Download PDF
ads:
Universidade do Estado do Rio de Janeiro
Centro de Educação e Humanidades
Instituto de Letras
Ulysses Maciel de Oliveira Neto
O cinema trágico-poético de Pier Paolo Pasolini: Appunti per
un’Orestiade africana; Édipo Rei; Medeia
Rio de Janeiro
2009
ads:
Livros Grátis
http://www.livrosgratis.com.br
Milhares de livros grátis para download.
Ulysses Maciel de Oliveira Neto
O cinema trágico-poético de Pier Paolo Pasolini: Appunti per
un’Orestiade africana; Édipo Rei; Medeia
Tese apresentada, como requisito parci-
al para obter o título de Doutor, ao Pro-
grama de Pós-Graduação em Letras, da
Universidade do Estado do Rio de Janei-
ro. Área de Concentração: Literatura
Comparada.
Orientadora: Prof
a
. Dr
a
. Carlinda Fragale Pate Nuñez
Rio de Janeiro
2009
ads:
CATALOGAÇÃO NA FONTE
UERJ/REDE SIRIUS/CEHB
Autorizo, apenas para fins acadêmicos e científicos, a reprodução total ou parcial
desta dissertação
__________________________ __________________
Assinatura Data
P283 Oliveira Neto, Ulysses Maciel de.
O cinema trágico-poético de Pier Paolo Pasolini: Appunti per
un’Orestiade africana, Édipo Rei, Medeia / Ulysses Maciel de Olivei-
ra Neto. – 2009.
152 f.
Orientadora: Carlinda Fragale Pate Nuñez.
Tese (doutorado) – Universidade do Estado do Rio de Janeiro,
Instituto de Letras.
1. Pasolini, Pier Paolo, 1922-1975 – Crítica e interpretação. 2.
Adaptações para o cinema – Teses. 3. Teatro grego (Tragédia) – Te-
ses. 4. Diretores e produtores de cinema – Teses. I. Pate Nuñez, Car-
linda Fragale. II. Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Instituto
de Letras. III. Título.
CDU 82-21:791.43
Ulysses Maciel de Oliveira Neto
O cinema trágico-poético de Pier Paolo Pasolini: Appunti per
un’Orestiade africana; Édipo Rei; Medeia
Tese apresentada, como requisito parcial
para obter o título de Doutor, ao Programa
de Pós-Graduação em Letras, da Universi-
dade do Estado do Rio de Janeiro. Área de
Concentração: Literatura Comparada.
Aprovado em 30/3/2009
Banca Examinadora:
______________________________________________
Prof
a
. Dr
a
. Carlinda Fragale Pate Nuñez (Orientadora)
Instituto de Letras da UERJ
______________________________________________
Prof. Dr. Guillermo Francisco Giucci Schmidt
Instituto de Letras da UERJ
______________________________________________
Prof. Dr. Luiz Carlos do Rego Lima
Instituto de Letras da UERJ
______________________________________________
Prof. Dr. Andrea G Lombardi
Faculdade de Letras da UFRJ
______________________________________________
Profa. Dra. Silvia Costa Damasceno (UFF)
Instituto de Letras da UFF
Rio de Janeiro
2009
DEDICATÓRIA
Aos meus filhos, Daniel e Pedro, pelo bom humor amigo,
pelo carinho e pelos bons conselhos.
À minha tia Albertina, que me fez gostar dos livros e me
presenteou com a obra de Proust. (In memoriam).
AGRADECIMENTOS
À Carlinda, minha professora e orientadora, por ter me acompanhado nesse
percurso desde o mestrado, sempre generosa com seus preciosos conhecimentos.
Aos professores Latuf Isaías Mucci e Luiz Carlos Lima, pelas valiosas contri-
buições feitas no exame de qualificação.
Aos professores do Doutorado, que muito contribuíram para a realização des-
te trabalho, com seus comentários e críticas.
Às funcionárias e estagiárias, aos funcionários e estagiários da Secretaria da
Pós-Graduação, apoio indispensável nos labirintos dos formulários e regras.
À Juliana Duarte pela leitura carinhosa e atenta do texto.
À Cláudia Sampaio, amiga e interlocutora equilibrada e sensata que fez a re-
visão final do texto.
À Mônica Schinkoeth, pelas lições de italiano.
Às bibliotecárias do CCBB, pelas orientações precisas, pela compreensão e
pela paciência.
Você compreendeu? Sim, é uma história complicada, porque é
feita de coisas e não de pensamentos.
(O Centauro pasoliniano, em Medeia)
RESUMO
OLIVEIRA NETO, Ulysses Maciel de. O cinema trágico-poético de Pier Paolo
Pasolini: Appunti per un’Orestiade africana, Édipo Rei, Medeia. 2009, 152 f. Tese
(Doutorado em Literatura Comparada) – Instituto de Letras, Universidade do Estado
do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2009.
Esta tese tem por objeto textos que se voltam para o homem: o cinema trági-
co-poético de Pier Paolo Pasolini e as tragédias gregas clássicas. Este autor de ci-
nema se debruçou sobre os textos trágicos, pois via neles um fundamento político,
ou seja, a superação pela razão de um passado arcaico do homem, que gerava sua
incerteza existencial. Primeiramente, tendo traduzido a Oréstia, de Ésquilo, o diretor
italiano identificou nesse texto aquilo que ele, como humanista que era, desejava
fosse alcançado pelo homem moderno: a superação do medo causado pelo irracio-
nal que sempre habitou a mente humana. Esta interpretação da Oréstia, aliada às
convicções previamente firmadas pelo diretor e poeta – a capacidade dos ingênuos
de formar uma nova ideologia e a persistência no homem moderno de certa irracio-
nalidade domada pela razão – levou à realização do filme Appunti per un’Orestiade
africana (1967), um filme otimista quanto ao triunfo da razão. Tendo feito esses a-
pontamentos, Pasolini jamais rodaria seu filme sobre a Oréstia, passando a uma
perspectiva pessimista, com a filmagem de Medeia (1969), cuja frase final da perso-
nagem-título – “Nada mais é possível doravante” – aponta para Salò, o último filme
que ele realizou, marcado pela desesperança, pouco antes de morrer assassinado.
Édipo Rei (1967) foi o primeiro dos filmes trágicos e o mais mítico deles. Neste últi-
mo ainda persistem as convicções de Pasolini apontadas acima, o que o identifica
com Accattone (1961), conforme declarou o próprio diretor, e indica também a linha
da análise crítica realizada nesta tese. Com base na crítica especializada (Canevacci
e Fusillo) foi possível demonstrar a peculiar adaptação do trágico ancestral ao “ci-
nema de poesia” pasoliniano, através de uma filmografia ideologicamente infensa a
concessões à indústria cultural.
Palavras-chave: Cinema. Tragédia grega. Pier Paolo Pasolini. Mito. Poesia.
ABSTRACT
The objects of the present work are texts about Man: the tragic-poetic cinema
of Pier Paolo Pasolini and the classical Greek tragedies. That cinema author dedi-
cated much attention to tragic texts, in which he saw a political foundation: the over-
coming, by reason, of man’s archaic past, which caused his existential uncertainty.
After having translated Aeschylus’s Oresteia, the Italian director identified in this text
what he, as a humanist, hoped that modern man would achieve: the overcoming of
the fear caused by the irrational that has always dwelt in the human mind. This inter-
pretation of the Oresteia, coupled with other convictions held by the poet/director –
that the naïve could form a new ideology, and the persistency, in modern man, of
rationally-tamed irrationality – led him to film Appunti per un’Orestiade africana
(1967), an optimistic film as concerns the triumph of reason. After having taken down
the notes, Pasolini would never come to make the Oresteia film, but moved on to-
wards a pessimistic perspective my filming Medea (1969), the last sentence of which,
said by the protagonist – “Nothing is possible any longer” – points towards Salò, his
last film, as he was murdered shortly afterwards. Oedipus Rex (1967) was the first of
his tragic films, and the most mythical of all. In it, some of Pasolini’s early convictions
mentioned above can be seen to persist, so that, in a sense, Oedipus Rex is evoca-
tive of Accattone (1961), as, in fact, has been confirmed by the director himself. The
critical approach taken in the present work has been inspired on this. By resorting to
specialized criticism (Canevacci, Fusillo) it was possible to demonstrate the peculiar
adaptation of the ancestral tragic that takes place in Pasolini’s “poetry cinema” by
means of a filmography that remained ideologically contrary to concessions to the
culture industry.
Key words: Cinema. Greek tragedy. Pier Paolo Pasolini. Myth. Poetry.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ............................................................................................ 9
1. TRAGÉDIA E CINEMA...........................................................................35
1.1 Cinema trágico – Os filmes trágicos...........................................46
1.2 Signos trágicos: da tragédia clássica à atualidade...................57
1.3 O corpus e a crítica pasolinianos................................................69
2. ANÁLISE CRÍTICA DE TRÊS FILMES TRÁGICO-MÍTICOS ................83
2.1 Édipo Rei.......................................................................................83
2.2 Appunti per un’Orestiade africana..............................................97
2.3 Medeia .........................................................................................109
CONCLUSÃO...........................................................................................133
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ........................................................147
9
INTRODUÇÃO
A encenação das tragédias gregas na atualidade tem como objetivo a atuali-
zação dos seus sentidos, pois a forma de apropriação dos textos teatrais pelo públi-
co do século XXI é totalmente diversa da que foi a do público na Grécia Clássica, ou
em outras épocas em que o conceito de trágico passou por reestruturações, como
no Renascimento.
O estudo da manifestação do trágico no cinema de Pier Paolo Pasolini (1922-
1975) propicia, modernamente, a confrontação da presença atualizada do trágico na
produção cinematográfica atual com as questões estéticas e políticas do nosso tem-
po, uma vez que as obras que constituem o acervo pasoliniano resgatam e colocam
diante das nossas retinas viciadas algo que nos vem de épocas ancestrais.
Por outro lado, a abordagem feita por Pasolini se apropria dos textos trágicos
segundo um ponto de vista que recusa a valorização das obras clássicas enquanto
clássicas
1
, ou seja, de qualquer visão que considere as tragédias originais imutáveis
ou envoltas numa aura.
A fim de verificar como o cinema trágico de Pasolini se organiza nessa tensão
com a estética e a política, esta tese buscará seus objetos em duas vertentes: uma
ficcional e outra conceitual.
Pelo lado das obras ficcionais, serão abordados os filmes Medeia (1970) e É-
dipo Rei (1967). Também será objeto deste estudo o roteiro, nunca filmado, O pai
selvagem, de 1963. A análise dos filmes será confrontada com a leitura dos respec-
tivos roteiros, em edições devidamente corroboradas pelo autor: o texto dramático
que contém os diálogos definitivos do filme Medeia (PASOLINI, 2002) e o roteiro de
Édipo Rei (PASOLINI, 1971).
Pelo lado dos textos conceituais, será objeto da pesquisa o filme Appunti per
un’Orestiade africana, também de Pasolini, rodado na África entre 1968-1969, que é
uma exposição das ideias pasolinianas quanto à filmagem da Oréstia, de Ésquilo.
Nas cenas desses Appunti..., também se apresenta, genericamente, a estética do
autor italiano em relação à filmagem de uma tragédia grega, segundo sua ideia de
1
A respeito dessa recusa do classicismo, ver citação na página 36 e a NR 20. Também é esclarecedora, a esse
respeito, a citação de Massimo Fusillo feita na página 105 da tese e o parágrafo em que ela está inserida.
10
persistência do trágico na modernidade, e a arqueologia dos signos trágicos. Além
deste filme conceitual, serão abordados o texto histórico/dramatúrgico Visões de
Medeia, que tematiza a ideia trágica que Pasolini segue no seu filme Medeia. Os três
seguintes textos teóricos de Pasolini permearão toda a tese, por serem básicos para
a compreensão da estética do diretor italiano: Lettera del traduttore (1960); Observa-
ções sobre o plano-sequência (1985); Cine de poesia contra cine de prosa (1970).
A comparação dessas obras com o cinema trágico-mítico pasoliniano condu-
zirá o raciocínio contido nesta pesquisa a duas conclusões. Primeiramente, quanto à
forma peculiar de Pasolini abordar os enredos trágicos no cinema, que será chama-
da de mímesis crítica
2
, diferente da mera adaptação do texto clássico para o cinema,
característica do cinema comprometido com a indústria cultural. Em segundo lugar,
que o cinema contemporâneo, a partir do neo-realismo, incorporou o paradigma es-
tético da sua época, o romantismo, forma de expressão adotada, cômoda e facil-
mente, pela indústria cultural. A divergência entre o cinema crítico e a solução
romântica determina, por conseguinte, a característica trágica do cinema de Pasolini
e o seu afastamento em relação ao cinema romântico.
Quanto à abordagem dos textos trágicos feita pelo cinema romântico, pode-se
dizer que ela atribui à tragédia um cunho historicista e classicista. Também procura
imprimir ao conteúdo das obras uma característica de exatidão descritiva que consti-
tui, entretanto, uma dupla deformação, pois transporta mecanicamente para a Anti-
guidade características da modernidade, tais como relações sociais e de poder
baseadas na produção e no capital. Esta abordagem, além disso, mascara o caráter
conflituoso da sociedade grega – situada entre a tradição arcaica, mítica e religiosa,
e a sociedade racional, regrada e legislada – e transporta para esta sociedade di-
nâmicas socioeconômicas e políticas nela inexistentes. O caráter conflituoso é es-
sencial para a abordagem do fenômeno trágico. Esta estética conformativa
2
Esta expressão se relaciona com o conceito pasoliniano de mímesis, expresso, principalmente, nos textos A
má mímesis (P
ASOLINI, 1982) e Intervenção sobre o discurso indireto livre (PASOLINI, 1982). Segundo essa con-
ceituação do diretor italiano, o discurso indireto livre ocorre, no cinema, quando o autor desaparece e deixa fa-
lar o personagem. Esta seria a principal marca do cinema de poesia. O discurso indireto livre seria uma
representação do personagem segundo o que ele é, em termos sociais e humanos: “trata-se sempre de uma
mímesis”. Esta forma peculiar de mímesis está presente, por exemplo, nas cenas em plano-sequência do país
de Medeia: Pasolini, nessas cenas, está falando dela e com ela. E é crítica porque visa sair da superfície das
imagens e representar a sociedade arcaica como se Medeia estivesse narrando, resgatando, dessa forma, o
caráter mítico-realista daquele país. Da mesma forma, o Centauro é visto pela câmera como se fosse pelos o-
lhos de uma criança, que o vê na sua forma mítica, inicalmente, e depois na forma humana, pois Jasão adulto
já está dominado pela razão.
11
romântica, quando incide sobre as tragédias gregas, produz obras que descontextu-
alizam os enredos das tragédias – míticos e trágicos – retirando deles a possibilida-
de de influir positivamente no pensamento da nossa época.
Quanto à mímesis crítica, esta é a forma como Pasolini substitui – e podere-
mos então chamá-la mímesis de substituição – nas suas obras o mundo arcaico re-
presentado nas tragédias clássicas pelo conflito que persiste entre as formas
arcaicas e o mundo moderno, segundo o diretor italiano, devido à forma abrupta e
antinatural como a industrialização selvagem se impõe. Este conflito se manifesta
como mitos ou mitologias, ainda que os mitos arcaicos estejam presentes como fal-
ta, na forma de fenômenos recalcados, latentes. Esta estética representa no cinema
a sociedade moderna, referindo-se ao conflito apresentado na tragédia e que per-
manece na forma do recalcamento do mito e no comportamento humano de hoje e
da Antiguidade.
Considera-se, como ponto de partida desta tese, que a realização plena do
texto trágico no palco grego é, para nós, homens modernos, algo apreensível ape-
nas através de descrições literárias, ou seja, voltamos ao texto. Escapa-nos o conte-
údo imagético e musical, portanto, do texto trágico clássico, o que retira da tragédia
seu conteúdo teatral e mantém vivo apenas seu conteúdo literário. Por outro lado, a
realização plena da obra literária que é o texto trágico clássico, quando ocorre na
tela do cinema, tendo passado pela recriação, como roteiro cinematográfico – uma
outra forma de obra literária dramática –, do texto esquiliano, ou sofocliano, ou euri-
pidiano, coloca o espectador moderno diante de um trágico conflito: a impossibilida-
de de alcançar o efeito catártico – a compaixão e o terror – tal qual este se realizava
nas plateias gregas.
A questão da catarse é polêmica, ainda quando se trata de interpretá-la a par-
tir da Poética de Aristóteles. Albin LESKY (1990, p. 23), na sua obra A tragédia grega,
afirma que “a pesquisa reconheceu que o discutido conceito de catarse deve sua
origem ao domínio da medicina e, aproveitando outras passagens de Aristóteles,
estabeleceu que o sentido do termo é de um alívio, combinado ao prazer, dos men-
cionados afetos”. Ou seja, esta interpretação deixa em aberto o que se poderia iden-
tificar como efeito trágico sobre o público das obras da modernidade.
Esta distância entre o texto trágico clássico e o mundo moderno, predominan-
temente racionalista e capitalista, abre uma lacuna que abrange significados e as-
pectos formais, como a imagem e a música. Quando esta lacuna é preenchida pelas
12
apropriações modernas da tragédia marcadas pelas formas estéticas características
da indústria cultural e pela tradição aristotélica, perdem-se os significados míticos e
trágicos da forma tragédia. O cinema trágico de Pasolini, entretanto, retoma esses
temas míticos, a fim de expressar esteticamente a ambiguidade das incertezas exis-
tenciais do homem moderno, tributário da razão.
Por outro lado, as interpretações do trágico e dos seus textos clássicos, des-
de Aristóteles até as mais modernas, deixam de levar em conta os inúmeros signifi-
cados que, para os autores clássicos, deveriam estar contidos nos cenários, nos
nomes, nas cores ou nas danças que estes escolhiam para figurar nas suas repre-
sentações teatrais. É como faz Pasolini, que representa Corinto num monumento da
cristandade e do humanismo, a Piazza dei Miracoli.
Esta tese será uma síntese que definirá a mímesis pasoliniana, a forma de
representação alcançada por Pasolini. Esta mímesis se materializou nos filmes de
Pasolini e modificou os objetos África, Oréstia, Medeia e Édipo Rei. Orientou-se
também para representar neles ligações míticas. Ela se encontra conceituada expli-
citamente nos filmes documentos Appunti per un’Orestiade africana e Comizi
d’amore, no texto de Pasolini Visões de Medeia no qual este comenta o roteiro do
seu filme, assim como em inúmeras outras fontes, televisivas, literárias e ensaísti-
cas. Será feito um resgate da poética pasoliniana, ou seja, uma descrição de partes
etc., a fim de mostrar como a mímesis pasoliniana, a sua poiésis, realiza eficazmen-
te uma operação estética que atualiza o fenômeno trágico antigo e mostra um fenô-
meno trágico moderno, este sim, possível de ser representado esteticamente e
compreendido pelo homem moderno.
Pasolini é como o Centauro de Medeia, que, na sua forma híbrida, nos mos-
tra, através do lado humano, o que é compreensível. O outro lado, o mítico, não se
expressa por palavras, mesmo porque, se falasse, não o compreenderíamos: o mito
é apreensível na narrativa que se faz dele, mas não compreensível. No cinema de
Pasolini, o mito será expresso como imagem e lido pelo espectador. O fenômeno
moderno, que Pasolini representa como trágico, após expô-lo antropologicamente
nos Appunti per un’Orestiade africana, também tem origem em mitos ancestrais,
como o Édipo desvendado pela psicanálise. Ou como Cristo crucificado, mito judai-
co-cristão apresentado por Pasolini em Medeia, pela imagem do sacrifício do jovem
crucificado, que remete aos mitos da ressurreição: um jovem mítico, sacrificado ao
Sol num ritual primitivo no qual se pratica a comunhão do sangue e do corpo. Dessa
13
forma, Pasolini promove a identificação mítica de duas ressurreições, representadas
diferentemente, um rito primitivo, no domínio da natureza selvagem do homem, e um
rito judaico-cristão, no limiar da razão.
É necessário, delimitar os contornos desse fenômeno que Pasolini visa mime-
tizar nos seus filmes. Há dois elementos principais que são analisados pelo diretor
italiano: a violência sacrificial e os lugares onde ela se configura. A África é um des-
ses lugares, presente no filme Appunti per un’Orestiade africana e no roteiro O pai
selvagem.
Caracterizar estas complexas relações que se estabelecem entre as ideias
sobre o trágico na Antiguidade, materializadas na tragédia ática, e as obras da mo-
dernidade, especificamente o cinema trágico de Pasolini, exige que se recorra às
mais sutis expressões acerca do teatro grego e do cinema, artes congêneres pelo
aspecto cênico, porém muito diferentes, pela dimensão sócio-histórica em que apa-
recem. Por outro lado, o palco perdeu a primazia do fenômeno, desde que a forma
original da tragédia perdeu sua referência grega de origem. A tradição pós-clássica
soube experimentar o trágico fora da tragédia
3
, evidência que alicerçou a reflexão
dos filósofos idealistas alemães do século XIX (SZONDI, 2004).
Quanto às representações modernas da tragédia que se prendem à forma
trágica perfeita, uma evidente influência aristotélica, e não levam em conta a objeti-
vidade mítica daqueles textos clássicos, é expressiva a opinião de Marcel Proust,
quando analisa a ação do pensamento sobre o olhar, comparando-a com o efeito do
pensamento do tragediógrafo sobre o que era apreendido por ele:
[...] mesmo nos espetáculos mais indiferentes da vida, nosso olho, carregado de
pensamento, despreza, como faria uma tragédia clássica, todas as imagens que não
concorrem para a ação e retém apenas aquelas que podem tornar inteligível a finali-
dade
4
. (PROUST, 1947, v.3, p. 200)
O confronto das duas apropriações modernas acerca da tragédia – a de
Proust e a de Pasolini – é produtivo para introduzir a ideia de Pasolini de ir além da
racionalidade trágica em relação ao mito. Eliade aponta a ocorrência dessa crítica
racionalista (2006, p. 134), quando afirma que a concepção de deus de Eurípides foi
3
Shakespeare é o exemplo mais contundente de corrupção da concepção ateniense de tragédia, muito embora
tenha concebido suas obras para a encenação. Mas podem ser mencionados também os romances medievais
(com destaque para as sagas do Reno e do Graal), já precursores da guinada do trágico para o ambiente nar-
rativo.
4
[...] même dans les spectacles les plus indifférents de la vie, notre œil, chargé de pensée, néglige comme ferait
une tragédie classique, toutes les images qui ne concourent pas à l’action et ne retient que celles qui peuvent
en rendre intelligible le but. (L
ES CAHIERS..., 1947, p. 200). Tradução nossa. Faz-se aqui uma identificação entre
o but de Proust e o télos de Aristóteles.
14
influenciada por Xenófanes, para quem “há um deus acima de todos os deuses e
homens; nem sua forma nem seu pensamento se assemelham aos dos mortais”.
Além disso, Proust se refere à tragédia, sem levar em conta – pois não caberia no
contexto da sua obra – as diferentes concepções religiosas e antropológicas que o
termo tragédia abrange. Nesse sentido, é visível a concepção do diretor italiano, pois
ele parte de Édipo, passa por Ésquilo e chega a Eurípides, o mais racionalista, o
mais afastado da religião grega. Afirma também ELIADE (idem): “no tempo de Tucídi-
des o adjetivo mythodes significava ‘fabuloso e sem prova’, em oposição a qualquer
verdade ou realidade. Quando Platão acusou os poetas pela maneira como apresen-
tavam os deuses, dirigia-se, provavelmente a uma audiência já convicta”.
Nota-se, então, que Pasolini ressalta no texto da tragédia um material literário
com uma narrativa não subjetiva que ele identificará com a objetividade da narrativa
cinematográfica, como será visto adiante, na Lettera del traduttore (1960) e na carta
de 1960 a Luciano Anceschi. Esses dois documentos, comparados com o texto
proustiano, constituem um importante material para a linha seguida nesta tese. O
pequeno fragmento de Proust está inserido em um grande parágrafo em que o autor
trata da objetividade da imagem fotográfica, enquanto na carta a Anceschi Pasolini
afirma que “daria qualquer coisa” para que a língua italiana tivesse “a validade abso-
luta de homologação da imagem fotográfica”.
É eficaz também analisar o que resta, se da apropriação pasoliniana retira-
mos a literalidade proustiana: uma concepção humanista da tragédia, que localiza o
conflito trágico no homem, mais especificamente no conflito primordial entre homem
e natureza. Este conflito não está apenas subentendido nas obras mítico-trágicas de
Pasolini, mas está explicitado pelas substituições temporais e geográficas, de carac-
teres e cenários. Essa é a possibilidade que a linguagem do cinema outorga ao au-
tor cinematográfico que as desejar explicitar como signo da permanência daquele
conflito primordial.
Num sentido diferente do que seriam ação e finalidade, encontram-se as o-
bras que pretendem adaptar textos trágicos a problemáticas sociais e políticas mo-
dernas e simplesmente transpõem características superficiais de personagens e a
superficialidade de determinadas ações dos enredos das tragédias com a finalidade
de criar ações heróicas e personagens heróicos formalmente romanescos. Estes
personagens não representam, consequentemente, conflitos trágicos, pois as situa-
ções vividas nessas obras não se referem ao conteúdo mítico necessariamente evo-
15
cativo da tragédia, ou seja, não se originam do conflito homem-razão-natureza, mas
de conflitos cotidianos da política e da forma de viver modernas.
O mito, presente no imaginário, não concorre para a ação trágica, pois, para o
tragediógrafo, o que conta como tema é a cidade com seu tirano, que será o cenário
onde se mostrarão as mazelas das formas arcaicas de organização social. Para
Proust a tragédia não seguia cegamente o chamado do mito, mas colava, sobre es-
sa evocação, o pensamento, ou seja, a razão. O cinema pasoliniano, porém, apre-
senta imagens oníricas como se fossem as imagens do mito e como se a definição
do seu significado dependesse da criação de correspondências simbólicas, que,
consideradas em conjunto, acabam por constituir um léxico utilizado pelos que assis-
tem aos filmes
5
. Trata-se de uma influência do pensamento freudiano sobre o cine-
asta italiano (FREUD, 1923), essencial para alcançar o que Pasolini chama de cinema
de poesia.
A respeito da influência do pensamento freudiano sobre a teoria do cinema de
Pasolini, afirma FUSILLO (1996, p. 18):
Pasolini não atinge mais a celebração anárquica de um desejo ilimitado, de uma vis-
ceralidade sem freio, mas é atraído, ao contrário, por tudo aquilo que retorna, para
citar um famoso título de Freud, no “mal-estar da civilização” (e não há dúvida que é
o Freud pessimista que mais o fascina
6
.
Nesses filmes, a imagem tem um papel mais importante do que simplesmente
encantar ou atrair o olhar do espectador. Ainda que necessariamente realistas, pois
reproduzem algo que, efetivamente, já esteve diante dos olhos no set de filmagem,
são em alguns momentos inacreditáveis, como nos sonhos, formando o elemento
poético que Pasolini descreve em Cinema de poesia... Tais são, dessa forma, o ce-
nário do país de Medeia, cidade real, porém incompreensível em sua sacralidade.
Tal é a imagem do campo “verde, verde”, dessa forma descrito pelo personagem
Ângelo no final de Édipo Rei, impossível de existir no cinema moderno – um cinema
de prosa –, a todo o momento buscando um fim, um final, seja ele feliz ou infeliz. Tal
é a África, nos Appunti per un’Orestiade africana ou na sua configuração cor-de-rosa
que inspira a poesia de Davidson n’O pai selvagem.
5
Pasolini aponta, por exemplo, a imagem das rodas do trem rapidamente acionadas pelas manivelas, envoltas
em vapor. Esta seria uma imagem do léxico, embora exageradamente cristalizada como clichê, não sendo,
portanto, utilizada no cinema de poesia.
6
Pasolini non giunge mai alla celebrazione anarcoide di un desiderio illimitato, di una visceralità senza freni, ma
è attratto piuttosto da tutto ciò che rientra, per citare un famoso titolo di Freud, nel “disagio della civiltà” (e non
c’è dubbio che è il Freud pessimista ad affascinarlo di più).
16
A ocorrência dessas imagens identifica-se com o processo apontado por Au-
erbach, repetindo Schiller, sobre os elementos retardadores do poema homérico, em
“contraste com o trágico”. Segundo aquele autor, Goethe e Schiller, na sua corres-
pondência de 1797, opunham o processo retardador, “como processo épico propri-
amente dito, em oposição ao trágico”. Prossegue Auerbach: “O elemento retardador,
o avançar e retroceder mediante interpolações, também a mim parece estar, na poe-
sia homérica, em contraposição ao tenso impulso para uma meta”. Goethe, por sua
vez, afirma, na carta a Schiller, de 19 abr. 1797:
Se essa necessidade de retardamento [...] for realmente essencial e indispensável,
então todos os planos de caminhar reto em direção ao fim deveriam ser completa-
mente rejeitados ou considerados um gênero histórico subordinado. (GOETHE, 1993,
p. 105).
Essas digressões, que se opõem à conformação aristotélica da tragédia, dão
margem a que se pense na representação dos textos de Medeia, Édipo Rei e da O-
réstia de uma forma que recupere o seu realismo mítico. Esta forma de representar
conduziria à decifração do código trágico pelo homem moderno, concedendo-lhe a
“mais elevada liberdade da mente”, e a possibilidade de que ele imponha ao texto
trágico “todas as exigências fundamentadas na integridade e na atividade das nos-
sas forças reunidas e universais”, como defende Schiller, na sua carta a Goethe, de
21 abr. 1797 (GOETHE, 1993, p. 106), abrindo uma perspectiva crítica de representa-
ção da tragédia.
Baseados nessa desconstrução da forma rígida da tragédia como a descre-
veu Aristóteles, podemos pensar no cinema de poesia, no cinema trágico-mítico de
poesia. O processo, por outro lado, é necessário para apresentar Medeia, ou Édipo,
ou Orestes, não como reminiscências, como memória ou como história, mas como
mito, fantasia, imaginário. O que Pasolini mostra na tela é a possibilidade de se en-
tender através da arte a instância dionisíaca recalcada do homem moderno dividido.
A tragédia grega, para nós, modernos, vem carregada de um sentido de ver-
dade, por um lado devido à sua identificação com a filosofia, sua contemporânea, e,
por outro, por ser o texto trágico algo que desmitifica os mitos, cingindo-os à esfera
da religião, com seus rituais organizados e sua simbologia definida. Trata-se, mo-
dernamente, de deslaicizar a tragédia, de retirar dela esse caráter definido e definiti-
vo para mostrá-la na sua tensão com o mito. O imaginário pasoliniano contém a
chave para realizar essa deslaicização das tragédias, representando-as criticamente,
preenchendo com o significado mítico o que foi omitido para que se alcançasse com
eficácia a finalidade. É uma forma de fazer cinema, uma forma de aproximar o ho-
17
mem moderno da sua angústia atávica, uma forma de exibir na tela as imagens do
sonho mítico.
Personagens como Medeia, Electra ou Édipo revestiram-se de traços atribuí-
dos a elas pelo senso comum, verdadeiras vulgarizações, simplificações, que as tor-
nam alvo fácil das adaptações cuja finalidade é a simpatia pelo herói ou heroína,
encerrando aí a questão e não aprofundando esteticamente a identificação do confli-
to entre arcaísmo e razão, entre homem e natureza.
A dramaturgia brasileira não escapou a essa disposição de representar fiel-
mente a tragédia. No contexto histórico da ditadura militar, houve uma tendência pa-
ra se criar textos metafóricos, pretensamente para escapar à censura. Condizentes
com essa tendência dos autores, foram escritos alguns textos dramáticos. Tais fo-
ram as obras como Gota d’água (Paulo Pontes em parceria com Chico Buarque, de
1975) e Além do rio (de Agostinho Olavo), que apresentam adaptações da persona-
gem Medeia como heroína romântica, apelando para a simpatia do público.
A peça de Olavo é uma adaptação do enredo euripidiano que somente leva
em conta a traição de Jasão e o caráter da personagem Medeia como mulher traída
e irada devido ao ciúme, diluindo a preocupação principal de Eurípides – a oposição
primordial homem x polis numa relação fatalista entre o oprimido (bom) e o opres-
sor (mau), e apontando para uma ideia de injustiça baseada na vitimização da mu-
lher, caráter que não é, definitivamente, o da Medeia euripidiana.
Gota d’água, embora se diferencie de Além do rio pelo tratamento esmerado
do enredo, ainda assim não consegue escapar da Medeia heroína romântica, como
uma personagem que apela para o sentimento de justiça da plateia, abordando afe-
tivamente e de forma não histórica a questão do oprimido e do opressor. A compara-
ção com a Medeia de Pasolini é produtiva para se estabelecer o quanto o caráter de
Medeia, tratado miticamente, pode representar o conflito que escapa do caso parti-
cular e se universaliza como de toda a humanidade. Com seu tratamento jornalístico,
Gota d’água identifica a tragédia com a nossa cronaca nera, o nosso fait diver, o que
torna banal o ato final de Joana. O trágico nunca é banal.
A forma como Pasolini lida com esse risco de banalização é representar –
como nas cenas iniciais de Édipo Rei – o ódio do Laio moderno pelo Édipo moderno
como imagens de um sonho, desse modo introduzindo no enredo um elemento ar-
caico, anterior à tragédia e que esta recalca pelo pensamento. O Édipo sofocliano
não teve com Laio uma relação, por isso, o impulso de Laio que o faz mandar matá-
18
lo é como que natural, mas é verossímil porque é um desígnio fundador. Na tragédia
de Sófocles, o oráculo funda a relação entre Édipo e Laio: antes não existia nada.
Também o filme As troianas (1971), do diretor grego Cacoyannis, revela uma
oposição de cunho romanesco, uma Hécuba romanticamente heróica oposta a uma
Helena romanticamente vilã. A finalidade, neste caso, é a identificação Troia – Gré-
cia moderna sob a ditadura militar. Segundo o crítico Merhaut, a obra de Cacoyannis
foi influenciada pela sua terra natal, mas também por sua formação europeia:
O segundo mundo incorpora uma mistura de conhecimentos culturais adquiridos du-
rante sua educação na Inglaterra com um senso inato da tradição grega. Este é o
cenário a partir do qual Cacoyannis cria uma descrição original da vida contemporâ-
nea
7
. (MERHAUT, s/d)
Entretanto, os mitos e seus signos não permaneceram congelados no tempo,
mas assumiram outros valores, segundo o contexto histórico em que são lidos. Por
isso o que valia para Proust não vale mais para o cinema mítico-trágico, fato que
invalida a mera adaptação. Contrariamente à objetividade linear proustiana, que
considerava ser vazia de significados a imagem registrada numa “fria chapa fotográ-
fica”, e que retirava da tragédia os seus significados míticos – o conteúdo que seria
objeto da filosofia do trágico dos românticos alemães – Pier Paolo PASOLINI (1922-
1975) afirma:
O autor cinematográfico não possui um dicionário, mas uma possibilidade infinita:
não toma seus signos (im-signos) da caixa, do cofre, da bagagem, mas do caos, on-
de tudo quanto existe são meras possibilidades ou sombras de comunicação mecâ-
nica e onírica. (P
ASOLINI, 1970, p. 11)
A definição proustiana, que tem aspectos coincidentes com a severidade me-
todológica do Estagirita, aponta para certa racionalização, afinal, são de Aristóteles,
na Poética, as definições dos termos ação e finalidade, também usados por Proust:
A mais importante dessas partes é a disposição das ações; a tragédia é imitação,
não de pessoas, mas de uma ação, da vida, da felicidade, da desventura; a felicida-
de e a desventura estão na ação e a finalidade é uma ação, não uma qualidade. Se-
gundo o caráter, as pessoas são tais ou tais, mas é segundo as ações que são
felizes ou o contrário. Portanto, as personagens não agem para imitar os caracteres,
mas adquirem os caracteres graças às ações. Assim, as ações e a fábula constituem
a finalidade da tragédia e, em tudo, a finalidade é o que mais importa. (ARISTÓTELES,
1997, p. 24)
É dessa forma que a matéria originária do texto trágico clássico, representada
objetiva e pragmaticamente, é objeto da metamorfose pasoliniana. Pasolini acres-
centa ao conteúdo clássico um conteúdo propriamente cinematográfico, ou trágico-
cinematográfico. A distinção entre os dois observadores da tragédia, entretanto, apa-
7
“The second world incorporates a mixture of the cultural knowledge acquired during his training in England with
an inborn sense of the Greek tradition. This is the background from which Cacoyannis creates an original cine-
matographic depiction of contemporary life”. (Tradução nossa)
19
rece. Enquanto Proust se preocupava em comparar a imagem fotográfica com a vi-
são transformada pelo pensamento, Pasolini desejava que a língua italiana fosse
uma ferramenta eficaz para comunicar instrumentalmente ao homem moderno o
conflito vivido pela sociedade que queria se livrar das evocações dos deuses anti-
gos, tema explicitado na Oréstia, de Ésquilo. Isso desfaz qualquer ilusão acerca de
se pensar “cinema de poesia” como um cinema totalmente irracional, o que não co-
incidiria com a objetividade do cinema pasoliniano. Cinema de poesia é a ferramenta
eficaz para recolher no léxico infinito de imagens aquelas que serão metamorfosea-
das em um discurso fílmico compreensível.
A confrontação entre a visão naturalista de Proust sobre a tragédia e a abor-
dagem pasoliniana, que resgata biografias míticas e, dessa forma, atualiza mimeti-
camente para o espectador os conteúdos trágicos, indica a distância existente entre
o télos proustiano e aquele pasoliniano. Para o primeiro vale a comparação de
HAUSER (1969, v.3, p. 294) entre a estética proustiana e a linguagem do cinema:
Em Proust o passado e o presente, os sonhos e os pensamentos, se dão a mão a-
través dos intervalos de espaço e tempo; a sensibilidade, sempre seguindo novos
caminhos, vaga pelo espaço e pelo tempo, e os limites de espaço e tempo se des-
vanecem nesta corrente infinita e sem limites das relações mútuas; tudo isso corres-
ponde exatamente àquela mescla de tempo e espaço em que o cinema se move
8
.
(1969, v.3, p. 294)
Escapa, entretanto, a esta concepção formal sobre o cinema, uma definição
realmente estética que relacione espaço e tempo na tentativa de definir a linguagem
característica da técnica audiovisual. Pasolini encaminha a questão, em seu texto
“Discurso sobre o plano-sequência: Ou o cinema como semiologia da realidade”.
Neste texto o conceito de plano-sequência é definido e é nítida a sua importância
para o estudo do cinema do diretor italiano segundo uma estética da metamorfose.
Segundo este, o plano-sequência é a filmagem subjetiva (no sentido de que o olhar
e os ouvidos do sujeito se identificam com a câmera e o registrador de som) que co-
incide com o olhar de um sujeito sobre a realidade: é, portanto, o conteúdo naturalis-
ta do cinema. Para Pasolini esses planos-sequência somente assumem significados
após a morte ou após a montagem do filme:
O processo da vida, no momento da morte – ou seja, depois da operação de monta-
gem – perde toda a infinidade de tempos em que, vivendo, nos alegramos, deleitan-
do-nos na perfeita correspondência da nossa vida física – que nos leva a sermos
8
En Proust el pasado y el presente, los sueños y los pensamientos, se dan la mano a través de los intervalo de
espacio y tiempo; la sensibilidad, siempre sobre la pista de nuevos caminos, vaga por el espacio y el tiempo, y
los límites de espacio y tiempo se desvanecen en esta corriente infinita y sin límites de las relaciones mutuas:
todo esto corresponde exactamente a aquella mezcla de espacio y tiempo en que el cine se mueve. (Tradução
nossa)
20
consumidos – com o transcurso do tempo: não há um instante em que essa corres-
pondência não seja perfeita. Depois da morte já não existe essa continuidade da vi-
da, porém existe seu significado. Sermos imortais e inexpressivos ou nos expressar
e morrer. (P
ASOLINI, 1972, p. 241)
O télos pasoliniano leva em conta a complexidade das relações entre tragédia
e cinema, Antiguidade e modernidade e entre as mitologias
9
aí envolvidas. No cine-
ma de Pasolini são relacionados mitos e ideologias pelo ponto de vista de que am-
bos são formas racionalizadas do conflito primordial e inconciliável entre natureza e
civilização. Isso é visível, antes mesmo de os filmes trágicos terem sido realizados.
No filme de Pasolini Mamma Roma (1962) o personagem Ettore é afinal condenado
e morre, e tal é a tragicidade desse personagem que nós, espectadores modernos,
somos conduzidos imagem-a-imagem à experiência catártica de considerar injusta a
punição, embora reconheçamos como moral e legalmente criminoso o ato que a ge-
rou. Podemos dizer também que o trágico, nesse filme, não está nas ações, como
quer Proust, mas no caráter (no sentido aristotélico) libertário do personagem. O que
é derrotado pela ideologia da justiça é o mito da liberdade.
O télos pasoliniano não se limita à mera exposição, por meio da linguagem
inerente ao cinema, de deslocamentos temporais e geográficos, o que corresponde-
ria a uma reprodução da literalidade das tragédias, mas vai em busca dos significa-
dos mais profundos do que, no homem moderno, permanece como mítico. O
resultado dessa busca encontra-se nos filmes Medeia, Édipo Rei e Appunti per
un’Orestiade africana, na forma de mímesis do mito.
A definição proustiana, também sutilmente, contrapõe o que na tragédia cons-
titui o conteúdo que contribui para a ação – a letra dos textos clássicos – às imagens
que poderiam ser criadas pela imaginação, mas que são “desprezadas” por não
concorrerem para a “inteligibilidade da finalidade”. É como se, para nós, modernos,
sendo impossível a percepção de todos os significados propostos pelos tragediógra-
fos antigos, em função de nossa mitologia não ser a mesma que a dos gregos, a-
preendêssemos uma mensagem sem código, no dizer de Barthes, resultante da
captação da imagem da qual são abstraídos os signos – dramáticos, nesta análise –
por um observador “privado de todo saber”:
9
As mitologias que serão relacionadas no decorrer da análise empreendida nesta tese compreenderão os mitos
gregos, reelaborados artisticamente pelos dramaturgos áticos, segundo suas intenções religiosas, políticas ou
filosóficas, e as modernas ideologias, formas de expressão da verdade mítica, embora estas não contenham
uma narrativa que as materialize, contrariamente ao mito clássico, encontrando-se materializadas nos inúme-
ros discursos dos mass-midia.
21
Se se retiram todos os signos da imagem, dela resta ainda certa matéria informacio-
nal: privado de todo saber, continuo a ‘ler’ a imagem, a ‘compreender’ que ela reúne
em um mesmo espaço um certo número de objetos identificáveis (nomeáveis), e não
somente formas e cores
10
. (BARTHES, 1964, p. 42)
O que se observa, nesse caso, são os “objetos reais da cena”, os significan-
tes que mantêm com os significados uma relação direta não arbitrária, uma “quase
tautologia”, sem recurso a um terceiro termo, a um código. Dessa forma, segundo
Barthes,
[...] essa passagem não é uma transformação (no sentido de uma codificação); há
aqui perda de equivalência (própria aos verdadeiros sistemas de signos) e uma situ-
ação de quase identidade. Dito de outra forma, o signo dessa mensagem não é mais
retirado de uma reserva institucional, ele não é codificado, e se trata desse paradoxo
(sobre o qual se voltará) de uma mensagem sem código
11
. (idem)
Tais imagens são aquelas para as quais o diretor italiano se volta, em busca
do que será metamorfoseado. O abismo existente entre a mitologia que frequentava
o imaginário do homem grego do século V e a mitologia do homem moderno se ma-
terializa numa falta de saber que será preenchida pela mímesis pasoliniana, levando
em conta a particularidade apontada por Barthes nas imagens de onde são excluí-
dos os signos, para se alcançar a relação possível entre as imagens trágicas apre-
endidas na atualidade e a imagem que Pasolini pretendeu criar no cinema. O
correspondente simbólico dessa falta é encontrado na fala do Centauro para Jasão,
na segunda parte do filme Medeia, já em Corinto. O Novo Centauro (o racional) ex-
plica para Jasão porque o Antigo Centauro (o mítico) não fala com ele: “Ele não fala,
evidentemente, porque sua lógica é de tal forma diferente da nossa que nos seria
impossível entendê-lo... Mas eu posso falar por ele”.
Analisando-se as versões fílmicas de textos trágicos realizadas por Pasolini,
percebe-se que as imagens, processadas pela imaginação dele e pela mitologia do
espectador da era do cinema, cooperam produtivamente para efeito da compreen-
são do trágico hoje. Aquela camada apontada por Proust, constituída pela literalida-
de, ou seja, pela aparência da obra, prima pela racionalidade. Essa camada, na obra
literária, é a letra do texto; no cinema é a sequência das cenas que constituem uma
história. Ela é instrumental para o autor e provocação para o leitor ou espectador.
10
Si l’on retire tous ces signes de l’image, il y reste encore une certaine matière informationnelle: privé de tout
savoir, je continue à ‘lire’ l’image, à ‘comprendre’ qu’elle réunit dans un même espace un certain nombre
d’objets identifiables, (nombrables), et non seulement des formes e des couleurs. (Tradução nossa)
11
[...] ce passage n’est pas une transformation (comme peut l’être un codage); il y a ici perte de l’équivalence
(propre aux vrais systèmes de signes) et position d’une quasi-identité. Autrement dit, le signe de ce message
n’est plus puisé dans une réserve institutionnelle, il n’est pas codé, et l’on a affaire à ce paradoxe (sur lequel on
reviendra) d’un message sans code.
22
Ela estará presente nesta tese como matéria a ser metamorfoseada, assim como o
mito para a tragédia clássica e para o cinema de Pasolini.
Esta passagem do trágico em perspectiva clássica para a representação mo-
derna, via mímesis do mito, é que não é feita pelos autores que se limitam a transpor
caracteres sem substituir mitologias.
A reflexão acima, inspirada na definição en passant da tragédia grega feita
por Proust, mas que encontra em Aristóteles os mesmos elementos ação e finalida-
de que formam da tragédia uma concepção apenas observável em seus elementos
constitutivos, questão já descrita por Barthes, abre espaço para uma comparação
entre os objetos tragédia grega e cinema trágico pasoliniano: neste, as imagens não
concorrem, ipso facto, para uma finalidade objetivamente definida ou inteligível, em-
bora possam ser objeto de análise segundo um método e conceitos precisamente
estabelecidos. Além disso, nos filmes trágicos de Pasolini não existe uma preponde-
rância da ação trágica, uma vez que a representação mimética por ele realizada par-
te de uma instância objetiva – os textos das tragédias – e de uma instância mítica
não perdida, segundo o diretor italiano, mas metamorfoseada, isto é, morta e ressur-
recta. O que se apresenta nesses filmes é uma alusão ao modo como o sentimento
grego trágico – o conflito entre a instância mítica recalcada e a objetividade da pólis
– se pode apresentar na arte cinematográfica moderna, que, no caso de Pasolini,
liga-se à sociedade capitalista e regida pelas racionalidades esclarecidas.
A distância entre os dois objetos, entretanto, será vencida pela metodologia
que trabalhará com as diversas versões dos textos estudados e com as diversas
interpretações feitas pelos comentaristas da tragédia, como Aristóteles e Proust, e
também pelos comentaristas especializados, como Kitto, Lesky, Vernant e Brandão.
Considera-se que estas versões e interpretações, decorrentes da ampliação da ideia
acerca dos textos, resultante da leitura por diversos leitores, se alojam nos imaginá-
rios individuais em camadas correspondentes às muitas mitologias que constituem o
paradigma com o qual os leitores lidam com o mundo e, inclusive, com a arte. Con-
sidera-se também que no trágico pasoliniano estão contidas as diversas leituras do
trágico feitas através da história, configurando uma
[...] interação das diversas formas de leitura ocorridas. É, pois, nesse quadro que se
insere a necessidade sempre renovada de voltarmos, diretamente, ao texto da Poé-
tica para que a constelação de soluções já cristalizadas não impeça o exercício da
reflexão pessoal [...] (B
RANDÃO, 1997, p. 5).
Por estarem essas duas formas de encetamento do trágico ligadas à vida so-
ciopolítica dos autores, aos cenários e aos públicos, serão levados em conta três
23
ordens de fatores, em função da complexidade do tema trágico na literatura e no
cinema. Tem-se em mente que esta tese parte das imagens “que tornam inteligível a
finalidade” para alcançar as imagens pasolinianas, cuja finalidade é expressar mime-
ticamente a metamorfose, vista como síntese dialética, da sociedade mítico-arcaica
para a sociedade moderna e racionalista. Tais fatores serão:
– os elementos externos às obras, ou seja, os contextos da Grécia do século
V a.C. e da modernidade no século XX;
– os textos das tragédias gregas Medeia, Édipo Rei e Oréstia e os filmes cor-
respondentes de Pasolini;
– os autores, comparados em seus ordenamentos estéticos e idiossincrasias:
comparação dos tragediógrafos gregos com os autores das releituras e atualizações
das obras clássicas e com as diversas expressões trágicas no cinema.
Quanto a Pasolini – poeta, romancista, diretor de cinema, autor de teatro e
crítico –, o contexto histórico e político que envolveu a obra e a vida do diretor italia-
no, ele mesmo personagem de uma história trágica
12
, merecerá considerações par-
ticulares. Tal contexto funcionará como um cenário sobre o qual se projetarão as
análises formais, semiológicas e antropológicas desta tese, o que suscitará correla-
ções com o contexto histórico e político dos dramaturgos gregos. As aproximações e
contrastações daí decorrentes sinalizarão a substituição pretendida por Pasolini e
indicarão a forma como esta se apresenta nas obras modernas em foco.
A equação comparativa aqui proposta também colocará em jogo as diferentes
abordagens críticas – a semiologia, a antropologia, a filosofia ou a análise textual –
já que a complexidade dos objetos que a integram não pode ser apreendida por uma
perspectiva exclusiva. Dessa forma, considerando que o conjunto da obra de Pasoli-
ni suscita o estudo da interação entre poesia e cinema, artes plásticas e tragédia
etc., afirma-se o sentido de comparar as obras literárias e fílmicas, suas interpreta-
ções formais ou antropológicas, do ponto de vista do mito ou do trágico, assim como
a comparação dos resultados dessas análises, de acordo com os diferentes instru-
mentos usados. Considera-se que o conteúdo da obra determina a ferramenta mais
12
Militante comunista, homossexual e anticlerical, Pasolini foi objeto de processos e condenações pela justiça
italiana e pela Igreja católica, além de ter sido expulso do Partido Comunista Italiano. Em 1975, foi assassinado
em um terreno baldio por dois ragazzi di vita, grupo retratado por ele em algumas de suas obras. Meses antes
da morte de Pasolini ocorreu o chamado “Massacre de Circeo”, no qual duas jovens foram estupradas e uma
delas foi morta por rapazes pertencentes à sociedade romana.
24
eficaz para a sua análise e que, por exemplo, o conteúdo do estrato etnográfico terá
algo de literário e vice-versa.
Nesse jogo de imagens que constituirá o desenvolvimento desta tese, mere-
cerão destaque dois elementos que estão presentes nos termos do binômio compa-
rativo – o da tragédia clássica e o dos filmes estudados, mas também na própria vida
e obra do diretor italiano – e que estão intimamente ligados a uma reflexão sobre o
teatro trágico grego e o cinema mítico-trágico pasoliniano. São eles: a violência co-
mo manifestação do trágico em qualquer época e a iminência de uma estética que
vai direto ao entendimento da estranheza, do inóspito, do ameaçador, do que causa
dor. A ideia do estrangeiro e da estranheza é o que desencadeia a tragicidade e de-
termina a sua mise en scène: Medeia em Corinto; Édipo, estrangeiro em sua própria
terra e depois exilado em Colono/Sacile, cenário italiano do final do filme Édipo Rei;
o próprio Pasolini na África.
