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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC-SP
IVAN ALEXANDER MIZANZUK
“FAZE O QUE TU QUERES”:
As noções de Ética e Moral nos escritos de Aleister Crowley em sua Thelema sob a luz
da sociologia sensível de Michel Maffesoli
MESTRADO EM CIÊNCIAS DA RELIGIÃO
SÃO PAULO
2010
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3
IVAN ALEXANDER MIZANZUK
“FAZE O QUE TU QUERES”:
As noções de Ética e Moral nos escritos de Aleister Crowley em sua Thelema sob a luz
da sociologia sensível de Michel Maffesoli
MESTRADO EM CIÊNCIAS DA RELIGIÃO
Dissertação apresentada à Banca Examinadora da
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como
exigência parcial para obtenção do título de MESTRE
em Ciências da Religião sob a orientação do Prof.
Doutor Frank Usarski.
SÃO PAULO
2010
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5
BANCA EXAMINADORA
______________________________________
______________________________________
______________________________________
7
Para a família.
9
RESUMO
A presente dissertação busca realizar uma investigação teórica acerca dos escritos
do mago inglês Aleister Crowley (1875-1946), fundador da religião Thelema, que tocam
nos temas da Ética e da Moral, visando assim um estudo sobre os possíveis aspectos de
uma ética pós-moderna termo assim compreendido de acordo com a obra do sociólogo
francês Michel Maffesoli no campo religioso. Parte-se da hipótese de que Crowley pré-
figurava um pensador religioso de uma ética pós-moderna, e se desenvolve o trabalho com
o objetivo de comprovar tal desconfiança inicial. Ao final, conclui-se que, apesar da ética
crowleyana possuir muitos aspectos da chamada ética estética maffesoliana, ainda a
presença de um imperativo categórico, o seu conceito de Vontade, que é indissociável de
seu pensamento ético-moral devido à natureza mística de sua filosofia.
Palavras-chave: Pós-modernidade, Ética, Thelema.
11
ABSTRACT
The present dissertation provides a research about the writings of the English magus
Aleister Crowley (1875-1946), founder of the religion Thelema, which deal with the
subjects of Ethics and Moral, aiming as such a study about the possible aspects of a post-
modern ethics as so understood in relation with the works of the French sociologist
Michel Maffesoli in the religious field. It is followed the hypothesis that Crowley pre-
shaped a religious thinker of a post-modern ethics, and the whole work is developed with
the objective to prove such. By the end, it is concluded that, although the crowleyan ethics
does possess many of the aspects of the so-called maffesolian ethic-aesthetics, there is still
the presence of a categorical imperative, his concept of Will, which is inseparable of his
thoughts on ethics and moral due to the mystic nature of his philosophy.
Keywords: Post-modernity, Ethics, Thelema.
13
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO .................................................................................................................. 15
CAPÍTULO I: SOBRE A THELEMA ................................................................................ 27
1.1 Fundador, Origem, História e Principais Obras ................................................ 27
1.2 Conceitos e Matrizes Teóricas/Doutrinárias ..................................................... 36
1.2.1 AEON ................................................................................................. 36
1.2.2 A VONTADE ..................................................................................... 40
1.2.3 O AMOR ............................................................................................ 46
1.2.4 MAGIA (K) ........................................................................................ 49
1.2.5 OS CHEFES/MESTRES SECRETOS ............................................... 51
1.2.6 O SAGRADO ANJO GUARDIÃO (SAG) ........................................ 53
1.2.7 BABALON E A MULHER ESCARLATE ........................................ 54
1.2.8 A GRANDE BESTA (TO MEGA THERION/ Το Μεγα Θηριον) ....... 56
1.2.9 A GRANDE OBRA ............................................................................ 57
1.2.10 ASTRVM ARGENTVM (A.’.A.’.) ..................................................... 58
1.2.11 ORDO TEMPLI ORIENTIS (O.T.O.) ............................................... 59
1.3 Crowley na Cultura Popular .............................................................................. 61
CAPÍTULO II: ASPECTOS DA ÉTICA E MORAL THELÊMICA ................................. 64
2.1 “Faze o que tu Queres” – Significado e Dimensões Ética e Moral ................... 65
2.2 A Dimensão Mística do Ser em Crowley .......................................................... 74
2.3 Ética e Moral no Livro da Lei ........................................................................... 79
CAPÍTULO III: A ÉTICA PÓS-MODERNA SEGUNDO MICHEL MAFFESOLI ......... 92
3.1 Pós-Modernidade e Relativismo Epistemológico ............................................. 92
3.2 Sombra de Dionísio e Reencantamento do Mundo ........................................... 97
3.3 Ética da Estética .............................................................................................. 101
3.4 A Religiosidade Pós-Moderna ......................................................................... 104
14
CAPÍTULO IV: CROWLEY – PENSADOR DE UMA ÉTICA PÓS-MODERNA? ...... 111
4.1 Sobre o Agir e as Esferas Moral e Ética em Crowley ..................................... 111
4.2 Crítica ao Conceito de Verdade Universal –
Experiência e Vivência Paradoxal ................................................................... 116
4.3 Sobre o Agir Mágicko/Banal ........................................................................... 121
4.4 Análise Crítica ................................................................................................. 125
CONCLUSÃO .................................................................................................................. 131
BIBLIOGRAFIA ............................................................................................................... 135
15
INTRODUÇÃO
É notável, nas últimas décadas, o desenvolvimento do pensamento ao qual certos
teóricos se referem como “pós-modernidade”. No campo do estudo de religiões, por sua
vez, existe um crescente interesse em estudo pelos chamados movimentos Nova Era, que
trazem, em sua maioria, uma proposta de desenvolvimento espiritual diferente das linhas
religiosas mais tradicionais, tais como as manifestações mais antigas do cristianismo,
judaísmo e islamismo.
A Thelema, doutrina originada pelo mago inglês Aleister Crowley no início do
século XX, faria parte do extenso corpo de novos movimentos religiosos que buscam novas
formas de desenvolvimento espiritual, de maneiras divergentes das religiões mais
tradicionais. Ela é o resultado de um sincretismo de elementos especialmente esotéricos,
símbolos pagãos (egípcios, gregos, sumérios etc) e de certos aspectos de técnicas orientais
de meditação, como a ioga.
Tendo em vista que não existem trabalhos acadêmicos brasileiros voltados ao
estudo da Thelema, tivemos como primeira motivação a realização de um trabalho que
trouxesse à luz de novas teorias científicas as noções de ética e moral dentro de um sistema
complexo e pouco conhecido como o de Aleister Crowley, o homem que se intitulava A
Grande Besta 666. Consideramos que, como nova religião, a Thelema é um caso
interessante, por motivos que ficarão mais claros no decorrer do trabalho, e que merece
uma atenção maior por parte dos acadêmicos – principalmente em linhas de pesquisa
relacionadas às reflexões sobre uma ética religiosa pós-moderna. Afinal, o pouco material
que existe publicado hoje no Brasil é, em sua maioria, muito confuso e de pouco rigor
científico, possuindo desde caráter contraditório e inconsistente até difamatório
1
.
Como no Brasil os grupos e praticantes da doutrina thelêmica nunca tiveram grande
expressão, com exceção do músico Raul Seixas e o escritor Paulo Coelho (este, no caso,
mais como crítico do que como apologético), não registro no quadro nacional de
pesquisas acadêmicas sobre a doutrina em si, fato que é facilmente comprovado após rápida
pesquisa na plataforma Lattes no site do CNPq. Contudo, esse quadro muda radicalmente
1
Como exemplo, podemos citar a biografia do escritor brasileiro Paulo Coelho, intitulada O Mago (MORAIS
2008), um best-seller no ano de seu lançamento. Neste livro, os thelemitas o taxados como satanistas,
adoradores do diabo, entre outras coisas.
16
quando olhamos o desenvolvimento de pesquisas no resto do mundo, especialmente na
América do Norte (EUA e Canadá) e Europa.
De forma a mencionar os nomes mais famosos na dedicação à pesquisa acadêmica
sobre Thelema e Crowley em geral, podemos citar pesquisadores como Richard Kaczynski
(Wayne State University, Detroit, EUA), Hugh Urban (Ohio State University, Ohio, EUA),
Lloyd Kenton Keane (Carleton University, Ottawa, Canadá), além das linhas de pesquisas
do Center for History of Hermetic Philosophy and Related Currents da Universidade de
Amsterdam, especialmente através do docente Marco Pasi. A maioria destes acadêmicos
buscou, com todo o mérito que merecem, uma produção científica focada especificamente
em análises históricas. Confirma-se assim uma falta de produção científica sobre
parâmetros mais ligados à análise de pensamento do fundador da religião Thelema,
especificamente nas suas idéias sobre conduta humana, ou seja, no campo da Ética e da
Moral.
Segundo Michel Maffesoli, sociólog francês, o período Moderno é o período de
ápice de desenvolvimento dos valores judaico-cristãos. Valores modernos como
"Liberdade" e/ou "Democracia", por exemplo, seriam desenvolvimentos naturais de
estruturas de pensamento que se encontram nos primeiros pensadores religiosos dessas
linhas de pensamento mais fortes e influentes que visam a construção de discursos
universalistas
2
. Por isso, esses valores modernos de tendência universalistas (a crença de
que a ciência e o espírito racional nos farão mais felizes, e a própria crença de que um
homem deve ser necessariamente feliz a todo o momento, por exemplo) teriam auxiliado o
homem a se desencantar com o meio, pois dissociaram o "agir no mundo" com a esfera
espiritual - tal é a leitura e o foco que Maffesoli retira da obra de Max Weber
3
. Essa
dissociação teria se dado por esgotamento de sensibilidade - as idéias de conduta,
do como agir no mundo, teriam perdido sentido no imaginário social ocidental.
Maffesoli usa uma expressão de Fernando Pessoa: "ter o paganismo como princípio
vital"
4
. Isso porque o conceito de paganismo, dentro do seu pensamento, remonta a uma
2
MAFFESOLI 2006a, 61.
3
MAFFESOLI 2007a, 57, 85, 122.
4
MAFFESOLI 2006b, 38.
17
esfera ética em que se admite que não apenas "um único Deus, uma única verdade"
5
.
Essa idéia de "uma única verdade", essa unilateralidade do existir, seria um desejo que se
estabeleceu e ganhou grande força na Modernidade. A contemporaneidade, que Maffesoli
chama de pós-modernidade, seria um período de relativização epistemológica e ética
6
. Não
existiria mais "uma única verdade, um único Deus", mas sim "várias verdades, vários
Deuses". Um "politeísmo de valores"
7
. Esse é um espírito pagão, em sua visão. Em outras
palavras, o espírito pagão estaria em conformidade com o zeitgeist
8
pós-moderno, pois o
paganismo, evocando um politeísmo de valores, lida melhor com as várias formas de
interação simbólica humana. Se ainda violência conceitual por preconceito cultural, por
exemplo, essa seria uma atitude ainda presa em idealismos modernos. Como exemplo
disso, Maffesoli diz que, da mesma forma que Tocqueville chamava os Estados Unidos de
"laboratório da democracia" (modernidade), o Brasil seria um laboratório da pós-
modernidade
9
, pois tendências de interações sociais que não apontam para um
universalismo de valores, violências culturais, unilateralismos, etc. Ao contrário, as
relações simbólico-sociais aqui apontam para o sincretismo, relativismo, para o jogo, para o
espetáculo, o lúdico, a transfiguração do político, convivência entre opostos, etc. Em suma,
o politeísmo de valores mencionado, que, segundo Maffesoli, é próprio do espírito
pagão. Esse tipo de interação com o meio resulta em certas formas de "agir" no mundo
(como "eu faço o que acredito ser melhor para mim, baseado nas minhas próprias crenças e
convicções que fui aprendendo com cada religião pela qual passei") que não são mais tão
rígidas como formas de se pensar a Ética na Modernidade. É uma ética mais fluída - uma
Ética Estética, nos termos maffesolianos.
Esses mecanismos de interações, essas novas formas de se pensar o "como agir?"
(ou seja, "O que é Ético?"), provocariam, por sua vez, um reencantamento do
mundo
10
, pois deixariam de lado os símbolos e valores desgastados (judaico-cristãos,
modernidade, etc), que teriam sido justamente os responsáveis pelo desencantamento
denunciado por Weber, pela separação da esfera espiritual do mundo, etc. A revitalização
5
MAFFESOLI 2008a, 56.
6
MAFFESOLI 2004a, 38.
7
MAFFESOLI 2008a, 67.
8
“Espírito do tempo”, em alemão.
9
MAFFESOLI 2006a, 62-64.
10
MAFFESOLI 2008a, 82.
18
de símbolos antigos (e lembramos aqui que Crowley se utiliza muito do panteão egípcio,
grego, entre outros) criariam novas formas de interação simbólica com o mundo, tornando-
o reencantado, “novamente novidade”. Novas formas de se encarar o mundo, novas formas
de se pensar como agir (Ética), todas baseadas em um politeísmo de valores (paganismo)
que confluem para uma nova perspectiva de aceitação do viver (reencantamento), mesmo
em seu aspecto trágico.
É assim que tentamos analisar Crowley: como um pensador religioso que sentia em
sua época esse desencantamento moderno e acabou por fundar uma religião própria, como
forma de se reencantar e, para isso, buscou novas formas de se pensar o paganismo em
tempos modernos. Mas como tais valores pagãos não condiziam com os valores modernos
socialmente estabelecidos, foi necessário repensar o "como agir", ou seja, o que é “Bom”.
Como pensador, foi necessário desenvolver um pensamento ético que destoa de valores
modernos e judaico-cristãos em geral, tendo uma forte raiz pagã e mística em suas idéias.
Daí vem nosso principal interesse em se estudar Crowley como pensador ético: em sua obra
há claras preocupações que nos parecem muito condizentes com o atual espírito pós-
moderno que Maffesoli busca explorar.
É interessante notar também que Aleister Crowley foi uma das figuras mais
polêmicas do campo esotérico ocidental, gerando intermináveis discussões acerca de suas
idéias de conduta humana. É muito comum, para aqueles que não possuem muito apreço
por alguns aspectos da personalidade de Crowley, que caiam na idéia de que ele não tinha
uma idéia constituída de Moral (sendo assim socialmente amoral ou imoral). Contudo, nos
ficará claro, ao estudarmos sua obra cuidadosamente, que escritos dele especificamente
sobre esses tópicos, e que, apesar de soarem escandalosos para a época em que viveu, suas
idéias podem hoje ser vistas cada vez mais recorrentes e aceitáveis, especialmente no
cenário que Maffesoli desenha sobre os tempos atuais.
