Download PDF
ads:
1
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC-SP
Fernando A. Figueira do Nascimento
A idéia de enfermidade em um sermão de Padre Antônio Vieira: Uma
contribuição aos estudos sobre as idéias psicológicas no Brasil
MESTRADO EM HISTÓRIA DA CIÊNCIA
SÃO PAULO
2010
ads:
Livros Grátis
http://www.livrosgratis.com.br
Milhares de livros grátis para download.
2
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC-SP
Fernando A. Figueira do Nascimento
A idéia de enfermidade em um sermão de Padre Antônio Vieira:
Uma contribuição aos estudos sobre as idéias psicológicas no Brasil
MESTRADO EM HISTÓRIA DA CIÊNCIA
Dissertação apresentada à banca
examinadora da Pontifícia
Universidade Católica de São
Paulo, como exigência parcial para
obtenção do título de MESTRE em
História da Ciência, sob a
orientação da Profa. Dra. Lilian Al-
Chueyr Pereira Martins.
SÃO PAULO
2010
ads:
3
Nascimento, Fernando A. F. do
A idéia de enfermidade em um sermão de Padre Antônio Vieira: Uma
contribuição aos estudos sobre as idéias psicológicas no Brasil
São Paulo, 2010
XII, 111 p.
Dissertação (Mestrado) – PUC- SP
Programa: História da Ciência
Orientadora: Profa. Dra. Lilian Al-Chueyr Pereira Martins.
4
Banca Examinadora
_____________________________
_____________________________
_____________________________
5
Autorizo, exclusivamente para fins acadêmicos e científicos, a reprodução
total ou parcial desta dissertação por processos fotocopiadores ou eletrônicos.
Ass.: __________________________________________________________
Local e data: ____________________________________________________
Fernando A. Figueira do Nascimento
6
Flectere si nequeo superos, acheronta movebo
(Se não puder dobrar os deuses de cima, comoverei o Aqueronte)
Virgílio, Eneida
7
A todos os que fizeram parte desta caminhada
...
8
AG
RADECIMENTOS
À minha família;
À Capes pela bolsa concedida que viabilizou esta pesquisa.
Aos professores do Programa de História da Ciência;
ao Prof. Dr Paulo José Carvalho da Silva, com ele iniciamos esta pesquisa –
PUC/SP;
à Profª Drª Lilian Al-Chueyr P. Martins pela paciência e incentivo;
aos colegas do Programa de História da Ciência que colaboraram de alguma
maneira com nosso trabalho;
à Profª Drª Maria do Carmo Guedes pela leitura e observações;
A Profª Drª Ana Haddad Baptista;
À Christiane A. Abdalla pelos momentos de companheirismo e compreensão;
Aos amigos de tempos distantes, permanecem vivos nas lembranças e nas histórias.
9
RESUMO
Este trabalho tem o objetivo de analisar a relação entre adoecer e o
dinamismo psíquico em um sermão de Padre Antônio Vieira (1608-1697). Em função
de ser a peste a enfermidade que classificou como a pior de seu tempo,
observaremos os aspectos que o jesuíta destacava no processo de adoecer, na
prevenção e na cura.
O Sermão de São Roque foi escrito por Antônio Vieira no ano de 1659 e,
conforme o jesuíta, nessa época Portugal estava sob a ameça da peste que fazia
arder o reino do Algarve. Antônio Vieira evocava o santo que tradicionalmente foi
conhecido por socorrer os doentes de peste e curá-los. A imagem do santo em seu
sermão não somente foi utilizada no sentido de oferecer a cura aos apestados, mas
também um modelo de conduta, que refletia um tipo de conhecimento a respeito da
relação entre a enfermidade e o dinamismo psíquico.
Ao descrever as desventuras do santo, e entre elas a peste, Vieira acentuava
a interação do que foi chamado de causas secundárias e primárias que refletiam a
tríade desejo-transgressão-enfermidade.
Quanto às causas primárias, a punição revelava uma falta do homem; quanto
às secundárias, o ar corrupto, a transformação do elemento da vida em elemento de
morte, conduziria à enfermidade que por sua vez desvelava a condição do homem
no mundo, sua solidão e sua potencialidade a reencontrar-se com o Ser.
Palavras Chave: História da Psicologia, Antônio Vieira, paixões da alma,
enfermidade, dinamismo psíquico, psicologia
10
ABSTRACT
This work aims to analyze the relation between becoming ill and the psychic
dynamism which is found in a sermon written by Father Antonio Vieira (1608-1697).
Since he had considered the plague as the worst disease of his time, we will focus on
the features he had emphasized concerning becoming ill, the therapy and cure. The
Sermon of Saint Roque was written by Vieira in 1659 and, according to the author,
Portugal was threatened by the plague which had swept across the Algarve
Kingdom. Vieira evoked this saint who was traditionally known for helping and curing
people that had got the plague. The image of the saint in his sermon was not only
employed for offering the cure to the ones who got the disease but also for offering a
model of conduct which reflected a kind of knowledge concerning the relation
between disease and psychic dynamism. In the description of the saint’s misfortunes
including the plague, Vieira emphasized the interaction between what was called
primary and secondary causes that reflected desire-transgression-disease.
Concerning primary causes, punishment revealed a man’s fault; as for the secondary
causes, air corruption; its change from a vital to a fatal element, would bring disease.
This would show man’s condition in the world, his loneliness and his potentiality for
meeting again the Being.
Keys-words: History of Psychology; Father Antonio Vieira; Passions of
the soul; Disease; Psychic dynamism; Psychology.
11
SUMÁRIO
Introdução.................................................................................................................01
Capítulo I- Representações da enfermidade..........................................................17
1.1 Édipo e a peste em Tebas: Uma tragédia que demanda um saber sobre si
mesmo........................................................................................................................19
1.2 A morte ou o exílio?..............................................................................................22
1.3 A natureza do homem e a A melhor constituição de nossos corpos: a noção de
enfermidade na medicina hipocrático-galênica..........................................................26
1.4 Sêneca, Lucílio e a enfermidade: não se deve temer a doença (carta LXXVIII e
outras..........................................................................................................................34
1.5 Desejo, enfermidade e dor: Aristóteles e Tomás de Aquino................................39
1.6 A enfermidade na Companhia de Jesus..............................................................46
1.7 Algumas considerações.......................................................................................54
Capítulo II – A idéia de enfermidade em um sermão de Padre Antonio Vieira...56
2.1 As primeiras horas: representações da enfermidade...........................................59
2.2 As primeiras desventuras de São Roque: o desconhecimento e a guerra..........66
2.3 A peste, morte e desejo: um quadro sobre o homem e sua natureza.................76
2.4 A tríade desejo-gozo-enfermidade: uma passagem para o conhecimento de
si.................................................................................................................................91
Considerações finais...............................................................................................96
Bibliografia..............................................................................................................101
12
INTRODUÇÃO
O trabalho do pesquisador é uma construção que se faz de momentos e
referências diversas. Estas referências fazem parte de sua história acadêmica, de
sua história pessoal e de seu campo de atuação e interesse profissional. O campo
acadêmico no entanto, o é cindido do(s) o(s) outro(s) mundo(s), muito menos da
prática clínica (no meu caso) e de sua história pessoal.
A idéia de uma construção que se faz de diversos movimentos e campos é
instigante, mas causa ao historiador alguns problemas.
Instigante, pois o que está em destaque não é somente um momento do
passado que casualmente elegemos, não. É, sobretudo, o que encontramos neste
momento histórico que nos remete ao nosso próprio presente e ao futuro. Em outras
palavras, enquanto indivíduos históricos, falamos do passado a partir de nosso
próprio tempo. Esta é também a idéia de Marina Massimi e Josef Brozek,
importantes historiadores da Psicologia: “A historiografia da psicologia proporciona
então perspectivas de reflexão crítica acerca do presente.”
1
É ai que está uma
grande dificuldade para o historiador da ciência.
Como escreveu Gaston Bachelard:
(...) o historiador das ciências, para bem julgar o passado, deve
conhecer o presente; deve aprender o melhor possível a
ciência cuja história se propôe escrever. E é aqui que a história
das ciências, quer se queira quer não, tem uma forte ligação
com a actualidade da ciência.
2
Por outro lado, escreveu Georges Canguilhem que “o passado de uma ciência
atual não se confunde com essa mesma ciência no seu passado”
3
. Estamos no
centro do problema.
1
Marina Massimi e Josef Brozek, Historiografia da Psicologia no Brasil”. In: Marina Massimi e Josef
Brozek (orgs), Historiografia da Psicologia Moderna A Versão Brasileira, (São Paulo: Ed. Loyola,
1998), p. 213
2
Gaston Bachelard, A Epistemologia, (Lisboa: Edições 70, 1971), p. 209.
3
Georges Canguilhem, Ideologia e Racionalidade nas Ciências da Vida, (Lisboa:Edições 70, 1977), p.
15.
13
Aprendemos na escola que a história tem UM
4
sentido, uma progressão
lógica. Uma História de datas e nomes fixos no tempo. Uma História de vencedores,
de homens que se destacaram entre os normais. Uma história contínua, sem
rupturas, em direção ao progresso.
5
Apaga-se das páginas dos livros as contradições, as controvérsias. E
principalmente, apaga-se a idéia de que o conhecimento é também uma construção
situada no tempo.
Este é sem dúvida um problema para quem inicia os estudos em História da
Ciência e também em História da Psicologia.
Conforme Denise Mancebo:
Historiar a Psicologia significa, em síntese, ousar um certo
afastamento de seus protocolos formais, suas teorizações
“acabadas”, seus regimes de intervenção “estabelecidos”,
incluindo a pretensão de cientificidade moderna, de conhecer a
realidade para além das aparências, de modo que se controle o
mundo a serviço do homem.
6
Portanto, historiar as idéias psicológicas ousando este distanciamento, é
afastar-se da visão de UMA História fixa, reclusa em si mesma, e perceber que são
diversas as trajetórias possíveis a percorrer, uma vez que lançamos mão, segundo
Denise Mancebo, das construções teóricas que ultrapassam as margens exclusivas
dos saberes psicológicos.
7
Assim:
A subjetividade pode ganhar novas visibilidades diante da
enunciação de sua historicidade, os homens podem tomar
corpo num tempo e num espaço que os definem, como
pertencentes a uma dada época e para uma dada área social,
econômica, geográfica e linguística.
8
4
Ênfase nossa
5
Gaston Bachelard, A Epistemologia, p. 193
6
Denise Mancebo, “História e Psicologia: Um Encontro Necessário e suas 'Armadilhas'. In: Marina
Massimi & Maria do Carmo Guedes (Orgs) História da Psicologia no Brasil Novos Estudos, (São
Paulo:Educ/ Ed. Cortez, 2004), p. 23
7
Ibid, p. 19
8
Ibid.
14
Portanto, nos voltarmos para a investigação destas idéias é analisar as
formas como o homem se singulariza nesses espaços e tempos. E ainda, o objetivo
das reconstruções historiográficas é a auto-reflexão crítica por parte dos psicólogos.
O conhecimento do passado possui o objetivo de uma melhor compreensão ou
valorização do presente.
9
Esta atitude diante da História da Ciência e da Psicologia no Brasil indica,
segundo Marina Massimi, “o interesse e a pertinência de um trabalho de
redescoberta e de valorização da contribuição brasileira no campo do conhecimento
psicológico.”
10
E também a evidência de que na Psicologia Científica, permanecem
aspectos contraditórios e questões, como escreveu a mesma autora, não resolvidos.
Estas questões o a herança que recebemos da filosofia e da cultura pré-
científica.
11
“Por que estudar a noção de enfermidade em um sermão no século XVII?”
Esta foi uma pergunta que por diversas vezes ouvi, e até pelo surgimento insistente
dela, eu também a repeti algumas tantas vezes.
Primeiro: Por que o século XVII? Segundo: Por que Antônio Vieira? E como
não nos contentamos: Por que estudar as idéias sobre o adoecer e a enfermidade?
Poderíamos justificar nossa escolha de diversas maneiras: O século XVII é
marcado por acontecimentos que precipitaram o que diversos autores costumam (ou
costumavam) chamar de “revolução científica”. Descartes viveu nele (o filósofo
francês estudou em uma escola jesuíta) e propôs um método para investigar os
fenômenos partindo de uma premissa marcante na história das ciências e da
filosofia: penso, logo existo; o lugar do homem no universo e as teorias de Copérnico
são discutidas, inclusive por Vieira em uma passagem de um de seus sermões. É o
século em que Galileu viveu parte de sua história, século que deixou para trás o
aristotelismo e viu surgir a mecânica de Sir Isaac Newton.
Enfim, parece-nos que o século XVII marca a história de um movimento que
mais tarde nomearemos de ciência moderna, ou pelo menos, faz sentir seus ecos. E
9
Marina Massimi e Josef Brozek, Marina Massimi e Josef Brozek, “Historiografia da Psicologia no
Brasil”, p. 215
10
Marina Massimi, “As Origens da Psicologia Brasileira em Obras do Período Colonial”. In: História da
Psicologia, Série Cadernos PUC-SP,(23, 1987): pp 95-115
11
Utilizamos este termo apenas para marcar um período anterior a formação dos laboratórios de
Psicologia Experimental e das diversas tentativas de elaboração de projeto científico para a
Psicologia. Este termo nos parece problemático, porém não nos deteremos neste ponto.
15
a ciência significava a promessa de uma nova era para a humanidade
12
, talvez de
realização das utopias européias no mundo recém descoberto.
13
Essa foi a época
em que na Europa surgiram academias e sociedades onde estava sendo gerada a
Ciência.
14
Vieira era um jesuíta que, aos seis anos foi trazido para o Brasil onde estudou
e tornou-se um orador considerado brilhante em sua época. Mesmo que não fosse
um “homem da ciência”
15
, Vieira não deixou de se interessar pelos assuntos de seu
tempo. Além dos trabalhos e dos cargos que ocupou no Império Português, Vieira
mostrou interesse pelo conhecimento médico e, como era comum na Companhia de
Jesus, nas relações entre as paixões, o comportamento e a palavra (retórica).
Em vista destes interesses, conforme escreveu Marina Massimi, os sermões
eram, além de um meio de fazer circular os saberes teológicos e alguma informação
no século XVII, ferramentas para a modelagem de comportamento
16
a partir de uma
concepção aristotélico-tomista de moral.
Neste sentido, Vieira ocupa um lugar privilegiado. Além de pregar no Brasil,
pronunciou seus sermões na Europa. Estes sermões tratavam de vários temas de
seu tempo: a escravidão dos índios, a corrupção, as paixões, a tristeza, a morte, a
enfermidade.
Entre os diversos sentidos que utilizou a palavra enfermidade está o mal-estar
que toma o corpo e gera seus efeitos na alma e no comportamento. Sendo assim,
encontramos em Vieira uma fonte para a pesquisa histórica a respeito das matrizes
do pensamento psicológico construído no Brasil.
12
Ana Maria Alfonso-Goldfarb, O que é História da Ciência. (São Paulo: Ed. Brasiliense, 1994), p. 45
13
Ver, por exemplo, “A Nova Atlântida” de Francis Bacon, obra póstuma publicada no ano de 1627;
publicada e traduzida para o latim por William Rawley. Conforme escreve José Aluysio Reis de
Andrade na introdução do volume “Os Pensadores” dedicado a Bacon: “A principal idéia dessa
pequena obra inacabada de Bacon é a de que a harmonia e o bem-estar dos homens repousam no
controle científico alcançado sobre a natureza e a consequente facilitação vida em geral.”
14
Ana Maria Alfonso-Goldfarb, O que é História da Ciência, p. 45
15
Certa vez, uma colega, após minha exposição dos objetivos deste trabalho, perguntou-me: “Você
está dizendo que Vieira era um homem da ciência?”. Eu respondi que não, e que talvez este termo
nos causasse diversos problemas, pois a partir dele imaginamos um clara separação ao longo do
tempo entre o conhecimento que chamamos de científico, a filosofia e os saberes religiosos. Um
exemplo desta complicação são os estudos do jesuíta Athanasius Kircher que entre diversos
interesses escreveu sobre medicina (dedicou um texto sobre a peste e propôs uma teoria dos
miasmas apoiada no conhecimento médico da época), sobre vulcões e astronomia. Como
mencionamos Descartes acima, uma de suas máximas é “obedecer as leis e os costumes de meu
país, mantendo na religião na qual Deus me concedera a graça (...)”. Discurso Sobre o Método,
Terceira Parte. Francis Bacon também seria um exemplo disso, mas deixemos ao leitor a tarefa de
aprofundar estas questões conforme seu interesse.
16
Marina Massimi, “Alimentos, palavras e saúde (da alma e do corpo), em sermões de pregadores
brasileiros do século XVII”. In: História, Ciência, Saúde – Manguinhos, 13 (2,2006), pp. 253-270
16
Refletir sobre o corpo que adoece, não é manter em aberto, em nossos
dias, a discussão a respeito do cuidar do doente e da dicotomia corpo-mente, é
discutir onde justamente este homem enfermo se situa no devir de sua existência. É,
portanto, manter em aberto um problema que nos fisga por diversas vezes na
clínica.
Sim, na clínica atual. Esta é a História que, oposta a ordem lógica, nos
surpreende: não fechada em si, permite que voltemos no tempo e avancemos em
busca de um sentido (quase sempre provisório). São as continuidades e
descontinuidades da História (não o presentismo que resulta em um grosseiro
anacronismo) que nos permitem estas buscas. E é o que nos coloca frente a uma
questão atual para Psicologia: a identidade da psicologia brasileira e a construção
de suas matrizes filosóficas.
É assim que surgiu nosso interesse sobre a História da Psicologia. Quanto ao
tema da enfermidade, fomos levados a ela também em razão de nossa prática
clínica. E o sermão de Antônio Vieira, por uma certa coincidência, surgiu como que
“por acaso”.
Claro que este “por acaso”, não é tão acaso assim. É um trabalho de
pesquisa feito a partir de fontes (primárias) e de autores que se dedicaram à História
da Psicologia no Brasil e que também tomaram os sermões de Vieira e de outros
pregadores dos séculos XVI e XVIII como objeto de seus estudos. É onde
encontramos referências e possibilidades de analisar as idéias a respeito do
adoecer. Entre estes autores não poderíamos deixar de mencionar Marina Massimi,
e principalmente Paulo JoCarvalho da Silva, professor com quem iniciamos este
trabalho.
O termo “por acaso” evidencia apenas uma certa surpresa.
Os sermões de Antônio Vieira, como dissemos anteriormente, foram
pronunciados no século XVII. No entanto, apresentam uma certa vitalidade que os
fazem permanecer em suspenso no tempo, oferecendo ao historiador da ciência
uma viva fonte de pesquisa.
Marina Massimi ressaltou a importância da oratória sacra para o estudo da
história dos saberes sobre o psiquismo e o comportamento:
O estudo da oratória sagrada no Brasil do período colonial é
um campo heurístico de grande interesse para a história dos
17
saberes, pois os sermões constituíram-se numa
importantíssima fonte de transmissão cultural e de modelagem
da mentalidade e dos comportamentos numa sociedade em
que a oralidade era a principal forma de difusão dos
conhecimentos.
17
Esta documentação apresenta idéias relativas ao conhecimento dos hábitos e
da cultura colonial luso-brasileira, trazem interrogações que nos chama não para
a análise de nossas matrizes filosóficas, mas também para a reflexão sobre nossa
identidade. E talvez isso se refira não somente à História da Ciência, ou da
Psicologia, mas de maneira geral, a identidade de nosso povo.
Quanto à Psicologia, são diversos os textos que se constituem como fontes
primárias para o estudo de sua História no Brasil. Estes textos apresentam
referências e interesses sobre o conhecimento de si, o manejo das paixões, a
maneira de curar as enfermidades e sua relação com o afeto, os costumes, a forma
de se criar os filhos etc.
Em Vieira especificamente, elas caracterizam um olhar sobre o que é natural
ao humano a partir da perspectiva psicologia filosófica aristotélica-tomista tão
presente nos séculos XVI e XVII na Companhia de Jesus.
18
De fato, uma grande variedade de escritos, cartas, relatos de viagens,
tratados, e outros textos, demonstravam interesse não pela cultura, mas
dedicavam-se ao entendimento dos comportamentos, aos cuidados relativos à
criação das crianças, das enfermidades, entre outros.
Embora no período colonial não houvesse uma Psicologia autônoma
enquanto ciência e profissão, os textos produzidos neste período constituem as
mais antigas bases sobre as quais a Psicologia se fundou no Brasil.
19
A construção e elaboração de conhecimentos que se referiam ao psicológico,
antes ainda do surgimento da Psicologia científica é objeto de uma área de estudo
17
Marina Massimi, “Alimentos, palavras e saúde (da alma e do corpo), em sermões de pregadores
brasileiros do século XVII.” In: História, Ciência e Saúde Manguinhos, 13, (2, 2006): p.253-270
18
Quanto a este tema indicamos o artigo de Paulo Roberto de Andrada Pacheco, “Experiência como
fator de conhecimento na psicologia filosófica aristotélico-tomista da Companhia de Jesus (séculos
XVI-XVII)”, Memorandum, 7, (2004): p. 58-87. Retirado em 10/05/2009, do World Wide Web:
http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/pacheco01.htm
19
Isaias Pessotti, “Notas para uma História da Psicologia brasileira”. In: Quem é o psicólogo
brasileiro? (São Paulo: Edicon e CFP, 1998), pp. 17-31
18
que se denomina “história das idéias psicológicas”.
20
Como objeto da História das
Idéias Psicológicas constituem-se “a elaboração de conhecimentos psicológicos ao
longo do tempo nas diferentes culturas (...)”
21
(...) pode ser considerada toda e qualquer colocação sob forma
discursiva de assuntos psicológicos (...) os elementos que
caracterizam a cultura brasileira no contexto ocidental e os
possíveis aspectos de inovação e de originalidade por ela
surgidos no âmbito psicológico somente podem ser
apreendidos numa perspectiva ampla e a partir de suas raízes
históricas mais profundas.
22
Sobre as emoções, ou paixões da alma, e a prática de seu controle e “cura”,
no campo ético-religioso encontramos referências na obra de diversos autores como
Padre Antônio Vieira
23
. Na Filosofia Moral, a obra de Mathias Aires Ramos da Silva e
Eça, na medicina Francisco de Mello Franco, entre outros.
24
Estas obras tratam não do comportamento, mas além dele, seus autores
dedicam-se à análise de temas de caráter subjetivo, como o amor, o ódio, a tristeza,
a vaidade e, estabelecendo em seu funcionamento não um equilíbrio desejado,
mas sobretudo acentuando em seu descompasso a possibilidade de conduzir o
corpo a enfermidade.
25
Destacamos nestes textos, sobretudo em Vieira, duas perspectivas: a relação
do afeto, das paixões da alma, sobre o corpo e o papel do conhecimento de si
26
,
20
Marina Massimi,” As Idéias Psicológicas na Produção Cultural da Companhia de Jesus no Brasil do
Século XVI e XVII”.In: GUEDES, M.C. e MASSIMI, M. História da Psicologia no Brasil – Novos rumos.
(São Paulo: EDUC e Cortez), 2004, p.27.
21
Marina Massimi, As Idéias Psicológicas na Produção Cultural da Companhia de Jesus no Brasil do
Século XVI e XVII”, p. 27.
22
Marina Massimi, “Estudos Históricos acerca da Psicologia Brasileira”. In: História da Psicologia,
Coletâneas da ANPEPP. (São Paulo: EDUC, 1996): pp. 80-81
23
Apesar de destacarmos estes autores, diversos outros poderiam ser mencionados, como por
exemplo, ainda no campo ético-religiosos, Eusébio de Matos, ou Frei Mateus da Encarnação Pinna. O
mesmo pode ser dito quanto aos diversos campos do saber.
24Mitsuko Aparecida Makino Antunes. A Psicologia no Brasil. (São Paulo: Educ, 1998), p. 17-18
25
Marina Massimi, “As origens da psicologia brasileira em obras do período colonial”. In: História da
Psicologia, Cadernos PUC, n 23, pp 95-117.
26
Além do estudo que indicamos anteriormente de Paulo Roberto de Andrada Pacheco, o leitor pode
encontrar diversas referências quanto a importância de conhecer a si mesmo já nos Exercícios
Espirituais de Inácio de Loyola.
19
tema, aliás, destacado pela Companhia de Jesus.
Através da oratória consolidada como ferramenta para a transmissão cultural
e modelagem de comportamento
27,
Vieira pronunciou idéias a respeito do homem,
da moral, do amor, da corrupção e enfim, da importância do conhecimento de si, da
natureza humana e da razão.
Em outras palavras, os sermões tinham o objetivo pedagógico de ordenar,
sob a luz da razão, submetida à Teologia, os comportamentos (individual e social)
28
,
explicar e guiar a experiência humana, na procura de entendimento e alívio, para as
angústias que surgiam da relação do sujeito com o mundo, a vida e a morte.
29
. Hoje
para o historiador da ciência, caracterizam-se como alguns dos textos mais
representativos da cultura colonial e uma rica fonte para o estudo sobre os
conhecimentos considerados psicológicos.
Os saberes no interior da Companhia de Jesus, firmaram suas bases na
convergência de tradições medievais e novos saberes do Humanismo e
Renascimento.
30
Estas diversas referências se espalham pela obra de Padre Antônio Vieira e
se refletem nas idéias do jesuíta sobre as enfermidades e as relações entre o
adoecimento e os afetos, em especial, a solidão e o desejo.
Escreve Alcir Pécora quanto às referências de Vieira:
(...) a reflexão de Vieira invariavelmente se organiza levando
consigo autores pagãos, sejam filósofos, moralistas ou poetas,
matemáticos, historiadores ou astrólogos, constituindo uma lata
rede de referências literárias, que apenas o surpreende a
que tiver em mente, de um lado, a asserção doutrinária,
largamente expandida na época renascentista e barroca, de
que os textos dos sábios antigos eram representações
figuradas, mais ou menos primitivas, dos mistérios cristãos.
31
27
Marina Massimi, “Alimentos, palavras e saúde (da alma e do corpo) em sermões de pregadores
brasileiros do século XVII”, pp. 253-270.
28
Além do “corpo mítico” e “visível” da Igreja, escreve Alcir Pécora, Vieira dispensa enorme atenção
ao “corpo político e moral” do Estado. O Teatro do Sacramento: A unidade teológico-retórico-política
dos sermões de Antonio Vieira, (São Paulo:EDUSP, 1994), p.31.
29
Paulo José Carvalho Silva, A tristeza na cultura luso-brasileira, os Sermões do Padre Antonio
Vieira. (São Paulo:EDUC, 2000), p. 17
30Ibid., p. 16.
31
Alcir Pécora. O Teatro do Sacramento: A unidade teológico-retórico-política dos sermões de Antonio
20
Diversos também são os temas abordados pelo jesuíta em seus sermões. No
entanto, estes temas convergem para uma caracterização do humano: o surgimento
do Homem, suas esperanças e desejos espelhados nos campos religioso, político e
social.
Vieira é reconhecidamente um dos principais autores do barroco luso-
brasileiro. Nasceu em Lisboa, a seis de fevereiro de 1608. Ainda menino, aos seis
anos, veio para a Bahia, onde foi educado no colégio dos Jesuítas. Aos vinte e sete
anos, após completar seus estudos em Filosofia e Teologia logo se tornou célebre
por suas pregações.
32
Após a aclamação de D. João IV, Vieira retornou a Europa, em 1640, e foi
então nomeado pregador régio e diplomata em missões na França, Holanda,
Inglaterra e Roma.
33
Entre os anos de 1652 e 1661, comandou as missões jesuíticas no Maranhão
e Pará. Em São Luiz do Maranhão, no ano de 1653, pronunciou o Sermão da
Primeira Dominga da Quaresma (ou das Tentações) onde tentava apaziguar as
tensões geradas pelo Diploma Real que mandava libertar os índios cativos. O que
deixa em evidência a participação do Jesuíta nos assuntos gerais, ainda que
pautado pela religião.
Em razão de seus escritos histórico-proféticos, Vieira sofreu um processo
inquisitorial em Coimbra. Em 1669 partiu para Roma em busca da revisão de sua
sentença e recebeu o convite de Gian Paolo Oliva, padre geral da Companhia, para
sucedê-lo como pregador do Papa.
34
Finalmente em 1675, Vieira recebeu absolvição pontifícia, retornou em
seguida a Portugal onde iniciou a publicação de seus sermões, e depois veio para a
Bahia, onde faleceu em 1697.
O interesse dos jesuítas pela ciência da alma, interesse sobretudo
operacional (na medida que buscava uma ordenação prática das ações e das
paixões, portanto, pedagógico), reflete um homem psicológico, um sujeito, que sente
os efeitos de sua condição.
A perspectiva “psicológica” encontra-se na influência dos afetos sobre o
Vieira , (São Paulo:EDUSP, 1994),p. 74.
32
Paulo José Carvalho Silva, “Sobre um Mal Universal”. In: Revista Latino Americana de
Psicopatologia Fundamental, 9, (3, 2006), pp. 533-7.
33
Paulo José Carvalho Silva, “Sobre um Mal Universal”.
34
Ibid.
21
comportamento e a doença, seja como causa primária, seja como um de seus
efeitos. E ainda, é no âmbito da palavra, no manejo dos afetos, que o médico da
alma opera a cura.
A cura do corpo é de responsabilidade do médico e do enfermeiro para os
quais o doente tem de demonstrar paciência e resignação. No entanto, a cura da
alma é o ofício do jesuíta, o médico da alma.
No “Sermão da Sexagésima”, Vieira escreveu sobre o ofício do médico da
alma, associando-o com a atividade do pregador e os efeitos da palavra sobre seus
ouvintes:
Pois gostarem ou não gostarem os ouvintes! Oh, que
advertência tão digna! Que médico que repare nos gesto do
enfermo, quando de lhe dar saúde? Sarem e não gostem;
salvem-se e amargue-lhes, que para isso somos médicos das
almas.
35
Vieira no “Sermão da Segunda Dominga do Advento” explicitou uma vez mais
esta relação entre o ofício do pregador e do médico:
O mau médico encarece a enfermidade, e não lhe remédio:
o mau conselheiro exagera os inconvenientes, e não meio
com que os melhorar. O ofício do pregador é de curar e de
aconselhar. Tenho encarecido a enfermidade, tenho ponderado
os inconvenientes, tenho mostrado a cegueira e a sem-razão, a
injustiça e a tirania do juízo dos homens; mas que é do remédio
para nos livrarmos deste juízo?
