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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL UFRGS
INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ANTROPOLOGIA SOCIAL
Entre a Rosa e o Beija-Flor: Um Estudo Antropológico de
Trajetórias na União do Vegetal (UDV) e no Santo Daime
JÉSSICA GREGANICH
Porto Alegre, 03 de maio de 2010.
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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL UFRGS
INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ANTROPOLOGIA SOCIAL
Entre a Rosa e o Beija-Flor: Um Estudo Antropológico de
Trajetórias na União do Vegetal (UDV) e no Santo Daime
JÉSSICA GREGANICH
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em Antropologia Social como
requisito parcial à obtenção do grau de
Mestre em Antropologia Social.
Orientador: Bernardo Lewgoy
Porto Alegre, 03 de maio de 2010.
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Entre a Rosa e o Beija-Flor: Um Estudo Antropológico de
Trajetórias na União do Vegetal (UDV) e no Santo Daime
JÉSSICA GREGANICH
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em Antropologia Social como
requisito parcial à obtenção do grau de
Mestre em Antropologia Social.
Banca Examinadora:
________________________________________
Bernardo Lewgoy - orientador (PPGASUFRGS)
________________________________________
Adriane Rodolpho (UFPEL)
________________________________________
Ari Pedro Oro (PPGAS-UFRGS)
________________________________________
Carlos Alberto Steil (PPGASUFRGS)
Porto Alegre, 03 de maio de 2010.
Ao meu amado pai, as entidades
presentes e ao meu amor.
AGRADECIMENTOS
Agradeço ao meu orientador Bernardo Lewgoy pela iniciação e pelas
bias orientações.
Aos professores Ari Pedro Oro, Carlos Steil e Cornélia Eckert pelos
conhecimentos compartilhados.
A CNPq pela bolsa concedida no último ano de curso de mestrado.
Agradeço a toda irmandade do Santo Daime Céu de São Miguel e ao Núcleo
Jardim das Flores da União do Vegetal, em especial:
Ao padrinho Alan, um verdadeiro homem de conhecimento, exemplo de
clareza, humildade e bondade.
A madrinha Rosinha, por sua sabedoria, amabilidade, bondade e carinho de
mãe com todos.
A Conselheira Maria Thereza Galotti por todo auxílio, zelo e amizade. Este
trabalho também é seu!
Ao Conselheiro Hudson Cavalcante pelo empenho em fazer com que essa
pesquisa fosse possível, pelo auxílio na Espanha e por sua sincera e desprendida
amizade.
Ao Mestre Alberto Bracagioli por toda sabedoria, conhecimento e
disponibilidade em auxiliar.
Ao Mestre Representante Jeziel pela palavra, pela sabedoria e pelo encanto
de trazer o jeito caboclo ao Núcleo Jardim das Flores.
A irmã do Corpo Instrutivo Denise Mendes pelo carinho, preocupação e
pelas aplicações de reiki nas minhas incontáveis peias.
A irmã Denise Dharma por seu belo trabalho de fiscalização, pelo exemplo
de garra, amor, dedicação e caridade.
Ao Mauro Kwitko e sua esposa Juliana Vergutz Kwitko, pela regressão e
pela amizade.
A todos que disponibilizaram seus emocionantes relatos que deram vida a este trabalho.
6
RESUMO
Dentro dos novos movimentos religiosos encontramos as religiões
ayahuasqueiras brasileiras União do Vegetal (UDV) e o Santo Daime. Essas duas
religiões se baseiam no uso do chá psicoativo ayahuasca, conhecido como vegetal e
daime, respectivamente. Tiveram início na região amazônica e estão presentes nos
centros urbanos em praticamente todo o Brasil e em outros países, a partir de uma
difusão configurada no contexto da nova consciência religiosa. Este contexto é
marcado por uma pluralidade religiosa referente a uma tradição de ecletismo e
circularidade. Esta intensa mobilidade e circulação das pessoas entre diferentes
experiências espirituais está calcada numa dinâmica de conversões, desconversões e
reconversões típico da bem emprega metáfora do peregrino de Hervieu-Léger (1999).
Numa pesquisa etnográfica centrada na União do Vegetal (UDV) e no Santo Daime de
Porto Alegre/Grande Porto Alegre (RS) buscou-se através de um estudo comparativo e
de análise de trajetórias compreender como os fiéis conjugam mobilidade e fidelidade
religiosa focalizando os processos de conversão, desconversão e reconversão, partindo
da hipótese de que o processo de conversão estaria ligado a uma interface entre a
estrutura e a experiência religiosa com base na perspectiva da butinage religiosa
proposta por Edio Soares (2009), num contraponto a idéia de bricolage. A tradução
da pesquisa foi construída com base numa metáfora que representa a simbologia nativa:
a rosa e o beija-flor. Para a UDV a rosa representa o chá ayahuasca e o beija-flor
simboliza o Espírito Santo para os daimistas, representado no próprio espírito dos
mestres fundadores da doutrina.
Palavras-chave: Santo Daime, União do Vegetal, trajetórias, butinage.
7
ABSTRACT
Within the "new religious movements" we find the Brazilian ayahuasca
religions União do Vegetal (UDV) and the Santo Daime. These two religions are based
on the use of psychoactive tea ayahuasca, known as vegetable and daime, respectively.
Started in the Amazon region and are present in almost all urban centers in Brazil and
other countries, from a broadcast set in the context of "new religious consciousness."
This context is marked by a number referring to a religious tradition of eclecticism and
circularity. This high degree of mobility and movement between different spiritual
experiences is grounded in a dynamic conversion, desconversion and reconversion
typical and well-used on the metaphor of the pilgrim Hervieu-Léger (1999). In an
ethnographic study focused on the União do Vegetal (UDV) and Santo Daime in Porto
Alegre/Grande Porto Alegre (RS) was sought through a comparative study and analysis
of trajectories understand how the faithful combine mobility and religious fidelity
focusing on the processes conversion, desconversion and reconversion, assuming that
these would be linked to an interface between the "structure" and religious experience
from the perspective of "religious butinage" proposed by Edio Soares (2009), in
contrast to the idea of bricolage. The "translation" of the research was built on a
metaphor that represents the native symbols: the rose and the hummingbird. For the rose
represents the UDV ayahuasca and the hummingbird symbolizes the Holy Spirit to the
daimistas, represented the own spirit of the founding masters of doctrine.
Keywords: Santo Daime, União do Vegetal, trajectories, butinage.
8
LISTA DE SIGLAS
ABenSaM Associação Beneficente São Miguel - Associação Beneficente São Miguel
CEBUDV Centro Espírita Beneficente União do Vegetal
CEFLURIS Centro Eclético da Fluente Luz Universal Raimundo Irineu Serra
CDC Corpo do Conselho (UDV)
CD Conselho Doutrinário (Santo Daime)
CI Corpo Instrutivo (UDV)
CICLU Centro de Iluminação Cristã Luz Universal
CLJ Curso de Liderança Juvenil
Conad Conselho Nacional Antidrogas
ConFen Conselho Federal de Entorpecentes
CRF Centro Rainha da Floresta
CSD Conselho Superior Doutrinário (Santo Daime)
Demec Departamento Médico Científico (UDV)
Dimed Divisão de Medicamentos do Ministério da Saúde
DMD Departamento de Memória e Documentação (UDV)
DMT Dimetil Triptamina
EQM Experiência de Quase Morte
GMT Grupo Multidisciplinar de Trabalho
IDA Instituto de Desenvolvimento Ambiental
INCRA - Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária
INPI Instituto Nacional de Propriedade Industrial
INPS Instituto Nacional de Previdência Social
LSD - Dietilamida do ácido lisérgico
MAO Monoamina oxidase
MSN Live Messenger
PET - Politereftalato de Etileno
POA Porto Alegre
QM Quadro de Mestre (UDV)
SNC Sistema Nervoso Central
UA Unidade Administrativa (UDV)
UDV União do Vegetal
9
LISTA DE FIGURAS E TABELAS
Figura 1 O caule na União do Vegetal.......................................................................111
Figura 2 Os ramos no Santo Daime............................................................................169
Figura 3 Tirando os espinhos e colhendo o néctar.....................................................252
Figura 4 A viagem entre o beija-flor e a rosa.............................................................282
Tabela 1 Quadro comparativo UDV X Santo Daime...................................................68
10
SUMÁRIO
RESUMO...........................................................................................................................6
ABSTRACT......................................................................................................................7
LISTA DE SIGLAS...........................................................................................................8
LISTA DE FIGURAS E TABELAS.................................................................................9
INTRODUÇÃO...............................................................................................................12
CAPÍTULO 1 - A ROSA NA UNIÃO DO VEGETAL.................................................34
1.1 O Fundador da União do Vegetal............................................................34
1.2 A Fundação da União do Vegetal (UDV)...............................................36
1.3 A Organização da União do Vegetal.......................................................38
1.4 A Expansão da União do Vegetal............................................................39
1.5 O Núcleo Jardim das Flores.....................................................................40
1.6 O Templo do Núcleo Jardim das Flores..................................................44
1.7 Relatório Astrológico do Início da Construção do Templo.....................47
1.8 Relatório Astrológico da Inauguração do Templo..................................48
1.9 Algumas Relações Interessantes..............................................................49
CAPÍTULO 2 - O BEIJA-FLOR NO SANTO DAIME..................................................51
2.1 O Fundador do Santo Daime...................................................................51
2.2 O Fundador do Santo Daime (CEFLURIS).............................................52
2.3 A Fundação do Santo Daime...................................................................53
2.4 A Fundação do Santo Daime (CEFLURIS)............................................54
2.5 A Organização do Santo Daime (CEFLURIS)........................................58
2.6 A Expansão do Santo Daime (CEFLURIS)............................................58
2.7 A Comunidade u de São Miguel (AbenSaM).....................................62
2.8 A Igreja do Céu de São Miguel ..............................................................65
CAPÍTULO 3 - O CAULE NA UNIÃO DO VEGETAL...............................................70
3.1 A Doutrina...............................................................................................70
3.2 Igreja, Seita e Tipo Místico.....................................................................74
3.3 O Ritual....................................................................................................86
3.4 A Sociedade Religiosa.............................................................................89
11
CAPÍTULO 4 - OS RAMOS NO SANTO DAIME......................................................112
4.1 A Doutrina.............................................................................................113
4.2 Igreja, Seita e Tipo Místico...................................................................115
4.3 O Ritual..................................................................................................131
4.4 A Comunidade Religiosa.......................................................................139
CAPÍTULO 5 - O CAULE E OS RAMOS: CONSIDERAÇÕES FINAIS DE UMA
PERSPECTIVA COMPARATISTA.............................................................................170
CAPÍTULO 6 - TIRANDO OS ESPINHOS E COLHENDO O NÉCTAR..................188
6.1 Cura e Reencarnação no Santo Daime e na União do Vegetal..............189
6.2 A União do Vegetal, o Santo Daime e a Psicoterapia
Reencarnacionista..........................................................................................................195
6.3 O Processo de Cura nas Religiões Ayahuasqueiras...............................199
6.4 Considerações Finais.............................................................................249
CAPÍTULO 7 - A VIAGEM ENTRE O BEIJA-FLOR E A ROSA.............................253
7.1 A Bricolage no Santo Daime.................................................................254
7.2 A Butinage Religiosa.............................................................................255
7.3 A Butinage Religiosa no Santo Daime e na União do Vegetal.............257
7.4 Considerações Finais Sobre a Butinage no Santo Daime e na União do
Vegetal...........................................................................................................................275
CONCLUSÃO...............................................................................................................283
REFERÊNCIAS............................................................................................................292
12
INTRODUÇÃO
Parto com a Lua
Derramada no espelho do mar
Cartas de um futuro
Tenho o mundo para se revelar [...]
Era o outro lado do Sol
E um perfume
De fruta e de flor
Roda, minha vida
Nas trapaças do Criador
E eu irei em qualquer direção
E voltarei
Eu sou meu guia
1
Verifica-se a emergência de um campo de intersecção entre diferentes
formas de espiritualidade, práticas terapêuticas alternativas e experiências espirituais e
religiosas ecléticas, por segmentos de classes médias urbanas (Maluf, 2003). Categorias
distintas são utilizadas para delinear, definir este fenômeno: novas espiritualidades ou
novos movimentos religiosos, terapias neo-religiosas, alternativas ou holísticas,
nebulosa místico-esotérica (Champion, 1994), nebulosa de heterodoxias (Maître,
1987), nova consciência religiosa (Soares, 1994), reencantamento do mundo
(Gauchet, 2004; Pierucci, 2005), sedução do sagrado (Bingemer, 1992) e
religiosidades da Nova Era.
De acordo com Soares (1994), o traço distintivo essencial da nova
consciência religiosa se encontra no fato de estabelecer-se uma relação muito
particular com as religiões, no plural com a religiosidade. Não é propriamente o
conteúdo das crenças ou das práticas religiosas que é novo, mas um conteúdo cultural
mais abrangente que atribui um sentido peculiar, para o crente de tipo novo, a sua
relação com sua crença e, portanto, ao seu engajamento religioso que é, também, social.
A nova consciência religiosa é uma forma de metaconsciência da experiência mística e
do compromisso religioso, derivada da preeminência da cosmologia alternativa
(p.210). O misticismo ecológico ou a cultura alternativa, define o fiel como,
sobretudo, um peregrino devotado à busca de sabedoria, paz espiritual e participação
harmoniosa cósmica, ecológica e comunitária.
Steil (2001, p.115) analisa a dinâmica do campo religioso na modernidade,
sustentando que este se caracteriza por ser marcado por um reordenamento de diferentes
1
Trechos da música Eu sou meu guia do cantor e compositor Lenine.
13
formas religiosas institucionais e não-institucionais que confluem em um contexto de
pluralismo. As sociedades latino-americanas se caracterizam por apresentarem um
campo religioso profundamente transformado e reordenado, onde as diferentes formas
de expressão religiosa convivem no contexto de um pluralismo que parece não colocar
limites à diversidade. Cada vez mais as escolhas são livres e as religiões adequam-se
aos novos tempos e a sociedade, em permanente mudança, impondo um novo
movimento de valorização da diversidade. Essa dinâmica cultural é inevivel no mundo
s-moderno, onde os grupos sociais têm recriado suas esferas de pertencimento,
comportamento e identidade. O experimentalismo religioso torna-se prática comum
entre grupos de pessoas que buscam, não uma religião, mas uma religiosidade. É
importante, então, atentar para o papel da experiência religiosa na construção da
identidade individual e coletiva, pensando a tradição e a modernidade, não como um
contraste, mas como possibilidades de arranjos entre elementos de diferentes origens,
vivenciados em experiências pessoais e coletivas que ultrapassam a possibilidade de
controle das instituições religiosas (p.126). Pois em época de s-modernidade não
se busca uma identidade religiosa só porque ela pretende ser homogênea.
Segundo Soares (1994), existe uma forte correspondência entre a
modernidade e a nova consciência religiosa. A modernidade caracteriza-se pelo
deslocamento da religião, onde o compromisso religioso seria, mais um exercício de
opção da subjetividade pessoal. Para ele, a nova consciência representaria a realização,
talvez mais rigorosa e radical, da experiência religiosa moderna, o último avatar do
racionalismo moderno ocidental ou a expressão mais radical de um de seus efeitos
mais significativos.
Neste sentido Laplantine (2003), Danièle Hervieu-Léger (1999) e Gauchet
(2004) abordam os novos movimentos religiosos como uma forma de contestar a
realidade.
Segundo Laplantine (2003), o espaço religioso contemporâneo torna-se um
dos campos privilegiados de um verdadeiro laboratório social, no qual se elaboram as
reações a um racionalismo vivido como uma ameaça. O religioso é, hoje, um vetor pelo
qual culturas atomizadas ou instáveis procuram reconstituir uma ligação com o social.
Não mais na relação com a sociedade global, mas com um pequeno grupo, onde
identidades problemáticas podem encontrar uma solução.
14
Gauchet (2004) questiona se o retorno do religioso tem relação com um
mundo desencantado
2
. Para o autor, não é o retorno da religião com sua antiga
função, trata-se de entender a religião como instância que integra a sociedade civil, ou
ainda, o religioso como opção privada que entra no espaço público. O princípio de
definição do espaço público é o da identidade, isto porque se entra no espaço público
a partir do que se é privadamente. É enquanto pessoa privada e a título de suas opções
privadas que se quer existir ao olhar da coisa pública. Quer-se ratificar, enquanto parte
integrante do conjunto social, os pertencimentos singulares, a identidade privada, a
começar pelas convicções religiosas.
Danièle Hervieu-Léger (1999) aborda três características da modernidade: A
primeira característica da modernidade é a de enfatizar, em todos os domínios da ação, a
racionalidade, isto é, o imperativo da adaptação coerente dos meios aos fins que se
persegue. A segunda característica seria a autonomia do indivíduo-sujeito, capaz de
fazer o mundo no qual ele vive e de construir, ele mesmo, as significações que dão
um sentido à sua própria existência. A terceira configura um tipo particular de
organização social, caracterizada pela diferenciação das instituições, especialização dos
diferentes domínios da atividade social. Nas sociedades modernas, a religião cessa de
fornecer, aos indivíduos e aos grupos, o conjunto de referências, das normas, dos
valores e dos símbolos que lhes permitem dar um sentido à sua vida e às suas
experiências. Na modernidade, a tradição religiosa o constitui mais um código de
sentido que se impõe a todos.
Para Steil (2001, p. 116-17), o pluralismo religioso é um fenômeno moderno
que tem sua origem na ruptura da relação orgânica entre Estado e religião. Na medida
em que a religião deixa de ser fundante social, enquanto sua base ou forma de
organização, ela permite a emergência de diferentes grupos religiosos que irão atuar no
nível da cultura e do conhecimento. Assim, a pluralidade e a fragmentação religiosa
o frutos da dinâmica moderna, em que a secularização e a diversidade estão
2
Pierucci (2005) analisa o conceito de desencantamento do mundo formulado, originalmente, por Max
Weber: é possível afirmar que para os seres humanos, inicialmente, o mundo, o cosmo, a natureza e todos
os seres que habitam o planeta eram considerados sagrados e encantados, de modo que a história de suas
origens era explicada nos primeiros mitos cosmogônicos oriundos das práticas mágico-religiosas. As
coisas e a vida dos seres que habitam o mundo, conseqüentemente, adquiriram uma essência divinal.
Dessa forma, para Weber, o mundo foi encantado. Os mitos das antigas tradições religiosas sempre
procuraram explicar perfeitamente a origem desse mundo que passa a ser guiado pelo encanto, magia,
intervenção e boa vontade das divindades e deidades sobre humanas. Neste sentido, o cenário de
indecisão e de incertezas o homem atual vivencia o desencantamento do mundo, que o faz buscar
respostas e revelações que possam preencher o vazio imposto por tal condição vertiginosa.
15
associadas diretamente a um mesmo processo histórico (p.116). Esta tendência, por sua
vez, aponta para uma diluição de fronteiras que se estenderia para além do campo
religioso. Esse ambiente de fluidez, hibridismos, empréstimos, trocas e apropriações
propicia o surgimento de variadas formas de privatizações religiosas, onde o popular e o
emocional podem se expressar com legitimidade. Para o autor, a experiência da emoção
está no centro da religiosidade contemporânea. Para ele esta valorização emocional,
por sua vez, [...] sobrepõe-se à dimensão racional ou teológica das instituições religiosas
na modernidade, fazendo com que os crentes, sejam eles s-modernos ou
pertencentes a cultos populares, se mobilizem muito mais pelo sensível e pela emoção
do que pelos dogmas e verdades de fé (p.123).
Soares (1994) define a nova consciência religiosa como um fenômeno das
grandes cidades brasileiras, especialmente das camadas dias voltadas de uma
inquietação religiosa, referente a uma insatisfação com as experiências religiosas
vividas na inncia e na adolescência, por força de pressões, estímulos ou identificações
familiares e, por outro lado, o afastamento de antigos nculos não significa,
necessariamente, a extinção da curiosidade ou da inclinação religiosas. Além disso, a
insatisfação é extensiva às crenças que se apresentaram, em momentos determinados
das trajetórias individuais, como alternativas à religião. Assiste-se a uma mutação
sociocultural, isto é, a uma ruptura com representações e visões do mundo; com canais
tradicionais de transmissão de mitos e valores, que, aagora, teriam sido o suporte
cultural da identidade brasileira tradicional (Sanchis, 2001, p.33). Nas sociedades s-
tradicionais, desencadeia-se um processo de desfiliação religiosa, em que pertenças
religiosas tornam-se opcionais revisáveis, e os nculos quase experimentais (Pierucci,
2002).
O fenômeno aponta para algo presente na sociedade brasileira: a idéia matriz
do alternativo, como orientação e estilo de vida. Genericamente, identificam-se
grandes linhas, contra as quais se definiriam as alternativas: competição predatória;
consumismo; violência; negligência ética; impunidade recorrente. Mas, esses traços que
qualificam comportamentos são traços relativamente independentes de estruturas
institucionais. O alternativo aparece colado ao cidadão convencional, preocupado
com uma moralidade civil crítica, o que o afastaria da idéia de transgressão. Sem
convenções muito cristalizadas e instituições bastante rígidas para criticar, o perfil do
alternativo se dilui. Esse fenômeno favorece o espaço alternativo, o florescimento de um
espírito de tolerância, de pouco ardor sectário e de uma expressiva variedade. no
16
Brasil um processo inusitado de desvio moralizador-crítico do cidadão bem
comportado. (Soares, 1994).
Dentro da cosmologia alternativa, ou misticismo ecológico (sua versão
religiosa), apontada por Soares (1994), o religioso alternativo brasileiro é, também, um
andarilho. Faz parte de sua agenda um deslocamento permanente entre formas de
trabalhar a espiritualidade, em nome de uma busca sempre renovada de experiências
místicas.
Na mesma perspectiva de Soares (1994), da chave interpretativa do trânsito
religioso, Amaral (1993, 1994, 2000) e Brandão (1994) analisaram esse fenômeno,
através do enfoque que repousa nos percursos de indivíduos libertos de amarras a
instituições religiosas, cunhando conceitos e categorias como nomadismo, errância,
itinencia espiritual ou religiosa. Nesse sentido, outros autores, explorando o
espírito de época da pós-modernidade e da globalização, interpretaram a dinâmica,
dentro das novas relações estabelecidas entre indivíduo e sociedade, marcadas pela
hiperindividualização e reflexividade liberdade radical do self de questionamento
e escolha de paradigmas (DAndrea, 1996) e pela suspensão das fronteiras religiosas,
fruto de múltiplas passagens pelas mais diversas províncias de sentido religioso,
realizadas por indivíduos globalizados, cuja ntese se no interior desses mesmos
indivíduos (Pace, 1997).
Dentro deste universo religioso encontramos as religiões ayahuasqueiras
brasileiras: A União do Vegetal (UDV), o Santo Daime (CEFLURIS e Alto Santo), e a
Barquinha. Essas três religiões se baseiam no uso do chá ayahuasca
3
, que é a união de
duas plantas: Banisteriopsis caapi e Psychotria viridis, conhecidos respectivamente
como Mariri (UDV) ou Jagube (Daime) e Chacrona (UDV) ou Rainha (Daime). Essas
religiões se iniciaram na Região Amazônica e estão presentes nos centros urbanos em
praticamente todo o Brasil e em outros países, a partir de uma difuo configurada no
contexto da nova consciência religiosa.
De acordo com Goulart (2004, p.8), o pesquisador Clodomir Monteiro da
Silva (1983) foi quem utilizou pela primeira vez o termo linha para designar os
grupos do Santo Daime, da União do Vegetal e da Barquinha, enquanto variantes
3
Luís Eduardo Luna (1986) lista 42 termos designativos do cipó Banisteriopsis Caapi em diversas
regiões e povos do Alto Amazonas, segundo vários autores. Um dos mais disseminados é
ayahuasca.Trata-se de um termo quíchua cuja etimologia é, segundo o autor: Aya= pessoa, alma, espírito;
e Wasca= corda, cipó, liana. Assim, uma tradução possível para o termo ayahuasca seria corda das almas
ou dos espíritos.
17
doutrinárias no interior de uma mesma tradição religiosa. Ele foi seguido por outros
estudiosos nesta via de interpretação, como por exemplo, Fernando de La Rocque Couto
(1989). Tanto Monteiro da Silva como La Rocque Couto entendem que a distinção entre
as linhas é feita através de diferenciações no tocante ao conteúdo das narrativas míticas,
às formas rituais e ao conjunto de entidades que integram cada panteão. Monteiro da
Silva (1983, p. 94) e Sandra Lúcia Goulart (2004, p. 81) afirmam que a noção de linha é
amplamente divulgada entre os pesquisadores do tema ayahuasqueiro, no intuito
analítico de demarcação e recorte dos seus objetos de estudo. A noção de linha também
é adotada epistemologicamente, por estar comumente presente nas narrativas dos fiéis
dessas instituições religiosas, quando se referem ao conjunto de grupos e centros
específicos, sejam eles pertencentes à linha daimista, à linha da barquinha ou à
linha udevista.
Goulart (2004, p.13) emprega a noção de campo de Bourdieu para se
referir às três linhas urbanas ayahuasqueiras (Santo Daime, Barquinha e União do
Vegetal), como sendo diferentes partes de um mesmo campo religioso que lutam para
definir quais são as práticas, ou seja, as formas legitimamente religiosas deste espaço.
Labate (2004, p. 92) compartilha dessa compreensão de campo ayahuasqueiro, que
abarca a junção dessas três linhas distintas e das igrejas, centros ou núcleos que
surgiram subseqüentes às cisões e dissipações, visto que cada linha religiosa teve sua
origem a partir do contato com o universo xamânico andino, o que as faz
compartilharem dessa tradição em comum. A autora anexa ao campo ayahuasqueiro, o
que ela chama de usos não convencionais da bebida.
As três religiões a UDV, o Santo Daime e a Barquinha, embora tenham
significativas diferenças no tocante à doutrina
4
, estão dentro do campo dos novos
movimentos religiosos, da nova consciência religiosa, no qual visualizamos uma
tradição de ecletismo, circularidade, mobilidade religiosa, porém identificado por
Soares (1994) como um marco diferencial, dentro dos novos movimentos religiosos,
pois ao mesmo tempo em que é uma vertente da nova consciência religiosa, por outro
lado estanca a errância marcada por este fenômeno.
A mais conhecida dessas religiões é o Santo Daime, porém a que possui
mais fiéis é a União do Vegetal. Atualmente existem cerca de 42 igrejas filiadas ao
Santo Daime do CEFLURIS (Centro Eclético da Fluente luz Universal Raimundo Irineu
4
Doutrina é como freqüentemente os adeptos se referem ao corpo institucional de que fazem parte.
18
Serra) no Brasil (www.santodaime.org) e, aproximadamente, 4.000 membros oficiais. Já
no exterior, este grupo tem centros em pelo menos 23 países, englobando Américas do
Sul, Central e do Norte, Europa, Japão e África do Sul. A União do Vegetal conta com,
aproximadamente, 15.000 membros oficiais, possuindo núcleos fora do Brasil, nos
Estados Unidos, em seis estados diferentes, com cerca de 140 membros e em Madri, na
Espanha, além de núcleos incipientes na Itália, Portugal, Inglaterra e Alemanha (Labate,
Rose e Santos 2008).
A pluralidade religiosa brasileira refere-se à existência de uma tradição de
ecletismo da vivência religiosa e intensa circularidade religiosa no Brasil. Uma intensa
mobilidade e circulação das pessoas entre diferentes experiências espirituais
caracterizam a experiência neo-religiosa no Brasil, calcada numa dinâmica de
conversões e reconversões (e de desconversões) extremamente móvel (Maluf, 2003).
Nesse sentido, o estudo das religiões ayahuasqueiras merece ateão especial dentro de
uma compreensão da nova consciência religiosa e das complexidades do espo
religioso contemporâneo, dada a crescente relevância social desse fenômeno e,
aparentemente, o êxito de sua expressão política (Soares, 1994, p.210). Porto Alegre se
configura um campo fértil para análise da mobilidade, característica da experiência neo-
religiosa, pois a cidade tem uma história antiga de instalação de grupos e ordens
místico-esotéricas (Maluf, 2003, p.154).
O tema revigora-se, no momento, pela dimensão política envolvida: o pedido
de Registro da ayahuasca como Patrimônio Cultural Imaterial do Brasil, em 2008, e pela
ênfase na mídia, em 2009 e início de 2010. Labate, Rose e Santos (2008) ressaltam que
apesar do Boom das pesquisas no Brasil e o início da expansão nos estudos sobre as
religiões ayahuasqueiras no exterior, ocorrido nos anos 2000, este campo de estudos
ainda é marginal, em relação ao mainstream acadêmico, e ao, mesmo tempo, cada vez
mais popular no cenário psicodélico.
Hervieu-Léger (1999) trabalha com duas metáforas do religioso na
modernidade: o peregrino e o convertido. O peregrino é o errante, o migrante, a
mobilidade. O peregrino caracteriza o novo modo de ser religioso: o andarilho. A
trajetória de vida não se mantém na mesma ordem religiosa. Este peregrino vai ser um
construtor pessoal, um construtor da sua trajetória religiosa. O convertido é os
momentos de pausa deste errante. Hervieu-Léger (1999) fala da tríplice figura do
convertido: 1. O indivíduo que muda de religião, seja porque rejeita, expressamente,
uma identidade religiosa herdada ou assumida para a substituir por uma nova, seja
19
porque abandona uma identidade religiosa imposta, mas à qual nunca tinha aderido, em
proveito de uma nova fé. 2. A conversão dos sem religião, ou seja, do indivíduo que
nunca tendo pertencido a qualquer tradição religiosa, descobre, após um caminho
pessoal mais ou menos longo, aquela em que se reconhece e à qual decide finalmente
agregar-se e 3. O reafiliado, do convertido interior: aquele que descobre ou
redescobre uma identidade religiosa, que até aí permaneceu formal, ou vivida a
mínima, de maneira puramente conformista.
Dentro deste processo, encontramos um sincretismo, encontramos a
bricolage, no sentido de Lévi-Strauss, trabalhada por muitos autores como Hervieu-
Léger (1999, 2005), Soares (1994), Champion (1993), Steil (2001), dentre outros. A
bricolage seria a possibilidade de organizar um universo de representação simbólica a
partir de elementos provenientes de diferentes sistemas religiosos. Têm-se uma
cosmologia estruturada de referência para errância, ou seja, encaixa-se dentro de uma
estrutura de base a diversidade religiosa.
Edio Soares (2009, p.13) traz a idéia de butinage religiosa, distinguindo-a
da bricolage. Longe dos velhos esquemas, segundo os quais a conversão implica a
recusa da crença anterior para abraçar uma nova, a butinage oferece uma outra
perspectiva: a das práticas plurais, mas vividas como não contraditórias entre elas,
através das quais os fiéis combinam formas variadas de relações com o sagrado. Da
maneira que uma abelha, o praticante butina de uma denominação religiosa a outra,
recriando e fabricando sentido no perfume, cada vez específico e renovado.
Soares (1994) menciona duas situações de conversão: a primeira com um
caráter provisório, onde o engajamento em um universo de crenças e de práticas é
apenas uma fase de transição para uma adesão de outra qualidade. A segunda forma de
conversão é vivida, não mais como temporária, mas como permanente e definitiva.
Para ele, o fator que permite esse engajamento é a flexibilidade inerente às novas
práticas religiosas e o Santo Daime é uma versão do misticismo ecológico e, ao mesmo
tempo, estanca a errância marcada por este fenômeno.
Apesar da União do Vegetal ter mais que o triplo de membros oficiais que o
Santo Daime (CEFLURIS), como foi explicitado anteriormente, o Santo Daime possui
um histórico muito maior de indivíduos que passaram pela religião. Diversas pessoas
freqüentam os rituais do Santo Daime sem estar formalmente vinculada ao CEFLURIS,
havendo uma grande rotatividade de participantes, fazendo com que seja muito difícil a
20
contabilização precisa do número de pessoas envolvidas regularmente com esta
organização religiosa (Labate, Rose e Santos, 2008).
Neste sentido, o presente estudo trata das trajetórias
5
dos fiéis da União do
Vegetal cleo Jardim das Flores e do Santo Daime (CEFLURIS) Comunidade Céu
de São Miguel de Porto Alegre e Grande Porto Alegre respectivamente. Através de um
estudo comparativo, busquei compreender as experiências religiosas e transformações
na vida dos indivíduos, dentro dessa pluralidade religiosa, a partir da análise de suas
trajetórias, que envolvem processos de conversão, desconversão e reconversão, típicos
da bem empregada metáfora do peregrino de Hervieu-Léger (1999), com base na idéia
de butinage proposta por Edio Soares (2009).
A literatura sobre o fenômeno da ayahuasca conta com um número
considerável de obras, textos e pesquisas diversificadas. Segundo a contabilidade
realizada por Labate, Rose e Santos (2008), no Brasil, 52 livros, 90 artigos
publicados, 70 trabalhos apresentados em eventos e 52 trabalhos acadêmicos sobre o
tema das religiões ayahuasqueiras, sendo 35 dissertações, 7 teses e 9 pesquisas em
andamento. No decorrer da minha escrita, procurei dialogar com os principais e mais
relevantes estudos neste tema.
De acordo com Labate (2004), a União do Vegetal é uma instituição fechada
e seleta para pesquisadores. Alguns pesquisadores conhecidos não conseguiram obter
permissão para estudá-la e outros tiveram a exigência de ser sócio da União, como por
exemplo, a dissertação em ciências sociais de Andrade (1995), atualmente mestre da
UDV e Ricciardi (2008), cia da UDV. A primeira e, até então, única dissertação em
antropologia é do ex-padre jesuíta Sergio Brissac (1999a), que não foi publicada. Com
exceção de Brissac (1999a), as pesquisas realizadas com a União do Vegetal foram
feitas por pesquisadores adeptos da religião. O Santo Daime, grupo no qual se concentra
a maioria dos estudos acadêmicos, apesar de ter as portas abertas para pesquisadores,
grande parte destes também são nativos. Não acho interessante tomar como objeto de
estudo sua própria religião, pois, como colocou Caldeira (1988), do mesmo modo que o
antropólogo tem que se transformar ao entrar em uma outra cultura, ele tem que
reelaborar a sua experiência ao sair dela, de modo a transformá-la em uma descrição
5
Conforme Bourdieu (2006, p.189), trajetória é uma série de posições sucessivamente ocupadas por um
mesmo agente (ou um mesmo grupo) num espaço que é ele próprio um devir, estando sujeito a
incessantes transformações, passando por uma compreensão de acontecimentos biográficos da vida do
sujeito, sendo colocações e deslocamentos no espaço social, isto é, mais precisamente, nos diferentes
estados sucessivos da estrutura da distribuição das diferentes espécies de capital que estão em jogo no
campo considerado.
21
objetiva (científica) da cultura como um todo. Porém, as pesquisas feitas por nativos
têm grande contribuão, por apresentarem amplo domínio do conhecimento sobre o
campo.
O meu acesso à UDV, como pesquisadora não convertida à religião, só foi
possível pelo fato de ter pessoas importantes de meu convívio íntimo dentro da União,
importantes, no sentido de possuírem um grau hierárquico significativo e serem pessoas
de prestígio dentro do grupo, e pelo atual interesse do grupo pela realização de
pesquisas científicas, a fim de reconhecer e legitimar, cada vez mais, o uso da
ayahuasca num contexto religioso. Este interesse se reflete, por exemplo, na criação de
um Departamento Médico-Cienfico DEMEC (1986) e de um Comitê Científico
(2004). Enquanto o primeiro está voltado para incentivar a realização de pesquisas, com
um enfoque biodico-farmacológico, o Comi Científico consiste em órgão
especialmente voltado para receber estudiosos de outras áreas interessados em
investigar o grupo, o que sinaliza uma maior abertura com relação a pesquisadores
acadêmicos das ciências humanas (Labate, Rose e Santos, 2008). O Comitê Científico é
formado por acadêmicos que são sócios (adeptos) da UDV.
O meu projeto de pesquisa de mestrado foi analisado por dois assessores
acadêmicos, sendo avaliado nos aspectos referente ao mérito acadêmico e de interesse
da própria instituição em ser pesquisada. O meu projeto preencheu estes aspectos,
sendo assim autorizada à pesquisa. Também recebi recomendações nestes pareceres
acerca de minha pesquisa, bem como a combinação de informar, periodicamente, o
andamento da pesquisa para que a instituição pudesse acompanhá-la e auxiliar no que
fosse preciso.
Também, no ano de 2004, tive o meu primeiro contato com a UDV, que
resultou no meu trabalho de conclusão do curso de Psicologia, intitulado Uma
aproximação psicológica do uso religioso da ayahuasca (2005). Assim, este grupo não
era tão estranho para mim e nem eu tão estranha ao grupo. Porém, era um grupo
estranho no viés antropológico e a etnografia era algo inusitado, o que me faria penetrar
em instâncias inexplícitas e, de acordo com Wagner (1981), essa experiência
etnogfica é tomada como experiência, mediada pelo pensamento e seus parâmetros
culturais, e este é atualizado pela experiência. Segundo o autor, a experiência
etnogfica impõe resistências às categorias analíticas do antropólogo. Ele vai se
tornando o ponto articular entre duas culturas e, à medida que ambas vão sendo
objetificadas, a invenção de uma é concomitante à reinveão de outra. Quanto mais
22
familiar o estranho se torna, mais estranho o familiar parecerá ao observador. E é esse
estranhamento que faz precipitar a cultura, dando-lhe visibilidade. A dupla experiência,
de inventar culturas para os outros e, por contraste, uma cultura para si, desdobra-se na
invenção da cultura como advento universal do fenômeno humano.
A partir de Mauro, um dos meus principais informantes, foi que cheguei à
comunidade do Santo Daime (CEFLURIS) Céu de São Miguel, em maio de 2008.
Mauro é medico psiquiatra e fundou a psicoterapia reencarnacionista no Rio Grande do
Sul em 1996. Ele foi sócio da União do Vegetal, por quase oito anos, e foi daimista,
morador da referida comunidade, durante toda minha pesquisa etnográfica, afastando-se
do Daime, em janeiro de 2010, não estando, atualmente, ligado a nenhuma religião. Por
ter circulado nos dois grupos religiosos, muitos adeptos udevistas e daimistas se
submeteram e/ou ainda se submetem a sessões de regressão a vidas passadas com ele,
assim enquanto realizava minha pesquisa também me submeti a uma regressão,
considerando ser este um atravessador de análise significativo dessas religiões.
Eu conheci o Mauro em 2004, quando tive contato com a UDV, sabia de seu
afastamento da União e de sua conversão ao Daime, o que, inicialmente, me instigou a
pensar na mobilidade religiosa, trânsito e a trajeria dos fiéis, podendo pensar os
processos de conversão, desconversão e reconversão, abrindo a possibilidade de
trabalhar com duas religiões ayahuasqueiras diferentes, numa perspectiva comparatista.
A única pesquisa que aborda esta perspectiva comparatista entre as religiões
ayahuasqueiras é a tese de doutorado em Ciências Sociais Contrastes e continuidades
em uma tradição Amazônica: as religiões da ayahuasca, de Sandra Lúcia Goulart
(2004).
Goulart (2004) realiza um estudo antropológico comparatista entre os
sistemas rituais e simbólicos das três principais religiões ayahuasqueiras brasileiras: a
União do Vegetal (UDV), o Santo Daime e a Barquinha, destacando, também, os
conflitos entre elas e o processo de dissidências que ocorre no interior dos respectivos
grupos. É um trabalho pioneiro no que concerne à comparação exaustiva destas
religiões, envolvendo, simultaneamente, análises dos contextos históricos que levaram à
constituição de cada uma delas e etnografias detalhadas. Além disso, a autora realiza
uma pesquisa ampla sobre a biografia dos fundadores dessas religiões, mostrando como
a formação cultural e a história pessoal dos líderes foram importantes elementos na
elaboração desses cultos. Ao se deter na análise dos conflitos entre essas religiões
ayahuasqueiras, a tese aponta, também, para as principais acusações acionadas entre
23
seus adeptos. Nesse sentido, defendeu-se a hipótese de que atualmente a construção das
fronteiras identitárias entre os diversos grupos desse campo religioso remete ao tema do
uso de drogas ilícitas na nossa sociedade. O estudo concluiu que, apesar dos conflitos e
fragmentações entre as religiões ayahuasqueiras serem de fato acirrados, todas elas
compartilham de um legado cultural comum, de origem amazônica, expressando, assim,
diferentes desenvolvimentos de uma única tradição. Este estudo foi uma das referências
básicas para minha pesquisa.
Depois de retomar contato com a União do Vegetal, em abril de 2008, em
maio do mesmo ano, fui para Bahia, no Núcleo Salvador, para participar de um preparo
de vegetal (ayahuasca), ficando hospedada, durante quatro dias, no Núcleo e,
posteriormente, na casa de um Conselheiro da UDV.
Entrei em contato com o Santo Daime via informante Mauro. O primeiro
contato foi, por telefone, com o Comandante do Céu de São Miguel, Alancardino
Vallejos, identificando-me como pesquisadora e sendo, imediatamente, autorizada para
realizar meu estudo. Posteriormente, o padrinho Alan, como é chamado pelos membros
daimistas, se tornou outro de meus principais informantes. No primeiro encontro que
tive com ele, pessoalmente, e conversei um pouco mais sobre a minha pesquisa,
explicitando que esta se daria concomitantemente com a UDV, ele me contou a seguinte
história:
Eu tive um sonho muito sério com a UDV, e até fui lá no Mestre Augusto, naquela vez, por
causa disso. Eu sonhei que eu tava numa oca indígena e minha esposa tava fardada de azul,
com a nossa farda azul. Ela tava sentada no meio da oca, era uma oca grande, com índios
por ali e outras pessoas brancas e outros fardados e eu também tava fardado. Eu tava na
porta, olhei a negra (esposa dele) lá, os índios, as pessoas, a floresta. E disse: Negrinha
quem sabe tu leva a chave do Daime que ali na minha gaveta. Tem que acender as velas
lá. eu disse: O que eu to fazendo aqui? O que é isso aqui? um senhor veio e me
disse assim: Aqui é a União do Vegetal. eu saí daquela oca e tinha uma Lua cheia
daquelas que tão nascendo, tá meio amarela ainda. Fiquei estaqueado quando vi aquela Lua.
E ela saiu de lá e veio em cima de mim, que no sonho eu cheguei a dar um passo pra trás. A
impressão que eu tinha é que ela ia cair em cima de mim. Levei um susto. Olhei para dentro
daquela oca para ver se alguém tinha visto e só eu tinha visto. Ela veio de novo. Na terceira
vez que aconteceu, eu estava mais preparado. eu acordei. eu contei para minha
esposa e ela disse assim: Quem sabe tu procura isso né. eu tava lecionando na
UNISINOS e um amigo meu disse olha eu vou fazer um ritual, eu tenho uma sessão na
UDV. eu disse: Bah! To querendo ir nesse negócio . eu contei o sonho e ele disse
que ia falar com o Mestre Augusto que era o Mestre Geral naquela época e ele disse que era
para eu ir num sábado X e eu fui. Fui sozinho até, minha esposa não pode ir. cheguei
lá fiz uma sessão maravilhosa [...] E eu tinha recebido nesse sonho que era para eu trabalhar
a aproximação com a União do Vegetal, que iria haver muitas coisas positivas para as duas
linhas. E o Mestre Augusto me cortou aquilo ali né. De repente eles estão mais abertos
agora...Eu gostaria muito de levar nosso povo lá, conhecer uma linha nova, conhecer uma
outra forma de se ligar com o Divino com o chá também. Nós temos a linha xamânica
também, fazemos umbandaime, mas eu gostei muito lá da UDV, daquela forma do
24
questionamento, que eu vejo que é diferente do nosso trabalho. E de repente receber os
irmãos da UDV aqui também. O grande problema que eu vejo nisso é o medo que as
pessoas têm do colonialismo. Ou seja, ah! Eu não vou deixar o cara ir naquela sessão porque
de repente vão querer levar o cara para lá. E se o cara for qual é o problema? Eu não mando
em ninguém. Eu sempre dizendo para o meu povo aqui, que igreja de Daime não tem
porta. Tu entra e sai à hora que tu quer. Se tu entrou segue as regras, se tu saiu segue as
regras. Quer voltar, tudo bem, entra. O Mauro, por exemplo, era da UDV veio tomar o chá
se deu bem, ótimo. Eu posso ter vários irmãos aqui que são vegetalistas e não sabem porque
nunca tiveram a oportunidade de tomar o vegetal e se encontrar. Às vezes o cara no
Daime ta tudo muito bem, mas não lincou bem a história porque não é bem a linha dele. Isso
é do homem não é do Vegetal, não é do Santo Daime, isso é do homem, é do Ego. O Ego
emperra tudo. Mas eu ainda tenho essa esperança de um dia poder me aproximar. Levar meu
pessoal lá, fazer uma sessão. Poder um dia trazer os irmãos da União aqui. Eu já fui no
espiritismo, na umbanda, na igreja Evangélica. Onde disserem que é a casa de Deus eu me
sinto bem. Agora a forma como cultuamos é diferente. A forma é do homem, mas o
conteúdo é de Deus. A é única. A forma que é múltipla. Então eu posso ir a qualquer
lugar que cultue Deus, que acredite em Deus. Mas eu fico meio abichornado como diz o
gaúcho. Talvez nessa ocasião com a UDV eu também tenha me deixado levar pelo Ego e
acabei não voltando mais na UDV. Talvez ele podia estar se sentindo mal com a presença da
gente, sabe como são essas coisas, a gente não sabe. Tanto faz se a pessoa toma Vegetal ou
Santo Daime todos somos irmãos (Padrinho Alan).
Além de pesquisadora, eu fui vista como uma pessoa especial, relacionada a
uma missão maior de união entre as religiões, principalmente as religiões
ayahuasqueiras, que é a nova proposta daimista refletida na Nova Era. Conforme
analisou Goulart (2004), as religiões ayahuasqueiras são permeadas de conflitos entre si,
o que pude observar durante minha pesquisa etnográfica, mas que não se configurou
como o foco da minha dissertação e sim como material de análise de uma prática
etnogfica consciente. Quero dizer que o consegui cumprir minha missão de
aproximar as duas religiões, mas com certeza foram trazidas questões, que Homi
Bhabha referiu como Terceiro Espaço. Evocando novas práticas de mobilidade e
deslocamento, a noção do Terceiro Espaço reconceitualiza o campo, ao mesmo tempo
em que aponta o que acontece entre as pessoas no seu interior. Se o autodeslocamento
cognitivo e afetivo é pré-condição para a tradução cultural, o deslocamento físico o é
tanto; a compressão tempo-espaço, a mobilidade global e as tecnologias de
comunicação significam que espaços de alteridade estão no caminho cotidiano do Eu, e
que o campo está em toda parte. A referência ao espaço, em oposição ao lugar, não
só delineia um terreno conceitual, como também abrange idéias acerca daquilo que pode
acontecer dentro dele, em termos das relações Eu/Outro e da produção de sentido. O
Terceiro Espaço é o outro (s) que surge, que não estão nem na cultura do nativo, nem
na do antropólogo. É um espaço intersticial que inova e interrompe o desenrolar do
presente. As práticas do Terceiro Espaço são cognitivas, afetivas e éticas.
Inconsciente somos todos etnógrafos (Jordan, 2008). Porém, antes de um possível tecer
25
consciente, deliberado de algo novo o Terceiro Espaço, acabei, por vezes, me
enredando nas teias de sentido deles, bem como seu inverso.
Talal Assad (2008) diz que o etnógrafo tem de construir um texto, no
trabalho de campo; o antropólogo começa com uma situação social, dentro da qual algo
é dito, sendo o significado cultural dessa enunciação que terá de ser reconstruído. A
tradução dos antropólogos não é apenas uma questão de fazer equivaler frases no
abstrato, mas sim de aprender a viver uma outra forma de vida e a falar um outro tipo de
língua. O processo de tradução ocorre no momento em que o etnógrafo se envolve com
um modo de vida específico, tal como acontece com uma criança ao aprender a crescer,
dentro de uma cultura específica. Eu era uma criança que estava aprendendo a crescer
em duas culturas específicas e conflituosas entre si. Eu tinha que ir e vir entre elas,
sendo meu próprio guia.
O antropólogo vive simultaneamente em dois mundos mentais diferentes, que se constroem
segundo categorias e valores muitas vezes de difícil conciliação. Tornamo-nos, ao menos
temporariamente, uma espécie de duplo marginal, alienado de dois mundos (Evans-
Pritchard, 1978, p.303).
A tradução cultural é uma questão de determinar significados implícitos,
não os significados que os falantes nativos realmente reconhecem no seu discurso, nem
mesmo os significados que o ouvinte nativo aceita necessariamente, mas aqueles que ele
é potencialmente capaz de partilhar com a autoridade científica, numa dada situação
ideal. Assim, a tradução cultural não é uma questão de substituir texto por texto, mas de
co-criar texto, de produzir uma versão escrita de uma realidade vivida, e é, neste
sentido, que ela pode ser uma força transformativa eficaz daqueles que participam no
processo (Assad, 2008). Não sei se o meu texto alcançou esta tradução, mas, desde o
início da pesquisa, mantive um diálogo constante com meus informantes e, após
reescrever todo material, a partir de um pensar com meu orientador, todo este texto foi
lido por uma conselheira (outra informante significativa) da União do Vegetal e por um
membro free
6
(outro importante informante) do Santo Daime e da União do Vegetal.
Também o Mestre Alberto, da União do Vegetal, que tem Mestrado em Ciências Sociais
e é professor da UFRGS, pode expressar sua visão nativa e acadêmica sobre a UDV,
bem como, o Padrinho do Santo Daime, dentro de seu conhecimento, resultando em
diálogos, reflexões e pontos reescritos, tentando evitar condicionamentos, ou a minha
6
Designação nativa daimista referente ao que Hervieu-Léger (1999) chamou de peregrinos. Esta
categoria será contextualizada mais a seguir na própria introdução.
26
autoridade sobre o assunto, e procurando que a minha voz e a dos nativos alcançassem
discursos diferentes. Não foi um exercício cil para mim, visto que venho de uma área
de conhecimento centrada na minha interpretação de uma outra realidade, porém este
texto sempre vai ser meu, por mais polifônico que seja e que se levar em conta que
os dados obtidos fogem ao nosso controle e que uma multisubjetividade na pesquisa
e, além disso, não hesitei em usar a minha própria experiência como uma oportunidade
de colher dados. que se levar em conta, ainda, que por eu ter tido outra trajetória,
outra formação acadêmica (graduação em psicologia e especialização em clínica
psicanalítica lacaniana), antes de ingressar na antropologia, esta escrita vai estar
marcada por esta minha construção de conhecimentos, de saberes e de mudanças de
paradigmas. E, talvez, isso se reflita na escolha dos autores e numa produção no âmbito
de uma antropologia psicológica.
Priorizei, densamente, em toda minha pesquisa, a técnica da observação-
participante, por acreditar, como coloca Clifford (1998), que é por ela que apreendemos,
tanto no nível corporal como intelectual, as vicissitudes da tradução. A observação-
participante, em meu tema de pesquisa, aponta para uma questão significativa: o fato de
ingerir o chá ayahuasca, que é uma substância psicoativa, em todos os rituais, visto a
importância central atribuída, pelos grupos religiosos, ao efeito do chá no indivíduo
(designado de burracheira ou força). Eu ocupo uma posição e tenho acesso a
determinados lugares a partir dos quais se estabelece uma comunicação específica com
os sujeitos estudados que não é passível de representação. Não se trata de me
transformar em nativo; o que está em jogo é situar-se, ocupar um lugar em que se possa
ser afetado pelas mesmas forças que incidem sobre os nativos. Por outro lado, aceitar
ocupar este lugar não informa, exatamente, sobre as afecções do outro, mas sobre o que
afeta o próprio pesquisador nessa posição em que o outro se colocou. Favret-Saada
(1990) concebe este estado como uma modalidade de experimentação de intensidades
específicas (os afetos), apontando para a possibilidade do pesquisador permitir ser
afetado (être affecté).
O ato de tomar o chá é um être affecté sui generis, é como se eu adquirisse
um avatar, um corpo Navi humano (antropólogo-ayahuasqueiro), híbrido para interagir
com os nativos de Pandora
7
, o campo religioso ayahuasqueiro, porém eu,
7
Fazendo referência ao filme épico de ficção científica Avatar, escrito e dirigido por James Cameron.
O filme foi lançado em 2D e 3D no Brasil em 17 e 18 de dezembro de 2009.
27
diferentemente de Jake Sully
8
, vou viver com dois distintos clãs de Pandora A União
do Vegetal e o Santo Daime. O Padrinho Alan recomendou esse filme, numa sessão, e a
comunidade daimista, em todo Brasil, se identificou muito com ele, pois os Navi vivem
em harmonia com a natureza e são considerados primitivos pelos humanos a religião
primitiva, como divulgado na Revista Época
9
(22 março 2010, n° 618), no caso
Glauco. Essa identificação suscitou um fórum de discussão na comunidade do Santo
Daime, no Orkut, onde os internautas associam o filme à doutrina daimista. Algumas
discussões, por exemplo, enfocam que o povo Navi cultuava Eywa, sua divindade
protetora, a deusa mãe, a própria natureza. É o arquétipo do divino feminino, a Rainha
da Floresta
10
. O povo Navi tinha uma árvore das almas, onde, através dela, se
contatavam com todos seus ancestrais, ou seja, através de um vegetal eles alcançavam
essa conexão. Os Navi são um povo simples e muito evoluído, os caboclos
guerreiros. Diz o Padrinho Alan na comunidade do orkut:
Não é à toa que está fazendo sucesso. Sua linguagem é universal, de um homem que está em
extinção: o homem-pássaro, o homem-terra, o homem-ar, o homem-água, o homem-nação,
onde a vida só tem valor com o outro. Como disse Mário Quintana, somos anjos de uma asa
só. Precisamos do outro para voar. Concordo que me lembrou da doutrina. Será que ele, o
diretor, não passou por aqui?
Pensando assim nessa metáfora, ao ingerir o chá, eu adquiro avatar e
consigo, mentalmente, me ligar e me conectar, através de conexões inviveis aos olhos
humanos, que me permitem acessar e compartilhar esse mundo espiritual nativo. Eu
entro em contato com seres que desconheço, com a natureza, com a árvore das almas e,
a partir daí, um paradigma se rompe completamente para mim e eu nunca mais consigo
enxergar as coisas como eu anteriormente enxergava. Após um período inicial de
peias, medos e resistências, eu consegui me entregar a essa força, sendo, por
algum tempo, capturada por Pandora, esse lugar mágico, que fica do outro lado do
Sol, com perfume de fruta e de flor. Eu acordava com os hinos ou as chamadas na
cabeça, eu chamava os nativos de irmãos, eu aprendi a rezar, a ter fé e a pensar em
caridade. Muitas vezes, me senti um nativo, como o Jake Sully, sem saber qual
8
Um dos personagens principais, o ex-fuzileiro paraplégico que vai substituir o irmão gêmeo morto no
seu avatar sem ter nenhum conhecimento da cultura Navi.
9
Em reportagem referente ao assassinato do cartunista Glauco Villas Boas, comandante da igreja
daimista Céu de Maria, o correspondente de Época em Londres Paulo Nogueira compara a religião do
Daime ao vodu e o confucionismo, diz ele: o Santo Daime uma religião primitiva que nasceu nos anos
1920 na Amazônia dos delírios do seringueiro Raimundo Irineu Serra poca 22 março 2010, 618,
p.100). Essa e outras reportagens causaram muita indignação aos daimistas.
10
A Rainha da Floresta é a Nossa Senhora da Conceição de quem o Mestre Irineu recebeu a doutrina
daimista.
28
realidade me pertencia e qual era a verdadeira. Até o dia em que, numa burracheira,
do nada tive uma experiência muito próxima e íntima com o Mestre Gabriel,
recebendo uma mensagem muito importante para minha vida. A mensagem era simples:
se seguires por esse caminho, irás se arrepender e sofrer; se seguires por esse outro
caminho, ficas bem e feliz e, como no filme Efeito Borboleta, eu mirei toda cena
da minha vida futura. A mensagem era muito clara e se referia a uma escolha pessoal
que eu tinha que tomar e que não se referia à religião. Eu fiquei muito assustada e
profundamente abalada, fiquei três dias sem conseguir levantar da cama e com crises de
choro. O que eu devia fazer agora, que eu estava brincando nos campos do
Senhor
11
? A minha vida rodava nas trapaças do Criador. Depois dessa revelação, eu
não ia conseguir seguir por outro caminho diferente daquele apontado pelo Mestre. Foi
o momento no qual, em março de 2009, precisei recorrer a uma terceira pessoa, que
pudesse me auxiliar psicologicamente, pois eu estava com medo de enlouquecer. Por
indicação, eu contatei uma ex-sociológa, que bebeu ayahuasca com os índios no Acre, e
atualmente é terapeuta alternativa, sim, uma terapeuta alternativa, porque, neste
momento de crise, eu estava duvidando até da psicanálise clássica, à qual me submeti
durante quase dez anos de análise pessoal. Essa pessoa me auxiliou a aprender a ir a
qualquer direção e voltar, pois Eu sou meu guia e, agora, eu faço uma alusão à
definição de Wagner (1981), do homem como xamã de seus significados, apontando
para as possibilidades de manipulação de um conceito no trânsito entre mundos.
A abordagem wagneriana aponta para a antropologia como disciplina que
inventa cultura a partir da cultura. O estudo da cultura também é cultura e,
simultaneamente, a cultura é o instrumento para sua invenção. Wagner (1981) acentua o
relacional, em detrimento do substantivo, na abordagem do outro como uma experiência
de pensamento, em que são concomitantes o aprendizado e a invenção, em que estão
implicados aprendizado/invenção do outro e aprendizado/invenção de si. Neste sentido,
a invenção etnográfica, tal como pensada por Wagner, Strathern, entre outros, tomada
como experiência de pensamento, a construção do outro não prescinde da existência
efetiva do outro, tampouco prescinde da (re)construção de si. Wagner (1981) sugere
11
Fazendo alusão ao filme Brincando nos campos do Senhor (At Play in the fields of the lord), direção
de Hector Babenco e roteiro de Hector Babenco e Jean-Claude Carrière baseado em livro de Peter
Matthiesse, lançado em 1991 (EUA). Um casal de evangélicos e seu filho pequeno embrenham-se na
selva amazônica brasileira para catequizar índios arredio à noção de Deus. Um sociólogo termina sendo
motivado pelas experiências de outro casal. As intenções religiosas e a harmonia entre brancos e índios no
local ficam instáveis devido à presença de um mercenário descendente dos índios americanos. Este filme
também é associado à doutrina daimista.
29
uma antropologia reversa, propondo a vinculação necessária da invenção da cultura com
o aprendizado de como as culturas inventam a si mesmas, numa experiência aberta para
a criatividade mútua, em que a cultura em que vivemos é contra exemplificada pelas
culturas que criamos, e vice-versa.
A antropologia reversa não reduz a alteridade a uma tipologia social, mas
reconhece diferentes estilos de criatividade, que correspondem a diferentes modos de
entendimento.
Assim, duas questões foram norteadoras para pensar a minha etnografia, a
relação entre eu e os nativos, como dispositivo central de construção do conhecimento
antropológico e a tradução, o desafio da construção ficcional da etnografia. Wagner
(1981) combina objetividade relativa com relatividade cultural. A relatividade cultural
situa o observador, em posição de equidade, com os observados, que ambos
pertencem a uma cultura, enquanto aquela atenta para a mediação de sua própria
cultura, na compreensão de uma outra. Assim, a experiência da alteridade adquire
sentido nos termos da própria cultura, mas o desafio do antropólogo é ralativizar sua
própria cultura, por meio da formulação concreta de outra. É preciso ultrapassar as
fronteiras das próprias convenções e investir na imaginação do mundo da experiência.
Foi a partir daí que pensei na possibilidade de construir a tradução, através de uma
metáfora que representa a simbologia nativa: a rosa e o beija-flor.
Em junho e julho de 2009, as questões conflitivas que perpassam as duas
religiões tiveram seu ápice, pois os grupos estavam se olhando, se questionando pela
minha presença, bem como esta estava suscitando o imaginário dos grupos envolvidos.
Foi um período em que eu sofri muitas peias
12
, nos rituais religiosos, marcada por
muitas dores corporais, desmaios e vômitos intensos, que se propagavam para além do
ritual. Isso culminou num período de afastamento completo do campo religioso, por
vinte dias, para tratamento médico, pois eu já tinha emagrecido sete quilos e estava com
anemia profunda e desnutrição. Depois desse tempo de pausa, retomei, lentamente, o
campo até os ânimos se estabilizarem.
Em agosto de 2009, viajei para Europa, visando pesquisar o processo de
transnacionalização da União do Vegetal e do Santo Daime na Espanha, com o intuito
de seguir no doutorado, permanecendo naquele país de 27 de agosto a 7 de outubro. A
partir de indicações de um informante meu da UDV, que faz doutorado em Santiago de
12
Termo nativo daimista e udevista que designa os mal-estares físicos e psicológicos suscitados pela
ingestão do chá.
30
Compostela, durante este período fiquei hospedada na casa de um mestre da UDV e,
posteriormente, na residência de uma conselheira e, também, no cleo Inmaculada
Concepcion, localizado num pueblo cerca de Madrid. Com indicação do Padrinho
Alan, contatei o dirigente do Santo Daime, ficando hospedada na comunidade daimista
também localizada num pueblo cerca de Madrid.
Retornando ao Brasil, em outubro do mesmo ano, retomei o trabalho de
campo, que foi encerrado em 20 de dezembro, para iniciar a escrita da dissertação. Em
janeiro e fevereiro de 2010, tive necessidade de ir à comunidade daimista, bem como no
núcleo udevista, para colher alguns materiais necessários que estavam faltando.
Para entender como os fiéis conjugam mobilidade e fidelidade religiosa e
como ocorre o processo de conversão, desconversão e reconversão, além do uso da
etnografia como metodologia de pesquisa, enfatizando a técnica da observação
participante nos dois grupos religiosos concomitantemente, realizei 28 entrevistas
centradas não-diretivas, seguidas de um roteiro temático, dentro de categorias de análise
que identifiquei como configurativa dessa mobilidade. o elas:
1. A categoria dos convertidos, que são designados pelo termo êmico de
fardados no Santo Daime e cios na UDV. Nessa identifiquei a
tríplice figura do convertido, proposta por Hervieu-Léger (1999). Essa
categoria é composta por três subcategorias:
a) Indivíduos que são considerados convertidos bastante
tempo, pelo grupo em questão uma estimativa de no
mínimo dez anos para tal conjunto, em ambos grupos
religiosos.
b) Indivíduos recém-convertidos, que são considerados, pelo
grupo religioso em questão, como possuindo pouco tempo de
conversão estimativa de até dois anos, para ambos grupos
religiosos.
c) Indivíduos que estão entre as categorias a e b.
2. Os peregrinos, como definiu Hervieu-Léger (1999), e que eu chamei de
free, que é o termo nativo daimista empregado para este fim. O free é aquele
31
que continua circulando em outros espaços religiosos e, ainda, não se definiu
como adepto da religião (sócio da UDV e fardado do Daime). Neste caso,
priorizei o free dentro do campo religioso ayahuasqueiro, ou seja, aquele que
freqüenta religiões ayahuasqueiras distintas.
3. Os reconvertidos, dentro do campo religioso ayahuasqueiro. Nessa
categoria se enquadram aqueles que foram convertidos em uma religião
ayahuasqueira, por determinado período, e, atualmente, estão convertidos em
outra religião ayahuasqueira distinta.
4. Os desconvertidos, ou seja, aqueles que foram convertidos, por
determinado período, em uma religião ayahuasqueira e, atualmente, não são
mais, ou seja, é um ex-fardado ou ex-sócio.
Foram realizadas vinte entrevistas para a categoria um (distribuídos nas
subcategorias), sendo dez da UDV e dez do Santo Daime. Na categoria dois, foram
realizadas três entrevistas. Na categoria três foram realizadas duas entrevistas: um sócio
da UDV, que foi fardado do Santo Daime, e um fardado do Daime, que foi cio da
UDV. E, na categoria quatro, foram realizadas três entrevistas. Um dos casos da
categoria quatro se refere a uma pessoa que foi entrevistada, durante a minha pesquisa,
como convertida e, depois de um tempo, como reconvertida, ou seja, pude acompanhar
esses dois momentos. Após a realização das entrevistas, houve a desconversão de duas
pessoas e a reconverão de uma entrevistada desconvertida. Optei por manter as
entrevistas, por já ter encerrado o trabalho etnográfico, mas foram dados relevantes na
análise da mobilidade e circulação dentro do campo religioso ayahuasqueiro, bem
como, do processo de conversão, desconversão e reconversão.
Levando em consideração a conversão e a mobilidade religiosa, os
entrevistados foram sido selecionados, de acordo com a emergência do campo, e o
número de indivíduos entrevistados foi delimitado, a partir da demanda proveniente,
não sendo algo que foi estruturado e fechado. Do mesmo modo, não foram delimitados,
à priori, questões de gênero e faixa etária para o grupo entrevistado, sendo este
emergido do campo ofertado.
32
Além dessas entrevistas, foram utilizadas mais dez, com os Mestres de
Origem
13
da UDV, arquivadas pelo Departamento de Memória da União, bem como,
informações contidas nos sites dos respectivos grupos religiosos e fóruns de debates, em
comunidades do Orkut, bem como a literatura nativa, em geral, ou seja, as
publicações feitas por membros dos próprios grupos religiosos, o que difere das
pesquisas científicas acadêmicas nas quais, na sua grande maioria, o pesquisador é ele,
também, um nativo.
Escolhi nove casos representativos dessas categorias para serem expostos no
corpo deste trabalho. Para preservação dessas pessoas, seus nomes foram substituídos
por flores, aos relacionados à UDV, e a neros de espécies de beija-flor, para o Santo
Daime, havendo nomes compostos nas categorias dois, três e quatro. Essa escolha está
dentro da metáfora trabalhada neste estudo, onde a rosa representa a União do Vegetal e
o beija-flor o Santo Daime. Para União do Vegetal, a rosa simboliza o chá ayahuasca
designado de vegetal e seus membros costumam se referenciar às pessoas especiais do
núcleo como as flores do nosso jardim, fazendo alusão ao nome do Núcleo Jardim
das Flores e ao seu significado dentro da doutrina. O beija-flor simboliza o Espírito
Santo, no Santo Daime, e representa o espírito do próprio ser divino polinizador do
Mestre Irineu e do Padrinho Sebastião (fundadores da doutrina), contido na ayahuasca
(chamada de daime) e em sua expansão para o mundo inteiro. Hoje, todos os daimistas
se identificam com o beija-flor. Como o nome da bebida ayahuasca, nestes grupos, está
também contido no nome da religião, optei, na minha escrita, de o nome da bebida estar
em letra minúscula daime e vegetal e o nome da religião em letra maiúscula Santo
Daime e União do Vegetal para poder haver um entendimento distinto. Todas as
palavras nativas e frases de informantes estão em itálico e entre aspas.
Alguns nomes foram mantidos, como alguns mestres da UDV e
padrinhos/madrinhas do Santo Daime, por serem pessoas públicas e por haver
entendimento de consentimento dessa exposição de ambas as partes envolvidas.
Maluf (2003) discute a existência de uma especificidade dessa cultura neo-
espiritual, no Brasil, provocada pela presença de certos elementos específicos da
realidade social e cultural brasileira: uma confluência entre o terapêutico e o religioso;
uma tradição de ecletismo da vivência religiosa e uma interpenetração entre os
diferentes universos religiosos; a informalidade das práticas terapêuticas e da
13
Termo referente aos mestres que participaram desde início da criação do Núcleo Jardim das Flores.
33
manipulação da esfera doença/cura e a existência de um pluralismo terapêutico. Para
a autora, a escolha por cada uma dessas vivências, a adoção de uma prática
espiritualizada como estilo de vida e da vida espiritual como projeto de vida, mostram
que esses itinerários não são simples errância, eles não se limitam à soma das
experiências, mas se constroem na direção de um sentido e de uma busca de sentido.
Para ela, alguns estudos apontam a doença e a busca de cura como fatores de conversão
religiosa, o que denota uma importante aproximação entre o terapêutico e o religioso.
Nesse sentido, busquei investigar a cura como fator de conversão, visto que muitos
pesquisadores do campo ayahuasqueiro atribuem esse fenômeno, como Goulart (2004) e
Rose (2005).
De acordo com Maluf (2003), o estudo sobre o ecletismo religioso tem duas
características distintas: existe um conjunto de estudos que busca contextualizar a
pluralidade religiosa brasileira, a partir das estruturas religiosas, da instituição ou campo
religioso. Outro grupo de estudos vai tentar situar a pluralidade religiosa mais na prática
dos sujeitos, no vivido da experiência, do que na análise do sistema religioso. Esta
constatação me fez levantar a hipótese de que o processo de conversão, e a maneira pela
qual o fiel conjuga mobilidade e fidelidade, está ligado a uma interface entre a
experiência e o sistema religioso, com base na butinage, e que, neste sentido, um
estudo comparativo entre linhas distintas de um mesmo campo religioso é muito
favorável.
Deste modo, os capítulos um e dois se referem a uma apresentação dos
grupos religiosos estudados. Os capítulos três, quatro e cinco foram dedicados a uma
análise da estrutura religiosa da UDV e do Santo Daime, o capítulo seis, à experiência e
o capítulo sete à perspectiva da butinage.
34
CAPÍTULO 1
A ROSA NA UNIÃO DO VEGETAL
A rosa simboliza a ayahuasca na União do Vegetal (UDV). O cipó, quando
cortado, possui no seu interior o desenho de uma flor. Trata-se de uma rosa diferente e
essa simbologia é cercada de mistério dentro da doutrina da UDV. Assim, dentro da
metáfora que estou trabalhando, a rosa representa a União do Vegetal.
Neste capítulo farei um apanhado histórico da União do Vegetal acerca do
Mestre fundador, sua criação, etc. Estes dados já foram bem documentados por Andrade
(1995), Brissac (1998a) e Ricciardi (2008a), em suas dissertações sobre a UDV, e por
Goulart (2004), na sua tese de doutorado, onde analisou comparativamente a União do
Vegetal, o Santo Daime e a Barquinha. Assim, serei objetiva e utilizarei, para esta
descrição, os dados do Departamento de Memória e Documentação da UDV DMD
14
-
de Porto Alegre, detendo-me na forma como é transmitido para seus discípulos essa
história, apesar da UDV manter um rigoroso padrão de transmissão oral de
conhecimento da doutrina em todos seus núcleos. Também delinearei o processo de
criação e fundação do Núcleo Jardim das Flores, em Porto Alegre, a partir de arquivos
fornecidos pelo Departamento de Memória da UDV, bem como, entrevistas com os
Mestres da Origem do Núcleo, fornecendo uma descrição do local.
1.1 O Fundador da União do Vegetal
José Gabriel da Costa o Mestre Gabriel - nasceu em 1922, no município de
Coração de Maria, próximo à Feira de Santana, na Bahia. Viveu a sua infância no
sertão baiano e parte da sua juventude em Salvador. Era filho de Manuel Gabriel da
Costa e Prima Feliciana da Costa. Ele teve treze irmãos, sendo que um deles, Antônio
14
No Departamento de Memória e Documentação encontram-se textos construídos pela própria
instituição que são divulgados para irmandade em murais e via internet. Esse material não possui edição e
nem ano assim quando este for utilizado será referenciado como DMD.
35
Gabriel da Costa, faz parte do quadro de mestres da União do Vegetal. Em 1944,
integrou o "ercito da borracha" e foi para Rondônia trabalhar como seringueiro.
Casou-se com Raimunda Ferreira da Costa, conhecida como Pequenina,
em 1947. Nos períodos de 1950 a 1958, de Porto Velho passou a ir aos seringais com a
sua família, vivendo no Território de Guaporé durante algum tempo e, após, retornou a
Porto Velho. Fez esse trajeto algumas vezes, sem ter a oportunidade de conhecer o chá
hoasca (também chamado de vegetal). Quando decidiu ir aos seringais, dois dos seus
filhos já haviam nascido, Getúlio e Jair
15
.
De 1959 a 1964, Mestre Gabriel morou nos Seringais Guarapari e Sunta, às
margens do Rio Abunã, fronteira com o Acre, mais precisamente, na margem boliviana.
Em 1959, na Bolívia, teve contacto com a hoasca, através de outros seringueiros que
usavam o chá de diversas formas, adotando cada um o seu ritual. Ele percebeu que o
resultado disso nem sempre era benéfico aos usuários (DMD).
Ali, JoGabriel da Costa, um trabalhador simples que se destacava pela
sua capacidade de produção como seringueiro, fazia os primeiros contatos com duas
plantas consideráveis por oferecer experiências de estados alterados de consciência
(DMD). Naquele período a hoasca também já era conhecida por diversos nomes: daime,
cipó, caapi, yagé etc.
Nessa época, iniciou a distribuição ritualística dessa bebida preparada a
partir do cozimento de duas plantas nativas da floresta amazônica: o mariri, conhecido
também como jagube ou cipó (Banisteriopsis caapi) e a chacrona ou rainha (Psichotria
viridis). Por esse trabalho, o seringueiro passou a ser reconhecido por seus discípulos
como Mestre Gabriel. Gradualmente, enquanto distribuía a bebida, conhecida no
universo udevista como hoasca ou vegetal, definiu um ritual para seu uso, criando
cânticos, doutrina e uma lei que rege a União do Vegetal - que os seus discípulos
consideram uma sociedade fundada para dar a face institucional do seu trabalho
(DMD).
Mestre Gabriel, então, funda uma associação e, mais tarde, cria o Centro
Espírita, com a estrutura que tem hoje, mas herdando todas as práticas estabelecidas
pela associação. Com efeito, a associação apenas mudou de nome, tendo sido feita uma
reforma no estatuto, considerado mais completo. A União do Vegetal é considerada, por
15
Atualmente mestre da UDV.
36
seus componentes, como uma religião que, mais do que adeptos ou discípulos, tem
sócios co-responsáveis pela sua administração material (DMD).
1.2 A Fundação da União do Vegetal (UDV)
Em 22 de julho de 1961, no Seringal Sunta, Mestre Gabriel passou a usar a
expressão União do Vegetal
16
, dando início à organizão de sua religião. A União do
Vegetal destaca que ele não iniciou a beber o chá no Daime (a primeira religião
ayahuasqueira), no Acre, e sim iniciou com os seringueiros na Bolívia, não se tratando,
portanto, de uma dissidência do Daime ou de qualquer outro grupo religioso.
Na floresta, o Mestre Gabriel, combateu o que ele considerava o mau uso do
chá - hoasca. Elaborou um ritual próprio para seu uso, criando cânticos e doutrina. Em
1962, foi reconhecido pelos hoasqueiros (designação usada pela UDV para os usuários
do chá) de "Mestre Superior da União do Vegetal", na Vila Plácido de Castro. Através
da sua inteligência, com base na lei universal e no cristianismo, estudou e organizou
nesse ritual regras de comportamento com o objetivo de trazer paz e harmonia para
beneficiar a vida de seus seguidores (DMD). O Mestre Gabriel é um recordado de sua
missão, de seus destacamentos passados, ou seja, sua encarnões anteriores. Enquanto
que o Mestre Irineu (Santo Daime) recebeu uma revelação divina e com isso iniciou sua
missão.
Dessa forma Mestre Gabriel viveu com a sua família nos seringais da
Bolívia até o ano de 1964. Em 1964, o Mestre Gabriel e sua família mudaram-se para a
cidade de Porto Velho RO, dando início ao processo de institucionalização da
entidade.
relatos que, desde seu início, o Mestre Gabriel e seus discípulos lutaram
contra resistências ao uso do chá hoasca (vegetal). Embora hoje seja permitido seu uso
legal, na época ainda causava, principalmente em Rondônia, preconceitos e
arbitrariedades por parte das autoridades policiais da época (DMD).
16
A expressão UNIÃO DO VEGETAL foi usada pela primeira vez pelo Mestre Gabriel em 22 de julho
de 1961 no Seringal Sunta da Amazônia, para denominar a organização que estava se iniciando. A sigla
UDV passou a ser usada em Porto Velho do ano de 1966 em diante. Outras organizações dissidentes
surgiram depois de 1976, usando o nome União do Vegetal e a sigla UDV, mas o Centro Espírita
Beneficente União do Vegetal (CEBUDV) detém tanto o registro dessa marca (desde 1986) quanto da
sigla UDV (desde 1983), no INPI Instituto Nacional de Propriedade Industrial.
37
Em 1967, um delegado de Porto Velho chegou a deter o Mestre Gabriel para
averiguações. Esse episódio foi publicado no Jornal Alto Madeira, numa narrativa
intitulada Convicção do Mestre. Nela, José Gabriel da Costa explicou seu
comportamento pacífico na prisão, trouxe conformação aos seus discípulos e definiu a
missão da União do Vegetal, lembrando o símbolo da Paz e da Fraternidade Humana
adotada por essa religião: Luz, Paz e Amor. Com esse acontecimento, Mestre Gabriel
viu a necessidade de registrar a instituição em cartório no ano de 1968, com o nome de
Associação Beneficente União do Vegetal, pensando na defesa e garantia dos direitos à
prática religiosa. O Regimento Interno e o Estatuto do Centro foram as primeiras leis
escritas e serviram de base para dar a face institucional da União do Vegetal.
Em 1971, o Bispo de Porto Velho fez algumas críticas à Instituição em um
sermão. Mestre Gabriel respondeu, publicando, no dia 16 de julho, no Jornal O
Guaporé, um artigo denominado Velado enquanto Dorme, em que assegurava que um
sócio da União do Vegetal, com 60 dias de freqüência na UDV, estava livre de vícios
como a bebida e o cigarro.
Em 1970, um delegado de polícia mandou fechar a União do Vegetal.
Naquele período, Mestre Gabriel deixou de atender a adventícios (designação utilizada
para aqueles que bebem o chá pela primeira vez), mas continuou a distribuir o vegetal
aos cios. A União do Vegetal, pela primeira vez estabeleceu um advogado para a
defesa de seus direitos. Vencido o impasse, a Associação passou a ter a denominação de
Centro Espírita Beneficente União do Vegetal, em 1971. Ainda na presença do
fundador, foi autorizada a criação de um núcleo (filial) em Manaus AM.
Crentes da verdade contida nas palavras do Mestre e observando a
necessidade de assegurar aos seus filiados o direito de uso do vegetal em seus rituais
religiosos, a Direção do Centro instituiu, em 1986, o Departamento Médico-Científico -
Demec
17
, criado para atuar como um canal permanente de relacionamento da UDV com
a comunidade acadêmica.
17
O Demec foi criado um ano após a inclusão da Banisteriopsis caapi na lista de produtos de uso
proscrito em território nacional pela Divisão de Medicamentos do Ministério da Saúde (Dimed) sem a
devida autorização do Conselho Federal de Entorpecentes (Confen), resultando na formação do primeiro
Grupo de Trabalho Multidisciplinar para pesquisar o uso ritual da ayahuasca no Santo Daime e na União
do Vegetal. Após a conclusão dessa pesquisa, em 1987, a ayahuasca foi excluída da lista de produtos
proscritos pelo Dimed e autorizada para uso ritual. A legalidade do uso ritual da ayahuasca foi novamente
questionada em 1988 e 1994, porém o Confen manteve sua decisão anterior de permitir a utilização da
bebida em contextos rituais, incluindo as recomendações de que ela não fosse consumida por pessoas com
problemas psiquiátricos, grávidas ou menores de idade. Em 2004, o Conselho Nacional Antidrogas
(Conad) suspendeu essas duas últimas restrições e instituiu um Grupo Multidisciplinar de Trabalho para
levantamento e acompanhamento do uso religioso da ayahuasca, bem como para a pesquisa de sua
38
O Mestre Jo Gabriel da Costa fundador, mentor dessa obra
desencarnou (faleceu) em 24 de setembro de 1971. Com total despojamento
material, entregou o seu legado a um quadro diretivo de mestres e conselheiros,
formados por ele, para dar continuidade à sua missão de trabalhar pela evolução do ser
humano, no sentido do seu desenvolvimento espiritual (DMD).
1.3 A Organização da União do Vegetal
No seu aspecto religioso e administrativo, as regras foram sendo criadas pelo
seu fundador e seus seguidores, ao longo de toda uma década. O Centro Espírita
Beneficente União do Vegetal consiste de uma diretoria eleita por votação direta em
assembléia geral e funciona seguindo o padrão das modernas instituições democráticas
do país (DMD).
A Sede Geral (matriz) permaneceu até 1982, na capital de Rondônia. Pela
necessidade de atender o seu crescimento institucional, em de novembro de 1982, foi
transferida para Brasília DF, localizando-se o atual Centro Administrativo, que
supervisiona os trabalhos das Unidades Administrativas em todo o Brasil e no exterior.
Cada Unidade Administrativa (UA) do Centro mantém o mesmo perfil
institucional, organiza-se rigorosamente dentro dos mesmos critérios de
comportamentos, imprimindo forte unidade à instituição. As UAs têm uma média de,
no mínimo, 70 sócios que comungam religiosamente o chá.
Com quatro classes de filiados: Mestres, Conselheiros, Corpo Instrutivo e
cios, a administração do Centro Espírita Beneficente União do Vegetal está
distribuída em três níveis:
a) Sede Geral Brasília - DF, de onde emanam as diretrizes;
b) Administrações Regionais, que supervisionam as Unidades
Administrativas;
utilização terapêutica. Em 2006, este GMT divulgou seu relatório sendo publicado oficialmente em 2009.
Assim com a criação do Demec pela UDV, a partir de um interesse em legitimar o uso da ayahuasca do
ponto de vista médico-científico as principais pesquisas biomédico-farmacológicas realizadas no contexto
das religiões ayahuasqueiras foram feitas no âmbito da UDV. A primeira destas foi o Projeto Hoasca,
ou o Projeto Farmacologia Humana da Hoasca, realizada em Manaus (AM) na década de 90. Essa
pesquisa foi produzida por nove centros em conjunto, entre instituições e universidades do Brasil, Estados
Unidos e Finlândia, envolvendo mais de trinta pesquisadores. Participaram como voluntários dessas
pesquisas quinze membros da União do Vegetal filiados ao grupo por pelo menos dez anos. Foi realizada,
igualmente, no âmbito da UDV e consiste em uma avaliação neuropisicológica de quarenta adolescentes
da UDV (Labate,Rose e Santos, 2008).
39
c) Administrações Locais, constituídas por Núcleos, Pré-núcleos e
Distribuições Autorizadas, que distribuem o vegetal aos sócios com critérios pré-
estabelecidos pela Sede Geral.
1.4 A Expansão da União do Vegetal
Assim, além de crescer em Porto Velho, a obra do Mestre Gabriel chegou
também a Manaus, quando alguns de seus cios para se transferiram. Iniciou-se a
expansão da União do Vegetal. O estabelecimento da União do Vegetal em Manaus
trouxe novidades para a instituição. Entre elas, o cultivo do mariri. Na capital
amazonense desenvolveram-se técnicas para seu cultivo nos arredores urbanos.
A partir de Porto Velho e Manaus, a União do Vegetal começou a ser
conhecida em outros centros urbanos como São Paulo e Brasília, onde, posteriormente,
criaram-se novas filiais. Gradualmente, regras e critérios foram sendo estabelecidos para
consolidar a institucionalização da União do Vegetal na sociedade brasileira.
Com a chegada da União do Vegetal ao sul do país, começa também a mudar
o perfil do sócio. O Mestre Gabriel não está mais encarnado, mas a doutrina continua
sendo a mesma e única, atendendo a todos que procuram a UDV. Inicia-se um novo
período da União do Vegetal: expandir-se sem seu guia espiritual e fundador nas
sessões e nas decisões do dia-a-dia da nova ordem religiosa.
A União do Vegetal é hoje uma organização com Unidades Administrativas
no Brasil e no exterior, Estados Unidos e países da Europa como Portugal e Espanha,
procurando manter o mesmo perfil institucional, somando em torno de quinze mil
sócios. Sendo organizada dentro de critérios de comportamento, a UDV acaba
imprimindo forte unidade à instituição.
Existem três níveis de direção: a central (localizada em sua Sede Geral,
atualmente em Brasília, originalmente em Porto Velho), coordenada por uma
Representação Geral (Mestre Geral Representante e seus assistentes) e uma Diretoria
Geral; a regional, coordenada por um Mestre Central de cada uma das 9 regiões; e uma
direção local: coordenada pelo Mestre Representante e sua diretoria, que coordenam os
Núcleos e Pré-núcleos
18
.
18
A abertura do núcleo ou pré-núcleo é autorizada pelo Quadro de Mestres da Sede Geral, mediante
solicitação do Mestre Central da Região, devendo ter no mínimo dois mestres, dois conselheiros e trinta
40
1.5 O Núcleo Jardim das Flores
A primeira sessão da União do Vegetal, em Porto Alegre, ocorreu em 1979 e
foi dirigida pelo Mestre José Mauro, em visita à cidade, reunindo alguns amigos.
Em 1983, o Mestre Paulo Tarso Freire, do Núcleo Pupuramanta (RJ), veio a
Porto Alegre e realizou uma sessão de vegetal com Teresinha Margarete da Rosa, que,
na época, era novata. Ela havia ido ao Rio de Janeiro, naquele ano, para conhecer o
vegetal, a convite de sua amiga Regina Richau. Desde 1981, Regina falava a respeito
do vegetal para Margarete que, em 1984, associou-se no Núcleo Pupuramanta (RJ),
transferindo-se, sucessivamente, para o Núcleo Samaúma (SP) e cleo São Cosmo e
São Damião (PR).
No Núcleo o Cosmo e São Damião (PR), em 1987, também freqüentavam
João Henrique Ramos e Nelson Barbosa Bittencourt. João Henrique conheceu a UDV
em 1980, em Manaus, associando-se ao Núcleo Samaúma e foi convocado para o Corpo
Instrutivo quando estava filiado ao Núcleo São Cosmo e São Damião (PR). Nelson
conheceu a UDV em 1987, quando em viagem à Curitiba, junto com Virgínia.
Margarete levou sua amiga Liropeya para conhecer a União em São Paulo, e
esta lhe apresentou Rosana Cavalcanti e Carmen cia Ponsoni. Margarete falou a
respeito da UDV para Carmen cia, que viajou, ainda em 1986, ao Rio de Janeiro e
bebeu vegetal no Núcleo Pupuramanta. Cristina Galvão, Flávio Del Arroyo e Venina
iam a São Paulo beber vegetal. No primeiro semestre de 1987, Mestre Juan realizou
uma sessão na casa do João Henrique, em Porto Alegre, onde também estava presente
Paulo Mello.
Havia, portanto, um movimento de pessoas que viajavam para beber vegetal
em diferentes núcleos como o Núcleo Pupuramanta (RJ), o cleo Samaúma (SP) e o
Núcleo São Cosmo e São Damião (PR) demonstrando um grande interesse em trazer a
União do Vegetal para Porto Alegre. Foi, então, que surgiu uma oportunidade de
trabalho na cidade para o então Mestre Augusto César Monteiro Freire
19
, do Núcleo
sócios. Deve possuir imóvel adquirido em nome do Centro Espírita Beneficente União do Vegetal, Sede
Geral, com documentação aprovada pelo departamento jurídico e construção adequada aos trabalhos
religiosos. Em Porto Alegre temos o Núcleo Jardim das Flores e o Pré-Núcleo Porto Alegre fundado em
2008 e passando a ser considerado Núcleo Porto Alegre em 2009 pelo crescimento de membros.
19
Augusto atualmente encontra-se no grau de conselheiro. Ele foi rebaixado de grau quando se separou
de sua companheira. Para ser mestre e permanecer neste quadro há que estar obrigatoriamente casado.
41
Pupuramanta (RJ), através de um convite de seu irmão, Mestre Paulo Tarso Freire, que
havia dito à Margarete, na primeira sessão em Porto Alegre, que vira, em uma
miração
20
, sua casa cheia de gente. Mestre Augusto viajou para Porto Alegre, em
agosto de 1987, sendo recebido por João Henrique e Margarete. Foi quando se realizou
a primeira sessão com o Mestre Augusto, no apartamento do Nelson. Estavam presentes
Mestre Augusto, João Henrique, Margarete, Carmen Lúcia, Nelson, Virgínia, Cristina
Galvão, Flávio Del Arroyo e Paulo Mello. Nesta sessão, Nelson teve uma miração
especialmente bonita, em que via um jardim com muitas flores. Margarete, durante a
sessão, ofereceu seu sítio à União do Vegetal, para a realização das sessões. No dia
seguinte, um domingo, Margarete apresentou o Sítio Paloma, onde se fez, então, um
churrasco, sendo Nelson o assador.
Mestre Augusto mudou-se para Porto Alegre, junto com sua companheira, a
Conselheira Marlídia Carvalho Freire, no final de setembro desse mesmo ano. Em 3 de
outubro de 1987, deu-se o início do trabalho, com a primeira sessão no Sítio Paloma ,
sendo a quinta sessão em Porto Alegre. A partir daí, passaram a ser realizadas sessões
de vegetal regularmente. Em 06 de janeiro de 1988, foi realizada a primeira reunião de
diretoria, quando foram eleitos os membros para coordenar as ações, sendo que alguns
já vinham exercendo tais funções desde outubro de 1987.
Em 10 de fevereiro de 1988, a Sede Geral autorizou uma distribuição de
vegetal para receber adventícios (pessoas que bebem vegetal pela primeira vez), sendo o
Mestre Manoel Nogueira o Mestre Geral Representante e o Mestre Felipe Belmonte dos
Santos o Mestre Central. A Distribuição Autorizada funcionou aproximadamente
durante quatro anos, período em que houve um movimento para arrecadação de recursos
para a compra de uma sede própria.
Considera-se o dia 3 de outubro de 1987 a data de início dos trabalhos em
Porto Alegre e, portanto, o de aniversário do Núcleo Jardim das Flores, sendo que a
Elevação a cleo deu-se na mesma data anual, no ano de 1996. Na época, a Direção
era formada pelo Mestre Augusto e pela Conselheira Marlídia. João Henrique Ramos
pertencia ao Corpo Instrutivo. Margarete era sócia. Carmen Lucia associou-se no dia
da primeira sessão no Sitio Paloma.
Em 1989, foi adquirido o primeiro terreno para sede própria, localizado na
Rua Júlio Antônio Pereira, nº 100/120, próximo à Estrada Costa Gama. Em 21 de
20
Termo nativo referente as imagens contempladas durante a burracheira, que é o termo referente aos
efeitos do chá no indivíduo.
42
dezembro de 1991 foi anunciado o nome do Pré-Núcleo Jardim das Flores. A Fundação
do Pré-Núcleo Jardim das Flores deu-se em 6 de janeiro de 1992, às vinte e uma horas,
conforme autorização da Sede Geral, tendo-se o Mestre Augusto César Monteiro Freire
como Mestre Representante e o Conselheiro João Henrique Ramos como Presidente.
Fez-se, nesse local, um importante trabalho de jardinagem, em que se
restaurou a natureza do lugar, que passou de um descampado a um jardim bem cuidado
e florido (DMD).
O Núcleo Jardim das Flores permaneceu nesse local até 1993, quando, por
necessidade de expansão, a Unidade Administrativa UA - foi transferida para o Beco
dos Farias, na região do Morro São Pedro, onde, posteriormente, foi construído o
templo definitivo, inaugurado em 26 de outubro de 2002, com a presença do Mestre
Geral Representante José Luiz de Oliveira e do Mestre Central Cândido Alberto
Machado.
Com a aquisição do atual terreno, de 6 (seis) hectares, no Beco dos Farias,
pôde-se construir a fornalha e, algum tempo depois, a casa de preparo. De fato, a
mudança a este local deu-se a partir do primeiro preparo realizado em Porto Alegre.
Neste local, o trabalho de jardinagem e preservação ambiental teve
continuidade e aprimoramento. Em 3 de outubro de 1996, foi realizada a sessão de
Elevação a cleo, na mesma data anual do início dos trabalhos no Sítio Paloma, em
1987. Esta sessão foi dirigida pelo então Mestre Geral Representante Raimundo
Monteiro de Souza, e do Mestre Central Clovis. A Elevação aconteceu pela
transferência do Mestre Djalma Valeza Bruno, vindo do Núcleo Mestre Joanico (Boa
Vista/AC), inteirando o mero de quatro mestres no Núcleo Jardim das Flores,
continuando o Mestre Augusto César Monteiro Freire como Mestre Representante.
A faixa de Mestre Assistente começou a ser utilizada em 1º de setembro de
2001, quando foi convocado para o Quadro de Mestres Sérgio Fernando Meneghel
Colla, inteirando o número de cinco mestres no Núcleo. O primeiro a vestir a faixa foi
Mestre Paulo Ricardo Maciel Guterres. Nesta data, o Mestre Representante era Mestre
Nelson Barbosa Bittencourt.
O Templo do Núcleo Jardim das Flores foi projetado pelo arquiteto e
Conselheiro João Henrique Ramos, sendo Mestre Sérgio Fernando Meneghel Colla o
responsável pela obra. O Presidente e Vice-Presidente na época eram, respectivamente,
Mestre Djalma Rodrigues Valeza Bruno e César Augusto Marques dos Santos Filho.
Esta ação aconteceu no período da 2ª gestão do Mestre Nelson Barbosa Bittencourt na
43
Representação. O início da obra deu-se com o lançamento da pedra fundamental, pelas
mãos de Arliss Pastorello Freire, em 14 de abril de 2002, às 8 horas e 55 minutos. A
inauguração do templo foi seis meses e doze dias depois, em 26 de outubro de 2002, às
12 horas, com a presença de diversos visitantes, dentre eles o Mestre Geral
Representante José Luís de Oliveira, e o então Mestre Central Cândido Alberto
Machado.
Atualmente o cleo Jardim das Flores possui 117 sócios dentre eles: 42
cios, 52 pertencentes ao Corpo Instrutivo, 17 ao Corpo do Conselho e 6 ao Quadro de
Mestres, sendo um Mestre Representante e um auxiliar.
Utilizarei um relato de meu diário de campo referente à minha entrada no
Núcleo, como antropóloga, onde o descrevo e, posteriormente, será útil para a
comparação com o Santo Daime:
Eu já havia estado nocleo Jardim das Flores em outubro de 2004, mas sob outra
perspectiva, com outro olhar - o olhar da psicanálise. Agora, em junho, nesta mande
sábado ensolarada, mas com o frio do outono porto-alegrense, eu estava, após mais de três
anos, retornando a esse estranho familiar, estranho sob essa nova perspectiva
antropológica e familiar, porque eu conhecia a UDV. A minha carona me pegou
pontualmente às 9h, conforme combinado. A conselheira, que é também Ogan, (ela me
explicou que Ogan é a mulher responsável por coordenar a alimentação, limpeza e
organização; as conselheiras ocupam esse cargo por um período de dois meses, havendo
sempre um rodízio) juntamente com seu companheiro do corpo instrutivo, havia passado
na feira ecológica do Brique da Redenção para comprar os alimentos, verduras e frutas, que
serão utilizados no almoço e no lanche. Hoje é dia de mutirão, no qual todos trabalham em
conjunto para manutenção do núcleo e à noite tem sessão de escala. Eu os esperava na porta
de entrada do meu prédio, com minha bolsa, onde levava uma garrafinha de água, balas de
tira-gosto, comumente usadas para neutralizar o gosto amargo do vegetal, e um pequeno
caderno de anotações. Sob a orientação de meus informantes, estava munida de dois
cobertores de para serem colocados na cadeira de plástico verde anatômica, onde ficamos
sentados reclinadamente durante a sessão. Um cobertor embaixo e outro por cima, pois à
noite o frio é extremamente rigoroso. Um pequeno travesseiro para apoiar a cabeça e ficar
mais relaxada e um repelente, pois os mosquitos te comem viva. Assim, avisto o corsa
prata, a conselheira que estava dirigindo sai do carro para me cumprimentar, desejar boas-
vindas e acomodar os meus apetrechos. O porta malas estava cheio das compras. Então,
fui sentada no banco de trás, forrada com os cobertores de nós três. No trajeto, que leva
em torno de quarenta minutos, sob o ar quente do carro, fui observando a paisagem dos
bairros Azenha, Glória, Belém Velho e Restinga, ao mesmo tempo em que conversava com
o casal. [...] Chegamos no Beco dos Farias, localizado no morro São Pedro, numa estrada de
chão batido, onde propriedades particulares, plantações de agricultores e um rebanho de
cabras. É uma região rural com muito verde que nem parece se tratar de Porto Alegre, bem
diferente do ar urbano ao qual estou acostumada. Entramos no núcleo. Logo a esquerda
encontra-se a moradia do caseiro. Ele e a esposa, com mais ou menos 60 anos, são os únicos
residentes do núcleo. A casa é de madeira e muito simples, bem como o casal, que não
possui a escolaridade normalmente encontrada na maioria dos freqüentadores da religião.
Na frente da casa há grama e muito verde, como toda vista que se obtém de olhos corridos
do núcleo, onde sempre cadeiras de praia para receber os irmãozinhos que estão
chegando ou para uma parada de descanso da maratona diária, onde sempre há um
chimarrão servido na cuia do internacional e para os irmãos mais especiais um
lanchinho, como um bolo. O casal é muito simpático e receptivo. Já abana quando nos avista
entrar com o carro e convida para se aprochegar. Atrás da casa um de lima, onde
44
mais tarde um de meus informantes me leva para apreciar o sabor da fruta colhida no pé sem
agrotóxicos. Mais a cima da residência do caseiro há muita grama, onde há espaço livre que
serve de estacionamento. Os carros, à medida que vão chegando, vão estacionando onde há
espaço, exceto os mestres que têm vaga, um espaço delimitado com placa que diz
reservado aos mestres. Mais em cima está o templo rodeado de flores. Mais acima do
templo há a cozinha, a cantina, o berçário e banheiros tudo um grudado no outro. A
conselheira foi com o carro até a cozinha para poder descarregar as compras. Depois que
descarregamos, ela me orientou para colocarmos nossos cobertores e travesseiros nas
cadeiras marcando, reservando nossos lugares à nossa escolha. Eram quase dez horas da
manha e já havia alguns homens trabalhando, cortando grama, limpando o templo... As
mulheres estavam começando a se reunir para fazer o almoço. A cozinha é composta por
fogão industrial, geladeira, duas pias grandes com quatro torneiras, um balcão grande e um
banco comprido. Ao lado está a cantina com quatro mesas compridas de madeira com
bancos dos dois lados. Ao entrar, pude me lembrar dos fartos lanches que são servidos antes
e depois da sessão. Pão integral, pão branco caseiro, geléia, mel, frutas, manteiga, suco, café
com leite... Eu podia sentir o cheiro daquele café colonial que deu certa paz no final da
turbulenta sessão que passei em 2004, apesar de não ter conseguido usufruir dessa fartura,
comilança como se referem alguns membros, porque tinha sentido muitas náuseas nessa
única sessão que eu tinha participado até então no Núcleo Jardim das Flores. Eu estava
retornando do preparo de vegetal que participei em Salvador. Como na Bahia, o cheiro, o
clima de amorosidade, de confraternização foi muito acalentador para mim e
perceptivelmente para o grupo que se mantêm por cerca de duas horas após a sessão nesse
vai-e-vem de conversa, trocas de experiências, abraços e comilanças. Quem sabe eu
poderia usufruir disso? Eu teria muitas burracheiras pela frente ainda. No chão da
cantina estão as fornalhas que são utilizadas para o preparo do vegetal. Nos dias de preparo
retiram-se os bancos e o chá é cozido ali. Antes e depois da sessão uma mesa de madeira é
ocupada para o pessoal da Tesouraria receber os pagamentos das mensalidades. A
comercialização de produtos fabricados artesanalmente pelo grupo é realizada no
Entreposto, que faz a arrecadação de dinheiro, como o suco de uva produzido em Antonio
Prado, os pães e doces produzidos pelos irmãos, bem como artesanato, incensos. No final da
cantina uma entrada para o berçário o espaço onde são realizadas as atividades de
recreação com as crianças e onde elas ficam enquanto os pais estão na sessão. Há um
armário grande repleto de brinquedos, um balcão com materiais para produções gráficas,
pinturas, tapete no chão. É um espaço pequeno e um pouco frio. um projeto de um
novo berçário melhor estruturado e mais aconchegante. Do lado do berçário estão os
banheiros masculino e feminino. O banheiro feminino é composto por dois chuveiros e
quatro privadas todos tapados com cortinas de plástico, duas pias com sabonete liquido,
espelho e papel toalha. também cabides para pendurar roupas e do lado de fora
prateleiras para guardar bolsas e sacolas com as roupas, que são trocadas, após o trabalho
realizado durante o dia, pelo uniforme limpo e impecável. Na frente do banheiro há uma
pequena casa destinada ao Brechó, com roupas doadas pela comunidade que são expostas
pra a venda durante o dia. A plantação de chacrona está concentrada principalmente na parte
lateral, à direita, no trajeto desde a entrada do sítio até o ponto onde tem um banco usado
para descanso e conversa. A plantação do mariri está localizada no lado esquerdo do terreno,
depois do campo de futebol e na área que contorna o templo chegando até à mata nativa,
atrás da cantina e subindo morro acima. O terreno faz divisa com a área da Fundação
Ronaldinho Gaúcho.
1.6 O Templo do Núcleo Jardim das Flores
O templo do Núcleo Jardim das Flores é uma construção única, diferente de
todos os outros templos udevistas, embora tenha alguns elementos em comum. Seus
membros dizem que ele tem a nossa cara, que diversos serviços necessários para a
construção do Templo foram realizados pelas próprias mãos dos adeptos homens,
mulheres e crianças, carregaram terra, brita, pedra, pintaram telhas e janelas. Cada um
45
fez a sua parte, plantando flores, cozinhando, participando dos eventos para angariar
recursos, unindo forças, motivando, doando de si. Nesse sentido, parte considerável da
construção foi realizada pelos sócios, contando-se, também, com mão-de-obra
especializada na parte de alvenaria e colocação do telhado. A fim de arrecadar os
recursos necessários, foram realizadas diversas atividades, tais como a rifa de um carro,
um bingo, cursos (projetos culturais, astrologia) e doações.
De acordo com o hoje Conselheiro Augusto, em linhas gerais o templo tem
paredes de pedra como o Pupuramanta, no Rio de Janeiro, e é circular como o
Samaúma, em São Paulo. Porém, em vez de granito é feito de arenito, e sua cobertura é
bem diferente dos dois outros. Ele tem características bem interessantes que conciliam
aspectos aparentemente contraditórios em harmonia.
O templo tem paredes de pedra, matéria sólida e pesada, nada mais material.
Contudo, essa pedra é arenito róseo, em dois tons suaves que dão um aspecto de leveza.
Solidez e leveza. O róseo lembra as flores do jardim e me faz pensar que o material
escolhido é um dos mais indicados para o templo do Jardim das Flores, diz o
Conselheiro Augusto. É também uma construção grande, de proporções mesmo
monumentais com um teto a se projetar para o alto. No entanto, seu interior é acolhedor
como em uma residência, especialmente pelas telhas e estrutura de madeira da cobertura
de madeira clara, em tons de bege e amarelo claro.
Na materialização da idéia de templo conseguiu-se a harmonia da síntese dos
opostos. A forma como foi resolvida a exigência de se ter três arcos, com os símbolos
de Sol, Lua e Estrela, se fez, também, de maneira integrada, com a construção e
incorporando esse princípio. Dentro dos arcos, em placas de granito seo, temos
gravadas em baixo relevo, figuras estilizadas de Sol, Lua e Estrela, remetendo às
inscrições em pedra dos templos da antigüidade. A inscrição dos símbolos é na pedra,
na matéria densa, que simboliza a realidade material. Em contraste, a representação é
de um conceito, idéia, símbolo arquetípico de Sol, Lua e Estrela, a realidade
espiritual. A obra é contemporânea, mas existem elementos atemporais, como a pedra
e as inscrições.