Na religião thelêmica, o mandamento “Faze a tua Vontade é uma norma de
conduta fundamental. Para os desconhecedores da noção de Vontade em Crowley, essa
frase pode soar como uma liberação de qualquer idéia de “Bem comum”, exacerbando uma
individualidade ignorante e/ou egoísta. Mas, como é possível perceber após o contato com
as devidas obras, Crowley possuía uma preocupação com o Bem comum (uma preocupação
19
de natureza Ética), e dizia que ele seria possível de ser atingido através da fórmula do Faz a
tua Vontade – uma norma de conduta moral que, indubitavelmente, entra no campo místico,
de onde provém o conceito em questão. O estudo da Ética e Moral em Crowley devem
necessariamente adentrar nos limites de interpretação deste lema. Curiosamente, enquanto
suas idéias de conduta foram ferozmente rejeitadas na época em que viveu
11
, hoje podemos
notar em diversos nichos sociais a disseminação de idéias das quais Crowley discutia no
início do século XX.
Para realizar-se a pesquisa, serão levadas em consideração apenas as obras escritas
por Crowley, especificamente as obras que desenvolvem o agir Ético em conformidade
com o “faze a tua Vontade”. Ou seja, o limite temporal das obras compreende aquelas
escritas entre 1904 (época em que Crowley diz ter recebido o Livro da Lei) e 1947, ano de
sua morte. Cabe aqui mencionar que as obras escolhidas para análise principal são o
Magick Without Tears
12
, composto por um conjunto de cartas que Crowley escreveu para
uma discípula, publicado postumamente, e o The Law is for All
13
, que compreende os
comentários de Crowley sobre o Livro da Lei. também uma parte do livro The
Confessions of Aleister Crowley
14
, sua autobiografia, que aborda o assunto, e será citado, e
o seu livro Magick:Book Four
15
, que será utilizado como apoio para compreensão de
termos mais específicos.
Durante o levantamento de dados, vários problemas parecem surgir: “o que é
Thelema?”; “Por que a figura de Crowley e suas idéias incutiam temor ao seu meio
social?”; “Tal temor ainda persiste?”, etc. Contudo, tais problemas apenas serviriam para
melhor delinearmos uma perspectiva histórica mais rica. O problema central, aquele que
dará corpo a todo o trabalho pretendido, resume-se na seguinte questão: até que ponto e em
que sentido os escritos sobre Ética de Crowley antecipam características de comportamento
geralmente associadas por Michel Maffesoli à chamada pós-modernidade?
11
Vide o famoso The Black Magic Libel Case in London. Uma descrição dele pode ser encontrada em
SYMONDS 1973 e DUQUETTE 2007.
12
CROWLEY 1991.
13
CROWLEY 1996a.
14
CROWLEY 1969.
15
CROWLEY 1997b.
20
Aleister Crowley demonstrava preocupações acerca da conduta do homem
moderno frente ao “desencantamento do mundo”
16
que a Modernidade lhe trouxe, forçando
assim a diminuição da participação da instituição religiosa (pois as instituições teriam
perdido credibilidade) na vida do indivíduo e o fortalecimento da noção de espiritualidade
própria. Desse modo, o seu Faze a tua Vontade é uma expressão bem clara de uma quebra
da idéia de que a moralidade religiosa deve ser subordinada a uma instituição religiosa
doutrinária, dogmática, passando a ser necessário que o indivíduo criasse sua própria noção
de Bem e Mal, ou seja, uma conduta moral própria, mas que leve em consideração a
Vontade do outro. É impossível ler tal norma de conduta sem compreender que ela resvala
em uma relativização do agir do próprio Ser uma relativização da existência. Não uma
Vontade Universal – há Vontades únicas, diferentes, que buscam se conjugar no cosmos de
maneira ordenada.
A hipótese levantada por nós é a de que Crowley já denotava uma Ética pós-
moderna, especialmente ao tentar quebrar a noção de que é possível atingir-se um Bem-
Comum mais rígido e universal, baseados exclusivamente na faculdade racional do homem
noções essas claramente notáveis, por exemplo, em Kant, um dos grandes expoentes do
chamado período moderno. Ao contrário desses, Crowley busca sempre a construção de um
discurso ético-moral no qual demonstra que a razão não é nem o melhor e muito menos o
único instrumento de julgamento do homem, ao mesmo tempo em que o relativismo, como
conduta moral, deve ganhar mais espaço. Tal discurso se especialmente através de uma
metafísica que busca a exacerbação do homem como “um Deus em potencial”
17
. Ou seja,
inevitavelmente, a razão deixa de ser ferramenta única, e torna-se apenas uma auxiliar.
Entra em cena uma forma de conduta baseada em uma leitura mística do mundo, sendo esta
devidamente compreendida dentro da leitura crowleyana do termo, que deverá ser
desenvolvida no decorrer do trabalho.
Ao tomar a consciência de ser um deus em potencial, o homem deveria ter sempre
em mente a noção de que ele é “uma estrela” entre bilhões de outras. Deve haver ordem no
Universo, do contrário haverá colisão de estrelas, acabando assim com a existência e o
16
A expressão é de Max Weber, sociólogo que mais influenciou Maffesoli. Freqüentemente, Maffesoli se
refere a essa célebre frase, e diz que a pós-modernidade que vivemos é o período de reencantamento do
mundo” (MAFFESOLI 2008a, 82).
17
“Todo homem e toda mulher é uma estrela” (CROWLEY 1997a, 95).
21
que guia o homem a não colidir um com o outro seria sua Vontade inata. Por outro lado,
também o momento de colisões, de luta, mas esta deve ser compreendida como uma “luta
entre irmãos”, entre reis, senhores de sua própria existência que vêem no conflito
(compreendido dentro de termos thelêmicos) uma forma de libertação e desenvolvimento
espiritual
18
. Sendo assim, essa ordem universal visada não é necessariamente “boa” ou
“feliz” nos termos modernos amplamente aceitos, mas pode envolver grande conflito. Em
outras palavras, uma visão de uma ordem trágica da existência.
A Vontade, ao extrapolar os limites da própria razão, exige uma morte do Ego:
diminui-se a identidade em busca da comunhão com o meio, já que o indivíduo sozinho não
pode conter sua própria. A realização dela é possível com o sacrifício do Ser, visando a
realização de atos que favoreçam o meio. Não é individualismo e nem uma nova forma de
socialismo: é uma nova visão de como o Universo funcionaria, que busca escapar das
noções plenamente racionais de conduta. Poderíamos falar então de uma Ética Estética,
uma Ética afetiva, revitalizadora do aspecto trágico do social, ligada também a um
tribalismo, este denotando núcleos sociais menores que comungam entre si e possuem
normas de conduta das mais variadas afinal, cada Vontade seria única, mas todas devem
ser harmônicas entre si. Mesmo que haja colisão de estrelas, microcosmos continuam a
existir.
Esses termos apontados – ética afetiva/ estética, relativismo, aspecto trágico do
social, tribalismo, etc são todos denotados por Maffesoli como típicos da pós-
modernidade. Por isso, tomamos por hipótese que Crowley pré-figurava um pensador
sobre qual seria a melhor forma de agir na pós-modernidade. Já demonstrava ser um
pensador sobre Ética, levando em consideração a quebra de grandes sistemas de crenças e
visando a formação de menores núcleos de interação simbólica, que buscam, entre si, não a
exatamente a plena felicidade, mas sim o combate justo, o sentir trágico da existência e a
aceitação da vida em seu aspecto politeísta. Visa a satisfação da Vontade, a satisfação
mística da vida, em detrimento do simples agir mecânico e racional atitudes que seriam
típicas do espírito moderno, segundo Maffesoli.
Nosso objetivo principal com o trabalho será o de demonstrar através dos textos
mencionados há pouco como que Aleister Crowley, aqui no caso encarado como um
18
CROWLEY 1996a, 42, 184.
22
pensador religioso, se utilizava de uma noção de Ética Relativista, ou ainda uma Ética
Estética (noção maffesoliana), quebrando a idéia de um indivíduo único “senhor de si”,
pensando-o mais como parte de um sistema social que deve integrar o ser ao seu meio de
forma harmônica e além da sua própria racionalidade. Esse tipo de pensamento relativista
seria uma característica fundamental da Ética pós-moderna, segundo Maffesoli. Em outras
palavras, deseja-se demonstrar aqui que Crowley há pré-figurava um pensador de uma ética
pós-moderna no campo da religiosidade.
Para tal proposta, o quadro teórico utilizado durante toda a pesquisa é baseado na
chamada sociologia compreensiva, de Michel Maffesoli (1944 - ), professor no
Departamento de Sociologia da Universidade René Descartes, Sorbonne, Paris V. Foi aluno
do antropólogo do imaginário Gilbert Durand e, como este, alia vários campos das ciências
humanas como forma de leitura dos fenômenos sociais atuais. Suas maiores influências são
Simmel, Durkheim e Weber, no campo da sociologia; se utiliza também fartamente das
obras de pensadores como Nietzsche, Bachelard, Jung e Lévi-Strauss, esses claramente
resultado da influência de Durand na sua formação. Outros pensadores mais recentes, tais
como Jean Baudrillard e Edgar Morin, constituem parte de suas referências teóricas.
Sua sociologia compreensiva possui caráter fenomenológico. Sobre o termo,
Maffesoli realiza uma abordagem fenomenológica no sentido que é defendido por Michael
Pye
19
, ou seja, que não se preocupa em fazer grandes discursos universais sobre princípios
gerais acerca da origem do funcionamento de comportamentos humanos, método este que
cairia em uma sistematização metafísica. Maffesoli constantemente nos lembra em suas
obras que ele busca estudar o social sem pré-julgamentos ou teorias pré-concebidas. Sua
fenomenologia baseia-se em deixar o fenômeno social apresentar-se por si só, compreender
sua lógica interna e, aí então, fazer seu registro. Sobre isso, ele nos diz:
Para teorizar essa atitude, a fenomenologia introduz a noção de “perspectivação”. E
como observar Emmanuel Lévinas, a partir de Husserl “a fenomenologia é,
integralmente, a promoção da idéia de horizonte que, para ela, exerce o papel
equivalente ao do conceito do idealismo clássico”. Pode-se prosseguir precisando
que, por oposição ao conceito que cerra e encerra, a “idéia de horizonte” fica aberta
e, por conseguinte, permite compreender melhor o aspecto indefinido, complexo, das
situações humanas, de suas significações entrecruzadas que não se reduzem a uma
19
PYE 1974.
23
simples explicação causal. É nisso, sem vida, que está empenhada a sociologia
compreensiva ou qualitativa que se concebe como essencialmente inacabada e
provisória, de tal modo é verdade que não se pode, em nenhum caso, construir um
sistema quando se está confrontado a um mundo em perpétua mutação e sem
referências fixas.
20
Dito de outra forma, durante o registro do fenômeno, ele busca fazer uma análise
que não caia em julgamentos morais de conotação universal ou seja, evita ao máximo
realizar julgamentos de qualquer tipo dos fenômenos estudados, evitando qualquer a priori.
Ao preferir que o evento social fale por si mesmo, sem cair em moralismos e julgamentos,
inevitavelmente Maffesoli se alia a um relativismo epistemológico, ou seja, parte de um
princípio de que sua função de sociólogo não é ditar à sociedade como esta deve agir, mas
sim estudar seus comportamentos sem quaisquer ideais pré-concebidos, pois do contrário
poderá deixar de ver a força e relevância que determinadas atitudes do social (mesmo que
renegadas por alguma parcela moral) possuem.
Ao tomar esse relativismo epistemológico como base de seus estudos, ele cita
freqüentemente o termo pós-modernidade, sendo este no sentido de que estamos em um
momento do desenvolvimento humano em que os valores e conceitos ético-morais de
cunho universal, que foram arduamente constituídos por toda a Modernidade (Democracia,
Liberdade, Estado, Governo, etc), não possuem grande serventia ou valor simbólico de
peso na sociedade pós-moderna
21
. Sendo assim, ao invés de se preconizar por um
monoteísmo de valores, ou uma verdade universal (representada tanto pelos conceitos de
“Deus” como pelo “Estado”), segundo Maffesoli estaríamos vivendo uma época em que
impera o politeísmo de valores, mais uma vez enfatizando o relativismo como forma básica
de convivência e estudo do social no mundo contemporâneo. Ele deixa claro que deseja
“ser um sociólogo da pós-modernidade, em vez de um sociólogo pós-moderno”
22
ou seja,
manter uma atitude científica sem assumir os novos valores sociais como bons ou ruins,
morais ou imorais.
Determinando que a sociedade atual viva momentos e situações que muito se
afastam da promessa prometéica dos iluministas, ou seja, que foge de qualquer saber
estritamente racional e lógico, fugindo da ordem que se desejava estabelecer com todos os
20
MAFFESOLI 2008a, 117.
21
MAFFESOLI 2006a, 61.
22
MAFFESOLI 2004b, 11.
24
movimentos da ciência moderna, Maffesoli desenvolve a noção de que estaríamos
vivenciando um saber dionisíaco, um desenvolvimento de valores que não busca a ordem,
mas justamente seu oposto, o caos. Mais ainda, uma busca por uma experiência do caos que
seria a complexidade humana. Enquanto a busca prometéica visava o melhoramento futuro,
o saber dionisíaco buscaria a conciliação com o momento presente, o momento orgiástico
dos prazeres humanos elevados que não busca mais a exclusão do que é considerado
moralmente errado por determinadas classes sociais (dominantes ou não) em resumo, o
aspecto trágico da existência. A “Sombra de Dionísio”
23
paira sobre a sociedade atual,
trazendo o irracional à tona. Esse saber dionisíaco torna-se o paradigma atual, determinante
de uma busca por uma sabedoria que não mais visa a emancipação do homem, o plano
futuro, o querer que amanhã sejamos mais felizes. Contrariando a ideologia de que
“amanhã será um dia melhor”, ideologia que, segundo Maffesoli, é uma construção
moderna oriunda da mentalidade judaica-cristã, o saber dionisíaco visa o orgiasmo, a
fruição dos prazeres presentes, o viver a vida intensamente, sem previsões ou planos
futuros. O que importa é viver de modo excessivo e prazeroso o aqui e o agora;
Maffesoli também aponta para uma aproximação entre o campo da ética e da
estética, formalizando assim uma chamada ética estética. Segundo ele:
Deve-se entender, neste caso, estética no seu sentido mais simples: vibrar em
comum, sentir em uníssono, experimentar coletivamente, tudo o que permite a cada
um, movido pelo ideal comunitário, de sentir-se daqui e em casa neste mundo.
Assim, o laço social é cada vez mais dominado pelos afetos, constituído por um
estranho e vigoroso sentimento de pertença.
24
Dessa forma, a formação ética do homem pós-moderno possui uma grande
dimensão estética, isso no sentido de dizer que não adianta falarmos de uma consciência
ética que busque o “bem comum” através de um trabalho puramente racional. “O bem
deixou de ser meta única”
25
. Entra em cena agora o “jogo das emoções”
26
, a teatralidade, o
23
MAFFESOLI 2003b.