36
Assim, enquanto o médico cura do corpo oferecendo ao paciente o cuidado e
o remédio adequado, o ofício do pregador, a fim de cuidar da alma, é de aconselhar,
instruir, revelar a cegueira e a enfermidade (da imaginação).
No centro deste tema estão os termos Razão, Entendimento, e Paixão. Por
35
Antonio Vieira, Sermão da Sexagésima”, In: Antonio Vieira, Sermões. Vol I, (Erechim: Edelbra,
1998), p. 35
36
Antonio Vieira, “Sermão da Segunda Dominga do Advento”, In: Antonio Vieira, Sermões. Vol VI,
(Erechim: Edelbra, 1998), p. 219
22
exemplo, no “Sermão de São Roque”, o tema da enfermidade é por último tratado
para que se fique mais na memória; no “Sermão do Mandato”, pronunciado no
Hospital Real, em 1643, escreve o jesuíta que o amor do Senhor pelo homem é
enfermidade incurável que pode ser remédio das loucuras, ou da não utilização da
razão última, do amor do próprio homem.
37
Para designar as enfermidades do corpo, Vieira utilizou os termos doença ou
enfermidade, assim como se utiliza dos mesmos termos para falar da condição
própria ao gênero humano: “Alegra-te enfermo gênero humano, alegra-te, e começa
a esperar melhor de teus males, porque virá o Sol de justiça, e te trará a saúde nas
asas.”
38
Pois, como veremos no primeiro capítulo, o estudo sobre as idéias e
representações a respeito das enfermidades nos conduzem, a partir da perspectivas
dos autores que estudamos, a questão do que é “natural” e “não natural” ao Homem.
Assim, o gênero humano, “naturalmente” enfermo, tem na palavra (no saber
em oposição ao não-saber), a cura de seus males. Mas é preciso compreender e
conhecer a palavra e a própria natureza.
Observamos então duas perspectivas indissociáveis quanto ao adoecimento:
a enfermidade do corpo e a enfermidade da imaginação
39
. Uma considerada
conseqüência de ser mortal e a outra como estando em íntima relação com o gozo
e os apetites (pois as paixões, forças potentes e cegas, quando em excesso podem
afetar o equilíbrio do organismo e tornar-se “enfermidades”40).
Encontramos ainda uma terceira perspectiva quanto ao uso da palavra
enfermidade relacionado ao campo da política: “A enfermidade do Brasil, é, como a
do menino Batista, pecado original. (...) é uma privação, uma falta de devida
justiça.”
41
(...) como a experiência ensina que, para a saúde ser segura e
firme, não basta sobressarar a enfermidade, se não arrancam
as raízes e se cortam as causas dela, é necessário vermos
37
Antonio Vieira, “Sermão do Mandato”, In: Antonio Vieira, Sermões. Vol III (Erechim: Edelbra, 1998),
p. 121.
38
Antonio Vieira, “Sermão da Visitação de Nossa Senhora”, In: Antonio Vieira, Sermões.Vol VII
(Erechim: Edelbra,1998), p. 416-417.
39
Antonio Vieira, “Sermão de Nossa Senhora do Ó”, In: Antonio Vieira, Sermões .Vol III (Erechim:
Edelbra,1998), p. 309.
40
Marina Massimi, “As origens da psicologia brasileira em obras do período colonial”, pp 95-117.
41
Antonio Vieira, “Sermão da Visitação de Nossa Senhora”, p. 421
23
ultimamente quais são e quais foram as causas desta
enfermidade do Brasil. A causa da enfermidade do Brasil, bem
examinada, é a mesma que o pecado original.
42
Mas se ao escrever sobre a peste o jesuíta expôs a tríade desejo
transgressão - enfermidade, ao falar sobre a tristeza o jesuíta explicita esta mesma
relação:
A enfermidade mais universal que padece neste mundo a
fraqueza humana, e não a mais contrária à saúde dos
corpos, senão também a mais perigosa para a salvação das
almas, qual cuidais que será? É a tristeza. Primeiramente é
enfermidade universal de todos os homens, e universal
igualmente de todas as terras, porque nenhuma há tão sadia, e
de ares tão benignos e puros que esteja isenta deste contágio,
e nenhum homem tão bem acomplexionado de todos os
humores que quase habitualmente não esteja sujeito aos tristes
acidentes da melancolia.
43
Vejamos: a tristeza, mal que acomete o ânimo, é também contrária à saúde
dos corpos. Vieira apresenta-nos a integração entre o corpo, o ânimo e a alma. Na
verdade esta unidade entre corpo e alma é definida no “Sermão As Cinco Pedras da
Funda de David”: “crer e entender que o corpo não é parte do homem, é erro de
Platão; estimar o corpo e tratar o corpo, como se não fora parte do homem, é
Teologia de S. Paulo, e sabedoria do terceiro Céu.
44
Ainda quanto à tristeza, o que o jesuíta destacou é a dinâmica paixão-
comportamento:
Se a tristeza é por afronta, persuade-lhe a que a vingue, ainda
que seja por traição, como a Absalão, que contra as obrigações
42
Antonio Vieira, “Sermão da Visitação de Nossa Senhora”, p. 432.
43
Antonio Vieira, “Sermão da Quarta Dominga Depois da Páscoa”, In: Antonio Vieira, Sermões. Vol
VIII, (Erechim: Edelbra,1998),p. 362-363.
44
Antonio Vieira “Sermão As Cinco Pedras da Funda de Davi - Discurso I”, In: Antonio Vieira,
Sermões. Vol I (Erechim: Edelbra, 1998), Terceira Parte.
24
do sangue e leis da hospitalidade, matou aleivosamente a
Amnon. Se a tristeza é por inveja, persuade-lhe que derrube o
invejado, posto que inocente e benemérito, como Amã, valido
de el-rei Assuero, ao fidelíssimo Mardoqueu.
45
Assim, a tristeza, enquanto enfermidade da alma, desperta o desejo que incita
à ação, ao comportamento.
No que se relaciona às enfermidades, sejam do corpo, sejam da alma ou da
imaginação, desempenham importante papel para a cura, a palavra, a memória, a
imagem e a razão: está aí a pretensão do pregador.
(...) eis aqui o que devemos pretender de nossos sermões: não
que os homens saiam contentes de nós, senão que saiam
muito descontentes de si; não que lhe pareçam bons nossos
conceitos, mas que lhes pareçam mal os seus costumes, as
suas vidas, os seus passatempos, as suas ambições, e enfim,
todos os seus pecados.
46
Parece-nos ainda que com estas palavras, Vieira sustenta que a função das
palavras do pregador é trazer a seus ouvintes alguma reflexão, oferecendo-lhes
ainda um modelo, uma imagem, para identificar-se: Cristo, Santo Ignácio, São
Roque, Santo Antonio, etc.
O que é a ambição, senão o desejo de possuir ou de ser? O que são para o
Homem os costumes, a vida e os passatempos, senão efeito do mesmo desejo?.
Parece-nos assim, que o jesuíta estabelece um continuum entre o mundo externo e
o interno.
no “Sermão da Primeira Sexta-Feira da Quaresma”, de 1644, Vieira
anunciou:
Temos hoje em controvérsia os dois mais poderosos afetos, e
os dois mais perigosos da vontade humana. Tão poderosos
que, se a vontade o vence, é senhora; tão poderosos que, se
45
Antonio Vieira, “Sermão da Quarta Dominga Depois da Páscoa”, p. 369
46
Antonio Vieira, “Sermão da Sexagésima”, Sexta Parte.
25
eles vencem a vontade, é escrava. E que dois afetos são
estes? Amor e Ódio.
47
A vontade, sujeita ao afetos, é o leme que conduz a natureza humana,
escreveu o jesuíta no “Sermão de Santo Antonio”. E desta forma acentua a
importância do papel da razão sobre os mesmos afetos.
Em duas passagens de diferentes sermões Vieira escreve sobre os bitos e
intrinsecamente articula o papel das paixões.
No “Sermão da Segunda-feira depois da Segunda Dominga da Quaresma”:
(...) irão nas suas invenções in adinventionibus suis e que
invenções são estas? São como as que os homens inventaram
para andar mais descansados: Quase in quibusdam vehiculis
Os da Europa andam em liteiras e carroças, os da Ásia em
palanques, os da América em serpentinas; e estas duas
invenções são para ir mais fácil e mais descansadamente ao
inferno.
48
E no conhecido “Sermão da Sexagésima” o jesuíta escreve:
As palavras do Batista pregavam o jejum, e repreendiam os
regalos e as demasias da gula; e o exemplo clamava: Ecce
Homo: eis aqui está o Homem que se sustenta de gafanhotos e
mel Silvestre. As palavras do Batista pregavam composição e
modéstia, e condenavam a soberba e a vaidade; e o exemplo
clamava: Ecce Homo: eis aqui está o Homem vestido de peles
de camelo (...) As palavras de Batista pregavam o desapego e
retiros do Mundo, e fugir das ocasiões e dos homens (...)
49
Em outro de seus sermões, o jesuíta mencionou o clima como estímulo para
o ócio e conseqüentemente para a imaginação, a mentira e o vício no Maranhão, em
47
Antonio Vieira, “Sermão da Primeira Sexta-feira da Quaresma”, In: Antonio Vieira, Sermões. Vol: III
(Erechim; Edelbra, 1998), p. 311
48
Antonio Vieira, “Sermão da Primeira Sexta-feira da Quaresma”, p. 454-55
49
Antonio Vieira, “Sermão da Sexagésima”, parte IV.
26
1654:
Se o clima influi soberba, nasce a inveja, se influi gula, nasce a
luxuria, se influi cobiça, nasce a avareza; se influi ira, nasce a
vingança. E para nascer a mentira, que é que influi?
Ociosidade. Onde o clima influi ócio, dá-se a mentira a
perder.
50
Mais adiante o jesuíta destaca o papel das imaginações no comportamento:
“Senhores meus, vivemos em uma terra muito ociosa, e por isso muito sujeita a
imaginações”.
51
Se em especial no Sermão de São Roque, com o qual trabalharemos adiante,
explicitou a desventura do santo e os riscos que o mundo oferece ao Homem
52
, o
tema converge para uma unidade no que se refere as idéias do jesuíta, para uma
caracterização do humano, sob a égide da Teologia: esperanças e desejos,
espelhados pelas relações nos campos religioso, político e econômico, são os
objetos de Vieira.
53
Os escritos de Antônio Vieira, como observamos, propõem princípios de
conduta moral ao definir o que é natural e não-natural ao Homem. É neste sentido
que o observamos falar a seus ouvintes sobre a fragilidade de sua condição de
mortais, e acentuar o papel do desejo e do gozo, das paixões da alma,
determinando as relações entre os homens e causa da doença.
A idéia sobre as paixões enquanto causa do aparecimento da peste aparece
já nos relatos dos jesuítas no século XVI. Envolvidos nos cuidados do enfermos e na
contenção da enfermidade os jesuítas escreveram cartas, panfletos, propuseram
medidas religiosas para a cura. Diante do desconhecimento sobre as causas da
peste, conjugavam-se conhecimentos médico e religiosos para seu combate.
Estas idéias não foram exclusividade dos jesuítas. É o que veremos no
primeiro deste estudo: as diversas representações a respeito da enfermidade.
50
Antonio Vieira, Sermão da Quinta Dominga da Quaresma”, In: Antonio Vieira, Sermões .Vol IV
(Erechim; Edelbra, 1998), p. 14.
51
Antonio Vieira, “ Sermão da Quinta Dominga da Quaresma”, p. 14.
52
A relação com os semelhantes, a guerra e a doença.
53
Referente à unidade retórica dos sermões vierianos, remetemos o leito ao mencionado livro de
Alcir Pécora, onde autor reconhece a permanência de uma regularidade bastante forte no conjunto de
temas abordados pelo jesuíta, caracterizando-a, como enuncia o sub-título de seu livro, como uma
unidade teológico-retórico-política.
27
Vejamos o que dizem Sófocles, Hipócrates, Galeno, Sêneca, Aristóteles e Tomás de
Aquino.
Enfim, encontraremos Vieira e suas idéias a respeito do enfermar, tendo
como ponto de partida a peste. Não temos o objetivo de oferecer ao leitor um
trabalho conclusivo. A pesquisa historiográfica permite diversas trajetórias, como
vimos acima, e seu sentido quase sempre provisório, oferece também a
possibilidade de novos diálogos.
No primeiro capítulo, veremos algumas das representações e idéias que
ressoaram na Companhia de Jesus e de Vieira a respeito do adoecer. Ainda que
brevemente, analisaremos as idéias e representações que se apresentam na
tragédia de Sófocles a respeito do conhecimento de si e do adoecer. Observaremos
também as concepções da medicina hipocrático-galênica conforme presente nos
textos Da Natureza do Homem, da coleção hipocrática, e A melhor constituição de
nossos corpos, de Galeno.
O segundo capítulo se dedicado a análise das idéias a respeito da
enfermidade e sua relação com o dinamismo psíquico, a natureza e a moral no
“Sermão de São Roque”, que foi pronunciado por Antônio Vieira no ano de 1659, em
Portugal, ocasião que o reino era ameaçado pela peste que tomava o Algarve.
28
CAPÍTULO 1
REPRESENTAÇÕES DA ENFERMIDADE:
“Irrompam quantos quiserem! Eu quero é saber minha origem...
54
Entre as diversas doenças que afligiram a humanidade, encontramos a peste
(ou, as pestes). Terrível em seus efeitos recebeu diferentes nomes: em hebraico,
perdição, em grego, loimos, em latim, pestis e em inglês, plague.
55
Enquanto a
literatura interessava-se pela afecção e seus efeitos na mente, a literatura médica
dedicava-se a descrição e aos cuidados corporais dessa doença.
56
A peste, e, de maneira geral, as enfermidades foram representadas e
explicadas de várias maneiras em obras de diferentes tipos. Poderíamos mencionar,
como exemplos, Édipo Rei, a Ilíada de Homero, as cartas de Sêneca, o Timeu de
Platão, assim como nas idéias de Aristóteles sobre a relação da palavra, da alma e o
adoecer. Enfim, são diversos os textos, tratados e manuais que resistiram ao tempo
e que trazem informações sobre essas concepções e podem nos auxiliar a
compreendê-las.
Nosso interesse não está em procurar um conhecimento prático, dico ou
curativo para avaliar sua aplicação em nossos dias, ou ainda compará-los com os
métodos atuais. É possível observar, consultando as publicações de historiadores
da Psicologia, como por exemplo, Marina Massimi, que determinados aspectos
relativos à subjetividade são herdados da filosofia e da cultura pré-científica: a
relação mente-corpo representaria esta questão.
57
Nossa atenção está voltada para a maneira e o lugar que o próprio homem
54
Sófocles, Édipo Rei, (Rio de Janeiro: Difel, 2000), p. 118
55
James Tytler, A Treatise on the Plague and Yellow Fever, (Salem (Mass):Joshua Cushing ,1799)
Cap I. Disponível em http://www.archive.org/details/plaguepestilence00tytler - acessado em
14/05/2009
56
Raymund Crawfurd & Henry Paine, Plague and Pestilence in Literature and Art, (Oxford: Clarendon
Press,1914) Cap I. Disponível em http://www.archive.org/details/plaguepestilence00crawuoft -
acessado em 23/01/2009
57
Marina Massimi, “A Questão Mente-Corpo nas Doutrinas dos Primeiros Séculos da Cultura Cristã”.
In: Cadernos PUC, (nº 23, 1987): p. 9-23
29
assume no mundo frente aos perigos (dentre os quais estão as doenças). Este lugar,
melhor seria dizer lugares, nos reserva aspectos comuns em diferentes tempos.
que as representações são sistemas de teorias populares que auxiliam os sujeitos a
dar significado a si e ao ambiente que os cercam.
58
Poderíamos indagar se as representações da enfermidade, tendo como
objeto a peste, envolvem um distanciamento entre o conhecimento científico e o
conhecimento do senso comum, popular.
São diversas as terapias que foram utilizadas para a cura da peste e outras
doenças. É nos meios de curá-la e nas idéias a seu respeito que vemos a
possibilidade de observar as representações gerais sobre o adoecer.
Já na Antigüidade nos textos que integram o chamado Corpus hippocraticum,
aparecem concepções a respeito da formação e propensão do corpo à saúde e à
doença.
Desta forma apresentaremos neste capítulo duas perspectivas a respeito da
enfermidade que não são excludentes. A primeira trata do que chamamos de
representação mítica, baseada na crença religiosa. A segunda se refere ao saber
médico.
Assim, este capítulo discutirá acerca das representações da enfermidade e do
adoecer conforme aparece em alguns textos antigos, tais como alguns tratados do
Corpus Hippocraticum, particularmente, A natureza do Homem e A melhor condição
de nosso corpo, de Galeno, bem como algumas das idéias presentes em Édipo rei
de Sófocles.
Estas idéias nos ajudarão a compreender como a enfermidade era entendida
naqueles tempos e como essas concepções aparecem nas idéias de Padre Antônio
Vieira e na Companhia de Jesus.
Iniciaremos pelo texto de Sófocles, Édipo Rei. Nosso interesse estará voltado
para a representação presente na tragédia desde o seu início.
58
Alberto Manuel Quintana & Ana Cláudia Müller, “Da saúde à doença: representações sociais sobre
a insuficiência renal crônica e o transplante renal”. In: Psicologia Argumento, 24,(44, 2006): pp 73-80
30
1.1 ÉDIPO E A PESTE EM TEBAS: UMA TRAGÉDIA QUE DEMANDA
UM SABER SOBRE SI MESMO
Consideramos importante discutir a idéia a respeito do conhecimento de si e o
surgimento da peste conforme aparece em Édipo Rei, tragédia escrita por Sófocles e
representada pela primeira vez no ano de 452 a.C. Este tema, como veremos
adiante, será de grande importância para a Companhia de Jesus e de sua noção de
enfermidade e cura.
Façamos um exercício com nossa imaginação, e acompanhemos a tragédia
de Édipo.
Estamos em Tebas
59
. Diante dos altares de Apolo, uma multidão lamenta e
suplica pelo fim da peste e outros males que assolam a cidade. Não tarda para que
os portões laterais do palácio se abram e para que surja Édipo, soberano daquelas
terras, amado e admirado pelo povo: “por que estais prostrados nesses degraus?”
60
Édipo se dirige ao ancião de Zeus e aguarda resposta:
A cidade como tu vês, anda extremamente agitada. Como nave
batida na tempestade, em vão luta contra as vagas
ensanguentadas, Já não é capaz de levantar a cabeça do
fundo da voragem. Tebas vai se acabando à proporção que
definham e desaparecem os frutos das plantas, morrem os
rebanhos nos pastos e os ventres das mulheres vão se
tornando estéreis. E, como se esses males não bastassem, um
deus ignífero sob forma de peste mortífera lançando-se
com ímpeto, arremate contra a cidade de Cadmo, que pela
mão dessa deidade se vai esvaziando...
61
Pois, entre os males que assolam Tebas, a esterilidade das mulheres e a
morte dos rebanhos, está a peste. A enfermidade é a vontade divina que se lança
sobre a cidade. E o motivo para tal destino logo será descoberto pelo rei e pelo
povo.
59
Cidade da Beócia, Grécia antiga
60
Sófocles, Édipo Rei, p. 13
61
Ibid, p. 14
31
Lança o ancião um pedido ao rei: “(...) consideramos-te o mais poderoso e
capaz dos homens para nos valer nas vicissitudes da vida e nas funestas
intervenções dos deuses.”
62
Pois, o pedido se refere a como Édipo livrou a cidade da cruel poetisa, a
Esfinge, e demanda ao rei que encontre um remédio ouvindo o oráculo. O oráculo
como veremos é onde o destino torna-se conhecido. Ele tem uma importante
participação da história, antes ainda de Édipo chegar a Tebas. O povo, na voz do
sacerdote, encaminha a Édipo um pedido: um saber que possa livrar a cidade dos
males e da peste. Da dúvida e da incerteza.
A resposta oráculo, é trazida por Creonte e é justamente um outro pedido ao
rei: “Ordena o deus, claramente, que castiguemos com violência os assassinos de
Laio, quaisquer que sejam.
63
A exigência de Apolo é que o crime contra Laio, o desconhecimento de seus
assassinos, seja esclarecido. O crime é considerado como sendo a causa dos males
que atormentam a cidade. De toda a forma, o que surge a Édipo é a demanda de um
saber.
Até aqui, portanto, a enfermidade está relacionada ao deus e à sua vontade
que frente ao crime cometido, o assassinato de Laio, espalha a peste como forma de
exigir que o crime seja desvelado.
Nas páginas seguintes, no canto de entrada do Coro, encontramos dois
trechos que se referem à peste e a seu significado sagrado:
A peste ceifa inumeráveis vidas,
e a cidade vai se despovoando
Sem ninguém que os chore,
sem ninguém que deles se compadeça,
e disseminando a morte,
jazem por terra os filhos desta geração
64
Expulsa, formosa filha de Zeus,
o impetuoso e violento Ares,
62
Sófocles, Édipo Rei, p.14
63
Ibid, p.19
64
Ibid, p. 25
32
que agora, se bem que desarmado,
em altos gritos, me acomete e abrasa
com os ardores da peste.
65
É o mesmo Coro que sugere a Édipo que chame o adivinho. Entra em cena
Tirésias: “Conheço, ó rei, um sábio, um profeta (...) É o adivinho Tirésias”
66
Não tarda para que Tirésias, conduzido por um jovem e acompanhado de dois
mensageiros chegue ao palácio. Após saber dos males de Tebas, Tirésias avisa ao
rei que era melhor não saber pois “o fardo do destino será para ti e para mim muito
mais leve.”
67
“De mim é que não saberás.”
68
Mas ofendido pelo rei Tirésias, irônico
anuncia: “(...) tu és o gênio maléfico e impuro que contamina esta terra.”
69
“És o
assassino do homem cujo matador procuras.”
70
Édipo entende as palavras do adivinho como uma afronta ou como uma
cegueira do entendimento, dos ouvidos e dos olhos. Desta forma, o rei supõe que se
trata de uma conspiração articulada por Creonte, seu cunhado.
O adivinho, ainda antes de se retirar lança mais um enigma ao rei. Agora
trata-se dos pais que geraram Édipo: “Sou, portanto, isto: na tua opinião, um parvo,
na de teus pais, que te geraram, um sábio.”
71
“Os que me geraram?! Quem? Espera. Qual foi o mortal que me gerou?”
72
Édipo pensava que era filho legítimo de Polibo.
Pois então, conforme diz Tirésias, o assassino de Laio está em Tebas. Todos
pensam que é estrangeiro mas que na verdade ele é tebano de nascimento e isso
consolidará a tragédia. E ainda, o assassino é ao mesmo tempo, pai e irmão de seus
filhos, filho e esposo de sua mãe, e assassino de seu pai.
Os enigmas de Tirésias nos conduzem a história de Édipo. Vejamos um
aspecto interessante: ao mesmo tempo Édipo é filho e esposo da mulher que o
gerou, irmão e pai de seus filhos e assassino de seu pai. E é devido a estes fatos
que a cidade de Tebas está mergulhada em tantos males.
A enfermidade é a punição dos deuses a uma transgressão da ordem natural,
65
Sófocles, Édipo Rei, p. 26
66
Ibid, p. 34
67
Ibid, p. 38
68
Ibid, p. 39
69
Ibid, p. 41
70
Ibid, p. 42
71
Ibid, p. 47
72
Ibid, p. 47
33
o assassinato do pai e o incesto. Esta punição se funda no desconhecimento e exige
um saber para o seu fim. E como Tirésias anuncia a Édipo: é sua própria história, o
conhecimento de quem é, que levará o rei ao fim deste enigma.
Enfim, o enigma que Tirésias deixa ainda antes de sair de cena é: “Sabes
quem és, Édipo?”
1.2 A MORTE OU O EXÍLIO?
Daremos alguns saltos e, propositalmente, deixaremos a curiosidade conduzir
o leitor no texto de Sófocles.
O que acontece a seguir da saída de Tirésias é uma discussão entre o rei
enfurecido que acusa Creonte de tentar tirar-lhe o trono. A discussão se encerra
quando entra em cena Jocasta, esposa de Édipo e rainha de Tebas. Antes ainda
Jocasta era a mulher de Laio e foi prometida como esposa para aquele que
decifrasse o enigma da Esfinge.
Pois, é no momento que, ao interrogar o rei sobre o motivo de sua lera, a
rainha ouve de Édipo o que o adivinho lhe dissera, que ele havia sido o assassino de
Laio. Jocasta em resposta conta-lhe da impossibilidade de isso ser uma verdade e
que não há destino que se deixe submeter à arte de um adivinho.
Predisse outrora a Laio o oráculo (...) que era o seu destino
morrer pela mão do filho que nascesse de mim e dele. No
entanto, corre em tradição que foram uns bandidos
estrangeiros que o mataram num trívio.
Três dias não eram passados depois do nascimento do
menino, quando Laio atou os pés do recém-nascido e mandou
jogá-lo num monte inacessível. De tal modo que Apolo não
realizou a predição, segundo a qual o filho devia tornar-se o
assassino do pai, nem Laio viu cumprir seu terrível destino:
morrer pela mão do filho.
73
Estas notícias não sossegam o rei, que pergunta sobre o local da morte do
73
Sófocles, Édipo Rei, p. 78
34
rei: “Parece-me que te ouvir dizer isto: que Laio foi morto junto de um trívio.”
A esta altura surge um novo personagem: o mensageiro de Corinto.
Este vem para dizer a Édipo que o rei está sendo aguardado naquela cidade
já que Polibo estava morto. Para sua morte contribuíram a doença e a velhice.
74
Édipo então descreve seu temor de concretizar a profecia do oráculo e que
este mesmo temor o manteve por tanto tempo longe de seus pais e de sua pátria.
Aqui é enfim o momento decisivo, quando o mensageiro, com o intuito de desfazer a
angústia de Édipo revela que: “nenhum laço de parentesco existe entre ti e Polibo no
que respeita à geração.”
75
Foi o próprio mensageiro que entregou ao rei Polibo uma criança como
presente. Ele a retirou das mãos de um pastor que dizia ser servo de Laio e que
estava incumbido de matá-la. Os s estavam machucados e atados por fios que
cada vez mais os perfuravam. Cicatrizes que Édipo carregava ainda consigo.
Édipo pergunta a Jocasta se conhece o homem. A rainha responde ao rei
com um pedido: “Não busques saber isso (...)”
76
Édipo a responde: “Preciso saber
claramente essas coisas.”
77
. Ela responde: “Ó infeliz! Tomara que nunca saibas
quem és!”
78
Vemos que é a tentativa de saber quem é que conduz Édipo. Isto surge
claramente quando ele responde ao Coro o motivo da agitação e impetuosidade de
Jocasta:
Irrompam quantos quiserem! Eu quero é saber a minha origem,
por mais humilde que ela seja. Ela, mulher vaidosa que é,
orgulha-se da sua nobre estirpe e talvez se envergonhe do
meu obscuro nascimento. Eu não me considero desonrado,
reputando-me filho mimoso da Fortuna.
79
Movido pelo desejo de conhecer a si mesmo, Édipo manda buscar o tal servo
de Laio. O servo é reconhecido pelo Coro e pelo mensageiro de Corinto. Ainda
74
Sófocles, Édipo Rei, p. 100
75
Ibid, p. 105
76
Ibid, p. 111
77
Ibid, p. 111
78
Ibid, p. 112
79
Ibid, p. 113 (“Filho mimoso da Fortuna”, conforme o tradutor: filho natural, ilegítimo. Fortuna era a
deusa do destino, da sorte.)
35
relutante e sob a ameaça de Édipo o servo enfim confirma: “Pois bem, ... era... um
dos filhos de Laio.”
80
“Infeliz de mim, que chegou a terrível hora de revelar toda a
horrenda verdade!”
81
O servo no entanto, apesar de confirmar que Édipo é filho de Laio, portanto o
assassino de seu pai, diz que melhor do que qualquer outro, Jocasta poderia
explicar-lhe os fatos.
Foi ela quem te deu a criança?
Ela mesma, senhor.
Para que fim? Com que intenção?
Para que a matasse”
82
Enfim Édipo lamenta a terrível descoberta:
Ai! Ai! Tudo agora está desvendado. Tudo se tornou evidente!
Ó luz, pudesse eu agora nunca mais te ver! Revelaste ter eu
nascido de quem não devia nascer, casado com quem não
devia casar e matado quem não devia matar.
83
O quarto estásimo se abre com estas palavras do Coro:
Ah! gerações humanas, ah! Mortais
não passa de ilusão vossa vida.
Qual o mortal que, tendo conseguido
provar um pouco de felicidade, bastante para se dizer eliz,
não a perdeu assim que ele julgou
que o destino jamis lhe roubaria?
Teu exemplo, teu trágico destino,
ó desditoso Édipo, me ensina
a não chamar feliz nenhum mortal.
84
80
Sófocles, Édipo Rei, p. 126
81
Ibid, p. 126
82
Ibid.
83
Ibid, p. 128
84
Ibid, p. 129
36
Por fim, Édipo encontra a rainha, sua “esposa-não esposa”
85
morta. Suicidou-
se. O rei-filho, arrancou os broches de ouro da rainha e com imensa fúria, enterrou-
os nos próprios olhos, mutilando-os e dizendo que aqueles olhos não mais veriam os
males que sofreu e tentou evitar e que, pelo resto da vida passariam nas trevas sem
ver os filhos que não deveria ter tido.
Assim, Édipo conhece agora sua história. Conhece a si mesmo: Filho legítimo
de Laio foi entregue ao pastor para que este o matasse. Laio tentava evitar a
profecia do oráculo que dizia que o rei seria morto por seu filho. O servo de Laio não
executa a tarefa e entrega a criança a um pastor de Corinto. O rei de Corinto, Polibo
é presenteado e cria Édipo com o amor de um filho legítimo.
Por sua vez, Édipo consulta o oráculo que anuncia seu destino de matar seu
pai e casar-se com sua mãe. Édipo foge de Corinto em uma tentativa de evitar tal
destino. Passando por um trívio, encontrou uma comitiva e diante de uma afronta,
Édipo assassinou a todos sem saber que se tratava de seu pai.
Adiante chegou a Tebas que era vítima da Esfinge e de seus enigmas. Assim,
Édipo decifra o enigma e casa-se com a rainha, prometida a quem livrasse a cidade
da cruel Poetisa. Édipo agora é a causa e a própria peste. E é assim que parte
exilado de Tebas.
