Apesar de neste trecho ele recuar a um ataque frontal à noção do indivíduo,
reconhecemos, em outro trecho de sua obra, um ataque direto a este conceito, apontando
que este seria, em sua análise, um fenômeno social que não se vê mais acontecendo.
De que é feita a vida [na pós-modernidade], a vida de todos nós, senão, justamente,
do oposto do individualismo? Como compreender todas essas aglomerações em
massa, todas essas “amontoações”que pontuam a vida social? Aglomerações
musicais das quais as Techno Parade, a mais recente, oferece uma sonora ilustração.
Comunhões religiosas, como as Jornadas Mundiais da Juventude, em Paris. Êxtases
esportivos, como bem mostrou, pouco tempo atrás, a Copa do Mundo. Em termos
mais cotidianos, celebrações culturais, dentre elas as múltiplas “jornadas” e festivais
(solenidades oficiais, festas nos parques, musicais, etc.) e as festas do consumo, nos
hipermercados e nos múltiplos saldos e liquidações que são os templos
contemporâneos.
Poderíamos multiplicar à vontade os exemplos. Basta lembrar que, em cada um
desses casos, o indivíduo racional e senhor de si fica singularmente ausente. Em cada
uma dessas situações, o importante é “perder-se no outro”. Perder-se numa dessas
tribos – musical, religiosa, esportiva, consumidora, cultural ou humanitária
269
.
Dentro da dinâmica social tribal, formam-se espaços sagrados no meio urbano,
“altares” que servem de comunhão e celebração entre as tribos. É nestes altares em que
ocorre a perda da noção do indivíduo – ao ocorrer a ligação simbólica, fortalecendo-se o
cimento cultural, há uma formação de interações imagéticas que escapariam tanto dos
conceitos de massa quanto de indivíduo. Espaços de celebração de mistério, de entrega
mística ao Outro
270
, fazendo o membro da tribo pertencer a algo maior do que ele em sua
própria ( e única) vida. Há religação (re-ligare) com o meio.
Assim, poderíamos dizer que a megalópole é constituída por uma série de “altares”,
no sentido religioso do termo, nos quais são celebrados diversos cultos de forte
componente ético-estético. São os cultos do corpo, do sexo, da imagem, da amizade,
da comida, do esporte, etc. Nesse aspecto, a lista é infinita. O denominador comum é
o lugar onde se realiza esse culto. Com isso, o lugar faz o elo. Uma formulação de
Rilke resume bem essa colocação: o “espaço de celebração” (Raum des Rühmung).
Celebração que confere ao religioso sua dimensão original de ligação e que pode ser
uma celebração técnica (museu de la Villette, La Vidéothèque), cultural
(Beaubourg), lúdico-erótica (o Palace), de consumo (les Halles), esportiva (parc des
Princes, Roland-Garros), musical (Bercy), religiosa (Notre-Dame), intelectual (o
grande anfiteatro da Sorbonne), política (Versailles), comemorativa (o Arco da
Defesa), etc. Aí estão diversos altares onde a banalidade cotidiana vai revigorar-se,
seja diretamente, seja por intermédio da televisão. Trata-se de espaços específicos de
alta carga erótica, e não é à toa, aliás, que alguns deles, levando essa lógica às
últimas conseqüências, são tidos como locais de “paquera”, nos quais se exerce,
contemporaneamente, a prostituição sagrada, essa hierodulia de antiga memória que
reforçava o sentimento que uma sociedade tinha de si. Espaços de celebração feitos
por e para iniciados, aos quais se vai em busca de iniciação e onde se observam os
iniciados: no sentido etimológico do termo, portanto, espaços onde se celebram
269
MAFFESOLI 2004b, 78-79.
270
MAFFESOLI 2008a, 146.