Esses dois elementos poderão comportar uma certa mobilidade, uma vez que
a estética pasoliniana irá configurar uma permanência deles nos dias de hoje, não
se dando as mãos “através dos intervalos de espaço e tempo”, como definiu Hauser
na citação acima, mas considerando, como Pasolini, os significados ressuscitados
pela metamorfose, a partir das mortes e ressurgimentos da tragédia através dos
tempos. Portanto, a permanência desses elementos, a substituição pasoliniana, se
dará através de uma estética da metamorfose.
Os mitos metamórficos são centrais para o desenvolvimento de nossa argu-
mentação. A tragédia grega, que teve como matéria originária as narrativas míticas,
mas as metamorfoseou em texto trágico pela intermediação da razão que se instituiu
na sociedade grega, até mesmo como ideologia inerente à constituição e manuten-
ção da pólis, é representada por Pasolini em seus filmes míticos pela encenação de
metamorfoses concebidas como sínteses dialéticas: as metamorfoses físicas do
Centauro, em Medeia, que primeiramente assume forma humana e depois aparece
como síntese, razão e mito, em dois Centauros que se completam e se antagoni-
zam; a ressurreição da semente, “morre a semente e renasce da semente”, como
vaticina Medeia, no filme homônimo; a ressurreição da África socialista e industrial a
partir da semente deixada pela África mítica, no filme Appunti per un’Orestiade afri-
cana. A metamorfose do pai, em Édipo Rei, de soldado na Itália industrial, imagem
do pai do cineasta, em Laio mítico.
25
No filme Medeia, a narrativa do Centauro, efetuada em três cenas que se dis-
tinguem pelo tom e pelas modificações físicas da personagem, representa a passa-
gem do relato mítico à tragédia: o recalcamento do mito pela razão e a sua
ressurreição como conflito trágico. É como se a tragédia, cumprido o ciclo primordial
da sua existência, tivesse deixado uma semente do trágico que brota na modernida-
de sob a forma da angústia do homem moderno cindido. Essa experiência é ressus-
citada esteticamente na forma dos filmes de Pasolini, pela representação dos rituais
da modernidade de violência e segregação do estrangeiro, visto segundo uma an-
tropologia que leva em conta as origens míticas dos conflitos.
A revelação pasoliniana faz aflorar o que a tragédia ocultara pela incidência
do pensamento: a imagem do mito. Esta é uma imagem racionalmente impossível,
pois o mito não se realiza, a não ser irracionalmente, na forma de mensagens que,
partindo da imaginação do autor, dirigem-se diretamente à imaginação do receptor.
Tais mensagens são interpretáveis somente pela mitologia de quem as recebe, mas
não pela sua langue, porque as imagens do mito são parole. Como afirma Junito
BRANDÃO, em Mitologia grega (v. 1, p. 36, 2007):
[...] o mito é sempre uma representação coletiva, transmitida através de várias gera-
ções e que relata uma explicação do mundo. Mito é, por conseguinte, a parole, a pa-
lavra “revelada”, o dito.
Dessa forma, como Pasolini no final de Édipo Rei, retornamos ao início, ou
seja, à frase de Proust, para entendermos quais as imagens que não contribuem
para a ação, mas concorrem para a finalidade.
As imagens realistas do mito apresentadas na segunda parte do filme Medeia
já haviam sido definidas pelo Centauro, em outro ponto do filme: “não há como os
míticos para serem realistas, e não há como os realistas para serem míticos”
(PASOLINI, 2002, p. 110). Esta relação, na obra de Pasolini, entre a imagem poética,
exemplificada pela fala de Medeia fílmica, e o mundo racionalizado, é descrita por
Riccardo Pineri da seguinte forma:
Ferida de realidade, em busca de realidade, a imagem poética aparece no momento
em que a vida se retira, a palavra sobrevém no exato momento em que o real se au-
senta. ‘Fala-me, terra, faça-me entender sua voz. Eu não me lembro mais da sua
voz. Fala-me, Sol! Onde está o ponto de onde eu possa escutar tua voz? Fala-me,
terra; fala-me, Sol. Talvez vocês estejam a ponto de se perder e não voltar mais?
Eu não entendo mais o que vocês dizem! Fala-me, erva! Tu, pedra, fala-me. Onde
está teu sentido, terra? Eu toco a terra com meus pés e não a reconheço. Eu olho o
Sol com meus olhos e não o reconheço
13
. (PINERI, 1997, p. 90. A tradução é nossa).
13
As palavras citadas referem-se ao filme Medeia. ‘Blessée de réalité, en quête de réalité, l’image poétique
apparaît au moment où la vie se retire, la parole survient au moment même où le réel s’absente. ‘Parle-moi,
terre, fais-moi entendre ta voix. Je ne me souviens plus de ta voix. Parle-moi, soleil! Où est le point d’où je
26
Essa transposição do texto trágico grego para a mitologia do homem moder-
no, pela via da morte e ressurreição do mito, resultará numa substituição. O cinema
mítico pasoliniano funda esse conceito relacionando os textos trágicos gregos com
os mitos da modernidade e o torna uma ferramenta eficaz para a realização do pro-
cesso estético que associará mitologias antigas com mitologias modernas numa o-
bra fílmica atual, porém não idealista. Dito por outras palavras, a retomada de mitos
clássicos por Pasolini segue um rumo diferente daquele adotado pelo cinema no
contexto da indústria cultural.
A experiência estética de se deparar com as cenas de Medeia ou de Édipo
Rei proporcionará ao leitor que se debruçar hoje sobre um texto trágico produzido na
Antiguidade, a oportunidade de se desvencilhar dos vícios visuais introduzidos nas
nossas retinas pelo cinema idealista e/ou naturalista e causará uma experiência ca-
tártica advinda das condições de existência do homem moderno diante da sua an-
gústia.
Para se chegar ao cinema pasoliniano e à sua motivação trágica, é necessá-
rio considerar três linhas do trágico: a primeira, parte das violências narradas nos
mitos, passa pela punição de Agamêmnon pelo assassinato da filha Ifigênia, ficcio-
nalizada por Ésquilo na Oréstia, e culmina na absolvição de Orestes num tribunal
humano, tema do filme Appunti per un’Orestiade africana, projeto de filmagem da
Oréstia que seria realizado por Pasolini na África. Nesses Appunti..., pode-se dizer
que Pasolini faz convergir, no cenário mítico/capitalista da África que se descoloni-
zava e abandonava um mundo mítico e violento, o que naturalisticamente jamais
convergiria: a violência trágica do mundo antigo (“a incerteza existencial” do homem
antigo) com a angústia existencial do mundo moderno. Essas características dos
Appunti... indicam que a convergência (a síntese pasoliniana), como não poderia
deixar de ser, se dá no interior da história.
A síntese entre sociedade arcaica e sociedade moderna, pretendida por Pa-
solini, mas nunca efetivamente realizada, já se encontrava expressa, mas não resol-
vida, no texto da tragédia grega. Essa preexistência antiga já havia sido analisada
por M
URRAY (1967, p. 12):
puisse écouter ta voix ? Parle-moi, terre ; parle-moi, soleil. Peut-être êtes-vous en train de vous perdre et ne
plus revenir ? Je n’entends plus ce que vous dites! Parle-moi, herbe. Toi, la pierre, parle-moi. Où est ton sens,
terre ? Je touche la terre avec mes pieds et je ne la reconnais pas. Je regarde le soleil avec mes yeux et je ne
le reconnais pas’ !
27
Já advertimos que, ao aceitar como um fato o ‘contorno trágico’ no qual toda a vida
brota e logo murcha e morre, Ésquilo afirma apaixonadamente no ‘Agamêmnon’ que
se trata de uma ordem moral. Nega-se a crer que uma bem-aventurança ou riqueza,
por si mesma, conduza a uma queda [...] Só a riqueza combinada com a injustiça e a
impiedade conduz à destruição.
Tal cesura que aponta o conflito entre uma ordem mítica apenas recalcada e
uma outra, a política, encontra-se também no texto citado acima, de Massimo Fusil-
lo, como sendo a síntese pretendida por Pasolini, e estetizada por este, como tam-
bém Ésquilo expressou na tragédia o conflito que pressentia e no qual estava
imerso.
Essa incerteza existencial pode ser identificada com o trágico, segundo Gil-
bert Murray:
Este é precisamente o tema do ‘Prometeu’. É-nos mostrado o estado lamentável da
humanidade. Zeus ocultou aos homens os meios de vida, do mesmo modo que lhes
ocultou o fogo. Deixou em liberdade inumeráveis males alados – o mar e o ar abun-
dam neles e não há meio de lhes escapar. A vida é dura e jaz sempre sob a sombra
da morte. Deste modo Ésquilo chega à concepção de um Tirano supremo, o inimigo
do homem, que rege o mundo, e à de um campeão da humanidade, que o enfrenta.
(MURRAY, 1967, p. 13)
Mais adiante, Murray refere-se à seguinte passagem do Prometeu, do Coro
das Oceânides, de Ésquilo:
Era uma felicidade viver sempre assim,
Sem intranquilidade e sem temor das coisas do porvir,
Alegrando-se com as músicas do rio;
Mas tremo quando meus olhos te encontram
E vejo a longa cadeia dos teus tormentos – dor sobre dor;
[...]
Não vês que o homem sempre foi assim?
capaz de coisas pequenas e sua força arriscada e vaga?
[...]
seu pensamento não escapará ao jugo
nem excederá à moldura que o grande carpinteiro elaborou
14
.
SQUILO, Prometeu acorrentado, v. 526 e ss. In: MURRAY, 1967, p. 14)
Comenta Murray:
Vimos antes a inimizade de Zeus contra o gênero humano e a crucifixão do Amigo
do homem. Aqui temos a ‘simpatéia’ ou o sofrimento solidário da criação com Pro-
meteu e também a absoluta impotência do homem e do seu campeão contra o deus
tirânico. (M
URRAY, 1967, p. 14)
Prosseguindo, a segunda linha do trágico é a da desilusão e da desesperan-
ça, a síntese apontada por Pasolini no final dos Appunti..., que se dá com o abando-
no da utopia em relação ao processo de descolonização da África. À razão
salvadora, transposta mecanicamente do primeiro tribunal humano para a era indus-
14
A tradução de KURY (2004, p. 39), embora amenizada em relação à condição humana, não deixa dúvidas,
também, quanto à incerteza da vida dos mortais: “É doce ver passar toda a existência / com o coração repleto
de esperanças / entregues a delícias radiosas. / Mas vendo-te hoje aqui, dilacerado / por milhares de males,
nós trememos. [...] Dize-nos logo: em que te favorecem / os teus favores aos pobres mortais? [...] Não conse-
gues ver / essa fragilidade imponderável / presente às vezes em sonhos obscuros, / que tolhe os pés da cega
raça humana?”.
28
trial africana, parecem opor-se os versos das Eumênides, última peça da trilogia es-
quiliana, a Oréstia:
[...] e talhos incontáveis de punhais
licitamente dados pelos filhos
serão a recompensa de seus pais
antes de se passarem muitos anos! [660]
[...]
A partir deste dia soltaremos
Os freios que até hoje contiveram
Os homicidas de todos os tipos.
SQUILO, 2003, p. 170)
A equação comparativa de Pasolini, exposta nos Appunti..., deveria ter como
resultante uma dessemelhança, e não a semelhança pretendida por ele. Apontando
uma dessemelhança, Pasolini teria sido mais coerente com a sua desesperança.
Essa desesperança pasoliniana é a resultante da síntese dialética desses contrários:
o mundo mítico e o mundo capitalista materializado. A síntese se torna desesperan-
ça pela constatação de que aqueles contrários são irreconciliáveis, resultando em
um sentimento trágico que cabe estetizar. A primeira parte dos Appunti ..., pelo me-
nos aparentemente, caminha no sentido da estetização da solução do conflito, solu-
ção nunca admitida por Pasolini, afinal essa contradição foi mesmo o motor da sua
experiência estética, como já podia ser visto em relação à África no roteiro, nunca
filmado, O pai selvagem (1963). Não poderia ser feita uma transposição mecânica,
de uma sociedade mítica que se racionaliza, a grega, para outra, a africana, sem
levar em conta a diferença entre os conflitos trágicos desencadeados pelo choque
entre duas formas de representação do homem, entre mito e razão.
Os Appunti... são apontamentos, não chegando a uma conclusão. A síntese
desse conflito inconciliável exposto pela equação comparativa pasoliniana se dá no
filme Medeia, com as palavras finais que esta personagem profere, dirigindo-se a
Jasão, dentre as labaredas: “Nada mais é possível doravante” (PASOLINI, 2002, p.
128). A busca pasoliniana, portanto, se volta para um sentimento trágico inevitavel-
mente enraizado no homem, como é a angústia de Jasão, em Medeia, diante do du-
plo centauro, signo do homem moderno cindido, no interior do qual, dialeticamente,
convivem, numa síntese, razão e emoção.
Embora a análise das obras empreendida nesta tese busque se apropriar, em
um primeiro momento, da matéria originária trabalhada pelos autores, num segundo
momento, o foco se dirige prioritariamente para o texto, pois se trata aqui, em última
instância, de um estudo sobre a mímesis crítica, ou seja, sobre o conjunto de proce-
29
dimentos artísticos não literais com vista a realizar uma obra ficcional. Concordar-
mos com a abordagem de Most, ao afirmar que:
Mímesis é usualmente traduzido por “imitação”, mas de fato este significado central
está mais próximo de “realização”
: objetos, eventos, ou ações que, porque são divi-
nos, passados ou canônicos, pertencem a um domínio mais valioso da realidade do
que nossa vida quotidiana, mas estão, por isso mesmo, de alguma forma afastados
de nós, impõem sobre nós a obrigação de restaurar sua realidade; isso é alcançado
pelo estabelecimento de um setor privilegiado no meio de nossas preocupações
presentes, no qual nós podemos reabilitá-los [os objetos, eventos e as ações], ilumi-
nando através disso nosso mundo banal com um pouco de seu esplendor e, ao
mesmo tempo, resgatando-os dos perigos da abstração e da irrelevância
15
. (MOST,
s/d).
Logo, as palavras de Ésquilo na Oréstia não podem ser vistas como premoni-
ção. Elas alcançam a realização moderna do trágico através da estetização da vio-
lência, cuja forma moderna Pasolini encontra em forma originária na cronaca nera, a
crônica diária dos jornais, inclusive dos crimes mais violentos. Para o diretor italiano,
então, o gênero cronaca – narrativa, sem passado, sem história, na qual os fatos
surgem na sua forma naturalizada – alude ao conflito trágico entre uma natureza
humana inorgânica e a ética da sociedade capitalista e materialista. A estetização
dessas narrativas – captadas no cotidiano e transformadas em crônica – em forma
de cinema é a afirmação, por Pasolini, da sua teoria sobre o plano-sequência como
algo a ser ressuscitado – editado, montado – em forma de linguagem cinematográfi-
ca, atribuindo, dessa forma, significados às meras cenas naturalistas de uma vida:
Portanto, é absolutamente necessário morrer, porque, enquanto vivemos, falta-nos
sentido, e a linguagem de nossa vida (com a qual nos expressamos, e à qual, por-
tanto, atribuímos a máxima importância) é intraduzível: um acaso de possibilidades,
uma busca de relações e de significados sem solução de continuidade. A morte rea-
liza uma rapidíssima montagem da nossa vida: ou seja, seleciona seus momentos
verdadeiramente significativos (imodificáveis por outros possíveis momentos contrá-
rios ou incoerentes), e os ordena sucessivamente, fazendo do nosso presente, infini-
to, instável e incerto e, portanto, linguisticamente não descritível, um passado claro,
estável, certo e, portanto, linguisticamente bem descritível (precisamente no âmbito
de uma Semiologia Geral). Só graças à morte nossa vida serve para explicar-nos.
Portanto, a montagem realiza, sobre o material do filme (que é constituído por frag-
mentos grandíssimos ou infinitesimais, de tantos planos-sequência como possíveis
tomadas subjetivas infinitas), o que a morte realiza sobre a vida
16
. (PASOLINI, 1985,
p. 71)
15
Mimesis is usually translated ‘imitation’, but in fact its central meaning is closer to ‘actualization’: objects,
events, or actions which, because they are divine, past or canonical, belong to a more valuable domain of real-
ity than our quotidian lives but are therefore in some way remote from us, enjoin upon us the obligation to re-
store their actuality; this is achieved by establishing a privileged sector within our present concerns in which we
can (re-)enact them, thereby illuminating our banal world with some of their splendor while rescuing them from
the perils of abstraction and irrelevance.
16
Por lo tanto, es absolutamente necesario morir, porque, mientras estamos vivos, carecemos de sentido, y el
lenguaje de nuestra vida (con el que nos expresamos, y al que, por lo tanto, atribuimos la máxima importancia)
es intraducible: un caso de posibilidades, una búsqueda de relaciones y de significados sin solución de conti-
nuidad. La muerte realiza un rapidísimo montaje de nuestra vida: o sea selecciona sus momentos verdadera-
mente significativos (inmodificables ya por otros posibles momentos contrarios o incoherentes), y los ordena
sucesivamente, haciendo de nuestro presente, infinito, inestable e incierto, y por lo tanto, lingüísticamente no
30
Dessa forma, nos certificamos de que não se trata, nessa interpretação do
trágico moderno, de uma análise das condições de existência do homem hoje – de
uma análise da violência na sociedade atual, para o que seria mais adequado o gê-
nero documentário – mas de uma análise comparativa entre a estetização da violên-
cia feita pelos tragediógrafos gregos e a estetização da violência feita
modernamente, em outro meio, o cinema, realizada por Pasolini, levando em conta
que a estetização dessas duas formas originárias é possível devido à mitologia co-
mum que as cerca. Ou seja, o que Pasolini atualiza é a presença das Erínias como
instância irracional constitutiva do discurso da arte.
Ainda nessa segunda linha, que busca na África o cenário para a incerteza
existencial já citada, está o roteiro de Pasolini O pai selvagem (1963), nunca filmado.
Esse roteiro narra o processo de educação europeia de um jovem africano que,
quando retorna à sua tribo, reencontra sua ancestralidade mítica, mas já associada
ao colonialismo que se valia da rivalidade entre as tribos para dominar o território. O
pai do jovem, um pai selvagem, leva-o a participar de rituais orgíacos e de um mas-
sacre de uma tribo rival. Assim narra Pasolini:
O pai de Davidson, a mãe, os irmãos, os companheiros da mesma idade – droga-
dos, enlouquecidos pela exaltação sanguinária, pelo terror, pela arcaica espirituali-
dade que os domina – desempenham, na cumplicidade da noite, junto ao fogo, um
complicado rito, quem sabe a quem dirigido, a quem dedicado, por quais misteriosas
conexões de pensamentos e através de que cálculos: como se fosse natural, ele-
mentar. Um velho rito da tribo de Davidson na pré-história.
A caracterização do cinema pasoliniano, entretanto, conduz à comprovação
de que o cinema produzido pelo cineasta italiano não é igual à narrativa romanesca.
Afastado da perspectiva romântica, este é um cinema que se pretende mítico, não
baseado na causalidade, mas crítico do paradigma de arte-entretenimento reforçado
pela indústria cultural. O cinema de modelo hollywoodiano, indo na contramão do
trágico, criou a linhagem dos heróis que vencem, ainda quando derrotados. É uma
estética da esperança, do mito da existência de um mundo justo e que ignora as
camadas mais profundas que conduzem o instinto humano e que apresenta um
mundo dividido em bem e mal – entre bons e maus – em que o bem sempre vence,
ainda quando o herói é destruído, porque supostamente existiriam instituições ga-
rantidoras do bem supremo: a justiça. Mesmo a violência estetizada nesses filmes
descriptible, un pasado claro, estable, cierto y, por lo tanto, lingüísticamente bien descriptible (precisamente en
el ámbito de una Semiología General). Sólo gracias a la muerte, nuestra vida sirve para explicarnos. Por lo tan-
to, el montaje realiza sobre el material del filme (que está constituido por fragmentos, largísimos o infinitesima-
les, de tantos planossecuencia como posibles tomas subjetivas infinitas) lo que la muerte realiza sobre la vida.
31
não é perpetrada por um “poder superior”, como propôs Schelling, mas por um poder
humano. Por tal motivo esta violência estetizada pode ser derrotada sem que o he-
rói seja punido, pois a sua derrota não aponta para a existência de “uma raça de Ti-
tãs” (cf. “Schelling”, in: SZONDI, 2004, p. 30).
Não é o caso do filme Dogville, de Lars Von Trier, no qual o conflito entre a
heroína e o poder superior não se resolve pelo sucumbimento dela, mas sim pela
sua vingança, como uma Medeia que extingue pelo fogo a cidade e a linhagem que
nela habita. Também aí se encontram a presença estrangeira e a violência a que a
personagem feminina é submetida. A cidade é destruída e a estirpe maldita é extin-
ta. O herói masculino assume, como Jasão, o papel do salvador ambíguo, que mais
condena a um destino horrível do que salva. O comportamento do personagem Tom
é ambíguo (sua literatura não passa de “grande” e “pequeno” seguidos de uma inter-
rogação) e marcado pela soberba (hybris): gosta de humilhar Bill no jogo de damas.
A questão do bem e do mal, linha demarcatória dos dois gêneros de cinema
abordados acima, já fora objeto de reflexão por Nietzsche: “De que modo inventou o
homem estas apreciações: o bem e o mal?” (1953 [1887], p. 8).
Contrariamente à tendência romanesca do cinema moderno, em Medeia, de
Pasolini, o caráter da personagem-título não dá espaço para que o espectador se-
quer sinta “sede de justiça”, porque a personagem, retornando à sua origem mítica,
recusa essa receita romântica. Por outro lado, não entra em questão que esse sen-
timento de justiça seja direcionado para Gláucia. Mesmo Jasão, representado como
“moderno”, não pode ser alvo do ódio da plateia, pois o ódio de Medeia se encarrega
de puni-lo. Em Medeia, então, tudo está resolvido, não cabendo à plateia amar ou
odiar, ou temer pelo final injusto.
Se, por um lado, Pasolini buscou na África a matéria mítica de que precisava
para representar na tela a “incerteza existencial”, o material que representa a socie-
dade em processo de modernização, ele o foi buscar no sul da Itália, onde realizou o
filme Comizi d'amore
17
(1963). Essa operação de substituição, que fala da mitologia
moderna como se esta fosse a mítica primitiva, aponta para uma identificação que
17
“Em 1963 Pasolini rodou um filme-investigação sobre a sexualidade, tendo cruzado a península inteira, das
grandes cidades ao campo, perguntando, ao passar, para os fazendeiros, trabalhadores, jogadores de futebol
famosos, estudantes, negociantes, para pessoas comuns pertencendo a classes sociais diferentes, o que eles
pensavam sobre o erotismo e o amor. As respostas dos entrevistados, acima de tudo os de extração burguesa,
criam uma imagem geral de nosso país hipócrita, constituída de frases feitas e de lugares comuns”. (Resenha
retirada do site Pagine Corsare, disponível em: http://www.pasolini.net/).
32
se dá pela existência de duas causas míticas para a violência: o mito familiar-
religioso na Grécia Antiga e no sul da Itália.
Tal operação traça a terceira linha do trágico. Ao reduzir a violência na Grécia
Antiga e a violência masculina no sul da Itália à trivialidade do que é mítico, Pasolini,
perigosamente, se aproxima do gênero cronaca nera – a letra do filme Comizi d'a-
more, cuja motivação, em parte, são os assassinatos de mulheres por seus maridos
ciumentos na Itália daquela época. Pasolini, entretanto, em sua atividade ensaística
diária, em jornais como o Corriere della Sera, participou ativamente das discussões
a propósito de crimes violentos na Itália, como a polêmica que manteve com Italo
Calvino a propósito do Massacro del Circeo, crime violento ocorrido em setembro de
1975, em Roma, como será visto no capítulo 3.3 Medeia.
Ao mesmo tempo, Comizi... escapa daquele gênero com maestria, quando a-
tribui ao comportamento masculino exposto no filme uma razão mítica, primeva, pré-
histórica, como o ritual da tribo de Davidson.
Por um lado, é de se notar o que Pasolini assinala:
[...] sobre a passagem abrupta e antinatural que a Itália viveu no período pós-guerra
de uma sociedade agrária para uma industrialização selvagem que, com a criação
de um 'Centro consumístico', operou um real genocídio das culturas locais, dos dia-
letos e em geral ‘do ilimitado mundo agrário ilimitado pré-nacional e pré-industrial'.
Um mundo ‘transnacional’ que na realidade tinha as mesmas características do Ter-
ceiro Mundo e era caracterizado por uma religiosidade atávica, cíclica, de fundo pa-
gão, para a qual o catolicismo era uma sobreposição externa, como era o poder
nacional
18
. (PASOLINI, 1975, p. 53, citado por FUSILLO, 1996, p. 184)
Essa declaração, por si só, aproxima Comizi d’amore da segunda parte de
Medeia, pela indicação do material originário com que Pasolini pretende lidar. Não
se trata da interpretação da interpretação, ou seja, do comentário das concepções
acerca da atualidade do homem tornadas senso comum. Pelo contrário, o efeito do
aspecto documental presente nos dois, e que em Medeia é alcançado pela filmagem
em plano-sequência, a excentricidade das cenas do país de Medeia determinam um
afastamento do espectador, uma desidentificação que torna impossível a eclosão da
simpatia despertada no cinema industrial, causada pela apresentação ao espectador
de um conteúdo ideológico com que ele concorda, ou seja, o senso comum. Entre-
18
“[...]sul passaggio brusco e innaturale che 1’Italia ha vissuto nel dopoguerra da una società agraria a
un’industrializzazione selvaggia, che, con la creazione di un ‘Centro consumistico’, ha operato un vero e proprio
genocidio delle culture locale, dei dialetti, e in generale ‘del’illimitato mondo contadino prenazionale e
preindustriale’. Un mondo ‘transnazionale’, che ha infatti gli stessi tratti del Terzo Mondo, ed è caratterizzato da
una religiosità atavica, ciclica, di fondo pagana, per la quale il cattolicesimo era una sovrapposizione esterna,
come lo era il potere nazionale.”(Tradução nossa)
33
tanto, o filme-investigação rodado na Itália e o falso documentário em Medeia, à par-
te apresentarem fatos sem antecedentes históricos importantes e carecerem das
interpretações do senso comum, constituem matéria originária para a eclosão de
uma análise de uma vivência mítica com a proximidade do estrangeiro, do que é es-
tranho à forma simpática que vicia as retinas.
Esses dois fatores – a violência e a excentricidade – certamente foram objeto
da preocupação dos autores gregos clássicos, como fica patente na condição bárba-
ra de Medeia. Quanto à violência, motivo para que Pasolini se refira à “incerteza e-
xistencial da sociedade primitiva”, ela é dispositivo detonador do trágico, com o que
está de acordo a concepção de Schelling sobre o trágico, quando se refere ao confli-
to da liberdade humana com o poder do mundo objetivo, conflito que está presente
na citação da Oréstia, acima, e que opõe a liberdade de matar ao poder da lei. O
que diferencia as duas concepções é a descrença de Pasolini quanto à afirmação da
liberdade. Aparentemente, a afirmação da liberdade estaria mais associada, com o
vício romanesco, à vertente do cinema que cria o herói vencedor, mesmo na derrota,
enquanto, para Pasolini, a expressão atual do trágico decorre da permanência da
incerteza existencial.
Prosseguindo na descrição da metodologia, as camadas fundamentais para
esta tese serão conceituadas cada qual independentemente das outras, nos limites
das mitologias que as definem. Essas camadas são como as categorias adequadas
à análise de uma obra e são limitadas pelo paradigma que as define: cronaca nera;
oriente e ocidente; trágico, liberdade, romanesco, mítico. Essa forma de abordagem
das obras parece eficaz para tratar dos temas pasolinianos, uma vez que estes se
estendem por diversas mitologias e, no final, buscam a substituição das mitologias
antigas pelas modernas, trágicas e romanescas, ainda que rejeitando as últimas.
Um filme como Medeia é analisável no contexto de três camadas: o mítico, o
trágico e nas associações que mantém com a cronaca nera. Acontecimento trivial, a
tragédia pessoal de Medeia suscita a representação da metamorfose ao reverso das
Eumênides em Erínias e uma aproximação com a modernidade, que Pasolini desen-
volve em Comizi d’amore: a mitologia da libertação feminina e da inserção da mulher
livre no mundo industrial. Ambos os filmes encenam a força da intuição, oposta à
racionalidade, numa sociedade masculina e racional.
Pasolini, entretanto, aborda esses materiais – correlacionados a causalidades
diversas no momento atual da midialização e estetização de todo e qualquer assunto
34
ou matéria de pensamento – como formas humanas de pensamento. É isso o que
propicia a formação de camadas mitológicas. Tanto mais que, por serem materiais
presentes nas mais diversas culturas, da Antiguidade à Modernidade, somente uma
abordagem teórica que possibilite a presença de todos esses materiais, embora não
do ponto de vista da sua evolução ou da sua causalidade, poderá lidar com eles de
forma eficaz, o que mais uma vez aponta para o método descrito acima, que vai lo-
calizá-los nas camadas, permitindo a sua comparação.
Muitas foram as apropriações do trágico, tal como o vivenciaram os gregos,
nas épocas posteriores à Antiguidade Clássica, em diversos contextos nacionais.
Cada uma dessas apropriações, em seus diferentes contextos geográficos ou histó-
ricos, produziram estéticas próprias, que levam à ideia do trágico inúmeros imaginá-
rios: inúmeras mitologias.
Por outro lado, expressões como “nosso conceito de trágico vem dos gregos”,
além de sugerirem uma apropriação evolutiva do tema, em nada resultam, uma vez
que tais possíveis ligações perderam-se no decorrer do tempo, em função de novas
formas de pensamento estético e filosófico. Concretamente, o que temos hoje, efeti-
vamente, como herança dos gregos, é o texto trágico como objeto de análise ou co-
mo matéria originária a ser cenicamente representada. O que nos parece plausível,
do ponto de vista metodológico, e produtivo, do ponto de vista de uma teoria sobre o
trágico hoje, ou melhor, no caso do cinema trágico pasoliniano, de uma teoria da
atualidade trágica, é verificar de que modo, filosófica e esteticamente, o homem atu-
al vivencia o trágico e como isso pode ser expresso esteticamente. Considera-se
que tal expressão estética, uma vez que se trata de criar uma teoria que articule coi-
sas tão distantes como o conceito trágico grego e a indústria cultural, não será abso-
lutamente realista, mas expressiva das ligações mais sutis que se encontram tanto lá
como aqui, na Antiguidade e na Modernidade.
35
1. TRAGÉDIA E CINEMA
Pasolini autor cinematográfico, no sentido em que se define a sua obra mítico-
trágica como cinema de autor, não segue seu caminho criativo-autoral intuitivamen-
te. Em todos os seus filmes pode-se observar a presença de um pensamento que se
volta para a oposição entre arcaico e moderno, colocada criticamente de forma a
apresentar a substituição violenta das formas arcaicas, míticas e religiosas por uma
cultura racionalizada e materialista como o motivo da angústia do homem moderno.
Essa oposição é explicitada por Pasolini em diversos pontos da sua obra ensaística,
como no seguinte trecho das Lettere luterane (PASOLINI, 1980, p. 3):
Um dos temas mais misteriosos do teatro grego é a predestinação dos filhos a pagar
a culpa dos pais. Não importa se os filhos são bons, inocentes, pios: se os pais deles
pecaram, estes devem ser punidos. É o coro – um coro democrático – que se decla-
ra depositário de tal verdade: e a enuncia sem introduzi-la e sem ilustrá-la, por tanto
que lhe parece natural. Confesso que este tema do teatro grego eu sempre o aceitei
como algo estranho ao meu saber, acontecido “alhures” e em um “outro tempo”. Não
sem uma certa ingenuidade escolástica, sempre considerei tal tema absurdo e, por
outro lado, ingênuo, 'antropologicamente' ingênuo. Em seguida, chegou o momento
da minha vida em que eu devia admitir que pertencia inevitavelmente à descendên-
cia do pai. Inevitavelmente, porque os filhos não só nasceram, não só cresceram,
mas estão unidos à idade da razão e o destino deles, consequentemente, começa a
ser, inelutavelmente, aquele que deve ser, tornando-os adultos
19
.
É dessa forma que Pasolini aponta de forma clara a sua concepção acerca da
ocorrência do trágico na modernidade, ou em qualquer época em que a sociedade
tenha bases racionalistas. Além do cunho evidentemente histórico, pois se trata de
assumir uma forma social de vida que é atributo da sociedade em que se vive, em
uma dada época, essa concepção pasoliniana aponta que a reprodução da adesão
necessária à herança paterna se dá a partir do indivíduo, mas sem deixar a este a
possibilidade de não aderir.
Esta asserção traz para a concepção pasoliniana acerca do que é o trágico,
tanto na Antiguidade quanto na modernidade, o reconhecimento da estreita ligação
entre a sociedade na qual se irá manifestar o fenômeno trágico e a sua conformação
19
Uno dei temi più misteriosi del teatro tragico greco è la predestinazione dei figli a pagare le colpe dei padri. Non
importa se i figli sono buoni, innocenti, pii: se i loro padri hanno peccato, essi devono essere puniti, È il coro -
un coro democratico - che si dichiara depositario di tale verità: e la enuncia senza introdurla e senza illustrarla,
tanto gli pare naturale. Confesso che questo tema del teatro greco io l'ho sempre accettato come qualcosa di
estraneo al mio sapere, accaduto «altrove» e in un «altro tempo». Non senza una certa ingenuità scolastica, ho
sempre considerato tale tema come assurdo e, a sua volta, ingenuo, «antropologicamente» ingenuo. Ma poi è
arrivato il momento della mia vita in cui ho dovuto ammettere di appartenere senza scampo alla generazione
dei padri. Senza scampo, perché i figli non solo sono nati, non solo sono cresciuti, ma sono giunti all'età della
ragione e il loro destino, quindi, comincia a essere ineluttabilmente quello che deve essere, rendendoli adulti.
36
fortemente regulada, religiosa e politicamente, mas sempre de modo irrecorrível. Es-
sa regulação é carregada de simbologia – de mitos ou de ideologia – que, embora
não explicitamente, atuam no sentido de tornar a sociedade coesa. Atuando como
sintoma, mitos e ideologia constituem um sistema caótico de signos para o autor
moderno de cinema que não pretenda revelar a ideologia moderna, mas que a con-
sidere como fonte de signos poéticos.
Por ser a tragédia grega expressão desses sintomas, devemos considerar
que, ao produzir seus textos, os tragediógrafos tanto explicitavam quanto ocultavam
os conflitos da pólis, o que os tornava únicos em suas especificidades e conferia aos
textos o caráter político a que Pasolini se refere na Lettera del traduttore (PASOLINI,
1960):
Na realidade, a língua de Ésquilo, como qualquer língua, é referencial, sim: mas a
sua referencialidade é para um raciocínio que é tudo, menos mítico e por definição
poético, é para um conglomerado de ideias muito concreto e historicamente verificá-
vel. O significado da tragédia de Orestes é somente, exclusivamente, político. Cli-
temnestra, Agamêmnon, Egisto, Orestes, Apollo, Atena [...], além de serem figuras
humanamente plenas, contraditórias, fortemente indefinidas, são sobretudo [...] sím-
bolos: ou instrumentos para exprimir cenicamente ideias, conceitos: em suma, em
uma palavra, para exprimir aquilo que hoje chamamos de uma ideologia
20
.
O vazio deixado nos textos trágicos pelos seus autores é uma questão com-
plexa, que nos leva a pensar que não dizem tudo para não infringir tabus ou para
não se interrogarem a si mesmos. O desvendamento dessas ocultações deve ser
realizado pela obra moderna que se debruça sobre os textos das tragédias. Essa é a
mímesis crítica pasoliniana, que insiste ainda na necessidade de um método eficaz
para desvendar esse caráter político que o classicismo ocultou (PASOLINI, idem):
A tendência linguística geral pretende modificar continuamente os tons sublimes em
tons civilizados: uma desesperada correção de toda tentação classicista. Por isto um
avizinhamento à prosa, à alocução baixa, reflexiva. O grego de Ésquilo não me pa-
rece nem uma língua eleita nem expressiva: é extremamente instrumental. Às vezes
até de uma magreza elementar e rígida: tem uma sintaxe desprovida de qualquer
halo e de qualquer eco que o classicismo romântico nos habituou a perceber, como
contínua referência do texto clássico a um classicismo paradigmático, historicamente
abstrato
21
.
20
In realtà la lingua di Eschilo, come ogni lingua, è allusiva, sì: ma la sua allusività è verso un ragionamento
tutt'altro che mitico e per definizione poetico, è verso un conglobamento di idee molto concreto e storicamente
verificabile. Il significato delle tragedie di Oreste è solo, esclusivamente, politico. Clitemnestra, Agamennone,
Egisto, Oreste, Apollo, Atena, oltre che essere figure umanamente piene, contraddittorie, ricche, potentemente
indefinite (si veda la nobiltà d'animo che persiste nei personaggi normalmente e politicamente "negativi" di
Clitemnestra e Egisto) sono soprattutto - nel senso che così stanno soprattutto a cuore all'autore - dei simboli: o
degli strumenti per esprimere scenicamente delle idee, dei concetti: insomma, in una parola, per esprimere
quella che oggi chiamiamo una ideologia. (Tradução nossa)
21
La tendenza linguistica generale è stata a modificare continuamente i toni sublimi in toni civili: una disperata
correzione di ogni tentazione classicista. Da ciò un avvicinamento alla prosa, all'allocuzione bassa, ragionante.
Il greco di Eschilo non mi pare una lingua né eletta né espressiva: è estremamente strumentale. Talvolta fino a
una magrezza elementare e rigida: a una sintassi priva degli aloni e degli echi che il classicismo romantico ci
ha abituati a percepire, quale continua allusività del testo classico a una classicità paradigmatica,
storicamente astratta. (Tradução nossa)
37
Tanto na Antiguidade quanto na sociedade em que viveu Pasolini – a Itália di-
vidida entre o sul camponês e o norte industrializado – a transmissão dos códigos
mitológicos se deu como herança: na Grécia Antiga como um destino trágico, na Itá-
lia moderna como um hábito inexorável. O cinema pasoliniano substitui a forma sa-
cralizada do destino pela forma dessacralizada do hábito ou da lei: do Laio mítico
pelo militar do século XX, do Jasão jovem (que enxerga a forma mítica do Centauro)
pelo Jasão adulto, que enxerga a forma dupla do Centauro, mas só compreende
uma delas, da e Grécia pela mãe África, lembrando que o ritual de passagem da
África arcaica (ingênua e mítica) para a moderna (madura e industrializada) estava
em curso em 1970. Considera-se, além disso, que o amadurecimento das culturas é
inevitável, mas envolve conflitos, resistências e retrocessos, como está representado
no roteiro O pai selvagem.
Pasolini aponta sempre como causa da violência no decorrer do processo a-
fricano de descolonização a funesta aliança entre as forças coloniais, que jamais se
deixariam convencer, de bom grado, a abandonar seu projeto colonialista, e as tribos
africanas, que mantinham as suas inimizades ancestrais, já então violentamente ra-
cionalizadas, por estarem servindo aos interesses coloniais
22
. O rito de passagem
africano, como se pode observar, não era tão direto como o processo de superação
do mito pela razão na Grécia, representado na Oréstia. Pasolini via como positiva a
inevitável transformação social – o atendimento da maturidade africana – no rumo à
sociedade industrial socialista. Reconhece, entretanto, que a África mítica, embora
pressionada pela razão democrática e pela razão colonialista, permanece imersa
nas lutas entre as tribos e no conflito interior cuja imagem é a do estudante africano
Davidson e do professor europeu, iluminado e socialista, no roteiro O pai selvagem.
O rito grego de passagem da sociedade arcaica, cuja coesão era determinada
pela religião e pelo mito, para a sociedade racionalizada que gerou a tragédia ática,
pode ser incompreensível em sua totalidade pelo homem moderno, que não conse-
gue, como Jasão, entender o Centauro mítico, embora veja a sua imagem. Por outro
lado, a substituição pura e simples de uma pela outra, a representação da África
moderna pela Grécia Clássica, esbarra na complexidade do processo africano, que
22
Ainda neste ano de 2008 assiste-se na África aos conflitos tribais que alegam razões ancestrais e míticas mas
cujas causas, na realidade, são os interesses políticos coloniais, hoje basicamente em torno da existência ou
não do petróleo em determinadas regiões do continente.
38
incorpora um componente político e econômico (as forças coloniais). Dessa forma, a
representação da tragicidade do quadro africano não pode ser objeto de uma mera
adaptação, e a evocação da Oréstia no cinema pasoliniano se dará segundo a mí-
mesis crítica, que está associada ao que Pasolini chamou de cinema de poesia.
Em O pai selvagem, roteiro que permanece em estado de literatura, pois nun-
ca foi filmado, está presente o elemento trágico da herança paterna, citado acima. O
professor europeu, fascinado por estar lecionando para jovens de um estado africa-
no recém-libertado do jugo colonial, formalmente fala para seus alunos de democra-
cia e de poesia ocidental. Em um certo ponto do enredo ele obtém a adesão do
aluno Davidson ao processo civilizatório democrático, representada pela visão poéti-
ca que o jovem africano tem da floresta africana:
[Davidson] , pela primeira vez, a floresta da sua aldeia natal, que tantas vezes ti-
nha visto durante a infância. É uma descoberta que ele faz (guiado, talvez, pela
consciência que havia tomado com sua redação poética na escola...) [...] É apenas
uma imagem qualquer do interior da África: com o fundo rosado, no qual se desem-
penham os caprichosos e fúnebres perfis das árvores equatoriais
23
. E os rumores,
as vozes bestiais. A ânsia pré-humana aí reina, com sua paz de morte. (P
ASOLINI,
1975, p. 34)
Esta cena se dá quando Davidson retorna à sua aldeia natal, durante as fé-
rias. Algumas páginas antes, a reflexão do professor, pensando na despedida de
Davidson, é um monólogo consciente da difícil transformação do aluno africano e um
elogio da liberdade do indivíduo em relação a esse processo, uma visão utópica do
que seria a síntese entre a forma arcaica e a moderna:
– Adeus, Davidson, agora você está só. Volte apenas à África que lhe pertence...
como uma mãe moribunda ... Filho do mistério, que é o terror da pré-história, vá em
direção ao seu mistério, com uma pobre bagagem de conhecimento... Só, para me-
dir a desproporção que tem a vastidão dos continentes e a infinitude dos milênios...
naquele rosa de morte, só, agora, só... (PASOLINI, 1975, p. 32)
A adesão de Davidson ao processo civilizatório democrático representado pe-
lo professor se dá pela poesia, numa reprodução da síntese idealizada por Pasolini
entre instintos e sociedade moderna e democrática. Esse cruzamento é uma chave
para a compreensão do cinema de poesia pasoliniano, da sua especificidade e da
sua diferenciação em relação ao cinema romanesco. Na citação acima, a visão poé-
tica que Davidson tem da floresta contém im-signos incompreensíveis para o homem
moderno, e por isso precisa ser expressa através de uma câmera subjetiva indireta
livre, que para Pasolini é o correlato, no cinema, do que o discurso indireto livre é na
literatura: “Quando um escritor ‘revive o discurso’ de uma das suas personagens,
23
As mesmas árvores que Pasolini associa às Erínias nos Appunti...
39
mergulha na sua psicologia, mas também na sua língua: o Discurso Indireto Livre é,
por isso, sempre linguisticamente diferenciado em relação à língua do escritor”. Isso
porque, usando essa técnica, o autor de cinema desaparece no seu personagem e
pode então expressar a língua e a psicologia deste. Diante de uma câmera em sub-
jetiva indireta livre é como se o personagem, e não o autor, escolhesse os im-signos.
A visão de Davidson é uma visão onírica, poética, não literal e não racional. As árvo-
res são as mesmas da infância de Davidson, mas ele agora as vê de forma poética.
É como se a paisagem, signo naturalista, adquirisse valor de im-signo pelo lirismo
recém-adquirido de Davidson, uma síntese poética entre a África mítica que resistia
nele e a razão ocidental, uma forma racional e conflituosa de se apropriar do mito,
uma forma trágica, portanto.
Seguindo o roteiro O pai selvagem, uma vez na aldeia, Davidson é obrigado
pelo pai dele, um chefe de tribo, um pai selvagem, aliado das forças colonialistas, a
participar do ataque a uma tribo rival. A desrazão cobra seu preço, na Oréstia e na
África: na obra literária do século V a.C., a luta é vencida pela razão e as Erínias são
assimiladas e incorporadas à pólis como Eumênides; no continente africano do sécu-
lo XX, as forças antidemocráticas aliam-se às forças ancestrais a fim de manter as
formas terríveis e derrotar o progresso. As forças terríveis, entretanto, não perdem
seu lugar, continuam a lutar e os ritos ancestrais passam a simbolizar unicamente o
terror, pois terror e religiosidade se separam e passam a servir a objetivos diferen-
tes. A razão é representada também de duas formas: uma, semelhante à grega, é a
assimilação das forças religiosas arcaicas e terríveis pela pólis, resultando na sínte-
se utópica pasoliniana. A outra é a forma terrível dessacralizada, a restauração do
colonialismo, sobre a qual a razão democrática perde o controle. São o correlato a-
fricano dos versos de Ésquilo na Oréstia, já citados acima (ÉSQUILO, Eumênides, v.
656-660 e 666-668. In: KURY, 2003, p. 170).
Dessa forma, o esquema bipolar da tragédia não atende à situação africana,
uma vez que as forças que corresponderiam, na África, àquelas representadas pelas
Erínias não se deixaram atrair pela assimilação à ordem racional e democrática, uma
vez que o ódio tribal, já então obsoleto, foi encampado num conflito político de cunho
racionalista: a mesma razão do Areópago ateniense não pôde prevalecer sobre as
forças terríveis africanas, não teve poder para alcançar a síntese das forças arcaicas
e das modernizantes, porque um elemento externo à questão arcaico/moderno se
40
interpôs. Esta argumentação reforça a tese de que somente um cinema de poesia,
como definido por Pasolini, daria conta dessas complexas relações.
O quadro africano dramatizado por Pasolini em O pai selvagem historiciza a
representação de um conflito que não cabe na concepção classicista do trágico, que
retira deste o caráter histórico e político que Pasolini enxerga, exemplarmente, no
texto da Oréstia.
A expressão do trágico no cinema pasoliniano leva em conta a descoberta
desse fenômeno no século V a.C., mas considera que ele foi a expressão daquela
época. Modernamente, conceitos como o de genocídio cultural, forjado por Pasolini,
são apoiados na antropologia e na psicanálise, ciências do século XX. Esse conceito
é positivamente assimilado nos filmes trágicos, sendo importante instrumento para
desnaturalizar o fenômeno trágico, atribuindo-lhe causas históricas, ou seja, formas
particulares de existência dos conflitos, analisados e particularizados segundo a a-
ção das forças atuantes num dado momento e lugar.
As locações dos filmes terão papel importante para a funcionalidade da asso-
ciação buscada por Pasolini entre arcaico e moderno, visando alcançar a síntese
pretendida na representação do trágico. Trata-se de representar, nesses cenários,
um mundo anterior ao que a filologia, a lexicografia, a história, a criação de roman-
ces e a poesia lírica (veja SAID, 1990, p. 27) e o cinema romanesco apresentam co-
mo mundo arcaico. Pasolini realizará uma busca pelo cenário ideal que represente
visualmente a tragicidade do tema, ou seja, que contenha as imagens – topológicas,
mas também humanas, os rostos, principalmente – passíveis de gerarem poetica-
mente os im-signos. Essa busca é descrita pelo diretor italiano nas imagens e no
texto de Appunti per un’Orestiade africana, mas também quando ele viaja pelas lo-
cações possíveis para o filme Vangelo secondo Matteo (1964). Inicialmente havia-se
planejado rodar o filme nos locais onde se desenrolaram os acontecimentos da pai-
xão de Cristo, na Jordânia e na Palestina, locais recusados por Pasolini:
[voltei da Palestina] com a absoluta convicção de que não era possível, de modo al-
gum, utilizar a paisagem de Israel e da Jordânia, ou os rostos de Israel e da Jordâ-
nia. Os dois mil anos transcorridos desde a época de Cristo modificaram
profundamente o cenário natural, sempre há algo excessivamente moderno e indus-
trial
24
. (PASOLINI, 1965, p. 22)
24
[...] con la absoluta convicción de que no era posible en modo alguno utilizar el paisaje de Israel y de Jordania,
o los rostros de Israel y de Jordania. [...] Los dos mil años transcurridos desde La época de Cristo han modifi-
cado profundamente la escenografia natural, siempre hay algo excesivamente moderno e industrial. (Tradução
nossa)
41
É na Itália meridional da sua época que Pasolini identifica as oposições entre
arcaico e moderno que melhor expressariam as imagens pretendidas. A oposição
entre a Itália Meridional e a as regiões do Oriente Médio, agora industrializadas, abre
espaço para Pasolini identificar na primeira locação o universo caótico de imagens
ideal para filmar o Vangelo... Afirma Pasolini, quanto às locações escolhidas para
melhor representar o conflito pretendido:
[Pasolini se via obrigado a] tentar identificar continuamente tudo o que via e que ha-
via sido, mas que não podia em absoluto voltar a ser, com algo semelhante, conser-
vado mais genuinamente, mais estático, que pudesse, portanto, representar o
passado, os lugares e o cenário do Evangelho. A Itália meridional, Matera, Crotone,
la Pulla brindavam a possibilidade de oferecer, não só a paisagem da Terra Santa
transformada, mas também o intacto: o monte das Bem-aventuranças parece um
dos lugares mais desolados da Calábria ou de Pulla [...]
25
. (PASOLINI, 1965, p. 23)
Esses locais são como a paisagem africana revista, ou relida, por Davidson
no seu retorno à África, a paisagem propícia à narrativa da câmera em subjetiva indi-
reta livre. Também é marcante a associação feita por Pasolini entre essa destruição
violenta das formas arcaicas e o desenvolvimento do capitalismo na Itália. A oposi-
ção entre arcaico e moderno, representada na oposição Itália meridional / Itália se-
tentrional, aparece nos filmes Comizi d’amore (documentário, de 1963) e Mamma
Roma (1962), assim como em entrevistas apresentadas na TV, nas quais o diretor
italiano trata de temas políticos e de crimes violentos, geralmente envolvendo violên-
cia sexual contra mulheres. Pesquisar essas obras e as narrativas de Pasolini nas
quais ele aborda o submundo de Roma será o caminho para se obter os elementos
complementares ao pensamento trágico do diretor italiano.