Como mencionamos anteriormente, a tragédia de Édipo, em seus diversos
aspectos, despertou o interesse de estudiosos, dentre os quais Freud e Nietzsche.
Nosso interesse não é o mesmo dos dois estudiosos mencionados anteriormente. O
que nos interessa é a representação de enfermidade.
Foi possível perceber que na tragédia de Sófocles que a peste era o resultado
de uma intervenção divina, ao de Apolo, que além de causar as doenças poderia
curá-las.
86
Na história de Édipo não encontramos a idéia de purificação através da
doença. A doença é uma punição associada a um comportamento (assassinato e o
incesto) e ao desconhecimento.
Se Édipo soubesse a verdade sobre seus pais, ele poderia evitar o destino?
Seria possível que uma escolha pudesse evitar a concretização da profecia do
deus? Parece uma interessante questão: Poderia Édipo mudar sua história? Claro,
85
Sófocles, Édipo Rei, p. 137
86
Roberto de Andrade Martins e colaboradores, Contágio A história das doenças transmissíveis
(São Paulo:Moderna, 1997), p. 30
37
se trata de uma obra literária, mas que expressa sem vida um questão humana:
Somos livres?
87
Assim, a enfermidade representada para além de uma intervenção divina, é
também o resultado de um não-saber. Ou seja, encontramos uma noção que estará
presente, como veremos em breve, em tempos diversos de nossa história e
permanecerá nos séculos XVI e XVII, no que se refere ao tratamento e a conduta do
enfermo diante da peste. Da mesma forma que o desvio moral será entendido como
causa da peste e de outras enfermidades, o conhecimento de si, o saber sobre a
natureza do homem, parece remédio e a chave para a harmonia do homem e sua
natureza.
Ao contrário das idéias que associavam a enfermidade e o adoecer a causas
sobrenaturais, para a teoria hipocrática, de acordo com Roberto de Andrade Martins
e colaboradores, as epidemias eram causadas por algum tipo de influência
geralmente climática (ventos, temperaturas, umidade) que atingia a população. A
saúde está relacionada ao equilíbrio dos humores corporais, ou seja, eles devem
estar nas quantidades certas, lugares certos e a doença está relacionada ao
excesso, falta ou acúmulo nos lugares errados. Não havia a suposição de que
alguma coisa pudesse penetrar no corpo e causar a doença, ou ainda que a
enfermidade pudesse ser transmitida de pessoa para pessoa.
88
1.3 A NATUREZA DO HOMEM E A MELHOR CONSTITUIÇÃO DO
CORPO: A NOÇÃO DE ENFERMIDADE NA MEDICINA
HIPOCRÁTICO-GALÊNICA
Entre diversos textos que integram o Corpus hippocraticum, discutiremos um
pouco sobre algumas concepções que aparecem no tratado Da natureza do homem
e de Galeno, A melhor condição de nossos corpos.
Os 70 textos que integram a Coleção hipocrática apresentam algumas
dificuldades. Estas não se referem somente ao idioma, em nosso caso, mas dizem
87
Voltaremos a esta questão no segundo capítulo.
88
Roberto de Andrade Martins & col., Contágio: A história das doenças transmissíveis, p. 36
38
respeito também à sua autoria, estilos diferentes, muitas vezes apresentando
concepções antagônicas sobre cirurgia, ginecologia, medicina interna, higiene e
método terapêutico.
89
dúvidas, por exemplo, de que o tratado Da natureza do
homem seja da lavra de Hipócrates. É possível, mas pode ser que o autor seja seu
discípulo e genro Pólibo.
Vale lembrar ainda que, em obras dos séculos V e IV a.C., que integram o
Corpus, indicavam a influencia do ar e dos lugares no aparecimento das epidemias,
da constituição dos fetos e dos temperamentos.
90
Da Natureza do Homem trata da composição corpo e da disposição e
propriedades dos humores. Nele é feita a relação entre estes e as estações do ano.
O tratado se inicia com uma breve revisão a respeito das divergências
existentes sobre a natureza humana e a substância que compõe corpo do homem:
Digo, pois, não ser o homem, por completo, nem ar nem fogo
nem água nem terra nem nenhum outro elemento que não é
manifesto no interior do próprio homem. Mas deixo de lado
aqueles que querem falar tais coisas.
91
O autor critica as concepções de outros autores
92
que admitem ser o corpo
constituído por um elemento, sem nunca terem chegado a uma conclusão. Ele
observa nisso a falta de conhecimento a respeito do que dizem. Pois a contradição,
a seu ver, significa justamente a falta de saber. Mas não é nesta discussão que o
texto se mantém, ela é apenas introdutória. De imediato o aviso de que, “além do
que concerne à medicina, este discurso não é interessante de ser ouvido”
93
, alerta
que o objetivo é apresentar algo que é diferente e divergente dessas teorias. Ele
assim se expressou:
89
Ver a respeito em Harris C. Coulter, Divided legacy. A history of medical thought, vol 1 (Washington,
DC: Wehawken Book Co, 1975) pp. 7-8.; Sandra Regina Kuka Mutarelli, Os quarto temperamentos na
filosofia de Rudolf Steiner. Dissertação de Mestrado. São Paulo: PUC, 2006, capítulo 1.
90
José Alberto Abouchedid, Samuel Hahnemann e a concepção de miasmas. Dissertação de
Mestrado. São Paulo: PUC, 2005
91
Hipócrates, Da Natureza do Homem. In: Henrique Cairus (Trad.). Da natureza do homem. Corpus
hippocraticum”. História Ciências Saúde. Manguinhos, (6: 395-430, 1999) p. 401.
92
Possivelmente o autor esteja se referindo aos filósofos pré-socráticos como Tales, Anaximandro,
Anaxímenes que acreditavam em um princípio único de todas as coisas.
93
Hipócrates, Da Natureza do Homem, p. 401
39
Alguns médicos dizem que o homem é apenas sangue; outros
afirmam ser o homem bile; outros ainda fleuma, e chegam,
todos elas a mesma conclusão; com efeito, dizem haver uma
substancia, a qual cada um quer nomear a sua maneira, e esta
substancia, sendo uma, muda o aspecto e a propriedade,
coagida pelo frio e pelo calor, e se torna doce e amarga, clara e
escura, e toma toda a sorte de outras características.
94
O autor do tratado escreveu: “digo que se o homem fosse uma unidade,
nunca sofreria”. E completou: “não haveria porque sofrer e ainda assim se sofresse,
haveria então um remédio único”. Mas, continuou, “há muitos remédios, pois
muitas substâncias no corpo, e o estado e dinamismo destas substâncias, pois elas
se esquentam, esfriam, secam e se umedecem, é que geram as doenças”
95
. A
doença é, nesta perspectiva, o arranjo das substâncias no interior do próprio corpo.
Assim, o homem adoece por causas internas, por influência do clima estas
substâncias são preponderantes ou não.
96
O que segue é um conjunto de objeções e argumentos contra a proposta de o
homem ser apenas sangue ou outra substância. O autor argumenta que as
substâncias que compõem o homem são sempre as mesmas, seja ele jovem ou
velho, no tempo frio ou quente. E ainda, cada substância aumenta ou diminui dentro
do corpo.
No tratado Da Natureza do homem aparece a concepção do corpo do
homem ser constituído por quatro humores: contém sangue, fleuma, bile amarela e
negra. Estas são as substancia no que existem no corpo do homem e pela sua
disposição, ele adoece ou mantém a saúde. Sua saúde é mantida quando esses
humores estão em harmonia tanto em proporção, quanto em relação às suas
propriedades e quantidades, mas sobretudo, quando são misturados.
O homem, por outro lado, adoece quando há falta ou excesso de um desses
humores, ou então quando ele se separa no corpo e não se une aos demais.
97
Pois,
se um dos humores se desloca para adiante de seu lugar, não só este lugar adoece,
mas também o local onde ele se aloja provoca dor. Da mesma maneira, causará dor
94
Hipócrates, Da Natureza do Homem, p. 402
95
Ibid, p. 402
96
Roberto de Andrade Martins & col., Contágio: A história das doenças transmissíveis, p. 38.
97
Hipócrates, Da Natureza do homem, p. 406
40
e sofrimento se este humor sair do corpo em excesso.
Cada um destes humores possui características e propriedades particulares.
O fleuma, é o mais frio do humores. No inverno ele aumenta no corpo do homem,
pois é o que está mais de acordo com aquela estação. Ele também é o mais
viscoso. No inverno, os homens escarram , as inchações tornam-se mais brancas e
aparecem outras doenças fleumáticas.
98
Na primavera o fleuma ainda está presente no corpo, mas com a diminuição
do frio, aumenta o sangue. O sangue aumenta por causa dos dias quentes e dos
temporais. A primavera possui características de acordo com este humor: quente e
úmida. Os homens são tomados por disenterias, o sangue lhes escorre pelo nariz.
No verão, o sangue mantém sua força e a bile aumenta no corpo e
permanece assim até o outono. A bile amarela, quente e seca, portanto, domina o
corpo no verão. Os homens, no outono, vomitam bile, e purgam muito biliosamente
99
A bile negra, seca e fria, no outono é abundante e vigorosa. Mas quando
chega o inverno, a bile torna-se parca e o fleuma aumenta novamente. “O corpo do
homem tem permanentemente todos estes humores que, segundo a estação anual
vigente, tornam-se, ora mais, ora menos abundantes, cada qual de acordo com sua
proporção e com sua natureza”.
100
Se os humores se misturam desta forma, segue o texto, as doenças que
aumentam no inverno logo diminuirão com a chegada da primavera e do verão. Do
mesmo modo as que predominam no verão, devem no outono diminuir de
intensidade até que chegue novamente o inverno. Este princípio guiará o médico
nos remédios e cuidados que deverá tomar com o doente. E ainda, a doenças que
for além do período de cada estação durará um ano.
As doenças que a repleção gera serão curadas com a evacuação. Do mesmo
modo, as doenças causadas pela evacuação excessiva serão curadas com a
retenção. As enfermidades causadas por exercícios excessivos são curadas pela
inércia. Para resumir, diz o texto:
O médico deve pôr-se em oposição às constituições das
doenças, às características físicas, às estações e às idades, e
98
Hipócrates, Da Natureza do homem, p. 407
99
Ibid.
100
Ibid, p. 407
41
relaxar o que estiver tenso, e retesar o que estiver relaxado.
Pois assim, o sofrimento cessaria de fato, e parece-me ser isso
a cura. As doenças provêm umas das das dietas, outras do ar,
o qual inspiramos para viver.
101
De acordo com o autor, quando muitos homens são tomados pela mesma
enfermidade ao mesmo tempo, a causa comum deve ser buscada. E segundo ele,
esta causa é o ar. Pois é evidente, que a dieta não é a causa, no caso das
epidemias, que diversos tipos de homens e mulheres são tomados pela mesma
enfermidade. Mas, por outro lado, quando indivíduos diferentes são atingidos por
enfermidades diferentes, as dietas, segundo o autor, desempenham papel central na
causa e na cura. Sendo assim, a forma de tratamento é a partir da observação das
excreções e prescrição de dietas adequadas.
Quanto às epidemias, o autor escreve:
Quando se instaura uma epidemia, é evidente que as dietas
não são sua causa; mas o que respiramos, este sim, é a causa,
e é obvio que este paira contendo alguma secreção insalubre.
É preciso nesse momento de epidemia, dar tais conselhos aos
homens: não mudar suas dietas, porque elas não são a causa
da doença; estar atento ao corpo que emagrece e se
enfraquece ao máximo, eliminando aos poucos a bebida e a
comida das quais está acostumado a fazer uso (...) Deve,
ainda, ser observado que o ar aspirado pela boca seja menos
volumoso e o mais puro possível, afastando-se, o quanto se
puder, dentro de seus países, das regiões nas quais a doença
tiver se assentado, e emagrecendo os corpos, pois assim os
homens usam o ar com menos força e freqüência.
102
O ar, carregado de alguma propriedade, secreção insalubre, é o agente da
epidemia. O ar causa a doença, o ar insalubre, de qualidade que é inspirado,
mas não existe a idéia de que exista alguma coisa no ar, algum organismo muito
101
Hipócrates, Da Natureza do homem, p. 416
102
Ibid, p. 418
42
pequeno, que não seja visível que venha de uma pessoa e passe para outra. No
entanto, o povo intuía isso pois lacrava as casas em que os doentes que haviam
morrido se encontravam antes, queimava seus objetos pessoais, etc. A população
em geral parecia, ao contrário do saber médico, admitir a transmissão de doenças
de uma pessoa para outra. Por exemplo, a peste que tomou Atenas no ano de 430
a.C foi descrita por Tucídides:
A terrível doença matava em poucos dias. Quando isso não ocorria,
produzia graves danos nas os, pés e orgão genitais. O cadáveres
eram deixados pelo chão e temendo contrair a doença, os parentes
abandonavam os doentes. Os costumes religiosos,a lei e a honra foram
deixados de lado nos momentos de maior mortalidade. Não era
possível queimar ou enterrar os corpos segundo a tradição ateniense.
A morte atingia a todos.
103
Parece na descrição que o povo acreditava que a doença poderia ser
transmitida, ao contrário do que dizia o conhecimento médico.
No Corpus Hipocrático encontramos em destaque o papel do ar, das águas e
dos lugares como agentes de doenças. Conforme o texto Ar, água e lugares, todo
médico que chegasse a uma cidade desconhecida deveria considerar o aspecto e a
direção do vento, que os efeitos da saúde da população variavam de acordo com
sua localização da própria cidade relativa ao vento
104
.
Da mesma forma, a natureza da água deveria ser considerada em seus
efeitos sobre a saúde
Mas voltemos à Sobre a natureza do homem. O texto nos apresenta um
esquema do corpo e a disposição das veias e artérias com o objetivo, parece-nos,
de encontrar remédios e orientar os procedimentos para o alívio e cura das
enfermidades: as flebotomias, conhecidas como sangrias no século XVI e XVII no
Brasil, são freqüentemente recomendadas como remédios para as dores que
acometem o corpo. Seja nas costas, na região lombar ou nos testículos, a flebotomia
é recomendada. O procedimento será feito em um lugar espefico, de acordo com o
103
Jean Charles Sournia e Jaques Ruffie, As Epidemias na História do Homem, (Lisboa: Edições 70,
1984), p. 73 e ss.
104
Hipócrates, “Água, terra e lugares”. In: Hipocratic Writings,( London: Penguin Books, 1983) pp.
148-169
43
sintoma. Deve-se ainda, alerta o texto, cuidar para que as incisões não sejam por
demais profundas.
Para os doentes que expelem pus sem estarem com febre, ou para aqueles
que a urina é muito carregada de pus sem haver dor, e também para aqueles que as
fezes estão cronicamente ensagüentadas, e que têm idade de 35 anos ou são mais
velhos, a enfermidade surge por uma mesma causa: a vida penosa enquanto eram
trabalhadores mais jovens em oposição a carne mole quando deixam de trabalhar.
Tornam-se muito diferentes e têm o corpo muito dividido entre o que era antes e o
que se tornou.
105
Pois, até aqui vemos que a saúde e a doença é justamente o arranjo dos
humores no corpo, seu excesso e deslocamento causa sofrimento e toda sorte de
dores e sintomas. No que se refere às doenças, a cura, segundo o corpus, implica
em um procedimento que busca opor-se a causa da doença. A doença, em resumo,
é uma patologia humoral.
A enfermidade e a saúde perdem parte de sua representação mítica e
ganham um significado natural. Poderíamos, além das febres e das dores,
apresentar a “Doença sagrada”
106
, assim era chamada a epilepsia na Antiguidade,
como parte deste “novo” olhar sobre o adoecimento.
Logo na abertura deste tratado vemos a intenção do autor: “Eu não acredito
que a 'Doença Sagrada' seja mais divina ou sagrada que qualquer outra doença
mas, ao contrário, tem características específicas e causa definitiva”.
107
Em resumo, o estudo das doenças, de acordo com este tratado deve
considerar:
(...) o quanto existe de comum e de individual na natureza
humana: na doença, no doente e em quem a prescreve
(porque deste depende o seu desenvolvimento favorável ou
não); na constituição geral e específica dos fenômenos
celestiais, e de cada região, nos costumes do povo, no regime,
nas profissões, na idade de cada um; na fala, nas maneiras de
105
Hipócrates, Da Natureza do homem, p. 425
106
Trata-se de um outro tratado do corpus hipocrático, que na abertura de sua tradução para o inlgês
traz o seguinte texto: “An attack on the popular superstitions about epilepsy, followed by an account of
the natural history of the disease”.
107
Hipócrates, The Sacred Disease. In: Hipocratic Writings,( London: Penguin Books, 1983), p. 237
44
ser, no silêncio, no pensamento, no sono, na insônia, nos
sonhos (...)
108
Galeno (século II) se baseou em várias concepções que estão presentes em
diversos tratados da coleção hipocrática e propôs a teoria humoral. A seu ver, cada
pessoa nasceria com uma certa combinação ou “tempero” dos quatro humores
básicos. Embora pudesse ocorrer que em algumas pessoas os quatro humores
estivessem perfeitamente equilibrados, na maioria dos casos haveria a
predominância de um ou dois humores. Isso contribuiria tanto para a formação de
tipos físicos diferentes como de personalidades diferentes
109
.
Veremos o que o autor propôs no sentido de compreender o adoecimento a
partir de sua obra A melhor constituição de nossos corpos. Galeno considerava que:
Nossos corpos são uma mistura de calor, frio, secura e
umidade; (2) deve-se distinguir as misturas conforme as
diferentes partes do corpo; (3) cada parte do corpo tem uma
causa para sua atividade; e (4) todas as partes do corpo terão
uma determinada disposição conforme seus propósitos
110
Segundo o médico de Pérgamo há duas causas para a dor em nossos
corpos: as influências externas e as excreções originadas a partir da ingestão do
alimento.
111
As influências externas são, por exemplo, quando alguém é aquecido,
resfriado, umedecido ou seco além do nível apropriado. Exaustão, tristeza, insônia e
aborrecimentos, entre outras, podem ser incluídos como efeito das influências
exteriores ao corpo. .
Uma boa saúde esta intimamente ligada a uma boa combinação dos
humores. Esta proporciona também imunidade para os males que podem acometer
o corpo e resistência à tristeza, fúria, insônia, aborrecimentos e, entre outras causas
e doenças, a peste.
112
Em resumo, o corpo estará fragilizado e propenso à
enfermidade conforme a combinação de seus humores, seu excesso ou escassez.
108
G. Berlinguer. A Doença, (São Paulo: Hucitec, 1998), p. 12
109
Roberto de A. Martins & col., Contágio:história da prevenção das doenças transmissíveis, p. 42.
110
Galeno, The Best Consitution of our Bodies. In: Galen: Selected Works, (Oxford:Oxford University
Press, 1997), p. 292
111
Ibid, p. 292
112
Ibid, p. 292
45
Como vimos acima, a condição adequada dos humores auxilia o corpo a
resistir às febres e às doenças em geral, incluindo a peste. Embora a peste atingisse
muitas pessoas ao mesmo tempo, algumas sobreviviam e não mais contraiam a
doença.
Para Galeno, os humores e sua combinação e deslocamento não podem
conduzir à enfermidade, ao aparecimento do sofrimento, mas influenciam no
enfrentamento da própria doença. A saúde reside no ideal de encontrar uma
combinação adequada dos humores, conforme sua quantidade e qualidade.
Vemos assim que a enfermidade no conjunto destes textos perde seu caráter
mítico, como vimos em Sófocles, e adquire um aspecto racionalista.
Resta-nos ainda llembrar um aspecto sobre o dinamismo psíquico: para
Galeno as faculdades da alma estavam localizadas no cérebro, no coração e no
fígado. Revendo as idéias de Platão, Aristóteles e dos estóicos, ele associou a
disposição e prevalência das misturas e temperamentos do corpo à loucura, à
sabedoria e às paixões.
No que se refere as paixões, os diferentes temperamentos produziam
diferentes efeitos (covardia, raiva, melancolia, etc). Estas concepções foram
estudadas e revistas por Tomás de Aquino que ao temperamento atribuiu a causa
disponente, o que há de material nas paixões. À alma, a causa principal. Esta
controvérsia persistiu até a idade moderna e estão presentes, como veremos, nas
idéias sobre as causas primárias e secundárias da doença.
113
1.4 SÊNECA, LUCÍLIO E A ENFERMIDADE: NÃO SE DEVE TEMER A
DOENÇA (CARTA LXXVIII E OUTRAS)
Até agora vimos duas perspectivas a respeito da doença: uma concepção
“mítica”, conforme aparece em Édipo Rei, e outra, uma descrição racionalista, como
a medicina hipocrático-galênica. Veremos agora as de Sêneca que enfatizarão os
efeitos dos afetos e da reflexão sobre a doença.
Sêneca, na era cristã, em suas Cartas a Lucílio, se preocupou em como
enfrentar o adoecer e sobretudo com a atitude do enfermo. Encontramos nestas
113
Lilian Al-C. P. Martins, Paulo José Carvalho da Silva, Sandra Regina Kuka Mutarelli, A teoria dos
temperamentos: do corpus hippocraticum ao século XIX. In: Memorandum, (14, 2008): pp 09-24
46
cartas alguns princípios que permearam as concepções jesuíticas a respeito do
enfermar e que estavam presentes nas Constituições da Companhia de Jesus e nos
Exercícios Espirituais de Inácio de Loyola (1491-1556), fundador da Companhia.
Sêneca, na carta LXXVIII, com o título “Não se deve temer a doença”
descreve já nas primeiras linhas o conhecimento sobre o sofrimento de Lucílio,
causado pelo catarro e leves acessos de febre, em conseqüência do resfriado
crônico. O próprio Sêneca se entristece com o estado de saúde de Lucílio porque
ele próprio sofrera do mesmo mal e conhecia os transtornos causados pela doença.
Escreveu que, com o tempo e o passar da juventude, suas forças foram se
esvaindo e que pensou em pôr fim em seus dias. Porém a dor que imaginava que
causaria a seu pai o encheu da coragem que precisava para continuar a viver e
suportar o sofrimento. Assim, “o simples ato de viver é às vezes um ato de
coragem.”
114
. Mas quais foram os consolos encontrados por Sêneca?
(...) os pensamentos que me trouxeram a paz tiveram sobre
mim o efeito de medicamento. Os consolos que as reflexões
morais proporcionam têm uma virtude curativa e tudo o que se
refere à alma é também útil ao corpo: os meus estudos me
salvaram. É à Filosofia que devo o meu restabelecimento.
115
Por outro lado, a companhia dos amigos e diversas conversas contribuíram
para sua recuperação. Ele comentou que nada restabelece e reanima tanto um
doente como a afeição dos amigos: “Sim, eu achava que não sobreviveria senão
com eles, pelo menos por eles; parecia-me que não deveria entregar a alma, mas
sim transmití-la a eles.”
116
Portanto, solicita Sêneca que Lucílio confie em seus
conselhos:
O médico te prescreverá passeios, exercícios; ele vai tirar-te da
inação, à qual nos entregamos quando temos saúde oscilante;
vai fazer-te prometer que lerás em voz alta para exercitar a
respiração, o que fará bem à tua laringe e aos teus pulmões
114
Sêneca, As Relações Humanas: A amizade, os livros, a filosofia, o sábio e a atitude perante a
morte, (São Paulo: Landy Editora, 2007), p. 113
115
Ibid, p. 113
116
Ibid, p. 114
47
enfermos, que farás passeios pelo mar para dar um leve
movimento aos teus intestinos, que observaras um regime, que
beberás, de vezem quando, vinho para recuperar as forças,
que te absterás de vinho para não agravar e exasperar a tua
tosse. Mas eis o remédio que eu te prescrevo, não apenas para
essa doença, mas também para a vida toda: despreza a morte.
Quando deixamos de temê-la, nunca mais seremos infelizes.
117
Esta passagem nos mostra justamente a junção de duas idéias: o sofrimento
e os remédios para os males que tomam o corpo, e o consolo e força presente no
pensamento, na Filosofia, que alivia a dor de existir do enfermo, a dor da alma.
Assim, enquanto o temor da morte conduz o espírito a um estado de
desassossego e angústia, seu desprezo leva a felicidade e ao apaziguamento dos
afetos.
118
Sêneca escreveu que em qualquer doença três graves aborrecimentos: o
medo da morte, o sofrimento físico e a suspensão dos prazeres.
Ao falar sobre a morte, o que se desvela é justamente a natureza do homem:
que, segundo escreve, o medo não está ligado a doença, mas sim à nossa
natureza. “Tu morrerás, não porque estás doente, mas porque vives. É isso que
espera mesmo que estejas curado; recuperando a saúde, não escaparás da morte,
mas da doença.”
119
De qualquer forma, a morte é natural ao homem. E nas palavras
de Sêneca é representada como parte da vida. A vida, por outro lado “é uma viagem
pelo mar.”120
Vemos portanto, que as primeiras considerações a respeito da doença nos
conduzem ao problema da natureza do homem. O mesmo acontecerá com os
discursos de Antônio Vieira sobre o enfermar e, sobretudo em suas idéias que estão
pronunciadas no “Sermão de São Roque”. O mesmo problema a respeito da morte,
no “Sermão da Quarta-feira de Cinzas” resume-se ao aforisma que nas palavras do
jesuíta mais parece uma sentença: pulvis es, et in pulverem reverteris.
Mas a enfermidade traz consigo sofrimentos que são peculiares a ela.
117
Sêneca, As Relações Humanas: A amizade, os livros, a filosofia, o sábio e a atitude perante a
morte, p. 114
118
Sêneca, A tranquilidade da alma, (São Paulo: Editora Escala, 2001), p. 36-37
119
Sêneca, As relações humanas: A amizade, os livros, a filosofia, o sábio e a atitude perante a morte,
p. 114
120
Ibid, p. 105
48
Vejamos nesta longa passagem do texto que a presença da teoria dos humores:
Os mais dolorosos sofrimentos se alojam nas partes mais
secas do corpo: os nervos, as articulações e todos os locais
desprovidos de carne em geral, que ficam sujeitos às mais
atrozes sensações. Mas logo essas partes ficam adormecidas
e a própria dor lhes tira a sensação, seja porque o sopro vital,
desviado do seu curso natural, se altera e perde esse vigor que
informa o nosso centro sensitivo, seja porque o humor
corrompido, não podendo escorrer, reflui sobre si mesmo e
suprime todas as sensibilidades das regiões em que está
acumulado.
121
No entanto, Sêneca articula dois aspectos: o sofrimento e o pensamento:
(...) é possível que nos consolemos de um grave sofrimento,
pensando que necessariamente o deixaremos de sentir se o
sentirmos forte demais. Por que os ignorantes suportam mal o
sofrimento físico? Porque o têm o costume de ficar atentos à
alma, totalmente ocupados com o corpo. Eis por o sábio, o
homem superior, separa alma do corpo e cultiva relações com
a melhor parte do seu ser, a parte divina (...)
122
Pensamentos, como cultivo da alma, e sofrimento, como representação do
desarranjo humoral, integram o mesmo corpo. No entanto, o corpo é parte inferior,
enquanto alma recebe o status de parte divina.
O nosso corpo é para a alma um peso que lhe é imposto: ele a
esmaga, a mantém em ferros, quando a filosofia não vem
socorrê-la para fazê-la contemplar o espetáculo da natureza e
121
Sêneca, As Relações Humanas: A amizade, os livros, a filosofia, o sábio e a atitude perante a
morte, p. 115
122
Ibid, p. 115
49
conduzi-la da terra ao céu.
123
Todo o sofrimento, segundo Sêneca, depende da idéia que se tem das
coisas: isto não é só uma verdade para o amor, a ambição e a intemperança sexual,
é um princípio que se aplica também para a dor. É, portanto, necessário que a dor
que sofremos no passado seja esquecida. É preciso então lutar contra a dor: “Mas o
que faz a maior parte dos homens? Atrai para a própria cabeça a queda que não
soube impedir.”
124
O autor indaga se seria possível combater a dor e a enfermidade com a
virtude, a força moral. E responde que os pensamentos podem distrair a dor. A
lembrança de histórias vividas ou ouvidas de homens que enfrentaram terríveis
sofrimentos sem que se desesperassem poderia ajudar a enfrentá-las.
Pois, a doença interrompe, sem suprimir, os prazeres corporais, modificam-se
as dietas e outras atividades são abandonadas momentaneamente. A reflexão faz
parte da recuperação da saúde.
Para onde nos conduz a reflexão a respeito da doença e sua relação com o
pensamento, a doença e a cura? Deixemos que o próprio Sêneca nos responda:
Nessa louca corrida do tempo, perdemos de vista primeiro a
infância, em seguida a adolescência, depois todo o período que
se estende entre a idade adulta e a velhice e participa de
ambas, seguido dos melhores anos de velhice; enfim, surge o
termo comum a todo gênero humano. Pensamos, em nossa
loucura, que tropeçamos num obstáculo: na verdade, é um
porto onde às vezes é preciso chegar, e onde o podemos
nunca nos recusar a entrar.
125
Em resumo, o problema da enfermidade se conjuga com a natureza do
homem e como em Édipo ao efeitos do engano, do tropeço: ao não-saber.
123
Sêneca, As Relações Humanas: A amizade, os livros, a filosofia, o sábio e a atitude perante a
morte, p 139
124
Sêneca, As Relações Humanas: A amizade, os livros, a filosofia, o sábio e a atitude perante a
morte, p. 116-117
125
Ibid, p. 105
50
1.5 DESEJO, ENFERMIDADE E DOR: ARISTÓTELES E TOMÁS DE
AQUINO
Consideramos relevante fazer uma breve revisão das concepções a respeito
da saúde e da doença na psicologia filosófica conforme expressas em alguns dos
textos de Aristóteles (De Anima, Retórica, Problema XXX,1) e Tomás de Aquino
(especialmente o “Tratado sobre as Paixões da Alma”, parte de sua Suma
Teológica). Veremos nestes textos a relação entre corpo, alma e enfermidade, em
contraste com a idéia de natureza e finalidade do homem.
Lançamos duas questões ao leitor: Poderíamos dizer que a enfermidade
adquire diversos sentidos nestes textos? Além da concepção natural, que se opõe
as idéias míticas a respeito da enfermidade, as paixões da alma levariam o corpo (e
a própria alma) a enfermidade e ao sofrimento?
