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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS
INSTITUTO DE ARTES
Doutorado em Artes
Qorpo Santo - Lanterna de Fogo:
QOMPÊNDIO DRAMATÚRGIqO
EM Parágrafos E Imagens
João André Brito Garboggini
Campinas – 2008
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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS
INSTITUTO DE ARTES
Doutorado em Artes
Qorpo Santo - Lanterna de Fogo:
QOMPÊNDIO DRAMATÚRGIqO
EM Parágrafos E Imagens
João André Brito Garboggini
Tese apresentada ao Curso de
Doutorado em Artes do Instituto de Artes
da UNICAMP como requisito parcial para a
obtenção do grau de Doutor em Artes sob a
Orientação da Profª. Dra. Sara Pereira Lopes
Campinas – 2008
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Ficha catalográfi ca elaborada pela
Biblioteca do Instituto de Artes da Unicamp
Garboggini, João André Brito.
G163q Qorpo Santo - Lanterna de Fogo: qompêndio dramatúrgico em
paragráfos e imagens. / João André Brito Garboggini – Campinas,
SP: [s.n.], 2008.
Orientador: Profª. Drª. Sara Pereria Lopes.
Tese (doutorado) - Universidade Estadual de Campinas,
Instituto de Artes.
1. Teatro Brasileiro. 2. Dramaturgia Audiovisual. 3. Qorpo
Santo. I. Lopes, Sara Pereira. II. Universidade Estadual de
Campinas. Instituto de Artes. III. Título.
(em/ia)
Título em inglês: “Qorpo Santo - Fire Flashlight: dramaturgic compendium
in paragraphs and images.”
Palavras-chave em inglês (Keywords): Brazilian eater ; Audiovisual
Dramaturgy ; Qorpo Santo.
Titulação: Doutor em Artes.
Banca examinadora:
Profª Drª. Sara Pereria Lopes.
Prof. Dr. Mário Fernando O. Bolognesi.
Profª. Drª. Priscila Rosinetti Rufi noni.
Prof. Dr. Carlos Eduardo Albuquerque Miranda.
Prof. Dr. Antônio Fernando da Conceição Passos.
Prof. Dr. José Simões de Almeida Júnior.
Prof. Dr. Adilson José Ruiz.
Data da Defesa: 05-12-2008
Programa de Pós-Graduação: Artes.
Para Flávia
E para os que acabaram de chegar:
Helena e Joaquim
Para
Rubens José Souza Brito (in memorian),
um amigo sempre presente.
Por sua colaboração e amizade é impossível agradecer bastante:
À Sara Pereira Lopes, pelo acompanhamento desde o começo
e pela valiosa acolhida para terminarmos esta empreitada juntos.
Aos Professores e Funcionários do Departamento de Artes Cênicas, por sua
atenção e disponibildade. Em especial Neyde Venziano, Helô Cardoso, Maria
Lúcia Candeias, Wanderley Martins, Adilson Ruiz.
Aos amigos queridos e parceiros preciosos
Glauco Manuel dos Santos, Alcides Fernando Gussi,
Vani Ing Burg, Amaranta Krepschi,
Céci Campos, Zandra Miranda,
Fabiana Grassano, Berba Fernandes,
Dácio Rodrigues, Marco Antônio Scarassati,
Brisa Vieira, Hugo Burg Cacilhas, Guilbert Nobre,
Ivan Ortiz, Hidalgo Romero.
À minha família, pelo apoio, sempre.
Resumo
Esta tese apresenta uma jornada pela dramaturgia do autor José Joaquim de Campos Leão
Qorpo Santo (1829-1883). Tem como objetivo transcriar sua escritura, inventando uma biografi a
poética do escritor gaúcho, por meio da elaboração de uma dramaturgia audiovisual. Trata-se de um
mosaico de referências e citações composto por fragmentos dos textos do próprio Qorpo Santo, das
lembranças de algumas encenações de suas peças teatrais, de artigos jornalísticos e de alguns escritos
de outros autores que se aproximaram de sua obra. A peça audiovisual que integra este trabalho aparece
como um capítulo da tese e foi construída a partir de uma série de imagens que podem caracterizar
o universo de Qorpo Santo. Estas imagens foram selecionadas da obra de artistas como James Ensor,
Edvard Munch e Oswaldo Goeldi entre outros.
Palavras-chave: Teatro Brasileiro; Dramaturgia Audiovisual; Qorpo Santo
Abstract
is thesis presents a journey through the dramatic work of the brazilian author José Joaquim
de Campos Leão Qorpo Santo (1829-1883). It has the objective of transcreate his scripture, inventing a
poetic biography of the “gaucho writer, in a audiovisual dramaturgy. It consists in a mosaic of references
and citations, composed by fragments of Qorpo Santo’s own texts, memories of some staging of his
theatrical plays, journalistic articles and some works of others writers who had contact with his work.
e audiovisual piece that composes this work, appears as a chapter of the thesis and was constructed
from a series of images that can characterize the Qorpo Santos universe. ese images were selected
from the work of the James Ensor, Edvard Munch, Osvaldo Goledi and others artists.
Key Words: Brazilian  eater; Audiovisual Dramaturgy; Qorpo Santo
sumÁrio
15 Introdusão
19 Parte I – Para Inventar um Qorpo Santo
21 1. Desde Quando Qorpo Santo: anotasões inisiais
23 2. Lembransas de Ensenações de Qorpo Santo
31 3. Sobre os Disparates Teatrais de Qorpo Santo
37 4. Uma Ensiqlopédia de Vanguardas
43 5. Pistas para uma posível Biografi a Fiqsional
45 6. Dona Fulana de Qampos Leão: bisneta de Qorpo Santo
49 7. Uma Posibilidade de Funsionamento da
Masa Cinzenta de Qorpo Santo
53 8. O Rei da Qonfusão
57 Parte II – Para juntar os Pedasos do Qorpo Santo
59 9. Uma Vizão Pensamento sobre Qorpo Santo
63 10. Uma Serta Teatralidade na Pintura
65 11. O Jogo do Qorpo Santo
69 12. Qolagem: Dramaturgia e Imagem
75 Qonsiderasões sobre Qorpo Santo-Lanterna de Fogo
80 Referênsias Bibliográfi cas
85 Aneqsos
15
P
ara esta tese mergulhei num
emaranhado de textos e de
imagens com o objetivo de
reescrever a dramaturgia de
Qorpo Santo, pseudônimo do gaúcho José
Joaquim de Campos Leão (1829 - 1883). Para
tanto procedi a montagem de um almanaque
que utiliza variados elementos
1
, partindo da
obra de Qorpo Santo, para a elaboração de
uma dramaturgia audiovisual referente ao autor
gaúcho.
Machado de Assis nos conta que o
tempo inventou o almanaque; compôs um
simples livro, seco, sem margens, sem nada;
E
prossegue:
Um dia ao amanhecer, toda a terra
viu cair do céu uma chuva de folhetos;
creram a princípio que era geada de nova
espécie, depois vendo que não, correram
todos assustados; afi nal, um mais animoso
pegou de um dos folhetos, outros fi zeram
a mesma coisa, leram e entenderam. O
almanaque trazia a língua das cidades e dos
1 O caráter do elemento é genérico, ist o é, vários artífi ces po-
dem empregar os mesmos elementos na geração de obras, as
quais, invariavelmente, apresentam resultados dist intos entre si.
BRITO, Rubens José Souza e J. Guinsburg, Análise Matricial:
uma metodologia para a invest igação de processos criativos em Ar-
tes Cênicas. In DA SILVA, Armando Sérgio (org.), J. Guinsburg:
Diálogos sobre Teatro. São Paulo: Editora da Universidade de São
Paulo, 22. p. 277- 286.
campos em que caía. Assim toda a terra
possuiu, no mesmo instante, os primeiros
almanaques.
2
Qorpo Santo escreveu suas peças
teatrais no ano de 1866 – publicou-as em 1877.
Suas peças podem ser encaradas como um
Almanaque de 1866, de onde brotam ruínas
3
de palavras que engendram personagens. A
estas personagens e palavras atribuí um caráter
biográfi co donde montei uma biografi a ccional
de Qorpo Santo, que nos faz saber de sua vida
por meio de sua obra.
Utilizei a idéia de Almanaque para não
ter preocupações de encadeamento linear, mas
com o objetivo de arranjar idéias. As formas de
contar Qorpo Santo podem ser rearranjadas
para o entendimento do que se diz, para jogar
com as representações de personagens e palavras
utilizadas por Qorpo Santo; tão colocadas em
dúvida pelo próprio autor, que possuiu uma vida
tão interessante quanto sua obra. Uma idéia
2 ASSIS, Machado de, Como se Inventaram os Almanaques. In
MEYER, Marlyse (org.), Do Almanak aos Almanaques. São Pau-
lo: Ateliê Editorial, 21. pp. 26-27
3 A sionomia alegórica da natureza-hist ória , post a no pal-
co pelo drama, só est á verdadeiramente presente como ruína.
Como ruína, a hist ória se fundiu sensorialmente com o cenário.
(...) O que jaz em ruínas, o fragmento signifi cativo, o est ilha-
ço(...). BENJAMIN, Walter, Origem do Drama Barroco Alemão.
São Paulo: Editora Brasiliense, 1984. p. 199-2.
Introdusão
16
roubada ao escritor gaúcho Álvaro Moreyra
4
, que
em suas memórias As Amargas Não, através de
parágrafos independentes, cola num painel suas
lembranças. Moreyra relembra Qorpo Santo:
Há um poeta esquecido demais
no Brasil. Chamou-se José Joaquim de
Campos Leão Qorpo Santo. Eu vi as Obras
Completas dele, em grossos e altos volumes.
Guardei na memória algumas das páginas.
Durante a revolução contra o passadismo,
a ninguém ocorreu dar ao colega de 1880
e de Porto Alegre, o título de precursor da
poesia moderna.
5
Realizei, também, um mapeamento
de montagens pioneiras e recentes das peças de
Qorpo-Santo que permitem verifi car possíveis
leituras, em diferentes momentos e com
encenações heterogêneas, para entender como a
dramaturgia do autor antropofagiza elementos
de vocação vanguardista.
Organizei a chuva de folhetos
sugerida por Machado de Assis para construir
uma anatomia dramatúrgica tirada das peças
que compõem a obra teatral de Qorpo Santo,
incluída no volume IV da sua Ensiqlopédia ou
4 Nascido em Porto Alegre, em 1888, e morto no Rio de Janei-
ro, em 1964. Como homem de teatro desempenhou um papel
relativamente importante nos anos que seseguiram à Semana de
Arte Moderna.(...) Sua peça Adão, Eva e Outros Membros da Fa-
mília (1925) e o Teatro de Brinquedo são iniciativas e demons-
tram, nos anos 192, que os ventos da renovação modernist a
atingiram o teatro, mas que também não era fácil quebrar com
a resist ência das velhas formas. FARIA, João Roberto, Álvaro
Moreyra:Poesia e Teatro no Modernismo. In O Teatro na Est ante:
est udos sobre dramaturgia brasileira e est rangeira. São Paulo: Ate-
liê Editorial, 1998. pp. 17-112.
5 MOREYRA, Álvaro, As amargas, não... : (lembranças). Rio de
Janeiro: Lux, 1954. pp. 126-127.
Seis Meses de uma Enfermidade
6
, impressas na
Tipografi a Qorpo Santo. Procurei elaborar um
projeto gráfi co semelhante à da Ensiqlopedia
de Qorpo Santo (§26). Uma forma de ajuntar
diversas informações que possam auxiliar na
elaboração de um roteiro e em seguida um story
board
7
sobre o autor em estudo, um indivíduo
verborrágico em sua escrita desgovernada.
Em 1978 Martin Esslin já salientava
que:
O drama mecanicamente
reproduzido dos veículos de comunicação de
massa (o cinema, a televisão, o rádio), muito
embora possa diferir consideravelmente
em virtude de suas técnicas, também é
fundamentalmente drama, obedecendo
aos mesmos princípios da psicologia da
percepção e da compreensão das quais se
originam todas as técnicas da comunicação
dramática.
O drama como técnica de
comunicação entre seres humanos partiu
para uma fase completamente nova de
desenvolvimento, de signifi cação realmente
secular em uma era que o grande crítico
alemão Walter Benjamin caracterizou
como sendo a da reprodutividade técnica
da obra de arte.
8
6 Essa Ensiqlopedia, na curiosa forma de revisão ortográfi ca
propost a pelo dramaturgo, compunha-se de nove volumes, uma
espécie de súmula de seu pensamento e de suas idéias.(...) Há
dois volumes que, contudo, envolvem temática específi ca: o de n.
IV, com sua dramaturgia, e o de n. IX, no qual propõe uma re-
leitura dos evangelhos. FRAGA, Eudinyr, Um Corpo que queria
ser Santo. In LO, José Joaquim de Campos (Qorpo Santo),
Teatro Completo. São Paulo: Editora Iluminuras, 21. pp. 7-8.
7 Story Boards são cenas “imóveis” para fi lmes, pré-planejadas e
dispost as em quadros pintados ou desenhados. (...) Não são des-
tinadas à leitura”, mas antes para fazer a ponte entre o roteiro
do fi lme e a fotografi a nal. EISNER, Will, Quadrinhos e arte
seqüencial. São Paulo: Martins Fontes, 1999. p. 143.
8 ESSLIN, Martin, Uma Anatomia do Drama. Rio de Janeiro:
Zahar Editores, 1978. p. 14-15.
17
Debruçado sobre a dramaturgia
qorposantense, procurei identifi car cenas
idealizadas pelo autor gaúcho em sua escritura
que permitiram uma transcriação
9
para uma
dramaturgia audiovisual. O procedimento
10
desta transposição passou pela elaboração de um
argumento e, posteriormente, de um story board,
numa justaposição de textos e imagens para
possibilitar a visualização das diversas seqüências
que puderam compor a reescritura do universo
de Qorpo Santo em suporte audiovisual.
Por meio da dramaturgia audiovisual
realizei uma transcriação, para identifi car nas
falas e rubricas da dramaturgia qorposantense
analogias com imagens que tirassem o texto
da página impressa e devolvessem signifi cados
para sua dramaturgia em ruínas. Essas ruínas
aparecem como o legado de uma dramaturgia
que só pode ser vista, de fato, como um pitoresco
monte de escombros.
11
Neste sentido, reescrever uma
dramaturgia sobre Qorpo Santo consistiu numa
colagem de citações de textos e imagens sem a
intenção de registro histórico. A citação está
ligada àquela idéia benjaminiana de extrair as
coisas de seu contexto original para deixar o
9 Na Tradução Intersemiótica como transcriação de formas o
que se visa é penetrar pelas entranhas dos diferentes signos, bus-
cando iluminar suas relações est ruturais, pois são essas relações
que mais interessam quando se trata de focalizar os procedimen-
tos que regem a tradução. Traduzir criativamente é, sobretudo,
inteligir est ruturas que visam a transformação de formas. PLA-
ZA, Júlio, Tradução Intersemiótica. São Paulo: Editora Perspec-
tiva, 21. p. 71.
1 O procedimento é a ação do artist a no uso dos elementos
eleitos; est a ação personaliza o ato criativo; conseqüentemente, o
caráter do procedimento é específi co: somente um determinado
autor produz daquele modo e não de outro. BRITO, Rubens
José Souza e J. Guinsburg, Op. Cit., p. 282.
11 BENJAMIN, Walter, Op. cit. p. 2.
pensamento falar
12
. Trata-se, portanto, de elaborar
uma trama de referências textuais e imagéticas,
pinçadas para devolver signifi cações à obra de
Qorpo Santo; textos e imagens com objetivo de
construir uma “biografi a falsa”
13
do autor.
Os elementos selecionados para este
trabalho percorreram um trajeto que parte dos
escritos teatrais de Qorpo Santo, passando
por textos jornalísticos e chegando às imagens
de Oswaldo Goeldi, James Ensor, Edvard
Munch, caricaturas e fotografi as de Qorpo
Santo, instantâneos de Porto Alegre, bem
como outras fontes imaginárias que pudessem
funcionar como inspiração para a escritura aqui
apresentada. Desta forma foi possível estruturar
um almanaque sobre o autor gaúcho, incluindo
uma peça audiovisual, como parte integrante da
tese.
A tese se divide em duas partes: na
Parte I expus o levantamento de informações e
descrições do procedimento para chegar à Parte
II, na qual apresento as etapas para a criação da
peça audiovisual.
12 ROUANET, Sergio Paulo, Não me venham falar em Síntese
(entrevist a a Marília Pacheco Fiorillo). In Folhetim – Folha de
S. Paulo (9/12/1984).
13 Linda Hutcheon vê a forma mais cara eríst ica de literatu-
ra pós-moderna como metafi cção hist oriográfi ca, conceito com o
qual ela designa obras de fi cção, acentuando a fi gura do autor e
o ato de escrever. Est e tipo de metafi cção est aria presente em
obras que tomam como tema personagens e eventos da hist ória
conhecida, mas os submetem à dist orção, à falsifi cação e à fi c-
cionalização(...). Para Hutcheon, a cara eríst ica principal des-
ses textos é expor a fi ccionalidade da própria hist ória. IOZZI,
Adriana, Italo Calvino: Entre a Tradição Moderna e a Vanguarda
Pós-moderna. In WATAGHIN, Lucia (org.), Brasil & Itália –
Vanguardas. Cotia: Ateliê Editorial, 23. p. 229.
Parte I
Para Inventar um Qorpo Santo
21
Desde quando Qorpo Santo
§ 1
E
m 1989, embarcando num avião
com destino à Bahia, levava
comigo uma publicação do Teatro
Completo de José Joaquim de
Campos Leão, Qorpo Santo, embaixo do braço.
Decidi carregar o exemplar comigo, após ter
conhecido Qorpo Santo por meio da leitura
da peça Hoje sou um; e Amanhã Outro como
possibilidade de montagem de espetáculo por
um Grupo de Teatro do qual fazia parte.
Neste vôo para o Nordeste, Qorpo
Santo, um autor do Rio Grande do Sul, tornou-se
silêncio para mim. Completamente desnorteado,
frente a uma lógica inextricável com a qual me
deparei naquelas páginas, mal sabia que aquela
mixórdia teatral havia sido deixada na estante
por cem anos, pois falava numa língua do Século
XIX com o pé quebrado, por força, quem sabe
do seu destrambelhamento mental. Desisti das
peças e continuei olhando as nuvens pela janela
do avião.
§ 2
A incomunicabilidade de Qorpo Santo
comigo estava instaurada e foi morar na estante
por mais alguns anos. Sua misantropia, todavia,
inquietava-me. Após vários anos retomei as
peças do gaúcho escritor por meio da realização
de Ciclos de Leituras Dramáticas. Ao lado
de autores como Beckett, Ionesco e Nelson
Rodrigues, incluí Qorpo Santo no Ciclo relativo
ao Teatro do Absurdo
14
, que aconteceu no espaço
da Ofi cina da Arte, um atelier de artes plásticas,
onde eu coordenava as atividades teatrais que
ocorreram ali entre 1997 e 2002.
O autor de Porto Alegre continuava
indecifrável não apenas para mim, mas também
para os participantes das leituras, bem como
para aspirantes a atores a quem apresentei sua
obra, na tentativa de montar suas peças.
Após ter realizado as leituras dramáticas
e tentativas de montagem de peças de Qorpo
Santo, em 2003, foi possível realizar uma
14 O Teatro do Absurdo procura expressar a sua noção da fal-
ta de sentido da condição humana e da insufi ciência da atitude
racional por um repúdio aberto dos recursos racionais e do pen-
samento discursivo. Tende para uma desvalorização radical da
linguagem, onde a comunicação entre os homens é most rada em
est ado de desintegração. ESSLIN, Martin, O Teatro do Absurdo.
Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1968. pp. 2,22,355
22
montagem experimental da peça Certa Entidade
em Busca da Outra. Veri quei que a encenação,
possibilitada pela trama da peça, exigia a
elaboração de personagens, que se construíssem
como fi guras grotescas, cujas deformidades as
tornassem ridículas e caricatas.
15
Esta encenação fez com que o interesse
pela obra de Qorpo Santo se refi zesse e a
proposta desta tese confi gurou-se na forma de
uma pesquisa. A lembrança de encenações
e a observação de montagens recentes que
tive a oportunidade de assistir, levaram-me a
referências outras, não apenas escritas. Elaborei
um repertório de imagens, que pudessem ter
características de anotações visuais sobre Qorpo
Santo e sua obra. Textos, encenações e imagens,
documentais ou não, que contribuiram para
aproximar o universo do autor e transcriá-lo
em uma dramaturgia pensada para um suporte
audiovisual.
Para encontrar pistas sobre Qorpo
Santo, parti do exemplar do Teatro Completo de
Qorpo Santo, publicado pelo Serviço Nacional
de Teatro, da Fundação Nacional de Arte, em
1980, que me chegou às mãos em 1989, devido
à minha formação em Artes Cênicas.
15 FARIA, João Roberto, Qorpo Santo: as formas do cômico. In
O teatro na Est ante. Ateliê Editorial, . p. 78
.
23
César
18
que, em 1962, sugeriu a Fausto Fuser e
a Lúcia Mello, então professores do Curso de
Arte Dramática da Universidade Federal do Rio
Grade do Sul a encenação de algumas pequenas
peças de Qorpo Santo. Fuser mandou copiar
os textos
19
os quais, posteriormente, chegaram
às mãos do grupo do Clube de Cultura. Sena,
em 1966, levou à cena três peças: As Relações
Naturais, Mateus e Mateusa e Eu sou vida; eu não
sou morte.
Assis Brasil assistiu às peças, no Teatro
do Clube de Cultura de Porto Alegre - uma
entidade que existia, no bairro judaico de Porto
Alegre e que era mantido por intelectuais dessa
comunidade. Ele diz que era uma montagem até
certo ponto bastante literal, bem comportada,
talvez por ser a primeira vez que aquilo era
apresentado.
