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WANDERLEY PEREIRA DA ROSA
O DUALISMO NA TEOLOGIA CRISTÃ
A deformação da antropologia bíblica e suas conseqüências
Dissertação de Mestrado
Para obtenção do grau de
Mestre em Teologia
Escola Superior de Teologia
Programa de Pós-Graduação
Área de Concentração: Teologia Prática
Orientador: Wilhelm Wachholz
São Leopoldo
2010
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WANDERLEY PEREIRA DA ROSA
O DUALISMO NA TEOLOGIA CRISTÃ
A deformação da antropologia bíblica e suas conseqüências
Dissertação de Mestrado
Para obtenção do grau de
Mestre em Teologia
Escola Superior de Teologia
Programa de Pós-Graduação
Área de Concentração: Teologia Prática
Data: ______________________________
Wilhelm Wachholz Doutor em Teologia EST
__________________________________________________________
Ricardo Willy Rieth Doutor em Teologia EST
__________________________________________________________
Leomar Antônio Brustolin Doutor em Teologia PUC/RS
__________________________________________________________
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3
Aos meus pais Valmiré e Wanda
que com bom humor constante
ensinaram-me a ter alegria e prazer na vida.
4
RESUMO
A pesquisa se propõe averiguar algumas das conseqüências práticas para a história
do Cristianismo em face do influxo do dualismo platônico sobre a teologia cristã.
Sobretudo, no que diz respeito à relação da Igreja com o mundo da cultura. Parte-se
do princípio que a combinação destes dois elementos deu origem a uma teologia
platonizada o que causou uma deformação da antropologia bíblica. Esta deformação
não passou impune. Ao contrário, a partir daí a Igreja percorreu caminhos que, em
grande medida, desconstruíram sua face mais evangélica. O primeiro capítulo faz
considerações acerca do pensamento platônico a respeito da dicotomia espírito-
matéria, adentra-se pelo período patrístico e as primeiras formulações teológicas
dos Pais da Igreja sob a influência do pensamento helênico. Daí, uma rápida
panorâmica sobre a Idade Média. Constatado o problema, pergunta-se pelas suas
conseqüências. O segundo capítulo concentra-se na colonização ibérico-católica na
América Latina seguida do genocídio dos povos ameríndios e, ato contínuo, dos
povos afros escravizados. Sugere-se que esta teologia surgida da assimilação do
dualismo platônico serviu como justificativa para a dominação, demonização e
massacre desses povos, uma vez que se o corpo era mal, poderia ser destruído. A
Teologia da Libertação surge como uma proposta de superação desta visão
dicotômica do ser humano. O terceiro capítulo foca em um exemplo do Cristianismo
em sua versão protestante, a saber: a inserção do protestantismo no Brasil e sua
notória resistência às manifestações culturais populares do povo brasileiro. Para
isto, analisa-se antes a identidade do missionário evangélico que veio para o Brasil.
Esta identidade foi forjada desde o início da Reforma no século XVI percorrendo,
sobretudo, um determinado tipo de protestantismo que, iniciando com os
anabatistas, passa pelos puritanos, pietistas, metodistas, avivalistas, ortodoxos,
fundamentalistas e pentecostais. Caso a parte é a assimilação da religiosidade
popular por parte dos movimentos neopentecostais. Finalmente, o quarto capítulo
aborda a visão bíblica do ser humano em sua inteireza. Analisando os principais
termos bíblicos que se referem à antropologia, verifica-se que a visão bíblica do ser
humano é libertadora e promotora de novas relações com o mundo ao redor em
suas dimensões política, social, econômica, cultural, religiosa, estética, etc.
Palavras-chave: Dualismo platônico, teologia cristã, Cristianismo e cultura.
5
SUMÁRIO
Introdução .............................................................................................................. 07
1. Dualismo antropológico platônico quando tudo começou ........................ 11
1.1 Introdução .......................................................................................................... 11
1.2 don: o evangelho segundo Platão ................................................................ 12
1.3 A controvérsia gnóstica porta de entrada do dualismo platônico na teologia
cristã ................................................................................................................... 15
1.4 Evolução da antropologia dualista na patrística ................................................ 18
1.4.1 Tertuliano de Cartago oposição ao diálogo
............................................ 18
1.4.2 Clemente e Orígenes de Alexandria a teologia estabelece contato
....... 21
1.4.3 O monasticismo cristão consolidação da antropologia dualista
............. 25
1.4.4 Agostinho de Hipona intérprete e sistematizador
................................... 31
1.5 Antropologia dualista na Idade Média ............................................................... 33
1.5.1 São Boaventura dualismo psicofísico
..................................................... 33
1.5.2 Tomás de Aquino tentativa de superação do dualismo
.......................... 34
1.6 Conclusão .......................................................................................................... 36
2. Antropologia dualista como fundamento para uma teologia de dominação do
Outro na colonização católica da América .......................................................... 42
2.1 Introdução .......................................................................................................... 42
2.2 Faces da legitimação teológica da dominação .................................................. 42
2.3 Métodos de dominação étnico-cultural .............................................................. 46
2.4 A História dos colonizadores ............................................................................. 49
6
2.5 A História dos outros .......................................................................................... 51
2.6 Teologia e escravidão ........................................................................................ 52
2.7 Teologia da Libertação proposta teológico-pastoral de superação do dualismo
............................................................................................................................. 56
2.8 Conclusão .......................................................................................................... 58
3. Matriz antropológica dualista como base teológica na implantação do
protestantismo no Brasil ...................................................................................... 61
3.1 Reforma Protestante origens ......................................................................... 61
3.2 Puritanismo e Pietismo o avanço do ascetismo protestante ......................... 74
3.3 Avivalistas, ortodoxos e liberais tensões e fissuras ....................................... 81
3.4 Fundamentalistas e pentecostais radicalizações e rompimentos .................. 92
3.5 A inserção do protestantismo no Brasil ............................................................ 100
3.5.1 Protestantismo de imigração e de missão no Brasil
.................................. 100
3.5.2 Pentecostalismo e neopentecostalismo o novo rosto da igreja
.............. 113
3.6 Conclusão ......................................................................................................... 122
4. Espírito e Corpo unidade fundamental do ser humano na visão bíblica ..127
4.1 O legado do Antigo Testamento para uma antropologia da unidade da pessoa
humana ............................................................................................................. 127
4.1.1 Néfesh
...................................................................................................... 128
4.1.2 Basar
........................................................................................................ 131
4.1.3 Rûach
....................................................................................................... 133
4.1.4 Lebab/Leb
................................................................................................. 135
4.2 O conceito de ser humano integral no Novo Testamento ................................ 138
4.2.1 Psyché
7
...................................................................................................... 140
4.2.2 Sarx
.......................................................................................................... 143
4.2.3 ma
........................................................................................................ 145
4.2.4 Pnêuma
.................................................................................................... 147
4.2.5 Kardia
....................................................................................................... 148
4.3 Conclusão ........................................................................................................ 150
Conclusão ............................................................................................................. 153
Referências ........................................................................................................... 158
INTRODUÇÃO
Em 16 de setembro de 1984, eu participava do culto noturno na Igreja
Presbiteriana do Brasil na Rua Cabo Ailson Simões, no. 384, em Vila Velha, Espírito
Santo, a convite de amigos de um pequeno grupo de teatro do qual fazíamos parte.
Eu havia pisado pela primeira vez em minha vida num templo evangélico em abril
daquele mesmo ano, contando então com 17 anos de idade. Em setembro, com
18 anos completos, naquela noite de início de primavera, eu aceitava, em resposta
8
ao apelo feito pelo Pr. Jacques Brinco, a Jesus como Senhor e Salvador de minha
vida.
Os anos que se seguiram foram típicos de um jovem membro de uma igreja
evangélica histórica: grupos de louvor, saídas após o culto, programações
evangelísticas, sociais e esportivas, dezenas de acampamentos, treinamentos de
liderança, festinhas com os amigos da igreja, etc. Não faltavam os debates acerca
de usos e costumes desencadeadores de conflitos entre a geração mais idosa e os
mais jovens da igreja. Questões como: poder bater palmas ou não na hora do culto,
uso da bateria e guitarra no louvor, se ritmos brasileiros eram adequados ao
momento litúrgico, quais roupas eram permitidas para a freqüência ao templo, além
das questões que afligiam (e afligem) rapazes e moças na minha idade naquela
época como com quem namorar, o que era permitido num namoro cristão,
masturbação, homossexualismo e mais, que tipo de relação deveríamos manter com
os não crentes, como lidar com as finanças, que profissão escolher etc. Todos esses
eram assuntos que dominavam nossas conversas que muitas vezes varavam a
madrugada na casa de alguém da turma.
Enquanto isso se iam os anos 80. Michael Jackson estava no auge da
fama mundial com a repercussão daquele que é até hoje o álbum mais vendido da
história da música, Thriller, com mais de 100 milhões de cópias vendidas. Madonna
lançava, para escândalo geral, no ano da minha conversão, seu álbum Like a Virgin.
No Brasil, Os Paralamas do Sucesso atacavam, neste mesmo ano, com Óculos,
música que levou o grupo à fama definitiva. Aliás, Os Paralamas era apenas uma
das famosas bandas da cena punk de Brasília naqueles anos. também surgiu a
Legião Urbana e Renato Russo acalentava os sonhos dos jovens com Será, Ainda é
Cedo e Geração Coca-Cola. Lulu Santos estourava nas paradas com Tudo Azul e O
Último Romântico. Embalados por essas músicas, nos apaixonávamos. No cinema
nos divertíamos assistindo aos Gremlins, Indiana Jones no templo da Perdição, A
Última Festa de Solteiro, Footloose, O Exterminador do Futuro, A Dama de
Vermelho, Os Caça-Fantasmas, Amadeus e muitos outros filmes inesquecíveis. Na
TV, Soares nos fazia rir com Viva o Gordo. A novela de maior sucesso era Corpo
a Corpo de Gilberto Braga. A Ditadura dava seus últimos suspiros. Depois de 20
anos de repressão, o povo tomava as ruas. A maior manifestação se deu na cidade
de São Paulo. Cerca de 1,5 milhão de pessoas se reuniram no Vale do Anhangabaú,
9
para apoiar o Movimento Diretas Já! Assim foram os anos 80: nos apaixonávamos,
ríamos, curtíamos nossa mocidade, sonhávamos com a abertura política e...
discutíamos teologia. Em meio a toda essa profusão de cultura pop, a Igreja
ocupava lugar central em nossas vidas. Aquilo não era apenas a nossa Igreja, era
quase a nossa casa.
Tempos depois, após trancar o curso de Psicologia na Universidade Federal
do Espírito Santo, depois de dois anos de estudos, e já cursando Teologia no
Seminário Presbiteriano do Norte na cidade de Recife, incomodava-me a sensação
de que muita energia e tempo preciosos eram gastos em nossas comunidades
presbiterianas (falo desta denominação, pois lá se deu minha experiência) com
debates e desentendimentos que nada tinham a ver com a mensagem de Jesus de
Nazaré para nossas vidas. Meu sentimento na época é que vivíamos, a partir de
nossa conversão, uma relação mal resolvida com a cultura brasileira. “Vivemos no
mundo, mas não pertencemos ao mundo” era a máxima que norteava nossa
conduta. Contudo, difícil era definir o que era “coisa do mundo” uma vez que as
opiniões variavam de pessoa para pessoa. Aos poucos, tornamo-nos jovens velhos.
Conservadores, legalistas, retrógrados, um tanto divorciados da realidade e, ao
mesmo tempo, tão seduzidos por ela. Hoje, passados 25 anos, desconfio que a
profusão de programações que inventávamos, algo quase barroco, tinha por
finalidade não nos dar tempo para pensar, ainda que isto não fosse consciente.
Quando falávamos em novo nascimento, levávamos isso muito a sério. Era
como se tudo o que havíamos vivido até ali perdesse, como por encanto, sua
validade (“deixando as coisas que para trás ficam”)... Havia uma cartilha a ser
encenada: moral legalista, amigos evangélicos, leituras recomendadas, espaços
(guetos) a serem freqüentados, vida social restrita, assiduidade rigorosa às
programações da igreja, músicas saudáveis, sexualidade neurotizada e, o avesso da
moeda, comportamentos inadequados, músicos e músicas censuradas, livros
perigosos, certos tipos de lazer (ou aquilo que se entendia como excesso deles)
censurados e, o pecado dos pecados, namorar um (a) não crente (“que comunhão
pode haver entre a luz e as trevas?”). A cultura pop era demonizada e a igreja
precisava nos afastar dela o máximo possível. Era assim mesmo: tudo muito
ambíguo.
10
Transferido para São Paulo em 1989 para terminar o curso de Teologia no
Seminário Presbiteriano Rev. José Manoel da Conceição permaneciam as mesmas
questões. Mudou a cidade, mudou a igreja, mudaram os rostos, mas os velhos
dilemas permaneciam. Donde aquela dificuldade em continuar vivendo em
sociedade como uma pessoa “normal”? Porque a sensação de se viver uma espécie
de esquizofrenia existencial? Qual era a origem daquele sentimento de ter tido o
cordão umbilical que nos unia à família e ao nosso passado, cortado de forma tão
grotesca?
No pastorado, e como professor de História do Cristianismo na Faculdade
Unida de Vitória (antiga FTU), Espírito Santo, começava a se esboçar em minha
mente uma tentativa de resposta. A clássica separação entre sagrado e profano
proposta pela filosofia grega de viés pitagórico-platônica parecia ser uma pequena
luz no fim do túnel. Assombrava-me que algo tão antigo e tão distante de nós
pudesse ter algo a ver com as questões de minha mocidade. Mais incômodo ainda
era descobrir que as causas e conseqüências transcendiam em muito as meras
querelas que jaziam no seio das comunidades evangélicas. Ou seja, as causas do
problema eram muitíssimo mais profundas e suas conseqüências muitíssimo mais
abrangentes e danosas. Entretanto, a correlação era inevitável, pois o tipo de
santidade ou espiritualidade ascética e desencarnada propugnada nos ambientes
evangélicos que eu freqüentava naquela época tinha muito do dualismo
neoplatônico que se esgueirou para dentro da teologia cristã a partir, notadamente,
do segundo século. Assim, a suposição era que nosso antagonismo com práticas e
costumes sociais corriqueiros tinha sua origem no dualismo espírito-matéria
proposto pelo platonismo. Isto porque a maior parte de nossas negativas culturais
tinha a ver com prazeres e diversões, coisas que envolviam o corpo. Ora, se o corpo
é mal, essas coisas também deveriam ser.
Desejo, com este trabalho, aplacar as angústias de minha adolescência
evangélica. Proponho-me perseguir o influxo crescente do dualismo platônico sobre
a teologia desde os seus primórdios até sua plena maturidade em fins do período
patrístico e desta avançando sobre a era medieval. Feita a constatação haveremos
de perguntar pelas conseqüências práticas desta nova teologia, ou desta forma
específica de teologia, uma teologia platonizada, sobre a história do Cristianismo.
Dentre muitos exemplos que poderiam ser dados, focaremos na invasão ibérica-
11
católica na América Latina e o conseqüente massacre dos povos ameríndios e
escravização dos povos afros ocorrido a partir do século XVI e, em segundo lugar,
na inserção do protestantismo anglo-saxônico no Brasil e sua tensa relação com a
sociedade brasileira a partir de meados do século XIX, nos capítulos 2 e 3
respectivamente. Os exemplos escolhidos visam apontar para as graves
conseqüências de uma antropologia deformada que tem como subproduto a
desvalorização do corpo, a demonização do prazer, a expatriação do desejo, a
legalização da violência, a formalização da cultura da guerra, a oficialização do
preconceito, a sanção da cultura de classes e o desprezo pelo outro, diferente de
nós.
Finalmente, um rápido olhar sobre a antropologia bíblica em sua defesa da
inteireza da pessoa, em sua celebração da vida humana plena, em sua integração
das várias dimensões do ser humano pode nos auxiliar em uma proposta de
vivência evangélica não dicotomizada, nem desencarnada. Qualquer proposta de
libertação verdadeira para o ser humano precisa partir de uma antropologia que
considere este ser humano em sua inteireza.
1. DUALISMO ANTROPOLÓGICO PLATÔNICO QUANDO TUDO COMEÇOU
1.1 Introdução
12
O objetivo do presente capítulo é demonstrar que a visão dualista do ser
humano defendida pela teologia cristã, ainda que um dualismo moderado
1
, tem sua
origem séculos atrás, quase no alvorecer do Cristianismo, mais especificamente no
segundo século, quando as comunidades cristãs foram infiltradas por idéias
gnósticas. O gnosticismo, por sua vez, teve como uma das suas fontes principais o
dualismo antropológico platônico. Como conseqüência, defendia tanto a clássica
separação entre espírito e matéria, quanto a imortalidade da alma.
Ao longo dos séculos, à medida que ia se formando o pensamento teológico
cristão, este dualismo foi-se cristalizando de formas variadas, com poucas tentativas
de superação do mesmo. Esta divisão entre o mundo mal da matéria e o mundo
bom do espírito não teve sua aplicação restrita tão somente à antropologia, mas
passou a determinar também a construção mesma da sociedade em suas
dimensões políticas, sociais, econômicas, culturais, religiosas etc.
O problema da antropologia iniciou de fato no momento em que as
comunidades cristãs começaram a elaborar uma teologia. Com forte influência da
filosofia helênica, a teologia que d resultou é um híbrido de pensamento
neotestamentário e neoplatônico. A título de exemplo, e como nos lembra Leonardo
Boff, o Novo Testamento não afirma a imortalidade da alma, pensamento este
defendido por Platão. O que é afirmado sobejamente nas Escrituras é a fé na
ressurreição dos mortos. Já o platonismo afirma a imortalidade da alma e não
reconhece a ressurreição, amplamente defendida no Novo Testamento. A mistura
desses dois pensamentos (imortalidade da alma platônica; ressurreição cristã)
deu origem à seguinte teologia: depois da morte do cristão a alma -se diante de
Deus, goza de sua presença até o fim dos tempos quando será novamente reunida
ao corpo ressuscitado. “A doutrina da imortalidade da alma dos gregos foi
completada com a outra bíblica da ressurreição dos mortos”.
2
A partir daí passou-se
a crer nos círculos cristãos que a morte atinge ao corpo, assim como a
ressurreição também é somente para o corpo. Pode-se dizer que este pensamento
não é mais nem bíblico nem platônico, é uma terceira via.
1
Cf. RUBIO, Alfonso García. Unidade na Pluralidade: o ser humano à luz da e da reflexão cristãs. São Paulo:
Paulus, 2006. p. 80-81.
2
BOFF, Leonardo. A Ressurreição de Cristo. A nossa Ressurreição na Morte: a dimensão antropológica da
esperança humana. Petrópolis: Vozes, 1973. p. 67.
13
Alfonso García Rubio mostra que este debate não se limitou aos círculos
acadêmicos. Tivesse ele permanecido somente no mundo dos embates teóricos,
provavelmente não mereceria nossa atenção. Contudo, suas conseqüências práticas
podem ser sentidas na forma como a Igreja passou a valorizar a alma em detrimento
do corpo, a cristã em detrimento das opções sociopolíticas, a vida no céu em
detrimento da vida na terra, o Jesus divino em detrimento do Jesus humano e assim
por diante
3
. Por conseguinte, graves desvios e um sem número de atitudes violentas
e discriminatórias foram sustentados pela Igreja com base na metafísica dualista de
desprezo pelo corpo. Adiantando o debate, podemos citar de forma pontual a
Inquisição, as Cruzadas, o genocídio dos povos ameríndios e a escravidão dos
povos africanos. Vejamos qual é a fonte dessa antropologia dualista e dicotômica.
1.2 Fédon: o evangelho segundo Platão
4
Quais são as principais características desse dualismo? Para respondermos
a esta pergunta, vamos lançar um rápido olhar sobre o pensamento de Platão
utilizando sua obra fundamental sobre esse assunto, o Fédon.
Embora Platão, que viveu no século IV a.C., não tenha sido o criador da
visão dicotômica do ser humano, pois, suas raízes se encontram na Índia e na
Pérsia antigas, foi ele quem estabeleceu uma formulação teórica consistente para a
defesa do dualismo
5
. Para entendermos seu pensamento é necessário
compreendermos a distinção que ele faz entre idéia e coisa.
As coisas pertencem ao mundo sensível, caracterizado como mutável,
temporal, caduco, descambando facilmente para o ilusório. Já as idéias
pertencem a um outro mundo, o da realidade divina, eterna e imutável. A
verdadeira realidade encontra-se unicamente além das aparências
sensíveis, no mundo das idéias. As coisas do mundo material não passam
de cópias muito imperfeitas deste mundo real. (...)
3
Cf. RUBIO, 2006, p. 81.
4
Cf. HAGSMA, Alfredo Jorge. Corpo e Alma: O Princípio do Caos: o dualismo antropológico grego em analogia
à concepção bíblica do ser humano. Monografia de Conclusão do Bacharelado em Teologia, EST/São Leopoldo,
1998. Trabalho não publicado. p. 7.
5
Cf. RUBIO, 2006, p. 76.
14
Os dois mundos estão presentes no homem: na alma (mundo das idéias) e
no corpo (mundo das coisas). O corpo, como coisa que é, participa
imperfeitamente de uma idéia, enquanto que a alma pertence ao mundo
eterno e divino das idéias.
6
Para Platão a alma é incorruptível, imortal e preexistente ao corpo. Mas,
uma vez encarnada, ela perde seu contato com o mundo perfeito das idéias. Assim,
o corpo é um cárcere para a alma. O verdadeiro filósofo deseja a morte para se
libertar do corpo
7
.
No Fédon, Platão fundamenta seu pensamento dualista. Nessa obra o
personagem Fédon, argüido por Equécrates acerca das circunstâncias da morte de
Sócrates, passa a descrever um diálogo ocorrido na prisão entre Sócrates e seus
discípulos, entre os quais se encontrava Fédon, no dia em que ele teve que beber o
veneno
8
. Ao iniciar a narrativa, Fédon descreve como, diante da morte, Sócrates
encontrava-se feliz. Não parecia ser um homem a caminho da morte, mas a caminho
da vida “feliz, tanto na maneira de comportar-se como na de conversar, tal era a
tranqüila nobreza que havia no seu fim”.
9
Para Sócrates a morte sempre estava dentro dos planos divinos e, portanto,
deveria ser bem aceita. E, então, ele passa a explicar a razão de sua felicidade
diante da morte. Para ele, o sábio, o verdadeiro filósofo, não busca os prazeres
relacionados ao corpo e nem confia nos sentidos (visão, audição etc) para chegar à
verdade. Para este fim, confia tão somente no raciocínio: “Não é, por conseguinte,
no ato de raciocinar, e não de outro modo, que a alma apreende, em parte, a
realidade de um ser?”
10
O corpo, e seus sentidos enganosos, servem somente para obstaculizar
nosso pensamento.
E é este então o pensamento que nos guia: durante todo o tempo em que
tivermos o corpo, e nossa alma estiver misturada com essa coisa má,
jamais possuiremos completamente o objeto de nossos desejos! Ora, este
objeto é, como dizíamos, a verdade. (...) O corpo de tal modo nos inunda de
amores, paixões, temores, imaginações de toda sorte, enfim, uma infinidade
6
RUBIO, 2006, p. 77.
7
Cf. RUBIO, 2006, p. 77.
8
Cf. PLATÃO. Diálogos: o Banquete, Fédon, Sofista, Político. São Paulo: Abril Cultural, Os Pensadores 3, 1972.
p. 63-66.
9
PLATÃO, 1972, p. 64.
10
PLATÃO, 1972, p. 72.
15
de bagatelas, que por seu intermédio (sim, verdadeiramente é o que se diz)
não receberemos na verdade nenhum pensamento sensato.
11
E Sócrates continua utilizando sempre palavras negativas para se referir ao
corpo que nos maltrata com suas concupiscências, dele somos escravos, ele é um
intrujão que nos ensurdece e nos desorganiza e conclui dizendo:
(...) quando, sobretudo, não estivermos mais contaminados por sua
natureza, pelo contrário, nos acharmos puros de seu contato, e assim até o
dia que o próprio Deus houver desfeito esses laços. E quando dessa
maneira atingirmos a pureza, pois que então teremos sido separados da
demência do corpo, deveremos mui verossimilmente ficar unidos a seres
parecidos conosco; e por nós mesmos conheceremos sem mistura alguma
tudo o que é. E nisso, provavelmente, é que de consistir a verdade. Com
efeito, é lícito admitir que não seja permitido apossar-se do que é puro,
quando não se é puro!
12
Sócrates afirma que não faria sentido um filósofo, depois de passar toda sua
vida acreditando na imortalidade da alma e ensinando a importância de se desligar
ao máximo a alma do corpo, encher-se de terror diante da morte. Mas Cebes, um
dos discípulos de Sócrates, questiona a idéia da imortalidade da alma, sugerindo
que talvez com a morte do corpo, morra também a alma. Sócrates insiste que “dos
mortos nascem os vivos”. Dois são os destinos das almas: no caso das almas que
amaram seus corpos e com eles se mesclaram é no Hades que elas se encontram e
é de lá que elas retornam e renascem dos mortos
13
.
No caso das almas daqueles que amaram a sabedoria e lutaram contra os
feitiços do corpo, Sócrates também insiste em sua pré-existência e na sua existência
posterior à morte após a qual “ela se dirige, para o que é invisível, para o que é
divino, imortal e sábio”.
14
Enfim, após a morte ela se junta à companhia dos deuses.
Às almas dos maus está destinado vaguearem até encontrarem um “companheiro
desejado” e tornam a entrar num corpo. Este corpo pode ser de um asno ou outro
animal qualquer.
15
Este é o raciocínio que leva Sócrates a abraçar a morte como a uma amiga
e encará-la, não como algo ruim, mas como libertação de uma coisa má, uma porta
11
PLATÃO, 1972, p. 73-74.
12
PLATÃO, 1972, p. 74.
13
Cf. PLATÃO, 1972, p. 78-79, 92.
14
PLATÃO, 1972, p. 92.
15
PLATÃO, 1972, p. 92-93.
16
que se abre para a verdadeira vida, eis o ideal de todo ser humano sábio. Ou seja,
na imortalidade da alma o filósofo pode depositar sua esperança. Por isso, ele já não
teme a morte, ao contrário, anela por ela, pois a mesma representa o fim do
sofrimento. “Nisto reside a boa nova de Platão”.
16
1.3 A controvérsia gnóstica porta de entrada do dualismo platônico na
teologia cristã
Provavelmente todos os livros de História do Cristianismo reservam parte de
suas páginas para abordarem o desafio que representou, sobretudo para os cristãos
do segundo século, a controvérsia gnóstica. Dentre os rios elementos e conceitos
gnósticos, vamos no deter naquele que é o objeto de estudo do nosso capítulo, a
saber, o dualismo antropológico platônico. R. N. Champlin em sua Enciclopédia de
Bíblia, Teologia e Filosofia nos informa que:
Platão defendia um dualismo metafísico em sua doutrina dos universais
(idéias), em contraste com os particulares, visto que o universal é o
elemento eterno, imutável e infinito, enquanto que o particular é a sua
contraparte terrena, material e finita.
17
Assim, também G. M. Salvati, no verbete Dualismo do Dicionário Teológico
Enciclopédico, ao afirmar que o estoicismo, o neoplatonismo e boa parte da tradição
patrística herdaram o dualismo platônico, completa dizendo: “De maneira diversa,
essas correntes de pensamento insistirão na oposição entre espírito e matéria, alma
e corpo, razão e sentidos, liberdade e paixões”.
18
José Comblin, de maneira direta
nos dá a seguinte explicação:
Globalmente a filosofia grega tende a uma concepção dualista de alma-
corpo. Alma e corpo são como duas substâncias unidas mas com redes de
atividades separadas. A alma luta com o corpo. A alma tem as suas
atividades autônomas e o corpo tende a tê-las também. O problema é a
unidade. A filosofia procura explicar a unidade.
16
HAGSMA, 1998, p. 10.
17
CHAMPLIN, R.N. Enciclopédia de Bíblia, Teologia e Filosofia. São Paulo: Hagnos, 2001. p. 239.
18
SALVATI, G.M. Lexicon: Dicionário Teológico Enciclopédico. São Paulo: Loyola, 2003. p. 216.
17
(...) a teologia clássica, seja ela de inspiração platônica ou aristotélica, não
conseguiu valorizar o corpo, nem uni-lo realmente à alma. A doutrina
teológica considerou alma e corpo como duas quase substâncias
associadas numa união nunca harmoniosa. O corpo ficou desprestigiado,
ligado à matéria, ela própria desprestigiada também, e a alma com as suas
atividades ficou prestigiada.
19
Decorre daí que para os gnósticos o mundo criado era mal. Seguindo o
pensamento helênico, os gnósticos desprezavam o corpo, encarando-o como uma
prisão do espírito. Uma armadilha dos poderes demônicos, do demiurgo que criara o
mundo. O objetivo da gnosis (conhecimento) seria alcançar um estado de
participação no divino que libertaria a alma do iniciado das limitações da carne. O
alvo final seria a união da alma com a pleroma, o mundo espiritual.
A Escola de Valentino defendia a existência de três classes de pessoas: os
pneumatikoi (espirituais) eram os salvos, os psychikoi (seguidores da alma)
poderiam alcançar a salvação se fossem iniciados na gnosis e os sarkikoi (carnais)
estavam perdidos, para eles não havia esperança de salvação
20
.
Dentre os mestres gnósticos, um causou especial espanto e oposição na
comunidade de Roma, trata-se de Marcião. Tendo-se unido aos cristãos de Roma
em 139 d.C., Marcião acabou expulso em face de suas idéias gnósticas em 144 d.C.
W. Walker descreve assim o pensamento de Marcião quanto ao corpo:
O Cristo, o qual veio como o agente do Deus de amor desconhecido para
resgatar almas (“uma vez que o corpo, oriundo da terra, o pode
possivelmente partilhar da salvação”), simplesmente apareceu na Galiléia,
não tendo passado pelo nascimento humano e não possuindo corpo
humano. Consoante com esta perspectiva da materialidade e do corpo, os
fiéis marcionitas tinham que se abster de qualquer intercurso sexual,
mesmo no casamento. O rigorismo de Marcião também está demonstrado
na exigência que seus seguidores evitassem comer carne.
21
Vemos aí um ataque frontal contra o corpo e o ato sexual. A própria aparição
de Jesus é docética (encarnação de aparência, algo fantasmagórico). Doutrina esta
que sofreu forte reação dos líderes católicos
22
. A encarnação jamais seria aceita por
um gnóstico. Este desprezo pela matéria fazia com que alguns grupos gnósticos se
19
COMBLIN, José. Antropologia Cristã. Petrópolis: Vozes, 1985. p. 81.
20
Cf. TILLICH, Paul. História do Pensamento Cristão. São Paulo: ASTE, 2000. p. 55.
21
WALKER, Wiliston. História da Igreja Cristã. Vol. 1. São Paulo: ASTE, 2006. p. 84.
22
Católicos neste contexto eram os ortodoxos, ou seja, aqueles que se posicionavam contra as idéias gnósticas.
18
entregassem de maneira radical a práticas ascéticas. Outros grupos, pelo mesmo
motivo, agindo no extremo oposto, entregavam o corpo aos prazeres carnais.
Diante do desafio da heresia gnóstica, pensadores cristãos da época
redigiram obras em que procuravam combater essas idéias e definir mais claramente
o pensamento cristão ortodoxo. Dentre os principais representantes deste grupo
podemos destacar Justino Mártir, no Diálogo com Trifão, Ireneu, em seu Contra as
Heresias, Tertuliano, na obra Contra Marcião e Clemente de Alexandria, em diversos
trechos dos Estrômatos
23
.
Entre os primeiros Pais da Igreja houve quem resistisse ao dualismo e
insistisse numa visão bíblica da unidade básica do ser humano. Este foi o caso, por
exemplo, de Justino Mártir que afirmou que a carne foi criada por Deus e que a alma
também, portanto, ela não é imortal. Deixemos que ele mesmo fale: [...] tampouco
se pode dizer que ela [a alma] seja imortal. [...] Se a alma participa da vida é porque
Deus quer que ela viva. Portanto, da mesma forma, um dia ela deixará de participar,
quando Deus quiser que ela não viva. De fato, o viver não é próprio dela como o é
de Deus.
24
Apesar do cinturão de segurança que se formou em torno da fé católica para
preservá-la de elementos heréticos, a teologia cristã foi profundamente influenciada
por essas idéias, com destaque para o dualismo matéria-espírito. O gnosticismo e o
marcionismo como movimentos desapareceram, mas sua percepção de uma
salvação do corpo (libertação da alma da prisão corpórea) e de uma santificação
ascética permaneceu para sempre na teologia cristã.
Podemos separar os pensadores cristãos da época em dois grupos: (a)
aqueles que eram radicalmente contra qualquer tipo de relacionamento com a
cultura da época, defendendo, assim, um afastamento radical da sociedade romana;
e (b) aqueles que, ao contrário, queriam manter um diálogo com o pensamento
filosófico da época e motivavam a inserção na sociedade.
Alfonso García Rubio, em seu excelente livro Unidade na Pluralidade: o ser
humano à luz da fé e da reflexão cristãs obra a qual iremos recorrer insistentemente,
explica assim esta dupla postura dos Pais da Igreja:
23
Cf. MORESCHINI, Cláudio e NORELLI, Enrico. História da Literatura Cristã Antiga Grega e Latina I: de Paulo à
Era Constantiniana. São Paulo: Loyola, 1996. p. 238.
24
JUSTINO DE ROMA. I e II Apologias: Diálogo com Trifão. São Paulo: Paulus, 1995. p. 119-121.
19
Nem todos os padres do Oriente ou do Ocidente adotaram a mesma atitude
em relação à antropologia dualista helênica e gnóstica. (...) existiam duas
tendências no interior da Igreja em face ao desafio constituído pela
civilização helênica. A orientação que procurava salientar os pontos de
coincidência entre cristã e cultura helênica, especialmente o pensamento
filosófico, mantendo uma atitude de abertura e de diálogo e utilizando
decididamente o instrumental grego, foi mais influenciada pela antropologia
dualista, sobretudo platônica. É o caso de Clemente de Alexandria ou de
Orígenes, no Oriente, ou de Agostinho, no Ocidente. A outra tendência que
ressaltava preferentemente os pontos de divergência e mantinha uma
atitude, se não fechada (isto seria incompatível com o dinamismo
missionário cristão), bastante reservada em relação ao mundo grego-
romano, ficou mais apegada às afirmações bíblicas sobre a unidade básica
do ser humano e recebeu uma influência dualista bem menos acentuada
que a primeira.
25
Curiosamente, tanto aqueles que rejeitaram, quanto aqueles que buscaram
diálogo acabaram uns mais, outros menos, sendo influenciados pelo dualismo
platônico.
1.4 Evolução da antropologia dualista na patrística
1.4.1 Tertuliano de Cartago oposição ao diálogo
O primeiro exemplo que daremos da influência do dualismo gnóstico e
marcionita sobre a teologia cristã encontra-se no pensamento de Tertuliano de
Cartago. Tertuliano, um dos autores cristãos que mais se empenhou no combate às
heresias, chegou a defender “não a unidade do homem, mas também a unidade
da alma e de toda a humanidade”.
26
Surpreendentemente, por volta do ano 207 d.C.,
uniu-se a um grupo que foi considerado na época como herege, o grupo dos
montanistas
27
.
25
RUBIO, 2006, p. 330.
26
FIORENZA, Francis P. e METZ, Johann B. O homem como união de corpo e alma. In: FEINER, Johannes e
LÖHRER, Magnus. Mysterium Salutis: compêndio de dogmática histórico-salvífica. Vol. II/3. Petrópolis: Vozes,
1972. p. 27.
27
Cf. GONZÁLEZ, Justo L. E até aos confins da terra: uma história ilustrada do Cristianismo. Vol. 1. São Paulo:
Vida Nova, 1980. p. 125.
20
Montano, seu fundador, convertido ao Cristianismo por volta de 155 d.C.,
proclamava o início de uma nova era, a era do Espírito. Insistia numa comunidade
de pessoas puras. Em suas pregações havia uma forte ênfase numa vida moral
mais rigorosa. Assim, ele e seus seguidores, praticavam longos jejuns, alimentavam-
se de maneira frugal, desencorajavam o casamento. Alguns dos seus discípulos
chegaram mesmo a abandonar seus cônjuges. Rompiam laços com a sociedade,
alienavam-se do mundo
28
.
A partir do segundo século podemos perceber os cristãos passando da
liberdade no Espírito cada vez mais para um Cristianismo moralista e,
subseqüentemente, ascético. O Montanismo é um reflexo dessa tendência.
Paradoxalmente, como é característico destes movimentos, em que pese sua ênfase
na ação do Espírito Santo, era radicalmente moralista e legalista.
Tertuliano contribuiu muito para o fortalecimento desta nova mentalidade
legalista. Ele, assim como outros cristãos do segundo e terceiro séculos, entendia
que o verdadeiro servo de Cristo deveria se apartar do mundo. Isto incluía o
exército, o governo, instituições educacionais, festas públicas etc, uma vez que, em
última instância, tudo o que dizia respeito ao Império estava a serviço dos deuses
pagãos
29
. Sua visão do pecado era rigorista. Para ele:
Os cristãos batizados eram pessoas cujos pecados cometidos haviam sido
perdoados pelo arrependimento e pela lavagem com água e pelo Espírito
Santo; mas tendo sido, portanto libertos para cumprirem a vontade de Deus,
o restante de suas vidas depois do batismo era o esforço de „competidores
para a salvação, buscando o favor de Deus‟. (...) Tertuliano não dava
nenhuma esperança para os fiéis que haviam caído em pecado grave após
o batismo. (...) Não havia espaço na igreja ou na vida cristã para um
fracasso sério e deliberado em viver pelos preceitos do evangelho da
mesma maneira que não havia espaço para qualquer tentativa, sob
perseguição, para escapar do privilégio do martírio, o único verdadeiro
“segundo arrependimento”.
30
Além do moralismo e ascetismo cada vez mais crescente, desde Inácio de
Antioquia, deu-se início ao costume de se exaltar o martírio como o coroamento da
vida cristã. A entrega do corpo e da própria vida por amor de Cristo seria a prova
cabal de que ali estava um verdadeiro cristão. Acerca do valor da penitência para o
28
Cf. WALKER, vol. 1, 2006, p. 86.
29
Cf. WALKER, vol. 1, 2006, p. 99.
30
WALKER, vol. 1, 2006, p. 99.
21
perdão dos pecados, Tertuliano afirma: Prosterna o homem, de modo especial, ela
o eleva; quando ele se acusa, ela o escusa, quando se condena, ela o absolve; na
medida em que não te poupares, nesta mesma medida, crê em mim, Deus te
poupará.
31
Nosso pensador africano, o primeiro a escrever uma teologia cristã em
latim e considerado um dos autores mais produtivos da era pré-constantiniana,
contribuiu imensamente para o desenvolvimento de um Cristianismo ascético. Ele
fazia diferença entre os pecados remissíveis e os irremissíveis. Dentre esses últimos
ele apontava “as faltas mais graves e funestas, que não têm perdão; o homicídio, a
fraude, a apostasia, a blasfêmia, certamente o adultério e a fornicação”.
32
Em seu
período montanista, o escritor cartaginês defendeu a idéia de uma Igreja espiritual
“vendo nela não a assembléia dos cristãos reais, existentes, mas a assembléia dos
espirituais, isto é, dos perfeitos”.
33
Berthold Altaner e Alfred Stuiber nos dão, de forma pontual, rias
informações sobre a visão de Tertuliano acerca do matrimônio e da sexualidade.
Citam os autores o combate às diversas formas de vaidade feminina que ele faz em
De cultu feminarum; o pedido que ele fez à sua esposa para permanecer como viúva
após sua morte, ou não desposar senão um cristão (Ad uxorem); a exortação que
ele faz a um amigo viúvo a não contrair segundas núpcias, as quais qualifica
francamente de uma “espécie de devassidão” (De exhortatione castitatis); o feroz
ataque às segundas núpcias na obra De monogamia; a imposição do uso do véu a
todas as virgens, não somente na igreja, mas sempre que aparecerem em público
(De virginibus velandis)
34
.
Enrique Dussel descreve a importância que teve para a teologia posterior o
pensamento de Tertuliano e como, apesar de sua oposição ao diálogo entre a
teologia cristã e a filosofia helênica
35
, foi ele influenciado pela antropologia dualística
platônica:
31
FIGUEIREDO, Fernando A. Curso de Teologia Patrística II: A vida da igreja primitiva (século III). Petrópolis:
Vozes, 1984. p. 39.
32
FIGUEIREDO, 1984, p. 38.
33
MORESCHINI e NORELLI, 1996, p. 464.
34
Cf. ALTANER, B. e STUIBER, A. Patrologia: Vida, obras e doutrina dos padres da igreja. São Paulo: Paulinas,
1972. p. 165.
35
“Que tem Atenas a ver com Jerusalém? Ou, que tem a ver a Academia com a Igreja?”, foi a famosa frase de
Tertuliano que demonstra sua oposição radical ao diálogo entre a cristã e a cultura pagã. GONZÁLEZ, 1980,
p. 88. A este respeito, MORESCHINI e NORELLI (1996, p. 466) afirmam: “No Ocidente, Tertuliano inaugura a
atitude de hostilidade, que depois se torna um lugar-comum. Mais importante e substancial é a crítica que
22
Tertuliano mostra muitas sutilezas que o próprias de um pensamento
original, porém, sem saber, caiu na própria armadilha que pretendia criticar:
o platonismo, o neoplatonismo, o helenismo com seu dualismo, intrínseco a
um sentido do ser oposto ao hebreu-cristão. Não serão nem Descartes nem
Agostinho que irão inaugurar o dualismo antropológico no Ocidente. Temos
que buscar este dualismo no primeiro escritor latino-cristão de importância.
(tradução própria).
36
1.4.2 Clemente e Orígenes de Alexandria a teologia estabelece contato
Outro pensador, contemporâneo de Tertuliano, que merece nossa atenção
foi Clemente de Alexandria. Diferentemente de Tertuliano que abominava a tentativa
de se estabelecer um diálogo entre a Teologia e a Filosofia, Clemente se esforçou
por criar essas pontes sem deixar de ser um crítico das idéias gnósticas. Mas,
novamente, sua crítica não foi rigorosa o suficiente para impedir as influências
dualistas no pensamento cristão. Clemente gostava, inclusive, de se referir ao
cristão como “o verdadeiro gnóstico”. Walker nos informa:
O que é interessante e característico acerca de seu nome é que por um
lado ele se considerava como um defensor e intérprete do Cristianismo
costumeiro, consciente do dever de “não transgredir de maneira alguma a
regra da Igreja”, ao passo que por outro lado ele representava aquela
atitude simpática para com a cultura e a erudição “secular” de que a maioria
dos cristãos comuns desconfiava totalmente.
37
Também Cláudio Moreschini e Enrico Norelli nos dão uma idéia do interesse
de Clemente pela cultura na qual viva:
Tertuliano dirige à filosofia, porque nela a presença de uma inaceitável curiosidade: com essa acusação ele
resume, em substância, a oposição radical entre a ciência e a religião, entre o humano e o divino. A curiosidade
mancomuna o filósofo com o herege; ela propõe ao intelecto questões substancialmente vãs, porque as
concretas e profundas foram apresentadas (e resolvidas) pelo Cristianismo. A condenação da curiosidade,
em tal caso, corre o risco de resolver-se numa condenação da ciência e do racionalismo”.
36
Tertuliano muestra muchas cavilaciones que son proprias de un pensar original, pero, sin saberlo, ha caído
en la propria trampa que pretendía criticar: el platonismo, el neoplatonismo, el helenismo con su dualismo,
intrínseco a un sentido del ser opuesto al hebreo-cristiano. No serán ni Descartes ni Agustín los que inauguran el
dualismo antropológico em Occidente. Este dualismo hay que ir a buscarlo en el primer escritor latino-cristiano
de importancia”. DUSSEL, Enrique. El Dualismo em La Antropología de La Cristiandad: Desde el origen del
Cristianismo hasta antes de la conquista de América. Buenos Aires: Guadalupe, 1974. p. 176.
37
WALKER, vol. 1, 2006, p. 107.
23
Clemente não adota a violenta recusa dos espetáculos, da moda e dos
ornamentos testemunhada, naquelas mesmas décadas por Tertuliano. Para
ele, a cristã não se opõe à vida social, mas existe nela, e por outro lado,
como vimos, a moral racional que deve reger uma sociedade se identifica
com a moral cristã.
38
Nos seus escritos, é fato, existem tendências ascéticas ou com uma clara
influência platônica
39
. Ele não associa a identidade cristã com a recusa das coisas
do mundo
40
. Ao contrário, ele se esforçou por conciliar os conteúdos da fé cristã com
a filosofia que predominava em seus dias
41
. Ao fazer isto, deu uma demonstração de
abertura para a cultura e sociedade de sua época. Correu, assim, o risco de
contaminar a proposta cristã com elementos estranhos ao seu conteúdo original, o
que de fato ocorreu. A. Hamman ao comentar a importância do pensamento de
Clemente de Alexandria, assim se expressa:
Ele soube conciliar seu ideal de cultura com seu ideal religioso. Foi, na
história do pensamento cristão, o primeiro teólogo a lançar os fundamentos
de uma cultura inspirada pela fé e de um humanismo cristão. Resolveu esta
fusão, descobrindo no Cristo o educador do gênero humano.
Continua a ser, por isso, um precursor, um modelo, uma fonte, a que
precisaremos remontar incessantemente a fim de solucionar a mesma
questão que o século XX nos propõe.
42
O que vemos em Clemente é a difícil tarefa de colocar a em Cristo em
relação com a cultura que a cerca. Ou seja, a cristã deve se relacionar com a
cultura, mas, assim, corre o risco de ser por esta, descaracterizada. Parece-nos,
contudo, que a alternativa a este risco, seria o isolamento fundamentalista.
A tese fundamental deste trabalho é que a visão dualista platônica e
neoplatônica introduziu no pensamento teológico cristão uma tendência, que se
tornou mais forte com o passar dos séculos, de se renegar aspectos da cultura,
freqüentemente chamados de “as coisas do mundo”, criando, por sua vez, um
Cristianismo espiritualizado, com dificuldades de lidar com o corpo, com os prazeres,
com a sexualidade, com o riso. Eis o nosso paradoxo: o necessário diálogo com a
cultura helênica introduziu na teologia cristã o dualismo platônico que, por sua vez,
38
MORESCHINI e NORELLI, 1996, p. 349.
39
Por exemplo, em seu Estrômatos depois de exaltar o papel do casamento, ele afirma: “a finalidade mais
imediata do matrimônio é a de procriar, ainda que o fim mais pleno seja o de procriar bons filhos”. Citado em
VIVES, J. Los Padres de La Iglesia. Barcelona: Herder, 1982. p. 243.
40
Cf. MORESCHINI e NORELLI, 1996, p. 350.
41
Cf. ALTANER e STUIBER, 1972, p. 197.
42
HAMMAN, A. Os Padres da Igreja. São Paulo: Paulinas, 1980. p. 84.