Até aqui vimos como o tema da enfermidade e da saúde nos remete as idéias
a respeito da natureza do Homem. Aristóteles não se absteve desta questão. Ele
comentou:
Não é possível evidentemente que o corpo do animal seja
simples, quer dizer, de fogo, por exemplo, ou de ar. Pois
sem o tato não é possível que ele tenha qualquer outro sentido,
e todo corpo dotado de alma, como foi dito, é suscetível ao
toque. Todos os outros elementos, com exceção da terra,
poderiam se tornar órgãos sensoriais, e todos produzem
percepção sensível por perceberem através de um outro, a
saber, através dos intermediários (...) apenas o tato parece ter
percepção por si mesmo
126
.
Quanto a possibilidade do homem ser formado só de terra:
Tampouco ele poderia ser de terra. Pois o tato é como que
uma média entre todos os tangíveis, e seu órgão sensorial é
capaz de receber não apenas as várias qualidades da terra,
126
Aristóteles, De Anima, ( São Paulo: Editora 34, 2007), p. 130
51
mas também o quente e o frio e todas as demais qualidades
tangíveis. Por isso o percebemos com os ossos, cabelos e
tais partes, que são de terra. Por isso também as plantas não
têm qualquer percepção sensível: porque são de terra.
127
Aristóteles define desta forma o tato como o principal dos sentidos, “sem o
qual o animal necessariamente morre”.
128
O excesso de cor, sabor ou som,
corrompe o órgão sensorial. Todo excesso do objeto perceptível arruína o órgão, e o
excesso do objeto tangível arruína o tato e ameaça a existência do animal. E, se o
animal possui os sentidos e isto resulta em seu bem-estar, o excesso o objeto
corrompe esta condição. Não é o objeto em si que corrompe a percepção, é seu
excesso. Guardemos na memória a palavra “excesso”.
Encontramos na Retórica de Aristóteles, idéias a respeito da relação entre a
palavra, a cura da doença e as paixões da alma. Em outras palavras, idéias a
respeito da relação entre corpo - alma.
A retórica, definida por Aristóteles como a faculdade de observar os meios de
persuasão disponíveis sobre quase todos os assuntos que se apresentam ao orador,
contribui com a medicina, pois:
(...) é possível dar um tratamento excelente mesmo àqueles
que nunca gozaram de boa saúde, pois a função da medicina
não é apenas curar um homem de maneira rápida, mas colocá-
lo, tanto quanto possível, no caminho da saúde.
129
Portanto, a persuasão é uma ferramenta (um saber) que, através das
características do orador, de seu estado psicológico (e do doente) e de seu
argumento, recoloca o doente no caminho da saúde.
Mesmo quando Aristóteles se refere à arte da retórica e à saúde, a natureza e
finalidade do homem estão associadas.
Podemos dizer que todo indivíduo, assim como todos os
127
Aristóteles, De Anima, p. 130
128
Ibid.
129
Aristóteles, Retórica, (São Paulo: Rideel, 2007), p. 22
52
homens, têm o mesmo objetivo com relação a determinado fim,
o qual determina aquilo que eles afirmam e o que eles negam
(...) esse fim é a felicidade.
130
O filósofo grego define felicidade como prosperidade associada à virtude. Ela
é a atividade conforme a virtude, um boa condição da índole e do corpo. Pois entre
as partes que constituem a felicidade (os chamados bens externos: bem-nascer,
abundancia dos amigos, riqueza, bons filhos, etc) temos as excelências corpóreas:
saúde, beleza, força, estatura desenvolvida, honra, boa sorte, entre outros (os bens
da alma e do corpo são chamados de internos)
131
.
Assim, a excelência do corpo é a saúde, condição que permite ao homem
fazer uso de seu corpo, enquanto que “aquilo que não está em excesso é bom e o
que é maior do que deveria ser é ruim”.
132
o “não excesso” está, na visão do filósofo,
relacionada a saúde, enquanto que o excesso está ligado a uma condição em que o
homem não pode usar o corpo para seu fim.
Pelo excesso se corrompe o sentido, o homem não possui a força, perde
enfim o bem-estar do corpo. Assim como o mesmo excesso dos sentidos alterará
sua percepção, seu comportamento, sua virtude. Sobre os efeitos da doença,
Aristóteles comentou:
“(...) as pessoas afetadas por doença, pobreza, amor, sede ou
quaisquer outros desejos de insatisfação, estão propensas à
raiva e o facilmente estimuladas a ela, especialmente contra
aquelas que desprezam seu sofrimento.”
133
Segundo o filósofo, a raiva é ao mesmo tempo uma maneira de reagir ao
insulto, ao menosprezo, e ao desejo insatisfeito.
A discussão a respeito da natureza e da doença está presente também no
“Problema XXX, 1 – O Homem de Gênio e a Melancolia”:
Por que razão todos os que foram homens de exceção, no que
130
Aristóteles, Retórica, p. 35
131
Ibid.
132
Ibid, p. 41
133
Ibid, p. 85
53
concerne à filosofia, às ciências do Estado, à poesia ou às
artes, são manifestamente melancólicos, e alguns a ponto de
serem tomados por males dos quais a bile negra é a origem
(...)?
134
Conforme Aristóteles, a natureza e o arranjo, a mistura do corpo, conduzem à
melancolia. O excesso de bile negra no corpo a produz. Em outros casos a
inclinação natural do homem leva à doença.
135
Se a mistura da bile negra está em pequena parte no corpo, os indivíduos
possuem uma natureza média, enquanto aqueles que têm em grande quantidade
são diferentes de muitos. Se a mistura é concentrada temos os melancólicos, se a
concentração é atenuada, encontramos os homens de exceção.
136
No que se refere à natureza, se os homens não tomam cuidado, surgem as
doenças relacionadas à bile negra. Em uns aparece a epilepsia, em outros
apoplexia, fortes arritmias ou terrores, ou ainda estados de excessiva confiança.
137
As causas para o aparecimento das doenças constituem-se, mesmo quando efeito
do excesso no corpo, como naturais.
Quanto aos males que provocam dor e desejo, Aristóteles escreve: “Os males
destrutivos e dolorosos são: a morte, sob seus diversos aspectos; os ferimentos
corporais; e as aflições, a velhice, as doenças e a falta de alimentos.”
138
Assim a alma é também causa do movimento, pois atua “em vista de que. E
o em vista de” tem dois aspectos: “de que e “em que”.
139
Desta forma, finalidade
(de acordo com a natureza do homem) e objeto (o que proporciona a realização
desta natureza) ganham destaque nestas proposições.
No entanto, o desejo não tem função deliberativa, presente somente nos
animais que podem calcular, e algumas vezes vence e dissuadi a vontade.
140
Desejo e raciocínio causam movimento:
Pois o objeto desejável move e por isso o raciocínio também
134
Aristóteles, Problema XXX, 1 O Homem de Gênio e a Melancolia, (Rio de janeiro: Lacerda
Editores, 1998), p. 80
135
Ibid, p. 99
136
Ibid.
137
Ibid.
138
Aristóteles, Retórica, p. 102
139
Ibid, p. 80
140
Aristóteles, De Anima, p. 127
54
move: porque o desejável é seu princípio. E a imaginação,
quando move, não move sem desejo. algo único, de fato,
que faz mover: o desejável. Pois, se dois movessem quanto ao
lugar o intelecto e o desejo moveriam de acordo com uma
forma comum. Na verdade mostra-se que o intelecto não faz
mover sem o desejo (pois a vontade é desejo, e quando se é
movido de acordo com o raciocínio, também se é movido de
acordo com a vontade. Mas o desejo move deixando de lado o
raciocínio, pois o apetite é um tipo de desejo.
141
Os desejos, divididos entre racionais (aqueles que os indivíduos, sob diversas
influências, são induzidos a ter) e irracionais (naturais, originados no corpo),
conduzem o corpo não somente ao prazer, a satisfação, mas podem também levá-lo
a dor. Para o filósofo, memória, imaginação, percepção e as emoções figuram entre
os aspectos relacionados a atitude e ao comportamento.
142
Em resumo: a enfermidade é um mal que além da dor, provoca desejo.
Desejo que, como as outras potências da alma, está presente em alguns seres. Pois
não é o desejo, ou qualquer paixão, corruptível em si mesmo. Desejar então é
natural, sua origem está no corpo e na alma.
Não seguiremos adiante, basta-nos encerrar esta questão considerando que,
segundo Aristóteles:
A virtude está relacionada com prazeres e sofrimentos; que,
pelos mesmos atos dos quais ela se origina, tanto é acrescida
como, se tais atos são praticados de maneira diferente,
destruída; e também que os atos de onde surgiu a virtude são
os mesmo em que ela se atualiza”
143
De modo análogo a Aristóteles, Tomás de Aquino admitia que: “(...) os objetos
do tacto são dolorosos não quando desproporcionados à potência apreensiva,
mas também quando contrários a natureza.” A dor corporal é portanto, própria à
141
Aristóteles, De Anima, p.124-125
142
Aristóteles, Retórica, p. 60-61
143
Aristóteles, Ética a Nicômaco, (São Paulo: Martin Claret, 2003) p. 45
55
apreensão dos sentidos.
144
Assim, segundo Tomás de Aquino, “Prazer e dor podem ser causados por
dois conhecimentos, a saber, ou pela apreensão dos sentidos exteriores, ou pela
apreensão interior do intelecto ou da imaginação”
145
.
A dor, segundo Tomás, é o desaparecimento súbito da saúde do corpo,
“desse corpo que a alma, usando mal, expôs a corrupção”.
146
A saúde portanto,
segundo o autor, é um efeito produzido pelo movimento da alma. O corpo adoecido
é a materialidade deste movimento.
147
Desse modo, o autor considera a dor como um gênero da tristeza e paixão
da alma. Se é assim, como toda paixão, a enfermidade causará movimento e prazer.
(...) deve-se dizer que a própria dor pode ser deleitável,
acidentalmente, quando acompanhada de admiração, como
nos espetáculos; ou quando nos faz lembrar o ser amado e faz
sentir o amor daquele de cuja ausência sofre. Por isso o amor
prazer, a dor e tudo o que procede do amor, é deleitável
enquanto faz sentir o amor o amor.
148
Resumindo, Tomás de Aquino, apresenta o sofrimento e o prazer como
efeitos do movimento provocado pela dor. E ainda, quando se refere à ausência do
objeto, o amor e a relação com a dor corporal, desvela uma relação entre a
exterioridade e interioridade do indivíduo
A dor exterior, a doença corporal, é causada por algo repugnante que
corrompe o equilíbrio do corpo no qual a vida reside. Enquanto que a dor interior é
causada por alguma imaginação do mal.
149
No entanto, dor exterior e dor interior convergem e divergem em alguns
pontos. Nas palavras de Tomás de Aquino:
144
Tomás de Aquino, Suma Teológica, Vol III, (São Paulo: Edições Loyola, 2003), p. 427
145
Ibid, p. 427
146
Ibid, p. 425
147
Lilian Al-C. P. Martins, Paulo José Carvalho da Silva, Sandra Regina Kuka Mutarelli, “A teoria dos
temperamentos: do corpus hippocraticum ao século XIX”. Ver também Claudio Ivan de Oliveira, “A
psicologia de Tomás de Aquino: a vontade teleologicamente orientada pelo intelecto” In:
Memorandum, (17, 2009): pp 08-21
148
Tomás de Aquino, Suma Teológica, p. 429
149
Ibid, p. 438
56
Coincidem em que ambas são movimentos da potência
apetitiva (...) Divergem quanto às duas condições requeridas
para a tristeza e para o prazer: pela causa, que é o bem e o
mal unido; e pela apreensão. Com efeito a causa da dor
exterior é a união com o mal que repugna ao corpo e a causa
da da dor interior é a união com o mal que repugna o apetite.
150
Tomás de Aquino comenta que, em alguns casos, a dor exterior é
acompanhada da dor interior e explica:
(...) deve-se dizer que as mudanças corporais são produzidas
mais pela dor exterior, seja porque a causa da dor exterior é
algo que corrompe unido ao corpo, o que exige a apreensão do
tato; seja porque o sentido exterior é mais corporal que o
sentido interior, como o apetite sensitivo é mais que o
intelectivo.
151
Quanto às causas da dor, vimos que Tomás de Aquino se refere a algo
repugnante que corrompe o equilíbrio do corpo. Equilíbrio sobre o qual repousa a
vida. Porém ao considerar a tristeza como um tipo de dor, e diferenciar exterior e
interior de um mesmo corpo, é o apetite, o desejo, que ganha luz. Pois é o desejo
causa da dor? Em suas palavras: “(...) deve-se dizer que o prazer e a dor que lhe é
contrária visam o mesmo objeto, mas sob razão contrária; pois o prazer implica a
presença de algo, e a tristeza, sua ausência.”
152
. E acrescenta:
(...) a concupiscência ou cupidez do bem é causa de dor,
também o desejo de unidade, ou o amor, deve ser afirmado
como causa da dor. (...) a dor não é causada pelo desejo de
qualquer unidade, e sim da unidade em que consiste a
150
Tomás de Aquino, Suma Teológica, p. 429
151
Ibid, p. 439-440
152
Ibid, p. 444
57
perfeição da natureza.
153
Desejo de unidade é portanto afirmado enquanto causa da dor, e como toda
paixão da alma, pode agir sobre o corpo no sentido de impedi-lo de qualquer ação.
Deve-se dizer que: “porque a alma naturalmente move o corpo, o movimento
espiritual da alma causa naturalmente mudanças no corpo.”
154
. E continua:
(...) aquelas paixões da alma que implicam movimento do
apetite para obter algo, não repugnam à moção vital segundo a
espécie, mas podem repugnar segundo a quantidade: como o
amor, a alegria, o desejo, etc. Por isso, essas paixões,
segundo sua espécie, ajudam a natureza do corpo, mas por
excesso podem prejudicar.
155
1.6 A ENFERMIDADE NA COMPANHIA DE JESUS
.
Como sabemos, era tradição que os Jesuítas da Companhia de Jesus, ordem
religiosa fundada por Ignácio de Loyola (1491-1556), possuíssem sólida formação
filosófica baseada na convergência de tradições medievais e os novos saberes do
Humanismo e Renascimento.
156
Como observou Paulo José Carvalho da Silva:
No fluxo do Renascimento, os jesuítas descobriram a
Antiguidade. Porém eles não se deixavam seduzir apenas
pelos segredos de uma língua elegante, pelos seus
encantamentos, pela disciplina que forma a inteligência e o
gosto. Eles viam na cultura antiga a possibilidade de encontrar
uma “fonte de energia moral e princípio das mais altas
153
Tomás de Aquino, Suma Teológica, p. 447
154
Ibid, p. 455
155
Ibid.
156
Paulo José Carvalho da Silva, A Tristeza na Cultura Luso-brasileira - Os Sermões de Padre
Antônio Viera, (São Paulo:EDUC, 2000) p. 16.
58
virtudes”
157
.
Com os novos modos de pensar o homem e a natureza, iniciou-se uma
“revisão vigorosa” de vários pontos sobre os seres vivos e a cosmologia. Esta
revisão nos séculos XVI e XVII não era uma continuação do aristotelismo medieval,
“pois nem todos os leitores de suas obras estavam voltados para o passado”, deu-se
em diálogo com o platonismo, o estoicismo, epicurismo e outras correntes filosóficas
antigas e modernas.
158
Para os jesuítas, conforme as Constituições, a teologia permanecia como a
disciplina superior na hierarquia dos campos do saber, acima da matemática, da
física e da chamada ciência da alma. Ela, a teologia, funcionava como fundamento
e guia para os diversos modos de buscar o saber e sua utilização prática.
A medicina não era ensinada em suas escolas, apesar de alguns os
possuírem algum conhecimento sobre a arte de curar.
Podemos observar que nas Constituições decretava-se que não haveria
“medicina jesuítica”, mas que existira um uso particularmente jesuítico do discurso
médico”.
159
A ciência da alma, por sua vez, estava condicionada aos debates que
incluíam diferentes interpretações a respeito do De anima de Aristóteles.
160
Segundo os tratados de Coimbra e os comentário de De anima e Ethica a
Nichomachea, estes últimos atribuídos ao padre Manuel Góis:
(...) a alma é una e individual, princípio da vida e constituída de
três partes funcionais: a vegetativa (responsável pelo
crescimento, nutrição e geração); a sensitiva (sentidos,
paixões, imaginação, memória e locomoção) e a racional
(razão e vontade)
161
Em vista da dispersão dos jesuítas pelo mundo, era exigido dos aspirantes,
além dos exercícios espirituais, a peregrinação e a humildade, a pregação e a
157
Paulo José Carvalho da Silva, A Tristeza na Cultura Luso-brasileira - Os Sermões de Padre
Antônio Viera, p. 17
158
Paulo José Carvalho da Silva, “A Ciência da Alma da Antiga Companhia de Jesus: Reflexões sobre
História e Epistemologia da Psicologia”. In: Circumscribere (3, 2007): pp 1-10
159
Paulo José Carvalho da Silva, “Medicina do Corpo e da Alma: Os Males Corporais e o Exercício da
Palavra em escritos da Antiga Companhia de Jesus”. In: Memorandum (5, 2003).
160
Ibid.
161
Ibid.
59
confissão, o trabalho temporário em hospitais pois “estar no mundo permitia
conhecê-lo”.
162
Conhecer o mundo sem perder de vista a si mesmo era uma questão de
grande importância para os dirigentes da Companhia tanto ao que se referia ao
sucesso de sua atuação missionária, quanto do ponto de vista individual relacionada
à saúde e a salvação.
163
A primeira versão das Constituições apareceu no ano de 1539, mas sofreu
alterações em 1547, 1549, 1556 e 1594. Ela é um documento escrito com o objetivo
de sistematizar os meios para conservar a união comunitária da Ordem, uma vez
que ela se dispersaria pelo mundo.
164
Pelo mundo, os padres jesuítas enfrentaram por diversas vezes a peste e
outras enfermidades.
Em 1576, por ocasião da peste em Milão, os jesuítas, ainda que em número
reduzido, se encontravam na cidade. Os líderes da Companhia exitavam em mandar
os padres a Milão pois a enfermidade significava a morte até mesmo para um
jesuíta. Em 1586, estavam também na Romania na ocasião em que houve outra
aparição da doença que chamaram de peste. Assim como, em situações análogas,
se encontravam em Lisboa e Viena.
165
Em 1577, Antonio Possevino publicou anonimamente um panfleto intitulado
Cause et remedii della peste, et d´altre infermitá. Nele está presente a noção cristã
de enfermidade como uma ferramenta de Deus para a punição dos pecados.
A enfermidade adquire um duplo papel. É ao mesmo tempo, punição e
possibilidade de redenção. Ao contrário de outras idéias, os jesuítas o atribuíam
ao demônio o aparecimento da peste. Os jesuítas se referiam as epidemias de peste
no século XVI como a “visita de Deus”.
166
. Além de ser interpretada como um aviso
divino, a peste era vista como passível de transformação em ferramenta
educacional.
Em seus relatos sobre a peste, os jesuítas relacionam as paixões da alma a
162
Paulo José Carvalho da Silva, “A Ciência da Alma da Antiga Companhia de Jesus: Reflexões sobre
História e Epistemologia da Psicologia”
163
Paulo José Carvalho da Silva, “A Ciência da Alma da Antiga Companhia de Jesus: Reflexões sobre
História e Epistemologia da Psicologia”
164
Paulo José Carvalho da Silva, “A Ciência da Alma da Antiga Companhia de Jesus: Reflexões sobre
História e Epistemologia da Psicologia”
165
A. Lynn Martin, Plague? Jesuit account of Epidemic Disease in the 16
th
Century, (Missouri,
Sixteenth: Century Journal Plubishers, 1996), p. 82 e seguintes
166
Ibid, p. 93
60
esta enfermidade. A seu ver, haveria dois tipos de causa para a peste: primária e
secundária. A causa primária é o desejo de Deus em resposta aos atos humanos. A
secundária, a disposição dos humores no corpo, apesar dos jesuítas descreverem a
teoria humoral da doença, eles não analisaram a partir dela porque uma pessoa
contraia a peste. Entre as causas secundárias mencionam também os ventos e
temor da absorção de ares pestilentos
167
.
Ambas as causas possuem relação com a questão do natural e do saber.
O tema da enfermidade estava presente nas Constituições no sentido de
fornecer informações sobre o tratamento e o papel do enfermo e do jesuíta frente
as doenças de maneira geral. Em relação ao enfermo:
(...) deve guardar a obediência com grande pureza, não
somente aos Superiores espirituais, para que dirijam a alma,
mas também, com a mesma humildade, aos médicos corporais
e enfermeiros, para que olhem pelo corpo. Pois os primeiros
tratam da saúde da alma, e os segundos da perfeita saúde do
corpo.168
Além disso, o doente deve mostrar humildade e paciência para não afetar
aqueles que o visitam e tratam
169
.
Desta forma, recomenda-se que se procure tirar proveito da doença. E não
somente para si mesmo, mas mostrando paciência e humildade, colabora-se para a
edificação dos outros. Obediência ao médico e ao enfermeiro indica o
apaziguamento das paixões e a aceitação da doença. E a própria doença é “um dom
da mão de nosso Criador e Senhor, pois não o é menos que a saúde.”
170
A mesma
proposição está nos Exercícios Espirituais de Inácio de Loyola e se relaciona ao
problema da própria natureza do homem.
Em resumo, em Constituições determina-se que: “Tenha-se cuidado com os
doentes. O enfermeiro logo que saiba de sua indisposição, se julgar que se trata de
167
A. Lynn Martin, Plague? Jesuit account of Epidemic Disease in the 16
th
Century, p. 82
168
Constituições da Companhia de Jesus e Normas Complementares, (São Paulo: Edições, 1997), p.
58
169
Ibid, p. 58
170
Ibid, p. 108
61
coisa de importância, deve avisar o Superior e chamar o médico”
171
O doente deveria se preocupar apenas com a obediência e o controle de seu
ânimo. Quanto aos remédios e cuidados nutricionais, isso permanecia a cargo do
jesuíta.
Por outro lado, a doença abre a possibilidade, segundo o que aparece em
Constituições, de violentos ataques do demônio que muitas vezes suprime em
grande parte o uso das potências da alma. Por isso, recomendava-se, que o
Superior ficasse bem atento ao doente que o médico havia declarado como estando
em perigo de vida. Quando nada mais se puder fazer pelo doente, dever-se-ia
encomendá-lo a Deus e vigiá-lo até sua alma apartar-se do corpo.
172
Quando certos doentes estivessem delirando e tivessem perdido o uso da
razão devido à doença, era recomendado: “podem ser poucos a assistí-lo; os que
merecem mais confiança”.173
Depois da morte, era recomendado que se guardasse o cadáver. O
sepultamento deveria ocorrer só depois de se recitar o ofício na presença das
pessoas da casa, porém era necessário observar o mau cheiro, sobretudo nos dias
de calor, e nesses casos, era urgente apressar-se.
A doença era vista como um bem, de modo análogo à saúde. Ambas, eram
consideradas como bens originados no Criador e de acordo com a natureza e os
pecados do homem. A doença, de modo semelhante ao expresso por Tomás de
Aquino, causava efeitos sobre o corpo. Poderia abrir caminho ao demônio à medida
que interrompia o uso das potências da alma.
Segundo Abílio Salgado, no século XVI as novas enfermidades encontradas
pelos primeiros portugueses e a ausência de médicos para dispensar tratamento
aos doentes, impulsionaram os trabalhos jesuíticos sobre os cuidados a respeito das
enfermidades. Além do calor dos trópicos que causava o adoecimento dos colonos,
suas roupas excessivamente pesadas, volumosas e desconfortáveis, eram
inadequadas para o clima.
174
Durante os dois culos em que os jesuítas permaneceram no Brasil, (de
1549 a 1759) prestaram assistência médica aos índios. Alguns dos padres
171
Constituições da Companhia de Jesus e Normas Complementares, p. 115
172
Ibid
173
Ibid, p. 186
174
Abílio Salgado, “Aspects of Disease and Healing in Early colonial Brazil”. In: Marques, M.G. e Cule,
J. The great maritime Discoveries and World Health, Procedings of the first int. C. On the great M.D.
And W.H, Escola Nacional de Saúde Pública, (10-13, 1990,1991), p. 140-141
62
possuíam algum conhecimento de Medicina, pois a tinham estudado, outros aqui
aprenderam praticando a arte de curar.
175
Vejamos brevemente, conforme apresentou Darcy Ribeiro no livro O povo
brasileiro, as enfermidades no Brasil.
Mais que as espadas e os arcabuzes, as grandes armas de conquista
responsáveis pela depopulação do Brasil foram as doenças desconhecidas dos
índios e que chegaram por intermédio dos invasores.
176
Em 1562 e 63, por exemplo,
epidemias de varíola mataram 30 mil índios e negros. Durante a epidemia, as
aldeias permaneciam cheias de mortos e gente faminta, assim os índios
entregavam-se aos brancos como escravos em troca de farinha.
Estima-se que a população indígena diminuiu em função das epidemias, pelo
desgaste do trabalho escravo e as guerras, de aproximadamente cinco milhões para
dois milhões em dois séculos.
Uma das primeiras tentativas que conciliava o tratamento aos enfermos e
catequização foi justamente apropriar-se da confiança e do conhecimento indígena,
como foi o caso de José de Anchieta.
177
Os cuidados aos enfermos faziam parte,
como observa Paulo José Carvalho da Silva, de um projeto evangelizador no
Brasil
178
.
Nesse sentido, o poder do pajé ficava enfraquecido, que tinha,
normalmente, participação no processo de cura do doente e em caso de
aparecimento de alguma desordem. José de Anchieta comentou sobre o trabalho do
pajé, entretanto, acrescentou críticas, conforme transparece no trecho que se segue:
Aqueles feiticeiros de quefalei são tidos por eles em grande estimação,
porquanto chupam aos outros, quando são acometidos de alguma dôr, e
assim os livram das doenças e afirmam que têm vida e a morte em seu
poder. Nenhum deles comparece diante de nós, porque descobrimos os
seus embustes e mentiras
179
.
175
Lycurgo Santos Filho, História Geral da Medicina Brasileira, (São Paulo:EDUSP-HUCITEC, 1991),
p. 118 e seguintes
176
Darcy Ribeiro, O povo brasileiro, (São Paulo:Companhia das Letras, 1995), p. 52
177
Abílio Salgado “Aspects of Disease and Healing in Early colonial Brazil”, p. 139-155.
178
Paulo José Carvalho da Silva, “Medicina do Corpo e da Alma: Os Males Corporais e o Exercício da
Palavra em escritos da Antiga Companhia de Jesus”
179
José de Anchieta, Cartas Jesuíticas III, Cartas fragmentos Históricos e Sermões,(Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira S.A, 1933), Disponível nos Arquivos Digitalizados, CESIMA-PUC-SP, p. 42
63
De acordo com Abílio Salgado, juntamente com as enfermidades causadas
pelo clima, malária, febres, os jesuítas encontraram um outro tipo de desordem, que
ele chamou de psicossomática
180
, que estava relacionada à sugestão exercida por
parte do pajé sobre o enfermo.
Nas visitas aos enfermos, os padres levavam, além do medicamento, o
“remédio da alma”. Não demorou para que enviassem cartas aos seus superiores na
Europa relatando Sobre a consideração que haviam obtido por parte dos índios que
se traduzia em seu ganho de confiança. Isso transparece no trecho que se segue,
extraído de uma carta de José de Anchieta:
Uma criança de quatro ou cinco anos de idade, assaltada de grave
enfermidade, rogava muitas vezes em prantos á mãe que a trouxesse ao
templo, e a mesma criança, gemendo deante do altar dizia na sua própria
lingua: “O' Padre cura-me!
181
Nas cartas enviadas pelos jesuítas à metrópole encerram descrições das
epidemias de malária, disenteria, varíola e sarampo, entre outras, e seus remédios.
Nas descrições dos cuidados com os enfermos, dos atos cirúrgicos, sangrias e
terapêutica, percebe-se a presença forte da tradição médica hipocrático-galênica
182
.
Isso transparece, por exemplo, na correspondência de José de Anchieta. Tendo a
seu cargo o cuidado dos enfermos, Anchieta comentou:
Outro que havia muito tempo se feito cristão com os Portugueses que
outrora moravam nesta aldeia, e se apartara de nós para que mais
licenciosa e livremente pudesse viver à maneira dos gentios, oprimido por
grave enfermidade (manifesto juizo de Deus) não pôde aproveitar-se do
socorro dos Irmãos, pois quando nos aproximámos dele tinha pedido o
uso da palavra; privâmo-lo, para terror dos outros, de sepultura
eclesiástica de maneira que, quem vivera como pagão, também como
pagão se sepultasse.
183
180
“Psychosomatic disorders” é o termo utilizado pelo autor, o parafraseamos apesar de conhecermos
a precariedade de seu uso.
181
José de Anchieta, Cartas Jesuíticas III, Cartas fragmentos Históricos e Sermões , p. 42
182
Lycurgo Santos Filho, História Geral da Medicina Brasileira, p.122
183
José de Anchieta, Cartas Jesuíticas III, Cartas fragmentos Históricos e Sermões, p. 40
64
É preciso destacar que a primeira idéia sobre o aparecimento de enfermidade:
como um castigo de Deus, que aparece nos textos de jesuítas, como vimos
anteriormente neste capítulo, não é original dos jesuítas que está presente em
diversos textos na Antigüidade.
Outra fonte importante sobre as idéias que circulavam na Companhia de
Jesus a respeito do tratamento e surgimento das enfermidades o os textos de
Athanasius Kircher e Antonio Sepp.
Athanasius Kircher publicou em 1658 um tratado, Scrutinium psysico-
medicum contagiosae luis, quae pestis dicitur, onde discutiu sobre a peste. Não
temos informações se Vieira teve contato com essas idéias. Entretanto sabemos que
buscou a aprovação de seu tratado pelos médicos de sua época, pois em sua
publicação estão as cartas de aprovação e endosso.
184
Ou seja, suas idéias não
entravam em conflito com as concepções médicas da época.
Segundo este jesuíta, cada composto natural exala certas emanações de sua
natureza essencial. Estas emanações imperceptíveis permanecem nas roupas do
cadáver, em peças de madeira e lençóis. Ativados pelo calor, absorvidos pelos
poros ou pela respiração produzem a peste, causando em seguida seus efeitos.
185
Padre Antonio Sepp, em seu “Relato às Missões Jesuíticas e Trabalhos
Apostólicos”, tratou enfrentamento da peste no Paraguai, nos fins do século XVII.