Outro contraste é a visão do róseo das paredes destacando-se do fundo verde
da vegetação circundante. Tons de cores opostas na paleta da química da cor, que se
complementam como numa aquarela luminosa. A cobertura amarela, com fundo de céu
46
azul, o jardim de flores e plantas, compõem a beleza simples e até rústica
21
em alguns
aspectos do local. O que remete a dicotomia jardim e floresta.
Com o intuito de obter uma harmonia com a natureza e construir o templo
com as melhores condições e influências possíveis, foram realizados estudos buscando
uma sintonia com a ciência de Salomão. Fez-se uso, então, de ciências como a
numerologia, a astrologia, e a radiestésica. Através de uma avaliação radiestésica,
verificou-se a melhor localização para o templo no terreno.
Para o lançamento da pedra fundamental, que marca o início da construção,
fez-se um estudo astrológico, a partir do qual foi escolhido o momento preciso, a fim de
se ter as melhores influências possíveis.
no que se refere à data e horário da Inauguração do Templo, esses foram
escolhidos de acordo com as possibilidades do Mestre Geral Representante, sem
avaliação astrológica prévia. Contudo, conforme consta em relatório obtido
posteriormente, é também um momento com uma configuração celeste bem interessante
e positiva (DMD).
A Comissão Técnica considerou conhecimentos numerológicos ao
estabelecer as medidas do templo, em que os números 9 e 5 têm o maior destaque o
que apresenta uma sintonia, não planejada, com o horário de início da obra, 8:55, que,
além de poder ser lido cinco para as nove, tem duas vezes a presença do 5 e sua soma
resulta no 9.
Considerou-se a melhor posição em relação aos pontos cardeais, de forma
que, ao se entrar no templo, se está de frente para o horizonte leste, onde nasce o Sol. O
eixo norte e sul também está marcado pelas janelas laterais centrais, que expressam,
simbolicamente, as quatros direções e os quatro elementos, pois se dividem em quatro
quadrados. Na disposição das pedras, há três fieiras de tons mais fortes para duas claras,
em analogia às camadas de mariri e chacrona.
Observou-se, também, a simbologia das formas geométricas, sendo que o
quadrado representa a terra e o círculo, o firmamento. O átrio é formado por dois
quadrados enquanto o templo, em si, é redondo. Assim a gente chega com as coisas da
terra em busca das coisas do alto. Diz um dos mestres da origem.
Levando-se em consideração a recomendação do Mestre Gabriel de não se
utilizar barro sobre o templo, foram examinadas diferentes hipóteses para o telhado, que
21
O termo rústico é utilizado por Antonio Candido para indicar o que é no Brasil o universo das culturas
tradicionais do homem do campo (Linhares, 2005, p.5).
47
demorou para ser definido, devido também ao fato de ser bastante visível pela elevação
do terreno. Optou-se, então, por telhas de madeira (pinus).
A partir do resultado do estudo radiestésico, ocorreram diversas
modificações. O arquiteto João Henrique Ramos afirmou que, durante a obra, veio
acontecendo o projeto e suas transformações, mas sempre com um cuidado com a
textura, usando os materiais como são apresentados pela natureza, sem esconder suas
características naturais, como que dando uma chance para eles falarem por si, disse
ele. Utilizou-se, inclusive, materiais da região como as pedras grés da cidade de Porto
Alegre. Ele lembra que, antes mesmo de haver a distribuição autorizada, há 15 anos,
comentou com, então, irmão Nelson Bittencourt, atualmente Mestre, Imagina um
templo de pedra. Hei-lo!.
1.7 Relatório Astrológico do Início da Construção do Templo
Consta, no relatório astrológico, uma observação de que se encontra uma
estrutura similar no mapa de início do Jardim das Flores, em 3 de outubro de 1987, e,
nesse, referente à obra, bem como no mapa de nascimento do Mestre Gabriel. Da
mesma maneira, encontra-se uma correlação do mapa da Recriação da UDV, com a
Inauguração do Templo. Tal observação constata, para a irmandade
22
, um dado muito
importante e interessante de sintonia. No que diz respeito à correlação existente entre os
dois mapas na trajetória do cleo (1987 e abril de 2002, que foi o início da obra), esta
não é por acaso. Confirma-se, assim, que o passo dado com a construção do Templo é,
de fato, uma continuidade do processo iniciado15 anos, que apresenta, como uma de
suas características, um anseio por união de livre escolha, o poder estar junto por opção,
e ideais de fraternidade.
De acordo com o Conselheiro Augusto, o mapa de lançamento da pedra
indica que, no que se refere à convivência e às inter-relações entre os irmãos, uma
influência de harmonia, afeto e parcerias que fazem brilhar, ou seja, auxiliam a
manifestação do valor de cada um. A expansão do amor, do sentimento de família, a
partir de uma cura da rigidez e de carências, torna possível uma maior entrega ao
processo de transformação. Há, realmente, grande potencial de transformação nos
relacionamentos, em que é preciso conscientizar-se visando transformar os sentimentos
22
Irmandade se refere à iia de que todos são irmãos, são filhos do Pai Eterno. Essa idéia está
presente tanto na UDV e no Santo Daime. Daimistas e udevistas se chamam de irmãos, manos.
48
e alçar vôo a horizontes mais amplos. Em especial, as pessoas mais diretamente
engajadas no processo de viabilização estando realizando grande transformação na
sua própria caminhada. Nota-se o propósito de abrir caminho em prol do coletivo, do
grande grupo, com iniciativa, alegria e criatividade, diz o Conselheiro Augusto.
1.8 Relatório Astrológico da Inauguração do Templo
A data de Inauguração apresenta uma sintonia com o início da obra. Este dia
apresenta um momento energético importante, segundo a astrologia, que impulsiona
para a transformação e expansão da consciência.
Outro grande destaque do dia e horário escolhidos é a conjunção de nus
(Estrela DAlva) com o Sol, no alto de u ao meio-dia. Podemos saber então que
sobre nossas cabeças no momento da Inauguração, até mesmo astrologicamente, temos
os Sol e a Estrela DAlva como guias para a realização a que se propõe este templo,
disse o Conselheiro Augusto. É bem especial esta conjunção do Sol com Vênus, pois ela
rege as parcerias, o bem querer, a harmonia e o casamento. Segundo a astrologia, o Sol
indica o caminho, o propósito de vida. A união de ambos no alto de céu indica um
caminho de união. No mapa de nascimento do Mestre Gabriel encontra-se, também, esta
mesma conjunção do Sol com Vênus no meio-do-céu.
Um dado importante a ser considerado pelo grupo udevista é que, no dia de
Inauguração do Templo, acontece um casamento dentro dele, antes mesmo da sessão.
Um Caminho de União, como disse um dos mestres da origem. Ao meio-dia esta
conjunção encontra-se na décima casa astrológica, que diz respeito às realizações,
enquanto que no horário do casamento, estará iluminando a sétima casa, que se refere
justamente aos relacionamentos. Isso tudo indica uma força de mais união e de
parcerias que transformam, conforme era revisto pelo mapa do começo da obra, que
apontava para esta transformação pela qual passariam as pessoas se ligassem a este
trabalho, em especial as pessoas mais diretamente engajadas (DMD).
É claro que nós da UDV, sabemos por experiência própria que o trabalho que aqui
realizamos nos traz essa força, mas é interessante ver que os estudos astrológicos destes
mapas enfatizam este aspecto. E se nos ligarmos com isto, podemos ter um proveito maior.
(Conselheiro Augusto).
49
A presença de Marte na nona casa fala da luta pelas convicções e da
conquista de um objetivo a muito desejado a peleja pelos nossos sonhos, diz um dos
mestres da origem.
A posição astrológica da Lua fala de amor, de carinho de corações preenchidos por um
sentimento pleno, marcando este nosso momento e de uma maior estruturação emocional
na irmandade, a partir do ato de se expressar mais, de colocar a criatividade, de mostrar suas
capacidades. E isto traz novas esperanças em relação aos desejos e sonhos, devido à melhora
da auto-estima das pessoas. Esta renovada coragem e confiança em se mostrar mais aos
outros, assumindo-se mais inteiramente, inclui maior expressão dos sentimentos e favorece
a estruturação da identidade individual e de grupo. A comunicação dentro da irmandade
torna-se mais telepática, no sentido de que um percebe melhor o outro, comunicando-se
mais pela vibração. Então, a reatividade emocional também é mais percepvel, o que
demanda uma peneira mais fina, que direciona para a transformação e expansão da
consciência . O que aparece, claramente, neste mapa são sinais de uma mudança profunda e
ampla, por uma busca pelo que é mais essencial mesmo, libertando-se de velhos
preconceitos. Deve haver um maior respeito pelas diferenças e singularidades, com mais
conscientização de que, até por sermos todos diferentes, somos todos iguais, trazendo uma
leveza maior. A sensibilidade ao plano espiritual cresce, podendo-se ter um canal mais
limpo para receber inspiração e orientação. Há uma renovação do interesse pelo estudo das
coisas do alto, pelos assuntos religiosos e pelos princípios e valores de união e de harmonia.
O planeta piter no signo de Leão, na sétima casa, aponta para uma riqueza nos
relacionamentos, e para o senso de dignidade e honra que participar disto traz, e de poder
reconhecer o valor do outro. A realização deste projeto traz uma forte aliança entre os
irmãos (DMD).
1.9 Algumas Relações Interessantes
Observemos algumas relações entre três mapas da História desse grupo
religioso, aqui em Porto Alegre:
- Início das atividades do Núcleo Jardim das Flores (às 20h do dia 3 de
outubro de 1987)
- Lançamento da Pedra Fundamental do Templo (às 8h e55min do dia 14 de
abril de 2002)
- Inauguração do Templo (às 12h do dia 26 de outubro de 2002)
De acordo com o Departamento de Memória no primeiro, que é o mapa de
nascimento do cleo, o Sol estava iluminando o signo de Libra, que é regido por
Vênus, que por sua vez também estava neste mesmo signo (ou seja, no seu domicílio
astrológico). Isto e outros aspectos, como um trígono de Vênus com a Lua, ligaram
astrologicamente nus e o Sol e Vênus e a Lua, na história do grupo. No segundo
mapa, Vênus aparece também em um domicílio seu, desta vez no signo de Touro e
50
acompanhada não pelo Sol, mas pela Lua ambas conjuntando o ascendente no mapa
astral que marca a linha do horizonte. Já nesse terceiro mapa, temos Vênus no alto do
céu próximo ao Sol (conforme já foi explicado). Por diversos detalhes, esse destaque
a Vênus em todos estes mapas.
Outra característica que merece ser ressaltada é a presença do signo de
Aquário em pontos importantes, como o meio-do-céu do primeiro e segundo mapa, e o
ascendente do terceiro, o que significa que o desejo dos dois primeiros toma corpo,
encontra sua forma neste terceiro momento. Há, também, outras relações com esse
signo, indicando essa busca por uma realidade melhor para a sociedade, mais fraterna.
51
CAPÍTULO 2
O BEIJA-FLOR NO SANTO DAIME
O beija-flor simboliza o Espírito Santo e representa o espírito do Padrinho
Sebastião e do Mestre Irineu no Santo Daime (CEFLURIS). Dentro da metáfora que
estou trabalhando, o beija-flor representa o Santo Daime. Neste capítulo farei um
apanhado histórico do Santo Daime, acerca do Mestre fundador, sua criação, etc. Esses
dados já foram bem documentados por Groisman (1991), La Roque Couto (1989),
Monteiro da Silva (1983), Cemin (1998), Goulart (1996, 2004), Froés (1983), MacRae
(1992) entre outros. Assim como no capítulo anterior, sobre a União do Vegetal, serei
mais objetiva e utilizarei, para descrição, os dados colhidos em campo, a partir da fala
nativa, principalmente do dirigente da comunidade Céu de São Miguel que é o
responsável por guiar o grupo e transmitir a doutrina. Também delinearei o processo de
criação e fundação da comunidade.
2.1 O Fundador do Santo Daime
Raimundo Irineu Serra nasceu em 15 de dezembro de 1892, em São Vicent
Ferret, no Estado do Maranhão. Era um negro de dois metros de altura, filho de Sanches
Serra e Joana Assunção Serra, descendentes de escravos e oriundos de família humilde,
que vivia do trabalho de cultivo da terra. De acordo com cio Mortmer
23
(2001), no
final da primeira década do Século XX, embarcou para o território do Acre para compor
o exército da borracha, trabalhando na extração do látex nos seringais da Brasiléia, na
23
Foi um dos primeiros mochileiros e hippies que resolveram morar com o Padrinho Sebastião no tempo
da Colônia Cinco Mil, ainda na década de 70. Chegou a fazer parte da expedição ao Rio do Ouro e do
grupo pioneiro do Céu do Mapiá. Durante muitos anos foi o responsável pela venda da borracha e a
compra da feira que abastecia a comunidade. Foi também durante muitos anos secretário do Centro.
É membro do Conselho Doutrinário e presidente da Associação dos Moradores da Vila Céu do Mapiá, já
em segundo mandato. Atualmente se encontra em Belo Horizonte-MG, sua cidade natal, convalescendo
de uma enfermidade. É uma presença muito estimada por todos, principalmente pelos jovens. Seu Hinário
Instrução, apesar de recente é um dos mais apreciados (www.santodaime.org).
52
fronteira do Peru. Em Rio Branco foi para Guarda Territorial, até chegar ao posto de
cabo e, em seguida, participou e passou no concurso para integrar a Comissão de
Limites, entidade do Governo Federal que delimitava as fronteiras entre Acre, Bolívia e
Peru, órgão este comandado pelo Marechal Rondon. Rondon nomeou Irineu Serra ao
cargo de confiança de Tesoureiro da Tropa. Posteriormente, retornou aos seringais, onde
conheceu os irmãos Costa. Foi ali, no coração da floresta da América do Sul, que Irineu
cristianizou as tradições caboclas e xamânicas da bebida ayahuasca e rebatizou-a com o
nome de Daime, fundando em 1930, sua doutrina tornando-se Mestre Irineu.
Alguns anos depois, Mestre Irineu foi para cidade de Rio Branco onde
começou a trabalhar com um pequeno círculo de discípulos. A fama de curador de
Mestre Irineu espalhou-se pela cidade do Rio Branco, sendo procurado por pessoas das
mais diversas condições sociais e culturais. Foi filiado ao Centro da Comuno do
Pensamento, onde recebeu honrarias e também filiado à antiga Ordem Mística
Rosacruz.
Por fim, Mestre Irineu instalou-se, definitivamente, com sua família e um
grupo de seguidores na localidade denominada Alto Santo, onde trabalhou até falecer
fazer a passagem em 6 de julho de 1971. Atualmente, o Alto Santo é comandado
pela viúva do Mestre Irineu a Madrinha Peregrina.
2.2 O Fundador do Santo Daime (CEFLURIS)
O fundador do Centro Eclético da Fluente Luz Universal Raimundo Irineu
Serra- CEFLURIS - foi Sebastião Mota de Melo, que nasceu no Seringal Monte Lígia
(Eirunepé-AM), em 1920. De acordo com Alverga (1998), desde cedo, Sebastião
demonstrou propensão para fazer viagens astrais e ter visões dos seres encantados da
floresta. Começou sua carreira de curador e rezador nos ermos do Vale do Juruá.
Desenvolveu-se mediunicamente na Doutrina Espírita, através de seu compadre
Oswaldo, que era kardecista. Mudou-se para Rio Branco/AC, com a família, em 1957,
onde levava uma vida de colono e atendia doentes do seu círculo de parentes,
compadres e afilhados. Foi um homem simples, de sólida convicção espírita e
trabalhador incansável. Como Mestre Irineu, foi filiado ao Círculo Esotérico de
Comunhão do Pensamento. Nos anos 60, contraiu uma grave doença no fígado que o
levou a procurar Mestre Irineu. Sendo curado se tornou seu discípulo.
53
Sebastião fundou o CEFLURIS após a morte do Mestre Irineu, se tornando
então Padrinho Sebastião. Em 1974, mandou registrar sua entidade religiosa e
filantrópica o CEFLURIS. Em 1980, transferiu a comunidade, que vivia nos arredores
de Rio Branco/AC, para uma área virgem no interior da floresta, denominada Seringal
Rio do Ouro. Em 1982, fundou o assentamento que hoje vem a ser a Vila u do
Mapiá, onde foi um incansável trabalhador, tanto na parte espiritual como material.
Gostava de trabalhar na construção de canoas e fazer grandes caminhadas pela floresta
que tanto amava e conhecia. Nos seus últimos anos, recebeu carinhosamente os
afilhados que chegavam de todas as partes do mundo. Fez algumas viagens ao sul do
país para conhecer as igrejas que tinham se formado em torno dos seus ensinamentos.
Só nesse momento foi que conheceu o mar, o que muito o emocionou. Faleceu em 20 de
janeiro de 1990, no Rio de Janeiro, onde se encontrava para se tratar de uma grave
doença cardíaca que o acometera havia alguns anos.
2.3 A Fundação do Santo Daime
O Santo Daime foi a primeira religião ayahuasqueira, sendo fundada por
Raimundo Irineu Serra Mestre Irineu, em 1930. De acordo com o padrinho do Céu de
São Miguel, Alancardino Valllejos, o chá ayahuasca já existia milhares de anos, pois
os Incas usavam ayahuasca e, quando os espanhóis chegaram, lhes foi oferecido um
copo de ayahuasca. A história conta que era um copo de suco de caju, mas na verdade
não era suco de caju, era ayahuasca; os iniciados Incas tomavam ayahuasca para
terem visões e poder conduzir o povo, segundo aquelas visões.
[...] os Incas usavam a ayahuasca. Inclusive parece que ayahuasca vem de um nome de
um não sei se foi um rei ou um xamã deles, parece que era um rei que deu esse nome
ayahuasca. Então os índios já conheciam esse poder, já trabalhavam com esse poder que eles
chamavam de vinho dos espíritos, vinho das almas, etc. [...] Eu gosto de trabalhar com os
dados históricos tem gente que diz que a ayahuasca já existia há sete mil anos atrás e que ele
foi suspensa talvez numa época Atlântica. A prova que a gente têm é que os Incas
conheciam a ayahuasca. A gente sabe que quando os espanhóis chegaram, a primeira coisa
que o Rei Sol deles deu para um espanhol de presente foi um copo de daime, no caso
ayahuasca e não era uma doutrina, mas eles eram reencarnacionistas porque justamente
eles tomavam para acessar o plano espiritual e falar com os espíritos. Então eles sabiam que
a vida continuava depois da morte (Padrinho Alan).
O Mestre Irineu se dirigiu ao Acre, por volta de seus 18 anos, para ser
escravo da borracha, se deparando com o uso da ayahuasca por indígenas e xamãs,
54
escutando essa história. Ele foi ter sua experiência com a ayahuasca com os Irmãos
Costa, que possuíam, na época, um centro chamado Rainha da Floresta, onde a
ayahuasca era vista como expansor da consciência e utilizada para diversos fins, como,
por exemplo, para o combate de inimigos, através da invocação de entidades de baixa
vibração para travar combate espiritual.
Mestre Irineu quando tomou a ayahuasca começou a ver muitas cruzes no espiritual. A visão
dele se abriu e ele começou a ver cruzes no espiritual. ele pensou com ele assim: Diz
que isso é coisa do Diabo, mas do que eu sei o Diabo não gosta de cruz. Como é que tá
aparecendo cruz aqui? Ele ficou encucado com aquele negócio e resolveu tomar o chá de
novo. Quando ele bebeu o chá de novo apareceu uma mulher para ele que disse que o nome
dela era Clara e que ele tinha uma missão com a bebida e que era para ele ir para o meio da
floresta e ficar durante oito dias tomando durante todos os dias, durante tanto em tanto
tempo o chá e comendo somente macaxeira insossa, que ela iria orientar ele de como seria a
tal missão dele. E realmente ela o orientou e foi assim que nasceu o Santo Daime [...]
Mesmo quando dizem a história de que o daime foi invocado para fazer o mal eu não
acredito. Eu nunca ouvi falar de um trabalho
24
de daime que tivessem invocado espíritos
malévolos e alguém tivesse ficado mal. Recebido uma feitiçaria, alguma coisa assim. Nada!
Pelo contrário! (Padrinho Alan).
Então, o Mestre Irineu começou a ministrar o chá e a Rainha da Floresta se
identificou para ele como sendo Nossa Senhora da Conceição e a tradição dela era com
a Lua. Consagrada como Mãe Divina, Rainha, Lua Branca. Assim, segundo Couto
(2002), Raimundo Irineu Serra compõe, com a Rainha da Floresta, a paternidade
simbólico-espiritual dessa doutrina, sendo identificado com Jesus Cristo (Juramidam),
ou seja, um universo simbólico que tem como base a idéia de Império Juramidam,
nos remetendo a uma filiação mítica, tendo como Mãe a Rainha da Floresta e como Pai
o Rei Juramidam, constituindo a Família Juramidam (p.388). Segundo alguns
informantes, Juramidam é o título que Mestre Irineu recebeu da Rainha da Floresta
a Virgem da Conceição, padroeira da doutrina daimista, na última concentração
25
em
que dirigiu encarnado. É a junção das palavras: Jura: é o próprio Mestre Irineu que fez
um juramento à Rainha da Floresta, na ocasião em que se comprometeu a curar com a
ayahuasca, sem negar a quem lhe pedisse, e de doutrinar o mundo inteiro. Midam: é o
24
Trabalho ou sessão é o termo daimista referente ao ritual. De acordo com Alverga (1984, p. 14) o
trabalho espiritual é algo que mistura todas as nossas instâncias e vivências, redimensionando e
unificando todas as nossas energias até então distribuídas arbitrariamente em esferas estanques, sejam
elas sexuais, políticas ou intelectuais, entre outras. Ou seja, é um trabalho que alia prospecção mental,
percepção, revelação, êxtase, comunhão, meditação, ação, transformação pessoal, concentração e criação,
em escalas, até então, inimagináveis. Que exige de seus devotados trabalhadores três virtudes básicas, a
saber: humildade, perseverança e disciplina.
25
Sessões daimistas que ocorrem todos os dias 15 e 30 do mês buscando-se o silêncio meditativo, por no
mínimo uma hora com todos sentados para a realização de um estudo interior com o intuito de
autoconhecimento.
55
povo do rebanho de Juramidam, que chega para o Mestre e pede a Santa Luz:
Daime?, Me dá? É igual a Midam. Como o Mestre jurou não negar a quem lhe
pedisse o Mestre é Jura e todos nós somos Midam.
A Mãe Divina disse para o Mestre que ele iria curar determinadas doenças e ele ficou
pensando e disse para ela assim: Mas Senhora será que não daria para curar todas as
doenças? Então ela disse para ele: Porque vós me pedistes eu vou te conceder! Então nós
acreditamos que o Santo Daime pode curar todo e qualquer tipo de doença, desde que a
pessoa esteja no merecimento. Para nós ele é um chá de cura mesmo. E graças a Deus a
gente têm tido provas de que ele ajuda, se a pessoa estiver fé, tiver merecimento. Ele
concede isso. Ele abre um caminho de cura para a pessoa. o Mestre Irineu passou a
ministrar o daime para pessoas doentes. Começou a curar alcoólatras que tinha muito
naquela época e outras doenças também (Padrinho Alan).
E, por meio das mirações, Mestre Irineu foi recebendo as instruções da
Nossa Senhora. Ela o instruiu a cantar hinos, que são ensinamentos em forma de
cânticos. Ele recebeu o hinário Cruzeiro, que é a chave da doutrina.
um dia esta Senhora apareceu para ele numa miração e disse: Olha tu vai começar a
cantar hinos. ele disse assim para ela: Mas Senhora eu não sei nem assobiar. ela
disse assim para ele: Tu só abre a boca, sou eu quem vai cantar. Aí ele recebeu o primeiro
hino. E a partir daí começou a receber todo o hinário dele que é a chamado o Cruzeiro, que é
o hinário mestre da doutrina. Ele é chave, a coluna mestra da doutrina e aonde todos os
outros vieram se derivando dali. (Padrinho Alan)
E, a partir de então, outros hinários foram recebidos e não pelo Mestre
fundador. Os hinários são cânticos que expressam a doutrina, os valores culturais e
espirituais. Assim, esse Império espiritual, recebido da Virgem da Conceição, é
instrumentalizado e convencionalizado na forma de um ritual que envolve cânticos,
bailados (Couto, 2002, p. 388) e a ingestão da ayahuasca, voltado para a cura.
O Mestre Irineu da mesma forma quando ele começou a formar o corpo de doutrina ele
falou com Nossa Senhora da Conceição que foi encarnada na terra como Virgem Maria, mas
que era um espírito virginal, por isso a Virgem Maria, ela foi emanada do coração de
Deus como tipo os anjos, foi emanada. Então esse espírito virginal encarnou na terra para
poder trazer esse grande espírito que foi Jesus Cristo. Então ela foi para o astral de novo e
tava fazendo seu trabalho expandindo a doutrina. Então ela (a doutrina) sempre foi
reencarnacionista e sempre foi voltada para cura (Padrinho Alan).
De acordo com Lúcio Mortmer (2001), Mestre Irineu rebatizou o chá
ayahuasca de daime, significando a invocação espiritual que devia ser feito ao
comungar a bebida: dai-me amor, dai-me luz, etc. Neste sentido, diz o padrinho
Alancardino:
56
O mestre orientava as pessoas a pedirem o que quisessem. Pede: dai-me amor, dai-me
saúde, dai-me isso, dai-me aquilo e os caboclos que são muito simples começaram a de
repente a chamar Santo Daime porque era o dai-me. O daime então na verdade, o daime é o
verbo dar. Dai-me saúde, dai-me força. Tanto é que até hoje quando tu vai ali faz o
sacramento o sinal, invoca o daime e pede para ele te dar saúde e o Padrinho Sebastião diz
naquele hino eu não me chamo daime eu sou é um ser divino. Daime é um nome
alegórico, na verdade eu entendo que é o Espírito Santo que na bebida assim como
quando tu faz a unção da hóstia católica, o Espírito Santo está presente ali, essa
transcendência da matéria. No daime é a mesma coisa, no feitio
26
, os bons feitores têm esse
poder de invocar o Espírito Santo e ele entrar na bebida. Então a bebida tem esse poder que
é o Espírito Santo. O nome Santo Daime vem dessa forma de pedir as bênçãos (Padrinho
Alan).
2.4 A Fundação do Santo Daime (CEFLURIS)
O Padrinho Sebastião, fundador do Santo Daime CEFLURIS, era um
médium espírita curador, que trabalhava em mesa branca, recebendo entidades
médicas, voltado para cura. Ele teve uma doença do fígado que não conseguia curar
na mesa branca. Ele foi para Rio Branco/AC, e foi orientado a tomar o daime com
o Mestre Irineu.
[...] um dia o Padrinho Sebastião amanheceu 4h da manha com uma dor no fígado que foi
até 4h da tarde e depois sumiu. E todas as noites aquilo começou a se repetir, ele o
conseguia se curar nem na mesa branca. ele foi para Rio Branco e lá alguém disse pra
ele: Por que tu não vai no Padrinho Irineu? Ele disse: Olha eu vou. Ele sabia que era o
Daime já. Antes ele tinha tomado o Santo Daime parece que duas ou três vezes na
Barquinha com Seu Geraldo. Mas não tinha sentido grande coisa, não tinha sido uma
experiência... Tinha sido uma coisa normal. Mas com essa doença ele foi no Mestre
Irineu e falou: Olha Mestre eu assim, assim, assim O Mestre disse: Olha, se tu é
homem. o Padrinho disse para ele assim (coisa de caboclo né): Olha eu sô, mas para
essa bebida eu não sei (Risos). Então tu vem na próxima sessão e tu vê o que vai
acontecer. O Padrinho Sebastião foi tomar o daime com o Mestre Irineu. Tomou o daime e
não aconteceu nada, na segunda vez também, na terceira vez ele estava num bailado, tomou
o daime, o daime pegou, ele caiu no chão e o espírito dele saiu do corpo e ele começou a ver
tudo no plano espiritual. Ele viu quando três entidades médicas fardadas de branco
chegaram e começaram a descarnar, abrir o corpo dele chegando no fígado dele, tirando três
insetos astrais e disseram para ele: Ta vendo isso aqui, disso aqui tu não morre mais.
Pegaram a carne dele e começaram a colocar no lugar, costuraram tudo e disseram para ele:
Pode entrar. Ele entrou no corpo dele de volta, levantou e ficou tudo bem. Nunca mais
sentiu nada. ele pensou: Eu vou me entregar para essa bebida porque foi ela quem me
curou. Ele foi falar com o Mestre, o Mestre mandou ele seguir o caminho, ele se fardou
(Padrinho Alan).
26
Ritual de elaboração do daime.
57
Depois que o Mestre Irineu morreu, Padrinho Sebastião, que já tinha sido
autorizado pelo Mestre Irineu a ministrar daime, sente-se convocado a organizar sua
própria igreja. Este novo guia espiritual passou a ser reverenciado como Padrinho
Sebastião e a encarnação de São João Batista, anunciando a segunda vinda de Jesus, o
próprio Irineu Serra, invertendo-se, assim, a cronologia do Novo Testamento
(Monteiro da Silva, 2002 p.429). Parte dos adeptos segue o novo líder, que fundou o
Centro Eclético da Fluente Luz Universal Raimundo Irineu Serra, (CEFLURIS),
separando-se do Alto Santo e instalando-se na comunidade Colônia Cinco Mil.
Depois o grupo se transfere para o seringal Rio do Ouro, no interior do Amazonas no
final dos anos 70, e, em seguida, para a Vila Céu do Mapiá, onde permanecem até hoje.
Quando o Mestre fez a passagem. Aquelas coisas, quando o esteio da casa cai a casa se
divide né. Houve divisões, o Padrinho Sebastião era um homem que tinha uma luz pessoal.
Então isso causava, infelizmente, muitas invejas, muitas coisinhas dentro da própria corrente
espiritual. O Daime é perfeito, mas os homens não são. Então, o que aconteceu, o
Padrinho acabou saindo, ele tinha sido autorizado pelo Mestre a fazer daime e ministrar
daime. o Padrinho saiu e fundou a igreja (CEFLURIS) e a partir dali ele começou a
ministrar o Santo Daime também na Colônia 5000, a primeira que o CEFLURIS teve.
Construiu uma igreja muito bonita e coisa e tal. Depois de um certo tempo ele resolveu
entrar pra dentro da floresta porque ele achou que o Daime tinha tudo a ver com a floresta e
tudo mais. Convidou o povo para irem receber uma intuição disso. Aí foi, entrou pra floresta
e se organizou toda a doutrina ao redor disso aí. O Padrinho Sebastião saiu da cidade e foi
pro meio da floresta numa chamada colocação de seringal, chamada Rio do Ouro. A
Madrinha Rita (esposa do Padrinho Sebastião) disse que era horrível pra chegar lá, o acesso
era péssimo. Mas eles foram lá, se instalaram, fizeram a igrejinha, começaram o trabalho
deles, uns dois anos depois que já estavam instalados, várias casas que estavam
construídas, chegou um grupo de japoneses e disseram que tinham comprado as terras que
as terras eram deles. o pessoal disse: Não! Sebastião, não vamos sair daqui! Vamos
fincar o pé! o Sebastião disse: Não é meu não é meu! Não quero fazer injustiça para
ninguém, vamos sair daqui agora foi procurar o governo e o governo disse para ele:
Olha tu procura um lugar, se tu acha um lugar que ti sirva, tu pode te instalar lá. (isso
dentro da floresta). Ai ele saiu a caminhar junto com Seu Chagas, que era um outro
companheiro dele. Com o daime na mão, um garrafão de daime, tomando daime e
procurando, procurando até que o daime mostrou para ele um lugar, onde que era. Ele foi
atrás pegou uma malária no caminho, ele e o Chagas se curaram tomando daime. E ele
chegou no lugar que é o Céu do Maphoje. então ele levou o povo para lá. Foi outra
guerra, porque tinha mosquito. Passaram dois, três meses comendo arroz e macaxeira
pra manter a doutrina viva. Então hoje, assim, eu vejo que as pessoas falam, mas não
conhecem a base. É a mesma coisa que Jesus Cristo. Quando a gente fala em Jesus Cristo a
gente não têm a mínima noção do que o Mestre sofreu na terra. Ele passou trabalho, fome,
pra deixar uma Doutrina de salvação (Padrinho Alan).
Padrinho Sebastião introduz na doutrina o caráter comunitário, trabalhos de
incorporações, de passes, de mesa branca ministrados com daime e trabalhos de
umbandaime. Mais tarde, ele passou para seu filho, Padrinho Alfredo, a missão de
continuação e expansão da doutrina.
58
2.5 A Organização do Santo Daime (CEFLURIS)
O Centro Eclético de Fluente Luz Universal Raimundo Irineu Serra
(CEFLURIS) foi registrado em 1974, com sede na cidade do Rio Branco/AC, como um
centro espírita estruturado sob a forma de sociedade religiosa, sem fins lucrativos,
responsável pela organização da doutrina e pela feitura e distribuição da bebida
sacramental utilizada nos rituais.
No que tange à hierarquia dentro do Santo Daime, colocada aqui de forma
decrescente, está, em primeiro lugar, o Mestre Irineu, logo após vem o Padrinho
Sebastião e, atualmente, o Padrinho Alfredo é o dirigente de todas as igrejas do Daime.
A relação hierárquica das igrejas filiais está intimamente ligada à igreja matriz do Céu
do Mapiá. Cada igreja, individualmente, possui o seu padrinho e a sua madrinha, com
seus respectivos vice-padrinho e vice-madrinha. Com relação aos rituais, esses têm:
comandante, que é a pessoa que guia a cerimônia, responsável pelo andamento do ritual;
os fiscais, com suas respectivas atribuições; os fardados e os não fardados e uma pessoa
responsável pela portaria (Silveira, 2007).
As Casas de Feitios existentes nas igrejas, assim como os jardins de jagube e
rainha, são administrados pelo CEFLURIS.
Todo Santo Daime é propriedade do CEFLURIS, a ser distribuído aos
centros e filiais, que ficam obrigados a manter registro sobre o seu consumo.
2.6 A Expansão do Santo Daime (CEFLURIS)
Após o falecimento do Mestre Irineu, houve muitas desavenças por parte das
pessoas que não estavam satisfeitas com a nova diretoria. De acordo com informantes, o
Padrinho Sebastião se retirou, com 80% dos discípulos que acompanhavam o Mestre
Irineu, e iniciou, assim, o trabalho que ficou denominado Santo Daime CEFLURIS.
Hoje, no Bairro Irineu Serra, em Rio Branco/AC, existem cinco igrejas dissidentes da
igreja matriz edificada pelo Mestre Irineu que se denomina Daime. Então, há uma
diferenciação:
59
a) Daime:
- Igreja matriz do Alto Santo Centro de Iluminação Cristã Luz Universal
(CICLU), dirigida pela digníssima Madrinha Peregrina Gomes Serra
27
(1938-).
- Igrejas da Barquinha.
- Outras igrejas localizadas no Bairro Irineu Serra, que realizam o ritual
idêntico ao da sede matriz, porém sem vínculo institucional.
b) Santo Daime:
- Igrejas da Colônia Cinco Mil e do Céu do Mapiá (CEFLURIS) Centro
Rainha da Floresta (CRF), que originaram todas as outras igrejas daimistas no Brasil
(fora do Acre), em outros países e atualmente.
- Algumas igrejas nos confins do Rio Juruá, que fazem parte do projeto
Nova Era iniciado em 1997, pelo Padrinho Alfredo, com o intuito de encontrar seus
familiares, por parte de pai, na terra natal do Padrinho Sebastião e também de levar a luz
do Santo Daime juntamente com assistência social e capacitações profissionais, tais
como artesanato e turismo ecológico.
- Igrejas daimistas fora da Amazônia, espalhadas pelo Brasil e nos países do
exterior.
As igrejas que se denominam Daime, até bem pouco tempo eram extremamente contra a
abertura e distribuição do sacramento para pessoas que não eram do Acre (turistas,
forasteiros, etc) e em centros fora do Alto Santo, sendo inclusive contra a criação de
reservas extrativistas, transporte de sacramento, etc. de poucos anos prá cá estão mais
flexíveis recebendo turistas e abrindo algumas filiais fora do Acre (informante).
Diferentemente das outras vertentes daimistas, Padrinho Sebastião recebeu a
missão de expansão da doutrina pelo mundo, adquirindo uma característica
messiânica
28
.
27
Madrinha Peregrina é a vva de Mestre Irineu. Nos cultos do Santo Daime, podemos identificar vários
títulos, de acordo com funções ritualísticas como comandante, presidente, fiscal, puxadeira ou puxadora
etc. O titulo de dignitária pertence somente a Peregrina Gomes Serra, também chamada de madrinha
Peregrina, e ocorre apenas neste grupo que na economia simbólica desse campo, se auto-representa e é
identificado por muitos como o único ou o verdadeiro Alto Santo, o mais puro, o original, a
raiz. (Labate, Rose e Santos 2008 p.25).
28
De acordo com Goulart (2004, p. 85): O deslocamento para o interior da floresta amazônica vivido por
este grupo religioso implicou na mobilização de um conjunto de crenças de caráter messiânico. Talvez
o possamos definir o movimento, conduzido pelo padrinho Sebastião, para o Rio do Ouro e depois para
o Mapiá, como um messianismo pico, mas com certeza ele tem alguns elementos que o aproximam de
concepções e práticas relacionadas a esse tipo de fenômeno. Lembramos, aliás, que a caracterização de
movimentos messiânicos e milenaristas pode variar segundo as perspectivas teóricas de diferentes
estudiosos (Oro, 1989). Segundo Maria Isaura Pereira de Queiroz (1977), por exemplo, tais movimentos
implicam na idéia de um messias que, por meio de qualidades excepcionais, conduz um povo para a
60
O Padrinho Sebastião logo no início, ele quis fundar comunidades. Porque fundar
comunidades? Porque ele tinha uma característica messiânica, ou seja, de encontrar um
povo, de salvação. O que ele pensou: se eu for pro meio da floresta com um povo, eu
vou poder ensinar as crianças de um outro jeito. Por exemplo, se eu vou pro meio da
floresta com 20 pessoas e começar a nascer crianças, ninguém rouba, ninguém furta, todo
mundo respeita todo mundo; essas crianças vão se criar com esta visão do mundo. Toda
revolução que começa de dentro ela se torna efetiva. Nós aqui temos uma comunidade, o
que nós queremos com essa comunidade? Nós queremos isso. Que as crianças, nossos
irmãos possam entrar aqui na minha casa, possam saber que estão seguros, que se vir perigo
todo mundo vai correr pra ajudar, se tiver um irmão doente todo mundo vai ajudar. E
quando surgiu as primeiras histórias da expansão no espiritual, ele passou para o filho dele,
o Padrinho Alfredo para fazer essa expansão, porque ele estava ficando velho, meio
adoentado. O Padrinho Alfredo foi quem começou. Daí, ele foi pro Rio de Janeiro, até para
fazer um tratamento, o Padrinho Sebastião. a filha dele casou com um psicólogo do Rio
que é o Paulo Roberto, o Alex Polari que era um ex-guerilheiro, que foi preso naquela
época, depois foi solto e tava fazendo um trabalho social junto com o Paulo Roberto, foram
para o Mapiá e se apaixonaram pelo Daime, trouxeram o Daime para o Rio de Janeiro,
começou a expansão (Padrinho Alan).
Alex Polari fez parte dos primeiros contingentes que foram atraídos, no
começo da década de 80, pela experiência espiritual e comunitária do Padrinho
Sebastião. Conheceu o Padrinho Sebastião ainda no Rio do Ouro, quando participou,
juntamente com outros irmãos, da primeira comissão que foi estudar o uso ritual do
Santo Daime. Fundou uma igreja e uma Comunidade na Serra da Mantiqueira, divisa do
Rio de Janeiro com Minas Gerais. É membro do Conselho Doutrinário da Igreja,
Secretário de Comunicação do IDA-CEFLURIS e ainda Vice-Presidente da Associação
dos Moradores. Participou ativamente do processo de legalização do Daime, na década
de oitenta, e também do processo de institucionalização do movimento. É autor de
vários livros, ensaios, peças teatrais, etc.
Padrinho Alfredo é um dos filhos de Sebastião Mota, indicado por ele, ainda
em vida, para ser seu sucessor espiritual e principal responsável pela continuação da sua
obra. Ainda na década de 70, assumiu a administração da Comunidade Cinco Mil,
então um grupo de famílias de colonos que se agrupara em torno da figura carismática
do seu pai. Sob a direção de Alfredo, a Colônia Cinco Mil se tornou uma comunidade
muito bem organizada, contando com aproximadamente umas trezentas pessoas.
A partir do começo da década de 80, o Padrinho Alfredo esteve à testa da implantação
da comunidade no Rio do Ouro, onde a comunidade permaneceu durante dois anos.
Foi a partir da sua gestão que se consolidou o crescimento do movimento daimista por
salvação, a qual pretende se estabelecer neste mundo, e não numa outra vida, tendo também,
portanto, um sentido material, prático. Notamos que, já no momento do rompimento do padrinho
Sebastião com o CICLU, o grupo que o acompanha o vê como uma espécie de profeta que prepara um
povo para um momento ou situação especial.
61
muitas cidades brasileiras e também para o exterior. O Padrinho Alfredo, hoje com 50
anos, tem como suas principais atribuões institucionais as de Presidente do Conselho
Superior Doutrinário e Superintendente-Geral do Instituto Social e Ambiental
Raimundo Irineu Serra. Alfredo tem se dedicado ao desenvolvimento dos projetos da
Vila u do Mapiá, realizando viagens pelo Brasil e exterior, e, também, ao projeto de
construção de um novo assentamento comunitário ecológico, na região do Rio Juruá,
terra natal do Padrinho Sebastião.
Inúmeros centros independentes ou não diretamente ligados ao CICLU ou ao
CEFLURIS, surgiram após a expansão para o resto do país, denominados por Labate
(2004) de grupos neo-ayahuasqueiros
29
.
No Rio Grande do Sul temos as seguintes igrejas do Santo Daime do
CEFLURIS (Centro Eclético da Fluente Luz Universal Irineu Serra): Igreja Céu do
Cruzeiro do Sul Centro Eclético da Fluente Universal Francisco Corrente Centro
Eclético da Fluente luz Universal Enio Staub Centro Eclético da fluente Luz Universal
Sol Lua Estrela Grupo nossa Senhora da Conceição Centro Eclético da Fluente Luz
Universal Céu de São Miguel C.H.A.V.E de São Pedro (Centro de Harmonia Amor e
verdade Espiritual).
De acordo com Alancardino Vallejos, o primeiro ponto
30
de cura do Santo
Daime no Rio Grande do Sul foi do psicólogo Roberto Contino, que agregou muitas
pessoas. Mas ele não seguiu a risca a doutrina, de modo que, uns dois anos depois de ele
estar funcionando, o irmão Flávio Paim, casado com a Dra. Margareth, fundou a igreja
Cruzeira do Sul, que veio a localizar-se em Viamão, na Estrada do Canta Galo. Em
seguida, Roberto Contino fechou sua igreja. A partir dali, abriram-se vários pontos de
29
Labate (2004, p.491-492) discutiu e caracterizou os chamados neoayahuasqueiros, que, segundo a
autora: 1. São pequenos grupos emergentes nos grandes centros urbanos, ainda com caráter experimental,
cujas práticas representam novas modalidades urbanas de consumo da ayahuasca. São fruto da
introdução da União do Vegetal e do Santo Daime nos grandes centros urbanos a partir das décadas de
1970 e 1980, respectivamente. 2. Os grupos geralmente são dirigidos por lideranças com características
carismáticas. Aparecem nos seus discursos com freqüência categorias como dom e intuição. 3. Vivem
numa tensão entre, por um lado, a crítica e a rejeição dos modelos tradicionais de consumo da
ayahuasca dispoveis, e por outro, a preocupação em não resvalar para o uso tido como profano de
drogas. São então, fabricados novos tipos de rituais e elaborados discursiva e simbolicamente referenciais
filoficos, existenciais e terapêuticos de cunho espiritualizante. As propostas deste segmento estão
pautadas por uma relação ambígua com as matrizes das quais derivam, rejeitando e ao mesmo tempo
mantendo ou ressignificando aspectos das mesmas. São introduzidas rupturas significativas, na grande
maioria das vezes, a partir dos referenciais Nova Era, ao mesmo tempo em que a sua legitimidade deriva
da suposta continuidade com estes mesmos usos tradicionais. 4. Representam também um processo de
segmentação do consumo da ayahuasca, recortando para si um novo tipo de público especializado.
30
Ponto é o nome designado pelos daimistas ao grupo que ainda não faz trabalhos de hinário, não se
configurando uma igreja.
62
cura do CEFLURIS: um em Campo Bom, outro em Dois Irmãos e, em 1995, um em
Novo Hamburgo. Surgiram, depois, outras linhas de trabalho com Santo Daime, que
não são do CEFLURIS. Havia um centro em Caxias do Sul, que hoje é uma igreja, outro
em Porto Alegre, que terminou fechando. Os do Vale dos Sinos formaram uma união,
sendo fundada a igreja Céu de São Miguel pelos irmãos Alancardino, Rosinha e Elisa
Feiten. Quando os pontos de cura resolveram formar uma igreja, isso foi recebido num
trabalho espiritual, no hinário do irmão Antônio Gomes. O irmão Alancardino teve uma
inspiração do nome, que foi proposto e todos aceitaram. Logo em seguida, surgiu um
irmão que quis fazer a compra das terras, onde hoje encontra-se a comunidade, o que foi
realizado em 1998.
2.7 A Comunidade Céu de São Miguel (AbenSaM)
A Comunidade u de São Miguel está localizada em Picada Verão, no
interior do Município de Sapiranga/RS. O município foi criado em 1954, tem 69.189
habitantes, representando 1,86% da população da região metropolitana, sendo 65.785
habitantes na zona urbana (95,08%) e 3.404 habitantes na zona rural (4,92%). Com área
de 137,5 km², representando 1,40% da área da região metropolitana, sua densidade
demográfica é de 518,91 habitantes por Km² e seu IDH é de 0,806
(www.ceudesaomiguel.org).
A igreja Céu de São Miguel foi fundada dia 29 de setembro de 1998, pelo
Padrinho Chico Corrente (um dos daimistas preso no aeroporto de Barajas-Madrid em 5
de abril de 2000 pelo porte de 10litros do chá ayahuasca), autorizado pelo Padrinho
Alfredo, Mestre imediato do CEFLURIS. Atualmente possui em média 60 membros
fardados. De acordo com o dirigente da igreja, esta nasceu com vocação de união,
pois resulta da união de três Pontos de Cura.
Originalmente, na região do Vale dos Sinos, surgiu o Ponto Reino Unido e a
Sagrada Família, aquele, dirigido pelos irmãos Luiz Daniel Victorino e Elisa Feiten e
este, pelo irmão Donezeti de Oliveira. O primeiro funcionava em Dois Irmãos e o
segundo, em Campo Bom. Isso por volta dos anos de 1992 e 1993, quando receberam a
visita do saudoso Padrinho Wilson, eis que o Santo Daime vinha da Colônia Cinco
Mil. Em 1994, Alancardino Vallejos e sua esposa Rosa Maria Vallejos passaram a
freqüentar esses pontos e, posteriormente, por desentendimentos, se afastaram,
63
inaugurando o Ponto Fonte Cristalina, em Novo Hamburgo. Em início de setembro de
1997, o irmão Donezeti recebeu uma mensagem espiritual para fazer a união com a
Fonte Cristalina. Reunidos os dirigentes, iniciou-se um processo de consulta à
irmandade. Em novembro do mesmo ano, na igreja Cruzeiro do Sul, todos receberam a
mesma mensagem espiritual de união, resultando daí, após uma aprovação da maioria
das irmandades de cada grupo, a decisão de fundirem-se em uma igreja. Por
inspiração espiritual, o irmão Alancardino recebeu a mensagem que o nome deveria ser
u de São Miguel, o que foi aprovado por todos.
Como no capítulo anterior, utilizarei um trecho do meu diário de campo para
descrever a Comunidade do Céu de São Miguel:
10 de maio de 2008, sábado, véspera de Dia das Mães. Conforme combinado, às 15h fui
encontrar na rodoviária de Porto Alegre a pessoa que Mauro me indicou para ir à
comunidade daimista. Mauro é meu principal informante, foi sócio da UDV e atualmente é
fardado do Daime. Ele me indicou uma amiga sua que é free, indo eventualmente aos
trabalhos. Acertamos de nos encontrarmos em frente ao Box do ônibus que parte para o
município de Dois Irmãos. Não nos conhecíamos e para nos identificarmos ela me disse que
era loira e estaria vestindo uma blusa azul. [...] Durante a viagem E, uma mulher de 50 anos
muito extrovertida me relatou toda sua trajetória de vida. Foi aluna do Mauro 15 anos
num curso de florais onde se tornaram amigos e nunca perderam o contato. Mauro que tinha
indicado o Santo Daime para ela [...] levamos em torno de uma hora e trinta minutos para
chegarmos à rodoviária de Dois Irmãos, lá telefonamos para Mauro que foi nos buscar de
carro, pois o acesso a comunidade é possível assim, não existe condução que chegue até
lá ou perto [...] Chegando ao final da avenida principal da cidade Mauro nos conduz por
ruas secundárias não asfaltadas que acesso a zona rural de Picada Verão. O trajeto até a
comunidade dura cerca de trinta minutos onde vislumbramos sítios, pequenos produtores e a
própria comunidade rural com seus moradores, uma pequena igreja luterana, uma usina de
reciclagem, um armazém de produtos coloniais, tudo cercado por muita vegetação nativa,
morros e riozinhos que dão origem as várias cascatas e cachoeiras existentes nessa região. A
comunidade fica próxima a estrada de acesso a reserva ecológica Sítio da Família Lima.
Após a placa que diz AbenSaM, informando a entrada da comunidade, subimos por uma
estradinha razoavelmente íngreme de solo arenoso, rochoso e muito esburacado do qual
avistamos a porteira de madeira sempre aberta da comunidade. É a segunda vez que estou
indo a comunidade. Na primeira fui participar de um trabalho de concentração, porém
quando cheguei ao local era noite (não podendo assim observar muito o ambiente), a
carona que peguei saía de seu trabalho às seis horas da tarde e conseqüentemente também
havia muitos congestionamentos na Freeway (BR290) e na BR116, o que faz com que os
trabalhos daimistas sempre iniciem com atraso do seu horário previsto que é as 20h,
iniciando assim por volta das 20h30min ou até mesmo as 21h. Logo que entramos
avistamos a esquerda a Casa Geral onde fica a recepção, que se constitui de uma pequena
loja em que se vendem os hinários que são livrinhos estilo pocket book, artigos religiosos
como imagens de santos e a cruz de caravaca. Também ali fica a tesouraria para ser acertado
mensalidades e a taxa de visitantes e o depósito de doações de agasalhos e kilos de alimento
que são distribuídos a instituições de caridade. Nos fundos, pela entrada lateral, temos uma
pequena cozinha, pois diferentemente da UDV os daimistas não costumam fazer lanches
antes e depois da sessão (eventualmente quando tem algum membro aniversariante no
final da sessão confraternização com bolo). A cozinha acesso a sala, que possui duas
mesas grandes de madeira e um conjunto de sofás e no andar de cima têm-se quartos para as
pessoas que moram mais longe poderem se preferir descansar e retornar no outro dia ou para
aqueles que vão passar uns dias na comunidade. Nos fundos da casa, na entrada lateral da
cozinha tem um galpão com duas grandes mesas de madeira com churrasqueira. Passando a
Casa Geral vê se o grande Santo Cruzeiro que é a cruz de caravaca, que possui dois braços
64
sobrepostos, sendo o de cima maior que o de baixo, na cor branca com altura aproximada de
2,5 metros numa base hexagonal com uma pequena capela de vidro onde se acendem velas e
se colocam flores, no chão a estrela de seis pontas. Esta cruz é um dos principais mbolos
daimista, significando a volta de Jesus Cristo, o Mestre Irineu bem como o trabalho do
discípulo sobreposto ao do Mestre. Ao redor encontramos canteiros de formas arredondadas
delimitados com pequenas pedras redondas (pedras de rio) pintadas umas de branco e outras
de amarelo. O canteiro central possui o formato de uma estrela de seis pontas (estrela de
Salomão), seis metros de distancia em linha reta das portas de entrada da igreja onde
então está fixada a cruz de caravaca. Ao redor estão plantadas folhagens chamadas de
espada de São Jorge (as folhas possuem formato fino e longo que lembra uma espada) e
flores miúdas multi coloridas, como amor-perfeito e Maria sem-vergonha. A igreja é
cercada por árvores frutíferas e mata nativa. A direita, bem em frente ao Cruzeiro encontra-
se a igreja e do lado esquerdo da igreja os apertados banheiros masculino e feminino que são
também os vestiários e do lado direito um pequeno galpão bem alto e ventilado onde em
todos os rituais é acesa a fogueira e mais acima o pequeno cultivo do jagube e da rainha. Do
outro lado do Cruzeiro uma pracinha para as crianças. E dois bancos de descanso. A
esquerda de tudo isso em forma de lua crescente encontram-se espalhadas e razoavelmente
afastadas uma das outras as casas dos moradores da comunidade. A primeira casa nesse
sentido de crescente lunar da entrada da comunidade para cima é a do Mauro, que é uma
casa muito grande, de três pisos, cinco quartos feita de alvenaria e madeira. Ele nos diz que
ainda não terminou completamente a casa e que assim que terminá-la pretende se mudar
definitivamente para lá. Descemos do carro que ficou estacionado na estrada em frente à
casa e Mauro me leva por este caminho a casa do dirigente Alancardino, eu tinha combinado
de entrevistá-lo. A casa de Alancardino é a terceira deste sentido crescente. É uma casa
grande de dois pisos parte de alvenaria e parte de madeira. Entramos pela lateral da casa
onde fica a área, fomos recebidos pela madrinha Rosinha esposa do padrinho Alancardino.
Mauro se despede e retorna para sua casa. Eram 17h quando adentrei pela área de serviço,
onde fica a lavanderia, passando a lavanderia chega-se na cozinha em estilo americano onde
Alancardino está sentado tomando café, ele está fazendo sua refeição antes do ritual de
hoje o bailado de Dia das Mães que vai durar cerca de doze horas. Alan diz que procura
fazer sua última refeição duas ou três horas antes da sessão conforme os ensinos do Mestre
Irineu. Junto a cozinha americana está a sala de jantar onde sou convidada a sentar para
realizar a entrevista. A casa possui um estilo rústico e muito aconchegante onde pode se ver
muitos artefatos religiosos, desde quadros a objetos. Da sala de jantar pode-se visualizar a
direita a sala de estar com sofá e televisão e também um pequeno altar repleto de santos, a
cruz de caravaca e uma pequenina garrafa de daime, algo muito comum nas casas dos
daimistas. A esquerda da sala de jantar tem-se uma pequena sala com lareira revestida de
paredes de vidro, onde se tem uma linda vista para os morros, as árvores e toda vegetação.
Alan é um homem de 60 anos, magro, de estatura mediana, cabelos escuros, usa bigode. É
calmo, simpático, receptivo e ao mesmo muito firme. É um juiz de direito aposentado e
atualmente atua como advogado possuindo um escritório na cidade. É maçom e
anteriormente pertenceu a Ordem Rosazruz e sua esposa antes de pertencer ao Santo Daime
era babalorichá. Possuem dois filhos homens adultos, casados que não residem mais com
o casal. A mãe da madrinha Rosa também é daimista e moradora da segunda casa, a que
antecede a deles. [...] Assim, a entrevista se deu com o padrinho, a madrinha e mais um
morador da comunidade que posteriormente chegou à casa. Encerrando a entrevista por
volta 18h parto em direção a igreja para participar do trabalho de hoje. No caminho encontro
a esposa de Mauro, seguimos juntas caminhando. Ela me diz que esta um pouco ansiosa,
pois hoje é o dia do seu fardamento e de sua filha mais velha de nove anos. O fardamento é
um momento muito importante dentro da doutrina daimista, está se assumindo o
compromisso de servir ao exército de Juramidam. Ela me conta que nunca ofereceu o
daime para sua filha, a menina que sempre mostrou interesse pedindo para tomá-lo bem
como o desejo de fardar-se. Enquanto conversamos chega num utilitário uma outra quase
moradora definitiva da comunidade. D é há muitos anos aposentada por invalidez devido a
um acidente de automóvel do qual decorreram múltiplas fraturas na coluna, mora em Porto
Alegre e está organizando e providenciando sua mudança definitiva. Ela me convida para
conhecer sua casa que é a última do crescente lunar, ficando quase no topo do terreno da
comunidade, onde antigamente era o caminho de Jacobina. A partir da igreja o terreno é
uma encosta do Morro Ferrabráz, onde se encontram as outras casas do lado esquerdo e do
lado direito a mata nativa com uma cachoeira, a terreira destinada aos trabalhos de
65
umbandaime e a casa de feitio de daime. Para ter acesso a sua casa somente de carro e de
utilitario, pois em determinado ponto um carro comum não sobe mais. Enquanto subimos
ela me diz que essa era a estrada onde passavam os cavalos da época de Jacobina. Jacobina
foi der do que foi considerado uma seita religiosa dissidente do protestantismo,
conhecido como Os Mucker. Ela tinha visões e preleções religiosas ao mesmo tempo que
trabalhava com o curandeirismo formando um povoado o que resultou na Revolta dos
Muckers em 1874. D me diz que o espaço onde se encontra a casa dela tem uma energia
muito diferente e poderosa do resto da comunidade, ela mesma já escutou e viu muitas
coisas onde se tem uma vista magnífica do todo. No caminho também pude ver
rapidamente a casa de feitio, é uma edificação mista de madeira e alvenaria, bem construída
e sem paredes, com divisórias internas onde ficam a fornalha e o local de bateção do cipó.
Também consigo ver a terreira que é um espaço circular no meio da mata com areia no
chão. [...] A casa é um pequeno chalé com aproximadamente 20 m² sendo todo de madeira.
Ela possui um gato, pelas regras da comunidade cada casa tem o direito de ter somente um
animal de estimação, ela é apaixonada por gatos, me diz assim que entramos que gostaria de
trazer os seus de Porto Alegre. Em seguida me convida para tomarmos um café antes do
longo trabalho que nos espera hoje [...]
2.8 A Igreja do Céu de São Miguel
A construção da igreja do u de São Miguel é de pedras de alicerce
pintadas de azul e paredes de alvenaria com reboco liso pintada de branco, coberto com
brasilite, possuindo o formato de uma casa. Na parte frontal da igreja estão as duas
portas de entrada, situadas uma ao lado da outra. A porta direita é destinada à entrada
masculina e a porta esquerda, à entrada feminina. As portas são feitas de madeira, com
entalhes de formatos retangulares na cor azul em tom médio. Na parte superior da porta
escentralizada uma pequena janela de vidro, onde estão estampados em jato de areia,
o desenho de uma Lua na porta esquerda e um Sol na porta direita. A Lua, para os
Daimistas, é a Dama da Noite, que rege os ciclos vitais terrenos e é a Grande Mãe
Universal, representada pela Nossa Senhora da Conceição ou Rainha da Floresta. O
Sol é o Grande Pai, representado por Jesus Cristo e o Mestre fundador.
Entre as duas portas tem-se um pequeno sino de ferro, na cor preta, utilizado
para anunciar o início dos trabalhos espirituais.
Centralizado a cima das duas portas, próxima a cumieira (perto do telhado),
encontra-se, vazada na parede, a cruz de caravaca, com altura aproximada de um metro
e trinta centímetros.
Ao lado das portas de entrada estão dispostas duas janelas com venezianas
de duas folhas em madeira pintadas na mesma cor das portas. Nas paredes laterais da
casa existem duas janelas nas mesmas condições.
66
A igreja não possui a arquitetura informada pela Rainha da Floresta, que é
a Nossa Senhora da Conceição, patrona da doutrina, mãe soberana e protetora, recebida
pelo Mestre Irineu, fundador da doutrina, numa miração (nome dado às imagens
contempladas, quando se está sob o efeito do chá). Esta arquitetura recebida por Mestre
Irineu possui formato hexagonal e é desprovida de paredes inteiriças. Deste modo, estas
o feitas com toras de madeira na posição horizontal, compondo as paredes, com cerca
de um metro e vinte centímetros de altura, permitindo ampla visibilidade interna e
externa. Em cada vértice do hexágono uma coluna, e nessas colunas se apóia o
madeirame do telhado feito de brasilite. As janelas são vãos abertos cobertos por
toldos de plástico transparente. A entrada fica na parte frontal do templo. A maioria das
igrejas do Daime possuem esta arquitetura. O padrinho Alancardino fala sobre a
construção da igreja, realizada pelas próprias mãos da irmandade:
Quando fundamos o Céu de São Miguel tínhamos duas alternativas: ou construíamos uma
igreja nova, ou aproveitávamos um salão que existia nas terras adquiridas. Optamos por
aproveitar o salão, porque o custo seria muito menor. Aí tínhamos outros dois caminhos: ou
fazer a igreja retangular, tal como é no Alto Santo, ou fazer ela sextavada, tal como é no
CEFLURIS. As igrejas de Santo Daime seguem, em geral, o padrão do Alto Santo, ou seja,
são retangulares, a mesa central é retangular e os músicos sentam-se à mesa, ou em um local
próprio e apartado. No CEFLURIS, o Padrinho Sebastião, que era um homem mediúnico,
passou por uma fase difícil na Colônia Cinco Mil e uma entidade, que se denominou Rei
Tranca-ruas, pediu que ele abrisse um espaço que ele denominou Estrela, Casa Estrela, seria
o nome, onde ali se discutiriam os problemas pessoais, as querelas, as quesilhas, as
desavenças, enfim, o que de mais baixo existe na alma humana. A Casa Estrela teria uma
mesa central em forma de estrela de Salomão, ou seja, estrela de seis pontas. Essa cultura
acabou passando para as igrejas do CEFLURIS e todas passaram a adotar a mesa em forma
de estrela de seis pontas e o bailado sextavado. Nossa igreja é quadrangular, mas o bailado é
sextavado e a mesa central é em forma de estrela. Não nada escrito sobre isso, são
tradições orais que se aprende com os antigos da doutrina (Padrinho Alan).
O símbolo maior do trabalho espiritual é o Salão, chamado de Egrégora, de
Igreja pelos daimistas. Ele é o espaço consagrado e local sagrado, onde é louvado a
Deus, os santos, os profetas e os seres do Universo. O Salão de trabalho é um espaço
que, uma vez consagrado e respeitado pelos membros da igreja, torna-se um templo,
um centro de emissão e recepção de tudo quanto é bom, alegre e prospero, como diz a
Consagração do Aposento lida em todas as sessões pelo padrinho.
No chão azul escuro do salão, são pintados de branco três hexagonos
cocêntricos. No centro, está a mesa, em formato de estrela de seis pontas, no centro da
mesa, o Santo Cruzeiro, principal símbolo da Doutrina do Mestre Irineu, e três velas
acesas, que simbolizam o Sol, a Lua e as Estrelas e tem uma quarta vela em homenagem
a todos os seres divinos e guias espirituais da Doutrina. Em trabalhos de limpeza e de
67
cura, onde há muito descarrego, usa-se uma vela embaixo da mesa. Também é
colocado na mesa flores e a foto do Mestre Irineu e do Padrinho Sebastião, em um
porta-retrato.
No fundo da igreja, do lado oposto às portas de entrada, encotra-se a casinha
do daime, que lembra muito uma capelinha, onde a pessoa que serve o daime fica do
lado de dentro e os fiéis, em fila, recebem o chá por uma janela pelo lado feminino e
outra pelo lado masculino. Na parede da casinha do daime estão espalhados quadros
com fotos de alguns Padrinhos imporantes da doutrina daimista. Do lado feminino,
encontra-se uma saída para o berçário e no lado masculino, a saída para o quarto de
cura, um pequeno espaço com uma cama, destinado a atendimentos individualizados,
quando necessario, durante o ritual.
O teto não possui forro, as treliças de madeira ficam aparentes, sendo
cobertas por bandeiras de papel tipo São João multicoloridas e estrelas de seis pontas
penduradas. No lado masculino da igreja, um grande poster de Jesus Cristo e num
pedestal as bandeiras do Brasil, do Rio Grande do Sul e a do Santo Daime e no lado
feminino, um poster de Nossa Senhora da Conceição e outro de um beija-flor. Na parte
interna, acima das duas portas de entrada da igreja, uma imagem de São Miguel
Arcanjo.
68
SANTO DAIME UDV
Nome do Chá
Ayahuasca
Daime Vegetal/hoasca
Mestre Irineu Gabriel
Doutrina
Ecletismo evolutivo, doutrina
mutável
Ecletismo involutivo, doutrina imutável
(segue somente os ensinos do Mestre
Gabriel)
Desenvolvimento do
Ritual
Hinário, bailado, instrumentos
musicais, orações, rezas, passes,
incorporações
Músicas, chamadas, perguntas e
respostas, explanações
Organização
Comunidade centrada no
padrinho
Sociedade religiosa hierárquica
Nome do Ritual Trabalho/sessão Sessão
Tipos de Rituais
Bailado, concentração, cura,
umbandaime, mesa branca, etc
Sessões de escala, anual, instrutiva,
Direção e Quadro de Mestres
Nome de Ritual De
Fabricação do Chá
Feitio Preparo
Termo da Ingestão
da Bebida
Tomar o daime Beber o vegetal
Nome das Plantas Folha é rainha, ci é jagube Folha é chacrona, cipó é mariri
"Livro" da Doutrina Hinário Chamada
Postura Durante o
Ritual
Sentado, de pé, cantando e
bailando
Sentado e normalmente as perguntas são
feitas de pé e respondidas de pé pelo
dirigente
Invocação da Força Todos cantam Apenas um canta
Fórmula da Bebida + rainha (60%), - jagube (40%) - chacrona (15%), + mariri (85%)
Entidade do Astral Juramidam Caiano
Mestre dos Mestres Deus/Jesus Deus/Jesus
Mestre da Sabedoria Salomão Salomão
Nome da Vestimenta farda uniforme
Cores da Vestimenta
Branco e verde (bailado), branco
e azul (outros)
Masculino: calça branca e camisa verde,
feminino: calça ou saia amarela e camisa
verde
Estrela
Seis pontas pendurada na farda
para todos
Cinco pontas bordada no uniforme para
os mestres
Duração do Ritual 4, 6, 8 ou 12h 4h
Disposição dos
Participantes por
Sexo no Salão
Mulheres de um lado, homens de
outro (dois semi-círculos)
Misturado (círculo único)
Nome do Sacerdote Padrinho Mestre
69
SANTO DAIME UDV
A Comunhão Bebe um de cada vez e em fila
Todos recebem o copo e bebem juntos na
mesma hora
Frequência de
Ingestão do Chá
Ao comando do padrinho, no
mínino duas vezes
A vontade do membro, até no máximo às
22h
Terminologia dos
Efeitos do Chá -
"estado de graça"
Força Burracheira
Nome das Visões
Contempladas
Mirações Mirações
Nomes dos Mal
Estares
Físicos/Psicológicos
Peia Peia
Efeito do Chá
O efeito tende a passar mais
rápido, por isso a repetição
obrigatória (depende da
concentração do princípio ativo
do chá)
Efeito de duração mais prolongada, por
isso se bebe uma vez e se repete de
acordo com a vontade (depende da
concentração do princípio ativo do chá)
Nome do Salão do
Ritual
Igreja Templo
Disposição de
Entrada e Saída
Os homens entram e saem por
uma porta e as mulheres por
outra
Homens e mulheres na mesma porta no
sentido anti-horário
Tabela 1 Quadro comparativo UDV X Santo Daime
70
CAPÍTULO 3
O CAULE NA UNIÃO DO VEGETAL
O caule é o alicerce da rosa.
Neste capítulo, me deterei sobre a doutrina, organização, fundamento e
rituais da União do Vegetal - UDV. Complementando a metáfora da rosa, o caule seria,
então, a estrutura do uso da ayahuasca pela UDV, que sustenta a experiência.
3.1 A Doutrina
A União do Vegetal se denomina uma religião cristã reencarnacionista.
Deste modo, a UDV baseia seus ensinamentos no princípio da reencarnão
evolucionista. Este princípio fundamenta-se na convicção de que, através de sucessivas
encarnações, o espírito evolui, desenvolvendo uma gradual fidelidade à prática do Bem,
até atingir a Purificação - a santidade. A União do Vegetal reconhece Jesus Cristo como
o Filho de Deus, a própria Divindade, sendo Ele a expressão da Divindade e Sua
Palavra aponta o caminho da Salvação para a humanidade. E crê na Virgem Maria,
Nossa Senhora Imaculada, Mãe de Jesus, pautando, assim, as orientações espirituais de
sua doutrina pelo princípio máximo da cristandade, de que "o discípulo deve amar ao
próximo como a si mesmo para ser merecedor do símbolo da União: Luz, Paz e Amor"
conforme as Leis do Centro
31
:
A União do Vegetal professa os fundamentos do cristianismo, resgatando-os em sua pureza
e integridade originais, livre das distorções que lhes imprimiu, ao longo dos séculos, a mão
humana. (Centro Espírita Beneficente União do Vegetal: Hoasca, fundamentos e objetivos,
1989, p.22).
31
A vida institucional da UDV é regida por um conjunto de documentos, dirigidos aos discípulos e
dirigentes, como normas gerais de conduta moral, convívio social e práticas administrativas - as Leis do
Centro, único doutrinário escrito: CENTRO ESPIRITA BENEFICENTE UNIÃO DO VEGETAL.
Consolidação das Leis do Centro Espírita União do Vegetal. Brasília: Sede Geral, Centro de Memória e
Documentação da União do Vegetal, 1994, 4 ed. E: CENTRO ESPIRITA BENEFICENTE UNIÃO DO
VEGETAL. União do Vegetal: hoasca; fundamentos e objetivos. Brasília: Sede Geral, 1989. Há também
informações sobre as Leis do Centro no site oficial do CEBUDV: www.udv.org.br .
71
A instituição religiosa considera, como uma das conseqüências mais graves
dessa distorção da mão humana, o desvio doutrinário que resultou na exclusão da
reencarnação, considerado um preceito milenar, adotado tanto pelo espiritualismo do
Oriente como pelos primeiros cristãos, até o século V da nossa Era, sendo uma
Verdade de Fé de Jesus Cristo, fundamental para a perfeita compreensão do conceito de
Justiça Divina (DMD).
Para Gentil e Gentil (2002), o corpo doutririo da UDV é ectico. A
doutrina tem como base o cristianismo, mas trabalha, também, com elementos das
culturas africanas e indígenas e aproxima-se de outros preceitos espíritas, por ter a
reencarnação como um dos seus pilares. Andrade (1995), em sua dissertação de
mestrado em Ciências da Religião: O fenômeno do Chá e a Religiosidade Cabocla
um estudo centrado na União do Vegetal, analisa que tanto a doutrina da União do
Vegetal quanto a do Santo Daime o formas cristianizadas da tradição xamânica.
Seus fundadores batizaram a ayahuasca utilizada pelos vegetalistas com os valores
básicos da ética cristã (p. 122).
Diferentemente do Santo Daime, a UDV o realiza trabalhos com
espíritos desencarnados, como a doutrinação desses e a incorporação mediúnica. Para
UDV, um corpo só pode ocupar um espírito, não havendo, assim, possibilidade de
incorporação. Porém, a de se ressaltar que, dentro de sua trajetória, José Gabriel da
Costa (Mestre Gabriel) freqüentou dois terreiros de Candomblé, antes de fundar a União
do Vegetal, recebendo o título de Pai de Terreiro, incorporando a entidade Sultão das
Matas que era um grande conhecedor das plantas, realizando muitas curas, num culto
que, de acordo com Ricciardi (2008a), se aproximava do xamanismo indígena e da
pajelança cabocla (p. 34). Porém, a história transmitida oralmente pelos adeptos da
UDV diz que o Mestre Gabriel atuava como o Sultão das Matas e não
incorporava. Mestre Gabriel fez essa revelação posteriormente, quando havia
fundado a UDV, alegando que, se contasse que ele mesmo era o sultão das matas,
ninguém daria o valor dele. Posteriormente, com a União do Vegetal, Mestre Gabriel
continuou utilizando outras plantas da região Amazônica, associadas à ayahuasca e
destinadas à cura. Essas plantas são designadas de os nove vegetais, sendo elas: O
Breuzim, a Samaúma, o Apuí, a Castanheira, o PauDarco, o Mulateiro, a Umburana de
Cheiro, a Carnapanaúba e a Maçaranduba. Atualmente, a UDV não utiliza mais os
nove vegetais por determinações legais.
72
Goulart (2004), em sua tese de doutorado, diz que a experiência do Mestre
Gabriel com as macumbas é relatada de tal modo que ela parece uma fase de sua vida,
na qual o seu poder extraordinário já se mostrava evidente. A impressão é que para os
seus discípulos, o Mestre Gabriel não se confunde com os terreiros e batuques, mas
destaca-se neles como representante de uma ação superior no interior de um culto
inferior. Ela compreende que a idéia, segundo a qual o ritual da UDV rompe
definitivamente com as práticas de cultos afro-brasileiros, constitui-se, na verdade, num
dos principais argumentos do discurso udevista, visando legitimar tanto a fundação
desta linha ayahuasqueira, quanto em definir seus limites no tocante a outros grupos
religiosos. Diz ela:
Por exemplo, voltando à analise da declaração o Sultão das Matas sou eu, percebemos que
os adeptos da UDV já distinguiam o tipo de transe, vivido pelo Mestre Gabriel nos terreiros
de Macumba, das experiências dos outros participantes desses cultos. Assim, o seu poder
notável associa-se muito mais às suas características pessoais extraordinárias do que à
atuação de um caboclo ou guia [...] A meu ver, a questão da ruptura ou não do Mestre
Gabriel e da própria UDV, com uma tradição religiosa afro-brasileira, é muito mais
complexa e talvez seja não apenas difícil estabelecer o momento exato no qual este
rompimento se deu, mas impossível afirmar que, de fato, ele tenha ocorrido por completo.
Trata-se de uma idéia que, visivelmente, implica em contradições. Afinal, como é possível
afirmar um total distanciamento em relação a cultos que, no passado, o próprio Mestre
Gabriel participou de maneira ativa e intensa? (p.189-190).
Neste sentido, a autora mostra que, independentemente das diferenças
relativas aos tipos de transe nos cultos afro-brasileiros ou na UDV, mantêm-se, entre os
primeiros e esta última, uma série de relações, paralelos rituais, simbólicos e
doutrinários, indicando que há, entre os dois universos, mais continuidade do que se
poderia supor numa observação inicial, como por exemplo, a semelhança entre o ponto
da macumba ou umbanda e a chamada
32
da UDV. A ruptura afirmada pelos adeptos
da UDV expressa uma lógica típica de mitos legitimadores de doutrinas, missões e
ritos, nos quais é preciso enfatizar uma descontinuidade radical no tocante a outras
tradições e personagens religiosos.
Os ensinamentos espirituais são transmitidos na UDV por tradição oral e,
exclusivamente, no âmbito do seu ritual religioso. Não referências escritas para as
orientações doutrinárias, cabendo aos mestres transmiti-las a partir de sua própria
32
As chamadas são cânticos trazidos pelo mestre ou algum discípulo, durante as sessões, que
proporcionam elevação espiritual e que o colocam em contato com o astral superior, de onde vêm os
ensinamentos necessários para orientar os discípulos. As chamadas não podem ser escritas ou divulgadas
fora do âmbito do ritual, pois o discípulo deve estudá-la e memorizá-la, durante a burracheira. Assim,
neste trabalho não será reproduzida nenhuma chamada da UDV.
73
memória, que é um aspecto marcante da prática religiosa da União do Vegetal: o grau
de desenvolvimento espiritual dos discípulos grau espiritual ou grau de memória.
Este grau estaria, então, relacionado à capacidade de compreender e memorizar os
ensinos sob o efeito do chá, ou seja, de burracheira
33
, durante a sessão. Assim sendo,
este grau não está ligado, por exemplo, à inteligência acadêmica. Cada membro recebe a
instrução dos ensinos de maneira criteriosa, de acordo com o lugar que ocupam na
escala hierárquica do centro. E a ocupação, bem como ascensão hierárquica, está
relacionada a esse grau de memória e ao praticado do sócio. O praticado
34
está
relacionado com a prática fiel do bem, da retidão e outras orientações, de acordo com as
Leis do Centro e a doutrina que serão melhor analisadas posteriormente.
A União do Vegetal está toda ela organizada em hierarquias. Seus membros,
que são todos os associados do centro, são chamados de sócios ou discípulos que podem
ocupar os seguintes graus: Quadro de Mestres que são os responsáveis pelo equilíbrio
da União, pela instrução e doutrinação espiritual e pelo cumprimento de todas as Leis da
União do Vegetal; o Corpo do Conselho que tem o direito de aconselhar a irmandade,
auxiliar o Quadro de Mestres, mas não podem doutrinar; o Corpo Instrutivo é o
primeiro grau da ascensão, após se tornar sócio, no qual o discípulo passa a receber os
ensinos, que são reservados, transmitidos num ritual especial chamado de sessão
instrutiva e os sócios.
De acordo com o Estatuto do Centro, o Quadro de Mestres é considerado o
espelho dos discípulos, sendo suas atitudes uma referência de observação e exemplo
de conduta que deve ser seguida pelos demais. O Quadro de Mestres comporta a
seguinte ordem hierárquica:
I Mestre Geral Representante: é autoridade máxima do Centro, que
responde pela União do Vegetal no Brasil e no exterior, residindo, assim, próximo à
Sede Geral, em Brasília. A ele compete convocar e presidir o Conselho da
Representação Geral e o Conselho de Administração, doutrinar e supervisionar os
33
De acordo com Lira (2009, p.27) o mestre Gabriel foi quem trouxe essa palavra no intuito de
denominar os efeitos do Vegetal. Acredita-se que seja derivada da palavra espanhola borrachera, que
denomina os estados da embriaguês alcoólica. Provavelmente, nos seringais, as pessoas deviam se referir
às propriedades visionárias do chá chamando tudo aquilo de borrachera. Então o mestre, por ser
conhecedor das palavras, teria substituído o o pelo u, criando uma nova denominação para diferenciar
o estado místico da bebida, daquele entorpecimento profano remetido pela palavra borrachera.
34
Praticado é a expressão utilizada por um dos mestres do núcleo, que é mais caboclo, que será adotada
aqui, porque ela engloba toda a prática, a doutrina, o uso da palavra, o comportamento prescrito pela
UDV, num sentido mais amplo que a palavra prática propriamente dita.
74
discípulos, zelando para que os trabalhos obedeçam às normas religiosas, cumprindo e
fazendo cumprir as Leis do Centro;
II Mestre Assistente Geral: auxilia, assiste e substitui o Geral no que
couber;
III Mestre Central da Região: é a autoridade xima da Região, sendo
indicado pelo Mestre Geral para o papel de supervisionar o funcionamento dos Núcleos,
Pré-Núcleos e Distribuições de Vegetal existentes na Região;
IV Mestre Representante: é a autoridade máxima docleo ou Pré-
Núcleo, sendo eleito pelo Quadro de Mestres por um período de dois anos;
V Mestre Assistente: compete assistir o Mestre Representante e substituí-
lo em suas ausências e impedimentos;
VI Mestres: Auxiliam o Representante e o Assistente, sendo, também,
responsáveis pela doutrinação e cumprimento das Leis do Centro.
3.2 Igreja, Seita e Tipo Místico
Para Andrade (2002), a hierarquia da UDV é, sem dúvida, um de seus
principais pontos característicos, criando uma ordem interna no grupo, forjando um
ponto de convergência, em torno do qual giram todas as compreensões dos adeptos.
Esse ponto de convergência é a união, entendido em dois sentidos: no sentido de união
das pessoas que se utilizam do chá e no sentido de união dos dois vegetais: o mariri e a
chacrona. É de sua hierarquia que emana o princípio norteador da doutrina, a obediência
que serve como critério selecionador, de filtro para ascensão e manutenção dos postos
hierárquicos: sem obedecer aos superiores, não se ascende aos degraus da seita e, da
mesma forma, o se obtém acesso ao conhecimento secreto, não sendo possível
permanecer nestes postos hierárquicos.
O autor utiliza o termo seita no sentido de agrupamento religioso,
organizado de forma hierárquica, em torno de um ensinamento básico secreto. Alega
sentir-se à vontade para utilizar este termo, uma vez que o próprio grupo adota essa
terminologia.
O conceito de novos movimentos religiosos está diretamente relacionado ao
de seita ou culto. Para alguns estudiosos, esses dois termos o utilizados
indistintamente e definem um agrupamento religioso diferente dos tradicionais,
75
geralmente, nascidos a partir de um protesto contra uma ordem estabelecida. O termo
seita e culto representam uma ruptura, uma separação diante das crenças, práticas e
instituições religiosas (Guerriero, 2006).
Podemos pensar que, dentro do contexto dos novos movimentos
religiosos, a União do Vegetal é uma religião diversificada que apresenta
características de agrupamentos de Igreja, seita e mística, encontrando-se numa tensão
entre elas, num espaço híbrido.
A seita é caracterizada, segundo rvieu-Léger (1999), pela intensidade do
engajamento quotidiano que se requer dos seus membros. Neste sentido, o compromisso
do hoasqueiro udevista para com a União do Vegetal é voluntário, A União não obriga
a nada, porém, optando por ser sócio, acaba ocorrendo uma adesão, a qual o indivíduo
faz, rompendo com seu passado religioso e participando intensamente das atividades
religiosas, como as sessões de escala, que ocorrem às 20h do primeiro e terceiro sábados
de todos os meses, nas quais todos os sócios assumem o compromisso de participar
efetivamente. No caso de algum motivo de impedimento em comparecer à sessão,
devem entrar em contato com o Mestre Representante, ou com o Mestre Assistente,
pedindo licença para se ausentar dessa sessão. O pedido de licença deve ser feito,
segundo a doutrina udevista, para que o discípulo esteja com a guarnição do Mestre
onde quer que ele esteja e justifique o seu não comparecimento. O mesmo ocorre com
as sessões instrutivas, que são realizadas num domingo, ao meio dia, numa freência,
aproximadamente, de dois em dois meses, a critério do Mestre Representante. Essas
sessões o destinadas à transmissão de conhecimentos reservados ao Corpo
Instrutivo e ao Corpo do Conselho, com a presença do Quadro de Mestres. Existem,
também, as sessões de escala anual, como a do Dia de Reis (6 de janeiro), a do
Aniversário do Mestre Gabriel (10 de fevereiro), a do Aniversário de Constituição da
União do Vegetal (22 de julho), a da Confirmação, no Astral
35
Superior, da Recriação
da União do Vegetal (primeiro de novembro), a de São João Batista (24 de junho), a de
São Cosmo e São Damião (27 de setembro), a de véspera de Natal (24 de dezembro) e a
de véspera de Ano Novo (31 de dezembro). Há, também, as sessões extras, que são
estabelecidas pelo Mestre Representante, para comemorar o aniversário do núcleo ou de
algum mestre. Ocorrem, também, sessões específicas do Quadro de Mestres e do Corpo
35
O Astral é o mundo celeste invisível superior ao mundo da matéria visível por todos. Sendo um dos
vários planos que formam a estrutura do universo. É considerado tanto pela UDV quanto pelo Santo
Daime.
76
do Conselho, bem como as de adventícios, que são destinadas às pessoas que estão
bebendo o chá pela primeira vez. Existem os dias de mutirão, no qual são os discípulos
se dispõem, num esquema de escala, a trabalhar no núcleo (limpando, capinando,
cozinhando, realizando consertos, etc.), que o Núcleo não tem empregados sendo
mantido pelos próprios cios, com exceção de eventual contratação de zeladores que
moram no local, por se tratar de área rural. Há, também, os rituais de preparo do vegetal
que ocorrem de acordo com a necessidade. Os discípulos se dedicam a outras
atividades recreativas e educacionais que são uma constante no cotidiano da União,
quando se reúnem os cios, seus filhos e familiares para, juntos, festejarem a vida e
zelarem pela prática do bem (DMD).
De acordo com os mestres, Existe uma recomendação do Mestre Gabriel
que não é para ficar aceitando as coisas que ele diz, é pra gente examinar e encontrar
um fundo de verdade. Se tem uma verdade a gente aceita. Ou seja, no momento em
que o indivíduo aceita esta verdade, ele dever ser fiel a esta prática, fiel à prática do
bem, como eles se referem ao praticado da doutrina. Diz a União do Vegetal:
A UDV não difunde dogmas. Os discípulos são estimulados ao exame livre do que se
transmite e, sem nenhuma forma de imposição, cada um adquire, a seu devido tempo, a
compreensão gradual dos ensinamentos. É recomendado aos seus discípulos constituírem
suas vidas de acordo com princípios morais definidos, buscando a evolução espiritual de
maneira equilibrada. A orientação necessária para isto está prescrita nas Leis do Centro.
(DMD)
E, neste sentido, diz a quarta parte do Boletim da Consciência em Reforma:
Todos os que acharem que o Mestre está errado não devem acompanhá-lo. Esta frase
também é muito difundida oralmente pelo Quadro de Mestres, enfatizando o livre
exame que os discípulos possuem e a opção de se seguir na UDV, dentro das Leis. A
doutrina da União e o exemplo dado pelos seus dirigentes despertam o filiado para a
necessidade de se responsabilizar por suas decisões, atitudes e palavras. Segundo a
UDV, seguindo as orientações prescritas pela doutrina e Leis do Centro, conduzidas
pelo exercício prático da transformação pessoal, que tem permitido à União do Vegetal
recuperar grande número de pessoas para uma vida saudável, de conforto íntimo e bem-
estar, inclusive muitos do que hoje são seus dirigentes (DMD). Diz o Mestre Jeziel
Representante do cleo Jardim das Flores: A gente não seguindo cegamente a
gente examinando o que a gente seguindo e isso nos um grau de consciência e
77
de tranqüilidade de seguir sem fanatismo. Mas, o Mestre Gabriel disse: examinem a
primeira, a segunda e na terceira vez verão que eu estou certo.
De acordo com as Leis do Centro que, entre outras orientações:
- Reconhece na constituição da família uma sublime missão. Os
hoasqueiros (designação para aqueles que bebem o vegetal) devem preservar a família,
dentro de uma harmonia e fidelidade conjugais, evitando, se possível, separações e
devendo procriar. A família bem estruturada é vista como uma das condições básicas
para a evolução espiritual.
- Condena o uso de drogas, legais ou proscritas, e toda forma de vícios,
incompatíveis com estados equilibrados de conduta pessoal.
- Aconselha aos sócios o cuidado com a sua palavra, fazendo de seu uso um
meio sincero de mútua compreensão. Assim, a palavra tem que corresponder com a
prática e respeitar seus mistérios.
- Alerta para a necessidade de coerência entre propósitos e práticas como
um fator fundamental para o verdadeiro progresso espiritual.
- Combate todas as formas de preconceito e discriminação, respeitando
outras formas de conduta como reflexas de níveis diferenciados de evolução espiritual
dos diversos agrupamentos humanos.
- Recomenda que cada indivíduo faça de suas atitudes recursos conscientes
de promoção da paz e da fraternidade humana, em sintonia com o preceito sagrado do
amor a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como a si mesmo.
§ Há, para o grupo, uma divisão entre hoasqueiros e não-
hoasqueiros. Hoasqueiros são vistos como pessoas que estão em busca de evolução
espiritual com o uso do vegetal, estão em contato com o divino, com um tipo de conduta
diferenciada dentro de uma retidão, possuindo um jeito caianinho de ser
36
, com
formas de comportamento e emoções na vida condizentes com a doutrina, as Leis do
Centro da UDV.
36
Esta expressão comumente usada pelos fiéis se refere à Caiano, que foi o primeiro hoasqueiro e uma
das encarnações de Mestre Gabriel conforme o mito de origem da UDV que será analisado
posteriormente. E conseqüentemente caianinhos são os que seguem o Mestre Caiano.
78
Hoasqueiros são civilizados, em comparação aos nãohoasqueiros
de nossa sociedade atual, que devem ser compreendidos não apenas como falta de
civilização ou de conhecimento, mas como algo que atende às necessidades dessas
pessoas e que lhes parece importante e necessário para elas, exatamente dessa forma,
configurando níveis diferenciados de evolução espiritual como a UDV mesmo se refere.
Observe o depoimento do Mestre Jeziel:
A gente repara muito quando alguém de fora entra aqui e não sabe muito bem o que é isso
aqui e estranha o jeito das pessoas se relacionar. Eu participei uma vez de uma festa de
aniversário lá em Porto Velho. Uma festa de 15 anos da S. filha do Mestre P. E ele é uma
pessoa que tem recursos e ele alugou um local que é uma uísqueria. Um lugar muito bonito
com salões grandes tem uma piscina. Mas ele fechou a uisqueria. Era uma festa para
hoasqueiros. Ele alugou o local e foram mais de 300 pessoas pra dentro. Numa festa
que tinha doces, salgados, sucos, refrigerantes, essas coisas. E tava trabalhando lá as pessoas
que trabalham no local mesmo, os garçons estavam trabalhando na festa, servindo a gente e
num dado momento quase no fim da festa eu tava próximo do Mestre P e tinha mais umas
pessoas conversando com a gente e o maître e mais alguns garçons se dirigiram até nós e o
maître perguntou quem são vocês? E o P estranhou aquela pergunta quem são vocês?
Como assim? Aí ele disse: eu trabalho há mais de trinta anos servindo as pessoas e eu nunca
vi um grupo sem beber e com um vel de alegria desse grupo aqui e eu quero saber quem
são vocês.
A UDV apresenta um comportamento sectário, rígido na disciplina,
acabando por sujeitar os seus membros a assumirem uma nova identidade.
Freqüentemente, se referem: os de dentro e os de fora, os hoasqueiros e os não-
hoasqueiros. Conforme a segunda parte do Boletim da Consciência Recomendando o
Fiel Cumprimento da Lei, lido em todas as sessões de escala: Os associados deverão
[...] reconhecer, da melhor maneira possível, que através da ordem e da doutrinação
reta, que receberemos eternamente dentro da União do Vegetal, é que chegaremos a
cientificação. Cientificação se refere à verdade única e absoluta. Discrepando das
demais pessoas, por sua conduta moral discreta, por sua maneira polida, por falar
a verdade, por cumprir com seus deveres, seus membros acabam se considerando
distintos e se diferenciando dos não-hoasqueiros, por uma linguagem própria usada
entre eles a ngua udevista que, de acordo com o grupo, está relacionada com os
mistérios da palavra; não se deve dizer obrigada e sim grato, porque obrigada
vêm de obrigação e na União ninguém é obrigado a nada; não se deve dizer esposa e
sim companheira porque esposa tem o es(x) na palavra; não se deve dizer marido
e sim companheiro, porque marido tem na palavra; não se deve dizer eu
queria e sim eu to querendo, porque eu queria quer dizer que não quer mais; não se
deve dizer a última sessão e sim a derradeira, porque a última implica que não
79
haverá mais, não se deve dizer tomar vegetal e sim beber o vegetal, porque tomar
pode significar outras coisas além de beber e etc. Como coloca Goulart (2004): O
extremo cuidado com o que se diz, a escolha adequada de determinados vocábulos, ao
invés de outros, em determinadas situações, é um dos aspectos que mais caracteriza,
publicamente, o comportamento de um membro da UDV (...) Muitas palavras
mencionadas nas suas histórias e chamadas possuem um significado ritual
extremamente marcado, e não devem ser utilizadas fora do contexto das sessões.
Recomenda-se, também, que alguns termos sejam sempre evitados, tanto em situações
corriqueiras do dia a dia, como nos momentos rituais (p.228) Como enfatiza Andrade
(1995), o vínculo entre o que se diz e o que se faz, nessa religião, é muito valorizado,
sendo um dos aspectos que marca o grau de desenvolvimento espiritual do fiel. Tudo
que o adepto falar tem que ter uma relação direta com a sua prática (p. 187). Eu
complementaria, também, como algumas das distinções entre hoasqueiros e não-
hoasqueiros, o fato de homens o poderem usar barba, bigode e nem cabelos
compridos, pois hoasqueiros têm a cara limpa (apesar do Mestre Gabriel ter usado
bigode durante a UDV), bem como a procura de uma vestimenta sempre impecável.
Os hoasqueiros põem sua acima de tudo e acabam ordenando suas
vidas de acordo com os princípios estabelecidos pelo grupo. Na UDV para uma pessoa
beber o chá e se tornar sócio deve ser convidado por um dos cios da União. Os
convidados são pessoas especiais, importantes para aquele que convida, são familiares e
amigos dos adeptos. Normalmente é alguém muito próximo do fiel que entra para essa
grande família que acaba se configurando a União do Vegetal. Os vínculos sociais
o levados para dentro da UDV e se criam outros. Assim, naturalmente, os udevistas
acabam se afastando de não-hoasqueiros. De tal modo que, além do caráter
voluntário e da necessidade de conversão para ser membro da União do Vegetal, o fiel,
uma vez aceito no novo grupo, passa a ser visto como um dos nossos em um forte
apego coletivo, caracterizando uma das idéias compreendidas por Wilson (1970, p.35)
na dimensão da seita. Visto que a UDV atribui a si um caminho verdadeiro, numa via
para chegar à salvação e à verdade suprema. Diz o Mestre Alberto, um dos mestres que
possui 20 anos de UDV:
Para mim pelas coisas que eu já recebi, as coisas que eu venho recebendo eu sinto que aqui
é um lugar de evolução espiritual. Se tu me disser que conhece um lugar muito melhor que a
União do Vegetal e que leva a um processo efetivo, garantido e duradouro de evolução
espiritual eu posso examinar e até achar que tem um outro lugar que seja melhor, mas até
então eu não descobri e ao longo do tempo a gente de certa forma vai criando uma rede de
relações, de amizade [...] isso vai dando um sentimento mesmo de companheirismo, de
80
solidariedade, de ter uma compreensão pelo outro também. Então são os elos que vão
ligando a pessoa as outras e um desses elos fortes que a gente vê dentro da União do Vegetal
é a gente encontrar amigos verdadeiros.
A União do Vegetal é um lugar seguro, A União é o melhor lugar para
estar, são frases muito correntes e comuns entre a irmandade, denotando esse clima
familiar.
Apesar da adesão ser voluntária, o ingresso no grupo passa por uma seleção
por parte dos integrantes. Para entrar na União do Vegetal precisa ser convidado por um
sócio, que pede permissão ao Mestre Representante e, mediante sua autorização, pode
participar de uma sessão de adventício, que ocorre esporadicamente. Diz o Mestre Jeziel
sobre isso:
Aqui na União do Vegetal a pessoa tem que ser convidada por algum sócio, não é uma
religião que a gente faça propaganda. O Mestre Gabriel disse uma coisa assim que é
interessante a gente examinar. Ele disse que se uma pessoa chegar na União do Vegetal
pelada e o primeiro ensino que ela tem que receber é aprender a se vestir. É uma frase pra
mostrar que a gente têm que receber bem todas as pessoas. Agora quanto a convidar eu
costumo dizer às pessoas que a gente têm que convidar quem quer evoluir espiritualmente
porque essa é a finalidade da União do Vegetal. A gente não tá aqui pra tratar drogado
porque a gente não sabe fazer isso. Se a pessoa chegar aqui drogada a gente atende ela e
existem muitos casos de pessoas que chegam aqui drogadas e pararam com as drogas, mas
a pessoa que querendo. Agora um pai e uma mãe estão desesperado porque o filho tá
usando droga, trazem ele pra cá, o filho não ta querendo vir. Por isso que tem que vir de
livre e espontânea vontade. Mesmo que a pessoa esteja numa grande dificuldade ela tem que
estar querendo. O ideal é convidar uma pessoa que tá querendo e não convidar porque ela tá
muito perturbada, não é bem o convite. O convite é para pessoa que examinando a sua
vida, que querendo alguma coisa a mais que querendo evoluir espiritualmente.
Transtornos mentais também aqui não é o lugar, não é o meio de tratamento. Transtorno
mental tem os médicos, tem os hospitais especializados.
Para passar da categoria de adventício para cio, o indivíduo deve
demonstrar comprometimento e convicção. O grupo religioso conta, também, com
regras que garantem a possibilidade de afastar, ou rebaixar de categoria, referente ao
grau hierárquico, os membros que o se comportarem de acordo com as normas, cujo
compromisso não esteja à altura das exigências do grupo, das Leis da UDV, expressa
nos Boletins e Estatutos. Diz o Estatuto:
O afastamento será imposto ao sócio que:
a) fizer desacato ao Centro ou prejudicá-lo em seus interesses;
b) provocar distúrbios;
c) provocar discórdia ou ferir o decoro do Centro na pessoa de seus dirigentes;
81
d) infringir a ordem blica com a prática de roubos, consumo de tóxicos ou transações
ilícitas devidamente comprovadas;
e) desrespeitar as Leis do Centro.
Ricciardi (2008b) enfatiza que além de desaprovar o uso de bebidas
alcoólicas e entorpecentes, a UDV dispõe de sanções coercitivas, presente nos boletins e
estatuto, para punir os comportamentos desviantes: O associado que for encontrado em
visível estado de embriaguez será advertido pela Representação, e em caso de
reincidência, será punido por desobediência; O afastamento será imposto ao sócio que
infringir a ordem pública com a prática de roubos, consumo de tóxicos ou transações
ilícitas devidamente comprovadas (União do Vegetal Hoasca Fundamentos e
Objetivos. Estatuto. Artigo 58, letra d. P. 42).
A União do Vegetal não aprova que seus membros freqüentem outros cultos
religiosos, após a sua adesão à doutrina, ao se tornar sócio, principalmente outras
religiões ayahuasqueiras ou neo-ayahuasqueiras. Para a UDV, o verdadeiro mestre, o
mestre superior é o Mestre Gabriel; os outros são curiosos, chamados de mestres da
curiosidade. Assim, na União do Vegetal estaria à verdadeira ciência. De acordo
com MacRae (2002, p. 501), A União do Vegetal reclama para si uma pureza de
tradições, baseada em concepções puramente doutrinárias, considerando seu líder
fundador o único detentor do verdadeiro conhecimento da ayahuasca e chamando a
todos os outros, inclusive curandeiros ayahuasqueiros indígenas de grande prestígio em
suas comunidades, de mestres da curiosidade, ou seja, pessoas movidas por simples
curiosidade e ignorantes das verdades eternas da ayahuasca, que só os seguidores mais
graduados do Mestre Gabriel deteriam.
Andrade (2002) coloca que é importante distinguir os discursos formais e
institucionais dos pronunciamentos feitos durante as sessões, dos comentários informais
dos adeptos e das atitudes práticas da instituição. Os discursos formais e institucionais
caracterizam-se por uma articulada defesa do respeito à diversidade religiosa, à
liberdade do indivíduo e valores semelhantes. Como por exemplo, um artigo que é lido
em todas as sessões de escala, que foi publicado pelo mestre fundador, intitulado
Convicção do Mestre, no qual ele diz: podemos ser censurados por todos, mas não
podemos censurar a ninguém; podemos ser ofendidos por todos, mas não podemos
ofender a ninguém. Porém o discurso informal é marcado por uma atitude intolerante a
autoritária. Presenciei diversas vezes, nas sessões, acusações implícitas ou explicitas
dos mestres dirigentes com relação a outras instituições religiosas, especialmente o
82
Santo Daime, grupo que parece ocupar boa parte do imaginário da UDV (p.610). Eu
presenciei, também, esse tipo de crítica e intolerância no núcleo estudado,
principalmente por eu estar pesquisando o Santo Daime concomitante com a UDV.
Porém, à medida que minha inserção evoluiu em campo, este discurso vem sendo
atenuado e redirecionado. Foi, por exemplo, reconhecido pelo Mestre Representante, em
uma sessão que ele dirigiu, que o Mestre Gabriel conheceu o Mestre Irineu e o
respeitava como mestre, história essa que é cheia de mitos dentro da UDV, visto que,
dependendo da região, se conta que eles nunca se conheceram, como em Porto Alegre,
e, em outras, que sim, se conheceram, como no nordeste, por exemplo.
De acordo com Weber (2004), o principal atributo da seita é o de ser uma
comunidade voluntária de eleitos. Outra característica importante é o seu tamanho, pois
apenas a comunidade local poderia julgar, a partir de um exame pessoal, sobre a
qualificação ou não de um de seus membros e o esforço empreendido na manutenção da
pureza da comunhão com o sagrado, exigindo uma disciplina extremamente severa,
muito mais rigorosa que a de qualquer Igreja, supondo um certificado de qualificação
ética. A fidelidade religiosa exige, dos convertidos, um trabalho permanente de
purificação e de santificação pessoais. A santidade do grupo depende da pureza de cada
um e da correção fraterna que se exerce no seu seio (Hervieu-Léger, 1999, p.192). Diz
o Mestre Jeziel:
A União do Vegetal é uma religião discreta, a gente o faz divulgação, a gente não tá
preocupado em crescer. Ela fez uma projeção, dois anos atrás, de crescer 10% ao ano e
na realidade a União do Vegetal crescendo 20% ao ano e isso é motivo de preocupação
para os seus dirigentes, porque a gente precisa formar dirigentes e para formar dirigentes a
gente não forma em um ano, dois anos. Leva algum tempo de caminhada. Se a gente
começar a formar muitos dirigentes, em pouco tempo, a gente sabe que vai encontrar
problema logo ali na frente. Então, agente sabe que a humanidade ela tá sempre plantando e
colhendo. Hoje nós estamos colhendo aquilo que nós mesmos plantamos. O Mestre Gabriel
ele recriou a União do Vegetal para trazer uma paz. Agora cada um tem que ser um agente
dessa paz. Então, a União do Vegetal, assim como outras religiões, ela tem uma finalidade
de trazer uma paz para as pessoas, nós estamos fazendo a nossa parte. Agora, a gente sabe
que a humanidade é olhar a história e a história mais recente tem coisas bem pesadas,
foram plantadas coisas pesadas. Essa humanidade tem que colher essas coisas.
Troeltsch (1987), fala da existência da seita e da Igreja a partir das formas de
articulação com a sociedade. Para ele, a Igreja promove a estabilidade e a ordem social.
Sua atuação abrange toda a sociedade, não distinguindo classe social; porém, para
garantir sua sobrevivência como instituição abrangente, necessita se associar às classes
dominantes. A União do Vegetal é composta, predominantemente, de classe média e é
83
das religiões ayahuasqueiras a que mais financiou os estudos biomédicos da ayahuasca e
quem lutou pelo reconhecimento legal de seu uso, em um contexto religioso, criando o
DEMEC
37
. Estando engajada, também, em questões sócio-ambientais a direção da
União do Vegetal criou, em 1990, a Associação Novo Encanto de Desenvolvimento
Ecológico, entidade que concentra os trabalhos de formação de uma cultura ecológica
e de preservação da biodiversidade. A Novo Encanto rege suas ações com base em sua
Carta de Princípios e desenvolve seus programas com o apoio de quase cem
monitorias locais, centradas nos núcleos da UDV e coordenadas por membros da
entidade, filiados ao Centro. A União do Vegetal possui, também, o Projeto Luz das
Letras, incluído numa ação beneficente, visando o combate ao analfabetismo, a partir
de uma metodologia de inclusão digital, aplicada na alfabetização de jovens e adultos,
com o uso de um software de propriedade da Companhia Paranaense de Energia
38
.
Neste sentido, a União do Vegetal está integrada com o mundo e a sociedade,
dialogando e interagindo com esta.
A União do Vegetal almeja dominar o mundo pela paz, que a
comunhão do vegetal proporciona um estado ampliado de consciência, capaz de ampliar
a percepção do indivíduo sobre a sua natureza essencialmente espiritual, com resultados
positivos sobre o desenvolvimento do ser humano, em todos os aspectos, morais e
intelectuais (DMD). Configura-se, assim, uma instituição de salvação, numa
37
A partir da década de 1960, surgiram questionamentos das autoridades em relação ao uso do Vegetal
em rituais religiosos, culminando em 1985 com a inclusão temporária do mariri (Banisteriopsis caapi) na
lista de substâncias proscritas da Dimed. Diante do fato, um grupo de profissionais de sde filiados à
UDV se organizaram para reunir as informações científicas existentes a respeito da hoasca . Surge então,
em 1986, o Centro de Estudos Médicos, atualmente Departamento Médico-Científico da UDV - Demec.