24
MAFFESOLI 2005a, 8.
25
MAFFESOLI 2004a, 53.
26
“Em debates atuais, na França, um termo freqüentemente empregado, que curiosamente é um neologismo, é
o termo ‘emocional’. É muitas vezes empregado inapropriadamente e com sentido errôneo, para caracterizar
uma dimensão que diz respeito à emoção e a uma dimensão psicológica. Enquanto o termo ‘emocional’, que é
um neologismo proposto por Weber, é empregado justamente não para expressar o fato de ser emotivo – que é
uma característica psicológica -, mas, sim, uma atmosfera, uma maneira pela qual estamos envolvidos, um
clima. Eu diria que aquilo que está em jogo no mundo contemporâneo é justamente esse compartilhamento de
25
trágico, o espetáculo, o show, inspirados no espírito dionisíaco. As formações sociais que aí
surgem formariam um cenário bem mais diversificado e complexo do que a ideologia
moderna (organizadora, progressista) seria capaz de mapear;
Inspirando-se da expressão desencantamento do mundo de Weber, Maffesoli
desenvolve o conceito de que o homem pós-moderno passa atualmente por um processo de
reencantamento do mundo. Se Weber exprimia com tal frase uma noção de que o homem
moderno passou a se utilizar da razão como ferramenta generalizante de toda a sua
existência, deixando de lado a dimensão espiritual, Maffesoli busca provar através de seu
trabalho que atualmente a sociedade pode estar passando por processos de formação de
novos valores que não são racionalmente compreensíveis na lógica moderna, religando-se
de maneira sensível ao mundo. Assim, ao dizer que existe hoje um reencantamento do
mundo, Maffesoli também busca assinalar o que ele acredita ser o fim da modernidade.
Esse reencantamento do mundo estaria também em relação com a noção de um
politeísmo de valores, significando assim o fim da idéia de uma verdade universal, um
princípio único, um valor ético-moral único, idéias provenientes do desenvolvimento do
pensamento judaico-cristão que desembocaram na formação da noção de Estado moderno,
assim como ideais tais como democracia e liberdade. Segundo Maffesoli, na pós-
modernidade encontramos um cenário mundial no qual diferentes grupos de culturas e
costumes diferentes habitam o mesmo espaço sem necessariamente tentarem chegar a uma
resposta única de princípios racionais sobre qual é a melhor delas.
Então, quando falo de um reencantamento do mundo, falo de uma modernidade que
termina. Não concordo de falar de modernidade segunda ou de um estágio posterior
da modernidade. Algo qualitativamente diferente está se produzindo. E este
qualitativamente diferente nos remete a esta Terra amor mundi. Nesse sentido,
devemos recorrer às intuições de Nietzsche, que tão bem mostrou isso.
Curiosamente, o amor pelo mundo vem acompanhado por uma forma de
reencantamento pouco importam as expressões. Eu diria que isso reintroduz
justamente o politeísmo.
27
Acreditamos, portanto, que o campo teórico escolhido nos proporcionará uma visão
mais elaborada sobre os mecanismos de interação simbólica no imaginário thelêmico, tendo
como foco a questão da Ética e Moral. Isso porque tanto o campo teórico quanto o objeto
emoções, produzindo de diversas maneiras, mais além da economia de si, uma atmosfera emocional.”
(MAFFESOLI 2006c, 34.)
27
MAFFESOLI 2006a, 60-61.
26
de estudo convergem na idéia de que uma visão relativista e uma cosmogonia politeísta
desenvolvem um agir humano mais condizente com o espírito atual, nomeado por
Maffesoli como “espírito pós-moderno”, fazendo assim emergir aspectos trágicos da
existência (que teriam sido negligenciados na modernidade), além de permitir um
reencantamento do existir através de novas leituras e interações para com símbolos
religiosos.
O estudo será inteiramente teórico, e abordaremos o objeto pelas diferentes
perspectivas que o próprio objeto apresenta. A partir daí, será realizada a abordagem teórica
propriamente dita, na qual o objeto será estudado pela perspectiva da sociologia sensível de
Michel Maffesoli, trazendo à tona as discussões e análises sobre a Ética e Moral thelêmicas
no contexto pós-moderno.
27
CAPÍTULO I – SOBRE A THELEMA
1.1 Fundador, Origem, História e Principais Obras
Em 12 de outubro de 1875, na cidade de Leamington, Inglaterra, nascia Edward
Alexander Crowley, o homem que, mais tarde, ainda em vida, seria conhecido como “o
homem mais perverso do mundo
28
”. Poeta, alpinista, jogador de xadrez, ensaísta, pintor,
Crowley fora um homem de muitas faces, mas nenhuma tornou-o tão conhecido, temido e
admirado do que seu trabalho como Magista
29
. Até hoje, muitos consideram Aleister
Crowley como um dos maiores ocultistas do século XX, especialmente por ter revitalizado
muitos dos chamados mistérios antigos, reformulado rituais (com especial ênfase na
questão de sincretismo místico entre doutrinas ocidentais e orientais) e por ter sido o
responsável, ainda segundo seus seguidores, pelo anúncio da palavra Thelema
30
, a palavra
do novo Aeon
31
, dos novos tempos – de uma Nova Era
32
.
Seus pais eram da Irmandade Plymouth, uma das seitas protestantes inglesas mais
puritanas da época. Esta seita acreditava na interpretação literal da Bíblia, e dizia que
somente os irmãos de Plymouth é que seriam salvos no dia do Juízo Final. Seu pai, Edward
Crowley, era o “mais respeitado chefe daquela seita”
33
, e viajava por vários condados
espalhando a palavra da Irmandade. Aleister o acompanhava freqüentemente nessas
viagens, e parece ficar claro que, durante o seu crescimento, a figura do pai, e o desejo de
se tornar um líder espiritual como ele era, foi influenciando sua vida cada vez mais.
28
SYMONDS 1973, 413.
29
O termo “Magista” é aqui empregado como forma de “aquele que pratica Magia”. O termo Mágico”
remete àquele que pratica a mágica de espetáculo, a ilusão, o truque, o que está muito longe do sentido de
“Magia” como forma de expressão religiosa/espiritual. o termo “Mago” (Magus) não será utilizado com
muita frequência neste trabalho. Isso porque, dentro do sistema de Magia de Crowley, o termo serve para
especificar determinado grau de evolução espiritual.
30
θέληµα é a palavra grega para “Vontade”. O significado e importância desta palavra dentro do sistema de
Crowley será discutido mais adiante.
31
“Aeon”, segundo Crowley, é a palavra grega para Era”, que geralmente indica um período de tempo que
dura em torno de 2000 anos.
32
Não confundir o movimento conhecido como Nova Era, relacionado especialmente com o movimento
hippie nas décadas de 60 e 70, com esta Nova Era de Crowley. Esta teve seu início, segundo Crowley, em
1904, ou seja, décadas antes do movimento Nova Era popular surgir. Contudo, esta última pode ser
considerado como uma conseqüência daquela que Crowley apontava, e a relação entre as duas seria inegável.
Para mais, vide DUQUETTE 2007, 32.
33
CROWLEY 1976, 33.
28
Seu pai morreu quando ele tinha apenas 11 anos, em 5 de Março de 1887, deixando-
o uma considerável fortuna como herança – fortuna esta que seria totalmente consumida em
sua vida adulta, em grande parte nos gastos de publicação de seus livros thelêmicos e em
suas viagens pelo mundo. A partir de então, sua mãe, Emily Bertha, passou a ser a única
responsável pela sua criação. Enquanto a relação de Crowley com seu pai era de uma certa
admiração, não se pode dizer o mesmo de sua relação com a mãe. Esta, desde que ele era
muito jovem, o chamava de “Grande Besta 666”, uma referência ao Livro do Apocalipse
apelido recebido por Crowley provavelmente devido ao seu comportamento rebelde e
difícil, desde muito jovem. Anos mais tarde, Crowley assumiria o nome “A Grande Besta”
como um Motto, ou seja, um nome Mágicko
34
. Apenas como exemplo de como era
“incomum” o comportamento de Aleister Crowley quando jovem, podemos citar a
passagem que John Symonds, em sua biografia de Crowley, intitulada The Great Beast
The Life and Magick of Aleister Crowley, retirou de um dos diários do magista. A seguinte
passagem se refere ao fato de Crowley ter ouvido falar que gatos tinham 9 vidas, o que o
levou a deduzir que era impossível matar um gato:
Eu peguei um gato, e tendo administrado uma grande dose de arsênico, eu o coloquei
no clorofórmio, o pendurei em cima do jato de gás, o esfaqueei, cortei sua garganta,
amassei seu crânio, e, quando ele estava totalmente bem queimado, o afoguei e o
joguei para fora da janela para que a queda pudesse tirar-lhe a nona vida. A operação
foi bem-sucedida. Eu estava genuinamente com pena do animal; eu apenas me forcei
a continuar com o experimento pelos interesses da pura ciência.
35
Esta passagem nos é muito relevante pois, de um certo modo, mostra bem qual a
atitude que Crowley tomava com qualquer informação que lhe era dada não bastava que
lhe contassem a teoria, ele tinha que experimentar para ver o que acontecia. Enquanto essa
é uma característica muito forte no sistema thelêmico, a necessidade de prática mágicka
constante, John Symonds aponta essa questão na personalidade de Crowley como um
indicativo de uma “falta de imaginação”. Para ser mais específico:
34
Mágicko, com k”, refere-se ao termo Magick, cunhado por Crowley para designar sua “Verdadeira Magia,
ao contrario da magia embusteira dos truques de circo”. Isso porque em Inglês o há diferenciação entre
Magia e Mágica, como no Português ambos são chamados de Magic. Há também um sentido oculto no
“k” adicionado, e o apresentaremos mais adiante. No decorrer do trabalho também usaremos Magia (k) em
determinados momentos, referindo-se diretamente ao termo e filosofia específicos de Crowley.
35
(Tradução nossa) “I caught a cat, and having administered a large dose of arsenic, I chloroformed it, hanged
it above the gas jet, stabbed it, cut its throat, smashed its skull, and, when it had been pretty thoroughly burnt,
drowned it and threw it out of the window that the fall might remove his ninth life. The operation was
successful. I was genuinely sorry for the animal; I simply forced myself to carry out the experiment in the
interests of pure science”. (SYMONDS 1973, 25)
29
Eu quero dizer com isso que ele nunca podia imaginar uma situação completamente,
ele sempre tinha que encená-la. Por toda sua vida, ele continuava se atirando em
aventuras, especialmente com mulheres, precisamente por esta razão. Imaginação
pressupõe restrição frente ação. Se você colocar em prática todos seus instintos e
impulsos, você não precisa de uma vida interna imaginária, pois você já a tem
totalmente na realidade. A falta de imaginação efetiva pode explicar a natureza
extravagante da vida de Aleister Crowley por um lado, e seu fracasso como poeta por
outro.
36
O comentário de Symonds é interessante para dar mais ênfase ao caráter
extravagante e incomum do estilo de vida de Aleister Crowley, além de demonstrar em
parte o efeito de inimizade em algumas pessoas
37
. Essa análise que Symonds realizou
deverá ser comentada mais adiante, quando tentaremos montar um paralelo entre o
pensamento crowleyano a condição de pensamento pós-moderno maffesoliana. Contudo,
no momento, tendo em vista que não pretendemos fazer julgamento algum dos
comportamentos de Crowley, o comentário de Symonds deve ser encarado apenas como
um indicativo do tipo de críticas que Crowley recebe até os dias atuais.
Em 1895, chegou a cursar a Trinity College, em Cambridge, primeiramente em
filosofia e depois em literatura inglesa. Publicou vários livros nesta época, quase todos de
poesia erótica, sempre financiados pelo dinheiro que recebera da herança do pai.
Viveu grandes momentos em Cambridge mas, com o tempo, passou a discordar
severamente de algumas atitudes da Universidade, e largou-a antes de se formar. Em uma
de suas autobiografias, intitulada O Equinócio dos Deuses, Crowley insinua que sabia mais
do que os professores, e por isso se recusara a continuar lá
38
.
Pouco antes de deixar Trinity College, Crowley começou a se interessar por livros
de Alquimia e Magia. Dizia ele que o papel de um embaixador ou de um poeta, profissões
que ele pensava em seguir durante seus anos universitários, seriam de reconhecimento
muito baixo, e que, portanto, deveria buscar outros meios para se fazer conhecido. O meio
36
(Tradução nossa) “I mean by this that he could never imagine a situation fully, he had always to act it out.
Throughout his life, he kept hurling himself into adventures, especially with women, for precisely that reason.
Imagination presupposes restraint upon action. If you act out all our instincts and impulses, you do not need
an imaginary inner life, for you get it all in reality. The lack of effective imagination may explain the
extravagant nature of Aleister Crowley’s life on the one hand, and his failure as a poet on the other”.
(SYMONDS 1973, 25)
37
No caso, o próprio Symonds seria uma dessas pessoas. Apesar de sua biografia sobre o Crowley ser um
ponto de referência, especialmente porque ele era o agente literário deste, e por ter sido a primeira biografia a
ser lançada sobre o Mago (fora a autobiografia, escrita pelo próprio Crowley), é possível identificá-lo como
um que não se identificava muito com as obras e idéias thelêmicas.
38
CROWLEY 1976, 38.
30
encontrado foi o da religião, mais especificamente no sentido de questionar o pensamento
religioso vigente o cristianismo. Segue abaixo o trecho de O Equinócio dos Deuses em
que ele fala sobre essa sua decisão:
Tendo obtido sua liberdade, ele [Crowley
39
] foi bastante sensato para o perder
tempo em gozá-la. Durante os anos de sua infância e adolescência fora privado de
toda a literatura inglesa, com exceção da blia; e assim empregou seus três anos em
Cambridge na reparação deste defeito. Estava também se preparando para o Serviço
Diplomático, pois o falecido Lord Salisbury e o falecido Lord Ritchie haviam se
interessado pela carreira dele, e lhe prometido nomeações. Em outubro de 1897 sua
percepção dos males da assim-chamada “religião” vigente foi-lhe bruscamente
relembrada, e ele experimentou um trance em que percebeu a completa tolice de toda
ambição humana. A fama de um embaixador raramente dura mais de um século. A
de um poeta é quase tão efêmera. A terra mesma deve algum dia perecer. Ele tinha
portanto que construir usando algum material mais permanente. Esta percepção o
impeliu ao estudo da Alquimia e da Magia.
40
Em seus primeiros passos com literatura ocultista, entrou em contato com obras de
Arthur Waite e S.L. MacGregor Mathers. Deste último, mais especificamente, leu a
tradução de Kabbalah Desnuda, originalmente de von Rosenroth, um clássico da literatura
esotérica ocidental.