18 Guilhermino César (19-1993) que tão bem est udou a
obra de Qorpo Santo comentava que em geral, o teatro oito-
centist a gaúcho não tivera um desenvolvimento criador. Se na
metade do século surgiu o nome de Souza Bast os (Manuel
José, 1852-1861) e, no fi nal, o renomado escritor regionalist a
J. Simões Lopes Neto (1865-1916), a maioria dos autores dra-
máticos dest e período não criou “efetivamente um teatro válido,
como expressão inconfundível do meio”(...). FRAGA, Eudinyr,
Um Corpo que se queria Santo. In LEÃO, José Joaquim de
Campos (Qorpo Santo), Teatro Completo. São Paulo: Editora
Iluminuras, 21.
19 CÉSAR, Guilhermino, A Reabilitação de uma Obra. In
Programa do Espetáculo apresentado no Teatro do Clube de
Cultura de Porto Alegre em Agost o-Setembro de1966.
§ 3
O
escritor gaúcho Luiz Antônio
de Assis Brasil assistiu, há cerca
de quarenta anos, a primeira
montagem de algumas peças
do Qorpo Santo – a primeira vez que elas
foram levadas. Foi a encenação dirigida por
Antônio Carlos de Sena, no Clube de Cultura
de Porto Alegre. Assis Brasil conta que Aníbal
Damasceno Ferreira recebeu um convite ou algo
assim dos familiares do intelectual Manoelito de
Ornellas
16
para conhecer uma biblioteca, onde
encontrou a Ensiqlopedia de Qorpo Santo.
17
As pessoas sabiam da existência desta
obra, mas foi Aníbal que disse: vamos fazer alguma
coisa com isso! E aí mostrou para Guilhermino
16 Autor de diversas obras de cunho sociológico, entre elas a
obra fundamental da cultura gaúcha e da cultura brasileira, Gaú-
chos e Beduínos.
17 Entrevist a realizada em 17 de Julho de 27, com Luiz
Antônio de Assis Brasil, autor do romance Cães da Província.
Lembransas de Ensenasões de
Qorpo Santo
24
Valendo-me do programa do espetáculo
apresentado no Clube de Cultura encontrei,
além do texto de apresentação assinado por
Guilhermino César, um texto escrito por Sena, no
qual ele, em arroubos de entusiasmo, afi rma que
a inautenticidade do falso e medíocre teatro que
era levado na provincianíssima Porto Alegre do
século XIX, fazia mal a Qorpo Santo. O diretor
do espetáculo gaúcho de 1966 chega a colocar
que os méritos de Martins Pena são inegáveis,
mas que se deve a Qorpo Santo alguma parte
do reconhecimento que se devota ao talento do
comediógrafo carioca
20
.
2 SENA, Antônio Carlos, Qorpo Santo – um Precursor. In Pro-
grama do Espetáculo do Clube de Cultura de Porto Alegre.
Em 1968, a montagem do Clube de
Cultura de Porto Alegre foi apresentada no Rio
de Janeiro, durante o 5º Festival Nacional
de Teatro de Estudantes, organizado
por Paschoal Carlos Magno. O crítico
Ian Michalski fez um entusiástico registro da
revelação de Qorpo Santo ao público carioca.
21
No mesmo ano, uma montagem
estudantil da peça Mateus e Mateusa, sob direção
de Djalma Limonge, foi apresentada no “Ciclo
do Teatro do Absurdo”, quando também foram
apresentadas peças de Ionesco e de José Arrabal.
22
21 MICHALSKI, Yan, O Sensacional Qorpo Santo. In Jornal do
Brasil – 8/2/1968.
22 AGUIAR, Flávio, Os Homens Precários: inovação e convenção
na dramaturgia de Qorpo Santo. Porto Alegre: Inst ituto Est adual
do Livro, 1975. p. 247.
Elenco do Grupo do Clube de Culura.
1ª montagem de peças de Qorpo Santo, realizada em Porto Alegre
25
Também em 1968, Luís Carlos
Maciel
23
, após uma experiência desagradável de
ter censurada sua montagem da peça Barrela,
de Plínio Marcos, no Teatro Jovem do Rio de
Janeiro, sugeriu ao produtor Ginaldo de Souza
que montassem, então, As Relações Naturais, de
Qorpo-Santo, um autor que, à época, estava
sendo considerado precursor do teatro do
absurdo. O texto foi para a Censura Federal
em Brasília e passou. O espetáculo estreou no
Teatro Glauce Rocha, no Rio de Janeiro, mas
não foi longe. Segundo o diretor, os censores
23 Em maio de 1968 houve a primeira representação de uma
peça de Qorpo Santo realizada por um grupo profi ssional. O
grupo “Teatro Jovem encenou As Relações Naturais, sob direção
de Luís Carlos Maciel. O espetáculo prolongou-se até o mês
de junho, no Teatro Nacional de Comédia, do Rio de Janeiro.
AGUIAR, Flávio, Idem ibid.
consideraram que os signos cênicos utilizados
no espetáculo tinham uma intenção crítica
ostensiva e, depois de duas semanas em cartaz,
se tanto, o espetáculo também foi proibido.
24
O cineasta Haroldo Marinho Brabosa,
lmou Eu sou a vida; eu não sou a morte, baseado
no texto homônimo de Qorpo Santo. O fi lme
participou no Rio de Janeiro do I Festival
Brasileiro de Curta-Metragem, em 1971, quando
foi premiado
25
. Foi considerada por Ismail Xavier
uma pequena obra-prima
26
.
24 http://tropicalia.uol.com.br/site/internas/leituras_margina-
lia3.php
, capturado em 2/5/8.
25 AGUIAR, Flávio, Op. Cit.p. 25.
26 XAVIER, Ismail,O Olhar e a Cena. São Paulo: Cosac & Naify,
23. p. 196.
Cena da montagem dirigida por Djalma Limonge em 1968
26
§ 4
Em 1976 estreou no palco do Clube de
Cultura em Porto Alegre, sob direção de Liana
Villas Boas, o espetáculo Qorpo Santo um Século
Depois , composto pelos dois textos Hoje sou um e
amanhã outro e Mateus e Mateusa. A encenadora
deu um tratamento mais realista ao texto, vendo
menos o aspecto da farsa. Ela considerou as
conotações do absurdo com características de
comédia séria.
27
Em 1979 a peça Lanterna de Fogo, foi
levada à cena pela primeira vez, numa criação
coletiva do Grupo Circulação de Mercadoria,
coordenada por Júlio Zanotta Vieira. A
montagem foi apresentada no Teatro Ói Nóis
Aqui Traveis, que surgiu numa garagem-boate,
no Bairro Floresta, em Porto Alegre, como uma
montagem de vanguarda verifi cada à época pelo
jornalista Aldo Obino.
28
O artista plástico Álvaro Apocalypse,
criador do Tetaro Giramundo de Bonecos
escolheu a peça As Relações Naturais para
ressucitar através da manipulação de bonecos
um mundo que tem vagas relações com o real.
As cenas mal alinhavadas da peça ganham outra
dimensão com o uso dos bonecos - desenhados
para acentuar a ironia de Qorpo Santo, lembrando
guras grotescas com um ar surrealista.
29
De lá pra cá, Qorpo Santo foi
encenado inúmeras vezes. Algumas encenações
profi ssionais e muitas feitas por grupos estudantis
e alunos de Cursos de Artes Dramáticas.
30
27 HOHLFELDT, Antônio, Espetáculo de Qorpo Santo per-
mite novas abordagens do autor gaúcho. In Correio do Povo -
8/11/1976.
28 OBINO, Aldo, A Lanterna de Fogo. In Correio do Povo -
7/3/1979.
29 MENDONÇA, Casimiro Xavier de, Caixa de Sombras. In
Revist a Veja - 2/2/1983.
3 Cf. AGUIAR, Flávio, Op. Cit. pp.247-25.
§ 5
Recentemente tive a oportunidade de
assistir algumas montagens de peças de Qorpo
Santo:
A Companhia São Jorge de Variedades
(São Paulo) realizou uma montagem da peça
Um Credor na Fazenda Nacional, dirigida por
Georgette Fadel; participou da mostra paralela
do Festival de Teatro de Curitiba de 2000.
31
A encenação procurou reproduzir o clima
surrealista que perpassa a dramaturgia de Qorpo-
Santo, num espetáculo com diferentes cenários
- diferentes salas de uma repartição pública -
pelas quais o público é conduzido, sempre na
companhia do protagonista, que tenta em vão
receber um dinheiro que lhe é devido.
Embora mescle trechos de três peças
do autor - Um Credor da Fazenda Nacional, Dous
Irmãos e O Marido Extremoso ou O Pai Cuidadoso
- o eixo central do espetáculo gira em torno do
pesadelo vivido pelo “credor que, de posse de
um requerimento, já bastante amassado, passa
por uma via-sacra para tentar receber o que lhe
deve a “Fazenda Nacional”.
O público aos poucos vai percebendo
que a peregrinação daquele credor começou há
muito tempo. E suas tentativas são marcadas por
uma rotina exasperante, um jogo de empurra que
o faz enfrentar ora a arrogância, ora a indiferença
de funcionários apáticos e desmiolados, que
acabam perdidos no emaranhado da burocracia.
Em 2007, a mesma Companhia realizou
um teleteatro da peça Hoje sou um; e Amanhã
Outro. A encenação expõe os recursos da criação,
31 NÉSPOLI, Beth, Uma bem-sucedida tradução cênica da obra
do autor volta ao palco. In O Est ado de São Paulo (22/1/22).
- 14/3/28 em www.ciasaojorge.hpg.ig.com.br.
27
deixando as câmeras visíveis. Transposto para a
linguagem televisiva, a releitura do texto utiliza
posicionamentos de câmera acima das cabeças
dos atores, conferindo inferioridade à massa
de soldados que fala ao rei. Em outra tomada,
esses mesmos soldados movem-se em bloco,
formando um desenho geométrico que remete à
falta de autonomia individual.
32
Há, no entanto,
uma utilização excessiva de efeitos e recursos de
linguagem que, parece-me, tiram a unidade desta
peça audiovisual, como por exemplo a passagem
da imagem colorida para preto-e-branco, a cena
externa da revolta popular e, mesmo um ‘rap
apresentado, que parece isolado do restante.
32 http://observatorio.ultimosegundo.ig.com.br/artigos.
asp?cod=434ASP4
, - 21/5/8.
§ 6
A Boa Companhia apresentou no 9º
Porto Alegre em Cena de 2002 uma compilação
de poemas eróticos e receitas culinárias mais ou
menos afrodisíacas de Qorpo Santo, publicados em
sua Ensiqlopédia. O espetáculo intitulou-se Banqete:
dirigido por Verônica Fabrini, adaptado da obra de
Qorpo Santo pelo grupo Produtos Notáveis.
Numa colagem de textos, que se
confi gura num espetáculo de bolso. São
esquetes, sem um fi o condutor, que poderiam
ser reorganizadas. É possível identifi car a
vocação dos textos de Qorpo Santo para o
nonsense verbal
33
onde o instinto do jogo teatral
se liberta da dramaturgia, do conteúdo textual.
A necessidade de recepção racional do que se
passa em cena é descartada.
O cenário se estabelece com a chegada
de dois casais e os preparativos de um banquete. A
sexualidade é evocada no cardápio e no consumo
dos pratos. Há troca de parceiros, beijos entre os
garçons, entre os pares masculinos e femininos...
O grupo de personagens ri, canta, dança, declama
e se digladia no meio dos pratos na mesa, como
se tudo fosse imprevisto. No fi nal, nada fi ca no
seu lugar, e entre banhos de vinho tinto e outras
iguarias, a peça termina deixando uma bagunça
no palco e uma sensação de não sei bem se gostei.
Talvez fosse essa a proposta, mas ela soa tão
frágil quanto um pastelzinho de Santa Clara.
34
33 A literatura do nonsense verbal expressa mais do que uma
mera brincadeira. Ao tentar dest ruir os limites da lógica e da
linguagem, ela invest e contra as próprias muralhas da condição
humana. (...) O nonsense verbal é no sentido mais verdadeiro
uma tentativa metafísica, uma luta por alargar e transcender os
limites do universo material e sua lógica. ESSLIN, Martin, O
Teatro do Absurdo. p. 29-291.
34 www.argumento.net/poaemcena/index_22, - 2/5/8.
28
§ 7
A Companhia Bonecos Urbanos,
dirigida por Carlota Joaquina, apresentou em
2005 uma montagem da peça Certa Entidade em
Busca da Outra no Teatro Fábrica de São Paulo.
Para a Companhia, a peça de Qorpo Santo é
uma experiência sem foco lógico que permeia o caos
da vida vira-latas pelas ruas sujas e escuras da
cidade grande.
35
Neste espetáculo a direção optou por
uma encenação feita com títeres. As personagens
ultrapassam o Brasil do século XIX, quando a
peça foi escrita, trazendo a encenação para o
dia-a-dia dos moradores de rua.
Na montagem apresentada no Teatro
Fábrica São Paulo
36
, antes do início da peça,
o público aguarda no saguão do teatro. Um
garoto da produção conduz informalmente os
espectadores pelo pátio de um estacionamento
vizinho do teatro. Por uma pequena porta,
entra-se num porão sombrio e úmido, onde o
sonoplasta e seus equipamentos de som fi cam
visíveis emitindo alguns acordes eletrônicos.
Pequenos fachos de luz vindos do chão, difusos
em fumaça, mostram no centro da cena um
obscuro carroção de lixo. O teto baixo, as paredes
sujas, o chão empoeirado, um ambiente lúgubre
causa uma sensação claustrofóbica e de repulsa.
É uma materialização do asco. O público se
acomoda em uma arquibancada de madeira.
Em condições precárias inicia-se o
espetáculo. A movimentação das fi guras expostas
em cena reforça uma aparência desumanizada.
35 Programa do Espetáculo Certa Entidade em Busca da Outra,
apresentado em Junho de 25 no Teatro Coletivo Fábrica.
36 www.fabricasaopaulo.com.br/articles.php?id=124 -
2/5/8.
Os movimentos desmantelados dos bonecos
37
,
construídos a partir de um gestual desleixado,
conferem uma agressividade sarcástica às
personagens.
Os atores que manipulam os bonecos
envergam macacões muito sujos, que escondem suas
identidades e os transformam em sombras cor de
terra. Tem-se a impressão de que os manipuladores
são espectros brincando com a vida de objetos
inertes, como se fossem crianças abandonadas
brincando com bonecos maltrapilhos.
Esta criação de personagens de ação
sem sinergia aparece como uma solução para
causar um estranhamento das personagens
de Qorpo Santo, na medida em que o autor
gaúcho possibilita a criação de alguns tipos
xos recorrentes em diversas de suas comédias,
não individualizando suas personagens. Os
bonecos passam uma imagem arrebentada e
se desmontam com muita facilidade, deixando
perceber que são feitos do mesmo detrito que
compõe o carroção de onde saíram.
A personagem protagonista, o velho
Brás, desloca-se titubeante, puxando o carroção
indigente pelo espaço cênico. Em algumas
passagens, o carroção respira com dois enormes
pulmões, como se tivesse vida própria. Funciona
como uma espécie de útero gigante de onde
saem todas as personagens e objetos de cena.
O velho, um catador de lixo ranzinza
e cachaceiro, refl ete um estado de espírito de
insatisfação, de miséria, de tédio, inserindo cacos
no texto original, rosna alguns xingamentos
contra sua existência miserável, contra
37 Os personagens de Qorpo Santo são, além de precários em si
mesmos, verdadeiros bonecos nas mãos de uma entidade dramá-
tica superior a eles. São marionetes: os fi os est ão patentes. O in-
uxo principal de vida não lhes vem de si, mas do impulso moral
que nasce do próprio autor. AGUIAR, Flávio, Op. Cit.p. 176.
29
§ 8
O Depózito de Teatro, sob a direção
de Roberto Oliveira, apresentou em 2007 o
espetáculo Dr. QS – Quriozas Qomédias, no
qual foram reunidos textos das peças Mateus
& Mateusa; As Relações Naturais; O Marinheiro
Escritor; Eu sou vida; Eu não sou Morte; além
de outros textos em prosa, aforismos e algumas
poesias de Qorpo Santo. O grupo também
inseriu fatos constantes da Autobiografi a Ideal de
Qorpo Santo, além de uma cena na qual foi feita
governantes corruptos, Nestas lamentações de
bêbado solitário, invoca o Supremo Arquiteto do
Universo e obtém a reposta de ninguém menos
do que o próprio Satanás.
Na montagem em questão, todas as
falas da personagem Satanás são substituídas pela
aparição de um aparelho de televisão que, do alto
do carroção, responde às interrogações do velho
com um chiado de TV fora do ar. A visão de que
todas as personagens e suas desgraças são expelidas
do carroção, pode proporcionar uma leitura de que
a TV estaria ali funcionando como uma Caixa de
Pandora, que vomita as desgraças do mundo.
Os Trinta Valérios” (1901) - Valério Vieira
30
uma livre adaptação da obra Cães da Província
de Luiz Antônio Assis Brasil.
38
Um espetáculo teatral que pinta um
quadro da obra dramatúrgica e poética de
Qorpo Santo, além de mostrar algumas facetas
da sua existência. A encenação reproduz o
clima surrealista que perpassa a dramaturgia de
Qorpo-Santo.
39
O espetáculo transforma Qorpo
Santo em personagem de sua obra e multiplica a
sua presença em cena. Aparecem vários Qorpos
Santos em diferentes situações, como na imagem
forjada pelo fotógrafo Valério Vieira
40
(1862-
1941) que realizou o seu auto-retrato de 1901
em diferentes situações, montados em uma só
imagem.
41
38 Programa do Espetáculo Dr. QS – Quriozas Qomédias,
apresentado em Março de 27 no Espaço Cultural Semente
em Campinas.
39 www.depositodeteatro.com.br, capturado em 2/5/8.
4 Valério Vieira aplicou-se ao est udo da fotomontagem; sua
produção “Os Trinta Valérios” é um marco na hist ória da foto-
grafi a no Brasil. Trata-se de uma obra do princípio do século XX
que representa uma situação fest iva harmoniosamente const ru-
ída(...); todos os personagens retratados, em número de 3, re-
presentam a mesma pessoa: o próprio Valério Vieira. KOSSOY,
Boris, Dicionário Hist órico-Fotográfi co Brasileiro. São Paulo:
Inst ituto Moreira Salles, 22. pp. 319-32.
41 http://girafamania.com.br/montagem/fotografo-valerio-
vieira.htm
, capturado em 28/3/27.
31
Sobre os Disparates Teatrais
de Qorpo Santo e Suas Bravatas
absolutamente arbitrária, e poderíamos,
inclusive, questionar essa própria divisão.
43
O próprio Qorpo Santo admite que
sua escritura é defi ciente e se justifi ca em uma
nota ao fi nal da peça O Marido Extermoso ou o
Pai cuidadoso:
NOTA
Não tendo eu jamais lido o que
escrevi há mais de onze anos, e só agora
corrigindo as provas, não podia saber que
esta comédia encerrava cinco quadros,
lendo-se na página primeira quatro, senão
nas últimas.
Porto Alegre, 11 de junho de 1877
Em seus textos teatrais, ele sugere
alterações. Veja-se como o autor encerra a peça
Dous Irmãos:
Porto Alegre, fevereiro 24 de 1866.
Por José Joaquim de Campos Leão
Corpo Santo
Julgamos quando começamos a
imprimir este Livro – que não bastariam
43 Idem. p. 6.
§ 9
E
u vejo que Qorpo Santo, no século
XIX, em suas peças pretende
imitar os moldes de Martins Pena,
Joaquim Manoel de Macedo e
José de Alencar. A divisão de suas peças em
atos, quadros e cenas mostra que ele estava
preocupado em escrever peças bem-feitas”,
dentro dos moldes tradicionais vigentes na época,
tentando, certamente, seguir os parâmetros que
devia conhecer.
42
O teatro de Qorpo Santo, no entanto,
despedaça a carpintaria bem feita dos autores das
comédias de costumes do mesmo período ou do
período imediatamente anterior a ele. É possível
afi rmar que Qorpo Santo escreve mal, pois sua
escritura aparece incompleta emperrada.
Fraga coloca que:
Qorpo Santo incorre num erro
muito comum de pessoas que não têm
hábito de lidar diretamente com o palco,
ou seja, não tem noção de tempo em teatro.
A sua divisão em cenas, quadros e atos é
42 FRAGA, Eudinyr, Qorpo Santo: Surrealismo ou Absurdo.
São Paulo: Perspe iva, 1988. p. 59.
32
as comédias para preenchê-lo; e por isso
escrevemos em seu princípio –
– ROMANCES E COMÉDIAS
As pessoas que comprarem e
quiserem levar à Cena qualquer das
Minhas Comédias – podem; bem como
fazerem quaisquer ligeiras alterações
corrigir alguns erros e algumas faltas,
quer de composição, quer de impressão,
que a mim por numerosos estorvos – foi
impossível.
Esta declaração confere às peças do
autor gaúcho a possibilidade de deixar de lado
a natureza literária que limita a dramaturgia de
alguns autores brasileiros do século XIX, como
José de Alencar e Machado de Assis, muito presos
ao preciosismo do texto escrito. Estes autores
se dão muito bem nos gêneros narrativos, mas
na dramaturgia parecem esquecer que o teatro
precisa libertar-se da página escrita e subir ao
palco.
§ 10
Numa matéria intitulada Quem tem
Medo de Qorpo Santo, publicada no jornal
portoalegrense Correio do Povo, em 1966,
Jeff erson Barros coloca que:
O problema do texto escrito reside na
necessidade da construção de personagens
possíveis de manifestação pela palavra falada,
pelo gesto e, sobretudo, capazes de revelar em
pequenas e intensas ações dramáticas. Esta
exigência de construção cria uma difi culdade
para o trabalho do dramaturgo. Possuindo o
palco por mundo social, e precisando revelar
sua verdade em poucos minutos de ação e de
espetáculo, a tendência do teatro – sobretudo
no Século XIX, um século literário por
excelência – foi no sentido de intensifi car a
ação dos diálogos, dando um destaque maior à
palavra, o que não ocorria no teatro medieval
ou na commedia dell’arte, por exemplo. Esta
superabundância de palavras, que tem origem
no classicismo francês, dominou o romantismo
e manifestou-se ainda no realismo ou no
naturalismo.
