de suas responsabilidades? De que forma, podemos
reinventar outros modos de convivência, que não excluam os velhos, recolocando-os
num lugar positivo dentro da sociedade? E, neste sentido, como a identidade deste
velho pode ser compreendida e que de que modo este possa continuar a ser o
“guardião da memória” na continuidade do mundo contemporâneo?
1.2 Por que falar de velho e não de idoso? O que isso quer dizer?
"Os velhos são sábios, pois a idade traz a compreensão”
12:12
O envelhecimento não é a mera passagem do tempo. É a manifestação de
eventos biológicos que ocorrem ao longo de um período. Não existe uma real
definição para o envelhecer, mas, cada um de nós vive o seu próprio processo de
envelhecimento associando a passagem do tempo de várias formas. Enfim,
salientamos, não existe a velhice, mas diferentes velhices. Cada pessoa o seu tom
e sua voz de acordo como quer viver e sentir seu envelhecimento e sua velhice,
conforme Mucida (2009, p. 21), a velhice como escrita pressupõe que cada um
escreve seu envelhecimento e sua velhice de forma completamente singular, com seu
próprio estilo.
Todavia, o processo de envelhecimento se inscreve na temporalidade do
indivíduo, sendo composto de perdas e ganhos, não se tratando de apenas um ciclo
de vida, mas sim, da construção de um processo contínuo, tal como sua identidade
marcada pela igualdade e pela diferença.
Ao mesmo tempo, quando nomeamos algo de velho, referimo-nos, geralmente
a algo que, sofrendo a ação do tempo e a constância do uso, perde sua utilidade total
ou parcialmente, mas quando nos referimos a uma pessoa velha, temos um problema
que advém dos movimentos sociais, filosóficos, históricos, culturais, mudam-se os
nomes, mas as coisas continuam as mesmas, este é o caso da velhice humana, ao
tentarmos dar-lhe um nome ou um significado, mas Mucida (2009, p. 21) nos lembra
muito bem que nascemos em um mundo permeado de palavras escutadas, faladas,
sentidas, esquecidas ou lembradas como ecos de outro tempo, mas que não morrem”.
Segundo a autora, algumas grifam efeitos do que nos tornamos, mesmo que muitos
nos escapem.
O idoso é aquela pessoa que tem muitos anos de idade; enquanto que o velho
é aquela pessoa que vai envelhecendo durante seus anos de vida. Ao mesmo tempo é
importante afirmarmos que a velhice é um estado de espírito, uma categoria social.
Ser idoso é ter uma idade, pois não se pode deter a passagem do tempo, mas o
avançar do tempo não justifica uma eventual perda da alegria de viver. Em
consonância com Mucida (2009, p. 21), nosso texto nasce de um ponto de partida
efetivo, mas indizível. Inominável, contudo, ele deixa marcas, pegadas, trilhas, traços
que não morrem com os quais cada um comporá a sua trama. A autora afirma que “a
velhice é a escrita do singular”. De que formas ela pode servir dos traços recebidos
tornando-os sempre atuais?
Pode-se reconhecer a imagem do velho como sendo aquela que retrata a
história de luta e de conquistas que marcou sua trajetória como sujeito social, sua
passagem pelas etapas do reconhecimento, legitimação, pressão e expressão, para
fazer-se ver e ouvir. Vivemos um fato histórico dentro da sociedade e que se torna
indispensável ao retratarmos a questão do velho, sua longevidade, sua temporalidade,
seus direitos, conquistas e presença constante na vida em sociedade.
Em suma, definir o velho pela passagem do tempo cronológico não é um bom
meio, porque toda grade de referência advém com qualidades e valores e,
conseqüentemente, métodos de julgamento. Ser julgado por classificações estanques
do tempo não é definir o humano em sua complexidade.
Com efeitos de escrita, novamente Mucida (2009, p. 23) refere-se que o
envelhecimento nos toca a cada dia desde que nascemos. Não para de escrever em
linhas por vezes incertas, quase invisíveis, mas não para, isso é certo! Talvez essa
falta de intervalo seja seu grande triunfo. Mas continuamente vamos tecendo os fios
de vida, fios do tempo, fios de morte na condução desse processo contínuo e radical
que é o nosso envelhecimento.
Voltando nos dizeres de Mucida (2009), apesar disso, não uma velhice
natural, pois nesse processo está aquele que envelhece e o que jamais envelhece em
cada um. Na passagem do tempo, no fio condutor da história do velho e de seu
envelhecimento em conformidade as marcas das experiências vividas e sentidas,
de certa forma inscrevendo sua identidade ao longo de seu processo biopsicossocial.
Voltemos ao envelhecimento e à velhice. Segundo Concone (2007), não se
pode ignorar que a velhice é também uma construção sociocultural, isto é, sendo um
dado da realidade de qualquer sociedade humana, está sujeita às ações nominadoras
da cultura (atribuição de nome, classificação, significação, etc.); a noção de velhice
depende, basicamente, do estabelecimento de demarcações socioculturais. Além
disso, encontramos no envelhecimento aspectos universais (biológicos), conquanto
seus ritmos variem por numerosas razões (biológicas e outras). De fato, pode-se dizer
que o envelhecimento é a um tempo biológico e sociocultural. Assim, tal como a noção
de corpo (que, como se viu, é referência importante na nossa percepção de velho), a
noção de envelhecimento também goza de uma dupla natureza: biológica e
sociocultural. Essas duas dimensões se imbricam, dialogam e digladiam. Além disso,
as realidades da velhice e do envelhecimento, embora submetidas às suas próprias
lógicas, são de fato interdependentes.
Sabe-se que toda palavra vem carregada de valores, baseando-se em relações
de contrastes. Se o moderno é bom, o obsoleto é ruim, se o antigo é desconsiderado,
o novo é prestigiado; se a sociedade sofre transitoriedades contínuas, é recusado o
desatualizado. O que passou não serve, é desatualizado, recusado, precisa de outro
destino. O problema está em como usar os enunciados, tanto para objetos quanto
para pessoas
3
.
Relendo a definição de velho, oferecida pelo discurso médico sob a ótica
analítica, podemos afirmar que o envelhecimento não cessa de se inscrever para todo
3
Para Bosi (2003), os velhos contam a história vivida e sofrida por eles, isso é dar voz as
evocações e recriar um lugar para o envelhecimento psicossocial e a velhice.
vivente como um percurso dentro do tempo pelo qual todos passam do nascimento à
morte.
A velhice sempre existiu na humanidade, mas o envelhecimento populacional é
um fenômeno que o Brasil vem absorvendo a partir do momento em que as pessoas
consideravelmente vivem mais anos em sua vida.
Ao chegar a uma certa idade a pessoa era considerada velha e,
conseqüentemente envelhecer era algo associado à doença. Mudanças começaram a
ocorrer a partir dos estudos sobre o envelhecimento e a idade cronológica passa a ser
um marco. O envelhecimento ganha contornos e o velho passa a ter uma determinada
posição e representação em diferentes tempos e em diferentes lugares.
cerca de 40 anos a velhice era vivida no recolhimento da vida privada e
tinha duração relativamente curta. Depois da aposentadoria, da menopausa, que
demarcavam socialmente seu início, restavam perdas, afastamento e senilidade,
até mesmo a morte como afirmam vários autores. E atualmente como podemos
conceber estas mudanças no mundo contemporâneo, sendo que as pessoas estão
vivendo mais?
Os cientistas sociais identificavam o idoso como vítima de um sistema iníquo
(DERBET, 1999). Aos idosos restavam três alternativas: a virtude da sabedoria, a
manutenção da atividade e uma boa herança genética. A velhice era uma experiência
individual e, uma boa velhice, uma vitória pessoal. Será que hoje, também, podemos
pensar assim? O que foi acontecendo com essas alternativas? A longevidade é uma
forma de metamorfose?
No Século XIX, a velhice foi tratada como uma etapa da vida caracterizada pela
decadência física e sua ausência de papéis sociais, e o avanço da idade como um
processo contínuo de perdas e de dependência a identidade de condições dos
idosos – por um lado imagens negativas associadas à velhice e, por outro, um
elemento fundamental para a legitimação de direitos sociais, como a universalização
da aposentadoria. Hoje uma auto-imagem diferencia o velho em sua condição social,
biológica, psicológica, espiritual.
Questões instigantes aparecem nos questionamentos de Rodrigues e Terra
(2006, p. 17): Em que medida a sociedade é responsável pelo significado atribuído aos
velhos? Até que ponto a velhice é um fato cultural e não apenas biológico?
Neste sentido podemos observar que hoje muitos estudiosos do
comportamento humano, muitos especialistas do envelhecimento e da velhice evitam
falar sobre doenças, e muito menos sobre a morte, outros autores discutem o mito da
eterna juventude, da prolongação indefinida da vida. Entretanto na velhice os sujeitos
têm de conviver com as inúmeras perdas: do corpo, dos cônjuges, dos papéis sociais
e com sua própria finitude.
Atualmente cabe-nos encarar os desafios do envelhecimento, entender as
perdas inevitáveis que ocorrem, os inúmeros sofrimentos de exclusão que ainda
nos segmentos sociais, mas também, ao mesmo tempo, aproximarmo-nos cada vez
mais desta realidade que se torna a cada dia uma fonte inestimável de
autoconhecimento e de perda de nossas onipotências. Vivemos no mundo da
aceleração e do apagar do tempo passado, tudo é transformado, modificado e
atualizado. Vive-se o mundo da moda, da estética, do belo e de outros; os velhos
vivem mais anos e morrem com mais anos no mundo contemporâneo e sua identidade
ganha ressonância, pois, uma auto-imagem para esse envelhecimento e para a
velhice.
A compreensão de que esses diferentes discursos sobre a velhice são
construídos socialmente e que a velhice não é apenas uma categoria natural auxiliou-
nos para que uma nova abordagem para a velhice fosse proposta, de modo a desfazer
a associação entre velhice e doença, desengajamento e declínio. Tal argumentação
estava compatível com a idéia de que a identidade negativa da velhice é resultado de
determinadas condições sociais e culturais.
Para estas questões, articulando-se com diferentes práticas, hábitos e
linguagens, a velhice assume um número ilimitado de significados. Em razão disto, as
imagens tradicionais associadas às pessoas mais velhas acabam por sofrer
transformações, como assinala Debert (2004b, p. 61): “a terceira idade substitui a
velhice; a aposentadoria ativa se opõe à aposentadoria; [...] os signos do
envelhecimento são invertidos e assumem novas designações: ‘nova juventude’,
‘idade do lazer’”. Um novo modo de envelhecer é estimulado, procurando demonstrar
que é possível ter um envelhecimento adequado e bem-sucedido através da adoção
do novo estilo de vida da terceira idade.
Para Diniz (2006) velhice é uma condição humana. Ou ao menos uma
condição humana para todas as pessoas vivas. Essa pode parecer uma afirmação
tautológica - a velhice é uma condição humana para quem está vivo -, mas uma
forma mais profunda de compreendê-la. Apesar de ser uma condição humana, a
experiência da velhice não está disponível para todas as pessoas: a possibilidade de
uma vida extensa não é uma escolha cujas variáveis estão sob nosso controle.
Doenças, infortúnios ou o acaso nos impedem de experimentar a velhice. Isso faz da
velhice uma fase paradoxal de nossas vidas: por um lado, nos obriga a uma mudança
radical de perspectiva diante da vida social, por outro, não basta à vontade de ser
velho para experimentar a velhice. imponderáveis que impedem a chegada da
velhice, mas também não basta se manter em sobrevida para conhecer a velhice
como um fenômeno social.
Para a autora, o número de velhos cresceu e as definições sobre quem é o
velho também se modificaram. Estendeu-se nosso ciclo de vida biológico e a
conseqüência é que também se modificou a experiência social da velhice. Hoje
podemos afirmar uma nova identidade para esse velho, tal como "experimentar a
terceira idade com qualidade de vida", buscar o envelhecimento ativo, viver uma vida
plural
, estabelecer preferências e tomar decisões livres e informadas.
Apesar de Freud reinscrever a questão do sujeito sob uma perspectiva avessa
ao desenvolvimento, demonstrando, com base nos conceitos de inconsciente, pulsão
e realidade psíquica, que as primeiras marcas deixadas no sujeito pela intervenção do
Outro não se perdem jamais e formam um conjunto que servirá de pólo de atração
para outros traços, pode-se pensar que o velho ao dizer sua história muitas vezes
repete sempre para não esquecer.
um diálogo posto por Mucida (2006, p. 25), ao dizer novamente sobre o
envelhecimento e sua inscrição que nos chama atenção: A escrita do singular. Para a
autora, escrever com contingência da vida é saber transitar no tempo que passa
dirigindo-se ao passado, bebendo de suas fontes e enlaçando-o ao presente e ao
futuro incerto.
No entanto, a Psicologia do Desenvolvimento tenta traçar, para distintas idades
cronológicas e períodos da vida, alguns parâmetros comportamentais esperados a
partir dos mesmos. Foi na passagem do século XVIII para o século XIX que o
Evolucionismo serviu como embasamento cientificista para estabelecer o ciclo
biológico da existência humana em faixas etárias: infância idade adulta velhice.
Para Mucida (2006, p. 27), na literatura pesquisada é flagrante a utilização desse
conceito no sentido negativo, a partir de uma confusão ou conjunção, a nosso ver
equivocada, entre velhice e doença ou velhice e decrepitude. Mas, continuando com
essa idéia, percebemos que diferentes autores tais como (Beauvoir, Debert, Diniz,
Camarano, Pfromm Netto e outros), discutem pela Psicologia, pela Filosofia, pela Arte
aproximarem dos traços e retratos as representações de que algo se aproxima do que
se constituí a velhice.
Se a palavra e o velho que se inscreve, nos faz ser quem somos, porque
somos também constituídos pela linguagem, então é urgente uma revisão dos
conceitos a fim de que se mude o paradigma no qual instalamos a velhice ou o próprio
processo do envelhecimento.
É importante refletirmos que a sociedade ainda insiste em definir ou diferenciar
o que é idoso do que é velho, sendo que no dicionário, ambas as palavras se
aproximam e se afastam, incluem e excluem o igual e o diferente, pois são categorias
vistas pela Psicologia do Desenvolvimento, pela Psicologia Social e por outras,
definindo idades cronológicas, categorias sociais, processos, mas ainda é mais
importante refletirmos que esta mesma sociedade, desde que surgiu o velho e sua
categoria social, o seu processo de envelhecimento, impôs-lhe um lugar, uma ordem,
uma classificação: sair do mercado, sair de moda, velho não é produtivo, velho não é
consumidor, velho não é bonito. Enfim, esta dada sociedade por muito tempo
excluiu este participante do mundo da vida, mas, contrapondo-se a esta idéia, Pfromm
Netto
4
mostra-nos que é sempre iluminador e atraente mergulharmos no passado -
passado de alguém, de um país, de um campo de conhecimento, da ciência ou da
atividade humana. Para este autor estudar a origem e o desenvolvimento das idéias,
as práticas e as realizações que nos fazem humanos é mesmo fascinante. No plano
individual, desde tempos longínquos os relatos de vidas, formas de biografias e
autobiografias têm deleitado, ensinado e apaixonado homens e mulheres do mundo
inteiro.
Assim, certamente bem no meio desta crise da modernidade e do sentido onde
o velho busca saber quem ele é? E quem ele gostaria de ser? Não só na vida, mas na
história, na memória, na sua temporalidade, ele nos faz refletir em suas narrativas
sobre as diversas formas de possibilidades e de discussões para os aportes da
identidade no mundo contemporâneo. Para Mucida (2006, p. 25), sentir-se identificado
é saber fisgar e escrever com a marca que é sempre própria.
Por mais que o velho nesta sociedade midiática ainda continue esquecido ou
lembrado de outras maneiras, seus atos produzirão efeitos nos outros. Lembra-nos
Pfromm Netto em sua palestra, que os seres humanos, agora e nas próximas
décadas, passam a conhecer uma longevidade estendida até cerca de uma centena
de anos de vida, que no passado não existiu para a maioria das pessoas.
A partir da Declaração Universal dos Direitos Humanos, em 1948, incutiu-se a
idéia de igualdade, conforme o art. Todos são iguais perante a lei e tem direito,
sem qualquer distinção, a igual proteção da lei. Todos têm direito a igual proteção
contra qualquer discriminação (...)”.
Insistimos que apesar de a sociedade excluir de todas as formas o indivíduo,
até mesmo o velho; este não aceitou nem se resignou, e hoje vemos estes sujeitos de
volta ao mercado de trabalho, nos grupos de 3ª. Idade, fazendo todos os tipos de
4
PFROMM NETTO, Samuel. Da adolescência á maturidade: na Psicologia e no ser humano.
In: IX Jornada da Psicologia Novos desafios em Psicologia A preservação como promoção
de desenvolvimento e saúde – UNIVAS – DE 25 a 29 de agosto de 2008. Palestra Proferida de
abertura da semana
.
atividades seja esportivas, recreativas, turísticas, sociais, espirituais e outras. Eis
este velho, imperativo da novidade, da transformação, da longevidade, da história, da
memória. Podemos perguntar: será este um processo chamado metamorfose
emancipatória?
1.3 Falar de velho, envelhecimento, idoso, identidade
Desde muito tempo, temos uma convivência muito grande com a comunidade
de velhos, seja nas instituições asilares ou grupos de 3ª. Idade, na nossa clínica ou
até mesmo com velhos que vivem com suas famílias, e concordamos com Bosi,
quando esta autora diz da proximidade do trabalho com essa comunidade de destino.
São pessoas que sofreram mudanças na estrutura etária da população
brasileira, e têm participações crescentes nas mais distintas esferas da sociedade,
onde as mudanças acarretadas pela modernidade tais como a urbanização e a
industrialização são fatos que vêm sendo observados e problematizados por um
número considerável de estudiosos das mais distintas áreas do conhecimento humano
e social.
Segundo Zuben (2001), a busca dos segredos da longevidade ainda persegue
a mente, os sonhos dos homens, como um de seus eternos desejos. Desde a época
mítica – o relato bíblico do paraíso terrestre e da árvore da vida, e os hiperbóreos que,
para os gregos, eram os povos do extremo norte que viviam por muito tempo até
hoje com o culto do corpo jovem e belo e com as pesquisas tencionadas para a corrida
por uma vida sempre mais longa, a questão do envelhecimento tem merecido a
atenção crescente da espécie “homo” desde a aurora de sua história até a saga
investigadora de pesquisadores dos mais diversos campos do saber.
Falar de envelhecimento, de velho, de idoso, sua identidade, sua memória é
um desafio e uma responsabilidade muito grande, para além de certa angústia e
alguma dificuldade. Ao iniciar esta tese deparamos com muitos trabalhos, estudos,
artigos, notícias científicas e outras, mas escolher falar de um tema que ainda não me
é uma experiência temporal me situa, ao pensar sobre o meu próprio envelhecimento,
pois sabemos que ao chegar a certa idade ou àquele momento em que o nosso corpo
muitas vezes já não responde a muitos fatores psicossociais nos leva a concordar com
alguns autores em seus depoimentos e pesquisas que o velho é sempre o outro,
sempre somos o velho de alguém ou alguém está mais velho do que nós. Isso
acontece em qualquer fase de nossa vida quando nos deparamos com os processos
biopsicossociais.
Podemos pensar que no envelhecimento cada ser vai responder de uma dada
maneira, pois supomos a questão biológica, psicológica, social, espiritual, do
ambiente, da alimentação, dos papéis e outros. Entendemos que o processo de
envelhecimento e a fase da velhice fazem parte de nossas experiências de ser vivo.
Para Mascaro (2004, p. 9), além disso, os idosos, aqui nos cabem os velhos, que são
os “personagens” reais e também fictícios em nossa vida pessoal, afetiva e de
trabalho, vão depender da experiência individual de cada um, suas condições
biopsicossociais, pois assim o envelhecimento e a velhice sempre será uma
experiência individual e temporal.
Muitos dos velhos com os quais temos convivido transmitem a imagem de
serenidade, tranqüilidade, sincronia com o presente, outros se apresentam sofridos,
depressivos, tristes, com um passado denso e com falta de perspectivas para o
presente.
De acordo com Mucida (2006)
5
, a tese fundamental do estatuto do sujeito que,
para a psicanálise com Freud e Lacan, se associa à própria idéia de inconsciente, é de
que este não envelhece.
Para esta autora (2006, p. 26), o fato de vivermos mais tempo conseqüência
dos avanços da ciência traz efeitos ao conceito de velhice. Mas nosso caminho
percorre a Psicologia Social, no sentido da complexidade de se trabalhar com os
sujeitos humanos e, em nossa escolha o velho como produtor e consumidor de
sentido, como consumidor e produtor da sua história tomando-se ainda como apoio a
memória e a religiosidade em suas narrativas.
Portanto, estudos mostram que a tendência contemporânea é rever os
esteriótipos associados ao envelhecimento, e a idéia de perdas tem sido substituída
por momentos propícios para novas conquistas, guiados pela busca do prazer e da
satisfação pessoal.
Segundo Diniz (2006) a velhice desafia nosso sistema social em alguns de
seus pilares. Um deles é o pressuposto de que somos seres autônomos e
independentes.
Para esta autora, ao contrário do que somos socializados a crer, não somos
independentes. Acreditamos no valor moral da independência e da autonomia, mas
5
Segundo esta autora, podemos entender que a Psicanálise até o momento demonstrou,
pouco interesse por tal questão, quer por considerar o idoso como um adulto como os outros,
não distinguindo uma clínica diferenciada na velhice, quer por uma herança advinda de Freud;
na velhice, as defesas estariam por demais assentadas, e não haveria um tempo hábil às
retificações e mudanças subjetivas. Mas nos cabe ressaltar que a velhice não se inscreve da
mesma forma que da época de Freud. E também não é de nosso interesse nos deter acerca
dessas discussões.
nossa vida social é um exercício contínuo de interdependência e de autonomia
relacional. Há, portanto, um jogo entre o que acreditamos ser e o que somos capazes
de experimentar em nossa vida social. Apostamos na independência, mas vivemos
na interdependência. As mulheres são socializadas nessa ambigüidade de valores
com mais intensidade que os homens. Talvez, por isso, a velhice seja uma experiência
de maior continuidade para as mulheres: o feminino imposto pela velhice é já seu
velho conhecido.
Mas em junho de 2009, o SESC Avenida Paulista trouxe como contribuições e
discussões o tema sobre o Envelhecimento masculino, as contribuições ao longo das
reflexões, os novos padrões de comportamento das mulheres idosas, muito delas
protagonistas diretas de históricas mobilizações. Participativas, ocupam diversos
espaços sociais em atividades profissionais, de lazer ou de militância política e
cultural. Em detrimento do que ocorre em relação às mulheres idosas, são escassos
os estudos nas áreas das ciências sociais e da saúde sobre o comportamento
masculino na velhice, principalmente no quadro da realidade brasileira. Mas
gostaríamos de ressaltar que nos aspectos de um lazer recreativo é posto ao velho a
importância de atividades tais como pesca jogos, bingos e outros como se isso
oportunizasse ao idoso masculino uma forma de deslocamento e ocupação de seu
tempo livre, tornando-se assim imperativas novas atitudes e novas modalidades de se
mudar a forma de enxergar o envelhecimento masculino na contemporaneidade.
A fragilidade que acompanha a velhice não deve ser entendida como sinônimo
de incapacidade para a vida social. A discriminação sofrida pela velhice não é ditada
apenas pelo corpo velho e com limitações. É resultado de um jogo complexo entre
limitações individuais e estrutura social pouco sensível à necessidade de cuidado. O
pressuposto da independência permeia nossa estrutura social: desde a arquitetura do
espaço à exigência de direitos. Esse pressuposto irrefletido, infelizmente, é o que
aguça a fragilidade da velhice: para além do corpo velho, a opressão de uma
estrutura social pouco sensível à interdependência. Mas essa relação complexa entre
corpo e sociedade é uma experiência de vida comum a outro grupo de pessoas - os
deficientes. Ser velho é, portanto, um misto dos valores do feminino com a experiência
da deficiência: necessita-se reconhecer a interdependência, o valor do cuidado e das
limitações do corpo. É preciso acreditar na independência e na autonomia, mas
reconhecer as limitações de seu exercício pleno.
Pressupomos que uma sociedade que reconheça e assuma a centralidade do
cuidado para a decência da vida humana e da cultura pública será certamente uma
sociedade em que os velhos não estarão à margem da vida social.
No Brasil proliferam na última década os programas voltados para os idosos,
como as “escolas abertas”, as universidades para a terceira idade” e os “grupos de
convivência de idosos.” Isto nos mostra programas que tentam encorajar a busca da
auto-expressão e a exploração de identidades de um modo que era exclusivo dos
jovens, abrem espaços para que uma experiência inovadora possa ser vivida
coletivamente e indicam que a sociedade brasileira é hoje mais sensível aos
problemas do envelhecimento.
Na década de 60, surge a denominação de 3ª idade para a fase da vida que se
inicia por volta dos 60 anos e que tem também suas características próprias. A nosso
ver, distintas daquelas da velhice.
Para Debert (1999), os anos 70 assistiram ao crescimento do número de
pesquisas sobre a velhice. Segundo a autora, até essa data, a maioria dos estudos
sobre o tema procurava apontar para o que é comum na experiência de
envelhecimento nas sociedades industrializadas.
Burguess (1960) apud Debert (1999, p.70-71) define a velhice nas sociedades
industrializadas através da idéia de roless role a sociedade moderna não prevê um
papel específico ou uma atividade para os velhos, abandonando-os a uma existência
sem significado. Nesta mesma linha Debert apud Barron (1961) considera os velhos
uma minoria desprivilegiada nas sociedades industrializadas, baixa renda e baixo
status seriam o destino invariável daqueles que atingem os 60 anos e, nesse sentido,
são uma minoria como qualquer outra. Assim, os velhos formam uma sub-cultura, com
um estilo próprio de vida que se sobrepõe às diferenças de ocupação, sexo, religião e
identidade étnica.
Portanto, ao classificar a terceira idade, a nosso ver, outro nome foi dado à
velhice ou ao processo do envelhecimento, mas também entendemos a velhice como
uma categoria social, como uma época de transição: podemos dizer que numa certa
idade que foi estabelecida pela OMS estamos entrando na velhice, mas ainda não
somos velhos, pois além de estarmos articulando nosso presente, temos perspectivas
e projetos para o futuro e caminhamos para uma longevidade estendida como
apontam os estudiosos e especialistas do assunto. .
Pois é importante, ao olharmos para o presente, perceber que a relação entre
presente e futuro nos lança para o aumento de tempo e de vida que teremos daqui
para frente, isto nos dizem nossos participantes velhos em nossas entrevistas e nas
conversas informais ou formais de grupos de convivência, de trabalhos e outros.
Em nossa pesquisa escolhemos trabalhar com sujeitos velhos com mais de 60
anos de idade, o que, a nosso ver, não é uma questão de idade cronológica, mas
consideravelmente de circunstâncias de natureza biológica, psicológica, social,
espiritual, econômica, histórica e cultural. Há uma questão de postura diante das
mudanças internas e externas que se apresentam.
Daí, estudos apontam a velhice também como uma época de “crise”, isso nos
faz voltar ao Aurélio, onde encontramos: “crise” como “um momento crítico ou decisivo
caracterizado por lutas internas”. Então se considerou que o envelhecimento é uma
fase de crise, de turbulência, de tomada de consciência da entrada na velhice e,
sim, o modo como vivemos seus desafios vai dar o tom da nossa velhice - é um
“momento decisivo”. Nós também perguntamos: Quais são estes desafios?
Com O Plano de Ação Internacional sobre Envelhecimento das Nações Unidas
(ONU, 1982), acompanhando a orientação da Divisão de População, estipulou-se 60
anos como o patamar que caracteriza o grupo idoso. Porém, é usual, em demografia,
definir 60 ou 65 anos como o limiar que define a população idosa, explica em seu texto
sobre o Envelhecimento da população brasileira, o Professor Morvan de Mello Moreira
(2001), do Instituto de Pesquisas Sociais da Fundação Joaquim Nabuco (PE),
acrescentando que,
"por envelhecimento populacional entende-se o crescimento da
população considerada idosa em uma dimensão tal que, de
forma sustentada, amplia a sua participação relativa no total da
população. A ampliação do peso relativo da população idosa
deve-se a uma redução do grupo etário jovem, em
conseqüência da queda da fecundidade, configurando o que se
denomina envelhecimento pela base".
Cada vez mais há a necessidade de discussões e de implementações de
políticas públicas destinadas às pessoas idosas, pois se tornam ainda mais imperiosas
nos países em desenvolvimento, que possuem uma deficiência grave no que tange
à efetivação dos direitos humanos desse segmento populacional. Supomos que para
os velhos garantirem seus direitos ainda será necessária muita luta para que eles
sejam respeitados e assegurados pelo Estado esses direitos. O caminho a trilhar é
longo, porém, como protagonistas e de forma organizada, terão muito mais poder de
conquista.
A questão da velhice não é apenas demográfica, trata-se também de uma
questão social e política. Tanto é assim que organismos internacionais, como a
Organização das Nações Unidas, vêm discutindo o tema, elaborando planos,
realizando eventos sobre a questão do segmento de pessoas velhas e recomendando
aos países signatários que desenvolvam políticas, planos e projetos com o objetivo de
implementar ações que beneficiem esse segmento populacional.
De acordo com Mendonça (2008)
6
, em 2002, foi realizada a Segunda
Assembléia Mundial sobre o Envelhecimento em Madri/Espanha, resultando no Plano
de Ação Internacional para o Envelhecimento, no qual foram adotadas medidas em
âmbito nacional e internacional, em três direções prioritárias: idosos e
desenvolvimento, promoção da saúde e bem estar na velhice e, ainda, criação de um
ambiente propício e favorável ao envelhecimento. Em 2003, foi realizada a
Conferência Regional América Latina e Caribe sobre Envelhecimento, em Santiago do
Chile, resultando no documento intitulado Estratégias Regionais de implementação
para América Latina e o Caribe do Plano de Ação Internacional de Madri sobre
Envelhecimento e, em 2007, foi realizado a II Conferência sobre Envelhecimento na
América Latina e Caribe, em Brasília, o que resultou na Declaração de Brasília, tendo
como destaque principal a designação de um relator do Conselho de Direitos
Humanos da ONU para velar pela promoção dos direitos da pessoa idosa, e pela
consulta de cada país a seus governos sobre a criação de uma convenção da pessoa
idosa como um documento juridicamente vinculante, em âmbito internacional.
Sabe-se que os direitos humanos das pessoas idosas estão evidentes nas
recomendações dos documentos acima citados. A atuação dos idosos como sujeitos
ativos e protagonistas, lutando por seus direitos e exercendo sua cidadania, é peça
fundamental para que seus direitos legalmente conquistados sejam garantidos e,
portanto, sua identidade.
Entretanto, sabe-se que durante todo o nosso percurso de vida enfrentamos
mudanças, fracassos e conquistas, e em todas as vivências estamos sempre nos
deparando com a realidade de nossa castração não podemos tudo que queremos,
nem como queremos.
De acordo com Mucida (2006, p. 28), se a velhice é ainda determinada em
cada época e em cada cultura de forma diferenciada, acentuamos, os significantes
que tentam nomeá-la incidirão sobre os sujeitos, provocando seus efeitos
7
.
Continuando, a autora assegura que cada um só possa responder sob os auspícios de
seus próprios traços, os significantes culturais – o mal estar na cultura em cada época
exercem, sem sombra de dúvida, seus efeitos sobre o sujeito. Para a mesma,
6
MENDONÇA, J. B. Dia Internacioal del Adulto Mayor. In: Boletín Especial - Red
Latinoamericana de Gerontologia, Ano X, Número Especial. 1 de Octubre de 2008. Consultar
também: <htpp//www.gerontologia.org>.
7
Mucida explica que para Lacan, um significante é aquilo que não significa nada, só tomando
seu valor de significante em oposição a um outro na cadeia discursiva. Um significante o
remete a um significado, que é recalcado, mas remete a um outro significante que se coloca a
ele como diferença.
afirmamos, portanto, que a velhice é também um efeito do discurso, da subjetividade,
da história, da identidade, da memória.
De certa forma, Mucida (2009, p..27) afirma-nos que toda escrita é permeada
por algum ponto impossível de dizer ou nomear, e isso toca a escrita da velhice, por
isso também os efeitos de nossa memória nos diz daquilo que lembramos e daquilo
que esquecemos, pois a autora afirma que a velhice é um nome difícil de nomear, por
isso acaba tendo vários nomes, sem que nenhum deles possa dizer exatamente o que
seja e por isso afirmamos que cada um tem a sua própria construção a este processo
de envelhecer e a forma de sua identidade no mundo contemporâneo
Desde os primórdios sabemos que um sonho mítico do ser humano em
buscar a longevidade e a eterna juventude. Antes isso era algo a ser buscado pelos
mitos, pelos rituais de magia e outros. Hoje sabemos que a longevidade se expressa
num momento histórico tanto de controle da natalidade como em um índice de queda
de mortalidade, pois a pirâmide demográfica do Brasil e do mundo começa a se
inverter. Com a crescente queda na taxa de fecundidade e com o aumento da
esperança de vida em cerca de 30 anos no século passado, a previsão é que em 2050
a população mundial seja de nove bilhões (50% a mais do que hoje), assim observa
Kalache (2006)
8
.
Entretanto, no envelhecimento, o sujeito perde-se de si mesmo, se desconhece
diante das limitações que vão se impondo em seu próprio corpo, em sua própria
imagem. Vivemos uma crise de identidade. O adolescente se desestabiliza quando
sente que não tem mais controle sobre seu próprio corpo, tal qual o volume dos seios,
o volume do pênis, a força dos impulsos, isto implica deixar de ser criança e não saber
que adulto se tornará e, a partir daí, uma busca incessante de sua identidade: Quem
sou eu?
Assim também acontece com o velho, quando este se depara com uma nova
identidade: o surgimento dos cabelos brancos, força e vitalidade que agem de forma
diferente sobre seu corpo, sensações e pulsões que vão perdendo sua força, porque o
tempo avança e mostra outra imagem, aquela marcada pelas vicissitudes do tempo.
8
O Banco Bradesco através da Bradesco Vida e Previdência organizou no dia 30 de novembro
de 2006 em São Paulo, o I FORUM DA LONGEVIDADE: um desafio para o futuro, com
vários profissionais da área da saúde, organização e outros, para discutir o impacto da
longevidade no século XXI, através de várias palestras. O médico Alexandre Kalache fez a
palestra A longevidade é uma conquista” e num tom provocativo começa a dizer que “quem
não quiser envelhecer tem de morrer cedo”. Sua mensagem é que temos de caminhar para o
envelhecimento de uma forma positiva, porque a longevidade é a perspectiva de um número
cada vez maior de pessoas, em todo o mundo.
Melucci (2004, p. 27) refere-se que os distanciamentos mais evidentes são
aqueles entre os tempos interiores, do desejo e do sonho, dos afetos e das emoções,
e os tempos exteriores, cadenciados pelas regras sociais, não mais homogêneas
como no passado. Num certo sentido, este velho no qual focamos o nosso olhar, e;
num certo momento de sua história, pertencia simultaneamente a grupos permanentes
e estáveis e desempenhavam papéis distintos como o chefe, o guardião, o senhor de
sua própria história, com uma identidade definida, atualmente perdeu-se os sistemas
de referência que regia suas experiências, seus costumes e suas práticas; passando a
co-existir na experiência temporal subjetivamente vivida e em definições regidas por
uma sociedade de consumo multifacetada e impermanente, num processo acelerado
de informações e de tecnologias que a cada dia vem abolindo do cenário toda a
relação com a tradição e a transmissão.
Alguns autores (Mucida, Debert; Mascaro e muitos outros) pontuam que é
dessa forma que o velho descobre que somos sujeitos temporais, estamos sujeitos à
ação do tempo. No entanto, o mundo atual celebra os valores, o comportamento, a
aparência e a moda dos jovens Mascaro (2004, p. 21). Também os velhos passam a
ditar a moda, existem hoje confecções próprias para estes sujeitos, fazem-se
presentes nos segmentos sociais, reivindicando valores, justiça e papéis sociais.
Conforme cita Melucci (2004, p. 30), junto ao tempo, também o espaço torna-se
múltiplo e descontínuo, exigindo a capacidade de mudar de bitola (no sentido exato da
palavra), mudar de quantidade e qualidade, de localizar-se e deslocar-se com grande
elasticidade.
É nesta perspectiva de trabalhar a identidade de velhos no mundo
contemporâneo que buscaremos o sentido de emancipação humana, discutindo idéias
de “políticas de identidade” ou de “identidades políticas”.
Políticas de Identidades apontam a formação e a manutenção de identidades
por meio de mecanismos de regulação. Estes podem estar a serviço da emancipação
quando garantem direitos coletivos e individuais ou a serviço da dominação quando
impedem o processo de autodeterminação de coletividades e de indivíduos.
Portanto, a questão da tensão entre autonomia ou heteronomia que tem
implicações específicas se considerado o confronto entre diferentes políticas de
identidades coletivas, bem como o confronto entre uma política de identidade coletiva
de um grupo específico e os indivíduos do mesmo. No primeiro caso, a tensão se
entre as agências que tentam impor uma identidade coletiva a um agrupamento social
e aqueles que lutam por auto-definição de suas identidades. No segundo, a tensão se
no interior da própria coletividade quando alguns de seus indivíduos não se
reconhecem na política de identidade proposta pelo grupo.
Assim, para Ciampa (2005):
a regulação pode servir à emancipação ou à dominação: é
emancipatória quando atende aos interesses e direitos de
autodeterminação reivindicados pelas comunidades e pelos
indivíduos, é dominadora quando impede a autodeterminação,
bem como quando implica detrimento de direitos de outras
coletividades e indivíduos.
Os desafios trazidos pelo envelhecimento da população têm diversas
dimensões e dificuldades, mas nada é mais justo do que garantir ao velho a sua
integração na comunidade. O envelhecimento da população influencia o consumo, a
transferência de capital e de propriedades, impostos, pensões, o mercado de trabalho,
a saúde e a assistência médica, a composição e organização da família, também a
moda, o culto aos padrões de beleza e outros. “O tempo torna-se cada vez mais
escasso e associando à necessidade de escolhas e de renúncias, para Mucida (2009,
p. 29), ” tão perto, tão longe, eis o destino irremediável da velhice, tornando-a estranha
e familiar”; neste mundo de mudanças e transformações acentuadas.
O envelhecimento é um processo normal, inevitável, irreversível e não uma
doença. Portanto, não deve ser tratado apenas com soluções médicas, mas também
por intervenções sociais, econômicas e ambientais.
Para tanto, devemos entender que as políticas públicas de atenção aos velhos
se relacionam com o desenvolvimento sócio-econômico e cultural, bem como com a
ação reivindicatória dos movimentos sociais. Um marco importante dessa trajetória foi
a Constituição Federal de 1988, que introduziu em suas disposições o conceito de
Seguridade Social, fazendo com que a rede de proteção social alterasse o seu
enfoque estritamente assistencialista, passando a ter uma conotação ampliada de
cidadania (BRASIL. Ministério da Saúde, 1997).
A partir daí a legislação brasileira procurou se adequar a tal orientação, embora
ainda faltem algumas medidas. A Política Nacional do Idoso, estabelecida em 1994
(Lei 8.842)
9
, criou normas para os direitos sociais dos velhos, garantindo autonomia,
integração e participação efetiva como instrumento de cidadania. Essa lei foi
reivindicada pela sociedade, sendo resultado de inúmeras discussões e consultas
ocorridas nos estados, nas quais participaram velhos ativos, aposentados, professores
universitários, profissionais da área de gerontologia e geriatria e várias entidades
representativas desse segmento, que elaboraram um documento que se transformou
no texto base da lei.
9
Extraído em dezembro/2008 de http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L8842.htm
Na atualidade, as mudanças de postura e de hábitos estão propiciando um
aumento na expectativa de vida. Segundo o Censo 2000 do IBGE, dos 170 milhões de
brasileiros, 14,5 milhões são velhos, representando um percentual de 8,5%. uma
estimativa que, em 2025, esse número chegue a 32 milhões de velhos, o que tornaria
o Brasil, segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS), o sexto país com o maior
número de velhos. Ressaltamos que por isso surgiu um marco de suma importância,
que é o Estatuto do Idoso”. Foi sancionado em outubro de 2003 pelo presidente Luis
Inácio Lula da Silva, e entrou em vigor no dia de janeiro de 2004. O Estatuto (Lei
Federal nº. 10.741/03), proposto pelo ex-deputado e atualmente senador Paulo Paim
(PT/RS), é um instrumento de cidadania para garantir os direitos da pessoa idosa na
sociedade brasileira. Segundo o referido estatuto são consideradas idosas as pessoas
com idade superior ou igual há 60 anos.
Outro fator não menos importante, com a Constituição Federal de 1988, a
Política Nacional do Idoso (Lei 8.080 de 1990), a Lei Orgânica da Assistência Social
nº. 8.742 de 1993, a Constituição Estadual (Lei 13.463 de 1999) e até as Leis
Orgânicas dos municípios estabelecem artigos buscando propiciar uma vida com
dignidade, respeito, e justiça social aos que envelhecem. A Política Nacional do Idoso,
por exemplo, objetiva colocar em prática ações voltadas, não apenas para os que
estão velhos, mas àqueles que vão envelhecer, no sentido de garantir a eles melhor
qualidade de vida. O que se deve esclarecer é que essa ampliação dos direitos das
pessoas velhas surgiu recentemente. Alguns países valorizavam mais os velhos,
pela cultura e pelas normas de trato social.
É visto que o envelhecimento da população se reflete tanto social quanto
econômica e politicamente e, como conseqüência, os idosos tiveram algumas
mudanças essenciais. Na questão da saúde, a principal mudança foi relacionada aos
planos de saúde, que não podem fazer reajuste por idade para clientes com mais de
60 anos. Também se garante a distribuição gratuita de medicamentos para os idosos
tanto em prefeituras como em postos de saúde
10
.
10
Com o Estatuto do Idoso, o Brasil avançou, mas insistimos que esse avanço ainda não é o
suficiente para a questão da cidadania e para um país que é inexoravelmente um país de
cabelos brancos como disse Raimundo Veras. O Estatuto do idoso, garante em lei, certos
direitos que muitas vezes não são encontrados em nenhum país. Embora leituras realizadas
tenha ficado sete anos tramitando na câmara, vem para a consolidação de direitos adquiridos
pelos velhos. O velho conta também com o Conselho Municipal do Idoso (CMI), que há 10 anos
trabalha com os direitos dos idosos e com a participação destes na sociedade; como o
Conselho Nacional do Idoso (CNDI), e com alguns outros órgãos para esclarecimentos
(Consultar: http://oglobo.globo.com/pais/mat/2007/12/21/327716442.asp).
Muitas dessas mudanças ainda se encontram somente no papel, pois a
população ainda está carente de informações e devido à ausência de um maior
esclarecimento muitos ainda não gozam dos benefícios que lhes são assegurados.
Mas de que forma podemos atingir esta população, esclarecendo, informando,
politizando-os dos seus direitos, da sua autonomia, deste caráter emancipatório que
diz respeito a ser sujeito social?
De acordo com Oliveira (1999, p. 17), a política da terceira idade no Brasil
focaliza o contexto geral no aspecto político em que a velhice, como etapa da vida
humana, durante muitos anos, foi reduzida à mera citação em discursos políticos com
pouca prática efetiva e até mesmo respaldo legal, inexistindo uma política específica
para ela.
Percebe-se que falta uma política que possa ser realmente eficiente em todas
essas mudanças e também na conscientização da população, pois embora a nossa
legislação sobre os idosos seja farta e detalhada, não tem sido aplicada de maneira
eficiente: contradições nos dispositivos legais, desconhecimento do seu conteúdo,
podemos tomar como exemplo, os velhos ainda continuam nas filas (Saúde,
Educação, Transporte, Rede Bancária e outros), esperando assim, para ser atendidos.
Neste final de século é importante mostrar que o velho faz um redesenho de
sua velhice com planos, projetos, uma nova forma de demonstrar a sua identidade
com enfoque maior da existência e que terão tempo para desenvolver de maneira
individual ou, se preferir, em grupo. Esta nova velhice também passa por decisões que
os mais velhos deverão ajudar a tomar com relação ao dia-a-dia da comunidade em
que vivem e interagem, deixando de lado aquela posição tão característica de
assujeitados ou de mutismo e passar a ser o guardião da identidade e da memória. De
certa forma, os velhos para solucionar ou se posicionarem frente a sua identidade,
através de sua memória buscarão formas de manter continuamente o sentimento de
continuidade e de individualidade na qual é de fundamental importância a questão de
sua auto-imagem e de sua auto-estima frente a tantas diversidades em suas formas
de autonomia e de emancipação.
1.4 A identidade na contemporaneidade: é possível delimitar a identidade do
velho?
Vários autores vêm analisando as identidades como sendo as nacionais, as de
gênero, as sexuais, as raciais, as étnicas, as etárias, as geracionais e outras.
Podemos também perguntar: O que é e o que não é identidade? Como
podemos fixar a identidade se percebemos que as discussões mostram que a
identidade é móvel? Como viver a identidade etária no mundo contemporâneo?
Um dos pontos centrais de dificuldade que encontramos reside no fato de os
indivíduos serem, ao mesmo tempo, semelhantes e diferentes. De acordo com Debert
(1999) a velhice é uma identidade permanente e constante. Da mesma forma
expressa Barros (1988) e Debert (C.f. 1999, 2004a, 2004b) que alguns bons estudos
realizados no Brasil evidenciaram que uma especificidade de gênero na situação
da velhice. Os dois sexos podem ter experiências que sejam, ou aparentam ser,
comuns, mas a condição geracional enseja também relações e representações
distintas (C.f. Barros, 1998).
Segundo Chauí (2008)
11
, ao homenagear Ecléa Bosi, em suas contribuições
aos estudos da Psicologia Social, ao debruçar-se sobre a experiência e o testemunho
destes dois grupos de pessoas, Ecléa sinalizou e marcou para sempre o campo da
Psicologia Social Brasileira, dando-nos a ouvir vozes e fisionomias que a sociedade de
classes e a cultura de massa forçam ao silêncio e à obscuridade. O sinete de Ecléa
não se restringe, porém, a dar visibilidade ao invisível e voz ao silêncio, mas
prossegue como uma ação transformadora. Da pesquisa sobre a leitura das operárias
paulistanas nasce uma política cultural de leitura com a formação das comunidades de
leitores e da reinvenção do espaço público das bibliotecas, trabalho de que teve a
honra de participar quando Ecléa propôs a realização deste projeto no período em
que, na Secretaria Municipal de São Paulo, pode contribuir para concretizá-lo. Da
pesquisa sobre a memória dos idosos nasce a Universidade Aberta à Terceira Idade,
cujo objetivo é possibilitar ao idoso aprofundar conhecimentos em alguma área de seu
interesse e, simultaneamente, trocar informações e experiências com os jovens,
reatando o fio do tempo para refazer o tecido que entrelaça passado e presente. Na
visão de Chauí, exatamente como Espinosa pensa a virtude, segundo a autora: “esta
não muda o mundo e sim a nossa relação com ele. É o sentido do mundo que se
transforma em nós e para nós; e essa mudança poderá, quem sabe, mudar alguma
coisa no mundo?”
Se as discussões em torno da definição do que seja o fenômeno da velhice
estivessem resolvidas, os problemas de sua nomeação estariam encaminhados ou,
11
CHAUÍ, MARILENA (2006) Palestra realizada durante a I Jornada de Psicologia Social.
Protagonistas da Psicologia Social: Percursos e Contribuições,realizada em 22 de
novembro de 2006, no Instituto de Psicologia da USP.
até mesmo, solucionados. Percebe-se que são questões de ordem teóricas -
metodológica que implicam uma controvérsia muito grande, mas também não param
por aí. A questão mais abrangente de como abordá-las parece-nos mais crucial.
Enfim, seria a questão do velho passível de análise dentro de uma perspectiva
geracional, do trabalho ou da ausência dele (aposentadoria), da sociabilidade, de
novos papéis ou da ausência deles e assim por diante.
Em outros termos, mas com a mesma carência de bases mais sólidas, situam-
se o estudo e reflexões que inserem a velhice na modernidade. De um lado, sublinham
as transformações positivas que levam ao crescimento demográfico de pessoas com
mais idade e, por conseguinte, do aparecimento dos velhos menos como ator coletivo
e mais como clientela da ação de organizações não governamentais e da ação
pública; de outro, os aspectos negativos que surgem com a modernidade,
notadamente os valores individualistas e aqueles relacionados com a mudança na
estrutura familiar. Esta produção tende ora para a homogeneização, ora para vê-los
como um segmento heterogêneo dado pelas diferenças étnicas, de poder aquisitivo,
de gênero, de escolaridade e de formas de inserção na vida social mais ampla. Além,
é claro, das diferenças que fazem com que as pessoas cheguem à idade avançada
mais ou menos ativas, com mais ou menos com saúde, dependendo da condição de
cada um.
Portanto, para Melucci (2004, p. 50), a identidade, em sua concretude
cotidiana, é dada pela capacidade de manter a união entre este conjunto de relações e
a forma como nos reconhecemos e afirmamos nossa diversidade, como interiorizamos
o reconhecimento por parte dos outros e a definição que eles formulam sobre a nossa
diferença.
O envelhecimento populacional brasileiro é um fato demográfico recente
na história, apesar de a velhice estar presente desde os primórdios da
humanidade. O avanço tecnológico possibilitou o “envelhecimento
artificial da população, produzido por técnicas dicas e não pelo
investimento de políticas públicas”.
(AGUSTINI, 2003, p. 139)
Estudos também sugerem que a manutenção da identidade para a pessoa é
básica em todas as etapas da vida, por permitir certa continuidade no modo de agir,
propiciando o alcance de determinadas metas. A percepção de que o velho é uma
pessoa modificada, devido à idade, reflete o preconceito quanto ao envelhecimento
humano, porém as mudanças que ocorrem são no sentido de uma adaptação ao
mundo que tende a excluí-lo.
Também nesse enfrentamento do mundo moderno e no que concerne aos
estudiosos discutir tal qual o tema da identidade, enfatiza-se que diferentes áreas do
conhecimento estão empossadas nestas discussões tais como: cultura, movimentos
sociais, classes sociais, grupos, nacionalidade, religião, profissionais da saúde e
outros.
Há, contudo, um elemento promissor nessas discussões, que passam pela
necessidade de revisão da categoria velhice, que não deveriam levar,
necessariamente, ao seu abandono, por expressarem mais um estado “natural”,
incorporando as novas vivências que o segmento velho experimenta face às
contingências da vida em sociedade. Sabemos que uma das posições ocupadas pelos
velhos em nossa sociedade atual é ser ator de várias mudanças ocorridas a partir do
estatuto do idoso e das políticas públicas. Percebe-se que até pouco tempo atrás, o
velho, era visto socialmente como um ser carente e marginalizado, seja pela sua
modificação física (apontada por toda a sociedade como degeneração e, portanto,
negativa) como pela ausência de trabalho e papel produtivo (o que é viável à
sociedade capitalista, pois a pessoa “vale enquanto trabalha, enquanto produz”.
Enquanto às pessoas mais jovens discriminam a pessoa velha através de diferentes
atitudes, como, por exemplo, não querer confrontar opiniões com as do velho,
negando-se a oportunidade de desenvolvimento (BOSI, 2003).
Sabe-se que o número crescente de pessoas velhas resultou em problemas de
ordem social, econômica e de saúde, os quais exigiram determinações legais e
políticas públicas capazes de oferecer suporte ao processo de envelhecimento no
Brasil, buscando atender às necessidades desse estrato populacional.
É, no entanto, surpreendente, como aqui quanto alhures, as ações públicas e
de instituições especializadas vislumbrem a reinserção das pessoas idosas apenas
por via das atividades de lazer ou do trabalho manual, cujo significado pode não
ultrapassar àquele dado em situações domésticas tradicionais, ou seja, uma
atividade para preencher o tempo e não como expressão de produtividade, expressão
de vitalidade criativa.
De acordo com Jacques (2007, p. 160) os estudos sobre identidade no âmbito
psicológico passam pela Psicologia Analítica do Eu e pela Psicologia Cognitiva.
Porém, alguns autores caracterizam o desenvolvimento por estágios crescentes de
autonomia e consideram a identidade como gerada pela socialização e garantida pela
individualização. Para tanto, isto sugere que os processos de socialização que
orientam modos de inserção social, e o processo de formação de identidade
psicológica, que solicita a constituição de valores e princípios norteadores na
construção da diferença entre um indivíduo e outro, de certo modo se completariam ou
se complementariam.
Para autor citado acima (p. 164) o termo identidade evoca tanto a qualidade do
que é idêntico, igual, como a noção de um conjunto de caracteres que fazem
reconhecer um indivíduo como diferente dos demais. Afirma ainda que a identidade
psicológica, decorrente muitas vezes do processo de socialização do indivíduo
refletido pela sociedade, pode advir de crises no embate entre forças psicológicas e
sociais no desenvolvimento da individualidade, que é o componente psicológico de
todo sujeito. Na contemporaneidade, este embate é muito intenso, por conta da
diversidade, da impermanência, do pluralismo que hoje vivemos.
O que percebemos é que o velho, na sua interação com o mundo, vem
construindo sempre sua identidade intersubjetivamente, isto é, se antes ele estava
mais sob a tutela da família ou das instituições e era pautado exclusivamente por
estas instituições, num processo de aculturação o que lhe era passado como
dependência, como sentido de mundo, agora ele está mais exposto ao mundo e tem
interagido de uma forma diferente com essas instituições, buscando uma maior
autonomia, um sentido diferente e um maior reconhecimento em sua identidade etária.
Para Habermas (1987a, 1987b), a "intersubjetividade não é mais produzida por
perspectivas de mundo da vida reciprocamente interligadas e virtualmente
permutáveis, mas é dada com as regras gramaticais de interações simbolicamente
reguladas. As regras transcendentais de acordo com as quais os mundos da vida são
estruturados tornam-se agora compreensíveis através de análises lingüísticas nas
regras de processos de comunicação", em termos do agir comunicativo, isto pode
aparecer no contexto da construção da identidade do velho na busca da sua
aposentadoria, dos seus direitos, na previdência social, nas políticas públicas e outros.
Com isso, vislumbramos uma busca maior de racionalidade e de entendimento mútuo,
pois assim, o velho se apresentaria com mais racionalidade em relação ao seu modo
“vivendis”, aos seus bens financeiros e culturais, a sua saúde, a sua vida afetiva
buscando o agir comunicativo e não o instrumental. Ainda supomos que os efeitos das
mudanças em curso se expandem para diferentes âmbitos da sociedade e se impõem
para a sobrevivência e inserção de grupos sociais emergentes na vida econômica,
cada vez mais integrada.
Portanto, as ações sociais podem agora ser analisadas do mesmo modo que
as relações internas entre os velhos, tornando-as acessíveis a análises empíricas na
medida em que são passíveis de descrição, apesar de serem constituídas num nível
de proposições acerca de fatos e não dos próprios fatos, como a comunicação pela
linguagem ordinária que nos revela regras através das quais formas de vida são
constituídas.
Neste sentido, o velho buscaria recompor a ordem saturada, elaborando outra
composição, outro conjunto de ações e relações sociais. Ele estaria procurando de
alguma maneira encontrar espaços e comunidades, onde as necessidades humanas
não satisfeitas pela razão pudessem ser supridas dentro de um grupo específico,
acolhedor, unificador e sustentador de identidades. Atualmente podemos perceber que
o velho é fruto da sociedade e faz da mesma uma sociedade em transformação.
Em um artigo, Laurenti e Barros (2000) discutem que, o termo identidade
sempre desperta o interesse, tanto das pessoas comuns, representantes do universo
consensual, quanto de cientistas sociais.
Contextualizando sob o ponto de vista da Psicologia Social, como uma questão
teórica, Ciampa (2005) têm como ponto de partida que a Identidade representa e
engendram sentimento que o indivíduo desenvolve a respeito de si e que é construída
socialmente, a partir de seus dados pessoais, sua história de vida e seus atributos por
si mesmo e pelos outros.
Ciampa (2005, p. 138), também engendra que a identidade é a articulação
tanto entre diferença e igualdade (ou semelhança), como entre objetividade e
subjetividade, continuando, assim para Ciampa (2005, p. 145): “sem essa unidade, a
subjetividade é desejo que não se concretiza, e a objetividade é finalidade sem
realização”.
Da mesma forma é impossível falar de identidade sem falar em metamorfose,
como um processo que se desde o nascimento do indivíduo até sua morte,
podendo ultrapassar esses limites biológicos, buscando a superação do individualismo
nos moldes da sociedade de massa, que pode ser obtida pela criação ou
transgressão, essa última como uma possibilidade humana nem sempre tão negativa
como se apresenta. Podemos entender a metamorfose como mudança.
Para Woodward (2000, p. 39) as identidades também são fabricadas por meio
da marcação da diferença. Essa marcação da diferença ocorre tanto por meio de
sistemas simbólicos de representação, no caso aqui podemos citar o velho como
produtor de sentidos; quanto por meio de formas de exclusão social, tendo como
exemplo na maioria das vezes os velhos asilados.
Sabe-se que a identidade pode ser expressa empiricamente através de
personagens, e a articulação dessas personagens é que vai compor a identidade do
indivíduo. Estes personagens podem ser homens, mulheres, velhos, adolescentes,
brasileiros e outros (C.f. CIAMPA, 2005).
Contextualizando com Ciampa (IBID), pretende-se discutir a identidade
enquanto processualidade histórica e vinculada ao conjunto de relações que permeiam
a vida cotidiana, em seu caráter dinâmico, mas também é necessário configurar a
identidade com reflexões advindas de outros teóricos, pois pertencendo a uma
pluralidade de grupos gerados pela multiplicação dos papéis sociais e pelas imagens
construídas ao longo do tempo, faz-se necessário adaptarmos a essas migrações.
Segundo Laurenti e Barros (2000), inúmeras questões estão associadas à
identidade. Historicamente, para designar o que hoje se entende por identidade, foi
usado o termo personalidade, privilegiando não a perspectiva individualista, mas
também uma visão em que os princípios da ciência médica sustentavam toda proposta
de compreensão.
Também de acordo com Hall, Lindzey e Campbell (2000, p. 103), nos últimos
anos, uma verdadeira explosão discursiva em torno do conceito de “identidade”, o
qual tem sido submetido, ao mesmo tempo, a uma severa crítica. Antes, os debates
versavam sobre o “normal” e o “patológico”, o “natural” e o “inerente”, havia uma
priorização do ser biológico e individual sustentado por uma estrutura psíquica
invariavelmente enquanto processo normativo, que instituía uma dicotomia entre o
indivíduo e o grupo, entre homem e sociedade.
No entanto, Hall, Lindzey e Campbell (IBID) indica ainda que um paradoxal
fenômeno seja mostrado. Onde nos situamos relativamente ao conceito de
“identidade”? Por que falar de identidade num mundo impermanente, num mundo de
mudanças, no quadro social, no modo de pensar e viver deste velho na
contemporaneidade?
Woodward (2000, p. 22) diz que uma dispersão das pessoas ao redor do
globo, onde as identidades que se produzem hoje são moldadas e localizadas em
diferentes lugares e por diferentes lugares. Haja vista que hoje se discute o
multiculturalismo, movimentos religiosos em crise, conflitos de fronteiras e outros.
Está-se efetuando uma completa desconstrução de perspectivas identitárias
em uma variedade de áreas disciplinares, todas as quais, de uma forma ou de outra,
criticam a idéia de uma identidade integral, originária e unificada. Segundo o autor, na
Filosofia tem-se feito, por exemplo, a crítica do sujeito auto-sustentável que está no
centro da metafísica ocidental pós-cartesiana. Na Psicanálise têm-se destacado os
processos inconscientes de formação da subjetividade, colocando-se em questão,
assim, as concepções racionalistas de sujeito. E, assim, seguem-se diversas
discussões a respeito da noção de identidade.
1.5 Identidade, modernidade, mundo sistêmico
A manutenção da identidade para a pessoa é básica em todas as etapas da
vida, por permitir certa continuidade no modo de agir, propiciando o alcance de
determinadas metas. Atualmente percebe-se que o velho é uma pessoa modificada,
devido à idade, devido a sua longevidade, com isso, reflete-se o preconceito quanto ao
envelhecimento humano, porém as mudanças que ocorrem são no sentido de uma
adaptação ao mundo que tende a excluí-lo.
