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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC-SP
Fabiana Vieira Ariza
A scala naturae de Aristóteles na obra De generatione
animalium
MESTRADO EM HISTÓRIA DA CIÊNCIA
SÃO PAULO
2010
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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC-SP
Fabiana Vieira Ariza
A scala naturae de Aristóteles na obra De generatione
animalium
MESTRADO EM HISTÓRIA DA CIÊNCIA
Dissertação apresentada à
Banca Examinadora da
Pontifícia Universidade Católica
de São Paulo, como exigência
parcial para obtenção do título
de Mestre em História da
Ciência sob a orientação do
Profª. Drª. Lilian Al-Chueyr
Pereira Martins.
SÃO PAULO
2010
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Ariza, Fabiana Vieira
“A scala naturae de Aristóteles na obra De generatione animalium
São Paulo, 2010
xii, 83
Dissertação (Mestrado) – PUC – SP
Programa: História da Ciência
Orientadora: Profª. Drª. Lilian Al-Chueyr Pereira Martins
BANCA EXAMINADORA
______________________________
______________________________
______________________________
Autorizo, exclusivamente para fins acadêmicos e científicos, a reprodução total
ou parcial desta dissertação por processos fotocopiadores ou eletrônicos.
Ass.: ___________________________________________________
Local e data: _____________________________________________
Fabiana Vieira Ariza
Em memória de meu querido pai Zaqueo.
Dedico este trabalho àqueles sempre
incentivaram e apoiaram os meus estudos, em
especial, à professora Drª. Lilian Al-Chueyr
Pereira Martins, pelo carinho e profissionalismo,
pela dedicação, exigência e pelas valiosas
contribuições que tornaram possível a
realização deste trabalho.
AGRADECIMENTOS
À minha querida mãe Claudete e ao meu irmão André, por toda a
dedicação, compreensão e paciência, além do apoio, especialmente em
relação aos meus estudos.
Aos meus colegas professores, pelo carinho e incentivo.
Aos meus colegas de curso, em especial Sabrina e Fernando, pelas
sugestões e por terem tornado essa caminhada mais leve e alegre.
Aos professores que apresentaram os passos iniciais dentro do
Programa de História da Ciência, Ana Haddad Baptista e Paulo José Carvalho
da Silva, pelo profissionalismo e pelos conhecimentos enriquecedores.
Aos funcionários da biblioteca e da secretaria do Programa, pela
disposição e presteza.
RESUMO
Os objetivos desta dissertação são discutir de um modo geral, a
concepção de scala naturae, uma visão que esteve presente no pensamento
ocidental durante muitos séculos. Discutirá particularmente, de que modo ela
se apresenta na obra De generatione animalium de Aristóteles. Descreverá a
metodologia de Aristóteles, procurando elucidar se ele pretendia apresentar
uma classificação dos animais. Em caso positivo, procurará identificar os
critérios que ele utilizou para isso. Além disso, procurará detectar qual era a
opinião de Aristóteles sobre a origem dos animais.
Esta dissertação está dividida em uma introdução e quatro capítulos. O
Capítulo 1 discute a idéia de scala naturae, que se iniciou na Antiguidade e
perdurou até o século XIX. O Capítulo 2 discorre sobre alguns aspectos da vida
e obra de Aristóteles, enfatizando aquelas onde ele estudou os seres vivos.
Discute também alguns conceitos adotados por ele. O Capítulo 3 analisa a
idéia de scala naturae na obra De generatione animalium bem como os
critérios adotados por Aristóteles na elaboração da mesma. O Capítulo 4
apresenta algumas considerações finais sobre o assunto.
Este estudo levou à conclusão, de modo oposto à interpretação dada
por alguns autores, de que Aristóteles investiu bastante energia na elaboração
de uma classificação dos animais que ele distribuiu em grandes grupos na sua
escala de perfeição. O principal critério que ele adotou foi o grau de calor vital
dos animais. Além disso, ele não apresentou um esquema de sua escala,
embora ela esteja implícita em seu trabalho. Não há nenhuma idéia de
evolução orgânica na escala de perfeição de Aristóteles. Ela representa apenas
um arranjo dos grandes grupos de animais. Nesse sentido, pode-se dizer que a
visão de Aristóteles em relação a este assunto está em harmonia com sua
visão cosmológica.
Palavras-chave: Aristóteles; scala naturae; classificação dos animais.
ABSTRACT
The aim of this dissertation is to discuss in a broad way the conception of
scala naturae, a prevailing view in the Western thought for many centuries. It
will discuss particularly, in which way such idea was present in Aristotle’s work
De generatione animalium. It will describe Aristotle’s methodology, as well as,
trying to elucidate if Aristotle had intended to present a classification of animals.
If so, which criteria he had used to draw it. Besides that, it will try to find which
view he held about the origin of animals.
This dissertation contains an introduction and four chapters. Chapter 1
discusses the idea of scala naturae from Antiquity to 19
th
century. Chapter 2
deals with some respects of Aristotle’s life and writings, emphasizing the ones
in which he studied the living beings. It also discusses some concepts adopted
by him. Chapter 3 analyses the idea of scala naturae in De generatione
animalium, as well as, the criteria he had used to draw his scale. Chapter 4
provides some final remarks on the subject.
This study led to the conclusion that Aristotle invested lots of energy in
classifying the great groups of animals which were arranged in his scale of
perfection, contrary to the view held by some authors. The main criterion
adopted by him was the vital heat of animals. Moreover, he did not present a
sketch of his scale, although it was implicit in his writings. Besides that, there is
no idea of organic evolution in Aristotle’s scale of perfection. It represents just
an arrangement of the great groups of animals. In this way, it is in harmony with
his cosmological view.
Key-words: Aristotle; scala naturae; classification of animals.
SUMÁRIO
Introdução .................................................................................................. p. 01
Capítulo 1 - Algumas considerações sobre a scala naturae ..................p.05
1.1 - A idéia de scala naturae ......................................................................p.05
1.2 - A scala naturae na Antiguidade grega ................................................p.07
1.2.1 - Platão e o princípio de plenitude ......................................................p.07
1.2.2 - Aristóteles e o princípio de continuidade ..........................................p.11
1.3 - Alguns desdobramentos da scala naturae ..........................................p.14
1.3.1 - A escala de perfeição de Charles Bonnet ........................................p.15
1.3.2 - A escala de perfeição de Lamarck ...................................................p.17
1.3.2 - A série animal de Henry de Blainville ...............................................p.20
1.4 - Algumas considerações ......................................................................p.23
Capítulo 2 - Aristóteles e os estudos dos seres vivos ..........................p.24
2.1 - Algumas contribuições de Aristóteles .................................................p.24
2.2 - Conceitos aristotélicos relacionados aos seres vivos e
à scala naturae ............................................................................................p.35
2.2.1 - Natureza ...........................................................................................p.35
2.2.2. - As causas como forma de conhecimento acerca dos
seres vivos ...................................................................................................p.37
2.2.3 - Os quatro elementos e as suas propriedades na composição
dos seres vivos ............................................................................................p.40
2.2.4 - Alma: o princípio da vida animal .......................................................p.43
2.3 - Matéria e forma: o corpo e a alma dos animais na visão
de Aristóteles ...............................................................................................p.50
2.4 - Algumas considerações ......................................................................p.54
Capítulo 3 - A escala de perfeição dos animais de Aristóteles .............p.53
3.1 - O calor inato dos animais e suas conseqüências para
a escala de perfeição ..................................................................................p.55
3.2 - As formas de geração dos diferentes tipos de animais ......................p.61
3.3 - Algumas considerações .....................................................................p.73
Capítulo 4 - Considerações finais ..........................................................p.77
Bibliografia ..............................................................................................p. 80
1
INTRODUÇÃO
A variedade formas com que os seres vivos se apresentam sempre
despertou meu interesse, desde as séries escolares básicas. Nessa época, já
pensava nos seres vivos como um possível objeto de estudo e na escolha
profissional, que ainda estava por vir. Isso aconteceu, de fato, quando ingressei
no curso de Ciências Biológicas da PUC-SP. Durante a graduação, os seres
vivos mostraram sua grande diversidade e complexidade. Isso se aplicava
principalmente ao conhecimento acerca das teorias que buscavam explicar
seus mecanismos de origem e de diversificação.
Ao ingressar no Programa de Estudos Pós-Graduados em História da
Ciência, a intenção foi a de aprofundar os conhecimentos a respeito dessas
teorias. Após um primeiro contato com a literatura proposta pelo Programa e
com os textos básicos a respeito da História da Biologia, optei por estudar a
idéia de scala naturae nas obras em que Aristóteles tratou dos seres vivos,
particularmente, dos animais. Na seqüência restringi o estudo a uma obra
específica de Aristóteles: De generatione animalium. A escolha do tema
ocorreu de forma natural e se identificou com o que Lucia Santaella descreve
em seu livro Comunicação e pesquisa:
(...) o tema [de um projeto de pesquisa] nasce de um desejo, que
é, por sua própria natureza, sempre obscuro, e não costuma adiantar
muito a tentativa de lhe virar as costas. Em outras palavras, não
podemos ser infiéis ao desejo que só nos deixa mostrar escondendo-se
por trás de uma intenção imprecisa através da qual um tema de
pesquisa aparece.
Não obstante a imprecisão, é claro que os temas têm tudo a ver
com a história de vida e, especialmente, com a história intelectual do
pesquisador
1
.
1
Lucia Santaella, Cominicação – pesquisa – Projetos para Mestrado e Doutorado (São Paulo:
Hacker Editores, 2001), p. 157.
2
Esse trabalho tem por objetivos discutir a idéia de scala naturae de um
modo geral, e de modo particular em Aristóteles, a partir da obra De
generatione animalium, traduzida diretamente do idioma grego para o inglês.
Esta análise permitirá tanto conhecer um pouco sobre a metodologia que
Aristóteles empregava ao estudar os seres vivos, particularmente os animais,
como também averiguar se o filósofo natural apresentou uma tentativa de
classificá-los. Em caso positivo, procuraremos identificar quais os critérios que
ele utilizou para isso. A partir do tratado que Aristóteles dedicou à reprodução
dos animais, buscaremos, também, determinar qual era sua posição em
relação à origem dos diferentes tipos de animais. Este trabalho não se
restringirá somente à descrição das idéias que o filósofo tinha a respeito da
scala naturae, mas procurará analisá-las com os recursos metodológicos e
epistemológicos adequados
2
.
Esta pesquisa parte da suspeita de que não existe uma idéia de
evolução orgânica, ou mesmo qualquer conotação evolutiva na scala naturae
de Aristóteles, uma vez que tais concepções entrariam em conflito com
diversos pressupostos admitidos pelo autor, como por exemplo, a concepção
acerca da imutabilidade do universo e dos seres vivos.
Assim, acreditamos que esse trabalho possa trazer alguma contribuição
para esse tipo de estudo.
Este trabalho segue a linha de pesquisa em História e Teoria da Ciência
que procura trazer esclarecimentos sobre a construção do pensamento
científico discutindo a fundamentação de hipóteses e teorias dentro de seu
contexto. Em nosso caso, procuramos analisar as concepções de um filósofo
natural da Antiguidade a respeito dos seres vivos. Para isso, esse estudo se
iniciou com um levantamento bibliográfico das obras em que o filósofo natural
tratou dos seres vivos, a saber: De anima, Historia animalium, De partibus
animalium, e principalmente, De generatione animalium. A partir de algumas
2
Este trabalho não discutirá a scala naturae de Aristóteles à luz das categorias de classificação
tais como as de “gênero” e “espécie”, ou da determinação dos grupos de animais segundo “o
excesso” e “a deficiência”, discutida por alguns estudiosos tais como David M. Balme e James
G. Lennox. Como veremos nos próximos capítulos, os antigos não reconheciam a integridade
biológica de cada espécie, de modo que uma abordagem desse tipo foge dos objetivos aqui
propostos.
3
indicações dos tradutores dessas obras, foram incluídas as obras secundárias
no levantamento, e a partir dessas, os artigos contidos em alguns periódicos.
Um levantamento sobre o tema na Current Bibliography da revista Isis,
bem como nos acervos da Biblioteca do Instituto de Biociências e na Biblioteca
Digital de Teses e Dissertações, ambos da Universidade de São Paulo, nos
revelou que ainda havia elementos que podiam ser acrescentados ao histórico
da concepção de scala naturae e suas implicações. Partimos do estudo
clássico de Arthur Oncken Lovejoy
3
.
De modo geral, a idéia de scala naturae ou “escala de perfeição” é
considerada como sendo um esforço do homem ocidental, no sentido de
compreender, intelectualmente, o mundo em que vivia. Isso incluía a
compreensão do princípio que determinava a quantidade de diferentes tipos de
seres vivos que formavam o mundo sensível e temporal. Nesse sentido,
Aristóteles é apontado como sendo um dos filósofos naturais que percebeu e
documentou a existência de uma gradação na natureza viva, o que foi
convertido, posteriormente, no conceito de scala naturae.
Tomando por base os textos de Aristóteles que foram conservados,
verifica-se que o filósofo dedicou muito mais tempo e esforço aos estudos
sobre os seres vivos do que à física ou à astronomia. No entanto, os
historiadores da ciência têm se dedicado relativamente pouco ao estudo
detalhado da “biologia” de Aristóteles.
A idéia de scala naturae apresentada por Aristóteles é considerada
como tendo servido de modelo que perdurou durante séculos para estudos
posteriores.
Esta dissertação encontra-se dividida nas seguintes partes: uma
introdução e três capítulos. O primeiro capítulo discutirá a idéia de scala
naturae, que se iniciou na Antiguidade. A fim de ilustrar o tema, serão
apresentadas algumas propostas de scala naturae de diferentes épocas,
referentes, principalmente, aos séculos XVIII e XIX. O segundo capítulo
apresentará alguns aspectos da vida de Aristóteles e discorrerá, brevemente,
sobre algumas de suas obras, enfatizando aquelas onde ele tratou dos seres
vivos. Neste capítulo também serão apresentadas algumas concepções
3
Arthur Oncken Lovejoy, A grande cadeia do ser: o estudo da história de uma idéia. Trad. Aldo
Fernando Barbieri (São Paulo: Editora Palíndromo, 2005), pp. 9-10.
4
aristotélicas relevantes para este tipo de estudo. O terceiro capítulo discutirá
sobre a reprodução dos animais e a geração de seus filhotes, a partir do
tratado De generatione animalium. O quarto capítulo procurará responder às
perguntas colocadas inicialmente e tecer algumas considerações sobre o que
foi apresentado nos capítulos anteriores.
5
CAPÍTULO 1
ALGUMAS CONSIDERAÇÕES SOBRE SCALA
NATURAE
Neste capítulo discutiremos brevemente sobre a idéia de scala naturae,
que teve seu início na Antiguidade. A fim de ilustrar esse assunto tão amplo e
extenso, serão apresentadas algumas propostas de scala naturae de diferentes
épocas, referentes, principalmente, aos séculos XVIII e XIX, o que mostra a
relevância e a persistência de tal concepção no pensamento ocidental.
1.1. A IDÉIA DE SCALA NATURAE
A scala naturae representa uma expressão que por muito tempo foi uma
das mais correntes no vocabulário da filosofia e da ciência ocidentais. A
concepção que nos tempos modernos veio a ser expressa por esta ou outras
expressões semelhantes, tais como “cadeia do ser” ou “escala de perfeição”,
se tornou uma das mais persistentes suposições do pensamento ocidental, e
assim, influenciou tanto idéias correntes, como a formação de hipóteses
científicas em variados períodos históricos
4
.
Segundo Geoffrey Ernest Richard Lloyd, um dos exemplos nesse
sentido foi a tentativa de organizar a classificação dos animais que, na Idade
Média e no Renascimento, ainda frequentemente apresentava um tom
4
Arthur Oncken Lovejoy, A grande cadeia do ser: o estudo da história de uma idéia, trad. Aldo
Fernando Barbieri (São Paulo: Editora Palíndromo, 2005), pp. 9-10. A respeito da concepção
de sacala naturae, Lovejoy comenta que sua história não fora adequadamente escrita e que
tanto o seu significado, como suas implicações, ainda não foram satisfatoriamente analisados.
6
moralizador, cujos padrões explicativos mudaram somente com a teoria
evolutiva e com a genética moderna
5
.
A concepção de scala naturae associava-se, em geral, a uma visão de
mundo tradicional essencialmente estática, onde não poderia haver qualquer
mudança no mundo orgânico por meio das forças naturais, que apenas
mantinham as formas originais. Assim, a hierarquia dessas formas naturais
representava um plano completo e fixo
6
.
A concepção scala naturae tem uma longa história: ela remonta aos
gregos antigos e representava a tentativa de ver a natureza como um sistema
estruturado. Ela partia do senso intuitivo de que as coisas vivas podiam ser
classificadas numa hierarquia de complexidade, do grau mais elevado, o
homem; ao mais primitivo. Em tal escala, se supunha que um plano linear unia
esses dois extremos, onde cada espécie tinha uma única posição e seus
relativos eram colocados imediatamente acima ou abaixo. Os pontos mais altos
e mais baixos eram ligados por uma série de passos intermediários. Como
originalmente entendida, a escala representava, assim, um plano de arranjos
naturais
7
.
Nesse sentido, Ernst Mayr afirma que a scala naturae se trata, de
maneira ampla, de um ideal postulado, uma vez que nela, nem sempre a
observação confirmava a existência de elos que se uniam de forma contínua e
linear. Afinal, como poderiam ser explicados os hiatos marcantes, tais como
entre mamíferos e aves; peixes e invertebrados; samambaias e musgos? O
autor aponta daí a satisfação em relação à “descoberta” dos corais e de outros
organismos considerados como “zoófitos”, que pareciam fazer a ligação entre
as plantas e os animais. Acreditava-se, então, que outras lacunas seriam
preenchidas por descobertas futuras do mesmo tipo
8
.
Segundo Arthur Oncken Lovejoy, a idéia de scala naturae consistia num
“princípio”, que o pensamento reflexivo dificilmente poderia se furtar a exercer,
5
Geoffrey Ernest Richard Lloyd, Science, folklore and ideology: studies in the life science in
ancient Greece (Cambridge: Cambridge University Press, 1983), p. 57.
6
Peter J. Bowler, Evolution: the history of an idea (Berkeley: University of California Press,
1983), p. 5. A respeito de tal visão de mundo, Bowler aponta que as concepções de Aristóteles,
por exemplo, são consideradas como fundadoras da crença de que cada espécie tinha uma
forma característica, mantida pelo processo de reprodução, a partir de uma geração para outra.
7
Ibid., p. 59.
8
Ernst Mayr, O desenvolvimento do pensamento biológico, trad. Ivo Martinazzo (Brasília:
Editora da Universidade de Brasília, 1998), p. 367.
7
cedo ou tarde. Ela mostrou que havia uma afinidade lógica natural para alguns
outros princípios no curso da reflexão sobre certas questões bastante
diferentes, as quais, consequentemente se aglutinaram à ela. Assim, a
concepção de scala naturae é, entre outras coisas, uma parte da história do
longo esforço do homem ocidental de tornar o mundo onde vive
intelectualmente compreensível. Para o autor, tal concepção dialogava,
inclusive, com a questão acerca do princípio que determinava a quantidade de
espécies de seres que formavam o mundo sensível e temporal
9
.
1.2. A SCALA NATURAE NA ANTIGUIDADE GREGA
A concepção de scala nature já existia em Platão e foi adquirindo,
posteriormente, novas formas entre os escolásticos da Idade Média e nos
séculos XVII, XVIII e XIX. Tal idéia baseava-se na crença de uma continuidade
linear e ao mesmo tempo escalar do mundo, partindo dos objetos inanimados,
passando pelas plantas, animais inferiores, superiores, até chegar ao homem.
O conceito adicional de plenitude, que postulava que todas as espécies
possíveis existiam de fato, era normalmente associado à idéia de scala
naturae, onde não poderia haver lacunas e os intervalos entre os elos vizinhos
seriam tão pequenos que a corrente era praticamente contínua
10
.