44
É importante a compreensão de
que estes problemas, relativos ao trabalho do
dramaturgo, encontravam seus momentos mais
altos justamente neste período. O texto teatral
começava a desgastar seus conteúdos na forma
de propaganda de modelos moralizantes
45
que
44 BARROS, Jeff erson, Quem tem Medo de Qorpo Santo. In Cor-
reio do Povo – 31/8/1966.
45 Nós todos jornalist as est amos obrigados a nos unir e a criar o
teatro nacional; criar pelo exemplo, pela lição, pela propaganda.
ALENCAR, José de, A Comédia Brasileira. In Diário do Rio de
Janeiro - 14/11/1857. Apud FARIA, João Roberto, Idéias Tea-
trais: o século XIX no Brasil. São Paulo: Perspe iva: FAPESP,
21. p.469.
33
deveriam reproduzir exata e naturalmente os
costumes de uma época.
Isto não ocorria com Martins Pena, que
pintava os costumes de seu tempo, mas pintava-
os sem criticar, visava antes ao efeito cômico do
que ao efeito moral, e era isto que José de Alencar
criticava em seu
artigo A Comédia Brasileira,
publicado no Diário do Rio de Janeiro.
46
A aparição de um autor como Qorpo
Santo nesta época pode ser um indício desta
crise do drama
47
que já se anunciava na Europa,
mas que, surpreendentemente, manifesta-se
nas bravatas de um autor como Qorpo Santo;
totalmente ignorado e fora do eixo da produção
teatral mundial. É possível que Qorpo Santo
tenha levado a sério as suas apologias quixotescas
e atirado pedras nas janelas do Teatro São Pedro,
onde ocorria o teatro que ele conhecia em sua
província e que deveria ser mais intragável” do
que aquele a que Ionesco não aceitava.
48
.
Assim como José de Alencar, as comédias
de Qorpo Santo procuram criticar a sociedade
de seu tempo. Alencar, pretendendo imitar a
46 ALENCAR, José de, Op.cit. p.47.
47 Peter Szondi const ata que as peças compost as com diálogos
trocados entre personagens, como numa conversação quotidia-
na, são incapazes de expressar as novas contradições da realida-
de. E localiza a crise da forma dramática muito antes, por volta
de 186, quando a crescente complexidade das relações sociais
já não cabe no mecanismo do drama absoluto que se est rutura a
partir das relações intersubjetivas dos personagens. FERNAN-
DES, Sílvia, Notas sobre Dramaturgia Contemporânea. In O Per-
cevejo, n. 9, Ano 8, 2. p. 26.
48 SENA, Antônio Carlos, Qorpo Santo – um Precursor. In Pro-
grama do Espetáculo do Clube de Cultura de Porto Alegre.
realidade, apresenta daguerreótipos morais
49
cristalizados e desbotados pela exacerbação de
suas teses, aos olhos daqueles que hoje retomam
sua dramaturgia. As teses de Qorpo Santo
também são exacerbadas, tão exageradas que se
tornam estapafúrdias e acabam por centrifugar
os signifi cados das palavras, tornando-as tão
leves que quase as esvazia. Qorpo Santo é um
verme que principiou a roer as sobrecasacas de
seu tempo e roeu as páginas, as dedicatórias
e mesmo a poeira dos retratos. Só não roeu
o imortal soluço de vida que rebentava, que
rebentava
daquelas páginas.
50
Décio Pignatari coloca que o autor
gaúcho:
pode ser tido por primitivo; se for,
não é do tipo ingênuo comum, pois em suas
peças é inequívoco o comando da meta-
linguagem, de alusão crítica à linguagem
romântica e ao teatro de costumes da
época. Dá a impressão de um teatro de
costumes que tivesse sofrido desregulagem
de registro: o resultado é um tônus geral
sinistro, entre metafísico e surrealista
(...).
51
49 Molière tinha feito a comédia quanto à pintura dos cost umes
e a moralidade crítica. (...)Mas esses quadros eram sempre qua-
dros e o espe ador vendo-os no teatro não se convencia de sua
verdade; era preciso que a arte se aperfeiçoasse tanto que imitas-
se a natureza;(...) É esse aperfeiçoamento que realizou Alexan-
dre Dumas Filho; tomou a comédia de cost umes de Molière, e
deu-lhe a naturalidade que faltava; fez que o teatro reproduzisse
a vida da família e da sociedade, como um daguerreótipo moral.
ALENCAR, José de, Op.cit. p.471.
5 ANDRADE, Carlos Drummond, Sentimento do Mundo.Rio
de Janeiro: Record, 1998. p. 146.
51 PIGNATARI, Décio, Qorpo Santo. In Contracomunicação.
São Paulo: Perspe iva, 1973. p. 121.
34
§11
Tomo como exemplo a peça Certa
Entidade em Busca da Outra. Este é um dos
textos mais convencionais de Qorpo Santo.
No início da peça, o monólogo do
velho Brás, instaura um nonsense
52
comparável às
anedotas contadas na Cena 8 pelas personagens
da peça A Cantora Careca de Eugène Ionesco
ou ao monólogo da personagem Lucky
em Esperando Godot de Samuel Beckett. O
monólogo escrito por Qorpo Santo consiste
num turbilhão de palavras que vão encadeando
idéias desconexas. Os disparates se sucedem,
revelando um pensamento confuso
53
que salta
de um assunto a outro, colocando num mesmo
saco a apresentação das personagens da peça,
problemas familiares, críticas ao governo,
passando pela defesa de teses sobre a Nação
e a Pátria, nalizando com uma evocação
apocalíptica da vingança do Supremo Arquiteto do
Universo que não tardará a tocar a trombeta fi nal.
Percebe-se um monólogo maçante,
conservador, recheado de intenções ideológicas
do autor e de sua sede de justiça e de moralidade.
A personagem expõe seus enunciados de
modo arbitrário que emperra a troca dialógica
e imobiliza o desenvolvimento da suposta
fábula que, aliás, nem chega ser defi nida pelo
dramaturgo.
54
52 “O deleite do nonsense diz Freud “tem suas raízes na sensação
de liberdade que experimentamos quando podemos abandonar a
camisa-de-força da lógica.” Apud ESSLIN, Martin, O Teatro do
Absurdo. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1968. p. 289.
53 Não se repara no fato de que a confusão tem um sentido posi-
tivo, é uma ação mental. (...) O confundir uma coisa com outra
é uma maneira de tomá-las intele ualmente, ist o é, de pensa-las.
Y GASSET, Jose Ortega, A Idéia do Teatro. São Paulo: Perspec-
tiva, 1978. p. 9.
54 FERNANDES, Sílvia, Op. Cit. p. 27.
Voltando à trama da peça Certa
Entidade...: ao evocar o Supremo Arquiteto
do Universo, aparece, sorrateiramente, a
personagem Satanás, que articula uma
negociação com o velho Brás – um tipo de
“O Fausto” de Qorpo Santo. Surge Micaela, a
taguarela, uma mulher vulgar, de recato ambíguo,
aparece como um empecilho para o pacto entre
Brás e Satanás. Após tentar seduzir Satanás ela
convida Brás para que se metam num quarto,
onde são trancados por Satanás que abandona a
cena de modo jocoso.
No segundo ato, Micaela e Brás,
trancados no quarto, arrombam a porta, derrubando
o cenário, rasgando o fi gurino e quebrando partes
do corpo, enquanto agridem-se mutuamente. Nisso
aparece Ferrabrás, o fi lho de Brás que vive falando
de suas namoradas e nega ser fi lho de Micaela.
Ao fi nal da peça, as personagens são praticamente
desmontadas em cena, numa briga entre Ferrabrás
e Micaela, que perde a cabeleira em cena. Restam
dúvidas sobre a consistência das personagens, o
que pode revelar a insignifi cância da vida daquelas
guras execráveis.
Qorpo Santo parece insatisfeito ao
terminar sua pequena obra, pois dá a impressão
de que deixa a peça inacabada, sugerindo
que os cômicos nada devem poupar para tornar
mais interessante e agradável o gracejo. Após o
encerramento do texto, Qorpo Santo, ainda
insiste para que os atores, no início da peça dêem
saltos, proferindo palavras sem nexo ao discurso,
mostrando a respeito de Brás algum desatinamento,
antes da entrada deste último.
§12
O Teatro do Absurdo procura construir
arcabouços lógicos que se confi guram em dramas
não dramáticos, mas o jogo de linguagem
35
proposto pelos dramaturgos do Absurdo é feito
de maneira racional.
Os confl itos da peça nada mais são
do que peripécias que viram acidentes, onde as
personagens se agridem com certa gratuidade.
Instaura-se um clima de violência entre as fi guras
em cena, que vivem um inferno desprovido de
coerência.
Qorpo Santo parece não estabelecer
sua lógica particular de maneira racional. Em
sua escritura, ele justapõe idéias que voam
de sua mente para a página num movimento
inacabado. A velocidade com que suas palavras
passam por sua mente sobrepuja a velocidade
de sua escrita. É a onipotência da imaginação
sobre a impossibilidade da concretização do
transcrever. Seu pensamento se confunde num
emaranhado de palavras que reúne sexualidade,
política, losofi a, criando um enciclopedismo de
lógica aparentemente antinatural.
55
É possível, portanto, deduzir que mais
do que o texto parece que Qorpo Santo, de
maneira inconsciente, interpunha entre ele e
a página impressa um fi ltro que agia sobre sua
memória deformando a sua escritura. Essa chave
de leitura remete continuamente a uma cultura
diversa da registrada na página impressa: uma
cultura oral.
56
55 Pretendeu-se que o homem primitivo era ilógico. Ist o parece
tolice quando o intento de const ruir a lógica, ao mesmo tempo
que fracassava descobria a impossibilidade e o caráter utópico
do pensamento lógico.(...) Ao nos darmos conta de que somos
muito menos lógicos do que reputávamos, perde o sentido en-
cerrarmos os primitivos no presumido manicômio que era a sua
falta de lógica. O pensamento humano nunca foi, é, nem será
genuinamente lógico, assim como nunca careceu de “alguma
lógica. Apud Y GASSET, Jose Ortega, A Idéia do Teatro. São
Paulo: Perspe iva, 1978. pp. .87-88
56 Cf. GINZBURG, Carlo, O Queijo e os Vermes: as idéias de
um moleiro perseguido pela inquisição. São Paulo: Companhia
das Letras, 26. p. 72.
Qorpo Santo, ao destruir a força
signifi cativa e metafórica de suas palavras,
encobre seu nome e sua obra com uma espessa
camada de ridículo; Qorpo Santo dilui-
se no meio de suas personagens grotescas,
ridículas, inautênticas que esbravejam protestos
desprovidos de sentido.
57
Qorpo Santo escreveu um texto de
modo sério, não o fez para fazer rir, mas pode
fazer rir, contudo, parece que ele não sabia
quando fez. Não tinha, como Ionesco e Beckett
tiveram, a intenção de induzir a perda do sentido
de suas palavras. O absurdo de Ionesco e Beckett
não está em enlouquecer cada vez mais, está em
tratá-lo como o normal.
57 Cf. AMOROSO, Maria Betânia, Pasolini e a Vanguarda. In
WATAGHIN, Lucia (org.), Brasil & Itália  Vanguardas. Cotia:
Ateliê Editorial, 23. p. 194.
37
Uma Ensiqlopedia de
Vanguardas
de leituras. Qualquer tentativa de rotular sua
dramaturgia torna-se ilusória, na medida em
que sua obra constitui um mosaico onde se
exibem, sem qualquer preocupação sistêmica ou
metodológica, elementos de ruptura
59
.
Suas comédias estão repletas de falas
inconclusas e de personagens que compõem
ambientações, onde o nonsense caracteriza
um universo proto-surrealista”. Qorpo Santo
transforma meros esboços do ser humano em
personagens que subvertem a dramaturgia
tradicional do século XIX; cria uma lógica
muito peculiar e de aspecto fragmentário,
possível de aproximar-se de algumas tendências
vanguardistas do fi nal do Século XIX e início do
Século XX.
59 MARTINS, Leda Maria, O Moderno Teatro de Qorpo San-
to. Belo Horizonte: Editora UFMG; Ouro Preto: UFOP, 1991.
p. 3.
§13
E
ncontram-se no teatro de Qorpo
Santo algumas características
de anti-romantismo, de
funcionalidade teatral da palavra,
de liberdade para o espetáculo, da criação de
personagens despsicologizadas, além da violenta
velocidade da ação. Mais ainda: é possível que,
embora se possa duvidar que Ionesco e Qorpo
Santo tenham escrito suas obras com o mesmo
grau de consciência, não pode ser esquecido o
fato de que enquanto um viveu em Paris, o outro
escreveu em Porto Alegre, Província de São
Pedro do Rio Grande do Sul, no século XIX.
Qorpo Santo escrevia textos que não
seriam publicadas no Século XIX. Tentou
dominar as tecnologias gráfi cas, em sua época,
e como um produtor gráfi co relativamente bem
sucedido comprou uma tipografi a para editar
seus escritos.
58
A escritura dramática de Qorpo
Santo pode proporcionar uma multiplicidade
58 Inst alou sobre a porta um caixote, em cujos lados recortara
as palavras TIPOGRAFIA QORPO SANTO e que enchia de
velas à noite, fazendo o anúncio brilhar na escuridão foi, pos-
sivelmente, o primeiro luminoso de Porto Alegre. AGUIAR,
Flávio,Op. Cit.p. 25.
38
§14
O fi nal do Século XIX foi pródigo em
dar nomes a seus movimentos literários, assim
conferindo um peso proporcional às diferenças entre
eles
60
, é sempre interessante verifi car na obra de
Qorpo Santo suas não-obrigatórias relações com
tais movimentos. Esta analogia possível entre
as vanguardas modernistas e a obra de Qorpo
Santo não tem a intenção de classifi car o autor
gaúcho nesta ou naquela tendência, pois isto já
foi realizado Eudynir Fraga e, anteriormente,
por Flávio Aguiar, que perceberam nas peças
do gaúcho um espectro de tendências que
podem ser complementares, divergentes e até
contraditórias.
O contato com a obra de Qorpo
Santo não precisa identifi car cada vanguarda
com suas respectivas características, afi nal,
isto seria uma conceituação inócua para este
trabalho. Contudo, a observação da obra de do
autor leva-me a entender o enciclopedismo de
Qorpo Santo como o potencial que possibilita
ao autor uma expressão multivanguardista. Um
autor que transpõe os limites das classifi cações
da vanguarda modernista do Século XX. Um
homem que não se decidia entre a aceitação ou
a repulsa do moderno
61
, ou seja, um homem que
viveu o confl ito entre o passadismo e futurismo.
Décio Pignatari acrescenta que as
peças de Qorpo Santo têm uma linguagem
pop, um vocabulário restrito, popular. As comédias
do autor são abertas e breves, são um convite à
6 Bradbury, Malcom e McFARLANE, James (org.),
Modernismo:guia geral 189-193. São Paulo: Companhia das
Letras, 1989. p. 166.
61 ASSIS BRASIL, Luiz Antônio de, Op. Cit. p. 165.
encenação inteligente
62
. As falas inconclusas, a
fragilidade no traço das personagens permitem
que seus corpos sejam despedaçados em cena,
numa violência libidinosa e indigente que pode
se moldar a uma multiplicidade de leituras.
Nesse sentido, a encenação do grupo
portoalegerense Depózito de Teatro aproxima-
se do que está sendo tratado nesta etapa do
trabalho, pois originou-se da pesquisa sobre
a presença, na obra de Qorpo Santo, do
surrealismo e de elementos do Manifesto
Antropofágico
63
lançado por Oswald de Andrade
na década de 1920. O grupo realizou um estudo
sobre dadaísmo, surrealismo, antropofagismo
e tropicalismo, para em seguida procurar um
corpo grotesco ou corpo surrealista para
abrigar os personagens solicitados pelo autor.
64
Como a companhia teatral de Porto
Alegre, também procurei perceber diálogos
entre algumas correntes artísticas do fi nal do
Século XIX e início do século XX com a obra
teatral de Qorpo Santo. Pretendi investigar
como a presença de elementos destas correntes
artísticas proporcionam uma multiplicidade de
leituras que sua obra nos possibilita através de
suas matrizes dramatúrgicas. Valendo-me da
vocação modernista da obra de Qorpo Santo,
detectada pelos autores citados acima, foi possível
aproximá-la de imagens para a confecção da
peça audiovisual que equivale a um dos capítulos
desta tese. A idéia aqui é perceber as possíveis
atmosferas desta dramaturgia para imaginar um
retrato audiovisual de Qorpo Santo.
62 PIGNATARI, Décio, Qorpo Santo. In Contracomunicação.
São Paulo: Perspe iva, 1971. p. 122.
63 Cf. ANDRADE, Oswald, A Utopia Antropofágica. São
Paulo: Globo, 1995. pp. 47-52.
64 Programa do Espetáculo Dr. QS – Quriozas Qomédias,
apresentado em Março de 27 no Espaço Cultural Semente
em Campinas.
39
§15
As diferentes percepções delirantes que
Qorpo Santo vislumbrou a respeito de suas realidades
criou um universo singular e paralelo, refl etindo
idéias e sentimentos destoantes da dramaturgia de
sua época. É possível querer enxergar as vanguardas
modernistas devoradas por Qorpo Santo, um autor
clandestino e sem nenhuma consciência de que sua
insignifi cância poderia antecipar a antropofagia
oswaldiana para a década de 1860. Isolado numa
Porto Alegre de sobrecenho carregado uma cidade
morta devido à Guerra do Paraguai, Qorpo Santo
vive obsessivamente, enfrenta confl itos pessoais
e sociais, transforma sua profunda melancolia
tropical
65
em uma mixórdia de textos criticados
por sua excessiva incomunicabilidade com seus
contemporâneos.
Eudinyr Fraga investiga a obra de
Qorpo Santo como antecipadora do Surrealismo
e do Teatro do Absurdo, aproximando mais
a obra do surrealismo, mesmo identifi cando
elementos do Teatro do Absurdo. É possível
concordar com Fraga. Todavia, Qorpo Santo
vislumbrou realidades e criou uma lógica
construindo arcabouços dramáticos que fl utuam
num universo paralelo.
Fraga, em um outro trabalho seu, este
sobre o Simbolismo no Teatro Brasileiro, coloca
que o movimento simbolista preparou um clima
propício aos subseqüentes grupos de vanguarda:
cubismo, futurismo, dadaísmo e surrealismo
66
;
Fraga também faz uma sistematização
sobre o teatro simbolista, listando algumas
características, que parecem interessantes:
65 AGUIAR, Flávio, Op. Cit. p. 5
66 FRAGA, Eudinyr, Op. Cit, p. 31.
- Inexistência da intriga tradicional,
onde os fatos se sucedem encadeando-se
harmonicamente, visando a narrar uma
história, substituída por uma atmosfera de
tensão e expectativa;
- Inexistência de caracteres precisos
e determinados, sem preocupação de
desenho psicológico e coerência interna;
- Indeterminação de tempo e de lugar,
inspirando-se muitas vezes, na alegoria;
- Criação de dois planos: um visível,
e outro, supra-real, que o circundaria, mas
que não fi caria claramente explicitado para
o público;
- Através da elaboração de uma
linguagem poética, repleta de sugestões,
ambigüidades e imagens visuais, o
espectador seria remetido de um plano a
outro, tornando-se ele próprio um intérprete,
por meio da sua sensibilidade aguçada pelas
correspondências e efeitos sinestésicos;
- A linguagem perdendo, portanto,
parte de suas características dramáticas,
adquire feição nitidamente lírica, do que
decorre um sentimento de profunda e
intensa poesia que envolve as personagens
e as situações, transformando-as num
todo signifi cante e autônomo, fechado
em si mesmo e que não corresponde
mimeticamente à realidade.
67
Todas estas características podem ser
encontradas nas peças de Qorpo Santo. Assim é
possível inferir que o autor antecipa-se também
ao Simbolismo
68
.
67 FRAGA, Eudinyr, Op. Cit.p. 56
68 O Manifest o Simbolist a data de 1886 e o marco inicial do
simbolismo no Brasil se dá em 1893 com a publicação do Missal
de Cruz e Souza. O teatro simbolist a no Brasil recebeu os ven-
tos simbolist as que perderam um pouco de suas cores primitivas
na longa viagem para além-mar. Duas peças teatrais são citadas
como obras primas: A Bela Tarde e A Casa Fechada, ambas de
Roberto Gomes. FRAGA, Eudinyr, O Simbolismo no Teatro Bra-
sileiro. São Paulo: Art & Tec, 1992.p.182-185.
40
§16
As peças de Qorpo Santo podem
funcionar como roteiros de encenação, também
como narrativas curtas, rápidas que podem ser
montadas episodicamente ou isoladamente,
de maneira efêmera. Veja-se o caso de Certa
Entidade em Busca de Outra ou Um Credor da
Fazenda Nacional: são peças curtíssimas, cuja
duração só com prodígios da direção poderá
ultrapassar meia hora.
69
Escritos relâmpagos,
como no teatro futurista
70
, onde a ênfase recai
sobre a brevidade, a velocidade – num espírito
semelhante à impaciência e sensação de
premência dos expressionistas.