Através de contatos em comum, conheceu George Cecil Jones, o responsável por
apresentá-lo à Hermetic Order of Golden Dawn, a Ordem Hermética da Aurora Dourada,
uma sociedade secreta influenciada diretamente pela franco maçonaria, Teosofia e a
Societas Rosicruciana in Anglia (S.R.I.A.), uma sociedade Rosacruz. A Golden Dawn
contava com figuras ilustres, como o poeta W. B. Yates e o escritor de ocultismo S. L.
Mathers. Como nome mágico, Crowley assume o motto Perdurabo, significando “eu
perdurarei até o fim”.
A Golden Dawn é tida por muitos como a mais importante sociedade esotérica da
época, especialmente pela revitalização de diversas tradições mágicas européias. Os estudos
39
Em O Equinócio dos Deuses, apesar de ser uma pequena autobiografia, Crowley refere-se a si mesmo na
terceira pessoa.
40
CROWLEY 1976, 38.
31
provenientes de acerca de assuntos como Magia Enoquiana
41
, Teurgia
42
, Goécia
43
,
Abramelin
44
, Tarô, entre outros, são profundamente estudados até hoje
45
.
É a partir dos ensinamentos da Golden Dawn, e principalmente da influência de dois
membros: Alan Bennet, conhecido por ter trazido muito do Budismo para o Ocidente, e S.
L. MacGregor Mathers, que Crowley passou a montar seu próprio sistema de Magia sua
religião Thelema.
Muitos foram os fatores que fizeram Crowley sair da Golden Dawn, mas basta
deixar registrado que ele avançou muito rapidamente pelos graus da ordem (segundo
Symonds, isso teria se dado tanto por mérito próprio quanto por troca de favores), atingindo
o chamado “Colégio Interno”, um alto grau da ordem, em pouco mais de um ano, o que
causou grande revolta por alguns membros, que não reconheciam o grau de Crowley. Essa
revolta, em especial pela parte de W. B. Yates e seus simpatizantes, causou uma série de
conflitos que, por fim, resultaram na dissolução da ordem.
Segundo o relato oficial, em 1904, anos após sua saída da Ordem, Crowley estava
em lua de mel com sua esposa, Rose Edith Kelly, no Egito. Em determinado momento da
viagem, Rose diz ter recebido mensagens do deus egípcio Hórus, nas quais era ordenado à
Crowley que comparecesse em um determinado templo em um determinado horário por 3
dias consecutivos. Segundo Crowley, Rose não era vidente e nem tinha conhecimentos
acerca das chamadas “ciências ocultas”. É interessante colocarmos aqui trechos sobre a
descrição do recebimento das mensagens por Rose, especialmente como forma de
apresentar uma das passagens mais importantes da história thelêmica:
Quarta-feira 16 de Março: Invoco IAO
46
. (Fra. P.
47
nos diz que isto foi feito pelo
ritual do “inascido”, idêntico à “Invocação Preliminar” da “Goécia”, meramente para
divertir sua esposa mostrando-lhe os silfos. Ela se recusou a ver quaisquer silfos, ou
41
Sistema de Magia Angélica, montada pelo mago inglês John Dee e seu assistente Edward Kelly na
Inglaterra de Elizabeth I, no século XVI.
42
Sistema de Magia de invocação espiritual influenciada diretamente pelo neoplatonismo.
43
Sistema de Magia de invocação demoníaca, tendo como obra principal o grimório “A Clavícula de
Salomão”. Os espíritos goéticos (demônios) seriam os mesmos que eram controlados pelo Rei Salomão no
relato bíblico.
44
Sistema de Magia baseado no livro O Livro da Sagrada Magia de Abramelin, o Mago, por Abraão, o
Judeu, um grimório datado do século XV, cuja Operação Abramelin faria o magista entrar em contato com o
Sagrado Anjo Guardião, uma alta entidade espiritual.
45
REGARDIE 2006, 14-23.
46
Reconhecido pelos thelemitas como “o grande Deus dos gnósticos” (DUQUETTE 2007, 34).
47
Fra. P. = Frater Perdurabo, motto (nome mágico) de Crowley. Em outros momentos do texto, Crowley faz
referências a si mesmo apenas por “P.”.
32
foi incapaz de fazê-lo; mas ficou “inspirada” e repetia: “Eles estão esperando por
você!)
(Nota do Editor: O nome de solteira da mulher dele era Rose Edith Kelly. Ele a
chamava de Ouarda, a palavra árabe para “Rosa”. Ela é daqui em diante designada
por “Ouarda a Vidente”, ou “W.”, para encurtar).
W. diz que “eles” estão “me esperando”.
Quinta-feira 17 de Março: É tudo “sobre a criança”. Também, tudo “sobre Osíris”.
[...]
Sexta-feira 18 de Marco: Revelou que quem espera por mim é Hórus, que eu ofendi e
devo invocar. O ritual dado em esquema. Promessa de sucesso sábado ou domingo,
de Samadhi
48
. (Será “quem espera por mim” outra ironia? Não temos certeza. A
revelação do ritual (por W. a vidente) consistiu principalmente numa proibição de
todas as fórmulas até então usadas, como se verá do texto impresso mais adiante.)
Foi provavelmente nesse dia que P. examinou W. sobre Hórus. a notável
identificação que ela fez do Deus, seguramente, o teria feito dar-se ao trabalho de
obedecer às instruções dela. Ele se lembra de que apenas concordou em obedecer a
fim de mostrar-lhe quão tola era; e ele a desafiou, dizendo que nada acontece se a
gente quebra todas as regras”.
[...]
[segue então um relato de provas que Rose (W.) teve que passar como forma de
identificar que era realmente rus que estava se comunicando com ela. Ela teria
então provado tal contato ao passar por 12 provas de identificação sobre aspectos
diversos do Deus]
Não podemos insistir demasiado quanto ao caráter extraordinário desta identificação.
W. nunca pretendera ser clarividente; nem P. tentara jamais treiná-la para tal.
P. tinha grande experiência com clarividentes, e sempre fora um ponto de honra para
ele desmascará-los. E aqui estava uma noviça, uma mulher que nunca deveria ter
saído de um salão de baile, falando com a autoridade de Deus, e provando-se com
toda correção, sem hesitação alguma.
49
O relato continua e, segundo ele, após Crowley ter submetido Rose a todos os
testes, comprovando assim sua veracidade, ele compareceu no local e horários marcados,
onde lhe foi ditado por uma entidade chamada Aiwass um documento chamado O Livro da
Lei um livro que seria o guia para a humanidade, montado pelos Chefes Secretos que
regem o destino da Terra. É através deste livro que se estabelece a Lei de Thelema e a
48
Um elevado nível de consciência dentro do sistema de Ioga utilizado por Crowley.
49
CROWLEY 1976, 70-74.
33
chamada Era de Hórus, a Era da Criança Conquistadora e Coroada, no lugar da Era do Deus
Sacrificado e Moribundo.
Crowley passou o resto de sua vida se dedicando ao estudo e fundamentação de sua
nova doutrina, produzindo uma extensa obra que até hoje não está inteiramente publicada.
Durante os anos que se seguiram após os eventos de 1904 no Cairo, Crowley levou uma
vida peculiar: envolveu-se com drogas pesadas, aventuras sexuais, homens e mulheres
perturbados mentalmente, casou-se diversas vezes, perdeu todos seus filhos, viajou pelo
mundo, gastou todo seu dinheiro, e morreu em 1947, tendo ao seu lado alguns poucos
discípulos (tendo em vista que a grande maioria se afastou devido a desavenças).
Sua história de vida agitada e pouco comum (para a época em que viveu) geraram
diversas lendas sobre ele. Como mencionamos anteriormente, chegou a ser chamado pelos
tablóides ingleses de “o homem mais perverso do mundo”, um reflexo claro da rejeição
social que recebia devido seu trabalho com ocultismo e, mais ainda, pelo uso do motto “A
Grande Besta 666”.
Uma nota de curiosidade: em muitos de seus escritos Crowley falava sobre suas
vidas passadas
50
. John Symonds, em sua biografia The Great Beast, pontua quais teriam
sido elas
51
:
um Mestre Secreto
52
que viveu pouco antes do tempo de Mohamed, no século
VI, e que possuía o dever de trazer o conhecimento oriental para a Europa, além
de restaurar uma forma mais pura de paganismo;
o papa Alexandre VI, conhecido como sendo um dos papas mais corruptos da
história do papado católico fato que Crowley apreciava imensamente,
especificamente por causa de suas críticas ao cristianismo;
um sacerdote de Tebas durante a 26ª Dinastia do Egito antigo, chamado Ankh-f-
n-Khonsu;
o sábio chinês Ko Hsuan, discípulo de Lao-tzu, o autor do I Ching;
o seu próprio Sagrado Anjo Guardião (SAG), chamado Aiwass
53
;
50
Este é um fato curioso especialmente porque determina que Crowley acreditava em reencarnação, como ele
deixa claro em sua carta intitulada Reencarnação(CROWLEY 1991, 296-301). Contudo, na mesma carta,
também deixa claro que a crença em si da reencarnação não faz parte da doutrina thelêmica, pois sua
comprovação só seria possível através de visões pessoais, não sendo possível obter provas concretas.
51
Em sua obra, Symonds o colocou a lista de reencarnações de Crowley em modo cronológico.
Respeitamos aqui a ordem em que elas são apresentadas.
52
Explicaremos o conceito de “Mestre Secreto” em breve.
34
o ocultista e mago francês Eliphas Lévi, pseudônimo de Alfonse Louis Constant,
autor de vários livros sobre Magia e Cabala, considerados clássicos da literatura
ocultista ocidental
54
;
Giuseppe Balsamo, mais conhecido como Conde Cagliostro, magista e
aventureiro siciliano do século XVIII;
antes da encarnação como Cagliostro, foi um jovem “obscuro, pálido, com olhos
roxos profundos, uma cabeça muito grande para seu corpo e um olhar
fantasmagórico”, que teria se suicidado através de enforcamento com 26 ou 28
anos, provavelmente por causa de um mal relacionamento com sua mãe, que
Crowley sugere que era severa e autoritária. Ela era holandesa, alemã ou alemã-
suíça – Crowley não tinha certeza;
foi também um homem chamado Heinrich van Dorn. Esta encarnação era,
segundo Crowley, uma que o deixou chocado, pois fora totalmente dedicada a
uma vida fútil e muito ligada com magia negra, envolvendo grimórios e ritos
maléficos fúteis, pactos que eram debochados por Satã e crimes não-valorosos
até para Bruxas;
um russo de 45 anos chamado Padre Ivan (“Father Ivan”), que fora o
bibliotecário em um vasto castelo pertencente a monges militares;
antes do Padre Ivan, teria sido um hermafrodita jovem, com características mais
femininas do que masculinas, magro, tuberculoso, que teria morrido de sífilis
após ser estuprado por um alemão;
o vidente Edward Kelley, ajudante do magista, astrólogo, geógrafo,e matemático
John Dee, o conselheiro da Rainha Elizabeth. Dee e Kelley são conhecidos no
mundo ocultista como sendo os responsáveis por terem entrado em contato com
uma série de espíritos que se diziam “anjos”, supostamente os mesmos que
conversavam com Enoch no relato bíblico. Esses espíritos teriam revelado aos
dois um sistema de magia que seria mais tarde chamado de “Magia Enochiana”,
53
O conceito do SAG e quem foi Aiwass será explicado em breve. Essa identificação de Aiwass com
Crowley indicaria, segundo a doutrina thelêmica, que esta entidade chamada de SAG possui uma relação
anímica com o magista que entra em contato com ela.
54
Eliphas vi ainda estava vivo enquanto Crowley era ainda um feto no ventre da mãe mais precisamente,
Lévi morreu 6 meses antes do nascimento de Crowley. Symonds relata que, ao conversar sobre Crowley sobre
isso, contradizendo que seria impossível ele ser essa reencarnação, Crowley dizia que o espírito de Lévi (ou
seja, o dele mesmo) só entraria no ventre da mãe depois do 3º mês de gestação (SYMONDS 1973, 15).
35
que consiste em uma língua e alfabeto próprio supostamente uma linguagem
angelical.
55
também outras lembranças e relatos de Crowley sobre vidas passadas, mas essas
apontadas por Symonds são as mais relevantes dentro do nosso objetivo. Obviamente, não é
de nosso interesse defender ou desacreditar nos relatos de vidas passadas de Crowley.
Contudo, sua crença nessas vidas passadas, e no perfil de cada uma, nos ajudam a
compreender melhor como seu imaginário operava quais os símbolos que lhe davam
maior sentido e definição de seu próprio perfil psicológico, além de nos dar pistas mais
claras das influências em seu trabalho.
Muitas passagens de sua vida são ainda muito duvidosas, e cada biografia nova que
é lançada nos um ponto de vista diferente. Portanto, não é nosso objetivo aqui fazermos
suposições e julgamentos acerca da vida dele. Nos focaremos em suas obras escritas,
algumas em especial com maior atenção, e partiremos das idéias contidas nelas para o
estudo teórico acerca do tema “Ética e Moral” ao qual nos propusemos a fazer.
No plano geral, é importante termos em mente que Crowley se encontrava na
Inglaterra vitoriana, época de grande efervescência intelectual no meio artístico e esotérico,
visando uma crítica aos valores modernos e judaico-cristãos que marcavam a época. Como
místico, ele se baseava em trabalhos de cunho espiritual como forma de quebra e
questionamento desses valores impostos, focando toda sua doutrina na necessidade do
indivíduo ganhar força frente às moralidades vigentes. Daí vem, portanto, sua constante
crítica aos sistemas políticos e religiosos estabelecidos, sendo esses derivados, como
veremos mais a seguir, do pensamento iluminista e de uma moralidade judaica-cristã. A
Sociedade Teosófica de Blavatsky, o maior acesso aos sistemas místicos orientais (ioga,
técnicas de meditação, tantrismo etc) e especialmente o sistema da Golden Dawn como um
todo, além de pensamentos afirmativos, como o de Nietzsche, que visavam não apenas uma
negação dos aspectos considerados mais profundos e geralmente negligenciados pelo
pensamento iluminista, permitiram a Crowley a formação de um pensamento sincrético de
cunho místico/metafísico que tinha como plano a crença de que o desenvolvimento humano
ideal deve se dar em níveis além do material (político, social), o que refletiria no mundo
55
SYMONDS 1973, 13-21.
36
material por conseqüência
56
. Desta forma, ele se permitia a tal tarefa, deixando de lado uma
série de pressupostos morais enraizados em toda a mentalidade de sua época.
1.2 Conceitos e Matrizes Teóricas/Doutrinárias
Aqui, explicaremos alguns conceitos thelêmicos que serão de grande importância
para o decorrer do trabalho. É importante deixarmos claro aqui que é impossível traçar uma
descrição detalhada e completa de todos eles, especialmente porque fazem parte de um
sistema religioso que é pouco conhecido pelo público em geral. Tendo isso em mente, essas
explicações funcionarão mais como “panoramas gerais” que ajudarão a nos guiarmos pelo
pensamento de Crowley.