No entanto, não emitiu opinião sobre suas causas. Mencionou apenas que pela falta
de médicos e remédios, nem Galeno nem Hipócrates haviam chegado a aquelas
terras. Ele se viu então obrigado a tratar dos enfermos com o que encontrava pela
frente: “entre outros remédios, açucares e mel”.
186
Infeliz Paraguai! Nem sequer o nome de Galeno ou de Hipócratres
chegaram até os dias de hoje às tuas paragens. Tão pouco brilha a
esperança de que os médicos, que pululam na Europa, atravessem o
Atlântico e o grande Oceano a fim de um dia ajudarem a estes miseráveis
184
Martha Baldwin, “Reveri in times of Plague: Athanasius Kircher and the Plague Epidemic of 1556”.
In: Martha Baldwin, Athanasius kircher: The Last man Who Knew Everything (NY:Rouledge, 2004), p.
76.
185
Athanasius Kircher, “Scrutinium pshysico-medicum contagiosae luis, quaes pestis dicitur”.In:
Thomas S. Hall, A Source Book in Animal Biology (Cambridge:Harvard University Press, 1970),
p.473-476
186
Padre Antonio Sepp, Relato às Missões Jesuíticas e Trabalhos Apostólicos, (Belo Horizonte:
Editora Itatiaia, São Paulo: Ed USP, 1980), Cap X.
65
filhos das selvas.
187
No trecho acima reproduzido, provavelmente, o jesuíta está se referindo não
somente à falta de médicos como também de recursos e de remédios disponíveis:
laxantes, xaropes etc., utilizados pela medicina hipocrático-galênica.
Em resumo, desde o enfrentamento das pestes na Europa, as idéias
jesuíticas possuíam dupla perspectiva quanto a enfermidade: (1) uma baseada na
filosofia aristotélico-tomista para o entendimento e ordenação das paixões em
função das exigências da vida individual e social, e (2) a teoria humoral da
doença.
188
1.7 ALGUMAS CONSIDERAÇÕES
A discussão desenvolvida neste capítulo permitiu conhecer um pouco sobre
as idéias e representações a respeito do enfermar que parecem relacionadas aos
discursos de Antônio Vieira.
Foi possível inicialmente observar a ênfase sobre o conhecimento de si (saber
e o não-saber) na história de Édipo.
Este tema é de grande importância para a Companhia de Jesus e parte dos
Exercícios Espirituais é voltado para as práticas que auxiliavam o noviço a alcançá-
lo. Nos sermões de Vieira o conhecimento de si, como veremos adiante, é
ferramenta para o homem ordenar suas paixões e caminhar conforme seu natureza
e a razão.
Mas esta não é a única perspectiva que pudemos observar: se em Édipo Rei
as causas da enfermidade possuía caráter “mítico”, a partir do corpus hipocraticum
ela adquiriu um aspecto “natural”.
A observação e descrição dos sintomas, assim como a relação e disposição
dos humores passaram a receber grande importância. Pois, estes saberes parecem
se conjugar na visão jesuítica sobre o adoecer.
Diante do adoecimento, a palavra ganhou destaque que poderia conduzir,
187
Padre Antonio Sepp, Relato às Missões Jesuíticas e Trabalhos Apostólicos, p. 188
188
Paulo José Carvalho da Silva, A Tristeza na Cultura Luso-brasileira - Os Sermões de Padre
Antônio Viera, p. 17
66
como propôs Aristóteles, o enfermo ao caminho da saúde. Da mesma forma as
sangrias e remédios (laxantes, xaropes, etc.) eram utilizadas pelos padres jesuítas
no século XVI no tratamento dos enfermos e demonstravam as bases da teoria
humoral da medicina hipocrático-galênica.
A reflexão, a memória, o manejo das paixões e o conhecimento de si o
fatores para a manutenção da saúde do corpo e da alma.
Foi importante
percebermos as proposições de Sêneca em relação ao papel da filosofia no
restabelecimento da saúde e no enfrentamento da enfermidade.
Pois, é na relação entre a doença e o comportamento que Aristóteles destaca
a paixão que como um efeito do próprio adoecer estimula o comportamento. Outra
proposição nos parece importante: a relação entre o prazer e a dor, entre a
enfermidade e o gozo. Relação que como veremos a seguir será influente nas idéias
de Antônio Vieira.
Enfim, as enfermidades foram representadas de diversas maneiras durante
nossa história. Neste capitulo observamos apenas algumas destas representações.
A enfermidade como vontade de um deus, um castigo divino, ou o resultado das
disposições dos humores no corpo.
Veremos no capítulo seguinte que estes elementos fazem parte das idéias de
Vieira sobre a doença.
67
CAPÍTULO 2
A IDÉIA DE ENFERMIDADE EM UM SERMÃO DE
ANTÔNIO VIEIRA
“A nossa vida é uma viagem pelo mar...”
189
A enfermidade permaneceu, como vimos no capítulo anterior, como tema
para o imaginário e o pensamento humano. Isso não sem razão. Durante nossa
história, grandes epidemias mataram milhões de pessoas.
Se com o adoecimento o Homem vivencia a interrupção no curso planejado
de sua vida, a experiência de adoecer posiciona o sujeito diante daquilo que
permanece (quase) impossível de ser simbolizado: a desconstrução de sua fantasia
narcísica, em outras palavras, o real da morte.
190
Encontramos relacionadas às
doenças, um campo fértil de representações que tentaram responder por meio de
crenças e fantasias, por que o sujeito adoeceu e que ação contribuiu para o seu
sofrimento.
A vida humana e seu fim foram mitologizadas pela idéia de uma outra vida no
Hades ou no Valhalla, no Inferno ou no Paraíso. Essa talvez seja a forma mais
antiga e comum de os humanos enfrentarem a finitude de sua vida.
191
As causas para o aparecimento das enfermidades foram investigadas por
diversos autores, entre os quais os padres jesuítas. As causas religiosas estiveram
presentes em diversas explicações sobre o surgimento das pestes e seus remédios
conjugavam os conhecimentos médico e religioso
192
. Perguntamo-nos: Esta
conjunção permaneceu no passado? De certa forma parece que, de maneira geral,
encontramos em nossos dias parte destas representações: a idéia de enfermar
189
Sêneca, As Relações Humanas, (São Paulo: Landy Editora, 2007), p. 105
190
Maria Elisa Pessoa Labaki, Morte, (São Paulo: casa do Psicólogo, 2001), p.7
191
Norbert Elias, A Solidão dos Moribundos, (Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2001), p. 7
192
A. L. Martin. Plague? Jesuit accounts of epidemic disease in the 16
th
century. (Kirksville: Sixteenth
Century Journal Publishers, 1996), Cap IV.
68
como uma mistura de culpa e merecimento, vontade de Deus e penitência.
193
É interessante que ao mergulharmos na questão das representações sobre as
enfermidades, percebemos que diferentes culturas guardam algo de comum,
coincidem suas causas e as razões para seu aparecimento.
As pestes no século XVII tinham suas causas desconhecidas (a conjunção
dos astros ou a passagem de um cometa? O desígnio de Deus? A contaminação do
ar? As mudanças climáticas? E quanto a proteção contra o terrível mal: talismãs?
poções? mudanças na arquitetura das cidades? perfumes e incensos?
194
), e até por
este aspecto evidenciavam antigas representações: como por exemplo, os
tratamentos mágicos da peste que eram unidos a medicina racionalista para o
tratamento dos doentes na Idade Média, e a culpa atribuída aos judeus no
aparecimento da doença.195
Os significados atribuídos às enfermidades caracterizam-se por conjugar
conhecimentos naturais e religiosos, míticos, que em épocas de grandes epidemias
firmavam-se como tentativas de conter o avanço da doença e a interrupção das
mortes.
196
O fato é que as pestes causavam terror. Até, conforme escreveu Michel
Foucault, a segunda metade do século XV, ou mesmo pouco tempo depois, o tema
da morte imperou. O fim do homem, o fim dos tempos assumiu o rosto das pestes e
das guerras. O que dominava a existência humana, continua o filósofo, é este fim e
esta ordem dos quais ninguém escapa.
197
As artes representaram as pestes. Na literatura a peste esteve presente em
diversas obras. Nas artes plásticas, exemplo maior talvez seja o quadro de Peter
Brueguel, de 1652. Por outro lado, as “ciências” buscaram minimizar os efeitos das
epidemias tentando conhecer suas causas e formas de curar o doente. Apesar de
193
Julieta Quayle e Mara Cristina Souza de Lucia, Adoecer As interações do doente com sua
doença, (São Paulo: Editora Atheneu, 2003)
194
Ver Roberto Martins de Andrade & col, O Contágio, Capítulo 1. Pode-se observar que mesmo em
tratados populares sobre os remédios para a cura de enfermidades, figuram instruções contra a
peste. Mencionaremos um destes tratados: A Rich Storehouse or Treasurie for the Diseased, de
George Watson ou Wetson, publicado pela primeira vez em 1596 e que até o ano de 1650 teve mais
sete edições; nele estão unguentos, poções de raízes mergulhadas em vinagre para cheirar e
proteger-se, supositórios untados no mel e sal, bebidas diversas, como remédios para curar e
prevenir a doença.
195
Ron Barkai, “Jewish treatises on the Black Death (1350 1500): A preliminary Study”. In: Roger
French & cols, Medicine from the Black Death to the French Disease (Cambridge:University of
cambridge, ), cap II.
196
L. Martin. Plague? Jesuit accounts of epidemic disease in the 16
th
century.
197
Michel Foucault, A História da Loucura, (São Paulo: Editora Perspectiva, 1999), p.15.
69
tamanho empenho o que parece se desvelar nessa contínua busca é justamente a
fragilidade própria do homem.
Voltemos ao tempo de Antônio Vieira e às idéias que circularam na época
sobre este assunto. O jesuíta tratou em seus sermões do tema enfermidade, da
peste, e por diversas vezes pregou aos enfermos em Portugal e no Brasil.
Encontramo-lo em uma destas ocasiões: é o ano de 1659 e, conforme
anuncia o sub-título de seu sermão dedicado a São Roque, o reino de Algarve sofria
com a peste. Esta constituía uma enfermidade terrível justamente por seus efeitos
sobre os enfermos e aqueles que os estimavam, assim como sobre os elementos da
vida.
Assim, sendo a peste a pior das enfermidades, conforme escreveu Vieira no
próprio “Sermão de o Roque”, ela apresenta-nos de maneira acentuada os
aspectos gerais sobre o adoecer, o que nos permite investigar as idéias que, de
maneira geral, circulavam e permeavam a cultura da época. Desta forma,
percebemos este conhecimento como possível objeto para o estudo das idéias
sobre o psicológico.
É neste sentido que direcionamos nossa leitura: observar como estão
articuladas as idéias sobre o dinamismo e o conhecimento psíquico e o adoecer. E
se o termo adoecer nos remete a vários sentidos (adoecer do corpo, da alma,
político) parece-nos necessário observar, conforme avançarmos, justamente a
relação corpo-alma segundo a visão do jesuíta.
Apesar da ameaça da peste ser anunciada desde a apresentação do sermão,
o adoecimento será tratado apenas na sexta parte dele. Mas por quê? Por que o
tema que é anunciado está no fim do sermão? o nos parece sem propósito que o
sermão seja assim construído: trata-se, sem dúvida, de um manejo retórico e,
conforme o próprio jesuíta anuncia, assim permaneceria mais na memória.
198
Mas
não será justamente a questão de que pouco falávamos, ou seja, os diversos
sentidos de enfermidade antecedem aquela que acomete o corpo mortalmente e
exige cuidado com a alma?
Seguiremos os caminhos do pensamento de Vieira.
198
Antonio Vieira, “Sermão de São Roque”, In: Antonio Vieira, Sermões .Vol II (Erechim: Edelbra,
1998), p. 43.
70
2.1
AS PRIMEIRAS HORAS: REPRESENTAÇÕES DA ENFERMIDADE
O reino de Algarve em 1659, segundo Antônio Vieira, “ardia em peste” e tal
“incêndio” era uma ameaça para Portugal. Frente ao perigo, a figura de São Roque
era evocada em auxílio contra a terrível enfermidade.
A bem-aventurança e desgraças do Santo serão objeto do sermão pregado
na Capela Real, em Portugal.
No entanto, entre as desventuras e bem-aventuranças de São Roque, a peste
foi última a ser tratada pelo jesuíta. Procurando seguir o pensamento de Vieira,
antes da enfermidade veremos figurar o mal-estar que se expressa na relação entre
o “eu” e o “outro”: no causal desconhecimento do outro, nas guerras e na solidão.
199
Assim, Vieira iniciou o sermão o “Sermão de São Roque”:
Se bem-aventurança nesta vida, os servos de Deus a
gozam, se duas bem-aventuranças, também as gozam os
servos de Deus, porque as gozam os que o mais seus
servos. (...) servos que vigiam nas horas menos dificultosas
e arriscadas (...) outros servos que vigiam na segunda e
terceira vigia da noite, que são as horas ou os quartos de maior
escuro e de maior sono (...)
200
Nesta passagem percebe-se que não o jesuíta instaurou de imediato em
seu ouvinte uma dúvida quanto a boa ventura nesta vida, mas também anunciou o
termo “gozo”. Termo que, como veremos adiante, está presente nas idéias que se
referem ao conhecimento de si e a peste.
De fato esta primeira proposição possui duplo papel: (1) suspender as
certezas dos ouvintes instaurando uma dúvida como veículo para “olhar para
dentro”, (2) apresentar a idéia de um além-gozo do corpo e acentuar o problema da
escolha.
199
No Terceiro Volume, Artigo 5, da questão II, da Suma Teológica, São Tomás de Aquino escreve do
tema da bem-aventurança do Homem. Pergunta-se então no que consiste esta bem-aventurança: nas
riquezas? Nas horas? Na fama ou na glória? Na saúde do corpo? No prazer? Em algum bem da
alma? Em algum bem criado? Antonio Vieira parece conduzir seu Sermão de São Roque
aproximando-se até mesmo dos temas e da ordem proposta por São Tomás.
200
Antonio Vieira, “Sermão de São Roque”, p. 25
71
A suspensão de certezas abre espaço justamente para o que vem contido na
idéia de um além-gozo. Vejamos então a segunda função que apresentamos:
mesmo que possuindo um estreito vínculo com o Ser, de qualificar-se como o que é
voluntariamente pretendido por Deus, figura no Homem, enquanto potencialidade, a
possibilidade de união, reencontro, com este mesmo Ser
201
. A referência ao amor
divino é o que permite aos jesuítas fazer a articulação entre o particular e o
universal, conceber e propor uma organização social na qual as relações humanas
são pautadas por uma estreita aliança de amor e obediência (...)
202
Assim, apesar desta potencialidade, Antônio Vieira de imediato mostrou uma
diferença que se relaciona com o problema da escolha, do livre-arbítrio: a bem-
aventurança é para aqueles que são servos.
Abre-se, portanto, uma outra possibilidade de “estar-no-mundo”: que seja, há
homens que não são bem-aventurados pois não são servos. Nesta condição, não
se afastam de sua natureza como também do que os diferencia dos animais: o uso
da razão e a finalidade de seus atos.
Chamamos a atenção do leitor para dois termos que, como veremos a seguir,
estão presentes no discurso do jesuíta: Razão e finalidade.
Assim, apesar da potencial união, uma escolha que sob os efeitos do
mundo e das paixões é posta a prova. O que de fato está em evidência com este
problema é a vivência da natureza humana. E o leme desta natureza, segundo o
jesuíta Antônio Vieira é o alvedrio, a vontade, o desejo.
203
Apesar de admitir o livre-arbítrio reconhecendo também o papel das paixões
da alma, a possibilidade de escolha está sujeita a natureza, a razão e a finalidade
humana.
A mesma questão ocorreu a Agnes Heller em seu estudo sobre o
renascimento: “Existe um ideal renascentista único de homem? A existência de um
conceito comum do homem como ser dinâmico implica a existência de um ideal
comum de homem?”
204
Este problema é importante à medida que as idéias presentes na Companhia
de Jesus quanto a enfermidade se baseavam justamente no conhecimento médico
201
O tema do amor e união entre o Ser e o Homem é objeto principalmente do segundo Sermão do
Mandato.
202
Girard apud Paulo José Carvalho da Silva, A tristeza na cultura luso-brasileira, p. 87
203
Antonio Vieira, “Sermão de Santo Antonio”. In: Antonio Vieira, Sermões, (Erechim: Edelbra), 1998,
Vol II, p. 157.
204
Agnes Heller. O Homem do Renascimento, (Lisboa: Editorial Presença) 1982, p. 19.
72
da Antiguidade, medicina hipocrático-galênica, e portanto de seu ideal de homem, e
dos novos saberes renascentistas.
Parece-nos que o problema sobre a natureza e finalidade do homem ocorreu
a muitos pensadores. crates, Platão, Aristóteles, Tomas de Aquino, entre outros
tantos. Não poderíamos deixar de mencionar o autor dos Exercícios Espirituais,
Inácio de Loyola, que inclusive na abertura deste texto estabeleceu como um
princípio justamente a finalidade e a natureza do Homem.
Luís Cláudio Figueiredo, ao escrever sobre a contenda entre os movimentos
de Reforma e Contra-reforma menciona a contradição em ambas as atitudes no que
se refere ao tema da liberdade. Mencionaremos sua analise com o objetivo de
acentuar o problema que aqui encontramos quanto ao tema:
(...) Lutero defendia a liberdade do homem interior em relação
à hierarquia para logo em seguida submeter a vontade humana
à vontade divina, negando o livre-arbítrio. Santo Inácio é o
contrário absoluto de Martinho Lutero: propõe e exige
submissão total do indivíduo à Igreja hierárquica para que, no
contexto desta obediência, ele possa exercer a liberdade e o
esforço da vontade. Ambas as propostas contem uma
contradição interna: ambas atam e libertam o indivíduo ao
mesmo tempo; ambas, finalmente, contribuirão para a
constituição da subjetividade moderna enquanto subjetividade
cindida.
205
A possibilidade de escolha está sujeita não a vontade natural mas ao uso da
razão:
De tal maneira que, de nossa parte, não queiramos mais saúde que
enfermidade, riqueza que pobreza, honra que desonra, vida longa que
vida breve, e assim por diante em tudo o mais, desejando e escolhendo
somente aquilo que mais nos conduz ao fim para o qual somos criados.
206
205
Luís Claudio Figueiredo, A Invenção do Psicológico Quatro séculos de subjetivação 1500-1900,
(São Paulo: Escuta – Educ, 1992), p. 63.
206
Ignácio de Loyola, Exercício Espirituais, (São Paulo: Editora Loyola, 2006), p. 23
73
O argumento acima pressupõe uma escolha lógica, que visualiza um fim em
si.
A partir de uma visão inaciana, que permeou as obras jesuíticas, e veremos
sua articulação nas idéias de Vieira, o ser humano então possui uma determinação,
um fim último que poderia regrar sua existência, e assim as coisas sobre a face da
terra são criadas para ajudá-lo a alcançar este fim: salvar-se.
207
no título de seu texto, Inácio esclarece os objetivos de seus Exercícios:
“Exercícios Espirituais para vencer a si mesmo e ordenar a própria vida, sem se
determinar por nenhuma afeição desordenada.”
208
Ressaltamos: ordenar a vida e evitar a desordem de alguma afeição.
Estabelece assim um preceito que como parte da primeira semana do exercícios,
quanto ao objetivo das penitências externas: “vencer-se a si próprio, fazendo com
que a sensualidade obedeça a razão, e que todas as tendências inferiores sejam
mais submissas às superiores.”
209
Tomás de Aquino, na sua Suma Teológica, questão 1, artigo 2, quando
escreve sobre o último fim do homem
210
, afirmou que é próprio deste agir em vista
de um fim e nunca em vista de um fim desconhecido. Assim,
(...) os que são dotados de razão movem-se para o fim, porque
têm o domínio de seus atos pelo livre-arbítrio, que é a
faculdade da vontade e da razão. As coisas porém carentes de
razão, tendem para o fim por inclinação natural, movidas que
são por outras, não por si mesmas, porque não conhecem a
razão de fim
.
211
E adiante, na mesma questão, esclareceu: “(...) é necessário que todas as
coisas que carecem de razão sejam movidas para seus fins particulares por uma
vontade racional, que alcance o bem universal, e esta é a vontade divina.”
212
Em resumo, segundo São Tomás, o homem age em vista daquilo que é causa
207
Ignácio de Loyola, Exercício Espirituais, p. 23
208
Ibid, p. 21
209
Ibid, p. 47
210
Tomás de Aquino, Suma Teológica, (são Paulo: Edições Loyola, 2003), Vol III, Questões 1-48, p.
33 e seguintes
211
Tomás de Aquino, Suma Teológica, p. 34
212
Ibid, p. 55
74
da ação, “até porque a expressão “em vista de” designa relação de causa.”
213
Ademais, segundo o autor, o homem age em vista de um fim. Porém o
mesmo homem faz muitas coisas sem deliberações, às vezes nem pensa em suas
ações, como por exemplo, o movimento do ou da mão, ou enquanto coça a
barba. No entanto, o fim é o princípio de uma ação, afirma o filósofo.
Desta maneira o autor conclui o problema quanto a finalidade da ação: das
ações realizadas pelo homem, são ditas propriamente humanas as que pertencem
ao homem enquanto homem. O que significa que este se diferencia das outras
criaturas sobre a Terra porque tem o domínio de seus atos. Por isso, somente ditas
prioritariamente humanas aquelas ações sobre as quais o homem tem domínio pela
razão e pela vontade. O que será chamada de livre-arbítrio é a faculdade da vontade
e da razão.
Assim, concluiu Tomás, o ações ditas humanas, “atos humanos” aqueles
que procedem da vontade deliberada, ao contrário do atos do homem, que não o
diferenciam dos seres inferiores.
214
Se, como escreveu o fundador da Companhia de Jesus, a natureza do
homem está em servir a Deus e assim salvar-se, e se tal medida então indica o que
é natural, no desvio deste fim, escreve Inácio, encontramos o papel exercido por
alguma satisfação sensual.
215
Conforme Marina Massimi:
Homem “medieval do XVI culo”, como foi por muitos
definidos, Inácio coloca o serviço a Deus como meta última
norteadora da dinâmica existencial, concebendo assim toda a
vida humana, inclusive a dimensão psicológica, como “perfeita”
na medida em que orientada para tal ideal.216
213
Tomás de Aquino, Suma Teológica p. 32.
214
uma distinção apontada por Tomás de Aquino quanto a “ação humana” e “ação do homem”,
distinção que remete a idéias presente na literatura seiscentista e sobretudo na obra de Vieira, entre
o homem moral e o homem natural. Assim é também no que se refere ao apetite racional, deliberado
pelo uso da vontade, e os apetites naturais que é conduzida por uma inclinação natural, instintual.
215
Inácio de Loyola, Exercícios Espirituais, p. 28: “Peca-se venialmente quando vem o mesmo
pensamento de cometer um pecado mortal e se lhe dá atenção, demorando-se por um pouco nele; ou
dele recebendo alguma satisfação sensual.”
216
Marina Massimi, “As paixões e seus 'remédios': um excursus pela literatura jesuítica dos séculos
XVI e XVII”. In: Marina Massimi & Paulo José Carvalho da Silva (orgs), Os olhos vêem pelo coração
Conhecimento psicológico na história da cultura luso brasileira dos séculos XVI e XVII. (São Paulo:
Holos Editora FAPESP, 2001) p, 18.
75
Em Vieira a satisfação sensual e o desvio da razão permanecem articulados,
como se vê, entre outros sermões, no “Sermão da Segunda-feira depois da
Segunda Quaresma”, pregado em 1652:
Perdido nos pensamentos, perdido nas palavras, perdido nas
obras, e dentro e fora de si, todo, e em tudo perdido.
Considerai-me um homem sem uso de razão, e um Cristão
sem lume e Fé, e tal que ó que Deus deixou e lançou de si.
Cavalo no precipício sem freio, navio na tempestade sem leme,
na doença mortal sem Médico.
217
Não é este o mesmo problema proposto por Sêneca? “A condição humana é
boa porque ninguém é infeliz senão por sua própria culpa.”?
218
E também Aristóteles: “(...) mas o desejo move deixando de lado o raciocínio
pois o apetite é um tipo de desejo.”?
219
Voltemos às palavras de Antônio Vieira: ao servo de Deus não estão
dispostas as maiores bem-aventuranças sem alguma dificuldade.
(...) outros servos que vigiam na segunda e terceira vigia da
noite, que são horas ou quartos de maior escuro (...) e estes
servos, sobre a primeira, os chama o Senhor outra vez bem-
aventurados.
220
E assim, escreve o jesuíta, os servos vigilantes de segunda e terceira hora
são duas vezes bem-aventurados. Momento em que anuncia enfim a semelhança de
São Roque com Cristo: preso, crucificado e morto, e pergunta-se: “haveria maior
bem-aventurança que parecer-se com seu Senhor?”
221
Pois bem, se desde o princípio Vieira nos conduziu ao “gozo”, às paixões, e
ao problema da escolha, agora encontramos uma outra questão em resposta aos
217
Antonio Vieira, “Sermão da Segunda-feira depois da Segunda Dominga Quaresma”. In: Antonio
Vieira, Sermões (Erechim: Edelbra, 1998) Vol VII, p.451
218
Sêneca, As relações Humanas: A amizade, os livros, a filosofia, o sábio e a atitude perante a
morte, (São Paulo: Landy Editora, 2007), Carta LXX, p. 108
219
Aristóteles, De Anima, (São Paulo: Ed. 34, 2007), p. 125.
220
Antonio Vieira, “Sermão de São Roque”, p. 25
221
Ibid, p. 27
76
problemas iniciais: Ora se um problema quanto ao desvio da finalidade e da
razão, este problema não é único, mas peculiar ao Homem. Então de se
apresentar o mesmo homem diante do mesmo problema.
Em outras palavras, Vieira apresenta um modelo para reflexão, e uma
imagem para identificação. Não é Cristo a principal personagem de seu sermão, ao
contrário, é um homem comum, abastado, e nesta condição apesar de ter muito a
perder, mantem-se paciente, impassível: O jovem Roque, como outros homens,
sofre das desventuras de estar no mundo.
De acordo com Vilmar D. S. Pimenta & Marina Massimi, Os pregadores
jesuítas, munidos do instrumento retórico que é a metáfora, buscavam imagens que
aproximassem seus discursos ao entendimento de seus ouvintes, assim a metáfora
tanto encaminha ao entendimento quanto mostra uma maneira de compreender o
real.
222
Dito de outro modo, a imagem oferecida pelo pregador conduz justamente à
reflexão, e acima de tudo ao conhecimento do real e de si próprio através da relação
alma - corpo, razão - afeto, vontade - imaginação, eu - outro.
Para que o homem alcance o conhecimento de si é preciso, segundo as
idéias de Vieira, partir justamente daquilo que o diferencia do resto do universo. Para
isso a questão não está no conhecimento da realidade natural. Trata-se de um outro
conhecimento, que se refere à realidade moral.
223
Para isso, é preciso considerar a
experiência humana em sua totalidade. Esta experiência, é vista a partir de um ideal
de pureza, ou seja, a peste, enquanto poluente faz da pureza da alma e dos corpos,
imagem desejada. E mais ainda, a conversão não é só a confirmação de uma
unidade entre o Ser e o eu, é acima de tudo adesão a uma forma de conduzir-se no
mundo a partir desta mesma imagem. “(...) conhecer-se a si mesmo significa poder
viver em conformidade com o próprio ser, esta conformidade sendo possível pela
participação do Ser criador, o Ser de Deus.”
224
Nas palavras de Alcir Pécora:
Enquanto frutos inequívocos da vontade divina, o raciocínio de
222
Vilmar Douglas de Souza Pimenta & Marina Massimi, “A Palavra e a Imagem na Pregação do
Século XVII: Um Sermão de Antonio Vieira”. In: Psicologia: Reflexão e Crítica, 20 (1,2006): p. 138-
147
223
Marina Massimi, “As idéias Psicológicas na Produção Cultural da Companhia de Jesus no Brasil do
Século XVI e XVII”. In: Marina Massimi & Maria do Carmo Guedes (orgs), História da Psicologia no
Brasil – Novos Estudos, (São Paulo: Educ-Editora Cortez, 2004) p. 36
224
Ibid, p. 38.
77
Vieira aproxima os homens do lugar dos “filhos adotivos em
relação ao Pai que os toma, evidenciando o fato de que o laço
entre eles se estabelece através de uma escolha,
diferentemente do que se daria na geração natural (e também
daquela do Filho no interior das Pessoas divinas, em que,
segundo a ortodoxia, a geração que se efetua é anterior à
distinção de um ato voluntário do Ser).225
A adoção de um modelo, a conversão, é ainda, em um momento de grande
insegurança, uma maneira de congelar a experiência: nada sairá de seu lugar, nada
se degenerará.
226
O que se mantém é justamente a integridade física, moral e psíquica.
Semelhante à vivência de estrangeiro no novo mundo, a análise de Vieira nos
remete a um processo que atinge diversas dimensões da personalidade humana,
cognitiva, motivacional e afetiva, que enfim desemboca na identificação do sujeito
227,
e a dialética entre a liberdade e a natureza, entre o particular e o universal.
2.2 AS PRIMEIRAS DESVENTURAS DE SÃO ROQUE: O
DESCONHECIMENTO E A GUERRA
São Roque, conforme comenta Antônio Vieira, foi por quatro vezes
desagraciado dos sucessos e das tragédias da vida: com os parentes, com os
naturais, com a enfermidade e com os remédios. No entanto, se por quatro vezes
desagraciado, quatro vezes pareceu-se com Cristo.
228
Está posto o objeto do sermão: a bem-aventurança e a desventura. Mas,
sobretudo está uma importante idéia que permeia o sermão: a potencialidade de
mudança e do manejo do comportamento reconhecido e atribuído à palavra. Então,
parece-nos, a intenção não é somente a conversão, mas através da mortificação das
225
Alcir Pécora, O Teatro do Sacramento, p. 78.
226
Luis Carlos Figueiredo, A invenção do Psicológico, p. 40-41
227
Marina Massimi e cols, Navegadores, Colonos, Missionários na Terra de Santa Cruz, p. 15.
228
Antonio Vieira, “Sermão de São Roque”, p. 25
78
paixões dos ouvintes com o objetivo de moralização
229
, possibilitar certo
conhecimento.