No entrecruzamento dos filmes romanos (Accattone e Mamma Roma) com
Comizi d’amore se vislumbra a relação entre a discriminação do que é estrangeiro e
os rituais de violência, temas centrais de Medeia. É visível que o estrangeiro na An-
tiguidade era um signo do medo – vejamos o medo que Creonte tinha de Medeia e a
cena terrível do sacrifício de Glauce, descrito pelo mensageiro, assim como a che-
gada de Édipo, após ter assassinado Laio, trazendo com ele a peste. Para Pasolini o
estrangeiro, ou o estranho, é um im-signo recolhido no caos da ideologia ocidental
25
[...] se veia obligado a intentar identificar continuamente todo lo que veia y que había sido, pero que ya no
podía en absoluto volver a ser, con algo semejante, conservado más genuinamente, más estático, que pudie-
se, por lo tanto, representar el pasado, los lugares y el escenario del Evangelio. La Italia meridional, Matera,
Crotone, la Pulla [...] brindaban la posibilidad de ofrecer , no solo el paisaje de Tierra Santa transformado, sino
también el intacto: el monte de las Bienaventuranzas parece uno de los lugares más desolados de Calabria o
de la Pulla [...] (Tradução nossa)
42
moderna, que se torna produtivo para representar miticamente a relação entre estra-
nheza e violência.
Como im-signo – poeticamente, portanto – Medeia não é pretexto no enredo
pasoliniano somente para o medo de Creonte. Ela desperta nos habitantes da polis,
além dos sentimentos contraditórios relativos à posse de um precioso despojo obtido
através de rapto, o desejo ligado ao esplendor e à sensualidade orientais (apontados
por SAID, 1990, p. 16). A esse respeito, é de se notar a alusão feita pelo Centauro ao
amor de Jasão por Medeia, apesar dos cálculos deste.
Os dois estrangeiros trágicos – Édipo e Medeia – nas respectivas tragédias
são acolhidos em terras estranhas por terem realizado feitos vantajosos para as ci-
dades que os acolheram, pois ambos tinham dons excepcionais, segundo os mitos:
Medeia usou de magia para ajudar Jasão a roubar o velocino; Édipo usou seu dom
divinatório para derrotar a esfinge. Esses mesmos dons os perderiam e os levariam
a praticar as mais terríveis violências.
Davidson, personagem já citado de O pai selvagem, passa a ser estrangeiro
quando retorna, durante as férias, à sua aldeia, impregnado de poesia, e é obrigado
a participar dos rituais terríveis: “Davidson é cada vez mais envolvido, mesmo se
assiste àquilo de fora, como um europeu, um estranho”. E é também estrangeiro
quando retorna para a escola, depois de ter participado dos terríveis rituais, forçado
pelo pai: “É como uma doença que o mantém estranho, distante, taciturno, mau,
marginalizado”.
Essas associações entre o que é expresso de forma lógica por Pasolini e as
manifestações irracionais marginais ao sistema social mostram o quanto ele consi-
derava esteticamente produtiva a instância mítica segundo a qual os indivíduos a-
gem. Tal instância constitui o conjunto caótico que Pasolini vislumbrava como a fonte
para as imagens que virão à mente do autor de cinema quando ele for criar, ainda
mentalmente, os cenários, os personagens e seus caracteres, os enredos e as ce-
nas do seu filme. Esta matéria originária constituirá um conjunto mítico, mas não mi-
tológico, pois o conjunto é caótico. Dessa forma, a tragédia clássica passa a ser uma
matéria caótica na qual Pasolini irá buscar suas imagens, e não um sistema fechado
que caberia apenas imitar. O trágico não estaria na lógica da tragédia, mas no cho-
que entre esta e o caos mítico que a engendrou.
O enredo da tragédia grega estava tão afastado do mito primitivo – o que Pa-
solini chamaria de caos – quanto o cinema de prosa está afastado do cinema de po-
43
esia, pois a tragédia lida com o mito já elaborado, uma matéria já retirada do caos e
racionalizada pela epopeia. Não é o fato de a epopeia ser cantada e não escrita que
retira dela o papel de primeira narrativa dessacralizada que tomou seu material ori-
ginário do mito. Pasolini vai buscar o mito caótico na civilização pré-letrada da África
e na paisagem incompreensível da Capadócia, cenário de Medeia.
Aristóteles pretendia mostrar que todas as tragédias continham as mesmas
partes e visavam ao mesmo objetivo: a catarse. A tragédia pasoliniana não visa a
um determinado fim, pois se vale da particularidade de cada mito, como se cada um
fosse a matéria prima para um poema único. A violência da transformação das Erí-
nias em Eumênides encontra na África em processo de dessacralização o cenário
correspondente. A África arcaica é o caos que Pasolini cita em “Cinema de poesia”
(PASOLINI, 1982, p. 138):
[...] enquanto a comunicação instrumental que está na base da comunicação poética
ou filosófica é extremamente elaborada e constitui um sistema real historicamente
complexo e amadurecido – a comunicação visual, que é a base da linguagem cine-
matográfica, é, pelo contrário, extremamente rude, quase animal. [...] Tanto a mímica
e a realidade bruta como os sonhos e os mecanismos de memória, são factos quase
pré-humanos ou nos limites do humano: são, em todo o caso, pré-gramaticais e ab-
solutamente pré-morfológicos [...] O instrumento linguístico sobre o qual se implanta
o cinema é, por isso, de tipo irracionalista: eis o que explica a qualidade onírica pro-
funda do cinema e também a sua absoluta e imprescindível concreção, digamos, ob-
jectal.
[...] O autor de cinema [ao contrário do escritor] não possui um dicionário, mas uma
possibilidade infinita: não vai buscar os seus signos (im-signos) à arca, ao depósito,
à bagagem: mas ao caos, onde estas não são mais do que meras possibilidades ou
sombras de comunicação mecânica e onírica. (P
ASOLINI, 1982, p. 139)
Numa operação comparatista, cabe dizer que a poética pasoliniana se opõe à
obra de mesmo nome de Aristóteles, porque considera que as partes constitutivas
serão as reminiscências do mito, enquanto imagens de um léxico caótico. Por esse
motivo, a percepção pasoliniana da tragédia também não se amolda à análise sobre
o trágico dos filósofos do romantismo alemão porque considera que a origem trágica
pretendida se encontra nas idiossincrasias dos mitos e não na similaridade ou na
sistematização das tragédias. Pensemos na escolha de Pasolini: Édipo Rei, Medeia
e a Oréstia. Nessas três peças está presente o tema da predestinação dos filhos em
pagar a culpa dos pais, considerado misterioso por Pasolini, como consta da citação
no início deste parágrafo. Este tema constitui o que a cultura de esquerda italiana
considera conformismo.
Pasolini era um humanista. Representou no seu cinema mítico-trágico a pre-
sença, como força criativa, da mitologia na vida do homem moderno. Recusa, entre-
tanto, a inevitabilidade do destino que esse pensamento mítico representou no
passado. À luz do estranhamento do diretor italiano quanto à herança da culpa
44
transmitida pelos pais, é sensato se identificar como im-signos recolhidos no caos
dos textos trágicos os sacrifícios realizados por Medeia, Édipo e Orestes, substituí-
dos pelo inconformismo no mundo moderno.
Dessa forma, o Édipo de Pasolini, após tomar conhecimento do destino her-
dado do pai, anunciado pela Pitonisa, recusa a maldição incestuosa imposta pelos
deuses aos Labidácidas e se vinga do pai, simbolizado pela figura autoritária de Lai-
o, aspecto fortemente iluminado por Pasolini.
Medeia, aparentemente lamuriosa e derrotada no início da terceira parte do
filme, cenas que coincidem com o início do enredo de Eurípides, reencontra-se com
o seu avô, que lhe cobra, ao alvorecer, a vingança contra o desrespeito feito a ele
pela pólis que lhe roubou a neta. Ela sacrifica os filhos ao pai do seu pai, assim co-
mo fizera com Glauce, contrariando dessa forma os sonhos de poder perene que
Jasão fora buscar na Cólquida, roubando o velocino.
Orestes consegue ser absolvido no tribunal regido pela razão humana, sob a
proteção de Palas Atená, causando assim a síntese entre entidades malévolas e
benéficas, o que, para Pasolini, representa o fim do medo ancestral e o fim das vin-
ganças sucessivas.
Colocando em cena esses im-signos, Pasolini não visa reproduzir exatamente
o que foi representado no palco grego, e nem mesmo comparar a vida moderna com
a vida na Antiguidade, remetendo dessa forma a uma essência comum entre o ho-
mem grego e o homem moderno, o que seria fugir à história. Assistindo aos seus
filmes trágicos, o espectador moderno terá diante dele os signos poéticos que pro-
porcionarão o reencontro com um imaginário mítico recalcado pelo racionalismo da
sociedade capitalista e consumista moderna. Esse imaginário não foi suprimido, mas
permanece no homem moderno como falta ou angústia. Massimo FUSILLO (1996),
em sua obra La Grecia secondo Pasolini: Mito e cinema, afirma que um ponto impor-
tante para a poética pasoliniana era “a assimilação de alguns elementos arcaicos
por parte do mundo moderno, o momento preciso da síntese”. E ainda cita Pasolini:
“A incerteza existencial da sociedade primitiva permanece como categoria da angús-
tia existencial ou da fantasia, na sociedade evoluída” (p. 182).
A revelação, nos filmes trágicos, desse imaginário recalcado é uma provoca-
ção para o homem moderno se preocupar com o seu cotidiano e recuperar um sen-
tido de humanidade que se opõe ao pretendido individualismo anunciado pela mídia,
paradigma do consumismo competitivo. O cinema trágico se opõe, portanto, ao mero
45
entretenimento. Além disso, o cinema trágico, opondo-se ao conformismo que consi-
dera sempre a condição da humanidade como “natural”, aponta para um télos, que é
obter do espectador reações críticas aos “factos quase pré-humanos ou nos limites
do humano” apresentados como imagens na tela. Dessa forma, contrariamente à
passividade proposta pelo entretenimento, o que não é como nós é apresentado e
deve ser digerido, criticado.
O cinema trágico, portanto, se posiciona em campo oposto ao da indústria do
entretenimento, que causa o encobrimento da instância trágica. A distinção entre os
dois gêneros de cinema é feita a partir da semiologia pasoliniana, definida em “Ci-
nema de poesia”
26
. O rumo tomado pelo cinema de Pasolini, a partir dos Appunti...
não é casual ou meramente estético. Trata-se de um posicionamento político que
levou em conta a oposição racional/modernidade e irracional/Antiguidade. Foi então
uma definição política do rumo que o diretor italiano via para o cinema ocidental co-
mo crítico da sociedade industrial e da indústria do cinema.
A fim de caracterizar o quanto o cinema trágico-mítico de Pasolini se afasta
do cinema romanesco contemporâneo, paradigma do cinema identificado com a in-
dústria cultural, é necessário, que seja feito um levantamento dos atributos dessas
obras mais marcantes do gênero romanesco que simplesmente fazem adaptações,
assim como uma análise dos seus signos e dos respectivos contextos históricos.
Esta análise se baseará nos conceitos pasolinianos de lin-signo e de im-
signo, definidos por Pasolini no texto “O ‘cinema de poesia’”. Os lin-signos são as
palavras, que se encontram reunidas no léxico de uma língua. Eles são cadeias so-
noras que podem assumir diferentes significados quando acompanhados de diferen-
tes entonações ou de mímica. Já os im-signos são imagens oníricas que vêm até
nós quando recordamos algo, ou quando sonhamos. Enquanto o escritor busca as
palavras no dicionário dos lin-signos do seu meio e da sua nação e faz delas um uso
particular, estendendo seu significado, o autor de cinema deve buscar suas imagens
não em um dicionário, mas no caos constituído por um número infinito de imagens,
pois é infinito o número de imagens que podem ser imaginativamente criadas.
Pode-se dizer, entretanto, que ao longo de mais de cem anos de cinema foi
criado um dicionário de im-signos, visto que os im-signos puramente morfológicos
26
PASOLINI, P.P. Cinema de poesia. In: Empirismo hereje.
46
recolhidos no caos pelo autor de cinema, acrescidos de significado individual – um
estilema –, se tornaram, em grande número, sintagmas. Tais sintagmas se encon-
tram à disposição do autor. Este, entretanto, ao invés de lançar mão deles, pode ir
buscar no caos infinito novos im-signos, a fim de atribuir a eles o significado único
que ocuparia seu lugar na obra única. O cinema romanesco caminha na primeira
direção, aproveitando-se do conhecimento formado pelo público acerca dos im-
signosdicionarizados para criar não a obra única, mas a obra de fácil compreen-
são e consumo.
1.1 Cinema trágico – Os filmes trágicos
As obras que compõem a trilogia trágica de Pasolini foram escritas, cada uma
delas, por um dos três maiores tragediógrafos gregos: Ésquilo, Sófocles, Eurípides.
É de ressaltar a importância dada por esses tragediógrafos à questão da vontade e
da escolha do herói trágico ao consumar a ação que o leva à queda, que perpassa a
tragédia, e que é também analisada por Aristóteles na Ética a Nicômaco, segundo
VERNANT (2005, p. 30 ss.). Ésquilo é o que atribui mais importância à determinação
divina sobre a ação do herói, e com isso se coloca mais próximo da narrativa épica,
na qual a Moira costurava o texto, sendo mesmo causa da verossimilhança. Para
Sófocles, por exemplo, em Édipo Rei, a origem da queda do herói, a maldição dos
Labdácidas, que determina sua ação nefasta, se perde nos tempos. Aparentemente,
Sófocles está mais voltado para o esmero do texto – as peripécias e reconhecimen-
tos – do que para a origem do erro de Édipo. Finalmente, o herói de Eurípides, como
observa o próprio Vernant, justifica suas ações trágicas por estar possuído por for-
ças invencíveis.
Retornando brevemente à citação do início do item 2 (Tragédia e cinema;
PASOLINI, 1980, p. 3), e à luz do que já foi dito naquele item acerca da adesão confli-
tuosa do jovem africano à mitologia paterna, o que justamente provoca o trágico pa-
soliniano é o fato de a adesão ser compulsória. De outra forma, não haveria trágico.
Como diz Pasolini (1980, p. 3), a culpabilidade do filho é anunciada “como se fosse
natural” por um coro democrático. No cinema trágico são muitas as formas de ex-
pressar poeticamente essa forma natural. No filme Medeia, é pela voz e pela figura
47
do Centauro que fala a Jasão. Nessa fala, o Centauro associa o destino trágico de
Jasão a uma sequência de mudanças na história do pensamento humano, que parte
de um passado mítico e chega a um presente racional: “na verdade não há deus al-
gum”, afirma o Centauro.
É importante assinalar, entretanto, que esse naturalismo pasoliniano não cede
à nostalgia, característica do cinema nomeado romanesco nesta tese, de valorizar a
forma antiga e considerar que, na modernidade, algo de melhor foi perdido. Tais
preocupações são expressas por Pasolini pela formulação de conceitos como “uni-
verso horrendo”:
[...] os escritos de Pasolini sobre o ‘universo horrendo’ [...] nascem sob o signo da-
quela visão natural imóvel [conformista, portanto]: a burguesia industrial capitalista
como ‘doença’ que corrompe inexoravelmente toda a civilização passada e inexora-
velmente ‘contagia’ todos os seus opositores, até chegar a coincidir com o mundo
em sua totalidade. (FERRETTI, 1982, p. 17)
Dessa forma, ao contrário de uma condenação de Jasão pela sua traição a
Medeia, o que condena o Jasão pasoliniano ao seu terrível destino é a sua hybris, a
sua desmedida ambição, a valorização por ele da materialidade da civilização da
razão. Essa exacerbação racionalista faz Jasão perder seu caráter de herói mítico
da epopeia, da mesma forma que deixa de lado a metade poética das Eumênides,
razão do desespero do herói ao ser advertido pelo Novo Centauro, no início da se-
gunda parte do filme Medeia: “na realidade – fora dos teus cálculos e da tua interpre-
tação – você ama Medeia [...] e não compreende a sua catástrofe espiritual, sua
desorientação de mulher do mundo antigo em um mundo que desconhece tudo aqui-
lo em que ela acreditou um dia” (P
ASOLINI, 2002, p. 117). Esse é o aspecto colonia-
lista, a mesma força que na África de O pai selvagem lança umas tribos contra as
outras e causa o rompimento da síntese idealizada, entre as forças arcaicas e mo-
dernas, simbolizadas pelas Eumênides e apontada por Pasolini como “eminente-
mente política” na Oréstia.
Essas são as duas formas de razão. Uma que reprime violentamente os ritu-
ais arcaicos, que Ésquilo representa como a substituição as Erínias pelas Eumêni-
des. A outra, que Pasolini – politicamente – lamenta é a existência de
[...] um ‘poder industrial transnacional’, que engloba sistemas econômico-sociais di-
ferentes numa mesma lógica ‘sacrílega’, de extinção das ‘histórias particularistas’ e
nacionais, de cruel repressão da ‘diversidade’, de liquidação do ‘romanesco’ e da
aventura e do ‘sentimento’, de ‘destruição do velho mundo’ da ‘beleza’ e ‘reconstru-
ção do novo (por enquanto horrendo)’, de subversão da ‘qualidade da vida’, de ‘uni-
ficação’ e ‘homologação’ tecnológica etc. E há – do Ocidente ao Oriente e, em parte,
no próprio Terceiro Mundo – o ‘Bem estar’ como ‘mito’ que subverte todo ‘valor’ tra-
dicional, as ‘novidades’ da técnica e da informação como cancelamento de ‘todo
passado’, o consumismo como desencadeamento de ‘agressividade industrial’ etc.
(F
ERRETTI, 1982, p. 17)
48
Jasão, como as forças colonialistas africanas, causa o desequilíbrio entre ins-
tinto e razão, base do tratado mítico selado por Atená. A instância primitiva instintiva,
superada mas remanescente no homem, deve permanecer no inconsciente a fim de
ligar o homem à imaginação e de não torná-lo totalmente materialista. Essa é a mis-
são dos dois Centauros em Corinto, lembrar a Jasão que ele trouxe da Cólquida dois
signos de ancestralidade: o velocino, que ele abandonou por não ter significado fora
da sua terra, e Medeia, que ele ama, mas que rejeita em nome do poder advindo da
aliança política com Creonte. Tudo isso é provado pelo Novo Centauro na sua apari-
ção. O Novo Centauro é a força produtiva que representa a síntese resultante do
embate entre as forças ancestrais e as modernas forças da razão.
É como se fosse mostrado, nessa passagem do mundo bárbaro-mítico da
Cólquida e do velocino de ouro para o mundo clássico grego, a enorme distância
entre mito e lógos e a impossibilidade da existência de um sem que o outro exista
em contrapartida, dupla existência que é possível na tensão das metamorfoses que,
como na África, não estão numa rua de mão única, mas que existe como síntese no
embate das contradições.
O primitivo não deseja permanecer primitivo, conforme afirma o estudante a-
fricano nos Appunti... (PASOLINI, 1968, 0:57:17). Medeia deseja modernizar-se, se-
questra o velocino e o leva, juntamente com Jasão, para o mundo da razão, mas
desencadeia uma crise no mundo moderno do qual quer participar e sofre também
uma crise porque não consegue despir-se dos trajes antigos, aos quais recorre
quando pretende intervir naquele mundo. Eurípides traz para o pensamento do ho-
mem grego a barbárie representada por Medeia, a fim de, esteticamente e em acor-
do com as Eumênides, criar a síntese de barbárie e razão. Pasolini apenas resgata
esse pensamento euripidiano e o explicita, usando a linguagem do cinema, que Eu-
rípides não conhecia. Recusando também qualquer julgamento moral, qualquer ex-
clusão do bárbaro, Pasolini explicita o conflito através do seu cinema de poesia,
porque seria impossível expressar todo o alcance do conflito entre Medeia e a pólis
entre a pólis e Medeia – somente reproduzindo as imagens do pensamento euripidi-
ano, que se situava ainda numa forma primitiva de expressão estética.
A empresa argonáutica, no filme Medeia, é uma empresa civilizatória. Ainda
que faça parte de um ciclo épico, a expedição é imaginada por Pasolini como signo
da expansão racionalizadora da civilização ocidental. Tudo no filme leva a esse sig-
nificado: a justificativa que o Centauro dá para Jasão fazer a expedição; a atitude
49
dessacralizada dos argonautas, que saqueiam e desrespeitam as tradições; o des-
prezo pelo símbolo fálico dourado que é descoberto numa caverna na Cólquida. Tal-
vez o maior sinal disso seja a dessacralização do sacerdote do Sol, que antes
participara do sacrifício humano e que é humilhado durante o saque da caverna,
sendo empurrado por um dos argonautas e recebendo uma moeda atirada por eles.
Poeticamente, Pasolini retira do caos que é o imaginário sobre a época heróica da
Grécia, o signo “argonautas”, e depois trata de fazê-lo compreensível para o espec-
tador, atribuindo a ele o papel civilizatório. O Centauro impulsiona Jasão a realizar
seu ritual de iniciação na modernidade – o resgate do velocino –, para que ele passe
a ser um signo moderno de exaltação da razão, paradigma da nossa sociedade. De-
pois, em Corinto, este ser mítico aparece novamente para o herói, agora em forma
dupla, para mostrar a Jasão como ele se afastara dos ensinamentos recebidos em
criança passou a ser um homem dividido, tragicamente moderno.
Medeia, no filme, também se mantém dividida. Embora tenha as roupas tro-
cadas pelas filhas de Pélias, na entrada em Iolco, ela continua sendo “um vaso cheio
de um saber que não me pertence”. Mas ela sintetiza o arcaico, o religioso, o mo-
derno e, no momento trágico, volta a ser a sacerdotisa que realiza a justiça divina,
opondo-se ao já exposto por Pasolini nos Appunti..., àquela altura recentemente rea-
lizado, pois neste último o que ressalta como solução da trama é o apogeu da justiça
dos homens. Esse retrocesso – a volta de uma prática antiga no interior da pólis
representa poeticamente o problema exposto por Eurípides: eventualmente forças
poderosas, femininas, ancestrais, voltariam à cena para finalizar de forma trágica
questões que a justiça humana da pólis ainda não alcançava, como a sucessão de
pais para filhos e as ameaças, ainda presentes, do banimento e do tão temido poder
do tirano. Pasolini buscava, afinal, uma abordagem mítico-histórica da razão humana
exposta na tragédia?
Essa questão está presente como matéria trágica originária no caos de signos
que Pasolini encontra na África, no sul da Itália, nas crônicas da imprensa. Os signos
de O pai selvagem, apontados no item anterior foram descobertos por Pasolini na
África. Não foram encontrados pelo diretor italiano na poesia africana negra ou em
obras da mitologia africana. Aquele signos são produzidos pela imaginação, a partir
da presença, na África moderna, de elementos míticos e da natureza, como as árvo-
res que fazem parte do sonho poético de Davidson e do roteiro dos Appuntti... como
50
representações das Erínias, as forças da natureza. São signos das forças incontro-
láveis.
Essa descoberta dos signos e a sua consequente exposição de forma estética
conduz a um aspecto do pensamento pasoliniano que cabe ressaltar, a fim de que
não se imagine que o diretor italiano aludia a uma valorização de práticas ancestrais.
Na verdade, o fascínio de Pasolini pelo mundo grego era justamente pelo que esse
mundo legou à humanidade como pensamento racional. Não se trata de uma nos-
talgia que aponte como solução da angústia do homem moderno um retorno ao pen-
samento pré-racional, na forma de uma busca, ainda que estética. A influência sobre
Pasolini do pensamento de James George FRAZER (1854-1941), antropólogo inglês
cuja obra The golden bough (1890)
27
é apontada pelos autores Massimo Canevacci
e Massimo Fusillo como uma das fontes da antropologia pasoliniana. É de ressaltar,
nesta obra, os conceitos que colocam a magia como estando entre uma “ciência es-
púria” e uma “arte abortada”, que, aparentemente constituem a imagem que Pasolini
pretende opor à razão legada pela civilização grega. São relevantes, em apoio a es-
ta tese, as cenas da segunda parte do filme Medeia (o sacrifício humano, os animais
mortos apodrecidos) e do Édipo Rei, a desastrosa entrevista de Édipo com a Pitoni-
sa, quando esta escarnece dele e da vida dele, o que leva o jovem Édipo a se per-
guntar “aonde vai minha juventude?”. Esses destinos, de Medeia e de Édipo,
naturalisticamente anunciados pelo coro democrático, como Pasolini assinala na ci-
tação do início do item 2, impostos pela tradição paterna, como ademais acontece
em O pai selvagem, é que serão manifestações ancestrais da pré-razão, produtiva-
mente substituídas pela razão, segundo uma visão política que Pasolini já identifica-
ra na Oréstia. É esta forma de ver o fenômeno trágico como tensão entre o apelo
ancestral e o compromisso com a racionalidade que possibilita, nesta tese, a identifi-
cação do pensamento arcaico como léxico caótico dos im-signos que fornecerá as
imagens dos filmes trágicos de Pasolini, como será exposto adiante.
Pier Paolo Pasolini realizou, entre 1968 e 1969, uma viagem à África, da qual
resultou o filme-documentário-ensaio intitulado Appunti per un’Orestiade africana.
Neste filme, Pasolini representa o momento histórico que ocorria na África – o pro-
27
Frazer levanta a tese de que o pensamento humano evoluiu de um estágio mágico para outro religioso, e daí
para um nível científico. Esta tese foi logo refutada por outros antropólogos, mas a distinção feita por Frazer
entre magia e religião, ainda é aceita: na magia, o utilizador tenta controlar através de "técnicas" o mundo e os
acontecimentos, enquanto na religião, ele requisita o auxílio de espíritos e divindades.
51
cesso de descolonização – como uma passagem de uma civilização mítica para uma
civilização moderna, baseada na razão e nos modernos processos de produção. Es-
sa viagem de Pasolini liga o mundo moderno com a Antiguidade e afirma ser possí-
vel a coexistência das duas formas: a África ancestral e mítica com a África
industrial, democrática e racional. O deslocamento não se dá apenas espacialmente.
É um deslocamento também cultural, uma vez que busca num processo político fic-
cionalizado por Ésquilo na Oréstia (458 a.C.) a forma de representar o processo o-
corrido na modernidade, na África.
Em Comizi d’amore, filme documentário-ensaístico já citado, assim como nos
Appunti..., Pasolini registra seu próprio estranhamento em relação às personagens e
aos cenários enfocados. É como se eles estivessem “alhures e em um outro tempo”,
e fossem “algo estranho ao meu saber”, sentimento expresso por Pasolini em rela-
ção à herança que os filhos recebem da culpa paterna na tragédia grega, tema que,
seguramente, é um dos formadores do fenômeno trágico (veja citação acima:
PASOLINI, 1980, p. 3). São esses temas estranhos a nós, modernos, que cabe abor-
dar pela via da imaginação poética no cinema, ou seja, pela técnica da subjetiva in-
direta livre, pelo desaparecimento do autor na personagem.
O primeiro passo no caminho do cinema de poesia, afirma Pasolini, é “retirar
do caos o im-signo, torná-lo possível e pressupô-lo como sistematizado num dicioná-
rio dos im-signos significativos (mímica, ambiente, sonho, memória)” (PASOLINI,
1982, p. 141). Significativamente, esses dois filmes são apontamentos: Comizi... pa-
ra o Vangelo...; os Appunti... para um filme sobre a Oréstia que Pasolini realizaria na
África, mas que nunca foi rodado. Em relação a este, pode-se dizer que muitas das
questões apontadas estão representadas em Medeia e Édipo Rei. Principalmente
em relação a Medeia, os Appunti... têm uma clara ligação quanto ao prosseguimento
da obra de Pasolini, que a esta altura rejeitara a Trilogia da vida e já pensava em
Salò.
Pode-se então dar um primeiro passo, no sentido de definir o cinema trágico
de Pasolini, afirmando que os três filmes analisados nesta tese formam uma trilogia,
pois são obras baseadas nos mesmos pontos de partida e na mesma argumentação
das tragédias clássicas que os originaram, ou seja: a suplantação, pela razão, dos
instintos que compõem a natureza do homem se dá de forma conflituosa. O que Pa-
solini visa nessas três obras é representar a permanência desse conflito na moder-
nidade, uma vez que a luta entre instintos e razão persiste no homem hoje, assim
52
como persistia no tempo da tragédia. Sinais atuais dessa instintividade humana vio-
lentamente reprimida pela instauração da racionalidade da pólis e da democracia
moderna encontram-se conflituosamente representados em Medeia, em Édipo Rei e
nos Appunti... através de im-signos oníricos, retirados do caos primitivo, mas tam-
bém nas imagens da mídia, como imagens mitológicas modernas – imagens míticas
logicamente ordenadas.
Para se realizar o estudo das relações entre as três obras de referência do
teatro grego – Medeia, de Eurípides, Édipo Rei, de Sófocles, e Oréstia, de Ésquilo –
e os filmes trágicos de Pier Paolo Pasolini, segundo um recorte denominado “cinema
trágico”, é necessário, primeiramente, responder à indagação: é possível existir na
atualidade uma obra cinematográfica que aborde o fenômeno trágico? Em segundo
lugar seria necessário especificar o que faz de uma obra cinematográfica um “filme
trágico”. Finalmente, caberia reconhecer, nas obras de Pasolini, o que se identifica
com esse gênero de cinema.
Contrariamente à abordagem feita por Pasolini, existe uma linha de produção
cinematográfica que se limita, na sua imitação da tragédia, à ação e à finalidade –
categorias definidas por Aristóteles e que, uma vez consideradas, exageram o as-
pecto formal dos textos, tendendo para a adaptação dos clássicos à compreensão
do homem moderno, ignorando o fenômeno trágico. Encontram-se nessa segunda
linha de produção as obras que pretendem adaptar textos trágicos a problemáticas
sociais e políticas modernas e simplesmente transpõem características superficiais
de personagens, assim como a superficialidade de determinadas ações dos enredos
das tragédias, com a finalidade de criar ações heróicas e personagens formalmente
romanescos, que não representam, consequentemente, conflitos trágicos. As situa-
ções vividas nessas obras, contudo, não se referem ao conteúdo mítico necessaria-
mente formador da tragédia, pois não se originam do conflito homem-razão-
natureza, mas de conflitos corriqueiros da política e da forma de viver modernas.
As ideias pasolinianas que sustentam nossas argumentações encontram-se,
entre outros, no ensaio Lettera del traduttore (1960), publicado como prefácio à edi-
ção da tradução da Oréstia feita pelo diretor italiano, texto que assinala a rejeição
que este faz da visão classicista da Antiguidade. Essas duas condições – a realiza-
ção de cinema autoral e a recusa à interpretação da tragédia clássica segundo uma
visão idealista – levam à conceituação do cinema trágico de Pasolini como um gêne-
53
ro de cinema que realiza uma mímesis crítica da tragédia, que visa exprimir uma i-
deologia, e não realizar uma adaptação.
Pode-se considerar que cada época lê o trágico à sua maneira e que cada
uma delas se considera a definitiva e a mais abrangente. A leitura peculiar que Pa-
solini faz do trágico é apenas a leitura possível em uma época e tem como especifi-
cidade o fato de não se preocupar em incorporar todas as anteriores. Esta última
constatação, entretanto, não é indicativa de que a análise aqui empreendida se ba-
seie numa leitura a-histórica de Pasolini, uma vez que o próprio diretor levou sempre
em conta o momento histórico vivido por ele, especificamente na Itália, assim como
se voltou para a atribuição de um caráter universal ao fenômeno trágico, uma vez
que se refere sempre ao “homem antigo” e ao “homem moderno”, na busca de de-
terminar o que existiria de comum entre eles, sob o aspecto do conflito entre instinto
e razão.
Essa abordagem de Pasolini liga o mundo moderno com a Antiguidade e a-
firma ser possível a coexistência das duas formas. É o caso do filme Appunti per
un’Orestiade africana, no qual a África ancestral e mítica é associada, como elemen-
to contrastante, à África industrializada, democrática e racional. O deslocamento é
temporal e também de culturas. Pasolini busca num fenômeno político – a entrada
em cena dos dispositivos legais na pólis –, ficcionalizado por Ésquilo na Oréstia, a
forma de representar o processo ocorrido na modernidade, na África, embora visan-
do a uma generalização que abranja a humanidade. Essa tendência de buscar o
particular no geral e o universal no local, a fim de abranger toda a humanidade em
sua dimensão histórica, explica a opção de Pasolini pela tragédia grega, cujos enre-
dos, encenados no século V a.C., voltam-se para um tempo mítico, o que os torna
cenário de um problema atemporal passível de se atualizar em qualquer época e
qualquer sociedade. A mediação estética assegura a manutenção universal da pro-
blemática da tragédia para outros públicos.
Vale lembrar que a experiência de Pasolini com a tragédia grega inicia com a
tradução da Oréstia, de Ésquilo, a pedido de Vittorio Gassman, em 1959, conforme
assinalado por Massimo Fusillo em La Grecia secondo Pasolini: Mito e cinema
(1996). Na Lettera del tradutore (PASOLINI, 1960), prefácio da edição da tradução,
Pasolini expõe a motivação que o levou aos filmes trágicos. Tratava-se da expressão
estética de um conflito inconciliável, que marcou tanto a obra quanto a atuação de
Pasolini como homem público e intelectual. Joubert-Laurencin faz uma observação
54
procedente sobre o trecho da Lettera em que Pasolini afirma: “o irracional, represen-
tado pelas Erínias, não deve ser removido (o que seria impossível), mas simples-
mente reprimido e dominado pela razão, paixão produtiva e fértil”
28
. Argumenta
JOUBERT-LAURENCIN (1995, p. 212):
[...] é impossível dizer se ‘paixão produtiva e fértil’ designa a razão, ou se se refere a
irracional, o que não seria desprovido de lógica na demonstração. É a razão ou o ir-
racional que é produtivo? A ‘paixão’ ou a ‘ideologia’? justamente é impossível se de-
cidir pois, para Pasolini, os dois são iguais na proporção da sua oposição respectiva.
[...] não há oposição de dois termos inconciliáveis, mas reversibilidade do fantas-
ma
29
.
A dimensão política dada por Pasolini à transposição das tragédias para a
modernidade é o que define a linha para o seu cinema trágico. Na Lettera... Pasolini
aponta a positividade da transformação de uma “sociedade primitiva na qual domi-
nam os sentimentos primordiais, instintivos, obscuros (as Erínias)” para uma socie-
dade onde prepondera “a razão (ainda arcaicamente entendida como prerrogativa
viril: Atena nasceu sem mãe, diretamente do pai) [...] criando para a sociedade ou-
tras instituições modernas: a assembleia, o sufrágio”
30
. Animado por essa visão polí-
tica, Pasolini realiza, primeiramente, Édipo Rei (1967), em seguida os Appunti per
un’Orestiade africana (1968/1969) e depois Medeia (1970). Os dois primeiros filmes
de Pasolini, Accattonne e Mamma Roma, foram concebidos sob influência da leitura
e tradução da Oréstia, e contêm alusões trágicas, conforme Joubert-Laurencin, que
também afirma que Pasolini teve a ideia de filmar Édipo Rei durante as filmagens de
Accattonne, sendo o primeiro um retorno ao segundo.
Uma primeira vista sobre essas obras mostra a oposição entre os Appunti...,
basicamente uma afirmação das ideias da Lettera, e Medeia. Se, no primeiro, Paso-
lini considerava a mudança positiva da barbárie para a razão, no segundo, pratica-
mente, o que está ficcionalizado é um retrocesso civilizatório. Jasão traz para
Corinto a civilização do medo: o crime de Medeia é a revivescência do medo. Paso-
28
Texto original já citado na nota 9.
29
“[...] il est impossible de dire si les mots: ‘passion productive e fertile’ désignent-la ‘raison’, ou bien s’il renvoient
à l’irrationnel, ce qui ne serait pas non plus dénué de logique dans la démonstration. Est-ce la raison ou
l’irrationnel qui est productif ? la ‘passion’ ou l’idéologie’? Justement, il est impossible d’en décider car, pour
Pasolini, les deux sont également à proportion de leur opposition respective. [...] in n’y a pas opposition de
deux termes inconciliables, mas réversibilité du fantasme”. (Tradução nossa)
30
O texto original da Lettera... do qual foram retirados os excertos é o seguinte: “La trama delle tre tragedie di
Eschilo è questa: in una società primitiva dominano dei sentimenti che sono primordiali, istintivi, oscuri (le
Erinni), sempre pronte a travolgere le rozze istituzioni (la monarchia di Agamennone), operanti sotto il segno
uterino della madre, intesa appunto come forma informe e indifferente della natura. Ma contro tali sentimenti
arcaici, si erge la ragione (ancora arcaicamente intesa come prerogativa virile: Atena è nata senza madre,
direttamente dal padre), e li vince, creando per la società altre istituzioni, moderne: l'assemblea, il suffragio.”
(Tradução nossa)
55
lini cria um contraste entre a Corinto civilizada
31
e a personagem Medeia. A troca de
roupa, feita em Medeia pelas filhas de Pélias, é somente superficial, pois ela conti-
nua um vaso cheio de um saber alheio. Medeia não faz justiça, no sentido ocidental.
Ela representa um retrocesso civilizatório, o que nossa civilização ocidental condena.
É importante considerar que a compreensão do significado da barbárie na o-
bra de Pasolini e do fascínio dele por tudo que é arcaico deve ser feita pelo caminho
da compreensão de uma ambiguidade, ou do exercício de uma contradição, o que
remete, mais uma vez, à síntese entre arcaico e moderno. Afirma Alberto Moravia:
[...] neste época [após a ida de Pasolini para Roma, em 1950], ocorre sua importante
descoberta das camadas mais baixas do proletariado como sociedade alternativa e
revolucionária, análoga à sociedade protocristã, ou seja, portadora de uma mensa-
gem inconsciente de humildade e pobreza contraposta ao hedonismo niilista da bur-
guesia. (MORAVIA, 1995, p. 4)
Essa mudança no pensamento político de Pier Paolo Pasolini acarreta tam-
bém a realização de Accattone
32
(1961), primeiro filme dele. Moravia analisa a alte-
ração que ocorre, em função dessa mudança, na concepção de Pasolini sobre o
comunismo, ao mesmo tempo em que define a futura ideologia do diretor italiano,
que persistirá até a morte dele. Prossegue Moravia, a respeito da nova concepção
de Pasolini sobre o comunismo:
O mesmo não será então um comunismo iluminista e, menos ainda, científico. Ou
seja, não será um comunista marxista, mas populista e romântico, animado de pie-
dade patriótica, de nostalgia filológica e de reflexão antropológica, arraigado à tradi-
ção mais arcaica, e projetado ao mesmo tempo na utopia mais abstrata. [esse
comunista era também] existencial, criador e irracional. Sentimental por escolha cul-
tural consciente e crítico porque cada posição sentimental permite contradições que
excluem o uso da razão. Ou seja, Pasolini tinha descoberto precocemente que a ra-
zão não se presta a servir, mas vem servida. E que só as contradições permitem a
afirmação da personalidade. Em outras palavras, raciocinar é anônimo, contradizer-
se é pessoal
33
. (MORAVIA, 1995, p. 4)
31
Deve ser levado em conta o imaginário acerca dessa cidade grega durante a Antiguidade e ainda na altura do
século V a.C. Segundo S
ALLES (1982), Corinto (ao lado de Atenas e Alexandria) era um dos maiores centros de
recepção de viajantes do todo o mundo civilizado. Corinto, entretanto, tinha uma característica que perdurou
até o ano 146 d.C., quando foi destruída pelos romanos. Esta cidade aliava à grande riqueza circulante e ao
luxo em que viviam seus habitantes a fama de lugar onde se praticavam a libertinagem e os prazeres escusos.
Existiu também na cidade a prática da prostituição sagrada. Tais hábitos eram “perfeitamente integrados à vida
da cidade”, segundo Salles.
32
Accattone, em português, significa mendigo.
33
El mismo no será entonces un comunismo iluminista y, menos aún, científico. O sea, no será un comunismo
marxista sino populista y romántico, animado de piedad patriótica, de nostalgia filológica y de reflexión antropo-
lógica con arraigo en la tradición más arcaica, y proyectado al mismo tiempo en la utopía más abstracta. Es
superfluo agregar que semejante comunismo era fundamentalmente sentimental por ser existencial, creador e
irracional. Sentimental por consciente elección cultural y crítico porque cada posición sentimental permite con-
tradicciones que excluyen el uso de la razón. Ahora bien, Pasolini había descubierto muy temprano que la ra-
zón no se adapta a servir, viene servida. Y que sólo las contradicciones permiten la afirmación de la
personalidad. En otras palabras, razonar es anónimo; contradecirse es personal. (Tradução nossa, a partir de
versão em espanhol disponível em: http://www.libreremo.org.)
56
Essa utopia apontada por Moravia faz parte da contradição praticada por Pa-
solini, que, ao mesmo tempo em que condena o uso da razão como conformismo
34
,
aponta para o progresso decorrente do surgimento da razão na democracia grega. A
oposição entre conformismo e razão é discutida na entrevista de Moravia, feita por
Pasolini, que faz parte do filme Comizi d’amore: “[Pasolini] quer dizer que quem se
escandaliza é psicologicamente inseguro, ou seja, é quase um conformista”. Pasolini
insere a discussão sexual, inclusive a das uniões e do divórcio, na história, retirando-
a de uma discussão meramente naturalista. Associa estas questões ao momento
histórico e político da Itália, dividida entre o Sul camponês e o Norte industrializado,
mas mostra também que tal divisão não é geográfica, mas está presente como ideo-
logia em cada italiano. As respostas evasivas dos entrevistados apontam para o
quadro de conformismo que se apresenta no país, definido por Moravia, quando
contesta Cesare Musatti:
[Musatti] as opiniões sobre sexo têm funções defensivas para as pessoas. Conside-
rar que as coisas devem ser de uma determinada maneira de acordo com certas
convenções, com certas instituições, tem sua função psicológica. Defende da agres-
são dos impulsos instintivos. Temos medo da nossa instintividade e nos defendemos
com esse conformismo.
[Pasolini] o escândalo como elemento do instinto de conservação. [a Moravia] o que
você diz para concluir?
[Moravia] diria que uma crença conquistada com ajuda da razão e o exato exame da
realidade é bastante elástica para [alguém] não se escandalizar mais. Uma crença
aceita sem uma análise séria da razão, porque ela está sendo aceita por tradição,
tédio ou pela educação passiva, é o conformismo.
[Pasolini] o conformismo é a segurança dos inseguros.
[Moravia] por exemplo, os homens de profundo senso religioso não se escandalizam
nunca. Não creio que Cristo se escandalizasse. Os fariseus se escandalizavam
35
.
O exercício da contradição por Pasolini manifesta-se claramente no filme Me-
deia, na forma da exibição do sacrifício, na segunda parte do filme, assim como na
cena do sacrifício dos filhos. Pode-se pensar nessa contradição sob o ponto de vista
de que, uma vez dessacralizados os sacrifícios, ou seja, a partir do momento em que
os sacrifícios não têm mais valor ritualístico, mas são representados ficcionalmente,
passam a ter valor dramático como representação da demência. Dessa mesma for-
ma ocorre no roteiro O pai selvagem, o que permite que seja feito uma relação entre
violência e sacrifício na obra de Pasolini. Nos seus filmes trágicos, por exemplo: em
Medeia, no Édipo Rei e nos Appunti per un’Orestiade africana, nas cenas da guerra
34
O termo conformismo indica uma tendência do indivíduo de se adaptar à opinião, aos usos e comportamento
já definidos e prevalecentes política e socialmente. No âmbito social se define como conformista aquele que,
ignorando ou sacrificando sua própria expressão subjetiva livre, se adapta ao comportamento geral, às ideias e
às regras da maioria ou do grupo a que pertence.É de se notar a conotação extremamente pejorativa desse
termo na cultura política italiana. Ver em seguida a citação retirada do filme Comizi d’amore.
35
Traduzido diretamente do filme.
57
de Biafra. Paralelamente, a mesma demência é representada como conformismo no
filme Comizi d’amore, levada à condição de crime de morte, na cena em que, atra-
vés de gestos, um dos entrevistados, na Sicília, declara que prefere matar a mulher
a se encontrar na condição de divorciado, sob os aplausos dos curiosos em volta.
1.2 Signos trágicos: da tragédia clássica à atualidade
Retornando, ainda uma vez, à citação do início do capítulo 2 (PASOLINI, 1980,
p. 3), nota-se que o trágico, ou a tragicidade contida nos filmes de Pasolini, serão
sempre um sintoma de uma sociedade ou grupo humano atemporais e fortemente
regrados. A tradição do drama moderno apresenta também autores em cujos enre-
dos os erros humanos do passado têm consequências funestas para os persona-
gens trágicos, sem possibilidade de intervir nas ações o livre arbítrio, e essas ações
acarretam os respectivos castigos. Pasolini também vai em busca, no texto clássico,
desses personagens tornados trágicos pelo destino, como signos que ainda impreg-
nam a vida moderna e que passarão a integrar sua obra cinematográfica.
É a forma dessa busca e a da metamorfose do texto clássico em obra cine-
matográfica que definirão o cinema trágico pasoliniano como um conjunto de obras
historicamente localizado e crítico em relação às apropriações pseudoclássicas ou
simplesmente romanescas
36
que modernamente se fazem dos textos clássicos. A
estes autores escapa, mesmo porque se encontra encoberto pela admiração pelo
clássico, o conteúdo político da tragédia, que foi morto pelo classicismo e que Paso-
lini resgatou, apresentando-o ressurrecto na obra cinematográfica. Assim como o
corpo do jovem sacrificado em Medeia permanece como semente, os signos do trá-
gico, recolhidos por Pasolini na África, na periferia de Roma, na Itália Meridional e
nos mitos arcaicos são as sementes do seu cinema trágico. Do despedaçamento do
36
O termo “romanesco” foi escolhido por expressar melhor do que “romântico” a especificidade de um certo tipo
de cinema “que lembra romance; fabuloso, utópico, quimérico”, ou mesmo que é “marcado por aventuras, peri-
pécias, acontecimentos imprevistos, de modo a evocar um romance” (Dicionário Eletrônico Houaiss da Língua
Portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001. Verbete “romanesco” 1), ou ainda que apresenta tendência para o
uso de chavões e lugares comuns e para finais felizes ou que aborde assunto trágico com tratamento românti-
co.
58
corpo sacrificado permanecem os símbolos da fertilidade: o sangue e a carne, apon-
tando dessa forma o limite entre o homem e a natureza.
O sacrifício ritual é pressentido como realidade pelo homem arcaico e enten-
dido como algo estranho – terrível e amedrontador – por Eurípides. O homem do
século XX, o espectador de cinema, pode ver tais cenas e interpretá-las pelos seus
signos, causando a identificação pretendida pelo cinema de poesia entre signos reti-
rados do caos pelo autor e signos já reconhecidos pelo espectador, embora não de
forma paradigmática, mas de forma crítica.
Eurípides descreve da seguinte forma – lançando mão, para isso, do relato do
mensageiro – o sacrifício de Glauce, vítima envolta nas vestes sacrificiais fornecidas
pelo próprio deus sol:
À vista dos adornos 1314
ela não resistiu e logo concordou
com seu marido.
[...] Em frente a um espelho 1319
vestiu o véu, e com o diadema de ouro
já na cabeça ela compunha o penteado,
sorrindo à sua própria imagem refletida.
[...] um espetáculo terrível se mostrou 1329
aos nossos olhos: sua cor mudou e o corpo
dobrou-se; ela oscilou e seus formosos membros
tremiam [...]
Uma velha criada, pensando tratar-se 1334
de algum mal súbito mandado pelos deuses [...]
Exterminava-a dupla calamidade: 1349
do diadema de ouro em seus lindos cabelos
saía uma torrente sobrenatural
de chamas assassinas [...]
Todos temíamos tocar em seu cadáver, 1372
pois tanta desventura nos deixava atônitos.
[...] [Creonte:] Minha desditosa filha! 1378
Que deus quis infligir-te essa aviltante morte?
Quem decidiu privar de ti um ancião
à beira do sepulcro?
(E
URÍPIDES, 2003, p. 66-68)
37
Existem, nesta descrição da morte de Glauce, elementos inexprimíveis, senão
por palavras, como “um acesso de terror provocado por Pan ou por algum outro
deus” ou “ela começa a mudar de cor”, daí a necessidade de serem narrados pelo
mensageiro, que nessa função assume um papel coral, uma técnica narrativa seme-
lhante ao discurso indireto livre citado por Pasolini, quando a câmera do cinema usa
a própria língua do personagem. O mensageiro assiste aterrado à cena do selvagem
37
Apesar da opção feita pela edição brasileira, são necessárias duas ressalvas. A primeira, quanto ao verso
1331 (a numeração é da edição brasileira), para o qual foram encontradas duas versões diferentes: “seus
membros estão tomados por um tremor violento” (na edição francesa, E
URIPIDE, 1999) e “tremeu todo o seu
corpo” (na edição argentina, E
URÍPIDES, s/d). A segunda, no verso 1335, no qual as duas edições acima atribu-
em o “terror” (francesa) e o “furor” (argentina), literalmente, ao deus Pã. Assinalo essas passagens porque elas
atenuam o horror descrito pelo mensageiro.
59
sacrifício daquela que até a pouco, fora “a senhora que reverenciávamos em teu [de
Medeia] lugar” (vv. 1298-1299). Dramaticamente, essa narrativa do mensageiro a-
tende a um pedido da pérfida Medeia: “Conta! Como morreram eles? Meu prazer
será dobrado se eu ouvir que pereceram atormentados pelas dores mais terríveis”,
desejosa de se satisfazer com a forma como Glauce foi atraída para o sacrifício co-
mo uma presa fácil.
Essa forma narrativa, que para Pasolini é uma técnica e, portanto, insignifi-
cante em si mesma, pode ser empregada pelo autor por duas razões opostas:
a) para tornar ficticiamente objetivo – atribuindo a narração a uma personagem que
não é o próprio autor – aquilo que pretende dizer: por exemplo, uma sua visão parti-
cular do mundo, b) para procurar tornar realmente objetiva a narração de um mundo
objetivamente (leia-se classistamente) diferente do autor [...]. (P
ASOLINI, 1982, p. 65)
O tom coral da fala do mensageiro, que marca uma desaparição do autor na
personagem, ou a intenção de Eurípides de fazer desaparecer a autoria, são signos
de uma narrativa dirigida a uma coletividade. São um retardamento épico, remetem
a algo já vivido que vai ser dito: o mensageiro narra para Medeia, em pretérito perfei-
to, o resultado de uma ação dela e que irá repercutir no desfecho do drama. Por ou-
tro lado, a possível crítica de Eurípides aos costumes reinantes em Corinto – modo
de vida citado por SALLES (1982, veja nota 24), que se baseia, por sua vez, em rela-
tos antigos – é visível nas diversas alusões à importância da riqueza para Glauce e à
nobreza do seu belo corpo, à sua pele alvíssima; também a frivolidade do caráter de
Glauce, sua vaidade ao olhar-se no espelho e a mudança de seu humor em relação
aos filhos de Jasão diante da visão das ricas vestes doadas por Medeia são os sig-
nos que levarão ao seu sacrifício. O tom de sacrifício é ainda mais marcado pela
preparação ritual: são vestidas em Glauce as roupas que Medeia abandonara quan-
do chegara em Iolco, cena que, no filme de Pasolini, tem caráter antecipatório, tanto
mais que as antigas roupas são cuidadosamente acondicionadas pelas filhas de Pé-
lias e entregues a Medeia. São processos inversos: a civilização de Medeia e a bar-
barização de Glauce.
Esses signos são ardilosamente colocados por Eurípides nos subterrâneos do
seu texto. Caberá a Pasolini iluminá-los, mostrando as ligações entre barbárie e civi-
lização. Medeia foi despida e Glauce é vestida com as suas roupas. Enquanto Glau-
ce é vestida pelas criadas, desenrolam-se no exterior do palácio os preparativos
para o casamento dela com Jasão. A trilha sonora é a mesma cantilena que se ouve
durante o sacrifício do jovem na segunda parte do filme.