1.2.1 AEON
57
A palavra “Aeon” é derivada do grego αιών, e representa um longo período de
tempo, uma “Era”. No pensamento de Crowley, a chamada Era Cristã seria identificável à
imagem do deus egípcio Osíris, sendo a representação do “deus que morre”, ou “deus
sacrificado em nome da salvação de todos”
58
. Logo, esse período de tempo seria chamado
por ele de “Aeon de Osíris”. Essa Era teria encontrado seu fim no episódio do Cairo, em
1904, quando Crowley teria recebido o Livro da Lei que proclamaria a “Era (ou Aeon) de
Hórus”, com a proclamação da Lei de Thelema. Aiwass, a entidade que teria dito tal
documento para Crowley, seria o ministro de Hórus
59
.
56
Pode-se considerar que Crowley acreditava em um modelo de evolução espiritual e social que vem “de
dentro para fora”: o indivíduo ascende espiritualmente e, por conseqüência, a humanidade tornar-se-ia
“melhor”.
57
Não uma forma definida na escrita desta palavra. Em determinadas traduções, podemos ter: Æon, Aeon,
Éon ou Eão. Optamos aqui por “Aeon” por ser a forma que Crowley escrevia. Caso a grafia mude em
citações, como em DUQUETTE 2007, será como forma de preservar a integridade da fonte.
58
CROWLEY 1991, 54.
59
Como podemos ver no Livro da Lei, capítulo I, versículo 7: “Vê! Isto é revelado por Aiwass o ministro de
Hoor-paar-kraat” (CROWLEY 1997a, 95). “Hoor-paar-kraat” seria o deus Harpócrates, que é a forma em que
o deus Hórus é representado como uma criança inocente, sua forma passiva. No pensamento thelêmico, Hórus
também pode ser representado em sua forma ativa, Ra-Hoor-Khuit, que é o conquistadortriplamente
armado” (CROWLEY 1997a, 187). Esses dois aspectos de Hórus seriam complementares, e teriam funções
místicas específicas dentro do trabalho mágicko thelêmico.
37
Dentro do pensamento thelêmico, não devemos entender um “aeon” como um
período de tempo delimitado. Neste caso, ele seria um período de tempo que é
caracterizado pela eficácia de uma “fórmula mágica”. Sobre isso, Lon Milo Duquette, um
dos autores thelemitas mais prolíficos das últimas décadas, no afirma:
Uma fórmula mágica é um enunciado de como um fato ou teoria cosmológica é
percebido.
Pode ser tão simples quanto um axioma:
Ama teu próximo como a ti mesmo. Uma maçã por dia mantém o médico afastado.
Pode ser um enunciado ou um conjunto de símbolos que revelam o mecanismo de
uma lei natural:
Tanto em cima quanto embaixo. Tudo é sofrimento. Amor é a lei, amor sob
vontade.
E=MC
2
. YHVH. INRI. AUM.
Pode ser uma simples palavra que dá início a uma era inteira:
TAO; ANATTA; IAΩ; θέληµα
A fórmula mágica se desenvolve a partir de outra mais antiga, do mesmo modo
como aumenta a habilidade humana de perceber a si mesmo e o Universo. Uma
mudança na consciência torna necessária uma alteração na fórmula mágica.
Grandes períodos espirituais (eras ou éons) o caracterizados por suas rmulas
mágicas. Isso é muito importante e fundamental para a compreensão da Magia de
modo geral e da Magia Thelêmica em particular, pois o planeta bem recentemente
(falando de modo relativo) entrou em um novo período, uma nova era, um novo
éon.
60
Dentro desta perspectiva, ao mudar-se o Aeon, a consciência humana evoluiria,
trazendo novas visões, “ferramentas” mais eficazes de interpretação e manipulação do
mundo. Ao ser proferida a Lei de Thelema, uma nova mentalidade e fórmula mágica
surgiriam. Veremos mais sobre isso nos pontos em diante.
Ainda sobre o conceito de “Novo Aeon”, podemos perceber um provável paralelo
com os movimentos Nova Era que proclamavam o início da Era de Aquário, segundo uma
notação astrológica. Tal consideração, por uma perspectiva thelemita, é pertinente, mas
somente até um certo ponto, pois a Era de Aquário seria apenas uma pequena parcela do
que o Aeon de Hórus realmente representa. Além disso, a Era de Aquário propriamente
dita, baseada no Grande Ano Astrológico, possui uma duração cronológica mais precisa,
enquanto que um Aeon mágicko pode ter duração cronológica indefinida. Sobre isso
Duquette comenta:
Sim, coincide com o que astrólogos e compositores musicais chamam de Era de
Aquário
61
, citada por milhões de outros como, simplesmente, a Nova Era. Entretanto,
60
DUQUETTE 2007, 31-32.
61
(Nota de rodapé no original) O Grande Ano Astrológico dura aproximadamente 26 mil anos e é dividido
em 12 períodos de cerca de 2166 anos, cada etapa corresponde a um dos 12 signos do zodíaco. Uma vez que o
Sol não volta anualmente a seu exato ponto de partida, ele parece regressar lentamente por meio do zodíaco
38
seria um equívoco perceber esse novo éon como outro tique-taque de um grande
relógio smico. A Era de Aquário, apesar de profundamente significativa, é apenas
um dos aspectos de uma era espiritual muito maior. (Tais éons mágicos o
coincidem, necessariamente, com os períodos astrológicos e, segundo Crowley,
podem ser de qualquer tamanho).
Crowley reconhecia nos três principais deues do Egito, Ísis, Osíris e Hórus, as
fórmulas características dos três últimos éons.
O éon atual é o de Hórus, que sucedeu ao éon de Osíris, que sucedeu ao éon de Ísis.
Cada éon é caracterizado pelo nível de entendimento acerca da natureza e do eu que
prevalece contemporaneamente e que dita a variedade da expressão mágica e
religiosa que domina esses períodos.
62
Segundo a visão thelêmica, o Aeon de Ísis seria o primeiro estágio de evolução do
homem, quando este ainda estaria “conectado” à Terra. O símbolo da “Grande Mãe”
nutridora e acolhedora seria dominante, e não haveria repressão por parte de nenhuma
diferença de gênero sexual. Não apenas isso, mas acreditar-se-ia que todo o poder da Vida
era proveniente do corpo feminino.
Nos obscuros princípio do éon, os humanos eram ignorantes sobre os mistérios do
sexo e do nascimento, da sua causa e efeito. A vida parecia vir apenas a partir da
mulher. O sangue escorria de seu corpo inexplicavelmente com o meso ciclo que a
lua tinha. Quando o ciclo de sangramento era interrompido, a barriga dela inchava
durante nove luas a que uma nova vida brotasse. Então, ela continuava nutrindo
essa vida com seu leite, o sangue branco dos seios dela, e sem esse alimento, tirado
diretamente de seu corpo, a nova vida morreria.
63
Como exemplo de tal período, Duquette cita o período histórico de 2400 a.C.,
referindo-se especificamente ao culto de Innana (Ishtar) na vidade de Uruk, Suméria, mas
também indicando que havia adorações à Grande Deusa “por inúmeras culturas sob uma
miríade de nomes e formas”
64
. Ele também aponta que ainda “tribos de caçadores e
coletores” que exemplificam a forma de vida do Éon de Ísis, e que estes estão gradualmente
deixando de existir
65
.
O Aeon de Osíris, de onde provém a fóruma do “Deus Moribundo”
66
, seria o
responsável pelas formas de poder patriarcais, baseadas especialmente na força e domínio
masculinos. A identificação astronômica da humanidade teria mudado: ao invés de se
relacionarem simbolicamente com a Lua ou a Terra, passou-se a venerar o Sol. E assim
como o Sol “nasce” e “morre” todos os dias, a “morte”, especialmente o “sacrifício”, teria
em uma velocidade de um signo a cada 2166 anos. É por isso que a Era de Aquário segue a de Peixes, que por
sua vez segue a de Áries, etc. (DUQUETTE 2007, 32)
62
DUQUETTE 2007, 32-33.
63
DUQUETTE 2007, 35.
64
DUQUETTE 2007, 35.
65
DUQUETTE 2007, 36.
66
DUQUETTE 2007, 36.
39
se tornado a principal preocupação deste Aeon. Logo, proveriam daí as relações de
dominação ao outro, como forma de proteção.
67
Quando se tornou universalmente conhecido que sem o Sol a Terra pereceria, e que
sem o sêmen do homem a mulher permaneceria estéril, um grande pêndulo de
consciência racial e atitude deu uma guinada radical. A fórmula de Ísis foi alterada: a
mulher traz a vida, mas a vida vem do Sol. Deus agora era Pai.
Essa nova “iluminação” resultou em avanços sem precedentes para a civilização.
Armados com o conhecimento solar dos ciclos das estações, os lavradores da era
osiriana começaram a organizar o cultivo das lavouras. Cidades surgiram e com elas
as economias e os exércitos dos grandes Estados-nação. O patriarcado suplantou o
matriarcado e as deusas de inúmeras culturas se tornaram “esposas” de novas
divindades masculinas.
[...]
De maneira óbvia, o grande mito religioso/cultural dos egípcios era, literalmente,
de natureza osiriana, mas no início da era astrológica de Peixes (aproximadamente
260 a.C.), a fórmula do Deus Moribundo havia se cristalizado como o mito central de
incontáveis culturas e civilizações. Os deuses dos grandes cultos de mistério Orfeu,
Hércules, Dioniso, Átis, Adônis e, posteriormente, Cristo – foram assassinados e
ressuscitaram.
[...]
Esses cultos eram bastante populares. Para assegurar a ressurreição de alguém, era
necessário ser iniciado e seguir a fórmula da catástrofe, amor e morte do deus. Após
essas escolas de mistério, com uma forma parcialmente padronizada, o Cristianismo
ortodoxo cresceu para se tornar a influência espiritual e política dominante no mundo
pelos últimos 2 mil anos.
68
Com o desenvolvimento do homem, foi-se observando que o Sol não “morre” e
“renasce” todos os dias, mas sim que ele permanece “‘ligado’ o tempo todo”
69
. A percepção
do homem pelo seu Universo se alterou, evoluiu. Logo, mitos que dizem respeito a morte e
renascimento de deuses não teriam mais grande força ou, ao menos, começariam a
perder espaço. É aqui que entraria uma nova Era.
O Aeon de Hórus, o filho de Ísis e Osíris
70
, seria o início da Era em que o homem
deixaria de lado as obrigações impostas a si por outros e passaria a se preocupar com o
cumprimento da sua própria Vontade. As grandes instituições formadas de acordo com a
mentalidade do velho Aeon de Osíris (tais como Estado, instituições religiosas ou idéias
mais tradicionais de família) estariam “fora de sintonia” com a Era atual, apoiando-se em
67
DUQUETTE 2007, 36.
68
DUQUETTE 2007, 37-38.
69
DUQUETTE 2007, 38.
70
Esse é um aspecto interessante. Sendo “filho”, Hórus o busca ser necessariamente mais “feminino” ou
“masculino”, mas sim uma combinação do pai e da mãe uma geração adiante ou seja, mais evoluída e
adaptada (DUQUETTE 2007, 39).
40
fórmulas mágickas
71
que já não são mais tão eficazes. Deixar-se-ia de lado as velhas
preocupações de forma que os que vivem o novo aeon pudessem enfrentar os desafios que
estariam a surgir. Aqueles que reclamam sobre a brusca mudança de mentalidade e
costumes das novas gerações, dos “filhos de Hórus” (dentro de uma perspectiva thelêmica),
seriam os que ainda estão presos às mentalidades do aeon passado, buscando retomar os
valores daquela era que já teria passado.
A Fórmula da Criança Coroada e Conquistadora
72
: assim como a criança é o
produto físico e genético de seus dois pais, o éon de Hórus reconcilia e transcende a
fórmula das duas eras que o antecederam. Desde a virada do culo vemos a queda
do colonialismo e a destruição dos últimos vestígios do evidente domínio patriarcal
dos reis europeus. O poder temporal do Papa se foi, e as ilusões do poder espiritual
onipotente da Igreja se diluíram para além da esperança do renascimento.
A fórmula de adoração do éon de Ísis à Terra-mãe (violentamente reprimida
durante o éon de Osíris) foi transformada pela evolução de nossa consciência e
ressurgiu na forma de movimentos relacionados ao meio ambiente e de respeito à
Terra.
73
1.2.2 A VONTADE
“Thelema” (θέληµα) é uma palavra grega, e significa “vontade”. Nota-se então que
a própria doutrina é denominada pelo conceito que carrega, o que demonstra o grande
grau de importância do conceito. Justamente devido a isso, torna-se por conseqüência um
dos conceitos mais difíceis e complexos de ser compreendido. Ao que tudo indica, alguém
só consegue compreende-la realmente após descobrir qual é a sua. O conceito possui
natureza universal, porém relativa ao mesmo tempo. Isso porque, segundo Crowley, cada
ser humano possui uma Vontade única e individual. E, justamente por ser única, ela se
manifesta de maneiras diferentes a cada um. O objetivo o thelemita é, em linhas gerais,
descobrir sua verdadeira Vontade e, após isso, dedicar sua vida inteira ao seu cumprimento.
71
Apesar de soar como um contra-senso relacionar um termo como “fórmula gikaà idéia de Estado”,
por exemplo, tal relação ficará mais clara quando explicitarmos o conceito de Magia (k)propriamente dito.
Por enquanto, basta deixar claro que Magia(k)refere-se a qualquer ato que esteja em conformidade com a
verdadeira Vontade.
72
“A Criança Coroada e Conquistadora” é um dos títulos de Hórus dentro do pensamento thelêmico.
73
DUQUETTE 2007, 39 – Grifos do autor.
41
A necessidade do cumprimento da Vontade se demonstra através daquele que é
considerado o único mandamento em Thelema: “Faça a tua Vontade de ser o todo Lei”,
que se encontra no versículo 40 do primeiro capítulo do Livro da Lei.
74
HARVEY
75
, em seu artigo Satanismo: Realidades e Acusações, cita o conceito de
Vontade desenvolvido por Crowley como derivado de Santo Agostinho
76
. Mesmo
admitindo que existe grande similaridade entre as duas expressões, Crowley deixa claro que
existe grande diferença conceitual, que o que Agostinho quer dizer é que “se o coração
for cheio de amor, não como errar”
77
. Na realidade, sua concepção de “Vontade” e seu
único mandamento se aproximariam mais claramente do Fais ce que veulx
78
de François
Rabelais, o escritor francês do século XVI, cuja obra Gargantua e Pantagruel
79
menciona
uma “abadia de Thelema” em que os princípios da liberdade humana seriam respeitados ao
máximo, incluindo a proibição de adeptos de religiões supersticiosas. Para Crowley,
Thelema, como filosofia, possuía uma base científica, fundada na necessidade de
experiência pessoal, sendo assim contrária a qualquer crença baseada puramente na fé.