A dinâmica cristã de voltar-se a relações exemplares,
modelares, é explicitada com o uso deste recurso, na tentativa
de reiterar o processo e fazer referência a doutrina e a pessoa
de Cristo. (...) a comparação com exemplos, utilizando-se de
diversos personagens da história bíblica ou cristã, para
fundamentar o conceito de experiência modelar a ser seguida
pelos cristãos, visando imitar a vida e conduta do “capitão”
Cristo e, no caso dos jesuítas, a de Inácio de Loyola, fundador
da Companhia.
230
Não nos dedicaremos às modalidades da retórica de Antônio Vieira. Quanto
ao uso da imagem, em uma perspectiva da história das idéias psicológicas,
indicamos ao leitor o artigo citado de Pimenta & Massimi, “A Palavra e a Imagem
na Pregação do Século XVII: Um Sermão de Antônio Vieira”. Referente as
modalidades da retórica nos Sermões do jesuíta, entre outros, indicamos os
estudos de Pécora, em especial, O Teatro do Sacramento.
O jesuíta anunciou que a primeira desventura foi com os parentes porque “o
desconheceram como estranho.”
231
Herdou São Roque de seus pais o estado de Mompilher e outras riquezas,
continua o pregador. Ainda moço, aos 20 anos, entregou o mesmo estado e os
vassalos para que seu tio os governasse. Repartiu ainda jóias e toda a fazenda com
os pobres e pobre como um deles partiu peregrino para a Itália.
232
Alguns anos mais tarde, Antônio Vieira não disse quanto tempo passou,
retornou a sua terra natal. de se dizer que, conforme argumentou o jesuíta,
Roque apresentou-se nos mesmos trajes em que partiu e pouca, ou nenhuma
transformação ocorreu em sua aparência.
Porém, nem seu tio, nem qualquer de seus parentes o reconheceu. E assim
229
Vilmar Douglas de Souza Pimenta & Marina Massimi, “A Palavra e a Imagem na Pregação do
Século XVII: Um Sermão de Antonio Vieira”, p. 138-147
230
Vilmar Douglas de Souza Pimenta & Marina Massimi, “A Palavra e a Imagem na Pregação do
Século XVII: Um Sermão de Antonio Vieira”, p. 138-147
231
Antonio Vieira, “Sermão de São Roque”, p. 28
232
Ibid.
79
viveu peregrino, necessitado no meio de suas riquezas, desconhecido pelos
mesmos que eram seu sangue.
Se o tempo passado não causou em sua aparência grande deformidade ou
mudança, este desconhecimento estava no rosto de São Roque ou nos olhos de
quem via? Vieira respondeu a questão: “Eu digo, escreve, que a mudança não
estava nos olhos de quem via, senão na fortuna de quem vinha.”
233
Mudou a fortuna, prosseguiu, então os olhos vêem com outros olhos, os
ouvidos ouvem com outros ouvidos, a língua também é outra. Assim o amor
transformava-se em autoridade e o rosto em semblante.
234
E, conforme avançava seu sermão, Vieira anunciava a causa do
desconhecimento: “a razão disto não a , a sem-razão sim, e é esta: Porque os
homens costumam
235
conhecer nos outros não a pessoa, senão a fortuna (...)”
Vejamos: a não razão afeta os sentido e é causa de desconhecimento. Então
a razão é alterada, conduzida pela sensação, pelo gozo, que permanece sobre os
sentidos do corpo.
Observamos a importância que tem a razão no pensamento de Vieira. Sua
utilização está relacionada a conduta, ao Homem moral em contraste com o Homem
Natural.
Possivelmente encontramos um posicionamento da psicologia filosofófica
aristotélico-tomista: o que é próprio do homem e conduzido conforme sua razão e,
como vimos anteriormente, diferente dos comportamentos alheios a vontade e a
mesma razão.
Apesar de adiante voltarmos a esta questão, quando nos dedicarmos a idéia
de enfermidade que se configura nas palavras do jesuíta sobre a peste, sobre o uso
da razão, no “Sermão da Segunda-feira” Depois da Segunda Dominga da
Quaresma”, Vieira escreveu:
(...) dei-lhes (dando voz ao próprio Ser) liberdade e largueza
para que vivessem ao sabor dos seus desejos, com que esse
pouco caminho que lhes resta, o andam todos, e cada um
segundo as invenções de sua própria fantasia. (...) Os da
233
Antonio Vieira, “Sermão de São Roque”, p. 28.
234
Ibid.
235
Ibid, p. 29
80
Europa andam em liteiras e carroças; os da Asia em
palanquins; os da América em serpentinas: e estas duas
invenções são para ir mais fácil e descansadamente ao
Inferno.
236
Ou, conforme o “Sermão da Quinta Dominga da Quaresma”: “O cuidar, o
imaginar, é obra do entendimento, não é da língua: a a língua fala, o entendimento
imagina.”
237
Nesta perspectiva em Vieira, vemos a interação de dois mundos:
externalidade e internalidade conjugadas em um mesmo corpo.
A externalidade chega à imaginação através dos sentidos, é significada
pelas invenções e fantasias: “Tudo o que entra pelo ouvido faz eco no coração, e
conforme está disposto o coração, assim se formam os ecos”
238
Ora, esta questão parece ainda mais evidente no “Sermão da Quinta
Dominga da Quaresma”: “Os que ouvem são os ouvidos, mas o que ouvem bem ou
mal são os corações. Tudo o que se entra pelo ouvido faz eco no coração, e
conforme está disposto o coração, assim se formam ecos.”
239
E ainda no “Sermão da Quinta Dominga da Quaresma”, de 1651, pronunciado
em Lisboa:
E quem são estes a que cremos, senão três inimigos de nossa
alma? O tiranos que nos violenta e cativa é o mundo; o traidor
que nos mente e engana é o demônio; o lisonjeiro que, falando
sempre ao sabor dos sentidos, nos precipita e perde é a carne.
Ó carne, ó natureza corrupta, ó apetite depravado, ó fraqueza e
miséria humana, que facilmente te rendes ao apetite
depravado (...) Tal é a nossa cegueira, tal a nossa loucura, tal
a nossa pusilanimidade e covardia.
240
Assim como na quinta parte do “Sermão do Demônio Mudo”, onde o jesuíta
236
Antonio Vieira, “Sermão da Segunda-feira depois da Segunda Dominga Quaresma”, p. 455
237
Antonio Vieira, “Sermão da Quinta Dominga da Quaresma”. In: Antonio Vieira, Sermões (Erechim:
Edelbra, 1998) vol IV, p. 16.
238
Ibid, p. 19
239
Ibid, p. 19
240
Antonio Vieira, “Sermão da Quinta Dominga da Quaresma”, p. 115-116.
81
escreveu: “Dentro de nossa fantasia, ou potência imaginativa, que reside no cérebro,
estão guardadas, como em um tesouro secreto, as imagens de todas as coisas que
nos entraram pelos sentidos, que os filósofos chamam espécies.”
241
Assim, ainda que provisoriamente podemos concluir, a partir destes
apontamentos, que a razão que conduz ao conhecimento de si, e portanto do outro,
recebe da imaginação, do coração, alguma determinação. Em outras palavras, é
preciso para o jesuíta, estabelecer, buscar, uma ordem interna para que os sentidos,
regrados, percebam sua própria natureza e caminhem conforme ela.
A esta altura podemos expressar algumas idéias que vão se configurando a
respeito do homem na visão do jesuíta: o homem possui uma natureza, e se
distingue do animal justamente pelo uso da razão; esta pode ser afetada, ou
desviada, pelas paixões; as paixões da alma afetam o corpo, provocam gozo, que,
configuram risco a eternidade da alma; enfim corpo e alma integram-se na relação
externalidade e internalidade.
A partir destes fundamentos Vieira anuncia: “Oh! Miserável condição das
coisas humanas! Miserável na fortuna adversa, e miserável na próspera.
242
Não
fortuna que não traga em si miséria e desconhecimento.
Se tal condição das coisas humanas parece-lhe tão miserável, o
desconhecimento, os olhos e a fortuna, tem algum papel.
Quanto ao desconhecimento do outro, Vieira acentuou este aspecto, está o
desconhecimento de si. Sim, pois como escreveu Vieira: se a fortuna é próspera o
desconhecimento é de si mesmo, se é adversa os outros o desconhecem. Este
desconhecimento não é quanto ao outro, é sobretudo quanto ao que é
compartilhado pelo humano, portanto, é desconhecer a si-mesmo, a finalidade e o
destino comum do gênero humano. É na dialética do conhecer a si e desconhecer o
outro que Vieira anunciou o papel das paixões da alma.
É a alma, única e peculiar ao homem, que deve se conhecer, e se conhece a
alma através do comportamento.
Paulo José Carvalho da Silva, apresenta um exemplo da relação paixão-
comportamento: se um homem entristece em razão de lhe faltar algo, logo agirá
para conseguir o que deseja e assim corre o risco de, em função de sua paixão,
241
Antonio Vieira, “Sermão do Demônio Mudo”. In: Antonio Vieira, Sermões (Erechim:Edelbra, 1998),
1998, vol IX, p. 152.
242
Antonio Vieira, “Sermão de São Roque”, p. 30.
82
desviar-se do caminho da virtude
243
.
Pois, como se em seus sermões, os olhos desempenharam nestas
considerações de Vieira importante papel: é sentido, é corpo.
No Sermão da Quinta-feira da Quaresma:
A cegueira, enfermidade sem cura, é gozo àqueles que podem
ver. (...) os cegos que nos havemos de ver, sendo suas
cegueiras muitas, não as padecem, antes as gozam e amam:
delas vivem, delas se alimentam, por elas morrem e com
elas.
244
Assim, nas palavras do jesuíta, esta cegueira é gozo, alimento, amor. É
cegueira de quem pode ver, enfermidade sem cura, e no entanto, não é
padecimento. É enfermidade do corpo, pois o corpo goza, é preciso ter corpo para
gozar, e é enfermidade da imaginação que habita este mesmo corpo.
245
A sem razão que escapa aos olhos está no princípio de que quem preferiria
padecer a eternidade em troco de um gozo passageiro? O gozo passageiro condena
a alma ao sofrimento externo. Pois o corpo é lodo e a alma é o que de mais
precioso. E apesar da aparente divisão, advertiu o jesuíta, o se trata de uma
cisão, no sentido platônico, mas refere-se a uma unidade, como dissemos até agora,
entre corpo e alma, e a uma hierarquia das funções que a compõem. “Almas, almas,
vivei como almas: se conheceis a alma, governa a razão, e não o apetite...”
246
A este respeito Paulo Roberto Andrade Pacheco escreve:
De importante destaque é o papel da cogitativa ratio
particularis que, além de inteligir os elementos não sensíveis
(res non sensatas, como vícios e virtudes), sintetiza as
informações sensíveis recolhidas pelos sentidos internos e
armazenadas pela memória: é portanto o ponto alto da
243
Paulo José Carvalho da Silva, A Tristeza na Cultura Luso-brasileira
,
p. 48
244
Antonio Vieira, “Sermão da Quinta-feira da Quaresma”, p. 266-267
245
Antonio Vieira, “Sermão de Nossa Senhora do Ó”. In: Antonio Vieira, Sermões (Erechim:Edelbra,
1998) p. 307 e seguintes.
246
Assim o jesuíta encerra a ultima seção do Sermão das Cinco Pedras da Funda de Davi, Discurso
Primeiro.
83
organização da atividade sensitivo-imaginativa.
247
Em resumo, encontramos uma primeira representação sobre a enfermidade
no discurso do jesuíta: o o conhecimento do outro em função de sua fortuna. Em
outras palavras, a enfermidade das relações humanas.
O que se revela como princípio para as palavras do jesuíta quanto ao seus
discurso sobre o desconhecimento de São Roque por seus parentes, sustenta ainda
suas idéias sobre a segunda desventura de São Roque: a guerra.
Não podemos deixar de mencionar sua a atuação política e seu projeto junto
ao reino português. Conforme destaca Alfredo Bosi:
Enquanto valido e conselheiro de D. João IV, inspira ao rei a
fundação de uma Companhia das Índias Ocidentais... Em todo
o plano Vieira seguia de perto o modelo estratégico das
potências rivais, a Inglaterra e a Holanda: aquela, com a
Companhia da Índias Orientais fundada por Elisabeth I em
1599...
248
O mesmo autor destaca que o resultado deste contexto, “em termos da
retórica barroca”, gerou uma singular simbiose entre o pensamento mercantil e as
alegorias bíblico-cristãs presentes no Sermão de São Roque, pronunciado em 1644,
em ocasião do aniversário do príncipe D. Afonso, na Capela Real.
249
Conforme Álcir
Pécora, organizador de uma edição dos Sermões, “à imagem das companhias do
Comércio holandesas, o sermão propõe a criação de duas companhias, com ações
abertas a judeus, para a exploração do comércio com o Oriente e com o Brasil.”
250
Apesar destas observações estarem relacionadas a um Sermão dedicado ao
mesmo São Roque, a segunda de suas desgraças demonstram por parte do jesuíta
alguma preocupação relacionada a política. Seria a política um dos meios de
desconhecimento do outro e campo farto para as paixões?
A segunda desgraça de São Roque foi ser desagraciado com seus
247
Paulo Roberto de Andrade Pacheco, “Experiência como fator de conhecimento na psicologia-
filosófica aristotélico-tomista da Companhia de Jesus (séculos XVI-XVII)”. Memorandum, (7, 2004):
pp. 58-87.
248
Alfredo Bosi, Dialética da Colonização, (São Paulo:Companhia das Letras, 1992) p. 120
249
Alfredo Bosi, Dialética da Colonização,p. 120-1
250
Alcir Pécora, Sermões de Antonio Vieira, (São Paulo:Hedra, 2001), Vol II p. 386
84
naturais.
251
Quando São Roque partiu peregrino da França para a Itália, acontecia a
guerra entre estas nações. Na Itália, escreveu Antônio Vieira, os italianos o trataram
como inimigo e o feriram.
252
Voltando para a França, os franceses o trataram como
traidor e o prenderam julgando-o espião.
253
maior desgraça que esta, tratado
como inimigo e ferido, depois como traidor e privado da liberdade, pergunta o
jesuíta?
Em terras estrangeiras, inimigo, em sua terra natal, prisioneiro.
Vieira neste pontou apresentou a imagem das três negação de Pedro: Diligis
me? Diligis me? Diligis me? E por que? Por que recorrer a esta imagem quando
justamente descreve a prisão, a segunda desgraça de São Roque?
Um dos aspectos que podemos concluir é que o jesuíta ao apresentar a
imagem de Pedro que nega Cristo por três vezes, pode ter tentado demonstrar a
virtude de Roque: a resignação e a fidelidade de Roque.
É o que parece, já que a imagem que evoca na continuação de seu Sermão é
de José, “um dos homens mais leais que teve o mundo”.
254
No entanto, nosso interesse está justamente em outro campo: as
representações sobre a enfermidade. E Antônio Vieira, parece estender para outros
campos, além do indivíduo, seu entendimento a respeito da enfermidade: o teatro do
interesse político, da qual a guerra é o maior dos embates.
Vieira escreve:
A maior circunstancia de desgraça, que eu aqui considero, é
que, não sendo merecida da parte de quem padecia, parecia
justificada da parte de quem causava, porque em tempo que
França e Itália andam em guerra, ter entrada em França, não
são bons indícios.(...) Não havia prova para o crime, mas havia
indícios para a dúvida.
255
O jesuíta o escreve sobre os motivos da disputa, mas acentua que o santo,
251
Antonio Vieira, “Sermão de São Roque”, p. 33
252
Ibid, p. 33
253
Ibid, p. 33
254
Ibid, p. 36-37
255
Antonio Vieira, “Sermão de São Roque”, p. 33-34
85
que nunca teve pátria, que sempre zelou pela amizade e pela fidelidade, mesmo
assim recebeu a injustiça de ambas as pátrias:
Homem de dois hemisférios é duas vezes inimigo. O mesmo
presumiram de São Roque os italianos e os franceses: os
franceses, como o viam ter entrada em Itália, cuidavam que era
inimigo da França, e os italianos, como o viam ter entrada na
França, cuidavam que era inimigo da Itália.
256
Duas vezes inimigo, sem uma vez pegar em armas. Duas vezes inimigo
sem que tenha qualquer interesse nas disputas entre franceses e italianos. É isso
que o jesuíta esclareceu a seus ouvintes e assim acrescentou, como na primeira
desventura do santo, que uma vez mais a ignorância dos homens, a miséria do
desconhecimento, causou tal equívoco.
Poderia, sem dúvida, ter em mente a questão de como os homens se
reconhecem, e a partir da história do santo, lançar luz sobre as relações que se
estabelecem entre seus ouvintes, ou entre colonos e índios, por exemplo. O que
sofre o santo, não é pelo que ele é, é pelo que imaginam e vêem os homens.
Os olhos dos homens, conduzidos pelos interesses, o viam inimigo quando
não havia prova. Ou seja, desconheciam e julgavam o homem, viam no
desconhecido perigo a seus interesses.
São Roque, na prisão, socorre a quem o procura, e torna-se no sermão de
Vieira exemplo de resignação.
Neste grande e formoso teatro da piedade cristã [o hospital]
em que a mesma piedade , junta em corpo de congregação, é
a principal e melhor parte do mesmo teatro - as duas figuras
ou personagens que hoje entram a representar é a pobreza e a
misericórdia, ambas em hábito de bem-aventurança: Beati
pauperes, beati misericordes.
257
256
Antonio Vieira, “Sermão de São Roque”, p. 33-34
257
Antonio Vieira, Sermão das Obras de Misericórdia à Irmandade do Mesmo Nome”. In: Antonio
Vieira, Sermões, (Erechim:Edelbra, 1998) Vol II, p. 249.
86
Novamente não é somente de resignação, mas uma associação com aquilo
que é particular a natureza do homem. Fundamento que, como sabemos, permeia
os discursos jesuíticos:
Por isso, é necessário fazer-nos indiferentes a todas as coisas criadas,
em tudo o que é permitido à nossa livre vontade e não lhe é proibido. De
tal maneira que, da nossa parte, não queiramos mais saúde que
enfermidade, riqueza que pobreza, honra que desonra, voda longa que
vida breve, e assim por diante em tudo o mais (...)
258
Não iremos mais além, vale ressaltar que Vieira uma análise sobre o discurso
político em Vieira seria interessante, no entanto, este tema está além de nossos
objetivos. Porém, quanto as representações a respeito da enfermidade, parece-nos
não sem propósito que Vieira trate do tema neste mesmo sermão. Quer dizer, em
um sermão para tratar da peste, de seus efeitos e causas, Vieira se refira ao campo
da política.
Assim, se a primeira desgraça o desconhecimento de si-mesmo conduz à
enfermidade das relações, neste segundo ponto, é a guerra, o embate político que
está em evidencia. A enfermidade do campo político.
Estas idéias sobre a enfermidade (nos campos relacional e político) está
presente, por exemplo, em outro de seus sermões, o “Sermão da Visitação de
Nossa Senhora”: “Alegra-te, enfermo gênero humano (...) Alegra-se, pois o enfermo
Brasil(...)”
259
Quanto ao gênero humano, o jesuíta atribui ao desejo dos primeiros homens
o pecado original, quanto ao Brasil, a política e a corrupção:
Como se havia de restaurar o Brasil, se o capitão da infantaria,
por comer as prças aos soldados, os absolvia das guardas, e
das outras obrigações militares, envilecendo-se em ofícios
mecânicos os ânimos que hão de ser nobre e generosos?
260
258
Inácio de Loyola, Exercício Espirituais, p. 23
259
Antonio Vieira, “Sermão da Visitação de Nossa Senhora”.In: Antonio Vieira, Sermões, (Erechim:
Edelbra, 1998), Vol VII, p. 416 e 419
260
Antonio Vieira, “Sermão da Visitação de Nossa Senhora”, p. 433.
87
2.3 A PESTE, MORTE E DESEJO: UM QUADRO SOBRE O HOMEM E SUA
NATUREZA.
Até aqui nossa reflexão nos conduziu a pelo menos duas
representações/idéias sobre enfermidade: como vimos acima, uma ligada as
relações estabelecidas entre naturais, e a segunda ao campo da política.
No entanto, estas perspectivas somam-se as idéias sobre a peste. E apesar
de se cruzarem, quando investigadas sobre o prisma da natureza e do gozo, é
necessário que vejamos em particular qual o sentido que Vieira atribui ao surgimento
da peste, sua causa e seus efeitos sobre o homem, para compreendermos suas
idéias sobre o enfermar.
Uma primeira idéia sobre o adoecer surge ao observarmos o emprego das
palavras enfermidade, enfermar, doente e remédio. Este foi nosso primeiro passo.
Estas palavras o empregadas para se referir a uma condição moral, como
no caso da corrupção, ao uso racional das paixões da alma e seu gozo, aos males
causados a alma pelos pecados e a enfermidade física.
A idéia do pecado como causa central para o enfermar não é novidade em
nossa história.
Os jesuítas estiveram presentes no tratamento aos doentes acometidos pela
peste e escreveram sobre as causas e a forma de conter as epidemias na Europa,
ainda no século XVI.
Para os jesuítas, que concordavam com a noção cristã de que Deus enviou a
doença para punir as pessoas por seus pecados, a penitência era um, o o único,
de seus remédios.
261
Antonio Possevino, por exemplo, escreveu um panfleto chamado “Causas e
Remédios da Peste e outras Doenças”, publicado anonimamente sobre os remédios
e as causas da peste, entre elas estão a vaidade, o orgulho, a arrogância, a luxuria
desonestidade, canções hereges, e o uso de roupas suntuosas.
262
Sobre a cura,
Possevino afirmou que através da confissão dos pecados, poderia se conseguir o
restabelecimento da saúde da alma.
263
261
A. Lynn Martin, Plague? Jesuit account of Epidemic Disease in the 16
th
Century, p. 89
262
Ibid, p. 95
263
Ibid, p. 100 (Mais tarde veremos que Athanasius Kitchner considerava outros fatores relacionados
88
Os fundamentos de como agir, compreender e aceitar a enfermidade na
prática missionária encontram-se presentes nas Constituições da Companhia de
Jesus. Retomemos um exemplo destes fundamentos visto no segundo capítulo
deste estudo:
[89] 32. Quando alguém está doente há de guardar a
obediência com grande pureza, não somente aos Superiores
espirituais, para que dirijam a alma, mas também, com a
mesma humildade, aos médicos corporais e enfermeiros, para
que lhe olhem pelo corpo. Pois os primeiros tratam da plena
saúde da alma, e os segundos da perfeita saúde do corpo.
264
Estas concepções sobre a enfermidade chegaram com grande grande aos
tempos de Vieira, assim como a idéia de que a confissão possuía uma utilidade
medicinal.
O termo “medicinal” também é utilizado no sentido de que o sacramento,
através dos exames das próprias faltas, aproximaria o homem de algum
conhecimento a respeito de “si-mesmo” e de sua natureza.
265
“Que coisa é a
conversão de uma alma senão entrar um homem dentro de si e ver-se a si
mesmo?”
266
De fato, no Sermão de São Roque, a peste possui um duplo aspecto: além de
tratar da enfermidade (corporal), é veículo para reflexão sobre o comportamento
enquanto causa e efeito do enfermar. Quanto ao segundo aspecto, Vieira mencionou
a importância da memória, da imaginação e do desejo.
Esta posto então novamente o problema da interioridade e exterioridade do
homem. Em outras palavras, a relação corpo-alma.
Sim, corpo-alma intermediados pelo desejo e o conhecimento e manejo
racional das paixões. Baseado em uma psicologia filosófica aristotélico-tomista não
poderia ser diferente este problema para Vieira, que tanto em Aristóteles, quanto
a peste, e o próprio Vieira parece demonstrar alguns conhecimentos correntes na medicina da
época).
264
Constituições da Companhia de Jesus e Normas Complementares, (São Paulo: Edições Loyola,
1997) p. 58
265
Paulo José carvalho Silva, A Tristeza na cultura Luso-brasileira, p. 83.
266
Antonio Vieira, “Sermão da Sexagésima ou do Evangelho”. In: Antonio Vieira, Sermões, (Erechim:
Edelbra,1998) Vol. I, parte III
89
em Tomás de Aquino, o problema do desejo se configura como objeto de grande
interesse.
Aristóteles, em diversas passagens de seu tratado sobre a Alma retomou o
problema do desejo, anunciando assim sua questão quanto as potências da alma
nos animais:
Dentre as potências da alma, como dissemos, todas as
mencionadas subsistem em alguns seres; em outros,
algumas delas e, em alguns, apenas uma. E mencionamos
como potências a nutritiva, a perceptiva, a desiderativa, a
locomotiva e a racionativa. Ora, nas plantas subsiste somente
a nutritiva, mas, em outros seres, tanto esta como a perceptiva.
E, se subsiste a perceptiva, também subsiste a desiderativa,
pois desejo é apetite, impulso e aspiração (...)
267
Retornaremos em breve à questão do desejo pois veremos o quanto ela está
relacionada ao problema da enfermidade. Destaquemos as palavras de Tomás de
Aquino, sobre a bem-aventurança e a voluptuosidade:
Contudo, a voluptuosidade corporal não pode, desse modo,
seguir o bem perfeito, pois segue o bem que é apreendido pelo
sentido, que é potência da alma que usa o corpo. Mas, o bem
que pertence ao corpo, apreendido pelo sentido, não pode ser
o bem perfeito do homem. Como a alma racional supera a
proporção da matéria corporal, a parte da alma que é
independente do órgão corpóreo possui certa infinidade
relativamente ao corpo e às partes da alma unida ao corpo.
Assim as coisas imateriais o de algum modo infinitas
relativamente às materiais, porque a forma é de certo modo
contraída pela matéria e por ela limitada.
268
Se para Aristóteles desejo é apetite e habita os seres que possuem potência
267
Aristóteles, De Anima, II, 414a29, p. 77
268
Tomás de Aquino, Suma Teológica, p. 57
90
perceptiva, desta forma natural, para Tomás de Aquino o desejo encontra-se em
acordo com a alma racional, imaterial e que possui certa infinidade quando
comparada com a determinação da matéria.
Nas palavras do Santo,
(...) o sentido, pois, que é potência corporal, conhece o singular
que é determinando pela matéria. O intelecto, porém, que é
potência independente da matéria conhece o universal, que é
abstraído da matéria e abarca sob si uma infinidades de
singulares.
269
A partir destas proposições, estamos diante dos problemas quanto a
enfermidade e suas representações/idéias e do papel das paixões da alma no
sermão de Antônio Vieira.
A enfermidade foi a terceira das desgraças de São Roque. Mas, Vieira
solicitou a compreensão e licença para que a deixasse por último, tratou antes da
questão dos remédios. Não nos desviaremos do percurso do jesuíta.
Foi São Roque, escreveu Vieira, desgraciado com os remédio, porque
curando milagrosamente a todos os apestados, ele morreu de peste
270
.
Prosseguiu assim o sermão: “Pode haver maior desgraça que esta? Que,
dando um homem remédio aos outros, lhe falte o mesmo remédio para si? Não pode
haver maior desgraça!”
271
E acrescentou:
A maior e mais geral desgraça que se padeceu no mundo foi o
dilúvio universal: mas se nesta desgraça comum houve
homens mais mofinos e mais desgraciados que os outros,
quem pode duvidar que foram os fabricadores da Arca de
Noé?Tantos anos estiveram estes homens fabricando aquela
nova máquina nunca vista no mundo, em que se haviam de
salvar as relíquias dele, cortando, serrando, lavrando,
269
Tomás de Aquino, Suma Teológica, p. 57
270
Antonio Vieira, “Sermão de São Roque”, p. 40-41
271
Antonio Vieira, “Sermão de São Roque”, p. 40
91
medindo, ajustando, pregando, calafetando, breando,
e que no cabo entrassem na arca Noé e seus filhos, e os
animais de todas as espécies, e se salvassem nela do dilúvio,
e que os mesmos tinham fabricado, ficassem de fora e
perecessem afogados? Brava desgraça!
272
O jesuíta comentou: “Que a custa de nosso suor e de nossos braços se
salvem eles, e que à vista da sua salvação nos percamos nós? Oh! Desgraça! Oh!
Mofina! Oh! Desventura sem igual!”
273
O jesuíta esclareceu a intenção desta passagem referindo-se a São Paulo:
“Faço penitencia, diz S. Paulo, para que pregando aos outros, não me condene a
mim – Reparai muito naquele: para que pregando aos outros.”
274
Vieira, conforme havia feito no “Sermão da Sexagésima ou do Evangelho”,
em 1655, estaria direcionando suas palavras a prática do pregador e a vida
religiosa? Parece-nos que ele faz isso claramente. É a prática do pregador objeto
deste trecho do sermão? É para evidenciar a dificuldade do pregar, da palavra e da
ação, que Vieira trata deste tema?
Irem ao inferno os que não são pregadores, é pequena
miséria? Grande miséria é, mas em gênero de desgraça é
muito menor. A maior das desgraças de todas é não se salvar
um homem; mas não se salvar um homem que tem por
exercício salvar aos outros, ainda é maior desgraça que a
maior de todas as desgraças.
275
E continua:
Oh! Quantos desgraciados destes no mundo, em todos os
estados! Quantos prelados que curam as almas das
ovelhas, e têm enfermas as suas! Quantos governadores que
guiam e encaminham os povos, e eles se desgovernam e
272
Antonio Vieira, “Sermão de São Roque”, p. 40
273
Ibid.
274
Ibid.
275
Antonio Vieira, “Sermão da Sexagésima, p. 41
92
desencaminham! Quantos conselheiros que dão muito bons
conselhos aos outros, e eles perdidos desaconselhados.
Vieira insiste na idéia de que as desgraças estão presentes no mundo,
independente do estado, e lança o olhar sobre a prática do pregador, assim como
dos governantes.
Poderia o jesuíta, a exemplo do poder político, estar falando de um sentido de
enfermidade no campo religioso?
Não nos homens, em que as desgraças são consequências
dos cio, mas anas mesmas virtudes acho esta desgraça.
Que virtude maior que a fé? Sem a ninguém pode se salvar;
mas em todos os que se salvam se perde a fé, e que o
possa haver fé no céu? Virtude que mete aos outros no céu, e
fica de fora? Virtude que salva aos outro, e perde a si?
276
Segundo o jesuíta no “Sermão da Exortação I em Véspera do Espírito Santo”:
Ad omnia! [para tudo] (...) Este ad omnia é e deve ser a
empresa e o timbre de todo o verdadeiro missionário (...) não
para catequisar gentios, nem para batizar
catecumênicos, nem para doutrinar cristãos, mas para
sustentar famintos, para vestir nus, para curar os enfermos
(...)