O Demec é o órgão de interlocução entre o Centro e o meio acadêmico, tendo entre as duas principais
atribuições: Dar aos sócios do Centro acesso aos conhecimentos científicos da hoasca. Representar a
UDV junto a autoridades legais e científicas. Avaliar e acompanhar propostas de pesquisas científicas no
âmbito do Centro. Ser referência para recomendações médicas quanto aos efeitos das substâncias
presentes no chá hoasca. Colaborar com o cumprimento das normas estabelecidas pelo Ministério da
Saúde nos cuidados com o manuseio do chá hoasca Estabelecer recomendações em saúde mental e
situações de associação com medicamentos neurológicos, psiquiátricos e outros. Facilitar as condições
institucionais necessárias para a realização de pesquisas científicas no âmbito do Centro. A articulação de
um departamento congregando os profissionais de saúde da UDV teve como um de seus mais promissores
resultados a intensificação de estudos científicos no universo acadêmico, com a colaboração direta do
Centro.
38
A União do Vegetal iniciou no ano de 2002 a fase experimental do projeto em seus cleos de Alta
Floresta e Cuiabá, em Mato Grosso, em parceria com as secretarias de Educação do estado e dos
municípios. Em 2005, já contava com 31 unidades administrativas participando dos cursos de formação
de alfabetizadores por aquele método, tendo sete delas instalado laboratórios e iniciado as atividades
regulares do projeto.Avaliações de desempenho do projeto asseguram que a experiência de manuseio do
computador, além de reforçar a motivação, eleva a auto-estima e a confiança dos alunos em sua
capacidade de aprender. Em cinco anos de atividade o Projeto Luz das Letras já abriu 27 laboratórios em
diversos estados e formou mais de dois mil alunos.
84
tipologia de Igreja que se encarrega da redenção universal. Assim, a União do Vegetal
garante para todos os homens a transmissão da graça e deve, para realizar sua missão,
abraçar todas as sociedades e todas as culturas (Hervieu-Léger, 1999, p.191). O
Centro Espírita Beneficente União do Vegetal, sociedade religiosa sem fins lucrativos,
tem por objetivo contribuir para o desenvolvimento humano, com o aprimoramento de
suas qualidades intelectuais e suas virtudes morais e espirituais, sem distinção de cor,
credo ou nacionalidade (DMD).
Ao mesmo tempo em que, enquanto Igreja, a UDV se esforça para
incorporar o maior número possível de fiéis - das religiões ayahuasqueiras é a que
possui mais membros efetivos como citado anteriormente, seus discípulos acreditam
que a União do Vegetal é a ordem religiosa mais antiga no mundo, sendo recriada pelo
Mestre Gabriel em 1961. Há milênios a UDV vem sendo recirada, sempre com o
objetivo de purificar o homem. Caiano, discípulo e assistente do bíblico Rei Salomão,
recebeu do mesmo o sétimo segredo da Natureza, ou seja, a União do Vegetal, e com
ela a chave da palavra perdida, para entrar em contato com a Força Superior e
penetrar nos encantos da Natureza Divina. De posse desse segredo, Caiano vem
reencarnando na Terra, em diversos destacamentos, procurando, em todas às vezes,
restaurar a União do Vegetal, trazendo os homens das trevas para a luz, da ignorância
para o conhecimento, da ilusão para a realidade. Neste século, retornando no corpo e no
nome de José Gabriel da Costa, recriou a União do Vegetal. Desde a sua origem, a
União do Vegetal, vem sendo recriada na Terra por determinações superiores e nela
permanece, ora por curtos períodos, ora por períodos mais longos, sempre se
manifestando na forma mais pura e elevada. Quando, no entanto, as pessoas não
demonstram grau para receber os seus ensinamentos e procuram subvertê-los ou adaptá-
los aos seus interesses pessoais, todo o segredo de como trabalhar com essa estranha e
poderosa força acaba se perdendo e esse conhecimento se recolhe nas brumas do tempo,
desaparecendo temporariamente. No entanto, durante esses períodos em que foi
recriada, a UDV deixou sinais de sua doutrina em inúmeras ordens religiosas, as quais
até hoje apresentam, em suas orientações espirituais, grande parte dos ensinamentos que
em eras anteriores foram revelados pela hoasca. Apesar de constituir a Fonte de todas as
grandes verdades espirituais transmitidas à humanidade, a União do Vegetal é
desconhecida da maioria dos homens, não tendo deixado documentos sobre a sua
doutrina, uma vez que esta sempre foi transmitida aos discípulos sob a forma oral,
durante as sessões. (Milanez, 1993). Assim, se considerando a ordem religiosa mais
85
antiga, possuindo a verdade total e das quais se encontram vestígios em outras religiões,
ela também adquire o caráter de seita, abrindo-se para indivíduos religiosamente
qualificados (Hervieu-Léger, 1999, p.192). A UDV alega: O chá é para todos, mas
nem todos são para o chá.
Como Igreja, possui divisões internas, uma hierarquia própria com diferentes
graus de compromisso de seus agentes. O Quadro de Mestres atua como elite, a
ascensão hierárquica, e mobiliza todo funcionamento do grupo influenciando
diretamente o comportamento das pessoas.
Goulart (2004) alude, em relação à UDV, a semelhança de ordens e
sociedades esotéricas como a maçonaria. A UDV ganha destaque à prática da decifração
de códigos secretos, a presença de um conhecimento iniciático, o qual, no caso em
questão, é mola propulsora do próprio desenvolvimento espiritual dos adeptos. Ela
mostra que as relações entre esta linha ayahuasqueira e a maçonaria aplicam-se, ainda, a
outros aspectos, como a estrutura dos rituais em ambas, ou os diferentes graus e
categorias hierárquicas pelos quais os seus respectivos membros são classificados.
Embora faltem dados a respeito de uma possível ligação do Mestre Gabriel com a
maçonaria, constatamos que vários dos adeptos da UDV pertencem ou pertenceram a
lojas maçônicas. casos, inclusive, nos quais elementos oriundos da tradição
maçônica foram importantes na definição de processos de cisões ocorridos no interior
desta linha religiosa (p.217).
Aos dois tipos de agrupamentos - Igreja e seita Troeltsch (1987) acrescenta
um terceiro, menos claramente identificável, porque se desenvolve normalmente no
interior mesmo das igrejas e evolui, muitas, vezes para a seita. Trata-se do tipo dito
místico. Esta forma de agrupamento cristão encontra sua justificação teológica no fato
de que Jesus mesmo não criou nem uma Igreja nem uma seita: ele reuniu indivíduos que
uniam sua escolha pessoal de seguir o Mestre. (Hervieu-Léger, 1999, p.193). A União
do Vegetal é marcada por uma experiência pessoal, individualista, vivida na
burracheira, onde o sujeito tem a liberdade de interpretar a sua vivência. Trata-se, na
perspectiva apontada por Troeltsch (1987) de uma religião espiritual em que a
transformação do mundo se por meio de uma experiência formal e interior. Essa
experiência é a expressão verdadeira de uma consciência religiosa universal baseada no
fundamento divino. A hoasca, além de proporcionar aos seus discípulos a revelação do
sentido da vida: A gente encontra a compreensão do que é a vida, do que eu sou, para
onde que eu tenho que ir, como eu tenho que ir. Isso a gente vem aprendendo dentro da
86
União do Vegetal. A hoasca também vem despertando a esperança de se construir
um mundo melhor a partir do aperfeiçoamento espiritual de cada um. Assim, a UDV
acredita que, através da mudança no interior de cada indivíduo tem-se um mundo
melhor. A salvação poderá ocorrer mediante uma profunda transformação de cada
um, o que caracterizaria, de acordo com Wilson (1970), uma seita conversionista, que
e ênfase na conversão do indivíduo. Diz o Mestre Jeziel:
Muitos dizem que é utopia, se é utopia vamos fazer da utopia uma realidade, mas cada um
tem que fazer sua parte. Se eu conseguir viver em paz e eu conseguir mostrar para as
pessoas que me cercam, que estão próximas de mim que a gente pode viver em paz, a gente
tá fazendo um bom trabalho nessa vida.
3.3 O Ritual
As sessões da União do Vegetal se caracterizam por sessões de escala,
sessões instrutivas, sessões da direção, sessões festivas e sessões extras, mas
basicamente todas possuem a mesma organização ritual, com sutis variações. Assim me
deterei apenas na descrição da sessão de escala. A UDV também possui rituais de
batismo e casamento.
As sessões de escala ocorrem no e 3º sábados de cada mês. A sessão de
escala inicia pontualmente às 20hs, horário do sol, independentemente do horário de
verão, que ocorre em alguns Estados do Brasil, inclusive no Rio Grande do Sul. E
finaliza, pontualmente, às 0h e 15minutos.
Os sócios chegam ao templo por volta de 19h e 40min, já devidamente
uniformizados, para ocupar seus lugares, escolhidos por eles, conforme a
disponibilidade no momento, obedecendo uma ordem hierárquica, sendo os primeiros
assentos reservados aos mestres, a seguir os conselheiros e conselheiras. Os irmãos do
corpo instrutivo, cios e pessoas da comunidade que freqüentam ao UDV, porém
ainda não se associaram escolhem os lugares disponíveis. Todos os participantes, ao se
acomodarem em seus lugares, se concentram aguardando o início da sessão.
O Mestre Representante senta-se no centro do semi-círculo de cadeiras,
reservadas aos mestres presentes à sessão, atrás da mesa onde se senta o Mestre
Dirigente, que é escolhido para tal função, normalmente, pouco antes do início da
mesma.
87
É observado um ritual na organização da sessão de escala, quando é
colocada uma mesa retangular, normalmente com 14 assentos nas laterais e uma cadeira
na cabeceira da mesa, que é ocupada pelo Mestre Dirigente da sessão. O assento à sua
direita é reservado ao Mestre Assistente, que presta auxílio na organização dos trabalhos
durante toda a sessão. À sua esquerda, o lugar é reservado a um sócio do corpo
instrutivo, escolhido pelo Mestre Assistente, que fará a explanação da sessão, após a
leitura dos Estatutos. Ao lado do Mestre Assistente senta-se o discípulo, também
escolhido por esse, que fa a leitura dos Estatutos que regem o Centro Espírita
Beneficente União do Vegetal.
Os demais assentos disponíveis à mesao ocupados por discípulos que
manifestam sua vontade de ali se posicionarem, sendo observado o critério de sentarem
mais próximos ao Mestre Dirigente os conselheiros ou conselheiras e a seguir os demais
irmãos, sejam eles sócios ou não.
Pontualmente, às 20hs, o Mestre Dirigente dá início à sessão, quando todos
os discípulos se posicionam de pé aguardando a distribuição do vegetal que é feita,
seguindo o critério de se servir primeiro, logo após o Mestre Representante, os demais
mestres, os conselheiros e conselheiras, o corpo instrutivo, os sócios e os não sócios,
seguindo esta mesma ordem tanto para os componentes da mesa como para os demais
discípulos que estão participando da sessão de escala.
A distribuição é feita em copos de vidro individuais, com capacidade de 200
ml, sendo a quantidade disponibilizada a cada sócio de acordo com a sua disposição no
momento.
Após todos terem recebido o vegetal se efetua a comunhão do mesmo,
quando o Mestre Dirigente orienta que primeiro bebem os integrantes do Corpo
Instrutivo- mestres, conselheiros, conselheiras e sócios do corpo instrutivo (bolso
amarelo), e todos pronunciam as seguintes palavras, antes de beber: Que Deus nos
guie no caminho da luz, para sempre e sempre, amém Jesus.
A seguir, repete o mesmo ritual, orientando para que os demais discípulos
sócios e não sócios, bebam o vegetal, repetindo antes as mesmas palavras.
Após beberem o vegetal, os discípulos costumam tomar água, chupar uma
bala ou um pedaço de fruta como tira-gosto devido a amargura do vegetal. Depois
sentam em seus lugares e escutam atentamente a leitura dos estatutos. Ao término da
leitura, o discípulo encarregado de fazer a explanação é convidado para dirigir umas
palavras que orientarão o andamento da sessão.
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O Mestre Dirigente realiza as chamadas de abertura da sessão, chamada do
Caiano, chamando o Mestre Gabriel e a burracheira para a sessão. A burracheira é
essa força estranha, este estado de consciência o explicado que o vegetal proporciona.
É feita, também, a chamada da União pelo Mestre Representante.
Em seguida é aberta a sessão, de acordo com o protocolo, onde podem ser
feitas perguntas, chamadas e também se pode falar, fazendo uso da licença ao Mestre
Dirigente, abordando diversos assuntos de interesse, relativos ética, moral, família,
sentimentos e evolução espiritual.
As pessoas devem permanecer sentadas durante todo o ritual. Caso precisem
sair do salão para ir ao banheiro, vomitar ou zelar por alguma criança devem pedir
licença ao Mestre que esdirigindo a sessão e sair no sentido anti-horário, retornando
assim que possível, no sentido horário. O fiel, se quiser, pode pedir para repetir o
vegetal até às 22h.
Ás 23hs começam a serem tratados assuntos administrativos, de interesse da
coletividade, sendo lidos boletins, cartas e demais documentos tanto do próprio núcleo,
como da Região, a qual faz parte, como da Sede Geral.
Às 23hs e 30min é feita a chamada de despedida do Caiano, que é a
despedida da burracheira. Após, é feito o recolhimento de doões espontâneas para
limpeza e manutenção do salão.
Às 23hs e 35min é feito um intervalo de 25 minutos e, após retomada a
sessão à meia-noite, é feita a chamada do Ponto da meia-noite.
Em seguida, passa-se a outros assuntos administrativos, como a organização
da escala de trabalho para a próxima seso de escala, pagamento de mensalidades e
outras tarefas que serão realizadas após o fechamento da sessão, como lanche,
organização da cantina e venda de produtos no entreposto.
Às 0h e 15min procede-se o fechamento da sessão com a chamada da
Minguarana.
89
3.4 A Sociedade Religiosa
De acordo com Goulart (2004), evidencia-se, na organização institucional e
ritual da UDV, alguns aspectos que, na concepção weberiana, caracterizam o processo
de racionalização. Por exemplo: após o falecimento do seu líder, o CEBUDV passou a
estruturar a sua dinâmica e o seu funcionamento de um modo sistemático, com a adoção
de complexos processos eletivos para a escolha de suas lideranças, a constituição de um
quadro administrativo que pauta sua ação, segundo uma lógica formal e racional, a
formação de áreas de atuação e competências específicas, e enfatizando-se a
necessidade da elaboração de normas, leis, de um estatuto. Todos esses procedimentos
caracterizam o movimento, identificado por Weber (1991) como a institucionalização e
burocratização da seita profética. Mesmo que muitos destes aspectos organizacionais
tenham sido determinados pelo próprio líder original, porém eles passaram a atuar,
de fato, depois que a auncia desta liderança se colocou como uma realidade
inevitável.
Para a autora, outros fatores indicam, igualmente, a presença de um processo
de racionalização dessa linha religiosa, como a presença de uma longa iniciação
religiosa que implica na constituição de um sacerdócio especializado e treinado, o qual
tem como função específica a orientação moral e espiritual dos fiéis, fato que, ainda de
acordo com a perspectiva weberiana, está diretamente relacionado à racionalização da
experiência religiosa. Ao mesmo tempo, a orientação fornecida pelo sacerdócio da UDV
aos seus discípulos envolve determinados elementos que marcam a ética religiosa
racional definida por Weber (1991). Por exemplo, os ensinamentos transmitidos, no
decorrer das sessões rituais udevistas, levam a uma regulamentação das ações dos fiéis
no que diz respeito a todas as dimensões de suas vidas. Os temas que aparecem nas
histórias, nas chamadas, nas músicas tocadas, nas palestras e eventuais leituras
realizadas nas sessões servem de base para uma ordenação moral do comportamento dos
sujeitos, o que parece conduzir a uma sistematização de todo o seu cotidiano. Bem
como pela manipulação da palavra, como comentado anteriormente, e, nesse sentido,
a necessidade, reconhecida por Weber como própria de uma ética religiosa racional
(Weber, 1991), dos sujeitos se adaptarem a um comportamento moral cotidiano
sistemático, sempre subordinado ao fim religioso.
90
A idéia de que os discípulos devem, acima de tudo, obedecer aos Mestres, ou seja, aqueles
que lhes são superiores hierarquicamente, é enfatizada no estatuto - originalmente elaborado
com a orientação do próprio Mestre Gabriel e assinado por ele. Além disso, a conduta moral
exemplar de um membro da União do Vegetal se define em função do seu comportamento
em relação a uma série de questões que dizem respeito a sua vida pessoal, como por
exemplo, a fidelidade conjugal, o estado civil ou o uso de substâncias como o álcool, o
tabaco, e drogas ilegais como a maconha, a cocaína entre outras. Os desvios em relação a
esta conduta moral exemplar são repreendidos através de diferentes meios. As repreensões,
inclusive, estão previstas no estatuto da UDV. Assim, membros desta linha religiosa,
independentemente do seu grau hierárquico, podem receber uma variedade de sanções,
como o afastamento do núcleo, a suspensão, a proibição do consumo de vegetal por um
período, a expulsão, ou ainda podem ser rebaixados na hierarquia do grupo. Até mesmo um
Mestre pode perder sua posição. O comportamento moral, na ótica udevista, é um indício
do grau de evolução espiritual do sujeito e a sua avaliação consiste numa das principais
maneiras de permitir a ascensão de um fiel num determinado grupo e nos seus quadros
hierárquicos. Um outro modo relevante de ascensão nesta linha religiosa parece ser a
compreensão que um adepto demonstra sobre as questões e princípios doutrinários, o que se
mede, sobretudo através das perguntas que ele coloca numa sessão ritual. Portanto, em
última instância, o grau de memória e evolução do fiel, bem como a definição do seu grau
hierárquico, se estabelecem em função da avaliação de sua conduta ética e dos seus
progressos metafísicos, ambos aspectos classificados por Weber como sinais de uma
religião racionalizada [...]. Mas talvez o maior indício de uma racionalização acentuada na
União do Vegetal, ainda segundo os critérios weberianos, seja o tipo de transe extático
estimulado nesta religião, o qual, comparado com o transe próprio das duas outras linhas
ayahuasqueiras, parece ser muito mais controlado. De fato, para Weber, uma ética religiosa
racional implica também em formas de êxtase mais suaves, envolvendo um processo pelo
qual a embriaguez aguda dos cultos extáticos orgiásticos é transformada, paulatinamente,
num hábito possuído crônica e, sobretudo, conscientemente. Por outro lado, a organização
administrativa e institucional dos núcleos de diferentes grupos da UDV parece implicar
numa tentativa de controle do próprio processo de segmentação interno à esta linha
religiosa, quando, por exemplo, impõe de modo estruturado e controlado a formação de
novos núcleos a partir do momento em que estes atingem um determinado número de
membros. Este ponto permite aliar a perspectiva weberiana à análise de Ioan Lewis (1977),
segundo a qual os cultos mais genuinamente extáticos se marcariam, justamente, por uma
inevitabilidade das cisões e fragmentações. Assim, a estrutura institucional da UDV, parece
visar um controle desta tendência de segmentação dos cultos extáticos (Goulart, 2004,
p.323.361).
Vejo que essa racionalização, analisada por Goulart (2004), está voltada para
um processo civilizador (Elias, 1994a, 1994b), entendido como a pacificação das
condutas e o controle dos afetos em relação a nossa sociedade atual, vista pelos
hoasqueiros como descivilizada e caótica, a partir de uma dinâmica que lembra
uma sociedade de corte religiosa, fazendo uma analogia à obra de Norbert Elias
(2001).
Para explicar meu entendimento, partirei da compreensão do mito de origem
da UDV, feita por Andrade (1995), em sua dissertação de mestrado, e pela minha
análise de um dos importantes rituais da União o preparo do vegetal.
De acordo com Andrade (1995, p123 e s.), a História da Hoasca contada
pelo Mestre Gabriel é o mito fundante do grupo:
91
Diz a primeira parte de tal história que antes do dilúvio existia um rei, conhecido como rei
Inca. Esse rei tinha uma conselheira chamada Hoasca, que era uma mulher misteriosa que
adivinhava o que vinha acontecer. Um dia Hoasca morreu e o rei ficou desorientado pela
morte de sua conselheira, mas mandou sepultar Hoasca. Um dia, indo ele à sepultura de
Hoasca encontrou nascido na sepultura um pé de árvore diferente de todas as árvores. O rei
deduziu que aquela árvore fosse Hoasca, e chamou-a de Hoasca. Nasceu naquele reinado
um menino que recebeu o nome de Tiuaco e chegou a ser o marechal de confiança do rei.
Ele, que sabia da história da mulher misteriosa contada pelo rei, também não sabia dos seus
segredos e mistérios. Um dia o rei foi acompanhado de seu marechal à sepultura de Hoasca.
chegando, sugeriu a Tiuaco que, se fosse feito um ccomas folhas de hoasca e esse
fosse bebido, talvez se pudesse entrar nos mistérios de Hoasca e até mesmo falar com o
espírito de Hoasca. O rei pegou umas folhas da Hoasca, fez um chá e deu para Tiuaco beber.
Tiuaco bebeu o chá e não agüentou os seus efeitos e morreu. O rei, da mesma forma como
procedeu no caso da Hoasca, cavou uma sepultura ao lado da sepultura dela e sepultou
Tiuaco. Passados alguns dias, o rei foi visitar a sepultura de seu marechal Tiuaco e
encontrou nascido na sepultura um de cipó, também diferente dos outros cipós, que ele
denominou de Tiuaco. Tempos depois o rei desencarnou. Morreu sem saber quais eram os
segredos e mistérios de Hoasca.
O autor conta que o Mestre Gabriel diz que ele próprio era a reencarnação de
tal rei, de onde se deduz que o seu reinado continua intacto na União do Vegetal, onde
ele é o principal, e o mariri continua sendo o seu marechal de confiança neste reinado. O
Mestre Gabriel continua contando que o rei Inca encarnou novamente, recebendo, desta
feita, o nome de Caiano. Isto era na época do Rei Salomão, conhecido como o rei da
ciência, de quem Caiano chegou a ser vassalo. A história da mulher misteriosa teria
chegado aos ouvidos do Rei Salomão, o qual como rei da ciência, poderia revelar os
seus segredos e mistérios. Acompanhado de seu vassalo Caiano, Salomão foi ao local
onde se encontravam as sepulturas e chegando reconheceu a Hoasca e o Tiuaco,
denominando-os, respectivamente, de Chacrona e de Mariri. Assim, Salomão teria feito
a união dos mistérios do vegetal e, em seguida, teria feito um chá o qual deu para
Caiano que o bebeu e recebeu todos os segredos e mistérios da Hoasca.
Passado algum tempo, Caiano morreu e o vegetal ficou esquecido sobre a
face da Terra. Após algum tempo, houve a necessidade de o vegetal ser restaurado.
Nesta ocasião, Caiano recebeu ordem de Deus para voltar a encarnar. Assim, Caiano
reencarnou em uma tribo indígena no Peru, a tribo dos Tucuna-cá, com o nome de
Iagora. O Mestre Iagora distribuía o vegetal aos índios e contava a eles a história do Rei
Inca. Porque contava tal história, ele ficou conhecido pelo povo com o nome de Inca. E
teria sido, a partir dele, que teria se desenvolvido o conhecido Império Inca. Tendo
vivido depois de Jesus, ele abria os encantos na sessão, falando de Jesus. Os
discípulos do mestre Iagora, ambicionados pelo ouro, o degolaram. Sem a orientação do
mestre, cada um pegou sua direção, de onde teria originado os mestres de curiosidade.
Teria sido com os mestres de curiosidade que a utilização do chá teria se espalhado
92
entre os seringueiros, desordenadamente, formando um verdadeiro fenômeno, para o
qual se buscava uma resposta, indagando-se, entre outras coisas, como tudo começou e
quem teve a idéia de fazer o chá pela primeira vez. O Mestre Gabriel, vivendo nos
seringais, apresentou essa história, a qual, basicamente, explica miticamente como tudo
começou. Tendo entrado em contato com os seringueiros, que distribuíam o chá, ele
teria se recordado dessa história - uma forma mítico-religiosa cujo objetivo reside em
esclarecer para as pessoas porque tal chá é misterioso, porque se chama hoasca, quem
fez a união destas plantas, quem era o Rei Inca e, finalmente, que ele mesmo, o Mestre
Gabriel, era o mesmo Rei Inca, o mesmo Caiano, o mesmo Mestre Iagora e, portanto, o
Grande Mestre que tinha a explicação para tudo que se quisesse. E ele, além de narrar o
mito, foi reconhecido como tal pelos mestres da curiosidade. Desta forma, ele uniu as
pessoas em torno do chá, orientando-as com esta História, e formando a União das
pessoas pelo Vegetal: a União do Vegetal (Andrade, 1995).
Deste modo, Andrade (1995) conclui que, com este mito de realeza, temos o
fundamento para uma hierarquia, já que por ele se reconhece tratar-se de uma
organização real, na qual se destaca o rei, o conselho, o vassalo e os discípulos (p.130).
Neste sentido, e de acordo com minha pesquisa etnográfica, essa realeza vem
sendo recriada, ao longo dos anos, apresentando-se, hoje, como uma sociedade
religiosa, como a UDV mesmo se define, fundamentada nessa hierarquia, com
objetivo de realizar uma transformação individual, visando trazer a paz para o
mundo.
Posteriormente, em um artigo denominado Contribuições e limites da
União do Vegetal para a nova consciência religiosa, Andrade (2002) diz que essa
temática é complexa, porque, de um lado, a experiência de beber o chá é intima, e existe
um espaço de abertura da instituição para interpretações individuais. Porém, por outro,
se o adepto não obedecer aos superiores, ele jamais ascende aos graus mais elevados e,
conseqüentemente, o tem acesso ao conhecimento secreto do grupo. Assim, a
obediência funciona como critério de manutenção da estrutura de poder, impondo
limites a qualquer possibilidade de crítica interna (p.595).
O Mestre Alberto diz a respeito:
Então, de certa forma as religiões, de uma maneira geral, elas têm uma estrutura de poder
para o funcionamento e para até ter uma certa eficiência nas atividades desenvolvidas e de
certa forma essa estrutura de poder são internalizadas nas pessoas. Porque, às vezes, a
pessoa precisa identificar quem é que manda e quem é que obedece de certa forma. Apesar
de que pelas palavras do Mestre Gabriel ele diz que um dia isso tudo nem vai mais existir.
93
Ele diz que vai chegar um dia que não vai existir exército, não vai existir delegacia de
policia, xadrez, hospício. Que elas existem para poder aquela pessoa que não encontrar a
paz, forçar a paz, que a paz predomine. É isso que ele fala. Que um dia isso vai deixar de
existir a partir do momento que a pessoa tiver consciência [...] Então a gente que a União
é uma estrutura hierárquica de poder que cumpre a um objetivo dentro desse momento, mas
podechegar um dia que isso tudo não mais ter necessidade pela própria consciência de
cada um.
Ricciardi (2008b) observou que os líderes da instituição estimulam os
discípulos a obedecer por uma consciência, e não por simples submissão. A consciência
de que algo o faz bem, de que é prejudicial para o indivíduo, e às vezes para o grupo,
é a atitude desejável. Como nem todos desenvolvem essa consciência, e obedecem
através da mesma, a dominação é exercida de forma mais direta, o estatuto e a doutrina
o claros: os comportamentos desviantes serão advertidos ou punidos.
Portanto, essa estrutura é necessária para se cumprir com o objetivo da
UDV: transformação individual, para se obter a paz entre os homens.
Complementa o Mestre Representante do Núcleo: É digno de um estudo para ver como
se conduz um grau de harmonia dentro da União do Vegetal. Neste sentido, podemos
entender essa estrutura centrada numa ascensão hierárquica, num modelo que lembra o
de uma corte, como geradora de um processo civilizador vivel no jeito caianinho
de ser, relacionando a obra de Norbert Elias (2001).
Segundo Elias (2001), a corte deve ser considerada como uma sociedade,
isto é, uma formação social, na qual são definidas de maneira específica as relações
existentes entre os sujeitos sociais e em que as dependências recíprocas que ligam os
indivíduos uns aos outros engendram códigos e comportamentos originais. Por outro
lado, a sociedade de corte deve ser entendida no sentido de sociedade dotada de uma
corte (real ou principesca) e inteiramente organizada a partir dela. A UDV se considera
uma sociedade religiosa com origem de nobreza, conforme analisado anteriormente,
concebendo novos códigos e comportamentos, a partir da ascensão hierárquica e
dependências recíprocas entres os diferentes graus. A sociedade religiosa da UDV se
configura distintamente do resto de nossa sociedade, o aqui dentro e o lá fora como
se referem seus fiéis a esses dois âmbitos, a partir de uma doutrina, leis e sanções
próprias, constituindo um dispositivo central, ao mesmo tempo laboratório de
comportamentos inéditos, e lugar de elaboração de novas normas. A realidade social
reside justamente na posição e na reputação atribuídas a alguém por sua própria
sociedade, ou seja, o grau hierárquico. Diz o Mestre Jeziel:
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Na União do Vegetal dentro, de uma sessão, não existe diferença se é um caboclo ou é um
doutor são pessoas. São pessoas que precisam de luz, que precisam de força para
caminhar. No fundo no fundo, nós somos todos iguais. Uns tiveram mais oportunidade de
trabalho, conseguiram por circunstâncias de vida se desenvolver melhor financeiramente.
Mas isso não quer dizer que sejam superiores aos outros [...] o que conta é o
desenvolvimento espiritual, o praticado do irmão.
Assim, na União do Vegetal o que diferencia os irmãos é o grau hierárquico
que representa ovel de desenvolvimento espiritual, de transformação pessoal atingida
pela pessoa e sendo todos iguais, todos têm chance, oportunidade de ascender nessa
escala. O grau hierárquico está destacado no uniforme usado no âmbito da União. O
uniforme foi criado pelo Mestre Gabriel:
No começo o Mestre Gabriel criou apenas a camisa, ele disse que o exército tem uniforme, a
marinha tem uniforme... Então, a gente também têm que ter e perguntou qual seria a cor,
uma pessoa disse: todo de branco. E ele respondeu que não poderia ser, pois branco
representa a pureza e nós ainda não estamos nesse grau, e cada um sugeriu uma cor, exceto
a que deveria ser. Então, o Mestre fez a chamada das cores do uniforme que diz, entre outras
coisas, que as matas são verdes e amarelas. Um dos sócios era farmacêutico, então, em outra
sessão, ele chegou com calça branca que é a roupa de trabalho dele. O povo achou bonito e
tornou padrão, depois é que Mestre Gabriel escolheu a cor da calça feminina (amarela)
pra resolver o problema da distinção entre os sexos (informante).
Os Mestres Representantes de núcleos e pré-núcleos usam camisa azul-
celeste, com a estrela de cinco pontas na cor branca bordada no lado direito. No bolso
do lado esquerdo estão bordadas em branco e sobrepostas em idêntico padrão, as siglas
UDV e CDC (Corpo do Conselho) e Mestre Representante. O Mestre Assistente usa
camisa cor verde-bandeira, com a estrela bordada em amarelo-ouro no lado direito e
com as siglas UDV e CDC na mesma cor e sobrepostas em idêntico padrão, bordadas
sobre o bolso do lado esquerdo. Sobre a camisa usa-se uma faixa branca, em diagonal,
da direita para a esquerda, com a sigla UDV é OBDC
39
, bordada em cor verde bandeira.
O quadro de mestres usa camisa verde-bandeira, com estrela bordada em amarelo-ouro,
do lado direito e com as siglas UDV e CDC na mesma cor e sobrepostas em idêntico
padrão, bordadas sobre o bolso do lado esquerdo. Os conselheiros e conselheiras usam
camisa cor verde-bandeira, com as siglas UDV e CDC bordadas em amarelo-ouro e
sobrepostas em idêntico padrão do lado esquerdo. Os discípulos do corpo instrutivo
usam camisa cor verde-bandeira, com a sigla UDV bordada em cor amarelo-ouro sobre
o bolso do lado esquerdo. Os discípulos usam camisa cor verde-bandeira, com a sigla
39
Esta sigla é um dos conhecimentos secretos da doutrina. Muitos acreditam que quer dizer UDV é
obedecê. Obediência com o sentido do bem que desce, pautada pelos mistérios da palavra, e não com a
conotação que popularmente é utilizada.
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UDV em branco sobre o bolso do lado esquerdo. As camisas podem ter mangas curtas
ou compridas. Os homens devem usar sapatos, meias e calças brancas e as mulheres saia
ou calça amarela e meias (uso facultativo) e sapatos brancos.
Os discípulos se chamam primeiramente pelo seu grau hierárquico e depois
pelo seu nome. De acordo com Ricciardi (2008a, p. 51), os sócios, constantemente, se
referem ao grau pelas características do uniforme: bolso branco, para os sócios,
bolso amarelo, para os sócios que estão no corpo instrutivo, o CDC, para os
conselheiros, a estrela para os mestres e os camisa azul para os Mestres
Representantes e aqueles que apresentam um maior grau hierárquico dentro da
instituição. É comum comentários do tipo: O conselheiro x vai receber a estrela; ou,
y perdeu o CDC, está com bolso branco. Hoje a sessão está cheia de camisa azul.
Para a autora, isso reflete a importância do símbolo nos rituais, onde um emblema
reporta a uma idéia que ela analisa numa perspectiva durkheimiana, na qual o
emblematismo, necessário para que a sociedade tome consciência de si, não é menos
indispensável para assegurar a continuidade dessa consciência.
A UDV, como sociedade religiosa, possui suas leis, regras, que exigem e
proíbem, suas convenções mais coercitivas, um controle mais rígido das condutas, das
relações menos brutais entre homens e mulheres. Os discípulos devem estar em
harmonia com a doutrina, que valoriza, entre outras coisas, o casamento, a família, a
fidelidade, ou seja, o ideal é ser casado, ter filhos, não beber, o fumar, não usar
qualquer tipo de drogas, ser trabalhador, ser honesto, estar dentro da verdade, cumprir
com seus deveres, ser cordial, ser prestativo, ser amoroso, não gritar, não ofender, não
agredir etc. Diz um dos mestres:
Afastamentos são coisas que acontecem. Ou são afastados, ou pedem afastamento. Isso daí
são coisas do caminho de cada um. E reconduções também! E a Lei na União do Vegetal, e
em outros lugares, existem porque tem necessidade. Porque se as pessoas fossem
obedientes, nada disso precisaria acontecer. Então, o Mestre Gabriel disse que Lei é a
Luz, então a gente percebe mesmo que... À Luz das coisas, as coisas precisam ser feitas
conforme a Ordem Divina. E, quando não são, existe a orientação mais forte, que é pra
pessoa se situar. Então, essas coisas são... Ah... É... São assim mesmo. Acontecem! São
coisas do aprendizado, da caminhada de cada um. E o mais importante é a pessoa a
possibilidade e a condição de bem usar um instrumento que está à sua disposição, de uma
forma equilibrada, de uma forma que traga um benefício e um conhecimento pra pessoa.
Caso o irmão não esteja dentro da doutrina, antes de ser afastado, será
devidamente doutrinado pelo mestre e cobrado pelo chá, explica o Mestre Jeziel:
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[...] então, dentro de uma sessão, a gente traz a doutrina mostrando que aquilo não é um jeito
bom de se fazer, de praticar as coisas, mostrando os prejuízos que aquilo pode causar para
uma pessoa, mostrando como é que se deve fazer. Então é o zelo com os ensinos do
Mestre Gabriel [...] Porque o chá aperta a pessoa. Quando a pessoa tá com um praticado que
não é legal, se a pessoa continua bebendo o chá, a pessoa se aperta. Passa sofrimento, sofre,
vomita, tem que fazer a limpeza e aquele ato quando a pessoa não tá com uma prática boa é
um ato sofrido, mas depois em seguida a pessoa volta para o salão do vegetal e começa a
receber toda uma energia de conforto, de acarinhamento, de trazer para perto, mostrando
para pessoa que ela não pode fazer aquilo e o que ela tem que fazer.
Apesar do discurso corrente seja o de que a União do Vegetal não proíbe,
a União não obriga, a União não exige, esse poder está delegado ao chá, que é uma
planta professora e que vai te cobrar através da peia: o chá te cobra. Peia é
quando a burracheira vêm acompanhada de sentimentos e sintomas desagradáveis de
mal estar físico, como vômito, diarréias, dores, confusão mental, pânico, angústia,
medo, sensações de morte, de desintegração corporal, etc. Freqüentemente, a peia é
vista como um castigo, devido a um praticado em desacordo com a doutrina ou
como uma limpeza de karmas e sentimentos negativos. A peia é vista de maneira
positiva e importante dentro do processo de transformação pessoal. Segundo o Mestre, o
teu comportamento, fora da sessão, fora da União, aparece na burracheira, a tua
consciência te cobra através do chá, do Mestre e aí tu tens que corrigir.
Okamoto da Silva (2002) faz uma análise da peia no sistema daimista, a
partir de uma tensão entre as dimensões coletiva e individual do culto. A partir do
coletivo, a peia pode ser entendida como uma eficaz ferramenta de coerção que
busca, em última instância, a ordenação simbólica e doutrinação dos fiéis, em torno dos
valores e crenças da religião. Enquanto vivência pessoal e idiossincrática, a peia
participa ativamente no processo de cura, na medida em que desvela conteúdos
inconscientes e auxilia em sua integração. A peia encontra-se na limiaridade dessas
duas dimensões, ela surge do choque entre o coletivo e o individual, reforçando a
tradição.
A peia é interpretada, também, a partir de Mary Douglas (1976), por
alguns pesquisadores (Couto, 1989; Okamoto da Silva, 2002; Rose, 2005; Lira, 2009;
etc), nos quais as concepções culturais e religiosas sobre poluição, impureza, limpeza e
higiene são condizentes à visão geral da ordem social na qual estão inseridas. Segundo a
autora, as leis de pureza e perigo estão presentes nos sistemas de crenças gico-
religiosas, no intuito de reforçar o código moral de uma sociedade específica, que o
universo todo é arreada aos esforços dos homens, no sentido de forçar o outro a uma
97
boa cidadania. Logo, achamos que certos valores morais são mantidos e certas regras
sociais são definidas por crenças (p.13).
As cobranças se dão pelo mestre de uma maneira polida, extremamente
gentil e relativamente atenciosa de correção de atitude, durante o ritual, sob o efeito
da burracheira, adquirindo um caráter de doutrinação. Podemos citar, como
exemplo, o caso de um membro do Corpo Instrutivo, de 64 anos, que se esqueceu de
lavar os copos, para o qual estava escalado no mutirão, que ocorre antes da sessão
(sempre há mutirões de trabalho antes dos rituais, pois são os próprios membros que
mantém a organização do núcleo, limpando banheiros, cozinhando, capinando,
varrendo, lavando chão a partir de uma escala num sistema de rodízio) e, no alto da
burracheira, o Mestre inicia a cobrança: Porque aquele irmão que tinha o
compromisso hoje de lavar os copos e não compareceu, deixando seus irmãos na mão,
ele não está cumprindo com sua palavra, ta falando uma coisa e fazendo outra. Esse
irmão está na teoria e não está na prática. Estes momentos são considerados de
doutrina pesada pelos discípulos, porque a pessoa referida se sente muito
constrangida, ainda mais por estar de burracheira, diz o discípulo doutrinado neste
caso: Na hora que o mestre falou, eu me dei conta que era para mim, eu tinha ficado
de papo e esqueci completamente que era meu dia de lavar os copos, imediatamente eu
comecei a me sentir mal, a consciência pesa na hora, fiquei muito constrangido,
envergonhado, com vontade de sumir, comecei a sentir dor no corpo como se estivesse
sendo chicoteado e a culpa corroia toda as minhas entranhas e depois vomitei muito, é
a peia né. Assim, junto com a doutrinação do mestre, ocorrem muitas peias e para
muitas outras pessoas que não sabem a quem se refere e acaba lhe servindo o chapéu,
como ocorreu certa vez, quando o Mestre estava doutrinando sobre os vícios e um sócio
disse, depois da sessão, em um pequeno grupo mais íntimo: tenho certeza que aquela
doutrina foi direcionada pra mim, tenho que parar de fumar, bem como pensaram
todos os outros que ainda se encontram dentro de algum vício. A doutrina pega,
como se referem os fiéis para designar estas situões, para qualquer discípulo, não
importando a idade e o grau hierárquico que ocupa.
Deste modo, a UDV constitui-se, portanto, em uma ilha de civilização,
onde se esboça um novo habitus. Um indivíduo se expressa, primordialmente, nas
nuances do convívio social e mundano. Assim, o discípulo tem que ter um grande
autocontrole, pois tem que se moldar à doutrina. O sujeito passa por um processo
civilizador individual que ele, obrigatoriamente, sofre e que é função desse processo
98
civilizador social, dessa sociedade gida que se configura a União do Vegetal. Neste
sentido, o processo civilizador consiste, portanto, antes de tudo, na interiorização
individual das proibições que são impostas de fora, em uma transformação da economia
psíquica que fortalece os mecanismos do autocontrole exercido sobre as pulsões e
emoções e faz passar da coerção social a autocoerção (Elias, 2001).
O Mestre Jeziel explica como se alcança esse resultado de harmonia:
Eu vejo que esse chá tem um poder sobre as pessoas e pra continuar caminhando dentro da
União do Vegetal a pessoa tem que andar para frente, porque se ficar estacionado a pessoa
não agüenta muito tempo. Ela tem que se harmonizar com o grupo, ela tem que caminhar.
Dizer que existe um grupo dentro da União do Vegetal que as pessoas não andam pra frente,
que as pessoas ficam se desentendendo é difícil de agente ver. Pode até haver o
desentendimento entre as pessoas, que é natural. Mas que as coisas caminham para o
entendimento. As pessoas não agüentam ficar numa situação negativa, que fique em
desarmonia entre as pessoas, tem que dar um jeito de resolver. Então isso que eu vejo.
Caminhar na União do Vegetal é desfrutar dessa energia, desfrutar de um bom convívio. E a
doutrina do Mestre Gabriel tem isso. Quando a gente percebe que têm alguma coisa que não
tá dando bem a gente bebe o vegetal e esclarece essas coisas dentro de uma sessão e a
pessoa que está vivenciando aquela dificuldade ela encontra um jeito de resolver aquela
situação [...] quando uma pessoa pode estar atingida por uma mágoa, algum ressentimento,
quando ela bebe o chá, a gente o quanto ela sofre por ter esse sentimento por alguém.
Então isso promove um esclarecimento para pessoa sobre que tipo de sentimentos a pessoa
deve cultivar dentro de si.
Esse jeito caianinho de ser é adquirido com o uso de vegetal, juntamente
com a doutrinação. Diz o Mestre Jeziel:
O Mestre Gabriel disse uma coisa assim: que o vegetal é uma chave que serve em qualquer
porta. O que eu quero dizer com isso? O que o Mestre Gabriel esclareceu é que o vegetal
tem que ter um mestre. Tem que ter uma pessoa que mostre como é que se anda. Como é
que se caminha. Quem é essa pessoa? É uma pessoa mais evoluída, que tenha o que dizer
para as pessoas. Na União do Vegetal a gente tem o Mestre Gabriel. Um caboclo com pouco
estudo de colégio, mas é um homem que quando fala a gente autoridade na fala dele.
Então a União do Vegetal segue uma doutrina.
Neste sentido veja o depoimento de um discípulo:
Eu acho que se eu não tivesse a União eu seria um sujeito muito ruim, eu ia ser uma pessoa
desorientada e com muita arrogância. Ia fazer o que todo mundo faz aí pelo mundo né. Não
ia ter orientação. Na verdade o que muda a gente é a orientação né. Quando a gente ta
orientado a gente consegue ser uma pessoa de bem né. A gente até se exalta achando que é
grande coisa porque conseguiu ser uma pessoa de bem. Na verdade a gente conseguiu
porque alguém orientou a gente, porque senão a gente ia ta perdido pelo mundo aí. Então
pra mim é isso. E o vegetal é um poderoso veículo que facilita bastante as burracheiras né,
a ter graça toda essa história, né, senão ia ser conversa né. Uma experiência espiritual
com o vegetal né.
99
Lira (2009, p. 82) coloca que nos sistemas udevistas, cada ritual seria uma
espécie de aula, onde os alunos podem perguntar qualquer coisa ao vegetal e ao
mestre dirigente da sessão que, conectado à presença simbólica do Mestre Gabriel, é
capaz de responder a qualquer pergunta no decorrer do trabalho espiritual. O mestre
esclarece algumas questões que venham a surgir durante a experiência de cada
participante, mas o hoasqueiro sabe que quem realmente ensina é o professor vegetal,
que responde às dúvidas de seus alunos, por meio de imagens e sentimentos
presenciados durante os instantes da burracheira. Outros pesquisadores das religiões
daimistas também fizeram essa comparação à escola como, por exemplo, a tese de
sociologia de Bezerra de Oliveira (2008) Santo Daime O professor dos professores: a
transmissão do conhecimento através dos hinos, no qual analisa os hinos da doutrina
daimista, apontando que eles são, ao mesmo tempo, o conhecimento em si e o veículo
de transmissão desse conhecimento, bem como o estudo De Albuquerque (2007), da
possível agência educativa do culto daimista, no qual a autora reflete as conexões entre
filosofia, educação e religião. Verifiquei essa comparação, tanto no Santo Daime como
na União do Vegetal. Veja o depoimento de um informante udevista: O significado da
União do Vegetal na minha vida é uma escola verdadeira, onde o ser humano pode
chegar a purificação. Porém, a lógica do aprendizado daimista está em aprender por
si e a do udevista esem aprender por si e aprender pelo mestre, como também
constatou Andrade (2002).
Os mestres na UDV representam o Mestre Gabriel, eles são vistos, muitas
vezes, como pessoas que têm a habilidade de conhecer o discípulo mais que o discípulo
conhece a si mesmo. Ele consegue captar e detectar os estados de espírito das pessoas
de forma mais precisa do que elas mesmas possam fazê-lo e, a partir disso, tomar as
providências necessárias para cada caso.
A gente percebe se a pessoa tá numa caminhada boa ou se tem alguma coisa que tá
atrapalhando ela. Ela já não tá sorrindo do mesmo jeito, não tem o mesmo brilho no olho.
não olha a gente no olho. Ela começa a se esquivar, quer beber menos o chá porque ela
não quer se encontrar com aquilo que ela sabe que vai se encontrar. Então dentro da
caminhada isso é muito perceptível e agente auxilia. [...] Os Mestres são pessoas que
estão fazendo uma transformação há mais tempo na sua vida,tem uma certa experiência e
que vem demonstrando um zelo com as coisas da União do Vegetal, com os ensinos, um
zelo com as pessoas e que sabem fazer uma orientação, sabem dar um conselho para uma
pessoa. São as pessoas que estão no lugar de trazer as orientações, de trazer a doutrina do
Mestre Gabriel (Mestre Jeziel).
100
A relação entre mestre e discípulo é uma relação que se mantém através
de um vinculo de confiança do discípulo em relação ao mestre. Tem que confiar no
mestre. O Mestre Gabriel sabe tudo. E o Mestre Gabriel e o quadro de mestres
acabam se misturando, visto que um representa o outro e os mestres atuam no sentido
de auxiliar as pessoas a se enxerguem. Segundo o Mestre Joaquim de Andrade Neto
40
(1998), o discípulo tem que confiar em quem o auxilia na execução de uma cirurgia
dolorosa. E como essa operação não conta com anestesia, então, se pode imaginar
que o processo de aprendizagem é para os fortes, para os que agüentam a dor da
libertação. E assim, também, o discípulo se conseguir confiar no mestre, desfrutará da
alegria de poder vir à luz e, se estiver preparado e com grau de memória, desfrutará,
também, um dia da satisfação de contribuir para que outras pessoas possam recebê-las
(p.117). Diz o Mestre Representante:
poucos dias teve um irmão que é novo, novato aqui na nossa irmandade, ele se associou
e me disse assim: daqui uns dez anos eu quero estar no quadro de mestres pra fazer a
mesma coisa que estão fazendo por mim hoje. E esse pensamento que ele manifestou pra
mim, pra mim foi... Eu me identifiquei muito com ele, porque desde que eu cheguei na
União do Vegetal, eu vi que é uma obra que a sucessão das pessoas é importante. As
pessoas vêm chegando e vem sendo atendida pelas pessoas, mas todos evoluem
espiritualmente, todos caminham, vão pra frente, porque mais pessoas precisam chegar,
mais pessoas precisam de orientação, precisam receber a luz desse mestre. Então, eu vejo
assim, que chegar no quadro de mestres, no lugar que eu to ocupando hoje é uma atividade
natural para todo discípulo da União do Vegetal. Tem que ser o objetivo de todo discípulo
pra que a gente possa aproveitar essa força, essa luz que a gente recebe do mestre, pro
desenvolvimento da nossa vida.
Todo discípulo tem a chance de ser convocado a ser mestre, exceto as
mulheres; a única mulher que chegou ao quadro de mestres foi à esposa do Mestre
Gabriel, a Mestre Pequenina. Ao perguntar a um dos mestres porque a mulher não
poderia chegar ao grau de mestre, disseram-me que, na realidade, a mulher pode chegar,
pois Mestre Pequenina chegou, porém esta prática não ocorre, devido a questões
doutrinárias secretas. Essa possibilidade de ascensão hierárquica, voltada para o bem
de si e do próximo, mobiliza todo funcionamento do grupo, influenciando diretamente o
comportamento das pessoas.
Dada a condição sagrada do chá hoasca para os udvistas, o Preparo do
Vegetal é um ritual significativo para se ter como referência na análise da estrutura
hierárquica religiosa.
40
In: RODRIGUES, Danielle. Mistérios e encantos da oaska: Danielle Rodrigues entrevista o Mestre da
União do Vegetal Campinas, SP: Sama, 1998. Mestre Joaquim José de Andrade Neto é ex-mestre da
União do Vegetal e atualmente mestre de uma dissidência da UDV.
101
O Preparo do Vegetal é o nome utilizado, pela UDV, para designar o
ritual de preparação do chá ayahuasca, que é realizado por cada núcleo, de acordo com a
necessidade do consumo deste. No Núcleo Jardim das Flores ocorrem cerca de dois
preparos anuais. O preparo do vegetal é considerado um ritual muito importante pelos
fiéis, visto que está se preparando um chá sagrado que permite o contato direto com o
divino e que será consumido pelo grupo. Durante minha pesquisa participei de três
preparos: um no Núcleo Salvador, na Bahia e dois no Núcleo Jardim das Flores.
O preparo se inicia com a busca ou colheita dos ingredientes que compõem o
chá: o mariri (cipó) e a chacrona (folha). Essa busca é designada de mensagem.
Normalmente, há cultivo das plantas no próprio núcleo, porém, devido à dificuldade de
desenvolvimento das plantas no clima frio do sul, normalmente um mensageiro vai
buscar uma quantidade extra desses ingredientes em algum núcleo mais próximo. Após
a colheita ou a busca, o mariri deve ser lavado e batido pelos sócios e a chacrona deve
ser lavada dentro de uma bacia. Apesar de não haver regras de divisão de trabalho de
acordo com o sexo, normalmente os homens batem o mariri e as mulheres lavam a
chacrona. Os ingredientes são postos em tachos com água numa fornalha, onde deve ser
administrado o cozimento do chá. Há, no Núcleo Jardim das Flores, cinco tachos na
fornalha. Após o cozimento, todo o chá contido nos tachos é colocado em uma única
panela final, de onde sairá o vegetal pronto para o consumo. O tempo de cozimento é
variável, dependendo da apuração. Quando o primeiro tacho vai ao fogo, o trabalho é
contínuo e a fornalha se apaga quando a última panela está pronta e ,depois, o chá é
armazenado em garrafas PET e guardado no quarto do vegetal. O preparo dura em
média 72 horas. Os discípulos dormem em redes, em torno dos tachos ou em
colchonetes dentro do templo. Todos os sócios, durante o preparo, o responsáveis por
alguma atividade que eles chamam trabalho seja do preparo em si, seja a limpeza
dos sanitários, da área externa, dos verdes, da preparação dos alimentos, lavagem dos
utensílios, etc.
O preparo do vegetal é um momento muito importante, dentro da UDV, seja
no sentido sagrado, seja no sentido social, pois é um momento de convívio intenso entre
os membros, no qual os mestres podem analisar, observar a conduta, o comportamento
de seus discípulos que almejam ascender no grau hierárquico. Como observou Ricciardi
(2008a, p.75), por se estar preparando um chá sagrado, as pessoas buscam ter um
pensamento positivo, assim como palavras e atos harmoniosos para que isso se reflita
no grau do vegetal. Deve-se evitar discussões e palavras negativas, sob pena do
102
vegetal captar tal energia, tendo o risco de não ficar no grau. Grau é o ponto do
vegetal, no qual se dá a burracheira. Assim, ficar e não ficar no grau significa,
respectivamente, apresentar e não apresentar burracheira, quando ingeridos numa
sessão. Daí a recomendação, em relação à harmonia dos filiados, a união para a
realização dos trabalhos, ao cultivo de bons sentimentos... Segundo os adeptos, tudo
isso se reflete no grau do vegetal, preparado em um núcleo ou pré-núcleo. Também se
deve ter cuidado com a palavra dita, como analisado anteriormente. Enfim, é evidente o
cuidado que se deve ter com uso da palavra, principalmente no transcurso do preparo do
vegetal, pois a mesma tem uma influência direta no vegetal e na burracheira.
Os mestres dizem que o preparo do vegetal é um importante momento de
confraternização, de fazer amizades, de estreitar relações. As pessoas, convivendo, têm
oportunidade de aprender coisas novas umas com as outras, de criarem laços sociais
entre si e de colocar em prática os ensinamentos, no sentido de ter mais paciência,
compreensão, amor, enfim, ficar em harmonia com a doutrina (Ricciardi, 2008a). O
Quadro de Mestres e o Corpo do Conselho estarão observando o comportamento dos
discípulos, se é condizente com a doutrina, se está em harmonia... Analisando quem está
com um bom praticado e, conseqüentemente, quem pode ascender no grau
hierárquico. De acordo com Elias (2001), a arte de observar as pessoas é assim realista,
porque nunca pretende considerar um indivíduo por si mesmo, isolado, como alguém
que recebe de seu íntimo as regras e traços essenciais. O que se considera é muito mais
o indivíduo em seu contexto social, em sua relação com os outros. Todavia, a arte de
observar as pessoas não se refere apenas aos outros, mas estende-se até o próprio
observador. Desenvolve-se, então, uma forma específica de auto-observação. A auto-
observação e a observação das outras pessoas são correspondentes. Uma não teria
sentido sem a outra.
Claro que encontramos na UDV, também, uma auto-observação de tipo
essencialmente religioso, de uma observação da interioridade, de uma imersão em si
mesmo, como criatura isolada, para pôr à prova e disciplinar seus impulsos mais
secretos em nome de Deus e da salvação. Porém, a observação de si mesmo para
disciplina no convívio em sociedade, muitas vezes, sobrepõe-se, mesmo que seja em
nome de uma observação religiosa. Como relatou Groisman
41
(1999, p.52):
41
Groisman constatou isso em sua pesquisa com o grupo daimista, porém percebi este processo de auto-
observação muito mais presente na União do Vegetal do que no Santo Daime.
103
uma sensação de intensa visibilidade e muitas vezes os adeptos se mostram
significativamente preocupados com seus próprios atos. Este processo de auto-observação é
desencadeado também pelo reconhecimento de que para conhecer sua divindade interior é
preciso estar com a consciência limpa. A repercussão na manutenção de uma ordem é
extremamente visível. O controle dos comportamentos, por exemplo, fica a cargo de dois
mecanismos ativos, a interação e a reflexão sobre si próprio.
A atenção alcançada com a hoasca provém, em primeiro lugar, da
constatação, durante a burracheira, do efeito dos atos, palavras e pensamentos de
cada um. Tal constatação, que se por meio de uma experiência interior, é
acompanhada de ensinamentos enriquecedores que contribuem para o amadurecimento
espiritual do discípulo. A partir desse amadurecimento, a atenção em relação ao fato
observado será redobrada. Além disso, ela será natural e serena, por ser proveniente do
ensinamento recebido.
Assim, a racionalização, conforme analisada por Goulart (2004), pode ser
vista como relacionada a uma marca de distinção e, por outro lado, a sua situação,
juntamente com a estrutura religiosa da UDV, em geral, reduz em longo prazo essas
diferenças em padrões de comportamento.
três classes de sócios na UDV: mestres, conselheiros e discípulos (corpo
instrutivo e os sócios, que são aqueles ainda não acenderam a nenhum grau ainda),
sendo que cada grau hierárquico possui características próprias, conforme anteriormente
descritas, referentes à posição na sociedade religiosa e às propriedades específicas dos
diferentes indivíduos que a ocupam, ou, em outros termos, entre o posto e seus atributos
estruturais, entre o habitus e suas disposições particulares. Elias (2001) diz que a lógica
da corte é, portanto, a de uma distinção pela dependência: Com a etiqueta, a sociedade
de corte procede à sua auto-representação, cada pessoa singular, distinguindo-se uma
das outras e todas elas se distinguindo, conjuntamente, em relação aos estranhos ao
grupo, de modo que cada uma, em particular, e todas juntas preservam sua existência,
como um valor auto-suficiente (p.120). A etiqueta na União do Vegetal seria os atos,
o comportamento condizente com a doutrina, a retidão, a prática do bem
conforme já descrito.
O mestre não escapa a essa lógica e é apenas porque ele próprio se submete
ao praticado que impõe aos discípulos que ele pode utili-la como um instrumento
de dominação. O mestre estaria ele próprio prisioneiro, ligado à mecânica que
assegura seu poder. O Mestre Alberto explica sobre os critérios para chegar ao grau de
mestre:
104
Então os critérios eletivos para chegar no quadro de mestres são simples porque ainda não
exige esse grau de perfeição: é conhecer o mariri e a chacrona, saber preparar o chá, saber
dirigir uma sessão, saber contar a história da hoasca de burracheira e aí são domínios que
a pessoa nesse estado alterado, nessa força estranha, a gente vê que chegar no alto da
burracheira levantar e contar com perfeição ou de memória uma história contada pelo
Mestre Gabriel sabendo que a preservação dos ensinos e a transmissão das histórias dentro
da União do Vegetal ela se de boca-ouvido, a gente não decora em livros. Ela exige um
grau de domínio a respeito disso. Ter uma prática de vida, estar casado, ter uma família,
viver em harmonia. Muitas vezes, quando chega num grau e vai convocar para o quadro de
mestre a pessoa contou a história da hoasca, é uma pessoa dedicada aos trabalhos e tudo.
Às vezes os mestres vão perguntar para a companheira como é que o cara tá, como é que ele
tá se comportando, porque às vezes no plano privado a pessoa nem sempre demonstra essa
presteza e esse equilíbrio que as pessoas demonstram num planoblico. Saber se no plano
privado dentro do lar a pessoa tendo essa prática de vida conforme é dito e por vezes as
companheiras vão dizendo: Ah! Ele precisando melhorar nisso, naquilo. Então a gente
dá mais um tempo pra essa pessoa chegar nesse lugar e haver a transformação.
Assim tudo, o que pode se tornar visível através do praticado, pelo lado
dos mestres e conselheiros, é encontrado, novamente, quando se examina o que diz
respeito ao mestre: distanciamento com um fim em si, racionalidade, apreço por
nuances, controle das emoções; entretanto, a partir da perspectiva do mestre tudo isso
tem outro sentido. Para o mestre o praticado não é apenas um instrumento de
distanciamento, mas, também, um instrumento de dominação. A sua própria existência
como mestre é um fim em si. O mestre representa o pensamento do Mestre Gabriel.
Assim, ele deve manter uma exemplar conduta moral, profissional e familiar, cuidar
para que suas palavras e ações estejam sempre de acordo com o símbolo da União, ser
fiel à verdade, conhecer e transmitir a doutrina, preservar a tranqüilidade, harmonia e
fidelidade própria e dos discípulos, saber preparar o vegetal, não estar envolvido com
outra religião e deve obedecer às determinações superiores e às Leis do Centro.
Pelas atribuições e competências dos mestres citados acima, percebe-se que,
mesmo havendo uma ordem hierárquica dentro do quadro de mestres, existe uma
pressão dos lados que não é insignificante, pois todos os mestres têm o dever de
obedecer as Leis do Centro e todos, independente da ordem hierárquica, estão sujeitos a
sanções, afastamentos, rebaixamentos exercidos pelo próprio Quadro de Mestres. E a
pressão dos que ocupam um nível abaixo do seu certamente, também, não é
insignificante. Ela seria insuportável, reduzi-lo-ia a nada, num instante, caso todos os
grupos sociais, ou mesmo todos os graus abaixo dele, agissem na mesma direção, qual
seja, contra ele. Mas eles não agem todos na mesma direção: o potencial de ação dos
discípulos, determinado por sua interdependência, é dirigido para a ascensão, de modo
que anulam, mutuamente, seu efeito sobre o mestre e os efeitos dentro do Quadro de
105
Mestres. Cabe ao mestre uma tarefa muito específica: ele precisa vigiar, continuamente,
para que não haja tendências divergentes entre os discípulos, mantendo a harmonia no
grupo. O mestre deve ser visto pelos discípulos como o auxílio enviado pelo Mestre
Gabriel para facilitar a vida das pessoas, e quem o rejeita está rejeitando este auxílio.
A UDV se classifica como uma sociedade religiosa filantrópica sem fins
lucrativos. A manutenção das unidades administrativas é feita pelos membros, através
de doões e do pagamento das mensalidades. As mensalidades variam em relação às
regiões e à realidade econômica de cada uma delas. Na unidade administrativa estudada,
Núcleo Jardim das Flores, as mensalidades custam 60 reais. Esse valor é negociável, de
acordo com a realidade financeira de cada sócio. Com o dinheiro arrecadado, envia-se
uma parte para a Sede Geral, em Brasília, que é o Fundo de Participação, destinado a
cobrir parte das suas despesas, e o restante dos recursos são administrados pelo
Presidente e pelo Mestre Representante, em concordância com a direção do núcleo,
sendo destinados ao pagamento do zelador, das contas de água, energia elétrica,
construção, reforma das instalações e outras despesas. Todos os meses ocorre a reunião
de diretoria para prestar contas das despesas e receitas, assim como, traçar planos e
metas, a fim de atender às necessidades do núcleo. É indicado que todos paguem suas
mensalidades em dia e, no caso de dificuldades, procurarem o Mestre Representante,
para que o núcleo possa programar suas despesas com mais segurança (Ricciardi,
2008a, p.43).
Assim, trata-se de uma sociedade na qual o capital financeiro não tem
importância, a posse de um título referente ao grau hierárquico é mais valiosa, para
quem cresce ali, do que a posse de uma riqueza acumulada; na qual ascender próximo
ao grau de mestre, de acordo com as estruturas de poder existentes, é algo
extraordinariamente importante na escala de valores sociais. Diz o Mestre Alberto, que
possui mestrado em Ciências Sociais, e é professor universitário:
Mas na caminhada de chegar a ser mestres, a busca de poder é simbólica (fazendo
referência a Bourdie) porque nós pela estrutura que a gente têm e às vezes a pessoa que se
move só pela estrutura de poder acaba muitas vezes não resistindo a isso. Porque a estrutura
de poder um ganho ao mestre no sentido simbólico e não material porque os mestres
no resumo da história acabam sendo os que mais trabalham, mais trabalham pela obra, mais
se responsabilizam mais se envolvem e às vezes causam certo não vou dizer prejuízo, mas
de certa forma têm que declinar de algumas coisas no plano pessoal pelo trabalho da União
do Vegetal. [...] Então essas dimensões todas eu acho que permitem que mesmo essas
deformações tão comuns que se dentro das organizações elas não tenham tanto peso,
tanta relevância. Não é que não existam, é que ela não tem tanto peso. Na União do Vegetal
tu tem uma estrutura religiosa que ela tem uma certa independência da reprodução
econômica, ou seja, porque as pessoas que se dedicam ao trabalho espiritual não têm
106
nenhum rendimento daquilo ali e se não tem nenhum rendimento o que levas elas a fazer, o
que lhes promove a motivação. Ela só pode revelar, ela só pode trazer isso aí se houver um
despertar de um reconhecimento pela espiritualidade, pelo conhecimento espiritual.
O Mestre Alberto da UDV fala em poder simbólico que estaria voltado,
complementa ele, ao poder do amor e não do amor ao poder, que tem relação com a
evolução espiritual. Podemos pensar que, na sociedade religiosa UDV, o sentido da
vida para um conselheiro está no fato de ser um conselheiro, para um do corpo
instrutivo de ser do corpo instrutivo, para cada privilegiado de ser um privilegiado (eu
estou evoluindo,estou no grau estou numa conduta exemplar). Qualquer ameaça à
posição privilegiada hierarquizada de privilégios como um todo, significa uma ameaça
àquilo que dá valor, importância e sentido aos indivíduos dessa sociedade, aos seus
próprios olhos e aos olhos das pessoas com quem convivem e que têm uma opinião
sobre eles.
E, neste ponto de vista, não tem cabimento um cargo vitalício (...)Acho que
o primeiro lugar é a gente reconhecer e a gente estar buscando esse lugar de mestre.
Estar como mestre, mas ainda não é um mestre, conclui o Mestre Alberto:
A nossa estrutura ela não é simplesmente de preservação aos que estão mais tempo, aos
que estão há mais velhos no trabalho, mas sim pela prática de vida de cada pessoa o que dá
um certa segurança maior nesse aspecto. A gente têm o caso, por exemplo, que é o caso aqui
do nosso núcleo que a pessoa que começou todo o trabalho aqui em Porto Alegre, que
trouxe a União do Vegetal não muito tempo atrás de mestre voltou ao quadro de sócio,
hoje já está no corpo do conselho e que as pessoas que hoje estão no comando, na
representação do quadro de mestres, que direcionam o trabalho são pessoas que muitas
vezes chegaram depois, mas que pelo seu trabalho, pela sua graduação ao longo do tempo
tiveram o merecimento, a consagração para estar nesse lugar.
Por esta razão, a questão de bom comportamento uniforme torna-se cada vez
mais candente, especialmente porque todos os graus estão expostos, em uma extensão
sem precedentes, em conquistar e conservar este bom praticado. Elias (1994a) diz
que as pessoas forçadas a viver de uma nova maneira em sociedade tornam-se mais
sensíveis às pressões das outras, à pressão que as pessoas exercem, reciprocamente,
umas sobre as outras. Diz o Mestre Alberto:
Nós nos lapidamos uns aos outros ao longo do tempo e esse se lapidar muitas vezes a gente
a pessoa falar uma coisa um pouco forte, a respeito de uma atitude, de um
comportamento e ao longo do tempo a pessoa se transformar e a gente muitas vezes
tendo passado por isso, ter passado por essa peneira que a gente fala isso vai dando um
sentimento mesmo de companheirismo [...] O Mestre Gabriel diz que amigo verdadeiro é
aquele que mostra, amigo que mostra às vezes quando o cara não tá legal, errado, mas
também quando a pessoa tá precisando de alguma coisa auxiliar a pessoa, auxiliar a pessoa
107
de doação porque quem dá quando dá quer receber a doação de coração, de consciência
sem querer receber nada em troca.
Podemos trazer um exemplo como referência de análise, que é o caso do
sócio que foi convocado para o corpo instrutivo, porque dois anos tinha largado
completamente a bebida (era alcoolista) e vinha apresentando cada vez mais um
comportamento condizente com a doutrina na retidão e, após algumas semanas de
sua convocação, ele deu carona a um irmão para ir a um ritual e, durante o percurso, ele
fumou cigarro. Esse irmão, imediatamente, foi falar com o mestre como convocas para
o corpo instrutivo um irmão que está no vício do cigarro? Um dos critérios para estar
no corpo instrutivo é o ter nenhum tipo de vício. O mestre pensava que ele tinha
parado de fumar e o discípulo que foi convocado pensou que o mestre sabia da
manutenção de seu hábito de fumar e, constrangido, pediu para retornar a condição de
sócio. De acordo com o Boletim da Consciência em Defesa da Fidelidade e Harmonia
dos Filiados do Centro, o discípulo que encontrar seu irmão em uma falta deve, pelo
engrandecimento da União do Vegetal e da paz entre os homens, clareá-lo sob o
símbolo da luz, paz e amor; se o irmão não tiver condições de demonstrar tal atitude,
deve, sem comentar a terceiros, trazer ao conhecimento do Mestre em Representação,
que tem o dever de clarear aquele discípulo ou determinar que um Mestre ou
Conselheiro o faça, porém, o discípulo que apresentar queixas de seu irmão, e,
principalmente da Direção, sem a devida comprovação será punido. O que acaba
acontecendo é que todos estão observando todos constantemente.
Realmente, o que pude observar nos três rituais de preparo que participei
(um no Núcleo Salvador na Bahia e dois nocleo Jardim das Flores) foi uma
perfeita harmonia entre os adeptos, uma alegria, uma satisfação em estarem
realizando o preparo. As pessoas o gritam, se tratam cordialmente, demonstram afeto
umas pelas outras, amizade, respeito, confiança. As crianças ficam soltas, brincando
tranqüilamente, pois são cuidadas por todos, é um ambiente protegido.
Com esse jeito caianinho de ser, a sociedade religiosa UDV procede à sua
auto-apresentação, cada pessoa singular, distinguindo-se de cada uma das outras, e todas
elas se distinguindo, conjuntamente, em relação aos estranhos ao grupo, de modo que
cada uma, em particular, e todas juntas preservam sua existência como um valor auto-
suficiente. Os hoasqueiros X os não-hoasqueiros.
108
Percebe-se certo caráter de fetiche
42
de cada ato dentro do ritual: preserva-se
o cuidado com as palavras, procura-se ter uma fala metódica, dentro dos ensinos do
Mestre Gabriel. O discípulo deve fazer perguntas de grau, coerentes com a evolução
espiritual, saber fazer uma chamada bem memorizada, pois elas não estão escritas em
lugar nenhum, apenas escutando-as na sessão, conseguir fazer uma leitura clara dos
documentos, durante a burracheira, ter um bom controle da burracheira se
mantendo concentrado na sessão, não vomitando dentro do salão, conservar seu
uniforme impecável. No final da sessão todos que vinham falar comigo sabiam a
quantidade de chá que eu tinha bebido tu bebeu bastante como tu passou? Ficou bem?
fiquei preocupado com a quantidade de c que tu bebeu, tens muita coragem!
Também, sabiam se eu tinha saído do salão, passado mal vi que tu saiu, tu não estavas
bem né? Teve uma peia? Numa sessão que participei no Núcleo Inmaculada
Concepción, em Madrid, na Espanha, no final do ritual vieram me elogiar pela minha
firmeza, que eu não saí nenhuma vez do salão, estava concentrada nos ensinos. Esses
atos podem se tornar um fetiche de prestigio, servindo como indicador da posição do
indivíduo dentro do seu grau espiritual ou de sua possível ascensão. É muito bem
visto o discípulo que bebe na cinta, ou seja, bebe um copo cheio de chá, que era um
dos ensinos do Mestre Gabriel para se poder ver coisas encruadas. O discípulo que
não apresenta um bom controle da burracheira se sente envergonhado, porque não
administrou a burracheira, o vegetal tomou conta, mostrando fraqueza
espiritual, que o fiel está baixando de grau, ta cheio de problema, É considerado
um fiasco o discípulo do Corpo do Conselho ou do Quadro de Mestres que vomita
dentro do salão, não conseguindo sair.
Conforme exposto, Goulart (2004) considera o maior indício de
racionalização acentuada o tipo de transe extático mais controlado, mais suave da
UDV, em relação às outras religiões ayahuasqueiras. A racionalização desse transe por
certo tipo de prática bem vista consiste numa auto-apresentação dessa sociedade.
Através dela, cada indivíduo e, antes de todos, o mestre, tem seu grau e a sua posição de
poder relativamente confirmados pelos outros.
Aliado a essa prática ritual, o discípulo deve ter um comportamento na
retidão, estar integrado à família, longe de qualquer tipo de vício, não falar palaves,
não ofender os irmãos, não brigar, insultar, zombar, falar alto, gritar, devendo sempre
42
O termo fetiche é utilizado aqui no sentido de como um elemento fundamental da manutenção do
modus operantis.
109
cumprir com sua palavra, apresentar uma moderação das emoções, calma, prudência,
demonstrando um ar serene pelo qual os hoasqueiros se destacam da massa dos
outros homens.
A partir desse contexto, podemos apreender o tipo específico de
racionalidade produzido no rculo da sociedade religiosa UDV. Como todo tipo de
racionalidade, este também se forma, paralelamente, a determinadas coerções, no
sentido do autocontrole das emoções. Uma figuração social, em cujo seio tem lugar uma
freqüente transformação das coerções externas em coerções internas, constitui uma
condição para produzir formas de comportamento cujos traços distintivos são indicados
pelo conceito de racionalidade (Elias 2001).
A vida social concentra-se, em grande medida, dentro da irmandade. um
circulo fechado da vida social. Somente dentro dessa irmandade é que os fiéis podem
manter aquilo que sentido e rumo às suas vidas, dentro desse grupo que possui um
grau de evolução: sua existência social como membros dessa boa sociedade, sua
evolução espiritual e a distância em relação aos não-hoasqueiros, o prestígio a
imagem central que fazem de si próprios, sua identidade pessoal. Eles não freqüentam a
UDV apenas porque dependem do mestre, mas permanecem dependentes do mestre
porque pelo acesso a boa sociedade e à vida junto à sociedade religiosa UDV
podem manter distância em relação aos outros, distância da qual depende a salvação de
suas almas, de seu prestigio no grau hierárquico, ou seja, de sua existência social e sua
identidade pessoal.
A UDV ampara seus cios, em todos os sentidos, desde o afetivo, se, por
exemplo, um irmão está com problemas emocionais, passando por uma crise ou
necessidade o Mestre Representante o assiste em sua residência e, caso não puder fazê-
lo, envia outro Mestre ou alguém do Corpo do Conselho. Se um irmão está
desempregado, a irmandade toda se mobiliza, auxiliando-o na busca ou indicando
trabalho. O conjunto de sócios pertencentes a área da saúde assiste o irmão, quando
necessário e solicitado, muitas vezes por preços reduzidos ou gratuitamente, por
exemplo, o caso de uma pediatra que, na madrugada, foi na casa de um irmão atender
seu filho pequeno. O irmão que está com dificuldade financeira pode ter o valor de sua
mensalidade reduzido ou isento e, quando necessário, em casos extremos, recebe cesta
básica da União ou algum outro auxílio, como o de moradia, como o caso da irmã
brasileira que casou e teve um filho com um espanhol e, quando o menino nasceu, o pai
os expulsou de casa e ela estava sem trabalho, sem ter onde morar e com um recém-
110
nascido no colo; o Mestre da UDV, na Espanha, a abrigou em sua casa, por quase um
ano, até ela conseguir se restabelecer. A irmandade possui uma relação de confiança,
lealdade entre eles, um irmão nunca ficará desamparado sendo membro da UDV.
É um equívoco ver o mestre apenas como o dominador de seus discípulos;
é igualmente um equívoco vê-lo apenas como um provedor. Ele é ambas as coisas.
Também seria errôneo destacar apenas a dependência dos discípulos em relação ao
mestre. Até certo ponto, o mestre também é dependente. Entretanto, embora o mestre
dependa, em grande parte, da existência dos discípulos para consolidar e conservar as
chances de poder de sua posição social, a dependência de cada discípulo, em relação ao
mestre, é extraordinariamente maior do que a dependência do mestre em relação a cada
discípulo em particular. Diz o Mestre Jeziel: É a união (dos vegetais e das pessoas)
que vem proporcionando para as pessoas um esclarecimento, um entendimento sobre o
que é a vida, sobre do que é o sentimento das pessoas, como que a gente têm que lidar
com o sentimento das pessoas, com o nosso e o das pessoas. As pessoas dependem
umas das outras, da irmandade, para evoluírem espiritualmente, tentando evidenciar o
poder do amor e não do amor ao poder, visto que essa relação de poder ainda é
necessária para ocorrer um processo civilizador, mas, como disse o Mestre Gabriel,
chegará um dia que as pessoas terão consciência e não haverá necessidade de uma
estrutura hierárquica, bem como nenhuma outra relação de poder para se obter a paz. De
acordo com Elias (2001), é essa balança das interdependências, essa defesa do equilíbrio
das dependências que dá o caráter específico do que se denomina corte.
111
Figura 1 O caule na União do Vegetal.
112
CAPÍTULO 4
OS RAMOS NO SANTO DAIME
Dentro da simbologia do Santo Daime, cada hinário é ramos do tronco da
missão, manifestando-se em forma de flores os hinos que vão nascendo. Utilizando
a metáfora dos ramos, me deterei, neste capítulo, na doutrina, organização, fundamento
e rituais do Santo Daime, na mesma linha do capítulo anterior, com a União do Vegetal,
dando, assim, uma perspectiva comparatista entre ambas. A metáfora dos ramos está
ligada, também, à organização em rede do Santo Daime, diferentemente da UDV, que
tem uma organização mais unidirecional, por isso a metáfora do caule. O Santo Daime é
considerado uma doutrina viva, uma doutrina em mutação e, neste sentido,
embora os preceitos sejam os mesmos, o comandante de cada igreja imprime algo
pessoal, em função de seu próprio conhecimento, vivência, clareza, iluminação
43
,
etc. Além disso, as culturas regionais bem como o perfil dos membros, também
influenciam nesse processo de diferenciação. A União do Vegetal possui uma doutrina
imutável e procura manter uma padronização em todos seus núcleos no Brasil.
De acordo com Léger e rvieu (1983), a rede supõe reunir os que, estando
convertidos, escolhem as vias as mais diversas para viver de outra maneira. Uma rede
pode surgir tanto das adesões que suscita a expansão da intuição particular de um
indivíduo sobre o futuro da sociedade e como enfrentar isto, quanto do recolhimento de
iniciativas mais concretas, às quais os interessados conferem um alcance, um escopo
particular, do ponto de vista da mutação, ou ainda, das relações locais de vizinhança e
de ajuda mútua mantidas, às vezes, por muito tempo pelos indivíduos ou grupos que
encontram, na noção de rede, o meio de valorizar e de legitimar a troca, entre eles, de
bens materiais e simbólicos. Os indivíduos, ou os grupos isolados, podem mesmo
reivindicar de uma rede, simplesmente invocando sua parentada espiritual, com outros
seres espirituais, conhecidos ou supostos. No primeiro caso, a rede se assemelha, muito
de perto, à comunidade emocional reunida pela palavra de um profeta; é o caso da rede
43
De acordo com Groisman (1995, p.345) a compreensão daimista de iluminação está ligada ao contato
com uma outra dimensão da realidade, a vida espiritual.
113
em torno do líder carismático. Em outros casos, a rede pode se orientar para formas
cooperativas diversamente estruturadas. O último caso, se identifica à rede mística.
Mas, em todos os casos, um grupo formalmente flexível, até mesmo uma simples
ligação afetiva e ideológica. A noção de rede postula a unidade na diversidade de
todas as experiências comunitárias, partilhando um mesmo pressentimento e uma
mesma convicção. Valorizando a restituição comunitária, numa ordem tradicional e
rural, esta convicção serve, ao mesmo tempo, para legitimar a escolha de uma inserção
social marginal e para valorizar a marginalidade conferindo-lhe uma significação
protica.
Assim, os ramos são a estrutura que sustenta a experiência do uso da
ayahuasca no Santo Daime.
4.1 A Doutrina
A doutrina do Santo Daime pode ser definida como um movimento eclético,
de caráter espiritualista, possuindo uma base cristã, combinada com tradições p-
colombianas, esoterismo europeu, crenças africanas e xamanismo indígena (Alverga,
1998).
MacRae (2000) realiza uma análise introdutória a respeito das relações do
Santo Daime com as tradições espíritas e umbandistas. Ele parte de um conceito
emprestado de Cândido Camargo, segundo o qual um continuum mediúnico
brasileiro religioso: num pólo estão as vertentes mais africanas da umbanda e, no outro,
o espiritismo kardecista mais ortodoxo. O autor afirma que a doutrina daimista, através
de concepções como karma, evolução espiritual, doutrinação de espíritos,
reencarnação, noção de pessoa, etc., localiza-se no pólo mais branco ou kardecista do
continuum mediúnico, apesar de agregar elementos da umbanda. O autor sustenta que
haveria uma dificuldade de relacionamento entre o daime e a umbanda. Atualmente, no
u de São Miguel, os trabalhos de umbandaime estão cada vez mais sedimentados,
ocorrendo, no mínimo, três vezes ao ano, em parceria com um centro de umbanda.
O Padrinho Fábio
44
do Santo Daime Céu da Gamarra (MG) define a
doutrina como possuindo uma origem cristã: seus fundamentos são idênticos aos do
44
In: www.santodaime.org
114
cristianismo primitivo deixado por São Pedro, cujo marco inicial foi o Pentecostes e a
base da doutrina é a Sagrada Família, sendo a Virgem Santa Mãe a grande inspiradora
do nosso Mestre fundador Raimundo Irineu Serra; Jesus Cristo o modelo do verdadeiro
homem e São José o pai carinhoso que todos queremos ter. A Virgem Santa Mãe é a
Rainha da Floresta, de quem Mestre Irineu recebeu o hinário Cruzeiro, que
reinterpreta a cosmologia cristã, sendo considerado pelos daimistas o Terceiro
Testamento ou a Terceira Revelação. A primeira revelação teria sido dada a Moisés,
no Monte Sinai, dos antigos profetas, concretizada no Antigo Testamento. A segunda
revelação seria a do Mestre Jesus aos apóstolos, concretizada no Novo Testamento. A
terceira revelação seria a de Juramidam dada ao Mestre Irineu, que seria o próprio
consolador prometido por Jesus, conforme diz o Evangelho de João. Então, os hinários
o o Terceiro Testamento.
O Padrinho Fábio diz que o hinário é uma nova Bíblia, moderna,
participativa, simples e transcendental, é participativo, porque todos os membros
daimistas podem receber hinos, mas nem todos recebem. O hinário é recebido
diretamente do astral, pois se considera que, no mundo espiritual, existe uma linha de
trabalhos, cujos ensinamentos são transmitidos através dos hinos (Cemin, 2002, 357).
Os hinos devem ser consagrados em uma sessão. Consagrar é ser aceito pela irmandade,
que avalia se este está dentro da linha de hinários que expressam os valores culturais e
espirituais da doutrina e, deste modo, se reconhece a pessoa que o recebeu como dono
do hinário.
Assim, a doutrina do Santo Daime é considerada, também, como uma
ressistematização dos ensinamentos de Cristo (Groisman,1999, p.17). De acordo com
Goulart (2002), os conceitos do espiritismo kardecista se juntam às concepções cristãs
na organização das explicações daimistas da construção de uma individualidade moral,
como as noções cristãs de arrependimento e perdão, associada à idéia de disciplina
relacionada a uma reorientação do comportamento numa nova moral, com base na
noção kardecista de evolução espiritual, que se através de um conjunto de valores
que é enfatizado com o reforço do catolicismo ortodoxo e que se mistura às crenças do
curandeirismo amazônico.
Ferreira (2008) compreende o movimento religioso do Santo Daime como a
fundição e a re-elaboração de matrizes religiosas, das mais diversas, como o
cristianismo, o xamanismo amazônico, correntes esotéricas, o espiritismo kardecista e
as religiões afro-brasileiras, sendo considerado, por muitos pesquisadores, a matriz
115
xamânica mais importante. Boa parte dos trabalhos acadêmicos interpreta o Santo
Daime como um movimento xamânico, levando em conta as experiências extáticas dos
participantes dos rituais daimistas, as lideranças comparadas aos xamãs e os processos
de cura com a bebida sagrada. Entretanto, para o autor, considerando-se o conjunto
doutrinário e de símbolos daimistas, existe um eixo central cristão que norteia todo
processo de reelaboração simbólica na constituição do Santo Daime. Portanto, mais que
um movimento xamânico, o Santo Daime é um movimento cristão, estabelecendo uma
forma muito peculiar de seguir os princípios do cristianismo.
Para DAndrea (2000), o caso do Santo Daime é exemplo de um franco
processo de nova-erização de antigas tradições, como o cristianismo, o budismo, o
próprio Santo Daime e assim por diante. Esse processo se refere a uma forma
emergente, moderna, de significar e manusear recursos simbólico-práticos tradicionais,
com finalidades individualistas. E as conseqüências dessas ressignificações reforçam, de
fato, tendências individualizantes, reflexivas e destradicionalizantes. Processos de
reflexividade do self (auto-identidade) são abundantemente verificados nas mais
diversas situações e contextos sociais.
4.2 Igreja, Seita e Tipo Místico
Fazendo do regime de validação do crer o princípio da diferenciação das
formas da sociabilidade religiosa, nos deparamos, inevitavelmente, com a tipologia
clássica das formas de comunalização cristã, definida por Weber (2004) e Troeltsch
(1987) (Hervieu-Léger, 1999). O princípio de diferencião que estes retêm, antes de
tudo, é a relação particular que cada uma mantém com o mundo. O Santo Daime, dentro
do contexto dos novos movimentos religiosos, se aproxima muito mais da religião de
tipo místico, conforme denominação de Troeltsch (1987), do que de uma seita ou Igreja,
apresentando pequenas características de agrupamentos tanto de uma como da outra e
caracterizando-se por ser uma experiência pessoal, individualista. Os daimistas se
consideram como fazendo parte de uma doutrina viva. De acordo com Alverga
(1998) é uma doutrina que ainda está se fazendo, que ainda não foi aprisionada na
necessidade de se formular teologicamente (p.23).
Peláez (1994) utiliza a expressão Centro Livre, termo êmico que sintetizaria,
para os daimistas, as suas características ecléticas e, ao mesmo tempo, significaria
116
flexibilidade e abertura para continuar incorporando outras tradições que pudessem
contribuir para o seu enriquecimento.
Oliveira (2008) constata uma constante re-elaboração e uma ressignificação
contínua através, principalmente, dos hinos, posto que o ritual em si possui um grau de
permanência mais lida e mais difícil de ser quebrado. Para o autor, no corpo dos
hinários é onde há uma permissividade maior para que essa ressignificação aconteça,
tendo em vista que qualquer elemento encontrado nos hinos que contradiga as
concepções originais, ou de encontro aos dogmas e preceitos pré-estabelecidos por
Raimundo Irineu Serra no hinário tronco O Cruzeiro, fará com que sejam
desabonados e, naturalmente, não serão cantados em nenhuma igreja. Há uma oposição
entre Centro Livre e disciplina, que tudo é permitido, mas nem tudo conm. Diz o
Livro de Normas de Rituais do CEFLURIS
45
:
O ritual de uma doutrina viva é um guia, um mapa simbólico que nos ajuda a percorrer com
maior facilidade os intricados caminhos do conhecimento espiritual. Uma vez fossilizado,
tanto o ritual quanto a doutrina podem se tornar um entrave, uma autentica camisa de força
para os seus participantes. Por isso mesmo é que devemos evitar os extremos tanto de
ignorarmos as prescrições tão sábias da tradição como a fossilizarmos a ponto de ficarmos
presos a fórmulas ocas e exteriores. Nesse sentido deve haver sempre um zelo e um respeito
em relação àquilo que foi prescrito pelos mestres, sem que isso impeça a tradição de manter
o conteúdo de sua mensagem atual e útil para as diferentes necessidades de cada época
(Cefluris, 1997, p. 2).
O sentido da Nova Era é o da união, da incorporação, visando um
conhecimento espiritual universal e um amplo entendimento entre as várias religiões,
principalmente as ayahuasqueiras. Diz o hino da Nova Anunciação de Alex Polari de
Alverga:
Oxalá, Shiva, Juramidam
Nesta noite vão se reunir
Para firmar esta aliança
Eterna para os tempos que hão de vir
Eu sinto o perfume desta flor
Jesus Cristo é meu Mestre Imperador
O Oriente veio para o Ocidente
E foi nele que tudo se encontrou
Eu saúdo os Budas e Orixás
E à glória deles todos dou louvor
No Himalaia, nos Andes, na floresta
Se escuta o rufar de mil tambor
Oxalá, Shiva, Juramidam
São João foi quem me revelou
45
In: www.mestreirineu.org
117
E o Mestre no final dos tempos
No Santo Daime todos três triunfou
Trata-se, mais de uma religião espiritual, em que a transformação do mundo
se por meio de uma experiência formal e interior. Essa experiência é a expressão
verdadeira de uma consciência religiosa universal, baseada no fundamento divino. Por
valorizar a experiência pessoal, admite diferentes formas exteriores de atingir a verdade
última. Não pretende mudar o mundo, mas sim o interior de cada indivíduo. Para
Padrinho Sebastião (1998), Deus fez uma igreja no formato de um cipó, para que ele
pudesse habitar em cada ser puro encarnado na terra. Dentro dessa igreja, do formato de
um cipó, o homem se torna consciente de que ele próprio também é um templo, pois o
corpo é uma igreja, a sala é o trono para conversarmos com o nosso Mestre.
No Santo Daime, a idéia de caminho sintetiza a trajeria pessoal, para o
autoconhecimento, através da busca interior, e para o contato com o mundo espiritual. A
noção de caminho, por outro lado, dimensiona esta busca, circunscrevendo sua trajetória
dentro do conhecimento espiritual, como um percurso contínuo e territeriolizado de
revelação, mapeado pela doutrina. A noção de caminho indica, também, que é preciso
estar atento a dificuldades e obstáculos a serem transpostos para o advento desta
revelação. Neste sentido, o caminho também representa um canal que o indivíduo
estabelece com o que tem dentro de si e/ou com o mundo espiritual (Groisman, 1999).
Observe neste sentido o relato do Padrinho Alan:
O Daime começa a abrir um caminho. Já vi isso no astral nos meus próprios caminhos. Tive
uma miração em que fui caminhar e tentar passar num lugar, e era um cipoal, vários cipós.
Quer dizer, vários não, milhares de cipós, tudo trançado. E era uma dificuldade para eu
passar! E na hora a intuição me disse assim: Chama a espada de São Miguel! evoquei a
espada de São Miguel. Vi ela na minha mão! Então comecei a cortar aqueles cipós e
comecei a abrir aquele caminho. De repente abriu o caminho! Não sei quanto tempo levei
para fazer isso porque no espiritual o tempo não existe. Mas era um caminho longo que fui
abrindo, abrindo, abrindo aquilo. De repente aquilo abriu e entrei num ambiente espiritual
azul e a Virgem Maria estava lá! Então ali entendi que o Daime havia possibilitado que eu
abrisse o meu caminho espiritual. E, realmente, a partir dali as coisas se pronunciaram de
um jeito que vem ... acredito que vem num crescente.
Ao expressar forte individualismo, o Santo Daime valoriza a autonomia e a
liberdade do sujeito, como ideologia ocidental, traduz-se por meio de representações
similares, como autoconhecimento, Deus interior, auto-aperfeiçoamento. Com
efeito, valorização no cultivo da subjetividade e de ideal de um self perfeito (eu
perfeito). a primazia do indivíduo sobre a sociedade, a qual é avaliada
118
negativamente (o que pode indicar uma rejeição do mundo, mas também um
ascetismo intramundano egoísta). Almeja-se a perfectibilidade de um self deificado e a
maestria humana sobre as naturezas interna e externa, cultivando e objetivando uma
condição transumana. (DAndrea,2000). Neste sentido, diz o Padrinho Alan:
Hoje tenho absolutamente certeza: nada é por acaso! Mesmo, aquilo que modificamos por
vontade própria e depois vamos sofrer uma conseqüência que pode ser boa ou pode ser
ruim, dependendo da atitude que tomamos. Acho que o Daime ame ensinou, também,
que atitudes que o homem toma que vamos dizer assim, estão dentro do poder de Deus.
Não são a vontade de Deus, estão dentro do poder Dele. Mas, que quando são atitudes que
estão em acordo com a vontade de Deus, elas se realizam. Mas existem outras atitudes que o
homem toma que estão dentro do poder de Deus e são contra a vontade de Deus. Essas
criam um karma! Por que aí conflitos, vamos dizer assim, como se tivesse um mar ... melhor
até, como se tivesse uma corredeira! Aí, queres remar ... fazer como a truta, subir rio acima,
quer dizer é muito trabalhoso! Porque Deus é essa fluência da vida, que vai descendo...
então quando te adaptas nessa correnteza, expande tua alma, és Deus também! Por isso que
Sai Baba disse: Somos Deus também. O Krishna também: Deus está dentro de nós!mas
quando queremos fazer como a truta, subir o rio, às vezes vejo que acabamos errando nisso
e caindo fora. Vamos para margem. E aí tu sai fora da água, tu sai fora daquela proteção, sai
fora daquele ambiente ali.
Dentre as características do tipo místico, podemos perceber, no Santo
Daime, a formação de redes no lugar das instituições, a ênfase na experiência religiosa
direta, a prática da tolerância e de certo relativismo, pois, a verdade, apesar de única,
pode ser atingida por diferentes caminhos, pela idéia de que cada um possui uma
centelha divina que pode ser despertada pelo trabalho empreendido. Apesar de ter o
caráter comunitário, são individualistas, não se opõem à cultura secular, sincrética,
relativista e possuem forte crença em uma elevação espiritual alcançada por meio do
esforço de cada indivíduo, como um auto-aperfeiçoamento.
A estrutura do Santo Daime apresenta uma flexibilidade em suas adesões
cosmológicas religiosas, característica marcante dos novos movimentos religiosos.
Groisman (1991) propõe a idéia de ecletismo, retirando a noção do próprio estatuto do
Centro Eclético da Fluente Luz Universal Raimundo Irineu Serra (CEFLURIS). Assim,
o Santo Daime é, segundo sua autodefinição, uma instituição eclética. O ecletismo
evolutivo, de acordo com Groismam, possibilita a convivência entre diversos sistemas
cosmológicos, tais como a umbanda, o espiritismo e o cristianismo, sendo um sistema
totalizante, que engloba todos os aspectos da vida do sujeito (p.89).
É preciso, no caso, abordar com muito cuidado um possível caráter sincrético da doutrina.
A idéia de sincretismo pode indicar a rejeição de uma linha mestra de aglutinação de
concepções espirituais diferentes, o que não ocorre no campo simbólico da doutrina e que
a caracteriza como fenômeno religioso sui generis [...] O ecletismo que envolve a doutrina
dinamiza o processo ritual e abre espaço para que concepções rituais diversas [...]
119
manifestem-se no seu interior [...] Este ecletismo então significa um marco de um grupo em
expansão, na medida que existem mecanismos que os transmitem mesmo àqueles que se
engajam, oriundos de outras realidades culturais (1991, pp.233-234)
De acordo com Champion (1993), a característica mais marcante dessa nova
religiosidade é seu aspecto de bricolagem, de arranjo feito pelo próprio indivíduo,
como em uma religião à la carte. Mais que um sincretismo, é um ecletismo, pois não
existe uma ntese, mas a justaposição de elementos diversos advindos das mais
diferentes religiões. O Santo Daime, incorporando símbolos religiosos de culturas muito
diferentes e distantes apresenta, também, um discurso de que todos os caminhos são
válidos para chegar à iluminação. Num contraponto à idéia de bricolagem, analisarei,
posteriormente, no capítulo sete, o Santo Daime e a União do Vegetal, a partir da
butinage, idéia trazida por Edio Soares (2008).
No Santo Daime, o compromisso do fiel é voluntário, exigindo um grau de
compromisso do fiel, porém pode se tratar de uma adesão sem, necessariamente, romper
com seu passado religioso. O Santo Daime não exige uma ruptura radical de seus
fardados, sendo que encontramos no grupo, por exemplo, daimistas que são, também, da
umbanda, budistas ou freqüentadores de centros espíritas kardecistas. Assim, ser
daimista não implica um isolamento ao mundo exterior e seus membros não criticam ou
julgam outras práticas religiosas. O padrinho Alan faz das palavras do Dalai Lama as
suas: A melhor religião é aquela que te faz bem. Todos somos irmãos. Cada um
segue o caminho que lhe for mais apropriado. O Daime não atribui a si um caminho
verdadeiro, a única via para chegar à verdade suprema. Diz o Padrinho Alan:
Eu não tenho nada contra qualquer linha religiosa pelo contrário. O Daime me mostrou que
todas as linhas são perfeitas, nós é que somos imperfeitos porque a gente se limita por dois
motivos que eu entendo e é o que o Daime me mostrou: um é que como nós descemos na
individualidade entre aspas né, em função dessa individualidade que nós passamos a tocar a
nossa vida na forma que nós entendemos que ela deve ser e obviamente com toda a carga do
meio em que nos criamos, a carga genética que trazemos, mais o peso do karma que somos,
porque nossa doutrina é reencarnacionista [...] O homem é muito dado ao julgamento e
muitas vezes nós julgamos as doutrinas pelos erros dos homens. Há que se separar o que é o
divino dessa doutrina, desse sacramento daquilo que são erros humanos.
O comportamento do Daime não é gido na disciplina e não impõe o
convertido a assumir uma nova identidade. O Santo Daime enfatiza a necessidade de
uma moralidade, com os mesmos princípios éticos e morais da UDV, e a obediência
também está presente, ela é claramente destacada no Cruzeiro, hinário do Mestre
120
Irineu, e todos os outros hinários fazem referências a ela, de uma forma ou de outra,
porque ela é um dos componentes básicos do processo de ajuste do adepto ao sistema
(Cemin, 2002,p.349). E a desobediência é chamada de rebeldia. Observe o que ensina
o hino:
[...] Eia São Miguel que veio
Balançando a tropa
Veio dominar
Peia pra quem é rebelde
O fiscal que veio
Foi para apurar
Salve, oh! Meu Mestre Império
Que nesse cruzeiro
Bem firmado está
Deu para São João na Terra
A Chave da Justiça
No Santo Daime está
(A Chave da Justiça de Alex Polari)
que obedecer aos ensinos do Mestre meus irmãos. Aquele que ta
tomando daime, mas ta agindo em desacordo com os ensinos do Mestre está tomando
qualquer coisa menos daime, não diga que está tomando daime porque não está
tomando daime, doutrinou o Padrinho Alan, certa vez, em uma sessão. Porém, a
doutrinação se dá de modo mais flexível que na UDV, porque os daimistas crêem que a
autoridade disciplinadora está no poder do chá e na consciência de cada um. Diz um
daimista: Deus dentro de ti, contigo o tempo inteiro e tu faz parte Dele e Ele faz
parte de ti. Então o melhor psicólogo é a tua consciência, ela sempre ali, ela sabe
quando tu erra, sabe quando tu acerta. Deste modo, no Daime, o controle vem da
consciência de cada um, decorrente do processo de evolução dos trabalhos de daime, no
qual os ensinos vêm pelos hinos, pela força, e por pequenas interveões orais, de
caráter doutrinário, do padrinho nos rituais. Veja a compreensão do Padrinho Alan:
Porque se tenho uma rebeldia dentro do salão e eu vou agir com mandus militaris, ou
seja, vou agir com rusticidade, aquela disciplina ferrenha e tal, talvez esteja ofendendo uma
lei espiritual que o Cristo falou lá de amar ao próximo como a si mesmo. Fazer aos outros o
que gostaria que fizessem para mim porque aquele irmão ou aquela irmã que está naquela
passagem, naquela rebeldia, pode estar aparelhando alguma entidade das trevas que de
alguma maneira entrou naquele trabalho e está recebendo aquela luz, então está sendo
abençoada, mas ela ainda não tem uma maturidade para entender o trabalho. Como se
pegasse, por exemplo, em uma faculdade um menino digamos assim da primeira série, da
segunda série do primeiro grau. No meu tempo chamava-se ginasial. Sou muito antigo. Ou
botar no mestrado lá, por exemplo. Ele não vai entender nada, porque ele vai se aborrecer e
vai começar ... mas ele está lá. Alguma coisa ele pode receber se puderes sentar com ele e
dizer assim: escuta, presta atenção, está sendo abençoado, estás aqui junto com teus irmãos
121
recebendo o Santo Daime que é um sacramento divino! Podendo ultrapassar este estado
onde te encontras, de lutas internas, de achar que o mundo é pesado e vir para junto dos teus
irmãos, cantar com alegria. Não achar que a vida é ruim porque tens arroz em cima da
mesa. Porque tem gente que nem arroz tem! Em suma: agir como Cristo ensinou! Como Ele
fez. Ele provou que era assim porque Ele fez.
O Daime condena o uso de álcool e drogas, mas não censura a pessoa que
faz uso, pois cada um sabe da sua caminhada evolutiva e o daime e o padrinho estão ali
para auxiliar. E todos daimistas sabem que ferir os preceitos e o código moral
incorporado ao sistema é arriscar-se a ficar fora do poder, identificado com a ausência
de miração e de plenitude, e aos atrapalhos psíquicos e materiais (Cemin, 2002,
p.377). De acordo com Cemin (2002), os daimistas acreditam que, junto com o daime, o
que circula é o espírito do daime, tornando-se um elo que estabelece a corrente física e
espiritual criada e sustentada pela irmandade. A participação nessa corrente implica a
vivência de estar dentro do poder, ser um filho do poder, ou seja, ser um filho do
daime, fator propiciador de mirações e ensinos recebidos do astral (p.381). Quem
está no Daime está dentro do poder, ser um filho do Daime é ser um filho do
poder. Sou muito grata ao Daime, ele me deu tudo. O daime te dá, mas tem que vir
a doutrina junto, tu tem que estar no caminho da verdade.
E tudo no Daime, aquilo que tu pede, tu é atendido! A palavra fica muito mais forte, daquilo
que tu falas. Mas claro que tem que ser uma palavra limpa né. Ascender vela não adianta e
até pode ser pecado, se você reza na doutrina e em casa faz tudo errado! (cantando o hino).
E é exatamente isso! (informante)
Para o Padrinho Sebastião (1998), a espiritualidade pressupõe uma enorme
liberdade do ser em busca do próprio caminho, aprendendo com as escolhas e as
experiências. Ao mesmo tempo, essa liberdade precisa ser equilibrada com uma grande
disciplina e senso de responsabilidade ética. Observe o depoimento de um membro
daimista:
A cobrança vem muito maior para o daimista, aí tu tem que estar preparado para te curvar e
seguir em frente mesmo. Te curvar, pedir perdão, pedir força pra mudar e tocar o barco
porque não é fácil nessa nossa vida do dia a dia e a tentação é direta pra quem mora dentro
da comunidade é diferente, pra quem mora lá dentro é outra visão que se tem do mundo [...]
tem certos irmãos que caluniam seus irmãos para parecer viçosos. Dentro do Daime é a
coisa do poder, da disputa de poder. Essas pessoas podem tomar daime por muito tempo,
mas o daime ao invés de ir dando ele vai te tirando e a vida delas tende a se perder, não vai
ter prosperidade, harmonia.