...a religião de Thelema é contrária a qualquer outra. Verdade, pois Thelema é Magia
(k), e Magia (k) é ciência, a antítese de hipóteses religiosas.
[...]
Membros de religiões supersticiosas não são permitidos a entrar na Abadia de
Thelema. No Livro da Lei a atitude não é meramente defensiva; a implicação é que a
superstição deve ser derrubada, ou ao menos que suas vítimas devem ser
definitivamente relegadas à classe de escravos
80
.
81
74
CROWLEY 1997a, 97. A tradução do mandamento foi alterada para os fins devidos dessa dissertação. O
motivo para tal deverá ser explanado no início do capítulo 2, quando nos aprofundaremos na dimensão ética e
moral do mandamento.
75
HARVEY 2002, 3.
76
“Ame, e faça o que quiseres”.
77
(Tradução nossa) “St. Augustine’s thesis is that if the heart be full of love, one cannot go wrong”
(CROWLEY 1998a, 162).
78
Faça o que quiseres”, em francês. Seria o equivalente ao “Do what thou wilt” crowleyano (como o próprio
acreditava ser).
79
RABELAIS 2003.
80
“Escravos”, no pensamento crowleyano, refere-se àqueles que não seguem a Lei de Thelema, ou seja, que
ainda estariam vivendo sob as leis dos velho aeon, a era cristã, do deus morto/sacrificado. Este pensamento
será melhor explicado no capítulo 2, em que discutiremos as idéias sobre Ética e Moral thelêmicas.
81
(Tradução nossa) “...the religion of Thelema is to be contrary to all others. True, for Thelema is Magick,
and Magick is science, the antithesis of the religious hypothesis.
[...]
Members of superstitious religions are not to be allowed to enter the Abbey of Thelema. In The Book of the
Law the attitude is not merely defensive; the implication is that superstition is to be stamped out, or at least
that its victims are to be definitely relegated to the slave-class”. (ibid, 164)
42
Crowley aponta vários pontos de concordância entre sua Thelema e as idéias de
Rabelais
82
, e é inegável a influência que este autor exerceu sobre o pensamento thelêmico.
Apesar disso, a Thelema de Crowley pretende ir além, ganhando dimensão ontológica de
conotação mística.
Talvez, a melhor forma de explicarmos o que é a verdadeira Vontade no
pensamento de Crowley é compará-la com o conceito de Destino. Enquanto este último
significa que um “caminho” que será trilhado por cada indivíduo, independente de sua
escolha e consciência, a Vontade indicaria a existência de tal caminho, o que não significa
que ele será necessariamente trilhado. É uma força-motora interna que age na alma de cada
ser humano, não possuindo forma definida, mas que se expressa através de seus atos. Em
outras palavras, se a compararmos com o conceito de Destino, veremos que este indica uma
vivência passiva dentro da criação e existência, enquanto que a Vontade implica em uma
participação ativa no mesmo cenário. O Destino se manifesta de cima (Deus[es]) para baixo
(homem); a Vontade, inerente ao homem, se manifesta de “dentro para fora (Universo)”.
Essa participação ativa do homem na sua existência, tornando-se co-criador do Cosmos,
leva Crowley a afirmar que aquele que descobre sua Vontade torna-se um Deus. Citando
uma passagem do Liber OZ, um dos documentos mais provocadores de todo o corpo de
obras thelêmicas, temos que “não existe deus senão o homem”
83
.
Ao afirmar tal idéia, Crowley quer dizer que todos os atos considerados divinos,
como revelações, milagres etc, possuem sempre uma origem humana e que o próprio
imaginário da sua determinada cultura acabou por tornar divina. Se pegarmos como
exemplo o deus egípcio Thoth, considerado deus da Magia e aquele que trouxe a escrita
para os homens, Crowley afirmava que ele havia sido um alto iniciado nos mistérios
místicos e que, dominando a arte da Magia, foi capaz de auxiliar na evolução da raça
humana como um todo afinal, através da escrita tornou-se possível aos homens se
comunicarem à distância. Tal ocorrência teria sido interpretada como um ato de magia
divina. Assim, ele tornou-se um Deus
84
.
Tal pensamento pode soar iconoclasta até um certo ponto, pois teoricamente
“reduziria” a imagem de um Deus (e toda sua “pregnância simbólica”) para uma natureza
82
(ibid, 162-169).
83
CROWLEY 1997a, 200.
84
CROWLEY 1997b, 185.
43
mais tátil, a humana. Contudo, não é o caso Crowley considera as imagens divinas como
pontos de inspiração que levam o homem a encontrar sua natureza mais profunda. É com o
auxílio de rituais e consagrações a essas imagens que o homem entraria em contato com sua
verdadeira Vontade.
Logo no início do primeiro capítulo do Livro da Lei, encontramos a seguinte
passagem: “cada homem e cada mulher é uma estrela”
85
. De acordo com a lei de Thelema,
assim que alguém entra em contato com sua verdadeira Vontade, e passa a exercê-la no
mundo, ele torna-se uma estrela, o equivalente a um Deus afinal, em um modelo
astronômico, as estrelas são o ponto de atração principal de um sistema solar, como o nosso
Sol. O homem deixa de ser um planeta em rotação ao redor de um astro maior (Deus) e
torna-se o centro de seu próprio Universo. Comentado a passagem sobre a natureza de
estrela, Crowley nos diz:
Esta tese se encontra completamente tratada em O Livro da Sabedoria ou Tolice
86
.
Sua declaração principal é de que cada ser humano é um Elemento do Cosmos, auto-
determinado e supremo, co-igual com todos os outros Deuses.
Daqui a Lei do “Faça a tua vontade” segue logicamente. Um estrela influencia
outra por atração, é claro; mas há incidentes e órbitas autopredestinadas.
[...]
Veja “O livro do Grande Auk”
87
para a demonstração de que cada estrela” é o
Centro do Universo para si-mesma, e que uma “estrela”, simples, original, absoluta,
pode aumentar sua onipotência, onisciência e onipresença sem deixar de ser ela
mesma; que uma maneira de fazer isso é ganhar experiência, e que então ela entra em
combinações nas quais sua verdadeira Natureza é disfarçada por um tempo, até
mesmo de si mesma. Analogamente, um átomo de carbono pode passar por uma
miríade de fases, aparecendo como Giz, Clorofórmio, Açúcar, Seiva, Cérebro e
Sangue, o reconhecível como em ‘si-mesmo’ o sólido negro e amorfo, mas
recuperável como tal, imutável de suas aventuras.
88
85
CROWLEY 1997a, 95.
86
Aqui ele se refere ao livro Liber Aleph (CROWLEY 2000).
87
Um diário de Crowley de 1919.
88
(Tradução nossa) This thesis is fully treated in The Book of Wisdom or Folly. Its main statement is that
each human being is an Element of the Cosmos, self-determined and supreme, co-equal with all other Gods.
From this the Law ‘Do what thou wilt’ follows logically. One star influences another by atraction, of course;
but these are incidents of self-predestined orbits.
[...]
See The Book of the Grat Auk’ for the demonstration that each ‘star’ is the Centre of the Universe to itself,
and that a ‘star’, simple, original, absolute, can add to its amnipotence, omniscience and omnipresence
without ceasing to be itself; that its one way to do this to gain experience, and that therefore it enters into
combinations in which its true Nature is for awhile disguised, even from itself. Analogously, an atom of
carbon may passa through myriad Proteus-phases, appearing in Chalk, Chloroform, Sugar, Sap, Brain and
Blood, not recozignable as ‘itself’ the black amorphous solid, but recoverable as such, unchanged by its
adventures.” (CROWLEY 1996a, 25).
44
Ela não é uma função psicológica e nem uma forma de agir. Ao contrário, em uma
concepção claramente metafísica do Ser, regula os atos e o próprio perfil de cada pessoa.
Seria o impulso mais profundo da característica existencial e, caso alguém não tenha
consciência da sua própria, estaria fadada para ser sempre um(a) errante. Segundo Crowley,
ela seria a fonte de todo poder humano, e, como tal, teria uma grande parcela de sua
potência e manifestação inconscientes
89
.
Também não devemos confundir “Vontade” com “Desejo” este deveria ser uma
conseqüência daquela. Em um thelemita, todo desejo seria proveniente daquele primeiro
impulso que é a Vontade. Podemos concluir que o conceito de Vontade seria, segundo
Crowley, a explicação ontológica de todo o verdadeiro agir humano.
Apesar disso, devemos lembrar que, no sistema thelêmico, a Vontade não é
abertamente declarada aos homens. Ela é velada, e é necessário um comprometimento com
o Eu mais profundo para ser descoberta. Sua revelação se daria através de uma etapa da
evolução espiritual do adepto, chamada de “Conversação com o Sagrado Anjo Guardião
(CSGA)”. Explanaremos sobre esta etapa mais adiante.
ainda a concepção de que existem aqueles que, mesmo sem passarem pelo
estágio da CSGA, podem estar vivendo em conformidade com sua Vontade, mesmo sem
nunca terem ouvido falar sobre “Thelema” ou “Crowley”. É o caso de Nietzsche, por
exemplo, que Crowley considerava como um “profeta de Thelema”
90
. Apesar do filósofo
não ser um místico ou iniciado em mistérios esotéricos, sua obra seria de tal importância
que demonstraria um “estado de gênio”, condição esta que Crowley relacionava com o
momento em que alguém atua de acordo com sua verdadeira Vontade.
No caso contrário, teríamos aqueles que viveriam ignorantes de suas próprias
Vontades. Segundo o pensamento thelêmico, uma pessoa em tal situação jamais deixará sua
condição de submissão aos outros homens, sendo para sempre um “escravo”. De acordo
com o Livro da Lei, Capítulo II, versículo 58:
Sim! Não penseis em mudança: vós sois como vós sois, & não outro. Portanto os reis
da terra serão Reis para sempre: os escravos servirão. Nenhum existe que será
derrubado ou elevado: tudo é como sempre foi. Ainda assim, existem mascarados
meus servidores: pode ser que aquele mendigo ali seja um Rei. Um rei pode escolher
89
CROWLEY 1996a, 119.
90
CROWLEY 1991, 303. Esta consideração será de fundamental importância no capítulo seguinte, quando
delimitaremos os padrões do pensamento crowleyano sobre Ética e Moral.
45
sua roupa como quiser: não existe teste certo: mas um mendigo não pode esconder
sua pobreza.
91
“Os escravos servirão” é uma das passagens mais significativas do Livro da Lei,
referindo-se justamente àqueles que não seriam capazes de assumir a lei de Thelema como
norma fundamental de conduta. Em outras palavras, refere-se àqueles que não desejam (ou
não possuem capacidade) de despertarem suas verdadeiras Vontades e se tornarem co-
criadores de suas próprias existências. Pode-se dizer que ficariam ainda submetidos à
mentalidade osiriana, não sendo em si “estrelas”, somente orbitando em volta de outras
ou seja, subordinadas às vidas de outros. Enfim, um “escravo”.
Um outro caso possível seria daquele que descobre sua verdadeira Vontade, mas
que, ao invés de cumpri-la, acabaria por deixá-la de lado para satisfação de desejos do Ego.
Crowley diversas vezes alerta que a Vontade está além dos domínios egóicos, e que muitas
vezes o “fardo” da Vontade pode ser pesado demais. Contudo, após a iniciação, e
principalmente após a revelação dela pelo SAG, não seria possível voltar atrás. “Tu não
tens direito senão de fazer a tua vontade”
92
. Sobre este trecho do livro da Lei, Crowley nos
comenta:
Um estado organizado é uma associação livre para o bem-comum. Meu desejo
pessoal de cruzar o Atlântico, por exemplo, é realizado por cooperação com outros
em termos de acordo. Mas a associação forçada de escravos é uma outra coisa.
Um homem que o esrealizando sua vontade é como um homem com câncer,
um crescimento independente dentro dele, do qual o pode se ver livre. A idéia de
auto-sacrifício é um câncer moral neste mesmo exato sentido.
Similarmente, alguém pode dizer que não fazer sua própria vontade é evidência de
insanidade moral ou mental. Quando “o dever aponta um caminho, e inclinação
outro”, é prova de que você não é um, mas dois. Você o centralizou seu controle.
Esta dicotomia é o início do conflito, que pode resultar em um efeito Jekyll-Hyde
93
.
O que Crowley está querendo demonstrar é que, segundo sua doutrina, é necessário
que todos os atos e desejos entrem em conformidade com a Vontade. Do contrário, haverá
uma dispersão de forças que poderá fazer o adepto largar sua caminhada. Quando escreve
91
CROWLEY 1997a, 104-105. Grifo nosso.
92
CROWLEY 1997a, 97.
93
(Tradução nossa) “An organized state is a free association for the common weal. My personal will to cross
the Atlantic, for example, is made effective by cooperation with others on agreed terms. But the forced
association of slaves is another thing.
A man who is not doing his will is like a man with cancer, an independent growth in him, yet one from which
he cannot get free. The idea of self-sacrifice is a moral cancer in exactly this sense.
Similarly, one may say that not to do one’s will is evidence of mental or moral insanity. When duty points
one way, and inclination the other’, it is proof that you are not one, but two. You have not centralized your
control. This dichotomy is the beginning of conflict, which may result in a Jekyll-Hyde effect.(CROWLEY
1996a, 45).
46
“a idéia do auto-sacrifício é um câncer moral”, é necessário compreender essa passagem da
seguinte forma: de um ponto de vista thelêmico, o auto-sacrifício é válido se estiver em
conformidade com a Vontade. Se não for o caso, e ainda assim desejar-se realizar um auto-
sacrifício em nome de concepções e matrizes de natureza moral pré-estabelecidas
socialmente, um tipo de atitude recorrente na época de Crowley e, segundo ele, hipócrita, o
ato seria uma perda de tempo e energia, afastando o adepto da realização da sua verdadeira
Vontade.
No caso de tal atitude “inútil” ocorrer após a revelação dela, ele se tornará um
“Irmão Negro”, ou seja, um iniciado que preferiu utilizar todo seu conhecimento mágicko
em benefício de seu ego (perspectiva individualista) ao invés do cumprimento de sua
Vontade (perspectiva altruísta). Sobre o “Irmão Negro”, Crowley explica que “o que está
prestes a se tornar um Irmão Negro constantemente restringe a si-mesmo; ele se satisfaz
com um ideal muito limitado; ele tem medo de perder sua individualidade”
94
. Este é um
ponto interessante da doutrina thelêmica: apesar do conceito de “Vontade” se focar no
indivíduo, realizá-la é vista como um ato de compaixão com o meio, um ato altruísta
afinal, somente assim é que a natureza humana entraria em harmonia com o Universo. Ao
realizar sua Vontade, o indivíduo se perde, pois funde-se ao Absoluto.