Ao mesmo tempo, a nova imagem do velho não oferece instrumentos capazes
de enfrentar a decadência de habilidades cognitivas e controles físicos e emocionais
que são fundamentais, na nossa sociedade, para que um indivíduo seja reconhecido
como um ser autônomo, capaz de um exercício pleno dos direitos de cidadania. Até
muito recentemente, tratar do ser velho ou da velhice nas Sociedades industrializadas
era traçar um quadro dramático da perda do status social dos indivíduos, a
industrialização teria destruído a segurança econômica e as relações estreitas que
vigoravam nas sociedades tradicionais entre as gerações na família, mecanismos
de controle pela ordem sistêmica através do mundo da vida.
Debert (2004b) aponta que a aposentadoria deixa de ser um marco a indicar a
passagem para a velhice ou uma forma de garantir a subsistência. As idades não são
mais marcadores pertinentes de comportamentos e estilos de vida, surge uma
parafernália de receitas, de técnicas de manutenção corporal, de medicamentos e de
novas formas de lazer. Quebra-se então a imagem tradicional associada a homens e
mulheres mais velhos que passam a fazer parte da meia-idade, da terceira idade, da
aposentadoria ativa, do velho-jovem, do velho-velho e de vários termos do léxico da
velhice correspondendo à invenção social de etapas intermediárias e de novas
identidades que aqui pressupomos.
Ao discutirmos temas como modernidade e identidade, escolhemos como via
principal nos basearmos nos caminhos de Ciampa (C.f. 1977, 1984, 1997, 2002,
2005).
Para aprofundarmos a noção de identidade com base em Ciampa (2005) e
tomando como apoio outros autores, e para continuarmos no sentido de mostrar como
a questão da identidade dos velhos no mundo contemporâneo tem sofrido
modificações, ao longo desta tese tentaremos analisar a questão do permanente
movimento que caracteriza o processo de desenvolvimento tanto da identidade como
da expressão mundo sistêmico, mundo da vida, visto por diversos autores, relações de
subjetividade e de objetividade, normatividade e intersubjetividade, pressupostos estes
que tem a ver com a identidade. Como também tentaremos buscar caminhos para
caracterizar agudamente a ampla questão da identidade do velho no mundo
contemporâneo e suas metamorfoses.
Trazer uma discussão de Habermas (C.f. obras), mesmo que preliminar, nos
parece ser algo indispensável. É com esse teórico que a racionalidade moderna ganha
uma nova dimensão. Ele trava um debate acirrado e ousado com teóricos modernos e
pós-modernos. É com Habermas, também, que a compreensão das sociedades
capitalistas avançadas, tendo a ciência e a técnica transformadas em principais forças
capitalistas, adquire uma interpretação cuja maior patologia detectada é a colonização
do mundo vivido (regras, sistemas, normas, linguagem). Habermas não nega as crises
do capitalismo, mas sim as entende como crises de racionalidade, de legitimidade e de
motivação.
A expressão “mundo sistêmico” tem aqui a inferência que lhe Habermas e
refere-se à ação estratégica/instrumental visando à reprodução material da sociedade.
Neste caso, o foco é o “mundo da vida(um mundo em transformação de normas,
regras, papéis sociais, culturais, outros.) visando à reprodução simbólica da
sociedade. Podemos expor que a crítica que Habermas (IBID) faz em relação ao
capitalismo avançado, é a da supremacia da ação instrumental sobre a ação
comunicativa, ou seja, o predomínio do sistema sobre o mundo da vida. Para ele a
sociedade deveria ser vista em interação dialética entre a ação instrumental
(meios/fins) e a ação comunicativa (as relações sociais), sob pena de submissão
alienante dos seres humanos ao processo produtivo. Habermas (1990), de certa forma
aponta esse tipo de racionalidade que domina de modo instrumental e estratégico
todas as ações sociais, culturais e políticas dos indivíduos no mundo, desde a
Modernidade. Ele desenvolve uma proposta de racionalidade voltada à comunicação
que pode possibilitar uma vida melhor aos indivíduos, que, por serem capazes de
chegar a um consenso argumentativo, poderão promover a própria emancipação e das
suas coletividades. Esse tipo de racionalidade Habermas (1987a, p. 124) denomina
racionalidade comunicativa, e “se refere à interação de pelo menos dois sujeitos
capazes de linguagem e de ação que [...] estabeleçam uma relação interpessoal”.
Para Habermas a ação comunicativa é orientada, entre outras coisas, por
normas intersubjetivamente válidas e garantidas em situações consensuais, uma vez
que elas estruturam os processos de interação mediante práticas de linguagem que
almejam atos de entendimento voltados para a compreensão do mundo objetivo (fatos
e acontecimentos), do mundo social (normas legitimamente reguladas) e do mundo
subjetivo (os outros e nós mesmos). Assim, Habermas (1987c, p. 68) pressupõe que o
entendimento é compreendido como “um processo de aquisição de acordos entre
sujeitos lingüística e interativamente competentes [que] têm como meta um acordo
que satisfaça as condições de um consentimento racionalmente motivado, ao
conteúdo de um enunciado’. Contudo, as práticas de linguagem são orientadas ao
êxito e ao entendimento, o que pressupõe Habermas (1990, p. 126), que a linguagem
como um meio de interação social requer não só “um saber tecnicamente valorizável e
que possa orientar as regras do agir instrumental e estratégico, mas também um saber
de tipo prático-moral que possibilite uma ampliação da autonomia social em face de
nossa própria natureza interna”. Ou seja, a linguagem como um meio de comunicação
que pode levar os indivíduos ao entendimento deve orientar a ação comunicativa, e
não a ação que se concentra nas alternativas e nos fins a alcançar, e que, ao fornecer
os instrumentos de objetivação e de controle, caracteriza o mundo dos sistemas com
sua lógica que visa o êxito da própria ação e acaba colonizando o mundo da vida.
Nesse contexto, Silva (2001) diz que o logos da ação social é fundamentado
pelo seu aspecto racional. O utilitarismo instrumental racional perpassa de forma
objetiva a constituição da esfera pública (o Estado) em seus aspectos racionais,
burocráticos e administrativos, e a esfera do mundo privado, ambientes mediados pelo
conhecimento técnico e racional orientador das condutas e ações dos indivíduos. Esse
aspecto de racionalidade que se desenvolve na sociedade ocidental contextualiza a
relação entre “indivíduo” e “estrutura” dentro da chamada “jaula de ferro” da razão.
Aspecto esse que o próprio Weber enxerga de forma pessimista no que diz respeito ao
desenvolvimento dos processos sociais no futuro.
Pensar sobre o velho no mundo sistêmico é procurar fazer a indagação sobre a
questão da identidade, pela demanda diferenciada que faz o espaço de produção
sobre as condutas humanas, ou a igualdade e a diferença entre indivíduos e grupos?
Para Habermas (1983), a identidade não é uma questão meramente técnica e objetiva
que se possa controlar através de ações estratégico/instrumentais que buscam fins,
mas um processo de construção simbólica, portanto, do mundo da vida, onde a
socialização é elemento chave baseado na solidariedade. Neste pertencimento do
mundo da vida, os velhos, ou também para os atores, como nos diz Ciampa (1987),
são necessárias não ações comunicativas para a resolução da problemática
cotidiana, mas ações que objetivam o entendimento tais como podemos pensar às
normas, às regras, o poder, o dinheiro, as formas de comunicação.
Para Almeida (2006), a noção de identidade tem se mostrado fecunda para o
conhecimento de processos que explicam como os indivíduos se situam no mundo e
em suas relações a partir de redefinições pessoais e da adoção ou da manutenção de
modos autônomos de gerir a vida.
Como também podemos pensar que a socialização é um processo de
aprendizagem que capacita o indivíduo a “interpretar papéis sociais.” Assim, para
Berger e Luckmann (1985, p. 111): O papel social forma e constrói tanto a ação
quanto o ator (...) todo papel na sociedade acarreta certa identidade”.
Assim, para Berger e Luckamann (1985, p. 111): O papel social forma e
constrói tanto a ação quanto o ator (...) todo papel na sociedade acarreta certa
identidade”.
Com referência a Berger e Luckamann (1995), relembramos que este afirma
que os atores sociais não necessitam ficar enclausurados no “mundo aprovado” da
sociedade como o único existente, mas podem viver a experiência do “entendimento”,
isto é, a passagem para novas possibilidades de existência social, novas experiências
identitárias transformadoras do Eu do sujeito, identidades metamorfose, conforme
expressão de Ciampa (2005), potencialmente emancipadoras.
Podemos pensar que um indivíduo com uma identidade livre, membro de uma
coletividade e com capacidade de questionar a realidade e de refletir sobre ela,
justificaria uma maior chance de promover o entendimento entre os indivíduos, de
modo a possibilitar sua intervenção no mundo contemporâneo, à medida que buscam
solução para os problemas que os afetam ou simplesmente buscam solução para
resolver as dificuldades concretas do seu cotidiano e coordenar as situações
problemáticas no mundo da vida. Assim, para Ciampa (2005): “o desafio, face à
crescente ameaça de colonização do mundo da vida, é criar condições para que a
metamorfose, por mais contraditória e complexa que seja não perca seu sentido
emancipatório”.
Para Woodward (2006, p. 27-29), ao afirmar uma determinada identidade,
podemos buscar legitimá-la por referência a um suposto e autêntico passado
possivelmente um passado glorioso, mas, de qualquer forma, um passado que parece
“real” que poderia validar a identidade que reivindicamos, argumentando que isso
tem implicações positivas para a identidade.
Para Habermas (1983), uma maneira estratégica do conceito de mundo da
vida, é aproximar-se de formas de vida social que traduzam a normatividade do agir
comunicativo no espaço público onde se reconhece a operacionalidade institucional de
seguir regras, o mundo pode ser representado intersubjetivamente desde que seja
apresentado na forma de significações histórica e socialmente constituídas,
transpostas e apropriadas através de tradições culturais, étnicas, etárias, sociais,
políticas, religiosas.
Entendemos, então, que a razão comunicativa ao ser orientada para um
interesse emancipatório, poderá, mesmo diante de contextos histórico-sociais e
político-institucionais desfavoráveis, criarem condições para o desenvolvimento de um
mundo que mereça ser vivido: uma sociedade emancipada, na qual todos os membros
possam ter acesso aos bens produzidos e constituir modos de ser que se caracterizam
pela liberdade, pela autonomia e pela criticidade.
Mas, como bem lembra Ciampa (2005), “numa sociedade de massa, o
indivíduo livre, autônomo, emancipado torna-se freqüentemente uma ilusão”.
Contudo, Ciampa (2005), diz:
se reconhecermos a base intersubjetiva da vida psíquica individual não
poderemos ignorar que é neste mundo caracterizado pelo pluralismo
moderno e pela crise de sentido que hoje está se dando a formação e
transformação da identidade pessoal.
Assim, continuando Ciampa (2005), também aponta: “uma utopia
emancipatória ainda hoje não é possível, mas necessária, pois significa continuar a
busca pela concretização da identidade humana”.
Nessa trajetória, a razão comunicativa tem papel primordial, pois cria um
espaço intersubjetivo, no qual o velho tem mais chances de buscar a sua
emancipação, mesmo que o mundo sistêmico tenha colonizado o mundo da vida.
1.6 A identidade do eu e o mundo pós-moderno
Segundo Habermas (1983, p. 70), o terceiro e mais sofisticado nível de
desenvolvimento da identidade é o momento em que emerge “a pessoa”, capaz de
distinguir “normas” de “princípios”. O primeiro nível, o da identidade natural, ele explica
que é o nível em que a criança identifica os limites entre seu corpo e o ambiente,
porém, sem separar os objetos físicos dos sociais. No segundo nível, o da identidade
de papel, ele afirma que a criança incorpora universalidades simbólicas e normas de
ação grupal. A identidade do Eu, que é sob o ângulo cognoscitivo, é, para Habermas,
“a capacidade que tem o adulto de construir, em situações conflitivas, novas
identidades, harmonizando-as com as identidades anteriores agora superadas, com a
finalidade de organizar numa biografia peculiar a si mesmo e as próprias
interações, sob a direção de princípios e modos de procedimentos universais”. Dados
nos mostram que a inserção dos velhos no mundo sistêmico tem sido crescente.
Atualmente, a população mundial é composta por 28% de crianças (menores de 15
anos), 18% de jovens (de 15 a 24 anos) e 44% de população economicamente ativa
(de 25 a 59 anos). Além disso, os idosos (acima dos 60 anos) representam apenas
10% da população mundial. No entanto, se prevê que o número de idosos de 60 anos
irá triplicar, dos 705 milhões atuais para quase dois bilhões em 2050. "Isto quer dizer
que pela primeira vez na história, o número de pessoas idosas superará o de crianças
em 2050", declarou Chatterji
12
A Europa é a região onde a população é mais velha, que as pessoas idosas
representam 21% do total, enquanto as crianças são 15%. "Em 35 anos, a Itália será o
segundo país onde haverá a maior população idosa, atrás apenas da Espanha", previu
Chatterji. As expectativas na Europa são que os idosos constituam 35% do total da
população em 2050 e que a América do Norte - que atualmente é a segunda região
mais velha do planeta, com 17% de idosos - alcance 27% em 2050. Em contraste, a
África conta atualmente com a população mais jovem, que os idosos constituem
apenas 5% da população, enquanto as crianças são 15%.
As previsões da ONU indicam que a África terá em 2050 uma cota de
distribuição da população jovem e anciã parecida com aquela que a América Latina e
Caribe têm atualmente. As regiões latino-americanas e caribenhas contam neste
momento com 10% da população com mais de 60 anos, e existe a expectativa de que
a porcentagem aumente para 24% em 2050.
“Os países em desenvolvimento envelhecerão antes de se tornarem
ricos”, declarou Chatterji, que afirmou que isto terá repercussões no
plano social e econômico, o que tornará necessária uma maior
assistência ao financiamento de serviços de saúde”
Por outro lado, espera-se que a população infantil diminua um terço e caia para
19% em 2050 nos países em desenvolvimento, enquanto nas nações industrializadas
a percentagem permanecerá constante e continuarão 16% atuais. Deste modo, a
proporção de pessoas idosas com relação à população economicamente ativa
aumentará tanto nos países ricos como pobres.
Nas nações desenvolvidas, a proporção aumentará entre 32% e 62% o número
de idosos para cada 100 pessoas em idade economicamente ativa em 2050, enquanto
no mundo em desenvolvimento passará de 13% para 34% no mesmo espaço de
tempo.
Portanto, ao descrever todos estes processos, Hall (2004) expõe que se instala
uma crise de identidade uma vez que antes o sujeito estava centrado e estável, agora
não está mais portanto, gera-se, com a falta de informação e de formação, um
sujeito fragmentado, que hoje é visto como o sujeito pós moderno, isto é, que não
possui uma identidade mutável ou permanente. Nesta modernidade tardia (a segunda
metade do século XX) a qual nos referimos nada é duradouro ou permanente, nem
12
Consultar: http://noticias.uol.com.br/ultnot/efe/2007/04/11/ult1766u21157.jhtm
mesmo as relações interpessoais que a cada dia se fragmentam, devido ao desejo dos
sujeitos por suprir suas perspectivas e ambigüidades que, em muitos casos, se
apresentam contraditórias e mais exigentes.
Mas Hall, Lindzey e Campbell (2000, p. 108) argumenta também que as
identidades não são mais unificadas; que elas são nas modernidades tardias, cada
vez mais fragmentadas e fraturadas; que elas não são, nunca, singulares, mas
multiplamente construídas ao longo de discursos, de práticas e de posições que
podem cruzar ou ser antagônicos. As identidades estão sujeitas a uma historicização
radical, havendo constantemente um processo de mudança e transformação no
mundo contemporâneo.
1.7 Políticas de identidade e identidades políticas
O número crescente de pessoas idosas resultou em problemas de ordem
social, econômica e de saúde, os quais exigiram determinações legais e políticas
públicas capazes de oferecer suporte ao processo de envelhecimento no Brasil,
buscando atender às necessidades desse estrato populacional.
Ao refletirmos sobre as políticas de identidade e as identidades políticas e
associar ao velho e ao seu processo de envelhecimento, percebemos uma certa
limitação e redução apenas aos estudos e discussões teóricas. É de fundamental
importância uma prática que alie a vontade e a voz da sociedade como um todo,
aguçando a vontade política e a sociedade em geral para abraçar a causa, não
sendo a causa do velho, do idoso, da terceira idade, mas de todos nós cidadãos,
pertencentes a um grupo em envelhecimento, ao futuro geracional de toda uma
sociedade e uma forma ampla e objetiva de educar-nos frente a isso.
No Brasil, o desafio para o século XXI é oferecer suporte de qualidade de
vida para uma população com mais de 32 milhões de velhos, na sua maioria de nível
socioeconômico e educacional baixo e com alta prevalência de doenças crônicas e
incapacitantes (RAMOS, 2003). Contudo, para atenção adequada ao sujeito velho,
juntamente com a magnitude e a severidade dos seus problemas funcionais, é
imperativo o desenvolvimento de políticas sociais e de saúde factíveis e condizentes
com as reais necessidades das pessoas nessa fase da vida.
Cabe-nos refletir nesse contexto aqui exposto as formas como as sociedades
contemporâneas lidam com as pessoas velhas. Se por um lado os jovens são
controlados nos seus impulsos sejam eles de natureza sexual, social e outros, por
outro, os velhos são incentivados a ter uma vida mais saudável, mais produtiva, mais
ativa e com qualidade. Estes são os discursos que lhe são atribuídos pelo mundo
moderno ou por um mundo em transformação, chamado de “envelhecimento ativo”
ganha um outro recorte na forma de se tratar o envelhecimento.
Ao depararmo-nos com os anúncios da mídia impressa e falada constatamos
um crescente mercado de ofertas para as pessoas que estão posicionadas nesse
“topos”, chamado 3ª. Idade, 4ª. Idade, erigindo a partir daí um padrão a ser seguido.
Há um novo olhar para os sujeitos sociais e para as novas formas de subjetivação que
estão para ser celebradas e questionadas nos seus diferentes aspectos.
Estes anúncios são ofertas de cursos, viagens (excursões e outros), lazer para
grupos (danças, compras, material para práticas de esporte, roupas, acessórios,
maquiagens e outros), direitos (aposentadoria, transporte, cultura e lazer), tantas
coisas que a cada hora aparecem e desaparecem.
Neste sentido são ofertas para o mundo em transformação, acelerado, que vai
constituindo uma nova identidade aos velhos adequados para viverem neste novo
modelo societário. Consumo e prazer, ambigüidades e diferenças vão marcando esse
grupo etário que vai sendo subjetivado por discursos que conclamam aos velhos a
comportarem-se diante de um novo padrão, padrão este relacionado a uma nova
forma de se viver o envelhecimento, a velhice; adquirindo novos comportamentos,
novas formas de pensar e de viver que os inserem na cultura de seu tempo, mas ao
mesmo tempo os velhos ainda são confinados em instituições, abandonados por suas
famílias, segregados em abandono, maus tratos e falta de autonomia.
Segundo Mendonça (2006, p. 181) a Política Nacional do Idoso foi um marco
inicial do desencadeamento de estudos sobre a questão do envelhecimento da
população brasileira. A lei que a instituiu foi sancionada em 1994 e regulamentada em
julho de 1996, e tem por objetivo assegurar os direitos sociais do idoso, promovendo
sua autonomia, integração e participação efetiva na sociedade.
Busca-se compreender que A Política Nacional Idoso (PNI)
13
, a Política
Nacional de Saúde da Pessoa Idosa (PNSI)
14
, e o Estatuto do Idoso
(EI)
15
são
dispositivos legais que norteiam ações, sociais e de saúde, garantem os direitos das
13
Política Nacional do Idoso Declaração Nacional dos Direitos Humanos Programa
Nacional de Direitos Humanos. Imprensa Nacional, 1998.
14
Portaria 2528/GM, de 19 de outubro de 2006. Aprova a Política Nacional de Saúde da
Pessoa Idosa. Brasília: Ministério da Saúde, 2006.
15
- Estatuto do Idoso. Lei n. 10741, de 1 de outubro 2003. 1 ed., reimpr. Brasília: Ministério
da Saúde 2003.
pessoas idosas e obrigam o Estado na proteção dos mesmos. Porém é sabido que a
efetivação de uma política pública requer a atitude consciente, ética e cidadã dos
envolvidos e interessados em viver envelhecendo de modo mais saudável possível.
Estado, profissionais da saúde, idoso e sociedade em geral são todos co-responsáveis
por esse processo.
Apesar da Política Nacional do Idoso (PNI), apesar da criação de ONGs (que
cuidam e divulgam trabalhos para este segmento), Programas, Projetos,
Universidades Públicas e Privadas que discutem e elevam a questão do
envelhecimento e da velhice na sociedade, nos livros, revistas, congressos,
encontramos artigos, periódicos, reportagens, de se compreender que ainda
persistem problemas de saúde, de maus tratos, de aposentadoria, direitos e deveres,
problemas de ordem econômica, social, política, espiritual, cultural, educacional e
tantas outras coisas. Assim, de que forma incluir o velho como sujeito e não como
objeto? Ao observarmos as propostas de mudanças, de inclusão, de prioridades, as
orientações, os dados demográficos, os programas governamentais em relação aos
cuidados com os velhos, podemos ser sincronicamente coerentes com políticas de
identidades advindas em um sentido mais amplo.
Nas discussões relativas sobre A Política Nacional de Saúde da Pessoa Idosa
(PNSPI, 2006)
16
, considerando o Pacto pela Saúde e suas Diretrizes Operacionais
para consolidação do SUS
(Sistema Único de Saúde)
17
e reafirmando a necessidade
de enfrentamento dos desafios impostos por um processo de envelhecimento ora
caracterizado por doenças e/ou condições crônicas não-transmissíveis, porém
passíveis de prevenção e controle, e por incapacidades que podem ser evitadas ou
minimizadas. Dentre tais desafios ressalta-se: a escassez de equipes
multiprofissionais e interdisciplinares com conhecimento em envelhecimento e saúde
da pessoa idosa”.
Sem dúvida, a velhice é uma fase do ciclo vital cuja especificidade demanda
atenção em saúde especializada e requer, portanto, pessoal qualificado para o
cuidado com essas pessoas.
16
Portaria 2528/GM, de 19 de outubro de 2006. Aprova a Política Nacional de Saúde da
Pessoa Idosa. Brasília: Ministério da Saúde; 2006.
17
- Portaria 399/GM, de 22 de fevereiro de 2006. Divulga o Pacto pela Saúde 2006
consolidação do SUS e aprova as Diretrizes Operacionais do Referido Pacto. Brasília:
Ministério da Saúde; 2006.
Nesta perspectiva, questões relativas à educação em saúde, à qualificação e
capacitação dos recursos humanos e ao desenvolvimento de estudos e pesquisas na
área permeiam as diretrizes que norteiam essa Política. Para efetivar tal política, é
necessário definir e/ou readequar planos, programas, projetos e atividades do setor
saúde, que de modo direto ou indireto se relacionam com o seu objeto. É primordial a
articulação entre Ministério da Saúde e as Secretarias Estaduais e Municipais de
Saúde, para sua operacionalização. Enfim, para que o mesmo alcance seus objetivos,
as suas diretrizes essenciais necessitam ser cumpridas. Espera-se que tais diretrizes
estejam articuladas com os vários segmentos já citados.
De acordo com a PNSPI (p. 9):
“A prática de cuidados às pessoas idosas exige abordagem global,
interdisciplinar e multidimensional, que leve em conta a grande interação
entre os fatores físicos, psicológicos e sociais que influenciam a saúde
dos idosos e a importância do ambiente no qual está inserido. A
abordagem também precisa ser flexível e adaptável às necessidades de
uma clientela específica. A identificação e o reconhecimento da rede de
suporte social e de suas necessidades também fazem parte da
avaliação sistemática, objetivando prevenir e detectar precocemente o
cansaço das pessoas que cuidam. As intervenções devem ser feitas e
orientadas com vistas à promoção da autonomia e independência da
pessoa idosa, estimulando-a para o autocuidado. Grupos de auto-ajuda
entre as pessoas que cuidam devem ser estimulados.
Para Renato Veras (1994), a velhice precisa receber um olhar e um início de
reconhecimento social que não existe na memória social da modernidade; iniciando
pela efetivação de uma política eficaz para este segmento do sujeito velho.
No entanto, como já citado anteriormente e nossa insistência necessita ser
constante, é que na prática verifica-se a escassez de recursos humanos
especializados para cumprir as diretrizes essenciais, quais seja a promoção de um
envelhecimento saudável e da manutenção de sua capacidade funcional. Assim,
ainda encontramos as pessoas velhas em longas filas de espera para agendamento
de consulta médica especializada, bem como para exames e internação hospitalar e
vários outros problemas de natureza biopsicossocial.
A realidade do envelhecimento populacional, da velhice demonstra que não
outro caminho, senão o investimento articulado em programas de atenção, de saúde e
de educação aos idosos. Para que estes velhos possam ser guardiões de sua
identidade, de sua memória e de seus direitos e deveres, a recomendação dessa
conquista, é que se mantenham mobilizados na luta em prol das políticas de
identidade e de identidades políticas.
Pois Segundo Chauí (2008): “é preciso conhecer o problema de perto, tocar nos
fatos. Mas isto não basta para que se fale em nome de alguém: devemos também
enxergar de sua perspectiva a realidade”.
Concordando com Hall (2004), nos cenários pós-modernos, as identidades não
são unas e homogêneas; elas são fragmentadas, múltiplas, plurifacetadas e
descentradas, inteiramente produzidas nas arenas culturais onde têm lugar as lutas
pelo significado. É o significado que dá sentido às experiências e àquilo que as
pessoas ou grupos são e para Woodward (2006), todas as práticas que produzem
significados envolvem relações de poder, inclusive o poder para definir quem é
incluído e quem é excluído.
Todavia, Ciampa também (2002, p. 141) mostra que o estudo das políticas de
identidade auxilia na discussão das questões envolvidas na luta pela emancipação dos
mais variados grupos sociais, “que em sua ação coletiva revelam novas ou velhas
opressões...”
Também é preciso dizer que devemos nos orientar no sentido de que os
grupos sociais estão sempre pressupostos por normas ou por generalizações. Ciampa
(2005) distingue o papel de personagem no estudo da identidade. Assim, a identidade
coletiva impõe papéis cuja realização se como nascimento dos personagens ou
encarnação dos mesmos, mais ou menos idiossincráticos, conforme se tenha uma
maior ou menor liberdade para a criatividade individual.
Daí o dinamismo que perpassa a identidade. Pode-se pensar que a partir
destas reflexões é possível para o velho exercer suas ações dentro dos papéis sociais
aos quais é submetido e de que forma ele deseja buscar a re-posição destes em seu
projeto de vida?
Portanto, urge-nos posicionar na emergência de novas posições e de novas
identidades a serem produzidas neste mundo cambiante, como diz Woodward, pois
senão os velhos viverão numa eterna crise de suas identidades, levando-os sempre às
dúvidas e às incertezas.
1.8 A identidade pessoal, cultural e social
Estamos vivendo um impacto quando nos deparamos com o termo
“identidade”, pois associamos esta à crise, mudança de rumo, conseqüências da
globalização, processos e abalos, impermanência. O que isto quer dizer?
Para diferentes autores, a identidade pessoal emerge da inter-relação entre o
ambiente e o indivíduo, em termos de integração e de diferenciação. A identificação
com o contexto sócio-histórico e de certo modo a sua diferenciação são aspectos
constitutivos do conceito de identidade. Esta consegue existir quando uma pessoa
pode ser compreendida na sua diversidade em relação aos outros, como única e
insubstituível. Tudo isto significa que a identidade, como conceito dinâmico, exige
certa dialogicidade e intersubjetividade. Ela, a identidade, depende também da
capacidade de se articular a própria história de vida, de revê-la e de variá-la sob o
impacto de novas experiências. A identidade cultural da pessoa, ou seja, a sua
identidade étnica e nacional torna-se então uma expressão concreta disto.
Para Hall (2004): “as velhas identidades, que por tanto tempo estabilizaram o
mundo social, estão em declínio, fazendo surgir novas identidades e fragmentando o
indivíduo moderno, até aqui visto como um sujeito unificado”
E, assim perguntamos: e o velho, de que forma está vivendo novas
identidades, novos papéis? Como fatos marcantes das sociedades pós-modernas,
podem ser indicados os seguintes: o processo de individualização e de
autonomização, a passagem dos valores materiais aos pós-materiais, a redução dos
lugares e a ampliação dos não-lugares, etc. A pós-modernidade apresenta-se como
um fenômeno ambivalente, porque por um lado favorece a multiplicidade e as
diferenças, a fragmentação e a crise de unidade, a indiferença e a secularização e, por
outro, favorece a crítica da absolutização da razão moderna e a valorização da pessoa
concreta, do grupo e da vida quotidiana. No entanto, na pós modernidade a
identidade transformou-se em detrimento da modernidade que estabelecia um sujeito
permanente, fixo, centrado no seu contexto histórico. A sociedade contemporânea
está plenamente comprometida com um processo de globalização, dessa forma, o
sujeito, determinado como tendo uma identidade unificada e estável, está se
fragmentando; formado não de uma, mas de identidades, muitas vezes contraditórias
ou não-resolvidas.
Todavia, Ciampa (2005) explica-nos que os personagens são fetichizados,
modificam-se, apresentando-se como misteriosos e fantasmagóricos, em
determinadas situações onde é quase impossível o indivíduo atingir condições de “ser-
para-si”, ocultando a natureza da identidade enquanto metamorfose.
As identidades, que estabeleciam os códigos sociais e que asseguravam uma
subjetividade com as necessidades objetivas da cultura, estão se diluindo, com todas
estas mudanças estruturais e institucionais do mundo globalizado. No seu sentido
econômico originário, a globalização indica os atuais processos capitalistas dos
Estados Unidos da América, do Japão e da União Européia, destinados a integrar
controlar e tornar interdependentes o mercado e os recursos financeiros disponíveis
para massificar o lucro em escala mundial.
Esta globalização tem como protagonistas não as nações, mas os sujeitos
sociais multinacionais (empresas e agentes financeiros), que agem livremente, mais
ou menos desligados das suas próprias nações. Como processo complexo, a
globalização adquire também outras formas: política, cultural, informática, tecnológica,
ecológica. Por um lado, o complexo processo de globalização contribui para a
formação da chamada “aldeia global” e, por outro, as forças locais demonstram-se
cada vez mais vivas e agressivas. Observa-se certa dialética entre a globalização e a
localização. A um crescente processo de inclusão e de integração corresponde um
processo de exclusão e de marginalização, que condena uma boa parte da sociedade
à depauperação e ao desespero.
18
Conforme Concone (2007) aponta-nos: as mudanças na composição etária da
população mundial e nacional serão o fator mais significativo para mudanças de
concepção e busca de novas perspectivas individuais e sociais. Derrubar mitos
arraigados (feiúra, doença, taras, demência, perdas, falta de memória, ausência de
perspectivas, sala de espera da morte) não é tarefa rápida ou fácil. Mas está em
andamento. A geração idosa de hoje é diferente daquela que a precedeu. Como
também já é diferente a geração jovem.
Portanto, ao discutir esses processos de mudança, Hall (c.f. 2006:9 - 10)
indaga se não somos compelidos a perguntar se não é a própria modernidade que
está sendo transformada? E, também o velho vivendo nesta sociedade cabe a ele
fazer parte da mesma e transformar-se também.na modernidade, pressupomos que a
identidade, é uma identidade que varia conforme vão acontecendo às mudanças nos
sistemas culturais, que vão se definindo pelos fatos externos e não internos ou
biológicos. Este “velho” assume identidades diferentes em diferentes momentos,
identidades que não são unificadas ao redor de um eu coerente.
Neste sentido nos remetemos à Teoria da Dissonância Cognitiva de Festinger
(s/d)
19
, em que o comportamento humano possui uma relação intrínseca entre a forma
em que é percebida e interpretada a realidade por cada pessoa e ainda o
comportamento é alterado de acordo com tensões e angústias para a manutenção de
uma coerência cognitiva. De acordo com a teoria de dissonância cognitiva, existe uma
18
Extraído de http://www.scalabrini.org/ita/Triuggio/Documento_%20finale_MEMORIA_pt.doc.
19
Extraído: http://www.cce.udesc.br/titosena/Arquivos/Tematicas/Dissonancia_Cognitiva.doc
tendência nos indivíduos de procurar uma coerência entre suas cognições
(convicções, opiniões).
Todavia, para o autor da referida teoria, quando existe uma incoerência entre
atitudes ou comportamentos (dissonância), algo precisa mudar para eliminar a
dissonância. No caso de uma discrepância entre atitudes e comportamento, é mais
provável que a atitude mudar para acomodar o comportamento. Numa visão geral,
dois fatores afetam a força da dissonância: o mero de convicções dissonantes e a
importância atribuída a cada convicção. Existem três maneiras de eliminar a
dissonância: (1) reduzir a importância das convicções dissonantes, (2) acrescentar
convicções mais consoantes que se sobreponham às convicções dissonantes ou (3)
mudar as convicções dissonantes para que elas não sejam mais incoerentes.
Assim, Hall (2006, p. 12-13) definiu: “Dentro de nós identidades
contraditórias, empurrando-nos em diferentes direções, de tal modo que nossas
identificações estão sendo continuamente deslocadas”.
Todavia, podemos concluir que sobre estes deslocamentos, e ao mesmo
tempo, segundo Hall (2006, p. 103), nos últimos anos, uma verdadeira explosão
discursiva em torno do conceito de “identidade”. O autor nos diz que uma severa
crítica, talvez possamos pensar em “crise”, pois se critica a idéia de uma identidade
integral, originária e unificada. Portanto, identidade e diferença têm que ser ativamente
produzidas: as de gênero, as sexuais, as raciais, as étnicas, as etárias e outras, para
uma maior discussão da identidade no mundo contemporâneo.
CAPÍTULO II
IDENTIDADE, MEMÓRIA E SUBJETIVIDADE
Escrever a História significa conferir
fisionomia às datas (Walter Benjamin)
2.1 Introdução
A memória é uma forma constitutiva da identidade do ser humano e dos
conhecimentos articuladores entre passado e presente; não de outra forma devemos
pensar na identidade, aqui particularmente a do velho, se não em um constante
processo de interação social com o mundo em que ele vive no presente caso, o
mundo contemporâneo.
Tal inserção imprescindível do sujeito, pensada neste trabalho nas suas
relações psicossociais, como elemento-chave de nossas reflexões sincrônicas ou
diacrônicas, é a novidade que nos é trazida ou ratificada na pertinente epígrafe de
Walter Benjamin. Uma abordagem nessa direção pode se mostrar inovadora na
medida em que se distancia de muitas outras, por considerar a posição de um sujeito
no seu papel constitutivo da história dos fatos ou acontecimentos, o que implica a
constituição de um objeto próprio de estudo: de tomar, no presente caso, a memória”
como um lugar de interrogações do sujeito e que permite pensar no que ela remete de
universal em suas manifestações particulares.
Ao pensar dessa forma, agora em termos da noção de velhice, podemos
compreender que, para o velho especificamente, trata-se sempre de um projeto de
caráter pessoal, individual; desse modo, uma efetivação bem sucedida desse
empreendimento depende do próprio esforço do sujeito-velho, de sua capacidade de
adaptação a novas situações, de sua iniciativa em “fazer” de sua real velhice um novo
“envelhecimento”. Está implicado um processo constante de interação social e de
possibilidades de metamorfoses e de emancipação pessoal na chamada sociedade
secularizada.
Neste capítulo, será tematizada a questão teórica que diz da relevância da
memória, da construção da identidade do velho. Para esta teorização, lançamos mão
das elaborações de Ecléa Bosi (1987, 2003) e Maurice Halbwachs (2006), bem como
da introdução do sintagma-conceitual postulado pelo psicólogo social Antônio da
Costa Ciampa (2005), que o formula em forma de um triplico: "identidade,
metamorfose e emancipação".
2.2 Identidade do velho e memória
Verifica-se, hoje, que cresce a investigação sobre o construir da identidade do
velho. Assim, como se torna quase impossível falar de velho sem falar de memória,
pois parece ser ela espaço mental privilegiado em que este firma sua identidade, essa
articulação memória e identidade remetem-nos à necessidade de investigar o que
significa de forma mais ampla a memória na vida do velho, o que nos leva também a
pensar na questão da memória em todo o ser humano. Esta deixou, portanto, de ser
considerada como fenômeno individual, passando a elemento constitutivo do processo
de construção de identidades coletivas.
Tem uma função eminentemente social, ou uma presença efetiva nos fatos da
sociedade, no sentido de unir o passado ao presente, o que significa não se cristalizar
pura e simplesmente como permanência. Além disso, pode ser dita como um lugar de
preservação e libertação do ser humano. Se vista dessa forma, apresenta-se como um
lugar feliz, satisfatório ao espaço social e investimento do velho no seu projeto de vida.
2.2.1 O velho e a aparência de identidade fixa
Sabe-se que atualmente vivemos sob o imperativo do novo, da novidade, e
uma certa desvalorização da história, da tradição, da oralidade e da memória e novas
construções de identidade e formas de subjetividade.
Para uma maior compreensão do conceito de memória, recorremos à
contribuição de dois autores o filósofo francês Henri Bergson e o sociólogo, também
francês, Maurice Halbwachs. Em vários momentos, também recorremos a
observações e esclarecimentos feitos por estudiosas da memória, Ecléa Bosi e Ângela
Mucida, que fundamentaram seus estudos na obra dos autores, referidos acima.
Partimos do pressuposto de que a memória não se restringe apenas a fatos
biológicos, pois, se assim fosse, não conseguiríamos acessar muitos fatos, sensações
e lembranças que são armazenados, mas que não podem ser lembrados. Segundo
Bergson (1990) a memória não se constituiu apenas do armazenamento de dados ou
de um mero arquivo do passado; encontra-se intrinsecamente ligada à vida,
suspendendo ou inibindo lembranças.
Isto faz-nos pensar, nos tempos atuais, que uma identidade com aparência de
liberdade é uma tendência que vem marcando o processo de construção da mesma e,
como veremos a seguir, está exemplarmente presente na experiência do
envelhecimento.
Num certo sentido, na modernidade, cresce a consciência de que somos seres
singulares e individuais em oposição ao modo como o homem tradicional vinha
cultivando sua identidade com um acento muito forte nos padrões comportamentais
exteriores, coletivos, transcendentes e racionais. Atualmente, uma crise de valores
vem atingindo o homem em seus costumes e padrões de comportamento, em seu “Eu”
mais profundo, isto é, no modo de estruturação tradicional do “Eu”.
E o que se percebe é que na estruturação da identidade na atualidade existe
uma ilusão, pois ao mesmo tempo em que se tem ai a aparência de liberdade há uma
interferência muito forte dos fatores externos.
Na estruturação da identidade, os desejos têm grande poder de determinação
e não ficam imunes às influências de fatores externos, tais como: ser ativo, ser
imanente, poder consumir, ter poder, ter aparência”, estética, liberdade, autonomia.
Por exemplo, citamos os “desejos voláteis da sociedade de consumo”.
208
A identidade, na contemporaneidade, vem ganhando uma aparência de
“identidade líquida”, como diz Bauman (2005), isto é, de “volatilidade”. Em certo
sentido a possibilidade de se ter uma “identidade líquida” não quer significar que o
problema esteja resolvido, pois alcançar a possibilidade de liberdade pode significar
apenas um “fetiche”. Por exemplo, a sociedade de consumo leva o sujeito a se realizar
através dos objetos do prazer numa volatilidade permanente. Contudo, permanece a
estabilidade, ele apenas muda os objetos de consumo, mas se identifica como
consumidor, sendo aparente a “liquidez” de postulados identitários.
A possibilidade de “identidade liquida” traz um complicador para as políticas de
formação de identidade individual, grupal e social. Sua alteração constante
impossibilita, em muitos casos, haver interações sociais entre os indivíduos e os
grupos. Ela traz também, como diz Bauman (2005), uma tensão permanente em estar
repondo, a todo o momento, os substratos que a sustentam.
Trazendo essa noção para o entendimento da construção da identidade
individual e de grupos que ganham visibilidade nesse contexto, como os sujeitos
velhos participantes de nossa pesquisa, nos encontramos frente a um grande desafio.
O sentido de continuidade e permanência presente para a construção do processo de
envelhecimento, para a noção da velhice na contemporaneidade ou para o grupo
social do qual o velho faz parte ao longo do tempo, depende tanto do que é lembrado,
18
MARTINS, A. In: Ética na contemporaneidade. Palestra Café Filosófico.
Novembro de 2008.
quanto o que é lembrado depende da identidade de quem lembra. Assim, para o
sujeito velho, fica quase impossível polarizar sua identidade como sendo uma
identidade com aparência de fixa, uma vez que, em muitos casos, ela ganha a
complexidade de liberdade, de “liquidez”, como em outros, de estabilidade e
permanência.
A identidade do velho não se dá sem os referenciais do meio em que ele viveu,
os quais permanecem vivos em sua memória que vai ganhando ressonância na
construção de sua identidade. Ela é tomada como um modo de dizer quem o velho foi,
quem o velho é e quem ele gostaria de ser.
Ecléa Bosi (1987, p. 11), no livro intitulado “Memória e Sociedade...” argumenta
que “Bergson provém de uma análise interna, diferencial, da memória. O passado
conserva-se e, além de conservar-se, atua no presente, mas não de forma
homogênea.” Por um lado, “o corpo guarda esquemas de comportamento”, liga-se à
memória-hábito, por outro lado, acontecem as “lembranças independentes ou isoladas
que também estão relacionadas ao passado. Na análise do cotidiano as duas formas
de memória apresentadas podem ser consideradas conflitivas.
Assim, Bosi, (1987, p. 11), ao dizer sobre Bergson, afirma:
A memória-hábito adquire-se pelo esforço da atenção e pela
repetição de gestos ou palavras. (...) No outro extremo, a
lembrança pura, quando se atualiza na imagem-lembrança, traz
à tona da consciência um momento único, singular, não
repetido, irreversível, da vida. Daí, também, o caráter não
mecânico, mas evocativo, do seu aparecimento por via da
memória.
Pressupomos que no início, quando tudo é novidade para o indivíduo, e ainda
não temos tal saber adquirido, prestamos atenção a dados que, com o tempo e com o
treino, irão se tornar um ato automático que depois executamos sem perceber. Por
exemplo, se o velho não explicar para o “outro” as experiências em forma de palavras
e de significados, em forma de lembranças e rememorações, não será possível saber
quem ele foi quem ele é ou gostaria de ser.
Podemos dizer que a memória é um elemento constituinte do sentimento de
identidade, tanto individual como coletiva, na medida em que ela é também um fator
extremamente importante do sentimento de continuidade e de coerência de uma
pessoa ou de um grupo em sua reconstrução.
Ciampa (2005, p. 127) ao falar da identidade como reflexidade do outro, diz
que a identidade oculta e revela uma atividade, numa totalidade contraditória das
relações sociais, e promove, ao mesmo tempo, uma coerência e uma multiplicidade,
uma estabilidade e uma mudança, Ou seja, para ele a identidade é construída via
interação com o outro. No dia-a-dia, o velho, ao manifestar suas ações, seus
sentimentos e seus pensamentos, vai compondo, neste sentido, a identidade dinâmica
e mutável, cuja permanência exige que ele possua a consciência do que ele é no
presente, o mesmo que ele foi em seu passado e o que pretenderá ser no futuro.
As mudanças, para o velho, vão surgindo conforme o tempo e o espaço que
conquistou, tanto com o grupo de referência como com o grupo de iguais, que por sua
vez permitirá a ele vislumbrar o que é praticamente possível de construir e viver
compartilhadamente, seja com o grupo que ele escolheu ou também com a identidade
individual dissociada de sua dimensão social. Pressupomos que a identidade
individual do velho assim como a social vão se constituindo de elementos de um
conjunto de interesses e de convenções que ele firma com os membros do grupo do
qual faz parte. Assim, para o próprio grupo, e para o velho, os interesses e as
convenções serão comuns, o que resulta numa identidade do velho como fruto dessas
relações mantidas entre formas de identificação em diferentes momentos da sua vida
e da dos grupos.
Mas o que é identidade? Pergunta Berger e Luckmann (1985), e eles
respondem, a identidade é um contínuo processo de interiorização e exteriorização,
que constitui a base para a compreensão de nossos semelhantes e, de nossos
diferentes. Essa compreensão de articulação entre semelhantes e diferentes, garante-
nos a possibilidade de apreender o mundo como realidade social dotada de sentido.
Neste caso, podemos pensar na compreensão que o velho busca para a possibilidade
de firmar sua identidade no sentido desta articulação. Assim, este sentido
compartilhado do velho com os seus semelhantes a ele a possibilidade de
estabelecer relações com o mundo, mundo de outros, mundo que existia e que
agora também lhe pertence. Velho e mundo passam a estabelecer entre si uma
integração que cria e recria, permitindo assim uma identificação mútua.
Neste sentido, o processo que produz a inserção significativa do sujeito ao
mundo é o processo de socialização, estudado profundamente por muitos autores, em
especial Berger e Luckmann (1985).
Num certo sentido, o processo de socialização acontece num processo de
identificação da criança com os outros que lhe são próximos e que lhe são
significativos e com o mundo que a rodeia, permitindo assim que desde os seus
primeiros anos de vida ela venha articulando o processo individual da identidade,
identificando-se assim, uma identidade subjetivamente coerente e plausível”. Neste
sentido, para Berger e Luckmann (1985, p. 177):
(...) a identidade é objetivamente definida como localização em
certo mundo e pode ser subjetivamente apropriada
juntamente com esse mundo (...). Todas as identificações
realizam-se em horizonte que implica um mundo social
específico.
Estes autores também especificam que “receber uma identidade implica a
atribuição de um lugar específico no mundo. O velho, ao assumir a identidade de
velho, apropria-se de uma identidade e apropria-se do mundo social, em um processo
dinâmico e contínuo que, aos poucos, vai produzindo a identificação com o seu “eu”
significativo e com a generalidade, garantindo-lhe assim a estabilidade e a
continuidade da auto-identificação com a socialização e com o mundo.
Segundo a Psicologia Social, a socialização é o processo pelo qual o indivíduo
internaliza o coletivo, ou seja, através da socialização é que as idéias e valores
estabelecidos pelo coletivo passam o constituir o indivíduo e pela apreensão destes é
que ele adapta-se aos grupos de que faz parte. (...) Para o velho, sua identidade foi se
desenvolvendo à medida que vivenciou, praticou e experienciou seus fazeres com a
realidade que o cerca, criando assim, o seu próprio sistema de significados,
desenvolvendo um conjunto de atitudes e papéis sociais que o definiram no seu
mundo social.
Habermas (1983) vê na Psicologia Social de Mead a única tentativa promissora
de compreender plenamente o sentido do processo moderno de formação do indivíduo
por meio da socialização, a qual é um processo dinâmico e é ferramenta de formação
da personalidade e, por sua vez, o indivíduo também passa a ser ferramenta de
transformação e de manutenção da socialização. Há uma interação em socializar e ser
socializado, e um duplo papel para o velho estará sempre presente nesta relação, pois
enquanto houver relação humana haverá socialização.
Sabe-se que a linguagem tem um papel importantíssimo na compreensão e
estruturação da identidade do velho. Para Habermas (2004b, p. 65): o homem pensa,
sente, vive unicamente da língua e é por ela que deve ser formado”. Neste caso tudo
que o velho de uma comunidade lingüística encontrou, no mundo em geral, traz a
marca de uma visão do mundo como um todo. Existe uma relação íntima entre a
“forma interna” da língua e uma “determinada” visão de mundo. Deste modo, a forma
da língua, como órgão formador do pensamento, deve ser entendida como um fator
que estrutura a personalidade do velho. A linguagem constitui, assim, um meio pelo
qual os juízos, os pré-juízos são formados e afixados a fim de facilitar as operações de
pensamento e comunicar opiniões e intenções a outras pessoas.
Para a Psicologia Social pode existir uma multiplicidade de possibilidades de
estruturação da identidade. No caso do velho, esta mediação deve acontecer pela
instauração do critério da centralidade da comunidade ou do fórum da comunidade
mediada pela premissa da linguagem, pela qual ele é socializado e, daí resulta sua
possível individualização.
Sabe-se que a velhice poderá ser pesada e difícil não somente para quem
procurou obstinadamente a si mesmo em tudo o que fazia; ou para quem se identificou
com o papel social e seu índice de agrado, com seus resultados e seus sucessos; ou
para quem se familiarizou com a solidão, mas ficou aturdido com a atividade e com os
relacionamentos humanos para preencher o seu vazio; ou ainda para quem, desejoso
de protagonismo, corre risco agora de não conseguir aceitar a inevitável dependência
dos outros ou uma forçada atividade; ou para quem procurou sempre aparecer e dar
boa impressão e que, já velho, última tristíssima farsa, faz de tudo para apresentar-se
jovem, prestativo. Segundo Cencini (1998, p. 298), A terceira idade é a idade do
repouso, mas não da inércia”. muitas coisas a fazer, uma multidão de pequenos
serviços a prestar, muitas mãos estendidas, muitos corações a amar, muitos
sofrimentos aos quais dar atenção e levar consolo, muitas alegrias a levar e a
partilhar. Deve ser desfeita a idéia de que na velhice aconteça uma espécie de
rarefação dos sentimentos ou certa fraqueza dos impulsos vitais; ao contrário, nela é
extraordinária a intensidade das sensações e das emoções. A velhice em sentido
negativo não existe; como escreve Maritain, ela existe “onde não amor”. Onde,
porém, amor e este se coloca no centro da vida, também um testemunho
luminosíssimo ou prova mais evidente de que o coração não pode envelhecer. Desta
forma, o velho, em seu processo de envelhecimento, não deve ser colocado à margem
da sociedade. Ele carrega o papel de “guardião da memória”, e, através da linguagem,
deve ser dado a ele a possibilidade de continuar a ter o papel de fazer a história
prosseguir.
Alguns questionamentos resultam do entendimento da interação da sociedade
contemporânea com o velho tais como: de que modo a sociedade deve lidar com o
velho? Qual deve ser o papel do velho nas políticas de identidade? Uma das respostas
a estes nossos questionamentos encontramos em Bosi (1987, p. 20): “nós é que
temos de continuar lutando por eles”. Desta forma, nas políticas coletivas da
sociedade, o velho deve ser incluído como sujeito não simplesmente como um mero
objeto. Para que isto seja possível, se faz necessário que, paulatinamente, se
mergulhe nos fios da lembrança dos velhos, nos efeitos de suas evocações e de suas
lembranças, em seu passado, ocupando-se, desta forma, da memória e da identidade
do velho, unindo o começo e o fim de sua história e do seu projeto de vida.
Pressupomos que na medida em que o velho foca o seu olhar no seu projeto
de vida, tem a possibilidade de entrar em contato com a formação de sua identidade
individual: neste caso, pode ir compreendendo a sua dinâmica de socialização, seu
modo de vida entre o passado e o presente, a comunicação geracional do presente,
desvelando-lhe as formas iniciais de inserção no mundo social, a partir da construção
de sua identidade coletiva, e assim, como ele escolheu viver e transformar suas
conquistas e necessidades na proximidade do contexto sócio-histórico e psicológico
gerador dessa identidade.
Podemos concluir que, numa visão psicossocial, não existe uma identidade do
velho como sendo fixa, permanente e mutável. Ela é, destarte na sociedade
contemporânea, reposta por ele incessantemente nas complexas interações sociais,
em que ele está permanentemente envolvido. Nestas representações, a identidade do
velho vai se construindo estável, coerente e única. A identidade por si mesmo, como
diz Ciampa (2005, p. 113), é metamorfose: “metamorfose é a expressão da vida, como
tal, é um processo inexorável, tenhamos ou não consciência dele”. Sabe-se que o
homem é sujeito da história e transformador de sua própria vida e da sociedade.
Desta forma, o velho, no seu constante processo de socialização, de interação,
através das lembranças e rememorações, sendo um ser de linguagem, se torna
construtor de sua identidade pessoal e das políticas coletivas de identidade do velho.
2.2.2 Os discursos do velho na compreensão de sua identidade
No discurso do velho existe sempre uma rememoração de suas experiências,
as quais emergem como fundamentais na compreensão de sua identidade.
Pressupondo que experiências e narrativas, mesmo que ligadas a uma
lembrança isolada ou singular, traduzem a identidade do velho como marco social,
sendo significativas na estruturação da sua identidade durante toda a sua vida, a qual
ele irá se referir no futuro não como um acontecimento isolado no passado; a memória
de eventos isolados deve ser valorizada se quiser compreender a identidade do velho.
Assim, alcançamos a compreensão de da memória bergsoniana”, as coisas estão em
constante transformação, e mesmo que isoladas, se tornam significativos.
O velho, ao trazer em forma de narrativa o seu passado, como memória
carregada do prestígio que teve, constrói, no presente, seu modo de ser. Nessas
narrativas existe, muitas vezes, a relativização do tempo vivido e de fatos
considerados relevantes ou não, em seu entendimento, como sendo significativos ou
não em sua identidade. Para o velho, nas experiências conservadas e narradas de sua
história de vida, existe uma carga seletiva e subjetiva, as quais passaram a ser
associadas em sua identidade atual. O tempo, momento ou época em que esses
acontecimento se deram são, muitas vezes, relativizados por ele. Mas, é bom lembrar
que a identidade do velho não se sem a categoria tempo. Para ele, o tempo é
cronológico, é também o tempo vivido existencial e subjetivamente. Um tempo que ele
reverencia saboreando-o como fruto de sua própria existência. Logo, podemos tomar
como ponto de partida a afirmação já consensual de que existe uma intrínseca relação
entre memória e tempo. Assim, para o velho, memória e tempo quando se aproximam
significam identidade.
Para Mucida (2009, p. 66) a história não pode ser apagada e substituída por
outra, até mesmo a subjetividade deixa a marca do que o sujeito construiu ao longo de
sua história”. Assim, podemos dizer que, no cotidiano dos velhos, a possibilidade de
evocar os saberes, os fazeres (prática motora), apresenta-se como facilitadora no
aprendizado do novo, embora “nos momentos de inação, pudesse perder-se nas
imagens-lembranças”.
Sabe-se que as reflexões de Bergson (1990) apontam para o princípio central
da memória como conservação do passado. Desta forma, um caminho a ser
percorrido para a hipótese psicossocial do estudo da identidade do velho encontra-se
nas suas lembranças, na sua memória. Ao evocá-la é preciso pressupor que existe
em suas narrativas uma história social bem desenvolvida, pois eles já atravessaram
um determinado tipo de sociedade, com características bem marcadas e conhecidas,
as quais são lembradas de modo seletivo e subjetivo, privilegiando-se as mais
significativas. E ainda, perceber, nestas narrativas, que eles viveram quadros de
referência familiar e cultural igualmente reconhecíveis. Assim, consideramos que sua
memória atual pode ser desenhada sobre um pano de fundo mais definido do que a
memória de uma pessoa jovem, ou mesmo adulta, que, de algum modo, ainda está
absorvida nas lutas e contradições de um presente que a solicita muito mais
intensamente do que a uma pessoa de idade.
Bosi (1987, 2003) faz uma análise do quesito memória” nas propostas de
Bergson e Halbwachs. Para Bérgson (1990) “a memória do velho é uma evocação
pura do passado” e o que nos interessa é a rica fenomenologia da lembrança.
para Halbwachs (1990), “há uma diferença entre memória do velho e de um adulto, o
velho ocupa-se do passado e o adulto ativo da vida prática, a memória para o adulto é
fuga”. E, Bosi (1987, p. 23) acompanhando e persistindo com o pensamento de
Halbwachs, argumenta: “o que rege, em última instância, a atividade mnêmica é a
função social exercida no presente pelo sujeito que lembra”. Para Halbwachs (1990),
“a lembrança é um processo coletivo e está sempre inserido num contexto social
dado”. Não uma memória puramente individual, pois assim, podemos compreender
que as lembranças dos velhos são sempre construídas com o grupo de pertencimento
a um dado grupo social. Desta forma, ao narrar suas lembranças para o outro, o velho
evoca do passado toda a riqueza que ele julga existente, preservando-a da
contaminação do presente. Também, ao fazer memória do seu passado, isto não quer
significar fuga das questões presentes em seu cotidiano nem desejo ou tentativa de
continuidade ou preservação do seu passado tal qual aconteceu.
Para Bosi (1987), um momento em que o homem maduro deixa de ser um
membro ativo da sociedade, deixa de ser um propulsor da vida presente do seu grupo:
neste momento de velhice social resta-lhe, no entanto, uma função própria: a de
lembrar. O lembrar é essencial para firmar quem se é. O velho, no gesto de lembrar,
sem nenhuma pretensão de universalização, toma alguns valores, comportamentos e
atividades diárias da vida passada para a ligação do cotidiano, justificando, assim, seu
“Eu” existencial. Desta forma, a lembrança se torna uma forma de o velho dar
continuidade e permanência ao aprendizado em sua vida.
2.2.3 A identidade do velho e a memória-hábito
Para Bergson, segundo Bosi (1987, p. 11), o passado conserva-se e atua no
presente, mas não de forma homogênea. De acordo com este autor, de um lado,
nosso corpo guarda esquemas de comportamento de que se vale muitas vezes
automaticamente na sua ação sobre as coisas. Isto seria o que ele denominou
“memória-hábito” ou a “memória dos mecanismos motores”. De outro lado, ocorreriam
as lembranças independentes de quaisquer hábitos: lembranças isoladas, singulares,
que constituiriam autênticas ressurreições do passado.
Assim, a memória-hábito é adquirida pelo esforço da atenção e pela repetição
de gestos e de palavras, podendo ser considerada como parte de nosso processo de
adestramento cultural. Por sua vez, a lembrança pura traz à tona um momento único,
singular, não repetido, irreversível. Para Bérgson (1990), a matéria dessas memórias
reside no inconsciente de cada um de nós. Através da memória, o passado sobrevive,
quer chamado pelo presente sob as formas de lembrança, quer em si mesmo, em
estado inconsciente.
Para Bérgson (1990), a imagem-lembrança tem data certa: ela se refere a uma
situação definida, individualizada, ao passo que a memória hábito se incorporou às
práticas do dia-a-dia e parece fazer um todo com a percepção do presente.
Podemos pensar que as lembranças dos velhos vêm sempre acompanhadas das
evocações de seu passado e repetem sempre hábitos que aprenderam ao longo de
seu cotidiano e divagam em suas imagens-lembranças.
Mas, Bosi (1987, p. 12) nos lembra que Bergson não se ocupa dos casos-limite
nem de uma psicologia diferencial. Enfatiza que o cuidado maior é o de entender as
relações entre a conservação do passado e a sua articulação com o presente, a
confluência de memória e percepção. É neste sentido que buscamos compreender os
efeitos da memória na identidade do velho no mundo contemporâneo, ao despojar-se
de seu passado e das percepções que afirma em seu presente.
Para Brandão (2001), de certa forma uma ampla investigação
fenomenológica de que a memória conduz a uma série de distinções: “memória-
hábito” e “memória-lembrança”, diz-nos ele: de Bergson, o “inegável parentesco
entre a lição aprendida de cor e meu hábito de andar ou de escrever”), “memória que
se repete” e “memória que se imagina”, “memórias” e “lembranças” (como se diz, os
velhos têm mais lembranças, mas menos memória!). Ainda para o autor, existe
também uma memória ativa, que comporta um enigma, que “busca o que teme ter
esquecido). Na rememoração (“recherche”, “rappel”) a memória assume a forma de
“trabalho” e revela sua “dimensão cognitiva”, seu “caráter de saber”.
Brandão (2001) ao trazer a articulação entre a memória individual e a memória
coletiva no campo das ciências e de como o objeto memória pode ser apreendido,
insiste no conceito de “traços”, que fornecem uma passagem articulada entre memória
individual e coletiva. São os “traços” de memória que permitem uma organização
social do tempo e da comunhão de lembranças. Logo, é do testemunho do velho,
“traços de memória”, que são originalmente orais, que emergirá a construção de sua
história e de sua identidade, e com isso o seu projeto de vida.
Para Bobbio (1997, p. 30, 54), o mundo dos velhos é o da memória, através da
qual se reconhecem, e se identificam:
(...) somos aquilo que lembramos (...) a nossa riqueza são as
lembranças que conservamos e não deixamos apagar e das quais
somos o único guardião. (...) se o mundo do futuro se abre para a
imaginação, mas não nos pertence mais, o mundo do passado é
aquele no qual, recorrendo a nossas lembranças, podemos buscar
refúgio dentro de nós mesmos, debruçar-nos sobre nós mesmos e
nele reconstruir nossa identidade.