60
Pensemos, entretanto, no significado, para o público do século V, da fuga de
Medeia no carro do Sol. Pensemos nisso do ponto de vista da catarse e do ponto de
vista da crítica que Aristóteles faz à introdução, a serviço dessa fuga, do deus ex-
machina. A fuga de Medeia na tragédia de Eurípides é triunfal. Na versão pasolinia-
na também, sendo que, nesta, Medeia, entre as chamas, profere para Jasão a pala-
vra final: “nada mais é possível doravante”. Esta frase definitiva, se for limitada ao
episódio ocorrido entre Medeia e Jasão no âmbito do lar, perde sua força dramática
e seu caráter muito mais amplo e político, pois suprime os fatos gravíssimos a que
ela sucede, a séria de crimes e assassinatos praticados por Medeia.
É significativo, então, o início da Medeia de Pasolini, não já em Corinto, como
faz Eurípides, mas nos primeiros diálogos entre o Centauro e Jasão, que é como
uma volta ao caos. Quem narra para Jasão a sua história é a própria figura mítica.
Narra como a empresa dos Argonautas terá como coroamento a dessacralização do
velocino e de Medeia. O sagrado, entretanto, volta para Medeia por meio de um ritu-
al, seu encontro com o Sol, e por meio de um sacrifício, a morte dos filhos. A Medeia
pasoliniana age por ciúmes, mas, acima disso, age como sacerdotisa, como instru-
mento da “justiça cara a deus”, por ela invocada literalmente, tanto no texto euripidi-
ano como no pasoliniano.
Também o sacrifício dos filhos é uma fuga à razão, dramaticamente justifica-
da pela traição de Jasão e pelo ciúme provocado em Medeia. Essa ausência de frei-
os é definida por GIRARD: “se há realmente crises sacrificiais, é necessário que elas
tenham um freio, é necessário que um mecanismo auto-regulador intervenha antes
que tudo seja consumado”
38
(GIRARD, 1995, p. 101, citado por BAUZÁ, 2000, na epí-
grafe). Os freios, segundo Ésquilo, em Eumênides, eram o “rancor contra os assas-
sinos” (v. 665), e haviam se tornado ineficazes devido às novas leis.
Accattonne também é objeto de diasparagmos. Toda a sociedade o pune,
como se isso curasse os males em geral, quando, particularmente, todos pecavam.
Somente a operária que Acattone coloca na vida é sem máculas. Todos são crimi-
nosos, até mesmo o ladrão ousa criticar Acattone por ser rufião. Acattone então, na
sua postura bíblica, é sacrificado, seu corpo é dividido: o homem da rua, o sotoprole-
tário é desmembrado e renasce como Acattone, representação estética.
38
S’il y a réellement des crises sacrificielles, il faut qu’elles comportent un frein, il faut qu’un mécanisme auto-
régulateur intervienne avant que tout soit consumé. (Tradução nossa)
61
O conceito de crise sacrificial cria uma ligação entre o texto trágico e o cinema
trágico pasoliniano, possibilitando o entendimento da diferença entre a representa-
ção crítica pasoliniana da tragédia e as interpretações que só conseguem traduzir o
texto trágico criando uma representação romanesca:
O conceito de crise sacrificial parece capaz de esclarecer alguns aspectos da tragé-
dia. Em boa parte, o religioso empresta sua linguagem à tragédia; o criminoso se
considera menos como um justiceiro do que como um sacrificador. Sempre se con-
sidera a crise trágica segundo a perspectiva da ordem que está nascendo, nunca da
perspectiva da ordem que está desmoronando. A razão dessa carência é evidente.
O pensamento moderno nunca foi capaz de atribuir uma função real ao sacrifício;
não pode perceber o desmoronamento de uma ordem cuja natureza lhe escapa. Pa-
ra dizer a verdade, não basta convencer-se de que essa ordem existiu para que se
esclareçam problemas propriamente religiosos da época trágica. Diferentemente dos
profetas judeus que esboçam quadros de conjunto cuja perspectiva é francamente
histórica, os trágicos gregos só evocam sua crise sacrificial através de figuras lendá-
rias cujos perfis estavam fixados pela tradição
39
. (GIRARD, 1995, p. 50)
A presença de Medeia em Corinto representa esse conflito. Medeia é o retro-
cesso. A cena de Jasão dançando no cenário da Piazza dei Miracoli, observado por
Medeia, representa a sociedade iluminada. Medeia, na cena, é a sacerdotisa sem
poder diante da civilização que havia vencido o medo, que retorna com a presença
da estrangeira. O freio para a ação de Medeia seria a autoridade de Creonte, se-
gundo as novas leis do estado, mas este, tomado pelo medo (“é inútil alinhar pretex-
tos; é por medo”, v. 321), cede e concede a Medeia mais um dia de permanência em
Corinto:
Minha vontade, nada tem de prepotente
e a piedade já me foi funesta antes.
Tenho noção agora mesmo de que erro,
mas apesar de tudo serás atendida.
Medeia, entretanto, não sente piedade alguma e trama os assassinatos:
[...] lisonjeei Creonte para o meu proveito [415]
e minhas súplicas foram premeditadas.
Eu nem lhe falaria, se não fosse assim,
Nem minhas mãos o tocariam, mas tão longe
O leva a insensatez que, embora ele pudesse
Deter meus planos expulsando-me daqui, [420]
Deixou-me ficar mais um dia. E neste dia
Serão cadáveres três inimigos meus:
O pai, a filha e seu marido. [...]
(E
URÍPIDES, 2003, p. 69)
39
El concepto de crisis sacrificial parece capaz de esclarecer algunos aspectos de la tragedia. En muy buena
parte, lo religioso presta su lenguaje a la tragedia; el criminal se considera menos como un justiciero que como
un sacrificador. Siempre se considera la crisis trágica desde la perspectiva del orden que está naciendo, nunca
desde la perspectiva del orden que está desplomdondose. La razón de esta carencia es evidente. El pensa-
miento moderno nunca ha sido capaz de atribuir una función real al sacrificio; no puede percibir el derrumba-
miento de un orden cuya naturaleza se le escapa. A decir verdad, no basta con convencerse de que dicho
orden ha existido para que se esclarezcan los problemas propiamente religiosos de la época trágica. A diferen-
cia de los profetas judíos que esbozan unos cuadros de conjunto cuya perspectiva es francamente histórica,
los trágicos griegos sólo evocan su crisis sacrificial a través de unas figuras legendarias cuyos perfiles están
fijados por la tradición. (Tradução nossa)
62
Na cena citada acima, da dança de Jasão, observada por Medeia, filmada na
Piazza dei Miracoli, um grande conjunto arquitetônico representativo da arte medie-
val católica, situada em Pisa, Itália, nada nos fala de homens aterrorizados por deu-
ses, por sacerdotes ou pela morte. Na cena, Medeia é a sacerdotisa do sacrifício,
destituída do seu poder pela racionalidade da lis, mas que instaura novamente o
medo. Literalmente, o medo é citado por Creonte. Ele tem medo dos “poderes mági-
cos” de Medeia, dramaticamente representados pelo diálogo entre Medeia e o pai do
seu pai, pelo qual ela recupera sua força mágica arcaica. Dessa forma, Medeia re-
presenta o que está reprimido pela razão, mas que mantém com a irracionalidade
mágica uma ligação que pode aflorar novamente, como signo do medo, na obra de
Pasolini, favorecida pela instância imaginativa das Eumênides. É como no terreiro de
umbanda, na representação de Gota d’água (Rio de Janeiro, 2008) no qual o ritual
visa trazer, para o mundo da racionalidade, forças irracionais, a fim de pô-las a ser-
viço da invocante. No filme de Pasolini, Medeia, num transe, se encontra com o Sol,
seu avô:
O sol está na janela: na sua silhueta se distingue a figura andrógina do avô infatigá-
vel. Com o brilho fulgurante do sol que entra pela janela, ele entra no quarto e faz
imediatamente sinal a Medeia: “– Xiii!” – que se cale para não acordar Jasão. Há de
novo duas Medeias: uma angustiada, lamentavelmente prostrada sobre o leito, ao
lado do seu amante que dorme, e a outra, que segue seu velho avô fulgurante. Na
ponta dos pés, o avô vai até um pesado baú de madeira, e, continuando a dirigir pa-
ra Medeia piscadas de olho cúmplices, ele o abre: ele tira de lá uma grande vesti-
menta cerimonial, com seu manto negro, seu escapulário, suas joias e dourados,
sua anágua branca. Ele se volta para Medeia com essa grande vestimenta nos bra-
ços, em seguida ele a olha e, como se nascesse dos seus olhos fulgurantes, uma
pedra brilhante cai sobre o tecido da vestimenta e aí se desfaz cintilando. Em segui-
da, estendendo a vestimenta para Medeia, o avô triunfante se afasta para a janela
40
.
(P
ASOLINI, 2002, p. 87)
Os signos da violência sacrificial estavam ocultos sob o caráter irado de Me-
deia. Pasolini os resgata, a fim de apresentar no seu filme a impossibilidade da con-
ciliação entre homem arcaico e homem moderno. Da mesma forma que o diretor
italiano escapa do cenário extremamente racionalizado e vai à África e à Índia para
encontrar o material mítico necessário, também identifica, sob o caráter irado de
40
Le soleil est à la fenêtre: dans la silhouette du soleil, on distingue la figure androgyne de l’aïeul infatigable.
Avec l’éclat étincelant du soleil qui entre par la fenêtre, il entre dans la chambre. Et il fait aussitôt signe à
Médée – “Chhhhut!”– de se taire pour ne pas réveiller Jason. Il y a de nouveau deux Médée: l’une, angoissée,
lamentablement prostrée sur le lit, à côté de son amant en dormi; l’autre, qui suit son vieil aïeul étincelant. Sur
la pointe des pieds, l’aïeul va vers un lourd coffre en bois, et, en continuant à adresser à Médée des clins d’oeil
complices, il l’ouvre: il en extrait un grand habit de cérémonie, avec son manteau noir, son scapulaire, ses
joyaux et dorures, son jupon blanc. Il se tourne vers Médée avec ce grand habit sur les bras; puis il la regarde
et, comme si elle naissait de ses yeux étincelants, une pierre étincelante tombe sur l’étoffe de l’habit et s’y
dissout en clignotant. Puis, tendant l’habit à Médée, l’aïeul triomphant s’éloigne vers la fenêtre. (Tradução nos-
sa)
63
Medeia, algo mais terrível, como nesta cena, em que Medeia, após o diálogo com
Creonte, entra no transe sacrificial:
[...] a casa está cheia de animais, cordeiros, cabras, vacas, cachorros, pássaros...
Mugindo terrivelmente, um touro está a ponto de realizar o coito com uma vaca (mas
não se vê senão sua cabeça levantada, como de fogo). A visão cessa e a casa na
realidade está ocupada apenas por velhas criadas [...] (P
ASOLINI, 2002, p. 74)
41
.
Afirma GIRARD:
Se o sacrifício aparece como violência criminosa, apenas existe violência que não
possa ser descrita em termos de sacrifício na tragédia grega, por exemplo. Dir-se-á
que o poeta coloca um véu poético sobre realidades bem mais sórdidas. Sem dúvi-
da, mas o sacrifício e o homicídio não se prestariam a esse jogo de substituições re-
cíprocas se não fossem aparentados (GIRARD, 1995, p. 9).
Pasolini enxerga, na obra de Eurípides, a volta de algo que já havia sido ba-
nido, os sacrifícios humanos, mas que Jasão, devido à sua desmedida ambição, re-
integra à pólis, na pessoa de Medeia. Girard aponta a substituição, no século V, do
sacrifício humano por um símbolo:
Na Grécia de século V, na Atenas dos grandes poetas trágicos, parece que o sacrifí-
cio humano não havia desaparecido de todo. Se perpetuava sob a forma do phar-
makos, que a cidade mantinha, a seu custo, para sacrificá-lo em determinadas
ocasiões, especialmente nos períodos de calamidades. Se quiséssemos interrogá-la
a respeito desse ponto, a tragédia grega poderia nos fornecer notáveis informações.
Está claro, por exemplo, que um mito como o de Medeia é paralelo, no campo do
sacrifício humano, ao mito de Ájax, no plano do sacrifício animal
42
. (GIRARD, 1995, p.
17)
Portanto, os mitos e seus signos não permanecem congelados no tempo, mas
assumem outros valores, segundo o contexto histórico em que são lidos. Por isso o
que valia para o romantismo não vale mais para a encenação moderna ou para o
cinema mítico-trágico pasoliniano, fato que opõe mímesis crítica e mera adaptação.
Contrariamente a esta objetividade linear de alguns adaptadores de tragédias clássi-
cas, que retiram da tragédia os seus significados míticos, Pasolini afirma:
O autor cinematográfico não possui um dicionário, mas uma possibilidade infinita:
não toma seus signos (im-signos) da caixa, do cofre, da bagagem, mas do caos, on-
de tudo quanto existe são meras possibilidades ou sombras de comunicação mecâ-
nica e onírica. (P
ASOLINI, 1970, p. 11)
É dessa forma que a matéria bruta do texto trágico clássico é objeto da me-
tamorfose pasoliniana. Pasolini acrescenta ao conteúdo clássico um conteúdo pro-
priamente cinematográfico, ou trágico-cinematográfico, o que marca a sua
imaginação trágica, que foge à objetividade, resgata biografias míticas e atualiza
mimeticamente para o espectador os conteúdos trágicos. Os cenários e os persona-
41
[...] La maison est pleine d’animaux, moutons, chèvres, vaches, chiens, oiseaux... Mugissant terriblement, un
taureau est en train d’accomplir le coït avec une vache (mais on ne voit que sa tête, dressé, comme de feu). La
vision cesse, et la maison n’est en réalité occupée que pare les vieilles servantes [...]
42
Ájax, após ter perdido para Ulisses as armas de Aquiles, Ájax, “num acesso de loucura, massacrou um pacífi-
co rebanho de carneiros, pois acreditava estar matando os aqueus, particularmente os atridas e seus amigos
[...]” (BRANDÃO, 2000, p. 46. Verbete ‘Ájax Telamônio’).
64
gens míticos – a pitonisa e a esfinge no Édipo Rei; a caracterização da Cólquida em
Medeia; a identificação visual entre pessoas reais e personagens míticos nos Appun-
ti per un’Orestiade africana –, e também a música – a Paixão segundo São Mateus,
de Bach, em Accattonne e no Vangelo...; as músicas bárbaras em Medeia e Édipo
Rei – são imagens poéticas. Nos filmes trágico-míticos são imagens e sons estra-
nhos ao espectador por fugirem ao paradigma do que seria a Grécia Clássica, mas
que alcançam a comunicação buscada por Pasolini entre o signo poético, retirado do
caos, e a compreensão pelo homem moderno. Tal comunicação não é simplificado-
ra, pois visa criar justamente os novos sentidos necessários à compreensão do trá-
gico pretendida por Pasolini. Essa comunicação, entretanto, se torna possível devido
aos significados míticos que permanecem no homem moderno.
As imagens do mito são aquelas para as quais o diretor italiano se volta, em
busca do que será metamorfoseado:
Por isso, descrita toponomasticamente, a operação do autor de cinema não é uma,
mas dupla. De facto: 1) ele tem que retirar do caos o im-signo, torná-lo possível e
pressupô-lo como sistematizado num dicionário dos im-signos significativos (mímica,
ambiente, sonho, memória); 2) tem que realizar depois a operação do escritor; isto é,
acrescentar a tal ou tal im-signo puramente morfológico a qualidade expressiva indi-
vidual. [...] Em suma, enquanto a operação do escritor é uma invenção estética, a do
autor de cinema é primeiro linguística e só depois estética. (PASOLINI, 1982, p. 139)
Em 20 de novembro de 1968 Pasolini escreveu o artigo “Diário de um conde-
nado à morte”, publicado na coluna “O caos”, que o diretor, poeta e jornalista assina-
va na revista Tempo, de Turim. O artigo tratava da iminência do fuzilamento do
militante Panagulis, opositor do regime militar que então governava a Grécia. Pasoli-
ni critica a atitude de Panagulis, que para ele está praticamente aceitando ser execu-
tado, acreditando que sua morte equivaleria a um sacrifício. Para isso, o diretor
italiano, invoca os heróis de Eurípides que, “com a mecanicidade do deus ex-
machina, no momento oportuno, sabendo que um oráculo quer que a cidade, para
sua salvação, faça um sacrifício humano, aceitam [...] morrer esquartejados”. O cla-
mor pasoliniano volta-se contra os governos do mundo que se limitam a escrever
cartas para o governo grego, ao invés de tomarem medidas mais eficazes a fim de
evitar o fuzilamento:
Panagulis, um herói; os coronéis, realisticamente inevitáveis. [...] Mas eu, homem,
não consigo suportar a morte deste homem. Jamais a ofensa genérica e objetiva a
um sentimento de justiça, assim como a piedade existencial por quem sofre essa in-
justiça, produziram um sentimento indistinto de rebelião tão forte e intolerável.
(PASOLINI, 1982a, p. 85)
Finalizando, após afirmar que “os heróis são produtos das sociedades repres-
sivas”, Pasolini exorta:
65
[...] onde está Atenas? Então havia uma Atenas, democrática, que – sempre com a
mecanicidade do deus ex-machina – intervinha contra os tiranos das cidades vizi-
nhas, ou para salvar ou para vingar os heróis. Onde está Teseu, o herói da oficiali-
dade democrática que, mesmo relutando, intervém contra a violência? (idem, p. 87)
Pasolini vai em busca desses signos na tragédia e os encontra contraditórios,
incorporando-os aos seus filmes como signos da incompreensão, pelo homem mo-
derno, da convivência angustiosa entre homem e natureza. A operação metamórfica
que Pasolini realiza revela os resquícios da barbárie que a razão não apagou do
subconsciente do homem. Se, por um lado, Pasolini elogia, como um progresso da
razão, a absolvição de Orestes no tribunal de Palas Atená, por outro, apropria-se, na
Medeia de Eurípides, da estrangeira sacerdotisa e, por isso, signo da religiosidade
arcaica, que pratica vários assassinatos. As leituras pasolinianas conduzem a uma
associação entre os signos entrevistos, em estado de caos, como imagem ilógica,
nos textos trágicos Eumênides, de Ésquilo, e Medeia, de Eurípides, do ponto de vis-
ta da organização da pólis, do modo como a pólis lida com seus conflitos, com os
temores remanescentes da época arcaica e com a explosão desses sentimentos na
forma de demência.
A racionalização do crime de Orestes, pela primeira vez reconhecidamente
absolvido por ter praticado assassinato atendendo a uma tradição religiosa irrecorrí-
vel, abre espaço para a interpretação ambígua do crime de Medeia e para a discus-
são acerca da reação da pólis diante do que a amedrontava, do que representava a
volta ao passado mítico de banhos de sangue. Afinal, se o tribunal humano que ab-
solveu Orestes levou à domesticação das Erínias, deveria ter também levado ao ba-
nimento da violência. Mas esta reaparece sempre, porque permanece presente no
interior do homem como angústia, prestes a manifestar-se como demência. Na tra-
gédia de Eurípides a violência arcaica é representada pela presença de Medeia em
Corinto e encoberta pelo seu caráter raivoso e feminino, que é muitas vezes relido
de forma naturalista, sem que seja resultado das ações da heroína. No cinema de
Pasolini a violência eclode como demência, como um páthos, algo que se volta con-
tra a sociedade que suplantou politicamente o sacrifício, mas que não se contém
diante de conflitos que a razão não alcança conter.
Segundo Mauss, o sacrifício é representado como drama, então pode deixar
de ser praticado e seus efeitos religiosos – aliança com deus – passam a ser exerci-
dos na forma de catarse. A catarse é a forma racionalizada que substitui a purgação
da doença, da morte e da culpa pelo sacrifício e realiza a purgação pela obra de ar-
te. Por ser uma prática racionalizada, o que é purificado é a alma do homem e não
66
mais o corpo. Hoje, após a tragédia grega e os filmes de Pasolini, o nosso horror ao
sacrifício aparece em muitos filmes, mas em nenhuma outra obra o horror ao sacrifí-
cio é levado ao extremo como no filme Salò, de Pier Paolo Pasolini.
A forma segundo a qual Pasolini elabora seus filmes trágicos baseia-se em
uma série de signos, colhidos no caos dos mitos antigos e modernos. Tais signos
podem ser enumerados, em linhas gerais, como o arcaísmo, ou seja, uma recusa de
Pasolini a representar tragédias antigas segundo uma visão classicista, que ignora o
aspecto religioso, ligado à violência e à culpa herdada pelos filhos dos crimes san-
grentos praticados pelos pais. A valorização por Pasolini da religião arcaica como
elemento essencial do enredo dos filmes trágico-míticos leva também à identificação
como vingança imposta pela religião das violências representadas nas tragédias.
Essas são as questões pasolinianas, a partir da década de 1960, se bem que anteri-
ormente já povoavam o pensamento do poeta e ensaísta Pier Paolo Pasolini.
Além desses, existem os signos colhidos junto à mitologia moderna, como a
violência que persiste no mundo atual, como é representada nos enredos africanos:
O pai selvagem e Appunti per un’Orestiade africana. A violência é identificada por
Pasolini no mundo moderno, e é recolhida por ele na vivência no submundo de Ro-
ma, onde o crítico e ensaísta a encontra em estado bruto. A África se apresenta para
Pasolini, ao mesmo tempo, como um signo da originalidade do mito e de exploração
colonialista, associados sob o ponto de vista da superação violenta das formas míti-
cas originárias.
A esta altura é importante que entrem em cena nesta tese alguns dados cro-
nológicos, a fim de relacionar as mudanças no pensamento de Pasolini, relaciona-
das a acontecimentos históricos e à tomada de posição do diretor italiano quanto ao
comunismo e, particularmente, quanto ao Partido Comunista Italiano. A obra poética
Le ceneri di Gramsci expressa essas mudanças conceituais e estéticas de Pasolini,
conforme assinala Gian Carlo Ferretti em Introduzione a Le belle bandiere–Dialoghi
1960-1965 (Editori Riunit, 1996).
Pasolini faz a substituição dos motivos ambíguos, em que vontade e escolha
estão mais ou menos encobertos pela interferência da vontade divina, pelos crimes
de ciúmes ocorridos na Itália. Ou seja, pelos crimes de sangue ocorridos não mais
na pólis primitiva e ainda afetada pela antiga religião, mas na lis romana do século
XX, plenamente constituída, legislada e dessacralizada.
67
Seguindo seu projeto de atualização mimética dos conteúdos das tragédias
clássicas, do ponto de vista da persistência dos mitos primordiais no mundo capita-
lista, Pasolini estabelece parâmetros para não fazer uma associação direta entre
mito grego e mitologias modernas, mas fazer uma analogia que abrace a ideia das
Eumênides como forças produtivas que encerram nelas o racional e o irracional –
domesticadas, mas produtivas – desencadeadoras da poesia e da imaginação. As
Erínias metamorfoseadas através de uma síntese. Nesse processo se dá a substitui-
ção dos signos antigos pelos signos modernos que lhes correspondem.
No Evangelho segundo são Mateus (1964) este processo é identificado por
Miguel Porter:
Na realidade, o procedimento de Pasolini, mais que o de ‘reconstrução’, é o de
‘substituição’, substituição do mundo hebreu de dois mil anos atrás pelo mundo da
Itália meridional, com uma vida arcaica, pastoril, pré-industrial, que tem relevantes
características pré-históricas
43
. (PORTER, 1965, p. 192)
Essas substituições apontam para um processo em que a conciliação das for-
ças em jogo é impossível. O que Pasolini esclarece é que os processos civilizatórios
atuais – a descolonização da África; a condenação do sacrifício; a crítica ao confor-
mismo –, assim como os antigos, se fazem por avanços e retrocessos, pois as for-
ças arcaicas nunca são decisivamente destruídas. Assim como observamos as
forças contraditórias em ação nos textos clássicos das tragédias, percebemos, nos
filmes de Pasolini, as mesmas contradições.
A mesma substituição ocorre no filme Comizi d’amore (PASOLINI, 1963), em
relação à supremacia masculina sobre as mulheres, tema que percorre as atualiza-
ções de Medeia. Ocorre também nas análises e declarações feitas por Pasolini, na
televisão e em textos jornalísticos, acerca dos crimes de sangue ocorridos na Itália
da época, geralmente ligados aos ciúmes de homens por suas esposas ou simples-
mente com motivação sexual.
A substituição operada por Pasolini, base da sua mímesis crítica e da síntese
dialética buscada por ele, baseia-se na representação de metamorfoses, de ressur-
reições.
O ensaio de Pasolini Observações sobre o plano-sequência (1972), no qual o
diretor italiano afirma que uma vida só adquire seus significados após a morte, assim
43
En realidad, el procedimiento de Pasolini, más que el de la ‘reconstrucción’, es el de la ‘sustitución’ del mundo
hebreo de hace dos mil años por el mundo de la Italia meridional, con una vida arcaica, pastoril, preindustrial,
que tiene relevantes caracteres prehistóricos. (Tradução nossa)
68
como o filme, que deve ser montado a partir de planos-sequência, possibilita que se
inicie a investigação sobre as diversas mortes e ressurreições presentes nos filmes
mítico-trágicos pasolinianos.
A metamorfose das Erínias em Eumênides, motivação para o filme Appunti
per un’Orestiade africana, as metamorfoses do Centauro e a ressurreição da semen-
te, em Medeia, serão o ponto de partida para a definição dessa estética.
A reflexão acima, ao identificar na obra de Pasolini o exercício de contradi-
ções dialéticas entre o texto clássico e o cinema moderno, abre espaço para uma
comparação entre os objetos tragédia grega e cinema trágico pasoliniano: neste, as
imagens não concorrem, ipso facto, para uma finalidade objetivamente definida ou
racionalmente inteligível, embora possam ser objeto de análise segundo um método
e conceitos precisamente estabelecidos. Tais possibilidades de reapresentação da
tragédia grega definem também uma nova forma de lidarmos com a análise aristoté-
lica. Elas indicam que, por fim, não se coloque a favor ou contra essa análise que foi,
sem dúvida, um marco na análise da tragédia. Lemos hoje a tragédia usando instru-
mentos desconhecidos de Aristóteles, no caso de Pasolini, particularmente, conju-
gam-se uma semiologia geral e uma semiologia do cinema, além da inserção da
tragédia na história. Além disso, a mímesis crítica pasoliniana poderá, por fim, reali-
zar toda a significação buscada pelos tragediógrafos gregos, presente nos seus tex-
tos, mas encoberta pelas análises racionalistas que se seguiram. A análise atual da
tragédia grega deverá considerar estas significações e, para isso, deverá lançar mão
de instrumentos como a antropologia.
Além disso, nos filmes trágicos de Pasolini não existe uma preponderância da
ação trágica, uma vez que a representação mimética por ele realizada parte de uma
instância objetiva – os textos das tragédias – e de uma instância mítica não perdida,
segundo o diretor italiano, mas metamorfoseada, isto é, morta e ressurrecta. O que
se apresenta nesses filmes é uma alusão ao modo como o sentimento grego trágico,
o conflito entre a instância mítica recalcada e a objetividade da polis, se pode apre-
sentar na arte cinematográfica moderna, que, no caso de Pasolini, liga-se à socie-
dade capitalista regida pelas racionalidades esclarecidas.
69
1.3 O corpus e a crítica pasolinianas
Além das concepções de Pasolini sobre o cinema e sobre a permanência de
uma dimensão instintiva primitiva no homem moderno, fator que desencadeia o trá-
gico na modernidade, a definição de um cinema trágico deve levar em conta os con-
ceitos de Indústria Cultural e Esclarecimento formulados por Adorno e Horkheimer
em Conceito de esclarecimento ([1947]; 1985) e em Indústria cultural: O esclareci-
mento como mistificação das massas ([1947]; 1985).
As ideias desses filósofos frankfurtianos serão eficazes na composição do
pano de fundo onde se desenrolará a análise das obras de Pasolini. Não que suas
ideias acerca do modo de pensar iluminista, ou seja, acerca da ideologia do nosso
tempo, apliquem-se particularmente a alguma ou a cada uma das obras do autor
italiano. O que se buscará em Adorno serão as implicações da perda de um modo
de relação arcaico no processo de formação do pensamento ocidental, isto é, no
processo de separação entre homem e natureza. O estilo como foi escrita a Dialética
do esclarecimento, confrontado com a linguagem poético-cinematográfica de Pasoli-
ni, sugere a permanência do mito na sociedade moderna, a que Pasolini se refere.
Adorno e Horkheimer, na sua análise da sociedade esclarecida, estabelecem, a ca-
da momento do texto, a forma como se relacionam mito, lógos e razão, mas não a
extinção do primeiro.
A citação de Pasolini, retirada das Lettere luterane (P
ASOLINI, 1980, p. 3), feita
no início do capítulo 2, base para o estudo do seu cinema trágico-mítico, assume
caráter universal, geográfica e temporalmente, quando confrontada com a passagem
seguinte de Adorno e Horkheimer, no “Prefácio” a O conceito de esclarecimento
(A
DORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 13):
Assim como o esclarecimento exprime o movimento real da sociedade burguesa
como um todo sob o aspecto da encenação da sua Ideia em pessoas e instituições,
assim também a verdade não significa meramente a consciência racional mas, do
mesmo modo, a figura que esta assume na realidade efetiva. O medo que o bom fi-
lho da civilização moderna tem de afastar-se dos fatos – fatos esses que, no entan-
to, já estão pré-moldados como clichês na própria percepção pelas usanças
dominantes na ciência, nos negócios e na política – é exatamente o mesmo medo
do desvio social. Essas usanças também definem o conceito de clareza na lingua-
gem e no pensamento a que a arte, a literatura e a filosofia devem se conformar ho-
je. Ao tachar de complicação obscura e, de preferência, de alienígena o pensamento
que se aplica negativamente aos fatos, bem como às formas de pensar dominantes,
e ao colocar assim um tabu sobre ele, esse conceito mantém o espírito sob o domí-
nio da mais profunda cegueira.
70
A confrontação dos dois textos os faz convergir para a compreensão de que a
culpa dos filhos em relação aos crimes paternos foi uma verdade incontestável, até o
momento em que foi tragicamente representada no palco grego. Da mesma forma, o
medo do desvio social que “o bom filho da civilização moderna” sente pode ser uma
verdade incontestável até o momento em que, negativamente, é representado por
Franco Citti em Accattone e Édipo Rei e por Maria Callas em Medeia. A diferença
entre os filmes trágico-míticos de Pasolini e as meras adaptações dos textos clássi-
cos, mantidos em sua linguagem original, é que o cinema pasoliniano critica o tabu
colocado sobre “o pensamento que se aplica negativamente aos fatos, bem como às
formas de pensar dominantes”.
A análise adorniana, além disso, encontrará o pensamento de Pasolini na de-
finição do momento específico da criação da tragédia grega, um momento histórico
conflituoso em que a razão passa a representar os mitos de forma lógica. Pasolini
expressa poeticamente, através das palavras do Centauro para Jasão, no início do
filme Medeia, essa mudança da condição humana: “hoje, quando você tem cinco
anos, eu quero te dizer a verdade sobre você. [...] Mentiras, eis o que eu te contei.
Você não é mentiroso, mas eu, ah! eu, sim; eu me canso de contar mentiras.”
Após narrar para Jasão o mito do velocino – objeto sagrado que garantia a
imutabilidade do poder real – o Centauro prossegue:
Diga-me, existe uma única coisa das que nos rodeiam, que não seja inatural? Que
não seja possuída por um deus? [...] Olhe atrás de você! O que você vê? É alguma
coisa natural, talvez? Não, o que você vê atrás de você é uma aparição, essas nu-
vens que se olham na água imóvel e pesada desse meio de tarde!... Olhe lá adian-
te... essa franja negra sobre o mar brilhante e rosa como óleo. E as sombras dessas
árvores... essas roseiras... Para cada ponto onde pousam seus olhos, se esconde
um deus! E se, por acaso, ele não está lá, ele deixou atrás dele os sinais da sua
presença sagrada, seja o silêncio, ou o cheiro da erva, ou a frescura das águas do-
ces...
44
. (PASOLINI, 2002, p. 109-110)
É o momento também da organização dos mitos em religião e da constituição
do poder do Estado na forma da lei, da ciência e dos rituais litúrgicos. Esse aspecto
é notável no filme trágico que mais toca a questão política e histórica, os Appunti per
un’Orestiade africana, mas também pode ser notado no roteiro O pai selvagem.
44
Dis-moi, y a-t-il seulement un tout petit bout de ce qui nous entoure qui ne soit pas innaturel ? Qui ne soit pas
possédé par un dieu ? […] Regarde derrière toi ! Qu’est-ce que tu vois ? C’est quelque chose de naturel, peut-
être ? Non, ce que tu vois derrière toi, c’est une apparition, ces nuages qui se mirent dans l’eau immobile et
lourde de ce milieu d’après-midi !... Regarde là-bas… cette traînée noire sur la mer brillante et rose comme
huile. Et les ombres de ces arbres… ces roseaux… À chaque endroit se pose tes regards, se cache un Dieu !
Et si, par hasard, il n’est pas là, il a laissé derrière lui les signes de sa présence sacrée, que ce soit le silence,
ou l’odeur de l’herbe, ou la fraîcheur des eaux douces […]. (Tradução nossa)
71
O processo exposto por Adorno toca em alguns pontos as cenas dos filmes
trágicos, como quando Pélias afirma para Jasão que não cumprirá a promessa de
devolver-lhe o trono em troca do velocino. É como se Pasolini, nessa cena, desco-
lasse sua narrativa cinematográfica do paradigma sobre o pensamento grego clássi-
co, apontando, como Adorno, o processo de substituição do objeto carregado de
significados míticos pelo mero objeto funcional, apresentando o velocino como moe-
da de troca para a devolução do reino. De volta à civilização da razão, o velocino
dourado, um objeto divino cultuado pelo povo primitivo, reassume sua função religio-
sa e política de atribuir poder àquele que o detém. Concomitantemente, o persona-
gem Jasão também modifica seu caráter, que passa de mítico a materialista,
conforme os desenvolvimentos da cultura socrática e pós-socrática. Este Jasão mo-
dificado não mais enxerga no sacrifício a possibilidade de intervir na natureza, mas
entende que, doravante, a intervenção se dará por meio da técnica e da ciência,
presentes na construção da nau Argos, à qual é dada grande importância por Paso-
lini nas Visões de Medeia, embora essas cenas não tenham sido incluídas na versão
final do filme.
Uma outra identificação entre as interpretações de Adorno e de Pasolini sobre
a sociedade esclarecida moderna é quanto à substituição que ocorre no curso desse
esclarecimento. O terror e a violência arcaicos são substituídos e não suprimidos, o
que seria impossível, pois a supressão deles causaria um vazio na ação humana.
Esse processo se dá necessariamente pela introdução de uma outra forma de domi-
nação, caracterizada por uma falta destinada a nunca ser preenchida, e esse é o
preço pago pelo homem para não mais viver sob a dominação através do terror. Se-
gundo Adorno e Horkheimer:
O despertar do sujeito tem por preço o reconhecimento do poder como o princípio de
todas as relações. Em face da unidade de tal razão, a separação de Deus e do ho-
mem reduz-se àquela irrelevância que, inabalável, a razão assinalava desde a mais
antiga crítica de Homero. Enquanto soberanos da natureza, o deus criador e o espí-
rito ordenador se igualam. A imagem e semelhança divinas do homem consistem na
soberania sobre a existência, no olhar do senhor, no comando. O mito converte-se
em esclarecimento, e a natureza em mera objetividade. O preço que os homens pa-
gam pelo aumento do seu poder é a alienação daquilo sobre o que exercem o poder.
(HORKHEIMER; ADORNO, 1985, p. 24)
Uma dessas formas de dominação é a punição imposta aos filhos pelos erros
paternos, cuja estranheza para Pasolini já foi citada no início do capítulo 2. Esta falta
também é apontada por Adorno como ambiguidade. Nas obras fílmicas analisadas,
se percebe sempre a substituição de uma forma arcaica de dominação sobre a natu-
reza por outra, uma forma simbólica baseada na linguagem. Por sua vez, essa do-
72
minação, por ser o próprio homem um elemento da natureza, se volta para este, na
forma de dominação ideológica do homem pelo homem.
No âmbito das obras de Pasolini, a linguagem do cinema marca a separação
entre o discurso filosófico e o discurso da arte, e possibilita a elaboração de uma
geografia onde se encontra, imageticamente, a instância mítica perdida, que povoa
hoje unicamente a imaginação do homem. Tal é o país de Medeia. Tal é o país ar-
caico de Édipo, para o qual se encaminha o herói no filme Édipo Rei, após nascer na
modernidade, filho de um soldado numa cidade industrial italiana, a mesma para a
qual ele volta no momento da morte. Cite-se também a geografia africana, para onde
convergem o próprio Pasolini e o herói esquiliano da Oréstia, nos Appunti per
un’Orestiade africana e no roteiro O pai selvagem. Mais significativa ainda da apro-
ximação entre o texto pasoliniano e o pano de fundo adorniano é a passagem que
consta de Visions de la Medée, na qual o Centauro adverte o jovem Jasão a respeito
dos perigos de lidar com os deuses em forma humana, naturalizados e sem a inter-
ferência da palavra:
[...] ‘lá (e o Centauro sai da cabana para indicar o lugar, simples mas misterioso, na
direção dos montes azulados, além das canas, dos choupos, das primeiras planta-
ções de milho), se encontra a deusa da Terra, com suas Ninfas. Me escute bem, a-
crescenta ele, não vá àquelas paragens’. O menino olha intensamente naquela
direção, com seus olhos já seguros e ávidos. [...] Jasão está buscando algo avida-
mente; ele sabe o que é. Eis misteriosos tufos de árvores. Eis límpidas ribanceiras
cobertas de ervas. [...] Eis extensas plantações de milho. E eis, finalmente, ao longe,
a aparição: a deusa da Terra com suas Ninfas. [...] Jasão está sozinho com Demé-
ter, que o atrai para ela, para sua branca carne maternal
45
. (PASOLINI, 2002, p. 36-
37)
Essa trilha para o entendimento do cinema de Pasolini como trágico segue
também a análise feita por Massimo Canevacci dos filmes Medeia e Édipo Rei, am-
bos de Pasolini, em Antropologia da comunicação visual (2001). A abordagem de
Canevacci torna-se especialmente útil na análise empreendida nesta tese, pois for-
nece a metodologia necessária para conectar o pano de fundo adorniano da socie-
dade industrial e racional e a linguagem visual cinematográfica, através da análise
do comportamento dos mitos. Afirma Canevacci, ao justificar o uso da palavra “visu-
al” no título da sua obra:
45
« […] là-bas (et le Centaure sort de la cabane pour indiquer l’endroit, un endroit simple mais en même temps
mystérieux, vers les monts bleutés, au-delà des roseaux, des peupliers, des premières étendues de maïs), se
trouve la déesse de la Terre, avec ses Nymphes. Écoute-moi bien, ajoute-t-il, ne va pas dans ces parages. »
L’enfant regarde intensément dans cette direction, de son œil déjà sûr et avide. […] Jason en train d’errer
avidement à la recherche de quelque chose ; il sait quoi. Voici de mystérieuses touffes d’arbres. Voici de
limpides berges herbues. [...] Voici des longues étendues de maïs. Et voici finalement, là-bas, l’apparition : la
déesse de la Terre, avec ses nymphes. [...] Jason reste seul avec Déméter, qui l’attire contre elle, contre sa
blanche chair maternelle. (Tradução nossa)
73
O aspecto visual será assim relacionado com as diferentes formas passíveis de re-
produção do “ver”. [...] Focalizar o visual da comunicação significa, pois, selecionar
esse espaço da cultura contemporânea, enquanto em seu interior se concentram o
poder e o conflito, a tradição e a mudança, a experimentação e o hábito, o glocal e o
local, o homologado e o sincrético. (C
ANEVACCI, 2001, p. 7)
Além disso, será necessário conectar cinema e sociedade, a fim de se fazer a
diferenciação entre o cinema de Pier Paolo Pasolini e o cinema da indústria cultural,
levando em conta que ambos, no final das contas, tornam-se mercadorias, sujeitos,
portanto, ao processo de reificação que é a forma como a ideologia moderna lida
com as mercadorias. No rumo contrário da coisificação do filme-mercadoria, um ris-
co a ser evitado pelo autor que pretende fazer filmes mítico-trágicos, é não apresen-
tar como exótico os personagens, os cenários e até mesmo o enredo. O filme mítico-
trágico deve levar o espectador a se observar observando (fazer-se ver, nas pala-
vras de Canevacci):
Fazer-se ver não no sentido de aparecer, mas nos variados sentidos de desenvolver
qualidades sensitivas fundadas nas percepções do olhar, na sensibilidade do ver, do
transformar-se além do sujeito em visão, do mudar-se em ver, em coisa-que-vê.
Tornar-se olhar, tornar-se olho, fazer-se. (C
ANEVACCI, 2001, p. 15. Grifos no original)
Considera-se que a metodologia apresentada por Canevacci indicará como se
dará a conexão entre os signos caóticos, citados por Pasolini quando trata do cine-
ma de poesia, e a mente do espectador, a fim de objetivamente criar um cinema de
poesia:
Por fazer parte da cultura analisada antropologicamente, o visual refere-se às muitas
linguagens que ele veicula: a montagem, o enquadramento, o comentário, o enredo,
o primeiro plano, as cores, o ruído, as linguagens verbal, corporal e musical. Em su-
ma, o visual envolve também diferentes tipos de subjetividade que estão aprenden-
do a empregar esses gêneros e essas linguagens: não só ocidentais (em sentido
amplo), mas também das populações nativas. (C
ANEVACCI, 2001, p. 8)
Ainda que atendendo a objetivos diferentes, ambos os tipos de cinema identi-
ficam-se pelo uso das mesmas linguagens disponíveis, que tomam parte do produto
que, no final, se apresenta ao fruidor como filme, um objeto visual.
Essa conexão, que nesta tese será vista como o caminho para a síntese de-
nominada cinema de poesia por Pasolini, é apresentada por Canevacci como a pos-
sibilidade de se conectar signos cronológica ou geograficamente distantes, como a
paixão de Cristo, a paixão de Acattone, os signos trágicos inventados por Eurípides,
Sófocles e Ésquilo, os signos míticos e a ideologia ocidental moderna:
[o cinema híbrido] se caracteriza pela reinvenção fílmica, que junta toda a técnica da
‘ficção’ – cenografia, atores, estúdios, maquiagem etc. – com a releitura de um tema
de caráter especificamente antropológico. É o terreno de encontro explícito, mas
também ‘obscuro’ entre cinema e mito. Por meio de uma prática criativa da antropo-
logia visual, se estabelece uma ordem, ou então, com frequência, e melhor, uma de-
sordem do discurso fílmico que conecta de forma erosiva o passado mais arcaico
com o presente mais atual. [...] os respectivos conflitos de Édipo e do sagrado, do
poder ou do saber não são ‘ampliados’ em si mesmos, mas encontram uma solução
fílmica e antropológica que entrelaça passado e presente, sem resolver nem um nem
outro, porquanto visualizam a aberta tensão recíproca. (C
ANEVACCI, 2001, p. 170)
74
Inicialmente, o que essas obras apontam é a necessidade de se pensar não
mais a tragédia na sua conformação clássica, com suas partes funcionalmente de-
terminadas, conforme descritas por Aristóteles, mas a complexidade de fenômenos
que se conectam na obra moderna como representações possíveis dos im-signos
recolhidos no caos mítico, pois estes, como o velocino entregue por Jasão a Pélias
no filme Medeia, não teriam nenhum significado fora do seu país de origem. O con-
trário seria uma aplicação mecânica dos signos trágicos, o que conduziria a obras
prosaicas e não poéticas, segundo a definição pasoliniana. Também se considerou
que, por se tratar da análise de obras fílmicas, o conceito de indústria cultural não
poderia ficar ausente, justamente para mostrar o quanto Pasolini se opõe à massifi-
cação dela decorrente.
Essas referências encaminham a análise para um ponto de vista que, no final,
encontra o de Pasolini e justifica sua operação mimética.
Pasolini, portanto, busca representar o homem moderno como a síntese de
diversas concepções humanistas
46
. Ele se volta para dois momentos históricos de
afirmação do homem, o século V a.C. e o Renascimento, para atingir a modernida-
de. Construindo seus personagens segundo uma visão humanista, estes não se dei-
xam levar pelo destino, não são vitimizados, o que significa uma mudança radical em
relação à visão do homem proposta pelo cinema neo-realista italiano, que releva a
fraqueza do homem diante das forças sociais. Os personagens de Pasolini, ainda
quando em luta com forças muito superiores a eles, expressam a sua própria força
porque se voltam para algo maior do que o homem oprimido pelo seu cotidiano, que
é uma marca do neo-realismo.
Nas obras de Pasolini, diferentemente da tragédia clássica, na qual os carac-
teres são determinados pelo mito e por isso são imutáveis, o que se encontra é o
personagem que forja o seu caráter no enredo da obra, influenciado por elementos
do próprio enredo, por uma situação única, portanto. Assim, Acattone salta da ponte
para provar que não é uma mera questão biológica morrer ou não morrer, mas uma
questão de decisão do homem. Da mesma forma, Édipo sorri ao matar o pai, mani-
festando seu inconformismo logo após o veredicto da Pitonisa, quando ele se per-
46
A síntese do fenômeno trágico que se apresenta nos três filmes objetos deste estudo – Medeia, Édipo Rei e
Appunti per un’Orestiade africana – leva em conta, em algum momento do seu percurso de produção intelec-
tual, a concepção estética ingênua, associada à língua original, o dialeto friulano, em oposição à racionalidade
adquirida com as leituras que se tem notícia, de Hölderlin e Freud, feitas por Pasolini.
75
gunta “para onde irá” a vida dele, a sua juventude. Em Medeia, os sacrifícios não
são realizados a fim de neutralizar o terror que vem dos deuses, o cumprimento do
destino, mas como ato praticado pela personagem contra uma situação dada que a
oprime, como um ato de inconformismo, um ato político, portanto.
Esse inconformismo é o que caracteriza Accattone com um sentido de paixão,
martírio – o que associa este filme ao Vangelo – marcado, nos dois filmes, pela mú-
sica de Bach (Paixão segundo Mateus). No primeiro deles, os acordes soam quando
aparece o rosto do Napolitano, exibindo um sorriso hipócrita, ou quando Accattone
investe contra o irmão de sua ex-mulher e eles lutam. Independentemente do cará-
ter, portanto, indicando que não está em jogo o caráter ruim ou bom do personagem,
mas algo angélico que Pasolini retira do cristianismo primitivo e associa com os per-
sonagens do submundo. As ações de Accattone não definem o seu caráter, como as
do Napolitano não definem o dele. Ambos são anjos e seu caráter angelical está de-
finido pela sua condição, enquanto as suas ações são definidas pela sociedade.
Contrariamente, o tema de Medeia é romanticamente distorcido. A leitura que
associa o tema trágico de Medeia à traição e à condição de submissão da mulher,
justificando o seu ciúme, a sua ira e a consequente morte dos filhos, é um transporte
automático, para um cenário antigo, de um estereótipo da relação homem/mulher na
modernidade. A Medeia mítica, além de ser mulher, é estrangeira e sacerdotisa que
manipula conhecimentos incomuns, características que se perdem numa represen-
tação da mulher como expressão da irracionalidade e do temperamento impulsivo.
Tais representações se enquadram na interpretação do homem como ser imutável,
que seria hoje tal qual era na Antiguidade, interpretação sedutora e conformista, que
considera definitiva a representação classicista do homem.
O cinema trágico-mítico pasoliniano aposta numa representação da mudança
do homem, no seu inconformismo, mas recusa, ao mesmo tempo, o sentido evolu-
cionista, de que a forma moderna de vida é superior à forma antiga. Expresso como
poesia, o cinema trágico-mítico de Pasolini impõe, ao contrário, uma ideia de síntese
entre o que o homem carrega consigo como conflito entre forças conservadoras e
forças progressistas, ainda que estas possam se valer de sentidos arcaicos. O pró-
prio cinema de Pasolini, portanto, é uma síntese, entre a realidade do homem e o
que nele persiste de arcaico, em forma de poesia.
Pasolini interrompe uma linha de evolução do compromisso social do cinema,
imaginada por uma parcela de realizadores e espectadores, linha dualista, que con-
76
funde cinema romântico com cinema revolucionário. Na verdade, no pós-guerra o
pensamento tendeu para considerar apenas duas forças em conflito e as identificou
com o bem e o mal. A introdução do pensamento mítico no cinema de Pasolini que-
bra esse dualismo, porque se opõe à transformação do homem em mero objeto para
o desenvolvimento do capitalismo.
O compromisso social do cinema pasoliniano sai, dessa forma, do caminho
realista – realismo como representação convincente da verdade – e atribui ao primi-
tivismo dos primeiros cristãos, ou ao poder mágico de Medeia, ou à magia humani-
zadora da industrialização na África, o papel de forças imaginativas que se opõe ao
massacre cultural protagonizado pelo capitalismo pós-guerra. Adorno e Horkheimer
apontam no totalitarismo iluminista a mesma contradição que se repete em obras
que foram consideradas arte revolucionária quando, romanticamente, como o cine-
ma neo-realista, pregavam a imutabilidade do mundo:
Pois o iluminismo é tão totalitário quanto qualquer outro sistema. Sua inverdade não
é, como lhe acusavam desde sempre seus inimigos românticos, o método analítico,
a volta aos elementos, a decomposição por reflexão, mas o fato de que, para ele, o
processo está decidido de antemão. (H
ORKHEIMER; ADORNO, 1991, p. 18)
Pode-se considerar que o cinema de Pasolini é a representação estética, al-
cançada pela reintrodução da forma mítica na narrativa, da superação da selvageria
desenvolvimentista capitalista, ao invés de realisticamente representar este fenôme-
no. As forças contraditórias que se encontram na arena do processo civilizatório
nunca se enfrentam de forma pacífica, mas essa arena é a ocasião e o lugar em
que, oprimidas pelas forças do desenvolvimento selvagem, as forças primitivas atu-
am violentamente. Os signos que se apresentam como atuantes pelo lado das forças
primitivas são absolutamente irrealistas, encontrados pelo diretor de cinema no caos
das ideias míticas. Entretanto, as personagens primitivas de Pasolini são isentas da
pureza que o neo-realismo pretende atribuir às dele. Tal humanidade, em toda a sua
contraditoriedade, foi o signo encontrado por Pasolini nos primitivos cristãos, na pro-
ximidade entre homem e divindade, expressa na proximidade entre Accattone e o
anjo, como se a provar que, embora exercendo sua religiosidade, o personagem po-
de ainda manter a sua força.
Por ser imaginativo, o argumento fílmico não procurará reproduzir com exati-
dão as expressões, a beleza, as situações e ações, os caracteres e as emoções de
antanho no meio tecnológico cinema. Também não é possível reproduzir realistica-
mente, ainda que recorrendo aos documentos iconográficos ou escritos, essas ca-
racterísticas medievais ou da Antiguidade. Por outro lado, é de mau gosto encenar,
77
a não ser ostensivamente, como paródia, os caracteres e as emoções típicas do
homem da era do cinema, num cenário primitivo, o que resultaria numa imitação gro-
tesca. Também não caberá estabelecer um contraste cômico entre civilizações, res-
saltando arrogantemente o quanto a nossa, moderna, evoluiu em relação às
anteriores. Portanto, o cinema de Pasolini se afirma como uma representação da
modernidade inspirada por representações imaginárias das expressões, da beleza,
das situações e ações, e dos caracteres e emoções antigos.
