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UNIVERSIDADE FEDERAL RURAL DE PERNAMBUCO
PRÓ-REITORIA DE PESQUISA E PÓS-GRADUAÇÃO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA SOCIAL DA CULTURA
REGIONAL
MESTRADO EM HISTÓRIA
Jordana Gonçalves Leão
Fragmentos de um ‘diário’: a correspondência pessoal de Helder
Pessoa Camara (1944-1952).
Recife
2010
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1
UNIVERSIDADE FEDERAL RURAL DE PERNAMBUCO
PRÓ-REITORIA DE PESQUISA E PÓS-GRADUAÇÃO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA SOCIAL DA CULTURA
REGIONAL
MESTRADO EM HISTÓRIA
Jordana Gonçalves Leão
Fragmentos de um ‘diário’: a correspondência pessoal de Helder
Pessoa Camara (1944-1952).
Dissertação apresentada à Universidade
Federal Rural de Pernambuco como
requisito parcial para a obtenção do título
de Mestre em História Social da Cultura
Regional.
Orientadora: Profª. Drª. Giselda Brito Silva
Recife
2010
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Ficha catalográfica
L437f Leão, Jordana Gonçalves
Fragmentos de um „diário‟: a correspondência pessoal
de Helder Pessoa Camara (1944-1952) / Jordana Gonçalves
Leão 2010.
144f. : il.
Orientadora: Giselda Brito Silva.
Dissertação (Mestrado em História Social da Cultura
Regional) Universidade Federal Rural de Pernambuco.
Departamento de Letras e Ciências Humanas. Recife, 2010.
Inclui referências, anexos e apêndice.
1. Helder Pessoa Camara 2. Correspondência pessoal 3.
Escrita de si 4. Virgínia Côrtes de Lacerda I. Silva, Giselda
Brito, orientadora II. Título
CCD 981
3
4
Ao padre Helder Camara, por ter me
ensinado a ver a vida com os olhos do
coração.
A Brunno Leonardo, amor de toda vida e
ainda depois.
5
AGRADECIMENTOS
quem diga que o ofício de historiador é uma tarefa um tanto quanto
solitária. No meu caso, em oito anos de pesquisa, passaram pelo meu caminho
pessoas que fizeram questão de estar sempre por perto, dividindo comigo as
incertezas, as inquietações, as angústias e as descobertas do fazer historiográfico. A
essas pessoas tenho muito a agradecer.
Agradeço a minha família, principalmente ao meu pai, Ederaldo da Costa
Leão, pois mesmo em outros planos, continua amando-me e orientando-me. A
minha mãe, Veraluça Gonçalves Leão, por me ensinar a amar a história e por ter
caminhado comigo os meus primeiros passos.
Uma menção deve ser feita à Universidade Federal Rural de Pernambuco
que me acolheu com tanto carinho em um momento de dificuldades e incertezas e à
Fundação de Amparo à Ciência e Tecnologia do Estado de Pernambuco (FACEPE),
a qual me agraciou com a bolsa de estudos cujo apoio em muito ajudou no
andamento desta pesquisa.
À Profª. Drª. Giselda Brito Silva, orientadora, agradeço a confiança
depositada e por tornar possível esse recomeço, mas, acima de tudo, por acreditar
no meu trabalho como historiadora. Ao Profº. Drº. Antônio Paulo de Morais Rezende
pelo apoio e sensibilidade insuperável. Ao Profº. Drº. Luiz Carlos Luz Marques, por
acompanhar de perto minhas primeiras inquietações e descobertas. Aos professores
Lúcia Falcão Barbosa (pela beleza das expressões e um exemplo de historiadora
brilhante), Sylvana Maria Brandão de Aguiar, Maria Ângela de Faria Grillo (pela
doçura), Gilvando Leitão Rios (pela força nas aventuras da memória), Suely
Creusa Cordeiro de Almeida, Durval Muniz de Albuquerque Júnior (pelo estímulo),
Wellington Barbosa da Silva, Marcus Joaquim Maciel de Carvalho, Severino Vicente
da Silva e Carlos Alberto Cunha Miranda. Agradeço profundamente por fazerem
parte da minha formação como historiadora.
Agradeço, ainda, ao Instituto Dom Helder Camara o acolhimento fraternal
no início das pesquisas. Ao Centro de Estudos Virgínia Côrtes de Lacerda, em
especial ao Profº. Drº. João César de Castro Rocha, o carinho e respeito que me foi
atribuído, tendo tornado possível o meu contato com os estudos da professora
Virgínia. Ao Mémoire et Actualité pelo estímulo e confiança. A todos que fazem o
6
Banco da Providência, a Comunidade de Emaús e a Cruzada de São Sebastião,
trabalhos de profunda beleza e grandiosidade espiritual.
Agradeço profundamente a Johannes Franciscus Gerardus Pubben
(padre João). Obrigada por ter sido meu companheiro nas inesquecíveis aventuras
cariocas, pelas longas conversas encorajando-me nos momentos difíceis, ajudando-
me a definir melhor meus pensamentos e fazendo-me compreender os ideais de
amor de Dom Helder. Obrigada por ter me dedicado tanto amor.
A Maria Luiza e Edgar Amarante, Marina Bandeira, Marina Araújo, Agláia
Peixoto, Cecília Arraes, Hilda e Odete Azevedo, Lenita Peixoto, Maria Helena
Loureiro e Ruth Chagas, o grupo que o Padrezinho carinhosamente chamava de
„Família‟. Muito obrigada por acolher-me com tamanho carinho, por acreditar nos
meus propósitos, pela dedicação em ajudar-me na realização desse trabalho. Sem
vocês, isso não seria possível.
Agradeço ao amigo José de Broucker, por sempre me encorajar e
acreditar no meu trabalho. Aos amigos Ylza e Rubens, estes me acolheram de
maneira fraternal em minhas andanças ao Rio de Janeiro. Agradeço aos amigos
que, dispondo de tão precioso tempo, receberam-me de forma carinhosa, caso do
padre Fernando Bastos Ávila (Academia Brasileira de Letras), da Profª. Drª.
Margarida de Souza Neves (Pontifícia Universidade Católica RJ) e do Dr. Nelson
Motta.
Agradeço, também, a Waldemar Alves da Silva Júnior, José Veridiano dos
Santos, Bruno Romero de Miranda e Natália da Conceição Silva Barros.
Companheiros de todas as horas e que apesar do tempo e da distância
permanecem sempre presentes em meu coração. Muito obrigada pelas simples
conversas nas horas vagas, que acabavam resultando em formas carinhosas de
estímulo. Aos amigos Rômulo José de Oliveira Júnior, Paulo Henrique Rodrigues
Melo e Bianca Nogueira da Silva: historiadores brilhantes. Obrigada pelos momentos
inesquecíveis nas aventuras do fazer historiogfico.
Aos amigos do André Luiz, em especial as mães e as crianças do coral
Voz do Coração agradeço pelo amor em momentos de tanta dificuldade. À Apolônia
Leão e Priscila Leão agradeço profundamente por me permitir (re)viver as delícias
da infância no meu cariri paraibano e por lembrar-me em momentos inesquecíveis o
lado suave da vida. Ao poeta Iran Gama, Vera Galdino e Aníbal Gama (futuro
historiador) por me receber de coração aberto. À família Oliveira: José Antônio,
7
Kátia, Larissa, Antônio Filho e Johany por me dedicar tanto amor. Ao amigo Carlos
Pereira, por me permitir viver momentos inimagináveis. A vocês, meus sinceros
agradecimentos.
Por fim, agradeço, com muito amor, a Brunno Leonardo Galdino Leite.
Sou-lhe grata por dividir comigo as angústias, as reflexões, as tristezas e as
felicidades. Obrigada pelo amor incondicional, por ter sido meu companheiro nas
noites em claro e por ter me ajudado a pensar e elaborar as trilhas que aqui seriam
seguidas, encorajando-me e sempre acreditando em mim. Muito obrigada.
8
Os olhos lêem a vida e o mundo. Definem suas
cores, traçam suas forças, dimensionam seus
movimentos. Os olhos e o visível. Mas é o coração
que percebe o invisível da vida e do mundo. Penetra
nos seus mistérios, aprofunda suas tramas, inventa
seus sentimentos, descobre a magia talvez absurda,
que envolve a aventura humana. O visível e o
invisível fazem parte da História, são inseparáveis,
se o historiador quiser tentar compreender o
significado dos labirintos, construídos pelos homens,
não deve fechar os olhos, nem tão pouco o
coração”.
(Antônio Paulo Rezende: (Des)Encantos Modernos)
9
RESUMO
Partindo de um conjunto de cartas pessoais escritas diariamente pelo padre
cearense Helder Pessoa Camara para a literária mineira Virgínia Côrtes de Lacerda
entre os anos de 1944 a 1952 e sob as perspectivas da Escrita de si uma das
inúmeras possibilidades da História Cultural elaboramos este trabalho. Seu cerne
consiste em pensar de que forma Helder Camara um sujeito histórico do ponto de
vista religioso e político desde os anos 1930 faz uso das missivas como um
espaço de produção de si e do outro, como um lugar de produção do sujeito. Assim,
trabalharemos com correspondências pessoais pensadas a partir do texto, do
suporte material e dos anexos como as Meditações do padre José, as fotografias e
mapas; anotações as margens dos livros; manuscritos pessoais e uma série de
entrevistas, realizadas com amigos e colaboradores do padre Helder Camara nas
décadas de 1940 e 1950. Assim torna-se possível pensar de que forma as epístolas,
escritas em série, nos possibilitam visualizar a construção de suas relações pessoais
e o percurso através dos quais suas ideias amadurecem e abrem novos caminhos
de reflexão, em um período em que as facetas da personalidade com que Helder
ficaria conhecido estavam sendo devidamente buriladas e amadurecidas.
PALAVRAS-CHAVES: Helder Pessoa Camara, correspondência pessoal, escrita de
si.
10
ABSTRACT
Starting with a set of personal letters written daily by the priest, born in Ceará,
Helder Pessoa Camara which were sent to the female writer Virgínia Côrtes de
Lacerda, from Minas Gerais, between the years 1944 to 1952 and under the
perspective of the self writing one of the many possibilities of Cultural History we
elaborate this paperwork. It´s focus consists to think how Helder Camara a
historical subject in terms of religious and political influence since the 1930s uses
the letters as a space of his production about himself and about others, as a place of
subject production. Therefore, we will work with personal correspondences
reasoned from the text, from the material support and from the annexes like the
Meditations of priest José, the photos and the maps; notes from the margins of the
books; personal manuscripts and a series of interviews, made with friends and
colleagues of the priest Helder Camara in the 1940s and 1950s. Thus becomes
possible to think how the epistles, written in series, enable us to view the construction
of his personal relations and the course whereby his ideas ripen and open new paths
of reflection, a period in which the facets of personality that would be known Helder
were being properly polished and mature.
KEYWORDS: Helder Pessoa Camara, personal correspondences, self writing.
11
LISTA DAS INSTUIÇÕES PESQUISADAS
Arquivo Pessoal.
Arquivo do Banco da Providência.
Arquivo do Centro de Documentação Helder Camara.
Arquivo do Centro de Estudos Virgínia Côrtes de Lacerda UERJ.
Biblioteca Central da UFPE.
Biblioteca Central da UFRPE.
Biblioteca do Centro de Filosofia e Ciências Humanas da UFPE.
Instituto Dom Helder Camara.
12
LISTA DE ILUSTRAÇÕES
Figura 01: Fotografia do padre Helder Camara .................................................... 41
Figura 02: Fotografia do padre Helder na década de 1930 .................................. 42
Figura 03: Fotografia Dom Helder em visita aos mocambos do Recife ............... 47
Figura 04: Carta pessoal de Helder Camara para Virgínia Côrtes de Lacerda .... 61
Figura 05: O padre Helder com a mãe Adelaide .................................................. 64
Figura 06: Fragmento de carta de Helder Camara para Virgínia Côrtes .............. 65
Figura 07: Desenho do padre Helder Camara com o mapa dos Estados
Unidos ................................................................................................. 67
Figura 08: Fotografia de Helder Camara aos seis anos ....................................... 74
Figura 09: Fotografia do padre Helder Camara com a família Campos Heitor .... 94
Figura 10: Caricatura do padre Helder Camara com o anúncio do Vinho
Reconstituinte Silva Araújo ................................................................. 96
Figura 11: Anotações às margens da obra Péguy et les Cahiers de La
Quinzaine ............................................................................................ 105
Figura 12: O Grupo Confiança .............................................................................. 107
Figura 13: Cartas de Haidée Arraes de Alencar ................................................... 115
13
LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS
ACB Ação Católica Brasileira
AIB Ação Integralista Brasileira
CeDoHC Centro de Documentação Helder Camara
CEPE Companhia Editora de Pernambuco
CNBB Conferência Nacional dos Bispos do Brasil
FACEPE Fundação de Amparo à Ciência e Tecnologia do Estado de Pernambuco
IDHeC Instituto Dom Helder Camara
UERJ Universidade Estadual do Rio de Janeiro
UFPE Universidade Federal de Pernambuco
UFRPE Universidade Federal Rural de Pernambuco
14
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ...................................................................................................... 15
Rio, 19 de fevereiro de 1944 ................................................................................ 16
O historiador e seu ponto de partida .................................................................... 19
Traçando caminhos: a escolha das fontes, dos métodos e dos capítulos..............26
CAPÍTULO I HELDER CAMARA: ALGUMAS TRILHAS DA
TRAJETÓRIA VISÍVEL ................................................................ 31
1.1 Do Ceará ao Rio de Janeiro: caminhos de um padre ............................ 38
1.2 Na Arquidiocese de Olinda e Recife: um olhar para além da
cidade .................................................................................................... 43
CAPÍTULO II ARTES DE CONSTRUÇÃO DE SI MESMO: AS EPÍSTOLAS
DO PADRE HELDER .................................................................. 55
2.1 Narrativas de si: ideias, opiniões e sentimentos .................................... 56
2.2 A partilha do sensível: os registros da História da Confiança ................ 58
2.3 Os caminhos da História ........................................................................ 77
CAPÍTULO III HISTÓRIA AO PORTADOR: MEMÓRIAS EPISTOLARES ...... 86
3.1 Caminhos, escolhas e ideias: as cartas como lugar de
sociabilidade .......................................................................................... 90
3.2 A invenção do Grupo Confiança ............................................................ 104
CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................. 121
FONTES E BIBLIOGRAFIA ................................................................................. 125
APÊNDICES ......................................................................................................... 133
APÊNDICE A Carta Pessoal de Helder Camara para Virgínia Côrtes............... 134
APÊNDICE B Envelopes ................................................................................... 137
APÊNDICE C Fotografia da Família Mecejanense............................................ 138
ANEXOS ............................................................................................................... 139
ANEXO A Obra de Daniel Halèvy ...................................................................... 140
ANEXO B Livro de Daniel Halèvy, Pégy et lês Cahiers de La Quinzaine,
utilizado pelo padre Helder Camara, em 1944 ................................. 141
ANEXO C Fotografia de Virgínia Côrtes de Lacerda ......................................... 142
ANEXO D Caderno de anotações utilizado por Virgínia para registrar as
meditações ....................................................................................... 143
15
INTRODUÇÃO
16
INTRODUÇÃO
“A única lei da história é o imprevisto.”
(Gilbert Keith Chesterton).
Rio, 19 de fevereiro de 1944
Às quatro e meia da manhã, o então padre Helder Pessoa Camara, em
seu pequeno apartamento em Botafogo, no Rio de Janeiro, levanta-se para mais
uma madrugada de vigília. O hábito de realizar as vigílias, surgido em sua vida ainda
no seminário,
1
representava uma tentativa de vivenciar alguns momentos de
encontro com Deus. Helder rezava, lia o Breviário, respondia às correspondências
recebidas, reavaliava suas atuações nos incontáveis compromissos de que
participava diariamente, rascunhava a homilia do dia seguinte e escrevia pequenos
textos poéticos que denominava de Meditações do padre José.
O padre Helder dedica a vigília daquela madrugada a refletir acerca de
acontecimentos recentes e a pensar em como poderia ajudar a amiga Virgínia, que
sofria a dor de vivenciar o fim da vida do pai. em sua escrivaninha, em seu
pequeno quarto, escreve:
Minha querida filhinha,
Não pude pensar no diário nos dias 17 e 18.
Quanta surpresa em três dias! Quanto sofrimento aceito com a graça
divina, de modo pleno!
Vou tentar um pouco de ordem no caos de minhas impressões
numerosas e desencontradas:
a) Um telefonema seu no dia 16. Minha afilhada, ao aparelho,
conversava com você. Minha filha devia estar falando da fazenda. O
coração queria, por força, vir à boca para falar ao telefone.
1
No Livro de Salmos utilizado por Helder no seminário, podemos encontrar alguns grifos fazendo
referência às vigílias de invocação a Deus: [...] eu velo a invocar-vos desde o alvorecer. Minha alma
está sequiosa por vós. E de quantas maneiras por s anseia a minha carne!”. PSALMOS. Tradução
de Mons. José Basílio Pereira. Salvador, 1922. (Sl 62, 2).
17
Fui tendo a impressão de que você chegara. Fui me alegrando
intensamente. Desligado o aparelho, soube de tudo. Fiquei
tristíssimo e saí correndo. [...]
Fui pensando pelo caminho: prometeste (Deus) a Santa Margarida
Maria que os padres, amantes de propagar o culto ao teu coração,
teriam a graça espiritual de tocar os corações. Eu te prometo até o
fim da vida, propagar o amor a teu coração. Mas -nos esta alma
querida!
Houve um instante dolorosíssimo: como entrar no quarto? Como falar
com ele?
Vi a timidez de minha filha ir ao outro mundo e voltar. Vi quando ela
se decidiu, por uma nítida resolução de vontade em face do que
julgou um dever. Vi-a partir e fiquei certo de que tanto sacrifício e
tanta fé seriam recompensados. [...]
c) foi tudo de uma facilidade desnorteante. Seu pai me pediu
confissão!...
Senti um dos abalos maiores de minha vida. Tive as vontades mais
desencontradas: de chorar, de cantar, de dançar, de ajoelhar-me...
Fiquei rezando baixinho o Te Deum, enquanto ouvia o amigo reto e
bom! [...]
2
A longa carta à amiga Virgínia Côrtes de Lacerda chama-nos a atenção
por muitas razões. A primeira delas é a possibilidade que a correspondência nos
proporciona de observamos Helder Camara - um homem que ficou marcado por
suas ações conscientes e corajosas em prol de um mundo „mais justo e mais
fraterno‟, um homem que fez todos os governos brasileiros, civis ou militares,
democráticos ou ditatoriais, levá-lo em consideração, um homem ouvido e
reverenciado pelo mundo por força de suas palavras e de suas ideias em um ato
de entrega e de confiança, admitindo o sofrimento pessoal: “O coração queria, por
força, vir à boca para falar ao telefone. Desligado o aparelho, soube de tudo. Fiquei
tristíssimo e saí correndo”.
Na carta escrita por Helder são inúmeras as expressões de carinho, de
amor e de amizade: “Ah! Se eu pudesse! E de meia noite às sete horas da manhã
de 17, teria feito com você o que se faz com um filhinho doente: tê-la-ia colocado em
meu colo e teria cantado a mais suave e mais doce canção de ninar!”. O padre
revela ainda sentimentos e sensações muito humanas, sentidas e vividas ao ouvir as
últimas palavras de um ente muito querido: “Tive as vontades mais desencontradas:
de chorar, de cantar, de dançar, de ajoelhar-me... Fiquei rezando baixinho o Te
Deum, enquanto ouvia o amigo reto e bom!”. Cartas semelhantes foram escritas por
2
CAMARA, Helder. Carta Pessoal. 19 de fevereiro de 1944, Rio de Janeiro. Para Virgínia Côrtes de
Lacerda, Rio de Janeiro. 06p. Arquivo Pessoal.
18
Helder Camara durante muito tempo. Por quase duas décadas, escreveu cartas
diárias à amiga e confidente, Virgínia Côrtes de Lacerda.
Helder e Virgínia se conheceram em 1942, quando o então padre Helder
Camara é convidado por Dom Sebastião Leme da Silveira Cintra, cardeal arcebispo
do Rio de Janeiro, a lecionar nas recém fundadas Faculdades Católicas que,
posteriormente, se transformariam na Pontifícia Universidade Católica do Rio de
Janeiro. Por poucos anos, lecionou as disciplinas de didática geral e administração
escolar, passando, em seguida, a ministrar cursos de psicologia para as professoras
da Faculdade de Letras do Instituto Santa Úrsula. É, nessa instituição, que conhece
uma aluna que viria a se tornar especial. Anos mais tarde, em entrevista ao amigo e
jornalista francês José de Broucker, ele mesmo recorda:
Dans le premier groupe d‟étudiantes que j‟ai connues là, il y avait une
jeune fille. Non, elle n‟était pas tellement jeune. Je pense qu‟elle était
plus âgée que moi. Elle s‟appelait Virgínia Côrtes de Lacerda. J‟ai
tout de suite senti que j‟étais en présence d‟une intelligence
privilégiée, je dirais même rare. Elle lisait les classiques grecs
directement dans le texte original. Euripide, Sophocle…
Très vite, elle fut pour moi bien plus qu‟une élève. Nous travaillions,
nous étudiions ensemble. Au commencement, elle se tenait un peu à
l‟écart de la pratique religieuse mais rapidement, avec la sincérité
d‟un coeur généreux, elle est revenue à la maison du Père.
Alors, chaque matin elle participait à ma messe et recevait la
communion. C‟était une messe bien préparée. Je lui communiquais
toutes les méditations, toutes les réflexions que j‟écrivais pendant ma
veille, pour l‟aider à monter avec moi. Depuis mon séminaire, je veille
chaque nuit pour refaire l‟unité du Christ en moi.
3
Além dos encontros diários realizados após a missa das seis da manhã,
celebrada pelo padre Helder na Escola de Enfermagem Ana Nery, passaram a
3
CAMARA, Helder; BROUCKER, José de. Les conversions d’un Évêque: Entretiens avec José de
Broucker. Paris: L‟Harmattan, 2002. p. 99-100. Infelizmente, não uma tradução para o português
da obra de José de Broucker, assim optamos por manter o texto original em francês e traduzi-lo na
nota de rodapé: No primeiro grupo de estudantes que conheci havia uma jovem. Bem, não era tão
jovem. Creio que era mais velha do que eu. Chamava-se Virginia Côrtes de Lacerda. Em seguida,
compreendi que estava diante de uma inteligência privilegiada, inclusive diria rara. Lia os clássicos
gregos diretamente em seu texto original. Eurípides, Sófocles...
Logo de início foi para mim muito mais que uma aluna. A princípio ela se mantinha um pouco
afastada da prática religiosa, mas rapidamente, com a sinceridade de um coração generoso, ela
voltou à casa do Pai.
Todas as manhãs participava de minha missa e recebia a comunhão. Era uma missa bem preparada.
Eu lhe comunicava todas as meditações, todas as reflexões que eu escrevia durante minha vigília,
para ajudá-la a ascender comigo. Desde meu seminário, desenvolvi o bito da vigília a cada noite
para refazer a unidade do Cristo em mim”. (Tradução livre da autora.)
19
trabalhar e estudar juntos: “Nous avions pris aussi l‟habitude de lire, de lire, de lire
tout ce qui nous semblait capable de nous aider, soit dans une ligne directemente
spirituelle soit dans une ligne culturelle”.
4
É fascinante e singular o resultado desses estudos.
O historiador e seu ponto de partida
Arquivos pessoais são vistos pelos estudiosos como preciosas fontes
para reconstruir um processo de itinerário de formação do imaginário social. Foi
pensando nessas colocações que nos propomos à realização desse trabalho.
Adentrar pelos caminhos da Escrita de si, tal como analisa Michael Foucault,
5
para
compormos um novo olhar acerca do homem Helder Pessoa Camara.
Partindo de um conjunto de cartas escritas diariamente nos anos de 1944
a 1952, elaboramos este trabalho cujo cerne consiste em pensar de que forma
Helder Camara um sujeito histórico do ponto de vista religioso e político desde os
anos 1930 faz uso das missivas como um espaço de produção de si e do outro,
como um lugar de produção do sujeito. Um lugar aonde vem se alojar um corpo, um
rosto, uma relação. Tal correspondência apresenta-se carregada de inúmeros
significados no que diz respeito à vida e à obra de Helder Camara. Escritas em
séries, as epístolas nos possibilitam visualizar a construção de suas relações
pessoais e o percurso através dos quais suas ideias amadurecem e abrem novos
caminhos de reflexão em um período em que as facetas da personalidade com que
Helder ficaria conhecido estavam sendo devidamente buriladas e amadurecidas.
6
4
Ibdem. p. 100. “Havíamos adquirido também o hábito de ler, ler, e reler tudo o que nos parecia
capaz de ajudar-nos, principalmente em uma linha espiritual, mas também em uma linha cultural”.
(Tradução livre da autora)
5
Cf. FOUCAUT, Michael. A escrita de si. In: O que é um autor? Lisboa: Veja, Passagens, 1992.
6
Apesar de Helder Pessoa Camara ser estudado como uma personagem histórica, do ponto de vista
religioso e político, desde os anos trinta do século XX, ao fazermos menção às décadas de quarenta
e cinquenta como bastantes significativas em sua vida e obra, estamos fazendo referência ao período
em que o sacerdote, através de sua leitura de autores como Jacques Maritain, aprendeu a ver a
realidade econômica e social do país e do mundo e a buscar as causas estruturais da miséria dos
povos. Nesse período, Helder Camara percorreu todo um caminho, intelectual e espiritual, juntamente
com uma elite de leigos comprometidos com seus ideais de uma Igreja simples e voltada para os
pobres. Assim, Helder tornou-se bispo aos 43 anos, arcebispo auxiliar do Rio de Janeiro, secretário-
geral da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, defensor dos Direitos Humanos e propagador da
paz.
20
Fragmentos de uma ‘diário’ é o resultado de longo processo de pesquisa
iniciado em 2002, quando o Instituto Dom Helder Camara (IDHeC)
7
dava início a sua
caminhada rumo a primeira publicação do Projeto Obras Completas.
8
Naquela
ocasião, foi-nos concedida à oportunidade de trabalhar com uma série de livros
vindos de uma das bibliotecas pessoais de Dom Helder Camara, aquela que deixou
no Rio de Janeiro, no apartamento onde habitava com sua família antes de ser
nomeado a arcebispo de Olinda e Recife em 1964.
No decorrer das atividades, um livro chamou nossa atenção por parecer
um tanto quanto singular: tratava-se de Péguy et les Cahiers de la Quinzaine de
Daniel Halevy.
9
A singularidade a que fazemos referência vai além da capacidade do
autor em comentar a obra do poeta francês do culo XIX, Charles Péguy. O que
despertou a atenção foi à forma e a abundância de anotações contidas às margens
de suas páginas. Que Dom Helder anotasse cuidadosamente os livros que lhe
interessavam, não é novidade para ninguém que o conheceu de perto. Ora
sublinhando palavras, ora destacando parágrafos inteiros, com um ou dois traços
verticais ou então escrevendo observações às suas margens, muitas vezes
ocupando-as completamente.
10
Essas anotações atraíram nossa curiosidade no
mesmo instante, tornando-se, nos dias seguintes, constantes na memória.
11
Portanto, buscamos alargar nossa capacidade de olhar na tentativa de
perceber o invisível, de transformar pormenores normalmente considerados sem
importância ou até triviais em chaves para uma possível releitura de paradigmas e
„verdades‟. A partir de então, o que por seis décadas pareceu ser apenas um
conjunto de anotações meramente sem importância, revelou-se, ao nosso olhar,
uma farta documentação.
7
O Instituto Dom Helder Camara (IDHeC) é localizado no Recife Pernambuco, ao lado da Igreja das
Fronteiras, onde Dom Helder Camara morou por mais de trinta anos.
8
Em 2001, por sugestão do padre José Comblin, o Instituto Dom Helder Camara (IDHeC) elaborou o
Projeto Obras Completas, cujo objeto consiste em tornar possível, de forma responsável, aos
pesquisadores e ao público interessado, o acesso ao conjunto dos escritos de Dom Helder
depositados no Centro de Documentação. Em 2004, o IDHeC em parceria com a Universidade
Federal de Pernambuco (UFPE) lançou Vaticano II Correspondência Conciliar, o primeiro volume da
série sob a coordenação do professor Luiz Carlos Luz Marques. Em 2009, durante as comemorações
do centenário de nascimento de Dom Helder, o IDHeC publicou, em parceria com Companhia Editora
de Pernambuco (CEPE), mais dois volumes: Cartas Circulares Conciliares coordenado pelo professor
Luiz Carlos e Cartas Circulares Interconciliares coordenado por Zildo Rocha.
9
HALÉVY, Daniel. Péguy et les Cahiers de la Quinzaine. Paris: Éditeur Bernard Grasset, 1941.
10
A mais antiga indicação desse método encontra-se em um pequeno livro de salmos (PSALMOS.
Tradução de Mons. José Basílio Pereira. Salvador, 1922), que com muita probabilidade recebeu ao
ingressar no Seminário. Os versículos ali destacados balizam, de certa forma, as futuras escolhas
existenciais de Helder Camara.
11
Vide imagem do livro e das anotações nos Anexos A e B.
21
Michael Oakeshott na obra intitulada: Sobre a História e outros ensaios,
enfatiza que o trabalho do historiador não acaba com a localização das fontes, faz-
se ainda necessário aprender a ler criticamente um sobrevivente, a chegar a
entender sua „linguagem‟, a discernir a condicionalidade de sua expressão e a
reparar os danos que possa ter sofrido. Segundo Oakeshott,
Para um historiador, mesmo fragmentos do passado inerentemente
interessantes não são o fim, mas o começo de uma investigação,
preocupada não com o que eles são com seu caráter como
realizações, mas com o que deles pode ser inferido sobre um
passado que não sobreviveu.
12
Assim, nos meses que se seguiram, dedicamo-nos uma série de
pesquisas minuciosas e a uma intensa investigação das fontes. A transcrição e
análise das anotações as margens das obras de que dispunha o Instituto Dom
Helder Camara nos permitiram verificar que as margens dos livros registravam
diálogos que carregavam uma riqueza de afirmações as quais se nos apresentam
com diversas facetas: memórias, diários e uma variedade surpreendente de temas
abordados.
13
Essas descobertas chamaram-nos a atenção para os mais de 1.200 livros
que compõem a biblioteca pessoal carioca de Dom Helder Camara.
14
Até o
momento foram identificados 164 livros contendo anotações semelhantes. São obras
representativas dos mais variados temas: espiritualidade, educação, psicologia,
filosofia, literatura, etc. Em Péguy et les Cahiers de la Quinzaine, o volume das
anotações, por si surpreendente,
15
permite-nos identificar o hábito da leitura e
12
OAKESHOTT, Michael. Sobre a história e outros ensaios. Tradução de Renato Rezende. Rio de
Janeiro: Editora Topbookes, 2003. p. 108.
13
Em 2002 o Instituto Dom Helder Camara (IDHeC) dispunha de pouco mais de vinte obras oriundas
da biblioteca pessoal de Dom Helder Camara no Rio de Janeiro. Dessas obras, apenas cinco
apresentavam anotações: Péguy et les Cahiers de la Quinzaine de Daniel Halévy, Diário íntimo de
una adolescente e Ambicion y angustia de los adolescentes de Aníbal Ponce, A lenda dos três
companheiros de Nilson Carneiro da Cunha e A L’école de saint Benoît de D. Gorce. Sob a
orientação do professor Luiz Carlos Luz Marques iniciamos a pesquisa A biblioteca pessoal carioca
de Dom Helder Camara”. O estudo consistia na catalogação, identificação e transcrição das
anotações as margens das páginas dos exemplares da biblioteca carioca de Dom Helder e era parte
integrante do projeto “Dom Helder Camara, a Igreja católica e a sociedade brasileira no século XX,
fase II” coordenado pelo professor Luiz Carlos com o financiamento do IDHeC.
14
Todo esse acervo encontra-se hoje depositado no Instituto Dom Helder Camara (IDHeC).
15
Somente a transcrição das anotações dessa obra somou 56 páginas em formato A4, fonte Times
New Roman, tamanho 12, espaço 1,5.
22
releitura
16
de livros, que para os atentos leitores, são muito mais do que fontes de
conhecimento.
Ao longo das leituras e releituras, seus leitores dataram e anotaram
cuidadosamente os livros em suas margens, estabelecendo comentários que se nos
apresentam de diversas formas: por vezes referências aos autores e suas obras e,
em outros casos, verdadeiros diários contendo reflexões do dia-a-dia e registros de
memórias escritos sob os pseudônimos de padre Albertus e Caecilia. Memórias que
foram escritas sem que houvesse a intenção explícita de torná-las públicas.
Após realizarmos um estudo com as bibliografias disponíveis e um intenso
trabalho de cruzamento de fontes, encontramos em Les conversions d’un Évêque,
uma entrevista biográfica realizada pelo jornalista francês José de Broucker, a chave
para um possível entendimento de quem viria a ser a autora dos registros as
margens dos livros. No entanto, apenas em 2003, com a realização de uma rie de
entrevistas com amigos e colaboradores do padre Helder nos anos de 1940 e 1950,
foi-nos possível verificar que nas margens daqueles livros, estavam registrados os
estudos e diálogos do padre cearense Helder Pessoa Camara e da pedagoga e
literata mineira Virgínia Côrtes de Lacerda com quem compartilhava uma profunda
afinidade espiritual e intelectual. Virgínia era, sem dúvida, uma mulher que prezava
pela cultura e pela espiritualidade.
Virgínia Côrtes de Lacerda, filha do Coronel da Guarda Nacional Roberto
Lacerda e Dona Natalina Côrtes Lacerda, nasceu na Fazenda da Saudade, distrito
de Providência, município de Leopoldina, em Minas Gerais, em 23 de junho de 1903.
Ali morou até os oito anos de idade, quando foi para o Rio de Janeiro viver em
companhia dos tios maternos, Simplício e Rinalda Côrtes, para receber educação
complementar. Posteriormente, com a ida dos pais para o Rio de Janeiro, Virgínia
passou a viver com eles, mudando-se, em seguida, para a casa da irmã, Myrthes.
17
Em 1921, Virgínia diplomou-se como professora pela antiga Escola
Normal do Distrito Federal, atual Instituto de Educação, indo logo em seguida
lecionar no curso primário do Instituto La-Fayette, Departamento Feminino, na
Tijuca. Aos vinte anos lecionava no curso complementar e participava ativamente
16
Péguy et les Cahiers de la Quinzaine é uma obra lida em três tempos: em março de 1944, em maio
do mesmo ano e em março de 1946, desta vez apenas por Helder Camara.
17
RIEDEL, Dirce C.; VIEGAS, Ana Cláudia (org). Anotações para uma biografia de Virgínia Côrtes
de Lacerda. Rio de Janeiro: Publicação do Centro de Estudos Virgínia Côrtes de Lacerda, 1996. p.
05.
23
da organização pedagógica do ensino de Português e Latim do Instituto La-Fayette.
Especializou-se em Latim e Literatura, indo lecionar no Curso Geral Superior do
Instituto La-Fayette (curso de humanidades para formação da mulher), idealizado
por La-Fayette Côrtes e Francisco Levasseur França.
18
Em 1933, Virgínia prestou concurso para o cargo de Inspetor Federal de
Ensino Secundário (MEC), com provas específicas de Português e Latim, nas quais
obteve o primeiro lugar, exercendo a função técnico-pedagógica em âmbito nacional.
Também por concurso, em 1937, foi nomeada para o Quadro I do Ministério de
Educação e Saúde, passando a Técnico de Educação. Em 1941, enquanto cursava
o ultimo ano do curso de Letras Clássicas no Instituto Santa Úrsula, Virgínia
conheceu o padre Helder Camara, com quem compartilharia uma profunda afinidade
pessoal e intelectual. Na companhia do amigo, Virgínia colaborou na fundação da
revista Serviam, da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, e na década seguinte,
participou da organização e redação da revista Leitores e Livros, órgão do Serviço
de Informações Bibliográficas da Ação Católica, publicada pela Livraria Agir
Editora.
19
Virgínia foi uma mulher conectada com sua profissão e seu tempo. Como
educadora e crítica literária deixou uma produção expressiva tanto na área didática
quanto na área literária.
20
Aqueles que tiveram a oportunidade de conviver um pouco mais de perto
com o padre Helder e a professora Virgínia, logo perceberam que a cumplicidade e a
afinidade espiritual e intelectual que os unia se destacavam em meio às suas
relações pessoais. Marina Bandeira, amiga do padre Helder desde a década de
1950, também relembra um pouco essa afinidade:
18
Idem.