Da mesma forma com que poeiras de
simbolismo e futurismo são perceptíveis na obra
do Qorpo Santo, também a atmosfera dadaísta
paira sobre suas peças. O autor pode ser Dadá, se
levarmos em conta que o acaso e a destruição das
tradições dramatúrgicas, advindos do movimento
dadaísta estão presentes em sua obra. Elementos
anti-ilusionistas, a falta de preocupação com o
psicologismo das personagens, a inexistência de
racionalização, a demolição e a ridicularização
do teatro bem feito do Século XIX encontram-
se nos textos de Qorpo Santo.
69 FRAGA, Eudinyr, Qorpo Santo: Surrealismo ou Absurdo.
São Paulo: Perspe iva, 1988. p. 6.
7 As melhores obras do teatro futurist a têm um valor durável
e consist iam em quadros ultracurtos, chamados de “sínteses” e
que não passavam de algumas linhas, no máximo uma ou duas
páginas. ESSLIN, Martin, O Teatro Modernist a: de Wedekind a
Brecht. In Bradbury, Malcom e McFARLANE, James (org.),
Modernismo:guia geral 189-193. São Paulo: Companhia das
Letras, 1989. pp. 453-454 apud McFarlane
§17
O expressionismo possível na obra de
Qorpo Santo coincide com algumas fi guras e
situações encontradas nas imagens produzidas
pelo gravurista paraense Oswaldo Goeldi
71
e
este com o pintor belga James Ensor
72
.
Na obra de Goeldi personagens
solitários vagam por ruas escuras, que podem
representar um lado sombrio de Qorpo Santo.
Álvaro Moreyra disse que Qorpo Santo escrevia
“verdadeiras fábricas de gargalhadas”, porém
há no escritor gaúcho certos aspectos que
revelam um lado obscuro, que pode prescindir
das risadas, ou pode fazer aparecer um riso
sardônico e conferir às peças de Qorpo Santo
uma proximidade com o terror. O riso, em
Qorpo Santo, tem pertinência, mas não chega
a ser compulsório e podemos afi rmar que pode
não aparecer enquanto riso de evasão, mas sim
enquanto riso de estranhamento ou provocar
constrangimento, por suas alusões infames e
grotescas.
A utilização comicidade em Qorpo
Santo pode ser uma via de fácil acesso para
aproximar sua obra do público. Contudo esta
71 Oswaldo Goeldi é nosso “verdadeiro expressionist a”, o
avesso” do modernismo solar. (...)Manuel Bandeira cunha a
expressão “panteísmo grotesco”. É perceptível em sua obra o di-
álogo com as correntes est ´ticas européias e americanas como
o expressionismo e o realismo eo surrealismo. Muitos artist as
contemporâneos tratam Goeldi como um ícone de nosso tempo
- ícone unânime do malogro modernist a, visionário da decadên-
cia urbana com suas paisagens trágicas. RUFINONI Priscila
Rossinetti, Oswaldo Goeldi: iluminação, ilust ração. São Paulo:
Cosac & Naify e Fapesp, 26. pp. 17-19.
72 James Ensor e Edvard Munch foram particularmente
importantes como precursores espirituais, visionários que per-
maneceram fi éis à sua crença de que a arte deveria expressar
a perturbação íntima diante de um mundo em que reinam a
incompreensão e a negligência. DEMPSEY, Amy, Est ilos, Es-
colas e Movimentos. São Paulo: Cosac & Naify, 23. p. 44 / p.
7-71.
41
comicidade não se sustenta em toda a extensão
de sua dramaturgia. Qorpo Santo pode trazer
o lírico, o erótico, o grotesco, o sardônico, a
melancolia, o ridículo....
Como se todas as peças de Qorpo
Santo fossem uma série de espetáculos sonhados
por seu autor, onde ele desempenha o papel de
protagonista. Qorpo Santo teria encenado a si
mesmo sob o traço de suas personagens, numa
espécie de autobiografi a mimetizada em sua
dramaturgia. É como se ele fosse um raisonneur
73
de si mesmo, defendendo teses através de suas
personagens.
Moreyra coloca Qorpo Santo ao lado
de Oswaldo Goeldi
74
, num mesmo volume, que
por sua vez me leva ou achega-se a James Ensor
75
.
Nas imagens de Goeldi, o teatro social também
aparece como um reino de aparências que teimam
em dissimular uma realidade incontornável,
fazendo da morte medida reveladora de todas
as hipocrisias
76
. Esta ambientação conduz às
73 Os autores do realismo teatral francês introduzem um rai-
sonneur - personagem típico da comédia realist a - que didatica-
mente expõe o pensamento dos autores com o objetivo de rege-
nerar a sociedade através de críticas moralizadoras a certos vícios
sociais. Cf. FARIA, João Roberto, O Teatro Realist a na França e
no Brasil. In O teatro na Est ante. Ateliê Editorial. p. 37
.
74 Osvaldo Goeldi quer bem toda a vida. Com melancolia.
De quando em quando com desespero. Just amente pode contar
traços Poe e Dost oievsky. Sabe como Carlitos é o mais puro dos
irmãos. Caminhamos ao longo do tempo, da simplicidade para a
simplicidade. Mas, durante a viagem, quantas complicações! No
m, rest am em nós, com um pouco de fadiga, algumas palavras.
Essas são as palavras de Osvaldo Goeldi, que nunca disseram
que os homens são maus. Não. Há homens desarmoniosos e de-
lirantes. E todos têm um inst ante de poesia, um momento de
beleza. MOREYRA, Alvaro, idem. pp.256-257.
75 Por todos os lados a morte most ra sua face agourenta. Uru-
bus, caveiras, guras sombrias e esqueletos nos lembram que te-
mos a sorte selada. Vaidade e arrogância são paixões vãs: a morte
tudo iguala e não há quem a ela escape. Também na obra de
Ensor – um artist a que Goeldi conhecia e respeitava – esque-
letos e mascarados põem frente a frente presunção e futilidade.
NAVES, Rodrigo, De Fora: Goeldi. In Coleção Espaços da arte
brasileira. São Paulo: Cosac & Naify Edições, 1999. pp.8-9.
76 NAVES, Rodrigo, Idem ibid.
pinturas do belga James Ensor que podem ser
apreciadas como um intrincado de máscaras
onde é possível encontrar um bando de bufões
77
análogo às personagens de Qorpo Santo e, assim,
explorar uma leitura visual, uma interpretação
para o teatro de Qorpo Santo.
77 Os bufões e bobos são as personagens da cultura cômica
da Idade Média.(...)Os bufões e bobos(...)não eram atores que
desempenhavam seu papel no palco(...)eles continuavam sendo
bufões e bobos em todas as circunst âncias da vida. BAKHTIN,
Mikhail Mikhailovich, A Cultura Popular na Idade Média: o
Contexto de François Rabelais. São Paulo: Editora da Universi-
dade de Brasília: Editora Hucitec, 1987. p. 7.
42
§18
Pode-se deduzir uma comédia de
costumes desestruturada. Percebe-se na obra do
autor de Um Credor da Fazenda Nacional um
monólogo de fl uxo tão rápido quanto possível, sobre
o qual o espírito crítico do sujeito não faz qualquer
juízo, não se embaraça em seguida com qualquer
reticência, e que é tão exatamente quanto possível o
pensamento falado.
78
Os textos de Qorpo Santo
estão fundados sobre meios de expressão
aparentemente irre etidos, e que só podem suscitar
irrupção por processos irracionais, do inconsciente,
do espontâneo, do fortuito ou do automatismo, fora
de toda sistematização e de toda codifi cação (Max
Ernst). Um estágio de incomunicabilidade
calcado no desgaste das suas possibilidades de
linguagem.
78 BRETON, André, Manifest o do Surrealismo (1924). Apud
NADEAU, Maurice, Hi ória do Surrealismo. São Paulo: Pers-
pe iva, 1985. p. 48.
§19
É possível verifi car que esta seqüência
de analogias da obra de Qorpo Santo com as
vanguardas modernistas tem como tecido a
conjunção “e...e...e...” Há nesta conjunção força
sufi ciente para sacudir e desenraizar o verbo ser.
79
Para descartar a expressão “ou isto ou aquilo”,
que estabelece que a obra de um autor é uma
coisa ou outra. Ela pode ser lida como uma coisa
e várias outras coisas, a partir da identifi cação
de elementos observáveis no interior dos objetos
estudados, que podem levar ao caminho criativo.
De onde vem? Aonde chegar? São questões
úteis. Não partir do zero, buscar começos, ou
fundamentos, implicam numa concepção da
viagem e do movimento a ser desenvolvido.
Inverter, portanto a linha do tempo
para induzir que os ismos modernistas, como o
surrealismo e o futurismo, por exemplo, sirvam
como fonte de inspiração para a transcriação de
uma dramaturgia teatral para outra dramaturgia
audiovisual.
79 DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Felix, Introdução: Ri-
zoma. In Mil Platôs (vol. 1). Rio de Janeiro: Editora 34, 1995.
p. 37.
43
§20
Dentre as 17 peças que compõem a
obra dramatúrgica do gaúcho José Joaquim
de Campos Leão – auto-denominado Qorpo
Santo, é possível perceber certa noções
autobiográfi cas
80
do dramaturgo que incluem
referências ao II Império e à Província do Rio
Grande. As peças teatrais encontram-se no
volume IV de sua Ensiqlopedia ou Seis Mezes
de uma Enfermidade, uma publicação folclórica,
impressa com problemas de revisão ortográfi ca e
ausência de planejamento gráfi co
81
, ou seja, uma
escrita primitiva, rústica.
O naturalista francês Auguste de Saint
Hilaire
82
que esteve na segunda década do século
XIX em Porto alegre, publicou um livro sobre o
Rio Grande do Sul. Lá ele fala da rusticidade
do gaúcho. Uma rusticidade que o gaúcho até se
vangloria disso, de ser superior ao tempo, mas na
verdade sente frio como qualquer outro.
83
8 A principal fonte a respeito de sua vida é a obra que im-
primiu a suas expensas: a famigerada ou famosa Ensiqlopedia.
Nela reproduziu inúmeros textos de cunho autobiográfi co (...).
AGUIAR, Flávio, Op. Cit.p. 33.
81 Cf. AGUIAR, Flávio, Op. Cit. pp 36-37.
82 SAINT-HILAIRE, August e de, Viagem ao Rio Grande do
Sul (182-1821). São Paulo : Comp. Ed. Nacional, 1939.
83 Da entrevist a realizada em 17 de Julho de 27, com Luiz
Antônio de Assis Brasil, autor do romance Cães da Província.
Assis Brasil considera Porto Alegre
uma:
Cidade dos apelidos: o Velho da
Matraca, o Cabra-roxa, o Mal-acabado, o
Chico da vovó – este, célebre poeta - , o
Chaves-dos-óculos, o Barriga-me-dói, o
Bunda-amorosa, o José-mulher, o Toma-
largura, o Corre-com-o-saco, o Nariz-de-
papelão, o Pão-de-rala, o Trabuco, o Vareta,
ninguém escapa. Nem governadores-gerais
e presidentes: Lentilha, Diabo-coxo, D.
João Quinto, Sinhá-rosa, Cascudo.
Toda essa gente foi retratada pelo
artista Luiz Terragno, grande na arte
fotográfi ca, estabelecido na esquina das
ruas do Rosário e da Alegria, cuja grande
ciência consiste em botar seus modelos
rigidamente sentados, a cabeça segura
por duas hastes de ferro, ou então de pé,
a mão pousando sobre uma pilha de livros
encadernados; ali fi cam um tempo enorme
debaixo do sol fi ltrado com doçura por
uma chapa de vidro fosco, num intuito de
juntar à beleza a técnica mais esmerada,
como se faz em Paris.
84
Qorpo Santo, que também foi um tipo
curioso da cidade, pode ter sido fotografado por
84 ASSIS BRASIL, Luiz Antônio de, Cães da Província, p. 16
Pistas para uma Posível
Biografia Fiqsional
44
Luiz Terragno
85
, referido por Assis Brasil em
seu romance Cães da Província, que tem como
uma das personagens protagonistas o autor da
Ensiqlopedia.
José Joaquim de Campos Leão – Qorpo Santo
Provavelmente fotografado por Luís Terragno
(sem data)
85 Luiz Terragno, italiano, , foi um dos fotógrafos pioneiros
do Rio Grande do Sul. Teria chegado a Porto Alegre em 1853
e sua carreira est endeu-se até meados dos anos 188.(...) É de
autoria de Terragno uma série de retratos tomados entre 1865 e
1867 de personagens envolvidos na Guerra do Paraguai, como o
imperador D. Pedro II e vários soldados paraguaios feitos prisio-
neiros em Uruguaiana.´(...) É possível que seu último endereço
tenha sido o da Rua General Câmara, 46. Cf. KOSSOY, Boris,
Dicionário Hist órico-Fotográfi co Brasileiro. São Paulo: Inst ituto
Moreira Salles, 22. p. 37-38.
§21
Uma fotocópia da certidão da
Irmandade da Santa Casa de Misericórdia de
Porto Alegre certifi ca que José Joaquim de Campos
Leão Corpo Santo:
Foi sepultado em 02 de maio de
1883. Branco, casado, teve como causa
mortis”, tísica pulmonar. Foi sepultado no
Cemitério da Irmandade da Santa Casa
de Misericórdia, na sepultura nº 29 de
entre muros, no 6º quadro, após ter sido
transportado no 1º carro.
Esta cópia de certidão, porém, diz
que, nesta data, Qorpo Santo possuía 50 anos
de idade e em outra referência sugerem que sua
data de nascimento pode ter sido em 19 de abril
de 1829, na Vila do Triunfo, e sua morte ocorreu
em Porto Alegre, em 1º de maio de 1883
86
.
De origem incerta, não interessa aqui
verifi car a veracidade desta certidão, mas sim
levantar uma possível biografi a ccional sobre
Qorpo Santo. Por exemplo, o próprio Qorpo
Santo em sua Ensiqlopedia escreve que:
A última capa publica uma
xilogravura, enquadrada numa cercadura
de vinhetas. Dita xilogravura representa
uma capela mortuária, na fachada da qual
se lê: “S [UBIU] AO CEO EM 7 DE
JUNHO 1863”. Nas portas da capela:
“C.S.A.S.J. de L.”
Ou seja, o próprio autor propõe uma
morte fi ccional para si mesmo.
86 Teatro Completo de Qorpo Santo, publicado pelo Serviço
Nacional de Teatro, da Fundação Nacional de Arte, em 198.
45
§22
Para começar a tatear pistas para
uma fi cção biográfi ca sobre Qorpo Santo,
uma referência utilizada foi o romance Cães
da Província, de Luiz Antônio de Assis Brasil.
A leitura deste romance levou-me a procurar
seu autor e realizar uma entrevista, quando foi
possível esclarecer alguns pontos sobre a vida do
dramaturgo do Século XIX. A carga fi ccional do
romance, possibilita a transformação do Qorpo
Santo histórico em Qorpo Santo fi ccional.
Na entrevista, os fatos foram relatados
através da memória de um escritor gaúcho, que
teve contato com o universo de Qorpo Santo;
que acompanhou as etapas do processo de resgate
da obra de Qorpo Santo; assistiu a primeira
montagem de suas peças, dirigidas por Antônio
Carlos de Sena, no Teatro do Clube de Cultura.
Além disso, Assis Brasil conheceu uma
neta de Qorpo Santo e também é neto de um
homem que foi contemporâneo de Qorpo Santo.
O avô de Assis Brasil - um antepassado pra ele -
era metido a poeta, mas referia-se a Qorpo Santo
como um pseudo-poeta e nunca falou em peças de
teatro. Esse avô de Assis Brasil falava do Qorpo
Santo nestes termos: Ah! Tinha um louco aqui da
cidade, que subia pra casa dele colocando uma escada.”
§23
Na época do Qorpo Santo, Porto Alegre
tinha por volta de 14000 habitantes. E Qorpo
Santo conhecia e era conhecido de todos.
Achylles Porto Alegre em seu Através
do Passado escreve que Qorpo Santo:
Era alto, magro, moreno, de uma
palidez de morte. Usava cabeleira comprida
como os velhos artistas da Renascença.
Morava, nos últimos tempos, na esquina
da Rua dos Andradas com a Ladeira,
onde está agora o Metrópole Restaurant
que, para ser o que é hoje passou por uma
completa transformação.
87
Porto Alegre prossegue:
Era todo metido a aparecer nos
jornaes, ainda mesmo que a sua colaboração
custasse dinheiro. O que queria era ver
o seu nome em letra de fôrma. Era uma
mania como outra qualquer.
88
87 PORTO ALEGRE, Achylles, Através do Passado. Porto
Alegre: Livraria Globo, 192. p. 31.
88 PORTO ALEGRE, Achylles, Op. Cit.p. 95.
Dona Fulana de qampos Leão:
bisneta de Qorpo Santo
46
O velho e feio prédio que pertenceu
a Qorpo Santo, cava onde hoje é o palacete
Chaves. Ele não era um homem pobre. Sua casa
cava na esquina da Rua dos Andradas, conhecida
como Rua da Praia com a Rua General Câmara,
conhecida como Rua da Ladeira, a mesma rua
do Teatro São Pedro
89
.
A casa de Qorpo Santo em Porto Alegre
já foi demolida, mas ele tinha um sobrado ali, e
era proprietário de mais quatro casas, subindo a
General Câmara.
Eram mesquinhos sobrados com
duas sacadas verdes, tendo ao meio em
letras grandes, os dois nomes Corpo Santo
(...) era o nome de um velho professor: José
Joaquim Leão de Corpo Santo, actualmente
89 (...)o edifício do teatro São Pedro. Aquele desenho sofi i-
cado, arcadas, ornamentos triangulares ao gost o francês. ASSIS
BRASIL, Op. Cit. p. 164.
de memória tão ridicularisada pelos
intelectuaes. Todavia, antes do desequilíbrio
mental de que foi víctima, Corpo Santo foi
homem de certo valor e representação.
90
E o Aníbal Damasceno Ferreira relata
um depoimento de uma pessoa que esteve na
casa do Qorpo Santo e se perdeu lá dentro da
casa e não achava a saída. Passou momentos de
terror. Era um tipo assim, um moleque que foi
levar um recado, alguma coisa assim.
91
Muitos anos depois, sob o mesmo
tecto do sobrado, onde Qorpo Santo,
com espírito crepuscular, escreveu as suas
célebres insânias, funccionou a sede da
sociedade de lettras Ensaio Literário(...)
92
9 PORTO ALEGRE, Achylles, Op. Cit. p. 31.
91 Da entrevist a realizada em 17 de Julho de 27, com Luiz
Antônio de Assis Brasil.
92 PORTO ALEGRE, Achylles, Op. Cit.p.94.
Teatro S. Pedro, Rua General Câmara da Praça da Matriz - Porto Alegre entre 1870-1890.
In PESAVENTO, 49
47
§24
Qorpo Santo, até as encenações de
Antônio Carlos Sena, fora algum círculo
muito restrito de uns poucos intelectuais, era
desconhecido. A partir destas encenações passou
a ser conhecido. Surgiram polêmicas entre Janer
Cristaldo e Guilhermino César (crítico gaúcho
mais antigo e respeitado) e aqui e ali surgiram
alguns interesses. Começaram a publicar
alguma coisa, de tal maneira que QS não fi cou
esquecido, mas aquele momento passou e depois,
digamos, as pessoas do ramo conheciam e de vez
em quando encenavam, até que foi publicado
o romance Cães da Província em 1987. Então
houve um outro renascimento, muita gente se
interessou. Eurydice Silva Filho, que vive nos
EUA, escreveu uma tese sobre o Qorpo Santo.
Quando Assis Brasil escreveu Cães
da Província, não tinha muitas fontes. Tinha
fundamentalmente o livro do Guilhermino
César (Qorpo Santo – Teatro Escolhido), o qual
traz no início uma proposta de biografi a. Foi o
que ele conseguiu na época e não existia mais
nada sobre aquilo. Depois saiu um estudo do
Flávio Aguiar, mas Assis Brasil fez pesquisas
em arquivos para escrever o romance, que tem
muito de fi ccional.
Quando o romance foi publicado, em
1987 ou 1988, uma senhora telefonou para Assis
Brasil e disse:
- Meu nome é Fulana de Campos
Leão.
- Essa Senhora. deve ser parente do
Qorpo Santo.
Ela disse: a minha mãe é neta do
Qorpo Santo, Dona Nadir de Campos Leão.
Assis Brasil relata que era uma senhora
com seus 90 anos. Não era uma pessoa simplória,
não. Ela ofereceu café e conversou com o autor.
Ela disse algumas coisas sobre Qorpo Santo:
Olha! Eu não o conheci, mas a
minha avó eu conheci. Dona Inácia do
Qorpo Santo. Quando eu a conheci ela
tinha muita idade. Ela era uma velhinha
muito simpática, ensinava os netos a fazer
renda de bilro.
Sobre Qorpo Santo, ela disse que:
Um dia ele fi cou louco e expulsou
todo mundo de casa, exceto um fi lho, que
eu (Assis Brasil) não sabia que existia esse
lho, que era o pai dessa senhora. Parece
que chamava Francisco. QS expulsou de
casa a mulher e as três fi lhas. Aí ela disse
que QS fi cou com o fi lho, o cocheiro e o
cozinheiro.
Algumas coisas que Qorpo Santo
escreve na famosa Ensiqlopedia, denotam bem o
que ele quis dizer: houve um momento da minha
vida em que eu me afastei de todas as mulheres e
adotei o nome Qorpo Santo.
Assis Brasil complementa da seguinte
maneira:
Se tu me perguntares o que ele era.
Se era louco ou não. Aí que é o problema.
Impossível dizer. Em primeiro lugar dizer a
distância e dizer de uma forma categórica.
Eu diria assim: ele seria um esquisitão. Um
sujeito dado a manias. De fato, a gente
lendo a Ensiqlopedia, realmente é uma
loucura aquilo.
93
93 Da entrevist a realizada em 17 de Julho de 27, com Luiz
Antônio de Assis Brasil.