Num certo sentido podemos refletir que a memória não conta apenas a história
do indivíduo, mas também a de seu grupo.
A memória produz elos entre os significados do presente e do passado para o
coletivo de sua convivência, para a reconstrução do passado e sua preservação no
presente. O velho, ao tecer afirmações sociais perante os grupos de pertença, muitas
vezes, busca trazer, através dos processos temporais, os significados e sensações
embutidos na memória. O velho tem mais facilidade em identificar-se com o seu
passado. A memória, onde cresce a história, que por sua vez a alimenta, procura
salvar o passado para servir ao presente e ao futuro.
Segundo Le Goff (1996, p. 477). “Devemos trabalhar de uma forma a que a
memória coletiva sirva para a libertação e não para a servidão dos homens”. Neste
modo de ver a memória coletiva, ela só se torna positiva enquanto for capaz de tornar-
se lugar de libertação do homem no presente e não de escravização ao passado.
Nas civilizações tradicionais o velho tinha a função de rememorar, simbolizava
o guardião da memória do grupo, o depositário do saber da comunidade. O mesmo se
dava nas sociedades tidas como sem escrita, nas quais o velho era considerado o
guardião dos códices reais, dos chefes de família, dos bardos e dos sacerdotes que
tinham o importante papel de manter a coesão de seu grupo social.
Assim, para Le Goff (1996, p. 423), “a memória, como propriedade de
conservar certas informações, remete-nos em primeiro lugar a certas funções
específicas, graças às quais o homem pode atualizar impressões ou informações
passadas, ou que ele representa como passadas”. Assim, a memória coletiva
possibilita, por um lado, integrar indivíduos e, por outro, evocar traços e questões da
memória histórica ou da memória social.
O velho, como depositário privilegiado da memória coletiva, tem uma
importante função social ao trazer à tona memórias esquecidas ou não conhecidas,
que correm em paralelo à memória escrita, podendo, com isso, ampliar a
compreensão do conteúdo das últimas. Se a memória pode ser representativa de um
grupo social, fonte legítima de informação e reconstrução dos acontecimentos que
repercutem na história de dada sociedade, pode revelar aspectos desconhecidos de
eventos conhecidos bem como aspectos desconhecidos de eventos igualmente
ignorados. Portanto, relembrar é refletir dialeticamente sobre o presente e o passado,
pois tanto pode permitir ao velho relativizar a importância de acontecimentos, de
situações e de lugares do passado em vista do presente, quanto seu contrário,
retirando o valor absoluto das coisas. Mas, relembrar é, ainda, poder transcender às
marcações políticas e econômicas institucionalizadas, pois o peso das experiências
passadas, tanto individuais quanto coletivas, pode trazer temporalidades que as
marcações impõem ao mundo contemporâneo.
2.2.4 A função social do velho
Um fato acontecido, quando relembrado, sempre traz consigo toda a carga de
mudanças pessoais pelas quais o velho passou e, por conseguinte, o seu grupo social.
Na maior parte das vezes, lembrar não é reviver, mas refazer, reconstruir, repensar,
com imagens e idéias de hoje, as experiências do passado. Afirmamos sempre os
dizeres de Bosi (1987, p. 55, 82):
A memória não é sonho, é trabalho (...) O ancião não sonha
quando rememora: desempenha uma função para a qual está
maduro, a religiosa função de unir o começo ao fim, de tranqüilizar
as águas revoltas do presente alargando suas margens.
O velho tem a função social de lembrar e isso acontece não pelo fato de tornar-
se incapaz de exercer outras funções, mas, sobretudo, por poder voltar seu olhar para
trás, onde estão suas percepções e reflexões sobre o vivido individual e coletivo. O
ato de rememorar exige lucidez, continuidade e uma grande atividade de
reconhecimento e capacidade de não confundir o presente com o passado, de saber
confrontar as lembranças com as imagens atuais.
Para Maurice Halbwachs (2006) existem os seguintes tipos de memória:
coletiva, individual, histórica. A primeira, que se poderia chamar de memória social, é
aquela relacionada a uma história vivida, na qual o passado permanece vivo na
consciência de um grupo social. Esta noção é contraposta à histórica, que seria uma
forma de conhecimento do passado, exterior ao domínio do vivido. a memória
individual não existe, uma vez que, na memória interior de uma pessoa que armazena
e recorda suas próprias experiências ao longo do tempo, o que existe de “lembrança
significativa” é somente um processo socialmente condicionado de reconstrução que
se apóia na estrutura social.
É a memória que faz com que um grupo, no momento volta o olhar para o seu
passado, possa sentir-se que permaneceu o mesmo e que consiga se conscientizar de
sua ‘identidade’ preservada ao longo do tempo. Para compreender o passado, seria
necessário então compreender as motivações de mudança sentidas no presente.
Neste contexto podemos nos remeter aos dizeres de (Bosi, 1987, p. 21):
A experiência da releitura é apenas um exemplo, entre muitos, da
dificuldade, senão da impossibilidade, de reviver o passado tal e
qual; impossibilidade que todo sujeito que lembra tem em comum
com o historiador. Para este também se coloca como meta ideal
de refazer, no discurso presente, acontecimentos pretéritos (...).
Posto que o limite fatal que o tempo impõe ao historiador, não lhe
resta senão reconstruir, no que lhe for possível, a fisionomia dos
acontecimentos. Nesse esforço exerce um papel condicionante
todo o conjunto de noções presentes que, involuntariamente, nos
obriga a avaliar (logo, a alterar) o conteúdo das memórias.
Para reconstruir a relação entre tempo e memória a partir da ‘memória
coletiva’, podemos pensar que os velhos, a partir de suas representações, podem
resgatar o passado, conseguindo também associá-lo com a história e, através de uma
compilação dos fatos, podem ocupar um maior espaço na memória humana. Um dos
objetivos deste processo é exatamente o de lançar uma ponte entre o passado e o
presente, entre a narrativa do narrador e a escuta do ouvinte e restabelecer essa
continuidade interrompida. Porém, como trazer novamente correntes de pensamento
coletivo que tomam impulso no passado, quando só podemos tratar do presente?
No entanto para Halbwachs (1990, p. 81), é possível reconstruir o passado
através das narrativas que recontem histórias tradicionais de uma maneira nova,
auxiliadas pela história oficial do presente. Pressupomos, neste caso, que o velho ao
narrar os acontecimentos de seu passado e atualizando o seu presente, vai
construindo o seu projeto individual e ao mesmo tempo articulando-o com sua
identidade.
Assim, concluímos que os estilos e as palavras se entrelaçam em cada história
escrita, lida, contada, sentida, escutada do velho ao fazer memória. E é desta memória
que ele faz ecos com as lembranças e acontecimentos, com as reminiscências tanto
do passado, como do presente. É, assim, nesta construção que se a função social
do velho: unir começo e fim, dando significado e atributos à memória e à identidade.
2. 3 Identidade e metamorfose do velho na contemporaneidade
A conceituação de identidade aqui adotada vem sendo desenvolvida a partir
dos pressupostos que servem de base para o referencial teórico da Psicologia Social,
a qual, segundo Ciampa (2005) e Lane (1981) vai atribuir importância à relação
essencial entre o indivíduo e a sociedade, esta entendida historicamente. Para eles é
trata-se de uma abordagem teórica que se preocupa em conhecer como cada um de
nós – que nasce como ser apenas natural capaz de se metamorfosear, em ser
também histórico ao sofrer as determinações das constantes transformações sociais
se constrói como indivíduo humano que, assim, ao mesmo tempo em que age como
ator social, vai se tornando autor de ações que podem determinar transformações da
sociedade as quais, ao se concretizarem, concretizam o processo histórico como
síntese de natureza e cultura.
Para Pacheco e Ciampa (2006), a identidade é considerada como um processo
de constante metamorfose que pode ser compreendida à luz da Psicologia Social.
Ainda para Ciampa (2005, p. 113): Metamorfose é a expressão da vida. Como tal é
um processo inexorável, tenhamos ou não consciência dele”. Dentro desta visão, o
velho, pelo simples fato de ser velho, não significa ter esgotado todas as
possibilidades de metamorfoses da vida. Falar de metamorfoses da identidade do
velho é se colocar numa visão do velho como um ser ativo e em constante processo
de transformação, e não estagnado em sua velhice.
Ao nos remetermos à noção de identidade, segundo Ciampa (2005, p. 138) sua
primeira noção, que se revela como um dos seus segredos, é que a identidade é a
articulação da diferença e da igualdade, mas diferença é igualdade, conforme se vão
diferenciando e igualando os vários grupos sociais de que se parte. Exemplo:
brasileiro, igual a outros brasileiros, diferentes dos estrangeiros. Assim, a identidade
de um indivíduo está em relação com os diversos grupos de pertencimento, e nesta
relação existe a igualdade e a diferença. No caso do velho, sua identidade se
diferencia e se iguala em relação aos diversos grupos de que faz parte, pela sua
história e pela sua memória, tanto dos fatos do presente, quanto dos fatos do passado.
Para Enne (2004, p. 15) se quisermos definir, a priori, a categoria identidade,
denotativamente poderíamos utilizar a acepção dada pelo dicionário: “Qualidade de
idêntico”, “conjunto de caracteres próprios e exclusivos de uma pessoa: nome, idade,
estado, profissão, sexo, defeitos físicos, impressões digitais, etc.”. A idéia inicial
remete à perspectiva de se buscar algo em comum com o outro, e não somente aquilo
que lhe é único. Portanto, se identidade remete a traços individuais, como os citados
acima, naquilo que podemos chamar de identidade individual, em termos gerais o que
confere identidade a um indivíduo está atrelado à sua inserção social. Assim, não é
possível pensar o conceito de identidade para o velho sem pensar na sua relação com
o reconhecimento social.
A possibilidade da construção da identidade do velho, em termos sociais, se
entende como a maneira pela qual ele se e deseja ser visto pelos outros. Desta
forma, sua identidade nunca poderá ser vista como sendo puramente individual (pela
própria matriz etimológica de indivíduo, aquele que é único, que não se divide).
Portanto, a identidade do velho, em si, já é coletiva.
Portanto, a identidade do velho, sem si, é coletiva, pois existe nela uma
construção social. No seu próprio núcleo está o outro como referência. Daí, a idéia de
identidade do velho nos remeter aos processos de interação entre indivíduos numa
sociedade.
Para Ferrari (2006), a identidade implica tornar-se singular através da criação
de múltiplas e sucessivas personagens numa orquestração de igualdades e diferenças
perante si mesmo e o outro através da história. Na metamorfose da identidade do
velho está a indicação de que ele deve ir se igualando e se singularizando. Assim, ao
mesmo tempo em que existe uma metamorfose do velho de acordo com o social para
tornar-se igual ao outro, existe uma metamorfose de múltiplas e sucessivas
personagens numa tentativa de tornar-se ele mesmo, diferenciando-se do outro.
Segundo Berger e Luckmann (2004), dois problemas centrais que afligem o
homem moderno: o individualismo e o pluralismo
19
que são as condições sob as quais
as pessoas no mundo atual têm de estabelecer padrões para a sua vida. O velho, em
seu processo de metamorfose, deve seguir sua trajetória individual, algo que pode
significar uma possibilidade de traçar seu caminho de envelhecimento como sendo
uma construção única e pessoal. Este modo de compreender seu processo de
envelhecimento pode parecer um modo individualista de entender o processo de
metamorfose do velho na contemporaneidade, quanto uma possibilidade
proporcionada pelo mundo pluralista. Mas perguntamos: ao construir seu projeto
pessoal, de que forma o velho se insere no mundo pluralista? Como lida com os
inúmeros papéis e conexões sociais em que atuou no passado? É possível a ele
conservar uma identidade com aparência de fixa? É possível o velho traçar seu próprio
projeto de envelhecimento na contemporaneidade?
Bauman (2005) nos explica que a solidão a que o sujeito está submetido em
seu processo de filiação identitária, desprovido de fontes seguras que possam
oferecer estabilidade e parâmetros para uma existência satisfatória, o faz contar
apenas consigo mesmo para realizar seu projeto de vida. Este individualismo
exacerbado, comum às formações identitárias contemporâneas, parece também
constituir uma das principais características da velhice e do processo de
envelhecimento.
No processo de metamorfoses da identidade do velho está a materialidade da
vida. Segundo Ciampa (2005, p. 109), “a materialidade dessas relações sociais faz
com que uma nova identidade não seja uma ficção, uma abstração imaginária”. Os
tempos mudam e os velhos devem aprender a viver de acordo com o tempo, a época
e a capacidade de compreensão dos valores e dos padrões a que são submetidos.
Assim, novas aprendizagens se impõem no processo de metamorfose para o
envelhecimento na contemporaneidade no sentido de atender as novas demandas da
sociedade.
O ser humano é matéria e é através de suas práticas que ele vai se
transformando. Esta transformação é metamorfose, e esta é um processo que
acontece ao longo da vida. Mas, é na tomada de consciência de si que se percebe a
metamorfose como um processo que aconteceu paulatinamente ao longo da vida. O
velho pode não ter consciência de que houve mudanças significativas em sua vida,
mas isto não significa que não houve metamorfose. Da mesma forma, ele pode
apresentar aparência de resistência às propostas de mudanças da atualidade, mas
como muitas delas acabam sendo impostas pela “realidade social”, que se
metamorfoseou, rompendo com padrões de estabilidade social, o velho fica como que
incapaz para resistir a estas mudanças.
Sabe-se que uma das conquistas da sociedade contemporânea é a valorização
da subjetividade que passa a ser algo necessário na estruturação da identidade.
Assim, na identidade do velho esta subjetividade vem crescendo como fruto do seu
processo de socialização no mundo moderno. O que leva, mesmo que lentamente, em
meio a reações de medo ou de impaciência ou de ousadia, a viver a velhice sob uma
nova ótica. A subjetividade se abre como uma possibilidade mais humanizadora, de
maior responsabilidade, respeito e entendimento do velho na modernidade.
Rouchy (2000, p. 131) nos explica que ela ganha sentido na e pela
intersubjetividade. Assim, podemos dizer que a identidade do “eu do velho” pode
ser assegurada no plano intersubjetivo, isto é, da ação e da linguagem. Segundo
Habermas (1989, p. 167), a identidade se constrói num processo interrelacional,
seguindo o caminho da socialização. Deste modo, o caminho da intersubjetividade se
apresenta como possibilidade de o velho ser dono de si mesmo e membro da
sociedade.
A possibilidade da relação intersubjetiva salva o velho da homogeneidade ou
da impossibilidade de ser “si mesmo”, e a sociedade democrática lhe possibilita a
oportunidade de reivindicação de participação na construção de seu futuro, mas, agora
construído intersubjetivamente. Com isto, as questões do mundo social e da
subjetividade do velho, que antes ficavam à margem das decisões racionais da
sociedade, passam ao âmbito da crítica racional, que ambas são passíveis de
entendimento mútuo.
A partir da idéia de entendimento mútuo e de reconhecimento pode se
desdobrar o conceito de intersubjetividade para a identidade do velho, na qual formas
diferentes de sociabilidade vão surgindo no decorrer dos próprios conflitos em torno do
reconhecimento. No caso dos velhos, ao interagirem no mundo da vida, ao mesmo
tempo em que afirmam sempre sua subjetividade autônoma, reconhecem-se na sua
pertença comunitária (grupos). O reconhecimento do velho como sujeito de ação e de
linguagem o coloca numa posição de diálogo, de alguém que, vivendo numa
sociedade democrática, pode produzir um discurso, tornar a palavra inteligível,
posicionar-se, narrar uma história, manifestar sua opinião, recordar, lembrar e até
mesmo escrever sobre os acontecimentos atuais do envelhecimento, da velhice, da
identidade e da memória.
Podemos também pensar que a identidade é um processo de produção desse
movimento da história do sujeito, do reconhecimento do sujeito de quem ele é, e o que
isso tem a ver com sua história e com sua identidade através do agir comunicativo.
Partimos do pressuposto que o velho ao viver uma velhice satisfatória tem como
resultado a interação de pessoas e de grupos que buscam o exercício permanente de
ressignificação da vida, da identidade e da memória. É preciso compreender que o ser
humano se realiza na sua relação com os outros e constrói seus limites de liberdade
na convivência com outras pessoas, com as quais compartilha regras de normas, de
direitos e deveres.
Assim, peço licença para colocar aqui o que me diz constantemente a minha
tia, Aparecida Anecchine, minha querida Tia Cida, do alto de seus oitenta anos:
Gente, por que vou parar de trabalhar? Se fizer isto, vou ficar em
casa, sentindo dores na perna, adoecendo a cada dia, acreditando
que meu joelho vai doer muito mais do que dói. Na faculdade,
exercendo a minha função, com seriedade e honestidade, sinto-
me útil e sou reconhecida. eu trabalho mesmo, e me sinto
muito bem.
Podemos supor que essa autonomia do velho é uma característica comum às
formas de subjetividade atuais, uma imposição destinada a todos os sujeitos que
participam do nosso momento histórico.
Segundo Gonçalves (2004), citando Habermas, o conceito de identidade não
tem apenas um caráter descritivo, ainda que, para ela este conceito tenha relação com
o desenvolvimento de processos bio-psíquicos, a identidade do Eu não é uma
organização resultante de processos naturais de amadurecimento, mas está
fortemente vinculada a condicionamentos culturais e sociais.
A Identidade do Eu”, segundo Habermas (1990, p. 54) refere-se a uma
organização simbólica do Eu, que faz parte dos processos formativos em geral e que
possibilita o alcance de soluções adequadas para os problemas de interação social,
existentes nas diferentes culturas. “Para tanto, em relação a esse conceito, ele sugere
a competência de um sujeito capaz de linguagem e de ação, para enfrentar
determinadas exigências de consistência, sendo que a continuidade do eu, no tempo e
no espaço, tem a ver com a capacidade reflexiva do agente, sob a perspectiva de sua
história pessoal. E, Habermas (1983, p. 53) realça, neste processo, a dimensão da
linguagem, isto é, da interação lingüisticamente mediada, pois é através da linguagem
e na linguagem que se revela de forma inteligível a compreensão de si.
Podemos concluir que o velho, em seu processo de metamorfose não fica
imune às transformações do mundo contemporâneo. Sua identidade de velho sofre as
interferências da imposição de realidade da realidade. De outro lado, crescem os
espaços de possibilidade de maior autonomia e de reconhecimento de seus direitos,
sendo do conhecimento prático, ou da cultura, construções feitas pelo sujeito velho,
durante décadas e, até onde puderam ser, sustentáveis para ele. Neste sentido, para
Benjamin (1994, p. 221)
O narrador figura entre os mestres e os sábios. Ele sabe dar
conselhos: não para alguns casos, como o provérbio, mas para
muitos casos, como o sábio. Pois, o velho pode recorrer ao acervo
de toda uma vida (uma vida que não inclui apenas a própria
experiência para ele, mas em grande parte a experiência alheia).
2.4 O velho tecendo a sua relação com o passado
Em que liames se apóiam os velhos no presente para recuperarem o caminho
de volta para o passado? Que elos se alojam entre passado e presente para que deles
possamos ativar o que chamamos de memória?
De acordo com Japiassú (1996, p. 178) podemos entender a “memória como a
capacidade de relacionar um evento atual com um evento passado do mesmo tipo”,
acreditando na capacidade de evocar o passado através do presente. Isto quer dizer
que experimentamos através de nossas experiências um sabor ou um cheiro que
percebíamos ou tínhamos enquanto criança, mais tarde, quando adultos, ao sentirmos
este cheiro ou este sabor somos remetidos voltando ao passado, e assim invocamos
essa lembrança. Buscamos essa memória que estava adormecida, e que retorna ao
nosso presente pelas sensações e percepções que adquirimos ao longo do tempo.
Isto é fato para o ser humano.
A memória também pode ser compreendida como sentimento, percepção ou
prática que tenha o passado como sua principal referência, neste sentido, ao
traçarmos um pano de fundo bem delineado para a história social do velho, nos mostra
Bosi (2003, p. 22),
(...) que ao lembrar do passado ele não está descansando, por um
instante, das lides cotidianas, não está entregando-se
fugitivamente às delícias do sonho: ele es ocupando-se
consciente e atentamente do próprio passado, da substância
mesmo de sua vida.
Ao mesmo tempo podemos pensar que a memória é sempre atual, pois a
qualquer momento podemos evocá-la. Alimentamo-nos da memória tanto do passado
quanto do presente em nossos sonhos, sempre acompanhados das lembranças e do
esquecimento e isto nos cria um sentimento de pertencimento e de identidade, e, ao
mesmo tempo, nos fornece subsídios para que a identidade se construa e se fortaleça
a partir de elos comuns. Muitas vezes, em nossa infância deparamo-nos nos fins de
tarde e à noite, na sala de estar, na cozinha ou na varanda, com os nossos avós, com
outros velhos contando e recontando sobre suas vidas, suas histórias, presentificando
o tempo em suas memórias. Faziam disso, para os mais jovens, uma forma artesanal
de produzir as lembranças e os fatos de seu passado no presente e na memória.
Também para Chauí (2000), a memória é uma evocação do passado. É a
capacidade humana para reter e guardar o tempo que se foi salvando-o da perda total.
A lembrança conserva aquilo que se foi e que não retornará jamais.
Ao se referir aos antigos e à sua relação com a memória, esta autora nos narra
que os antigos gregos consideravam a memória, uma identidade sobrenatural ou
divina: era a deusa Mnemosyne, mãe das Musas que protegiam as Artes e a História.
A deusa Memória dava aos poetas e adivinhos o poder de voltar ao passado e de
lembrá-lo para a coletividade. Tinha o poder de conferir a imortalidade aos mortais,
pois quando o artista ou o historiador registram em suas obras a fisionomia, os gestos,
os atos, os feitos e as palavras de um humano, este nunca será esquecido e, por isso,
tornando-se memorável, não morrerá jamais.
Novamente, para se pensar a memória, recorremos a Maurice Halbwachs
(2006) que distinguiu dois tipos de memória, a “autobiográfica”, que é pessoal e vivida,
que necessariamente sofre influência do meio social, sendo sempre filtrada pelo
presente, e a “memória histórica”, que é passada para o indivíduo pela coletividade e
que se refere a coisas e processos do passado que ele não vivenciou, mas que, a
partir desse processo, passam a fazer parte da sua história. Apoiou-se o autor nas
relações que a memória estabelece com o meio social do indivíduo, na sua
necessidade de viver em sociedade e, por imediato, extraiu dessa relação indivíduo-
sociedade as bases para se pensar a memória. Neste sentido, para Santos (1998) a
percepção de Halbwachs, para construir o sentido que é atribuído à memória, é que
ela não é e não pode ser considerada o ponto de partida, porque nunca parte do vazio;
a memória é adquirida à medida que o indivíduo toma como sua as lembranças do
grupo com o qual se relaciona: um processo de apropriação de representações
coletivas por parte do indivíduo em interação com outros indivíduos. O autor priorizou,
em seus estudos, a análise do que ele denominou de “quadros sociais da memória” ou
das “representações coletivas”; neste sentido procurou estabelecer o que pode ser
considerado como os princípios fundamentais de uma teoria sobre memória.
Percebemos que a questão central trabalhada por Halbwachs (2006) é que :
Quaisquer que sejam as lembranças do passado que possamos
ter por mais que pareçam resultado de sentimentos,
pensamentos e experiências exclusivamente individuais –,
podem existir a partir dos “quadros sociais da memória.
Este autor nos faz compreender que construímos nossas memórias como
membros de determinados grupos sociais e que para tal utilizamos as convenções
presentes na sociedade em que vivemos. Assim, muitas vezes os velhos não
conseguem se lembrar de algum fato por eles mesmos, necessitam de apoio ou de
confirmação de outrem para afirmar ou negar a lembrança, a qual pode se localizar em
algum lugar específico de tempo e espaço. Contudo, para Halbwachs, quando nos
lembramos de um evento do passado, o fazemos por meio da reconstrução de uma
série de imagens fragmentadas e de um conhecimento acumulado a partir de
experiências já vivenciadas.
De certa forma, Halbwachs também priorizou em seu trabalho a análise de
quadros sociais da memória ou de representações coletivas. Segundo Santos (1998),
ele, optou pelo estudo de quadros sociais para explicar a memória, procurando uma
alternativa não à abordagem filosófica de Bergson como também à de diversos
pensadores de sua época, como James Joyce, Marcel Proust, William James e
Sigmund Freud, que estavam todos, à sua maneira, voltados para a memória como
meio do conhecimento.
Em nossa pesquisa, ao falar da identidade do velho, falamos também sobre o
estudo da memória ligada “aos quadros sociais do velho”, consequentemente junto à
teoria de Halbwachs.
Ainda, segundo Santos (1998), o trabalho de Halbwachs nos deixou questões
fundamentais a este final de século, e a memória trabalhada por ele, nos diz ela:
“acredito que são os limites impostos a ela (memória) que representam o diferencial
importante para sua compreensão. Assim, é a percepção destes limites no processo
de construção da identidade coletiva do velho, que nos levou a considerá-las: não-
essencialistas e eticamente responsáveis por legados de opressão e de
esquecimento, que podem estar ausentes tanto do discurso deixado por gerações
passadas, quanto de movimentos sociais atuantes no presente. Podemos também
enfatizar a questão da intersubjetividade, quando Halbwachs nos explica que as
lembranças permanecem coletivas e são lembradas pelos indivíduos com quem
convivemos e partilhamos nossa escuta, mesmo que se trate de situações bastante
pessoais. Dividimos intersubjetivamente nossas ações e nossas idéias com os demais,
que invariavelmente não estamos sós. Daí, a memória compartilhada (de afetos,
sensações, aprendizagem e outros), seja com indivíduos que participaram de
momentos vividos ou que de alguma forma neles estiveram envolvidos. Ainda que seja
uma memória partilhada não pela presença física, mas pelas idéias e pontos de vista
de outros com os quais nos identificamos e que, de alguma forma, ajudam-nos a
construir nossas percepções e, por resultado, nossas lembranças.
Ainda a respeito da memória coletiva Enne (2004) nos explica que nela estão
interligadas as diversas memórias dos indivíduos que fazem parte do grupo
identificado como proprietário daquela memória. No entanto, a afirmação central de
Halbwachs, (1990), sobre a memória é a de que, quaisquer que sejam as lembranças
do passado que possamos ter por mais que pareçam conseqüência de
sentimentos, pensamentos e experiências exclusivamente pessoais —, podem
existir a partir dos quadros sociais da memória.
Desta forma, podemos dizer que no núcleo da identidade do velho estão as
representações sociais do meio do qual ele fez parte. São essas representações que,
possivelmente, serviram de apoio para suas identificações no exercício de seus papéis
sociais. A memória coletiva funciona como uma reposição de sentido para a vida do
velho. Mas ao mesmo tempo em que é algo exterior para o velho, este, como parte do
grupo de identificação, contribui para a sua conservação ou renovação.
Para Santos (1998), Halwachs já afirmava que indivíduos não se lembram por
eles mesmos, isto é, para lembrarem, necessitam da lembrança de outros indivíduos,
para confirmarem ou negarem suas lembranças, que por sua vez estão localizadas em
algum lugar específico no tempo e no espaço. Ao ressaltarmos o caráter social da
memória coletiva do velho e explicar que nem mesmo para ele as memórias mais
íntimas podem ser pensadas em termos exclusivamente individuais, podemos crer que
o caráter social do velho é interativo da memória do seu grupo de pertencimento,
neste sentido, todas as suas lembranças junto ao seu grupo de pertencimento
relacionam-se, portanto, com a vida material e moral da contemporaneidade.
Assim, concluímos que existe para o velho sua memória individual e a memória
coletiva, primeira que se torna capaz de, no presente do velho, repor o sentido de sua
identidade. Caso este insista em repor o sentido de sua identidade com base somente
na memória individual esta poderá vir a ser um monólogo sem produzir eco de
reposição de sentido. A reposição de sentido para o velho se em forma de
repetição de suas lembranças, o que, para o velho, torna-se assim, um modo de
reposição do sentido de sua identidade pessoal e coletiva.
2.5 Os feitos da memória entre o passado e o presente
Na compreensão da identidade do velho algo essencial é o modo como ele
reconstrói e atualiza no presente, o sentido da sua identidade. Ao narrar, busca em
seu passado referências para o seu futuro.
Para Ecléa Bosi (2005, p. 43): A arte da narração não está confinada nos
livros, seu veio épico é oral. O narrador tira o que narra da própria experiência e a
transforma em experiência dos que o escutam. O velho ao narrar sua história de vida
o faz com riqueza de detalhes, associando a sua experiência feitos e conquistas até
mesmo imaginários. Sua narração, aparentemente, é desprovida de servir de imitação
para outrem, mas na verdade ela se apresenta, na maioria das vezes, cheia de
conselhos e indicações a serem seguidos ou refutados.
O velho tira de sua trajetória histórico-social a compreensão de sua própria
identidade. Ao narrar sua história de vida, seus feitos e acontecimentos, ele apresenta
um conjunto de informações que, por si só, trazem um complicador, as quais deverão
ser sanadas pelo ouvinte e pela vibração do narrador. Nos dizeres de Bosi (1987, p.
44):
A arte de narrar vai decaindo com o triunfo da informação, não
permitindo que o receptor tire dela alguma lição. Os nexos
psicológicos entre os eventos que a narração omite ficam por
conta do ouvinte, que poderá reproduzi-la à sua vontade: daí o
narrador possuir uma amplitude de vibrações que falta à
informação.
Da mesma forma, podemos dizer que o velho, ao narrar seus feitos,
conquistas, papéis exercidos, traz um conjunto de informações marcadas por saltos e
mapeamentos, muitas vezes, subjetivos, as quais se tornam dignas de serem ouvidas
pela carga de vibração com que são narradas. No modo de narrar os feitos e
acontecimentos é possível perceber como foi direcionada a construção da sua
identidade. Neste caso a memória se torna o lugar de dizer como foi o passado para
poder construir o presente. Assim, a narrativa que era desprovida de pretensão de
ausência de “imitação”, “de crítica” ou “de atualização da história” acaba assumindo
uma condição de provocadora de mudanças no ouvinte, como por exemplo: na forma
como as pessoas compreendem a si próprias e aos outros.
Na produção das narrativas é possível ao velho, ao "ouvir" a si mesmo e ao
teorizar a sua própria experiência, aproximar-se de seu projeto individual de vida. O
fato de poder recriar teoricamente, em seu imaginário, o seu passado, proporciona-lhe
um sentimento de distanciamento do presente. Tal modo de se deslocar, pode
significar a dificuldade de adaptação do velho às transformações do presente.
A possibilidade de o velho poder aproximar o passado e o presente em sua
narrativa pode representar um processo profundamente emancipatório para a noção
de sua identidade. No fato de ele poder pretender fazer a aproximação entre passado
e presente acaba havendo uma nova aprendizagem na construção e reconstrução da
sua própria história. A narração de seu projeto de vida acaba, assim,
autodeterminando a sua trajetória presente. E, como afirma Ferrari (2006), neste
processo narrativo, que pode acontecer num intervalo curto de tempo, novas redes de
relações são constituídas como importantes pontos de apoio na construção da sua
identidade.
A integração do velho na contemporaneidade se pela possibilidade de ele
ser reconhecido como capaz de construir novas redes de relações com a sociedade, e
que pode se tornar uma possibilidade de o velho vir a ser um agente de mudanças em
muitos campos de sua atuação. Como por exemplo: no plano previdenciário, no plano
médico, no plano educacional e outros. Este processo é passível de acontecer se
houver um reconhecimento do velho por parte do outro”. Somente desta forma, ele
poderá apresentar suas contribuições. Reconhecê-lo como sujeito de ação e de fala é
permitir que ele não seja visto somente como um “objeto” ou personagem “nulo” ou
alguém ultrapassado. Este processo permite o reconhecimento do velho como capaz
de intersubjetivamente apresentar sua contribuição, isto é, possibilitará sua
participação e intervenção na realidade social, transformando antigos modelos em
novas possibilidades.
Para tanto estas possibilidades requerem algumas condições. É preciso que no
caso o velho, objeto de nosso estudo, esteja disposto a analisar criticamente a si
próprio, sua história de vida, enfim, a construir/desconstruir seu processo histórico
para melhor poder compreendê-lo. Na narração de sua história tem-se como
pressuposto que o velho, ao aprofundar as lembranças e imagens, torna possível
carregar do passado para o presente a memória individual e coletiva.
Mas qual a função da memória? Para Bosi (1987, p. 47) o velho, ao fazer
memória de sua vida, não reconstrói o tempo, tampouco o anula. Na verdade, o que
passa a haver no processo de fazer memória do velho é, possivelmente, a aparente
tentativa de quebra da barreira que separava o presente do passado. Se isto acontece
a memória se torna assim o “lugar” de onde se lança uma ponte entre o mundo dos
vivos e o do além. Nessa perspectiva, recorrer à memória, atualmente, pode ser uma
tentativa do velho para encontrar estabilidade diante das mudanças e da reordenação
espacial e temporal do mundo. Desta forma, a própria memória pode ser entendida
como um “lugar” importante para essa dinâmica do mundo contemporâneo como
também para esse entrevistado-velho.
Para Ferrari (2006) apud Delleuze & Parnet, até pouco tempo atrás as
narrações se constituíam, juntamente com as transmissões do parentesco, filiação e
demais forças verticais (instituições como a família, o Estado) os processos de ligação
mais possíveis entre presente e passado. Neste caso a memória feita através das
narrações tinha simplesmente a função de reproduções similares de modos de vida,
retirando quase todas as possibilidades de novidades, como que “negando” para o
presente a possibilidade de mudança. Com a tentativa de colocação do velho como
sujeito de transformação social e não simplesmente como um objeto passivo, a
memória deve ganhar novo sentido, isto é, “lugar” possível de fazer a ligação do
passado com o presente em vista da continuidade da história. Como o velho é o
grande senhor da memória, se torna possível, através dele, fazer a ponte entre
passado e presente. Mas agora não simplesmente como recordação do passado ou
tentativa de possível “negação do presente”, e sim, como ponte entre passado e
presente em vista das transformações do futuro.
Concluindo, podemos dizer que existe uma relação entre a memória do velho e
a identidade coletiva. No processo de envelhecimento, a memória tem lugar
privilegiado na construção de sua identidade e de suas estratégias de afirmação nos
espaços sociais. Daí a importância de o velho poder rememorar, narrar e experienciar,
de falar do passado e até mesmo de fantasiar e repetir tais lembranças. Tal
mecanismo se torna uma forma privilegiada que o faz firmar-se como membro da
sociedade, fazendo a ligação do passado com o presente com vista ao futuro.
2.6 O papel da memória na construção da identidade do velho
Ao buscarmos compreender o papel da memória na construção da identidade
do velho, percebe-se que um permanente entrelaçamento entre o passado e o
presente.
A memória é constituída pelas lembranças do passado, e segundo Bosi (1987,
p. 3), seria preciso um escutador infinito”, pois lembrança puxa lembrança. Nas
lembranças estão as experiências vividas impregnadas de representações. Foi preciso
algum tempo para se construir a idéia de que assim como a experiência produz o
discurso, este também produz a experiência, existindo como que um processo
dialético nesta relação, provocando mútuas influências. No entanto, nesse processo
dialético, ambas, experiência e narrativa são, em essência, relatos mediados pela
subjetividade e pela interpretação do narrador. Assim, ao mesmo tempo em que a
memória é lembrança que puxa lembrança impregnada de representações, ela
interfere no processo atual das possíveis novas representações.
A memória do velho é constantemente renovada pelos novos sentidos e pelos
novos significados atribuídos pelo mundo contemporâneo. Segundo Mucida (2009, p.
106) a memória, sendo o instrumento fundamental que permite ao sujeito, no caso
aqui enfocamos o velho, conjugar o que passa no decurso do tempo que jamais morre,
exige ser atualizada. Atualizar, de acordo com a autora, significa “dar novos contornos
ao vivido”. Isto quer dizer passado e presente constantemente se atualizando e se
conjugando nas vias do porvir. Mas este processo parece não ser tão simples, pois, o
que muitas vezes se observa, em certas práticas utilizadas pelo velho, por conta desse
mundo em rápida aceleração, é que alguns costumes e práticas são descartadas por
não fazer parte do seu mundo. Desta forma, fica descartada a possibilidade de
reposição e atualização de muitas dimensões da vida do velho.
Para Bauman (2005) a busca de um sentido pessoal para a identidade é
consequência do declínio dos projetos políticos para a inclusão de todos os membros
na sociedade. Uma política de identidade do velho conduzida de modo individualista
não quer significar a sua inclusão na modernidade. ]
Para a identidade do velho, a possibilidade de busca de sentido individual deve
ter como padrão comum a pretensão de sua inclusão como sujeito de transformação
desta sociedade. O confronto com os valores disseminados pela dinâmica neoliberal e
pela desregulamentação das políticas estatais é para o velho uma forma de rejeitar
uma política de identidade que parece negar o seu passado. Desta forma, entendemos
que para o velho, o seu projeto individual em busca de bem-estar pessoal e também
coletivo, passa, assim, a ser um “modo de criticar” a sua exclusão de participação nos
projetos sociais. Para o velho esta crítica se em forma de lembranças das coisas
consideradas, por ele, como “boas” e significativas no passado.
A identidade do velho sofre modificações na escrita da história devido às
mudanças de caráter sociail que reivindicavam políticas sociais para a velhice e a
criação de novas categorias adaptadas à condição moral e ética do “velho”. Assim,
para ele, sob o ponto de vista individual e coletivo, apoiar-se em sua história e em
suas lembranças, faz com que sua memória seja um “lugar” satisfatório no espaço
social proporcionando-lhe um investimento no seu projeto de vida. Todavia, a memória
para o velho deve ser concebida como um processo social relacionado com a velhice,
transpondo o estatuto biológico, para uma construção social do seu envelhecimento. O
velho, ao implicar-se na busca da construção dos espaços e do reconhecimento da
identidade, se firma e, sendo assim, ele poderá participar efetivamente das mudanças
nas políticas de identidade: na questão da moradia, do plano de saúde e de outros. Ao
consumar participações estabelecidas nesse contexto, sejam elas afetivas, amistosas,
familiares ou de qualquer outra natureza, o velho ganhará também um status como
“mantenedor da identidade” e de representação que os indivíduos constróem de suas
próprias vidas.
Bosi (2003, p. 53) afirma quea memória não é um repositório de lembranças e
sim uma atividade do espírito: “um trabalho sobre o tempo, mas sobre o tempo vivido,
conotado pela cultura e pelo indivíduo”. Ela também mostra-nos que destruirão
amanhã, o que construímos hoje!. E ela cita em seu livro, Simone de Beauvoir, que
diz:
As árvores que o velho planta serão abatidas. Quase em toda
parte a célula familiar explodiu. As pequenas empresas são
absorvidas pelos monopólios ou se deslocam. O filho as
recomeçará e o pai sabe disso. Ele desaparecido, a verdade será
abandonada, o estoque da loja vendido, o negócio liquidado. As
coisas que ele realizou e que fizeram o sentido de sua vida são
tão ameaçadas quanto ele mesmo (IBID).
A velhice é o momento da vida humana em que a memória torna-se o elo de
ligação com o presente, que a cada dia é mais próximo do velho, no entanto, a relação
da memória com a sua lembrança está ancorada na sua velhice. É assim quando
sobra ao velho mais tempo para as atividades reflexivas, é através do seu passado
que será possível firmar sua identidade. É no seu passado que ele se reconhece e se
compreende e é no passado que ele busca significado para sua vida. Pois, segundo
Mucida (2009), a memória é a primeira apreensão do tempo, é aquilo que conjuga o
que passa no tempo com um tempo marcado em cada um e que não morre.
O homem moderno, no seu presente, adquiriu cios ou falta de sentido para
com o passado do velho, pois, a deferência lançada ao esquecimento é sempre
associada com a pessoa velha, mas, devemos lembrar que o esquecimento faz parte
da nossa memória. Atribuímos ao velho sempre um sentido pejorativo, afirmando que
o esquecimento somente faz parte do envelhecimento ou da velhice, e que tudo o que
acontece em termos das lembranças, das repetições ou das evocações cabe apenas
ao passado e que isso sempre é coisa de velho ou que as suas lembranças são
repetições de seu passado. Assim, para Ferreira (1998, p. 221), a perda do espaço
rememorativo do idoso denota “a desfiguração total do sujeito social, o grande temor
de uma velhice vivida em um contexto historicamente marcado (...) pela imposição
inconteste do novo sobre o antigo, do presente sobre o passado”.
No presente, para Mucida (2009, p. 87), a lógica dominante no mundo atual
informatizado, cibernético, eletrônico, é o contexto que se forma com maior ênfase
para a geração mais jovem, mas ao mesmo tempo somos convocados, jovens ou
velhos a ter senha para acessar tanto o nosso mundo real quanto o nosso mundo
virtual, e frequentemente somos convidados a mudá-la para salvaguardar o sigilo.
Assim, as lembranças do velho podem ser adaptadas ao seu presente, pois,
“lembrar, guardar, armazenar” no mundo moderno, tornou-se para ele um exercício
diário da memória e da sua vida.
Para Mucida (200, p. :86) apud Chauí a respeito da memória:
Enquanto a idéia de uma memória artificial dos antigos assentava-
se na capacidade do sujeito de memorizar, a memória artificial dos
tempos atuais confere às maquinas esse poder, e, nessa direção,
haveria hoje um despojamento da memória com efeitos sobre o
funcionamento da memória individual.
Trazendo-nos o sentido da memória individual, Halbwachs (2006, p. 55)
mostra-nos que neste contexto ela é construída a partir das referências e das
lembranças próprias de um grupo, sob “um ponto de vista sobre a memória coletiva”.
Para este autor, o que deve sempre ser analisado, considerando-se o lugar ocupado
pelo velho, é que no interior do grupo e das relações mantidas com outros meios, além
da formação da sua memória, suas lembranças podem, a partir desta vivência em
grupo, ser reconstruídas ou simuladas na subjetividade e na intersubjetividade. Assim,
o velho ao criar representações do passado assentadas na percepção de outras
pessoas, nas quais ele imagina ou internaliza essas representações, forma sua
memória histórica. Halbwachs (2006, p. 76-78), nos ensina que a lembrança “é uma
imagem engajada em outras imagens”.
A memória coletiva é ajustada na continuidade e deve ser vista sempre no
plural (memórias coletivas). Assim, a memória do velho poderá estar na base da
formulação de sua identidade, e a manutenção dela é vista como característica
marcante. Para o ele nesse contexto, é fazer valer o discurso de sua subjetividade.
Assim, para Bosi (2003) “a memória aparece como força subjetiva, ao mesmo tempo
profunda e ativa, latente e penetrante, oculta e invasora.” E, para o velho, a memória
tem sempre a apropriação do passado, e sua identidade pode ser pensada como uma
fonte provedora de recursos para a construção e para a atualização das coisas do seu
presente.
2.7 O velho e o fio condutor da identidade e da memória
A questão da identidade do velho, na sociedade contemporânea, se
caracteriza, psicossocialmente, por um crescente processo complexo de
reinterpretação, reedição ou de abertura para acolher as transformações sociais da
atualidade. A identidade do velho também sofre as consequências do processo desta
sociedade contemporânea, pois o velho, como “guardião do seu passado”, encontra-
se numa rede de relações intersubjetivas e de laços sociais dos quais é quase
impossível prescindir.
O velho não é apenas “guardião da memória”, de paisagens que já não existem
e de práticas que caíram em desuso, mas é participativo e presente na construção e
manutenção da memória.
Entende-se que o lugar onde acontecem as primeiras relações de sociabilidade
e de intersubjetividade é no seio da estrutura familiar, pois é a família que promove a
construção da identidade, da sociabilidade, da intersubjetividade e da interação social
entre os indivíduos.
Com a possibilidade de o velho fazer memória de sua vida, de seus feitos ou
acontecimentos, de certa forma se abre um espaço para que ele através de suas
lembranças, se torne o fio condutor da construção dos processos sociais. De modo
geral, pode-se dizer que no meio familiar ele sofre, em grau menor, a segregação
social a que amiúde é submetido pela sociedade. Não queremos dizer que seja
sempre assim. Embora sofram maus tratos e preconceitos da família na qual vivem e
convivem, os velhos não deixam de ser o fio condutor da continuidade das relações do
grupo familiar e social.
Para Ciampa (2002, p. 143):
Quanto maior for a complexidade da sociedade, tanto maior será a
pluralidade de formas de vida (...), com isso os processos de
formação de consenso ficam ameaçados por tensões,
prejudicando ou impedindo a integração social; anteriormente os
dissensos eram eliminados num nível arcaico, no modo de uma
autoridade ambivalente que vem ao nosso encontro de forma
impositiva.
O velho hoje vive numa sociedade pluralista e competitiva. Onde parece que a
razão se desligou das formas tradicionais de vida. Nesta sociedade imperam o
individualismo, a concorrência, o consumo e, também, os tradicionais padrões
unitários de interpretação são submetidos a uma pluralidade de padrões de
interpretações culturais. Isto vem dificultando a integração do velho como “autoridade”
ou sujeito ativo no processo de construção social.
Para Habermas (2002c, p. 234) a integração social, isto é, a inserção do
indivíduo na sociedade é garantida por meio da solidariedade que deve ser entendida
como uma força intersubjetiva que cria um sentimento de pertencimento à mesma
comunidade na consciência da dependência recíproca que une os sujeitos humanos.
O velho, não estando imune a todas as mudanças da sociedade, deve permanecer
como “guardião do passado” em vista da construção do futuro. Mas isso será
possível se ele, com suas lembranças, for aceito como sujeito social, isto é, integrado
na sociedade.
A relação que o sujeito velho mantém com os outros que estão ao seu redor,
sobretudo com aqueles que lhe são significativos, tem como papel primordial mediar a
apropriação das significações socialmente produzidas, tornando possível, com isso, a
revisão e a construção de normas, valores, atitudes, criação e manutenção de papéis
sociais, trocas de experiências, possibilitando assim a continuidade das tradições.
Se por um lado na sociedade contemporânea o velho parece ter perdido a
estabilidade de uma sociedade tradicional com aparência fixa, que lhe oferecia
padrões de comportamento, de limitação da liberdade, de manutenção de papéis
sociais pré-estabelecidos, por outro lado, na sociedade contemporânea, existem para
ele, ofertas de imagens construídas com aparência de ilimitadas, como se fosse
possível alcançá-las indiscriminadamente.
Habermas (1983, p. 300) nos fala da possibilidade de surgimento de uma
sociedade emancipada:
Logicamente que o processo de comunicação pode realizar-se
numa sociedade emancipada, que propicie as condições para que
seus membros atinjam a maturidade, criando possibilidades para
a existência de um modelo de identidade do Ego formado na
reciprocidade e na idéia de um verdadeiro consenso.
Pensar uma sociedade que caminha para a emancipação de formas
“petrificadas” ou “estereotipadas” de ser e de pensar e que também possibilita ao
velho um caminho de emancipação, é dar-lhe condições de construir um modelo do
seu “eu” na reciprocidade e no reconhecimento de um verdadeiro consenso. Este
processo significa metamorfose.
Para Ciampa (2005) o desafio, face à crescente ameaça de colonização do
mundo da vida, é criar condições para que a metamorfose, por mais contraditória e
complexa que seja não perca seu sentido emancipatório.”. Assim, podemos dizer que
as metamorfoses requeridas para o velho na contemporaneidade não deverão perder
o sentido de proporcionar-lhe maior emancipação, trazendo-lhe possibilidades de
maior humanização e não instrumentalizando-o a serviço da exploração econômica,
política e social.
Nas lembranças do velho, a família aparece como fio condutor das narrativas
biográficas construídas ao longo de sua vida. Quando a família guarda traços de uma
sociabilidade realizada em longas horas de conversas e de intimidade “para passar o
tempo”, e o velho encontra ali um espaço para ser ouvido, alcança o sentimento de ser
útil, algo indispensável para sua realização pessoal e para a sua integração na
sociedade. Desta forma, o sentimento de ainda pertencer a um grupo social (família) é
considerado, por ele, um símbolo de status que vem ganhando sentido na valorização
da memória e também da manutenção da identidade. Todavia, por mais perfeito que
possa ser o processo de integração do velho na estrutura social através da
apropriação de “generalizações simbólicas” (família, políticas públicas e de identidade,
regras de comportamento, noções de passado, presente e futuro, valores etc.) e que
haja uma possível interiorização ou internalização das estruturas simbólicas do modelo
de seu envelhecimento proposto oficialmente pelo mundo contemporâneo, poder-se-á
perceber uma resistência, por parte dele, no acolhimento do novo e, portanto,
dificuldade de adaptação ás novas formas de ser e de representar a identidade nesta
sociedade.
Para Halbwachs (2006), o indivíduo que lembra é sempre um indivíduo inserido
e habitado por grupos de referência. A memória é sempre construída em grupo, mas é
também sempre, um trabalho do sujeito. Neste sentido agregamos a memória do
velho, a continuidade e a preservação do grupo familiar no contexto de suas
lembranças. Nesse mesmo sentido, Schimidt e Mahfoud (1993, p. 288), citando
Halbwachs, falam que na memória existe uma semente de rememoração que pode
permanecer como um dado abstrato e, ainda formar imagem, e como tal permanecer
ou tornar-se lembrança viva. Se isto faz parte da natureza humana da memória,
podemos dizer que o mesmo pode acontecer com a memória do velho.
Concluindo, pode-se dizer que o velho vem lutando contra toda forma de
possíveis dispersões das lembranças e do esquecimento, na tentativa de firmar sua
identidade nos gestos elementares da vida cotidiana e familiar. Mas, intuímos por esta
pesquisa que isto se torna possível de ser alcançado através de sua integração na
sociedade. No contexto do universo familiar e social o velho sempre faz memória. O
testemunho e o elo de elementos que ele traz na memória são de certa forma
associados à família e á memória coletiva.
Podemos também concluir que a memória individual do velho está sempre
associada à memória do grupo de que ele fez parte. Assim, o velho, por sua vez, está
ligado à tradição, a fatos da família ou à sociedade a qual pertenceu. Desta forma, a
memória coletiva do velho, possivelmente, podeser fator extremamente importante
de continuidade e de coerência para a sociedade como um todo. Mas, é bom lembrar
que é somente através da memória que se torna possível a preservação das tradições,
dos costumes, das práticas de um tempo feliz ou não. Assim, o velho, ao fazer
memória, consegue dar sentido e continuidade às tradições familiares e aos costumes
que lhe são significativos, recompor paisagens do passado, atribuir sentidos aos fatos,
reforçar a memória coletiva e dar significado à sua identidade.
2.8 Memória, velhice e família
A velhice não é uma categoria natural, mas uma categoria socialmente
produzida. Para o velho, a percepção sobre o processo de envelhecimento e sobre a
sua velhice na sociedade contemporânea vem se produzindo na imagem que
construiu sobre sua própria condição de ser velho e a forma como permaneceu na
continuidade desse processo social. Os nculos criados com objetos ‘biográficos’
perdem sua razão se desvinculados de seus donos e aumentam na velhice. Também,
esse vínculo construído na preservação dos objetos biográficos que o liga nas
lembranças da memória, que lhe são caras e na vitalidade das imagens que lhe são
vivas, faz da sua velhice e da experiência comum de seu envelhecimento um contínuo
de sua imagem atrelado ao grupo social e familiar. Na vitalidade das imagens que são
permanentes e conservadas para o velho, no reflexo que ele tem de si mesmo, na
construção de seu processo coletivo associado aos nculos e objetos biográficos da
sua lembrança, estes são os lugares em que ele faz memória. O homem produz e é
produzido pela sua própria história, o que confirma o paradigma de que homem e meio
coexistem e se transformam.
Para Bosi (1994, p. 49): “o velho por estar menos sujeito às pressões do
cotidiano de seu grupo social/familiar faz da arte de lembrar um constante exercício
mental”. O velho carrega em si, mais fortemente, tanto a possibilidade de evocar
quanto o mecanismo da memória, que já se fez prática motora.
Não existe grupo social que não tenha qualquer relação com um velho, e que o
velho também seja totalmente desprovido de relações sociais. As lembranças e as
memórias familiares e geracionais estão ligadas ao velho na continuidade da sua
história e da sua identidade, preservando, assim, o relacionamento social e familiar.
De certa forma, a continuidade das “ações” das gerações do presente, que partilham
com o velho de um mesmo espaço familiar têm interesses comuns. Estas gerações
desenvolvem com os velhos atividades de sociabilidade e preservam também laços de
parentesco que unem as famílias, garantem vínculo com eles e ao mesmo tempo
impedem a mobilidade para o esquecimento. Quando o grupo social abandona o
velho, ou quando este passa a se sentir rejeitado ou mesmo refutado, deixa de dar
continuidade a sua memória individual, e assim, ele se perde nos fios da história e na
identidade da narrativa que deu origem à memória.
De certa forma é o grupo social e familiar que constrói e significado para a
continuidade das lembranças e das rememorações do velho. Conseqüentemente, o
grupo familiar também preserva a transmissão e a construção destas lembranças e
rememorações, favorecendo, para o velho, a manutenção da identidade e da memória,
unindo os vínculos de seu parentesco com a família e com os ancestrais.
Para Bergson (1959 apud BOSI, 1987, p. 45) “Na realidade não percepção
que não esteja impregnada de lembranças”. Os velhos, ao recomporem suas
lembranças, o fazem a partir da percepção dos fatos ou acontecimentos da vida
passada. As lembranças, estando firmadas nas percepções do passado, naquilo que
ficou na memória coletiva, ganham “fluidez” e significado na medida em que são
verbalizadas, dão sentido ao presente. Assim, podemos entender a memória como
lembranças dos fatos vividos, percebidos e sentidos; isto também é uma forma de
conservar a memória sobre a construção da identidade. Novamente, os dizeres de
Bergson (1990), podem refletir sobre o velho e sua velhice, pois este autor não atribui
importância única ao esquecimento como estratégia de sobrevivência, de criatividade,
de esquecimento, mas, sempre para ele as percepções são impregnadas de
lembranças.
Para Halbwachs (1990, p. 71),
O passado não é conservado intacto em nossa memória, pois
dependemos do grupo social para despertar as lembranças. Por
isso a memória social é um processo coletivo, onde o grupo social
desempenha um importante papel no processo de lembrar e de
conservar a memória.
No entanto, para o velho, nas situações em que há a dispersão do grupo social
e havendo também falta de comunicação entre as gerações, torna-se difícil a
socialização das suas lembranças e a fixação da sua memória. Isto ocorrendo,
possivelmente, o levará a uma descontinuidade dos acontecimentos e do discurso que
lhe é próprio. Desta forma, se quisermos reconstruir, de modo mais pleno a memória
do velho, torna-se imprescindível “o grupo de pertencimento”, sem o qual o suporte
para a memória fica comprometido, dificultando-lhe a identificação e a verbalização do
seu passado.
Assim, pressupomos que para o velho poder dar continuidade e permanência à
construção dos fatos e da lembrança, deve estar inserido num grupo de
pertencimento, e aqui citamos a família, pois, ela “encarna”, de modo mais perfeito, a
memória coletiva do velho. Na falta da família podemos citar as pessoas da sua idade,
do seu grupo de pertencimento e também aquelas com as quais, no presente, ele se
identifica, travando laços sociais.
Concluindo, podemos dizer que ao refletirmos sobre a memória do velho, na
sociedade contemporânea, somos levados a considerá-la na interação da identidade
do velho com múltiplos grupos de interação social, co-produtores um dos outros, e
assim, não podemos excluí-lo de marcar um “lugar” no contexto da família. Neste
aspecto, a memória do velho é percebida na interseção do contexto familiar, o que
amplia sua propriedade estática de conservar informações, imputando-lhe certo
dinamismo, exigência própria para a ação de reconstrução das experiências passadas,
que é esta uma forma encontrada por ele para pensar a si próprio, quer seja por
meio da sua relação com o passado ou com o presente. No entanto, no processo de
lembrar, os velhos tendem a selecionar um conjunto de memórias a partir de sua
experiência do presente, tornando o trabalho da memória uma “reconstrução do
passado com a ajuda de dados emprestados do presente”.
Neste sentido, para Schimidt e Mahfoud (1993, p. 289), em termos dinâmicos a
lembrança sempre é fruto de um processo coletivo, na medida em que necessita de
uma comunidade afetiva, forjada no “entreter-se internamente com pessoas”,
característica das relações dos grupos de referência. Assim, para estes autores, esta
comunidade afetiva é o que permite atualizar uma identificação com a mentalidade do
grupo no passado e retomar o hábito e o poder de pensar e lembrar como membro do
grupo. Quando se recorre a Bérgson (1990), este afirma que o passado é mantido
intacto no inconsciente e é atualizado de modo integral no presente de forma
consciente (Bergson, 1959 apud BOSI, 1987, p. 54). Para ele, a memória é um
processo individual, independe do grupo, da existência de pessoas que tenham
vivenciado com o velho os mesmos eventos, e que possam despertar nele os silêncios
da memória. Nessa perspectiva, não se associam aos velhos que lembram a memória
do grupo, ou a relação entre eles.
Já para Bosi (1987, p. 331),
O encontro com velhos parentes faz o passado reviver com um
frescor que não encontraríamos na evocação solitária. Mesmo
porque muitas recordações que incorporamos ao nosso passado
não são nossas; simplesmente nos foram relatadas por nossos
parentes e depois lembradas por nós.
Nesta parte de nosso trabalho pedimos licença para comentar um artigo do
Padre João Batista Libânio, “A vida dos Idosos” (2008), onde o articulista nos explica
que os muitos anos de vida conduzem as pessoas a situações bem diferentes e que
elas questionam a sociedade. Conceber a sociedade enquanto "pluralidade", significa
concebê-la enquanto complexidade, marcada por descontinuidades, o que pressupõe,
do ponto de vista fenomenológico, a construção de uma identidade "plural", na medida
em que os indivíduos estão sujeitos a uma variedade de situações.
Sabe-se que a sociedade moderna dilacera desde cedo as famílias. Os laços
estão a enfraquecer-se com as crescentes separações, com a agitação do dia-a-dia,
com as solicitações do trabalho, com a invasão do lazer midiático. Não sobra tempo
para cuidar das pessoas. Com isso, os velhos muitas vezes encontram na
religiosidade uma forma de se proteger do silêncio e da solidão que os jogam para a
periferia do esquecimento. Se em cada fase da vida necessitamos de ajuda, de apoio,
de convivência humana, os idosos se tornam mais sensíveis e desejosos de
presenças.
Os sujeitos velhos vivem mais de memória que de sonhos, mais de passado
que de futuro, num presente, às vezes, bem limitado. Daí a importância de
reconhecimento e de cuidados nesta fase da vida. O velho também precisa da
sociedade e depende dela que existe em razão dos sujeitos humanos, e nesta
relação surgem as regras e as normas como meios de coerção social para manter o
equilíbrio desta relação, com isso, regras e normas afetam o velho que passa a ter
uma liberdade condicionada, e ele ora as atende, ora as transgride, gerando conflitos
com o seu meio por não exercer, muitas vezes satisfatoriamente, o seu papel social.
Assim, a socialização é uma ferramenta de interação entre a sociedade e o indivíduo,
sendo que as normas e as regras operam como um agente condicionador desta
interação.
Sabe-se que os velhos não vivem somente da repetição do seu passado, as
lembranças embutidas em suas narrativas são construídas pelo presente e se inserem
numa categoria de discurso por meio do qual expressam sua concepção de mundo e o
modo como se relacionam com o ambiente ao seu redor. Na Psicologia Social de
Ciampa, existe uma terceira via a que ele se refere em seu livro (2005), isto é, ele
projeta para o sujeito a via de poder traçar o projeto pessoal de vida, uma forma
especial e reticente daquilo que amadurece na história, que se pela “recusa a se
identificar com as alternativas que lhe são oferecidas”, o que, para o velho, significaria
ser outro velho, isto é, não um velho nos modos idealizados pela sociedade
contemporânea não somente pelo modelo de se criar o seu processo de
envelhecimento, mas um velho capaz de se comunicar com o seu mundo do passado
e com o seu mundo do presente, na construção psicossocial da identidade e da sua
memória no caminho da auto-realização e da emancipação.
2.9 Os papéis sociais e a memória
Na partilha de papéis sociais, tem sido atribuído ao sujeito velho o papel de
guardião da memória, de transmissão de valores, de conhecimentos dos fatos do
presente e do passado, de integração de grupos social/familiar e o de socialização de
pessoas. Estas práticas geradas do mundo da vida fazem parte de um dos recursos
de que a sociedade dispõe no exercício de seu governo e que podemos denominar de
recurso da solidariedade.