19
Ibidem. p. 06.
20
Em toda sua produção intelectual, Virgínia fez questão de deixar claro sua preocupação com uma
nova didática: Unidades literárias história da literatura brasileira (1944, com segunda edição em
1952); Unidades literárias história da literatura portuguesa, antologia, gramática aplicada e
sistematizada. 1953; e Das unidades didáticas a unidade da vida um método de educação (1951,
com segunda edição em 1984). Apesar de o conteúdo programático escolar ser pré-estabelecido pelo
MEC, nesses livros, Virgínia buscou a unificação entre a literatura, a gramática e a vida, inovando em
relação às propostas de estudo de língua e literatura da época. Além desses livros, publicou diversos
artigos de crítica literária: sobre Guimarães Rosa, Machado de Assis, Érico Veríssimo, Monteiro
Lobato, entre outros. Deixou inacabado um projeto de tese de Doutorado, sobre a orientação de
Alceu Amoroso Lima, na Faculdade Nacional, no qual se propunha a pesquisar as influências sofridas
por Machado de Assis, destacando-se o encontro desse escritor com Matias Aires. Sobre Virgínia C.
de Lacerda ver: RIEDEL, Dirce C.; VIEGAS, Ana Cláudia (org), 1996. Anotações para uma biografia
de Virgínia Côrtes de Lacerda. Rio de Janeiro: Publicação do Centro de Estudos Virgínia Côrtes de
Lacerda, 1996. Vide fotografia de Virgínia Côrtes de Lacerda no Anexo C.
24
Eu sei, e vi, constatei, que havia uma afinidade muito grande entre
Dom Helder e Virgínia Côrtes de Lacerda, especialmente uma
afinidade intelectual, conhecimentos, livros que liam e comentavam.
Isso eu posso dizer com tranquilidade porque eu me lembro.
21
Em carta de 17
de abril de 1944, Helder ressalta uma passagem do dia
anterior que deixa claro a percepção dos amigos mais atentos a respeito dessa
amizade:
Por que não falou à D. Elisa? Ela é tão simples e tão minha amiga...
Quer bem a todos quantos gostam de mim. E me disse: „De suas
amigas todas, a mais querida é D.V.‟ Como você sabe disso? Em
que se baseia? (Raramente toco no nome da pessoa querida ao
palestrar com os outros). Comentou amável: „Foi à escolhida para
sua Assistente, para sua Substituta. E você não faria isso com
qualquer uma‟. Sorri e nem disse sim e nem não...
22
O estudo exaustivo das anotações e entrevistas realizadas com
colaboradores e amigos do padre Helder no Rio de Janeiro apontava indícios de um
segundo caminho capaz de conduzir-nos a outras interpretações a respeito de tal
afinidade. Apenas em 2004, foi possível localizar um conjunto de cartas escritas por
Helder Camara, durante suas vigílias, e endereçadas à Virgínia C. de Lacerda. Para
além dos encontros diários e dos estudos, Helder e Virgínia trocaram uma enorme
correspondência pessoal escrita diariamente durante quase duas décadas.
23
Infelizmente, até o momento, apenas uma parte deste material pôde ser recuperada.
21
BANDEIRA, Marina. Entrevista. Entrevistadora: Jordana Gonçalves Leão. Recife, 2002. Entrevista
concedida a pesquisa “A biblioteca pessoal carioca de Dom Helder Camara”. Arquivo Pessoal. É
válido salientar que as expressões aqui apresentadas são frutos do calor da hora e não foram
submetidas a qualquer revisão gramatical, sendo utilizadas na íntegra, tal qual nos foram fornecidas.
22
CAMARA, Helder. Carta Pessoal. 17 de abril de 1944, Rio de Janeiro. Para Virgínia Côrtes de
Lacerda, Rio de Janeiro. 04p. Arquivo Pessoal.
23
Segundo a historiadora Ângela de Castro Gomes no trabalho Em família: a correspondência de
Oliveira Lima e Gilberto Freyre, escrever cartas configura-se em uma prática cultural muito exercida
pelos intelectuais do século XIX e início do XX. Todavia, chama-nos atenção o volume de cartas do
padre Helder. Sobre o estudo de correspondências Cf. GOMES, Ângela de Castro. Em família: a
correspondência de Oliveira Lima e Gilberto Freyre. Campinas: Mercado de Letras, 2005. Coleção
Letras em Série; GOMES, Ângela de Castro (org). Escrita de si, escrita da história. Rio de Janeiro:
FGV, 2004; SILVESTRI, Nicoletta. La corrispondenza privata: spunti di riflessione. In TOSCANA,
Regione e REGIONALE, Giunta (org). Percorsi di Archivo: L‟archivio di Enesto Balducci. Toscana:
Edizioni Regionale Toscana, 2000; AMED, Fernando. As cartas de Capistrano de Abreu.
Sociabilidade e vida literária na belle époque carioca. São Paulo: Alameda, 2006 e GALVÃO, Walnice
Nogueira; GOTLIB, Nádia Battella (org), Prezado senhor, prezada senhora. Estudos sobre cartas.
São Paulo: Companhia das Letras, 2000.
25
Trata-se de uma coleção de 1.734 cartas, escritas de 02 de janeiro de 1944 a 31 de
dezembro de 1952.
24
Nas cartas, que se apresentam como uma espécie de “diário” intimo,
podemos observar o jovem padre Helder utilizando-se do ato de escrever de forma
terapêutica, catártica, buscando atenuar as angústias e a solidão. Virgínia
representava o interlocutor ideal com quem podia abrir-se sem reservas, permitindo
que sua memória e seus sentimentos fluíssem soltos, livres, ao correr da pena. Um
exemplo bastante significativo a esse respeito é a carta escrita em janeiro e 1944.
Nesse período, o padre Helder Camara exercia funções prevalentemente
burocráticas, como técnico do Ministério da Educação e vivia a angústia e a
expectativa de ser liberado da espécie de „limbo pastoral‟ em que era mantido pelo
cardeal do Rio de Janeiro, Dom Jaime Camara.
Caecilia: boa noite!
Hoje, com a graça de Deus, posso falar por experiência própria.
Estou nadando de felicidade desde as 12 ½. Cheguei atrasado ao
Ministério (preguei em uma missa extra dos guardas-marinha) e
encontrei, esperando o elevador vizinho ao meu, um senhor que me
olhava de modo muito fixo. Quase falei com ele. O elevador dele
chegou e ele não quis subir, explicando alto: „Quero ficar olhando
este padre, o maior quinta-coluna que o Brasil possui. Integralista!‟.
Todos pararam e ficaram me olhando espantados. O homem
continuou: „Gosto de ver tanta inteligência a serviço da maldade. Tire
essa batina, infeliz!‟. Perguntei, tímido, ao meu agressor: „Meu amigo,
alguma vez eu o ofendi?‟. Ele gritou ofendido: „Amigo do diabo, mas
não meu! Ofender a mim, não. Isto não tinha importância. Traiu o
Brasil. Matou inocentes...‟ Juntou gente e eu senti que alguns me
olhavam com desprezo, outros com dó. Chegou o elevador e eu
parti. Cantei um dulcíssimo SF e a alegria perfeita me inundou desde
então! E hoje mesmo quis contar o fato à minha irmã.
25
24
Tomadas como um todo, a correspondência pessoal trocada entre Helder e Virgínia nos anos 40 e
50 1.734 cartas escritas em cerca de 4.130 manuscritos revela-nos um conjunto de características
que recordam imediatamente as Cartas Circulares que Dom Helder passou a escrever em Roma
durante o Concílio Ecumênico Vaticano II. Será necessário, portanto, rever a tese de um início não
premeditado das Circulares Conciliares dado que o hábito de escrever cartas fora constituído desde
os anos 40. Sobre as Cartas Circulares ver CAMARA, Helder. Vaticano II Correspondência
Conciliar Circulares à Família do São Joaquim, 1962-1964. Introdução e notas Luiz Carlos L.
Marques. IDHeC Obras Completas. Recife: Ed. Universitária da UFPE, 2004; CAMARA, Helder.
Circulares Conciliares. Notas Luiz Carlos Luz Marques e Roberto de A. Farias. Vol. I. Tomo I, II e III.
Recife: Editora CEPE, 2009; CAMARA, Helder. Circulares Interconciliares. Notas Zildo Rocha. Vol.
II. Tomo I, II e III. Recife: Editora CEPE, 2009; MARQUES, Luiz Carlos Luz. Il carteggio conciliare di
Mons. Helder Pessoa Camara (1962-1965). Tese de Doutorado em História Religiosa defendida na
Universidade de Bolonha Itália, 1998.
25
CAMARA, Helder. Carta Pessoal. 19 de janeiro de 1944, Rio de Janeiro. Para Virgínia Côrtes de
Lacerda, Rio de Janeiro. 03p. Arquivo Pessoal.
26
Ao lado dos relatos e dos acontecimentos importantes, Helder narra o
cotidiano: a missa das seis na Escola de Enfermagem Ana Nery, as aulas que
seriam ministradas para suas alunas, os momentos que passava ouvindo pessoas
que buscavam ajuda para a resolução de todos os tipos de problemas, o trabalho no
Ministério da Educação, a viagem de bonde na volta para casa, etc.
Por outro lado, resta-nos ainda ouvir o silêncio indicado pela
documentação: o cuidado estabelecido no tocante ao sigilo dessa amizade, o uso
constante dos pseudônimos e a preocupação com a guarda e a conservação das
cartas e dos escritos às margens dos livros são de grande valor representativo neste
sentido.
Segundo a historiadora Ângela de Castro Gomes, “escrevendo, é possível
estar junto, próximo ao „outro‟ através do objeto carta”,
26
mas essa era apenas uma
das inúmeras intenções do padre Helder.
Traçando caminhos: a escolha das fontes, dos métodos e dos capítulos
O estudo de cartas representa um novo espaço de investigação histórica:
aquele do privado, onde deriva a esperança das mulheres e dos homens „comuns‟,
27
onde se avultam em importância as práticas da escrita de si. É, portanto, nessa
perspectiva de fundo que as cartas escritas por Helder Pessoa Camara para Virgínia
Côrtes de Lacerda entre 1944 e 1952 foram localizadas, reunidas e analisadas,
permitindo-nos estabelecer novos olhares sobre a vida e o trabalho do padre
cearense. Adentraremos no estudo das suas correspondências pessoais numa
tentativa de pensarmos como as missivas o servem como espaço de registro e
produção de um sujeito histórico.
Se fosse preciso atribuir às cartas do padre Helder Camara um gênero
literário, este seria a autobiografia, ou o que os historiadores classificam como
escrita auto-referencial ou Escrita de si, uma das muitas possibilidades da História
26
GOMES, Ângela de Castro (org). Escrita de si, escrita da história. Rio de Janeiro: Fundação
Getúlio Vargas, 2004. p. 20.
27
Ibidem. p. 09.
27
Cultural.
28
Escrever um diário, guardar papéis, fazer uma coleção e escrever uma
autobiografia são práticas que participam mais daquilo que Michel Foucault chama
de a preocupação com o eu.
29
Nos últimos trinta anos nos deparamos com a multiplicidade da História.
Saímos daquela História sem surpresas, de projetos pré-definidos para uma História
do inesperado, onde se é possível não mais simplesmente narrar fatos, mas analisar
os homens, com seus comportamentos, pensamentos e, até mesmo, seus atos mais
voláteis. A infância, a morte, a loucura, a feminilidade, a sexualidade, a solidão, as
palavras e até mesmo o silêncio, em seus aspectos mais reveladores, tornou-se
objeto de estudo.
O que era previamente considerado imutável passou a ser encarado
como uma “construção cultural” sujeita a variações tanto no tempo como no espaço.
A base da filosofia histórica é a ideia de que a realidade e a verdade são sociais ou
culturalmente construídas. Com essas novas categorias e abordagens, frutos das
múltiplas vertentes do olhar sobre a história, transformam-se, entre outras, as
noções de memória, documento, verdade, tempo e história.
30
Nessa perspectiva, com a finalidade de nortear nosso fazer
historiográfico, nos apropriamos de alguns desses conceitos sob o prisma da Escrita
de si. Assim, no desenrolar do nosso estudo, a verdade não será compreendida
como una e objetiva, suscetível à submissão de provas. O que passa a importar para
aos nossos olhos é, exatamente, a ótica assumida pelo registro e como seu autor a
expressa. Isto é, na prática da Escrita de si, o documento não trata de “dizer o que
28
Ainda não são muito frequentes pesquisas acadêmicas que se concentrem na exploração desse
tipo de escrita. Todavia, sobre a prática da escrita de si Cf. FOUCAULT, Michal. A escrita de si. In: O
que é um autor? Lisboa: Veja, Passagens, 1992; GOMES, Ângela de Castro (org). Escrita de si,
escrita da história. Rio de Janeiro: FGV, 2004; GOMES, Ângela de Castro. Em família: a
correspondência de Oliveira Lima e Gilberto Freyre. Campinas: Mercado de Letras, 2005. Coleção
Letras em Série; AMED, Fernando. As cartas de Capistrano de Abreu. Sociabilidade e vida literária
na belle époque carioca. São Paulo: Alameda, 2006.
29
FOUCAULT, Michal. A escrita de si. In: O que é um autor? Lisboa: Veja, Passagens, 1992.
30
Sobre esse processo Cf. ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz. História: A arte de inventar o
passado. Ensaios de teoria da história. Bauru, SP: EDUSC, 2007; CANNADINE, David (Org.). Que é
a história hoje? Lisboa: Editora Gradativa, 2006; CERTEAU, Michel de. A escrita da história.
edição. Tradução de Maria de Lourdes Menezes. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2000; DIEHL,
Astor Antônio. Cultura historiográfica. Memória, identidade e representação. Bauru, SP: EDUSC,
2002; HUNT, Lynn. A nova história cultural. Tradução Jefferson Luiz Camargo. edição. São
Paulo: Martins Fontes, 2001; REIS, José Carlos. Nouvelle histoire e o tempo histórico (A
contribuição de Febvre, Bloch e Braudel). São Paulo: Editora Ática, 1994; RUSEN, Jörn.
Reconstrução do passado. Tradução de Asta-Rose Alcaide. Brasília: Editora da Universidade de
Brasília, 2007 e SILVA, Rogério Forastieri da. História da historiografia: capítulos para uma história
das histórias da historiografia. Bauru, SP: EDUSC, 2001.
28
houve”, mas de dizer o que o autor diz que viu e sentiu. A verdade passa a
incorporar a subjetividade, a fragmentação, o sentido plural, “como são plurais as
vidas individuais, como é plural e diferenciada a memória que registra os
acontecimentos da vida”.
31
Olhar semelhante será direcionado ao tempo histórico, que passa a ser
percebido em suas fragmentações, com ritmos e conteúdos diferenciados. As
práticas da Escrita de si podem evidenciar, com muita clareza, como uma trajetória
individual tem um percurso que se altera ao longo do tempo, podendo mostrar ainda,
conforme sublinhou Ângela de Castro, como o mesmo período da vida de uma
pessoa pode ser “decomposto” em tempos com ritmos diversos: um tempo da casa,
um tempo do trabalho, etc.
32
É a criação do tempo da simultaneidade, onde os
tempos históricos se cruzam, avançando em diferentes velocidades, permitindo ao
historiador estar no passado e/ou no presente, bastando apenas o
(re)direcionamento do seu olhar.
Em sua correspondência pessoal, Helder Camara muitas vezes nos
apresenta sua capacidade de estar no tempo e de assumir todos os tempos
passado, presente e futuro com uma perspectiva invejável.
Rio, 6/7.2.47
Minha querida Irmã. Benedicamus Domino!
1909/1947 = 38 anos; 456 meses; 13.680 dias; 328.320 horas;
19.699.200 minutos; 1.181.952.000 segundos.
Por mais que a ordenação sacerdotal avulte o 15 de agosto de 1931
não pode fazer esquecer o 7.02.1909. O aniversário natalício não é
invenção arbitrária dos homens. Nosso tempo se conta pela marcha
de Teu sol e Tu lhe deste o ritmo que possui e lhe indicaste a rota de
que não se afasta.
A redução dos anos a meses, dos meses a dias, dos dias a horas,
das horas a minutos, dos minutos a segundos esmaga! Diante de
Ti, quantos segundos valeram, quantos minutos contaram, quantas
horas surgiram cheias, quantos dias foram dias, quantos meses
foram meses? Quantos anos eu tenho?
33
31
GOMES, Ângela de Castro. (org) 2004. op. cit. p. 14.
32
Ibidem. p. 13.
33
CAMARA, Helder. Carta Pessoal. 06/07 de fevereiro de 1947, Rio de Janeiro. Para Virgínia Côrtes
de Lacerda, Rio de Janeiro. 05p. Arquivo Pessoal.
29
Fazendo uso dessas concepções teórico-metodológicas, apresenta-se
plausível o desenvolvimento dessa análise historiográfica cujas principais fontes
conotam um caráter privado: correspondências pessoais pensadas a partir do
texto, do suporte material e dos anexos como as Meditações do padre José, as
fotografias e mapas; anotações as margens dos livros, manuscritos pessoais como
„A escolha de Deus‟ de 1943 e o „Testamento Espiritual‟ escrito em 1950 e algumas
das Cartas Circulares escritas por Dom Helder Camara entre 1962 e 1982.
34
Todavia, ao longo da construção deste trabalho faremos uso de uma série de
entrevistas realizadas com amigos e colaboradores do padre Helder Camara nas
décadas de 1940 e 1950, e que serão trabalha a partir do referencial teórico da
História Oral e da Memória, através de pensadores como Eclea Bosi e Noberto
Bobbio. Trabalharemos ainda com as biografias e bibliografias sobre Dom Helder
Camara encontradas no Arquivo do Centro de Documentação.
A utilização desse modelo de fonte historiográfica parece-nos bastante
promissor e atual dado o número de trabalhos que se encontram em
desenvolvimento por todo o Brasil e na Europa. A exemplo disso é possível citar os
trabalhos da historiadora Ângela de Castro Gomes, Escrita de si, escrita da história e
Em família: a correspondência de Oliveira Lima e Gilberto Freyre, o trabalho da
historiadora italiana Nicoletta Silvestre, La corrispondenza privata: spunti di
riflessione, cuja análise se volta para o conjunto de cartas particulares do padre
italiano Ernesto Balducci.
35
Ângela, Nicoletta e tantos outros historiadores
comprovam-nos a profunda relevância, para a análise histórica, das fontes de
caráter privado, por apresentarem facetas das vidas, do pensamento e do trabalho
dos envolvidos. Dessa forma, podemos situar nossa análise como parte desse novo
campo de estudo, apresentando-se como uma chave de leitura importante à medida
que tais manuscritos, mesmo se apresentando de forma pessoal, são reveladores da
34
As Cartas Circulares encontram-se no arquivo do Centro de Documentação Helder Camara
(CeDoHC) e aos poucos estão sendo publicadas através do Projeto Obras Completas do Instituto
Dom Helder Camara (IDHeC).
35
Sobre o estudo de correspondências Cf. GOMES, Ângela de Castro. Em família: a
correspondência de Oliveira Lima e Gilberto Freyre. Campinas: Mercado de Letras, 2005. Coleção
Letras em Série; GOMES, Ângela de Castro (org). Escrita de si, escrita da história. Rio de Janeiro:
FGV, 2004; SILVESTRI, Nicoletta. La corrispondenza privata: spunti di riflessione. In TOSCANA,
Regione e REGIONALE, Giunta (org). Percorsi di Archivo: L‟archivio di Enesto Balducci. Toscana:
Edizioni Regionale Toscana, 2000; AMED, Fernando. As cartas de Capistrano de Abreu.
Sociabilidade e vida literária na belle époque carioca. São Paulo: Alameda, 2006 e GALVÃO, Walnice
Nogueira; GOTLIB, Nádia Battella (org), Prezado senhor, prezada senhora. Estudos sobre cartas.
São Paulo: Companhia das Letras, 2000.
30
forma como tais personagens estavam vivendo as realidades sociais e culturais do
seu tempo.
Para tratarmos dessa „escrita de si‟ e de outros, dividimos este trabalho em
três capítulos assim distribuídos: Em Helder Camara: algumas trilhas da trajetória
visível, despertamos para a necessidade de voltarmos nosso olhar para algumas
trilhas que Helder Camara percorreu ao longo dos seus 90 anos. Trataremos apenas
de fragmentos de uma vida por acreditarmos que traçar seu perfil biográfico seria
outra tese. Assim, procuraremos nos deter a alguns de seus percursos e suas ideias
como forma de apresentar em linhas gerais Helder Pessoa Camara, um homem
reconhecido mundialmente por suas atuações religiosas e políticas desde os anos
de 1930.
Em Artes de construção de si mesmo: as epístolas do padre Helder,
voltamos nosso olhar para as cartas e a narrativa como um espaço de produção de
si mesmo e do outro, um espaço de construção do sujeito. Buscamos observar a
prática missivista do padre Helder e pensar a escrita epistolar como um lugar, onde
vem se alojar um corpo, um rosto, um sentimento. Veremos que a correspondência
pessoal sela, ainda mais, um „pacto epistolar‟ por abarcar assuntos íntimos e um
pouco secretos. Nesse caso, elas podem ser cuidadosamente guardadas pelo
destinatário, como um bem de valor afetivo incomensurável ou como um objeto de
„memória‟. Contudo, não é incomum que, justamente pelas mesmas razões, elas
sejam destruídas até mesmo a pedido do remetente ou sejam mantidas a
distância de qualquer outro leitor. No caso da correspondência pessoal de Helder e
Virgínia, os caminhos escolhidos para a guarda e conservação do material foram
muitos, conforme veremos nesse capítulo.
Por fim, em História ao portador: memórias epistolares, apontamos que
embora as correspondências sejam necessariamente escritas para serem lidas por
certa pessoa, o que sela um „pacto epistolar‟, em geral, nem sempre elas tratam
apenas dos sujeitos diretamente envolvidos. Dessa forma, observamos que as
cartas apresentam ainda toda uma rede de sociabilidade, tornando possível o
desenvolvimento de um estudo sobre relações cotidianas, caminhos, escolhas,
ideias, confidências e expectativas criadas ao longo de um percurso entre indivíduos
que marcam um tempo.
31
CAPÍTULO I
HELDER CAMARA: ALGUMAS TRILHAS DA
TRAJETÓRIA VISÍVEL
32
HELDER CAMARA: ALGUMAS TRILHAS DA TRAJETÓRIA VISÍVEL
Recife, 1982. Sentado atrás de sua mesa de trabalho, na sala da pequena
casa em que morava desde 1968, no fundo da Igreja das Fronteiras em Recife, e
provavelmente vestindo uma batina creme e trazendo no peito sua velha cruz de
madeira presente do padre Marcelo Carvalheira ainda nos tampos do Concílio
Vaticano II, para simbolizar seu engajamento em favor dos oprimidos - Dom Helder
Camara, então com 73 anos, inicia mais uma manhã de vigília. Entre orações,
leituras, e correspondências, o arcebispo de Olinda e Recife relembra momentos de
sua infância em Fortaleza. Lembra da mãe dona Adelaide com seu jeitinho manso e
ao mesmo tempo repleto de expressão, das longas conversas com o pai, o senhor
João Camara, de Antônia a emprega da casa dos Camara a quem as crianças
tinham imenso prazer de ouvir falar sobre os escravos que fugiam ou sofriam nas
senzalas, das brincadeiras no sobrado da rua Sena Madureira.
36
Uma lembrança em especial passa pela memória de Dom Helder: a vigília
de 07 de fevereiro de 1979 quando, de Puebla no México onde participava da
terceira Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano, escreve a carta circular
em ação de graças pelos seus 70 anos de vida:
Puebla, 6/7.2.1979.13ª Circular
Vigília em honra de São Romualdo e em Ação de Graças pelos meus
70 anos de vida terrena.
À querida Família Mecejanense
Claro que a vigília de hoje merece ser plena! Para agradecer ao Pai
o dom da vida!
Como não lembrar d‟aquele e d‟aquela que colaboraram com o Pai
para chamar-me a vida?! Penso no Paizinho e na minha querida
Magaidinha. Como devo, aos dois, lições inesquecíveis!
Ajudou-me a nascer uma parteira que se chamava Mãe Mansa.
Quem sabe, Deus lhe deu a graça de transmitir-me o carisma de
jamais guardar, durante toda a vida, a mais leve gota de travo contra
ninguém?!
36
Sobre a infância de Helder Camara, Cf. PILETTI, Nelson; PRAXEDES, Walter. Dom Helder
Camara. Entre o poder e a profecia. São Paulo: Editora Ática, 1997; PILETTI, Nelson; PRAXEDES,
Walter. Dom Helder Camara: o profeta da paz. São Paulo: Contexto, 2008.
33
Como não recordar, hoje e sempre mais, não com tristeza ou medo,
mas com serenidade e alegria, o que diz o salmo 89: „Mesmo que
alguém viva 70 anos e o mais robusto até 80, a maior parte da vida é
fadiga inútil porque os anos voam!‟
37
Realmente os anos voaram para o jovem padre Helder que, em 1944, aos
35 anos escrevia para a amiga Virgínia Côrtes de Lacerda:
Aparecida, 7.2.1944.
Minha querida Irmã.
35 anos: Que responsabilidade Caecilia!
Quantos e quantos não teriam aproveitado muito melhor as graças
inúmeras que o Bom Deus derrama sobre mim! Salve-me a
humildade sincera com que reconheço essa triste verdade. Salve-me
a aceitação total da vontade divina: se Ele quiser levar-me hoje
mesmo, sem que eu possa recuperar o tempo malbaratado e aplicar-
me a empreendimentos dignos de uma vida que me leve e a
humilhação de nada ter deixado aqui na terra me será salutar; se Ele
preferir pode deixar-me mais tempo antes de levar-me a eternidade:
nesta hipótese, peço apenas que Ele custe o que custar me livre
do pecado.
38
Voltando das lembranças, toma a caneta em punho, provavelmente sua
tradicional caneta Parker,
39
e prepara-se para escrever à Família Mecejanense. De
Recife ou de qualquer outra parte do mundo, Dom Helder se correspondia
regularmente com seu grupo de amigos e colaboradores, reunido ao longo de quase
três décadas, desde a sua chegada ao Rio de Janeiro, em 1936. Hábil na escrita
epistolar desde os anos 40 do século XX, ao participar do Concílio Ecumênico
Vaticano II em 1962, Dom Helder Camara fez das cartas seu jornal do Concílio e sua
forma de está sempre junto dos amigos que chamava de “Família”. Assim, em meio
às reuniões do Vaticano II, Dom Helder escreveu 290 cartas: uma por noite.
40
Como
37
CAMARA, Helder. Carta Circular para a Família Mecejanense. Puebla, 06/07 de fevereiro de 1979.
Arquivo do Centro de Documentação Helder Camara (CeDoHC).
38
CAMARA, Helder. Carta Pessoal. 07 de fevereiro de 1944, Rio de Janeiro. Para Virgínia Côrtes de
Lacerda, Rio de Janeiro. 03p. Arquivo Pessoal.
39
PILETTI, Nelson; PRAXEDES, Walter. Dom Helder Camara. Entre o poder e a profecia. São
Paulo: Editora Ática, 1997. p. 372.
40
A “1ª carta”, como ele mesmo denomina, fora escrita na vigília do dia 13/14 de outubro de 1962,
apenas quatro dias após sua chegada a Roma para o início do Concílio Ecumênico Vaticano II e, não
aleatoriamente, Dom Helder a apresentou como sendo a “primeira”. Depositadas nos arquivos do
Instituto Dom Helder Camara (IDHeC), as 2.950 Cartas Circulares estão sendo, aos poucos,
publicadas através do Projeto Obras Completas.
34
nessa época vários desses amigos trabalhavam com ele no Palácio São Joaquim,
para não enviar as cartas no nome de uma pessoa, ele as remetia à “Família do
São Joaquim” e posteriormente, à “Família Mecejanense”. Ao serem recebidas do
Brasil, as cartas eram datilografadas em vários exemplares e circulavam entre os
amigos que intimamente comungavam de seus ideais de Igreja simples e voltada
para os pobres. Com o fim do Vaticano II, Dom Helder continuou a escrever dando
notícias do Recife e seus mocambos, dividindo as angústias provocadas pelo
embate com a Ditadura Militar e compartilhando seus sonhos em favor da paz.
41
Segundo os historiadores Nelson Pilette e Walter Praxedes, duas ou três
vezes por semana Dom Helder dava um jeito de encontrar um portador de sua
confiança que levasse as Circulares do Recife ao Rio de Janeiro e as entregasse em
mãos de Cecilia Monteiro ou Agláia Peixoto, pois se fossem enviadas pelos correios
havia grande possibilidade de serem violadas pela polícia política a serviço da
ditadura.
42
Nessa época as circulares à “Família Mecejanense” se tornaram menos
frequentes. Às vezes passavam várias semanas sem que sentisse ânimo para
escrever aos seus amigos e colaboradores que, porém, continuavam
acompanhando suas atividades e o assessorando.
A missa, rezada na Igreja das Fronteiras pontualmente às seis para pouco
mais de uma dezena de fiéis e para as irmãs da Escola de Enfermagem, ao lado da
igreja, termina menos de meia hora depois, e Dom Helder dirigi-se ao encontro de
pessoas que o esperam para pedir-lhe um pouco de atenção em uma conversa
rápida, algum dinheiro para a comida do dia ou para um remédio, ou simplesmente
um café da manhã, que sua enfermeira ajuda a servir. Assim que consegue, volta
para casa e toma seu café da manhã café preto, de vez em quando um pouco de
leite, algumas bolachas e um pedaço de queijo.
43
41
Sobre as Cartas Circulares Cf. CAMARA, Helder. Vaticano II Correspondência Conciliar
Circulares à Família do São Joaquim, 1962-1964. Introdução e notas Luiz Carlos L. Marques. IDHeC
Obras Completas. Recife: Ed. Universitária da UFPE, 2004; CAMARA, Helder. Circulares
Conciliares. Notas Luiz Carlos Luz Marques e Roberto de A. Farias. Vol. I. Tomo I, II e III. Recife:
Editora CEPE, 2009; CAMARA, Helder. Circulares Interconciliares. Notas Zildo Rocha. Vol. II.
Tomo I, II e III. Recife: Editora CEPE, 2009; BROUCKER, José de. Les nuits d’un prophète. Dom
Helder Camara à Vatican II. Paris: Les Éditions du Cerf, 2005; MARQUES, Luiz Carlos Luz. Il
carteggio conciliare di Mons. Helder Pessoa Camara (1962-1965). Tese de Doutorado em História
Religiosa defendida na Universidade de Bolonha Itália, 1998.
42
PILETTI, Nelson; PRAXEDES, Walter. op. cit. p.373.
43
Sobre a missa das seis na Igreja das Fronteiras, Cf. CASTRO, Marcos de. Dom Helder: misticismo
e santidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002.
35
A manhã de trabalho começa com a preparação do programa “um olhar
sobre a cidade” a ser gravado para posterior transmissão pela Rádio Olinda, de
segunda a sábado das seis e vinte e cinco às sete da manhã. O único horário que
deixaram que ele ocupasse, depois de o irem empurrando para cada vez mais cedo.
Mas isso afinal parecia não aborrecer Dom Helder. Segundo Marcos de Castro, ele
sabia que a essa hora quem o ouvia era justamente o trabalhador mais humilde.
44
A
crônica daquela manhã, pensada e escrita para o „povo‟, falava exatamente sobre o
olhar.
Um olhar
O que é um olhar?
A pergunta nos interessa porque o nosso programa se chama „Um
olhar sobre a cidade‟.
Não basta abrir os olhos para olhar...
Quando, depois de 10 ou 15 dias de chuva, começa uma estiagem
que passa de uma semana, de duas, o nordestino olha o céu… Olhar
de inquietação, mais ainda de esperança e até de prece! E quando o
céu está nublado, escuro, ameaçando chuva, quem é do Sul é capaz
de achar o tempo feio: o nordestino acha o tempo bonito, porque,
quem sabe, vai trazer a esperada chuva…
Quando uma mãe se vê diante do primeiro sorriso do filhinho, o olhar
que lhe lança é quase um canto de alegria, de felicidade e de ação
de graças...
Quando, na rodoviária, a esposa o marido seguir de ônibus para
São Paulo, o olhar de despedida e de prece para que tudo lhe corra
bem, e para que ele, como tanto deseja, encontre um emprego que
permita, quanto antes, mandar buscar a família...
Quem levanta o lenço que cobre o rosto muito querido de uma
pessoa muito sua, rosto que será visto de novo no céu, o olhar é
de dor, de despedida dolorosa, de quem fica de coração partido...
Quando dois jovens estão sentindo o amor despertar entre eles, e se
entreolham, o olhar canta, baila, dança!
Quando o cearense cansa de esperar chuva e se decide a tomar o
pau-de-arara, o olhar que ele dirige à sua rocinha é de cortar o
coração da gente.
Olhar que é uma delícia é o da criança que está descobrindo, vendo
tudo como se nunca ninguém tivesse visto e exclama a cada
instante: Olha lá! Olha lá! [...]
45
44
CASTRO, Marcos de. Dom Helder: misticismo e santidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
2002. p. 38.
45
CAMARA, Helder. Um olhar sobre a cidade: olhar atento, de esperança, de prece. São Paulo:
Paulus, 1995. p. 07/08.
36
A crônica escrita por Dom Helder pode servir-nos de parâmetro para
ilustrarmos um pouco de sua trajetória de vida. Pensamos que o olhar pode se
constituir no ponto de partida para várias construções de mundo, na busca de
interpretações e, sobretudo, na tentativa de se extrair das coisas um sentido. Dessa
forma, ao propormos o trabalho com as correspondências pessoais do padre Helder
Camara, onde buscamos compreender de que forma o autor faz uso desse espaço
de produção de si e do outro como um lugar de produção do sujeito, despertamos
para a necessidade de voltarmos nosso olhar para algumas das trilhas que
percorreu ao longo dos seus 90 anos.
Segundo Pierre Bourdieu, “falar de história de vida é pelo menos
pressupor e isso não é pouco que a vida é uma história”.
46
Essa “ilusão
biográfica” apontada por Bourdieu assinala que produzir uma história de vida, tratar
a vida como uma história, significa acreditar que a essa seja o relato coerente de
uma sequência de acontecimentos com significado e direção, que as vidas humanas
sejam marcadas por cronologias que datam do nascimento até a morte.
47
Bourdier
sugere que para sair da tradição biográfica é indispensável reconstituir o contexto, a
superfície social em que agiu o indivíduo, respeitando a variedade de campos e
momentos da vida e às redes de sociabilidade em que o indivíduo biografado esteve
inserido.
48
Muitos pesquisadores entre filósofos, teólogos, jornalistas e historiadores
de todo o mundo estudaram e escreveram acerca de Dom Helder Camara. Alguns
se aventuraram pelos caminhos da biografia e apresentaram trabalhos onde é
possível observarmos uma trajetória bem definida de sua vida e sua obra. Nesse
sentido, Dom Helder Camara: entre o poder e a profecia e Dom Helder Camara: o
profeta da paz dos historiadores Nelson Piletti e Walter Praxedes são bastante
representativos. Outra importante fonte de informações biográficas apresenta-se em
Les convencions d’un évêque. Entretiens avec José de Broucker onde em entrevista,
ao amigo e jornalista francês, Helder Camara recorda momentos chaves de sua
vida.
49
46
BOURDIEU, Pierre. A ilusão biográfica. In: FERREIRA, Marieta de Moraes; AMADO, Janaína.
(org.). Usos e abusos da História oral. Rio de Janeiro. FGV. 2002. p. 183.
47
Idem.
48
Ibdem. p. 186.
49
Trabalhos com perfil menos abrangente, mas ainda de caráter biográfico podem ser encontrados
como ROCHA, Zildo. Helder, o Dom: uma vida que marcou os rumos da Igreja no Brasil. Petrópolis:
Vozes, 1999.
37
Para além dos trabalhos de caráter biográficos, as análises desenvolvidas
sobre sua atuação no cenário nacional e internacional, a grosso modo, podem ser
divididas em dois campos. Em primeiro plano estão os estudos cuja abordagem
envolve sua espiritualidade, com referências diretas à Igreja Católica e suas
posturas místicas e proféticas.
50
Em segundo plano é possível destacar um número
considerável de estudos referentes à postura política de Helder Camara. Análises
que enfocam, sobretudo, sua atuação como articulador hábil durante o Concílio
Ecumênico Vaticano II (1962-1965) e como grande defensor dos direitos humanos e
agente conscientizador das desigualdades nos anos da Ditadura Militar (1964-
1985).