49
Uma Posibilidade de
funsionamento da Masa
Cinzenta de Qorpo Santo
11 horas; morreu em Porto Alegre a 1º de maio
de 1883. Inquieto, de uma sensibilidade doentia,
atormentado pelos problemas religiosos, sexuais,
sociais, políticos e morais, sobre o apelido que
acrescentou ao nome, diz-nos ele próprio:
“Se a palavra corpo-santo foi-me
infiltrada em tempo que vivi completamente
separado do mundo das mulheres,
posteriormente, pelo uso da mesma palavra
hei sido impelido para esse mundo.(...)
95
Obcecado pela idéia fixa da santidade;
tendo sofrido em menino, aos três anos, profundo
choque moral; crendo-se perseguido pelas
autoridades provinciais; reconhecida pela Justiça
a sua insanidade mental, com a nomeação de
um curador; vendo-se nesse desamparo, o pobre
homem voltou-se para dentro de si mesmo,
refugiou-se na literatura, e escreveu então uma
autobiografia lancinante.
95 LEÃO, José Joaquim de Campos (Qorpo Santo), Teatro
Completo. Rio de Janeiro: Serviço Nacional de Teatro Funda-
ção Nacional de Arte, 198. p. 16
§25
A
pesar de inúmeros autores
94
terem se aventurado sobre
sua obra, acho importante
apresentar rapidamente o
Qorpo Santo:
José Joaquim de Campos Leão,
conhecido como Qorpo Santo, nasceu na
Vila do Triunfo, Província do Rio Grande, às
margens do Rio Jacuí, em 19 de abril de 1829, às
94 Companhias de Teatro, Diretores de Teatro e Cineaas:
Teatro do Clube de Cultura (Antônio Carlos de Senna), Boa
Companhia (Verônica Fabrini), Cia São Jorge de Variedades
(Georgete Fadel), Cia. Bonecos Urbanos (Carlota Joaquina),
Depozito de Teatro (Roberto Oliveira), Teatro Giramundo (Ál-
varo Apocalypse), Luís Carlos Maciel, Haroldo Marinho Bar-
bosa, Eduardo Escorel - escritores e poetas: Luiz Antônio de
Assis Brasil, Carlos Drummond de Andrade, Álvaro Moreyra,
Achylles Porto Alegre; - pesquisadores e jornalias que cons-
truíram uma fortuna crítica sobre o autor: Gulhermino César,
Flávio Aguiar, Eudynir Fraga, Denise Espírito Santo, Aníbal
Damasceno Ferreira, Yan Michalski, Dario de Bittencourt, Julio
Petersen, Júlio Zanotta Vieira, Janer Crialdo, Décio Pignatari,
Fauo Fuser, João Roberto Faria, Leda Maria Martins, Eurídi-
ce Silva, Frank Hines, Lothar Hessel, Múcio Teixeira, Olyntho
San Martin, Cláudio Heeman, Roque Callage (conhecido como
passadia), Athos Damasceno Ferreira, Aldo Obino, Luís Au-
guo Fischer, Lúcia Carvalho Mello, João Batia Marçal, Luis
Araújo Filho.
50
Como Jarry (1873 1903), criador da
Patafísica
96
, viria a fazê-lo depois, o dramaturgo
rio-grandense acomodava-se entre os extremos
realidade e ficção, lucidez e loucura, pondo a
serviço da ação uma extraordinária capacidade
inventiva cultivada em regiões abissais, onde as
contradições desaparecem. Na obra de Qorpo
Santo é perceptível uma predominância do modelo
interior sobre o exterior, o aprofundamento da
relação entre a arte e o mundo dos loucos, dos
primitivos e da arte infantil”.
96 A patafísica é a ciência das soluções imaginárias que con-
fere simbolicamente aos contornos as propriedades dos objetos
descritas pela sua virtualidade. JARYY, Alfred, Gees et opinions
du Doeur Fauroll. Paris: Fasquelle, 1968.
§26
A produção dramatúrgica de Qorpo
Santo está localizada em Porto Alegre, isolada
produção teatral brasileira do século XIX. Qorpo
Santo, talvez sem ser percebido e sem perceber,
constrói uma dramaturgia aberta, incompleta,
inacabada, despedaçada, que permite e até exige
a complementação de um encenador.
É como se encontrássemos numa
escavação arqueológica fragmentos de peças
teatrais do período. O dramaturgo gaúcho
corrige-se no momento da impressão de seus
textos, visto que as peças foram escritas em 1866
e sua impressão só se concretizou em 1877.
Flávio Aguiar coloca que Qorpo Santo
escrevia os pequenos textos que mais tarde
reuniria na Ensiqlopedia e que admitia estar
na verdade, perdendo tempo
97
. Sua verborragia
se desenha em milhares de palavras que
permeavam sua imaginação, como uma espécie
de compensação.
98
Aguiar coloca que QS:
Fragmentou sua visão das coisas e do
mundo nos milhares de pequenos verbetes”(...).
Cada um desses “verbetes”, que se apresentam
misturados temática e formalmente, tirou do
conjunto da Ensiqlopedia qualquer caráter
narrativo. Ou seja: ela não possui princípio,
nem meio, nem fim, no sentido de uma sucessão
organizada e necessária de textos.
99
97 AGUIAR, Flávio, Os Homens Precários: inovação e conven-
ção na dramaturgia de Qorpo Santo. Porto Alegre: Inituto Ea-
dual do Livro, 1975. p. 69.
98 LEÃO QORPO SANTO, Jozé Joaquim de Qampos, En-
siqlopedia ou Seis Mezez de Huma Enfermidade (II, 12, 2, 4º.),
apud AGUIAR, Flávio, idem ibid.
99 Idem ibid.
51
É possível comparar os verbetes que
Qorpo Santo escreveu em sua Ensiqlopedia
com instantâneos fotográficos, que foram
montando uma obra de natureza fragmentária.
As peças teatrais, que constam do volume IV
da Ensiqlopedia, foram escritas entre Janeiro e
Junho de 1866. São textos e personagens que
se apresentam como unidades reorganizáveis
e podem possuir um caráter fotográfico
100
. As
personagens da dramaturgia qorposantense
podem ser entendidas como verbetes de sua
Ensiqlopédia.
Isto é perceptível na peça A
Impossibilidade da Santificação; ou a Santificação
Transformada. As falas das personagens
estruturam-se como verbetes da Ensiqlopédia,
ou seja: as personagens vão aparecendo em cena
e suas falas podem ser consideradas uma espécie
de significação de cada personagem, sobretudo
na última cena da peça, na qual aparecem nada
menos do que 12 personagens, que nem sequer
haviam sido incluídos nas cenas anteriores. É
como se fosse uma lista de personagens que vão
sendo definidos, de acordo com o que falam.
Estes pedaços de textos de Qorpo Santo, que
pretendem compor, de modo peculiar, um
daguerreótipo moral
101
da sociedade gaúcha de
seu tempo, podem ser reordenados gerando
novas dramaturgias.
Aguiar considera, ainda, a obra de QS um
passatempo enganador, aqui e ali seus pequenos
textos assumiam um comportamento errático,
desviando-se da rota original e provocando
pequenas explosões de um outro sentido.
102
A
1 AGUIAR, Flávio, Op. Cit., p. 7.
11 (...) o “daguerreótipo moral”, io é, a peça que fotografa a
realidade, mas adicionando ao retrato a pincelada moralizadora.
FARIA, João Roberto, Idéias Teatrais: o século XIX no Brasil. São
Paulo: Perspeiva: FAPESP, 21. p.13.
12 AGUIAR, Flávio, Op. Cit., p. 71.
peça Certa Entidade em Busca da Outra, constitui
um desses exemplos. O texto de Qorpo Santo
coloca em cena as relações entre rascunhos de
personagens que buscam suas identidades ainda
incompletas, apoiando-se na perseguição de uma
personagem pela outra. Parafraseando Artaud,
os temas das peças de Qorpo Santo são vagos,
artificiais. O que lhes vida é o desabrochar
103
de conflitos essenciais, que se desencadeiam
descontinuamente, interrompendo muitas vezes
um pensamento que se desenvolve através da
ação dramática.
13 ARTAUD, Antonin, O Teatro e seu duplo. São Paulo: Ed.
Max Limonad Ltda., 1987. p. 72.
53
A Enciclopédia escrita por Qorpo
Santo e impressa em sua tipografia
105
, reúne,
além de sua dramaturgia, todo um projeto
de pensamento sobre o mundo. Qorpo
Santo ambicionava realizar uma reforma em
inumeráveis aspectos da vida de sua sociedade,
pátria e até da humanidade. Qorpo Santo:
produziu numerosos trabalhos sobre
todas as ciências, compondo uma obra de
mais de 400 páginas, além de interpretar
diversos tópicos do Novo Testamento de N.
S. Jesus Cristo, que até aos próprios Padres
ou sacerdotes pareciam contraditórios!
106
Uma obra maior do que suas
possibilidades, um projeto que abrangia:
O estudo da História Universal;
da Geografia; da Filosofia, da Retórica
- e de todas as outras ciências e artes
que o podiam ilustrar. Estudou também
um pouco de Francês, e do Inglês; não
tendo podido estudar também - Latim,
15 Em 1877, conforme termo de responsabilidade exiente
no Arquivo da Prefeitura Municipal de Porto Alegre, abria-se
na cidade uma tipografia, à Rua General Câmara. (...) O certo
é que a Tipografia Qorpo Santo foi mesmo inalada naquela
rua, e do seu prelo saíram, ao que sabemos, os fascículos de uma
publicação que o autor chamou de Enciclopédia ou Seis Meses de
uma Enfermidade. Idem Ibid.
16 Ato Primeiro Cena Primeira da peça Hoje sou um; e
amanhã sou outro, pág. 115.
§27
O
fascículo I da Enciclopédia ou
Seis Meses de uma Enfermidade
traz a seguinte informação:
“JOZÈ JOAQUIM DE
QAMPOS / LO QORPO SANTO.
/ ENSIQLOPÉDIA: / OU / SEIS
MEZES DE UMA ENFERMIDADE
/ VOLUME 2. / PENSAMENTOS EM
100 PÁJINAS DE DUAS COLUNAS
DE 60 LINHAS CADA HUMA, /
DE VINTE QUADRATINS CADA
LINHA RÉIS...5$000. / PRODUÇÕES,
COM RARAS EXCEPÇÕES DO
DE SETEMBRO / DE 1862, ATÉ O
DE JUNHO DE 1864, NA VILA
/ DO TRIUNFO. // TIPOGRAFIA /
QORPO SANTO. / Porto Alegre, Maio
2 de 1877.”
104
14 CÉSAR, Guilhermino, O criador do teatro do absurdo.
In Qorpo Santo: José Joaquim de Campos Leão – Teatro Completo.
Rio de Janeiro: Serviço Nacional de Teatro, Fundação Nacional
de Arte, 198. p. 4.
O Rei da Confuzão
54
conquanto a isso desse começo, por
causa de uma enfermidade que em seus
princípios o assaltou. Lia constantemente
as melhores produções dos Poetas mais
célebres de todos os tempos; dos Oradores
mais profundos; dos Filósofos mais sábios e
dos Retóricos mais brilhantes ou distintos
pela escolha de suas belezas, de suas figuras
oratórias!
107
Décio Pignatari acha que o autor
gaúcho tinha uma telha a menos (ou a mais)
108
;
João Roberto Faria considera Qorpo Santo o
louco manso dos pampas”
109
. Não interessa aqui
tratar da loucura
110
de Qorpo Santo, mas acredito
ser interessante tentar imaginar o funcionamento
da massa cinzenta do gaúcho escritor. Como
seria o pensamento deste homem de produção
obsessiva?
Como os dois alienistas do romance
de Luiz Antônio Assis Brasil quiseram abrir
a massa cinzenta
111
de Qorpo Santo, também
eu sempre me interroguei por que a obra
teatral de Qorpo Santo, à primeira vista, não
se comunica diretamente com um expectador/
17 Idem ibid.
18 PIGNATARI, Décio, Qorpo Santo. In Contracomunicação.
São Paulo: Perspeiva, 1971. p. 12.
19 FARIA, João Roberto, O Teatro na Eante. Cotia: Ateliê
Editorial, 1998. p. 77.
11 Io é, loucura exie com relação à razão, mas toda a
verdade dea consie em fazer aparecer por um inante a lou-
cura que ela recusa, a fim de perder-se por sua vez uma loucura
que a dissipa. (...) Pois se exie razão é juamente na aceita-
ção desse círculo contínuo da sabedoria e da loucura, é na clara
consciência de sua reciprocidade e de sua impossível partilha
FOUCAULT, Michel, Hiória da Loucura. São Paulo: Editora
Perspeiva, 24. p.33.
111 (...)Você veja as insanidades que ele tem feito, malbara-
tando os bens, afugentando os alunos, entrando em casa pelas
janelas e não pelas portas, o que você quer mais? Se abríssemos
sua massa cinzenta cerebral encontraríamos ali a causa de tudo.
ASSIS BRASIL, luiz Antônio de, Cães da Província. 7ª. Edição.
Porto Alegre: Mercado Aberto, 1997. p. 92
leitor desavisado? O conjunto das peças do
autor traça um caminho aparentemente linear e
revela a inteligência
112
do autor. Em muitas delas,
no entanto, percebemos becos e ruas percorridas
sem continuidade e sem saídas.
112 Mas não no sentido que você pensa, em inteligência como
sinônimo de sabedoria; falo de inteligência como capacidade de
raciocínio e de atenção nas coisas, não em conhecimento pro-
fundo ou em particular agudeza de espírito. Idem, p. 91.
55
§29
No Segundo Ato da peça Um Parto, a
personagem Ruibarbo verbaliza como poderia
ser o funcionamento da escrita de Qorpo Santo
e um pouco de seu pensamento sobre a reforma
ortográfica
115
que propõe em sua enciclopédia:
RUIBARBO - Eu me explico:
Quando escrevo, penso, e procuro conhecer
o que é necessário, e o que não é; e assim
como, quando me é necessário gastar
cinco, por exemplo, não gasto seis, nem
duas vezes cinco; assim também quando
preciso escrever palavras em que usam
letras dobradas, mas em que uma delas é
inútil, suprimo uma e digo: diminua-se
com esta letra um inimigo do Império do
Brasil! Além disso, pergunto: que mulher
veste dois vestidos, um por cima do outro!?
Que homem, duas calças!? Quem põe dois
chapéus para cobrir uma cabeça!? Quem
usará ou que militar trará à cinta duas
espadas! Eis por que também muitas vezes
eu deixo de escrever certas inutilidades!
Bem sei que a razão é - assim se escreve no
Grego; no Latim, e em outras línguas de
que tais palavras se derivam; mas vocês que
querem, se eu penso ser assim mais fácil
e cômodo a todos!? Finalmente, fixemos a
nossa Língua; e não nos importemos com
as origens!
Para João Roberto Faria, o teatro de
Qorpo Santo é o teatro do homo ludens, isto
115 Em sua reforma ortográfica da língua portuguesa simpli-
ficava a escrita de tal modo que cada fonema articulado sonora-
mente corresponderia a um único símbolo gráfico. Era o fim dos
“SS”, RR”, “Ç e outros desperdícios de tinta. Daí lhe viera a
grafia especial da alcunha (Qorpo Santo) e do nome Jozé Joaqim
de Qampos Leão. AGUIAR, Flávio, Op. Cit.p. 25.
§28
Uma visão abrangente das peças de
Qorpo Santo permite perceber o emaranhado
em que possivelmente se encontrava a mente do
dramaturgo. Um espírito criador que avançava
em uma frente ampla e deixava muitas opções
em aberto. Com um ponto de vista do conjunto
das peças de Qorpo Santo, sem focalizá-las de
maneira isolada, é possível elaborar a idéia de um
pensamento emaranhado. Uma efervescência
de idéias criativas, nem sempre acabadas, que
conferiam ao autor uma rapidez na escritura,
haja vista que suas dezessete peças foram escritas
nos primeiros seis meses de 1866.
Qorpo Santo escrevia suas peças em
um dia, ou em uma noite, sendo que as peças
Lanterna de Fogo e Certa Entidade em busca de
Outra, por exemplo, foram escritas no dia 10 de
Maio daquele ano. É como se o autor tivesse
passado um tempo em devaneio e como um
reformador social
113
, desejando igualar-se aos
comediógrafos brasileiros oficiais do Século
XIX
114
.
113 É quando sua mente começa a trabalhar com mais ener-
gia; é quando descobre em si mesmo, nos deroços morais do
professor impossibilitado de ter alunos, um reformador social
em germe. CÉSAR, Guilhermino, op. cit., p. 25.
114 (…)entre 1855 e 1865, em que a alta comédia foi a meta
de alguns escritores brasileiros, desejosos de atribuir ao teatro
o papel de reformador da sociedade. FARIA, João Roberto, O
Teatro na Eante. Cotia: Ateliê Editorial, 1998. p. 76.
56
é, um teatro que valoriza o jogo dramático, a
representação, o trabalho do ator.
116
Desta forma
é possível inferir que em Qorpo Santo a escritura
aparece como um jogo cujas regras vão sendo
formuladas à medida que progredimos, e uma visão
clara de seu uso só surgirá depois de terminada uma
busca criadora.
117
.
Qorpo Santo, um tipo folclórico
de Porto Alegre, começou a escrever peças
sem nem cabeça, inventando um mundo
ideal, quixotesco. Qorpo Santo viveu sua vida
como ela poderia ter sido. Junto com sua obra
surgiram histórias contadas que acabaram
conservadas pela tradição oral, o que se refletiu
em suas peças, por meio de uma linguagem
direta, onde a retórica prima pela paródia. Em
sua Enciclopédia, uma espécie de caricatura
verbal impressa, Qorpo Santo fazia uma
inversão de tudo, criticava instituições, religião,
o intrincado da lei, demolindo um universo com
um turbilhão de palavras do qual não conseguia
se desvencilhar.
116 FARIA, João Roberto, op. cit., p. 87
117 EHRENZWEIG, Anton, A ordem oculta da arte: um
eudo sobre a psicologia da imaginação artíica. Rio: Zahar
Editores, 1969. p. 52.
§30
É possível afirmar que Qorpo Santo
roubou de suas personagens o conteúdo das falas,
permitindo o esvaziamento de seus significados
e relegando o texto à sua forma. Isto faz com
que o desencadeamento dos conflitos, nas peças
de Qorpo Santo, não esteja ligado ao conteúdo
das falas, mas sim a outros níveis de linguagem,
quer seja dentro da própria estrutura idiomática,
atingindo profundamente sua dramaturgia,
expressando um automatismo na escrita que
constrói personagens e narrativas, onde vários
textos podem acontecer, simultaneamente.
Parte II
Para juntar os Pedasos do Qorpo Santo
59
§31
A
proposta de construir um
pensamento-visão de Qorpo
Santo pode ancorar-se na
idéia de que seu processo
criativo funcionaria como um fluxo descontínuo
de imagens episódicas, ordenado por
acontecimentos que se desenham num devaneio
puntiforme e linear, cujo ponto de partida se
perde na medida em que nos afastamos dele.
Sua linearidade desaparece dando lugar a uma
seqüência de imagens justapostas numa cortina
de retalhos.
O modo proposto para a transcriação
da dramaturgia teatral para uma outra de
suporte audiovisual seria o de produzir as cenas
a partir de imagens fixas
118
. As imagens estáticas
selecionadas serviram como pontos de apoio
para, posteriormente, acrescentar imagens em
movimento e som à narrativa.
A utilização de diversas fontes
textuais incluiu linguagens imagéticas como
118 Sabe-se que um filme é conituído por um enorme nú-
mero de imagens fixas chamadas fotogramas, dispoos em se-
qüência em uma película transparente; passando de acordo com
um certo ritmo em um projetor, essa película origem a uma
imagem muito aumentada e que se move. AUMONT, Jacques e
outros, A Eética do Filme. Campinas: Papirus, 1995.p. 19.
estímulo criativo, num processo em que cada
estágio exposto não ansiava um resultado final
fechado, mas sim mais uma parte integrante do
processo criativo desenvolvido. A justaposição
de referências aparentemente inconectáveis,
que se apresentaram durante o processo de
pesquisa, tornaram-se passíveis de interação.
Os agenciamentos
119
entre imagens fotográficas,
caricaturas, pinturas e dramaturgia, integraram
elementos numa colagem onde o que estava
pôde ser aproveitado e o devir foi aglutinador.
O estudo do Qorpo Santo, montado
a partir de imagens imóveis, para a posterior
elaboração de imagens em movimento. Em
outras palavras, nesta espécie de jogo de
imagens e textos pré-determinados reelaborei
a dramaturgia de Qorpo Santo, criando um
jogo imaginário/textual, como um story board.
Estas seqüências de textos e cenas serviram
como planejamento visual de um roteiro criado
a partir de trechos das peças teatrais de Qorpo
Santo, que podem construir um recorte do autor,
sem pretensões de retratar um Qorpo Santo
histórico, mas um Qorpo Santo personagem.
Experiência de desentender o texto,
esvaziar o seu significado para devolvê-lo na
119 Cf. DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Felix, Introdução:
Rizoma. In Mil Platôs (vol. 1). Rio de Janeiro: Editora 34, 1995.
pp. 11-12.
Um Pensamento-Vizão
de Qorpo Santo
60
seqüência com outra significação. Os monólogos
de Qorpo Santo tentam dizer algo carregado de
significados, contudo, devido à sua prolixidade,
tornam-se vazios de conteúdo o que permite
que o texto seja jogado fora. Sua libido, sua
energia desagregam a racionalidade do texto
e conduzem a uma verborragia que esgota os
textos. O texto acaba desligado do que o Qorpo
Santo quis dizer.
§32
Tendo nas mãos imagens dos quadros
de James Ensor, estruturei uma peça audiovisual
que devolva os significados para o texto de Qorpo
Santo, inicialmente através de uma equivalência
do material imagético de Ensor e o do texto de
Qorpo Santo. A partir das imagens e dos textos
construí um story board.