Assim, fazem parte, então, do papel do velho na sociedade contemporânea,
ações que dizem respeito ao recurso da solidariedade, e que se desenvolvem num
lento aprendizado.
Considerando-se que a memória social” é um discurso que fala do passado e
também do presente, neste sentido, a interpretação do passado dada pelo velho
reforça a sua auto-imagem criada por ele no presente, assim também como sua
identidade de velho tem sido vinculada a uma de suas potencialidades humanas o
papel transformador e gerador da preservação da memória e da construção da
identidade neste contexto do processo de envelhecimento e como este é um
processo biopsicossocial, tudo o que diz respeito ao desempenho do papel de
transmissor, receptor, é obrigação e não é visto como esforço ou competência
adquirida para o desempenho deste papel.
Segundo Mucida (2009, p. 78),
“apesar do crescimento vertiginoso da população idosa, ainda são
incipientes os conhecimentos e os estudos sobre a velhice tal
como ela se apresenta em nossos dias. Devemos estar atentos e
informados de que não há como negar a passagem do tempo e da
idade cronológica, mas não envelhecemos mais da mesma forma
como acontecia de há 30, 40 anos atrás; os nossos conceitos e os
nossos conhecimentos devem avançar com o tempo do sujeito e
da sua velhice”, também com os seus papéis sociais.
De acordo com Halbwachs (2006, p. 55) a memória individual, construída a
partir das referências e lembranças próprias do grupo, refere- se, portanto, a “um
ponto de vista sobre a memória coletiva”, que deve sempre ser analisado
considerando-se o lugar ocupado pelo sujeito no interior do grupo e nas relações
mantidas com outros meios.
Neste sentido, a profissão que o velho exercia no seu passado era mesclada
com as experiências, as práticas e os costumes de sua época. É compreensível que
no passado um dos recursos usados, era guardar o dinheiro no baú, embaixo do
colchão, nas frestas de assoalhos, pois assim economizava-se para o futuro, para as
ocasiões de doença e outros.
Aqui, peço licença mais uma vez, para contar um passeio da minha memória
de infância, a respeito de meu avô, o meu querido avô, o Senhor Nicolau Anechini, um
italiano de raiz. Lembro-me de que eu ia com ele, a uma mercaria da cidade em que
morávamos, para “ajudá-lo” a fazer as compras do mês para a familia. E, muitas
vezes, o dono da mercearia perguntava a ele, “Senhor Nicolau, o senhor quer pagar
agora, ou o senhor vai marcar na caderneta?” De certa forma, essa pergunta do
comerciante soava para o meu avô como um afrontamento, pois ele respondia: meu
senhor, eu não tenho conta no banco, nunca tive e nunca vou ter, pois, dinheiro a
gente guarda em casa. O dinheiro que recebo, eu guardo na minha carteira ou no meu
guarda roupa e assim não preciso depender do banco e nem contraio dívidas”.
De certa forma, o papel social e econômico definia para o velho, o lugar em
que ele se instalava em sua condição social e econômica. No entanto, as
circunstâncias do tempo presente são diferentes daquelas do passado. Percebemos,
então, que o velho não tem mais esta preocupação de guardar para o futuro, numa
dinâmica própria da sociedade contemporânea, em que se vislumbra o aquecimento
de um mercado consumidor de produtos específicos e de serviços que atendam a
essa população velha.
Assim, o velho, no mundo da vida capturado pela ordem sistêmica da
contemporaneidade, movimenta-se em seus papéis sociais e econômicos, para suas
necessidades e para suas satisfações imediatas, pensando apenas em seu presente
e, com isso, se movimenta para: “os gastos com viagens, com compras, com objetos
(roupas, academia, turismo, etc.)”. Afirma Halbwachs ((2006, p. 78-81) que não
memória que seja somente “imaginação pura e simples” ou representação histórica
que tenhamos construído que nos seja exterior, ou seja, todo este processo de
construção da memória passa por um referencial que é o sujeito, suporte em que se
apóia a memória individual.
Pode-se perceber que para os velhos, o passado não permaneceu como
passado, mas mudou como hoje é o seu presente. Houve mudanças significativas na
modernidade, e o velho faz parte delas. Bosi (1987), ao relevar as lembranças dos
velhos como um dado significativo do mundo social, demonstra que estes sujeitos
exercem uma função primordial na e para a sociedade. Nesse sentido, o velho passa a
ter um papel na construção da memória coletiva do seu grupo, fortalecendo assim
seus elos e reconstruindo sua identidade, tarefa fundamental na formação dos papéis
e dos sujeitos sociais.
Mas, mesmo assim, podemos perguntar o que significa elaborar o passado
para o velho? Qual a importância dos papéis econômicos para ele atualmente,
considerando que a memória não é somente um objeto de estudo, mas também tem
uma tarefa ética? Para o velho, pressupomos que consiste em preservar a memória,
em salvar o desaparecido, o passado, em resgatar, com suas tradições, a sua vida,
sua fala, seus papéis sociais e as imagens que ele trouxe para o seu presente. Ainda,
cabe notar que a preocupação com a memória, mesmo que seja tão antiga como a
poesia homérica, assume hoje traços muito específicos. Diz Gagnebin (2006, p. 97): “é
justamente porque não estamos mais inseridos em uma tradição da memória viva,
oral, comunitária e coletiva”.
Para o velho, o reviver das histórias e dos fatos que contribuíram para o seu
enraizamento e a para a permanência dos seus papéis no mundo contemporâneo,
decorre assim, de uma consciência coletiva que ele mantém com o grupo de
pertencimento, e, conforme aponta Halbwachs (2006), esta consciência coletiva “está
constantemente presente nas pessoas, inclusive na evocação da memória”. No
entanto, para que um fato seja evocado pelo velho e que este fato seja a reconstrução
de seu passado, ou dos papéis que ele manteve em seu passado, mas que agora no
presente ganham novo sentido, o velho, pode continuar retendo-os, mesmo que não
façam mais parte da tradição, porque suas lembranças não estão em um ponto
determinado de sua memória, mas sim constantemente reconstruídas em sua
evocação, pela memória viva, oral, comunitária e coletiva do grupo social.
Assim para Bergson (1990, p. 31)
A memória sob estas duas formas, enquanto recobre com uma
camada de lembranças um fundo de percepção imediata, e
também enquanto ela contrai uma multiplicidade de momentos,
constitui a principal contribuição da consciência individual na
percepção.
Concluindo, através da percepção imediata do presente, o velho reencontra o
passado, mas a memória coletiva é pautada na continuidade do presente, e está
constantemente evocada na construção dos papéis que ele manteve do seu passado
e que trouxe também para o seu presente, com o grupo de pertencimento na base da
formulação de sua identidade. E, assim, ao evocar suas lembranças, suas percepções
que em seu passado passaram por significativas trocas, o velho constrói para si e com
o outro sua identidade no presente, fruto de seu tempo e de sua memória. Mesmo que
os papéis não estejam mais presentes em suas práticas e experiências, ele conserva
a tradição do lento aprendizado que veio traçando na sua história.
2.10 Tempo coletivo e memória
Na construção do tempo coletivo da memória e nos seus efeitos, que
mecanismos de lembranças o velho cria para continuar a inventá-la? Neste sentido,
podemos pensar que é permitido ao velho ter um ponto referencial das coisas que ele
pôde conservar e lembrar sobre os acontecimentos vividos no passado e no presente.
100
Todavia, o tempo coletivo, no sentido dos acontecimentos que são lembrados e
conservados por ele, pressupomos que lhe permite reviver de forma consciente
determinadas lembranças e escolher aquelas que eram importantes para conservar.
Destarte, certas lembranças produzidas pelo velho, de alguma maneira estabeleceram
para ele, o que ele fez das experiências vividas no passado, a repetição do que ele faz
hoje no presente, ou seja, ele reconstituiu, recriou e reconstruiu suas experiências
dando-lhes um novo sentido. Além disso, a lembrança para ser trazida ao presente
necessita de referenciais no tempo e no espaço.
Pressupomos que, ao relacionarmo-nos com o velho, no espaço da memória e
da narrativa, ele constrói, entre o passado e o presente, suas reminiscências na
elaboração da história por ele vivenciada, desde que firmada numa relação
significativa entre ele e seu grupo social. No entanto, a reminiscência tem para ele
uma função de elaboração, de re-elaboração e sentido à memória coletiva. Para
Santos apud Halbwachs (1990), a relação entre tempo e memória é reconstruída a
partir da ligação entre á memória coletiva e as representações que cada indivíduo
consegue perceber no presente, mas, que de certa forma, têm aparência de
similaridade com o passado. Os indivíduos perceberiam o tempo à medida que o
percebessem espacialmente, isto é, eles traduziriam experiências diretas em
segmentos homogêneos do tempo e os alocariam em uma linha contínua para
poderem localizá-los mais tarde. A sensação de temporalidade para o velho parece
derivar do fato de que, os diversos momentos de sua vida ou de sua história, ligam-se
a um conjunto de pensamentos comuns de um determinado grupo ou de um quadro
social da memória. Isto ocorrendo, cria para o velho a possibilidade de construção e
ressignificação da sua própria história. Conseqüentemente, as lembranças e as
representações permitem a ele a elaboração de experiências diretas no segmento do
tempo e do “lugar” em que ele fez memória. Isto é, para o velho, a memória pode ser a
sua experiência com o tempo: o tempo da vida, da morte, do passado, do presente, da
história, da identidade...
Para Halbwachs (2006), o reconhecimento e a reconstrução da memória
dependem da existência de um grupo de referência, tendo em vista que as lembranças
retomam relações sociais e não apenas simplesmente idéias ou sentimentos isolados.
Estas idéias e sentimentos, no caso da memória do velho, são construídos a partir de
um fundamento comum de dados e de noções compartilhadas. Assim, para o velho, os
caminhos da memória são liames traçados por aspectos sociais e individuais, são
liames traçados pelas evocações das lembranças de determinado tempo e lugar
requerendo, assim, para ele, um aparato psíquico. Para o velho, o lembrar e o modo
101
como ele quer lembrar se constroem num movimento do grupo social e consigo
mesmo.
Assim explicita Halbwachs (1990): A inter-relação com o meio social alimenta
as lembranças individuais. A memória não é una, é plural, e vai sendo construída pelo
indivíduo em seu meio social”.
O velho, ao evocar as tramas da memória que sustentavam as lembranças, a
fim de poder compartilhar com o grupo social, normalmente faz uma possível
adaptação, isto é, pela tentativa de evocação da lembrança, ele direciona a memória
para um trabalho psíquico de junção do passado com o presente. No entanto, Bosi
(1987, p. 55), a partir das idéias de Halbwachs, complementa esse aspecto da
memória e lhe o nome de “trabalho de reconstrução”: “Na maior parte das vezes,
lembrar não é reviver, mas refazer, reconstruir, repensar, com imagens e idéias de
hoje, as experiências do passado. A memória não é sonho, é trabalho”. No entanto,
Santos (1998) diz que esta rede de relações e de interações está presente na
memória que cada um guarda, como sendo "exclusivamente" íntima e pessoal.
Portanto, podemos concluir que o velho, ao contar, recontar, viver, reviver, recordar,
interpretar, passa de um tempo para o outro buscando dizer como foi a vida e como
ela é ou poderia ser; também podemos dizer que não existe memória individual, mas
sim, memórias coletivas.
102
CAPÍTULO III
ABORDAGEM METODOLÓGICA
3.1 Introdução
O método usado nesta pesquisa busca compreender a identidade destes
velhos através das suas narrativas e as ações destes sujeitos em relação às suas
condições objetivas. É um movimento que chamamos de “progressivo-regressivo”,
baseado no método de pesquisa adotado pelo psicólogo social, Prof. Dr. Antônio da
Costa Ciampa, apresentado em seu livro: A história de Severina e a estória de
Severino (2005).
Neste capítulo será tematizada a questão do método adotado nesta pesquisa,
e o desafio é buscar resposta para o seguinte problema: “Como compreender o
processo de construção da Identidade do velho no mundo contemporâneo”, bem como
refletir, na análise das entrevistas sobre a memória na questão da construção desta
identidade. Ao produzir as narrativas é possível ao velho, ao "ouvir" a si mesmo em
suas lembranças, ir teorizando a sua própria experiência e o seu projeto individual.
Para contemplar esses aspectos, optou-se pela pesquisa de abordagem qualitativa.
Utilizou-se da análise dos conteúdos do discurso através de entrevista narrativa. Tal
metodologia proporciona ao pesquisador a compreensão e as formas da narrativa
embasada no objetivo da pesquisa. Este pode ser um processo profundamente
emancipatório para a noção de identidade. Nessa direção, tomamos como
compreensão a construção da identidade como intersubjetividade e como
transformadora de uma realidade historicamente metamorfoseada. Isto é de certa
forma ir ao encontro das pesquisas, bem como da compreensão do sintagma:
identidade, metamorfose e emancipação do psicólogo social Antônio da Costa
Ciampa.
103
3.2 Compreender a Identidade, a questão do método
Certamente, pretendeu-se abordar a metodologia da História de Vida, dentro
desse caráter emancipatório, utilizando como fio linear da discussão o pressuposto de
que conhecer os processos de formação da própria identidade, através dessa
metodologia, permite ao velho conhecer melhor os caminhos para o diálogo entre
realidade vivida e interpretada e encarar com mais objetividade os mecanismos
construtores da própria história.
Conforme o que foi discutido, a identidade humana é definida por Ciampa (2005b)
como metamorfose, ação constante de formação e transformação do indivíduo, que
ocorre em meio a condições naturais e históricas, considerando-se que a identidade
se concretiza sob aspectos biopsicossociais, ainda que de forma simples e rápida. O
que se pretende é deixar claro que identidade é sempre um conjunto de
metamorfoses, cujo sentido precisa ser compreendido sempre como emancipatório (ou
não) e que sua concretização se dá sempre como ação política (exercida ou não).
Nesta tese buscamos compreender a identidade dos velhos e a sua memória
através das narrativas das suas histórias de vida. Partimos do pressuposto de que é
possível perceber nas histórias de vida destes sujeitos velhos, uma trajetória possível
de metamorfoses, de metamorfose emancipatória e de possível emancipação ou não;
pressupomos também uma maior autonomia e uma busca de individualização e de
realização pessoal. Assim, também neste estudo é importante para nós compreender
se as histórias destes velhos estão embutidas no seu projeto de vida, se eles estão
inseridos no mundo contemporâneo?
Segundo Almeida (2005, p. 84) resta-nos considerar a identidade como
metamorfose, ou seja, como algo associado ao processo de concretização do sujeito
humano. A noção de metamorfose supõe o caráter inacabado, nunca concluído do ser
humano, privilegiando o seu processo de formação e de transformação. Assim, a
metamorfose pode discrepar das proposições que à associam ao modo sincrônico
como que um mesmo indivíduo desempenha vários papéis e encarna múltiplas
personagens, variáveis conforme os contextos de sociabilidade que vivencia e
percorre no cotidiano. Também, Almeida (2005) mostra-nos que a alterização é forma
específica de metamorfose, e que diz respeito às alterações que se processam no
modo como os indivíduos se vêm a si mesmos e se percebem no mundo e, mais do
que isto, à individualização deles; diz respeito, ainda, às alterações no modo como
eles são vistos e tratados pelos outros. Em termos de mundo da vida, para este autor,
a alterização aponta para alterações no modo como cada um é socializado e, ao
104
mesmo tempo, se individualiza. Isso também se abre para os velhos no sentido da
compreensão de sua identidade e das formas de suas metamorfoses.
3.2.1. A compreensão da identidade/metamorfose/emancipação no método de
pesquisa da construção da identidade do velho
Para a compreensão dessa identidade/metamorfose/emancipação da
construção do velho no mundo contemporâneo, o que se pretende é passar por
aspectos que envolvam a narrativa de velhos num contexto social/ético/emancipatório,
porque, segundo Ciampa (2005), “identidade é metamorfose”. Contudo, para Ciampa
(2005), no processo de formação de identidade, o indivíduo se transforma e, nessa
transformação, representa diferentes papéis em diferentes momentos. É nesse
processo que se a metamorfose, ou seja, o desenvolvimento do concreto que
acaba por implicar a reprodução da cultura, da sociedade, da vida humana. A
metamorfose pode ser, ainda quando evitada ou oculta, expressa na invencibilidade
da substância humana, como produção histórica e material, como uma reposição que
acaba levando a uma compulsão, à repetição que passa a ser vista como negativa,
uma vez que o fato de se impedir a emancipação, em conseqüência do que se
metamorfoseia, pode ser julgado “negativo”.
Ainda, Ciampa (2005, p. 2) nos diz o seguinte sobre a metamorfose:
metamorfose humana tanto (1) no sentido de transformação do ser criança ao se
tornar adulto, como também (2) no sentido constitutivo de nossa formação como ser
humano, ou seja, quando reconhecemos nossa condição de nascermos como um
animal humanizável que, através da progressiva socialização e individualização, ou
seja, da interação com o outro, torna-se um ser humano.
Neste sentido, pressupomos que, ao falar de identidade, seja individual ou
social, ela pode se refletir na história da metamorfose do velho, que está em busca de
sua emancipação e também do que o humanize; e, assim, essa emancipação o
sentido às metamorfoses.
Segundo Lang (2000), nas áreas das Ciências Sociais, as pesquisas com
história de vida têm utilizado terminologias diferentes e, embora considere os aspectos
metodológicos e teóricos que as assinalam como eleitas da abordagem biográfica que
utiliza fontes orais as chamou autobiografia, biografia, relato oral, depoimento oral,
história de vida, história oral de vida, etc.
105
Pressupõe-se que a história ou o relato oral estão cada vez mais presentes
nos debates e ressurgem como técnica útil para registrar o que ainda não está
cristalizado em documentos escritos, para captar o não explícito, o não falado.
Para a realização de uma boa pesquisa de campo é extremamente necessário que o
pesquisador siga algumas orientações, dentre elas podemos destacar: ser um bom
ouvinte, pois esta proeza permite ao informante ser ativo no seu papel de auxiliar,
fornecendo informações valiosas para o pesquisador.
Ainda, ao abordar as possibilidades e os procedimentos de pesquisa, Lang
(1996 e 2000) afirma que este método constitui-se como metodologia qualitativa de
pesquisa direcionada para uma melhor compreensão do presente, bem como permite
apreender a realidade presente e o passado pela experiência e vozes dos atores
sociais que os viveram: a realidade presente e o passado.
Nesta perspectiva, numa pesquisa da História de vida dos participantes-
velhos, as narrativas são gravadas, de forma que a interação pesquisador-pesquisado
faz-se presente, possibilitando sua transcrição e, por fim, a construção de documentos
que serão trabalhados.
3.3 Mas como explicar o método fenomenológico?
Outra forma de pensar se mostra presente na teoria de Berger e Luckman
(1985), assim, o processo de apropriação do mundo pelo homem consiste em
apreender de forma interativa a experiência histórico-social e, com isso, dar curso ao
seu desenvolvimento ontogênico, o que significa incorporar a experiência acumulada
no processo histórico e atuar no mundo dos objetos, da língua, dos conceitos, das
idéias, das criações, entre outros, para poder desempenhar as diversas formas de
atividades e desenvolver as características e capacidades físicas e psicossociais que
se cristalizaram no seu mundo, como a corporeidade, a linguagem, o pensamento, as
emoções, a consciência e outros. Assim, é da representação da experiência na
dimensão de vida, o velho apreende e constrói sua narrativa, e assim, através desta
narrativa como uma ferramenta, que ele se torna capaz de atuar no mundo e de
organizar seu contato com o mundo. No sentido dessa dimensão de si e do mundo, e
das formas de interação com o outro e com o mundo social, ele conta a sua história,
narrando os fatos, acontecimentos e afetos que percorrem a sua trajetória vivencial. E,
na medida em que o faz, desvela a sua experiência, ao mesmo tempo em que a
constrói e reconstrói, através da linguagem. Ao contá-la, o velho nos introduz na sua
106
vida, sensibiliza-nos e coloca-nos como participantes da sua experiência, fazendo do
entrevistador um sujeito dessa experiência que ele cria e recria.
Neste nosso estudo empregamos a abordagem qualitativa da pesquisa. O
velho, devido ao seu maior tempo de vida, acumula mais elementos que formam a
memória coletiva do que o que ocorre a uma pessoa jovem. O passado interage com o
presente e vice-versa. A temporalidade neste processo somente é possível quando é
ligada a uma ou a várias formas de narrativas, sejam elas da memória individual ou da
memória coletiva; portanto, tenderiam a justificar tanto os aspectos regulatórios como
os emancipatórios do processo. Por tais razões, justifica-se a metodologia adotada
nesta pesquisa, que busca compreender a história de vida dos velhos aqui
entrevistados, a partir de suas narrativas orais.
Na perspectiva de trabalhar com velhos em processo de metamorfose, o
aspecto de grande peso que perpassa a questão apresentada é o processo de
identidade. Para Ciampa (2005, p. 148), dois pontos importantes devem ser levados
em conta:
1) que a questão da identidade é central, porque problematiza a própria
natureza do real;
2) que a questão da identidade posta como metamorfose na aparência, se
inverte no contrário: a não–metamorfose, quando há reposição de pressupostos.
Segundo Baptista (2002, p. 145), a complexidade destes processos envolve
ainda a questão de estarem eles em interação, através de composições e oposições, o
que faz a identidade ser a integração da semelhança e da diferença, tanto em relação
a si mesmo como na relação de cada um com os outros que guardam entre si
pequenas e /ou grandes semelhanças ou diferenças.
Nesse sentido, procuramos fundamentar teoricamente sobre como o velho
está tomando consciência desta permanente transformação, considerando que o
significado de identidade é formado na relação entre processos de integração tanto de
igualdade como de diferença, indicadores do entendimento destes sujeitos-velhos a
respeito de aspectos caracterizados como de emancipação e de metamorfose humana
em um processo complexo e dinâmico que se constitui na relação dialética do homem
com seu mundo real, tendo a subjetividade como forma de se expressar.
Ciampa (2005), ao citar Heller (1992), mostra-nos, nesta tarefa de
determinar os processos sociais, que a importância social dos papéis está na
possibilidade que eles criam para que as pessoas automatizem sua participação no
mundo cotidiano”. Verifica-se que uma nova categoria para este envelhecimento
social, justificada em razão de o velho não aceitar qualquer lugar imposto pela
107
sociedade e ser visto como estorvo, mas como um sujeito participativo no mundo
contemporâneo, nos aspectos do cuidado com a saúde, com a cidadania, com as
conquistas e com os espaços sociais nos quais transita o que implica a construção da
identidade e a intersubjetividade contemporânea.
Voltando ao nosso trabalho de mestrado, ao pensarmos na articulação -
contexto de inserção do velho e memória - vimos que é possível redimensionar essa
sua memória, a sua própria história, valorizando este ser em sua dignidade, em seu
despojamento de contar, de reviver, pois, nesta reconstrução, neste fazer, é que incide
a metamorfose humana, a partir de relatos das lembranças, das narrativas orais, na
forte religiosidade que o velho traz em sua vida, nesta transformação em que o sujeito-
velho foi sendo redimensionado em seu papel social, na diferença, na singularidade,
na normatividade dos papéis apreendidos.
Nesse sentido, a condição de emancipação do ser humano ocorre
universalmente quando, através do agir comunicativo, houver possibilidade de se
estabelecerem projetos coletivos que conduzam a um estado em que realmente os
homens como um todo sejam responsáveis pela construção de sua história
(BAPTISTA, 2002, p. 148), pois, segundo Debert (1999, p.: 11) o “velho” é um ator que
não mais está ausente do conjunto de discursos produzidos, para nós. “Os velhos são
como um conjunto autônomo e coerente que impõe outro recorte à geografia social”.
Tais mudanças permitem que possamos pensar que o envelhecimento não acontece
mais aos exatos 60 anos de idade, até porque, hoje, auferem-se vantagens em ser
velho, vantagens essas evidenciadas cada vez mais na sociedade, na política, na
saúde, na mídia, no setor de turismo, de lazer, etc.
Nossa justificativa é a de que a questão da identidade do velho no mundo
contemporâneo implica necessariamente mudanças processadas em sua história
pessoal e em sua intersubjetividade, assim como implica o seu projeto de vida, a
assunção de novos papéis sociais, caracterizando-se, dessa forma, a identidade como
um contínuo processo da articulação de igualdade e diferença, de movimento e
dialética.
Neste nosso trabalho foram utilizadas entrevistas semi-estruturadas para
conhecer através da narrativa a história de vida dos velhos e a dimensão dada ao seu
projeto individual, objeto de estudo da presente investigação. Escolhemos aqueles
velhos a partir de 65 anos de idade, que são moradores em Alfenas e Pouso Alegre,
cidades em que desenvolvemos nossas atividades acadêmicas e profissionais.
Os autores escolhidos para mediar nossas análises a respeito das
entrevistas que se apresentam neste trabalho vêm, na sua maioria, da área da
Psicologia Social, e se valem primordialmente da categoria identidade e memória.
108
Enfatizamos, contudo, que o emprego desta categoria por teóricos das
Ciências Sociais tem contribuído para várias discussões e desdobramentos, pois
geralmente esta categoria está vinculada à idéia de sujeitos e de grupos e atrelada a
princípios como unidade, semelhança e totalidade, o que lhe acarreta grande
componencial de fixidez, aspectos que problematizamos nesta investigação.
Aceito o convite para participarem da entrevista, os participantes foram
informados a respeito dos seguintes procedimentos:
A) Quanto a sua história de vida narrações gravadas e transcritas literalmente,
sendo possível, se necessário, após a digitação e a formatação, fazer acréscimos ou a
retirada de dados.
B) Quanto a uma seção de perguntas as respostas foram gravadas e transcritas
literalmente, sendo possível também, quando necessário, fazer acréscimos ou a
retirada de dados. Para esse fim, foram elaboradas duas perguntas:
1) Quem é você?
2) Quem você gostaria de ser?
C) Cada participante, se julgasse necessário, ao término de nosso trabalho, poderia
tecer suas considerações a respeito do mesmo. Tudo seria gravado, transcrito
literalmente e depois digitado.
Escolhemos estudar o cotidiano de uma classe social cujos membros seriam,
conforme estereótipos sociais, tidos como relegados, irrelevantes e, conforme os
dizeres de Gagnebin (2006) seriam aqueles deserdados de seus trabalhos”. São
pessoas velhas que moram tanto nas instituições asilares como fora delas, residindo
alguns deles no mesmo bairro onde residimos.
Entretanto, verificamos, logo por ocasião da coleta de dados, que os velhos
participantes desta investigação não corresponderiam aos estereótipos de senso
comum, não viviam isoladamente, nem se sentiam marginalizados, mas participantes
efetivamente de atividades sociais, como bazares beneficentes, além de apresentarem
bem-estar biopsicossocial.
Então, para além da escolha de velhos moradores no bairro em que
residimos, para efeitos de contraponto, escolhemos duas instituições a que sempre
tivemos livre acesso: a instituição número 1, que abriga 83 sujeitos velhos, tanto do
sexo masculino como do sexo feminino; e a instituição de número 2, com 73 sujeitos
velhos, sendo a maioria mulheres.
109
As entrevistas realizavam-se no quarto do participante residente em
instituição, para prevalecer sua intimidade e sigilo. Tivemos vários encontros para
conseguir certa intimidade e ganho de confiança entre pesquisador e entrevistados.
Com relação àqueles residentes fora da instituição, fomos até suas casas e as
entrevistas tinham lugar na sala ou no quarto por eles determinado. Fizemos recortes
da fala de nossos entrevistados, buscando aliar sua identidade e suas memórias num
processo social e histórico.
Por questões éticas, os participantes escolheram substituir seus verdadeiros
nomes por apelidos ou nomes fictícios.
3.4 Procedimento
Primeiramente encaminhamos à Diretoria da Instituição uma carta explicando
a relevância da pesquisa e solicitando autorização para realizá-la. Com relação aos
velhos residentes fora da instituição asilar, fizemos contato direto com cada um deles.
Conversamos em vários encontros para estabelecer um amistoso contato inicial;
vários convites para o café da tarde com a família, a festa de aniversário, de
casamento de sobrinhos e netos, partiram desses primeiros contatos. Enfim, certa
intimidade e hospitalidade foram sendo construídas ao longo desta relação. Obtida a
autorização e a aceitação dos velhos residentes ou não em instituição, em participar
da pesquisa, iniciamos nossa trajetória de trabalho. Assim, foram agendados,
primeiramente, as datas e os horários para as entrevistas.
Para a realização deste trabalho utilizamos o gravador, pois este oferece as
informações necessárias neste processo e parece, a primeira vista, um instrumento
técnico próprio para anular, ou pelo menos para diminuir o possível desvio trazido pela
intermediação do pesquisador. Apesar da grande dificuldade que é a transcrição dos
dados, este instrumento nos foi de tamanha importância, pois promoveu uma maior
fidelidade com relação as entrevistas que foram realizadas. Segundo (Queiroz, 1983)
a captação de informações, depoimentos, por meio do gravador representa uma
ampliação do poder de registro dos pesquisadores.
De certa forma, na pesquisa empírica, as dificuldades encontradas foram
decorrentes do critério de se entrevistar velhos que possuíssem idade igual ou
superior a 60 anos e que estivessem dispostos a ser entrevistados, pois alguns se
recusaram a participar movidos por uma certa desconfiança em relação à garantia de
sua permanência na instituição; outros temiam uma “invasão” de sua intimidade.
Diante de tais circunstâncias, foram entrevistados oito sujeitos velhos, sendo três
homens e cinco mulheres. Todas as entrevistas foram transcritas e escolhemos três
110
delas para serem apresentadas nesta pesquisa e em nossas análises. Os critérios
para a escolha dos entrevistados foram:
1) ser residente na Instituição Asilar na qual a pesquisadora é supervisora de
estágio e ou no bairro onde residem certos moradores velhos;
2) ser lúcido;
3) aceitar ser entrevistado;
4) ter idade igual ou superior a 60 anos.
Percebemos que nem todos os residentes na Instituição Asilar possuiam
idade igual ou maior que 60 anos. Segundo informações fornecidas pelos
responsáveis da referida instituição, antes da vigência do “Estatuto do Idoso”, eram ali
acolhidas pessoas que precisavam de um lugar para morar. Ao vigorar o Estatuto no
Brasil, não mais foi aceita qualquer pessoa com idade inferior a 60 anos, mas os que
ali já moravam tiveram autorização para continuar.
Para conversar com os velhos e fazer entrevistas, foi preciso, de início,
estabelecer com eles uma relação de confiança e a primeira dificuldade que se nos
apresentou, no começo da pesquisa, foi encontrar velhos que não tivessem déficits
cognitivos e demenciais, que se adequassem aos requisitos estabelecidos, e que
aceitassem servir como informante.
Primeiramente, os velhos tiveram acesso ao termo de consentimento e, a
partir do momento em que autorizavam a entrevista, assinavam o referido termo que
se encontra em anexo, ao final do trabalho.
Os encontros individuais foram feitos com gravadores e tiveram a duração
média de, aproximadamente, quinze a vinte minutos, tempo este relativamente curto
devido às dificuldades que os velhos tinham em iniciar a sua história.
Após a transcrição literal, digitação e formatação do texto, foram agendadas
novas datas e horários para a leitura do material e para acréscimos ou retirada dos
dados, quando isto se fizesse necessário.
Segundo Szymasnki, Almeida e Prandini (2001: 152)
21
, tanto o delineamento
dos procedimentos de uma pesquisa, quanto a análise de dados dependem da opção
teórico-metodológica do pesquisador.
A coleta de dados foi por nós realizada no período de julho de 2007 a
dezembro de 2008.
111
3.5 Sistematização, análise e discussão dos resultados
Os dados coletados foram sistematizados e analisados separadamente.
Observaram-se, para análise e discussão dos resultados, critérios como: - a origem
dos entrevistados velhos; - a família; - a vida no trabalho; - a interação com o social; e
- o seu projeto de vida, buscando registrar a metamorfose e emancipação acontecidas
ou não em suas vidas.
Na pesquisa procurou-se utilizar da descrição de forma que ela cumprisse
essa função desveladora, sistematizando-se os dados com clareza e precisão a partir
do que foi visto nos encontros com o entrevistado velho.
De acordo com Gomes, Szymanski,(1988, p. 11) apud (Szymanski, Almeida
e Prandini (2001, p. 155), num primeiro momento, tem-se o relato da experiência, que
depois é conceptualizado em categorias descritivas que devem englobar elementos
empíricos. Trata-se de uma redução a termos descritivos mais abstratos: uma
reescrita depurada da factualidade imediata, mas sem perdê-la de vista.
Estes participantes velhos constroem significados, compartilhando de um
mesmo universo simbólico, através de uma rede de normas, dentro de uma
determinada cultura, de assunção de papéis sociais, articulando interesses vários, e
vivendo em um mundo em transformação. Nesse sentido, a identidade é, em cada
caso analisado, uma relação que compreende nossa capacidade de nos
reconhecermos e a possibilidade de sermos reconhecidos por esses velhos (outros)
em sua história de vida. Nesse processo de afirmar a identidade do velho em um
determinado contexto, denominamos como o de identificar-se o igual e o diferente
numa visão dialética - e ao mesmo tempo relacional -, em que a identidade destes
velhos, em sua concretude cotidiana, recompõe-se em suas falas, em suas
articulações de igualdades e diferenças. Levando em conta tal rede de relações é que
o objetivo geral desta investigação se situa, como dito antes, como uma tentativa de
compreender o processo da identidade do velho no mundo contemporâneo.
Desejamos que ela não seja apenas mais uma leitura de cunho individual,
mas que possa fornecer encaminhamentos, contribuir, enfim, para os estudos em
torno da problemática identitária do velho e que seja pertinente a todos aqueles que
dela se possam valer.
112
4 CONCLUSÃO
Ao discutir o processo de envelhecimento e a velhice em nossa sociedade,
coincidentemente ao que ocorre em todas as outras, a constatação que salta à vista é
a de que a população idosa cresce aceleradamente, em descompasso com a faixa de
jovens que vem diminuindo sensivelmente.
Tal mudança demográfica manifesta nas sociedades modernas, aliada às
mudanças trazidas pela aplicação das novas tecnologias ao cotidiano das pessoas,
coloca-se como uma questão que diz respeito em essência ao presente e futuro
humano, com implicações e decorrências à temática identitária.
Acresce-se ainda, nos dias atuais, uma mudança que vem sendo sentida na
teorização sobre o papel social de estabilidade das velhas identidades: se antes se
acreditava que, por muito tempo, as velhas identidades haviam estabilizado o mundo
social, hoje se diz do deslocamento de toda uma paisagem cultural: de gênero, de
sexualidade, de classe, de etnia, de raça e de nacionalidade.
Diante das conseqüências de tais mudanças, não podemos nos eximir quanto
à responsabilidade de pensar e agir em favor de seu questionamento e enfrentamento,
por conta em especial da mensagem que nos chega dos atuais velhos: “a de que
todos querem chegar lá”. Mas chegar a um futuro próximo, com a condição de este ser
vivido com a dignidade de um ser humano. Dignidade que implica o respeito à
identidade do velho, o respeito ao estatuto desse sujeito, nos tempos atuais.
Não é senão por meio do avanço na implementação das políticas públicas e
sociais e do reconhecimento da produção de novos sujeitos que pode ser garantida ou
mesmo posta à prova a identidade do velho na diversidade de sua subjetividade, na
heterogeneidade de culturas e de novas formas de ser e estar no mundo
contemporâneo; e fazendo valer a possibilidade de elevar esse velho à condição de
“ator social”, a um tempo produtor da realidade e co-produtor de sua identidade e
história.
Num certo sentido, avança atualmente nosso entendimento de que somos
seres singulares e complexos, em oposição ao modo como o homem tradicional vinha
cultivando sua identidade segundo um quadro de referência cuja ancoragem estável
se dava em padrões comportamentais externos, coletivos, transcendentes e racionais.
Atualmente fala-se de uma crise de valores que vem atingindo o homem em seus
costumes, padrões de comportamento e desejos, em seu “Eu” mais profundo, isto é,
no modo de estruturação do ser humano: sociologicamente falando, a chamada "crise
de identidade" (Hall, 2006, p. 7).
113
Mas concepções diversas de "identidade" também são teorizadas em outros
campos científicos, caso da psicologia social, e que pode abarcar a questão identitária
particular ao velho. Este não fica imune a essas novas tendências identitárias, nem
tampouco seus desejos deixam de se afetar por determinações advindas de fatores
externos resultantes de seu pertencimento à sociedade contemporânea, tais como: a
ideia de ser ativo, de continuar produtivo para além da aposentadoria, de ter poder, de
ter “aparência”, de poder consumir, de gozar, enfim, dos valores estéticos, de
liberdade, de autonomia, de reconhecimento de seus valores pessoais, trazidos pelos
novos tempos.
O conceito de identidade, no mundo contemporâneo, vem ganhando uma nova
elaboração teórica, em que é exemplar Bauman (2005): aquela que diz de uma
aparência de “volatibilidade”, ou mais precisamente qualificada de “identidade líquida”.
Em certo sentido, a possibilidade de se ter um “identidade líquida” não quer dizer que
o problema da identidade nos dias atuais esteja resolvido. Desfrutar da possibilidade
de liberdade pode significar apenas um “fetiche”, por um lado. Por outro, leva-nos a
pensar que a sociedade de consumo propõe, de fato, que o sujeito se realize por meio
da aquisição livre, ou mesmo irrefletida, de objetos de prazer numa volatibilidade
contínua. Contudo, pode-se pensar, a meu ver, que se mantém no sujeito uma certa
posição de estabilidade: embora mudem seus objetos de consumo, ele continua se
identificando, enquanto consumidor, com tais objetos que ele tem a liberdade de
adquirir para seu benefício ou apenas prazer, não sendo talvez, neste caso, tão
absoluta a “liquidez” dos postulados identitários.
Contudo, não se pode deixar de reconhecer que a possibilidade da “identidade
liquida” traz, segundo Bauman (2005), um complicador para as políticas de formação
de identidade individual, grupal e social. Uma alteração identitária contínua, constante,
impossibilita, em muitos casos, que haja interações sociais entre indivíduos e grupos
humanos. Ela traz também, como diz o autor, uma tensão permanente em estar
repondo, a todo o momento, os substratos de diversas ordens que a sustentam.
Os velhos entrevistados nesta pesquisa fizeram-nos depreender, na evocação
de suas referências, que o processo de "metamorfose" no sentido ciampiano, é algo
de caráter contínuo, em suas vidas. Que a velhice não se constrói quando se está
velho, mas em etapas anteriores do processo de envelhecimento. Assim, os
constituintes envolvidos nesse processo - identidade e memória - articulam-se em um
constante processo de interação social com o mundo em que esses velhos vivem, no
presente caso o mundo contemporâneo. Os novos tempos, para eles, trouxeram,
sobretudo advindo dos avanços das ciências sociais, um novo lugar”: o de atores e
protagonistas na produção de sua subjetividade, de sua cultura, de sua identidade e
114
história. Isso habita-os a a se assumirem, assim, como produtores e co-produtores de
conhecimentos, de nova visão de mundo, de uma renovada gestão das instituições e
de usufruírem das contribuições do seu passado, atualizando-o para o enriquecimento
contínuo de seu presente.
Para a formação de um indivíduo autônomo e capaz, a implementação
adequada e efetiva das políticas sociais é condição necessária. A luta por maior
democracia nas políticas de identidade é sentida nas narrativas da história dos velhos
aqui incluídos. Tudo isso em razão especificamente de seu engajamento pela
afirmação e reconhecimento de suas identidades, bem como pela tentativa de
superação das problemáticas que os cercam, como a miserabilidade de sua condição
de vida. Tais restrições são co-existentes à concretização de anseios por uma vida
melhor e digna mesmo assim, são condições essenciais para a manutenção de
suas identidades no processo psicossocial. Tais restrições, por um lado, reproduzem e
reafirmam preconceitos estigmatizantes que ainda incidem sobre os velhos no mundo
contemporâneo, mas também abrem caminho, por sua vez, para a emergência de
práticas inventivas que possam mitigar o sofrimento e a desesperança, aliviando o
sentimento de desamparo diante de uma realidade na maior parte das vezes difícil de
suportar.
Apesar da lentidão de movimentos ou de outras limitações que, muitas vezes,
são impostas às pessoas durante o processo de envelhecimento, nas entrevistas
realizadas nesta pesquisa, os velhos mostraram que querem continuar a aprender e a
serem protagonistas do processo de construção de sua velhice. Na análise das três
entrevistas, vimos que cada narrativa de vida revela peculiaridades muito próprias,
seja dentro do âmbito da família, seja nas relações sociais ou de trabalho; enfim, a
identidade com "aparência de liberdade", segundo Bauman (2005) parece ser uma
tendência que vem marcando o processo de construção da identidade no mundo
contemporâneo, e que pode estar exemplarmente presente na experiência do
envelhecimento.
Para o velho especificamente, a questão da identidade não deixa de ser um
projeto de caráter pessoal, individual; assim colocado, uma efetivação bem sucedida
desse empreendimento dependerá do próprio esforço do sujeito-velho, de sua
capacidade de adequação a novas situações, de sua iniciativa em “fazer” de sua real
velhice um novo “envelhecimento”.
A entrevistada Dona Olivina, por exemplo, imprimiu vida própria naquilo que ela
narrou do contato com a família; mostrou-nos que participou vivamente das múltiplas
interações que fôra estabelecendo com o mundo, transformando-o, e vice-versa,
transformando-se em cuidadora da família, do trabalho, da memória e da identidade.
115
Abriu, assim, a possibilidade de fazer-nos entender um pouco mais sobre os
processos geradores da transformação ou de não-reposição da identidade - os
"processos-metamorfoses" por que passou - que foram desafiados durante toda a sua
trajetória de vida e, em entrevista, evocados por ela.
Outro fato, ao longo de sua vida, e que lhe deixou marcas, é que ela não teve
ambições, na verdade: sobreviveu apenas, como relata, no contexto de uma cultura
que preza os valores transmitidos de pais a filhos. Reafirma-se, assim que, apesar de
viver em um mundo tecnológico e secularizado, ela primou em muitos momentos por
retomar os fatos de seu mundo passado, o mundo da memória afetiva, da "memória-
hábito". Ainda segundo ela, por ter vivido no contexto psicossocial da família, tal
condição lhe acarretara mudanças substanciais ao longo de sua trajetória de vida,
tecendo-lhe, assim, o tempo e a memória, o tempo e a identidade, a metamorfose que
caminhou com a vida, com o nome que ganhou ao identificar-se cuidadora. Assim, no
contexto de todo este processo se deu sua verdadeira “emancipação” pessoal.
Na dimensão mais individual das entrevistas, tornou-se quase impossível falar
de velho sem falar de memória, pois parece representar esta o espaço mental
privilegiado em que o velho firma sua identidade, quando se articulam memória e
identidade.
É importante auferirmos que, pela via das entrevistas, por meio da interação
dialógica que tivemos com estes velhos, de certa forma eles foram se revelando
paulatinamente, dando-nos a impressão de que, ao ir contando sobre sua história,
sobre a construção do seu projeto individual, na possibilidade de reviver, de desvelar
seu presente na narrativa oral, sentem-se mais seguros em seu passado. Este é um
dado psicossocial importante em razão do qual decorre-nos a idéia de que são muitas
as possibilidades de os velhos abraçarem a nova produção ou a renovação de sua
identidade.
A identidade do velho não se dá sem os referenciais do meio em que ele viveu,
que permaneceram em sua memória como lembranças vivas e enriquecedoras,
renovando assim, continuamente, a construção de sua identidade. Isto significa que a
identidade e a memória do velho não são coisas do passado que se situam em
oposição às do presente. Assim, uma identidade construída a partir de pressupostos
tradicionais de um passado que, agora em seu presente, ganha a aparência de atual
ainda que com forte aderência do passado mostra que mesmo que os modelos
geradores de identidade propõem para o velho uma identidade de pessoa ativa, de
identidade fixa e permanente, ainda assim, como sujeitos de suas existências,
permanecem eles continuamente na segurança do passado.
116
Os velhos nem todos eles são inúteis e descartáveis, repetitivos e
desmemoriados; são eles sujeitos que atravessaram uma sociedade em que a
imagem exigida pela mídia e internalizada pelo coletivo é aquela moldada dentro de
padrões ilusórios de eterna juventude, nos quais o envelhecimento é ignorado ou não
reconhecido, haja vista que hoje vivemos uma busca incessante pela beleza, pela
forma física perfeita. A identidade, na verdade, é de caráter relacional, marcada pela
diferença e, no caso da identidade do velho, sua diferença é relegada à exclusão, pois
ainda podemos depreender que a identidade é algo que se estabelece em
consequência das experiências e das relações vivenciadas pelo indivíduo, o que, por
outro lado, é condição de sua manutenção. Mas, ao mesmo tempo, é preciso assinalar
que a sociedade deve se preparar para uma nova construção: a de um novo
envelhecimento social e da troca de gerações.
A partir de concepções manifestas sobre a velhice e da construção da
identidade do velho e até mesmo em razão de suas contradições, é que se pode
pensar e constituir uma identidade alternativa, em que se descortinam outras
possibilidades identificatórias. No caso de o velho pensar a identidade como sendo
autêntica "metamorfose", e esta como possibilidade de "emancipação" - ambos os
conceitos tomados no sentido ciampiano -, é pensar em novos modos de ser e de se
relacionar que, sem se pretenderem como modelos definitivos, subentendam a
superação de limites e criatividade, em uma reabertura ao mundo. Assim, um modo de
ser e de se relacionar desejado por muitos mas, que, enquanto projeto, cabe a nós
(individual e coletivamente) realizarmos, levarmos adiante em sua implementação.
Voltando ao empírico trazido por nossa segunda entrevistada, Dona Bela
Valsa, verificamos que, desde os primeiros momentos das lembranças e dos fatos
passados e agora do presente, em suas narrativas de memória ela traz sua identidade
social. A partir de uma perspectiva temporal, a entrevistada, Dona Bela Valsa, escapa
de situar-se no lugar reservado tradicionalmente aos velhos, ou seja, de viver sem
uma identidade marcada, ou sem uma história, conforme muitas vezes a sociedade
impõe ao sujeito-velho. Ela própria em sua velhice inaugurou um novo lugar para ela,
com movimento e ritmo no ressoar de seu processo de vir a ser velha, que veio dando
contornos e consistência a sua identidade. Assim, foi se personificando, muito firme
em seus propósitos. Os contextos sociais e históricos da entrevistada mantiveram-se
apenas em parte nos fragmentos recuperados de sua memória o componente
essencial de sua identidade, e mesmo que Dona Bela continue a contar e a marcar
temporalmente seu tempo, a narrativa de sua história revela que ela própria se moveu
ao encontro das respectivas "metamorfoses". No caso de Dona Bela, metamorfoses
aconteceram ou, como dizia a personagem Severina (Ciampa, 2005), "vão
117
acontecendo", preservada, contudo, a própria identidade. A personificação de sua
história é sua própria identidade.
Assim, a história individual, a identidade, se apresentam, neste caso, como um
processo de aprendizagem que leva um sujeito a sua autonomia, implicando que os
processos culturais e pessoais são tributários ao fato de o sujeito ser capaz de
produzir formas autônomas de produção e de reconhecimento do seu Eu. Nesse
sentido, também, a identidade adulta tem a capacidade de gerar novas identidades, ao
integrar passado e os múltiplos elementos do presente, constituindo um todo, uma
unidade, na continuidade de uma história individual. Foi na vivência cotidiana que
Dona Bela construiu uma nova identidade o que tornou possível que caminhasse em
suas metamorfoses.
Todavia, fica evidente que a emancipação não se completa sem o
reconhecimento e a solidariedade dos outros indivíduos e também a alteração da
normatividade social.
um papel importante a ser desempenhado pelo outro na abertura de novos
horizontes comunicacionais e na sensibilização social para as questões identitárias.
Os fragmentos de emancipação alcançados em cada situação podem se somar
para inserir a dúvida no terreno das relações e da normatividade sociais; podem, neste
sentido, contribuir para flexibilizar as formas de negociação das identidades e ampliar
o espaço para a manifestação de identidades alternativas.
Outro modo, é somar, também, aos movimentos sociais que reivindicam o
respeito às diferenças e o reconhecimento de necessidades outras que se definidas
pelo sistema, repercutem na sociedade como um todo e em suas formas de
organização da vida.
Nosso terceiro entrevistado, o Senhor Bituca da Borda da Mata, desde o início
escolheu o apelido que traduzia os primeiros componentes de sua identidade. O
entrevistado trouxe em sua história a privação do desejo na velhice, principalmente
quando são perdidas as funções sociais, e também quando se dão com mais
ressonância as perdas afetivas e sociais. Ao narrar às trajetórias dos acontecimentos
de sua vida, o entrevistado, mostrou um tempo a que Bosi (1987, p. 77) assim se
refere: “o velho de uma classe favorecida defende-se pela acumulação de bens. Suas
propriedades o defendem da desvalorização de sua pessoa.
No caso do entrevistado, o destino dos velhos - como costuma acontecer
àqueles de uma idade mais avançada -, via de regra é procurar apoio e auxílio na
família; alguns outros velhos procuram redirecionar-se, mesmo sem ajuda familiar,
para uma vida solitária; há também aqueles que buscam, eles próprios, em uma
moradia coletiva, um novo lugar para morar; e existe ainda aqueles que são afastados
118
do convívio familiar e deixados em uma instituição asilar, a despeito de sua resistência
e não-aceitação da vida fora da família.
Verifica-se, agora no presente, que a moradia familiar, assim como a vida em
moradia coletiva, nos moldes tradicionais, mesmo que muitas delas ainda não se
aproximem do ideal que se espera, mas, que de certa forma sejam adequadas para o
bem estar do velho na velhice, estão sendo adequadas para sua a moradia por alguns
fatores: as famílias pela impossibilidade de dar ao velho afeto e companhia constante,
por estarem seus membros todos trabalhando fora; a sensação do abandono familiar e
a multiplicidade de problemas familiares, a falta de afeto, a solidão, a falta de
condições de cuidados individuais, e outros; enfim, com a moradia coletiva, o velho,
em sua nova forma de viver em sociedade, projeta para o futuro intensas
transformações de suas relações sociais e de sua intersubjetividade.
Nosso terceiro entrevistado, contando e narrando o percurso de sua vida,
mostrou-se um ser deste tempo, na verdade de um tempo passado que se renova no
presente que, nos dizeres de Mucida (2009, p. 21) vem ao encontro de, nome, lugar
na família, frases escutadas, tomando depois alguns sentidos; e foi a partir desses
sentidos que se buscou mostrar a identidade e dizer alguns pontos sobre a
subjetividade do entrevistado. Assim também a objetividade e a subjetividade na
narrativa do entrevistado, o Senhor Bituca da Borda da Mata, foram os pilares que
sustentaram o eixo principal do seu nome. Como bem diz Ciampa (2005, p. 131),
“nosso nome como que se funde em nós”. Toda essa condição sócio-humana de
tradição, de cultura e de densidade psicológica que foi movendo a narrativa – presente
no sentimento que o tornou protagonista desta história consubstanciou-se,
paradoxalmente, nos dois lados da mesma moeda: o social e o humano. Conforme ele
foi narrando as mudanças de seu tempo, construía para ele próprio um novo tempo,
um novo lugar. A preservação do seu passado e a segurança de tudo o que foi
conhecido por ele e lembrado sucessivamente, confrontadas com a problemática da
modernidade, a chamada "crise de identidade", ele, enquanto indivíduo moderno, ao
ser deslocado diante de si e perante o mundo, muitos momentos vieram ao encontro
de uma crise de identidade”, pois tais características que sempre o nortearam ao
longo do tempo estão sendo dizimadas no mundo social da atualidade. Isto são as
metamorfoses que o atingiram enquanto sujeito e cidadão. O Sr. Bituca veio
mostrando em sua entrevista que sua velhice veio em conformidade com sua forma de
lidar com a vida, com a família pequena, com os bens financeiros, e com o
reconhecimento de si e do outro; ao trazer isto nas cenas em que extrai da memória
os acontecimentos: o passado e presente, mudanças e experiências, prazer e dor,
119
vida e morte, "identidade-metamorfose-emancipação: fez-se eco na velhice, na
memória e na identidade do entrevistado.
A partir da análise das entrevistas, vamos concluindo que a memória é um
elemento constituinte do sentimento de identidade, tanto individual como coletiva, na
medida em que ela é também um fator extremamente importante do sentimento de
continuidade e de coerência de uma pessoa ou de um grupo em sua reconstrução de
si. Ciampa (2005, p. 127) ao dizer da identidade como reflexidade do outro, diz que a
identidade, oculta e revela uma atividade, numa totalidade contraditória das relações
sociais; e promove, ao mesmo tempo, uma coerência e uma multiplicidade, uma
estabilidade e uma mudança, Ou seja, para ele a identidade é construída via interação
com o outro, na interação dialógica.
Assim, no dia a dia, o velho, ao manifestar suas ações, seus sentimentos e
seus pensamentos vai compondo, nesse sentido, a identidade dinâmica e mutável,
cuja permanência exigiu que ele possuísse nas entrevistas a consciência do que ele é
no presente, senão o mesmo em decorrência do tempo passado, o mesmo renovado
do que ele foi em seu passado e um modelo do que pretenderá ser no futuro.
A linguagem também tem um papel importantíssimo na compreensão e
estruturação da identidade do velho. Para Habermas (2004, p. 65), o homem pensa,
sente, vive unicamente da língua e é por ela que deve ser formado”. Neste caso tudo
que o velho de uma comunidade lingüística encontrou, no mundo em geral, trouxe-lhe
a marca de uma visão do mundo como um todo. Para a Psicologia Social, pode existir
uma multiplicidade de possibilidades de estruturação da identidade. No caso do velho,
esta mediação deve acontecer pela instauração do critério da centralidade da
comunidade ou do fórum da comunidade mediada pela premissa da linguagem. Pela
premissa da linguagem, o velho é socializado e, por conseguinte, resultando sua
possível individualização. A individualização, para Habermas (2007, p. 230), só é
possível através da mediação da linguagem.
Por outro lado, concluimos também que a velhice poderá ser pesada e difícil
não somente para quem procurou obstinadamente a si mesmo em tudo o que fazia; ou
para quem se identificou com o papel social e seu índice de agrado, com seus
resultados e seus sucessos; ou para quem se familiarizou com a solidão, mas ficou
aturdido com a atividade e os relacionamentos humanos para preencher o seu vazio;
ou ainda para quem, desejoso de um protagonismo, corre risco agora de não
conseguir aceitar a inevitável dependência dos outros ou uma atividade forçada ; ou
para quem procurou sempre aparecer e dar boa impressão e que, velho, ultima
tristíssima farsa e faz de tudo para apresentar-se jovem e prestativo.
120
muitas coisas ainda a fazer, muitas ideia deve ser desfeita de que na
velhice aconteça uma espécie de rarefação dos sentimentos ou certa fraqueza dos
impulsos vitais; ao contrário, na velhice é extraordinária a intensidade das sensações e
das emoções. A velhice em sentido negativo não existe; como escreve Maritain, ela só
existe “onde não amor”. Onde, porém, amor e este se coloca no centro da vida,
também um testemunho luminosíssimo ou a prova mais evidente de que o
coração não pode envelhecer. Desta forma, o velho, em seu processo de
envelhecimento, não deve ser colocado à margem da sociedade. Ele carrega o papel
de “guardião da memória”, e que, através da linguagem, deve ser dado a ele a
possibilidade de continuar a ter o papel de fazer a história prosseguir.
Alguns questionamentos ainda resultam do entendimento da interação da
sociedade contemporânea com o velho: “nós é que temos de continuar lutando por
eles”. Desta forma, nas políticas coletivas da sociedade, o velho deve estar presente
como sujeito, não simplesmente como um mero objeto de análise ou estudo. Para que
isto seja possível, se faz necessário, que paulatinamente se mergulhe nos fios da
lembrança dos velhos, nos efeitos de evocações e das lembranças desses velhos, em
seu passado, que se fazem ocupar, desta forma, em seu presente. Assim, memória e
identidade unirão o começo e o fim de sua história e do seu projeto de vida.
Enfim, para nós, fica uma trilha (...): a de envelhecer, sabendo que temos uma
velhice estendida, conquistada em um mundo permeado de ideias novas, de
conquistas biotecnológicas, de avanços psico-sociais; cabe-nos, portanto, respeitar
esse "lugar" conquistado pelo sujeito-velho: o de não apenas ser ator, mas
protagonista social, o que implica o componente moral, o educativo, o ético. Enfim,
que esse velho tenha chance de acompanhar as novas gerações para a criação de um
“sujeito verdadeiramente humano”, em uma nova etapa e compreensão do ciclo de
vida humana. Nesse sentido, esta investigação ratifica a proposta ciampiana de que
construir e descontruir é um processo de constantes "metamorfoses", novos
recomeços...
Bem o diz Mario Quintana: Nada jamais continua, tudo vai recomeçar! E sem
nenhuma lembrança, das outras vezes perdidas”.
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132
ANEXOS
Anexo 1 – Entrevistas
Anexo 1.1 – Entrevista n. 1
NOME: D. Olivina de Oliveira
IDADE: 70 anos
DATA DE NASCIMENTO: 08/11/1935
PROFISSÃO: do lar
LOCAL DA ENTREVISTA: na sua residência
Quem é você? Conte-me sobre sua vida?
A entrevistada sugeriu que ela pudesse contar um pouco sobre sua vida
iniciando com sua infância.
Dona Olivina, para dizer que é, de acordo com Ciampa (2002), começa
descrevendo o lugar de onde provêm, suas condições de vida na infância,
passando em seguida a falar dos pais.
Quem é você?
Eu me chamo D. Olivina e tenho 70 anos de idade que fiz no dia
08/11/2005, fizeram uma festa muito boa para mim, reuniram meus familiares,
nossos amigos e eu fiquei muito feliz, a festa foi uma beleza.
133
Na minha infância eu nunca saí de casa, ajudava minha mãe a cuidar dos
irmãos, eu sou a segunda filha, a mais velha se casou com 17 anos, e eu fiquei
né, fiquei até agora aos 70 anos, solteira, né. Minha mãe teve vários filhos, 13 ao
todo, mas ficaram 12. Eu ajudava minha mãe a cuidar dos meus irmãos. E eu
fiquei lá, na roça por um bom tempo. Depois com 9 anos que eu comecei a
estudar, nós morávamos em uma fazendinha, e não tinha escola, nós morava lá,
e eu ia estudar nas Águas Verdes, município de Ilicínea, ,mas a escola era
nas Águas Verdes, eu fui com 9 anos para escola e fiquei até os 15 anos e saí de
novo, né. Por que ela voltou a ganhar nenê e eu saí da escola para ajudar ela,
depois fui para a cidade e tirei o curso até a série, e fiz curso para dar aula
na fazendinha, era professora, naquele tempo era diferente, a gente fazia um
curso e podia ensinar.
Como era este lugar Águas Verdes?
Tem muitas vargens, e o pessoal fazia muita plantação, plantava muito
arroz e colhia, por isso Campo das Águas Verdes e depois vai para o lado de
que se chama Vargem e depois Fonte do Sapé até chegar no Campo do Meio
(cidade), daí depois eu não sei para onde vai mais o rio e a serra. Rsssss, águas
Verdes é um rio que passava neste povoadinho, é um rio de águas claras que
começa na serra, tem uma serra que chama Serra da Boa Esperança, você
ouvir falar, né, então, a água começa no rio pequeno, mas quando vai
chegando vai se espalhando e entrando na plantação, por isso que o povo deu o
nome de águas Verdes, mas quando chove, ih, ela enche e ninguém passa pois
o rio transborda.
E depois disso meu pai arrumou a mudança e nós saímos de lá e
mudamos para Monte Alegre (Fazenda) cheguei lá e tornei a fazer outro curso
para dar aula né, no município de Monte Belo (cidade), e foi quando minha
mãe ficou doente e estragou tudo, né, não fui fazer mais nada, né, tive que
ficar cuidando da família, né.
Bem, depois a cumadre da mamãe, até é a mulher que é madrinha do
Dinor, e ela me chamou para dar aulas para as crianças na Fazenda
Taquarinha, né, que também faz parte da Usina Monte Alegre e fica no município
do Monte Belo.
134
Depois da Fazendinha em Ilicínea que nós mudamos para o Monte Alegre,
a usina, né, e a diferença assim que foi, era que a casa era um pouco melhor,
mais nova, uma casa boa, mas nada encanado também, tinha um quintal grande
e um poço para tirar água também, na cidade o papai comprava querosene, sal,
açúcar e o óleo que eu falei, né, o resto era tudo das nossas plantações.