51
Sem dúvida, o estudo desses autores ajuda-nos a definir momentos
chaves da vida de Dom Helder Camara. Todavia, uma profunda restrição
apresentadas por essas obras quanto ao caráter dessas pesquisas. As biografias
estudadas, em sua grande maioria, apresentam Dom Helder de forma apologética,
como um grande homem, um santo, um mito, um sujeito extraordinário por essência.
Ao analisar suas missivas, procuramos observar como um sujeito se constrói através
de suas escolhas, suas realizações, os acontecimentos que viveu, a mentalidade
sócio-cultural em que estava inserido e as condições que foram de sobremodo,
influência em o tornar „extraordinário‟.
52
Trataremos apenas de fragmentos de uma
vida por acreditarmos que traçar seu perfil biográfico seria outra tese. Assim,
procuraremos nos deter a alguns de seus percursos e suas ideias como forma de
apresentar em linhas gerais Helder Pessoa Camara, um homem reconhecido
mundialmente por suas atuações religiosas e políticas desde os anos de 1930.
50
A exemplo disso, Cf. CASTRO, Marcos de. Dom Helder: misticismo e santidade. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2002; OLIVEIRA, Lauro de (org). Dom Helder: O artesão da Paz. Brasília:
Senado Federal, Conselho Editorial, 2000.
51
Sobre esses aspectos, Cf. BROUCKER, José de. Dom Helder Camara: la violence d‟un pacifique.
Paris: Fayard, 1969; MARIN, Richard. Dom Helder Camara, les puissants et les pauvres. Pour une
histoire de l'Église des pauvres dans le Nordeste brésilien (1955-1985). Paris: Les Éditions de l'Atelier
- Les Éditions Ouvrières, 1995; SANTAGELO, Enzo. Helder Camara: a voz dos que o têm voz.
São Paulo: Loyola, 1983; WEIGNER, Gladys; MOOSBRUGGER, Bernhard. La voix monde sans
voix, Dom Helder Camara. Zurich: Editions Penedo, 1971; BARROS, Raimundo Caramuru;
FERRARINI, Sebastião Antônio. A imprensa e o arcebispo vermelho. São Paulo: Editora Paulinas,
1992; CASTRO, Marcos de. Dom Helder, o bispo da esperança. Rio de Janeiro: Graal, 1978;
ROCHA, Abelardo Baltar da S. F.; CHAGAS, Glauce. Um furacão varre a esperança: o caso Dom
Helder. Recife: FUNDARPE, 1993.
52
Sobre a „extraordinariedade‟ na construção biográfica, Cf. BOAS, Sergio Vilas. Biografismos:
reflexões sobre as escritas da vida. São Paulo: editora UNESP, 2008.
38
1.1 Do Ceará ao Rio de Janeiro: os caminhos de um padre
Helder Pessoa Camara - o décimo primeiro filho de João Eduardo Torres
Camara Filho, um guarda livros, e Adelaide Rodrigues Pessoa Camara, uma
professora primária - nasceu no dia 7 de fevereiro de 1909 na cidade de Fortaleza
no Ceará. Segundo os historiadores Nelson Piletti e Walter Praxedes, como o
repertório de nomes prediletos dos pais fora utilizado nos filhos anteriores, o pai
resolveu ir até a estante da sala onde era guardado o material didático que a esposa
utilizava nas aulas, de onde tomou um velho atlas geográfico. Abriu o livro ao acaso
e passou os olhos sobre os nomes de vários países, ilhas e cidades. De repente,
seu dedo indicador parou sobre um ponto no extremo norte da Holanda. João
guardou o nome do lugar, voltou ao quarto e disse a Adelaide: “O nome dele vai ser
Helder”.
53
Anos mais tarde, em carta para a amiga Virgínia Côrtes, Helder escreve:
“Helder, em holandês, é claro, puro, sem manchas! (um céu Helder, um manto
Helder...)”.
54
Apesar de ter passado seus primeiros anos de vida na casa da Praça dos
Mártires, foi no sobrado da família Camara na rua Sena Madureira, 91, onde Helder
passaria toda a infância e os primeiros anos depois de sua saída do seminário.
Voltado para o nascente, o amplo sobrado possuía cinco quartos distribuídos em
dois pavimentos, uma sala de espera, uma de jantar e um salão maior, logo na
entrada Completavam o sobrado uma varanda, dois banheiros e uma cozinha,
ampliada com uma cobertura.
55
De uma família com muitos irmãos, Hélder era diferente.
56
Mais recatado
e tímido, desde muito pequeno, começou a prestar atenção na forma como agiam os
53
PILETTI, Nelson; PRAXEDES, Walter. op. cit. p. 28.
54
CAMARA, Helder. Carta Pessoal. 06 de abril de 1944, Ouro Preto. Para Virgínia Côrtes de Lacerda,
Rio de Janeiro. 05p. Arquivo Pessoal.
55
PILETTI, Nelson; PRAXEDES, Walter. op. cit. p. 34/35.
56
Depois de vinte anos de casamento João Camara e Adelaide Pessoa, tinham constituído uma
típica família de classe média urbana do início do século XX. João e Adelaide tiveram 13 filhos,
nascidos nessa ordem: Gilberto em 1897, João em 1898, Maria (Maroquinha) em 1899, Ethelberto em
1900, José em 1902, Rubens em 1903, Zeneida em 1904, Eduardo em 1905, Adelaide em 1906,
Mardônio em 1908, Helder em 1909, Nair em 1911 e João em 1915. Em 1905, uma epidemia de gripe
levaria a óbito quatro dos cinco filhos do casal: Zeneida, Rubens, Ethelberto e José. Cf. CAMARA,
Helder; BROUCKER, José de. Les conversions d’un Évêque: Entretiens avec José de Broucker.
Paris: L‟Harmattan, 2002; PILETTI, Nelson; PRAXEDES, Walter. Dom Helder Camara. Entre o poder
e a profecia. São Paulo: Ática, 1997; PILETTI, Nelson; PRAXEDES, Walter. Dom Helder Camara: o
profeta da paz. São Paulo: Contexto, 2008.
39
padres durante as cerimônias de batizados, casamentos e missas que frequentava
com os pais, e vivia repetindo em casa que queria ser padre.
57
De tanto ouvir que
o filho queria ser padre, um dia o senhor João Camara chamou-o para uma conversa
séria. O menino estava entre os oito e os nove anos quando ouviu do pai:
Filho, você está crescendo e continua a dizer que quer ser padre,
mas você sabe de verdade o que significa ser padre?
Você sabia que para uma pessoa ser padre ela não pode ser
egoísta, não pode pensar em si mesma? Ser padre e ser egoísta
é impossível, eu sei, são duas coisas que não combinam.
Os padres acreditam que quando celebram a eucaristia é o próprio
Cristo que está presente. Você pensou nas qualidades que devem
ter as mãos que tocam diretamente o Cristo?
58
Sem ponderar diante das indagações do pai, Helder respondeu: “Pai, é
um padre como o senhor está dizendo que eu quero ser”.
59
Os anseios de Helder
pelo sacerdócio estavam em plena concordância com a sociedade do seu tempo.
Afinal, desde a proclamação da República e da consequente separação entre Igreja
e Estado, era na classe média que a Igreja Católica brasileira esperava encontrar os
recursos e os quadros de que necessitava para o reerguimento organizacional e o
crescimento de sua influência religiosa e política no país.
60
O ingresso de Helder no Seminário Diocesano de Fortaleza ou
Seminário da Prainha, uma referência ao bairro do Outeiro da Prainha aconteceu
no início do ano letivo de 1923, aos 14 anos.
61
Apesar da rotina dura do seminário
com horários rígidos e repletos de atividades, Helder se saia muito bem tirando boas
notas, ficando de fora dos castigos impostos pelos professores e chamando a
57
PILETTI, Nelson; PRAXEDES, Walter. op. cit. p. 42.
58
Ibidem. p. 43.
59
Idem.
60
Cf. BEOZZO, J. O. História da Igreja no Brasil. Tomo II. Vol. II. Petrópolis: Vozes, 1980;
MONTENEGRO, João Alfredo. Evolução do catolicismo no Brasil: novo enfoque da história do
catolicismo no Brasil. Petrópolis: Vozes, 1972; MICELI, Sérgio. A elite eclesiástica brasileira. Rio de
Janeiro: Bertrand Brasil, 1988; TORRES, João Camilo de Oliveira. História das ideias religiosas no
Brasil. I. São Paulo: Grijalbo, 1968.
61
Segundo os historiadores Nelson Piletti e Walter Praxedes, a vida urbana da família, a mãe
professora, o pai colaborador de jornal, os tios todos bacharéis, jornalistas e políticos razoavelmente
bem-sucedidos teria conferido a Helder certas precondições educacionais que o tornaram apto a
receber a cultura erudita e europeizante oferecida pelos padres lazaristas franceses e holandeses. Cf.
PILETTI, Nelson; PRAXEDES, Walter. Dom Helder Camara. Entre o poder e a profecia. São Paulo:
Ática, 1997. p. 54.
40
atenção dos superiores, principalmente do reitor Tobias Dequidt, por sua disciplina
nos estudos e suas discussões polêmicas do ponto de vista doutrinário.
Em uma ocasião, cursando o seminário maior, o jovem Helder,
rompendo as regras do seminário, dedica-se a escrever pequenos textos em forma
poética assinados sob o pseudônimo de padre José. Através das poesias, reagia às
mais diversas situações da vida registrando pensamentos, sentimentos, o cotidiano
no seminário, a leitura de um livro, etc. Descoberto pelo reitor Dequidt, Helder alegou
se tratar de simples “meditações” e prometeu que não as escreveria mais até sua
ordenação.
62
Depois das poesias encontradas pelo padre reitor em sua escrivaninha,
os artigos que Helder passou a publicar na imprensa cearense em 1929 tornaram-se
novo motivo de preocupação para seus superiores. O primeiro artigo, escrito sob o
pseudônimo Alceu da Silveira em homenagem a dois intelectuais que admirava
muito, Alceu Amoroso Lima e o poeta Tasso da Silveira causou sensação nos
meios intelectuais da cidade, e no seminário os colegas ficaram admirados pela
capacidade polemizadora do jovem articulista.
63
Sua ordenação ocorreu na Igreja da Prainha em 15 de agosto de 1931.
Como Helder tinha apenas 22 anos, abaixo da idade mínima de 24 anos exigida pelo
direito canônico para a ordenação sacerdotal, foi necessária uma autorização
especial do Vaticano. No dia seguinte, na Igreja da Sé, o padre Helder celebra sua
primeira missa para seus colegas, professores, familiares e amigos, entre eles dois
jovens tenentes: Severino Sombra e Jeová Mota.
64
62
Helder Camara cumpriu o prometido, mas ao longo de sua vida escreveu 7.547 Meditações que
estão depositadas no Arquivo do Centro de Documentação Helder Camara (CeDoHC).Sobre as
Meditações, Cf. CAMARA, Helder; BROUCKER, José de. Les conversions d’un Évêque: Entretiens
avec José de Broucker. Paris: L‟Harmattan, 2002; PILETTI, Nelson; PRAXEDES, Walter. Dom Helder
Camara. Entre o poder e a profecia. São Paulo: Ática, 1997; PILETTI, Nelson; PRAXEDES, Walter.
Dom Helder Camara. O profeta da paz. São Paulo: Contexto, 2008; CAMARA, Helder. Mil razões
para viver: meditações de padre José. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1983; BARROS,
Raimundo Caramuru; OLIVEIRA, Lauro de (orgs). Dom Helder: O artesão da paz. Brasília: Senado
Federal, Conselho Editorial, 2000; CASTRO, Marcos de. Dom Helder: misticismo e santidade. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 2002; ROCHA, Zildo. Helder, o Dom: uma vida que marcou os rumos
da Igreja no Brasil. Petrópolis: Vozes, 1999; MONTENEGRO, Antônio T.; SOARES, Edla; TEDESCO,
Alcides (org). Dom Helder, peregrino da utopia: caminhos da educação e da política. Recife: A
Prefeitura; Editora Universitária da UFPE, 2002.
63
PILETTI, Nelson; PRAXEDES, Walter. op. cit. p. 73.
64
CAMARA, Helder; BROUCKER, José de. op. cit. p. 65.
41
Figura 01: Fotografia do padre Helder Camara.
Fonte: Arquivo Pessoal.
O padre Helder conheceu Severino Sombra por intermédio de Alceu
Amoroso Lima, com quem havia trocado correspondência lamentando a morte de
Jackson de Figueiredo e saudando o novo líder católico. Segundo Helder Camara,
em Les conversions d’un Évêque, nessa ocasião Alceu o escrevera recomendando
um jovem tenente converso, chamado Severino Sombra.
65
Com tal apresentação,
era natural que padre Helder e Severino Sombra se tornassem logo bons amigos.
Juntos, liam e comentavam artigos de Plínio Salgado, ao qual depois mandavam
cartas elogiosas, estabelecendo uma profunda correspondência.
66
Um ano depois de sua ordenação sacerdotal, Plínio Salgado lança em
São Paulo, no dia 07 de outubro de 1932, o seu “Manifesto de Outubro”, iniciando
oficialmente um movimento de inspiração assumidamente fascista no Brasil, a Ação
Integralista Brasileira (AIB). Os integralistas pregavam a valorização da pátria por um
nacionalismo exacerbado, a defesa da tradição, da família e a proximidade do
Estado com a religião católica alegando caber a “Deus dirigir o destino dos povos”.
67
Para organizar a AIB nacionalmente, Plínio Salgado entra em contato com as
65
Idem.
66
CASTRO, Marcos de. op. cit. p. 60.
67
PILETTI, Nelson; PRAXEDES, Walter. op. cit. p. 85.
42
lideranças estudantis ligadas à Igreja Católica. No Ceará, escreveu a Severino
Sombra pedindo que ele se tornasse o chefe do movimento no estado e convidando
o padre Helder a ser o secretário de Educação da Ação Integralista no Ceará. Com
autorização do arcebispo, Dom Manuel da Silva Gomes, Helder, à época um padre
franzinho ordenado havia menos de um ano, aceitou o convite e sacudiu o Cea
com sua pregação integralista atuando ativamente no ramo cearense da Ação
Integralista, desde logo uma das mais importantes do país.
68
Figura 02: Fotografia do padre Helder Camara discursando na década de 1930.
Fonte: Arquivo do Centro de Documentação Helder Camara.
No final de 1935, próximo aos 27 anos, padre há pouco mais de quatro,
Helder apresentava uma vasta experiência política e uma bagagem intelectual
pouco comum para uma pessoa da sua idade. Inúmeros artigos seus haviam sido
publicados na imprensa cearense; como sacerdote era reconhecido nacionalmente
como defensor das reformas educacionais católicas, especialmente por suas
atuações nos congressos da Confederação Católica de Educação e da Associação
Brasileira de Educação; politicamente, como um sacerdote camisa-verde assumido,
68
Sobre essa temática Cf., entre outros, PARENTE, Josênio Camelo. Anauê Os camisas-verdes no
poder. Fortaleza: EUFC, 1999; TRINDADE, Hélgio. Integralismo: o fascismo brasileiro na década de
30. 2ª. Edição. São Paulo/Rio de Janeiro: DIFEL, 1979; SILVA, Giselda Brito. A Ação Integralista
brasileira em Pernambuco: 1932-1938. 1996. Dissertação. (Mestrado em História) Universidade
Federal de Pernambuco, Recife, 1996; REGIS, João Rameres. Integralismo e coronelismo:
interfaces da dinâmica política no interior do Ceará (1932-1937). 2008. Tese (Doutorado em História
Social) Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2008.
43
pregara a doutrina integralista em vários estados brasileiros; organizara a Juventude
Operária Católica, fundara a Liga dos Professores Católicos, ajudara a organizar
greves e viajara de cidade em cidade apresentando os candidatos da Liga Eleitoral
Católica às eleições ocorridas entre 1933 e 1935.
Em 1936, Helder solicita ao amigo Lourenço Filho a indicação a uma vaga
no Ministério da Educação no Rio de Janeiro. Com a disponibilidade do cargo, as
negociações de sua transferência ficaram sob a responsabilidade do próprio Dom
Manoel e seus auxiliares, que rapidamente conseguiram a concordância do cardeal
Dom Sebastião Leme da Silveira Cintra em receber o jovem padre.
69
Ao chegar à
capital, o padre é recebido com carinho por Dom Leme. No entanto, desde o
primeiro momento, o cardeal faz questão de deixar claro que o engajamento
partidário dos padres não era tolerado na Arquidiocese ao pedir que sua militância
na Ação Integralista Brasileira fosse encerrada. Segundo o próprio Helder Camara,
em Les conversions d’un Évêque, atender ao pedido de Dom Leme o teria custado
muito.
70
Apesar da saudade que sentia do Ceará, seus primeiros anos na capital
federal foram bastante agradáveis. Foi o amigo monsenhor José Quinderé quem
indicou ao padre Helder a pensão de Dona Cecy Cruz, conhecida carinhosamente
como o Consulado Cearense por abrigar os filhos das famílias mais ilustres do
Ceará que se dirigiam ao Rio de Janeiro.
71
Na pensão Helder se hospedaria por
cinco anos e faria amigos que o acompanharia por décadas.
1.2 Na Arquidiocese de Olinda e Recife: um olhar para além da cidade
Recife, 11/12.4.1964.1ª circular.
À querida Família Mecejanense
Estamos em plena vigília da posse como Arcebispo de Olinda e
Recife. Acabou chegando a hora de largar o Rio de Janeiro, onde
cheguei em 1936, com 27 anos e donde a Providência me arranca 28
anos depois. A jovem mangueira nordestina se fizera árvore de
69
PILETTI, Nelson; PRAXEDES, Walter. op. cit. p.120.
70
CAMARA, Helder; BROUCKER, José de. op. cit. p. 67.
71
PILETTI, Nelson; PRAXEDES, Walter. op. cit. p. 122.
44
raízes profundas, tronco reforçado e copa dando sombra para
muitos.
72
As despedidas do Rio de Janeiro, a cidade que abrigou Helder Camara
por 28 anos, começaram com uma missa celebrada por ele na presença de alguns
familiares e vários amigos e colaboradores a sua última celebração na igreja de
São Sebastião antes de assumir a Arquidiocese de Olinda e Recife.
73
Na chegada a Recife a recepção foi triunfal. O arcebispo desembarcou ao
lado do governador Paulo Guerra e foi logo recebido pelas autoridades, entre elas o
prefeito da cidade, Augusto Lucena e o comandante do IV Exército, general Justino
Alves Bastos. Em seguida houve um desfile pela cidade, em carro aberto cercado de
batedores. No trajeto, constantemente o povo interrompia-lhe a passagem em busca
de uma bênção.
74
Em sua primeira carta circular à Família Mecejanense redigida da
arquidiocese de Olinda e Recife, Dom Helder avaliou que “a cidade inteira saiu à rua,
para aclamar, cheia de fé, no novo arcebispo”.
75
No mesmo dia, na Basílica do
Carmo Dom Helder Pessoa Camara tomou posse do Arcebispado de Olinda e Recife
proferindo um discurso pensado em detalhes.
Medindo a responsabilidade do que fazia preparei uma mensagem
que me parecia a exigida pelo momento. Tive o cuidado de articular-
me primeiro com o Secretário Regional dos Bispos do Nordeste, Dom
Eugênio Sales, a quem chamei ao Rio; mostrei a mensagem a vários
amigos e, sobretudo ao Senhor Núncio que a aprovou 100%.
Deixei-a para a imprensa, radio e tv do Rio; enviei-a ao estrangeiro
em inglês e francês; joguei-a em praça pública, em meu primeiro
contato oficial com o povo...
O General me disse que eu trouxe a mensagem exata: enquanto as
Forças Armadas realizam a tarefa necessária e penosa do expurgo,
“a Igreja estava ocupando o vazio ideológico”.
A reação em geral, pareceu-me boa.
76
72
CAMARA, Helder. Carta Circular para a Família Mecejanense. Recife, 11/12 de abril de 1964.
Arquivo do Centro de Documentação Helder Camara (CeDoHC).
73
PILETTI, Nelson; PRAXEDES, Walter. op. cit. p.301.
74
Ibidem. p. 302.
75
CAMARA, Helder. Carta Circular para a Família Mecejanense. Recife, 11/12 de abril de 1964.
Arquivo do Centro de Documentação Helder Camara (CeDoHC).
76
Idem.
45
Todavia, mesmo tentando estabelecer uma amigável política de boa
vizinhança com os militares, a mensagem lida pelo novo arcebispo para a multidão
em frente à Matriz de Santo Antônio, no dia 11 de abril de 1964, foi interpretada por
estudiosos como um dos marcos iniciais da resistência da Igreja popular ao regime
ditatorial. Dom Helder sabia que seu posicionamento era polêmico tanto em relação
à direita, no poder, como em relação à esquerda, mais próxima do cárcere, por isso
declarou que o bispo era de todos.
O Bispo é de todos
Ninguém se escandalize quando me vir frequentando criaturas tidas
como indignas e pecadoras. Quem não é pecador? Quem pode jogar
a primeira pedra? [...]
Ninguém se espante me vendo com criaturas tidas como envolventes
e perigosas, da esquerda ou de direita, da situação ou da oposição,
anti-reformistas ou reformistas, anti-revolucionárias ou
revolucionárias, tidas como de boa ou de má fé.
Ninguém pretenda prender-me a um grupo, ligar-me a um partido,
tendo como amigos os seus amigos ou querendo que eu adote as
suas inimizades.
Minha porta e meu coração estarão abertos a todos, absolutamente a
todos. Cristo morreu por todos os homens: a ninguém devo excluir do
diálogo fraterno. [...]
77
Foi com esse tom independente de seu discurso de posse que Dom
Helder assumiu a Arquidiocese deixando a forte impressão de que estava acima das
escaramuças entre direita e esquerda, mas o arcebispo sempre fora visto por essa
última como um possível protetor, em razão tanto de sua atuação política em defesa
das reformas de base como de seu contumaz bom relacionamento com as
autoridades civis e militares do país.
78
Os primeiros meses em Recife foram bastante intensos. Algumas
divergências políticas com os militares, uma atuação pastoral intensa com
77
CAMARA, Helder. Mensagem na tomada de posse como Arcebispo de Olinda e Recife. Recife, 11
de abril de 1964. Arquivo do Centro de Documentação Helder Camara (CeDoHC). (Grifo do autor).
78
Como reflexo de sua mensagem de posse, muitas pessoas que tinham familiares atingidos pela
perseguição política do Exército no Recife dirigiam-se ao Palácio São José dos Manguinhos,
residência oficial do arcebispo, pedindo por seus parentes. Na sua 2ª Carta Circular a Família
Mecejanense, Dom Helder escreve: “o Palácio de o José dos Manguinhos começa a ser invadido
pelos aflitos: ricos e pobres (estes em maior número) que vêm pedir por parentes prisioneiros. Todos
invocam a mensagem e a figura do Bom Pastor”. Cf. CAMARA, Helder. Carta Circular para a
Família Mecejanense. Recife, 13/14 de abril de 1964. Arquivo do Centro de Documentação Helder
Camara (CeDoHC).
46
audiências com os vigários-gerais da Arquidiocese; reuniões com os superiores das
ordens e congregações religiosas; visitas a comunidades carentes; promoção de
“noitadas culturais” no Palácio dos Manguinhos;
79
entrevistas em programas de rádio
e tv, etc.
80
Todavia, provavelmente, nada o tenha despertado mais a atenção que os
mocambos.
Logo nas primeiras semanas na Arquidiocese de Olinda e Recife, o olhar
de Dom Helder Camara se aguçara para a situação gritante de miséria que o povo
fazia questão de ecoar. Vozes do desespero que ressoava aos ouvidos e ao coração
do arcebispo. Talvez por isso comente:
Minha gente é feia? Tem é fome.[...]
Pra entender por que cai tanto mocambo, é preciso ter presente que
eles são construídos sobre mangues que têm marés, que enchem e
esvaziam, levando consigo na subida e na descida, os navios (ou
barcos, que não chegam a ser navios) negreiros onde mora o meu
povo. [...]
Onde estão os teólogos para mergulhar as mãos em realidades
assim?
81
Este convite foi estendido não apenas aos teólogos mais a muitos em
várias partes do mundo. Sua preocupação com “Zé, Antônio, Severino”, que não
perderam a dignidade mesmo estando numa condição sub-humana de miséria, é o
cerne da razão de muitas de suas palavras. Em carta circular escrita a Família
Mecejanense em dezembro de 1965, cita João Cabral de Mello Neto:
[...] E se somos Severinos, iguais em tudo na vida, morremos de
morte igual, mesma morte Severina: que é a morte que se morre de
velhice antes dos trinta, de emboscada antes dos vinte e de fome um
pouco por dia.[...]
82
79
Levado pela saudade que sentia do Rio de Janeiro e inspirado nas noites de encontros e sarais da
Família do São Joaquim, Dom Helder em companhia de Ariano Suassuna combina a realização das
Noitadas de Literatura, Artes Plásticas, Filosofia, Teologia e o encontro de jovens. Sobre as
“Noitadas” do Palácio de São José dos Manguinhos, Cf. PILETTI, Nelson; PRAXEDES, Walter. Dom
Helder Camara. Entre o poder e a profecia. São Paulo: Ática, 1997.
80
PILETTI, Nelson; PRAXEDES, Walter. op. cit. p.307.
81
CAMARA, Helder. Carta Circular para a Família Mecejanense. Recife, 15/16 de julho de 1964.
Arquivo do Centro de Documentação Helder Camara (CeDoHC).
82
CAMARA, Helder. Carta Circular para a Família Mecejanense. Recife, 13/14 de dezembro de 1965.
Arquivo do Centro de Documentação Helder Camara (CeDoHC).
47
Em seguida reflete:
Dez anos se passaram depois que o nosso Poeta viu o que muitos e
muitos não viam e continuam a não ver. Depois que ele emprestou
voz a quem via, entendia e não sabia interpretar… Continuam e se
agravam a morte e vida Severina.
83
A afinidade do povo para com Dom Helder desde o instante de sua
chegada e a esperança encontrada por parte da esquerda que viam o arcebispo
como um aliado, tendiam a crescer, ainda mais após seus pronunciamentos em
denúncia às condições sub-humanas em que vivia a maior parte da população. O
arcebispo, por sua vez, parecia querer atrair cada vez mais essas pessoas a ponto
de promover uma reorganização do Palácio de São José dos Manguinhos com a
retirada de todos os tronos do Palácio arquidiocesano, a reforma no playground para
atrair a criançada e a abertura dos portões dia e noite para que os fiéis entrassem
quando julgassem necessário.
84
Figura 03: Dom Helder Camara caminhando em meio às pessoas nos mocambos do Recife.
Fonte: Arquivo do Centro de Documentação Helder Camara (CeDoHC).
83
Idem. (Grifo do autor).
84
PILETTI, Nelson; PRAXEDES, Walter. op. cit. p. 317.
48
Em fevereiro de 1965, Dom Helder em carta circular, relata aos amigos do
Rio de Janeiro sua proximidade com as comunidades menos assistidas e o carinho
dos pernambucanos para com ele:
Ontem a Missa comunitária, celebrada ao ar livre, contou,
certamente, com a participação de mais de 2.500 pessoas. E que
carinho de todos! Levei um tempo enorme para atravessar a
multidão, sobretudo porque se soube de meu aniversário.
Terminada a Missa, foi emocionante o desfile de Maracatu, Escolas
de Samba e Frevo.
Que ritmo tem a minha gente! E que fibra! Gente mal alimentada,
subnutrida e que durante horas e horas, noites inteiras, dança sem
parar.
Muitas das que sambavam eram velhas conhecidas de idas e vindas
ao Manguinhos em busca de ajuda.
85
Todavia, tanta proximidade e tanto carinho acabaram por causar sérios
impasses entre o arcebispo e o governo militar. Não raro, podia-se ver nos muros de
Olinda e Recife pichações com gritos de Dom Helder é o nosso líder”, sempre
assinadas pelo proscrito Partido Comunista Brasileiro. Segundo Piletti e Praxedes,
não demorou muito para que o general Muricy do IV Exército, o visse com uma
“pedra no caminho dos militares”.
86
Pela força de expressões como essas, a ideia da própria morte tinha
presença constante no imaginário de Dom Helder. Em fevereiro de 1968, em plena
vigília de seu aniversário, Helder assinala:
59 anos!
Saúde boa. Resistência a maratonas que a mim mesmo me
espantam. Mas não tenho a menor dúvida: de um instante para o
outro, pode quebrar-se o arcabouço interior e o declínio vir rápido.
De alma, continuo com 25! Chama! Idealismo! Coragem de lutar.
Ânimo de enfrentar os perigos. De assumir as responsabilidades.
87
85
CAMARA, Helder. Carta Circular para a Família Mecejanense. Recife, 7/8 de fevereiro de 1965.
Arquivo do Centro de Documentação Helder Camara (CeDoHC).
86
PILETTI, Nelson; PRAXEDES, Walter. op. cit. p. 331.
87
CAMARA, Helder. Carta Circular para a Família Mecejanense. Recife, 6/7 de fevereiro de 1968.
Arquivo do Centro de Documentação Helder Camara (CeDoHC).
49
Destarte, as ameaças não o impediram de continuar lutando pela
realização dos seus ideais. Marcado pelo seu tempo, convivendo com a miséria em
momentos turbulentos, Dom Helder Camara detinha como sua proposta essencial a
ideia de um movimento pacífico que mudasse mentalidades, no sentido de torná-las
favoráveis à transformação estrutural de uma sociedade. O pensamento,
influenciado pela nova conjuntura mundial renovação de ideias advindas do
Concílio Vaticano II, Encíclicas Populorum Progressio, Pacem in Terris, defesa cada
vez mais constante dos direitos humanos e propostas da Conferência de Medelim
demonstra que bebia em várias fontes e tornava-se instrumento de divulgação das
ideias que considerava incentivadoras da promoção humana e justiça social.
88
Nesse sentido, Dom Helder sempre fez questão de deixar bem claro que
por maiores que fossem os obstáculos, impostos por uma época atribulada, de
censuras, entraves e perseguições, o melhor caminho a ser seguido, seria sempre, o
desenvolvimento de um movimento pacífico, cuja principal força propulsora se
constituísse na mudança das estruturas do pensamento, voltando-os para as causas
da justiça e da paz. Pois as ações partem de pensamentos, de ideais e de valores.
Se esses valores forem doentes, as ações políticas, econômicas, sociais, também o
serão. Dom Helder Camara percebeu isso e procurou disseminar suas ideias no
Brasil e fora dele enfatizando que era preciso ir ao âmago dos problemas, mas de
forma pacífica.
Por mais que respeite os que, na luta pela mudança social profunda
e rápida, desesperam dos modos democráticos e partem para
movimentos armados, para revoluções sangrentas e guerrilhas, não
creio no ódio. Os movimentos armados são rápidos demais: trocam
homens, sem tempo de mudar mentalidades. Temos que atingir
consciências, temos que converter. Creio na força das ideias, quando
veiculadas devidamente.
89
88
Sobre o “movimento de não-violência” promovido por Dom Helder Camara, Cf. CAMARA, Helder. O
deserto é fértil: roteiro para as Minorias Abraâmicas. 13
a
edição. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 1985; CAMARA, Helder. Indagações sobre uma vida melhor. 3
a
edição. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 1993; CAMARA, Helder. Espiral de violência. Porto: Poveira, 1971; CAMARA,
Helder. Revolução dentro da paz. Rio de Janeiro: Sabiá, 1968; BROUCKER, José de. Dom Helder
Camara: la violence d‟un pacifique. Paris: Fayard, 1969; SANTAGELO, Enzo. Helder Camara: a voz
dos que não têm voz. São Paulo: Loyola, 1983; WEIGNER, Gladys; MOOSBRUGGER, Bernhard. La
voix monde sans voix, Dom Helder Camara. Zurich: Editions Penedo, 1971; BARROS, Raimundo
Caramuru; OLIVEIRA, Lauro de (org). Dom Helder: O artesão da Paz. Brasília: Senado Federal,
Conselho Editorial, 2000.
89
CAMARA, Helder. Carta Circular para a Família Mecejanense. Recife, 05 de junho de 1967.
Arquivo do Centro de Documentação Helder Camara (CeDoHC).
50
A ideia de um “movimento de não-violência” aumentava ainda mais a
“hipótese de ser eliminado”. Em 1968, eram frequentes os ataques contra os muros
da Igreja das Fronteias nos fundos da qual Dom Helder morava desde janeiro,
depois de mudar-se do Palácio São José de Manguinhos, na tentativa de viver com
o desprendimento material próprio de sua opção pela Igreja servidora e pobre.
90
Os
ataques, por vezes a tiros, deixava clara a atitude de simples intimidação, pois
nesses momentos o arcebispo nunca se encontrava em casa. Por algum tempo a
igreja passou, então, a ser protegida por policiais.
Os constantes ataques e ameaças realizados sob a acusação severa de
comunismo e subversão levou Dom Helder a refletir sobre os recentes
acontecimentos com seus amigos e colaboradores cariocas em carta escrita em
plena vigília dos seus 60 anos:
Procuremos agir de maneira tão clara, tão inequívoca, tão leal que só
mesmo muita má fé permita concluir que somos agitadores e contra-
revolucionários.
Desejamos, sem dúvida, como o próprio Governo, que termine, o
mais cedo possível, o período excepcional em que se acha nossa
pátria. Mas desejamos, também, que tanta força concentrada em
mãos do Poder Executivo, seja aproveitada para conduzir, sem
desmandos e arbitrariedades, mas com firmeza e decisão, as
reformas de base, sem as quais a Revolução não será Revolução.
91
Segundo alguns historiadores, na sequência da decretação do Ato
Institucional 5, em 13 de dezembro de 1968, Dom Helder recebe a informação de
que o general Malan, substituto de Souza Aguiar no comando do IV Exército, o
enquadrara na Lei de Segurança Nacional pelas acusações de comunista e
subversivo. No entanto, Dom Helder continuou dando apoio a manifestações
90
Sobre os anos que Dom Helder Camara viveu na Igreja das Fronteiras, em Recife, Cf. PILETTI,
Nelson; PRAXEDES, Walter. Dom Helder Camara. Entre o poder e a profecia. São Paulo: Ática,
1997; PILETTI, Nelson; PRAXEDES, Walter. Dom Helder Camara. O profeta da paz. São Paulo:
Contexto, 2008; CASTRO, Marcos de. Dom Helder: misticismo e santidade. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2002.
91
CAMARA, Helder. Carta Circular para a Família Mecejanense. Recife, 7/8 de fevereiro de 1969.
Arquivo do Centro de Documentação Helder Camara (CeDoHC).
51
estudantis e lançando manifestos contra a cassação de estudantes oposicionistas.
92
É claro que também voltou a sofrer novas represálias.
Confirma-se a informação de que a política, a meu respeito, será
providenciar novos disparos contra a casa e um atentado pessoal,
com ordem expressa de não me atingir... Depois, pressão junto ao
Senhor Núncio, informando que não têm condições de dar garantia
de vida ao arcebispo, se ele permanecer em Recife.
93
Apesar de esperar mais atentados, as próximas e fatais retaliações
visariam atingi-lo indiretamente. À uma e meia da tarde de 27 de maio de 1969, Dom
Helder receberia a notícia do assassinato o padre Antônio Henrique Pereira Neto,
trucidado de um modo terrível apenas porque trabalhava diretamente ligado ao
arcebispo. O enterro do Padre Henrique ocorreu no dia seguinte e contou com
milhares de pessoas que acompanharam o cortejo em uma caminhada de dez
quilômetros da Igreja do Espinheiro ao Cemitério da Várzea, seguidos de perto pelo
comando do IV Exército.
O enterro foi uma dessas consagrações que a gente, por mais que
viva, não esquece mais. O corpo nos foi entregue por volta das 6
horas da tarde. Eu o levei para a Igreja do Espinheiro. naquele
tempo, mesmo que rádio, televisão e imprensa não dessem destaque
ao fato, como não deram, as nossas Comunidades de Base podiam
receber e transmitir facilmente um aviso, e nós, no dia seguinte, na
hora de sair o enterro,nhamos lá umas 10 mil pessoas, todas
dispostas a acompanhar o corpo até o cemitério. Aí houve momentos
emocionantes. Num certo instante, íamos cantando „Prova de Amor
maior não há/ Que doar a vida pelo irmão‟.