A conexão entre Qorpo Santo e
Ensor possui uma analogia estética pertinente.
Trabalhei a relação entre o espaço da tela de
Ensor e a rubrica da cena desenvolvida por Qorpo
Santo para transcriar da obra de Qorpo Santo
para a linguagem audiovisual. Como no filme
Prospero’s Book de Peter Greenway, que transpõe
a Tempestade de Shakespeare para a linguagem
do cinema, sem tentar uma passagem literal da
linguagem teatral para a cinematográfica. Teatro
e pintura virando uma peça audiovisual.
61
§33
Devolvi o significado aos textos de
Qorpo Santo construindo pontes entre as
pinturas, criando uma estrutura narrativa,
amparada nos textos que produzem um
imaginário. A sugestão dada por um texto do
Qorpo Santo que liga uma tela de James Ensor
à outra. Também recuperei referências visuais
ligadas ao ambiente de Porto Alegre à época em
que Qorpo Santo escreveu suas peças. Puxar a
Guerra do Paraguai e um lado obscuro de Porto
Alegre deste período.
Para a composição dramatúrgica,
portanto, o ponto de partida foi a estruturação
de um roteiro e a interferência nas obras de
Ensor e outras imagens que possam dialogar
com a escritura de Qorpo Santo, elaborando uma
colagem de figuras que compõem o universo do
autor gaúcho. Ensor, apesar de ser estático, possui
uma potencialidade dramática interessante; suas
máscaras, a colocação de personagens como num
palco italiano. As imagens foram selecionadas
de modo a constelar uma imaginação da
obra de Qorpo Santo permeando as cenas e
desenrolando o fio condutor da ação. No entanto,
esse fio em vez de fluir afrouxa-se, podendo ser
interrompido, causando a impressão de que a
linearidade da dramaturgia estará sempre sob a
ameaça de ser rompida.
63
§34
O
bservando uma rubrica da peça
de Qorpo Santo Duas páginas
em branco (Ato Primeiro
Cena Primeira):
aparecem duas moças, uma assentada
sobre uma mesa, outra em uma cadeira;
uma luz em cima daquela; e um moço,
em pé, ensinando a que está assentada.
Chamaremos a uma Mancília, à outra
Esterqulínia; ao moço, Espertalínio.
120
E indicações do Ato Primeiro da peça ‘Eu sou
vida, eu não sou morte’:
Fazendo trinta mil caretas para
falar, e sem poder ultimamente desprende
as seguintes palavras: Ah, mulher, mulher!
Diabo, diabo!‘ Mete a mão na algibeira da
calça, puxa e aponta um revólver. Passa a
derramar lágrimas por um espaço de cinco
minutos. Derruba o revólver no chão.
121
12 Rubrica de ‘Duas páginas em branco’, Ato Primeiro
Cena Primeira. In LEÃO, José Joaquim de Campos (Qorpo
Santo), Teatro Completo. Rio de Janeiro: Serviço Nacional de
Teatro – Fundação Nacional de Arte, 198. p. 355.
121
Trecho de ‘Eu sou vida, eu não sou morte’, Ato Pri-
meiro. In LO, José Joaquim de Campos (Qorpo San-
to), Op.cit. p. 129.
Uma serta Teatralidade
na Pintura
É possível perceber, nestas rubricas,
uma construção que detalha a cena visualmente,
proporcionando ao leitor e ao encenador
minúcias para a mise-en-scène, tanto no que diz
respeito à composição da imagem, como no
que concerne ao movimento e até ao tempo de
desenvolvimento cênico.
Com a noção de que algumas imagens
construídas por Qorpo Santo em suas peças têm
uma visualidade passível de ser desenhada ou
pintada, percebi uma possibilidade de aproximá-
las de pinturas e ao me deparar com reproduções
da obra de Ensor notei analogias quase literais
das composições de imagens. Não apenas no
que diz respeito à teatralidade
122
da imagem,
mas nas possíveis sugestões que as imagens de
Ensor podem oferecer: quem são as personagens
construídas pelas narrativas imagéticas? Como
estas personagens estão integradas aos cenários
representados nas pinturas?
122 Como esclarece Patrice Pavis, grande teórico e analia
do fenômeno teatral, a teatralidade seria aquilo que na repre-
sentação ou no texto dramático, é especificamente teatral (ou
cênico) (...) a teatralidade pode opor-se ao texto dramático lido
ou concebido sem a representação mental de uma encenação.
Em vez de achatar o texto dramático por uma leitura, a espa-
cialização, io é, a visualização dos enunciadores, permite fazer
ressaltar a potencialidade visual e auditiva do texto, apreender
sua teatralidade (patrice Pavis, Dicionário de Teatro, São Paulo,
1999). Apud LEÃO, José Joaquim de Campos (Qorpo Santo),
Teatro Completo. São Paulo: Editora Iluminuras, 21. p. 12.
64
§35
A criação de personagens em Qorpo
Santo é fundamental. Parece que o dramaturgo
gaúcho parte da criação de suas personagens para
chegar às situações que compõem suas peças
que, em alguns casos são esboços de pequenos
roteiros, alguns deles inacabados. Também
existe uma preocupação do autor em utilizar
enquadramentos onde são inseridos grupos de
personagens, criando imagens anti-heróicas.
Desta forma, é possível que as
personagens possam existir antes da elaboração
de um texto dramatúrgico ou de um roteiro e
este ser construído a partir de suas características
tiradas da observação de imagens associando-as
às narrativas propostas em textos compilados.
O roteiro pode, também, ter sua forma
estruturada, enquanto seqüência narrativa e,
por sua vez, as personagens serem construídas
no desenrolar das cenas. Assim, realizei uma
garimpagem de textos nas peças de Qorpo
Santo, procurando justapor os textos às imagens
de algumas pinturas de James Ensor, bem como
de procedências diversas que possam adequar-se
ao objetivo deste trabalho.
65
O Jogo do Qorpo Santo
§36
P
arece interessante apresentar
os procedimentos de
desenvolvimento dos diversos
roteiros elaborados para a
produção de uma dramaturgia audiovisual.
Inspirado em diferentes fontes
imagéticas pesquisadas e textos dramatúrgicos
de Qorpo Santo, provenientes de um processo
criativo, os caminhos traçados na Parte I tiveram
como objetivo o levantamento de informações
para chegar à Parte II, onde passo a apresentar
as etapas do processo de criação da peça
audiovisual.
O processo de roteirização realizado
não se resumiu a um roteiro pré-estabelecido
e cristalizado. Foi um processo dinâmico, vivo.
A cada estágio apresentaram-se reelaborações
necessárias para a concretização da criação.
Assim, o roteiro inicial serviu como ponto de
partida para a confecção da peça final.
Elaborando um painel múltiplo das
expressões identifiquei dois elementos básicos:
a imagem e a palavra. Considerando esses
elementos como matrizes pude compor uma
dramaturgia. Tendo a idéia de audiofotonovela
123
,
que Décio Pignatari propõe, imaginei um jogo
que combinasse as narrativas das imagens e
dos textos selecionados para a elaboração do
argumento e do story board apresentados em
anexo.
123 muitos anos, vem o cineaa Lima Barreto recla-
mando para o roteiro cinematográfico o título de novo gênero
literário narrativo, ao lado dos gêneros tradicionais: o conto, a
novela, o romance. E Guimarães Rosa utilizou elementos da
técnica do script em Cara de Bronze. Dando seguimento a essa
idéia, publicamos o script de um novo gênero de espetáculo nar-
rativo: a audiofotonovela. (...) a audiofotonovela é um médium
a meio caminho entre a fotonovela e o cinema falado; entre
a baixa definição de imagem daquela e a alta definição dee.
PIGNATARI, Décio, Contracomunicação. São Paulo: Perspei-
va, 1973. pp.75-76.
66
§37
Todo jogo tem suas regras. Tais regras,
em alguns casos, são mais rígidas, em outros,
mais flexíveis. No caso do jogo proposto para
a construção da peça audiovisual, retomei a
história elaborada como argumento inicial
e imaginei um número limitado de imagens
estáticas que contassem a narrativa, como se
fosse uma fotonovela.
Para Décio Pignatari:
Na fotonovela, em geral, a estrutura
é centrada em torno de uma figura
feminina, cujos anseios, sentimentos se
bifurcam :primeiramente em direção
ao amor-sonho, que ao depois se revela
amor-frustração ou amor-vilão: em
seguida, dirige-se ao amor-fiel, ao amor-
segurança e ruma para o happy-end: vence
a disposição de sistemarsi como dizem os
italianos ou seja, inserir-se no contexto
(via matrimônio).
124
No caso do audiovisual realizado para
esta tese, a idéia inicial gira em torno das figuras
de personagens sonhadas por Qorpo Santo de
onde saem outras imagens e textos que seguem
os roteiros apresentados em anexo.
As imagens estáticas selecionadas
serviram como pontos de apoio para,
posteriormente, acrescentar movimento e som
124 PIGNATARI, Décio, Idem, ibid.
à história. Uma forma de montar uma collage
125
para criar uma peça dramatúrgica.
Simultaneamente, fui realizando
algumas colagem com imagens que pudessem
ou não ser colocadas lado a lado com falas de
personagens, rubricas e textos das peças de
Qorpo Santo. As outras analogias texto/imagem
valeram-se das necessidades que foram sendo
demandadas durante o processo de elaboração
do story-board e da produção da peça audiovisual
em si.
Em seguida, das imagens utilizadas na
colagem, algumas foram descartadas e outras
selecionadas para serem justapostas aos textos
escolhidos, já imaginando uma narrativa que
induzisse à confecção do audiovisual.
125 Numa primeira definição, collage seria a juaposição e
colagem de imagens não originalmente próximas, obtidas atra-
vés da seleção e picagem de imagens encontradas, ao acaso, em
diversas fontes.
COHEN, Renato, Performance como Lingua-
gem. São Paulo: Perspeiva, 1989.
67
§38
As inúmeras variáveis que vão
aparecendo no decorrer desse quebra-cabeça,
levaram-me a gravar imagens em vídeo que
fizesse as pontes de ligação entre as imagens
estáticas. Foi elaborada, então, uma história
um tanto aleatória, principalmente quando me
deparei com um jogo por construir, no qual as
etapas posteriores mostraram-se incertas. Esta
incerteza abriu-se numa rede de possibilidades
onde os roteiros iniciais se defrontaram com um
texto aparentemente sem lógica que as imagens
selecionadas e gravadas em vídeo apresentaram.
O quebra-cabeça teve que ser reorganizado e
nesse ponto o story board foi refeito como um
instrumento valioso no momento da edição de
imagens e sons, onde a inclusão das vozes em off
e da trilha sonora afinaram o tom e o ritmo do
audiovisual.
§39
O trabalho desenvolveu-se como se os
verbetes da Ensiqlopedia de Qorpo Santo fossem
instantâneos fotográficos. Dessa forma, troquei
uma referência pela outra (instantâneos, verbetes,
personagens). A inversão que é possível fazer na
significação das coisas. A palavra verbete é uma
significação que se encontra num dicionário, mas
eu posso mudar o significado da palavra verbete
e utilizá-la como definição de uma personagem,
ou de uma cena que pode ser representada por
uma imagem e vice-versa.
Tal como na fotomontagem de Valério
Vieira (§7), Qorpo Santo aparece multiplicado
nas cenas de suas peças. Por vezes, uma
personagem define-se a si mesma, por outra
uma personagem define a outra através de sua
fala. São personagens que, de um momento para
o outro, começam a raciocinar contra a regra do
jogo proposto em cena.
126
As personagens de Qorpo Santo são
entidades escritas; são animais que não vivem,
mas que assistem sua vida através de uma
lógica infernal
127
chamada nonsense. São entes
compostos por letras; são sistemas de signos
numa lógica em agoniado conflito com sua
realidade e consigo mesmas.
128
126 PIGNATARI, Décio, Op. Cit. p.172.
127 Idem.
128 PIGNATARI, Décio, Op. Cit. pp. 17-171.
68
§40
A palavra Contimpina, por exemplo:
na edição do Teatro Completo de Qorpo Santo,
com notas organizadas por Guilhermino César,
encontra-se a seguinte referência ao termo: Não
sabemos o que seja. Trata-se de uma combinação
de letras e sons que podem definir a imagem
de uma personagem. Qorpo Santo define sua
personagem através da fala de Brás como o
meu rapaz, o meu Ferrabrás; o meu contimpina,
que de dia dorme, e de noite maquina! (Certa
Entidade... Ato Primeiro)
Ferrabrás é o filho de Brás que vive
falando de suas namoradas e trata o pai com
sarcasmo e desdém. É possível, então, atribuir
o significado de sujeito insolente, zangado,
malandro, ingrato, como forma de definir esta
personagem e, em seguida, encontrar uma
imagem que signifique estas características.
§41
Com esse procedimento, capturei as
relações entre as materialidades das personagens-
verbetes e as imagens que encontrei desde a
elaboração do primeiro roteiro até a edição da
peça audiovisual. Considerei o verbete como
um instantâneo fotográfico que congela uma
personagem ou uma cena numa pintura, fotografia
ou gravura. A personagem ou a cena pode ser um
verbete, que pode ser uma imagem.
Nessa toada, a imagem que identifiquei
como seminal para gerar novas associações
texto-imagem foi Esqueletos que disputam um
Enforcado, de James Ensor, pois ela coincide
com a cena final da peça As Relações Naturais, de
Qorpo Santo.
§42
Não mostrei literalmente uma das
peças do autor gaúcho, mas segui o pressuposto
de André Bazin de que o cinema pode induzir
uma peça teatral a tornar-se cinema e assim gerar
uma nova obra, diferente da primeira.
129
Desta
forma, a idéia foi apresentar um roteiro para a
realização de uma peça audiovisual, colocando
lado a lado os trechos selecionados de algumas
peças teatrais que devolvem um sentido para a
narrativa audiovisual. Um roteiro que permita
realizar imagens percebidas nas peças de Qorpo
Santo.
Os trechos selecionados para o
audiovisual foram retirados das peças: As Relações
Naturais; Um Parto; Duas Páginas em Branco; Eu
sou vida, eu não sou morte; Certa Entidade em busca
da outra; Hoje sou um; e amanhã outro; Lanterna de
Fogo, mas também acrescentei frases e rubricas
que considerei pertinentes, de acordo com a
necessidade de criação. Escolhi textos de Qorpo
Santo ou de artistas que fizeram referências a
ele.
Procurei colar os textos escolhidos,
incluindo diálogos das peças de Qorpo Santo.
Todavia, levando em consideração que o texto
teatral tende ao teatro e uma possível tentativa de
transformá-lo em cinema pura e simplesmente pode
esvaziar a obra.
130
, pretendi eliminar os diálogos
e substituí-los pelas ações das personagens
encontradas, sobretudo nas rubricas das peças
selecionadas.
129 BAZIN, André, Teatro e Cinema. In O Cinema – Ensaios.
São Paulo: Editora Brasiliense, 1991.p. 127.
13 BAZIN, André, Teatro e Cinema. In O Cinema – Ensaios.
São Paulo: Editora Brasiliense, 1991.p. 13.
69
§43
O
objetivo deste trabalho foi
reescrever a dramaturgia de
Qorpo Santo pensando numa
escritura adequada à linguagem
audiovisual
131
, como suporte possível para
reimaginá-la. Assim surgiu a idéia de imaginar
um emaranhado de textos. Isto fez com que o
desencadeamento dos conflitos passasse a ser
um jogo de desentendimento das palavras
132
e
permitisse que a ação dramática conduzisse as
personagens, elaborando uma lógica aleatória. A
idéia de texto aleatório trouxe uma aproximação
com obras do Teatro do Absurdo. Considerando
que o Teatro do Absurdo roubou de suas
personagens o conteúdo das falas é possível
131 Adjetivo e, no mais das vezes, subantivo, que designa
(de modo bem vago) as obras que mobilizam, a um tempo,
imagens e sons, seus meios de produção, e as indúrias ou ar-
tesanantos que as produzem. O cinema é, por natureza,audio-
visual” (...). AUMONT, Jacques e MARIE, Michel, Dicionário
Teórico e Crítico de Cinema. Campinas: Papirus, 23. p. 25.
132 Ora, mudar a deinação da palavra no teatro é servir-se
dela num sentido concreto e espacial, na medida em que ela se
combina com tudo que o teatro contém de espacial e de sig-
nificação no domínio concreto; é manipulá-la como um obje-
to sólido e que abala as coisas, primeiro no ar e depois num
domínio infinitamente mais mierioso e secreto mas amplo, e
não é muito difícil identificar esse domínio secreto porém amplo
com o domínio da anarquia formal, de um lado, mas também,
de outro com a criação formal contínua. ARTAUD, Antonin,
Op. Cit., p. 95.
observar um esvaziamento de seus significados,
o que relega o texto à sua forma. Este
procedimento pode ser um meio para conseguir
outras leituras dos textos, quer seja em outros
níveis de linguagem
133
(corporais, pictóricos,
imagéticos etc.), quer seja dentro da própria
estrutura idiomática, alcançando a dramaturgia.
133 Portanto, longe de reringir as possibilidades do teatro e
da linguagem, sob o pretexto de que não encenarei peças escritas,
eu amplio a linguagem da cena, multiplico suas possibilidades.
ARTAUD, Antonin, Op. Cit., p. 142.
qolagem: Dramaturgia e
Imagem
70
§44
As imagens do pintor James Ensor
apareceram como fonte de inspiração para a
criação das personagens e mise-en-scène.
A partir do grotesco
134
das figuras
expostas nas pinturas de Ensor foi possível
pesquisar expressões devolvendo conteúdos
visuais para a obra de Qorpo Santo. Na obra
do dramaturgo gaúcho, o som de palavras que
o feriram
135
começou a se desenvolver, guiando
seus passos e colocando em cena rascunhos de
personagens que buscam suas identidades ainda
incompletas. Este caráter inacabado das peças
de Qorpo Santo torna possível a justaposição
dos textos de Qorpo Santo com pinturas
inicialmente de James Ensor. Apesar de viverem
em localizações geográficas totalmente diversas,
os dois artistas carregam traços em suas obras as
quais podem servir de pretexto para desencadear
um processo criativo.
Diferentemente do ostracismo de
Qorpo Santo, James Ensor:
em seus últimos anos foi
homenageado por várias sociedades de
134 O grotesco tomará todos os ridículos, todas as enfermida-
des, todas as feiúras. Nea partilha da humanidade e da criação,
é a ele que caberão as paixões, os vícios, os crimes,; é ele que será
luxurioso, raejante, guloso, avaro, pérfido, enredador, hipócri-
ta; é ele que será alternadamente Iago, Tartufo, Basílio; Polônio,
Harpagão, Bartolo; Falaff, Scapino, Fígaro. HUGO, Vior, Do
Grotesco e do Sublime: tradução do prefácio de Cromwell. São Paulo:
Perspeiva, 1988. p. 33.
135 É para mim problemático se meu corpo até esse mo-
mento era pura carne animada de um pouco de espírito, ou se
nele exiia o Santo que na idade de trinta e quatro anos su-
biu ao Céu; o qual ao som de palavras que o feriram começou
a desenvolver-se guiando meus passos”. LEÃO, José Joaquim
de Campos (Qorpo Santo), Teatro Completo. Rio de Janeiro:
Serviço Nacional de Teatro – Fundação Nacional de Arte, 198.
p. 13/14.
arte e de literatura. Continuou a escrever
ensaios muito críticos sobre as fraquezas
da sociedade belga e fazia discursos em
banquetes, nos quais assumia o papel de
velho sábio. Em 1930 recebeu do rei da
Bélgica o título de barão.
136
Foi festejado inicialmente pelos
simbolistas e visto mais tarde como um
precursor do expressionismo e do surrealismo.
Esta valorização da obra de Ensor permitiu-
me o acesso às reproduções de imagens de suas
pinturas, impressas no volume nº 88 da Coleção
Gênios da Pintura
137
, publicado em 1968. Esta
coleção de grande tiragem popularizou a obra
de Ensor e de muitos outros pintores no Brasil.
Apesar de ter conquistado
reconhecimento público em sua época, James
Ensor, assim como Qorpo Santo em Porto
Alegre, também cultivava uma existência
retraída e pessimista. Viveu toda a sua vida na
cidade balneária de Ostende, na Bélgica, que
descreve ironicamente:
A praia é extraordinariamente
animada. É uma mistura da Bruxelas
elegante e o público menos elegante de
Gand, mundo variado e disparatado.
Peralvilhos enflanelados arrastando-se
pelo areal. Mocinhas bonitas perturbando
136 CHIPP, H.B., Teorias da Arte Moderna. São Paulo:
Martins Fontes, 1996. p. 17 (nota).
137 O primeiro empreendimento da Editora Abril no setor
de livros, a luxuosa edição da Bíblia Sagrada em 1965, teve como
sub-produto a sua edição em fascículos quinzenais que chega-
ram a vender 15 mil exemplares por fascículo, inaugurando
uma serie de coleções, inicialmente feitas com material impor-
tado, mais tarde produzidos no Brasil e diribuídas amplamen-
te por todo o pais. Os Gênios da Pintura, a Enciclopédia Abril,
Os Pensadores e muitos outros títulos foram assim colocados ao
alcance da população, com tiragens freqüentemente acima de
1mil exemplares. CAMARGO, Mario de, Gráfica: arte e in-
duria no Brasil: 18 anos de hioria. São Paulo: Bandeirantes
Gráfica, 23. p. 148.
71
James Ensor - A Intriga (1890)
James Ensor – Auto Retrato com Máscaras (1899)
72
crustáceos moles. Camponesas pantanosas,
bundudas esganiçadas. Labregos
ensaboando as chancas imundas.(...) Raça
rapace que indispõe os corações sensíveis e
macula a praia fina e matizada. Os ingleses
por vezes esbofeteiam desvairadamente
esses grosseirões insensíveis.
138
Ensor escreveu também dramas nunca
encenados, tendo o horror e o fantástico como
temas obsessivos.