1.2.3 O AMOR
O mandamento thelêmico, encontrado no Livro da Lei, Cap. I, versículo 40,postula
“Faça a tua Vontade de ser tudo da Lei”. Esse mandamento serve também como uma
saudação entre os thelemitas, tanto escrita quanto oralmente
95
. “Vontade” (Wilt ou Will, em
inglês), sendo originária do grego Thelema (θέληµα), possui um valor numérico, graças ao
fato de que, no alfabeto grego, cada letra possui um valor numérico próprio, assim como no
alfabeto hebraico
96
. No caso de θέληµα, temos:
Θ (Theta) = 9 +
έ (Epsilon) = 5 +
94
(Tradução nossa) The about-to-be-Black Brother constantly restricts himself; he is satisfied with a very
limited ideal; he is afraid of losing his individuality”. (CROWLEY 1991, 110).
95
CROWLEY 2007, 49.
96
No caso do hebraico, o cálculo do valor numérico das palavras se dá por um processo equivalente, mas
chamado de Gematria.
47
λ (Lambda) = 30 +
η (Eta) = 8 +
µ (Mu) = 40 +
α (Alpha) =1 +
TOTAL = 93.
Esse método de cálculo do valor numérico de cada palavra grega é chamado de
Isopsefia, uma prática extensivamente utilizada por ocultistas em geral, e, obviamente, por
Aleister Crowley e thelemitas. Vimos então, pela Isopsefia, que Thelema equivale ao
número 93. Sendo assim, esses termos são intercambiáveis, e assim o são geralmente. No
caso da saudação thelêmica, por exemplo, ao invés de proferir o mandamento, é comum
iniciar cartas simplesmente com o número 93. É como um código: ao se abrir uma carta
com o número 93 na linha de saudação, já é possível identificar que ela é de um thelemita.
Mas um outro ponto na questão de isopsefia que apontamos que é ainda mais
importante no sistema thelêmico, e é a relação de “Vontade” (Thelema) com “Amor”
(Agapé). No versículo 57 do primeiro capítulo do Livro da Lei, é dito: “Amor é a lei, amor
sob vontade”
97
. Segundo Crowley, “amor” nesta sentença relaciona-se com a palavra grega
Agapé (Αγαπη), cuja soma também é 93, como podemos calcular a seguir:
Α (Alpha) = 1 +
γ (Gamma) = 3 +
α (Alpha) = 1 +
π (Pi) = 80 +
η (Eta) = 8 +
TOTAL = 93.
De acordo com Crowley, o fato da soma das duas palavras possuir o mesmo valor
significa que existe uma afinidade entre os conceitos. Portanto, “Amor é a Lei, amor sob
vontade” acabou por tornar-se uma continuação do mandamento thelêmico, deixando claro
que somente com amor é possível cumprir a Vontade estando o amor sempre sujeito à
Vontade. A sentença também é usada para sinalizar o fim de cartas e documentos
97
CROWLEY 1997a, 99.
48
thelêmicos e, caso o adepto opte utilizar somente números, ela é representada da seguinte
forma: “93,93/93” (amor=93, amor sob vontade = 93/93).
Como é um conceito que pode facilmente ser erroneamente interpretado devido aos
vários usos que possui, é importante deixarmos claro que a definição de Amor Agapé para
Crowley difere muito da concepção cristã do termo. No pensamento thelêmico, Amor é a
capacidade humana de aceitação do meio em que vive, unindo-se com ele de todas as
formas que forem possíveis. Conseqüentemente, Crowley também aponta que o “ato de
Amor”
98
exige a compreensão de que o Universo está sempre em transição, constante
mutação, e que, portanto, o Amor é igual à Mudança – em outras palavras, transformar-se é
um ato de amor. Esse posicionamento busca ser um ponto de crítica ao tipo de pensamento
mais conservador da época de Crowley, em que se prezava pelos “bons costumes”,
“tradição familiar cristã”, entre outros valores do tipo. Ele desprezava tais desejos,
considerando-os retrógrados, limitadores e anti-humanitários.
Mas s de Thelema, como o artista, o verdadeiro amante do Amor, desinibido e
destemido, vendo Deus face a face igualmente internamente em nossas próprias
almas e em toda a Natureza externa, apesar de usarmos, como o burguês o faz
99
, a
palavra Amor, nós o postulamos a palavra “tão freqüentemente profanada para que
nós a profanemos”; ela queima inviolada em seu santuário, renascendo imaculada
com todo respiro de vida. Mas por “Amor” nós queremos dizer uma coisa da qual o
olho do burguês não viu, nem seu ouvido escutou; nem seu coração concebeu. Nós
aceitamos o Amor como o significado de Mudança, Mudança sendo a Vida de toda
Matéria que existe no Universo. E s aceitamos Amor como o modo de Movimento
da Vontade para Mudar. Para nós todo ato, implicando Mudança, é um ato de Amor.
A vida é uma dança de deleite, seu ritmo um infinito êxtase que nunca se torna
cansado ou monótono.
100
98
CROWLEY 1996a, 73.
99
É comum em escritos de Crowley ataques à burguesia. Estes acontecem pelo desprezo que ele possuía pela
elevação social dos valores de tal classe, que, para ele, eram o símbolo de toda hipocrisia moral cristão em sua
época. Em outras palavras, o burguês”, para Crowley, era a representação estereotipada da perversão de
valores que deveriam ser de natureza espiritual pura. Essa “perversão” seria um dos motivos da necessidade
para a Lei de Thelema surgir em seu tempo uma forma de renascimento das religiões do mundo, um
apocalipse simbólico.
100
(Tradução nossa) “But we of Thelema, like the artist, the true lover of Love, shameless and fearless, seeing
God face to face alike our own souls within and in all Nature without, though we use, as the bourgeois does,
the word Love, we hold not the word ‘too often profaned for us to profane it’; it burns inviolate in its
sanctuary, being reborn immaculate with every breath of life. But by ‘Love’ we mean a thing which the eye of
the bourgeois hath not seen, nor his ear heard; neither hath his heart conceived it. We have accepted Love as
the meaning of Change, Change being the Life of all Matter soever in the Universe. And we have accepted
Love as the mode of Motion of the Will to Change. To us every act, as implying Change, is an act of Love.
Life is a dance of delight, its rhythm an infinite rapture that never can weary or stale.” (CROWLEY 1996a,
73-74).
49
Com essas considerações, entendemos um pouco mais sobre a natureza e o
funcionamento da Vontade na concepção crowleyana: ela envolve uma aceitação de
constante mudança do fluxo vital. Em outras palavras, é como se o desejo por
“estabilidade” fosse um inimigo natural da evolução espiritual de um thelemita. Este deve
estar sempre preparado para mudanças que sua Vontade exigir. Este seria um ato de Amor.
Além desse aspecto, também a aceitação do corpo. Rejeitando qualquer idéia
religiosa de rejeição do próprio corpo, especialmente em conotação sexual, Crowley afirma
que sua Thelema é a aceitação do corpo como o veículo de expressão do Si-próprio
101
.
“Amar ao próximo”, no contexto thelêmico, não pode estar relacionado às
imposições de ideologias cristãs, que, segundo Crowley, “forçam” o indivíduo a agir contra
sua própria Vontade. Significaria então um ato mais próximo do respeito, o reconhecimento
de que aquele que precisa de ajuda é também um Deus. Veremos mais sobre isso no
capítulo seguinte.
1.2.4 MAGIA (K)
Na língua inglesa, ao contrário do português, não diferença entre “Magia” e
“Mágica”. Ambas palavras são “magic”, o que causava desconforto conceitual à Crowley,
já que o primeiro termo faz referência a mudanças de origem metafísica no ambiente físico,
e o outro é mais próprio de truques de ilusionismo.
Para sanar este problema, Crowley cunhou um termo próprio, “Magick”. Dessa
forma, foi possível deixar claro que seu trabalho, sua Magia, se referia a exercícios de
evolução espiritual. Symonds comenta a importância do k no conceito crowleyano:
O k saxão, adicionado ao c em Magick, foi aqui usado por ele [no livro Magick:Book
Four] pela primeira vez, para ligar sua linha com a Ciência da Magia, opostamente a
meros truques de conjuração. Ele tem também um significado secreto, pois k
representa kteis, grego para as genitálias femininas, as quais estavam agora
representando uma grande parte das operações mágicas de Crowley.
102
101
CROWLEY 1996a, 75.
102
(Tradução nossa) “The Saxon k, added to the c in magick, was here used by him for the first time, to link
his brand with the Science of the Magi, as opposed to mere conjuring tricks. It has also a secret meaning, for
the k stands for kteis, Greek for the female genitals which were now playing a large part in Crowley’s magical
operations”. (SYMONDS 1973, 173).
50
Na definição de Crowley, Magia (k) é “a Ciência e Arte de causar Mudança em
conformidade com a Vontade”
103
. É um trabalho de natureza espiritual sim, mas que
envolve também os atos mundanos, menores. Na filosofia thelêmica, todo ato deve estar em
sintonia com a Vontade sendo assim, todo ato torna-se um ato mágicko. Crowley ilustra
essa definição da seguinte forma:
(Ilustração: É minha Vontade informar ao Mundo sobre certos fatos dentro de meu
conhecimento. A partir daí eu pego “armas mágicas”, caneta, tinta, e papel; eu
escrevo “encantamentos” estas frases – em uma “linguagem gica”, isto é, aquela
que é compreendida pelas pessoas que eu desejo instruir; eu convoco “espíritos”, tais
como impressores, editores, vendedores de livros, e assim por diante, e os restrinjo a
transmitir minha mensagem para aquelas pessoas. A composição e distribuição deste
livro é então um ato de Magia (k) pela qual eu causo Mudanças a ocorrerem em
conformidade com minha Vontade).
104
Por uma perspectiva thelêmica, podemos definir que não existe um ato “bom” ou
“ruim” em si todo ato terá sua avaliação qualitativa apenas quando analisado em relação
com a Vontade do operador. Para exemplificar melhor, podemos pensar no caso do uso de
drogas ilícitas, considerado um ato socialmente imoral. Apesar desse julgamento social,
caso a Vontade de um indivíduo exija que ele passe por determinada experiência, ele não
será um ato ruim, mas sim necessário.
Utilizando ainda do exemplo sobre drogas ilícitas: caso a Vontade do adepto exija
tal experiência e ele não a cumpra, tal restrição será considerada como Magia Negra.
Afinal, indo contra a natureza mais profunda do Ser, é um ato maligno. “Portanto querer
qualquer coisa senão a coisa suprema é desviar-se ainda mais desta qualquer Vontade
senão aquela de entregar o eu ao Bem-Amado é Magia Negra [...]”
105
.
Esta breve ilustração deve servir para deixar claro que, apesar de se manifestar no
plano físico, a Vontade, segundo Crowley, seria completamente independente de
julgamentos mundanos, restrições sociais e limitações afins, do mesmo modo que os atos
103
(Tradução nossa) “Magick is the Science and Art of causing Change to occur in conformity with Will”.
(CROWLEY 1997b, 126).
104
(Tradução nossa) “(Illustration: It is my Will to inform the World of certain facts within my knowledge. I
therefore take ‘magical weapons,’ pen, ink, and paper; I write ‘incantations’ – these sentences – in the
‘magical language,’ i.e., that which is understood by the people I wish to instruct; I call forth ‘spirits’, such as
printers, publishers, booksellers, and so forth, and constrain them to convey my message to those people. The
composition and distribution of this book is thus an act of Magick by which I cause Changes to take place in
conformity with my Will.) (CROWLEY 1997b, 126).
105
(Tradução nossa) “Hence to Will anything but the supreme thing, is to wander still further from it any
Will but that to give up the self to the Beloved is Black Magic [...]”.(CROWLEY 1997b, 62. Grifos do
autor).
51
necessários para sua consecução seriam de natureza mágicka, também alheios a qualquer
tipo de crítica profana.
Sobre os rituais mágickos em si, Crowley é mundialmente conhecido especialmente
por seus trabalhos em magia sexual, nos quais ele misturava Ioga, Tantra e esoterismo
ocidental. Como tais assuntos eram tabus em sua época, Crowley, como um bom ocultista,
utilizava de seus conhecimentos literários para escrever em código. Duquette comenta
sobre esse curioso fato:
Antes de qualquer coisa, Crowley se sentia obrigado por rios juramentos a o
revelar abertamente certos segredos de Magia Sexual. Depois, na época em que
redigia sobre esses temas, alguém que escrevesse explicitamente a respeito de
assuntos sexuais realmente podia ser preso.
Lamentavelmente, na Parte 3, Capítulo 12 de Magick:Book Four, Líber ABA
[Magia: Livro Quatro, Líber ABA], na qual Crowley discute teorias e técnicas de
magia sexual, parece que ele não se satisfez em ser meramente sutil, pois deixou o
seu estilo para ser mal interpretado escandalosamente. Quem sabe, naquele tempo,
para apenas alguns iniciados sobre a face da Terra, o capítulo 12 se mostrasse um
ensaio informativo (e hilário em algumas passagens) sobre a teoria e a prática da
magia sexual. Entre outras tolas armadilhas, as palavras “sangue”, “morte” e “matar
são usadas no lugar de “sêmen”, êxtase” e “ejaculação”. Ao indigno, o capítulo
inteiro se parece com um grande manual de instruções sobre sacrifício humano ou
animal. Grande piada!
Ninguém riu.
106
1.2.5 OS CHEFES/MESTRES SECRETOS
Os Chefes Secretos, segundo a Golden Dawn parece ter adotado da Teosofia de
Blavatsky, são os
Mestres que observam os assuntos dos homens de suas cavernas no Tibete ou, caso
sejam espíritos, do Empireu. O conceito de Chefes Secretos Mahatmas é da antiga
tradição Indiana. Em tempos recentes foi popularizado pelo nome de “Mestres
Secretos” por Helena Petrovna Blavatsky e sua Sociedade Teosófica
107
.
Aqui, podemos notar com maior clareza a evidente influência que a Sociedade
Teosófica de Blavatsky exerceu nos meios esotéricos europeus, cujo conceito de “Chefes
Secretos” parece ter sido adotado e trabalhado com grande afinco por Crowley. Tal
conceito era utilizado pela Golden Dawn, sociedade esotérica em que se iniciou, e esta idéia
106
(DUQUETTE 2007, 22-23)
107
(Tradução nossa) “Masters who watch over the affairs of men from their caves in Tibet or, in so far as they
are spirit, from the empyrean. The concept of Secret Chiefs or Mahatmas is of ancient Indian tradition. In
recent times it was popularised under the name of Hidden Masters by Helena Petrovna Blavatsky and her
Theosophical Society.” (SYMONDS 1973, 33-34).