E como foi esta mudança?
Foi muito boa, né, e a mamãe gostou demais do lugar, nós colhemos
muito nessa época, a gente plantava, capinava, a água era farta, chovia muito e
vinha tudo com fartura, era arroz, feijão, milho. Mas a mamãe estava
começando a ficar doente, né, um dia o papai levantou e contou para mim, ele
falou: “hoje eu tive um sonho, eu sonhei que a sua mãe me disse que não vai
mais comer arroz”, ela ainda não tinha morrido não, e foi neste ano que teve
uma fartura muito grande de arroz, das plantações, foi mais de 1000 sacos, e
eu falei comigo, né, o que será isso? E ela não viu mesmo a colheita não, ele
vendeu o que quis vender, ele deixou um restante e eu senti que o papai ficou
desgostoso. Aí, foi que eu falei, nós não vamos ficar aqui mais não, e o papai
disse: “mas por quê? Mas nós estamos tão bem aqui, tem tanta fartura”.
E eu não sei o que deu na minha cabeça, mas eu vim para Alfenas. Eu
falei para ele, agora que a mamãe morreu, eu quero ir para a cidade pôr os
meninos para estudar, e o papai disse: “Mas você não gosta de fartura”? Eu
falei, to gostando, mas eu não quero ficar mais aqui não, e o papai falava: “mas
todo mundo estudando aqui perto”, era outro lugar chamado Serrinha, eu
falei para o papai, mas é melhor eles ir para uma escola na cidade, tem mais
futuro, e para eu ir sozinha não não, tem que ir todos eu falei, acho que foi
uma intuição de Deus, eu pensei, e ele ficou bravo e veio para depois da
colheita, parece que colheu 30 carros de milho, 1000 sacos de arroz e isso não
era de meia não, era porcentagem, parece que o homem dava 30%. E também
tinha os porcos para engordar, muita galinha, né, a mamãe gostava muito de
tudo isso, né. E a mamãe morreu e eu tive que chamar a minha irmã mais
velha para ajudar, ela e o marido tinha um pedacinho de terra, e minha irmã
falou para mim: “mas que idéia é essa de ir para a cidade, na cidade tem de
comprar tudo”, mas eu falei, a gente trabalha aqui o que tiver de trabalhar e
135
depois vai, aqui não fica mais não, a gente arruma emprego, trabalha, os
meninos também. Nessa época a Isabel, tinha 13 anos, mas a minha irmã disse
para mim: “mas você não vai trablhar, né, porque senão quem vai tomar conta
da casa?” Eu disse, eu não vou, mas eles vão, tem de ajudar, né. E vindo para
a cidade o Dinor arrumou emprego na Farmácia do Sr. João Pedreiro, você
conheceu ele? Então o Sr. João Pedreiro tinha farmácia perto da caixa
econômica federal, agora não tem mais esta farmácia lá, acho que agora é um
restaurante, ele trabalhou por 6 anos. Depois o Dinor foi embora para SP, ele
falou para o meu pai que queria ir para SP para trabalhar e estudar lá, que ele
queria entrar numa faculdade para ter uma profissão.
O papai não queria que ele fosse, mas ele disse que ia sim, o Dinor
arrumou para o Gilmar ficar no lugar dele na farmácia, o Gilmar trabalhou lá por
8 anos e depois foi ser vendedor ambulante, e aí um dia, o Dinor escreveu para o
papai, naquele tempo ainda não tinha telefone, era no papel mesmo, e escreveu
e disse, que o papai agora tinha um filho formado na faculdade, que ele tinha se
formado em Administração de Empresas, e o papai ficou todo feliz, porque
então tinha um filho formado. E o Gilmar, coitado, queria ser dentista, mas não
pode porque não tinha dinheiro para pagar uma faculdade, e a EFOA, a
faculdade federal não tinha vaga para ele entrar, nesta época em Alfenas ficou
comigo a Madalena e o Gilmar e mais o papai.
Então, o papai era novo ainda e se casou com uma senhora, que o marido
disse ela, tinha morrido, eles tiveram mais 6 filhos, que depois de muito
tempo, o papai já havia morrido, há muito tempo, aí o marido dela apareceu aqui,
e engraçado ele apareceu para morrer, faz 2 anos que ele morreu, a gente se
bem com ela e os irmãos, porque o papai era muito novo e a gente não importou
dele ter a vida dele de novo.
E, teve também um senhor o Dr. Jose Salles de Magalhães, a gente fala
que ele é um santo, né, onde ele estiver que Deus a paz para ele. Ele foi um
dia na usina e esta usina era que ele era dono, eu acho que chamava de
Negro, porque do nome eu não sei, né, mas o meu pai era negro mesmo, ele se
chamava João Mariano de Oliveira. Mas o povo pois apelido nele, e o primeiro
apelido era Negro liso, mas não pegou e depois o povo começou a chamar ele
de Dondinho, mas o povo dizia assim: “Dondinho, é o pai do Pelé, você é o pai
do Pelè?” Mas era apelido dele, né, o Sr. Jose Salles chegou e disse para o meu
pai, eu ouvi dizer que você gosta muito de plantar e plantar com fartura, então
136
você vai para a minha fazenda, planta o que quiser e eu te dou tudo para você
plantar na fazenda, nós ficamos lá uns 3
anos, depois que viemos para a cidade.
Tinha um arraial, não sei se ainda existe, também fazia compras, era uma
venda, nesse lugar que minha mãe começou a ficar doente, e ela foi fazer
tratamento em Monte Belo, uma cidade próxima a usina, eu já falei, né. E naquela
época, a minha mãe tinha aquela doença, né, e então não se falava o nome da
doença, daí o médico disse que minha mãe tinha que ir para uma cidade maior
para ir fazer tratamento, e o meu pai levou ela para SP, pois já tinha meus irmãos
que moravam lá. E aí de SP, ela não voltou mais, ela morreu em SP.
E aí, quem foi com a mamãe, foi a Isabel e o papai, nesta época já morava
em SP; o Haroldo, O Homero, O Hermínio, o Lino, daí eles ajudaram a cuidar
da mamãe, e foi assim que de vez nós mudamos mesmo para Alfenas.
Neste tempo, ficou 5 menores, eu, papai, o Lino, as meninas e o Gilmar,
que é o caçula, que ele foi para SP, o Lino, e eu, fiquei com os outros, eu
falei vamos mudar daqui e colocar as crianças na escola, papai falou, mas
estão todos na escola, tinha um lugar lá que chamava Serrinha, uma fazenda
de outro município, né, mas ainda não é a usina. Mas eu ainda falava para o
papai, nós vamos mudar para Alfenas, que Alfenas eles estudam e trabalham,
né, então o Dinor tinha 11 anos, Isabel tinha 13, e as meninas mais novas, o
Gilmar tinha 6 anos, e as meninas gêmeas 8 anos. Aí o papai falou: “mas por
quê você não quer ficar aqui, têm muita fartura colhemos de tudo, muito
caminhão de mantimento, né, mas você quer ir para lá vai dificultar”, não, eu
disse não vai dificultar, não sei o que deu em minha cabeça, mas nós mudamos
para em 1963, onde estamos até hoje, eu tinha 27 anos, em 1963, final de ano
né.
Isso tudo começou com a doença da mamãe. ele pegou e falou assim:
“eu não quero parar de colher, de plantar”, então falaram para ele que era para
ele na Fama (cidade), ele olhou na Fama, deram um terreno para ele na
Fama, deram umas terras para ele, ele trabalhava no mercado, e ai ficou bom né,
porque todo mundo entrou na escola, o Dinor estudou e tirou o grau aqui,
acho que sim, tirou grau aqui, depois foi para SP fez faculdade e onde
adiantado, o Lino foi para o RJ, fez engenharia, estudou lá, fez engenharia
eletrônica, Homero morava em SP, ele tinha casado. Elas, as meninas,
estudaram aqui e o Gilmar estudou também, ia fazer curso de dentista, mas não
tinha vaga na EFOA ( Faculdade Federal), então ele foi para SP, antes trabalhou
numa farmácia, ele trabalhou uns 3 anos na farmácia em SP, porque aqui em
137
Minas ele tinha trabalhado antes, e depois voltou para cá, e hoje ele é
vendedor autônomo.
E as filhas gêmeas como foi o nascimento?
Maria Helena e Maria Madalena, quando a mamãe foi ganhar elas, eu
fiquei na fazendinha e o papai foi para a cidade tratar de negócios, e eu fiquei
com o Haroldo, Zé Leopoldo, e foi a parteira que fez o parto da mamãe, o médico
mandou o papai dizer que se a parteira tivesse lá, a mamãe estaria em boas
mãos e não precisava dele, naquela época eles falavam que gravidez era doença,
o papai falava, ih a mamãe ta doente de novo e vocês tem que ficar bem
bonzinhos, então,a mamãe, depois que nós dormia, que ela costurava as
roupinhas para o nenê que ia nascer, e o papai abriu um comércio na cidade de
Secos e Molhados vendia de tudo, e eu fiquei na fazenda, e a parteira fez o parto,
e a mamãe estava desconfiada que vinha 2 crianças, mas a hora que a parteira
me chamou para mostrar que era duas mesmo eu até desmaiei porque eu fiquei
com dó, eu achava que elas estavam com muito frio, e aí eu mandei o Zé
Leopoldo ir na cidade avisar o papai e o papai trouxe o médico com ele, o
Haroldo e o Leopoldo, que não estão mais aqui, né, mas então, nos ficamos
lá cuidando das lavouras, né,.
Quantos irmãos faleceram?
foram 4, Maria a mais velha, Maria Inocência da Conceição, Haroldo o
mais velho dos homens, e o Zé também, mas os dois são mais novos que eu, né,
e a Maria de Lourdes, eu não esqueço dela, né, uma que nasceu e morreu, ela
era mais clarinha, a minha mãe era bem clarinha, cabelo preto, você viu a foto
dela? vou te mostrar! Meus pais foram criados por coronéis lá em Ilicínea,
coronel Benfica Vilela, coronel Eugênio Benfica Vilela, e Major Benfica, meu pai
e a mamãe também, porque eles ficaram orfãos, a vovó trabalhava na fazenda
daí ela morreu. E a mulher do coronel, né, todos eram funcionários da fazenda, e
a mulher do coronel, Maria Augusta, perguntou, se eles queriam morar com ela
lá. Ela queria adotar eles, porque tinha os outros filhos dela e ela disse que
achava bom. O meu pai tinha estudo, estudou em Lavras, em Alfenas, o Dr
138
Roque Tamburini foi o professor dele, você chegou a ouvir falar dele né! mas
minha mãe não quis estudar não, ela disse: “ah não, eu não vou estudar não,
vou ficar aqui com a mulher do coronel”, e depois ela casou com meu pai, e a
mamãe tinha 18 anos e o papai 19 anos, eles foram embora para o sítio que
era do vovô, né, depois que o vovô faleceu eles foram para lá, e depois ele
vendeu, também não sei o que deu na cabeça dele, né, vender tudo aquilo lá.
E né, continuando com a minha vida, como eu te contei eu morei 10
anos em Manaus e depois 6 anos em Valinhos, e eu comecei a cuidar da filha do
Dinor, dia 06/08 ela vai fazer 20 anos, depois quando ela estava com 16 anos eu
falei, ah eu não vou ficar mais com ela não, já era moça, tinha empregada, daí eu
vim embora cuidar da minha vida, né, sabe, eu vim embora para casa, para
não ficar muito junto na casa dos outros, você sabe né, eu tenho diabetes, né,
mas você sabe diabetes não é doença, o pode comer muito, mas eu como,
como tudo, frutas tudo de bom, eu teimo né, mas se eu levo tudo direitinho, fica
tudo bem, a Maria Helena que cuida, ela é brava, né, e o Dinor comprou um
aparelhinho para medir a minha diabetes, é ela ou a Isabel, mede de manhã e de
tarde, se de tarde está mais alta eu como menos para controlar, mas não sinto
nada o que me ataca um pouco é a vista, né, eu sem óculos eu não leio, eu leio
bastante, gosto de ler toda vida, não leio letra pequena no computador, nem de
bula, o Dinor quando escreve ele põe letra grande. Ele manda livro para mim. E o
Dinor foi eu quem criei, ele tinha 11 anos, criei como um filho, a Madalena não
lembra da mamãe, e a Helena já lembra.
E a senhora se lembra, que lembranças a Sr.a tem de sua mãe?
Ah! Eu lembro direitinho. Eu mando a Madalena ver a foto e digo ela era
deste jeitinho, é só olhar a foto, quando você for na minha casa eu vou te
mostrar a foto dela, a mamãe era de pele clara, o papai que era mais escuro, bem
escuro mesmo.
E do seus irmãos você se lembra do nascimento deles?
Deixa ver qual filho que eu lembro quando nasceu, o Haroldo eu não
lembro, mas o eu lembro, a mulher que cuidou da mamãe quando ele nasceu
139
era madrinha dele, ela morreu, era Dona Maria Augusta, o mesmo nome da
mãe de criação da mamãe, e depois do Leopoldo para cá, eu me lembro de
todos, eu nunca saia de casa, não trabalhava fora, como o papai tinha muita
criação, muita lavoura, plantava amendoim, batatinha, muito cafezal, nós
ficávamos tudo junto, não trabalhava para ninguém, nós trabalhávamos juntos
ali, tinha muito café para colher, arroz, feijão, milho, nós tinha nosso próprio
negócio, tinha vaca de leite, fomos criados com leite, fazia muita canjica, doce,
arroz doce, eu que fazia, depois da mamãe, mas antes também, criava porcos e
engordava o capado, nós não comprava óleo não, quando o papai foi para a
cidade e trouxe, ela passou mal, quando as meninas gêmeas nasceram que
começamos a comer com óleo, deu dor de estômago na mamãe, daí o papai
disse que tinha que comer óleo porque o médico disse que era mais saudável. E
houve uma mudança na nossa alimentação, devido ao cuidado com a mamãe,
daí eu vim para cidade para ajudar a mamãe e eu fiquei com ela e até hoje estou
na cidade. E mudando de assunto, né, com 45 anos eu sofri um problema de
saúde, eu tive que ficar internada para tirar um mioma, eu fiquei no hospital das
clínicas de SP, fiz uma cirurgia e fiquei 2 semanas, internada e o tive doença
nenhuma foi só isso.
E lá na roça quando criança vocês brincavam muito? Como era?
Na minha época, as bonecas né, os brinquedos, as bonecas era de pano,
chamava de bruxas né, eu que fazia as bonecas, você corta põe a medida lá,
corta um macacão, você enche as pernas, e costura, enche tudo com algodão e
a boca os olhos tudo, faz com linhas, borda, né, e ai ia fazendo, não era das mais
bonitas, né, igual a que comprava, mas dava para brincar, né, moldava as
bonecas igual gente , a mamãe fazia melhor, ela fazia boneca grande era bem
feito, mas eu não fazia não, fazia do meu jeito mesmo. Aí depois o papai
começou a comprar boneca na loja, mas não era boneca cara não, o papai falava
assim: “comprar boneca cara para vocês jogar no chão, deixar no chão, é jogar
dinheiro fora”. Os meninos brincavam de carrinho, eles faziam boiadinha, e
cangavam eles com uma palha, cangavam(amarrar com corda um pedaço de
madeira de um lado e de outro do boi)? È, eles amarravam com pau e corda,
fazia de um lado e de outro, eles faziam carros de boi. E ai né, os onibus que
tinha assim era comum né, era bem velhos, mas era uma jardineira, mas
140
carrinho também o papai não comprava não porque ele achava que era
bobagem. Depois foi todo mundo crescendo e trabalhando na roça e acabou
as brincadeiras assim.
E depois, vocês passeavam, saiam?
Nós andava muito a pé, ia da roça para a cidade confessar e no outro dia
de madrugada a gente comungava. As 6 horas da manhã, tinha que ser antes da
missa das 7hs e depois nóis vinha embora trabalhar. Era assim, a pessoa fazia
uma novena 9 meses, você confessava e fazia 9 novenas, então eu fiz 81 meses
de novenas, durante 9 anos da minha vida eu fiz novenas, mas não era eu
não, era a mamãe, as cumadres dela, os amigos da mamãe, os da roça e os que
morava na cidade também. Tinha um filho, da cumadre da mamãe que morava na
cidade, então no dia que a gente ia para confessar com o padre, ia todo mundo
dormir na casa dele, o povo que ia da roça, né, nós levava o cobertor, daí,
ficava as mulheres num quarto e os homens noutro quarto, era 8, 10 pessoas
dormir na casa dele, era engraçado, aquele tanto de colchão no chão. Hoje eu
acho que o padre que dava confissão para a gente deve ter uns 90 anos.
A gente falava para o padre, o Sr. a comunhão para gente mais cedo,
antes da missa, porque nós temos de ir embora trabalhar. Daí a gente ia para a
roça, para as plantações, né. Daí, a gente plantava o feijão, arrancava a
plantação, colhia, apanhava café, tinha uma turma de moço e moça, alguns iam
com a gente na comunhão, e eles trabalhavam para o papai, né, pois na região o
papai tinha uma plantação muito grande, e eu ficava sentada numa mesa e
anotava tudo. E eu perguntava? Quantas medidas de café você colheu hoje?
Quanto isso? Quanto aquilo? E aí eu anotava com um x no nome daquela
pessoa, depois eu somava e pagava eles, o pagamento era semanal, ás vezes
tinha uns que não voltavam no outro dia, e o papai depois que as meninas
gêmeas nasceram, ele não quis ficar mais na roça, ficou na cidade, abriu um
comércio e depois ele levou a mamãe e ficaram com um comércio na cidade.
141
E as mulheres da família, trabalharam com o quê?
A mamãe gostava muito de trabalhar, era forte, sacudida e quando ela
ficou grávida das gêmeas, ela parou de trabalhar, as pernas estavam muito
inchadas, muitas varizes e ela ficava muito de repouso, e eu estranhava, né,
depois que o papai me falou que a mamãe ia ganhar mais um nenê.
Então tinha uma árvore chamada Congonhal, fazia um chá desta árvore, um chá
que é uma delícia, você conhece? E aí, a moça que era dona deste pedaço onde
tinhas essas árvores, ela deu o terreno em intenção de Na. Senhora Aparecida, e
começou a lotear e cortar as árvores, o papai fazia eu ia buscar estas folhas para
fazer chá para a mamãe, porque ela começou a perrear (ficar doente), ficar fraca,
né, tinha muitas varizes nas pernas.
A Isabel foi para SP com 18 anos, quantos anos que ela ficou mesmo?
Então, ela tirou a série ela trabalhou de doméstica, na casa de uns turcos, os
turcos gostaram muito dela, ela ajudou a criar o filho deles, hoje um é promotor
de justiça em SP, é o Dr Fernando Capez, então ela que cuidou dele até 2 anos,
depois ela casou, ficou mais um tempo e veio embora, o Dinor também casou e
foi morar me Manaus e me levou né, eu falei, vem para vem ficar na casa,
eu falei para Isabel, por que faz 20 anos, senão a casa pode cair, eu e o
Gilmar falamos, se você não vier a casa pode cair, que ela veio e então, faz
20 anos que ela está aí, e muitos dos irmãos voltaram para a cidade, a cidade
de origem, e enquanto todos estavam vivos estavam todos lá, em SP,
enquanto o papai estava vivo, estavam todos aqui pelo lado de Minas Gerais e
depois vou indo um, outro e teve um tempo que todo mundo ficou em São Paulo.
E foi só o papai falecer que nós voltamos e ficamos por aqui, em São Paulo só o
Homero e o Dinor, que estão até hoje, o Homero muito bem tem uma casa
muito boa, tem 2 filhas uma trabalha e é casada e a outra está estudando, vai
fazer Educação Física , né. Mas agora ele operou do coração, vai vir para cá, não
para morar, né, vem passar uns dias, né, porque enquanto as filhas estiver
estudando ele fica por lá, e eu tô pretendendo visitar ele, né, mas então não vou ,
né por que ele vem para cá.
Mas aí continuando o que eu estava falando naquele dia, sobre a gravidez
da mamãe, O papai comprou um comercio na cidade, e a mamãe ficava em casa,
e eu fazia todo o serviço de casa para ela, ela ficava sentada num banco grande
na cozinha costurando, e um dia o papai falou comigo, ele contou que a
142
mamãe disse para ele assim, ih eu acho que vem duas crianças, tem horas que
eu coloco a mão na minha barriga e sinto duas cabeças, hora parece que é dois
corpinhos. Eu ponho a mão e vejo, só que a mamãe não falava para a gente não,
mas eu notei, porque ela nunca parou de trabalhar e de repente ela parou até de
fazer o almoço, ela esquentava só, sentava num banco na porta da cozinha e
falava, aí que dor nas pernas, aí que dor assim, e eu falava logo melhora não fica
assim é por causa do nenê, mas eu ficava preocupada com ela. E eu comecei a
fazer tudo então, lavar roupas, passar, arrumar e cozinhar.
Mas aí, quando minha filha, então ela disse: eu acho que vou ganhar
estas meninas no mês de março.
Estas meninas?
Então, a mamãe sempre dizia que era duas crianças que ela ia ganhar, e
não é que foi mesmo.
Então, o Hermínio, ah, eu esqueci tem o meu irmão Hermínio também, o
papai mandou o Hermínio chamar a parteira, este o Hermínio morou 12 anos no
quartel, ele foi ser militar, morou uns 12 anos no quartel e depois veio embora
para Minas, ele tem 58 anos hoje, ele é mais velho que a Isabel, é casado, e tem
os outros que eu falei deles, né. Os meus irmãos todos os que estão vivos
são: Vou começar pelos homens: Homero de Oliveira, Lino Batista de Oliveira,
Hermínio Reis de Oliveira, Dinor de Oliveira, Gilmar de Oliveira, Isabel Aparecida
de Oliveira Ramos, Maria Helena de Oliveira, Maria Madalena de Oliveira
(Gêmeas), e tem também os outros da outra familia do meu pai: Noêmia, Wilson,
Dimar, Gilberto, mas estes quem cuidou foi a mãe deles..
Quem escolhia o nome das crianças quando nasciam?
Os nome dos homens, era o papai que escolhia e das meninas a mamãe,
a casa nossa era bem grande, nós ficava lá, comia numa mesa grande, eram dois
bancos que sentava todos, o papai não gostava que enchesse o prato, tinha
fartura, se quisesse repetir podia, mas encher o prato para depois sobrar não
podia não.
143
A nossa casa era bem parecida com um chalé, tinha 4 degraus, rodeava
uma varanda e tinha a porta da cozinha, né, os meninos ficavam brincando
com os carrinhos, era uma casa amarela clarinha, tinha 4 quartos, tinha uma
cozinha grande, era casa de fazenda, né, o banheiro tinha um chuveiro, mas não
elétrico, naquela época na roça não tinha eletricidade não, os meninos tomavam
banho no açude, um riacho que tinha lá, né, na época do calor, mas do frio não,
mas o papai, a mamãe e nós meninas, não, a gente tomava no banheiro, enchia o
chuveiro, era uma caixa, esquentava a água, punha lá e caía no chuveiro.
Depois o papai fez um puxado, fez uma dispensa, a casa era toda
assoalhada, tinha varanda com cadeiras, tinha a sala, mas naquela época não
tinha televisão não, os meninos ficavam à noitinha na porta da cozinha
brincando com os carrinhos deles, tinha fogão à lenha e nós ficava lá quentando
, tinha umas prateleiras, embaixo tinha umas vasilhas de água e os potes, a água
era da mina, buscava de manhã e a tarde, fazia tudo. Na roça também não
tinha água encanada não. Tinha o açude e duas minas, tinha um bambuzeiro
também atrás lá da cozinha, no fundo, o rio era para lá. E papai comprava
querosene, 20 litros, tinha lampião e lamparina, fazia o pavio de pano e trançava
e colocava o azeite ou a querosene e clareava tudo, era assim que iluminava a
noite. Mas na roça era muito bom, depois das mudanças todas que te falei, né, a
fazendinha, a serrinha, a usina, a cidade, eu vim embora para Alfenas, vim para a
cidade mesmo, daí a mamãe convenceu ele, e nós viemos todos embora. Acho
que a casa hoje tem mais de 100 anos, porque foi do meu avô, pai do papai, um
dia eu quero levar os meus irmãos lá, os que não conhecem, né. O lugar onde
ficava a fazendinha, o povo chamava de Cateto, não é Catete não, igual no RJ.
Onde a Sra. morou mais tempo, aqui em Minas ou em São Paulo?
Eu vivi mais tempo em MG do que me SP. Em Minas a gente fica mais
sossegado, SP é mais perigoso, os nego puxa sua bolsa, entrei no ônibus com a
Isabel em SP e um rapazinho puxou a minha bolsa, eu falei para o motorista e
ele parou o ônibus. Daí eu dei confiança para morar em MG. SP é bom, bom para
trabalhar, nós todas irmãs trabalhamos de doméstica.
144
Como assim confiança para morar em Minas Gerais?
Ah, eu falei que ia voltar para MG porque era mais tranqüilo para viver e
trabalhar, aí, eu fui dama da filha do major Inácio, você conhece o pessoal do
supermercado MG, então, eu trabalhei lá muitos anos, fui dama de companhia da
mãe dele, trabalhei muito tempo lá, depois fui ficar com a Isabel para ela
trabalhar, daí ela ganhou a Fabiana, ela era pequena e ai eu cuidava dela, mas
depois voltei para SP e fui ficar com a mulher do Homero que tinha sido
operada, e o Homero abriu uma oficina de costura, a Maria Helena trabalhava
também, uma oficina grande de costura, eu fui ajudar ela a costurar, então eu
já tinha seguido muito com a minha vida, né, eles me chamavam e eu ia.
Depois disso que te contei, me chamaram para ir para Manaus, pois a
filha do Dinor ia nascer e ele queria que eu fosse para ajudar a cuidar da
menina, e o Zé meu irmão disse, olha não é um teco teco que você vai não, é um
avião de 90 lugares, se eu fosse você não ia não. Mas, eu disse que tinha que ir
porque eu ia cuidar da menina, mas ele ficava insistindo para eu não ir, ele
mandava eu falar que não ia não, e ficava insistindo, daí né nesse intervalo eu fui
para o RJ.
Por quê para o Rio de Janeiro?
Porque o menino do Lino ia nascer, e a menina ia nascer dentro de 20
dias, e o ficava falando para eu ligar e dizer que não ia não, fui para o RJ e
depois voltei para SP para pegar minha mala, e escuta o que eu vou te
contar: O meu irmão ficou falando mas você não tem medo? E se o avião cair?
Eu disse não, não vai cair, eu falei se eu tiver que morrer de avião fazer o quê,
morro voando. Daí eu cheguei as 18 horas. A Isabel chama no telefone e diz
para eu voltar que ele tinha morrido, olha só, era o destino, daí eu tive que voltar
para trás no mesmo dia, a Isabel contou que ele caiu de cima da escada, era uma
escadaria, ele sentiu mal e caiu escada abaixo, e ele falando para mim de uma
coisa que ia acontecer comigo, e ai foi ele quem morreu, coitado, né, o médico
falou que ele teve um enfarte. Mas Deus me tirou para eu ir e voltar, daí a Helena
ficou muito nervosa, e eu fiquei mais 5 meses em SP, daí a menina do Dinor
nasceu, eles vieram para SP e a Helena disse agora você pode ir eu estou
bem, o Dinor levou a menina na casa do Homero, pois ela nos meus braços e
145
disse para a menina, agora vai ser ela que vai tomar conta de você, a menina
estava com 5 meses, aí a menina deu gargalhada, olha só com cinco meses.Ela
chama Mariana, e a dela falava mas por quê ela rindo tanto, e eu falei
para ela, agora a tia que vai cuidar de você, eu cuidei dela até 16 anos, como
eu te falei. Daí eu não tenho nada para reclamar da minha vida não, tive o
mioma, fiquei curada foi tudo bem.
Quando eu morei aqui em Alfenas, uma época atrás, né. Aí eu vim para
e fui trabalhar no educandário Santa Inês, tinha 50 meninas, acho que trabalhei
uns 2 anos lá, foi em 1980 meados de 1982, fiquei 2 anos e meio, tinha que dormi
lá, tinha dia que eu ia para casa, eu ficava com a meninada. Daí um dia elas
fugiram mas eu não estava não, elas foram encontradas pelo lado do
aeroporto, elas estavam com a malinha, e foram achadas e falaram que queriam
ir embora para ficar com as mães, mas não tinha jeito não, porque uma era da
Bahia, a outra do RJ, elas não conheciam nada não, porque o governo vai
pegando as meninas e depois vai pondo né, e ai uma pessoa viu e contou e a
policia foi atrás. Mas, umas meninas muito boas, inteligentes, tem umas que até
formaram.
Mas aí, neste meio de tempo, a Maria do Pedro Pinto me chamou para ir
trabalhar na casa da filha dela em Poços de Caldas, a moça se casou, não
arrumava filhos e mais o casamento não deu certo, a mulher não conseguia criar
filhos, daí ela adotou 2 filhos mas depois o marido dela morreu, mas eles
chegaram a se separar, ela criou duas crianças e eu ajudei, um chama André, né,
hoje tem 25 anos e outro Alex este eu não ajudei não. Mas não vi eles mais não,
eu falei eles não vem visitar a gente né, acho que nem conhece mais, né.
Então, daí eu fui pajem dos meus irmãos todos, de alguns sobrinhos e depois
dosa filhos dos meus patrões, este foi os meus serviços.
Agora vou contar um pouquinho da época de Manaus, eu viajei de avião grande
da Vasp e da Varig o meu irmão gostava da Varig, então eu vinha 3 vezes ao ano
para cá, eu vinha no natal, na semana santa e em julho, né, e eu trazia a menina
comigo, a mulher do Dinor trabalhava na Fiat, minha cunhada, né, ela era chefe
dos restaurantes, ela trabalhou 13 anos lá. Ela é nutricionista e o Dinor trabalhou
10 anos na Boch, depois a Boch vendeu lá, a Boch era alemã e ai ele passou
para a Brastemp, quando a gente está bem em um lugar eles tiram a gente,
viemos embora, veio todo mundo chorando, rsrrs, era muito bom, mas muito
quente, era um calorão danado, 40 graus direto, lá não tem nada disso, esse frio
146
aqui da gente, nada disso, a mulherada lá usava shortinho bem curtinho e
camiseta regata, só as que trabalhava nas lojas que tinha ar condicionado usava
as roupas assim como você mas na rua era tudo curto, era umas mulher meio
marrom, meio índio, andava o dia todo na rua, mas elas não ligavam par a gente
não, mas eu gostava da Manaus, ia no centro, nas Agências Bancárias, o Dinor
morava pertinho do centro, o centro é bom, eu saia muito lá, o centro era na
beira do rio negro que parece um mar.
O que a Sra. conheceu em Manaus?
em Manaus eu conheci o teatro, a Helena também conheceu o teatro,
o centro da cidade, as igrejas porque ia muito á missa, todo domingo, você sabe,
né, todos nós de casa somos muito católicos, aqui agora eu vou a missa aos
domingos ou então no sábado, né. Então, eu ia muito porque gostava muito, um
dia eu comprei tanto peixe que não aguentei levar, eu desci do ônibus e vi um
rapaz e pedi para ele me ajudar a levar para casa, era assim, você subia uma
ruazinha, era uma subidinha meio inclinada, daí eu cheguei e a mulher que
trabalhava de cozinheira na casa do Dinor, disse: nossa, mas onde a senhora vai
com tanto peixe? e eu falei, eu trouxe para nós comermos. E a mulher que
trabalhava na casa do Dinor tinha10 filhos, então ela deu uma menina para o
Dinor criar a menina foi para com 10 anos, acho que ela tinha tanto filho que
não importou de dar uma, a menina chama Neuza e tá com eles até hoje. Daí nós
viemos embora de Manaus e ela veio junto. em Manaus ainda nós fomos
fazer uma excursão para o Caribe. Pois os amigos arrumaram esta excursão, do
Dinor, né, e ele me levou, mas era uma excursão de muitos velhos e poucos
jovens nós fomos, nós ficamos no Caribe 9 dias, todo mundo é negro, é
africano ou angolano. Mas tudo chique, não é nada disso que é aqui, não é que a
gente está falando mal, né, você entende mas era umas mulheres de cabelo
lisinho, a gente chegava no shopping a gente não sabia quem era empregado
quem era patrão, nós fomos no Cassino, você conhece né, então, no Cassino
a minha cunhada jogou, porque a minha cunhada ganhou, abriu uma gaveta
cheia de moeda, as mulheres ficaram tudo olhando aquele dinheirão.
E depois, nós fomos para a praia dos alemães, tinha os alemães, ai
era tudo clarinho, não era mais escurinho não. A mulherada sem sutiã
147
(rssss, dela), daí ficavam estendidas queimando o seio, daí as amigas deles,
que foi com os maridos, as amigas do Dinor, disse: eu também vou tirar o sutiã,
e o marido dela disse: não vai não, vai tirar nada, mas a mulher falou mas a
mulherada sem, ele disse isso é problema dos alemães, você o vai tirar, ai
nós ficamos um pouco e depois fomos para o hotel. Eu fiquei no hotel do lado
do mar no quarto comigo ficou minha sobrinha e o filho deles, e os casais
ficavam nuns Chalés pequenos , mas nós gostamos de mais , depois fomos
numa outra cidade passear, mas gostamos de mais. Lá, eu cuidava da
menina, aí a gente já morava em Valinhos, na escola eu levava ela a pé ,
buscava 11 horas 12h, e depois levava para o inglês, ela tinha 6 anos, mas não
era todo dia não. Era 3 vezes na semana, agora ela vai para EUA fazer curso de
inglês, estágio, mas não tem problema porque ela se vira bem.
Na casa do Dinor, eu cuidava da menina, tinha cozinheira, arrumadeira
e cuidava da casa é a Neuza, a que foi adotada, a Nazaré era a cozinheira, mas
eu cuidava da menina, dava banho, comida, levava na escola e passeava. Ela
fazia curso de dança, em Manaus no teatro ela fez a apresentação da dança
e nós fomos. Depois foi fazer aula de música, aí já não era perto, então nós ia de
táxi, aprendeu a tocar piano, o pai dela deu um piano para ela, agora não sei se
ela ainda toca, porque criança você o brinquedo e ela logo desinteressa , né.
E ai, depois né, viemos embora de Manaus, veio tudo chorando, ninguém queria
vir, mas agora o Dinor tá em SP, trabalhando lá.
Bem, voltamos ao assunto da política, diz ela: bem, eu acho que o
Governo era o Juscelino Kubischechi, depois veio outro presidente, eu votei no
Juscelino, mas naquela época era mais os homens né que envolvia com política,
eu me alembro do papai, que votou em Ilicínea, num vereador que era da
família dos Vilela e para prefeito também era desta família.
Depois começo a fase dos pica- pau e dos tucanos, depois tinha a UDN,
bem eu não gostava muito de política não, mas participava das conversas mais
em casa, a gente tinha , aquele dever cívico de votar, mas depois que vim
para Alfenas, os candidatos eram mais conhecidos da gente, né, eram amigos da
família e ai ficou mais fácil escolher, bem eu sei que se eu quiser eu nem preciso
ir mais votar mais eu faço questão de ir, acho que isso é uma obrigação da
gente, nós temos o dever de fazer isso, nossa hoje as propagandas na TV soa
muito melhores eu acho que esclarece bem para o eleitor.
148
Paramos nesta parte da entrevista porque a entrevistada viajou e vamos
retomar agora em dezembro/ 2006.
Ao darmos início novamente às entrevistas, a entrevistada sugeriu que havia
algumas amigas dela que se prontificavam a também participar das entrevistas
individualmente.
Fomos nas casas destas pessoas e fui apresentada uma a uma e a partir daí
iniciei as entrevistas posteriores.
Continuando com Dona Olivina, ela relata que quando veio para Alfenas de vez
ela resolveu aportar mesmo e decididamente não mais sair.
Bem, eu cheguei em Alfenas e comecei a trabalhar numa farmácia, e o
dono da farmácia começou a me ensinar a dar injeção, a fazer curativos, e então
no meu bairro eu fiquei bem conhecida, quando as pessoas precisavam elas me
chamavam eu ia, aplicava injeção, media a pressão, fazia curativo, mas depois o
Dinor precisou de mim, eu disse que não sairia mais daqui, mas tive de ir para
São Paulo e de eu fui para Manaus como te contei, depois de nós viemos
embora, eu morei um bom tempo com o Dinor e a família dele, a mulher e a filha,
nossa eu tinha o meu quarto, tinha as minhas coisas, e eu levava a Mariana
para a escola, porque os dois trabalhavam, né, e ai eu ficava por conta dela.
Hoje eu estou aqui no bazar, ajudo as minas amigas, toda f. a gente se
reúne cada uma leva um prato e café, chá, leite, suco e conversamos bastante,
damos risada, fazemos nossos tapetes de fuxico, costuramos, remendamos e
assim nós vamos levando a nossa vidinha, aqui todo mundo é amigo, solidário,
são mulheres verdadeiras mesmo, trabalhadeiras e ajudam em casa, no bairro,
na igreja, a gente não perde tempo, eu bem, eu não vou todos os dias eu
venho na 3ª e 5ªf., como eu tenho diabetes eu tenho de tomar os meus remédios,
mas não é por isso, eu tenho de cuidar um pouco da casa também a Maria
Helena e a Madalena, as que são gêmeas, elas trabalham fora, tem a Isabel
também que mora na frente então as vezes temos coisas para fazer.
149
Anexo 1.2 – Entrevista n. 2
NOME: Bituca Mariano
IDADE: 79 anos
PROFISSÃO: Caseiro e reitreiro
LOCAL DA ENTREVISTA: No quarto do entrevistado e em uma área com jardim,
escolhido pelo mesmo. As entrevistas se realizavam sempre no período da tarde.
DATA: Julho/2006
Quem é você?
Eu sou B. Mariano, mas o povo me chama de Bituca, tenho 79 anos
atualmente, sou natural de Borda da Mata (cidade no sul de MG), mas moro
tem muito tempo aqui para as bandas de Pouso Alegre (cidade no sul de MG).
Bem, eu moro na Vila já tem 5 anos, eu casei com 22 anos, eu já era velho,
né, nesta idade, os moço da minha idade se casavam com 15, 16 anos, e veio
um nenê depois de 1 ano, mas o nenê nasceu morto, daí eu trouxe a minha
esposa para o hospital, mas não teve muito jeito, não.
Como assim, então ela teve o nenê em casa?
Sim, a parteira fez o parto dela, porque a gente vivia na roça, se
acontecesse alguma coisa a gente vinha para a cidade, para o hospital, naquele
tempo as parteiras era as melhores médicas que a gente tinha, elas sabiam de
tudo, já adivinhava né, mais ou menos que época que o nenê ia nascer.
Então, eu trouxe ela para o hospital, ela tomou os remédios, fez os
exames que precisava e depois nós voltemos para a roça. Um ano depois ela
engravidou, e o nenê também nasceu morto, daí eu internei ela e depois disso
ela foi operada, e não pôde engravidar mais, então nós não pudemos ter filhos.
150
Nós vivemos mais de 50 anos juntos, só eu e ela e Deus, ela era honesta,
trabalhadeira, falava pouco e eu também falava pouco, mas nós era muito
companheiro um do outro. Nós queria ter muito um filho para ser o companheiro
dela e meu também. Sabe, eu também falava pouco, porque eu gosto de
conversar coisa boa, coisa que não sendo boa eu não gosto, mas com a senhora
vai ser muito bom eu conversar, poder contar para a senhora a minha história,
isso é uma coisa muito boa.
Trabalhei muito, tenho as minhas profissões e de tudo eu faço um pouco.
Hoje eu vivo meio constralhado (sozinho), eu vivi na chácara do Sr. Costa, e a
minha profissão toda vida fui caseiro e retireiro, eu sou caseiro e retireiro. Eu
parei de mexer com o gado quando eu vim aqui para a Vila e no Sr. Costa não
tinha criação.
Eu morei 18 anos com o Dr. Gavião, lá na saída da Borda (Borda da Mata,
cidade no sul de Minas Gerais), o Dr. Gavião era médico, ele era lá de Cachoeiro
(Cachoeira de Minas, cidade no sul de Minas Gerais), ele era o Dr. Gavião, o meu
patrão, ele foi muito bom para mim, ele ficou doente, morreu e depois eu
passei a ir trabalhar com o Sr. Costa, que foi o meu patrão até hoje, agora não é
mais, porque agora eu tô na Vila para sempre.
E quando eu fui trabalhar no Sr. Tito Costa, no primeiro mês que eu
estava lá, que eu entrei com ele para trabalhar, ele falou para mim, olha tem
um mês que o senhor trabalha aqui para mim, eu vim aqui para pagar o senhor e
dizer que eu não tenho tempo de vir aqui, por isso que eu quero que o senhor
tome conta de tudo isso aqui para mim. Eu vim aqui pagar o senhor, mas eu
também vivo do meu salário, do meu pagamento, mas eu não tenho tempo, não,
ele falou assim para mim. Então vamos fazer uma coisa, tudo o que o senhor
receber aqui da venda das coisas, o senhor vai guardando este dinheiro, porque
tem uma coisa, vai chegar um dia que o senhor vai precisar pagar o aluguel. Daí
eu disse para ele, mas não tem problema, Sr. Tito, o senhor me paga e eu pago o
aluguel, aqui é eu, minha veinha e Deus, eu não tenho vício, o meu vício é
trabalhar.
Para o Sr. ver, eu não posso ficar parado, eu gosto é de lutar, eu quero é
lutar.
151
E que coisas o senhor tinha que vender para ele?
Ué, o café, o gado, coisas da lavoura, a fazenda dele era muito grande,
por isso foi perdendo muita coisa, ele não sabia gerenciar, dava muita coisa para
os outros, o povo pedia alguma coisa e ele dava, eu entregava se ele falasse
comigo, caso contrário, de jeito nenhum, e foi assim que ele foi vendendo
pedacinho por pedacinho lá da fazenda.
Quantos anos o Sr. tinha quando for trabalhar com o Sr. Tito Costa?
Ah, eu tinha uns 27 anos. Mas ele me falou assim: eu fico muito feliz
do Sr. falar isso para mim, eu gosto de ouvir que o Sr. tá me falando. Isso é coisa
boa que o Sr. falando para mim. Eu não tenho intenção de comprar nem uma
casa e nem o lote, Sr. Tito, é eu e ela. Neste momento eu quero mesmo é
trabalhar, mas naquele momento a gente nem pensava no futuro.
E acho que se um dia eu faltar, ela não vai querer ter intenção de morar
sozinha, porque não temos filhos, não tem ninguém. O primeiro nenê que
nasceu, ela ficou com a bexiga de lado, eu internei e depois no segundo filho, o
médico operou ela para não ter mais filho. Ela era branquinha, trabalhadeira, e
ela chamava Lita, e aí um dia, já lá na chácara do Tito, eu vi que ela tava
rangendo muito os dentes. Eu perguntei, Oh! Lita, o quê que é isso? O quê que é
esse problema seu? Ela não me respondia, todo dia trabalhando, mas eu fui
ficando triste, fiquei uma semana pensando, assim, porque eu sou muito
curioso, muito preocupado, e vi que tinha uma coisa diferente. Aí na sexta feira.,
eu vim fazer compra no supermercado aqui na cidade, eu trouxe as vasilhas e o
Pereira que levava para mim, eu comprava a compra de mês, porque eu não
tinha tempo.
152
E o que foi que o senhor fez?
Eu fui atrás do motorista de táxi, depois que o Pereira levou as
vasilhas para mim.
Mas que vasilhas eram estas que o senhor levava para fazer as compras?
Ah! Era saco. Eu punha tudo no saco, arroz, feijão, óleo, sabão, açúcar...,
o Pereira trazia para mim de Kombi, naquela época era a Kombi que fazia as
entregas. Eu não tinha muito tempo, então, eu já comprava a compra para o mês
todo. Daí no supermercado, o dono marcava, eu pagava uma compra e levava a
outra, era mês a mês, e o Pereira fazia o carreto. Ele pegava as compras de
um monte de gente e aproveitava e entregava de um por um, cada compra na
casa de um.
Mas, neste dia que eu fui para a cidade, me deu na cabeça e eu pensei,
vou marcar uma consulta para ela, aí eu fui lá no Dr. Tupi, conversei com ele, ele
falou para mim, pode trazer ela ainda hoje se o senhor quiser. Eu fui no
Donizeti, ele é taxista, e eu falei para ele, pelas 2 horas você vai em casa e
apanha a minha mulher e vai levar nós no consultório do Dr. Tupi. Aí eu fui
em casa e avisei para ela, daí nós fomos no Dr. Tupi. Daí eu falei para o Dr.
Tupi, eu quero que o Sr. faça um exame nela, uma consulta do pé até a cabeça e
se aqui não tiver recurso eu levo ela para São Paulo. Daí ele examinou, e eu falei
com o Dr. Tupi o que estava acontecendo, e ele me falou, Sr. Bituca, a Dona
Maria (assim que ele chamava a Lita) está com a circulação muito fraquinha, o
Sr. vai internar ela agora. Daí ele encheu uma folha e me deu e eu fui para o
hospital. Fui andando e ele falou para mim, daqui a pouco o Sr. volta; quando fez
3 dias da internação, uma médica ligou para mim na roça que era para eu
procurar ela e eu fui. Procurei ela e ela me disse, olha, a Dona Lita com um
tumor na cabeça e eu vou ter de operar ela, e ela tem que ser operada
imediatamente e tem que ter a sua autorização. Daí eu falei, mas o tem outro
jeito Doutora? Ela disse que não e que tinha de ser rápido, porque o tumor
estava vencendo, ele estava bem grande e podia comprometer a saúde dela.
153
Daí eu fui embora lá para a roça, eu estava partindo uma roça, isso era no
sábado, tinha de tudo, eu plantava, roçava, colhia, eu plantava de tudo, milho,
verdura, feijão, e tinha uma piscina muito grande, e ficava umas moças o dia
inteiro, amigas das filhas do patrão, namorada dos meninos, namorados, uns era
parente deles, outros amigos mesmo, não tinha gente estranha, era uma falação
só. E eu fiquei ocupado, mas aí no domingo, eu telefonei lá do orelhão, aí
falaram para mim que a Lita estava de alta. Disseram assim, ih, ela ta
boazinha, já tá melhor do que estava, mas eu fiquei tão feliz com isso.
Eu fazia faxina, eu pegava duas horas de faxina, pegava da beira do
portão, ia para a piscina e passava pela minha casa, e voltava para a beira da
piscina, eu varria tudo e deixava tudo limpinho.
Daí, fiz tudo isso no sábado, no domingo chamei o táxi e fui buscar a Lita
no hospital, eu estava todo feliz, mas quando eu cheguei lá, ela estava na
cama, com um braço amarrado na beira da cama e um lado do braço
adormecido. Eu tomei um choque, levei um susto, fiquei zonzo, me escureceu a
vista, mas eu fui melhorando, foi clareando e eu saí do quarto, daí eu fui
andando e veio vindo duas enfermeiras pro meu lado, e eu falei assim; ué, eu
trouxe a minha muié, ela veio andando e agora ela na cama quase morta, e
quando eu vi eu tinha falado para elas, eu falei sem sentir, elas ficaram
quietas.
Eu levei a Lita para a casa, ela ficou uns dias em casa, isso fez uma
semana, mas quando foi no sábado para domingo, ela sentou na cama e
começou uma ronqueira na cama e soltando uma espumaiada pela boca, daí eu
corri e chamei um vizinho meu, o Sr. Ademar. Era só atravessar a rodovia que eu
chegava na casa dele, e ele tem uma filha que é enfermeira. Fui lá e falei com ele
e com ela, daí ela falou assim, não, pode deixar que eu vou com o Sr., e ela
ficou até de madrugada, ela enrolava uma toalha na mão, ela ia roncando e
soltando aquela espumaiada e ela ia limpando, ela falou quando foi de
madrugada, ela falou para mim, Olha, Sr. Bituca, eu vou embora porque amanhã
eu tenho que ir para o hospital, daí o Sr. pega uma toalha limpa e vai limpando
ela, senão ela afoga e de manhã o Sr. já pode levar ela novamente para o
hospital. Daí eu levei a moça embora para a casa dela, eu falei, vou levar a
senhora porque está escuro, atravessei a rua com ela e deixei ela na porta da
casa dela. Daí isso era domingo, levei a minha esposa para o hospital, quando
passou o domingo, na 2
a
. feira ela morreu.
154
Acabou tudo, até hoje eu não presto mais depois que ela morreu. Eu
penso nela dia e noite, eu saio, tá ruim, eu como, a comida tá ruim, eu saio, para
mim tá ruim, tudo ruim, eu vou dormir ta ruim, eu passo uma mordoninha, eu
trabalhando eu vejo ela junto, eu fico assustado e penso, mas ela não vai
voltar mais.
Vou falar uma coisa para a Sra., a gente perdeu o pai, perdeu a mãe,
perdeu tudo, né, porque este povo de hoje, hoje este povo é um outro povo, é
um povo moderno, é um mundo moderno e ninguém faz conta de ninguém. E a
gente tem que se virar. faz 10 anos que eu moro sozinho, eu morei 10 anos
sozinho.
Mas, como era o povo antigamente, então? O senhor muita diferença de
hoje para o povo de antigamente?
Eu vou falar uma coisa para a Sra., antigamente tinha os patrão, tinha
umas 4 ou 5 pessoas que tinha suas casas, mexia com pouca lavoura, tinha
colônia, o povo era mais feliz, tinha o Zequinha Favre, tinha colônia, o Geraldo
Simões, o irmão dele, Vicente Simões, tinha colônia, lá nos Borges tinha colônia,
Juca Campos tinha colônia, os Moreira tinha colônia, no Zico Borges, eu fui
criado lá na fazenda, lá não tinha colônia, mas tinha umas 5 casas de camaradas
que trabalhava por dia. Tudo era diferente, os remédios antigamente não era
estes remédios de hoje, era remédio da horta, de casa, minha mãe tinha uma
hortinha na porta da cozinha, o meu pai, para s Sra. ver, nunca tomou um
comprimido na vida, eu via ele de no chão, nunca ficava doente, ele era bóia
fria. Vou falar para a Sra., a gente é da roça, aquele lavrorão de feijão, a gente
acordava às 4 da manhã e ia para a colheita, aquele lavorão de arroz, eu trabalho
desde os 15 anos, eu era caseiro, aquele farturão de café, meu pai plantava a
roça e nós comia produto da nossa roça, engordava porco, produzia coisa
nossa, não precisava de muita coisa.
Hoje tudo é diferente, o mundo hoje ta muito diferente, sim, hoje tudo vive
a crise, tem adubo nas plantações, nada é mais muito puro, tudo o quanto o que
nós comemos é contaminado. O povo hoje já não tem mais aquelas amizades de
antigamente, as pessoas tinham palavra quando fazia um negócio, hoje tudo é
muito diferente mesmo.
155
Para a Sra. ver, o povo de hoje não tem saúde, tá tudo doente. E hoje para
tratar a saúde, eu vou falar para a Sra. é tudo muito difícil, coisa mais difícil do
mundo. Eu não tenho plano de saúde, muito das coisas a gente vai pelo SUS, né,
mas as vezes é aquelea demora, uma fila grande demais. Mas tenho
aposentadoria. Eu morei 10 anos sozinho, o Sr. Tito Costa pagou o meu aluguel,
pagou o aluguel para mim, minha mulher morreu na roça dele, ele foi muito bom
para mim, muito bom para ela, é o Tito Costa, foi meu patrão, ele mora em cima
do banco.
Ele nunca deixou faltar nada para mim. A família dos Costa é muito
grande. Daí eu falei para ele, seu Tito eu moro sozinho, minha mudança um
caminhão leva.
Mas que mudança que o Sr. fez? Aqui para a Vila? Ou da roça para a Cidade?
Não, foi da roça para a cidade, antes de vir para a Vila eu morei nuns
lugar por aí, depois que eu fiquei viúvo. A gente fica meio sem lugar, né, e a roça
para mim ficou tudo muito triste. Daí eu falei para ele, olha um caminhão leva a
minha mudança, daí fui morar sozinho, depois de um tempo, eu cheguei no Tito
e falei para ele, Seu Tito eu moro sozinho, moro de casa alugada, o Sr, pára de
pagar aluguel para mim, de correr para baixo e para cima, falei, vamos fazer uma
coisa, o Sr. me põe no asilo, e ele falou, não, larga disso. Aí ele falou para
mim,não, não, o Sr.não acostuma lá, o Sr. acostumado a trabalhar, a mexer
com tudo, fica de lá para cá, e lá é muito triste, e eu não conhecia o asilo, aqui na
Vila, o povo fala assim, eu nunca tinha ido num asilo, e eu falei, ah! Sr. Tito, o
mundo tá mundo violento, e eu não gosto de violência – eu tenho a minha
aposentadoria, eu tenho a minha casa, eu tenho que sair para trabalhar, porque
o dinheiro da aposentadoria não vai dar, e um dia eu chego em casa e a
casa tá limpa, eu não quero assim não – essa violência não é para mim.
Daí eu falei com ele, às vezes pode roubar de dia, mas e se vai lá á noite e
ainda mexe comigo. Eu não tenho coragem de fazer nada para ninguém, mas
acho que eles vão ter coragem de fazer alguma coisa comigo. Eu creio em Deus,
eu sou católico. Eu quero o bem pra todo mundo, nós todos somos irmãos. Mas
hoje o mundo diferente, hoje ninguém tem de ninguém. Hoje tem que se
156
virar, cada um para si e Deus por todos nós. difícil a vida hoje, eu falei para
ele.
Antigamente eu trabalhava no meio de 15, 20 homens, de 2
a
. feira a
sábado, de 2
a
. feira a sábado. Era direto, aquela alegria, todo mundo conhecia
todo mundo, aquele farturão, vou falar uma coisa para a Sra., hoje eu entrei aqui,
faz 16 anos que eu tenho marcapasso, eu tenho um médico de São Paulo, e
ele faz tudo para mim, é o Dr. Paulo Medeiros, este é o nome dele.
Então, quando foi que o Sr. veio morar aqui na Vila?
isso faz 6 anos que eu estou aqui, que eu moro aqui. Então, eu
estava falando do Dr. Paulo Medeiros, a casa dele é longe, mas ele sai de lá e vai
até o Instituto do Coração e marca tudo para mim. Ele vai lá e troca para mim, ele
já trocou duas vezes o meu marcapasso, de 6 em 6 meses eu ia em São Paulo, a
Sra. precisa de ver o quanto ele era bom para mim. Depois, quando eu vim morar
aqui na Vila, quando eu entrei aqui eu fui umas 3 vezes para São Paulo. A irmã
estava achando caro o táxi. O taxista é o Nivaldo, a corrida dele era 200 real que
ele cobrava para me levar em São Paulo, que ele cobrava de mim. Mas ele me
levava para São Paulo e era muito barato, eu vou falar porque era barato. Ele tem
uma irmã que mora em São Paulo, ele pousava na casa da irmã e ficava comigo
2 dias. O Dr. Paulo arrumava para eu ficar no hospital mesmo, e dois dias
em São Paulo era muito barato. Hoje eles cobram de 300 a 350 real, e a irmã
cortou eu de ir para São Paulo. Eu peguei e liguei para o Dr. Paulo Medeiros, ele
falou assim comigo, então, Sr. Bituca, vamos fazer assim, eu tenho um colega
em Pouso Alegre que estudou comigo, eu vou passar o Sr. para ele cuidar do
Sr., mas eu vou acompanhar o seu tratamento também. É o Dr. Ricardo, daí
passou para ele, e comecei os exames com ele, já fiz duas consultas, mas exame
aqui eles faz o eletro, em São Paulo examinava tudo, o funcionamento do
marcapasso, do coração, tem aparelho, aqui não tem não, aqui não tem, né,
mas a irmã quis assim. E aí teve que ser assim.
157
E como vai a sua saúde agora?
Ah, vai indo, né. E depois disso, do marcapasso, eu fui operado da
próstata, antes de vir para cá, eu tinha feito esta cirurgia, fiz em Santa Rita
(cidade do sul de Minas), e depois eu tirei 4 pedras da vesícula, eu paguei
3200,00, em Santa Rita. Com o Dr. Paulo, conversei com ele e ele disse, eu
opero sim, eu faço para o Sr. por 1600,00, daí eu fui em São Paulo e fiz lá porque
por aqui era tudo mais caro e o Dr. Paulo já me conhecia.
E o Sr. tinha o dinheiro para poder fazer esta cirurgia?
Sim, eu tinha, tinha com o Sr. Tito Costa, né, ele guardava o meu dinheiro
do fundo. Depois, quando eu vim para a vila, eu fiz cirurgia, fiz o exame de vista
e acusou que eu tinha catarata, daí veio a catarata, com o Osvaldo Alaor que eu
operei, ele falou para mim, você tem que operar da vista, Sr. Dito, eu vou ver se
arrumo para o Sr, pelo SUS. Ele queria que eu operasse de graça, dado, eu
esperei mais de 1 ano para operar da vista, mas daí não conseguiu, e o Osvaldo
disse, eu opero mas a cirurgia fica em 3000,00 reais. Mas aí eu falei para ele, mas
3000, 00 eu não posso pagar, daí eu andei com esses médicos todos aqui de
Pouso Alegre, mas nenhum operava pelo INPS. Com o meu INPS, em São
Paulo que eles me atendiam com o meu marcapasso, aqui em Pouso Alegre, era
tudo muito difícil, aqui eles não operam pelo SUS. Daí eu tinha 800 real na Caixa
Econômica, daí um médico operou para mim, eu tirei o dinheiro e consegui
operar de uma vista, a Cida Costa, que trabalha aqui na Vila, ela é enfermeira, ela
que conseguiu para mim no Hospital Santa Paula, ela conversou com o
médico e ele disse, eu opero então uma vista para ele. O doutor pediu que um
enfermeiro me acompanhasse até a vila para eu poder chegar até lá, mas eu
queria operar a outra também, e o médico disse, Sr. Bituca, tem que falar para
o seu patrão para ele vir aqui e pagar a outra vista, e ele disse que o enfermeiro
ia me levar para a casa, daí o enfermeiro me deixou na Vila, no outro dia, eu saí e
fui de novo no Hospital Santa Paula, tinha uma mocinha na recepção, falei
para a moça, Oh! bem! O que que está acontecendo que eu operei duma vista e
agora tem que falar para o meu patrão para ele vir aqui para marcar a outra? Aí
eu falei para a mocinha: O que é isso que eu gosto de saber? Eu pergunto as
158
coisas aqui e ninguém me fala nada para mim. Eu quero saber, porque a minha
vida até hoje eu sei tintin por tintin, e eu tenho que saber se virar, o que é isso
de pedir autorização para patrão, ele é meu ex patrão, eu não engano ninguém e
não gosto de viver enganado, o que é isto aí, que confusão é essa? Daí, ela falou
assim comigo, olha, Sr. Benedito, a Cida Costa está vendo com o asilo se eles
vão pagar para o senhor a outra vista, o médico fez para o asilo pagar em 3
parcelas, mas até agora não veio resposta nenhuma.
Aí eu falei para a mocinha, então, a Sra. me põe para falar com o médico,
porque eu preciso falar com ele agora. Ela me mandou esperar e logo depois o
médico me mandou entrar para a consulta e eu falei com ele assim, olha,
doutor não precisa mexer com o asilo não, eu tenho os 800 real e o senhor me
opera. Ele falou assim para mim: “então bem, amanhã o Sr. interna e eu
opero, pode marcar para amanhã”. Eu falei para ele, então vou na caixa e
resolvo isso logo, eu tenho o meu dinheirinho e pago. Daí ficou em 3200,00 tudo,
o asilo ajudou também, eles conversaram com a Irmã que arrumou tudo e me
ajudou a pagar. No outro dia eu fiz a cirurgia mesmo. Senão eu ficava com uma
vista enxergando e a outra não.
E agora o Sr. enxerga bem?
Agora eu enxergo bem, se fosse operar uma e a outra não, daí eu não ia
conseguir fazer nada, não ia dar o meu dinheiro à toa. Mas também não
explicavam nada direito para a gente, que aqui na Vila, a Irmã tinha que
conversar com os outros da diretoria. E o dinheiro era meu, né, eu também
pago para morar aqui.
Vou contar para a Sra. o que foi acontecendo com o Sr. Tito Costa!