94
92
Sobre o embate de Dom Helder com a Ditadura Militar, Cf. SERBIN, Kernnet. P. Diálogos na
sombra: bispos e militares, tortura e justiça social na ditadura. Tradução de Carlos Eduardo Lins da
Silva. São Paulo: Companhia das Letras, 2001; FERRARINI, Sebastião Antônio. A imprensa e o
arcebispo vermelho. São Paulo: Paulinas, 1992; ROCHA, Abelardo Baltar da S. F.; CHAGAS,
Glauce. Um furacão varre a esperança: o caso Dom Helder. Recife: FUNDARPE, 1993; CASTRO,
Marcos de. Dom Helder: misticismo e santidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002;
PILETTI, Nelson; PRAXEDES, Walter. Dom Helder Camara. Entre o poder e a profecia. São Paulo:
Ática, 1997; PILETTI, Nelson; PRAXEDES, Walter. Dom Helder Camara: o profeta da paz. São
Paulo: Contexto, 2008.
93
CAMARA, Helder. Carta Circular para a Família Mecejanense. Recife, 28 de abril de1969. Arquivo
do Centro de Documentação Helder Camara (CeDoHC).
94
Relato de Dom Helder Camara a Marcos de Castro. In. CASTRO, Marcos. Dom Helder: misticismo
e santidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002. p. 149.
52
Segundo Marcos de Castro, com a proximidade do cemitério da Várzea,
Dom Helder recebeu dos militares o aviso de que se, à beira do túmulo, houvesse
qualquer tipo de tentativa de discurso, qualquer tipo de fala, a multidão seria
imediatamente dispersada, se preciso à bala.
95
Assim, Dom Helder transmitiu à
multidão a necessidade de silêncio falando rapidamente diante do túmulo:
Meus irmãos, estamos aqui depois de ter cumprido o nosso dever
para com nosso irmão padre Henrique. Caminhamos quilômetros e
quilômetros cantando e rezando. Agora, não vamos ceder a
provocações, como nenhuma houve pelo caminho. Nenhum discurso
aqui dentro. Nenhuma exaltação. A melhor homenagem que
podemos prestar a padre Henrique será rezarmos um Pai-Nosso
enquanto seu caixão baixa à sepultura, e depois ficarmos em
silêncio. Eu quero este sacrifício. Eu quero que voltemos para casa
em silêncio. Quero que esta multidão inteira saia daqui em silêncio.
Vamos nos retirar rezando, meditando, em silêncio, em silêncio.
Nada gritará mais do que nosso silêncio.
96
A morte do padre Henrique foi um dos momentos de violência de uma
campanha orquestrada contra Dom Helder, que acabaria em mais sequestros,
prisões e torturas contra seus colaboradores mais íntimos. Sua posição em favor dos
perseguidos irritava os generais que a todo instante pensavam novas táticas de
perseguição contra ele. No início da fase máxima de repressão do regime militar de
64 a ordem era dar o gelo no arcebispo. A ponto de uma simples foto sua numa
revista irritar o sistema, ainda que totalmente desligada de qualquer contexto
político.
97
Em 1969, proibido de falar no Brasil, Dom Helder, mais do que nunca,
divulga suas ideias em outros países do mundo. Desde 1964 já realizara dezenas de
95
CASTRO, Marcos. op. cit. p. 150.
96
Relato de Dom Helder Camara a Marcos de Castro. In. CASTRO, Marcos. Dom Helder: misticismo
e santidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002. p. 151.
97
Segundo alguns historiadores, em setembro de 1970 uma ordem oficial enviada pela Polícia
Federal chegavam às redações dos órgãos de comunicação de todo o país com uma mensagem
clara: De ordem do Sr. Ministro da Justiça, ficam proibidas quaisquer manifestações, na imprensa
falada, escrita e televisiva, contra ou a favor de Dom Helder Camara”. Sobre esse episódio, Cf.
SERBIN, Kernnet. P. Diálogos na sombra: bispos e militares, tortura e justiça social na ditadura.
Tradução de Carlos Eduardo Lins da Silva. São Paulo: Companhia das Letras, 2001; FERRARINI,
Sebastião Antônio. A imprensa e o arcebispo vermelho. São Paulo: Paulinas, 1992; ROCHA,
Abelardo Baltar da S. F.; CHAGAS, Glauce. Um furacão varre a esperança: o caso Dom Helder.
Recife: FUNDARPE, 1993; CASTRO, Marcos de. Dom Helder: misticismo e santidade. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 2002; PILETTI, Nelson; PRAXEDES, Walter. Dom Helder Camara.
Entre o poder e a profecia. o Paulo: Ática, 1997; PILETTI, Nelson; PRAXEDES, Walter. Dom
Helder Camara: o profeta da paz. São Paulo: Contexto, 2008.
53
conferencias pelo mundo afora. No Brasil e principalmente no exterior, na França em
especial, já publicara alguns de seus livros que imediatamente começara a ser
traduzido e publicado em várias línguas e países.
98
Em 1970, era reconhecido como
uma liderança da luta em defesa dos direitos humanos e da manutenção da paz
mundial a ponto de ser considerado forte candidato ao Nobel da Paz.
Em maio daquele ano, Dom Helder chega à França para uma série de
palestras em Orleans, Lyon e Paris. A conferência em Paris, prevista para acontecer
no dia 26 no Centro Católico de Intelectuais Franceses com capacidade para 2.500
pessoas, teve que ser transferida, às presas, para o Palácio dos Esportes, onde
caberiam aproximadamente 10 mil pessoas.
99
Apesar de levar o discurso preparado, como fazia costumeiramente, ao
chagar à casa do cardeal François Marty, arcebispo de Paris, um grupo de amigos
cobraram-lhe uma palestra com outro conteúdo, que falasse a verdade sobre o
Brasil daquele momento e denunciasse as torturas que sabiam existir. Assim, o
arcebispo de Olinda e Recife proferiu de improviso no Palácio dos Esportes em
Paris, naquela noite com sua capacidade superlotada, a conferência “Quelles que
soient les conséquences” (Quaisquer que sejam as consequências) denunciando
para o mundo as torturas no Brasil.
100
A conferência em Paris irritou tanto os militares que eles resolveram
mudar de tática. Até o fim daquele ano, então, pipocou por todo o país a bem
orquestrada campanha de execração pública contra Dom Helder. Foram anos de
censura, repressão e silêncio. Todavia a repressão imposta pelo governo militar não
foi suficiente para conter o arcebispo. No final da década de 1970, quando o país
esboçava os primeiros sinais de uma redemocratização, alguns jornais e revistas
passaram a notificar as atividades de Dom Helder no Brasil e no exterior, mas em
Recife, os ataques aos muros da Igreja das Fronteiras e as ameaças de morte por
telefone continuaram.
98
Vários de seus livros receberam traduções em francês, espanhol, inglês, italiano, holandês,
alemão, coreano e japonês. Sobre a obra bibliográfica de Dom Helder, Cf. CAMARA, Helder. O
deserto é fértil: roteiro para as Minorias Abraâmicas. 13
a
edição. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 1985; CAMARA, Helder. Indagações sobre uma vida melhor. 3
a
edição. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 1993; CAMARA, Helder. Espiral de violência. Porto: Poveira, 1971; CAMARA,
Helder. Revolução dentro da paz. Rio de Janeiro: Sabiá, 1968; CAMARA, Helder. Mil razões para
viver. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1979.
99
CASTRO, Marcos de. op. cit. p.180.
100
Idem.
54
Nos anos de 1980, Dom Helder continuou atuando ativamente na
arquidiocese de Olinda e Recife, e proferindo suas conferências pelo mundo. No
exterior o arcebispo continuou sendo alvo de seguidas premiações por sua atuação
pela paz mundial: Prêmio artesão da paz, na Itália em 1982; Niwano Peace Prize, no
Japão em 1983; Roma-Brasília cidade da paz, concedido pela prefeitura de Roma
em 1986, entre vários outros, além dos mais quarenta títulos de doutor honoris
causa.
101
Aposentado em 15 de julho de 1985, aos 76 anos, Dom Helder decidiu
continuar morando na Igreja das Fronteiras em Recife, onde celebrava suas missas
e recebia as pessoas que o procuravam. Em 27 de agosto de 1999, o arcebispo
emérito de Olinda e Recife morre em casa de parada cardíaca, aos 90 anos.
101
PILETTI, Nelson; PRAXEDES, Walter. op. cit. p. 445.
55
CAPÍTULO II
ARTES DE CONSTRUÇÃO DE SI MESMO: AS EPÍSTOLAS
DO PADRE HELDER
56
ARTES DE CONSTRUÇÃO DE SI MESMO: AS EPÍSTOLAS DO PADRE HELDER
“Passarei pela vida sem deixar nenhum sinal
mais forte, marca nenhuma duradoura e
inesquecível. Não escreverei a Suma
Teológica, nem a Divina Comédia. Não serei
S. Vicente de Paula, nem S. João Bosco.
Olharei de longe ainda S. Francisco de Assis.
Escreverei uns dois livros, que umas
duzentas pessoas cheguem a ler. Pregarei
alguns sermões mais ou menos louvados. E
morrerei.
No meu enterro alguém comentará que não
produzi o que podia produzir”.
Padre Helder Camara, aos 34 anos.
Do manuscrito: A escolha de Deus, de 1943.
2.1 Narrativas de si: ideias, opiniões e sentimentos
A narrativa e a coleção de si visam guardar a melhor recordação de si
próprio. Arquivar a própria vida é se por no espelho, é contrapor à imagem íntima de
si, e nesse sentido o arquivamento do eu é uma prática de construção de si mesmo
e de resistência. Mas não arquivamos nossas vidas de qualquer maneira. Fazemos
um acordo com a realidade, manipulamos a existência: omitimos, rasuramos,
riscamos, sublinhamos, colocamos em enxergo certas passagens. Em um diário
íntimo, registramos apenas alguns acontecimentos, omitimos outros; às vezes,
quando relemos nosso diário, acrescentamos coisas ou corrigimos aquela primeira
versão. A escolha e a classificação dos acontecimentos determinam o sentido que
desejamos dar às nossas vidas.
Inconscientemente, é isso que fazemos quando guardamos fotografias,
papeis e diários íntimos. Representa o desejo de perpetuar-se, de constituir a própria
identidade pelos tempos adiante, responde ao anseio de forjar a própria glória.
Assim, podemos supor que ao escrever as cartas e guardá-las cuidadosamente, o
jovem padre Helder Camara pretendesse fazer dessa correspondência uma matéria-
57
prima para o relato de sua passagem pelo mundo. Um documento humano,
inteiramente humano.
Cartas, diários íntimos e memórias sempre tiveram autores e leitores.
Entretanto, é inegável que desde o fim do século XVIII assistimos nas nossas
sociedades a uma formidável valorização de escrita pessoal. A respeito dessa
prática, Philippe Artières, em Arquivar a própria vida, assinala:
Cobiçam-se, procuram-se, adquirem-se a peso de ouro ou a custa de
esperteza algumas folhas de papel cujo branco um personagem
qualquer cobriu de preto, sobre o qual ele expôs, com uma tinta mais
ou menos bela, com caracteres mais ou manos finos, suas ideias,
suas opiniões, seus sentimentos, suas paixões, suas afeições, suas
ambições, suas cóleras.
102
A chave para o entendimento dessas práticas culturais está na
emergência histórica do indivíduo nas sociedades ocidentais. Um processo de
mudança social e cultural pelo qual uma lógica coletiva, regida pela tradição, deixa
de se sobrepor ao indivíduo, que se torna “moderno”.
103
É justamente a emergência desse “eu moderno” que confere à vida
individual uma importância até então desconhecida, “tornando-se matéria digna de
ser narrada como uma história que pode sobreviver na memória de si e dos
outros”.
104
Uma vez que é conferida ao sujeito a possibilidade de situar sua vida ou
destino acima da comunidade a que ele pertence, na qual ele “conceba sua vida não
como uma confirmação das regras e dos legados da tradição, mas como uma
aventura para ser inventada,
105
torna-se importante explorar sua intimidade.
Assim, os tempos modernos são de consagração do lugar do indivíduo na
sociedade, quer como uma unidade coerente quer como uma multiplicidade que se
fragmenta socialmente. É a “fabricação”, ou melhor, a aceitação do indivíduo
simultaneamente uno e múltiplo.
102
ARTIÈRES, Philippe. Arquivar a própria vida. In: Estudos Históricos. Rio de Janeiro: FGV V. 11,
nº 21, 1998. p. 08.
103
Um fenômeno bastante estudado pela história, pela sociologia e pela antropologia, entre outras
ciências.
104
GOMES, Ângela de Castro (org). Escrita de si, escrita da história. Rio de Janeiro: FGV, 2004. p.
12.
105
CALLIGARIS, Contardo. Verdades de Autobiografias e Diários Íntimos. In: Estudos Históricos.
Rio de Janeiro: FGV. V. 11, nº 21, 1998. p. 47.
58
Segundo Peter Gay, o historiador profissional tem sido sempre um
psicólogo, um psicólogo amador.
106
Voluntária ou involuntariamente, o nosso
trabalho consiste em operar com uma teoria sobre a natureza humana. Operamos
como Proust na decifração e na interpretação dos signos sensíveis.
107
Atribuímos
motivos, estudamos paixões, analisamos irracionalidades, buscamos as
necessidades secretas do coração. O estudo da correspondência pessoal de Helder
Camara não exigiria trabalho diferente. Em suas cartas, Helder consegue
transformar „pequenos acontecimentos‟ em matéria de „grande filosofia‟.
Sua correspondência pessoal nos dá um quadro rico de suas ideias,
pensamentos e sentimentos, desejos e aspirações. Uma escrita de si que constitui e
reconstitui suas identidades pessoais e profissionais no decurso da troca de cartas,
como bem assinala Ângela de Castro.
108
Dessa forma, a correspondência pessoal
constitui um lugar e um meio privilegiado de “registrar o efêmero e o simples,
transformando-os em relato que, pela beleza da forma e pela agudez da percepção,
podem se eternizar no tempo”.
109
Os acontecimentos rápidos e corriqueiros ganham
sentidos inusitados, por meio de um gênero literário que combina, como poucos,
memória e história. É, portanto, nessa perspectiva de fundo que as cartas de Helder
Pessoa Camara para Virgínia Côrtes de Lacerda foram localizadas, reunidas e
analisadas, permitindo-nos estabelecer novos olhares sobre a vida e o trabalho do
padre cearense.
2.2 A partilha do sensível: os registros da História da Confiança
Por que Helder Pessoa Camara teria se dedicado tanto à
correspondência, é uma pergunta que logo se coloca quando nos debruçamos sobre
suas epístolas. Sejam as correspondências privadas a Virgínia Côrtes de Lacerda ou
as Cartas Circulares a Família Mecejanense, o que as missivas nos demonstram, é
106
GAY, Peter. Freud para historiadores. Tradução de Osmyr Faria Gabbi Junior. Rio de Janeiro:
Paz e Terra, 1989. p. 25.
107
DELEUZE, Gilles. Proust e os signos. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2003.
108
GOMES. Ângela de Castro. Em família: a correspondência de Oliveira Lima e Gilberto Freyre.
Campinas: Mercado de Letras, 2005. Coleção Letras em Série. p. 13.
109
Ibidem. p. 11.
59
uma dedicação incomum a escrita de cartas, que está sinalizado no volume que
escreveu.
110
Em um antigo livro de salmos utilizado ainda nos tempos do Seminário da
Prainha em Fortaleza, Helder deixa registrada a seguinte passagem: “eu velo a
invocar-vos desde o alvorecer. Minha alma está sequiosa por vós”.
111
A leitura dos
versículos, que chamaram a atenção do jovem seminarista, surpreende o historiador,
pela coerência com a biografia sucessiva. Durante toda a sua vida, Helder dedicou,
cada madrugada, cerca de três horas para mergulhar na intimidade de Deus.
Chamava este tempo de vigília.
112
Sobre essa prática, em março de 1946, o
missivista escreve: Como é bom interromper o sono na hora em que muitos
dormem e em que irmãos velam adorando, sofrendo ou pecando para cantar os
louvores do Bom Deus! É o que espero fazer pelo resto da vida.
113
As vigílias representavam em sua vida alguns momentos de encontro com
Deus e era nesses instantes que desenvolvia uma forma muito peculiar de orar.
Virgínia Côrtes de Lacerda, em fevereiro de 1944, as margens da obra de D. Gorce,
A L’école de saint Benoît,
114
inicia o seguinte diálogo ao indagar ao amigo e diretor
espiritual sobre como deveria rezar:
- Ensine-me a reza!
110
Escritas diariamente de 1944 a 1952, o conjunto da correspondência pessoal do padre Helder
Camara para a professora Virgínia Côrtes configura um total de 1.734 cartas contendo em média 03
páginas cada. As Cartas Circulares, por sua vez, somam um total de 2.950 epístolas entre
Circulares Conciliares, Circulares Inter-Conciliares e Circulares sobre Ação Justiça e Paz, Minorias
Abraâmicas, trabalhos e vida na Arquidiocese redigidas de 1962 a 1982 para a Família
Mecejanense.
111
PSALMOS. Tradução de Mons. José Basílio Pereira. Salvador, 1922.
112
Sobre as Vigílias de Dom Helder Camara, Cf. CAMARA, Helder; BROUCKER, José de. Les
Conversions d’un Évêque: Entretiens avec José de Broucker. Paris: L‟Harmattan, 2002; PILETTI,
Nelson; PRAXEDES, Walter. Dom Helder Camara. Entre o poder e a profecia. São Paulo: Editora
Ática, 1997; PILETTI, Nelson; PRAXEDES, Walter. Dom Helder Camara. O profeta da paz. o
Paulo: Contexto, 2008; BROUCKER, José de. Les nuits d’un prophète. Dom Helder Camara à
Vatican II. Paris: Les Éditions du Cerf, 2005; CAMARA, Helder. Vaticano II Correspondência
Conciliar Circulares à Família do São Joaquim, 1962-1964. Introdução e notas Luiz Carlos L.
Marques. IDHeC Obras Completas. Recife: Ed. Universitária da UFPE, 2004; CAMARA, Helder.
Circulares Conciliares. Notas Luiz Carlos Luz Marques e Roberto de A. Farias. Vol. I. Tomo I, II e III.
Recife: Editora CEPE, 2009; CAMARA, Helder. Circulares Interconciliares. Notas Zildo Rocha. Vol.
II. Tomo I, II e III. Recife: Editora CEPE, 2009; CASTRO, Marcos de. Dom Helder: Misticismo e
Santidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002; MONTENEGRO, Antônio T.; SOARES, Edla;
TEDESCO, Alcides (org). Dom Helder, peregrino da utopia: caminhos da educação e da política.
Recife: A Prefeitura; Editora Universitária da UFPE, 2002.
113
CAMARA, Helder. Carta Pessoal. 06 de março de 1946, Rio de Janeiro. Para Virgínia Côrtes de
Lacerda, Rio de Janeiro. 03p. Arquivo Pessoal.
114
GORCE, D. A L’école de sanit Benoît. Paris: Bloud e Gay, 1935.
60
- Diga primeiro como é que você reza. Que se passa com o seu
espírito durante a oração?
- Abro, em silêncio, meu coração. Mas fico receando estar rezando
comodamente. Mas tenho menos caridade, quando repito de cor as
orações costumeiras, ou mesmo quando rezo o Terço, todas as
noites... Penso que estou em oração o dia todo, porque não separo o
que faço do serviam a Deus. Estou em oração quando leio e anoto
livros. Certo?
- Como somos irmãos! Não rezo de outro modo. E é a oração ideal.
Mais que oração: espírito de oração!
115
Durante o período em que se mantinha em estado de vigília, Helder lia e
escrevia. Escrevia muito, quase que incansavelmente. Redigiu durante esses
momentos alguns dos seus escritos mais importantes, suas conferências, seus
projetos de vida, suas meditações, seus pensamentos e seu cotidiano em uma
coleção de quase duas mil cartas. Cartas escritas todos os dias, ou melhor, “toutes
les nuits” - como bem assinala José de Broucker,
116
quase sempre às quatro horas
da manhã, horário escolhido por Helder para seus momentos mais profundos de
orações e, escrever, para ele, era um ato de oração: “O Senhor Arcebispo está
rezando a meu lado. Deve ficar muito espantado com o meu hábito de rezar
escrevendo”.
117
Resultado de suas vigílias, as epístolas abrangem muito de sua
espiritualidade, do seu cotidiano e das suas relações pessoais. Entretanto, para
além e aquém desses lugares, seus manuscritos registram memórias que narram
àquilo que chama de História da Confiança: a história de sua relação com a
professora Virgínia Côrtes de Lacerda.
Segundo a historiadora Giselle Martins, “nos arquivos privados pessoais,
os titulares tornam-se ao mesmo tempo objetos e sujeitos de uma escrita de si e do
outro, convertendo-se em autores de um registro sobre sua própria história”.
118
A
correspondência de Helder Camara para Virgínia Côrtes muito nos diz sobre seu
autor. Nas cartas, o missivista constrói-se, mostra-se e expõe-se, vai traçando
115
CAMARA, Helder; LACERDA, Virgínia C. Anotações as margens da obra de D. Gorce, A L‟école
de saint Benoît. Rio de Janeiro, fevereiro de 1944. Arquivo do Centro de Documentação Helder
Camara (CeDoHC).
116
Cf. BROUCKER, José de. Les nuits d’un prophète: Dom Helder Camara à Vatican II. Lecture
das Circulares Conciliares de Dom Helder Camara (1962-1965). Paris: Les Éditions du Cerf, 2005.
117
CAMARA, Helder. Carta Pessoal. 26/27 de fevereiro de 1945, Rio de Janeiro. Para Virgínia Côrtes
de Lacerda, Rio de Janeiro. 04p. Arquivo Pessoal.
118
VENANCIO, Giselle Martins. Cartas de Lobato a Vianna: uma memória epistolar silenciada pela
história. In: GOMES, Ângela de Castro (org). Escrita de si, escrita da história. Rio de Janeiro: FGV,
2004. p. 113.
61
nessas páginas as trajetórias que desenham palavras, frases e, por fim, constituem
uma vida. Páginas em branco que, segundo Michel de Certeau, “constitui um lugar
de produção do sujeito, o campo de um fazer próprio”.
119
Uma oportunidade de
(re)escrever a si mesmo.
Figura 04: Carta pessoal de Helder Camara para Virgínia Côrtes de Lacerda. Rio de Janeiro, 21 de
março de 1944.
Fonte: Arquivo Pessoal.
Uma análise comparativa das epístolas nos aponta que Helder Camara
era um missivista bastante cuidadoso. É impressionante a forma cautelosa com que
escreve suas cartas: sempre atento à forma e com uma divisão didática dos
assuntos, o autor procura estabelecer padrões, tanto na sequência dos temas
abordados, quanto no papel utilizado e na quantidade de páginas de cada carta.
120
A
linguagem das epístolas é um ponto a ser observado, tanto no que se refere à sua
forma material, quanto à sua dimensão subjetiva. O uso despreocupado das
119
CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: 1. Artes de fazer. Tradução de Ephraim Ferreira
Alves. Petrópolis, RJ: Vozes, 2007. p. 225.
120
Seguindo uma espécie de „padrão‟, as epístolas contêm em média três páginas e são escritas no
verso do papel timbrado do Ministério da Educação e Saúde (1944-1948), onde o padre Helder
trabalhava na condição de Técnico em Educação, e da Ação Católica Brasileira (a partir de 1949) nos
anos que atuava como Secretário da Ação Católica Brasileira. Ver exemplo de carta no Apêndice A.
62
abreviações segundo Ângela de Castro, “um abreviador da escrita”
121
é muito
praticado por Helder em sua correspondência. De forma acelerada, ele transita com
desenvoltura da posição de diretor espiritual a de um estudante sedento por novas
informações.
Obedecendo a suas regras, as epístolas iniciam sempre com uma
menção ao sagrado. Na grande maioria das vezes, uma oração, uma passagem do
Breviário, uma referência à Magna Domina, a São Francisco de Assis ou a biografia
do santo do dia. Nesse espaço, se configura o lugar da fala do diretor espiritual.
Rio, (Kansas, U.S.A), 7.12.1944 4h da manhã.
Minha querida Caecilia
Benedicamus Domino!
Dia de Santo Ambrosio, um dos instrumentos divinos para a
conversão de Santo Agostinho; um dos homens que mais louvou a
Deus compondo hinos e difundindo o canto dos salmos; um dos
melhores pregadores de todos os tempos...
Pede a Deus, Santo Ambrosio, que sejamos instrumentos dóceis
para a conversão de muitos irmãos (que a nossa fragilidade não
atrapalhe a vinda de ninguém!); que, dia a dia, entendamos mais e
amemos melhor o Divino Ofício; que a pregação do Padre Albertus
seja sempre mais pura e ungida de fé.
122
Passado esse instante, o autor discorre sobre o cotidiano: a viagem de
bonde, as peças em cartaz no teatro, os encontros com os amigos, à efervescência
da cidade nos dias de carnaval e nos instantes de tensões políticas, sobre seus
anseios, suas dúvidas e seus planos.
Algumas das vezes as correspondências ganham valor de uma confissão
por trazerem assuntos que deveriam chegar apenas à amiga e confidente. Nesses
instantes as cartas assumem o lugar de „diário íntimo‟. As margens da obra de
Anibal Ponce, Diário íntimo de una adolescente,
123
o padre Helder, ao se deparar
com o questionamento do autor acerca do valor que se deve atribuir em psicologia a
um diário íntimo, tece o seguinte comentário: Problema de Psicologia: que valores
121
GOMES, Ângela de Castro. Em família: a correspondência de Oliveira Lima e Gilberto Freyre.
Campinas: Mercado de Letras, 2005. Coleção Letras em Série. p. 32.
122
CAMARA, Helder. Carta Pessoal. 07 de dezembro de 1944, Rio de Janeiro. Para Virgínia Côrtes
de Lacerda, Rio de Janeiro. 02p. Arquivo Pessoal.
123
PONCE, Aníbal. Diário íntimo de una adolescente. Buenos Aires: Editora Ateneu, 1943. Obras
Completas de Aníbal Ponce.
63
possuem os diários como documentos de vida interior? Para quem os sabe
interpretar valem como documentos vivos”.
124
Apesar do fazer historiográfico por “em cena uma população de
mortos”,
125
ao lermos as cartas pessoais de Helder Camara, temos a sensação de
estarmos diante de “documentos vivos”, em certas ocasiões, de “diários”, onde
espaço para reflexões do dia-a-dia e registros de memórias.
O ato de escrever diariamente agrega a correspondência um valor
significativo muito profundo. Através da escrita epistolar as pessoas mesmo
distantes fisicamente, podem trocar ideias e afetos, construir projetos múltiplos ou
discutir planos opostos. Segundo Peter Gay, em O coração desvelado, “as cartas
substituem a presença física desejada”.
126
Elas representam o penhor da afeição
verdadeira, prova de que o outro estava disposto a dedicar um tempo valioso para
dirigir-se à pessoa querida e a visualizá-la em sua imaginação.
Vim dar-lhe meus bons dias. Vou deitar-me. Despertei com uma
dor tão grande nos rins ou na espinha, que nem me posso mover
direito. Vou descansar para que a Santa Missa possa ser celebrada.
Não posso mais. Não se preocupe.
O irmão corpo abatido abençoa a alma querida da irmã do Pe.
Albertus.
127
Obviamente, escrever cartas quase nunca é um ato inteiramente solitário.
O outro está sempre presente uma fotografia sobre a mesa, uma flor seca entre as
páginas de um livro, uma imagem guardada na memória
128
- esperando ser
informado, corrigido e, acima de tudo, agradado: “O tercinho branco anda comigo de
encontro ao peito. É um conforto apertá-lo nas horas de angústia e de tristeza, de
trabalho e de saudade... Conforto ainda maior é rezá-lo”.
129
124
CAMARA, Helder. Anotações as margens da obra de Aníbal Ponce, Diário íntimo de una
adolescente. Rio de Janeiro, janeiro de 1944. Arquivo do Centro de Documentação Helder Camara
(CeDoHC).
125
CERTEAU, Michel de. A escrita da história. Tradução de Maria de Lourdes Menezes. Rio de
Janeiro: Forense Universitária, 2007. p.106.
126
GAY, Peter. O coração desvelado: a experiência Burguesa da Rainha Vitória a Freud. Tradução
de Sérgio Bath. São Paulo: Companhia das Letras, 1999. p. 347.
127
CAMARA, Helder. Carta Pessoal. 15 de março de 1945, Rio de Janeiro. Para Virgínia Côrtes de
Lacerda, Rio de Janeiro. 01p. Arquivo Pessoal.
128
GAY, Peter. op cit. p. 356.
129
CAMARA, Helder. Carta Pessoal. 07 de março de 1945, Rio de Janeiro. Para Virgínia Côrtes de
Lacerda, Rio de Janeiro. 02p. Arquivo Pessoal.
64
Nos instantes da escrita das cartas, são várias as formas de presença de
ambas as partes. Os estudos, os manuscritos e pequenos objetos pessoais
circulavam de uma companhia a outra. No entanto, as fotografias são as mais
corriqueiras.
Figura 05: O jovem padre com a mãe, Adelaide Pessoa, em fevereiro de 1933. No verso, dedicatória
a Virgínia Côrtes de Lacerda.
Fonte: Arquivo Pessoal.
No plano da correspondência de Helder e Virgínia, o papel reservado as
fotografias vai além do fato destas servirem como uma das formas de presença da
pessoa querida. As fotografias seguiam sempre acompanhadas das epístolas,
servindo-as como veículo ilustrativo para determinados assuntos. Um exemplo disso
está na fotografia do padre com a mãe, Adelaide Pessoa, onde a imagem do jovem
abraçado a sua mãe seria apenas uma lembrança se a fotografia não estivesse
acompanhada de uma carta datada de 08 de agosto, dia do aniversário da morte de
dona Adelaide.
As correspondências expressam mais do que o texto que as contém.
Dessa forma, voltamos nosso olhar para as pausas e os silêncios na intenção de
observar as entrelinhas e ver as cartas pessoais de Helder Camara não apenas
como um texto de onde se pode simplesmente extrair informações, mas documentos
65
que podem ser analisados a partir de seu suporte material, dos códigos sociais
utilizados e das formas lingüísticas empregadas.
130
Apesar dos manuais epistolares que conferem as cartas um gênero
fortemente tipificado, escrevê-las é uma arte. No caso da correspondência
helderiana os códigos que fazem com que um texto seja reconhecido como carta
ganham aspectos e valores inusitados.
As missivas do padre Helder oscilam sempre entre o rigor da norma e a
liberdade literária, a começar pela localização das cartas. Morador da cidade do Rio
de Janeiro, Helder pouco viajou nos anos 1940 o que conferiria as epístolas
registrarem como seu lugar de fala a capital federal. No entanto, não era bem isso o
que as cartas registravam na prática. As correspondências helderianas trazem ao
lado da referência à cidade do Rio de Janeiro a menção a algum lugar do mundo por
onde sua imaginação divagava através das viagens missionárias.
Figura 06: Fragmento da carta pessoal de Helder Camara para Virgínia Côrtes de Lacerda. Rio de
Janeiro, 21 de março de 1944.
Fonte: Arquivo Pessoal.
Angustiado pelo aprisionamento no funcionário público, o padre Helder via
nas viagens missionárias uma oportunidade de sair pregando pelo mundo afora,
mesmo que essas viagens fossem apenas imaginárias. Quando era questionado
sobre as missões respondia da seguinte forma: “Imaginação? Perda de tempo? Feliz
de quem enche o tempo com tão santas imaginações!”
131
Por muitas vezes, o autor
constrói roteiros a serem percorridos em companhia da amiga Virgínia Côrtes.
Vamos ao Amazonas?
Dia 12: Manaus.
130
Sobre essa prática Cf. ORLANDI, Eni Puccinelli. As formas do silêncio. Campinas: EDUNICAMP,
1997.
131
CAMARA, Helder. Carta Pessoal. 02 de outubro de 1947, Rio de Janeiro. Para Virgínia Côrtes de
Lacerda, Rio de Janeiro. 02p. Arquivo Pessoal.
66
Dia 13: Descendo o Rio Negro até Moura.
Dia 14: Tomaremos o Rio Branco passando por Santa Maria e
Pesqueiro Real.
Dia 15: Voltaremos ao Rio Negro: Barcelos.
Dia 16: Continuaremos no Rio Negro: São Gabriel.
Dia 17: Iremos até Cuculy.
Dia 18: De avião a Tabatinga para subir o Solimões.
Dia 19: São Paulo de Olivença subindo o Solimões.
Dia 20: Fonte Boa subindo o Solimões.
Dia 21: Teffé subindo o Solimões.
Dia 22: Codajaz subindo o Solimões.
Dia 23: De avião a Porto Velho para subir o Madeira.
Dia 24: Humaitá subindo o Madeira.
Dia 25: Manicoré subindo o Madeira.
Dia 26: De avião a Labrea, o Peru.
Dia 27: Floriano Peixoto, no Peru.
Dia 28: Rio Branco no Acre.
Dia 29: Xapuri no Acre.
Dia 30: Cruzeiro do Sul no Acre.
132
Assim, a cada dia, as cartas eram „escritas‟ de uma cidade ou, até
mesmo, um país diferente apresentando com uma impressionante riqueza de
detalhes a história e a geografia local. Em 12 de junho de 1945, em „viagem‟ pelo
Amazonas escreve:
Rio (Manaus), 12.6.1945
Minha querida Caecilia,
De avião, sobrevoamos o Amazonas todo, antes de descer em
Manaus.
Um mundo: 1.800.000 Km² (hoje menos, pelo desmembramento dos
novos territórios). Mundo quase deserto: 370.000 habitantes.
Acompanhamos o curso dos grandes rios: Amazonas e seus
inúmeros afluentes; Rio Negro, Rio Branco, Madeira...
Índios até em volta de Manaus!
133
Por vezes, o missivista utilizava-se de recursos como compêndios
geográficos e mapas desenhados cuidadosamente para indicar as datas e os
lugares que seriam percorridos.
134
132
CAMARA, Helder. Carta Pessoal. 11 de junho de 1945, Rio de Janeiro. Para Virgínia Côrtes de
Lacerda, Rio de Janeiro. 03p. Arquivo Pessoal.
133
CAMARA, Helder. Carta Pessoal. 12 de junho de 1945, Rio de Janeiro. Para Virgínia Côrtes de
Lacerda, Rio de Janeiro. 03p. Arquivo Pessoal.
134
Em junho de 1945 escreve: A sugestão de viajar pela Rússia é ótima e será aceita. Apenas não
temos, no momento, uma boa geografia que nos informe a respeito da U.R.S.S. e é meio
67
Figura 07: Desenho do padre Helder Camara com o mapa dos Estados Unidos com a indicação das
Viagens Missionárias de novembro e dezembro de 1944.
Fonte: Arquivo Pessoal.
Apenas em 1946, com sua saída do Ministério da Educação e Saúde, o
padre Helder faria de fato sua primeira viagem missionária: uma ida a Taubaté como
Secretário da Ação Católica.
Aqui estou na minha primeira viagem missionária.
Você é testemunha de que, durante anos, sonhei com as missões,
com trabalhos puramente sacerdotais a que dedicasse de todo a
vida. O Bom Deus provou-me exercitando-me na humildade, na
paciência, no desapego, no espírito de fé.
De 1936 a 1946, fiquei durante 6 horas diárias preso a uma
repartição pública, enquanto o coração arrancava para trabalhos
contraproducente viajar no escuro”. Cf. CAMARA, Helder. Carta Pessoal. 11 de junho de 1945, Rio de
Janeiro. Para Virgínia Côrtes de Lacerda, Rio de Janeiro. 03p. Arquivo Pessoal.
68
apostólicos. Três vezes tentei desprender-me da burocracia. Não
soara ainda a hora de Deus.
Fizemo-nos apóstolos pelo coração, missionários de desejo.
Percorremos o mundo inteiro, de cidade a cidade, de país a país.
Quem podia adivinhar, vendo-me em minha mesa de funcionário,
que ali estava apenas o corpo e que minha alma de missionário
estava distante, muito distante?
135
No que diz respeito às saudações e as despedidas, as cartas apresentam
outra faceta intrigante do padre Helder: o uso frequente de pseudônimos. Nas
epístolas, Helder Camara e Virgínia Côrtes de Lacerda assumem os pseudônimos:
padre Albertus e Caecilia.
Todo um capítulo à parte precisaria ser escrito para falar dos
pseudônimos usados por Helder Camara, desde seus anos da juventude, no
Seminário da Prainha. Mas por que o uso frequente dos pseudônimos? Todos
aqueles que o conheceram de perto sabem que faz parte da sua personalidade a
timidez e o silêncio, mas também a astúcia e a coragem para se pronunciar nos
momentos que julga necessário.