122
O Santo Daime tem o preceito de não convidar as pessoas, pois é o daime
que seleciona, o daime que chama, que puxa, tu não escolhe ser daimista, o
Daime te escolhe. As pessoas que procuram o daime ou vão a ter contato com a
bebida é porque a bebida está chamando elas. O Padrinho Alan explica:
[...] eu vejo que tudo tem que ser usado com sabedoria o próprio Santo Daime nos ensina
que ele o Santo Daime tem que ser usado com sabedoria [...] Então a pessoa que não tem
preparo nenhum, pode chegar aqui e se assustar e ali barrar o caminho espiritual dela. Por
isso é que na nossa doutrina, o Mestre Irineu dizia: não se convida! A pessoa é que tem que
chegar ao daime! Ele é que ta chamando! Ele é que ta recolhendo! [...] Tive uma experiência
assim: nós tínhamos uma terapeuta e ela estava tratando uma senhora e ela insistiu muito
com essa senhora para vir tomar o daime e essa senhora veio! Ela tomou uma peia no
trabalho que o nosso dirigente teve que botar uma vela na mão dela para ela poder fazer
aquela passagem! E, depois, no final do trabalho, nós tava fazendo o Cruzeirinho, ela dizia:
Poxa! Olhando para essa irmã que insistia com ela: Poxa que fria que tu me meteu, que fria
que tu me meteu! depois eu chamei ela, eu não era o dirigente, mas chamei ela e assim:
mana, presta atenção, presta atenção mana! Não é por o caminho! O daime poderia ter
preparado essa pessoa e ela viria e teria os entendimentos positivos e o crescimento
espiritual. Agora, ela pode ficar anos assustada e não vir! Então, é isso, a gente têm que
tomar cuidado! Normalmente as pessoas vêm, eu entendo que já é o daime, já é o poder que
ta chamando.
A adesão no grupo é totalmente voluntária e seu ingresso no novo grupo não
passa por uma seleção por parte dos integrantes da seita. Daime é para quem quer, a
igreja está sempre de portas abertas. O daime funciona como um pronto-socorro.
A perspectiva de Padrinho Sebastião (1998) o é receber apenas os bons e o
certinhos, mas os sujos e os rasgados, para que, também, eles possam entrar na Casa do
Pai, limpos e sem pecado (p.49). Neste sentido o Padrinho Alan dá um exemplo:
A gente têm muita gente rebelde que ainda vem com vícios e a gente para tentar curar não
adianta se a pessoa errar, tu dizer rua! Como um hospital vai pegar um doente e vai dizer;
oh! tu está doente rua! Eu tenho que dizer para com esse troço. Vou dando daime e vou
rogando por aquele irmão. Aqui na igreja tem um caso claro de uma pessoa que chegou com
50 quilos, para morrer, viciado em cocaína. Hoje é fardado largou a cocaína, toma o
daime. Agora se eu não tivesse tido um ano de paciência com ele, ele estava na cocaína
ainda porque ele veio aprontando muitas aqui porque ele era um doente, mas aqui é um
hospital eu tenho que ir devagar com o doente. Então eu fui indo, fui indo. Eu no caso que
eu digo é o daime. Dando apoio através de nós, a gente ligando para ele e conversando com
ele, esclarecendo e mostrando. Ele tinha coisas que ele não entendia porque quando ele
entrava na força do daime , o daime levava ele naquelas entidades que dominam essas
coisas e mostrava para ele é aqui que tu está. Tu tem que começar a subir e ele ficava
assustado com aquilo porque ele nunca tinha visto. Aí a gente começava a explicar para ele,
ele foi indo até que um dia realmente ele conseguiu superar. Já estava perdendo a família, aí
o filho voltou para casa. Hoje a mulher dele também é fardada, o filho é fardado, trouxe a
mãe, trouxe os irmãos dele.
123
De acordo com MacRae (2002), dada a sua noção doutrinária de que o
sacramento não deve ser recusado a quem quer que o solicite, além de dificultar uma
seleção mais restrita de potenciais candidatos daimistas, essa noção tem fomentado
uma postura quase missionária, manifestada em um movimento recente de expansão
dessa doutrina para terras estrangeiras (p.502). Porém, como colocou Cemin (2002,
p.381), a entrada no centro é livre, entrar, entretanto, implica em uma obrigatoriedade
moral ter boa vontade e respeitar as normas e regras do ritual.
Em princípio, existe uma regra que cada igreja daimista receba os iniciantes,
antes do seu trabalho de iniciação, para uma conversa, onde é feita uma anamnese
(histórico médico da pessoa) e oração. Nessa conversa, os assuntos que devem ser
tratados dizem respeito aos efeitos do daime, a como é conduzido o ritual, as regras
básicas e qual apoio o iniciante deve esperar e de quem (trabalho de fiscalização), qual a
dieta adequada, qual a forma ideal de estar trajado (preferencialmente roupas claras, não
usar preto e vermelho, não usar camisa cavada, bermuda, decotes e as mulheres têm que
estar de saia comprida). É uma troca de informações, que tem o objetivo de propiciar ao
iniciante as melhores condições, para que ele possa fazer a sua iniciação. É, também,
uma oportunidade antecipada do iniciante fazer as suas reflexões, alguns dias antes do
trabalho e decidir se o Daime é mesmo aquilo que ele está procurando.
Percebe-se, também, uma tolerância às exigências de conversão (o
fardamento), permitindo aos membros, que não o convertidos e que participam
quando lhes convêm, transitar por entre as diferentes agências que oferecem vivências
religiosas de nova ordem, como a categoria de entrevistados, designada de free. São,
também, admitidos visitantes, que nem sempre demonstram comprometimento e
convicção. Os fardados têm a possibilidade de faltar aos rituais, de acordo com seus
compromissos cotidianos. Porém, o grupo conta com certos procedimentos que
garantem a possibilidade de afastar, ou expulsar os membros que não se comportarem
de acordo com as normas, cujo compromisso não esteja à altura das exigências da
doutrina.
A exclusão do sócio poderá se dar: a) voluntariamente, quando o associado o
requer, por escrito, devendo, antes, atender aos compromissos sociais; b) por expulsão,
em razão de sanção aplicada pela diretoria, referendada em assembléia geral; c) pelo
pedido de afastamento temporário, até o prazo máximo de noventa dias, prorrogável por
igual período, após o qual, se não houver comunicação do associado, será considerado
124
excluído por motivo voluntário e d) em caso de expulsão, a readmissão será
reavaliada após dois anos do ato de desligamento, e se atendidos os compromissos
sociais em aberto. Sujeita-se a exclusão o associado que, reiteradamente, faltar com suas
obrigações sociais ou que, reiteradamente, infringir normas sociais de bom convívio,
tanto na associação, como na igreja, ou perante as leis civis. A exclusão será precedida
de sindicância, onde se dará ampla defesa ao denunciado. A suspensão do associado
sedecidida pela diretoria, em caráter de urgência, se o comportamento do associado
se tornar prejudicial a outros associados, ou aos objetivos da igreja ou da associação,
bem como, da matriz ou automaticamente, no caso de não implementar suas
mensalidades com a matriz ou com a associação, por mais de noventa dias. A comissão
da igreja poderá recomendar afastamento de filiado, cujo comportamento seja
prejudicial ao grupo de associados. Durante o ano de 2009, ocorreram uma expulsão e
um pedido de afastamento na comunidade Céu de São Miguel. A expulsão se deu ao
uso abusivo da Santa Maria (Cannabis Sativa), nas dependências da comunidade. Os
seguidores do Padrinho Sebastião consideram a Cannabis Sativa como tão sagrada
quanto à ayahuasca e, igualmente, merecedora de culto, embora, devido ao fato do seu
uso ser proibido por lei, as igrejas seguidoras dessa linha, atualmente, não a empregam
mais em seus rituais. Sendo assim, este membro fardado estava prejudicando a
comunidade e, após advertências, foi expulso. O Padrinho Alan explica a visão
daimista da Santa Maria:
A Santa Maria foi uma miração que o Padrinho Sebastião teve que ele viu um anjo chegar
com um ramo de uma planta na mão que ele não conhecia. E o anjo disse assim para ele:Tu
estás vendo isso aqui? Com essa planta também se cura. E ele olhou a planta, cheirou e
me parece que nesta miração esse anjo chegou num cavalo branco. Passou um tempo e
num dia de chuva chega um homem de cavalo branco na Colônia Cinco Mil onde o
padrinho vivia, que era o Lúcio Mórtimer, que era um hippie do Rio de Janeiro que estava
atrás de barato e ouviu falar do daime e resolveu ir e ele obviamente levava a Cannabis
com ele que popularmente era conhecida como maconha. Porque maconha. Maconha nesse
sentido de droga, usa-se para sexo, para falar bobagem, para ter um barato e lá ele apresenta
essa planta para o Padrinho que na hora recordou daquela miração e o Lúcio chegou
numa noite de chuva mais com uma outra pessoa montado num cavalo branco. E o Padrinho
como era um homem devocional ele entendeu que aquele homem vinha mando daquele anjo
e ele pegou e começou a usar a Cannabis junto com o Lúcio, que diferentemente do
Lúcio assim como todos os seres que têm estatura espiritual, ele acessou um plano muito
elevado onde a planta levou ele e a planta mostrou para ele a egrégora, a deva da planta
mostrou para ele que ela trabalha na coroa da Virgem Maria por isso que chamaram Santa
Maria. Ela trabalha dentro da coroa da Virgem Maria. Todas as plantas de poder trabalham
dentro de uma coroa. O Santo Daime, por exemplo, a coroa é Jesus Cristo, é o Espírito
Santo. Então não tem como negar isso. E onde toma o daime tá ali par tu vê, tá dentro dessa
coroa. A planta Cannabis mesmo é um a planta da natureza, é Deus quem fez. Estão
colocando gente na cadeia por uma coisa que Deus fez. O que nós temos que fazer mesmo?
Estudar, saber usar. O Padrinho fez os estudos deles dois anos, depois quando ele chegou a
125
conclusão que ela tinha realmente um poder de cura foi que ele apresentou para esposa dele
e pro filho dele que é o Padrinho Alfredo e eles fizeram essa experiência com ela e coisa e
tal. O que aconteceu na doutrina do Santo Daime muita gente ficou sabendo, hippies,
pessoas que usaram a Cannabis de uma forma profana, ficaram sabendo que o daime o
Padrinho usava, vieram, migraram para dentro da doutrina e isso criou um problema muito
sério com o qual nós estamos lutando até hoje no sentido de saber o que é uma planta de
poder. É que nem o mescalito que o Dom Juan usava entendeu. É uma coisa natural, um
cogumelo, ali. tu usas aquilo ali tem uma expansão de consciência e vai dizer isso é
uma droga. Como assim é uma droga? Ou é uma droga que não interessa a um sistema
porque essas pessoas não se abaixam, não se escravizam, porque essas pessoas sabem onde
está a liberdade. O povo é gado, mas o povo que toma vegetal que toma daime não, porque
nós sabemos. Pode até nos matarem que nem Jesus Cristo. Toda a liberdade de Jesus se
apresentou na frente de Pilatos. Pilatos disse para ele: Eu tenho o poder da vida e da morte
sobre ti e o Mestre disse para ele: Tens porque o meu Pai te deu! Olha a maravilha!
Esse é o poder que nós temos! Nós temos esse poder de dizer eu não me abaixo. Eu não faço
o que está errado mesmo que o governo me mande porque eu tenho essa consciência do que
é o certo e do que é o errado e o povo que está ai fora entra muito dentro do sistema, da
propaganda, do marketing. Então a Santa Maria se tornou, é como se ela fosse água e azeite.
Ela se tornou como se fosse água e azeite, a parte superior dela, a egrégora divina dela que
não se mistura com a parte baixa dela que é a parte que chamam de maconha ou marijuana
que as pessoas usam para ter barato. Eu acredito que um dia todas as plantas de poder serão
trabalhadas em ritual e os homens vão ver a sabedoria de Deus. Na nossa doutrina hoje o
que o Padrinho Alfredo tá pedindo é que a gente tente segurar dessas coisas, se curar desses
erros. Ele mesmo reconhece que de alguma maneira ele foi tolerante demais com isso, mas
agora está num tempo das pessoas adquirirem uma maturidade porque o daime está
mostrando, o daime está mostrando esse é o caminho. Então toda essa história da Santa
Maria, nós chamamos de Santa Maria porque ela trabalha nessa coroa espiritual. As pessoas
criticam: Ah! Chama uma droga de Santa Maria. As pessoas não entendem. Elas precisam
vir aqui dentro e entrar sem medo para depois julgar, mas eles não entram porque eles têm
medo, porque eles sabem que se entrar eles vão ver. Não é que a planta seja a Santa Maria,
ela trabalha dentro de uma egrégora que é a Santa Maria, da Virgem Maria. Então o
entidades divinas que trazem inclusive esses poderes aqui na matéria como quando encarna
um grande profeta, um grande mestre, ele está dentro de uma egrégora, dentro de uma coroa
espiritual e vem aqui para trazer uma mensagem, uma esperança para todos nós. Não é o
caso do crack, não é o caso da cocaína, que o Padrinho Sebastião também conheceu, a coca
como planta de poder nos Andes é usada até hoje para tirar aquele efeito de ar rarefeito,
aquelas coisas todas entendeu. Então para aqueles índios eles sabiam como usar o lado
superior da planta, mas nós homens aqui na ambição e insuflado por entidades da esquerda
começamos a tirar esses subprodutos dessas coisas. Assim já é manipulado pelo homem, já
tem a intenção malévola, que é a intenção de ganhar dinheiro, que é a intenção de escravizar
as pessoas, escravizar espíritos. Agora quando tu tem uma coisa pura, digna. Qual é o mal?
O que isso prejudica as pessoas? Dom Juan, o Castañeda, antrologo doutorado, deixou
uma obra maravilhosa de entendimento, a obra acho fantástica, li todos os livros, releio
porque eu vejo muita coisa positiva com o mescalito. O que tem de errado? O errado está
naqueles que não têm interesse nesse estado de consciência que é esse sistema capitalista
selvagem tanto quanto o outro sistema comunista ditatorial. Todos eles são faces diversas da
mesma entidade. A verdadeira entidade que é Jesus Cristo, não criou religião, não criou
nenhum problema com a natureza. no tempo de Jesus se usava plantas de poder e ele
não disse para não usar. Esses julgamentos estão aqui para nós utilizarmos esses
conhecimentos de uma forma divina. Mas hoje dentro daquilo que a lei humana entendeu de
proibir e coisa e tal, o que o Padrinho está pedindo é isso que se afirme a lei. Dentro da
nossa igreja CEFLURIS o Padrinho tá pedindo que se afirme a lei, que se tenha respeito
pela lei. Portaria que o Padrinho baixou que ele está afirmando a lei e proibindo o uso de
qualquer tipo de substância que não seja o daime nas comunidades e igrejas do CEFLURIS.
O Santo Daime possui os mesmos princípios morais da UDV, contudo, sua
estrutura doutrinária é mais flexível em relão à rigidez da UDV. Os fardados,
normalmente, colocam sua fé acima de tudo e cada um, no seu tempo, acaba ordenando
126
sua vida, de acordo com os princípios estabelecidos pelo grupo religioso. Veja o
depoimento de um membro fardado:
No Daime a gente vai recebendo várias revelações, quando tu vê, tu mudou para melhor,
é um redirecionamento mental. Ele vai te direcionando em doses homeopáticas para uma
maneira mais saudável, mais amorosa [...] No Daime eu comecei a encontrar aquele abraço
gostoso quando a gente encontra um irmão. O Daime começa a dar um norte na tua vida e tu
começa a mudar ela sem sentir, não é aquela coisa traumática, agora eu tenho que largar a
cerveja, tenho que largar o cigarro. São coisas que quando tu viu tu já mudou tua postura em
muitas coisas e a vida tá te correspondendo melhoras efetivas.
Para MacRae (2002), a doutrina do Santo Daime considera seu sacramento
como um ser divino, capaz de propiciar revelações individuais, mas consoantes com o
contexto mais amplo de uma doutrina evocada atras dos hinos, dos símbolos sagrados
(de características fortemente marcadas pelo catolicismo popular) e da organização
hierárquica de suas igrejas. Dessa forma, é a própria experiência ritual que surte um
efeito iluminador e saneador sobre quem dela participa. A União do Vegetal atribui
maior importância a uma transmissão formal e gradual de determinados conteúdos
doutrinários, de acordo com os graus de envolvimento do indivíduo com a organização
e sua ascensão na hierarquia. Mas, independente da maneira em que são passados os
ensinamentos, não pode restar vidas sobre os fortes efeitos normativos da experiência
ayahuasqueira nestes contextos rituais religiosos.
Como Igreja, o Santo Daime constitui uma Instituição de Salvação, porém
dentro de uma autonomia do indivíduo, valorizada e incentivada na contemporaneidade.
De acordo com Hervieu-Léger (1997), na contemporaneidade o indivíduo ganhou, além
da autonomia política, a possibilidade de ser senhor pleno de sua própria alma, não
precisando estar preso aos laços formais das religiões tradicionais. Em seu lugar surgem
as redes nas quais os membros estabelecem laços passageiros, pois o grande eixo central
é a pessoa de cada um. Neste viés, o Santo Daime garante, para todos os homens, a
transmissão da graça e deve, para realizar sua missão, abraçar todas as sociedades e
todas as culturas. Como instituição santa, impõe aos seus membros exigências religiosas
mínimas e reserva a intensidade religiosa aos fardados - um pequeno grupo que
assumem o compromisso de servir ao batalhão, como Soldados do Império
Juramidam, compondo um corpo de especialistas especialmente formados para este
efeito, para gerir e distribuir os bens de salvação para os indivíduos autônomos que,
dentro de uma peregrinação religiosa, buscam a redenção no Daime. Assim, conforme
127
Labate (2002), a caridade espiritual consiste em doutrinar os espíritos (encarnados e
desencarnados) sofredores, através dos hinos, leituras e preleções ou deixá-los
incorporar para que expressem a sua dor e, desta forma, evoluam e, também, de cada
um para consigo mesmo. Como diz o hino:
Eu pedi para esta Luz me clarear
Eu pedi que eu tivesse este amor
Eu pedi para ter força de ajudar
Aos espíritos neste mundo sofredor
Recebi de meu Jesus esta missão
Fazer esforço de ajudar o precisado
Rogando à Deus com fé e convicção
Para o pedido poder ser escutado [...]
(São Miguel de Lúcio Mortimer)
Uma das características da seita, descrita por Weber (2004), diz respeito ao
esforço empreendido na manutenção da pureza da comuno com o sagrado, exigindo
uma disciplina extremamente severa, apesar de, como diz o hino acima, quem quiser
seguir a doutrina tem que seguir bem os mandamentos. E, nessa idéia de disciplina
relacionar-se a toda uma reorientação do comportamento, a exigência disciplinária da
UDV é muito mais rigorosa que a do Daime. Neste sentido, a UDV parece supor um
certificado de qualificação moral e ética para pessoa. Com relação às entrevistas e em
viagens na qual visitava outros centros fora de POA e algumas vezes, me hospedava na
casa de membros, sempre senti muita confiança com todo e qualquer sócio da UDV. Já,
com o Daime, eu me sentia segura com recomendações do padrinho, caso contrário,
eu não sabia quem era o que remete ao fato do Santo Daime ser mais aberto a
estranhos e por ter um controle menos rígido das emoções. De acordo com MacRae
(2002), a maior flexibilidade do Daime deixa de garantir uma conformidade mais estrita
aos padrões doutrinários, dando margem a alguns incidentes, que repercutiram
negativamente sobre a imagem pública dessa linha (p.502). Como exemplo recente
temos o assassinato do cartunista Glauco Villas Boas, em 12 de março de 2010,
comandante da igreja daimista Céu de Maria. Observe o diálogo entre dois daimistas
numa comunidade do orkut sobre esta questão:
A caridade tem um preço?
Lidar com seres humanos em situação extrema dentro do Daime, como distúrbios
emocionais, desequilíbrios mediúnicos ou dependência de drogas, exige de nós coragem,
atenção, humanidade, mas também especialização. Um bom exemplo disso é o trabalho
desenvolvido pelo Dr. Jacques Mabit do Centro Takiwasi (www.takiwasi.com), na cidade
128
de Tarapoto, no Peru, que trata de dependentes de drogas utilizando a medicina tradicional e
a medicina xamânica através da ingestão das chamadas plantas mestras, e principalmente,
da ayahuasca. Casos recentes como o falecimento do jovem Fernando Henrique em Goiás e
o lamentável episódio do Padrinho Glauco pedem que estejamos mais alerta do que sempre
estivemos. E nos fazem pensar se não seria o caso de nos tornarmos verdadeiramente
institucionalizados, mais especializados e mais seletivos nas nossas escolhas. Sabemos que
o Daime é para todos, mas que nem todos são para o Daime. E que o Daime é tudo para
quem é tudo para o Daime. Mas o Daime também exige de nós vigilância antes da oração. E
se nós do Daime somos vigilantes, nos perguntamos por que fatos lastimáveis como estes
não ocorrem nas linhas irmãs que também comungam da ayahuasca? Não subestimemos as
forças que se opõem aos trabalhos de consciência da humanidade porque elas são
inteligentes, corporativas e altamente especializadas. O Daime cura a quem procura, mas
somos nós que fortalecemos e cuidamos desta cura. Mais uma vez nos lembramos do
Padrinho Sebastião que canta no hino: Eu te dei uma casa que não falta ninguém. Para tu
escolher aquele que te convém...
Tem preço, infelizmente...
O amor de Jesus também teve seu preço, se ele negasse o cálice talvez não tivesse morrido
na cruz, seria então o Cristo que nos redimiu? Não, com certeza... Nenhuma ciência, nem
lei, nem pensamento racional alcançará minimamente o entendimento do mistério da cruz e
acredito que se isso aconteceu porque eles não se negaram a cumprir sua missão de ajudar as
pessoas, por mais perigosa que fosse, devemos louvar e respeitar. Talvez, mesmo com toda
cautela do mundo, mesmo vivendo 100 anos, não consigamos ajudar nem metade das
pessoas que eles ajudaram e eu sou uma das pessoas que chegou lá no Céu de Maria, duma
forma que talvez não seria aceito em outro lugar, se o CDM não fosse o que ele é, talvez eu
é que não estaria aqui pra dar esse depoimento e hoje veja só: meu pai é da UDV e levou até
a esposa, minha mãe é fardada, minha esposa, vários amigos que também estavam perdidos
e outros que conheci, todos bem encaminhados. Mas se não queremos esse fardo temos a
opção e isso não é um crime perante Deus, estaremos ajudando dentro das nossas limitações,
mas isso não é garantia de nada... se aquele garoto não tivesse tomado daime, talvez isso
acontecesse com outras pessoas e mesmo com todo acompanhamento nada garante que ele
não o tivesse feito... Como entender o que realmente aconteceu? Eu acredito que, por mais
que muitas vezes relutemos em entender, o que rege tudo é a vontade de Deus. Como diz o
Padrinho Sebastião: Mesmo fazendo as nossas continhas e multiplicando ainda sai errado...
Então seja o que Deus quiser. E nossos amigos já estão muito bem encaminhados, e
prontos para nos ajudar... Mas talvez se eles tivessem consciência do risco real que estavam
correndo, as coisas tivessem tomado outro rumo... E vai saber qual seria esse rumo... Adonai
irmãos, Luz.
A atuação daimista abrange toda a sociedade, não distinguindo classe social,
porém pelas particularidades, como por exemplo, os centros se localizarem em lugares
retirados, sítios onde o acesso só é viável de automóvel e pelo valor das taxas de
contribuição mesmo estas sendo negociáveis, acaba abrangendo classe média e alta,
como na UDV. O Daime possui hierarquia própria referente às igrejas, mas não possui
divisões internas, com diferentes graus de compromisso de seus agentes e,
conseqüentemente, o progresso espiritual no Daime não implica na revelação formal e
paulatina de um corpo de conhecimento secreto, ao qual o seguidor tem acesso ao
percorrer os diferentes estágios de iniciação (MacRae, 2002, p.502), como na UDV.
De acordo com Couto (2002), o ritual do Santo Daime funcionou, durante muitos anos,
com uma hierarquia explícita na farda conforme o numero de estrelas, aumentava a
129
patente do irmão. O Mestre Irineu, no entanto, muito antes de morrer (cerca de quinze
anos antes), nivelou todos com a mesma farda: a gente conhecia as pessoas por
divisão; ia de uma estrela até nove. Mas aí, começaram umas faltas de compreensão
pelo meio e quem tinha mais estrelas queria massacrar quem tinha menos, o Mestre
extinguiu. Ficou todo mundo igual (p.396).
A farda é igual para todos os membros, sendo estabelecida pelo Mestre
Irineu. O fardamento compõe-se de dois uniformes: farda oficial, também chamada de
farda branca e farda não-oficial ou farda azul. A primeira é utilizada em datas
festivas os rituais de bailado, e a segunda, nos rituais de concentração, mesa branca. A
farda branca consta de terno branco para os homens, ornamentado por um emblema na
lapela, - o Signo de Salomão tendo ao centro uma lua nova sobre a qual pousa uma
águia em posição de vôo, e, no ombro direito várias fitas finas e coloridas pendem,
simbolizando as forças do astral. Para as mulheres, a farda branca é composta por saia
de pregas, blusa de manga comprida, e, superposta à saia branca, fica um saiote de,
aproximadamente, sessenta centímetros, também pregueado e de cor verde, remetendo à
simbologia da mata. Fitas verdes e largas traspassam o peito das mulheres, formando
um Y; no lado direito é colocada a insígnia de Salomão e no esquerdo, situa-se uma
rosa, para as mulheres iniciadas sexualmente, e uma palma para as meninas e as
virgens. Do ombro direito pendem fitas coloridas. Sobre a cabeça uma coroa de strass e
lantejoulas brancas e prateadas, que remetem à simbólica da Rainha. A farda azul,
masculina, consta de calça azul marinho, camisa branca de manga comprida, meias e
sapatos brancos, gravata social azul marinho e a insígnia de Salomão (estrela de seis
pontas) e as iniciais CRF (Casa da Rainha da Floresta) no bolso esquerdo. A farda das
mulheres é saia azul marinho, pregueada, camisa branca de manga curta em cujo bolso
encontra-se bordado em azul marinho as iniciais CRF, gravata borboleta azul e a estrela
de seis pontas. A farda azul consta, ainda, de gravata borboleta azul marinho, meia e
sapatos brancos (Cemin, 2002).
A única característica de seita que o Daime possui é quanto a sua fidelidade
religiosa exigir um trabalho permanente de purificação e de santificação pessoal. A
santidade do grupo depende da pureza de cada um e da correção fraterna que se exerce
no seu seio. Colocando ênfase na conversão do indivíduo, a salvação poderá ocorrer
mediante uma profunda transformação de cada um a transcendência termo utilizado
por Peláez (2002), referente a uma das propriedades atribuídas ao chá, que possibilita a
cura de desequilíbrios físicos, mentais ou espirituais, propriedade também reconhecida
130
na bebida ritual daimista e muita valorizada por seus adeptos, que a consideram um
instrumento eficaz na cura de doenças, fundamentalmente da doença espiritual que seria
a origem real e verdadeira das doenças físicas ou mentais (tema trabalhado no capítulo
seis). Neste sentido, os conceitos de saúde e salvação se tornariam equivalentes.
Como tipo místico, o Santo Daime forma um agrupamento de indivíduos que
uniram sua escolha pessoal de seguir o Mestre. De acordo com Hervieu-Léger (1999), o
tempo da Reforma, tempo por excelência do individualismo religioso, deu um forte
impulso a este tipo de agrupamento em rede, reunindo indivíduos, essencialmente
intelectuais, que dividiam a idéia de que o Reino está no interior de cada um. Cada um
pode, portanto, de maneira direta, pessoal e não mediatizada, fazer a experiência dessa
presença. Fundada na idéia da presença em cada homem do princípio divino, esta
concepção imediata está presente no Daime com o Mestre se manifestando no interior
de cada um na força. O Daime privilegia a troca individual e o companheirismo
espiritual no seio de círculos íntimos de edificação mútua a comunidade religiosa.
Veja o relato de uma daimista moradora da comunidade:
A vida em comunidade é aprender a compreender que a riqueza todos têm. Viver em
comunidade está além de repartir as coisas com os teus irmãos, mas porque tu ama os teus
irmãos, respeita, o repartir é uma simples mera conseqüência. É uma conseqüência do amor
e não é o amor. Vida comunitária é amar e tu vai pegar o que tu quer porque tu ama
aquela pessoa. É uma conseqüência do amor.
No Santo Daime ao mesmo tempo em que o indivíduo constitui o valor
supremo (individualismo), o valor também se encontra na comunidade religiosa
(holismo). duas ideologias inconciliáveis, o que nos remete à questão
holismo/individualismo, analisada por Dumont (1985). O individualismo é, por uma
parte, onipotente e, por outra, perpétuo e irremediavelmente perseguido por seu
contrário. A distinção holismo/individualismo supõe um individualismo-no-mundo, ao
passo que, na distinção intramundano/extramundano, o pólo extramundano não se opõe
ao holismo, pelo menos da mesma forma que o pólo intramundano). O individualismo
extramundano opõe-se, hierarquicamente, ao holismo: superior à sociedade, deixa-a no
lugar, enquanto que o individualismo intramundano nega ou destrói a sociedade holista
ou a substitui-a ou pretende fazê-lo. (Dumont, 1985).
131
4.3 O Ritual
Diferentemente da UDV, o Santo Daime possui rituais distintos, como o de
concentração, o bailado, mesa branca, trabalhos de cura e umbandaime. Descreverei,
mais detalhadamente, o ritual de concentração que é referência básica para os outros
(exceto o umbandaime). É prescrito que se evite três dias antes e três dias depois de
qualquer ritual a ingestão de bebidas alcoólicas/drogas, o consumo de carne vermelha e
a prática sexual.
O ritual de concentração inicia-se às 20h de todos os dias 15 e 30 de cada
mês. Dura cerca de quatro horas. O trabalho de Concentração faz parte do calendário
oficial. Nesta sessão, busca-se, através do silêncio, do relaxamento, da meditação a
conexão com o Ser interior e uma maior consciência do nosso Eu superior
46
, recebendo
instruções valiosas para o seguimento espiritual. Os fardados devem estar vestidos da
farda azul e as mulheres não-fardadas devem estar, obrigatoriamente, de saia comprida,
não vestindo blusas decotadas, cavadas, bem como os homens não podem estar vestidos
de bermudas ou regatas. Não se pode estar vestido de cores escuras, principalmente
preto e vermelho. Os fiéis sentam em cadeiras de plástico, em forma circular, em torno
da mesa, homens de um lado e mulheres de outro, não podendo ter contato durante o
ritual. Na cabeceira da mesa senta o comandante, do lado direito sua esposa e compõe a
mesa os fardados mais firmados. Na primeira fila sentam, preferencialmente, os músicos
juntos (violeiro, flautista, tecladista, percussionista), segue-se a ordem hierárquica de
fardados e nas fileiras de trás os não-fardados, por ordem de estatura física.
O ritual inicia-se com o sinal da cruz, três Pai-Nossos
47
e três Ave-Marias,
Chave de Harmonia
48
. Depois o comandante anuncia que está aberto o despacho de
46
De acordo com Groisman (1999, p.54) o eu inferior está ligado as coisas terrenas, à satisfação das
necessidades materiais imediatas e dos desejos egoístas. O eu superior é um eu espiritual, um eu divino.
Estes estados de ser, chamados eu inferior e eu superior sistematizam a crença daimista na existência de
um livre arbítrio. Todo espírito encarnado faz escolhas durante sua passagem pelo plano material. Neste
sentido, tanto o eu superior, quanto o eu inferior fazem parte da natureza do ser humano. Porem a vida
cotidiana e ilusão do mundo material faz com que o ser humano privilegie as escolhas ligadas ao seu eu
inferior. O eu superior, por isso, fica encoberto, inacessível. Com o trabalho espiritual, é possível
conhecer o eu superior. Esta descoberta tem força de revelação da divindade interior. A revelação desta
dimensão espiritual da existência modifica a visão de mundo do sujeito e o faz reinterpretar sua vida à luz
dos novos significados. O eu superior é de onde emerge a nova interpretação dos caminhos até então
percorridos, dando sentido a eventos e ensinamentos recebidos no passado, mas não compreendidos.
47
No Pai-Nosso daimista diz-se: Vamos nós ao Vosso reino ao invés de venha nós ao Vosso reino,
porque acredita-se que pode-se obter a graça de chegar a morada do Pai e de que Ele veio ao nosso
reino.
48
Desejo Harmonia, Amor, Verdade e Justiça a todos meus irmãos. Com as forças reunidas das
silenciosas vibrações dos nossos pensamentos, somos fortes, sadios e felizes, formando assim um elo de
132
daime. Despacho é o termo utilizado para o ato de tomar o chá, que se dá
respeitando a ordem que os fiéis estão dispostos a mesa. A dose obedece a um padrão
que depende do tipo de trabalho e do grau da bebida. A dose não é igual para todos e o
responsável pelo despacho deve ter experiência e sensibilidade para saber,
eventualmente, quem precisa tomar mais ou menos daime. A pessoa que serve oferece o
copo de dizendo: Deus te guie filho (a), quem recebe faz o sinal da cruz com o copo e
toma todo o conteúdo servido e retorna para o seu devido lugar. É comum, após o
despacho, o uso do tira-gosto, porém não se aconselha o consumo de água, que deve
ser moderado e quando houver extrema necessidade. Após todos tomarem daime, inicia-
se a Oração
49
. Após a oração, o comandante lê a Consagração do Aposento
50
e, então, se
inicia a concentração. A primeira parte deve ser de concentração total, num período
mínimo de uma a duas horas. As luzes são apagadas, ficando somente as iluminações
das velas. Deve-se permanecer no mais profundo silencio, não sendo permitido ninguém
conversar, não se deve cruzar braços e pernas e deve-se evitar sair do salão.
Normalmente, algumas pessoas saem do salão para fazer limpeza, passagens. Podem
Fraternidade Universal. Estou satisfeito e em Paz com o universo inteiro e desejo que todos os seres
realizem suas aspirações mais justas. Dou graças ao Pai invisível por ter estabelecido a Harmonia, o
Amor, a Verdade e a Justiça entre todos os seus filhos. Assim Seja. Amém.
49
A oração é um conjunto de 14 hinos sendo 12 do Padrinho Sebastião, um do Padrinho. Alfredo e um da
Madrinha Nonata, sendo eles respectivamente: 1.Examine a consciência 2. A meu pai peço firmeza 3.Eu
vivo com meu mestre 4.É pedindo e rogando 5.Dem Dum 6.Aqui eu vou expor 7.Eu vou rezar 8. Para
estar junto a este cruzeiro 9.Não creia nos mestres que te aparecem 10.Meu pai peço que vós me ouça
11.O amor é para ser distribuído 12.Eu não sou Deus 13.Eu pedi e tive o toque 14. A magia da oração. O
hino 2 é cantado de pé, os outros, sentado.
50
Dentro do Círculo infinito da Divina presença que me envolve inteiramente, afirmo: uma
presença aqui, é a da Harmonia que faz vibrar todos os corações de felicidade e alegria. Quem quer que
aqui entre, sentirá as vibrações da Divina Harmonia. uma presença aqui, é a do Amor. Deus é o
Amor que envolve todos os seres num sentimento de unidade. Este recinto está cheio da presença do
amor. No amor eu vivo, me movo e existo. Quem quer que aqui entre, sentirá a pura e santa presença do
Amor. Há uma só presença aqui, é a da Verdade. Tudo o que aqui existe, tudo o que aqui se fala, tudo o
que aqui se pensa é a expressão da Verdade. Quem quer que aqui entre sentirá a presença da verdade.
uma presença aqui, é a da Justiça. A Justiça reina neste recinto. Todos os atos aqui praticados o
regidos e inspirados pela Justiça. Quem quer que aqui entre sentirá a presença da Justiça. uma
presença aqui, é a presença de Deus, o bem. Nenhum mal pode entrar aqui. Não há mal em Deus. Deus, o
Bem reside aqui. Quem quer que aqui entre, sentirá a presença Divina do Bem. Há uma só presença aqui,
é a presença de Deus, a Vida. Deus é a vida essencial de todos os seres. É a saúde do corpo e da mente.
Quem quer que aqui entre, sentirá a Divina presença da Vida e da Saúde. uma presença aqui, é a
presença de Deus, a Prosperidade. Deus é Prosperidade, pois Ele faz tudo crescer e prosperar. Deus se
expressa na prosperidade de tudo o que aqui é empreendido em seu Nome. Quem quer que aqui entre,
sentirá a Divina presença da Prosperidade e da Abundancia. Pelo símbolo esotérico das Asas Divinas,
estou em vibração harmoniosa com as correntes universais da Sabedoria, do Poder e da Alegria. A
presença da Divina Sabedoria manifesta-se aqui. A presença da Alegria Divina é profundamente sentida
por todos os que aqui penetram. Na mais perfeita comunhão entre o meu Eu inferior e o meu Eu superior,
que é Deus em mim, consagro este recinto a perfeita expressão de todas as qualidades divinas que em
mim, e em todos os seres. As vibrações do meu pensamento são forças de Deus em mim, que aqui ficam
armazenadas e daqui se irradiam para todos os seres, constituindo este lugar um centro de emissão e
recepção de tudo o quanto é Bom, Alegre e Próspero.
133
ocorrer choros intensos, gritos, manifestações corporais sendo assim, por vezes, quando
necessário, dirigido para o quarto de cura ou para o terreiro. É comum vomitar dentro
do salão, onde o fiscal auxilia levando um balde. Todos os membros fardados devem e
podem auxiliar no trabalho de fiscalização. Diz o estatuto de Normas de Rituais do
CEFLURIS:
Os principais setores São:
COMANDANTE, DIRIGENTE OU PRESIDENTE DA MESA
Responsável geral pelo trabalho espiritual.
COMANDANTE ALA MASCULINA.
COMANDANTE DA ALA FEMININA.
Cuidam da ordem na fila, da harmonia da corrente, correção do bailado e também das velas,
incenso e água.
FISCAIS DE ATENDIMENTO (MASCULINO E FEMININO).
Encarregados de zelar pela passagem daqueles irmãos e irmãs que estão necessitando de
auxílio para viver a sua experiência espiritual.
FISCAL DE TERREIRO
Encarregado do movimento e atendimento no terreiro da Igreja. Também recebe pessoas
encaminhadas pelo fiscal de salão para o terreiro e vice-versa.
PORTEIRO
Zela pela porta, o acesso e saída da Igreja. Controla a direção de cada um que sai do
trabalho e quando necessário indaga os motivos. É o intermediário entre os fiscais do salão e
do terreiro.
REFORÇO
Considera-se reforço todo o efetivo da escala de fiscais que mesmo não estando em seu
turno pode ser convocado para alguma emergência.
ATRIBUIÇÕES E FORMAÇÕES DOS FISCAIS
O quadro de fiscalização deve funcionar em base de turno de duas horas. Em centros com
menos disponibilidade de pessoal pode haver escalas maiores ou fixas. O treinamento e
preparo dos fiscais deve ser constante. O bom fiscal deve ser sereno, amoroso e ao mesmo
tempo persuasivo e firme quando se trata de resolver problemas e situações que estão
prejudicando o fluir harmonioso do trabalho.
Deve ser o mais discreto possível na sua atuação, cheia de atenção e boa vontade,
principalmente com aqueles irmãos que estejam passando alguma disciplina ou qualquer
outro tipo de dificuldade.
Se houver algum problema mais grave que fuja do seu controle e autoridade, deve dar
ocorrência ao comando do trabalho (Cefluris, 1997, p.9).
Na segunda parte da concentração, ocorre a leitura de mensagens, instruções,
leituras de escrituras e textos sagrados, de reconhecido valor espiritual, como a Bíblia e
o Bagavaghita ou cantado algum hino. Depois deste período, as luzes são acesas e o
comandante lê, de pé, o Decreto do Mestre Irineu. Este Decreto, de 1970, é o
fundamento, onde se baseiam todos os princípios e regras que devem constar na conduta
de todo daimista. Diz o Decreto:
134
DECRETO DO MESTRE IRINEU
Centro de Irradiação Mental Luz Divina
Decreto de serviço para o ano de 1970.
O Presidente Centro de Irradiação Mental Luz Divina, Senhor Raimundo Irineu Serra,
usando as suas atribuições legais Decreta:
Estado Maior, ficam definitivamente obrigados os membros desta Casa, a manter o
acatamento e paz da mesma, normalizando assim a sinceridade e o respeito com seu
próximo.
Dentro do Estado Maior não pode haver intrigas, ódio, desentendimento por mais
insignificante que seja; todos que tomam esta Santa Bebida não devem procurar ver
belezas, primores, e sim corrigir seus defeitos, formando assim o aperfeiçoamento da sua
própria personalidade para ingressar neste batalhão e seguir nesta linha. Se assim fizerem,
poderão dizer, sou irmão.
Dentro desta igualdade todos terão o mesmo direito, em casos de doenças, será
expressamente designado uma comissão em benefício do irmão necessitado.
Nos dias de trabalhos:
Todos que vierem à procura de recursos físicos, moral ou espiritual, devem trazer consigo
sempre, uma mente sadia, cheia de esperanças, implorando ao Infinito Eterno Espírito do
Bem e a Virgem Soberana Mãe Criadora, que sejam concretizados os seus desejos de acordo
com os seus merecimentos.
Para iniciar a nossa meditação:
Depois da distribuição do Daime, todos irão colocando-se em seus respectivos lugares, com
exceção das senhoras que têm crianças. As mesmas deverão primeiramente agasalhar seus
filhos.
Continuando nossa meditação:
Ao chegar a hora do intervalo, ao efetuar-se a primeira chamada, todos deverão colocar-se
em forma, tanto o batalhão masculino, quanto o feminino, pois todos têm a mesma
obrigação e quem tem obrigação. A verdade é que o centro é livre, mas quem toma conta,
deve dar conta, ninguém vive sem obrigação, e quem tem obrigação tem sempre um dever a
cumprir (Cefluris, 1997, p. 12).
Depois, é aberto o segundo despacho de daime, obrigatório a todos.
Inicia-se o hinário Cruzeirinho, do Mestre Irineu, ocasionalmente, a Nova Jerusalém do
Padrinho Sebastião e, finalmente, as preces de encerramento, que são: três Pai-Nossos e
três Ave-Marias intercalados, uma Salve-Rainha, e, em alguns casos, a Prece de Cáritas.
Depois disso, o dirigente pronuncia o encerramento da sessão por Juramidam:
Em nome de Deus Pai Todo Poderoso, da Virgem Soberana. Mãe, do Patriarca São José e
de todos os Seres Divinos da Corte Celestial e com a Ordem do nosso Mestre Império
Juramidam está encerrado o nosso trabalho, meus irmãos e minhas irmãs. Louvado seja
Deus nas alturas. E todos respondem: Para que sempre seja louvada a Nossa Mãe Maria
Santíssima sobre toda a humanidade. Amém.
No bailado, os fardados devem vestir a farda branca. Este ritual é aberto com
o terço, rezado 30 minutos antes da abertura do hinário, com os participantes em pé, em
135
torno do Santo Cruzeiro. Em geral, é puxado pela comandante feminina. Abre-se o terço
com um Credo, um Pai-Nosso, três Ave-Marias e Glória ao Pai, ao Filho e ao
Espírito Santo. Assim como era no princípio e por todos os séculos do séculos. Amém.
A cada seqüência de dez Ave-Marias e um Pai-Nosso, repetem-se estas mesmas
palavras.
O bailado, conforme Groisman (1999, p. 74), consiste numa dança repetitiva,
na qual a pessoa deve acompanhar, sincronicamente, o movimento coletivo,
deslocando-se de acordo com o ritmo dos hinos e o movimento do grupo. O mesmo é
composto por três gêneros de movimento: a marcha, a valsa e a mazurca. O mais usado
é a marcha, executado com dois passos para a direita e dois passos para a esquerda, e
acompanhada por três batidas do marapara baixo e para cima (a chamada). Por sua
vez, na mazurca gira-se o corpo 180 graus, na qual a pessoa coloca-se, num primeiro
momento, de frente para sua esquerda e, num segundo momento, de frente para sua
direita. Já na valsa, desloca-se apenas o tronco, enquanto os pés fincam no mesmo lugar,
seguida de duas batidas do maracá para baixo e uma para cima. Homens e mulheres
bailam simetricamente e separados dentro de um espaço delimitado no chão do salão.
O ritual do bailado é todo composto por essa dança e dura cerca de doze
horas, ocorrendo um intervalo de, no mínimo, uma hora.
Os trabalhos de cura compreendem diversos tipos: Trabalho de Estrela,
Círculo de Cura, São Miguel e Cruzes. No tempo do Mestre Irineu, os trabalhos de cura
eram, basicamente, de Concentração, o Padrinho Sebastião acrescentou uma seleção
de hinos que foi, aos poucos, se ampliando até chegar na atual versão do Hinário de
Cura. A abertura é como de costume: Oração, Consagração do Aposento, pequena
concentração e início do Hinário de Cura. No trabalho de São Miguel, deve-se cantar o
hino Sol, Lua e Estrela três vezes, de pé, na abertura, antes da Consagração do
Aposento. Nesse momento, devem ser firmadas três velas na mesa, além das habituais.
Depois da Consagração do Aposento, realiza-se a prece para a abertura da reunião e a
prece para os diuns
51
. É usada a farda azul e as pessoas permanecem sentadas em
torno do Cruzeiro. Dura cerca de seis horas, ocorrendo três despachos de daime. Para o
51
A Prece dos Médiuns, deve ser feita em nome do Professor Antonio Jorge e do Dr. Bezerra de Menezes
que foram os guias espíritas do Padrinho Sebastião. Costuma-se usar o hino 107 de Alex Polari de
Alverga (A Chave da Justiça) para a chamada de abertura da banca de entidades de cura e no transcurso
podem ser cantados hinos diversos, dando-se preferência àqueles que se referem a São Miguel.
136
encerramento, canta-se o Cruzeirinho do Mestre Irineu, e procede-se às orações de
encerramento, incluindo a Prece de Cáritas.
O trabalho de mesa branca, um ritual relativamente recente, passou a fazer
parte do calendário oficial do CEFLURIS a partir de 1997, sendo realizado nos dias 7 e
27 de todos os meses no Céu do Mape nos dias 27 em algumas outras igrejas (como
no u de o Miguel). O trabalho de Mesa Branca ou Desenvolvimento Mediúnico
tem grande influência do espiritismo kardecista e conta com uma seqüência de preces de
Allan Kardec. Ele também é chamado de trabalho de banca aberta, pois é aberto para
a incorporação de espíritos, visando o desenvolvimento mediúnico de seus participantes
(Rose, 2005).
Os trabalhos de umbandaime, como já foi supracitado, não ocorrem em todas
as igrejas. No Céu de São Miguel ele ocorre, em média, três vezes ao ano, em parceria
com um centro de umbanda, no qual o dirigente também é daimista e é quem coordena
este trabalho. Este ritual ocorre durante o dia, na terreira no meio da mata, os fardados
não devem vestir nenhuma das fardas, mas sim roupa toda branca, ficam de pés
descalços em círculo. É cantado pontos de umbanda e hinos referentes, todos tomam
daime e incorporam, batendo cabeça pro daime. Ocorrem passes com pretos velhos, no
final do trabalho.
Couto (1989), MacRae (1992), Okamoto da Silva (2002) e outros
pesquisadores do Santo Daime têm utilizado a teoria de Victor Turner
52
(1974), sobre os
52
Turner analisa a relação do ritual com a manutenção da ordem social e das tradições, onde o ritual
harmoniza as tensões existentes entre o todo social, expresso pela tradição, pelas crenças e pelos
costumes, e grupos menores ou indivíduos marginalizados. A societas é a designação utilizada para a
sociedade vista como um processo dialético que alterna estados e transições numa dinâmica que parte de
uma necessidade humana em participar de ambas as possibilidades. Esse processo é dividido em três
componentes: a estrutura, communitas (ou anti-estrutura) e estados de liminaridade. A estrutura se
constitui como um conjunto orgânico de relações entre posições e papéis, sujeitos a modificações mais ou
menos gradativas que persistem no tempo. A communitas, ou antiestrutura, também chamada por Turner
de sociedades abertas apresenta um grau superficial, ou mesmo inexistente, de estruturação onde as
relações se dão entre indivíduos. Os valores e usos de uma communitas, assim como seu grau de
organização social, determinam a sua posição em relação a estrutura. O autor classifica a communitas
conforme essa mesma relação em três categorias: existencial, normativa e ideológica, estando as duas
últimas inseridas na estrutura, enquanto a primeira, encontrada em grupos menores, busca a total (ou
quase total) dissociação da estrutura. Para Turner o sentido de tempo que alimenta estrutura e communitas
representa um ponto fundamental de ruptura entre ambas, sendo a última existente no presente, enquanto
a primeira, lança suas raízes no passado e se estendem para o futuro através da linguagem, da lei e dos
costumes. Isso será tão mais verdadeiro quão menos social e culturalmente desestruturalizado seja a
communitas. O estado liminar é a quebra de fronteiras espaciais e temporais. Tem um caráter
essencialmente dúbio e transitório e representa aquilo que Van Gennep chamou de margem, onde o
indivíduo ou grupo se vêem livres de suas relações sociais estruturalizantes e, por vezes sufocantes. A
liminaridade gera uma ausência de status e controle sociais, um limbo, e dessa forma age como
harmonizador das tensões sociais. O estudo de Turner das relações sociais e processos rituais das diversas
tribos africanas e algumas urbanas todas caracteristicamente enquadradas como communitas, demonstram
137
processos rituais para caracterizar a natureza ordenatória do culto daimista, da qual tem-
se a sociedade como sendo a tensão entre a estrutura (ordem) e a antiestrutura
(communitas), tomando os rituais como ações que deslocam a vida social e,
conseqüentemente, a sociedade (societas). Nesse sentido, no contexto daimista, diz
Okamoto da Silva (2002), a estrutura se constitui da tradição, dos valores e crenças,
inspiradas nos ensinos de Mestre Irineu, e expressos no ritual pela comuno de todos
com a bebida, no seguimento das prescrições e técnicas de êxtase e, principalmente,
pelos ensinamentos da própria bebida, entendida como um ser divino, ao redor da qual
gira a cerimônia e as relações sociais entre os membros. A estrutura está contida na
bebida e é a própria doutrina, expressa nos ritos e nas pessoas que compõem e
freqüentam o Centro. Segundo Couto (1989), a prática ritual existência social ao
mundo cósmico-espiritual, relacionado com o sistema ideológico que tem como idéia
principal o "Império Juramidam" e que, durante a perfomance ritual, é intensamente
vivido nesse mundo. Sob essa perspectiva, a estrutura é representada por esse
"Império", que representa o universo simbólico e ideológico daimista, sob o qual todos
estão sujeitos e que rege, também, as vidas dos fiéis.
Na concepção daimista, as pessoas são constituídas de uma parte material, um "eu inferior",
e de uma parte espiritual, um "eu superior". A primeira estaria relacionada com a vida dos
sentidos, dos instintos e dos desejos materiais, enquanto a segunda simboliza a parcela
divina que cada um trás em si. Desta forma, uma pessoa estará tão mais na "ilusão" quanto
maior for sua inconsciência sobre sua dimensão divina e maior for o seu apego ao mundo
material. O processo de desenvolvimento espiritual se constitui pela expansão dessa
"consciência divina" através das vivências com o daime. Em outras palavras, uma luta
pelo poder entre esse "eu divino", essencialmente espiritual, e o "eu profano", pertencente à
vida material e sujeito à influência do "mundo de ilusões". Não se trata, contudo, de se
eliminar um ou o outro, mas, ao contrário, busca-se a harmonização e hierarquização entre
ambos, de forma a dar o poder ao "eu superior", que passa então a comandar o "eu inferior".
[...] A natureza do "eu superior" é integrativa e harmonizadora enquanto a do "eu inferior" é
dispersiva e desarmonizadora. O primeiro seria regido pelas leis do amor, da caridade, da
união, etc., e o segundo pelo egoísmo, pela desunião, pela inveja, etc. A tensão entre essas
duas categorias sugere uma analogia com o modelo idealizado por Turner. Os valores
relacionados à dimensão espiritual do ser correspondem à estrutura, e a natureza
individualizada associa-se à vida profana e corresponde à antiestrutura. [...] não se trata de
eliminar uma das polaridades em tensão, e sim em uni-las. Essa união, ou comunhão, é
possibilitada durante os rituais quando as ambigüidades e fronteiras entre elementos
estruturais e antiestruturais são desfeitas. [...] A própria constituição e desenvolvimento do
culto daimista, se em um tipo de liminaridade, isto é, inicialmente, os seringueiros,
excluídos social e economicamente da nova ordem econômica, encontram na experiência
com a ayahuasca condições para uma re-leitura e re-significação para suas crenças e valores
frente à nova sociedade que se forma. Por outro lado, o processo de expansão da doutrina
para os grandes centros urbanos atraem indivíduos que se encontravam em busca de novos
valores e de uma nova forma de religiosidade. O estado liminar é, assim, produto da
a natureza harmonizadora da transitoriedade limiar, em especial para indivíduos ou grupos que se
encontrem em condições de liminaridade, marginalidade e/ou estruturalmente inferiorizados. (Okamoto
da Silva, 2002).
138
dissolução de fronteiras entre estrutura e anti-estrutura, uma ruptura com a realidade
cotidiana e abertura para o "caos" e o "divino". A miração, a peia, e demais eventos que
caracterizam os trabalhos, são femenos essencialmente liminares (Okamoto da Silva,
2002, p. 125.126.127)
Para Turner (1974), a communitas revigora, legitima e harmoniza a estrutura,
através de sua manifestação cultural repetida, tendendo à dissolução nessa mesma
estrutura. Porém, Couto (2002) coloca que os rituais do Santo Daime não são rituais de
inversão, como o carnaval, ou os rituais de rebelião, do sudoeste da África, em que se
observa o deslocamento do equilíbrio estrutura/communitas para o lado desta última.
A análise do processo ritual estudado por Turner aponta para dois tipos principais de ritos:
os ritos de crise do grupo e de calendário e os ritos de crise e de investidura. Os ritos de
crise do grupo e de calendário atingem geralmente a todos ou referem-se a grandes grupos.
Podem se realizar pelos mais diversos motivos, mas tem em comum a reafirmação da ordem
estrutural. Isso se dá, na maioria dos casos, através da inversão de posições sociais. Nesses
casos, é comum a existência do "poder dos fracos" como harmonizador das tensões sociais e
culturais pertencentes aos grupos. Aqui, os indivíduos estruturalmente inferiores tornam-se,
durante o período de limiaridade, isto é, o próprio ritual, simbolicamente superiores,
detentores do poder sagrado, para retornarem, posteriormente, às suas condições iniciais.
Nos rituais do Santo Daime, essa inversão não parece ocorrer, pelo contrário, as posições
sociais dos indivíduos são reforçadas durante os rituais, como por exemplo, nos casos dos
padrinhos, que no âmbito da comunidade auxiliam seus afilhados na solução de
problemas e servem de modelo para os demais. Essa posição é confirmada nos rituais. Os
ritos de crise e de investidura, por sua vez, simbolizam a mobilidade estrutural do indivíduo
ou do grupo através da elevação de status. A puberdade, o casamento, a mudança de
comando tribal, a morte, entre outros, integram essa categoria ritual. Mais do que
simplesmente legitimar a nova posição, tais ritos têm caráter disciplinatório, ensinando
sobre os riscos e deveres da nova posição. O neófito perde temporariamente seu status,
posicionando-se simbolicamente abaixo dos demais, como no caso da iniciação de um novo
chefe tribal em algumas culturas, para retornar à sua nova posição renovado, purificado e
consciente de sua nova posição. Essa purificação é análoga à apuração associada à peia.
Diversos hinos apontam para a necessidade de se humilhar para poder seguir o caminho
espiritual. No icio da doutrina, havia a distribuição de patentes que refletiam o grau de
desenvolvimento dos seguidores de Mestre Irineu. Posteriormente, em decorrência de
supostos desentendimentos e lutas de poder, essa prática foi abolida. No entanto, ainda hoje,
fala-se de graduações recebidas no astral, e na própria vida, em decorrência do
aprimoramento do adepto (Okamoto da Silva, 2002, p.127).
Neste sentido, Couto (2002) argumenta que os rituais do Santo Daime são
ritos da ordem (estrutura), pois o uso da bebida, dentro da doutrina, tem função
estruturante. Ou seja, o uso ritualizado da bebida desloca o sistema para a sua estrutura
(societas), e não para a sua antiestrutura (communitas), reforçando a ordem
cosmológica, que é intensamente vivida, saindo do seu estado de latência inconsciente
para se manifestar durante o ritual. A ordem interna, por seu lado, é reafirmada pelo
empenho de cada um na sua performance, ao submeter-se aos imperativos da doutrina
na sua práxis, durante o ritual, o qual trata da ambigüidade entre o mundo dos homens
139
(aqui) e o mundo dos deuses (lá). Além disso, o rito é de limpeza, doutrinação e
expulsão de seres invisíveis (escurecidos e/ou escurecedores), levando os neófitos e
todo o sistema para uma ascese simbólica, ou, antes, para a ordem. Como afirma Mary
Douglas (1976), a sujeira ofende a ordem (Couto, 2002, p.408).
4.4 A Comunidade Religiosa
Para os informantes do Céu de São Miguel, o cipó (jagube), na realidade, é
uma das plêiades, que são as sete estrelas que deram origem ao universo. hoje os
astrônomos sabem que da união dessas sete estrelas se formou a galáxia onde estamos
inseridos. A maior dessa sete estrelas é chamada Alcione e o sistema solar gira em
torno de Alcione, que é a estrela central da constelação das plêiades. Essa estrela tem
muita influência sobre s, tanto mandando luz e energia, mas ela é uma estrela
branca, ela não é uma estrela amarela como o Sol, assim como os Sirius são uma
estrela branca que estão e fazem parte das plêiades. O Mestre Irineu, quando ele
recebeu a doutrina, viu a imagem de Jesus nessas sete estrelas. Diz o hino do Mestre
intitulado Sete Estrelas:
Eu vi no sete-estrelas
Um rosto superior
Eu digo é com certeza
Que a Rainha me mostrou
A Rainha me mostrou
Para mim reconhecer
O nome que tanto se fala
E ninguém sabe compreender
Ninguém sabe compreender
Com amor, com alegria
Jesus filho de Maria
Jesus filho de Maria
Desde a hora que nasceu
Começou seu sofrimento
Até o dia que morreu
Ele morreu neste mundo
Para nós acreditar
Para nós também sofrer
Para poder alcançar
Mas o Mestre Irineu nunca tinha estudado astronomia. Ele não sabia da
existência dessas sete estrelas e como que ele conseguiu chegar nessa conclusão? Aí tu
percebe que o ensinamento veio diretamente para ele através desse ser, que para ele foi
140
a Virgem da Conceição, um ser divino que apareceu para ele com um manto azul
entregando esse conhecimento nas mãos dele. Os fiéis acreditam que esse ser divino
escolheu o Mestre Irineu para entregar esse segredo, porque, além dele ser uma pessoa
especial, ele era um negrão com dois metros de altura, neto de escravos. Quem
poderia com ele? Com esse negrão não tem!. Dizem que, por sua estatura e aparência,
muitas pessoas achavam que ele não era daqui, muitos acreditavam que o Mestre
Irineu era um ser de outro planeta que veio para conceber esse conhecimento.
Jesus Cristo nasceu no solstício de verão, que ocorre de 20 a 25 de
dezembro, que é o renascimento que acontece no hemisfério norte que tem um
alinhamento com a estrela do leste, que é a estrela que criou os três reis do oriente. O
nascimento de Jesus é um alinhamento da Estrela do Leste com o Cruzeiro do Sul, que
ocorre exatamente na direção onde o Sol nasce e onde o Sol ta nascendo foi para onde
os reis foram e aí eles chegaram nessa criança que com certeza eles perceberam uma
sabedoria nela que vinha de lá, que vinha das estrelas. Na verdade, não foi a estrela
que guiou os Três Reis Magos até lá, Eles eram a Estrela na Terra. A Família Sagrada
era a própria Estrela. Porque a estrela não se mexe no céu e essa estrela segundo os
relatos ela foi indo e parou num determinado lugar e quando ela parou, eles estavam
ali. E, neste sentido, voltando à história do Mestre Irineu ele pode ter vindo de uma
estrela também, por isso que ele carrega a estrela no peito e nós como daimistas
recebemos a estrela. Assim, o daime, o chá ayahuasca conectaria os homens com esse
ser crístico, esse conhecimento que vem das estrelas e esse conhecimento não nasceu
ali com Jesus, esse conhecimento veio de antes. Ele veio mais uma vez com Jesus ali.
Ele veio antes com Krishna, com Horus lá nos Egípcios, assim como outros seres, com
poderes espirituais muito grandes, que existiram antes de Cristo. milhares de anos
o enviados profetas, visando a redenção e salvação. O último que veio foi Cristo, o
Mestre Irineu é um mensageiro de Cristo, é difícil saber se é a reencarnação de Cristo,
mas é a energia de Cristo. É difícil fazer um estudo reencarnacionista sem a pessoa
estar viva, mas muitas pessoas que trabalham com a psicoterapia reencarnacionista,
inclusive o Mauro, ele percebeu a reencarnação do Cristo no Mestre Irineu. Muitos no
mundo inteiro acreditam que o Mestre Irineu foi a encarnação de Jesus Cristo, uma das
últimas encarnações do Cristo. Eu também acredito porque os ensinamentos que o
Mestre Irineu deixou são ensinamentos do Cristo, é a continuação, é a Nova Era do
ensinamento crístico de viver em comunidade, de viver em harmonia com a natureza.
141
O Padrinho Sebastião foi a continuação do Mestre Irineu, sendo a reencarnação de São
João Batista e, muito tempo depois, do Padrinho Sebastião, a continuação do mestre.
Existem muitas semelhanças entre o Mestre Irineu e o Mestre Jesus. Cada um, em seu
tempo, encarnou na camada mais pobre da população, mais humilde, fazendo parte de um
povo completamente excluído da sociedade. Cada um, na sua caminhada, passou por muitas
provações até atingir a iluminação, e também sofreu uma série e de perseguições lideradas
pelos sacerdotes representantes da religião oficial de suas épocas. Cada um, da mesma
forma, teve muitos poucos seguidores em vida, mas deixou um legado que atingiu todo o
planeta, onde seguidores que não os conheceram adotaram seus ensinamentos como
referência moral para toda a humanidade. Ambos, depois que deixaram o planeta, tiveram
seus nomes usados indevidamente por homens ignorantes para justificar sua violência, seja
nas palavras ou nos atos. Ambos levaram uma vida muito simples, mas tinham um
conhecimento tão elevado, estavam tão a frente de suas épocas, que por muitos séculos a
humanidade não foi e nem será capaz de compreendê-los totalmente. Pregavam exatamente
a mesma coisa. Não deixaram qualquer coisa escrita de próprio punho. Tudo o que se sabe
sobre eles é o relato de quem os conheceu diretamente. Ambos eram negros. Ambos foram
filiados a ordens místicas, que guardavam segredos totalmente desconhecidos que a maioria
das pessoas. Nunca se proclamaram como sendo pessoas que não fossem eles próprios. Um
iluminado encarna na Terra para cumprir sua missão, não para dizer quem foi em sua última
encarnação, até porque ninguém vai acreditar, e esse não é o seu propósito. De tempos em
tempos encarna um iluminado no planeta para, novamente, mostrar o caminho da harmonia,
do amor, da verdade e da justiça aos humanos ignorantes, que precisam ser lembrados
constantemente, porque se desviam muito facilmente do caminho. Jesus cumpriu sua missão
no seu tempo, e o Mestre Irineu também, na sua era. O Mestre canta em seu hinário: Sou
filho desta verdade/E meu Pai é São José. Com todas essas semelhanças, cada um tire as
suas conclusões sobre quem é quem nessa história (informante).
Neste momento, estaríamos fechando mais um ciclo, que é a entrada na Era
de Aquarius, é a entrada nessa Nova Era de um Novo Avatar Crístico, de uma nova
energia crística que vai comandar que sabemos que é São Germain, São Germain é
uma das encarnações de São João Batista, que foi de quem o Mestre Irineu recebeu a
missão de comandar esse Novo Batalhão de purificação.
O décimo planeta do sistema solar, o planeta vermelho, possui uma órbita
muito rápida e eles está voltando. É um planeta que influencia as pessoas e é
considerado como possuidor de uma carga muito forte de ganância. Ele influenciou os
seres humanos a inventar o dinheiro. Dizem que foi seres que vieram desse planeta. Eu
acredito na influência que ele tem. É a energia física e química do lugar e a nossa
mente é muito volátil às influências externas. Somos muito frágeis, voláteis perante a
imensidão das coisas e a velocidade de um planeta que possui muita influência sobre
s. Nós não temos luz própria, temos luz quando o Sol reflete na gente e quando o Sol
reflete na Lua caso contrário não veríamos a Lua.
Haverá um alinhamento planetário, em 22 de dezembro de 2012, e, nessa
data, todo o sistema solar apontará para o centro da nossa galáxia a Via Láctea,
142
através do Sol. Isso irá gerar uma série de mudanças no Sol, que ocasionará uma grande
mudança no clima da Terra. O calendário maia é preciso: é treze meses de vinte e oito
dias e ele vai dando os ciclos corretamente e esse é o final do ciclo que estamos
fechando em 2012. Por isso que está todo mundo apavorado com essa história, porque
está fechando esse ciclo e a profecia é justamente de quando fechar esse ciclo a Terra
irá passar por uma nova mudança e essa mudança vai ocorrer com as burrices que o
ser humano fez potencializando tudo. É uma catástrofe! E começou, olha isso tudo
que estamos passando: terremotos, vulcões. Já começou em 92.
Com o aumento das manchas solares e radiações, está havendo uma grande
mudança no clima da Terra: a erupção de grandes vulcões, o aumento de tempestades,
ventos, marés e o, já conhecido, efeito estufa. Isso não quer dizer que será o fim de tudo
e de todos, mas uma nova era de grandes mudanças, o fim para muitos e o recomeço
para alguns. O homem deverá modificar a atual estrutura social, que é a origem dos
maus e das desordens materiais, psicológicas, espirituais, sociais, das quais a
humanidade sofre, de maneira cada dia mais forte e extensiva. É o momento de
harmonizar-se com a natureza, com os outros e consigo mesmo, a fim de salvar-se.
Não tem o que fazer se pretea os olhos da gateada, a única coisa a fazer
é recorrer a Deus. Então porque tu vai esperar pretea? E vai pretea! Foi essa semente
que o Mestre Irineu plantou, ele disse: vão se preparando, vão fazendo os trabalhos,
vão trilhando o caminho do bem para chegarmos na Nova Jerusalém, na Nova Era. O
Padrinho Sebastião, quando conheceu o Daime, percebeu essa necessidade de criar um
novo conceito de vida em harmonia com a natureza daí nasceu o u do Mapiá. O
Padrinho Sebastião foi para o Mapiá, para começar uma idéia de plantar, colher e
comer e viver com aquilo que a natureza te fora desse mundo capitalista de
consumir, de um ser mais que o outro. se tu colhe dez laranjas tu tem que repartir,
se tem dez casas, tu vai largar uma laranja em cada casa. Todo mundo plantou, todo
mundo têm que colher!
Da mesma forma que São Paulo, Sebastião Mota (1998) não quer ninguém
de braços cruzados, esperando pelo Apocalipse. Ele nos quer renascidos e despertos,
aspirando pela vida espiritual, unidos com os irmãos, cumprindo nossas obrigações e
deveres sociais na batalha da sobrevivência do dia-a-dia e, nesse sentido, ele viabilizou
o projeto de uma comunidade espiritual e auto-sustentável na floresta, como uma
alternativa para os rigores dos tempos vindouros anunciados. O Padrinho Sebastião
(1998) dizia:
143
[...] é preciso voltar ao ponto de partida, saindo da dependência de um tipo de vida viciada e
consumista para criar alguma coisa nova, o que ele resumia na frase: nova vida, novo povo,
novo homem e novo sistema. O homem novo precisa tomar uma nova atitude e entrar de
posse do seu Eu superior. Assim ele poderá compreender que faz parte de seu destino a
possibilidade de viver num paraíso, sem as tais invenções destruidoras. Ser um protagonista
consciente da construção da nova vida, tanto material quanto espiritual. Não devemos
abandonar a perspectiva da vida material até mesmo porque a busca de realizá-la com
perfeição, assim como nossos deveres familiares e sociais, também nos habilita a alcançar a
perfeição espiritual. (p.46)
Os hinos da Nova Era são a continuação dos hinos da Nova Jerusalém:
que falam dessa busca da harmonia, porque na realidade o paraíso é aqui. O paraíso
deve ser alcançado aqui, na Nova Era, a partir de uma evolução conjunta de uma
consciência espiritual, uma consciência coletiva que é o primeiro passo para
chegarmos perto do Criador. Essa consciência espiritual difere da mentalidade
capitalista de que tu tem que ganhar muito e muito dinheiro para ser feliz, é uma
loucura atrás de dinheiro, de ganância, do mais e do mais, passando por cima de tudo e
de todos. Onde é que isso vai parar? Não vai parar. Não tem como parar. Aí o Daime
ensina, te mostra que tu ainda tem a chance.
Esta história
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circula na comunidade de u de São Miguel, onde se
acredita que a doutrina daimista pode salvar e guiar o batalhão para a Nova Era que
surgirá após as catástrofes. O Padrinho Sebastião dizia que o povo de Deus ia sendo
colhido pelo sacramento do Daime, o que podemos comparar, com suas
particularidades, ao estudo de Léger e rvieu (1983) des communautés pour les temps
difficiles neo-ruraux ou nouveaux moines; visto que se trata de um grupo mais
radicalmente ecológico, representado por uma comunidade carregada de catastrofismo e
apocalíptica. Para os autores, a palavra apocalipse está, comumente, associada a toda
forma de catástrofe, em escala mundial. Etimologicamente, apokalupsis, significa um
desvendamento, revelação dos segredos humanos e divinos, o que sugere que a
53
Essa história, que agora podemos visualizar como mais próxima de um mito, o mito da origem de uma
doutrina é constantemente reatualizada pelos daimistas. De fato, em cada feitio do Santo Daime, em cada
ritual desta religião, bem como na trajetória individual de cada um destes fiéis, em seus desenvolvimentos
espirituais particulares, ela está presente, como um modelo. Os daimistas seguem os passos do Mestre
Irineu, repetem os seus atos e, por isso, como ele, atingem a luz verdadeira, comprovando, assim, o
mito. Não se trata de recordar um modelo do passado; mas, como nos casos onde o pensamento mítico
está atuando, aqui também a irreversibilidade dos acontecimentos é superada. Os adeptos deste culto
trazem para o presente o tempo forte no qual o Mestre conheceu a ayahuasca e começou a transformá-
la em Santo Daime. (Goulart, 1996).
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catástrofe corresponde, ao mesmo tempo, a um cumprimento dos tempos e à
manifestação do que, a a sua conclusão, permaneceu escondido. Neste sentido,
apocalípticos correspondem aos grupos que derivam de uma visão escatológica, da
renovação de todas as coisas, após a crise final dos princípios de racionalização
prática da vida cotidiana. A perspectiva apocalíptica supõe que a catástrofe final, onde
submergirá o planeta, abrirá, ao mesmo tempo, para um povo regenerado e preparado
para uma Nova Era.
Para os daimistas, a desgraça é inseparável, segundo uma gica
permanente da consciência apocalíptica, do sentimento de que a catástrofe constitui o
castigo inevitável, de uma falta coletiva, a de ter excedido os limites do permitido, no
que diz respeito à dominação do homem sobre o universo o homem é o prisioneiro
de suas invenções. E essa catástrofe aparece como uma fatalidade quase inevitável; o
homem tem pouca possibilidade, na cegueira onde ele se encontra, de elaborar ele
mesmo os meios de escapar disso. O Daime tira a cegueira do homem, abre os olhos do
indivíduo e do grupo para a existência de uma dimensão humana, que foge os padrões
de decodificação utilizados no mundo da vida diária. Para os daimistas, a redução da
experiência humana à dimensão material é que produz esta dissociação e gera um
mundo ilusório. Esta ilusão é sustentada, dentro da lógica do sistema, pela redução de
todo o cosmos à sua dimensão material e da conseqüente dominação do homem sobre o
universo. Não compreendendo esta relação de causa e efeito, entre o mundo material e o
mundo espiritual, o ser humano transita entre as duas dimensões, acreditando que
apenas uma, o mundo material, visível, existe e motiva seu destino. Neste sentido, a
segurança que temos em todos os sistemas e na tecnologia que criamos ao nosso redor
começará a fraquejar e não poderemos aprender mais desta civilização, da forma que
estamos organizados socialmente. Diz o Padrinho Alan:
Nosso sistema é um sistema que na verdade é um sistema falido porque não produz
felicidade no homem. Não produz equilíbrio. É um sistema consumista fundado na matéria e
a matéria ta no budismo é impermanente, então tu está sempre correndo atrás, ou seja, tu
nunca vai ser feliz porque tu nunca vai estar satisfeito, vai estar sempre correndo atrás. E o
daime e as plantas de poder te dão o entendimento de que a vida é permanente [...] O
homem, muitas vezes não deixa Deus decidir. Ele (o homem) quer pular na frente, ele quer
fazer do seu jeito. E agente sempre erra nisso porque enxergamos até a ponta do nariz, mais
do que isso agente não enxerga! E Deus enxerga o futuro, o presente e o passado: é tudo
Deus! Então erramos muito e temos que começar a ajustar as coisas e o Daime faz
exatamente isso. O Daime começa a limpar, vamos dizer assim, todo esse terreno. Ele
começa a abrir um novo caminho [...] Por isso eu ainda tenho uma caminhada muito grande
para fazer, não do meu conhecimento pessoal, de quem sou, de qual é a minha missão
nesse mundo, como posso contribuir para que esse mundo melhore, mas também como
homem, como pessoa social, de ajudar a sociedade também e dar um pulo como se fosse um
145
homem. E acredito que tudo isso forma uma espécie de corpo de Deus. Que é o próprio
planeta, o Sol, a Lua, toda a integração das coisas.
Como a doutrina daimista é mutável, ela vai se moldando, a doutrina vai
se transformando dia a dia e vai se expandindo dessa maneira, atualmente, ela vem
nutrindo-se em trabalhos e pesquisas de astrônomos, físicos e matemáticos, ou seja, de
experts científicos, de nossa sociedade, e isso se acompanha de idéias apocalípticas que
conduzem a uma revelação (etimologicamente, o apocalipse é inicialmente isso),
mostrando que, para além dos tempos difíceis, um futuro permanece em aberto à
humanidade, na medida em que ela concorda em mudar suas maneiras. Dentro desse
catastrofismo, os daimistas nos asseguram que nós podemos conhecer, desde agora e
facilmente, as regras de uma vida em harmonia com o ecossistema e com a
humanidade, permitindo atravessar a catástrofe que se anuncia. Se o indivíduo quer
escapar a essa catástrofe, deve mudar de perspectiva e de modo de vida.
A doutrina e a prática dos ensinamentos do Daime podem apresentar, para
cada pessoa, as formas de superação de suas falhas. É a verdadeira compreensão da vida
espiritual e a busca de uma perfeição nos atos praticados que possibilita o
desenvolvimento espiritual e a salvação. O trabalho espiritual constante possibilita a
limpeza do karma e a evolução. De acordo com Groisman (1999), o espírito mais leve
pode deslocar para si o controle completo sobre sua existência. A busca da perfeição e
da salvação,assim como a luta para suprimir o karma, começam quando a pessoa tem
consciência da existência do mundo espiritual. O engajamento na irmandade, também,
se constitui em um fator importante para o advento desta superação, visto que a pessoa
passa a estar dentro do poder, protegido contra as armadilhas do mundo de ilusão
de nossa sociedade (p.49). Porém, o Daime, pelo menos o Céu de São Miguel, admite a
salvação, a limpeza dos karmas para os peregrinos, para aqueles que não compõe o
batalhão, mas compartilham dos ensinamentos crísticos e da doutrina daimista. A
doutrina de Juramidam prega a prática dos quatro valores morais básicos: Harmonia,
amor, verdade e justiça.
Percebendo harmonia
O amor e a verdade
Eu confio na justiça
Da Santíssima Trindade
Quatro linhas e quatro letras
Que tem força e lealdade
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Defendei meu coração
De fraqueza e falsidade
Quatro palavras de fogo
Me traz esta apuração
Iluminai meu pensamento
E confortai meu coração
Esta limpeza bendita
É da nossa Virgem Mãe
Do nosso Senhor Jesus
E de nosso Senhor São João
Afirmo esta palmatória
Sei que o Mestre tem razão
Existe muito fingimento
E fraqueza em seus irmãos
(Percebendo Harmonia de Alfredo Gregório de Melo)
A comunidade religiosa aparece, portanto, como o lugar mediador da
iniciação necessária aos saberes e aos costumes, que serão os dos remanescentes, pelo
qual a humanidade se perpetuará para além do desastre. Nesse momento, a humanidade,
de acordo com os daimistas, deverá escolher entre continuar seu comportamento
egocêntrico e desaparecer do planeta como espécie, ou evoluir para que ocorra a
integração do homem com o universo, passando, assim, a viver um momento harmônico
espiritualista da sua história.
O Santo Daime pretende mostrar, pela sua prática, onde se encontra a
salvação: em um retorno à ordem coerente, harmoniosa, imutável, da Natureza, que
define, ela mesma, o que deve ser a relação do homem com seu ambiente e com os
outros homens. A desordem absoluta, ao mesmo tempo econômica, política, social e
moral, tem uma saída: a aceitação de uma vida, segundo a natureza, que pode permitir
uma reorganização coerente da sociedade, relacionada com o restabelecimento do
equilíbrio ecológico.
De acordo com Groisman (1999), na visão do mundo daimista, a floresta é
território sagrado, uma fonte de conhecimento sobre a espiritualidade e a sobrevivência.
Existem seres, espíritos que habitam a floresta, que aludem a forças existentes no
mundo invisível. Estas forças podem ser identificadas pelas energias, personalidades,
características e idiossincrasias que expressam. Neste sentido, as plantas, os animais e
os lugares da floresta têm espíritos que entram em contato com o ser humano, ajudam-
no ou dificultam sua vida (p.100). Assim, a conduta de depredação do planeta
contribuiu para que essas mudanças ecológicas catastróficas acontecessem e essas
forças da natureza serão o catalisador de uma série de mudanças de tal magnitude, que o
homem se verá impotente para contê-las.
147
Para Goulart (1996), trata-se da divinização da natureza e da fusão entre
homem e mundo natural. Este tema, por sua vez, nos leva às bases culturais e sócio-
econômicas do culto do Santo Daime. O significado da fusão do homem com a natureza
é apreendido por meio da revelação da identidade entre o Mestre Irineu e o jagube. Mas,
em muitos casos, isto pode ocorrer através da identificação de qualquer adepto com o
cipó. O tema da comunhão temporária entre homem e natureza, que se repete nos mitos,
nos ritos, nas experiências de revelação proporcionadas por esta doutrina, faz parte, pela
exposição das tradições religiosas da sociedade na qual emerge o culto do Santo Daime,
do repertório do curandeirismo amazônico. É a este conjunto de crenças que se atribui a
capacidade de controle das relações entre a cultura e a natureza. O curandeiro é, entre
outras coisas, aquele que tem o dom de cuidar das aproximações, das passagens que
podem ocorrer de um domínio para outro. o é apenas a transformação do homem
num vegetal que está sendo ressaltada, mas trata-se da descoberta e do encontro com
uma natureza divina. Dessa maneira, o Mestre está dentro do chá, ele é uma entidade
espiritual que habita nesta bebida. Nesse sentido, a ayahuasca é considerada um vegetal
animado, dotado de inteligência. É uma planta que transmite conhecimentos, que
ensina. Com efeito, o líquido que os daimistas consomem, em suas sessões rituais, não é
visto simplesmente como um chá, porém é, antes de tudo, um ser divino. Como tal,
possui vontade e disposição próprias. É o daime quem diz o que deve ser feito, é ele que
mostra o caminho, que cura ou castiga. Invariavelmente, é assim que os daimistas se
referem à bebida, em torno da qual gira o seu culto.
Também encontramos essa perspectiva na União do Vegetal, com a
comunhão temporária entre homem e natureza que se reflete no seu mito de origem e
que também tem uma relação com o curandeirismo amazônico. O Mestre Gabriel
também está contido na bebida e se manifesta na burracheira, porém esse princípio é
conduzido de maneira distinta que a do Santo Daime como demonstrado no capítulo
anterior.
Nesse sentido, o ritual de feitio de daime é muito importante, porque é um
trabalho de alquimia do Divino Mestre. De acordo com Cemin (1998), o daime se
relaciona com cada um dos membros da irmandade, e com esta como um todo,
principalmente, com o chefe, pois é deste que depende a harmonia do conjunto e a
própria existência física do daime. Ele está ligado ao espírito da floresta, de quem se
pede licença e se invoca a proteção para acessar a matéria-prima, antes do feitio.
148
Através deste, se produz a bebida sagrada, que é a base fundamental dos trabalhos
espirituais. Neste sentido diz o Padrinho Alan:
Dentro de uma casa de feitio duas coisas são fundamentais: a ordem e a obediência. A
ordem porque todo mundo trabalha na força do Santo Daime, então se a gente não têm
organização, não têm ordem, que mundo nós vamos construir. Quando a gente tá fazendo o
Santo Daime é como se nós tivéssemos ressuscitando o Cristo e ele então nos entrega para
nós como apóstolos a verdade que o Padrinho Sebastião fala, que o Mestre tá com a verdade
na mão né. Toda essa energia positiva, toda essa força da irmandade entra pra panela
também e ali se forma com a benção do Divino, o ser divino do Santo Daime. A panela tem
em média capacidade para 120 litros, ela vai cheinha de material: 45 quilos de jagube e 9
quilos de folhas, que é uma fórmula que se usando atualmente aí para sair um daime bem
bom né, com uma força e oportunidade de uma boa miração também né. Requer um
cuidado muito grande no feitio porque não se trata de fazer uma bebida qualquer, se trata de
um sacramento. Então as pessoas têm que estar com a mente positiva, boas palavras na
boca, bons sentimentos no coração e muita calma porque é muito fácil a gente se enganar
quando ouve uma coisa e pensar que foi dita outra ou também quando a pessoa fala acaba
dizendo uma coisa que não devia dizer. Tudo isso depois que está nessa ordem, depois que
as pessoas se acham dentro do trabalho tudo flui maravilhosamente bem porque todo
mundo sabe o que têm que fazer.
Como na UDV, o feitio se inicia com a busca dos ingredientes que compõem
o chá, porém, no ritual daimista, o divididas as funções entre os sexos. As mulheres
lavam a rainha e os homens batem o jagube. Os ingredientes são postos em panelas
grandes, com água, numa fornalha, onde deve ser administrado o cozimento do chá. No
u de o Miguel são nove panelões. Após o cozimento, todo o chá contido nas
panelas é colocado em uma única panela final, de onde saio daime pronto para o
consumo. O tempo de cozimento é variável, dependendo da apuração. Quando a
primeira panela vai ao fogo, o trabalho é contínuo e a fornalha deve estar sempre
bombando, só se apagando quando a última panela estiver pronta para,
posteriormente, o chá ser armazenado em garrafas. No último feitio do Céu de São
Miguel que participei, foram produzidos 200 litros do chá e o feitio durou quatro dias.
No feitio de daime as pessoas estão sempre trabalhando na força, ou seja, sob o efeito
do chá e na UDV isso é opcional, assim a maioria dos fiéis bebe o vegetal na sessão
final do preparo chamada de distribuão. No Daime o trabalho é voluntário de acordo
com a consciência de cada um e na UDV é obrigatório participar ativamente todos os
dias do preparo. Deste modo, toda a irmandade daimista não trabalha fisicamente junta
nos quatro dias, como na UDV, havendo um revezamento onde as pessoas voltam para
suas residências para descansarem. E durante o feito são cantados hinos.
A UDV, apesar da urbanização, procura preservar a sua origem cabocla,
dando ao homem urbano, entre outras coisas, proximidade maior com a natureza, com a
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cultura da Amazônia, com a floresta e a sua necessidade de preservação notadamente
da condição de preservação do mariri e da chacrona. Numa sociedade que vive uma
profunda crise de significação, caracteriza-se como uma oportunidade de vivenciar, com
todo o seu significado simbólico, um ritual religioso estruturante que enfatiza a ligação
do homem com o espiritual, proporcionando ao discípulo, o veiculo que o fará sentir a
realidade dessa ligação (Gentil e Gentil, 2002, p. 567).
Assim, a UDV tem um viés ecológico, bem diferente do Santo Daime. Para a
UDV, a ênfase está em sentir e preservar a natureza, dentro de um contexto urbano e
aliado a ele, sem a idéia apocalíptica. O Daime tem uma sensibilidade anticapitalista e,
sobretudo, antimoderna, na qual a idéia dominante é que o capitalismo destrói as
relações sociais concretas de cooperação e de solidariedade, no próprio movimento pelo
qual ele mantém a tomada violenta do homem sobre a natureza.
O movimento ecológico da UDV não apresenta uma sensibilidade
anticapitalista e antimoderna de caráter contestatório e de lançar as bases para uma
Nova Era, como no Daime. Seguindo os ensinos do Mestre Gabriel, de que, na vida
em primeiro lugar está o trabalho, em segundo a falia e em terceiro a religião, seus
membros, assim, estimam um bom emprego, uma boa casa, um bom carro
dentro dos preceitos de nossa sociedade; apesar de alegarem que os valores, dentro da
União, são outros, eles não estão desconectados do sistema capitalista. Um exemplo é
de uma conselheira do Núcleo Inmaculada Concepción, em Madrid/Espanha, que estava
me contando a história de um dos mestres espanhóis que, quando entrou na UDV, era
cabeludo, barbudo e vivia com sua esposa como um hippie, numa casa desprovida de
subsídios materiais, terrible como vivia, e, dentro da UDV, se transformou e evoluiu
muito rápido, ele manteve sua profissão de jardineiro, mas reestruturou sua vida e sua
aparência física. Hoje, ele mora num bom lugar, cortou o cabelo e fez a barba. A
UDV prega uma evolução espiritual, dentro de uma integração com a sociedade vigente,
que se respeitar às leis de nossa sociedade, dizia o Mestre Gabriel. A Sociedade
religiosa UDV tem suas próprias leis, mas vivem em harmonia com o sistema social
vigente. Já o Santo Daime almeja um novo mundo, uma nova vida, um novo povo
dentro de um novo sistema.
Encontramos no Santo Daime, especialmente, a insistência na necessidade
de sair fisicamente do mundo artificial da sociedade urbano-industrial, a fim de viver
perto da natureza, para encontrar os gestos simples de sobrevivência: construir sua casa,
produzir sua alimentação, encontrar-se a si mesmo, controlando seu ambiente, na sua
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própria escala. É regrando, inteligentemente, sua sobrevivência, não em falsas
necessidades, mas em necessidades reais, que se aprende a satisfazer, tentando
conquistar uma vida nova nobre, onde, pouco a pouco, tudo toma um sentido novo.
Veja o depoimento dessa moradora da comunidade daimista:
Quando eu era bem jovem no meu primeiro casamento eu tinha uma condição financeira
bem privilegiada e eu não era feliz como eu sou agora. Eu tinha tudo, eu morava num
apartamento de cobertura enorme, nós tinha três carros na garagem. Meu filho foi fazer o
último ano do segundo grau nos Estados Unidos. Aqui eu to morando numa casa de madeira
e eu sou muito mais feliz. E eu fiz uma coisa que nunca que eu imaginei na minha vida que
eu ia fazer. Nunca passou por mim porque eu sempre fui muito apegada. Até sem carro nós
tamo. Eu dei minha casa com tudo que tinha para os meus filhos. Minha filha que está
separada criando a filha sozinha e meu filho que é aposentado por invalidez, ele tem
esquizofrenia paranoide. Eu virei as costas e disse olha é de vocês assumam e vim morar na
comunidade.Tu acha que vale a pena essas coisas todas? Não vale! São Miguel vai me dar o
que eu preciso. Eu deixei tudo pra eles, desde o paninho de secar louça até a máquina de
lavar. Trouxe essa mesa que era do casamento da minha mãe que tem um valor afetivo
pra mim. Isso tudo antes era importante pra mim. Eu dava muito valor pra isso. Essas coisas
pra mim perderam completamente o significado. Eu fiquei mais de um ano aqui lavando
roupa na máquina da casa da vizinha e eu não me importei com isso. Não dei a menor
importância, essas coisas perderam completamente o valor pra mim. Claro que eu não vou
me atirar ficar relaxada com as coisas sujas, não é isso. Porque pra mim a verdade que eu
aprendi aqui no Céu de São Miguel na doutrina do Santo Daime é outra e essa outra verdade
que eu aprendi me faz muito feliz e me muita esperança. [...] Nunca na minha vida
quando eu era mais moça eu imaginei que eu ia terminar a minha vida numa comunidade
religiosa com esse tipo de pensamento. Quando eu era jovem tudo que eu lutava é pra ter o
que a gente teve, poder econômico né. As coisas que eu fiz, eu e o pai dos meus filhos por
causa de poder econômico. Vou te dar um exemplo. Eu queria muito morar num
apartamento de cobertura, as crianças eram pequenas e a gente teve oportunidade e ele
ganhava muito bem, mas ele tinha que dar o dinheiro dele inteirinho na poupança do
apartamento e mais um financiamento. E eu disse assim pra ele: Tu pode comprar e pode
botar todo teu salário nesse apartamento porque eu seguro o resto. Ele disse: Tu segura eu
vou fazer! Eu disse: Seguro! E segurei! Eu tinha quatro empregos. Eu trabalhava em
duas escolas, era auxiliar de bolsista do cnpq, dava aula particular direto em casa. Foi por
pouco tempo, mas tu vê, hoje eu fico pensando olha o valor que isso tinha pra nós dois.
Um apartamento o valor que tinha. Eu tinha filhos pequenos e trabalhava o dia inteiro
direto. Eu fiz isso e ele também. E agora? Agora eu aqui e muito feliz aqui. Eu gosto
muito daqui. Nem guarda-roupa a gente têm ainda, tá construindo (risos).
O Santo Daime postula, implícita ou explicitamente, que o ajustamento
perfeito do grupo ao seu ambiente assegura, diretamente, a regeneração moral dos
indivíduos reconciliados com eles mesmos, reatando com a natureza, tomando
consciência de sua dependência ecológica, se despojando, espontaneamente, do antigo
homem e limitando seus apetites a somente exigências vitais ligadas à sobrevivência
biológica. Como no estudo de Léger e Hérvieu (1983), a escolha de uma vida cotidiana
tão simples quanto possível, relacionada à satisfação das necessidades humanas,
estritamente irreprimíveis comer, dormir, beber, falar, etc. é, ao mesmo tempo, a
condição e a expressão dessa restauração ética. Não se trata de mortificar-se, mas de
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livrar-se do inútil, a fim de gozar, autenticamente, do prazer de estar vivo, prazer tão
mais precioso e mais procurado e que está mais ameaçado pela loucura dos homens.
Cemin (2002) acredita que o daime constitui a base material da vida religiosa
do grupo e pode ser visto como um, dentre os inúmeros produtos da floresta amazônica.
De características peculiares, distancia-se, da visão profana de produto ou mercadoria,
para inserir-se em uma noção mais ampla e profunda, concernente às formas não-
capitalistas de produção, identificada, por sua etnografia, como forma arcaica de troca
e de contrato. Para a autora, o daime é a mesma ayahuasca, secularmente utilizada
como estimulante psicoativo, que opera, acelerando e diversificando as potências
imaginantes do homem, sua produção simbólica. É, portanto, passível de ser fonte de
conhecimento e de poder criador. Transformado de estimulante em sinal cultural, opera
a passagem da natureza à cultura, florescendo institucionalmente. Para a vida
espiritual, o dinheiro não vale nada, não é riqueza é movimento de coisas, serve para
o vai-e-vem de mercadorias. O Daime reconcilia o homem consigo mesmo, com o seu
meio social, sua história, posição e cultura, e com o meio de origem do produto, que é
essencial aos daimistas, a floresta, porque o Daime é da floresta, a doutrina é da mata,
e, por extensão, o Daime harmoniza o homem com todo o cosmo, representado pela
mata, pelos astros, e os seres visíveis e invisíveis, físicos e espirituais que neles
habitam (Cemin, 2002, p.375). Alguns pesquisadores discordam dessa idéia de forma
arcaica de troca e de contrato, como por exemplo, Goulart (2004).
O daime pode ser utilizado em pequenas doses diárias, como tratamento de
alguma enfermidade física ou para um estudo fino, uma meditação, devidamente
autorizado e orientado pelo padrinho dirigente da comunidade. É utilizado por mulheres
gvidas, na hora do parto, sendo entendido como um protetor e facilitador deste, o que,
normalmente, não é comunicado ao hospital e ao médico. Na União do Vegetal,
algumas mulheres grávidas também optam por ter o parto de burracheira. Assim, o
retorno à natureza no Santo Daime também está voltado para a redescoberta das práticas
tradicionais do desenvolvimento agrário, a restauração das culturas e das criações
rústicas, o resgate das práticas alimentares e das técnicas terapêuticas do passado, o
renascimento dos modos de sociabilidade em comunidade, etc. Além do uso medicinal
do daime, se emprega o uso de tinturas feitas de ervas e flores, banhos de ervas, chás e
florais da Amazônia.
Segundo Léger e Hérvieu (1983), à primeira vista, esta perspectiva pode ser
dita arcaica: trata-se de encontrar os ritmos ancestrais, de se identificar a um estado
152
passado da vida econômica e social. Mas, raramente, o passado é destacado por ele
mesmo. O que é valorizado é o elevado grau de ajuste entre homens e o meio ambiente,
desenvolvido pelas sociedades enfrentadas pelo problema da sobrevivência, em
condições extremamente difíceis. Como podemos vislumbrar na formação inicial do
Santo Daime e, atualmente, pelo caos peculiar de nossa sociedade contemporânea
que anuncia o fim dos tempos.
No Daime, o retorno à natureza está relacionado à restituição da vida em
comunidade voltado para um ajuste harmônico entre o homem e a natureza, a fim de
atingir uma Nova Era Dourada Planetária ou a Nova Jerusalém, após o apocalipse.
Disse o Padrinho Sebastião
54
:
[...] Traga a perfeição perante o nosso Pai Supremo Celestial, porque agora é o tempo do
Espírito Santo, está dito e escrito o Terceiro Testamento. Tem o primeiro, a vida de Deus-
Pai, o mundo Dele. O segundo, o mundo de Jesus Cristo. E o terceiro, o mundo do Espírito
Santo, pois o nome agora é Jura, Juramidam. O Daime é nossa Água da Vida, que está lá no
Apocalipse, marca o rio, marca tudo, é só procurar no Apocalipse de São João Evangelista.
E, depois, na frente tem aonde é habitada a Nova Jerusalém. E hoje em dia nós estamos
trabalhando para terminar um tal reino estranho, porque Deus tem um reino e existe
um Imperador e até aqui está todo mundo sem um reino, só ficou um que é de Deus, que é o
verdadeiro com dois reinos, um de uma coisa e outro de outra. Deus que terminar é isto,
fazer um povo que tem um reino só, separou-Reino. Quem perseverá viverá a vida eterna e
terá alguns que passam a ser carnal e espiritual.
Segundo Rose (2005, p.63), a noção daimista de comunidade não é,
necessariamente, definida pelo fato de seus membros co-habitarem o mesmo espo
geográfico. Pode, também, ser uma comunidade simbólica (Turner, 1969 apud Rose,
2005), caracterizada pelo compartilhamento de experiências, práticas, valores e crenças
comuns (Groisman e Sell, 1996 apud Rose, 2005). Esta ênfase na noção de comunidade
encontra-se refletida na oposição êmica entre os que são de dentro e os que são de
fora da doutrina. Neste caso, os de dentro são os que também participam do Santo
Daime, estando, potencialmente, aptos a compreender e compartilhar experiências
semelhantes. Já, os que são de fora, são os que desconhecem o daime e/ou não
estarão comprometidos com a doutrina e, desta maneira, provavelmente, não
compreenderiam algumas coisas Esta necessidade de estar próximo da natureza está
relacionada com valores característicos da doutrina daimista, que se refletem na noção
de floresta, constantemente referenciada nos hinos e também muito presente na
narrativa das pessoas. , assim, uma oposição entre a vida na cidade e a vida na
54
In: FROÉS, Vera. História do Povo Juramidam: Introdução à cultura do Santo Daime. Manaus.
Suframa, 1983, p. 135.
153
floresta relacionada com a oposição matéria e espiritualidade. A cidade é
associada com a matéria, com o mundo da ilusão, enquanto a natureza e a
floresta são relacionadas com a espiritualidade.
Na UDV, o retorno à natureza está relacionado a uma vida mais ecológica,
próxima à natureza, em contato com ela, e não a da Nova Jerusalém, como no Daime.
Para a UDV, o núcleo é o espaço de paz, o espaço civilizado, conquistado pelo
esforço do grupo, sobre a desordem, a descivilização; é a inscrição, ao mesmo tempo
material e simbólica, da utopia, ou mais precisamente, a matriz, na qual a utopia pode
tomar corpo: de um lado, a floresta, a mata nativa, o espaço selvagem e, do outro, o
jardim, o universo de harmonia. A oposição simbólica do jardim e da floresta, como
oposição da ordem e da desordem, do civilizado e do descivilizado, responde à da
sociedade de hoasqueiros e à sociedade mundana dos não-hoasqueiros. O cenário
dessa utopia é ancorado numa forma de distinção dos espacializados, materializados,
pela fronteira que separa um fora agressivo e ameaçador e um dentro onde regem a
calma e o equilíbrio estético, do bem cuidado Jardim das Flores. Para o Daime, a
antinomia do jardim e da floresta responde a da comunidade e a sociedade, do espiritual
e do material, marcada pela utopia escatológica dos remanescentes pela renovação do
mundo para um novo sistema. É a separação de um dentro e um fora, como
fronteira, no sentido de lançar as bases de um novo mundo, um novo povo.
Melhor que arcaica, é falar de um restituicionismo, destacando pelo
investimento do imaginário, específico de um processo que procura soluções
tradicionais às necessidades novas, criadas pelo desmoronamento da civilização técnico-
industrial, e isto usando particularmente a memória coletiva de uma sociedade de antiga
origem rural (Léger e Hérvieu, 1983, p.28). Encontrar esse equilíbrio antigo é,
portanto, para os autores, trabalho de pioneiro; é neste sentido preciso que se pode falar
de utopia com relação a essas tentativas.
As imagens da natureza-harmonia excluem toda violência e toda
contradição; as imagens da natureza-mãe nutridora, a qual o homem pode confiar; as
imagens da natureza-sistema-coerente, de leis imutáveis, sugerem uma ordem da
necessidade, na qual toda incerteza é banida. Ao mesmo tempo em que elas conduzem a
humanidade à sua perda, as transgressões dessas leis são a origem de todas as
perversões morais, que o homem perdeu, apesar de ter nascido bom, a clareza da
consciência e o domínio de toda sua energia vital. A ilusão de Prometeu fez dele um
154
ser imoral e essa imoralidade comanda, em retorno, sua persistência obstinada no erro
(Léger e Hérvieu, 1983, p.29).
As noções de doutrina e espiritualidade estão associadas com a crença de que
a realidade tem duas dimensões, o mundo material e o mundo espiritual, e que estes dois
mundos se interpenetram. Os seres humanos não compreendem esta dualidade, porque a
ignoram ou não a enxergam. A ignorância, a cegueira e a negação da existência de um
mundo espiritual levam os seres humanos a contentar-se com as aparências do universo
e com a satisfação do ego (Groisman, 1999, p. 47). O Daime proporciona a entrada do
homem em um grande salão dos espelhos, no qual o homem enfrenta a si mesmo,
podendo se olhar e analisar seu comportamento, com ele mesmo, com os outros, com a
Natureza e com o planeta. Assim, a regeneração ética dos indivíduos e a salvação
coletiva são uma única e mesma coisa: elas podem proceder de uma aceitação
fundamentada na ordem da natureza, da qual a permanência objetiva se impõe a todos.
Como na pesquisa de Léger e Hérvieu (1983), no Santo Daime, essa
regeneração ética implica, ao mesmo tempo, em uma restauração da integridade física
dos indivíduos. A saúde do corpo testemunha a qualidade da relação que um indivíduo
mantém com seu ambiente natural e social. Equilíbrio psíquico e forma física
manifestam, conjuntamente, o não-bloqueio dos fluxos energéticos que constituem essa
relação. Cada indivíduo doente leva, então, de certa maneira, o peso da descarga de um
sistema social que alega ter ultrapassado a idade primitiva, onde o homem dependia
inteiramente da natureza.
Uma outra maneira de comer implica em uma outra maneira de viver. É uma
marca que significa uma diferenciação social, deliberadamente escolhida, e que permite,
ao pequeno número dos daimistas, afirmar sua iluminação, e o somente sua
diferença, de indivíduos conscientes, preparados e separados, sobre os demais não
adeptos. Não comer carne e não fazer sexo faz com que o indivíduo fique menos
aterrado e mais espiritualizado.
E daí como eu te falei eu celibatei! E daí o celibato me trouxe muito mais entendimento,
mais leveza espiritual! Não é uma coisa que ah! Deixei de gostar. Não! Simplesmente parou
de existir sabe? Abstêm-se daquela necessidade. Abster-se de tudo! Não existe mais isso! É
uma energia que foi transformada dentro de mim [...] A doutrina não prega isso, mas eles
ensinam que é uma coisa boa. Por causa que o sexo é uma energia muito carnal, te prende
muito a terra. Porque ele é o puro chákara básico! Então meio que o celibato desliga o
chakra básico. Acaba aquela necessidade. Porque eu pensava nisso: Como é que eu vou
ficar sem? Não tem como! Mas não! Foi uma coisa natural. Entendeu? Foi natural!
Simplesmente aconteceu e foi. E foi acontecendo assim naturalmente, quando vi, digo: Ah!
155
Viu como é que é! E assim é o caminho do Daime: é tudo muito natural e vai da tua
entrega. E tudo no Daime, aquilo que tu pedes tu é atendido! (informante)
O celibato é uma prescrição incorporada à doutrina, de caráter relativamente
recente. Não são todos os membros que aderiram a esta prática, que é considerada um
caminho sem volta para aqueles que acederem a ela. relatos de adeptos que estão
no celibato, há dois anos, e alguns que demoraram a aderir, porque pensavam que não
iriam conseguir. O celibato é considerado uma prática difícil e, ao mesmo tempo,
denota uma evolução muito grande. Essa iniciação consiste de propor aos interessados
aceitar a argumentação do padrinho, que é escutada como um guia para despertar, em
relação à natureza, que implica na escolha do vegetarianismo, do celibato, da agricultura
biológica, através da adesão formal dessas opções. É toda uma vio do mundo e do
futuro que se impõe aos fardados.
De acordo com Goulart (1996), nos três dias que antecedem a realização de
qualquer trabalho do Santo Daime, bem como nos três dias posteriores, não os
adeptos desta doutrina, mas todo aquele que for participar do ritual, terá que se sujeitar a
uma dieta. Esta consiste, basicamente, na abstinência sexual e alcoólica. Nos novos
centros daimistas, isto é, naqueles que começaram a surgir na década de 80, em outras
regiões do país, angariando um tipo de fiel com perfil econômico e cultural bastante
diferente do daimista original, a estas duas regras se juntou mais uma, a proibição da
carne vermelha. Nas antigas comunidades do Santo Daime, esta restrição não existe. Em
compensação, nesses dias, a orientação é utilizar pouco sal na comida, e a macaxeira se
torna um alimento mais freqüente ainda, quando o seu significado sagrado é posto em
relevo. Ela é o alimento que foi ingerido pelo Mestre, no tempo auroral, em que ele se
iniciou nos mistérios do daime. Alguns adeptos chegam a chamar a macaxeira de pão
divino. Neste sentido, a autora diz que mais do que copiar as abstinências cumpridas
pelo Mestre, eles retêm o significado da situação: o afastamento temporário do convívio
social, o rompimento com a realidade ordinária, a necessidade de limpeza e
purificação, a experiência de intimidade com a natureza, marcando a descoberta do
mundo espiritual.