1.2.1. Platão e o princípio de plenitude
Segundo Lovejoy, Platão considerou a necessidade e o valor da
existência de todas as espécies concebíveis de seres finitos, temporais,
imperfeitos e corpóreos. Se qualquer razão para a existência do mundo
sensível devesse ser encontrada, para Platão, ela deveria ser encontrada
9
Lovejoy, A grande cadeia do ser: o estudo da história de uma idéia, pp. 23-24 e pp. 52-53. Ao
nos depararmos com o termo “espécie”, empregado pelo autor, devemos entendê-lo enquanto
“tipos de seres vivos”, e não como sendo referente à categoria taxonômica de espécie, usada
atualmente pela Sistemática.
10
Mayr, O desenvolvimento do pensamento biológico, p.367; Bowler, Evolution: the history of
an idea , p. 5.
8
necessariamente no Mundo Intelectual e na verdadeira natureza do único Ser
Auto-Suficiente
11
.
Assim, em relação à questão do princípio que determinava o número de
espécies de seres que formavam o mundo sensível e temporal, anteriormente
levantada, seguia a seguinte resposta: todas as espécies possíveis. Nesse
sentido, Lovejoy explica que, para Platão, todas as espécies podiam significar
as contrapartidas sensíveis de cada uma das Idéias, lembrando que no Mundo
da Idéias estavam as essências de todos os modos de ser das coisas.
Segundo Lovejoy, em Timeu, as referências às “coisas vivas” ou aos “animais”
se baseavam na tradução completa de todas as possibilidades ideais em
atualidade. Para Platão, o mundo era a perfeita imagem de um todo, do qual os
animais, tanto os indivíduos como as espécies, eram partes. O modelo do
universo encerrava as formas inteligíveis de todos os seres, e a divindade,
desejando fazer desse mundo o mais justo e perfeito mundo dos seres
inteligíveis, forjou um ser vivo visível que contém em si mesmo todos os outros
seres vivos da mesma natureza
12
.
Tal concepção é expressa na seguinte passagem:
Desejando a divindade que tudo fosse bom e, tanto quanto
possível, estreme de defeitos, tomou o conjunto das coisas visíveis,
nunca em repouso, mas movimentando-se discordante e
desordenadamente, - fe-lo passar da desordem para a ordem (...).
Assentado esse ponto, precisamos determinar, ainda, à
semelhança de que ser vivo seu coordenador o fez. Não atribuamos tão
grande privilégio a nada do que for naturalmente composto de partes;
jamais será belo o que se parece com um ser incompleto. O que
abrange todos os animais individualmente considerados ou por gêneros:
e com isso, podemos afirmar que o mundo, acima de tudo, se parece,
pois compreende e inclui em si mesmo os animais inteligíveis, da
mesma forma que este mundo contém a todos nós e a todas as criaturas
formadas como coisas visíveis. Porque a divindade, desejando
11
Lovejoy, A grande cadeia do ser: o estudo da história de uma idéia, p. 51.
12
Ibid., pp. 55-56.
9
emprestar ao mundo a mais completa semelhança com o ser inteligível,
mais belo e o mais perfeito em tudo, formou-o à maneira de um só
animal visível que em si próprio encerre todos os seres vivos
aparentados por natureza
13
.
Segundo Lovejoy, tal concepção parecia implicar que no mundo
inteligível havia Idéias até mesmo de indivíduos ou, em todo o caso, de
universais ou mais particularizados possíveis, aqueles que, em virtude do
número de suas qualidades diferenciadoras, eram tão parecidos com
indivíduos quanto podiam ser: do modelo eterno e perfeito, afirmava Platão, “os
outros seres vivos [isto é, suas Formas], individual e genericamente, eram
partes; e a esse modelo, o cosmos era de todas as coisas, a mais parecida”.
Pelo fato de o universo criado ser uma réplica completa do Mudo das Idéias era
que Platão argumentava que só podia haver uma única criação; onde estavam
inclusas as cópias “de todas as outras criaturas inteligíveis”. Assim, na forma
de mito, foi contada a história da sucessiva criação das coisas. Depois de todos
os graus de seres imortais terem sido gerados, o Demiurgo percebeu que os
mortais ainda permaneciam não-criados. Mas, se faltassem ainda os mortais, o
universo estaria defeituoso. Assim, para que “o Todo pudesse ser realmente
ser Tudo”, o Demiurgo delegou às divindades menores, a que já se deu o ser, a
tarefa de produzir criaturas mortais, em conformidade com suas espécies. E
assim o “universo foi preenchido completamente com seres vivos, mortais e
imortais”
14
.
De acordo com Lovejoy, o Demiurgo de Platão agia, então, segundo o
principio pelo qual a linguagem comum estava habituada a expressar sua
disposição de ânimo à abrangente aprovação do número de espécies de seres
tomadas para compor um mundo. Esse era o teorema da “completude”, ou
seja, a tese de que o universo consistia num plenum formarum, no qual o
âmbito acerca do número de espécies de seres que formavam o mundo
13
Platão, Timeu, 30 a - 30 d, trad. Carlos Alberto Nunes (Belém: Editora Universidade Federal
do Pará, 2001). O Timeu é um mito filosófico onde está exposta uma visão provisória, uma
opinião sobre a origem do universo. Cabe ressaltar que Timeu, personagem, era um pitagórico
e acreditava que só através da matemática era possível obter um conhecimento seguro.
14
Lovejoy, A grande cadeia do ser: o estudo da história de uma idéia, pp. 56-57.
10
sensível e temporal era aquele em que a extensão e a abundância da criação
deviam ser tão grandes quanto a possibilidade de existência e comensuradas
com a capacidade produtiva de uma Fonte “perfeita” e inesgotável e de que o
mundo era melhor quanto mais coisas contiver
15
.
A então história que trata do surgimento dos animais foi assim contada
no Timeu:
A tribo dos pássaros provém da mudança de forma, com o
nascimento de penas em lugar dos cabelos (...).
Os animais mais ferozes da terra provêm dos homens que nunca
se ocuparam com a filosofia nem nada compreenderam da natureza do
céu (...), pela seguinte razão: a divindade proveu os menos inteligentes
com maior número de base de sustentação [as quatro patas], para que
fossem arrastados ainda mais para a terra. Porém, os mais atrasados
dentre eles que estendem na terra o corpo em toda a sua extensão (...)
os deuses os fizeram sem esse segmento (...).
O gênero que vive na água provém dos mais estúpidos e
ignorantes de todos. As divindades não os consideram dignos nem
mesmo de respirar ar puro (...), por terem as almas contaminadas por
toda a sorte de faltas (...) [as divindades] os afundaram na água, para
que só aspirassem a água lodosa da profundidade. Tal é a origem dos
peixes, dos moluscos e de todos os animais aquáticos (...).
(...) Havendo recebido em grande cópia seres vivos, mortais e
imortais, este mundo se tornou um animal visível que abrange todos os
animais visíveis, um deus sensível feito à imagem do inteligível, supremo
em grandeza e excelência, em beleza e perfeição (...)
16
.
No que diz respeito a essa concepção, Lovejoy afirma haver um
contraponto em Aristóteles, para quem a “perfeição” era a causa de todo o
15
Lovejoy, A grande cadeia do ser: o estudo da história de uma idéia, pp. 56-57.
16
Platão, Timeu, 91 e - 92 d.
11
movimento, e poderia parecer, também, ser a causa final de toda a atividade
dos seres imperfeitos
17
.
1.2.2. Aristóteles e o princípio de continuidade
Ainda no que se refere à questão acerca do número de espécies de
coisas vivas que poderiam existir, Lovejoy afirma que para Aristóteles, havia
tantas, justamente porque os modos e os graus de seu arranjo com relação à
perfeição eram muito variados. Assim ele afirma que é com Aristóteles que se
vê emergir uma outra concepção – a da continuidade, que acabou por se fundir
à doutrina de plenitude, necessária do mundo e logicamente implicada por ela.
Lovejoy comenta que, na verdade, Aristóteles não formulou a lei de
continuidade com tal generalidade, assim como lhe foi posteriormente
atribuída, mas proporcionou aos seus sucessores, e, principalmente aos seus
posteriores admiradores medievais, uma definição do contínuo
18
.
Lovejoy comenta que, apesar de Aristóteles não ter afirmado de modo
explícito que as diferenças qualitativas das coisas devessem constituir uma
série contínua, o filósofo é apontado como sendo o responsável pela
introdução do princípio de continuidade, inclusive na história natural. O que
Aristóteles fazia de fato, segundo Lovejoy, era observar que os seres vivos
diferiam uns dos outros de muitas maneiras: no hábitat, na forma externa, na
estrutura anatômica, na presença ou na ausência de certos órgãos e funções,
na sensibilidade, na inteligência. Assim, qualquer divisão de criaturas com
referência a algum determinado atributo deu origem, manifestadamente, a uma
série linear de classes. E tal série tendia a mostrar a mudança gradual das
propriedades de uma classe para as da classe seguinte, mais do que fazer
uma distinção nítida entre elas
19
.
Assim, Aristóteles explicou:
17
Lovejoy, A grande cadeia do ser: o estudo da história de uma idéia, pp. 59-60.
18
Ibid.
19
Ibid. Sobre esse ponto em questão discordamos de Lovejoy, uma vez que essa pesquisa
proporcionou subsídios que nos levaram a crer que Aristóteles propôs, de fato, uma
classificação dos grandes grupos de animais e que sua scala naturae representou uma
maneira de arranjá-los. De acordo com o filósofo natural: “a Natureza faz aceitar a geração nas
várias de suas formas: elas são arranjadas numa série regular (...)” (em De generatione
animalium, livro II, cap. 1, 733 b 1 e seqüência).
12
A natureza prossegue do inanimado até os animais por passos
tão pequenos que, devido à continuidade, falhamos em ver à qual limite
eles pertencem. Pois os primeiros depois dos tipos intermediários são as
plantas, e dentre elas, uma difere da outra no que elas parecem
participar da vida; mas como um todo, em comparação com os outros
corpos, parecem mais ou menos animadas, enquanto que, em
comparação com os animais, [as plantas] parecem inanimadas. A
transição delas para os animais é contínua (...). Pois [sobre] aqueles
[seres] do mar [os testáceos], poderia se levantar a pergunta se são
animais ou plantas; uma vez que [esses seres] crescem grudados nas
rochas e morrem se forem separadas delas (...). No geral, todos os
testáceos se assemelham às plantas, em comparação com os animais,
que podem se mover (...)
20
.
Aristóteles distribuiu, assim, os animais em uma ordem linear e
decrescente de perfeição, do homem às esponjas. Depois ele colocou os
vegetais, dando continuidade a essa escala, seguidos dos seres inanimados.
Assim, animais, vegetais e seres inanimados faziam parte de uma mesma
escala decrescente de perfeição, onde podiam ser encontrados, inclusive, os
seres intermediários entre animais e plantas
21
.
Em relação aos seres vivos que correspondiam aos intermediários entre
as plantas e os animais, Aristóteles assim se expressou:
Os testáceos estão no meio do caminho entre animais e plantas e
então, estando em ambos os grupos, não executam as funções de
nenhum deles: as plantas, não têm macho e fêmea, e assim elas não
20
Aristóteles, Historia animalium, livro VII, cap. 1, 588 b 5 - 588 b 16. In: History of animals, vol.
11, trad. David Mowbray Balme (London: William Heinemann, 1991). A esse respeito, Balme
(History of animals, pp. 60-61) concorda que tal concepção de continuidade sustentava a visão
aristotélica de que os mesmos atributos existiam em diferentes níveis de desenvolvimento nos
diferentes animais. Isso, no entanto, não significava que não havia fronteias entre os animais e
as plantas. Significava apenas, que elas eram difíceis de serem observadas.
21
Lilian Al-Chueyr Pereira Martins, A teoria da progressão dos animais de Lamarck [Coleção
Scientiarum Historia et Theoria, vol. 1] (Rio de Janeiro: Booklink; São Paulo:
FAPESP;GHTC;Unicamp, 2007), p. 120.
13
geram por meio de pares como os animais. [Os testáceos] não
produzem externamente nenhum fruto como aqueles que nascem das
plantas; mas eles tomam forma e são gerados a partir de certa
coagulação de terra e fluido
22
.
Nos tratados em que Aristóteles fez referência aos animais, tais como
Historia animalium, De partibus animalium, De generatione animalium e De
anima, ele encontrou muitos outros exemplos de tal continuidade, ao agrupar
os seres vivos segundo diferentes critérios, como por exemplo as formas de
movimentação; meios de refrigeração do corpo; métodos reprodutivos e as
faculdades da alma.
A esse respeito, Lovejoy comenta que, no De anima, por exemplo, é
proposta uma ordenação hierárquica de todos os organismos, baseada em
suas “potências da alma”, desde a alma nutritiva, aos quais as plantas estavam
limitadas, até a alma racional, característica do ser humano. Nessa ordenação,
cada grupo superior possuía todas as potências daquelas inferiores a ela na
escala, além de possuir, também, uma potência diferenciadora adicional que
lhe era própria. Segundo o autor, tal hierarquia exerceu, também, uma grande
influência sobre a filosofia e a história natural subseqüentes
23
.
Entretanto, na doutrina que ficou conhecida como scala naturae, o
fenômeno da reprodução, parece ter sido aquele que mais interessou a
Aristóteles, uma vez que não só um grande número das suas observações,
como também muitas das suas discussões se referem a este tema. Na obra De
generatione animalium, os animais foram hierarquizados segundo o grau de
desenvolvimento atingido pela sua descendência no momento da expulsão do
corpo da mãe, o que dependia do grau de seu calor vital. Assim, a diferença
suprema era aquela que existia entre os animais com sangue, isto é, o líquido
vermelho; e os animais possuidores de um líquido análogo, porém mais frio.
22
Aristóteles, De generatione animalium, livro I, cap.23, 731 b 8 - 731 b
15. In: Generation of
animals, vol. 13, trad. Arthur Leslie Peck (London: William Heinemann, 2000).
23
Lovejoy, A grande cadeia do ser: o estudo da história de uma idéia, p.63. Nesse ponto
concordamos com Lovejoy. As potências da alma das quais os seres vivos eram dotados,
incluindo as plantas, consistiram num critério para distribuí-los na escala de perfeição. A
hierarquia dos seres vivos segundo essas potencialidades será melhor discutida no capítulo 2
desta dissertação.
14
Entre os animais sangüíneos, Aristóteles admitiu que aqueles que
apresentavam pulmão eram mais quentes do que aqueles que não o possuíam,
isto porque, segundo ele, o pulmão servia para moderar o calor excessivo
24
.
Assim, de acordo com Lovejoy, o princípio de continuidade podia ser
diretamente deduzido do princípio de plenitude platônico, pois, se havia um tipo
intermediário teoricamente possível entre duas espécies naturais, esse tipo
devia ser realizado, e assim por diante, ad indefinitum, caso contrário, haveria
lacunas no universo, e ele não seria tão “completo” quanto deveria ser
25
.
A respeito de tal contexto, Lovejoy aponta que o resultado foi a
concepção do plano e da estrutura do mundo que, por toda a Idade Média e até
o final do século XVIII, muitos filósofos, homens eruditos e a maioria dos
homens da ciência aceitariam, de fato, sem questionamento – a concepção do
universo como uma “grande cadeia do ser”, composta de um número infinito de
elos dispostos em ordem hierárquica, desde a mais ínfima espécie existente,
que mal escapava da não existência, passando por “cada grau possível”, até o
ens perfectissimum, ou seja, até a mais alta espécie possível de criatura
26
.
Dessa forma, para Lovejoy, a “cadeia do ser” ou o grupo de princípios a
partir dos quais tal concepção foi forjada teve conseqüências de grande
importância histórica. Os ingredientes desse complexo de idéias tiveram como
pontos de partida a Antiguidade. Porém, posteriormente, esses ingredientes
aparecem de forma organizada dentro de um esquema de coisas geral e
coerente, em que a geração de tais graus de seres corresponderia a uma
necessidade lógica
27
.
1.3. ALGUNS DESDOBRAMENTOS DA SCALA NATURAE
De acordo com Lilian Al-Chueyr Pereira Martins, as concepções gerais
de Aristóteles foram mantidas até o século XVIII, com poucas alterações. A
24
William David Ross, Aristóteles, trad. Luís Filipe Bragança S. S. Teixeira (Lisboa:
Publicações Dom Quixote, 1987), p.123.
25
Lovejoy, A grande cadeia do ser: o estudo da história de uma idéia, p. 62.
26
Ibid., pp. 63-64.
27
Ibid., pp. 66-67.
15
autora exemplifica a questão a partir do que foi afirmado pelo naturalista John
Ray (1621-1705)
28
:
Os animais com sangue podem ser divididos entre os que
respiram por pulmões e os que respiram por brânquias.
Os que respiram por pulmões [se dividem] por sua vez nos que
possuem o coração caracterizado por dois ventrículos, ou por um só.
Os animais mais quentes possuem o coração caracterizado por
dois ventrículos, são ou vivíparos – os quadrúpedes, entre as formas
terrestres, e os cetáceos, entre as formas aquáticas – ou ovíparos –
como as aves.
Os quadrúpedes ovíparos e o gênero das serpentes possuem o
coração construído com um ventrículo; deste modo, o gênero das
serpentes deve ser distinguido daquele dos quadrúpedes ovíparos.
Todos os peixes exceto os cetáceos respiram por brânquias;
incluem-se aqui os peixes sanguíneos, pois o nome de peixe é dado
ocasionalmente também a animais sem sangue.
Os animais sem sangue são ou grandes, ou pequenos, os
grandes são em sua maioria aquáticos e foram convenientemente
subdivididos por Aristóteles em três gêneros, a saber: 1) os Mollia ou
Mollusca; 2) os Crustacea; e 3) os Testacea. Estes são univalves, ou
bivalves, ou turbinados.
Os menores animais sem sangue são os chamados insetos
29
.
1.3.1. A escala de perfeição de Charles Bonnet
28
L. A-C. P. Martins, A teoria da progressão dos animais de Lamarck, pp. 124-125.
29
John Ray, Synopsis methodica animalium quadrupedium et serpentini generis, apud, L. A-C.
P. Martins, A teoria da progressão dos animais de Lamarck, pp. 124-125. John Ray foi um dos
naturalistas que, na longa trajetória da classificação dos seres vivos, desenvolveu um método
classificatório baseado nos aspectos morfológicos. A exemplo do que se apresenta na scala
naturae de Aristóteles, que será discutida no capítulo 3 desta dissertação, o método de Ray
também pretendia apresentar a ordem objetiva da natureza. Uma comparação desses dois
métodos pode ser encontrada em Maria Elice de Brezezinski Prestes, “A natureza despida: de
Aristóteles à nova Ciência,Hypnos 2 (1996): 46-57.
16
No século XVIII, a idéia de “cadeia do ser” continuou a existir. Charles
Bonnet (1720-1793), um dos seguidores de Leibniz, propôs uma escala de
seres naturais. Em Palingénesie philosophique ou Idées sur l’état passé et sur
le futur des êtres vivants (1770), ele defendeu a idéia de que cada organismo
tinha a sua alma, um corpo e um “germe”, que seria um pequeno corpo
indestrutível unido à alma individual
30
.
De acordo com Lovejoy, para Bonnet, todos os indivíduos que
compunham o universo possuíam uma alma e um “germe” indestrutível,
permanentemente associado a essa alma individual. Assim, o corpo de um
organismo era composto por um certo número desses corpúsculos orgânicos,
que desenvolveriam corpos organizados a partir de si próprios, com as funções
de assimilação, crescimento e reprodução, enquanto que sua alma consistia
numa espécie de memória orgânica. O germe correspondia a um veículo
material da alma que levava consigo um arquivo permanente das
conseqüências das vidas passadas. Embora o mundo tivesse passado por
mudanças e cataclismos, esses germes conseguiram resistir, adaptando-se a
novos corpos e condições. Portanto, todos os seres vivos do mundo seriam tão
antigos quanto o universo, pois, antes de tudo, eles eram “almas”
31
.