Bem, agora vou falar uma coisa para a Sra., o Tito, aquele que foi o meu
patrão por todo esse tempo, ele vendeu a chácara, depois loteou um terreno que
ele tinha, sabe, aquele loteamento novo, perto da chácara do retiro. O Vilela, um
que é compadre dele loteou tudo junto com ele. A Sra. sabe onde fica a Rua
do Perlon, de frente à rua, tinha um laranjal, em frente a Overlon, onde fizeram a
garagem do corgo, do Amadeuzinho.
Daí, o Tito pegou e vendeu a chácara, daí ele ficou no meio do
loteamento. E lá tinha plantação, e o povo começou a roubar tudo, tudo o que
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plantava, o povo entrava e roubava, tinha de laranja, tinha plantações de
verduras, criação de galinhas, e o povo entrava e roubava tudo, tudo...
Daí, o Tito falou para mim assim: “eu vou vender a chácara Sr. Bituca,
mas eu não vou deixar o Senhor na mão não”. Eu falei para ele pode vender sim.
Eu tinha dele do que o povo vinha fazendo. E quando foi para ele vender a
chácara ele me levou no chapadão (bairro), e ele tinha 3 casas de aluguel,
ele me falou assim, olha Sr. Bituca, o senhor vai entrar numa dessas casas aqui
e aqui o senhor. vai morar para o resto da sua vida. E eu fui para uma dessas
casas, que beirando a parede, tinha um bar na esquina, e na outra esquina,
do lado de lá, outro bar, era que é barulho só. Era tudo carpete na casa, eu
arranquei tudo, pus piso, mas para mim era uma amargura, porque aonde eu
morava não tinha dessas coisas e nem era barulhento, o povo jogava bilhar, era
aquela gritaria só, aquela cachaçada danada.
Daí eu cheguei no Seu Costa (Tito) e disse para ele, o senhor não fica
triste comigo não, olha, eu arrumei a casa todinha, pus piso, pus torneira nova,
arrumei bem, mas eu não quero ficar não, eu falei para ele, tudo bem,o
senhor aluga a casa de novo. Daí ele falou assim para mim: “então o Senhor.
arruma outra casa ou outro lugar para o senhor morar que eu pago para o
senhor”; daí eu arrumei o porão da casa da dona Amália, de frente para a
chácara mesmo, eu gostava daquele lugar lá, ela era viúva e morava só com uma
filha dela que trabalhava. E eu fui morar no porão da casa dela, fiquei uns 3
meses, só que tinha muito mofo e estava me fazendo muito mal, e a minha cama
era embaixo do quarto dela, e ela andava de tamanco, e era um barulhão só,
eu fui procurar o Sr. Tito Costa de novo e disse para ele me colocar no asilo de
novo, porque eu não agüentava mais morar com tanto barulhão e confusão.
Então, o Sr. já tinha morado na Vila?
Eu morei sim, morei uns 3 meses, mas não me adaptei muito da primeira
vez que eu fui para lá. Eu não gostei do quarto que a Irmã tinha me colocado.
tem umas Irmãs que são boas e outras que são uma peste; daí um povo que não
dormia à noite inteira, andava de um lado para outro, e eu quis embora e o Tito
Costa me tirou de lá, assinou e eu fui embora.
Neste tempo, eu tinha um dinheirinho na Caixa, ele me pediu
emprestado e me falou que pagava o dobro dos juros do banco.
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O Senhor Seu Bituca se lembra de quanto que o Senhor tinha de dinheiro e
de quanto o senhor emprestou para o seu patrão?
Ah, eu tinha uns 2 e pouco, daí fomos lá na Caixa, eu tirei o dinheiro, a
moça tirou, nós fomos lá no cartório e também demos baixa na minha carteira.
Fomos no cartório, ele foi junto, acertamos tudo, daí a moça falou assim: “agora,
Sr. Bituca, nós vamos no Ministério do Trabalho, na avenida”. O cartório
que nós fomos era do lado do Mercado Municipal, porque nós fomos dar baixa
na minha carteira. O Sr. Tito falou assim comigo: “Olha, Sr. Bituca, o Senhor vai
com a moça até o ministério e eu vou em casa um pouquinho e nós nos
encontramos já, já”. Daí fomos lá, a moça arrumou tudo certinho, e ela me disse:
agora já está tudo certo, só tem um saldo aqui que o senhor. vai receber do seu
patrão. O Senhor. quer receber agora ou depois? Eu falei não, deixa para depois,
porque ele não depositou no banco e nós vamos ter que falar com ele. Eu falei
assim para ela: Olha bem! Você deixa como está que agora mesmo eu vou
encontrar com ele e converso com ele, e a moça então foi embora para o serviço
dela, isso já era quase 3 horas da tarde.
E quando foi isso, Sr. Bituca, o Senhor se lembra?
Eu lembro sim, isso tem esses anos todos que estou aqui. E então eu
falei assim com a moça, eu tenho mais dinheiro com ele além desse, eu vou falar
com ele para saber quanto que eu tenho com ele ao todo. Mas a Senhora deixa
tudo certinho para mim no papel, a Senhora marca aí e mais prá frente se
precisar eu procuro a Senhora, porque eu já trabalhei muito, é um dinheiro
suado e a senhora ajuda eu, é tudo economizado, eu trabalhei o suficiente e
reservei este dinheiro para quando eu ficasse velho ou minha mulher ficasse
Veinha, tinha ele para nós acabar de viver. Só que ficou só eu, e então a Senhora
ajuda eu a resolver isso, e assim a moça foi para o trabalho dela.
E eu vou contar uma coisa para você, eu nunca estudei na vida,
nem minha Veinha, tudo que eu aprendi foi com os outros, até a mexer com o
dinheiro, a respeitar os outros, eu nunca tirei nada de ninguém, nunca enganei,
entrar e sair das coisas, foi tudo sozinho. Trabalhar sozinho, fiz tudo na vida
sozinho.
161
E depois que eu deixei a moça eu fui vindo embora, e o Sr. Tito
estava na esquina me esperando. Ele tava lá na esquina. A moça já tinha pegado
a papelada com ele e ele tinha assinado os papéis também. Daí eu falei com
ele, Sr. Tito, a moça me disse que eu tenho um dinheiro para receber com o
Senhor, e ela me perguntou o que eu queria fazer e eu disse para ela que ia
conversar com o senhor primeiro, porque no senhor eu confio. Daí ele falou para
mim, eu fui na Caixa, vamos lá que eu depositei o dinheiro lá, vamos lá, daí
chegamos na Caixa tinha 2500,00 depositado.
O moço da Caixa, o gerente, me chamou e disse, olha, Seu Bituca
vamos fazer uma aplicação para o senhor, deixa este dinheiro aí, o senhor
aplica, pode ser que mais tarde o senhor vai precisar para alguma coisa e fica
garantido. Daí o Tito Costa falou assim, não, ele não vai aplicar agora não,
porque ele vai me emprestar para mim, e eu pago ele com um dinheiro (juros)
melhor.
Mas o senhor Tito tinha conversado com o Senhor antes disso?
Não, ele fazia sempre assim mesmo, daí ele pegou o dinheiro e
levou com ele, e ficou R$11000,00 mais os R$2500,00 emprestado com ele, eu
tinha em haver com ele R$ 13, 500,00 real.
Eu fiquei viúvo faz 13 anos, eu morei lá no Tito Costa 10 anos e faz 3 anos
que eu moro aqui de vinda, tem mais os juros deste tempo porque faz 6 anos
que ele está com o meu dinheiro emprestado. E ele me deve e não pode me
pagar. Aconteceu tudo aquilo com ele que eu te contei e eu tenho muita dele,
ele é um homem muito bom.
Como assim?
Aí que ele foi me contar tudo, que eu entendi tudo o que estava
acontecendo com ele, em relação ao dinheiro dele, as propriedades, as dívidas e
tudo o mais. Ele tem um genro que mora em São Paulo, é médico, casou com a
caçula dele, a Solange. Ele falou assim, que o genro topou um acordo com ele
de reformar a clínica de São Paulo, para o Paulo trabalhar junto com ele, o
Paulo é um filho dele que é médico também, a Rosângela, outra filha dele, ela é
doutora mas não da medicina, é de outra coisa, e daí esta clínica era para eles
162
todos trabalhar juntos. Daí ele me contou que deu todo o dinheiro que ele tinha,
mais o meu dinheiro que ele tomou emprestado de mim, pegou também dinheiro
a juro com o compadre dele e deu tudo para eles, pegou com o irmão dele
também, o Ademar, e ainda deve muito, e depois da clinica pronta, o genro
largou da filha dele, ainda que tirou os filhos dela, um menino e uma menina e
juntou com uma juíza.
O rapaz, genro dele era bom, eu conheço bem ele, quando ele vinha na
chácara e eu proseava muito com ele, sujeito bom, eu não posso falar nada dele,
né, ele me tratava muito bem, me dava atenção, conversava comigo, eu acho que
esse negócio que não está bem contado, não sei ainda tudo muito bem, né.
O Senhor está desconfiado de alguma coisa? Imagina alguma coisa sobre
isso tudo que o seu patrão lhe disse?
Olha, a gente não pode falar nada, mas eu vou contar uma coisa para a
Senhora, para mim o negócio é a mulher dele, do genro do Sr. Tito, é a filha dele
mesmo que deve ter arrumado toda a confusão. Ele é médico, o genro do Sr.
Tito, o serviço dele era de muita responsabilidade, ele opera as pessoas, ele não
tinha muito tempo, vinha muito pouco para cá, eu via que a mulher não
combinava muito com ele, eles viviam discutindo na chácara, às vezes ele
vinha num dia e no outro já ia embora, eu via que a mulher não combinava muito
com ele, ele eu conheço ele bem, e acho que veio o problema do dinheiro. Daí
eu fiquei sabendo que o seu Tito vendeu metade do apartamento dele, ele não
me conta nada disso não, depois vendeu o carro, eu sei que ele deve muito aqui
na cidade. Eu fiquei preocupado com tudo isso, e eu cheguei nele estes dias
para trás e falei, “olha, Seu Tito, vamos acertar tudo que o senhor me deve,
porque eu preciso do meu dinheiro. Então, ele me disse: “olha, Sr. Bituca, agora
eu não posso pagar o Senhor, não tenho como acertar com o Senhor” Pronto!
Ele não pode acertar comigo, eu pensei, ele foi muito bom para mim. Cheguei
nele e disse assim, olha, Seu Tito, o senhor não tem esse dinheiro para me
pagar, e ele foi muito bom para mim, ele me pôs aqui, ele é responsável por mim
aqui, eu falei, então, comigo, apareceu muita fiaca (coisa ruim) para tomar conta
de mim. Eu falei para ele, Seu Tito, larga a mão então, é roubo dia e noite, o
senhor fica quieto lá, a sua mulher veinha também. Ele me contou que
tem 2 aposentadorias e que o dinheiro não para nada, eu falei com ele, olha,
163
seu Tito, eu sou um homem assim, eu creio em Deus, o senhor me conhece
muito, sabe que eu respeito todo mundo, sabe que eu nunca ponho a mão no
que é dos outros. O Senhor foi o meu patrão, sabe que muitas vezes eu tirei do
meu dinheiro para ajudar os outros patrões, nunca tirava deles. Eu tive patrão a
minha vida toda, desde os 10 anos de idade, trabalhei na casa dum, na casa
doutro, já fiz muitas mudanças, de cada patrão que eu trabalhei, se eu tirasse um
pouquinho dum e de outro eu teria uma casa para morar com o meu suor, não
posso falar que eu estava rico, mas eu podia ter uma casinha boa para mim, mas
larguei tudo e não quis, quando eu preciso eu peço, se me arrumar eu fico feliz
do mesmo jeito, se pode, pode, senão não pode, não pode.
A senhora vendo aquela moça ali, que está passando? Ela é lavadeira
aqui na vila, ela que lava todas as roupas aqui, e ela me pediu R$ 20,00 real
emprestado, porque o pagamento aqui é perto do dia 8 de cada mês para eles
receber. Eu pensei muito nestes dias, faz 20 dias que eu emprestei o dinheiro
para ela e ela ainda não me pagou. Mas eu tenho sempre um dinheirinho, um
pouco no banco e outro aqui no bolso, mas aqui ninguém sabe e nem pode
saber, aqui não pode ter nada, as pessoas aqui se souber, estas enfermeiras
aqui, elas pegam da gente, eu emprestei para ela porque ela não fala e ela
também lava umas roupas para mim, mas eu que faço tudo as minhas coisas.
O Sr. gosta aqui da Vila?
Agora eu gosto, a gente acostuma, né. O meu quarto vive trancado, eu
mesmo limpo, eu saio, eu tranco.
O que mais o senhor faz aqui?
Eu ajudo a irmã com o jardim, saio e dou umas voltas, converso com
algumas pessoas aqui e os estudantes que tem uma prosa muito boa e dão
muita atenção para a gente.
164
Então o Sr. mesmo cuida de suas coisas?
É, eu tenho muitas coisinhas lá. Eu, quando o Tito veio trazer minhas
coisas no caminhão, eu chamei a Irmã e falei, olha Irmã, as minhas coisas estão
aí, agora a senhora veja o que eu vou descarregar daqui, o que eu posso trazer
para cá, a Irmã falou: “o Sr. não vai precisar de muita coisa. Daí ela falou, eu
vou dar um quarto bom para o Sr., pode levar a geladeira, leva a sua televisão, o
colchoado, cama lá é de solteiro. Aí eu falei, não Irmã a senhora não me põe
em duas camas, não, a sra arruma um quartinho meu, e pôde por a minha
cama que eu trouxe. Eu moro separado da enfermaria, daí eu arrumei o meu
quarto, fogão não pode dentro do quarto, o resto das minhas coisas ela guardou
num cômodo, tem o fogão, um saco de panela, um colchoado que eu comprei
por 18 real, mas nem precisou e ela guardou para mim, tem uns quadros, estes
era da minha mulher, eu preguei lá na parede.
Nesta época eu nem tinha intenção de vir para cá não.
E o senhor sente falta das suas coisas?
Sinto sim. Da minha cama, teve que colocar outra. Esta cama é bem
estreita, nem o colchoado pôde pôr, senão ficava arrastando muito.
Então, o Senhor dorme numa cama de solteiro?
É, ela é um pouco mais larguinha, mas é pequena demais. A minha
cama era muito grande, o quarto é bom, mas ia ficar muito apertado, então eu
não coloquei.
Mas o resto da mudança que eu não quis, eu dei para uma mulher
pobrezinha lá do chapadão. Peguei o caminhão, pus as coisas e levei lá para ela.
Então, o Senhor fez uma caridade?
É uma caridade, a única coisa boa que fiz na vida, coisa de bom que fiz na
vida. Coitadinha da pobrezinha. Olha, dei o sofá, poltrona, um saco de roupa,
165
cadeira, mesa, panela, prato, dei tudo para ela. A gente também tem que fazer o
ue a gente.
Então, um dia eu pensei assim, vou conversar com o Seu Tito Costa e fui
me encontrar com ele. Eu disse para ele, Sr. Tito Costa, vamos fazer uma coisa
então, o Senhor disse que agora o Senhor não pode me pagar, o Senhor pega
tudo os documentos e rasga e a dívida fica paga e o Senhor não me deve nada,
mas todo mês eu vou encontrar com o Senhor e o Senhor me 200 reais para
mim me virar, porque a comida aqui é tudo muito fraquinha, o Senhor vê, nós
fomos acostumados na roça, com comida forte, e aqui todo mundo é fraquinho e
não pode ter muito tempero, o povo aqui é doente. E aqui come mais de 100
pessoas, e não tem jeito de fazer a comida para uns e para outros diferente uma
das outras. Eu até dou razão para eles, eu até falei com a Irmã uma vez e ela
me explicou assim.
Então eu disse para o Sr. Tito Costa, eu gosto de ir no restaurante para
comer uma comida mais temperadinha, mais forte, e aí eu vou poder ir no
restaurante umas 2 ou 3 vezes na semana, porque a comida aqui é fraca, e assim
também eu posso sair um pouco e fazer coisas diferentes e comer melhor para a
minha saúde.
E, então, como o Sr. Tito Costa fez com a sua proposta? Ele aceitou?
Ele me disse que tudo bem, que podia ser assim. E, então, nós ficamos
combinado assim.
E então, o senhor começou a comer no restaurante? Quanto o senhor paga? E
o senhor vai quantas vezes na semana, e que dias vai?
É, eu vou no restaurante, é um perto do mercado central, fica na esquina
do mercado, a gente mesmo se serve, eles tratam a gente muito bem, a gente
mesmo serve o prato. A comida é R$ 5,00 real eu fui num de R$ 4,50, mas
desse eu não gostei. Deste outro de R$ 5,00 real, o moço fala para mim, se o
senhor quiser, Seu Bituca, o senhor pode se servir mais, pode repetir, se o
Senhor gostou pode repetir o quanto quiser, o Senhor paga o mesmo preço. Mas
eu como bem e a comida sustenta bem. Eu vou assim, as vezes vou 2ª, 3ª. e
sábado, e às vezes vou de 3ª, 4ª. e 6ª. Feira.
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Como eu sou muito econômico, eu vou 1 ou 2 vezes, tem semana que
eu vou 2 ou 3 vezes. Então, todo mês eu vou na casa do Seu Tito Costa para
ele me dar os 200 real.
E ele paga para o Sr. os 200 reais?
Então, teve mês que ele me pagou 100 e ficou me devendo 100, daí ele me
falava assim, daqui 4 dias o Senhor volta aqui que lhe dou o resto, eu vou
arrumar e lhe dou.
Depois, ele não conseguiu me pagar, ele me disse, olha Sr. Bituca, eu
muito apertado e em vez de lhe dar os 200,00 eu vou dar 100,00. Daí eu disse
para ele, então eu vou cooperar como senhor e o senhor me paga os 100. Daí
que todo dia 05 eu vou lá, porque é o dia da aposentadoria dele, e aí ele
começou de novo a me pagar pela metade, me dava 50 e depois eu ia pegar os
outros 50, daí ficou assim, ele me os 50 e depois vai arrumar não sei com
quem os outros 50. Ele deve para mim R$ 11.000 em dinheiro e mais os R$
2500,00, então de fato é R$ 13,500,00 mas ele é muito bom para mim.
Mas o Senhor também é muito bom para ele?
Ah, mas não faz falta, eu tenho ainda uma economia no banco, mas
ninguém sabe, daí ele vai me dando este dinheiro e eu vou segurando,
segurando, é....Daí eu levo lá, entrego para o gerente e falo assim: olha, isso
aqui é para me tratar da minha saúde quando precisar, e ele fala para mim,
quando o senhor precisar é retirar. Tem um jurinho em cima das suas
aplicações.
E quando o senhor leva o dinheiro para o gerente ele lhe dá o recibo?
Ah, dá sim, no meu quarto eu tenho uma pastinha e lá que eu guardo os
documentos de tudo, tudo vai lá para a minha pastinha. Aqui tudo tem que ficar
bem guardadinho, senão a Senhora já viu, né.
167
O que acontece?
falei aqui o povo mexe nas coisas da gente, aqui no meu quarto eu
tenho a chave do meu guarda-roupa, tranco tudo lá que eu preciso, guardo as
roupas na cômoda e no guarda roupa eu guardo tudo que não quero que
ninguém mexa.
Vou contar uma coisa para a Sra., me deu uma gripe e aí, então eu pedi
um remédio e não tinha. Uma outra vez, me deu gripe, pedi remédio, não tinha,
então eu falei, se não tem remédio aqui eu vou comprar então, mas falaram
para mim, não o senhor não precisa comprar, vai na prefeitura que eles dão
remédio dado para a gente. E eu fui na prefeitura, tinha aquela fila de gente,
era a tarde, a sra. vendo aquela quantia de fila, porque a gente tem que
fazer cadastramento e eu, eu não sabia disso não. eu pensei, mas não vou
esperar por isso aqui não. Daí cheguei na farmácia e comprei, tomei e sarei. Tem
horas que a gente não tem muita paciência para as coisas.
Mas, por que não lhe deram o remédio para a gripe se o senhor disse que
estava gripado?
Porque aqui eles acham que quem tem o dinheiro da aposentadoria pode
comprar o seu remédio da gripe, mas aqui a gente paga também para morar
aqui, uma parte da minha aposentadoria fica aqui.
Mas só o da gripe ou outros remédios também?
Não, os remédios meus que eu tomo para a pressão a enfermeira na
mão da gente, aqui elas levam remédio para a gente tomar todo dia. Este é
controlado, eles dão dado, mas acho que não é dado nada, compra com o
dinheiro da gente.
Bem, vou contar para a sra. Uma coisa, porque o meu quarto não tem
banheiro, ele fica de fora, né, daí de noite eu não entro na enfermaria, porque é
uma coisa horrível, eu tomo banho às 5 horas da manhã. Mas aí eu não ocupava
o horário do outro e como o meu quarto é fora, o banheiro ficou só para mim, eu
mesmo limpo.
168
O senhor acostumou a tomar banho neste horário?
Não, porque toda vida eu sou uma pessoa diferente dos outros, porque
eu toda vida quero o bem pra todo mundo, porque eu toda vida quero bem todo
mundo e eu não gosto de incomodar os outros, não gosto de atrapalhar
ninguém, eu quero ajudar, só ajudar.
Eu vou cedo e tá todo mundo dormindo, então eu tomo o meu banho
sossegado. A hora que o enfermeiro chega vai dar banho neles porque é
muita gente. Mas chega de madrugada naqueles banheiros e a Sra. vendo
uma coisa, tudo entupido. como eu entrei, eu entrei num quarto para
mim, eu entrei num quarto da área e depois a Irmã tava reformando aqui e falou
assim para mim: “Sr. Bituca eu vou colocar o senhor num quarto dentro, mas
é o senhor mesmo que vai ficar nesta área, pois assim, o senhor vai ter
espaço para colocar as suas coisas”.
Aí, reformaram. Está cheio o quarto que eu ficava, e está cheia também a
enfermaria. Daí um dia eu falei com a Irmã, mas a senhora não vai me tirar
daqui? Aqui é muita bagunça, eu dormia sozinho num quarto da enfermaria, mas
eu não agüentava mais tanto barulho. A Senhora sabe Irmã, que eu gosto de
respeito comigo.
Mas que tipo de bagunça era? O que tem na enfermaria?
Ah, da meia noite até clarear o dia tem o povo andando para e para cá,
a noite inteira. O povo aqui não dorme, porque dorme o dia todo, a moça
remédio em vez de dormir á noite dorme tudo de dia. E eu trabalho, um dia a
Irmã falou para mim: Sr. Bituca, olha esta grama aqui”, e era grama no vão das
pedras, cheio de mato, a Irmã falou para mim; “Sr. Bituca, o quê que a gente faz
com este mato, com isso aqui?” Eu falei assim para ela, isso Irmã, puseram
uma areia suja e assentaram as pedras, aí já veio a praga da areia, então tem que
arrancar as pedras, arrancar os matos, acertar a areia, acertar as pedras, ela
falou: “mas aqui ninguém tem tempo de fazer isso”. Outro dia eu arranjei uma
chave de descochar parafuso, né, parafuso de carro, fui arrancando pedra por
pedra, afroxando o mato e a areia, agora todo dia eu varro aquele jardim
embaixo, eu vedo o jardim, eu vedo o jardim perto da igreja, todo dia eu molho
as plantas cedo e de tarde, eu capino o mato das verduras, também cedo e de
169
tarde. Então acabou as sujeiras, todo dia eu varro e limpo tudo, acabou a sujeira,
agora é tudo limpinho. Arranquei as pedras e assentei tudo de novo o
calçamento, ih, precisa ver a Sra. como a Irmã gosta, ela adora, quando um
tempo ela vai até lá na horta e fica me ajudando a fazer umas coisinhas.
E o senhor gosta também?
Ah! Eu gosto demais, isso é a minha vida, me dá uma paz sossegada.
O Sr. então gosta de trabalhar?
Eu gosto muito de trabalhar, ih, eu não gosto não de ficar parado. Mas
olha, eu trabalho aqui porque eu tenho saúde.
Nos despedimos pois estava entrando no período de férias, retomei a
entrevista em julho de 2007.
Bom dia, Sr. Bituca, como vai o Sr.?
Eu vou muito bem e a senhora?
O Sr. tem um tempinho para a gente continuar a nossa conversa?
Eu tenho sim. A senhora passou bem, descansou um pouco?
É, aqui na vila estamos com um surto de carrapato, eu ouvi dizer que este
carrapato está matando gente. Sabe, na fazenda todo sábado eu pulverizava o
gado, era assim de carrapato, vendo uma coisa. Tinha do miudinho pernudo,
tinha do grande, tinha carrapato estrela. vendo uma coisa, a senhora
precisava ver como ficava. Era um mundo de gado, pulverizava tudo, no outro
dia, por causa do sol, caía tudo. O que tinha dentro da orelha do animal, o
cavalo, carroça de puxar leite, naquele tempo existia a fábrica que fazia queijo
permezoni (Parmezão). Então na fazenda enchia o latão de leite que tirava na
170
roça e levava tudo para a fábrica, mas era um montão de latão, uma quantia
grande de leite, daí enchia também o latão de soro e trazia para os capados.
E naquela época, o povo não tinha a doença do carrapato? Mas havia
muitas doenças, que doenças havia naquela época da qual o Sr. fala?
Ah! De carrapato não, mas ficava doente um pouco, né. Mas agora tem a
vacina, a medicina aumentou muito, que assim, as doenças aumentou mais
do que as cura, porque tem problema que não tem cura. Por exemplo, vou falar
para a sra., a minha muié, tinha, né, aquele problema de útero, até que deu um
jeito, mas ela teve de tirar e não pôde ter mais filhos, e ela morreu de câncer, né,
e não tem cura.
Umas vacas, as vacas davam casqueira nos vão das unhas, vendo o
jeito que tava, abria as unhas e andava palpando, formava uma ferida no vão
da unha, e o animal não andava por causa do casco. Agora mudou tudo, né.
Tudo vai mudando.
O que mais mudou? As músicas mudaram? Quais músicas eram tocadas
naquela época, o senhor tinha algumas preferidas?
Eu não gostava muito. Ás vezes ia com os companheiros, mas voltava
logo, eu trabalhava muito. Ah, tinha a sanfona, né, cavaquinho e violão, tinha os
bailes, mas eu não ia, e depois que eu conheci a minha muié, eu não fui e nem
ela também não gostava muito. A gente viveu muito na nossa casa, ela gostava
de ficar lá arrumando a casa, e ela gostava de costurar, ela tinha uma máquina e
e ficava lá ajeitando as minhas roupas, as dela e de algum vizinho que saiba que
ela costurava, daí ia lá e pedia para ela.
O que mais o Senhor fazia com sua esposa ou até mesmo sozinho? Ia à
missa, passeava?
Na roça era muito difícil. Era longe para ir na igreja, às vezes ficava longe
mesmo. Mas aqui agora eu vou todos os domingos aqui na Vila, o padre vem e
reza e as Irmãs gostam que a gente asseste às missas.
171
Então, a minha muié não gostava de sair de casa, ela saía para ir ao
médico. Quando nós morava na roça, a gente ia de jardineira, não chamava
ônibus ainda, nós pegava a jardineira na encruzilhada, era meia légua, porque
na Cruz Alta (Zona rural), tinha uma estrada de terra que saía atrás e vinha até
a fazenda e a jardineira passava ali, saía do asfalto e vinha pela estrada de terra.
na roça era muito difícil a pessoa sair para vir na cidade ou ir no médico,
nós tinha um Armazém do Ruizinho, e ele tinha muita coisa e vendia para nós,
mas depois o Ruizinho foi ficando doente até que fechou lá, então foi onde nós
comecemos a vir para os armazéns da cidade. Eu falei, né, minha mulher teve
câncer na cabeça (silêncio).
Eu me casei com 22 anos, então a primeira vez que eu levei a minha
mulher no médico, ela veio no caminhão de leite para a cidade, o povo, quando
vinha para a cidade, vinha no caminhão de leite. Tinham muitos fazendeiros e
eles exportavam para a VIGOR (indústria de derivados do leite), era o Zequinha
Abreu, Geraldo Abreu, Sr. Urias, Zico Borges, Pedro Borges, o caminhão vinha
da fazenda e ia de fazenda em fazenda pegar o povo e dando carona para nós ir
para a cidade.
O que o povo vinha fazer na cidade?
Ah! Fazia compras, no mercado, nas lojas, comprava roupas, sapato,
botina, chinelo, às vezes se precisava de remédio, apesar de que a gente usava
muito remédio caseiro. Era uma vez por mês que o caminhão trazia o povo para
a cidade e só podia no sábado depois de 11 horas ou então no domingo, mas no
domingo não era de comprar, era para passear mesmo. O meu pai trabalhava na
fazenda direto, chegava no domingo ele ia na casa do patrão para receber. Eu
também ajudava na fazenda, o meu patrão eu ajudava ele junto com os
outros rapazes, era filho também dos camaradas, nós apartava o gado, tirava o
leite. E a minha mãe também trabalhava muito, e ela gostava muito de chamar a
gente para almoçar, ela fumava muito no cigarro de palha, mas antes de acender
um cigarrinho ela gostava de fazer uma boca de pito.
172
O que é uma boca de pito?
Ela gostava assim, era meia xícara de café antes de pitar um cigarrinho,
então ela tomava aquele café amargo e me dava uma dó, é porque já tinha
acabado as compras do mês, e o açúcar acabou. Chegava o meu pai então na
casa do patrão para receber, que eles não davam dinheiro, eles dava um
papel, dava uma ordem com um pedacinho de papel, lá tinha um valor; ia meu
pai, chegava na venda e entregava para o vendeiro, aquela quantia que dava o
patrão ordem para comprar, então o vendeiro vendia, e às vezes, então, as
compras era por semana e não por mês.
Eu acho que ganhava muito pouco, necessidade não passava não, mas
era tudo tão apertadinho. Nós acabava de tirar o leite cedo, ele me mandava
cascar 2 jacá de milho para o gado, rapava aquela sabugueira e jogava para fora,
tinha o lugar dos porcos, fazia sujeira, a gente limpava, os porcos até que era
asseiado, eles tinham um lugar de fazer as necessidades. Depois que meu pai
fazia isso, cuidar dos porcos, ele rodeava e ia encontrar com o seu Zico. Daí o
seu Zico entrava para dentro, lavava as mãos, tinha uma mesinha na sala da
casa dele, ele escrevia naquele papelzinho branco, dava para o meu pai, ele ia
fazer as compras. Ele chegava tarde em casa, porque ele ia de campé ( pau
com um saco amarrado em cada lado), que minha mãe fazia o almoço. Depois
mudou, ele dava uma prataiada para nós. A vida da fazenda foi muito difícil para
nós tudo.
Quem o Senhor está sendo agora?
Ah, minha filha eu estou aqui vivendo a minha vidinha, hoje eu estou mais
acostumado por aqui, mas sinto saudades da esposa, lá da roça e de tudo o que
eu já fiz, hoje faço o que posso e está bom demais.
173
Anexo 1.3 – Entrevista n. 3
NOME: Bela Valsa
IDADE: 93 anos
PROFISSÃO: Professora
DATA: 10 de julho de 2007
LOCAL DA ENTREVISTA: Nos aposentos (quarto e sala de TV) da instituição onde
vive Dona Bela Valsa.
Dona Ana reside na Vila já tem algum tempo, tem quase uns 10 anos que
veio morar no asilo, gosta de tudo e de todos, lá não precisa lavar, cozinhar nem fazer
os serviços de casa. Diz ela já no inicio de nossa entrevista.
Quem é você?
Ah, minha história não foi linda, não. Foi muito atrapalhada, rs., eu fiquei
viúva muito cedo do primeiro casamento, com dois filhos pequenos, eu lutei
muito para criar os filhos, depois que criei eu encontrei um marido bom e ele
ficou seis anos comigo e depois ele morreu também. Daí eu não quis casar
mais não, porque todos os marido meu morria, rs.
Olha! meus filhos não me deram trabalho, foram dois meninos bons,
estudaram, trabalharam e fizeram faculdade, mas esta faculdade que eu estou
falando para você eles fizeram depois de casado, pois ganhavam mais, né,
depois que fizeram a faculdade e se formaram a vida deles melhorou bastante.
E eu ficava sempre sozinha, o caçula casou também, daí eu falei assim,
ah! agora eu vou procurar um marido, pois eu vou ficar sozinha e eu fiquei
criando eles sozinha por muito tempo, e agora, eu vou procurar um marido, eles
viajavam, eles passeavam; e eu ficava sozinha, e eu fiquei livre de marido,
174
mas depois pensei: ah! É bom a gente ter um companheiro para conversar, para
não ficar tão sozinha, para a gente ter uma companhia.
E esperei um tempo, vivi a experiência de cada um, e comecei a casar
de novo, a meu ver, né. Eu casei pela segunda vez, meu marido chamava-se
Jacó Valdeman, era um homem muito bom, o pouco tempo que nós vivemos foi
muito bom, depois disso ficaram os netos, eles eram muito bons, eu ajudava a
todos eles.
Eu vim para a Vila eu tinha 83 anos, eu pensei comigo, morar com os
filhos vou dar trabalho para a família toda, eu já conhecia a Vila e vim para cá, no
início meus filhos não queriam, mas eu falei com eles que era a forma de eu me
sentir melhor e eles foram concordando aos poucos, aqui eu sou feliz não
preciso fazer nenhum servicinho, (rsss).
Na minha mocidade eu fui professora rural, na Colônia Padre José Bento.
Era uma colônia que tinha muito alemão. Antes do ex-marido, o Valdeman, era
assim que chamavam este meu marido, antes dele ir para a guerra, fazer a
guerra, eles venderam tudo o que eles tinham e vieram embora para Pouso
Alegre, para da Borda da Mata (cidade no sul de Minas Gerais), e tinha a
colônia do Padre Pimenta, um lugar cheio de montanhas, que vendo, uns
compravam muitos lotes lá, uns compravam demais, outros de menos, para
trabalhar, né, era assim que as pessoas começavam a chegar para se assentar.
Eles trabalhavam muito, lá tinha um que morava perto da minha casa e
criava bicho da seda, e eu fui lá ver como que era. Você já viu? Ichi, eu era muito
curiosa, mas também gostava muito de fazer amizades.
Era uma sala muito limpinha dele, uma sala assim que cria os bichos, iam
formando mesa que ele tinha e ficava os bichos, eles são magrelinhos,
pequenininhos assim, parecia um fio de linha, eu não gostei de ver.
Mas eles vão comendo, e as crianças, aquelas da escola, os meninos
maiores colhiam folha de amora, e dia e noite e sem parar eles comem folha de
amora, e engordam, ficam grandão, eles põem galho de árvore tudo em volta
da mesa, em cima da mesa, tudo onde eles podem subir e vão enrolando,
fazendo o casulo e soltando os fios de seda e depois quando está cheio eles se
fecham dentro e aí apanham tudo aquilo, põe dentro do Jacá e mandam para São
Paulo.
175
Eu gostei de ver, porque eu não sabia, quando ficam grandes eles ficam
feios, parece uma taturana, você já viu bicho da seda? Uma pausa (...), você quer
comer uma bolachinha? Está do seu lado aí.
Fui aprendendo com eles as coisas diferentes, e assim eles ganhavam
gosto pelo estudo, minha forma de ensinar para eles era assim, deixar eles
verem as coisas acontecendo e ir aprendendo, né.
Para nós tudo ia se transformando em festa, alegria, eu gostava de ver a
carinha daquelas crianças brincando, trabalhando e aprendendo desde cedo o
ofício, eles me chamavam de Dona Aninha do Sr. Valdemá.
Eu era muito rígida com eles, mas também dava colo quando precisavam
de mim, você sabe, né, era crianças pobres, os pais trabalhavam muito, as vezes
eu dava comida para muitos lá em casa, eu não atrapalhava mas no que eu podia
ajudar eu ajudava, né.
Depois da morte dele fui tendo de dar um novo rumo à minha vida, mudei
de lá com os filhos mais crescidos e aí fui trabalhar novamente de professora na
zona rural de Pouso Alegre, assim as coisas foram mudando e eu me
aposentei e definitivamente eu parei de trabalhar porque meus filhos cresceram
e foi a vez dele de ir trabalhar.
Muda de assunto e começa a falar das festas.
Ah! Eu gostava muito de festa, sabe! Eu era uma festeira de mão cheia,
dançava, gostava de passear, gostava de conversar e tudo.
Então, os bailes, ah! Os bailes eram ótimos, eu dançava muito, muita
gente conhecida se reunia iam no clube. Quando era baile de festa era tudo
chique, vestido comprido; era todo domingo dia de festa, a gente dançava muito,
tinha de ter o cavalheiro, né, hoje pode dançar do jeito que quiser
Os dias eram sempre quentes, mas a gente dançava, era na avenida, era
lá no clube de Pouso Alegre, você não conhece?
Tinha muita festa boa no clube de Pouso Alegre. Naquele tempo no clube
eu era mocinha, e fiquei gostando de ir ao clube, o meu irmão era sócio, a
176
gente recebia convites das festas e não perdia nada. Minha mãe não se
importava, mas ela mandava a gente chegar na hora certa. Na semana santa,
então, a gente ia no sábado da aleluia, tinha baile, né, na sexta tinha a procissão
do enterro, a gente ia na procissão do enterro, na cerimônia, tudo. Depois a
gente ficava na rua com uma santa rosa, depois chegava correndo em casa,
tirava a roupa do baile, o sapato, tudo. Sabe, tinha muita poeira, o sapato era
branco, o vestido era branco, e lá ia nós para a procissão de madrugada que era
a procissão do encontro.
De madrugada, nesta noite a gente não dormia dançava e rezava e
assim sempre foi por muito tempo, depois muda, né...
Depois quando eu estava viúva, o diretor fazia baile na Rua Artur
Bernardes, na Casa de Portugal, fazia bailes muito bom lá, muito interessantes,
baile muito animado, muito respeito, era baile da saudade mesmo. Eu dançava
muito lá, eu não estava mais muito importante, né, eu estava mais velha,
começou lá a febre do baile da saudade.
Em Pouso Alegre tem o Clube Recreativo, na avenida, que já era de gente
grã-fina, gente mais importante, depois tem o clube dos operários, e o clube
perto dos parques, mas o clube dos pretos eu não sei aonde é não, o meu irmão
não deixava a gente ir nesse.
Tinha um preto que morava perto de casa, e ele fazia o aniversário dele
lá, e um dia ele fez uma festona, sabe! E nós fomos escondidos, mas a minha
mãe sabia. Ah, meu deus! O meu irmão foi lá buscar a gente, não falou nada lá,
calmamente, ah, meu deus! Mas quando chegou à rua foi aquele sermão. Ele não
gostava que a gente fosse em baile, fosse de preto ou fosse de vermelho, de
preto que fosse, mas a gente ia e a minha mãe deixava. Era só eu e minha irmã, a
gente aproveitava, se divertia bastante, eu me divertia bastante aqui em Pouso
Alegre. Os bailes tinham valsa, tango, samba, não é igual as músicas de hoje
barulhenta.
Eu era muito festeira, dançava, passeava tudo que era bom eu ia, eu
parecia uma colher de festa, rs., mas aproveitei, agora estou aqui de novo, se a
terra ficar boa para eu começar de novo, depois dos 96 anos se eu ficar forte eu
te garanto que eu vou dançar pode ser que não, né, pode ser que eu não tenha
mais a mesma disposição, mas se tiver pode ser que eu vou dar uma
dançadinha, sim, ah eu acho que a gente não pode perder tempo para nada na
177
nossa vida. Sabe, eu dancei muito, aproveitei muito a vida. Eu sempre gostei
muito de dançar, sonhava em ser uma bailarina famosa, mas naquele tempo isso
era mais para o pessoal rico, e eu gostava de saber das notícias das dançarinas,
minha mãe sempre fazia os vestidos que eu escolhia.
Bem, quando eu fui estudar eu tinha uns oito anos de idade, o meu pai
ficava na roça e a minha mãe fazia os feitos da casa, mas quando chegou a
escola em Senador Amaral, eu bati o e disse que queria estudar. Naquele
tempo "as meninas, eram criadas para o casamento, para ser esposa, para ser
mãe, para ser dona de casa, porque desde cedo começavam a aprender a
costurar, a cozinhar, e fazer outras coisas assim, né, elas aprendiam. E, depois
que eu falei que eu queria ser professora o meu pai ficou bravo mas deixou e me
dizia que o melhor era casar e ter uma família. E aconteceu, né, com o meu
primeiro marido, ele mexia com roça, mas fomos morar em um outro lugar e
começar a vida, perto de Borda mesmo, mas ele morreu, coitado, morreu
moço, não sei muito bem o que foi, ele morreu com 26 anos, naquela época
era dono do pedacinho de terra, mas depois tive que vender, porque fiquei viúva,
e tinha de alimentar os filhos, dar estudo para eles, até que conheci o meu
segundo marido e a vida melhorou um pouco mais. Mas a minha vida não foi
fácil, não.
Mas aqui na Vila II a Senhora Dança? A Senhora Continua a gostar de dançar?
Ah não, nem sempre, né. Aqui tem de vez em quando, os alunos da
Medicina, da Psicologia faz umas festinhas aí, mas não é a mesma dança de
antes, não. Não é a mesma coisa, ichi, minha filha, os bailes que eu freqüentava
eram aqueles bailes de antigamente, com orquestras maravilhosas, conjuntos,
hum! Sabe, era muito bonito mesmo, mas muito diferente de agora, com certeza.
Agora é uma dança diferente, músicas diferentes, tem umas que eu até gosto,
mas m outras que nem escuto, não entendo o que cantam RS(...). as músicas
que eu escutava tinha melodia, tinha ritmo, hoje é uma gritaria danada, não
entendo como que pode.
Ah, eu vejo aqui no programa do Faustão; no domingo, eu vi num
domingo desses, mas tem que levar o cavalheiro para dançar, e aqui também
tem que trazer, eu falo que eu vou lá, mas é brincadeira, eu falo que vou, mas
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não sei se dou conta, né, rs. Mas, sabe que até da vontade mesmo de ir, que
tem uma coisa: eu não sou famosa, né”, mas te garanto que eu sei dançar
muito melhor do que muitos que vão lá, sabia!
E para quem a senhora torceu?
Ah!, minha filha eu torci para todos, os programas que deu para eu
assistir no domingo, eu torci para todos, falou que é dança é comigo mesmo.
E o Sr. Valdeman também gostava de dançar, ir aos bailes?
Sim, ele gostava muito, até que dançar ele dançava pouco, mas ele
gostava de apreciar as músicas e ele não se importava de eu dançar com os
outros que gostavam, por isso que a gente combinava muito bem.
Nos sábados no Clube Pouso Alegre sempre tinha uma orquestra tocando
e uma vez por mês eles faziam uma “noite de gala”, era aqueles orquestras
maravilhosas vinha também as dançarinas, ou clonners das orquestras, eram
um dois rapazes e duas moças, as vezes eram rapazes e outras vezes
moças, mas era tudo muito maravilhoso, inesquecível demais.
Igual antigamente tinha os moços que tiravam as moças para dançar,
ficava uma paquera só, né. Ah! a gente gostava muito, eu fui namoradeira, sim,
mas antes de conhecer o meu primeiro marido. Depois eu dançava com ele
mesmo, ele gostava também de dançar, os meus filhos não puxaram muito para
nós, não, mas os nossos netos, estes gostam muito mesmo, puxaram para a
avó, rs. Quando eles eram pequenos a gente punha as músicas e eu dançava
com eles para tentar ensinar, né, e aí a gente caía na risada, rssss.
Tenho um neto do meu filho mais velho, agora ele ta mais mocinho e fica com
vergonha, sabe, mas antes ele adorava, agora eu falo para ele vamos dançar e
ele responde, ah!, vó agora eu não vou não, eu não sei dançar, rssss.
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E a Senhora gosta de morar aqui na Vila II?
Ah! Minha filha eu gosto muito, aqui o pessoal é muito bom, tem os
dirigentes, os funcionários, todos respeitam muito a gente, a gente gosta de
tudo e de todos, aqui não precisa lavar, cozinhar e nem fazer o serviços de casa,
tem o povo que faz tudo aqui.
Tem o café da manhã, almoço, jantar. Você viu, aqui no meu quarto eu
tenho a minha TV, assisto na hora que eu quiser, tem umas amigas que vem aqui
também, mas quando quero ficar sozinha ou dormir durante o dia é só eu fechar
a porta, ninguém me incomoda.
O meu filho me deu esta TV, ela é muito boa, você está vendo, ela é de 20
polegadas, depois ele veio aqui e viu o meu quarto e me disse, ah! Mãe vamos lá
no centro porque eu quero que a senhora troque os móveis do seu quarto, mas
eu disse, ah! É bobagem, mas ele insistiu muito, Daí fomos lá nas Casas Bahia e
compramos esta cama, o colchão, o guarda roupa e o criadinho para eu deixar
os meus santinhos, ah! E esta poltroninha também porque ele me falou, mãe a
senhora não pode ficar assistindo TV deitada, tem de sentar também, olhe a
sua coluna, mãe, daí tudo que ele fala eu concordo com ele, ele é muito bom
para mim, os dois filhos são maravilhosos, não posso me queixar de nada, o
mais velho é Coronel do Exército aqui em Pouso Alegre, e, o mais novo é
contador, ele tem um escritório de contabilidade aqui também em Pouso Alegre
e ele tem 6 funcionários que trabalham com ele, e que eles não me deixam
faltar nada aqui.
Então, eu gosto mesmo é de morar aqui, me dou bem com todos e todos
também gostam de mim, é isso, né.
Pois é, eu fico vendo na TV, como que tudo mudou, né? Hoje é tudo muito
diferente, antes tinha o respeito pelos mais velhos, eu te falei, a minha mãe
dizia sim se podia e não se não podia e a gente não insistia não, pois ela falava
uma vez só. Estas coisas o meu pai deixava que a minha mãe dissesse pode ou
não pode!
Olha, eu gosto mais é da Rede Vida, da TV Record. Eu fico escutando as
missas, os programas. Domingo eu gosto um pouco do Faustão, é do
180
programa dele que tem a dança, o resto não gosto muito da globo não, de vez
em quando ainda para ver uma novela ou outra, mas a das seis da tarde
que é melhor.
Tem umas senhoras que vêm aqui para o meu quarto e assistem comigo,
até que a gente conversa mais; a minha TV precisa de uma antena melhor, pois
você viu, né, tem horas que pega muito bem e têm horas que fica uma
sombra, né, mistura as imagens.
Mas as minhas amigas daqui gostam muito, pois nós comemos uma
bolachinha, um pãozinho, mas não é da vila, não. Eu compro com o meu
dinheiro e quando vem alguém aqui à gente sempre tem uma coisinha para
oferecer, né, pois o meu quarto aqui é como se fosse a minha casa, tem a TV que
você está vendo, esta geladeira, fogão não tem não, mas também nem precisa.
Mas tem os meus móveis novinhos em folha, você ta vendo, né.
Aqui tem o café quentinho, eu vou na cozinha, levo a minha garrafa e a
moça põe para mim. Quando eu quero, ela ferve a água e nós tomamos chá,
eu também gosto muito de chá. Eu te falei que sou aposentada, então, uma
parte do meu dinheirinho eu dou aqui e o resto fica para mim comprar as minhas
coisinhas também, mas meus filhos quando vêm aqui me dão também um
dinheirinho e diz assim: olha, mãe, é para a senhora comprar o que a senhora
quiser, mas às vezes eu guardo porque não tenho necessidade de gastar tudo.
Sabe, antes os meus filhos traziam um monte de coisas para mim, mas o médico
foi proibindo, ah! Por causa da idade você sabe! Não que eu não posso comer,
posso sim, mas não preciso ficar comendo doce toda hora, isso e aquilo, então
eu prefiro que eles me dêem o dinheiro e eu compro o que eu posso e compro
também para que eu possa servir para minhas colegas aqui, claro que não é
todo mundo, também aqui não é todo mundo que é certo, né, tem uns
coitadinhos que não é só velhice, não, tem outros problemas também.
Nossa, tem muita gente que vem aqui e traz um presentinho para a gente;
eu ganho sabonete, talco, ganhei até vestido, sabe, né, presente a gente não
pode recusar, fica feio, mas eu gosto quando me dão um.
Minhas noras, meus netos e meus filhos me dão muita coisa boa, sempre
estão trazendo coisas para mim, minhas noras que me trazem as roupas íntimas
e me dão pijamas também, no natal me levam para comprar uma roupa e um
sapato, meus filhos não gostam que eu use roupas daqui da vila dizem que é
181
para eu deixar para os outros que precisam mais que a gente, olhe quando eu
não quero mais uma roupa eu levo na rouparia e falo com a Custódia, ela é a
funcionária que trabalha lá, e eu falo assim com ela, olhe Custódia trouxe para
você ver para quem vai servir, então eu também faço as minhas caridades.
Olhe eu rezo muito, rezo muito mesmo, de manhã eu rezo, rezo para todo
mundo que eu conheço, peço pelos meus filhos, meus netos, minha família, para
as pessoas que moram aqui comigo, para os meus amigos, para os conhecidos
que vem aqui, ah! Eu rezo para todo mundo, eu tenho muita fé. Olhe tenho a
imagem de Na. Sra. Da Aparecida, tenho São Cristovão e tenho o sagrado você
tá vendo, olhe lá.
Tem essa amiga minha que vem aqui, a Rosália, e eu estou ensinando a
ela escrever. Um dia, nós conversando eu contei para ela que eu era professora
na zona rural e ela ficou muito interessada. Daí eu disse a ela que podia ensinar
o básico, pedi que ela comprasse um caderno, e duas vezes na semana eu dou
minhas aulinhas para ela. Atem uma moça da Psicologia, ela é uma gracinha,
ela chama Delma, ela fica aqui com a gente, ela comprou um quadro pequeno
com giz e aí, quando estou bem, eu escrevo no quadro e vou ensinando a
Rosália a conhecer primeiro as letras, tem de ser assim, né. Mas é tão bom, o
tempo passa e a gente também se sente útil. Depois a Delma, ela vai
conversando com a gente e nós vamos discutindo o que eu ensinei, como era
antes e como era agora tudo isso que conversamos, nossa é muito bom, eu
gosto muito.
É muito bom a gente ter alguém para conversar, sempre temos alguém
que nos visita, tem os estagiários que estão aqui também quase todo dia, os
funcionários, eu gosto muito daqui.
Olhe minha filha, tudo o que eu tinha para te contar eu te contei.
E quem a senhora está sendo hoje?
Então, a minha vida é assim, ora estou alegre e ora estou triste, mas é
essa a vida, né. A gente vai levando, pois Deus sabe o que será o nosso
destino. Obrigada!
182
Anexos 2 - Análise das histórias de vida
Anexo 2.1
Análise da entrevista n. 1 concedida por D. Olivina de Oliveira
NOME: D. Olivina de Oliveira
IDADE: 70 anos
DATA DE NASCIMENTO: 08/11/1935
PROFISSÃO: do lar
LOCAL DA ENTREVISTA: na sua residência
A – Quem é você? Conte-me sobre sua vida
Olivina, 73 anos, brasileira, natural de Ilicínea, Minas Gerais, vinda de uma
família numerosa, relata que seu pai foi lavrador, depois comerciante e negociante,
sua mãe era do lar, cuidava da casa e dos filhos e não teve estudos.
Tem vários irmãos; alguns solteiros como ela e outros casados, com filhos,
alguns já faleceram e todos têm suas profissões. Ela relata que desde pequena ajudou
aos pais a cuidar das plantações, das mudanças que ocorreram de um lugar para o
outro entre o lar e as situações de emprego. Percebeu-se que desde o início da
entrevista sua fala dirigiu-se para a questão do cuidar: cuidar da família, da mãe
enferma e principalmente dos irmãos e de sua própria história. Nota-se desde que
nossa entrevistada tem como função ser a operária: através de sua história mostra sua
identidade e a memória tecida de lembranças.
B - Análise da entrevista concedida pela Senhora Olivina
Inicialmente apresentaremos os acontecimentos e as vicissitudes narrados na
história de vida de Dona Olivina, 70 anos, solteira, natural de Ilicínea (cidade no sul de
Minas Gerais).
“Eu me chamo Olivina e tenho 70 anos de idade que fiz no dia 08/11/2005”.
Em síntese, a trajetória proposta por Ciampa (2005) consiste em ver a
progressiva formação da Identidade partindo do nome (do sujeito), já que este nome o
representa, estabelecendo elementos de igualdade e de diferenciação, que se
183
articulam: igualdade é diferença. Indo mais além, é compreender as “metamorfoses
humanas”.
Pressupomos que, estudar a questão da identidade, ao mesmo tempo em que
se permite ao velho a oportunidade de construir a própria identidade, o seu projeto de
vida psicossocialmente, talvez seja o meio de descobrir como as construções
individuais se compuseram com as condições sócio-históricas, remetendo-o à forma
como sua identidade foi gerada.
Mas, quando usamos o trabalho com a memória e recorremos aos fatos que
nos fazem lembrar tudo aquilo que tem a ver com nossa história, devemos tomar o
lugar no quadro de referências de nossas lembranças porque, segundo Halbwachs
(2006, p. 29), “o primeiro testemunho a que podemos recorrer será sempre o nosso”.
C - Tecendo sua história e movendo sua narrativa e sua memória
No contexto de sua narrativa, nossa entrevistada busca retratar infância e
adolescência, uma infância muito curta, pois com certa idade tinha ingressado no
mundo dos adultos sem absolutamente nenhuma transição. Ela era considerada um
adulto em pequeno tamanho, quando conta que já compreendia o estado de gestação
da mãe, o estado de doença da mãe, pois executava as mesmas atividades dos mais
velhos, cuidar de si mesma, cuidar da mãe enferma, cuidar dos irmãos nesta fase
entre sua infância e sua adolescência. A infância, naquela época, era vista como um
estado de transição para a vida adulta. O indivíduo passava a existir quando podia
se misturar com os adultos e participar da vida deles.
O pai de nossa entrevistada foi um senhor que teve estudos depois de certa
idade e, com seus próprios pais, aprendeu o ofício do trabalho e, com os patrões, o
gosto pelos negócios. A própria história mostra o legado de pai para filha. Neste
sentido, enfatizamos que a metamorfose que se dá em relação a nossa entrevistada é
que ela experimenta o poder de pronunciar o mundo, a vivência da condição humana
de ser protagonista de sua história junto à história de seu pai.
Meus pais foram criados por coronéis em Ilicínea, coronel Benfica Vilela,
coronel Eugênio Benfica Vilela, e Major Benfica. Meu pai e a mamãe também,
porque eles ficaram órfãos. A vovó trabalhava na fazenda, daí ela morreu. E a
mulher do coronel, todos eram funcionários da fazenda, e a mulher do
coronel, Maria Augusta, perguntou se eles queriam morar com ela lá. Ela
queria adotar eles, e aí, eles ficaram com ela até se casar.
Outro fato marcante aparece em seus relatos: conta que o irmão mais novo
tem participação importante na vida dela e de todos os outros irmãos, pois deixa de
184
ser cuidado para cuidar de todos da família. Estudou com a ajuda de todos os irmãos,
formou-se em Administração de Empresa, logo arrumou emprego, e iniciou sua
carreira muito cedo, trabalhando em multinacionais, e de simples funcionário assumiu
cargos importantes, casou-se e a levou junto nesta transição de vida de solteiro para a
vida de casado.
Daí, Dona Olivina, morando com seu irmão caçula, desempenha novamente o
papel da figura materna. Torna-se a “cuidadora” desta família, ajudando na criação da
única filha do irmão e com eles muda-se para diferentes estados do país devido aos
cargos que o irmão assume nas empresas nas quais trabalhou, até vir embora para
Minas Gerais e morar com duas irmãs solteiras. Neste sentido podemos perceber uma
primeira aproximação da metamorfose humana.
Sabe-se que a sociedade moderna caracteriza-se por grandes mudanças, e
os deslocamentos humanos também são afetados, assim como a subjetividade. De
certa forma, nossa entrevistada vai transportando o seu mundo para o contexto da
família, vai fazendo deslocamento. Como diz Bauman (2001), o sujeito vai fazendo
deslocamentos diários entre comunidades (como aqueles relativos ao trajeto casa-
trabalho e vice-versa).
Ao mesmo tempo, Bauman (1999, p. 96), ao analisar questões da mobilidade
contemporânea também destaca a relação entre uma crescente mobilidade, por um
lado e, por outro, o que ele chama de uma “localidade amarrada”, isto quer dizer em
relação aos indivíduos que seu “espaço real está se fechando rapidamente”- não
podem se mover e estão “fadados a suportar passivamente qualquer mudança que
afete a localidade onde estão presos”.
Nossa entrevistada ao deslocar-se, outros valores vão sendo agregados à
sua identidade.
Dona Olivina foi ajudar os irmãos a cuidar das esposas, dos filhos, novamente
outra metamorfose se mostra em sua identidade. “Aquela que veio para cuidar”.
(...) Aí, depois fui ficar com a I. para ela trabalhar. Daí ela ganhou a Fa., ela
era pequena e aí eu cuidava dela, mas depois voltei para São Paulo e fui ficar
com a mulher do H. que tinha sido operada. O H. abriu uma oficina de
costura, eu fui ajudar ele a costurar, então eu tinha seguido muito com a
minha vida, eles me chamavam e eu ia.
185
D - O espaço temporal: mudança gera mudança
Como foi para Dona Olivina cuidar da família e mudar de um lugar para outro?
Participar da vida do irmão e exercer a função de cuidadora? Ela evoca estas
questões em sua memória.
(...) Depois disso que te contei, me chamaram para ir para Manaus, pois a
filha do D. ia nascer e ele queria que eu fosse para ajudar a cuidar da
menina (...).
O que foi mudando ao longo da história para nossa entrevistada? Como se
dão outras formas de metamorfosear?
(...) E depois disso meu pai arrumou a mudança e nós saímos de lá e
mudamos para Monte Alegre, uma Fazenda (..), depois (...) era outro lugar
chamado Serrinha (...).
Referências de um lugar para outro da zona rural, do trabalho artesanal para
o trabalho instrumental geram metamorfoses. Observe-se:
(...) mas nós mudamos para em 1963, onde estamos até hoje, eu tinha 27
anos, em 1963, final de ano, mudamos para Alfenas (...).
Assim, remetemo-nos nos dizeres de Bosi (2005, p. 56) ao quadro espaço-
temporal de nossa entrevistada, ao mapa afetivo de sua experiência e, ao mesmo
tempo, podemos pensar que nossa entrevistada faz deslocamentos em relação aos
locais, que se insere nas mudanças seja com os pais, com o irmão, com o seu próprio
cotidiano.
Psicossocialmente vemos que nesta evocação ela vai dando pistas de como
sua identidade foi sendo construída. Portanto, podemos supor que as metamorfoses
podem se efetivar ao mesmo tempo no cotidiano e na história. Por isso, ocorrem em
casa, nas relações entre pais, filhos, irmãos, nas relações de trabalho e outras.
E aí, continuando com a minha vida, como eu te contei eu morei 10 anos em
Manaus e depois 6 anos em Valinhos, e eu comecei a cuidar da filha do D., no
dia 06 de agosto ela vai fazer 20 anos. Depois quando ela estava com 16 anos
eu falei, ah! eu não vou ficar mais com ela não, era moça, tinha empregada,
daí eu vim embora cuidar da minha vida. (...), mas tudo eu que acompanhava
ela, no colégio, na dança, no inglês, em tudo, ela me chamava de quando
era pequena (...).
186
Ao retratarmos a análise da história de vida de nossa entrevistada, é
importante enfatizar que para Halbwachs (2006) é impossível conceber o problema da
recordação e da localização das lembranças quando não se toma como ponto de
referência os contextos sociais reais que servem de baliza a essa reconstrução que
chamamos memória”.
Inicialmente institui-se um processo de emancipação individual e coletivo na
fala de nossa entrevistada, pois, segundo vários autores a emancipação inclui a
vivência das necessidades materiais e subjetivas: contemplação da festa, a
celebração, a alegria de viver:
(...) fizeram uma festa muito boa para mim, reuniram meus familiares, nossos
amigos e eu ficamos muito felizes, a festa foi uma beleza (...).