A historiadora Natalie Zemon Davis na obra O retorno de Martin Guerre,
chama a nossa atenção para o fato dos homens estarem presos as suas
possibilidades.
136
Talvez tenha sido através da prática do uso de pseudônimos que
Helder encontrou sua maneira de expor seu pensamento de forma a não se
comprometer com aqueles a quem dirigia a palavra e com o meio em que estava
inserido. Em 03 de maio de 1944, em carta à Virgínia Côrtes, relembra uma
passagem bastante significativa nesse sentido:
Pseudônimos...
Ivo de Laet: Ivo (de Santo Ivo, advogado que está no céu coisa
rara, raríssima, segundo os faladores); o resto do nome, homenagem
ao polemista Carlos de Laet.
Um jornalista de quem hoje sou amigo vinha pela imprensa do Ceará
dizendo horrores de todos os padres da terra. Calúnias tremendas...
O seminarista Ivo de Laet, em férias, apanhou a coleção de jornais
do agressor (era o próprio Diretor d‟O Ceará quem agredia o clero e
depois os dogmas!) e apontou uma série de contradições em escritos
dele.
135
CAMARA, Helder. Carta Pessoal. 08 de julho de 1946, Taubaté. Para Virgínia Côrtes de Lacerda,
Rio de Janeiro. 03p. Arquivo Pessoal.
136
Sobre as possibilidades históricas Cf. DAVIS, Natalie Zemon. O retorno de Martin Guerre.
Tradução de Denise Bottmann. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.
69
Seria incapaz de escrever o que escrevi então. o ambiente e a
pureza de intenção me redimem em parte.
Aqui no Rio, um dia o ex Ivo de Laet recebeu palmas em pleno Santo
Inácio. Um escândalo na Igreja, porque as palmas são contagiantes
e pelo menos meia igreja aplaudiu.
As palmas haviam partido do jornalista contra quem Ivo saíra a
campo. Aproximaram-se. Entenderam-se. Estimaram-se.
137
Os pseudônimos utilizados por Helder Camara durante toda sua vida
apresentavam-se sempre carregados de muitos significados, desde a escolha dos
nomes até o trabalho que seria desenvolvido.
138
Atanásio: o jornal católico do Ceará mantinha uma coluna
pedagógica entregue a um católico sem formação educacional cristã.
Atanásio provou que a coluna difundia naturalismo pedagógico.
Houve muita lealdade do dono da coluna. Era um humilde um
sincero. Atanásio teria obtido o mesmo efeito dirigindo-se em carta
particular a ele. Mas Atanásio não havia mergulhado ainda no
método dos métodos.
Alceu da Silveira foi um desdobramento de Atanásio. Tem-lhe as
virtudes e os defeitos.
Rosalvo Lígio: Rosalvo (um vizinho que foi uma das minhas
fascinações da adolescência: estudioso e digno, bonito e bom,
delicadíssimo... Teria, também, havido alguma sombra de admiração
por aquela que, em minha terra, me é uma das amigas fraternais: a
Albinha? Conheci-a em tempos de Seminário Menor: apaixonada por
literatura, boa intérprete da música, morando em um castelo... Com o
tempo, a amizade que sempre foi espiritual, espiritualizou-se ainda
mais. Para ela, o ex Rosalvo é um santo genuíno, a quem venera e
cujas palavras acata como vindas de Deus. Não conhece felicidade
maior do que assistir a uma missa do ex Rosalvo. Discretíssima.
Colaborei com o Bom Deus no aprimoramento desta alma, gaudium
meum et corona mea. Cristã dos 1
º
tempos: de uma caridade
evangélica, foi a 1
a
realização pré-albertina da virtude amável. Pré-
albertina, no sentido de anterior à aparição de Alberto. Gratia Dei per
Alceum...)
Lígio?!... Termo que impressionou ao adolescente encantado pela
idade media e pela pureza abstrata de tal cavalheirismo. Ligia era a
qualidade de uma das homenagens do cavaleiro.
139
137
CAMARA, Helder. Carta Pessoal. 03 de maio de 1944, Rio de Janeiro. Para Virgínia Côrtes de
Lacerda, Rio de janeiro. 04p. Arquivo Pessoal. (Grifos do autor).
138
Segundo Alceu Amoroso Lima, em agosto de 1931 o recém ordenado padre Helder Camara
escreve-lhe relatando que desde o seminário usava o pseudônimo de Alceu da Silveira, porque
gostava muito dos poemas de Tasso da Silveira e dos seus escritos. Cf. LIMA, Alceu Amoroso.
Depoimento. In. CASTRO, Marcos de. Dom Helder: misticismo e santidade. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2002.
139
CAMARA, Helder. loc. cit. (Grifos do autor).
70
Como padre Albertus, ao que tudo indica uma referência a santo Albertus
Mágno,
140
Helder assinou as anotações as margens dos livros e as
correspondências para a amiga e confidente Virgínia Côrtes de Lacerda. A escolha
do pseudônimo, mais uma vez, não se deu aleatoriamente, está diretamente ligada
ao trabalho realizado por Helder e Virgínia na Faculdade Católica e no Instituto
Santa Úrsula.
Que o Grande Albertus:
- confirme a irmã querida em sua vocação indiscutível do magistério.
Faça com que, dia a dia, ensinando literatura ou latim, filosofia ou
grego, ensine Vida, como a fonte que dá sem esgotar-se...
- aclare a vocação do pequeno Albertus: deve ele permanecer no
magistério?
141
Os anos de 1941 a 1945 são de grande envolvimento de Helder com o
magistério. Em 1941, o padre Helder é convidado por Dom Sebastião Leme, cardeal
arcebispo do Rio de Janeiro, a lecionar as disciplinas de didática geral e
administração escolar nas recém fundadas Faculdades Católicas, passando, em
seguida, a ministrar cursos de psicologia para as professoras religiosas da
Faculdade de Letras do Instituto Santa Úrsula. Foi, justamente, por ocasião das
aulas que, em 1943, conheceu a também professora Virgínia Lacerda, passando a
trabalhar e estudar juntos.
142
No entanto, a adoção da alcunha padre Albertos’ para a redação das
epístolas parece está além e aquém de um simples pseudônimo quando
observamos uma pequena passagem escrita em carta maio de 1944: “Não é
140
Santo Alberto Magno (1206-1280) foi douto mestre de teologia, de filosofia e de ciências naturais,
que pela grande afluência de estudantes às suas lições na Universidade de Paris, foi obrigado a
ensinar em praça pública. Alberto teve entre os seus alunos Tomás de Aquino, de quem previu os
grandes dotes de pensador. Sobre santo Alberto Magno, Cf. SGARBOSSA, Mário e GIOVANNINI,
Luigi. Um santo para cada dia. São Paulo: Paulos, 1983.
141
CAMARA, Helder. Carta Pessoal. 15 de novembro de 1944, Rio de Janeiro. Para Virgínia Côrtes
de Lacerda, Rio de Janeiro. 04p. Arquivo Pessoal.
142
Sobre esse período da vida de Dom Helder Camara, Cf. CAMARA, Helder; BROUCKER, José de.
Les conversions d’un Évêque: Entretiens avec José de Broucker. Paris: L‟Harmattan, 2002;
PILETTI, Nelson; PRAXEDES, Walter. Dom Helder Camara. Entre o poder e a profecia. São Paulo:
Editora Ática, 1997; PILETTI, Nelson; PRAXEDES, Walter. Dom Helder Camara. O profeta da paz.
São Paulo: Contexto, 2008; BROUCKER, José de. Les nuits d’un prophète. Dom Helder Camara à
Vatican II. Paris: Les Éditions du Cerf, 2005; CASTRO, Marcos de. Dom Helder: misticismo e
santidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002.
71
pseudônimo Pe. Albertus: é o nome novo, o verdadeiro nome”.
143
Nesse sentido, as
palavras do autor são revestidas de muitos significados. De acordo com a Liturgia da
Igreja Católica, o ingresso em uma ordem religiosa representa o nascimento de um
„novo homem‟, fazendo-se necessário, portanto, a adoção de um „nome novo‟, „o
verdadeiro nome‟. Destarte, ainda no final de 1944, o padre Helder, às margens da
obra de Daniel Halévy, Péguy et les Cahiers de la Quinzaine, ressalta o nascimento
desse „homem novo‟ ao estabelecer com Virgínia o seguinte diálogo:
- Meu nascimento verdadeiro se deu em 1944...
- 1943 pode ficar triste. Mas diga: em que dia de 1944?
- 22.2.44, dia em que você aceitou em definitivo a Proporção Ideal.
Entende que esta data seja mais nascimento meu do que 7.2.1909
ou mesmo 15.8.1931?
144
Segundo as anotações as margens da obra de Halévy e as
correspondências, para Helder, a amizade e a afinidade espiritual estabelecida com
Virgínia representavam o nascimento de um „novo homem‟, daí o julgamento do
autor em destacar o dia 22 de fevereiro de 1944 como sendo o seu nascimento
verdadeiro.
145
A esse homem que acabara e nascer fazia-se necessária à adoção de
um „novo nome‟.
Virgínia também receberia do missivista um pseudônimo e o escolhido foi
o Caecilia, uma aparente referência a Santa Cecília. Exaltada na Igreja Católica
como o modelo mais perfeito de mulher cristã, Cecília era uma nobre rica que
diariamente assistir à missa celebrada pelo Papa Urbano nas catacumbas da via
Àpia, aguardada por uma multidão de pobres, que conheciam sua generosidade.
146
Apesar de mais frequentes e significativos, padre Albertus e Caecilia não
são os únicos pseudônimos usados por Helder e Virgínia nas correspondências que
narram a História da Confiança. Chamam-se por Frei Francisco e Frei Jacoba todas
143
CAMARA, Helder. Carta Pessoal. 02 de maio de 1944, Rio de Janeiro. Para Virgínia Côrtes de
Lacerda, Rio de Janeiro. 01p. Arquivo Pessoal.
144
CAMARA, Helder; LACERDA, Virgínia Côrtes de. Anotações as margens da obra de Daniel
Halévy, Péguy et les cahiers de la quinzaine. Rio de Janeiro, fevereiro de 1944. Arquivo do Centro de
Documentação Helder Camara (CeDoHC).
145
Os dias 07 de fevereiro de 1909 e 15 de agosto de 1931 são, sem dúvida, bastante
representativos para a vida de Helder Camara, uma vez que marcam o seu nascimento e a sua
ordenação sacerdotal, respectivamente.
146
Sobre Santa Cecília Cf. SGARBOSSA, Mário e GIOVANNINI, Luigi. Um santo para cada dia. São
Paulo: Paulos, 1983.
72
as vezes que fazem referência a seus compromissos com os pobres e quando estão
em pleno envolvimento com a Regra do Apostolado Oculto.
147
As margens do livro
de Daniel Halevy, Helder, em março de 1944, inicia com Virgínia o seguinte diálogo:
- Tenho uma irmã que tem dois nomes. Uso-os na oração, falando ao
Bom Deus... Quer amostras? Caecilia e Frei Jacoba... Frei Jacoba é
o mais querido.
- Por quê? Mas meu destino é ter apelidos carinhosos, sem merecê-
los.
- O encanto de Frei Jacoba vem do Monsior. Lembra-me a Proporção
Ideal.
148
As referências a Francisco de Assis nas cartas são constantes. Elas
perpassam desde as menções a vida do santo as extensas bibliografias estudadas e
anotadas em suas margens. A relação de Francisco de Assis com a pobreza sempre
causou profunda impressão em Helder, configurando-se em cenas de constante
reflexão em seus escritos:
Em menos de 48 horas, duas aventuras deliciosas em louvor da
Senhora Pobreza.
Sábado à tarde: os mil reis ganhos para pagar o bonde até o Santa
Úrsula e depois até a cidade, caíram, rolaram pelo estribo,
desapareceram. Um homem põe quatro reis em minha mão e salta
do bonde em movimento. E do Instituto à cidade? Dei a aula
tranquilo. Segui a pé, felicíssimo, até Tamoios, 32. E do Nacional até
a sede das Senhoras Brasileiras? Quando achei os quinhentos reis
ao meu lado, tive a impressão que Pedro deve ter sentido quando,
por ordem do Mestre, encontrou na boca do peixe, a moeda para o
imposto. CR$ 0,50 + 0,10 = CR$ 0,60. o que deu para o bonde e
para uma xícara de café, que teve o sabor de um almoço delicioso.
Domingo à noite; passei das dez as onze e dez, no Tabuleiro da
Baiana, com dez centavos no bolso. Os bondes passavam e eu
esperava algum conhecido que me valesse. Nunca entendi tanto os
pobres. Tive ímpetos de gritar a multidão desconhecida: „não somos
estranhos, somos irmãos! Ajudem-me pelo amor de Deus.‟
147
Inspirada nas regras franciscanas e beneditinas, a Regra do Apostolado Oculto fora escrita por
Helder Camara, Virgínia Côrtes de Lacerda e Cecília Monteiro entre 1945 e 1947 com o objetivo de
servir como regra de vida para um grupo de jovens mulheres católicas que comungavam dos ideais
do padre Helder.
148
CAMARA, Helder; LACERDA, Virgínia Côrtes de. Anotações as margens da obra de Daniel
Halévy, Péguy et les cahiers de la quinzaine. Rio de Janeiro, fevereiro de 1944. Arquivo do Centro de
Documentação Helder Camara (CeDoHC).
73
Surgiu um primeiro conhecido. Faltou coragem de pedir. (Como te
entendi, Monsior, que para pisar o amor próprio dos teus filhos,
escreveste na Regra a obrigação de esmolar!).
Um segundo conhecido se foi sem que chegasse a coragem de
estender a mão. (Pensei nas desculpas que os pobres arranjam e
achei-as mais do que compreensíveis!).
Terceira oportunidade perdida (E eu me lembrei: quando um pobre
envergonhado abre a boca e fala quanto tempo levou tomando
coragem para falar?).
Não fizeste milagre para que a aventura encantadora fosse vivida até
o fim. (Pensei em pedir vinte centavos emprestado ao homem da
banca de jornais, um irmão que me desconhece. Olhei os pobres
espalhados pelo Tabuleiro e lembrei-me de fazer ali mesmo um
comício em favor da classe a que a Providência me incorporava
durante instantes deliciosos.
De repente, senti-me Jesus Cristo! E tomei o primeiro bonde que
passou, disposto a levar, por Ele e pela Senhora Pobreza, a
vergonha até o fim. Como o condutor irá receber minha desculpa? A
mania de julgar está descobrindo que ele tem cara de poucos
amigos. Ainda por cima estou alinhado demais para que me
acreditem com um tostão no bolso. Faltam dois bancos antes de o
cobrador chegar onde estou. Ninguém se lembrará de pagar por
mim? Devo pedir baixinho ou deixar que os visinhos me escutem e
esmolar, feliz, pelo amor de Deus?
Quando notei me explicara, em tom firme e natural, com o motorneiro
que foi gentilíssimo. (Quem disse que não mais cavaleiros no
nosso século?). O bonde me pareceu mais iluminado. A cidade mais
recolhida. Os anjos de Deus cantavam, na surdina, loas à Senhora
Pobreza.
149
Embora a grande companheira de Francisco de Assis tenha sido Clara, foi
o nome da senhora Jacoba de Settesoli o escolhido para Virgínia. A senhora
Settesoli era uma jovem romana, casada com o nobre Graciano Frangipani, que
acolhia Francisco em suas andanças por Roma. Segundo os biógrafos, após uma
amizade de quatorze anos, Jacoba de Settesoli teria pressentido a morte de
Francisco e providenciado uma cesta com túnica e velas dirigindo-se, em seguida,
ao mosteiro de São Damião, em Assis. À entrada do mosteiro, Francisco teria
anunciado a Frei Leão a chegada da senhora de Settesoli ordenando a entrada de
Frei Jacoba.
150
Dessa forma, Helder confere a Virgínia o nome da jovem romana e
149
CAMARA, Helder. Carta Pessoal. 14 de abril de 1946, Rio de Janeiro. Para Virgínia Côrtes de
Lacerda, Rio de Janeiro. 03p. Arquivo Pessoal. (Grifos do autor).
150
Sobre Francisco de Assis e Jacoba de Settesoli Cf. SGARBOSSA, Mário e GIOVANNINI, Luigi.
Um santo para cada dia. São Paulo: Paulos, 1983.
74
registra: “que a mulher forte – digna de ser chamada de Frei ajude a irmã querida a
ser forte até o fim”.
151
No jogo com os pseudônimos, a admiração por Francisco de Assis
apresenta ainda outros fatores muito interessantes. A ideia de um (re)nascimento a
partir da aceitação de um caminho, que os levaria a ascensão espiritual, trás a tona
o convite a infância espiritual. Tal convite está atrelado ao imaginário católico que
concede as crianças o lugar de seres puros e inocentes, dignas da entrada no reino
dos céus. Imerso nesse imaginário, Helder não deixou de buscar sua infância e de
conferir a ela um lugar junto aos seus vários pseudônimos.
O convite a infância espiritual é dirigido a todos. Não me devo
acanhar do garotinho que mora em mim e de vez em quando dá sinal
de vida. E se arranjássemos um nome para ele? Se
acompanhássemos por toda parte o garoto que mora em nós? Quer
escolher um nome para ele?
152
O nome escolhido por Virgínia foi Francesco, mais uma referência a
Francisco de Assis. Francesco correspondia ao pequeno Helder de apenas seis
anos de idade.
151
CAMARA, Helder. Carta Pessoal. 25 de setembro de 1945, Rio de Janeiro. Para Virgínia Côrtes de
Lacerda, Rio de Janeiro. 03p. Arquivo Pessoal.
152
CAMARA, Helder. Carta Pessoal. 16 de abril de 1944, Rio de Janeiro. Para Virgínia Côrtes de
Lacerda, Rio de Janeiro. 06p. Arquivo Pessoal.
75
Figura 08: Fotografia de Helder Camara aos seis anos, em 1915.
Fonte: Arquivo Pessoal.
153
Como padre José, nome sempre presente na vida de Helder Camara e
que “teria sido o seu se o desejo de sua mãe tivesse sido atendido”,
154
assina os
pequenos textos em forma poética, escritos desde os tempos do seminário,
chamados de Meditações.
155
Resultados das vigílias, as Meditações do padre José se mesclavam as
cartas. Por vezes, um assunto era interrompido por uma meditação que acabara de
nascer, mas, na maioria das vezes, cabiam as poesias a tarefa de encerrar a
correspondência.
Nascidas de forma espontânea, às meditações tratam dos temas mais
variados. Nelas Helder retratou o cotidiano da cidade e as paisagens que podia ver
do estribo do bonde, os sons que ouvia enquanto rezava, o canto dos pássaros que
brincavam nos jardins da Casa Ruy Barbosa e as cantigas de ninar que ouvia
quando era criança. Algumas das vezes, as meditações surgiam de forma repentina
e nos lugares mais remotos, amesmo ao ouvir o barulho das turbinas do avião
enquanto esperava ansioso a decolagem.
Decolagem...
„O avião vai partir...‟
E eu pulei dentro dele como criança feliz
153
Em carta de 30 de junho de 1944, Helder dedica à Virgínia Côrtes de Lacerda o retrato com os
seguintes dizeres: o pequeno Francesco ainda de cachos.
154
CASTRO, Marcos de. Dom Helder: misticismo e santidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
2002. p. 57.
155
O Centro de Documentação Helder Camara (CeDoHC) dispõe de um catálogo com 7.547
Meditações do padre José, das quais poucas foram publicadas. No entanto, a grande maioria
permanece inédita e algumas desconhecidas, inclusive as escritas nas correspondências pessoais e
nas margens dos livros. Sobre as Meditações do padre José Cf. CAMARA, Helder; BROUCKER, José
de. Les conversions d’un Évêque: Entretiens avec José de Broucker. Paris: L‟Harmattan, 2002;
PILETTI, Nelson; PRAXEDES, Walter. Dom Helder Camara. Entre o poder e a profecia. São Paulo:
Editora Ática, 1997; PILETTI, Nelson; PRAXEDES, Walter. Dom Helder Camara. O profeta da paz.
São Paulo: Contexto, 2008; CAMARA, Helder. Mil razões para viver: meditações de padre José. Rio
de Janeiro: Civilização Brasileira, 1983; BARROS, Raimundo Caramuru; OLIVEIRA, Lauro de
(organizadores). Dom Helder: O artesão da paz. Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial, 2000;
CASTRO, Marcos de. Dom Helder: misticismo e santidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
2002; ROCHA, Zildo. Helder, o Dom: uma vida que marcou os rumos da Igreja no Brasil. Petrópolis:
Editora Vozes, 1999; MONTENEGRO, Antônio T.; SOARES, Edla; TEDESCO, Alcides (org). Dom
Helder, peregrino da utopia: caminhos da educação e da política. Recife: A Prefeitura; Editora
Universitária da UFPE, 2002.
76
que viaja de trem pela primeira vez.
Bagagens?
Quem vai vestir-se de luz
não precisa mais das roupagens terrenas,
inventadas contra o frio e a falta de pudor...
Se eu não termino a página começada?
Ou ao menos a palavra cortada ao meio?
Quem sobe aos pés do silêncio vê
como as palavras dividem
como soam diferentes
como escondem o pensamento
ao invés de revelá-lo...
Se eu não volto?
Pergunto à ave se ele pensa na prisão de que fugiu.
E ao perfume, se deseja voltar.
E a flor donde nos veio.
E à luz se quer limitar-se ou galgar as alturas
encher os espaços imaculada e pura
intocada, intangível, filha dileta de Deus.
156
As primeiras Meditações do padre José foram escritas ainda no Seminário
da Prainha, em Fortaleza, mas tornaram-se conhecidas do público muitos anos
depois. Em entrevista ao jornalista francês José de Broucker para a obra Les
conversions d’un Évêque, Helder Camara lembra que Virgínia acabou dividindo com
um grande amigo, o padre Leonel Franca, as meditações que acreditava ser
verdadeiras poesias. Helder lembra que o padre Franca logo o procurou indagando
acerca do tal padre José e sobre seus escritos. Bastante intimidado com a cobrança
de seu orientador espiritual, minimizou a importância das meditações, argumentando
que eram poesias sem relevância e que, na maioria das vezes, acabava rasgando-
as. Helder argumentara que para ele, as meditações eram comme des fleurs qui
naissaient, qui étaient offertes, et qui devaient disparaître”.
157
Segundo Helder, o
padre Franca teria pedido que ao invés de destruí-las, as entregasse a Virgínia
concedendo a ela sua guarda e conservação. Helder assim o teria feito e a amiga
passou a datilografar e reunir todas as meditações que recebia diariamente.
158
De acordo com as correspondências, em 1946 Helder resolveu apresentar
suas meditações ao amigo Alceu Amoroso Lima. Em carta a Virgínia Côrtes, o
156
CAMARA, Helder. Decolagem. Meditação do padre José. Rio de Janeiro, 26 de outubro de 1945.
Arquivo Pessoal. (Grifo do autor).
157
CAMARA, Helder; BROUCKER, José de. Les conversions d’un Évêque: Entretiens avec José de
Broucker. Paris: L‟Harmattan, 2002. p. 101. Tradução livre da autora: “como as flores que nascem,
que são oferecidas, e que depois desaparecem”.
158
Ibdem.
77
missivista narra que o doutor Alceu teria ficado encantado, acreditando serem os
poemas de uma “experiência mística puríssima, rebentando e florindo em
quintessência poética”,
159
sugerindo ao amigo a publicação imediata das
meditações. Ainda de acordo com a carta, Helder teria concordado desde que a
autoria das meditações fosse mantida em sigilo. Assim, a Agir, editora dirigida por
Alceu, lançaria as Meditações de um sacerdote, com comentários do diretor sobre o
autor anônimo.
160
Infelizmente, o projeto de publicação das Meditações de um sacerdote
não seguiu adiante e as Meditações do padre José só foram publicadas anos
depois. No entanto, o desejo de preservá-las estava latente em Helder e, sobretudo,
em Virgínia que passou a escrever em pequenos caderninhos de bolsos algumas
das meditações que avaliava serem as mais significativas. Uma vez prontos,
presenteava as amigas mais íntimas com os pequenos cadernos de Meditações do
padre José.
161
2.3 Os caminhos da História
O historiador Peter Gay, em O coração desvelado, ao tratar do espírito
das cartas na era vitoriana fala-nos que as missivas são, comumente, uma espécie
de “linguagem do coração”, “uma cópia da alma por tratarem, sem reservas, de
assuntos íntimos e corriqueiros.
162
Nossa leitura das correspondências de Helder
Camara e Virgínia Côrtes nos permite observar que o ato da escrita de cartas
possibilitava aos missivistas estarem próximos, compartilhando experiências,
anseios, desejos e aspirações: sentimentos corriqueiros no viver e nas relações
cotidianas, mas passíveis a inúmeras interpretações.
159
CAMARA, Helder. Carta Pessoal. 17 de julho de 1946, Rio de Janeiro. Para Virgínia Côrtes de
Lacerda, Rio de Janeiro. 03p. Arquivo Pessoal.
160
Idem.
161
Em carta de julho de 1946, o missivista escreve acerca do cuidado da amiga com a conservação
do material: “Quanto trabalho você vem tendo com as meditações! Vou precisar do livrinho na quinta-
feira”. Cf. CAMARA, Helder. Carta Pessoal. 22/23 de julho de 1946, Rio de Janeiro. Para Virgínia
Côrtes de Lacerda, Rio de Janeiro. 05p. Arquivo Pessoal. Ver imagem do caderno de anotações
utilizado por Virgínia para registrar as meditações no Anexo D.
162
GAY, Peter. O coração desvelado: a experiência burguesa da Rainha Vitória a Freud. Tradução
de Sérgio Bath. São Paulo: Companhia das Letras, 1999. p. 340.
78
Segundo os relatos apresentados nas correspondências, era justamente o
receio com as possíveis interpretações acerca de tal amizade que os teriam
conduzido a adotarem uma série de medidas capazes de assegurar que a relação
se mantivesse com certa reserva. Assim, torna-se possível observar que a opção
pelo uso de pseudônimos na História da Confiança não se resume apenas a prática
de um dos hábitos do missivista:
Só mantenho (e manterei) em sigilo os nossos nomes, porque somos
tímidos e porque é grande a incompreensão humana. Mas a graça
me daria coragem para dividir com todos a harmonia celestial do
nome queridíssimo dado a minha irmã.
163
O uso constante dos pseudônimos nos manuscritos de Helder e Virgínia
impõe ao pesquisador a árdua tarefa de identificar os verdadeiros personagens da
história narrada, através de um cuidadoso processo de análise e comparação das
informações contidas nesses escritos. Em 2003, ao realizarmos uma rie de
entrevistas com as pessoas que compunham seus círculos de amizade mais
próximos, ouvimos sempre a mesma resposta negativa à questão: “quem foram
padre Albertus e Caecilia?”. Isto nos mostra que até mesmo em meio a um grupo
bastante seleto e íntimo havia uma relação particular e reservada entre Helder
Camara e Virgínia Côrtes.
O cuidado para que tal amizade fosse mantida em sigilo representou uma
tarefa demasiadamente complicada. Por várias vezes, estiveram muito próximos por
ocasião das aulas nas Faculdades Católicas e no Instituto Santa Úrsula ou do
trabalho no Ministério da Educação, mas procuravam sempre se manter a distância,
em reserva. Exemplo disso está em uma passagem de 23 de janeiro de 1944, onde
o padre Helder relata que ao final da missa na Escola de Enfermagem Ana Nery
enquanto todos saiam, permaneceu observando-a ao longe: “Eu esperava o ônibus
quando você saiu: Acompanhei-a com as minhas bênçãos enquanto a pude
divisar”.
164
163
CAMARA, Helder. Carta Pessoal. 03 de maio de 1944, Rio de Janeiro. Para Virgínia Côrtes de
Lacerda, Rio de Janeiro. 04p. Arquivo Pessoal.
164
CAMARA, Helder. Carta Pessoal. 23 de janeiro de 1944, Rio de Janeiro. Para Virgínia Côrtes de
Lacerda, Rio de Janeiro. 05p. Arquivo Pessoal.
79
As missivas estão repletas de encontros e desencontros onde as palavras
deram lugar ao silêncio para que a amizade se mantivesse em reserva.
165
No
entanto, observamos na escrita epistolar e nos (des)encontros cotidianos um duelo
constante entre a medida da ordem externa e a ordem interna, entre o plano do
visível e do invisível.
A ordem interna é, em nossa consciência, o reflexo da ordenação
divina. A ordem externa consiste no respeito que os outros nos
merecem, nas atenções que devemos ao próximo. Contra a ordem
interna nunca nos é lícito pecar. Seria bom que houvesse sempre
correspondência entre as duas ordens. Mas e se os homens que
constituem a ordem externa (a massa que forma opinião, o mundo
que esta fora de nós) se enchessem de preconceitos, tomarem
posição errada, somos ainda obrigados a prender-nos a ordem
externa?
Escândalo é o mal espiritual que causamos ao nosso próximo.
166
Entre as duas ordens, Helder e Virgínia optaram pela adoção da ordem
interna na prática dos estudos constantes, na escrita diária das cartas e na
preocupação com a guarda e a conservação dos manuscritos que registram a
História da Confiança. Todavia, a ordem externa parecia prevalecer nos cuidados,
tomados por ambas as partes, para que a relação fosse mantida com a mais
possível reserva.
Até mesmo a troca das cartas e dos livros que estavam sendo anotados
era realizada de maneira bastante discreta. A correspondência chegava aos seus
destinatários das mais variadas formas. Quando estavam em cidades diferentes às
epístolas eram postas em envelopes e endereçadas ao destinatário, mas, na grande
165
Em carta de 06 de maio de 1944, Helder escreve: “Não conheço o inverno europeu e não sei, por
experiência própria, a impressão de conforto que uma lareira deve causar em uma fria noite
invernosa. Mas é a imagem que me ocorre quando penso na confiança. Ela nos aquece o coração e
não deixa que o pobrezinho trema de frio. Ela me vale ao receber certos telefonemas em que o
silêncio é de um suave carinho e as palavras reticentes de frias. Ela me vale, de modo especial, nos
encontros públicos: no Aeroporto Santos Drummond no dia de minha chegada (em breve um ano...
um ano ou um século?); no Santa Úrsula (Caecilia conversava com um professor o meu querido
Clovis e, aparentemente, se angustiou com minha interferência); na São Clemente (o Pe Albertus
conversava com o Teobaldo Caecilia nem chegou a falar com o próprio irmão); na Pequena
Cruzada, hoje (6.5.44) ao entrar, Caecilia nem viu o sorriso amável que eu lhe ofertei, passando
abstrata tal como ela me viu, um dia subindo a São Clemente”. Cf. CAMARA, Helder. Carta Pessoal.
06 de maio de 1944, Rio de Janeiro. Para Virgínia Côrtes de Lacerda, Rio de Janeiro. 07p. Arquivo
Pessoal.
166
CAMARA, Helder. Carta Pessoal. 23 de janeiro de 1944, Rio de Janeiro. Para Virgínia Côrtes de
Lacerda, Rio de Janeiro. 05p. Arquivo Pessoal.
80
maioria das vezes, as trocas diárias das missivas ocorriam por ocasião da missa das
seis da manhã celebrada pelo padre na Escola de Enfermagem Ana Nery.
167
As
cartas passavam de um ao outro través de encontros rápidos, antes ou depois da
celebração, ou eram simplesmente depositadas em baixo da pasta que o padre
deixava em cima de uma cadeira na sacristia.
Podendo, chegue um pouco mais cedo (um minutinho basta) e
troque exercícios comigo (mesmo indo um instante à sacristia).
Chegando e eu já estando no altar, se a timidez permitir ao partir,
depois da comunhão entre um instante de sacristia adentro. Em
uma cadeira encontrará a pasta e debaixo desta uma encomenda
para você.
168
Por vezes, buscavam-se alternativas para que as cartas e livros
circulassem sem que a atenção das pessoas fosse despertada.
O livro que, na terça-feira, deixei em cima de sua carteira (envolvido
no mesmo papel com que tinha vindo das suas às minhas mãos),
passou o dia pela 56. Ontem, encontrei-o no meu canto, à hora do
café. O erro foi meu: devia ter posto o seu nome por fora ou ter
metido o livro dentro de sua carteira.
169
Em dados momentos, a necessidade de uma comunicação repentina fazia
com que recorressem a um telefonema ou uma carta bastante contida e sempre
escrita em tons formais:
Dona Virgínia,
Terminado o casamento das 15:30, terei como lhe disse às 16hs
um encontro com o Dr. Moreira da Fonseca.
Ruth, no entanto, insiste pelo encontro na Praça XV, marcado, em
tese, para as 16:30. Assim que me arrancar do Dr. Moreira, irei para
lá. Uma benção muito amiga do Pe. Helder.
170
167
Ver imagem dos envelopes com endereçamentos no Apêndice B.
168
CAMARA, Helder. Carta Pessoa. 27 de março de 1944, Rio de Janeiro. Para Virgínia Côrtes de
Lacerda, Rio de Janeiro. 02p. Arquivo Pessoal.
169
CAMARA, Helder. Carta Pessoal. 07 de dezembro de 1944, Rio de Janeiro. Para Virgínia Côrtes
de Lacerda, Rio de Janeiro. 02p. Arquivo Pessoal.
170
CAMARA, Helder. Carta Pessoal. 06 de maio 1944, Rio de Janeiro. Para Virgínia Côrtes de
Lacerda, Rio de Janeiro. 05p. Arquivo Pessoal.
81
Durante séculos, as pessoas guardavam, ou escondiam as cartas em
uma gaveta ou em um móvel especial.
171
Dessa forma, em mãos do destinatário, as
missivas escritas por Helder Camara e Virgínia Côrtes, eram cuidadosamente
reunidas e preservadas em pequenas escrivaninhas. De tempos em tempos,
conforme o volume de papéis ia se acumulando, Helder colecionava tudo em
grossos cadernos destinados a Virgínia que ficaria encarregada da guarda e
conservação dos documentos.
Lá se foi mais um volume da História da Confiança. Conhece alguma
história mais encantadora? Vale ou não vale as Mil e Uma Noites e
os mais deliciosos contos de fadas? São contos de minha Fada
Azul.
172
De acordo com a correspondência, os cuidados para que essa afinidade
fosse mantida em sigilo e o avanço dos problemas cardíacos levou Virgínia a se
preocupar quanto ao destino das cartas e das anotações às margens dos livros.
Afeita à ideia da morte, em 1945, Virgínia Côrtes remete a Helder a chave da
escrivaninha onde guardava as correspondências.
173
Ainda em março de 1944, em
carta ao amigo Helder, ressalta essa preocupação através do pedido para que tais
documentos fossem destruídos após a sua morte. Pedido que Helder responde da
seguinte forma:
Pensou bem no que me pediu? Caecilia tem certeza de ir primeiro e
quer que eu prometa, no dia seguinte ao do enterro, rasgar tudo. E
se eu lhe fizesse pedido semelhante? Não seria rasgar duas vezes a
alma? Não seria esmagar a quem já está esmagado?
Como desejo prometer para cumprir (aponte, na História da
Confiança, os dois pecados contra a medida serão rasgados
171
Sobre essa prática Cf. GAY, Peter. O coração desvelado: a experiência burguesa da Rainha
Vitória a Freud. Tradução de Sérgio Bath. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.
172
CAMARA, Helder. Carta Pessoal. 05 de março de 1945, Rio de Janeiro. Para Virgínia Côrtes de
Lacerda, Rio de Janeiro. 04p. Arquivo Pessoal.
173
Sobre essa passagem, Helder Camara em carta de março de 1945 escreve: “Estremeci ao ter em
mãos o bilhete e a chave remetidos com o exercício de ontem. Tive a impressão de receber a chave
de seu caixão. Teria mesmo a coragem de abrir o móvel querido? Teria animo de rever, na terra, a
História da Confiança?”. Cf. CAMARA, Helder. Carta Pessoal. 05 de março de 1945, Rio de Janeiro.
Para Virgínia Côrtes de Lacerda, Rio de Janeiro. 04p. Arquivo Pessoal.
82
imediatamente, por mais que isso me custe. O prometido é
prometido), peço que reflita um instante e torne a falar: exige mesmo
de mim provação tão grande? Não se constranja. Se exigir, juro à
de cavaleiro que seu desejo será sagrado para mim.
Se eu for primeiro, nada lhe peço quanto aos exercícios. Prefiro até
que eles lhe fiquem falando e que de suas páginas silenciosas
saiam, perenemente, as bênçãos intermináveis com que as carrega o
Pe. Albertus.