Dessa forma, as espécies adotariam formas diferentes conforme as
condições externas de cada época, uma vez que os germes já teriam se
estruturado prevendo tais mudanças, de modo que a situação do globo
terrestre acarretaria o desenvolvimento do corpo orgânico e o aperfeiçoamento
das espécies
32
. A respeito dessa concepção, Bonnet se expressou:
A mesma gradação que observamos hoje entre as diferentes
ordens de seres organizados será, sem dúvida, encontrada também no
estado futuro do nosso globo [isto é, as séries serão ainda contínuas];
mas isso seguirá proporções que serão determinadas pelo grau de
perfeição de cada espécie. O homem – que terá então sido transportado
para uma nova morada, mais apropriada à superioridade de suas
30
L. A-C. P. Martins, A teoria da progressão dos animais de Lamarck, p. 126.
31
Lovejoy, A grande cadeia do ser: o estudo da história de uma idéia, pp. 282-283.
32
L. A-C. P. Martins, A teoria da progressão dos animais de Lamarck, p. 127.
17
faculdades – deixará para o macaco e o elefante aquela primazia que
hoje possui entre os animais desse planeta (...)
33
.
Na gradação a que Bonnet se referia, era a “organização” do ser vivo
que determinava sua posição
34
, conforme é retratado na seguinte passagem:
A Natureza é certamente admirável na conservação dos
indivíduos; mas ela o é, sobretudo, na conservação das espécies. Todos
os órgãos que ela proporcionou aos Seres organizados, todas as
propriedades com as quais ela os dotou, todas as faculdades com as
quais os enriqueceu, tendem como último passo a esse grande fim. (...)
Os séculos transmitem uns aos outros esse magnífico espetáculo, e eles
o transmitem tal qual o receberam
35
.
A escala dos seres de Bonnet iniciava-se pelo homem e terminava nas
“substâncias mais sutis que o fogo”, passando pelos animais, plantas, pedras,
metais e elementos. Segundo Martins, tal gradação partia de uma visão fixista,
onde não havia espaço para a idéia de transformação dos seres vivos, e,
conseqüentemente, de evolução orgânica
36
.
1.3.2. A escala de perfeição de Lamarck
Jean Baptiste Pierre Antoine de Monet de Lamarck (1744-1829) iniciou
seus estudos pessoais em Botânica, coletando plantas e identificando-as.
33
Bonnet, Palingénésie, p. 174, apud, Lovejoy, A grande cadeia do ser: o estudo da história de
uma idéia, pp. 284-285.
34
L. A-C. P. Martins, A teoria da progressão dos animais de Lamarck, p.127.
35
Bonnet, Considérations sur lês corps organisés, p. 179, apud, L. A-C. P. Martins, A teoria da
progressão dos animais de Lamarck, p.128.
36
L. A-C. P. Martins, A teoria da progressão dos animais de Lamarck, p.128. A respeito da
cadeia de seres de Bonnet, a autora comenta que ele não estava, efetivamente, preocupado
em estabelecer uma classificação dos animais ou em procurar semelhanças e diferenças entre
eles. Ela afirma se tratar mais de uma proposta filosófica do que um trabalho de História
Natural.
18
Durante a década de 1770, além dos estudos em Botânica, ele desenvolveu,
também, pesquisas sobre Meteorologia e Química, tendo apresentado seu
primeiro trabalho científico à Academia de Paris em 1776. Apesar de ter grande
prestígio como botânico e de ter trabalhado no Jardim do Rei – reorganizado,
posteriormente, em Museu Nacional de História Natural, por ocasião da
Revolução Francesa, Lamarck foi convidado a tornar-se professor de “insetos,
vermes e animais microscópicos” da instituição. Em 1794, aos cinqüenta anos
de idade, o naturalista iniciou seus trabalhos de Zoologia. Sua tarefa principal
consistiu, inicialmente, em familiarizar-se com a grande variedade de animais
inferiores, estudar os autores que já haviam escrito sobre eles e classificar
amostras
37
.
Lamarck construiu uma escala de perfeição dos animais em relação ao
que ele denominou de “massas” (grandes classes ou ordens, na atualidade),
onde os animais foram dispostos de acordo com o aumento da complexidade
de organização ou de degradação, conforme se considerasse a escala em
ordem crescente ou decrescente de perfeição. O naturalista considerava o fato
de, na parte superior da escala, estarem os animais mais perfeitos sob todos
os aspectos, e na inferior, os menos perfeitos
38
.
Na escala de perfeição de Lamarck, o principal critério levado em conta
era a presença ou a ausência de um esqueleto, assim como as condições em
que o mesmo se apresentava. Dessa forma, os animais mais aperfeiçoados
eram aqueles que possuíam coluna vertebral, e dentre esses animais, o mais
perfeito era o ser humano. O naturalista baseou-se, também, nas faculdades
gerais e particulares dos animais, tais como reprodução, respiração, circulação
e digestão; e no estado em que se encontravam o sistema nervoso, o
muscular, e os órgãos essenciais, como a visão e a audição
39
.
A seguir, encontra-se uma figura correspondente a esquematização de
Lamarck, e que apresenta as conexões entre as “massas”. Esta teria sido a
suposta ordem seguida pela natureza na produção das mesmas.
37
L. A-C. P. Martins, A teoria da progressão dos animais de Lamarck, pp. 26-31.
38
Ibid., pp. 309-310.
39
Ibid.
19
Fig. 1.1: A escala de perfeição de Lamarck (fonte: Histoire naturelle des animaux sans
vertèbres, p. 457, reproduzido em L. A-C. P. Martins, A teoria da progressão dos animais, p.
163).
20
Ao contrário de Aristóteles, Lamarck não aceitava a cadeia contínua dos
seres, onde havia a passagem dos animais para os vegetais e destes para os
seres inorgânicos. Além disso, ela se diferenciava das anteriores por encerrar a
idéia de uma progressão dos animais, e, portanto, de evolução. Esta era no
sentido de um aumento da complexidade em relação aos aparelhos e sistemas,
como a visão, por exemplo
40
.
Embora as massas pudessem ser dispostas em ordem linear de
perfeição, as extremidades dessa escala, onde se situavam as espécies,
apresentariam um aspecto ramificado devido à variação das circunstâncias e
dos hábitos adquiridos, principalmente em relação aos órgãos essenciais,
compreendendo, assim, um outro ponto que distinguia a proposta de Lamarck
das anteriores
41
.
1.3.3. A série animal de Henri de Blainville
Henri Marie Ducrotay de Blainville (1777-1850) era anatomista,
taxonomista e paleontólogo. Lecionou zoologia e anatomia comparada na
Faculdade de Ciências de Paris, onde ministrou um curso intitulado “Os
princípios de Zoologia deduzida a partir do progresso da Ciência desde
Aristóteles até o presente”. Sua série de animais consistia num arranjo
intermediário, entre uma anatomia estritamente teleológica e sua visão
puramente morfológica, e agradava tanto aos naturalistas que não
concordavam com as criações sucessivas, como àqueles que não aceitavam
uma teoria evolutiva
42
.
Tal esquema de classificação foi proposto em 1840, e nele, os animais
foram divididos em três “sub-reinos”, baseados na forma geral do corpo;
seguidos por cinco “tipos” básicos conforme sua organização; e, finalmente,
uma série de vinte e sete “classes”, que descia dos mamíferos em direção às
40
L. A-C. P. Martins, “A cadeia dos seres vivos: a metodologia e a epistemologia de Lamarck,”
in Anais do VI Seminário de História da Ciência e da Tecnologia, eds. Maria Isidoro Alves &
Elena Moraes Garcia ( Rio de Janeiro: Sociedade Brasileira de História da Ciência, 1997), pp.
40-46, nas pp. 40-42. A autora comenta que a distinção entre animais com vértebras
(vertebrados) e animais sem vértebras (invertebrados) foi uma proposta de Lamarck, e é
utilizada até hoje na Sistemática.
41
Ibid., p. 42.
42
Toby A. Appel, “Henri de Blainville and the animal series: a nineteenth-century chain of
being,” Journal of the History of Biology 13 (1980): 291-319, nas pp. 291-292.
21
esponjas. Para o naturalista francês, os órgãos constituintes do sistema
nervoso eram considerados como o critério mais importante na determinação
do grau de superioridade dos animais. Diferentemente das outras
configurações de scala naturae, a série de animais de Blainville não
representou uma tentativa de se estabelecer uma continuidade entre as últimas
espécies de um grupo superior e a primeira espécie do grupo abaixo. Ao
contrário, esse exemplo de “cadeia do ser” do século XIX consistiu numa
hierarquia de grupos de animais claramente definidos, onde não havia espaço,
para tipos intermediários ou para passagens entre animais, plantas e seres
inorgânicos, como aparecia em Bonnet, por exemplo
43
.
A série de animais proposta por Blainville se encontra esquematizada na
próxima página.
43
Appel, “Henri de Blainville and the animal series: a nineteenth-century chain of being, pp.
307-309.
22
Fig. 1.2: A série animal de Blainville (fonte: “Animal” in Supplement to Dictionnaire des Sciences Naturelles, p. 30, reproduzido em Appel, “Henri de Blainville
and the animal series: a nineteenth-century chain of being”, pp. 308).
23
1.4. ALGUMAS CONSIDERAÇÕES
Neste capítulo foi possível perceber que a idéia de distribuição dos seres
em uma escala linear de perfeição permaneceu aceita durante vários séculos,
desde a Antiguidade. Nos casos que comentamos, exceto o de Lamarck, ela se
restringia apenas a um arranjo sem qualquer implicação em termos evolutivos.
No terceiro capítulo desta dissertação, discutiremos em maiores detalhes, as
contribuições de Aristóteles em relação ao assunto.
24
CAPÍTULO 2
ARISTÓTELES E OS ESTUDOS DOS SERES VIVOS
Este capítulo tratará de alguns episódios relacionados à vida de
Aristóteles. Comentará, brevemente, sobre o conteúdo de algumas de suas
obras, dando maior ênfase àquelas referentes aos estudos sobre os seres
vivos.
2.1. ALGUMAS CONTRIBUIÇÕES DE ARISTÓTELES
Aristóteles (384 a. C. - 322 a. C.) nasceu na pequena cidade de
Estagira, moderna Tassalonica, na costa norte da península da Calcídia. Seu
pai, Nicômaco, pertencia ao grupo de Asclépios e era médico de Amintas da
Macedônia, avô de Alexandre o Grande. Seu interesse no estudo dos seres
vivos e o uso de dissecações é, algumas vezes, situado na profissão de seu
pai
44
.
Em 367 a. C., por volta dos seus dezessete anos, Aristóteles foi para
Atenas e se tornou membro da Academia de Platão, onde permaneceu por
vinte anos, até a morte de seu mestre em 347 a. C., quando deixou a cidade.
Doze anos depois, por volta de 335 a. C., Atenas se encontrava sob domínio
da Macedônia e Aristóteles retornou para lá. Em 323 a. C., com a volta dos
inimigos da Macedônia, Aristóteles se retirou novamente de Atenas, e morreu
poucos meses depois em sua terra natal, a Calcídia
45
.
44
Charles C. Gillispie, ed., Dictionary of scientific biography, vol. 1, Aristotle: method, physics,
and cosmology, por Gwilym Ellis Lane Owen (New York: Charles Scribner´s Sons, 1981), pp.
250-258, na p. 250.
45
Ibid.
25
Fig. 2.1: Aristóteles
(fonte: Charles Singer, Greek biology and Greek medicine,1922).
Durante o primeiro período que Aristóteles permaneceu na Academia de
Platão, ele se interou da filosofia de seu mestre. Quando de sua morte, em
348-47 a. C., Platão foi substituído por seu sobrinho Espeusipo e Aristóteles
deixou a cidade de Atenas. O motivo da sua saída pôde ter sido profissional,
uma discordância filosófica das tendências acadêmicas em relação a
Espeusipo. No entanto, mais provavelmente, houve uma razão política,
representada pela emergência de um sentimento anti-macedônico que havia se
instalado na cidade devido à queda de Olinto e a destruição da confederação
grega, o que transformou Atenas num lugar desconfortável para um estrangeiro
que possuía ligações macedônicas. Quaisquer que tenham sido as suas
26
razões, Aristóteles aceitou o convite de um antigo companheiro de estudos da
Academia, Hermias, o qual havia se tornado governador de Assos, na Mísia.
Hermias conseguiu reunir um pequeno círculo platônico à sua volta e
Aristóteles o freqüentou por três anos, quando, então, mudou-se para Mitilene,
na ilha vizinha de Lesbos. Não se sabe ao certo o que o levou até lá, mas
parece provável que Teofrasto, nativo da ilha e seu conhecido da Academia,
lhe tivesse feito novo convite. À sua estadia em Assos, e ainda mais à sua
estadia em Mitilene, pertencem muitas das suas investigações a respeito dos
seres vivos. Seus trabalhos fazem freqüentes referências aos fatos da história
natural observados nessa vizinhança e, mais particularmente, à lagoa da Ilha
de Pirra
46
.
Em 343-42 a. C., Filipe da Macedônia, o qual provavelmente conheceu
Aristóteles quando ambos ainda eram jovens, e que, por certo, tinha tido
notícias suas através de Hermias, chamou-o para dirigir a educação de
Alexandre, nessa época com treze anos. Querendo renovar as antigas ligações
com a corte macedônica, Aristóteles aceitou o convite. Este cargo deu-lhe
grande influência na corte e permitiu-lhe interceder sobre Estagira e Atenas
47
.
Por volta de 336 a. C., com a morte de Filipe, Aristóteles regressou a
Atenas. Ele lecionou no Liceu e estabeleceu a escola que, posteriormente,
ficou conhecida como Peripatética
48
.
Segundo o autor David Ross, esse foi um período bastante frutífero da
vida de Aristóteles, em que ele reuniu centenas de manuscritos, alguns mapas
e uma grande quantidade de objetos utilizados nas ilustrações de suas lições,
principalmente as de história natural. A organização das aulas, das quais os
trabalhos que nos restam de Aristóteles constituem apenas as notas,
pertencem, provavelmente, na sua maioria, aos doze ou treze anos da sua
chefia no Liceu. Ross ainda comenta que durante esse tempo, Aristóteles fixou
as linhas gerais fundamentais da classificação das ciências, as quais
46
David Ross, Aristóteles, trad. Luís Filipe Bragança S. S. Teixeira (Lisboa: Publicações Dom
Quixote, 1987), pp.14-15.
47
Ibid., p.16.
48
Charles Singer, Greek biology and Greek medicine (Oxford: Clarendon Press, 1922), p. 19.
Disponível em http://www.archive.org/details/greek biologygree00.sing.pdf; Internet; acesso em
20 de maio de 2009.
27
Fig. 2.2: Mapa da Ásia Menor (fonte: mapa utilizado durante a aula “As concepções de
Aristóteles sobre os seres vivos,” da disciplina de História das Ciências da Vida, ministrada
pela profª. Drª. Lilian Al-Chueyr Pereira Martins).
28
permanecem ainda hoje permanece, tendo as conduzido a um grau além do
até então registrado
49
.
Com a morte de Alexandre e a queda de seu império em 323 a. C.,
Aristóteles, que tinha conexões com os macedônicos, foi posto em situação
desconfortável, sendo considerado como inimigo pelos anti-macedônicos. Ele
se retirou de Atenas e morreu pouco tempo depois, em 322 a. C., aos sessenta
e dois anos
50
.
No tocante à distribuição de alguns escritos aristotélicos, o autor Joseph
Williams Blakesley afirma que há três catálogos. O primeiro foi fornecido por
Diógenes Laércio, o segundo por um biógrafo grego anônimo, e um terceiro
catálogo, em árabe, o qual é considerado como sendo bem próximo ao material
que chegou até nós. O autor segue comentando que, nos dois primeiros
catálogos, alguns dos escritos possuem mais de um nome, o que mostra que
muitos dos trabalhos existentes não são, em sua totalidade, unitários, mas sim
coletâneas de ensaios sobre temas inter-relacionados, enquanto que os
ensaios separados constituem uma unidade original, a qual foi unida não
somente por comentadores de Aristóteles, mas também pelo próprio filósofo
51
.
Segundo Ross, a obra literária de Aristóteles pode ser dividida em três
partes principais: a primeira consiste em trabalhos de ordem mais ou menos
popular; a segunda de memorandos e coletâneas de material para trabalhos
“científicos”; e a terceira, dos próprios trabalhos “científicos”. Segundo o autor,
todo o corpus dos trabalhos aristotélico considerado como autênticos,
pertencem a esta terceira classe. Quanto aos outros, o conhecimento se
assenta sobre fragmentos preservados pelos autores antigos
52
.
Uma listagem tradicional dos trabalhos de Aristóteles pode ser
encontrada em History of animals, conforme Arthur Leslie Peck
53
.
Tanto os conteúdos dos escritos que trazem o nome de Aristóteles - e
que chegaram aos dias atuais, como as discussões acerca da autenticidade
49
Ross, Aristóteles, p/p. 16/18.
50
Singer, Greek biology and Greek medicine, p.19.
51
Joseph William Blakesley. Life of Aristotle: a critical discussion of some questions of literary
history connected with his works (Cambridge: J. J. Deighton, 1839), p.113.
Disponível em http://www.archive.org/details/lifeofaristotlei00blakgoog
; Internet; acesso em 26
de dezembro de 2008.
52
Ross, Aristóteles, p. 19.
53
Arthur Leslie Peck, History of animals, vol. 9, ed. Jeffrey Henderson (London: William
Heinemann, 2001), pp. ci-civ.
29
dos mesmos, foram, particularmente, bem explorados por Blakesley e Ross. Os
parágrafos que seguem nessa seção se baseiam nas informações expostas
por esses dois autores.
Dos trabalhos existentes, pode-se considerar primeiramente, o grupo de
tratados lógicos, conhecido, pelo menos desde o século VI, por Organum ou
Instrumento do pensar. O primeiro destes, seguindo a ordem habitual, é
Categoriae, cuja autenticidade tem sido discutida. Já em relação a De
interpretatione, um tratado referente à natureza dos substantivos e dos verbos,
há fortes indícios em favor da sua autenticidade. Os Analytica priora e os
Analytica posteriora são, decerto, autênticos, assim como Topica e Sophistici
elenchi. Essas obras abordam, respectivamente, as formas pelas quais pode
se dar uma afirmação e se estabelecer uma conclusão; as diferentes frentes
pelas quais um argumento demonstrativo pode ser produzido, e, por fim, as
possíveis falhas dentro de uma demonstração
54
.
Os tratados de física, por sua vez, começam por um grupo de obras
consideradas como genuínas: Physica, De caelo, De generatione et corruptione
e Meteorologia, com exceção do livro IV. Em Physica há uma discussão sobre
teorias anteriores às do filósofo, bem como a respeito das idéias sobre
Natureza, Necessidade e Acaso. Na obra há, também, uma análise sobre as
noções e a idéia de Corpo. Já em De caelo há uma abordagem em relação aos
corpos pesados, seus elementos e suas propriedades, assuntos que, também
são abordados em De generatione et corruptione. Meteorologica trata sobre as
mudanças provocadas nos corpos, por ação do calor, do frio, da umidade e da
seca. Em relação à autenticidade do tratado seguinte no corpus, De mundo,
sua data pode ser, provavelmente, fixada em 50 a. C. e 100 d. C.
55
.
Em seguida surge uma série de trabalhos autênticos de “psicologia”
56
,
atribuídos a Aristóteles: De anima, o qual será tratado mais adiante, e os
trabalhos conhecidos coletivamente sob o nome de Parva naturalia: De sensu
et sensibilibus, De memoria et reminiscentia, De somno, De insomniis, De
divinatione per somnum, De longitude et brevitate vitae, De vita et morte, De
respiratione. O tratado De spiritu fecha esta série de trabalhos, porém não é de
54
Blakesley, Life of Aristotle: a critical discussion of some questions of literary history connected
with his works, p/p. 115/117.