A formação do pensamento de Pasolini, desde suas primeiras concepções fi-
losóficas e estéticas até as ideias que o levaram à realização dos filmes trágicos,
entretanto, tem uma trajetória que começa numa apropriação ingênua, definida pelo
próprio Pasolini como naïf, que valorizava de forma extrema a pureza da língua e a
forma camponesa de viver. Em matéria de concepções artísticas, Pasolini inicial-
mente identificou-se com o hermetismo literário, o que implicava na valorização de
tudo que fosse arcaico e sem contradições.
A definição do que leva Pasolini a encontrar o trágico de forma tão peculiar, a
ponto de identificar no homem moderno os sinais de tragicidade que existiam no
homem antigo, deve ser buscada nesse interstício, entre o pensamento ingênuo e o
pensamento desiludido pós-chegada a Roma.
A forma ingênua se liga ao homem natural, que ainda não assume a culpa do
pai. É a metáfora dos passarinhos puros, figurada em Uccellacci, uccellini (Gaviões e
passarinhos, 1966). Essa relação natural simboliza tudo que é usufruído da mesma
forma que é dado, que não sofre, sofreu ou sofrerá qualquer forma de intervenção
da razão – da consciência e da ideologia. No filme acima, o monge Fra’ Marcello (o
ator Toto) é encarregado por São Francisco de evangelizar os gaviões, a fim de tor-
ná-los dóceis como os passarinhos. O monge vai cumprir sua missão e é acossado
todo o tempo por um corvo marxista, que pretende fazer do religioso um homem
consciente com as questões do homem e da história.
Usufruir o que é dado sem intervenção da razão é também vivenciar o medo.
É o que fazem Édipo e Creonte, diante das forças mágicas, a Pitonisa e Medeia. É-
dipo, no filme de Pasolini, após o vaticínio do oráculo, pergunta-se: “Para onde vai a
minha juventude? Para onde vai a minha vida?”. Creonte, no filme Medeia, confessa
o terror que Medeia lhe inspira, mas mesmo assim, por temor de ofender algum
deus, permite que ela permaneça em Corinto por mais um dia, o que causa a des-
graça dele e da filha.
78
Se Medeia e Édipo Rei são representações da revanche do medo sobre a ra-
zão, Appunti per un’Orestiade africana é, segundo a lógica objetiva do documentário,
a forma de se usar a linguagem do personagem, de se ir onde está o im-signo, de se
reunir, numa representação, a vida objetiva e a imaginação para se encontrar a sín-
tese só possível na obra de arte, porque o cinema sempre será realista pelas cenas
da vida que filma, pela forma paradigmática pela qual os im-signos passam da ima-
ginação do autor ao dicionário dos fruidores da obra cinematográfica. O cinema tam-
bém sempre expressará, nas suas imagens atuais, a ideologia objetivamente dada,
cabendo ao próprio cinema atuar e exibir uma representação dessa ideologia de
forma visível, compreensível, sintetizada em seus contrários, resultante das suas
contradições. Não se trata de repetir o trágico tal como o entendiam os gregos que
assistiam à tragédia, mas de representar uma sociedade imaginária na qual o trágico
esteja presente como síntese de uma ideologia e de seus dilemas e contradições.
A interpretação das relações humanas e sociais como naturais justifica a
submissão do homem, e tem como última consequência o medo. A representação
trágica das relações humanas tem como peculiaridade o reconhecimento de uma
força superior e invencível que atua sobre o homem, o que torna inviável pensar em
relações naturais do homem com a natureza. O sacrifício entra nessa ordem de rela-
ções: o homem vive com medo de ser sacrificado. Por outro lado, a desnaturalização
das relações impõe ao homem a culpa paterna, o homem passa a ser a consequên-
cia das ações do pai. É o preço a pagar: a civilização assegura ao homem uma vida
de bem-estar, mas cobra seu preço, impondo a ele que assuma a herança do pai.
Esta, se nos tempos arcaicos era cumprida pelo filho que pagava pelos erros pater-
nos, ou até mesmo que era sacrificado – morto – pelo pai, na atualidade é cumprida
pelo filho na forma de assumir a ideologia: ou seja, mais do que se submeter às re-
gras da sociedade, cabe ao filho concordar com elas (a razão), declará-las justas (a
lei) e achar formas de dizer-se feliz (a ideologia).
A propósito, Adorno e Horkheimer citam Sólon:
Pois assim são as coisas, um expia imediatamente, o outro, mais tarde; e ainda que
alguém consiga escapar e a ameaçadora fatalidade dos deuses não o atinja, essa
fatalidade acaba todavia por cumprir-se infalivelmente e inocentes têm de pagar pelo
ato, seus filhos ou uma geração posterior. (H
ORKHEIMER; ADORNO, 1991, p. 7)
Paradoxalmente, esse postulado é o que leva Pasolini a caracterizar seus
personagens como não conformistas.
Accattone ou Ettore não vivem segundo essa norma de vida, não há nada de
socialmente aceitável neles. Pelo contrário, o que os caracteriza é o desprendimento
79
de tudo que é socialmente considerado bom, e por isso não são poupados do sofri-
mento imposto pela marginalização. Mas não sofrem como vítimas, sofrem como
heróis, como édipos modernos, respondendo de forma não-conformista ao enigma
da ideologia, premiados com a liberdade, e punidos por isso.
A punição de Accattone é levada ao extremo depois da luta com o irmão de
Carmella: acusado publicamente de cafetão, o desajustado personagem retira-se
dolorosamente, humilhado como cabe a um humilde, cumprindo a sua paixão, mar-
cada pela música de Bach. Nesse sentido, o jogo de sofrimento / satisfação foi trans-
formado de uma relação direta e clara numa outra, mais distante e sofisticada, pois a
culpa do filho hoje, o que o obriga a cumprir seu destino civilizatório, é perfeitamente
explicado, embora não muito compreendido.
Em Accattone existem alusões a heranças paternas (Accattone) e maternas
(Stella), mas elas estão ali para serem desmerecidas, como mera superstição, pois
modernamente a presença do pai não é necessária fisicamente, ela é eficaz por ser
simbólica. Se Laio sacrifica o filho, segundo o mito, o Laio-militar moderno não o ma-
ta fisicamente, mas restringe sua existência, neutraliza a possibilidade de ele voltar-
se contra o pai através da sensação de felicidade, falsamente imposta por uma no-
ção capitalista de prazer, apresenta para o filho o conformismo como alternativa de
felicidade, diferentemente do Accattone órfão, que não tem contra quem se voltar,
mas também não introjetou a ideologia que o tornaria conformista e feliz.
Essa situação de desconhecimento em face da ideologia tem relação com o
que Pasolini considera a fonte do caráter revolucionário do sotoproletariado, que
vem do seu desajuste, da sua forma ingênua de lidar com a ideologia, a mesma ide-
ologia que faz o indivíduo burguês sentir-se feliz. E nesse ponto confundem-se as
duas condições, a do marginal da periferia da cidade e a do marginal que por opção
desconhece a ideologia, o ingênuo, o que se expressa em dialeto para fugir à racio-
nalidade da língua oficial. Pasolini define assim os conflitos do homem civilizado oci-
dental e cristão com uma culpabilidade religiosa e ancestral.
A dinâmica do filme Accattone – os acontecimentos que são essenciais para o
desfecho – se apoia em acontecimentos significativos sempre ligados ao submundo,
como o afastamento de Madalena (presa) e o reaparecimento dos napolitanos no
sonho de Accattone, mortos de forma brutal. Esses acontecimentos essenciais para
o desfecho, sempre acompanhados ao fundo pela música sacra de Bach, não ocor-
rem segundo regras pré-estabelecidas, mas estão dispostos a fim de dar significado
80
ao mito de Accattone segundo a ideologia pasoliniana, que atribuiu a ele o caráter
de personagem ingênuo, isento da culpa herdada do pai. Por trás da citação do iní-
cio do capítulo 2 está a incredulidade de um personagem ingênuo diante de um me-
canismo que não leva mais em conta a natureza do ser humano, mas a sua
organização racional e ideológica, a sua intervenção na própria natureza humana, o
estabelecimento de relações que não são mais naturais. Esse mecanismo é trágico.
Mas o ingênuo hermético não será sempre ingênuo, pois o mundo romano
não caberá mais no hermetismo da língua originária e do mundo sem contradições.
Uma manifestação desse desejo de ruptura está na carta escrita por Pasolini para
Franco Farolfi, de 1941, citada por NALDINI (1991, p. 33):
Eu quero matar um adolescente hipersensível e doente que ameaça corromper tam-
bém minha vida de homem; ele já está quase moribundo; mas eu quero ser cruel
com ele, mesmo se no fundo eu o ame, porque ele constituiu minha vida até o mo-
mento presente
47
.
A morte desse adolescente vem com a chegada a Roma, com os romances
de borgate e, mais tarde, com o cinema. Contini, citado por Naldini (1991, p. 153)
descreve da seguinte forma a chegada de Pasolini a Roma: “Pasolini chega a Roma
como um rejeitado [...] e descobre a cidade da abjeção e do abandono dos subúr-
bios”. E mais adiante: “o Pasolini dos romances de borgata se aprisiona rigorosa-
mente em um horizonte de imundície
48
”.
A rejeição dessa forma de ver o mundo, associada com o que o próprio diretor
italiano chamaria de sua conscientização, ocorre quando ele se estabelece em Ro-
ma e toma contato, na periferia da cidade, com o que ele consideraria um sotoprole-
tariado revolucionário, o que causa o rompimento com as concepções tradicionais do
marxismo. Esse processo de conscientização está ficcionalizado em filmes como La
Sequenza del Fiore di Carta (1968)
49
e Uccellacci e uccellini (1965).
47
“Je veux tuer un adolescent hypersensible et malade qui essaie de corrompre aussi ma vie d’homme; e il est
déjà presque moribond; mais je vais être cruel avec lui, même si au fond je l'aime, parce qu'il a constitué ma vie
jusqu'au seuil d'aujourd'hui”. (Tradução nossa)
48
“Pasolini arrive à Rome comme un rejeté [...] et il découvre la ville de l’abjection et de la déréliction des
banlieues [...]”. [...] le Pasolini des romans de borgata s’enferme rigoureusement dans un horizon de
monnezza”. Borgata (pl. borgate), segundo o Vocabolario della lingua italiana, de Nicola Zingarelli, significa, em
Roma, um agrupamento de edifícios situado na periferia mais distante.
49
Terceiro episódio da produção Amore e rabbia, inspirada em parábolas do Evangelho, La sequenza del fiore di
carta (1968) retoma o tema de Édipo Rei: "a culpa da inocência". No filme, Ninetto Davoli dança no meio da
rua com uma grande flor de papel, símbolo de sua inocência, mas também de sua alienação. Logo depois, se-
rá vítima da maldição de Deus e morrerá. "Existem momentos em que não se pode ser inocente. É preciso ser
consciente. Não ser consciente significa ser culpado. Por isso coloquei Ninetto caminhando em Via Nazionale
e, sobre ele, algumas imagens importantes da Guerra do Vietnã e de outros acontecimentos do mundo. Em um
dado momento, a voz de Deus o incita a tomar consciência daqueles fatos. Mas ele não compreende o porquê,
já que é imaturo e inocente. Então, Deus o condena e o faz morrer", explicou Pasolini.
81
Essa mudança do pensamento ingênuo para o pensamento consciente impli-
cou a valorização da razão. Esse processo de adoção da razão como valor positivo
encontra em Pasolini uma definição muito particular, que deve ser esclarecida a fim
de se compreender o seu papel no pensamento pasoliniano que engendrou os fil-
mes trágicos. Tanto mais porque o termo razão assumiu, no decorrer da sua exis-
tência, sentidos de valor rejeitados por Pasolini.
Tratou-se de definir nesse capítulo como se deu o processo de conscientiza-
ção que conduziu Pasolini da rejeição da compreensão ingênua do mundo até a rea-
lização do cinema trágico, à certeza de que nada doravante é possível e à
realização de Salò, que coincidiu com o desfecho da própria vida do diretor. Leve-se
em conta que, nesse interregno, ocorreu a realização e posterior repúdio da trilogia
da vida, devido à interpretação de que seriam filmes pornográficos, feita pela crítica
identificada com a indústria do cinema. Conforme declara Pasolini, significativamen-
te, a crítica que interpretou dessa forma a Trilogia ignorou – terá sido propositalmen-
te? – o episódio em que um demônio esquarteja a golpes de espada uma mulher
que o traíra amando um homem, uma cena de horror, que poderia até ser uma ante-
cipação de Salò.
As questões suscitadas neste capítulo são as chaves para a análise, feita em
seguida, dos três filmes trágicos. Tratou-se de definir aqui: como se deu o encontro
de Pasolini com o trágico e o que implica a realização de um cinema trágico como
resposta cultural e ideológica ao cinema industrial. Também foi apontada a concep-
ção humanista de Pasolini, que não entende razão
50
como uma verdade fundamen-
tal ou inata, pré-existente à experiência, o que o leva de encontro a uma forma
empírica de pensar (empirismo herético) o que baseia sua teoria estética na busca e
posterior procedimento indutivo. Isso pode ser observado no caminho seguido do
dialeto ao cinema de prosa. Pode também ser visto sob esse ponto de vista o dis-
curso do Centauro, no filme Medeia, no que ele contém de observação da natureza
para explicar a dessacralização do homem. Razão, para Pasolini, é aquela diretriz
que começa com os gregos do século V e reencontra sua potência no Renascimen-
50
O aspecto da razão como operação da mente humana necessária para a aquisição de consciência, entendido
esse processo como recusa do conformismo, já foi explicado acima, nas palavras de Moravia, em sua inter-
venção em Comizi d’amore.
82
to. Esse conceito pragmático de razão terá um forte componente humanista, no sen-
tido da valorização da arte.
Pasolini já anunciava que uma mudança profunda na sociedade italiana esta-
va em andamento. A Itália humanista do Renascimento, tão amada pela sua cultura,
achava-se em vias de desaparecer. O que ia se afirmando como a nova Itália era
uma cultura de produção e consumo, seguindo à risca os dogmas da sociedade
consumista.
Pasolini, entretanto, afirmou, em várias ocasiões, que não era contra o pro-
gresso, mas sim contra o desenvolvimento
51
, o que fica especificamente claro nos
Appunti per un’Orestiade africana. O que importa, pode-se concluir, é ter a liberdade,
frente ao progresso, de se decidir pelo que manter ou não como tradição, contraria-
mente ao que ocorreu na Itália, como é assinalada por Pasolini, quanto à Itália Meri-
dional e aos dialetos.
Outro fator relevante para apontar a especificidade do cinema de Pier Paolo
Pasolini é a determinação desse diretor de situar seu cinema – ideologicamente – na
contramão da indústria cultural e da cultura oficial contemporânea italiana. Dessa
forma, Pasolini sempre se voltará, e isto é dito expressamente, para o intuitivo e o
popular:
[...] prefiro a pobreza dos napolitanos ao conforto da república italiana, prefiro a igno-
rância dos napolitanos à escola da república italiana, prefiro a comédia napolitana,
ainda que ingênua e um pouco naturalista, a que se pode ainda assistir no submun-
do napolitano, à novela da televisão da república napolitana. (P
ASOLINI, 1980, p. 8)
52
Nada, portanto, permanece estático, o mito e a religião mudam, dessacrali-
zam-se, permanecendo apenas como signos do arcaísmo, da ingenuidade e da ori-
ginalidade. O que se realiza na mímesis crítica pasoliniana é a síntese, na obra de
arte, de todas essas contradições, da Itália dividida em meridional e setentrional, da
África mítica, colonial e industrializada socialista, ou dos personagens sínteses de
contradições, como o professor e o aluno de O pai selvagem. Assim são os filmes
que mimetizam realidades complexas, resolvidas positivamente na contradição bem
e mal.
51
Em italiano, sviluppo, segundo o Vocabolario della lingua italiana, de Nicola Zingarelli, crescimento, aumento,
ou ainda tendência de expansão de um sistema econômico.
52
Ma cosa vuoi farci, preferisco la povertà dei napoletani al benessere della repubblica italiana, preferisco
l'ignoranza dei napoletani alle scuole della repubblica italiana, preferisco le scenette, sia pure un po'
naturalistiche, cui si può ancora assistere nei bassi napoletani alle scenette della televisione della repubblica
italiana.
83
2. ANÁLISE CRÍTICA DE TRÊS FILMES TRÁGICO-MÍTICOS
2.1 Édipo Rei
Que o tema de Édipo
53
impressionou Pasolini pela sua objetividade é o que
será visto em seguida, e é o que justificará a associação entre dois filmes e dois per-
sonagens representados pelo mesmo ator, fator também de objetividade – Accattone
e Édipo Rei –, sob o amparo da concepção pasoliniana de que o cinema deriva da
poesia.
Afirma KITTO (1972, v. 2) na página 261 de sua obra Tragédia grega:
Qual é, por outras palavras, a catarse? Que Édipo aceita o seu destino? Mas quan-
do uma pessoa é atirada ao chão, tem de aceitar o facto; e se não for possível à
pessoa tornar a erguer-se, há que haver resignação. Há pouca luz neste ponto. A
catarse de que andamos à procura é o esclarecimento último que transformará uma
história dolorosa numa profunda e comovedora experiência.
Kitto sugere a busca da catarse – do efeito dramático que coloca o especta-
dor diante de fatos inimagináveis, causando nele temor e compaixão – no caso de
Édipo, no fato de que um homem seja levado a, inocentemente, pois desconhecia a
aceitação inelutável da herança amaldiçoada dos Labdácidas, cometer um crime e
ser punido barbaramente, não só ele, mas sua mãe e esposa e sua descendência a
partir de então maldita. “As coisas passam-se ao contrário de todas as expectativas;
a vida parece cruel e caótica”, acrescenta K
ITTO (idem, p. 262).
As questões suscitadas pela tragédia de Sófocles que afetaram, como gran-
des signos, a concepção pasoliniana de Édipo Rei são a culpa herdada do pai, a
destruição violenta do mundo arcaico e a negação do lógos, entendido como define
Kitto, um elemento gerador de “equilíbrio, um ritmo ou padrão nos assuntos huma-
nos”. Ainda segundo K
ITTO (1972, v. 2, p. 262) “os gregos acreditavam [...] que o
universo não era caótico e ‘irracional’, mas que se baseava num lógos, a lei estabe-
lecida”.
Quanto ao filme de Pasolini, analisá-lo implica, primeiramente, reconhecer
sua importância diante do que o diretor italiano define como cinema de poesia, ca-
53
Para o texto original da tragédia foi utilizado, nesta tese, a tradução de Mário da Gama Kury (SÓFOCLES, 1990).
Esta tradução foi feita a partir do texto grego e contém notas bastante elucidativas.
84
racterística do conjunto da sua obra, em oposição a cinema de prosa. No ensaio “O
cinema de poesia”, após diferenciar lin-signos e im-signos
54
, pois os primeiros estão
instrumentalizados na compreensão pelos ouvintes dos conteúdos expressos pelos
falantes, Pasolini afirma algo fundamental para a comparação entre Édipo Rei e Ac-
cattone e para a análise dos outros dois filmes da trilogia trágica. O trecho é o se-
guinte:
[...] é preciso então acrescentar de imediato que o destinatário do produto cinemato-
gráfico está também habituado a ‘ler’ visualmente a realidade, isto é, a manter um
colóquio instrumental com a realidade que o cerca enquanto ambiente de uma cole-
tividade, expressando-se também através da pura e simples presença ótica dos seus
hábitos e dos seus atos. (PASOLINI, 1982, p. 138)
Que Accattone seja um filme que usa instrumentalmente signos icônicos, en-
tende-se, pois as cenas foram filmadas em uma cidade real e envolvem situações
que, embora fictícias, fazem parte do cotidiano. Mas e quanto a Édipo Rei, filmado
no Marrocos, em locações desoladas? Não seria o caso de se apontar neste filme a
presença de imagens simbólicas? Instrumentais não seriam as imagens do cinema
neo-realista, comprometido com uma visão fixada e estereotipada da sociedade?
Leve-se em conta, ainda, que os figurantes de Édipo Rei, em muitos casos,
foram recrutados entre as populações locais, constituindo tal estética um discurso
indireto livre no cinema, uma vez que as imagens mimetizam o arcaísmo, pois resul-
tam de um movimento da câmera, que se volta para registrar visualmente o próprio
cenário arcaico a fim de tornar visualmente arcaicas as imagens de um Édipo mo-
derno. Sobre tais imagens, afirma Pasolini,
[...] há todo um mundo, no homem, que se exprime sobretudo através de imagens
significantes (podemos inventar, por analogia, o termo im-signo): trata-se do mundo
da memória e do sonho. (idem, p. 138)
As imagens de Édipo Rei são compreensivelmente oníricas, como a cena em
que o pequeno Édipo moderno é deixado em casa sozinho pelos pais e assiste a
dança do pai e da mãe, à contraluz e semiencobertos por uma cortina, criando um
efeito de imagem projetada numa tela. Além disso, é um fator gerador de muitos e-
feitos e significados, o fato de que, contrariamente ao texto de Sófocles, Pasolini a-
presenta o mundo mítico arcaico. O Édipo de Sófocles deixou para trás sua origem
mítica, presente apenas na memória dos assistentes, e é um governante tirânico. O
Édipo de Pasolini encarna o processo de transformação: começa ingênuo, como os
camponeses da Itália Meridional ou os primitivos cristãos, e depois sofre, humana-
54
Conceitos anteriormente definidos nesta tese.
85
mente, a destruição violenta do Édipo mítico e sua substituição pelo Édipo governan-
te. Vive, dessa forma, o processo histórico de formação de uma sociedade hierarqui-
zada e racional, na qual o governante assume e representa a ideologia conformista
de reconhecimento da culpa paterna.
Este processo, no filme de Pasolini, culmina numa imagem: após a volta de
Creonte e uma cena em que Édipo e Jocasta se amam num cenário primitivo sugeri-
do pela luz de caverna que ilumina o quarto, o rei forma a corte diante do castelo
(Édipo Rei, 00:17:51), a fim de receber Tirésias. As imagens são intercaladas com
cenas de mortos sendo sepultados. Em seguida, Tirésias chega e todos se ajoe-
lham. Essa cena marca a hýbris de Édipo, que se esquece de que é homem e desa-
fia o protegido de Apolo. Além do mais, segundo Junito BRANDÃO (2007, p. 209), por
ter cometido um crime contra o génos, Édipo é perseguido pelas Erínias, que impe-
dem que o adivinho lhe revele com precisão o futuro. Isso é o signo antigo que Pa-
solini usa como significado da tirania de Édipo.
As cenas de Accattone, aparentemente, são altamente realistas e jamais oní-
ricas. Mas elas são oníricas à medida que se lhes analisa os grandes signos – a
vontade de conhecer ou de desconhecer; a destruição violenta do mundo ingênuo
de Accattone; a culpa herdada –, comparáveis aos signos do arcaísmo representa-
dos em Édipo Rei pela ânsia do herói pela verdade, e a sua positividade, em oposi-
ção à renúncia de Pasolini pelo desenvolvimento. Imagens oníricas arcaicas que
persistem, transformadas, no homem, são a ingenuidade dos primeiros cristãos, os
camponeses do sul da Itália, entrevistados no filme Comizi d’amore, e o dialeto. Es-
tas formas arcaicas são as que se apresentam na comunicação visual:
[...] enquanto a comunicação instrumental que está na base da comunicação poética
ou filosófica é já extremamente elaborada e constitui um sistema real historicamente
complexo e estabelecido, a comunicação visual, que é a base da linguagem cinema-
tográfica é, pelo contrário, rude, quase animal. (idem, p. 138)
Nesse ponto, assemelham-se Édipo Rei e Accattone: na primitividade dos
signos a que ambos se referem, embora um seja um filme trágico e o outro um filme
de borgata. Ou seja, a objetividade com que a tragédia tratou de temas como a cul-
pa herdada através das gerações é repetida no cinema de poesia. Estes temas são
sempre ligados ao homem, mas abordados hoje como realidade e como signos ar-
caicos, pois se ontem eram sentimentos humanos mediados pelo mito e representa-
dos na tragédia pela sua destruição violenta, hoje são mediados pelo pensamento
cristão e pela ideologia capitalista e mimetizados no cinema.
86
A representação da tragédia hoje começa pela leitura dos seus signos míti-
cos, mas não deve levar para o palco uma adaptação dos enredos, e sim a expres-
são da ideologia. Essa operação que vai do mito à ideologia tem um paralelo na
teoria freudiana, pois hoje se fala de Édipo como a representação de um conflito
com o pai e se dá como pano de fundo o desejo pela mãe. O incesto, entretanto,
pode ser representado na tela do cinema, apesar do tabu, de forma mais realista do
que foi no palco grego. Segundo Massimo Fusillo, quando analisa o filme Édipo Rei
(1996, p. 85-97) há uma passagem na peça de Sófocles que deve ter interessado
bastante a Freud, pois seria a confirmação da teoria sobre o complexo de Édipo.
Trata-se do trecho em que Jocasta tenta dissuadir Édipo das suas suspeitas em re-
lação à prática do incesto por eles, argumentando que muitos homens sonham pos-
suir a mãe. Essa fala de Jocasta é reconstituída literalmente no filme de Pasolini, o
que aponta para a solução freudiana dada pelo diretor italiano à representação fílmi-
ca do tabu. Dessa forma, a ideologia que substituiu o tabu arcaico deve voltar na
forma de arte, ou o desejo inconsciente do filho pela mãe, descoberto por Freud,
permaneceria recalcado.
Não que o homem moderno racional não possa ficar atônito, já que não passa
pela mesma experiência que levava o homem grego à catarse. Como para provar
isso, Pasolini realizou seu último filme (SALÒ, 1975) e nele expôs as imagens do ta-
bu, o que o torna insuportável. Salò nos deixa atônitos diante do tabu sadista, do
tabu da tortura e do tabu das relações sexuais de poder. Mas isso como obra de arte
que é, como um Édipo Rei escrito por Sófocles ou uma Oréstia por Ésquilo, tomando
um material mítico, problemático, para expressá-lo conflituosamente em forma de
tragédia.
A representação do tema arcaico como se fosse moderno é possível no cine-
ma de poesia. Tomando por exemplo o tema edípico da cegueira, retomado como
antípoda em Accattone. Na obra trágica, o coro – um coro democrático, diria Pasoli-
ni, repetindo a citação em Pasolini, 1980, p. 3 – refere-se à desgraça de Édipo com
exagerada naturalidade, enquanto todos os outros personagens lamentam a sorte
do herói. Afirma Kitto: “A história não está moralizada. Sófocles poderia ter sugerido
que a ambição cega é o que o fez aceitar a coroa e a Rainha de Tebas”. Da mesma
forma, Pasolini não moraliza Accattone. Se fosse seguir a tendência neo-realista e
visasse ao desfecho que expressa a meta, Accattone, ao final, enxergaria. Não ha-
veria então catarse, pois não poderíamos identificar a busca da verdade como a
87
causa da desgraça de Édipo e julgaríamos sociologicamente o final trágico de Accat-
tone. Todavia, tanto o Édipo quanto o personagem moderno de Pasolini têm na ce-
gueira, tão naturalisticamente como o coro anuncia, as mazelas do caráter humano:
Vossa existência, frágeis mortais,
é aos meus olhos menos que nada.
Felicidade só conheceis [1395]
Imaginada; vossa ilusão
Logo é seguida pela desdita.
[...]
Filho de Laio [...]
todavia graças a ti
Foi-nos possível cerrar os olhos
Aliviados e respirar
Tranquilamente por muito tempo.
(Sófocles, 1990, p. 83) [1445]
Dessa forma, a produção de Pasolini de filmes que se apropriam de signos
trágicos se afasta das demais produções baseadas no mesmo tema. A visão de Pa-
solini não é generalizante, não estabelece de antemão um final que aponte uma
causa, ou seja, conflitos sociais sociologicamente definidos. O rumo que o autor-
diretor imprime ao seu cinema trágico é totalmente original, contrapondo-se a todas
as tendências existentes até então, pois leva em conta a riqueza peculiar dos perso-
nagens, a própria simbologia atribuída a eles na sua construção como trágicos.
A análise dos três filmes trágicos, portanto, levará em conta que a concepção
pasoliniana sobre o conhecimento moderno da tragédia através do cinema não for-
mou uma tradição, mas morreu com ele. Pasolini, entretanto, não nega a identifica-
ção dele com outros autores cinematográficos que também realizariam cinema de
poesia, entre estes Godard, Glauber Rocha e o diretor japonês Misoguchi.
O conceito pasoliniano de cinema de poesia foi apresentado pela primeira vez
em junho de 1965 no I Festival do Novo Cinema de Pesaro. Os conceitos de objeti-
vidade no cinema e a questão da língua operacional, entretanto, já haviam aparecido
em dois textos, ambos de 1960, que serão analisados em seguida, pelas relações
entre eles e o texto Il cinema de poesia. Em 1960, importa assinalar, Pasolini tradu-
ziu a Oréstia e preparava Accattone.
Em janeiro de 1960 Pasolini dirige a Luciano Anceschi, diretor da revista Il
Verri, uma carta a propósito de sua “técnica narrativa”. Essa expressão não faz parte
da concepção de Pasolini sobre o cinema, pois para ele não se trata de uma técnica,
mas de uma unidade em que a narrativa está junto com o conteúdo. Essa polêmica
dá margem à escrita, por Pasolini, da carta citada, em que este relaciona sua expe-
riência no cinema, que àquela altura iniciava.
88
Pasolini expressa suas opiniões acerca da narrativa cinematográfica, como
sempre de forma crítica, apontando para o diretor da revista o que ele entendia co-
mo narrativa no cinema, em comparação com a narrativa literária, do ponto de vista
do que o cinema contém, necessariamente, de objetividade. O trecho é o seguinte:
O cinema propõe processos de sintaxe narrativa que, há muito tempo, na literatura,
não se ‘autopropõem’. E eu vou te dizer logo por que: o narrador da literatura é, o
mais frequentemente – ao menos como se o entende no meio pós-crocciano, no cír-
culo, digamos, ‘burguês’ – um narrador de si: subjetivo. O narrador do cinema é, por
definição, por demanda do público, o narrador dos acontecimentos do outro: objeti-
vo
55
. (NALDINI, 1989, p. 226)
O fato de essa carta ter sido escrita na mesma época da anteriormente referi-
da, Lettera del traduttore (PASOLINI, 1960), com a qual tem muitos pontos em co-
mum, abre espaço para se pesquisar o encontro por Pasolini dessa objetividade nas
obras literárias que formam o corpus da tragédia grega.
A objetividade apontada na carta a Anceschi – que, afinal, decorre da inser-
ção que Pasolini faz da sua crítica na história, nos movimentos literários e cinemato-
gráficos, e não na arte ou na poesia ou no cinema generalizadamentedefine de
forma clara a racionalidade do cinema de Pasolini e a sua carga humanista, do pon-
to de vista de que seu conteúdo literário, poético e imagético não vem do interior do
homem, na forma de subjetividade, mas vem da observação da história, da memória
e do contexto social em que se dá a criação da obra. Não se trata de uma inspira-
ção, mas da busca e do encontro de determinados signos que já estão em algum
lugar como, por exemplo, na tragédia grega vista como um conjunto de obras que
contém grandes signos que são passíveis de interpretação e análise pelo homem
moderno.
Nos textos dramáticos gregos encontra-se, por exemplo, um tema que é caro
a Pasolini, o da destruição violenta do mundo arcaico. Os primeiros assistiram, atôni-
tos, ao horror que jamais fora imaginado: a condenação da forma arcaica de vida e
do mito – ainda vivo no imaginário de século V a.C. – que sustentara a vida naquela
sociedade arcaica e não estava totalmente superado; os outros, os modernos, assis-
tem à representação dessa destruição violenta e à consequente substituição do mito
vivo pela simbolização ideológica, em um processo, também, de convivência das
55
Le cinéma propose des processus de syntaxe narrative qui, depuis longtemps, dans la littérature ne ‘s’auto-
proposaient’pas. Et je vais te dire tout de suite pourquoi : le narrateur de la littérature, est, le plus souvent –
c’est du moins comment on l’étend dans le milieu post-crocien, dans le cercle, disons, ‘bourgeois’ – un
narrateur de soi : subjectif. Le narrateur du cinéma est, par définition, sur demande du public, un narrateur des
événements d’autrui: objectif.
89
duas formas. Estes não assistem atônitos porque o tema lhes é racionalmente fami-
liar. Nisso reside a diferença – obrigatória, inevitável, fatal – entre o que os gregos
assistiram e o que o espectador de cinema assiste em Édipo Rei. A representação
do horror inimaginado pelo homem moderno Pasolini somente alcançará em Salò.
A mímesis crítica que Pasolini realiza a partir dos textos gregos – e somente
dos textos, pois quase nada mais chegou até nós em relação à estranheza causada
no público pela tragédia representada no palco grego – insere no conceito de tragé-
dia elementos outros que os apontados nas teorizações clássicas, quer de Aristóte-
les, quer dos filósofos românticos da filosofia do trágico.
Particularmente em relação ao Édipo, a concepção pasoliniana de desconhe-
cimento volta-se, por outro lado, contra a concepção bíblica, que associa essa con-
dição de desconhecimento à ingenuidade adâmica. Os dois signos, Édipo e Adão,
diferenciam-se, pois o segundo encontra-se no paraíso, na companhia da mulher
que o induzirá ao pecado. Não há herança e não há humanidade. O Édipo que re-
presentará na tragédia o conflito entre lógos – a forma antimítica violenta – e a soci-
edade arcaica é o signo mítico que encarna o terror que a sociedade da razão julga
ter superado mas que na obra de Sófocles, como na de Pasolini, continua presente
no imaginário como o signo da obrigatoriedade de conhecer a lei, ou seja, conhecer
lógos.
No texto grego clássico – narrativa objetiva, não subjetiva – encontra-se algo
concreto, uma criação estética representativa, às vezes nostalgicamente, da destrui-
ção violenta do mundo grego arcaico pré-socrático. Este objeto, do ponto de vista
pasoliniano, é matéria bruta objetiva, um léxico de imagens poéticas, que Pasolini
introduzirá no cinema, meio de expressão industrial. Aqui se pode perceber o símbo-
lo sob as personagens humanas: “instrumentos para exprimir cenicamente ideias,
conceitos: em suma, em uma palavra, para exprimir aquilo que hoje chamamos uma
ideologia”.
A concretude que Pasolini encontra na tragédia é uma linguagem “que se di-
reciona para um raciocínio que é tudo, menos mítico”. Estes trechos da Lettera del
traduttore (P
ASOLINI, 1960), retomados neste ponto da tese, representam importante
material teórico se confrontados com o conceito de objetividade do cinema, defendi-
do pelo diretor italiano na carta a Anceschi. Ressalte-se que a Lettera foi escrita, as-
sim como a carta a Anceschi, em um período em que, segundo Naldini, os projetos
90
sobre a mesa de Pasolini, eram todos cinematográficos, com exceção da organiza-
ção de um livro de poemas e da tradução da Oréstia.
O biógrafo comenta também o fato de que esses projetos encontravam sua
força nas “considerações sobre os limites e as crises constantes da literatura”. O
texto da carta ao editor de Il verri, citada por Naldini, em que Pasolini comenta a sua
passagem da literatura para o cinema é o seguinte:
A lição do cinema é uma lição de objetividade: mesmo no filme mais medíocre os
personagens e os acontecimentos existem objetivamente, em uma realidade que, no
pior dos casos, é interpretada segundo o senso comum. Cada filme, mesmo o mais
medíocre, exige uma pesquisa sociológica, uma análise do meio [essa é a questão
do que é retirado, pois não concorre para a meta], que possa determinar os perso-
nagens ou com o que eles entram em contradição. Cada filme, mesmo o mais medí-
ocre, exige um desenvolvimento coerente do personagem segundo uma lei moral
objetiva, qualquer que esta seja, aí compreendida, eu repito, a lei corrente
56
.
(N
ALDINI, 1991, p. 226)
A palavra instrumental já havia sido usada para descrever a língua de Ésquilo
na Oréstia. Na interseção entre a Lettera... e a carta a Anceschi, ambas escritas em
1960, encontra-se a possibilidade de generalização da ideia pasoliniana da objetivi-
dade no cinema, ou seja, da expressão no cinema de uma percepção de fatos con-
cretos e não de algo interior ao homem. A isso se acrescenta o conceito de cinema
de poesia que tomaria seus signos num léxico caótico de imagens. O trecho da Let-
tera... em que Pasolini menciona a língua instrumental de Ésquilo está citada acima.
Na carta a Anceschi, Pasolini exprime o mesmo desejo em relação à língua italiana:
Eu não sei o que eu daria para que, de um ponto de vista semântico, a língua italia-
na tivesse a validade absoluta de homologação da imagem fotográfica: de sorte que
o processo do semantema ao estilema pressupusesse uma relação de absoluta ins-
trumentalização do primeiro
57
. (idem)
Dito isso, fica traçado o caminho para a análise de Édipo Rei livre das apro-
priações fortemente impregnadas pela racionalização do tema “Édipo” para possibili-
tar a eclosão de novos signos como a racionalidade de Édipo, nesse sentido oposto
a Accattone, que tem vontade de desconhecer. A objetividade da narrativa está pre-
sente na troca da fala da Esfinge: ao invés do enigma proposto tradicionalmente no
mito, esta, quando Édipo se aproxima para destruí-la, afirma que o herói “carrega um
enigma dentro dele”. Ainda que não explicitando verbalmente o enigma original, Pa-
56
La leçon du cinéma est une leçon d’objectivité: même dans le film le plus médiocre, le personnage et les
événements existent objectivement, dans une réalité qui, dans le pire des cas, est interprété selon le sens
commun. Chaque film, même le plus médiocre, réclame une enquête sociologique, une analyse de milieu, qui
puisse déterminer les personnages ou avec lequel ils entrent en contradiction. Chaque filme, même le plus
médiocre, réclame un développement cohérent du personnage selon une loi morale objective, quelle que soit, y
compris, je le répète, la loi courante.
57
Je ne sais pas ce que je donnerais pour que, d’un point de vue sémantique, la langue italienne ait la validité
absolue d’homologation d’une image photographiée: de sorte que le processus e sémantème à stylème
présuppose un rapport d’absolue instrumentation du premier...”.
91
solini o coloca dentro do personagem. O enigma que Édipo carrega, no filme de Pa-
solini, é sobre sua origem, motivo da sua consulta ao oráculo, que lhe nega a verda-
de, pois desconhecer, para Édipo, é a fonte de toda a desgraça e da sua trágica
vida.
Este conceito de objetividade, associado ao conjunto de conceitos que com-
põem o quadro criativo do cinema de poesia será a base para o encontro, nos filmes
de Pasolini, entre ideia a ser expressa e a vontade do autor. Não à toa Pasolini reali-
zará a trilogia trágica baseada nas obras que marcaram a entrada em cena da razão
e da vontade autoral na criação literária, aliadas à existência, nessas obras, de um
objetivo claro e definido, produzir na plateia o efeito catártico.
Vistas como obras de arte, expressões estéticas do pensamento de uma épo-
ca, pode-se perceber a diversidade do conjunto de obras denominadas tragédias.
Essa diversidade é reconhecida e explorada por Pasolini, pois ele reconhece que o
material que pode ser apropriado da Oréstia difere daquele de Medeia ou de Édipo
Rei, embora possam ser encontrados nas três peças os mesmos grandes signos
que Pasolini buscou no léxico caótico de imagens, pois somente estes caberiam pa-
ra explicar a destruição violenta das formas arcaicas e a sua persistência como ima-
gem que deve ser exposta pelo cinema industrial, ou permaneceriam como tabu,
recalcadas.
Pasolini afirma, segundo Naldini, que a questão social, era o mais importante
“nas suas intenções de artista”. Isso é o que define a ideia pasoliniana sobre Édipo,
representado no cinema segundo uma perspectiva histórica abrangente o suficiente
para abordar a complexidade com que Freud simbolizou o comportamento do ho-
mem moderno segundo o simbolismo da tragédia de Édipo. O cinema de poesia
marca aí sua presença, levando em conta a interpretação que Freud fez do homem
moderno e trazendo do mito o horror do incesto, já agora visto na tela como a in-
compreensível imagem do tabu.
O incesto e o parricídio marcam o erro de Édipo. Para a construção verossímil
do enredo, Édipo pode errar porque é socialmente desajustado, pois é um “filho da
fortuna” e padece da ignorância total dos ingênuos, que também atinge o sotoprole-
tariado, os camponeses friulanos, os primeiros cristãos, as populações da África, ou
seja, todos aqueles que não foram contaminados pela racionalidade burguesa. Seu
destino está traçado e é anunciado pelo oráculo divino. Este, por sua vez, condena
92
Édipo e o escorraça, afirmando que a sua presença contamina as outras pessoas
presentes, mas o crime nem mesmo fora cometido ainda.
Algo marca esse tipo de personagem, que é punido antes mesmo de cometer
o crime, uma característica de origem, que no caso do Édipo mítico é a maldição dos
Labdácidas, marca reconhecida por qualquer cidadão do século V, que atonitamente
percebe como pode ser narrado com naturalidade enredo tão funesto. Pois nada
mais natural do que Apolo transmitir para sua sacerdotisa, no filme de Pasolini, o
peso da maldição e que esta, como porta-voz do deus, anuncie ao maldito o seu
destino.
A cena do oráculo, no filme de Pasolini, reveste-se de muita crueldade, uma
vez que representa, para Édipo, uma terrível revelação, que o faz tomar conheci-
mento da sua inevitável realidade. Imagem também do banimento, da marginaliza-
ção por causa herdada, a crueldade se apresenta na condenação de Accattone
pelos amigos e no consequente abandono em que ele é lançado depois que ele per-
de sua condição de cafetão, devido à prisão de Madalena.
A hybris de Accattone é representada na cena do mergulho da ponte: é uma
vitória, pois o personagem, dessa forma, mostra que tem razão diante de um opo-
nente sobre uma questão pouco importante, mas a vitória representará sua ruína,
uma vez que todos lhe voltarão as costas no momento de dificuldade. Tais persona-
gens são marcados pela naturalidade em cumprir as ações que os levarão ao desfe-
cho e que isso seja naturalmente assistido pelo público da era da razão, embora
gerando um sentimento de injustiça.
Na cena do Édipo Rei em que a Pitonisa vaticina, o cenário é totalmente natu-
ral, não há construção humana e a câmera, também natural, registra apenas, em
planos mais ou menos afastados, o rito de transmissão para o jovem Édipo da culpa
pelo erro do pai. Como visto anteriormente, Pasolini considera essa herança da so-
ciedade mítica como um rito que reaparece, metamorfoseado, como a ideologia do
conformismo. A tragédia, assim como os filmes trágicos de Pasolini, recusam esse
rito, representando-o no enredo dramático em sua falsa naturalidade, o que conduz
o público a ficar atônito devido à apresentação naturalística da vida humana em su-
as ações e consequências. Kitto define da seguinte forma essa naturalização das
circunstâncias:
As circunstâncias são também naturais, inevitáveis mesmo, dadas essas persona-
gens. Édipo, tal como o vemos repetidas vezes, é inteligente, decidido, autoconfian-
te, mas de temperamento exaltado e demasiado seguro de si próprio; e uma cadeia
93
aparentemente maligna de circunstâncias combina-se, ora com o lado forte do seu
caráter, ora com o fraco, para dar lugar à catástrofe. (1972, v.2, p. 254)
Essa naturalização leva à objetividade a que se refere Pasolini e, por sua vez,
será o signo que fará de Édipo e Accattone personagens nos quais a principal carac-
terística é a ação, inerente ao enredo, e a sua desdita não decorrente de causas ex-
ternas, como a sociedade ou a ira divina. Esta é a marca do humanismo de Pasolini,
que religará no cinema industrial o Édipo trágico e o mítico Accattone.
Como resultado da revelação do oráculo, tratando-se do filme de Pasolini, a
vida de Édipo, que lhe parecia ordenada e equilibrada, de acordo com a lei estabe-
lecida, passa a compor um quadro caótico. O herói se pergunta, desesperado, “para
onde vai a minha vida, para onde vai a minha juventude?”. Essas cenas mostram
também a decepção do personagem diante do futuro: tudo isso é naturalmente ob-
servado pelo espectador moderno, conhecedor da tragédia grega. Este se pergunta,
homem moderno que é, se afinal o que recai sobre Édipo é a justiça da razão. Dessa
forma pergunta-se também sobre o que se abate sobre Accattone e Ettore (persona-
gem de Mamma Roma), personagens nascidos para o castigo. Esse temor e com-
paixão modernos formam a moderna catarse pasoliniana, com suas alusões aos
terríveis crimes conhecidos do público através da cronaca nera e da história da guer-
ra, ainda na lembrança dos italianos e encenada na obra catártica definitiva pasolini-
ana, o filme Salò.
Diante do palco grego, essa nova vida que se descortina para o herói se des-
cortina também para o público espectador, que, atônito, despreparado para viver tal
situação na qual se podem prever as maiores desgraças, uma tragédia desprovida
de razão, um retorno do caos arcaico, tanto mais que a história mítica de Édipo era
já conhecida, parece cruel e caótica, gera o temor e a compaixão.
Nessa parte do filme, a naturalidade predomina nos cenários e nos persona-
gens. O cenário onde está a pitonisa resume-se a uma árvore, sob a qual, além da
mensageira de Apolo, encontram-se alguns sacerdotes que a alimentam entre os
vaticínios. Algumas cenas antes, o rei de Corinto, que recebe Édipo do pastor, é
uma figura prosaica, calvo e muito pouco formal, diferentemente da pompa com que
Creonte e Jocasta recebem Édipo em Tebas. O contraste é mais forte ainda se estas
cenas naturais forem confrontadas com as cenas da primeira parte do filme, passa-
das em uma cidade moderna italiana, tendo como Laio moderno um militar, como foi
o pai de Pasolini.
94
Em Accattone não há propriamente um oráculo, embora no salto da ponte fi-
que expresso seu caráter fútil e de pouco apreço à própria vida, marca do persona-
gem que desconhece seu dever para com a sociedade, pois desconhece a culpa
paterna. Ambos, Édipo e Accattone pasolinianos, não possuem o conhecimento pré-
vio que faria deles personagens intelectuais, mas seu caráter modificador está em
serem heróis que, se por um lado, padecem com o corpo, salvam suas almas. Assi-
nale-se a citação de Dante ALIGHIERI, colocada nos primeiros fotogramas de Accat-
tone:
De Deus anjo tomando-me, o do inferno
– ‘Servo do Céu, mo tomas?’, lhe bramia. [105]
‘Dele me usurpas o princípio eterno
Por uma tênue lágrima fingida’;[...]
58
(2003, p. 302, Purgatório, c. 5)
Esses versos, propositalmente, antecedem um filme que narra a história de
um homem socialmente desajustado, embora digno de se salvar, simplesmente por-
que, acima do seu desajuste, ele é um homem. O que o salva é a sua ingenuidade,
a ignorância do erro cometido e da inevitabilidade de cometê-lo. A vida terrena de
Accattone, anuncia Pasolini, ademais um simples e comum personagem de borgata,
o plano-sequência da sua existência, só adquire significado depois da sua morte.
Assim como Édipo, Accattone paga por uma culpa que é dele apenas por herança.
Como o coro democrático que anuncia a fatalidade da purgação da culpa paterna, o
anjo do inferno anuncia: “mas do seu corpo cabe-me o governo”, no verso 108, omi-
tido na epígrafe do filme, mas constante do texto de Dante, imediatamente em se-
quência aos citados. O significado é a ingenuidade que persistirá como tema
pasoliniano ainda nos Appunti..., para ser violentamente descartado em Medeia e
Salò.
A esse respeito não se pode deixar de notar que certos autores referem-se à
existência de uma identificação entre o enredo da primeira parte de Édipo Rei e a
própria história de Pasolini, além de uma possível identificação narcísica entre o di-
retor italiano e os seus heróis.
Dessa forma, Édipo Rei é um filme que trata do desajuste do personagem que
busca a verdade ao invés de buscar compreender a fatalidade de assumir a ideolo-
gia paterna, a forma paterna de comportar-se. A questão edipiana, então, deixa de
58
No filme não consta o verso 108, comentado em seguida para mostrar a distinção que o demônio faz entre
corpo sofredor e alma redimida. Os versos da abertura do filme são os seguintes: “O tu del Ciel, perché mi
privi? / Tu te ne porti di costui l’eterno / per una lacrimette che’l mi toglie...”.
95
ser tão somente a questão do desejo pela mãe como fonte de prazer, e se abre para
uma questão histórica e social, a da ideologia que tem na sua lógica a necessidade
de ser universalmente aceita.
É então um filme que confronta a primitividade do personagem e do enreda-
mento dele numa trama de desconhecimento – pois o conhecimento da lei, embora
obrigatório, não é natural – e punição, antes mesmo de que o crime seja cometido. É
a visão de um humanista, o autor Pasolini, atônito diante do realismo do mito e des-
sa negação do humanismo como ele foi vivenciado desde o renascimento, ou seja,
como o reinado da razão.
Voltando ainda uma vez à citação do início do capítulo 2, retirada das Lettere
luterane: “um dos temas mais misteriosos do teatro grego é a predestinação dos fi-
lhos a pagar a culpa dos pais” (PASOLINI, 1980, p. 3), pode-se perceber a intenção de
Pasolini ao apresentar de forma natural a perda da inocência por Édipo e sua entra-
da, por entre as gargalhadas da Pitonisa, na vida adulta.
Todo o processo de assumir a ideologia, o momento da vida em que se deve
admitir que se pertence inevitavelmente à descendência do pai (PASOLINI, idem) de-
nuncia a pretensão de universalidade da ideologia, conforme afirma CANEVACCI:
O que há de falso na ideologia é a pretensão de universalidade, de conseguir repre-
sentar puras visões do mundo de toda a humanidade como algo socialmente reali-
zado.[...] A ideologia é uma facciosa particularidade que tem a ambição de se
dimensionar numa hegemonia universal, a fim de exercer uma função de controle no
terreno da cultura e de poder em face da totalidade das pessoas às quais se dirige,
sem nenhuma exceção. (C
ANEVACCI, 1984, p. 8).
As imagens do Édipo moderno e de seu pai, um militar fragilizado pelos ciú-
mes diante da esposa – numa cena de Édipo Rei, diz o pai, enquanto olha para o
filho no berço: “você veio para me tirar tudo, a começar pela mulher que eu amo” – e
do filho possibilita a união do mito e da tragédia, pois reporta historicamente o per-
sonagem Édipo ao tempo pré-trágico do sacrifício, o tempo do infanticídio.
Aparentemente, Sófocles deliberadamente retira do seu texto a ordem divina
– o mito – a fim de resultar numa tragédia. Pasolini não pretende representar Édipo
sem colocar em cena o que desencadeia os fatos narrados na tragédia, ou seja, o
ódio do pai. Por outro lado, a morte de Laio, pela grandeza da cena, central no filme,
reproduz a morte de Cronos por Zeus. É a morte do pai tirano pelo filho vingativo.