139
Numa das declarações que
justificam sua preferência pelas máscaras, pelos
esqueletos, pela temática do horror, o pintor
afirmou:
“Com alegria, confinei-me no lugar
solitário em que domina a máscara feita
de violência, de luz e de esplendor. A
máscara me diz: frescor de tons, expressão
acentuada, cenário suntuoso, grandes gestos
inesperados, movimentos desordenados,
turbulência refinada”.
140
As indagações do artista sobre o
significado da vida, da morte, do martírio,
da incompreensão, da crueldade humana,
espelham-se todas num combate sinisitro em
torno da decomposição. A pintura Esqueletos que
disputam um Enforcado, de 1891, traz muito da
inspiração teatral de Ensor. Os trapos coloridos
meramente encobrem a morte, enquanto a
assistência contempla, dos bastidores, esse duelo
grotesco.
141
138 ENSOR, James, A Praia de Oende, 1896. In CHIPP,
H.B., op. cit. pp. 16-17.
139 ENSOR, James, Ensor. São Paulo: Abril Cultural, 1968.
p. 4.
14 ENSOR, James, Op. cit. p. 2.
141 ENSOR, James, Op. cit. p. 3-4.
Pode-se dizer que se trata de uma
ambientação teatral, devido à colocação frontal
do observador em relação às figuras representadas,
causando a impressão das mesmas estarem
expostas como num palco de teatro, como
um cenário construído de seres estáticos com
expressões esvaziadas, transmitindo a noção de
marionetes, que emanam um caráter de objeto.
A gestualidade das figuras representadas; as
imagens pintadas pressupondo acontecimentos
sórdidos; a frontalidade que enrijece e torna
as imagens frias, como se o movimento e
a expressão, se pudessem acontecer, seriam
mecânicos e inumanos.
O crítico italiano Renato Barilli associa
Ensor a Alfred Jarry, autor de Ubu Roi, com sua
patafísica germinal do teatro do absurdo de
Ionesco e Beckett.
142
O dramaturgo gaúcho e o pintor belga
fazem, em sua obra, construções ácidas da
comédia humana. Qorpo Santo e James Ensor,
através de devaneios delirantes, vislumbraram
suas realidades e as expressaram por meio
do esvaziamento das linguagens artísticas
que procuravam dominar. Qorpo Santo,
provavelmente, não conheceu a obra de Jarry,
nem a obra de Ensor. James Ensor tampouco
conheceu Qorpo-Santo. Tanto em Ensor, como
em Qorpo Santo é possível encontrar Alfred
Jarry como um elo de contato. Cada um em sua
realidade criou um mundo particular e paralelo,
tentando manifestar um estágio de crise e de
desagregação, no qual suas personalidades
artísticas haviam se deparado no final do século
XIX, devido ao desgaste das suas possibilidades
de linguagem.
142 ENSOR, James, Op. cit. p. 6.
73
James Ensor - Esqueletos que disputam um Enforcado (1891)
75
Considerasões sobre
Qorpo Santo-Lanterna de Fogo
§45
A
través de sua Ensiqlopedia ou
seis mezes de uma Enfermidade,
Qorpo Santo acreditava que
teria condições de propagar
suas idéias sobre um exemplo totalmente fora
do registro da realidade gaúcha.
A experiência de Qorpo Santo frente
aos seus fracassos pessoais e literários leva a
pensar numa dramaturgia que nunca se realizará
enquanto uma voz presa no papel. Qorpo Santo,
um anti-herói da dramaturgia, pode ser também
a constatação de que a construção dramatúrgica
está na busca constante de simplicidade.
Ao levantar essa suposição, é possível
presumir uma destruição de idealizações
dramatúrgicas, as quais procuram estruturar
roteiros mirabolantes. Trata-se de uma tarefa
que não se completa. A palavra impressa, para
o teatro, é morta. A fala devolve a alma da
palavra.
A dramaturgia de Qorpo Santo
está repleta de conflitos que paradoxalmente
não são dramáticos, ou por outra, revelam-se
essencialmente dramáticos, onde os conflitos
são significantes esvaziados de significado.
Uma inércia do movimento permanente, uma
verborragia descontínua. As personagens são
engessadas em suas travessias pela cena e não
conseguem se libertar daquilo que têm que falar
e das ações que têm que executar. Os encontros
entre as travessias cênicas destas personagens são
agenciamentos
143
, onde seus caminhos mudam
de direção.
Numa obra dramatúrgica, linhas
de articulação ou segmentos. Trata-se de
uma multiplicidade que compõe organismos
significantes, sujeitos que circulam deixando
rastros de maior ou menor intensidade.
§46
Tendo realizado a peça audiovisual
Qorpo Santo-Lanterna de Fogo foi possível
perceber um Qorpo Santo transcriado através
de imagens, tendo como pano de fundo o
trabalho de reconstrução de sua dramaturgia.
No audiovisual procurei recriar um autor
paródico e sem nenhuma consciência de sua
insignificância, que parte em busca de suas
143 Cf. DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Felix, Introdução:
Rizoma. In Mil Platôs (vol. 1). Rio de Janeiro: Editora 34, 1995.
pp. 11-12.
76
personagens. Recuperei uma variedade de cenas
de suas peças e, em suas entrelinhas, remetendo
à lógica do autor, organizei um diálogo entre
texto e imagem, onde as imagens são um suporte
para significar as diversas referências feitas no
conteúdo da narrativa audiovisual.
As peças de Qorpo Santo remontam
temáticas e estruturas muito semlhantes entre
si, o que permitiu a utilização de diversos
trechos de sua obra para compor uma única
peça dramatúrgica. Poderia reconhecer uma
falta de originalidade. No entanto enxerguei
uma coerência no que diz respeito à estrutura
das peças teatrais e à sua composição de
personagens. O caráter autobiográfico da obra
de Qorpo Santo reside na dificuldade de tratar
de temas diversos. Essa auto-referência pode
ser avaliada como uma forma de auto-reflexão
sobre temáticas desenvolvidas constantemente
em suas peças.
Após o estudo das peças, do
entendimento de alguns de seus atos e de quadros
realizados nesse trabalho, foi possível perceber
que o formato do roteiro, do audiovisual e de sua
montagem poderiam construir um fio condutor,
uma linha que costurasse os retalhos de uma
cortina que se desenrola conforme Qorpo Santo
percorre suas divagações.
O autor pensa em voz alta, numa
auto-observção que engendra a personagem
Qorpo Santo. Suas digressões desenrolam-
se, enquanto ele percorre uma espécie de
corredor de divagações sobre a escrita e sobre o
funcionamento de seu pensamento. Em diversos
trechos de suas peças aparece um pensar-falando
que explica seu processo de escritura, possível de
ser exemplificado por
C-S, personagem da peça
Lanterna de Fogo:
C-S.- (...)Eu, porém, escrevo que
penso e medito para faze-lo, que tenho
necessidade de raciocinar e discorrer,
que preciso estudar os fatos, conhecê-los,
escolher os termos com que mais convém
expressar as idéias..., enfim, compor,
não um bilhete ou uma carta, mas uma
comédia, romance, tragédia, um discurso
sobre moral, política, religião ou alguma
outra ciência, não posso nos momentos em
que estudo estar sendo interrompido, nem
mesmo nos em que penso!
144
§47
Na peça audiovisual Qorpo Santo-
Lanterna de Fogo, Qorpo Santo caminha por
um museu virtual, onde se sucedem imagens
que não podia deixar de pintar, de pessoas que
considerava medíocres. Seu pensamento fala
nas locuções dos textos. As vozes subdividem-
se nas falas tiradas de textos de Qorpo Santo,
quando se trata de um pensamento do próprio
autor e em trechos selecionados de A noite
145
,
de Antõnio Álvares Pereira Coruja
146
e de As
Amargas Não de Álvaro Moreyra.
Qorpo Santo Lanterna de Fogo pretende
mostrar uma colagem que retoma algumas
personagens recorrentes das peças teatrais de
144 A Impossibilidade da Santificação o A santificação Transfor-
mada. Ato - Cena 1ª. In LEÃO, José Joaquim de Campos
(Qorpo Santo), Teatro Completo. Rio de Janeiro: Serviço Nacio-
nal de Teatro – Fundação Nacional de Arte, 198. p. 31.
145 CORUJA, Antônio Álvares P., Antigualhas, reminiscências
de Porto Alegre. Porto Alegre: União de Seguros Gerais, 1981. p.
27. Apud PESAVENTO, Sandra J., Memória Porto Alegre: espa-
ços e vivências. Porto Alegre: Ed. Universidade/UFRGS, 1999.
146 Literato brasileiro que, juntamente com o Marquês de
Marica, inspirou Qorpo Santo em sua Reforma Ortográfica. Cf.
ESPÍRITO SANTO, Denise (org.), Qorpo Santo - Miscelânea
Quriosa. Rio de Janeiro Casa da Palavra, 23. p.119.
77
Qorpo Santo. As falas de Qorpo Santo colocadas
em off foram escolhidas das personagens Brás,
da peça Certa Entidade em busca da outra e
Robespier, da peça Lanterna de Fogo que juntas
podem sintetizar a personagem Qorpo Santo
construída na narrativa audiovisual.
A peça teatral de Qorpo Santo Lanterna
de Fogo é uma busca da lanterna de Diógenes. A
personagem Robespierre procura uma lanterna
de fogo, presente que lhe fez seu pai quinze dias
antes de morrer. Esta busca é pretexto para um
emaranhado dramaturgico: discursos sobre a
natureza do homem; conversas com demônios e
com mortos; digressões sobre problemas sexuais;
invasão do cenário por ratos, galinhas, gatos e
frangos.
147
A peça audiovisual Qorpo Santo
Lanterna de Fogo realizada para esta tese não quer
ser um documentário sobre o autor estudado.
Procura mostrar a partir de um fio condutor
centrado no autor, como personagem, diversos
aspectos da vida de um herói individual.
É possível considerar a peça audiovisual
como sendo uma narrativa linear. Apesar de sua
linearidade, é possível concordar que, Qorpo
Santo Lanterna de Fogo desdobra o fio condutor
em seqüências de narrativa quase autônoma. É
bom frisar que a linearidade da narrativa está
na presença da personagem protagonista que
nunca é abandonada não permitindo que o fio se
desenrole de maneira autônoma e se estruturem
seqüências independentes da narrativa central.
A narrativa audiovisual de Qorpo Santo
– Lanterna de Fogo apóia-se numa linha que liga
uma seqüência à outra. Esses fios de linearidade
são tênues; são travessias espaciais entre as
147 A Lanterna de Fogo”: Qorpo Santo revio em montagem al-
ternativa. In Correio do Povo - 15/2/1979.
seqüências. Assim, as seqüências podem parecer
episódicas. As visões das pinturas de Ensor
aparecem como entreatos narrativos. Pontos que
balizam as travessias entre um acontecimento e
outro e assim o caminho se compõe. Por mais
que Qorpo Santo se afaste de seu caminho
inicial, a linearidade frágil não se rompe.
§48
Qorpo Santo está em sua casa,
dormindo no seu quarto como dentro da barriga
de uma baleia que o protege. Dentro deste casulo,
o comodismo da página escrita deixa o autor
insatisfeito. Ele parte em busca de pessoas vivas,
mas Porto Alegre está morta. Os vivos são suas
personagens que se encontram no emaranhado
dos galhos das árvores que transporta Qorpo
Santo para espaços simultâneos: a Guerra do
Paraguai; as realidades das peças teatrais que ele
pretende escrever; a história do rapaz que passa
a derramar lágrimas e que freqüenta a casa-
puteiro onde se encontra com Qorpo Santo, o
qual é devorado pelas mulheres.
O rapaz que aparece na seqüência 5
(vide Anexo 1) foi inspirado na personagem
Ferrabrás de Certa Entidade em busca da outra,
que aparece como filho de Brás, mas que pode
ser a face jovem de Qorpo Santo, ou a projeção
de Qorpo Santo sobre a idéia de seu filho.
As mulheres que aparecem nesta
seqüência são aquelas da peça As Relações
Naturais que freqüentam a casa que não se sabe
se também é prostíbulo. Mulheres das quais
Qorpo Santo ficou afastado no período de seu
surto. É interessante perceber que esta peça de
Qorpo Santo assemelha-se a Os sete Gatinhos,
onde Nelson Rodrigues também mostra uma
78
família, apodrecendo em cena, entre o lar e o
bordel. Qorpo Santo, em As Relações Naturais,
mas também em Mateus e Mateusa mostra uma
sátira à família, à paz doméstica
148
, numa inversão
da comédia realista.
Esta sátira apresenta uma visão da
decadentista
149
da sociedade riograndense. A
obra de Qorpo Santo é produzida num período
em que aquela região mais parecia um grande
caldeirão de água quente prestes a estourar,
como de fato estourou
150
. O Império Tropical de
D. Pedro II começava a declinar. Qorpo Santo
escreveu suas peças em 1866, um ano após o
início da Guerra do Paraguai e a situação de
desagregação da época passou a ser uma das
marcas que o desgaste de uma Guerra violenta
poderia causar nas instituições gaúchas.
Ao centralizar uma narrativa sobre
uma personagem que viveu em época e
região especificos, o audiovisual não assume o
comprmisso de reconstituição histórica. Dessa
maneira, o fato de Qorpo Santo trazer para o
centro da narrativa temáticas e argumentos
recorrentes de sua obra e também da própria
história da Província de Rio Grande do Sul,
confere ao audiovisual um aspecto ficcional que
148 FARIA, João Roberto, Santo: As Formas do Cômoco. In O
Teatro na Eante: eudos sobre dramaturgia brasileira e erangei-
ra. São Paulo: Ateliê Editorial, 1998. p. 83.
149 A localização eratégica do movimento decadentia, nas
duas últimas décadas do século XIX aponta para o sentimento
crepuscular que marca sua eética, derivada da situação aflitiva
e agônica experimentada pela sociedade finissecular, expressa
por meio de encenações terminais, apatia e ceticismo, que tra-
duzem fantasias cerebrais doentias e narcisíicas, eroticamente
inspiradas na putrefação e na morte, refletindo fragmentos de
esgotamento moral herdados do spleen baudelairiano. FARIA,
Flora de Paoli, Decadentismo como Prefácio para a Vanguarda. In
WATAGHIN, Lucia (org.), Brasil & Itália – Vanguardas. Cotia:
Ateliê Editorial, 23. pp. 253-254.
15 SCHWARCZ, Lilia Moritz, As Barbas do Imperador:
D. Pedro II, um monarca nos trópicos. São Paulo: Companhia
das Letras, 1998. p. 32.
pode aproximá-lo da fábula com uma conotação
histórica.
Assim, o que se em Qorpo Santo-
Lanterna de Fogo sintetiza um modo de pensar
um autor marcado pelo meu ponto de vista. Uma
visão artística que compôs a peça audiovisual
de forma arbitrária, selecionando elementos
que pudessem configurar uma espécie de
Almanaque do Qorpo Santo, com objetivos de
convidar à investigação de temas relacionados à
dramaturgia e à sua história, buscando resgatar
um autor brasileiro que pode dialogar com a
dramaturgia universal.
§49
Qorpo Santo tinha o gosto de deformar
as palavras o que pode ser um convite à criação de
simulacros provenientes das máscaras grotescas
da Commedia dell’Arte. Essa forma de pensar o
Qorpo Santo a partir de uma visão recortada
pode induzir a estereótipos sobre a obra do autor.
A minha visão sobre Qorpo Santo reside na
necessidade de fazer entender como a linguagem
teatral se afasta do realismo. Ao expor na tela um
universo estranho à realidade cotidiana, procurei
mostrar personagens caricatas, inspiradas nos
bufões, nas máscaras da commedia dell’arte, no
circo-teatro e isso foi possível encontrar nas telas
de James Ensor e outras imagens similares.
Um autor brancaleônico parte em
busca de sua imortalidade, marcha em busca
do sonho de ter seu nome impresso em letras
tipográficas e leva com ele um grupo não muito
comum de indivíduos recuperando a imagem
de atores de uma peça que jamais se viu, que
79
talvez nem mesmo existiu
151
. A imagem de
uma trupe reunida que pudesse nos dar a idéia
de uma realidade difícil de ser recomposta em
seus movimentos e sons. Uma legião de entes
injustiçados, espectros não muito humanos
pertencentes a uma galeria de tipos esquisitos
compõem a utopia qorposantense de conquistar
uma dramaturgia bem feita. Uma realização de
poder, mas que também se mostra como uma
ilusão e desloca a conquista da utopia para uma
busca constante daquilo que não pode existir
senão no ideal.
Uma narrativa simples e calcada em
moldes reconhecidos como soluções narrativas
eficientes possibilita que se garanta uma
universalidade no tratamento temático, onde
o tempo histórico se transforma num pano
de fundo para a narrativa, deixando de ser
elemento indispensável para complementar a
história narrada. Assim a narrativa de Qorpo
Santo Lanterna de Fogo poderia ser localizada
em outro período histórico, como na montagem
da Companhia de Bonecos Urbanos que traz
uma peça de Qorpo Santo para o Século XXI,
numa experiência sem foco-lógico que retoma
a formação de grupos de marginais das grandes
cidades contemporâneas.
§50
Talvez seja possível cartografar um
mapa do trajeto percorrido pela personagem
Qorpo Santo em sua jornada particular. Essa
definição territorial e temporal, por onde se
desenvolve a ação, resgata algumas imagens,
onde se incluem personagens, objetos, intrigas,
paisagens, sons que se colocam de modo
151 LIBERA, Alain, Pensar na Idade Média. São Paulo: Edi-
tora 34, 1999, p. 61.
pertinente nas temáticas tratadas no conteúdo
da narrativa audiovisual e que, de algum modo,
trazem uma forma a ser considerada como
possível fonte de investigações, apesar de sua
natureza ficcional.
Sob o trecho final de Overtüre 1812,
de Tschaikowsky, a Ensiqlopedia de Qorpo
Santo aparece em chamas, numa fusão com
um busto pegando fogo. A idéia de queimar a
cabeça de um autor do Século XIX, que pode
ser Qorpo Santo, surgiu da cabeça em chamas
da personagem Robespier, da peça Lanterna de
Fogo:
Robespier: (...) Tenho esta cabeça
em chamas e, ao ver-vos, sinto mais forte o
intenso fogo que nela lavra!(...)
152
Os livros queimados não são a fogueira
de Fahrenheit 451, pois, apesar da destruição do
texto dramático escrito ser uma das prerrogativas
para a descoberta do dizer teatral, os livros
pegando fogo são a vivificação das escrituras
qorposantenses.
O fogo que queima o busto e a obra
podem ser de um autor qualquer transformando
as ruínas da dramturgia morta numa nova
dramaturgia. Das palavras impressas às palavras
que voam nas falas das personagens do autor de
Eu sou vida; eu não sou morte.
152 Lanterna de Fogo. Ato - Cena 2ª. In LEÃO, José Jo-
aquim de Campos (Qorpo Santo), Teatro Completo. Rio de Ja-
neiro: Serviço Nacional de Teatro – Fundação Nacional de Arte,
198. p. 184.
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ANEQSOS
87
Aneqso I
Argumento para Pesa Audiovisual
Qorpo Santo, Lanterna de Fogo
1. vou levantar-me; qontinuÁ-lo; e talves
esqrever em um morto:
Qorpo Santo dorme em seu quarto, uma espécie de casulo, uma espécie de cobertor do ser
humano, em que este fi ca embutido com todos os seus acessórios, protegendo e resguardando o seu
rastro assim como a natureza guarda um fóssil. Um espelho refl ete o rosto de Qorpo Santo. Ele
dorme em seu quarto, iluminado pela luz de velas, cercado por livros, objetos e imagens de valor. Com
o avançar da noite seu sono passa a ser acometido por um sonho delirante. Acorda sobressaltado. Em
estado de vigília enxerga à sua frente rostos de um sonho recente. Sonho com personagens, pessoas
conhecidas suas das ruas de Porto Alegre. Deformados pela refração de seu olhar, quem sabe aqueles
rostos podem transformar-se em personagens para uma comédia que está para escrever. Enxerga à sua
frente uma série de máscaras derretendo. Uma pintura hedionda de seu sonho recente.
Projeções de Qorpo Santo nas paredes do quarto, sombras de personagens grotescas;
deformadas pelo olhar sonolento:
Ora homem; ora mulher; ora velha; ora moço; ora criança; ora feio; ora bonita. Cada qual é
ocupado naquilo para que Deus o destina; umas para os ofícios; outros para a pena; a palavra e mesmo
a espada! Alguns para quais pássaros, andarem sempre pelo ar, e a pousar de ramo em ramo ou de
árvore.
As imagens aterrorizantes desaparecem sob seu olhar angustiado. Quem sabe aquelas fi guras
sejam personagens para uma comédia que está para escrever? Sujeitos sem autonomia sufi ciente para
existirem fora do controle dos fi os que ele manipulará em seus escritos com falas isoladas, organizadas
de modo arbitrário numa exposição das mazelas da província gaúcha; um instrumento de denúncia!
Qorpo Santo levanta-se, para começar a escrever sua comédia. Ao ouvir os sinos, calça os
chinelos. Sonhou não sabe com o quê. Anda em direção à luz que emana da janela. Ele sai do quarto.
Aproxima-se de uma mesa. Encontra sobre a mesa moedas, livros, tigelinhas, talheres, caixinhas e
88
estojos. Confere uns papéis; toma uma pitada de rapé, um gole de café; pega numa pena e começa a
escrever.
Em devaneio observa os objetos sobre a mesa. Caindo em si, levanta-se da escrivaninha, bate
na cabeça, calça os chinelos, vai até sua mesa de trabalho. Toma uma pitada de rapé, logo depois de
um gole de café, pega seu casaco e seu chapéu; abre a porta de casa e sai o mais jocosamente que é
possível.
Leve o diabo esta vida de escritor! É melhor ser comediante! Estou só a escrever, a escrever; e
sem nada ler; sem nada ver. Estou aqui me incomodando!