174
Escritas à mão, e por isso testemunhas ainda mais eloquentes de quem
as escrevera, as cartas de Helder e Virgínia pareciam parte essencial de uma
pessoa importante e destruí-las poderia representar privar-se de um presente
valioso: a presença de alguém que estava „distante‟. Todavia, o desejo do outro
deveria ser respeitado, mesmo que atendê-lo custasse muito:
Prometo à minha querida Caecilia que, se ela partir antes do Pe.
Albertus cumprirei o sacrifício que exige de mim. A menos que a
sentença dolorosíssima me seja poupada. Mas encontraria eu
consolo perturbando a tranquilidade de minha irmã?
Cumprirei o sacrifício com a graça de Deus!
Faça com os meus exercícios o que bem entender. Uma das formas
de humildade que cultivo é não pensar no que vão pensar a meu
respeito. então o juízo definitivo de Deus estará lançado: de que
me adiantará o juízo dos homens? Não pergunte pela minha timidez.
Timidez é imperfeição do plano horizontal. Filha legítima do amor
próprio. Se, com a graça de Deus, as humilhações não me causarem
repugnância, por que temer, por que temer?
175
Selado o acordo acerca do destino da correspondência pessoal, Helder,
em um ato que mais se apresenta como uma forma amiga de acalmar as
inquietações de Virgínia propõe também um cuidado especial em relação às
anotações às margens dos livros que liam e reliam juntos.
Não houve represálias no caso das anotações a lápis. Pensei:
Caecilia pensando em partida minha ou dela não ficaria mais
tranquila sabendo que as anotações estão todas fáceis de apagar?
174
CAMARA, Helder. Carta Pessoal. 04 de março de 1944, Rio de Janeiro. Para Virgínia Côrtes de
Lacerda, Rio de Janeiro. 03p. Arquivo Pessoal. (Grifo do autor).
175
CAMARA, Helder. Carta Pessoal. 08 de março de 1944, Rio de Janeiro. Para Virgínia Côrtes de
Lacerda, Rio de Janeiro. 03p. Arquivo Pessoal.
83
Pensei em sua tranquilidade e imaginei-me, esmagado, apagando as
anotações de volta do cemitério de São Francisco Xavier.
176
O medo da morte prematura também conduzia a algumas tomadas de
providência por parte do padre Helder sobre o que fazer com seus manuscritos. Em
1945, uma viagem de avião para a cidade de São Paulo, configurava um momento
apropriado para transmitir das seguintes recomendações:
Em caso de morte minha, a você caberia a chave da secretária onde
estão, devidamente rotulados, papeis de consciência. [...] Não tive
tempo de rever todos os papeis em que fica letra minha. [...] Faça
com eles o que bem entender. Quando muito aqui e ali, algum
pensamento poderia ser inserido num livro seu.
fiz o ato de humildade de nem pensar em tantas páginas
inexpressivas que fica por ai. Teria muitas explicações a dar:
- Algumas graves: como o mistério da preferência por você.
- Outras leves: como esclarecer o uso constante de papel do
Ministério da Educação? É tão mais humilde morrer sem explicações.
Confiar no Bom Deus e no próximo.
Deixo apenas os avisos que me parecem indispensáveis. A chave da
secretária fica dentro do fichário grande. Os livros anotados por nós
são seus.
Provavelmente nada acontecerá. Se acontecer, reúna as amigas e
leia o „poema‟ albertino sobre a partida de avião. Partirei dizendo:
„Pai, nas tuas mãos entrego o meu espírito‟.
177
Em 1950, com a colaboração de Virgínia Côrtes e Cecília Monteiro,
Helder Camara escreve um pequeno manuscrito chamado Testamento Espiritual.
Nele, o padre após traçar um balanço de sua vida, finda mencionado sua aceitação
perante a morte e designando o destino dos manuscritos:
Com a Graça de Deus, aceito a morte onde, quando e como a
Providência o determinar nada tenho para concluir. Nenhum desejo a
realizar. Recebi infinitamente mais do que poderia sonhar. [...] De
qualquer modo, esta é a hora de dizer a Frei Jacoba:
- depois de minha morte (se eu for primeiro), se for possível publique
as Meditações do Padre José (o mais simples, talvez [...] seja evitar
176
CAMARA, Helder. Carta Pessoal. 20 de abril de 1944, Rio de Janeiro. Para Virgínia Côrtes de
Lacerda, Rio de Janeiro. 03p. Arquivo Pessoal.
177
CAMARA, Helder. Carta Pessoal. 08 de novembro de 1945, Rio de Janeiro. Para Virgínia Côrtes
de Lacerda, Rio de Janeiro. 03p. Arquivo Pessoal.
84
prefácios elogiosos: quando muito, uma rápida e discreta palavra
explicando como vinham as meditações.
- depois de minha morte (se eu for primeiro), se julgar espontâneo
publique a Regra e os Comentários (prefácio discreto e, quando
preciso, notas ao da página); o mesmo vale para a
Correspondência.
178
Apesar da preocupação prematura, a morte de Helder Camara estava
muito distante e a partida de Virgínia se daria apenas quinze anos depois.
179
Na
ocasião, em 1959, para surpresa de Helder que teimava em não acreditar em
tamanhos cuidados,
180
Virgínia havia reunido tudo o que ele lhe havia comunicado
as Meditações do padre José, os cadernos de anotações, os programas de
recolhimentos e retiros e o conjunto de cartas pessoais em um grande pacote com
a recomendação de ser entregue ao amigo em caso de sua morte. Em Les
conversions d’un Évêque, Dom Helder recorda que delegou à amiga comum, Cecília
Monteiro, a tarefa de cumprir o prometido quanto às cartas escritas por Virgínia e a
confiou a guarda de suas cartas pessoais.
181
Outro caminho foi encontrado para as anotações às margens dos livros de
sua biblioteca pessoal: em lugar de simplesmente apagar os comentários da amiga,
o que certamente lhe custaria muito emocionalmente, Helder resolveu encobrir a
caligrafia de Virgínia com a sua letra, talvez uma tentativa de levar outras pessoas,
que por ventura viessem a ter contato com as obras anotadas, a acreditarem se
tratar apenas de seus comentários de leituras - o que de fato aconteceu por seis
décadas até o nosso encontro.
A preocupação constante apresentada por Helder acerca do destino dos
seus manuscritos possibilita-nos observar a importância conferida às cartas.
182
Aos
178
CAMARA, Helder. Testamento Espiritual. Manuscrito, 1950. Arquivo Pessoal.
179
Em Les conversions d’un Évêque, Dom Helder relembra da seguinte forma a morte de Virgínia
Côrtes de Lacerda: Virginia morreu muito rapidamente, de uma crise cardíaca, após haver
permanecido dezoito horas sem poder reconhecer a nada e sem poder falar. Evidentemente, nós
sabíamos que para ela era o começo da verdadeira vida. Mas a morte de Virgínia foi um sofrimento
muito duro”. Cf. CAMARA, Helder; BROUCKER, José de. Les conversions d’un Évêque: Entretiens
avec José de Broucker. Paris: L‟Harmattan, 2002. p. 101. Tradução livre da autora.
180
Em carta de 1944, Helder escreve: “Pedido de Caecilia é ordem para mim. Se ela partir primeiro,
prometo procurar a família e pedir o que estiver lacrado e destinado ao Pe. Albertus. Às vezes não dá
é tempo de lacrar”. Cf. CAMARA, Helder. Carta Pessoal. 21 de maio de 1944, Rio de Janeiro. Para
Virgínia Côrtes de Lacerda, Rio de Janeiro. 04p. Arquivo Pessoal.
181
CAMARA, Helder; BROUCKER, José de. Les conversions d’un Évêque: Entretiens avec José de
Broucker. Paris: L‟Harmattan, 2002. p. 101.
182
Sobre a importância das cartas, em 1945, Helder registra: “A História da Confiança não nos
pertence. Nenhum de nós pode rasgá-la eu, pelo menos, não ousaria por mão sacrílega nos
85
olhos, a correspondência de Helder Camara e Virgínia Cortes de Lacerda são
simplesmente cartas. Cartas poéticas, mas apenas cartas. Aos olhos mais atentos,
diários que registram passagens com as mais diversas finalidades, registros de
memórias, crônicas, depoimentos pessoais, autobiografia, uma oportunidade de
rever paradigmas e verdades.
Não foi por acaso
Entre os milhares de encontros possíveis
se deu nosso encontro.
Entre as pessoas sem conta
que passaram ao teu lado
e se foram indiferentes,
reconheceste em minha voz
uma voz irmã.
Não creio em acaso.
És na minha vida
uma mensagem do Eterno.
Vieste dar e receber.
Nas horas do meu desânimo
aponta-me o céu!
Quando estiveres prostrada
lembrar-te-ei as palavras que ouviu
no seio do Eterno a alma de luz
que as mãos divinas mergulham
neste corpo de barro.
Rio, 24/25.01.1946.
183
testemunhos da Graça de Deus. Uma ou outra palavra de comum acordo talvez possa e deva ser
riscada. O conjunto é a História da Graça de duas almas irmãs”. Cf. CAMARA, Helder. Carta Pessoal.
28 de novembro de 1945, Rio de Janeiro. Para Virgínia Côrtes de Lacerda, Rio de Janeiro. 03p.
Arquivo Pessoal.
183
CAMARA, Helder. Não foi por acaso. Meditação do padre José. Rio de Janeiro, 24/25 de janeiro
de 1946. Arquivo Pessoal. (Grifo do autor).
86
CAPÍTULO III
HISTÓRIA AO PORTADOR: MEMÓRIAS EPISTOLARES
87
HISTÓRIA AO PORTADOR: MEMÓRIAS EPISTOLARES
“A lembrança é a sobrevivência do passado.”
Eclea Bosi.
Os relógios marcam por volta das onze da noite. Após um dia intenso,
como geralmente eram todos os seus dias, o jovem padre Helder prepara-se para
dormir. Vagarosamente, vai se acomodando, com muito cuidado, para não acordar
as outras pessoas que dividiam com ele a casa 34, número 19 da rua Voluntários da
Pátria.
184
O sono precisava ser bem aproveitado no reparo no pequeno corpo, quase
sempre doente e cansado, porque dentro em breve, seu despertador soaria
pontualmente às quatro horas da manhã para mais uma vigília, como fazia
costumeiramente desde sua ordenação no Seminário da Prainha, em Fortaleza.
Ao soar do despertador, Helder levanta cuidadosamente, para não
perturbar o sono do seu pai, João Camara, que dividia com ele um dos quartos da
casa.
185
Em absoluto silêncio, tenta iniciar suas orações, mas, naquela vigília, seus
pensamentos estão voltados para o Grupo Confiança. dias as constantes crises
no grupo, as querelas pessoais envolvendo suas integrantes e as questões acerca
da permanência, suspensão ou dissolução pairavam sobre seus pensamentos.
Convicto que, naquele momento, Confiança era um sonho impossível,
186
senta-se
em sua escrivaninha, toma nas mãos o papel com o timbre do Ministério da
Educação e Saúde, e com a caneta em punho escreve:
Sinto que o dia de hoje terá muita importância em minha vida. Vai ser
um dia de sofrimento intenso. Conforta-me estar com a consciência
tranqüila, em paz com o Bom Deus e com a integrante querida da
P.J.
187
184
PILETTI, Nelson; PRAXEDES, Walter. Dom Helder Camara. Entre o poder e a profecia. São
Paulo: Editora Ática, 1997. p. 143.
185
Ibdem. p. 145.
186
Cf. CAMARA, Helder. Carta Pessoal. 22 de outubro de 1944, Rio de Janeiro. Para Virgínia Côrtes
de Lacerda, Rio de Janeiro. 02p. Arquivo Pessoal.
187
CAMARA, Helder. Carta Pessoal. 23 de outubro de 1944, Rio de Janeiro. Para Virgínia Côrtes de
Lacerda, Rio de Janeiro. 03p. Arquivo Pessoal.
88
Em seguida escreve aquela que seria, talvez, sua primeira carta circular.
Era uma segunda-feira, 23 de outubro de 1944, quando o padre Helder Camara
comunica a dissolução do Confiança: “Minhas filhas, [...] Tenho um assunto grave a
tratar com vocês. De todas espero a caridade de escutar-me até o fim, se possível,
sem interrupções [...] Cometi com vocês uma falta imperdoável [...]”.
188
Embora as correspondências sejam necessariamente escritas para serem
lidas por certa pessoa, o que sela um „pacto epistolar‟, em geral, nem sempre elas
tratam apenas dos sujeitos diretamente envolvidos, ou seja, do remetente e do
destinatário. Nas epístolas escritas pelo padre cearense Helder Pessoa Camara
para a professora mineira Virgínia Côrtes de Lacerda, o autor discorre para além de
sua relação de amizade. A correspondência apresenta ainda toda uma rede de
sociabilidade, tornando possível o desenvolvimento de um estudo sobre relações
cotidianas, caminhos, escolhas, ideias, confidências e expectativas criadas ao longo
de um percurso entre indivíduos que marcam um tempo.
Arquivos pessoais são vistos pelos estudiosos como preciosas fontes
para reconstruir um processo de itinerário de formação do imaginário social. No caso
da correspondência de Helder Camara, as cartas, escritas em série, podem ser lidas
como folhetins ou diários, permitindo-nos visualizar o percurso através dos quais
suas ideias amadurecem e abrem novos caminhos de reflexão, porque não
constituem um lugar isolado, fora das suas possibilidades de dizer e ser
recepcionado. Trata-se de uma escrita de si que constitui e reconstitui sua(s)
identidade(s) no decurso da troca de cartas, como bem assinala Ângela de
Castro.
189
Assim, tal correspondência, apresenta possibilidades de leituras que
sugerem uma visualização das relações e jogos de linguagens que envolviam a
formação pelo qual o jovem padre percorria nos anos de 1944 a 1952.
Nesses anos, Helder formou em torno de si toda uma rede de
sociabilidade que incluía parentes, amigos, colaboradores e colegas de trabalho
vindos das mais diversas partes. Segundo a historiadora Ângela de Castro, em
estudo a respeito da correspondência trocada entre Gilberto Freyre e Oliveira Lima,
o convívio entre intelectuais, como a leitura, é fundamental para o desenvolvimento
188
CAMARA, Helder. Carta Circular. 23 de outubro de 1944, Rio de Janeiro. Para o Grupo Confiança,
Rio de Janeiro. 04p. Arquivo Pessoal.
189
GOMES. Ângela de Castro. Em família: a correspondência de Oliveira Lima e Gilberto Freyre.
Campinas: Mercado de Letras, 2005. Coleção Letras em Série. p. 13.
89
de ideias e sensibilidades”.
190
Embora Helder Camara se enquadre num tipo
específico de intelectual católico, o desenvolvimento de suas ideias não se daria de
forma diferente. Helder precisava estar envolvido em círculos de sociabilidade que,
ao mesmo tempo, o situasse no mundo cultural bem como o permitisse tecer suas
interpretações sobre o mundo do seu tempo.
Em suas cartas, o jovem padre discorre acerca de pessoas e lugares
sociais que foram muito importantes em sua vida: a pensão de dona Cecy Cruz, o
Ministério da Educação, o Palácio de São Joaquim, a Casa de Ruy Barbosa, a casa
de Virgínia na Rua São Clemente, as aulas nas Faculdades Católicas e no Instituto
Santa Úrsula, o Grupo Confiança e as noites de encontros para estudos e sarais,
todos lugares de construção de ideias e pensamentos.
Partindo de suas cartas pessoais, voltamos nosso olhar para apreender
um „outro‟ em um espaço naturalmente íntimo, mas interligado. Buscamos
compreender a escrita auto-referencial como um documento uma fonte capaz de
nos fornecer subsídios para um razoável entendimento acerca de um itinerário de
formação, “um espaço revelador de suas ideias, de seus projetos, opiniões,
interesses e sentimentos”.
191
Nessa perspectiva, lemos as epístolas pessoais do
padre Helder Camara em uma tentativa de compreender de que forma seus
caminhos, suas escolhas e suas ideias propiciaram a invenção
192
de um lugar de
sociabilidade bastante significativo em sua vida e na vida de outros: o Grupo
Confiança.
Fundado em 1944 por Helder Camara, o Grupo Confiança reunia suas
amigas dos primeiros anos na capital federal e alunas das Faculdades Católicas.
Jovens que comungavam com seus ideais e que, um dia, dera o nome de Família
Mecejanense. Grupo de leigos católicos, a Mecejanense esteve ao lado de Helder
Camara por seis décadas, atuando no processo de transformação da Igreja Católica
no Brasil através das semanas sociais da Ação Católica, a criação da Conferência
190
Ibidem. p. 12.
191
Ibidem. p. 13.
192
O termo invenção tem aparecido com frequência nos títulos dos livros, teses e dissertações
escritas por historiadores e tem sido comumente utilizada para substituir termos como formação,
desenvolvimento e/ou análise. Segundo o historiador Durval Muniz de Albuquerque, a ideia de
invenção indica certa maneira de conceber o trabalho do historiador, indica um modo de se relacionar
com o passado, com os documentos, com a memória, com a temporalidade, com a escrita da
História, diferentes daquelas que foram hegemônicas em outros momentos. Cf. ALBUQUERQUE JR,
Durval Muniz. História. A arte de inventar o passado. Ensaios de teoria da história. Bauru, SP:
EDUSC, 2007.
90
Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) e a implantação de significativos projetos de
assistência social e no Concílio Ecumênico Vaticano II. Infelizmente, as biografias
analisadas não se referem à existência e atuação do Grupo Confiança e apenas
algumas, fazem menção a Família Mecejanense,
193
em especial quando trazem à
baila as Cartas Circulares.
194
Seguindo a trajetória que as epístolas, os depoimentos e outros
manuscritos nos propõem é possível interpretar quão marcadamente profunda foi à
relação estabelecida entre Helder Camara e o grupo ao qual dera o nome de
“Família”, no tocante à mútua formação religiosa, cultural e, sobretudo, humana.
3.1 Caminhos, escolhas e ideias: as cartas como lugar de sociabilidade
Em 1944, Helder Pessoa Camara era um jovem padre de 35 anos de
idade, que morava com o pai, João Camara, os irmãos Eduardo, Mardônio e Nair, e
as cunhadas, Elisa e Norma, na casa de número 34 de uma vila que existe até hoje
193
Sobre a Família Mecejanense Cf. CAMARA, Helder; BROUCKER, José de. Les conversions
d’un Évêque: Entretiens avec José de Broucker. Paris: L‟Harmattan, 2002; PILETTI, Nelson;
PRAXEDES, Walter. Dom Helder Camara. Entre o poder e a profecia. o Paulo: Editora Ática,
1997; PILETTI, Nelson; PRAXEDES, Walter. Dom Helder Camara. O profeta da paz. São Paulo:
Contexto, 2008; BROUCKER, José de. Les nuits d’un prophète. Dom Helder Camara à Vatican II.
Paris: Les Éditions du Cerf, 2005; CAMARA, Helder. Vaticano II Correspondência Conciliar
Circulares à Família do São Joaquim, 1962-1964. Introdução e notas Luiz Carlos L. Marques. IDHeC
Obras Completas. Recife: Ed. Universitária da UFPE, 2004; CAMARA, Helder. Circulares
Conciliares. Notas Luiz Carlos Luz Marques e Roberto de A. Farias. Vol. I. Tomo I, II e III. Recife:
Editora CEPE, 2009; CAMARA, Helder. Circulares Interconciliares. Notas Zildo Rocha. Vol. II.
Tomo I, II e III. Recife: Editora CEPE, 2009.
194
Hábil na escrita epistolar, ao participar do Concílio Ecumênico Vaticano II em 1962, Dom Helder
Camara fez das Circulares seu jornal do Concílio e sua forma de está sempre junto dos amigos que
chamava de “Família”. Assim, em meio às reuniões do Vaticano II, Dom Helder escreveu 290 cartas:
uma por noite. Ao serem recebidas do Brasil, as cartas eram datilografadas em vários exemplares e
circulavam entre os amigos e colaboradores que intimamente comungavam de seus ideais de Igreja
simples e voltada para os pobres. Com o fim do Vaticano II, Dom Helder continuou a escrever dando
notícias do Recife e seus mocambos, dividindo as angústias provocadas pelo embate com a Ditadura
Militar e compartilhando seus sonhos em favor da paz. Depositadas nos arquivos do Instituto Dom
Helder Camara (IDHeC), as 2.950 Cartas Circulares estão sendo, aos poucos, publicadas através do
Projeto Obras Completas. Sobre as Circulares Cf. CAMARA, Helder. Vaticano II Correspondência
Conciliar Circulares à Família do São Joaquim, 1962-1964. Introdução e notas Luiz Carlos L.
Marques. IDHeC Obras Completas. Recife: Ed. Universitária da UFPE, 2004; CAMARA, Helder.
Circulares Conciliares. Notas Luiz Carlos Luz Marques e Roberto de A. Farias. Vol. I. Tomo I, II e III.
Recife: Editora CEPE, 2009; CAMARA, Helder. Circulares Interconciliares. Notas Zildo Rocha. Vol.
II. Tomo I, II e III. Recife: Editora CEPE, 2009; BROUCKER, José de. Les nuits d’un prophète. Dom
Helder Camara à Vatican II. Paris: Les Éditions du Cerf, 2005; MARQUES, Luiz Carlos Luz. Il
carteggio conciliare di Mons. Helder Pessoa Camara (1962-1965). Tese de Doutorado em História
Religiosa defendida na Universidade de Bolonha Itália, 1998.
91
na rua Voluntários da tria, 19. Apesar de pequena e modesta, a casa de três
quartos, não parecia incomodar a família Camara, principalmente a Helder que fazia
questão de está perto dos grandes amigos que fizera na pensão de dona Cecy
Cruz.
195
O Consulado Cearense, como o chamavam muitos, não existia mais.
Segundo os historiadores Nelson Piletti e Walter Praxedes, em 1941, perto de
completar seus cinquenta anos, a bela Cecy resolveu casar-se com o primo Paulo
Saldanha. Os dois montaram uma nova casa e a pensão foi desfeita.
196
Todavia,
nada fazia com que Helder esquecesse aquela que foi sua casa em seus primeiros
anos no Rio de Janeiro, em especial pelas amizades que o lugar lhe proporcionou,
como procuraremos mostrar em suas memórias biografadas.
Localizado no número 205 da Rua São Clemente, em Botafogo, “visinha
da igreja de Santo Inácio, do lado direito de quem olha a igreja de frente”,
197
como
orientava aos amigos que convidava para uma visita, o casarão, alugado a Cecy
Cruz pelo príncipe dom Pedro de Orleáns e Bragança, era considerado um
verdadeiro consulado cearense, por hospedar os filhos das famílias mais influentes
do Ceará que iam ao Rio de Janeiro para estudar. Ao chegar ao Rio de Janeiro, em
1936, e por cinco anos, Helder se hospedou na pensão de dona Cecy Cruz onde foi
recebido com bastante carinho. O ambiente familiar e muito agradável, propiciava à
possibilidade de fazer novas amizades, como o jovem padre pernambucano José
Távora, fiel amigo para o resto da vida.
198
Foi também na pensão que conheceu Nair Cruz de Oliveira, moça
cearense, sobrinha de Cecy Cruz, que passou a ciceroneá-lo em inúmeros passeios
aos pontos turísticos da “capital irradiante”.
199
Os dois se viam frequentemente na
pensão, onde a moça também morava, e nos fins de semana ou nos dias de
195
PILETTI, Nelson; PRAXEDES, Walter. op. cit. p. 143.
196
Ibidem. p. 143.
197
Ibidem. p.122.
198
Sobre os anos em que Helder Camara morou no Rio de Janeiro, em especial sobre a pensão de
dona Cecy Cruz, conferir os estudos de CAMARA, Helder; BROUCKER, José de. Les conversions
d’un Évêque: Entretiens avec José de Broucker. Paris: L‟Harmattan, 2002; PILETTI, Nelson;
PRAXEDES, Walter. Dom Helder Camara. Entre o poder e a profecia. o Paulo: Editora Ática,
1997; PILETTI, Nelson; PRAXEDES, Walter. Dom Helder Camara: o profeta da paz. São Paulo:
Contexto, 2008; CASTRO, Marcos de. Dom Helder: misticismo e santidade. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2002.
199
“Capital irradiante” é uma expressão utilizada pelo historiador Nicolau Sevcenko para descrever a
cidade do Rio de Janeiro nas primeiras décadas do século XX, mas que pode muito bem se estender
para o Rio de Janeiro de 1944. Cf. SEVCENKO, Nicolau. A capital irradiante: técnicas, ritmos e ritos
do Rio. In. NOVAIS, Fernando A.; SCHWARCZ, Lilia Moritz (org). Historia da vida privada no
Brasil: contrastes da intimidade contemporânea. Vol. 4. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.
92
carnaval, divertiam-se juntos nas festas do consulado ao som das marchinhas
carnavalescas dos últimos anos, insistentemente tocadas pelas rádios Sociedade,
Clube do Brasil e Mayrink Veiga.
Destacada por sua inteligência, Nair Cruz participava de um seleto grupo
de jovens que se reunia com frequência para discutir política, religião, teatro,
literatura e cinema. Como cicerone do padre Helder no Rio de Janeiro, Nair tratou de
introduzi-lo nessa roda de amigos que incluía Antônio de Barros de Carvalho,
Fernando Carneiro, Barreto Filho, Sobral Pinto e San Tiago Dantas.
200
Na realidade,
todos se conheciam de alguma forma, pois havia entre eles muitas afinidades
intelectuais: o gosto pelos clássicos da literatura, o cultivo das artes e a proximidade
de todos com o catolicismo e com o integralismo.
201
Não obstante que o padre Helder seja um velho conhecido de todos, em
especial pela sua atuação política nos anos 1930, as noites de encontros para
estudos e sarais, abriram-no muitas portas e permitiram que laços antes distantes
pudessem ser estreitados. Um deles se deu com Alceu Amoroso Lima. Apesar
Helder Camara e Alceu Amoroso já terem trocado algumas correspondências em
uma delas, Alceu Amoroso Lima escrevia, ao padre de 22 anos, lamentando a morte
de Jackson de Figueiredo e recomendando um jovem tenente, converso, chamado
Severino Sombra
202
fora apenas nos encontros do Rio de Janeiro que tiveram a
oportunidade de se conhecerem pessoalmente e, em 1936, Alceu Amoroso Lima
200
PILETTI, Nelson; PRAXEDES, Walter. Dom Helder Camara: o profeta da paz. São Paulo:
Contexto, 2008. p. 107.
201
O envolvimento do padre Helder Camara com a Ação Integralista Brasileira (AIB) fora de fato
estreito e intenso. Ainda no Seminário da Prainha um verdadeiro celeiro de padre reformados
Helder se mostrava bastante envolvido com aqueles que seriam os ideais integralistas. Fora do
Seminário, o jovem padre Helder e o tenente Severino Sombra liam e comentavam os artigos escritos
por Plínio Salgado. Em 1932, ao fundar a Ação Integralista Brasileira, Plínio Salgado escreve a
Severino Sombra convidando-o a chefiar o movimento no Ceará e oferecendo ao padre Helder
Camara uma espécie de secretaria de Estudos da seção cearense da Ação Integralista, desde logo
uma das mais importantes do país. Segundo estudiosos do tema, o padre Helder, ordenado havia
menos de um ano, sacudiu o Ceará com suas pregações inflamadas sobre o integralismo ao lado de
Severino Sombra. Sobre essa temática Cf., entre outros, PARENTE, Josênio Camelo. Anauê Os
camisas-verdes no poder. Fortaleza: EUFC, 1999; TRINDADE, lgio. Integralismo: o fascismo
brasileiro na década de 30. 2ª. Edição. São Paulo/Rio de Janeiro: DIFEL, 1979; SILVA, Giselda Brito.
A Ação Integralista brasileira em Pernambuco: 1932-1938. 1996. Dissertação. (Mestrado em
História) Universidade Federal de Pernambuco, Recife: 1996; REGIS, João Rameres. Integralismo
e coronelismo: interfaces da dinâmica política no interior do Ceará (1932-1937). 2008. Tese
(Doutorado em História Social) Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro: 2008.
202
CAMARA, Helder; BROUCKER, José. Les conversions d’un Évêque: Entretiens avec José de
Broucker. Paris: L‟Harmattan, 2002. p. 65.
93
apresentava-se na condição de um dos fieis colaboradores de Dom Sebastião
Leme.
203
Outra grande amiga com quem conviveu bastante logo que chegou ao Rio
de Janeiro foi dona Margarida Campos Heitor, esposa do general Campos Heitor.
Segundo os historiadores Piletti e Praxedes, pertencia a dona Margarida a casa
alugada à família Camara na vila da rua Voluntários da Pátria, 19.
204
Em sua
correspondência, Helder em alguns momentos assinala que, todos os domingos e
feriados, fazia questão de almoçar na casa de dona Margarida, onde era acolhido
como uma pessoa da família.
Tenho uma amiga em cuja casa almoçava aos domingos, feriados e
dias santos desde que cheguei ao Rio. Agora, de acordo com ela
(mas com que caridade tive de agir!), troquei o almoço por uma ida
rápida a noitinha de domingo.
205
A carta de 1944 é apenas uma das inúmeras menções do padre a família
Campos Heitor. Para além das correspondências, as fotografias de família também
ilustram a proximidade e o afeto.
203
Intelectual e católico leigo, Alceu Amoroso Lima representava uma peça importantíssima no
processo de articulação da Igreja Católica Brasileira com o Estado, então, laico. Assim, o Dr. Alceu
torna-se um dos fieis colaboradores de Dom Leme e assume os postos de Secretário Geral do Ramo
Masculino das Associações Católicas, Secretário Executivo da Liga Eleitoral Católica e toma a frente
do Centro Dom Vital e da Revista “A Ordem”. Sobre Alceu Amoroso Lima e seu envolvimento com a
Igreja Católica Brasileira Cf. CAMARA, Helder; BROUCKER, José de. Les conversions d’un
Évêque: Entretiens avec José de Broucker. Paris: L‟Harmattan, 2002; BANDEIRA, Marina. A Igreja
Católica na virada da questão social (1930-1964). Anotações para uma História da Igreja no Brasil
(Ensaio e Interpretação). Rio de Janeiro: Editora Vozes: Educam, 2000; BEOZZO, José Oscar.
História da Igreja no Brasil. Tomo II. Vol. II. Petrópolis: Editora Vozes, 1980; MICELI, Sérgio. A elite
eclesiástica brasileira. Rio de Janeiro: Editora Bertrand Brasil, 1988; MONTENEGRO, João Alfredo.
Evolução do catolicismo no Brasil: novo enfoque da história do catolicismo no Brasil. Petrópolis:
Editora Vozes, 1972; ROSÁRIO, Irmã Maria Regina do Santo. O Cardeal Leme. Rio de Janeiro:
Editora José Olympio, 1962.
204
PILETTI, Nelson; PRAXEDES, Walter. op. cit. p. 143.
205
CAMARA, Helder. Carta Pessoal. 14 de novembro de 1944, Rio de Janeiro. Para Virgínia Côrtes
de Lacerda, Rio de Janeiro. 02p. Arquivo Pessoal.
94
Figura 09: Fotografia do padre Helder Camara com a família de dona Margarida
Campos Heitor e do general Campos Heitor (ao centro) encaminhada à Virgínia
Côrtes de Lacerda. No verso, dedicatória de 1943.
Fonte: Arquivo Pessoal.
Havia oito anos desde sua chegada ao Rio de Janeiro, mas o padre
Helder Camara não conseguia passar muito tempo longe dos amigos que fizera na
pensão e nos seus primeiros anos na capital federal. Apesar dos dias corridos e
repletos de inúmeros compromissos, fazia questão de estar sempre presente e
atender com carinho todos os pedidos que recebia.
Segundo as biografias, as entrevistas e a correspondência, os dias do
padre Helder começavam bem cedo, às quatro horas da manhã, com suas
vigílias.
206
Às cinco horas, cansado, deitava-se para um rápido sono até as seis,
206
Durante suas vigílias, Helder realizava suas orações, suas leituras, escrevia seus discursos e suas
cartas. Sobre essas vigílias Cf. CAMARA, Helder; BROUCKER, José de. Les conversions d’un
Évêque: Entretiens avec José de Broucker. Paris: L‟Harmattan, 2002; PILETTI, Nelson; PRAXEDES,
Walter. Dom Helder Camara. Entre o poder e a profecia. São Paulo: Editora Ática, 1997; PILETTI,
Nelson; PRAXEDES, Walter. Dom Helder Camara. O profeta da paz. São Paulo: Contexto, 2008;
BROUCKER, José de. Les nuits d’un prophète. Dom Helder Camara à Vatican II. Paris: Les
Éditions du Cerf, 2005; CAMARA, Helder. Vaticano II Correspondência Conciliar Circulares à
95
quando voltava a se levantar para um banho e, em jejum, ir celebrar a missa na
Escola de Enfermagem Ana Nery, onde era capelão. Após a missa, atendia as
pessoas que o procuravam na sacristia e, apenas depois, tomava o café da manhã,
preparado pelas freiras ou se dirigia ao botequim da esquina, em companhia de
amigos mais íntimos.
Quando conheci o padre Helder foi que passei a levar minha religião
a sério. Passei a descobri o valor da missa e comecei a frequentá-la
diariamente. Não que ele tivesse me dito pra ir à missa diariamente,
mas pelo o modo como ele falou sobre a missa e o modo pelo qual
ele celebrava a missa... Tudo isso me tocou muito! Desde aí,
comecei a ir a missa diariamente.
Ele celebrava na Ana Nery, aqui perto, na Rui Barbosa. Depois da
missa, ia tomar um café e a gente sentava um pouco para conversar
com ele. Nós sempre procurávamos estar entorno dele pra usufruir
da palavrinha que ele sempre dizia.
207
Todavia, não foram raras às vezes que Helder saiu em jejum para seu
segundo compromisso, como também não foram raros os dias ininterruptos em que
o padre abdicou da alimentação. Tal prática acabou por contribuir para a construção
da imagem do sujeito magro e franzino, vestindo a habitual batina preta e
carregando, a tira-colo, uma maleta, sempre abarrotada de papéis. Em alguns
momentos, o próprio Helder chamava a atenção para sua imagem. Em carta de julho
de 1944, após alguns dias de muito cansaço, provocados pelo jejum e a agenda
agitada, Helder, ao caricaturar a imagem do anúncio publicado pelo Vinho
Reconstituinte Silva Araújo, faz uma alusão entre sua figura e a personagem do
informe publicitário.
208
Família do São Joaquim, 1962-1964. Introdução e notas Luiz Carlos L. Marques. IDHeC Obras
Completas. Recife: Ed. Universitária da UFPE, 2004; CASTRO, Marcos de. Dom Helder: misticismo e
santidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002; MONTENEGRO, Antônio T.; SOARES, Edla;
TEDESCO, Alcides (org). Dom Helder, peregrino da utopia: caminhos da educação e da política.
Recife: A Prefeitura; Editora Universitária da UFPE, 2002.
207
DUARTE, Lenita. Entrevista. Entrevistadora: Jordana Gonçalves Leão. Rio de Janeiro, 2003.
Entrevista concedida a pesquisa Fragmentos de um „diário‟: a correspondência pessoal de Helder
Pessoa Camara”. Arquivo Pessoal.
208
CAMARA, Helder. Carta Pessoal. 04 de julho de 1944, Rio de Janeiro. Para Virgínia Côrtes de
Lacerda, Rio de Janeiro. 03p. Arquivo Pessoal.
96
Figura 10: Caricatura do padre Helder Camara com o anúncio do
Vinho Reconstituinte Silva Araújo. Carta Pessoal, 04/07/1944.
Fonte: Arquivo Pessoal.
A imagem do padre de estatura baixa, magro e franzino, despertava tanto
a preocupação dos familiares e amigos, quanto instantes de descontração que
foram, carinhosamente, registrados na memória:
O padrezinho me marcou profundamente. Profundamente mesmo.
Sua simpatia... Ele era muito simpático! Feinho, mas muito simpático.
Sua espiritualidade... Sempre muito tímido, ele não gostava de
receber elogios. Sabe como ele ia para a faculdade? Ele celebrava a
missa cedinho, depois tomava o café no botequim e tomava o bonde
no estribo. Aquele sujeito magrinho, franzino, de chapéu e uma mala
sempre pesada, pendurado no estribo do bonde!
209
Após a missa das seis da manhã e o café acompanhado das rápidas
conversas, tomava o bonde em direção as Faculdades Católicas ou ao Instituto
209
ARRAES, Cecília. Entrevista. Entrevistadora: Jordana Gonçalves Leão. Rio de Janeiro, 2003.