A escolha do vegetarianismo e do celibato, como aceitação de uma ética
superior que os interessados descobrem progressivamente rompendo com seus hábitos
do passado, ilustra, de maneira típica, a noção mesma do que Léger e Hérvieu (1983)
designou de mutação: uma conversão pessoal, uma operação de ruptura interior que
156
cria, entre os que efetuaram essa experiência, afinidades particulares que transcendem
às divergências eventuais de suas opções políticas e filosóficas
A UDV não possui nenhuma dieta, prescrição alimentar ou sexual, porque,
segundo seus adeptos, o Mestre Gabriel nunca disse nada a esse respeito e eles
seguem as suas prescrições. Certa vez, numa distribuição, durante o preparo do vegetal
de que participei no Núcleo Salvador, e que estava sendo dirigida pelo Mestre Jair, filho
do Mestre Gabriel, uma discípula fez a seguinte questão a ele:
(D) - Mestre da licença de eu fazer uma pergunta?
(M) Sim senhora.
(D) O que o Mestre Gabriel disse a respeito do consumo de carne?
(M) Que se come ora! Se têm se come. Naquela época se comia até macaco, não é como
hoje que se têm as mesa cheia de folhagem (se referindo a legumes e verduras).
No momento seguinte um outro discípulo intervêm:
(D) Mestre da licença de eu falar
(M) Sim senhor.
(D) Eu escutei uma história de uma pessoa que disse que certa vez foi visitar o Mestre
Gabriel e no momento da visita ele estava fazendo sua refeição. E o Mestre Gabriel
comentou que aquela não era a alimentação ideal para a humanidade. Que chegará o dia que
se poderá se alimentar adequadamente. O que o senhor sabe a esse respeito Mestre?
(M) Não to sabendo dessa história. Não deve proceder!
A UDV é fiel aos ensinos do Mestre Gabriel e, o que não foi dito ou
ensinado por ele, não é incorporado à doutrina, como acontece no Santo Daime, que
está em constante adaptação. Porém, é preciso distinguir os discursos formais e
institucionais dos comentários, atitudes, práticas informais dos adeptos. Muitos fiéis do
Núcleo Jardim das Flores incorporaram a prática do vegetarianismo como filosofia de
vida e, mesmo se tendo orientações de que todos os ensinos contidos na doutrina são
suficientes não precisando recorrer a nenhuma outra prática religiosa, muitos
entrevistados relataram atitudes como a leitura do Bagavaghita, de livros de Allan
Kardec, do livro dos rmons, de tomar passes, reikis, apometria, etc, de acordo com
sua necessidade pessoal.
A comunidade do Céu do Mapiá explora o seringal Mapiá, a partir de um
projeto de extração coletiva de borracha, comercializada em troca de sementes e bens de
consumo duráveis e não-duráveis. A produção agrícola, por sua vez, representa a fonte
principal de alimentação, destacando-se as culturas da macaxeira, da banana, do milho,
do feijão, do arroz e a criação de gado, dividida basicamente, entre o Céu do Mapiá e a
Fazenda São Sebastião, de propriedade do CEFLURIS, situada às margens do Rio
Purus. A Fazenda São Sebastião contribui com a maior parte da produção agropecuária
do grupo local. Além da criação de gado e das culturas temporárias cultivadas nas
157
margens do Rio Purus, na Fazenda, ocorre a coleta de castanha, cacau nativo e frutas.
Para produzir a subsistência, a comunidade utiliza-se de procedimentos regulados por
uma síntese entre os métodos tradicionais utilizados nos seringais e concepções
distributivas, consideradas pelo grupo como essencialmente cristãs. A troca de bens e
produtos de primeira necessidade, alimentos, moradia, serviços de saúde é muito
comum. A população local tem origens diversas, desde imigrantes ou filhos de
imigrantes nordestinos, a pessoas ligadas aos núcleos dos grandes centros. Para
integrarem-se na comunidade, as pessoas que chegam devem despojar-se de seus bens
materiais e oferecê-los à doutrina (Groisman, 1999, p.27).
Na Colônia Cinco Mil e Céu do Mapiá o Padrinho Sebastião desenvolveu um sistema
comunitário que na sua época era relacionado a tudo que se plantava e comia, hoje cresceu e
o governo local quer até transformar em município da Amazônia, as pessoas já têm
empregos, etc. Mas esse sistema comunitário é o alicerce dos plantios de Reinados e Casas
de Feitio, por outro lado um compromisso dos daimistas fora da Amazônia de colaborar
além de com as plantações regionais, com os projetos sócio-ambientais realizados na região
do Alto Purus, onde se localiza o Céu do Mapiá entre outras comunidades ribeirinhas que
também são assistidas por estes projetos além do compromisso de assistência a comunidade
local onde funciona a igreja daimista. É um caminho inverso do da UDV onde a ajuda sai da
Sede Geral pros novos núcleos (informante).
O Céu do Mapiá é a Sede Geral da doutrina do Santo Daime, ocupando a
posição de centro irradiador do CEFLURIS, sendo o modelo ideal para as outras
comunidades daimistas. O Céu de São Miguel ainda não conseguiu atingir esse ideal, a
comunidade não sobrevive da produção agrícola, nem se despojam de seus bens
materiais e nem da intensa troca de produtos de primeira necessidade.
Pode-se dizer que, a comunidade Céu de São Miguel é dividida em membros
moradores e membros o-moradores. Quanto aos moradores é considerada pequena,
comparada a outras comunidades daimistas existentes no Brasil. Atualmente, está
composta de nove famílias residentes. Os membros não-moradores se contentam de
pertencer a uma comunidade, consagrando o retorno à natureza, mas não se dedicando
muito, não vivendo na comunidade. Eles estão integrados nas redes econômicas e
sociais existentes, tendo uma vida modesta, perto da natureza, em conexão com uma
tradição local. Alguns membros, durante suas férias, passam dias na comunidade,
ficando na casa de um e de outro irmão e, nos dias de mutirão, passam trabalhando,
fazendo trilhas na mata ou tomando banho de cachoeira. Diz um dos adeptos não-
morador: Como a gente é guri de apartamento, (a comunidade) é o meu quintal.
Sempre que eu posso estou lá!.
158
Os membros moradores não podem escapar, completamente, das redes
econômicas e sociais existentes, mas se distanciam disto, ou, ao menos, tentam se
distanciar tanto quanto podem, não sem contradões. Seus moradores são aposentados,
autônomos e outros trabalham em empregos na cidade. Há quem viva de renda e aquele
que trabalha no local como zelador da comunidade, ganhando dos membros e de
plantação. Assim, no Daime, os moradores tomam a decisão individual de romper com
um meio profissional, uma trajetória social marcada, um ambiente cultural. Os não
moradores têm como projeto de ajustar sua existência cotidiana a uma intuição
espiritual, essencialmente individual, em conexão com a comunidade. Observe o
depoimento de um morador:
Eu trabalhava com o meu pai e o meu pai não me deu escolha. Ele apenas disse assim: Ou
tu escolhe o Santo Daime ou eu né. Eu disse: Olha eu escolho o Santo Daime porque aqui
eu também tenho pai e tenho mãe né. Só que eles vivem aqui junto conosco também né, mas
nem todos enxergam eles e eu tenho eles por mim também. eu vim morar na
comunidade. Trabalho como zelador aqui. Respeito muito e admiro muito o meu pai e
minha mãe, mas que eles me deram essa escolha e eu escolhi o Santo Daime. O meu
caminho é o Santo Daime, estar aqui dentro com os meus irmãos, apoiando essa doutrina,
ajudando no que eu puder ajudar.
Assim, no Céu de São Miguel, seus residentes o também habitantes
urbanos, e a vida na cidade, até certo ponto, lhes imprime sua marca. Entretanto, sua
ligação com a cidade é menos firme que a dos cidadãos urbanos. Cada morador da
comunidade vive de sua própria renda, é auto-suficiente, mas obtém o auxílio de algum
irmão, quando necessário. Recentemente, iniciou-se a produção agrícola orgânica para
revenda e para usufruto da comunidade local, que assume o compromisso de repor,
quando possível e necessário, o utilizado. Também é comum a pequena troca de
alimentos e o compartilhamento de alguns bens e produtos de primeira necessidade.
projetos visando a autosustentabilidade da comunidade, como a criação de vacas e a
possibilidade de comercialização da água mineral encontrada no aqüífero: tem uma
rie de projetos que podem dar vazão a toda sustentabilidade que a gente precisa a
para que o custo do daime venha a cair para quem não pode custear o daime. Há uns
dois anos, a comunidade iniciou o cultivo do jagube e da rainha. Bem como o Céu do
Mapiá, o Céu de São Miguel possui a motivação para a construção de uma comunidade
igualitária semelhante, segundo a dos cristãos primitivos, tornando a forma de
organização social mais um elemento, no sentido de retorno a um estado de divindade.
Porém, a comunidade de São Miguel ainda está engatinhando neste sentido:
159
A comunidade está num crescente porque é um começo. A comunidade tem dois anos,
porque até pouco tempo eles se achavam condôminos e também tinha muitas picuinhas que
vão se criando num condomínio e que nessa comunidade espiritual não pode haver. O fato
também de pessoas passarem pela comunidade, saírem e outras chegarem e outras estão
saindo, até que vai se estabilizando essa história e vai se moldando porque os dirigentes têm
um coração muito bom, mas eles sofreram também muitos ataques por essas pessoas com
visão de condomínio e eles querendo organizar espiritualmente. Então agora nesse
caminho de começar aquietar, chegar num patamar de comunidade, de se tornar uma terra
autosustentável, que afinal de contas são quase 60 hectares sem uma produção. Hoje tão se
criando projetos de sustentabilidade, de melhorias para comunidade, as pessoas estão mais
próximas, estão trabalhando juntas, em equipe, tudo isso é um aprendizado. Na vida tudo é
um aprendizado. E a gente nesse crescente, agora inclusive espiritualmente. Mas a
gente tá engatinhando enquanto comunidade, mas a gente têm muito a crescer. As condições
de moradia são boas, as condições de infra-estrutura são boas comparando com outras
comunidades que existem há mais tempo. (informante daimista não-morador)
Na UDV e no Santo Daime, enquanto modelo de conduta, Cristo representa
a fonte original do vínculo e da concepção espiritual do grupo. A UDV diz que seu
primeiro Mestre é Deus (Jesus), o segundo é Salomão e o terceiro é o Mestre Gabriel.
Alguns daimistas acreditam que o Mestre Irineu é a reencarnação de Jesus, ou a segunda
vinda Do Mesmo. Outros acreditam que o Mestre Irineu não é a reencarnação de Jesus,
mas que ele aparelhava Jesus, ou seja, Jesus tomava-lhe quando o Mestre Irineu
tomava daime. Também, escutei, de muitos cios da UDV, a crença de que o
Mestre Gabriel é a reencarnação de Jesus ou a manifestação Dele, fato nunca
confirmado por nenhum mestre e também nunca negado. Para ambas, Cristo é
considerado o mestre-ensinador, o salvador, o redentor. Sua passagem pelo plano
terrestre significa a chave da comunhão com Deus, pois Cristo teria deixado os
ensinamentos e as promessas de retorno à divindade, ou à dimensão divina de cada ser
humano (Groisman, 1999, p. 17) expressas no Santo Daime, pela evolução espiritual e
no modelo comunitário, voltado para Nova Jerusalém e, posteriormente, na graça de
chegar a casa de Deus Pai, enquanto que, na UDV, se expressa no retorno à Morada
de Deus Pai, pela graça da evolução espiritual aqui no inferno que é a Terra.
Viver em comunidade não equivale, ideologicamente, pelo menos no u de
São Miguel, a uma mistura do público e do particular. Por exemplo, condena-se o
ato de falar da vida alheia, mesmo que seja para o engrandecimento da doutrina, e a
exposição da vida íntima e pessoal do irmão, embora à comunidade do u de o
Miguel ainda sofra deste mal.
É pedindo e rogando
Que podemos alcançar
Não é falar um do outro
Querendo caluniar
160
Me apresento a meu Pai
E minha história eu sei contar
Peço que todos se unam
E aprendam a respeitar
É no céu e na terra
E é beirando a beira mar
O meu encontro com Jesus
Só eu sei destrinchar [...]
(É pedindo e rogando)
Para o Santo Daime, a agricultura, sendo um próprio prolongamento do
movimento da natureza, é importante para um aprimoramento e harmonia espiritual, ou
seja, o trabalho agrícola é um dos meios pelo qual o homem, participando ativamente da
ordem da natureza, pode reorganizar sua própria vida. E, na medida onde essas Leis da
Vida, que se impõe ao homem, no exercício da atividade agrícola, na maior parte de
seu cotidiano, são a expressão mesma da vontade divina, o trabalho da terra toma sua
plena significação espiritual: ele é, ao mesmo tempo, celebração da natureza, onde se
manifestam por excelência à grandeza e o poder divino, e a colaboração ativa do
homem à Criação. Para UDV, o trabalho na mata nativa (a UDV não incentiva o
trabalho agrícola em seu núcleo), bem como a manutenção do núcleo, é meio de contato
com a natureza, de integração social, com o objetivo maior do contraponto de um
dentro e um fora, expresso no bem-cuidado Jardim das Flores, como
contextualizado anteriormente.
De acordo com Léger e Hérvieu (1983), nos grupos neo-apocalípticos, a
oposição entre um meio rural, quadro de uma sociabilidade comunitária respeitando
uma arte de viver naturalmente encontrada, e a cidade, símbolo da sociedade moderna
na loucura, permite incluir o protesto social num cenário dramático: ela nutre a visão de
uma vitória futura após as tribulações do bem (o mundo rural) sobre o mal (a
indústria e a civilização humana). Catastrofismo e apocalíptico se situam, aqui, um em
continuidade do outro, em uma perspectiva, essencialmente ecológica. Para eles, o
momento apocalíptico corresponde, aparentemente, a uma etapa particular, no percurso
de uma comunidade em gestação, quando ela pega emprestado o caminho do
catastrofismo, bem como da emergência de referências expressamente religiosas nestes
mesmos grupos.
Após o falecimento de Mestre Irineu, em julho de 1971, o Alto Santo entra
num processo de disputa acirrada pela sua herança espiritual. Em 1974, Padrinho
Sebastião recebe o hino Sou eu, cujo conteúdo, na sua visão, afirma que é a ele que o
Mestre estaria entregando a continuidade de sua missão. No entanto, a diretoria do Alto
161
Santo indica Leôncio Rodrigues, membro mais antigo, para a presidência do Centro.
Inconformado, Padrinho Sebastião, então, se retira, levando com ele aproximadamente
cem irmãos, para fundar um novo centro, com sede na Colônia Cinco Mil (Monteiro da
Silva, 1983, p.100) e, posteriormente, no Céu do Mapiá. O grupo que seguiu o Padrinho
Sebastião estava motivado pela convicção de que a Nova Jerusalém estava sendo
construída, materialmente, na Amazônia e que o poder de concretizar a profecia joanina
do Apocalipse está nas mãos do Padrinho Sebastião e daqueles que com ele seguirem
no caminho. No seu hinário, denominado Nova Jerusalém, Padrinho Sebastião
recebe hinos que inspiram e confirmam a convicção grupal (Groisman, 1999, p. 78).
De acordo com Marques Junior (2007), o Padrinho Sebastião distinguia-se,
em relação às outras lideranças daimistas locais, no acolhimento a representantes da
cultura alternativa, filhos da classe média, das regiões abastadas e escolarizadas do
Brasil, que produziria conseqüências de longo alcance nos rumos do CEFLURIS.
(Goulart 2004, p. 100 apud Marques Junior, 2007, p. 52). Para o autor, a identificação
ocorrida entre Sebastião e os hippies não se daria apenas no campo do afeto ou das
idéias. Em número crescente, chegavam, na Colônia Cinco Mil, pessoas de outros
lugares e classes sociais. Apesar do isolamento de Rio Branco/AC, em relação aos
centros culturais do país, os filhos locais, das classes média e alta, estudavam fora e
circulavam pelas grandes cidades, trazendo muito daquelas inquietações, concepções e
hábitos que caracterizaram os jovens dos anos sessenta e setenta. Entre eles, o uso da
Cannabis, a popular maconha, corrente entre aqueles de alguma forma identificados
com o movimento da contracultura. Muitos dos freqüentadores que começavam a
chegar à Colônia Cinco Mil vinham desse meio. Do mesmo modo, espalhava-se, entre
os cabeludos, a história daquela igreja e de sua bebida misteriosa. Levas de
mochileiros passavam por ali, e alguns foram ficando. Com o nascimento de novas
igrejas no Sul, particularmente no Estado do Rio de Janeiro, intensificou-se o fluxo de
novos convertidos para o Céu do Mapiá e de membros do grupo para as grandes cidades
das regiões mais desenvolvidas do Brasil. Jovens representantes do universo
alternativo os mochileiros ou cabeludos, como vieram a ser conhecidos
haviam importado, para dentro da Colônia Cinco Mil, importantes concepções e práticas
que marcariam o CEFLURIS no conjunto das religiões ayahuasqueiras. As igrejas do
Estado do Rio de Janeiro o Céu do Mar na Capital e o Céu da Montanha, em Visconde
de Mauá foram testemunhas da atração que o Santo Daime exerceu entre os
integrantes da contracultura.
162
Goulart (2002) afirma que, quando emergia o culto do Santo Daime,
ocorriam mudanças estruturais na sociedade brasileira como um todo; a cosmologia e as
formas rituais daimistas respondiam, então, a este conjunto de mudanças. Soares (1994)
relaciona a adesão das camadas médias urbanas ao Santo Daime à nova consciência
religiosa, um tipo de experimentalismo cultural e religioso, um revival de interesse
pelas práticas alternativas. O autor indaga como pessoas tradicionalmente ligadas aos
movimentos críticos e libertários acabam se integrando numa doutrina como a do Santo
Daime. Sugere que o holismo místico-ecológico acaba substituindo as revoluções
sociais e políticas. Do primeiro lado, teríamos a unidade cósmica, ao invés de igualdade
social, a fraternidade comunitária. Finalmente, a liberdade sexual converte-se em
libertação sexual transcendente. Ainda, de acordo com ele, o Santo Daime, propõe uma
reinvenção do Brasil e da identidade nacional, onde a Amazônia e o caboclo primitivos
o valorizados como profundos e essenciais. Léger e Hérvieu (1983) relaciona a
atração dos neo-rurais pelas grandes tradições religiosas do passado, com um caráter de
protesto social que cristaliza seu processo de retorno à natureza, como uma dinâmica
ideológica compensatória, que joga, igualmente, nos interesses que têm os mesmos
indivíduos pelos conhecimentos locais na agricultura, medicina, sica, etc. Os autores
consideram, no mesmo sentido, que o interesse pelas grandes tradições espirituais e
religiosas da humanidade faz parte dessa reapropriação protestatória das formas de
pensamento, ditas pré-lógicas, segundo os critérios modernos do conhecimento. Os
interessados descobrem isso, sempre segundo a mesma dinâmica utópica, as bases de
uma racionalidade alternativa oposta, segundo eles, a uma racionalidade técnico-
científica, hoje falida. Essa interpretação se integra à perspectiva que trata do
apocalíptico neo-rural como uma utopia compensatória. O discurso apocalíptico
funciona como antecipação compensatória, permitindo, ao mesmo tempo, suportar a
austeridade das condições de vida presentes, e justificar, a marginalidade vivida,
tratando-a como uma experiência profética. A dimensão protestatória da utopia
comunitária não se encontra anulada, mas transformada.
Para Léger e Hérvieu (1983), numa perspectiva weberiana, a orientação
desses grupos, que situam o retorno à natureza como a abertura de uma era de
salvação para a humanidade, após a catástrofe que a julgará, pode ser interpretada
como uma das versões possíveis dos intelectuais. Segundo a conjuntura, esta pode ser
mais contemplativa ou mais asceticamente ativa, pode ser mais propensa a procurar a
salvação pessoal, ou, melhor alcançada com uma transformação do mundo coletivo,
163
ético e revolucionário. O recuo comunitário e a procura de uma auto-suficiência,
favorecendo a renovação pessoal do homem e de sua relação com a natureza, seria,
então, nesta perspectiva, o efeito do congelamento político e social dos anos 75-80
sobre a protestação anti-institucional dos intelectuais párias, que são, freqüentemente,
os neo-rurais. Em seguida, nas considerações de Weber (1971, p.525 apud Léger e
rvieu, 1983, p.79) sobre esse intelectualismo pária
55
característico, diz ele: a
inteligência autodidata das camadas negativamente privilegiadas oferece grandes
possibilidades para análise do que representa, hoje, o ecologismo apocalíptico e
espiritualisante dessa população neo-rural. Seguindo o raciocínio weberiano, estas
camadas não estão relacionadas pelas convenções sociais, quanto ao significado a
atribuir ao cosmos, e a intensa paixão ética e religiosa na qual elas são capazes não é
limitada pelas considerações materiais. Sua necessidade religiosa, geralmente, toma,
seja uma direção ética rigorosa, seja uma direção ocultista. Essa dupla tendência
atestada, de maneira, às vezes, combinadas, pode ser aproximada da propensão que
manifestam os intelectual párias a se constituírem em comunidade emocional, em
torno do líder carismático, percebido e aceitado como um mestre da sabedoria e como
um iniciador.
Cada comunidade daimista possui um padrinho o dirigente, o comandante
da igreja, que autentifica a missão profética do Padrinho Sebastião/Alfredo, inspirador e
guia do CEFLURIS, e do Mestre Irineu, fundador do Santo Daime. De acordo com
Goulart (2002), originalmente, o grupo que formou o culto do Santo Daime era
composto de, praticamente, ex-seringueiros que, com o declínio da exploração da
borracha, recorriam as práticas de mutirão e compadrio.
No começo era pouquinha gente (...) Algumas famílias que moravam encostado ao padrinho
Irineu. Muitos conheciam ele. Moravam ali pertinho, tinham suas colônias. O padrinho
Irineu também, tinha lá o roçado dele. Era tudo vizinho, compadre , tinham de se ajudar.
O Mestre foi reunindo todo esse povo, foi ensinando a gente a se ajudar, a trabalhar junto a
terra. Porque a gente tava numa situação que precisava se ajudar mesmo. O trabalho foi
ficando mais organizado. Quando era época de colheita ou de derrubada, o padrinho Irineu
juntava todo mundo e, cada dia, a gente ia trabalhar nas terras de um. Foi assim que
55
Max Weber propõe o conceito de povo paria como um dos modelos interpretativos do povo judeu.
Apesar de, na idade média, os judeus terem usufruído, em Portugal e na Espanha, de uma situação social
privilegiada em relação ao restante da Europa, nunca deixaram de ser hóspedes. Mesmo após as
conversões forçadas em massa ao catolicismo em Portugal (1497), nunca os judeus se tornaram cristãos
iguais, ao contrário, emergiram como novos parias. Os povos párias, por sua vez, apresentam uma forte
vontade de separação e uma recusa de identificação com a sociedade dominante, o que produz uma
enorme tensão, de um lado, por não poder pertencer a sociedade em que vive, de outro por não poder
voltar para a sua comunidade histórica. A singularidade social, determinada pela origem e pelo fato de
antes de tudo ter crescido num grupo estigmatizado, exerceu influência determinante sobre a alma do
marrano. (Novinsky, 2007, p.30).
164
começou a comunidade, a irmandade do Santo Daime, com os vizinhos trabalhando junto,
cada um ajudando seu irmão
(in Goulart, p.283).
Assim, inicialmente, a organização do Santo Daime chega a aparecer, para
os próprios adeptos, como um resultado do aprofundamento das relações materiais entre
o padrinho Irineu e seus vizinhos. Além da presença do Mutirão, primeiramente,
Mestre Irineu recebe a designação de padrinho. A este respeito, Maria Isaura Pereira
de Queiroz lembra que, no mundo rústico tradicional, agentes como penitentes,
beatos, milagreiros ou santos eram, muitas vezes, tidos como padrinhos da
população desamparada (Queiroz, 1978, p. 138 apud Goulart 2002, p. 284). no caso
do compadrio, de acordo com a autora, este foi ressignificado no aprofundamento das
relações familiares, através do casamento, tornando-se o vínculo entre esses religiosos.
Por conseguinte, é por meio da união entre os membros das primeiras famílias que
acompanharam o Mestre Irineu no processo de formação do novo culto que a
comunidade daimista vai se constituindo (Goulart, 2002, p.285). Mestre Irineu é visto
como um homem santo, e a imagem de benfeitor e protetor são, invariavelmente,
associadas à sua pessoa, assim como, posteriormente, o Padrinho Sebastião, que deu
continuidade à missão de Mestre Irineu, comandando o povo para a salvação,
primeiramente, com a Colônia Cinco Mil e, depois, com a comunidade Céu do Mapiá.
No final da década de 70, atraídos pelas notícias da existência da Colônia
Cinco Mil que era, até então, um conjunto de pequenos lotes autônomos ocupados por
Padrinho Sebastião e seus seguidores chegam ao local, vindos de centros urbanos,
jovens andarilhos, curiosos com os relatos sobre o uso do Daime na região. Sua inserção
no grupo provoca uma redefinição dos valores até então praticados e inauguram uma
ideologia de comunidade, a abolição da propriedade individual e a criação de uma
comunidade igualitarista. Os valores cristãos de caridade e igualdade estariam sendo
colocados em prática tudo é de todos, o trabalho passa a ser coletivizado, a produção
passa a ser administrada pelas lideranças, obedecendo a regras de reciprocidade mais
orgânicas no que se refere à distribuição e à satisfação das necessidades de cada família.
No início da década de 80, Padrinho Sebastião abriga seu grupo no interior da floresta
amazônica no seringal Rio do Ouro. Este local, cedido pelo INCRA, já tinha um
proprietário e, assim, Padrinho Sebastião decide mudar-se, em 1983, para uma extensa
área de terra às margens do Igarapé Map, no município de Pauini, no Estado do
165
Amazonas, dando origem à comunidade Céu do Mapiá, que passa a ser considerado um
lugar especial e sede do movimento daimista (Groisman, 1999).
Os primeiros daimistas viveram, com Mestre Irineu, um período de extremas
dificuldades, indicando que eles passavam por um momento de adaptação a um novo
contexto socioeconômico (Goulart, 2002). Posteriormente, as insatisfações individuais,
mais as projeções de uma nova comunidade liderada por Padrinho Sebastião, aglutinam
um grupo e possibilitam a articulação de uma nova comunidade (Groisman, 1999).
Para muitos daimistas, o Mestre, o Padrinho chega a ser considerado um pai, que
conduz seus filhos (ou afilhados) no decorrer de suas vidas (Goulart, 2002). O Padrinho
Sebastião segue e recomenda o caminho que, segundo ele, é indicado pelo mundo
espiritual, de continuar a missão, adaptando-se às novas condões de existência no
mundo (Groisman, 1999).
O padrinho local da comunidade u de São Miguel autentifica a missão
protica do padrinho maior
56
, tendo uma missão aos olhos da comunidade emocional
reunida em torno dele, ao mesmo tempo em que a comunidade alimenta a utopia que
justifica o esforço fornecido por cada um: a de apresentar a um mundo em loucura a
alternativa possível para o futuro, uma via de salvação, a restauração do paraíso
original.
Atualmente, a humanidade está vivendo uma época de escuridão, onde
todos estão enfrentando a escuridão de suas condutas. Para este enfrentamento, cada
um faz parte do Exército da Rainha, estando, assim, protegido, se estiver no caminho
da verdade, fazendo parte de uma irmandade que está na batalha. Cada um é um
guerreiro, sob a direção do comandante padrinho, e a guerra é a luta pela
doutrinação e salvação dos merecedores neste momento catastrófico que a
humanidade está submersa.
A denominação padrinho, assim como madrinha, designa aquelas pessoas
que são consideradas autoridades no conhecimento espiritual. Usualmente, designa,
também, uma pessoa que teve papel decisivo na orientação pessoal e espiritual de um
adepto. Os padrinhos das comunidades coordenam os rituais, organizam a preparação
do daime e são considerados os depositários da tradição daimista. Além disso, eles
aconselham os demais e, muitas vezes, coordenam o trabalho coletivo. Seu papel é
56
Utilizo a designação de padrinho maior e padrinho menor baseada na ordem interna do Santo
Daime sunmetida aos imperativos do Império Juramidam. Assim o padrinho menor se refere ao
padrinho local de cada igreja daimista e o padrinho maior ao padrinho do Céu do Mapiá que ocupa um
cargo vitalício o Padrinho Sebastião, o Padrinho Alfredo.
166
decisivo nos convencimentos, na condução e animação das rodas de conversa, nas
visitas pessoais, assim como, nas reuniões oficiais, incorporadas às práticas grupais a
partir da expansão do CEFLURIS. (Groisman, 1999).
Segundo Marques Junior (2007), no Santo Daime, onde uma hierarquia
constituída e certa formalização ritual do ponto de vista institucional, o papel do
dirigente de cada igreja, o padrinho, no entanto, tem relativa independência para a
interpretação doutrinária. O conjunto de hinos recebidos mediunicamente vai
reinterpretando suas explicações de mundo e a instância da miração leva esta
interpretação aos extremos dos filtros pessoais.
Não existe um cargo, função ou posto de padrinho. Quem assim é chamado
adquiriu isso com o tempo, devido ao seu carisma e à sua responsabilidade com os
afilhados. O dirigente da igreja, normalmente, é o padrinho, como no Céu de São
Miguel, por ser este quem guia o povo na mesma na jornada espiritual, mas o é uma
regra. Às vezes, uma pessoa dirige a igreja e se tem outra como padrinho.
Para ser dirigente da igreja deve-se ser escolhido em assembléia, existe um caso no sul de
Minas em que o padrinho que fundou e dirige a igreja sofreu um acidente e ficou debilitado,
passando assim a diretoria da igreja pra outra pessoa indicada por ele e escolhida pelos
fardados, sendo que continuou sendo o padrinho de todos...Em São Paulo tem outro caso
que o próprio dirigente tem um senhor da Amazônia como padrinho devido a colaboração
espiritual que este sempre deu na igreja sendo que muitos membros da igreja também o tem
como padrinho...Nem sempre quem abriu a igreja será o dirigente, este pode indicar outra
pessoa ou mesmo em casos extremos o dirigente pode ser indicado pelo Conselho Superior
Doutrinário, toda igreja tem um CD e na sede geral o CSD (informante).
O Conselho Doutrinário é escolhido em assembléia, o que acaba fazendo
com que o grupo escolha os padrinhos para compor o quadro devido à confiança, mas
não é regra, pois o dirigente pode ou não compor o conselho. Na Sede Geral, existem
três conselheiros vitalícios: Padrinho Alfredo Gregório de Melo e Waldete Gregório de
Melo (ambos filhos do Padrinho Sebastião) e Madrinha Rita (viúva do Padrinho
Sebastião), mais doze membros que são (re)escolhidos a cada cinco anos, junto com a
diretoria. Prioritariamente, quem dirige os trabalhos daimistas é o dirigente da igreja ou
seu vice. O dirigente pode, também, solicitar a um padrinho em visita ao local, ou
mesmo designar uma pessoa do grupo para dirigir, em sua ausência. Essa pessoa pode
ou não ser do conselho. Quem decide quem vai dirigir os trabalhos do dia é o dirigente
e, em alguns lugares, um calendário de revezamento, o que não acontece no Céu de
São Miguel.
167
Neste sentido, a comunidade daimista se configura como uma comunidade
religiosa centrada no líder carismático o padrinho. Goulart (2004) analisa o Santo
Daime neste sentido, diz ela:
O Mestre Irineu era um líder carismático, no sentido caracterizado por Weber (1991, pp.
158-167). Sua liderança não se legitimava a partir de um direito adquirido por tradição ou
devido a um conjunto de normas definidas num estatuto, e sim em função de suas
qualidades pessoais excepcionais ou de seus dotes sobrenaturais (Weber 1991, pp. 159-60)
Até mesmo a elaboração do estatuto do CICLU, o qual seria posteriormente um instrumento
nas disputas de sucessão, se deu apenas após o falecimento do Mestre Irineu. Segundo a
análise de Weber, a substituição de um líder carismático pode ser efetuada de diversas
formas e relaciona-se com a rotinização do carisma. Weber diz que um dos meios para
substituir o antigo líder carismático consiste na qualificação do novo líder como também um
portador de carisma. Isto pode ser feito de diferentes maneiras. Por exemplo, o próprio líder
carismático original pode designar o seu sucessor, ou então a comunidade de fiéis reconhece
o novo líder como o mais qualificado carismaticamente, e ainda a sucessão pode acontecer
através da idéia de carisma hereditário (Weber 1991, pp. 161-7). Em todos esses casos
não se trata mais da idéia de um líder que legitima seu poder por exclusivo direito,
baseando-se apenas nas suas características pessoais extraordinárias. A crença passa a ser na
designação feita por outros, como o primeiro profeta, ou no reconhecimento e na avaliação
da comunidade religiosa, ou no herdeiro legítimo, e não mais diretamente no sujeito
carismático como tal. Assim, a dominação carismática, de caráter extra-cotidiano e
exclusivamente pessoal, é rotinizada (Weber 1991, p. 166). Estes diferentes modos de
rotinização do carisma foram acionados no processo de sucessão do Mestre Irineu, e
também estão presentes no intenso movimento de cisões que se iniciou com sua morte e se
prolonga até os dias de hoje. Por exemplo, quando o Mestre Irineu indicou Leôncio Gomes
para presidente do CICLU, estávamos diante de uma situação na qual o líder carismático,
prevendo sua própria morte, designa o seu sucessor. Porém, mais tarde, após o falecimento
do Mestre Irineu, ocorre uma disputa de poder entre Leôncio Gomes, na presidência do
centro, e o padrinho Sebastião. Nesta disputa podemos perceber que surge novamente o
critério do carisma por direito próprio. Como vimos, Sebastião Mota, apesar de não ser do
grupo de membros mais antigos do CICLU, passou a se destacar como uma liderança
bastante significativa. Tanto o seu comportamento como as circunstâncias que o levaram a
romper com o CICLU permitem caracterizá-lo como um líder carismático. Assim, ele é
visto por muitos integrantes do culto daimista como o representante de uma missão, que
cumpre profecias. Para este grupo de adeptos, os hinos recebidos pelo padrinho Sebastião
legitimam a sua condição especial, pois indicam que ele é um escolhido, que possui a graça
de Deus. Por isso, ele é visto como o verdadeiro sucessor do Mestre Irineu, o responsável
pela continuidade da sua missão. Por outro lado, os hinos também se referem à
necessidade do padrinho criar uma nova igreja do Santo Daime, afirmando-se como o seu
líder. A saída do padrinho do CICLU, e a fundação do CEFLURIS, só vêem, então,
confirmar a profecia divina expressa anteriormente nos seus hinos. Temos, assim, na disputa
entre Leôncio Gomes e o padrinho Sebastião, uma oposição entre um líder que legitima seu
carisma indiretamente, através de uma indicação feita pelo profeta original, e um outroder
que parece estar mais próximo do tipo carismático puro definido por Weber, ou seja, aquele
que retira seu poder de suas próprias qualidades extraordinárias ou sobrenaturais. Vale
lembrar que a posição de Leôncio Gomes afirmava-se, por um lado, pela indicação do
Mestre Irineu e, por outro, porque ele possuía laços de parentesco e de afinidade com este
último, já que era tio materno da sua esposa (GP: 13, 49 e 50). Portanto, podemos detectar,
em todo esse processo sucessório, a presença dos critérios de carisma puro, carisma
transmitido pelo profeta original, e ainda o aspecto da tradição como um elemento crucial
no processo de qualificação e escolha do novo líder. (p. 71-72)
168
Weber identifica três tipos
57
diferentes de domínio legítimo. O primeiro,
domínio legal, parte de um caráter racional, [...] tem por fundamento a crença na
validade dos regulamentos estabelecidos racionalmente e na legitimidade dos chefes
designados nos termos da lei. O segundo, chamado de domínio tradicional, [...] tem
por base a crença na santidade das tradições em vigor e na legitimidade dos que são
chamados ao poder em virtude de costume. E o terceiro, chamado de domínio
carismático, que [...] repousa no abandono dos membros ao valor pessoal de um
homem que se distingue por sua santidade, seu heroísmo ou seus exemplos. Dessa
forma, O domínio legal é mais impessoal, o segundo se baseia na piedade, e o terceiro
é da ordem do excepcional. O tipo mais puro de dominação legal é a dominação
burocrática. A dominação legal não corresponde apenas à estrutura moderna do
Estado e do município, mas também à relação de domínio numa empresa capitalista
privada, numa associação com fins utilitários ou numa união de qualquer outra natureza
que disponha de um quadro administrativo numeroso e hierarquicamente articulado.
(Freund, 1987, p.167).
Nesta perspectiva weberiana, no próximo capítulo fecharei a análise
comparativa iniciada entre ambas, numa perspectiva elesiana weberiana, seguindo e
dando continuidade ao entendimento de Goulart (2004).
57
Desde o início, Weber identifica como sendo tipos ideais, e que estes muito pouco ou raramente se
encontram em seu estado puro. Logo, Foi com o desenvolvimento dos tipos ideais, percebidos como
um novo instrumento conceitual, [...] (DIEHL, 2004, p. 34). [...] Weber não quis dizer que os seus tipos
ideais fossem, em algum sentido, bons ou nobres: ideal, aqui, significa, simplesmente o que não está
concretamente exemplificado na realidade. Não está envolvido qualquer elemento de valor. Segundo,
o pretendeu com o seu método típico ideal inventar qualquer novo instrumento de análise. Apenas
quis com isso explicar e refinar o que os cientistas sociais e historiadores realmente fazem. O tipo ideal
começa por tornar manifesta a metodologia tácita e real de outros homens; e, ao tornar publicamente clara
essa metodologia, Weber esperava aperfeiçoar o caráter autoconsciente e rigoroso das ciências sociais.
(MACRAE, 1985, p. 70).
169
Figura 2 Os ramos no Santo Daime.
170
CAPÍTULO 5
O CAULE E OS RAMOS: CONSIDERAÇÕES FINAIS DE UMA
PERSPECTIVA COMPARATISTA
Neste capítulo me deterei nas considerações finais dessa perspectiva
comparatista iniciada no capítulo anterior entre a sociedade religiosa UDV centrada
numa ascensão hierárquica de corte e a comunidade religiosa daimista centrada no
líder carismático o padrinho, numa perspectiva elisiana weberiana.
Para Elias (2001) uma Figuration é uma formação social, cujas dimensões
podem ser muito variáveis, em que os indivíduos estão ligados uns aos outros por um
modo específico de dependências recíprocas e cuja reprodução supõe um equilíbrio
notável das tensões. As noções de figuração, interdependência e equilíbrio das tensões
estão estreitamente ligadas umas às outras. Elias (2001) coloca como centrais as redes
de dependências recíprocas que fazem com que cada ação individual dependa de toda
uma série de outras, porém modificando, por sua vez, a própria imagem do jogo social.
A imagem que pode representar esse processo permanente de relações em cadeia é a do
tabuleiro de xadrez: ... como em um jogo de xadrez, cada ação decidida de maneira
relativamente independente por um indivíduo representa um movimento no tabuleiro
social, jogada que por sua vez acarreta um movimento de outro indivíduo ou, na
realidade de muitos outros indivíduos -, limitando a autonomia do primeiro e
demonstrando sua dependência (p. 158). Para o autor, é a modalidade variável de cada
uma das cadeias de interdependências que podem ser mais ou menos longas mais ou
menos complexas, mais ou menos coercitivas que define a especificidade de cada
formação ou figuração social. Neste sentido partimos de uma multiplicidade de
indivíduos interdependentes que constituem figurações específicas como a sociedade
religiosa UDV e a comunidade religiosa daimista.
Existem campos de dominação que possuem uma estrutura totalmente
diferente e, com isso, de tipos totalmente distintos. É sabido que, em sua tipologia das
formas de dominação, Max Weber (1991) contrapõe à forma de dominação corporativa
e patrimonial (na qual a UDV estaria mais ligada), uma outra forma que ele chama de
171
carismática. Quando se observa essa outra forma da mesma maneira como fizemos
com a sociedade religiosa UDV (capítulo três), percebe-se o seguinte: aqui também
um primeiro campo de atuação do padrinho no interior de um campo de dominação
mais amplo o padrinho maior, o Céu do Mapiá. O padrinho, como já foi
mencionado, se refere a pessoas que são consideradas autoridades no conhecimento
espiritual normalmente o dirigente da igreja. Raimundo Irineu Serra compõe com a
Rainha da Floresta (Nossa Senhora da Conceição) a paternidade simbólico-espiritual
dessa doutrina, sendo identificado como Jesus Cristo (Juramidam). Percebemos, então,
na doutrina do Santo Daime, a existência de um universo simbólico que tem como base
a idéia de Império Juramiam, nos remetendo a uma filiação tica, tendo como Mãe a
Rainha da Floresta e como Pai o Rei Juramidam, constituindo a Família Juramidam
(Couto, 2002). A ordem interna do Santo Daime submete-se aos imperativos do
Império Juramidam. O Mestre-Imperador-Religioso é Sebastião Mota de Melo.
Sobre a doutrina, Padrinho Sebastião
58
explica:
Deus é quem doutrina todos nós. Agora se escolhe um membro para ser receptor e
distribuidor para os outros, os outros busquem aquela palavra, porque ela não é perdida. Até
aqui minha vida tem sido esta, para tirar um povo que Deus pediu. É nós que estamos
seguros com o Santo Daime, é como disse o Mestre Irineu: Todos aqueles que se segurarem
nos raminhos verdes, se segurem mesmo, porque serão os únicos que poderão chegar.
Porque tudo vem, o tempo está marcando e está se vendo, e a voz do deserto avisando a todo
aquele que busca a Cristo Jesus, que hoje nós temos como Juramidam, no céu e na terra [...]
O presidente atual do CEFLURIS é Alfredo Gregório de Melo (Padrinho
Alfredo) e o vice-presidente é Waldete Gregório de Melo, com demais secretários,
tesoureiros, conselheiros. O Padrinho Alfredo é filho do Padrinho Sebastião e é
considerado atualmente o Mestre-Imperador num cargo vitalício. Na ordem interna,
todos se submetem aos imperativos do Império Juramidam. Observe como funciona
a liderança do padrinho maior Padrinho Alfredo e do padrinho menor o
padrinho local referente a cada igreja a partir dessa conversa gravada na casa do
padrinho Alan entre eu, ele, sua esposa e um discípulo.
- Alancardino: Aqui na igreja eu sou o dirigente, a minha esposa, e mais três pessoas, é um
Conselho. Eu sou o Presidente do Conselho, a minha esposa é vice e temos mais três. Então
58
In: FROÉS, Vera. História do Povo Juramidam: Introdução à cultura do Santo Daime. Manaus.
Suframa, 1983, p. 135.
172
quando tem alguma questão que a gente precisa resolver a nível local a gente se reúne e
resolve. E tem uma Associação que é mantenedora da igreja, por exemplo, estas terras todas
aqui são da nossa Associação, que é a mantenedora da igreja, a igreja na verdade ela é
espiritual né. A associação cede um espaço coisa e tal pra nós fazermos os rituais ali, cede o
físico, a igreja mesmo é espiritual. A central é no Mapiá, no meio da floresta.
- Jéssica: Como é escolhido o dirigente?
- Alancardino: É assim: pelo estatuto do CEFLURIS cada igreja elege três pessoas, é uma
lista tríplice e vai para o Padrinho Alfredo e ele escolhe um daqueles ali para dirigir.
Normalmente ele escolhe o mais votado. Mas isso dá uma possibilidade para ele também de
repente evitar algum, sabe como é que é, às vezes tem uma pessoa que não é bem afinada
ali, isso acontece em qualquer instituição. Às vezes a pessoa não é bem afinada, tá
insatisfeita com alguma coisa e se tu bota aquela pessoa na direção do trabalho daqui um
pouquinho criando uma dissidência. Porque aquela pessoa começa a influir na corrente.
Então o Padrinho tem essa possibilidade, o fulano mais alinhado vamos botar ele, para se
ter uma obediência sobre o Estatuto e as próprias normas de ritual que a gente têm. Então
aqui é feita uma votação, é feita uma eleição, uma assembléia com tudo direitinho, é eleito
três irmãos, os três mais votados vão pro Mapiá, os nomes, e o Padrinho então manda um
oficio dizendo ó, sacramenta um nome para dirigir o trabalho espiritual.
- Saturnino: Esse é o grande reconhecimento né. A autoridade espiritual do Padrinho
Alfredo sobre as coisas que são definitivas da estrutura da igreja. Porque ele é um homem
voltado para isso.
- Alancardino: Com certeza, ele é o chefe, quando a gente tá ali fazendo o trabalho.
- Saturnino: Eles dizem que é meio imperial, é! Porque é uma linhagem espiritual desse
jeito. Às vezes as pessoas dentro da rebeldia falam em democracia. Democracia é do mundo
dos homens, o mundo espiritual tem hierarquia. Nós não podemos contrariar isso.
- Alancardino: Aqui no Daime, no geral, aceitam super bem essa autoridade com esse
sistema que o Saturnino falando. Ele na figura do Rei. Ele não usa coroa, mas na
figura do Rei. É vitalício o cargo dele. Ele vai passa não sei pra quem, se para um filho, que
ele escolhe, uma coisa espiritual. Mas ninguém questiona a autoridade dele. Mas para s
isso também não faz diferença, porque o que nos interessa mesmo é que o daime tá na mesa
e tá nos ensinando.
- Rosinha: É um mediador.
- Alancardino: Ele mesmo diz isso. Eu garanto pelo daime. O resto é conseqüência. O povo
do Daime é um povo muito simples. Nós não queremos complicar a vida, queremos facilitar
a vida. É toma o daime, canta os hinos, se vê, se encarar, o que não é fácil. Às vezes a gente
tira uma de anjinho, mas por trás tem duas guampinhas.
Neste sentido, a relação destes três fatores, o padrinho, o grupo central (Céu
de São Miguel) e campo de dominação mais amplo (Céu do Mapiá), é decisiva para a
estruturação e para o destino do poder carismático.
A princípio podemos dizer, em termos gerais, que processos de formação de
camadas dentro do campo de dominação mais amplo, transformações maiores ou
menores, mudanças ou perdas de equilíbrio na balança de tensões existente tudo isso
constitui pressupostos para se instituir um poder carismático. Tal transformação e tal
perda de equilíbrio fornecem a quem aparece como portador de carisma a chance
decisiva; são elas que dão à sua progressão aquele caráter enfatizado por Max Weber
(1991), o caráter extraordinário. A dominação carismática é uma dominação dos
tempos de crise, tempos difíceis. Ela não tem nenhuma constância, a não ser que a
crise, a guerra ou a revolta se tornem regra em uma sociedade (Elias, 2001). É o que
173
demonstrou Goulart (2004) descrevendo os diferentes modos de rotinização do
carisma acionados no processo de sucessão do Mestre Irineu e até hoje em disputas e
dissidências.
De acordo com Groisman (1999) as duas trajetórias, a de Raimundo Irineu
Serra e a de Sebastião Mota de Melo, representam parâmetros importantes para se
compreender os processos de legitimação da hierarquia no grupo. Como dois indivíduos
paradigmáticos em plena construção mítica, Mestre Irineu e Padrinho Sebastião
representam individualizações dos comportamentos recomendados pelos fundamentos
doutrinários do grupo. Os relatos sobre a vida dos dois líderes refletem as motivações
individuais e grupais para o comportamento recomendado. A missão está presente como
fator articulador e legitimador da liderança de cada um, enquanto as virtudes
apresentadas no decorrer de suas vidas confirmam que realmente um caminho que
conduz à iluminação pessoal, do ponto de vista espiritual. Nos eventos contidos na
trajetória de Mestre Irineu encontram-se elementos de sua personalidade que servem de
parâmetro para a auto-avaliação dos demais daimistas (p.21). Neste sentido também
podemos pensar na trajetória de Padrinho Alfredo e a do padrinho menor.
Segundo Elias (2001), essa progressão é extraordinária segundo a medida do
cotidiano tradicional e das formas de ascensão tradicionais de uma determinada
organização social dominante. Sua eclosão, encoberta ou às claras, e seu abalo estrutural
criam nos homens que pertencem ao grupo carismático central (Céu de São Miguel), via
de regra, a predisposição para o caráter extraordinário. Entretanto, a tarefa que passa a
se impor para o futuro detentor do poder e cuja realização e solução exigem
justamente o que Max Weber (1991) chama de carisma é muito específica e
claramente distinta da tarefa que se impõe ao mestre da UDV. Enquanto ele e seus
partidários ainda têm de lutar para conquistar seu poder, o líder carismático precisa
orientar, com maior ou menor consciência, as metas de todos os indivíduos que
compõem o núcleo de seu poder em uma única direção. Assim, dentro de um campo
social bem fechado e a salvo da desagregação social, ele é capaz de agrupar um número
limitado de homens, de tal modo que sua pressão social se dirija e atue na mesma
direção, ou seja, para fora, para a esfera de poder mais ampla. Veja o relato de
Alancardino sobre o surgimento da igreja Céu de São Miguel e sua liderança:
[...] Aqui na região tinha duas igrejas de Daime: o Reino Unido e a Sagrada Família que era
do irmão Donezete, o Reino Unido era do Luis Daniel e da Elisa. Foi quando eu e minha
174
esposa entramos no Santo Daime, em 94. Aí, como eu já te falei isso, dá aquelas briguinhas,
aquelas coisas, a gente acabou se chateando com algumas coisas que a gente não gostou, a
gente pediu licença, se afastou e fundou o Fonte Cristalina. Então ficou aqui na região três
igrejinhas, a gente chama três Pontos de Cura: a Sagrada Família, o Reino Unido e a Fonte
Cristalina. Aí, passou uns seis meses nós estávamos na igreja matriz na época que era o
Cruzeiro do Sul. E eu, o Luis Daniel, a minha esposa, a esposa dele e o Donizete, na mesma
hora, no mesmo hino, recebemos um puxão de orelha do Mestre, dizendo que o que ele
tinha pregado aqui na terra era a união e não a desunião. Que a separação só é boa quando é
ele quem promove e não quando o ego promove. E aí a gente viu que nós tínhamos errado, e
que nós precisávamos se juntar e conversar. Então nós nos juntamos e conversamos e
resolvemos unir os três Pontos de novo num só. Mas com outro nome: Céu de São
Miguel.
Percebe-se pelo relato do padrinho Alancardino que no Daime sempre se
refere a igreja do fulano, no caso foi mencionado a Sagrada Família que era do irmão
Donezete..., como se as igrejas de daime tivessem um dono, que é o padrinho, o
dirigente, o líder carismático. O líder tem que manter seu carisma e evitar conflitos
internos que possam decorrer em cisões e rupturas, o que é muito comum no Santo
Daime como aconteceu na história de origem da igreja atual estudada. Depois de
dividida e novamente juntada gradualmente um dos três líderes vai se destacando e
tomando a frente, no caso o padrinho Alancardino que foi quem recebeu o nome da
igreja Céu de São Miguel e se tornou seu comandante. A situação do padrinho que
aparece como o executor de um profundo remanejamento ou reagrupamento social o
líder carismático. Para ele, as invejas, as rivalidades e as tensões provocadas dentro
do grupo central são perigosas. É claro que elas continuam existindo, mas não podem,
contudo, manifestar-se com muita intensidade. Precisam ser reprimidas. Neste sentido,
por exemplo, a União do Vegetal incentiva em nome do engrandecimento e da paz da
UDV que os discípulos que encontrarem outros discípulos em uma falta devem clareá-
lo ou trazer ao conhecimento do mestre; o que acaba acontecendo é que todos sabem do
praticado de todos, enquanto o Santo Daime condena e luta constantemente contra
este tipo de atitude mesmo que seja em nome de uma paz. Aqui a questão é orientar para
fora a força, a meta, e com isso a pressão social de todos os indivíduos unidos nesse
grupo, dirigindo-as assim contra o campo social desagregado, a esfera de poder mais
ampla que deve ser conquistada. É na realização dessa tarefa que reside o verdadeiro
segredo daquela forma de liderança e de dominação que Max Weber (1991) chamou de
carismática.
Teve um período no Céu de São Miguel que o conhecimento e o
reconhecimento do padrinho Alan estava sendo questionado por alguns membros. Algo
175
que os daimistas relatam ser muito freqüente, pois sempre acontece de um irmão
receber que deve ser líder e certa vez num trabalho foi dada uma doutrinação sobre
seguir outros mestres, os falsos profetas, sendo lido a passagem da Bíblia Marcos
capítulo 13 e no final da leitura foi dito: É isso que está acontecendo com a gente
irmãos. Vigiai. Diz o hino do Padrinho Sebastião:
Não creias nos mestres que te aparecem
E nem com eles no caminho queira andar
Creia somente em teu Jesus
Que Ele é quem tem para te dar
Meu Mestre aqui a vós eu peço
Para Vós me guiar
Me guie no caminho da santa luz
Não deixa ninguém me atacar
Segue sempre o seu caminho
Deixa quem quiser falar
Recebe a sua luz de cristal
Te firma e te compõe em teu lugar
Recebe todos que chegar
Faz o que eu te mandar
Não deixa fazer o que eles querem
Espera até o dia que eu chegar
O padrinho menor representa o padrinho maior que está na figura de
Jesus Cristo dentro de uma hierarquia o Império Juramidam. Mestre Irineu e
Padrinho Sebastião, através de sua vida e obra, são a legitima fonte exegética do saber e
do poder do Daime. Conseqüentemente a autoridade e liderança do padrinho menor
precisa ser conservada. É preciso que se produza uma unidade dos interesses e do
sentido da pressão, a mais abrangente possível, entre o padrinho e o grupo central
relativamente restrito, em comparação à ampla dimensão do campo social restante, de
modo que a ação de cada um dos comandados funcione como um prolongamento da
ação do der. Veja o depoimento do padrinho Alan:
Na doutrina a gente têm mania de chamar de Padrinho quem dirige o trabalho. Na verdade,
Padrinho mesmo são aqueles lá de cima: Padrinho Sebastião, Padrinho Alfredo. Esses
realmente são Padrinhos. Mas esse costume acabou pegando, todo mundo chama de
Padrinho quem dirige o trabalho por aqui. Eu considero que a gente não é Padrinho. Porque,
para mim, Padrinho são pessoas que têm condições de abrir um trabalho de daime com o
quanto de daime for necessário! E a gente, às vezes não têm esse cacife! O daime é muito
forte e às vezes a gente têm até medo. Esses homens passaram a fase do medo, têm
condições de abrir essas egrégoras espirituais. Mas as pessoas chamam a gente de Padrinho
e têm aqueles que de deferê (deferência) e também nos chamam de Padrinho. E vejo que
assim... isso também, o daime me fez, trabalhar. Saber que não era eu! Não sou eu! Isso é o
poder, que através de mim, e assim... e eu ainda tenho que agradecer de eu servir para
esse poder, de poder estar ali servindo os meus irmãos! Porque foi o que Cristo fez! Ele que
176
foi o maior! O maior! São Jo disse que ele era o primogênito de Deus! Foi a primeira
encarnação Divina de Deus, foi Jesus Cristo! Que eu entendo que na linha oriental foi
Brahma! Quando Vishnu, o Sr. Supremo exalou o primeiro filho Dele que foi Brahma. Que
depois criou todo o resto. Toda a criação material e tudo, foi tudo Brahma quem criou.
Entendo que isto é Jesus Cristo. Ele veio nessa terra e foi o que mais serviu! E ensinou tudo
isso. E ainda disse: Assim fazendo, conhecerão que sois meus filhos e então compreendi
que o Daime me colocou nessa situação exatamente para eu servir e não para ser servido.
Então, assim: trabalho a minha vaidade, trabalho os meus orgulhos. É um trabalho constante
porque ... como vou te dizer assim: enquanto não erradicares isso de dentro de ti, tu estás no
perigo! Tá entendendo como é que é? É como o cara que um dia foi viciado em
bebida:enquanto ele realmente não erradicar esse vicio é muito perigoso ele tomar um
aperitivo, porque ele afunda em seguidinha. Então como a gente, tu seres dirigente, tu fica
muito na berlinda, tu fica muito na visão dos outros. Tem muita gente que adora estar na
frente. Eu nem gosto! Tô ali porque estou numa missão! Então quando entro pro meu
trabalho, primeira coisa que peço pro meu Mestre Juramidam é que me use como um
aparelho, não me deixe envaidecer com aquilo ali, me mostre como servir melhor aos
desígnios divinos, as necessidades dos meus irmãos. Não me deixe cair nessas tentações tão
comuns da vida humana. Então, aprendendo muito. Para mim ser dirigente é ser um
aluno, um bom aluno. Porque eu tenho que ser um bom aluno. Até porque eu entendo que é
o poder que escolhe. Então, se eu trabalho mal eu vou cair. que quando o poder te
abandona, é uma tristeza! Porque isso aconteceu com o Rei Saul, foi escolhido por Deus
para ser um rei de Israel. Ele era um guerreiro, um homem de extraordinária coragem. E um
dia Deus ungiu ele. E um dia Deus ordenou um combate entre ele e outro povo e foi
determinado, olha só que coisa séria, foi determinado o extermínio de todos. De todo aquele
povo. Entendi que aquilo foi determinado porque aquele povo não tinha uma origem divina!
Não tinha origem em Deus. Era um povo que tinha sido criado por outras entidades! Então
era um povo do mal, vamos dizer assim! E o povo derrotado pelo Rei Saul, implorou muito
ao Rei Saul para que não matasse ele. E o profeta tinha dito ao Rei Saul: O senhor tinha um
mandá combate! Nem os animais daquele povo devem ser aproveitados! Era uma coisa
séria, era quase uma Sodoma, acabar com tudo! E ele ficou com pena e achou que poderia
se aliar e trazer uma vantagem. Quando ele chegou de volta da batalha, caiu o rei
escravizado, o profeta chegou direto para ele e disse para ele: Deus virou de costas para ti e
vai proceder a um novo rei em Israel! Ali o poder para isso é que estava te falando, o poder
virou as costas para Saul. Ele afundou! Acabou o reinado de Saul ali. Ele ainda ficou 8, 10
anos como rei, no poder, mas sabes, já não conseguiu mais se encontrar, entrou em
perseguição com Davi que foi ungido por Deus, ao invés dele se humilhar, pedir perdão e
reconhecer: Olha, errei e coisa e tal. Deus: Ta, ta aqui! Vou dar apoio para ele. Ele
ainda se rebelou, piorou a situação dele. Morreu numa situação muito lastimável! Então
peço muito a Deus assim que não me abandone, que não me deixe errar com o poder assim.
E o dia que ele me tirar, que não me tire por erro meu, mas porque eu não tenho mais
condições físicas de trabalhar, de dar um bom trabalho aos meus irmãos, de fazer um bom
serviço. Vou lá pro meu cantinho na minha passagem aqui na terra. Tenho aprendido muito,
mas muito mesmo na minha qualidade de dirigente, porque sou obrigado, assim a prestar
atenção em todos os meus irmãos e minhas irmãs, nas suas passagens, atender aqueles que
necessitam, receber as entidades, intuições que possam vir através de mim, para dar aquele
conforto naquele momento, manter o trabalho em ordem para que os irmãos, irmãs e
entidades que venham com necessidade daquele trabalho possam se desenvolver. Ou seja, o
trabalho ter um finalmente bom, positivo. E mais assim, essa questão da união das famílias,
da própria doutrina de manter o daime como esse sacramento, como esse poder que ele é.
Na situação em que se encontra quem aspira à dominação carismática, a
possibilidade de planejamento é mais restrita, inicialmente porque a previsibilidade é
menor do que no campo de dominação do mestre da UDV. Monteiro da Silva (1983)
diz que os grupos mais complexos como o da UDV prevêem a possibilidade dos
iniciados chegarem a mestre, depois de passar pelos níveis intermediários do oficialato.
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Nesse caso o processo não apresenta traumas ou divisões dos cleos, pois ele é
previsto e estimulado. Ainda assim, em decorrência da disputa política pelo cargo,
podem ocorrer crises internas e até o seccionamento do grupo. É sempre o grupo que
legitima o futuro líder. Neste sentido torna-se importante o período de iniciação que
pode durar indefinidamente. O candidato vai desenvolvendo suas aptidões.
Seguindo o pensamento elisiano percebemos que nos assuntos sociais
humanos, as coisas são mais previsíveis para os atores quanto mais estáveis se
mantiverem, em um campo social, determinada estrutura e determinado equilíbrio das
tensões, como no caso da sociedade religiosa UDV. Em contrapartida, o líder
carismático, que se beneficia precisamente de um equilíbrio instável, flutuante, ou até
mesmo profundamente abalado, apresenta-se freqüentemente, mas nem sempre, como a
novidade no campo social, que promete subverter em sua passagem todas as atitudes e
motivações dominantes, rotineiras, previsíveis. O padrinho Alan fala de sua experiência
quando rompeu com o primeiro grupo e fundou sua dissidência antes da Comunidade
us de São Miguel:
Abrimos aum ponto chamado Fonte Cristalina. Éramos eu, minha esposa e meu filho.
Queríamos fazer um trabalho de família. Em um mês tínhamos doze pessoas tomando
daime. Começou a surgir gente, surgir gente e querendo a tomar daime conosco! Até fiquei
um pouco assustado com aquilo porque... pensava assim: será que tenho condições, tenho
rumo para dar para essa gente? Então, um dia o Daime disse assim: Não és tu que vai dar
um rumo, sou eu! tens que abrir o trabalho e te concentrares em mim! E deixas que o
resto eu faço! A partir dali, me tranqüilizei com isso! E realmente comecei a ver toda essa
história. Então o que acontece? Comecei a ter uma experiência párida do que os profetas, os
grandes condutores da humanidade sofrem! Porque entendo que isso tem um pouco de jogo
de forças no meio! Não consegui entender muito bem o porquê disso, mas existe. Por
exemplo: quando Jesus Cristo veio a este mundo, já começou o combate quando ele estava
no útero. Até antes disso, antes da concepção porque ali se teve que vencer uma série de
preconceitos porque naquela época a mulher, era vamos dizer assim, considerada um ser
inferior! Mulher não podia entrar na sinagoga. Agora imagines a mulher engravidar sem ter
marido! Ou tendo marido engravidar que não fosse do marido! Que era o caso de Maria!
Tudo isso já mostrando a saga daqueles que vem para abrir um caminho, um rumo para
humanidade. Nosso Senhor foi um exemplo muito claro disso.Quando comecei a dirigir
trabalhos comecei a sentir esses efeitos. Daquelas pessoas que vinham e diziam assim:
Puxa que legal, quero te ajudar! E daqueles que vinham, olhavam o trabalho e queriam
detonar o trabalho! Queriam assim, acabar com o trabalho! Ou deixar que energias se
aparelhassem nelas para tentar isso. E tu saberes assim: Bom agora sou um dirigente de
trabalho, tenho 25, 30 pessoas na minha mão, porque na verdade é isso, porque quando
estás em uma aula o professor é o cara que dá o rumo daquela história. E aí, saberes assim:
Bom agora tenho que provar o que aprendi.
O mesmo vale, até certo ponto, para o grupo central que o sustenta. Ambos
precisam ter a ousadia de avançar para algo que é relativamente desconhecido e
178
imprevisível. Assim, seu objetivo acaba assumindo facilmente o caráter de crença.
Ambos têm que se servir de meios, atitudes e comportamentos que ainda não foram
postos à prova, que é o que verificamos com o Céu do Mapiá, uma comunidade
religiosa sui generis que atingiu uma dimensão tal no âmbito brasileiro e no exterior.
Por conseguinte, a supressão de muitas regras, prescrições e
comportamentos estabelecidos, com os quais os soberanos guiavam seus súditos em
vários níveis, confronta os grupos carismáticos com uma tarefa muito específica. A
liderança não pode mais ser concretizada e transmitida desde o líder até o nível mais
baixo sob seu controle por vias e meios relativamente experimentados e fixados, mas
apenas por meio da intervenção pessoal sempre recorrente do próprio líder, ou de
poucos dos seus subordinados (Elias, 2001). Ou seja, ela só pode ser concretizada
produzindo-se uma relação pessoal, e a mais direta possível, entre o líder e os membros
do grupo central. Veja o depoimento de um daimista sobre o padrinho menor:
O padrinho é o esteio da comunidade. A prova é que ele já esteve fora de lá e a comunidade
teve uma queda muito grande (isso dez anos, na época da dissidência e da união na
Comunidade Céu de São Miguel). Depois ele retornou, a comunidade retoma. O Alan e a
Rosinha tem um conhecimento muito grande de espiritualidade. Eles estudam muito. Em 79
o Alan já era mestre maçom, ele foi Rosacruz, ele tem muito conhecimento de umbanda. A
Rosinha foi babalorixá. Eles conhecem bem as energias, eles trabalham com Reiki, eles
trabalham com apometria, eles trabalham com uma série de coisas ligadas ao espiritismo.
Eles são umas pessoas muito centradas, que tem muito amor no coração e eles vivem o que
eles dizem o que eles são. Tu pode ver a convivência deles em família, com os filhos. Então
eu procuro me espelhar muito no Alan, quando eu posso estou sempre junto, porque é um
crescente para mim. A gente sente que ele tem uma firmeza espiritual muito grande, uma
firmeza de caráter muito grande, uma disposição para receber qualquer pessoa a qualquer
hora, qualquer coisa que se possa resolver eles estão sempre prontos. Eles sempre vão
protelando sua vida em função do Daime, o que eu valorizo muito, fora muitas dúvidas que
a gente conversa, ele esclarece muitas dúvidas. Me muitos nortes de trabalhos espirituais
e me prepara muito espiritualmente também. Eles são muito intuitivos, têm uma intuição
muito forte também, tanto dentro ou fora do trabalho eles sabem o que está se passando na
tua vida. Às vezes a gente tá num apuro lá e ele nos esclarece antes que a gente precise falar
com eles. Eles estão norteando também a parte física da comunidade apoiando esses
projetos todos de sustentabilidade. Eles são muito lúcidos, têm muita lucidez, o que dá
tranqüilidade também aos trabalhos espirituais, para todos estarem lá tranqüilos e tomara
que eles possam ter o mesmo retorno das pessoas da maneira que eles se dão porque por
vezes eles não têm, mas espero que um dia eles possam ter na integralidade esse retorno.
Porque nem sempre o ser humano é grato do que recebe e nem Jesus Cristo agradou a todos
né. Eu credito o crescimento e a continuidade da comunidade a eles. Eles norteiam e
seguram a espiritualidade. Eles sofrem ataques pessoais e não se incomodam aparentemente
com isso, não desistem de estar ajudando.
Todas as pessoas que pertencem a esse grupo trazem consigo os traços da
camada de onde provêm, traços que compõem o caráter pessoal de cada uma delas.
Entretanto, as relações, a importância e, sobretudo a ascensão do indivíduo dentro do
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próprio grupo central não são determinadas primordialmente a partir do nível social,
válido até então para a esfera de poder mais ampla, nem por meio da aura que o homem
singular obtém daí, mas sim por determinadas qualidades individuais que correspondem
à tarefa e à situação específicas do grupo central. A posse de qualidades, assim, também
é decisiva para a escolha do próprio líder. Ela determina sua relação com os outros
membros do grupo central num grau mais intenso do que qualquer nível social herdado
ou conquistado anteriormente (Elias, 2001). Na trajetória pessoal do padrinho
Alancardino percebemos que a sua condição social e suas disposições pessoais o
permitiram chegar à frente, sobre o caminho do discernimento das vias de salvação e
dos sinais dos tempos na doutrina daimista. Observe:
Na verdade acho que nasci, assim, com alguma característica devocional. Por quê com cinco
anos de idade descobri dentro de um armário do meu pai um livro da Ordem Rosacruz
AMORC e as figuras daquele livro, daquele livreto me impressionaram tanto que nunca
mais esqueci. Quando cheguei nos 12 anos, comecei a pesquisar essas coisas. Com 16 anos
me inscrevi na Ordem Rosacruz, não na AMORC, na Fraternidade Rosacruz Max Heindell.
Depois com 18 anos entrei na AMORC e comecei a seguir essa caminhada, conheci minha
esposa, casamos bem cedo, ela também tinha essa propensão ao espiritual a buscar uma
iluminação espiritual.passamos a seguir essa caminhada juntos. Ela foi mais para a linha
de Umbanda, fez toda a iniciação dela como Ialorixá na linha de Gexá, teve Axés e tudo
mais.Um dia lendo uma revista Planeta, acho era de 1991, alguma coisa assim, e falava no
Santo Daime. Então pensei comigo assim... porque estava lendo as obras do Castañeda e
as iniciações do Castañeda com o Brujo Don Ruan, foram todas feitas através de uma planta
de poder mescalito, que eles chamavam. Então ouvi falar sobre o Santo Daime na
Amazônia, tinha um feitio, coisa e tal... Então li aquilo ali e disse para minha esposa assim:
Bah negra, um dia vou na Amazônia para tomar esse negócio aqui. Entrei para a
Maçonaria também, por convite de delegado da Polícia Federal fui policial federal e
éramos muito amigos. Ele é meu compadre, inclusive. Ele era maçom, me convidou e entrei
porque estava dentro dessa caminhada. Aí, quando li essa história do Daime, depois esqueci
daquilo ali, passou. Isso foi em, mais ou menos, 91. Eu tinha 40 anos, quando comecei essa
história aí. Meu pai adoeceu com o câncer, veio para dentro da minha casa. Tivemos 2 anos
muito difíceis. Foi através da fé, do espiritual, que comecei a me segurar para ultrapassar
aquela fase difícil pra mim. Tinha um amor muito grande pelo meu pai. Nos dávamos super
bem. Ele sofria muito com aquela doença e eu não tinha o quê fazer. Estava, assim,
procurando um alento uma coisa onde me agarrar. Um dia conversando com um amigo meu,
ele me disse para mim: Bah Alan, tive uma experiência maravilhosa esse final de semana,
coisa e tal.... Disse a ele, então: É? O que foi?. Ele respondeu: Bah, tomei o Santo
Daime!. Então, até dei uma gozada nele: Bah, estás bem de dinheiro!. E ele: Mas por
quê?. Respondi: Ahh, tem na Amazônia. O cara para ir a Amazônia gasta muito. Ele
disse: Não! Tomei aqui em Novo Hamburgo!. Disse então: Ah não, então para um
pouquinho, vamos sentar e conversar que estou muito interessado nessa história!. me
indicou, me contou a experiência fantástica dele, me indicou aonde era e fui atrás. Naquela
época era o Luis Daniel Vitorino, que era o dirigente de um ponto de cura em Novo
Hamburgo, numa clínica terapêutica que ele tinha. Me apresentei a ele, fui junto com a
minha esposa. Eu era juiz de direito, estava na época na ativa. Então disse a ele, contei mais
ou menos o que estou te dizendo aqui, contei das minhas passagens espirituais e que tinha
muita vontade de fazer essa experiência com o Santo Daime, ver se o Daime podia me
ajudar. Ver o quê o Daime podia me dar. Ele disse para mim que o Daime não se explica.
Não tem como explicar, tem que se tomar e fazer o trabalho. que se começa a conhecer.
E que se eu tivesse disposto ele marcaria uma data. Disse que sim na hora e marcamos a
data. Isso foi em maio de 94. Acho que foi dia 17, 18 de maio de 94. Ele ia fazer um
180
trabalho de concentração no dia 28 de maio de 94. fomos convidados para irmos, eu e
minha esposa. Fizemos uma ficha de anamnésia, toda uma entrevista. Então fomos
apresentados a igrejinha, naquela época era bem simplezinha, era chão batido, uma lona
plástica ao redor, umas telhas que nem eram Brasilit, eram tipo um papelão, um tecido, um
betume, para não entrar água. Muito simples, bem no meio da floresta. Uma coisa bem
simples mesmo, mas muito bonita. Muito forte o trabalho. E nesse dia tomei o Santo Daime
pela primeira vez e tudo o que tinha lido nesses 20, 30 anos anteriores, AMORC Rosacruz,
Fraternidade Rosacruz, na Maçonaria, no Martinês que também cursionei pelo Martinês.
Conheci alguma coisa pela Linha de Nação pela minha esposa que era Ialorixá.
Acompanhava ela em alguns trabalhos. Conheci um pouco de espiritismo pela minha sogra,
que era médium espírita de 30 anos. Naquela sessão única, tudo isso eu vi! vi que o
Daime tinha um poder. Porque tudo aquilo que li em 25, 30 anos, e que na verdade só tinha
lido não tinha uma experiência. Naquele dia, naquele trabalho que demorou umas 5 horas, vi
tudo. Vi de olhos abertos, vi as entidades de olhos abertos, coisa que nunca tinha visto, pois
não tenho nenhuma mediunidade aberta de clarividência. Sou intuitivo, recebo por intuição
as coisas. Sigo a intuição e certo. Então, vi que estava diante de uma verdade, diante de
um poder. E que era um poder divino, porque só um poder divino pode abrir essas egrégoras
para a gente. Não saberia nem contar tudo o que vi! Mas uma das coisas que posso te dizer é
que teve um momento do trabalho em que senti a presença De Deus; e Ele Me Dizendo
assim: Eu Posso Curar tudo!. Quando estava ouvindo isso, não ele falando, era intuição,
no meu coração Ele Estava Me Dizendo isso, sabia que estava dentro das minhas moléculas.
Estava dentro das minhas moléculas. Aí, vi que Deus É o infinito pequeno e o infinito
grande. Então, Ele tanto Pode Curar numa galáxia inteira como num átomo, numa partícula,
porque Ele Está em tudo. Ali tive certeza... sempre acreditei em Deus. Mas aquela fé que
dizes assim: uma cega, vamos dizer acredito Em Deus, todo mundo acredita Em Deus.
Tinha aquela intuição de que Deus Existia, mas ali tive a certeza de que Deus Existia! A
partir dali tive a certeza: Sei que Deus Existe! Não tenho dúvida sobre isso. Não sei se
tenho toda uma fé Em Deus. É diferente! Por q a fé que Jesus Cristo Revelou, por
exemplo, que os grandes profetas revelaram, Rei Davi que nem era um profeta mas era um
homem de fé. Não sei se tenho toda essa porque somos muito fracos. Mas sei que Deus
Existe!Vi Os Pensamentos Forma, que havia ouvido falar, que havia lido em livros da
Teosofia sobre isso. Mas, nunca havia visto! Para mim era tudo o quê os outros estavam me
dizendo! Ali não, ali vi! Minha experiência foi transcendental! Então, como diz o hino: Foi
onde fiquei quando encontrei esse poder. Disse: Bom, é aqui que tenho a caminhada
porque aqui está me mostrando que essas coisas existem e quero conhecer essas coisas [...]
E quando comecei a cantar o cruzeirinho que nunca ouvindo falar, porque era a primeira vez
em que estava tocando o Daime, me deu uma alegria muito grande, como se conhecesse
aquilo muito tempo! Cheguei a cantar alguns hinos, praticamente, sem olhar para o
hinário! Então não sei se numa vida anterior já não tive uma passagem com o Mestre, com a
linha do mestre, em suma né. Quando comecei a dirigir, quando houve uma votação,
comecei a dirigir trabalhos de daime, eu e minha esposa, aquilo se encaixou tão natural para
mim...entendeu. e foi tão interessante que começamos afazer os trabalhos [...] por isso que
digo que, tenho confiança, foi o poder que indicou eu e a minha esposa para um dia dirigir
um trabalho de Daime. Não sei por quanto tempo, mas, por enquanto, estamos nessa aí.
A aceitação dessa autoridade do padrinho Alancardino sob o caráter
exemplar de sua trajetória pessoal é diferente da UDV na qual os mestres eram pessoas
comuns que se transformaram e evoluíram dentro da UDV, no Daime o padrinho tem
uma conotação de uma pessoa mais esclarecida, iluminada dentre o grupo.
Compare com a trajetória de um dos mestres da UDV, o Mestre Alberto, que possui 50
anos e 20 anos dentro da União do Vegetal:
Eu tenho de berço a religião católica. Agora, desde criança eu sinto uma, digamos, uma
certa espiritualidade. Quando criança, tinha uma ligação, que era muito forte, dentro do
181
ambiente doméstico, do ambiente religioso, a ligação com Jesus. Quando chegou os 15
anos, uma fase de rebeldia, de uma série de coisas ligadas a adolescência, eu passei a ser um
pouco mais cético em relação a isso, mas, mesmo nesse ceticismo, com uns 15, 16 anos,
eu conheci a obra do Castañeda e comecei a ler. Li vários livros dele: Uma estranha
realidade, Viagem a Ixtlan, Erva do Diabo, e o que era um pouco a história da
transcendência dos estados alterados de consciência. E isso, de certa forma, foi um momento
que também, dentro do ambiente que eu cresci, que eu me desenvolvi, do meu momento.
Eu, durante alguns anos, comecei a fazer o uso de drogas, de alteração de consciência,
buscando... Mas eu tinha, eu sempre dizia entre os amigos que eu tinha na época, que alguns
haviam usado drogas por uma fuga, uma fuga dos seus problemas, uma fuga das suas
limitações, até poderia dizer assim. E outros, que eu me identifico com umas pessoas na
época, estavam numa busca de ver um mundo transcendente. Na verdade eu com 50 anos,
eu nasci dentro de um regime autoritário militar. Lembro em 1964 era toda uma situação de
medo. Logo depois teve a guerra do Vietnã e todas aquelas coisas de violência que se via. E
parecia que esse mundo, que quem tem uma ligação espiritual, num mundo de paz estava
cada vez mais distante. Então foi uma época de muita busca. A busca da libertação. E muito
dessa busca da libertação passou pelo uso de drogas. De 18 com 19 anos resolvi fazer uma
viagem, fiquei seis meses viajando pela Bolívia, Peru, depois voltei pela Amazônia. Fiquei
seis meses viajando. E em Cusco, eu conheci uma pessoa que era um líder espiritual. Na
época, também eu era vegetariano e ele tinha um restaurante em Cusco, e lá naquele
momento ele falou que existia na Terra, um pólo material, que era pólo norte e o pólo sul,
mas existia um pólo espiritual. O pólo espiritual ligava o Himalaia e o Chuchucaca. Eram os
pólos espirituais onde havia a emergência da espiritualidade na humanidade e que o pólo
espiritual masculino, ligado a Era de Peixes, que era do Himalaia, havia, ou estava mudando
a sua polaridade para um pólo predominantemente feminino, e que provinha dos Andes, da
região do Chuchucaca. E aquilo ficou gravado para mim naquele momento. E até aquela
vivência que eu tive naquele momento, até me fez eu me afastar das drogas. Acabei ainda
até usando algumas outras vezes, mas com pouca freqüência. O que a gente mais usava na
época era maconha. Mas, no Peru eu tive a oportunidade de conhecer cocaína, essas
outras coisas que haviam naquela época. E eram vendido livremente na rua. Daí, eu comecei
a para de usar, já não achei mais tão interessante, eu já era uma pessoa que tinha uma busca,
uma procura de vida mais saudável, era vegetariano e tudo. Então eu comecei a me afastar
disso. E aí, quando eu voltei, eu comecei a entrar em grupos mais ligados a meditação. Em
79 eu fiz a formação na meditação transcendental. Depois, na década de 80 me liguei mais
com o movimento, que eu nunca fui parte do movimento, mas tinha uma ligação com o
movimento, com o pessoal que era ligado ao movimento hoje chamado Osho, na época o
Rajnish, nós fazíamos meditação, dinâmica, estudei um pouco de bioenergética, li a obra de
Willian Raich e outras coisas do gênero. Então em 1989 para 90 eu tinha terminado a
faculdade, tinha feito faculdade de agronomia, eu vim para Porto Alegre para fazer o
mestrado em Ciências Sociais. Uma vez eu vivia com a minha ex-mulher e eu encontrei um
amigo que vinha na União do Vegetal e ele era uma pessoa que era assim muito amiga, até
era amigo do meu irmão, mas a gente já se conhecia há muitos anos lá de Caxias e ele disse:
Estou freqüentando uma religião, um lugar muito legal, as pessoas vão e bebem um chá
e tem um mestre que conduz o trabalho. Até então eu não sabia o que era o chá e
aquele ambiente, não sabia que o chá era um alterador de consciência ou coisas do gênero.
Eu estava fazendo mestrado e durante o mestrado, dizem que o mestrado é uma viagem
interior também. A gente viaja exteriormente, mas acaba viajando interiormente. Estás
vivendo isso, tu deve saber um pouco disso né. E eu comecei a entrar dentro de uma viagem.
Porque essa pessoa que pelos 18 anos eu fui viajar, fomos viajar juntos. Acabou se
transformando em minha companheira na época. Na época em que nós não queríamos casar,
vivê juntos era o suficiente. Aí quando comecei a beber o vegetal eu comecei a entrar em
contato com muita coisa, muita coisa minha, em valores que eu estava querendo preservar.
E aí foi uma crise, digamos assim, existencial que envolveu minha separação conjugal
naquele momento. Mas, assim, um processo de introspecção, de reflexão pessoal muito
profundo. E eu comecei a ver muitas coisas, que eu percebi dentro da sessão, dentro da
burracheira. Então era um momento muito rico, muito profundo. Eu passava, mesmo tendo
assim os efeitos dentro da burracheira. Como era uma pessoa que sempre fui ligado, desde a
época da faculdade, do momento estudantil, aos movimentos sociais. Eu quando cheguei
nós não tínhamos a estrutura que temos hoje. Nós éramos em 20 pessoas na cozinha de um
sitio de uma irmã. Aí eu era um cético, achava as pessoas, era uma pessoa que já tinha feito
182
faculdade, estava fazendo mestrado. Muitas pessoas desestruturadas, sem emprego, sem
isso, sem aquilo. E eu tive uma certa resistência a achar que aquilo ali pudesse gerar alguma
coisa positiva. Fui muito crítico. E uma coisa que a gente escuta dentro da União é a
obediência, obediência, obediência, obediência ao Mestre. E eu era muito ligado,
ideologicamente ao movimento de desobediência civil, eu fui um dos organizadores de uma
greve de fome na faculdade inspirado pela obra do Gandhi. Então é aquela coisa:
desobediência civil pensando na obediência. Para mim foi um contrastante com coisas que
eu pensava naquele momento. Achava, um pouco, a parte ritual, assim, e tudo, muito pré-
determinado e me parecia uma coisa um pouco autoritário. Mas as burracheiras eram muitas
reveladoras e eu fui continuando. Até que chegou um momento que essas coisas parece que
dentro de mim começaram a se integrar e comecei a ter uma percepção um pouco mais
transcendente disso tudo. Até descobrir, um dia tive alguns insights. Um, por exemplo, de
eu ter percebido que a obediência. Eu vi uma luz dentro da burracheira quando estava dentro
da sessão e para mim se revelaram coisas, como assim: obedecer era o-bem-de-ser. Me
veio assim, numa percepção disso. Depois percebi que as coisas daquele ritual, aquele
regramento no funcionamento, tinham um pouco de uma integração entre hemisférios
cerebrais, do direito e do esquerdo se integrando numa visão de percepção, uma certa
sinergia daquele processo e aí quando eu cheguei, como se diz, o pessoal usa, eu não estava
limpo, ainda fazia o uso de, fumava maconha às vezes, quando eu encontrava os amigos,
mas eu já não era um adepto convicto. Ainda mais que eu estava muito centrado em fazer
um mestrado, então não estava muito pensando nessas coisas. Às vezes, ia às festas, final de
semana, o pessoal acendia um e eu fumava. Foi quando eu comecei a ir largando essas
coisas todas. Também culminou com a minha separação conjugal e chegou um
determinado momento eu tinha digamos assim um sentimento de culpa, que depois num
processo terapêutico percebi que era muito relacionado, que o meu filho foi morar com
minha ex-mulher e eu me sentia culpado daquilo tudo. E um dia estava pensando naquilo ali
e eu tive uma visão dentro da burracheira. Eu olhava para tras, assim, e via um caminho
meio torto, uma estrada meio, parece que tinham queimado, muito das coisas que percebi,
percebi na burracheira, foram visões. Mas visões com uma riqueza simbólica muito grande.
Aí olhei para tras e vi aquilo ali e quando olhei para frente tinha uma estrada aberta,
iluminada. Aquilo ali me deu uma dose de esperança, de que tudo poderia começar
novamente, que eu poderia começar a minha vida diferente, que eu podia começar um
relacionamento diferente, que eu podia ter um caminho de flores! As coisas estavam para
tras né! E foi com isso que fui caminhando e as transformações, elas foram ocorrendo
gradativamente. encontrei a minha companheira aqui (na UDV). faz 17 anos que
estamos juntos, começamos um novo relacionamento. Eu achava que um relacionamento
conjugal era uma coisa, era sofrimento, que era ciumeira, que era uma espécie de apenação e
hoje descobri que um relacionamento pode ser muito positivo, engrandecedor, de ser
companheiro, de um auxiliar o outro, de auxiliar nossa evolução espiritual e chegou um
momento que eu senti, percebi dentro da burracheira e nessa reconstrução chegou um
determinado momento que eu disse e percebi que eu tenho um sentimento de gratidão pelas
coisas que eu já vinha recebendo. E me veio dentro desse sentimento de gratidão um
sentimento de responsabilidade, de fazer com que o beneficio com que eu tinha recebido
pudesse chegar até outras pessoas.
A aceitação da autoridade do padrinho Alancardino sob o caráter exemplar
de sua trajetória pessoal, de clareza, iluminação é inseparável da afirmação,
explicita, ou implícita da exemplaridade do grupo ele mesmo com relação ao exterior.
Fora o Céu do Mapà altura do padrinho Alan somente o padrinho do Céu do Mar
no RJ e o Enio Staub em SC. O padrinho Alan é maravilhoso, ele tem muita sabedoria,
por isso estou aqui, diz um daimista. Já o mestre da UDV galgou este lugar que
servirá de espelho para os outros discípulos chegarem. Observe o depoimento do
mesmo mestre em questão da UDV:
183
E uma coisa eu tenho assim, servido para mim como guia, me guiado, é de que a gente
chegar no lugar no Corpo Instrutivo, no Corpo do Conselho, no Quadro de Mestres deve ser
um efeito, uma conseqüência dos nossos atos porque o objetivo não deve ser a pessoa
chegar no lugar porque o Mestre Gabriel mesmo falou que trabalhe pelo vegetal, que não é
por orgulho, vaidade nem boniteza. Então eu vejo que pra chegar num lugar tem que ser
uma consciência que representa aquele lugar. De uma busca que a pessoa tenha, de uma
evolução espiritual, intelectual, moral. Então eu sinto isto e as coisas vieram nesse sentido.
Então quando eu fui convocado para o Corpo Instrutivo. Um momento que eu já estava mais
equilibrado, eu estava sentido que a minha ligação com o Mestre Gabriel, minha ligação
com a União estava se firmando, sendo uma coisa mais legitima, mais forte dentro do meu
coração. E no dia que eu fui convocado para o corpo do conselho eu estava pensando assim:
Poxa, eu recebi um tanto de coisas na UDV e um tanto de coisas boas para minha vida,
na minha caminhada. Eu estava pensando assim: O que é que eu posso fazer para servir
mais, retribuir essa obra e nesse dia então que eu fui convocado para o corpo do conselho.
Aí pra chegar no Quadro de Mestres teve um momento que eu estava pensando assim... mais
introvertido em termos de personalidade. Que eu ficava pensando: ficar na vitrine, ser
espelho dos discípulos, e aí... ficava pensando que eu mesmo assim tinha receio. o que
aconteceu é que eu estava examinando e os mestres na época de certa forma me
estimulando, pra eu chegar, pra eu ocupar esse lugar e eu tinha até um certo receio. E um dia
na burracheira eu vi, me vi no Quadro de Mestres, dentro do Quadro de Mestres e a partir
daquele dia pensei assim: Bom, se não tem como eu fugir desse lugar, deste destino, se eu
tenho que ocupar este lugar mesmo aqui na UDV, eu vou trabalhar pra isso. Para procurar
me firmar no lugar.
A UDV é condicionada a sua ordem hierárquica. No Santo Daime produz-se
um ordenamento hierárquico caractestico o Império Juramidam. Naturalmente,
ele também é condicionado, em maior ou menor grau, pelo ordenamento social e pelas
camadas da esfera de poder mais ampla a ser conquistada ou invadida. Contudo a
seleção interna se realiza segundo outra norma e outros critérios, diferentes daqueles da
esfera conquistada. O padrinho maior tem cargo vitalício e designa seu sucessor como
a autoridade de um rei e o padrinho menor está sujeito à eleão de seu pequeno grupo
e posteriormente pela consagração do padrinho maior. O grupo central carismático
oferece, em outras palavras, chances de ascensão muito específicas.
A cadeira é símbolo de poder do dirigente. Expressões como tomar a
cadeira do Mestre são designativas de conflitos da irmandade com o dirigente (Cemin,
2002). A cadeira que simboliza o poder do comandante é fisicamente distinta das
cadeiras do restante dos membros, que são cadeiras comuns de plástico branca sendo a
do padrinho uma cadeira de madeira estofada. A cadeira fica em torno da mesa central
numa perspectiva em que pode observar todo restante do grupo que está em circulo. Ao
lado de sua cadeira está a cadeira de sua esposa e de outras pessoas capacitadas para
compor a mesa que são indicadas no momento do ritual de acordo com suas presenças.
A partir dessa cadeira, espera-se que o dirigente direcionamento ao trabalho,
184
permitindo plena manifestação de Luz e de Força. Da mesma maneira, Goulart
(1996), coloca que os hinos, no culto do Santo Daime, são peças fundamentais nas
disputas pela liderança. Assim, novos padrinhos legitimam a criação e direção de
novos centros, justificando a sua condição de escolhido através da prova maior da
manifestação do sagrado: os hinos.
Ao ser promovido um guerreiro de Juramidam na luta pela doutrinação e
salvação, procurando transformar, integrar, e dar sentido à sua luta diária pela limpeza
de karmas, atos e pensamentos que contradizem com os procedimentos recomendados;
entrar na batalha, alistar-se no exército da Rainha é reconhecer esta identidade
espiritual, é praticar este engajamento, é acreditar, ter fé, ter confiança, é moldar seus
comportamentos para se adaptar aos princípios doutrinários, suporte da transformação
pessoal (Groisman, 1999, p.77). O sentido da espiritualidade solidifica-se como uma
confirmação de que a luta é coletiva, e cada um deve fazer o seu papel, cumprir sua
missão, estando sempre firmado na verdade, Assim sendo o grupo está salvaguardado
dentro da força, dentro do poder.
Sendo o grupo central carismático também um mecanismo de promoção
ao qual se opõe ao menos numa certa medida o grupo central dos udevistas
enquanto mecanismo de defesa e salvaguarda assiste-se a uma modificação importante
no comportamento e nas características dos indivíduos levados por essa corrente
promocional de compor o exército, de estar dentro do poder: a sua identificação
com a camada social ou grupo do qual é oriundo, seja a cidade ou a família, seja esse ou
aquele grupo profissional, ou qualquer outra formação social da esfera dominada
tomada aqui num sentido bastante amplo se enfraquece progressivamente, chegando
mesmo por vezes a desaparecer. Ela é substituída pouco a pouco por uma nova
identificação com o grupo central carismático. Para a sensibilidade de seus membros,
este desempenha a função de pátria social (Elias, 2001). Os de dentro versus os
de fora como explicitado no capítulo anterior.
Paralela à estrutura hierárquica do padrinho maior e do padrinho menor
algumas famílias ocupam lugar de destaque tanto nas hierarquias sociais quanto nas
hierarquias espirituais. De acordo com Groisman (1999) a comunidade está organizada
basicamente a partir de cleos familiares, extensos ou não. Nas famílias está, de forma
geral, alicerçada a estrutura social. Esta característica pode representar um dos
elementos principais da continuidade do grupo a partir do núcleo inicial, constituído
pela família Mota de Melo. Após o falecimento de Sebastião Mota de Melo, ocorrido
185
em 20 de janeiro de 1990, Alfredo Mota de Melo, seu filho, torna-se a principal
liderança do grupo.
A alienação mais ou menos marcada em relação ao grupo de origem os de
dentro versus os de fora, a identificação com uma formação social como um
instrumento de promoção em vários níveis estar dentro do poder, o interesse
comum em realizar a missão do grupo servir ao batalhão, a necessidade de
assegurar o seu caráter de salvação os remanescentes, isto é, de garantir a promoção
consumada ou em vias de consumar tudo isso são condições da característica pela qual
o grupo central carismático daimista se distingue tão nitidamente do grupo central da
corte udevista: o grupo carismático impõe um freio às tensões e dissensões internas
que, entretanto não são abolidas (as fofocas), -, canalizando os esforços de todos os
seus membros para o espaço exterior enquanto o acesso ao poder ainda não estiver
plenamente assegurado. Uma vez que o objetivo tenha sido alcançado e o poder
conquistado, as tensões costumam manifestar-se com alguma rapidez, como as
freqüentes disputas pela liderança, as dissidências e as formações de novos grupos.
Além disso, não se encontra à disposição do líder carismático, como no
caso do mestre, nenhum mecanismo firme de poder e administração fora de seu grupo
central. Assim, seu poder pessoal, sua superioridade individual e sua intervenção dentro
do grupo central permanecem sempre como uma condição imprescindível para o
funcionamento do mecanismo. Mas com isso fica delimitado o âmbito dentro do qual o
líder carismático pode ou deve exercer seu poder. Como sempre, aqui também a
estrutura do grupo central, no plano funcional, depende da estrutura e da situação do
campo social como um todo, tendo um efeito retroativo sobre o padrinho maior. A
maior parte das pessoas envolvidas identifica-se com esse detentor de poder, ou líder,
como sendo a encarnação viva do grupo, enquanto permanecem vivas a confiança, a
esperança e a crença em sua capacidade de levá-los ao objetivo comum, ou de confirmar
e assegurar a posição alcançada no caminho para tal objetivo. Diz um daimista:
O Alan e a Rosinha são pessoas clareadas, escolhidas por Deus, assim como depois pessoas
vão sucedê-los dentro da mesma história. Pra esse momento eles foram escolhidos para
estarem e pra dar esse suporte para a comunidade. Vai ter um momento que a história vai
andar sozinha, mas agora precisa alguém de pulso, de mão. E o Alan tem todo esse
conhecimento jurídico também, a gama de conhecimento dele é muito extensa. Ele é muito
estudioso, ta sempre estudando sobre alguma coisa, lendo, isso vai dando um suporte maior
para a pessoa num crescente. A gente pode aver na fisionomia deles. São pessoas rosadas,
com cara de pessoas felizes né.
186
Assim como o mestre na UDV (cercado por sua corte) guia os homens de
seu grupo central apoiando-se em sua necessidade de formar uma elite de ascender
na escala hierárquica e na disputa interna, o líder carismático guia seu grupo central
durante sua ascensão com base na sua necessidade de ascensão, simultaneamente
ocultando o risco e a vertigem do medo que ela acarreta. De acordo com Elias (2001) os
dois tipos de soberanos precisam de qualidades muito distintas para cumprir sua tarefa
de guiar os homens. O mestre pode criar para si um mecanismo que minimize o risco e
a coerção de intervenções pessoais extraordinárias. Em contrapartida, no caso do líder
carismático, exige-se constantemente que ele prove sua capacidade na ação, assumindo
o risco de intervir sempre de uma maneira inédita e imprevisível. Não há nenhuma
posição dentro do grupo central carismático, nem mesmo a do líder, nenhum
ordenamento hierárquico, nenhum cerimonial, nenhum ritual que não seja determinado
pelo objetivo comum do grupo que não seja ameaçado nem possa ser alterado pelas
diversas ações voltadas para esse objetivo. Todo mecanismo auxiliar do líder
carismático para guiar seu grupo recebe daí seu sentido primordial. Mesmo que não
deixe de existir por completo, na dominação carismática não consolidada, a necessidade
de guiar de maneira equilibrada as tensões entre diferentes indivíduos e facções do
grupo central necessidade que ocupa o primeiro plano na dominação consolidada de
um rei autocrata -, tem apenas papel secundário. Nesse caso, a configuração geral, não
favorece a formação de grupos estáveis que, mal ou bem, acabem por equilibrar-se
mutuamente. A capacidade de articular uma estratégia bem calculada, duradoura, no
modo de lidar com os homens (como na UDV), têm aqui um papel restrito,
comparando-se à capacidade de uma ousadia imprescindível, de saltar no escuro, aliada
à certeza absoluta e intuitiva de que no fim haverá um salto para a luz e o sucesso. De
fato, é possível dizer que faz parte da atitude fundamental dos líderes carismáticos
essa convicção absoluta no próprio dom de, em meio às relações sociais convulsionadas
e à incerteza geral, sempre tomar aquela decisão que no fim se mostrará como a correta
e bem sucedida.
Em certo sentido, todo líder carismático é o cavaleiro que atravessa o Lago de Constanz na
lenda
59
. Caso consiga alcançar a outra margem passando sobre o gelo quebradiço, muitos
59
Alusão a uma lenda alemã (Der Reiter übern Bodensee): numa escura noite de inverno, em plena
tempestade de neve, um cavaleiro busca chegar a uma aldeia nas margens do lago Constantz, onde é
esperado. Depois de ter errado durante longas horas pela planície inóspita, chega a uma choupana e pede
187
historiadores, de acordo com a tendência muito difundida de confundir êxito com grandeza
pessoal, irão atribuir-lhe uma aptidão extraordinária para fazer sempre a coisa certa em
situações difíceis. Caso quebre o gelo e se afogue com seus seguidores, talvez entre para
história como um aventureiro mal-sucedido (Elias, 2001 p.140).
O que pode ser comparado ao caso do CEFLURIS e do Alto Santo após a
cisão, Padrinho Sebastião foi o bem sucedido na saga que enfrentou para consolidar
sua comunidade e posteriormente ter sua doutrina expandida para todo o Brasil e
exterior ao contrário de Leôncio Rodrigues e a restrição e não-expansão do Alto Santo,
confirmando assim o recebimento do hino Sou eu e o conteúdo de sua visão na qual
Mestre Irineu estaria lhe entregando a continuidade de sua missão. A capacidade de tais
indivíduos de transmitir a outros sua convicção inabalável quanto ao dom de chegar
sempre à decisão correta e que promete êxito faz parte dos elos que proporcionam ao
seu grupo central unidade e coesão, acima de todas as rivalidades e conflitos de
interesses. Essa capacidade e convicção constituem a substancia autentica da crença em
seu carisma. Êxito no controle de situações de crise imprevisíveis legitimam o detentor
do poder como carismático aos olhos do grupo central e dos homens submetidos a seu
domínio numa esfera mais ampla. E o caráter carismático do líder e de seus seguidores
só se mantém enquanto tais situações de crise continuam a ocorrer. (Elias, 2001).
É em grande medida a partir de seus próprios recursos que o líder
carismático tem de cumprir as tarefas sempre novas que a sua situação impõe. O
encontro com o homem mais insignificante de seu grupo central pode converter-se em
uma provação. Nenhuma etiqueta, nenhuma aura social, nenhum mecanismo pode
protegê-lo ou ajudá-lo. Sua força individual e seu espírito inventivo precisam confirmá-
lo sempre, em cada um desses encontros, como o indivíduo superior, o soberano,
diferentemente da sociedade religiosa UDV, na qual a superioridade é confirmada pelo
praticado, a etiqueta e conseqüentemente em sua ascensão legitimada pelo grupo.
a um morador que lhe indique a direção do lago. Fica sabendo então que acabou de atravessar, sem o
saber, a imensa superfície gelada. Dando-se conta do perigo do qual escapara, cai, morto de espanto, de
sua montaria. Nota Elias (2001, p.301).
188
CAPÍTULO 6
TIRANDO OS ESPINHOS E COLHENDO O NÉCTAR
É preciso saber que o espinho nos fere para nos despertar para a vida. O espinho fere
para que saibamos o valor da flor. (Mestre José Roberto Souto Maior)
A doutrina da UDV é oral e secreta transmitida aos discípulos pelo grau
hierárquico. A doutrina do Santo Daime é musical, transmitida a todos através dos
hinos. A doutrina sempre é transmitida durante a força ou a burracheira, que é o
termo êmico para designar o efeito do chá sob o indivíduo no Daime e na UDV
respectivamente, essa experiência está associada em ambas a uma cura ou
transformação pessoal a partir de um aprendizado. Os hinos são flores que compõe o
belo jardim do beija-flor e na UDV a hoasca é a rosa, assim há que se colher o néctar
para atingir a cura ou transformação, tendo que tirar os espinhos a partir de um
processo doloroso a peia, que nos faz despertar para vida.
Os pesquisadores que analisaram esta temática tanto no Santo Daime
(MacRae, 1992; Peláez, 1996, 2002; Groisman, 1999, 2000; Couto, 2002; Goulart,
2002; Mabit, 2002; Okamoto da Silva, 2002; Rose, 2005) quanto na União do Vegetal
(Ricciardi, 2008; Lira, 2009), verificaram que a cura costuma ir além de algo
meramente físico, levando as pessoas a reorientarem sua vida e mudarem seus hábitos,
enfatizando assim um caráter transformador.
Pretendo analisar o processo de cura/transformação nessas religiões
ayahuasqueiras com base no paradigma da corporeidade, que traz consigo a aposta de
que a experiência religiosa é um observatório privilegiado das relações entre
corporeidade e significação, proposto por Thomas Csordas (2008), que está situado no
âmbito da antropologia psicológica, onde se destaca por sua abordagem fenomenológica
pela proposta de uma antropologia da corporeidade (embodiment). Contêm dois
objetivos em relação à cura e/ou transformação pessoal nas religiões ayahuasqueiras:
um etnográfico e outro teórico. O objetivo etnográfico é apresentar a relação existente
entre a cura/transformação pessoal e a reencarnação como fundamento principal destas
189
religiões, delineando as diferenças básicas entre as doutrinas e as similaridades no
sistema de cura. O objetivo teórico é compreender melhor o processo terapêutico em
termos do modelo apresentado por Csordas (2008), no qual os elementos-chave são à
disposição do participante (o fiel), a experiência do sagrado, a elaboração de alternativas
e a realização da mudança, sem a pretensão de fazer uma comparação linear
reducionista e sim como ferramenta de análise da experiência religiosa, visto que, esta é
comumente pautada em teorias psicológicas (notadamente Jung), mesmo por
pesquisadores da área de antropologia e sociologia, como por exemplo, Okamoto da
Silva (2002).
Ilustrarei com cinco casos referentes às categorias de participantes
encontradas em campo. Um caso de um sócio da UDV, um de uma fardada do Daime,
um de uma ex-sócia da UDV, um de um ex-fardado do Daime e atualmente sócio da
UDV e um caso free do Daime termo êmico referente aos membros que não assumem
compromisso, sendo livres para freqüentarem quando e onde quiserem.
6.1 Cura e Reencarnação no Santo Daime e na União do Vegetal
O Santo Daime foi uma religião criada com uma doutrina voltada à cura. O
Mestre Irineu adquiriu popularidade e reconhecimento em virtude das curas que o daime
proporcionava. Atualmente muitos fiéis relatam terem obtido curas freqüentando os
rituais religiosos. De acordo com o Padrinho Alan 99% das pessoas que chegam no
Daime vem com problemas espirituais. Complementa ele: Para mim sempre foi
reencarnacionista, sempre foi uma linha de cura, sempre foi uma linha mediúnica e
sempre foi uma linha sintética, ou seja, ela junta todas as crenças. O daime ta ali no
hino né: a tudo se soma. O daime a tudo se soma! Neste sentido, atualmente, todos
os trabalhos realizados são também voltados para cura (Groisman, 1991; Peláez, 1996;
Labate, 2000, 2002; Rose, 2005), apesar do Santo Daime possuir trabalhos direcionados
especificamente para cura, como o trabalho de estrela, que são seses realizadas para
atendimentos aos doentes onde são cantados hinos específicos de cura.
A União do Vegetal também foi uma religião criada voltada para cura.