24
tornou o Cristianismo resistente às manifestações culturais sempre que estas não se
originaram nele ou possuíam elementos não compatíveis com a visão tradicional da
Igreja em dada época e local. Portanto, ao defendermos a necessidade de
inculturação da cristã, não podemos perder de vista a identidade própria desta
mesma fé, com suas características contra-culturais, proféticas, até mesmo,
subversivas.
A Igreja precisou de coragem para utilizar o instrumental lógico grego em
seu esforço de “encarnação” na cultura helênica. Ao mesmo tempo precisou de
discernimento para, neste processo encarnatório, não abrir mão dos princípios
fundantes e inalienáveis da fé cristã
43
. Como diz Alfonso García Rubio, o risco, neste
caso, “consiste no perigo de ser domesticada a Igreja pela visão de mundo e de
homem que subjaz a determinado instrumental, à medida que tal visão do mundo e
de homem é inassimilável pela cristã”.
44
Antônio Gouvêa Mendonça demonstra
como é sensível este assunto no seguinte texto:
Ser cristão, seja de que forma for, é confessar Cristo como Senhor, e esta
confissão superpõe-se às culturas e conjunturas, mas não está livre das
contradições e conflitos com elas, isto porque a confissão se de modo
concreto. (...) Cristo, Deus encarnado, viveu, portanto, na cultura, como se
comportou na cultura sob o duplo ônus da sua essencialidade divina e da
sua assumida contingência humana. Esta pergunta nos leva à questão
crucial e permanente da relação entre o Cristianismo e a civilização ou
cultura, como se queira. Este problema não foi resolvido e não o será de
modo definitivo porque a confissão essencial do senhorio de Cristo dá-se
contingentemente no confronto e no compromisso com a cultura.
45
O mérito de Clemente está em ele se esforçar por estabelecer canais de
diálogo com a cultura de sua época. Dussel nos lembra que:
A filosofia para Clemente é um saber científico, é uma autêntica sabedoria e
por isto inclui uma teologia. A partir de tal visão ele pode admitir a filosofia
grega, em alguns dos seus elementos constitutivos, para elaborar
ecleticamente o edifício da ciência teológica cristã: “Eu chamo filosofia não
ao estoicismo, ao platonismo, ao epicurismo ou ao aristotelismo, senão tudo
43
Cf. RUBIO, 2006, p. 241.
44
RUBIO, 2006, p. 241. O autor conclui seu raciocínio afirmando: “É fácil observar que a dinâmica do
desprendimento-encarnação-serviço exige a articulação da atitude de diálogo-continuidade com a atitude de
ruptura. A acentuação de uma, legítima e necessária dependendo do momento histórico, deve estar sempre
aberta à crítica e à complementação da outra. Também aqui reaparece novamente a necessidade de
desenvolver a relação de integração-inclusão respeitando as diferenças”. RUBIO, 2006, p. 243-244.
45
MENDONÇA, A. Gouvêa. Educação, confessionalidade e ecumenicidade a questão da fé e cultura. In:
Estudos da Religião 11: Renasce a Esperança. São Paulo: UMESP, 1995. p. 94-95.
25
o que tem de bom cada escola: a eleição (eklektikón) é o que eu chamo
filosofia”. (tradução própria)
46
Pode-se dizer que em Clemente não temos ainda uma plena absorção da
filosofia helenista pela teologia cristã. O que temos é a utilização do instrumental
grego para a elaboração da teologia. O momento crítico, que estabelece um limite
na passagem entre estes dois mundos, é enfrentado pelo discípulo de Clemente,
Orígenes de Alexandria. Orígenes representa uma radicalização da interpretação
dualística do ser humano. Nele a alma é preexistente, o corpo para ela é um castigo
e a salvação se constitui na libertação da alma do corpo, o que se dará na morte
deste último. Ou seja, a influência helênica sobre a teologia cristã concretiza-se
plenamente em Orígenes.
Como temos dito, sua figura se encontra em um momento crucial, crítico,
que se trata da primeira “tentação” de realizar a passagem de não somente
utilizar o instrumental lógico dos pensadores helenistas, tarefa começada
por Clemente e Ireneu ou mesmo pelos apologistas, senão de aceitar certas
estruturas ontológicas, e por isto antropológicas próprias do pensamento
indoeuropeu e helenista platônico em especial. (tradução própria)
47
C. Tresmontant, citado por Enrique Dussel, continuidade ao mesmo
raciocínio dizendo o seguinte:
Orígenes formulou com suma claridade a incompatibilidade entre certas
teses ontológicas do paganismo e do Cristianismo, como a doutrina do
eterno retorno, a doutrina da transmigração das almas, a eternidade da
matéria. Em tudo isto ajudou o pensamento cristão a tomar consciência de
suas próprias exigências metafísicas. Por outro lado, ao menos em um
momento de sua vida, Orígenes propôs uma visão de mundo, uma síntese
metafísica e teológica, que suscitou uma reação em muitos pensadores
cristãos.
48
46
“La filosofia, para Clemente, es un saber científico, es una auténtica sabiduría y por ello incluye una teologia.
A partir de una tal visión el puede admitir la filosofia griega, en alguno de sus elementos constitutivos, para
elaborar eclécticamente el edifício de la ciencia teológica cristiana: “Yo llamo filosofía no al estoicismo, al
platonismo, al epicureísmo o al aristotelismo, sino todo lo que tiene de bueno cada escuela: la elección
(eklektikón) es a lo que llamo filosofía”. DUSSEL, 1974, p. 27.
47
“Como hemos dicho, su figura se encuentra en un momento crucial, crítico, ya que se trata de la primera
“tentación” de realizar el pasaje de la no sola utilización del instrumental lógico de los pensadores helenistas,
tarea comenzada por Clemente e Ireneo o por los mismos apologistas, sino de aceptar ciertas estructuras
ontológicas, y por ello antropológicas próprias del pensamiento indoeuropeo y helenista neoplatónico em
especial”. DUSSEL, 1974, p. 80.
48
“Orígenes formuló con suma claridad la incompatibilidad entre ciertas tesis ontológicas del paganismo y del
Cristianismo, como la doctrina del eterno retorno, la doctrina de la transmigración de las almas, la eternidad de
la matéria. Em todo esto ayudó al pensamiento cristiano a tomar consciência de sus proprias exigencias
metafísicas. Por otra parte, al menos en un momento de su vida, Orígenes propuso una visión del mundo, una
26
1.4.3 O monasticismo cristão consolidação da antropologia dualista
Na seqüência dos fatos históricos, o crescente moralismo e ascetismo do
segundo século e primeira metade do século terceiro, desembocam no surgimento
do movimento monástico cristão. Ainda no segundo século, um dos debates que
teve lugar na maioria das comunidades cristãs foi acerca do lugar do casamento na
vida cristã. Discorrendo sobre este assunto, Walker nos ajuda a entender a
importância que este tema assumiu naqueles dias:
Havia muito no Novo Testamento, para não mencionar o ânimo da época,
para sugerir, por um lado, que as relações sexuais no casamento eram uma
maneira segura para prender alguém ao mundo e seus valores, e, por outro
lado, que elas não tinham lugar na vida do novo reino. Paulo havia insistido
em que “aqueles que casarem terão preocupações mundanas”, e Jesus
havia sublinhado que “na ressurreição nem casam nem se dão em
casamento; são, porém, como os anjos do céu”. Dizeres como estes são
bastante responsáveis pela estima universal recebida pela virgindade ou
continência (novamente, enkrateia) no Cristianismo primitivo. Praticá-la era
tanto separar-se do mundo como viver a vida da era vindoura, e por volta do
terceiro século muitas (talvez a maioria) comunidades cristãs tinham, e
reverenciavam, seus virgens, homens e mulheres. Em alguns lugares, a
admiração pela vida de continência estava aliada com a condenação direta
do matrimônio. (...) Tal radicalismo inflexível, contudo, pareceu excessivo
para muitos fiéis, os quais, como o autor de I Timóteo, defenderam o
casamento. Como Clemente de Alexandria mais tarde, eles não viam
nenhuma inconsistência em afirmar que o matrimônio deveria ser
reverenciado e que a virgindade representava uma vocação autêntica (e
superior) para os cristãos.
49
É necessário lembrar que Clemente de Alexandria e outros seus
contemporâneos, defenderam que a vida celibatária era superior à condição
matrimonial
50
. Este verdadeiro culto à virgindade estava muito próximo dos ideais de
martírio da época como vemos expressos no pensamento de Tertuliano e Orígenes.
Assim, a virgindade assumiu uma importância extrema a partir do segundo
século. Como vimos no comentário de Walker, Paulo escrevendo aos Coríntios (I
síntesis metafísica y teológica, que suscito una reacción en muchos pensadores cristianos”. DUSSEL, 1974, p.
80.
49
WALKER, vol. 1, 2006, p. 140, 141.
50
Cf. WALKER, vol. 1, 2006, p. 142.
27
Coríntios 7:25-34) tratou do valor da virgindade. Seu argumento era simples,
aqueles que não se casavam poderiam se dedicar integralmente à obra do Senhor.
Também o livro de Atos fala das quatro filhas do diácono Felipe que permaneceram
virgens (Atos 21:9). Partindo de tais textos, muitos entenderam que “a adesão ao
Cristianismo parecia implicar aos olhos deles a virgindade. Pessoas casadas, que
não se separassem, podiam ser membros da Igreja apenas de forma imperfeita”.
51
Na literatura apócrifa da época, é comum encontrarmos uma condenação do
casamento como é o caso da obra Odes de Salomão onde o casamento é a erva
amarga do Paraíso. A mesma afirmação aparece no Evangelho dos Egípcios. No
Atos de João é aconselhado a separação dos cônjuges. Na literatura patrística O
Pastor de Hermas, o anjo aconselha a Hermas a que viva com a mulher como com
uma irmã. Somente a abstenção sexual possibilitava a adesão plena à vida cristã.
Aos casados era aconselhado viverem em castidade
52
. É fato, porém, que estes
posicionamentos extremos encontraram oposição em muitos escritores da época.
Clemente de Alexandria, embora exaltasse o valor do celibato, em seu Estrômatos,
apontou também para o valor do casamento. Àqueles que afirmavam que não se
casavam para imitarem Cristo, ele respondeu:
„Alguns dizem que o casamento é fornicação e foi comunicado pelo diabo, e
que eles imitam o Senhor, pois este não se casou. Ignoram a razão do fato.
Em primeiro lugar tinha ele esposa própria, a Igreja; depois não era homem
comum, que tivesse necessidade de uma auxiliar segundo a carne; não lhe
era necessário ter filhos (para continuar-lhe a obra), continuando a ser
eternamente e sendo o Filho único de Deus‟. A virgindade é santa, quando
busca sua fonte no amor de Deus. Deixa de ser boa, quando procede do
menosprezo ao casamento. O homem deve amar a esposa com um amor
de caridade e não pelo simples desejo. A vida sexual não implica nenhuma
impureza e Clemente condena o uso judeu das purificações após a união
sexual.
53
Podemos perceber pelo texto acima que a questão da virgindade e da
continência (encratismo) nunca encontrou unanimidade na história do pensamento
cristão.
51
DANIÉLOU, J. e MARROU, H. Nova História da Igreja: dos primórdios a São Gregório Magno. Petrópolis:
Vozes, 1966. p. 136.
52
Cf. DANIÉLOU e MARROU, 1966, p. 137.
53
DANIÉLOU e MARROU, 1966, p. 139.
28
Orígenes, influenciado pela busca platônica pela sabedoria, vivera uma vida
ascética, dedicada aos estudos e à contemplação. Este chegou mesmo a
emascular-se em função de uma interpretação literal de Mateus 19:12, embora, anos
depois, arrependido, viesse a condenar esta prática
54
. Assim como ele, muitos
entendiam que o corpo se opunha à vida espiritual, sendo necessário subjugá-lo e
até mesmo castigá-lo. Baseando-se nas palavras do apóstolo Paulo de que os que
não se casavam podiam servir melhor ao Senhor, e nas palavras de Jesus de que
no Reino dos céus os fiéis não se casam e nem se dão em casamento, o voto de
castidade era visto como sinal de consagração e antecipação dos valores do
Reino
55
.
Orígenes faz uma lista de razões em defesa do celibato. Assim descreve o
Pe. Geraldo Luiz Borges Hackmann:
(...) paternidade espiritual dos presbíteros para os cristãos; a disponibilidade
apostólica; um sacrifício como hóstia viva e santa oferecida a Deus na
própria carne; a virgindade é uma preparação para o estado paradisíaco do
corpo glorificado, que se deixa assumir totalmente pelo Espírito; as
impurezas das relações conjugais.
56
As primeiras legislações acerca do celibato são do início do século IV. Um
rápido resumo desses primeiros passos rumo à consolidação da exigência da vida
celibatária para os sacerdotes pode ser assim descrito: O concílio espanhol de
Elvira, ocorrido em cerca de 305 d.C., é o primeiro concílio da Igreja a estabelecer
regras disciplinares para o celibato. O cânon 33 diz o seguinte: “Bispos, presbíteros,
diáconos e outros com um posição no ministério devem se abster completamente de
relação sexual com suas esposas e da procriação de filhos. Se alguém
desobedecer, deverá ser removido do ofício clerical”. (tradução própria)
57
54
Cf. MORESCHINI e NORELLI, 1996, p. 366.
55
Cf. GONZÁLEZ, 1980, p. 59.
56
HACKMANN, Geraldo Luiz Borges. O Celibato Sacerdotal: História. In: Teocomunicação A Política no Brasil,
v. 21, n. 94. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1991. p. 546. Neste mesmo texto, o autor segue afirmando: “O século III
apresenta uma mudança na prática em relação aos ministros. As Igrejas do Egito, África e Síria introduzem o
costume de preferir ordenar os celibatários. Tertuliano e Orígenes são defensores desse costume, por verem
maior perfeição no celibato, além de aconselhar os presbíteros casados a viverem como irmãos com sua
esposa. Os motivos elencados são os seguintes: com a continência, o presbítero restabelece a carne em sua
dignidade originária; a continência permite pertencer ao Senhor sem divisão e torna o presbítero mais
disponível para sua tarefa pastoral. Assim, começa a surgir a idéia de uma certa incompatibilidade entre
sacerdócio e matrimônio”. HACKMANN, 1991, p. 547.
57
<http://faculty.cua.edu/pennington/Canon%20Law/ElviraCanons.htm> acessado em 29 de janeiro de 2009.
Bishops, presbyters, deacons, and others with a position in the ministry are to abstain completely from sexual
29
Em 314 d.C., o primeiro concílio de Arles adota posição parecida em seu
cânon 29, proibindo as relações sexuais por causa do serviço do ministério
sacerdotal. “A não observância implica a perda da „honra de clérigo‟”.
58
No mesmo
ano, o concílio de Ancira, propôs uma lei de celibato sacerdotal. Em seu cânon 10
ele prescreve a proibição do casamento para o diácono solteiro
59
. “O concílio de
Neo-Cesaréia (entre 314-325), estabelece a mesma proibição para o presbítero. O
cânon 1 prescreve a exclusão da ordem clerical para um presbítero que se casa”.
60
Outro assunto que assumiu dimensões exageradas foi a questão do martírio.
Afirmamos anteriormente que, desde Inácio de Antioquia, em princípios do segundo
século, os mártires eram vistos como o modelo de vida cristã haviam lutado contra
os poderes deste mundo, rejeitando seus valores, entregando suas vidas por amor a
Cristo. A mentalidade que reinava na época pode ser assim descrita:
Desde o início, portanto, as igrejas tinham conhecido seus ascetas, os
quais, se individualmente ou em grupos domésticos, buscavam, na imitação
de Cristo e seus mártires, viver a vida cristã em sua plenitude através da
sistemática renúncia a todas as conexões com o mundo. Abandonando a
busca e posse de riquezas, comprometidos com a continência sexual e
dedicados à oração, ao jejum e ao estudo das Escrituras, tais pessoas
buscavam viver na presente era como cidadãos da era vindoura.
61
Para Clemente, o martírio é a coroa da vida cristã. Jean Daniélou e Henri
Marrou citam trechos do Estrômatos nos quais o teólogo de Alexandria expõe seu
pensamento a este respeito:
„Os apóstolos, imitando o Senhor como verdadeiros gnósticos e homens
perfeitos, deram a vida pelas igrejas que haviam fundado. Assim, os
gnósticos que andam nas pegadas dos apóstolos devem estar sem pecado
e, pelo amor que consagram ao Senhor, amar igualmente ao próximo a fim
de na hora da crise enfrentarem as provações sem fraqueza e beberem o
cálice da Igreja‟. Ora, aí está a plenitude da caridade, que é a mesma
perfeição: Chamamos o martírio de perfeição (teleiotés), não por ser o final
(telos) da vida do homem, mas porque manifesta a perfeição da caridade‟.
62
intercourse with their wives and from the procreation of children. If anyone disobeys, he shall be removed
from the clerical office.
58
HACKMANN, 1991, p. 547.
59
Cf. HACKMANN, 1991, p. 547.
60
HACKMANN, 1991, p. 548.
61
WALKER, vol. 1, 2006, p. 181.
62
DANIÉLOU e MARROU, 1966, p. 141.
30
O movimento monástico cristão serviu como o útero no interior do qual foi
gestado o ideal celibatário que acabou por se transferir para a hierarquia
eclesiástica. Surgido em fins do terceiro século na região do vale do Nilo o
monasticismo cristão, do grego monachos (solitário), constituiu-se numa continuação
natural das tendências que tomavam conta das diversas comunidades cristãs do
segundo e terceiro séculos.
Um dos primeiros anacoretas (fugitivo, retirado) cristãos de que se tem
notícia foi Antão. Em fins do terceiro século Antão, vivendo em um vilarejo às
margens do rio Nilo no Egito, retirou-se para o deserto. Em sua biografia Vida de
Antão escrita por Atanásio, descobrimos um eremita vivendo mais de vinte anos na
solidão do deserto. Ali, lutava contra os demônios, habitantes daquelas terras. Estes
eram derrotados através de constantes orações, jejuns, vigílias e leituras das
Escrituras. A fama de Antão se espalhou e ele chegou a treinar uma comunidade de
eremitas. Na época de sua morte, é possível que houvesse milhares de eremitas
vivendo nos desertos do Egito e da Síria
63
.
No período do Imperador Constantino, com o fim das perseguições marcado
pela assinatura do Edito de Milão em 313 d.C., cessou a era dos mártires. Não
havendo mais a possibilidade de coroar o testemunho cristão com a glória e o
sangue do martírio, o ideal monástico passou a atrair a atenção daqueles que
entendiam a vida cristã como esforço e sacrifício. Num certo sentido, o retiro para o
deserto era uma espécie de morte: morriam para esta vida e para este mundo para
se dedicarem às coisas espirituais.
Logo no início, os monges foram motivo de preocupação para os bispos
receosos de que eles dessem início a um movimento independente da hierarquia da
igreja que nesses dias estava bem avançada. Verdade é que a opção pela vida
monástica gerou um tipo de orgulho uma vez que, muitos monges, por se acharem
mais espirituais em função de sua opção de vida, achavam que deveriam ter a
primazia na hora de decidir acerca dos dogmas e da vida da igreja
64
.
O monasticismo passou por um aperfeiçoamento na primeira metade do
século IV com o surgimento do tipo cenobita (vida comum) ou comunal. Pacômio,
também nascido no sul do Egito em fins do terceiro século, após um período de vida
63
Cf. WALKER, vol. 1, 2006, p. 182.
64
Cf. GONZÁLEZ, 1980, p. 67-68.
31
solitária, por volta do ano 320 d.C. construiu um espaço para que aqueles que
quisessem compartilhar dos ideais monásticos pudessem viver em comunidade.
González nos informa o seguinte:
Desde o princípio, quem quisesse se juntar à sua comunidade teria de
renunciar a todos os seus bens, e prometer obediência absoluta a seus
superiores. Além disso, todos tinham de participar do trabalho manual, e
ninguém poderia se considerar bom demais para qualquer tipo de trabalho.
A norma fundamental passou a ser o serviço mútuo, de modo que mesmo
os superiores, apesar da obediência que lhes cabia, eram obrigados a servir
aos demais.
O mosteiro fundado sobre estas bases cresceu rapidamente, e Pacômio
chegou a estabelecer nove mosteiros durante sua vida, cada um deles com
centenas de monges. Além disso, a irmã de Pacômio, Maria, fundou várias
comunidades de monjas.
65
Desde o início a opção pela pobreza, a castidade e a obediência eram
regras que deveriam ser observadas por todo aquele que quisesse seguir a vida
monástica. Ainda no quarto século, Eusébio, bispo de Vercelli, organizou os bispos
sob sua jurisdição segundo os padrões do monasticismo
66
. O que chama a atenção
neste caso é que, com muito pouco tempo de existência, o monaquismo,
inicialmente visto com desconfiança pela hierarquia da Igreja, agora começa a
influenciar esta mesma hierarquia com sua proposta de vida cristã.
Não faltaram no movimento monástico casos de atitudes extremas de
autonegação e excentricidade. Por exemplo, “Simeão o Ancião (Ca. 390-459), o
mais famoso exemplo de tal excentricidade, foi chamado “Estilita” por que passou
trinta anos de sua vida vivendo no topo de uma coluna, onde orava e pregava aos
peregrinos que vinham visitá-lo”.
67
Na Idade Média, os monges se tornaram os grandes defensores do celibato
como regra geral para todos os sacerdotes. Um dos movimentos mais importantes
da época foi aquele desencadeado pelo mosteiro de Cluny. Fundado na França em
910 pelo Duque Guilherme de Aquitânia, seu ideal era que esta nova casa
monástica se tornasse um centro de piedade e observância da Regra beneditina.
O que Cluny defendia era a restauração dos ideais de celibato e
propriedade comunitária, a abolição do controle laico sobre o ofício do
65
GONZÁLEZ, 1980, p. 69-70.
66
Cf. WALKER, vol. 1, 2006, p. 185.
67
WALKER, vol. 1, 2006, p. 183.
32
abade, e a dedicação mais completa do tempo dos monges à tarefa de
oração e adoração em favor do mundo.
68
Tudo o que foi exposto até aqui nos autoriza a afirmar que a infiltração do
dualismo antropológico nas esferas teológicas cristãs gerou um ambiente de
desconfiança para com a sexualidade, os instintos, o corpo e o prazer. Alfonso
García Rubio nos lembra que:
A infiltração dualista no Cristianismo fez com que a balança entre rigorismo
e hedonismo se inclinasse em favor do primeiro. As conseqüências eram
previsíveis: em relação ao sexo predominou durante muitos séculos uma
atitude de medo, desconfiança e suspeita. Os conhecimentos deficientes
tanto na área biológica quanto na psicológica contribuíram também para a
permanência destas atitudes. De fato, o sexo tem sido tradicionalmente
colocado num contexto pouco esclarecido, ambíguo e penetrado de malícia.
Criou-se em torno dele um ambiente pouco sadio, de clandestinidade,
reticências, angústia e sentimentos de culpa.
69
1.4.4 Agostinho de Hipona intérprete e sistematizador
Sem sombra de dúvidas Agostinho de Hipona (354-430) foi o mais
importante dos teólogos latinos. Do período patrístico é o autor mais prolífico e de
quem se tem o maior número de obras preservadas. Sua influência teológica se faz
sentir até os nossos dias em praticamente todos os ramos do Cristianismo.
Semelhantemente aos pensadores do segundo e terceiro séculos, Agostinho
também intentou lutar contra as heresias de seu tempo, mas, sem que ele notasse,
sua teologia foi profundamente influenciada pelo neoplatonismo. Nosso teólogo
africano pode ser considerado como o grande intérprete da teologia que até ali havia
sido elaborada, transmitindo-a a Idade Média e desta aos nossos dias. A partir dele,
temos definitivamente a construção sistemática de uma teologia platonizada
70
.
Nossa pesquisa manterá o foco em sua antropologia dualística. Dussel explica
assim sua posição:
68
WALKER, vol. 1, 2006, p. 296.
69
RUBIO, 2006, p. 462.
70
A este respeito, Enrique Dussel afirma o seguinte: “(...) Estes poucos textos nos permitem afirmar que em
Agostinho temos as bases, firmes bases, de todo o dualismo ocidental posterior, que, sem dúvida, era muito
mais antigo que Agostinho no próprio pensamento cristão latino”. DUSSEL, 1974, p. 180-181.
33
Uma dupla questão impulsionava Agostinho a aceitar sem reservas o
dualismo: sua doutrina do pecado original e a demonstração da
imortalidade. Ambas as teses, tal como as explicou Santo Agostinho
significam certa deformação da doutrina original do judeo-Cristianismo.
Tratar-secomo sempre de um dualismo mitigado por uma consideração
do homem como uma pessoa. (tradução própria)
71
Agostinho, assim como Tertuliano e Ambrósio, define alma como substância,
com clara influência neoplatônica: “(...) E se quer uma definição da alma, e saber o
que ela é, respondo facilmente: É substância dotada de razão, apta a reger um
corpo”.
72
Assim como no pensamento grego, Agostinho identifica a alma (substância)
com o ser humano. O corpo resume-se a um instrumento para realizar tarefas
materiais de maneira passiva. Em função disto, Agostinho afirma que o corpo é
regido por outra substância, a alma
73
. Esta, para nosso teólogo de Hipona, é
imortal
74
.
Agostinho flerta perigosamente com o gnosticismo ao tratar do tema da
imortalidade da alma. Para ele é essencial provar sua espiritualidade. Faz isso mais
pela intuição, do que pela razão. Sobre isto, Battista Mondin nos a seguinte
explicação:
A sua argumentação para provar a espiritualidade da alma é a seguinte: ou
a alma pode exercer sua atividade (querer, pensar, duvidar, etc) sem o
corpo, e então é espiritual, ou é incapaz de exercer sua atividade sem o
corpo, e então é material.
Ora, pelo menos em um caso a alma pode desenvolver sua atividade sem o
corpo: quando conhece a si mesma. Logo, a alma é espiritual.
A espiritualidade da alma é, pois, confirmada pelo que ela conhece de si
mesma. Quando a alma conhece a si mesma, descobre que é uma
substância que vive, que recorda, que quer, etc, e isto não tem nada que
ver com o que é corpóreo.
Provada a espiritualidade, Agostinho passa a provar a imortalidade,
retomando o argumento platônico da relação da alma com as Idéias.
75
71
“Una doble cuestión impulsaba a Agustín a aceptar sin reservas el dualismo: su doctrina del pecado original y
la demostración de la inmortalidad. Ambas tesis, tal como las expli san Agustín significan ya una cierta
deformación da la doctrina originaria del judeo-Cristianismo. Se tratará, como siempre, de un dualismo
mitigado por una consideración del hombre como una persona”. DUSSEL, 1974, p. 179.
72
AGOSTINHO. Sobre a Potencialidade da Alma. Petrópolis: Vozes, 1997. p. 66.
73
Cf. DUSSEL, 1974, p. 180.
74
Cf. DUSELL, 1974, p. 180.
75
MONDIN, Battista. Curso de Filosofia: os filósofos do ocidente. Vol. 1. São Paulo: Paulinas, 1982. p. 146-147.
34
Conclui-se daí que para Agostinho o ser humano não é uma unidade. Em
sua síntese da fé cristã com o arcabouço filosófico neoplatônico, o dualismo matéria-
espírito instalou-se definitivamente no pensamento teológico cristão. O corpo ficou
relegado a mero instrumento passivo da alma. Uma Teologia do Corpo gnóstica e
dualística foi seu legado negativo para as gerações futuras.
1.5 Antropologia Dualista na Idade Média
1.5.1 São Boaventura dualismo psicofísico
São Boaventura de Bagnoregio (1221-1274) foi ministro geral da ordem
franciscana. Como tal, embora afirmasse que alma e corpo formam uma pessoa,
suas reflexões no âmbito da psicologia levam-nos à conclusão de que Boaventura
foi um expoente do dualismo alma-corpo. Sua principal fonte de conhecimento foi
um agostinianismo mesclado de aristotelismo
76
. Ao tratar da criação do corpo em
seu Brevilóquio, Boaventura afirma:
Quanto ao corpo humano, no estado em que foi inicialmente criado, deve-se
admitir o seguinte, conforme a ortodoxa: o corpo do primeiro homem foi
tirado do lodo da terra de tal forma que ficou sujeito à alma, sendo-lhe
proporcional a seu modo.
77
Tanto a alma quanto o corpo são seres completos. Cada qual com sua forma
e matéria. Entretanto, sendo a alma espiritual, ela é também imortal e, portanto, não
morre com o corpo. A alma é criada diretamente por Deus, enquanto o corpo se
desenvolve a partir de atividades seminais.
78
A união entre ambas é algo acidental
uma vez que cada uma dessas substâncias tem estruturação própria e autônoma,
são heterogêneas e, portanto, imunes a uma união substancial profunda e
permanente. Nada de relação simbiótica, nada de interdependência. O corpo
76
Cf. MONDIN, 1982, p. 187.
77
BOAVENTURA. Obras Escolhidas. Porto Alegre: EST/Sulina; Caxias do Sul: UCS, 1983. p. 45.
78
Cf. MONDIN, 1982, p. 191.
35
constitui-se mero instrumento para a alma imortal
79
. Este contemporâneo de Aquino
ajudou a construir esta tradição filosófica que nos levará até o dualismo cartesiano.
1.5.2 Tomás de Aquino tentativa de superação do dualismo
A neo-escolástica esboçou algumas tentativas de superação do dualismo
neoplatônico-agostiniano
80
. Contudo, somente com Tomás de Aquino (1225-1274)
temos a primeira elaboração consistente visando à superação do dualismo espírito-
matéria. Para ele o corpo é a síntese (sínolo) de alma e corpo. Não são, portanto,
substâncias distintas e conflitantes. Ao contrário, alma e corpo constituem um todo
único.
Ora, ainda que a alma tenha alguma operação própria da qual o corpo não
participa, como a intelecção, há, não obstante, algumas operações comuns
a ela e ao corpo, como temer, irar-se, sentir, etc. Ora, essas operações
realizam-se segundo alguma mudança de determinada parte do corpo,
donde se depreende que as operações da alma e do corpo são conjuntas.
Logo, é necessário que da alma e do corpo se faça um todo uno, e que não
sejam diversos quanto ao ser.
81
Para São Tomás de Aquino a separação entre alma e corpo é uma
impossibilidade filosófica e prática. Ele coloca-se claramente contrário à posição de
Platão.
(...) se o homem, segundo a sentença de Platão, não é uma coisa composta
de alma e corpo, mas a alma usando o corpo, ou isto entende-se só
referente à alma intelectiva, ou às três almas, se são três, ou a duas delas.
Ora se às três ou às duas, resulta que o homem não é uma realidade,
mas duas ou três, pois três ou pelo menos duas almas. (...) Ora, como
há disconveniências entre essas três coisas, é impossível haver em nós três
almas substancialmente diferentes, a intelectiva, a sensitiva e a nutritiva.
82
79
Cf. MONDIN, Battista. O Homem, quem é ele? Elementos de antropologia filosófica. São Paulo: Paulinas,
1980. p. 280.
80
Cf. FIORENZA e METZ, 1972, p. 49ss.
81
AQUINO, Tomás de. Suma contra os gentios. Vol. 1. Porto Alegre: EST/Sulina; Caxias do Sul: UCS, 1990. p.
264.
82
AQUINO, 1990, p. 267-268.
36
Antes de Aquino, a Escola Franciscana havia afirmado a unidade do ser
humano. Contudo, esta unidade era questionável, uma vez que, os franciscanos
defendiam a idéia da existência de várias almas com funções distintas no ser
humano. Como vimos na citação acima, ele se posiciona contra esta idéia e continua
dizendo:
Se admitirmos que a alma está unida ao corpo, como forma, é
absolutamente impossível existirem, no mesmo corpo, várias almas
essencialmente diferentes (...). De fato, o animal (o homem) com três almas
não seria absolutamente uno. Portanto, nenhum ser é pura e simplesmente
uno, senão pela forma una, pela qual as coisas existem; porque é em
virtude do mesmo princípio que uma coisa existe e é una. Por isso seres
denominados por formas diversas não têm a unidade absoluta como, por
exemplo, homem branco. Se, portanto, o homem fosse vivo por uma forma,
a alma vegetativa; animal por outra, a sensitiva; homem por outra, a
racional, disso resultaria que não seria homem absolutamente.
83
É na construção de uma nova teoria filosófica, distinta de Platão (e também
de Aristóteles, embora fundamentalmente ligado a este) que São Tomás de Aquino
pretende a superação radical do dualismo antropológico. Para ele corpo e alma são
duas partes do ser humano que se unem numa composição acidental. Antes ele fala
em dois princípios metafísicos que operam numa unidade primordial do ser humano.
Para o teólogo e filósofo de Aquino o corpo é condição para a existência da alma.
Sua conclusão é que o corpo não é uma prisão (como queria Platão) ou simples
instrumento da alma (como queria Agostinho), mas, “a união de corpo e alma é,
antes, a salvação da alma”. O corpo não é um castigo ou conseqüência da queda,
mas fonte de bem
84
. Ato contínuo, é no corpo que se concretiza a dimensão histórica
e social do ser humano. Em seu corpo ele tanto experimenta sua subjetivação
quanto sua relação com o próximo. “(...) o corpo é simultaneamente o local da
comunidade e da abertura para o encontro”.
85
Tomás de Aquino representou este esforço em corrigir e superar o dualismo
agostiniano quando este defende que a união entre corpo e alma é uma união
profunda, substancial e duradoura. Somente a partir desta união substancial
podemos falar em um ser humano homem/mulher. Nem o corpo nem a alma
possuem subsistência autônoma, nenhum dos dois possui autonomia de
83
MONDIN, 1982, p. 178.
84
Cf. FIORENZA e METZ, 1972, p. 51.
85
FIORENZA e METZ, 1972, p. 52.
37
existência
86
. Em que pese este enorme esforço em superar o dualismo corpo-alma,
Aquino pende em momentos para certa espiritualização uma vez que ele utiliza o
termo anima, onde a Bíblia utilizaria basar ou sôma e “compreende a corporeidade
humana a partir da anima”.
87
1.6 Conclusão
O que vínhamos dizendo até aqui acerca da infiltração do dualismo platônico
e neoplatônico na teologia cristã objetiva identificar as graves conseqüências
práticas desta teologia híbrida sobre a vida de centenas de milhares de cristãos ao
longo dos séculos. Estas conseqüências podem ser percebidas tanto no
Cristianismo católico romano quanto no protestantismo, para ficarmos nas duas
grandes correntes cristãs ocidentais. Assim, poderíamos perguntar em que medida
esta teologia platonizada sustentou o genocídio dos povos indígenas e a escravidão
dos negros africanos na colonização ibérica da América Latina. Ou ainda,
poderíamos perguntar pelas influências da antropologia dualística neoplatônica
sobre a formação do pensamento teológico cristão e sua relação com a tensa
convivência da igreja evangélica brasileira com as manifestações populares da
cultura brasileira.
Ao tomar como referencial teórico o dualismo neoplatônico, o Cristianismo
deu origem a uma religiosidade de um lado violenta, discriminatória, sectária e
preconceituosa, e de outro uma religiosidade cheia de culpa, inimiga do prazer,
neurotizante, mal resolvida com a sexualidade humana. Ora, como assinala Rubem
Alves “somos o nosso desejo”.
88
Uma das grandes contribuições de Sigmund Freud
foi apontar a importância da pulsão sexual na estruturação mesma da
personalidade. A religião de modo geral, e o Cristianismo em particular nunca lidou
bem com a natureza humana e suas pulsões.
86
Cf. MONDIN, 1980, p. 280-281.
87
FIORENZA e METZ, 1972, p . 53.
88
ALVES, Rubem. O que é religião. São Paulo: Brasiliense, 1981. p. 91.
38
A Igreja teve grande papel na construção do mundo ocidental. Os
fundamentos das nações européias foram construídos ao longo da Idade Média sob
a liderança da Igreja. Estes fundamentos referem-se à estruturação política, social,
econômica, religiosa, cultural e, também, psicológica.
A Modernidade foi um grande esforço, que tomou impulso a partir da
Renascença italiana, com o intuito de desconstruir estes fundamentos, libertar o
mundo ocidental do jugo religioso, e construir novos fundamentos baseados na
razão humana. Ora, isto significou um empenho no sentido de repensar toda esta
base em sua dimensão política, social, econômica, religiosa, cultural e, também,
psicológica. Ou seja, era necessário se repensar toda a estrutura do edifício
medieval. Vale destacar que a Reforma Protestante foi uma força secularizante
neste processo. Com sua proposta de livre exame das Escrituras, o que implicava
liberdade de consciência, Martim Lutero ajudou na formulação deste novo mundo
(nova era), a Modernidade.
Foquemos na questão psicológica. Ao optar pelo ferramental dualista como
chave hermenêutica para sua antropologia, a teologia cristã construiu um mundo no
qual sexo era sinônimo de pecado. O corpo juntamente com seus desejos, deveria
ser constantemente reprimido. Ora, é pelo corpo que o ser humano se comunica
com o mundo à sua volta. É através da ação corporal, fala, escuta, gestos,
movimento etc, que o ser humano constrói a cultura ao seu redor. Assim, ao rejeitar
o corpo, a teologia cristã tendeu a rejeitar também a cultura que daí nasce.
(...) é pelo corpo que a pessoa humana se expressa, se faz presente e se
comunica aos outros seres humanos; é pelo corpo igualmente que a pessoa
humana intervém no mundo das coisas transformando-o e criando cultura.
89
A única cultura que a Igreja poderia suportar era uma cultura construída por
ela mesma na qual não haveria espaço para o corpo e suas pulsões. Uma cultura
celibatária por excelência. Como vimos, coube a São Tomás de Aquino, num
período pré-moderno, as primeiras formulações filosóficas que buscavam recuperar
a unidade fundamental do ser humano.
89
RUBIO, 1989, p. 281.
39
Precisamente o que santo Tomás mostrará é que uma substância completa
não pode ser forma [hilemorfismo]. No homem não existem duas formas,
antes a alma é a „única forma do corpo‟, de tal maneira que a realidade do
homem está composta de alma (como forma) e de matéria-prima. Não
existe, pois, uma união acidental entre alma e corpo, tal como aparece em
todas as correntes dualistas. Propriamente falando, não existem duas
partes no homem, pois alma e corpo não podem ser consideradas duas
substâncias completas (neste caso evidentemente a união poderia ser
acidental). „Corpo e alma são, antes, dois princípios metafísicos dentro de
uma unidade primordial do homem, de maneira que toda a atividade do
homem é uma „operatio totius hominis‟.
90
Dussel também citado por Rubio completa este pensamento afirmando
que “o corpo, em sentido estrito e vulgar, é a totalidade da substância humana
enquanto extensa, sensivelmente percebida, o qual inclui a alma como a sua
estrutura constitutiva”. (tradução própria)
91
E conclui Alfonso Garcia Rubio:
Não existe oposição-exclusão entre alma e corpo, conforme ensinaram
todos os dualismos. A alma sem o corpo não se encontra em estado de
perfeição maior do que quando unida ao corpo. Pelo contrário, existe
sempre uma tendência para a complementação: depois da morte a alma
continua tendendo para sua complementação com o corpo, na expectativa
da união final com ele na ressurreição.
92
Não obstante a Modernidade desatar uma campanha de reformulação do
mundo contrária à visão medieval, esta não foi suficientemente profunda para
superar o dualismo antropológico. Não, de fato, não. O dualismo agostiniano
continuará dando as cartas tanto nos currais católicos, quanto nos protestantes.
Neste último caso, devido à reação ascética desencadeada pelo anabatismo,
Pietismo e puritanismo. E, a partir destes movimentos, pela versão evangélica do
protestantismo nascida na Inglaterra do século XVIII, marcada pelo avivamento
wesleyano e, no caso dos EUA, pelos avivamentos norte-americanos, culminando,
de um lado, na ortodoxia protestante da segunda metade do século XIX, e de outro,
no movimento pentecostal do início do século XX. Os filósofos modernos
sustentarão uma antropologia psicofísica desde René Descartes, passando por Kant
e mesmo pelo idealismo alemão
93
.
90
RUBIO, 1989, p. 272-273.
91
“El cuerpo, en sentido estricto y vulgar, es la totalidad de la substancia humana en cuanto extensa,
sensiblemente percibida, lo que incluye al alma como su estrutcura constitutiva”. DUSSEL, 1974, p. 257.
92
RUBIO, 1989, p. 273.
93
Cf. DUSSEL, 1974, p. 230.
40
Então, começando com Tertuliano, passando por Agostinho, pelos
franciscanos em sua leitura do dualismo agostiniano modificada pela influência
aristotélica
94
, especialmente Guilherme de Ockham e daí, invadindo a Idade
Moderna através dos escritos de Descartes, o dualismo antropológico helênico
chegou até os nossos dias
95
. Obviamente, não se trata de um único tipo de
dualismo. Essas visões dualistas variaram de autor para autor e de época para
época.
Nos tempos modernos, vale destacar o dualismo psicofísico defendido por
Descartes. Para ele o corpo é simplesmente matéria, a substância extensa (res
extensa), enquanto que a alma (consciência) é substância pensante (res cogitans).
Estas são substâncias radicalmente separadas que subsistem uma sem a outra. As
conseqüências práticas desta formulação filosófica são funestas para o mundo
moderno como nos lembra Alfonso García Rubio.
As conseqüências desta antropologia são bem conhecidas: o sujeito (a
consciência humana) está cortado da própria corporeidade e vice-versa. (...)
A realidade ficará destarte perigosamente cindida em pura subjetividade e
pura objetividade. Divórcio nefasto que ainda hoje perturba seriamente o
diálogo entre ciências da natureza e ciências do espírito; entre razão e e
assim por diante. Divórcio funesto que conduzirá à instrumentalização e
manipulação destruidora do mundo da natureza (crise ecológica). Divisão
dicotômica da realidade mais radical ainda que o dualismo platônico e
neoplatônico, e que reforçará a penetração deste na vida e na reflexão
teológica eclesiais.
96
Somente no século XIX, com a formulação da psicologia moderna e com o
surgimento da psicanálise, em fins deste mesmo século, dá-se início ao resgate do
corpo e seu lugar na construção da cultura. Se Karl Marx intentou compreender as
relações humanas a partir da estruturação econômica da sociedade, Sigmund Freud
lança um olhar sobre a sociedade européia da era vitoriana e busca interpretá-la do
ponto de vista da psicologia moderna. Mais precisamente de sua metapsicologia, a
psicanálise.
Para Freud, a essência da sociedade é a repressão do indivíduo. Este, por
sua vez, é levado a reprimir a si mesmo. Desejos reprimidos, não permanecem
94
É bom lembrar que esta influência aristotélica se deu via os comentários de Avicena e de Averróis. Além
disso, entre os franciscanos, Duns Scotus representa uma tentativa frágil de superação do dualismo.
95
Cf. DUSSEL, 1974, p. 230.
96
RUBIO, 1989, p. 80.
41
reprimidos. Seu retorno se de maneira codificada. Sua linguagem por excelência
são os sonhos. Sua manifestação prática são as neuroses. Estas podem ser
interpretadas no ato analítico preferencialmente de duas formas: pela análise do
discurso e pela interpretação dos sonhos
97
.
Não à toa, Freud discorreu longamente sobre o que ele considerava os
danos causados pelo Cristianismo na formação do mundo ocidental em suas obras
Totem e Tabu, Moisés e o Monoteísmo, O Futuro de uma Ilusão e O Mal-Estar da
Civilização. Além disso, Freud inaugurou seu consultório para a prática do que se
tornaria a psicanálise no domingo de Páscoa de 1886. Ana-María Rizzuto afirma que
“a escolha da data não foi um acidente; expressava o gosto de Freud pela
provocação, que tinha como alvo os mortais vienenses e seu Deus imortal”.
98
Desde
o início a questão religiosa, mormente, a religiosidade cristã, esteve na base das
reflexões de Freud acerca do problema do sofrimento humano. Para ele, o
Cristianismo europeu tinha grande responsabilidade na construção de uma
sociedade cheia de culpa, desconfortável com o corpo e os desejos, a partir de suas
crenças fundamentais num Deus onipresente, rigoroso, moralista, um Deus um tanto
gnóstico, docético, para quem todos teríamos de prestar contas um dia.
Se concordarmos com Freud em sua interpretação, concluiremos que o
dualismo neoplatônico-agostiniano teve conseqüências práticas devastadoras e
profundas para o mundo ocidental em geral e, em particular, para os cristãos
praticantes. A contribuição freudiana, neste caso, encontra-se em sua proposta na
busca pelo ser humano concreto. O que se quer é a verdade. E, “a verdade vos
libertará”. Uma vez assumida esta verdade, o homem (e a mulher) pode reassumir o
controle de seu corpo (ainda que nunca de forma perfeita) e, assim, pode relacionar-
se com a cultura ao seu redor sem culpa, manifestar seu prazer sem medo,
experimentar o mundo de forma celebrativa.
Concluímos, então, que este tipo de teologia dicotômica serviu de base para
a colonização ibérico-católica da América Latina e que, de outro lado, a
compreensão do ser humano subjacente à mentalidade evangélica brasileira,
semeada pelo tipo de protestantismo-evangélico trazido pelos missionários no
97
Cf. ALVES, 1981, p. 88-92.
98
RIZZUTO, Ana-María. Por que Freud Rejeitou Deus? Uma interpretação psicodinâmica. São Paulo: Loyola,
2001. p. 257.
42
século XIX e início do século XX, é fortemente dualística do tipo agostiniano, o que
gera uma rejeição natural às manifestações culturais tipicamente tropicais. Como
vimos, esta é uma visão que vem de um passado muito distante. Esta visão
dicotômica do ser humano produz, como conseqüência, profunda divisão entre “fé e
vida cotidiana, entre e política, entre o divino e o humano, entre teoria e práxis”.
99
Ou seja, suas conseqüências são radicalmente danosas para a prática pastoral
brasileira e para a vivência da na vida das comunidades. Não poderá haver a
prática de uma missão que vise à libertação integral do ser humano, enquanto este
ser for visto de forma dicotômica. Em decorrência disso, podemos afirmar
sinteticamente que o evangélico brasileiro tende a valorizar mais a alma do que o
corpo, mais a oração do que a ação, mais a igreja do que o mundo, mais a vida no
céu, do que a vida na terra, mais o Jesus divino do que o Jesus humano, e assim
por diante
100
. Assumirmos esta tese nos dará a possibilidade de elaboração de uma
nova Teologia do Corpo que afete positivamente a missão integral da Igreja e sua
inserção crítica na cultura brasileira.
Pretendemos mostrar no quarto capítulo a fundamentação bíblica para uma
visão de ser humano que afirma sua unidade básica, sem desconsiderar suas várias
dimensões.
99
RUBIO, 1989, p. 76.
100
Cf. RUBIO, 1989, p. 81.
43
2. ANTROPOLOGIA DUALISTA COMO FUNDAMENTO PARA UMA TEOLOGIA
DE DOMINAÇÃO DO OUTRO NA COLONIZAÇÃO CATÓLICA DA AMÉRICA
2.1 Introdução
Uma Teologia desenvolvida a partir da antropologia dualística platônica foi
essencial para a justificativa teórica da dominação e genocídio dos povos
ameríndios e afros no processo de colonização da América Latina. Assim se
expressa o teólogo belga católico, radicado no Brasil, José Comblin:
(...) foi o dualismo da teologia que permitiu que os teólogos pudessem com
tanta facilidade justificar a tortura praticada pela Inquisição, ou a
escravatura praticada universalmente, ou a redução dos índios a uma
condição de servos como fizeram ainda no século XVI tantos teólogos.