A cena final de Édipo Rei, filmada no mesmo prado verde em que a criança
Édipo moderno é levada pela mãe, aquela mesma visão que tem o menino deitado
no chão pela mãe, é o começo e o fim: “voltei ao começo”, declara Édipo adulto e
moderno mas com as marcas da passagem do homem pelo período trágico que é a
96
vida humana, “a vida termina onde começa”. Signo trágico, im-signo sugerido ao au-
tor pela tragédia grega, simbolizando a vida humana como um intervalo de tempo,
como define Ungaretti, “o homem é só um ponto entre dois infinitos esquecimentos”
(UNGARETTI, 1994, p. 47).
Concreta e realisticamente, Édipo é um criminoso. Accattonne tangencia o
crime. Édipo tem fé: em duas ocasiões acredita no vaticínio do oráculo com resulta-
dos catastróficos. O primeiro vaticínio o leva ao caminho no qual matará o pai. O
segundo o leva a ser seu próprio juiz e algoz. Édipo e Accattone têm em comum a
transgressão que os marca. Édipo comete o pior crime e Accattonne se diz um ho-
mem estigmatizado por viver sustentado por mulheres, o que, segundo ele, o coloca
numa escala social inferior à dos ladrões. Édipo trapaceia no jogo, o que o faz saber
que é um “filho da fortuna” e esta cena tem ares contemporâneos, assim como a
aparência comum do rei e a sua ingenuidade, bem como a vida “normal” que eles
levam.
Sendo concomitantes a tradução da Oréstia e a realização de Accattone, de-
vem ser aceitas as teses de que o interesse de Pasolini pela tragédia existia bem
antes da realização de Édipo Rei e dos demais filmes trágicos e de que Accattone
também continha uma questão trágica. A declaração de Pasolini que relaciona Édipo
Rei e Accattone – “eu pensei pela primeira vez [em filmar Édipo Rei] enquanto eu
estava ainda rodando Accattone” (FIESCHI, 1965, p. 13), é citada por JOUBERT-
LAURENCIN (1995, p. 210), mas foi feita pelo diretor durante uma entrevista a Jean
André F
IESCHI e publicada nos Cahiers du Cinéma (n. 195, 1967, p. 13), quando este
lhe perguntou quanto tempo havia que Pasolini pensava em fazer Édipo Rei. O as-
sunto Édipo/Accattone não é retomado na entrevista, mas alguns outros temas men-
cionados concorrem também para a identificação entre os dois personagens, como a
intenção, manifestada por Pasolini, de não fazer do seu Édipo um herói intelectual:
Alguns críticos me reprovam por não ter feito de Édipo um herói intelectual [porque]
um intelectual, por natureza, já sabe, enquanto Édipo não conhece a verdade e so-
mente a descobre pouco a pouco [...] então eu escolhi um iniciante, um homem sim-
ples, a fim de que sua descoberta da verdade seja, de maneira verossímil,
dramática, mais agressiva.
A citação acima é bastante frutífera para a análise do filme trágico e de defini-
ção de um momento como se fosse uma peripécia na obra de Pasolini, quando um
filme com características bíblicas gera um filme mítico-trágico. Essa fertilidade se
torna ainda maior se adotarmos uma linha de análise que leve em conta que não há,
superficialmente, pontos de contato entre os dois filmes. Mas em algum ponto do
97
caos pasoliniano, lá onde apenas os signos arcaicos se encontram, haverá uma i-
dentificação. Se adotamos, anteriormente, a estratégia de embasamento desta tese
nas noções expostas em Cinema de poesia, não há agora outro caminho a tomar.
2.2 Appunti per un’Orestiade africana
Em Appunti per un’Orestiade africana, Pasolini ambienta na África da década
de 1960 a transformação das Erínias em Eumênides, dramatizada na tragédia esqui-
liana Oréstia. Pasolini, na ocasião da realização desse filme, tinha ainda bem viva na
mente a impressão causada pela tradução da Oréstia: “o significado da tragédia de
Orestes é somente, exclusivamente, político” (PASOLINI, 1960, s/p.). O cenário afri-
cano era propício para objetivamente mostrar, em um filme quase documentário, a
convivência da forma arcaica com a forma dessacralizada de vida, como na cena
não ficcional em que pai e filha derramam água sobre o túmulo de um ancestral, re-
petindo, dessa forma, o gesto de Electra.
O motivo por que esta análise do filme Appunti per un’Orestiade africana está
inserida entre as análises de Édipo Rei e Medeia não é somente a cronologia. Édipo
rei foi filmado em 1967, seis anos depois de Accattone (1961). Entre 1968/1969 Pa-
solini filmou Appunti per una Orestiade africana. Medeia é de 1970. Appunti..., entre-
tanto, é de natureza diferente, como foi dito na introdução deste trabalho, pois se
trata de um filme conceitual. Nele Pasolini explicita a metodologia de retirar do caos
os signos fílmicos. Os grandes signos, ou seja, os signos que estão na tragédia gre-
ga como vontade de superar a sociedade arcaica do sacrifício, e aqueles que, pre-
sentes na sociedade moderna na forma de ideologias, devem ser resgatados do seu
refúgio inconsciente pela obra de arte.
Édipo rei e Accattone, colocados em relação pelo próprio diretor italiano, ca-
minham de uma forma realista para uma forma simbólica, não à toa, tendo em vista
o caráter simbólico que o mito de Édipo – pode-se dizer, o personagem Édipo – ad-
quiriu após a teoria freudiana, contaminando todo o imaginário do homem racional a
partir do século XX. A teoria psicanalítica teve um importante papel nessa operação
98
de manter vivo o mito edípico. Em consequência da enorme influência que essas
teorias tiveram no mundo contemporâneo, a tragédia de Sófocles se tornou conheci-
da e complexo de Édipo se tornou expressão do senso comum.
Quando, na Lettera del traduttore (1960) Pasolini se refere à instrumentalida-
de da língua de Ésquilo e, na carta a Anceschi, ele alude ao desejo de que, na lín-
gua italiana, o processo que leva do semantema ao estilema fosse absolutamente
funcional, está definida uma linha de análise que, identificando nos filmes tais carac-
terísticas, chegue a uma gênese dos Appunti, da meta que cabia alcançar.
O dito acima coloca Medeia não só cronologicamente mas também logica-
mente, para efeito desta análise, no lugar que lhe pertence desde Eurípides: a da
peça mais humanamente trágica. Pasolini, entretanto, insistindo na identificação mí-
tica entre homem antigo e homem moderno, realiza, através da metodologia exposta
nos Appunti..., a desumanização de Medeia e a exposição, para o homem moderno,
do caráter mágico que o texto da tragédia grega recalca.
O texto grego aponta diretamente para a meta e apresenta humanamente
Medeia como a mulher que tudo fez por ciúmes. A partir dos Appunti..., e voltando a
Ésquilo, Pasolini mostra como a obra de arte pode colocar em jogo, para reflexão do
espectador, as forças que nele habitam e que se encontram além da racionalidade e
da ideologia conformista. Se Édipo é o personagem trágico mais popular e que mais
povoa o imaginário distorcido e simplificado do homem comum, Medeia é a mais
vulgarizada, diga-o o público brasileiro que assistiu Gota d’água, de Chico Buarque e
Paulo Pontes, e do público global que assistiu Dogville, de Lars Von Trier.
Para descolar Édipo do senso comum e desumanizar Medeia, há que ser ob-
jetivo. Esse o sentido da análise dos Appunti... estar inserida entre a dos outros dois.
O filme cumpre essa função de mostrar como ser objetivo sem apontar pragmatica-
mente para a meta, seguindo, com seu caráter documental, a receita da Carta, e
seguindo a receita poética do cinema Pasoliniano. Como se pode ver nos Appunti...
o filme poético resultante da estética pasoliniana é uma obra humanamente da inte-
ligência e não da pura intuição. Essa definição é emprestada de Giuseppe
U
NGARETTI:
O crítico deveria [...] ensinar ao artista a maneira de aperfeiçoar-se em seu ofício, e
com ‘ofício’ quero dizer um fato da inteligência, pressupondo que no artista haja vo-
cação, ou seja, todas aquelas faculdades instintivas, necessárias para apossar-se
daquela vida – e desfrutar sua posse – sobre a qual tencionará meditar, exercer seu
controle e da qual extrairá sua obra de arte. [...] Como expressará o artista aquela
mistura de sensações, que lhe virá do incognoscível? (U
NGARETTI, 1994, p. 28)
99
O primeiro grande signo encontrado pelo diretor italiano na Oréstia grega foi o
mundo arcaico, representado nas entrelinhas como objeto da crítica esquiliana, que
será poeticamente inserido nos Appunti... como a presença imaginária do medo e do
irracional. A África de Pasolini é a síntese da África mítica e da utopia da África in-
dustrializada socialista.
Aparentemente, Pasolini se repete, pois se trata sempre dos mesmos grandes
signos. Considere-se, entretanto, que a cada nova obra muda a posição desses e-
lementos em relação a alguns componentes do filme que são bastante caros a Paso-
lini, como o cenário. O cenário africano é bastante comentado por Pasolini, como
também o foram o Marrocos (Édipo Rei) e a Capadócia (Medeia). Entretanto, uma
primeira diferença já se mostra, de início. Sendo uma Oréstia africana, Appunti é um
filme sobre a África. É a interpretação que um europeu, branco, humanista, intelec-
tual faz acerca da história contemporânea da África em processo de descolonização.
É notável que a experiência de Pasolini com a África iniciara antes, em 1963,
quando ele escreveu o roteiro O pai selvagem, nunca filmado. Realizado cinco anos
depois, em 1968-69, Appunti... pode ser visto como um filme da maturidade: a lin-
guagem está mais objetiva; a passagem do semantema ao estilema é mais opera-
cional. Mudança bastante compreensível, tratando-se de um artista político como
Pasolini.
A consequência direta desse processo de criação do estilema África nos Ap-
punti... é a síntese obtida pelo choque entre a África mítica e a África que se moder-
nizava. Pasolini vai além do paradigma geopolítico do continente, assolado pela
miséria, palco de violentos conflitos coloniais. Isso é, algo mudara na imagem paso-
liniana da África desde que o diretor escrevera a obra, em parte autobiográfica, O pai
selvagem. A África expressa por Pasolini em 1970, nos Appunti per un’Orestiade
africana, foi resultante da busca dos grandes signos no caos das imagens da tragé-
dia grega. É como se, na África visitada por Pasolini, a miséria se associasse ao o-
pressivo terror religioso grego, o conflito entre Erínias e Eumênides se apresentasse
ainda atuante e a violência mais arcaica da guerra de Troia fosse o signo que pode-
ria representar, como imagem, a guerra de Biafra. Dessa forma, pode-se falar de
cinema de poesia. Esse “cenário africano”, conforme JOUBERT-LAURENCIN,
[está] resumido perfeitamente na Oréstia, e mais precisamente nas metamorfoses
das Fúrias nas Eumênides, e vice-versa, quer dizer, na coexistência jamais pacífica,
100
jamais reconciliada, de um espírito pré-histórico, selvagem, irracional e de um espíri-
to moderno, laico, racional, progressista
59
. (1995, p. 132)
O processo pelo qual Pasolini alcançou tal maturidade, traz à tona o que o di-
retor expõe no texto teórico “Observações sobre o plano-sequência”. Esse texto dia-
loga com a Lettera del traduttore pois trata da mesma objetividade que é tratada
neste. O processo que leva d’O pai selvagem aos Appunti é semelhante, em termos
da forma de se apropriar dos grandes signos e trabalhar com as imagens que com-
porão o cinema de poesia, ao processo de reconhecimento dos grandes signos na
Oréstia grega. Dessa forma, o terror do mundo arcaico, no que ele tem de violento e
de desumano – no sentido de irracionalidade – é expresso na Oréstia como uma
escolha entre o bem e o mal, uma altercação entre as Fúrias e o deus novo Apolo:
[Apolo]
[...] Vosso lugar
é lá onde há sentenças de degolamento [245]
e olhos a ser arrancados, ou então
onde gargantas são abertas, ou ainda
onde, para extinguir toda a virilidade,
meninos são castrados, onde se mutila,
onde seres humanos morrem lapidados, [250]
onde vítimas empaladas, gemebundas,
esvaem-se numa agonia interminável.
SQUILO, 2003, p. 155)
Estes versos referem-se ao mundo arcaico de uma forma literal. Neles não há
os grandes signos, ao contrário dos seguintes, nos quais está simbolizada a resis-
tência do mundo arcaico à própria destruição:
[Corifeu] Teu santo oráculo ordenou ao suplicante [265]
que assassinasse a própria mãe com suas mãos.
[Apolo] O oráculo ordenou-lhe que vingasse o pai.
[Corifeu] E prometeste proteção ao assassino,
embora ainda houvesse sangue em suas mãos!
[Apolo] Mandei-o vir aqui para expiar o crime. [270]
[Corifeu] Por que, então, deténs suas perseguidoras?
[Apolo] Porque neste lugar elas não são bem-vindas.
[Corifeu] Queremos simplesmente cumprir um dever.
[Apolo] Mas que dever? Exalta essas prerrogativas!
[Corifeu] Cumpre-nos expelir do lar os matricidas!
[Apolo] E que fazes quando a mulher mata o marido?
[Corifeu] Não se derrama o mesmo sangue nesse crime.
SQUILO, 2003, p. 156)
Os grandes signos – presentes como a nova ordem, a ordem da cidade, e a
velha ordem, a ordem religiosa – são quase visíveis devido à objetividade com que
são tratados por Ésquilo. Politicamente, Ésquilo representa na obra de arte o embate
entre entidades poderosas do ponto de vista religioso e as humaniza, quando elas
simplesmente são representadas no palco por homens. Violentamente, pois, a essa
59
[...] résumé parfaitement […] dans l’Orestie, et plus précisément dans les métamorphoses des Furies en
Euménides, et vice-versa, c’est-à-dire dans la coexistence jamais pacifique, jamais réconciliée, dún espirit
préhistorique, sauvage, irrationnel, et d’un espirit moderne, laïque, rationnel, progressiste.
101
altura, o lógos se impusera ao mythos, o imaginário religioso é atacado, conduzindo
a arte ao que ficou conhecido como o esquema trágico.
Antecipando o que será analisado no filme Medeia, pois se trata de um tema
também presente nos Appunti..., é oportuno relembrar o que diz o Centauro para
Jasão, num dos diálogos do aprendizado de Jasão, na primeira parte daquele filme,
e já citado acima: “Tudo é santo, tudo é santo, tudo é santo. Não há nada de natural
na natureza [...]”. (PASOLINI, 2002, p. 109-110)
Da mesma forma, pode-se apontar essa diferença entre a identificação dos
grandes signos no roteiro O pai selvagem e, finalmente, nos Appunti. Tomando-se
como objeto de análise, quanto a essas duas obras, duas imagens da África, uma
expressa pelos alunos africanos personagens do roteiro e a outra pelos estudantes
africanos na Itália, numa cena dos Appunti na qual Pasolini conversa com eles. A
primeira imagem é a seguinte:
O professor dita: ‘como é a sua aldeia?’ Escândalo entre os alunos, que não estão
habituados a semelhantes temas, que os empenham diretamente, quase fisicamen-
te. [...] As redações são inqualificáveis: [...] um aluno parafraseou uma poesia ro-
mântica e agreste de um medíocre poeta francês, de modo que a sua aldeia resultou
com as habitações góticas, as beatas da igreja [...] (PASOLINI, 1975, p. 16)
Imagem pouco objetiva, onde a África não é uma fonte de grandes signos.
Uma outra imagem da África, tomada ainda da mesma obra, é a descrita por David-
son, o aluno do professor italiano que mais se comunicava com ele:
É uma descoberta que ele faz (guiado, talvez, pela consciência que havia tomado
com sua redação poética na escola) e fica olhando encantado à sua frente... É ape-
nas uma imagem qualquer do interior da África: com o fundo rosado, no qual se de-
sempenham os caprichosos e fúnebres perfis das árvores equatoriais. E os rumores,
as vozes bestiais. A ânsia pré-humana que aí reina, com sua paz de morte. (idem, p.
34)
Nos Appunti... há um conjunto de cenas em que Pasolini dialoga com estu-
dantes africanos da universidade de Roma, sobre questões significativas acerca da
realização da Oréstia africana. É explorado o papel de Orestes, banido de Argos e
retornado posteriormente, após conhecer a democracia ateniense. Pasolini pergunta
aos estudantes em Roma se eles se identificariam com Orestes, uma vez que eles
eram ligados ao mundo arcaico africano e voltariam para sua terra levando indícios
de uma ideologia europeia. Para Pasolini, os valores humanistas europeus constituí-
am signos da superação do mundo arcaico no que ele tinha de violento e irracional –
no sentido de não humanista – mas não de rejeição ao mythos que, por sua vez,
constituíam os grandes signos que povoavam de forma positiva o imaginário do ho-
mem esclarecido.
102
A primeira questão indicada por Pasolini aos estudantes em Roma para ser
discutida é sobre a identificação da sociedade arcaica africana com a sociedade ar-
caica grega. A partir de então, se desenvolve um diálogo
60
, reproduzido parcialmen-
te a seguir, nas suas frases mais significativas para o que será concluído na
sequência:
Pasolini – Primeiro quero explicar por que decidi fazer a Oréstia de Ésquilo na África
de hoje. A razão essencial e profunda é que acredito reconhecer analogias entre a
situação da ‘Oréstia’ e a África de hoje. E o descobrimento da democracia por Ores-
tes, que a leva depois para o seu país, Argos na tragédia, África no nosso filme, é
como o descobrimento da democracia que a África fez nestes últimos anos.
Estudante – Queria recordar ao autor desta película que não precisava maltratar tan-
to a história do tribalismo na África, que os europeus utilizaram estes tribalismos pa-
ra cometer seus crimes. Se se quer falar de África, há que se falar de raça e não de
tribo, como quando falamos da Itália, falamos de italianos e não de calabreses, e fa-
lamos de franceses e não de, por exemplo, bordeleses.
Estudante – Eu não creio que exista o perigo, quando você fala de democracia. Para
um africano que veja a película, por exemplo. Não sei se a civilização europeia, mo-
derna, nos haja trazido a democracia como se a entende normalmente.
Pasolini – […] quando falo de ‘democracia’, não entendo a democracia real, mas a
democracia formal. Quando Orestes chega a Atenas, Atenas estabelece o primeiro
tribunal humano, quer dizer, pela primeira vez mediante eleições se elegem juízes
para julgar outro homem, ao invés de fazê-lo os deuses, e dá um passo enorme na
história humana, ainda que puramente formal. Depois dessa formalidade se impreg-
na de democracia real.
Estudante – Formalmente a ideia pode dar-se, na minha opinião, só que resultará
um pouco fantasiosa. Ou seja, na realidade será difícil ao menos na realidade de ho-
je em dia. Talvez se você ambientar o filme nos anos 60 ou 50… de todo modo, se
possa encontrar o nexo.
Transformados em Orestes modernos por Pasolini, os portadores da demo-
cracia e dos valores europeus no retorno à África, os estudantes contestam a possi-
bilidade de identificação pretendida pelo diretor italiano. Nesse diálogo fica claro o
esquecimento dos valores arcaicos e a violência, portanto, com que a democracia
atua ao ser imposta a sociedades míticas. Talvez fosse essa mesma a intenção do
60
Pasolini - Primero quiero decirlos por qué he decidido hacer la "Orestiada" de Esquilo en el África de hoy. La
razón esencial y profunda es que creo reconocer analogías entre la situación de la "Orestiada" y el África de
hoy. […] Y el descubrimiento de la democracia por Orestes, quien la lleva después a su país, Argos en la tra-
gedia, África en nuestro filme, es como el descubrimiento de la democracia que África ha hecho en estos últi-
mos años. / Estudante - Quisiera recordar al autor de esta película que no tendría que maltratar tanto la historia
del tribalismo en África, que los europeos utilizaron estos tribalismos para cometer sus crímenes. Si se quiere
hablar de África, hay que hablar de raza y no de tribu, como cuando hablamos de Italia, hablamos de italianos
y no de Calabreses, y hablamos de franceses y no de, por ejemplo, bordeleses. / Estudante - Yo creo que exis-
te el peligro, cuando usted habla de democracia. Para un africano que vea la película, por ejemplo. No sé si la
civilización europea, moderna, nos haya traído la democracia como se la entiende normalmente. / Pasolini –
[…] cuando hablo de "democracia", no entiendo la democracia real, sino la democracia formal. Cuando Orestes
llega a Atenas, Atenas establece el primer tribunal humano, es decir, por vez primera mediante elecciones se
eligen jueces para juzgar a otro hombre, en vez de hacerlo los dioses, y da un paso enorme en la historia
humana, aunque puramente formal. Después esa formalidad se impregna de democracia real. / Estudante -
Formalmente la idea puede darse, en mi opinión, sólo que resultará un poco fantasiosa. O sea, en la realidad
será difícil al menos en la realidad de hoy en día. Quizá si usted ambienta el filme en los años 60, ó 50… De
todos modos, el nexo se puede encontrar. Estas citações foram retiradas das legendas feitas para o filme Ap-
punti per un’Orestiade africana feitas por um grupo de alunos (Wilson Alves Bezerra, Rafaella Lemos dos Reis
Sousa e Leonardo Davino de Oliveira) do curso sobre o trágico ministrado na UERJ pela professora Carlinda
Fragale, no ano de 2007.
103
diretor. Por outro lado, Pasolini se aproveita da recusa à associação feita por ele –
fundamental para a realização do filme – para esclarecer duas questões. Primeira-
mente, que o conteúdo da Oréstia grega simbólico, não se trata de uma situação
real, mas de uma ficção acerca da transformação por que passava a sociedade gre-
ga, do direito divino para o direito laico. Em segundo lugar, que pela via do realismo
não seria possível a associação, mas que pela via da reintrodução na África dos
grandes signos encontrados na Oréstia grega – a imaginação a que se refere um
dos estudantes – o filme seria realizável.
Aparentemente, a exposição no filme dos Orestes modernos reforça o que já
foi exposto acima, quanto ao conformismo e quanto à herança paterna, no caso dos
estudantes, herdada de um pai mais distante. A presença deles também é uma refe-
rência ao estudante personagem de O pai selvagem que, utopicamente, se europeí-
za pacificamente.
Entretanto, o próprio Pasolini defende a associação pretendida. Ele assinala
que pretende realizar um filme de caráter popular, com a presença de personagens-
atores – na verdade, eles se confundem – do povo, filmados em seu cotidiano. As
imagens das ruas e as cenas de trabalho filmadas nos campos e na saída de uma
usina se repetem. Os grandes signos são também assinalados de forma bastante
significativa nos Appunti em uma sequência de cenas (iniciada em 00:13:44). A voz
em off de Pasolini se sobrepõe às imagens da população em um mercado que, per-
dido no meio da savana, evoca no diretor imagens de mercados primitivos nos quais
camponeses se encontravam para realizar trocas. As imagens vão passando na tela,
enquanto a voz em off comenta:
Esta gente, surpreendida em seus afazeres cotidianos, de sua humilde vida diária,
deveria ser protagonista da minha ‘Oréstia’ africana. Só eles, enquanto tão realistas
e verdadeiros, levam dentro de si esse momento mítico e sagrado... que os faz dizer,
por exemplo: ‘Deus, se é este teu nome, se com este nome queres que te invoque,
ponderei tudo: não conheço nada mais do que a ti, capaz de libertar-me realmente
do pesadelo que se abate sobre o meu coração
61
. (PASOLINI, 1968, 00:13:44)
Pasolini, ao incorporar esses versos da Oréstia na narrativa do filme, alude,
mais uma vez, à realidade do mito e à “concretude da experiência mítica e religiosa
do homem”, aqui relacionando o homem antigo, objeto do discurso do Centauro para
61
Esta gente, sorprendida en su quehacer cotidiano, de su humilde vida diaria, debería ser la protagonista de mi
"Orestiada" africana. Sólo ellos, en tanto que tan realistas y verdaderos, levan dentro de sí ese momento mítico
y sagrado... que les hace decir, por ejemplo: ‘Dios, si éste es tu nombre, si con este nombre quieres que te in-
voque, lo he sopesado todo: no conozco a nadie más que a ti, capaz de liberarme realmente de la pesadilla
que se cierne sobre mi corazón
104
Jasão, já citado, com os habitantes reais do continente africano, “modernos” e, ao
mesmo tempo, portadores dos mitos e da religiosidade antigos. Também realça o
valor que a ingenuidade tem para ele, pois reconhece nos ingênuos, como os primi-
tivos cristãos, uma capacidade revolucionária.
Há uma declaração de Alberto Moravia que pode ser a síntese para esse con-
flito que coloca em questão a própria realização de uma Oréstia africana.
[…] é um dos mais belos de Pasolini. Nunca convencional, nunca pitoresco, o docu-
mentário mostra uma África autêntica, de maneira nenhuma exótica e por isso tanto
mais misteriosa, do mistério próprio da existência, com suas vastas paisagens da
pré-história, e seus povoados miseráveis habitados por uma humanidade campone-
sa e primitiva, as suas duas ou três cidades moderníssimas já industriais e proletá-
rias. Pasolini 'sente' a África negra com a mesma simpatia poética e original com a
qual, a seu tempo, sentiu as borgate e o sotoproletariado romano
62
. (PAGINA
CORSARE)
Appunti..., portanto, apresenta, em estado de planos-sequência, os grandes
signos que seriam ficcionalizados na Oréstia africana, filme nunca realizado. Essas
imagens primitivas, essa construção da imagem da África como síntese do arcaico e
do moderno, encontra apoio nas “Observações sobre o plano-sequência”, texto de
Pasolini, publicado pela primeira vez em 1972. Isso é ainda mais compreensível pela
comparação feita acima acerca das duas Áfricas pasolinianas: a d’O pai selvagem,
literal, pitoresca e estereotipada, e a dos Appunti..., elaborada poeticamente. Para
que o material realista-mítico filmado em plano sequência adquira significado, há que
se inserir nessas cenas os cortes e há que realizar com elas a montagem cinemato-
gráfica. A imagem realista da África deve então morrer, para ressurgir cheia de signi-
ficados, como afirma Pasolini, trecho já citado acima: “Portanto, é absolutamente
necessário morrer, porque, enquanto estamos vivos, falta-nos sentido”. (P
ASOLINI,
1972, p. 241)
Nos Appunti... são muitas as imagens em plano-sequência. Tais imagens em
subjetiva são aquelas em que o diretor pretende expressar-se usando a linguagem
da realidade. Elas, portanto, não estão presentes nos Appunti... apenas para morrer
e ressuscitar na forma de significados. Tais imagens estão presentes também na
segunda parte de Medeia, a parte mítica, significativamente, pois para Pasolini “so-
mente os míticos são realistas e somente os realistas são míticos” (P
ASOLINI, 2002,
62
[…] è uno dei più belli di Pasolini. Mai convenzionale, mai pittoresco, il documentario ci mostra un'Africa
autentica, per niente esotica e perciò tanto più misteriosa del mistero proprio dell'esistenza, coi suoi vasti
paesaggi da preistoria, i suoi miseri villaggi abitati da un'umanità contadina e primitiva, le sue due o tre città
modernissime già industriali e proletarie. Pasolini 'sente' l'Africa nera con la stessa simpatia poetica e originale
con la quale a suo tempo ha sentito le borgate e il sottoproletariato romano.
105
p. 111). Esteticamente, o que ocorre na montagem é a passagem da ação narrada
no mito para a poesia da tragédia. O conceito de plano-sequência é expresso por
Pasolini nos seguintes termos:
Supondo que possuímos pequenos filmes rodados de todos esses ângulos visuais
[do assassinato de Kennedy], de que coisa estaríamos em posse? De uma série de
planos-sequência que reproduziriam as coisas e as ações reais do momento em
causa, vistas simultaneamente de diversos ângulos visuais: quer dizer, através de
uma série de ‘subjetivas’. A subjetiva é, portanto, o limite realista máximo de qual-
quer técnica audiovisual. (P
ASOLINI, 1982, p. 193)
Mais adiante, afirma Pasolini:
A partir de todos esses modos [de registrar filmicamente a realidade: campo, contra-
campo, plano de conjunto e todos os outros ângulos possíveis] é evidente que a rea-
lidade, com todas as suas faces, se expressou: disse alguma coisa a quem estava
presente (quem estava presente fazendo parte: PORQUE A REALIDADE NÃO FALA
COM OUTRAS COISAS SENÃO CONSIGO PRÓPRIA): disse alguma coisa com a
sua linguagem, que é a linguagem da ação. (P
ASOLINI, 1982, p. 194. Destaque no o-
riginal.)
Voltemos, entretanto, à importância dada por Pasolini ao caráter político da
Oréstia, consubstanciado no diálogo citado acima, entre o Corifeu e o deus Apolo.
Este diálogo prima pela objetividade, ou, dito de outra forma, nele o conteúdo mítico
deixa de ser uma realidade subjetiva, suscetível a múltiplas interpretações – como
planos-sequência desconectados de um sentido simbólico construído – e passa a
ser compreensível segundo um sentido único, aquele que distingue homem e natu-
reza e constitui uma obra da inteligência cujo enredo é a destruição de mythos por
lógos – ainda em processo, segundo Pasolini – e a confirmação de que quando a
relação entre homens e natureza deixa de passar pelos deuses, tudo acaba, con-
forme anuncia o Centauro em Medeia, e algo de novo começa.
Os Appunti... apresentam, nessa trilogia, a gênese de um filme poético – no
sentido de que se trata, no geral, de cinema de poesia: a busca dos grandes signos
na forma de planos-sequência e a sua morte e ressurreição transformados. Se, em
Édipo Rei, o processo de destruição violenta do mito arcaico está personificado em
um personagem, nos Appunti... ele está não apenas disseminado por personagens –
imagens de homens e mulheres, ficticiamente identificados com Orestes ou Clitem-
nestra – mas também por países, tribos, fatos e pela história, tomada por Pasolini
como ação, quando os conflitos resultantes da destruição violenta do mito de uma
sociedade ainda são reais. É como se, na África dos Appunti, estivessem ainda miti-
camente atuantes as Erínias e Eumênides.
Segundo Massimo Fusillo, as ideias “provocativas” de Pasolini a respeito do
sentido político da Oréstia “conseguiram, sem dúvida, desconcertar muitos leitores
da Lettera del traduttore, publicada como prefácio à tradução da Oréstia por Pasolini,
106
sobretudo porque, em 1960, dominava ainda uma visão classicista e idealista da An-
tiguidade” (FUSILLO, 1996, p. 182). No filme Appunti ..., efetivamente, Pasolini posi-
cionou-se de forma contundente contra essa visão idealizada da Antiguidade grega,
primeiramente, por identificar na Oréstia um processo político e não somente uma
obra dramática perfeita em sua beleza.
Ao mesmo tempo, fica demonstrado, neste filme, que a tragédia grega não é
uma obra acabada, esgotada no século V a.C. como um hino à grandiosidade dos
gregos que tudo sabiam e legaram para as civilizações posteriores uma forma de
pensar imutável. Pasolini traça essa diferença ao mostrar cenas violentas da guerra
de Biafra, sugerindo que esta seria uma metáfora da guerra de Troia, enquanto a
voz do diretor, em off, afirma: “[...] a dor, a morte, a tragédia são as constantes eter-
nas e absolutas que religam essas imagens candentes de atualidade com as ima-
gens fantásticas da tragédia grega” (PASOLINI, 1969).
Essa crítica ao classicismo tardio da Antiguidade estará presente também em
Medeia (1970) e Édipo Rei (1967). É marcante, nesse sentido, a escolha das loca-
ções desses três filmes, já por si anticlássicas, colocando diante dos olhos dos es-
pectadores cenários inusitados, muito mais indicativos de um mundo arcaico do que
de um mundo iluminista.
Por outro lado, essa crítica à forma classicista de abordar os textos originais
das tragédias não segue uma linha dogmática, conforme assinala Fusillo:
A linha que seguimos demonstra, de qualquer modo, como esta definição não impli-
cava de fato qualquer esquematismo ou qualquer esforço associado a uma interpre-
tação marxista da literatura. Pasolini considera o personagem de Ésquilo um
‘instrumento para exprimir cenicamente ideias, conceitos [...] uma ideologia’.
(FUSILLO, 1996, p. 182).
A linha de análise que foi seguida neste capítulo levou em conta que Appunti
... é um filme utópico, feito por Pasolini no calor dos acontecimentos que o faziam
imaginar a possibilidade de uma África socialista. Essa utopia, nos Appunti..., ampli-
ou a possibilidade estética da linguagem fílmica, pela ideia trágica de que na mu-
dança das sociedades tribais, religiosamente cimentadas, para as sociedades
politicamente organizadas encontra-se a transformação das Erínias em Eumênides,
que já fora tema da Oréstia de Ésquilo. Somente essa associação já justifica a pes-
quisa feita em relação aos filmes trágico-míticos de Pasolini, tanto mais que pode-
mos perceber o quanto de desrazão está presente na história contemporânea.
107
Os Appunti... constituem importante documento ensaístico a respeito da ideia
trágica que Pasolini pretende imprimir também em seus filmes Medeia e Édipo Rei.
Essa é a ideia do trágico como permanência do conflito inconciliável entre razão e
desrazão no mundo moderno, assinalada por Pasolini no fragmento abaixo, que a-
bre caminho para a apresentação do filme Medeia, feita no subcapítulo 2.3 (Medeia):
Todavia, certos elementos do mundo antigo, dificilmente superados, não foram de
todo reprimidos, ignorados: foram, ao contrário, adquiridos, reassimilados, e natu-
ralmente modificados. Em outras palavras: o irracional, representado pelas Erínias,
não deve ser removido (o que seria impossível), mas simplesmente barrado e domi-
nado pela razão, paixão producente e fértil. A Maldição se transformando em Bendi-
ção. A incerteza existencial da sociedade primitiva permanece como categoria da
angústia existencial ou da fantasia na sociedade evoluída
63
. (PASOLINI, 1960, s/p.)
Estetizando não a conciliação, mas a tragicidade do conflito entre o passado
mítico e a pólis, ou entre natureza e lógos, a trilogia trágica de Pasolini pode ser vis-
ta como representação da impossibilidade de conciliação do conflito. Massimo Fusil-
lo assinala esse caráter tragicamente irresolúvel do conflito entre as culturas antigas
e modernas, lembrando que Pasolini acabou não filmando a Oréstia – e a síntese
utópica da sociedade assimiladora do elemento arcaico – e que, ao invés, filmou
Medeia, que termina com uma mensagem de desesperança, como preâmbulo do
que viria a ser Salò (FUSILLO, 1996, p. 186).
Os Appunti... são um filme objetivo, documental, que retira da obra literária
trágica um dos seus mais marcantes episódios e dele cria uma imagem especular,
idêntica, colada sobre a história da África pós-colonial, mantendo o conteúdo trágico
original no que ele tem de metamórfico, pois ao mesmo tempo em que aponta para
uma racionalização da África, não deixa de representar esse fenômeno como confli-
tivo, preservando o traço identitário propriamente africano do imaginário mítico, ab-
sorvendo-o e racionalizando-o, para que a África não morra por inteiro. Operando
essa substituição do processo grego de racionalização dos mitos pelo processo de
industrialização que estava ocorrendo na África, Pasolini não perde de vista os sen-
tidos mais profundos do texto esquiliano, quando este se refere a soltar “os freios
que até hoje contiveram os homicidas de todos os tipos” (ÉSQUILO, 2003, p. 170).
As ideias pasolinianas que sustentam nossas argumentações encontram-se,
por exemplo, no texto teórico de Pasolini Lettera del traduttore, publicado como pre-
63
Tuttavia certi elementi del mondo antico, appena superato, non andranno del tutto repressi, ignorati: andranno,
piuttosto, acquisiti, riassimilati, e naturalmente modificati. In altre parole: l'irrazionale, rappresentato dalle Erinni,
non deve essere rimosso (che poi sarebbe impossibile), ma semplicemente arginato e dominato dalla ragione,
passione producente e fertile. Le Maledizioni si trasformano in Benedizioni. L'incertezza esistenziale della
società primitiva permane come categoria dell'angoscia esistenziale o della fantasia nella società evoluta.
108
fácio à edição da tradução da Oréstia feita pelo diretor italiano, texto que assinala a
rejeição que este faz da visão classicista e idealista
64
da Antiguidade. Essas duas
condições – a realização de cinema autoral e a recusa à interpretação da tragédia
clássica segundo uma visão idealista – levam à conceituação do cinema trágico de
Pasolini como um gênero de cinema que realiza uma mímesis crítica da tragédia e
não uma adaptação.
Pode-se considerar que cada época lê o trágico à sua maneira e que cada
uma delas se considera a definitiva e a mais abrangente. A leitura peculiar que Pa-
solini faz do trágico é apenas a leitura possível em uma época e tem como especifi-
cidade o fato de não se preocupar em incorporar todas as anteriores. Esta última
constatação, entretanto, não é indicativa de que a análise aqui empreendida se ba-
seie numa leitura a-histórica de Pasolini, uma vez que o próprio diretor levou sempre
em conta o momento histórico vivido por ele, especificamente na Itália, assim como
se voltou para a atribuição de um caráter universal ao fenômeno trágico, uma vez
que se refere sempre ao “homem antigo” e ao “homem moderno”, na busca de de-
terminar o que existiria de comum entre eles, sob o aspecto do conflito entre mito e
razão.
Pasolini identifica o seu próprio processo criativo com o do tragediógrafo gre-
go, quando este ficcionaliza os conflitos existentes na pólis grega, conforme assinala
KITTO:
É como se o espírito Grego , durante este período, começasse a deslocar seu peso
de um suporte para outro: da inteligência intuitiva baseada numa reflexão generali-
zada sobre a experiência humana e exprimindo-se através das da arte e das ima-
gens tradicionais da mitologia, para uma análise consciente da experiência que se
servia de novas técnicas intelectuais e era expressa, inevitavelmente, em prosa. É
uma mudança que tem algo em comum com o nosso Iluminismo que começou du-
rante o século dezessete; depois disso, na Inglaterra e até a renovação do movimen-
to romântico, a poesia foi ou espirituosa ou lamentosa; na Grécia a poesia
importante de grande estilo morre com Eurípides e com Sófocles. Estava ainda para
vir a poesia requintada, mas já sem pretender sequer ocupar-se com o que mais im-
porta; isto passou para a esfera dos filósofos. (1990, p. 8)
Desse ponto de vista, é perceptível que a filmagem de uma Oréstia africana,
não seria simplesmente a identificação de aspectos políticos e históricos nos dois
textos, o grego e o pasoliniano, mas estaria inserida numa trilogia trágica, ou seja,
segundo o considerado acima, numa estetização de um processo de conhecimento
64
Nietzsche foi o primeiro a chocar o ambiente da filologia clássica europeia com uma abordagem totalmente
nova da cultura clássica, mas ele pertencia a uma linhagem filosófica que já havia aberto caminhos.
109
que proporcionou ao pensamento humano a capacidade de distinguir homem e natu-
reza, ou seja, lógos.
Citando Albin Lesky:
[...] a contradição trágica pode se situar no mundo dos deuses, e
seus pólos opostos podem chamar-se Deus e homem, ou pode tra-
tar-se de adversários que se levantem um contra o outro no próprio
peito do homem. (LESKY, 1990, p. 25)
2.3 Medeia
Neste capítulo serão analisadas as interseções entre os elementos propria-
mente fílmicos criados pelo diretor Pier Paolo Pasolini na sua obra Medeia
65
e os
signos poéticos utilizados por Eurípides na tragédia de mesmo nome.
Essa operação de identificar signos trágicos numa obra cinematográfica con-
temporânea buscará fazer uma atualização das categorias definidas por Aristóteles
na Poética. Considera-se que a contestação da apropriação que Aristóteles fez da
tragédia e a definição de uma expressão dialética do trágico resultam de um primeiro
ponto de contato entre a obra poética clássica e o filme. Admite-se, entretanto, que,
formalmente, alguns elementos indicados por Aristóteles como constitutivos da tra-
gédia estejam presentes na obra cinematográfica analisada.
Cabe estabelecer em que terreno se dará tal comparação, pois essa definição
já estará ancorada em características específicas do texto trágico de Eurípides – e
de Medeia, em particular – como textos não alcançados pelo modelo aristotélico, o
que os faz prestar-se sobremaneira ao propósito do diretor Pier Paolo Pasolini, que é
o de ressaltar o comportamento trágico do homem moderno, explorando para isso as
lacunas deixadas por Eurípides quanto ao caráter trágico de Medeia. Pasolini, possi-
velmente, terá percebido nos versos de Eurípides a expressão da impossibilidade de
qualquer cumplicidade do tragediógrafo grego com o comportamento bárbaro da sua
personagem – cumplicidade hoje explicitamente explorada por alguns dramaturgos
modernos –, ao mesmo tempo que terá pressentido por trás da ambiguidade da per-
sonagem o conflito interior de Eurípides diante da questão do estrangeiro habitando
65
MEDEIA. Direção e roteiro: Pier Paolo Pasolini. São Paulo: Versátil.
110
a polis, exagerado no enredo de Medeia pela atribuição a ela do caráter oriental, i-
maginariamente situado entre o apavorante e o maravilhoso, conforme descrito por
SAID (1990, p. 16): o “despotismo oriental, esplendor oriental, crueldade, sensualida-
de orientais”. Eurípides, tragediógrafo era, ele mesmo, personagem trágico.
Ou seja, pode-se considerar que o texto clássico euripidiano era um discurso
sobre o outro, sobre o estrangeiro, discurso que revelava, entre outros sentimentos,
o medo. E também pode-se considerar que esse discurso, longe de ser ingênuo,
pretendia tornar-se hegemônico e expressava o exercício do poder por meio do qual
a polis grega pretendia neutralizar esse medo. Do ponto de vista do cinema de Pa-
solini, pode-se pensar que, sendo Medeia um im-signo do estranho, do outro, ela
representa o que está recalcado na psique humana, habitando o lugar no qual se dá
o choque entre desejo e medo.
O fato de ser a poesia uma obra da inteligência, conforme assinalado por Un-
garetti na citação acima (citado à página 96: UNGARETTI, 1994, p. 28), é o que abre
caminho para a intervenção pasoliniana, que se pretende objetiva e não especulati-
va. Além disso, mudou a concepção dos gregos acerca da tragédia, de uma “inteli-
gência intuitiva” para uma “análise consciente da experiência”, conforme mostrou
Kitto.
O filme Medeia é obra de imaginação: o material ficcionalizado é descoberto
por Pasolini na interseção entre textos míticos, trágicos e épicos. Essa interseção
resulta em Visões de Medeia (PASOLINI, 2002), que contém tanto as premissas que
Pasolini levou em conta para roteirizar Medeia quanto testemunham o que foi final-
mente aproveitado como conteúdo fílmico e o que permaneceu somente como con-
teúdo literário.
Fato essencial que ressalta da leitura comparativa das Visões... e do texto
fílmico é a forma dada por Pasolini ao seu Medeia, que rompe com qualquer possibi-
lidade de causalidade entre a tragédia que irá representar na tela, a epopeia dos
argonautas e a representação teatral da Medeia euripidiana no palco grego. Esse
corte é necessário, para que o espectador moderno veja na Medeia mítica uma pro-
blemática sua e não somente uma adaptação de uma obra clássica. Tal como nos
Appunti ..., trata-se de criar uma estética que rompa com a valorização do clássico.
Caso contrário, não se atingiria, no filme de Pasolini, a mímesis atualizada do tema
Medeia e seu conteúdo cultural e politicamente moderno.
111
Também é de ressaltar a escolha do tema de Medeia pelo diretor como propí-
cio para que nele seja inserida a estética do cinema, de forma a mimetizar produti-
vamente o sentimento trágico. Apesar do vínculo a um momento histórico e filosófico
eminentemente da Antiguidade, o trágico, esteticamente elaborado por Pasolini,
desconstrói a valorização dos conteúdos sacralizados como clássicos através de
uma mímesis crítica, e não de uma adaptação, dos sentidos recalcados da tragédia
de Eurípides.
Considera-se que, a fim de realizar a operação mimética da tragédia Medeia,
de Eurípides, para o cinema, Pasolini primeiramente realizou a desconstrução das
ideias formadas pelo pensamento moderno acerca das obras trágicas, que as reduz,
muitas vezes, a meras peças melodramáticas que apelam para sentimentos de sim-
patia ou de antipatia. Essa desconstrução se dá nas imagens da segunda parte do
filme, as cenas do país de Medeia.
Dessa forma, Pasolini desconstrói visualmente a “presteza, dom de observa-
ção e conhecimentos específicos” que o espectador de cinema deve ter, segundo o
paradigma da indústria cultural, e a que se referem HORKHEIMER e ADORNO (1985)
em A indústria cultural. E até mesmo deverão se tornar prescindíveis para o espec-
tador a apreensão dos fatos que desfilam diante dos olhos. Esse processo de des-
construção foi alcançado por Pasolini pela apresentação de imagens não
convencionais, dentre as quais terá papel importante o sacrifício humano seguido da
comunhão do sangue e do corpo do homem que foi crucificado.
Essas imagens, além da trilha sonora de Medeia, são como uma antiliteratura
necessária à realização da representação de um texto trágico no cinema, vale dizer,
para um texto dramático moderno que desautomatize as leituras – literalmente fa-
lando – da peça trágica como texto literário.
A abordagem por Pasolini dos temas escolhidos como significativos realiza
uma releitura da tragédia que, saindo da superfície dos conflitos, busca os seus sig-
nificados míticos. Para isso, são criados pelo diretor italiano signos fílmicos – ima-
gens e sons – que, extrapolando os significados contidos no texto dramático de
Eurípides, apontarão para uma nova forma de obra dramática. A entrada em cena
desses signos fílmicos possibilitará o preenchimento de lacunas deixadas abertas
pelo texto poético, assim como pelas suas sucessivas interpretações.
Uma dessas lacunas é preenchida de forma significativa, na obra de Pasolini,
pela ambiguidade da personagem Medeia, já apontada por alguns críticos. Outra
112
lacuna preenchida esteticamente por Pasolini é o conflito trágico existente no ser
humano, representado através da segunda aparição do Centauro, que aponta para
uma leitura essencialmente dialética do trágico feita por Pasolini. Também na carac-
terização da personagem Medeia pasoliniana será trazido para a cena o elemento
da natureza, tornado significativo por Pasolini, como representante do que alguns
críticos reconheceram como o temperamento da personagem.
Pasolini, em segundo lugar, mostrará ao espectador – apresentará na sala de
exibição – que a ambiguidade de Medeia paira como sombra sobre o homem mo-
derno. Essa permanência do elemento mítico na modernidade está representada no
filme pelo personagem do Centauro e faz parte das concepções teóricas pasolinia-
nas, como será mostrado adiante.
Esse caráter de permanência, ou seja, de presença atualizada, aponta para
uma análise da comparação entre os dois textos pelo ponto de vista da realização
de uma mímesis, na qual não se pode deixar de observar o esforço pasoliniano de
evitar qualquer resquício de melancolia em relação a um passado perdido, qualquer
valorização do clássico. Pasolini realiza uma crítica a respeito da personagem trági-
ca de Medeia, da sua tragicidade.
O que se concluirá neste capítulo, será a forma como o fenômeno trágico foi
tratado no filme Medeia, diferente da proposta moderna, que pretende traduzir com
perfeição a forma proposta por Eurípides. Tal conclusão se dará pela análise das
divergências a respeito da obra de Eurípides e do teatro grego, acerca dessas inter-
pretações da forma euripidiana, a fim de explicitar como a proposta de Pasolini a-
crescenta à compreensão do fenômeno trágico a dimensão dialética que ele
encerra.
Segundo Junito Brandão, na sua obra Teatro grego: Tragédia e comédia
(2002), Eurípides vê a tragédia como práxis do homem, operando profunda dicoto-
mia entre o mundo dos deuses e o mundo dos homens. Para o poeta de Medeia, o
kósmos trágico não é mais o mito, mas o coração humano (BRANDÃO, 1984, p. 57). A
obra de Eurípides prima pela racionalidade, ou seja, pragmaticamente se aproxima
da questão política do direito doméstico.
A obra de arte pasoliniana apresentará na tela o inexistente, a fabula. Esse
conteúdo mítico seguido por Pasolini para formar o enredo, presente apenas parci-
almente nos Diálogos definitivos do filme, está presente nas Visões de Medeia e in-
dica o limite entre o que o diretor pensou em relação ao conteúdo mítico do seu filme
113
e o que ele realmente colocou em cena. Os três textos formam uma trilogia cujo te-
ma é “Medeia”: as Visões de Medeia, os Diálogos definitivos de Medeia, ambos pu-
blicados na coletânea Medeia (PASOLINI, 1970a), e o filme Medeia (PASOLINI, 1970).
Nas Visões ..., inicialmente, é narrada a história de como o pai de Jasão, Ae-
son, após o nascimento deste, o entrega para ser criado pelo centauro Quiron:
Aeson com a criança, à beira-mar, nas plantas aquáticas etc.
Ele avista um grupo de construções lacustres, feitas de caniços e de vegetais mari-
nhos. Ele cai, esgotado. Como se a cena fosse vista pelos olhos brilhantes e sem
alma do recém-nascido, aparece um Centauro, pisando firme nos seus quatro cas-
cos; seu rosto é de um velho gordo, bom, sábio e bárbaro. Aeson lhe estende a cri-
ança, implorando: “Eu lho confio”. Rindo selvagemente, o Centauro pega a criança
e, sustentando-a pelas axilas, eleva-a para o céu
66
. (PASOLINI, 2002, p. 35)
A leitura das Visões... é produtiva para se alcançar a ideia que norteou Paso-
lini na apresentação do tema “Medeia”. Não é imprescindível, entretanto, para per-
ceber essa ideia no filme. Trata-se de um texto intermediário, como um épico
moderno, uma vez que as relações estabelecidas entre os personagens e os fatos
estão em estado “natural”, remetem apenas aos fatos objetiva e didaticamente apre-
sentados. São como um plano-sequência literário. A leitura dessas Visões... como
texto dramatúrgico, entretanto, é fecunda para a produção desta tese. Na medida
em que se identifique a origem dos sentidos que serão roteirizados, a forma como
esse conteúdo será encenado para conduzir o espectador à percepção dos sentidos
pretendidos e as escolhas feitas pelo criador da nova obra Medeia, será possível
verificar o caminho percorrido para a realização de uma mímesis crítica, e não de
uma adaptação, do conteúdo trágico canonicamente identificado como “Medeia”.
Pode-se dizer que o filme de Pasolini tem três partes principais, marcadas por
dois cortes: o primeiro, as últimas palavras do Centauro para Jasão – “não há deus
algum” –; o segundo, na segunda aparição do Centauro. Logo após esta cena, ocor-
re o encontro entre o texto de Eurípides e o de Pasolini, e o filme passa a seguir o
enredo da tragédia, a não ser nas cenas em que Medeia vizualiza o sacrifício de
Gláucia como uma visão, quando o filme retorna à forma explicitamente mítica.
No início do filme, o personagem Centauro discursa para o espectador e para
Jasão, em três fases da vida deste: com cinco anos, com treze e depois adulto. Na
66
Aeson avec l’enfant, le long de la mar, dans les roseaux, etc. Il arrive en vue d’un groupe de constructions
lacustres, faites de roseaux et de végétaux marins. Il s’effondre épouisé. Comme se on voyait la scène par les
yeux brillants et sana âme du nouveau-né, apparaît un Centaure, bien planté sur les quatre sabots : son visage
est celui d’un veillard gras, bon, sage et barbare. Aeson lui tend l’enfant en l’implorant : « je te le confie. » Riant
sauvagement, le Centaure prend l’enfant et, le tenant sous les aisselles, le soulève vers le ciel. (Tradução nos-
sa)
114
primeira cena, o Centauro narra para o menino o mito do velocino de ouro. Na se-
gunda, o Centauro refere-se à passagem do estado de natureza para o lógos, como
já foi citado no capítulo anterior (“tudo é santo!”); na terceira aparição do homem-
equestre, este ensina o que a civilização aprendeu com a agricultura, vendo a se-
mente renascer, e conclui: “Não há deus nenhum, meu caro”.