Mestre Gabriel adquiriu notoriedade primeiramente pela sua atuação como Sultão
das Matas e depois com a criação da UDV utilizando a ayahuasca com os nove
190
vegetais. O primeiro era um ritual direcionado somente para cura e o segundo um ritual
direcionado a cura e a um desenvolvimento espiritual. Para se adequar à legislação
brasileira, a UDV aboliu o uso dos nove vegetais e redirecionou seus rituais somente
para a evolução espiritual se afastando da práxis curandeirista. Diz o Mestre Alberto:
O curandeirismo tá enquadrado hoje na legislação brasileira. Por isso se parou de ter
sessões voltadas para cura como o Mestre Gabriel fazia. Dizem os informantes que o
Mestre Gabriel utilizava os nove vegetais quando havia necessidade, quando a
doença se manifestava na matéria se devia usar os nove vegetais. O Mestre Gabriel
dizia que a origem da doença e do sofrimento é a própria ignorância do espírito
porque o espírito não adoece, a matéria que adoece. O Mestre Jeziel Representante do
núcleo aqui estudado relata como as pessoas chegam à UDV:
As pessoas chegam aqui das mais diversas formas. Hoje existe uma moda: os depressivos.
As pessoas antes de chegarem aqui passaram no dico, ele disse que está deprimido e elas
vêm com medicações antidepressivas. Nada contra médico e antidepressivo. Quando essas
coisas forem bem administradas e bem controladas para atender a necessidade da pessoa. As
pessoas chegam aqui mal atendidas pelos profissionais de saúde, que receitam um
antidepressivo e dizem que ela tem que tomar para a vida toda sem acompanhar a pessoa,
sem saber se ela vai ter depressão à vida toda. Tem um grupo que não é pouco que chega
usando essas medicações. Outros estão desanimados com a vida, com o trabalho, geralmente
tem alguma coisa que está atrapalhando a caminhada da pessoa, porque infelizmente a
humanidade ainda se volta para Deus na hora do aperto porque quando as coisas estão
andando bem parece que as coisas não existem né. Falam de Deus, mas parece uma coisa
distante, mas na hora da dor, na hora do sofrimento as pessoas se lembram de buscar uma
religiosidade. Então normalmente as pessoas chegam assim aqui na União do Vegetal.
Embora possuam diferenças significativas em suas organizações, estruturas,
rituais, na teodicéia dos mestres, como já foi apresentado, a União do Vegetal e o Santo
Daime têm a reencarnação na base de toda sua fundamentação doutrinária e possuem
pressupostos muito similares. A reencarnação está presente no mito de origem de
ambas. Mestre Irineu e Mestre Gabriel são espíritos reencarnados. Os discípulos da
UDV dizem que Mestre Gabriel é um recordado, um recordado de seus
destacamentos, ou seja, ele ao ingerir a ayahuasca recordou de mais de cem
encarnações e de sua missão com a hoasca. Alverga (1984) fala do resgate da
memória divina em relação a recordação de vidas passadas no Santo Daime. O resgate
da memória é a tarefa essencial do conhecimento, pois a partir dela cada homem pode
refazer a viagem de toda sua espécie, compreender o sentido do seu surgimento, aqui,
por essas esquinas do universo e, o que é mais importante ainda, qual a missão que foi
191
atribuída a eles pelas forças que o plasmaram e o assistiram no seu aperfeiçoamento
(p.12).
A reencarnação está diretamente ligada ao sistema de cura que é similar nas
duas doutrinas.
A reencarnação está na base de toda a fundamentação doutrinária cultuada pela União do
Vegetal. Daí sua denominação de Centro Espírita. Segundo sua doutrina é pela sucessão de
encarnações que o espírito evolui até atingir o grau máximo de Purificação ou Cura (que
equivale a Santidade ou Sanidade). [...] As reencarnações são regidas pela Lei do
Merecimento, que se assemelha à Lei do Karma, de que falam os orientais, cuja lógica é a
clássica teoria da causa e efeito. (Centro Espírita Beneficente União do Vegetal: Hoasca;
fundamentos e objetivos. 1989, p. 26).
Como na UDV, no Santo Daime um espírito sadio, curado, depende de que
suas condutas terrenas, durante suas encarnações, sigam os ensinamentos de Cristo
atingindo, assim, a evolução espiritual ou grau de evolução espiritual e
conseqüentemente a purificação ou a cientificação para os udevistas, podendo
assim, chegar a morada do pai puros e livres de pecados. A doença e a cura estão
relacionadas à Lei do Merecimento. A doença é vista como um merecimento, algo que o
indivíduo tem que vivenciar, tem que passar nessa vida, tem que sofrer para através
do aprendizado evoluir espiritualmente. Portanto a cura também é um merecimento. A
doença está ligada a sentimentos e práticas negativos desta ou de outras vidas. Não
existe uma separação entre o indivíduo e a doença. A doença não é externa. Ela foi
criada pelo indivíduo (nesta ou em outra vida), a partir da lógica de causa e efeito. Toda
doença é de fundo espiritual e toda cura é cura espiritual. A doença sendo espiritual,
ela pode atingir tanto o físico, quanto o mental quanto o emocional. De acordo com
Peláez (1996) a noção de cura é equacionada com a noção de equilíbrio (entre as
dimenes material e espiritual). Todas as doenças teriam origem num desequilíbrio
espiritual anterior. Assim, as doenças espirituais, mentais ou físicas não seriam
entidades nosológicas diferentes de uma mesma experiência de desequilíbrio (Peláez,
2002, p. 481).
Para os adeptos da União do Vegetal o inferno é aqui na terra, no mundo
em que vivemos, não acreditando assim na existência do inferno encontrado na
concepção cristã, católica e espírita. Não existe castigo eterno no pós-morte. De acordo
com Andrade (2002, p.599) os udevistas crêem que todos nós vivemos no inferno e a
salvação, até onde conseguimos interpretar, é justamente a saída do inferno para o céu,
192
junto a Deus. Podendo assim conceber que este mundo funciona como uma espécie de
buril que aperfeiçoa todos que nele vem habitar. Em cada encarnação o espírito se
aperfeiçoa um pouco, até a perfeição final, que é o estado de cientificação, no qual o
espírito conhece com clareza o que é o certo, e não erra mais.
Para os daimistas a concepção de inferno se aproxima da concepção do
espiritismo. Também chamado de umbraum ou mundo inferior é um lugar de
sofrimento, de condenação, dentro do plano espiritual onde se encontram espíritos de
baixa vibração, pouco evoluídos ou com baixo grau de evolução espiritual, visto
que afins atraem afins. Neste sentido inúmeros planos espirituais de sofrimento,
de acordo com os níveis, com os graus de degradação da consciência resultantes das
ações desses espíritos na terra. Porém o inferno não é um local de sofrimento eterno, a
permanência da alma no inferno é temporária até a próxima encarnação onde terão a
chance de aprendizado e evolução, pois Deus é exato e misericordioso. Como coloca
Allan Kardec (2009) Deus não imputa pena eterna a nenhum de seus filhos. Eles podem
sofrer enquanto não despertarem para o Bem e se propuserem a trilhar o reto caminho.
Um dia mais cedo ou mais tarde, o Criador, na sua misericórdia e amor, concederá a
criatura sofredora a carne para continuar o seu aprendizado e aperfeiçoamento.
Apesar de concepções distintas de inferno, tanto daimistas quanto udevistas
almejam alcançar a glória de chegar na Santa Casa de Deus Pai Todo Poderoso o
u onde obterão enfim a salvação. Para atingir esse objetivo ambos adeptos dos dois
grupos religiosos devem manter-se firmados com os ensinos do Mestre, se dedicando a
prática do Bem para si e ao seu próximo (sentido de caridade) e desenvolver-se
espiritualmente a partir de trabalhos com o uso da ayahuasca (daime ou vegetal), que é
o pedacinho de Deus aqui na terra dos quais obterão ensinamentos do caminho que
devem trilhar e discernimento do certo e do errado, possibilitando assim chegar a Deus,
a Santa Luz.
193
A Lei do Merecimento está ligada a Lei do karma
60
que é a ação feita por
nós nesta vida e em outras e os seus frutos e o karma-yoga
61
, que é a prática de uma
ação com atitude de aceitação de qualquer fruto que venha. Acoplada a estas leis está a
idéia da Lei Universal do Livre Arbítrio (crença de que a pessoa tem o poder de
escolher suas ações): O plantio é livre, mas a colheita é obrigatória, frase muito
recorrente entre daimistas e udevistas. Colhemos o que plantamos nessa ou em outra
vida. Se quisermos colher flores que plantá-las e o chá ayahuasca proporciona a
limpeza dos espinhos, dos karmas e te guia para uma boa colheita. Observe o poema
de um dos mestres da UDV:
Fiz de minha vida um belo Jardim.
Plantei flores belas, dentro e fora de mim.
Mas um dia tudo mudou.
Nas flores que plantei, por descuido na vida eu pisei.
Agora, vivo colhendo os espinhos que plantei, porém com lágrimas que derramei, novas
flores cultivei.
Ainda é tempo meu irmão, de fazer um novo jardim e novas flores colher.
Com a luz da rosa você será bom jardineiro.
(Jardim de Flores, de Mestre José Roberto Souto Maior)
60
Karma é um termo de uso religioso dentro das doutrinas budista, hinduísta e jainista, adotado
posteriormente também pela Teosofia, pelo espiritismo e por um subgrupo significativo do movimento
New Age, para expressar um conjunto de ações dos homens e suas conseqüências. Este termo, na física, é
equivalente a lei: Para toda ação existe uma reação de força equivalente em sentido contrário. Neste
caso, para toda ação tomada pelo homem ele pode esperar uma reação. Se praticou o mal então receberá
de volta um mal em intensidade equivalente ao mal causado. Se praticou o bem então recebede volta
um bem em intensidade equivalente ao bem causado. Na visão espírita (que é a compreensão adotada
pelas religiões ayahuasqueiras) cada ser humano é um espírito imortal encarnado que herda as
conseqüências boas ou más de suas encarnações anteriores e o karma designa o vel de evolução
espiritual de cada indivíduo, ao qual se devem as circunstâncias favoráveis ou desfavoráveis que venha a
encontrar. No entanto para explicar isto, o espiritismo apresenta um conceito mais abrangente: a lei da
causa e efeito. Enquanto que normalmente o conceito de karma sugere uma vida a ser resgatada, a lei de
causa e efeito nos apresenta a idéia de que o futuro depende das ações e decisões do presente. Uma causa
positiva gera um efeito positivo, enquanto que uma causa negativa gera um efeito igualmente negativo
(www.wikipédia.org).
61
Karma-yoga é a integração pela dedicação de todas as suas ações e seus frutos à divindade. É a
execução da ação em união com a parte divina interior, ficando distanciado dos resultados, e mantendo o
equilíbrio seja em face do sucesso ou do fracasso. Karma-yoga é o serviço desinteressado para a
humanidade. É a yoga da ação que prepara o coração e a mente para receber a luz divina ou o
conhecimento do si-mesmo. A ação prende a pessoa pelo mundo fenomênico quando é ditada pelo ego,
quando está imbuída do senso de fazer-e-receber. Então ela é karma-bindu a pessoa se liga a ação. Mas
quando a ação é desinteressada, sem se esperar frutos, ela é libertadora. Então o karma se torna karma-
yoga. A prática da ação sem esperar por seus frutos liberta do medo e do pesar. O praticante de karma-
yoga deve se libertar da ambição, do desejo, da raiva e do egoísmo. Deve ter um grande coração, amar a
sociedade com os homens de todos os tipos. Ao praticar o karma-yoga essas qualidades vão se tornando
parte da pessoa (www.wikipédia.org). A UDV não adota a terminologia karma-yoga como o Santo
Daime, mas a mesma filosofia encontra-se presente, estando intimamente ligada em ambas à noção de
caridade.
194
Segundo Groisman e Sell (1996), o paradigma terapêutico dominante na
doutrina daimista não é alopático, ou seja, o está centrado na remissão dos sintomas
das doenças. Peláez (1996) também observou que a remissão dos sintomas não constitui
necessariamente um indicador concreto da cura, assim a morte de uma pessoa não
significa que ela não tenha sido curada. Alancardino, padrinho do Céu de São Miguel,
exemplifica como é vista a cura no Santo Daime:
Veio um rapaz aqui buscando o Daime porque tinha um ncer terminal. Ele tinha um metro
e oitenta e estava pesando cinqüenta quilos. Chegou carregado e tivemos que colocar uma
cama na Igreja para que ele permanecesse deitado. Então demos daime para ele, bem
dosado, pois ele estava muito enfraquecido. Ele teve um trabalho forte. Ele morava em Imbé
e pedimos para ele voltar em três dias. Ele voltou e tomou o daime de novo no trabalho.
Terminou o trabalho ele me disse: Bah! Eu me senti bem melhor hoje! Voltou uma
semana depois para fazer o terceiro trabalho. voltou caminhando, subiu a lomba sozinho,
caminhando. nós demos mais dois trabalhos para ele e ficamos um mês sem saber dele.
Até que um dia a mãe dele ligou nos convidando para ir a Imbé porque ele queria fazer uma
janta para nós. Nós chegamos lá e ele estava com sessenta e cinco quilos. Fizemos outro
trabalho, neste trabalho ele e a mãe dele viram ao mesmo tempo que ele iria fazer a
passagem e os dois começaram a chorar. Depois do trabalho ele veio me contar o que tinha
visto dizendo que estava se sentindo tão bem que ficou surpreso com essa mensagem de que
ele iria fazer a passagem. Eu disse: Aceita os desígnios de Deus filho, pois é algo que você
tem que passar nesta vida. Então ele me disse: Eu estou tranqüilo, pois o Daime mudou a
minha cabeça, o que Deus tem para mim eu recebo. No outro sábado a família nos ligou
dizendo que ele tinha viajado (morrido). Passou um mês e a mãe dele, a esposa e a ir
vieram aqui participar de um trabalho para nos agradecer. No meio da sessão começou
aquela choradeira. Depois que terminou o trabalho eu fui conversar com elas. As três tinham
visto ao mesmo tempo ele entrando na Igreja todo fardado de branco e sentando. deu a
choradeira nelas porque se ele não tinha se curado na matéria, ele tinha ganhado uma benção
espiritual. Ele tinha que passar por isto nesta vida e ganhou a cura espiritual.
A doença também pode estar ligada a obsessões e encostos. O filho do
Mestre Gabriel, o Mestre Jair
62
relata a seguinte passagem de uma cura realizada na
UDV:
Tem a história né, de uma pessoa que tinha uma situação de encosto. Era um cara que
morava no estado do Mato Grosso. tinha ido pra alguns médicos, Chico Xavier... E foi
em Rondônia procurar alguma coisa de pajé, de pajelança, curandeiros, foi quando ele
conheceu o Mestre Gabriel deu o vegetal e ele falou que sentia as costa dele como se fosse
um fogo. Depois ele sentiu como uma pedra de gelo e ficou bom.
Tanto no Santo Daime quanto na UDV, a doença também pode estar ligada a
obsessões, encostos, a energia ruins de espíritos encarnados e desencarnados que são
62
In: RICCIARDI, Gabriela. O uso da ayahuasca e a experiência de transformação , alívio e cura, na
Uno do Vegetal (UDV). Dissertação de mestrado. Salvador, 2008.
195
entidades espirituais que controlam pecados, vícios, desvios de caráter, fraquezas
pessoais ou negatividades particulares. Daí a importância de estar sempre firmado com
o Mestre (Daime), longe dos vícios, seguindo a doutrina (UDV), orando e
vigiando (Daime) e da limpeza (Daime e UDV) feita pelo chá. A União do Vegetal
atualmente e mais enfaticamente no sul do Brasil está direcionando mais o seu discurso
para energias e se afastando da idéia de encosto e entidades (ainda forte entre os
membros udevistas no norte do país). A ênfase está na energia boa, alta contida na
doutrina diferentemente da energia baixa de vícios, perversões, por exemplo. Diz o
Mestre Jeziel:
A saúde é uma energia que existe na natureza como a doença também é uma energia que
existe na natureza. Então se a pessoa é uma pessoa saudável, é uma pessoa que tem um
pensamento positivo, é uma pessoa que tem uma dinâmica de vida que se relaciona bem
com as pessoas dificilmente ela fica doente, ou seja, ela ligada com a energia da saúde
que tem na natureza. Agora uma pessoa que é briguenta, que é birrenta que se desentende
com facilidade com as pessoas que pensa negatividades, essa pessoa é mais propensa a ser
atingida. Ou seja, o organismo dela, a célula dela não tá fluindo com facilidade e é atingida
muitas vezes por doenças. É tudo uma questão de atitude, de energia da pessoa, que energia
ela sintonizando. Doença e saúde são energias. E a gente têm que procurar ter essa
energia da saúde dentro da gente.
o Santo Daime opera intensamente com essa idéia de entidades, visto que
trabalha com incorporações e caridades com espíritos desencarnados, travando
batalhas astrais do Bem contra o Mal. Utiliza-se o termo trancado como
referência a uma pessoa que está presa a uma entidade negativa que bloqueia e/ou fecha
os caminhos dela, trazendo-lhe contrariedades e sofrimentos. No nível cultural, o Santo
Daime ao reconhecer especificamente o papel desempenhado por entidades de baixa
vibração, por demônios, exus, como entidades espirituais concretas, o suplicante traz
sua experiência para participar em um campo de símbolos, motivos e significados que
constituem o meio religioso e a razão de ser do movimento daimista: compor o
batalhão vislumbrando a Nova Jerusalém. Diz o Padrinho Alan:
Eu vi em trabalhos de Daime o que no panteão católico chamaríamos de demônio, talvez
na umbanda seriam exus, nem sei se é a mesma coisa. Eu vi demônio e quando eles
chegam no Daime não tem conversa. Não tem conversa! O Daime bota eles e eles acabam
tendo que limpar as sujeiras deles e se abaixar para o poder divino. Então o que eu vejo é
que é um poder de Deus mesmo, é um poder do Espírito Santo. Eu não tenho dúvidas disso.
196
6.2 A União do Vegetal, o Santo Daime e a Psicoterapia
Reencarnacionista
Mauro, um de meus principais informantes é médico psiquiatra, organizador
da Psicoterapia Reencarnacionista no Rio Grande do Sul. Iniciou seu trabalho em 1996
quando começou a receber essa Terapia da Reforma Íntima (como também se refere a
terapia) de um grupo de seres do plano astral. De acordo com ele, a psicoterapia
reencarnacionista é a terapia utilizada no mundo espiritual, no chamado período
intervidas, baseada na personalidade congênita (que é a personalidade que nasce
conosco, que revelamos desde a infância, é a mesma da encarnação anterior, e que,
geralmente vem nos acompanhando encarnação após encarnão, séculos ou
milhares de anos) e no real aproveitamento da encarnação. Ao contrário da psicologia
tradicional, que diz que nossa personalidade forma-se na infância a partir de fatores
genéticos, familiares e ambientais, a Psicoterapia Reencarnacionista afirma que s
nascemos com uma personalidade, a que tínhamos em nossa encarnação passada, ou
seja, nós somos como somos, pois nascemos assim. E encontramos nossas virtudes e,
nelas, a nossa proposta de reforma íntima. Mauro
63
exemplifica a partir de sua própria
história:
Karma não é coisa ruim. A gente fala em karma e as pessoas acham que é coisa ruim.
Karma é apenas a continuação das coisas. Karma é o retorno. A minha família como todas
faz parte do meu karma né. Então nessa encarnação agora eu vim de uma família de judeus.
Eu vim numa família de judeus por uma necessidade kármica minha que Deus entendeu que
eu precisava vir numa família de judeus. Desde o início da minha vida, minha infância,
minha adolescência eu não conseguia afinizar muito com o judaísmo. Eu achava uma
religião muito triste. Os rituais muito triste, chorava muito. Na sinagoga, uma lamentação,
uma choradeira. Não tô criticando, só falando né. Eu não gostava muito daquela lamentação.
Eu gostava muito dos rituais que a gente fazia em casa, das datas especiais em que todo
mundo cantava e eu desde criança cantava, adorava cantar. Então eu cantava nessas datas
que comemoravam e todo mundo cantava, toda família reunida cantando e depois aquela
comilança, todo mundo comia, comia. Maravilhosa a comida né. Até que um dia eu era
adolescente, tinha 16, 17 anos, não lembro bem, o meu irmão mais velho resolveu traduzir o
que nós cantávamos. Então nós cantávamos uma música e ele traduzia para o português.
que eu fui saber o que nós estávamos cantando. Aí um lado meu interior se revoltou porque
nós estávamos cantando músicas judaicas falando mal dos egípcios. Que os egípcios eram
os vilões e que os judeus eram uns coitadinhos de umas vítimas e que foram presos pelos
egípcios, torturado pelos egípcios, que fugiram dos egípcios e que Deus salvou o SEU povo
dos egípcios, do Egito. Aí comecei a pensar: Mas como assim? Como é que Deus tem um
povo? Então os judeus é um povo de Deus e os egípcios não são de Deus. Como é que Deus
salvou o seu povo? Então ali eu comecei a entender algumas coisas e esse meu lado mais
eclético, mais humanista, mais todo mundo, todo mundo que eu tenho. Eu comecei a achar
aquilo estranho. Eu comecei a pensar: Não é possível que os judeus sejam um povo de
Deus e todos os outros não sejam. Então os judeus são de Deus e os outros não são. E
que tanto falam mal dos egípcios. Aquilo começou na época a me revoltar. Adolescente né,
63
Entrevista concedida em maio de 2009.
197
adolescente se revolta né, me revoltei muito. Depois muitos anos mais tarde quando eu tava
trabalhando com terapia de regressão que eu fui ver que eu fui um egípcio, eu me vi como
um egípcio. Se eu me vi como um egípcio na regressão quer dizer que eu estava sintonizado
naquela vida. eu pensei, então eu fui um egípcio e agora encarnei num judeu. Então
começando a entender porque Deus me colocou nos judeus pra mim ver o outro lado e numa
outra regressão eu me vi como um oficial romano que considerava os judeus como os
romanos consideravam naquela época, dois mil anos atrás, como animais, uma subraça.
Para nós romanos, naquela época judeu e bicho era a mesma coisa. É assim que a gente
pensava né. Aquela doutrinação que a gente sofria e hoje em dia a gente também sofre
doutrinações de outro estilos, mas sofremos doutrinações. Aí na regressão eu lembro que eu
me apaixonei por uma moça judia e de noite escondido eu ia lá sorrateiramente, sem
ninguém saber. Imagina um oficial romano ir no meio dos judeus, na casa dos judeus,
seria morto com certeza como traidor, seria expulso. E eu comecei a freqüentar a casa dos
judeus e eu comecei a ver que eles eram iguais a nós. Era tudo igual, tinham pai, mãe, filho,
comiam. Pensei: Meu Deus, mas não é assim, não são uns bichos. É gente como nós
também somos gente. E aquilo fez uma coisa na minha cabeça na época e chegou um
ponto que eu comecei a beber pra fugir daquilo, eu não conseguia agüentar aquilo, me
afastei do exército romano e fui morar num mato, que era sei aonde e fiquei bebendo,
amargurado, entrei em depressão, uma coisa horrível, acabei morrendo. E então aqui e agora
voltei numa família de judeus. Então comecei meio que entender como é que Deus faz as
coisas. Lá era egípcio aqui reencarnei como judeu. Lá fui um romano aqui reencarnei como
um judeu numa família de judeus, mas nunca afinizei muito com o judaísmo, onde comecei
a conhecer o espiritismo que lida assim com a reencarnação mesmo. eu gostei muito do
espiritismo e quando eu comecei a conhecer o budismo, as religiões orientais, dessa visão
de Deus como um todo como manifestado, como natureza, como céu, como as aves. Gostei
muito, mais ainda digamos. Essa imagem de Deus natural, todo, não um ser, mas tudo.
Quando eu comecei a conhecer o xamanismo, dizendo que Deus está em tudo, as árvores,
nas flores, nos animais, nas águas, no fogo, no vento, na terra, gostei mais ainda né. Então é
uma caminhada que a gente vem vindo né. Aí entrei na União do Vegetal, cheguei no Daime
que tem essa visão mais xamânica, essa visão cristã, essa visão holística, eclética de que
todos somos irmãos.
Este terapeuta é uma pessoa muito conhecida neste sentido e foi sócio da
União do Vegetal (Núcleo Jardim das Flores) por quase oito anos fazendo parte da
direção do Departamento Médico Científico (DMEC) e posteriormente foi membro
fardado do Santo Daime por três anos, sendo morador da comunidade do Céu de São
Miguel. Diz ele:
Com 50 anos que eu conheci a União do Vegetal, que eu comecei a tomar o chá ayahuasca,
que eu comecei a fazer esse processo de autoconhecimento, de investigação, de afloramento
das minhas inferioridades, que eu senti que ali eu comecei a evoluir, a crescer, me purificar
muito mais rapidamente que todos aqueles anos anteriores nessa encarnação e pelo que eu
sei certamente há várias encarnações. Então pra mim a minha entrada na União do Vegetal
foi um marco na minha evolução espiritual. Eu mudei pro Daime por algumas características
do Santo Daime que se enquadraram mais no meu estilo, principalmente a religiosidade e a
musicalidade. Mas o chá é o mesmo, o efeito é o mesmo, a doutrina é a mesma. É amar e
perdoar, é a simplicidade, a humildade, é não criticar e não julgar e não querer sobrepujar,
não querer ser mais que os outros. É a mesma doutrina porque vem da mesma fonte, porque
vem de Deus, vem de Jesus [...] Eu melhorei muito na União do Vegetal e aqui no Daime o
que eu sinto é que simplesmente está continuando. Então eu não acho que aqui no Daime é
melhor que na União do Vegetal...
Antes de chegar da União do Vegetal ele foi médium espírita, dirigindo
grupos e também trabalhando com apometria e posteriormente com a umbanda branca.
198
Neste tempo recebeu muitas músicas de seres espirituais que foram gravadas e lançadas,
uma pelo Ney Matogrosso. No Santo Daime recebeu 145 hinos que alguns estão sendo
atualmente lançados em CD. É também autor de muitos livros sobre regressão e
psicoterapia reencarnacionista. Ele fala sobre esse recebimento:
Eu comecei a receber a terapia reencarnacionista uns dois anos antes de eu conhecer a União
do Vegetal. A psicoterapia reencarnacionista veio antes, mas a técnica que nós usamos hoje
em dia nas regressões foi baseada no efeito do chá sem tomar chá. É bom deixar bem claro
que nas regressões nós não usamos o chá [...] Mas a técnica, o relaxamento, a expansão da
consciência que o chá promove na gente , que a gente relaxa e expande a consciência [...]
um dos efeitos do chá é expandir nossa consciência e desativar nossos mecanismos de
defesa que faz com que a gente se enxergue de cima sem essas defesas todas [...] Então essa
técnica de regressão, porque no começo eu usava outras técnicas. Descer uma escadinha,
abrir uma porta, pula um murinho...eu aprendi que eu fui desenvolvendo e fazendo e tal.
Mas essa técnica de relaxamento e expansão da consciência veio junto com, que eu fui
aprendendo com o efeito do chá na União do Vegetal. A minha evolução espiritual com o
chá certamente influenciou muito a psicoterapia reencarnacionista com certeza. A ampliação
da minha mediunidade, a ampliação da sensibilidade que é cada vez maior com o chá né,
ajudou muito a entender melhor, a receber mais a psicoterapia reencarnacionista, a
transmitir a psicoterapia reencarnacionista [...] e a principal finalidade desse chá é ajudar a
gente a se enxergar melhor, enxergar a nossas inferioridades, as nossas imperfeições, nossos
defeitos. No sentido de ver o que a gente têm que melhorar, o que temos que purificar em
nós, como nós podemos aproximar mais do nosso eu superior [...] então vieram,
considerando uma diferença de dois anos, para eternidade é uma coisa ínfima né. A
psicoterapia reencarnacionista veio em 96 e a União do Vegetal veio em 98. prá dizer
que vieram praticamente juntas.
Em janeiro de 2010, Mauro afastou-se da doutrina daimista por questões
pessoais, não estando atualmente vinculado a nenhuma religião ayahuasqueira. Por ter
circulado nesses dois espaços religiosos e por ser uma pessoa reconhecida e bem
conceituada muitos daimistas e udevistas se submeteram a regressões com ele e/ ou
ainda o procuram para este fim ou para realizarem cursos de formação em psicoterapia
reencarnacionista ministrados por ele. Eu mesma fiz uma regressão com ele e participei
de algumas aulas de seu curso onde tinham, na época, muitos daimistas e dois udevistas.
Veja o depoimento de um daimista nesse sentido:
Eu já tive dentro do Daime auto-regressões e aí depois eu conheci o Mauro ele me deu uma
regressão de presente, que veio justamente se encontrar com a regressão que eu tinha feito
dentro do Daime. Então depois eu comecei a fazer o curso de psicoterapia e fiz várias
regressões e aí fica interessante porque por vezes tu faz uma regressão e no trabalho
seguinte no Daime vai completar alguma informação daquela regressão ou vai te dar um
outro norte em função daquela regressão que tu teve, como que tu conseguiu modificar
aquela situação e aí ao começar a fazer regressão nas pessoas a gente também têm uma outra
visão da história até como nos redirecionar também para uma regressão dentro de um
trabalho de Daime. Dentro do trabalho aplicar as técnicas que se aprende. A psicoterapia é
muito próxima do Daime. O Daime é uma psicoterapia reencarnacionista, ele é um
psicoterapeuta natural. Eles caminham juntos, é uma coisa muito próxima a regressão de
daime. Nessas auto-regressões de daime tu mirações, mas por vezes são situações que
199
tu vê que tu precisa mudar na tua vida. a oportunidade também de tu poder aplicar toda
essa coisa energética que tu recebe no Daime numa pessoa numa regressão ou num reiki tu
ta aplicando. Porque tu recebe energia grande nos trabalhos, porque tu volta muitíssimo
energizado. Tu vai faz o trabalho com Daime, por vezes tu parece que passa mal, mas na
realidade a gente ta passando por uma cirurgia que seja no espírito.
Pode-se perceber que na trajetória do u de São Miguel e do Jardim das
Flores, a fundação da psicoterapia reencarnacionista por um de seus membros aponta
para a construção e reconstrução de uma identidade coletiva reencarnacionista e voltada
para regressões com chá ou sem, que está ancorada na história do grupo religioso em
interação com a práxis de seus participantes. Em todos os relatos dos entrevistados
foram encontrados em maior ou menor grau entendimentos reencarnacionistas a partir
da vivência na força/burracheira ou em sessões de regressão. Rose (2005) em sua
pesquisa com o grupo daimista do Céu da Mantiqueira observou a interpenetração de
práticas terapêuticas intimamente relacionadas com a espiritualidade daimista, como o
uso do kambô (vacina do sapo). A autora diz que observando esta imbricação entre o
espiritual e terapêutico, identifica-se um duplo movimento, convergente e simultâneo,
de terapeutização da espiritualidade e espiritualização dos movimentos terapêuticos.
Assim, ela elabora a hipótese de que o modelo que fundamenta os procedimentos
terapêuticos existentes no Céu da Mantiqueira é o de um continuum espiritual-
terapêutico, com a doutrina daimista em um de seus los e os procedimentos
terapêuticos e as pessoas que trabalham profissionalmente na área da saúde no outro. A
substância que circula entre estes dois los é formada pelos valores que provém de
ambos. Estes valores fundamentam os procedimentos espirituais e terapêuticos. Trata-
se, portanto de um contexto onde a interpenetração entre o espiritual e o terapêutico é
tão grande que fica praticamente impossível separar os dois domínios e neste caso não
faz mesmo sentido pensar-se nesta separação. É o que também observo com o caso da
psicoterapia reencarnacionista.
Sônia Maluf (2003, p.1) pontua que atualmente estamos diante da
emergência de um vasto campo de intersecção entre novas formas de espiritualidade e
práticas terapêuticas alternativas, onde a dupla implicação entre o terapêutico e o
espiritual está relacionada, sobretudo, ao sentido dado a essa experiência, enfatizando a
importância da experiência terapêutico-espiritual nas narrativas tanto de médicos
quanto de terapeutas ligados ao que Rose (2005) chama de rede terapêutico-espiritual
alternativa.
200
6.3 O Processo de Cura nas Religiões Ayahuasqueiras
O processo de cura ocorre durante a burracheira (UDV) ou força
(Santo Daime), termo referente à experiência religiosa intimamente ligada ao efeito do
chá ayahuasca.
O chá ayahuasca é uma bebida psicoativa preparada geralmente com duas
plantas (pode haver algumas variações): a liana ou cipó propriamente dito, cujo nome
científico é Banisteriopsis caapi e as folhas do arbusto Psychotria viridis. O chá
ayahuasca é a única preparação botânica, no que diz respeito à atividade farmacológica,
dependente de uma interação sinérgica entre os alcalóides ativos existentes nas plantas.
A Banisteriopsis caapi, contém alcalóides de Beta-carbolina, que são potentes
inibidores da monoamina oxidase, MAO-A, as folhas da Psychotria viridis contém a N,
N-dimetiltriptamina (DMT). A DMT não é ativa quando ingerida oralmente, mas pode
se apresentar oralmente ativa quando na presença do inibidor periférico da MAO esta
interação é à base da possível ão alucinogênica do chá ayahuasca. (Brito, 2002,
p.624). A planta tem pequena concentração de DMT sendo, a partir de pesquisas
multidisciplinares, legalmente liberado seu uso para fins religiosos no Brasil e em
alguns países do exterior
64
.
64
Com a prisão dos brasileiros Fernando Ribeiro de Souza e Francisco Corrente em 5 de abril de 2000 no
aeroporto de Barajas/Madrid pelo porte de 10 litros de daime foi pedido pelo tribunal espanhol um
parecer pela Audiência Nacional à Oficina de Narcóticos da ONU com sede em Viena, segundo a qual a
ayahuasca e nenhuma das plantas que a compõem estão sujeitos a sua fiscalização. O Tratado de
Substancias Proibidas pelo Convênio de Viena existe desde 1971 e é subscrito por quase todos os pses
do mundo, inclusive o Brasil. Por ele, o DMT está proibido, mas não estão definidas as faixas de
tolerância pelo que é muito difícil estabelecer uma quantidade tóxica. As legislações estabelecem que em
caso de não haver tabela de tolerância se considera uma substancia perigosa para a saúde quando tem
mais de 2% desse alcalóide proibido em seu conteúdo. As análises toxicológicas determinaram que o
conteúdo de DMT em todas as garrafas de daime recolhidas em Madrid não ultrapassava 0,087%. Assim,
o perito oficial certificou que com este conteúdo de DMT a ayahuasca não é prejudicial a saúde e que seu
uso em um contexto religioso não é um delito. Diz o auto de Arquivamente do Processo: En
contestación al oficio remitido al Instituto Nacional de Toxicología acordado por Providencia de 5 de
julio de 2000, dicho organismo inforal Juzgado en fecha de 10 del mismo mes y o que la dosis de
DMT descritas como alucinógenas por vía endovenosa de entre 75 y 100 mg, así como que la dosis que
pudieran ser eficaces por vía oral deben ser por lo menos 10 veces (y probáblemente muy superiores) a
las citadas. De esta forma, dado que la Ayahuasca - como se dice en las conclusiones de dicho informe -
es una decocción en estado líquido, por lo que es una presentación lo apta para su administración por
vía oral, las cantidades mínimas susceptibles de producir los efectos alucinógenos serían de 750 o 1000
miligramos. Con arreglo a estos datos las cantidades en miligramos de DMT aprehendidas serían las
reflejadas [...] Así lo acuerda, manda y firma María Teresa Palacios Criado, Magistrado-Juez del
Juzgado Central de Instrucción número 3 de Madrid. (www.santodaime.org)
201
Os alucinógenos encontram-se na classificação das substâncias
psicotrópicas, segundo seus efeitos mentais como Perturbadores do SNC (Sistema
Nervoso Central) Aqui estão relacionadas às substâncias que fundamentalmente
alteram a função psíquica da percepção como, por exemplo, o LSD. Os alucinógenos
o um grupo de agentes que produzem intoxicação denominada de viagem. Esta
intoxicação está associada a alterações nas experiências sensórias, incluindo ilusões
visuais e alucinações. Além disso, a intoxicação por alucinógenos envolve percepção
aumentada de pensamentos e estímulos internos e externos. Essas alucinações são
produzidas com claro nível de consciência e ausência de confusão. A intoxicação por
alucinógenos inclui alucinações visuais, macropsia e micropsia, labilidade emocional e
do humor; lentificação subjetiva do tempo, sensação de que as cores são ouvidas e os
sons são vistos: intensificação da percepção do som, despersonalização e desrealização.
Tais experiências são vivenciadas mantendo-se o estado de total vigília e alerta. Outras
alterações podem incluir prejuízo da capacidade de julgamento, medo de perder o
controle da mente, ansiedade, náusea, taquicardia, hipertensão arterial e hipertermia
(Stahl, 1998).
Naranjo (1976) realizou uma pesquisa onde administrou harmalina a 35
participantes que o conheciam o psicoativo nem sabiam de sua relação com as
cosmologias implicadas, dentre as várias visões relatadas, encontram-se (1) imagens
vistas de olhos fechados; (2) estado mental semelhante ao sonhar; (3) mal estar
psicológico, físico, vômito e diarréia; (4) gozo, amorosa serenidade; (5) capacidade de
pensar sobre problemas pessoais e metafísicos com uma profundidade enorme; (6)
inteligência e intuição incomuns; (7) visões da própria morte; (8) sensações de estar
planando, suspenso no espo; (9) visões de um centro geométrico, circular, ponto
central; (9) de tigres, leopardos, jaguares; (10) de répteis, serpentes, dragões,
dinossauros; (11) do diabo (s); (12) anjos, Virgem Maria, Cristo; (13) do Paraíso, Céu,
Inferno; (14) êxtase religiosos; (15) outros: igrejas, sacerdotes, altares, cruzes, etc.
Assim há uma discussão acerca do chá ayahuasca ser classificado como
alucinógeno pela quantidade de DMT presente e neste sentido alguns estudos chegaram
à conclusão de que a classificação mais adequada seria a de enteógeno. Em grego
entheos significa Deus dentro e era a palavra utilizada para descrever o estado em
que a pessoa se encontra quando está inspirada por um Deus, que entrou em seu corpo.
Era aplicado a transes, assim como aqueles ritos religiosos em que os estados místicos
eram experenciados através da ingestão de substancias transubstanciais com a deidade.
202
Combinada com a raiz gen, que denota a ação de tornar-se, essa palavra compõe o
termo que se propõe: enteógeno. (COUTO, 2002, p.407).
Para o Santo Daime, o daime é um ser divino, é o professor dos
professores uma planta-mestre, uma planta de poder, uma planta professora que
direciona o modo de pensar e viver das pessoas que dela comungam (Albuquerque,
2007, p.1). O hino O Daime é o Daime elucida o que é o Daime:
[...] O Daime, é o Daime
O professor dos professores
É o divino Pai Eterno
E seu Filho Redentor.
O Daime, é o Daime
O Mestre de todos ensinos
É o Divino Pai Eterno
E todos Seres Divinos
O Daime é o Daime
Eu agradeço é com amor
É quem me dá a minha saúde
E revigora o meu amor
A União do Vegetal considera a ayahuasca uma planta-mestre, uma planta-
professora, uma planta expansora da consciência e facilitadora da concentração mental,
sendo o chá divino, sagrado e misterioso. De acordo com o Mestre Jeziel: É um chá
assim extremamente benéfico pro desenvolvimento espiritual, para a saúde da pessoa.
A gente vê que é uma coisa que vem de Deus, que vem pro bem das pessoas. Explica o
Estatuto do Centro:
A União do Vegetal considera o chá Hoasca uma dádiva de Deus, um instrumento para
acelerar a caminhada evolutiva do homem, devolvendo espiritualidade a uma civilização
inebriada pela lógica cientificista. Mesmo assim, não vê o chá como um fim em si mesmo,
mas como um veículo para uma caminhada que exige sacrifícios e renuncias e cuja base é a
doutrina de fundamentação cristã, aprofundada pelos ensinamentos transmitidos por Mestre
Gabriel. (Centro Espírita Beneficente União do Vegetal, 1989, p.34)
Durante o trabalho ou sessão a ingestão do chá provoca o efeito denominado
de força ou burracheira, que significa para ambos grupos religiosos uma força
estranha. De acordo com a UDV o Mestre Gabriel disse que a burracheira é a
presença da força e da luz divina na consciência daquele que bebeu o chá. Assim, de
acordo com os informantes não há perda da consciência, mas sim iluminação e
percepção de uma força desconhecida. Na força/burracheira podem ser
203
contempladas imagens
65
que recebem o nome de mirações
66
, tanto na UDV quanto no
Santo Daime e estas podem se manifestar de formas muito variadas. E os mestres se
manifestam ali. Como coloca Brissac (1999b, p.19) miração significa mais que ver
imagens. A miração não é simplesmente uma seqüência de visões: é uma vivência
sinestésica, que toca a sensibilidade dos participantes da sessão em dimensões estéticas
e afetivo-sentimentais. Tal experiência totalizante que além da visão e da audição pode
mobilizar também os sentido de tato, do olfato e do paladar impressionando fortemente
a vivência.
A experiência de quem toma o chá é sempre única e imprevivel, nenhuma
sessão é igual à outra, nenhum trabalho é igual ao outro, dizem os daimistas e
udevistas. Segundo Peláez (2002, p.475), embora substâncias psicotrópicas atuem nos
mesmos receptores cerebrais e produzam similares mudanças somáticas, psíquicas e
perceptivo-sensoriais, eles não determinam per se as características da experiência
psicodélica. O chá ayahuasca, classificado como enteógeno somente abriria as portas
para outras formas de percepção da realidade, mas nesses espaços mentais abertos, cada
sujeito imerso num contexto, num imaginário religioso, colocaria os conteúdos
determinantes e o significado das experiências.
Clodomir Monteiro da Silva (1981; 1985) analisa o processo de cura dentro
dos rituais daimistas sugerindo que ocorre o que ele chama de transe xanico
coletivo, uma forma de estabelecer uma corrente espiritual entre os participantes da
65
Csordas (2008, p.385) diz que em estudos atuais a imaginação é discutida quase exclusivamente em
termos de imagens visuais, que são, por sua vez, prontamente consideradas como imagens mentais. O
conceito de imagens mentais está tão arraigado que o termo imagens físicas quase a impressão de ser
um oximoro. Porém se concedêssemos às outras modalidades sensoriais um status analítico igual ao da
modalidade visual, um conceito expandido de imagens sensoriais nos permitiria evitar a dicotomia
arbitrária que nos tenta a analisar as palavras de conhecimento carismáticas em diferentes categorias de
imagens mentais e sensações físicas, e separar analiticamente vidências espíritas de plasmaciones
(experiências proprioceptivas experimentadas por curadores, na qual os médiuns moldam ou formam as
dores ou sofrimentos emocionais dos clientes dentro de seus próprios corpos). Estaríamos, então, nos
afastando com um passo metodológico de um conceito empirista de imaginação como representação
abstrata para um conceito fenomenológico de imaginação como um aspecto da síntese corporal, que
Merleau-Ponty (1962) descreveu como característica de uma consciência humana que se projeta no
mundo cultural. O autor enfatiza que as categorias de transe e estados alterados de consciência continuam
sendo caixas-pretas visuais.
66
De acordo Alex Polari de Alverga a miração é um termo que foi cunhado na tradição do Santo Daime
pelo Mestre Irineu para designar o estado visionário que a bebida produz. Explica que o verbo mirar
corresponde a olhar, contemplar e dele deriva-se o substantivo mirante, que é um local alto e isolado
onde se pode descortinar uma vasta paisagem. A palavra miração une contemplação mais ação
(mira+ação), o que expressaria de maneira clara o fato de os miradores serem pessoas plenamente
conscientes da viagem do Eu no interior da experiência visionária, característica do êxtase xamânico. O
momento culminante do trabalho é quando dentro da força do sacramento, recebemos as visões, as quais
denominamos mirações. Na miração não somos meros expectadores da nossa visão. Ao invés disso
somos protagonistas de uma ação que se passa num mundo real e ao mesmo tempo numinoso.
(www.xamanismo.com.br).
204
sessão. A coletividade é responsável pela cura individual, com uma participação direta e
ativa na cura e não apenas via contato social. Para ele o processo de cura acontece via
eficácia simbólica numa perspectiva lévistraussiana, onde é fornecido ao doente, através
do corpo de curadores ou do Mestre, uma forma de expressão. Este é o momento no
qual ele se resigna e de certa forma sara do seu mal. E é o daime, um ser divino que
fornece a catálise de todo um processo teleológico, visando à correção moral e espiritual
da pessoa. O desvio deste padrão ideal, intimamente inserido num plano cósmico, é
considerado a verdadeira causadora da aflição de alguém que se encontra adoentado,
inclusive permitindo assim que espíritos nocivos se aproximem e aumentem a desordem
estabelecida. A doença, enquanto marca de transgressão, proporciona, também quando
expiada, a possibilidade de reconquista do equilíbrio, da ordem, não havendo distinção
entre doenças do físico ou da mente, pois a patogênese localiza-se na esfera mental.
Seguindo a perspectiva de Monteiro da Silva (1985), Groisman (1999) deixa
mais claro e contundente o papel social da doença ao colocar o sistema de cura daimista
baseado na conduta humana, apontando então para um código de ética: o que é feito
para o bem atrai o bem. O que é feito para o mal, atrai o mal (Groisman, 1999 p. 113).
Desta forma ao surgir um movimento desarmônico entre leis sociais e espirituais e
atitudes individuais por transgressões das primeiras, surge a doença. A cura, a busca da
cura, para este autor é parte do processo de autoconhecimento, um processo que é
desencadeado no contato com o meio social, com outras pessoas como também colocou
Monteiro da Silva (1985). E são estas outras pessoas que participam na cura, seja num
corpo de curadores, seja pela aproximação de afins, como vizinhos, parentes, amigos. O
que ocorre no ritual como um todo é então a percepção da raiz do problema, ou pelo
menos a busca desta fonte da doença, o ponto onde a harmonia primordial foi rompida.
Tanto a bebida com seus efeitos, quanto o ritual em si interagem (como se fosse
possível separá-los) para que seja encontrada não a cura em si, mas a conduta correta
que pode levar a ela, e o primeiro passo é o perdão tanto pessoal quanto cósmico,
segundo Groisman (1999).
Estamos falando de experiência corpórea. Csordas (2008) compreende a
experiência como significância do significado, imediata tanto no sentido de sua
concretude, sua abertura subjuntiva, sua desobstrução da realidade sensorial, emocional
e intersubjetiva do momento presente como também no sentido de ser a rica ascensão
não-mediada, impremeditada, espontânea ou não ensaiada da existência primeira. Ao
dirigir o foco para experiência corpórea, ele defende que a abordagem da corporeidade
205
está para além da representação e do discurso, sem, contudo, deixar de incluir essas
dimenes. Não é mais o corpo como mero instrumento, corpo significado, nem o corpo
como lugar de inscrição da cultura, mas é o corpo fenomênico, o corpo como lócus da
cultura, meio de sua experimentação do fazer-se humano em suas ltiplas
possibilidades. É um corpo, que é a sede de diferentes formas de ser/estar no mundo,
como condição para diferentes formulações culturais de enfermidade/doença e de
procedimentos de cura. Assim, o desafio antropológico o é o de capturar a
experiência, mas o de dar acesso à experiência como a significância do significado.
Partindo da idéia de que o objeto da cura o é a eliminação de uma coisa
(uma doença, um problema, um sintoma, uma desordem), mas a transformação de uma
pessoa, analisarei o processo terapêutico da cura religiosa nas religiões ayahuasqueiras,
ou seja, a natureza da experiência de participantes em relação aos encontros com o
sagrado, episódios de insight ou mudanças de pensamento, emoção, atitude, significado,
comportamento.
Csordas (2008) coloca que na medida em que a cura é eficaz, há certos
elementos comuns a todas as formas. É geralmente aceito que um aspecto interpessoal
primordial do tratamento é o apoio emocional do indivíduo e a reafirmação de seu valor
numa comunidade ou sociedade, enquanto um resultado intrapsíquico primário é a
reorganização da orientação presumida da pessoa para a experiência ou mundo
supositivo. Em relação a como esses efeitos são alcançados, uma visão enfoca o
impacto da técnica terapêutica ou do ambiente sobre o paciente, enfatizando processos
exógenos e mecanismos tais como a persuasão ou a sugestão, enquanto outra enfoca a
resposta do paciente a seu próprio sofrimento, enfatizando processos endógenos tais
como o sono e o descanso, intuições, sonhos, dissociação, episódios psicóticos.
Podemos pensar como um exemplo de processos exógenos os hinos de
cura cantados nos trabalhos. De acordo com Goulart (1996), os hinos do Santo Daime
conservam a função mais importante dos antigos ícaros: o poder de cura. Em primeiro
lugar, de um modo geral, todo ritual daimista tem como finalidade curar aqueles que
dele participam. Nesse sentido, como a forma por excelência das cerimônias desta
religião é o canto de hinários, podemos dizer que os hinos curam. Além disso, existem
hinos que servem especificamente para a cura, os quais são cantados em trabalhos
especiais, na maior parte das vezes, de caráter reservado, voltados para casos
considerados mais graves.
O hino intitulado Quando tu estiver doente é um exemplo:
206
Quando tu estiver doente
Que o Daime for tomar
Te lembra do ser divino
Que tu chamou para te curar
Te lembrando do ser divino
O universo estremeceu
A floresta se embalou
Porque tudo aqui é meu
Eu já te entreguei
Agora vou realizar
Se fizeres como eu te mando
Nunca hás de fracassar
Quando cantado este hino numa sessão acredita-se que a força do daime está
trabalhando para cura, levando as pessoas a pensar que podem ser curadas pela Lei do
Merecimento, por sugestão, sendo potencializada pelo efeito psicoativo da ayahuasca
que pode ser analisado como um processo endógeno crucial para o impacto
terapêutico da cura.
MacRae (1999), analisando a cura no Santo Daime, afirma que as mensagens
e os valores veiculados pela música e por todo o contexto ritual influenciam os
participantes de forma marcada, atingindo não seu consciente, mas também o
inconsciente. Esta característica, que envolve a percepção, a emoção e a cognição,
poderia permitir uma maior auto-sugestão por parte dos participantes, desencadeando
processos semelhantes aos observados em técnicas de visualização e no chamado
efeito placebo como também constatou Achterberg (1996).
Neste sentido, também observa Ricciardi (2008a) em sua pesquisa com a
UDV, que a chamada do Doutor Camalango, que é uma entidade espiritual de cura
o médico do vegetal, bem como as sessões e chamada de Cosme e Damião, que de
acordo com a bibliografia católica seguida pelos udevistas eles tinham o dom e o poder
da cura desde a infância. Através da chamada referente a essas entidades, chama-se a
força espiritual da cura, que segundo os adeptos tem o poder de trazer cura e alivio aos
enfermos e aos necessitados (p.109). A autora conclui que a sugestão potencializada
com o efeito psicoativo da ayahuasca possibilita experiências de descobertas de
enfermidades e curas. Assim, apesar de atualmente a cura não ser o foco central da
União do Vegetal ela permeia toda a religião desde a sua fundação até os dias de hoje.
Durante este processo endógeno que está vinculado ao efeito psicoativo da
ayahuasca a força/burracheira que é considerada em ambas as religiões como
uma força estranha, um poder divino, uma luz divina que vem para clarear as
207
pessoas e neste sentido tudo o que aparece na força/burracheira, todo entendimento,
toda experiência não pode ser contestada, pois são verdades divinas, dando o direito de
o indivíduo que a experenciou tomar como verdade absoluta, pois ninguém pode
contestar. Possibilitando o sujeito por meio dessas mirações, revelações,
entendimentos, experiências ocorridas na força/burracheira guiar o seu sofrimento
individual. O fiel é seu próprio curador, pois a religião ayahuasqueira permite que o
indivíduo construa seu próprio discurso, atribua formas e significados particulares a sua
própria doença dentro da concepção de cura/doença explicitada anteriormente baseada
no pressuposto reencarnacionista, ou seja, o fiel-curador com suas interpretações
potencializa o impacto retórico da cura. A importância do processo endógeno nesta
religião é indiscutível, pois a cura ocorre sem auxílio de um curador.
O cus da eficácia terapêutica está nas formas e nos significados
particulares isto é, o discurso através dos quais os processos endógenos são ativados
e exprimidos. Reconhecer esse papel do discurso resolve o paradoxo criado pela
ativão de processos endógenos na ausência de um curador. O discurso é um processo
semi-autônomo que tanto pode ser ajudado como aproveitado por quem está
familiarizado com suas convenções. Levado adiante pela sua própria estrutura de
implicações, o próprio discurso incorpora a eficácia terapêutica e o poder místico do
divino outro (Csordas, 2008).
Para compreender a natureza específica dessa eficácia terapêutica é preciso
construir uma hermenêutica da retórica cultural em funcionamento no discurso da cura.
Como um aspecto do discurso, a retórica pode ser entendida como o seu fio de corte
o meio pelo qual os participantes no discurso são convencidos de sua validade e
relevância. A noção de retórica ajuda no reconhecimento de que a cura depende de um
discurso significativo e convincente que transforma as condições fenomenológicas sob
as quais o paciente existe e experencia sofrimento ou aflição. (Csordas, 2008, p. 50). As
religiões ayahuasqueiras possuem um sistema de cura flexível, aberto para
bricolagens, conforme constatou Soares (1994). O autor fala em uma doutrina
plástica, aberta a sincretismos vários ou a reapropriações criativas relativamente livres,
já que a alteração do campo visual-imagético (mirações) constitui o instrumento de
trabalho espiritual mais nobre, dotados de superiores efeitos didáticos: a doutrina,
exatamente por sua flexibilidade e abertura, é (re) construída e alcançada (pela via da
graça divina) pelo sujeito de cada viagem introspectiva (Soares, 1994, p. 217). um
nexo entre símbolo e experiência na noção de que uma retórica na performance
208
através da qual os símbolos moldam o significado para os participantes. A retórica nesse
sentido é o poder de persuasão imanente na ação simbólica e na performance ritual.
Assim, essa retórica redireciona a atenção do suplicante para novos aspectos de suas
ações e experiências, ou o persuade a lidar com os aspectos habituais da ação e da
experiência a partir de novas perspectivas (Csordas, 2008, p. 50).
É o que observamos no caso de uma fiel que começou a freqüentar o Santo
Daime porque buscava a paz interior e passou a vivenciar na força experiências
ásperas e dolorosas, realmente vividas fisicamente como se fosse um parto difícil e de
muito sofrimento de uma criança. Esta mulher tem três filhos, sendo que sofreu dois
abortos espontâneos antes. Ela identificou seus sentimentos na força como os de um
parto difícil, mas ela o entendia a compreensão desta vivência. Seguiu freqüentando o
Santo Daime e passando por isso, logo teve numa força o entendimento de que ela
em outra vida praticou muitos abortos e o daime estava livrando ela deste karma, sendo
que depois de um ano passando mal em todos os rituais ela pode ficar realmente livre e
encontrar um novo sentido para sua vida, ocorrendo a cura espiritual, se sentindo mais
tranqüila, mais confiante, em paz consigo mesma. Este caso mostra o quanto à maneira
particular da fiel lidar com sua experiência constituiu o significado dessa experiência,
dentro de um sistema básico de crença no qual propiciou que ela criasse significado.
Para Soares (1994, p. 217) não há paradoxo porque a construção resultante dos esforços
individuais e subjetivos, que se traduzem em imagens, conceitos, relatos, ensinamentos,
conclusões morais e emoções sempre fortemente radicados nas experiências, por
vezes ásperas e dolorosas, realmente vividas fisicamente coincide, segundo as
convicções compartilhadas, com a verdade cósmica, tornada acessível como dádiva
divina .
Neste sentido podemos compreender que na medida em que esse novo
significado abrange a experiência de vida da pessoa, a cura passa a criar para ela uma
nova realidade ou um novo mundo fenomenológico. Ao começar a habitar nesse novo
mundo sagrado, o suplicante é curado o no sentido de ser restituído ao estado no qual
ele existia antes da instalação da doença, mas no sentido de ser transportado
retoricamente para um estado dissimilar das duas realidades, de pré-doença e de doença.
Essa realidade constitui-se como uma transformação das realidades de pré-enfermidade
e de enfermidade. (Csordas, 2008, p.51).
O indivíduo necessita restituir sentido a intensa experiência da
burracheira, da força, como demonstrado no caso acima, e apesar da flexibilidade
209
encontrada para tal atribuição de sentido, ele o faz à luz da cosmologia implicada,
dentro da doutrina plástica, o discurso reafirma a cosmologia, isto é a verdade da
crença que afirma que toda doença/cura é espiritual a partir da Lei do Merecimento,
da Lei da Reencarnação, da Lei do Karma, da Lei da Causa e Efeito, da Lei do Livre
Arbítrio. Ao fazer a ligação do aspecto retórico do discurso com os processos
endógenos, sugere-se que a transformação ocasionada pela cura opera em múltiplos
níveis. A experiência de cura é uma experiência de totalidade até onde os processos
endógenos ocorrem em níveis fisiológicos e intrapsíquicos, e a retórica age tanto no
nível social de persuasão e influência interpessoal quanto no nível cultural de
significados, símbolos e estilos de argumento. (Csordas, 2008, p. 51) Assim, de acordo
com Soares (1994, p. 219) as claves de interpretação do indivíduo são afirmadas
coletivamente e o triunfo individual realiza a glória coletiva, reforçando o grupo, sua
identidade, seus valores, sua retórica discursiva.
Csordas (2008, p.53-70), assenta as bases para a identificação dos
componentes fundamentais da retórica através dos quais os processos endógenos são
controlados e a transformação da cura é alcançada. A retórica de transformação precisa
completar três tarefas intimamente relacionadas:
1. Predisposição.
2. Empoderamento.
3. Transformação.
Analisarei como a cura nestas religiões ayahuasqueiras completa essas
tarefas. Na retórica de Predisposição, existe um nível de força de persuasão imbricado
no cenário social da cura que predispõe os suplicantes ao tipo de experiência que a cura
proporciona. Encontrei três fortes alegações. A primeira é o querer. Daime não é coisa
que se convide tem que querer; O Mestre Irineu ensina: havendo força de vontade
nada para nós é custoso, tu tem que querer se curar (Santo Daime). A evolução
espiritual tem uma chave disso tudo que o Mestre Gabriel diz que é o querer da
pessoa, o querer é uma força poderosa, Tu tem que querer se transformar (diz
um dos mestres da União do Vegetal). Na UDV diferentemente do Daime tem que ter
um convite para participar, mas com convite (UDV) ou sem convite (Santo Daime) a
pessoa tem que querer, tem que querer a mudança, ter vontade de mudar. Assim, o
querer é o primeiro passo dentro de uma receptividade que se devem ter aqueles que
210
almejam uma cura espiritual. Segundo a confiança. Confiar no daime e deixar ele
trabalhar, ele sabe. Como diz o hino: Confia, confia, confia no poder, confia no
saber, confia na força, aonde pode ser. Confiar no vegetal (UDV) e Confiar em
Deus, confiar no Mestre Gabriel, confiar no Mestre Irineu. E confiar no mestre
vivo (UDV) e no padrinho (Daime), tem que se confiar que se está numa experiência
guiada pelo astral, pelo Mestre fundador da doutrina e pelo padrinho ou mestre que está
dirigindo a sessão e daí decorre a terceira que é a entrega, se entregar para o daime,
se entregar a esta força (Daime), se entregar a burracheira e não lutar contra as
experiências, pois por mais dolorosas e difíceis que sejam depois tudo ficará bem e tudo
tem uma razão de ser, uma compreensão.
Na Retórica de Empoderamento, o suplicante deve ser persuadido de que a
terapia é eficaz que ele está experenciando os efeitos curativos do poder espiritual. Os
poderes do daime, Eu tomo essa bebida que tem poder inacreditável (como diz o
hino), os poderes da hoasca (UDV), é o motivo-chave para todos os daimistas, para
todos hoasqueiros. O chá ayahuasca é considerado para ambas uma planta professora,
poderosa, que ensina, que expande a consciência, aumenta a percepção, mostra a
realidade divina, é milagrosa, misteriosa, é um veículo que faz entrar em contato com
Deus, com os mestres. Com relação à força de persuasão, há uma retórica cultural nestas
religiões que traduz os processos endógenos como experiência do sagrado. O impacto
retórico do poder da bebida sagrada é uma função da maneira como ela é baseada na
experiência concreta. Para a cura ritual, dois aspectos principais de empoderamento são
considerados: o papel de símbolos somáticos, o processo fisiológico (apeia) e a
interpretação de expressão espontânea dos processos endógenos.
A noção de Mauss (1950), de les techniques du corps, na qual o corpo
humano é simultaneamente o objeto primordial e a ferramenta da ação cultural faz
compreender que o meio mais concreto e imediato de persuadir as pessoas da realidade
do poder divino é envolver seus corpos. Simbolicamente um microcosmo e
fisiologicamente o limite da experiência humana, o corpo recrutado para a causa da cura
simbólica invoca um sentimento de totalidade poderoso, abrangendo a pessoa inteira. A
peia é o nome designado, tanto no Daime quanto na UDV, a um dos efeitos
fisiológicos de fundamental importância para o processo de cura que se referem aos
mal-estares físicos, vômitos e diarréias. A peia também se refere a sentimentos
desagradáveis, como angustia e pânico. Em seu estudo sobre a peia no Santo Daime,
Okamoto da Silva (2002) identifica os muitos tipos de peia dentre elas: peia por
211
não se preparar adequadamente para o trabalho, peia de pensamento, peia pela
desatenção, peia por falta de firmeza, etc.
Segundo os daimistas, a peia é quando a força te acocha (acochar é a
dificuldade vivida dentro do trabalho), te tira do conforto. Para os udevistas a peia
pega. A peia é considerada uma limpeza ao nível sico e uma disciplina necessária
para desbloquear resistências e cristalizações ao nível interior tanto no Santo Daime
quanto na UDV. Peláez (1996) associa o conceito de limpeza à catarses
fisiológicas, que o vivenciadas e interpretadas como vias visíveis e concretas de
eliminação das impurezas, físicas, mentais e espirituais (p.84). Assim, a peia é
positiva e transformadora.
Pode-se pensar que é mais no apelo à totalidade incorporada na união física
do que na transferência gica de poder do chá que reside grande parte da força de
persuasão da peia. Isso não serve para argumentar que o elemento mágico está
completamente ausente, a peia vem acompanhada do ato religioso.
O conceito daimista de limpeza, que se referem a vômitos e diarréias,
remete muitos pesquisadores (como foi citado) à discussão que Mary Douglas (1976)
faz a respeito do puro e do impuro. A autora encara os ritos de pureza e impureza
como atos simbólicos e afirma que estes ritos conferem unidade à experiência. As
crenças sobre a poluição expressam as relações entre diferentes elementos da sociedade
e constituem o reflexo de uma organização válida para todo o sistema social. A reflexão
sobre a impureza implica uma relação entre a ordem e a desordem; desta maneira, as
noções de impureza devem ser encaradas como um sistema. De acordo com Rose
(2005) o conceito daimista de limpeza a partir destas considerações, ele ordena e
confere significados a certos tipos de experiências que costumam ser vivenciadas nos
rituais, inserindo-as num sistema.
Depois de techniques du corps, o segundo aspecto importante do
empoderamento é o significado atribuído a uma certa espontaneidade que ocorre
durante a força ou burracheira acompanhando a peia, as mirações que são
mensagens, vozes, memórias de eventos passados e imagético visual pela emergência
espontânea do pré-consciente. A retórica de empoderamento estabelece esses processos
endógenos como manifestações do poder milagroso. O Daime ensina que o verdadeiro
Deus está dentro de ti, na UDV o mestre está dentro e fora de ti. Para o suplicante
em cura, a intuição espontânea, as mirações, a memória ou as mensagens é motivada
ou orientada como uma manifestação de poder divino; não é uma conquista humana,
212
mas um dom, uma benção do poder divino. Com relação a força de persuasão, uma
retórica cultural que traduz assim os processos endógenos como experiência do sagrado,
cuja retórica invoca um elemento facilmente observado, mas não tão facilmente
observado que é a sua extraordinária imunidade à contradição. As mensagens, as
mirações, a meria traz entendimento ao suplicante experienciado espontaneamente
como instrução, compreensão do alto e considerada pelo suplicante como além daquilo
onde ele poderia chegar através de seus próprios processos mentais, como em uma
psicoterapia clássica, analogia muito corrente entre os daimistas e udvistas. Nada que
vem na burracheira pode ser contestado, mas pode ser examinado, ou seja, o
discernimento é concebido tanto como um tipo de sexto sentido espiritual para intuir a
presença concreta do mal (que muitas vezes está te assediando nos trabalhos quando o
adepto não está bem firmado) quanto como um tipo de bom senso espiritualmente
intensificado para o suplicante dirigir seu trabalho e chegar à raiz de seu problema.
Englobando esses dons está o dom da cura per se, que é visto como intensificação
divina do poder do chá. De acordo com Groisman e Sell (1996) o daime é considerado
como uma medicina universal capaz de curar todos os males, dependendo do
merecimento e do esforço pessoal de cada um.
O Padrinho Alan exemplifica uma cura per se:
Conheci um rapaz, amigo de um irmão nosso, que ele tinha um problema cardíaco, ele
estava com 40 anos e esse nosso irmão, ex-irmão, porque agora ele está em outra linha
espiritual. Encontrou com ele em Passo Fundo e ele vinha caminhando bem devagarzinho,
bem branquinho, com a sacolinha e disse: Bah fulano, o que houve e tal? E ele disse:
Bah rapaz vou te contar uma coisa, to desenganado, o médico me deu no máximo 60 dias
de vida! com problemas cardíacos. esse irmão disse assim: Olha isso não se faz,
não se deve convidar, o Mestre Irineu dizia, mas como é um caso de doença eu tenho uma
linha espiritual que eu indo, a gente toma um chá da Amazônia e às vezes essas doenças
são espirituais, não são físicas. Elas se materializam na matéria, mas tá no espírito. Então se
tu curar o espírito, tu curas a matéria. E ele disse: Ah eu quero ir. E veio tomar um daime
conosco aí. fez o trabalho dele coisa e tal. E lá pelas tantas quase no final do trabalho,
faltava uns 30% para terminar o trabalho, ele levantou pegou o casaco dele chamou a esposa
dele e saiu. Eu achei que a pessoa ia descansar um pouco porque a pessoa é cardíaca, coisa e
tal, quando eu vi um barulho de carro, chamei um fiscal: Escuta o cara aquele indo
embora? É tá indo embora. É, pois é, quando vi já estava saindo de carro. E foi embora. Aí
eu disse pra esse irmão que trouxe aquele rapaz: Tu vai atrás dele, ele pode ter um
problema, ele na força e coisa e tal! Bom! Resultado: na outra semana esse irmão
conseguiu encontrar ele e disse: Olha, porque que tu foi embora? Ele disse assim: Eu
tava sentado no meu lugar, naquela força, e do meu lado tinha um Senhor de branco do meu
lado, de bigode, e ele disse assim para mim: que tu fazendo aqui? E eu disse para ele:
Ah, eu vim procurar a minha cura! E ele disse assim para mim: então tu podes ir embora, tu
estás curado! Eu levantei e fui embora! Tava curado! Resultado: isso aconteceu 9 anos
atrás. Ele nunca mais tomou daime e tá trabalhando até hoje! Então são coisas que vejo
assim, que o daime nos revela, desse poder divino que também através do daime se revelam.
213
Apesar do discurso institucional udevista não estar formalmente direcionado
para cura, também observamos este aspecto no discurso e prática informais dos adeptos.
Um dos Mestres da Origem da UDV exemplifica um caso de cura per se:
Eu tive uma situação de saúde com o meu pai, que teve um problema de coração em Santa
Rosa e eu estava no meio de uma sessão (da direção), eu não tinha bebido o chá, que eu não
era da direção ainda, mas eu estava participando dos trabalhos na tesouraria naquele
momento e o meu pai foi pro hospital, o médico me chamou porque era uma situação muito
grave, que talvez ele não resistisse e eu me liguei com o Mestre Gabriel e com São Cosme e
São Damião e naquele momento eu disse que o médico poderia realizar a cirurgia que ele ia
sobreviver e o médico achou muito estranho e não entendia porque eu falava daquela
maneira em função do quadro ser gravíssimo. Assinei a documentação que ele exigia que
assinasse de um responsável e eu disse pode operá-lo que vai dar tudo certo e eu me liguei
em São Cosme e São Damião, utilizei as orações, chamadas que nós temos disponíveis na
UDV e o médico tinha me alertado também a respeito das seqüelas que poderiam acontecer
porque era uma cirurgia no coração, na aorta, uma dissecação da aorta. Foi uma coisa muito
delicada e eu liguei o pensamento no Mestre e pedi pra que meu pai tivesse a saúde
restabelecida e não tivesse seqüelas e fui atendido nesse pedido. E a recuperação do meu pai
era prevista para um longo tempo e na UTI eu levava vegetal na seringa e ele tava entubado
e eu colocava vegetal na boca pra ele beber e ele bebia o vegetal e três dias depois, coisa que
levaria uns vinte dias, e os médicos todos chamaram os alunos de medicina pra mostrar que
era um caso raro de uma pessoa que teria feito uma cirurgia daquela que é muito difícil
sobreviver e que teria que ter um tempo de recuperação longo, tivesse naquele estado para
se dar alta, pra ser liberado. E o meu pai não conhece o vegetal, o conhece a União a não
ser nessas circunstâncias, e um tempo depois, numa conversa que eu tive com ele, ele me
disse que o que salvou ele foi o vegetal. O que me salvou foi aquele negócio que tu
colocava na minha boca. Eu me salvei por causa disso!. Até hoje quando ele fala nesse
assunto, ele fala que o que salvou ele foi aquele líquido que eu dei pra ele.
também um tipo de cura per se, que ocorrem raramente e se manifesta
em casos onde não ocorrem mirações, mensagens e sim perda de consciência
manifestada em desmaios, apagões (que os daimistas chamam de passagens) dos
quais decorrem posteriormente uma cura. Uma vivência significativa também e
experenciada por quase todos ayahuasqueiros, pelo menos uma vez, são as sensações de
que se está chegando no limiar da morte, de estar morrendo, conhecidas como
experiências de quase-morte (EQM). Essas experiências como identificou Brissac
(1999b, p.15) são compreendidas como morte e renascimento, consideradas
fundamentais, pois é necessário morrer para renascer. A experiência com a
ayahuasca é vista nessas religiões como um renascimento, onde se adquire uma nova
identidade.
O impacto retórico imediato no contexto de uma sessão de cura varia entre
esses dons. Uma determinada miração ou uma mensagem fará provavelmente um
grande efeito na sessão, ao passo que o suplicante pode nem se dar conta que uma
214
palavra de sabedoria do mestre da UDV ou o conselho dado pelo padrinho foi fruto da
cura, até que algum evento posterior prove isso. A vantagem principal dessa bateria de
técnicas espirituais tomadas em conjunto, todavia, é que ela dá ao suplicante a
possibilidade de ser seu próprio curador, ou seja, o fiel-curador tem acesso através
de um chá ao divino reservatório de conhecimento, sabedoria, discernimento
resumindo de onisciência sobre si. O mestre na UDV é aquele que representa o Mestre
Gabriel na terra (muitas vezes sendo simbolicamente misturado a ele), com sua
sabedoria pode tocar a doutrina, transmitindo seus conhecimentos secretos,
aconselhar e orientar os discípulos, mas não curar.
O padrinho menor que representa o padrinho maior e é aquela pessoa
que tem condições de dirigir, de administrar um trabalho, comandando seu batalhão.
um processo individual, mas uma coletividade também, como no exemplo de
compor a corrente no Daime, a importância da corrente
67
para um bom trabalho, para
a cura que pode ser comparada a jornada do xamã: o exercício dos dons espirituais
permite ao padrinho participar misticamente da vida interior do suplicante e permite ao
suplicante participar dos resultados de processos endógenos experimentados pelo
padrinho. O padrinho controla seu batalhão, ele quando um guerreiro esta numa
perreia do mal e não está dando conta precisando de seu auxílio ou de um fiscal. O
fiscal é a pessoa que auxilia o dirigente para a condução de um trabalho tranqüilo de
fiscalização, que dizem respeito aos cuidados e apoio dado aos novatos e também as
pessoas que já tem certa caminhada dentro do Daime.
Tanto na UDV quanto no Daime um processo individual e um processo
coletivo também. Na UDV o mestre participa da vida dos discípulos no ritual de
perguntas e respostas e na observação de suas condutas no grupo. No Santo Daime o
padrinho participa comandando seu batalhão e aconselhando o membro quando este
necessitar, solicitar. Essa participação mútua não é fruto de uma interpenetração de
mentes é o componente fenomenológico da co-participação no projeto social de gerar
um discurso que é convincente, uma retórica que cria a experiência concreta do poder
divino (Csordas, 2008, p.64).
Um último elemento da força de persuasão na retórica de empoderamento é a
qualidade extremamente vívida ou eidética das imagens visuais, as mirações,
67
A participação na corrente é muito importante de acordo com Alverga (1984), a sintonia na corrente
é uma faca de dois gumes. Às vezes quando ela está harmônica nos abastece daquilo que nos falta. Outras
vezes, alguém começa a se confundir, o erro vai atrapalhando os outros e quem está firme tem que
deslocar sua energia para fortalecer aquele ponto que enfraquece.
215
experenciadas pelos suplicantes intimamente relacionadas aos efeitos químicos da
ayahuasca a força, a burracheira e tudo que dela advém. Essa ocorrência do
imagético eidético intensifica a percepção do poder espiritual, como fica evidente em
muitas declarações de que a miração o é imaginação, não é alucinação, ela é real e
daí a luta das religiões ayahuasqueiras pela não classificação do chá como alucinógeno
e sim como enteógeno.
Na Retórica de Transformação o suplicante deve ser persuadido a mudar
isto é, ele deve aceitar a transformação comportamental cognitiva/afetiva que constitui a
cura dentro do sistema religioso. Esse movimento equivale a uma reconstrução do
sujeito, a reforma íntima como se referem alguns ayahuasqueiros ligados à psicoterapia
reencarnacionista.
A regressão a vidas passadas proporcionada pela ayahuasca e muitas vezes
pela combinação de sessões de regressão sem o uso do chá, ocorridas paralelamente aos
rituais religiosos, tanto na UDV quanto no Daime é um modo complementar de
redirecionar a atenção do suplicante para a sua ão e experiência a fim de chegar à
construção de um sujeito que seja saudável, integral e santo.
A crença reencarnacionista aliada à presença divina é o elemento retórico
mais poderoso na visualização da cura. A presença divina é levada a percorrer toda a
vida pregressa do suplicante e quais outras vidas forem necessárias acessar a fim de
demonstrar concretamente o sentido dessa vida, da evolução espiritual e que Deus
realmente sempre esteve ali, embora muitas vezes não fosse percebido na antiga
concepção de si.
Na primeira vez que eu fui no Santo Daime [...] mais no final da sessão quando nós
estávamos cantando, o que hoje eu sei que é o Cruzeirinho do Mestre Irineu. Tava naquele
hino que diz assim: Ia fazendo uma viagem, ia pensando em não voltar. Os pedidos foram
tantos me mandaram eu voltar, me mandaram eu voltar eu estou firme vou trabalhar.
Quando começaram a cantar e eu comecei a cantar esse hino eu fiz uma viagem no tempo
que foi uma coisa incrível, que chamam de miração né. Eu fui assim há um tempo, que na
hora me veio, há 5000 anos atrás. Eu me vi pertencendo a um povo muito pacífico, que nem
conhecia a violência, que nem conhecia a agressividade. Um povo muito pacífico e por
algum motivo eu me emocionei muito com isso né. E por algum motivo numa outra
encarnação ou mais adiante, eu não sei como é que foi, eu me perdi daquele povo e
naquele momento ali eu estava reencontrando o meu povo de 5000 anos atrás, que era o
povo de Deus, que era o povo do Santo Daime. Foi muito emocionante, imagina né!
Nesse processo, o sentido da vida inteira do indivíduo é transformado pela
inserção concreta da presença de Deus, Jesus, o Mestre Irineu e o Mestre Gabriel. Ao
mesmo tempo, no interior de rias sessões, dos rituais religiosos, toda a vida da pessoa
216
é revista (em contraste com o longo tratamento da psicanálise e de outras terapias). A
configuração temporal de uma vida e de outras é reduzida de tal forma que pode ser
experienciada como um todo no presente. Essa combinação concreta de presença divina
e de construção de uma vida nova (ou passado novo) no presente é a chave retórica para
a transformação pessoal na cura dessas religiões ayahuasqueiras.
A cura não é efetuada por mãos humanas, mas pelo próprio Jesus ou sua
reencarnação o Mestre Gabriel para UDV ou o Mestre Irineu para o Daime através do
chá, esse veículo que te faz entrar em contato com Ele. Ao mesmo tempo, o papel do
suplicante não é inteiramente passivo, nas duas religiões ayahuasqueiras a doutrina
prega que tudo vem através do merecimento Lei do Merecimento. Merecimento de
algo feito nessa ou em outra vida. Como diz o Padrinho Alan: Acreditamos que a alma
reencarna em outros corpos. E nessas vivências muitas vezes a gente se perde, comete
erros e esses erros, pela justiça divina tem que serem reparados. De acordo com a Lei
Espiritual do Livre Arbítrio: O plantio é livre, mas a colheita é obrigatória e neste
sentido a doença, o sofrimento é um reflexo, uma conseqüência, uma decorrência dos
atos passados e uma necessidade divina de um projeto evolutivo espiritual, ocorrendo
um aprendizado, uma transformação pessoal voltada para uma prática do bem. E essa
transformação é o que muitas vezes possibilita a cura espiritual, bem como a caridade
ao próximo, a necessidade de sermos todos irmãos e do perdão para os responsáveis por
danos emocionais passados. A retórica de transformação exige a participação ativa do
suplicante e o seu compromisso declarado de mudar as idéias.
Posteriormente Csordas (2008, p.84-100) faz um refinamento dos elementos
do processo terapêutico, cuja especificidade consiste na disposição de participantes,
experiência do sagrado, negociação de possibilidades ou elaboração de alternativas, e
realização da mudança. O método de análise retórica do processo terapêutico proposto
pelo autor trata a cura como um discurso que ativa e dá forma significativa aos
processos de cura endógenos, fisiológicos e psicológicos no paciente. O efeito básico é
redirecionar a atenção do ou da paciente para vários aspectos de sua vida de forma a
criar um novo significado para essa vida e transformar o sentido de ser uma pessoa
inteira e saudável. É nesta perspectiva que analisarei a cura espiritual de adeptos e de
não adeptos, da União do Vegetal e do Santo Daime numa perspectiva comparativa e de
conversão, desconversão e reconversão. Conforme o modelo proposto por Csordas
(2008) estes relatos enfatizam o entendimento que o paciente tem de seu problema, suas
experiências do processo de cura, e como ele integra o seu resultado na sua vida
217
subseqüente se tornando ou o um adepto. Assim, não está inclusa a descrição dos
procedimentos cerimoniais dos rituais (descritos no capítulo três e quatro).
Caso 1: A cura espiritual de uma fardada do Santo Daime
Doricha
68
, 37 anos, está no terceiro casamento. É esposa do Mauro, o
médico psiquiatra terapeuta reencarnacionista, de 63 anos, fundador da psicoterapia
reencarnacionista como referido anteriormente. Ela é adepta dois anos do Daime
sendo fardada. Possui duas filhas, uma de dez anos e outra de seis, uma de cada
casamento anterior. Ele está doze anos nas religiões ayahuasqueiras, primeiramente
na União do Vegetal e atualmente no Santo Daime, possui quatro filhos de quatro
casamentos anteriores. Doricha freqüentou a igreja católica desde criança sendo uma
religiosa fervorosa. Aos 20 anos buscou o espiritismo porque escutava vozes e não sabia
o que fazer, muitas vezes pensando que estava louca.
Primeiro eu busquei o espiritismo porque ouvia coisas. Todos os dias ouvia me chamarem
no portão da minha casa. Era voz de homem, mulher, criança. Chegava lá e não tinha
ninguém. Achava que estava ficando louca. no espiritismo me orientaram a rezar por
essas vozes que eram almas pedindo ajuda. Foi o que eu fiz, eu rezava e as vozes sumiam
por um mês ou dois e voltavam aí eram outras pedindo ajuda. Eu sou médium, na verdade
eu sempre enxerguei. Com treze anos de idade eu enxergava a aura das pessoas, a energia
das pessoas. Tanto que na escola ao ins de estudar eu ficava viajando. Eu ficava
olhando essa energia que eu via nas pessoas e que eu nem sabia o que era na época. Na
verdade já estava comigo tudo isso. (Doricha)
Doricha freqüentou dois anos o espiritismo e depois voltou para igreja
católica, na qual toda sua família é praticante. E voltou a buscar o espiritismo depois
dos 30 anos por questões emocionais a partir de sua segunda separação conjugal.
Doricha relata ter sido curada no Daime de uma tristeza e uma mágoa que sentia desde
muitos anos, de outras vidas. Conseguiu se livrar do karma que tinha nos
relacionamentos conjugais, na qual nunca era feliz. Ela e o atual marido tinham este
mesmo karma, pois descobriram através do daime e de regressões a vidas passadas que
ambos fizeram um pacto de amor, prometendo nunca mais ficar com outras pessoas. E
era o que acontecia ambos tiveram muitos relacionamentos e casamentos problemáticos
no qual não conseguiam permanecer com seus companheiros e serem felizes. Doricha é
massoterapeuta sete anos, atualmente também é terapeuta reencarnacionista com o
68
Entrevista concedida em maio de 2009. Em janeiro de 2010 ela e o marido pediram afastamento do
Santo Daime por questões pessoais. Optei por manter o que eu havia escrito por já haver interrompido
meu trabalho de campo e por autorização dos entrevistados.
218
marido e ambos moram na comunidade do Santo Daime e trabalham em pareceria
voltados para cura espiritual das pessoas. Na igreja do Santo Daime Céu de São
Miguel da qual fazem parte realizaram muitas regressões em muitos adeptos. Diz
Doricha: Hoje eu já sei o que eu vim fazer aqui dentro do Daime. Hoje eu sei que eu
estou aqui para trabalhar com o Daime de cura. Eu vim trabalhar para cura.
Doricha relata da seguinte forma sua experiência com o Daime e o
entendimento de sua doença/cura visto a partir de uma libertação de um karma:
Eu freqüentava uma escola de massoterapia em Passo Fundo onde eu morava e onde eu fiz
todos os meus cursos. E eu tinha uma amiga lá e o Mauro (seu marido) tava dando um curso
de reencarnação. Ela me convidou para fazer o curso e eu disse que não porque eu tinha
medo dele, sem conhecê-lo e sem saber porque. Então ela me apresentou para ele, ela me
obrigou praticamente a ser apresentada para ele. Ele me disse que este medo que eu sentia
era de outra vida passada, ele disse que eu tinha que fazer uma regressão e foi embora para
Porto Alegre. eu pensei com quem eu vou fazer regressão se eu não conheço ninguém
que faça regressão. O que aconteceu foi que eu entrei em regressão sozinha. Eu já
freqüentava a casa espírita e eu via muita coisa dentro da minha casa e uns dias depois eu
ouvi uma voz que disse: Vai para o teu quarto e fecha teus olhos. Eu pensei que eu tava
enlouquecendo, tava pirando. Daí a terceira vez a voz falou de novo: Vai para o teu quarto,
senta na cama e fecha os teus olhos. Então eu pensei a terceira vez ouvindo a mesma coisa
eu vou obedecer. Aí eu obedeci, fui ao meu quarto fechei os olhos e vi uma imagem como
se eu fosse uma moça de cabelos longos, crespos, vestida de noiva, entrando numa igreja e
eu casei com uma pessoa e a minha surpresa que essa pessoa que eu estava casando era o
Mauro, que numa outra vida e quando eu saí com ele da igreja depois da cerimônia tinha
um homem nos esperando do lado de fora que assassinou ele. Nós juramos ser eternamente
um do outro e de mais ninguém. Eu fiquei um mês com isso guardado para mim. Nesse
tempo eu conversei com o V que é hoje o nosso padrinho de casamento. Ele é psicólogo e
quando eu contei toda história para ele, ele deu risada e me disse se o Mauro te convidar
para ir no Daime tu vai. O que? Daime? É! Se ele te convidar para ir no Daime tu vai. Daí
passou um mês e quando o Mauro voltou e eu conversei com ele, ele me convidou mesmo
para ir no Daime. Ele me disse: Vamos no Daime? Ele disse: É um chá. Vamos no
Daime hoje a noite? Eu não tinha como ir, mas aí eu consegui resolver os meus problemas
pessoais e fomos no Daime. Eu então cheguei no Daime de pára-quedas pela orientação do
V e pelo convite do Mauro. Então eu fui no Daime a primeira vez em Passo Fundo, lá não é
uma igreja fixa como aqui, eles têm sempre um lugar diferente que fazem os trabalhos.
eu tomei o chá pela primeira vez, primeiro foi sentado depois foi bailado, mais ou menos na
metade eu comecei a sentir a força do daime e comecei a bailar e a sentir algo muito forte
que eu não sabia o que era, eu não conseguia para de olhar para ele e ele de olhar para mim
e aí eu não queria aceitar isso porque eu não achava legal me apaixonar por um homem mais
velho. Daí eu fui sentar num canto brigando com tudo aquilo que tava passando dentro de
mim, que eu tava vendo, que eu tava sentindo. Passei mal, fui lá pra fora, não consegui fazer
limpeza (vômito). Eu nunca fiz limpeza na minha vida porque eu não sei. eu entrei
sentei e uma pessoa que já era do Daime me orientou a bailar de novo e cantar os hinos. Eu
fui bailar e neste momento uma moça que era fardada que estava na minha frente saiu da
minha frente e foi bailar mais ao lado e nesse momento o Mauro olhou para mim e eu olhei
para ele e aconteceu uma coisa que foi mágica que eu não sei explicar ahoje. Eu vi uma
explosão de cores e foi como se a gente tivesse se reencontrado um ao outro. Daí terminou a
sessão e tal, todo mundo se abraça como em todas as sessões e ele veio, me abraçou e me
disse as seguintes palavras: Tu é a mulher da minha vida que eu procuro muitos anos,
que eu estava procurando e pedindo para o Daime me trazer e ele me trouxe e é tu. Eu não
sei como posso te dizer isso, eu não te conheço e sinto isso por você! A partir daquele dia a
gente ficou junto, 20 dias depois a gente colocou as alianças, isso era junho ou julho. Em
dezembro a gente casou dentro do Daime aqui na Igreja Céu de São Miguel. E aí eu comecei
a freqüentar o Daime. Eu tava trabalhando a minha mediuinidade, eu trouxe as minhas
219
filhas também para o Daime, que eu tinha um pouco de receio de dar o chá para elas. E
tudo foi se abrindo. Desde o momento que eu casei dentro do Daime eu comecei a receber
mensagens de coisas que eu tinha que fazer, na minha missão como pessoa que acredita na
espiritualidade. [...] O Daime curou minha tristeza, as mágoas que eu tinha, meu karma, me
deu o meu amor, abriu minha mediuinidade que eu vinha buscando muito tempo, me
mostrou quem eu sou com todos os meus defeitos e todas as qualidades. Hoje eu sem quem
eu sou. Sou muito grata.
Caso 2: A cura espiritual de um sócio da União do Vegetal
Girassol, 36 anos, é casado, possui três filhos. É sócio cinco anos da
União do Vegetal juntamente com sua companheira. Atualmente possui o cargo
hierárquico de conselheiro e é um forte candidato a ascensão de mestre. Seus filhos
também freqüentam a UDV. Girassol trabalha como mecânico. Nasceu no berço de uma
família de Testemunhas de Jeová, vivendo intensamente a religião desde muito criança:
Nasci no seio de uma família que era, eles eram da religião Testemunho de Jeová. Meu pai,
mãe e avô. E na comunidade que nasci, boa parte das pessoas, freqüentava essa religião. Era
muito divulgada ali. É uma religião protestante. Não aceitavam a idéia do espírito, da
reencarnação. Inclusive se pensa como uma coisa do outro lado, que é oposta À Deus. É
visto como um ensino satânico. Coisa muito pesada. Então, essa idéia de reencarnação de
espírito não é aceita por eles. Fui criado desde criancinha naquela doutrina deles ali. Tive
muito ensino blico, muita instrução bíblica desde muito pequeno. Antes de aprender a ler
já estudava a Bíblia. Quando aprendi a ler comecei a participar mais dos estudos. Eles têm
uma dedicação muito grande com o estudo da blia e com os ensinos que são chamados
Torre de Vigia. Mandam os livros para poderem acompanhar e facilitar o entendimento da
Bíblia, segundo a interpretação deles. Eles também têm um trabalho de casa em casa.
Divulgam as boas novas do Reino, o Evangelho De Jesus, vão de porta em porta, nas
pessoas e tal. Então a idéia que eu tinha da vida, da religião, De Deus, era que eu tinha a
obrigação de pregar às pessoas o Evangelho até o dia que Deus Ia Permitir, que Ia Destruir a
humanidade e que só sobrariam aqueles que fizessem a Vontade De Deus.
Com o tempo e principalmente na adolescência Girassol começou a
questionar algumas crenças de sua religião de origem até conseqüentemente ser afastado
da religião aos 18 anos:
Comecei a questionar algumas coisas na religião. Inclusive uma das coisas que eu questionei
logo bem pequeno e que ficou na minha memória, porque o tive resposta imediata, foi
sobre a história de Salomão. A Bíblia tinha a Salomão como um grande sábio, um grande
rei, um homem inteligente, um rei da humanidade que foi importante e que foi o rei da
ciência. Era o homem mais sábio que tinha na Terra e não haveria outro mais sábio do que
ele. Isso eu tinha seis anos, sete anos de idade quando comecei a estudar e saber dessas
histórias, mas que Salomão tinha errado. Ele havia se desviado do caminho De Deus, que
eles chamavam de Jeová e que Salomão havia perdido a vida, ele iria morrer, não teria
direito a ressurreição porque errou Com Deus. E aquilo ficou na minha memória. Por que
quando eles chegavam e me contavam que Salomão era aquele rei majestoso e eu, criança,
220
criei a imagem de um Deus assim e pensava mas como pode um rei tão sábio ter errado? E
aquelas informações ficaram na minha memória e cresci com aquela vida. E outra coisa
era da gente morrer e as pessoas que não ouviram as Boas Novas, não ouviram Sobre
Deus, não têm chance, vão morrer e não terão a possibilidade de ter uma nova vida. Por que
eu dizia para mim mesmo quando ia pregar na casa das pessoas, pensava: A gente têm que
ter amor pelo ser humano. Por quê eu prego? Por quê eu tenho que ir minha mãe na casa das
pessoas? Por quê a gente têm que ter amor pelas pessoas, tem que amar as pessoas como a si
mesmo e tal?. Então eu ia com aquela convicção de que eu estava amando as pessoas ali.
Então eu percebia que algumas pessoas nunca tinham ouvido falar Em Deus, nunca
tinham lido a Bíblia, nunca tinham tido nenhum tipo de conhecimento daquele que eu estava
dando ali e que aquele conhecimento que eu estava dando iria salvar ela. Só que percebi que
as pessoas tinham dificuldade de entender como eu entendia. E aí, percebi que era uma
compreensão minha daquilo ali. E, com 13, 14 anos, comecei a perceber isso. Então, ficava
ensinando para as pessoas aquilo como eu compreendia e a minha compreensão não cabia
na dela e não dava: Não! Mas é assim! Eu ficava tentando convencer ela, mas ao mesmo
tempo eu pensava: Nossa eu to querendo convencer ele de uma coisa que tem desde
criança que tão me convencendo que é assim e eu quero em poucos dias ensinar a ele e
querer que ele compreenda da minha forma. eu falava para as pessoas que tomavam a
dianteira lá na congregação: Mas como é que eu posso ensinar para uma pessoa uma coisa
que eu venho aprendendo tantos anos e eu mesmo ainda tenho dificuldade de
compreender desse jeito. Então estou tentando entender. Eles me diziam: Ah! Mas é
com Deus e eu perguntava: Mas eles vão ser destruídos?e eles respondiam Vão ser
destruídos, vão morrer. Vai vir o Armagedon, o Apocalipse (risos) e vão morrer. Mas eles
não tiveram tempo de estudar como eu estudei, com o meu avô, com aminha avó, com
minha mãe e eles diziam Ah! Mas aí é coisa de Deus e eu insistia: E eles vão morrer? e
eles diziam Eles vão morrer e eu questionava: Mas porque eles não nasceram também na
religião como eu nasci? E vinha o meu sentimento e eu ficava imaginando as pessoas
morrendo e sem a chance que eu tive. Eu pensava: Eu sou esse privilegiado todo? (risos).
Aí eu comecei a questionar algumas coisas assim e eles não gostaram. Eu senti que eu fiquei
um pouco isolado na religião. No grupo de jovens eu comecei a ficar mais isolado das
pessoas. Eles faziam reuniões e não me convidavam. Eu era visto como um fraco
espiritualmente. Eles me falavam que eu questionava demais. E nisso eu fiquei um pouco
isolado da espiritualidade, da forma como eles falavam de Deus.
Depois de se afastar da religião Girassol foi entrando em depressão, se
casou, teve filhos, foi tentando encontrar outra coisa que desse conta de suas
questões, passou a estudar filosofia, astrologia, espiritismo kardecista, tentou
freqüentar a umbanda, mas nada respondia as suas perguntas espirituais:
Eu me sentia morto espiritualmente, eu achava que não tinha mais jeito para mim, eu tinha
abandonado Deus, eu não tinha conseguido compreender Deus da forma que eu tinha que
compreender, porque eles disseram que era daquele jeito e como eu não conseguia
compreender daquele jeito eu era incapaz. eu entrei num período de muita depressão
também [...] tentei buscar outras religiões [...] e eu sempre com muito medo disso aí. Eu
ouvia a idéia de reencarnação, porém eu tinha medo de me aprofundar, era uma coisa que
me encantava e ao mesmo tempo me trazia um medo porque eu trazia aquela doutrina desde
criança de que espírito era coisa de diabo, não era de Deus. Então eu beliscava, mas o
aprofundava muito. E nissoeu fui tendo muitas dificuldades na vida: eu comecei a beber,
eu me casei, tive meu primeiro filho, veio as dificuldades financeiras e essa coisa mal
resolvida dentro de mim, que eu achando que eu estava fora de uma ordem superior, que eu
não tinha seguido aquela doutrina que os meus pais tinham tentado me passar. Aí eu achava
que eu tava fora de uma ordem. Eu não me sentia nem no mundo, nem um ateu nem nada e
nem um religioso. Eu ficava no meio, numa relação meio desconfortável e isso foi se
passando durante muito tempo e eu por volta dos 30 anos eu tava com muita depressão na
221
vida, tava bem deprimido mesmo. E eu tinha lido muitas outras coisas, muitos assuntos
espirituais, muitos livros, mas eu não conseguia uma resposta satisfatória, eu não conseguia
sentir, convencer a mim mesmo, nada convencia a mim mesmo. Toda a resposta que eu
recebia ela era insuficiente e durante um período eu tive alguns negócios. Meus negócios
nunca deram certo, faliram, começavam e eu desistia no meio do caminho. Meu casamento
também tava quase acabando. tinha meus filhos, a dor que eu mais sentia na alma, mais
profunda era que eu quando nasceu o meu terceiro filho eu entrei numa depressão muito
forte mesmo porque eu pensava o que eu vou dizer para os meus filhos o que é a vida? Eu
tenho três filhos na terra para dizer o que é essa terra aqui. O que é isso aqui? Eu sentia um
vazio tão grande dentro de mim que eu não tinha o que dizer para eles. Ah esse aqui é
Jesus! Mas eu nem sabia quem era Jesus direito. E ele é que é Jeová? Quem é Jeová?
Quem é Jesus? Eu não conseguia entender. Vamos reencarnar? Como? Como é esse
negócio de reencarnação? Como que isso aí acontece? As dúvidas que eu tinha eram muito
grandes. E eu não conseguia convencer a mim mesmo e eu sentia que meus filhos iam sofrer
muito na vida, porque como eu sofria, eu não tinha resposta, ia botar eles no mundo muito
difícil, muito complicado e eu tinha vontade mesmo era de morrer. Eu fiquei com vontade
de morrer uma época. Eu também comecei a caminhar no vazio. Bebia por beber. Bebia
para tentar ver se eu morria logo.
Girassol morava em Salvador e nesse período de busca falava com um e
outro procurando uma religião, uma doutrina ou uma filosofia que o auxiliasse,
acalentasse por completo. Até o dia em que um primo seu que estava morando em Porto
Alegre, ligou para ele falando da União do Vegetal, uma religião na qual se tomava um
chá o qual dava todas as respostas necessárias. Girassol procurou a UDV em Salvador,
mas devido ao funcionamento da UDV de realizar sessões esporádicas para os
adventícios através de um convite ele foi a POA para tentar beber o chá através de
seu primo. Chegando a POA conseguiu em seguida participar de uma sessão. Girassol
relata da seguinte maneira sua primeira experiência na UDV, as compreensões obtidas,
as mirações, etc:
no dia 27 de maio de 2005 quando eu bebi o vegetal pela primeira vez deu em torno de
15 minutos depois que eu bebi o vegetal eu comecei a chorar muito. Porque todas as
respostas que eu procurava desde criança, o vegetal me levou para minha infância e
começou a me trazer até aquela idade que eu estava ali. Isso dentro de um período de tempo
de 5 minutos, eu fiz uma viagem de 30 anos. Eu me vi desde muito criança lá, muito criança
mesmo, um bebê caminhando, aprendendo a falar, ouvindo uma conversa, amanhecia na
sala, os meus avós, eu estava naquela sala, coisa que eu não me recordava de jeito nenhum
no dia a dia, nem sabia que aquilo estava na minha memória. Eu vendo meu avô na sala
caminhando, minha mãe, meus pais. Eu saindo para pregar para as pessoas, para ensinar
para as pessoas sobre a Bíblia, sobre Deus, eu falando de Deus, me via chorando, meu
casamento, as dificuldades, tudo, veio toda a minha vida assim num período de tempo muito
curto e quando eu abri os olhos, a sessão tava recém começando. levantou uma pessoa,
começou a falar, era uma conselheira, quando ela começou a falar, ela disse assim:
Vocês que estão chegando hoje, que estão bebendo o vegetal pela primeira vez, é uma
alegria para gente recebê-los aqui, vocês devem estar percebendo um movimento estranho
na memória de vocês. Alguns de vocês podem estar recordando alguma coisa. E quando
ela começou a falar eu comecei a ver um anjo. Ela falava e um anjo estava falando do meu
lado. Aí, eu começava a chorar bastante, mas chorava muito assim. É uma alegria receber
pessoas novas. Essa força que vocês estão se aproximando é uma força espiritual que a
222
gente chama de burracheira. E ela ia falando aquilo e eu ia tendo uma sensação de que eu
já estava ali muito tempo, que eu conhecia aquilo muito tempo, que era uma coisa
muito próxima minha. E toda minha vida, minha encarnação, desde que eu nasci, foi um
pequeno intervalo entre aquela sessão que eu estava sentindo e aquilo tudo que eu tinha
vivido. Então, tudo o que sofri, tudo que vivi, foi um intervalo de tempo muito curto. Isso aí
percebi num intervalo também muito curto de tempo. Foram uns 5 minutos entre quando eu
comecei a perceber essa, a ter essas recordações na memória e o que ela falou era muito
pequeno também o espaço, vinha tudo e tudo sintetizado. Era uma síntese muito completa
da minha vida. Aí, comecei a perguntar onde é que eu andei esse tempo todo. Por quê eu saí
desse lugar? Mas eu estava aqui. Eu estava ali, tinha saído e tinha voltado. Aí, comecei a
olhar para o teto do núcleo (risos), olhar para as pessoas assim, mas eu estava ali. Como se a
minha vida tivesse essa saída daquele lugar e voltado. Teve um momento que eu parei:
Pera aí, eu to ficando doido?. Esse negócio está me deixando doido e isso dentro de um
choro muito grande. Aí, quando ele começou a fazer as chamadas, comecei a entrar num
estado mais difícil, comecei a lembrar dos meus filhos, das coisas que eu não estava
fazendo. Teve um momento que eu comecei a... Eu entrei num lugar muito bonito assim.
Um jardim muito lindo, verde, com muitas flores, árvores, uma paisagem das mais lindas
que eu tinha visto, que eu nunca tinha visto na Terra assim. Um lugar muito lindo mesmo,
com muitas flores, um campo, um bosque espetacular. Estava sentado nesse lugar e um dos
meus filhos me chamou: Meu pai!. Então, quando ele me chamou (choro)... Recordo isso
aí, eu... (gaguejos e choro). Quando ele me chamou, comecei a sentir o que não tinha, não
estava vivendo com eles, né. Eu estava vivo! Estava vivo ali no dia a dia, mas não conseguia
sentir a importância deles, do meu filho, da minha mulher. E naquele lugar ele me chamou.
Aí, comecei a chorar muito mais. Foi muito mais forte do que eu imaginava. Um dos meus
filhos me chamava, aí quando eu virava os olhos, os 3 saiam correndo. A gente começava a
correr os 3 juntos, os 4. Tem uma hora que caio no chão e eles caem por cima de mim e a
gente começa a sorrir muito. E ele: Meu pai, meu pai, meu pai.... E o sorriso deles era de
muita saúde, de muita felicidade. Depois dessa sensação de muita, muita, muita paz, muita
felicidade, muita felicidade profunda, profunda mesmo. A burracheira me levou para uma
outra situação, me levou para uma situação em que na época eu bebia, ficava nos bares
sentado, na mesa dos bares e o que estava procurando naquela situação da bebida, do álcool,
era aquele estado de felicidade! Ficava sentado no bar! Numa época lembrei de algumas
noites que passei, em que sorria, mas meu sorriso escondia um sofrimento e eu não estava
feliz, estava buscando um estado de gozo, de satisfação da vida, que não estava ali. E como
eu não encontrava ali, eu bebia mais e mais, querendo até me destruir, foi quando eu queria
me destruir com a própria bebida, fingindo que estava gostando daquela situação. E aí eu
tive algumas situações que eu deixava meus filhos muito só. Uma vez eu abandonei eles
assim: Eu estava num domingo em casa e um amigo meu chegou, me chamou para sair e eu
tinha combinado de ir para praia com eles e o meu amigo chegou e disse: vamos sair, tem
um pessoal lá, não leva teus filhos não cara. E eles estavam tudo arrumado me esperando,
aquela coisa para sair. E eu resolvi sair para beber com eles (os amigos). eu entrei no
carro com ele, só que eu me escondi para sair. Eu brinquei com eles, botei eles num quarto e
sai escondido pela sala para eles não verem que eu ia sair. Abandonei eles né. quando o
carro começou a arrastar (se emociona), eles saíram na porta da rua e começaram a gritar e a
chorar, o meu filho pequeno caiu no chão de joelho, ficou de joelho chorando e falando:
meu pai, meu pai. E aquela imagem do meu filho de joelho e o outro correndo, correndo,
correndo atrás do carro até onde pode e o mais velho ficou de pé de longe me olhando. Um
parado sem reação, o outro de joelho e o outro correndo atrás do carro. E a burracheira me
levou para aquele momento ali. Ela começou a me mostrar o que eu estava fazendo com a
minha vida. A benção que eu tinha na vida, com as coisas que eu tinha, os meus filhos, a
vida que eu tinha e não conseguia enxergar, eu via, mas não enxergava e as coisas que eu
poderia ter. Se eu conseguisse ver o que eu tava recebendo da natureza, de Deus, da minha
existência entre outras coisas que ela foi me mostrando da minha vida, com o meu desprezo
com o trabalho, as minhas depressões que eu não conseguia sentir satisfação com as coisas
que eu vivia. Então foi todo esse movimento, isso aí em poucas horas de sessão. Isso tudo aí
não tinha nenhuma hora ainda que tinha iniciado. Foi durante as chamadas que o Mestre
Fernando tava fazendo, entre a explanação e a chamada todo esse movimento ocorreu na
minha cabeça. quando ele abriu a sessão para as pessoas perguntarem, eu estava num
estado muito estranho, porque aquela sensação que eu tinha de que eu conhecia esse
trabalho espiritual, conhecia aquela sensação e que eu tinha saído e tinha voltado num
223
período de tempo muito curto, me dava só a convicção de que aquele lugar que eu estava ali,
era o lugar melhor que eu tinha para viver com a minha vida.