Somente foi possível porque para eles, o corpo não era realmente o
homem. Torturar o corpo, tirar a liberdade do corpo podia justificar-se
porque o corpo ficava de certo modo exterior à pessoa humana, como seu
instrumento.
101
A expansão geográfica e colonial européia que assistimos a partir de fins do
século XV se caracteriza pelo forte apelo mercantil, mas pode também ser descrita
como um projeto de dominação cultural e espiritual. Do choque da cultura européia
com as culturas ameríndias surge um labor teológico com vistas à legitimação dessa
dominação.
2.2 Faces da legitimação teológica da dominação
101
COMBLIN, 1985, p. 82.
44
A legitimação teológica que justificativa toda sorte de atrocidades contra os
povos não-cristãos conquistados por reinos cristãos já estava abalizada bem antes
do período dos “descobrimentos” pela Bula Romanus Pontifex promulgada pelo
Papa Nicolau V em 8 de janeiro de 1454.
Não sem grande alegria chegou ao nosso conhecimento que nosso dileto
filho infante d. Henrique, incendido no ardor da e zelo da salvação das
almas, se esforça por fazer conhecer e venerar em todo o orbe
gloriosíssimo de Deus, reduzir à sua não os sarracenos, inimigos
dela, como também quaisquer outros infiéis. Guinéus e negros tomados
pela força, outros legitimamente adquiridos foram trazidos ao reino, o
que esperamos progrida até a conversão do povo ou ao menos de
muitos mais. Por isso nós, tudo pensando com a devida ponderação,
concedemos ao dito rei Afonso a plena e livre faculdade, entre outras,
de invadir, conquistar, subjugar a quaisquer sarracenos e pagãos,
inimigos de Cristo, sua terra e bens, a todos reduzir a servidão e tudo
praticar em utilidade própria e dos seus descendentes. Tudo
declaramos pertencer de direito in perpetum aos mesmos d.Afonso e seus
sucessores, e ao Infante. Se alguém, indivíduo ou coletividade, infringir
essas determinações, seja excomungado [...].(grifo nosso)
102
Também a Bula Inter Coetera de 4 de maio de 1493 do Papa Alexandre VI,
emitida meio ano após a chegada de Colombo na América Central, fundamentava a
invasão e conquista:
[...] por nossa mera liberalidade, e de ciência certa, e em razão da plenitude
do poder Apostólico, todas ilhas e terras firmes achadas e por achar,
descobertas ou por descobrir, para o Ocidente e o Meio-Dia, fazendo e
construindo uma linha desde o pólo Ártico [...] quer sejam terras firmes e
ilhas encontradas e por encontrar em direção à Índia, ou em direção a
qualquer outra parte, a qual linha diste de qualquer das ilhas que
vulgarmente o chamadas dos Açores e Cabo Verde cem léguas para o
Ocidente e o Meio-Dia [...] A Vós e a vossos herdeiros e sucessores (reis de
Castela e Leão) pela autoridade do Deus onipotente a nós concedida em S.
Pedro, assim como do vicariado de Jesus Cristo, a qual exercemos na terra,
para sempre, no teor das presentes, vô-las doamos, concedemos e
entregamos com todos os seus domínios, cidades, fortalezas, lugares, vilas,
direitos, jurisdições e todas as pertenças. E a vós e aos sobreditos
herdeiros e sucessores, vos fazemos, constituímos e deputamos por
senhores das mesmas, com pleno, livre e onímodo poder, autoridade e
jurisdição. [...] sujeitar a vós, por favor da Divina Clemência, as terras
102
Disponível em: < http://www.koinonia.org.br/tpdigital/detalhes.asp?cod_artigo=257&cod_boletim=14&tipo
=Artigo> Acesso em: 14 de janeiro de 2010.
45
firmes e ilhas sobreditas, e os moradores e habitantes delas, e reduzi-
los à Fé Católica.
103
Esta legitimação teológica eurocêntrica tem várias faces. Seu ponto de
partida é a demonização da religião do outro que, aliás, não é reconhecido
(descoberto) em sua alteridade, mas, na linguagem de Enrique Dussel, é encoberto
e desconsiderado. Assim se expressa Dussel:
O fenômeno religioso oficial fica então definido pela negação radical (a
“tabula rasa”) das antigas religiões que são demoníacas ou satânicas,
principalmente em suas estruturas mais conscientes (seus templos, lugares
de culto públicos e privados, calendários, escolas de bios, teologias
explícitas, interpretação da vida cotidiana, ritos, danças, organização
agrícola-sagrada etc.), e pela implantação violenta do “catolicismo” (nova
vivência religiosa que será mais estruturada e mais antiprotestante à
medida que transcorre o século XVI, que é justamente o tempo da
implantação da Igreja católica com suas estruturas institucionais).
104
O europeu hispano-lusitano tem sua consciência limpa, pois, sua cruzada é
contra as hostes do inferno. Decorre daí um segundo passo. Definida como religião
satânica, o caminho está aberto para a conquista espiritual. Embora, esta conquista
não fosse meramente espiritual. Os missionários estavam conscientes que seu
serviço não era apenas ao Sumo Pontífice, mas também aos reis de Espanha e
Portugal os quais haviam sido comissionados pela Santa Sé, pelo sistema de
padroado, a tornar os súditos do novo mundo, verdadeiros cristãos católicos.
Em vista da delegação pontifícia, os missionários, ao realizar sua tarefa
religiosa, se colocavam diretamente a serviço dos monarcas católicos,
prestando-lhes o juramento de fidelidade. Comprometiam-se assim a
defender os interesses régios no exercício de sua atuação
evangelizadora.
105
Ainda sobre o sistema do padroado, afirma Riolando Azzi:
103
Disponível em: < http://pastoral.org.br/index.php?option=com_content&task=view&id=71&Itemid=1>
Acesso em: 14 de janeiro de 2010.
104
DUSSEL, Enrique. Sistema-mundo, dominação e exclusão apontamentos sobre a história do fenômeno
religioso no processo de globalização da América Latina. In: História da Igreja na América Latina e no Caribe
1945-1995: o debate metodológico. Petrópolis: Vozes; São Paulo: CEHILA, 1995. p. 61.
105
AZZI, Riolando. Método missionário e prática de conversão e colonização. In: SUESS, Paulo, org. Queimada e
semeadura: da conquista espiritual ao descobrimento de uma nova evangelização. Petrópolis: Vozes, 1988. p.
89.
46
Se por um lado a ação missionária se situava na luta entre o reino de Deus
e o reino de Satanás, por outro era mediante a submissão às Cortes de
Espanha e Portugal que os povos ameríndios deviam manifestar
concretamente sua adesão à fé, pois competia aos monarcas de ambos os
países, em força da concessão do padroado, gerenciar a implantação da
na América Latina.
106
O que se pretendia era a fundação de uma “Cristandade colonial”.
Confundia-se assim, a conquista espiritual (religiosa) que era, ao mesmo tempo,
cultural, social, política e econômica. É bem verdade que, dentro do espírito do
Concílio de Trento (1545-1563), os missionários do século XVI, sobretudo os
jesuítas, buscavam prioritariamente a salvação das almas em sua atuação
evangelizadora. Contudo, por inspiração do fundador da Companhia de Jesus,
Inácio de Loyola, com seus ideais militares, os jesuítas entendiam sua tarefa
missionária como conquista de povos e territórios bem ao estilo das Cruzadas dos
séculos XII e XIII. Ora, esta conquista não considerava a possibilidade de diálogo
com o conquistado. O alvo era a doutrinação.
Uma terceira face da teologia eurocêntrica de justificação da dominação
católica era o que se chamou de “guerra justa”. A recusa em aceitar a católica
transformava os ameríndios em inimigos da e do Império. Sendo assim, era
legítimo o uso da violência contra os gentios uma vez que esta era „santa‟ e „justa‟.
Exemplo clássico deste tipo de argumento para justificar a violência contra os
nativos encontramos em Juan Ginés de Sepúlveda dentre vários outros autores.
Em seu Democrates Alter (1547), Sepúlveda acha natural que “homens prudentes,
íntegros e humanos dominem sobre os que não o são”. Recorrendo diversas vezes
a textos bíblicos e a clássicos autores cristãos como Agostinho e Tomás de Aquino,
sobretudo ao primeiro, Ginés de Sepúlveda homologa em sua obra a dominação e o
uso da força contra os indígenas. Deixemos que ele mesmo fale:
[...] com perfeito direito os espanhóis dominam sobre os bárbaros do novo
mundo e das ilhas adjacentes, os quais em prudência, engenho, toda
virtude e humanidade são tão superados pelos espanhóis como meninos
pelos adultos, mulheres por homens, pessoas ferozes e cruéis por pessoas
prudentíssimas e pródigas, intemperantes por continentes e moderados,
diria enfim, como macacos por homens.
107
106
AZZI, 1988, p. 92.
107
SEPÚLVEDA, Juan Ginés de. As justas causas de guerra contra os índios (1574). In: SUESS, Paulo (org.). A
conquista espiritual da América Espanhola: 200 documentos século XVI. Petrópolis: Vozes, 1992. p. 531.
47
Seu desprezo pelos ameríndios, a quem se refere como “homúnculos”, e
pela sua cultura é inversamente proporcional à exaltação que ele faz do povo
espanhol.
Compara agora a prudência, o engenho, a magnanimidade, a temperança,
a humanidade e religião destes homens com esses homúnculos nos quais
mal encontrarás vestígios de humanidade, que não não possuem
doutrina alguma, mas também não usam letras, nem conheceram, não têm
nenhum monumento de grandes feitos, a não ser alguma e obscura
lembrança de algumas coisas registradas em certas pinturas, nenhuma lei
escrita, mas instituições e costumes bárbaros.
108
Debocha da hospitalidade do rei Montezuma a qual foi retribuída pelo
conquistador Fernando Cortês com o jugo e o cárcere, pois este, com não mais que
trezentos espanhóis “manteve oprimida e temerosa durante muitos dias (...) uma
multidão tão imensa como de pouco sentido comum, sem carecer também de
indústria e astúcia”.
109
Prossegue seu raciocínio concluindo pela justeza da guerra
contra os „bárbaros‟:
Por muitas causas, portanto, e muito graves, estes bárbaros estão
obrigados a aceitar o domínio dos espanhóis conforme a lei da natureza. E
isto é mais útil para eles do que para os espanhóis, pois a virtude, a
humanidade e a verdadeira religião são mais preciosas do que o ouro e a
prata. E se recusarem nosso domínio poderão ser coagidos pelas armas a
aceitá-lo, e esta guerra será, como acima declaramos com autoridade de
grandes filósofos e teólogos, justa pela lei da natureza, muito mais ainda do
que a que fizeram os romanos para submeter a seu império todas as
demais nações, assim como é melhor e mais certa a religião cristã do que a
antiga dos romanos. [...] E a justiça desta guerra é ainda mais evidente por
ter sido autorizada pelo Sumo Pontífice, que faz as vezes de Cristo.
110
2.3 Métodos de dominação ético-cultural
Visando tornar os povos ameríndios verdadeiros cristãos católicos e fiéis
súditos das Coroas da Espanha e Portugal era necessário que a imensa
complexidade deste novo mundo passasse por um processo de simplificação. Ainda
108
SEPÚLVEDA, 1992, p. 532.
109
SEPÚLVEDA, 1992, p. 533.
110
SEPÚLVEDA, 1992, p. 534-535.
48
no século XVI esta simplificação será feita inicialmente pelo ajuntamento de várias
tribos em aldeamentos que recebiam o sugestivo nome de reduções. Estas
reduções facilitavam o processo de conversão dos índios que, geralmente, se
estabeleciam de maneira um tanto dispersa em meio às florestas. Azzi nos lembra
que no Brasil era comum „descer‟ tribos inteiras através dos rios para o local das
reduções e, por isso, este traslado recebia o não menos sugestivo nome de
descimento
111
. Desta forma podemos dizer que de certo modo os índios eram
“descidos” e “reduzidos”. Isto traduz bem o ideal missionário de se apagar a
concepção de mundo desses povos, vista como primitiva e selvagem, e embutir
neles uma nova concepção de vida (nova cultura) oferecida pela fé católica.
Quando era necessário, esses descimentos” eram feitos com a ajuda da
coerção militar. Mas, na maioria das vezes os missionários usavam de aliciamento,
fazendo promessas de bem-estar material. Ofereciam machados, roupas, comida
em abundância etc. Na maioria das vezes estas promessas não eram cumpridas.
Refletindo sobre o caráter dessas reduções, é bastante pertinente a afirmação de
Bartomeu Meliá:
A redução tem um caráter totalizante, e suas conseqüências serão
irreversíveis em todas as ordens. A redução perturba a ecologia tradicional,
traz uma nova morfologia social, dispõe do espaço urbano segundo
intenções precisas, modifica o sistema de parentesco. Na redução a religião
guarani é atacada, ridicularizada, suprimida, e por fim substituída. Os
„feiticeiros‟ são acusados e perseguidos, expulsos ou domesticados. Não há
dúvida de que a redução pretende mudar o ser guarani. (grifo nosso)
112
Um dos lados macabros dessas reduções era a conseqüente redução
numérica dos povos indígenas. Os aldeamentos tornaram-se instrumentos de
dizimação dos nativos ora porque estes eram mortos nos confrontos militares que
visavam conduzi-los à força para as reduções, ora porque, uma vez instalados nas
aldeias, morriam de doenças, epidemias, inaptidão ao novo contexto ecológico e
cultural ou pelos trabalhos forçados a que eram obrigados.
A imposição do modo de vida europeu era um grande favor a ser feito aos
nativos. E eles deveriam ficar agradecidos. A este respeito, assim se expressa Ginés
de Sepúlveda:
111
Cf. AZZI, 1988, p. 94.
112
MELIÁ, 1982 apud AZZI, 1988, p. 87.
49
O que podia acontecer a estes bárbaros mais conveniente ou mais saudável
do que serem submetidos ao domínio daqueles cuja prudência, virtude e
religião os converterão de bárbaros, tais que mal mereciam o nome de
seres humanos, em homens civilizados o quanto podem ser, de facinorosos
em probos, de ímpios e servos dos demônios em cristãos e cultores da
verdadeira religião?
113
A conclusão: o europeu trouxe um mundo de possibilidades. Sobretudo, a
cristã libertadora das trevas espirituais e dos grilhões demoníacos. As bênçãos
celestiais que receberiam na vida futura deveriam compensar a perda de liberdade e
a destruição de seu modus vivendi.
Uma das características desse modus vivendi que mais recebeu atenção
dos missionários foi a nudez primitiva e a naturalidade com que os nativos a
encaravam. Sua nudez era sinal de imoralidade. A ênfase dada à produção de
algodão era, em parte, com o objetivo de se confeccionar roupas para os índios. Ao
comentar isso, Riolando Azzi afirma: “Dessa maneira são introjetados nas
populações indígenas os traumas, a insegurança, a malícia e a culpa dos próprios
europeus no trato com a sexualidade humana”.
114
A educação das crianças, considerada muito liberal, passou a ser baseada
nos castigos físicos. Adultos também eram castigados “com o objetivo de estimulá-
los ao trabalho agrícola, ao qual não estavam habituados”.
115
Este processo de
inculturação foi tão profundo que somos surpreendidos pela constatação do Pe.
Bernabé Cobo que, referindo-se a uma das mais importantes reduções indígenas
nas proximidades de Lima, no Peru, registrou em 1630 o seguinte:
Atualmente duzentas casas e oitocentas almas de confissão, e estes
índios estão tão bem instruídos na boa ordem e cristandade que se
sobressaem entre os demais deste reino. Estão de tal forma espanholados
(grifo nosso) que todos geralmente, homens e mulheres, entendem e falam
a nossa língua. No cuidado e adorno de suas casas parecem espanhóis, e
basta dizer, como prova disso, que entre todos eles mais de oitenta
negros escravos de que se servem; todos os demais índios do reino juntos
não devem ter outros tantos.
116
113
SEPÚLVEDA, 1992, p. 534.
114
AZZI, 1988, p. 101.
115
AZZI, 1988, p. 101.
116
COBO, apud AZZI, 1988, p. 102.
50
A expressão utilizada pelo Pe. Cobo “espanholados” soa como motivo de
orgulho. Transmite a idéia de tarefa cumprida. E, ainda mais surpreendente, é o
orgulho que parece sentir o Pe. Bernabé Cobo ao constatar que estes índios
possuíam escravos negros assim como os espanhóis. Avaliando as conseqüências
desse processo de aldeamento, Riolando Azzi, ressalta:
Na verdade, embora congregando gente num espaço limitado, a redução
teve o efeito de uma verdadeira destribalização, na medida em que foram
tirados dos índios seus suportes de natureza cultural e religiosa, na medida
em que foi desfeita ou modificada sua organização familiar e social, e
principalmente na medida em que foram abalados e destruídos seus
fundamentos míticos. Em última análise, foi agredida de forma violenta a
cosmovisão indígena, mediante o descrédito lançado contra seus líderes
religiosos, pajés e curandeiros, e o desprezo a seus ritos e tradições
cultuais.
117
Esta simplificação do mundo ameríndio toma nova dimensão no século XVII
quando a Holanda assume a centralidade do sistema-mundo. O gerenciamento de
tantas variáveis tornava a tarefa impossível. Aspectos tais como valores culturais,
antropológicos, éticos, religiosos precisavam ser eliminados ou deveriam passar por
um processo reducionista.
Esta simplificação da complexidade abrange a totalidade do „mundo da vida
(Lebenswelt)‟, da relação com a natureza (nova posição ecológica e
tecnológica, não teleológica), diante da própria subjetividade (nova
autocompreensão da subjetividade), diante da comunidade (nova relação
intersubjetiva e política) e, como síntese, nova atitude econômica (prático-
produtiva)
118
2.4 A História dos colonizadores
Desde seu início o encontro (ou desencontro) entre estes dois mundos, o
europeu cristão católico e o ameríndio mágico-simbólico significou um confronto de
culturas. O europeu em seu domínio tecnológico do aço subjuga o ameríndio e, a
partir dessa superioridade militar, supõe-se superioridade em todos os outros
117
AZZI, 1988, p. 104.
118
DUSSEL, 1995, p. 56-57.
51
aspectos: superioridade na organização social e política, no âmbito familiar,
superioridade ético-moral, superioridade lingüística, superioridade religiosa,
superioridade cultural. Era como se o outro não existisse. Não havia história escrita.
Não havia uma linguagem grafada, “não usam letras”.
119
Paulo Suess destaca a importância deste fato ao lembrar que para
historiadores positivistas a única história que conta é a narrada pelos europeus:
[...] História? Povos sem escrita não têm história, diz a historiografia oficial.
A situação em que se encontravam os índios que habitavam o solo
brasileiro, segundo Varnhagen, „não podemos dizer de civilização, mas de
barbárie e de atraso. De tais povos na infância não há história: há
etnografia. A infância física é sempre acompanhada de pequenez e de
miséria‟. Fala, através de Varnhagen, a Europa ilustrada.
120
Este tem sido um fato apontado por diversos historiadores: a história dos
conquistados sempre é contada pelos conquistadores. Suess cita ainda um pequeno
trecho de uma aula inaugural proferida em 1789 por Friedrich Schiller quando ele diz
“os descobrimentos (...) nos mostram populações deitadas em torno de nós nos
mais diversos degraus de cultura, como crianças de diferentes idades em torno de
um adulto”.
A mentalidade eurocêntrica desde fins do século XV não considera os
milênios de história de presença humana nas Américas. História esta transmitida
pela cultura oral de seus habitantes, através de seus mitos e lendas. Suess afirma
que:
Esta etno-história, que não se deve confundir com a etnografia de
Varnhegen, despertou pouco interesse entre os historiadores, preocupados
com a chamada história universal. Povos sem história se tornam povos
com história pela incorporação nos mitos e na história (de salvação)
universal. Frente ao dilúvio da Bíblia, o dilúvio da mitologia indígena se
torna uma „inundação particular‟. O mito de Édipo é um explicador universal,
o de Macunaíma uma curiosidade regional de uma tribo indígena no norte
do Brasil. Mas esta „história universal‟ oferecida para a recuperação
histórica dos Outros não é a soma de múltiplas histórias. É apenas a
extensão da história de uma região dominante para as demais.
121
119
SEPÚLVEDA, 1992, p. 532.
120
SCHILLER, apud SUESS, Paulo. A história dos outros escrita por nós: apontamentos para um autocrítica da
historiografia do Cristianismo na América Latina. In: LAMPE, Armando (org.). Ética e a filosofia da libertação:
Festschrift Enrique Dussel. Ed. Bilíngüe. Petrópolis: Vozes; São Paulo: CEHILA, 1996. p. 87.
121
SUESS, 1996, p. 89.
52
2.5 A História dos outros
Ainda assim, houve resistência. Diante da desconsideração, das imposições,
do doutrinamento, das reduções e simplificações, diante da guerra e da violência
houve aqueles que resistiram. Se é verdade que muitas tribos e etnias não
esboçaram reação firme diante da conquista européia, também é verdade que houve
resistência por parte de muitas outras. Encontramos esta resistência na
multiplicidade cultural dos povos ameríndios face à monocultura cristã européia.
Diversos textos descrevem o desconforto dos missionários e colonizadores
diante da diversidade cultural dos povos nativos.
É um erro comum tomar as Índias por uma espécie de campo e cidade e
crer que, por ter um mesmo nome, são da mesma índole e condição (...). Os
povos indígenas são inumeráveis, têm cada um deles determinados ritos
próprios e costumes e se faz necessária uma administração distinta de
acordo com cada caso. Por isso, não sou capaz de tratar um a um todos
eles, por ser-me desconhecidos na maior parte e mesmo que chegasse a
conhecê-los todos, seria tarefa interminável (...)(tradução própria).
122
Diante desse quadro que para o colonizador se configura caótico a reação é
de tentar a simplificação, por exemplo, criando línguas gerais. O padre Antônio
Vieira fala em uma “Babel do rio Amazônia”.
Devemos lembrar também da mútua influência religiosa. O Pe. Bartomeu
Meliá estudando as reduções entre os Guaranis no Paraguai destaca que “na
história do encontro do jesuíta com o Guarani surgem formas de vida religiosa e
econômica que dificilmente se entendem se desligadas da etnologia guarani”.
123
Isto
significa dizer que os povos nativos também imprimiram suas marcas no catolicismo
latino-americano. Estas marcas surgiram, por exemplo, do confronto entre os pajés
guaranis e os missionários jesuítas. Esta “guerra de messias” impõe aos
122
Es um error común tomar lãs Indias por uma espécie de campo e ciudad y creer que, por llevar um mismo
nombre, son de La misma índole y condición. (...) Los pueblos índios son innumerables, tiene cada uno de ellos
determinados ritos próprios y constumbres y se hace necessária uma administración distinta según los casos.
Por eso, no sintiéndome yo capaz de tratar uno a uno de todos ellos, por serme desconocidos em su mayor
parte y aunque llegara a conocerlos del todo, sería tarea interminable (...)”. ACOSTA, 1984 apud SUESS, 1996, p.
97.
123
MELIÁ, Bartomeu. As Reduções Guaraníticas: Uma Missão no Paraguai Colonial. In: SUESS, Paulo, org.
Queimada e semeadura: da conquista espiritual ao descobrimento de uma nova evangelização. Petrópolis:
Vozes, 1988. p. 79.
53
missionários, aparecerem eles mesmos como „feiticeiros‟. O xamanismo guarani
acentua a dimensão mística-profética dos próprios padres.
As reduções são essencialmente projetos colonialistas e, como tais,
violentos de algum modo. Os povos ameríndios e, posteriormente, os negros são
obrigados a abandonar seus antigos deuses e abraçar a cristã. Mas não fazem
isto sem resistência. Assim, os missionários (e a própria religião católica, pelo menos
o catolicismo que se vai cultivar na América Latina) acabam sofrendo também uma
sutil influência da religiosidade nativa.
A resistência pode ainda ser vista na assimilação do catolicismo medieval
trazido pelos colonos e não pelos representantes do catolicismo oficial.
Em geral, tanto as populações indígenas como os africanos trazidos em
seguida para a América Latina elaboraram uma fusão sincrética entre as
devoções aos santos católicos e seus personagens míticos. Dessa maneira,
era mediante a prática devocional que as populações ameríndias, negras e
mestiças continuavam a esperar os benefícios materiais e espirituais para a
vida presente e futura. Apesar do controle inquisitorial, as formas de
devoção popular, com diversas variações e assimilações sincréticas, se
espalharam por toda a América Latina, passando a constituir o substrato
religioso das populações pobres. O fato se deve, evidentemente, à grande
afinidade do catolicismo popular com a cosmovisão agrária, típica dos
povos latino-americanos.
124
2.6 Teologia e escravidão
Um dos contorcionismos teológicos mais impressionantes da época colonial
é aquele que busca uma elaboração teológica que concilie a pregação do evangelho
com a prática escravocrata dos conquistadores tanto portugueses, quanto
espanhóis, mas também franceses, ingleses e holandeses. Este foi um dilema vivido
pelos missionários que passaram da indignação ante a escravidão injusta dos índios
(Nóbrega chegou a negar a Comunhão àqueles que mantinham cativos os índios e
amancebavam-se às mulheres) à acomodação ao sistema diante da incapacidade
de alterar a realidade e, finalmente, à busca de fundamentação doutrinária que
124
AZZI, 1988, p. 105.
54
justificasse e legitimasse tal estado de coisas. Diante de tamanha discrepância, não
bastava recorrer ao uso da força militar, mas era necessário:
Pacificar uma sociedade que pode ser estruturada através da guerra e
da violência política, „legitimar‟ uma ordem intrinsecamente injusta, pois
alicerçada na violação do direito natural, pelo qual os homens nascem
naturalmente livres; erigir uma ordem jurídica, baseada na negação de
todos os direitos humanos e civis das maiorias; harmonizar as relações
sociais antagônicas e conflitivas entre as classes dos senhores e dos
escravos; aquietar as consciências e eliminar os escrúpulos dos que até
então eram considerados homens sem coração, endurecidos no pecado de
escravizar injustamente; convencer os que iam sendo escravizados de que
esta era a vontade de Deus e que, na aceitação paciente de sua sorte, é
que alcançariam a salvação e a misericórdia; que o maior e pior pecado era
não mais escravizar e sim revoltar-se contra a escravidão.
125
Vemos assim que a teologia não serve mais como instrumento de reflexão
sobre a visando ao serviço fraterno e à afirmação da igualdade intrínseca de
todas as pessoas, mas torna-se instrumento de domesticação a serviço do Estado
escravocrata e injusto. O papel da religião seria de “convencimento da vontade e
assentimento da razão”. Uma vez domados pela força das armas índios e negros,
caberia à religião apaziguar os ânimos e convencê-los de que esta era a vontade de
Deus. “O missionário precisa do índio abatido, sujeitado e atemorizado pelas armas,
para pavimentar o caminho da pregação evangélica”.
126
Mas havia algo que os padres jesuítas não podiam tolerar a libertinagem
de uma vida de concubinato. Assim, para aliviar o temor geral de que o casamento
significaria a necessária libertação da mulher da condição de escrava (e os filhos
que daí nascessem) elaboraram uma teologia da escravização sui generis. Vejamos
a solução proposta por Nóbrega: “Devia El-Rey de mandar desenganar aos
senhores, que nom fiquão forros, porque isto arreceão; que doutra maneira todos os
casarião”.
127
Segue a esta teologia da escravização uma ética seletiva e moralista
em que a escravização até mesmo da esposa e dos filhos é aceitável, mas não o
concubinato.
O caráter profético do evangelho de denúncia dos sistemas opressores e
injustos é desvirtuado. Aqui, a Igreja está a serviço do sistema. Tudo o que importa é
125
BEOZZO, José Oscar. Evangelho e escravidão na teologia latino-americana. In: RICHARD, Pablo (org.). Raízes
da teologia latino-americana. Paulinas: São Paulo, 1988. p. 95.
126
BEOZZO, 1988, p. 98.
127
BEOZZO, 1988, p. 103.
55
a lógica capitalista da acumulação de bens. O papel primordial da Colônia é a
transferência de riquezas para a metrópole. Dentro deste cenário, a religião tem
papel fundamental legitimando a „guerra santa‟, aplacando as consciências,
convertendo os escravos índios e negros.
Com a entrada de milhões de novos escravos nas Américas
128
a
preocupação principal passa a ser com a segurança da minoria branca dominadora.
Um dos mecanismos mais eficazes no controle desta situação altamente instável era
a unificação religiosa. Não haveria espaço para a tolerância com outros credos. Se
aqui nesta terra estava reservado a índios e negros as agruras da escravidão, uma
vez convertidos à cristã, eles poderiam esperar um destino eterno melhor,
curiosamente ao lado dos seus senhores. A esperança que perderam quando
reduzidos nos aldeamentos ou quando arrastados para dentro dos navios negreiros
seria reconquistada pela adesão ao catolicismo, ainda que reservada ao futuro. Este
seria “o freio e o cabresto” com que os conquistadores dominariam as massas
escravas. Em 1700 o jesuíta Jorge Benci pregava aos senhores na catedral da
Bahia:
Não acrescenteis novas aflições a quem está aflito. E sendo tantas e tão
duras e pesadas as pensões do cativeiro: que senhor haverá tão inumano
que, com o mau trato, dobre o tormento ao escravo e lhe acrescente
aflições sobre aflições. Que senhor haverá tão fero e tão tirano que se não
mova à compaixão dos tristes escravos, considerando que são escravos,
sem liberdade, sem honra, sem gosto, e sem contentamento algum; sempre
em abatimento, sempre em tristeza, sempre em aflição, sempre em
amargura; aflita e amarga a vida; triste e abatido o estado; aflito e amargo o
exercício; triste a abatida a condição; tudo desconsolação, tudo angústia,
tudo pena, tudo melancolia. Alegra-te sequer uma vez servo desgraçado e
infeliz! Mas como há de ter alegria, se é servo?
129
E Beozzo conclui:
É interessante, pois, acompanhar como sociedades cujo único objetivo é a
acumulação e o lucro, a cobiça sem freios, esvaziados de qualquer
preocupação ética ou religiosa, destinem ao mesmo tempo lugar tão
importante à religião. É porque à religião está destinada tarefa crucial e
incapaz de ser obtida pela violência e pelo chicote: dobrar mentes e
128
“O século XVII viu a entrada no Brasil de 560.000 escravos africanos e nas Antilhas holandesas, francesas e
dinamarquesas, 467,5 mil escravos, preparando a grande explosão do século XVIII, quando 6 milhões de
escravos são trazidos para as Américas, dos quais 1,9 milhão para o Brasil e cerca de 3 milhões para as
Antilhas.” Cf. BEOZZO, 1988, p. 108.
129
BEOZZO, 1988, p. 109.
56
corações para que aceitem, senão de bom grado, ao menos com alguma
resignação, a condição de escravos.
130
Mas, se agora, com o batismo, são todos cristãos e, portanto, irmãos, como
mantê-los na condição de escravos? Freqüentariam todos a mesma igreja?
Dividiriam o mesmo espaço cúltico? A esta última questão saídas engenhosas foram
engendradas. Ora, aos servos estavam reservados os últimos bancos. Ora,
assistiam ao culto do lado de fora da porta de entrada ou pelas janelas. Ora, era
realizado um culto bem de madrugada somente para os escravos.
O fato é que com a destruição quase completa de sua cultura, para os índios
e, sobretudo, para os negros o batismo representava a possibilidade de
reconstrução de alguma cultura (ainda que não a sua), mas de uma nova cultura,
com referenciais simbólicos e míticos fruto do sincretismo entre o catolicismo
popular, com o qual se identificavam, e suas primitivas religiões.
Ser batizado em países como o Brasil era ser integrado, de certo modo, no
mundo religioso, podendo se reunir nas festas, ter sua irmandade, sua
igreja, incluindo a preservação de algumas dimensões de seu mundo
cultural e ritual como nas danças do Congado e de Moçambique.
131
Esta assimilação foi tão bem feita que textos da época apontam para o fato
de muitos escravos viverem “mais cristamente em sua condição que muitos
franceses”. Mas como manter os escravos, agora batizados, em sua condição de
presas sem liberdade e sem direitos? Para resolver esta questão recorreu-se ao
velho dualismo platônico. Assim, por exemplo, após serem expulsos de São Paulo
pelos bandeirantes, anos mais tarde, o retorno dos jesuítas é permitido com a
condição de “se limitarem ao espiritual, quanto aos índios”. Com clareza, Beozzo
afirma: “limitar-se ao espiritual era deixar correr livre a escravidão dos índios,
aceitando que a religião tem uma palavra a dizer no assim chamado domínio do
espiritual, sem incidências sobre a vida prática”.
132
desabava toda credibilidade da pregação missionária, uma vez que, o
amor pregado se limitava às conquistas espirituais da vida futura sem nenhum
desdobramento prático para esta vida no caso dos escravos, índios e negros. À
130
BEOZZO, 1988, p. 109.
131
BEOZZO, 1988, p. 116.
132
BEOZZO, 1988, p. 119-20.
57
alma estava reservada a salvação, ao corpo restava a escravidão. Afirma Beozzo
que “a dissociação destes dois caminhos é o fundamento da teologia da
escravização”. Este era o papel da teologia da escravidão: por um lado, em nível
antropológico, desmontar toda auto-estima, dignidade humana e sentimento de
honra. Construir o percurso para o mundo das relações sociais, políticas e
econômicas. Legitimar a relação de dominação de uns sobre os outros. Apontar para
um futuro de relações fraternas e bênçãos sem fim. Separar e unir, eis o
contorcionismo teológico empreendido pelos religiosos no período colonial. Toda
esta teologia, assim como hoje a Teologia da Prosperidade, estava a serviço do
projeto capitalista de acumulação de bens.
A revolta e a fuga do escravo, buscando a liberdade não apenas da alma,
mas sim do próprio corpo, é o pecado sem remissão, pois coloca em risco a
propriedade do senhor. Esta propriedade torna-se, assim o deus-ídolo de
todo o sistema, contra o qual se comete o pecado maior. A sacralização da
propriedade escrava é o fecho último da teologia da escravização e a pedra
angular que arremata e articula finalmente as nervuras todas do sistema.
133
2.7 Teologia da Libertação proposta teológico-pastoral de superação do
dualismo
Surgida entre os anos de 1950/60, a Teologia da Libertação brota da
reflexão de intelectuais latino-americanos que estavam, por assim dizer, com um dos
olhos postos na mensagem dos evangelhos e o outro na realidade sócio-econômica
do povo pobre e oprimido. Esta é, portanto, uma teologia que não nasce meramente
na frieza dos corredores acadêmicos. Como toda boa teologia ela surge de seu
contexto. Como diz Gustavo Gutierrez se referindo à Teologia: “sua atualidade [...]
depende em grande parte de sua capacidade para interpretar a forma como é vivida
a fé em circunstâncias e numa época determinadas”.
134
Sua chave hermenêutica para a leitura dos textos bíblicos é a opção
preferencial pelos pobres. Mas, quem são os pobres? A resposta a esta pergunta
133
BEOZZO, 1988, p. 122.
134
GUTIÉRREZ, Gustavo. Situação e tarefas da teologia da libertação. In: SUSIN, Luiz Carlos (org.). Sarça
ardente: teologia na América Latina. São Paulo, Paulinas, 2000. p. 49.
58
passa não apenas pela questão econômica, mas também pela cor da pele, pelo fato
de ser mulher, pela cultura desprezada. Os pobres são camponeses, mas também
marginais urbanos, operários, imigrantes. A pobreza tem muitas faces.
Em seu artigo „Situação e tarefas da teologia da libertação
135
, Gustavo
Gutiérrez aponta três desafios contemporâneos à Teologia da Libertação: o mundo
moderno e a chamada pós-modernidade, o pluralismo religioso e o diálogo inter-
religioso e a pobreza de muitos.
A partir do século XVIII, como desdobramento de irrupções históricas dos
dois ou três séculos anteriores, aprofunda-se a secularização da consciência. O ser
humano moderno ambiciona a autonomia plena. A Igreja deixa de dar as cartas. A
Igreja Católica, a partir de decisões tomadas no Concílio de Trento rompe o diálogo
com a modernidade. As desconfianças e os ódios são mútuos. Somente em fins do
século XX, com o Concílio Vaticano II (1962-1965), o Papa João XXIII restabelece o
diálogo e cria pontes, obviamente, ainda em construção. De para cá estas pontes,
ainda não terminadas, sofreram muitas avarias.
Com seus fracassos a modernidade tem dado lugar a uma nova etapa
chamada por alguns de hipermodernidade ou pós-modernidade. Caracteriza-se, a
pós-modernidade, por duras críticas à modernidade e, ao mesmo tempo, pela
exacerbação de algumas de suas características. Dentre elas, Gustavo Gutiérrez
destaca o individualismo, o ceticismo e conformismo e o relativismo.
Em segundo lugar, impõe-se o desafio do pluralismo religioso. A este
respeito, comenta Gutiérrez:
No passado, a existência da pluralidade de religiões propunha alguns
problemas práticos e dava lugar a reflexões acerca da perspectiva salvífica
do encargo missionário das Igrejas cristãs; nas últimas décadas, todavia,
sua presença converteu-se numa questão determinante para a cristã. [...]
Como no caso do mundo moderno, embora por razões diferentes, a
existência de alguns bilhões de seres humanos que encontram nessas
religiões sua relação com Deus ou com o Absoluto ou com um profundo
sentido de suas vidas questiona a teologia cristã em seus pontos centrais.
Ao mesmo tempo, exatamente como ocorre com a modernidade, esse fato
lhe proporciona elementos e possibilidades para voltar-se sobre ela mesma
e submeter a um novo exame a significação e os alcances, hoje, da
salvação em Jesus Cristo.
136
135
Cf. GUTIÉRREZ, 2000, p. 49ss.
136
GUTIÉRREZ, 2000, p. 55-56.
59
Obviamente, diante desta constatação, não podemos hoje fazer uma
teologia das religiões “sem uma prática de diálogo inter-religioso”.
Referindo-se às religiões latino-americanas não-cristãs, herdeiras das
antigas religiões ameríndias e africanas, Paulo Suess reconhece o grande desafio
ao afirmar que o reconhecimento da história do Outro como caminho ordinário de
salvação significa para o Cristianismo, portanto, abdicar do caminho único, sem
abdicar de Jesus Cristo”.
137
Por último, Gutiérrez aponta para o desafio da pobreza. A partir do Vaticano
II, de Medellín (1968) e de Puebla (1979) a questão da pobreza entrou na agenda da
Igreja. Concluiu-se que não dava mais para se falar de Cristianismo, de mensagem
dos evangelhos sem se enfrentar a questão dos pobres deste mundo. A existência
de milhões de miseráveis tornou-se motivo de grande vergonha para o mundo
cristão e sua mensagem de amor e igualdade para todos.
A espiritualidade cristã ou o discipulado de Jesus possui estas duas faces:
de um lado a oração, de outro o envolvimento com o drama humano. A Teologia da
Libertação deu esta grande contribuição ao trazer para o centro dos debates
teológicos esta questão, que o é uma invenção dela, mas sempre esteve na base
da mensagem evangélica.
2.8 Conclusão
Procuramos neste capítulo fazer apontamentos sobre o percurso teológico na
América Latina e sua relação com os povos que habitavam estas terras, sua cultura
e com a cultura que aqui surgiu como fruto da colonização européia. Entendemos
que a fundamentação teórica que deu sustentação a esta relação de dominação,
escravização e morticínio foi a antropologia dualista platônica. Esta foi uma das
graves e terríveis conseqüências da deformação sofrida pela antropologia bíblica.
Esta deformação, como vimos, levou à desconsideração do Outro em sua alteridade,
137
SUESS, 1996, p. 115.
60
ao ponto de serem considerados menos que humanos, “homúnculos”.
138
Decorre daí
toda sorte de preconceito, racismo, intolerância e violência que se perpetuam até os
nossos dias.
Não podemos encerrar este capítulo sem fazer justiça aos vários missionários
jesuítas que, embora homens de seu tempo, freqüentemente enxergaram mais
longe e, numa atitude vanguardista, denunciaram a crueldade e a violência contra os
povos ameríndios, habitantes milenares destas terras e seus verdadeiros donos.
Assim, por exemplo. Bartolomeu De Las Casas escrevia na Guatemala em 1536:
E o que diremos do fato de despojar os infelizes senhores, os reis, os
príncipes e os magistrados de seus domínios, de suas dignidades, de seus
estados, de suas funções, de suas jurisdições e dos impérios que por direito
natural lhes pertencem? Estas coisas são acaso atraentes, agradáveis ou
suaves por sua própria natureza? São tais que possam inclinar, mover e
excitar a vontade humana para espontaneamente mandar que o
entendimento pense, inquira e assinta com gosto ao que ouve sobre a fé e a
religião? Os que padecem estes males acaso vão deixá-los no
esquecimento para pensar com gosto nos bens divinos que lhes anunciam
aqueles soldados que assim os insultam? Com aquele aparato de poder
acaso não se inclinarão de preferência a odiar estas coisas e julgá-las
delírios fictícios e mentiras perniciosas?
139
O padre Bartolomeu de Las Casas é reconhecidamente uma das vozes mais
lúcidas de seu tempo. Nele encontramos as sementes de uma Teologia da
Libertação e, portanto, uma tentativa de superação do dualismo espírito-matéria com
a proposta de uma visão integral do ser humano. De maneira dissonante com as
vozes da época, com escrita veloz e contundente, Las Casas não deixa dúvida
quanto à realidade do genocídio.
[...] não apresentam nenhum outro milagre ou testemunho de sua santidade
ou de sua justiça senão o de destroçar os homens com a maior crueldade,
não perdoando a ninguém, nem por razão de seu sexo, nem de sua
dignidade, nem de sua idade; o de jogar contra as pedras, segundo
dissemos, os infantes depois de arrancá-los dos peitos de suas mães; o de
encher choças feitas de madeira e de feno ou de palha com homens,
mulheres, muitas delas grávidas, com jovens, crianças e infantes, para
incendiá-las e queimar todos vivos, com outros infinitos e vários modos de
atormentar os miseráveis infiéis. [...]
Na verdade estas ações são tantas, tão graves, tão cruéis e execráveis, que
138
SEPÚLVEDA, 1992, p. 532.
139
LAS CASAS, Bartolomeu de. Do único modo de atrair todos os povos à verdadeira religião... (1536). In:
SUESS, Paulo (org.). A conquista espiritual da América Espanhola: 200 documentos século XVI. Petrópolis,
Vozes, 1992. p. 493.
61
sequer podem ser ditas uma a uma, nem serem explicadas, nem
enumeradas nunca; e não isto, pois ninguém pode acreditar nelas a não
ser que as veja com seus próprios olhos, pois de ouvir o o pasmo dos
ouvintes. E quem poderá contar o número dos que foram reduzidos à
servidão? E que dizer dos bens? O que dizer do ouro, da prata, de todos os
utensílios domésticos, da imensidade das riquezas roubadas? O que dizer
dos domínios, dos estados, das honras e dignidades, também reais, que
usurparam? O que dizer dos vícios como adultérios, estupros, incestos e
concubinatos que estes homens não levam em conta e com os quais se
mancham na presença dos mesmos infiéis?
140
Infelizmente, a lucidez do padre Bartolomeu de Las Casas e de outros
companheiros seus, não foi suficiente para estancar o surto de loucura e crueldade
perpetrado naqueles dias com os desdobramentos conhecidos por todos nós e que
insistem em se fazer presentes. A dissolução da antropologia da integralidade
humana, assim como postulada pelas Escrituras, em benefício de uma visão
dicotômica do homem/mulher com seu característico desprezo pelo corpo, pelo
prazer, pelos desejos e pela celebração da vida em sua inteireza, transformou boa
parte do Cristianismo em algo quase demoníaco.
140
LAS CASAS, 1992, p. 495.
62
3. MATRIZ ANTROPOLÓGICA DUALISTA COMO BASE TEOLÓGICA
NA IMPLANTAÇÃO DO PROTESTANTISMO NO BRASIL
Pode-se classificar, grosso modo, a Reforma Protestante ocorrida no século
XVI em quatro grupos: luteranos, calvinistas, anabatistas e anglicanos. Desses
grupos, sugiram as grandes tendências que estabeleceriam os diversos matizes
evangélicos surgidos nos séculos seguintes nesta nova e pujante força religiosa do
Cristianismo ocidental. Certamente, não tão nova assim. O Protestantismo não foi
novo no sentido de originalidade. O movimento foi novo apenas na medida em que,
embalado pelos ventos do descontentamento que sopravam na Europa há pelo
menos duzentos anos, propôs uma revisão e reconsideração em vários níveis que
iam do teológico ao pastoral, da religiosidade popular à estrutura hierárquica que
mantinha a Igreja de pé. Tivesse a Igreja, na pessoa do Papa e de seus Cardeais,
levado em consideração as diversas reivindicações que borbulhavam em vários
cantos da Europa, a Igreja Católica, conforme nós a conhecemos teria, em grande
medida, desaparecido. Entretanto, a Reforma não pode ser vista apenas como um
movimento de rupturas, mas também de continuidades.
3.1 Reforma Protestante origens
O catolicismo no qual Martim Lutero foi criado era uma religião baseada na
idéia de recompensas meritórias que poderiam ser alcançadas pelos fiéis mediante
o uso dos sacramentos, das penitências ou das indulgências. Era uma religião de
sofrimentos, de privações extremas, de moral ascética. O fiel temia o purgatório e
ainda mais a punição eterna. Jamais havia certeza absoluta que os sacrifícios e
63
empenhos humanos foram suficientes para garantir a salvação da alma, como se
cria. Este era o ar que Lutero respirava. Um universo de profunda ansiedade e muita
culpa o cercava
141
. A Reforma se inicia como este movimento de libertação deste
universo religioso. Para Lutero a fé, não em doutrinas ou em coisas, mas no fato de
ser aceito por Deus foi a descoberta fundamental
142
. Assim, o fiel não necessita mais
passar a vida se penitenciando, o cristão não depende mais da indulgência da
Igreja, sacrifícios descomunais não são mais requeridos, desconstrói-se o mundo de
culpa e ansiedade característico do catolicismo romano medieval (e, em grande
medida, também do moderno). A graça divina, recebida por meio da fé, era
suficiente para garantir a nossa aceitação “no momento em que aceitamos a
aceitação de Deus”.
143
Lutero não podia conceber a idéia de que as obras esforços
e empenhos humanos fossem o meio pelo qual poderíamos nos tornar justos. Para
ele, as obras não eram a causa da nossa justificação, mas apenas o fruto da
justiça
144
. “Nossa em Cristo liberta-nos não das obras, mas da falsa opinião sobre
obras isto é, da presunção absurda que a justificação é adquirida pelas obras”.