O país de Medeia, na segunda parte do filme, tem o papel de tornar a perso-
nagem mítica. A linguagem da realidade serve de elemento crítico e esvaziador de
qualquer caráter melancólico quanto ao passado e aos seus “valores”: não se trata
do bem e do mal, mas de expor a insuficiência da razão de Jasão diante do conhe-
cimento mítico dos ciclos da natureza. Dessa forma, os conteúdos míticos são mime-
tizados na forma de um texto crítico, no qual é analisada a lacuna deixada por
Eurípides quando omite o caráter mágico de Medeia, substituindo-o pelo “tempera-
mento” da mulher trácia. Pasolini, contrariamente, expõe como “origem” a dimensão
mágica de Medeia. Se, por um lado, essa personagem foi inserida por Eurípides no
contexto da racionalidade grega, ela está apresentada por Pasolini, na nossa mo-
dernidade, como o contraponto irracional.
Pasolini. na primeira parte do filme, expõe, nas palavras do Centauro, a mu-
dança ocorrida no pensamento humano, a diferença entre a narrativa mítica e o
pensamento da pólis democrática baseado na razão. Na segunda parte, o país de
Medeia, descreve o horror do sacrifício, aquilo que a razão recusa e que a socieda-
de democrática grega temia como ameaça, pois entendia que a realização total da
pólis estava sujeita a retrocessos, a ameaças. Na parte final, após a segunda apari-
ção do Centauro, o Jasão grego é o signo do excesso de razão e a Corinto em que
se dá o desfecho da tragédia é uma pólis regrada, simbolizada pela Plaza dei Mira-
cioli, ameaçada pela magia sacrificial de Medeia.
No filme Medeia, o grande signo são as metamorfoses, quer elas se apresen-
tem como eclosão do terror, como embate entre arcaico e moderno, ou como signos
positivos da distinção entre desenvolvimento e progresso, importante na concepção
humanista de Pasolini.
A transformação das Erínias em Eumênides, tema da Oréstia, de Ésquilo, e
dos Appunti per un’Orestiade africana, de Pier Paolo Pasolini, como signo do pro-
gresso e da razão, aponta agora para a metamorfose do Centauro, ainda mais radi-
cal nas Visões de Medeia (PASOLINI, 2002) do que na versão filmada, para a
metamorfose do velocino de ouro, que de signo da perenidade do poder passa a
115
objeto sem significado. A própria Medeia, também assume uma dupla imagem
quando convivem a Medeia que perdeu o seu significado e a outra, que o recupera:
Enquanto a Medeia real “de Corinto”, terrível, fala da sorte às servas
– moderna, ávida de vingança, segura dela, senhora de si e da reali-
dade –, uma outra Medeia observa a cena: uma Medeia trêmula,
fremente, fraca, lamuriosa, que, mostrando sem pudor sua angústia
atroz e sua ausência de confiança em si mesma, contempla a manei-
ra como as coisas caminham
67
. (PASOLINI, 2002, p. 82)
É como se Medeia vivesse em Corinto racionalizada, como uma Eumênide,
embora ainda Erínia. Esse signo do conflito entre arcaico e moderno e da sua repre-
sentação no cinema de Pasolini como conflito perene, tema central desta tese, é
pressentido e capturado pelo diretor no texto euripidiano como uma dupla imagem,
não como num espelho, mas como gerada por uma máquina de filmar imagens ima-
ginadas.
Dando continuidade ao tema dos Appunti... essa imagem de Medeia dupla,
assim como é duplo o Centauro, é utilizada por Pasolini para expressar o pensamen-
to dialético a respeito do conflito trágico que habitava o homem antigo e habita o
homem moderno.
O texto de Eurípides inicia com Medeia já socializada, diferentemente do filme
de Pasolini, que encena a humanização de Medeia e a dessacralização do velocino
na chegada a Iolco. O texto euripidiano começa com a cena em que a ama de Me-
deia lamenta a sorte de sua senhora e atribui a infelicidade dela a Jasão que, faltan-
do traiçoeiramente aos seus próprios filhos e à esposa, iria casar-se com Gláucia,
filha de Creonte, rei de Corinto. A criada prossegue, afirmando que Medeia estava
desonrosamente ferida na fibra mais sensível do seu coração, que reivindicava a
fidelidade prometida por Jasão e invocava os deuses por testemunhas. Também
Medeia profere um discurso sobre o comportamento ético esperado de um esposo.
A necessidade de vingar-se, ela atribui tanto aos males que o esposo lhe causou,
quanto a Creonte, que deu a Jasão a mão da filha e que pretende bani-la da pólis.
No enredo pasoliniano, entretanto, quando entra em cena a magia, Medeia
faz o caminho inverso da tragédia grega e do pensamento que deseja a racionalida-
de. Ela retoma valores originais, forças primitivas que se desejava estivessem do-
67
Tandis que la Médée royale “de Corinthe », terrible, parle de la sorte aux servantes – moderne, assoiffée de
vengeance, sûre d’elle, maîtresse d’elle-même et de la réalité –, une autre Médée observe la scène : une
Médée tremblante, frémissante, veule, larmoyante, qui, montrant sen pudeur son angoisse atroce et son
absence de confiance en elle, regarde la façon dont vont les choses. (Tradução nossa)
116
madas com a metamorfose das Erínias em Eumênides – volta a ser guardiã dos va-
lores antigos, dos antigos deuses – movimento que Pasolini, a partir de Medeia, i-
dentificará como irreconciliável.
Esse foi o pensamento perigoso que a tragédia clássica, no afã de atingir a
meta, recalcou, e o filme Medeia explicitou. Não havia como recalcar, depois de
Freud, o conflito trágico que o homem carrega dentro de si e que já fora dito para
Édipo pela Esfinge pasoliniana, embora não compreendido por este: “há um enigma
em tua vida, qual é? É inútil... o abismo para onde me empurras está dentro de ti”. E
foi dito pelo Centauro para Jasão, na terceira parte de Medeia, quando aparece em
sua dupla forma, humana e mítica: “se é uma visão, é você que a produz. É em você
que nós somos dois” (PASOLINI, 2002, p. 116).
As interpretações românticas da tragédia também eliminam as imagens que
não contribuem para a ação e já partem da Medeia e Jasão humanizados. Caem na
tentação de criar uma heroína romântica que se vinga do marido que a traiu, matan-
do os filhos. Como para os românticos a meta não é mais a catarse, o terror e a
compaixão, mas a solidariedade apaixonada baseada numa moral, Medeia, mesmo
filicida, permanece boa, e fazem dela heroína, vitimizando-a. Kitto faz a seguinte ob-
servação acerca do caráter que Eurípides não atribui a Medeia (KITTO, 1972, p. 14),
que coincide com o caráter que a ela atribuem os adaptadores românticos:
Eurípides podia facilmente tê-la representado como uma boa mulher, mas apaixona-
da, que apenas mergulha no horror quando é aguilhoada pelo insulto mortal e pela
injúria. Não tinha necessidade de remexer no passado dela, como o faz – com a ex-
ceção de ser este o ponto principal.
A linha que Pasolini traça, entretanto, não transforma Medeia em heroína ro-
mântica e nem a vitimiza. Ao invés de abandonar o que não contribuiria para a ação
– o caráter erínico de Medeia, sua defesa dos valores antigos e sua aliança com as
forças divinas mais arcaicas, aquelas ligadas à natureza – o diretor italiano aponta,
primeiramente, para a mitologia que, no mundo moderno, identifica as mulheres viti-
mizadas com a Medeia “trêmula, fremente, fraca, lamuriosa” descrita acima. E repre-
senta poeticamente no seu filme não a solução para a condição da mulher na
sociedade, como pretendem indicar, arrogantemente, as adaptações românticas,
mas uma representação poética da angústia moderna, segundo uma realidade míti-
ca do passado. Pouco sentido teria representar no palco hoje uma metamorfose de
tal porte, a transformação da mulher em Erínia, mas identificando a Medeia antiga
com a mitologia que hoje define a condição da mulher como contraponto ao exage-
rado pragmatismo masculino, Pasolini faz de Medeia personagem universal e faz da
117
sua metamorfose ao inverso – metamorfose que, afinal, está contida nas entrelinhas
da tragédia euripidiana – uma questão política representável de forma bela num
meio de expressão industrial.
Nesse sentido, serão feitas as alusões a seguir, uma ao filme Comizi d’amore
e a outra a propósito da polêmica travada por Pasolini com outros intelectuais italia-
nos, principalmente com Italo Calvino, em torno das suas interpretações e manifes-
tações públicas sobre o massacre de Circeo
68
. O filme Comizi..., embora não tenha
sido material recolhido a fim de servir de base para o filme Medeia, constitui impor-
tante documentação sobre a questão da sexualidade como a entende Pasolini e toca
o tema da Medeia descrita por Eurípides:
[nós, as mulheres]
De início, temos de comprar por alto preço [260]
o esposo e dar, assim, um dono a nosso corpo
– mal ainda mais doloroso que o primeiro.
Mas o maior dilema é se ele será mau
ou bom, pois é vergonha para nós, mulheres,
deixar o esposo (e não podemos rejeitá-lo). [265]
Depois, entrando em novas leis e novos hábitos,
temos de adivinhar para poder saber,
sem termos aprendido em casa, como havemos
de conviver com aquele que partilhará
o nosso leito. [270]
(EURÍPIDES, 2003, p. 28)
O direito invocado por Medeia não é o direito da pólis, o das “novas leis” que
ela, como estrangeira, desconhece, mas o direito referente aos valores antigos que
ela trouxe consigo e que ainda importam para ela. O fato é que a lei dos homens
não atende ao direito como Medeia o entende. No filme, ela recebe do seu avô, num
sonho, o chamado para retornar às antigas crenças a fim de não deixar impunes “os
inimigos” que a ofenderam, estendendo ao avô a ofensa e o ódio. Esse caráter de
vingadora do seu guénos, e não apenas de si, é o que define seu caráter erínico e
identifica sua metamorfose com uma metamorfose ao reverso das Eumênides em
Erínias, como, afinal ficara explícito em Eumênides: “soltaremos os freios que até
68
O massacre de Circeo, ocorrido em 29 de setembro de 1975 (a pouco mais de um mês antes do assassinato
de Pasolini) foi como ficou conhecido o sequestro, tortura e morte de duas jovens (Donatella Colasanti, de 17
anos, e Rosaria Lopez, de 19) provenientes de famílias pobres de uma região popular de Roma. Os autores do
crime (Andrea Ghira, Angello Izzo e Giovanni Guido) eram jovens da classe alta de Roma, sendo que Ghira se
declarava neofascista atuante. A notícia circulou nas páginas da cronaca nera por algum tempo e mobilizou a
opinião pública romana, tanto que é considerada como parte da história da Itália. Rosaria e Donatella foram
encontradas no porta-malas de um automóvel. Rosaria já estava morta, mas Donatela sobreviveu. Esse epi-
sódio serve de pretexto para se ressaltar a tomada de posição de Pasolini quanto à violência latente nas trans-
formações sociais. Nesse caso, Pasolini expôs, numa Carta luterana, dirigida a Italo Calvino, como a produção
desenfreada de mercadorias destruiu tanto as tradições burguesas quanto as várias culturas populares. O epi-
sódio remete também ao filme Comizi d’amore, no qual Pasolini apresenta documentalmente a convivência da
Itália Meridional com a Setentrional e as suas respectivas culturas. A eficácia de citar esse episódio deve-se ao
conteúdo dramático que Passolini atribui a ele, saindo do senso comum.
118
hoje contiveram os homicidas de todos os tipos” (ÉSQUILO, 2003, p. 170). Medeia
não faz justiça, no sentido ocidental. Ela representa um retrocesso civilizatório.
O massacre de Circeo ocorre cinco anos depois da realização de Medeia.
Seus significados, se montarmos os planos-sequência que o episódio produziu, con-
duzirão a memória às palavras finais de Medeia no filme, dirigidas a Jasão: “não,
pare de insistir ainda, é inútil, nada mais é possível doravante”. Como afirma Massi-
mo FUSILLO:
Afinal, Pasolini não havia filmado uma Oréstia, ao invés disso, a última obra
inspirada no mito grego seria Medeia, na qual o conflito entre as duas culturas não é
resolvido, e parece tragicamente inevitável, como o grito de Medeia no final ‘Nada
mais é possível, doravante’. A utopia de uma sociedade que assimila, sublima e
transforma o elemento arcaico, esplendidamente expressa pela metamorfose das
Erínias nas Eumênides, parecia então sempre mais distante [...] (F
USILLO, 1996, p.
186).
Na discussão com Italo Calvino, exposta numa Lettera luterana (publicada no
Corriere della Sera de 29/10/1975), Pasolini assinala a transformação da sociedade
italiana para um modelo capitalista consumista como causa de graves conflitos:
Mudou o `modo de produção` (enorme quantidade, bens supérfluos, função edonis-
ta). Mas a produção não produz só mercadorias, produz também relações sociais,
humanidade. O `novo modo de produção`produziu consequentemente uma nova
humanidade, ou seja, uma `nova cultura`, modificando antropologicamente o ho-
mem. Tal `nova cultura` destruiu cinicamente (genocídio) a cultura precedente: da
tradição burguesa às várias culturas populares
69
. (PAGINE CORSARE: Lettera luterana
a Italo Calvino)
O que motivou essa resposta de Pasolini foi a opinião anteriormente exposta
por Calvino, que encontra culpados na burguesia, no neofascismo e até na violência
nazista. Para Pasolini estes são apenas bodes expiatórios, que não explicam o a-
contecido e nem mesmo os outros crimes violentos contra mulheres ocorridos na
mesma época. Se a montagem das cenas isoladas – os planos-sequência – fosse
feita quarenta dias depois, seriam incluídas as imagens do assassinato de Pasolini
para torná-la ainda mais significativa.
Não se trata, portanto, de vitimizar Medeia para inocentá-la, ou de culpar Ja-
são ou Creonte. A nova cultura e a transformação antropológica do homem atingem
toda a sociedade e é isto que se encontra, como signo trágico, nas entrelinhas das
69
È cambiato il "modo di produzione" (enorme quantità, beni superflui, funzione edonistica). Ma la produzione
non produce solo merce, produce insieme rapporti sociali, umanità. Il "nuovo modo di produzione" ha prodotto
quindi una nuova umanità, ossia una "nuova cultura" modificando antropologicamente l’uomo (nella fattispecie
l’italiano). Tale "nuova cultura ha distrutto cinicamente (genocidio) le culture precedenti: da quella tradizionale
borghese, alle varie culture particolaristiche e pluralistiche popolari.
119
tragédias e, poeticamente, no cinema pasoliniano. O trágico rejeita o bode expiató-
rio.
No fim das contas, as discussões se encontram. A argumentação de Calvino
a respeito do massacre de Circeo é também romântica, pois se refere a imagens
cristalizadas, cujo conteúdo não expande a discussão, mas mantém tudo como está.
São meras identificações literais, pouco objetivas, pois não levam em conta as mito-
logias em jogo e não tornam significativos o tremor de Medeia na cena descrita aci-
ma, mas apenas o furor dos agressores, e a força transformadora que o trágico
contém permanece recalcada.
A fim de reforçar o entendimento de que a Medeia de Pasolini está inserida
em uma concepção de cinema e não é uma obra isolada, pensemos em quanta mi-
tologia está presente também na Medeia de Lars Von Trier e na sua recriação críti-
ca, Dogville. Essas obras pretendem fazer representações trágicas de Medeia e
apontam para um final em que o ódio da estrangeira renasce realisticamente, como
deve ser no mito, ilogicamente, como força da natureza e do elemento feminino míti-
co, Erínia contra Eumênide.
Na dramaturgia brasileira, houve uma tendência para se criar textos metafóri-
cos e foram escritos alguns textos dramáticos que apelavam para a personagem
Medeia, como Além do rio (Agostinho OLAVO, 1957), que apresenta uma adaptação
dessa personagem como heroína romântica.
A peça de Olavo é uma adaptação do enredo euripidiano que somente leva
em conta a traição de Jasão e o caráter da personagem Medeia como mulher traída
e irada devido ao ciúme, diluindo a preocupação principal de Eurípides – a oposição
primordial homem x pólis numa relação fatalista entre o oprimido (bom) e o opres-
sor (mau), e apontando para uma ideia de injustiça baseada na vitimização da mu-
lher, caráter que não é, definitivamente, o da Medeia euripidiana.
Uma outra ressurreição, positivamente realizada, foi a apresentação de Gota
d’água (2008) no teatro Carlos Gomes, no Rio de Janeiro. O caráter de Medeia está
representado em Joana pela sua ira contra a atitude de Jasão e contra a expulsão
dela própria e dos seus filhos da comunidade, imposta por Creonte, e também pela
sua ligação com entidades religiosas, o que leva Creonte a atribuir-lhe poderes má-
gicos e a temê-la por isso. O conflito instinto X razão, entretanto, não fica limitado
aos caracteres homem traidor X mulher traída, uma vez que entra em cena um ter-
120
ceiro elemento, a ideologia burguesa de Creonte, também causadora do desfecho
trágico.
Dessa forma, o que pairava como o direito dos homens na Medeia de Eurípi-
des é metamorfoseado em ideologia burguesa em Gota d’água, dramaticamente a-
presentada por uma encenação épica-brechtiana no momento em que Jasão senta
na cadeira de Creonte para ser doutrinado por ele
70
. Em contrapartida, Creonte, a
figura do burguês, e o próprio Jasão fazem o papel dos bodes expiatórios – ao gosto
do público – para que o assassinato das crianças não cause repulsa e revolta. Caso
contrário, a distância do pensamento moderno em relação aos rituais antigos, seria
motivo para um julgamento ético, ainda que o ato de Joana se justificasse pela trai-
ção de Jasão.
Na peça de Eurípides, o coro de mulheres se encarrega de ressaltar durante
todo o tempo que Medeia estava revoltada pela traição de Jasão, a quem ajudara a
conquistar o poder perene dos reis conferido pelo velocino, ademais um objeto sa-
grado, concebido pelo próprio Zeus. Jasão traíra um compromisso sagrado com Me-
deia e ofendera o seu guénos. Medeia, então, como sacerdotisa do Sol, apresenta-
se como a cumpridora de uma justiça e uma vontade divinas. Medeia, para o público
grego, já representava um retrocesso a uma idade de trevas, na qual não era a lei
humana que condenava crimes de sangue.
Para o público brasileiro do século XXI, entretanto, a justiça divina ou a pere-
nidade do poder dos reis nada significam. Os elementos mitológicos, essenciais para
a compreensão da tragédia no século V, devem ser substituídos, modernamente, por
elementos correspondentes, no enredo, que não desfigurem o caráter original da
trama. Elementos como o banimento de Medeia, imposto por Creonte, devem ter seu
correspondente para a sociedade que assiste o espetáculo hoje, não mais com o
peso atribuído à impossibilidade – eminentemente política – de se viver fora da pólis,
mas com o peso da injustiça social, elemento bastante perceptível pelo cidadão da
metrópole moderna. O que fica patente na peça, portanto, é que o ato de Joana re-
presenta simbolicamente a luta dela contra o poder de Creonte e não é somente o
crime de uma personagem vingativa por natureza, pela sua natureza mítica. Nesse
70
Embora não seja cabível falar de intenções autorais, a não ser das explícitas, é possível associar Creonte com
a figura mítica do Centauro, o educador de Jasão. Apesar do caráter bondoso atribuído por Pasolini a este ser
mitológico, os centauros eram muitas vezes criaturas maléficas.
121
sentido, é o tratamento épico do enredo que causa o efeito trágico, desviando os
olhares do significado superficial do ato para uma simbologia da luta contra o poder.
Quando escreveram Gota d’água, Chico Buarque e Paulo Pontes encontra-
ram mais próximo deles, nos rituais da umbanda, o material mítico de que necessita-
vam para a sua metamorfose de Medeia em Joana. Esta, num transe, anuncia a
morte dos filhos e a vingança:
JOANA
Me mato, mato e me vingo,
me vingo, me mato e mato
(Joana está caída no chão)
CORINA
Me ajuda aqui co’a coitada
(QUATRO VIZINHAS CARREGAM JOANA PRO FUNDO, ENQUANTO CORINA VAI
DANDO UM PASSE DE UMBANDA E CANTANDO)
Nesse ponto, a título de comparação, cabe caracterizar os dois textos dramá-
ticos brasileiros como formas de representação moderna da tragédia que não pro-
cessam uma mímesis crítica substitutiva dos conteúdos míticos originários pelos
mitos modernos. Em Gota d’água, o que prepondera é o temperamento iracundo de
Joana/Medeia, uma metáfora da revolta apontada como estratégia política contra a
exploração econômica do modelo capitalista da ditadura militar – situação política
brasileira da época –, associando os personagens principais aos oprimidos e opres-
sores da sociedade. A traição de Jasão é abordada como elemento detonador da
reação de Joana contra um personagem caracterizado como um vilão romântico,
devidamente identificado pelo público como antipático por ambicionar fama, dinheiro,
prestígio. Opondo-se a esse caráter negativo está Joana, simpática devido à sua
condição de oprimida, uma vez que a peça se volta para um público da classe média
brasileira cujo fator identificatório e coesivo era a condição de oprimido.
Contrariamente, no filme de Pasolini havia necessidade de se trazer para o
enredo uma ação que desencadeasse a vingança de Medeia, mas não contra o-
pressores metaforicamente representados, e sim contra um personagem cujo caráter
era do herói ambicioso e materialista: o caráter do herói moderno, exageradamente
humano.
Embora o Jasão de Chico Buarque e Paulo Pontes não tenha de início um ca-
ráter ruim, mas que se torna mau pela convivência com Creonte e com a perspectiva
falsa de que usufruiria os dividendos trazidos pela indústria fonográfica, e que Joana
também não seja um caráter marcadamente bom, a apresentação deles para o pú-
blico por meio dos atributos de simpatia e antipatia atenua o peso trágico-político do
enredo.
122
No texto Além do rio, de Agostinho Olavo, a oposição representada é entre
negros e brancos. Olavo considera-se autor de teatro negro, sendo que não há uma
delimitação que justifique a magia da personagem feminina como magia de negros,
uma vez que o candomblé, modernamente, também é religião de pessoas brancas.
O que essa representação encerra, afinal, na sua base acrítica, é uma possibilidade
de resolução dos conflitos, desde que seja aplicada a eles uma espécie de justiça
que o senso comum constrói segundo o paradigma romântico de simpatia/antipatia.
Pode-se concluir também que o texto de Olavo, embora com graus muito diferentes
de articulação com as problemáticas sociais a que visa questionar, prima por encon-
trar formas verossímeis de apresentar seu conteúdo, quando, conforme afirma KITTO
(1972), a inverossimilhança com que Eurípides constrói o enredo de Medeia permite
que irrompa a violência absurda e o trágico.
Após essa breve análise das economias dramáticas dos dois textos brasilei-
ros, considerados, no contexto desta tese, como identificados com as tentativas de
adaptação que conduzem às representações romanescas modernas, pode-se pas-
sar a apontar que elementos estão presentes no texto euripidiano e que serão objeto
da mímesis crítica pasoliniana. Para identificar esses elementos, nos valeremos da
análise feita por KITTO (idem). Segundo esse autor,
A tragédia de um herói como Ájax é o fato de uma tal força ser anulada por uma tal
fraqueza; de Medeia, que um tal caráter sequer exista. [...] Mas o ponto principal da
tragédia de Medeia não é o fato de que o thymós poder ser mais forte do que bou-
lémata, a paixão mais forte do que a razão, podendo assim constituir um agente
mais destrutivo. Mas destrutivo para quem? Destrutivo para as crianças, Gláucia,
Creonte, Jasão e para a paz de Medeia – mas não para a sua vida; em resumo, des-
trutivo para a sociedade em sentido amplo. (KITTO, 1972, p. 21).
Para Pasolini, o que deve ser apropriado do texto euripidiano e mimetizado
não são as consequências da maior força da paixão em relação à razão, pois este é
o ponto de vista da conservação da pólis, apesar dos seus conflitos. O que Pasolini
expressa é justamente o que essa preservação implica em infelicidade e angústia
para o homem. Eurípides prioriza a pólis, enquanto Pasolini prioriza o homem.
Ainda segundo Kitto, a diké, a ordem natural, desempenha papel reduzido no
pensamento de Eurípides, que apresenta as paixões ou loucuras como sendo uma
fonte constante de miséria para a humanidade. Afirma K
ITTO (op. cit, p. 24):
[...] a diké, a ordem natural é desafiada na tragédia clássica de Sófocles, e deverá
sempre se afirmar de forma natural, por isso toda a ação – as pessoas e o que fa-
zem – deve parecer natural. Mas a diké desempenha papel reduzido no pensamento
de Eurípides, que apresenta as paixões ou loucuras como sendo uma fonte constan-
te de miséria e esboça logicamente personagens extremas e faz enredos esquemá-
ticos. Enquanto Sófocles concebe suas tragédias segundo um universo ordenado,
Eurípides retrata paixões, instintos cegos, loucuras.
123
Esse é o material que Pasolini foi buscar em Eurípides, a desrazão, o incon-
trolável, pois isso aponta para forças míticas presentes no interior do homem, forças
que desencadeiam a violência como forma de comportamento e levam às atitudes e
aos acontecimentos trágicos.
Prossegue KITTO (op. cit., p. 25-26):
[...] a menos que vejamos Medeia como vítima trágica de si mesma, tentaremos
simpatizar com ela e perderemos tempo a arquitetar emoções acerca das pobres
crianças. [...] Eurípides nos apresenta sua concepção trágica de que as paixões e a
ausência de razão às quais a humanidade está sujeita são o seu maior flagelo; a si-
tuação não é senão o cenário para irromper o absurdo. Eurípides não busca que a
situação seja esclarecedora, mas que a sua paixão deva ser, por mais extrema que
seja a sua forma, fundamental e familiar. Se Medeia é, nesse sentido, verdadeira,
não objetaremos que não é verossímil.
O ponto mais importante dessa citação de Kitto, para associarmos elementos
euripidianos e pasolinianos, é a questão da simpatia e das emoções. Pasolini exage-
ra o caráter heróico trágico de Medeia, evitando dessa forma a queda na forma ro-
manesca, que aponta para a conciliação e a consequente destruição do caráter
trágico de personagens e ações. Na segunda parte da citação encontram-se o ab-
surdo e a inverossimilhança, fatores que no filme de Pasolini causam a impossibili-
dade de simpatia por Medeia, por Jasão ou pelas crianças. Para o homem moderno,
espectador de cinema, o inverossímil é que Medeia, afinal, não seja punida pela lei
dos homens ou eticamente condenada, o que constitui matéria bruta para a mímesis
crítica pasoliniana, que é não literal. Contrariamente se dá em relação ao conteúdo
das duas peças brasileiras acima brevemente comentadas, se bem que consideran-
do as diferenças quanto aos enredos.
A propósito, cabe citar Lessing (no seu Laocoonte, 1998), a fim de caracteri-
zar que essa preocupação de não confundir os gêneros tragédia e romance já deve-
ria estar presente em Aristóteles:
Aristóteles afirma que Agatón inventou todo o enredo. Agatón não o teria feito, a não
ser que estivesse escrevendo drama de tipo essencialmente romântico, dependente
da surpresa e da novidade, e que não pretendesse dizer nada de muito importante.
Também constitui terreno fértil para a caracterização da personagem buscada
por Pasolini a ausência de hamartia
71
, cuja presença retiraria o caráter proposital das
ações da Medeia, no filme, como a mulher que age impulsionada pela paixão. Embo-
ra conhecendo a razão que a condenará, ela a despreza, pois lhe atribui menos im-
71
Na Poética de Aristóteles, a hamartía aparece como falta, erro, em diversos lugares (60 b 15 & 18;54 b 34; 53
a 10; 53 a 16). Segundo V
ERNANT (2005, p. 22): [...] a culpabilidade trágica se estabelece entre a antiga con-
cepção religiosa de erro-polução, de hamartía, doença do espírito, delírio enviado pelos deuses que necessa-
riamente engendra o crime, e a concepção nova em que o culpado, hamartón, e sobretudo adikôn, é definido
como aquele que, sem ser coagido, deliberadamente decidiu cometer um delito.
124
portância do que à “justiça cara a deus”. A definição deste caráter e da impossibili-
dade de uma definição aristotélica de Medeia está também em KITTO (op. cit., p. 20):
Medeia é uma figura trágica, mas vimos que não se trata de uma heroína trágica a-
ristotélica, na verdade, está possessa de uma natureza trágica apaixonada, absolu-
tamente incontrolável tanto no amor quanto no ódio, o que a torna dramática, mas
não é hamartía: é a mulher por inteiro. [Medeia] é trágica à medida que as suas pai-
xões são mais fortes que a sua razão. [...] no entanto, não é uma heroína trágica, tal
como temos compreendido o termo até agora. É demasiado extrema, demasiado
simples. Não há aqui o estudo de um caráter, [...] porquanto a caracterização está,
de qualquer modo, concentrada na paixão dominadora e a situação é manejada de
forma a estimular ao máximo este fato. (Grifos meus)
Pasolini não se preocupa em explicar a personagem de Medeia, seu compor-
tamento ambíguo, mas em expressar esteticamente as possibilidades apenas entre-
vistas no texto de Eurípides. Segundo Kitto, o que é essencial na tragédia de
Eurípides é que sempre vemos Medeia da mesma forma, ou seja, ela não é caracte-
rizada como o típico herói aristotélico, que teria uma natureza como a nossa, mas
tendendo para o bem, e que depois arruina-se por alguma hamartía.
A análise que Kitto nos apresenta acerca do caráter do Jasão euripidiano é
propícia para nos indicar o quanto esse personagem continha na sua origem a maté-
ria bruta buscada por Pasolini para alcançar seus objetivos: “é impossível encontrar
nele algo que não seja mesquinho; não porque Eurípides esteja satirizando alguém
por meio dele, [...] mas pela mesma razão, seja ela qual for, que faz da sua Medeia
uma personagem tão extrema” (KITTO, op. cit., p. 14).
Pasolini ressalta o indicado por KITTO (op. cit., p.14): o fato de Medeia nunca
ser diferente do que ela realmente sempre foi constitui parte essencial dessa tragé-
dia e isso pode ser verificado no texto euripidiano. De fato, quando se inicia a ação,
Eurípides já atribui o comportamento enraivecido de Medeia à traição de Jasão, ou
seja, Eurípides caracteriza Medeia segundo o seu temperamento, objetivamente re-
presentado na peça, tocando apenas en passant na sua condição de estrangeira,
provavelmente devido à naturalidade com que se viam estrangeiros como bárbaros:
a condição de estrangeira de Medeia já trazia em si as consequências trágicas ine-
rentes.
Na segunda parte do filme, quando, por algumas cenas, passa-se a seguir a
tragédia de Eurípides, também fica explícito que o comportamento de Medeia se de-
ve à traição de Jasão. Podemos dizer, então, que a Medeia de Eurípides sempre foi
grega, porque o conflito que ela encerra é um conflito representado a partir de uma
“análise consciente da experiência”, conforme Kitto. Nesse ponto Pasolini preenche
também uma lacuna deixada aberta por Eurípides: a Medeia de Eurípides age im-
125
pulsionada pelo seu temperamento, que sempre foi irascível. A Medeia de Pasolini
age – e isso fica bem claro pela introdução do signo da música bárbara e dos solda-
dos na visão do sacrifício de Gláucia – por uma “justiça cara a deus” e para vingar-
se “dos inimigos”. A preparação do sacrifício de Gláucia apresenta várias semelhan-
ças com o sacrifício do jovem no país de Medeia: a música bárbara, o visus de Me-
deia, os soldados, as mulheres pintando as escadas.
Pasolini associa forma e conteúdo, pois traz para sua Medeia o mito – as ce-
nas do país de Medeia e a narrativa épica do Centauro – e a magia como signos e
presença no enredo da instância irracional do homem que ele pretende mimetizar
como conflito. O sacrifício de Gláucia, então, não é uma mera vingança contra uma
atitude eticamente errada de Jasão, do ponto de vista da diké, mas uma questão de
origem, da origem de Medeia sacerdotisa e controladora das forças da natureza.
Segundo Junito Brandão, “Medeia não é apenas a esposa sanguinária e vingativa,
mas uma figura que personifica as forças cegas e irracionais da natureza" (BRANDÃO,
1984, p. 70).
Na Medeia de Pasolini, o discurso do Centauro, o sacrifício humano, o roubo
do velocino de ouro e a viagem de Jasão e Medeia preenchem essa lacuna deixada
por Eurípides: o caráter de Medeia como algo que tem raízes na dimensão mágica
do ser humano. Ou seja, Pasolini substitui o que em Eurípides é apenas “tempera-
mento” por um fenômeno ligado à natureza que a razão não suprimiu totalmente,
que é o método e o objetivo da mímesis dialética pasoliniana. Não à toa Pasolini faz
Medeia afirmar aos descrentes argonautas: “vocês não procuraram o centro”.
No terceiro diálogo entre o Centauro e Jasão, o primeiro ensina que o signifi-
cado do mito e dos rituais “para o homem antigo são experiências concretas que o
compreendem até em seu existir corporal e cotidiano” (Pasolini, 2002, p. 110).
Em seguida, o Centauro diz a Jasão que ele deverá ir até o tio dele, Pélias,
para recuperar seu reino e que para isso o tio imporá a ele “uma empresa heróica”:
recuperar o velocino de ouro (PASOLINI, 2002, p. 120). Segundo Canevacci, a recu-
peração do velocino é a exemplificação de uma racionalidade predatória em relação
ao objetivo que reduz o sagrado a fato positivo (C
ANEVACCI, p. 185).
Prossegue o Centauro: “para isso você terá de ir a um país distante, além-
mar, onde você vivenciará um mundo que está longe do uso da nossa divina razão.
O que ela, infelizmente, não pode prever são os erros a que conduzirá você. E quem
sabe quantos serão.” Finalmente, a personagem diz para Jasão que aquilo que o
126
homem entendeu quando viu a semente que perde sua forma sob a terra para de-
pois renascer foi a lição definitiva: a ressurreição. Para Jasão adulto, entretanto, es-
se renascimento dos grãos é vazio de sentido, prossegue o Centauro, “como uma
lembrança distante que não te diz mais respeito. Com efeito: não há deus algum”.
(PASOLINI, 2002, p. 111).
Imediatamente depois dessa fala do Centauro, há um corte para a imagem de
duas cabras pastando, já no país de Medeia. O papel da montagem para Pasolini
fica ainda mais claro nesse momento. Esse contraste entre as imagens do Centauro
falando para Jasão e as imagens realistas, em plano-sequência, do país de Medeia
é o signo fílmico criado por Pasolini para apresentar o conflito trágico que oporá Me-
deia e Jasão. Pasolini denuncia, de imediato, que nós, espectadores modernos, não
alcançaremos a dimensão mítica contida na personagem Medeia: nós somos Jasão.
Essa identificação espectador / Jasão só pode ser alcançada se os signos
postos em ação no texto fílmico se sobrepuserem aos signos esperados pelo espec-
tador. As imagens projetadas do país de Medeia são desconcertantes para o espec-
tador, talvez por serem realistas demais. A imitação da vida imposta pelo cinema
sonoro não pode ser vista nestas imagens de Pasolini porque o que está represen-
tado nelas é a vida de uma sociedade mítica. Mais uma vez pode-se fazer referência
às palavras dirigidas do Centauro, quando ele menciona para Jasão o país onde es-
te encontrará o velocino de ouro: “lá você encontrará uma vida muito realista, porque
não há nada como os míticos, para serem realistas, e não há nada como os realistas
para serem míticos” (P
ASOLINI, 2002, p. 120). As imagens desse país, projetadas na
tela pelo filme de Pasolini, apenas confirmam as palavras do Centauro.
O discurso do Centauro Quiron, o educador do Jasão argonauta, no início do
filme, consagra o herói mitológico, narrando os mitos da criação do mundo, um dis-
curso épico sobre deuses e monstros. Neste ponto do enredo, em que Jasão ainda é
criança, o texto das Visões... é bastante lírico, confundindo o ponto de vista da cri-
ança com a narrativa ingênua do Centauro. Também é descritivo, ao mesmo tempo
em que narrativo, ambientado em um cenário ingênuo, bucólico, elemento visual que
faz parte do texto das Visões..., aparentemente para provocar no leitor a criação de
imagens mentais das cenas que não serão mostradas na tela. O Centauro se deixa
embriagar pelo vinho e, numa passagem do enredo, pergunta para Jasão se este o
está achando “muito poético”.
127
Posteriormente, os ensinamentos do Centauro são dirigidos a um herói não
mais épico, uma vez que o Centauro, ao final da sequência, assume definitivamente
sua forma apenas humana de Novo Centauro:
Como se fosse visto pelos olhos de Jasão, o Centauro é cada vez mais prosaico e
normal: e cada vez mais cultivado e inteligente. Ele prossegue com as suas lições de
história da religião, continuando a racionalizá-las e a desmistificá-las. Jasão escuta,
de forma alguma admirado ou indignado, mas naturalmente inclinado a tudo
isso
72
.(PASOLINI, 2002, p. 40)
Tanto assim que, após o primeiro discurso do Centauro, no qual Jasão é “ini-
ciado” para que possa empreender em condições vantajosas a sua viagem de inicia-
ção à Cólquida, ele inicia Jasão nos conhecimentos necessários a um herói trágico
moderno e lhe ensina que o homem não está mais imerso na natureza, mas sim que
a representa. O país de Medeia, por sua vez, não separa natureza e misticismo, que
o Centauro separa em seu primeiro discurso.
O Centauro não existe no texto euripidiano. A introdução dele, por Pasolini, na
trama do filme, desvia intencional e poeticamente o conflito para outro signo original,
pasoliniano, do qual advêm novos sentidos, explicitando o conflito – trágico – entre
um passado mítico e a civilização política, que Eurípides mantém nas entrelinhas. O
Centauro representa o imaginário mítico que persiste na polis e que aparece clara-
mente quando Creonte alude ao medo que lhe causa a fama de feiticeira que acom-
panha Medeia. O Centauro pasoliniano dá materialidade corpórea à noção de
trágico que o filme contém, segundo o conflito entre natureza e cultura, causa e con-
sequência da ambiguidade que se revela na dupla imagem centáurica que inicia a
terceira parte do filme.
Se nas Visões ... pode-se identificar o personagem Centauro com o Quiron da
mitologia, o mais justo dos centauros, isto se deve à cena (citada acima) em que
Aeson lhe confia o filho. Na versão filmada ele perde seu nome próprio e passa sim-
plesmente a ser o personagem Centauro, híbrido de homem e cavalo e que possui
também a duplicidade de imagem: Centauro e homem.
Tais elementos, presentes separadamente em cada um dos três textos, e que
constantemente dialogam entre si, criam uma unidade lógica que torna produtivo
pensar-se a Medeia pasoliniana como trilogia. Esse conjunto lógico constitui um ma-
72
Comme vu par les yeux de Jason, le Centaure est de plus en plus prosaïque et normal : et de plus en plus
cultivé et intelligent. Il poursuit ses leçons d’histoire de la religion, en continuant de les rationaliser et de les
démythifier. Jason écoute, aucunement étonné ni indigné, mais naturellement enclin à tout cela.
128
terial riquíssimo para o estudo das relações entre literatura e cinema e das relações
entre o texto trágico de Eurípides e a atualização mimética dos seus sentidos. O
personagem Centauro ocupa um lugar privilegiado nessa estrutura dialógica.
O Centauro que aparece na versão fílmica da Medeia pasoliniana não tem um
nome mitológico, o que aumenta ainda mais seu simbolismo. Dessa forma, a pre-
sença central dele nos dois momentos iniciais da primeira e da terceira partes do
filme causa seu efeito por duas vertentes: primeiramente a própria imagem do Cen-
tauro, ser mítico, inexistente, somente possível de aparecer numa representação
artística, um ser estético, carregado de simbolismo. Esse efeito também se realiza
mimeticamente pela apresentação do Centauro na tela, nas primeiras cenas da ver-
são filmada: o tom historiográfico, didático, informativo, de início, e depois filosófico,
conclusivo.
O Centauro conduz, nos três textos que compõem a trilogia pasoliniana sobre
Medeia, os dois conjuntos de signos que se complementam, como uma oposição
sem resultado, sem vitória de uns sobre os outros: os signos mitológicos e da natu-
reza; os signos da razão e da modernidade; os signos épicos e os trágicos. Signo
mitológico do instinto e da razão, do homem e do animal, o personagem Centauro é
a mímesis atualizadora do mito. O seu encontro com a mímesis atualizada da mulher
Medeia é a síntese buscada por Pasolini para expressar o trágico que permanece na
modernidade.
O enredo de Medeia contém uma ideia de presença do estrangeiro que não
pode, evidentemente, ser retirada das recriações dessa tragédia, quaisquer que se-
jam elas. A percepção atual do mito do estrangeiro, sua diferença em relação à for-
ma como a personagem Medeia é constituída na tragédia de Eurípides e na viagem
dos Argonautas à Cólquida, e as suas possibilidades ficcionais estão presentes em
uma infinidade de obras.
Pasolini vai buscar na Medeia de Eurípides os signos da estrangeiridade e os
encontra no choque entre a magia sacrificial de Medeia e a lógica regrada dos corín-
tios:
[MEDEIA para o coro]:
Melhor seria estar três vezes em combates,
Com escudo e tudo, que parir uma só vez!
Mas uma só linguagem não é adequada
a vós e a mim. Aqui tendes cidadania,
o lar paterno e mais doçuras desta vida,
e a convivência com os amigos. Estou só,
proscrita, vítima dos ultrajes de um marido
que, como presa, me arrastou a terra estranha,
129
sem mãe e sem irmãos, sem um parente só
que recebesse a âncora por mim lançada
na ânsia de me proteger da tempestade.
[...]
se, todavia, vê lesados os direitos
do leito conjugal, ela se torna, então,
de todas as criaturas a mais sanguinária!
[CORIFEU]:
Eu te obedecerei, Medeia; punirás
o teu marido justamente. Não estranho
o pranto que derramas por teu infortúnio.
Para efeito, especificamente, desta análise do caráter de Medéia do ponto de
vista da diké
73
, serão considerados, além do filme de Pasolini, dois filmes de Lars
Von Trier: a Medeia (produzido para a televisão italiana em 1988) e Dogville (2003).
No filme de Pasolini, por exemplo, existem como que três países: o país do
Centauro, o país de Medeia e o país de Jasão, Corinto, que seria o país da razão,
mas que para Pasolini é o país do conflito entre razão e sentimento, razão e intui-
ção, tanto que as primeiras cenas em Corinto colocam nesse país a figura dupla do
Centauro. Jasão chega como estrangeiro ao país de Medeia, mas chega como e-
missário de uma cultura dominante e expansionista, chega para realizar uma tarefa
iluminista, como define Canevacci em Antropologia da comunicação visual.
Varia então a forma como o estrangeiro é tratado. Se, para Eurípides, Medeia
era bárbara, e ele representa isso pela postura de Creonte diante da estrangeira,
entre temerosa e odiosa, para os dois diretores modernos Medeia é antes um signo
de uma diferença impossível de ser vencida e sua condição de estrangeira é até
mesmo o elemento conflituoso que se torna o leitmotiv dos enredos de Lars Von Tri-
er e Pasolini.
A Medeia de Eurípides é grega até o momento em que irrompe seu tempera-
mento; a Medeia de Pasolini é sempre bárbara, embora se desconhecendo – “uma
ânfora cheia de conhecimento que não me pertence” –, mas a origem não se perde:
“ainda sou a mesma”.
As personagens de Van Trier – Medeia e a Grace, de Dogville – dialogam en-
tre si, pois ambas se baseiam, esteticamente, em um distanciamento com o público,
de modo a criar uma ilusão que proporcione uma percepção natural do que é impos-
sível de ser natural no cinema, ou seja, os mitos que ele encerra na sua narrativa,
uma vez que algo deve ser dado, a priori, à articulação do enredo que não esteja
73
Na tragédia grega todo herói é tomado pela hybris em face do equilíbrio realizado pela cidade. No caso dos
filmes abordados, encontram-se o mito da justiça norte-americana (Dogville) e o mito grego da justiça e da or-
dem opostos à ação dos heróis, ou seja, diké oposta a hýbris.
130
visualmente presente na tela
74
. Essa é a forma mítica que se apresenta nessas duas
obras de Lars Von Trier, ao abordarem a temática da estrangeira em fuga, persegui-
da por um crime cometido em sua terra e acolhida por um outro povo que ela, afinal,
por vingança e valendo-se de poderes ligados à sua origem, extingue pelo fogo, ani-
quilando uma cidade e uma linhagem.
Vale lembrar que o filme Medeia de Van Trier aproxima-se, inicialmente, mais
do texto euripidiano do que a Medeia de Pasolini. Na sua Medeia, Van Trier é mais
racional, como Eurípides, ao localizar o conflito no coração do homem e não no mito.
Sendo impossível conhecer o caminho que o cineasta dinamarquês intelectualmente
trilhou para alcançar Dogville, é possível, porém, a partir da mitologia que envolve o
cenário da cidade, os personagens e o cenário, formar um conhecimento acerca do
modo como as mitologias antigas e modernas se encontram, são mimetizadas e
compreendidas, uma vez que não se trata de uma adaptação. A cena do 4 de julho,
entre Grace e Thomas, no banco da praça de Dogville, é o embate entre razão e
sentimento: é como os dois Jasões, o de Lars Von Trier e o de Pasolini, vivendo de
forma angustiosa o embate entre sentimentos incontroláveis e desconhecidos e o
desejo racional do poder. Seria necessário um Centauro mítico que anunciasse para
Thomas: “contra todos os seus cálculos, você ama Medeia”, embora isso não fosse
suficiente para evitar a tragédia. Medeia e sua correspondente Grace são, nos três
filmes, mais poderosas do que Jasão ou Creonte ou Thomas pai e Thomas filho, e
isso causa a sua perdição.
Lars Von Trier, como Eurípides, também não expõe claramente os detalhes
da fuga de Grace, e inicia a sua narrativa já com a fugitiva – perseguida pelo pai por
faltas cometidas por ela no seu país de origem e pela recusa dos poderes paternos
– acolhida como estrangeira na terra do homem que a protege e que depois a explo-
ra e trai. Von Trier também se aproxima mais de Eurípides, afastando-se de Pasolini,
ao destacar o papel de Egeu (no seu Medeia). Sendo então o cinema arte visual, o
que, imageticamente, contribui para essa ilusão?
O que é mimetizado, de forma crítica, nos filmes Dogville e no seu prosse-
guimento, Manderlay (2005), é o moderno mito da democracia – uma ordem natural,
74
Essa estratégia dos elementos invisíveis, mas postos a priori como presença no enredo, é evidente na trilogia
Medeia, de Pasolini: eles são os elementos líricos e épicos, ou seja, não-trágicos, presentes nas Visões de
Medeia, mas propositalmente excluídos do roteiro final de Medeia.
131
uma mímesis da diké –, mímesis feita como contraponto a uma condição do estran-
geiro mal aceito. Compreende-se como estrangeiro qualquer ser humano ou qual-
quer ideia que seja diferente do paradigma explicitado na forma do mito da
democracia e da ética. Em ambos os filmes, o conflito é inconciliável e representável
apenas pela entrada em cena de mitos ancestrais, explicitamente apontados por
Lars Von Trier em Manderlay e implicitamente em Dogville.
No filme Manderlay, ao racionalismo de Grace, o pai dela opõe um mito da
sexualidade feminina, segundo o qual a mulher, embora se expressasse através de
um discurso assexuado, busca uma forma selvagem romântica de sexualidade, em
que ela se imagina perseguida por homens selvagens empunhando tochas acesas,
o que corresponde à última cena do filme. O conflito, então, deixa de ser entre razão
e sentimento, como aponta Pasolini, e passa a ser entre civilização e barbárie. Em
Dogville, Grace, posta pelo pai (oculto na escuridão de um automóvel) diante do di-
lema de reconhecer ou não a existência das diferenças entre ela e o povo de Dogvil-
le, conclui pela destruição da cidade e do povo, mortos todos, os filhos antes da
mãe, e a cidade (“que não faria falta ao mundo”) é destruída pelo fogo, para o bem
da humanidade
75
.
É o caráter mítico de Grace, no sentido aristotélico:
Caráter é o que revela certa decisão ou, em caso de dúvida, o fim preferido ou evita-
do; por isso não têm caráter os discursos do indivíduo em que, de qualquer modo, se
não revele o fim para que tende ou o qual revele. Pensamento é aquilo em que a
pessoa demonstra que algo é ou não é, ou enuncia uma sentença geral. (A
RISTÓTE-
LES
, 1984, p. 247; [1430 b 12]).
Nesse sentido, o caráter de Grace é formado por suas ações e dentro de uma
racionalidade, mas além da neutralidade, que só está expressa na voz do narrador e
nos títulos dos capítulos. Esta é a forma com que Lars Von Trier naturaliza a perma-
nência do mito na modernidade.
Eurípides, ao retirar, como quer Junito Brandão na citação acima, o caráter
mítico de Medeia, e ao atribuir-lhe um caráter humanamente iracundo, mudança que
Pasolini recusa, leva o conflito para o domínio familiar, eliminando as oposições lo-
gos x mito. Essa diferença de atribuição de uma origem a Medeia fica patente nas
releituras de Lars Von Trier e Pasolini: o primeiro, racional, fazendo uma interpreta-
ção literal da Medeia de Eurípides; o segundo mimetizando o conflito entre civiliza-
ção mítica e pólis, a fim de resgatar o que de mítico persiste como falta no homem
75
Ver, a respeito, a citação de KITTO (1990, p. 24) sobre a diké, na página 124 desta tese.
132
moderno. Nesse sentido pode-se falar de uma mimetização feita por Pasolini e de
uma transposição literal feita por Lars Von Trier. E também se pode dizer que após
realizar Medeia segundo Eurípides, o diretor dinamarquês realizou a sua mímesis do
mito em Dogville e Manderlay.
133
CONCLUSÃO
O objeto desta tese foi a reflexão sobre a criação artística, especificamente de
certo tipo de cinema que pretende expressar fatos e materiais encontrados no cotidi-
ano, mas também os recolhidos imaginária e arqueologicamente de um conjunto
sistematizado de mitos. Este tipo de cinema, no seu ponto extremo, quer representar
materiais mais e mais arcaicos – mythos –, embora, no decorrer da tese, se tenha
constatado que o limite dessa possibilidade se expande ou se contrai, num processo
semelhante ao da poesia, quando pretende expandir os sentidos dicionarizados das
palavras.
Dizemos arqueologicamente, porque, desde tempos antigos, os que lidam
com mitos não têm acesso direto às narrativas originárias, orais, de autoria coletiva e
sem datação possível. Cabe desenterrar os pedaços aqui e ali, como fez Hesíodo.
Esse método de constituição de um discurso mitológico é o que Pasolini apresenta
pela voz e pela imagem do Centauro, na primeira parte de Medeia.