55
Ibid., Blakesley, p/p. 145/147.
56
Daquilo que consideraríamos, atualmente, como sendo psicologia.
30
autoria de Aristóteles, uma vez que nele é encontrada a distinção entre veias e
artérias, a qual lhe era desconhecida, e deve ser, talvez, datado de 250 a. C.
57
.
A série de obras “psicológicas” é seguida por um grupo de trabalhos
sobre história natural, que, tal como ocorre em Organum, apresentam-se bem
conectados. Por hora, esses escritos serão apenas pontuados e, mais adiante,
terão seus conteúdos mais detalhadamente abordados.
Historia animalium consiste numa coletânea de fatos e trazia ilustrações
e diagramas de alguns animais, que, juntamente com algumas explicações,
talvez formasse todo um tratado. Essa obra é seguida pelos trabalhos em que
Aristóteles expõe suas teorias acerca desses fatos. O primeiro dentre eles é De
Partibus animalium, cujo primeiro livro constitui uma introdução geral à
“biologia”. O De motu animalium, que apenas recentemente tem sido
considerado como sendo da autoria de Aristóteles. De incessu animalium e De
generatione animalium são considerados autênticos
58
.
Os trabalhos “biológicos” são seguidos por alguns tratados apócrifos,
tais como De coloribus, atribuídos a Teofrasto e a Estratão; De audibilibus, de
provável autoria de Estratão; Physiognomonica, talvez de autoria peripatética e
De mirabilibus auscultationibus. Mechanica parece pertencer à primeira escola
peripatética, e discute temas referentes à alavanca, à roldana e à balança,
além de expor alguns dos princípios fundamentais da estática, como a lei das
velocidades virtuais, o paralelogramo das forças e a lei da inércia. Desses
trabalhos apócrifos, De plantis possui uma história peculiar. Segundo suas
próprias referências, Aristóteles parece ter escrito uma obra sobre as plantas, a
qual tinha desaparecido no tempo de Alexandre de Afrodisia. A obra que nos
chegou às mãos foi introduzida a partir de uma tradução latina, que, por sua
vez, segue a tradução árabe de um trabalho cujo provável autor foi Nicolau de
Damasco, um peripatético de tempo de Augusto. Problemata, apesar de
repousar, em sua maior parte, sobre premissas aristotélicas, incluem muitos
traços característicos da última escola peripatética. O interesse dessa obra
reside na apresentação da variedade de estudos para os quais Aristóteles
orientava os seus discípulos, entre eles medicina, matemática, música, ética e
57
Ross, Aristóteles, pp. 22-23.
58
Blakesley, Life of Aristotle: a critical discussion of some questions of literary history connected
with his works, pp. 149-150.
31
física. De lineis insecabilibus é dirigido contra Xenócrates e, assim como
Ventorum situs, é atribuído a Teofrasto. De Xenophane, Zenone, Gorgia é,
provavelmente, baseado em tratados autênticos de Aristóteles. A primeira
referência que se possui de Metafísica, sob esta denominação, parte de
Nicolau de Damasco. No entanto, a obra que chegou até nós, em dez livros,
provavelmente parte do catálogo de Hesíquio
59
.
Em seguida, surge um grupo de tratados éticos: Etica nicomachea,
Magna moralia e Etica eudemia, sendo este um trabalho posterior, escrito por
Eudemo, discípulo de Aristóteles. De virtutibus et vittis é uma tentativa de
reconciliar a ética peripatética com a platônica e data, muito provavelmente, do
primeiro século antes ou do primeiro século depois de Cristo. Política é um
trabalho de autoria de Aristóteles. A discussão dessa obra gira em torno da
distribuição e organização de seus livros. A respeito de Oeconomica, o primeiro
livro foi escrito, provavelmente por Teofrasto, enquanto que o segundo,
provavelmente, seja de Aristóteles, e consiste numa coletânea de materiais
para seus escritos históricos e filosóficos sobre o governo. O terceiro livro não
se considera como sendo de Aristóteles. Já Ars rhetorica pode ser considerada
como uma obra autêntica, enquanto que Rhetorica ad Alexandrum, no geral, é
atribuída a um contemporâneo de Aristóteles, Anaxímenes de Lâmpsaco. O
corpus termina com a genuína, porém fragmentada, Ars poetica
60
.
No tangente à distribuição dos escritos de Aristóteles por sua carreira e
aos períodos pelos quais seguiu sua vida, Gwilym Ellis Lane Owen aponta que
têm sido retomadas discussões e investigações a respeito. Segundo Owen,
dos trabalhos que o filósofo aperfeiçoou para leituras públicas restam apenas
fragmentos de manuscritos, tais como Mechanica, Problemata, De mundo e De
plantis, cuja autenticidade já foi discutida anteriormente. Sobre parte dos
trabalhos aristotélicos que chegou até nós, Owen comenta que esses escritos
correspondem a documentos produzidos durante a licenciatura e as pesquisas
do filósofo. Dentre outras situações que envolvem os escritos aristotélicos, o
autor comenta que às vezes, o título de um trabalho representa um arquivo
aberto, como, por exemplo, Tópica e Historia animalium. No entanto, para o
autor, tais considerações não impossibilitam a reconstrução de alguns pontos
59
Ross, Aristóteles, p. 23.
60
Ibid., p. 26.
32
referentes ao curso do pensamento “científico” de Aristóteles. Nesse sentido,
ele explica que, por vezes, é dito que a distinção que Aristóteles estabelecia
entre características definíveis e não definíveis deva estar enraizada nos
estudos “biológicos”, nos quais tal distinção tem papel integral. Entretanto,
Owen comenta que tal distinção foi extensamente explorada em Topica, um
livro de debates que data dos anos em que Aristóteles esteve na Academia,
enquanto que as investigações inseridas nos trabalhos “biológicos” parecem
surgir, principalmente, a partir dos anos em que o filósofo natural esteve fora de
Atenas. Assim, segundo Owen, esse aparato conceitual não foi produzido pelo
trabalho “biológico” e, sim, modificado por ele
61
.
Ainda sobre esse ponto em discussão, Ross afirma que todas ou quase
todas as obras de Aristóteles são comumente consideradas como pertencentes
ao período em que dirigia o Liceu, tendo surgido a partir daí a questão natural
do relacionamento entre as suas obras escritas e o seu ensinamento oral. Ross
comenta que muitas vezes tem-se sugerido que a característica grosseira e
inacabada de muitos dos trabalhos de Aristóteles, bem como as repetições e
as digressões neles presentes, devem-se ao fato de constituírem notas de suas
palestras, ou então, de notas tomadas por seus alunos. No entanto, o autor
acredita ser difícil que notas de diferentes alunos pudessem ter conseguido
produzir uma uniformidade de estilo, e ressalta, também, que não se pode
encarar os trabalhos do Aristóteles como nada mais que notas para palestras,
uma vez que a plenitude de expressão e a atenção quanto à forma literária se
mostram incompatíveis com o fato de terem sido memorando para palestras,
apenas. Assim, para Ross, existe a possibilidade de Aristóteles ter redigido
suas palestras antes de tê-las proferido e de seus trabalhos escritos
corresponderem às suas lições. Entretanto, ele afirma ser provável que o
filósofo tenha ensinado de forma mais livre e que os livros, tal como chegaram
a nós, tenham sido escritos posteriormente. Para Ross, as repetições e as
ligeiras divergências de ideais que são observadas nos trabalhos de Aristóteles
devem explicar-se pelo fato de que o filósofo não tratava de um assunto de
forma definitiva, mas voltava a ele outras vezes
62
.
61
Owen, Aristotle: method, physics, and cosmology, pp.250-251.
62
Ross, Aristóteles, pp. 27-28.
33
Segundo Roberto de Andrade Martins, todo o conjunto de obras em
Aristóteles dedicou aos seres vivos forma um impressionante sistema de
estudos biológicos. Destacam-se, por um lado, a grande quantidade de fatos
descritos, o que pressupõe um trabalho extenso de observação de animais
vivos, dissecações e experiências. Por outro, a sistematização e a clareza de
exposição, o que envolvia classificações, termos, distinções, características
etc.. Diante desses fatores, Martins afirma se tratar de um trabalho ciclópico, e
comenta ser praticamente impossível que ele tenha sido realizado por um único
indivíduo isoladamente. Segundo ele, a maior parte das observações deve ter
sido realizada, se não diretamente por Aristóteles, pelo menos a seu pedido e
sob sua orientação e supervisão
63
.
Ainda no que diz respeito a esses tratados “biológicos”, David Mowbray
Balme comenta que eles devem representar muitos anos de trabalho, pois
compõem um quarto de todo o corpus aristotélico. Já Arthur Leslie Peck expõe
que o volume mais extenso, correspondente aos tratados zoológicos, pode ser
retirado de três tratados gerais: Historia animalium, De partibus animalium e De
generatione animalium
64
.
O tratado Historia animalium consiste de um registro de informações
obtidas a partir de investigações a respeito das diferentes partes que formam
os animais, bem como de deus diferentes hábitos de vida
65
.
Em sua primeira parte, Aristóteles listou e descreveu, metodicamente, as
estruturas internas e externas dos animais, tendo observado as diferenças
significativas que seus variados tipos apresentavam, como por exemplo, os
diferentes formatos e posições do útero nos diversos tipos de fêmeas. Na
segunda parte, o filósofo natural comparou as diferentes atividades que os
animais apresentavam, em relação ao modo de reprodução, alimentação,
migração, hibernação, bem como as variações devido às estações do ano,
acasalamento, doenças, idade e hábitat. Já na última seção, Aristóteles
registrou observações quanto ao comportamento dos animais. Segundo Balme,
63
Roberto de Andrade Martins, “A teoria aristotélica da respiração,” Caderno de História e
Filosofia da Ciência, 2(1990): pp. 165-212, na p. 166.
64
Charles C. Gillispie, ed., Dictionary of scientific biography, vol. 1, Aristotle: natural history and
zoology, por David Mowbray Balme (New York: Charles Scribner´s Sons, 1981), pp. 258 - 266,
na p. 259; Arthur Leslie Peck, Parts of animals, vol. 12, ed. Jeffrey Henderson (London: William
Heinemann, 2006), p. 10.
65
Peck, History of animals, p.xi.
34
a intenção de Aristóteles em relação ao tratado Historia animalium era a de
compreender as diferenças que os animais apresentavam no sentido de
distingui-los e de defini-los
66
.
Balme afirma que, dos 560 tipos de animais que Aristóteles mencionou
em seus trabalhos zoológicos, 390 pertencem apenas a Historia animalium. O
autor ainda aponta que, enquanto boa parte das informações contidas nos
demais tratados zoológicos seja de senso comum, o Historia animalium inclui
informações mais especializadas, fornecidas por fazendeiros, apicultores,
criadores de aves, dentre outros
67
.
Já no tratado De partibus animalium, Aristóteles abordou as maneiras
pelas quais os corpos, ou seja, a “matéria” a partir da qual os animais eram
arranjados, serviam aos seus vários propósitos. Por todo o tratado, o filósofo
sustentou a causa final como sendo uma explicação acerca dos fatos que ele
observava. A obra se inicia com a definição de um método que o filósofo
considerou ser adequado para a realização da sua abordagem (o
estabelecimento das causas). Em seguida ele descreveu a composição das
substâncias que formavam os animais e diferenciou as partes uniformes das
não-uniformes. Durante a abordagem, Aristóteles considerou, também, as
qualidades do frio, do calor, da umidade e da seca no que dizia respeito às
partes internas e externas dos animais que possuíam sangue e dos que não
possuíam
68
.
Segundo Balme, nos escritos De partibus animalium, De incessu
animalium e Parva naturalia, Aristóteles também estabeleceu as “causas” das
estruturas apresentadas pelos animais, bem como de suas funções, tais como
a locomoção, a respiração, o envelhecimento e a morte. De acordo com Balme,
nesses tratados aparecem fortemente as explicações teleológicas e os
elementos a priori, como por exemplo, a superioridade do lado direito do corpo
em relação ao lado esquerdo, que Aristóteles assim expressava por meio de
“analogias”
69
.
66
Balme, “The place of biology in Aristotle´s philosophy,” in Philosophical issues in Aristotle´s
biology, eds. Allan Gotthelf & James G. Lennox (Cambridge: Cambridge University Press,
1987), pp. 9-20, na p. 11.
67
Ibid., p. 16.
68
Peck, Parts of animals, pp. 11-12.
69
Balme, Aristotle: natural history and zoology, pp. 259-265.
35
No tratado De generatione animalium, Aristóteles aplicou seus conceitos
de forma e matéria, atualidade e potencialidade às questões relacionadas à
reprodução, herança e desenvolvimento dos animais, tendo discutido sua teoria
da reprodução em relação aos mesmos. De acordo com Balme, a qualidade
argumentativa é bastante intensa e sustentada neste tratado, principalmente no
que diz respeito ao meio físico pelo qual a forma é transferida para o embrião a
partir do macho e como tal meio controla seu desenvolvimento
70
.
O De generatione animalium, segundo Peck, corresponde à última parte
dos trabalhos zoológicos de Aristóteles e consiste num tratado sistemático
sobre a reprodução dos animais bem como de sua embriologia, e contém
anotações de observações e sugestões de métodos que lidam com os
problemas. Nele, Peck aponta que o pensamento aristotélico se encontra
bastante integrado: a reprodução, por exemplo, era entendida por Aristóteles,
não apenas no âmbito individual, mas também em relação aos cosmos
71
.
Este tratado corresponde ao principal objeto de estudo a ser analisado
nesta dissertação.
2.2. CONCEITOS ARISTOTÉLICOS RELACIONADOS AOS
SERES VIVOS E À SCALA NATURAE
2.2.1. Natureza
De acordo com Thomas Kesselring, na Antiguidade, o conceito de
Natureza estava relacionado com o conceito de physis, um processo circular de
surgir e desvanecer, no qual as estrelas apareciam e desapareciam no céu, da
mesma forma que os seres vivos nasciam, cresciam, envelheciam e morriam. A
repetição de processos sempre semelhantes era mais relevante que a própria
dimensão temporal, de modo que, em tal cosmologia, a Natureza era eterna e
encerrava em si o princípio daquilo que surgia e desaparecia
72
.
70
Balme, “The place of biology in Aristotle´s philosophy”, pp. 10-11.
71
Arthur Leslie Peck, Generation of animals, vol. 13, ed. Jeffrey Henderson (London: William
Heinemann, 2000), pp. v-vii.
72
Thomas Kesselring, “O conceito de natureza na história do pensamento ocidental,” Episteme,
11 (2000): pp.153-173, nas pp. 155-156.
36
Para Aristóteles, segundo Ross, o movimento do Sol mantinha a coesão
do mundo sublunar, de modo que, em seu decurso, ele sucessivamente se
aproximava e se afastava de qualquer determinado ponto sobre a Terra e a
partir disto, ocorria a geração e a destruição – a transformação perpétua dos
elementos uns nos outros; o crescimento das plantas; o desenvolvimento e o
declínio dos animais; as alterações sazonais de quente e seco com frio e
chuva. Do mesmo modo que, pelas suas sucessivas aproximações, o Sol
provocava o desenvolvimento até a maturidade dos animais e das plantas,
seus recuos produziam seus respectivos declínios, de forma que o movimento
do sol era o que fixava um limite à vida normal de cada tipo de ser vivo
73
.
Essa regularidade do mundo físico, garantida pelos movimentos naturais
é, segundo Owen, um elemento básico da cosmologia aristotélica. Para
Aristóteles, qualquer mudança implicava numa passagem entre dois atributos
contrários, de um para o outro, onde um terceiro, responsável por tal
passagem, correspondia a um substrato que, apesar de sofrer alterações, ao
mesmo tempo, sobrevivia a elas. As situações assim consideradas iam desde
um objeto claro se tornando mais escuro, até o nascimento de plantas e
animais
74
.
De acordo com Yma de Souza Abreu, os fenômenos naturais
apresentavam, assim, princípios internos de mudanças. Como a natureza tinha
como necessidade maior a sua perfeição, cada coisa representava uma etapa
que lhe garantia sua eternidade. Em outras palavras, o movimento não era a
substituição de um estado por outro, mas sim a passagem entre esses estados,
ou seja, a atualização do potencial
75
.
Os seres vivos, que eram tidos como fenômenos naturais, também
apresentavam seu movimento
76
:
73
Ross, Aristóteles, p. 114.
74
Owen, Aristotle: method, physics, and cosmology, pp. 254-255.
75
Yma Souza de Abreu, “O método de Aristóteles para o estudo dos seres vivos,” Revista da
SBHC, 11(1994): pp. 35-40, na p. 35.
76
Ibid.
37
Fig. 2.3: o movimento dos seres vivos (fonte: Yma de Souza Abreu, “O método de
Aristóteles para o estudo dos seres vivos,” p. 35).
A natureza era, identificada, então, enquanto capacidade de movimento,
mas também como forma. A forma, ou a estrutura de uma coisa, de um animal,
por exemplo, era justamente em virtude do qual se movia, crescia, se alteava, e
atingia o repouso quando do término de seu movimento. E, inversamente, o
poder de se mover, crescer e se alterar, num certo sentido, correspondia à
forma, ou o caráter de cada coisa
77
.
2.2.2. As causas como forma de conhecimento acerca dos
animais
Para Aristóteles, não era possível obter um conhecimento seguro a
respeito dos fenômenos naturais uma vez que eles estavam em constante
mudança. Entretanto, era possível estudá-los a partir de suas causas:
(...) como se sabe, há quatro Causas básicas: (1) ‘aquela pelo
bem da qual algo existe’, considerada como ‘Fim’; (2) o logos da
77
Ross, Aristóteles, pp. 75-76.
EMBRIÃO
JOVEM
ADUTO
GERME
38
essência de algo (ambas deveriam ser tidas como sendo quase a
mesma coisa); (3) a matéria de algo e (4) aquela a partir da qual surge o
princípio do movimento de algo
78
.
Em relação às causas que operavam na natureza, a “causa material”
correspondia a algo que já existia antes e que continuava a existir, mesmo
depois de uma transformação, tal como uma estátua feita de bronze, cujo metal
já existia e continuava a existir na estátua. Já a “causa formal” consistia naquilo
que não existia antes, mas que surgia em uma transformação, caracterizando o
resultado do fenômeno. Antes de se fazer uma estátua de bronze, por exemplo,
o metal não apresentava a forma desejada e sua fabricação consistia em dar
uma nova estrutura àquele material. A essência da estátua, ou aquilo que a
definia, correspondia à forma que ela adquiriu. A “causa eficiente” representava
aquilo que desencadeava uma mudança ou processo, sendo este o sentido
mais comum que é dado à palavra “causa”. Por exemplo, o artista que
transformava um bloco de bronze em uma estátua de Zeus era a causa
eficiente da estátua. Por fim, a “causa final” poderia ser exemplificada da
seguinte maneira: se um artista fez uma estátua de Zeus para que ela fosse
colocada em um templo e para que as pessoas realizassem cultos a esse
deus, então a causa final da estátua correspondia ao culto religioso
79
.
O estudo dos seres vivos, bem como as teorias acerca da reprodução e
do desenvolvimento dos animais, também eram explicados a partir das causas:
(1) causa material, que corresponde ao líquido menstrual e aos
nutrientes fornecidos pela fêmea e aquele fornecido após o nascimento;
(2) causa formal, referente ao desenvolvimento do embrião e do filhote,
segundo características próprias; (3) causa eficiente, referente àquela
em que o macho, possuidor do “movimento”, promove o
desenvolvimento do embrião e, (4) causa final, que corresponde ao fim
78
Aristóteles, De generatione animalium, livro I, cap. I, 715 a 1 – 715 a 5. In: Generation of
animals, vol. 13, trad. Arthur Leslie Peck (London: William Heinemann, 2000).