Compreensão do Caso 1 e do Caso 2:
A cura espiritual, a transformação pessoal no Santo Daime e na União do
Vegetal é baseada em uma filosofia da auto-estima. Através da ingestão sacramental
da ayahuasca, o suplicante adquire uma profunda conexão pessoal com o sagrado. O
princípio terapêutico da cura é didático. A doutrina por sua flexibilidade e abertura é
re (construída) e alcançada por meio desta conexão com o sagrado. De acordo com
Soares (1994, p.217) a doutrina plástica do Santo Daime produzida como percepções
sensoriais reveladas misticamente e investida pelo fluxo de imagens, visto que, a
alteração da consciência efetuada pela ingestão do chá afeta, sobretudo o campo visual-
imagético, provocando freqüentemente o que chamam de mirações, que acabam
constituindo o instrumento de trabalho espiritual dotado de superiores efeitos didáticos.
Na sua tese de doutorado em sociologia: O Santo Daime o professor dos professores:
a transmissão do conhecimento através dos hinos, Bezerra de Oliveira (2008) analisa a
relação entre ensino e aprendizagem a partir dos hinos, do transe e da performance.
O princípio didático está em ter um entendimento de seu problema e bem
como a idéia de que o sofrimento é uma ferramenta de aprendizado. É algo que tu tem
que passar. É um critério compartilhado de êxito na cura de que o paciente venha a
entender, tenha um entendimento de sua doença/cura, um entendimento que é de
natureza solitária. Observe o relato de Doricha:
Com o Daime eu melhorei a minha tristeza, eu era uma pessoa muito triste, eu me escondia
porque eu vim nessa vida para não me esconder mais. Eu passei várias vidas triste e me
escondendo. Então eu venho hoje nesta vida para não me esconder mais, eu vim para falar,
eu vim para aparecer. Eu trabalhei muita mágoa no Daime, muita tristeza. Eu já acessei oito
vidas passadas senão mais. Com o Daime eu não vejo situações de vidas passadas, com o
Daime eu sinto a tristeza, a mágoa, eu tenho sentimentos e quando tu faz a regressão tu o
que tu fez, o que tu foi, o que tu era. Quando tu toma daime aflora, e uma das coisas que
aflorava muito e aí eu resolvi tomar um pouco menos de daime porque chegava a ter
trabalhos que eu tomava e ficava o outro dia todo irritada e tomando menos daime me
aflorava tudo isso e eu conseguia trabalhar tudo isso depois. E eu tomando muito daime no
outro dia eu brigava com a família inteira e o objetivo do Daime não é esse aí, é tu se
melhorar e não piorar. Cada pessoa tem sua sensibilidade e eu sou muito sensível ao daime.
[...] No Daime é assimtudo errado e tá tudo certo. Quando tu tá passando por uma peia,
224
que são os momentos difíceis de mal estar, de mirações e outros sentimentos aflorados tá
tudo errado, mas tá tudo certo porque depois tu vai ver o porque de tudo aquilo. No começo
tu não entende o que tu sente, o que tu passa no Daime. O daime aflora muitas coisas e o
entendimento vem depois. O nosso grande professor é o daime, tu tem que tomar daime e ir
aprendendo.
Na União do Vegetal encontramos o mesmo princípio com base na crença
reencarnacionista, veja o relato de Girassol:
Tem uma coisa muito interessante que uma das coisas que eu tinha em mim e que me
prejudicou um tanto nessa vida, um tanto mesmo, é que eu tinha um medo. Inclusive a busca
que eu tinha espiritual de querer conhecer mais a espiritualidade é pelo amor que eu tinha a
minha mãe, aos meus pais, aos meus irmãos. Era um amor muito forte que quando se falava
em fim de mundo, quando se falava em morte eu sofria muito, muito mesmo. Eu me lembro
quando eu estava na primeira série, a professora fez um discurso na sala de aula, era falando
sobre morte, sobre se cuidar para não morrer, eu entrei num estado de sofrimento muito
grande porque eu imaginei como seria eu perder a minha mãe, meus irmãos. Aquilo me
tocou muito profundamente e eu ficava muito sentido em imaginar que eu poderia perder
alguém que eu amava e aquilo me tornava meio apático, eu amava tanto e não me
aproximava porque eu tinha medo de sofrer. Mas eu estou aqui e posso perder essa pessoa.
Então eu era uma criança que não demonstrava muito meus sentimentos, ficava meio
reprimido. E então um dia numa sessão, eu vivenciei, não o meu eu Girassol, eu tava vendo
uma situação em que eu era uma mulher que tinha dois filhos, eu era uma mãe com dois
filhos e eu morava numa casa, num lugar bem, era um campo assim, com casas grandes no
campo. Lembro das portas, janelas, dessas casas com muita riqueza de detalhes. Estava
sentado no sofá da sala e sendo consolado por uma pessoa, eu chorando muito, chorava,
chorava, chorava, muito mesmo e aquela pessoa abraçada comigo me consolando: Acredita
Em Deus, pensa Em Deus,confia Em Deus.. Aí, entra uma pessoa na sala e vem me dar um
abraço e entra no quarto onde estava as duas crianças. Quando essa pessoa entra, passa um
tempo no quarto, quando ela volta, volta séria, muito séria e me abraça. Me abraça forte. Era
uma dor, assim, indescritível. Era uma dor muito profunda mesmo. Nem sei como estava o
meu corpo na cadeira nessa hora na sessão, mas era uma sensação, uma dor das mais
horríveis que pude sentir na minha vida. Era o medo da morte que eu tinha quando era
criança, que eu imaginava, era aquilo que eu sentia. A pessoa me abraça e me diz assim:
Tenha Em Deus, eles morreram.. Aí, quando ela disse que eles morreram, era um
sofrimento assim que era muito alto, era como cair de um abismo, uma coisa muito esquisita
mesmo. Tão alta que eu percebi que eu não estava respirando, no momento eu dei um
estalo assim na sessão, que eu levantei. O Mestre fez uma chamada, eu não lembro a
chamada exatamente qual foi, mas eu dei um suspiro assim: Ãhhh!. E puxei o oxigênio
com toda força. E quando eu puxei o oxigênio com toda força eu olhei e eu estava na sessão.
Aí, quando eu estava na sessão, que eu fechei o olho de novo, eu abri o olho, vi que eu
estava na sessão, quando eu fechei o olho de novo voltei para a situação e aquela mulher
estava chorando e aquela mulher estava ali, que era eu mesmo. Tinha passado o tempo, a
dor da morte tinha passado e eu estava vivendo uma outra situação. Então, aquele tempo da
dor e aquele tempo que eu estava ali e quando eu olhei para o lado estavam os meus filhos
do meu lado na sessão. Eles estavam participando da sessão. Os meus dois filhos mais
velhos estavam participando da sessão. Aí, eu olhei para eles com muito carinho, eu
comecei a chorar muito na sessão, peguei as mãos deles e apertei. E a dor que eu vivenciei
foi num tempo e que aquele tempo passou e que as coisas mudam na Terra, se transformam.
Nada morreu, está tudo vivo de novo, renascendo de novo. E daquele dia em diante alguma
coisa que eu estava precisando curar eu tinha curado. Que o medo da morte, medo de
perder, desapareceram de uma forma bem interessante. Ao mesmo tempo que eu estava lá
naquela época eu estava ali. Então o tempo estava dentro do tempo e eu consegui ver que
tudo é questão de pensamento, de espírito, que a gente está dentro de tudo, que aquela dor
passa também. A minha compreensão naquela encarnação é que não chegava a alcançar e
225
quando as pessoas diziam tenha Em Deus, eram palavras vazias naquele momento.
Naquela hora que eu estava com a dor ali, ela não tinha muito significado para mim aquela
fé Em Deus. Mas quando ela falou tenha fé Em Deus, que eu vim para a sessão e estavam
presentes ali, meus filhos estavam vivos, eu estava com saúde, eu vim entender o que era ter
Em Deus. Que Deus É muito mais do que a gente possa imaginar e aquilo ali me fez
sentir muito bem e eu consegui me livrar de alguns traumas, alguns bloqueios, que eu tinha
com relação à vida. Em todos os aspectos eu me senti mais feliz. Me deu mais serenidade
para viver. Essa é uma das, que eu tenho pra mim como uma regressão.
Como Doricha fala da importância da peia, dos momentos difíceis de
sofrimento, para poder obter curas e entendimentos, pois são situações sempre
divinamente guiadas Girassol também reforça esta idéia:
[...] aí comecei a ter um enjôo muito forte, comecei a vomitar, saí do salão rápido, comecei a
vomitar muito. É o que chamo de peia, né. Tomei muita peia, peia, peia! Alguns
minutos assim (risos) de muita peia. Mas, dentro da peia, num sofrimento muito grande,
começava a sorrir. Quando começava a sorrir, foi quando estava sofrendo na peia. Era um
sorriso diferente. Estava gostando de apanhar. Aí, lembrei de uma frase de um avô meu.
Que meu avô me dizia nos estudos bíblicos que eu tinha, que dizia assim: Deus apreende a
quem ama, ou seja, Ele disciplina a quem ama e quem não recebe disciplina do Todo
Poderoso, De Deus, na época não era amado Por Deus. A gente tinha que aceitar a disciplina
que vinha do alto e naquela primeira vez na minha vida, consegui entender o que era essa
frase, a disciplina que estava recebendo ali. Vomitava e relaxava ao mesmo tempo. Era
situação desconfortável e ao mesmo tempo muito confortável. Sentia que tinha uma força
superior cuidando e tudo que havia vivido estava sob controle. Não estava em alguma coisa,
fora de alguma coisa. Estava dentro de uma proteção, de uma guarnição. Me senti acolhido
ali. Me senti na minha casa, me senti na casa De Meu Pai, me senti muito feliz. Depois
desse vômito, voltei pro salão e continuei fazendo perguntas, mas eu me sentindo muito
próximo do Mestre, do ensino. A vontade que tinha era de abraçar a todos que estavam ali.
A partir daquele momento, firmei aquela idéia de que estava em um lugar muito especial e
que era o lugar que conhecia. (Girassol)
As situações de peia mostram o quanto à cura desafia as forças do caos no
seu próprio domínio ontológico, afirmando que por trás de sua elocução aparentemente
sem significado reside uma ordem moral e cosmológica inabalável e divinamente
motivada (Csordas, 2008, p 65).
O primeiro componente do modelo de processo terapêutico proposto por
Csordas (2008) é à disposição dos suplicantes, tanto no sentido psicológico do seu
temperamento predominante ou da tendência a se envolver em performance ritual,
quanto no sentido sico de como eles se colocam frente à rede social e aos recursos
simbólicos da comunidade religiosa. No tocante à disposição é evidente que Doricha
estava culturalmente disposta a aceitar a sua história kármica, pois ela tinha uma
crença mística religiosa em sua mediunidade e na reencarnação tanto é que havia
226
passado pelo espiritismo, porém não encontrando alívio para suas mágoas e tristezas.
Doricha relata da seguinte maneira sua experiência no catolicismo e no espiritismo e a
relação com o Daime:
Antes de chegar no Daime eu era da igreja católica, desde criança eu era muito católica,
muito mais que as minhas irmãs, eu sou a mais velha tenho mais duas irmãs. Eu participei
do CLJ que é um curso juvenil dentro da igreja católica, sempre fui líder nessa parte, sempre
trabalhando com as pessoas que iam entrar para dentro do CLJ. Sei tudo do culto da igreja
católica, sempre tive dentro, eu sentia a força da comunhão, que é uma força muito
grande. Eu acredito muito no Espírito Santo, eu trabalho com essa força, ela existe dentro do
Daime também. Mesmo não se comungando, mas tomando o chá, existe a força do Divino
Espírito Santo. Na verdade o Daime é religioso, ele é religioso porque o nosso fundador que
é o Mestre Irineu ele é muito religioso, tanto que se reza Pai-Nosso, Ave-Maria, Salve-
Rainha, se acredita no poder do Divino Espírito Santo. É uma continuidade na verdade. A
diferença do Daime para Igreja católica é que é todo um ritual e que na igreja católica você
não se trabalha para se olhar os seus defeitos, as suas coisas e dentro do Daime voo
tem como entrar nessa religião e não se olhar, não se melhorar. [...] Eu fui do espiritismo
também antes de chegar no Daime. Eu estava no espiritismo, estudando o espiritismo,
trabalhando no espiritismo, psicografando com as entidades que chegavam para trazer
mensagens e daí quando eu entrei no Daime é como se eu começasse tudo de novo. Como se
fosse uma escadinha de começar tudo de novo. A mediunidade foi abrindo uma outra forma,
hoje a minha mediunidade é aberta para enxergar, ouvir, sentir, até o olfato, paladar, tudo
abriu. Então hoje é um outro trabalho que eu faço. Eu sou médium de transporte, eu saio do
corpo dentro do trabalho e viajo com a entidade que está comigo para trabalhar com cura.
No caso de Girassol também é evidente sua predisposição, como Doricha
procurava alívio para suas mágoas e tristezas em uma doutrina religiosa, Girassol
apresentava uma depressão decorrente de questão existencial de procedência religiosa,
tendo entrado em conflito com sua religião de origem e buscando outra que o
acalentasse. A União do Vegetal vai justamente de encontro aos questionamentos que
Girassol tinha desde criança na religião Testemunha de Jeová e que o fez desacreditar e
se afastar. A primeira é a dúvida sobre a sabedoria do Rei Bíblico Salomão, Como
pode um Rei tão sábio, majestoso ter errado? se perguntava desde muito criança e para
UDV Salomão nunca errou, ele é o Rei de toda Ciência ele que uniu as duas plantas
mariri e chacrona para produzir o chá sagrado. Salomão é o segundo mestre da UDV
depois de Deus. E diferentemente dos Testemunhas de Jeová, os udevistas não pregam o
apocalipse e a morte das pessoas que não receberam a Boa Nova. A princípio na UDV
todos têm a chance, a possibilidade de uma vida nova e que não existem privilegiados,
todos são iguais, regidos pela Lei do Merecimento.
Este primeiro componente de predisposição se alia ao segundo que é a
experiência do sagrado, levando em consideração a formulação religiosa da condição
227
humana em relação ao divino, o repertório de elementos rituais que constituem
manifestações legítimas de poder divino, e variações nas capacidades individuais para
experiência do sagrado que possam influenciar o curso do processo terapêutico. É
notório que a experiência do sagrado nessas religiões ayahuasqueiras se na força
ou burracheira, pelas percepções sensoriais, pelo campo visual-imagético
multissenrio. Imagens táteis, sinestésicas e visuais de inspiração divina e
extremamente vívidas. Doricha tem um senso vívido do sagrado e uma vida impregnada
com a dimensão sagrada da espiritualidade, pois ela vive na comunidade e para ela viver
na comunidade é viver na espiritualidade e em contato com o divino 24h do dia. Sua
experiência do sagrado é extremamente forte, onde ela após a peia e curar suas
tristezas e mágoas atinge o êxtase
69
, a paz, a harmonia, o amor ao próximo. É uma
experiência transcendente e imanente do sagrado e tem a ver com a qualidade sensorial
da experiência. É numinosa, sobrenatural, etérea e fora do comum. Essa experiência
intensa do sagrado é muito associada à ayahuasca, considerada um enteógeno capaz
de suscitar Deus dentro de si.
Podemos observar no trecho do relato no qual ela conta do momento
mágico que ela até hoje não sabe explicar no qual olhou para o seu atual marido viu
uma explosão de cores e sentiu como se estivesse o reencontrado. Neste momento ela
emergiu em uma experiência do sagrado Foi como um conto de fadas ela
complementa no decorrer da entrevista. A experiência sagrada está diretamente
relacionada ao efeito da ayahuasca caracterizada como detentora de propriedades
psicoativas, enteógenas como foi discutido anteriormente. Nesse caso Doricha
tinha experiências visionárias com este homem - considerada reencarnacionista -
antes de beber o chá, nas quais a eficácia da cerimônia, a experiência do sagrado
tiveram relação com o senso ampliado e intensificado da sua vida. Embora as visões
e outros fenômenos sensoriais induzidos pela ayahuasca ocorram e tenham seu lugar,
o contexto ritual definido por um foco na cura tende a dar à experiência do sagrado
uma forma de imediatidade e profundidade, e um conteúdo de significação
69
De acordo com Goulart (2004) não qualquer dualidade entre transe e êxtase, já que as experiências
extáticas envolvem muitos graus de intermediações. No entanto aponto que este último pode ocorrer no
momento do transe, mas uma pessoa que es em transe nem sempre alcança um vel extático ou
vivência uma experiência mística. O êxtase pode ser entendido como o ponto alto do transe religioso.
Para Brissac (1999b p.02) o êxtase é um estado de lucidez contemplativa que coloca a pessoa em contato
direto com o plano espiritual.
228
emocional e interpessoal. (Csordas, 2008, p.283). Doricha encontrou a partir da
experiência sagrada um significado para sua história de vida.
Neste sentido também Girassol atinge o êxtase após a peia e
conseqüentemente a sua cura, como no depoimento anterior ele diz: a vontade que eu
tinha era de abraçar a todos. Também encontramos uma experiência com o sagrado
no relato anterior na qual ele tem uma miração em que ele está num bosque
espetacular, um lugar lindo com muitas flores o Jardim das Flores com seus filhos
alegres, saudáveis, felizes e a partir dessa experiência sagrada ele encontra um
significado, um sentido para sua vida que ele não enxergava como completou no
relato. Posteriormente Girassol fala dessa conseqüência da experiência com o sagrado
o vegetal, dando uma nova perspectiva e um novo sentido na sua vida:
Então o que o vegetal basicamente vem me mostrando é isso. Me mostrando que é possível
o homem, o ser humano fazer uma reforma interior, ele se transformar num nível bem
profundo assim dele. Eu tive uma época que eu achava que o mundo tinha que ser destruído
e que as pessoas que não prestavam, tinham que ser destruídas porque não tinham jeito. Me
diziam isso apesar de eu não aceitar muito isso. Daí era muito chocante de eu ter que engolir
isso a seco assim. E a União do Vegetal, o vegetal vem me mostrando que é possível sim da
gente fazer uma reforma da nossa forma de pensar. Pensar, aprender a pensar. Pensar um
jeito diferente a vida. Que existe uma forma diferente de pensar. Que um conceito que
agente possa ter da vida, ele pode ser mudado. Inclusive tudo que eu penso hoje aqui pode
ser transformado (risos) ou pro lado do bem ou pro lado do mal. tem as duas opções né,
duas opções a seguir, duas forças pra gente poder se guiar e que os sentimentos, inveja,
orgulho, ciúmes, eles estão por trás muitas vezes das dificuldades da vida. Às vezes a gente
tem uma curiosidade por uma coisa e essa curiosidade leva a gente para lugares que às vezes
não é legal. Mas que mesmo assim, mesmo com tudo isso a gente têm um tempo. O tempo
para poder experimentar o que quiser experimentar, pensar o que quiser pensar. Essa
elasticidade da vida, essa tolerância que a vida nos assim é Deus. Então eu me sinto
muito confortável assim. Porque eu tô dentro de Deus, eu to dentro do pensamento divino, e
dentro desse pensamento divino eu perdi o medo, o medo de estar só, estar abandonado no
universo. A vida ganhou um sentido para mim. E aí a União do Vegetal vem me dando essa
esperança no coração, mas a coisa tá ficando bem legal para mim. Com isso eu consigo
ter força para fazer a transformação que eu tenho que fazer na vida. Reconhecer o que eu
preciso melhorar e saber que eu tenho que caminhar. (Girassol)
Na segunda vez que bebeu o chá Doricha relata outra experiência com o
sagrado que somada a primeira decorreu seu processo de convero:
Na segunda sessão eu fui e tava de olhos fechados e eu senti como se tivessem duas mãos no
meu rosto e elas virassem o meu rosto e disseram assim para mim abre os teus olhos e
quando eu abri eu vi a imagem do Mestre Irineu, que é negro né. Eu olhei e pensei quem é
que é este homem? eu olhei para ele e veio girando uma estrela dele até o meu centro
onde tem o terceiro olho e entrou a estrela em mim e aquilo me deu uma emoção muito
grande, indescritível. Mas eu não sabia o que era a estrela, o que era o fardamento, que o
Mestre Irineu tinha fundado a doutrina. E quando chegou no final da sessão eu perguntei
229
para o Mauro quem era aquele negro e ele respondeu que era o Mestre Irineu o fundador da
doutrina. Aí ele me explicou sobre o Mestre Irineu que até então eu não sabia. Eu sabia que
era uma doutrina que tomava o chá, mas não sabia quem tinha feito. Daí eu contei para ele
sobre a estrela e ele me disse que eu fui fardada no astral, porque o fardamento na
cerimônia religiosa se coloca uma estrela no peito e ele me disse: Tu foi escolhida para ser
um soldado do Mestre. (Doricha)
A grande maioria das pessoas que chegam nessas religiões não sabem nada a
respeito de seus mestres fundadores, elas vem atraídas pela bebida psicoativa. A maioria
dos adeptos relatam ter primeiro reconhecido o chá como poderoso, sagrado e depois o
reconhecimento do mestre e uma pequena parte
70
(mas que é freqüente ocorrer nas duas
religiões) relata que mesmo sem ter conhecimento sobre estes tiveram experiências com
o sagrado relacionadas aos mestres fundadores e sua doutrina que são muito
impactantes, pois integram a idéia de conhecer aquela doutrina, aquele mestre e
pertencer a essa religião em outra encarnação, estando assim enfaticamente associada
nos relatos ao processo de conversão, na decio de se fardar, de ser um cio. Isso
também acontece com Girassol:
quando ele abriu a sessão para as pessoas perguntarem, eu estava num estado muito
estranho, porque aquela sensação que eu tinha de que eu conhecia esse trabalho espiritual,
conhecia aquela sensação e que eu tinha saído e tinha voltado num período de tempo muito
curto, me dava só a convicção de que aquele lugar que eu estava ali, era o lugar melhor que
eu tinha para viver com a minha vida. E aquele Mestre que quando eu olhava no quadro e
não sabia muito quem ele era, era a pessoa que eu tinha que respeitar, era uma força que eu
tinha que respeitar. É como se ele tivesse me dado uma licença, lá experimente o que
você quiser experimentar na vida e volte, tire suas vidas. E o que o mundo tem para lhe
oferecer fora dessa ordem aqui, fora desses princípios não tem nada de bom. Mas se você
vai e experimenta, veja e volte para confirmar, para poder entender, sentir. nesse
momento quando eu voltei e meu pensamento dizendo isso para mim mas como é que
pode, mas será que eu não criando tudo isso com a minha memória. Será que eu não
vendo a ilusão. Será que isso aqui não é a ilusão e o que eu tava vivendo era a realidade. O
que é realidade e o que é a ilusão? Aí, veio essas perguntas na minha cabeça e a sessão
estava aberta e ninguém tinha feito pergunta ainda. Pedi para fazer uma pergunta. Perguntei
para o mestre o que era ilusão e o que era realidade! Foi quando ele começou a responder
que a realidade resiste ao questionamento, quando a gente questiona as coisas assim ela se
mantém e a ilusão não resiste ao questionamento. A gente pode estar vivendo uma situação
achando que ela é real, mas se a gente começar a questionar ela, ela não se mantém, ela não
se sustenta. Então, a verdade era aquilo que respondia ao exame e, aí quando ele falava isso,
eu chorava mais ainda porque era exatamente o que estava acontecendo na minha vida.
Tinha feito em espírito este questionamento em algum momento da minha existência
espiritual, que naquele momento eu já estava tendo uma certeza muito grande de que eu já
era um espírito. Olhava para meu corpo e de repente eu olhava para minhas mãos. A minha
cor de pele era diferente do que achava que era. Comecei a olhar minha pele, meu corpo,
meu jeito. Era tudo diferente, estranho! Estava num corpo que não parecia ser o meu, mas
70
Dentro da amostra de entrevistas, duas pessoas tiveram esse reconhecimento do Mestre inicialmente e
vinte e seis relataram ter alcançado o reconhecimento do mestre ao longo do tempo. E foi mais ou menos
a porcentagem que também constatei durante a pesquisa etnográfica.
230
meu espírito parece que questionou essa ilusão, essa realidade e saiu para ver, para conhecer
o que tenho que conhecer. (Girassol)
Neste sentido pode-se pensar que a miração o é mera representação,
mas possui uma materialidade enraizada na experiência corporificada que é ao mesmo
tempo constitutiva do poder divino e evincia de eficácia. Essa materialidade é ainda
mais instigante porque arregimenta em performance ritual o entrelaçamento existencial
do tátil e do visual. O significado não se anexa à experiência, mas é constituído pela
forma com que um sujeito participa da experiência. E experiência, nesse caso a
experiência da transformação é a significância do significado. (Csordas, 2008).
O terceiro componente é a elaboração de alternativas ou negociação de
possibilidades que existem dentro do mundo presumido da pessoa afligida. Os
sistemas de cura podem formular essas alternativas em termos de uma variedade de
metáforas e podem utilizar meios rituais ou pragmáticos que encorajem a atividade ou a
passividade, mas as possibilidades devem ser percebidas como reais e realísticas.
Podemos observar no caso de Doricha, que enquanto sua experiência define-se como
sagrada, obtendo entendimentos, seu conteúdo então cumpre a terceira função
terapêutica da elaboração de alternativas. Ao mesmo tempo em que as religiões
ayahuasqueiras sugerem certo grau de empoderamento da bebida sagrada, a
responsabilidade de transformação é do sujeito, pois tem que querer e depende do
teu merecimento. Assim a elaboração de alternativas está ligada ao novo conteúdo de
significação (a cura altera o significado de um problema ou é constituída por essa
mudança de significado) e ao sentimento de confiança, e ao novo status que Doricha
passou a ocupar, de sofredora passou a ser uma pessoa livre de um karma, que recebe o
dom da mediunidade e a possibilidade de auxiliar em curas. Ou seja, um problema
a tristeza e infelicidade em relacionamentos conjugais e o significado desse problema é
estável até ser transformado e então resolvido pela retórica da cura tudo tinha a ver
com o plano espiritual e com outras encarnações. Doricha relata da seguinte forma suas
experiências com o daime após receber a cura e abrir a mediunidade:
O daime abre a tua mediunidade, te dá presentes, mas te cobra também. Durante os
trabalhos eu saio do corpo e viajo com a entidade que está comigo. Eu vou para outros
países, eu vou para dentro de hospitais. Esses tempos tive uma passagem que eu fui para um
lugar que havia crianças passando algum perigo que até hoje eu não sei o que foi. Quando
eu estou fora do corpo eu não escuto nada, eu sei que estão tocando os hinos, mas não sei o
231
que se passa, hoje eu tenho ajuda do Padrinho e da Madrinha que me apóiam porque até eu
entender o meu trabalho foi muito difícil para mim. A mediunidade é como se fosse uma
corda bamba. Ou tu vai para o lado da loucura ou tu vai para o lado da mediunidade. Ou tu
trabalha ou tu enlouquece, porque é uma coisa que você não pode questionar, tu tem que
apenas trabalhar. (Doricha)
Podemos perceber esse terceiro componente no caso de Girassol:
A sensação que tenho na União do Vegetal é que era o lugar que eu conhecia muito. Já sabia
do que se tratava, do que... E quando vinham as chamadas, me diziam coisas muito fortes.
Elas se encaixavam dentro da minha compreensão. Então, aceitei muito tranquilamente
todas as doutrinas que recebi ali dentro, todas as orientações que às vezes foram muito duras
também comigo. Mas eu aceitava com muito carinho. Toda a doutrina que vinha nas sessões
a partir disso e até hoje eu tenho como uma coisa boa. Uma coisa que é para o meu bem.
E a partir de então eu fui melhorando a minha vida, me sentindo mais feliz com a vida, com
a existência e agora reconhecendo que todas as coisas que eu plantei nessa vida, nessa
encarnação, tudo que eu fiz eu tenho que responder por elas. As coisas boas eu vou receber
os benefícios e as coisas que não foram legais eu tenho uma responsabilidade com elas. Isso
me deu muito conforto também, saber que a vida é assim e que a gente têm que colher
aquilo que planta. E a coisa que me veio é que eu tenho que ter força para colher, de colher
qualquer coisa, mas eu quero colher. Abandonei os estudos porque não vi motivos para
estudar. Eu desprezei muito o valor das coisas materiais que iam me fazer ter instrumentos
para viver e vivi meio que hippie uma época. Eu não viví muito a infância dos meus filhos,
eu sabia que os meus filhos iam passar por um período de rebeldia comigo, porque eles
não tiveram aquela orientação desde o início, minha presença também, principalmente meu
filho mais velho. E todas essas coisas a burracheira vai me mostrando o que eu ia passar
antes de passar. O meu filho era pequeno, tinha 11 anos o mais velho e eu sabia que ele ia
passar por uma fase difícil, que ele não ia me entender muito bem, que eu ia ter que
conquistar ele. E as sessões iam cada vez me mostrando isso aí. Isso foi acontecendo e vem
acontecendo ainda, mas eu tenho conseguido organizar a minha família, me organizar como
pessoa e eu venho aceitando com mais facilidade as dificuldades da vida. Sabendo que eu
posso ter uma melhora lá na frente sem perder a felicidade, sem perder a alegria, o senso de
humor das coisas. (Girassol)
O quarto componente é a realização de mudança, inclusive o que conta
como mudança é o grau até o qual essa mudança é considerada significativa pelos
participantes. Isso pode ocorrer de forma incremental e irrestrita, sem um resultado
definitivo. No caso de Doricha a cura incluiu o objetivo simbiótico, ao incorporar
significado religioso o encorajamento a habitar, a fazer parte da comunidade
religiosa, visto que o processo de cura religiosa se mistura com toda trajetória de vida da
pessoa, a busca espiritual e há uma organização religiosa que movia Doricha, que
passou a residir na comunidade e a trabalhar para cura. Diz ela: Eu sempre dizia antes
de conhecer o Mauro, antes do Daime, que eu não queria ser mais uma pessoa a passar
por este mundo, que não era este o meu objetivo, que eu queria fazer alguma coisa
maior, ajudar.
232
A de Doricha no Daime ficou forte desde então, mas também é evidente
que essa experiência é sobreposta a uma espiritualidade preexistente. Além da
transformação pessoal relatada por Doricha a cura ritual também é dirigida à
manutenção. Doricha segue participando de todos os rituais e engajada na sua
espiritualidade e missão. O mesmo se dá com Girassol que é um sócio fervoroso, se
dedica intensamente a UDV, aceita com carinho todo tipo de disciplina e doutrinação
estando atualmente no grau de conselheiro e é um forte candidato a ocupar o cargo de
mestre. Acredita que sua salvação é seguir sua caminhada de evolução espiritual na
UDV dentro de sua estrutura diferentemente do Santo Daime, observe em seu relato
comparando com o de Doricha o sentido de caridade, de ajuda ao próximo e de
manutenção de sua cura:
[...] Com isso eu consigo ter força para fazer a transformação que eu tenho que fazer na
vida. Reconhecer o que eu preciso melhorar e saber que eu tenho que caminhar. De que o
mundo tem jeito, de que o ser humano tem jeito por mais torto que ele esteja ali ele tem
jeito. Que a mim cabe amar, perdoar, me cuidar até o ponto que eu tenho que me cuidar.
Porque eu também não posso entrar nas situações difíceis das pessoas, cada um tem que
colher o que plantou. Mas o que eu puder auxiliar uma pessoa, um ser humano eu faço.
Cada um tem a sua história, cada um tem a sua bagagem, cada um tem o direito de pensar da
forma que quiser pensar. Isso é um direito que o ser humano tem. E o que eu venho
aprendendo aqui mesmo é usar a liberdade que eu tenho. Que todos nós temos a liberdade
para pensar o que quiser na medida mais justa possível. Eu aprendendo a usar minha
liberdade de uma forma que eu me sinta bem. Sem desespero, sem desesperança, com
menos sofrimento. Encarando o sofrimento de uma forma positiva também. A dor tem uma
função, a função que a dor tem na vida da gente. Porque ela existe na humanidade, porque
ela existe no homem, no espírito. Quando eu tive essa idéia de que eu tive a oportunidade de
experimentar o que eu tinha vontade de experimentar não no vel dessa vida carnal, mas
no nível do espírito isso para mim ficou muito claro e tendo outras revelações no dia a
dia. Cada sessão tem sido uma experiência nova, daí que vem me auxiliando muito, me
auxiliando muito mesmo. Eu só tenho que agradecer. (Girassol)
O caso de Doricha e de Girassol ilustra como propõe Csordas (2008) o
quanto à compreensão do processo terapêutico deve ser levada além do evento ritual de
cura até uma determinação de como o processo terapêutico fica integrado na trajetória
de vida do paciente.
233
Caso 3: A cura espiritual de um sócio da UDV, ex-fardado do Santo
Daime
Gerânio Klais, 46 anos é casado há vinte e dois anos, possui duas filhas, uma
com 17 e outra com 13 anos. Foi funcionário público, trabalhando na secretaria do meio
ambiente e na secretaria da educação, mas atualmente está desempregado. Foi fardado
do Santo Daime durante oito anos juntamente com sua esposa e é sócio da UDV há oito
anos e meio. Quando a entrevista foi realizada, em junho de 2009, Gerânio Klais
ocupava o grau hierárquico de corpo instrutivo, duas semanas após a entrevista ele e sua
companheira ascenderam para o grau de conselheiros. Gerânio Klais descreve sua
trajetória religiosa até chegar ao Daime:
Nasci numa família católica, como a maioria das pessoas aqui. Fui me distanciando da
religião quase que naturalmente, mas por dentro sempre mantive alguma coisa, mas alguma
coisa me distanciou da igreja católica. Não encontrava o que estava precisando e querendo
lá. Até que virei um materialista dialético, um ateu marxista e fiquei assim durante algum
tempo. Mais ou menos por volta do final da década de 80 que a gente (ele e a esposa)
retomou essa procura pela questão espiritual. Tenho que confessar que li muitos livros do
Paulo Coelho [...] Despertava um interesse de saber o que ele estava escrevendo. Afinal de
contas, era uma pessoa conhecida e tinha essa ligação com a música, com o Raul Seixas.
Então a gente leu alguma coisa dele. Já tinha lido algo, inclusive, sobre a União do Vegetal.
muitos anos atrás, tinha lido um artigo que havia saído na revista Planeta que foi
escrito pelo Flamínio Araripe, uma coisa assim o nome do repórter. Ele é da UDV e hoje se
não me engano é mestre da União. Isso foi em 82. A matéria também falava sobre o Mestre
Gabriel. Pelo final da década de 80, início da de 90, estava muito na mídia a questão do
Daime. Nessa época não se falava na UDV, era mais sobre o Daime mesmo. Até em função
de vários artistas que faziam parte. Então, estava querendo e sabendo que aqui em Porto
Alegre tinham grupos que bebiam o chá. Estava interessado nisso aí. Então, de novo, a
questão da sincronicidade encontrei um amigo que havia sido militante de esquerda
comigo, aquela coisa toda... E conversando me disse que estava morando numa comunidade
do Santo Daime. Então disse que estava querendo ir experimentar. Ele disse para irmos
sim. Isso foi em 92. Lembro bem porque foi o ano em que minha filha nasceu. No dia dos
pais, não lembro bem o dia, em agosto, fui beber o vegetal lá no Daime. Foi a primeira vez
em que bebi o vegetal.
Gerânio Klais associa a sua busca espiritual a um vazio existencial e a
necessidade de ter uma experiência divina concreta e a respostas para questões
essenciais referentes ao ser humano:
[...] era bem o que eu estava querendo. Que era buscar, assim... saber se realmente essas
coisas espirituais... Deus... ter uma experiência mais direta disso. Acho que isso que é a
coisa que a gente sente. Muitas vezes a gente termina se afastando de outras religiões,
porque se ouve muito falar, mas não se tem aquela experiência direta disso. A gente não têm
a experiência pessoal de sentir a presença das coisas divinas. Então acho que era isso que
estava procurando. E pelo que tinha lido dos efeitos do chá e tudo, percebi que era alguma
coisa que poderia responder a essas perguntas, esses questionamentos. Como disse, houve
uma época que me considerava ateu. Mas depois percebi que na verdade é que não havia
234
tido essa experiência. Não tinha me permitido buscar, ter, esse tipo de experiência. Buscar,
saber... Afinal de contas se Deus Existe. Basicamente era isso. E também, assim, responder
as perguntas aquelas: Quem somos nós? Para que estamos aqui?
Após sua primeira experiência com o Daime Gerânio Klais seguiu
participando intensamente dos rituais se fardando dois anos depois. Gerânio Klais relata
da seguinte maneira sua primeira experiência com o Daime e seu engajamento:
É, se bem que a primeira vez que bebi o chá não senti absolutamente nada. Nada! Nem
náuseas, nem nada! Não senti nada! Foi um pouco decepcionante (risadas)! Na segunda vez,
que também foi no Canta Galo, também não senti nada! E na terceira vez que fui beber o
vegetal, bebi em outro lugar, na Iara. Que era uma pessoa que distribuía o vegetal pelo
Daime, perto daquele Hospital Banco de Olhos, na zona norte. Dessa vez foi que tive...
fiquei sabendo o que era... na época a gente não chamava de burracheira, no Daime não é
esse nome. Mas hoje a gente sabe que aquilo ali era a burracheira. Senti forte assim... E
fui seguindo. Foram oito anos dentro do Daime. Bebi o vegetal no Daime em vários lugares.
Porque têm vários grupos aqui no Rio Grande do Sul mesmo que bebiam o daime.
Gerânio Klais decide se desvincular do Santo Daime por algumas questões
que passaram a lhe incomodar, referente à doutrina e a estrutura de funcionamento.
Quanto à doutrina tratava-se do uso da Santa Maria (Cannabis Sativa) introduzida pelo
Padrinho Sebastião na linha do CEFLURIS e quanto à estrutura de funcionamento seria
pelo poder de chefia que o dirigente, o comandante do Centro ocupava, sendo como
que o dono daquela igreja decorrendo assim infortúnios nos relacionamentos
pessoais. Gerânio Klais resolve então buscar outra religião que faça uso do chá
ayahuasca a União do Vegetal da qual ele tinha o conhecimento de que não agregava a
Santa Maria. Para Gerânio Klais o daime é igual ao vegetal, tão divino quanto, sendo
que em sua narrativa ele chama o chá ayahuasca de vegetal tanto para o Daime quanto
para UDV e reconhecendo tanto Mestre Irineu como Mestre Gabriel como verdadeiros
mestres:
Então, acho que posso falar agora um pouco do que senti na época que o daime, que é o
mesmo vegetal, feito com as mesmas plantas, tinha essa propriedade de nos conectar mais
com a gente mesmo, com as coisas espirituais. Só que essa linha do Daime que se expandiu,
principalmente pelo sul do Brasil, nas regiões mais urbanas, é uma linha que é ligada ao
CEFRURIS, ao pessoal do Mapiá. E essa linha introduziu o uso da maconha junto. Era para
ser uso ritual, mas eu não fazia uso só ritual. Então, era um uso constante e eu na época, até
anteriormente mesmo antes de conhecer o Daime, fazia o uso da maconha, como se diz, para
fins recreativos. aquela história: junta a fome com a vontade de comer, porque tu usa
uma determinada substância e descobre um lugar que aquilo ali ainda é sagrado [...] Quer
dizer, como te digo, eu não podia tapar o sol com a peneira, a gente não tava usandocom
o sentido espiritual. [...] Então comecei a perceber isso e foi uma das coisas que fez com
que eu fosse me afastando do Daime. Mas alguma coisa em mim sempre me disse que o uso
do daime em si, o chá... queria de alguma maneira prosseguir bebendo esse chá [...] ,
rompi, fiquei 6 meses sem beber o vegetal [...] É ... na verdade, a gota dágua não foi bem
235
isso, foram outras questões de relacionamento, pessoais [...] Então, nesse meio tempo fiquei
6 meses sem beber o vegetal e fui convidado por um amigão meu para conhecer aqui a
União. Então, vim beber o vegetal aqui. E mais ou menos um mês antes... eu continuava a
fazer o uso da maconha [...] Mas, um mês antes resolvi, vou beber o vegetal mas sabia
que aqui não se usava a maconha. Vou beber o vegetal, mas vou experimentar beber como
eles bebem lá. o vegetal mesmo. Então um mês antes parei de usar maconha. Aí, vim
aqui, bebi e tive uma burracheira muito forte, bem forte mesmo. Já nessa primeira vez que
bebi senti que essa continuidade que queria, continuar bebendo o vegetal, era aqui mesmo.
Percebi inclusive que o Mestre Irineu, criador do Daime, que até hoje tenho um respeito
muito grande por ele... então até senti que... bah! Será que está certo isso mesmo, sair do
Daime e vir pra cá, seguir um outro mestre? Isso foi uma das... nessa primeira vez em que
bebi o vegetal aqui, na minha burracheira, foi o que mais examinei. E o que percebi
dentro da burracheira foi de que, na minha percepção, o Mestre Irineu e o Mestre Gabriel
são como se fossem irmãos. Como se fossem destacamentos de uma mesma força que se
apresentou de maneira diferente para atender a compreensão de pessoas em diferentes
épocas em regiões diferentes, mas que estavam mais ou menos dentro da mesma força. E se
formos estudar mais um pouquinho, vê-se que o Mestre Irineu tem alguns hinos que falam
de Salomão, falam muito de Jesus. Então está ambientado dentro dessa mesma força. Falam
da gente, questão assim... dos ensinamentos de Jesus: de amar o próximo como a si mesmo.
Isso aí tudo está de acordo, então percebe-se que, na essência, as coisas estão muito
próximas. Então, me senti bem aqui, me senti em casa. E é por aqui mesmo, vou ficar por
aqui, me senti bem.
Gerânio Klais considera que a sua transformação pessoal iniciou-se no
Daime e teve seu ápice na UDV onde se mantêm firmemente engajado, tendo
incorporado os preceitos da UDV, de valorização da família, da transformação, de trazer
a sua família para dentro da União:
[...] De qualquer maneira, não desconsidero esse período todo em que bebi o daime. Para
mim foram bem importantes também. Percebi muitas coisas nesse período! Basicamente é
um reencontro com a gente mesmo. É uma redefinição de várias coisas. uma mexida na
cabeça da gente. Porque na vida a gente vai construindo uma série de preconceitos. Aquilo
mesmo que falei, que era ateu. Mas isso foi uma reação que tive à experiência que tive
dentro de uma família católica, dentro da igreja católica. Foi a experiência que tive... a
reação a isso foi que, lá pelas tantas, ter virado ateu e não acreditar nessas instituições todas.
Mas depois a gente começa a... Beber o vegetal faz com que a gente reencontre a essência
das coisas. Sabe? Que é uma coisa que vai além da mera conceitualização racional. Tu vai
perceber a essência. Então, por exemplo, uma coisa assim para exemplificar, a questão do
casamento: eu e minha companheira estávamos no segundo ano que vínhamos bebendo o
vegetal aqui na União e vivíamos fazia 16 anos que havíamos juntado os trapinhos...
(risos) como se fala! E lá... Porque resolvemos morar juntos. Tínhamos naquela época um
pensamento, do tipo... Esse casamento... Prestar contas para a família, para a igreja, para a
religião, para o Estado... Para quê isso? O importante é as pessoas estejam a fim, queiram...
né? Aí comecei a perceber que... Espere aí um pouquinho! Que a essência do casamento era
outra coisa... Era outra coisa! Era a gente fortalecer essa união. Era firmarmos um
compromisso Com Deus mesmo. Fundamentalmente com Deus. Mas, claro que as outras
coisas também são importantes. Por quê não também? É prestar contas para a sociedade,
para a família. Por quê não também? Se é uma coisa que vem de dentro, que é uma coisa
que a gente quer. Então, porquê não fortalecer isso dizendo, assim... assumindo isso de uma
maneira pública? Que é o que queremos para nossas vidas, fortalecer a nossa união. Então
senti assim e resolvemos nos casar! Nós casamos dois anos depois que já bebíamos o
vegetal. Resolvemos nos casar. Começamos a beber o vegetal aqui, foi em 2001. Ficamos
oito anos no Daime e agora empatamos. Já estamos há mais de oito na União. E é uma coisa
muito legal, porque a gente, como se diz, vai-se vendo que se faz amizades. Se está no meio
de pessoas que também estão no meio dessa peleia de se conhecer melhor, de transformar
as coisas que têm para ser transformadas. Então nos sentimos bem estando em meio a
236
pessoas assim. É uma coisa boa, sentir-se respeitado, aprender a respeitar as pessoas. Então,
é uma coisa muito legal. É como no Budismo: se fala das três jóias (mestre, Dharma e a
Sangha). O mestre lá é o Budha, aqui é o mestre Gabriel. O Dharma são os ensinamentos. É
esse processo de se auto-conhecer, de descobrir-se. Qual é o plano De Deus para nós? E
Sangha que é a comunidade, que é andar com os irmãos a gente trilha esse caminho. Estar
um ajudando o outro. Vai-se aprendendo a se conhecer e nesse processo, também se ajuda
as outras pessoas a se conhecerem. E as outras pessoas ajudam a gente a se conhecer
também. Então é uma coisa muito legal. Percebe-se a profundidade, a riqueza que é a União
do Vegetal. até mesmo pra se dizer que é um pedacinho do paraíso aqui na Terra. É
olhar para fora e ver no que o mundo está virado hoje, então percebe-se que aqui é um lugar
especial, que nos fortalece, que é bom... bom pra gente. Dentro das possibilidades, não é
uma coisa obrigatória. Mas, dentro das possibilidades, também, buscar trazer os filhos da
gente, as pessoas que a gente quer bem.
Caso 4: A cura espiritual de uma ex-sócia da União do Vegetal
Azaléia, 56 anos, é casada e mãe de dois filhos homens de 21 e 27 anos.
Possui curso técnico de prótese dentária, porém pouco exerceu a profissão, pois é
aposentada por invalidez. Tem o diagnóstico psiquiátrico de psicose maníaco-depressiva
e fez uso de psicofármaco durante grande parte de sua vida. Apresentava o que foi
diagnosticado de episódios maníacos acompanhados de delírios e alucinações (que ela
chama de sonhos) intercalados com episódios intensos de depressão. Buscou a cura
durante anos em todas as religiões possíveis, pois sempre teve muita em Deus e
acreditava ser um ser de luz enviado para uma missão aqui na Terra. Foi abandonada
pelos pais por volta de seus sete anos de idade, sendo criada por uma família rica,
católica fervorosa e de acordo com Azaléia muito fria na questão afetiva. Azaléia
freqüentou a União do Vegetal por quase três anos, ocupando o grau hierárquico de
sócia. Seu marido, que trabalha como protético foi quem primeiramente chegou a União
do Vegetal quatro anos, foi levado por um amigo a fim de curar-se do alcoolismo.
Ele obteve a cura nos primeiros meses e levou sua esposa a fim de que esta também a
obtivesse. Para ele a esposa também obteve a cura, não precisando mais tomar os
remédios psiquiátricos, pois passou a não sofrer mais de depressão e de loucura.
Porém o casal pediu afastamento da UDV por algumas questões pessoais, uma pelo
motivo de estar seis meses em débito com as mensalidades e outro por se sentir
incomodado com alguns episódios na relação hierárquica. Ambos se decepcionaram
com as atitudes das pessoas, porém Azaléia não queria se afastar da UDV porque ela
entendeu que o ser humano não é perfeito, mesmo ocupando grau de mestre e que
perfeito é o chá ayahuasca o vegetal. Depois de sair da UDV, Azaléia passou a
freqüentar o Gaia-Espaço Angélico local que trabalha com a Fraternidade Branca e os
237
mestres ascencionados. Ela passou a freqüentar este novo local por indicação do mesmo
amigo que os convidou para UDV, o Alecrim, porque percebeu que Azaléia estava
novamente em depressão e se desorganizando, por falta do vegetal e por seu
companheiro voltar a beber. Azaléia se adaptou ao novo local, podendo se reorganizar,
porém sofre pelo marido continuar bebendo e por almejar um dia ainda voltar para
União do Vegetal. Realizei duas entrevistas com Azaléia, uma no momento em que era
sócia da UDV em 2008 e outra em 2009 após estar três meses afastada da UDV. Assim
num primeiro momento apresentarei o discurso de Azaléia no auge de sua conversão
antes de ocorrerem às divergências e depois apresentarei o discurso de Azaléia estando
afastada da UDV e freqüentando outro centro.
As seguir segue o relato do entendimento de Azaléia a cerca de sua
doença/cura, no primeiro momento da entrevista:
Eu tinha uma busca da espiritualidade muito grande. Eu procurava em tudo que é religião e
não achava aquilo que eu queria. Não conseguia alguma coisa que batesse no meu interior.
Eu fui em todas as religiões e via que não era aquilo que eu queria. Eu sonhava muito. Eu
sonhava com uma rosa. Eu buscava essa rosa e diziam que essa rosa não existia. Me diziam
que essa rosa era uma loucura da minha cabeça, que ela não existia. Até o espiritismo do
lado oriental não acreditava que existisse essa rosa. Eu nunca fiz yoga e sonhava que eu
fazia yoga, sonhava que eu fazia tai chi. Eu tinha sonhos e as pessoas diziam que eu estava
louca. Sonhava que eu estava num lugar muito bonito. Depois eu me acordava e ficava com
uma tristeza louca. Eu tava num lugar muito bonito e sentia um amor muito forte e quando
acordava e vinha para Terra sentia aquela queda, pois não era o amor que eu estava
acostumada. Eu dizia pro O. (marido dela) que eu tinha a impressão que tinha estado num
lugar muito bom, que existia um amor muito verdadeiro, o amor que eu me refiro é o amor
universal, não é esse amor carnal que a gente dá e cobra, e briga. Eu acho que eu fiz alguma
coisa, devo ter feito alguma coisa que eu ainda não descobri e vim cair aqui na Terra. Todas
as noites eu tinha a impressão que eu me ia. Que eu ia num lugar e até hoje eu ainda sonho e
quando chega um certo ponto que eu tenho que voltar e quando eu tenho que voltar, eu
ficava triste. Eu sentia que eu batia no chão e ia explodir. Acho que era a diferença. Às
vezes vinham pessoas e diziam assim: Ah tu pronta tu não quer ir embora? eu
pensava nos meu filhos, pensava em tudo, eu dizia: Agora eu não posso. No sonho me
diziam que eu estava pronta, que eu podia ir. Eu me sentia nua no sonho. Esse nua não era
da roupa era sem a carne. Quando teu espírito liberto tu consegue sentir o teu karma,
percebe os teus defeitos, teus pecados. Aí eu me sentia envergonhada. Aí quando eu
acordava, eu não queria acordar. Sentia sempre aquela sensação de dor. Até que depois na
União do Vegetal eu fui descobrir que a sensação de dor que eu sentia, não era dor era
tristeza [...] E na União do Vegetal eu fui mudando, eu mudei de personalidade, porque
antes eu ficava triste agora não. Agora eu penso, eu estou oferecendo o meu amor, eu estou
fazendo o que eu posso, se a pessoa não entendeu o problema não é comigo é com ela. Ela
tem que mudar porque eu estou tentando me moldar. Aí na UDV eu fui entendendo
melhor as situações. Aí eu passava mal na burracheira e pensava issoé um masoquismo
né, mas depois me dava conta que tudo na vida tu tem que pagar um preço. Eu pensava é
esse preço que eu tenho que pagar. Tu tem que pagar caro para ter alguma coisa boa [...] Eu
vejo muitas cores, muito colorido na burracheira. Depois que eu comecei a tomar a
ayahuasca eu comecei a ler a procurar nos livros e comecei a entender o significado das
coisas a minha volta e comecei a me sentir bem, a, por exemplo, estar caminhando e
agradecer o ar que tu respira. Coisas que eu não fazia. E isso eu tenho certeza que eu
agradeço ao vegetal, que te abre à consciência e tu tem a consciência do certo e do errado.
tu vai tomar o teu caminho, o caminho mais certo [...] Quando eu sinto aquela explosão
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de amor na burracheira, aquele amor que eu buscava eu sinto lá dentro, eu viro uma
criança. Eu sinto vontade de gritar, é o mesmo amor do sonho que eu buscava. Eu sinto o
amor vivo. O que é aquele amor? É um pedacinho de Deus dentro da gente que se aviva. É o
eu superior te fazendo tomar conhecimento das coisas que tem valor, das coisas que não tem
valor [...] O vegetal me supriu, todas aquelas falhas, aquelas necessidades que eu sentia, aos
poucos eu estou atingindo, o grau elevado não posso dizer, mas eu estou sentindo a
diferença em mim pra melhor [...] eu vim com alguma missão de fazer alguma coisa, mas eu
tava sempre enrolada, enrolada e não achava o lugar. Eu não sabia se era no budismo, em
que religião era. Na umbanda eu sabia que não era. Eu fui em todas as religiões e sentia que
estava abaixo entende, do plano que eu queria, não estava no plano que eu queria. No plano
de energia espiritual. O vegetal te proporciona o contato direto com Deus, porque eu acho
que Deus é uma força cósmica. Existe em mim existe em ti, é essas forças, a união, a
energia muito forte de valores muito elevados e lá no vegetal eu estou mudando meu
pensamento, mudando meu jeito de ser. Eu entrei em contato com essa energia [...] No
começo do vegetal eu entrei meio em transe, eu não conseguia dormir depois que tomava o
vegetal. Via coisas que eu nunca tinha visto da idade do ouro, da idade da pedra, da Grécia.
Aí depois eu ia procurar nos livros e tudo existia mesmo. Eram passagens de outras
encarnações. Certa vez o mestre estava fazendo a chamada da minguarana e eu olhei para
ele e vi do lado dele um ser, um homem da idade da pedra. começou a me dar uma dor
muito forte aqui (aponta para a barriga), era o plexo solar. tudo ficou branco como numa
explosão, apareceu uma pirâmide branca e tudo clareou. Foi como um conto de fadas. Nem
sei te contar bem. Eu me vi toda transparente. Era meu corpo etéreo. Vi cores formando
desenhos, tudo com lógica. Sei que eu não quero sair de [...] Normalmente antes de
começar a sessão eu estou sabendo, como se eu me comunicasse por pensamento, eu já
estou sabendo de que tipo de sessão vai se tratar. Agora quando eu entro em transe, quando
eu estou mesmo com a ayahuasca eu fico numa explosão de amor. Precisa ver eu tinha
problema de reumatismo, depois que eu comecei a tomar o vegetal eu pareço uma
criança, com vontade de beijar todo mundo, abraçar. Agora eu estou em harmonia, em paz.
Eu encontrei essa rosa diferente que eu procurava: é a ayahuasca.
No segundo momento sobre seu afastamento da UDV, Azaléia diz:
E lá na UDV aconteceu uma coisa que fizeram. Tá tudo bem, aconteceu né, é uma bobagem,
mas as conseqüências que vieram é como se fosse um, acho que eu fiquei com tudo o que
aconteceu, acho que eu fiquei chateada de chegar entende. É aquela coisa tu tem que ter
respeito, mas as pessoas também têm que te respeitar. Então aconteceu uma série de coisas
lá que eu achei que eu tava valorizando demais, porque afinal de contas eles estão, todo
mundo lá buscando que nem eu né. Eu é que tava viajando demais, supervalorizando, por
exemplo, o mestre. Ele é um ser humano assim como eu e tu, cheio de defeitos apesar dele
ter um conhecimento que eu não tenho. Eu achava que ele tinha obrigação de como ele
estava naquele posto dele ser uma pessoa mais evoluída, mas as coisas às vezes não é bem
assim. Evoluído, mas tem suas fraquezas né, porque ele é humano também e certas coisas
que aconteceu eu me decepcionei, mas depois eu caí na realidade que era eu que tava
supervalorizando né. Se tu não falar o outro não vai adivinhar. Tu tem que chegar, falar,
conversar, explicar as coisas. Se tu não falar, tu não vai, por exemplo, alguém te faz uma
bobagem. Tá, está tudo bem, fez, mas a pessoa fica insistindo naquilo, tu tem que tomar
uma atitude. E eu não. Eu achava assim que a coisa ia se resolver e não se resolveu aí eu me
desgostei e me afastei. Mas isso tudo faz parte do crescimento. Aí eu vi que eles estão lá em
cima, mas nem todos têm uma elevação espiritual. Estão sujeitos a estar um pouco mais
abaixo, não ter aquele grau de consciência né, que tu espera que a pessoa tenha né, são
iguais, tão um pouquinho acima, mas eu achava que não era assim, eu achava que tu tava lá
por uma questão de merecimento, de crescimento interno. Eu vou tomar o chá para crescer
espiritualmente e não vou pra crescer dentro do grupo, para entrar para ser uma
conselheira. Não! Eu lá para se eu chegar a ser uma conselheira porque Deus me ajude,
mas com capacidade. Por exemplo, o Alecrim (amigo que levou o casal para UDV) tinha
que ser um conselheiro porque se tu com algum problema ele vem, ele te ajuda com todo
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jeito, com todo mundo ele é assim. Não tô bajulando o Alecrim porque é assim que eu penso
dele. Eu tenho que ser, por exemplo, a mesma Azaléia aqui dentro contigo, tenho que ser lá
fora do mesmo jeito e tem muita gente que não é assim aí eu me decepcionei, mas tem muita
gente lá com consciência, que cresceram lá [...], mas o chá em si e a União têm uma procura
por canalizar, agora depende do individual de cada um também a canalização [...] pra mim o
chá me deixa feliz, me deixa alegre [...] tudo na natureza é perfeito o homem que vai
deturpando, vai levando para outro caminho. A natureza que Deus fez é perfeita
Depois Azaléia segue completando os motivos de seu afastamento e sua
inserção no outro centro, que seu amigo Alecrim indicou bem como o desejo de
continuar na União do Vegetal pelo chá e pelo amigo Alecrim que teve um papel muito
importante em sua vida, ele foi a primeira pessoa que não a enxergou como louca e
apontou uma direção plausível para sua cura, ela o tem como um guru:
[...] e também teve o problema que o O (marido dela) tava um pouco atrasado com as
prestações e ele não queria tomar o vegetal porque ele tava fumando ainda. Ah tu tem
dinheiro para pagar o cigarro, mas não tem dinheiro para pagar a União! [...] Então ele
resolveu dar uma parada para depois acertar direitinho e voltar [...] Eu sinto muita falta do
vegetal. Do chá em si. Sinto saudade né. Ele me centraliza, ele me dá equilíbrio, ele me
equilibra os chakras, como se ele me equilibrasse todas as células. Através dele eu tomei
muito conhecimento de muita coisa que eu não sabia. Por exemplo, eu não sabia o
fundamento de eu enxergar isso ou aquilo. depois na UDV eu enxergava e depois eu ia
procurar num livro, com a ajuda do Alecrim, ele me dava um livro pra ler. Eu entendia que
aquilo que eu tava vendo a respeito do que era, do que não era. Aquele grau de percepção
que tu tem que às vezes tu não sabe se ta vivendo numa realidade, se tu tá numa loucura, o
que que é. tu toma conhecimento das coisas, mas com os pés no chão [...] Eu vou na
União para crescer, lógico que eu vou conversar contigo por exemplo, mas não vou lá para
ficar de tititi [...] são mestres, mas são humanos. Têm sabedoria, mas tu pode ler um monte
de livros, colocar um monte de coisa na cabeça, mas não sentir aquilo dentro. Tem
diferença [...] Eu acho que não vale a pena eu deixar de tomar o chá por uma bobagem, até
pra ver minha maneira de pensar, minha maneira de agir. Mas eu fiquei muito triste, fiquei
abalada. Eu dormia e depois eu acordava e eu me lembrava daquilo que tinha acontecido e
dava aquela sensação que eu tava já, achando que eu tinha atingido um patamar e de repente
aquilo vem tudo abaixo. a Dona Máh (guru do novo centro que ela participa),
conversando com ela, participando das nçãos, das orações eu senti uma melhora, o meu
crescimento junto com ela porque ela tá me preparando pra ser médium, para trabalhar
porque minha missão é ajudar as pessoas. eu penso que era para eu passar por isso
porque através do vegetal eu me canalizei e se não tivesse acontecido tudo o que aconteceu
eu não teria me afastado um pouco do vegetal eu não teria conhecido ela e não estaria lá. Eu
vou duas vezes por semana lá. [...] Eu me sinto aliviada lá. Para ela a gente já tá sem karma
por causa do São Germain, ele queimou os karmas, mas acontece que a gente tem
antepassado e ancestrais e eles vêm atrás da gente, tu não sabendo, mas eles vêm te
cobrando, vêm atrás, vem em cima aí tu tem que trabalhar para mandar eles para outro plano
[...] Lá é bom porque tu entra em outro plano e quando tu volta, tu volta bem [...] Ela me diz
que eu sou uma dium pronta que eu não preciso do chá [...] Mas eu sinto muita falta do
vegetal [...] e tem também o Alecrim, ele me ajudou muito, tu sente o calor da pessoa, o
afeto da pessoa que se preocupa contigo. Ele é meu guru, porque na verdade muitas coisas
que eu vejo eu não poderia contar pra ninguém e pra ele eu conto tudo porque eu sei que ele
ta me dando força, ele acredita em mim. Muitas coisas ele que me ajudou, ele que me deu
força ele que me ajudou a acreditar e alguém te dando força, te ajudando a acreditar tu te
sente otimista, tu vai em frente pra progredir.
240
Caso 5: A cura espiritual de um free do Santo Daime
Polytmus tem 44 anos, é casado e possui um filho de 12 anos. Seus pais
eram católicos praticantes, mas ele não considera o catolicismo como sua formação
religiosa. Aos 21 anos iniciou sua busca religiosa primeiramente nos ensinamentos
evangélicos e depois na gnose, onde ele encontrou as respostas para sua busca.
Polytmus foi gnóstico durante 12 anos e depois que a gnose encerrou seus trabalhos ele
ficou quatro anos sem participar de nenhuma religião, período no qual adoeceu
fisicamente sendo encostado no INPS, pois estava impossibilitado de trabalhar.
Polytmus é construtor de casas e estava a ponto de encaminhar a aposentadoria quando
conheceu a igreja Céu de o Miguel através de um amigo colega de gnose. Polytmus é
free oito anos do Santo Daime e do Universo Místico religião neo-ayahuasqueira
fundada por esse colega que o levou primeiramente ao Santo Daime. A seguir segue o
relato de Polytmus de como chegou ao Santo Daime bem como do entendimento de sua
cura:
E até 99 eu participei do movimento gnóstico e a Nova Ordem, que a gente chamava,
fechou, teve uma ordem de encerrar. Porque se dizia que tinha um tempo. Então se entregou
o ensinamento para aquelas pessoas e depois encerrou e cada um continuaria praticando
aquilo que aprendeu. com o tempo eu fiquei acho que uns quatro anos sem participar de
nada. Porque a gnose abrange tudo e o todo ao mesmo tempo. Ela tem uma base de tudo e às
vezes a pessoa não consegue acreditar em outra religião, em outro grupo, em outra
disciplina. E foi onde eu me descuidei energeticamente, talvez foi um momento mesmo que
era para eu conhecer o Santo Daime. Eu acabei ficando doente. Eu fiquei um ano e oito
meses muito doente e médico nenhum conseguia descobrir o que é que eu tinha. Eu sentia
muita dor, dor, dor, gastando com médicos, com consultas, exames e nunca aparecia nada.
Mas na verdade no fundo acho que eu sabia o que é que eu tinha e eu não conseguia sair
daquilo ali. Por isso que eu digo assim, o ensinamento gnóstico ele é muito bom, muito
forte, mas tem que saber também. É que nem o daime. Hoje eu consigo avaliar bem as
coisas. Se tu for lá tomar o daime e não saber manejar a força que ele trás, você acaba se
atrapalhando né.[...] Eu tava aceitando que eu não ia ser mais curado, fazia tempo que
tava naquela situação. Estava encostado no INPS. [...] um dia eu passei em frente do
escritório de um amigo meu que nós dois éramos do movimento gnóstico. E até ele era um
pouco mais avançado. Ele era instrutor, palestrante. eu pensei vou ver ele faz tantos
anos que eu não vejo ele, o que ele ta fazendo. E hoje eu avaliando tudo isso, era o momento
né. Porque como eu disse no fundo eu sabia mais ou menos que aquilo ali não era físico.
Dentro das práticas do movimento gnóstico, dentro do que eu aprendi assim existem muitas
orações e dentro dessas orações eu pedia que me mostrasse o que é, se porque, eu pensava
de ir num evangélico, eu pensava de ir numa casa espírita. Mas tudo isso pra mim o tinha
resposta, não era. Quando eu cheguei no escritório do E, ele me relatou a mesma situação
também, que ele ficou mais de três anos sem buscar nada e sem poder ter força em acreditar
em alguma coisa e até que foi um dia o cunhado dele comentou do Santo Daime. [...] Aí ele
me relatou algumas experiências [...] quando ele me terminou eu disse para ele então tu me
o endereço que eu quero conhecer. Na hora aquilo veio natural. Senti natural dentro de
mim. [...] ele me levou numa concentração [...] Ele me deu explicações básicas e ao mesmo
241
tempo disse assim: confia, confia em Deus, no que tu vai buscar. Eu queria a minha
cura.[...] quando eu cheguei lá muito inseguro, muito querendo, mas ao mesmo tempo
com medo atuando sabe. Eu tava muito fechado para tudo que quisesse vir. Eu tomei a
primeira dose que a gente chama de daime, mas nisso não aconteceu nada. Foi todo
praticamente uma apresentação do hinário, eu cheguei a tomar o segundo dose. tava no
meio do trabalho já se encaminhando pro final e a força ainda não tinha atuado em mim.
eu senti vontade sair pra fora. Saí pra fora, fui até o banheiro, me olhei no espelho,
naquele momento eu comecei a me sentir estranho. Naquele momento a força tava
chegando, eu senti, passei a mão no rosto, me sentindo um pouco adormecido. Saí, fui até
em frente à igreja, em frente o cruzeiro. Naquele momento começou a me adormecer o
corpo. Quando começou a me adormecer o corpo, eu sentia uma sensação de que eu não ia
nem pra frente nem pra trás. Quando eu senti isso, eu senti uma sensação que eu não tinha
mais domínio do meu corpo e foi o momento que eu desmaiei. Então o que aconteceu? O
daime precisou me desmaiar pra poder me cura porque eu não tava dando vazão mental e
nem emocional pra que a força chegasse. Quando eu senti aquela sensação de desmaio, eu
senti um calor muito forte, começou nos meus pés e veio subindo e passou pelo meu corpo
todo saindo na cabeça. Eu me acordei na hora, me levantei, com um pouco ade vergonha
e tava o fiscal do lado, ele olhou pra mim e disse: nossa ele veio receber uma cura aqui
(choro) então é o momento que tu até pode ver que me emociona. Naquele momento que
saiu aquela sensação de calor pela cabeça daquele dia em diante eu não senti mais nada.
Todos os remédios que eu precisava tomar eu nunca mais precisei tomar nada. Nada! Então
pra mim, o Santo Daime foi uma porta de abertura de cura espiritual, que na verdade eu tava
muito doente espiritualmente. E foi uma benção que eu posso te dizer assim, que eu nem
consigo achar palavras mais, palavras mais agradecedoras pode se dizer assim.
Após essa primeira experiência com o daime, Polytmus seguiu indo a todos
os trabalhos no Céu de São Miguel, seis meses depois recebia seu primeiro hino e
acredita que o ensinamento gnóstico com o daime acrescentou vários ensinamentos em
sua vida e Polytmus seguiu recebendo curas. Observe:
Com o tempo tive outras curas que eu precisava receber e fui recebendo e que daí foi tudo
uma seqüência do trabalho. É tão interessante que tudo começa numa seqüência, tem aquele
primeiro impacto de cura geral pra ti se firmar, depois do segundo, terceiro, quarto passo já
começa a receber curas. Porque tudo é uma seqüência de curas que a pessoa precisa receber.
A pessoa tem que compreender certas coisas para e curar. [...] Eu tive vários focos de
porque, principalmente assim eu me deixei, eu mesmo me deixei, desacreditei, achando que
eu estava acreditando em algo que eu não tava nem acrescentando que era o ensinamento
gnóstico. Na verdade acho que eu me tornei um fanático encruado resumindo tudo. Eu tava
no ensinamento gnóstico, mas ao mesmo tempo eu não colocava em prática. A mesma coisa
que eu ter um carro e não andar. Deixar, olhar ele ali e não querer andar. Ele vai se
estragando. A mesma coisa é o ensinamento se tu o colocar ele em prática. A mesma
coisa hoje o daime, tudo que ele me mostra, essa coisa se eu não colocar em prática, essa
coisa se eu não colocar em prática, não servir o meu próximo, não amar, eu não fazer algo
de bom. [...] Me mostrou rias fraquezas que eu tive, aonde eu caí e eu não caí como
praticamente tava levando toda minha família. [...] tenho a plena, absoluta certeza do que a
medicina (o daime) me abriu assim, foi como uma regressão. Eu regredi e vi que fui muito
envolvido em construções belíssimas, belos castelos, manes. A própria medicina me abriu
o que eu fui, no que eu tive envolvido para estar envolvido de novo em todas essas
atividades profissional e civil de construção. E uma coisa que me chamou atenção é eu
nunca ter feito curso assim, mas muitas coisas assim que eu faço é como se eu tivesse
fazendo de novo. Casa com chapéu alemão, lareira estilo americano... Isso tudo eu aprendi
como se tivesse uma visão e depois eu ensinava pros outros que tinham estudo. [...] Eu não
242
acreditei no meu potencial. Tem um hino que diz assim: Tu tem que cair pra poder
levantar.
Depois de um tempo freqüentando o Céu de São Miguel este amigo que o
levou para recebe uma mensagem que deve abrir seu próprio centro de daime, porém
mesclando conteúdos daimistas com xamânicos, gnósticos e udevistas (ele já tinha
freqüentado a UDV primeiramente). Seu centro se chama Universo Místico e se
configura na designação de Labate (2004), uma religião neo-ayahuasqueira. Polytmus
segue seu amigo e passa a freqüentar este novo centro, mas também sente vontade ir ao
u de São Miguel, freqüentando assim os dois. Diz ele:
[...] me sinto bem indo pro trabalho lá, me sinto bem também indo no Universo Místico,
mas eu tinha uma coisa dentro de mim que parecia que aquilo não estava certo. Ah! Eu indo
nos dois lugares ao mesmo tempo. Será que eu deveria deixar de ir no Céu de São Miguel?
Será que eu deveria deixar de ir no Universo Místico? Uma coisa bem desagradável pra
mim assim pensando. Peguei e fui num trabalho de concentração no Céu de São Miguel, por
isso que eu digo assim, o daime ele não te ilude em nada. Com muita clareza eu tive uma
experiência espiritual muito clara como se eu tivesse assim num lugar como nós estamos
aqui e aqui se abrisse um foco de luz e te mostrasse assim, lá dentro da igreja do Céu de São
Miguel. Me dissesse muito claro, se tu tomar daime aqui, se tu tomar lá, se tu tomar a
medicina, como tu quiser entender o chá, é a mesma coisa. Deus é um só, o caminho é um
só. Bom daquele dia em diante, me tranqüilizou muito, tirou toda impressão, tirou as
dúvidas. Vou lá no Céu de São Miguel, vou no Universo Místico, vou no movimento
gnóstico, vou em outros grupos que me convidam porque tudo acrescenta um ensinamento
pra gente se purificar, se conhecer, auxiliar, servir as pessoas quando for possível e se não
for possível tem que achar um jeito de ser possível de servir também, sempre ter essa visão.
E aceito hoje o ensinamento de vários grupos, pra mim tudo acrescenta. Tenho colegas da
Seicho-No-Ie, acho lindo os ensinamentos deles, coloco em prática quando é necessário
colocar em prática, quando vejo necessidades dos ensinamentos gnósticos. Sou bem
holístico mesmo sabe. Me tornei bem aberto mesmo a tudo e a todo ensinamento que venha
acrescentar no caminho de Deus. [...] Claro que sempre tendo o cuidado para não virar uma
salada de frutas e sabendo usar isso. A gente também não pode ser como diz o ensinamento,
ficar borboleteando, a pessoa tem que se decidir né. Não ficar borboleteando, vai hoje aqui,
vai hoje lá. Eu afirmo sempre eu vou no grupo, mas eu sou um gnóstico.
Neste sentido Polytmus define-se gnóstico porque ele fez uma juramentação,
um ritual do qual também tem uma veste dentro do movimento gnóstico e para ser um
fardado daimista teria que fazer primeiro esse desligamento porque senão tu tá com
duas fardas ao mesmo tempo não ia ser uma experiência espiritual. Polytmus diz
ainda não ter decidido se vai ser fardar na doutrina daimista. Veja:
[...] Hoje eu vou no Daime muitas vezes para acrescentar, ter respostas bem pessoais, para
auxiliar, mais para auxiliar. Eu sinto que eu vou nos trabalhos e auxílio nos hinos, eu
243
podendo atuar não sendo fardado, mas auxilio da melhor maneira possível, dando uma boa
energia, levando força, fazendo com que a corrente tenha uma boa força. Isso tudo é o meu
propósito, o meu objetivo. [...] Talvez daqui mais um tempo eu assim, eu até vou tomar a
decisão assim, de me fardar, mas não para me prender. Eu vou me fardar para poder
auxiliar. Eu vejo que muitas vezes as pessoas precisam de auxílio dentro e sei que posso
servir de várias maneiras, como fiscal auxiliando uma pessoa. Tenho condições para isso,
mas por não estar dentro da farda, da veste eu não posso auxiliar. Então nesse propósito
talvez eu me farde.
Compreensão dos Casos 3, 4 e 5:
No tocante à disposição é evidente que Azaléia estava culturalmente
disposta não apenas a aceitar a cura divina, como ela tinha todo um delírio ou uma
crença mística, religiosa, de ter uma missão. Tanto é que já havia passado por todas as
religiões como ela mesma disse, não encontrando algo que batesse nela, que
proporcionasse alivio para sua dor/tristeza. Azaléia teve uma criação fortemente
marcada pela religião católica possuindo uma disposição forte para fé. Azaléia também
teve no discurso que se marido apresentou, pois ele se curou primeiro. Tendo assim
apoio religioso do amigo Alecrim, do marido, dos filhos que também passaram a
freqüentar a UDV. Polytmus estava buscando uma cura que ele sentia que estava além
do físico, mas nenhum lugar religioso tinha lhe tocado até que reencontra um amigo que
participava do movimento gnóstico com ele, porém sendo mais graduado dentro da
gnose, era alguém de confiaa e credibilidade como no caso de Azaléia. Ele conta uma
história parecida de busca após o encerramento do grupo que participavam e quando
este amigo fala dos poderes da bebida, naturalmente aquilo soa como a resposta de suas
orações e o momento, o lugar certo para obtenção da cura. Diz Polytmus:
ele me relatou, me disse: olha, eu fui conhecer com muito medo, com muita restrição,
me cuidando de tudo e de todos, mas quando o daime assim, chegou a força que abriu
aquela partícula de inconsciência, que agente não m noção que têm, me mostrou o
universo! Nossa é aqui! É tudo que eu procurava. Aí ele me relatou algumas experiências,
pontos bem positivos, pontos bem negativos que a bebida mostra pra gente. Ele terminando
ele disse um detalhe importante: o Daime não é de se convidar. Mas quando ele me
terminou eu disse pra ele: Então, tu me o endereço que eu quero conhecer. Na hora
aquilo veio natural. Senti natural dentro de mim.
Gerânio Klais representa outra parcela de adeptos que pertenciam à
contracultura, mergulhados numa sensação de vazio e envoltos por questões existenciais
buscam uma espiritualidade alternativa encontrando e deslocando este movimento de
contestação como analisado no capítulo quatro. Por mais que Gerânio Klais apresente
244
uma insatisfação no tocante à doutrina daimista (uso da Santa Maria) este discurso
parece ter sido incorporado pela atmosfera udevistica após se tornar sócio, pois ele
fazia uso da Cannabis antes de entrar no Santo Daime e após sair ele continua fazendo
uso da Cannabis interrompendo seis meses depois quando aparece a possibilidade de
entrar para UDV. Depois ele diz que o motivo que o fez realmente sair do Daime não
foi bem esse e sim por relacionamento pessoal e ele traz a idéia exposta no capítulo
anterior sobre os centros do Daime possuírem um dono (o dirigente, o comandante
chamado de padrinho ou madrinha) principalmente no período em que ele era daimista
que foi dezesseis anos onde os primeiros centros eram organizados por uma pessoa
que comprava um sítio e tinha capital para adquirir o chá e comercializá-lo tendo os
outros adeptos que se submeter as suas leis. Gerânio Klais diz:
E o principal foi isso, que as coisas, essa estrutura, o lugar, o sítio, essas coisas, sempre têm
um dono. E, tipo assim, esse dono ele é dono. Imagina como é que... vamos supor que, de
repente, está sujeito a essa pessoa fazer uma coisa errada, mas o que tu vai fazer? O cara é
dono! Ele é o dono! Como é que tu vai... né? Como é que vai chegar para ele e vai falar?
Ahh, não vai aceitar! É como aquela história do CB Duran dono da bola, lembra que tinha
uma propaganda? (risos) acho que não é do teu tempo! Era uma propaganda em que o cara
era o dono da bola, então se o time dele estivesse perdendo, ele pegava a bola e ia embora!
Não tem mais jogo (risos)!
Apesar da União do Vegetal ser composta por uma estrutura hierárquica, não
possuindo um dono e sim um quadro de mestres, Azaléia também se afasta por sentir
que sofreu abuso de poder. Azaléia diz: As pessoas falam em amor, que amor é
esse? A pessoa manda e desmanda. Não me deram chance de defesa! me
decepcionei, mas cadê o amor? Cadê a irmandade? A consideração desses caras
comigo?
Polytmus se afasta um tempo do Céu de São Miguel para seguir o amigo que
estava fundando uma religião neo-ayahuasqueira, ficando um tempo sem participar do
u de São Miguel. Mas como tinha vontade de continuar indo lá, no espaço onde
recebeu a cura e ao mesmo tempo queria auxiliar o amigo, que ele se sentia em vida
por ter lhe auxiliado, Polytmus passa a freqüentar os dois locais que têm rituais
diferentes, mas não deixam de ser o mesmo trabalho pra ele porque se utiliza a mesma
medicina. Veja:
Esse meu colega hoje, ele dirige com a mesma medicina, mas com as músicas um pouco
diferentes, os hinos um pouco diferentes, a mensagem um pouco diferente, mas não deixa de
245
ser o mesmo trabalho. E pra ti ver, como esse meu colega me levou, eu me sentia muito na
obrigação de como seguir ele, como ele vai ter um grupo, eu vou auxiliar ele no que for
preciso. Porque como se me sentisse na obrigação. Foi ele que me mostrou, me levou e
enfim participei por muito tempo do grupo que ele tem que hoje tá muito forte. No começo
participei do Universo Místico acho que uns dois anos a fio, até parei um bom tempo de ir
no Céu de são Miguel, mas nunca esqueci lá, porque lá eu recebi, sou muito grato por aquele
lugar e eu sentia muita vontade de ir lá, eu sinto, eu tenho. Tenho vontade de ir nos dois e
comecei a ir nos dois.
Azaléia tem um senso vívido do sagrado e uma vida impregnada com a
dimensão sagrada da espiritualidade expressa em seus sonhos, de um lugar bom, com
o amor universal, que obtiveram sentido tudo com lógica como ela disse, Azaléia
encontrou sentido aos seus sonhos, encontrou entendimento na burracheira, não
sendo mais louca. Sua experiência do sagrado é extremamente forte, onde ela atinge
o êxtase, a paz, a harmonia, o amor ao próximo, entra em contato direto com Deus.
Gerânio Klais consegue obter uma experiência concreta com o divino, realmente sentir
Deus como ele buscava. Polytmus obtém primeiramente a cura, que ele no fundo
achava que se manifestava no físico, mas era espiritual, podendo assim se firmar,
como ele colocou: naquele dia em diante eu ancorei aqui na terra a luz de Deus e a
confiança em Deus, para então poder receber outras curas com compreensão, já que a
pessoa tem que compreender certas coisas para se curar. Todos experenciaram o
sagrado na burracheira e na força, sendo assim o chá continua sendo divino para
eles sendo mentalmente separado das questões humanas que envolveram suas decepções
e afastamentos ou quando o chá é utilizado em outro grupo com outro ritual. Gerânio
Klais busca outro centro que faça uso da ayahuasca. Ele sai do Daime tendo Mestre
Irineu como mestre e questiona isso quando chega à UDV, em seguir dois mestres e
conclui que ambos são mestres e que a UDV e o Daime estão fundamentados dentro da
mesma força. Azaléia gostaria mesmo decepcionada de permanecer na UDV, pelo
vegetal e por algumas pessoas como seu amigo Alecrim, mas seu marido decide dar um
tempo. Azaléia então busca outro centro no qual possa ser acolhida, ter experiência com
o sagrado e a manter organizada psiquicamente, mesmo estando bem, almeja retornar
para UDV. Polytmus recebe uma mensagem numa foa de que não interessa o lugar
que se tome daime, pois o chá é a mesma coisa, Deus é um só, o caminho é um .
Podendo ele ser holista e livre para freqüentar onde tiver vontade e necessidade. Apesar
de Gerânio Klais ter se adaptado ao novo grupo religioso que tem um funcionamento no
qual todos são caciques não havendo chefe, ele também relata sentir saudades do
246
ritual daimista e apresentando as diferenças que sentia entre um e outro, considera
ambas as religiões como boas:
Como bebi tantos anos no Daime, vejo assim, que mesmo naquela época, mesmo usando
com... misturado com outras coisas, mesmo assim me trouxe uma série de benefícios. Até
para mim conseguir perceber coisas que não eram muito boas que estavam acontecendo e
que tinha que dar um jeito de me livrar daquilo ali. Então, acho que beber o vegetal é uma
coisa boa sob qualquer circunstância. Pode beber o vegetal no Daime, na União do Vegetal,
no Universo Místico, em qualquer lugar, na Barquinha, em qualquer lugar. Sempre traz um
benefício. Por que vai clareando as coisas pra gente e aos poucos consegue-se chegar aonde
precisa-se chegar. Vejo assim [...] Principalmente no início sente-se muito essa falta do
hinário, por que é bem diferente o ritual. No Daime os ensinamentos e a doutrina vêm
através dos hinos que são cantados, são bailados. E aqui na União do Vegetal tem as
chamadas, mas também se faz muito uso da palavra, se estuda, pode... alguma coisa que não
saiba que tenha entendido, pergunta. Tem essa possibilidade de se estudar. Então, oito anos
no Daime, tinha um montão de coisas que não tinha nem idéia do que era do que se falava, o
que significava aquilo ali. E se perguntasse para alguém as pessoas iriam dizer assim: pede
para o mestre que ele te responde na burracheira (aqui está se referindo ao Mestre Irineu e
a força no Daime). Tudo bem, tem esse processo mesmo. Mas, também às vezes quem
sabe pode ensinar aquilo ali. Mas, a gente sente um pouco de falta da coisa dos hinários, que
é uma coisa bonita dentro do ritual do Daime: os hinários, a musicalidade, o bailado. É uma
coisa bem bonita mesmo. Aqui temos a possibilidade de escutar música durante uma sessão,
que também é uma coisa bem interessante [...] Outra coisa que vejo aqui na União do
Vegetal é que as coisas dentro do ritual são bem mais simples. No Daime tem muito assim,
essa coisa meio pirotécnica! É vela, é defumação, imagens em cima da mesa é um monte de
coisas. Dependendo do lugar, tem pessoas que colocam imagens de divindades budistas,
hinduístas, dos mestres ascencionados. Fazem uma mistura bem grande. E aqui na União
procuramos preservar as coisas mais na essência mesmo. As coisas da União, respeitando as
outras religiões, as outras correntes de pensamentos. Mas aqui estamos dentro da União. E
uma característica que gosto, que passei a apreciar, é essa simplicidade. A coisa da
simplicidade das coisas. Buscar as coisas na essência mesmo [...] No Daime tem os hinos
que ajudam, mas muitas coisas para compreender dentro dos hinos, tem que ter uma
determinada compreensão, um determinado grau de memória como falamos aqui. E aqui
vejo que esse método de fazer perguntas auxilia a gente a desenvolver mais esse nosso grau
de memória. Os ensinamentos que o Mestre Gabriel deixou, são coisas bem simples, mas
que também fazem com que haja um aumento da nossa compreensão, do nosso
entendimento. Por isso que tem essa graduação também, o quadro de sócios, o corpo
instrutivo, o corpo do conselho, o quadro de mestres. Por que os ensinamentos vêm
gradativamente à medida que a gente consegue ir aumentando a nossa compreensão das
coisas. Não vou te dizer que um é melhor do que o outro. São métodos diferentes. Acho
legal aqui. Achava legal também no Daime. Até porque sou uma pessoa muito... que
gosta de estudar as coisas. Então acho legal essa coisa de poder chegar, conversar com uma
pessoa que está mais tempo, um conselheiro, um mestre e perguntar. E mesmo que a
pessoa não possa te responder, ela pode te dizer algumas coisas que podem fazer com que
examinando até chegar a ter uma compreensão melhor daquele assunto. Acho legal isso
aí, sim. Para mim tem sido bom. (Gerânio Klais)
Gerânio Klais consegue fazer essa diferença e essa compreensão entre o
Daime e a UDV depois de ter participado um bom tempo de ambas as religiões, porém
ele não apresentou críticas ao ritual do Daime no motivo em que se afastou da doutrina
bem como Azaléia, a incomodação está no exercício do poder, nas relações humanas,
nestes dois casos.
247
Ricciardi (2008a) abordou em sua dissertação de mestrado em ciências
sociais o uso da ayahuasca e a experiência de transformação, alívio e cura na União do
Vegetal em Salvador, partindo de duas questões: como acontece a experiência de
transformação, alivio e cura para os adeptos da União do Vegetal e a que ou a quem os
udevistas atribuem essas transformações. Eles atribuem à transformação, alívio e cura a
fatores como a doutrina, o chá, o querer se transformar, ao Mestre Gabriel e ao convívio
com as pessoas do grupo, ou seja, as relações que se desenvolvem dentro do grupo.
Azaléia encontrou a partir da experiência sagrada um significado para seus
sonhos, suas visões. Gerânio Klais também relata que teve muitas compreensões
de sua vida desde o Daime até a UDV. Polytmus também relata muitas compreensões
que a medicina abriu. Azaléia apresentava problemas de natureza psiquiátrica
buscando a cura, Gerânio Klais busca uma experiência divina, pois estava num vazio
existencial. Polytmus busca a cura para uma doença física que ele no fundo pressente
que é uma doença espiritual. Diz ele:
Daquele dia em diante eu não senti mais nada. Todos os remédios que eu precisava tomar, já
tava sendo o meu diagnóstico como depressão. Tomava Rivotril e um outro remédio que eu
não lembro o nome. Era tarja preta e eu nunca mais precisei tomar nada. Nada! Então pra
mim o Santo Daime foi uma porta de abertura de cura espiritual, que na verdade eu tava
muito doente espiritualmente.
Com o caso de Gerânio Klais percebemos que nem sempre os problemas
apresentados são de natureza psiquiátrica ou doenças físicas, mas com a experiência
com o sagrado Gerânio Klais relata ter percebido coisas que o eram boas, ter
alcançado um autoconhecimento e ter redefinido sua vida; isso não significa que a
comunidade religiosa necessariamente cria problemas que vem a curar depois, mas sim
que ela trata dimensões espirituais e psicológicas de problemas não considerados por
nenhum outro método de cura. Como verifica Peláez (1994) na igreja do Santo Daime
de Florianópolis, a busca de cura para doenças físicas ou mentais o é o principal
motivo de recrutamento dos adeptos. Entretanto, à medida que as pessoas se
familiarizam com os fundamentos doutrinários e apesar de serem aparentemente
saudáveis vão vislumbrando a necessidade de curar-se na doutrina, ou seja, de
percorrer o caminho de salvação proposto pelo Santo Daime.
A elaboração de alternativas está ligada ao novo conteúdo de significação (a
cura altera o significado de um problema ou é constituída por essa mudança de
significado) Azaléia obteve um sentimento de confiaa, e passou a ocupar novo status,
248
de louca Azaléia passou a ser uma pessoa com merecimento, que recebe muitos
ensinamentos do vegetal. Seu marido diz: Ela recebe muitas coisas na burracheira,
tem muitas mirações, muitos entendimentos. Ela mudou completamente, é outra pessoa,
está forte, decidida, alegre. Ou seja, um problema a loucura de Azaléia e o
significado desse problema é estável até ser transformado e então resolvido pela retórica
da cura a visões de Azaléia tinham a ver com o plano espiritual e com outras
encarnações. Porém no momento em que são afastados da UDV, Azaléia começa a se
desorganizar de novo e seus sonhos não tem tanto sentido assim. seu marido diz:
Ela já ta ficando louca de novo.
No caso de Azaléia a cura incluiu o objetivo simbiótico, ao incorporar
significado religioso o encorajamento a habitar, a fazer parte do grupo religioso,
visto que o processo de cura religiosa se mistura com toda trajetória de vida da pessoa, a
busca espiritual e há uma organização religiosa que movia Azaléia. A e a confiança
de Azaléia ficou forte desde então, ela encontrou a rosa diferente que procurava o
símbolo da ayahuasca na UDV, mas também é evidente que essa experiência é
sobreposta a uma espiritualidade preexistente. Além da transformação pessoal relatada
por Azaléia e por seus familiares a cura ritual também é dirigida à manutenção. Azaléia
quando segue participando de todos os rituais está bem e quando afastada começa a
adoecer de novo, tendo que se engajar em outro centro espiritual que consegue manter a
cura de Azaléia obtida na UDV.
Gerânio Klais também sente a necessidade de habitar o grupo religioso
como manutenção e continuação de sua transformação pessoal. A cura se em grande
parte através da aceitação da filiação no grupo. A ocorrência da cura é entendida em
termos de integração da pessoa curada na comunidade religiosa, embora o objetivo da
comunidade vá além da cura. A cura bem-sucedida e duradoura é vista como um
processo contínuo com a ajuda e o apoio da irmandade no dia-a-dia. Polytmus não se
tornou um fardado, mas permanece indo freqüentemente nos rituais daimistas e do
Universo Místico, onde a medicina é a mesma, pois a cura é um processo, são passos
que devem ser dados para recebê-la e neste sentido ele impregnou à noção de caridade
da doutrina daimista, ou seja, da importância de auxiliar o irmão dentro do trabalho.
249
6.4 Considerações Finais
Para as religiões ayahuasqueiras o reconhecimento do papel destacado do
grupo, da comunidade, de pertencer ao batalhão(Santo Daime) leva a idéia de que a
cura não trata a patologia, mas o modo de vida, a transformação pessoal para a evolução
espiritual. Por mais verdadeira que seja essa afirmação, ela pode ser facilmente
distorcida para sugerir que tal cura deixa de lado os verdadeiros problemas redefinindo-
os em um novo contexto ou os subordinando a metas religiosas.
De acordo com Groisman e Sell (1996), os elementos centrais da cultura
daimista não podem ser considerados isoladamente, pois agem combinados no campo
simbólico, criando uma situação favorável para que os indivíduos reavaliem seus
hábitos e padrões de comportamento e reflitam sobre sua vida e suas experiências. Deste
modo o conceito daimista de cura deve ser considerado como um evento mais complexo
do que apenas um evento orgânico, pois envolve o ser humano como um todo e inclui
tanto relações com os outros seres vivos quanto relações cósmicas.
Em sua dissertação, Peláez (1994) abordou o estudo das potencialidades
terapêuticas do Santo Daime, como agente de cura espiritual concluindo que as
mudanças descritas, relevantes nas vidas dos daimistas e que eles consideram
indicadores das suas curas espirituais, iriam expressando e modelando uma nova
identidade: a identidade daimista. Por isso, curar-se na doutrina seria um longo e
geralmente dificultoso processo de profundas transformações individuais e grupais que
consistiriam no gradual abandono de ethos e visões de mundo anteriores (tornados
insignificantes a partir dos conhecimentos revelados) e na paulatina aquisição de um
ethos e visão de mundo daimistas numa perspectiva geertzniana.
Na mesma perspectiva que Peláez (1994), Ricciardi (2008a), percebe que a
maioria das pessoas que buscam conhecer a UDV, não procura a instituição diretamente
para se curar. Pretendem, sim, ter um encontro consigo e com o sagrado. Buscam novas
experiências e autoconhecimento, assim como condições para resolverem conflitos
internos e descobrir um sentido mais profundo para a existência. Ela compreende
através dos relatos dos entrevistados a cosmologia, ou seja, a visão de mundo
compartilhada pelos adeptos da UDV, diluídas no decorrer do trabalho. Essa visão de
mundo é interiorizada nos rituais e na convivência social do grupo e ela é importante no
processo de transformação do indivíduo.
250
Uma tal abordagem suscitaria a questão da, nas palavras de Tambiah (1977),
eficácia performativa incorporada na retórica da cura ritual. O relato de Tambiah do
culto budista tailandês de cura pela meditação fornece nesse aspecto um útil paralelo as
religiões ayahuasqueiras. Tambiah (1977, p.123) escreve que no contexto budista os
aspectos individuais e pessoais da enfermidade são assimilados a um resistente
paradigma cósmico de teodicéia e tranqüilidade encontrado na noção de karma e
constituindo uma explicação para tudo através da qual os pacientes transcendem suas
condições atuais. Mas, diz Tambiah (1977, p.122), isto é só a metade da história, pois a
experiência de enfermidade, dor e sofrimento é vista como uma manifestação verdadeira
do emaranhado substancial e corpóreo de alguém, e o professor (achan) é
considerado como possuidor de poderes místicos concretos (iddhi) que são exercidos
nos discursos de meditação que descrevem realisticamente as doenças e as técnicas
para curá-las...(Tambiah, 1977, p.123). A doutrina assegura que o estado espiritual
mais alto pode ser atingido apenas pela pessoa que estiver em um perfeito estado de
saúde física e mental; e a religião oferece meios de alcançar ambas as condições. Uma
retórica semelhante prevalece nos ayahuasqueiros, onde o processo de cura no seu
conjunto é subordinado a evolução espiritual do indivíduo, o vegetal, o daime
proporcionam a limpeza de karmas e a transformação pessoal. Assim algumas
pessoas acreditam que todos deveriam, precisariam tomar daime, beber o vegetal, tendo
ou não algum problema específico. Ao mesmo tempo, os poderes místicos concretos da
ayahuasca para cura dirigem-se também ao sofrimento real no âmbito temporal. Em
todos os casos e em outros tantos que tive acesso, os poderes da ayahuasca trazem alívio
as aflições através da cura. Desse modo, embora os fiéis reconheçam a importância
primordial de efeitos como mudanças de atitude, afeto, ou imagens de si que pertencem
ao crescimento, a evolução espiritual, existe também o sentimento de certeza de que
queixas específicas estão sendo diretamente tratadas pela cura.
Como constatou Csordas (2008) a retórica de transformação precisa
completar as três tarefas intimamente relacionadas: predisposição, empoderamento e
transformação, bem como a disposição de participantes, experiência do sagrado,
elaboração de alternativas/negociação de possibilidades e realização de mudanças.
Nesse sentido ele mostra que uma análise da percepção (o pré-objetivo) e da prática (o
habitus) fundada no corpo leva ao colapso da distinção convencional entre sujeito e
objeto. Esse colapso permite investigar como objetos culturais (incluindo sujeitos) são
constituídos ou objetificados no fluxo e na indeterminão em curso da vida cultural.
251
A partir de uma lógica própria do que Wladimyr Sena de Araújo (1999)
definiu como cosmologias em construção, a doutrina daimista engloba e ressignifica
elementos provenientes de diversas tradições: de grupos indígenas, da tradão afro-
brasileira, do espiritismo kardecista, do esoterismo europeu, do catolicismo popular e do
universo da Nova Era (como foi descrito no capítulo quatro), incorporando-os às suas
crenças, rituais e práticas, bem como a União do Vegetal, que apesar de não continuar
englobando (formalmente não está mais em construção, é um saber construído),
porém seus discípulos englobam. A mesma gica pode ser utilizada para pensar o
processo de cura/transformação, pois as interpretações terapêuticas individuais muitas
vezes provenientes de outros campos de suas trajetórias pessoais são reinterpretados e
ressignificados à luz da cosmologia daimista e udevista. Nesse sentido analisarei no
próximo capítulo a prática da butinage a partir das trajetórias dos ayahuasqueiros.
252
Figura 3 Tirando os espinhos e colhendo o néctar.
253
CAPÍTULO 7
A VIAGEM ENTRE O BEIJA-FLOR E A ROSA
Mais uma rosa se põe
No Jardim do Beija-flor.
O seu canto é de ternura
E o seu vôo é de amor.
Minha Mãe Santa Maria
Me dê sempre o seu perdão.
Não deixe eu aqui na terra
Magoar nenhum irmão.
Sou pequena e cristalina
Vou ocupar o meu lugar
Agradeço minha Mãezinha
Tanto irmão para amar
71
.
A noção de trânsito e de bricolage religiosa são freqüentemente utilizadas
em sociologia e em antropologia para qualificar e explicar a mobilidade do praticante.
Essas duas noções são complementarias: transitando, o praticante bricola,
bricolando ele transita. A bricolage no sentido de Lévi-Strauss ganha respaldo no
fenômeno da desregulação e da recomposição da cena religiosa atual, sendo uma
resposta aos processos de individualização e de subjetivação do religioso decorrendo d
a idéia de religioso à la carte, mercado religioso, consumidor religioso,
caracterizando o comportamento do praticante em um ambiente marcado
particularmente pelo imperativo da livre escolha. Alguns autores que trabalham com
essa perspectiva: Bastian (1992),Champion (1993), Soares (1994), Mariz & Machado
(1998), Pierucci & Prandi (1996), Machado (1996), Hérvieu-Léger (1999), Groisman
(2000), AndMary (2000), Almeida & Monteiro (2001), Steil (2001), Marion Aubreé
(2001), Ribeiro &Alves (2002) dentre outros.
Fazendo um contraponto a idéia de bricolage, neste capítulo analisarei a
prática da butinage religiosa proposta por Edio Soares (2009) a partir das trajetórias
dos ayahuasqueiros do Santo Daime e da União do Vegetal, finalizando a metáfora da
rosa e do beija-flor.
71
Hino O Jardim do Beija-Flor recebido pela Madrinha Rosinha do Céu de São Miguel.
254
7.1 A Bricolage no Santo Daime
Dentro da temática do Santo Daime, Soares (1994) coloca que a bricolage
parece ser o modo de a cultura alternativa realizar-se inclusive a si própria. Sendo
assim, entende-se porque o misticismo ecológico pode ser, em certo nível, tributário de
uma cosmologia estruturada, e em outro nível, referência para errância, de cujo
itinerário resulta um recorte particular, uma combinação própria, um arranjo singular
dos paradigmas cosmológicos. Por isso, essa cosmologia antecede e sobredetermina as
demais; aquelas que os peregrinos da Nova Era puderem deslocar no caminho e
encaixar na grade móvel, a que recorrem como à fonte. A operação de encaixe tem de
ser, necessariamente, sempre diferente. Alguns procedimentos tendem, porém, a ser
comuns. Por exemplo, a alusão permanente à energia e à categoria trabalho
espiritual, que costuram as peças heterogêneas do quebra-cabeça, cuja ordem não se
confundirá forçosamente com a integração gica dos componentes, mas, por vezes,
com o rendimento global do desenho obtido. Um rendimento global é, além de
simbólico, psicológico e micropolitico. Não se trata, portanto, somente de uma
valorização nem tão original assim da caminhada, da procura, mas também das
propriedades de uma procura que envolve a remontagem da orientação que a estimula:
eis o circuito-chave (p.208). Para o autor no Santo Daime esse misticismo encontra um
sistema igualmente flexível e que, além disso, o enfrenta com seus próprios temas e
focos e o resultado se inverte: a provisoriedade tende a ser substituída pela adesão,
pensada e vivida como permanente e definitiva, e a conversão se torna a estratégia de
alternação (ressocialização radical). Ele diz: O Santo Daime que as cartas da
hermenêutica cruzada: muitas vezes, termina por anular o potencial de convivência e
sobredeterminação da cultura alternativa e por englobá-la, subordinando conjuntos de
elementos da cosmologia alternativa a sua própria ordem simbólica (p. 210).
Num estudo sobre trajerias dos agrupamentos do Santo Daime na Holanda,
Groisman (2004), analisa a estrutura, trajetória, práticas e concepções dos agrupamentos
daimistas, distinguindo e dimensionando simbólica e socialmente dois conteúdos
motivadores: um, que é sintetizado pela categoria missão, e outro, pela categoria
projeto, abordando neste sentido a bricolage que para ele caracteriza a constituão
deste sistema religioso. Para ele o fenômeno implica numa bricolage simbólica
pensando tal bricolage não em termos de uma estrutura lingüística, mas em termos de
255
um código emblemático dinâmico, que antes de produzir e promover tradição,
impulsiona e aglutina pessoas em torno de uma dinâmica de modernização
pragmática. Em seu interior, esse processo parece ser motivado, de um lado, por uma
espécie de empirismo espiritualista ou uma tendência de exploração dos limites da
consciência humana -, por uma busca de desenvolvimento espiritual ou por uma
ideologia de integração e reparação cósmicas no contexto da nova consciência
religiosa. Em outro sentido, ele associa esse processo a um declínio no campo das
práticas sociais, da densa, ampla e indireta influência do que ele chama de ideologia
libertadora no além-morte, vinculada a promessa de salvação e vida eterna como
desdobramento da necessidade de consolidação institucional, a desmotivação da busca
da experiência direta do encontro com o divino. Nesse campo da bricolage simbólica
ele considera que categorias sintéticas legitimam e motivam a ação dos daimistas
envolvidos no processo de transposição simbólica do Santo Daime para Holanda. Uma é
representada pelo termo missão utilizado amplamente no discurso de daimistas para
definir e circunscrever muitas de suas atitudes no mundo. Outra dimensão nesse
processo é recortada pela categoria projeto - a partir de uma definição de Gilberto
Velho como uma ação com um objetivo predeterminado, mas que se concretiza
num campo de possibilidades, que definiria como os holandeses que participam de
rituais do Santo Daime pensam e agem em relação a sua própria inserção no sistema
religioso. Assim ele pretende compreender os desdobramentos trajetoriais dessas duas
perspectivas tanto no posicionamento que as pessoas envolvidas desenvolvem nas
formas como expressam sua inserção quando narram a emergência e as razões para o
surgimento dos grupos que participam.
7.2 A Butinage Religiosa
A noção de butinage trabalhada por Edio Soares (2009) em Le Butinage
Religieux Pratiques et pratiquants au Brésil, obra que servirá de base para minha
análise, foi pensada juntamente com Gibert Rist e Yvan Droz. A palavra butin é
oriunda do baixo-alemão. Ela designa também o compartilhamento, o compartilhamento
de alguma coisa que foi pega à outra pessoa ou à natureza. Por exemplo, o butin de um
roubo ou de uma colheita, ou o butin que trazem as formigas, as abelhas. Da palavra
butin decorre o verbo butinar. Butinar é dividir o que recolhemos. As abelhas
256
butinam as flores para procurar alimento dentro da flor e as dividem com todos os
outros butinosos (Soares, 2009, p.29). Soares (2009) pesquisa os Riobaldos
72
do
bairro de Paragua-mirim em Joinville, SC-BR, encontrando a maneira de fazer em
religião em torno de diferentes altares onde o praticante conjuga diversos conteúdos e
serviços religiosos para dar sentido a um quadro de referências religiosas na qual as
significações ultrapassam largamente uma única denominação religiosa. Resultando a
butinage religiosa. Como uma abelha, o praticante butina de uma denominação
religiosa a outra, recriando e fabricando sentido, no perfume cada vez específico e
renovado. Butinar, não é então escolher livremente, mas, ao contrário, escolher não
escolher por obrigação (p.267).