145
Ao defender que a relação com Deus é incondicionada, posto que baseada no amor
deste Deus, que é Pai, Martim Lutero liberta-nos da necessidade de trabalharmos
duro pela igreja, mortificarmos nosso corpo e, assim, relativizarmos nossa salvação.
Com isso concorda Max Weber ao afirmar que “o caminho para a forma de
ascetismo transcendental e monástico estava fechado desde Lutero (...) por ser
considerado não-bíblico e inviável para a salvação pelas obras”.
146
As boas obras
serão feitas apenas como uma resposta não obrigatória de um coração cheio de
gratidão
147
. Lutero chegou a entender que o conceito paulino de justificação não tem
a ver com Deus nos transformar em pessoas boas, mas, tem a ver com Deus nos
aceitar como nós somos. A transformação (santificação) virá como conseqüência
disto
148
. Sua defesa intransigente da justificação pela graça mediante a fé não
permite a visão de que o ascetismo, decorrente do dualismo espírito-matéria, seja a
141
Cf. TILLICH, 2000, p. 228-229.
142
Cf. TILLICH, 2000, p. 229.
143
TILLICH, 2000, p. 230.
144
Cf. LANE, Tony. Pensamento Cristão: dos primórdios à Idade Média. Vol.1. São Paulo: Abba Press, 1999. p.
193.
145
LANE, 1999, p. 193.
146
WEBER, Max. A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo. São Paulo: Pioneira, 1987. p. 106.
147
Cf. TILLICH, 2000, p. 229.
148
Cf. LANE, 1999, p. 196.
64
causa da nossa salvação.
Além disso, Martim Lutero demonstra compreensão da discussão paulina
sobre a luta entre o espírito e a carne ao afirmar em uma das suas mais importantes
obras, Da Liberdade Cristã, escrita em 1520:
(...) devemos ter em conta que toda pessoa cristã possui duas naturezas:
uma espiritual e outra corporal. Tendo em vista a alma, ela é designada de
ser humano espiritual, novo e interior; segundo a carne e o sangue, é
chamada de ser humano corporal, velho e exterior. (...) Neste ponto fica
claro que nenhuma coisa externa, seja qual for, pode fazer dele alguém
agradável a Deus ou livre; pois nem sua piedade e liberdade, nem sua
maldade e cativeiro são corpóreos ou externos. Que proveito tem a alma se
o corpo é livre, forte e saudável, se come, bebe e vive como quer?
Inversamente, que dano sofre a alma se o corpo, contra sua vontade, está
aprisionado, enfermo e fraco, padecendo fome, sede e sofrimentos? Nada
disso atinge a alma de maneira alguma, seja para libertá-la ou escravizá-la,
seja para torná-la agradável a Deus ou má.
149
Lutero salienta que os conceitos de “carne” e “espírito” empregados por
Paulo para referir-se à natureza humana não correspondem ao material e imaterial,
mas ao ser humano que deseja auto-suficiência, ou seja, viver uma vida sem Deus
(carnal) e o ser humano que se submete alegremente aos cuidados de Deus
(espiritual)
150
.
Também Filipe Melanchthon, íntimo amigo de Lutero e seu principal
colaborador, percebeu as deformações sofridas pela teologia decorrentes da
influência da teologia grega. “Porque assim como nós nestes últimos tempos da
igreja temos abraçado Aristóteles ao invés de Cristo, assim imediatamente após o
149
LUTERO, Martim. Da Liberdade Cristã. São Leopoldo: Sinodal, 1998. p. 8. No item 4 de seu tratado, o Pai da
Reforma continua seu raciocínio: “De nenhum valor é para a alma se o corpo se cobre de vestes sagradas,
como o fazem os sacerdotes e religiosos. Nem tampouco se vai com insistência a igrejas e a outros lugares
sagrados. Nem ainda se se ocupa somente com coisas sagradas, nem se, da boca para fora, recita orações
repetidas, jejua, faz peregrinações e pratica tantas boas ações quantas seja possível praticar com o corpo e no
corpo. Algo completamente diferente de ser o que concede à alma o ser agradável a Deus e a liberdade.
Porque todos esses exemplos, obras e condutas acima mencionados também as pessoas más, alguém de
santidade fingida e um hipócrita, podem exibir e praticar. Aliás, através de tais práticas só podem surgir
pessoas que apenas aparentam serem santas. Por outro lado, nenhum dano é causado à alma se o corpo se
cobre de vestimentas profanas e se freqüenta lugares profanos, se come e bebe, não faz peregrinações, nem
recita rezas, nem pratica as obras que os santarrões fingidos acima mencionados fazem”.
150
Cf. GONZALEZ, Justo L. Uma História do Pensamento Cristão: Da Reforma Protestante ao Século 20. Vol. 3.
São Paulo: Cultura Cristã, 2004. p. 56.
65
início da igreja a doutrina cristã foi enfraquecida pela filosofia platonista”.
151
Outrossim, Melanchthon sistematizou o pensamento de Martim Lutero na redação
da Confissão de Augsburgo acerca da justificação a qual em seu artigo 4 afirma:
Ensinam também que os homens não podem ser justificados diante de
Deus por forças, méritos ou obras próprias, senão que são justificados
gratuitamente, por causa de Cristo, mediante a fé, quando crêem que são
recebidos na graça e que seus pecados o remitidos por causa de Cristo,
o qual através de sua morte fez satisfação pelos nossos pecados. Essa
atribui-a Deus como justiça aos seus olhos. Rm 3 e 4. (especialmente 3,
21ss e 4,5).
152
Tal conceito, como foi sublinhado, é um bom antídoto contra uma visão
dualista uma vez que esta justificação não depende de sacrifícios humanos
(mortificação do corpo) mas, somente, da graça de Deus.
Personalidade bem diferente de Martim Lutero foi João Calvino. Desde o seu
início, por razões históricas, o protestantismo caracterizou-se em lutar por um novo
conceito de relacionamento com Deus. Este não deveria ser baseado nos
sacramentos, ou nas penitências, ou nas indulgências, ou na autoridade papal, ou
na tradição da Igreja, todavia, tão-somente na manifestação graciosa do amor de
Deus gerando em nós a fé. A como certeza de sermos aceitos por Ele. Desta
forma, “a fé e não o amor ocupou o centro do pensamento protestante”.
153
Isto gerou
notável dificuldade nos reformadores descreverem com acuidade o lugar do amor na
vida cristã. Tanto Calvino quanto Zwínglio, ciosos de certo biblicismo, concentraram-
se mais no papel representado pela Lei
154
. Além disso, parece que a teologia de
Calvino sofreu influência de seu próprio temperamento recatado. Se de um lado
temos um Lutero exuberante, do outro temos Calvino e sua índole reservada ao
ponto dele ter dificuldades em destacar a alegria que provêm da fé
155
. Sua ênfase na
depravação total do ser humano é mais intensa do que a de Lutero. Sua constante
preocupação com a idolatria leva o reformador de Genebra a rejeitar o uso de
representações pictóricas ou qualquer outro símbolo que pudesse desviar a mente
151
LANE, 1999, p. 198. A referência a Aristóteles nesta passagem é uma crítica à teologia escolástica. Tony Lane
nos lembra que Melâncton mais tarde revisou sua opinião sobre Aristóteles, chegando mesmo a incentivar seu
estudo nas universidades.
152
MELANCHTHON, Filipe. Confissão de Augsburgo. São Leopoldo: Sinodal, 1999. p. 19.
153
TILLICH, Paul. A Era Protestante. São Paulo: Ciências da Religião, 1992. p. 26.
154
Cf. TILLICH, 1992, p. 26.
155
Cf. STROHL, Henri. O Pensamento da Reforma. São Paulo: ASTE, 2004. p. 48.
66
de um Deus que é transcendente, o que acarretou uma desconfiança com as artes
em geral entre os calvinistas
156
.
João Calvino enfatizava mais a vida piedosa do que a alegria cristã
157
, o que
será acentuado pelo moralismo puritano, como veremos adiante neste capítulo.
Assim afirma Paul Tillich: “Para Lutero, a vida nova é alegre reunião com Deus; para
Calvino, o cumprimento da Lei de Deus”.
158
Calvino não supera o conceito platônico
do dualismo espírito-matéria
159
. Ao contrário, também para ele o corpo é uma prisão
para a alma sem nenhum valor
160
. Uma diferença é que para ele a ascese não é
para fora do mundo (como na concepção grega e monástica), mas, um “ascetismo
secular”.
161
Conforme Tillich, esse ascetismo intramundano caracterizava-se de duas
maneiras: limpeza e lucro por meio do trabalho
162
. De especial interesse para nosso
trabalho era sua compreensão da limpeza como sobriedade, castidade e
temperança e, por conseguinte, a identificação do elemento erótico como algo
sujo
163
. Nada mais católico medieval.
Segundo Henri Strohl, Calvino também não supera o conceito platônico de
imortalidade da alma ao afirmar ser um erro pretender que:
a condição do corpo seja mais preciosa que a da alma... A Escritura ensina-
nos outra coisa ao comparar o corpo à frágil morada que abandonamos ao
morrer, dando-nos a entender que a alma é a parte principal do homem.
Enquanto permanecemos na carne estamos separados de Deus... de quem
queremos aproximar-nos abandonando o corpo (II Co 5:1-4).
164
Junto com Platão ele afirma que o corpo é um obstáculo a ser superado
165
.
Marcos Azevedo ao discorrer sobre a antropologia de Calvino e o tema da liberdade
156
Cf. TILLICH, 2000, p. 260.
157
Cf. TILLICH, 2000, p. 266.
158
TILLICH, 2000, p. 266. Nesta mesma passagem, Paul Tillich destaca uma curiosa afirmação de Calvino que
demonstra sua concepção de santidade: “Quando explicam a alegria que a mente experimenta depois de
apaziguada, em face de perturbações e temores, não posso concordar com eles (Lutero e seus seguidores), pois
essa experiência deveria significar, antes, o ardente desejo e a decisão de se levar uma vida santa e pia, posto
que o homem só começa a viver em Deus quando morre para si mesmo”.
159
Cf. CALVINO, João. As Institutas. Vol. 4. São Paulo: Cultura Cristã, 2006. p. 182-183.
160
“Se a liberdade consiste em ficar livre deste corpo, que outra coisa é o corpo senão uma prisão?”. Cf.
CALVINO, 2006. p. 215.
161
WEBER, 1987, p. 122.
162
Cf. TILLICH, 2000, p. 267.
163
Cf. TILLICH, 2000, p. 267.
164
STROHL, 2004, p. 162.
165
Cf. CALVINO, 2006, p. 216.
67
cristã em sua tese de doutoramento faz uma objeção ao pensamento do reformador
neste ponto lembrando que ele “apresenta uma perspectiva dicotomizada do ser
humano, tal qual Agostinho”.
166
Ao manter-se fiel à antropologia dualista elaborada a
partir do influxo do neoplatonismo sobre o pensamento cristão, Calvino tende a
sustentar uma vida cristã com cores legalistas. Embora, a bem da verdade, quem
levou a cabo esta tarefa não foi exatamente Calvino, mas, seus seguidores, os
calvinistas puritanos como será assinalado.
167
Não seria justo encerrarmos esses breves comentários acerca do
pensamento de João Calvino sem fazermos uma referência às suas opiniões
emitidas no capítulo dedicado à liberdade cristã. Inversamente ao que se poderia
esperar, uma vez que ele não supera a antropologia dualista, Calvino nos alerta para
o perigo do legalismo quando se trata de desfrutarmos das dádivas divinas. No item
10 deste capítulo ele afirma:
Atualmente é sabido que muitos acham que agimos mal quando
defendemos que somos livres para comer carne, que estamos livres da
observância de dias, que somos livres para determinar o nosso vestuário, e
uma porção de coisas semelhantes. (...) Se alguém começar a duvidar se é
lícito usar linho nos lençóis, nas camisas, nos lenços, nos guardanapos, não
terá certeza se lhe é lícito usar cânhamo, e acabará hesitando até se pode
usar estopa, ou pano de saco. (...) Se tiver escrúpulo quanto a beber vinho
um tanto fino, dentro em pouco nem a borra ou o vinho azedo beberá com a
consciência tranqüila.
168
No item 14 deste mesmo capítulo, ele demonstra corretamente preocupação
com o abuso da liberdade cristã e com o apego às riquezas. Mas, ao mesmo tempo,
ele não deixa de ponderar que:
Certamente, o marfim, o ouro e as riquezas são boas criaturas de Deus,
permitidas, e até destinadas ao uso dos homens; também em nenhum lugar
se proíbe ao homem rir ou fartar-se ou adquirir novas propriedades ou
deleitar-se com instrumentos musicais ou beber vinho.
169
166
AZEVEDO, Marcos. A Liberdade Cristã em Calvino: Uma resposta ao mundo contemporâneo. Santo André:
Academia Cristã, 2009. p. 192.
167
Teremos oportunidade de demonstrar o equívoco de uma leitura bíblica que nos textos escriturísticos
uma defesa da imortalidade da alma, bem como, da prevalência da alma sobre o corpo no capítulo 4.
168
CALVINO, 2006. p. 94.
169
CALVINO, 2006. p. 96. É muito curiosa também a afirmação que Calvino fez acerca daquilo que ele chamou
de escândalo dos fariseus que é quando alguém se escandalizou sem razão, apenas por maldade ou malícia.
Neste caso, ele asseverou: “(...) tropeçam aqueles que, com seu deplorável rigorismo, estão sempre caçando o
que morder e censurar”. CALVINO, 2006, p. 99.
68
Ainda nesta mesma direção no capítulo Sobre a Vida Cristã, ele afirma:
[...] Tampouco podemos abster-nos das coisas que mais parecem atender
ao bem viver e ao bem-estar, que à necessidade. [...] Ora, se
considerarmos o fim para o qual Deus criou os alimentos, veremos que ele
não quis prover à nossa necessidade, mas também ao nosso prazer e
recreação. Assim, quanto ao vestuário, além de considerarmos a sua
necessidade, devemos aplicar-lhes o que se na relva, nas ervas, nas
árvores e nas frutas, pois, sem contar as suas outras utilidades e os
benefícios que delas colhemos, Deus quis alegrar-nos a visão por sua
beleza e propiciar-nos ainda outro deleite ao aspirarmos seu agradável
aroma. [...] E vamos considerar que não é lícito sentir prazer em contemplar
a beleza dada por Deus às flores? [...] Deixemos de lado, pois, essa filosofia
desumana que, não concedendo ao homem nenhuma utilização das coisas
criadas por Deus, a não ser por sua real necessidade, não somente nos
priva sem razão do fruto lícito da benignidade divina, mas também, quando
aplicada, despoja o homem de todo o sentimento e o torna insensível como
uma acha [tora] de lenha.
170
Chega a ser surpreendente a forma como João Calvino, contra os fariseus
legalistas de seu tempo, fala do desfrute dos prazeres e alegrias da vida, com cores
quase poéticas. Embora, ele em momento nenhum descuide de nos lembrar da
“grande necessidade de freqüentemente retirar-nos das coisas do mundo para que
não sejamos arrastados e como que enfeitiçados por tais afagos e lisonjas”.
171
Bastante singular é a história dos anabatistas. Certamente representou o
mais radical dos movimentos religiosos surgidos no século XVI. Ao falarmos dos
anabatistas não estamos falando de um único movimento. São diversos grupos, em
diversos países, com vários líderes. Em geral, podem ser classificados em
anabatistas, espirituais e racionalistas. Foram os únicos naquele período a defender
a separação entre Igreja e Estado e, em decorrência disso, defendiam uma igreja
formada unicamente de crentes que manifestassem pessoal e publicamente sua fé,
os quais deveriam ser batizados (o batismo no Espírito). Por conseguinte, eram
contra o batismo infantil. As crianças eram salvas em função de sua inocência, mas,
ao chegarem à idade da razão deveriam fazer sua opção pessoal por Cristo e,
assim, serem batizadas. Não aceitavam o conceito de justificação forense defendida
por Lutero, Zwínglio e Calvino, segundo o qual ao pecador arrependido é imputada a
justiça de Deus, ainda que ele mesmo não seja per si justo. Ao contrário, pregavam
170
CALVINO, 2006, p. 218-220.
171
CALVINO, 2006, p. 212.
69
a experiência da regeneração pela qual o Espírito Santo agia naquele que havia
nascido de novo tornando-o realmente justo interiormente. No geral, eram pacifistas.
Pregavam a liberdade de consciência e, portanto, eram contra o uso da força sica
em questões de fé. Alguns se posicionavam contra o estudo teológico e o
sacerdotalismo. Seu ideal era um retorno às raízes da igreja do Novo Testamento
172
.
Pelo que tudo indica os primeiros anabatistas surgiram na Zurique de
Zwínglio. Alguns dos seus discípulos romperam com o reformador suíço por serem
contra o batismo infantil praticado por ele. No início de 1525 os principais
representantes do movimento batizaram-se mutuamente. O primeiro a receber o
batismo pelas mãos de Conrado Grebel foi um ex-sacerdote católico chamado Jorge
Blaurock. Esta prática era considerada ilegal por decretos promulgados na época
dos imperadores Teodósio e Justino contra os donatistas. Essas antigas leis foram
logo retomadas e aplicadas contra os anabatistas. Milhares foram mortos tanto em
territórios católicos quanto nos protestantes. Muitas vezes, a forma utilizada para o
martírio era o afogamento, macabramente chamado de terceiro batismo. Esses
Irmãos Suíços não aceitavam a alcunha de anabatistas (rebatizadores) uma vez que
eles consideravam que aquele era o primeiro e verdadeiro batismo que o crente
estava recebendo.
A questão central era que os anabatistas achavam que os reformadores
magisteriais
173
não haviam sido radicais o suficiente. Ou seja, não purificaram a
Igreja totalmente dos desvios tomados pela Igreja Católica. Os anabatistas eram os
“protestantes do protestantismo”
174
. Era necessário mais: uma restauração total do
Cristianismo do Novo Testamento. Isto passava pela teologia, mas também por
questões litúrgicas e de governo eclesiástico
175
. Alguns anabatistas, como Conrad
Grebel, chegaram a repudiar o canto na liturgia. Em 1524, Tomas Müntzer, outro
famoso anabatista, recebeu uma carta deste grupo que o congratulava por rejeitar o
batismo infantil mas, ao mesmo tempo, alertava-o: “Nós entendemos e temos visto
que tu traduziste a Missa para o alemão e introduziste novos hinos alemães. Isso
172
OLSON, Roger. História da Teologia Cristã: 2.000 anos de tradição e reformas. São Paulo: Vida, 2001. p. 425-
426.
173
Reformadores magisteriais eram aqueles que não viam necessidade de separação entre Igreja e Estado. Ao
contrário, estavam ligados aos governantes de suas regiões e deles recebiam apoio. Magistrados era nome
genérico utilizado para príncipes, prefeitos, vereadores, juízes, etc.
174
Cf. OLSON, 2001, p. 426.
175
Cf. GONZALEZ, 2004, p. 91.
70
não pode ser bom, desde que não achamos nada ensinado no Novo Testamento
sobre cantar, nenhum exemplo disso”.
176
Em busca desta restauração da Igreja, os anabatistas espirituais
enfatizavam a “luz interior” do Espírito agindo na vida dos verdadeiros cristãos
177
.
Chegaram a afirmar que a igreja visível, externa não era necessária. Coisas como
batismo e Ceia eram descartáveis. Até mesmo a palavra escrita deveria ser deixada
de lado. O importante era a voz e a experiência interior do Espírito
178
. Vemos a
influência do dualismo espírito-matéria nesta posição dos espiritualistas em separar
o mundo material do espiritual. Os Quaker, fundados por George Fox no século XVII
são herdeiros destes grupos. Os anabatistas racionalistas, por sua vez, propuseram
a aplicação da razão no estudo das Escrituras. Não uma razão autônoma como no
Iluminismo posterior, mas uma razão iluminada pelo Espírito e pelas Escrituras
179
.
Assim, questionaram doutrinas tradicionais como a Trindade e a Encarnação. Um
dos mais famosos anabatistas racionalistas foi o médico espanhol Miguel de
Serveto. Sua insistência em afirmar que a Trindade e a Encarnação são
indefensáveis, não encontrando base nas Escrituras o levou a fugir da Inquisição
Espanhola para acabar morrendo queimado na Genebra de Calvino
180
.
Um dos grupos mais radicais foi o dos anabatistas revolucionários. Em face
da brutal perseguição que sofreram e com a morte da maioria dos líderes mais
moderados, os extremismos proliferaram entre os anabatistas. Pregações
milenaristas tornaram-se a tônica desses líderes. Melquior Hoffman, por exemplo,
afirmava receber “revelações de um fim iminente, quando Cristo voltaria e
estabeleceria seu reino numa nova Jerusalém”.
181
Hoffman rejeitou o pacifismo dos
anabatistas primitivos e convocou seus seguidores a pegarem as espadas e lutarem
contra os inimigos do Senhor. A mais famosa conseqüência provocada por estes
anabatistas revolucionários foi a ocorrida na cidade de Münster. Após conquistarem
a cidade, liderados por João Matthys e João de Leyden e, em função de seu
crescente ascetismo, os anabatistas “começaram a queimar e destruir todos os
176
Cf. GONZALEZ, 2004, p. 91.
177
Cf. OLSON, 2001, p. 426.
178
Cf. GEORGE, Timothy. Teologia dos Reformadores. São Paulo: Vida Nova, 2000. p. 254.
179
Cf. GEORGE, 2000, 254.
180
Cf. GONZALEZ, 2004, p. 103.
181
GONZALEZ, 2004, p. 95.
71
manuscritos, obras de arte, e outras memórias da tradicional, e então
prosseguiram expulsando da cidade todos os “ímpios” a saber, os católicos e os
protestantes moderados”.
182
Depois de inúmeros confrontos entre as forças do Bispo
que cercavam a cidade e os anabatistas revolucionários e após meses de cerco com
a fome tomando conta dos moradores de Münster, finalmente, a cidade foi
reconquistada pelos católicos e as atrocidades que se seguiram foram coroadas
pela tortura e execução de João de Leyden que havia declarado Münster a Nova
Jerusalém onde o Reino de Deus seria estabelecido
183
.
De modo geral, os anabatistas advogavam a separação e isolamento total
do mundo. Os protestantes, seguidores de Lutero, Zwínglio e Calvino eram
considerados por eles como mundanos. Baltasar Hubmaier, o mais teológico dos
líderes anabatistas, não cansava de enfatizar que a Igreja deveria ser constituída tão
somente dos “crentes” realmente convertidos
184
. Ele chegou a escrever um
Catecismo Cristão no qual defendia a existência de três tipos de batismo: o batismo
no Espírito, na água e no sangue. O primeiro é “a iluminação interior do nosso
coração realizada pelo Espírito Santo mediante a Palavra viva de Deus”. O batismo
na água era o testemunho externo do batismo interior com o Espírito Santo. E,
finalmente, o batismo no sangue era “a mortificação diária da carne até a morte”.
185
Esta era sua visão de vida cristã.
Menno Simons talvez seja o der anabatista mais conhecido. Os Irmãos
Menonitas, seus herdeiros, existem até hoje espalhados em comunidades em várias
partes do mundo. Ele também pregava a separação do mundo o qual ele chamava
de Sodoma, Egito e Babilônia
186
. Sua ênfase era em uma confiança irrestrita à
autoridade da Bíblia. Assim, tudo o que não está na Bíblia deve ser eliminado da
verdadeira Igreja. Timothy George cita as palavras do próprio Menno Simons que
afirmava: “Não sequer uma palavra que se possa encontrar nas Escrituras [...] a
respeito de suas unções, cruzes, capas, togas, purificações imundas, claustros,
capelas, sinos, órgãos, música de coro, missas, ofertas, usos antigos, etc”.
187
182
GONZALEZ, 2004, p. 96.
183
Cf. GONZALEZ, 2004, p. 97.
184
Cf. OLSON, 2001, p. 431.
185
Cf. OLSON, 2001, p. 432.
186
Cf. GONZALEZ, 200, p. 98.
187
SIMONS, apud GEORGE, 2000, p. 272.
72
Portanto, tudo isso deveria ser extirpado do seio da Igreja.
O anabatismo representou uma tendência ascética no contexto protestante.
Sua santidade era de negação e baseada no isolamento. Muitas vezes a
interpretação das Escrituras beirava o simplismo como no caso da defesa da
poligamia em Münster
188
. O movimento ajudou a pavimentar o longo caminho que o
protestantismo percorrerá nos séculos seguintes em direção a uma defesa de vida
cristã baseada em uma moral platônica. Ao mesmo tempo contribuiu para o
estabelecimento de princípios protestantes importantes como a liberdade de
consciência, a democracia e a autonomia humana.
Também peculiar foi a história da Reforma na Inglaterra. Para os fins deste
trabalho não nos interessa entrar em muitos detalhes históricos acerca das
circunstâncias nas quais se deram o Anglicanismo. Contudo, importante é ressaltar
que a Reforma inglesa não começou exatamente como uma reforma religiosa. O
rompimento com Roma se deu em face do desejo do Rei Henrique VIII de ter seu
casamento com Catarina de Aragão anulado, não ter sido atendido pelo Papa em
função das pressões que este recebia do Imperador Carlos V, sobrinho da Rainha.
Questões de fundo como o desejo de Henrique de confiscar as propriedades
eclesiásticas e os pesados pagamentos de impostos a Roma também foram
importantes para a decisão final. A cisão definitiva veio com a aprovação pelo
parlamento inglês do Ato de Supremacia em 3 de novembro de 1534 através do qual
Henrique VIII e seus sucessores foram declarados “o único cabeça supremo na terra
da Igreja da Inglaterra”.
189
A par disso, e em que pese a morte de vários monges e
de outros súditos que se recusaram a reconhecer a supremacia do rei dentre estes
o mais famoso foi Sir Thomas More
190
doutrinária e liturgicamente a Igreja da
Inglaterra continuava católica romana. Deste ponto de vista, Henrique VIII
continuava um católico ortodoxo. As concessões que ele fizera ao protestantismo se
deram apenas em função de interesses políticos
191
. Mesmo assim, alguns avanços
ocorreram, sobretudo, pelas mãos do Arcebispo da Cantuária Thomas Cranmer
como, por exemplo, a disposição de uma tradução da Bíblia para o inglês. Havia um
pequeno grupo de protestantes desejosos de uma reforma abrangente nos moldes
188
Cf. GEORGE, 2000, p. 272.
189
WALKER, Wiliston. História da Igreja Cristã. Vol. 2. São Paulo: ASTE, 2006. p. 84.
190
Cf. WALKER, vol. 2, 2006, p. 84.
191
Cf. WALKER, vol. 2, 2006, p. 86.
73
da que ocorria no continente
192
.
Esta oportunidade surgiu com a morte do rei em 1547 e sua substituição
pelo seu filho Eduardo VI, então com nove anos de idade. O governo foi
efetivamente exercido pelo seu tio o Duque de Somerset com o título de Protetor.
Simpático ao protestantismo o Protetor permitiu que ocorressem avanços
consistentes na direção de uma reforma religiosa. Cranmer aproveitou o momento
para implementar uma série de medidas que levariam a Igreja Inglesa
definitivamente para os arraiais protestantes
193
. Durante os cultos a Bíblia passou a
ser lida em inglês, a Ceia passou a ser ministrada aos leigos com ambos os
elementos, os clérigos receberam permissão de se casar, as imagens foram
removidas das igrejas
194
. Mas, o mais importante ato de reforma deste período foi a
publicação em 1549 do Livro de Oração Comum. Se em sua primeira versão ainda
mantinha muitas das doutrinas e costumes católicos, na segunda edição (1552) e
sob influência de reformadores do continente que encontraram refúgio na Inglaterra
desses dias, o Livro de Oração Comum fez importantes avanços na direção do
protestantismo com viés reformado, zwingliano
195
. A par disso, o artigo sobre a Ceia,
embora substituindo o altar pela mesa o que denotava não mais ser considerada a
Eucaristia um sacrifício, manteve-se ambíguo em sua interpretação. Outro
importante documento preparado por Cranmer, com a assessoria de importantes
teólogos como John Knox, o reformador da Escócia, foi o credo anglicano conhecido
como os Quarenta e Dois Artigos que se tornaram a base para os Trinta e Nove
Artigos formulados posteriormente e que até hoje são, com algumas alterações, o
Credo da Igreja Anglicana. Thomas Cranmer, que se casara com uma luterana,
pode ser considerado o principal responsável pela protestantização do
anglicanismo
196
.
Maria Tudor sucedeu Eduardo VI em 1553. Com sua morte em 1558 subiu
192
Cf. WALKER, vol. 2, 2006, p. 84.
193
Houve um breve interregno durante o reinado de Maria Tudor (1553-1558) quando o Ato de Supremacia foi
anulado e a Inglaterra se submeteu novamente a Roma. Esta volta ao catolicismo romano perdurou apenas
durante o reinado de Maria, conhecida como A Sanguinária em face dos cerca de 300 martírios de protestantes
ocorridos em seu governo. Neste período foram martirizados o Arcebispo Thomas Cranmer, e os bispos Nicolas
Ridley e Hugo Latimer todos líderes do movimento reformista, dentre outros. Cf. GONZALEZ, 2004, p. 186.
194
Cf. GONZALEZ, 2004, p. 185.
195
Cf. GONZALEZ, 2004, p. 186.
196
Cf. OLSON, 2001, p. 448.
74
ao trono Elizabeth. A nova Rainha que governaria por longos 45 anos iniciou seu
governo implementando medidas cautelosas. Seu principal objetivo era unificar a
Inglaterra e reformas religiosas radicais não seriam apropriadas para este intento.
Como desejava uma única Igreja na Inglaterra, Elizabeth fez promulgar logo no início
de seu governo o Ato de Uniformidade Elizabetana. Através dele a Igreja Anglicana
assumiria uma teologia moderadamente protestante com liturgia e governo
moderadamente católicos. Esta via media adotada por Elizabeth desagradou a
muitos de ambos os lados que desejam ver a Inglaterra ou plenamente protestante
ou planamente católica. Assim se expressa o historiador Roger Olson:
A Igreja Anglicana parecia muito católica do ponto de vista dos protestantes
europeus, especialmente dos teólogos e ministros reformados, que
consideravam a Genebra de Calvino o modelo do que a igreja deveria ser.
Em contrapartida, Roma a condenava por ser demasiadamente protestante,
porque não dava o menor espaço para o papado nem para as doutrinas e
práticas tipicamente católicas, como a transubstanciação, o purgatório, as
penitências e as obras meritórias de caridade.
197
O historiador Justo Gonzalez aponta nesta mesma direção ao afirmar:
O acordo de Elizabeth pode, então, ser visto como uma tentativa de se
desenvolver um meio termo entre o Catolicismo Romano e a forma que a
Reforma Protestante estava tomando no continente. Como resultado, ele
teve que lutar com os elementos mais radicais em seu seio e esta luta
resultou em revoltas políticas. Mas no longo prazo, a via media Anglicana
sobreviveria como a forma mais característica do Cristianismo na Inglaterra,
enquanto outras formas da Católica Romana ao Protestantismo Radical
continuariam existindo lado a lado com a mesma.
198
A compreensão desses fatos, com as opções feitas pela Rainha Elizabeth e
as características assumidas pela Igreja Anglicana são importantes para
entendermos o assunto que será abordado a seguir: o surgimento do puritanismo.
Se no seio da Igreja Luterana surgiria no século XVII o Pietismo como reação às
características notadamente intelectualizantes e acadêmicas do luteranismo, na
Inglaterra, os Puritanos apareceriam, ainda no século XVI, como uma força contrária
àquilo que eles consideravam serem elementos católicos em excesso no seio da
Igreja de Sua Majestade.
197
OLSON, 2001, p. 443.
198
GONZALEZ, 2004, p. 198.
75
3.2 Puritanismo e Pietismo o avanço do ascetismo protestante
A crescente tendência ascética na história do protestantismo tem no
Puritanismo e no Pietismo importantes instrumentos para sua consolidação. Os
puritanos ingleses se levantaram contra os “trapos do papismo” como eles se
referiam aos elementos tipicamente católicos presentes na liturgia e governo
eclesiástico da Igreja Anglicana. Inicialmente, os puritanos o nome decorre do
desejo de „purificar‟ a igreja não tinham a intenção de romper com a Igreja oficial.
O que eles intentavam era livrá-la de ofícios considerados remanescentes do
catolicismo como o uso de vestes clericais, ajoelhar-se na hora de receber a Ceia, a
troca de alianças no casamento, fazer o sinal da cruz, o sistema de governo
episcopal etc. Tudo isso era considerado superstição romana
199
. Esses sentimentos
foram intensificados nos dias do reinado de Maria, a Sanguinária quando muitos
protestantes ingleses se refugiaram no continente e retornaram para a Inglaterra sob
a forte influência do protestantismo continental, mormente de cidades como
Genebra, Zurique, Estrasburgo e de regiões da Holanda.
Desse modo, a Igreja da Inglaterra estava dividida em partidos. Havia
aqueles que pertenciam à Igreja Alta, ritualistas partidários do Livro de Oração e os
da Igreja Baixa, evangelicais.
[os partidários da Igreja Alta] defendiam a sucessão apostólica como ordem
correta do ministério e argumentavam em favor da autoridade espiritual
especial para os sacerdotes da igreja. Embora afirmassem doutrinas
tipicamente protestantes das Escrituras e da salvação, queriam uma igreja
hierárquica com bispos estreitamente ligados à coroa e uma liturgia formal
com base em um livro de culto uniforme. O partido evangelical da Igreja
Baixa era composto pelos herdeiros dos “evangélicos fervorosos” dos
tempos de Cranmer, cuja maioria tinha sido queimada na fogueira ou
exilada para a Europa continental no reinado de Maria, a Sanguinária.
Queriam que a Inglaterra seguisse o exemplo da reforma da Escócia
liderada por Knox. Cada vez mais, pediam a abolição do Livro de oração
comum, dos bispos, do sacerdócio e da sucessão apostólica, bem como do
culto exageradamente litúrgico. [...] ficaram conhecidos como puritanos. Os
que seguiam a teologia ritualista da Igreja Alta foram chamados
anglicanos.
200
199
Cf. WALKER, vol. 2, 2006, p. 139.
200
OLSON, 2001, p. 444.
76
Esses dois grupos são bem representados por dois famosos teólogos da era
elizabetana, são eles: Richard Hooker e Walter Travers. Hooker foi um árduo
defensor da Igreja Alta, da Uniformidade Elizabetana, da liturgia formal e do sistema
de governo eclesiástico episcopal. De fato, ele era partidário de princípios
protestantes fundamentais como a Bíblia por regra, o papel da graça mediante a
na salvação, e a idéia de justiça forense, imputada por Deus aos homens
independentemente de seu estado. Ao mesmo tempo ele destacava o papel do livre-
arbítrio e a participação do ser humano no processo de salvação
201
. Walter
Travers era um crítico do anglicanismo nos moldes puritanos clássicos. Ambos
dividiram o púlpito do Templo de Londres por isso um historiador disse que neste
Templo “o sermão da manhã expressava Cantuária e o sermão da tarde
Genebra”.
202
As posições puritanas e anglicanas ficam patentes nas pregações
desses dois personagens.
Hooker apresentava defesas meticulosamente arrazoadas do governo
eclesiástico e da liturgia da Igreja Alta e argumentava que o pensamento
católico, embora fosse herético em alguns aspectos, não estava
inteiramente errado. Enfatizava, por exemplo, a idéia escolástica de que a
graça segue a natureza humana, em vez de contradizê-la e defendia a
crença no livre-arbítrio e no conceito moderamente sinergista de salvação.
Até ousou sugerir que os católicos romanos, embora estivessem errados
em suas crenças, pudessem chegar ao céu afinal. Travers pregava a
predestinação, bem como o fogo e enxofre do inferno para todos os
católicos, declarados ou não, em seus sermões vespertinos e declarou do
púlpito do Templo que o Livro de Oração Comum, as vestes sacerdotais, as
imagens dos santos e toda e qualquer relíquia e vestígio da tradição católica
deviam ser abolidos da igreja.
203
Com o acirramento de posições, o próprio ambiente puritano se dividiu em
determinadas querelas acerca do sistema de governo, doutrinas soteriológicas, bem
como, entre aqueles que desejam permanecer na Igreja oficial e os separatistas.
Inicialmente contrários a idéia de separação da Igreja da Inglaterra, liderados por
Thomas Cartwright, uma ala dos puritanos deu, finalmente, origem ao
presbiterianismo inglês nos moldes da Igreja Presbiteriana da Escócia. Separatistas
mais radicais como Robert Browne e, depois dele John Smyth, John Murton, Henry
Jacó e William Ames, dentre outros, deram origem ao congregacionalismo inglês e
201
Cf. OLSON, 2001, p. 451.
202
LANE, Tony. Pensamento Cristão: da Reforma à Modernidade. Vol.2. São Paulo: Abba Press, 2000, p. 46.
203
OLSON, 2001, p. 444-445.
77
às Igrejas Batistas, influenciados por idéias vindas, principalmente, da Holanda
204
.
Assim, no caldeirão puritano havia ingredientes calvinistas, arminianos,
anabatistas, e, quanto ao governo eclesiástico, presbiterianos e congregacionais.
Daí o surgimento, dependo das opções teológicas e de governo, de presbiterianos,
congregacionais, batistas gerais (arminianos) e batistas particulares (calvinistas),
além de outros grupos de menor importância. Essas denominações constituíram as
chamadas Igrejas Livres. Embora divergindo nestes pontos, o fundamento de todos
era um só: a Igreja é constituída dos verdadeiros crentes que o são voluntariamente
e por decisão pessoal. Esta Igreja é governada por Cristo. A Bíblia, interpretada com
rigor, era sua regra de e prática. A santificação era requerida em termos
moralistas e legalistas, portanto, a separação do mundo era condição sine qua non
para todos. Um desses grupos congregacionalistas, exilado na cidade de Leyden, na
Holanda, embarcou em 1620 no Mayflower rumo às colônias inglesas na América,
eram os “Pais Peregrinos”. Em 21 de dezembro desse mesmo ano esses cerca de
300 puritanos congregacionais lançaram os fundamentos de Plymouth na Nova
Inglaterra. O desejo do grupo era fundar ali a Nova Canaã, aquela deveria ser uma
nação cristã por excelência, com liberdade religiosa e de consciência para todos
205
.
Talvez a mais famosa obra do puritanismo inglês seja O Peregrino de John
Bunyan. O livro retrata bem a visão dualista da vida propugnada pelos puritanos. A
caminhada do cristão rumo à Cidade de Deus é penosa e árdua, nela não há espaço
para a alegria e o prazer. Percorrê-la foi um ato voluntarioso do crente. O outro
caminho é largo, festivo, alegre, cheio de atrações, mas, seu fim, é a Cidade da
Destruição.
Outra reação ascética na história do protestantismo foi um importante
movimento do século XVII conhecido como Pietismo. O Pietismo surge em uma
época em que a ortodoxia protestante estava bastante avançada. Por ortodoxia
nos referimos à forma como a teologia protestante foi elaborada depois de passados
os primeiros e dinâmicos anos do movimento propriamente dito. Foi a forma
escolástica de sistematização do pensamento protestante. Uma teologia com fortes
fundamentos racionais
206
. Falarmos de ortodoxia protestante não é a mesma coisa
204
Cf. WALKER, vol. 2, 2006, p. 140-147.
205
Cf. WALKER, vol. 2, 2006, p. 147.
206
Cf. TILLICH, 2000, p. 272.
78
que falarmos de Reforma Protestante. Assim, por exemplo, quando nos referimos ao
calvinismo não estamos falando necessariamente das idéias originais de Calvino;
falarmos de luteranismo não significa um emparelhamento com Lutero, e assim por
diante. Para a ortodoxia o elemento doutrinário foi muito mais importante do que
para a primeira geração de reformadores, embora estes não descuidassem dela
207
.
Neste ponto, Paul Tillich nos uma explicação deveras importante sobre o
conceito que a ortodoxia fazia (e faz) da autoridade da Bíblia. Concentremo-nos no
terceiro ponto de sua exposição. Ele diz que para os ortodoxos a autoridade da
Bíblia se mantinha:
[...] pelo testemunho do Espírito Santo. Este testemunho, entretanto,
adquiria novo sentido. Não mais tinha a ver com o pensamento paulino de
que somos filhos de Deus (“O Espírito de Deus se une ao nosso espírito
para afirmar que somos filhos de Deus”, Romanos 8:16). Em lugar disso, ele
testemunha que as doutrinas das Santas Escrituras são verdadeiras e
inspiradas por ele. Em lugar da imediatez do Espírito nas relações entre
Deus e seres humanos, o Espírito dá testemunho da autenticidade da Bíblia
enquanto documento do Espírito divino. A diferença entre as duas atitudes,
é que se o Espírito nos diz que somos filhos de Deus, temos uma
experiência imediata, e não lei nessa experiência. Mas se o Espírito
testemunho de que a Bíblia contém doutrinas verdadeiras, a coisa toda
deixa de fazer parte dessa relação entre pessoas e se transforma num
relacionamento objetivo e legalista. Foi exatamente o que fez a ortodoxia.
208
É exatamente em face da formatação de tal teologia que surge o Pietismo.
Como diz Tillich o Pietismo é a reação do lado subjetivo da religião contra o lado
objetivo”.
209
Diante do dogmatismo, da rigidez e da inflexibilidade doutrinária da
ortodoxia e da institucionalização da religião os pietistas queriam uma religião viva.
para eles não era crer em determinadas doutrinas, mas união mística com Deus.
O sentimento e a experiência subjetiva foram trazidos para o primeiro plano. O
pastor luterano Philip Jakob Spener é considerado o Pai do Pietismo. Tendo
estudado em Estrasburgo, Basiléia e Genebra, Spener foi fortemente influenciado
pelas idéias reformadas, mas também, pelo puritanismo inglês a partir de contatos
com obras puritanas traduzidas para o alemão como, por exemplo, as de Richard
Baxter. Contribuição importante para o início do movimento ele deu ao reunir em sua
casa, quando pastoreava a comunidade de Frankfurt, um grupo de pessoas para ler
207
Cf. TILLICH, 2000, p. 273-274.
208
TILLICH, 2000, p. 275-276.
209
TILLICH, 2000, p. 279.
79
a Bíblia, orar e discutir o sermão dominical. A estes grupos ele chamou de collegia
pietatis (círculos piedosos). Em sua clássica obra Pia Desideria (Desejos Piedosos),
publicada em 1675, também defendia a criação de círculos nas congregações
chamados de ecclesioloe in ecclesia (algo como igrejinhas dentro das igrejas) para
vigilância mútua e auxílio
210
.
Spener demonstra seu posicionamento diante da ortodoxia protestante ao
afirmar:
O pior de tudo é que a falta de frutos da na vida dos pastores indica que
eles são carentes de fé. O que eles pensam ser e na qual baseiam os
seus ensinamentos não é a verdadeira fé, despertada pela Palavra de
Deus, iluminada, testemunhada e selada pelo Espírito Santo. Trata-se de
uma fantasia humana. Assim como muitos outros adquiriram conhecimentos
em seus campos de estudo, esses pastores aprenderam muita coisa a
respeito das Escrituras, compreenderam e aceitaram a verdadeira doutrina,
sabem como pregá-la. Mas tudo isso foi obtido pelo próprio esforço
humano, sem a obra do Espírito Santo, sem comprometimento com a e
seus frutos.
211
Ele recorria constantemente a Lutero defendo que suas pregações eram
uma tentativa de resgate do Lutero original, deformado nos teólogos luteranos
posteriores a ele. Assim, ele dizia: “Em Lutero, encontramos a experiência e o
grande poder espiritual dela advindo, juntamente com uma sabedoria que se soma à
simplicidade; nos teólogos posteriores, encontramos um vazio”.
212
Por isso, ele
completava: “Quando o homem se deixa seduzir pelo charme da razão, a
simplicidade e os ensinamentos de Cristo tornam-se insossos”.
213
Ou seja, a
experiência subjetiva de Lutero e de outros reformadores como Zwínglio e Calvino
era a arma utilizada pelos pietistas contra o objetivismo teológico pretendido pelos
ortodoxos, luteranos e calvinistas
214
.
Ao que parece Spener foi um homem sincero que desejou verdadeiramente
ver a Igreja purificada de seus desvios, como um lugar de comunhão, de exercício
do sacerdócio universal e da prática do amor cristão
215
. Ele se escandalizava com a
210
WALKER, vol. 2, 2006, p. 191-192.
211
SPENER, Philipp Jakob. Pia Desideria. São Paulo: Imprensa Metodista/Ciências da Religião, 1985. p. 27.
212
SPENER, 1985, p. 31.
213
SPENER, 1985, p. 34.
214
Cf. TILLICH, Paul. Perspectivas da Teologia Protestante nos séculos XIX e XX. São Paulo: ASTE, 1999. p. 49-
50.
215
Cf. SPENER, 1985, p. 60-62.
80
situação moral dos pastores e membros das igrejas luteranas dos seus dias.
Criticava a bebedeira e aqueles que faziam distinção entre esta e o beber
ocasionalmente. Para ele ambos eram pecados e chegou a prever a perda da
salvação para quem não se livrasse desses vícios
216
. Cria que muitos não se
convertiam devido a imoralidade da igreja: “Essa situação trágica é o maior
empecilho para que muitas pessoas bem intencionadas, ainda pertencentes a
Igrejas heterodoxas (especialmente a romana) e alertadas para o perigo das
abominações, não se unam a nós”.
217
Seus interesses transcenderam o ambiente
eclesiástico ao demonstrar preocupação com a situação de penúria social do povo.
Um importante centro pietista foi formado com a inauguração da
Universidade de Halle. Augusto Francke foi o líder pietista de destaque nesta
Universidade. Seguindo os ensinamentos de Spener, os pietistas de Halle fundaram
um orfanato e inauguraram as missões protestantes em terras estrangeiras
218
. Estes
foram mais radicais que Spener. Em sua busca pela piedade pessoal enfatizavam a
negação do amor pelo mundo. Por isso, lutaram contra “os bailes, o teatro, os jogos,
os vestidos bonitos, os banquetes, as conversações superficiais da vida cotidiana,
relembrando em geral a atitude dos puritanos”.
219
Sua tensa relação com o mundo
da cultura era flagrante.
Outro notável pietista foi o Conde Nicolau Ludwig Von Zinzendorf que em
1722 concedeu refúgio em terras de sua propriedade a um numeroso grupo de
Irmãos Morávios, herdeiros da antiga igreja hussita da Boêmia, seguidores do pré-
reformador John Huss, os quais fugiam de condições adversas causadas,
sobretudo, como conseqüência da Guerra dos Trinta Anos (1618-1648). Esses
colonos fundaram nessas terras uma comunidade chamada Herrnhut a qual acabou
sendo de certa forma liderada por Zinzendorf. Profundamente ascética, levando a
sério o ideal de separação do mundo, viviam retirados em sua colônia. A partir de
1728 os jovens passaram a ser retirados de suas famílias, as crianças eram criadas
separadas dos pais, os casamentos eram arranjados, fomentava-se uma ardente
vida espiritual, a “religião do coração”
220
. Cultivavam grande entusiasmo missionário,
216
Cf. SPENER, 1985, p. 36-37.
217
SPENER, 1985, p. 44.
218
Cf. TILLICH, 2000, p. 279-280.