79
Roberto de Andrade Martins e Lilian Al-Chueyr Pereira Martins, “Uma leitura biológica do ‘De
Anima’ de Aristóteles,” Filosofia e história da biologia 2 (2007): 405-426, na p. 411.
39
segundo o qual o processo do desenvolvimento está direcionado, um
organismo perfeito e completamente desenvolvido
80
.
Ainda em relação às causas do desenvolvimento de um animal, a causa
final, mais distante da vida, era a perfeição. Apesar dos seres vivos não serem
individualmente eternos, as espécies o eram, e isso era possível graças à
reprodução. A causa final da reprodução era, portanto, a eternização da
espécie
81
.
Nas palavras de Aristóteles:
Ora, algumas coisas são eternas e divinas enquanto que outras
são vivas e não vivas. Mas aquilo que é nobre e divino é, sempre em
virtude de sua própria natureza, como uma causa que produz aquilo que
é melhor nas coisas que são melhores ou piores, e aquilo que não é
eterno é tanto vivo como não vivo, e pode participar tanto no melhor
como no pior. (...) o que vive é melhor que o que não vive. Essas são,
então, as razões da geração dos animais. Já que é impossível que uma
classe de coisas como a dos animais seja de uma natureza eterna,
então aquilo que vem a ser é eterno da única maneira possível. Agora é
impossível que [aquilo que vem a ser] seja eterno enquanto indivíduo
(...) mas isso é possível enquanto uma espécie. É por isso que sempre
há uma classe de homens, de animais, de plantas (...)
82
.
80
Peck, Generation of animals, p. xxxviii. Sobre o esclarecimento acerca das causas
aristotélicas, Peck comenta que a ordem cronológica aqui apresentada não corresponde à
ordem lógica proposta por Aristóteles.
81
Lilian Al-Chueyr Pereira Martins, “Aristóteles e a geração espontânea,”Cadernos de História
e Filosofia da Ciência 2 (1990): 213-237, na p. 218.
82
Aristóteles, De generatione animalium, livro II, cap. 1, 731 b 24 – 732 a 1. In: The works of
Aristotle translated into English, vol. 5, De generatione animalium, trad. Arthur Platt (Oxford:
Clarendon Press, 1912).
Disponível em http://www.archive.org/details/worksofaristotle05ariuoft.pdf
; acesso em 20 de
agosto de 2008.
40
Para Aristóteles, a filosofia da natureza devia, então, dar conta de cada
uma das quatro causas e referir-se a todas elas pelas explicações que davam
dos acontecimentos. A existência de um animal devia-se não apenas aos
materiais que o compunham, mas também, e principalmente, a uma forma e
uma alma. A causa final de um animal consistia na atualização de sua forma,
isto é, o seu estado completo, enquanto que a causa eficiente, correspondia a
sua alma que “usava” os movimentos dos materiais. Assim, para Aristóteles, a
causa final era anterior à necessidade e se encontrava inserida no contexto das
interações naturais, não como algo que lhe fora imposto, mas como algo que
equilibrava a natureza. Sob o ponto de vista aristotélico, se existia um cosmos,
isso implicava que os materiais não apenas eram dotados movimentos, mas,
hipoteticamente, eles eram necessários e naturais. Um animal possuía muitos
movimentos, todos naturais, que por uma coordenação natural tendia a um
padrão específico. A alma representava tanto a tendência quanto o padrão, e
Aristóteles aceitava como fato tanto as matérias observáveis como as formas e
as espécie, por isso o movimento da natureza era simultaneamente necessário
e contínuo
83
.
Então, do ponto de vista de Aristóteles, a estrutura de um corpo
complexo, como o de um ser vivo, por exemplo, não representava apenas um
fim em si mesmo. A continuidade do devir, uma vez que fornecia às coisas
sublunares a única eternidade para a qual elas podiam tender, isto é, a
eternidade das espécies, acrescentava algo à perfeição do universo. E tal
continuidade representava o verdadeiro fim último
84
.
2.2.3. Os quatro elementos e as suas propriedades na
composição dos animais
83
Balme, Aristotle: natural history and zoology, pp. 259-260.
84
Ross, Aristóteles, p. 113. Ainda no tangente às causas, Ross comenta que do ponto de vista
aristotélico eram precisas as quatro causas para que se desse a produção de qualquer efeito.
De acordo com o autor, as “causas” devem ser pensadas como condições necessárias, mas
não independentemente suficiente, para dar conta da existência de uma coisa, de forma que se
as olharmos desse modo, deixaremos de nos surpreender pela a matéria e a forma serem
designadas causas, pois, por certo, sem elas nenhuma coisa pode ser ou tornar-se.
41
Um importante elemento da concepção aristotélica da natureza era a
doutrina dos quatro elementos, originalmente de Empédocles (c. 500-c. 430 a.
C.)
85
. Conforme o filósofo pré-socrático:
(...) Dupla é a formação das coisas mortais e dupla é a sua
destruição, pois uma é gerada e destruída pela junção de todas as
coisas, a outra é criada e desaparece, quando uma vez mais as coisas
se separam (...). (...) uma vez, eles cresceram para serem um único,
vindo de muitos, outrora, dividiram-se para serem muitos de um que
eram – o fogo e a água e a terra e a altura imensa do ar (...)
86
.
Dessa forma, para Aristóteles, a matéria inanimada, no geral, e a
matéria animada, em particular, eram, então, sustentadas como sendo
compostas por quatro elementos essenciais, cada um deles, por sua vez, era
relativo às suas qualidades primordiais
87
.
Apesar de não serem considerados elementos atualmente, Aristóteles
considerava que o fogo, a água, o ar e a terra constituíam os corpos sensíveis
mais simples, e se combinavam conjuntamente, sendo transformados uns nos
outros e, por isso, eram caracterizados pelas qualidades quente e frio, seco e
úmido. O quente não só devia temperar o seco e o úmido, e vice-versa, como
também o quente-frio desempenhava, em geral, o papel de agente, enquanto
que o seco-úmido, o de paciente
88
.
85
Singer, Greek biology and Greek medicine, pp. 38-39.
86
Fr. 17, 1-13, e Fr. 17, verso 14, Simplício in Phys. 158, 1 e 158, 13, apud, Geoffrey Stephen
Kirk; John Earle Raven & M. Schofield, Os Filósofos Pré-Socráticos, trad. Carlos Alberto Louro
Fonseca (Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2008) pp. 229-304. Segundo Geoffrey
Stephen Kirk et al., para Empédocles, era a partir dessas quatro “raízes”, assinaladas como
elementos básicos e mutuamente irredutíveis, que todas as coisas se constituíam. Com relação
à teoria de Empédocles a respeito do nascimento e da morte do universo, o que incluía o ciclo
vital dos animais, tal conceito tem sido aplicado mais clara e significativamente, apontam os
autores.
87
Singer, Greek biology and Greek medicine, pp. 38-39.
88
Ross, Aristóteles, pp. 111-112.
42
combinação possível
combina
ç
ão
p
ossível
combinação
impossível
seco
q
uente
frio úmido
TERRA AR
combinação possível
combinação possível
ÁGUA
FOGO
Fig. 2.4: os elementos e suas propriedades (fonte: anotações da aula “As concepções de
Aristóteles sobre os seres vivos,” da disciplina de História das Ciências da Vida, ministrada
pela profª. Drª. Lilian Al-Chueyr Pereira Martins).
43
A esse respeito, Montgomery Furth explica que, para Aristóteles, os
então denominados elementos não eram tidos como corpos simples, apenas, e
sim como compostos que eram produzidos por combinações de forças
primárias ou propriedades ativas da matéria. Sob esse ponto de vista, sólido e
quente formavam o fogo. Quente e fluido formavam o ar, sendo este
correspondente ao vapor; fluido e frio formavam água; frio e sólido formavam
terra. Além disso, as diferenças que existiam entre os corpos sensíveis, não
eram devidas, simplesmente, a uma mistura aleatória de elementos, mas às
proporções correspondentes a cada um deles
89
.
Nas palavras do filósofo natural:
(...) o primeiro nível [da composição dos animais] é a composição
a partir do qual alguns dão no nome de elementos, tais como terra, ar,
água, fogo. Talvez, no entanto, seria mais correto dizer composição a
partir das forças elementares, não de todas, mas de um número
limitados delas, como definidas nos outros tratados. Como líquido e
sólido, quente e frio, formam o material de todos os corpos compostos
(...)
90
.
Nesse sentido, segundo Furth, a intuição básica de Aristóteles a respeito
da matéria era a de que ela era informada pela forma - o que é particularmente
relevante ao considerarmos que a forma representava um tipo de causa para o
filósofo natural. De acordo com Furth, essa concepção se apresentava da
seguinte maneira
91
:
89
Montgomery Furth, “Aristotle´s biological universe: an overview,” in Philosophical issues in
Aristotle´s biology, ed. Allan Gotthelf & James G. Lennox (Cambridge: Cambridge University
Press, 1987), pp. 21-52, p. 30.
90
Aristóteles, De partibus animalium, livro II, cap. 1, 646 a 13 – 646 a 17. In: The works of
Aristotle translated into English, vol. 5, De partibus animalium, trad. William Ogle (Oxford:
Clarendon Press, 1912).
Disponível em http://www.archive.org/details/worksofaristotle05ariuoft.pdf
; acesso em 20 de
agosto de 2008.
91
Furth, “Aristotle´s biological universe: an overview,” pp. 31-37.
44
Primeiro nível: correspondia aos tipos mais simples de “corpos”,
representados pelos quatro elementos: terra; água; ar e fogo, que na natureza,
se encontravam misturados a partir de pares de contrários, como úmido X
seco; quente X frio. Dessa forma, seco + frio = terra; frio + úmido = água; úmido
+ quente = ar; e quente + seco = fogo. Esses quatro elementos eram a figura
mais básica na explicação a respeito dos fenômenos “biológicos”. Cada um
deles era “homogêneo” e “uniforme”, no sentido de que certa quantia de água,
dividia-se, por exemplo, em partes que também eram de água.
Segundo nível: os elementos materiais básicos se combinavam sob variadas
formas e proporções, constituindo um composto mais complexo, porém ainda
“homogêneo” e “uniforme”, tais como bronze, prata, ouro, ferro, madeira,
carvão, vinho, mel. Este nível representava o limite superior do que, de acordo
com o ponto de vista de Aristóteles, algo podia se tornar ou ser, propriamente,
devido às ações da matéria e da força. Para além desses pontos, era
necessária, também, a ação da finalidade.
Terceiro nível: esses compostos, também tidos como “uniformes” ou
“homogêneos”, ocorriam como partes que formavam as coisas vivas, como, por
exemplo, o sangue; o soro; a gordura; a medula; o sêmen; a bile; o leite; os
músculos; os ossos. No entanto, diferentemente dos compostos do nível
anterior, esses do terceiro nível apenas conseguiriam existir se suas
respectivas funções também fossem consideradas.
Quarto nível: existiam determinados tipos de “parte” que, por um lado eram
constituídas de única natureza “uniforme”, mas, ao mesmo tempo, possuíam
uma estrutura um pouco mais avançada. Os vasos sanguíneos e o coração
apresentavam esse caráter intermediário.
Quinto nível: tratava-se dos órgãos de todos os tipos, internos ou externos,
tais como cabeça; orelhas, dedos. Como as estruturas do terceiro nível, essas
partes “não-uniformes” ou “heterogêneas” só eram o que eram se suas funções
estivessem operando ou se o animal estivesse vivo.
45
Sexto nível: correspondia aos animais onde, finalmente, as partes uniformes
(terceiro nível) e não uniformes (quinto nível) eram encontradas unidas,
organizadas e integradas, dentro de um organismo vivo completo.
A noção de Aristóteles acerca da matéria em seus diferentes níveis foi
assim expressa:
(...) Tudo que está em processo de formação passa de uma coisa
à outra, como por exemplo, de uma causa à outra; em outras palavras,
[o processo de formação] procede a partir de uma causa eficiente (...)
rumo à Forma, ou ao Fim. (...) Assim, a matéria e o processo de
formação devem vir antes [na ordem do tempo], porém, logicamente, a
essência real e a Forma das coisas vêm primeiro. Por isso vemos que a
matéria, como os Elementos, por exemplo, devam existir para o bem das
substâncias uniformes, porque estas vêm depois do Elementos no
processo de formação; assim como as partes não uniformes vêm depois
das partes uniformes. As partes não uniformes, de fato, alcançaram a
meta ou o Fim de todo o processo
92
.
Assim, no domínio da natureza, Ross explica que os elementos,
produtos determinados da matéria primeira e os contrários primordiais quente-
frio e seco-úmido, eram eles próprios, matéria relativa aos seus compostos
simples, os tecidos. Estes, por sua vez, constituíam a matéria relativa aos
órgãos e estes, ao corpo vivo. A matéria primeira não existia isolada. Já a
matéria segunda podia ser separada de fato, porém não era concebida como
separada da sua forma
93
.
92
Aristóteles, De partibus animalium, livro II, cap. 1, 646 a 25 – 646 b 10. In: Parts of animals,
vol. 12, trad. Arthur Leslie Peck (London: William Heinemann, 2006).
93
Ross, Aristóteles, p. 78. Com relação à diferenciação entre “partes uniformes” e “partes não-
uniformes, Peck (Generation of animals, p. xlviii) comenta que ela não corresponde à distinção
que atualmente se faz entre tecidos e órgãos, respectivamente, apesar do filósofo natural ter se
referido aos órgãos como “partes instrumentais”, conforme De partibus animalium 647 b 23.
46
2.2.4. Alma: princípio da vida animal
De acordo com Aristóteles, o conhecimento a respeito da alma fazia
parte do estudo da Natureza. Ele explicou:
O conhecimento da alma, reconhecidamente, contribui
grandemente para a promoção da verdade em geral e, acima de tudo,
para o nosso entendimento da Natureza, pois a alma é, em algum
sentido, o princípio da vida animal
94
.
Assim, o filósofo natural diferenciava o que tinha vida do que não tinha
pela presença ou ausência da alma: “(...) chamamos a atenção para o fato de
que o que tem alma difere daquilo que não a tem, naquilo que o primeiro exibe
vida”
95
.
Para Aristóteles, a alma se encontrava diretamente ligada à vida e
encerrava um conceito central na abordagem acerca dos seres vivos. Nesse
sentido, Roberto de A. Martins e Lilian A-C. P.Martins explicam que, na busca
da natureza da vida, o filósofo natural considerava alguns tipos de alma
conforme as funções vitais que eram características de todos os seres vivos,
não somente do ser humano, mas também de todos os tipos de animais e
plantas
96
.
As funções, também chamadas de partes ou faculdades que Aristóteles
reconhecia em relação à alma, eram as seguintes
97
:
94
Aristóteles, De anima, livro I, cap. I, 402 a 4 – 402 a 7. In: The works of Aristotle translated
into English, vol. 3, De anima, trad. J. A. Smith (Oxford: Clarendon Press, 1912).
Disponível em http://www.archive.org/details/worksofaristotle03ariuoft.pdf
; acesso em 20 de
agosto de 2008.
95
Ibid., livro II, cap. 2, 413 a 21 - 413 a 22, trad. J. A. Smith.
96
Martins & Martins, “Uma leitura biológica do ‘De Anima’ de Aristóteles”, pp. 406-407.
97
Peck. Generation of animals, pp. lvii-lviii.
47
(1) Alma nutritiva ou gerativa; presente em todas as plantas;
(2) Alma sensível
(3) Alma desiderativa
(4) Alma locomotora, presente em alguns animais;
(5) Alma racional, presente no ser humano, apenas.
Sobre a alma nutritiva, Ross explica que ela correspondia a uma alma
mínima, pois a nutrição estava presente em todos os seres vivos ou seres
“animados” – tanto nas plantas como nos animais. A nutrição dirigia o
crescimento e o envelhecimento dos seres vivos, e estava também associada à
reprodução, já que o propósito último da nutrição residia na preservação, não
da vida individual, que de qualquer modo estava condenada a uma rápida
extinção, mas da espécie, única via pela qual os seres vivos podiam
“compartilhar do eterno e do divino”. Nesse sentido Martins & Martins
comentam que, na visão de Aristóteles, o desenvolvimento de um animal ou de
uma planta seguia um plano determinado por sua própria natureza (physis) e
que a causa interna que orientava o crescimento e o desenvolvimento de um
ser vivo correspondia à capacidade nutritiva de sua alma
98
.
Para o filósofo natural:
Primeiramente devemos tratar a respeito da nutrição e da
reprodução, já que a alma nutritiva é encontrada juntamente com todas
as outras [faculdades da alma], e ela é a mais primitiva e a mais
amplamente distribuída delas, sendo de fato, aquela em virtude da qual
todos são considerados como tendo vida. As ações pelas quais [a alma
nutritiva] se manifesta é a reprodução e o uso do alimento, digo isso
porque para qualquer ser vivo que tenha alcançado seu
desenvolvimento normal e não tenha sido mutilado, e aqueles cuja
reprodução não ocorre espontaneamente, o ato mais natural é a
produção de outro, semelhante a si próprio (...)
99
.
98
Ross, Aristóteles, p/p.138/142; Martins & Martins,“Uma leitura biológica do ‘De Anima’ de
Aristóteles” p. 414.
99
Aristóteles, De anima, livro II, cap. 3, 415 a 20 – 415 a 25, trad. J. A. Smith.
presentes em todos os animais;
48
Já no que diz respeito à alma sensível, Ross expõe que ela não se
resumia apenas à função de perceber, mas era considerada, pelo filósofo,
como conseqüência natural da percepção, como por exemplo, a sensação do
prazer ou da dor e, portanto, do desejo, o que se encontrava em todos os
animais. De acordo com Ross, a faculdade do movimento derivava da alma
sensorial e ela podia ser encontrada na maior parte dos animais, mas não em
todos. Sobre esse ponto em questão, Martins & Martins explicam que o
movimento não poderia surgir sem a sensação, pois o movimento voluntário
dos animais pressupunha uma necessidade ou desejo. Portanto, para
Aristóteles, ter sensações era um pré-requisito para ter movimento
(deslocamento), mas a sensação podia existir sem a capacidade de se
deslocar, como ocorre com as esponjas, por exemplo
100
. Assim, os animais se
distinguiam das plantas por possuírem percepção sensorial,
independentemente de serem ou não capazes de se deslocarem. Com relação
a essa capacidade, Aristóteles afirmou:
(...) é a posse da sensação que nos leva a falar, pela primeira
vez, das coisas vivas como animais; pois mesmo aqueles seres que não
possuem nenhuma capacidade de movimento local, mas possuem a
capacidade da sensação, é que chamamos de animais e não
meramente de coisas vivas.
A principal forma do sentido é o tato, presente em todos os
animais (...)
101
.
Por fim, Aristóteles considerava uma faculdade específica do homem, a
da razão, que era tratada como sendo distinta da percepção, aponta Ross.
Acerca dessa potencialidade específica do ser humano, Martins & Martins
explicam que, como o ser humano era capaz de pensar, Aristóteles indicou a
possibilidade da existência de uma alma que podia se separar da matéria, uma
100
Ross, Aristóteles, p.138; Martins & Martins, Uma leitura biológica do ‘De Anima’ de
Aristóteles” p. 415.
101
Aristóteles, De anima, livro II, cap. 3, 413 a 1 – 413 a 7, trad. J. A. Smith.
49
vez que o intelecto era por ele descrito como uma parte divina dos homens,
que vinha “de fora”, quando uma criança era gerada, e que não se destruía na
morte
102
.
Nas palavras do filósofo natural, “alguns tipos de animais possuem, além
da capacidade da locomoção, (...) como o ser humano e possivelmente um
outro tipo como o ser humano ou superior a ele, a capacidade de pensar
(...)”
103
.