Incomodado por não encontrar no papel as personagens de seu sonho, resolve sair para
caminhar pelas ruas de Porto Alegre à procura daqueles rostos de seu sonho.
2. uma sidade...morta
Sai para caminhar pelo Porto Alegre como que perseguindo aqueles rostos de seu sonho. Um
homem que está na vida pública e que há muito reside em Porto Alegre e que, além disso, costuma
quase sempre movimentar-se nas cercanias dos prédios da administração pública. As suas idas e vindas
se dão a intervalos regulares, em uma área limitada, na qual se movimentam pessoas preocupadas com
os seus negócios, de natureza similar aos dele
1
.
Porém, não encontra uma alma viva nas ruas.
Porto Alegre, o centro de todas as atividades públicas da Província, sofre na carne, diretamente,
os efeitos da Guerra do Paraguai. Numa atmosfera pesada e sombria, a vida social de Porto Alegre é a
de uma cidade...morta. No Beco do Bota Bica as casas de diversões estão de portas cerradas, seus bailes
e recreativas têm salões desertos, rareia cada vez mais a freqüência a seus cafés e confeitarias.
2
Perdido nas cercanias da cidade, chega a uma bifurcação. Hesita em qual dos dois caminhos
tomar. Prossegue por um deles. Depara-se com uma árvore, olha para o chão, depois seu olhar sobe
pelo tronco, sobe para os galhos, perdendo-se nas suas ramifi cações. Olha para as copas das árvores,
começa e reconhecer as fi guras de seu sonho. Nesse caso, se imaginarmos que as relações pessoais
de cada uma são equivalentes em número, também serão iguais as probabilidades de que cada uma
encontre o mesmo número de pessoas conhecidas.
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2 FERREIRA, Athos Damasceno, Palco, Salão e Picadeiro. Porto Alegre : Globo,1956. p.96-97.
89
3. a gera
Qorpo Santo acorda às margens de um rio. Está isolado em uma Porto Alegre de sobrecenho
carregado. Não há porque escrever peças teatrais em uma época sombria como aquela. Como pode
um homem escrever personagens que não tenham ligação com a situação por que passa o Império do
Brasil?
Um outro sonho: um Rei numa batalha que combate alguns vasos de guerra com bandeira
de uma Nação inimiga! Neste sonho Qorpo Santo enxerga o segundo quadro de batalha exposto
por Vitor Meirelles que foi A Batalha de Riachuelo (1872), um dos feitos mais brilhantes de nossa
marinha na guerra contra o Governo do Paraguai.
3
Neste sonho o Império será salvo por um homem de mente privilegiada que descobriu que os
corpos não são mais que os invólucros de espíritos, ora de uns, ora de outros. Este homem pode sonhar
que a Guerra havia acabado e, habitando o corpo do Imperador, repelir qualquer tentativa de invasão
estrangeira, a fi m de que não sofra a cidade o menor mal!
4. eu sou a vida; eu nÃo sou a morte.
Qorpo Santo sonha que em 1867 a Guerra do Paraguay estava concluída; que estava feita a
paz. Seu corpo está composto de pensamentos de modo que suas memórias começam a caminhar por
um museu imaginário, onde se sucedem imagens de suas comédias e tragédias:
Eu Sou a vida; Eu não sou a morte.
Duas páginas em Branco
Lanterna de Fogo
Espelho de fogo
Mateus e Mateusa
A Impossibilidade da antifi cação: Comédia, romance e refl exões!........
Uma pitada de rapé
Um Credor da Fazenda Nacional,
Um Assovio
Um parto
Os homens enfraquecidos
Os retratos encantados
3 DUQUE-ESTRADA, Luiz Gonzaga, A Arte Brasileira. Campinas-SP: Mercado de Letras, 1995. p 174.
90
5. se a palavra qorpo-santo foi-me
infiltrada em tempo qe vivi distante
das mulheres
Ainda esta noite Qorpo Santo teve um outro sonho, e que sonho? Que havia sido devorado
por fúrias.
De fronte a uma casa fora do tempo, um rapaz, completamente separado do mundo das
mulheres, levanta o olhar, faz trinta mil caretas e passa a derramar lágrimas por espaço de cinco
minutos.
O rapaz é impelido para o mundo das mulheres.
Do lado de fora ele tenta apontar um revólver ou uma arma qualquer, que estava perto de seu
pé. Derruba o revólver no chão.
O rapaz se despede das mulheres, com um ar de desencanto.
Qorpo Santo retorna ao seu lar: um bordel. Encontra três ou quatro mulheres, umas em saias,
outras com os cabelos desgrenhados; pés no chão etc. Moças, que, em troca de instantes de prazeres,
exigem para matar a fome que as devoram, bifes com batatas regados a vinho intragável. Elas habitam
o bordel, são a família de Qorpo Santo. O rapaz, seu fi lho Ferrabrás.
Uma delas insinua-se para ele.
Outra o puxa por um braço.
Outra o abraça por trás.
Qorpo Santo, dominado por elas,
é jogado de um lado para outro
como um boneco inerte,
até que cai de joelhos.
Uma delas mostra-lhe o punho.
Qorpo Santo de joelhos,
suplica com muita humildade.
ELAS dando uma grande gargalhada.
UMA batendo no ombro da outra.
OUTRA apontando com o mostrador
4
.
4 Ato Segundo - Cena Segunda da peça As Relações Naturais, pp. 73-74.
91
As mulheres vão cercando o homem que se sente sufocado por vozes que vão se
multiplicando em falas esparsas.
6. lanterna de fogo
Qorpo Santo senta e escreve:
O mordomo da casa que Qorpo Santo habita há 21 dias chama-se Bordini, é talvez irmão de
um acionista do banco da Província de S. Pedro.
O lar pode ser um hospício. Fora do Sanatório a moral é totalmente descolada do mundo lá
fora. A tensão do mundo é racional e a do mundo lá fora é louca’.
Sob badaladas de sinos e estampidos de canhões, a cabeça de Qorpo Santo está em chamas;
As Obras Completas de Qorpo Santo, em grossos e altos volumes pegando fogo.
Há um poeta esquecido demais no Brasil. Chamou-se José Joaquim de Campos Leão Qorpo
Santo. Um amigo que o foi visitar no hospício, perguntou-lhe se tinha escrito alguma coisa nova.
Qorpo Santo responde:
Não, nada. Não é possível. Vontade não me falta. Mas, quando as palavras vão subindo, prontas
para sair, começam essas gritarias, essas alucinações...- largo a pena. Não me aborreço, não me queixo:
- coitados! São doidos!
5
5 MOREYRA, Álvaro, As amargas, não... : (lembranças). Rio de Janeiro: Lux, 1954. pp. 126-127.
93
Aneqso II
Qorpo Santo
Lanterna de Fogo
qolagens
94
Qolagem 1 – Emaranhado de Máscaras
95
Qolagem 2 – Teatralidade e Personagens
97
QORPO SANTO – LANTERNA DE FOGO
Storyboard final
Seqüências de imagens e sons para vídeo
Imagem Som
Abertura
Trilha: Overture 1812
(Tchaikowsky)
Seq 1 Homem deitado numa cama. No meio de um
sonho
+ detalhes quarto QS
Trilha:
Overture 1812 (Tchaikowsky)
98
(Acorda sobressaltado.)
(a câmera detalha, através de uma panorâmica
em pintura de James Ensor.)
Texto off (QS): Não há uma só noite,
em que deitando-me, logo depois não
apareça, aos pés desta cama, a imagem
ou figura de um morto...
Trilha:
Overture 1812 (Tchaikowsky)
Texto off QS: Ora homem; ora mulher;
ora velha; ora moço; ora criança; ora
f
eio; ora bonita. Cada qual é ocupado
naquilo para que Deus o destina; umas
p
ara os ofícios; outros para a pena; a
p
alavra e mesmo a espada!
A
lguns para quais pássaros, andarem
sempre pelo ar, e a pousar de ramo em
99
QS levantando
ramo ou de árvore. E assim vivendo
qual natureza concebi um interessante
p
ensamento sobre produções naturais e
intelectuais, de que agora não tenho a
p
recisa recordação para narrar.
Fusão de trilha com sons de SINOS
100
Seq. 2
QS acorda, se arruma e sai pela cidade.
SINOS
Texto off QS – E assim vivendo qual
natureza concebi um interessante
pensamento sobre produções naturais e
intelectuais, de que agora não tenho a
precisa recordação para narrar.
São hoje 14 de maio de 1866. Vivo na
cidade de Porto Alegre, capital da
Província de S. Pedro do Sul; e para
muitos, Império do Brasil...
SINOS
SINOS
101
SINOS
SINOS
Locutor: Com o início da Guerra do
Paraguai, Porto Alegre está de
sobrecenho carregado. É uma cidade...
morta.
Som em BG de um assovio qualquer
Locutor: No Beco do Bota Bica as casas
de diversões estão de portas cerradas,
seus bailes e recreativas têm salões
102
desertos, rareia cada vez mais a
freqüência a seus cafés e
confeitarias(...).
Um assovio
Fusão com trilha Overtüre 1812
103
Trilha: Overtüre 1812
Locutor: Teatro? Circo? Música?
Dança? Quem é que vai pensar nisso?
Ninguém!
Locutor: Um homem que viveu em
retiro por espaço de um ano ou mais,
onde produziu numerosos trabalhos
sobre todas as ciências, compondo uma
obra de mais de 400 páginas em
quarto, a que denomina Ensiqlopedia
ou Seis Meses de uma Enfermidade.
104
Seq 3 Rei-Ministro/Guerra (foto/pintura/vídeo)
QS na beira do rio
Trilha em bg: Overtüre 1812
(Tchaikowsky).Trecho da Marselhesa
durante toda a seqüência
Texto off QS: Sonhei em 1867 que a
Guerra do Paraguay estava concluída;
que estava feita a paz;...
Texto off: REI - Aproximam-se de
nossas praias alguns vasos de guerra
com bandeira de uma Nação inimiga!
É preciso repelir a audaz invasão! É
preciso darem-se as mais terminantes
ordens a fim de que não sofra a cidade o
menor mal!
105
Texto off QS: Não temais, Senhor
saiba V. M. de uma grande descoberta
no Império do Brasil; 1.ª - Que os
nossos corpos não são mais que os
invólucros de espíritos, ora de uns, ora
de outros; que o que hoje é Rei como V.
M. ontem não passava de um criado,
ou vassalo meu, mesmo porque senti
em meu corpo o vosso espírito, e
convenci-me, por esse fato, ser então eu
o verdadeiro Rei, e vós o meu
Ministro!
2.ª - Que pelas observações filosóficas,
este fato é tão verídico, que milhares de
vezes vemos uma criança falar como
um general; e este como uma criança.
106
Pipocam personagens ao redor de QS
Eu, pois, ontem estava tão acima de
Vossa Majestade, porque sentia em
mim o dever de cumprir uma missão
Divina.
Locutor: O autor de tais descobertas foi
um homem, predestinado.
A sua cabeça era como um centro, donde
saíam pensamentos, que voavam a
compor Tragédias; Comédias; poesias
sobre todo e qualquer assunto;
arranjamentos ortográficos de economia
de tempo e trabalho;
Trilha em bg: Overtüre 1812
(Tchaikowsky).Trecho da Marselhesa;
fusão com trecho mais calmo/passagem
p/ próxima seqüência
107
Seq 4 Cenas das peças de QS
Texto off QS: Se o meu corpo está
atualmente composto de pensamentos
de modo que eu não lhe toco que não
saia algum personagem – de que estará
composta a minha alma?
Ó tipógrafos! Ó revisores!
Por que e para que – mudais vós
palavras e letras em meus escritos?
Aumento de palavras, supressão e
substituição de letras – quem pode
assegurar que escreve certo?
Alguém lendo um escrito meu com as
regras ortográficas que estabeleci,
perguntou-me se eu padecia dos nervos.
Nervo, é moléstia do corpo.
108
Texto off QS: Qual a razão por que eu
não posso escrever com a ortografia que
aprendi?
É simples: os crimes horrorosos de que
fui vítima em 1862. Depois de haver
lutado comigo mesmo. Suprimir, por
exemplo, o U da palavra Que. As
minhas obras, quase só eu as entendo
tantas foram as inutilidades por mim
suprimidas!
Ainda hei de escrever uma comédia com
o título – As verdadeiras relações
naturais e suas agradáveis
conseqüências; e depois – outra com o
seguinte – Hoje sou um e amanhã sou
outro.
Trilha: durante a lista de peças, o
volume vai abaixando, ou
aumentando conforme as imagens e ao
fundo pode-se ouvir um assovio)
Texto off QS: Hei de ainda de escrever
109
as seguintes comédias e trajedias:
Eu Sou a vida; Eu não sou a morte.
trilha
Duas páginas em Branco
trilha
Lanterna de Fogo
Espelho de fogo
Mateus e Mateusa
trilha
A impossibilidade da Santificação:
Comédia, romance e reflexões!........
trilha
Uma pitada de rapé
Trilha
110
Um Credor da Fazenda Nacional,
Um Assovio
Um parto
Os homens enfraquecidos
Os retratos encantados
trilha.
Seq 5 Imagens da personagem Contimpina, Brás,
Mulheres:bordel/casa (foto/vídeo)
(ao fundo parede amarela.)
Trilhas: Overture 1812(trechos
folclóricos); Tango; música cômica
Texto off QS: O meu rapaz, o meu
Ferrabrás; o meu contimpina,
que de
dia dorme, e de noite maquina! Oh!
esse, nem por sombras me quer aparecer
111
Locutor: O RAPAZ passa a derramar
lágrimas por espaço de cinco minutos.
Trilha: Overture 1812(trechos
folclóricos)
112
Trilha: Tango
Texto off QS: Se a palavra corpo-
santo foi-me infiltrada em tempo que
vivi completamente separado do
113
mundo das mulheres, posteriormente,
pelo uso da mesma palavra hei sido
impelido para esse mundo.(...)
Trilha: música cômica
Texto off QS: Mulheres! Que fazeis
aqui? Que quereis nesta casa?Tenho
esta cabeça em chamas. Ainda esta
noite tive um sonho, e que sonho?
Que havia sido devorado por estas
fúrias que diante de mim vejo.
114
Locutor: Moças, que, em troca de
instantes de prazeres, exigem para
matar a fome que as devoram, bifes
com batatas regados a vinho
intragável.
Seq 6
Poeta esquecido (vídeo/ensor)
Trilha: Música cômica em fusão com
Overture 1812(trecho final)
Texto off QS: O mordomo deste
hospício chama-se Bordini, é talvez
irmão de um acionista do banco da
115
Província de S. Pedro. Um e outro
ainda não tive a honra de ver nesta
casa em que habito há 21 dias.
FERRABRÁS: Olhe que lhe dou com
a bengala!
BRÁS: Acomodem-se! Senão eu lhes
dou um cachação!
Trilha: Overture 1812
(trecho final)
Locutor : Há um poeta esquecido
demais no Brasil. Chamou-se José
Joaquim de Campos Leão Qorpo
Santo. Um amigo que o foi visitar no
hospício, perguntou-lhe se tinha escrito
alguma coisa nova.
116
off QS - Não, nada. Não é possível.
Vontade não me falta. Mas, quando as
palavras vão subindo, prontas para
sair, começam essas gritarias, essas
alucinações...- largo a pena. Não me
aborreço, não me queixo: - coitados!
São doidos!
Fechamento
Trilha: Overture 1812
(trecho final)

SEQ 1
Texto off (QS): Não há uma só noite, em que
deitando-me, logo depois não apareça, aos pés desta
cama, a imagem ou figura de um morto...
Ora homem; ora mulher; ora velha; ora moço; ora
criança; ora feio; ora bonita. Cada qual é ocupado
naquilo para que Deus o destina; umas para os
ofícios; outros para a pena; a palavra e mesmo a
espada!
Alguns para quais pássaros, andarem sempre pelo ar,
e a pousar de ramo em ramo ou de árvore. E assim
vivendo qual natureza concebi um interessante
pensamento sobre produções naturais e intelectuais,
de que agora não tenho a precisa recordação para
narrar.
+ trilha
trilha
SEQ 2
SINOS
Texto off QS São hoje 14 de maio de 1866. Vivo
na cidade de Porto Alegre, capital da Província de
S. Pedro do Sul; e para muitos, Império do Brasil...
Sonoplastia de cidade
Locutor: Com o início da Guerra do Paraguai,
Porto Alegre está de sobrecenho carregado. É uma
cidade... morta.
No Beco do Bota Bica as casas de diversões estão de
portas cerradas, seus bailes e recreativas têm salões
desertos, rareia cada vez mais a freqüência a seus
cafés e confeitarias(...).
+ trilha
Teatro? Circo? Música? Dança? Quem é que
vai pensar nisso? Ninguém!
+ trilha
Um homem que viveu em retiro por espaço de um
ano ou mais, onde produziu numerosos trabalhos
sobre todas as ciências, compondo uma obra de
mais de 400 páginas em quarto, a que denomina
Ensiqlopedia ou Seis Meses de uma Enfermidade.
SEQ 3
Trilha: allons enfant de la patrie... : allons enfant
de la patrie... une manif le samedi ça m’arrangerai.
Texto off: REI - Aproximam-se de nossas praias
alguns vasos de guerra com bandeira de uma Nação
inimiga! É preciso repelir a audaz invasão! É
Qorpo Santo – Lanterna de Fogo
Texto para Loqusão

preciso darem-se as mais terminantes ordens a fim
de que não sofra a cidade o menor mal!
QS - Não temais, Senhor saiba V. M. de uma
grande descoberta no Império do Brasil; 1.ª - Que
os nossos corpos não são mais que os invólucros de
espíritos, ora de uns, ora de outros; que o que hoje é
Rei como V. M. ontem não passava de um criado,
ou vassalo meu, mesmo porque senti em meu corpo o
vosso espírito, e convenci-me, por esse fato, ser então
eu o verdadeiro Rei, e vós o meu Ministro!
2.ª - Que pelas observações filosóficas, este fato é tão
verídico, que milhares de vezes vemos uma criança
falar como um general; e este como uma criança. Eu,
pois, ontem estava tão acima de Vossa Majestade,
porque sentia em mim o dever de cumprir uma
missão Divina.
trilha
Locutor: O autor de tais descobertas foi um homem,
predestinado. A sua cabeça era como um centro,
donde saíam pensamentos, que voavam a compor
Tragédias; Comédias; poesias sobre todo e qualquer
assunto; arranjamentos ortográficos de economia de
tempo e trabalho;
QS: Se o meu corpo está atualmente composto de
pensamentos de modo que eu não lhe toco que o
saia algum personagem de que estará composta a
minha alma?
+ trilha
QS: Sonhei em 1867 que a Guerra do Paraguay
estava concluída; que estava feita a paz;...
+ trilha
SEQ 4
QS: Os crimes horrorosos de que fui vítima em 1862.
Depois de haver lutado comigo mesmo. Suprimir,
por exemplo, o U da palavra Que. As minhas obras
quase eu as entendo tantas foram as inutilidades
por mim suprimidas!
Ainda hei de escrever uma comédia com o título
As verdadeiras relações naturais e suas agradáveis
conseqüências; e depois outra com o seguinte
Hoje sou um e amanhã sou outro.
Eu Sou a vida; Eu não sou a morte.
trilha
Duas páginas em Branco
trilha
Lanterna de Fogo
Espelho de fogo
Mateus e Mateusa
trilha

A impossibilidade da Santificação: Comédia,
romance e reflexões!........
trilha
Uma pitada de rapé
Trilha
Um Credor da Fazenda Nacional,
Um Assovio
Um parto
Os homens enfraquecidos
Os retratos encantados
Alguém lendo um escrito meu com as regras
ortográficas que estabeleci, perguntou-me se eu
padecia dos nervos. Nervo, é moléstia do corpo.
Qual a razão por que eu não posso escrever
com a ortografia que aprendi?
Ó tipógrafos! Ó revisores!
Por que e para que mudais vós palavras e letras
em meus escritos? Aumento de palavras, supressão
e substituição de letras quem pode assegurar que
escreve certo?
+ trilha
SEQ 5
Locutor: O RAPAZ passa a derramar lágrimas por
espaço de cinco minutos.
QS: O meu rapaz, o meu Ferrabrás; o meu
contimpina,
que de dia dorme, e de noite maquina!
Oh! esse, nem por sombras me quer aparecer
QS: Se a palavra corpo-santo foi-me infiltrada em
tempo que vivi completamente separado do mundo
das mulheres, posteriormente, pelo uso da mesma
palavra hei sido impelido para esse mundo.(...)
+ trilha
Texto off QS: Mulheres! Que fazeis aqui? Que
quereis nesta casa?Tenho esta cabeça em chamas.
Ainda esta noite tive um sonho, e que sonho? Que
havia sido devorado por estas fúrias que diante de
mim vejo.
+ trilha
Locutor: Moças, que, em troca de instantes de
prazeres, exigem para matar a fome que as devoram,
bifes com batatas regados a vinho intragável.
+ trilha
SEQ 6
FERRABRÁS: Olhe que lhe dou com a bengala!
BRÁS: Acomodem-se! Senão eu lhes dou um
cachação!
QS: O mordomo deste hospício chama-se Bordini, é
talvez irmão de um acionista do banco da Província

de S. Pedro. Um e outro ainda não tive a honra de
ver nesta casa em que habito há 21 dias.
locutor : um poeta esquecido demais no Brasil.
Chamou-se José Joaquim de Campos Leão Qorpo
Santo. Um amigo que o foi visitar no hospício,
perguntou-lhe se tinha escrito alguma coisa nova.
+ trilha
QS - Não, nada. Não é possível. Vontade não
me falta. Mas, quando as palavras vão subindo,
prontas para sair, começam essas gritarias, essas
alucinações...- largo a pena. Não me aborreço, não
me queixo: - coitados! São doidos!
+ trilha
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