219
TILLICH, 2000, p. 281.
220
Cf. WALKER, vol. 2, 2006, p. 199.
81
tendo enviado pregadores para as Índias Ocidentais, Groelândia, África e para
colônias inglesas na América do Norte com o fim de evangelizaram os povos
indígenas.
O Pietismo prosperou nos séculos seguintes uma vez que ele se coadunava
melhor com os novos ventos que sopravam na Europa do que a ortodoxia
protestante. Esta advogava a autoridade suprema das Escrituras interpretada de
forma rigorosa, desembocando num perigoso biblicismo como temos visto. Ainda
que tendo a Bíblia como sua base e considerando-a em alta conta, o Pietismo
acrescentou a idéia de autonomia mística do fiel. Ou seja, a experiência pessoal e
subjetiva rompia de certa forma, com a autoridade da Igreja. Este rompimento com a
autoridade da Igreja era exatamente o que buscavam os novos pensadores do
século XVIII inaugurando o movimento filosófico conhecido como Iluminismo. Ambos
os movimentos se opõem ao autoritarismo ortodoxo. Por isso Paul Tillich pôde dizer
que “a autonomia moderna é filha da autonomia mística da doutrina da luz
interior”.
221
Se os pietistas estavam sendo iluminados pela “luz interior” do Espírito,
os filósofos do século XVIII estavam sendo iluminados pela “luz interior” da razão.
Esta é uma curiosa ambigüidade do movimento pietista: levantaram-se contra aquilo
que eles consideravam um excesso de confiança na razão no labor teológico dos
ortodoxos, mas com sua forte ênfase na subjetividade, ajudaram a dar à luz ao
racionalismo iluminista.
Podemos dizer que o Puritanismo e o Pietismo, ambos movimentos que
fazem parte do conservadorismo protestante e, portanto, ambos com sólidas
tendências ascéticas, na linha do dualismo, distinguem-se apenas nas ênfases: o
puritanismo mais concentrado na pureza doutrinária e o Pietismo na experiência
religiosa. Essas duas tendências vão caminhar lado a lado na história do
conservadorismo protestante daqui por diante.
221
TILLICH, 2000, p. 281.
82
3.3 Avivalistas, ortodoxos e liberais tensões e fissuras
Ainda que não seja importante, para os fins do nosso trabalho estudarmos
em detalhes a vida de John Wesley, o fato é que sua biografia está intimamente
relacionada com os movimentos avivalistas iniciados a partir do século XVIII. O
Metodismo, surgido a partir de seu labor evangelístico
222
confunde-se com o próprio
avivamento inglês deste século. Antônio Gouvêa Mendonça assim se refere ao
Metodismo:
[...] ênfase mais na conversão do que no batismo, mais na experiência
religiosa do que simplesmente pertencer a uma instituição religiosa. (...) A
certeza da conversão se dava pela capacidade de renúncia aos prazeres
sociais: jogo de cartas, jogos de azar, dança, freqüência a teatros e assim
por diante. A moralidade metodista irá exercer grande influência nas
concepções protestantes na América e nas suas áreas de missão.
223
Vemos, portanto, que no movimento metodista havia um critério para
avaliação do verdadeiro convertido: a negação do mundo demonstrada pela
abdicação aos prazeres desta vida. Além disso, o Metodismo consolida de forma
definitiva a exigência pela experiência emocional de conversão como marca de um
verdadeiro cristão, exigência esta que remonta aos primeiros anabatistas. Aliás, aqui
também se consolida a idéia do ser evangélico. Assumindo que existem opiniões
divergentes neste ponto
224
, nesse trabalho optamos por entender que o evangélico é
um tipo específico de protestante, sendo que este termo torna-se consistente com o
advento do Metodismo. Deste ponto de vista, quem é o evangélico? Em primeiro
lugar ele é anti-católico na linha puritano-pietista. Por conseguinte, identifica tudo o
que se relaciona com o catolicismo com o diabo, a heresia, a blasfêmia e o pecado.
Mas, ele também é anti um certo tipo de protestantismo, qual seja, o protestantismo
222
Tão importante quanto Wesley para o surgimento do Metodismo foi George Whitefield, provavelmente o
mais brilhante pregador deste século. Além dele, Charles Wesley irmão mais novo de John desempenhou
relevante papel, mormente, como o compositor do movimento tendo deixado cerca de 6 mil hinos ao final de
sua vida.
223
MENDONÇA, A. Gouvêa. O Celeste Porvir: A Inserção do Protestantismo no Brasil. São Paulo: Pendão
Real/ASTE/Ciências da Religião, 1995. p. 55.
224
Cf. BONINO, José Miguez. Rostos do Protestantismo Latino-Americano. São Leopoldo: EST/Sinodal, 2003. p.
31. Conferir especialmente o conteúdo da nota 1. e Cf. MENDONÇA, Antônio G. e VELASQUES FILHO, Prócoro.
Introdução ao Protestantismo no Brasil. São Paulo: Loyola, 1990. p. 81-82.
83
não conversionista, não purificado o suficiente de elementos católicos romanos,
representado notadamente por luteranos e anglicanos. Esta é uma tendência que
verificamos ainda hoje entre os evangélicos brasileiros que, grosso modo, olham de
soslaio para os membros dessas denominações considerando-os não convertidos
ou, quando muito, irmãos menores.
O Metodismo também pode ser entendido como uma espécie de síntese do
puritanismo e do Pietismo. Sendo ministro anglicano, Wesley foi influenciado por
idéias puritanas que perduravam (e perduram) na Igreja da Inglaterra. Além disso,
sua experiência de conversão imprimiu o subjetivismo típico do Pietismo no
Metodismo. John Wesley embarcou, em 1735, rumo à colônia da Geórgia com o
objetivo de servir como missionário entre os índios. Durante a viagem uma terrível
tempestade acometeu o navio e Wesley foi profundamente impactado por um grupo
de irmãos morávios também embarcados, os quais demonstraram grande coragem e
destemor ante a iminência da morte. Pouco depois de desembarcar ele foi
confrontado pelo líder local dos irmãos morávios. Ele registraria em seu diário:
Ele disse: “Meu irmão, [...] você tem o testemunho dentro de si? O Espírito
de Deus testifica com seu espírito que você é um filho de Deus? Eu fiquei
surpreso e não sabia o que responder. Ele observou isto e perguntou: Você
conhece Jesus Cristo? Hesitei e disse: Eu sei que Ele é o Salvador do
mundo”. Verdade”, replicou ele, mas você sabe que Ele o salvou? Eu
respondi: Eu espero que Ele tenha morrido para me salvar. Ele apenas
acrescentou: Você conhece a si mesmo? Eu disse: Conheço. Mas temo
que elas tenham sido palavras vãs.
225
Em 1738, de volta à Inglaterra e passando por um período de profundos
questionamentos, foi ele convidado para participar de um culto quando, finalmente,
encontrou o que procurava:
Ao anoitecer fui muito sem vontade a uma congregação religiosa na Rua
Aldersgate, onde alguém estava lendo o prefácio de Lutero à Epístola de
Romanos. Cerca de quinze para as nove, quando ele estava descrevendo a
transformação que Deus opera no coração através da em Cristo, senti
meu coração estranhamente aquecido. Eu senti que confiava em Cristo,
Cristo somente, para a salvação. E uma certeza me foi dada que Ele havia
tirado os meus pecados, os meus mesmo, e me salvado da lei do pecado e
da morte.
226
225
LANE, vol. 2, 2000, p. 59.
226
LANE, vol. 2, 2000, p. 60.
84
Esta experiência de conversão quando Wesley sentiu seu coração
“estranhamente aquecido” daria a tônica pietista em seu ministério daí até a sua
morte em 1791: “conversão, fé confiante, vida religiosa demonstrada em obras
ativas a favor dos outros”.
227
Sua adesão ao arminianismo pavimentou o caminho
para os evangelistas metodistas que no século XIX conquistariam o oeste
americano. A pregação calvinista em comparação soava um tanto elitista aos
ouvidos do povo. quando o pregador metodista pregava, ele convidava todo aquele
que quer; o calvinismo oferecia salvação aos eleitos”.
228
Sua defesa da
santificação pessoal foi rigorosa. Chegou mesmo a ponderar a possibilidade da real
perfeição ainda nesta vida na busca pela santidade
229
. Embora não tivesse superado
o dualismo, Wesley demonstrou séria preocupação com as opressões sociais de seu
tempo. Não pode ser rotulado de fundamentalista. Ao contrário, repudiou o
obscurantismo intelectual e a alienação cultural
230
. Advogou a abolição da
escravatura e manteve vínculos de amizade com os primeiros abolicionistas
ingleses. Seus interesses estenderam-se ao campo da medicina criando em 1746
um dispensário médico para atendimento aos pobres.
Esses movimentos avivalistas o se restringiram à Inglaterra. Nas colônias
americanas, e por influência de homens como Zinzendorf e Whitefield, os ventos do
avivamento sopraram com força. O principal nome deste período em terras
americanas é do pastor congregacional Jonathan Edwards. Edwards é considerado
por muitos o último grande pregador puritano
231
. Embora tenha sido além de teólogo
um insigne filósofo, Edwards acabou sendo conhecido mais pelo seu famoso sermão
“Pecadores nas Mãos de um Deus Irado”. Calvinista convicto, rigoroso em seus
sermões, Edwards foi expulso de sua congregação em Northampton por recusar a
Ceia aos freqüentadores da igreja que ele considerava não convertidos
232
. Ele cria
que somente os santos poderiam estar em verdadeira comunhão, estes eram os
eleitos de Deus
233
. Além dele, muitos outros pregadores avivalistas percorreram as
colônias americanas. Não faltaram excessos e exploração das emoções das massas
227
WALKER, vol. 2, 2006, p. 213.
228
REILY, DUNCAN A., 1977 apud MENDONÇA, 1995, p. 56.
229
Cf. OLSON, 2001, p. 526-527.
230
Cf. OLSON, 2001, p. 529.
231
Cf. OLSON, 2001, p. 507.
232
Sua expulsão também se deu por defender tratamento equânime para os índios. Cf. OLSON, 2001, p. 517.
233
Cf. WALKER, vol. 2, 2006, p. 220.
85
o que foi denunciado por Edwards em seu “Tratado a Respeito das Emoções
Religiosas” de 1746.
Como era de se esperar, esses avivamentos causaram tensões e fissuras
no ambiente protestante conservador típico das colônias. Poderíamos dizer que a
partir do século XVIII teremos, nessas colônias, os conservadores puritano-pietistas
partidários dos avivamentos
234
e os conservadores puritano-pietistas contrários a
qualquer indício de pregação avivalista. O teólogo neo-ortodoxo H. Richard Niebuhr
cita vários casos envolvendo conflitos entre esses dois grupos em seu livro As
Origens Sociais das Denominações Cristãs. Sobre as divisões entre os
congregacionais da Nova Inglaterra ele afirma:
O clero das antigas colônias especialmente de Boston e vizinhanças, mas
também de antigas cidades de Connecticut escandalizava-se com as
grosserias emotivas dos convertidos e o ardor indiscreto dos pregadores. A
divisão entre Velhas Luzes e Novas Luzes, como eram chamados os
partidos de apoio ou de oposição ao reavivamento foi agravada mas não
causada pelo calvinismo dos pregadores reavivalistas da fronteira sob a
liderança de Jonathan Edwards e pelas acusações feitas ao clero do Leste
conservador. Na Associação Geral de 1741 [...] pastores testemunharam
contra os que “levam em consideração os chamados impulsos secretos de
suas mentes sem o devido respeito à palavra escrita, às regras de conduta,
que nenhum é convertido a não ser aqueles que se sabe que se
converteram e quando” e condenaram as “paixões desenfreadas”, “os
tumultos desordenados e os comportamentos inconvenientes” dos
reavivamentos.
235
Esses pregadores avivalistas radicais itinerantes provocavam divisões nas
igrejas. Assim, eram acusados de “abominável invasão do ofício ministerial” e de
“espírito e prática divisionista nos rebanhos particulares aos quais as pessoas
pertencem para se juntarem a eles”.
236
Diante disso, os pastores dessas
congregações clamavam por “uma lei para moderar os abusos e corrigir as
desordens nos assuntos eclesiásticos” contra aqueles que “não têm legitimação
eclesiástica ou licença para pregar”.
237
Niebuhr também discorre sobre as tensões
no ambiente presbiteriano. Dessa forma ele descreve a posição daqueles que eram
234
Aqui poderíamos fazer uma subdivisão entre os avivalistas moderados, caso de Jonathan Edwards e os
avivalistas radicais-separatistas, como James Davenport o qual atacava os ministros que ele considerava como
não convertidos citando seus nomes do púlpito. Cf. WALKER, vol. 2, 2006, p. 218.
235
NIEBUHR, H. Richard. As Origens Sociais das Denominações Cristãs. São Paulo: Ciências da Religião/ASTE,
1992. p. 95-96.
236
NIEBUHR, 1992, p. 96.
237
NIEBUHR, 1992, p. 96.
86
contrários ao avivamentismo os quais acusavam seus adversários:
[...] de sustentar “princípios heterodoxos e anárquicos” negando a
autoridade dos presbitérios “para forçar seus membros dissidentes”, de
“fazer intervenções irregulares nas congregações com as quais não têm
imediata relação” de acreditar que o chamado ministerial não é transmitido
pela ordenação, mas por “certo impulso invisível, obra do espírito, que não
pode ser consciente ou perceptível a não ser pela própria pessoa”, e
“industriosamente levar as pessoas de mente fraca a paixões e emoções
que as fazem gritar de maneira chocante e cair em convulsões
espasmódicas”.
238
Os movimentos de despertamento espiritual adentraram o século XIX nos
Estados Unidos. Neste período conhecido como a Era Metodista”
239
, consolidaram-
se os vários fios desta longa trama na formação do protestantismo norte-americano.
O homem do meio-oeste, desbravador, individualista, empreendedor representava à
perfeição o espírito americano. Como afirmado anteriormente, o calvinismo com sua
defesa da soberania de Deus e da incapacidade do ser humano não se coadunava
bem com este espírito. O arminianismo metodista com sua ênfase na capacidade
humana de realização e no amor de Deus por todos era mais compatível com a
formação desta nova nação
240
. No ano de 1858, o Annus Mirabilis, eclodiu novo
grande despertamento. Grandes cruzadas evangelísticas foram organizadas. “A
ênfase era na „descida do Espírito Santo‟ e na guerra contra os vícios em
gigantescas reuniões de conversão e santificação”.
241
Se a resposta ao amor de
Deus era o empenho humano em servi-lo, isto involucrado por uma idéia de
santificação sob o influxo do dualismo platônico, o resultado era uma moral que
privilegiava as “coisas espirituais” e relegava os prazeres do corpo ao mundo do
pecado. A conseqüência foi que este novo despertamento trouxe consigo o ensino
do perfeccionismo, o qual estava presente nas doutrinas metodistas. Mendonça
assim explica o perfeccionismo: todo crente é santificado na medida em que, tendo
aceito a Cristo e dado a Ele integralmente seu coração, renuncia totalmente ao
pecado”.
242
Talvez o melhor exemplo da influência do dualismo no tipo de teologia que
238
NIEBUHR, 1992, p. 100-101.
239
Cf. MENDONÇA, 1995, p. 56.
240
Cf. MENDONÇA, 1995, p. 57.
241
MENDONÇA, 1995, p. 57.
242
MENDONÇA, 1995, p. 58.
87
se cultivou na formação do pensamento protestante norte-americano tenha sido
aquele que pode ser formulado como a “Doutrina da Igreja Espiritual”. Surgida entre
os presbiterianos mais conservadores esta doutrina configurou-se em função do
desconforto causado pela questão da escravidão na sociedade americana. Como
poderia a nação que se propunha ser a Nova Canaã, o povo cristão por excelência,
exemplo para os demais povos manter sob o jugo da escravidão os negros
africanos? A “Doutrina da Igreja Espiritual” resolvia o problema propondo que a
dimensão civil “pertence a César” e a dimensão espiritual “pertence à Igreja”. Sendo
a escravidão de cunho civil, a Igreja não deveria ser intrometer nesta questão
243
.
Mendonça cita uma frase do pastor sulista presbiteriano James Thornwell, o qual
afirmou que “as Escrituras não apenas deixam de condenar a escravidão, mas
claramente a sancionam como qualquer outra condição social do homem”.
244
Eis um
flagrante impulso platonista na teologia dos avivamentos com sua tendência em
separar o espiritual do temporal e assim justificar verdadeiras atrocidades
245
. Neste
ponto, a história da colonização católica na América Latina e a colonização
protestante na América do Norte são bastante parecidas.
Encontramos também esta dicotomia entre o espiritual e o temporal nos
diversos movimentos milenaristas que borbulhavam na América do Norte no século
XIX. O surgimento em 1831 dos Adventistas liderados pelo ex-batista William Miller
talvez seja o exemplo mais conhecido. Miller, baseado em estudos feitos no livro de
Daniel afirmou que a segunda vinda de Cristo se daria em 1843-44 e o Reino
milenar seria inaugurado com o estabelecimento de uma sociedade teocrática, na
qual não haveria nem pecado nem sofrimento. Um desenvolvimento posterior dos
Adventistas foi aquele criado por Charles Russel em 1870, as Testemunhas de
Jeová. Outro movimento milenarista bastante conhecido são os Mórmons a Igreja
dos Santos dos Últimos Dias fundada em 1830 por Joseph Smith. Esses são apenas
243
Cf. MENDONÇA, 1995, p. 58-59.
244
MENDONÇA, 1995, p. 59.
245
É bem verdade que no norte muitos evangélicos avivalistas eram abolicionistas com a organização inclusive
de uma Sociedade Americana contra a Escravidão em 1833. Dentre estes avivalistas abolicionistas destacam-se
Charles Finney e Teodoro Dwight Weld. Também é digno de nota a formação da Igreja Metodista Wesleyana da
América em 1843 composta exclusivamente de membros não escravocratas. A maioria das grandes
denominações se dividiu em função da controvérsia em torno da questão da escravidão. Em geral, os cristãos
do norte eram abolicionistas e os do sul escravocratas. Essas divergências, dentre várias outras causas,
acabaram culminando na Guerra Civil Americana em 1861. Cf. WALKER, vol. 2, 2006, p. 273, 277.
88
os mais conhecidos dentre, literalmente, dezenas de outros grupos
246
. Todos esses
movimentos demonstravam forte influência dualista em sua teologia e moral
247
.
Essencial também para se entender o pensamento protestante norte-
americano é a compreensão daquilo que se chamou de “Destino Manifesto”. Essa
ideologia, presente na mentalidade dos “Pais Peregrinos” do Mayflower, afirmava
serem os colonos puritanos da Nova Inglaterra o novo povo escolhido de Deus.
Esses novos israelitas construiriam nessas terras a América cristã, nação esta que
seria instrumento de salvação para o restante do mundo perdido. Eles eram os
eleitos.
Para muitos líderes e pensadores eclesiásticos, a vinda do Reino se daria
após a implantação da civilização cristã; por isso, a cristianização da
sociedade seria uma preparação para a vinda do Reino de Deus. Sendo a
vinda do Reino não algo particular para os americanos, mas um evento
cósmico, [era necessário se conquistar o mundo para a cristã conforme a
concebia o protestantismo americano].
248
Antônio Gouvêa Mendonça ainda cita uma pérola da ideologia do Destino
Manifesto produzida por um pastor metodista bastante em sintonia com o ideal de
um povo escolhido por Deus:
Deus está usando os anglo-saxões para conquistar o mundo para Cristo a
fim de despojar as raças fracas e assimilar e moldar outras. O destino
religioso do mundo está nas mãos dos povos de fala inglesa. À raça anglo-
saxã, Deus parece ter entregue a empresa de salvação do mundo.
Portanto, uma cultura genuinamente cristã precisava ser forjada. O ideal
puritano-pietista de santidade se impôs com vigor. Comportamentos incompatíveis
com a moral puritana não seriam tolerados. Campanhas de combate ao fumo, à
bebida alcoólica, aos jogos de azar, pela guarda do domingo foram organizadas.
Religião e civilização se confundiam nesse programa. A partir dessa mentalidade, a
pregação do evangelho pelos missionários e a pregação do American Way of Life se
embaralhavam numa única coisa. Ser cristão era viver o estilo de vida do protestante
246
Cf. MENDONÇA, 1995, p. 60.
247
Cf. WALKER, vol. 2, 2006, p. 279.
248
MENDONÇA, 1995, p. 60.
89
americano
249
. O canal privilegiado para a difusão dos ideais do Destino Manifesto
era a religião. Ou seja, a expansão da influência norte-americana no mundo e a
propagação da cristã protestante eram os dois lados de uma mesma moeda
250
. A
resposta dos ouvintes a tais pregações gerou um tipo de Cristianismo com ética
fortemente individualista, ascética e negadora do mundo. A insistente ênfase na vida
celeste em detrimento da vida neste mundo era influência da teologia platonizada.
Foi nesse contexto que se formaram os grandes empreendimentos missionários
norte-americanos cujo vigor é inigualável na história das missões cristãs de qualquer
época. Em sua bagagem, os missionários e missionárias levariam a religião e a
política americanas até os confins da terra
251
, incluindo o Brasil.
Finalmente, queremos fazer breve referência à Teologia Liberal surgida no
início do século XIX e à reação ortodoxa que se seguiu. Diversos fatores como a
Renascença Italiana, o Humanismo, a Reforma Protestante, a Revolução Científica
do século XVII, o Iluminismo e a Revolução Francesa, dentre outras causas,
configuraram o que chamamos de Modernidade. Esta se caracterizou pela
secularização da consciência em substituição aos dogmas, pela razão em
substituição às crenças cristãs, pelo antropocentrismo em substituição ao
teocentrismo e pelo saber técnico-prático em substituição ao saber teológico,
metafísico e contemplativo. Sem perguntarmos por todos os nomes, fatos históricos,
enunciados e princípios engendrados nessa trama, é importante entendermos que a
Modernidade representou em termos práticos o surgimento de um Estado neutro em
questões religiosas e da evolução científica sem precedentes na história da
humanidade. A este respeito, Richard Tarnas se expressa da seguinte maneira:
Entre os séculos XV e XVI, o Ocidente presenciou a emergência de um ser
humano autônomo e dotado de uma consciência de si mesmo curioso em
relação ao mundo, confiante em sua capacidade de discernimento, tico
quanto às ortodoxias, rebelde contra a autoridade, responsável por suas
crenças e ações, apaixonado pelo passado clássico e ainda mais
empenhado num futuro maior, orgulhoso de sua humanidade, consciente de
sua distinção, ciente de sua força artística e individualidade criativa, seguro
de sua capacidade intelectual para compreender e controlar a Natureza e
249
Daí a formulação do acrônimo W.A.S.P. White Anglo-Saxon Protestant (branco, anglo-saxão e
protestante).
250
Cf. MENDONÇA, 1995, p. 63.
251
Isto também lembra, em parte, a colonização católica na América Latina. Os missionários jesuítas estavam à
serviço de Sua Santidade e de Sua Majestade ao mesmo tempo, assim como os missionários protestantes
estavam à serviço do protestantismo e do american way of life simultaneamente.
90
bem menos dependente de um Deus onipresente.
252
Interessam-nos, sobretudo, as conseqüências dessa nova era da
humanidade sobre o labor teológico uma vez que, a razão passou a ser o critério
através do qual determinado enunciado seria aceitável ou não. A última palavra
estava com a razão e não mais com a Igreja institucional. Essa nova forma de
elaboração do saber provocou o surgimento de uma nova teologia: a teologia natural
ou Deísmo. O ideal dos deístas era a criação de uma religião que pudesse ser aceita
em termos universais posto que baseada na razão e não na revelação ou em
superstições. Embora afirmando a crença em um Deus criador e bondoso, os
deístas rejeitavam os milagres. Para eles, a crença em milagres tirava a dignidade
de Deus que teria criado todas as coisas de forma perfeita sem a necessidade de
intervenções sobrenaturais. Assim, acabaram colocando em xeque a base sobre a
qual se sustentava a protestante: a Bíblia. Para eles a Bíblia era passível de erros
e, por conseguinte, poderia ser questionada. Também afirmavam que outras
religiões são tão válidas para a humanidade quanto o Cristianismo. O objetivo final
das religiões era gerar comportamentos éticos em benefício de toda a sociedade;
este seria o crivo pelo qual a relevância de uma religião seria avaliada
253
.
Os deístas são os precursores dos teólogos liberais. Roger Olson afirma que
a Teologia Liberal propunha “a necessidade de reconstruir o pensamento tradicional
cristão à luz da cultura, filosofia e ciência modernas e, segundo, a necessidade de
descobrir a verdadeira essência do Cristianismo, destituído dos dogmas
tradicionais”, isto porque esses dogmas “não eram mais relevantes, nem passíveis
de serem cridos à luz do pensamento moderno”.
254
Em outras palavras, os liberais
desejavam manter um canal de diálogo permanentemente aberto com o mundo
moderno. Imediatamente, isto ocasionou a reação do conservadorismo ortodoxo
protestante. Nos Estados Unidos daquele tempo, a ortodoxia era representada
principalmente pelos teólogos da Faculdade de Teologia de Princeton.
Curiosamente, ao se levantarem contra o domínio da razão propugnada pelos
liberais, os ortodoxos utilizaram do mesmo instrumental teórico e racional para
252
TARNAS, Richard. A Epopéia do Pensamento Ocidental: para compreender as idéias que moldaram nossa
visão de mundo. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2008. p. 305.
253
Cf. OLSON, 2001, p. 531-546.
254
OLSON, 2001, p. 547.
91
defenderem suas posições. Charles Hodge, professor de Princeton e o principal
representante daquele período afirmou em sua Teologia Sistemática: A Bíblia é
para o teólogo o que a natureza é para o cientista. É seu armazém de fatos e o
método de verificar o que a Bíblia ensina é o mesmo que o filósofo natural adota
para verificar o que a natureza ensina‟‟.
255
Na luta contra o liberalismo, um novo
surto de escolasticismo teológico surgiu. Assim como o cientista natural buscava a
superação da subjetividade no estudo de determinado fenômeno, o teólogo ortodoxo
buscava o estudo objetivo da Bíblia, com formulações racionalmente coerentes e
verificáveis. Esse era o método que eles utilizavam para a formulação de suas
teologias sistemáticas. Além disso, os teólogos de Princeton acreditavam que
Calvino havia redescoberto a verdadeira doutrina. Por essa razão inovações ou
desenvolvimentos teológicos eram prescindíveis. Ao teólogo restava apenas
“garantir e defender a „verdade transmitida de uma vez por todas‟ na ortodoxia
protestante e evitar a inovação ou experimentação teológica.”
256
Esse dogmatismo ia
em sentido radicalmente contrário ao do espírito da Reforma aberto ao livre exame e
às novas descobertas em teologia. Nesse caso, os teólogos ortodoxos estavam mais
consoantes com o catolicismo medieval do que com a mentalidade e a experiência
pessoal de Lutero.
De volta ao ambiente liberal, vale aqui destacar a figura de Walter
Rauschenbusch líder do movimento chamado “evangelho social. Rauschenbusch
era pastor batista em Nova Iorque e foi impactado pelas deploráveis condições
econômicas e sociais vividas pela comunidade que pastoreava. O local era chamado
pelos próprios moradores de “cozinha do diabo”
257
. Sua teologia e prática pastoral
nasceram, assim, da reflexão teológica a partir das condições de sofrimento do
povo. Rauschenbusch baseava suas convicções na Bíblia, sobretudo, na leitura dos
profetas do Antigo Testamento e no anúncio do Reino de Deus feito por Jesus e
registrado nos evangelhos. Para ele santidade tinha a ver com as ações em favor da
justiça social.
A mística parece o caminho mais rápido para a comunhão com Deus. Sem
255
HODGE, apud OLSON, 2001, p. 573.
256
OLSON, 2001, p. 574.
257
Cf. HENDERS, Helmut. “É a Tarefa da Igreja Motivar a Sociedade para a Ação”: Do contínuo significado de
Walter Rauschenbusch. In: Simpósio 48. São Paulo: ASTE, 2008. p. 101.
92
dúvida nasceram dela sobre condições favoráveis, um espírito de serviço,
humildade e coragem. O seu perigo é que ela pode isolar. [...] que Deus
[...] nos criou como seres comunitários e a forma mais alta de perfeição não
nasce do isolamento, mas do amor [...] o misticismo não representa a forma
mais madura da santificação [...] mas o aspecto eternamente jovem, infantil
e na sua essência imatura da vida religiosa. [...] Eu acredito na oração e na
meditação na presença de Deus. Quando a alma fica perceptiva por Deus
perdem-se o medo, a vontade de acumular riquezas e quaisquer ambições
egoístas [...]. Quando o homem tem que enfrentar trabalho duro ele
necessita receber dessa fonte silenciosa. Mas o que ele recebeu dessa
fonte deve ser investido. A santificação pessoal deve servir o Reino de
Deus.
258
Com tal conceito de espiritualidade integral, não havia espaço no
pensamento de W. Rauschenbusch para o dualismo platônico. Ele afirmava que
Jesus, em seu ministério e pregação do Reino de Deus, superou as tentações de
uma santidade baseada em misticismo, ascetismo e transcendentalismo
259
.
O teólogo do Evangelho Social convenceu-se que os graves problemas
sociais não seriam resolvidos simplesmente pela conversão de indivíduos um após o
outro. Era necessária uma mudança na própria estrutura da sociedade
260
. A
pregação do evangelho não deveria visar tão-somente a conversão individual e a
moralidade individualista, mas, seu foco deveria ser a proclamação e implantação do
Reino de Deus, um Reino de justiça para todos
261
. Em resposta, fundou um
movimento denominado [...] Fraternidade do Reino. [...] Posicionava-se contra o
capitalismo tipo laissez-faire, preconizando uma democracia não somente política,
mas também econômica; [...] participação dos trabalhadores no lucro da empresas;
fortalecimento dos sindicatos etc”.
262
Muitos avanços foram feitos como
conseqüência das influências do Evangelho Social sendo incorporado ao trabalho
missionário de muitos a preocupação com melhorias nas áreas agrícolas, médicas e
educacionais do povo
263
. Semelhantemente à Teologia da Libertação na América
Latina, esta Teologia do Evangelho Social demonstrou profunda preocupação com a
questão dos marginalizados e o papel dos cristãos na implantação do Reino de
Deus. Rubem Alves se referiu ao movimento de Walter Rauschenbusch como o
258
RAUSCHENBUSCH, apud HENDERS, 2008, p. 106.
259
HENDERS, 2008, p. 107.
260
Cf. GONZALEZ, 2004, p. 389.
261
Cf. GONZALEZ, 2004, p. 390.
262
KLEIN, Carlos Jeremias. A Teologia Liberal e a Modernidade. In: Etienne Alfred Higuet (org.). Teologia e
Modernidade. São Paulo: Fonte Editorial, 2005. p. 53-54.
263
Cf. WALKER, vol. 2, 2006, p. 282.
93
verdadeiro precursor da Teologia da Libertação
264
. Encontramos no “evangelho
social” proposto por Rauschenbusch uma proposta de superação da divisão
dualística entre o espiritual e o temporal.
A tensão entre liberais e ortodoxos nos parece uma nova versão da situação
vivenciada pelos teólogos de fins do segundo século e primeira metade do século
terceiro. Assim como Tertuliano foi arredio ao seu mundo cultural, mas, sem o
perceber, foi por ele influenciado em sua teologia que acabou platonizada, assim
também os teólogos ortodoxos do século XIX (e de hoje) reagiram negativamente ao
mundo moderno, porém utilizaram-se de seu ferramental teórico para construírem
sua teologia, como podemos ver, por exemplo, na teologia racionalista de Pricenton.
Da mesma forma, temos em Clemente de Alexandria um bom exemplo de “teólogo
liberal” do terceiro século desejoso de manter diálogo com o mundo helênico de
então e com este estabelecer pontes de interlocução. Como vimos, seu desafio foi
não sucumbir ao pensamento helênico platônico e, assim, perder a marca identitária
característica da mensagem cristã. O que, de fato, ele não conseguiu evitar. Este
também parece ter sido o dilema do teólogo liberal moderno. Seu desejo pelo
diálogo com a Modernidade levou-o a, em certo sentido, se curvar às exigências
positivas pelo empirismo e pela racionalidade como se somente um saber construído
a partir desses pressupostos tivesse validade para a construção da sociedade.
3.4 Fundamentalistas e pentecostais radicalizações e rompimentos
A mais virulenta reação à Teologia Liberal foi o movimento conhecido como
Fundamentalismo. Herdeiro direto da ortodoxia protestante, diferia desta na
incorporação de novos elementos teológicos, na exacerbação de seu dogmatismo e
no obscurantismo intelectual. O fundamentalismo apresentou-se como o
Cristianismo verdadeiro, incondicionalmente fiel às Escrituras as quais interpretava
de forma literalista sem admitir quaisquer métodos de investigação exteriores a ela.
Parece que o marco inaugural do Fundamentalismo foram duas importantes
264
ALVES, apud HENDERS, 2008, p. 100.
94
publicações do início do século XX: a Bíblia de Scofield (1909) e uma série de
livretos conhecidos como Os Fundamentos (1909-1915). A Bíblia de Scofield
popularizou a teoria pré-milenista dispensacionalista de John N. Darby, também
conhecida como darbysmo. O dispensacionalismo sustenta a existência de sete
dispensações, ou formas diferentes de Deus se relacionar com a história humana.
Esta teoria estava em profunda sintonia com os apocalipsismos que percorreram
todo o século XIX. A crença no retorno imediato de Cristo teve nesses
apocalipsismos duas interpretações o Pós-Milenismo e o Pré-milenismo
265
. O Pós-
milenismo teve o mérito de produzir uma mentalidade de ação social na Igreja
visando a implantação do Reino na terra. O movimento do Evangelho Social foi uma
dessas expressões. Quanto ao pré-milenismo, uma de suas nefastas
conseqüências, foi o distanciamento ainda maior entre a Igreja e o mundo. “O pré-
milenismo incompatibilizou a Igreja com qualquer atividade de melhoria social”.
266
Sua tarefa deveria ser somente a de salvar almas.
A publicação de Os Fundamentos visava marcar posição clara contra a
teologia liberal. Financiado por cristãos fundamentalistas ligados ao setor do
petróleo, milhares de cópias foram enviadas gratuitamente para os principais
seminários teológicos, pastores, líderes denominacionais e professores de teologia.
Os fundamentalistas de primeira hora sustentavam cinco pontos inegociáveis em
matéria de crença cristã: a inerrância das Escrituras, o nascimento virginal, a morte
vicária, a ressurreição física de Jesus e a volta de Cristo
267
. Associações de
fundamentalistas foram organizadas
268
. A Associação Cristã Mundial dos
Fundamentos fundada em 1919 pelo ministro W.B. Riley acrescentou à lista de
fundamentos o pré-milenismo dispensacionalista e o antievolucionismo. Esses
acréscimos e o acirramento de posições acabaram provocando um racha dentro do
próprio movimento
269
. É digno de nota que nem Hodge nem Warfield, os antigos
professores da teologia ortodoxa de Princeton, viam no Evolucionismo uma ameaça
265
O pós-milenismo afirma que a volta de Jesus se dará após o milênio, o qual será implantado pela ação da
Igreja na história e o pré-milenismo afirma que a vinda de Jesus inaugurará o milênio.
266
MENDONÇA, 1995, p. 68.
267
É bem verdade que esta lista não encontrava unanimidade nem no ambiente conservador, sofrendo
variações que podiam incluir a Trindade e a queda da humanidade no pecado, dentre outros pontos. Mas, a
questão central para todos era a inerrância das Escrituras.
268
Como por exemplo, a Associação Cristã Mundial dos Fundamentos (1919) liderada por W.B. Riley e a
Associação dos Fundamentos (1920) de Curtis Lee Lewis. Cf. OLSON, 2001, p. 576-577.
269
Cf. OLSON, 2001, p. 576-579.
95
à cristã. Eles estariam mais próximos do que hoje chamamos de evolucionismo
teísta; idéia segundo a qual Deus usou o processo evolutivo na criação do mundo.
Na década de 1920 J. Gresham Machen, o principal porta-voz do movimento
fundamentalista, acabou se afastando deste exatamente porque sua posição quanto
ao evolucionismo se aproximava mais de Hodge e Warfield e, além disso, ele era
terminantemente contrário ao pré-milenarismo. Neste ponto, o historiador Roger
Olson afirma:
Muitos estudiosos [...] acreditam que, ao adotar o antievolucionismo como
bandeira e ao incluir opiniões relativamente secundárias, como o pré-
milenarismo, à sua agenda política e insistir na inerrância absoluta e aliada
à uma hermenêutica literalista, o fundamentalismo condenou-se à
obscuridade teológica.
270
A radicalização fundamentalista foi tão longe que nas décadas de 1940 e
1950, liderados por Carl McIntire, os fundamentalistas chegaram a repudiar o
conservador evangelista Billy Graham por sua relação com protestantes não
fundamentalistas e com católicos. Várias posições foram assumidas pelo movimento
como a crença na semana da criação literalmente em sete dias aliada à crença na
Terra jovem; o separatismo bíblico considerando todos os não fundamentalistas
como hereges, apóstatas ou simplesmente filhos do demônio; apoio incondicional ao
sionismo; anticomunismo com apoio na década de 1950 ao Macarthismo. Prócoro
Velasques Filho faz dura crítica ao fundamentalismo ao afirmar:
Autoritário, dogmático e sectário, o fundamentalismo protestante que
exerceu e exerce significativa influência no protestantismo brasileiro
apresenta-se como defensor e hermeneuta exclusivo da Bíblia e herdeiro da
fidelidade ao espírito da Reforma protestante. As duas reivindicações são
enganosas e constituem atitudes de desonestidade intelectual. O máximo
que o fundamentalismo pode exigir para si é ser o resultado de uma reação
estéril aos desenvolvimentos da teologia moderna, fundada numa corrente
filosófica de importância secundária.
271
Também o historiador Martin Dreher analisa o fundamentalismo:
O fundamentalista não pretende a modernização da religião, mas a
270
OLSON, 2001, p. 579.
271
MENDONÇA e VELASQUES FILHO, 1990, p. 111. A corrente filosófica que ele se refere é a Filosofia do Senso
Comum de Thomas Reid.
96
fundamentação religiosa, explícita, da Modernidade. [...] Não se busca, por
exemplo, uma modernização do Islã, mas a reislamização do mundo
islâmico. Não se busca uma concepção secular do Estado de Israel, mas
uma fundamentação teocrática-religiosa. Não se busca uma secularização
do Cristianismo, mas a recristianização do mundo ocidental. [...] Os adeptos
do movimento fundamentalista cristão estão convictos, desde o início, de
que a política deveria ser cristã: o mundo ocidental tem que voltar a ser
cristão. [...] Exigiam que o Estado defendesse, nas escolas públicas, sua
concepção bíblico-fundamentalista do ser humano.
272
Para os fundamentalistas, a verdade religiosa é pressuposto para a ação
política. Seu alvo é a sociedade perfeita. Esta se estabelece quando todos se
submetem à verdade religiosa, assim como ditada pelo Espírito Santo e fixada nas
páginas inerrantes, incapazes de erro, do texto bíblico. Concluímos que o
fundamentalismo, mais do que algumas radicalizações da ortodoxia protestante, vai
contra o espírito da Reforma Protestante no que tem de intolerante, rígido e fechado.
No universo fundamentalista tudo está decidido gerando estagnação intelectual e
esterilização da criatividade humana. “Parece que essa ambigüidade está no cerne
do protestantismo: ao mesmo tempo que conduz idéias libertárias e proclama o livre
exame, tende a enrijecer-se no dogmatismo”.
273
Ainda que se apresente como o
supra-sumo do Cristianismo, o fundamentalismo sustenta a dicotomia platônica entre
corpo e alma provocando um reducionismo na tarefa da Igreja. Esta passa a se
restringir à tarefa espiritual de salvação das almas. A Igreja torna-se a-histórica sem
abertura para o social. Sua idéia de santidade é negativa, sinônimo de separação do
mundo. Sua discriminação daqueles que não pensam em termos fundamentalistas é
anti-cristã e nega a ética do Reino baseada no amor.
O século XX também viu o surgimento da mais extraordinária força religiosa
dentro da história do protestantismo: o movimento pentecostal. O pentecostalismo
pode ser alinhado numa longa tradição de “reações do Espírito” na história do
Cristianismo que remonta a Montano, no segundo século. Essas “reações do
Espírito” aconteceram, geralmente, quando o processo de institucionalização
eclesiástica se enrijeceu em determinada época da história. Outras causas são o
dogmatismo, a clericalização e também grandes calamidades nacionais fossem elas
naturais como a Peste Negra ou fabricadas, como guerras e depressões
econômicas e sociais. O pentecostalismo do século XX foi uma verdadeira revolução
272
DREHER, Martin N. Fundamentalismo. São Leopoldo: Sinodal, 2006. p. 84-84.
273
MENDONÇA, 1995, p. 54.
97
do Espírito. Ora, esta mesma revolução estava presente na experiência pessoal
de Lutero. Ele também se rebelou contra o objetivismo da Igreja Católica
privilegiando a experiência do Espírito Santo que fala através da Bíblia. Segundo
Tillich, seu rompimento não se deu, em primeiro lugar, em função de críticas
dogmáticas. Muitas das formulações dogmáticas de Lutero estavam prontas antes
dele, por exemplo, na época dos pré-reformadores. Seu rompimento se deu, antes
de tudo, em função de sua experiência pessoal de ter sido perdoado por Deus.
Havia nesta experiência algo místico. Aliás, o elemento místico desempenhou
importante papel na trajetória de Lutero. Lembremos também que os anabatistas
se referiam ao seu batismo como “batismo no Espírito”, alguns eram apocalipsistas,
criticavam o sacerdotalismo, outros eram contrários ao estudo teológico,
propunham uma santidade moralista, eram ascéticos, advogando uma separação
total do mundo. Daí, passando pelo Pietismo alemão, pelo Metodismo wesleyano e
os diversos movimentos avivalistas norte-americanos, temos uma linha que nos leva
até o pentecostalismo.
274
Mas, o antecedente mais imediato do movimento foi o Segundo Grande
Avivamento ocorrido no século XIX nos Estados Unidos. Acerca deste período de
preparação para a explosão pentecostal, Leonildo Silveira Campos afirma que “as
águas que iriam desaguar no “rio pentecostal” se avolumavam, e aqui ou ali
apareciam episódios em que línguas estranhas eram apresentadas como
manifestações dos dons da cristandade primitiva”,
275
e ele continua esclarecendo
que “nos Estados Unidos, após 150 anos de avivamentos, acumularam-se no campo
religioso camadas sedimentadas de teologia, ensinos e traços, que iriam moldar o
pentecostalismo no século 20”.
276
O pentecostalismo iniciou acusando setores do protestantismo da época de
depender em excesso da razão e da filosofia. Os pentecostais vangloriavam-se de
depender tão-somente do Espírito Santo. Não hesitavam em vincular seu movimento
com o próprio Jesus e com a Igreja Primitiva
277
. Todas as denominações
protestantes históricas eram herdeiras das deformações do catolicismo medieval. O
274
Cf. TILLICH, 1999, p. 48-49.
275
CAMPOS, Leonildo S. Raízes Históricas, Sociais e Teológicas do Movimento Pentecostal. In: Simpósio 48. São
Paulo: ASTE, 2008. p. 44.
276
CAMPOS, 2008, p. 47.
277
Cf. CAMPOS, 2008, p. 48.
98
pentecostalismo não. Era um salto de volta à essência do Cristianismo, o verdadeiro
Cristianismo vivido pelos primeiros cristãos. No entanto, sem perceberem eles
também estavam desenvolvendo uma teologia e, como disse Paul Tillich “pode-se
demonstrar facilmente de que „patriarcas hereges‟, isto é, de que filósofos, tomam
sua categoria”.
278
Quase invariavelmente esse filósofo foi Platão, ou melhor dizendo,
os neo-platônicos com seu dualismo espírito-matéria e o característico desprezo
pelo corpo e seus desejos, a separação entre razão e revelação e assim por diante.
Em face do exposto, podemos afirmar que o pentecostalismo não inaugurou
algo novo na história cristã, mas, deu continuidade a uma tendência do século
precursor (para não falar dos vários séculos anteriores) com algumas amarrações
teológicas novas. O que havia em profusão no cenário religioso norte-americano
eram os movimentos holiness que enfatizavam a busca pela santidade e pela
perfeição cristã, encontros de reavivamento espiritual em acampamentos com
muitas manifestações emocionais, ênfase no batismo com o Espírito Santo como
condição para a santidade. Acrescentando a esses ingredientes a teologia
fundamentalista, o pré-milenarismo e, marco dos marcos, o falar em línguas como
comprovação do batismo com o Espírito Santo, surgiu, com grande ímpeto
missionário a “era pentecostal”.
Dois acontecimentos podem ser tomados como o “marco zero” da era
pentecostal: um ocorrido em 1901 na cidade de Topeka (Texas) e outro em 1906 na
cidade de Los Angeles (Califórnia). Charles Parham foi o primeiro pregador a
vincular experiências extáticas e glossolalia (falar em línguas estranhas), o que ele
chamou de “batismo com o Espírito Santo”
279
. Na virada do ano de 1900 para 1901,
Parham promoveu uma vigília de oração com seus alunos do Seminário Bíblico
Betel na cidade de Topeka. Uma de suas alunas entrou em transe e passou a falar
em línguas estranhas. Depois dela um a um dos presentes e, finalmente, o professor
Parham foram batizados com o Espírito Santo. Acusações de homossexualismo que
acabaram levando-o à prisão, notórias inclinações racistas e simpatias com a Ku
Klux Klan acabaram por diminuir a influência de Charles Parham sobre o movimento
Pentecostal
280
.
278
TILLICH, 2000, p. 274.
279
Cf. CAMPOS, 2008, p. 52.
280
Cf. CAMPOS, 2008, p. 53.
99
A figura mais emblemática da origem do pentecostalismo é, sem dúvida, a
do pastor negro William Joseph Seymour. Seymour chegou a estudar por um tempo
no Seminário de Parham onde se convenceu da doutrina do batismo com o Espírito
Santo. Mas, pelo tratamento racista recebido deste, interrompeu os estudos e se
dirigiu para a cidade de Los Angeles. Lá, inaugurou em 1906 num velho galpão
abandonado da Rua Azusa a Missão da Fé Apostólica. Em 14 de abril daquele ano
começaram as primeiras manifestações de batismo com o Espírito Santo seguido do
falar em línguas
281
. A repercussão foi imediata. As manifestações extáticas seguidas
de gritos, convulsões, curas, milagres, profecias e glossolalias atraíram grande
número de pessoas. A “era pentecostal” estava inaugurada. A Missão da Rua Azusa
sob a liderança carismática de Seymour teve a capacidade de aglutinar e entender
os anseios das massas pobres da periferia de Los Angeles e se tornou o principal
centro irradiador do pentecostalismo. Importante também foi o movimento
pentecostal inaugurado pelo ex-pastor batista William Durham em Chicago. De
Chicago, sob influências diretas de Durham vieram os primeiros missionários
pentecostais para o Brasil, o italiano Luigi Francescon, e os suecos Gunnar Vingren
e Daniel Berg.