277
Citamos anteriormente o Sermão da Sexagésima, onde Vieira tratou da
atividade de pregar. Não iremos aqui adiante neste tema. Vale destacá-lo e
apresentar a idéia do jesuíta sobre isso, no entanto, um exame pormenorizado nos
levaria a questões outras além das que nos propusemos.
Uma outra possibilidade surge ao considerarmos estas passagens:
justamente a morte. Como o homem virtuoso poderia ser acometido pela
276
Antonio Vieira, “Sermão de São Roque”
277
Antonio Vieira, “Sermão da Exortação I em Véspera do Espírito Santos”. In: Antonio Vieira,
Sermões, (Erechim: Edelbra,1998) Vol VIII, p. 53
93
enfermidade? Qual a explicação para a morte de jesuítas enquanto socorriam os
doentes de peste?
Vejamos o fim desta seção do sermão:
Roque morto com o remédio, em que dava vida a todos,
formado nas mãos. E servo, que morrendo se pareceu tão
vivamente a seu Senhor, vede se merece o nome que lhe o
Evangelho de bem-aventurado: Beati sut servi illi.278
Esta desfeita a possível contradição. Não haveria ouvinte que diria que o ideal
era de que o santo fosse salvo, que o maior bem que se deseja, a maior bem
aventurança, é parecer-se com o próprio Cristo.
A. Lynn Martin em seu estudo escreveu sobre a morte de um jesuíta chamado
Luigi Calligaris, morto em Messina em Novembro de 1575: a culpa por sua morte
recaiu sobre seus próprios pecados.
279
Novamente se abre a discussão sobre a escolha e a natureza dos indivíduos,
seu percurso no mundo e as desgraças as quais os homens estão sujeitos.
Somos chegados a última desgraça de São Roque, que
reservei para este lugar para que nos fique mais na memória,
porque nos nossos pecados, não devemos considerar de
longe, como desgraça sua, senão de perto e de dentro, como
desgraça também nossa.
280
Destacaremos três termos sobre os quais iremos discutir: “memória”, “de
dentro”, “desgraça também nossa”.
Em sue trabalho intitulado “Alimentos, palavras e saúde (da alma e do corpo)
em Sermões de Pregadores Brasileiros do Século XVII”, Marina Massimi escreve
que:
Para que o sacramento eurístico seja assimilado pela alma, é
preciso então que atuem todas as potências da alma para
278
Antonio Vieira, “Sermão de São Roque”, p. 41
279
A. Lynn Martin, Plague? Jesuit account of Epidemic Disease in the 16
th
Century, p. 94
280
Antonio Vieira, “Sermão de São Roque”, p. 43
94
digerí-lo e isto se faz através do Rosário. (...) A partir dessa
premissa, Vieira desenvolve uma descrição pormenorizada,
baseada em conhecimentos médicos clássicos do processo
fisiológico da nutrição, estabelecendo uma correspondência
pontual com o processo de assimilação espiritual realizado
pelas potencias do psiquismo humano.
281
Neste sentido, segundo a autora, citando o Sermão de Nossa Senhora do
Rosário com o Santíssimo Sacramento, pronunciado no ano de 1654, a memória é
definida como o “estomago da alma”.
282
Há conceitos retóricos específicos na elaboração textual de um sermão. Eles
estão relacionados a ação eficaz do discurso: inventio, dispositivo, elocutio,
memoria e actio.
283
Estes conceitos foram categorizados por E. Lopes da seguinte maneira:
(...)a invenção da etapa dedicada à seleção da matéria a ser
apresentada, ou seja a escolha de quais serão os temas
paralelos e periféricos que poderão auxiliar na explanação,
como por exemplo os lugares-comuns (topoi) utilizados e as
possíveis imagens a serem empregadas; a disposição, parte a
qual ordena interna e organicamente o material selecionado; à
elocução cabe a expressão linguística, formal, estética e
expressiva de todos os aspectos a serem tratados; a
memorização é o processo de fixação mnemônica de conteúdo
ordenado para a posterior explanação; e finalmente, a ação,
propriamente dita, é a representação do sermão aos ouvintes,
dotada de apropriada expressão, com gestos, mimica, postura,
tons e ênfases, regradas e intencionadas retoricamente.
284
281
Marina Massimi, “Alimentos, palavras e saúde (da alma e do corpo) em Sermões de Pregadores
Brasileiros do Século XVII”. In: História, Ciências, Saúde – Manguinhos, 13 (2,2006): pp. 253-270
282
Ibid.
283
E. Lopes apud Vilmar Douglas de Souza Pimenta e Marina Massimi, “A Palavra e a Imagem na
Pregação do Século XVII: Um Sermão de Antonio Vieira”
284
Vilmar Douglas de Souza Pimenta e Marina Massimi, “A Palavra e a Imagem na Pregação do
Século XVII: Um Sermão de Antonio Vieira”
95
Referente ao papel do pregador, Luís Miguel Carolino assim se expressou:
(...) através do sermão (o pregador), devia não apenas exercer
uma influência intelectual ou racional (docere), mas, sobretudo
criar um clima afectivo favorável (delectare) que permitisse
uma total receptividade acrítica por parte do auditório em
relação a mensagem do pregador (movere).
285
Portanto, a memória é um elemento importante no sermão. Parceira de uma
imagem que fixa o objeto do discurso é mecanismo e campo por onde potencializa o
entendimento de si, das paixões e da razão.
O intelecto agente é a instância psíquica prioritária nessa articulação.
para a dor do pecado cometido, a importância da memória é salientada e
trabalhada por todo o discurso”
286
.
A memória, desta forma, assume o papel de
esclarecer, como modo contínuo e consequente, a necessidade do arrependimento
e da penitência.
287
Vieira nos diz textualmente que por fim tratará da enfermidade com o objetivo
de que nos fique mais na memória.
Os outros dois termos parece-nos menos problemáticos para o entendimento.
Compreendemos “de dentro”, não como alusão a nação ou ao estado, mas como a
interioridade. E é a reflexão sobre o comportamento e os afetos que possibilitaria o
conhecimento da alma:
Em plena consonância com a doutrina tomista, Vieira declara
que conhecemos a alma pelos seus efeitos, ou seja, pelas suas
faculdades que se evidenciam no plano dos fenômenos. o
conhecimento da alma, em seu próprio ser e substância, é
possível somente através do encontro com Deus, na visão de
sua face, espelho perfeito para conhecer a si mesmo (...)
conhecer a si mesmo e converter-se seriam a mesma coisa ,
285
Luís Miguel Carolino, “A ciência e os topoi retóricos em Antonio Vieira: um caso de difusão cultural
em Portugal e no Brasil durante o século XVII”. Revista da SBHC, (18, 1997): p. 55-72.
286
Vilmar Douglas de Souza Pimenta e Marina Massimi, “A Palavra e a Imagem na Pregação do
Século XVII: Um Sermão de Antonio Vieira”, p.140
287
Ibid
96
na medida em que ambos implicariam o reconhecimento da
dependência analógica com o Ser (...)
288
Resta-nos ainda esclarecer o último dos termos que destacamos: “desgraça
também nossa”. Nossa no sentido de gênero, de particular ao humano sujeito aos
males da vida e aos perigos do mundo: utilizando-se da imagem da águia que do
céu anuncia as misérias humanas, Vieira escreveu que a compaixão e piedade dos
bem-aventurados, além dos perigos e misérias a que estão sujeitos os homens está
“a impenitência final com que acabam a vida e morrem seus pecados”.
289
Seria por demais interessante nos dedicarmos a cosmologia de Vieira
290
. Isso
nos mostra o quanto sua obra pode instigar diversas pesquisas. Porém, novamente
nos vemos diante da impossibilidade de continuar por este caminho no presente
momento. Assim, registremos somente que um grande número de pesquisadores
tem escrito sobre a obra do jesuíta e que ela ainda permanece como fonte de
estudos para o futuro.
Então é a “memória” (tanto no sentido de fixar o discurso, quanto evocar as
próprias ações/pensamentos para revisão) um mecanismo para a reflexão “de
dentro”, do particular e do que é universal ao homem, da “desgraça também nossa”
O que de universal ao homem? em poucas palavras, conforme vimos no
capítulo primeiro deste estudo, ser mortal. “Esta é a sentença da morte fulminada
contra Adão e todos seus descendentes, a qual se tem executado em todos quantos
até agora viveram, e se há de executar em nós (...).”
291
Qual é o pecado de “nossos” primeiros pais?
A mais poderosa inclinação e o mais poderoso apetite do
homem é desejar ser. Bem nos conhecia este natural o
demônio, quando esta foi a primeira pedra sobre que fundou a
ruína a nossos primeiros pais. (...) não es o erro em
288
Paulo José Carvalho da Silva, A Tristeza na Cultura Luso-brasileira, p. 83
289
Antonio Vieira, “Sermão da Segunda-feira depois da Segunda Dominga da Quaresma”, p. 440
290
Há de fato diversas passagens nos sermões de Vieira que poderíamos entender como uma
maneira de explicar e entender o mundo e a condição do homem diante dos outros seres. Vieira
escreveu na primeira seção do Sermão da Sexagésima uma classificação dos seres a partir do que
chamou de gênero: “Todas as criaturas quantasno Mundo se reduzem a quatro gêneros: criaturas
racionais, como os homens; criaturas sensitivas, como os animais; criaturas vegetativas, como as
plantas; criaturas insensíveis como as pedras; e não há mais.”
291
Antonio Vieira, “Sermão da Quarta-feira de Cinzas”, p. 171.
97
desejarem os homens ser, mas está em não desejarem ser o
que importa.
292
E ainda:
O maior inimigo da vida quem vos parece que será? O maior
inimigo do homem é o entendimento. (...) Se buscarmos a
origem da morte, na Árvore da Ciência pôs Deus o fruto da
mortalidade: por onde os homens quiseram ser mais
entendidos, por ali começaram a ser mortais.
293
A enfermidade, no olhar do jesuíta, se conjuga justamente com esta condição
natural, sentença em razão da falta de nossos primeiros pais, de retorno ao pó.
Pulvis es, et in pulverim reverteris.
294
Mas se o homem é pó e ao retornará, “(...)
o homem também é vivente, sensitivo e racional: o racional apura o sensitivo, e o
sensitivo apurado destrói o vivente”.
295
Deus criou uma coisa nova sobre a terra(...) Uma mulher a qual
de cercar o varão. O varão neste caso é o Verbo Eterno
encarnado. Todos os outros homens, quando se geram e
concebem no ventre da mãe, não são homens, nem ainda
meninos, porque sói têm a vida vegetativa ou sensitiva, e ainda
não estão informados com a alma racional.
296
Tendo em vista este princípio o objetivo do pregador, é, através do sermão,
“exercer uma influência intelectual ou racional (docere), mas, sobretudo criar um
clima afectivo favorável (delectare) que permitisse uma total receptividade acrítica
por parte do auditório em relação a mensagem do pregador (movere)”.
297
292
Antonio Vieira, “Sermão de Todos os Santos”. In: Antonio Vieira, Sermões, (Erechim: Edelbra),
1998, Vol III, p. 360.
293
Antonio Vieira, “Sermão das Exéquias de D. Maria de Ataíde”. In: Antonio Vieira, Sermões,
(Erechim: Edelbra), 1998, Vol IV, p. 134.
294
Antonio Vieira, “Sermão da Quarta-feira de Cinzas” p. 205
295
Antonio Vieira, “Sermão das Exéquias de D. Maria de Ataíde”, p 135.
296
Antonio Vieira, “Sermão da Nossa Senhora do Ó”, p. 289.
297
Luís Miguel Carolino, “A ciência e os topoi retóricos em Antonio Vieira: um caso de difusão cultural
em Portugal e no Brasil durante o século XVII”. Revista da SBHC, n. 18 (1997), p. 55-72.
98
Os escritos de Antônio Vieira, como observamos, propõe princípios de
conduta moral ao definir o que é natural e não-natural ao Homem. É neste sentido
que o observamos falar a seus ouvintes sobre a fragilidade de sua condição de
mortais, e acentuar o papel do desejo e do gozo, das paixões da alma,
determinando as relações entre os homens.
Está ai o conceito de homem para o jesuíta. O que indica uma condição
transitória de apuração dos sentidos pela razão. Conforme nos indica Marina
Massimi em seu texto “A Psicologia dos Jesuítas: Uma contribuição à história das
idéias psicológicas”, os jesuítas construíram em seus sistema filosófico
conhecimentos sobre o comportamento humano, este conhecimento não é somente
de natureza especulativa mas busca o controle dos fenômenos psíquicos em função
da vida individual e social.
298
Referente a enfermidade, o jesuíta acentua o aspecto da natural do homem:
Padecer alguma enfermidade, parece que é conseqüência de
ser mortal, e assim mais se deve chamar natureza que
desgraça. Contudo não deixa de ser desgraça, e notável
desgraça, que, havendo um homem de padecer a miséria de
enfermo, logo topar com a pior enfermidade, e a mais
terrível de todas. Assim lhe aconteceu a S. Roque: enfermou e
enfermou de peste.
299
Entre os motivos, ou as misérias, que tornam a peste uma enfermidade tão
terrível, o jesuíta apontou (1) a transformação do elemento da vida, o ar, em
elemento de morte, e (2) o abandono do enfermo, a solidão.
A primeira, escreveu o jesuíta, ser a peste um mal que do elemento da vida
nos faz o instrumento da morte.
300
O elemento que o jesuíta se referiu era o ar, e para ele a peste é esse mesmo
ar corrupto e infeccionado.
301
298
Marina Massimi A Psicologia dos Jesuítas: Uma contribuição à história das idéias psicológicas”.
In: Psicologia: Uma Reflexão Crítica, 3 (14, 2001): pp. 625-633
299
Antonio Vieira, “ Sermão de S. Roque”, p. 43
300
Ibid.
301
Antonio Vieira, “Sermão de São Roque”, p. 43
99
Corrompe o veneno da peste a primeira parte do ar, e, estando
uma parte do ar corrupta, pega-se a corrupção à outra parte, e
assim de parte em parte se vai corrompendo tudo. na casa,
e leva a rua; da na rua, e leva a cidade; na cidade, e lava o
reino tal foi na cruz a peste e contágio da vida, contra a peste e
contágio da morte.
302
A crença de que a qualidade do ar poderia causar, agravar ou curar uma
doença estava presente em tratados hipocráticos, como vinos no primeiro capítulo
desta dissertação, e durante as grandes epidemias que despertaram terror em toda
a Europa era comum a utilização de perfumes e substâncias aromáticas para evitar
o contágio.
303
Antônio Vieira ao acentuar o papel do ar no contágio, não parece distante
das idéias correntes na medicina da época.
Que a respiração, que é o elemento e o alimento da vida, se
lhe haja de converter em instrumento de morte? Grande rigor!
Expirar é morrer, respirar é viver: e que morra um homem
expirando, isso é morte; mas morrer respirando? Que mate o
que me havia de dar vida? Bravo tormento!
304
É ao ar que Vieira atribui o primeiro mal. O jesuíta parece de acordo com a
idéia presente na medicina hipocrático-galênica a respeito da causa das epidemias
estarem associadas a algo de comum entre os enfermos. Mas o que corrompe o ar?
“Que choveria Deus laços sobre os pecadores”.
305
As desgraças o consequências
dos vícios.
306
Como no dilúvio, quando a água vinda do céu afogou o mundo,
e o elemento de vida tornou-se de morte, (...) esta [a
enfermidade] é a espada divina que já temos metida no peito, e
302
Ibid, p. 49
303
Roberto de Andrade Martins & col, Contágio:história da prevenção das doenças transmissíveis, p.
03 e seguintes.
304
Antonio Vieira, “ Sermão de São Roque”, p. 44
305
Antonio Vieira, “Sermão de São Roque”, p. 44
306
Ibid., p. 41.
100
só lhe falta penetrar mais, e chegar ao coração.
307
Em ambos, na enfermidade e no dilúvio universal, está presente a mão de
Deus: “Quantas coisas que parecem vindas do u, e são laços! Uns tece o
demônio, outros apertam os homens, outros chove Deus. Que foi o dilúvio universal
senão laços chovidos? Com aquelas águas se afogou o mundo.”
308
As causas ditas como primárias e secundárias para as graves enfermidades
estão presentes, como vimos no estudo de A. Lynn Martins quando se referiu ao
panfleto de Antonio Possevino, nos relatos dos jesuítas sobre surtos de peste em
toda Europa no século anterior.
Articulam-se nestes textos as causa para o surgimento da peste e o fator que
faz com que a terrível enfermidade se espalhe: a vontade de Deus e o contágio do
ar, da água ou de outro elemento.
Ao mesmo tempo, como na alegoria do dilúvio que Vieira utilizou, a peste tem
ainda duplo papel: é veículo de punição, pois é a espada de Deus, e mecanismo
para redenção, conforme os antigos relatos dos jesuítas.
As causas primária e secundárias, na visão dos jesuítas que enfrentaram as
pestes eram interconectadas; alguns pecados, como a gula e a luxúria, dispunham o
corpo a receber o contágio. Assim as autoridades da cidades, a exemplo de Veneza,
condenavam à penitencia os que consideravam como emissores de comportamento
imoral.
Especificamente quanto aos remédios para a causa primária, está foi
considerada tanto no plano individual quanto no coletivo. Focado sobre o aspecto
individual, pensou-se em um programa que incluía missas, orações, caridade,
confissões e comunhões. Para o povo, a escuta de sermões, procissões, a queima
de livros ofensivos, o jogo de cartas, pinturas obscenas, entre outros.
309
Sobre as causas secundárias, os autores pesquisados por A. Lynn Martin,
referem-se a teoria dos humores do corpo, ao contágio através do ar e da pestilência
absorvida durante as visitas aos doentes. Muitos jesuítas acreditavam que a
infecção do ar era a causa natural da peste. Havia também, em menor quantidade
307
Antonio Vieira, “Sermão de São Roque”, p. 51.
308
Ibid., p. 44.
309
A. Lynn Martin, Antonio Vieira, “Sermão de São Roque”, p. 99 e ss.
101
a idéia do contágio através da água e a fome.
310
Antônio Vieira, como vimos até agora, também se preocupou em formular
idéias que se referiam ao individual e, ao acentuar a questão da natureza humana e
o coletivo.
São Roque, enfermo de peste, desagraciado uma vez mais, uma vez mais
sozinho e sem remédio, não pode curar a si mesmo, não há a quem possa recorrer.
O mal maior que a enfermidade lhe causa, mal compartilhado por todos, enfermos
ou não, é a solidão. Esta é a segunda razão de ser a peste mal tão terrível.
Vieira neste ponto destacou a solidão do homem enfermo, o que nos parece
demonstrar na visão do jesuíta o mundo transitório e a fragilidade do corpo diante
das ameaças que rodeiam os homens.
Vamos à segunda. A razão ou miséria por que tenho pelo mais
desgraçado de todos os males a peste, é porque nas outra
enfermidades o maior benefício que vos pode fazer quem vos
ama, é estar convosco; na peste, a maior consolação que vos
pode dar quem amais é fugir de vós. Mal em que dizer: estai
comigo, é querer mal, e o dizer: fugi de mim, é querer bem.
311
O jesuíta contou a história da mulher que esteve enferma por duas vezes,
correu os riscos da guerra, roubaram-na e feriram-na, viu-se maltratada e
desprezada pelo esposo. Por duas vezes enferma, sobreviveu e se curou da
doença, mas não sarou da solidão quando acometida pela peste. O jesuíta
comentou a respeito:
Adiante o jesuíta escreveu: Grandes males são as
enfermidades, as feridas, as guerras, os desgostos, os
desprezos, o temores, e outros que a esposa padeceu e se
padecem no mundo; mas mal em que é forçoso dizer aos que
mais amais que fujam de vós, esse é o maior mal de todos os
males, esse é o que acaba o valor na maior paciência, esse é o
310
Ibid, p. 107 e ss.
311
Antonio Vieira, “Sermão de São Roque”, p. 45
102
que tira a vida na maior constância. Tal é o mal da peste.
312
As palavras do jesuíta nos parecem da seguinte maneira: solidão do enfermo
é a solidão do gênero. No entanto, impossibilitado pelo adoecimento de “padecer” do
gozo das paixões, a solidão é desvelada.
Considerai-me o mundo desde seus princípios, e vê-los-eis
sempre, como nova figura do teatro, aparecendo e
desaparecendo juntamente, porque sempre está passando. A
primeira cena deste teatro foi o paraíso Terreal, no qual
apareceu o mundo vestido de imortalidade e cercado de
delícias. Mas quanto durou estas delícias?
313
Em resumo: a solidão do enfermo é a solidão do gênero humano desvelada.
A solidão nesta perspectiva é sintoma da falta, do pecado original, o que cessaria
com o reencontro do homem com o Ser através da conversão; é também efeito do
enfermar.
Assim poderíamos esquematizar essas idéias da seguinte forma: o desejo
conduz ao gozo que em excesso resulta no aparecimento da enfermidade, e a
solidão do gênero é condição ao próprio desejo e efeito da enfermidade.
2.4 A TRÍADE DESEJO-GOZO-ENFERMIDADE: UMA PASSAGEM
PARA O CONHECIMENTO DE SI
Padecer alguma enfermidade (...) é conseqüência de ser mortal, e assim
mais se deve chamar natureza que desgraça”.
314
A mortalidade, por sua vez, é
conseqüência do desejo dos primeiros homens. Nesta perspectiva da filosofia
jesuítica, a enfermidade conjuga-se com esta natureza.
Até aqui percebemos nos textos de Antônio Vieira uma concepção de homem,
312
Antonio Vieira, “Sermão de São Roque”, p. 46
313
Antonio Vieira, “Sermão da Primeira Dominga do Advento”, p. 159
314
Antonio Vieira, “Sermão de São Roque”, p. 43
103
sua gênese, seu desenvolvimento e sua condição.
O desejo também é uma condição deste mesmo homem. O desejo de ser é a
mais poderosa inclinação do homem:
A mais poderosa inclinação e o mais poderoso apetite do
homem é desejar ser. Bem nos conhecia este natural o
demônio, quando esta foi a primeira pedra sobre que fundou a
ruína a nossos primeiros pais. (...) não es o erro em
desejarem os homens ser, mas está em não desejarem ser o
que importa.
315
Ou ainda, na terceira parte do “Sermão de Santo Antonio ou dos Peixes”:
O leme da natureza humana é o alvedrio, o piloto é a razão:
mas quão poucas vezes obedecem à razão os ímpetos
precipitados do alvedrio? Neste leme porém, tão desobediente
e rebelde, mostrou a língua de Antonio quanta força tinha,
como rêmora, para domar e parar a fúria das paixões
humanas.
316
Citamos uma passagem mencionada anteriormente:
Padecer alguma
enfermidade(...) é conseqüência de ser mortal, e assim mais se deve chamar
natureza que desgraça”.
317
A mortalidade por sua vez é conseqüência do desejo dos
primeiros homens, do pecado original. A enfermidade conjuga-se com esta natureza.
O papel do sermão é “alumiar e curar”
318
e a conversão por sua vez e
reconhecer a si mesmo. Assim a conversão é tanto o restabelecimento da
participação do Homem junto ao Ser
319
, estratégia alcançada através do
315
Antonio Vieira, “Sermão de Todos os Santos”. In: Antonio Vieira, Sermões, (Erechim:Edelbra, 1998)
Vol III, p. 360.
316
Antonio Vieira, “Sermão de Santo Antonio”. In: Antonio Vieira, Sermões, (Erechim:Edelbra,1998)
Vol I, p. 120.
317
Antonio Vieira, “Sermão de Sermão de São Roque”, p. 43
318
Antonio Vieira, “Sermão de Santo Antonio ou do Peixes”, terceira seção
319
Antonio Vieira, Sermão do Mandato”, In: Antonio Vieira, Sermões, (Erechim:Edelbra, 1998) Vol
VII, p. 32-33.
104
reconhecimento de si, e a apresentação de um modelo de ação no mundo.
320
Conforme escreveu Vieira no “Sermão da Sexagésima ou do Evangelho”:
“Que coisa é a conversão de uma alma senão entrar um homem dentro de si e ver-
se a si mesmo?”
321
Ele acrescentou: “Para um homem ver a si mesmo é preciso olhos, espelho e
luz”.
322
De fato, Vieira se referiu a uma mudança interna do Homem a partir do
reconhecimento do que está no próprio homem, como sua condição de
transitoriedade, e que precisa ser trazido do desconhecimento.
Mas o que impede o Homem de ver a si mesmo? Qual o motivo de seu
desconhecimento de si? A vingança, a cobiça, a sensualidade e as outras paixões?
Os olhos, respondeu o jesuíta. Ou melhor, a cegueira, mas não a cegueira de
um cego, a cegueira que deixa os olhos abertos
323
, causada pelo gozo de quem
pode ver. “A cegueira de muitos incuráveis”, e se incurável, é, portanto, enfermidade
sem cura.
324
O cego que hoje viu Cristo padecia de uma cegueira: os
cegos que nós havemos de ver, sendo as suas cegueiras
muitas, não as padecem, antes as gozam e amam: delas
vivem, delas se alimentam, por elas morrem e com elas.
325
Pois bem, vemos que a cegueira a que Vieira se refere é a submissão da
razão pelas paixões da alma. E por que cegueira? Cegueira justamente porque
Vieira acredita que com o uso da razão seja esclarecida a fragilidade das coisas
humanas, dos desejos, sobretudo conduz o homem ao conhecimento de si, ao
reconhecimento de sua condição ofuscada pelas mesmas paixões. Enfim ao
equilíbrio destas paixões que são naturais ao homem.
Todos comumente cuidam que as obras são filhas do
320
Antonio Vieira, As Cinco Pedras da Funda de Davi”, In: Antonio Vieira, Sermões,Vol II, (São
Paulo:Hedra, 2003) p. 529.
321
Antonio Vieira, “Sermão da Sexagésima”, In Antonio Vieira, Sermões, (Erechim:Edelbra,1998) Vol
III, p. 77.
322
Ibid.
323
Antonio Vieira, “Sermão da Quinta Quinta-feira da Quaresma”, p. 267.
324
Ibid, p. 265.
325
Antonio Vieira, “Sermão da Quinta Quinta-feira da Quaresma”, p. 266.
105
pensamento ou idéias, com que se concebem e conhecem as
mesmas obras: eu digo que são filhas do pensamento e da
idéia, com que cada um se concebe, e conhece a si mesmo.
326
É na palavra do pregador, na mobilização afetiva que o sermão pode
provocar, que Vieira assenta a possibilidade de reencontro, de unidade, entre o Ser
e o homem. Para que o homem veja a si mesmo, escreveu Vieira, são necessárias
três coisas: olhos, espelho e luz: “(...) há de concorrer o pregador com a doutrina,
persuadindo; de concorrer o ouvinte com o entendimento, percebendo; de
concorrer Deus com a graça, alumiando.”
327
É necessário portanto que o homem veja a si mesmo. O tema do
desconhecimento de si-mesmo, presente na Companhia de Jesus desde os
Exercícios Espirituais e as Constituições, é de grande importância pois, o
desconhecimento dos próprios limites faria com que o homem se perdesse na
desordem de seus afetos.”
328
A cegueira
329
é
gozo, causa de padecimento.
330
É enfermidade da
imaginação.
331
Justamente o que impede de o homem ver a si mesmo e a
transitoriedade deste mesmo gozo.
Conforme Paulo José Carvalho da Silva:
(...) conhecer a si mesmo e converter-se seriam a mesma
coisa, na medida em que ambos implicariam o reconhecimento
da dependência analógica com o Ser, na assunção do
pertencimento filial e na vida em conformidade com ele.
332
O conhecimento de si mesmo proporciona ao homem que conduza de
maneira racional sua vida. A razão: quem gostaria de padecer durante a eternidade
em troca da transitoriedade do gozo no mundo?
Vejamos o que escreve o jesuíta sobre a cura: “A maior maravilha em gênero
326
Antonio Vieira “Sermão As Cinco Pedras da Funda de Davi” Discurso I, In: Antonio Vieira,
Sermões. Vol: I (Erechim:Edelbra, 1998), Terceira Parte.
327
Antonio Vieira, “Sermão da Sexagésima”, terceira parte
328
Paulo José Carvalho da Silva, A Tristeza na Cultura Luso-brasileira, p. 85
329
Antonio Vieira, “ Sermão da Quinta Quinta-feira da Quaresma”,p. 267.
330
Ibid, p. 265.
331
Antonio Vieira, “Sermão de Nossa Senhora do Ó”, p. 309.
332
Paulo José Carvalho da Silva, A Tristeza na Cultura Luso-brasileira, p. 83.
106
de saúde milagrosa que assombrou este mundo foi a que dava São Pedro aos
enfermos, só com a passagem de sua sombra.”
333
A cura consistia em que a multidão de enfermos fossem tocada pela sombra
de São Pedro, o instrumento da onipotência e da saúde.
334
A cura que dava São
Pedro era com propriedades da peste, escreveu Antônio Vieira.
O mesmo aconteceu com São Roque que, sem que tirassem os doentes das
enfermarias, dos hospitais ou de suas casas, em qualquer parte da cidade saravam
todos.
335
O contágio da virtude de São Roque era peste da peste, porque saltava,
como escreveu Vieira, de um enfermo a outro enfermo, de uma casa a outra casa,
de uma rua a outra rua, de cidade a cidade espalhando saúde pela província.
336
Esta é a espada divina que Portugal tinha no peito, lhe faltava penetrar
mais. O que importava era, escreveu, que se os pecados causavam tal castigo,
tinham o remédio. Disse o jesuíta, Invoquemos São Roque.
337
O auxílio para a cura
do pecar que é enfermar, a cura do enfermar é a virtude.
Apesar disso, na visão de Antônio Vieira, ao homem cabe uma escolha:
afirmar sua natureza, ocupar o lugar privilegiado com o Ser, confirmar portanto sua
união mística, ou permanecer no desconhecimento de seus próprios limites.
Vieira nos apresentou um mundo cheio de ameaças. Porém, seu interesse
não é a crítica ao lugar, mas sim a ação do homem:
Não é um puro desprezo pelo mundo, e sim uma tomada de
consciência de sua transitoriedade e das consequências da
imortalidade da alma. É certo que todos os homens necessitam
dos bens da terra para esta vida e os do céu para a outra. (...)
O mundo enquanto lugar de ação não é o alvo de suas críticas.
Pelo contrário, o que realmente está em questão não é
propriamente onde, mas como se age.