Dona Olivina (70 anos), para dizer quem é começa descrevendo o lugar de
onde vêm, suas condições de vida na infância, passando em seguida a falar dos pais,
dos irmãos e de toda a sua história. Observe-se:
Na minha infância eu nunca saí de casa, ajudava minha mãe a cuidar dos
irmãos. Eu sou a segunda filha, a mais velha se casou com 17 anos, e eu
fiquei até agora aos 70 anos, solteira (...). Minha mãe teve vários filhos, 13 ao
todo, mas ficaram 12. Eu ajudava minha mãe a cuidar dos meus irmãos. E eu
fiquei lá, na roça, por um bom tempo. Depois, com 9 anos que eu comecei a
estudar. Nós morávamos em uma fazendinha (município mesmo de Ilicínea),
e não tinha escola, nós morávamos , e eu ia estudar nas Águas Verdes, o
mesmo município de Ilicínea. Eu fui com nove anos para escola e fiquei até os
15 anos e saí de novo.
Dona Olivina vai trazendo da memória os fatos que considera importantes nas
passagens de sua vida. Vai marcando sua trajetória junto aos seus pais e, sem
perceber, de pessoa cuidada passa a ser a que cuida da mãe enferma, dos negócios
do pai, dos irmãos e praticamente de toda a família, abrindo assim mão de sua
infância e de sua adolescência.
Junto à sua família, passo a passo, ela participa do nascimento de cada
irmão, relata cada parto, a chegada de cada um, a escolha dos nomes, as datas, enfim
toda esta narrativa forma a trama de sua história encetada paulatinamente na
memória, nos fatos e também no contexto de sua identidade.
A participação dos sujeitos define os papéis nos processos de interação
social. Considera-se que estes papéis são institucionalizados e legitimados pela ordem
de valores vigentes na sociedade. Desta forma a ordem social tipifica o indivíduo, suas
ações e suas formas de agir.
1
87
O casamento de seus pais é o acontecimento onde se deu o início de toda a
sua história: uma forma de nossa entrevistada contar como sua história de vida se
solidificou e objetivou:
(...) a mamãe tinha 18 anos e o papai 19 anos quando eles se casaram,
eles foram embora para o sítio que era do vovô.
Dona Olivina, para contar de si mesma, fala sobre sua mãe e sobre seu pai,
isto é captar em sua história de vida os anseios produzidos, os projetos pressentidos,
os saberes elaborados. Isto quer dizer desde que sua história é singularizada pelo
discurso da lembrança que tem a respeito dos pais:
Ah! Eu lembro direitinho da mamãe. Eu mando a Ma. ver a foto da mamãe e
digo: ela era deste jeitinho, é olhar a foto. Quando você for à minha casa
eu vou te mostrar a foto dela, a mamãe era de pele clara, o papai que era
mais escuro, bem escuro mesmo. O meu pai era o J. Ma. de Oliveira. Mas o
povo pôs o apelido nele, e o primeiro apelido era Negro liso, mas não pegou e
depois o povo começou a chamar ele de Dondinho e assim ficou.
Percebemos que a memória de nossa entrevistada tem a função de
regeneradora do passado, pois a função da rememoração revigora suas lembranças
ao contar sobre sua percepção. As subjetividades são construídas ao longo da
existência de indivíduos e grupos. Como diz Ciampa (2005, p. 121), “identidade é
História”. Isto nos permite afirmar que não há personagens fora de uma história, assim
como não há História (ao menos história humana) sem personagens”.
Mas em se tratando de identidade, a identidade de nossa entrevistada também
fala de vida e fala de morte, fala de Maria, fala de José, fala de nomes, da cor da pele,
de retrato, das referências de cada lugar, de como as coisas foram mudando. Fala
especialmente sobre os irmãos que já faleceram; assim Dona Olivina relata:
(...) a M. era a mais velha, M. I. da C., Há,. o mais velho dos homens, e o Z.
também, mas os dois são mais novos que eu e a M. de L.s, eu não esqueço
ela, uma que nasceu e morreu, ela era mais clarinha, a minha mãe era bem
clarinha, cabelo preto. Você já viu a foto dela? Vou te mostrar!
Ao buscarmos conhecer a identidade de nossa entrevistada, perguntamos:
Mas o que é identidade? Berger e Luckmann (1985), consideram que esse contínuo
processo de interiorização constitui a base para a compreensão de nossos
semelhantes e, mais que isto, garante-nos a possibilidade de apreender o mundo
como realidade social dotada de sentido.
188
O sentido compartilhado permite ao sujeito estabelecer relações com o
mundo, mundo de outros, mundo que existia e que agora também lhe pertence.
Sujeito e mundo passam a estabelecer entre si uma integração que cria e recria,
permitindo assim uma identificação mútua.
Ao falar para si mesma, Dona Olivina dá sentido tanto a sua identidade
quanto a sua memória e enfatiza:
O nome dos homens era o papai que escolhia e o das meninas a mamãe.
Continuando, nossa entrevistada vai evocando o nome dos irmãos de quem
ela cuidou por toda a sua vida, e afirma que junto aos pais participa da escolha dos
nomes, do sobrenome e de outra família que aparece na história de seu pai.
Conforme Ciampa (2005) postula a mesmice é decorrente da re-posição da
identidade que pode se dar como consciente busca de estabilidade ou inconsciente
compulsão à repetição; é pré-suposta como dada permanentemente e não como re-
posição de uma identidade que um dia foi posta.
E - A memória povoada de nomes e a identidade reconhecida no saber fazer e no
saber contar
Em sua compulsão à repetição, a entrevistada faz questão de afirmar o nome
dos irmãos por parte de pai, e sua fala ganha ressonância ao afirmar que são
cuidados pela figura materna no contexto de sua história:
(...) meus irmãos são: Vou começar pelos homens: H. de Oliveira, L. Batista
de Oliveira, He. Reis de Oliveira, D. de Oliveira, .r de Oliveira, I. Aparecida de
Oliveira Ramos, M. Há. de Oliveira, M. Ma. de Oliveira (Gêmeas), e tem
também os outros da outra família do meu pai: No., Wilson, Di., Gi., mas estes
quem cuidou foi a mãe deles (...).
Ciampa (2005) ao afirmar que indivíduos buscam a transformação e o
reconhecimento de suas identidades pessoais nos faz pensar que no relato de nossa
entrevistada ela nos mostra como o nome marcou a trajetória de sua família, do nome
do pai ao nome da mãe. De acordo com sua narrativa, seus progenitores dão-lhe
possibilidades de elaborar sua subjetividade, sua vida vai aumentando, sua fala vai
ganhando competência por ter suportado e sobrevivido a tantas coisas (...).
Portanto, dentro desta perspectiva, nossa entrevistada revela o papel ativo do
ser humano que, ao transformar por meio de um instrumento por ele criado, ou
herdado como produção histórica anterior a ele, legado da espécie humana – o mundo
189
que o cerca, cria novas realidades, as quais, por sua vez, também agem sobre ele,
constituindo-o e provocando-lhe mudanças. O homem e o mundo, portanto, são
dialeticamente constitutivos e constituídos. Podemos pensar psicossocialmente numa
identidade convencional para nossa entrevistada, uma vez que não questiona os
papéis atribuídos culturalmente a ela conforme foi narrando.
Com isso, aparece novamente a história do pai de Dona Olivina: ele gostava
de viver mudando de um lugar para outro, gostava de plantar, de colher e de vender,
gostava de abundância, do comércio, das negociações que fazia com os bens que
adquiria e com os produtos que plantava. Podemos observar que através destas
mudanças ocorre seu processo de mudança-metamorfose, pois de um simples
trabalhador de roça, que arava e colhía as plantações que meava com outras pessoas,
passa a ser funcionário de uma fazenda no sul de Minas Gerais, é adotado pelos
patrões e inicia-se aí uma possível metamorfose: identidade é metamorfose para
Ciampa (2005).
(...) O Sr. Jose Salles chegou e disse para o meu pai, eu ouvi dizer que você
gosta muito de plantar e plantar com fartura, então você vai para a minha
fazenda, planta o que quiser e eu te dou tudo para você plantar (...).
A mãe de Dona Olivina viveu para o lar, fazia os serviços domésticos, ajudava
o marido na lida da roça, antigamente as mulheres viviam para o lar e para a
procriação. Ela estudou apenas para aprender a escrever e a entender as coisas da
vida, isto é, alfabetizou-se. Sua mãe também cuidou do lado afetivo da família. Nossa
entrevistada em sua narrativa vai externalizando aquilo que ela vai internalizando da
fala da mãe:
(...) mas minha mãe não quis estudar não, ela disse: “ah! não, eu não vou
estudar não, vou ficar aqui com a mulher do coronel”, e depois ela casou com
meu pai. E a mamãe tinha 18 anos e o papai 19 anos. eles foram embora
para o sítio que era do vovô. Depois que o vovô faleceu eles foram para lá, e
depois ele vendeu, também não sei o que deu na cabeça dele, vender tudo
aquilo lá (...).
Dona Olivina começa a contar novamente sobre seus pais e como sua
história sofre transformações, evoca um sintagma; nomear e identificar este
significante paterno:
(...) o meu pai era negro mesmo, ele se chamava J. Ma. de Oliveira. Mas o
povo, pois apelido nele, e o primeiro apelido era Negro liso, mas não pegou e
depois o povo começou a chamar de Dondinho, mas o povo dizia assim:
190
“Dondinho é o pai do Pelé, você é o pai do Pelé?” Minha mãe era L. Ba. de
Oliveira, ela teve 13 filhos ao todo, mas ficaram 12.
Com referência a Berger e Luckamnn (1995), relembramos que este afirma
que os atores sociais não necessitam ficar enclausurados no “mundo aprovado” da
sociedade como o único existente, mas podem viver a experiência do “entendimento”,
isto é, a passagem para novas possibilidades de existência social, novas experiências
identitárias transformadoras do Eu do sujeito, identidades metamorfose, conforme
expressão de Ciampa (2005), potencialmente emancipadoras.
Em diferentes condições, tanto a história quanto a memória e a identidade
são conceitos diferentes, mas intimamente ligados entre si. Quando contamos nossa
história, estamos falando de um “saber” sobre nós mesmos, estamos transmitindo
aquilo que sabemos sobre os acontecimentos, afetos, sensações e sofrimentos que
marcaram nossas vidas, nossas relações, a própria metamorfose que é uma
empreitada fascinante e extremamente complexa.
F - O orgulho do velho: ela mostra quem foi para dizer quem ela é
Dona Olivina vai marcando em sua narrativa seus deslocamentos, insistindo
na sua história e pontuando o momento em que se torna responsável pela ajuda aos
irmãos, pela continuidade da criação dos mesmos e pela decisão de mudar
definitivamente e se estabelecer:
(...) depois fui para a cidade e tirei o curso até a série e fiz curso para dar
aula na fazendinha, ser professora, naquele tempo era diferente, a gente fazia
um curso e podia ensinar. Aí, foi que eu falei, s não vamos ficar aqui mais
não, e o papai disse: “mas por quê? Mas nós estamos tão bem aqui, tem
tanta fartura”.
De acordo com o que conta a nossa entrevistada, seu pai de alguma forma
gostava de mudar de um lugar para outro, tomava rumo nos negócios.
Quando mudava de um lugar para outro, é quase dizer que vivia se
metamorfoseando. O mesmo aconteceu com Dona Olivina , ao assumir o
lugar de mãe para o irmão que ela criou desde tenra idade. Assim ela um
novo rumo à sua vida; uma transformação, ela assume uma função: ser
a representante da figura materna no contexto da família:
(...) E eu não sei o que deu na minha cabeça, mas eu vim para Alfenas. Eu
falei para ele, agora que a mamãe morreu, eu quero ir para a cidade pôr os
meninos para estudar, e o papai disse: “Mas você não gosta de fartura”? Eu
falei tô gostando, mas eu não quero ficar mais aqui não, e o papai falava: “mas
191
todo mundo estudando aqui perto”, era outro lugar chamado Serrinha. eu
falei para o papai, mas é melhor eles ir para uma escola na cidade, tem mais
futuro, e para eu ir sozinha não não, tem que ir todos, eu falei, acho que foi
uma intuição de Deus (...).
A identidade do Eu, sob o ângulo cognoscitivo é, para Habermas, “a
capacidade que tem o adulto de construir, em situações conflitivas, novas identidades,
harmonizando-as com as identidades anteriores agora superadas, com a finalidade de
organizar numa biografia peculiar a si mesmo e as próprias interações, sob a
direção de princípios e modos de procedimentos universais”. (C.f.HABERMAS, 1983,
p. 70).
Nossa entrevistada evocou sua lida na constelação familiar como filha mais
velha, ajudando na criação dos irmãos, mostrou-nos ser uma pessoa sem qualquer
ambição. Mostrou também que a profissão de ensinar é um legado que carregou por
vários anos em sua vida. Supomos que nossa entrevistada, embora viva no mundo
tecnológico, o mundo secularizado, ainda insiste no mundo da fartura (a comida
afeto). Eis aí o resgate de uma memória hábito, e prevalece em sua narrativa o mundo
rural, o mundo que trouxe a contemplação e as vicissitudes de toda a sua trajetória
para o mundo urbano, isto é, o mundo da vida.
Assim, uma simples prática no mundo exige uma relação com a memória,
pois é a partir dela que reconhecemos e compreendemos o mundo, identificando-nos
entre o mesmo e o diferente nos processos históricos. A memória não é o passado
que não mais poderá retornar porque foi superado. Também não é algo inexorável. É,
ao contrário, movente, “atual”, na medida em que é convocada para sustentar o dizer
e, nesse processo, ela se “presentifica” e se transforma, nas práticas de determinada
conjuntura histórica.
Conforme Ciampa (2005:, p. 42) relata na história de Severina, o mesmo
acontece com nossa entrevistada, que extraí da memória os fatos que considera
significativos para que saibamos quem ela foi, quem era.
E é desta forma que vai, através da compulsão à repetição, da evocação, da
rememoração e até na tentativa de uma reposição, solidificando a história que conta;
afirmamos uma identidade convencional em que ela se mantém, conforme os papéis e
as regras que assumiu e estabeleceu culturalmente ao longo de sua vida toda:
192
G - A emancipação na história de vida de Dona Olivina
E a mamãe morreu e eu tive que chamar a minha irmã mais velha para
ajudar. Ela e o marido já tinham um pedacinho de terra, e minha irmã falou
para mim: “mas que idéia é essa de ir para a cidade, na cidade tem de
comprar tudo”. Mas eu falei, a gente trabalha aqui o que tiver de trabalhar,
e depois vai, aqui não fica mais não, a gente arruma emprego, trabalha, os
meninos também. Nessa época a Is. tinha 13 anos, mas a minha irmã disse
para mim: mas você não vai trabalhar, porque senão quem vai tomar conta da
casa?
Podemos entender que a razão comunicativa ao ser orientada para um
interesse emancipatório poderá, mesmo diante de contextos histórico-sociais e
político-institucionais desfavoráveis, criar condições para o desenvolvimento de um
mundo que mereça ser vivido: uma sociedade emancipada, na qual todos os membros
possam ter acesso aos bens produzidos e constituir modos de ser que se caracterizam
pela liberdade, pela autonomia e pela criticidade.
E Dona Olivina Continua:
E depois disso meu pai arrumou a mudança e nós saímos de lá e mudamos
para Monte Alegre (Fazenda). Cheguei lá e tornei a fazer outro curso para dar
aula, no município de Monte Belo (cidade), e foi quando minha mãe ficou
doente e estragou tudo, (...), não fui fazer mais nada, (...), tive que ficar
cuidando da família (...).
Ao falar sobre a casa em que moravam e o lugar onde se estabeleceram
quando criança, nossa entrevistada pensa, olha distante, buscando um tempo, o
tempo passado, o tempo coletivo de suas lembranças:
(...) a casa nossa era bem grande, nós ficávamos lá, comia numa mesa
grande, eram dois bancos onde sentava todos. O papai não gostava que
enchesse o prato, tinha fartura, se quisesse repetir podia, mas encher o prato
para depois sobrar não podia não (...).
Na fala de nossa entrevistada a figura do pai é relembrada como um homem
de bom senso, zeloso do comportamento dos filhos à mesa, sempre farta, naqueles
momentos de união, de reunião de família. Ela nos afirma que até hoje a família se
reúne para a celebração nos aniversários, casamentos, batizados. Mostra-nos, assim,
a tradição que o mundo da vida não rompeu, pois ainda continuam a contemplar a
mesa farta, ainda encontros, celebrações que pressupõem uma identidade coletiva
que é sempre algo que define fronteiras entre quem somos nós, e quem são os outros
e que só existe em relação a uma alteridade.
193
Dona Olivina continua sua narração e vai contando e com isso nos
lembramos do escutador infinito: lembrança “puxa” lembrança e, além disso, de certa
forma demonstra o que se está refletindo sobre o que está sendo contado, como um
ouvinte infinito, em que o trabalho de elaboração do entrevistado está produzindo um
trabalho de elaboração naquele que o está ouvindo e, conseqüentemente, estas
lembranças se adaptam ao conjunto de nossas percepções do presente. Neste
sentido, como bem nos lembra Halbwachs (2006, p. 29), é como se estivéssemos
diante de muitos testemunhos:
Acho que a casa hoje tem mais de 100 anos, porque foi do meu avô, pai do
papai. Um dia eu quero levar os meus irmãos lá, os que não conhecem. O
lugar onde ficava a fazendinha, o povo chamava de Cateto, não é Catete não,
igual no Rio de Janeiro.
Assim, as lembranças permanecem coletivas; nossa entrevistada traz uma
espécie de semente de rememoração e quer plantá-la junto aos irmãos: quero levar
os meus irmãos lá, os que não conhecem”, pois quando temos um testemunho junto a
nós, os fatos passados assumem importância maior e acreditamos revivê-los com
maior intensidade, porque não estamos mais sozinhos ao representá-los para nós
(Halbwachs, 2006). Com isto, também, nossa entrevistada vai mostrando uma forma
ou uma tentativa de como foi socializando seus irmãos.
H - Recuperando o passado para atualizar o seu presente...
Segundo Ecléa Bosi (1987), o adulto não dispõe de tempo para a evocação
do passado porque, entretido com as tarefas do presente, desconhece o valor das
reminiscências. O velho, ao contrário, debruça-se sobre o passado como alento à sua
vida, porque, perdida a possibilidade de reprodução biológica e de produção material,
resta-lhe, de alguma forma, a atividade mnêmica. O velho torna-se a memória da
família, da instituição, do grupo e da sociedade. nesse procedimento um aspecto
de cosmicidade e de retorno às experiências originárias. Assim, como a experiência
poética esforça-se em recordar as origens, o velho, em sua solidão de velhice, recria o
passado pelo desejo de recuperar o tempo e as coisas que nos fazem sentir próximos
à morte quando as perdemos. Nossa entrevistada relata:
A nossa casa era bem parecida com um chalé, tinha 4 degraus, rodeava uma
varanda e tinha a porta da cozinha. os meninos ficavam brincando com os
carrinhos. Era uma casa amarela clarinha, tinha 4 quartos, tinha uma cozinha
grande, era casa de fazenda. O banheiro tinha um chuveiro, mas não elétrico,
194
naquela época na roça não tinha eletricidade não. Os meninos tomavam
banho no açude, um riacho que tinha lá, na época do calor, mas do frio não,
mas o papai, a mamãe e nós meninas, não, a gente tomava no banheiro,
enchia o chuveiro, era uma caixa, esquentava a água, punha e caía no
chuveiro.
Dona Olivina sempre retoma em sua fala a figura de seu pai, uma possível
identificação, e conta-nos, sempre repetindo, que este era uma pessoa muito dinâmica
e empreendedora. uma identidade que podemos atribuir aos liames do social,
aos papéis em que pai e filha se inseriram socialmente, pode-se pressupor uma
identidade re-posta.
Para Dona Olivina, a roça foi seu primeiro pouso e depois vieram
acontecendo as mudanças, de um lugar para outro, de uma roça para outra, de uma
fazenda para outra e, enfim, a cidade: podemos pensar que no caso de nossa
entrevistada o conceito de emancipação aqui apresentado é também apresentado na
perspectiva de auto-emancipação, passando a ser ação do próprio sujeito.
Mas na roça era muito bom, depois das mudanças todas que te falei a
fazendinha, a serrinha, a usina, a cidade, eu vim embora para Alfenas, vim
para a cidade mesmo, daí a mamãe convenceu ele, e nós viemos todos
embora.
É importante refletir que a realidade objetiva e subjetiva estão em constante
interação, mas não em simetria absoluta. E isso é fundamental a ser considerado nos
processos identitários do velho, pois o mundo de tais inter-relações é complexo e
oscilante o que dá à identidade seu caráter de metamorfose conforme identificou
Ciampa (2005:61): “Identidade é movimento, é desenvolvimento do concreto.
Identidade é metamorfose. É sermos o Um e um Outro, para que cheguemos a ser
Um, numa infindável transformação.”
I - O modo de contar a história pela via do positivo: metamorfose-emancipatória
Dona Olivina também nos conta sobre sua vida no trabalho e sobre as
pessoas com as quais exerceu o seu ofício, ela conta-nos sobre o que veio mudando,
tanto na vida de trabalhadora como na vida de “cuidadora”. Para a mesma,
afirmamos, portanto, que a velhice é também um efeito do discurso, da subjetividade,
da história, da identidade, da memória:
195
Ah! (...) eu fui dama da filha do Major Inácio. Você conhece o pessoal do
supermercado Minas Gerais? Então, eu trabalhei lá muitos anos, fui dama de
companhia da mãe dele, trabalhei muito tempo lá (...).
Neste sentido, a identidade vai se compondo da articulação sucessiva de
diversos papéis sociais com os quais o sujeito se identifica ou estabelece mecanismos
contrários à identificação.
O trabalho no Educandário da cidade é, para a nossa entrevistada, uma
possibilidade de uma nova metamorfose. Para Ciampa (2005, p. 71) identidade é
metamorfose. “Então, o ‘ser ser o que é’ implica o seu desenvolvimento concreto; a
superação dialética da contradição que opõe Um e Outro fazendo devir um outro outro
que é o Um que contém ambos”.
Novamente nos relatos de dona Olivina presente e passado se misturam. No
seu passado, a plantação e a colheita vinham com muita abundância, havia a união da
família, a solidariedade no trabalho. Como agora, no presente, a convivência com o
grupo de trabalho: a amizade, a solidariedade, o café com muita fartura. As
lembranças dos sabores e odores levaram Dona Olivina à infância vivida. Eis um
dos registros de sua memória e de suas metamorfoses.
Portanto, a metamorfose aqui inscrita reveste-se de um fazer cotidiano e
histórico permeado de desafios, sonhos, utopias, resistências e possibilidades. Pois a
forma reificada ou fetichizada do personagem é sempre uma imagem na qual o sujeito
se aliena em uma forma-objeto. Isto fará com que a teoria pressuponha, sempre, e por
definição, possibilidades de superação desta alienação. Em outras palavras, a
possibilidade de metamorfose, literalmente, ir além de uma dada inscrição subsumida
na idéia de uma identidade convencional.
Este bairro que nós moramos é muito parecido com o lugar de antes, da
nossa região. Aqui também era uma roça antigamente, por isso, o bairro tem
o nome da dona desta fazenda, ela se chamava América, por isso, Jardim
América. tinha muitas vargens, e o pessoal fazia muita plantação, plantava
muito arroz e colhia por isso Campo das Águas Verdes e depois para o lado
de lá, era vagem, feijão, milho, era rio e serra, era um rio de águas claras e
uma serra chamada Serra da Boa Esperança. Tudo era ligada à plantação e a
nossa alimentação (...), “era as águas claras, depois chegou à cidade, a
cidade é Campo do Meio”.
Ao rememorar e contar sua história Dona Olivina usa o presente, no qual se
encontra, para situar o seu passado. Segundo Benjamin (1994, p. 201) “o narrador
retira da experiência o que ele conta: sua própria experiência ou a relatada pelos
outros. E incorpora as coisas narradas à experiência de seus ouvintes”.
196
Segundo Freud (1984, p. 196), o sujeito reproduz o passado não como
lembrança, mas como ação; repete-o, sem, naturalmente, saber que o está repetindo.
Neste sentido, podemos pensar que esta elaboração seria o mesmo que o
reconhecimento entre uma repetição e outra, porque o sujeito em sua elaboração
recorda o seu passado através das narrativas do presente.
Todo o percurso de nossa entrevistada, ao narrar sobre sua história no
trabalho, vai nos assinalando que as noções dos tempos e a memória são
indissociáveis. Que a memória individual se constitui por elos de relatos que vêm da
família: pai, mãe, irmãos e outros, e, ao longo do tempo, dos diferentes grupos sociais
com os quais traçamos laços através da memória coletiva.
“Aí eu vim para cá e fui trabalhar no Educandário Santa Inês, tinha 50
meninas. Acho que trabalhei uns 2 anos lá, foi em 1980 meados de 1982,
fiquei 2 anos e meio, tinha que dormi lá, tinha dia que eu ia para casa, eu
ficava com a meninada”.
J - A verdadeira identidade de Olivina: a “cuidadora”
Toda esta trajetória, trazida por Dona Olivina em seus relatos, mostra que seu
trabalho foi de “cuidadora”, inspirada nos ensinamentos tanto de pai como de mãe. Ela
participava dos momentos difíceis em que a familia sofria mudanças, aumento do
número de filhos, crises, doenças, transformações. O movimento de ir e vir significou
para ela fazer deslocamentos conforme o mundo da vida exigia.
Percebe-se que ao relatar o mundo da fartura Dona Olivina desloca este
mundo para o mundo do conhecimento, para o mundo da vida. É a partir dessas
mudanças nas quais sua fala ganha ressonância e marcas pelo seu corpo que
observamos e vamos escutando no empuxo de nossa memória os conceitos que ela
costura em sua emancipação.
Dona Olivina, de alguma forma, se coloca a traçar um retrato de seus pais.
Mas perguntamos: Quem eram seus pais? Que influência tiveram em sua história de
vida? Como isso foi afetando sua disposição, sua saúde, sua disponibilidade em ter
uma família numerosa? Como se tratava a questão da gravidez, do nascimento, da
escolha dos nomes? Isto vem ao encontro do processo identitário da pessoa.
Nesta trajetória, a razão comunicativa tem papel primordial, pois cria um
espaço intersubjetivo no qual o velho tem mais chances de buscar a sua
emancipação, mesmo que o mundo sistêmico tenha colonizado o mundo da vida,
como afirma Ciampa (2005).
197
Portanto, entende-se que o lugar onde acontecem as primeiras relações
intersubjetivas é no seio da estrutura familiar, sendo esta a que sentido à
identidade e promove a sua construção, assim como a da sociabilidade e da
intersubjetividade entre os indivíduos. Isto também mostra que a vida anterior de
nossa entrevistada pautou-se em um ideal, conforme narrou que o seu passado foi
bom, no entanto, podemos pensar que de certa forma ela não se emancipa dos papéis
os quais lhe foram atribuídos cultural e socialmente.
A gente falava para o padre, o Senhor a comunhão para a gente mais
cedo, antes da missa, porque nós temos de ir embora trabalhar. Daí a gente
ia para a roça, para as plantações. Daí, a gente plantava o feijão, arrancava a
plantação, colhia, apanhava café. Tinha uma turma de moço e moça, alguns
iam com a gente na comunhão, e eles trabalhavam para o papai, pois na
região o papai tinha uma plantação muito grande, e eu ficava sentada numa
mesa e anotava tudo. E eu perguntava: Quantas medidas de café você colheu
hoje? Quanto isso? Quanto aquilo? E eu anotava com um x no nome
daquela pessoa, depois eu somava e pagava eles. O pagamento era
semanal, às vezes tinha uns que não voltavam no outro dia. E o papai,
depois que as meninas gêmeas nasceram, ele não quis ficar mais na roça,
ficou na cidade, abriu um comércio e depois ele levou a mamãe e ficaram
com um comércio na cidade.
Os relatos de Dona Olivina indicam “aquela que viveu para cuidar”. Esta é sua
identidade, uma identidade convencional que sobrevive ao mundo da vida.
Metamorfoseia-se no papel de “cuidadora” evocada nos fatos de sua memória. Por um
tempo, abre mão de seu sonho em se tornar uma ‘ensinante’ para cuidar dos irmãos e
ajudar a mãe nos feitos da casa, e o pai, na lida da roça, conforme foi objetivado:
(...) nós colhemos muito nessa época, a gente plantava, capinava, a água era
farta, chovia muito e vinha tudo com fartura, era arroz, feijão, milho.
Podemos pensar que um indivíduo, com uma identidade livre, membro de
uma coletividade e com capacidade de questionar a realidade e de refletir sobre ela,
justificaria uma maior chance de promover o entendimento entre os indivíduos, de
modo a possibilitar sua intervenção no mundo contemporâneo, à medida que buscam
solução para os problemas que os afetam ou simplesmente buscam solução para
resolver as dificuldades concretas do seu cotidiano e coordenar as situações
problemáticas no mundo da vida. Mas pelos liames sociais, nossa entrevistada não se
emancipa dos papéis que lhe foram atribuídos, continua percorrendo a mesmice.
198
A mamãe gostava muito de trabalhar, era forte, sacudida e quando ela ficou
grávida das gêmeas, ela parou de trabalhar, as pernas estavam muito
inchadas, muitas varizes, e ela ficava muito de repouso, e eu estranhava,
depois que o papai me falou que a mamãe ia ganhar mais um nenê.
Então tinha uma árvore chamada Congonhal, ela fazia um chá desta árvore,
um chá que é uma delícia, você conhece? E aí, a moça que era dona deste
pedaço onde tinhas essas árvores, ela deu o terreno em intenção de Nossa
Senhora Aparecida, e começou a lotear e cortar as árvores. O papai me fazia
buscar estas folhas para fazer chá para a mamãe, porque ela começou a
perrear (ficar doente), ficar fraca, tinha muitas varizes nas pernas.
Mas, como bem lembra Ciampa (2005, p. 8), “numa sociedade de massa, o
indivíduo livre, autônomo, emancipado torna-se freqüentemente uma ilusão”. Contudo,
“se reconhecermos a base intersubjetiva da vida psíquica individual não poderemos
ignorar que é neste mundo caracterizado pelo pluralismo moderno e pela crise de
sentido que hoje está se dando a formação e transformação da identidade pessoal”
E Dona Olivina continua:
Eu estava falando naquele dia, sobre a gravidez da mamãe. O papai
comprou um comércio na cidade, e a mamãe ficava em casa, e eu fazia todo
o serviço de casa para ela. Ela ficava sentada num banco grande, na cozinha,
costurando, e um dia o papai falou comigo. Ele contou que a mamãe disse
para ele assim, ih, eu acho que vem duas crianças, tem horas que eu coloco
a mão na minha barriga e sinto duas cabeças, ora parece que são dois
corpinhos. Eu ponho a mão e vejo; que a mamãe não falava para a gente
não, mas eu notei, porque ela nunca parou de trabalhar e de repente ela
parou até de fazer o almoço. Ela esquentava sol, sentava num banco na porta
da cozinha e falava ai que dor nas pernas, ai, que dor assim, e eu falava, logo
melhora, não fica assim, é por causa do nenê, mas eu ficava preocupada com
ela. E eu comecei a fazer tudo então, lavar roupas, passar, arrumar e
cozinhar.
Mas aí, quando vê, minha filha, então ela disse: eu acho que vou ganhar
estas meninas no mês de março. Então, a mamãe sempre dizia que eram
duas crianças que ela ia ganhar, e não é que foi mesmo?
K - O velho e o resgate da unidade da família
Vimos na narrativa de Dona Olivina uma possibilidade de resgatar uma
memória ameaçada por uma modernidade que valoriza interesses econômicos em
detrimento da sabedoria popular de quem contribuiu para a permanência de uma
família inteira.
Bosi (1987) em seu estudo sobre as lembranças de velhos, mostra que estes
recuperam um tempo, reconstroem um momento social coletivo, cosendo retalhos de
199
lembranças individuais e evocando a memória. Observe-se como Dona Olivina fala
sobre isto em sua história de vida:
Depois o papai fez um puxado, fez uma despensa. A casa era toda
assoalhada, tinha varanda com cadeiras, tinha a sala, mas naquela época
não tinha televisão não. Os meninos ficavam à noitinha na porta da cozinha
brincando com os carrinhos deles. Tinha fogão à lenha e nós ficávamos
esquentando, tinha umas prateleiras, embaixo tinha umas vasilhas de água e
os potes. A água era da mina, buscava de manhã e à tarde, fazia tudo. Na
roça também não tinha água encanada não. Tinha o açude e duas minas,
tinha um bambuzeiro também atrás da cozinha, no fundo, o rio era para lá.
E papai comprava querosene, 20 litros, tinha lampião e lamparina, fazia o
pavio de pano trançava e colocava o azeite ou o querosene e clareava tudo,
era assim que iluminava a noite. Mas na roça era muito bom, depois das
mudanças todas que te falei a fazendinha, a serrinha, a usina, a cidade, eu
vim embora para Alfenas, vim para a cidade mesmo. E assim ela repete
novamente: Daí a mamãe o convenceu, e nós viemos todos embora. Acho
que a casa hoje tem mais de 100 anos, porque foi do meu avô, pai do papai.
Um dia eu quero levar os meus irmãos lá, os que não conhecem. O lugar
onde ficava a fazendinha, o povo chamava de Cateto, não é Catete não, igual
no Rio de Janeiro.
Conhecer suas condições de existência, suas reivindicações, suas lutas
sociais, sua identidade no mundo contemporâneo é uma forma de mostrar etapas
intermediárias do envelhecimento. Assim relata Dona Olivina:
Hoje eu estou aqui no bazar, ajudo as minhas amigas. Toda 3ª. feira. a gente
se reúne, cada uma traz um prato e café, chá, leite, suco e conversamos
bastante, damos risada, fazemos nossos tapetes de fuxico, costuramos,
remendamos e assim nós vamos levando a nossa vidinha. Aqui todo mundo é
amigo, solidário, são mulheres verdadeiras mesmo, trabalhadeiras e ajudam
em casa, no bairro, na igreja, a gente não perde tempo. Eu bem, eu não
venho todos os dias, eu venho na e 5ª. feira. Como eu tenho diabetes,
eu tenho de tomar os meus remédios, mas não é por isso, eu tenho de
cuidar um pouco da casa também. A M. H. e a Ma., as que são gêmeas, elas
trabalham fora, tem a Is. também que mora na frente, então às vezes temos
coisas para fazer.
Segundo Ciampa (2005, p. 36) “o humano é sempre uma porta abrindo-se
em mais saídas”. O humano é vir-a-ser-humano. Identidade humana é vida! É desta
vida, desta história do biológico, do encontro do ser, da espécie humana que Dona
Olivina atravessa suas horas narrando e recordando, o que é buscar concretizar uma
identidade humana, é se humanizar, e então ela apresenta-se:
Eu me chamo Olivina de Oliveira e tenho 70 anos de idade (...).
200
Segundo Simone de Beauvoir (1990): “O tempo que o homem considera
como seu é aquele onde ele concebe e executa seus projetos (...)”
L -Conclusão
A história de vida de Dona Olivina mostra-nos, portanto, o mundo de seus
valores, de seus significados e de suas representações. Mostra-nos como teceu seu
Projeto de vida Tudo isto permitiu a ela estabelecer relações com o mundo, mundo de
outros, mundo que já existia e que agora também lhe pertence.
Para Halbwachs (2006) o indivíduo que lembra é sempre um indivíduo
inserido e habitado por grupos de referência; a memória é sempre construída em
grupo, mas é também, sempre, um trabalho do sujeito.
Assim, Dona Olivina traz em suas narrativas uma contínua identificação
mútua, traz as mudanças que sofreu ao longo de toda a sua trajetória de vida e com
isso ela tece: o tempo e a memória, o tempo e a identidade, a metamorfose que
caminha com a vida, o nome que ganha ao identificar-se cuidadora e a verdadeira
emancipação..
Seus relatos traduzem “aquela que viveu para cuidar”. Esta é sua identidade
metamorfose, evocada nos fatos de sua memória. Por um tempo abre mão de seu
sonho em se tornar uma ‘ensinante’ para cuidar dos irmãos e ajudar a mãe nos feitos
da casa, e o pai, na lida da roça, depois passa a gerenciar tanto o pai quanto os
irmãos, mas ocorrendo sempre o processo da mesmice, pois os papéis que lhe foram
atribuídos socialmente não se renovaram.
Dona Olivina reproduz sua vida própria naquilo que ela repete
constantemente com a família; mostra-nos que veio ao encontro das múltiplas
interações que vai estabelecendo com o mundo e o mundo com ela, transformando-o
e transformando-se na cuidadora da família, do trabalho, da memória e da identidade.
Abre-nos, assim, a possibilidade de entender um pouco mais sobre os
processos geradores de transformação ou de não reposição da identidade, dos
processos metamorfose que desafiou e evocou.
Percebe-se que nossa entrevistada não teve ambições ao longo de sua vida,
sobreviveu ao contexto de uma cultura que preza os valores transmitidos dos pais aos
filhos. Apesar de viver no mundo tecnológico e secularizado, insiste em retomar os
fatos de seu mundo passado, o mundo da memória afetiva, da memória hábito.
Freqüentemente assume o papel da mesmice, exercendo assim uma função muito
cara à sociedade tradicional, pois tanto os papéis sociais, como os sexuais e outros
não foram repostos, e sim, constantemente negados.
201
Pressupomos que nos relatos de Dona Olivina assim como no caso de
Severina, também aqui citado ambas ensinam que nossas vivências não acontecem
de forma simples e aleatória e independentes das experiências e dos fatos que as
objetivaram.
De acordo com o que observamos e escutamos, somente será possível
buscar o entendimento do sentido atribuído às metamorfoses identitárias, ao
entrarmos em contato com as experiências e fatos que sofremos e ao aliarmos estes
ao nosso projeto de vida: Quem sou eu? E quem eu gostaria de ser?
Todavia, o que se pode concluir com a história de Dona Olivina é a
possibilidade de viver-uma-vida-que-merece-ser-vivida, um processo de metamorfose
identificatório (menina-cuidar da mãe-professora-mulher-velha).
Pode-se dizer que este processo se dá a partir do momento em que o
indivíduo passa a afirmar o 'eu' de si mesmo, reconhecendo-se como um outro que
não se reduz a qualquer “personagem”, mas sim como a expressão de uma identidade
convencional, conforme atribuímos a nossa entrevistada que, por sua vez, ao narrar a
sua história como a história de um sujeito velho, veio incorporando-se na vida
contemporânea de uma dada comunidade entendida por meio da construção,
desconstrução e reconstrução, compreendendo as mudanças ocorridas no decorrer de
suas vicissitudes através da compulsão à repetição ou à mesmice. A compreensão a
que chegamos de sua identidade é que esta vai cosendo-se em sua memória.
202
Anexo 2.2 – Análise da entrevista n. 2 concedida pelo Sr. Bituca da Borda da
Mata
NOME: Bituca da Borda da Mata
IDADE: 79 anos
PROFISSÃO: Caseiro e retireiro
DATA: início de julho de 2006
LOCAL DA ENTREVISTA: No quarto do entrevistado e em uma área com jardim,
escolhida pelo mesmo. As entrevistas de realizavam sempre no período da tarde.
Análise da entrevista concedido pelo Senhor Bituca da Borda da Mata
A - Traçando e escrevendo a sua história
Escolhe o apelido que traduz os primeiros componentes de sua identidade:
eu sou o Bituca da Borda da Mata” e desta escolha corporifica sua longa experiência
de vida. Recorre-nos que seu mundo é aquele da colheita, da lavoura e do plantio. Ao
narrar suas experiências e vivências vai interrogando: o que é o mundo hoje?
Nesse sentido a sua fala vai se organizando e mostrando como é o mundo
hoje, a transformação da prática artesanal para a industrial, a relação de
intersubjetividade entre as pessoas, a tecnologia e o distanciamento do afeto, da
intimidade:
Hoje tudo é diferente, o mundo hoje muito diferente, sim, hoje tudo a
gente vive com a crise. Tem adubo nas plantações, nada é mais muito
puro tudo o quanto o que nós comemos é contaminado. O povo hoje já não
tem mais aquelas amizades de antigamente, as pessoas tinham palavra
quando fazia um negócio, hoje tudo é muito diferente mesmo.
Bituca, 79 anos, brasileiro, natural de Borda da Mata, Minas Gerais, viúvo,
profissão caseiro e retireiro por mais de 50 anos, nos conta que veio da Escola da
Vida, não teve estudos, tudo que aprendeu foi com sua profissão e com a ajuda de
seu patrão.
Nos primeiros contatos o Sr. Bituca dizia sempre que a morte era a única
saída para a transformação, para a mudança de seu destino. Assim, não demonstrava
qualquer possibilidade dedar outra direção à sua vida.
Dizia sempre que a morte da esposa para ele, era a sua forma de solidão, de
permanecer sozinho em suas lembranças. Assim de certa forma, percebemos que a
partir de nossos encontros houve para o entrevistado a possibilidade de viver o seu
luto.
Muitas vezes, as instituições formadoras do sujeito não mais encontram
ressonância na vida social. Convertidas em imposturas, deixam de informar o porvir e
203
o que produzem é o mal-estar de uma existência desperdiçada. Segundo
Frochtengarten (2004) a ruptura biográfica é a dimensão psicológica do
desenraizamento social.
No entanto, o Senhor Bituca, ao nos encontrar para a entrevista,
vinha sorrindo e assim permitindo um contato mais estreito. Com um aceno de cabeça,
com certa abertura para falar de si mesmo ia ao encontro do passado atualizando o
presente e foi a partir da intimidade e da confiança que sua história foi se movendo
como também as suas lembranças ao encontro de suas raízes.
Foi casado por 43 anos, viveu com a esposa a esperança de um dia ter
filhos, mas isso não foi possível. Viveu para o trabalho e para a esposa, não tinham
vida social, tinham poucos amigos e progenitores já falecidos.
A infância do Senhor. Bituca foi pobre de brincadeiras e de descobertas,
viveu desde os 10 anos observando o pai para aprender com ele o ofício.
Ao dizer sobre sua infância, o entrevistado traz em sua memória: voz,
imagens, odores, sensações e percepções que vão adquirindo ressonância, vão
crescendo; e com isso as marcas do tempo pontuam sua história.
Ao rememorar sua história, e os momentos que havia vivenciado e outros
que conhecia a partir de histórias contadas por seu pai, sentíamos que ele encontrava
um interlocutor, alguém com quem podia retomar um antigo costume: o de transmitir
experiências a partir da narração.
Segundo Benjamin (1994, p.198), esse é um experimento que está em “vias
de extinção”, pois a cada dia é mais difícil observar esse tipo de prática social. O autor
aponta ainda que o narrador é aquele que “conta sua experiência sua própria ou
aquela contada por outros. E, de volta, ele a torna experiência daqueles que ouvem a
sua história”.
No entanto, um relato da vida é, antes de tudo, a produção oral de um texto.
Entre a memória e a elaboração de um texto oral intervém uma série de mediações
que imprimem sua própria lógica no processo de construção das lembranças e assim
foi acontecendo com o Senhor Bituca.
Durante a entrevista percebemos que o trabalho está ligado a sua identidade
e a sua metamorfose: Sou leiteiro e retireiro com muito orgulho.
Não consta de sua narrativa uma passagem pela escolaridade oficial. Ele é
um aprendiz da vida e das experiências que vivenciou no seio da família rural.
Vimos o quão fugaz é a passagem entre o tempo da infância e o tempo do
mundo adulto de nosso entrevistado, e ele conta:
E eu vou contar uma coisa para você, eu nunca estudei na vida, nem
minha Veinha, tudo que eu aprendi foi com os outros, até a mexer com o
204
dinheiro, a respeitar os outros, eu nunca tirei nada de ninguém, nunca
enganei, entrar e sair das coisas, foi tudo sozinho. Trabalhar sozinho, fiz tudo
na vida sozinho.
Recorremos a Walter Benjamin, (...) a saudade que em mim desperta o jogo
das letras prova como foi parte integrante da minha infância. O que busco nele na
verdade, é ela mesma: a infância por inteiro.
Uma angústia sincera transborda das interrogações que muitos de nós
fazemos sobre o que seja a infância ou a adolescência no passado de nossos
entrevistados. Os efeitos da socialização na vida do Senhor Bituca se fizeram através
de suas profissões, dos laços de obediência, de respeito e de dependência do mundo
adulto, e acabaram sendo trocados por um outro tipo de autonomia e de
reconhecimento. Para este velho, agora aposentado, fora do mercado de trabalho e
com tempo disponível para relatar suas vivências e transmitir experiências, uma outra
questão surge: com quem conversar? Os velhos amigos, muitos haviam desaparecido!
Os que o envolvem nem sempre têm ouvidos para histórias já passadas e os
costumes já são outros.
E ele foi contando:
(...) eu trabalho desde os 15 anos, eu era caseiro, aquele farturão de café,
meu pai plantava a roça e nós comia produto da nossa roça, engordava
porco, só produzia coisa nossa, não precisava de muita coisa.
O trabalho é uma fonte inesgotável de paradoxos. Ele origem a terríveis
processos de alienação, mas pode ser também um instrumento a serviço da
emancipação, do aprendizado e da experimentação da solidariedade e da democracia
(DEJOURS, 1999).
O Senhor Bituca nos falou dos laços afetivos que gerou em seu trabalho, com
os colegas, com os amigos e até mesmo com o seu último patrão. É pelo trabalho que
traz em sua fala o reconhecimento e a identidade.
A nossa conversa, ou melhor, a nossa entrevista desenvolveu-se em um
momento no qual certas lembranças são ordenadas com o intuito de conferir, com a
ajuda da imaginação ou da saudade, um sentido à experiência de vida do sujeito. Ao
traduzir experiências vividas, relacionadas à situação atual, o Senhor Bituca
conformava-se com uma comunicação articulada por associações entre o ontem e o
hoje, ele dizia: nossa vida antes tinha um rumo certo, nós trabalhava de manhã à
205
noitinha e depois vinha embora para a casa e não saía para mais nada”, assim o
entrevistado nos fala de sua vida cotidiana e da continuidade da mesma.
Segundo Bosi (1994, p. 55) A lembrança é uma imagem construída pelos
materiais que estão, agora, à nossa disposição, no conjunto de representações que
povoam nossa consciência atual. Por mais nítida que nos pareça a lembrança de um
fato antigo, ela não é a mesma imagem que experimentamos na infância, porque nós
não somos os mesmos de então e porque nossa percepção alterou-se e, com ela,
nossas idéias, nossos juízos de realidade e de valor .
Podemos pensar que as lembranças, portanto, são leituras que os
entrevistados velhos fazem do passado com ferramentas emprestadas para lançar o
presente. Mas elas não vivem no passado, ao contrário, precisam de um tempo
presente de onde são projetadas e ancoradas em um sentido. Também não se
apresentam isoladas, são de ordem relacional e envolvem outros indivíduos: nas
lembranças, nunca estamos sós.
Continuando com sua narração o Senhor Bituca enfatizou a história de seu
pai e de sua mãe, ele teve mais irmãos, mas quis ficar apenas na história que envolve
pai e mãe. Não mencionou a respeito da família da esposa, a não ser que eram
vizinhos e que ela era uma moça para casamento. Contou também que já se casou
mais velho para um rapaz de sua idade e de seu tempo. Neste sentido, percebemos a
memória oral e a memória individual fazendo eco nas narrativas do Sr. Bituca:
Ah! Eu me casei e eu já era velho para os moços de minha idade.
Para Mucida (2009, p. 21), nascemos em um mundo permeado de palavras
escutadas, faladas, sentidas, esquecidas ou lembradas como ecos de outro tempo,
mas que não morrem.
Nosso entrevistado é deste tempo, o tempo passado que se renova no
presente, pois, novamente nos dizeres de Mucida (p. 21) podemos apontar que no
caso do Sr. Bituca, “nome, lugar na família, frases escutadas tomam depois alguns
sentidos”, e a partir destes sentidos é que se busca mostrar a identidade e a
subjetividade do entrevistado.
E ele vai recordando e contando:
Eu não gostava muito de sair de casa. Ás vezes ia com os companheiros,
mas voltava logo, eu trabalhava muito. Ah, tinha a sanfona, né, cavaquinho e
violão, tinha os bailes, mas eu não ia, e depois que eu conheci a minha muié,
eu não fui e nem ela também não gostava muito. A gente viveu muito na
nossa casa, ela gostava de ficar arrumando a casa, e ela gostava de
costurar, ela tinha uma máquina e ficava ajeitando as minhas roupas, as
206
dela e de algum vizinho que sabia que ela costurava daí ia e pedia para
ela.
Segundo Bosi (2004, p. 15), “a memória dos velhos pode ser trabalhada
como um mediador entre as gerações e as testemunhas do passado. Ela é o
intermediário informal da cultura” (...).
B - Compondo a história e contando a identidade
Assim, é preciso reconhecer que as memórias individuais são construídas a
partir de vivências que os sujeitos experimentam no curso de suas vidas, no interior de
grupos sociais. Para Halbwachs (1993, p. 71), a memória individual será sempre “um
ponto de vista sobre a memória coletiva”. A manifestação das memórias individuais
decorre de sua inserção em campos de significados de domínio coletivo.
Como também Barros (1989, p. 30) destaca que: no ato de lembrar nos
servimos de campos de significados – os quadros sociais – que nos servem de pontos
de referencia. As noções de tempo e de espaço, estruturantes dos quadros sociais da
memória, são fundamentais para a rememoração do passado na medida em que as
localizações espacial e temporal das lembranças são a essência da memória.
E o senhor Bituca vai trazendo à tona toda sua história de vida, os
momentos que o marcaram pela dificuldade da esposa em engravidar, os recursos
que buscavam para seu tratamento, o companheirismo por uma vida toda de cuidados
e desafios...
E, assim ele diz:
Então, eu trouxe ela para o hospital, ela tomou os remédios, fez os exames
que precisava e depois nós voltemos para a roça. Um ano depois ela
engravidou, e o nenê também nasceu morto, daí eu internei ela e depois
disso ela foi operada, e não pôde engravidar mais, então nós não pudemos
ter filhos...
C - O tempo, a história e a identidade
Para o entrevistado foi muito importante ter vivido uma relação estável,
duradoura.
Ele também, reviveu a situação de sua viuvez, e que de certa forma obriga o
indivíduo a enfrentar uma transição de identidade, um novo papel social. Entende-se
207
que a condição de viuvez pode fazer com que as pessoas após anos de convivência,
enfrentem um momento de solidão, um processo profundamente sofrido e foi o que
ocorreu com nosso entrevistado.
Vamos percebendo que da memória depende o conhecimento, a
personalidade, a história e o comportamento das pessoas. A mesma permite
conservar a nossa identidade, o nosso ser, garante os nossos conhecimentos,
aprendizagem e adaptação. acesso à linguagem; oferece o fio condutor de nossos
pensamentos, colocando em ordem nossa história pessoal e social, e novamente
vamos ao encontro da memória individual de nosso entrevistado.
E, segundo ele:
Nós vivemos mais de 50 anos juntos, só eu e ela e Deus, ela era honesta,
trabalhadeira, falava pouco e eu também falava pouco, mas nós era muito
companheiro um do outro. Sabe, eu também falava pouco, porque eu só
gosto de conversar coisa boa, coisa que não sendo boa eu não gosto, mas
com a senhora vai ser muito bom eu conversar, poder contar para a senhora
a minha história, isso é uma coisa muito boa.
Assim, na fala do Senhor Bituca “antigamente tudo era mais fácil do que no
tempo de hoje”, hoje é tudo muito corrido, as pessoas quase não se conhecem mais,
as coisas foram mudando muito. Segundo nosso entrevistado:
(...) “tudo era diferente, os remédios antigamente não era estes remédios de
hoje, era remédio da horta, de casa, minha mãe tinha uma hortinha na porta
da cozinha, o meu pai, para a Senhora ver, nunca tomou um comprimido na
vida, eu via ele de pé no chão, nunca ficava doente, ele era bóia fria”.
E ai ele continua:
(...) Hoje tudo é diferente também, o mundo hoje muito diferente, sim, hoje
tudo vive a crise, tem adubo nas plantações, nada é mais muito puro, tudo o
quanto o que nós comemos é contaminado. O povo hoje não tem mais
aquelas amizades de antigamente, as pessoas tinham palavra quando fazia
um negócio, hoje tudo é muito diferente mesmo.
E a partir de suas referências vai insistindo em suas narrativas:
208
(...) este povo de hoje, hoje este povo é um outro povo, é um povo moderno,
é um mundo moderno e ninguém faz conta de ninguém. E a gente tem que
se virar. Já faz dez anos que eu moro sozinho, eu morei dez anos sozinho.
Mas tem também o tempo presente que se atualizou de seu passado, o
tempo das lembranças, o tempo dos acontecimentos que marcaram para sempre a
vida de nosso entrevistado, segundo Bergson: a lembrança que impregna as
representações”.
E é por causa dessas lembranças que seus olhos entristecem e a sua fala é
embargada e impregnada de emoções:
(...) nós fomos no Dr. Tupi. Daí eu falei para o Dr. Tupi, eu quero que o
Senhor faça um exame nela, uma consulta do até a cabeça e se aqui não
tiver recurso eu levo ela para São Paulo. Daí ele examinou, e eu falei com o
Dr. Tupi o que estava acontecendo, e ele me falou, Sr. Benedito, a Dona
Maria está com a circulação muito fraquinha, o Senhor vai internar ela agora.
Daí ele encheu uma folha e me deu e eu fui para o hospital. Fui andando e
ele falou para mim, daqui a pouco o Senhor volta: quando fez três dias da
internação, uma médica ligou para mim na roça que era para eu procurar
ela e eu fui. Procurei ela e ela me disse, olha, a Dona Rita com um
tumor na cabeça e eu vou ter de operar ela, e ela tem que ser operada
imediatamente e tem que ter a sua autorização. Daí eu falei, mas não tem
outro jeito Doutora? Ela disse que não e que tinha de ser rápido, porque o
tumor estava vencendo, ele estava bem grande e podia comprometer a
saúde dela.
Concomitantemente a vida de nosso entrevistado foi se transformando
paralelamente às dificuldades encontradas com a doença da esposa e a perda da
mesma. Ao relembrar de todo o seu passado o Senhor Bituca vai reconstruindo sua
história através de sua identidade pessoal e social, através das evocações da
passagem do tempo recompondo o momento de mudanças que foram se
transformando ora em prazer e ora em desprazer.
"A lembrança é sobrevivência do passado." (Bosi, 1995). É ainda Bosi quem
diz.:"A memória não é sonho, é trabalho, por isso o velho não se contenta em
aguardar passivamente que as lembranças o despertem. É no interrogar aos velhos
que as lembranças aumentam sem cessar e ao mesmo tempo possa ser uma
209
revivescência e uma reconstrução das imagens, idéias de suas experiências e
recordações de seu passado.
Novamente a história de sua esposa vem à tona, sua perda, sua viuvez, sua
solidão:
(...) Daí isso era domingo, levei a minha esposa para o hospital, quando
passou o domingo, na 2
a
. feira ela morreu...
(...) Acabou tudo, até hoje eu não presto mais depois que ela morreu. Eu
penso nela dia e noite, eu saio ruim, eu como, a comida tá ruim, eu saio,
para mim ruim, tudo tá ruim, eu vou dormir ta ruim, eu passo uma
mordoninha, eu trabalhando eu vejo ela junto, eu fico assustado e penso,
mas ela não vai voltar mais...
D - O espaço constituindo as lembranças
Para o Senhor Bituca estas lembranças não estão soltas, elas se organizam
em função da relação que guardou consigo mesmo e que constituiu sua história
pessoal. Assim, suas lembranças vêm à tona num misto de prazer e de dor. Ao falar
sobre a doença da esposa, a dificuldade de recuperar aquilo que estava sendo perdido
para sempre, o Senhor Bituca vai ao encontro das mudanças que aconteceram em
todo seu espaço de moradia, trabalho, amizades e outros, neste sentido uma
metamorfose se instituí neste contexto e a memória reflete suas lembranças.
De acordo com Bosi (1987, p. 31), a memória opera com grande liberdade
escolhendo acontecimentos no espaço e no tempo, não arbitrariamente, mas porque
se relacionam através de índices comuns”.
E o senhor Bituca vai recordando e contornando a história que marca a sua
vida e o contexto do lugar, de toda uma cultura rural junto à esposa, ao seus
conhecidos, seus amigos. Passa a viver numa cultura que preconiza o imperativo do
novo, da novidade, e assim é levado a um mundo estranho, sem vínculos com as
coisas do seu passado, e sua vida começa a tecer um novo rumo a partir deste
deslocamento.
E aí ele vai contando que:
(...) foi da roça para a cidade, antes de vir para a Vila eu morei nuns lugares
por aí, depois que eu fiquei viúvo.
E repete:
210
A gente fica meio sem lugar, né, e a roça para mim ficou tudo muito triste...
E, continua agora para dizer de sua história com o patrão e da mudança para
a instituição asilar, novamente se sente deslocado e sem referências, mas vai ao
encontro da possibilidade de uma nova identidade-metamorfose.
O Senhor Bituca conta como foi a decisão de mudar/mudança:
Daí eu falei para ele, olha um caminhão leva a minha mudança..., daí fui
morar sozinho...
ele falou para mim, não, não, o Senhor não acostuma lá, o Sr.
acostumado a trabalhar, a mexer com tudo, fica de para cá, e é muito
triste, e eu não conhecia o asilo, aqui na Vila, o povo fala assim, eu nunca
tinha ido num asilo, e eu falei, ah! Senhor Tito, o mundo muito violento, e
eu não gosto de violência eu tenho a minha aposentadoria, eu tenho a
minha casa, eu tenho que sair para trabalhar, porque o dinheiro da
aposentadoria não vai dar (...)
Podemos observar que os entrevistados, ao serem absorvidos pela idéia da
rememoração, da partilha de certas experiências, são tomados por uma emoção, por
uma evocação da singularidade do lugar onde viveram, da propriedade, da região, de
experiências de valorização e de compreensão do esquecimento e da ânsia de
recordar.
E é desta ânsia de recordar e de repetir que mais uma vez a história vem à
tona:
O primeiro nenê que nasceu ela ficou com a bexiga de lado, eu internei e
depois no segundo filho, o médico operou ela para não ter mais filho. Ela era
branquinha, trabalhadeira, e ela chamava Lita, e um dia, na chácara
do Tito, eu vi que ela tava rangendo muito os dentes. Eu perguntei, Oh! Lita,
o quê que é isso? O quê que é esse problema seu?
Daí veio o medo e a surpresa:
Ela não me respondia, todo dia trabalhando, mas eu fui ficando triste, fiquei
uma semana pensando, assim, porque eu sou muito curioso, muito
preocupado, e vi que tinha uma coisa diferente.
Segundo Habermas, o indivíduo ao se emancipar de uma reificação que ele
próprio se impingiu, ganha ao mesmo tempo distância de si mesmo. Recupera-se da
dispersão anônima de uma vida num átimo reduzida a fragmentos e confere à própria
existência continuidade e transparência. Ainda para este autor, na dimensão social, tal
211
pessoa é capaz de assumir a responsabilidade pelos próprios atos e contrair
compromissos com seus semelhantes (p.9).
E, assim, novamente a surpresa e os acontecimentos que foram mudando
para sempre a sua vida:
Eu fui atrás do motorista de taxi, depois que o Pereira levou as vasilhas
para mim (...).
(...) Acabou tudo, até hoje eu não presto mais depois que ela morreu. Eu
penso nela dia e noite, eu saio tá ruim, eu como, a comida tá ruim...
E - O inominável e o inescapável: aquilo que não tem nome nem nunca terá
Podemos observar que o envelhecimento ocasiona outros fenômenos, como
a solidão e o sentimento de perda, a viuvez e esvaziamento da casa, a perda dos
objetos e das referências. No caso de nosso entrevistado ele se defronta com o
inescapável da morte, o inominável, a última palavra da vida. Segundo Mannoni
(1995:43), as conveniências exigem que o enlutado volte a uma vida normal depois de
passado algum tempo determinado pelos costumes. Também nos explica que o que
perfila, em última instância, é uma perda radical, mas no presente o que insiste é a
rememoração de uma vida vivida com o ser amado (os colegas de trabalho, os
amigos).
Ao relatar sobre o seu patrão (Senhor Costa) nosso entrevistado conta-nos
os momentos de participação que o patrão teve em sua vida, e ele conta:
O Sr. Tito Costa pagou o meu aluguel, pagou o aluguel para mim, minha
mulher morreu na roça dele, ele foi muito bom para mim, muito bom para ela,
é o Tito Costa, foi meu patrão, ele mora em cima do banco. Daí, o Tito falou
para mim assim: “eu vou vender a chácara Sr. Bituca, mas eu não vou deixar
o Senhor na mão não”. Eu falei para ele pode vender sim. Eu tinha dele
do que o povo vinha fazendo. E quando foi para ele vender a chácara ele me
levou no chapadão (bairro), e ele tinha três casas de aluguel, ele me
falou assim, olha Senhor Bituca, o senhor vai entrar numa dessas casas aqui
e aqui o senhor vai morar para o resto da sua vida.