Em 1914 cerca de 300 ministros pentecostais se reuniram para fundar o
Concílio Geral das Assembléias de Deus. Seu primeiro líder, o ex-pastor batista, E.
N. Bell, deixava clara a posição pentecostal em relação à ortodoxia bíblica e ao
mundo moderno: “Essas Assembléias opõem-se a toda Alta Crítica radical da Bíblia,
a todo o modernismo, a toda a incredulidade na igreja e à filiação a ela de pessoas
não-salvas, cheias de pecado e de mundanismo”, e concluía ele e acreditam em
todas as verdades bíblicas genuínas sustentadas por todas as igrejas
verdadeiramente evangélicas”
282
.
Vemos nessa primeira declaração do primeiro presidente da Convenção
Geral das Assembléias de Deus a opção pelo predomínio da religião sobre a razão.
A santificação significa separação radical do mundo. Se o protestantismo não
superou totalmente a antropologia dualista, o fundamentalismo e o pentecostalismo
exacerbaram o ascetismo evangélico. Para o pentecostalismo clássico e também
281
Cf. CAMPOS, 2008, p. 55.
282
Cf. DANIEL, Silas. História da Convenção Geral das Assembléias de Deus no Brasil. Rio de Janeiro: CPAD,
2004. p. 10.
100
para o fundamentalismo, o ideal cristão passava pelo misticismo, pelo ascetismo e
pelo transcendentalismo. Segundo o pensamento de W. Rauschenbusch, como
vimos, foi exatamente isso que Jesus superou em sua pregação do Reino de Deus.
A mística de Jesus não era uma fuga da realidade, mas estava a serviço da justiça;
contra o ascetismo dos fariseus, Jesus proclamava estar mais perto de Deus tanto
mais perto estivesse do povo; em sua kenosis
283
Ele nos apontou um caminho
diferente do transcendentalismo, o caminho da encarnação. É curioso que o mesmo
Espírito Santo que une todos os movimentos pentecostais, paradoxalmente, também
é a causa de suas profundas divisões desde o início. A propalada liberdade do
Espírito deu lugar para a criação de milhares de movimentos, comunidades e
ministérios, todos requisitando para si a plenitude do Espírito, o chamado profético e,
contraditoriamente a essa liberdade do Espírito, se constituíram em denominações
fortemente hierárquicas e com aguda centralização de poder, dando origem inclusive
a um fenômeno novo na história protestante: o surgimento de igrejas familiares.
Tudo o que se escreveu até aqui neste capítulo teve por objetivo
respondermos a uma pergunta: que tipo de evangelho os missionários protestantes
trouxeram para o Brasil? Ou, colocando de outra forma, quem foi o missionário
protestante que chegou ao Brasil em meados do século XIX? Em resumo, creio que
poderíamos afirmar que o missionário de primeira hora era um evangélico
conservador, portanto, com perfil puritano-pietista, conversionista na linha metodista,
com traços tanto ortodoxos quanto avivalistas refletindo o spectrum do
protestantismo norte-americano forjado entre os séculos XVIII e XIX, com uma visão
de santidade perfeccionista e imbuído de uma convicção de ter sido escolhido por
Deus para pregar o verdadeiro Cristianismo ao estilo americano. Acrescente-se a
isso que, o missionário de segunda hora, chegando por aqui na primeira metade do
século XX, somou a este caldeirão a rigidez e intolerância fundamentalista e as
doutrinas básicas do pentecostalismo com sua moral ascética extrema. Não
devemos desconsiderar o trajeto geográfico feito pelo protestantismo missionário até
chegar ao Brasil. Partindo do continente europeu, ele primeiro foi remodelado na
Inglaterra, recebeu influências pietistas, reconfigurado em quase 250 anos de
283
Palavra grega que significa esvaziamento e tem por base escriturística a passagem da carta do apóstolo
Paulo aos Filipenses 2:5-11, sobretudo, o versículo 7.
101
história nos Estados Unidos e então veio para o Brasil
284
. Esta é a história na qual
nos concentraremos agora.
3.5 A Inserção do Protestantismo no Brasil
3.5.1 Protestantismo de imigração e de missão no Brasil
285
A conquista da hegemonia marítima pela Inglaterra e a vinda da família real
portuguesa para o Brasil em 1808 deram início a uma radical mudança no cenário
religioso brasileiro. Em 1810 o Tratado de Aliança e Amizade, de Comércio e
Navegação firmado com a Inglaterra abriu o Brasil à entrada do Protestantismo. O
artigo do Tratado de Aliança dispunha, em nome de Sua Alteza Real que a
Inquisição não seria, para o futuro, estabelecida nos domínios americanos de
Portugal e os artigos 12 e 13 do Tratado de Comércio e Navegação declaravam que
os vassalos de Sua Majestade Britânica teriam perfeita liberdade de consciência e
licença para assistirem e celebrarem culto dentro de suas casas ou de suas igrejas
ou capelas sob as condições de que estas tivessem a aparência exterior de
habitação comum, estendendo aos demais estrangeiros a garantia de não serem
perseguidos por matéria de consciência, sendo-lhes proibido pregar publicamente
contra a religião católica ou fazer prosélitos
286
. Ato contínuo, a Constituição de 1824
assegurou a presença de não-católicos na vida nacional, mas limitou sua liberdade
de culto assim como a participação na vida política, atendendo em parte o partido
contrário à liberdade religiosa. Estabelecia o artigo 5º da Constituição: “A religião
Católica Apostólica Romana continuará a ser a religião do Império. Todas as outras
284
MENDONÇA e VELASQUES FILHO, 1990, p. 16-17.
285
Os termos aqui utilizados não são uma unanimidade. Alguns autores preferem “protestantismo étnico” ao
invés de protestantismo de imigração, como é o caso de Miguez Bonino. Além disso, eles não traduzem
plenamente a realidade desses grupos. Por exemplo, pastores batistas foram enviados ao Brasil para atender
comunidades batistas de americanos que se instalaram na região de Santa Bárbara D’Oeste o que constituiria
um protestantismo de imigração e não de missão. Optamos pelos termos pela sua larga utilização e fácil
identificação por parte do leitor.
286
Cf. MENDONÇA, 1995, p. 26-27.
102
religiões serão permitidas com seu culto doméstico ou particular, em casas para isso
destinadas, sem forma exterior de templo”.
A par disso, José Bittencourt Filho lembra que havia no século XIX uma
conjuntura favorável à implantação do Protestantismo no Brasil uma vez que, nos
setores pensantes da sociedade era crescente a mentalidade que identificava o
atraso políco-econômico-cultural com o Catolicismo e a modernidade e prosperidade
econômica e social com o Protestantismo
287
. Assim ele afirma:
Por essa razão alguns estudiosos sublinham a aliança ideológica [...] entre o
liberalismo radical, a Maçonaria e o Protestantismo. Os segmentos sociais
interessados em mudanças sociais substantivas, viam na implantação do
Protestantismo, a oportunidade de sacudir o jugo do poderio religioso
católico, no qual as classes dominantes e dirigentes estribavam-se à
época.
288
Esse apoio dado pela Maçonaria no início da implantação do protestantismo
no Brasil deveu-se ao fato dessa Ordem apresentar-se como “porta-voz da
modernidade, do liberalismo e das idéias iluministas”.
289
Esta posição colocou-a em
franca oposição à Igreja Católica. Aliás, a Maçonaria esteve no centro do conflito
entre o Império e a Igreja na década de 1870 conhecido como “A Questão
Religiosa”
290
. Dessa forma, o Tratado de Comércio seguido da Constituição de 1824,
garantindo a liberdade de culto; os anseios liberais de políticos, intelectuais e boa
parte do clero, com uma crescente admiração pelo mundo anglo-saxão; a força da
Maçonaria, com sua simpatia pelo espírito protestante; e a Questão Religiosa, com a
conseqüente diminuição da influência da Igreja Católica, contribuíram para a
inserção do Protestantismo no Brasil. Da parte dos missionários, obviamente esses
apoios todos eram bem vindos. Apresentar-se como instrumento desse projeto
287
Cf. BITTENCOURT FILHO, José. Matriz Religiosa Brasileira. Religiosidade e mudança social. Petrópolis: Vozes,
2003. p. 102-103.
288
BITTENCOURT FILHO, 2003, p. 103.
289
BITTENCOURT FILHO, 2003, p. 103.
290
A Questão Religiosa foi a culminância de um processo de tensão entre o Estado Imperial brasileiro,
notoriamente liberal, e a Igreja Católica, antiliberal e antimodernizante. Baseados na Bula Quanta Cura do Papa
Pio IX que condenava a Maçonaria, e na Syllabus, que condenava a Modernidade, dois Bispos brasileiros
conservadores, D. Vital, de Olinda, e D. Macedo Costa, do Pará tomaram ações contra membros do clero
católico que eram maçons e contra a própria Maçonaria. Como essas duas Bulas não haviam recebido a
aprovação de D. Pedro II, o Imperador considerou a atitude dos Bispos como desobediência civil e ordenou que
eles fossem presos. Cf. MENDONÇA e VELASQUES FILHO, 1990, p. 71-72.
103
liberal-modernizador
291
poderia render frutos com a laicização do Estado e a quebra
do monopólio católico no campo religioso. Dado curioso esse: os missionários
evangélicos que vieram para o nosso País eram representantes do conservadorismo
protestante norte-americano. Conservadores do ponto de vista teológico e moral,
com posições declaradas contra o racionalismo iluminista e a Teologia que daí
nasceu. Aqui no Brasil, quem reagia aos ventos iluministas do mundo moderno era o
lado mais romanista da Igreja Católica. Contudo, nesse ambiente, os missionários
foram recebidos pelas elites brasileiras como força modernizadora liberal.
Verdadeiramente, se não eram modernos do ponto de vista teológico e moral, o
eram do ponto de vista sócio-político-econômico: eram democratas,
economicamente liberais, defendiam a autonomia humana, a liberdade de
consciência, a liberdade religiosa e, além disso, estavam na vanguarda dos novos
métodos pedagógicos e no estudo das novas ciências. Mas, tudo isso untado na
ideologia do Destino Manifesto.
Enfim, a conclusão de Antônio Gouvêa Mendonça sobre os fatores citados
acima, consoante com Bittencourt Filho, é que os mesmos geraram um contexto
extremamente favorável à inserção do Protestantismo no Brasil.
Num dado momento, portanto, houve na história brasileira um vácuo
religioso: de um lado, um Estado em busca de uma religião civil aberta para
a modernidade e, de outro, uma Igreja que, à beira de perder suas
prerrogativas históricas, volta-se para si mesma no intento de reforçar-se
institucionalmente, mas nos marcos do conservadorismo. No meio, um
espaço aberto a quem quiser entrar. Foi nesse espaço que o protestantismo
penetrou.
292
A imigração trouxe os primeiros protestantes. Em 1823, D. Pedro I enviou o
Major Schaeffer à Europa para promover a vinda de imigrantes sem a exigência de
serem católicos romanos e contratou-se um pastor protestante para acompanhá-los,
com sustento garantido pelo governo. Em 3 de maio de 1824, realizou-se o primeiro
culto da igreja evangélica luterana de Nova Friburgo pelo pastor Friedrich
Sauerbronn. Em 6 de novembro de 1824, foi celebrado o primeiro culto evangélico
em São Leopoldo, no Vale do Rio dos Sinos/RS
293
. A implantação dessas primeiras
291
BONINO, 2003, p. 9-29.
292
Cf. MENDONÇA e VELASQUES FILHO, 1990, p. 72.
293
Cf. MENDONÇA e VELASQUES FILHO, 1990, p. 27.
104
congregações luteranas visava atender às necessidades espirituais dos imigrantes.
Trouxeram consigo costumes e culturas próprias bem como uma compreensão da
tipicamente européia, alemã, luterana. De modo geral, essas congregações se
configuravam por uma mesma língua, constituindo-se em igrejas nacionais, de
Estado, trabalhando a favor da identificação de um determinado povo ou grupo
étnico. Os fiéis, através delas, mantinham um vínculo com a „mãe pátria‟. Essa
necessidade psicológica e existencial dos imigrantes gerou inicialmente uma
tendência ao isolamento cultural e uma prática pastoral e diaconal „para dentro‟.
Entre os assim chamados protestantismo de imigração e protestantismo de
missão, chegaram ao Brasil missionários norte-americanos com o objetivo de fazer
uma análise das condições „espirituais‟ do país e a necessidade de envio de
missionários para estas terras. Podemos citar entre esses missionários pioneiros,
geralmente conhecidos como colportores (distribuidores de Bíblia), os metodistas
americanos Justin Spaulding e Daniel Kidder e o presbiteriano James Fletcher. O
trabalho realizado por Kidder, produzindo um amplo relatório onde descreveu
detalhes da vida religiosa e social do Brasil influenciou todas as ações posteriores
de envio de missões americanas ao Brasil.
A partir da década de 1850 chegaram os primeiros missionários com o
objetivo de implantar igrejas entre o povo brasileiro: congregacionais, presbiterianos,
metodistas e batistas. O choque cultural não se limitou à sociedade brasileira. Houve
também um estranhamento mútuo entre os protestantes de imigração e os
protestantes evangélicos de missão.
Os estereótipos mútuos podem ser marcados com facilidade. Aos olhos das
igrejas de missão, as étnicas pareciam como catolizantes, igrejas de estado,
formalistas e „mundanas‟. [...] A ordem litúrgica, o uso de uma língua
estrangeira e a renúncia a fazer „proselitismo‟ eram incompreensíveis e
escandalosos para a mentalidade missionária e evangelizadora dos
„evangélicos‟. E o consumo de bebidas alcoólicas ou tabaco, a dança e
outras atividades sociais de algumas dessas igrejas chocavam a ética
puritana da maioria das igrejas de missão. [...] As igrejas de imigração, por
sua vez, traziam desde sua origem uma forte desconfiança para com as
„igrejas livres‟, que em muitos casos se apresentavam, nos países de
origem, como proselitistas em detrimento da „igreja do povo‟ (Volkskirche).
Sua piedade parecia desordenada, fanática ou „entusiasta‟, própria de
„seitas‟ [...]. E sua pregação inflamada e repetitiva lhes parecia superficial,
carente de sólida base confessional ou doutrinária.
294
294
BONINO, 2002, p. 79-80.
105
Miguez Bonino ao apontar para as diferenças teológicas entre umas e outras
afirma que:
A tendência se percebe, antes nas referências a uma piedade mais
subjetiva nas primeiras [igrejas de missão] e mais ligada aos símbolos e às
formas objetivas nas segundas [igrejas de imigração] [...]; a uma
interpretação mais livre, circunstancial e exortativa da Escritura frente a
outra mais exegética e docente.
295
Podemos ver os antigos antagonismos entre puritanos e anglicanos do
século XVI ainda vivos e presentes entre esses grupos no Brasil do século XIX.
O primeiro missionário evangélico a implantar uma igreja no Brasil foi o
médico e pastor congregacional escocês Dr. Robert R. Kalley. Ele chegou ao Brasil
em 1855 fugindo de perseguição religiosa na Ilha da Madeira, e fundou a Igreja
Evangélica Fluminense em 1858. O Dr. Kalley era um legítimo representante do
puritanismo escocês mesclado de wesleyanismo-metodista. Sua mensagem
proclamava o conversionismo individual e a resposta voluntária da pessoa ao amor
de Deus; como esta aceitação não é definitiva, mas sujeita à „recaída‟, mediante
tentações do mundo, daí a necessidade de uma ética rigorosa que mantenha bem
nítida a linha divisória que separa o fiel do mundo. Traduziu para o português e
publicou em série em um jornal O Peregrino de John Bunyan. Isto reflete bem sua
teologia, individualista, dualista e negadora do mundo
296
.
Em 12 de agosto de 1859, chegou ao Rio de Janeiro o pastor americano
presbiteriano Ashbel G. Simonton. O Rev. Simonton formou-se no Seminário de
Princeton. Sua teologia trazia a ambigüidade da época: a marca do conservadorismo
dos puritanos e a influência religiosa dos avivamentos. Em seu Diário, vários
registros que demonstram uma teologia fortemente platônica, dualística:
Quando olho para dentro, a fim de avaliar o progresso que tenho feito a
caminho do céu, no cultivo das graças espirituais, na mortificação do
pecado e no desenvolvimento da aptidão para o trabalho, tenho profundas
razões para dúvidas e acabrunhamentos. O que me afeta mais é que todos
os estrangeiros que vivem aqui, protestantes nominais, rejeitam o
evangelho e descrêem dele. Deus existe e sua lei moral deve ser obedecida
como for possível, mas a divindade de Cristo, o sacrifício e a salvação
continuam a ser negados universalmente. Não esperanças para o Brasil,
com os estrangeiros que ora se misturam aos seus habitantes. Uma crença
295
BONINO, 2002, p. 89.
296
Cf. MENDONÇA, 1995, p. 177.
106
superficial, irrefletida, desarrazoada, os afeta a todos. O mundo apela para
o que é sensual. Um outro jovem, que tem assistido aos cultos, parece
ávido e persuadido da verdade e da importância de uma religião espiritual
(grifo nosso).
297
E Mendonça conclui: “Simonton está preocupado com um outro mundo,
distante das preocupações humanas. O „sensual‟ para ele é o oposto do mundo
platônico para qual a Igreja devia transportar-se”.
298
Sua visão de vida cristã era
espiritualista. A vida aqui é transitória. Devemos viver com os olhos voltados para o
mundo espiritual.
Depois de algumas tentativas frustradas, os metodistas implantaram
definitivamente seu trabalho no Brasil a partir da década de 1870 ou 1880
299
. Foi
intensa a cooperação entre eles e os presbiterianos no início do trabalho
300
. A
teologia dos metodistas também enfatizava o milenarismo, o conversionismo
individualista, a moral ascética.
Em 1881 embarcou para o Brasil uma família de missionários batistas, o Pr.
William Bagby e sua esposa, e em 1882 outra, o Pr. Zacarias Taylor e esposa. Neste
ano inauguraram a primeira Igreja Batista no Brasil em Salvador, Bahia
301
. Os
batistas destoaram em um ponto dos outros protestantes que aqui implantavam seus
trabalhos pela sua postura algo arredia. Isto aconteceu em decorrência de uma
determinada teologia adotada pelo Rev. Taylor conhecida como “landmarkismo”,
segundo a qual a Igreja Batista é anterior a Reforma Protestante e a única realmente
neotestamentária. O historiador batista A. R. Crabtree segue a mesma linha:
O povo desta é mais antigo do que o seu nome histórico, porque é da
mesma fé e ordem dos cristãos do Novo Testamento. As igrejas apostólicas
eram verdadeiramente batistas porque constavam somente de crentes
batizados, porque eram democráticas, e porque respeitavam a consciência
e a responsabilidade pessoal. [...] Um estudo cuidadoso e livre de
preconceitos das igrejas apostólicas convencerá qualquer pessoa de que
elas eram essencialmente da mesma e ordem das igrejas batistas de
297
SIMONTON, apud MENDONÇA, 1995, p. 183.
298
Cf. MENDONÇA, 1995, p. 181. Mendonça também cita as seguintes palavras de Simonton: “*...+ Para viver é
necessário elevar-se a outra atmosfera, absorvendo todo o poder de um mundo desconhecido da vista, e de
Jesus, o Salvador invisível”. Cf. MENDONÇA, 1995, p. 180.
299
Cf. MENDONÇA e VELASQUES FILHO, 1990, p. 40; Cf. BITTENCOURT FILHO, 2003, p. 111.
300
Cf. MENDONÇA, 1995, p. 194.
301
Esta foi a primeira Igreja Batista para brasileiros. Portanto, uma Igreja Batista fruto de labor missionário.
Antes dela, já havia igrejas batistas em Santa Bárbara D’Oeste, no interior de São Paulo, que atendiam
imigrantes americanos confederados, vindos para cá após o término da Guerra Civil.
107
nossos dias.
302
Nem seria preciso dizer que esta teologia gerou ainda mais isolacionismo,
pregação de uma santidade moralista e antropologia dualista.
Grosso modo, os protestantes de missão seguiram muito próximos por
décadas. Ainda que em denominações distintas, cada uma com suas peculiaridades,
os evangélicos eram muito parecidos em sua teologia, usavam a mesma hinódia, e
advogavam a mesma ética
303
. Assim prosseguiram com seus trabalhos
evangelísticos com significativo crescimento, sobretudo dos batistas. A situação
começou a mudar na década de 1960. O Brasil passava por profundas
transformações no campo social e econômico com o processo de industrialização e
a conseqüente transição da vida rural para a urbana. No campo político, a situação
se agravou com o golpe militar de 1964. Mendonça argumenta que apesar de o
Protestantismo ter chegado ao Brasil como portador do liberalismo e da
modernidade, mostrou-se incapaz de acompanhar as transformações da sociedade
brasileira.
A mentalidade conservadora e individualista do protestantismo,
condicionada e alimentada pelo tripé escolasticismo-Pietismo-apocaliptismo,
afastou-se dos movimentos sociais que, ao longo de um século, mudaram a
fisionomia do Brasil. Daí, sua quase nula presença na política, na cultura e
na participação efetiva dos movimentos de mudança social.
304
O certo grau de sucesso em sua chegada ao Brasil no século XIX em função
de representar naquele momento uma alternativa cultural, liberal e modernizante ao
modelo católico conservador, deu lugar à estagnação e isolamento da sociedade
brasileira. O que outrora era um sopro renovador de cultura, agora não passava de
conservadorismo religioso sem relevância social; tornou-se uma subcultura. O
protestantismo brasileiro não acompanhara as mudanças nacionais e nem as
mundiais com a nova configuração geopolítica do pós-guerra. Para esta nova
conjuntura global, era necessário uma nova teologia, ou uma nova hermenêutica
que desse conta dos desafios contemporâneos. Na Europa essa nova hermenêutica
302
CRABTREE, apud MENDONÇA, 1995, p. 197.
303
Cf. MENDONÇA, 1995, p. 190ss. Mesmo que oficialmente os Presbiterianos e os Congregacionais fossem
calvinistas, na prática todos aderiram ao voluntarismo da conversão individual típico do Metodismo wesleyano.
304
MENDONÇA, 1995, p. 243.
108
estava sendo articulada por alguns importantes teólogos como Karl Barth, Emil
Brunner, Dietrich Bonhoeffer (morto pelos nazistas em 1945, após participar da
organização de um frustrado atentado para matar Adolf Hitler e acabar sendo preso),
Paul Tillich (mais tarde transferido para os EUA), Jürgen Moltmann
305
, dentre outros.
Nos Estados Unidos devemos destacar o papel desempenhado pelos irmãos
Niebuhr e Harvey Cox.
José Bittencourt Filho aponta para os caminhos percorridos a partir dessa
encruzilhada existencial na qual os protestantes se encontraram em fins da década
de 1950. Segundo ele, uma parte dos evangélicos brasileiros percebeu a
necessidade de reconfigurar o protestantismo para além do denominacionalismo e
colocá-lo a serviço da sociedade brasileira ultrapassando suas funções meramente
religiosas
306
. Surgiu a partir daí um protestantismo ecumênico. Outra parte entendeu
que o melhor era renovar seus antigos princípios pietistas, reafirmar sua ética
individual e não social, investir contra o liberalismo teológico nos seminários,
emparelhar-se com as elites conservadoras brasileiras, e incorporar o
fundamentalismo teológico à sua agenda. Bittencourt Filho nos lembra que
importantes lideranças fundamentalistas norte-americanas visitaram o Brasil na
década de 1950
307
. Muito dinheiro de setores fundamentalistas dos Estados Unidos
foi enviado para resultando na fundação de editoras, como a Betânia, e
seminários como o Palavra da Vida. Esse ramo do protestantismo brasileiro
embarcou alegremente no trem da Ditadura Militar, implantando uma espécie de
Ditadura Eclesiástica nas principais denominações brasileiras àquela época
308
. E,
finalmente, um terceiro grupo optou pelo caminho do reavivamento espiritual como
solução para as mazelas nacionais. Foi este grupo que deu origem às igrejas
carismáticas (Batista Renovada, Presbiteriana Renovada etc), rompimentos das
antigas igrejas históricas.
Rubem Alves, partidário do grupo progressista ecumênico afirma que a
consciência desse setor se forjou a partir de três fontes: (a) influência da nova
305
Talvez Moltmann seja o teólogo europeu mais “latino-americano”. Suas freqüentes viagens à América
Latina, sobretudo, à América Central deram a ele uma nova perspectiva em teologia. Isto fez com que ele
tivesse relevante influência sobre os futuros formuladores da Teologia da Libertação.
306
Cf. BITTENCOURT FILHO, 2003, p. 125-126.
307
Cf. BITTENCOURT FILHO, 2003, p. 126.
308
Cf. ALVES, Rubem. Religião e Repressão. São Paulo: Teológica/Loyola, 2005.
109
teologia européia (Karl Barth, Brunner, Moltmann etc); (b) a teologia bíblica deu a
eles uma nova hermenêutica que se valia das ciências sociais e antropológicas e
estudava o texto a partir de seu contexto; (c) o movimento ecumênico mundial e a
nova consciência histórica que ele gerou
309
. Foi importante para esse grupo a
criação da Confederação Evangélica Brasileira em atuação desde 1934. A
Confederação tornou-se uma espécie de reduto dos protestantes libertários e
progressistas
310
. Sobre a Confederação, creio que vale à pena transcrever um
trecho da obra de Bittencourt Filho, uma vez que esta Organização se apresenta
provavelmente como a melhor tentativa de contextualização cultural e política do
protestantismo nacional.
Em função dos projetos de cada um dos setores vinculados à Comissão [de
Igreja e Sociedade], a Confederação chegou a possuir escritórios e
funcionários em todo País. Ministrava cursos de formação de quadros de
liderança, contemplando aspectos da realidade brasileira tais como a
educação de adultos, questões fundiárias e administração de obras sociais.
Chegou mesmo a cadastrar todas as organizações de assistência social das
igrejas evangélicas no Brasil. [...] Ministrava cursos sobre
“Responsabilidade Social”; programas de assistência social e promoção
humana; apoiava e executava projetos, ao mesmo tempo em que [...]
questionava o modelo assistencialista adotado pelas igrejas e sugeria
debates de cunho teológico, científico e político. Em 1957 convocou [...] a
Segunda Consulta, com um tema que se pretendia mais comprometido com
a conjuntura nacional: “A Igreja e as Rápidas Transformações Sociais”. O
ápice desse processo deu-se com a convocação da Conferência do
Nordeste (1962), com o lema “Cristo e o Processo Revolucionário
Brasileiro”. [...] A realização do evento na cidade de Recife, a cobertura da
imprensa secular e religiosa, a presença de cientistas sociais renomados
(entre outros, Gilberto Freyre e Celso Furtado), as recomendações dos
grupos de estudos, a publicação de manifestos e a abordagem bíblico-
teológica inovadora, foram alguns dos ingredientes que fizeram da
Conferência o mais importante evento ecumênico que o Protestantismo
Histórico já pôde promover.
311
O sociólogo protestante Waldo César assim se referiu à importância que
teve a Conferência do Nordeste e o que ela representava na história protestante
brasileira:
O movimento Igreja e Sociedade superou, de certa forma, o nível teológico,
ideológico e institucional em que se movia, timidamente, o protestantismo
brasileiro. Foi, portanto, um rompimento. O compromisso da tinha uma
309
Cf. ALVES, 2005, p. 258-259.
310
Cf. BITTENCOURT FILHO, 2003, p. 141.
311
Cf. BITTENCOURT FILHO, 2003, p. 141-142.
110
nova referência, criava um vocabulário novo, outra leitura da Bíblia e da
realidade social na qual vivíamos, mais como vítimas do que participantes.
O projeto Igreja e Sociedade foi uma forma de inserção na conjuntura
nacional e a revelação das contradições do protestantismo no país, das
coisas velhas e novas que se produziam nas igrejas e na cultura
brasileira.
312
Contudo, a CEB não foi a única experiência ecumênica e com forte
consciência social promovida pelos protestantes. Vale destacar também a criação de
outro Fórum em 1961, o ISAL Igreja e Sociedade na América Latina. A idéia
também era estabelecer reflexões teológicas inusitadas a partir do novo contexto
industrial e urbano brasileiro, reunindo em seu corpo não apenas teólogos, mas
também, cientistas sociais e políticos, antropólogos, filósofos etc, de várias partes da
América Latina.
O projeto de ISAL, interdisciplinar, ecumênico e extremamente de
vanguarda, vai atrair especialmente uma liderança jovem com profundas
inquietações sobre a sociedade latino-americana, a natureza missionária da
Igreja e a atuação do cristão no mundo. Esse foi o berço, primeiramente
protestante e mais tarde também ecumênico, onde nasceu a teologia da
libertação.
313
Ao falarmos de ISAL, não podemos deixar de destacar a relevância teológica
de dois protestantes: o missionário norte-americano Richard Shaull e Rubem Alves.
Richard Shaull é uma espécie de mentor intelectual de vários teólogos protestantes
brasileiros alinhados com as teologias libertárias. Foi ele um dos palestrantes da
Conferência do Nordeste. Deixou um legado de reflexão teológica a partir da
situação de exclusão das maiorias empobrecidas na América Latina. Para ele a
deveria conjugar seus esforços com os movimentos revolucionários [...],
interpretando a luta contra todas as formas de injustiça através do testemunho da
no Reino de Deus. O encontro da com a pobreza e a opressão era expressão do
compromisso cristão.
314
Shaull acabaria sendo expulso do País em 1965.
Rubem Alves, discípulo de Richard Shaull, é o verdadeiro mentor da
expressão Teologia da Libertação. Pelo menos esta é a opinião de alguns
312
CESAR, apud DASILIO, Derval. A Teologia da Libertação e o Protestantismo Brasileiro. p. 4. Trabalho não
publicado.
313
LONGUINI NETO, Luiz. O Novo Rosto da Missão: os movimentos ecumênico e evangelical no protestantismo
latino-americana. Viçosa: Ultimato, 2002. p. 139-140.
314
DASILIO, Derval. A Teologia da Libertação e o Protestantismo Brasileiro. p. 7. Trabalho não publicado.
111
pensadores protestantes brasileiros
315
. De fato, o título de sua tese de doutoramento
feita em Princeton e concluída em 1967 era Toward a Theology of Libertation (Por
uma Teologia da Libertação), mas o título foi modificado pelos editores para
Teologia da Esperança Humana. Alves fala de um futuro utópico do Reino de Deus
como fator de transformação da ordem injusta vigente. Sua teologia teve enorme
influência sobre o lado mais à esquerda do protestantismo brasileiro. Em conversa
amigável com José Bittencourt Filho, ele confidenciou-me que o considera o maior
teólogo que o Brasil já produziu.
Com o golpe militar de 1964, e a instalação de um regime ditatorial em
algumas denominações evangélicas, os funcionários do Setor de Estudos e
Responsabilidade Social da Confederação Evangélica Brasileira foram demitidos,
um dos escritórios da Confederação foi invadido por agentes da repressão,
documentos da Conferência do Nordeste foram destruídos, e a CEB teve um fim
melancólico
316
. O ISAL também se desarticulou e acabou desaparecendo. A década
de 1970 foi de terror para pastores e líderes progressistas com perseguições,
cassações, prisão, exílio e até morte. Não obstante, a militância deles deu frutos.
A cooperação proporcionada pela CEB, ISAL e UCEB resultou nas
experiências mais importantes do engajamento social do protestantismo
brasileiro refletido na criação, anos depois, das chamadas “entidades
ecumênicas de serviço”, como o Centro Ecumênico de Informação (CEI),
criado em 1965, que viria a se chamar posteriormente Centro Ecumênico de
Documentação e Informação (CEDI) e a Coordenadoria Ecumênica de
Serviço (CESE) que surgiu em 1973.
317
Poderíamos acrescentar a criação do CLAI Conselho Latino-Americano de
Igrejas e do CONIC Conselho Nacional de Igrejas Cristãs, ambos ligados ao CMI
Conselho Mundial de Igrejas. Enquanto isso, as denominações históricas e
pentecostais, grosso modo, permaneceram com a mesma ideologia dos missionários
do século XIX, professando uma cultura muito mais anglo-saxônica do que
brasileira. A década de 1970 também foi a década de estagnação no crescimento
das denominações históricas. Diante dos fatos, o protestantismo histórico se divide
315
Cf. DASILIO, Derval. A Teologia da Libertação e o Protestantismo Brasileiro. p. 7. Trabalho não publicado.
316
Cf. BITTENCOURT FILHO, 2003, p. 144-145.
317
CONRADO, Flávio. Igreja e sociedade em meio às rápidas transformações sociais. Disponível em:
<http://www.ultimato.com.br/?pg=show_artigos&secMestre=2082&sec=2110&num_edicao=310>. Acesso em:
13 de janeiro de 2010.
112
entre a opção ecumênica', a opção pentecostal-carismática‟, a opção tradicional-
fundamentalista ou a opção „evangelical-progressista‟”.
318
Uma alternativa de
articulação entre Evangelho e Responsabilidade Social mais à direita da posição
ecumênica foi a representada pelos evangelicais com a elaboração da Teologia da
Missão Integral pelo teólogo equatoriano C. Renné Padilla. A Missão Integral,
articulada a partir dos Congressos Latino-Americanos de Evangelização (CLADE) e
inspirada no Pacto de Lausanne girava em torno do eixo “o evangelho todo, para o
homem todo, para todos os homens”. Continua ainda hoje atuante em várias partes
da América Latina.
Concluindo: a cultura brasileira, por motivos distintos, foi rejeitada tanto pelo
protestantismo de imigração quanto pelo protestantismo de missão. No caso das
igrejas de imigração pelos fortes laços que estas mantiveram com suas pátrias de
origem como caminho de preservação da própria identidade. as igrejas de
missão, pelo viés puritano-pietista. Desse modo, não podemos falar de uma teologia
brasileira nas primeiras décadas de presença protestante no País. O que aconteceu
foi o transplante de teologias estrangeiras, européia e norte-americana, para as
terras brasileiras. E, quando se tentou articular, no ambiente protestante, uma
teologia brasileira, ou seja, uma teologia a partir da realidade nacional e que
contribuísse de alguma forma para a melhoria de condições de vida do povo,
Seminários foram fechados, os mentores foram cassados, demitidos e expulsos de
suas denominações. Em alguns casos ocorreram prisões de pastores, outros tiveram
que partir para o exílio e também aconteceram casos de assassinato pela Ditadura,
como a de Paulo Wright deputado cassado, irmão do Pr. Jaime Wright,
desaparecido em 1973.
O que permaneceu quase que de forma monolítica, foi a velha teologia
puritano-pietista já nossa conhecida. Essa teologia evangélica é assim caracterizada
pelo teólogo metodista Albert Outler:
O traço mais destacado [...] é seu fervor emocional, concentrado sempre
nestes dois pontos, e quase neles: 1) a salvação: libertação do pecado e
da culpa (do inferno e da condenação) e 2) uma moralidade pessoal “auto-
inibidora”, [Este é] o triunfo efetivo no Novo Mundo do “protestantismo
318
CONRADO, Flávio. Igreja e sociedade em meio às rápidas transformações sociais. Disponível em:
<http://www.ultimato.com.br/?pg=show_artigos&secMestre=2082&sec=2110&num_edicao=310>. Acesso em:
13 de janeiro de 2010.
113
radical” tão severamente reprimido na Europa [...]. Essa tradição protestante
era majoritariamente “montanista” em sua eclesiologia (igreja “baixa”, igreja
“livre”): anti-sacerdotal, anti-sacramental, antiintelectualista. Ela fazia uma
distinção pejorativa entre teologia especulativa e existencial. Suspeitava
de um clero erudito. Considerava a conversão, e não a iniciação, o clímax
da experiência cristã. Insistia na religião pessoal como a única essência
verdadeira do Cristianismo.
319
Ao apontarmos para a tendência isolacionista do protestantismo de
imigração não significa desconsiderar a necessidade e a liberdade de determinados
grupos cultivarem suas raízes culturais, seus símbolos e sua origem histórica.
Significa, isto sim, alertarmos para o perigo de, na celebração étnica, esses grupos
estabelecerem com o restante da sociedade uma relação de domínio (vide o
apartheid na África do Sul) ou, pelo menos, de fechamento em sua própria cultura,
numa atitude auto-satisfatória.
A universalidade da história da salvação não é a dissolução dos espaços
específicos, étnicos e diferenciados. Não é uma negação da etnicidade
como criação de Deus, como espaço de encarnação do evangelho de Jesus
Cristo. É, isso sim, a negação do espaço fechado sobre si mesmo. O que o
apóstolo Paulo rejeita é “a etnicidade como mérito”. A universalidade da
graça não é a eliminação de raça, sexo ou condição social, e sim sua
libertação para o exercício do amor. (grifo nosso)
320
E, ao apontarmos para as marcas puritano-pietistas, tipicamente norte-
americanas, do protestantismo de missão, não significa afirmar que isto por si
representa irrelevância social e histórica. As marcas do evangelicalismo norte-
americano não desembocam necessariamente nem tão-somente em equívocos e
preconceitos culturais. Entretanto, quando tal referencial torna-se um fim em si
mesmo, não espaço para o reconhecimento do outro em sua alteridade, do seu
valor intrínseco e da beleza de sua cultura. Neste ponto, a chegada das missões
protestantes ao Brasil lembra a mesma relação mantida pelos missionários católicos
no século XVI com os ameríndios. Ambos não reconheceram a alteridade do povo
que aqui se encontrava. O projeto colonialista estava presente em ambos: nestes
um colonialismo geográfico, físico e econômico; naqueles um colonialismo cultural.
O setor ecumênico do protestantismo brasileiro representou uma saudável
alternativa de superação da antropologia dualista platônica com a articulação entre
319
BONINO, 2002, p. 85.
320
BONINO, 2002, p. 95.
114
Igreja e Sociedade e com seu engajamento social.
3.5.2 Pentecostalismo e neopentecostalismo o novo rosto da igreja
A primeira denominação pentecostal no Brasil foi a Congregação Cristã no
Brasil, fundada por Luigi Francescon em São Paulo em 1910. A segunda foi a
Assembléia de Deus, fundada em 18/06/1911 pelos missionários suecos Gunnar
Vingren e Daniel Berg, em Belém do Pará (eles haviam chegado em 19/11/1910,
depois de passarem pela igreja do Pr. William Durham em Chicago, o que também
ocorreu com Francescon). A Igreja recebeu o nome de Missão da Apostólica,
inspirado no trabalho da Rua Azusa, em Los Angeles. Sete anos depois, os
fundadores agora acompanhados dos missionários Otto Nelson e Samuel Nyström,
mudaram o nome para Assembléia de Deus. A mudança de nome foi feita para
acompanhar a decisão tomada pelos líderes do movimento nos Estados Unidos
reunidos em assembléia entre 2 e 14 de abril de 1914
321
. Os brasileiros começaram
a assumir cargos de liderança somente na década de 1930 com a eleição do Pr.
Cícero Canuto de Lima para presidente da Convenção Geral, sendo responsável
pela região norte e nordeste
322
. nesta primeira reunião debateu-se a questão do
ministério feminino. A decisão final foi:
As irmãs têm todo o direito de participar na obra evangélica, testificando de
Jesus e a sua salvação, e também ensinando quando for necessário. Mas
não se considera justo que uma irmã tenha função de pastor de uma igreja
ou de ensinadora, salvo em casos excepcionais mencionados em Mt 12:3-8.
Isto deve acontecer somente quando não existam na igreja irmãos
capacitados para pastorear ou ensinar.
323
O posicionamento conservador, algo machista, já dava o tom nesta primeira
reunião para desgosto de Gunnar Vingren que defendia o ministério feminino.
William Read destaca várias características das Assembléias de Deus: urbana;
evangelização vigorosa, espontânea e constante; oportunidade de todos serem
321
Cf. DANIEL, 2004, p. 9-10.
322
Cf. DANIEL, 2004, p. 27.
323
Cf. DANIEL, 2004, p. 40.
115
líderes; organização simples da Igreja; pastor capacita membros; apela a pessoas
humildes; o ministério está no nível do povo; os humildes atingem status social mais
elevado; os migrantes encontram calorosa recepção nas igrejas; todos são levados
a buscar o Batismo com o Espírito Santo; os líderes conhecem quem possui a
“experiência pentecostal”; a relação com Deus torna-se pessoal e íntima.
324
No aspecto teológico, em linhas gerais, podemos afirmar que o
Pentecostalismo Clássico é arminiano; é avivalista na linha pietista; enfatiza a ação
do Espírito sobre o crente; sua escatologia é pré-milenista dispensacionalista; a
santidade é ascética com separação radical do mundo. Do ponto de vista político
são conservadores tendo-se alinhado com a Ditadura Militar e apoiando
majoritariamente governos de direita
325
.
Nos anos 1950-1960 surgem movimentos e denominações que aceitam
outros sinais do batismo no Espírito e enfatizam mais a cura divina e os milagres,
tais como a Igreja do Evangelho Quadrangular (1953), O Brasil para Cristo (1956),
Deus é Amor (1962), e as cisões de denominações, tais como a Igreja Presbiteriana
Renovada, a Convenção Batista Nacional, a Igreja Metodista Wesleyana. Nos anos
1970-80 surgem as denominações chamadas de neo-pentecostais, tais como a
Igreja Universal do Reino de Deus (1977), a Internacional da Graça (1980), a
Renascer em Cristo (1986), a Sara nossa Terra (1992). A partir dos anos 1980-1990
proliferam as comunidades e igrejas independentes no movimento neo-pentecostal.
O neopentecostalismo surgiu nos Estados Unidos na década de 1940. Sob a
liderança e inspiração de Essek William Kenyon, vários televangelistas norte-
americanos começaram a pregar o que se denominou “Confissão Positiva”. A
Confissão Positiva é a base para o desenvolvimento da Teologia da Prosperidade
em suas várias dimensões. Em termos bastante resumidos, podemos dizer que em
sua dimensão financeira, essa Teologia é uma espécie de versão religiosa do
neoliberalismo. Afirma que os cristãos são predestinados para a riqueza, os bens
materiais, já, aqui e agora. A vida espiritual é uma transação financeira com o céu:
quanto maior a oferta, maior a bênção. A pobreza é decorrência do pecado e/ou da
idolatria. Em sua dimensão física, a Teologia da Prosperidade prega vida longa e
324
READ, William R. Fermento Religioso nas Massas do Brasil. Campinas: Livraria Cristã Unida, 1967. p. 128-
141
325
É bem verdade que nas últimas eleições apoiaram o presidente Lula. Mas, isto parece ter mais a ver com
interesses de poder e não com compromissos ideológicos.
116
próspera para os fiéis. A doença é coisa satânica. Quanto mais consagrado, mais
saudável será o crente. Na dimensão política, a Teologia da Prosperidade defende
certa teocracia para os nossos tempos. Aos cristãos estão reservados os postos de
comando. Deus não fez seu povo para ser “cauda”, mas para ser “cabeça” do
mundo. Na dimensão que chamaremos de espiritual, os teólogos da prosperidade
fazem uma polarização maniqueísta entre o bem (os cristãos) e os maus (os não
crentes). Não espaço para o pluralismo. A Batalha Espiritual travada,
normalmente em cima de montes, gira em torno da quebra de maldições
hereditárias. Se você confessa seus pecados e ainda assim não prospera é porque
a causa está nos pecados dos antepassados. É preciso conhecer esses pecados
dos antepassados, libertá-los, para que seus descendentes prosperem. Além disso,
é necessário “tomar posse” da vitória através da confissão positiva.
A teologia neopentecostal, consoante com o mundo pós-moderno, prega o
consumismo individualista, a midiatização (espetacularização) da fé; a super
valorização da saúde e do dinheiro; o alcance da bênção de forma imediata. Enfim,
o mundo é reencantado à serviço do fiel. Mendonça analisa a matriz religiosa
brasileira sobre a qual ergue-se o neopentecostalismo:
A cultura brasileira tem três componentes muito claros: a cultura ibero-
latino-católica, a indígena e a negra. A primeira não é representada pelo
catolicismo tridentino, mas pela religião popular, folclórica e festiva legada
pela tradição lusitana. Dessa mistura de cultura resultou um imaginário de
um mundo composto por espíritos e demônios bons e maus, por poderes
intermediários entre os homens e o sobrenatural e por possessões. Trata-se
de um mundo maniqueísta em que os poderes são classificáveis entre o
bem e o mal e manipuláveis magicamente. O homem, através de agentes
especiais, pode organizar este mundo de modo a obter dele benefícios que
não são permanentes, mas devem ser negociados no cotidiano. Merecem
atenção constante.
326
O autor citado ainda afirma que o neopentecostalismo se diferenciou do
protestantismo histórico ao colocar de lado a Bíblia. No neopentecostalismo esta não
tem nenhuma relevância. Em visita a IURD em Vitória, Espírito Santo, no primeiro
semestre de 2009, com alunos/as do Curso de Teologia da Faculdade Unida,
presenciei o Bispo jogando com desdém a Bíblia sobre o púlpito e vociferou: “Eu não
vim aqui pregar a Bíblia. A letra mata. Eu vim aqui falar das coisas do Espírito”. E
326
MENDONÇA, Antônio G.. Protestantes, Pentecostais e Ecumênicos: o campo religioso e seus personagens.
São Bernardo do Campo: UMESP, 1997. p. 160.
117
Mendonça continua afirmando que dos pentecostais clássicos perderam a segunda
bênção, o batismo com o Espírito Santo, seguido do falar em línguas
327
.
Em substituição a elementos tradicionalmente protestantes entraram
aspectos mágicos com o “instrumental herdado das religiões correspondentes ao
imaginário social, como novenas [...], bênção da água tornado-a milagrosa, óleos,
flores, chaves, etc. Os atos de exorcismo entram como instrumental de
reorganização do universo dos clientes, separando o bem do mal”.
328
E Mendonça
finaliza ponderando que “essas igrejas não constituem comunidades de crentes
comprometidos com a koinonia cristã. Estão sempre cheias, mas de clientes que
buscam solução mágica para os problemas do cotidiano e que estão sempre em
trânsito”.
329
Na mesma visita também pude observar que, estando o templo lotado,
antes do início do culto, as pessoas não conversavam entre si, o que seria muito
normal em uma igreja histórica ou pentecostal. A provável conclusão é que elas não
se conheciam dada a grande rotatividade na freqüência. Mendonça se recusa a
chamar estas comunidades de igrejas, prefere “sindicato de mágicos”
330
.
O protestantismo histórico tem certos limites em seu poder de alcançar
mentes e corações na América Latina. Sendo uma religião eminentemente
discursiva, este tipo de protestantismo, em seus diversos matizes, não atende
plenamente ao anseio das camadas populares de contato com o sagrado. O
conceito de “conversão” trazido pelo protestantismo de missão implicava em
rompimento com a religiosidade e cultura populares e conseqüente assentimento
com determinado corpo de doutrinas e pacote ético. Por outro lado, os processos
modernizantes pelos quais passam a sociedade latino-americana afetam de maneira
profunda a vida dos pobres e sua religiosidade.