338
Mais do que uma crítica, a conversão é, portanto, um maneira de conduzir-se
no mundo. É remédio da alma e calmante das paixões.
333
Antonio Vieira, “Sermão de São Roque”, p. 49
334
Ibid, p.49
335
Antonio Vieira, “Sermão de São Roque”, p. 50
336
Ibid, p. 50-51
337
Ibid, p. 51
338
Paulo José Carvalho da Silva, A Tristeza na Cultura Luso-brasileira, p. 76
107
CAPÍTULO III
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Nosso percurso, como dissemos, foi construído por tempos diversos: da
clínica à História (da Ciência e da Psicologia). Ele é um dos percursos possíveis.
Acentuamos com isso a abertura que permanecepara a análise das idéias
e representações da enfermidade e sua relação com o dinamismo psíquico. Além
disso, a pesquisa é abertura, uma janela para o futuro, e não seu fechamento.
É interessante, diriam alguns, falarmos de futuro a respeito de uma pesquisa
histórica que seu objeto está no passado. Pois, não sea história construída de
idas e vindas? Não será este passado constituinte das matrizes filosóficas sob as
quais construímos nossos saberes e nossa identidade?
Neste sentido o século XVII marca uma redefinição no campo do
conhecimento no que se refere a relação sujeito-objeto. Ainda que isso envolva
diversos aspectos que no momento não nos deteremos, este período é marcado
para diversos historiadores como a mudança da razão contemplativa para a razão e
ação instrumental.
A razão, a partir da visão destes pesquisadores, ganhou contornos prático-
teóricos em oposição a razão contemplativa. Ao sujeito aparecem novas questões.
O espaço, as fronteiras e o conhecimento se transformam assim como o próprio
sujeito. O sujeito é outro.
Neste contexto a conversão, sinônimo do uso da razão para o jesuíta Antônio
Vieira, é também a aderência a um modo de se conduzir frente ao mundo em
transformação. Para isso utiliza-se da palavra, do manejo dos afetos e da imagem.
Enfim, de um modelo de ação de acordo com a natureza humana e a razão.
Antônio Vieira escreveu mais de duzentos sermões, entre outros textos. Em
sua obra somos levados a diversas idéias que podem interessar ao historiador da
ciência. Entre estas idéias, a noção de enfermidade e a relação entre o adoecer, a
natureza e a moral.
O cuidado com os enfermos fez parte da experiência dos jesuítas no Brasil.
108
Encontramos, por exemplo, no século XVI, as cartas de Anchieta. No culo XVII, o
próprio Vieira tratou do assunto, assim como padre Antônio Sepp, no Paraguai, entre
outros. Os padres viam nestas experiências a oportunidade de colocar em prática
seu projeto missionário.
Vieira pregou em hospitais como as Santas Casas de Lisboa e da Bahia, e
além do conforto aos enfermos, oferecia-lhes através da palavra a imagem para
identificação, as causas e os remédios para as enfermidades. Em sua compreensão
do enfermar além de apresentar aspectos da medicina hipocrático-galênica, a
doença está situada junto ao problema da identidade (enquanto conhecimento de si,
o que significa o homem conscientizar-se da condição humana), base para o
conhecimento religioso a respeito do tratamento do enfermo.
De fato, esta não é uma questão exclusiva de Vieira. Como vimos no primeiro
capítulo, ela esteve presente para os gregos e, mais tarde para os filósofos estóicos
e os santos da igreja. Vimos ainda que, sem nos aprofundarmos em maiores
problemas, a retomada das idéias de Aristóteles por Tomás de Aquino na relação
enfermidade – moral – natureza.
Elas ressoam nos textos de Vieira em sua significância da enfermidade e do
adoecer, da humana natureza e das paixões da alma. Do mesmo modo que os
princípios da medicina hipocrático-galênica.
Mas temos consciência de que este último ponto foi de certa maneira deixado
para o futuro e tratado apenas o suficiente para nos introduzirmos na questão.
Os sentidos diversos para a palavra enfermidade nos fisgaram. As relações
ente desejo transgressão enfermidade, abriram perspectivas para o estudo das
idéias psicológicas no Brasil e suas aplicações durante aquele século.
Talvez em nosso pensamento elas tenham conseguido especial atenção, pois
como dissemos, elas demonstram a noção da relação entre o dinamismo psíquico e
o adoecimento nos discursos jesuíticos, em especial de Antônio Vieira.
Expressam ainda uma caracterização do humano, freqüente nos textos
jesuíticos desde os Exercícios Espirituais escritos por Inácio de Loyola. É portanto
durante a investigação sobre o problema da enfermidade que encontramos
ressaltada a natureza do homem.
Mesmo que empregada em sentidos diversos, a palavra enfermidade se
relaciona com a natureza humana, pois enfermar é conseqüência de ser humano,
como escreveu Antônio Vieira. Pulvis es, condição permanente ao gênero humano
109
que assiste a perda de sua saúde pelo desarranjo dos humores sob a influência dos
ventos, da água e localidades, mas que também cai enfermo sob os efeitos das
paixões que conduzem a ação.
As paixões podem conduzir ao excesso e assim tornam-se enfermidades.
Vejamos o desejo como exemplo. Desejar é natural ao homem, bem vimos esta
proposição no segundo capítulo. O perigo está em desejar Ser.
Apesar de o homem possuir lugar privilegiado junto ao Ser, ele precisa
confirmar esta união. Vieira caracteriza desta forma o homem em falta. Aqui
encontramos toda a ambigüidade que está idéia faz surgir desde Platão e
Aristóteles: um homem em falta.
A doença e a insanidade, conforme o Timeu, mostram a incompletude do
Homem que não pode se igualar aos deuses. Já Aristóteles no tratado sobre a alma,
escreveu sobre o desejo enquanto potência é desperto pela ausência de um objeto.
Deseja-se a partir da falta. Pois a virtude é desejar sem que a finalidade última, a
felicidade ou sumo bem, sejam remetidos ao esquecimento.
Vieira não se afastou deste problema. E provavelmente partindo da leitura de
Tomás de Aquino e dos Tratados Conimbricenses sobre as obras de Aristóteles,
propõe uma função ao desejo em acordo com a natureza do homem: a união com o
Ser. União que termina com a falta surgida a partir do pecado original: tanto no que
se refere à completude quanto à transgressão.
Neste princípio estabeleceu também a função do pregador e a necessidade
do conhecimento da natureza e de si mesmo. É a vida um bem precioso, mas
provisório e cabe ao pregador revelar esta verdade que a condição humana é
esquecida pela cegueira. Cegueira que é enfermidade da imaginação, é gozo,
segundo o jesuíta. Acentua-se o papel da razão sobre as paixões.
As paixões precisam ser ordenadas e isso acontece por intermédio da razão.
Pois, o que causou a Édipo o desconhecimento de si, o não-saber? A peste,
efeito do assassinato do pai não-pai. É o não-saber condutor das relações que se
estabelecem entre os homens. O que acontece com as guerras? Com a falta de
cuidados e remédios? Será o mesmo caso?
O que permanece em Vieira, nos parece, é uma questão herdada de
Aristóteles (do Aristóteles que chegou a ele): entre o meio e o fim existe a escolha, o
livre-arbítrio. Com isso abrem-se as possibilidades de estar no mundo.
Como vimos no sermão: os que são servos e os que não são. As
110
possibilidades estão abertas e apesar de sua natureza o homem-moral se diferencia
do homem-natural por seus atos. Não ressurge esta idéia no sermão de Vieira?
O jesuíta escreveu que a vontade, o desejo, é motor da natureza humana.
Isto bastaria para nos vermos uma vez mais diante do papel das paixões. Pois as
paixões, como dissemos acima, podem conduzir a ação.
Mas é preciso ainda ressaltar outro aspecto: para que não conduzam o
homem à enfermidade e para que elas próprias não adquiram este status, é preciso
ordená-las. Ordená-las é afastar-se do gozo que provoca a cegueira, o
esquecimento.
Até aqui vimos pelo menos quatro sentidos para a idéia de enfermidade nos
sermões vieirianos: do gênero, social, política, do corpo (dor corporal, da alma, da
imaginação).
Neste conjunto de saberes as idéias e representações da enfermidade
ganham diferentes significados. Como vimos, os jesuítas no fluxo do Renascimento,
somavam aos conhecimentos Antigos, os novos saberes. A idéia de que a peste
produziria efeitos no ar e assim a doença se espalharia já estava presente na
medicina hipocrático-galênica. Princípios que ressoam nas idéias de Vieira como
podemos observar nas relações que estabelece entre os temperamentos e as
disposições anímicas.
De fato, desde os tratados sobre a peste escritos no século XIV (1349 e anos
seguintes) apresentavam a relação do ar e de outros elementos relacionados a
peste. E além de receitarem remédios para evitar a doença (dietas, purificação do
ar, etc) alguns dos tratados desta época traziam orações.
Pois, vemos que tanto o ar corrompido pelas propriedades da peste e os
temperamentos são princípios que sustentaram as idéias a respeito do adoecer. A
peste adquiriu assim duas representações fundamentais: mítica e racionalista.
Representações que permaneceram em Vieira.
A enfermidade é enviada para punição e purificação dos pecados (soberba,
vingança, luxúria, etc), assim as paixões da alma estão no centro das discussões a
seu respeito. Primeiro, enquanto causa da enfermidade participam das chamadas
causas primárias. Segundo, são ainda efeito do próprio enfermar (a solidão, a
tristeza, a raiva, etc).
Neste sentido, poderíamos relembrar a controvérsia entre Galeno e Tomás de
Aquino: enquanto o médico de Pérgamo defendia a idéia de que todas as faculdades
111
da alma seguem os temperamentos do corpo, Tomás de Aquino, durante a Idade
Média, falou do que lhe parecia ser um equívoco de Galeno, e escreveu que
algumas vezes as paixões o o resultado dos temperamentos, outras vezes da
alma.
Em Vieira, seja como efeito do adoecer, seja como fator que conduz o corpo
ao adoecimento (enquanto causa primária ou em função de seu excesso), as
paixões desempenham importante papel. Esta perspectiva é explicita quando o
jesuíta relaciona os comportamentos aos efeitos do clima.
O estudo sobre as diversas representações a respeito do enfermar
permanece em aberto. Poderíamos entre tantas obras, mencionar diversos outros
textos, A morte de Ivan Ilitch, de Tolstoi, A peste, de Camus, A Ilíada de Homero ou
os relatos de Daniel Dafoe sobre a peste na Inglaterra. Vejamos para onde o futuro
nos conduz.
BIBLIOGRAFIA
112
ABOUCHEDID, José Alberto. Samuel Hahnemann e as concepções de miasmas.
Dissertação de Mestrado – História da Ciência –PUC-SP, 2005.
ALFONSO-GOLDFARB, A. M. O que é História da Ciência. São Paulo: Editora
Brasiliense, 1994
ALFONSO-GOLDFARB, A. M., BELTRAN, M.H.R. (orgs). Escrevendo a história da
ciência: tendências, propostas e discussões historiográficas. São Paulo:
Educ/Livraria Editora da Física/Fapesp, 2004.
ANTUNES, Mitsuko A. Makino. A Psicologia no Brasil Leitura Histórica sobre sua
Constituição. São Paulo: EDUC, 2007.
AQUINO, Tomás de. Suma Teológica: Vol III. São Paulo: Edições Loyola, 2003.
ARISTÓTELES. De Anima; Traduzido por Maria Cecília Gomes dos Reis. São
Paulo: Ed. 34, 2007.
______. Ética a Nicomaco; Traduzido por Pietro Nassetti. São Paulo: Martin Claret,
2003.
______. O Homem de Gênio e a Melancolia O Problema XXX, I. Traduzido por
Alexei Bueno. Rio de Janeiro: Edições Lacerda, 1998.
______. Retórica; Traduzido por Marcelo Silvano Madeira. São Paulo: Ridel, 2007.
ASSIS, Raquel M. de. “A fineza do amor nos sermões do mandato do Padre Antônio
Vieira”. In: M. MASSIMI e P. J. C. SILVA (orgs), Os olhos vêem pelo coração.
Conhecimentos psicológicos das paixões na história da cultura brasileira dos
séculos XVI a XVII. Ribeirão Preto, Holos, 2001.
______. Ordem e fineza do amor: uma contribuição à História das Idéias
Psicológicas na cultura luso-brasileira do período colonial. Dissertação de
Mestrado Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto USP,
113
1998.
BACHELARD, Gaston. A Epistemologia. Lisboa:Edições 70, 1971.
BALDWIN, Martha. “Reverie in Time of Plague: Athanasius Kircher and the Plague
Epidemic of 1556.” In: Martha Baldwin (Ed). Athanasius Kircher: The Last Man
Who Knew Everything. New York:Routledge, 2004.
BARDAN , Laurence. Análise de Conteúdo. Lisboa: Edições 70, 1971
BERLINGNER, G. A Doença. São Paulo: Editora Hucitec, 1999.
BOSI, Alfredo. A Dialética da colonização. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.
CAMINHA, Pero Vaz de. Carta de Pero Vaz de caminha a El-Rei D. Manuel Sobre o
Achamento do Brasil. Edição fac-simile. São Paulo: Martin Claret, 2007.
CANGUILHEM, Georges. Ideologia e racionalidade nas ciências da vida. Lisboa:
Edições 70, 1977.
CARDIM, Fernão. Tratado sobre a Terra e a Gente do Brasil. Belo Horizonte: Ed.
Itatiaia; São Paulo: Ed. Universidade de São Paulo, 1980.
CAROLINO, Luís Miguel. “A Ciência e os Topoi Retóricos em Antônio Vieira: Um
caso de Difusão Cultural em Portugal e no Brasil Durante o Século XVII”. In:
Revista da SBHC, (18, 1997) pp. 55-72.
CARVALHO, Diana Maul de. “O regimento contra a pestilência e a receita do
bálsamo: alguns comentário à luz da 'medicina científica'. História, Ciências,
saúde - Manguinhos, 12 (2005) pp. 855-867.
CHALMERS, A. F. O que é Ciência Afinal? Traduzido por Raul Fiker. São Paulo:
Editora Brasiliense, 1993.
Constituições da Companhia de Jesus e Normas Complementares. São
Paulo:Edições Loyola, 1997
114
CRAWFURD, Raymund & PAINE, Henry. Plague and Pestilence in Literature and
Art, Oxford: Clarendon Press, 1914. Disponível em
http://www.archive.org/details/plaguepestilence00crawuoft - acessado em
23/01/2009
ELIAS, Norbert. A Solidão dos Moribundos. Traduzido por Plínio Dentzien. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1982.
LABAKI, Maria Elisa Pessoa. Morte. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2001.
LEITE, Serafim. História da Companhia de Jesus no Brasil, Tomo IV e V. Belo
Horizonte: Editora Itatiaia, 2000.
LOYOLA, Inácio. Constituições da Companhia de Jesus e Normas Complementares.
São Paulo: Editora Loyola, 1997.
______. Exercícios Espirituais. São Paulo: Editora Loyola, 2003.
LUNGARZO, Carlos. O que é Ciência. São Paulo: Editora Brasiliense, 1989.
FERRAZ, Márcia H.M. “Relatos de Viagens: a trajetória dos textos sobre o Brasil”. In:
A.M. Alfonso-Goldfarb & A.H. Roxo Beltran (orgs) Anais da XIV Reunião da
RIHECOB: Ambiente, Natureza e Cultura na Perspectiva da História e
Epistemologia da Ciência. São Paulo: Livr. Ed da Física, 2004.
______. As Ciências em Portugal e no Brasil (1772-1822) O Texto Conflituoso da
Química. São Paulo: Educ – FAPESP, 1997.
FIGUEIREDO, Luís Cláudio M. e SANTI, Pedro Luiz R. Psicologia Uma (Nova)
Introdução. São Paulo: Educ, 2007.
FIGUEIREDO, Luís Cláudio. A Invenção do Psicológico quatro séculos de
subjetivação 1500-1900. São Paulo: EDUC – Editora Escuta. 1992.
______. Matrizes do pensamento psicológico. Petrópolis:Vozes, 1991
FILHO, Lycurgo S. História geral da medicina no Brasil. São Paulo: Hucitec-Edusp,
115
1991.
FOUCAULT, Michel. O Nascimento da Clínica. Traduzido por Roberto Machado. Rio
de Janeiro: Editora Forense Universitária, 2008.
______. História da Loucura. Traduzido por José Teixeira Coelho Neto. São Paulo:
Editora Perspectiva, 1999.
______. A palavra e as coisas- Uma arqueologia das ciências humanas. São Paulo:
Martins Fontes, 2007.
FRENCH, Roger; ARRIZABALAGA, Jon; CUNNINGHAM, Andrew; GARCÍA-
BALLESTER, Luis. Medicine from the Black Death to the French Disease.
Cambridge: University of Cambridge, 2000.
FREUD, Sigmund. “O Mal-Estar na Cultura”. Traduzido do alemão e do inglês sob a
direção geral de Jayme Salomão. In: Obras Psicológicas Completas de Sigmund
Freud, Vol XXI, Rio de Janeiro: Imago, 1996.
GALEN. Galen: Selected works. New York: Oxford University Press, 1997
GAZOLLA, Rachel. O Ofício do Filósofo Estóico O Duplo Registro do Discurso da
Stoa. São Paulo: Edições Loyola, 1999.
GUEDES, M.C. e MASSIMI, M. História da Psicologia no Brasil Novos rumos. São
Paulo: EDUC, Cortez, 2004.
GUEDES, Maria do Carmo (org) História da Psicologia. Série Cadernos PUC-SP,
EDUC, 23, 1986.
GUSMÃO, Alexandre. Arte de Crear Bem os Filhos na Idade de Puericia, Biblioteca
Nacional de Lisboa, Acervo on-line, 1685.
HAUBERT, Maxime. Índios e Jesuítas no Tempo das Missões. São Paulo:
Companhia das Letras, 1990.
116
HEGGENBERG, Leonidas. Doença: um estudo filosófico. Rio de Janeiro: Fiocruz,
1998.
HELLER, Agnes. O Homem do Renascimento. Lisboa: Editora Presença, 1982.
HIPÓCRATES, Hippocratic Writings. London: Penguin Books, 1983.
HIPÓCRATES. Da natureza do Homem. História, ciência e Saúde Manguinhos, 6
(1999): 395-430.
HOMERO. Ilíada. Traduzido por Manuel Odorico Mendes. São Paulo: Martin Claret,
2007
KHUN, Thomas S. A Estrutura das revoluções Científicas. São Paulo: Editora
Perspectiva, 2001.
KIRCHER, Athanasius. “Scrutinium physico-medicum contagiosae luis, quae pestis
dicitur.” Roma, 1658. In: Thomas S. Hall, ed. A Source Book in Animal Biology.
Cambridge, MA: Harvard University Press, 1970. Pp. 473-476
KLEIN, Melaine. O sentimento de solidão. Traduzido por Paulo Dias Correa. Rio de
Janeiro: Imago, 1975.
KOYRÉ, Alexandre. Do mundo fechado ao Universo infinito. Traduzido por
Donaldson M. Garschagen. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2001, 3.ed.
LEITE, Serafim. História da Companhia de Jesus no Brasil. Rio de Janeiro: Editora
Itatiaia, 2000, v 5.
LISBOA, João Francisco. A vida do Padre Antônio Vieira. Rio de Janeiro: W.M.
Jackson Inc Editores, 1952.
MARTIN, A. Lynn. Plague? Jesuit accounts of epidemic disease in the 16
th
century.
Kirksville: Sixteenth Century Journal Publishers, 1996.
117
MARTINS, Lilian Al-Chueyr Pereira. “História da Ciência: objetos, métodos e
problemas.” Ciência e Educação, 11 (2005) pp. 305-317.
MARTINS, Lilian Al-Chueyr Pereira; SILVA, Paulo José C. da; MUTARELLI, Sandra
K. “A teoria dos temperamentos: do corpus hippocraticum ao século XIX.”
Memorandum, 14 (2008):09-24
MARTINS, Roberto de Andrade, MARTINS, Lilian Al-Chueyr Pereira, TOLEDO,
Maria C. Ferraz de, FERREIRA, Renata Rivera. Contágio: História da Prevenção
das Doenças Transmissíveis. São Paulo: Editora Moderna, 1997.
MARTINS, Roberto de Andrade. O Universo: Teorias sobre sua Origem e Evolução.
São Paulo: Editora Moderna, 1994.
MANCEBO, D. “História e Psicologia: um encontro necessário e suas ‘armadilhas’”.
In: GUEDES, M.C. e MASSIMI, M. História da Psicologia no Brasil – Novos rumos.
São Paulo: EDUC, Cortez, 2004.
MARQUES, M. G., J. Cule (Eds). « The great maritime discoveries and the world
health”. Proceedings of the First International Congress on the Great Maritime
Discoveries and the World Health. Lisbon 10-13, set. 1990, Escola Nacional de
Saúde.Pública,1991.
MASSIMI, Marina. História da Psicologia brasileira Da época colonial a 1934.
São Paulo: EPU, 1990.
MASSIMI, Marina e SILVA, Paulo J. C. da. (orgs) Os olhos vêem pelo coração
Conhecimento psicológico na história da cultura luso brasileira dos séculos XVI e
XVII. São Paulo: Holos Editora/FAPESP, 2001.
________. “Estudos históricos acerca da Psicologia brasileira: uma contribuição”. In
História da Psicologia – Coletâneas da ANPEPP. São Paulo: EDUC, 1996.
118
________.”As idéias psicológicas na produção cultural da Companhia de Jesus no
Brasil do século XVI e XVII”. In: GUEDES, M.C. e MASSIMI, M. História da
Psicologia no Brasil – Novos rumos. São Paulo, EDUC, Cortez, 2004.
________. “Conhecimento e dinamismo psíquico em dois sermões no Brasil
colonial. In: Psicologia: Teoria e pesquisa, v. 21, (1, 2005), pp. 061-067.
________. “Alimentos, palavras e saúde (da alma e do corpo), em sermões de
pregadores brasileiros do culo XVII”. In: História, Ciências, Saúde
Manguinhos, 13 (2, 2006): 253-70.
________. “As paixões no Ocidente: breves cenas de uma longa história.” In: M.
MASSIMI e P. J. C. SILVA (orgs), Os olhos em pelo coração. Conhecimentos
psicológicos das paixões na história da cultura brasileira dos séculos XVI a XVII.
Ribeirão Preto, Holos, 2001.
________. “As paixões e seus ‘remédios’: um excursus pela literatua jesuítica dos
séculos XVI e XVII”. In: M. MASSIMI e P. J. C. SILVA (orgs), Os olhos vêem pelo
coração. Conhecimentos psicológicos das paixões na história da cultura brasileira
dos séculos XVI a XVII. Ribeirão Preto: Holos, 2001.
MASSIMI, Marina; MAHFOUD Miguel; SILVA, Paulo Jo C. Da; AVANCI, Silvia
Helena S. Navegadores, colonos, Missionários na terra de santa Cruz – Um
Estudo Psicológico da correspondência Epistolar. São Paulo: Edições Loyola,
1997.
MASSIMI, Marina e PIMENTA, Vilmar Douglas S. “A palavra e a imagem na
pregação do século XVII: um sermão de Antônio Vieira”. Psicologia: Reflexão e
Crítica, 20 (1): 138-147.
MIRANDA, Ana. Boca do Inferno. São Paulo, Companhia das Letras, 1990.
NASCIMENTO, Carlos Arthur. O que é Filosofia Medieval. São Paulo: Editora
Brasiliense, 2004.
119
______. São Tomás de Aquino: o boi mudo da Sicília. São Paulo: Educ, 2003.
______. “A carta de Galileu à Grã-Duquesa Cristina de Lorena”. Discurso, 31,
(2000): 323-328.
NUMBERS, R. L., D.W. Amundsen (orgs.) Caring and Curing. Health and Medicine
in the Western Religious traditions. Baltimore/London: The Johns Hopkins
University Press, 1998.
OLIVEIRA, Cláudio Ivan de. “A psicologia de Tomás de Aquino: a vontade
teleologicamente orientada pelo intelecto”. Memorandum, 17 (2009): 08-21.
PACHECO, Paulo Roberto de Andrada. “Experiência como Fator de Conhecimento
na Psicologia-filosófica Aristotelico-tomista da Companhia de Jesus (século XVI-
XVII).”In: Memorandum, (7, 2004). Disponível em
http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/pacheco01.htm. acessado em
10/04/2008.
PÉCORA, A. “Argumentos afetivos nos sermões fúnebres do Padre Antônio Vieira”.
In: M. MASSIMI e P. J. C. SILVA (orgs), Os olhos vêem pelo coração.
Conhecimentos psicológicos das paixões na história da cultura brasileira dos
séculos XVI a XVII. Ribeirão Preto, Holos, 2001.
______. Teatro do Sacramento A Unidade Teológico-Retórico-Política dos
Sermões de Antônio Vieira.São Paulo: EDUSP, 1994.
______. Rudimentos da Vida Coletiva. São Paulo: Ateliê Editorial, 2002.
PITTA, Ana. Hospital: Dor e Morte como Ofício. São Paulo: Editora Hucitec, 1994.
PISO, Guilherme. História natural e médica da Índia Ocidental, Vol V. Rio de Janeiro:
Instituto Nacional do Livro – Ministério da Educação e Cultura, 1957.
120
PLATÃO. Timeu ou a Natureza. São Paulo: Hemus, 1981.
PORTO, Paulo A. Van Helmont e o conceito de gás Química e Medicina no século
XVII.São Paulo, EDUC/EDUSP,1995.
QUAYLE, Julieta e LUCIA, Mara C. S. de. Adoecer: As interações do Doente com
sua Doença.São Paulo: Editora Atheneu, 2003.
RIBEIRO, Darcy. O povo brasileiro. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
RIESE, Walther. The Conceptio of disease Its History, its versions and its nature.
New York: Philosophical Library, 1890.
SEBE, José Carlos. Os Jesuítas. São Paulo: Ed. Brasiliense, 1982.
SÊNECA. A tranqüilidade da alma. Traduzido por Luiz Ferracine. São Paulo: Escala,
2001.
______. A vida retirada. Traduzido por Luiz Ferracine. São Paulo: Escala, 2001.
______. As Relações Humanas. Traduzido por Renata maria P. Cordeiro. São
Paulo: Editora Landy, 2007.
SEPP, Antônio. Viagem às Missões Jesuíticas e Trabalhos Apostólicos. Belo
Horizonte: Editora itatiaia, São Paulo: Ed. USP, 1980
SILVA, Paulo J. C. da. A tristeza na cultura luso-brasileira os Sermões do Padre
Antônio Vieira. São Paulo: EDUC, 2000.
________. “Sermão da quarta dominga depois da Páscoa”. Revista Latinoamericana
de Psicopatologia Fundamental, ano IX, (3, set/2006): 538-64.
________. “Medicina da alma”. Revista Latinoamericana de Psicopatologia
Fundamental, ano IX, (3, set/2006): 533-37.
121
________. “Medicina do corpo e da alma: os males corporais e o exercício da
palavra em escritos da antiga Companhia de Jesus”. Memorandum (5, 2003).
http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos05/silva01.htm, acessado em
novembro de 2007
________. “Saúde e conhecimento psicológico na França do século XVII”.
Memorandum (10, 2006): 33-55,
http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/a10/silva03.pdf33, acessado em
novembro de 2007
SÓFOCLES. Édipo Rei. Traduzido por Domingos Paschoal Cegalla. Rio de Janeiro:
Difel, 2000.
SOURNIA, Jean-Charles e RUFFIE, Jacques. As epidemias na história do Homem.
Lisboa: Edições 70, 1984.
STENGERS. Isabelle. A Invenção das Ciências Modernas. Traduzido por Max
Altman. São Paulo: Editora 34, 2004
TOLSTÓI, Liev. A Morte de Ivan Ilitch. Traduzido por Marques Rebelo.Rio de
Janeiro: Ediouro, 1998.
TORREL, Jean-Pierre. Iniciação a Santo Tomás de Aquino: sua Pessoa e Obra.
Traduzido por Luiz Paulo Rouanet. São Paulo:Edições Loyola, 1999.
TYTLER, James. A Treatise on the Plague and Yellow Fever, (Salem (Mass):Joshua
Cushing ,1799. Disponível em
http://www.archive.org/details/plaguepestilence00tytler - acessado em 14/05/2009
VIEIRA, Antônio. Sermões Completos. Erechim, Edelbra, 1998, 13 vol.
________. Sermões, Tomos I e II. Org. Alcir Pécora. São Paulo, Hedra, 2003.
VILELA, Ana maria Jacó; FERREIRA, Arthur A.;PORTUGAL, Francisco T. História
da Psicologia – Rumos e percursos. Rio de Janeiro: Nau editora, 2005
122
ZIEGLER, J. Medicine and religion c. 1300. The case of Arnau de Vilanova. Oxford:
Clarendon Press, 1998.
Livros Grátis
( http://www.livrosgratis.com.br )
Milhares de Livros para Download:
Baixar livros de Administração
Baixar livros de Agronomia
Baixar livros de Arquitetura
Baixar livros de Artes
Baixar livros de Astronomia
Baixar livros de Biologia Geral
Baixar livros de Ciência da Computação
Baixar livros de Ciência da Informação
Baixar livros de Ciência Política
Baixar livros de Ciências da Saúde
Baixar livros de Comunicação
Baixar livros do Conselho Nacional de Educação - CNE
Baixar livros de Defesa civil
Baixar livros de Direito
Baixar livros de Direitos humanos
Baixar livros de Economia
Baixar livros de Economia Doméstica
Baixar livros de Educação
Baixar livros de Educação - Trânsito
Baixar livros de Educação Física
Baixar livros de Engenharia Aeroespacial
Baixar livros de Farmácia
Baixar livros de Filosofia
Baixar livros de Física
Baixar livros de Geociências
Baixar livros de Geografia
Baixar livros de História
Baixar livros de Línguas
Baixar livros de Literatura
Baixar livros de Literatura de Cordel
Baixar livros de Literatura Infantil
Baixar livros de Matemática
Baixar livros de Medicina
Baixar livros de Medicina Veterinária
Baixar livros de Meio Ambiente
Baixar livros de Meteorologia
Baixar Monografias e TCC
Baixar livros Multidisciplinar
Baixar livros de Música
Baixar livros de Psicologia
Baixar livros de Química
Baixar livros de Saúde Coletiva
Baixar livros de Serviço Social
Baixar livros de Sociologia
Baixar livros de Teologia
Baixar livros de Trabalho
Baixar livros de Turismo