Entrevista concedida a pesquisa Fragmentos de um „diário‟: a correspondência pessoal de Helder
Pessoa Camara”. Arquivo Pessoal.
97
Santa Úrsula. Fora assim desde 1942, quando o então padre Helder Camara fora
convidado por Dom Sebastião Leme da Silveira Cintra, cardeal arcebispo do Rio de
Janeiro, a lecionar nas recém fundadas Faculdades Católicas que, posteriormente,
se transformariam na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Segundo
Marina Bandeira em A Igreja Católica na virada da questão social (1930-1964),
desde 1938, Pio XI confiara a Dom Leme “mandato especial” para tratar da fundação
de uma universidade católica no Brasil.
210
Assim, a Pontifícia Universidade Católica
é criada no Rio de Janeiro. No dia 22 de dezembro de 1940, Dom Sebastião Leme
entrega ao padre Leonel Franca a provisão que o constituiu reitor das Faculdades
Católicas, nome inicial da entidade, pois ainda não se podia dizer “Universidade”
devido a requisitos legais.
211
Por poucos anos, o padre Helder lecionou as disciplinas de didática geral
e administração escolar, passando, em seguida, a ministrar cursos de psicologia
para as professoras da Faculdade de Letras do Instituto Santa Úrsula. Enquanto
lecionava, formavam-se laços de amizade que, pouco a pouco, foram sendo
estreitados. Assim, as alunas do padrezinho, como o chamavam, passavam a
frequentar as missas na Ana Nery e a seguir sob a sua orientação espiritual.
Segundo o próprio Helder Camara, fora assim seus primeiros contatos com Virgínia
Côrtes de Lacerda.
212
É, justamente, por ocasião das aulas, dos estudos, dos encontros de
orientação espiritual e das missas, que foram se formando laços de amizade que
perdurariam por muitos anos. Com Cecília Arraes, aluna do padre Helder, foi dessa
forma que teve início uma amizade que perdurou por mais de cinco décadas.
Eu conheci o Padrezinho em 1943 na Faculdade Católica, naquele
tempo era Faculdade Católica não era PUC, na rua São Clemente
em Botafogo. Eu fui aluna dele: primeiro de religião, depois de
didática e em seguida, de administração escolar. Eu chegava um
pouco atrasada, porque a aula era muito cedo, mas mesmo assim,
conseguia tirar boas notas. Então, ele começou a prestar atenção em
210
O Concílio Plenário Brasileiro (1939), em sua Carta Pastoral Coletiva, referindo-se à necessidade
de uma universidade, proclama: “Ao Brasil católico não é possível viver sem esta artéria vital do
seu organismo”. Cf. ROSÁRIO, Irmã Maria Regina do Santo. O Cardeal Leme. Rio de Janeiro:
Editora José Olympio, 1962.
211
BANDEIRA, Marina. A Igreja Católica na virada da questão social (1930-1964). Anotações para
uma História da Igreja no Brasil (Ensaio e Interpretação). Rio de Janeiro: Editora Vozes: Educam,
2000. p. 56.
212
CAMARA, Helder; BROUCKER, José de. op cit. p. 99-100.
98
mim. Depois ele me convidou a participar das missas que ele
celebrava e, em seguida passei a ter orientação espiritual.
213
Ao término das aulas, dirigia-se ao Ministério da Educação, onde
trabalhava desde sua chegada no Rio de Janeiro, em 1936. Em Les conversions
d’un Évêque: Entretiens avec José de Broucker, Helder Camara recorda que seu
primeiro trabalho profissional na capital federal foi assessorar Lourenço Filho, que
dirigia um Instituto de Educação do Distrito Federal.
214
Mesmo não se sentindo
totalmente à vontade e seguro na função, trabalharia com Lourenço ainda por alguns
meses até receber o convite do amigo Everardo Backheuser para transferir-se para
o Instituto de Pesquisas Educacionais, órgão também vinculado a Secretaria de
Educação do Rio de Janeiro. Dessa forma, assumiu a chefia da Seção de Medidas e
Programas, com a incumbência de elaborar e acompanhar a aplicação de testes de
avaliação do aproveitamento escolar dos cerca de 150 mil alunos das escolas
primarias do Rio de Janeiro, e de supervisionar os programas de ensino adotados na
escola.
215
Em 1938 houve no Ministério de Educação e Saúde, um concurso para
técnico em educação. Segundo os historiadores Piletti e Praxedes, o clérigo não
hesitou em pedir ao cardeal Dom Sebastião Leme autorização para prestar o
concurso e, caso fosse aprovado, assumir o cargo.
216
Dom Leme concordou, e teria
muitos motivos para isso. Com o cargo no Ministério da Educação, Helder garantia a
própria subsistência, pois vivia do seu salário, e a Igreja mantinha ocupada uma
posição em um órgão governamental que controlava, desde 1934, na pessoa do
ministro Gustavo Capanema, que assumira a pasta na condição de homem de
confiança de Alceu Amoroso Lima para implementar o projeto educacional
católico.
217
Com o resultado de aprovação do concurso, Helder trabalharia pelos
próximos anos em várias repartições do Ministério.
213
ARRAES, Cecília. Entrevista. Entrevistadora: Jordana Gonçalves Leão. Rio de Janeiro, 2003.
Entrevista concedida a pesquisa Fragmentos de um „diário‟: a correspondência pessoal de Helder
Pessoa Camara”. Arquivo Pessoal.
214
CAMARA, Helder; BROUCKER, José de. op cit. p. 88-89.
215
Ibidem. p. 93.
216
PILETTI, Nelson; PRAXEDES, Walter. op. cit. p. 129-130.
217
O presidente Getúlio Vargas concordara em deixar o Ministério da Educação sob a influência da
Igreja Católica como recompensa ao apoio que recebia dos católicos desde que fizera um pacto com
o cardeal Dom Sebastião Leme no início dos anos 1930. Cf. BANDEIRA, Marina. A Igreja Católica
na virada da questão social (1930-1964). Anotações para uma História da Igreja no Brasil (Ensaios
e Interpretações). Rio de Janeiro: Editora Vozes, 2000.
99
No dia-a-dia, a amizade e a confiança dos colegas de Ministério faziam
dele uma espécie de diretor espiritual da repartição, o que levava a frequentes
interrupções de seu trabalho por pessoas que precisavam comunicar-lhe uma
confidência ou outra. Ali Helder faria uma grande amizade com Alfredina Paiva e
Souza, passando a visitar sua casa com frequência. Também fora no Ministério da
Educação que conheceu a jovem Lenita Duarte.
Em 1944, eu tive ocasião de procurar o padre Helder por uma razão
inteiramente pessoal. Eu precisava de algumas informações sobre
uma pessoa que ele conhecia. Então, uma amiga, Ruth Costa
Rodrigues, que trabalhava com ele no Ministério da Educação, nos
apresentou. Ele ficou naturalmente desejoso de me ajudar porque eu
estava passando por uma fase com certo problema.
218
Todavia, os burburinhos da repartição e o desejo de Helder de dedicar-se
exclusivamente às atividades sacerdotais, de sair pregando pelo país a fora - afinal,
esta era a missão que concebia para si - conduziram-no a várias tentativas de
afastamento do trabalho no Ministério, todas sem sucesso. Por ser o padre Helder
um homem politicamente visível nos meios da intelectualidade da direita católica, o
cardeal Dom Sebastião Leme acreditava que a Igreja necessitava do padre Helder
onde ele estava: próximo a pessoas que quase sempre se mantinham afastadas da
prática religiosa e diretamente ligadas ao campo político. No entanto, o objetivo
principal da sua permanência no Ministério da Educação era fazer com que a
legislação que permitia o ensino religioso nas escolas públicas fosse aplicada em
todo país com serenidade e competência. A posição no Ministério também permitia
que Helder atuasse como um articulador dos interesses dos católicos, que
dominavam a oferta de ensino secundário particular no país e ansiavam por
abranger a demanda do ensino superior.
219
218
DUARTE, Lenita. Entrevista. Entrevistadora: Jordana Gonçalves Leão. Rio de Janeiro, 2003.
Entrevista concedida a pesquisa Fragmentos de um „diário‟: a correspondência pessoal de Helder
Pessoa Camara”. Arquivo Pessoal.
219
Desde a década de 1920 os católicos vinham se organizando, através da revista “A Ordem” (1921)
e do Centro Dom Vital (1922), com o propósito de ter uma atuação mais marcante no processo
decisório nacional. Sob a liderança do arcebispo Dom Sebastião Leme, do padre Leonel Franca e de
Alceu Amoroso Lima, articulou-se assim um movimento em prol da educação superior católica. Para o
grupo católico, a universidade, enquanto espaço de socialização das elites dirigentes, tinha
necessariamente que ser católica. Sobre esse processo Cf. BANDEIRA, Marina. A Igreja Católica na
virada da questão social (1930-1964). Anotações para uma História da Igreja no Brasil (Ensaios e
Interpretações). Rio de Janeiro: Editora Vozes, 2000; BEOZZO, J. O. História da Igreja no Brasil.
100
Apesar de sempre ter se mostrado obediente às ordens dos seus
superiores, Helder não escondia de ninguém suas insatisfações e sua profunda
angústia em ser aquilo que chamava de padre-funcionário. Em fevereiro de 1944,
pouco antes de completar 35 anos, o padre Helder Camara retoma seu pedido de
afastamento do Ministério de Educação junto ao arcebispo do Rio de Janeiro, Dom
Jaime de Barros Camara. Fora muito grande a expectativa criada em torno da
resposta definitiva do arcebispo. Helder parecia viver um sonho quando escrevia a
amiga Virgínia Côrtes de Lacerda acerca dos últimos acontecimentos.
Ontem à noite, véspera de minha partida, o padre Tapajós
comunicou-me, em nome do Senhor Arcebispo, que ele desejava
meu afastamento imediato do funcionalismo. Minhas possibilidades
de atuação sacerdotal no Ministério eram mínimas e ele está
carregado de serviços sacerdotais para o seu irmão.
No íntimo, cantei um hino de ação de graças. Perdoe, Caecilia: mas
me alegrei tanto como no dia em que me senti, com a graça de Deus,
livre da política para sempre. Vou ser padre 100%. Você dirá: era!
Mas não me entregava sempre a trabalhos especificamente
sacerdotais. Exato que nada se perdeu, porque obedeci e tudo
ofereci ao Bom Deus, inclusive a humilhação mensal (nunca me
acostumei!) do recebimento de ordenado!
Não é providencial essa profunda alteração em minha vida numa
véspera de partida para a Aparecida e numa ante-véspera de
completar 35 anos?
220
Por dois dias, Helder viveu a expectativa do trabalho sacerdotal, fez
planos e traçou metas. No regresso ao Rio de Janeiro, a expectativa parecia ainda
maior. Preparado-se para a conversa definitiva com Dom Jaime Camara, Helder
escreve-lhe uma carta onde pede desculpas pela retomada do assunto, mas enfatiza
seu desejo:
As circunstâncias me obrigam, no entanto, a expor a V. Excia. a
situação em que me acho, pois desejo entregar-me, de olhos
fechados, a uma decisão de V. Excia.
Tomo II. Vol. II. Petrópolis: Editora Vozes, 1980; MONTENEGRO, João Alfredo. Evolução do
Catolicismo no Brasil: novo enfoque da história do catolicismo no Brasil. Petrópolis: Editora Vozes,
1972; ROSÁRIO, Irmã Maria Regina do Santo. O Cardeal Leme. Rio de Janeiro: Editora José
Olympio, 1962 e TORRES, João Camilo de Oliveira. História das ideias religiosas no Brasil. I. São
Paulo: Grijalbo, 1968.
220
CAMARA, Helder. Carta Pessoal. 06 de fevereiro de 1944, Rio de Janeiro. Para Virgínia Côrtes de
Lacerda, Rio de Janeiro. 03p. Arquivo Pessoal.
101
Meu coração de sacerdote pede minha retirada. Por maiores que
fossem as possibilidades de atuação dentro do Ministério, sinto que
não estão em jogo funções que não pudessem ser preenchidas por
elementos católicos devidamente industriados. E, enquanto isso, vejo
trabalhos, especificamente sacerdotais e para os quais recebi da
Providência qualidades especiais.
221
Ao retornar do encontro com Dom Jaime Camara, Helder escreve a amiga
Virgínia acerca do caminho escolhido pelo arcebispo. Em uma carta em tom de
desabafo, Helder mostra sua decepção e sua resignação aquilo que acreditava ser à
vontade do Pai.
Estou voltando do encontro com o Senhor Arcebispo.
Resolvi levar por escrito uma síntese de meus pensamentos: é o
documento que você encontra ao lado. O encontro com o Senhor
Arcebispo foi presenciado pelo padre Tapajós.
Conversamos longamente. Li a sumula de meus pensamentos. Dom
Jaime estava de todo rendido. Nem por nada quer que eu deixe o
funcionalismo. O padre Tapajós tentou discutir com ele. Dom Jaime
estava firme: deu-me como palavra de ordem permanecer no
funcionalismo.
O fato é que não foi ainda desta vez minha libertação do
funcionalismo. Deus sabe o que faz.
222
Não havia sido desta vez, como bem salientou. Mas ele também estava
longe de desistir. A família, os amigos, a satisfação em ajudar alguém e os instantes
de oração o moviam a continuar lutando pelo afastamento do funcionalismo público
e um envolvimento maior com as ações sacerdotais.
223
Por volta das cinco horas da tarde, Helder deixava o Ministério da
Educação e dava continuidade ao cumprimento de seus compromissos: visitas à
221
CAMARA, Helder. Carta Pessoal. 08 de fevereiro de 1944, Rio de Janeiro. Para Dom Jaime de
Barros Camara, Rio de Janeiro. 02p. Arquivo Pessoal. Cópia da carta ao arcebispo Jaime Camara foi
entregue pelo padre Helder a Virgínia Côrtes de Lacerda como anexo à carta do dia 08 de fevereiro
de 1944.
222
CAMARA, Helder. Carta Pessoal. 08 de fevereiro de 1944, Rio de Janeiro. Para Virgínia Côrtes de
Lacerda, Rio de Janeiro. 03p. Arquivo Pessoal.
223
Alceu Amoroso Lima, em depoimento para Marcos de Castro assinala: “o que padre Helder queria
era sair pregando pelo Brasil, desligar-se totalmente de qualquer atividade que não fosse apostólica.
[...] O que ele sonhava era sair pregando pelo seu país, para cumprir a missão que Cristo lhe dera”.
LIMA, Alceu Amoroso. Depoimento. In CASTRO, Marcos de. Dom Helder: misticismo e santidade.
Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002.
102
casa de amigos, palestras no Centro Dom Vital, celebração de mais uma missa ou
encontros com colegas de arquidiocese no Palácio de São Joaquim.
Segundo os relatos apresentados na correspondência, apesar dos
encontros diários na missa das seis horas da manhã na Ana Nery e dos encontros
casuais no Instituto Santa Úrsula e no Ministério da Educação, onde a professora
também trabalhava, Helder e Virgínia encontravam-se uma ou duas vezes por
semana para por em dia os estudos. Por vezes, o lugar escolhido para a realização
dos encontros era a casa de Virgínia e, aos sábados, os estudos eram realizados
nos jardins da Casa Ruy Barbosa, ambos na Rua o Clemente, em Botafogo. Por
ocasião dos encontros, Helder e Virgínia estudavam todos os tipos de temas que
lhes parecessem capaz de propiciar uma mútua ascensão espiritual e cultural,
trocavam ideias sobre as aulas da semana seguinte, sobre as conferências que
seriam proferidas, sobre as pesquisas realizadas pelo Centro de Estudos e
Pesquisas das Faculdades Católicas e do Instituto Santa Úrsula, sobre os livros que
estavam lendo e sobre seus processos de ascensão espiritual.
Conforme os encontros aconteciam, despertava-se, cada vez mais, o
interesse pelos pensamentos um do outro. Em meio aos encontros, aos estudos, às
anotações as margens dos livros e às trocas de cartas, dividiram experiências,
expectativa, sonhos e frustrações.
Se passado oito anos, desde sua chegada ao Rio de Janeiro, em 1936,
Helder havia construído, em torno de si, uma rede de sociabilidade com amigos
vindos de todas as partes: familiares, amigos dos primeiros anos na pensão de dona
Cecy Cruz, colegas de arquidiocese, colegas do Ministério da Educação, amigos que
fizera em suas palestras no Centro Dom Vital e as alunas do Instituto Santa Úrsula e
das Faculdades Católicas. A saudade dos amigos dos tempos do Consulado
Cearense, a profunda angústia provocada pelo aprisionamento ao funcionalismo e a
insatisfação em ser padre-funcionário, as noites culturais que participava desde sua
chegada no Rio de Janeiro e o desejo de fazer um pouco mais pelas alunas que o
procuravam insistentemente ao término das aulas em busca de uma palavra de
consolo, moviam os pensamentos e os desejos do jovem padre. Não demorou muito
para que despertasse em Helder a necessidade de dividir com seus amigos e alunos
suas experiências de vida:
103
Ao rezar pelos catecúmenos, lembro-me dos nossos alunos. Em
ultima análise, qual a Grande Mensagem que temos para eles? Levá-
los a entender que o Belo, o Verdadeiro, o Um e o Bem se realizam
plenamente em Deus!
224
Os relatos encontrados nas cartas nos levam a crer que foi justamente o
desejo de dividir suas experiências e satisfazer sua ânsia em exercer, de forma mais
plena, sua missão religiosa, o que o levaria a propor à Virgínia a criação de um
grupo de estudos e sarais. Os encontros seriam realizados uma vez por semana e
seriam discutidos temas como religião, literatura, teatro e cinema, tais quais os
encontros semanais que participara com o grupo de leigos católicos junto dos
amigos Nair Cruz e Alceu Amoroso Lima, nos seus primeiros anos na capital federal.
Veja o que eu ia propor: com nome ou sem nome, passaríamos a ter
encontros, nós amigos do Um, da Verdade, do Belo e do Bem.
Teríamos dois tipos de encontros: inteiramente nossos; nossos e de
alguns nossos.
Um de nós, seguro em determinado sistema filosófico digno de
interessar a todos conversaria um dia, expondo as grandes linhas do
sistema em questão e salientando o aproveitamento possível para
nós e para o nosso magistério.
O mesmo seria feito em todos os domínios: em literatura e em
pedagogia, em música e em pintura, em direito, em sociologia, em
religião...
Os encontros seriam em lugares abertos e aprazíveis... Lugares
ideais (queria muito ambiente de lar)...
No dia de uma palestra sobre música deveríamos ou poder ouvir
música. Quando a conversa fosse sobre pintura deveria haver
quadros para ilustrar a dissertação.
Por que aludo a alunos nossos? Porque devemos a alunos como
Haidée, Lucia, Yolanda, (e tantos outros entre os meus não cito os
seus porque não tenho a felicidade de conhecê-los) um ambiente
que eles não encontram em parte alguma.
Que acha de tudo isso?
225
Acordado a criação de um grupo para encontros e sarais, Helder passou a
convidar alguns dos amigos que reuniu ao longo dos anos. Assim, em 1944, fora
inventado o Confiança.
224
CAMARA, Helder. Carta Pessoal. 07 de abril de 1944, Ouro Preto. Para Virgínia Côrtes de
Lacerda, Rio de Janeiro. 07p. Arquivo Pessoal.
225
CAMARA, Helder. Carta Pessoal. 06 de maio de 1944, Rio de Janeiro. Para Virgínia Côrtes de
Lacerda, Rio de Janeiro. 05p. Arquivo Pessoal.
104
3.2 A invenção do Grupo Confiança
A primeira vez que nos chegou o nome Confiança, não sabíamos ao certo
do que se tratava. Apenas algumas anotações desencontradas as margens dos
livros contendo referências a „Sociedade fundada em 1944‟, aos encontros com as
alunas e uma única fotografia onde aparece o jovem padre cercado por um pequeno
grupo de mulheres e cujo verso apresentava apenas o seguinte questionamento:
“Dissolvo?”
O historiador Michael Oakeshott no estudo Sobre a história e outros
ensaios, chama-nos a atenção para o fato de que a forma como um sobrevivente do
passado pode chegar a nós é algo como um mistério cercado de mistérios, “mas que
podem atrair nossa atenção ao parecer, sob alguns aspectos, inteligível e
interessante”.
226
Assim, partindo de fragmentos dedicamo-nos a um processo de
“investigação histórica”, onde objetos sobreviventes falavam-nos de um passado que
desejávamos apreender.
Não é cil trabalhar com a documentação a que nos propomos. Durval
Muniz em História: a arte de inventar o passado, escreve que “a evidência é produto
de certa vidência, é construção de uma forma de ver, de uma visibilidade e de uma
dizibilidade social e historicamente localizada”.
227
Assim ao lançarmos nosso olhar
em direção às margens dos livros as colocamos em evidência e inventamos um
objeto histórico. No entanto, as anotações são fontes cujas informações são
dispersas e fragmentadas, precisando ser analisadas em série. Fazendo-se
necessário um verdadeiro trabalho de entrelace de tecidos que se arrumam numa
colcha de retalhos.
Os fatos históricos antes de aparecerem como figuras definidas,
após o trabalho de seleção, ordenamento, racionalização,
conceituação e escritura realizado pelo historiador é uma congerie de
múltiplos elementos, uma nuvem composta pela poeira dos detalhes,
da singularidade dos nomes e das coisas. Quando ao final de nossa
narrativa, se o vento aparece em seu corpo inteiriço e bem amarrado,
226
OAKESHOTT, Michael. Sobre a história e outros ensaios. Tradução de Renato Rezende. Rio de
Janeiro: Editora Topbookes, 2003. p. 103.
227
ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. História: A arte de inventar o passado. Ensaios de
teoria da história. Bauru, SP: EDUSC, 2007. p. 25.
105
é porque escondemos as costuras, os chuleados, os nós e as
laçadas que precisamos realizar e, como uma linda blusa de tricô,
precisamos esconder e disfarçar no seu avesso.
228
As anotações são de difícil leitura, sobretudo por apresentarem-se
dispersas nas margens dos livros, numa tentativa, por parte dos seus autores, de
ocuparem as margens por completo.
Figura 11: Anotações às margens da obra Péguy et les Cahiers de la Quinzaine.
Fonte: Arquivo do Centro de Documentação Helder Camara (CeDoHC).
Apesar da dificuldade, as anotações fragmentadas às margens dos livros
foram, durante algum tempo, tudo do que dispúnhamos. Restava-nos a tarefa de
mergulhar nos arquivos em busca de novas evidências, relacionar as informações e
cruzar as fontes numa tentativa de compreender e interpretar esse passado.
Apenas em 2004, com a localização das cartas escritas por Helder
Camara para Virgínia Côrtes de Lacerda, tornou-se possível compreender um pouco
mais a respeito da relevância da relação estabelecida entre o padre Helder e o
Grupo Confiança. Também não é fácil trabalhar com cartas. A correspondência
228
Ibidem. p. 31.
106
demanda vários cuidados e níveis de análise, que considerem desde sua
materialidade (papel e letra), passando pelos códigos que definem o gênero
epistolar (as saudações, as despedidas e as assinaturas), até as observações sobre
suas formas de conservação e guarda, reveladoras da identidade de seu
destinatário.
Cartas pessoais são textos íntimos e relacionais, onde o sentido do que é
escrito é, comumente, apreendido em função de um outro. Um outro que nos faltava.
Dois anos após o início das nossas pesquisas e dos primeiros contatos com o que
viria a se revelar como Grupo Confiança, as tramas dessa história pareciam se
delinear. A identificação de algumas das personagens e os encontros para
pequenos instantes de conversas, onde senhoras de oitenta anos tentavam resgatar
um passado, para elas, não tão recente, conduziram-nos a adentrar, cada vez mais
pelos caminhos dessa história.
Segundo os registros encontrados às margens dos livros, as cartas e as
entrevistas, em 1944, oito anos após sua chegada ao Rio de Janeiro, o padre Helder
Camara propõe à amiga Virgínia Côrtes de Lacerda a invenção de um grupo para
encontros e sarais. Nesses encontros seriam discutidos música, poesia, literatura e
todos os temas capazes de propiciar uma formação cultural e espiritual.
Acordado a criação do grupo, Helder tratou de convidar algumas das
alunas das Faculdades Católicas e do Instituto Santa Úrsula. Segundo carta de maio
de 1944, a ideia dos encontros para livres debates teria causado o maior agrado às
alunas das Faculdades Católicas. “Venceu como tema pretexto, tema ponto de
partida, a discussão em torno de arte moderna”.
229
Estavam assim fundadas as
bases do Confiança.
230
Constituído por cerca de doze pessoas, entre amigas dos primeiros anos
no Rio de Janeiro, alunas das Faculdades Católicas e do Instituto Santa Úrsula e
colegas do Ministério de Educação, o Confiança era um grupo, sobretudo de
mulheres, grandes amigas do padre Helder e que comungavam um pouco dos seus
229
CAMARA, Helder. Carta Pessoal. 12 de maio de 1944, Rio de Janeiro. Para Virgínia Côrtes de
Lacerda, Rio de Janeiro. 05p. Arquivo Pessoal.
230
Segundo Lenita Duarte, o nome Confiança teria sido atribuído ao grupo como uma referência a um
dos fundamentos que servia como elo entre seus integrantes: “confiança recíproca, confiança no
padrezinho, confiança em Deus”. DUARTE, Lenita. Entrevista. Entrevistadora: Jordana Gonçalves
Leão. Rio de Janeiro, 2003. Entrevista concedida a pesquisa Fragmentos de um „diário‟: a
correspondência pessoal de Helder Pessoa Camara”. Arquivo Pessoal.
107
ideais de justiça e de opção pelos pobres.
231
Mulheres, católicas e que seguiam sob
sua direção espiritual. Mulheres escolhidas por apresentarem uma personalidade
forte e por ter despertado, de certa forma, o seu interesse.
Quanta luta em torno! Almas que se erguem e que progridem, que
alcançam o vôo (Caecília, Lúcia, Madalena, Laurita para citar as
movidas pelo Espírito de modo mais forte); almas que se torturam e
sangram (Primogênita, Afilhada, Ruth, Santinha); ovelhinhas que
chegam (a ultima cuja conversão de consolidou: a Yonne).
232
Entre as Confiantes,
233
como costumava chamar, estavam Virgínia
Côrtes, sua amiga e confidente; Nair Cruz, Celina Nina e Cecília Monteiro, amigas
dos primeiros anos na capital federal; Cecília Arraes, Haidée Arraes, Lúcia, Maura,
Lea, Tereza e Heloisa, alunas das Faculdades Católicas.
231
MELO, Irmã Agostinha Vieira de. Entrevista. Entrevistadora: Jordana Gonçalves Leão. João
Pessoa, 2004. Entrevista concedida a pesquisa “Fragmentos de um „diário‟: a correspondência
pessoal de Helder Pessoa Camara”. Arquivo Pessoal.
232
CAMARA, Helder. Carta Pessoal. 18 de julho de 1944, Rio de Janeiro. Para Virgínia Côrtes de
Lacerda, Rio de Janeiro. 03p. Arquivo Pessoal.
233
O termo Confiantes’ é utilizado com frequência na correspondência para fazer referência aos
membros do Grupo Confiança. Um exemplo disso é a carta de gosto de 1944, onde escreve: “E a
propósito, ontem na Faculdade Católica, as confiantes me lembraram que, no sábado, além da parte
diversional (que tem seu encanto e sua razão de ser) eu não esquecesse a promessa de oferecer
enriquecimento espiritual ao grupo”. Cf. CAMARA, Helder. Carta Pessoal. 18 de outubro de 1944, Rio
de Janeiro. Para Virgínia Côrtes de Lacerda, Rio de Janeiro. 04p. Arquivo Pessoal.
108
Figura 12: O Grupo Confiança. Da direita para a esquerda:
Haidée Arraes de Alencar, Nair Cruz, Celina Nina, 6ª Cecília
Arraes, 7ª Nair Camara e 9º padre Helder.
Fonte: Arquivo Pessoal.
Nos seus encontros, realizados, geralmente, nas noites das sextas-feiras
na casa de Virgínia, eram promovidas sessões de músicas, poesias, leituras e
reflexões espirituais. Conforme as correspondências e as entrevistas, a cada
semana, um dos integrantes do grupo, segundo um determinado sistema filosófico,
conversava expondo as grandes linhas do sistema em questão e salientando o
aproveitamento possível. O mesmo era feito em todos os domínios: em literatura e
em pedagogia, em música e em pintura, em direito, em sociologia e em religião. No
dia de uma palestra sobre música, ouvia-se música. Quando a conversa era sobre
pintura havia quadros para ilustrar a dissertação.
234
Em determinados momentos, a ideia de um grupo, reunido em torno do
padre Helder para encontros e sarais despertou a atenção de algumas de suas
alunas que não haviam sido convidadas a integrar o Confiança. Em uma passagem
de agosto de 1944, ele escreve: “Edith queixou-se de não ter sido convidada.
Nairzinha pediu por ela. „Sozinha pode vir. Com o dinheiro não‟. Aceitou,
felicíssima”.
235
No entanto, com o passar do tempo e sempre que acreditava
necessário, novas pessoas iam sendo convidadas a compor o grupo. Fora assim
com Lenita Duarte.
Eu conheci o padre Helder em 1944. Logo começamos a ter mais
contato e ele me falou que tinha um grupo, que ele reunia uma vez
por semana, muitas vezes em casa de uma grande amiga nossa,
uma pessoa de muito valor, Virgínia Côrtes de Lacerda. Então, eu
comecei a frequentar o Grupo e passei a sentir muita admiração por
ele. Depois, resolvi fazer dele meu confessor, meu diretor
espiritual.
236
234
Ainda sobre esses encontros, Dom Helder Camara, na 34Carta Circular de janeiro de 1972
destinada à Família Mecejanense, faz o seguinte comentário: “como esquecer a casa de Virgínia, na
São Clemente, onde, durante anos, nos reunimos às feiras e onde se foi consolidando nossa
Família que, um dia, eu chamaria de Mecejanense”. Cf. CAMARA, Helder. Carta Circular. 16/17 de
janeiro de 1972, Recife. Para a Família Mecejanense, Rio de Janeiro. 03p. Arquivo do Centro de
Documentação Helder Camara (CeDoHC).
235
CAMARA, Helder. Carta Pessoal. 02 de agosto de 1944, Rio de Janeiro. Para Virgínia Côrtes de
Lacerda, Rio de Janeiro. 04p. Arquivo Pessoal.
236
DUARTE, Lenita. Entrevista. Entrevistadora: Jordana Gonçalves Leão. Rio de Janeiro, 2003.
Entrevista concedida a pesquisa Fragmentos de um „diário‟: a correspondência pessoal de Helder
Pessoa Camara”. Arquivo Pessoal.
109
É interessante notarmos que as entrevistadas carregam em seus discursos
uma carga expressiva de saudosismo e emotividade. Pesquisadores cujos estudos
circundam a História Oral e a Memória nos lembram que esta passa pela afetividade,
pela emoção. Dessa forma, costumamos arquivar na memória o que nos marca
emocionalmente, sejam essas emoções positivas ou negativas.
237
Noberto Bobbio
em O tempo da memória, apresenta-nos um testemunho da íntima ligação entre os
velhos e a rememoração de um tempo remoto:
Se o mundo do futuro se abre para a imaginação, mas não os
pertence mais, o mundo do passado é aquele no qual, recorrendo a
nossas lembranças, podemos buscar refúgio dentro de nós mesmos,
debruçar-nos sobre nós mesmos e nele reconstruir nossa
identidade... Devemos continuar a escavar. Cada vulto, gesto,
palavra ou canção, que parecia perdido para sempre, uma vez
reencontrado, nos ajuda a sobreviver.
238
No decorrer das entrevistas, tornou-se possível perceber que aquelas
mulheres não estavam apenas recordando uma determinada passagem, elas
estavam reconstruindo todo um processo que, sob seus olhares, conferiu sentido a
suas vidas.
239
Eclea Bosi esclarece-nos muito bem a respeito deste processo ao
salientar que recordar não é reviver, mas refazer, reconstruir, repensar com imagens
e ideias de hoje.
240
Evidentemente, essa reorientação não é feita de forma indolor.
Segundo Astor Antônio Diehl, em Cultura Historiográfica, “há uma espécie de
237
Cf. HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. o Paulo: Vértice, Editora dos Tribunais, 1990;
DIEHL, Astor Antônio. Cultura historiográfica. Memória, identidade e representação. Bauru, SP:
EDUSC, 2002; BOBBIO, Noberto. O tempo da memória: de senectude e outros escritos
autobiográficos. Tradução de Daniela Versiani. Rio de Janeiro: Campus, 1997; BOSI, Eclea. Memória
e sociedade: lembranças dos velhos. São Paulo: Companhia das Letras, 1994; LE GOFF, Jacques.
História e memória. Campinas, SP: Editora UNICAMP, 1994; MONTENEGRO, Antônio T. História
oral e memória. São Paulo: Contexto, 2001; JUCÁ. Gisafran Nazareno Mota. A oralidade dos
velhos na polifonia urbana. Fortaleza: Imprensa Universitária, 2008; FERREIRA, Marieta de
Moraes; AMADO, Janaina (org). Usos e abusos da História oral. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2002.
238
BOBBIO, Noberto. O tempo da memória: de senectude e outros escritos autobiográficos.
Tradução de Daniela Versiani. Rio de Janeiro: Campus, 1997. p. 55
239
A esse respeito, Lenita Duarte comenta: “Dom Helder e o grupo representaram um marco na
minha vida. Mais Dom Helder. O grupo foi consequência dele”. Cf. DUARTE, Lenita. Entrevista.
Entrevistadora: Jordana Gonçalves Leão. Rio de Janeiro, 2003. Entrevista concedida a pesquisa
“Fragmentos de um „diário‟: a correspondência pessoal de Helder Pessoa Camara”. Arquivo Pessoal.
240
Cf. BOSSI, Eclea. Memória e sociedade: lembranças dos velhos. São Paulo: Companhia das
letras, 2004.
110
desespero frente aquilo que a memória pode nos revelar”.
241
Dessa forma, torna-se
curioso percebermos como alguns dos discursos apresentam um grupo fraterno,
unido em tordo do padre Helder e de um projeto de santificação.
Eu me lembro que eram reuniões muito fraternas, com a direção do
padre Helder. Ele sempre dava uma palavrinha, para elevar nossos
pensamentos, depois havia uma troca de ideias. As reuniões eram
sempre muito proveitosas. O propósito era sempre em torno do plano
de santidade. Era uma forma de nos aproximarmos mais de Deus, e
nos fazer conhecer mais o plano de Deus para nossas vidas.
242
Apesar dos sarais com estudos poético-literários, as razões de ser do
Grupo Confiança atingiam esferas que iam aquém e além de momentos de estudos
e confraternização. Em alguns momentos, o trabalho com a correspondência
pessoal de Helder Camara conduz nosso olhar para um ângulo em que a escrita
epistolar pode ser entendida como um ato terapêutico para quem escreve e para
quem lê. Desse lugar, torna-se possível observar que o ato de escrever atenua as
amarguras e a solidão à medida que compartilha e revela desejos extremamente
íntimos. Assim, os relatos apresentados na correspondência nos permitem perceber
que a criação do Confiança passava pelo seu desejo de catarse da angústia de ser
padre-funcionário, de exercer de forma mais plena seu sacerdócio e de perpetuar-se
de alguma forma.
Na hora mesma em que anunciei Confiança, senti que a provação
para a minha humildade será nada realizar de visível e de grande na
terra. [...]
Para que vêm então tantos planos que eu anuncio? A Providência
deve servir-se deles para humilhar-me, para provar a todos minha
incapacidade de construir. A caridade deve levar-me a não está
acordando novos sonhos na cabeça dos outros.
243
241
DIEHL, Astor Antônio. Cultura historiográfica. Memória, identidade e representação. Bauru, SP:
EDUSC, 2002. p. 17.
242
DUARTE, Lenita. Entrevista. Entrevistadora: Jordana Gonçalves Leão. Rio de Janeiro, 2003.
Entrevista concedida a pesquisa Fragmentos de um „diário‟: a correspondência pessoal de Helder
Pessoa Camara”. Arquivo Pessoal.
243
CAMARA, Helder. Carta Pessoal. 11 de agosto de 1944, Rio de Janeiro. Para Virgínia Côrtes de
Lacerda, Rio de Janeiro. 02p. Arquivo Pessoal.
111
Para além das epístolas, em várias ocasiões o padre Helder Camara
deixava transparecer essa inquietação com o porvir. Em um manuscrito de 1943,
chamado A escolha de Deus, escreve: “Passarei pela vida sem deixar nenhum sinal
mais forte, marca nenhuma duradoura e inesquecível”.