[...] os processos de penetração e expansão capitalista destroem as formas
tradicionais de compartilhar e organizar o espaço vital, modificam as
imagens e percepções sociais e coletivas, introduzem fins de produção e
acumulação individual dos bens e das riquezas, e geram relações fundadas
na diferenciação e competição aberta ou velada entre os membros das
comunidades. O conjunto desses efeitos acarreta uma transformação
profunda da noção de “valor”. E, como se sabe, a noção de valor é
consubstancial com a questão do “sentido da vida” (Cohen, 1982). Já não
327
Cf. MENDONÇA, 1997, p. 161.
328
MENDONÇA, 1997, p. 161.
329
MENDONÇA, 1997, p. 161.
330
Cf. MENDONÇA, 1997, p. 166.
118
“se vale” na medida em que se é membro de uma comunidade e na medida
em que se participa e contribui para sua reprodução; antes, o valor está na
diferenciação em relação aos outros e na acumulação de riqueza, prestígio
e poder.
331
Com a mudança na estrutura social, modifica-se também a maneira como a
pessoa vai se relacionar com este mundo. A maneira como ela o sente. Modificam-
se as condições através das quais se experimenta o sagrado. As condições sociais
modernas e pós-modernas, que reviram ao avesso a existência do indivíduo e da
sociedade, e que produzem pessoas “invisíveis” pela sua falta de poder econômico e
social, criam o campo fértil para o florescimento do pentecostalismo e, num segundo
momento, do neopentecostalismo. É aqui que as massas encontrarão uma
interpelação religiosa que atenda mais plenamente aos seus anseios.
O processo de inserção das camadas mais pobres no pentecostalismo,
segundo Palma Manríquez, inclui num primeiro momento um processo de “cura”
para o indivíduo que se aproxima, seguido de incorporação no grupo, ampliação das
possibilidades de sobrevivência através de intercâmbios que transcendem os
objetivos primários da comunidade e, finalmente, exercício de “dons” na maioria das
vezes, desconhecidos anteriormente.
Mais uma vez, o conceito de “conversão” é central para a compreensão dos
desdobramentos desse processo na vida dos fiéis. Se por um lado esta “conversão”
significa ruptura com a religiosidade e cultura anteriores, paradoxalmente,
representa também um continuísmo dessa mesma religiosidade. Os símbolos são
transplantados com novas cores, uma nova linguagem é incorporada, um novo
poder é recebido. Tudo isso, feito num ambiente acolhedor no qual processos de
retomada de poder são desencadeados. Servem como válvulas sociais. Ali, o “Seu
João” é o Evangelista João. A “Dona Maria” é a líder do grupo de oração. Mas esta
“conversão” também implica numa nova ética. O rompimento com o mundo é a
conditio sine qua non para a incorporação plena no grupo. Esta característica é
causa de rompimentos afetivos e sociais muitas vezes geradores de distúrbios e
desvios de caráter psíquico.
Outro elemento chama-nos a atenção no mundo pentecostal e, sobretudo,
331
PALMA MANRÍQUEZ, Samuel. O novo rosto da igreja na região andina e na América Latina. In: CASCO,
Miguel Angel; CABEZAS, Roger, PALMA MANRÍQUEZ, Samuel. Pentecostais, libertação e ecumenismo. S.1.:
CECA/CEBI, 1996. p. 43.
119
neopentecostal. Embora, difira do protestantismo histórico por não ser uma religião
do discurso, a palavra preenche todos os espaços do culto pentecostal. Como
assevera Waldo César “talvez o visitante ou o convertido não tivesse nenhuma voz,
mas agora tem muitas, canta, geme, grita, gesticula, fala em línguas num êxtase
que apenas pode estar começando”.
332
como que a celebração de uma vida
possível. O renascer de uma esperança que, pelo menos naquele momento, pareça
tópica.
A ética pentecostal é anti-mundana. Mas a palavra é voltada para as
questões do “mundo”. Ela penetra o cotidiano das pessoas. Embora demonizado,
são valores deste “mundo” que são ambicionados: a casa própria, o carro do ano,
viagens... Elabora-se uma espécie de cultura evangélica alternativa. As
manifestações culturais da sociedade são rejeitadas. Dança, sica, cinema,
televisão, shows, determinados espaços são coisas do diabo. Essa cultura
evangélica alternativa visa preencher essas lacunas. O mercado mais uma vez
as cartas. Esse é um “mundanismo” sutil que abraça com seus tentáculos esse
nicho. Bom é o político irmão. Boa é a música gospel, o filme cristão. Criam-se
espaços de encontro: pizzarias, restaurantes e até shoppings “evangélicos”. Os
shows mundanos são substituídos pelos shows gospels com danças, gritos e
manifestações de extrema euforia. Paradoxalmente, não existem mais fronteiras
entre o sagrado e o profano.
A palavra, no culto pentecostal clássico, costumava apontar para o céu. Os
spirituals norte-americanos são pródigos nessa característica. O neopentecostalismo
mostra nova tendência. A palavra, no culto neopentecostal cria uma ponte entre a
e o cotidiano. As bênçãos, mormente as materiais, são para o aqui e o agora. A este
respeito Waldo Cesar afirma que “a mensagem das igrejas tradicionais não tem,
para as camadas populares, nem o gosto nem o conteúdo do pão de cada dia”.
333
Esta fusão entre o interno e o externo explica em grande medida o sucesso
neopentecostal. Aliás, este é outro elemento do que nós chamamos de „mundanismo
que ninguém vê‟. O sucesso dos pastores é medido pela sua capacidade de
acrescentar fiéis à sua comunidade, pela sua capacidade de aumentar a
332
CESAR, Waldo; SCHAULL, Richard. Pentecostalismo e futuro das igrejas cristãs: promessas e desafios.
Petrópolis, Vozes; São Leopoldo, Sinodal, 1999, p. 74.
333
CESAR e SCHAULL, 1999, p. 78.
120
arrecadação, pelo tamanho do templo que ele constrói. Em nada diferente do
“mundo” que incensa os empresários bem sucedidos. E, bem sucedidos neste caso,
é sinônimo de empresa grande, grande número de funcionários, receita milionária,
poder aquisitivo etc. Esta é, portanto, uma das marcas paradoxais do
neopentecostalismo: o “mundo” é o paradigma para suas ões e até referência
para sua teologia (teologia da prosperidade).
Que importa: a palavra aqui não está a serviço de verdades doutrinárias.
Esta palavra, que no ambiente do protestantismo histórico parece tantas vezes vaga
e divorciada da vida cotidiana, no ambiente pentecostal e neopentecostal vai direto
ao encontro das necessidades e anseios diários. Não é uma palavra sobre Deus. É
uma palavra para Deus. Esta palavra não é propriedade de alguns poucos. No
fenômeno glossolálico o fiel pode expressar toda sua ligação com o sagrado, sem
intermediações. Para Waldo Cesar aqui está a “mais expressiva dimensão simbólica
do culto pentecostal”.
334
Também afirma:
O que até então era entendível na simplicidade de uma mensagem voltada
para os problemas cotidianos, torna-se, paradoxalmente, ininteligível. [...]
Para os que recebem o dom de falar em línguas desconhecidas, o
fenômeno significa superar a própria língua, criar, improvisar, viver o êxtase
de uma graça indizível.
335
Guardadas todas as críticas pertinentes e justificáveis, não se pode negar
que este tem sido um espaço de expressão para as camadas populares,
reordenamento da vida, sentimento de acolhimento e pertença a um grupo,
alfabetização, libertação do alcoolismo e das drogas etc. Assim, outra característica
apontada por Waldo Cesar e Richard Schaull se refere ao espaço físico dos templos
pentecostais e neopentecostais.
O ajuntamento humano no interior dos templos, esteticamente mais
próximos das classes pobres, assemelha-se à composição diversificada do
mundo profano, incluindo bêbados, prostitutas, drogados, homossexuais
que não se sentem rejeitados no espaço sagrado. O que poderia ser
totalmente estranho e constrangedor numa igreja tradicional (em muitos
casos nem mesmo permitido), parece natural em bem-vindo num templo
pentecostal. Várias vezes percebemos a presença de “marginais” a
escória deste mundo , mais ainda nas igrejas da Universal. Num templo de
Botafogo, no Rio, uma mulher em trajes sumários, atraindo a atenção do
334
CESAR e SCHAULL, 1999, p. 84.
335
CESAR e SCHAULL, 1999, p. 82.
121
auditório, foi logo recebida com respeito por uma obreira, que providenciou
uma manta para envolvê-la.
336
O templo pentecostal constituiu-se assim num espaço democrático no qual
os despossuídos encontram liberdade de movimentação e de expressão. Ali uma
espécie de resgate da cidadania. Não distinção de pessoas. Todos são bem-
vindos como estão.
A caminhada interna, pois, sintetiza um universo social, eclesial e religioso
extremamente diversificado. Os que se juntam no grande espaço reúnem
não apenas as diferenças da vida mundana como a diversidade protestante
ou de outras religiões.
337
Há, no mundo pentecostal e neopentecostal uma espécie de “destino
manifesto”. A fundamentação teórica deste sentimento é a Teologia da
Prosperidade. A entrega de vida destes fiéis (conversão) significa que agora eles
são “filhos do Rei” e, como tais, herdeiros da terra. Os espaços externos devem ser
dominados. Temos visto nos últimos anos uma “invasão” de ambientes antes
fechados para os evangélicos, mormente, o esportivo, o artístico e o político. Aliás,
isto é fruto de uma mudança de mentalidade: antes estes ambientes eram vistos
como mundanos, dominados por Satanás e deveriam ser evitados a todo custo
pelos cristãos. Nos últimos 20 ou 30 anos, por influência do neopentecostalismo esta
mentalidade mudou. Igrejas como Renascer em Cristo e Sara a Nossa Terra exibem
com certo orgulho os artistas e jogadores de futebol que fazem parte do seu grupo
de fiéis.
O esforço com o objetivo de eleger candidatos evangélicos vem crescendo
com força desde a Constituinte de 1988. O alvo final seria a eleição de um
presidente evangélico, o que representaria o coroamento de um projeto de poder
abençoado por Deus. Assim se manifestava o ex-deputado Laprovita Vieira, da
IURD:
O que mais precisamos hoje é de um homem de Deus, levantado por Ele
próprio para conduzir esta Nação. O que o Brasil precisa é que o povo de
Deus ore, busque, se arrependa de seus maus caminhos para que se
levante um „Davi‟ de dentro da sua própria igreja para dirigir esta Nação. E,
336
CESAR e SCHAULL, 1999, p. 97.
337
CESAR e SCHAULL, 1999, p. 98.
122
baseados neste propósito, lançamos nossos candidatos para evitar que o
povo de Deus plante o os „amalequitas‟ colham. [...] Os cristãos evangélicos
têm que ocupar o seu espaço.
338
Curiosamente, o que temos assistido com esse crescimento de políticos
evangélicos é o envolvimento de uma boa parcela desses políticos em projetos
privados no âmbito público. Não um projeto voltado para as condições sociais e
econômicas que alcancem todo o País. Tem servido mais como uma espécie de
marketing evangélico, ou seja, demonstração de força das igrejas. Ou, pior, como
meio de enriquecimento ilícito e de favorecimento pessoal e, às vezes,
denominacional. Isto tudo aliado a adesões em grupo (bancada evangélica) a
votações de cunho moral, o que satisfaz planamente ao anseio da clientela.
Além disso, estas igrejas também trouxeram uma roupagem modernizante,
uma espécie de “verniz”. É comum que pastores e pastoras dessas novas
comunidades se vistam com roupas da moda, se tatuem, apliquem piercings e usem
uma linguagem repleta de gírias. Este é o caso, por exemplo, da Bola de Neve
Church. No entanto, a pregação nessas igrejas continua com forte viés moralista e
fundamentalista.
Movimentos alternativos, de linha underground proliferam nos últimos
tempos. O objetivo é alcançar as várias “tribos” esquecidas pelas igrejas tradicionais:
travestis, punks, adeptos do Heavy Metal, artistas pornôs etc. Sites especializados
nesses grupos são espaços de debate e de livre expressão. Inclusive sites pornôs
cristãos
339
.
3.6 Conclusão
Iniciamos este capítulo nos referindo aos quatro grupos que constituíram a
Reforma Protestante: luteranos, calvinistas, anabatistas e anglicanos. Ao traçarmos
uma linha que se inicia na Reforma do século XVI e termina no quadro evangélico
brasileiro contemporâneo é espantoso o alto grau de complexidade que tomou conta
338
VIEIRA, apud CESAR e SCHAULL, 1999, p. 105.
339
Cf. Disponível em: <http://sexxxchurch.com/> Acesso em: 10 de julho de 2008.
123
desse cenário religioso. Várias tentativas têm sido feitas pelos estudiosos para se
estabelecer uma tipologia do protestantismo brasileiro. A dificuldade é tanta que
começamos pela impossibilidade de utilizarmos esta nomenclatura no singular.
Assim o fazemos apenas por uma questão de simplificação didática. À rigor,
teríamos que falar em protestantismos, pentecostalismos e neopentecostalismos,
sempre no plural. Se insistíssemos em ir mais a fundo, também teríamos que falar
em vários tipos de Assembléias de Deus
340
, em metodistas no plural, presbiterianas,
etc. As subcategorias são intermináveis. Dos quatro grupos iniciais do século XVI
temos atualmente literalmente milhares de igrejas, denominações e comunidades.
Bem ao gosto desses tempos pós-modernos temos “produtos religiosos” para todos
os gostos. Nesse grande supermercado gospel, o cliente pode se fartar com tudo
quanto é tipo de mercadoria religiosa. Se não ficar satisfeito, existem muitas outras
prateleiras e produtos a serem escolhidos e consumidos.
Magali do Nascimento Cunha faz uma tentativa de organização de mosaico
religioso classificando-o em protestantismo histórico de migração (ex. Luterana);
protestantismo histórico de missão (ex. Presbiteriana); pentecostalismo histórico (ex.
Assembléia de Deus); pentecostalismo de renovação ou carismático (ex. Batista
Renovada); pentecostalismo independente (ou neopentecostalismo) (ex. IURD); e
pentecostalismo independente de renovação (ex. Renascer em Cristo)
341
.
Temos, desde a introdução desse trabalho, nos preocupado com a difícil
questão da relação do Cristianismo com a Cultura e do agravamento desta relação
dada a influência da antropologia platônica sobre o pensamento cristão construído
ao longo de séculos. No caso da implantação do Protestantismo no Brasil houve um
claro estranhamento por parte dos missionários com a cultura do nosso País.
A ética puritana de restrição de costumes no Brasil representava uma forma
de comunicar a negação do catolicismo e marcar a identidade protestante.
A abstinência de bebida alcoólica, do fumo, da participação em festas
dançantes e populares, em especial o Carnaval, e dos divertimentos
populares como o teatro, o cinema, a música popular deveria dizer ao
mundo que os protestantes eram diferentes.
342
340
Cf. ALENCAR, Gedeon Freire de. Matriz Pentecostal Brasileira: Assembléia de Deus. In: Simpósio 48. São
Paulo: ASTE, 2008. p. 19-21. O autor propõe uma tipologia que abrangeria o assembleianismo rural, o urbano, o
autônomo e o difuso.
341
CUNHA, Magali do Nascimento. A Explosão Gospel: um olhar das ciências humanas sobre o cenário
evangélico no Brasil. Rio de Janeiro: MAUAD/MYSTERIUM, 2007. p. 14-15.
342
CUNHA, 2007, p. 179.
124
Ao afirmarmos essa resistência dos protestantes à cultura brasileira não
estamos nos referindo à cultura em geral, mas, àquilo que podemos chamar de
cultura popular: folclore, músicas, danças, ritmos, festas populares, brincadeiras, etc.
Entretanto, em relação à cultura mais clássica, política, intelectualizada e
acadêmica, houve, em muitos momentos, bastante identificação. Por exemplo, como
sublinhado, com os liberais-modernistas do século XIX, com as forças
conservadores que promoveram o golpe militar em 1964, com as eleições
presidenciais de 1989 que elegeram Fernando Collor de Mello com amplo apoio dos
evangélicos, etc.
Mas um novo fenômeno que nos surpreende sobremaneira ao olharmos
para o quadro evangélico brasileiro atual: a construção de uma cultura gospel. Essa
cultura não respeita fronteiras e está presente em praticamente todo o universo das
igrejas evangélicas no Brasil. A proposta gospel visa exatamente superar a clássica
separação dualista igreja-mundo dos evangélicos de outrora. O crente gospel dança,
houve rock, funk, pagode, usa roupa da moda, valoriza o corpo, os ambientes de
consumo por excelência, os shopping centers, etc. Ou seja, o gospel insere-se na
modernidade, ou, mais precisamente, na pós-modernidade. Acontece que, aqui e
acolá, ela toma rumos diferentes e destaca aspectos diferentes da religiosidade
“crente”. No neopentecostalismo da IURD, por exemplo, com aquilo que nos parece
uma mudança de estratégia, uma vez que na década de 1990 a postura dos líderes
dessa denominação era de ataque virulento contra a religiosidade popular brasileira,
católica, umbandista e candomblecista, agora faz-se uma incorporação consciente
de elementos dessas religiosidades em nome de uma certa inculturação da fé, o que
alguns chamam de “umbandização evangélica”. O que falar desse uso sincrético
dos símbolos da religiosidade tipicamente brasileira fruto do casamento entre o
mundo do catolicismo lusitano, das religiões indígenas e das religiões afros em
cultos evangélicos?
Como outro exemplo, podemos citar a Igreja Renascer em Cristo que
promove eventos de música evangélica que no final das contas não se sabe muito
bem se é um show, louvor, espetáculo para pura diversão, evangelização, ou outra
coisa qualquer. Os cantores/as são chamados de “artistas gospel”. A maioria desses
“artistas gospel” é oriunda de lares evangélicos pentecostais. Mas, dos anos 90 para
125
um novo fenômeno tomou conta desse “mercado”: o artista convertido ao gospel:
Mara Maravilha, Baby (Consuelo) do Brasil, Wanderley Cardoso, Nelson Ned e
Rodolfo (ex Raimundos), são apenas alguns exemplos
343
. Dada a proibição dos fiéis
freqüentarem shows seculares, cria-se uma alternativa gospel para a diversão dos
jovens. Na Igreja Bola de Neve Church o púlpito é uma prancha de surf, os pastores
geralmente são surfistas e pregam no culto vestindo bermudões. Enfim, os exemplos
se multiplicam.
Diante desse novo fenômeno, perguntamos: essa assimilação de ritmos,
estilos musicais, danças e coreografias representam uma inculturação legítima da
fé?
344
Não seria isto também fruto do dualismo sagrado versus profano? Não seria
isto uma estratégia para afastar as pessoas do “mundo”? Em meio a toda essa onda
modernista nesse universo gospel não permaneceriam os discursos fiéis ao cardápio
puritano-pietista-moralista? Por baixo desse verniz de inculturação, não resistiriam
as velhas categorias avivalistas: conversionismo, apocalipsismo e ética seletiva? O
ascetismo, nesse ambiente gospel, não continuaria presente com nova roupagem?
Por exemplo, a música é moderna, as danças são permitidas, os diversos ritmos
desejáveis, a roupa é fashion, mas tudo isso dentro do locus evangélico. Tudo isso
vale, mas quando feito por nós, pois, dessa forma, essas coisas passariam por uma
purificação, uma lavagem espiritual, receberiam a marca da unção divina. Essas
coisas valem desde que feitas para a glória de Deus. Entenda-se glória de Deus
como sinônimo de ter sido feito sob liderança dos evangélicos. Insistimos: não seria
isso uma versão pós-moderna do antigo ascetismo cristão, da separação sagrado-
profano, igreja-mundo?
Como palavra final, afirmamos que não é nosso desejo propor um
protestantismo perfeito. Se assim o fizéssemos, correríamos o risco de cair também
no idealismo platônico. Até porque assumimos a profunda complexidade que
representa a implantação e o crescimento do protestantismo no Brasil. O quadro é
por demais intrincado para dele fazermos afirmações definitivas e contundentes.
Também assumimos as contingências históricas, as idiossincrasias de cada época e
343
CUNHA, 2007, p. 93.
344
Lutero usara o método chamado contrafação para substituir as letras de canções populares por
conteúdos sacros. Cf. CUNHA, 2007, p. 99.
126
a natural dificuldade dos atores superarem essa confluência de fatores que são
políticos, econômicos, sociais, culturais, religiosos, e até psicológicos. Contudo, um
pouco de utopia não nos fará mal, sendo a utopia elemento constituinte da
escatologia cristã.
Concluímos com as palavras de Julio Zabatiero em aula ministrada para
uma turma de teologia na Faculdade Unida em 2008 e que tomo a liberdade aqui de
reproduzir de forma livre e parafraseada: “ao invés de olhar para o mundo como o
inimigo a ser vencido, as igrejas podem optar pelo caminho da encarnação ou
seja, o caminho da solidariedade missionária, assumindo seu papel de comunidade
cidadã. Esse seria o caminho da contextualização crítica. Quando o Evangelho se
encarna nas igrejas, elas assumem a sua condição de comunidades includentes
(não sendo discriminatórias), terapêuticas (libertando da culpa e do medo), solidárias
(não vivendo em função de seu próprio crescimento). Podemos ser comunidades
que assumem suas fraquezas e limitações não afirmando a propriedade de
“verdades absolutas” impermeáveis ao diálogo crítico, sejam elas derivadas da
religião, sejam derivadas da ciência, mas busque a partir da Bíblia e da tradição
cristã consensos éticos para transformações sociais viáveis. Também podemos
praticar uma teologia que não esteja centrada em dogmas, mas na descrição do
compromisso pessoal e comunitário com a contextualização crítica do Evangelho.
Acrescentemos a isso, uma teologia evangelicamente crítica das instituições,
organizações e movimentos cristãos, em busca de seu deslocamento dos modelos
de cristandade para um modelo de igreja cidadã, atuante na esfera pública,
assumindo co-responsabilidade pela gestão democrática da vida social. Finalmente,
o caminho da contextualização crítica não tem um mapa pré-traçado, deve ser
construído no próprio caminhar, assumidos os riscos da vivência plena do
Evangelho na experiência pessoal e comunitária; praticando uma reflexão teológica
não-fundamentalista, posto que anti-cristã e uma imersão missionária em uma
realidade que não pode ser controlada pela própria igreja, mas que demanda uma
plena e desafiadora humanização.
Assim, precisamos privilegiar uma leitura da antropologia bíblica que tenha
como referencial o universo semítico com sua visão da integralidade do ser humano.
Isso é o que nos propomos fazer no próximo capítulo.
127
4. ESPÍRITO E CORPO UNIDADE FUNDAMENTAL
DO SER HUMANO NA VISÃO BÍBLICA
Da constatação de que profunda divergência entre as concepções grega
e hebraica quanto à antropologia concluir-se-á que o resultado será uma teologia
híbrida em quase todas as suas dimensões, de forma abrangente e definitiva. Como
resultado da infiltração da filosofia grega na teologia cristã e o afastamento desta da
visão semítica monista do ser humano, não apenas a antropologia, mas a
cristologia, a soteriologia, a escatologia, a eclesiologia, a prática pastoral, enfim, o
pensamento cristão e, consequentemente, a práxis cristã, helenizaram-se, num
dualismo profundo
345
.
Uma das prováveis causas do desprezo platônico pelo corpo remonta ao
pensamento de Homero o qual fazia uso da palavra ma para referir-se ao cadáver
ou corpo morto, abandonado pela psyché
346
. Devemos afirmar de início e de
maneira clara, “o semita não conhece uma alma sem corpo, nem possui palavra
correspondente para isso”.
347
Com isto, não negamos que as Escrituras destaquem
aspectos do ser humano, certamente ela o faz. Entretanto, seu modo de pensar é
sempre global, sempre reflete sobre a pessoa humana em sua complexidade, em
suas várias dimensões, e estas, integradas em uma unidade de força vital “pela qual
ele [o ser humano] originária e continuamente está relacionado com Deus e com o
mundo político-social que o cerca”.
348
Vejamos esta visão como descrita no Antigo e
345
Convém lembrar que o pensamento grego não é monolítico. O mesmo possui várias correntes e não se
resume na concepção pitagórica-platônica a qual nos referimos neste trabalho. Cf. FIORENZA e METZ, 1972, p.
27.
346
Cf. FIORENZA e METZ, 1972, p. 28.
347
BOFF, 1973, p. 68.
348
FIORENZA e METZ, 1972, p. 32.
128
Novo Testamento.
4.1 O legado do Antigo Testamento para uma antropologia da unidade da
pessoa humana
Em seu clássico Antropologia do Antigo Testamento, Hans Walter Wolff
chama nossa atenção para os equívocos que se produziram na tradução do texto
hebraico do Antigo Testamento para sua versão grega, a Septuaginta. Assim, Wolff
se lança à tarefa de identificar até que ponto a filosofia helênica deturpou o
significado semítico-bíblico dos termos usados no Antigo Testamento em referência
ao ser humano. Segundo ele, uma das graves conseqüências de uma tradução
descuidada, foi que isto acarretou numa antropologia dicotômica ou tricotômica, “na
qual o corpo, a alma e o espírito se encontram em oposição mútua”.
349
O Antigo Testamento, mormente os textos javistas, se ocupam da tarefa de
interpretação da vida, do que é o ser humano, suas múltiplas relações, o problema
do sofrimento e do mal, as origens das coisas etc. Nesta empreitada, o javista
lançou mão de uma rica terminologia antropológica
350
. A tradução destes termos
hebraicos sempre, ou quase sempre, por psyché, alma no pensamento grego,
produz, como se disse, graves erros. Por conseguinte, Wolff discorre sobre os
vocábulos hebraicos que descrevem a pessoa humana apontando suas várias
significações e possibilidades de tradução. Seguindo seu pensamento, vejamos
quais são estes termos e seus sentidos.
4.1.1 Néfesh
Em diferentes contextos, o termo hebraico néfesh, pode significar garganta,
pescoço, anelo, alma, vida, pessoa ou pronome. Isto ocorre porque o hebreu utiliza-
349
WOLFF, Hans Walter. Antropologia do Antigo Testamento. São Paulo: Hagnos, 2008. p. 29.
350
Cf. HAGSMA, 1998, p. 20.
129
se da mesma palavra para expressar seu pensamento, onde outros idiomas teriam
uma variação
351
. Deste modo, será o contexto que irá determinar seu significado.
Não obstante, este termo tão importante da antropologia veterotestamentária, é
quase sempre traduzido por psyché (alma). fesh aparece 755 vezes no Antigo
Testamento. Destas, a Septuaginta traduz o termo 600 vezes por psyché (alma) em
um flagrante reducionismo de seu sentido mais amplo.
Vejamos algumas passagens que exemplificam nossa argumentação. Em
Gênesis 2:7, “Javé Deus formou o ser humano do da terra e soprou nas suas
narinas o fôlego da vida; assim o ser humano se tornou uma néfesh vivente”. Neste
caso, néfesh não pode ser traduzido por alma, mas deve ser visto como expressão
da integralidade do ser humano, em especial com sua respiração. Neste sentido, o
ser humano não tem néfesh, mas é néfesh
352
. Este ser humano, formado do da
terra, não tem vida enquanto não recebe este sopro divino. Ato contínuo, não
aqui distinção entre corpo e alma. Este não é um corpo sem alma, mas um ser
humano sem vida. Neste versículo temos um paradigma da antropologia
veterotestamentária
353
.
Quando néfesh refere-se a um membro do corpo (garganta, por exemplo),
este deve ser compreendido em suas atividades específicas (a via do alimento), “e
estas, por sua vez, são concebidas como características de todo o ser humano”.
354
Textos como Isaías 5:14, Habacuque 2:5, Salmos 107: 5, 9, Eclesiastes 6:7 apontam
para a fome e a sede da néfesh, falam da néfesh desfalecida e ressequida, saciada
e enchida, em referência clara não à alma, mas à garganta como símbolo do ser
humano em sua totalidade. Por isso, para Wolff néfesh é o ser humano necessitado.
Em outros textos o termo hebraico néfesh é utilizado em alusão à respiração
(Jeremias 2:24, 15:9; 11:20; Gênesis 35:18; I Reis 17:21s.; II Samuel 16:14 etc).
Para os semitas “o ato de comer, de beber e de respirar realizava-se na garganta;
351
Cf. HAGSMA, 1998, p. 20.
352
Cf. FIORENZA e METZ, 1972, p. 33. Neste mesmo trecho, em nota de rodapé, os autores citam W. Eichrodt o
qual afirma “(...) a palavra significa, principalmente e antes de tudo, a vida e... a vida ligada a um corpo. Por
isso, a néfesh, com a morte, deixa de existir... Pode-se dizer exatamente que a néfesh morre”. Ao contrário da
concepção grega-platônica e da teologia cristã que daí surgiu, que afirmam que a alma tradução mais comum
de néfesh sobrevive ao corpo, posto que é eterna e imortal.
353
Cf. HAGSMA, 1998, p. 21.
354
WOLFF, 2008, p. 35.
130
assim, ela era simplesmente a sede das necessidades elementares da vida”.
355
Quase sempre néfesh é utilizado para designar órgãos vitais, os quais
exigem satisfação, sem o qual o ser humano morre. Isto é possibilitado pelo
pensamento estereométrico-sintético utilizado pelos escritores do Antigo Testamento
para descrever órgãos do corpo em referência à totalidade do ser humano. Por
exemplo, Provérbios 18:15: Um coração sensato adquire conhecimento e o ouvido
dos sábios procura conhecimento”. Quem adquire e busca conhecimento é o ser
humano descrito aqui como coração e ouvido.
Néfesh também é utilizado como pescoço no Livro de Salmos 105:18,
“Apertaram em cadeias os seus pés, a sua néfesh foi posta em ferros” (também em
Salmos 44:26; Salmos 119: 25; Gênesis 37:21; Jeremias 4:10). O que está sendo
ameaçado nestes textos é o ser humano (pescoço) que necessita de auxílio.
Néfesh descreve, além disso, o ser humano que anseia ou anela por algo,
bom ou ruim. “(...) quando o mal (Provérbios 21:10), a realeza (II Samuel 3:21; I Reis
11:37) ou Deus (Isaías 26:9) se tornam o objeto dos desejos ou quando o objeto
está inteiramente ausente (Provérbios 13: 4, 19), então néfesh designa o desejo
como tal, o impulso da ânsia humana como sujeito do desejar.
356
Verdadeiramente, uma das possibilidades de tradução de néfesh é alma (Jó
19:2; 30:25; Salmos 42:2; Isaías 53:11). Em todas estas passagens alma traduz os
sentimentos e emoções vivenciados por um ser humano nas mais variadas
situações da vida, jamais no sentido grego de alma imortal e em conflito com o
corpo.
Néfesh pode descrever a vida mesma. Assim, em Êxodo 21:23ss. lemos, “se
ocorrer um acidente, darás néfesh por néfesh, olho por olho, dente por dente, mão
por mão, pé por pé”. Ou ainda, a própria pessoa humana como em Levíticos 23:30:
“Toda néfesh que neste dia fizer qualquer trabalho, esta néfesh exterminarei do meio
do seu povo”.
Finalmente, Wolff demonstra a utilização de néfesh como pronome pessoal.
Sansão, ao derrubar as colunas da casa dos filisteus, exclama “morra eu (néfesh)
com os filisteus”. Ou Balaão em Números 23:10, “que eu (a minha néfesh) morra a
morte dos justos”. Assim, em alguns contextos a melhor tradução de néfesh seria
355
WOLFF, 2008, p. 39.
356
WOLFF, 2008, p. 42.
131
simplesmente pessoa ou ser. Por exemplo, em Levíticos 2:1: “Quando alguma
pessoa (néfesh ) fizer oferta de manjares ao Senhor...”. Ou em Jeremias 52: 28,
29: “(...) Este é o povo que Nabucodonosor levou para o exílio (...) oitocentas e trinta
e duas pessoas (néfesh)”.
357
Em resumo, néfesh não descreve uma parte da pessoa humana, muito
menos uma parte da pessoa humana em contraposição a outra parte desta mesma
pessoa. Néfesh, em seus mais variados usos, é o ser humano. “Quando a garganta
sente fome, é o próprio homem que tem fome, quando a néfesh deseja algo e o
exige, é todo homem que o exige e deseja. Neste contexto a palavra néfesh
significa, em sentido translato, o homem todo, na medida em que ele visa alcançar
algo”.
358
Em nenhuma destas aplicações cabe a compreensão grega da alma imortal
aprisionada em um corpo. As 600 vezes que a Septuaginta traduz néfesh por
psyché, lida em um contexto grego com sua mundividência helênica-platônica,
infelizmente, ajudou a consolidar uma antropologia teológica dualista em
contraposição à visão semítico-veterotestamentária de ser humano integral.
4.1.2 Basar
O termo hebraico basar pode significar carne, corpo, parentesco ou
fraqueza. A palavra ocorre 273 vezes no Antigo Testamento, sendo que em 104
vezes a referência é a animais. Isto demonstra que basar fala de algo típico tanto de
seres humanos quanto de animais
359
. Em Isaías 22:13 temos um exemplo de
utilização de basar para designar a carne animal. o relato de Gênesis 2:21 que
descreve a criação da mulher a partir de uma parte do ser humano, fala de basar
como de um pedaço de carne do corpo humano, em oposição aos ossos. Vale
lembrar que o hebreu tem apenas a palavra basar para designar aquilo que o grego
357
WALTKE, Bruce K. Nepesh. In: HARRIS, R. Laird, ARCHER Jr., Gleason L. e WALTKE, Bruce K. (orgs.). Dicionário
Internacional de Teologia do Antigo Testamento. São Paulo: Vida Nova, 2005. p. 985.
358
FIORENZA e METZ, 1972, p. 33.
359
Cf. WOLFF, 2008, p. 57.
132
expressa utilizando os conceitos de sarx (carne) e sôma (corpo)
360
.
Assim, basar é utilizado para descrever uma parte visível do corpo. Não
obstante, pode ser utilizado também para descrever o corpo todo. Encontramos esta
aplicação em Números 8:7: Fazer passar uma navalha por todo o ser basar(isto é,
por todo o seu corpo). Em algumas passagens, ao descrever todo o corpo, basar
torna-se sinônimo de pronome pessoal: Não nada são no meu basar, por causa
da tua ira” (Salmos 38:4a), ou “O medo de ti faz estremecer o meu basar, temo os
teus juízos” (Salmos 119:120).
Outra possibilidade é a utilização de basar para designar parentesco. Judá
afirma em relação a José: Ele é nosso irmão, nosso basar”. Assim também em
Gênesis 29:14; Gênesis 2:23; Juízes 9:2; II Samuel 5:1; 19:13s. Este parentesco
aplica-se tanto a membro da mesma família ou clã, quanto àquilo que une o gênero
humano (Isaías 40:5, 6; 49:26b; Salmos 136:25)
361
.
Finalmente, temos basar designando a pessoa humana como limitada, fraca
e deficiente: “Espero em Deus; não temo. Que me pode fazer basar?” (Salmos 56:4).
Por isso, o termo nunca é utilizado para descrever Deus, mas, é usado muitas
vezes, como algo tipicamente humano em oposição a Deus. Assim, pergunta a
Deus: “Será que tens olhos de carne (basar)? Olhas como um ser humano olha?”
(Jó 10:4). Ou ainda, em referência a Senaqueribe, o poderoso rei da Assíria: “Com
ele está um braço de basar. Mas conosco está Javé, nosso Deus, para nos
ajudar” (II Crônicas 32:8).
362
Portanto, basar descreve a pessoa humana toda em suas deficiências, suas
limitações características, sua efemeridade, esta também compartilhada pelos
animais, a solidária união de todo gênero humano em sua fraqueza ética. “A carne é
transitória, fraca e mortal”.
363
Diante de tal fragilidade, sobressai um Deus que retém
sua ira e que providencia a força vital necessária para o ser humano viver. “(...) o
Deus espiritual é contrastado com o homem carnal”.
364
Fiorenza e Metz concluem
afirmando:
360
Cf. FIORENZA e METZ, 1972, p. 33.
361
Cf. WOLFF, 2008, p. 61-62.
362
Cf. WOLFF, 2008, p. 64.
363
OSWALT, John N. Basar. In: HARRIS, R. Laird, ARCHER Jr., Gleason L. e WALTKE, Bruce K. (orgs.). Dicionário
Internacional de Teologia do Antigo Testamento. São Paulo: Vida Nova, 2005. p. 228.
364
OSWALT, 2005, p. 228.
133
Neste sentido é basar um designativo de parentesco, que exprime uma
comunidade e um liame íntimo de importância vital. „Nossa carne‟ significa,
então, „nosso irmão‟ (Gn 37:27) ou também „nosso próximo‟ (Is 58:7) e a
expressão „toda a carne‟ inclui toda a humanidade em sua criaturidade
perante Deus. Aparece aqui, bem nitidamente, que a palavra „carne‟ não
acentua a integridade individual do homem em oposição à antropologia
dualista mas que esta palavra exprimia originariamente também a
realidade inter-social e, até certo ponto, a existência „política‟ divergindo
de toda antropologia individualista, que em certas circunstâncias talvez
acentuasse a integridade do indivíduo, mas conservava o seu „estado de
próximo‟ como uma espécie de subproduto, como algo derivado.
365
Ou seja, basar fala do ser humano integral e de sua absoluta integração com
toda a humanidade, ao contrário do grego que com sarx refere-se a uma parte
específica do ser humano e uma parte ruim, segundo esta visão. Basar é
indivíduo/humanidade carente e necessitado diante de Deus. O que está em foco
aqui é sua condição de fraqueza e debilidade. Basar não pode tampouco ser
traduzido simplesmente por corpo”.
366
Pelo menos, não no sentido grego de
compreensão de um corpo/carne caixão da alma.
4.1.3 Rûach
Rûach ocorre 389 vezes no Antigo Testamento e designa, segundo Wolff,
em diferentes contextos vento, respiração, força vital, espírito(s), temperamento,
força de vontade. O termo pode ser utilizado significando uma força da natureza, o
vento e, em 35% dos casos, rûach é utilizado em referência a Deus
367
.
Rûach refere-se ao ar em movimento (Gênesis 1:2; 3:8; Deuteronômio
32:11; Isaías 7:2). Digno de nota é que rûach descreve o divinamente poderoso em
contraste com basar, o humanamente débil. Rûach é “um fenômeno poderoso, do
qual Javé tem o poder de dispor”.
368
Em relação ao ser humano o termo é utilizado em referência à respiração.
365
FIORENZA e METZ, 1972, p. 34.
366
RUBIO, 2006, p. 321.
367
Cf. WOLFF, 2008, p. 67.
368
WOLFF, 2008, p. 68.
134
Este “vento”, força vital do ser humano, é dado por Deus (Zacarias 12:1). É assim
que, os ossos revestidos de carne, músculos e pele somente tornam-se corpo com
vida após receber a rûach de Javé (Ezequiel 37:6ss.). Sem a rûach o ser humano
não tem vida. Uma vez privado da rûach o ser humano morre (“volta a Deus”,
Eclesiastes 12:7; Salmos 146:4).
Acerca dos deuses é dito que “no interior dos ídolos de madeira ou de pedra,
não rûach, isto é, respiração e, assim, nenhuma força vital, sem a qual não é
possível despertar e levantar-se (Habacuque 2:19)”.
369
A rûach de Javé não concede apenas vida biológica, mas é sua palavra
criadora (Salmos 33:6); concede aos seus servos força especial para o combate
(Jzes 3:10); com a rûach de Javé, Sansão pode despedaçar um leão (Jzes 14:6);
Saul é transformado em um outro homem (I Samuel 10:6); recebe-se o carisma da
profecia (Números 24:2s.; Ezequiel 11:5; Isaías 42:1); Em Gênesis 41:38, faraó
procura “um homem no qual está a rûach de Deus”, ou seja, um homem “prudente e
sábio” (v. 33, 39). Em face dessas constatações, podemos conceber a rûach como a
força vital de Javé que se torna também característica antropológica. “Sem a energia
da rûach de Deus, não se pode entender o ser humano autorizado”
370
, agraciado
com dons especiais.
Rûach também é utilizado como um ente (um espírito) que está a serviço de
Javé (I Reis 22:21-23; Números 11:17, 25s.). Como descrição de um estado de
espírito da pessoa (I Reis 10:5; 15:13; Jzes 8:3; Deuteronômio 2:30). Estes
últimos textos apontam para a disposição mental do ser humano. Também em
Provérbios 18:14: “A atitude de um homem pode suportar uma doença, mas um
ânimo (rûach) abatido, quem o atura?”.
371
Finalmente, a rûach descreve o sopro de Javé que desperta a vontade
humana para agir. Em Esdras 1:5 lemos acerca dos exilados “cuja rûach Deus
despertou, para subirem, a fim de construir a casa de Javé em Jerusalém”.
Com tais considerações, não podemos simplesmente traduzir rûach por
“espírito” sem esperarmos perder o sentido original do termo, o qual descreve não
um espírito antagônico a matéria, mas o ser humano como alvo da ação criadora de
369
WOLFF, 2008, p. 69.
370
WOLFF, 2008, p. 71-72.
371
WOLFF, 2008, p. 74-75.
135
Deus, concedendo-lhe vida e dons para viver esta vida também de forma criativa.
“Esta palavra é, por isso, usada às vezes para expressar um carisma especial,
concedido por Deus e que capacita e inspira os homens para realizações especiais
a serviço da história da salvação”.
372
4.1.4 Lebab/Leb
A palavra leb ou sua variante lebab é a mais utilizada no Antigo Testamento
para exprimir o conceito antropológico, sendo encontrada 858 vezes. Aplicada quase
que exclusivamente ao ser humano seu sentido pode ser traduzido por coração,
sentimento, desejo, razão, decisão da vontade e o „coração‟ de Deus
373
.
Raras vezes a palavra é utilizada em referência ao órgão humano (o
coração) com suas funções fisiológicas (I Samuel 25:37s.). Na maior parte das
vezes, leb ocorre de forma figurada. “Na Bíblia, as atividades essenciais do coração
humano são de natureza intelectual-psíquicas”.
374
Ou seja, a localização anatômica
do coração, serve aos autores bíblicos como metáfora daquilo que é inescrutável,
inacessível e oculto na pessoa humana. Pelo menos, inacessível aos seres
humanos, mas não a Deus. Assim, temos como exemplo Provérbios 24:12: “Se
dizes: „Mas nós não sabíamos nada disto!‟, aquele que sonda os corações o
perscruta.” Também em Provérbios 15:11 encontramos: “Perante Javé estão
descobertos mesmo o mundo inferior e a mansão dos mortos, quanto mais os
corações dos filhos dos seres humanos”. Ou ainda, “Ele conhece os segredos do
coração” (Salmos 44:22).
Por conseguinte, cabe refletirmos sobre as várias aplicações metafóricas de
leb. Os autores veterotestamentários recorrem a leb para referirem-se a que atitudes
ou características dos seres humanos?
Em primeiro lugar, o termo leb é utilizado figuradamente para descrever as
emoções e sentimentos humanos. Quando angustiado o salmista ora: “Desfaze as
372
FIORENZA e METZ, 1972, p. 33.
373
Cf. WOLFF, 2008, p. 79.
374
WOLFF, 2008, p. 85.
136
aflições do meu coração! Conduze-me para fora das minhas angústias” (Salmos
25:17). Manter-se sereno e tranqüilo tem reflexos positivos para toda a vida: “A vida
do corpo é um coração sereno, mas o excesso de zelo é a gangrena dos ossos”
(Provérbios 23:17). Lemos também em Provérbios 15:13: “Um coração alegre torna
risonho o rosto, enquanto a aflição do coração abate o ânimo vital”. Ou ainda, “Um
coração alegre favorece a saúde, enquanto um ânimo abatido consome o corpo”
(Provérbios 17:22). Vemos nestes textos que a citação do coração não serve para
exprimir o que se pensa deste órgão em termos fisiológicos, mas, o mesmo torna-se
símbolo dos mais variados sentimentos humanos.
Além de sentimentos, a palavra serve também para expressar os desejos do
ser humano. Este desejo pode ser pela mulher do próximo: “não desejes no coração
a sua beleza” (Provérbios 6:25). Também declara que jamais “o seu coração
correu atrás dos seus olhos” (Jó 31:7). Ou seja, ele jamais sucumbiu aos seus
desejos.
É bastante significativo que o termo leb seja também utilizado para
descrever funções intelectuais e racionais. Assim, o coração não simboliza tão
somente as emoções e sentimentos humanos, mas, sobretudo, a capacidade de
compreensão. Citando Deuteronômio 29:3, Wolff afirma que assim como os olhos
são destinados para ver e os ouvidos para ouvir, o coração foi feito para entender”.
E ele continua dizendo “ele [o coração] deixa de cumprir sua função mais própria
quando, obstinado, se nega à compreensão” (Isaías 6:10)
375
. Podemos conferir esta
aplicação do termo leb em Provérbios 15:14, “o coração do sensato procura o
conhecimento”, e no Salmos 90:12, “ensina-nos a contar os nossos dias, para
adquirirmos um coração sábio”. Leb, em nossos dias, seria utilizado para descrever
aquilo que entendemos por razão.
Ao contrário de nós, o israelita teria muita dificuldade em distinguir a teoria
da prática. Desse modo, o coração torna-se tanto centro do entendimento quanto da
vontade humana
376
. Em Provérbios 16:9 lemos “o coração do ser humano planeja o
seu caminho, mas Javé dirige o seu passo”, e no Livro de Salmos 20:4, “Ele te
conceda de acordo com o teu coração e te realize todos os planos”. Nestas
passagens a reflexão vem sempre acompanhada da ação. Sendo o coração (leb) o
375
WOLFF, 2008, p. 89.
376
Cf. WOLFF, 2008, p. 96.
137
local onde nasce a resolução para agir de acordo com o conhecimento, ele adquire
também a significação de consciência moral (I Samuel 24:6). É ali que se tomam
decisões certas e erradas (Provérbios 6:18; 4:20-27; Êxodo 4:21; Deuteronômio
2:30, etc). Ele torna-se símbolo de compromisso ou não com a vontade de Javé.
Este conduziu o povo pelo deserto “para te provar e reconhecer o que estava no teu
coração, se cumpririas os seus mandamentos ou não” (Deuteronômio 8:2). Também
em Provérbios 23:26, “meu filho, -me o teu coração e faze que as minhas
orientações agradem aos teus olhos”. Quando o povo está endurecido e
desobediente a Javé, um convite é feito: “circuncidai o prepúcio do vosso coração e
não continueis a mostrar-vos obstinados” (Deuteronômio 10:16). Isto tudo é para que
as ações que procedem do coração sejam agradáveis a Javé
377
.
Finalmente, leb também é utilizado em referência ao “coração” de Deus. O
“coração” de Deus expressa a vontade de Javé. Assim, Javé diz a Jeú: “porque
executaste zelosamente o que é justo aos meus olhos e inteiramente como está no
meu coração, os teus descendentes até a quarta geração se assentarão no trono de
Israel” (II Reis 10:30). Também descreve a boa vontade e o interesse de Deus sobre
seu servo: “consagrei este templo que construíste, deixando o meu nome para
sempre; também os meus olhos e o meu coração sempre hão de permanecer lá” (I
Reis 9:3). O leb de Javé também é o lugar de decisões vitais: “como posso desistir
de ti, Efraim (...). Virou-se em mim o meu coração, o meu arrependimento se inflama
com veemência. Não executo a minha ira ardente (...) pois sou Deus e não um ser
humano (...)” (Oséias 11:8s.). Há uma reviravolta no coração de Deus e Ele renuncia
ao castigo
378
.