No tangente aos tipos de alma que foram apresentadas, Martins &
Martins ainda apontam que nessa hierarquia estabelecida por Aristóteles, cada
uma das potencialidades exigia a anterior. Havia, então, vários graus de
realização ou de “atualização” de um poder. Possuir uma alma significava,
apenas, que essas potencialidades existiam, mas que não eram
necessariamente exercidas. Além disso, como a alma correspondia à causa
formal do ser vivo, era impensável que um mesmo ser vivo pudesse ter mais de
uma alma. Assim, em cada organismo havia uma única alma, que era
conceitualmente dividida em diversas faculdades
104
.
De acordo com Aristóteles:
(...) a capacidade da percepção nunca é encontrada separada da
capacidade da auto-nutrição, embora nas plantas esta última
[capacidade] seja isolada da primeira. Novamente, nenhum sentido é
encontrado separado do toque, embora o toque seja encontrado por si
próprio; muitos animais não possuem visão, audição, nem olfato.
Novamente, dentre as coisas vivas que possuem sensação, algumas
têm a capacidade da locomoção, alguns não. Por último, alguns seres
vivos – (uma pequena minoria) possuem predição e pensamento, dentre
os seres mortais, aqueles que possuem predição, possuem todas as
outras capacidades já mencionadas (...)
105
.
102
Ross, Aristóteles, p. 138; Martins & Martins, “Uma leitura biológica do ‘De Anima’ de
Aristóteles”, pp. 415-416.
103
Aristóteles, De anima, livro II, cap. 2, 414 b 17 – 414 b 20, trad. J. A. Smith.
104
Martins & Martins, “Uma leitura biológica do ‘De Anima’ de Aristóteles”, pp.416-417.
105
Aristóteles, De anima, livro II, cap. 2, 415 a 1 – 415 a 10, trad. J. A. Smith.
50
Em outras palavras, Ross expressa que o filósofo natural tentava
mostrar a necessidade desta ordem nas faculdades da alma. Se a vida dos
seres vivos, na concepção de Aristóteles, pretendia ser mantida, ela devia fazê-
lo através dos processos de crescimento e de decadência, e a função nutritiva
devia estar em funcionamento como uma maneira de preservar a sua
existência. A sensação não era igualmente necessária, uma vez que as
plantas, por exemplo, não se moviam e mesmo assim encontravam a sua
comida no solo onde cresciam. Entretanto, o poder do movimento pressupunha
a sensação, uma vez que o movimento de nada servia a um animal se ele não
pudesse reconhecer a sua comida quando a encontrava. Além disso, o tato era
o mais indispensável de todos os sentidos. Não era necessário que um animal
reconhecesse, à distância, o que é bom e o que é mau para si, mas era
necessário que procedesse a esta distinção quando entrasse, de fato, em
contato com o objeto. Porém era em virtude das suas qualidades tangíveis que
a comida alimentava. Também o gosto, que era uma modificação do tato, era
indispensável, pois representava uma forma de reconhecimento das qualidades
mediante as quais a comida atraía o animal ou o repelia
106
.
Assim, nas obras de Aristóteles sobre os seres vivos, o conceito de alma
unificava e explicava os fenômenos da nutrição; do crescimento; da
sensibilidade; do movimento e da geração. Tal conceito era fundamental,
também, para compreender outros aspectos do pensamento de Aristóteles,
como a fisiologia e a escala de perfeição dos seres vivos
107
.
2.3. Matéria e forma: o corpo e a alma dos animais na visão de
Aristóteles
Do ponto de vista de Aristóteles, a matéria e a forma das coisas físicas
eram elementos discerníveis pelo pensamento, mas inseparáveis na realidade.
Para o filósofo natural, a matéria nunca existia no estado puro, e era sempre
106
Ross, Aristóteles, p. 138.
107
Martins & Martins, “Uma leitura biológica do ‘De Anima’ de Aristóteles”, p.419.
51
constituída de uma forma, ou um de caráter definido, como a que estava
implícita no fato de ser, quer éter, fogo, água ou terra
108
.
No que se refere aos seres vivos, o corpo correspondia à matéria ou ao
substrato do ser vivo; e a alma, representava o princípio da vida, sua causa
formal ou essência. Como na concepção aristotélica matéria e forma não
podiam existir separadamente, os seres vivos eram necessariamente
orgânicos, no sentido de serem dotados de órgãos ou instrumentos que
desempenhavam alguma função importante para a vida
109
.
Aristóteles definia a alma de seguinte forma: “[a alma] deve ser a
substância, no sentido da forma, de um corpo natural que tenha vida
potencialmente dentro dele. Mas tal substância é atualidade, e por isso, a alma
é a atualidade de um corpo”
110
.
Segundo essa definição, um ser vivo podia possuir vida, mas não
desempenhar as suas funções vitais, da mesma forma que ocorre com uma
pessoa que está adormecida: ela está viva (potencialidade), mas ela não está
exercendo toda sua vitalidade (atualidade)
111
.
A esse respeito, por um lado, Ross explica que Aristóteles era
influenciado pela expressão comum em grego para designar “ser vivo” e “corpo
animado”, onde “animado” designava um atributo distintivo de, no mínimo, se
auto-nutrir, quer seja ou não acompanhado das outras faculdades que
distinguiam os seres vivos superiores dos inferiores. Por outro, Peck aponta a
relevância da questão sobre “a alma consistir na ‘realização’ do corpo do
animal provido de órgãos”, sob o aspecto da causa final. Assim, para
Aristóteles, o corpo existia para o bem da alma, ou seja, a alma era a causa
final do corpo. Considerando esse ponto de vista, era porque o homem tinha
mãos que ele era o mais inteligente dos animais, exemplifica Peck, e não o
contrário. A alma era, então, “anterior” ao corpo, e este era de maneira tal,
108
Ross, Aristóteles, p. 78. Em relação à forma, Ross comenta que este termo abarca uma
série de significados para Aristóteles. Por vezes ele usava esse termo para designar o modelo
sensível, como um escultor que impõe nova forma a seu material. Porém, ele afirma que
Aristóteles, na maior parte das vezes, talvez pensasse na forma como algo que fosse mais um
objeto de pensamento do que dos sentidos, como a natureza íntima de uma dada coisa
expressa na sua definição: o plano da sua estrutura inteligível, um elemento fundamental na
noção aristotélica.
109
Martins & Martins, “Uma leitura biológica do ‘De Anima’ de Aristóteles”, p. 410.
110
Aristóteles, De anima, livro II, cap. 1, 412 a 19 - 412 a 23, trad. J. A. Smith.
111
Martins & Martins, “Uma leitura biológica do ‘De Anima’ de Aristóteles”, p. 417.
52
conforme o tipo de alma solicitada para que suas funções fossem
desempenhadas
112
.
Segundo alguns autores, dentre eles Anthony Preus e Cynthia Freeland,
Aristóteles partia dessa concepção, inclusive, na elaboração de sua teoria
acerca da geração dos animais, conforme os livros I e II do tratado De
generatione animalium
113
.
Na teoria aristotélica da geração dos animais, no que diz respeito
àqueles que apresentavam sangue, tanto o sêmen como o fluxo menstrual
contribuíam para a formação e o desenvolvimento do embrião. A diferença que
existia entre eles era apenas o grau de “cozimento” ou “preparação”. Nas
fêmeas, o fluxo menstrual não detinha tanto calor vital como o sêmen dos
machos. Então, de acordo com Aristóteles, era o sêmen que possuía o
princípio da alma sensível, enquanto que o fluxo possuía apenas a alma
nutritiva, potencialmente
114
.
Dessa forma, para o filósofo natural, a substância material do embrião
era de contribuição da fêmea, enquanto que o macho contribuía com o
princípio da vida, a alma
115
.
Nas palavras de Aristóteles:
A respeito da geração dos animais (...) os princípios masculino e
feminino podem ser estabelecidos como os principais princípios da
geração, o macho possuindo a causa eficiente da geração, e a fêmea, o
material dela. A prova mais conclusiva disso é obtida ao considerar
112
Ross, Aristóteles, p. 142; Peck, Generation of animals, pp. lvii-lviii.
113
Anthony Preus, “Science and philosophy in Aristotle´s Generation of Animals”, Journal of the
History of Biology 3 (1970): 1-52, na p. 3; Cynthia A. Freeland, “Aristotle´s on bodies, matter
and potenciality” in Philosophical issues in Aristotle´s biology, ed. Allan Gotthelf & James G.
Lennox (Cambridge: Cambridge University Press, 1987), pp. 392 - 407, na p. 395.
114
Peck, Generation of animals, pp. lxvii. Segundo Peck (Generation of animals, p. 100),
Aristóteles não tinha conhecimento acerca do óvulo das fêmeas, e sua noção de que o fluxo
menstrual consistia na substância a partir da qual o embrião era formado permaneceu
indiscutida até meados do século XVII, quando William Harvey descreveu dissecações de
úteros em diferentes estágios posteriores ao coito.
115
Singer, Greek biology and Greek medicine, p. 32.
53
como e por que motivo surge o sêmen; já que não há dúvidas que é a
partir dele que aquelas criaturas são formadas (...)
116
.
Ao propor que as fêmeas devessem receber o sêmen dos machos para
produzirem novos organismos, Aristóteles afirmava que era o próprio sêmen
que efetuava a mudança crítica no material fornecido pela mãe. Somente após
o sêmen ter concedido seus movimentos ao embrião era que o novo organismo
começava a utilizar, para sua própria subsistência, os nutrientes adquiridos da
mãe. A partir de então, todas as partes desse novo organismo se
desenvolviam, segundo uma ordem específica de sucessão. Na seqüência de
desenvolvimento do corpo dos animais, o coração consistia na primeira parte a
ser formada
117
.
A esse respeito, Aristóteles afirmou:
[ao lidar com] aquelas coisas que vêm a ser por um processo de
formação, verificamos que existem alguns primeiros princípios –
princípios que, no entanto, são de tipos diferentes (...). Dentre eles, a
fonte a partir da qual surge o movimento, deve ser reconhecida como
única, e é por isso que o coração é a primeira parte que todos os
animais sanguíneos têm (...); nos outros animais, é a contra-parte do
coração que é primeiramente formada
118
.
O filósofo natural descreveu a concepção acerca do desenvolvimento
dos animais por meio de uma analogia, expressa na passagem a seguir:
116
Aristóteles, De generatione animalium, livro I, cap. 1, 716 a 1 – 716 a 9, trad. A. L. Peck.
Segundo Peck, Aristóteles dava o nome de sêmen àquilo que continha os princípios derivados
de ambos os pais que copularam. Ele também aponta que “causa eficiente”, expressa na
passagem acima, também pode significar “causa formal” ou “alma sensível” (verificar De
generatione animalium, p. 108).
117
Christopher Ernest Cosans, “Aristotle´s anatomical philosophy of nature”, Biology and
Philosophy 13 (1998): 311-339, nas pp. 333-334.
118
Aristóteles, De generatione animaluim, livro II, cap. 5, 742 b 33 – 742 b 40, trad. A. L. Peck.
54
A fêmea fornece a matéria, o macho, o princípio ou movimento.
Assim como produtos de arte são feitos por meio dos instrumentos do
artista, ou mais corretamente, por meio de seus movimentos, e essa é a
atividade da arte e a arte é a forma a partir da qual outra coisa é feita,
também é a fêmea com a faculdade nutritiva da alma. (...) no caso dos
animais maduros e das plantas, essa alma promove o crescimento (...)
usando o calor e o frio como instrumentos (no caso é o movimento da
alma), e cada coisa vem a ser de acordo com uma certa fórmula (...)
119
.
2.4. ALGUMAS CONSIDERAÇÕES
A teoria aristotélica da geração dos animais baseava-se na noção de
que um novo ser vivo era produzido a partir da matéria, fornecida pela fêmea, e
da forma, de contribuição paterna. Para o filósofo natural, a geração dos
animais estava de acordo com as suas explicações acerca dos fenômenos
naturais, tendo como base as causas material, eficiente, formal e final. Esta
última representava a existência contínua da espécie.
Na geração dos animais, a espécie consistia na forma (eidos) presente
potencialmente na matéria fornecida pela mãe. Quando o sêmen e o fluxo
menstrual (ou os ovos) se uniam, iniciava-se uma atividade que permanecia
por toda a vida do novo animal que se formava. Tal atividade era impulsionada
pelas faculdades nutritivas e generativas da alma, ou seja, pela capacidade de
geração e de regeneração presentes no animal. Na visão de Aristóteles, este
novo ser dotado de alma, buscava a continuidade da única maneira possível:
através da reprodução
120
.
119
Aristóteles, De generatione animalium,livro II, cap. 4, 740 b 35 – 741 a 3, trad. A. Platt.
120
Anthony Preus, “Galen´s criticism of Aristotle´s conception theory”, Journal of the History of
Biology , 10 (1977): pp. 65-85, nas pp. 78-79.
55
CAPÍTULO 3
A ESCALA DE PERFEIÇÃO DOS ANIMAIS DE
ARISTÓTELES
Este capítulo tratará das descrições, discussões teóricas bem como dos
critérios empregados por Aristóteles na obra De generatione animalium, onde
ele organizou sua escala de perfeição dos animais. Embora ele não tenha
apresentado esta escala de modo esquemático, é possível reconstruí-la a partir
das idéias implícitas nesta obra.
3.1. O CALOR INATO DOS ANIMAIS E SUAS
CONSEQÜÊNCIAS PARA A ESCALA DE PERFEIÇÃO
A teoria dos graus de perfeição dos animais foi desenvolvida por
Aristóteles no tratado De generatione animalium. Segundo esta teoria, os
animais eram escalados de acordo com as maneiras pelas quais se dava sua
geração: quanto mais perfeita a prole, ao ser inicialmente produzida pelos
pais, maior era o grau de perfeição da espécie
121
.
Tal teoria é apresentada da seguinte forma:
Devemos observar quão bem a Natureza faz aceitar a geração
nas várias de suas formas (...) (1) os mais perfeitos e quentes dos
animais produzem seus filhotes num estado perfeito (...), e os filhotes
que eles geram [dentro de si] são criaturas vivas desde o início. (2) A
121
Roberto de Andrade Martins, “A teoria aristotélica da respiração,” Caderno de História e
Filosofia da Ciência, 2 (1990): pp. 165-212, na p. 184.
56
segunda classe não gera animais perfeitos [dentro de si] desde o início:
embora sejam vivíparos, eles põem ovos primeiramente; no entanto,
externamente eles são vivíparos. (3) Outros produzem não um animal
perfeito, mas um ovo que é perfeito. (4) Aqueles cuja constituição é
ainda mais fria do que essa produzem um ovo, mas não é um ovo
perfeito: ele atinge sua perfeição fora da mãe. Exemplos são os peixes
escamosos, os crustáceos e os cefalópodes. (5) A quinta classe de
criaturas, que é a mais fria de todas, nem mesmo põe um ovo
diretamente por si própria, e a formação de seus ovos ocorre fora da
mãe (...)
122
.
No trecho acima, Aristóteles fez alusão a uma das ações do “calor
inato”, salvaguarda do processo vital, como comenta William David Ross
123
.
Para o filósofo natural, todas as criaturas vivas apresentavam um calor
inato, ao qual ele freqüentemente se referiu em seus tratados sobre os seres
vivos. Como seus predecessores, Aristóteles considerava que o calor era o
principal poder ativo, cuja ação característica, a pepsis ou o cozimento,
transformava o alimento em sangue, por exemplo. Seu oposto, o frio, tido como
a ausência do calor, também correspondia a um tipo de poder. Para o filósofo
grego, o calor não consistia, simplesmente, em temperatura, mas sim em algo
capaz de causar mudanças relevantes para as funções vitais dos seres
vivos
124
.
A relação de dependência entre a vida e o calor inato aparece
claramente na seguinte passagem:
Uma vez que tudo o que cresce deve obter alimento e o alimento
é, em todos os casos, constituído por substâncias úmidas e secas, e, já
122
Aristóteles, De generatione animalium, livro II, cap. 1, 733 b 1 - 733 b 17. In: Generation of
animals, vol. 13, trad. Arthur Leslie Peck (London: William Heinemann, 2000).
123
William David Ross, Aristóteles, trad. Luís Filipe Bragança S. S. Teixeira. (Lisboa:
Publicações Dom Quixote, 1987), p.112.
124
Charles C. Gillispie, ed., Dictionary of scientific biography, vol. 1, Aristotle: natural history
and zoology, por David Mowbray Balme (New York: Charles Scribner´s Sons, 1981), pp. 258 -
266, na p. 261; Michael Boylan, “The digestive and ‘circulatory’ systems in Aristotle´s Biology,”
Journal of the History of Biology, 15 (1982): 89-118, na p. 95.
57
que é pela força do calor que ele é cozido e se altera, segue que todas
as criaturas vivas, animais e plantas (...) possuem uma fonte de calor
125
.
A transformação de alimento em sangue, e deste em seus resíduos
(úteis ou não) foi descrita por Arthur Leslie Peck e analisada por Michael
Boylan, o qual propôs, inclusive, uma esquematização desse processo, que
reproduzimos na página a seguir
126
.
125
Aristóteles, De partibus animalium, livro II, cap. 2, 650 a 1 - 650 a 10. In:The works of
Aristotle translated into English, vol. 5, De partibus animalium, trad. William Ogle (Oxford:
Clarendon Press, 1912).
Disponível em http://www.archive.org/details/worksofaristotle05ariuoft.pdf
; acesso em 20 de
agosto de 2008.
126
Arthur Leslie Peck, Generation of animals, vol. 13, ed. Jeffrey Henderson (London: William
Heinemann, 2000), pp. lxiii-lxvii; Boylan, “The digestive and ‘circulatory’ systems in Aristotle´s
Biology,” p.113.
58
Fig. 3.1: a trasnformação do alimento em sangue (fonte: Boyland, “The digestive and ‘circulatory’ systems in Aristotle´s Biology”, p. 114).
59
De acordo com Peck e Boyland, para Aristóteles, o alimento era “cozido”
ou “preparado” no estômago pela ação do calor inato. A partir daí, ele passava
para o coração, onde era submetido à ão mais importante do “cozimento”:
sua transformação em sangue ou “nutriente fundamental”
127
.
Em relação ao sangue e à sua “circulação”, o único tipo de transporte de
matéria pelo corpo que Aristóteles conhecia era o fluxo sanguíneo, sendo
natural, portanto, que ele imaginasse que os alimentos passassem para o
sangue e fossem transformados pelo seu calor, no coração, e distribuídos por
todo o corpo. Assim, embora o calor inato atuasse nas diversas partes do
organismo, sua sede principal era o coração
128
.
Para Aristóteles, a “prova” desse calor era a presença do pulmão,
suprido de sangue”
129
, o que foi expressa da seguinte forma:
(...), animais que possuem um pulmão são mais quentes que
aqueles não têm nenhum, e sobre os primeiros, os mais quentes são
aqueles cujo pulmão não é esponjoso nem compacto nem pobremente
suprido de sangue, [mas cujo pulmão] é macio e melhor suprido de
sangue
130
.
Dessa forma, no tocante ao calor inato dos animais, pode-se afirmar que
primeira diferença significativa, considerada por Aristóteles, era aquela que se
estabelecia entre os animais com sangue (isto é, sangue vermelho) e os
animais que possuíam um líquido análogo, porém mais frio. O sangue, sendo
ao mesmo tempo quente e úmido, era uma característica particularmente
importante
131
.
127
Peck, Generation of animals, pp. lxiii-lxvii; Boylan, “Digestive and ‘circulatory’ systems in
Aristotle´s Biology,” p.113.
128
R. de A. Martins,A teoria aristotélica da respiração,” pp. 171-172. A esse respeito, Boylan
(“Digestive and ‘circulatory’ systems in Aristotle´s Biology”, p.114) comenta que para
Aristóteles, o coração não trabalhava como uma bomba propulsora de sangue, mas sim como
um fabricante, sujeito às ações da palpitação, da pulsação e da respiração.
129
Aristóteles, De generatione animalium, livro II, cap. 1, 732 b 33 - 732 b 34, trad. A. L. Peck.