244
Conscientes ou
inconscientes reproduzimos Aquiles no desejo de nos tornarmos eternos e
perseguimos isso durante toda a vida, seja tendo um filho, seja escrevendo um livro,
seja plantando uma árvore. Assim, o desejo de perpetuar-se, mas, mais do que isso,
o de construir a própria identidade responde ao anseio de ser, a posteriori,
reconhecido por uma identidade digna de nota.
245
Por vários momentos, Helder em
sua correspondência, deixa transparecer essa aspiração.
Confiei-me na certeza de que, humildemente, não conseguirei
nenhuma grande obra aqui na terra. Cada vez mais, com a graça de
Deus, quero entregar-me a Obra da Santificação própria e alheia.
Para minha humildade é ótimo.
Preocupado em está as ordens do Bom Deus e em pôr-me à Sua
disposição para qualquer mensagem, cheguei a pensar que talvez no
mundo das letras eu pudesse servir. [...]
Conclusão das conclusões: animarei os outros, procurarei
encaminhá-los, encorajá-los. Quanto a mim, pensarei em uma Obra
Única: a da santificação de todos e de modo particular, a da
realização da Proporção Ideal.
246
Ao lançarmos nosso olhar nessa direção, viramos a costura do lado
avesso tentando ver as emendas, os pormenores, as insinuações e os silêncios.
Assim, por determinados momentos, observamos padre Helder conferir ao
Confiança o lugar de Ordem Religiosa.
247
244
CAMARA, Helder. A escolha de Deus. Manuscrito, 1943. Arquivo do Centro de Documentação
Helder Camara (CeDoHC) Instituto Dom Helder Camara (IDHeC).
245
RIBEIRO, Renato Janine. Memórias de si, ou... In. Estudos Históricos. Rio de Janeiro: FGV V.
11, nº 21, 1998. p. 31.
246
CAMARA, Helder. Carta Pessoal. 12 de maio de 1944, Rio de Janeiro. Para Virgínia Côrtes de
Lacerda, Rio de Janeiro. 06p. Arquivo Pessoal.
247
Nascidas das necessidades do Cristianismo de propagação da religião, as Ordens Religiosas
representavam a conversão dos fiéis e sua escolha por seguirem um modo de vida mais consentâneo
com aquilo que entendiam que era o modelo de vida de Cristo e dos primeiros cristãos. O primeiro
grande codificador e fundador de uma ordem religiosa foi São Bento de Núrsia com a fundação de
uma comunidade no Monte Cassino. Desse centro, e mediante a propagação da respectiva regra,
foram-se criando centenas de mosteiros por todo o continente Europeu. A Regra de São Bento trazia
a simplicidade necessária para cobrir quase todos os aspectos da vida quotidiana de uma
comunidade religiosa, definindo os tempos de oração, os tempos de trabalho, os tempos de
descanso, bem como as regras sobre deveres mútuos, resolução de conflitos, penas, etc.
Posteriormente, outros fundadores, fosse por acrescentarem algum carisma especial, fosse por as
112
Nossa Ordem Religiosa se esboça de modo nítido. O Bom Deus está
agindo às claras na alma da Primogênita. Visível a olho nu.
Lucia! (não lhe parece que a Fundadora precisa conhecer as cartas
que dá mais esperanças?).
Maura e Lea, as que estão seguindo O Divino Mestre sem saber...
Cecília que é meu Frei Leão...
Tereza: tímida, discreta, meio arisca e toda boa...
Heloisa: da raça de Natanael (João I, 47).
Celina, a que recebeu a vocação das crianças.
Nairzinha, raio de sol nos dias mais nublados.
Frei Jacoba, predestinada pelo Bom Deus para integrante da
Proporção Ideal e co-fundadora da Ordem.
248
A ideia de Ordem Religiosa parece não ter agradado a todas as
Confiantes. Em cartas de agosto daquele ano, Helder escreve acerca da reação
contrária da amiga Celina Nina perante as “brincadeiras” de Ordem. Dias depois,
retoma o assunto ao escrever sobre o sonho com José:
249
José me apareceu em sonho e solucionou o problema de Confiança.
Eu vinha quebrando lanças para descobrir uma saída que me
tranquilizasse. Sem convicção, como poderia agir? Estava disposto a
desconfiar, caso não surgisse uma solução até amanhã. E sonhei
com José. Ele nem precisou dizer-me quem era (como são belos os
anjos de Deus e que faz nos derramar a sua visão!). Disse-me:
„então, se esqueceu de mim, em Confiança! Venho lembrar-lhe que
deixe comigo todos os casos insolúveis. Diga isso as nossas
amigas‟.
Eu estava maravilhado, sem coragem de falar pensei em Maura e
Lea: „como falar-lhes em anjos de Deus?‟. José adivinhou meu
circunstâncias históricas, sociais ou geográficas assim o exigirem, foram adaptando e alterando a
Regra de São Bento, criando novas comunidades e novas Ordens.
248
CAMARA, Helder. Carta Pessoal. 02 de agosto de 1944, Rio de Janeiro. Para Virgínia Côrtes de
Lacerda, Rio de Janeiro. 04p. Arquivo Pessoal.
249
José sempre fora um nome presente na vida de Helder Camara. Como José, nome que seria o
seu se o desejo de sua mãe tivesse sido atendido, Helder batizou seu „anjo‟ de guarda e escreveu
vários textos poéticos que chamou de Meditações. Cf. CAMARA, Helder; BROUCKER, José de. Les
conversions d’un Évêque: Entretiens avec José de Broucker. Paris: L‟Harmattan, 2002; PILETTI,
Nelson; PRAXEDES, Walter. Dom Helder Camara. Entre o poder e a profecia. São Paulo: Editora
Ática, 1997; PILETTI, Nelson; PRAXEDES, Walter. Dom Helder Camara. O profeta da paz. o
Paulo: Contexto, 2008; CAMARA, Helder. Mil razões para viver: meditações de padre José. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 1983; BARROS, Raimundo Caramuru; OLIVEIRA, Lauro de
(organizadores). Dom Helder: o artesão da paz. Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial, 2000;
CASTRO, Marcos de. Dom Helder: misticismo e santidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
2002; ROCHA, Zildo. Helder, o Dom: uma vida que marcou os rumos da Igreja no Brasil. Petrópolis:
Editora Vozes, 1999.
113
pensamento e disse: „conte minha visita: confiança não se impõe.
Conquistarei a confiança de todo o grupo‟.
250
Apenas em setembro de 1944, Helder e Virgínia inauguram o Confiança
dando seguimento ao projeto de santificação própria e alheia. Destarte, sempre que
além despertava sua atenção, convidava a integrar o grupo e a seguir sob sua
direção espiritual: “Há os dias de plantio. os dias de espera, pacientes e longos.
os dias de germinação. Ontem chegaram duas almas queridas”.
251
Por vezes,
fazia-se necessário contar com a colaboração das demais Confiantes para abrir
alguns corações mais endurecidos.
A graça do Bom Deus opera sem dúvida um trabalho encantador
na alma de Lucia. Dia a dia, ela merece mais o lindo nome que
recebeu.
A‟ Lucia, Alberti filia, Deus entregou o dom de abrir os corações mais
fechados. Tento entrar. Abro dois, quatro, seis cadeados. Um 7
o
não
se rende. Não descubro chave para ele.
Os cadeados, diante dela, se abrem sem chaves. Quando pensei ver
abertos os corações de Maura e de Lea? De Vera e de Beatriz?
E dizer-se que ela estava com o coração seco um cearense diria:
estorricado... Tinha horror a querer bem. Protegia-se ironizando...
Queria a todo custo evitar novas canseiras e novas decepções.
A graça de Deus caiu e hoje o coração de minha filha é cafezal em
flor.
252
Nesse direcionamento é interessante fazermos menção ao caso da jovem
Haidée Arraes de Alencar. Aluna das Faculdades Católicas, Haidée era vista como
mulher inteligente, politizada, uma mulher de militância esquerda. Em pouco tempo,
a jovem despertou a atenção do padre-professor, convertendo-se ao catolicismo e
passando a seguir sob sua direção espiritual. Nas epístolas escritas por Helder
Camara para Virgínia Côrtes são frequentes os instantes em que apresenta certa
atenção com aquela que chamava de Primogênita.
250
CAMARA, Helder. Carta Pessoal. 19 de agosto de 1944, Rio de Janeiro. Para Virgínia Côrtes de
Lacerda, Rio de Janeiro. 03p. Arquivo Pessoal. (Grifo do autor).
251
CAMARA, Helder. Carta Pessoal. 06 de setembro de 1944, Rio de Janeiro. Para Virgínia Côrtes de
Lacerda, Rio de Janeiro. 02p. Arquivo Pessoal.
252
CAMARA, Helder. Carta Pessoal. 21 de maio de 1944, Rio de Janeiro. Para Virgínia Côrtes de
Lacerda, Rio de Janeiro. 04p. Arquivo Pessoal.
114
Ontem, a Primogênita saiu muito abalada da Divisão de Ensino
Primário. Achei que devia dizer umas verdades a ela, falei em tom de
irmão e de pai. Ela, no fundo, estava abalada e me dando razão.
Logo a seguir, telefonou angustiada.
Como a nossa fraqueza teme as verdades difíceis!
253
Convidada a participar do Confiança, em pouco tempo, a jovem Haidée
saiu da condição de jovem libertária para a de monja enclausurada, uma escolha
que, segundo Irmã Agostinha Vieira de Melo (Marion), amiga do padre Helder
Camara nos anos 40 do século 20, tornou-a uma personagem marcante na história
do grupo:
A Haidée, antes de entrar no mosteiro, foi uma convertida. Eu não a
conheci na Universidade, eu conheci a Haidée já monja, eu querendo
entrar e ela no mosteiro de São Paulo. Quando eu entrei no
Confiança, a Haie tinha saído naquele dia para o mosteiro. Ela foi
uma pessoa muito marcante na vida dele e na vida do grupo, era uma
mulher muito inteligente, muito politizada, muito avançada, uma mulher
de esquerda, de milincia. Então naquela época ela deu uma guinada:
abdicou de tudo isso e entrou em uma vida de clausura.
254
No entanto, não parece ter sido fácil à escolha pela vida monástica. As
cartas escritas à Virgínia Côrtes e, em especial, a correspondência trocada entre
Helder e Haidée, nos permite observar a angústia da jovem perante sua opção pela
clausura e o estreitamento dos laços estabelecidos entre o padre e sua Primogênita.
Segundo Peter Gay, em Freud para Historiadores, no início da cada de 40, Marc
Bloch assinalou a obrigação do historiador em explorar o que chamou de “as
necessidades secretas do coração” dos homens.
255
Assim, operamos com uma
teoria sobre a natureza humana e passamos a pensar o surgimento de uma relação
de mútua dependência: de Haidée com relação à fala do diretor espiritual e do padre
Helder que a via como a representação do sucesso ou do fracasso do Grupo
Confiança e, principalmente, de sua capacidade enquanto arrebatador de rebanhos.
253
CAMARA, Helder. Carta Pessoal. 12 de julho de 1944, Rio de Janeiro. Para Virgínia Côrtes de
Lacerda, Rio de Janeiro. 03p. Arquivo Pessoal.
254
MELO, Irmã Agostinha Vieira de. Entrevista. Entrevistadora: Jordana Gonçalves Leão. João
Pessoa, 2004. Entrevista concedida a pesquisa “Fragmentos de um „diário‟: a correspondência
pessoal de Helder Pessoa Camara”. Arquivo Pessoal.
255
Cf. GAY, Peter. Freud para historiadores. Tradução de Osmyr Faria Gabbi Junior. Rio de
Janeiro: Paz e Terra, 1989.
115
Em julho de 1944, após receber uma carta escrita por Haidée acerca de suas
dúvidas e angústias, Helder escreve:
Haidée,
Sua carta lhe deve ter custado muitíssimo: mais uma razão para que
ela me seja caríssima.
Está provado para sempre, que você é minha irmã em timidez: o
tímido prefere escrever a falar. Que a de hoje seja a mãe de muitas
outras. [...]
Não adianta você querer aceitar tudo menos o Sacrifício Máximo, o
Único que de fato custa. Repeli-lo é continuar amargurada e
amargurando (o que é amargura ainda maior), é continuar medíocre,
irrealizada, parada ao meio, católica-pagã. [...] Aceita-lo é libertar-se,
superar-se! É poder entoar o canto do Homem Novo que venceu o
egoísmo, os ciúmes e as degradantes limitações humanas. [...]
Sabe que você é minha filha? Sabe que a sua conversão foi uma das
alegrias mais altas e mais puras que eu já senti?
Padre Helder.
256
A correspondência trocada entre Helder Camara e Haidée Arraes de
Alencar é constante e intensa.
257
Escritas do Rio de Janeiro e da Abadia de Santa
Maria na cidade de São Paulo, as cartas da jovem revelam, em tons confessionais,
sua timidez, seus planos, angústias e descobertas ao longo do novo caminho. Por
vezes, compartilha cartas a terceiros revelando em minúcias seus passos.
256
CAMARA, Helder. Carta Pessoal. 12 de julho de 1944, Rio de Janeiro. Para Haidée Arraes de
Alencar, Rio de Janeiro. 04p. Arquivo Pessoal.
257
A correspondência trocada entre Haidée Arraes de Alencar e Helder Camara encontra-se
depositada no Arquivo Pessoal.
116
Figura 13: Cartas de Haidée Arraes de Alencar.
Fonte: Arquivo Pessoal.
No mês seguinte, Haidée consumou o gesto de entrega total aceitando o
caminho da consagração. Pelo nascimento do „Homem Novo‟, o diretor espiritual lhe
atribui um nome novo: rbara. Ao que justifica: “Disseram-me que você era uma
pequenina selvagem, de gênio indomável. Bárbaro na aparência foi o que o Bom
Deus pediu a você. Bárbara, a generosa e bela Virgem Cristã é o que você é”.
258
Não apenas Haidée Arraes seguiu nessa direção. No entanto, apesar do
Grupo Confiança ser classificado por seus criadores como Ordem Religiosa e de
possuir o desenvolvimento espiritual como um de seus propósitos, a opção pela vida
monástica não representava uma condicionante as suas integrantes: “Você está
perguntando pela Ordem. Não sei o que pensa a co-fundadora: na nossa ordem
deve haver lugar para todos os que tenham sede de perfeição. E o matrimônio
(Sacramentum Magnum) não é obstáculo para isso”.
259
Não obstante os esforços do padre Helder em ter um grupo seleto de
jovens católicas que comungavam com seus ideais, por determinados momentos o
Confiança esteve longe de ser harmônico. As diferentes formas de pensar, as
intrigas e os ciúmes sempre estiveram presentes no cotidiano do grupo,
configurando ameaças eminentes de crises e rupturas: verdadeiros desafios à
concretização dos sonhos de Ordem de seu fundador. Sempre tentando manter
certo equilíbrio nas conturbadas relações humanas do Confiança, Helder escreve à
Virgínia:
A., conhecida de perto tem qualidades. (Não conheço ninguém que,
examinado à luz de Confiança, não tenha virtudes por onde mereça
amor). Que ódio tem, no entanto, de Celina! Como a considera vil e
desprezível! O Padre Albertus espera, com a graça de Deus, realizar
um dia esse milagre de compreensão. Sabe que Haidée e Edith se
detestavam mutuamente? Sabe que Nairzinha e Haidée se estavam
enchendo de mutuas restrições? Sabe que minha irmã parecia
orgulhosa a Nairzinha? Sabe que Lúcia, Alberti filia, não acreditava
258
CAMARA, Helder. Carta Pessoal. 03 de agosto de 1944, Rio de Janeiro. Para Haidée Arraes de
Alencar, Rio de Janeiro. 02p. Arquivo Pessoal.
259
CAMARA, Helder. Carta Pessoal. 07 de agosto de 1944, Rio de Janeiro. Para Virgínia Côrtes de
Lacerda, Rio de Janeiro. 03p. Arquivo Pessoal.
117
mais em nenhuma criatura humana? Que prodígios de aproximação
e entendimento Confiança realizaria na face da terra!
260
Em 2002, quando iniciávamos nossas pesquisas, anotações às margens
dos livros nos falavam sobre uma „Sociedade fundada em 1944‟ e a fotografia de um
grupo onde o padre Helder aparecia cercado de mulheres, parecia apresentar em
seu verso o desfecho daquela história: “Dissolvo?”. Foram muitas as ocasiões que o
Confiança esteve perto do fim. Nas entrevistas e nas cartas são frequentes os
comentários que mostram a preocupação com a dissolução do grupo: “Houve um
instante em que vi desfeito o sonho de Confiança e aceitei a provação de passar por
volúvel e leviano”.
261
Observando as entrevistas e as correspondências, foi-nos possível
perceber que para além do convívio conflituoso e da presença constante de
sentimento como a inveja e o ciúme, havia no ceio do grupo uma profunda
dependência com relação ao diretor espiritual. As entrevistas apontam que muitas
daquelas mulheres construíram todo um imaginário onde Helder aparece, não
apenas, como um homem da Igreja Católica e um diretor espiritual, mas como um
ser idealizado, um mito.
262
Exemplo disso está no trecho da entrevista de Lenita
Duarte:
O Dom me passou sempre a ideia da pessoa que estava em função
de fazer a vontade de Deus e ele queria transmitir aos outros
também esse desejo de estar sempre, sempre unido a Deus e fazer
a vontade de Deus. O lema dele era: “Em mãos tuas”. Então eu
também adotei esse sistema pra mim: „eu me ponho tudo nas mãos
de Deus, eu coloco tudo nas mãos Deus‟. Aprendi com ele isso.
263
260
CAMARA, Helder. Carta Pessoal. 14 de setembro de 1944, Rio de Janeiro. Para Virgínia Côrtes de
Lacerda, Rio de Janeiro. 06p. Arquivo Pessoal.
261
CAMARA, Helder. Carta Pessoal. 09 de setembro de 1944, Rio de Janeiro. Para Virgínia Côrtes de
Lacerda, Rio de Janeiro. 03p. Arquivo Pessoal.
262
Cf. MELO, Irmã Agostinha Vieira de. Entrevista. Entrevistadora: Jordana Gonçalves Leão. João
Pessoa, 2004. Entrevista concedida a pesquisa “Fragmentos de um „diário‟: a correspondência
pessoal de Helder Pessoa Camara”. Arquivo Pessoal.
263
DUARTE, Lenita. Entrevista. Entrevistadora: Jordana Gonçalves Leão. Rio de Janeiro, 2003.
Entrevista concedida a pesquisa “Fragmentos de um „diário‟: a correspondência pessoal de Helder
Pessoa Camara”. Arquivo Pessoal.
118
No sentido contrário a estes discursos, encontramos o caso da jovem
Heloisa que, quebrando a constante dos discursos, respondeu de forma diferenciada
à direção espiritual e ao ideal do Confiaa:
Ontem, fiquei esmagado com a despedida que uma Confiante me foi
levar: Heloisa.
Acha o Confiança um ideal muito belo. Acredita em sua realização.
Continuará rezando pela sua vitória. Mas, dia a dia, nota que ela e eu
somos tão diferentes, tão distantes que é impossível uma
colaboração no gênero as exigida pela nossa Instituição.
Diz ela que eu entendo as pessoas que se revoltam externamente
(pessoas cujas revoltas chegam a aparecer, a rebentar) mas não
entendo as de revolta surda e subterrânea como ela. Não percebo as
explosões silenciosas que se dão dentro dela. Penso que os
processos de bondade são aplicáveis a todos, que o método
evangélico se adapta, indistintamente, a todas as criaturas. Ela não
vai com arrodeios, com sondagens discretas, com palavras amáveis.
Conversa curta e direta. De preferência meio ríspida. Máximo de
sobriedade. E foi por ai afora numa toada serena e firme: disse-me
verdades duras: „o Senhor tem a mania de pensar que entende todo
mundo. Mas não basta dizer: „nós nos entendemos‟ para que o
entendimento se dê. A mim, o Senhor jamais entendeu‟. „E um
certo fundo de orgulho em julgar-se hábil mergulhador nos corações
humanos‟.
A vigília eucarística me salvou. Aceitei plenamente a humilhação.
Sorvi-a toda, sem perder uma gota. Não tentei um gesto de defesa
ou de revolta. E senti uma alegria inenarrável vendo o meu cartaz
rasgado e o meu tamanho reduzido as suas reais proporções.
264
Apenas um mês após a inauguração do Confiança, as constantes crises
evidenciavam que os sonhos de Helder pareciam ter chegado ao fim. O Grupo
Confiança parecia não passar de uma quimera de um homem que, segundo Irmã
Agostinha, possuía “uma cabeça brilhante, mas muito sonhadora”.
265
Destarte, no
encontro do dia 23 de outubro de 1944, Helder uma longa carta circular
comunicando a dissolução do Grupo. Atento as formas e seguindo seu padrão de
escrita, Helder inicia a carta esclarecendo as razões que o levaram a escrever ao
invés de simplesmente falar-lhes:
264
CAMARA, Helder. Carta Pessoal. 28 de setembro de 1944, Rio de Janeiro. Para Virgínia Côrtes de
Lacerda, Rio de Janeiro. 03p. Arquivo Pessoal.
265
MELO, Irmã Agostinha Vieira de. Entrevista. Entrevistadora: Jordana Gonçalves Leão. João
Pessoa, 2004. Entrevista concedida a pesquisa “Fragmentos de um „diário‟: a correspondência
pessoal de Helder Pessoa Camara”. Arquivo Pessoal.
119
Minhas Filhas
1) Por que escrevo ao invés de falar?
Quando o assunto é grave e exige que não haja palavras a mais,
nem a menos, prefiro escrever. Tenho um assunto grave a tratar com
vocês. De todas espero a caridade de escutar-me até o fim, se
possível sem interrupções. O ideal seria até, além do silêncio
externo, silêncio interior.
266
Obedecendo a uma divisão didática dos assuntos, segue pontuando, item
a item, os acontecimentos que o conduziram a dissolução do Confiança:
2) Cometi com vocês uma falta imperdoável: desassosseguei-as,
agitei um belo ideal diante de vocês, levei-as a sonhar, sonhamos
juntos e de repente eu surjo para dizer: Confiança não passou e não
passará de uma fantasia.
3) Meus pecados impediram que ela se realizasse.
a) Eu julguei... Querendo tanto que os outros não julgassem,
lembrando a cada passo que não será julgado quem não julgar,
comecei julgando... Julguei os orfanatos e asilos existentes,
condenando-os sem dó. Por muito favor, salvei a boa dos que
neles atuam. Foi esse o alicerce de vaidade sobre o qual pretendi
erguer uma Obra de Deus. Julguei-me capaz de ver o que até hoje
ninguém vira, e de realizar o que o mundo esperou minha vinda para
poder ver...
b) Esperei secretamente que, em torno de mim, se dissipassem
as pequeninas dúvidas e restrições e caíssem os desentendimentos
e as desconfianças. Se o meu coração, conforme o meu sentir
orgulhoso, transbordava de caridade, se eu não fazia a mais leve
restrição a caridade alguma, se a todos eu julgava entender, nem
precisava de palavras para conseguir, em Confiança, a fusão das
almas. O meu simples exemplo levaria à formação de um corpo e
de uma só alma.
4) O depoimento de Heloisa foi um aviso providencial. Minha
vaidade de a todos entender foi ferida de cheio. O Bom Deus
começava a acordar-me da minha ilusão, de minha embriaguês.
5) Dificuldades externas e dificuldades internas. Foram-se
avolumando os obstáculos. Não havia meio de a casa aparecer.
Enquanto isso eu tinha provas indiscutíveis de que Confiança não
passava de um lindo nome, ou quando muito de um belo sonho. Por
dentro, a Confiança não existia e não se realizará o cor unum et
anima una...
6) No dia de São Francisco, tentei um sinal de Deus... [...]
7) Evitei agir precipitadamente. Afinal eu não era o único
envolvido na tentativa. Havia outros destinos ao lado do meu. Ouvi o
meu Diretor. Rezei. Sofri. Hoje não tenho a mais leve dúvida: eu me
enganei. Não fui talhado para fazer Confiança viver [...].
267
266
CAMARA, Helder. Carta Circular. 23 de outubro de 1944, Rio de Janeiro. Para Grupo Confiança,
Rio de Janeiro. 04p. Arquivo Pessoal. (Grifos do autor).
267
Idem.
120
Helder finaliza a longa carta responsabilizando-se pelo abalo e as
decepções causados nos corações confiantes: “Façam comigo o que quiseram.
Chamem-me de leviano, de insensato ou de volúvel”.
268
Afirma a morte prematura do
Grupo e reafirma o senti-se humilhado por não conseguir realizá-lo: “Confiança
morre em embrião, sobretudo porque a minha vocação não é agir no setor do visível,
do concreto. [...] Senhor, tu és bom porque me humilhaste!”.
269
Por algum tempo, o Confiança foi desfeito. No entanto, passado os
primeiros instantes, um gesto das Confiantes parece ter dissipado as tormentas que
indicavam o fim do Grupo. Com uma nova roupagem, a ideia do grupo foi retomada:
Confiança existe, existirá, com a graça de Deus. Mas ao invés de
criar instituições próprias, levará sua contribuição anônima aos
serviços mais diversos. O sol não surge em toda parte? Não manda
seus raios quentes e puros dissipando o escuro e o frio? Confiança
aparecerá onde quer que sua presença seja útil. Mas surgirá sem
que ninguém por ela. Vou preparar um Regulamento que
esclareça bem esse pensamento. E nunca mais esquecerei suas
palavras e seu olhar, tão amigos, tão fraternais! Bendito sofrimento
que amadureceu as Confiantes. Não tenho a ingenuidade de supor
que não rebentem mais complicações. Mas, Gratia Dei per lacrimas,
estamos mais preparados para os embates do futuro.
270
Aos poucos, novas pessoas foram sendo convidadas a participar das
reuniões e a finalidade do grupo foi sendo alargada até atingir o campo da ação
social. O novo grupo, que viria a ser chamado de Família do São Joaquim, e
posteriormente de Família Mecejanense, seria composto de jovens advindas de
diversas situações: voluntárias e funcionárias da Cúria, dirigentes da Ação Católica
Brasileira e da Juventude Operária Católica... Aglaia Peixoto, Alfredina Paiva e
Souza, Lenita Duarte, Cecília Monteiro, Cecília Arraes, Marina Araújo, Marina
Bandeira, Carlina Gomes, Maria Luiza e Edgar Amarante, Nair Cruz, Hilda e Odete
Azevedo e Virgínia Côrtes compõem um quadro bastante variado de profissionais e
intelectuais, que estabelecem com Helder uma profunda relação de troca.
271
268
Idem.
269
Idem.
270
CAMARA, Helder. Carta Pessoal. 24 de outubro de 1944, Rio de Janeiro. Para Virgínia Côrtes de
Lacerda, Rio de Janeiro. 02p. Arquivo Pessoal.
271
Ver fotografia da Família Mecejanense no Apêndice C.
121
CONSIDERAÇÕES FINAIS
122
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Lembra do céu a constância.
O teu nome de oração.
Vence a saudade, à distância.
No confiante coração.
Virgínia Côrtes de Lacerda
Rio de Janeiro, 10 de outubro de 1944
Em 2002 quando fomos convidados pelo Instituto Dom Helder Camara
(IDeHC) a integrar a equipe do Projeto Obras Completas, nem imaginávamos os
caminhos que um dia iríamos trilhar. O contato com a biblioteca pessoal carioca de
Dom Helder Camara, em especial com a obra Péguy et les Cahiers de la Quinzaine
de Daniel Halèvy atraíram nossa curiosidade conduzindo-nos a redescoberta das
anotações as margens de mais de 120 obras que guardam, de forma
impressionante, os estudos e diálogos do padre cearense Helder Camara e a
professora mineira Virgínia Côrtes de Lacerda. Memórias que foram escritas sem
que houvesse a intenção de torná-las públicas.
A transcrição das anotações apontava indícios de outras trilhas que
seriam seguidas. A localização de uma coleção de 1.734 cartas, escritas pelo padre
Helder Camara de 02 de janeiro de 1944 a 31 de dezembro de 1952 um material
absolutamente inédito e surpreendente dada à riqueza, pela quantidade, variedade e
caráter privado nos permitiu verificar de que forma Helder fazia uso desse espaço
como lugar de produção de um sujeito histórico, uma oportunidade de (re)escrever a
si mesmo e aos outros.
Com uma minúcia impressionante, o jovem padre e a professora
escreveram milhares de páginas manuscritas. Nas cartas e nas anotações as
margens dos livros, Helder e Virgínia trataram de assuntos pessoais, religiosos,
sociais e políticos. Trataram do cotidiano da cidade e das pessoas, de suas
vocações: do magistério e do funcionalismo. Estudaram, discutiram, brigaram,
sentiram, perdoaram e amaram.
Não foi fácil trabalhar com a documentação a qual nos propomos. As
anotações as margens dos livros são dispersas, fragmentadas, de difícil leitura e as
123
cartas pessoais, por sua vez, são textos íntimos apreendidos em função de um outro
que nos faltava. Além do mais, todas as vezes que abríamos um livro, uma gaveta,
líamos a dedicatória escrita no verso de uma fotografia ou uma carta, nos sentíamos
como assaltantes que vasculham os recantos secretos da mente de um homem. No
entanto, a cada olhar percebíamos que a correspondência de Helder Camara para
Virgínia Côrtes muito nos dizia sobre seu autor, e isso nos impulsionava a continuar.
Nos primeiros contatos com os escritos de Helder e Virgínia, sejam eles
as anotações às margens dos livros ou sua correspondência pessoal, em especial
esta última, uma das coisas que mais despertou a atenção, além do volume de
manuscritos, foram às inúmeras formas e expressões de carinho dirigidas por Helder
à amiga. Por várias vezes, em sua correspondência, Helder permite que venham à
tona suas emoções, revelando que a amizade que os unia se destinava para além
de uma troca amável de palavras irmãs. Estava diante da história de um sentimento,
de uma história do coração, e isso era o que mais nos encantava. Em carta de 27/28
de agosto de 1947, Helder escreve:
Perdoe, Caecília, tudo o que lhe fiz sofrer. Sua amizade foi decisiva
na minha vida. Se, na terra, não lhe soube ou não lhe pude
agradecer, do céu saberei ser seu irmão. Mas do que nunca estarei a
seu lado.
Padre Albertus.
As cartas nos dão um quadro rico de suas ideias, pensamentos e
sentimentos, desejos e aspirações. Nelas o autor se constrói, se mostra e se expõe
como um missivista cuidadoso que escreve a partir de padrões próprios tanto na
sequência de temas abordados, quanto no papel utilizado e na quantidade de
páginas de cada carta. Atento às formas e com uma divisão didática dos assuntos,
Helder discorre sobre as lições do breviário, o cotidiano, as angústias e expectativas,
transformando „pequenos acontecimentos‟ em matéria de „grande filosofia‟.
Em suas cartas, o jovem padre discorre acerca de pessoas e lugares
sociais que foram muito importantes em sua vida: a pensão de dona Cecy Cruz, o
Ministério da Educação, o Palácio de São Joaquim, a Casa de Ruy Barbosa, a casa
de Virgínia na Rua São Clemente, as aulas nas Faculdades Católicas e no Instituto
124
Santa Úrsula, o Grupo Confiança e as noites de encontros para estudos e sarais,
todos lugares de construção de ideias e pensamentos.
Foi, portanto, nessa perspectiva de fundo que as cartas de Helder Pessoa
Camara para Virgínia Côrtes de Lacerda foram localizadas, reunidas e analisadas,
permitindo-nos estabelecer novos olhares sobre a vida e o trabalho do padre
cearense. Historicizar essa documentação possibilitou-nos chegar ao homem Helder
Camara, não apenas ao sacerdote, ao homem de fé, ao político, ao organizador, à
personagem pública, mas a um Helder Camara mais completo, mais humano, mais
profundo.
Escrever cartas exige tempo, disciplina, reflexão e, o mais importante,
sempre uma razão para fazê-lo: informar, pedir, agradecer, desabafar, rememorar,
consolar, estimular, etc. Helder e Virgínia exerceram todos esses atos plenos de
confiança e sinceridade. De vez em quando as fontes, tão diretas, o trazem muito
perto de nós. Suas leituras e discussões, pensamentos e sentimentos, revelam-no
um homem como nós. E se escrever cartas é „dar-se a ver‟”
272
o que encontramos
aqui é um Helder Pessoa Camara em um ato de confiança, proporcionando-nos a
leitura do invisível da vida e do mundo que apenas o coração é capaz de perceber.
A morte prematura de Virgínia Côrtes, em 1959, privou Dom Helder da
sua amizade, inteligência e profundidade espiritual. No entanto, os dezoito anos de
amizade e convívio, o círculo de amizades e as práticas decorrentes dessa afinidade
haviam sido suficientes, e muitas das facetas da personalidade com que Dom Helder
Camara ficaria conhecido estavam devidamente buriladas e amadurecidas. Nossas
interpretações sobre os registros às margens dos livros, o seu conjunto de cartas e
tantos outros manuscritos são uma tentativa de aproximação desse caminho,
através de uma leitura mais atenta.
272
GOMES, Ângela de Castro (org). op. cit. p. 19.
125
FONTES E BIBLIOGRAFIA
1. FONTES
1.1 MANUSCRITOS
Arquivo Pessoal.
Correspondências Pessoais:
Helder Pessoa Camara para Virgínia Côrtes de Lacerda (1944 - 1952).
Helder Pessoa Camara para Haidée Arraes de Alencar (1944 1945).
Haidée Arraes de Alencar para Helder Pessoa Camara (1945).
Manuscrito “Testamento espiritual” (1950).
Centro de Documentação Helder Camara - CeDoHC
Anotações às margens dos livros da Biblioteca Pessoal Carioca de Helder Camara.
Cartas Circulares (1962-1982).
Manuscrito “A escolha de Deus” (1943).
1.2 FONTES ORAIS (Entrevistas)
Aglaia Peixoto Família do São Joaquim e Família Mecejanense.
Cecília Arraes Grupo Confiança, Família do São Joaquim e Família Mecejanense.
Irmã Agostinha Vieira de Melo Grupo Confiança.
Lenita Duarte Família do São Joaquim e Família Mecejanense.
Marina Araújo Família do São Joaquim e Família Mecejanense.
Marina Bandeira Família do São Joaquim e Família Mecejanense.
Maria Luiza Amarante Família do São Joaquim e Família Mecejanense.
2. BIBLIOGRAFIA (Livros, artigos, dissertações e teses)
ALBUQUERQUE Jr, D. M. História: a arte de inventar o passado. Ensaios de teoria
da história. Bauru, SP: EDUSC, 2007.
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AUSTER, Paul. A invenção da solidão. São Paulo: Cia das Letras, 1999.
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BANDEIRA, Marina. A igreja católica na virada da questão social (1930-1964).
Anotações para uma História da Igreja no Brasil (Ensaios e Interpretações). Rio de
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o artesão da paz. Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial, 2000.
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133
APÊNDICES
134
APÊNDICE A Carta do padre Helder Camara para Virgínia Côrtes de Lacerda.
Rio de Janeiro, 02 de março de 1944.
135
136
Fonte: Arquivo Pessoal.
137
APÊNDICE B Envelopes utilizados por Helder Camara em 1950 para
encaminhar de Roma, Itália, carta a Virgínia Côrtes de Lacerda no Rio de
Janeiro, Brasil.
Fonte: Arquivo Pessoal.
138
APÊNDICE C Fotografia da Família Mecejanense
Família Mecejanense. Da esquerda para a direita: Lenita Duarte, Aglaia Peixoto, Maria Luiza
Amarante, Edigar Amarante, Marina Araújo, Marina Bandeira e Lenita Peixoto. Igreja das Fronteiras,
Recife Brasil. 2004.
Fonte: Arquivo Pessoal.
139
ANEXOS
140
ANEXO A Livro de Daniel Halèvy, Péguy et les Cahiers de la Quinzaine,
utilizado pelo padre Helder Camara em 1944.
Fonte: Arquivo do Centro de Documentação Helder Camara (CeDoHC).
141
ANEXO B Anotações as margens da obra de Daniel Halèvy.
Fonte: Arquivo do Centro de Documentação Helder Camara (CeDoHC).
142
ANEXO C Fotografia de Virgínia Côrtes de Lacerda.
Fonte: Arquivo do Centro de Estudos Virgínia Côrtes de Lacerda.
143
ANEXO D Caderno de anotações utilizado por Virgínia para registrar as
meditações
Fonte: Arquivo do Centro de Estudos Virgínia Côrtes de Lacerda
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