Segundo Soares (2009, p. 67-68), a noção de bricolage tal qual ela foi
concebida por Claude Lévi-Strauss, de acordo com o qual o que é próprio a bricolage,
religiosa ou não, é a recomposição pela permutação dos elementos ou dos registros
religiosos preconcebidos culturalmente, quer dizer em conformidade com as origens.
Neste sentido o tem nada de uma composição crente deliberada e, sobretudo, sem
obrigações. A bricolage lévistraussiana se exerce no interior de um sistema simbólico
preconcebido a memória autorizada de uma tradição dada onde o bricolador que
nada tem de um sujeito autônomo joga com os materiais socioculturais do qual ele
dispõe.
A butinage religiosa é outra coisa do que um arranjo de elementos em um
universo religioso fechado. Ela é, a princípio, o que desvia, o que tira a repetição, a pura
observação do que está prescrito por uma tradição religiosa dada. O que caracteriza a
butinage é, certamente o compromisso perpétuo com a estrutura religiosa e suas
observações, mas essa estrutura é composta de múltiplos registros religiosos. Se os
mapas religiosos estão aí, eles são diversos e, do fato mesmo dessa multiplicidade
de dados, se abrem a imprevisibilidade, ao inesperado. Além disso, não imprevisível
sem um previsível. A imagem do jogo teatral, a improvisação é o fruto de um texto
bem definido anteriormente. O ator improvisa quando ele representa com o que foi
previsto e o que foi incansavelmente repetido, ensaiado (o texto), mas também com os
imprevistos que podem sempre aparecer no momento que ele representa. Neste sentido,
o texto seria um pretexto necessário à improvisação, a criação. A butinage é um
arranjo entre o previsto e o imprevisto, entre o garantido e a abertura, o estruturado (a
72
Soares utiliza Riobaldos fazendo referência ao personagem narrador de Grande Sertão: Veredas de
João Guimarães Rosa (1956).
257
tradição) e a estrutura (a realidade cotidiana do butinador), quer dizer entre o p e o
visível, e também os invisíveis. É neste arranjo, os múltiplos entre que se representa a
criação, a fabricação. Contudo, a butinage para no momento onde as formações
sincréticas ou híbridas se realizam. A butinage é processo, produção e o produto. O
butinador é somente um produtor. Um produtor que não joga para, mas com;
com suas próprias cartas, as cartas de uma tradição religiosamente composta e as
cartas que ele encontra por acaso. O butinador não se locomove ao acaso (ele tem um
texto tradicionalmente construído), mas como por acaso (o pretexto), de novas vias
aparecem sempre no final de seu caminho (a butinage).
Se a bricolage não é idêntica a butinage, a bricolage permite em revanche de pensar sobre o
uso (a reciclagem, segundo François Laplantine & Alexis Nouss [2001]). Claude Lévi-
Strauss percebeu que o bricolador realiza conjuntos estruturados reutilizando materiais
culturalmente carregados de história. Assim, diz ele, o próprio do pensamento mítico, como
da bricolage sobre o plano prático, é de elaborar conjuntos estruturados utilizando resíduos e
escombros, sobras de acontecimentos [...], de cacos e pedaços, testemunhos fósseis de
história de um indivíduo ou de uma sociedade (Lévi-Strauss 1989, p.62-63). É justamente o
uso - baseado ao mesmo tempo sobre conjuntos estruturados pela tradição e sobre o vivido
do praticante que me permite falar de butinage mais do que bricolage (Soares, 2009, p.60).
Assim, a butinage religiosa não é então um produto. Ela é produção,
processo, tentativas mais que soluções. Ela termina onde as formações religiosas se
cristalizam, pois ela não é início nem fim, ela é o meio. O religioso não é nem partida
nem chegada, ele é experiência. A butinage religiosa é apenas uma forma de
experiência, uma viagem em vias de fazer-se (Soares, 2009, p. 267).
7.3 A Butinage Religiosa no Santo Daime e na União do Vegetal
Sob a perspectiva da butinage analisarei quatro casos: uma sócia da UDV,
uma fardada do Santo Daime, um ex-fardado do Daime e também ex-sócio da UDV e
um caso free (o peregrino ainda não convertido) do Santo Daime e também da União do
Vegetal. Sendo a butinage religiosa apenas uma forma de experiência, uma viagem
em vias de fazer-se utilizarei a metáfora da viagem entre o beija-flor (Santo Daime) e as
flores, a rosa (UDV). A viagem se refere à trajetória religiosa, a viagem com o daime ou
vegetal onde também há butinage e também a criação de uma nova religião, ou de um
novo ritual pela butinage, especificando as particularidades dessa teoria na qualificação
do comportamento dos ayahuasqueiros.
258
Caso 1: Uma sócia da União do Vegetal
De cada lugarzinho eu aprendo algo, o néctar vem para mim, eu faço o meu bálsamo
para tratar as feridas da minha família. Eu nunca quero ficar presa a uma coisa só. Agora a
minha base é a União do Vegetal
Magnólia tem 51 anos e é cia da União do Vegetal cinco anos.
Trabalhou como professora alfabetizadora por 29 anos, sendo formada em pedagogia,
tem 70% do curso de jornalismo na UFRGS, possui também pós-graduação e
atualmente está aposentada. Magnólia é casada há trinta anos com um advogado.
Possuem dois filhos homens, de 20 e 13 anos. O casal foi convidado para pertencer a
União do Vegetal pelo seu terapeuta reencarnacionista, o Mauro, na época sócio da
UDV. O médico terapeuta era amigo da família e estava tratando o casal há um ano com
sessões de regressões e psicoterapia. O casal estava em crise conjugal, vivendo com
brigas, mágoas e problemas com os filhos. Magnólia explica como chegou a União do
Vegetal:
Como eu sempre acreditei na linha espírita e a credibilidade do Mauro era muito importante
na nossa família nos direcionamos lá. Lá o Mauro nos conheceu e nos conduziu na União do
Vegetal nos dando esse presente que nós não sabíamos a intensidade do presente que nós
estávamos recebendo. Então eu sou eternamente grata a essa pessoa que auxiliou toda a
minha família [...] Ele disse que tinha um presente (a UDV) para nós. Nós fomos pra lá
porque nós íamos nos separar, eu ia me separar. E ele disse que ia nos dar um presente e me
pediu um ano. Quem agüentou vinte e poucos anos agüentava mais um ano. Mais um ano no
meu relacionamento não era nada. Que ele tinha um presente, um tesouro para nós dois. Eu
acreditei nele, mas ali eu acreditei com 45 anos e ainda bem que eu acreditei. Foi um sonho
na nossa vida. O casamento voltou a ter um bem querer, que é o mais importante dentro
desse lar, ter mais paciência com os filhos, escutar os filhos. [...] Aí foi uma mudança
radical dentro da casa da gente, dentro do nosso coração, nossa casa interna e nossa casa
externa.
Magnólia acredita que a partir de sua inserção e de seu companheiro na
União do Vegetal, ela vem se curando e conseqüentemente toda sua família, obtendo
sua salvação. Ela fala de sua transformação:
O próprio chá mostra o que eu devo corrigir em mim [...] aparece na burracheira. Eu me
sinto como se eu tivesse sendo alfabetizada numa sala de aula num mundo espiritual. Pelas
universidades federais eu já passei, mas no mundo espiritual eu tô sendo alfabetizada, assim
que eu me sinto e quanto aos mestres e com a doutrina, aquilo entra no meu coração
diferente, porque é uma doutrina para o meu espírito ali, de eu não ter mágoa que é o meu
caso, tristezas que era o meu passado o meu caso de achar que eu não ia conseguir vencer
certos obstáculos do dia a dia, muitas vezes eu não via luz no final do túnel e eu tô vendo
essa luz no final do túnel e não é fanatismo isso, é a minha experiência, na minha
259
experiência eu tô vendo essa luz [...] na burracheira eu sinto o que eu tenho que transformar
[...] E era disso que eu procurava e isso dentro dessa família, da transformação grande [...]
eu vendo que aquilo que eu corrigindo em mim refletindo na minha família [...] Eu
não tenho palavras para agradecer tudo o que eu venho recebendo que é salvar uma família
da separação, salvar uma família de mágoas profundas que nem nós sabíamos que tinha,
nem eu sabia que eu tinha essas mágoas tão profundas assim e então eu venho me curando.
Magnólia teve uma doutrinão espírita desde criança dentro de sua família,
sua mãe era professora de filosofia e ao mesmo tempo em que praticava o espiritismo
também incentivava a Magnólia conhecer outras religiões. Magnólia além de espírita,
passou por várias religiões como a Seicho-No-Ie e o catolicismo. Atualmente ela é sócia
da UDV, mas também prática apometria, pois enxerga acompanhantes espirituais.
Estuda astrologia e às vezes vai à missa na igreja católica com sua mãe, na igreja Santa
Terezinha que é onde ela sente o poder forte da oração. Mesmo a União do Vegetal
sendo mais rígida no sentido de não aceitar que seus membros freqüentem outras
religiões sendo cios da UDV, algumas coisas são permitidas, como um passe
espírita, uma missa católica, reiki, regressão, apometria, astrologia, etc. Atualmente
muitos adeptos estão consultando o dium João de Deus o João curador, por
exemplo. Magnólia acredita que tem sua própria religião, que ela formula sua própria
religião, mas sua base é a União do Vegetal:
Eu já fui na Seicho-No-Ie, ai já fui em várias. Eu nunca fui de uma só. Um pouco eclética de
cada uma fazia o que eu acreditava e sentia que era bom para mim. É assim que eu sinto [...]
Eu tenho a minha religião, o que eu sinto é assim que eu tenho [...] Eu na União do Vegetal
eu aprendo, com meu professor de astrologia eu aprendo, com a apometria que eu tô
começando a fazer apometria também porque eu vejo acompanhantes do mundo espiritual.
De cada lugarzinho eu aprendo algo, o néctar vem para mim, aí eu faço o meu bálsamo para
tratar as feridas da minha família. Eu nunca quero ficar presa a uma coisa só. Agora a minha
base é a União do Vegetal. É assim que eu sinto Jéssica. Eu tenho que ir a luta.
Magnólia diz que não pretende sair da União do Vegetal. Ela explica por que
quer permanecer para sempre na UDV:
Eu no caminho, não to ótima, mas me sentindo outra pessoa, é a paz [...] A União do
Vegetal pra mim é muito importante porque é ali onde nós estamos na doutrina [...] A minha
idéia é continuar sempre na União e acho que por toda a eternidade do meu espírito pela
minha família e as pessoas da União que eu não posso mais viver sem ver. Como eu não vou
mais encontrar o mestre que eu gosto, a T., o P., como? A União é minha família também.
Caso 2: Uma fardada do Santo Daime
Foi no Daime onde me encontrei. Parei de peregrinar [...] Entendo hoje que foi toda a
caminhada necessária, tudo no momento certo para aquilo acontecer, tudo se soma, é um
aprendizado.
260
Myrmia tem 46 anos, tomou daime pela primeira vez há seis anos e é fardada
há quase três anos, mas tinha escutado falar do Santo Daime 23 anos quando
morava no Rio de Janeiro despertando seu interesse, foi budista e também da religião
Ananda Marga. Myrmia é separada e não possui companheiro atualmente praticando o
celibato. É aposentada por invalidez devido a um acidente de carro no qual teve fraturas
ltiplas da coluna, passou muito tempo hospitalizada e precisou de alguns anos até sua
recuperação, assim seus três filhos homens ficaram sob a guarda do pai. O filho mais
novo de doze anos também é daimista. Myrmia é moradora da comunidade do Santo
Daime Céu de São Miguel. Ela descreve sua inserção no Santo Daime:
Eu tive uma vida espiritual bem forte eu tive passagem na Ananda Marga que é uma
filosofia oriental não chega a ser bem uma religião, fui budista e daí depois eu sempre tive
aquela curiosidade assim de... Eu sentia que o Daime ia ser minha religião eu sentia uma
coisa muito certa isso [...] Daí eu conheci o Schistes isso foi 6 anos atrás fiquei sabendo
que ele tomava o Santo Daime eu disse pra ele quando tu for me chama que eu quero ir
junto. Daí vim, aí a gente vinha sempre junto. A primeira vez que eu bebi o Santo Daime foi
lá no Céu da Lagoa em Osório no Sérgio e daí foi revelador, muito revelador e daí eu digo:
Bah! Mas é isso mesmo! Daí passou e a gente continuou indo assim e tal. Daí uma vez eu
fui no Chave e no rgio eles não eram fardados, não tinha farda nada porque era um
centro não era uma igreja. quando eu cheguei na Chave e vi aquele monte de gente com
coroa e tudo eu digo: Meu Deus que gente mais louca (risos) eu não sabia que era assim
entendeu e fiquei muito impressionada quando vi aquilo né. Daí fui algumas vezes na Chave
e não tive afinidade com o pessoal lá. Daí eu morei fora, morei na Nova Zelândia um tempo
e daí quando eu voltei eu pedi para o Schistes: Ai eu preciso tomar um daime urgente [...]
Ele disse: Bah! Descobri um lugar muito bom tu vai adorar o lugar que eu descobri, que
era aqui no Céu de São Miguel. Daí eu vim e nunca mais saí. Isso faz mais de dois anos, vai
fazer três anos isso. Daí depois de um tempo eu me fardei aqui. Daí nunca mais faltei
nenhum trabalho nem nada e a transformação com o Daime assim que eu achei que apesar
de eu já ter passagem por meditação, yoga, essas outras coisas. O Daime é um acelerador do
processo espiritual. Te dá muito mais visão e entendimento do que qualquer outra coisa.
Myrmia sendo desenganada pelos médicos acredita que obteve a cura de seu
problema de coluna no Santo Daime. Ela fala do que significa o Daime para ela e de sua
cura:
Eu vi que aquela coisa do segredo, da física quântica. O Daime te dá muito mais facilidade,
acesso, se tu te conecta bem. Porque é uma coisa assim se tu seguir a doutrina bem dentro
daquilo ali dela, ser verdadeira, então ela te traz coisa boa. Então tu chega no Daime
pedindo. Dai-me saúde. No meu caso como era um problema muito sério. Porque quando eu
cheguei aqui eu praticamente estava desenganada pelo problema de saúde que eu tenho
[...] Eu tive múltiplas fraturas na coluna cervical e quando operaram colocaram parafusos
que não eram de titânio e eles quebraram. Depois eu te mostro o raio x. Então era uma coisa
desenganada. Tanto é que no dia do meu fardamento eu tive uma passagem, eu apaguei
totalmente caí no chão morta e isso é uma coisa que acontece que não é muito comum
acontecer. Só é feito isso quando precisa realmente de um concerto numa pessoa, no
aparelho né [...] Daí eu digo: Bah! Eu vou chegar até aqui pra morrer agora. No dia do meu
fardamento eu vou morrer. Porque eu sentia que eu tava indo e daí eu digo: Então tá,
então vou! E daí no momento que eu entreguei eu caí apagada o padrinho socorreu, a
dinda socorreu e eu voltei [...] Eu me lembro que eu tava com os olhos abertos, mas não
261
enxergava nada. Depois daí como eu parei de respirar até. Eu me lembro que o padrinho
dizia: Respira! Então eu me concentrava muito em puxar o ar pra me aterrar. Daí isso foi
dentro da igreja no final do trabalho. Na hora que a gente faz o sinal da cruz. Dizem as
pessoas no salão que eu dei dois passos para frente e caí pra trás e daí o Schistes ficou muito
preocupado por causa desses parafusos tudo quebrado. Ele pensou: Bah! Agora quebrou o
resto! E não! E desde ali as coisas foram melhorando nesse sentido de saúde. Tanto é
que hoje eu vivo assim e nem remédio pra dor eu tomo. E daí depois outra coisa depois que
aconteceu foi que eu comecei a receber hinos. Eu recebi vários hinos, tenho uns doze [...]
Então, eu devo a cura disso ao Santo Daime. Esse milagre é do Santo Daime. Se eu estou
viva aqui, falando contigo, bem, sem sentir dor. Daí eu trabalho sempre pra merecer mais. É
que nem aquele hino que eu recebi por último: vou fazer por mais merecer.... Esse é o
sentido dessa vida! Isso é uma coisa que o Daime me mostrou, que a gente, se tu anda num
caminho reto, só vem pra ti.
Myrmia pensa que realmente se encontrou na sua vida espiritual com o
Santo Daime, mas ao mesmo tempo agrega os conhecimentos das outras religiões que
passou dentro das possibilidades da doutrina daimista que nesse sentido é muito
flexível. Myrmia tem, por exemplo, um projeto de construção de um templo budista na
comunidade do Santo Daime para 2010 onde serão realizadas sessões de meditação
budista com daime. A respeito de sua trajetória religiosa e do significado do Daime ela
diz:
Acho que eu tinha uns 40 quando tomei daime pela primeira vez. Como dizem a vida
começa aos 40! (risos) Para mim foi exatamente assim. Porque foi no Daime onde me
encontrei. Parei de peregrinar. Porque peregrinei, mas, claro que nunca me arrependi dos
meus caminhos, no budismo, na Ananda Marga. Tenho assim um amor profundo por Budha,
tanto é que meu filho é Sidharta. Entendo hoje que foi toda a caminhada necessária, tudo no
momento certo pra aquilo acontecer, tudo se soma, é um aprendizado [...] Então é tudo
muito providencial. O Daime ele conduz, se tu te entregar, ele vai te conduzindo, vai te
levando. Mas tem que vir a doutrina.
Caso 3: Um ex-fardado do Santo Daime e também ex-sócio da UDV
Eu vejo que eu tenho um tempo para ficar em cada lugar onde eu aprendo algo para subir
de degrau, me transformar
Cravo Calypte tem 54 anos. É artista plástico. Freqüentou a igreja católica
quando criança, ajudando a fazer stias: Minha família é católica. Eu freqüentava no
início da vida a igreja católica até uns dez anos. Ajudei a fazer stia. Eu queria saber
se aquilo tinha a ver com Deus, se era verdade. Fiz catecismo. Fui na igreja, fiz óstia,
vi os padres loucos dentro. Eu disse bom isso não tem nada a ver com Deus!
Aquilo não era minha casa espiritual. Foi saniasin do mestre Osho Rajneesh por mais
de dez anos. Viveu um ano na Índia no ashram do Osho. Fez várias terapias
alternativas, morou na comunidade do Osho no Canta Galo em Porto Alegre. Em 1994
começou a freqüentar o Santo Daime continuando a ser saniasin. Aos pouco foi
262
deixando de ser saniasin se fardou no Daime onde permaneceu durante quatro anos.
Saiu do Santo Daime para a União do Vegetal onde foi sócio durante seis anos. Foi duas
vezes em sessão de candomblé, mas não conseguiu incorporar, pois segundo o Pai de
Santo ele trabalhava com mestres do oriente, não sendo o candomblé para ele. Cravo
Calypte descreve como iniciou sua busca espiritual até chegar ao Santo Daime:
Quando eu tinha uns 16, 17 anos que eu comecei a ver o mundo eu me lembro de uma frase
que eu tava meio que dormindo e eu acreditava que eu tinha que ter vindo para o paraíso e
aqui não era o paraíso e aquilo me deu uma dor enorme e eu fiquei quase dois anos sem
conversar. Eu tava meio que apavorado com essa coisa de morando no inferno que eu
tava que é a civilização (risos). Então eu me drogava, eu fumava maconha, eu bebia, eu
tava meio que quase que pirando. comecei a ler terapia, tudo que era Freud, tudo que era
Jung, tudo... Eu queria entender o que tava acontecendo comigo. apareceu o Osho. Meu
pai tinha os livros dele. Aí comecei a ler aquilo e vi que aquele negócio batia comigo. [...] E
essa busca meu espírito começou, tu tem que ir atrás, tu procura que tu acaba achando.
veio os livros, eu comecei nessa pesquisa, veio os mestres [...] Aí eu sempre busquei alguma
coisa de autoconhecimento. Eu passei um ano na Índia com o Osho lá no Asham do Osho e
depois de uns dois anos em Porto Alegre eu comecei a sentir falta de alguma coisa mais
contundente, mais, que mexesse comigo. Eu tinha passado por um processo de meditação,
de autoconhecimento através de terapia, tinha feito pai e mãe, e depois disso eu senti
necessidade de voar, essa necessidade de voar, de entrar em contato com alguma coisa mais
que as drogas proporcionam, essa amplitude, diminui o racional e aumenta o sensível. Tu
começa a conversar contigo mesmo e com energias. E isso eu tinha descoberto isso com o
cogumelo. Eu tinha comido um cogumelo e vi que: UAU!!! Esse negócio amplia esse
contato, eu tive a primeira experiência com esses espaços de consciência quando eu comi
um cogumelo. Nisso eu morava em Belo Horizonte. Isso deve ter sido em 78 por aí. [...]
Aquilo foi uma coisa maravilhosa eu me senti um com todo, as formigas andando por mim,
tudo era eu e eu era aquilo, a gente comunga dos mesmos átomos, dos mesmos genomas
quase. Tudo é muito próximo e essa consciência disso foi eu chorava e ria, foi um êxtase. E
eu vi que a gente é limitado desse mundo racional [...] Eu fiquei ali derretido feito grama,
virei terra, virei água, virei bicho [...] Desde então eu descobri que agente é mais do que a
gente sabe que é. E quando eu tava em Porto Alegre, quando eu cheguei aqui depois de uns
dois anos. Eu cheguei aqui em 92. Isso foi em 94 eu comecei a querer a tomar o cogumelo,
que eu tinha feito muito bioenergética, muita terapia no Canta Galo, num centro de
meditação e terapia do Osho e eu morei no Canta Galo um tempo e eu sabia que tinha o
Santo Daime ali perto, mas eu tava morando aqui no alto Teresópolis eu tinha uma
namorada e eu comecei a querer a tomar cogumelo. Tava sentindo falta dessa coisa que é se
reconectar com esse lado mais sensorial e eu pedi para um amigo arranjar um ácido pra
mim tomar e nisso veio um convite na hora que eu comecei a pedir isso, veio um convite
para mim ir no Santo Daime tomar ayahuasca, foi essa minha namorada que me convidou,
ela conhecia, tinha esses contatos mas ela não era daimista. ela me levou lá, a madrinha
conversou comigo, a gente conversou e eu voltei outro dia pra gente tomar o chá e foi:
PAN! Um presentão, um presentão grande mesmo. Muito lindo a energia que rolou, que
aconteceu.
Cravo Calypte saiu do Santo Daime para ir para União do Vegetal:
E depois disso eu tava casado com uma mulher que começou a freqüentar a União. Quando
eu estava no Daime eu levei ela a primeira vez dela no Daime e ela tinha uma amiga que
levou ela depois na União. Então no Ano Novo eu levei ela no Daime e ela teve uma
experiência maravilhosa e ela me levou na União e ela quis ficar na União e eu fiquei
na União com ela.
263
Sobre a sua decisão de sair da União do Vegetal ele diz:
Teve uma hora que eu tive vontade sair da União e aí todo mundo queria que eu ficasse, mas
não tava bom pra mim. Não tava bom porque eu me separei da companheira e pra mim não
era bom vê-la, me doía o coração e cada sessão que eu ia era uma tortura enorme. Eu falei:
Não isso eu não vou agüentar. É melhor eu deixar ela aí e ir para outra. Aí eu saí.
Sobre a sua experiência no Daime e na UDV e o que manteve nesses lugares
ele diz:
Eu vejo que nesses dois universos que compartilham essa mesma bebida tem um jeito, um te
mostra mais o lado sensorial pra mim e o outro me mostrou o lado muito mais racional e
prático. Então esse mesmo poder [...] O que me manteve no Daime e na União foram o
amor, o aprendizado, o crescimento espiritual [...] Eu nunca fui um convertido sem
consciência. Isso não funciona. Eu fiquei o tempo que eu precisava nesses lugares [...] Por
isso acho que o amor me leva por vários caminhos, por isso eu aqui. Porque eu morava
em Belo Horizonte, o amor me levou para o Espírito Santo depois ele me levou para Índia
depois ele me levou para Holanda depois ele me trouxe para Porto Alegre e agora eu tenho
duas filhas aqui e aí eu fiquei.
Sobre ser fiel a uma religião, vestir a farda do Daime, o uniforme da UDV, o
sentido de ser um adepto de uma determinada religião ele diz:
Como eu sou um artista, esse negócio para mim, a minha farda é o que eu vim fazer, é a
minha missão aqui. Então eu posso vestir qualquer uniforme, mas o meu coração que tá
dizendo o que eu gosto de fazer, o que eu tenho que fazer. Esse negócio pra mim de vestir o
uniforme tem uma coisa que é a seguinte me veio uma vez numa sessão no Vegetal uma
coisa assim: me interessa muito pra gente que tá querendo, está disposto a aprender, que
quer subir de elevador. Não interessa muito a roupa do ascensorista e nem que elevador que
é. Qual o objetivo? Tu quer ir lá no décimo andar onde mora o seu Nirvana. Não interessa os
meios, a roupa, nem o elevador. O que interessa é entrar em contato com o seu Nirvana lá
no décimo andar. Isso que me interessa. Então eu visto a farda de qualquer batalhão. Eu vou
fazer qualquer coisa que o meu coração e se tu quer chegar nesse conhecimento e tu tem que
vestir essa roupa eu visto essa roupa e se isso funcionar funcionou se não funcionar...Eu
vejo que eu tenho um tempo para ficar em cada lugar onde eu aprendo algo para subir de
degrau, me transformar.
Caso 4: um free do Santo Daime e da União do Vegetal
Acho que a gente tá aqui na vida para conhecer, para aprender, para se melhorar e a gente
vai tá aqui tantas vezes forem preciso para isso [...] quem disser que está pronto, que já sabe
tudo, não sabe nada.
Augastes Lírio tem 30 anos, é formado em publicidade e propaganda, possui
s-graduação e atualmente trabalha numa empresa como webdesign e leciona em um
cursinho. Augastes Lírio possui três anos de casado e quatro anos de namoro, não
possui filhos. seis anos seu sogro, cio da União do Vegetal, o levou a uma sessão
264
de adventício. Desde então Augastes Lírio passou a freqüentar esporadicamente a UDV,
dando intervalos de quatro meses ou seis, indo quando sentia necessidade. dois
anos sua cunhada começou a freqüentar o Santo Daime e Augastes Lírio também passou
a freqüentar o Santo Daime esporadicamente concomitantemente com a União do
Vegetal, porém com mais freqüência ao culto daimista. Augastes Lírio relata sua
experiência religiosa até chegar à União do Vegetal:
Eu comecei minha trajetória desde pequeno com uma influência muito forte da minha
família. Tanto a família por parte de pai, mas principalmente por parte de mãe. Eles todos,
minhas tias, meus tios, meu avô também, eles eram muito católicos, cristão. Católico
Apostólico Romano. E seguindo isso eu freqüentava bastante a igreja católica. Eu participei
quando criança, acho que eu tinha em torno de dez anos, de um movimento de crianças, que
era o Onda. E eu participei por alguns anos desse movimento. Eu freqüentava bastante a
igreja fazia os retiros. Mas a partir da adolescência eu comecei a questionar alguns
paradigmas da igreja católica. Eu e meus amigos tivemos alguns problemas no curso, a
gente acabou ficando meio velho demais, era para criança, já era época da gente mudar
para o grupo de adolescentes e daí a gente acabou sendo expulso do curso né. E
naturalmente as coisas foram se encaminhando para o afastamento da igreja católica. A
partir disso eu fiquei afastado de todo e qualquer religião. Tive tempo de questionamento
mesmo de o porque de uma religião? Porque todo mundo tinha que ter uma religião? E até
por algum tempo eu me achei mais evoluído por não precisar de uma religião para encarar
as coisas, para seguir em frente. Acho que a mesmo em um Deus superior eu nunca
cheguei a perder, mas a questão religiosa eu fiquei um bom tempo totalmente afastado [...]
Até que chegou o momento que eu tive oportunidade de conhecer a União do Vegetal, no
caso o meu sogro acabou me levando para a União do Vegetal e as primeiras sessões foram
muito fortes. Foram coisas que aconteceram de quebrar alguns paradigmas mesmo, de reatar
coisas perdidas, que eu realmente estava precisando ver, de enxergar algumas coisas
também [...] me quebrou vários paradigmas, sem vida, vários paradigmas. O próprio
paradigma religioso esse era muito forte, eu passei do ceticismo total para certeza, e o
paradigma de não olhar para dentro também [...] Eu curei um trauma muito forte de criança,
que foi que o meu pai faleceu quando eu tinha oito anos de idade e eu tive um contato na
primeira sessão muito forte com ele [...] foi um resgate e com certeza eu melhorei várias
coisas que eu não enxergava. Eu tinha uma propensão muito forte ao álcool e issoGraças
a Deus é bem tranqüilo atualmente.
Augastes Lírio explica porque não se tornou um sócio da União do Vegetal
ou um fardado do Santo Daime:
A União do Vegetal eu acho que naturalmente eu não me tornaria um associado porque o
culto, a sessão deles é uma sessão boa, porém eu acho que eu não sou um cara que se
adaptaria bem a esse tipo de religião. Eu sou, sempre fui de ter a mente aberta, de mudar de
paradigma, de buscar o conhecimento ou de não aceitar tudo mastigado e engolir e eles
tem normas, tem hierarquias e não são muito ecléticos digamos assim. Existe muito
envolvimento de trabalho, muita cobrança também, de tu trabalhar, tu participar e eu acho
que não é o que eu buscando agora. Não sei se vai chegar um dia que eu vou tá
participando, mas hoje eu tô muito dedicado a minha família e a minha profissão e o pessoal
que é sócio tem a obrigação de participar efetivamente dos eventos. Tem algumas
orientações de cunho social também, de não poder, não poder não, não dever freqüentar
alguns lugares e não é o que eu tô buscando no momento. Por outro lado, o Santo Daime, eu
já pensei em me fardar, mas também não é bem a hora. Não sei se um dia vai ser também ou
não. Mas por outro lado é uma religião bem eclética. É bom destacar aqui que eu
conheço um centro de Daime o Céu de São Miguel. A União do Vegetal tem mais
centralização. Então a princípio eu conheço um centro da União o Núcleo Jardim das
265
Flores. Mas a princípio eles seguem a mesma doutrina, são mais padronizados e o Santo
Daime não. Pelo que eu sei eles são mais ecléticos, tanto que várias outras religiões acabam
permeando, fazendo parte. Por outro lado também tem essa questão de estar trabalhando na
comunidade, de estar sendo membro ativo e eu ainda não. Não sei se um dia eu vou chegar a
participar. Se eu tivesse que escolher por alguma, o Santo Daime seria a opção dos que eu
conheço hoje. Porque existem outros da mesma linha (religiões ayahuasqueiras ou neo-
ayahuasqueiras) que pode tá sendo a religião que se adapta a minha pessoa. Porque eu passei
a acreditar que existe no mundo religião para cada tipo de pessoa. Tem pessoa que precisa
de uma religião evangélica, doutrinadora, forte. Outros, uma religião mais livre, outros uma
religião que o Deus é poderoso e ameaçador. Então, talvez eu não tenha encontrado
exatamente a minha ainda. Ou talvez eu esteja namorando alguma delas que pode vir a ser.
Nesse sentido Augastes Lírio diz que tem interesse em conhecer outras
religiões como o budismo, pois viu imagens de Budha no Santo Daime e na União
do Vegetal, pretende participar de alguns movimentos xamânicos, meditações orientais
e pretende fazer uma regressão a vidas passadas. Depois que passou a freqüentar
esporadicamente essas duas religiões ayahuasqueiras foi duas vezes num centro espírita
para conhecer, mas não seguiu as recomendações prescritas. Augastes Lírio diz que
pretende continuar indo esporadicamente nessas religiões e conhecendo outras com o
objetivo de autoconhecimento e evolução espiritual. Observe:
Eu buscando autoconhecimento, conhecimento espiritual, evolução espiritual. Não é uma
vez que tu tomando daime que tu vai evoluir. Tu vai evoluir, mas não vai chegar. Acho
que a gente aqui na vida para conhecer, para aprender, para se melhorar e a gente vai tá
aqui tantas vezes forem preciso par isso. Ou pra gente vir fazer o bem para humanidade de
alguma forma, ou para contribuir com o movimento ou para se melhorar, se evoluir ou para
ajudar alguém específico. Então quem disser que está pronto, que sabe tudo, não sabe
nada [...] Eu pretendo continuar indo esporadicamente. Eu quase fui essa semana inclusive
na União do Vegetal. Eu acho que fazem uns dois meses que eu não vou, mas eu acho, eu
vou ir mais freqüente no Santo Daime mesmo porque a União do Vegetal tem uma coisa
muito forte, sempre que eu vou todo mundo quer que eu me associe, que eu freqüente
coisa e tal. E o Santo Daime é mais livre, não tem essa pressão, é mais tranqüilo.
Compreensão dos Casos
Soares (2009) observa que o conjunto de seus interlocutores conheceram
outros lugares de oração através de seus vizinhos, tendo assim as relações de vizinhança
um papel importante no itinerário religioso de seus interlocutores. Em todos os casos
que entrevistei as pessoas tiveram acesso ao Santo Daime e a União do Vegetal por
relações mais íntimas, como nos casos expostos acima e como demonstrado no capítulo
anterior, são pessoas de seu círculo de amizade, relações de parentesco, relações
amorosas, até porque o acesso a esses espaços religiosos freqüentemente se ou por
um convite mais seletivo (UDV) ou pelo interesse da pessoa que tem conhecimento
sobre a outra que freqüenta, no caso o Santo Daime, e seus adeptos normalmente não
266
divulgam muito sua opção religiosa por considerarem que a sua doutrina ainda sofre
muitos preconceitos.
Pensar essas relações, diz Soares (2009) é pensar como as pessoas se
deslocam em religião. Nos casos apresentados anteriormente denotam que essas
relações íntimas o relações que têm certo grau de confiança. O sogro de Augastes
Lírio falava dos poderes da hoasca e Augastes Lírio confiou nesse poder expansor da
consciência que poderia lhe proporcionar autoconhecimento, recordações, resgates.
Cravo Calypte diz que foram as relações amorosas que guiaram todo seu trajeto
religioso. O amor me leva por vários caminhos conclui ele. Observe o depoimento de
Myrmia e Magnólia sobre as pessoas que as levaram para religião:
Nós éramos amigos. O Schistes cuidou da minha casa quando eu fui viajar e a gente morou
na mesma casa muito tempo eu e ele. Ele morava lá comigo não como namorado a gente
dividia a casa. Então eu fui viajar e ele ficou cuidando da casa e daí eu escrevi de pra
ele por MSN, da Nova Zelândia: Eu preciso tomar um daime, assim que eu chegar tu,
vamos tomar um daime. (Myrmia)
Então nós fomos fazer terapia com o Mauro eu e o meu marido e fomos porque nós
acreditávamos que o nosso problema era o nosso filho mais velho. Chegando no Mauro
ficamos sabendo que o problema era eu e o meu marido, pais desajustados, filhos
desajustados. E com o Mauro a nossa vida começou porque ele deu a luz para nós.
Tratamento para mim e o meu marido, regressão para os dois, como nós deveríamos nos
dirigir com os nossos filhos, o que fazer, a União do Vegetal e lá fomos. (Magnólia)
Como disse Magnólia na apresentação do caso, eu acreditei nele, se
referindo ao seu terapeuta. Assim, são relações íntimas que denotam certo grau de
confiança e credibilidade às pessoas que não sabem o que há de vir dessa experiência
religiosa que é sempre única e imprevisível e neste sentido essas relações mais estreitas
facilitam e até mesmo incitam como colocou Soares (2009, p. 241) as interações entre
as criaturas de Deus e o Criador, porém concordo com o autor de que somente as
relações não são suficientes para explicar a maneira que as pessoas praticam sua fé ou a
maneira da conversão conjugada dentro de uma perspectiva de fidelidade e mobilidade
religiosa que ele chamou de maneiras de fazer
73
, que nos casos que eu analisei estão
73
De acordo com Soares (2009, p.78): As maneiras de fazer constituem as mil práticas pelas quais os
usuários se reapropriam do espaço organizado pelas técnicas de produção sociocultural. Elas colocam
questões análogas e contrárias: análogas, que se trata de distinguir as operações quase microbianas que
proliferam o interior das estruturas tecnocráticas e disto deslocam o funcionamento por uma multidão de
táticas articuladas sobre os detalhes do cotidiano; contrárias,que não se trata de especificar como a
violência da ordem se transforma em tecnologia disciplinaria, mas de desenterrar as formas escondidas
que pegam a criatividade dispersada, tática e bricolagem dos grupos ou dos indivíduos tomados, desde
267
ligados a um aprendizado, tanto com os adeptos convertidos, quanto os ex-adeptos e os
free - os peregrinos ainda não convertidos. De cada lugarzinho eu aprendo algo, o
néctar vem para mim, aí eu faço o meu bálsamo para tratar as feridas de minha
família (Magnólia). Foi toda a caminhada necessária, tudo no momento certo para
aquilo acontecer, tudo se soma, é um aprendizado (Myrmia). Acho que a gente
aqui na vida para conhecer, para aprender, para se melhorar e agente vai aqui
tantas vezes forem preciso para isso [...] quem disser que está pronto, que já sabe tudo,
não sabe nada (Augastes Lírio).Eu vejo que eu tenho um tempo para ficar em cada
lugar onde eu aprendo algo para subir de degrau, me transformar (Cravo Calypte).
(Grifo meu).
Cravo Calypte ex-fardado do Daime e ex-sócio da UDV, explica seu
aprendizado:
Eu fiquei uns quatro anos no Daime e devo ter ficado uns seis anos na União. E eu me
tornei sócio da União. E o ritual é totalmente diferente. É uma coisa mais, que eu nunca tive
muito, que essa coisa de OBEDECE (fala pausado). Isso é uma coisa que a União começou
a me ensinar eu comecei a... No Pai-Nosso tem uma coisa bacana que é seja feita a vossa
vontade, pra mim é essa coisa do mestre, de eu ser um discípulo e de eu estar disponível
para obedecer. Isso sempre foi uma coisa que eu fui rebelde em querer sempre fazer as
coisas que eu quero fazer [...] sempre obedeci minha voz do coração. E quando o mestre fala
direto lá dentro eu obedeço. E essa frase ela ficou mais forte na União do Vegetal quando eu
comecei a prestar atenção nessa frase do Pai-Nosso, como coisas de horário, do mundo
prático, mas também essa coisa que é do bem, de falar uma coisa e cumprir, de ter uma
organização mental, não espiritual, mas também uma coisa prática, pagar tuas contas né.
A União tem essa coisa bacana para ensinar. Isso eu tentei um pouco resistir e depois eu
comecei a ver que isso faz parte de uma coisa legal que eu tenho que aprender. Serve pra
mim aprender isso. E aí eu fiquei seis anos e é uma família, a União do Vegetal é uma
família grande, é uma confraternização. Isso é muito legal, essa União que o nome diz, as
pessoas se unem em torno dessa comunhão. A minha transformação foi essa. É um expansor
que eu já conhecia com o cogumelo que é a coisa mais sensorial que o Daime me mostrou e
na União foi a coisa do fazer certo, da ordem, uma coisa mais regular, mais metódica que eu
não tinha muito essa coisa de horário. Isso foram dois aprendizados pra mim que me
valeram. Eu gostei de aprender. É como a gente troca de ano né, eu vou para outra escola aí
tem outro professor que ensina bem matemática tem outro que ensina bem português e
assim é no mundo espiritual também né. Então eu acho que é legal e é válido pra quem quer
ter consciência e aprender quem é ele mesmo. Quem sou eu né? É da consciência. Eu acho
que eu agradeço ter bebido dessas fontes. (Cravo Calypte)
Magnólia, sócia da UDV:
Eu tenho a minha religião, o que eu sinto é assim que eu tenho. Agora a base é a União do
Vegetal, ali foi onde que eu aprendi. eu vou fazendo umas certas escolhas do que é bom
para mim, não para minha pessoa, mas para minha família. Mas acredito que a gente não
deve ficar fixada numa tanto na religião quanto na educação. As coisas deram certo na
minha profissão por causa disso, eu não ia numa metodologia e sim numa necessidade
que o grupo tinha. Pessoas carentes, do morro, de classes populares, eu não podia ensinar o
então, nas redes da vigilância. Os procedimentos e artimanhas do consumidor compõe, em último caso,
a rede de uma antidisciplina (Certeau, 1990, p.14).
268
que era caju e sim tinha que ensinar para eles a necessidade lá da vila. Na religião eu penso
da mesma forma, na minha família tem uma necessidade, a tua outra, a do João outra e daí
vai sendo adaptado pra não ficar tudo em série. Eu tô sendo alfabetizada, é assim que eu me
sinto. Eu considero o chá ayahuasca como um espelho. Eu considero o chá para mim um
pedacinho de Deus, de Jesus que bate no teu coração, vem àquela luz no teu coração e tu
sente o que tu tem que transformar. É assim que eu sinto que é um pedacinho do bem. Agora
eu vejo algo bem maior, eu sinto algo bem maior, o poder de Deus, do bem, bem maior que
tá dentro de cada um de nós ali dentro da sessão e todos juntos formam uma grande energia
como os índios, quando um tropeça e cai os outros em dança circulares te carregam.
(Magnólia)
Augastes Lírio, free da União do Vegetal e do Santo Daime:
O trabalho é conduzido de uma forma diferente na União do Vegetal e no Santo Daime. O
chá te abre à experiência, faz a tua mente expandir, mas com certeza o ritual, a energização,
o local vão te conduzir ou tu vai te conduzir, ou ser conduzido para uma experiência
totalmente diferente. Me parece que na União as coisas são mais controladas, a energia é
controlada para uma experiência mais introspectiva, experiências de autoconhecimento e
resgate [...] agora no Santo Daime parece que é mais aberto, tu manifestações diferentes,
tu vê coisas além do que puramente experiência introspectiva [...] tem entidades, eu já senti
um pajé trabalhando e mais coisa de receber energia que lá na União não é tão direto de vir
coisas de fora. Mas eu acredito muito que isso seja o formato do trabalho que é feito lá, o
formato da sessão, a canalização de energia, a abertura que se propõe. Por outro lado, no
Daime às vezes a sessão é mais pesada também e por eles deixarem entrar entidades boas, às
vezes tem as que não são boas também. Às vezes tu passa por alguma situação desse tipo ou
que tu tem que superar [...] eu acredito que seja o formato, o pessoal que conduz a sessão
eles trabalham numa vibração, trabalham num vel que vai conduzindo a energia da
sessão, direcionando. Os próprios formatos dos templos são diferentes. Eu acredito que é
por aí que conduz a sessão, o trabalho que é feito, o ritual que é feito. Na União do Vegetal
se fica muito em silêncio, tem algumas chamadas. No Daime é cantado, tem movimentação,
musica, às vezes dança. E é interessante no Daime que se tu vai em sessões diferentes,
também é diferente. Tem a sessão da mesa branca que é mais manifestação, tu vê o pessoal
(entidades) baixando, tu pode tomar passe e tem as outras que é de concentração que
também é mais introspectiva, que diferente da União do Vegetal. Eu senti manifestações
diferentes do que eu senti na União do Vegetal, não para comparar a experiência em si
qual é melhor, mas são diferentes, a princípio são diferentes [...], por exemplo, eu já fui duas
vezes em centro espírita kardecista, foi uma experiência interessante, mas eu acredito que o
centro espírita tu tem que seguir um pouco mais para ter os ensinamentos. Não é que nem na
União ou Santo Daime que tu vai lá tem uma sessão e tu volta com uma enxurrada de
informações. (Augastes Lírio)
A aprendizagem está relacionada com a experiência, que é uma experiência
de transformação pessoal (capítulo seis). Bebe-se de rias fontes, colhe-se o néctar de
várias flores para formar um bálsamo particular que está dentro de uma base religiosa de
referência tanto para os convertidos quanto para os ex-convertidos ou os ainda
peregrinos dentro do campo religioso ayahuasqueiro. Mesmo convertido não se deixa de
colher outros ctares e mesmo não convertido não se deixa de ter uma religião de
referência base ou no ex-convertido que atualmente não está ligado em nenhuma
instituição religiosa, quando sente necessidade faz seu próprio ritual com a ayahuasca
comprada da Internet, veja o relato de Cravo Calypte:
269
Quando eu saí da União eu tava num processo emocional de muita dor e aí eu não senti falta
de estar na União porque a dor que eu tava tendo lá é maior do que fora. Então eu busquei
ficar quieto comigo mesmo que nem bicho. Depois de um tempo bicho. Tomei ayahuasca
depois em casa. Eu comprei de um cara lá do Mapiá e ele me mandou pelo correio, comprei
pela internet. Tomei umas cinco vezes. Eu coloquei sica, a primeira vez tomei sozinho,
as outras convidei dois amigos cada vez. Dois dele foram para União depois. Eu tenho uma
casa lá em Belém Novo de frente para o Guaiba. Então na frente assim é um lugar legal de
pá. Eu estipulei normas assim ninguém vai para rua até a meia noite ninguém vai para
rua. Eu ascendi uma vela. Eu misturei as coisas assim. O ritual foi assim: eu acendi uma
vela, cada um ia acender a sua vela numa mesa com uma toalha branca e cada um ganhou
uma vela. Eu te dei uma vela pra ti, uma pra mim, outra pra ele. E cada um acendeu sua vela
e que essa luz permanecesse ali acesa, a vela de cada um tá e coloquei uma música e a gente
ficou ali sentado. Depois teve uma sessão que eu toquei violão, sentamos debaixo das
árvores, conversamos o que queríamos conversar e a meia-noite com um Pai-Nosso eu
encerrei a sessão. O importante é a gente entrar em contato com a gente mesmo deixar a
nossa velinha acesa. Apagá-la jamais porque é aonde eu posso aprender alguma coisa e tá
dispovel para aprender né. Seja feita a vossa vontade assim na terra como no u mesmo.
(Cravo Calypte)
Criando seu ritual Cravo Calypte butinou, como Mestre Irineu butinou,
como Mestre Gabriel butinou e como as religiões dissidentes ayahuasqueiras
butinam. Cravo Calypte tenta explicar como criou seu ritual com ayahuasca:
Isso eu penso que a metáfora de tu guardar tua consciência que é a luz né. Como que eu
posso representar isso materialmente? Foi ali espontâneo, o que eu vou fazer? Eu vou
acender umas velas. É uma frase que eu escutei que a gente têm que tomar conta de si,
não deixar a luz apagar. Tem uma mistura de coisa aí. De tu acender vela, minha mãe
acendia vela pra um santo, isso é católico. Eu acho que essa vela é uma coisa do catolicismo
tá e o candombtambém acende vela, o Daime também. Eu gosto dessa imagem da gente
ser representado por uma vela, da luz que eu tenho ser uma vela, de individualizar isso (...) e
os rituais que eu freqüentei. Eu terminei com o Pai-Nosso porque eu sempre rezo Pai-
Nosso eu gosto dessa oração. O Pai-Nosso pra mim é minha oração. (Cravo Calypte)
O ritual do Daime também se termina com Pai-Nosso. No ritual da UDV
também se escutam músicas brasileiras que estejam relacionadas à doutrina. Cravo
Calypte colocou músicas do Caetano Veloso que faziam sentido para ele. Mas Cravo
Calypte não fez nenhuma chamada da UDV nem cantou nenhum hino do Daime nem
invocou nenhum dos mestres de sua trajetória religiosa, ele reconhece-os como mestres
e reconhece o Daime e a UDV como importantes para seu aprendizado, mas ele o é
mais um convertido nessas religiões, mas ainda é um convertido na ayahuasca, nos
poderes da ayahuasca, ele diz sobre a ayahuasca: Tu entra em contato contigo
mesmo, é uma planta de poder. É divino, é sagrado. Tem poder. Da mesma maneira
Augastes Lírio não é um convertido no Santo Daime e na União do Vegetal, mas é um
270
convertido nessa planta de poder - nos poderes da ayahuasca. Neste sentido veja o
relato de Augastes Lírio:
Eu acho que o Mestre Irineu e o Mestre Gabriel foram pessoas que vieram para dar
mensagem tipo, as duas religiões se baseiam em Cristo, para mim Cristo é quem é o filho de
Deus e para mim eles foram escolhidos para espalhar a ayahuasca que é, que veio dos índios
e espalhar mensagens de paz, luz, amor, mensagens do Bem. Mas eu não consigo tomar
eles, até porque eu não conheço muito. Conheço algumas coisas do Mestre Gabriel, mas
para mim são entidades que vieram para espalhar a mensagem do Bem. Agora, mas não
podem chegar nem perto do que a princípio para mim Jesus Cristo veio aqui fazer, a missão
deles hoje não se compara também . Eu não seguiria de olhos fechados assim, não seria
nada que eu não questionaria algumas posições, mas se eu viesse a conhecer mais deles eu
ia tá olhando com um senso crítico. Essa é a minha posição [...] Agora, eu acredito que se eu
tomar o daime aqui em casa eu não vou ter experiência religiosa. Pode ser que eu tenha por
eu energizar, orar, coisa assim. Mas se a pessoa não tiver o intuito, ela vai ter uma
experiência talvez alucinógena. Enteógena como falam eu acredito que se tiver um ritual.
Hoje eu acredito muito mesmo em ritual, que os mestres da União do Vegetal e dos
padrinhos do Santo Daime, eles sabem com que eles estão trabalhando. Eles estão
trabalhando em cima de uma, não sei se é, uma magia em cima de um ritual. Mas me
aparenta ser um conhecimento antigo de um trabalho energético, espiritual. Acredito que
outras ervas, o peyote, talvez a cannabis, se tiver dentro do culto religioso, acredito que sim,
pode levar a experiências religiosas, de autoconhecimento, de contato com o astral, na
verdade não tenho dúvidas sobre isso. (Augastes Lírio)
A experiência religiosa está muito ligada ao autoconhecimento como coloca
Augastes Lírio nas últimas frases do seu depoimento acima, que denota a importância
do ritual e de pessoas com conhecimento para conduzirem esse autoconhecimento
religioso. Nesta perspectiva, observe o relato de Cravo Calypte:
Religião pra mim é uma palavra gasta, pra mim é autoconhecimento. Seria uma palavra
mais abrangente no meu modo de ver autoconhecimento. Religião vem de religar. Se ligar a
que? A ti mesmo pra começar, pra tu pode se ligar com o universo. Agora a gente têm
professores e têm mestres (Cravo Calypte).
Essa planta de poder, essa planta professora, vem impregnada de toda carga
da crença do sistema de saúde/doença que compõe essas religiões, que é similar em
ambas (exposto no capítulo seis). Assim o convertido na ayahuasca e não mais nas
religiões ou ainda não nas religiões ayahuasqueiras é um convertido nesse sistema. Veja
o relato de Augastes Lírio:
Nesses últimos tempos essas experiências que eu tive com essas religiões foram muito
proveitosas, acrescentaram muito para mim. Pelo menos eu tenho um caminho a trilhar
nisso, quero conhecer mais outras religiões e é bem o que eu te falei, se eu tiver que seguir
uma vai se manifestar de uma forma que não vai ter dúvidas [...] na verdade eu
conhecendo. E acho que sem vida sempre tu crescendo no que tu buscando até
porque eu acredito muito que o caminho espiritual da pessoa é importante, tu tando de forma
271
mais efetiva numa religião ou não, mas tu em busca do caminho, mas o importante é que
durante esse percurso tu trilhando, tu tá apontando pro mesmo lado [...] Eu aberto
seguindo para o caminho o qual aponta, mesmo não tando seguindo na religião, os valores,
os princípios que é uma coisa muito forte, tá sendo seguido. Isso que eu não quero de
forma alguma me desviar né. Sendo qual religião for, os valores, princípios, que são do Bem
são do Bem e se tu não sabe que é, é porque não são (Augastes Lírio).
Em todas as entrevistas, os convertidos nas religiões ayahuasqueiras relatam
primeiro sua conversão nos poderes da bebida e posteriormente na doutrina, nos
mestres dos quais a grande maioria têm muito pouco ou nenhum conhecimento ao
ingressar nestas religiões. Veja o relato de Magnólia, sócia da UDV:
Eu tive três filhos, o primeiro nasceu e morreu e eu senti a presença do que fez a passagem,
ele se apresentou na burracheira para mim e eu com coração de mãe. Era um menino. Ele se
apresentou na burracheira no início para mim lá. Eu nem entendia direito o que era a
ayahuasca, eu sabia que estava num lugar para cura, que o dico tinha me mandado para
cura do físico e do espírito. Eu não sabia bem o que era e se apresentou para mim. Aí eu tive
certeza porque eu sei o que aconteceu eu sei. Parece que eu entrei de pára-quedas na
União, cheguei bebi o chá e amei, amei aquilo [...] Agora quanto ao Mestre Gabriel eu
demorei um pouco a acreditar. Pensei como essas pessoas inteligentes podem ser tão
fanáticas. Eu resisti uns três anos. Eu duvidava, eu achava que era fanatismo, como pessoas
tão instruídas podem acreditar tanto. Agora eu igual, porque eu senti no meu coração, eu
vi, eu fui tendo a prova é muito forte isso pra mim [...] Agora eu sei que não tem
fanatismo é porque eu não sabia quem era o Mestre Gabriel e agente ama o que agente
conhece. Assim que eu comecei a sentir mais o Mestre Gabriel, eu comecei a ter confiança.
(Magnólia)
Neste sentido a viagem entre o beija-flor e as flores dentro do campo
religioso ayahuasqueiro tem como peça-chave a experiência com a ayahuasca a rosa
que é a flor misteriosa, a mais importante. A viagem do beija-flor colhendo o néctar é
uma viagem de aprendizado que está relacionada com uma transformação pessoal, com
a obtenção de uma nova identidade. Como coloca Goulart (1996), na ótica do daimista,
o ponto principal de sua relação com a realidade sagrada é a transformação ética que ele
pode obter por meio da experiência com a própria bebida daime. Com efeito, o chá é
não a bebida ingerida nos rituais, mas a principal entidade daimista, o grande
guia, a planta-mestre, que orienta o sujeito no seu aprendizado espiritual. É nesta
relação pessoal, íntima e consciente com o daime que os adeptos se constroem como
individualidade moral.
Neste sentido a aprendizagem está relacionada com a necessidade de cada
um, idéia presente em todos entrevistados. A religião vai sendo adaptada de acordo
com a necessidade de cada um e não ficando tudo em série utilizando as palavras de
Magnólia. O que Oro chamou de um tipo de privatização da religião, que é a ação
272
dos indivíduos no sentido de moldar a sua própria religião, apropriando-se de
fragmentos e de elementos provenientes de diversos sistemas religiosos (Oro apud
Steil, 2001, p.119). De acordo com Steil (2001) são sujeitos pós-modernos que moldam
sua religiosidade em meio a um mundo onde é possível perceber um fluxo constante de
relações entre indivíduos de diferentes grupos que ultrapassam as fronteiras de tempo e
de lugar, onde os diferentes sistemas religiosos o complementares, e não excludentes.
Nesse sentido, do ponto de vista dos atores individuais, as religiões não estariam em
competição entre si, mas se somariam em vista da garantia de uma maior proteção para
aqueles que as buscam como resposta à sua aflição (p. 120-21).
Soares (2009) mostra que a butinage religiosa não é o efeito de uma
liberação total. É a tradição com seus múltiplos registros religiosos, que orienta o
percurso do butinador e torna possível o imprevisível. Paradoxalmente, a tradição
facilita ao mesmo tempo que ela limita as vias religiosas do butinador. Isto quer dizer
que o individualismo religioso, a privatização da religião, expressão utilizada para
caracterizar o comportamento do praticante na modernidade religiosa diz respeito ao
processo.
No caso das religiões ayahuasqueiras, podemos pensar que é a experiência
com a rosa (ayahuasca) que proporciona essa nova identidade, essa experiência (como
foi analisada no capítulo seis) anexada ao néctar de outras flores num processo de
butinage, butinage referente a uma forma de viagem, que não é nem partida nem
chegada, é experiência visto que a butinage religiosa é apenas uma forma de
experiência, uma viagem em vias de fazer-se.
Soares (2009) diz que para melhor visualizar a estação de chegada dessa
viagem que se lembrar do percurso efetuado, sendo necessário fazer um balanço da
paisagem percorrida caso se queira reiniciar em outras vias. Lembrando da partida e
para evitar se perder no meio do caminho que se começar por especificar o que se
entende por religioso. Neste sentido o autor se ampara nas reflexões de Jean-Paul
Willaime concluindo que o religioso é uma forma de relação em sociedade que implica
o dom, o dom em três dimensões: vertical (primeiro o dom entre o Criador e as
criaturas), horizontal (o dom entre as criaturas elas mesmas) e longitudinal (o dom entre
as criaturas e seus ascendentes). A singularidade dessa forma de relação social na qual o
dom dá uma realidade renovada, dentro da lógica do dom, onde as interações entre
Criador e criaturas implicam um contrato entre as partes interessadas: de uma parte, o
Criador compromete-se à concessão das graças; de outra, a criatura se compromete em
273
testemunhar. Para selar esse contrato, as criaturas de Deus fazem oferendas ou
promessas num primeiro gesto, um tipo de fiança necessária que permite ao Criador dar
crédito a suas criaturas e vice-versa. O dom instaura no tempo presente, um outro
tempo, um tempo de esperança. Esperando a graça as criaturas têm a esperança
restaurada pelo dom as possibilitando viver melhor apesar de tudo.
Não vislumbramos essa lógica do dom nas religiões ayahuasqueiras.
Concordo com Goulart (1996) que em sua dissertação de mestrado afirma que no culto
daimista, muito mais do que uma relação de reciprocidade entre o santo e o devoto,
enfatiza-se um aprendizado moral do sujeito, o qual remete a concepções kardecistas
como de karma, livre-arbítrio, merecimento, eu superior, eu inferior e
evolução espiritual.
Acredito que estando para além da gica do dom as relações nas religiões
ayahuasqueiras, diferentemente da pesquisa de Soares (2009) na qual o acesso pelos
locais de oração se por relações de vizinhança e essa relação implica o dom
(p.276), as relações se dão por caridade estando para além do testemunho, do
compartilhamento. Voltamos aos relatos dos casos para entendermos a noção de
caridade dentro dessa lógica do aprendizado que comanda as relações daimistas e
udevistas tanto no sentido horizontal, vertical e longitudinal:
Uma vez sentou do meu lado uma pessoa e eu senti que ele estava muito nervoso e num
certo momento eu falei eu vou fazer um carinho no coração dessa pessoa e na hora que eu
pensei isso ele deu um pulo, saltou da cadeira e saiu para rua. Eu acredito que na hora que tu
pensa é como se fosse um flecha emitida naquele exato momento e a pessoa tando ali ela tá
dispovel e recebe na hora o teu pensamento. (Cravo Calypte em referência a uma sessão
da UDV)
Chegou uma moça agora domingo no preparo assim novinha como tu, recém casada,
chegou, bebeu o chá, sentou do meu lado e começou a chorar a sessão inteirinha aí eu tentei
fazer reiki, mas na burracheira não é bom, eu senti que não foi bom na burracheira fazer
reiki para ela. Não foi bom pra mim assim. eu fiquei orando pela menina e foi, foi.
Quando terminou a sessão ela olhou pra mim e disse tu quer ser minha mãe? Eu disse seja
bem-vinda. Então ela que tava chorando era eu dois anos, três anos atrás eu tava assim
entende? Então as pessoas me auxiliaram e agora o Mestre Gabriel mostrou pra mim que tá
na hora de eu auxiliar, chegou a minha hora agora, de auxiliar. Ela sentou do meu ladinho
por quê? Com uma história bem parecida com a minha, que uma jovenzinha. Tem seus
mistérios Jéssica. Quando eu vejo o irmão contar a experiência dele, a moçinha contar,
tudo vem ajudando como uma dança circular dos índios. Se hoje eu tropecei os outros tão
me carregando, amanhã eu carrego e assim vai. É a fé, é a energia do chá mesmo, é a luz na
consciência. (Magnólia)
Hoje eu sei trabalhar positivamente com a minha mediunidade e principalmente a caridade.
O Daime me ensinou, eu já era uma pessoa caridosa, era boazinha né, mas no Daime que
eu comecei a trabalhar mesmo pelas pessoas, praticamente virei fiscal oficial do Céu de São
Miguel e nesse trabalho de fiscalização eu aprendi muito a isso, ao poder que tu pode de
auxiliar, confortar uma pessoa ou como é importante para ti mesmo, pro teu crescimento o
274
auxílio a pessoa que tá passando por um processo mais difícil dentro do trabalho.(...) No
Daime é aquilo ali, tu chega pedindo: Dai-me, dai-me, dai-me... Daqui a pouco estás
agradecendo, agradecendo, agradecendo e daqui a pouco estás dando, dando. Que é o que
acontece no trabalho de fiscalização. (...) Porque uma coisa é tu querer confortar o irmão e
outra coisa é tu querer se meter na passagem dele. Então é uma linha muito tênue que tu
dividi as duas coisas. eu aprendi com a Madrinha Brilhante (que foi fiscal oficial do
Mestre Irineu) quando ela esteve aqui, aonde ir, como fazer. E é uma coisa de entrega, o
Daime, tu tem que aprender a te entregar. Porque se tu não te entrega... (Myrmia)
As designações de caridade e fiscalização pertencem ao Santo Daime, mas
elas estão presentes na UDV também porque elas se referem ao auxílio dado a um irmão
no seu penoso processo de aprendizagem durante a burracheira, na sua experiência
com a ayahuasca (a rosa). Observe o relato de Augastes Lírio sobre essa atuação:
Teve uma sessão na União do Vegetal que eu tomei o chá e me senti mal e queria vomitar.
fui para o banheiro. Quando eu fui para o banheiro eu senti uma sensação muito ruim,
parecia quando tu muito bêbado e para vomitar e deu senti isso e deu tava na
patente para vomitar e eu resolvi sair do banheiro e daí no que eu saí do banheiro eu tonteei
e daí chegou os ajudantes lá, tipo fiscais. Puxaram uma cadeira para mim e começaram a
dizer senta aí. que eu tava aflito, tava com medo e não queria sentar e daí quando eu
levantei a cabeça, eu enxerguei na minha volta todo o pessoal que eu tinha conversado antes
da sessão e todos me olhando com um olhar de confiança. Quando eu vi aquilo eu me atirei
na cadeira sem pensar, sem medo, vomitei ali do lado. Depois da sessão conversando
com o meu sogro, ele me disse que naquele momento estavam ele e o mestre assistente
ali, o resto foi uma visão minha. Essas foram uma das visões. (Augastes Lírio)
O fiscal é o nome dado ao fardado que recebe a função específica de durante
uma sessão de ajudar no bom andamento dos trabalhos recebendo e auxiliando os
novatos, bem como os fardados em perreias (situações difíceis) e zelando pelo
cumprimento do ritual. O fiscal é um fardado como outro qualquer e todos os fardados
podem ser fiscais sendo estes alternados nos trabalhos. Um dos fardados explica o
trabalho do fiscal:
O fiscal observa de fora. Ao mesmo tempo que ele tá fazendo parte do trabalho, ele tem que
prestar atenção em tudo que está acontecendo, inclusive naquilo que ninguém está vendo,
nas energias que podem entrar pelo salão, que tu tem que estar atento, que como médium a
gente sente as vibrações e coisas assim. Então a gente têm que estar atento para destrinchar
elas. Então o fiscal tem que ter essa atenção. o daime quando tu toma, um tempo, tu
começa a cantar os hinos, tu vai entendendo, ele vai te mostrando (...) Quem na
fiscalização percebe. Às vezes a pessoa começa a ficar muito atuada e começa a botar para
fora coisas que elas estão ali e nem tão percebendo que elas estão botando para fora e tu
como de fora tu percebe, a missão do fiscal nesse momento é tu perceber que aquela
energia que nesse momento tu percebeu que tá carregada é fazer com que ela se destrinche.
Aí tu fica do lado da pessoa e nem fala nada, fica firme, com o pensamento em Deus, com o
pensamento nas coisas boas, pensando que aquela pessoa se modifique, se cure e tal e
quando tu vê ela tá normal, tranqüila. Tu cumpriu o teu papel, tu não precisou tocar nela, tu
não precisou falar nada pra ela, tu só foi ali e ficou com tua energia do lado dela e conectado
lá com o comando, sempre prestando atenção no comando e pedindo e tal, canta o hino e
deu! Destrinchou na hora! (informante daimista)
275
Na UDV não há uma pessoa designada ao papel de fiscalização, mas o sócio
que se sente implicado com o outro irmão o auxilia nas suas perreias e este auxílio se
não interferindo no processo, mas confortando com mentalizações de energias
positivas, orações, reikis. As relações íntimas que levam outros membros para dentro
dessas religiões é uma relação que envolve confiança e caridade, o irmão que leva outro
irmão leva para que este possa melhorar, se transformar.
7.4 Considerações Finais Sobre a Butinage no Santo Daime e na União
do Vegetal
Caminhando por uma estrada
Alegre e satisfeita
Quando eu cheguei em viagem
Meu Mestre me chamou
Eu entrei em conferência
No meio da multidão
Senti-me subjugada
Perante a São João
Me reconcilio a meu Pai
A Vós eu pedi perdão
Quando Vós me perdoou
Senti-me aliviada
Agora me entreguei
De todo meu coração
Para Vós me ensinar
Neste mundo de ilusão
Oh! Minha Mãe, Vós sois Divina
Divino é o seu amor
Tu sois a flor que mais brilha
No jardim do beija-flor
No jardim do beija-flor
Tem tudo que precisar
Tem beleza e tem primor
Que o nosso Mestre nos dá
O nosso Mestre dá
Conforme merecer
Que aqui nesse jardim
Tem tudo para se ver
Agora vou terminar
Esta declaração
276
Dando viva ao Pai Eterno
E a Virgem da Conceição
74
Para explicar o processo de butinage no Santo Daime e na União do
Vegetal partirei de um mito da Amazônia sobre Coacyaba O primeiro Beija-flor
contado por Waldemar de Andrade e Silva
75
do qual é possível fazer analogias deste
processo de butinage nestas religiões ayahuasqueiras.
Os índios do Amazonas acreditam que as almas dos mortos transformam-se em borboletas.
É por esse motivo que elas voam de flor em flor, alimentando-se e fortalecendo-se com o
mais puro néctar, para suportarem a longa viagem até o céu. Coacyaba, uma bondosa índia
ficara viúva muito cedo, passando a viver exclusivamente para fazer feliz sua filhinha
Guanamby. Todos os dias passeava com a menina pelas campinas de flores, entre ssaros e
borboletas. Dessa forma pretendia aliviar a falta que o esposo lhe fazia. Mesmo assim,
angustiada, acabou por falecer. Guanamby ficou só e seu único consolo era visitar o túmulo
da mãe, implorando que esta também a levasse para o Céu. De tanta tristeza e solidão, a
criança foi enfraquecendo cada vez mais e também morreu. Entretanto, sua alma não se
tornou borboleta ficando aprisionada dentro de uma flor próxima à sepultura da mãe, para
assim permanecer ao seu lado. Enquanto isso, Coacyaba, em forma de borboleta voava entre
as flores, colhendo seu néctar. Ao aproximar-se da flor onde estava Guanamby, ouviu um
choro triste, que logo reconheceu. Mas, como frágil borboleta, não teria forças para libertar
a filinha. Pediu, então, ao Deus Tupã que fizesse dela um pássaro veloz e ágil, que pudesse
levar a filha para o céu. Tupã atendeu ao seu pedido, transformando-a num beija-flor,
podendo, assim, realizar o seu desejo. Desde então, quando morre uma criança índia órfã de
mãe, sua alma permanece guardada dentro de uma flor, esperando que a mãe em forma de
beija-flor, venha buscá-la, para juntas voarem para o céu onde estarão eternamente.
A palavra ayahuasca em quíchua significa liana dos espíritos, cipó da
alma, dos mortos. O daime é visto como um ser divino. Na UDV também se acredita
que Deus manifesta-se na bebida. A ayahuasca na UDV é a rosa, a rosa que contém essa
alma divina. O beija-flor na doutrina daimista é visto como o espírito do próprio ser
divino polinizador do Mestre Irineu e do Padrinho Sebastião contido na
ayahuasca/daime e em sua expansão para o mundo inteiro. No conto de Coacyaba
podemos encontrar algumas analogias com as religiões ayahuasqueiras: todos que
chegam à doutrina estão desamparados como Guanamby, órfãos de pai e mãe - o Deus
Pai Todo Poderoso e a Virgem Soberana Mãe
76
a Sagrada Família, estando sós,
vazios, procurando algo maior a presença concreta divina. Essa solidão se manifesta
na maioria das pessoas por tristeza, angústia, doenças, porque são pessoas que não
vivem segundo os ensinamentos do Pai, porque os perderam, estando assim perdidos,
74
Hino 15 da Madrinha Cristina intitulado Conferência.
75
In: www.contoselendas.blogspot.com
76
A Virgem Soberana mãe é uma expressão daimista, na UDV se referem Virgem Maria, a Senhora Mãe
Santíssima.
277
perdidos do caminho da retidão
77
, da prática do bem que os possibilita atingir a
evolução espiritual e alcançar a glória de chegar na Santa Casa de Deus Pai o
u. A viagem até o céu é longa e o beija-flor precisa voar de flor em flor para se
alimentar e se fortalecer com o mais puro néctar para poder suportar essa viagem, mas
como o beija-flor está perdido (órfão) precisa aprender o caminho que leva ao Pai, que
não é nada fácil, mas ele pode contar com a presença divina concreta que se encontra na
rosa, que é o pedacinho de Deus aqui na Terra, a flor diferente e misteriosa, pois se
alimentando dela é possível vislumbrar aquilo que não queremos enxergar em nós (a
verdade), apontando, ensinando o caminho para a transformação que leva ao Céu.
Somente esta flor que contém a alma divina pode mostrar a cada beija-flor, dependendo
de seu merecimento, o trajeto que se deve percorrer, o jardim
78
que deve fazer para não
continuar perdido de flor em flor sem obter o verdadeiro ctar que cria o bálsamo
divino. Deus Tupã atendeu ao pedido dos órfãos enviando o beija-flor Mestre Irineu,
Mestre Gabriel que pode trazer este tesouro
79
que é a rosa e com sua doutrina indicar o
caminho do céu, este trajeto é ao mesmo tempo singular e coletivo. Hoje todos são
beija-flores fazendo a viagem e polinizando outras flores.
É uma metáfora que mescla símbolos da doutrina daimista e da doutrina
udevista, mas, o sentido da metáfora se equivale a ambas as religiões quando pensamos
no beija-flor como um ayahuasqueiro, a rosa como o chá ayahuasca e as outras flores
como os ensinamentos oriundos de outras fontes. Neste sentido, com essa metáfora
quero salientar dois pontos importantes dentro dessa viagem singular do beija-flor: 1. A
partir da experiência com a rosa (ayahuasca) pode se traçar o percurso da viagem
necessária para obter o bálsamo das flores que dará forças para o beija-flor chegar até o
céu, não sendo o néctar de quaisquer flores (numa escolha à la carte) que servem de
alimento, são flores que permitem unificar a própria cosmovisão da doutrina num
sentido de obter uma transformação pessoal, a produção de uma nova identidade para
chegar a morada do Pai, assim o néctar dessas flores serve de alimento num sentido de
incorporação. 2. O beija-flor é um importante agente polinizador, que ao introduzir
seu bico na flor em busca de alimento, milhares de grãos de pólen grudam em seu corpo
e ele acaba levando-os de uma flor a outra como fez o beija-flor Sebastião expandindo
77
Caminho da retidão é uma expressão udevistica, no Daime se referem caminho da Santa Luz.
78
Os daimistas dizem que cada um deve aprender a fazer o seu jardim. A UDV também trabalha com
essa metáfora possuindo inclusive uma chamada designada de Jardim das Flores.
79
Tesouro é uma expressão udevistica referente ao vegetal. Conta a história de que Mestre Gabriel disse a
sua companheira que ia buscar um tesouro na floresta voltando com o chá ayahuasca.
278
a doutrina daimista, possibilitando que outros beija-flores colham o néctar, construam
seu bálsamo tendo força e clareza do caminho da viagem para chegar ao céu. A
polinização se refere ao sentido de caridade descrito anteriormente que está para além
do compartilhamento do alimento - o testemunho. A idéia o é compartilhar o
alimento, mas polinizar outras flores para que outros beija-flores possam obter o seu
alimento. Esses dois pontos destacados estão dentro da lógica da aprendizagem.
Quanto ao primeiro ponto, referente ao sentido de incorporação, Brissac
(1999a) o identificou como próprio da experiência dos discípulos da UDV, ocorrendo
na força da burracheira sendo designado por ele de englobamento na força da
burracheira, pois esta se mostra como um tufão que, na força de seu movimento
centrípeto, aproxima-se de uma província simbólica distinta e a engloba em seu
redemoinho (p.135). O autor utiliza esta imagem buscando expressar a força do
dinamismo autógeno dessa incorporação e, neste caso, até mesmo, a velocidade com
que ela se dá, em meio à intensidade do estado alterado de consciência suscitado pela
ingestão do chá hoasca (p.135). Neste sentido ele visualiza esse englobamento na
força da burracheira na trajetória do Mestre Gabriel e nos discípulos da UDV. Diz ele:
[...] Mestre Gabriel participou de diversas configurações culturais brasileiras bem
específicas: a começar pelo catolicismo popular. Em seguida, participa em Salvador do
ambiente próprio da capoeiragem, além de freqüentar terreiros de candomb e sessões
espíritas kardecistas. Indo para o Norte do Brasil, integra as levas humanas do Exército da
Borracha. Em Porto Velho, participa como ogã de um terreiro de tradição mina e no
seringal atua em cultos de pajelança cabocla amazônica. Quando finalmente, em 1959, bebe
pela primeira vez o chá hoasca, José Gabriel parece ter tido logo uma experiência muito
intensa. Assim, segundo seu filho Jair, naquela primeira sessão ele se dirige ao vegetalista
que lhe deu o vegetal e lhe diz: Chico Lourenço, a pessoa não é conhecedora de tudo. Você
me falou que foi no fim dos encantos. As coisas são infinitas. Antes da segunda sessão, ele
teria dito que a gente vai beber o chá do Chico Lourenço e ninguém vai sentir nada, e
assim teria acontecido. Na terceira vez, seu filho Jair, então com nove anos de idade,
segundo o relato dele mesmo, teve uma burracheira muito forte, começou a gritar e foi
chamado por seu pai, que lhe disse: Sente. E Jair disse ao pai: O papai é um mestre, e é
um rei, né, feito por Deus. Ainda segundo o hoje Mestre Jair, depois dessa sessão é José
Gabriel que leva para sua casa mariri e chacrona e tem esse diálogo com sua esposa:
Pequenina, eu sou Mestre. E ela responde: Mas Gabriel, pelo amor de Deus, o Chico
Lourenço é mestre não sei quanto tempo, nós quase ficamos todo mundo doido e tu diz
que é mestre? E ele: Sou Mestre, Pequenina, e vou preparar o mariri.A intensidade da
experiência de José Gabriel, que logo se reconhece como portador de uma missão como
Mestre no Vegetal, e a rapidez com que essa vincia assimila a sua trajetória religiosa
anterior, submetendo-a a uma nova interpretação quando ele passa a atribuir a si mesmo o
que antes era ação do caboclo Sultão das Matas são dois aspectos que corroboram a
interpretação desse processo como englobamento na força da burracheira. [...] Deste modo,
pode-se perceber o englobamento na força da burracheira como algo constitutivo da UDV,
na medida em que caracteriza a experiência fundante de José Gabriel da Costa. Tal
experiência pode ser replicada, de modo sempre novo e original, pelos discípulos, que a
partir de suas trajetórias singulares individuais e da especificidade de seu contato com a
burracheira, vivem um movimento semelhante, constituindo diferentes configurações, as
279
quais, no entanto encontram um eixo interpretativo articulador na vivência de Mestre
Gabriel. (p.136.138)
Assim, para Brissac (1999a) não se trata de uma bricolagem do sujeito,
que em seu individualismo moderno constrói a sua própria do-it-yourself-religion, mas
de um englobamento. Complementando essa compreensão pela perspectiva da
butinage sigo analisando a viagem do beija-flor nesse ponto de incorporação, que está
para além de uma reciprocidade me lembrando a idéia de consumo produtivo
trabalhada por Fausto (2001) em Inimigos Fiéis: História, Guerra e Xamanismo na
Amazônia. Vamos relembrar então essa apreensão feita pelo autor.
No universo de pesquisa de Fausto (2001), os Parakanã (pequeno povo Tupi
Guarani) vivenciam uma modalidade particular de xamanismo, na qual a figura do xamã
por excelência não está presente. Em sonho é que os segredos se apresentavam, trazidos
sempre por um akwawa, um inimigo onírico, portador dos poderes e mistérios da cura.
A entrada no mundo dos sonhos está aberta a todos os homens Parakanã e o homicídio é
apreendido como um meio para o desenvolvimento de uma atividade onírica produtiva.
Neste sentido, a guerra, é um fenômeno inseparável do xamanismo Parakanã, o
xamanismo dos inimigos oníricos tornados fiéis onde a ingestão simbólica do inimigo,
que provoca transformações corporais e espirituais no matador, deixa de ser comparada
ao consumo do alimento para desenvolvimento físico da força de trabalho. Seu lugar no
processo de reprodução social passa a ser equiparado aquele do gasto produtivo nas
sociedades capitalistas (p.327). Assim, o autor reintegra a produção ao consumo e não
reduz a guerra à circulação visto que, no discurso da reciprocidade perdeu-se uma
importante dimensão da guerra primitiva, aquela que diz respeito à destruição dos
corpos, da pessoa e seus constituintes materiais e imateriais (p.328). Para ele, os
eventos de predação não podem ser reduzidos à lógica da reciprocidade, devendo-se
lançar mão do consumo produtivo para analisar a guerra primitiva como um fenômeno
que implica em gasto, perda e não somente transferência, circulação.
Nas religiões ayahuasqueiras, como colocou Couto (1989):
Os membros desse sistema religioso são como aprendizes de xamã, ou xamãs em potencial.
Embora existam os comandantes do trabalho, a atividade xamânica não é exclusividade
apenas de alguns iniciados, como nas sociedades indígenas em geral, e a prática ritual é o
aprendizado dessa arte do êxtase. À parte a vocação xamânica, todos têm participação ativa
no ritual. A coletividade do culto pode, através da técnica de concentração e acesso aos
cânticos, que são a principal ferramenta para as viagens extáticas, voar pelo astral com
características do xamã viajante ou servir como aparelho para a recepção de seres, com
280
características do xamã possesso. O batalhão formado faz um xamanismo coletivo,
específico desta linha de trabalho (Couto 1989,p. 195).
Nesse sentido o ayahuasqueiro como xamã em potencial não está inserido na
lógica da reciprocidade e sim da aprendizagem objetivando a transformação pessoal
conforme referenciado anteriormente. Assim, o beija-flor se alimenta de várias flores
para produzir uma nova identidade que o possa levar ao céu, é um consumo que não é
entendido unicamente como perda, mas como gasto produtivo que fertiliza uma nova
vida e outras flores. As flores não são reduzidas à condição de objeto ou de consumo,
elas são subjetivadas, visto que possuem alma, conhecimentos para produzir um
bálsamo, ou seja, o chá é um ser divino. Assim como Fausto (2001) nos casos das
religiões ayahuasqueiras que se abdicar da noção de dom, deslocando a atenção do
campo da circulação, como pressupõe o uso do conceito maussiano, para o campo da
produção, como pressupõe o conceito de consumo produtivo, elaborado originalmente
por Karl Marx e que remete a idéia de gasto material e energético destinado à produção
de objetos.
Durante a noite o beija-flor entra em uma curta hibernação para poupar
energia, reduzindo ao máximo seus batimentos cardíacos e sua temperatura corporal
entrando no chamado estado de torpor e ao amanhecer ele lentamente sai desse estado
e reinicia suas atividades normais. Em regiões muito frias, os beija-flores passam por
estados de hibernação prolongados. Neste sentido os índios associam o beija-flor como
verdadeiro símbolo da morte e ressurreição. Diz um conto asteca
80
que esta ave
renova-se a cada ano. No tempo do inverno pendura-se nas árvores pelo bico e lá
pendurado seca e lhe caem à plumagem. Quando as árvores tornam a reverdecer,
começam a reviver e renascer suas penas e ao ouvir o trovão antes da chuva então,
acorda, voa e ressuscita! A morte e o renascimento são imagens muito associadas à
experiência com a ayahuasca, sendo que grande parte de seus adeptos relataram ter
tido vivências de quase morte e é também uma expressão que marca o antes e o
depois da experiência com a ayahuasca da qual ninguém sai o mesmo. Couto (1989)
afirma que este processo de transformação, morte simbólica e reorientação da existência
simbólica e social pode ser vivenciado, de certa forma, por cada nfito
individualmente. Neste sentido disse certa vez um de meus informantes daimistas: sou
um pequeno beija-flor que renasce com o florir da primavera.
80
In: www.rosanevolpatto.trd.br
281
Deste modo, trata-se de uma economia cujo escopo é a produção de uma
nova identidade marcada por uma viagem que, apesar de se beber de outras fontes,
de colher outros néctares, unifica a própria cosmovisão da rosa da doutrina
ayahuasqueira por meio do consumo familiarizante, ou seja, dentro de uma afinidade
doutrinal, fazendo um paralelo aos processos de assimilão de subjetividades
denominados por Fausto (2001) de familiarização. Portanto, trata-se de uma
butinage familiarizante, pois o discurso individual reafirma o coletivo, a cosmologia,
a doutrina, apesar da viagem, da trajeria ser singular e dando possibilidades para
criações e interpretações várias oriundas de outros néctares, nos mostrando assim, como
e porque se conjuga fidelidade e mobilidade religiosa no campo religioso
ayahuasqueiro.
Deste modo a butinage nas religiões ayahuasqueiras é familiarizante e
está inserida dentro de uma lógica de aprendizagem e consumo produtivo com um
importante aspecto polinizador.
282
Figura 4 A viagem entre o beija-flor e a rosa
283
CONCLUSÃO
Buscando estudar os processos de conversão, desconversão e reconversão no
Santo Daime e na União do Vegetal, dentro do pluralismo religioso, a partir de
trajetórias e partindo da hipótese de que os processos de conversão, bem como a
conjugação entre mobilidade e fidelidade religiosa estariam ligados a uma interface
entre a estrutura e a experiência religiosa com base na butinage, acredito que o
estudo comparativo entre duas religiões ayahuasqueiras distintas foi de suma
importância, bem como a abrangência das entrevistas, incluindo em suas categorias ex-
adeptos e reconvertidos dessas religiões.
No capítulo três O Caule na União do Vegetal, descrevo a doutrina
(imutável), a organização, os rituais e o mito de origem desta religião que apontam para
um hibridismo entre seita, igreja e tipo místico. A UDV apresenta uma estrutura social
religiosa centrada numa ascensão hierárquica, com uma disciplina gida e um intenso
controle das emoções, evidenciando, como constatou Goulart (2004), o caráter de
racionalização, numa perspectiva weberiana, contido nessa instituição, da experiência
religiosa, que marca a ética religiosa racional, com um tipo de transe extático muito
mais controlado e suave do que no Santo Daime. Compreendo que esta racionalização
está voltada para um processo civilizador (Elias, 1994a e 1994b), entendido como a
pacificação das condutas e o controle dos afetos, a partir de uma distinção social
(hoasqueiros X não-hoasqueiros), numa dinâmica que lembra a de uma sociedade
de corte religiosa, fazendo alusão à obra de Norbert Elias (2001).
No capítulo quatro Os Ramos no Santo Daime, descrevo a doutrina
(mutável), a organização, os rituais e o mito de origem desta religião que apontam para
um tipo místico. O Santo Daime apresenta uma estrutura comunitária apocalíptica
(fazendo alusão à obra de Léger e Hérvieu, 1983) religiosa de caráter messiânico, num
agrupamento em rede, centrada no líder carismático, o padrinho, numa perspectiva
weberiana de rotinização do carisma, com uma disciplina flexível e tolerante,
valorizando a autonomia e liberdade do sujeito, numa visão de que a divindade está no
interior de cada um, conciliando individualismo e holismo, a partir de um culto de
natureza ordenatória, observado por Couto (2002), pela perspectiva de Turner (1974),
onde há o deslocamento do sistema para sua estrutura e não para sua anti-estrutura
284
(communitas) no qual se reforça a ordem cosmológica, onde os remanescentes atingirão
a salvação numa Nova Era, centrada no retorno à natureza.
No capítulo cinco, finalizo a perspectiva estrutural comparatista entre a
União do Vegetal e o Santo Daime, com base nas noções de figuração,
interdependência e equilíbrio das tensões, propostas por Elias (2001), num viés
weberiano, sendo centrais as redes de dependências recíprocas que fazem com que cada
ação individual dependa de toda uma série de outras, porém modificando, por sua vez, a
própria imagem do jogo social. A sociedade religiosa UDV, centrada numa ascensão
hierárquica de corte, e a comunidade religiosa daimista, centrada no líder
carismático o padrinho, estão pautadas em um princípio didático que se dá por
lógicas diferentes. Na União do Vegetal, é o aprender por si, onde Deus e o Mestre se
manifestam na burracheira, e com os mestres encarnados, que representam o saber
do Mestre Gabriel e compõem o grau máximo da estrutura hierárquica. No Santo
Daime, é o aprender por si, na força, onde Deus e o Mestre, se manifestam e, assim
sendo, a tua consciência é o teu guia, como também constatou Afrânio (2002), o que
nos remete a idéia de agência de Ortner (2007).
Para Ortner (2007), a noção de agência tem dois campos de significado.
Em um campo de significado, agência tem a ver com intencionalidade e com o fato de
perseguir projetos, culturalmente definidos. No outro campo de significado, agência tem
a ver com poder, com o fato de agir no contexto de relações de desigualdade, de
assimetria e de forças sociais. Na realidade, agência nunca é meramente um ou outro.
Suas duas faces como (perseguir) projetos ou como (o fato de exercer ou de ser
contra) o poder ou se misturam/transfundem em uma relação de tipo Moebius.
Além disso, o poder, em si, é uma faca de dois gumes, operando de cima para baixo
como dominação, e de baixo para cima como resistência (Ortner, 2007, p.58).
Segundo Elias (2001), é a modalidade variável de cada uma das cadeias de
interdependências que podem ser mais ou menos longas, mais ou menos complexas,
mais ou menos coercitivas que define a especificidade de cada formação ou figuração
social: ... como em um jogo de xadrez, cada ação decidida de maneira relativamente
independente por um indivíduo representa um movimento no tabuleiro social, jogada
que por sua vez acarreta um movimento de outro indivíduo ou, na realidade de muitos
outros indivíduos -, limitando a autonomia do primeiro e demonstrando sua
dependência (p. 158). Deste modo, nessas figurações específicas que se configuram
285
a sociedade religiosa UDV e a comunidade religiosa daimista, os discípulos possuem
construções de agências distribuídas diferentemente.
Na União do Vegetal, o mestre é o interpretante, aquele que tem o dever de
interpretar. O discípulo esna posição do ensinante, no lugar de não-saber, de fazer
compreender, rumo a um saber. O saber está no lugar do mestre e da planta-mestre
(vegetal), ou seja, está no outro. O mestre é o sujeito suposto saber, está no lugar de
maestria, de saber e/ou de poder. A compreensão se a partir da doutrinação, da
interpretação do mestre e do Mestre dentro de si na ingestão do chá. Há um saber
referencial colocado, estruturalmente, como agente da produção de hoasqueiros. O
discurso do mestre é o discurso comandado por um significante
81
mestre apresentado ao
outro como o saber dos verdadeiros mestres que ele lança sobre o outro, baseado no
ideal de acesso a um saber que, doravante, passa a regular a prática do mestre, atingindo
o grau de saber como agir com os discípulos a formação de mestres. No ritual da
UDV, o discípulo opera a partir de suas próprias questões, em um ritual centrado em
perguntas e respostas, no sentido de fazer com que o outro, o mestre, produza o saber.
Ao mestre o que interessa é que as coisas funcionem, que as coisas andem, caminhem.
O discípulo possui saber da burracheira e ele trabalha para transferir esse saber para
o mestre, quem produz o saber no discurso é o mestre, pois o discípulo concede-lhe um
saber e fica esperando que ele produza.
No Santo Daime, o padrinho tem o saber, mas não ocupa o lugar de saber. O
saber está deslocado para a posição do agente do discurso Jesus, Mestre Irineu,
Padrinho Sebastião. O padrinho ensina como um sujeito que o tem o saber, ele o
recebe do Mestre, do astral, fazendo com que os discípulos produzam saber a partir de
sua liderança. O padrinho opera a partir de suas próprias questões, visando tocar o
outro, em sua relação com o significante para que o discípulo produza, a partir do
ensino dos hinos e da força, um saber que é dele. A verdade em jogo no discurso do
padrinho seria sua própria relação com o impossível de dizer, com a falta, ou seja, é um
discurso que interroga o saber e a maestria humana claramente representada no
Império Juramidam.
Neste sentido, com relação à agência como forma de poder que as pessoas
têm à sua disposição, de sua capacidade de agir em seu próprio nome, de influênciar
81
Conceito lingüístico, ou ainda semiológico para uma forma qualquer a representar o significado de um
objeto entendido não no sentido material, mas no amplo sentido de tudo aquilo que está
dialeticamente adiante ou sob a observação de um sujeito.
286
outras pessoas e acontecimentos e de manter algum tipo de controle sobre suas próprias
vidas, conclui-se que os daimistas possuem muito mais agência dos que os udevistas,
visto que, na UDV, o que domina é a Lei do Centro, e, no Santo Daime, o que domina é
o saber produzido por cada um.
Quanto à agência, no sentido de perseguir projetos culturalmente definidos,
que seria em ambas religiões a evolução espiritual, sendo definida pela lógica local do
bom e do desejável e de como persegui-los, conclui-se que, tanto na UDV quanto no
Santo Daime, ela está pautada na experiência de transformação propiciada pela
ayahuasca, com base num processo de butinage. Porém, ela está misturada com a
agência no sentido de poder e, por conseguinte, na UDV tem-se como projeto subir de
grau, chegar ao grau de mestre e no Santo Daime a agência de projeto é aberta à
escolha e criação de cada um, o que pode nos remeter a uma possível concluo de isso
ser um dos fatores que fazem com que a UDV tenha muito mais sócios do que o número
de fardados daimistas, embora haja muito mais pessoas que passaram pelo Santo Daime
do que pela UDV, conforme dados estatísticos citados na introdução.
Apesar de estruturadas de maneira diferentes, podemos concluir que, tanto
na União do Vegetal quanto no Santo Daime, há um agente civilizador. Assim,
concordo com Saez (2008, p.17) que, em muitos casos, a ayahuasca aparece como mais
um elemento, compondo um sistema simbólico paralelo ao da cozinha, em que a
ayahuasca ocupa, geralmente, o pólo do cozido, aquele que encarna um papel
civilizador. Mas, alternativamente, ela substitui todo esse complexo, assumindo em
solitário esse conjunto de funções, ou reduzindo-o, como agente de um processo
civilizatório sui generis: a ayahuasca, mais do que uma tradição secular, pode ser o
signo de uma reforma do xamanismo indígena. De fato, seria possível entender a
ayahuasca como o fio condutor de certa ecumene cultural, que se estende por boa parte
da Amazônia Ocidental: cantos, grafismos, mitos, que, por meio de suas diferenças,
encontram um denominador comum, por exemplo, na anaconda, cuja constante
associação com a ayahuasca nada tem de trivial. Se, localmente, a ayahuasca serve à
comunicação com os espíritos, na região em seu conjunto, ela comunica culturas,
traduz. Em outro sentido, aparentemente oposto, a ayahuasca age nas
sociocosmologias indígenas, como uma clave alterizadora
82
, algo assim como o espelho
82
Saez coloca que nesse ponto o texto é um comentário livre referente a uma observação que Eduardo
Viveiros de Castro fez numa palestra na Universidade Federal de Santa Catarina, a respeito de alguns
mitos Kaxinawá.
287
na tradição ocidental. Se o espelho nos devolve, invertida, nossa própria imagem, a
ayahuasca abre a porta de um universo em que as mesmas imagens se apresentam com
signos trocados, em que as anacondas, que em a si mesmas como humanas, tomam,
também, ayahuasca e pode, quem sabe, nos ver por sua vez na figura de anacondas.
Uma inversão não das imagens, mas dos pontos de vista, lida para entender os outros,
sejam eles espíritos, mortos ou estrangeiros.
O capítulo seis Tirando os espinhos e colhendo o néctar, no qual o foco é a
experiência com a ayahuasca, que é associada a um processo de cura/transformação,
fica evidente de que apesar da União do Vegetal e o Santo Daime possuírem
estruturas diferentes, possuem os mesmos princípios morais e éticos, baseados na
crença reencarnacionista fundamentada na evolução espiritual, na Lei do Merecimento,
na Lei do karma, na Lei da Causa e Efeito, na Lei do Livre Arbítrio que sustenta toda a
estrutura pautada em uma lógica didática. Fundamentada em Csordas (2008) e na sua
abordagem fenomenológica pela corporeidade (embodiment), parti do objetivo de não
capturar a experiência, mas a de dar acesso à experiência como significância do
significado. Analisando cinco casos referentes às categorias de análise delimitadas,
podemos concluir que a experiência, como significância do significado, sem
atravessadores é rigorosamente a mesma, apesar de apresentar diversas formas. Todos
os entrevistados, mesmo o sendo mais convertidos nas religiões, ou sendo
reconvertidos, ou ainda o sendo convertidos, relatam obter algum tipo de
cura/transformação significativa nessas religiões. Neste sentido, somente a ênfase na
experiência não sustenta a análise do processo de conversão e o visualizei o que
Goulart (2004) e outros autores sugerem que a conversão à religião do Santo Daime se
dava, principalmente, por motivos de saúde (Goulart, 2004, p.53), estando assim para
muitos pesquisadores intimamente, ligada à cura.
Concordo quando Goulart (2004, p.54) diz que Invariavelmente,
percebemos que o Daime é colocado como uma alternativa à terapia médica
convencional. No caso dos grupos estudados aqui no Rio Grande do Sul, através,
principalmente, da psicoterapia reencarnacionista, formando o que Rose (2005)
denominou de continnum terapêutico pela imbricação do espiritual e do terapêutico,
identificado num duplo movimento, convergente e simultâneo, de terapeutização da
espiritualidade e espiritualização dos movimentos terapêuticos. E, neste sentido, a
conversão estaria nos poderes da ayahuasca, antes da religião propriamente dita, ou
seja, todos os entrevistados, convertidos, ainda não-convertidos, ex-convertidos e
288
reconvertidos, independentemente, são convertidos nos poderes da ayahuasca.
Portanto, a conversão no grupo religioso propriamente dita está conectada a uma
interface entre a estrutura e a experiência religiosa.
Hervieu-ger (2005) trabalha com a idéia de convertissores (a temática
da reencarnação, da cura bem como as técnicas de meditação), que permitiriam a
mobilidade dos crentes. A noção de convertissores religiosos para pensar a bricolage
religiosa. Hervieu-Léger diz que a experiência religiosa se vive, raramente, fora de
uma rede de relações. Nas religiões ayahuasqueiras são as relações íntimas que levam
outros membros para dentro dessas religiões. É uma relação que envolve confiança e
caridade, o irmão que leva outro irmão, o leva para que este possa melhorar, se
transformar.
Dentro da amostra entrevistada, o que parece é que essas relações levam e
afastam os indivíduos dessas religiões, mas não convertem, ou seja, as relações não são
um fator conversivo relevante. Porém, muitas vezes, após a conversão, as relações
impedem a desconversão ou provocam a desconversão. Todos os entrevistados
desconvertidos possuíam uma narrativa na qual o motivo-chave da desconversão estava
numa questão de relacionamento, como, por exemplo, queixas de abuso de poder,
desgosto com as atitudes, comportamentos de certas pessoas, desavenças, brigas,
desentendimentos.
A conversão nos poderes da ayahuasca permanecia sempre inabalável,
sendo normalmente separado o que é dos homens do que é de Deus. Como
exemplo, tem-se uma das entrevistadas desconvertidas que, em seu depoimento, se
mostrou ainda crente nos poderes da ayahuasca, bem como no Mestre fundador, mas
descordava da conduta dos discípulos. Ela e o marido se desconverteram da religião
ayahuasqueira pelo mesmo motivo e estavam freqüentando um centro de umbanda. Um
tempo depois da entrevista, ela retorna para a religião ayahuasqueira, mas o marido não.
O caso dos peregrinos ou free reforça a idéia da conversão nos poderes da
ayahuasca, das relações como não fatores significativos de conversão e assinala a
colocação de Marc Augé (1982), de que a religião pode responder as necessidades
individuais, mas nenhum indivíduo adere à religião para responder as suas necessidades.
E também podemos pensar que a conjugação da mobilidade e fidelidade não implica na
conversão.
Pode-se pensar a idéia de convertissores para a conversão nos poderes da
ayahuasca, já que todos os convertissores apontados por Hervieu-Léger estão
289
presentes nas religiões ayahuasqueiras. No capítulo seis percebe-se que a reencarnação,
os efeitos do chá são a chave retórica para a transformação pessoal na cura e, estes não
parecem ser a peça-chave no dispositivo de convero aos poderes da ayahuasca, que
parece estar associado ao que Brissac (1999a) designou de englobamento na força da
burracheira. Esse englobamento expressa a força do dinamismo autógeno, em meio à
intensidade do estado de consciência suscitados pelo chá ayahuasca, não se tratando,
assim, de uma bricolagem do sujeito que em seu individualismo moderno constrói a sua
própria do-it-yourself-religion, mas de um englobamento. Esse conceito de
englobamento me remete a idéia de Skill de Ingold (2000).
Ingold (2000) propõe um estudo dos modos de habitar como um entre-tecer
dos diferentes elementos implicados num sistema de ação. Pensa um organismo no
mundo, ontologia de estar-no-mundo. A paisagem é pensada como o horizonte de
convergência dos corpos e organismos humanos e não-humanos com o ambiente que o
engloba, apontando para a corporeidade da paisagem, simetria entre os seres que
habitam o mundo, humanos e não-humanos. Nesse sentido, o autor trata as cosmologias
e as crenças de diferentes grupos humanos sobre a relação com o meio como sistemas
de práticas. Ele estabelece que as transformações nos modos de produção e a relação
com o meio supõe transformações nesses sistemas de crenças e cosmologias, tal qual
como se concebe a relação com animais, plantas e outras entidades está mediatizado por
este ajuste, prático, com o meio. Por exemplo: Para ele tratar como natureza o meio
dos caçadores-coletores é pouco realista e pouco útil, já que o mundo pode ser
natureza para um ser que não o habite, mas somente habitando-o pode o mundo ser
constituído em relação com um ser, com seu ambiente (environment).
Para Ingold (2000), nos caçadores coletores não haveria uma tecnologia
primitiva, mas somente técnica. Deste modo, ele estabelece, prosseguindo com seu
argumento ecológico, que não há distinção dual entre o social e o técnico nesses tipos de
sociedade. Ele conclui que o que temos, na realidade, são seres humanos, vivendo e
trabalhando em ambientes que incluem outros humanos, assim como, uma grande
variedade de entidades e atores (agencies) não-humanos. As variações em habilidades
(skill) e sistemas de práticas incorporadas, partilhadas, específicas de domínio e
relativas a um contexto prático de aprendizagem e de execução: A habilidade (skill)
não é uma propriedade do corpo humano individual como entidade biofísica, mas do
campo total de relações constituídas pela presença de um organismo-pessoa, em um
290
ambiente ricamente estruturado (Ingold, 2000, p.353). O autor fala de um constante
ajuste organismo-meio, uma relação dinâmica de mutualidade.
A habilidade, ou a competência, por tanto, não seria uma mera reprodução
de uma determinação genética ou uma conservação da ação, mediante a interiorização
de representações, transmitidas ou não, porém um processo de (re)sintonização
permanente, uma educação da atenção, que não é dissociável dos contextos práticos
de atividade no que se produz a capacitação ou habilitação (processos sempre em curso
e nunca terminados).
Goulart (1996) diz que
o sistema moral em que os daimistas se apoiam diverge
daquele que orientava o universo dos vegetalistas; por outro lado, é justamente através da
mola propulsora deste último que tal sistema irá se construir. De fato, a idéia da comunhão
entre homem e mundo natural vital para o vegetalismo amazônico é a base da cosmologia
daimista. Como os sujeitos que recorriam às plantas-mestras, os adeptos do Santo Daime
obtêm a revelação do sagrado por meio de uma experiência de intimidade com a natureza.
A autora mostra que a conversão do homem em vegetal é o tema central dos mitos, dos ritos
do culto do Santo Daime, constituindo-se no modo pelo qual estes religiosos descobrem a
espiritualidade. O que observamos também com a União do Vegetal.
Assim, parece que a conversão nos poderes da ayahuasca está associada
ao que Brissac (1999a) denominou de englobamento na força da burracheira, onde
acredito que podemos visualizar o rompimento com a dicotomia natureza e cultura, na
qual Ingold (2000), influenciado pela filosofia fenomenológica de Merleau-Ponty,
desloca o foco da análise de um ser abstrato que dá sentido ao mundo, para um ser no
mundo, onde a paisagem seria o corpo do mundo, construindo uma percepção simétrica
entre humanos e não-humanos. A mente está tanto no humano quanto no não-humano,
está no mundo, ela cobre uma relação.
No capítulo seis mostrei a partir de Csordas (2008) que o significado não se
anexa a experiência, mas é constituído pela forma com que o sujeito participa da
experiência. Pode-se pensar que a lógica de aprendizagem dessas religiões está imersa
na corporeidade da paisagem, ou seja, a aprendizagem está ligada a idéia de skill
proposta por Ingold (2000), na qual a aprendizagem não seria uma interiorização de
representações e sim uma (re)sintonização permanente.
No capítulo sete, analiso o processo de butinage nas religiões
ayahuasqueiras, constatando que o indivíduo constrói sozinho seu próprio relato
religioso, butinando entre as diferentes tradições religiosas que ele re(conhece), quer
291
dizer, as que se inscrevem na sua tradição religiosa e as que ele encontra no seu
percurso religioso, que é ao mesmo tempo, individual e coletivo.
A experiência religiosa nas religiões ayahuasqueiras é, antes de tudo, uma
experiência de aprendizado e consumo produtivo, relacionada a uma transformação
pessoal, com a obtenção de uma nova identidade, implicando na existência do próximo,
obrigando os que aderem a entrar em uma relação de caridade polinização.
Assim, essa reflexão se afasta das noções de individualismo religioso, de
privatização da religião, e, particularmente, dessa noção de mercado de bens
simbólicos. Não se trata, então, de uma religiosidade flutuante, na qual o praticante
se encontra em uma situação de instabilidade permanente.
Para Soares (2009), o praticante recria, à sua maneira e com seus meios, uma
realidade religiosa mais adequada, mais compatível com os múltiplos personagens que
compõem a sua pessoa (o si plural composto socialmente), não minimizando o
alcance das reflexões sobre a bricolage religiosa nos seus estados os mais diversos
(ecletismo teológico, composição crente, etc). Elas representam um esforço
considerável de compreensão de transformação do religioso, de suas formas de
expressão na modernidade religiosa e das práticas que decorrem dela. Trata-se mais
de acrescentar às suas reflexões elementos que podem, sobre o plano das práticas, dar
conta de uma dinâmica religiosa que escapa aos imperativos socioeconômicos e
políticos de um tempo e de um lugar dado.
O processo de butinage estaria balizado por esse englobamento, que
seria uma corporeidade da paisagem suscitada pela experiência com a ayahuasca, se
configurando um skill englobamento na força da burracheira. Deste modo, acredito
que a conversão nas religiões ayahuasqueiras está relacionada a uma interface entre a
estrutura e a experiência religiosa, com base na butinage, sendo balizada por um
skill englobamento. Pode-se, assim, compreender como e porque se conjuga
mobilidade e fidelidade religiosa no Santo Daime e na União do Vegetal e sem
necessariamente esta conjugação implicar em conversão.
292
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