130
Ibid., livro II, cap. 1, 732 b 34 – 733 a 2.
131
Ernst Mayr, O desenvolvimento do pensamento biológico, trad. Ivo Martinazzo (Brasília:
Editora da Universidade de Brasília, 1998) p.179.
60
Tomando-se como base tal diferença, os animais mais quentes eram os
que possuíam sangue vermelho, e por isso, eles eram considerados como mais
perfeitos. Já os animais menos quentes, que não possuíam sangue vermelho,
eram considerados como animais menos perfeitos. Este foi um dos critérios
empregados para a classificação dos animais no De generatione animalium. Do
grupo dos animais que possuíam sangue, faziam parte os seres humanos; os
quadrúpedes vivíparos; os quadrúpedes ovíparos e os animais sem patas
(répteis e anfíbios, que não eram diferenciados por Aristóteles); além das aves
e dos peixes. Do grupo de animais destituídos de sangue, faziam parte os
crustáceos; os cefalópodes; os insetos e os testáceos
132
.
Entretanto, embora a vida estivesse estritamente associada ao calor
inato, para Aristóteles, esse calor deveria ser controlado dentro de certos
limites. Então, era necessário, no sentido condicional, que os seres vivos
também possuíssem algum tipo de resfriamento. Ao examinar os diferentes
tipos de animais, o filósofo natural identificou processos de refrigeração por
meio do ar, no caso dos animais terrestres que possuíam sangue; por meio da
água, no caso dos peixes; e, também um processo de refrigeração externa,
como no caso dos animais pequenos, tais como os insetos. Aristóteles concluiu
que a respiração correspondia ao processo de resfriamento do corpo. Nos
animais terrestres, o pulmão era o órgão da respiração, e, portanto da
refrigeração. Já nos peixes, o órgão da respiração (e da refrigeração) era o
conjunto de guelras
133
.
132
Em relação à divisão estabelecida por Aristóteles, entre animais que possuem sangue e os
que não, há uma divergência entre Arthur Leslie Peck e Arthur Platt. Para Platt, a expressão
“animais sanguíneos” corresponde, de maneira bem próxima, aos animais que atualmente são
classificados como vertebrados. Já para Peck tal divisão não coincide com a divisão moderna
entre vertebrados e invertebrados. A título de curiosidade, ele fornece os nomes gregos,
usados na distinção entre as quatro classes de animais sem sangue, e suas traduções literais:
os animais de “concha fraca” correspondiam aos Crustacea; os animais moles aos
Cefalópodes; os insetos preservam o mesmo nome; e os animais de concha com pele
correspondiam aos Testacea. Com relação a esta última classe de animais, Peck aponta que
Aristóteles os considerava como intermediários entre os animais e as plantas.
133
R. de A. Martins, “A teoria aristotélica da respiração,” p. 170. Com relação ao processo de
resfriamento do corpo para moderar o calor inato, Aristóteles também indicou a ação do
cérebro, um órgão frio (ver De partibus animalium, livro II, cap. 7).
61
3.2. AS FORMAS DE GERAÇÃO DOS DIFERENTES TIPOS DE
ANIMAIS
Ao descrever a geração dos animais que produziam seus filhotes num
estado perfeito, Aristóteles assim se expressou:
Alguns animais produzem filhotes perfeitos, gerando
externamente uma criatura similar a eles próprios (...) como, por
exemplo, os vivíparos. [Desses animais] alguns são internamente
vivíparos desde o início (como homem, cavalo, boi e criaturas marinhas,
como o golfinho e outros animais desse tipo)
134
.
De acordo com o filósofo natural, os animais vivíparos desde o início
possuíam um calor vital suficiente para produzirem uma descendência
qualitativamente semelhante à de seus pais, e sem passarem por fases
intermediárias. Esses animais, por apresentarem um pulmão macio e irrigado
de sangue, corresponderiam aos animais mais quentes e fluidos
135
. Ele
explicou:
[os] animais vivíparos são os mais perfeitos em sua natureza,
dos quais faz parte um “princípio” mais puro; em outras palavras,
nenhum animal é internamente vivíparo a não ser que respire. Os
animais mais perfeitos são aqueles que são mais quentes e mais fluidos,
por natureza (...)
136
.
134
Aristóteles, De generatione animalium, livro II, cap. 1, 732 a 25 – 732 b 2, trad. A. L. Peck.
135
Lilian Al-Chueyr Pereira Martins, A teoria da progressão dos animais de Lamarck [Coleção
Scientiarum Historia et Theoria, vol. 1] (Rio de Janeiro: Booklink; São Paulo:
FAPESP;GHTC;Unicamp, 2007), p. 122; R. de A. Martins, “A teoria aristotélica da respiração,”
p. 184.
136
Aristóteles, De generatione animaluim, livro II, cap. 1, 732 b 27 – 732 b 33, trad, A. L. Peck.
62
Ao dar seqüência na descrição acerca da geração dos animais,
Aristóteles se referia, também, àqueles que produziam algo não articulado e
que não havia ainda alcançado uma forma própria: “[desses animais] aqueles
que possuem sangue, põem ovos, aqueles que não possuem sangue
produzem ou um ovo ou uma larva”
137
.
Em relação aos animais sanguíneos que produziam ovos, Aristóteles
assim os descreveu:
Dos animais ovíparos, alguns põem ovos num estado perfeito
(como aves, ovíparos quadrúpedes e animais sem patas, tais como
lagartos e tartarugas, e a maioria das serpentes) – ovos que uma vez
postos não crescem mais; outros põem ovos num estado imperfeito,
como peixes (...) cujos ovos crescem em tamanho depois de seres
postos
138
.
Assim, Aristóteles observou dois tipos de ovos. Aqueles que não
cresciam após a postura eram considerados como perfeitos. No entanto,
particularmente em relação aos animais aquáticos, ele percebeu que os ovos
de muitos organismos inchavam durante o desenvolvimento, e, por isso, eram
considerados como imperfeitos. Embora este tipo de ovo apresentasse material
suficiente para desenvolver cada um deles um embrião, era necessário,
também, que eles fossem supridos com água e outros materiais absorvidos do
ambiente
139
.
A geração por meio de ovos se dava, então, tanto pelos animais que
Aristóteles considerava como sendo quentes, porém de natureza sólida (ou
terrosa), tais como os pássaros e os animais terrestres com escamas e
137
Aristóteles, De generatione animaluim, livro II, cap. 1, 732 a 26 - 732 a 29, trad. A. L. Peck.
138
Ibid., 732 b 1 - 732 b 9.
139
Peck, Generation of animals, pp. 28-29.
63
carapaças (cobras, lagartos e tartarugas); como pelos animais mais frios e
sólidos, o que incluía os peixes escamosos (ou ósseos)
140
.
Entretanto, em relação à postura de ovos dos animais sangüíneos,
Aristóteles chamou a atenção para um caso particular, referente aos peixes
cartilaginosos (que ele chamava de Selachia), e às víboras. Segundo o filósofo
natural, esses animais também não produziam filhotes perfeitos, mas, no
entanto, eles eram vivíparos, ou seja, os filhotes gerados eram semelhantes ao
animal na forma adulta. Assim, esses animais só conseguiam dar à luz a seus
filhotes após depositarem seus ovos dentro do próprio corpo. Ele esclareceu:
Os peixes cartilaginosos e as víboras produzem seus filhotes
vivos externamente, mas primeiro produzem ovos internamente. O ovo é
perfeito (...). Porque eles são de natureza fria e não quente, (...) que eles
não põem ovos externamente.
De qualquer forma, [os peixes cartilaginosos e as víboras]
certamente produzem seus ovos num envoltório macio, a razão para
isso é que eles têm pouco calor e assim, a natureza deles não completa
o processo de envolvê-los numa casca. Porque [esses animais] são
frios, eles produzem um ovo de casca macia, e porque os ovos são
macios eles não produzem os ovos externamente, do contrário [os ovos]
seriam destruídos
141
.
Assim, os peixes cartilaginosos (ou sem escamas) e as víboras eram,
para o filósofo grego, animais menos quentes, porém mais fluidos. Já os
pássaros e os animais terrestres com escamas ou carapaças (excluindo as
víboras) eram mais quentes, quase tanto quanto os vivíparos, porém de
natureza mais sólida
142
.
140
R. de A. Martins, “A teoria aristotélica da respiração,” pp. 184-185; Arthur Leslie Peck,
History of animals, vol. 9, ed. Jeffrey Henderson (London: William Heinemann, 2001), pp. xiv –
xvi.
141
Aristóteles, De generatione animaluim, livro II, cap. 1, 718 b 30 - 719 a 1, trad. A. L. Peck.
142
R. de A. Martins, “A teoria aristotélica da respiração,” pp. 184-185; Peck, History of animals,
pp.xiv-xvi. Em relação a esses apontamentos, Martins comenta que de maneira geral, os
pássaros têm uma temperatura mais elevada que a dos mamíferos, o que mostra que as
64
Aristóteles explicou o caráter intermediário dos Selachia baseando-se no
calor inato de seu corpo e nas propriedades de úmido e de frio de suas
naturezas:
Se os animais são mais quentes como é indicado pela presença
do pulmão, porém são mais secos em sua natureza, ou são mais frios e
possuem mais umidade, então eles depositam um ovo perfeito ou são
vivíparos após depositarem um ovo dentro de si próprios. Os pássaros e
os répteis escamosos, devido ao seu calor, produzem um ovo perfeito,
mas por causa de sua secura [eles produzem] apenas um ovo; os peixes
cartilaginosos possuem menos calor, porém eles têm mais umidade, por
isso eles são intermediários (...), primeiramente [são ovíparos] devido ao
seu frio, e, por último [são vivíparos] devido à sua umidade, já que a
umidade é vivificante (...)
143
.
Com relação aos animais destituídos de sangue, Aristóteles observou
que a geração dos descendentes se dava por meio de ovos imperfeitos ou por
meio de larvas:
[dentre os animais que] produzem algo que não é articulado e que
ainda não assumiu sua forma adequada, (...) aqueles que não possuem
sangue produzem ou ovos ou larvas. A diferença entre um ovo e uma
larva é a seguinte: o ovo é parte da qual a nova criatura é formada,
quando o resto é nutriente; já no caso da larva, o todo dela é usado para
produzir a geração
144
.
comparações entre “animais mais quentes” e “mais frios” empregadas por Aristóteles não
correspondiam ao critério atual de maior ou menor temperatura corporal.
143
Aristóteles, De generatione animaluim, livro II, cap. 1, 733 a 1 - 733 a 13, trad. A. L. Peck.
144
Ibid., livro II, cap. 1, 732 a 26 - 732 a 34. De acordo com Peck, a distinção entre ovos e
larvas, feita pelo filósofo natural, marca a diferença entre a utilização da gema como um
material bruto do desenvolvimento embrionário e a utilização do tecido que, por desintegração,
produz a metamorfose. O embrião se alimenta da gema, mas a pupa se alimenta de si própria.
65
Dentre os animais sem sangue, “alguns põem (...) seus ovos num
estado imperfeito, como os peixes, os crustáceos e os cefalópodes como são
chamados, cujos ovos crescem em tamanho depois de postos”
145
.
Segundo Aristóteles, os crustáceos incluíam lagostas, lagostins,
camarões e caranguejos, enquanto que os cefalópodes incluíam polvos e lulas,
considerados como animais frios e sólidos
146
.
Dos animais sem sangue, os insetos produziriam larvas ou scolex
147
.
Aristóteles explicou:
(...) alguns insetos são formados por meio da cópula, outros
espontaneamente (...).
Os insetos que geram, produzem larvas; e aqueles que são
formados espontaneamente, não por meio da cópula, começam a ser
formados a partir de um organismo desse tipo. Isso é verdadeiro, temos
de considerar as lagartas e os produtos das aranhas como um tipo de
larva. É verdade que algumas dessas [larvas], e muitas pertencentes
aos outros insetos, poderiam parecer ovos devido ao seu formato
circular; mas nossa decisão não deve ser determinada pelo formato nem
mesmo por sua suavidade ou dureza, (...) mas pelo fato de que todo o
objeto é sujeito à mudança – o animal é formado a partir do todo [da
larva] e não de alguma parte dela (...)
148
.
De acordo com Thomas East Lones, Aristóteles conhecia os ovos de
alguns insetos, especialmente de borboletas, traças, gafanhotos e aranhas. No
entanto, o filósofo natural se referia a eles como “algo que se parece com ovo”
ou scolex, que ele acreditava ser o primeiro produto da geração dos animais
145
Aristóteles, De generatione animaluim, livro II, cap. 1, 732 b 5 - 732 b 8, trad. A. L. Peck.
146
R. de A. Martins, “A teoria aristotélica da respiração,” pp. 184-185; Peck, History of animals,
pp. xiv-xvii.
147
Aristóteles, De generatione animaluim, livro II, cap. 1, 732 b 10 – 732 b 11, trad. A. L. Peck.
Nota-se que Aristóteles incluía as aranhas no grupo dos insetos. Atualmente, elas fazem parte
do grupo dos aracnídeos.
148
Ibid., livro III, cap. 9, 758 b 5 – 758 b 10. Por “genesis”, explica Peck, entende-se os estágios
de desenvolvimento de alguns insetos: larva , pupa e imago.
66
desse tipo. Os scolex se alimentavam, cresciam rapidamente e passavam por
mudanças até atingirem a forma de pupa ou crisálida
149
.
Aristóteles descreveu os diferentes produtos de geração desses animais
da seguinte forma:
Todos esses [produtos de geração] que são semelhantes às
larvas, quando tiverem se desenvolvido e alcançado seu tamanho total,
se tornam como se fosse um ovo: a casca ao redor deles fica dura, e
eles permanecem sem movimentação durante esse período. Isso pode
ser visto claramente com relação às larvas das abelhas, vespas e
lagartas. A razão para isso é que sua natureza, devido a sua própria
imperfeição, deposita os ovos como se estivesse antes do tempo, o que
sugere que a larva, enquanto ela ainda estiver em crescimento, é um
ovo macio. Algo comparável ocorre no caso de todas as outras criaturas
que são formadas independentemente da cópula, em tecido ou em outro
material como esse, e na água. Todos esses primeiros produtos
possuem a natureza da larva, então eles permanecem sem
movimentação, uma vez que a cobertura se solidificou em volta deles;
depois disso, a cobertura se rompe e [os animais] emergem, como se
fosse a partir de um ovo, um animal que, em sua terceira gênese, se
torna perfeito finalmente (...).
Outro acontecimento que pode bem causar surpresa a muitas
pessoas é realmente regular e normal. As lagartas se alimentam no
início, mas depois elas param de fazer isso, e as crisálidas (como alguns
as chamam) são imóveis. O mesmo ocorre com as larvas das vespas e
das abelhas, mas depois elas se tornam pupas, como são chamadas.
(...) Algumas larvas possuem, em si próprias, material a partir do qual
elas se alimentam enquanto crescem (...), como, por exemplo, as
149
Thomas East Lones, Aristotle researches in natural science (London: West, Newman & Co.,
1912), p. 199.
Disponível em http://www.archive.org/details/aristotlesresear00loneuoft.
; Internet; acesso em
18 de agosto de 2008.
67
abelhas e vespas; outros conseguem seu alimento do [meio] externo
como as lagartas (...)
150
.
A noção aristotélica de scolex partia da seguinte observação feita pelo
filósofo: antes do surgimento de um inseto adulto, o animal passava por um
estágio de pupa ou crisálida, no qual ele não crescia nem se movimentava,
sendo essa etapa, portanto, semelhante à fase do ovo. Dessa forma, aquilo
que antecedia o “ovo” era ainda mais primitivo
151
.
Os animais que geravam um tipo de larva eram os mais fracos daqueles
que se reproduziam por meio de cópula. No grupo desses animais estavam
inclusas borboletas, abelhas, vespas, cigarras, traças, aranhas, gafanhotos,
formigas
152
.
Além desses animais que eram capazes de se reproduzir por meio da
cópula, Aristóteles também mencionou a existência da geração espontânea em
alguns outros animais
153
.
Sobre esse tipo de geração, Aristóteles assim afirmou:
(...) dentre os animais [alguns] não se tornam seres como um
resultado da cópula de animais vivos, mas a partir do solo em
decomposição e a partir de resíduos. (...) aqueles que não surgem a
partir de animais vivo, mas a partir de matéria em decomposição, apesar
de gerarem, produzem algo que é diferente quanto ao tipo, e o produto
não é nem macho nem fêmea
154
.
Segundo Lones, para que aquilo que não tinha vida se tornasse vivo, do
ponto de vista de Aristóteles, deveria haver um princípio vital. Tal princípio não
150
Aristóteles, De generatione animalium, livro III, cap. 9, 758 b 15 - 759 a 1, trad. A. L. Peck.
151
L. A-C. P. Martins, “Aristóteles e a geração espontânea,” Cadernos de História e Filosofia da
Ciência 2 (1990): pp.213-237, nas pp. 216-217.
152
R. de A. Martins., “A teoria aristotélica da respiração,” p.185; Aristóteles, De generatione
animaluim, trad. A. L. Peck, livro III, cap. 9, 10 e 11.
153
L. A-C. P. Martins, “Aristóteles e a geração espontânea,” p. 217.
154
Aristóteles, De generatione animaluim, livro I, cap. 1, 715 a 20 - 715 b 10, trad. A. L. Peck.
68
era meramente transferido do material inanimado para o animado. De acordo
com o filósofo natural, o material inanimado passava por um processo de
“maturação” na presença de umidade e de alta temperatura. A umidade
continha algum sopro de vida ou princípio vital, de modo que eram formadas
algumas bolhas que espumavam. A partir desse material especialmente
preparado, a geração procedia rapidamente dentro delas. A natureza das
formas de vida assim formadas dependia em parte do material capturado para
dentro das bolhas, em parte da natureza do princípio vital ali encerrado
155
.
Essa noção traz à luz a concepção aristotélica de pneuma, que foi assim
descrita:
Animais e plantas são formados na terra e na água porque a água
está presente na terra, e na água o pneuma está presente, e em todo
pneuma o calor vital está presente, de forma que todas as coisas estão
repletas de Alma; e é por isso que eles rapidamente tomam forma uma
vez que ele tenha sido encerrado. Bem, [o pneuma] fica encerrado assim
que os líquidos que contém matéria corpórea fiquem aquecidos e
tenham se formado como uma bolha espumosa. O objeto que assim
toma forma pode ser mais valioso no tipo ou menos valioso; e as
diferenças nisto dependem do envoltório que encerra o princípio da
Alma; e as causas que determinam isso [dependem] das situações onde
o processo acontece e a substância física que é encerrada
156
.
Assim, segundo Aristóteles, para haver a geração era preciso existir o
pneuma, que já se encontrava presente nos seres vivos devido ao calor inato.
No caso dos animais que eram gerados espontaneamente, ele deveria provir
de outro ser vivo em decomposição, uma vez que na matéria putrefata, os
restos de animais e plantas também continham pneuma. Até mesmo o Sol
poderia promover a geração, pois a própria terra continha água e esta continha
calor ou pneuma. Além de ser encontrado em todos os seres vivos, o pneuma
155
Lones, Aristotle researches in natural science, p. 81.
156
Aristóteles, De generatione animaluim, livro III, cap. 11, 762 a 18 - 762 a 25, trad. A. L. Peck.
69
também era parte da substância quente que fazia o sêmen ser generativo. O
pneuma, de acordo com o filósofo natural, correspondia ao elemento
intermediário entre o corpo e a alma, e era análogo ao quinto e “mais nobre”
elemento, do qual os corpos celestiais eram feitos. Ele também continha calor
vital, um calor especial capaz de gerar, diferentemente daquele do fogo
157
.