A abordagem da obra cinematográfica trágico-mítica de Pasolini esbarra de
antemão numa dupla dificuldade. Tal obra se entrelaça de forma inseparável com a
poesia do diretor italiano, o que abre um campo de estudo que nos pareceu amplo
demais para o espaço de uma tese de doutoramento que pretendia abordar as rela-
ções entre cinema e tragédia. De qualquer forma, sempre que foi possível, se fez
esse relacionamento, a fim de projetar para o futuro este estudo. O próprio Pasolini
adverte sobre a relação entre os filmes e os poemas que eram escritos paralelamen-
te com as filmagens. Na publicação citada exaustivamente nesta tese, Medée
(PASOLINI, 2002), encontram-se os poemas escritos durante a filmagem. Num deles
(Prece sob encomenda), escreve Pasolini:
Deus, e agora?
Para quem eu vou jogar os grãos por sobre meu ombro esquerdo?
Eu posso desmembrar um morto
E enterrar os pedaços nos campos?
Em sonho, os mortos me aparecem como mascarados ou ratos?
E depois, eu provo o terror de que o sol, talvez, um dia ou outro,
Não ressurgisse, ou que a erva cessa de brotar?
E que eu vivo nessa angústia incessante?
76
(PASOLINI, 2002, p. 132)
76
Prière sur commande. Dieu, et maintenant?/À qui vais-je jeter les graines par-dessus mon épaule
gauche ?/Puis-je démembrer un mort/et en enterrer les morceaux dans les champs ?/En rêve, les morts
m’apparaissent-ils comme masques ou rats ?/Et puis, est-ce que j’éprouve la terreur que le soleil, peut-être, un
jour ou l’autre./ ne resurgisse pas, ou bien que l’herbe cesse de pousser ? (Grifo no original)
134
Sem explicar o sentido das imagens de Medeia, o poema trata da angústia de
que fala Pasolini na Lettera del traduttore, texto também muito referido na tese, e faz
preciosas referências ao importante monólogo do Centauro no início de Medeia.
Principalmente, o poema toca numa contradição explorada por Pasolini, ou seja, a
indefinição dos limites entre humanismo e arcaísmo, que percorre também o texto da
tese, nunca resolvida, como não deveria ser, mas também nem sempre bem ilumi-
nada como seria pela introdução dos poemas. Por fim, o poema narra a experiência
angustiosa do homem dessacralizado, mas ainda marcado pelo sagrado, tema caro
a Pasolini, tanto em relação à ingenuidade quanto ao genocídio cultural.
A leitura dos poemas, e o seu relacionamento com a análise dos filmes, nun-
ca com a intenção de explicar, abriria espaço para um estudo crítico da contradição
que permeia toda a obra de Pasolini, percebida nesta comparação entre filmes e
tragédias gregas. No âmbito desta tese, um texto argumentativo baseado em docu-
mentos escritos ou fílmicos, foi atingido o limite em relação a essas contradições.
Cabe nesta Conclusão, apenas, apontar o que foi alcançado e as lacunas que per-
sistiram, à espera de um estudo que, no cruzamento entre a obra fílmica pasoliniana
e a sua poesia, encontre a expressão cinematográfica do mito moderno.
Nesta tese, o encontro do cinema trágico-mítico de Pasolini com o mito mo-
derno foi buscado através do que se chamou de grandes signos. Houve necessida-
de disso, a partir da leitura da Lettera del traduttore e da definição que Pasolini
aponta nesse documento de que sua busca, no tocante à tragédia grega, seria esta-
belecer uma conexão entre a incerteza em que vivia o homem antigo – ligada ao
passado de sacrifícios e de vinganças sangrentas de crimes familiares – e a angús-
tia do homem moderno, preso a uma sociedade racionalizada ao extremo, mas que
assiste, aqui e ali, à eclosão do irracional.
Em linhas gerais, há um recurso inicial do diretor aos signos da ingenuidade –
os cristãos primitivos, o dialeto, o sotoproletariado romano, a sociedade arcaica afri-
cana –, elementos que seriam o contraponto pretendido à racionalidade excessiva
da sociedade ocidental moderna, sob o signo do consumismo exacerbado. Somente
nesses ingênuos, resquícios de uma religiosidade primitiva perdida, estariam os sig-
nos trágicos apropriados para estabelecer a conexão entre religiosidade arcaica e a
moderna razão.
Esse é o quadro delineado nos Appunti... Neste filme, a África seria o cenário
ideal para a síntese projetada por Pasolini, em que caberiam a metamorfose das
135
Erínias, como fato positivo, e o materialismo moderno, fato negativo expressado pelo
desenvolvimento baseado no consumismo. Existe entretanto uma lacuna sutil, ex-
pressa com clareza na segunda entrevista com os estudantes africanos, nos Appun-
ti... quando Pasolini lhes pergunta se eles, saídos da sociedade africana para
estudar na Europa, se sentem como Orestes, personagem que aprendeu, na sua
viagem a Atenas, os princípios da democracia grega. As respostas dos estudantes
se perdem numa questão acerca de qual mundo seria melhor – o africano ou o eu-
ropeu – e do que haveria de bom e de ruim no mundo de origem. Nas entrelinhas,
pode-se ler: o primitivo não deseja permanecer primitivo, o que aponta para a exis-
tência de um mito moderno que dê conta de novas relações humanas, de uma nova
cultura.
Um único estudante afirma que o ideal seria que eles, ao voltarem para a Áfri-
ca, promovessem a síntese entre o aprendizado da Europa e o pensamento mítico
original. Pasolini instiga, então, a resposta que desejava ouvir, sobre o genocídio
cultural provocado pelo consumismo e sobre a convivência entre o arcaico e o mo-
derno:
[...] se o modo para não se deixar alienar pela civilização de consumo, ocidental,
moderna, poderia ser buscado no fato de serem africanos, ou seja, de opor ao modo
de conhecimento ocidental um ânimo original que faça com que aquilo que vocês
aprendem não sejam noções consumistas mas pessoais, reais
77
.
Essa é a imagem de uma das contradições encontradas. A mudança ficciona-
lizada por Ésquilo nas Eumênides tem na realidade duas vertentes. Uma, positiva, é
a democratização, o sufrágio, o tribunal humano. A contrapartida negativa a isso se-
ria a dessacralização e a falta de freios para “os punhais dos assassinos”, assinala-
da até mesmo no texto esquiliano. Mas Pasolini acredita ser possível a convivência
das duas formas mediante a intervenção de um discurso acerca das experiências
reais pessoais e sociais, ou seja, mythos. As referências a esse discurso que asso-
cia de forma lírica razão e magia são várias. Citamos duas. A primeira, no segundo
monólogo do Centauro, no filme Medeia (PASOLINI, 1969, p. 110):
[...] para o homem antigo, os mitos e os rituais são experiências concretas, que o
cercam e o envolvem a todo o momento, inclusive na sua experiência corporal e co-
tidiana. Para ele, a realidade é uma unidade de tal forma perfeita que a emoção que
ele experimenta diante, digamos, do silêncio de um céu de verão equivale inteira-
77
[...] si el modo para no dejarse alienar por la civilización de consumo, occidental, moderna, podría también
procurároslo el hecho de ser africanos, o sea, de oponer al modo de conocimiento occidental... un ánimo origi-
nal... que hace que lo que vosotros aprendéis... no sean nociones consumistas sino personales, reales. (Esta
citação foi retirada das legendas feitas para o filme Appunti per un’Orestiade africana feitas por um grupo de
alunos do curso sobre o trágico ministrado na UERJ pela professora Carlinda Fragale, no ano de 2007.)
136
mente à experiência pessoal mais íntima de um homem moderno
78
. (PASOLINI, 2002,
p. 110)
A segunda, o poema Chá e maçãs: “[...] processos e fatos vividos que não
correspondem/ à nossa espera racional: e então luz elétrica, / asfalto, casas quadra-
das, etc. [...] / Que maravilhoso acontecimento, ainda assim, / a descoberta (enquan-
to é recente) de uma consciência/ racionalmente orientada” (PASOLINI, 2002, p. 150).
A última pergunta feita por Pasolini aos estudantes africanos fica sem respos-
ta. Como não se alienar e ceder ao consumismo, sendo um africano na Europa, e
usufruir do humanismo ocidental? Pasolini declara-se favorável ao progresso, mas
opositor do desenvolvimento, embora reconheça, dialeticamente, que as mudanças
no sentido do progresso sempre trarão consequências no sentido do desenvolvimen-
to. A falta de resposta corresponde à trajetória que vai dos Appunti..., humanista e
racional, e chega à desilusão de Medeia.
Pode-se afirmar, com toda a certeza, que Pasolini não pleiteava ingenuamen-
te um retorno à sociedade arcaica, mas apenas uma presença do que nela existia de
positivamente irracional, a fim de opor isso ao consumismo desenfreado. A repre-
sentação dessa lacuna, instituída entre o humanismo positivo e o medo negativo do
retorno do sacrifício, merece uma pesquisa mitológica na literatura e na poesia de
Pasolini.
O filme Comizi d’amore é onde essa contradição é mais explícita. A Itália me-
ridional é mostrada, ao mesmo tempo, como lugar da ingenuidade e lugar do pre-
conceito contra o divórcio como fator de eclosão da violência contra as mulheres.
Violência que culminará no episódio do massacre de Circeo, fato da cronaca nera
romana, que suscitará a Lettera luterana a Italo Calvino, na qual Pasolini se aproxi-
ma da definição da síntese. Quando afirma que a mudança do capitalismo na dire-
ção do consumismo sem freios não muda apenas a economia, mas toda a
sociedade, pois afeta todas as classes, proletários e burgueses, mas que essa mu-
dança, pela sua violência, causa um desnível entre o que é vivido e o que é pensa-
do. Tudo aquilo que é vivido, os fatos do cotidiano, e que está em desacordo com as
regras daquela sociedade, é recalcado na forma de tabu, mas não deixa de ser obje-
to de desejos.
78
[…] pour l’homme antique, les mythes et les rituels sont des expériences concrètes, qui l‘entourent et
l’englobent à tout moment, y compris dans son existence corporelle et quotidienne. Pour lui, la réalité est une
unité tellement parfaite que l’émotion qu’il éprouve devant, mettons, le silence d’un ciel d’été équivaut en tout
point à l’expérience intérieure la plus personnel, la plus intime, d`un homme moderne,
137
Dessa forma, pode-se enxergar, por trás da camada literal do texto euripidia-
no, um outro, que escapa à racionalidade. O cotidiano de Corinto, paradigma da pó-
lis, rejeita o sacrifício e rejeita o filicídio, na forma da lei. O que permanece como
tendendo ao sacrifício, o caráter arcaico de Medeia, ou o instinto parricida e incestu-
oso de Édipo, transmitido por herança, segundo o mito, a partir do momento em que
é proibido por ser prejudicial à nova organização da pólis, passa ao estado de tabu,
proibido, interdito, discurso reprimido. Uma vez trazido para a tela do cinema, expõe-
se o recalcamento do mito, a que é necessário se proceder a fim de implantar a so-
ciedade humanizada, materialista e democrática.
A fim de preencher a lacuna, deveria haver a representação no cinema desse
mito – dessa ideologia moderna – em que racionalismo produtivo resultasse em con-
forto sem consumismo exagerado, em que o irracionalismo positivo arcaico resultas-
se em produção artística. Esse era o projeto de filmagem da Oréstia africana,
ambientado na África de 1960, quando a maioria dos países africanos caminhava
para a independência e a industrialização. Os Appunti... indicam o que seria a Orés-
tia, a sociedade perfeita, na qual o irracional estaria domado pela razão. Essa socie-
dade teria traços socialistas, embora troppo poetica para ser comparada com as
experiências já em andamento no Leste da Europa.
Essa metamorfose cujas regras determinam a montagem dos planos-
sequência dos Appunti... a fim de criar significados que manterão coerente a nova
sociedade africana, tanto pode ser decifrada e exposta na obra de arte de forma jor-
nalística, quanto pode ser objeto de uma crítica. No caso do cinema trágico-mítico de
Pasolini essa crítica é exercida pela exposição do que está recalcado – a natureza
de Medeia, feminina e arcaica; a culpa paterna que recai sobre Édipo sem apelação
– resultando em uma obra de arte política, porque provoca uma reflexão sobre a pó-
lis, ou seja, sobre o Estado moderno, que incita à formação de significados ainda
não abrangidos pela mitologia moderna.
A outra contradição é quanto ao caos de onde o autor do cinema de poesia
retiraria as imagens, jamais puras ou em estado bruto pois, no instante em que tal
imagem é percebida e recolhida, agimos, colando sobre ela nosso pensamento,
nossa ideologia, nosso conceito. O cinema de Pasolini também não atinge a imagem
arcaica, onírica, a não ser pela imaginação. Pode-se mesmo dizer que essa meta-
morfose se expressa melhor por: imaginação sobre o mito / cinema de poesia.
138
As imagens insignificantes, imagens em plano-sequência, são imagens toma-
das de diferentes ângulos, por diferentes observadores. É importante notar que, para
Pasolini, não há matéria bruta. Essa reflexão, de que as imagens do caos nunca se-
rão capturadas em estado de pureza, e que sempre serão objeto, de antemão, de
uma ideologia, conduz a uma outra: afinal, pouco importaria esse estado de pureza
das imagens, pois essas imagens primitivas, como as que Freud aponta no supere-
go, seriam incompreensíveis e inapreensíveis. Somente quando verbalizadas ou i-
maginadas tais imagens passam a ser apreensíveis e então tornadas significativas
para os fruidores da obra de arte.
Ao apropriar-se da imagem mítica ela já havia sucumbido ao lógos. Em rela-
ção à tragédia, este processo ocorreu e foi bem descrito por Proust. Nesse sentido,
o cinema trágico-mítico de Pasolini, numa síntese com a contradição da teoria do
cinema de poesia, apoia-se na imaginação do mito e nos indícios dele, apenas per-
ceptíveis nos relatos da época registrados – Hesíodo – ou no corpo da tragédia, pa-
ra criar sua ficção. Essas são as fontes do cinema de poesia. O cinema de Pasolini
visa suas metas, a racionalidade da linguagem, a objetividade dos signos, mas seu
olhar carregado de pensamento não elimina o que não é essencial para a meta, pois
é esse material que irá constituir a síntese.
A poesia do cinema estaria então na forma de se imaginar e se ficcionalizar
os resquícios perceptíveis do mito. E isso liga o cinema de poesia à atualidade, por-
que tais resquícios são perceptíveis em nós, modernos, nas nossas angústias, fúrias
e ingenuidades, à disposição para serem significativamente montados num filme,
como planos-sequência que são.
Expandindo a análise proustiana, a cegueira da ilusão de ótica é um momento
apenas. Segue-se a aquisição do conhecimento e, concomitantemente ao vislumbre
do caos no qual subsiste o tabu, lógos interfere, pois esta é a forma como se consti-
tuem os discursos, seja pelo caminho da ciência, seja pelo caminho da arte. O cine-
ma de Pasolini conduz esse processo, essa síntese mediada por lógos, pelo
caminho da poesia, de um cinema de poesia.
Sempre na trajetória que recua na explicação e no desvendamento vai-se es-
barrar no tabu, numa proibição, pois este é incompreensível, é a fronteira do arcaico.
Existe uma proibição quanto ao desvendamento do arcaico contido no tabu. É como
se perguntássemos: o que é proibido? É o nunca visto, ou não seria proibido. Essa
consciência da impossibilidade de se desvendar tudo, a consciência desse limite
139
para o conhecimento, só pode conduzir a uma arte cerebral. Não se trata então de
expressar o que está em estado puro na essência do autor, mas de construir um dis-
curso que seja lógico, pois constituído por palavras e por imagens sintaticamente
organizadas, um discurso intencional e conscientemente elaborado num dado senti-
do.
O limite entre o irracional que se deseja e aquele indesejável está representa-
do nas imagens tomadas pela câmera objetiva – realista – que enquadra realistica-
mente as imagens do sacrifício no país de Medeia. Tais imagens são suportáveis
para nós, modernos, e ninguém na plateia condena Medeia nesse momento. Até
mesmo as cenas amorosas entre Jocasta e Édipo são vistas naturalmente. Mas as
imagens do massacre de Circeo, ou as da morte de Pasolini, são condenáveis. E as
de Salò são insuportáveis. Não se trata apenas de graus de violência ou de irracio-
nalidade que determinam essas diferentes reações do público, mas a forma como os
mesmos signos, imagens por si insignificantes, são tornados significativos. O país de
Medeia é um cenário arcaico; a história de Édipo já é por demais conhecida; Circeo
e a morte de Pasolini estiveram na cronaca nera; Salò, além de seguir o esquema de
Sade, associa submissão e Estado. A língua do autor prima, nesses casos, pela ob-
jetividade.
À parte isso, existe a definição de Pasolini quanto à objetividade do cinema,
que, realmente, tem dois aspectos. Um deles é quanto a imagens objetivas, ou seja,
tudo que aparece na tela existiu diante da câmera. Outro é a linguagem, a fábula,
pois esta deve criar sentidos precisos e não ambíguos. É por isso que Pasolini elogia
a objetividade e a operacionalidade da língua de Ésquilo, empenhada em alcançar o
sentido pretendido, que o fim dos tempos arcaicos seria representado pela metamor-
fose das Erínias.
Cinema de poesia, portanto, nada tem a ver com cinema lírico, expressão de
sentimentos cambiantes que expressam o íntimo do autor. Ainda quando é poético,
o Centauro é muito objetivo naquilo que diz para Jasão – sua língua se dirige a um
objeto – no que o acompanha a língua da câmera. Se somente os míticos são realis-
tas e somente os realistas são míticos, nada como a língua do personagem para
expressar a realidade mítica de Medeia, na segunda parte do filme. A língua de Édi-
po também está a serviço do seu destino de herdeiro dos Labdácidas, assim como a
de Accattone, a serviço do seu destino de personagem da borgata. Esses dois per-
sonagens caminham para frente, como é o destino.
140
O cinema de poesia tentará a síntese, tentará criar o significado, mostrando
que lógos não atende a todo o pensamento humano e que mythos dará conta do
que não é objeto da lei. Mythos não impedirá que ecloda a parte irracional, herança
dos tempos arcaicos, como a lei também não impede. A síntese é a história e o ci-
nema de poesia pretende desalienar o homem no caminho da história, criando signi-
ficados para os fatos, como numa montagem de planos-sequência, ou seja, criando
mitos. Como esses mitos irão além do cotidiano dos fatos, escaparão à literalidade,
serão como a poesia, buscando novos significados para as palavras, por isso cine-
ma de poesia.
O cinema de prosa permanece no cotidiano, não faz as montagens, se perde
nos reconhecimentos e no acaso, por isso foi conceitualmente chamado, nesta tese,
de romanesco. Ele assume características que Fusillo aponta na passagem da tra-
gédia clássica, já na época tardia de Eurípides, ao romance grego. O cinema trágico-
mítico de Pasolini, embora resultante de uma preocupação social, não pretende eli-
minar os conflitos. Isso é tarefa – impossível – da ciência e não da arte.
São significativas as imagens de Édipo, em Édipo Rei, de Pasolini, tratando
de eliminar do seu caminho tudo que pudesse ser mítico – o oráculo, a esfinge, a
herança do pai – a fim de cumprir seu destino incestuoso. A dessacralização tam-
bém é um signo muito caro a Pasolini. Tomado pela dúvida, que no filme de Pasolini
assume grandes proporções, devido ao episódio que gera o vergonhoso epíteto de
Filho da Fortuna, Édipo torna-se por demais racional e caminha, dessacralizado e
descrente em direção à Pitonisa para que esta lhe diga a verdade. Édipo e Accatto-
ne se dessacralizam durante suas histórias filmadas. Perdem seus significados míti-
cos, como o velocino de ouro, objeto mitológico que também perde o seu, longe da
terra de origem. O velocino se torna apenas uma pele de carneiro, Édipo e Accatto-
ne se tornam apenas homens.
Como se pode ver, a conexão feita por Pasolini entre Antiguidade e moderni-
dade se faz com um objetivo: criar obras de arte que expressem de forma poética a
ação dos homens modernos, explicáveis no campo racional, mas somente se, jun-
tamente com a razão, forem consideradas as forças irracionais que permanecem
atuantes sob um aspecto de forças desconhecidas, quando, na verdade, são insepa-
ráveis da síntese de mito e razão que é o homem moderno.
O que Pasolini critica no consumismo desenfreado é que toda a estrutura cri-
ada na sociedade destrói – ou, tragicamente, recalca – os significados míticos, pro-
141
duzindo sobre eles apenas estranhamento. Somente os significados construídos a
partir das imagens do passado e tornados significantes, tornados operacionais, po-
derão produzir a síntese desejada.
Mesmo quando essa síntese se delineia inalcançável, num percurso que co-
meça com os Appunti... e chega até Medeia e Salò, cabe buscar os significados do
fracasso. Ainda que esses significados, ao invés de alcançarem a síntese desejada,
alcancem a desesperança. A meta será sempre o significado do presente, até mes-
mo como recusa da nostalgia dos clássicos e de um estado perdido de pureza.
Quanto às fontes, foram privilegiados os textos teóricos abordando a forma de
fazer cinema, escritos pelo próprio diretor. Estes fornecem material que foi julgado
quase suficiente para se proceder à análise crítica pretendida na tese, mas enfra-
queceu a presença como instrumentos de análise de outras disciplinas a que se lan-
ça mão no estudo das questões literárias. Essas disciplinas aparecem apenas
pontualmente, como a antropologia de René Girard, para dar conta da noção de ter-
ror; a inevitável alusão ao conceito freudiano de superego, pois este permeia as pró-
prias ideias de Pasolini acerca do cinema; e a citação de Adorno e Horkheimer que
dialoga com a citação de Pasolini das Lettere luterane, feita no início do Capítulo 2.
Essa constitui, talvez, a maior peculiaridade da tese e uma aventura por caminhos
pouco trilhados.
Uma outra incursão por terrenos alheios ao cinema propriamente dito foi a ci-
tação da frase de Marcel Proust sobre a omissão que a tragédia grega faria das i-
magens que não contribuem diretamente para a sua meta, que se mostrou rica em
imagens no momento da análise das obras fílmicas. Este parêntese na discussão
específica sobre o cinema trágico merece uma explicação. O olho carregado de
pensamento (lógos) impede que a tragédia enxergue o mito (imagens que não con-
correm para a ação). O olho trágico recalca a imagem do mito e mostra um conflito
humanizado (as imagens que podem tornar inteligível a meta). No palco grego não
estão deuses estão homens representando deuses, deuses humanizados com quem
os espectadores podem se identificar. Na fábula, por sua vez, o realismo do mito, o
seu caráter de narrativa verdadeira, é sobreposto pelo pensamento, conhecedor da
meta racional da tragédia, lógos sobrepondo-se a mythos. Esse trecho proustiano é
ainda mais útil para a discussão desta tese, porque alude a mais um aspecto da con-
tradição e síntese pasoliniana. Sendo um humanista, Pasolini pretende reunir numa
142
obra fílmica os elementos opostos no palco grego, homens sacralizados e deuses
humanizados.
Também na comparação entre cinema pasoliniano e cinema neo-realista a
frase de Proust é esclarecedora. O segundo visa sempre à esterilização do conflito,
atribuindo a ele uma causa superestrutural, vencida sempre pelo herói. Particular-
mente no caso de Accattone e Édipo Rei, contrariando a visão proustiana, o signo é
o homem e o seu destino inelutável e a ingenuidade dos dois heróis, cegos quanto à
inevitável herança da culpa paterna. No caso de Édipo, salvo da morte e desconhe-
cendo a verdade, ele caminha inocentemente sem saber que nada enxergava da
verdade. Accattone encarna a alienação, falta-lhe o conhecimento das convenções
sociais, tipicamente, como falta a todos os seus companheiros de borgata.
Édipo já chega humanizado no enredo da tragédia, rei, cidadão político. A Pi-
tonisa é uma personagem do palco, tornada demasiadamente humana pelo uso da
máscara. Tirésias é um eco do mito que se opõe ao poder despótico de Édipo. O
coro realista, de que fala Pasolini, que anuncia para o herói a herança dos crimes
cometidos pelo pai, não alude ao mito.
O cinema trágico-mítico de Pasolini, motivado pela convicção do autor de que
o mito é realista e se apresenta na sociedade moderna na forma de angústia moti-
vada pelo constante recalcamento do apelo mítico que sempre ameaça a aliança
inevitável e absoluta com a razão que o homem é convocado a assumir ao se tornar
adulto, provoca, mediante inúmeros recursos inerentes ao meio cinema, a formação
de significados compreensíveis para o homem moderno dos mitos arcaicos que aflo-
ram na forma de medo de retorno ao arcaico, à sociedade do sacrifício.
Esse cinema recusa também as respostas românticas à angústia do homem
moderno, pelo que estas contêm de aceitação da mitologia moderna como algo na-
tural e imutável. Massimo Fusillo, em sua obra Naissance du roman (1989, p. 31)
comenta a posição de Eurípides na cultura grega, apontando inicialmente a sua re-
lação com o romance grego: “a obra de Eurípides, ponto nevrálgico da cultura oci-
dental, influenciou de maneira decisiva o romance grego”. Em seguida, descreve as
características da tragédia euripidiana que indicariam uma tendência para o roman-
ce: “[...] esta forma de tragédia que reduz a distância entre o mito e a realidade, in-
troduzindo no universo heróico elementos da vida cotidiana [...]”, para afinal concluir:
“Não é, então, por acaso, se eles [a tragédia de Eurípides e o romance grego] têm
143
igualmente [como diferenciação em relação à tragédia clássica] a dimensão do coti-
diano, a temática amorosa e o reino do acaso
79
”.
A dimensão do cotidiano é o que motiva o Jasão de Gota d’água, a mera am-
bição. Serve como identificação com o público moderno, como expressão compre-
ensível de um enredo que, ademais, pode ser objeto das mais diversas formas
adaptativas. O que se discutiu, entretanto, nesta tese, foram as características do
cinema pasoliniano em seu diálogo com a tragédia. Uma discussão que envolveu em
muitos momentos o cotidiano, mas em que este não superou a criação dos significa-
dos, ou seja, a manutenção da discussão no âmbito da possibilidade de expressão
artística da tragédia hoje. Vale lembrar, a esse respeito, o que Naldini comenta a
respeito da preocupação de Pasolini sobre a questão social ser o mais importante
nas suas intenções de artista.
Esses traços distintivos, ao mesmo tempo em que apontam a peculiaridade
do tratamento pasoliniano da tragédia, indicam também, de forma eficaz, a trivialida-
de da abordagem que concebe filmes que, a título de adaptação, realizam uma este-
rilização da força transformadora da tragédia, adaptando os personagens Medeia,
ou Jasão ou Édipo aos temas românticos modernos. Prossegue Fusillo (idem, p. 32),
apontando as características que, em Helena, Iphigênia em Tauride e Orestes, de
Eurípides, foram consideradas romanescas: “[...] os personagens se consagram à
busca narcísica de sua salvação individual [...], em um entrelaçamento de acasos
imprevisíveis, que multiplicam efeitos de surpresa e cenas de reconhecimento”
80
.
Segundo Fusillo, como visto acima, a tragédia passa por modificações que
desviam o foco das suas preocupações “do que mais importava”, como afirma Kitto
(citado acima), que passou a ser preocupação da filosofia.
Essa angústia contém uma relação entre passado e presente – entre Antigui-
dade e sociedade moderna ocidental – pois Pasolini traça um paralelo entre dois
momentos históricos, a formação conflituosa da pólis e o desenvolvimento do capita-
lismo na direção de um crescimento desenfreado do consumismo, fenômeno que o
79
L’oeuvre d’Euripide, point névralgique de la culture occidentale, a influencé de façon décisive le roman grec :
cette forme de tragédie, que réduit la distance entre mythe et la réalité en introduisant dans l’univers héroïque
des éléments de la vie quotidienne, que donne un relief nouveau à l’émotion e au pathétique en analysant
l’éros comme une expérience soustraite aux pouvoirs de la raison […] Ce n’est donc pas un hasard s’ils ont
également pour traits distinctifs la dimension du quotidien, la thématique amoureuse et le règne du hasard.
80
[…] les personnages s’y consacrent à la recherche narcissique de leur salut individuel, […] dans un
enchevêtrement de hasards imprévisibles, qui multiplient effets de surprise et scènes de reconnaissance.
144
diretor italiano chama de genocídio. Trata-se, na verdade, afirma Pasolini, da destru-
ição de culturas.
Ocasiões há, entretanto, em que essas imagens serão representadas no ci-
nema como se estivessem em estado bruto, como na segunda parte do filme Medei-
a. Nesse caso, segundo a técnica do Discurso Indireto Livre Cinematográfico, o que
se busca é colocar o espectador diante da língua da realidade, conceito pasoliniano
segundo o qual o espectador lê a realidade no discurso porque o realizador do filme
oculta-se por trás da técnica e se expressa segundo a linguagem do personagem.
Tais imagens são tão naturalistas que o espectador praticamente ignora que elas
são altamente elaboradas por uma linguagem cinematográfica ou seja, uma forma
de levar ao leitor imagens que em algum momento do processo eram caóticas mas
que foram tornadas significativas pelo diretor de cinema de poesia.
Por outro lado, no seu texto Cinema de poesia, o diretor italiano afirma que
aquele que realiza um filme não busca as imagens significativas que constituirão o
filme num rol limitado de imagens. Essas imagens serão encontradas pelo realizador
num conjunto infinito e caótico. Infinito porque qualquer coisa pode ser imaginada.
Caótico porque, como no superego, essas imagens, destituídas ainda de uma forma
linguisticamente organizada, não são significativas.
Os três filmes selecionados para serem analisados nesta tese encontram, na
tragédia grega, o rol de imagens. Tais imagens serão tanto mais significativas quan-
to estiverem recalcadas no texto da tragédia, uma vez que, representadas através
de uma mímesis crítica – em oposição à mera adaptação – aparecerão agora na
forma de imagem de cinema, tornadas significativas para o espectador. O filme trá-
gico-mítico constitui uma síntese, na qual se encontram dialeticamente representa-
dos o medo do retorno ao terror arcaico representado através do sofrimento dos
heróis Medeia, Édipo e do povo africano.
Tanto mais estiverem recalcadas as imagens oriundas da tragédia, tanto mais
serão significativas, pois pretendendo representar o mito atual pela identificação des-
te com o mito arcaico, o recalcamento e a sua forma explicitarão o conflito criado
pelo próprio recalcamento.
Trata-se da representação na obra de arte de fatos políticos, o que faz do ci-
nema trágico-mítico pasoliniano um cinema engajado, que apresenta uma interpre-
tação do mundo moderno segundo seus mitos e relaciona estes com os mitos
arcaicos que a tragédia grega recalcou. A imagem que recobre a tese aqui apresen-
145
tada e que é o tema central da Oréstia e dos Appunti... é a da metamorfose das Erí-
nias em Eumênides, que para Pasolini constitui um signo da síntese que ele preten-
de demonstrar como verdadeira, ou seja, de que o recalcamento do terror
representado pelas Erínias pode ainda ser representado na obra de arte, e mais ain-
da na obra cinematográfica. Por isso essa imagem assume nesta tese um papel cen-
tral e deveria por isso ser considerada como um conceito que se repetiu e que foi
denominado de grande signo.
A análise das obras se desenvolveu segundo a presença dessa metamorfose
como um grande signo e se considerou que nas obras específicas analisadas – Ap-
punti.., Édipo e Medeia – assim como naquelas que foram apresentadas como sub-
sidiárias às análises centrais, estavam sempre presentes esses grandes signos de
forma peculiar, segundo os enredos.
A imagem da metamorfose das Erínias em Eumênides, entretanto, se desdo-
bra em muitas outras, nos outros dois filmes trágicos e até mesmo nos filmes subsi-
diários que auxiliaram na análise. Essa imagem, apresentada por Ésquilo em
Eumênides, terceira parte da Oréstia, representa para Pasolini, contraditoriamente, o
progresso, na forma da humanização, da institucionalização da justiça das leis, da
democracia, na forma do tribunal em que todos os votos têm o mesmo peso. O voto
de Atená vale mais, entretanto, tanto que absolve Orestes, matricida. Por outro lado,
observa Pasolini, esta metamorfose não representa o fim do terror, e as Erínias per-
manecerão como algo recalcado que será o irracional do homem. Fugindo, pois, à
meta da tragédia, que era recalcar o medo da volta do terror, Pasolini realiza sua
mímesis crítica e marca os heróis com caracteres onde têm parte as origens míticas
das suas ações, o assassinato dos filhos para Medeia e o de Laio por Édipo.
A ação de Édipo matando Laio é que representa maior carga de maldição, o
que conduz à citação do início do capítulo 2, em que Pasolini aponta como proble-
mática a predestinação dos filhos a pagar a culpa dos pais, que percorre os mitos
arcaicos, com o mito da entrada na idade adulta, quando o homem aceita a razão e
o próprio inelutável destino.
Em Salò o espectador moderno repete a experiência vivida pelo homem gre-
go de ficar atônito diante de algo que lhe é apresentado e que ele nunca vivenciou,
jamais vivenciará, mas que certamente faz parte do seu cotidiano como imaginário,
como mito.
146
O cinema de Pasolini, portanto, tem um objetivo político e crítico claro: repre-
sentar, de forma dialética, a racionalização da vida humana moderna diante da per-
sistência da instância mítica não totalmente superada.
O cinema romanesco, por seu lado, se autocaracteriza, inicialmente, como in-
dústria de entretenimento, podendo ser analisado, portanto, pelos conceitos adorni-
anos sobre a indústria cultural.
Essa diferenciação pode ser também analisada segundo duas formas de a-
bordagem das obras clássicas pelo cinema: as adaptações, características do cine-
ma romanesco, e outra crítica, característica do cinema de Pier Paolo Pasolini.
Colocados numa equação comparativa, essas duas formas de representação
dos fenômenos humanos conduzirão à definição de mímesis crítica e de síntese,
princípios básicos e diferenciadores do cinema pasoliniano.
147
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ADORNO, T.W; HORKHEIMER, M. [1947] O conceito de esclarecimento. In: Dialética do
esclarecimento. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985. p. 17-46.
ADORNO, T.W; HORKHEIMER, M. [1947] A indústria cultural. In: Dialética do
esclarecimento. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985. p. 99-138.
AJELLO, N. O escritor e o poder. Uma visão panorâmica da literatura italiana neste
século. Trad.: Múcio Bezerra. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1992.
ALIGHIERI, D. A divina comédia. Trad. José Pedro Xavier Pinheiro. São Paulo: Atena,
2003. Disponível em: <http://www.ebooksbrasil.com>. Acesso em: 1/11/2008.
ARISTÓTELES. Poética. In: A poética clássica. São Paulo: Cultrix, 1997. p. 19-54.
ARISTOTE. Métaphysique. Paris: J. Vrin, 1991.
ARISTÓTELES. Poética. Trad. Eudoro de Souza. São Paulo: Abril Cultural, 1984.
AUERBACH, E. Mimesis. São Paulo: Perspectiva, 2007.
BARTHES, R. Rhétorique de l’image. Communications, n. 4, p. 40-51, 1964.
BAUZÁ, H. El Matadero: Estampa de un sacrificio ritual. Critica Literaria
Latinoamericana, v. 25, n. 51, p. 191-198, 1. sem. 2000.
BENJAMIN, W. A tarefa-renúncia do tradutor. Trad.: Susana Kampff Lages. In:
HEIDERMANN, W. (org) Clássicos da teoria da tradução. Florianópolis: Universidade
Federal de Santa Catarina (UFSC), 2001. p. 188-215.
______. L’ouevre d’art à l’époque de sa reproductibilité technique. In: ______.
Ouevres. T. 3. Paris: Gallimard, 2000. p. 269-316.
______. O conceito de crítica de arte no Romantismo alemão. São Paulo:
Iluminuras, 1999. Tradução, prefácio e notas de Márcio Seligmann-Silva.
______. Teoria da semelhança. In: ______. Sobre arte, técnica, linguagem e política.
Lisboa: Relógio d’Água, 1992. p. 34-57.
BOHLER, O. Pier Paolo Pasolini et l'Antiquité. Aix-en-Provence: Institut de l’image,
1997.
BRANDÃO, J. Mitologia grega. 3 v. Petrópolis: Vozes, 2007.
BRANDÃO, J. Dicionário mítico-etimológico da mitologia grega. 2 v. Petrópolis, Vozes,
2000.
148
BRANDÃO, R. de O. Três momentos da retórica antiga. In: ______. (org) A poética
clássica. 7. ed. São Paulo: Cultrix, 1997. p. 14-27.
BRAUDEL, F. Memórias do Mediterrâneo. Rio de Janeiro: Multinova, 2001.
BURKE, E. Uma investigação filosófica sobre a origem de nossas ideias acerca do
sublime e do belo. São Paulo: Papirus, 1993.
CANEVACCI, M. Antropologia da comunicação visual. Rio de Janeiro: DP&A, 2001.
______. Antropologia do cinema: Do mito à indústria cultural. Trad.: Carlos Nelson
Coutinho. São Paulo: Brasiliense, 1984.
COUTINHO, E.F.; CARVALHAL, T.F. Literatura comparada: Textos fundadores. Rio de
Janeiro: Rocco, 1994.
ELIADE, M. Mito e realidade. São Paulo: Perspectiva, 2006.
ÉSQUILO. As suplicantes e Prometeu acorrentado. Trad.: Napoleão Lopes Filho.
Petrópolis: Vozes, 1967.
______. Prometeu acorrentado. In: KURY, A. da S. (org.) Ésquilo: Prometeu
acorrentado; Sófocles: Ájax; Eurípides: Alceste. 5. ed. Trad. Adriano da Silva Kury.
Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004. p. 7-65.
______. Eumênides. In: KURY, A.G. (org. e trad.) Oréstia. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar, 2003. p 145-194.
E
URÍPIDES. Medeia. Hipólito. As troianas. Trad., apres.: Mário da Silva Kury. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar, 2003.
F
IESCHI, J.-A. Pier Paolo Pasolini. “Edipo Rè”.Cahiers du cinéma, n. 195, p. 12-16,
nov. 1967. Entrevista.
FERRETTI, G.C. Introdução. In: PASOLINI, P.P. Caos – Crônicas políticas. Trad. Carlos
Nelson Coutinho. São Paulo: Brasiliense, 1982. p. 7-23.
______. Introduzione. In: Le belle bandiere – Dialoghi 1960-1965. Roma: Editori
Riunit, 1996. p. 11-17.
FREUD, S. [1923] Le moi et le ça. In: Essais de psychanalyse. Paris: Payot, 1968.
Edição eletrônica realizada a partir da edição acima.
FUSILLO, M. La Grecia secondo Pasolini. Firenze: La Nuova Italia, 1996.
______. Naissance du roman. Paris: Du Seuil, 1989.
GIRARD, R. La violence et la sacré. Paris, Grasset, 1972.
149
______. La violencia e lo sagrado. Barcelona: Anagrama, 1995.
GOETHE, J.W. von. Companheiros de viagem: Goethe e Schiller. Apresentação,
seleção, tradução e notas de Claudia Cavalcanti. São Paulo: Nova Alexandria, 1993.
GONÇALVES, A.J. Laokoon revisitado. Relações homológicas entre texto e imagem.
São Paulo: EDUSP, 1994.
HAUSER, A. Historia social de la literatura y el arte. Madrid: Guadarrama, 1969.
HEIDERMANN, W. (org.) Clássicos da teoria da tradução: Antologia bilíngue.
Florianópolis: UFSC-Núcleo de tradução, 2001.
HÖLDERLIN. Antigone de Sophocle. Trad. Philippe Lacoue-Labarthe. Paris: Christian
Bourgois (ed.)., 1998.
ISER, W. Epílogo. In: O Fictício e o imaginário. Perspectivas de uma antropologia
literária. Trad. Johannes Kretschmer. Rio de Janeiro: EdUERJ, 1996. p. 341-363.
JOUBERT-LAURENCIN, H. Pasolini, portrait du poète en cinéaste. Paris: Cahiers du
Cinéma, 1995.
KITTO, H.D.F. Tragédia grega. Estudo literário. 2 v. Coimbra: Armênio Amado, 1972.
KURY, A. da S. (org.) Ésquilo: Prometeu acorrentado; Sófocles: Ájax; Eurípides:
Alceste. 5. ed. Trad. Adriano da Silva Kury. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004.
______. Sófocles. A trilogia tebana: Édipo rei; Édipo em Colono; Antígona. Tradução
do grego, introdução e notas Mario da Gama Kury. Rio de Janeiro: Zahar, 1990.
LAGES, S. K. Walter Benjamin – Tradução e melancolia. São Paulo: Edusp, 2002.
LES CAHIERS MARCEL PROUST. V. 3: Morceaux choisis de Marcel Proust. 39. ed. Paris:
Gallimard, 1947.
LESKY, A. A tragédia grega. São Paulo: Perspectiva, 1990.
LESSING, G.E. Laocoonte, ou sobre as fronteiras da Pintura e da Poesia. Trad.:
Márcio Seligmann-Silva. São Paulo: Iluminuras, 1998.
LÉVI-STRAUSS, C. Tristes trópicos. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.
LIBREREMO. Mantido pelo Centro Sociale Occupato Autogestito TerraTerra. Portal
voltado para o compartilhamento e livre circulação de material de estudo
universitário. Disponível em: <HTTP://www.libreremo.org.>. Acesso em: 1/11/2008.
L
UNA, S. Arqueologia da tragédia. João Pessoa: Ideias, 2005.
M
AUSS, M.; HUBERT, H. Essai sur la nature et la fonction du sacrifice. In: Mélanges
d’histoire des religions. 2. ed. Paris: Félix Alcan, 1929. p. 1-130.
150
MERHAUT, V. Michael Cacoyannis. Belmont, CA: Gale Group, 2001. Disponível em:
<HTTP://www.filmreference.com/Directors>. Acesso em: 4/1/2008.
MORAVIA, A. La ideologia de Pasolini. In: Pier Paolo Pasolini, un poeta d´opposizione.
Milano: Fondo Pier Paolo Pasolini/ Skira editore, 1995.
MOST, G.W. Mimesis. In: Routledge Encyclopaedia of Philosophy. Version 1.0.
London: Routledge. (CD ROM)
MURRAY, G. Ésquilo como poeta das ideias. In: ÉSQUILO. As suplicantes e Prometeu
acorrentado. Trad.: Napoleão Lopes Filho. Petrópolis: Vozes, 1967. p. 13-33.
NALDINI, N. Pasolini, biographie. Trad. do italiano: René de Ceccatty. Paris:
Gallimard, 1991. Edição italiana: Pasolini, una vita. Roma: Giulio Einaudi, 1989.
N
IETZSCHE, F.W. A origem da tragédia. São Paulo: Moraes, 1984.
N
IETZSCHE, F.W. [1887] A genealogia da moral. Rio de Janeiro: Simões, 1953.
NITRINI, S. Literatura comparada: História, teoria e crítica. São Paulo: Edusp, 1997.
NUÑEZ, C.F.P.; PEREIRA, V.H.A. O teatro e o gênero dramático. In: JOBIM, J.L.
Introdução aos estudos literários. Rio de Janeiro: EdUERJ, 1999. p. 69-133.
OLAVO, A. Além do rio – Medeia. In NASCIMENTO, A. Rio de Janeiro: Teatro
experimental do negro, 1961. p. 71-81.
PASOLINI, P.P. Pier Paolo Pasolini et l'Antiquité. Aix-en-Provence: Institut de l’image,
1997.
______. Lettera del traduttore. In: L'Orestiade di Eschilo tradotta da Pier Paolo
Pasolini. Bologna:
Cinemateca del Comune di Bologna, 1960. Disponível em:
<
http://www.pasolini.net/teatro_orestiade_traduzPPP.htm>. Acesso em: 9/9/2006.
______. Pier Paolo Pasolini contra Eric Rohmer: cine de poesía contra cine de prosa
/ [traducción, Joaquín Jordá] Editor: Barcelona : Anagrama, 1970.
______. Scritti corsari. Milão: Garzanti, 1975.
______. Affabulazione. Pilade. Milão: Garzanti, 1977.
______. El Evangelio según Mateo. Barcelona: Aymá, 1965. Volume preparado por
G. Gambetti.
______. Empirismo eretico. Milão: Garzanti, 1972.
______. Empirismo hereje. Trad. Miguel Serras Pereira. Lisboa: Assírio e Alvim,
1982.
151
______. Caos. Crônicas políticas. Introdução e organização: Gian Carlo Ferreti.
Trad. Carlos Nelson Coutinho. São Paulo: Brasiliense, 1982a.
______. Lettere luterane. Roma: Einaudi, 1980. ISBN: 8806180096
______. Médée. Trad.: Christophe Mileschi. Paris: Arléa, 2002.
______. Oedipus Rex. A film by Pier Paolo Pasolini. New York: Simon and Schuster,
1971.
______. Observações sobre o plano-sequência. In: GEADA, E. (org.) Estéticas do
cinema. Lisboa: Dom Quixote, 1985, p. 71-76. ______. Osservazioni sulla piano-
sequenza. In: ______. Empirismo eretico. Milão: Garzanti, 1972, p. 241.
______. [1963] O pai selvagem. Trad. Silvana S. Rodrigues. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 1977. 1. ed. italiana: Padre selvaggio. Torino: Giulio Einaudi,
1975.
PAGINE CORSARE. Curadoria: Angela Molteni. Vida e obra de Pier Paolo Psolini.
Disponível em: http://www.pasolini.net/. Acesso em: 1/3/2009.
PINERI, R. Métamorphoses du centaure: La poétique de l’ambiguïté chez Pier Paolo
Pasolini. In: BOHLER, O. Pier Paolo Pasolini et l'Antiquité. Aix-en-Provence: Institut de
l’image, 1997.
PONTES, P.; BUARQUE, C. Gota d’água. 1. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
1975.
PORTER, M. De uma reunión con Pasolini. In: ______. (org.) El Evangelio según
Mateo. Barcelona: Aymá, 1965.
P
ROUST, M. Em busca do tempo perdido – O caminho de Guermantes. Porto Alegre:
Globo, 7. ed., 1983.
______. Morceaux choisis de Marcel Proust. 39. ed. Paris: Gallimard, 1947. (Les
cahiers Marcel Proust, v. 3).
R
OBBE-GRILLET, A. L’année dernière a Marienbad. Paris: Minuit, 1961.
______. Glissements progressifs du plaisir. Paris: Minuit, 1974.
______. Pour un nouveau roman. Paris: Minuit, 1961. ISBN: 2-7073-0311-9.
SAID, E.W. Introdução. In: Orientalismo. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.
SALLES, C. Les bas-fonds de l’Antiquité. Paris: Robert Laffont, 1982.
SELIGMANN-SILVA, M. Introdução / intradução: Mimesis, tradução, enárgueia e a
tradição da ut pictura poesis. In: LESSING, G.E. Laocoonte ou sobre as fronteiras da
Pintura e da Poesia. São Paulo: Iluminuras, 1998. p. 7-72.
152
SZONDI, P. Ensaio sobre o trágico. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004.
TASSONE, A. Antonioni. Paris: Flammarion, s/d.
TINAZZI, G.; ADELIO, F. Rossellini, Antonioni, Buñuel. Venice: Marsilio, 1973.
VERNANT, J.-P. Mito e pensamento entre os gregos: estudos de psicologia histórica.
Trad. Haiganuch Sarian. São Paulo: DIFEL/USP.
______. Mito e tragédia na Grécia antiga. São Paulo: Perspectiva, 2005.
Apresentação teatral
GOTA d’água. Direção: João Fonseca. Texto: Chico Buarque e Paulo Pontes (1975).
Duração: 150 min. Baseada na tragédia Medeia, de Eurípedes. Teatro Carlos
Gomes, Rio de Janeiro: 2008.
Filmografia
APPUNTI PER UN'ORESTIADE AFRICANA. Direção, fotografia e narração: Pier Paolo
Pasolini. 1970. Produção: Gian Vittorio Baldi e IDI Cinematografica (Roma). Filmado
em 1968-69. Duração: 63 min. Dados disponíveis em: http://www.pasolini.net/.
AS TROIANAS. Direção: Michael Cacoyannis. 1971. Duração: 105 min. Produção:
Grécia, Inglaterra, EUA.
ÉDIPO REI. Direção e roteiro: Pier Paolo Pasolini. 1967. Produção: Arco Film (Roma).
Produtor: Alfredo Bini. Filmado em abril-junho 1967. Duração: 104 min. 1º Prêmio
Festival de Veneza, 1967. Baseado em Édipo Rei e Édipo em Colono, de Sófocles.
IL VANGELO SECONDO MATTEO. Direção e roteiro: Pier Paolo Pasolini. 1964. Produção:
Arco Film (Roma) / Lux Compagnie Cinématographique de France (Paris). Produtor:
Alfredo Bini; filmado em abril-junho 1964. Duração: 137 min.
MEDEIA. Direção: Lars Von Trier. Dinamarca, 1988. Duração: 75 min. Produzido para
a TV.
MEDEIA. Direção e roteiro: Pier Paolo Pasolini. Produção: San Marco SpA (Roma), Le
Films Number One (Paris) e Janus Film und Fernsehen (Frankfurt). Produtores:
Franco Rossellini; Marina Cicogna. Filmado em maio-agosto 1969. Duração: 110
min.
153
Obras de referência
ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE NORMAS TÉCNICAS. NBR 6023: informação e
documentação: referências: elaboração. Rio de Janeiro, 2002a. 24 p.
BRANDÃO, J. DE S. Dicionário mítico-etimológico. 4. ed. Petrópolis: Vozes, 2000. 2. v.
LALANDE, A. Vocabulaire technique et critique de la philosophie. Paris: PUF, 1968.
ROUTLEDGE Encyclopaedia of Philosophy. Version 1.0. London: Routledge.
Livros Grátis
( http://www.livrosgratis.com.br )
Milhares de Livros para Download:
Baixar livros de Administração
Baixar livros de Agronomia
Baixar livros de Arquitetura
Baixar livros de Artes
Baixar livros de Astronomia
Baixar livros de Biologia Geral
Baixar livros de Ciência da Computação
Baixar livros de Ciência da Informação
Baixar livros de Ciência Política
Baixar livros de Ciências da Saúde
Baixar livros de Comunicação
Baixar livros do Conselho Nacional de Educação - CNE
Baixar livros de Defesa civil
Baixar livros de Direito
Baixar livros de Direitos humanos
Baixar livros de Economia
Baixar livros de Economia Doméstica
Baixar livros de Educação
Baixar livros de Educação - Trânsito
Baixar livros de Educação Física
Baixar livros de Engenharia Aeroespacial
Baixar livros de Farmácia
Baixar livros de Filosofia
Baixar livros de Física
Baixar livros de Geociências
Baixar livros de Geografia
Baixar livros de História
Baixar livros de Línguas
Baixar livros de Literatura
Baixar livros de Literatura de Cordel
Baixar livros de Literatura Infantil
Baixar livros de Matemática
Baixar livros de Medicina
Baixar livros de Medicina Veterinária
Baixar livros de Meio Ambiente
Baixar livros de Meteorologia
Baixar Monografias e TCC
Baixar livros Multidisciplinar
Baixar livros de Música
Baixar livros de Psicologia
Baixar livros de Química
Baixar livros de Saúde Coletiva
Baixar livros de Serviço Social
Baixar livros de Sociologia
Baixar livros de Teologia
Baixar livros de Trabalho
Baixar livros de Turismo