É desta forma que a entrevista de seu Bituca vai crescendo, e ele vai
cosendo na memória os momentos de separação, de partilha, de bondade, de
solidariedade, de mudança...
“Quando nós morava na roça, a gente ia de jardineira, não chamava ônibus
ainda, nós pegava a jardineira na encruzilhada, era meia légua, porque
na Cruz Alta (Zona rural), tinha uma estrada de terra que saía atrás e vinha
até a fazenda e a jardineira passava ali, saía do asfalto e vinha pela estrada
de terra”.
Da roça para a cidade: articulação da diferença:
212
Lá na roça era muito difícil a pessoa sair para vir na cidade ou ir ao médico...
Continuando com sua história ele repete:
(...) Eu já falei, né, minha mulher teve câncer na cabeça (pausa).
Em nossos encontros o Senhor Bituca trazia sempre os acontecimentos do
dia, as notícias da televisão, mas gostava mesmo era de escutar a rádio local e saber
das notícias da cidade, dos acontecimentos do mundo, as festas, a temperatura,
porém não se interessava pela política nem pelos políticos.
Para Melucci (1994), o indivíduo consegue identificar-se quando se torna
distinto do ambiente, sendo difícil falar de identidade sem fazer referência às suas
raízes relacionais e sociais; nesse sentido, podemos pensar que a identidade de
nosso entrevistado define, por conseguinte, sua capacidade de falar e de agir,
diferenciando-o dos outros e permitindo sua permanência.
Sabe-se que a Psicanálise designa como “atemporalidade do inconsciente” –
quando há para o sujeito uma perspectiva de que afinal o tempo não passou.
Assim, seu Bituca conta o tempo, transforma tudo o que viveu em
solidariedade, afeto, reconhecimento. Faz-se nova identidade, de empregado do
patrão, torna-se aquele que devolve ao patrão os sentimentos de amizade, de
reconhecimento.
Para o Sr. Bituca a escrita de sua vida baseia-se na retribuição, reconhece-se
no outro como sendo o si mesmo.
É uma caridade, a única coisa boa que fiz na vida, coisa de bom que fiz na
vida...
Coitadinha da pobrezinha. Olha, dei o sofá, poltrona, um saco de roupa,
cadeira, mesa, panela, prato, dei tudo para ela.
A gente também tem que fazer o bem para as pessoas, a gente fica em paz,
sempre tem alguém que precisa mais do que a gente.
Na sua memória habita o afeto, a dor, o prazer, a viuvez, as mudanças que
ora se transformam em conquistas, ora em derrotas; um vai-e-vem na sua vida: a
viuvez, as mudanças de um lugar para o outro, a troca de lugar entre o patrão e o
empregado e assim se o processo de metamorfose e emancipação na vida de seu
Bituca.
Viveu do trabalho e por ora tornou-se um trabalhador incansável tanto de sua
memória quanto de sua identidade. Podemos observar que na história contada pelo
participante-velho, ao recontá-la, o sujeito re-constroi-se para si mesmo. Ao partilhar
213
sua narrativa, os dados vivenciados e rememorados por nosso entrevistado são
partilhados por sua memória.
Podemos observar que a narração da história de vida do Senhor Bituca tem a
ver com sua identidade e com sua memória. Ele foi construindo com o patrão uma
identidade composta à interação social e ao mundo que o rodeia, com os papéis
sociais que apreendeu com o patrão. Tudo isso o trouxeram para o mundo da vida
num processo de aculturação e de deslocamento entre o mundo rural e o mundo
urbano-tecnológico.
Neste sentido, o entrevistado buscou maior liberdade de escolher sobre sua
vida e sobre o lugar em que desejou passar o resto de sua velhice. Ao mesmo tempo
em que fez escolhas, porém, destas escolhas aconteceram situações conflitantes:
entre viver na instituição asilar ou poder morar em outro lugar e ter o seu dinheiro
como uma economia de sua vida, seu trabalho, suas metamorfoses; num outro
sentido, pela interação social, pela troca, ele e patrão se articulam na igualdade e na
diferença.
Assim, para ele, devolver ao patrão o dinheiro que ele economizou por uma
vida toda, foi demonstrar ao patrão, uma forma de reconhecimento intersubjetivo, e
deixar transparecer a demonstração de afeto e de confiança e o fruto de seu esforço,
sua autonomia e sua emancipação: O senhor Bituca de certa forma é aquele que se
materializou em sua própria história que, por sua vez, perpassou por histórias de
outras pessoas, como sendo uma dessas fortemente marcadas com o patrão”. Ao se
modificar, o novo é assimilado ao existente, e no reconhecimento ocorre dada
continuidade que, de alguma forma, leva à repetição.
Todavia, o Senhor Bituca mostra-nos que sua identidade do passado se
construiu pela socialização, e o mesmo ele faz no presente. Sendo que na sua
primeira socialização, sua identidade foi construída nas relações familiares, e depois
veio acontecendo nas suas relações com o trabalho e com o seu patrão, num
processo de aculturação e de deslocamento entre o mundo rural e o mundo urbano-
tecnológico.
O Senhor Bituca mostra em sua entrevista que sua velhice veio em
conformidade com sua forma de lidar com a vida, com a família, com os bens
financeiros. Conta e reconta sobre o passado e o presente, e eis o empuxo da
memória e da identidade e o seu ser se emancipando nas condições em que foi sendo
exposto ao mundo da vida.
Para Correia (2000) a identidade pessoal não se limita a uma permanência
substancial no tempo, ela deve ser observada na experiência de identidade como
214
vivência de si próprio, ou seja, com ipseidade, no pressuposto de um sujeito que se
descobre no mais íntimo do seu ser na vivência do tempo.
Transformações, mudanças, movimentos que vão e voltam, experiências,
prazer e dor, vida e morte, identidade-metamorfose-emancipação fazem eco na
velhice, na memória e na identidade do Sr. Bituca.
215
Anexo 2.3 – Análise da entrevista n. 3 concedida pela Senhora Bela Valsa
NOME: Bela Valsa
IDADE: 93 anos
PROFISSÃO: Professora
DATA: 10 de julho de 2007
LOCAL DA ENTREVISTA: Nos aposentos (quarto e sala de TV) da instituição onde
vive Dona Bela Valsa
A - Quem é você? Conte-me sobre a sua vida
A essa pergunta, de início e de ordem bem pessoal, a entrevistada responde:
“Ah! Eu gostava muito de festa, sabe! Eu era uma festeira de mão cheia,
dançava, gostava de passear, gostava de conversar e tudo.”
Uma escuta mais atenta a tal resposta revela-nos para além da paixão da
entrevistada pela dança, pelo ritmo, ecos do ritmo de sua própria vida, de sua história.
Configura-nos, além disso, de como seu mundo gira, de antemão, em torno dela
própria: se não tão pacata, com poucas novidades, contudo, conformando-se dentro
de padrões tradicionais, não se deixando levar por necessidades, exigências ou
atribulações do mundo globalizado deste século XXI.
Assim, a entrevistada vem trazendo, através da memória e da identidade, o
mundo circunscrito em sua velhice; não sem razão escolhe, para nomear-se, um nome
imaginário, em homenagem a todos os outros que, como ela, apaixonados vivem pela
dança e pela vida “Bela Valsa”. Mas que não deixa de trazer como identificação
Valdeman, sobrenome que sonoridade à Valsa, à beleza, a sua história vivida e
contada a que se pode definir como memória. Memória essa que faz parte de sua
identidade social.
Falando na identidade social do velho, sabe-se que esta é afetada de forma
massiva por atributos negativos, o que faz surgir alguns determinantes: - que o desejo
não pertence ao velho; - que seu tempo é o passado, mas não só: é também o seu
presente; por essa razão, ocorre uma atualização daquilo que foi em termos
existenciais; e sendo seu futuro apenas obra do acaso. Os atributos apresentados
negativamente reservam a essas pessoas velhas uma certa estabilidade, o cessar do
movimento, mas retirando por completo a autonomia e a decisão por um rumo a ser
tomado na vida.
216
Segundo Goldfarb (1996), “o homem e o tempo se influenciam mutuamente,
produzindo profundas mudanças nas subjetividades e diferentes representações que
lhe permitem lidar com a questão temporal.”.
Sob essa perspectiva temporal, a presente entrevistada, Dona Bela Valsa,
escapa de situar-se no lugar reservado tradicionalmente aos velhos, ou seja, de viver
sem uma identidade marcada, ou sem uma história. Inaugura um novo lugar para ela
própria em sua velhice. Seu movimento e seu ritmo no envelhecimento vão dando
contornos e consistência ao que ela desejou viver sempre, mesmo que, muitas vezes,
ela sinta que sua vida siga em rodopios, em ritmo contrário ao que previamente
escolheu, embora, a despeito disso, sempre tenha tentado manter-se firme em seus
propósitos. Assim, dentro de tal configuração, é que a entrevistada foi-se
personificando.
Podemos dizer também que, no caso de Dona Bela, metamorfoses
aconteceram, ou como dizia Severina, "vão acontecendo", preservada, contudo, a
própria identidade. A identidade de Dona Bela nada mais é que a personificação de
sua história a partir das próprias escolhas e das conseqüentes transformações. Dizer
de sua vida é o essencial, ou ela própria não é nada.
Segundo Petraglia (2006, p. 25), quando o ser humano adquire consciência de
seu processo transformador, pode assumi-lo, a partir de suas crenças e de suas
concepções. Torna-se, dessa forma, mais autônomo, e toda a autonomia pressupõe
também dependências a um tempo, a uma cultura, a uma linguagem, a um lugar, às
experiências cotidianas da vida, e a diversas histórias e relações entre todos esses
condicionantes.
Brasileira, 93 anos, natural de Pouso Alegre, viúva, com dois filhos, professora
rural aposentada: assim se apresentando, Bela Valsa também foi dando desde logo
um nome para as escolhas trazidas por ela para a vida presente; assim, ela nomeia a
Vila, nome particularmente dado por ela a uma Instituição Asilar da cidade de Pouso
Alegre, onde reside atualmente.
O primeiro casamento de Dona Bela foi com um senhor de sua própria cidade;
viveram felizes por alguns anos, tiveram dois filhos, que ainda pequenos tiveram a
infelicidade da morte do pai. O segundo casamento foi com um alemão que, depois da
Segunda Guerra Mundial, veio com várias famílias para o Brasil e se assentaram em
um local conhecido como Colônia do Padre Pimenta (próximo a Borda da Mata, cidade
no sul de Minas Gerais).
Viúva novamente nesse segundo casamento, depois de alguns anos Dona
Bela Valsa faz outra escolha determinante em sua vida: “morar na Vila para sempre”; o
que nos pode levar a pensar sobre suas renovadas metamorfoses: a dos dois
217
casamentos, a da transição por uma dupla viuvez; a transição de uma vida rural e
urbana para uma definitiva instituição asilar.
O destino dos velhos - como costuma acontecer àqueles de uma idade mais
avançada -, via de regra é procurar apoio e auxílio na família; alguns outros velhos
procuram redirecionar-se, mesmo sem ajuda familiar, para uma vida solitária;
também aqueles que buscam, eles próprios, em uma moradia coletiva, um novo lugar
para morar; e existem ainda aqueles que são afastados do convívio familiar e deixados
em uma instituição asilar, a despeito de sua resistência e não-aceitação da vida fora
da família. Verifica-se, porém, que a moradia familiar, assim como a vida em moradia
coletiva, nos moldes tradicionais, não está sendo um lugar adequado para moradia na
velhice: as famílias pela impossibilidade de dar ao idoso companhia por estarem seus
membros todos trabalhando fora; a moradia coletiva, por trazer ao idoso a sensação
do abandono familiar e a falta de afeto. Assim, muitos dos velhos fragilizados acabam
em um processo associado à falta de afeto, à solidão, à doença, à morte...
Em sua narrativa, contudo, Dona Bela nos faz entender desde logo que a
desmistificação de certas formas de exclusão existentes em nossa sociedade, assim
como a resistência e a prevenção diante de uma realidade adversa à pessoa idosa,
podem apontar-nos novas questões sobre o que é envelhecer e ser velho em uma
época permeada pelo imperativo do consumo, do envolvimento familiar no trabalho
externo, da multiplicidade de problemas familiares e nas organizações, em um mundo
em transformações velozes e estonteantes ao indivíduo, à família, à sociedade em
geral.
Dona Bela, em seu percurso biográfico, vai recordando, puxando os fios de sua
memória:
Ah, minha história não foi linda, não. Foi muito atrapalhada, rs., eu fiquei viúva
muito cedo do primeiro casamento, com dois filhos pequenos, eu lutei muito
para criar os filhos, depois que criei eu encontrei um marido bom e ele ficou só
seis anos comigo e depois ele morreu também. Daí eu não quis casar mais
não, porque todos os meus maridos morria, rs.
B - Entre gerar o cuidado e ser cuidada...
No caso da presente entrevistada, vamos percebendo que a escolha quanto à
própria moradia partiu dela: a opção por residir na convivência com outros velhos.
Não revela em seus dizeres que este lugar, a instituição asilar onde mora,
tenha aspectos negativos ou que lhe causem sofrimento; pelo contrário, ela vai-se
deslocando e se descolando da família do passado, para dizer de uma nova família.
218
Ela nos faz entender que não é preciso destruir ou apagar o passado, porque ele já se
foi. Mostra-nos que a qualquer momento, ele pode reaparecer, e parecer, ou ser nosso
presente. Trata-se, aí, de uma repetição? Somente se pensarmos em detê-lo, mas se
não, o passado é livre, assim como livre se sente nossa entrevistada.
Dona Bela revela que, na Vila, muitos dos funcionários cuidam dela, e é nesse
ambiente onde encontra novos amigos. Para superar dificuldades de convivência com
outros residentes, vínculos afetivos, segundo ela, têm que ser criados e incrementados
sempre, no decorrer do tempo, passando ela, em função disso, a partilhar sentimentos
de solidariedade mútua, seja na alegria e nos bons acontecimentos, seja na dor, nas
preocupações e perdas.
Nesse sentido, podemos afirmar que as evidências levam a crer que nossa
entrevistada não buscou para sua vida o conforto trazido pelo dinheiro, pelo luxo, ou
um status diferenciado, mas deixa marcado que buscou o cuidado de quem pudesse
oferecê-lo continuamente a ela. Preferiu direcionar sua vida para a religiosidade, para
a contemplação, investindo na vida de uma outra forma, sentindo-se feliz em assim
agir no cotidiano.
Continuando seu depoimento, reafirma que buscou na dança, na e na
religiosidade, e principalmente junto aos amigos, o afeto, a amizade, atributos sempre
presentes em sua vida e em sua história, justamente como uma forma de preservar a
própria identidade. A esse respeito, ela diz:
“Eu escolhi vim morar aqui, eu gosto daqui e vou ficar aqui para sempre (...)
meus filhos já quiseram me buscar, mas, daqui eu não saio mais não (...).
Esse desvelamento do percurso de uma vida, como ocorre aqui com a
entrevistada, constitui o que se qualifica, no meio acadêmico, como "História Oral". Ou
seja, uma história construída em torno de pessoas, que vêm promover o
reconhecimento da vida dos menos privilegiados da sociedade, especialmente a dos
idosos, que passam, por essa via, a recompor a sua dignidade e autoconfiança.
Segundo Thompson (1992, p. 58), “os velhos são verdadeiros documentos históricos,
e o contato com eles contribui para dar a sua escrita aquela veracidade que impregna
romances mais antigos.”
Nessa direção, Dona Bela vai ilustrando sua história pessoal e trazendo à tona
acontecimentos relevantes que lhe ocorreram na vida: contou, e mais de uma vez, que
enviuvara muito cedo, vindo a casar-se novamente um certo tempo, depois enviuvou
de novo após seis anos de casamento. Com o segundo marido viveu feliz, mas,
sozinha, porém, pela segunda vez, decidiu não se casar mais, simplesmente porque
"meus maridos morriam". Após algumas outras tentativas de ganhar um companheiro,
219
desistiu ao longo do tempo, e resolveu que o melhor para ela seria ter apenas bons
amigos.
Acerca dessas evocações a um passado distante, Le Goff (1994) diz:
A memória, como propriedade de conservar certas informações, remete-nos
em primeiro lugar a um conjunto de funções psíquicas, graças às quais o
homem pode atualizar impressões ou informações passadas, ou que ele
representa como passadas.
Prosseguindo em sua fala, a entrevistada contou-nos que sempre gostou muito
das pessoas com as quais convivia, e de estabelecer novas amizades. Repetiu várias
vezes que sempre fora uma pessoa sociável desde a mocidade, enfatizando a
vantagem de poder assumir outras atividades na atual moradia coletiva, e não aquelas
destinadas a uma dona de casa: “o melhor de morar na Vila é que não precisa ter
atividades como lavar, cozinhar nem fazer os serviços de casa”, justamente porque ela
gostava também de outros ofícios.
Comparando o presente com o que ocorria antigamente, revela-nos ela no
seguinte fragmento de fala: "Havia mais respeito, inclusive pelos mais velhos"; "a
gente era mais pobre, mas gozava de mais fartura, porque tinha sempre o que comer,
mais do que agora”.
No caso de Dona Bela, ela ratifica, em inúmeras vezes, que a escolha de vir
morar na Instituição Asilar partiu dela e não da indicação de seus filhos ou de outra
pessoa. Isso mostra que ela é uma pessoa aberta ao relacionamento interpessoal,
com as demais pessoas com quem convive – com os residentes, com os funcionários,
com a equipe de profissionais, evocando contudo sua face de sociabilidade, que tanto
fazia presença no passado, assim como no presente, e até mesmo sua resistência às
atividades diárias de uma casa; ela prefere usar o tempo relacionando-se com os
internos, com os funcionários e com os dirigentes, de forma amistosa, e reafirma não
ter tido nenhuma dúvida na escolha de sua moradia para seu presente e futuro. Assim,
ela nos conta:
“Então, eu gosto mesmo é de morar aqui, me dou bem com todos e todos
também gostam de mim (...).
(...) Eu vim para a Vila eu tinha 83 anos, eu pensei comigo, morar com os filhos
vou dar trabalho para a família toda, eu conhecia a Vila e vim para cá, no
início meus filhos não queriam, mas eu falei com eles que era a forma de eu
me sentir melhor e eles foram concordando aos poucos, aqui eu sou feliz
não preciso fazer nenhum servicinho, (rsss).
220
(...) Ah! Minha filha eu gosto muito, aqui o pessoal é muito bom, tem os
dirigentes, os funcionários, todos respeitam muito a gente, a gente gosta de
tudo e de todos, aqui não precisa lavar, cozinhar e nem fazer o serviços de
casa, tem o povo que faz tudo aqui para mim e para os outros também.
Nesse sentido, a entrevistada vai dando pistas - ao contar sobre os
acontecimentos de sua vida, de sua história, de sua memória, de sua identidade -, de
que o mundo, no seu ponto de vista, deveria ser mais estável, menos mutável. Para
justificar essa sua perspectiva, ela recorre a sua origem, a suas raízes: ela vem de
uma cultura que sofre poucas transformações: no meio rural mantém-se intacta a
cultura artesanal do plantar, do colher e do cuidar; e é essa matriz cultural que a faz
rememorar-se em suas identificações ou em sua mesmice: a palavra cuidar faz
ressonância a seu passado, ao contar sobre seus alunos; e a um só tempo se atualiza
em seu presente ao dizer coisas da Vila onde vive e convive cotidianamente com os
demais residentes.
Dona Bela revela então:
"(...) eu gostava de ver a carinha daquelas crianças brincando, trabalhando e
aprendendo desde cedo o ofício, eles me chamavam de Dona Belinha do Sr.
Va."
Ela vai recordando fatos de sua vida, ora mudando o assunto, ora repetindo-o,
ou repondo, mas, sempre com novos detalhes que se somam aos anteriores, como,
por exemplo, que seu segundo marido fora importante na ajuda com a criação de seus
filhos. Evocando os momentos de sua primeira viuvez, com os dois filhos para criar,
um adolescente e o outro com 10 anos de idade, ela foi relembrando, passo a
passo, sua condição traumática de solidão, e demais acontecimentos sérios que lhe
vêm à tona: a questão familiar, a problemática econômica, a mudança em sua posição
social (...), provenientes da lembrança e dos acontecimentos de um passado bem
distante.
Novamente retornam evocações do passado, ao ela enfatizar a importância do
segundo casamento, ressignificando-o no decorrer do tempo:
"Eu casei pela segunda vez, meu marido chamava-se J. Va, ele era um homem
muito bom, o pouco tempo que nós vivemos foi muito bom, depois disso
ficaram os netos, eles eram muito bons, eu ajudava a todos eles."
Segundo a entrevistada, ela lutou muito após a primeira viuvez, justamente
pelo problema de ter que criar os dois filhos. Com o segundo marido, é que conheceu
221
a fartura, o conforto de uma vida melhor, ficando a par de uma forma nova de ensinar
aos filhos a responsabilidade para uma boa entrada na vida adulta. Lembra-se de que
os filhos sempre foram muito bons e ajuizados, mas que puderam estudar depois
que começaram a trabalhar, mas tudo isso sempre feito de forma que lhe trazia alegria
e felicidade. Atualmente, um de seus filhos tornara-se, para sua tranquilidade, oficial
do Exército; este filho inclusive já quis que ela fosse morar com ele, mas a
entrevistada diz que gosta da Vila e que, na Vila, vai permanecer até sua passagem.
Para Halbwachs (2006).
A relevância do indivíduo para o pensamento social é, segundo ele,
apesar de o homem só poder ter memória de seu passado enquanto ser
social, cada um trazer em si uma forma particular de inserção nos
diversos meios em que atua. Continuando, cada memória individual é
um ponto de vista da memória coletiva, e esse ponto de vista
transcende de acordo com o lugar social que é ocupado; e daí, este
lugar, por sua vez, muda em função das relações que se tem com
outros meios sociais.
A cada momento da entrevista, Dona Bela retoma com muito orgulho sua
história e as experiências junto a filhos e netos. É reiterativa sua fala de que veio
morar na Vila por escolha própria, insistindo em manter uma condição de não ser
assujeitada ao desejo do outro, seja da família ou de amigos. Em sua forma de ir
rememorando o passado e atualizando o presente, a entrevistada mostra-nos o
contrário do que Ciampa (2005) afirma sobre o personagem Severino. Em relação à
Dona Bela:
O que a distingue, o que a singulariza; é o seu nome, é o nome que lhe foi
dado pelos seus pais, é sobre seu passado, sobre o seu corpo e sua vaidade,
enfim, o lugar onde vive, sobre a vida, sobre a possibilidade da morte,
contando disso tudo vai-se individualizando na história. Sua identidade
transcende sua individualidade.
Em sua narrativa, a entrevistada conta-nos ainda que sempre foi muito
independente desde que era moça nova, apesar do controle constante do irmão nos
bailes que frequentava, nas festas e nos seus namoros da mocidade. Diz que se
tornou, com o tempo, muito segura de suas escolhas e das companhias que queria por
perto. Teve uma irmã e um irmão, mas este ao irmão aparece apenas em poucas
passagens de sua vida: na mocidade e nos bailes que - insiste em dizer - eram
“memoráveis”. A irmã é lembrada como a companheira das aventuras festivas e dos
222
bailes que até hoje lhe trazem saudades e aperto no coração. Constrói, no decorrer de
sua história, no contar e no reviver certas passagens da vida, sua identidade
individual:
"Olha! meus filhos não me deram trabalho, foram dois meninos bons,
estudaram, trabalharam e fizeram faculdade, mas esta faculdade que eu estou
falando para você eles fizeram depois de casado, pois ganhavam mais, né;
depois que fizeram a faculdade e se formaram a vida deles melhorou bastante."
Continuando sua fala, ao referir-se aos netos, ela mostra seu processo de
identificação e de familiaridade com o ofício de ensinar:
"(...) os meus filhos não puxaram muito pra nós, não, mas os nossos netos,
estes gostam muito mesmo, puxaram para a avó, rs... Quando eles eram
pequenos a gente punha as músicas e eu dançava com eles para tentar
ensinar, né, e aí a gente caia na risada (...)."
Em nossa entrevista, escolheu chamar-se Bela Valsa, porque sempre foi uma
“festeira de mão cheia”, conforme tais dizeres não cessam de se inscrever em sua
fala: "eu dançava, eu gostava de passear, eu gostava de conversar e de fazer
amizades": Desde seus primeiros dizeres na entrevista foi mostrando traços de sua
identidade individual.
Para ela, esse processo se deu no ato de lembrar de fatos do passado como
reconstrução, como ressignificação, na medida em que se aproximava de referências
contemporâneas seu mundo pessoal.
Por meio dessas afirmações, Dona Bela foi manifestando o que representava
para ela a sociabilidade: no prazer da conversa, da troca, da convivência, exaltando o
afeto, a solidariedade, a amizade, em tantos momentos convividos com os amigos,
tanto do passado como agora do presente. Vai deixando claro que, para ela, são estes
os momentos da vida que vão solidificando as relações entre as pessoas e com a
memória coletiva.
Ao contar de seu contato com os funcionários e com os residentes da Vila, sua
expressão traz sempre um sorriso, um gesto que ratifica o que Dona Bela vai
registrando verbalmente sobre seu cotidiano:
"(...) eu gosto muito, aqui o pessoal é muito bom, tem os dirigentes, os
funcionários, todos respeitam muito a gente, a gente gosta de tudo e de todos
(...)."
223
É a respeito da Instituição Asilar em que escolheu viver e dar continuidade a
sua vida e história, que nossa entrevistada traz novas referências: “por aqui todos se
conhecem e têm sua forma de comunicação e de conviver bem. Este seu último
enunciado indicia-nos que a liberdade do diálogo, antes que simplesmente uma
tradição da casa, é um traço marcante na condição de vida de quase todos os velhos
que vivem naquela moradia.
Segundo Dona Bela:
"Eu fico escutando as missas, os programas na Rede Vida. Domingo eu gosto
um pouco do Faustão, é do programa dele que tem a dança, o resto não
gosto muito (...). Tem umas senhoras que vêm aqui para o meu quarto e
assistem comigo, até que a gente conversa mais (...)."
Podemos dizer da subjetividade que vai emergindo na forma de interpretar
sua vida, a "memória-hábito" com as lembranças impregnadas de impressões e a
recordação de como aprendeu a ler o mundo em que vive e como foi se dando a
reposição. Segundo a entrevistada:
"(...) vieram embora para Pouso Alegre, para da Borda da Mata (cidade no
sul de Minas Gerais), e tinha a colônia do Padre Pimenta, um lugar cheio de
montanhas, que vendo, uns compravam muitos lotes lá, uns compravam
demais, outros de menos, para trabalhar, né, era assim que as pessoas
começavam a chegar para se assentar."
Sob uma perspectiva psicossocial, vemos que, nessa evocação, Dona Bela vai
dando pistas de como sua identidade foi sendo construída. Portanto, podemos supor
que as metamorfoses podem se efetivar ao mesmo tempo no cotidiano e na história de
como veio emancipando-se com sua liberdade, com sua autonomia e com sua
individualidade. Dessa forma, a entrevistada já vai dando contornos mais nítidos a sua
identidade, conforme o excerto a seguir:
"Eu compro com o meu dinheiro e quando vem alguém aqui a gente sempre
tem uma coisinha para oferecer, né, pois o meu quarto aqui é como se fosse a
minha casa, tem a TV que você está vendo, esta geladeira, fogão não tem não,
mas também nem precisa. Mas tem os meus móveis novinhos em folha, você
ta vendo, né?
Eu já te falei que sou aposentada, então, uma parte do meu dinheirinho eu dou
aqui e o resto fica para mim comprar as minhas coisinhas também."
224
C - Retratando sua história nos fios da identidade e da memória: identidade-
metamorfose e emancipação
No quadro configurado por Ciampa (2005), na referência a seu personagem
Severino, pode-se incluir a história de Dona Bela: sua identidade se constitui também
por vidas ainda não vividas e por mortes ainda não morridas, mas que estão
contidas em suas condições atuais e que emergirão como desdobramento de um
tempo Severino”.
E ela vai contando da experiência de como ia ensinando seus alunos:
"Fui aprendendo com eles as coisas diferentes, e assim eles ganhavam gosto
pelo estudo, minha forma de ensinar para eles era assim; deixar eles verem as
coisas acontecendo e ir aprendendo, né."
De novo, Dona Bela insiste e persiste em alguns aspectos de sua vida, que
funcionam como um fio condutor que irá desembocar sempre no seu interesse pelas
pessoas, familiares ou não:
"(...) eu fiquei viuva muito cedo do primeiro casamento, com dois filhos
pequenos, eu lutei muito para criar os filhos (...)"
Podemos pensar que a identidade de nossa entrevistada está continuamente
não em processo de igualdade, mas também de mudança e, ao contar a sua
história, desde logo busca mostrar também algo de sua singularidade, estando
envolvidos componentes como os papéis, os valores, as habilidades e as atitudes de
quem assim se revela por inteiro.
Dessa forma, ela vai contando do singular, do particular:
"Eu era muito rígida com eles [seus alunos], mas também com os meus filhos,
dava colo quando precisavam de mim. Mas, você sabe, os meus alunos eram
crianças pobres, os pais trabalhavam muito, às vezes eu dava comida para
muitos lá em casa, eu não atrapalhava, mas no que eu podia ajudar eu
ajudava, né (...)."
Percebemos que, da sua singularidade e da sua sociabilidade, desponta o
sujeito psicossocial e, ao mesmo tempo, isso se em sua fala e no registro de sua
identidade, de como veio ao longo do tempo construindo a articulação da diferença e
da igualdade, conforme o afirmado em Ciampa (2005).
225
Entendemos a partir daí que Dona Bela se socializou, experimentou o doce e o
azedo, modificou-se e foi modificada pela cultura de outros tempos e pelos novos
papéis sociais do passado e do presente que foram acontecendo em sua vida, em sua
história e em sua identidade. E ela conta de como sua experiência foi acontecendo ao
longo do tempo e também de sua história (do primeiro marido, depois o casamento
com o segundo marido e a busca de outros companheiros para a sua vida): “E
esperei um tempo, vivi a experiência de cada um, e comecei a casar de novo, a meu
ver, né (...)”.
Sempre se situando entre o passado e o presente, justificando a escolha por
uma determinada profissão, e em poder ter algo de que pudesse se orgulhar no futuro,
ela insiste, em seus relatos, em dizer que sempre foi:
“aquela que gosta de ensinar, pois até hoje continua ensinando as amigas a
escrever”. Na minha mocidade eu fui professora rural, na Colônia Padre José
Bento. Era uma colônia que tinha muito alemão."
Nesse sentido, Dona Bela vem ao encontro da História de Severino retratada
por Ciampa (2005, p. 24), quando se percebe que, embora sujeito de suas ações,
esse sujeito não deve figurar como sendo substantivo ou adjetivo, mas fazendo-se
verbo, tornando-se ação propriamente dita. É desta forma que Dona Bela vai incluindo
sua identidade, vai se qualificando subjetivamente para contar e recontar sua
passagem pelos acontecimentos da vida.
Ao falar sobre a própria família, refere-se mais à sua mãe, dizendo que ela a
deixava ir às festas, mas que lhe cobrava muito a frequência à igreja, e às práticas
religiosas, como procissão, missas; tudo isso se tornava, para ela, uma forma de
festejar a vida e as descobertas do tempo de sua mocidade; e como isso ganhou
ressonância nela; a partir daí, dá-se o percurso de dois movimentos emancipatórios:
“da menina festeira à professora rural, da moça culta à dançarina dos bailes da
saudade".
Dessa forma, Dona Bela, entre risos, exclamações e sussurros, vai compondo
a narrativa de sua identidade e trabalhando sua memória. Dos momentos de alegria
vai entornando os momentos difíceis da solidão pós-viuvez, da situação problemática
de manter os filhos, e do sempre começar de novo: estes são os fios da lembrança,
tecendo os fatos marcantes e importantes de uma vida.
E vai recordando cada uma de suas duas situações de viuvez, dizendo que, a
partir de cada uma delas, um novo ciclo da sua vida pessoal e familiar foi-se
refazendo, no decorrer dos dias e anos. Contudo, de repente, ela faz pausa para dizer
que, durante esse percurso, muitas mudanças ocorreram, inclusive o retorno às
226
origens, à cidade de Pouso Alegre. Reconhece o processo delicado de adaptação, no
qual a presença dos filhos em sua vida tiveram-lhe papel importante e decisivo.
Largaram tudo na cidade de Borda da Mata e vieram novamente começar a vida em
Pouso Alegre. Constituiu-se uma nova metamorfose em Dona Bela, que vai
contando como tais mudanças foram acontecendo e como ela foi construindo novas
personagens:
"Depois da morte dele fui tendo de dar um novo rumo à minha vida, mudei de lá
com os filhos mais crescidos e fui trabalhar novamente de professora na
zona rural de Pouso Alegre, assim as coisas foram mudando e eu me
aposentei e definitivamente eu parei de trabalhar porque meus filhos cresceram
e foi a vez deles de ir trabalhar."
Conta-nos, em seguida, que, apesar de seu segundo marido ter sido um
“alemãozão”, era um homem gentil, educado, tendo-a ajudado na criação dos filhos,
no momento de que mais precisava dele, especialmente quanto à orientação para o
futuro desses meninos; ele não pôde, contudo, ver os filhos crescerem, tendo vindo a
falecer após seis anos de casamento. Podemos aqui pensar também a viuvez como
uma transformação identitária, tanto quanto à identidade propriamente dita, quanto aos
papéis sociais; mesmo a respeito de papéis que não se renovaram, nem mudaram: ela
foi e esteve presa à articulação de ser mulher, esposa e mãe quase sempre sozinha.
Continua Dona Bela a contar mais detalhes de seu relacionamento com o
segundo marido: que ele assumiu, em relação a ela, um papel de “cuidador“ e de
“provedor“, para a continuação de sua aprendizagem de certas questões ligadas à
educação dos meninos, bem como da diferença entre seus valores, crenças e atitudes
e os de seu marido, de outra nacionalidade, de outra cultura.
D - A memória e a identidade como a articulação do passado e do presente
Segundo Bosi (2003, p. 10), é do cotidiano que brota a magia, a brincadeira
que vai transformando uma coisa em outra. A partir dessa afirmação de Bosi, é que
podemos interpretar os dizeres da entrevistada, que buscou escavar em suas
narrativas as imagens que iluminavam e articulavam sua memória: sobre isso ela veio
tecendo, para sua vida, a importância da dança, da magia, do ritmo e da sonoridade,
como aportes essenciais de sua identidade individual e social. Com estas passagens e
atributos, ela traz pela memória individual a possibilidade de registrar os
227
acontecimentos e as impressões que ela veio tecendo e registrando em suas
metamorfoses.
Dona Bela mostra-nos que não um isolamento dos fatos ocorridos e
impressos em sua fala, pois ela busca sempre aportes no mundo social, no mundo da
vida para aproximar-se das memórias coletivas, trazendo consigo como referências
sempre o grupo, o lugar, as pessoas, o singular e o particular.
"(...) eu dançava muito, muita gente conhecida se reunia iam no clube. Quando
era baile de festa era tudo chique, vestido comprido; era todo domingo dia de
festa, a gente dançava muito, tinha de ter o cavalheiro, né, hoje pode dançar do
jeito que quiser."
Esses dizeres evidenciam-nos que os papéis desempenhados junto às outras
pessoas definem a participação dos sujeitos nos processos de interação social.
Considera-se que estes papéis são institucionalizados e legitimados pela ordem de
valores vigentes na sociedade. Desta forma, a ordem social tipifica o indivíduo, suas
ações e suas formas de agir.
Assim, o conceito de memória está relacionado ao conjunto de idéias que
envolvem as lembranças, o corpo, as imagens, o espaço social, a razão e o momento
histórico. Contextualizando a fala de nossa entrevistada, Dona Bela:
"Depois quando eu estava viúva, o diretor fazia baile na Rua Artur Bernardes,
na Casa de Portugal; ele fazia bailes muito bom lá, muito interessantes, baile
muito animado, muito respeito, era baile da saudade mesmo. Eu dançava muito
lá, eu já não estava mais muito importante, né, eu já estava mais velha,
começou a febre do baile da saudade (...). Em Pouso Alegre tem o Clube
Recreativo, na avenida, que era de gente grã-fina, gente mais importante,
depois tem o clube dos operários, e o clube perto dos parques, mas o clube
dos pretos eu não sei aonde é não, o meu irmão não deixava a gente ir nesse
(...)."
Tinha um preto que morava lá perto de casa, e ele fazia o aniversário dele lá, e
um dia ele fez uma festona, sabe! E nós fomos escondidos, mas a minha mãe
sabia. Ah, meu Deus! O meu irmão foi buscar a gente, não falou nada lá,
calmamente, ah, meu Deus! Mas quando chegou à rua foi aquele sermão. Ele
não gostava que a gente fosse em baile, fosse de preto ou fosse de vermelho,
de preto que fosse, mas a gente ia e a minha mãe deixava. Era eu e minha
irmã, a gente aproveitava, se divertia bastante, eu me divertia bastante aqui em
228
Pouso Alegre. Os bailes tinham valsa, tango, samba, não é igual as músicas de
hoje, barulhenta.
Por outro lado, a articulação - de tais elementos apontados pela entrevistada
como a diferença e a igualdade, acompanhados de uma atividade mental/intelectual -,
constrói o que denominamos por identidade social de um povo, de uma família ou de
um lugar. O exemplo de Dona Bela nos revela, a partir dos pontos remanescentes de
sua trajetória social na construção do lugar em que se foi instalando, em suas
rememorações e nas situações que geraram mudança e acomodação, um elo entre o
presente e o passado.
A entrevistada conta e reconta de sua ligação com a dança e suas
descobertas:
"Sabe, eu dancei muito, aproveitei muito a vida. Eu sempre gostei muito de
dançar, sonhava em ser uma bailarina famosa, mas naquele tempo isso era
mais para o pessoal rico, e eu gostava de saber das notícias das dançarinas,
minha mãe sempre fazia os vestidos que eu escolhia."
Dona Bela vai repetindo que, apesar das "chaturinhas do cotidiano", continua a
querer a sua vidinha” mesmo. Ainda que todo o dia seja o mesmo arroz, o feijão, a
batatinha, ela gosta mesmo dessa vida prosaica, assim mesmo como ela é.
Ela transcende o momento de contar, de reviver; muitas vezes o silêncio
atravessou o espaço, o lugar que escolheu para sentar e contar, mas pontuando
sempre que a vida é amorosa, os filhos são amorosos, as pessoas são amorosas.
Podemos dizer tal qual Dona Bela o é na forma de ir narrando sua história, repetindo
muitas vezes situações de gerar e cuidar, de ser cuidada, e assim entender o cotidiano
que adentra por sua história e a justifica.
É este "sentimento à flor da pele" a base para a reconstrução do passado de
Dona Bela. Entre autor e narrador, ela vai fundando a sua identidade.
E assim, olhos se iluminam (...). A entrevistada, na verdade, tem olhos azuis e
um cabelo branquinho; quando vai recordando em sua forma de contar sobre as
festas, sua memória traz um clarão: vai revivendo os vestidos de festa, as cores dos
sapatos e das vestimentas, as pessoas com as quais se relacionava e por que com
uns sim, e com outros não. Não se cansava de dizer cada detalhe da história contada
e recontando detalhes que ela sabia de cor: os tipos de música (a valsa, o tango, o
bolero), as festas e outros. Para Bosi (2005, p. 48), "hoje, a função da memória é o
conhecimento do passado que se organiza, ordena o tempo, localiza-o
cronologicamente".
229
Em nossos encontros semanais, ela se arrumava como para um encontro
importante, e nos dizia: tenho de me arrumar para a nossa conversa” (...). Nesse
sentido, fazia-se ressonância o tempo passado em consonância com o tempo
presente e com a identidade, pois um dos encantamentos de Dona Bela era escolher a
cor do vestido, a cor do sapato para combinar com o vestido. E foi assim em seu
tempo passado, o que ocorria nas festas e nos acontecimentos que frequentava com a
irmã e o irmão.
Todavia, podemos pensar que, desde então, a narrativa de Dona Bela não
seria mais manifestação de uma memória-hábito, entendida esta como "esforço da
atenção e da repetição". São lembranças isoladas, singulares, que constituiriam
autêntica ressurreição do passado: momento único, singular, não repetido da vida. Por
exemplo, o nascimento de um filho; o casamento, o primeiro emprego, a viuvez.
Segundo Bergson (1990):
A memória-hábito se relaciona a todo tipo de ação cotidiana e adquirida pela
repetição que fazemos quase sem perceber. São ações automáticas que
aprendemos ao longo dos anos, ações executadas quase sem pensar.
Um exemplo, no caso da entrevistada, foi o ato de aprender a dançar. No
início, quando tudo é novidade, e ainda não temos tal saber adquirido, prestamos
atenção a dados que, com o tempo e com o treino, irão se tornar um ato automático
que depois executamos sem perceber. a lembrança isolada ou singular é aquele
marco social que fica como importante para o resto da vida do sujeito e a qual ele irá
se referir no futuro não como um acontecimento do passado, mas sim como memória
de eventos únicos, uma memória bergsoniana, em que as coisas estão em constante
transformação.
No caso de Dona Bela, ao deslocar-se, outros valores vão sendo agregados a
sua identidade e a sua memória, valores estes que deram continuidade em seu
comportamento e em seu cotidiano, tais como o que foi aprendendo durante toda a
sua vida, mas ao mesmo tempo agregando a continuidade e permanência do
aprendizado de uma vida inteira.
E assim, contando sobre isso, nos diz:
"Pois é, eu fico vendo na TV, como que tudo mudou, né? Hoje é tudo muito
diferente. Antes tinha o respeito pelos mais velhos, eu te falei, a minha mãe
dizia sim se podia e não se não podia e a gente não insistia não, pois ela falava
uma vez só."
230
Tradicionalmente, a entrevistada conserva o aprendizado e o respeito que
trouxe em relação a sua família de origem, ao mundo em que viveu e agora, para o
mundo do presente. Mostra-nos uma identidade fundada em sua alteridade e na
relação que veio estabelecendo com o meio em que vive e que a transformou num
presente agregado ao mundo da vida, ao mundo transformador.
E - Contornando o passado e matizando o presente: identidade e memória
Indo ao encontro da história de Dona Bela, invocamos Bosi (1987) para
afirmar que, ao analisar as memórias dos velhos, a autora ressalta o quanto a história
vivida geralmente é desvalorizada, restando apenas a história oficial. Segundo ela, os
velhos são os testemunhos do passado entre a história vivida e os acontecimentos
narrados de seu cotidiano.
Para Bosi (2005, p. 39), se existe uma memória voltada para a ação, feita de
hábitos, e uma outra que simplesmente revive o passado, parece ser esta a dos
velhos, já libertos das atividades profissionais e familiares.
Os encontros com a entrevistada e esta entrevistadora - foram permeados de
brincadeiras, anedotas, risos e o café com bolachinhas e das emoções de alguns
momentos, em que ela se abatia nos contornos de seu passado, mas logo erguia o
corpo e já trazia à tona o presente, como diz Mucida (2009:15), quando as marcas do
corpo contam uma história”.
Dona Bela vai recordando e contando cenas até muito motivadoras:
"os bailes que eu frequentava eram aqueles bailes de antigamente, com
orquestras maravilhosas, conjuntos, hum! Sabe, era muito bonito mesmo, mas
muito diferente de agora, com certeza."
Segundo Mucida (2006, p. 39), “a velhice guarda uma história a ser repassada
às novas gerações, a ser reescrita, enlaçando os traços que perduram na memória
dos que envelhecem aos das novas gerações”.
E assim, Dona Bela extraí da memória e dá sentido ao espaço e aos traços que
sua narrativa tece para marcar um lugar: o lugar que ocupou e onde viveu com o
marido:
"(...) era um lugar cheio de montanhas, que vendo, uns compravam muitos
lotes lá, uns compravam demais, outros de menos, para trabalhar, né, era
assim que as pessoas começavam a chegar para se assentar."
231
Sua fala ganha ressonância, e através de suas narrativas vai contando as
experiências que vivenciou em tal colônia alemã, dos costumes diferentes dos
alemães, da brincadeira das crianças, do trabalho artesanal que despertou sua
curiosidade e sua sensibilidade, disposta que era a sempre aprender o que iria ensinar
depois por vários anos.
Nesse sentido, a entrevistada nos faz pensar num Brasil plural desde o tempo
em que famílias de italianos, alemães e outros migravam para o Brasil, trazendo
sempre a articulação de fatores sempre presentes: a igualdade e a diferença; e, com
isso, apontamos em Dona Bela uma identidade de caráter nacional: rememorações do
passado e do presente articulando-se em sua identidade e com sua memória.
Segundo Bosi (2005, p. 28), “a lembrança é a história da pessoa e seu mundo,
enquanto vivenciada”.
E assim diz nossa entrevistada:
"(...) eu gostava de ver a carinha daquelas crianças brincando, trabalhando e
aprendendo desde cedo o ofício (...)
Eles trabalhavam muito, tinha um que morava perto da minha casa e criava
bicho da seda, e eu fui lá ver como que era (...)
(...) e, que as crianças, aquelas da escola! os meninos maiores colhiam
folha de amora, e dia e noite e sem parar os bichos comem folha de amora, e
engordam, ficam grandão, aí eles põem galho de árvore tudo em volta da
mesa, em cima da mesa, tudo onde eles podem subir e vão enrolando,
fazendo o casulo e soltando os fios de seda e depois quando está cheio eles se
fecham dentro e apanham tudo aquilo, põe dentro do jacá e mandam para
São Paulo."
Da experiência, então, ocorrida em um percurso de trabalho, de ensinar e de
aprender, portanto da diferença e do particular, é que a identidade de Dona Bela vai-
se mostrando; e através dela, os fios da memória vão clareando e se concretizando. E
ela conta e reconta, e assim vai-nos traduzindo sua história...
Para Bosi (1987, p. 29), a narração da própria vida é o testemunho mais
eloquente dos modos que uma pessoa tem de lembrar. É a sua memória”.
Em relação à reconstrução que vai compondo suas experiências e suas
vivências, assim vai-se dando a sua identidade pessoal e o processo da identidade
narrativa.
O gosto pelas festas, os bailes tradicionais da cidade, os eventos culturais, os
feriados vão-se dissipando tanto na igualdade quanto na diferença:
232
"(...) o diretor fazia baile na Rua Artur Bernardes, na Casa de Portugal, fazia
bailes muito bom lá, muito interessantes, baile muito animado, muito respeito,
era baile da saudade mesmo. Eu dançava muito lá, eu não estava mais
muito importante, né, eu estava mais velha, começou a febre do baile da
saudade.
“Em Pouso Alegre tem o Clube Recreativo, na avenida, que era de gente
grã-fina, gente mais importante, né, depois tem o clube dos operários, e tem
também o clube lá perto dos parques, mas o clube dos pretos eu não sei aonde
é não, o meu irmão não deixava a gente ir nesse."
Na fala da entrevistada, verifica-se que, na sociedade da sua época, havia
preconceitos e certas formas de discriminação aos eventos sociais, a algumas
crenças, a alguns valores. Ela conta que, no local de festas que frequentava com os
irmãos, naquela época, havia uma distinção entre o lugar para os brancos e o lugar
para os negros. Mas, ao mesmo tempo, percebemos na fala de Dona Bela a
manutenção de sua identidade social e a lealdade às suas raízes e a sua forma de
lidar com o respeito e com a falta de preconceito com a diversidade racial e desde já a
alteridade em seu passado.
Nesse sentido, um indivíduo consegue identificar-se quando se torna distinto
do ambiente, sendo difícil falar de identidade sem fazer referência às raízes desse
indivíduo relacionais e sociais; nesse sentido, podemos pensar que para MELUCCI
(2004), a identidade define, por conseguinte, nossa capacidade de falar e de agir,
diferenciando-nos dos outros seres e permitindo que permaneçamos nós mesmos.
F - Vicissitudes, trajetórias e reconhecimento: o passado e o presente buscando
reescrever a história
Esse título nos antecipa que a construção da identidade se e se mantém na
possibilidade de uma auto-identificação; encontra-se apoiada no grupo ao qual
pertencemos e nos situa de acordo com o sistema de relações que vamos produzindo
e efetivando ao longo do tempo, o que se pode ratificar a partir dos seguintes dizeres:
"Eu era muito festeira, dançava, passeava tudo que era bom eu ia, eu parecia
uma colher de festa, (riso), mas aproveitei, agora estou aqui de novo, se a terra
ficar boa para eu começar de novo, depois dos 96 anos se eu ficar forte eu te
garanto que eu vou dançar (...).
233
(...) mas se tiver pode ser que eu vou dar uma dançadinha, sim, ah! eu acho
que a gente não pode perder tempo para nada na nossa vida. Sabe, eu dancei
muito, aproveitei muito a vida."
Segundo Dona Bela, apesar de sua vida não ter sido “bela”, não perdeu a
vontade de viver, de ter um companheiro, de conhecer coisas novas, de se relacionar
com as amigas da Vila, com os funcionários, com os estudantes estagiários e até
mesmo com os visitantes conhecidos e desconhecidos. Esse comportamento pode ser
subsumido como o faz Mucida (2006, p. 16), desta forma: "cada um envelhece de seu
próprio modo, e os destinos e as saídas às “esculturas do tempo” sobre eles são
particulares".
Continuando, Mucida (2006, p. 23) diz que em cada sujeito traços que não
se apagam e não se perdem e também não se alteram com a passagem do tempo”.
Podemos dizer que Dona Bela, escreve, desenha, pinta, tece, conta ou canta sua
velhice em conformidade com sua forma de ritmar com a vida e com as pessoas que a
rodeiam:
"Tem umas senhoras que vêm aqui para o meu quarto e assistem comigo, até
que a gente conversa mais (...)"
Nossa, tem muita gente que vem aqui e traz um presentinho para a gente; eu
ganho sabonete, talco, ganhei até vestido, sabe, né, presente a gente não
pode recusar, fica feio, mas eu gosto quando me dão um (...)
Tem essa amiga minha que vem aqui, a Rosália, e eu estou ensinando a ela
escrever. É muito bom a gente ter alguém para conversar, sempre temos
alguém que nos visita, tem os estagiários que estão aqui também quase todo
dia, os funcionários, eu gosto muito daqui."
E assim, Dona Bela vai contando como se conta ao "escutador infinito" (Cf.
Bosi, 2005):
"(...) nós conversando eu contei para ela que eu era professora na zona rural e
ela ficou muito interessada. Daí eu disse a ela que podia ensinar o básico, pedi
que ela comprasse um caderno, e duas vezes na semana eu dou minhas
aulinhas para ela."
Pode-se também pensar que a identidade é um processo de produção desse
movimento da história do sujeito, do reconhecimento do sujeito de quem ele é, e o que
isso tem a ver com sua história e com sua identidade.
234
Nesse sentido, toda a história de vida de Dona Bela foi pautada pelo
reconhecimento:
"Naquele tempo "as meninas eram criadas para o casamento, para ser esposa,
para ser mãe, para ser dona de casa, porque desde cedo começavam a
aprender a costurar, a cozinhar, e fazer outras coisas assim, né, elas
aprendiam. E, depois que eu falei que eu queria ser professora o meu pai ficou
bravo mas deixou e me dizia que o melhor era casar e ter uma família."
Novamente, a entrevistada busca em sua memória um fato importante:
(...) ah! É bom a gente ter um companheiro para conversar, para não ficar tão
sozinha, para a gente ter uma companhia."
G - Construção, percalços e movimentos da história, identidade-metamorfose e
memória
Dona Bela, contando sobre o seu passado e, a um só tempo, atualizando o seu
presente, vai produzindo sua história; conforme diz Bosi (2004), é preciso um
escutador infinito, para que este una o começo e o fim. Pois Dona Bela tece do
começo ao fim uma história de amor, ritmos à sua vida, às suas descobertas,
provimento para a continuidade de sua vida apesar de sua dupla solidão pós-viuvez,
conforme ela diz:
E esperei um tempo, vivi a experiência de cada um, e comecei a casar de
novo, a meu ver, né”.
Nesse sentido, como diz Mucida (2006, p. 25), quando o sujeito se apresenta
e ali se encontra identificado”. Continuando com a autora, sentir-se identificado:
saber fisgar e escrever com a marca que é sempre própria"; no caso da entrevistada,
ela se mostrou assim: identificada com sua identidade e com sua memória em um
processo muito particular de metamorfose e emancipação.
Ciampa (1997), ao trazer os desafios para o estudo da identidade no NEPIM
Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre a Identidade-Metamorfose no mundo
contemporâneo, nos mostra que talvez seja temerário falar em perspectivas futuras. O
que talvez caiba é identificar alguns desafios, tendo em vista desenvolver a linha de
pesquisa proposta de “Identidade Social e Metamorfose Humana”, que adota o
sintagma "identidade-metamorfose-emancipação" como concepção básica e foi a
235
partir desse sintagma que construimos esta entrevista e elaboramos a análise dos
dizeres da entrevistada.
Continuando, o autor diz que inicialmente, ao aceitar que a metamorfose
humana é um processo histórico, o maior desafio, em síntese, é compreender as
metamorfoses da metamorfose humana. Isso remeteu-nos à construção, aos
percalços e aos movimentos da história, da identidade-metamorfose e da memória da
entrevistada. Para além desse percurso e desse desafio de conhecer os significados e
as possibilidades da emancipação na identidade de Dona Bela no mundo
contemporâneo, caminhamos ao encontro de sua identidade.
Como diz Ciampa (1997), talvez estes dois desafios sejam demasiados,
pois, para pensar sobre eles, há novos e formidáveis desafios na busca de respostas a
uma simples pergunta: Quem sou eu? Ou então: Quem somos nós? E deste feito que
procuramos aproximarmos-nos da identidade e da memória de Dona Bela.
H - Considerações finais
Dona Bela é de um tempo em que a cidade de Pouso Alegre fazia bailes
memoráveis nos clubes e as moças faziam o footing na praça à espera do cavalheiro
que vinha fazer-lhes a corte, conforme ela própria nos narrou.
Hoje vivemos o tempo da excentricidade; a cidade cresceu e perdeu o ar de
romantismo. Talvez Dona Bela não precise mais saber sobre o caminho das ruas por
onde andava, e nem os caminhos que percorria no encontro das festas e dos fatos
que enfatizou com tanta importância. Ela nos lembra o “flaneur”, de Walter Benjamin, a
caminhante nos passeios da memória e de suas mais vivas recordações, mostrando-
nos que identidade é metamorfose, como muito bem afirmou Ciampa (2005).
As festas tradicionais do tempo de Dona Bela foram trocadas pelas festas
comerciais, com o espaço sendo ocupado por estudantes de diferentes lugares, sendo
a cidade contemporânea industrial e universitária. Os contextos sociais e históricos de
nossa entrevistada perderam-se nos fragmentos da tradição e da transmissão; sua
memória é o componente essencial de sua identidade, mesmo que continue a contar,
a marcar seu tempo.
Dona Bela, em seus relatos, para dizer quem é, desde o início se apresenta
como uma “festeira de mão cheia”, atributo gerado pela sua socialização e nas formas
de convivência que se estabeleceram nos relacionamentos familiares, afetivos e
sociais. Pelo simbólico, atravessa a sociabilidade, interpreta, significa, deseja e
continua com as lembranças maravilhosas que trazem brilho a seus olhos azuis e
ressonâncias e musicalidade aos ritmos de sua vida e de sua história.
236
Apesar de contar sobre seus maridos, sobre a viuvez por mais de uma vez,
sobre os filhos, sobre os acontecimentos das festas, nossa entrevistada nada diz
sobre a sexualidade, a intimidade; mas diz dos efeitos de seus amores, dos
sentimentos, embora não diga nada sobre paixão, falando ainda de solidão, de perdas,
fatos que compõem o cotidiano, e, como ressalta Mucida (2006, p. 15), escrever é
saber atualizar os tempos da memória, enlaçando passado, presente e futuro”.
Dona Bela nos conta de seu casamento com o Sr. Va, um alemão, isto é,
“alguém de uma cultura diferente”, com o qual aprendeu costumes e práticas novas.
Ela nos deixa pistas de que novamente buscou um “provedor” para sua vida, para
seus filhos, para o afeto e para a continuidade do casamento não propriamente como
marido e mulher, mas tendo nele um provedor, ela deixa nos pistas do sentido de
“cuidador” que veio gerando em sua narrativa, na sua vida de passado para a
sobrevivência de seu presente: a manutenção da vida afetiva, da solidariedade e de
sua emancipação para a continuidade de sua existência: vida-morte.
Assim, sua voz e sua fala vão-se transformando em testemunho do passado,
mesmo que deserdada de um presente, sem muita história como contou de seu
passado. Sua memória vai despontando, ao narrar, ao rememorar e Dona Bela é
aquela que vivendo bem com o seu passado também vai vivendo bem em seu
presente. Ela é produto do mundo da tradição, vivendo hoje no mundo moderno um
mundo que não se explica mais pela tradição defendida por um pai, nem por um
marido, mas pelo “moderno” modo de vida importado, exacerbado pelo consumo, pela
velocidade, pelo pluralismo. Tal qual nos diz Mucida (2006, p. 24), “atualizar a história,
escrevendo-a até o ponto onde uma reticência deixaria um texto em aberto, nos
movimenta a acompanhar com ouvidos atentos o contar e o re-contar, o viver e o
reviver das lembranças de nossa entrevistada.
Percebe-se ainda que Dona Bela viveu uma vida sem abundância e sem
sofisticação tanto na infância quanto na adolescência, e é do cotidiano de suas
narrativas que o retalho vira boa prosa. Ela diz de sua vida intrigante, uma vida de
afetos conquistados pelas lutas diárias com a família de origem, a família conquistada
e a viuvez. Assim, afirmamos que ela diz não a mesmice, mas, ao mesmo tempo,
supera na repetição tudo aquilo que lhe é agradável e prazeroso em sua memória.
Podemos perceber a "memória-hábito" impregnada das mais belas
recordações de toda uma vida vivida. Voltar-se para suas recordações, fixar-se em
suas lembranças não a impedem de reviver o passado e trazer à tona o presente e a
modernidade. E Dona Bela vai alinhavando sua identidade e sua memória, seguindo
em blocos os fatos que vai recordando e rememorando fio a fio, concebendo em sua
narrativa a concepção de passado, presente e o porvir.
237
“Então, a minha vida é assim, ora estou alegre e ora estou triste, mas é essa a
vida, né. A gente vai levando, pois Deus sabe o que será o nosso destino.
Obrigada!”!
Segundo Mucida (2006, p. 59) reconhecer-se como contador de sua própria
história é importante a todo e qualquer sujeito, o que é fator primordial na velhice,
especialmente diante da tendência da cultura atual de despojar o idoso de sua posição
de sujeito desejante.
Dando continuidade à história de vida de Dona Bela Valsa, dizemos que ela
nos mostrou o mundo de seus valores, de seus significados e de suas representações.
Enfatizou como teceu seu Projeto de Vida dentro e fora da Instituição Asilar. Tudo isto
lhe permitiu estabelecer a intersubjetividade com os significados compartilhados e com
as ações empreendidas em sua vida.
Na Instituição em que vive, busca sempre a integração e mostra que é possível
entre todos dividir o mundo do lado de dentro e o mundo que acontece lá fora. Vive os
frutos e as conquistas de seu passado, não no sentido de construir um presente, nem
de planejar um futuro, mas de perpetuar no presente e no futuro os valores de seu
passado, pois nos afirmou em muitos momentos que o velho é aquele que traz no seu
presente a mesmice de seu passado. Também não deixamos de verificar que, para
Dona Bela, nem mesmo a escola, o casamento com um estrangeiro, ou o futuro de
seus filhos lhe trouxeram o conforto de uma convivência com (ou a permanência em)
um mundo globalizado.
Nesse sentido entendemos que para a nossa entrevistada, a busca pelo
reconhecimento de sua passagem pelo mundo, a preservação de sua identidade e de
sua memória levam-na continuamente “em busca de mais vida”.
Em suma, seu projeto pessoal, sua história de vida trouxeram em suas
referências que sempre estamos nos metamorfoseando, ou seja, a identidade é um
processo de metamorfose constante; também sua emancipação pode ser analisada
como o sentido do movimento que veio constantemente atravessado no decorrer de
sua identidade-metamorfose-emancipação.
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