Portanto, leb descreve a pessoa humana em sua complexidade, seus
sentimentos e emoções, seus desejos, sua capacidade de utilização do intelecto
para compreender a vida e para agir de acordo com este entendimento, suas
decisões morais e sua disposição de estar ou não em consonância com a vontade
de Deus. Nada mais distante da alma imortal (psyché, termo utilizado na
Septuaginta para traduzir leb) do pensamento pitagórico-platônico.
Diante das constatações acima, temos razões para afirmar que a transição
do Cristianismo da influência semítica para a influência grega representou um
377
Cf. WOLFF, 2008, p. 96ss.
378
Cf. WOLFF, 2008, p. 105-106.
138
empobrecimento da antropologia cristã. Este empobrecimento antropológico teve
reflexos em toda a teologia. Assim, temos como exemplo a concepção escatológica
hebraica para a qual a salvação não é uma “salvação da alma”, individualista, mas
uma participação histórico-futura no reinado de Javé sobre o mundo
379
. Ou seja,
esta é uma compreensão de uma salvação que convida para uma participação
social e política ativa. Esta concepção da salvação escatológica não tem nada
daquela recompensa individualista no além, mas desafia a desempenharmos um
papel de protagonistas nesta vida.
Também no que diz respeito ao pecado, encontramos um pensamento
hebraico bem distinto do grego para quem a fonte e origem do pecado é o corpo.
Para o hebreu “o pecado é uma ação do homem todo; não reside, como tal, no
corpo mas no coração, isto é, no „mais íntimo‟ do homem”.
380
Da mesma forma, o Antigo Testamento emprega a palavra “carne” ou “toda
a carne” para exprimir a relação entre Deus e a humanidade. Mesmo quando a
palavra basar é empregada para revelar a total perdição moral do ser humano, isto
não deve servir para fazermos uma distinção entre os componentes corporais e não-
corporais do ser humano, desvalorizando o corpo humano em seu valor ético. A
expressão “toda a carne” descreve a situação de toda a humanidade perante Javé.
“O homem „carne‟ é alguém com existência histórica, que compartilha com seu povo
um futuro e por isso (...) é capaz de decisões históricas livres”.
381
Aqueles que afirmam a fé no Deus criador de todas as coisas, devem
também afirmar a no Deus salvador de todas as coisas. Como assinala Alfonso
García Rubio:
É a bíblica no Deus criador que leva a rejeitar e a superar com toda
radicalidade as visões dualistas que estabelecem uma ruptura dicotômica
entre espírito e matéria, entre alma e corpo, e desenvolvem uma relação de
exclusão entre ambos. O ser humano concreto com a sua diversidade de
aspectos e dimensões é criado pelo Deus que é simultaneamente salvador.
Não existem dois princípios criadores (o princípio bom, que estaria na
origem da realidade espiritual, e o princípio mau, origem da realidade
material), mas a ação criadora amorosa do Deus que é também salvador.
382
379
Cf. FIORENZA e METZ, 1972, p. 35.
380
FIORENZA e METZ, 1972, p. 35.
381
FIORENZA e METZ, 1972, p. 36.
382
RUBIO, 2006, p. 323-324.
139
4.2 O conceito de ser humano integral no Novo Testamento
Ao contrário do estudo da antropologia veterotestamentária, precisamos
assumir que o estudo, e a demonstração, de que a antropologia do Novo
Testamento preserva um conceito de integralidade do ser humano não é tão fácil.
De fato, a teologia paulina (e, sobretudo ela) é bastante controversa neste aspecto.
aqueles que acham que Paulo se deixou influenciar pela filosofia não-judaica e,
em suas cartas, na hipótese de estarem certos, teríamos um sincretismo
antropológico com elementos da cultura semítica e elementos da cultura grega. Por
outro lado, aqueles que, na contramão deste pensamento, afirmam que Paulo se
contrapôs ao pensamento não-judaico e que suas principais fontes são o Antigo
Testamento e o judaísmo não helenizado
383
.
Os estudiosos do tema do dualismo, de modo geral, apontam para a
necessidade de compreendermos o contexto no qual surgiu o Cristianismo, a saber,
o judaísmo palestinense. O contraponto a este tipo de judaísmo é o judaísmo
helenista ou alexandrino. Ora, o encontro do pensamento hebraico com estruturas
não-hebraicas deu origem a um sistema sincrético no qual distingue-se concepções
mais monísticas (palestinense) e concepções mais dualistas e dicotômicas
(helenista)
384
.
Identificamos o judaísmo helenista portanto, com tendências dualistas na
tradução do Antigo Testamento para o grego, a Septuaginta, na qual néfesh e leb
383
Cf. CHAMBLIN, J. K. Psicologia. In: HAWTHORNE, G. F.; MARTIN, R. P. e REID, D. G. Dicionário de Paulo e
suas Cartas. São Paulo: Vida Nova; São Paulo: Paulus; São Paulo: Loyola, 2008. p. 1021-1034. O autor
desenvolve um apanhado geral dos estudiosos da antropologia paulina elaborando um excelente resumo da
controvérsia em torno do assunto. Chamblin demonstra que ao longo da história vários teólogos defenderam a
dicotomia (e até a tricotomia) baseados no pensamento de Paulo, enquanto que outros, viram no apóstolo a
defesa do antigo monismo semita. Também aqueles que, como H. Lüdemann e C.H. Dodd, assumem que
houve mudança nos escritos de Paulo, de início numa perspectiva judaica para um ponto de vista helenístico. Já
Bultmann assinala simplesmente a possibilidade de termos contradição na teologia paulina, ora pendendo para
o judaísmo, ora para o helenismo. W. D. Stacey não contradição. Para ele a teologia de Paulo era
fundamentalmente cristã, utilizando-se normalmente da linguagem judaica, mas lançando mão de termos
helênicos quando estes eram mais adequados para expressar seu pensamento. Também para R. Jewett, Paulo
freqüentemente “tomava por empréstimo de seus parceiros de conversa termos antropológicos, redefinindo-
os para satisfazer às necessidades de seu argumento”. J. K. Chamblin arrazoa sobre muitos outros autores
disponibilizando importante material para pesquisa dos estudiosos da antropologia do apóstolo Paulo.
384
Cf. FIORENZA e METZ, 1972, p. 36.
140
são traduzidos por psyché. O deuterocanônico Livro da Sabedoria tanto separa a
alma do corpo, quanto considera a alma superior ao corpo (cf. 8:17ss.; 9:15). Este
processo helenizante do judaísmo alexandrino encontra seu apogeu em Filo de
Alexandria em quem o dualismo alma-corpo está bastante consolidado, embora com
algumas variações em relação ao pensamento grego.
Quanto ao judaísmo palestinense, seu fundamento está na antiga
concepção hebraica, sofre, no entanto, certa influência do pensamento grego.
Embora, sem sombra de dúvidas, em muitíssimo menor escala do que o judaísmo
alexandrino. No judaísmo palestinense, néfesh e rûach continuam a ser usados em
sentido tradicional, mas começa a ser utilizado com bastante freqüência o termo
nashamah, aplicado ao ser humano, e que designa o que o grego entende por
“alma”.
385
Assim, podemos afirmar que o judaísmo palestinense manteve-se na
perspectiva hebraica, mas sob certo influxo da visão helênica
386
.
É no contexto do judaísmo palestinense portanto, um judaísmo que
preservou grande parte da herança monista que se constrói a antropologia
neotestamentária. As palavras usadas no Novo Testamento que descrevem sua
visão do ser humano são psyché, pnêuma, sarx, ma e kardia. Estes termos são os
mesmos utilizados pelos filósofos gregos. Contudo, os autores neotestamentários
dão a eles uma significação totalmente distinta. Parte do problema da antropologia
cristã decorre de uma interpretação desses termos gregos a partir de uma
concepção grega. Mutatis mutandis quando interpretamos estes termos a partir de
uma visão semítica, nos aproximamos da intenção original dos autores cristãos
387
.
Em conformidade com o pensamento estereométrico-sintético do ambiente semita,
todas estas palavras podem significar tanto um aspecto do ser humano como o ser
humano em sua inteireza. Vejamos cada um separadamente.
385
Cf. RUBIO, 2006, p. 324.
386
Cf. RUBIO, 2006, p. 324.
387
Cf. CULLMANN, Oscar. Das Origens do Evangelho à Formação da Teologia Cristã. São Paulo: Novo Século,
2000. p. 193.
141
4.2.1 Psyché
Semelhantemente ao hebraico néfesh, este termo designa a vida, mas
também o ser humano inteiro, a pessoa concreta. Tendo sido escrito num contexto
pré-filosófico, a utilização neotestamentária de psyché mantém a concepção
semítica acerca da pessoa humana. Com o termo psyché designa-se o “eu”, a
pessoa com suas potencialidades, a vida interior. Atentemos para a passagem do
evangelho sinótico de Marcos, capítulo 8, nos versículos de 35 a 37. Sua análise nos
mostra que em Jesus permanece o pensamento veterotestamentário. Reza o
versículo 36 segundo muitas traduções: “Pois, que aproveitará ao homem ganhar o
mundo inteiro, se vier a perder a sua alma (psyché)”. Fiorenza e Metz, discordando
da interpretação de Harnack que via nestas palavras certo dualismo também em
Jesus, chamam-nos a atenção do versículo precedente: “Pois quem quiser salvar a
sua vida (psyché) perdê-la-á. Quem, porém, perder a sua vida (psyché) por mim e
pelo evangelho, este a salvará”. Notem que a palavra psyché é traduzida por „vida‟
pelos mesmos que, no versículo 36, a traduzem por „alma‟. “A tradução „vida‟, que
evidencia mais nitidamente o significado da palavra hebraica e aramaica néfesh,
deveria, consequentemente, ser adotada também no versículo 36”.
388
Também no
versículo 37 optou-se incompreensivelmente por „alma‟ (“Que daria um homem em
troca de sua alma (psyché)”?), quando o mais correto seria „vida‟. Aqui psyché é
uma sinédoque para designar a pessoa humana em seu todo. É, segundo o
versículo 35, a perda da vida toda por amor a Cristo e ao evangelho que nos dará a
possibilidade de experimentar a salvação escatológica, a ressurreição da vida e não
de uma parte dela.
Outro texto dos evangelhos que exige uma explicação é a passagem de
Mateus 10:28: “Não temais os que matam o corpo e não podem matar a alma
(psyché); temei, antes, aquele que pode fazer perecer no inferno tanto a alma
(psyché) como o corpo”. A segunda parte do versículo nos mostra que a melhor
tradução para psyché neste texto é vida e não alma. O que poderá perecer no
inferno é psyché e corpo. A palavra vida traduziria melhor o aramaico napshsa.
388
FIORENZA e METZ, 1972, p. 39.
142
Cullmann cita J. Schniewind que sublinha que “só Deus pode destruir, além da vida
terrestre, a vida celeste”.
389
Também Günther Bornkamm, em sua abordagem da teologia paulina, não
no termo psyché a alma imortal do ser humano, e sim, seguindo o pensamento
do Antigo Testamento, “o ser humano nas suas manifestações cotidianas, nas suas
atitudes, nos seus sentimentos”.
390
Assim podemos entender Filipenses 1:27: “Vivei,
acima de tudo, por modo digno do evangelho de Cristo, para que, ou indo ver-vos ou
estando ausente, ouça, no tocante a vós outros, que estais firmes em um espírito
(pnêumati), como uma alma (psyché), lutando juntos pela evangélica”. Ou
ainda, nesta mesma epístola capítulo 2, versículo 2, “completai a minha alegria, de
modo que penseis a mesma coisa, tenhais o mesmo amor, sejais unidos de alma,
tendo o mesmo sentimento”. Em ambos os casos, deseja-se expressar a idéia de
unanimidade, ou seja, a mesma mentalidade ou a mesma intenção
391
. Em I
Tessalonicenses 2:8 a tradução revista e atualizada de Almeida afirma: “assim,
querendo-vos muito, estávamos prontos a oferecer-vos não somente o evangelho de
Deus, mas, igualmente, a própria vida (psyché); por isso que vos tornastes muito
amados de nós”. Certamente, a tradução de psyché por vida expressa mais
corretamente a antropologia paulina.
Assumindo que existiam expressões dualistas no judaísmo nos tempos do
apóstolo devido às influências helenistas, devemos afirmar que a principal fonte da
antropologia paulina é o monismo veterotestamentário. Assim, em conformidade
com o significado de néfesh, em Paulo psyché “nunca simboliza a parte superior da
pessoa (Paulo nunca reúne ma e psyché como as duas partes do todo) ou uma
„alma‟ desencarnada e imortal”.
392
Nesta mesma linha Rudolf Bultmann afirma que Paulo “desconhece a
concepção helenista-grega da imortalidade da alma (separada do corpo), tampouco
usa psyché para designar a sede ou a força da vida espiritual que dá forma à
matéria, como se tornara costume no grecismo”.
393
São diversas as passagens que demonstram que a compreensão de Paulo
389
SCHNIEWIND, apud CULLMANN, 2000, p. 196.
390
BORNKAMM, Günther. Paulo, Vida e Obra. Santo André: Academia Cristã, 2009. p. 218.
391
Cf. BULTMANN, Rudolf. Teologia do Novo Testamento. Santo André: Academia Cristã, 2008. p. 261.
392
CHAMBLIN, 2008, p. 1023.
393
BULTMANN, 2008, p. 260.
143
de psyché é coincidente com o uso veterotestamentário de néfesh, ou seja, a força
da vida ou a própria vida (Romanos 11:3; 16:4; II Coríntios 1:23; Filipenses 2:30; I
Tessalonicenses 2:8). Psyché é a “vitalidade especificamente humana, que é própria
de seu eu como aspirante, volitivo, que está voltado para um objetivo”.
394
Finalmente, assinalamos que quando psyché (alma) é utilizado em contraste
com pnêuma (espírito) o que se deseja é apontar para a “vida natural do ser humano
terreno em contraposição à vida sobrenatural”.
395
Este é o caso de I Coríntios 2:14:
“Ora, o homem natural (psychikos anthrôpos o homem psíquico) não aceita as
coisas do Espírito de Deus, porque lhe o loucura; e não pode entendê-las, porque
elas se discernem espiritualmente”. A expressão contrapõe a pessoa natural privada
do Espírito de Deus, e não contraposição entre alma (coisas supostamente
espirituais) e corpo (coisas terrenas e inferiores)
396
. Por isso, Fiorenza e Metz
afirmam que em Paulo “a contraposição o existe entre psyché e sôma, mas entre
sarx e psyché (I Coríntios 2:13ss.; 15:44ss.), de um lado, e pnêuma, de outro lado.
Neste relacionamento pnêuma pode designar a força ou o espírito de Deus em sua
relação com o homem”.
397
Ou seja, a antropologia paulina, cujo melhor fundamento encontra-se no
texto de I Coríntios 15, faz contraste entre o “homem psíquico” e o “homem
pneumático”
398
. Por “homem psíquico” (psychikos anthrôpos), Paulo quer dizer o ser
humano natural, voltado para si mesmo, autocentrado. Descreve assim, não uma
parte do ser humano sua alma mas o ser humano inteiro em sua auto-suficiência
em relação a Deus. Quando um semita utiliza a palavra psyché ele não quer dizer a
mesma coisa que um grego quando utiliza a mesma palavra. Para este, psyché
refere-se à alma imortal, antagônica ao corpo e querendo constantemente libertar-se
dele. Para o semita Paulo, psyché descreve o ser humano vivendo sua vida egoísta,
rebelde contra Deus. Veremos que, na antropologia paulina, a irmã gêmea de
psyché é a sarx. O “homem psíquico” é o “homem carnal”.
399
394
BULTMANN, 2008, p. 260-262.
395
BULTMANN, 2008, p. 262.
396
Cf. CHAMBLIN, 2008, p. 1022.
397
FIORENZA e METZ, 1972, p. 41.
398
Estudaremos o sentido desta expressão no tópico referente à palavra pnêuma.
399
Cf. BOFF, 1973, p. 73.
144
4.2.2 Sarx
Sarx (carne) é o equivalente grego para o basar hebraico. Tal como basar
pode designar tanto o ser humano inteiro, como parentesco ou comunidade. Das
147 vezes que o termo aparece no Novo Testamento, 91 vezes são empregadas
nas cartas paulinas ou deuteropaulinas para descrever tudo aquilo que é puramente
humano
400
. Assim, este importante termo da antropologia neotestamentária “designa
o homem fechado sobre si próprio, na sua autonomia orgulhosa que o leva a rejeitar
as possibilidades oferecidas por Deus. Mas, note-se bem, é o ser humano inteiro
quem se fecha, não uma parte dele”.
401
A definição acima descreve bem a proximidade de sarx e psyché na teologia
paulina. Contudo, a influência do pensamento grego, nomeadamente o
neoplatonismo, foi tão acachapante sobre a formação do mundo ocidental que
quando dizemos alma e corpo ou espírito e corpo, em nossa mente estes termos
possuem significados bem determinados. Corpo descreve a parte física, mortal e
pecaminosa do ser humano e, alma ou espírito, a parte imaterial e imortal do ser
humano e, portanto, aquilo que deve ser salvo
402
. Mas, não é assim no pensamento
semítico. Voltemos à antropologia paulina.
Em Paulo carne (sarx) é utilizado como sinônimo de pecado, ou seja, aquilo
que afasta a pessoa humana de Deus. Sarx descreve o ser humano em rebeldia
contra Deus. A “carne é fraca” (Marcos 14:38). Em um curioso texto da carta aos
Colossenses lemos “Nele, também fostes circuncidados, não por intermédio de
mãos, mas no despojamento do corpo da carne, que é a circuncisão de Cristo”.
Veremos no próximo tópico que corpo (sôma) também descreve o ser humano
inteiro, aquilo que deve ser ressuscitado. Neste texto de Colossenses aprendemos
que o ser humano-corpo “pode transformar-se em carne pelo pecado” (“corpo da
carne”)
403
. A carne deve ser derrotada, na linguagem bíblica, circuncidada. o
corpo (ser humano) deve ser vivificado para, por fim, ser ressuscitado. Paulo
400
Cf. RUBIO, 2006, p. 325.
401
RUBIO, 2006, p. 325.
402
Cf. BOFF, 1973, p. 73.
403
Cf. BOFF, 1973, p. 73.
145
também fala em Romanos 6:6 em “corpo do pecado”, em “carne pecaminosa” em
Romanos 8:3, “corpo de morte” em Romanos 7:24. Fala também em “corpo de
humilhação” (Filipenses 3:21) e de “corpo de desonra” em I Coríntios 15:42. Ainda
em I Coríntios 15:50 “a carne e o sangue não podem herdar o reino de Deus”. Mas,
o corpo é para o Senhor (I Coríntios 6:13).
404
Concluímos que o ser humano-carne é o ser humano sujeito às tentações e
ao pecado, ao sofrimento e à morte. É a pessoa que se contenta em realizar-se
somente nesta dimensão terrestre. É o ser humano autocontemplativo, fechado para
os outros e para Deus
405
. Por isso Paulo pode dizer: “Porque os que se inclinam
para a carne cogitam das coisas da carne; mas os que se inclinam para o Espírito,
das coisas do Espírito. Porque o pendor da carne dá para a morte, mas o do
Espírito, para a vida e paz. Por isso, o pendor da carne é inimizade contra Deus,
pois não está sujeito à lei de Deus, nem mesmo pode estar. Portanto, os que estão
na carne não podem agradar a Deus. Vós, porém, não estais na carne, mas no
Espírito, se, de fato, o Espírito de Deus habita em vós...” (Romanos 8: 5-9a). Então,
devemos afirmar que quando o grego utiliza sarx (ou sôma), ele designa a parte
material e ruim do ser humano e que deve ser eliminada. Quando Paulo usa sarx ele
tem em mente o basar semítico.
4.2.3 ma
O termo sôma é utilizado no Novo Testamento para designar tanto o cadáver
(como em Homero) quanto o corpo vivo do ser humano. O apóstolo Paulo, como
vimos no tópico anterior, o utiliza muitas vezes como sinônimo de sarx. Contudo, o
apóstolo faz uma distinção significativa ao tratar da ressurreição. Aqui, sarx, à
medida que significa o „homem velho‟, é chamada a desaparecer. O corpo, pelo
contrário, é chamado à ressurreição”.
406
É isto que lemos em Romanos 6:6 onde se diz: “sabendo isto: que foi
404
Cf. BOFF, 1973, p. 73.
405
Cf. BOFF, 1973, p. 87.
406
RUBIO, 2006, p. 326.
146
crucificado com ele o nosso velho homem, para que o corpo do pecado seja
destruído, e não sirvamos o pecado como escravos”. O “corpo de pecado” é nossa
carne (sarx), nossa natureza pecaminosa, esta deve ser destruída. O texto continua
“ora, se morremos com Cristo, cremos que também com Ele viveremos” (v.8) e
“assim também vós considerai-vos mortos para o pecado, mas vivos para Deus, em
Cristo Jesus”. Mais adiante, em Romanos 8:23 lemos que estamos “aguardando a
adoção de filhos, a ressurreição do nosso corpo”. Se sarx não é a carne
propriamente dita, mas a natureza humana egocêntrica, corpo também não é o
corpo propriamente dito (pelo menos não o corpo somente), mas o ser humano
completo que deve considerar a si mesmo morto para o pecado e vivo para Deus.
Está claro que Paulo não concebe uma existência humana futura depois da morte e
consumação sem um sôma (I Coríntios 15:35ss.). A existência humana somente é
possível como um ser somático
407
. Além disso, sobretudo em sua carta aos romanos
o apóstolo deixa claro que é na corporeidade que se concretiza o discipulado
obediente a Cristo (Romanos 6:12ss.). Afirma Käsemann: “Destrói-se o nexo da
soteriologia paulina quando se duvida, por pouco que seja, que para o apóstolo
todos os caminhos de Deus com a sua criação começam e terminam na
corporeidade. Não existe, para ele, ação divina que não tenda para ela, que não
queira manifestar-se nela”.
408
Assim também Fiorenza e Metz enfatizam que o
apóstolo redige o texto que se encontra em I Coríntios 6:12 a 20 e todo o capítulo 15
da mesma epístola para condenar as influências gnósticas sobre os entusiastas do
espírito da comunidade corintiana. Para Paulo a “carnalidade é o local da salvação”.
Cristo nos salvou precisamente através da doação de sua vida, o que envolveu a
entrega de seu corpo. A Ele pertenceremos plenamente, “se os nossos corpos lhe
pertencerem”.
409
Nisso se constitui a antropologia e escatologia paulinas.
Concluímos que o ser humano-corpo é a pessoa mesma, o “eu”, o ser
humano em seu relacionamento social e político
410
. Este ser-humano-corpo será
ressuscitado. No dizer de Boff corpo é o que de mais próximo para descrever
aquilo que entendemos por personalidade
411
. Nesse sentido o ser humano não tem
407
Cf. BULTMANN, 2008, p. 248.
408
KÄSEMANN, Ernst. Perspectivas Paulinas. São Paulo: Teológica/Paulus, 2003. p. 37.
409
FIORENZA e METZ, 1972, p. 44.
410
Cf. BOFF, 1973, p. 87.
411
Cf. BOFF, 1973, p. 73.
147
um ma, mas é um sôma.
412
E ainda, por isso, Paulo nunca fala em ressurreição
da carne, mas do corpo que deve ser mudado (I Coríntios 15:51, 52) e transformado
em corpo espiritual”.
413
Esta última expressão utilizada por Boff (“corpo espiritual”)
nos remete ao tópico seguinte.
4.2.3 Pnêuma
Pnêuma é o equivalente grego para o rûach hebraico. Assim, pnêuma pode
significar tanto o princípio da vida concedido por Deus quanto a própria pessoa
humana, neste caso, sendo utilizado como pronome pessoal
414
. Em Paulo o termo
serve para contrastar com sarx e psyché. Estes entendidos como fraqueza e
inclinação ao pecado, aquele para designar o ser humano inteiro aberto à ação do
Espírito Santo
415
, consciente da nova existência a ele possibilitada pela ressurreição
de Cristo.
Deus mesmo é Espírito (rûach). Seu equivalente grego pnêuma indica o
princípio pela qual o ser humano se coloca em consonância à vontade de Deus. Em
coerência com o tópico anterior, devemos afirmar que pnêuma se opõe, não ao
corpo (ser humano), mas à carne (natureza pecaminosa).
Voltemos à expressão com a qual finalizamos o item anterior: “corpo
espiritual”. Esta aparece em I Coríntios 15:44: “Semeia-se corpo natural, ressuscita
corpo espiritual. Se corpo natural, também corpo espiritual”. Como
asseveramos, para o pensamento teológico tradicional, espírito e corpo se
contrapõem, pois, espírito é imaterial e imortal e corpo é material e mortal. Como
Paulo pode unir duas coisas tão contraditórias na expressão “corpo espiritual”?
Porque para ele, bem como para todo o pensamento semita, espírito e corpo não se
contrapõem, mas, são dois termos que se complementam
416
. Sendo que, o ser
humano-corpo (sôma) pode ser corrompido pela carne (sarx), tanto quanto pode ser
412
BULTMANN, 2008, p. 250.
413
BOFF, 1973, p. 74.
414
Cf. RUBIO, 2006, p. 326.
415
Cf. RUBIO, 2006, p. 326.
416
Cf. BOFF, 1973, p. 73.
148
vivificado pelo espírito (pnêuma) (Romanos 6:6-14). Se por “corpo carnal” Paulo
descreve o ser humano alienado de Deus, por “corpo espiritual” o apóstolo descreve
o ser humano em total comunhão com Deus e, por conseguinte, com o próximo e
com o mundo. O mesmo contraste Paulo faz entre o “homem psíquico” (carnal,
controlado por sua própria natureza) e o “homem pneumático” (espiritual, repleto da
realidade divina pela ressurreição).
Assim, devemos descartar a proposta neoplatônica (e também da teologia
tradicional) de mortificação do corpo, dos prazeres e desejos como caminho para a
santificação e vida espiritual e optarmos pela proposta bíblica da vivificação do corpo
pela ressurreição, como via de acesso à plena comunhão com Deus e com Sua
vontade. A ressurreição deve ser entendida não na perspectiva biológica, mas no
sentido da vida penetrada pelo espírito de Deus, que nos garante a vida eterna, e a
vitória sobre a morte. É o ser humano introduzido na realidade do Reino de Deus,
identificado com sua destinação divina final, escatologizado. O ser humano
pneumático é o ser humano ressuscitado. É pela ressurreição que o ser humano-
carne é transformado em ser humano-corpo espiritual. Vejamos como Leonardo Boff
sintetiza esta idéia.
Numa palavra: com a expressão corpo espiritual, Paulo quer dizer o
seguinte: pela ressurreição o homem todo inteiro foi radicalmente repleto da
realidade divina e libertado de suas alienações como fraqueza, dor,
impossibilidade de amor e de comunicação, pecado e morte.
417
A ressurreição de Cristo nos garante a nossa própria ressurreição e a vitória
final sobre a morte, como em Romanos 8:11
418
(cf. também I Coríntios 15:1-28).
Desta forma, podemos unir nossas vozes ao apóstolo e afirmarmos: tragada foi a
morte pela vitória. Onde está, ó morte, a tua vitória? Onde está, ó morte, o teu
aguilhão?” (I Coríntios 15:54c, 55).
417
BOFF, 1973, p. 74, 88.
418
“Se habita em vós o Espírito daquele que ressuscitou a Jesus dentre os mortos, esse mesmo que ressuscitou
a Cristo Jesus dentre os mortos vivificará também o vosso corpo mortal, por meio do seu Espírito, que em vós
habita”.
149
4.2.4 Kardia
O termo kardia aparece 148 vezes nos escritos neotestamentários e está em
conexão com o hebraico leb para designar tanto o centro vital do ser humano quanto
a interioridade desta pessoa na qual Deus se manifesta. “O significado de „coração‟
como sendo a vida interior, o centro da personalidade e o lugar onde Deus se revela
aos homens se expressa ainda mais claramente no NT do que no AT”.
419
Novamente, de acordo com o pensamento estereométrico-sintético, kardia é
freqüentemente utilizado não para descrever o órgão humano e suas funções vitais,
mas como metáfora daquilo que é a essência ou natureza humana, ou seu núcleo
fundamental. Assim, assinala Alfonso García Rubio que “o pecado afeta, sobretudo
o „coração‟ do homem, escravizando, a partir dele, o ser humano por inteiro”.
420
O uso metafórico designa não uma parte do ser humano, mas toda a pessoa
humana
421
. Um bom exemplo disso está I Pedro 3:4 onde lemos seja, porém, o
homem interior do coração, unido ao incorruptível trajo de um espírito manso e
tranqüilo, que é de grande valor diante de Deus”. O uso de kardia denota a vida
intelectual e espiritual, a vida interior, em contraste com as aparências externas
422
.
Assim é empregado em II Coríntios 5:12: “Não nos recomendamos novamente a vós
outros; pelo contrário, damo-vos ensejo de vos gloriardes por nossa causa, para que
tenhais o que responder aos que se gloriam na aparência e não no coração
(kardia)”.
Alhures é empregado metaforicamente para identificar a sede da vida
espiritual. É no coração que brotam as dúvidas e a dureza, mas também a e a
obediência.
423
O pecado que escraviza o ser humano faz do coração seu centro de
comando. É no coração que acontece a batalha travada pelo Espírito contra o
pecado. kardia é „o lugar onde Deus trata com o homem... aquela parte do
419
SORG, T. Coração. In: COENEN, Lothar e BROWN, Colin (orgs.). Dicionário Internacional de Teologia do
Novo Testamento. Vol. I. São Paulo: Vida Nova, 2000. p. 426.
420
RUBIO, 2006, p. 326.
421
Cf. SORG, 2000, p. 425.
422
Cf. SORG, 2000, p. 426.
423
Cf. SORG, 2000, p. 426.
150
homem... onde, em primeira instância, se decide a questão pró ou contra Deus‟”.
424
Assim, é no coração que ocorre a mudança de mente (metanoia)
425
, a conversão
426
.
O Novo Testamento utiliza diversas vezes o termo kardia em paralelo com
nous (mente). O leb hebraico às vezes é traduzido por ou por outro. Bultmann nos
lembra que o apóstolo Paulo utiliza kardia muitas vezes fazendo composição com
nous “para designar o eu como volitivo, planejador, ambicioso”.
427
vimos que leb
compreende a sede dos sentimentos, dos anseios, das decisões, mas também, do
entendimento como no Livro de Salmos 90:12, “ensina-nos a contar os nossos dias,
para adquirirmos um coração sábio”. Então, leb também é a sede da razão. Isto se
repete agora com o paralelismo entre kardia e nous. Neste sentido lemos em I
Coríntios 4:4: “nos quais o deus deste século cegou o entendimento (nous) dos
incrédulos, para que lhes não resplandeça a luz do evangelho da glória de Cristo, o
qual é a imagem de Deus”. Ou em Romanos 1:21: “porquanto, tendo conhecimento
de Deus, não o glorificaram como Deus, nem lhe deram graças; antes, se tornaram
nulos em seus próprios raciocínios, obscurecendo-se-lhes o coração insensato”.
Semelhantemente a outros termos antropológicos que temos estudado,
também kardia descreve o “eu”, o ser humano propriamente. Nestes casos, kardia é
pronome pessoal. É desta forma que o apóstolo Paulo aplica o termo em Romanos
10:1: “Irmãos, a boa vontade do meu coração e a minha súplica a Deus a favor deles
são para que sejam salvos”. Ou em Romanos 1:24 para descrever a inclinação ao
pecado: “Por isso, entregou tais homens à imundícia, pelas concupiscências de seu
próprio coração, para desonrarem o seu corpo contra si” (cf. também I Coríntios 4:5,
7:37; II Coríntios 9:7; Romanos 9:2; Filipenses 1:7).
4.3 Conclusão
Com as informações expostas até aqui podemos chegar às seguintes
conclusões: na antropologia bíblica o ser humano forma uma unidade fundamental.
424
SORG, 2000, p. 427.
425
Cf. BULTMANN, 2008, p. 278.
426
Cf. SORG, 2000, p. 427.
427
BULTMANN, 2008, p. 278.
151
O ser humano em sua inteireza é corpo, carne, alma, espírito, coração e mente.
Todos esses termos antropológicos, seja na língua hebraica, seja na aplicação
grega dada a eles pelos autores do Novo Testamento, nomeadamente Paulo, são
utilizados para descrever o ser humano em sua vida plena, em seu constante
processo de vir-a-ser, em seus anseios e desejos, seus anelos e sonhos, sua
experiência transcendental, suas vontades, seu intelecto, sua decisões morais, seus
inter-relacionamentos sociais e políticos, suas fragilidades causadoras de dor,
sofrimento e morte, suas fraquezas que o levam à degradação, à degenerescência e
à fragmentação de seu “eu”, sua absoluta carência de Deus e a todas as
possibilidades que se abrem com a descoberta de seu destino divino final, o qual
tem como pendor a ressurreição do Cristo crucificado.
Vivemos, portanto, esta dialética: de um lado somos limitados às situações
espaço-temporais, de outro, nos abrimos para a experiência do transcendente
428
.
Boff nos lembra que “a tradição chamou de corpo ao homem todo inteiro (corpo e
alma) enquanto limitado e, de alma, ao mesmo homem todo inteiro (alma e corpo)
enquanto ilimitado e aberto para a totalidade das relações”.
429
E ele completa
dizendo: “Corpo e alma não são pois duas entidades do homem, mas duas
dimensões e perspectivas do mesmo e único homem”.
430
Este ser não está plenificado no presente, é sempre um estar-em-busca-de.
Nessa sua busca ele pode encontrar-se ou perder-se
431
. Pode ser bom ou pode ser
mau. Pode encontra-se em sua vocação para o divino, ou perder-se em suas
tendências para o egoísmo. Ou, como vimos, pode viver como ser humano-carne-
psíquico ou como ser humano-corpo-pneumático, como ser humano natural ou como
ser humano espiritual, como ser humano inclinado sobre si mesmo, fechado em seu
próprio horizonte ou como ser humano aberto para o mistério do divino. Pelo bem da
verdade, nossa jornada é um misto de todas estas coisas. Oscilamos
constantemente entre estes dois caminhos que se entrecruzam de forma implacável.
Estamos neste constante ir-e-vir. Esta é a condição humana. Somos como Abraão e
Pedro, como Davi e Tomé. Queremos a vida mais que tudo e, em nossa ânsia, nos
perdemos nos emaranhados do ser humano interior. “Quem quiser, pois, salvar a
428
Cf. BOFF, Leonardo. O Destino do Homem e do Mundo. Petrópolis: Vozes, 1982. p. 57.
429
BOFF, 1982, p. 57.
430
BOFF, 1982, p. 57.
431
Cf. BULTMANN, 2008, p. 285.
152
sua vida perdê-la-á; e quem perder a vida por causa de mim e do evangelho salvá-
la-á” (Marcos 8:35). “Se o grão de trigo não cai na terra ficará só; mas, se morrer,
dará muito fruto” (João 12:24). Assim é que Leonardo Boff afirma:
Pertence ao ser humano a corporalidade. Pode significar fraqueza, mas
também transcendência; pode designar fechamento sobre si mesma
(carne), mas também abertura e comunhão (corpo) e radical referência para
com Deus (espírito). O corporal é um sacramento do encontro com Deus.
Em Jesus Cristo se mostrou que o corpo constitui o fim dos caminhos de
Deus e do homem. Em Cristo “habita a plenitude da divindade em forma
corporal” (Colossenses 2:9).
432
Jesus Cristo é o Deus encarnado. Também nós, como criaturas de Deus
somos seres encarnados e, é através de nossa corporalidade, que nos relacionamos
com tudo em nossa volta. “O estar-no-mundo do homem não é um acidente, mas
exprime sua realidade essencial”.
433
Não um SER HUMANO somente corpo-
matéria, ou somente espírito-imaterial. Em sua totalidade o SER HUMANO é
corporal e espiritual. Tudo ao mesmo tempo. Qualquer coisa diferente disso é
alguma outra coisa, mas não um SER HUMANO. “Porque no homem existem um
espírito corporalizado e um corpo espiritualizado”.
434
432
BOFF, 1973, p. 89.
433
BOFF, 1973, p. 85.
434
BOFF, 1973, p. 85.
153
CONCLUSÃO
“A ascética cristã disse que o mundo era mau e o abandonou.
A humanidade está à espera de uma revolução cristã
que diga que o mundo é mau, mas trate de modificá-lo”.
Walter Rauschenbusch
Iniciamos este estudo descrevendo a concepção antropológica grega a partir
da obra Fédon de Platão. Vimos que neste livro o filósofo ateniense narra os últimos
acontecimentos na vida de seu mestre Sócrates, o qual, em diálogo com seus
discípulos mais próximos, arrazoa acerca do sentido da vida e da morte, na mais
clássica e bela descrição da fé grega na imortalidade da alma. É bastante conhecida
a comparação feita entre a morte de Sócrates e a morte de Jesus.
Como abordado no primeiro capítulo, Sócrates está absolutamente em paz
diante da morte
435
. Chega a demonstrar felicidade, pois, para ele, a morte
representava a libertação final. Todo verdadeiro sábio deve aspirar a isto. Corpo e
alma são entes de mundo diferentes e antagônicos entre si
436
. Enquanto a morte do
corpo não chega, o filósofo deverá ocupar-se em meditar acerca das verdades
eternas. Fazendo isto, ele estará antecipando a libertação da alma. Mas, é na morte
que a alma imortal encontrará, finalmente, seu destino eterno liberta da prisão do
corpo. Assim, a morte é a grande amiga da alma e como tal deve ser recebida com
alegria e de braços abertos
437
. Não há, na morte de Sócrates, o nimo sinal de
terror, nenhum sentimento de tragédia, apenas júbilo e serenidade. Transformando
435
Cf. página 13.
436
Cf. CULLMANN, 2000, p. 186.
437
Cf. CULLMANN, 2000, p. 186.
154
sua crença em ato, o filósofo bebe a cicuta mantendo plena dignidade e calma
438
.
Mutatis mutandis, na morte de Jesus, o horror é o ar que se respira. Diante
dela, Jesus é possuído por profunda tristeza ao ponto de quase desesperar. O
evangelista Marcos que afirma ser Jesus o Filho de Deus, não atenua a descrição
da cena: (...) a minha alma está profundamente triste até à morte” (Marcos 14:34).
Para Ele a morte é a grande inimiga a ser vencida. E, diante da possibilidade de ser
por ela tragado, está profundamente angustiado. Apela ao Pai para ser poupado: “E
dizia: Aba, Pai, tudo te é possível; passa de mim este cálice (...)” (Marcos 14: 36).
Convida seus discípulos mais íntimos para acompanhá-lo nesta hora de dor:
“Voltando-se, achou-os dormindo; e disse a Pedro: Simão, tu dormes? Não pudeste
vigiar nem uma hora?” (Marcos 14:37). Jesus, segundo o pensamento semita, sabe
que a morte é separação radical de Deus. A vida toda criada por Deus é destruída
neste momento
439
. Assim é que o autor aos Hebreus pinta a cena do Getsêmani
com cores fortes: “Ele, Jesus, nos dias da sua carne, tendo oferecido, com forte
clamor e lágrimas, orações e súplicas a quem o podia livrar da morte (...)” (Hebreus
5:7). Jesus, diante da morte, clama e chora.
Quão grande o contraste entre as cenas da morte de Sócrates e de Jesus. O
filósofo sereno e feliz. O Senhor aterrorizado, solta um grande brado (Marcos 15: 34,
37). Para Sócrates a morte é amiga, para Jesus ela é o último inimigo a ser vencido
(I Coríntios 15:26). “Aqui, aparece o abismo entre o pensamento grego e a fé judaica
e cristã. (...) nada nos mostra melhor a diferença radical entre a doutrina grega da
imortalidade da alma e a fé cristã na ressurreição”.
440
Somente se assumirmos a necessidade de uma plena morte de Jesus
poderemos entender toda a dimensão da fé judaica e cristã na ressurreição. A
ressurreição é grande porque significa a ressurreição de toda a vida e não de
uma parte dela, o corpo-matéria. É porque experimenta a total separação de Deus
na morte, tanto no corpo quanto na alma, que a ressurreição de Jesus é o grande
grito de do Novo Testamento. Não haveria tamanha glória na ressurreição, se a
morte fosse somente parcial. Enquanto para o grego quem deve ser vencido é o
corpo, para o Novo Testamento quem deve ser vencida é a morte. “Tragada foi a
438
Cf. PLATÃO, 1987, p. 126.
439
Cf. CULLMANN, 2000, p. 188.
440
CULLMANN, 2000, p. 189.
155
morte pela vitória. Onde está, ó morte, a tua vitória? Onde está, ó morte, o teu
aguilhão?” (I Coríntios 15:54c,55).
A Bíblia descreve a morte como algo terrível, como um inimigo a ser vencido
e mais, como algo que aniquila toda a vida, não poupando nada, espalhando dor e
tragédia, solidão e terror. Esta mesma Bíblia também aponta para a ressurreição de
Cristo como a grande notícia do evangelho. É na ressurreição do Senhor que reside
toda a esperança cristã.
É digno de nota que o processo salvífico engendrado por Cristo tem em seu
centro o corpo. “Isto é o meu corpo oferecido por vós (...). Este é o cálice da nova
aliança no meu sangue derramado em favor de vós” (Lucas 22:19b, 20b). A
salvação passa pelo corpo, o Corpo (sôma pneumatikon) de Cristo. O que Jesus
estava entregando era, obviamente, a sua vida seu corpo e seu sangue. Sua
morte e ressurreição estão no centro e no fim daquilo que Oscar Cullmann chama de
a “história da salvação”.
441
A ressurreição do sôma pneumatikon de Cristo se reflete
diretamente sobre o nosso corpo carnal. Enquanto para o grego o corpo é um
caixão, para o cristão o corpo é templo do Espírito Santo. Daí que devemos dar
graças a Deus pela existência do nosso corpo: “Ou não sabeis acaso que o vosso
corpo é templo do Espírito Santo que está em vós e que vos vem de Deus, e que
vós não vos pertenceis? Alguém pagou o preço do vosso resgate. Glorificai portanto
a Deus por vosso corpo” (I Coríntios 6:19, 20 TEB). A esse respeito Silvia Schroer
e Thomas Staubli comentam: “Levar a sério a metáfora paulina do corpo humano
como templo do Espírito Santo em todos os seus aspectos, significa levar a sério a
plena presença de Deus na corporalidade e a inviolável dignidade do corpo humano
que daí resulta”.
442
Ora, tudo o que se disse até aqui nesta conclusão é para acentuar o fato de
que a morte e a ressurreição de Jesus nos servem como paradigma para uma
antropologia teológica baseada no pensamento semítico-bíblico e não no
pensamento helenístico-platônico. Ousamos afirmar que, em que pese a
generalizada crença cristã na imortalidade da alma, decorrente da crença no
dualismo antropológico, ainda que esta última de forma escamoteada ou
inconsciente, não há respaldo bíblico que suporte e sustentação para tal idéia.
441
CULLMANN, 2000, p. 191.
442
SCHROER, Silvia e STAUBLI, Thomas. Simbolismo do Corpo na Bíblia. São Paulo: Paulinas, 2003. p. 56-57.
156
Donde então se originou este pensamento? Como procuramos mostrar no primeiro
capítulo desta obra, sua gênese encontra-se na teologia cristã da patrística a qual se
cunhou sob forte influxo da filosofia helênico-platônica.
Como foi apontado, fosse este assunto objeto de mera discussão
acadêmica, talvez não merecesse nossa atenção e pesquisa. No entanto, nosso
objetivo neste trabalho foi mostrar que as conseqüências práticas para a vida da
Igreja foram extraordinariamente brutais. A teologia cristã-platônica que tendeu ao
menosprezo do corpo e privilegiou uma proposta de espiritualidade desencarnada,
idealista, etérea e gnóstica desembocou em moralismo, em busca deliberada pelo
martírio, em demonização do sexo e da sexualidade, em condenação de toda sorte
de prazeres, em desenvolvimento de uma culpa endêmica na cultura ocidental,
serviu de referência teórica para a defesa da “guerra justa”, da violência física contra
as vozes dissonantes dentro da Igreja, sustentou o genocídio perpetrado pelas
Cruzadas, o horror dos instrumentos de tortura dos tribunais inquisitórios e sua
fogueiras que matavam o corpo para salvar a alma, serviu de suporte para a quase
aniquilação dos povos ameríndios, a famigerada escravização dos povos africanos,
a arrogante colonização européia em várias partes do mundo. No caso da inserção
do protestantismo no Brasil gerou repúdio da cultura tropical tupiniquim naquilo que
havia de mais alegre, criativo e belo na sociedade brasileira: seus ritmos musicais,
seus instrumentos de percussão, suas danças regionais, suas festas populares, seu
folclore. Acrescentemos as roupas típicas e próprias para um clima tropical, o prazer
e desfrute de suas belas praias, a espontaneidade do povo, as relações informais e,
pecado dos pecados, a condenação das duas maiores paixões nacionais, o futebol e
o carnaval.
É bastante conhecida a afirmação de Rudolf Bultmann de que toda teologia
é simultaneamente uma antropologia. Deus é considerado nas cartas paulinas a
partir de seu significado para o ser humano
443
. É na encarnação que se revela todo
propósito de Deus para os homens e mulheres criados à sua imagem e semelhança.
Na encarnação se a “descoberta real do Deus absoluto”.
444
Nesse encontro com
a divindade percorremos esta dupla jornada: experimentamos o transcendente e o
443
Cf. BULTMANN, 2008, p. 246.
444
RAHNER, Karl. Teologia e Antropologia. São Paulo: Paulinas, 1969. p. 55.
157
humano ao mesmo tempo
445
. “O específico da experiência cristã reside em
experimentar Deus num homem, Jesus”.
446
“Ele, que é o resplendor da glória e a
expressão exata do seu Ser (...)” (Hebreus 1:3a). Curiosamente, nossa “co-
participação na natureza divina” (II Pedro 1:4) intensifica-se na proporção em que
nos aproximamos do Deus-Ser humano, Jesus de Nazaré. É nesta condição,
quando Ele está mais distante de Sua natureza divina, poderíamos dizer em Sua
condição quenótica, que encontramos nossa verdadeira vocação
447
. Em Sua
humanidade Jesus quer nos apontar um caminho, nos propor, por assim dizer, uma
espiritualidade. A espiritualidade de se ser humano. Talvez por isso Boff tenha
afirmado “a divinização do homem humaniza a Deus e a humanização de Deus
diviniza o homem”.
448
O amor de Deus por Sua criação foi tamanha que por ela Ele
se humanizou. É em nossa plena humanidade que experimentaremos uma
verdadeira espiritualidade, nossa destinação final em direção ao divino.
As angústias de minha adolescência evangélica foram, finalmente,
aplacadas!
445
Cf. RAHNER, 1969, p. 54.
446
BOFF, 1982, p. 153.
447
Cf. RAHNER, 1969, p. 54.
448
BOFF, 1973, p. 90.
158
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