De acordo com o filósofo natural:
(...) o sêmen contém dentro de si aquilo que causa sua fertilidade
– o que é conhecido como substância “quente”, que não é o fogo nem
qualquer substância similar, mas o pneuma, que é encerrado dentro do
sêmen ou da coisa que se parece com espuma, e a substância natural,
que está dentro do pneuma (...), é análoga ao elemento que pertence às
estrelas. É por isso que o fogo não gera qualquer animal, e não
encontramos qualquer animal tomando forma tanto nas substâncias
sólidas como nas fluidas enquanto elas estiverem sob influência do fogo;
já o calor do Sol efetua a geração, e também o faz o calor dos animais,
não apenas o calor dos animais opera através do sêmen, mas também
qualquer outro resíduo natural que possa conter dentro de si um
princípio de vida. Considerações desse tipo nos mostram que o calor
que está dentro dos animais não é o fogo e não tem sua origem ou seu
princípio a partir do fogo
158
.
Com relação aos insetos gerados espontaneamente, Aristóteles
afirmava que eles correspondiam às pulgas, moscas, cantáridas, aos
borrachudos e mosquitos, sendo os três primeiros gerados, reconhecidamente,
a partir de materiais em decomposição
159
.
157
L. A-C. P. Martins, “Aristóteles e a geração espontânea,” pp. 217-220. Segundo a autora,
quando ocorria a putrefação restos de animais e de vegetais, Aristóteles entendia que o calor
inato escapava de seus corpos e podiam gerar novos seres vivos. Em relação às bolhas de
espuma que eram formadas, a autora ressalta a importância de considerá-las como um passo
intermediário na geração de um ser vivo.
158
Aristóteles, De generatione animaluim, livro II, cap. 3, 736 b 30 - 737 a 6, trad. A. L. Peck.
159
Ibid., livro I, cap. 16.
70
No entanto Lilian A-C. P. Martins atenta para o fato de que o filósofo
natural, além de ter descrito os processos de geração sexuada e de geração
espontânea nos insetos, também considerava uma terceira alternativa: a
reprodução assexuada, que supostamente ocorria entre as abelhas e
vespas
160
.
A geração das abelhas foi detalhadamente tratada por Aristóteles em De
generatione animalium (livro III, cap. 10), e no que diz respeito a essa questão,
encarada pelo filósofo natural como um desafio, ele analisou e discutiu diversas
possibilidades, conforme a passagem a seguir:
No geral, uma vez que parece que a ninhada dos zangões é
produzida mesmo quando não há zangões presentes (...) enquanto que
“abelhas” jovens são produzidas somente se as rainhas estiverem
presentes (e é por isso que algumas pessoas dizem que a ninhada de
zangões é trazida de fora da colméia), é claro que [as abelhas] não são
formadas como resultado de cópula, (1) tanto de “abelha” com “abelha”
ou zangão com zangão, como (2) de “abelha” com zangões. E, de
qualquer maneira, não apenas é impossível que zangões sejam os
únicos a entrarem [na colméia] (...) como também não é possível supor
que algo similar aconteça em relação a todo o grupo das abelhas (...).
Além disso, se esse fosse o caso, “abelhas” por si próprias gerariam
“abelhas”, mas na realidade nós vemos que a ninhada de “abelhas” não
é formada até que, como dizem, “as rainhas estejam dentro” [da
colméia].
(...) Vemos, então, que a maneira pela qual as abelhas são
geradas parece ser peculiar (...). A geração de “abelhas” sem cópula pode
ser paralela em relação ao comportamento de outros animais, mas ao
gerarem um tipo diferente de criatura [isso é algo] particular e único (...). A
razão para isso é que as “abelhas” não são geradas da mesma forma que
as moscas e outras criaturas como essas; mas a partir de um tipo que,
160
L. A-C. Pereira Martins, “Aristóteles e a geração espontânea,” p.220.
71
embora diferente, é semelhante a elas (...), a partir de “líderes”. Por isso,
a sua forma de gerar é arranjada num tipo de série (...)
161
.
Entre os peixes que Aristóteles acreditava serem gerados
espontaneamente, encontravam-se as enguias. Para ele, as enguias não eram
geradas a partir da cópula, nem de ovas. O filósofo natural concluiu, então, que
elas eram geradas espontaneamente, e surgiam em algumas lagoas, depois do
período de seca, quando as águas eram drenadas e a lama dragada
162
.
Dentre os animais que eram gerados espontaneamente, Aristóteles
também indicava aqueles que ele chamava de testáceos. Eram representantes
desse grupo alguns invertebrados que apresentavam conchas, tais como
caracóis, lesmas, ostras, mariscos, mexilhões (atualmente chamados de
moluscos) e também as estrelas-do-mar, as holotúrias e os ouriços-do-mar
(atualmente chamados de equinodermas). Aristóteles considerava os testáceos
como formas intermediárias entre os animais propriamente ditos e as
plantas
163
.
A relação entre os testáceos e as plantas foi assim descrita pelo filósofo
natural:
As circunstâncias da geração desses animais são de certa forma,
similar, e de certa forma diferente em relação aos outros [animais]. E
isso é o que deveríamos esperar, já que, comparados com animais, [os
testáceos] se assemelham às plantas; comparadas a elas, [os testáceos]
161
Aristóteles, De generatione animaluim, livro III, cap. 10, 759 b 7 - 760 a 15, trad. A. L. Peck.
Em relação à série indicada por Aristóteles na geração das abelhas, Peck explica que os
“líderes” podiam gerar dois tipos: o seu próprio (rainha) e outro (“abelhas” – operárias). As
“abelhas”, por sua vez, podiam gerar apenas um tipo, por exemplo, um tipo diferente do seu,
como zangões. Já os zangões não geravam nenhum tipo. Ainda no tocante à reprodução das
abelhas, L. A-C. P. Martins (“Aristóteles e a geração espontânea,” p. 223) aponta que,
atualmente, sabe-se que as abelhas podem ser de três tipos: as operárias (forma neutra), a
rainha e os zangões, divisão essa, reconhecida por Aristóteles.Entretanto, para a reprodução
ele se equivocou em alguns pontos, por exemplo, que as operárias geravam zangões, apenas.
Atualmente sabe-se que todos os tipos provêm da rainha, sendo que alguns resultam de ovos
fecundados, como as operárias (cujos órgãos reprodutivos são apenas vestigiais). Estas são
estéreis. Porém, ele está correto ao afirmar que líderes geravam seu próprio tipo e também as
operárias.
162
L. A-C. Pereira Martins, “Aristóteles e a geração espontânea,” p.223.
163
Peck, Generation of animals, p. lxix.
72
se assemelham aos animais (...). Em virtude dos testáceos serem
análogos às plantas no que diz respeito à sua natureza, nenhuma parte,
ou apenas uma pequena parte desse grupo se torna um ser na terra
(exemplos são caracóis, e qualquer animal desse tipo), enquanto que
muitas espécies de todo tipo e formas vivem no mar e outros lugares
aquáticos. O grupo das plantas, por outro lado, faz uma exposição muito
pequena no mar e em lugares como esse, praticamente nenhuma, de
fato, e todos os membros desse grupo crescem na terra. A razão disso é
que, em relação à sua natureza, os dois grupos permanecem numa
posição correlata: (...) os testáceos tendem a estar tão associados à
água como as plantas são associadas à terra (...)
164
.
Aristóteles também indicou duas maneiras pelas quais os testáceos
podiam ser produzidos: a geração espontânea e o brotamento:
Com relação aos testáceos, alguns deles tomam forma
espontaneamente, outros por meio da emissão de alguma substância
especial a partir deles próprios, embora esses também sejam
freqüentemente formados a partir de uma composição espontânea (...).
O brotamento (...) é o método pelo qual os mexilhões são formados (...).
(...) [os testáceos] que não produzem nem brotos nem “favos de
mel” se reproduzem por geração espontânea; e todos aqueles que
nascem dessa maneira, tanto na terra como na água vêm a ser
formados, como pode ser visto, a partir da putrefação e da mistura da
água da chuva (...). Nada, no entanto, é formado por um processo de
putrefação, mas por um processo de “maturação” (...)
165
.
164
Aristóteles, De generatione animaluim, livro III, cap. 11, 761 a 15 - 761 a 35, trad. A. L. Peck.
165
Ibid., 761 b 24 - 762 a 17. Em relação aos “favos de mel”, Peck afirma que eles
correspondem aos ovos de alguns gastrópodes (caracóis).
73
Ao considerar os elementos e as propriedades características dos
testáceos, Aristóteles explicou o seguinte:
(...) a água e a matéria fluida são mais capazes de sustentar vida
que a terra e a matéria sólida (...). E é por isso que as coisas que
crescem dentro da água são mais variadas na forma do que aquelas que
crescem na terra. É assim porque uma substância fluida é, em sua
natureza, mais plástica que a terra, e não menos substancial; e isso é
uma característica que notáveis gradientes de criaturas do mar
apresentam (...), a água doce apesar de potável e nutritiva é menos
substancial e fria. Por isso, aqueles animais que não possuem sangue e
não são quentes por natureza, não são produzidos em lagos nem em
águas salobras, exceto os testáceos, cefalópodes e crustáceos, todos
esses [animais] sem sangue [são] frios por natureza (...). A razão para
isso é que eles buscam tanto o calor como alimento; e a água do mar é
fluida e muito mais substancial que água doce (...) e ela contém uma
quota de todas as partes - de fluido, de pneuma, e de terra – devido a
isso (...) que nós podemos dizer que as plantas pertencem à terra, as
criaturas aquáticas à água, e os animais terrestres ao ar (...)
166
.
3.3. ALGUMAS CONSIDERAÇÕES
A partir da análise do De generatione animalium, é possível perceber
que Aristóteles procurou organizar os animais em “grandes grupos” em sua
scala naturae. Em relação a esses grupos, ele detectou diferentes graus de
calor, tendo percebido que tais níveis estavam relacionados aos seus
diferentes modos de geração
167
.
Com base nesses critérios, ele organizou os grupos em uma escala
linear de perfeição que ia do grupo mais perfeito em direção ao menos perfeito.
166
Aristóteles, De generatione animaluim, livro III, cap. 11, 761 a 30 - 761 b15, trad. A. L. Peck.
167
Peck, De generatione animalium, p. xii.
74
Nas palavras de Aristóteles, “(...) a Natureza faz aceitar a geração em
suas várias formas: elas são arranjadas numa série regular. Dessa maneira: (1)
os mais perfeitos e quentes dos animais produzem seus filhotes num estado
perfeito (...)”
168
.
Ao agrupar os animais, o filósofo natural baseou-se não apenas no nível
calor vital, indicado pelo seu modo de reprodução, mas também pelo estado
dos filhotes ao nascerem, além das formas que eles empregavam para
respirarem. Classificando os animais dessa forma, ele partia de um gênero
natural definido por vários caracteres, e então os arranjava com outros, não
numa hierarquia de gênero e espécie (com referência às categorias
taxonômicas específicas, empregadas atualmente na Sistemática), mas numa
scala naturae, que ia do ser humano ao animal mais imperfeito, plantas e
compostos sem vida. Ao ordenar os seres desta forma, o filósofo enfatizava a
continuidade da natureza
169
.
A partir das informações contidas no De generatione animalium, é
possível reconstruir sua escala de perfeição da seguinte maneira
170
:
1º) ANIMAIS COM SANGUE
A. Vivíparos
1. ser humano
2. quadrúpedes (gado, em geral)
3. cetáceos (baleias e golfinhos)
B.1. Ovíparos, cujos filhotes são gerados a partir de ovos perfeitos (animais
terrestres)
4. pássaros
5. quadrúpedes (anfíbios e répteis – exceto as víboras)
168
Aristóteles, De generatione animalium, livro II, cap. 1, 733 b 1 e seqüência, trad. A. L. Peck.
169
Balme, Aristotle: natural history and zoology, p. 262.
170
Cabe ressaltar que, apesar de Aristóteles ter classificados os grupos de animais em uma
scala naturae, tal classificação não se apresenta de maneira tão clara e organizada, de modo
que o esquema proposto é uma reconstrução baseada nas indicações encontradas no tratado
De generatione animalium.
75
B.2. Ovovivíparos, cujos filhotes são gerados a partir de ovos perfeitos, mas
que se assemelham ao animal na fase adulta
6. peixes cartilaginosos (Selechia) e víboras
C. Ovíparos, cujos filhotes são gerados a partir de ovos imperfeitos (animais
aquáticos)
7. peixes escamosos (ou ósseos)
2º) ANIMAIS SEM SANGUE
A. Cujos filhotes são gerados a partir de ovos imperfeitos
8. cefalópodes
9. crustáceos
B. Cujos filhotes são gerados a partir de scolex
10. insetos (o que incluía os animais que hoje se considera como
sendo artrópodes, e alguns vermes)
C. Animais gerados a partir do material em decomposição, brotos ou
espontaneamente gerados
11. testáceos
Ao que tudo indica, antes de adotar os critérios que nortearam a
formação dos grandes grupos de animais cuja ordenação deu origem à sua
escala de perfeição, Aristóteles deve ter feito várias tentativas ao se deparar
com dificuldades, incluindo, a escolha de critérios a serem utilizados. Diante da
complicada tarefa de classificar os animais, Aristóteles comentou sobre os
problemas encontrados ao tentar utilizar a forma de locomoção como critério de
classificação:
Bípedes não são todos vivíparos (pássaros são ovíparos) e nem
todos são ovíparos (o homem é vivíparo); quadrúpedes não são todos
76
ovíparos (o cavalo, o boi e muitos outros são vivíparos), nem todos [são]
vivíparos (lagartos, crocodilos e muitos outros são ovíparos). A diferença
[entre esses animais] nem mesmo reside em ter ou não ter pé: alguns
animais que não possuem pé são vivíparos (como as víboras, e o
Selachia), alguns são ovíparos (como a classe dos peixes, e o restante
das serpentes); e dos animais que possuem pés muitos são ovíparos,
muitos vivíparos (como por exemplo, os quadrúpedes, já foram
mencionados). Existem animais com pés que são internamente vivíparos
(como os homens), e também os sem pés (como a baleia e o golfinho).
Então não encontramos significado aqui de fazer uma divisão: a causa
da diferença [entre esses animais] não reside em qualquer órgão de
locomoção
171
.
Assim, ao se deparar com tal dificuldade, o filósofo natural criticou o uso
do método dicotômico na classificação dos animais - já que o mesmo abria
margem para a sobreposição de grupos. A solução proposta pelo filósofo
natural foi, então, uma classificação baseada no grau de calor vital dos animais
como um parâmetro de superioridade, o que era indicado pelas formas através
das quais os animais eram gerados
172
.
171
Aristóteles, De generation animalium, 732 b 15 – 732 b 30, trad. A. L. Peck. A respeito do
trecho citado, Peck comenta que Aristóteles tinha em mente, provavelmente, o método
dicotômico, atacado por ele próprio no tratado De partibus animalium, onde ele afirmou que tal
método de divisão bipartida mostrava-se difícil e, para muitos casos, impraticável (De partibus
animalium, livro I, cap. 2, 642 b 5 – 642 b 7).
172
Balme, Aristotle: natural history and zoology, p. 262.
77
CAPÍTULO 4
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Esta pesquisa mostrou que a idéia de scala naturae, ou seja, a
distribuição dos seres em um arranjo linear esteve bastante presente, em suas
diversas formas, desde a Antiguidade até o século XIX.
Nosso objetivo foi o de discutir a scala naturae na obra De generatione
animalium de Aristóteles. Baseando-se no que foi exposto no capítulo anterior,
nota-se que este filósofo natural elaborou uma escala de animais, onde
organizou hierarquicamente os grandes grupos, tais como os vivíparos, os
ovovivíparos e os ovíparos. Ao propor tal escala, Aristóteles levou em
consideração o grau de perfeição dos animais, que por sua vez, baseava-se no
nível de calor vital dos mesmos. Assim, ele relacionou o grau de calor vital de
determinado tipo de animal ao modo de geração de sua prole.
O filósofo grego separou os animais em “com sangue” e “sem sangue”,
sendo caracterizado como sangue, apenas o líquido vermelho. Dentre os
animais com sangue, ele incluiu os vivíparos (homem, cavalo, boi e criaturas
marinhas, que ele chamou de cetáceos, tais como as baleias e os golfinhos);
os ovíparos (pássaros, peixes escamosos e animais terrestres com escamas e
carapaças, tais como cobras, lagartos e tartarugas) e os ovovivíparos (os
Selachia e as víboras). Dentre os animais sem sangue, ele incluiu os insetos
(borboletas, traças, gafanhotos, vespas, abelhas e aranhas); os cefalópodes
(polvos e lulas); crustáceos (lagostas, lagostins, camarões e caranguejos) e os
testáceos (caracóis, lesmas, ostras, mariscos, mexilhões, estrelas-do-mar,
holotúrias e ouriços-do-mar). Como o sangue vermelho era úmido e quente,
sua presença conferia um grau mais alto de calor vital nos animais que o
78
possuíam, de modo que, para Aristóteles, representou uma característica
importante a ser levada em conta na sua classificação.
Nessa distribuição, Aristóteles considerou, também, os diversos modos
de geração dos animais, o que se relacionava aos níveis de perfeição dos
mesmos. Por exemplo, os animais mais perfeitos, os vivíparos, produziam
filhotes que já eram semelhantes ao animal na fase adulta. Já os animais
menos perfeitos, eram gerados espontaneamente. Entre esses dois extremos,
o filósofo natural incluiu outras possibilidades, tais como os ovíparos, cujos
filhotes eram produzidos a partir de ovos. Dentro desta categoria, ele incluiu
algumas gradações que iam desde o ovo perfeito, que não crescia depois da
postura, - característico dos pássaros e dos animais terrestres; ao ovo
imperfeito, que crescia depois da postura, a partir da absorção de materiais do
meio ambiente, - característico dos peixes escamosos. Entre os vivíparos e os
ovíparos, Aristóteles incluiu os ovovivíparos, cujos ovos cresciam e se
desenvolviam dentro do organismo da fêmea, tal como era o caso dos
Selachia, ou peixes cartilaginosos e das víboras.
A análise do tratado a respeito da geração dos animais também
forneceu subsídios em relação à forma pela qual Aristóteles investigava o
mundo vivo, especialmente os animais. Tal como pode ser verificado em seus
tratados sobre história natural, particularmente em De generatione animalium,
sua metodologia residia na observação dos fenômenos naturais, em
experiências práticas e generalizações.
As informações obtidas a partir do tratado De generatione animalium
permitiram que reconstruíssemos sua escala de perfeição. É importante
mencionar que a partir da análise dessa obra, verificamos que sua escala de
perfeição dos animais não apresenta qualquer conotação evolutiva,
consistindo, simplesmente, num arranjo em ordem decrescente de perfeição
dos grandes grupos de animais. Acreditamos que seria incoerente se
Aristóteles, tendo proposto um modelo de universo eterno e imutável,
partilhasse da noção de que as espécies ou mesmo os grandes grupos de
animais pudessem sofrer mudanças, como pensava Lamarck.
Para o filósofo natural, cada espécie ou cada tipo de animal tinha uma
essência (eidos), também eterna e imutável. Novamente, seria incoerente se
ele tivesse defendido alguma idéia de evolução orgânica na obra analisada.
79
Assim, apesar dos seres vivos não serem individualmente eternos para
Aristóteles, as espécies o eram, e isso só seria possível graças à reprodução.
Para este filósofo natural, a causa final mais distante da vida era a perfeição, e
o fenômeno da reprodução dos seres vivos em geral, e dos animais em
particular, garantia, de certa forma, a eternização das espécies ou dos tipos de
animais.
No tocante à revisão constante daquilo que já foi escrito por outros
autores, esta pesquisa levou à discordância de algumas dentre as fontes
secundárias consultadas.
Em primeiro lugar, podemos dizer que Aristóteles afirmou explicitamente
que os animais poderiam ser organizados em uma série. O que ele não fez foi
apresentar um esquema dessa organização.
Em segundo lugar, podemos afirmar que o filósofo grego tinha, de fato, a
intenção de classificar os grandes grupos de animais, despendendo energia e
tempo na busca de um critério que melhor se adequasse a este propósito.
80
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