52
o acompanhou por toda sua vida. Para ele, os Mestres Secretos compõem um corpo de
grandes iniciados que podem se encontrar no plano material ou não, estando ou não
encarnados, e auxiliam a humanidade em sua evolução espiritual. Aiwass, o Ministro de
Hórus ao qual Crowley creditava o ditado do Livro da Lei, teria sido um desses Mestres, se
encaixando em uma classe especial deles, chamada de “Sagrado Anjo Guardião”
108
, ou
simplesmente SAG. Sobre esta classe, veremos mais adiante.
Crowley afirmava que os Chefes Secretos eram os responsáveis pelos rumos que a
humanidade tomava, sendo os agentes causadores de grandes eventos tanto benéficos,
como grandes descobertas científicas, quanto maléficos, como Guerras. Ainda segundo
Crowley, por serem altos iniciados, estariam acima de avaliações ético-morais realizadas
pela humanidade também. Seus métodos de auxílio à evolução espiritual dos homens
seriam velados, mas sempre com propósito.
Sendo “secretos”, Crowley dizia que os mesmos eram “invisíveis e inacessíveis”,
qualidades essas que desapareciam no instante em que um deles entra em contato com o
adepto. Em outras palavras, segundo o próprio Crowley, poder-se-ia até mesmo considerá-
los como invenções de “auto-proclamados ‘Mestres’ inseguros”, sendo possível a
comprovação da existência de tais seres após contato com os mesmos.
109
Crowley nos fornece alguns pontos fundamentais na compreensão de como agem e
vivem esses Mestres Secretos:
Mas são Eles homens, no sentido usual da palavra? Eles podem ser encarnados ou
desencarnados: é uma questão da conveniência Deles.
Eles atingiram tais posições [de alto grau de elevação espiritual] por passar por
todos os graus da A.’.A.’.
110
?
Sim e o: o sistema que me foi dado a continuar [o da A.’.A.’.] é apenas um de
muitos. “Acima do Abismo”
111
todas essas rugas técnicas são passadas. Um homem
que suspeito ser um Chefe Secreto mal tem qualquer conhecimento da técnica de
nosso sistema. O fato de que ele aceita o Livro da Lei é quase a única ligação com
meu trabalho.
112
108
Em inglês, Holy Guardian Angel – HGA.
109
CROWLEY 1991, 93.
110
A.’.A.’. = Astrvm Argentvm, ordem fundada por Crowley como forma de sistematização do seu método
iniciático, além de ser um veículo fundamental na propagação da Lei de Thelema. A apresentaremos em
linhas gerais no decorrer do trabalho.
111
Acima do Abismo” é um termo thelêmico que significa um dos últimos estágios da evolução espiritual de
um adepto. É assim chamado porque é representado pelocruzamento do Abismo do Conhecimento”, um dos
nomes da sephirah Däath na Árvore da Vida da Cabala.
112
(Tradução nossa) “But are They then men, in the usual sense of the word? They may be incarnate or
discarnate: it is a matter of Their convenience.
Have They attained Their position by passing through all the grades of the AA?
53
1.2.6 O SAGRADO ANJO GUARDIÃO (SAG)
Segundo Crowley, Aiwass é a entidade que lhe ditou o Livro da Lei no Cairo em
1904, como mencionamos anteriormente. Crowley se referia a ele como um Chefe Secreto
e também como seu Sagrado Anjo Guardião.
113
Pode também ser chamado de “gênio”,
“figura de gênio”, “daimon”, “Deus interno”, ou, simplesmente, “Deus”
114
.
O conceito de SAG vêm de um antigo manuscrito de Magia Judaica intitulado
“Operação Abramelin”, que fora traduzido pelo antigo mestre de Crowley da Golden
Dawn, S. L. MacGregor Mathers. A Golden Dawn incorporou o conceito em seu sistema de
iniciação, e é daí que ele passou a trabalhar com tal conceito
115
.
No sistema thelêmico, o SAG é uma entidade objetiva - um Mestre, um alto
iniciado, um Chefe Secreto, um ser que existe independente do adepto
116
. O objetivo do
thelemita é entrar em contato com este Mestre que então lhe revelará qual é a sua
verdadeira Vontade. Esse processo é chamado de Conversação com o Sagrado Anjo
Guardião (CSAG). A partir daí, o adepto não terá outra opção a não ser realizá-la.
Crowley comparava a figura do SAG com a de um “Deus particular” o que o
diferenciaria substancialmente de outros Chefes Secretos, que estes poderiam ser
contatos de diversas formas
117
. Não é o caso do SAG: cada adepto possui seu próprio.
Sobre isso, ele comenta:
Ele é uma Pessoa, um Indivíduo macro cósmico. (Nós o sabemos sobre seu
nascimento e aí por diante; mas isso é porque ele é como um Deus pessoal; ele
Yes and no: the system which was given to me to put forward is only one of many. "Above the Abyss" all
these technical wrinkles are ironed out. One man whom I suspect of being a Secret Chief has hardly any
acquaintance with the technique of our system at all. That he accepts The Book of the Law is almost his only
link with my work.” (CROWLEY 1991, 93-94).
113
CROWLEY 1991, 94.
114
Crowley acreditava que a visão do SAG por um adepto seria muito próxima de se ver um Deus e, por isso,
se daria a confusão – afinal, os próprios Deuses teriam sido grandes iniciados do passado. Somente a
experiência e convivência do Adepto com tal entidade tornaria possível a distinção.
115
A “Operação Abramelin” possui tradução em Português. Conferir ABRÃAO 1997.
116
CROWLEY 1991, 279-282.
117
Crowley possui relatos de trabalhos mágickos nos quais ele teria entrado em contato com diversos destes
Chefes. Os relatos mais famosos são dois: o trabalho de Amalantrah (ainda não publicado, mas pode ser lido
em http://www.hermetic.com/crowley/libers/lib729.html - último acesso em 10 de Fevereiro de 2010) e o de
Ab-ul-Diz (CROWLEY 1998b, 287-337). Este último em especial teria sido o responsável pela produção do
livro que é considerado por muitos thelemitas como sua obra-prima, o livro Magick Book 4 (CROWLEY
1997b).
54
apenas realmente aparece para o mundo através de alguma referência a ele por seu
cliente; por exemplo, o gênio ou Augoeides de Sócrates).
118
A relação de um adepto com seu SAG é uma das dimensões menos pouco
conhecidas aos não-thelemitas. São pouquíssimos os relatos daqueles que dizem ter passado
por tais experiências, sendo que a principal referência acaba sendo os diários do próprio
Crowley.
1.2.7 BABALON E A MULHER ESCARLATE
A interpretação sobre “o que é” ou “quem é” Babalon é uma discussão comum entre
os thelemitas
119
. Enquanto alguns a identificam como uma Deusa, outros a vêem mais
como uma essência, uma energia que possui representações em imagens de mulheres fortes,
poderosas, independentes. Em outras palavras, um símbolo da liberdade thelêmica,
condicionada pela Vontade. Apesar de haver a discussão sobre se ela é uma entidade
objetiva ou um princípio energético, Crowley sempre a representava na imagem de uma
“prostituta sagrada”, indo contra o conceito da “mulher virgem”, pregada, segundo ele,
como modelo feminino ideal pelo cristianismo. Essa prostituta teria uma de primeiras
representações mais significativas no livro do Apocalipse de João, que Crowley tanto
admirava, na figura da prostituta da Babilônia que montava a Besta.
A passagem mais clara do Livro da Lei sobre esse desejo de ruptura da imagem da
mulher virgem pela da prostituta encontra-se em seu terceiro capítulo, no verso 55, em que
se “Que Maria inviolada seja despedaçada sobre rodas: que por amor a ela todas as
mulheres castas sejam desprezadas entre vós”
120
.
Fora as questões místicas implícitas em toda a formulação sobre BABALON, que
foram extensamente trabalhadas em livros como The Vision and the Voice
121
dele mesmo,
ou no The Book of Babalon de Jack Parsons
122
, ou ainda mais recentemente por Peter Grey
118
(Tradução nossa) “He is a Person, a macrocosmic Individual. (We do not know about his birth and so on;
but that is because he is, so to speak, a private God; he only appears to the world at all through some reference
to him by his client; for instance, the genius or Augoeides of Socrates).” (CROWLEY 1991, 465).
119
Como exemplo, http://www.lashtal.com/nuke/PNphpBB2-viewtopic-t-608-highlight-babalon.phtml -
último acesso em 10 de Fevereiro de 2010.
120
Livro da Lei, Capítulo III, versículo 55 (CROWLEY 1997a, 112).
121
A Visão e a Voz até o presente sem tradução para o Português. (CROWLEY 1998b)
122
O Livro de Babalon (em Português) é o resultado de uma operação mágicka de Jack Parsons um
engenheiro pesquisador de propulsão de foguetes do Instituto de Tecnologia da Califórnia - em que buscava
55
em seu livro The Red Goddess
123
, Crowley sempre deixou claro que BABALON
representava a postura que as mulheres desta nova Era, a Era de Hórus, deveriam seguir.
Sobre isso, dizia ele:
As mulheres no cristianismo o mantidas virgens para o mercado da mesma forma
como os gansos de Strasbourg são pregados a quadros até que seus fígados
apodreçam. A natureza da mulher tem sido corrompida, sua esperança de uma alma
impedida, seu prazer próprio não aceito, e sua mente envenenada, para excitar os
paladares entediados de banqueiros e embaixadores senis.
[...]
A mulher moderna não será mais enganada, escrava e vítima; a mulher que se
entrega livremente para seu próprio prazer, sem pedir por recompensa, merecerá o
respeito de seus irmãos, e desprezará abertamente sua “castidade ou irmãs
subornadas, assim como homens agora desprezam “covardes”, “mariquinhas” e
“lagartos de tango”. O Amor deve se divorciar completa e irrevogavelmente de
acordos sociais e financeiros, especialmente do casamento. Amor é um esporte, uma
arte, uma religião, como preferir.
124
É importante então deixarmos claro aqui que, apesar da conotação pejorativa que a
palavra “prostituta” parece trazer, podendo soar ofensiva para muitas mulheres, na doutrina
thelêmica tal título é utilizado como forma de indicar o estado de mulher verdadeiramente
livre, a mulher ideal do Novo Aeon
125
. Babalon é considerada a “Grande Prostituta” porque
não nega ninguém todo aquele que deseja adorá-la seria bem recebido. Contudo, o preço
a pagar seria caro. Em linguagem simbólica, o adepto de Babalon deve doar-lhe todo o
sangue de seu Ego para satisfazê-la.
126
entrar em contato direto com essa entidade no ano de 1946. Parsons ficou conhecido também por ter realizado
trabalhos esotéricos com L. Ron Hubbard, o fundador da Igreja da Cientologia. Morreu em um acidente de
laboratório em 1952. Parsons dizia que o seu Livro de Babalon era o quarto capítulo do Livro da Lei
thelemita. Thelemitas em geral não o aceitam como o quarto capítulo, mas acreditam que é um interessante
resultado de uma operação gicka. Não existe versão editada em formato de livro impresso, mas pode ser
encontrado facilmente na internet, como em http://www.hermetic.com/wisdom/lib49.html - último acesso em
10 de Fevereiro de 2010.
123
GREY 2008.
124
(Tradução nossa) “Women under Christianity are kept virgin for the market as Strasbourg geese are nailed
to boards till their livers putrefy. The nature of woman has been corrupted, her hope of a soul thwarted, her
proper pleasure balked, and her mind poisoned, to titillate the jaded palates of senile bankers and
ambassadors”
[...]
The modern woman is not going to be dupe, slave, and victim any more; the woman who gives herself up
freely to her own enjoyment, without asking recompense, will earn the respect of her brothers, and will
openly despise her chaste’ or vernal sisters, as men now despise milksops’, ‘sissies’, and ‘tango lizards’.
Love is to be divorced utterly and irrevocably from social and financial agreements, especially marriage. Love
is a Sport, an art, a religion, as you will;”. (CROWLEY 1996a, 172).
125
CROWLEY 1996a, 174.
126
CROWLEY 1998b, 148-153.
56
O conceito de Babalon é por demais complexo, e nos desviaríamos dos objetivos do
presente trabalho caso adentrássemos em tais discussões. Contudo, é interessante
apontarmos que ela é também representada pelos thelemitas como “A Mulher Escarlate” do
Livro da Lei
127
, e que esse seria um ofício a ser assumido por mulheres thelemitas durante o
trabalho mágico ou seja, da mesma forma que cristãs teriam Maria como modelo de
conduta, as thelemitas teriam Babalon, a mulher escarlate, que visa ser a representação da
mulher que quebra todas as barreiras impostas pelo pensamento repressor do Aeon de
Osíris.
1.2.8 A GRANDE BESTA (TO MEGA THERION/ Το Μεγα Θηριον)
“A Grande Besta 666” (também chamado de TO MEGA THERION ou Το Μεγα
Θηριον em grego) é o motto mágicko que Crowley assumiu quando atingiu o grau de
Magus, um alto grau de evolução espiritual que é atingido após o “cruzamento do Abismo”,
mencionado anteriormente.
Duas coisas devem ser levadas em consideração sobre A Besta. Primeiro que, assim
como a Mulher Escarlate, o título de “A Besta” é também visto por alguns thelemitas como
um ofício. Ou seja, seria o ofício masculino de um thelemita ao realizar uma performance
mágicka
128
.
127
Ela aparece no Livro da Lei nas seguintes passagens:
Capítulo I
15. Agora sabereis que o escolhido sacerdote e apóstolo escolhido do espaço infinito é o príncipe-sacerdote a
Besta; e em sua mulher chamada a Mulher Escarlate está todo o poder concedido. Eles deverão reunir
minhas crianças em seu redil: eles trarão a glória das estrelas até os corações dos homens.
16. Pois ele é sempre um sol, e ela uma lua. Mas para ele é a chama alada secreta, e para ela a intermitente luz
estelar. (CROWLEY 1997a, 95)
Capítulo III
43. Que a Mulher Escarlate se cuide! Se piedade e compaixão e ternura visitarem seu coração, se ela deixar
meu trabalho para brincar com velhas doçuras; então minha vingança de ser conhecida. Eu matarei seu
filho a Mim: Eu alienarei seu coração: Eu isolarei-a dos homens: como uma rameira diminuída e desprezada
ela rastejará através de ruas molhadas e sombrias, e morrerá fria e faminta.
44. Mas que se eleve em orgulho! Que me siga em meu caminho! Que trabalhe a obra da maldade! Que mate
seu coração! Que seja chamativa e adúltera! Que se cubra de ias, e ricas roupas, e que seja desavergonhada
perante todos os homens!
45. Então Eu a erguerei aos pináculos de poder: então Eu criarei dela uma criança mais poderosa que todos os
reis da terra. Eu a preencherei com alegria: com minha força ela verá & acertará na adoração de Nuit: ela
alcançará Hadit. (CROWLEY 1997a, 111)
128
Cf. www.thelemapedia.org/
57
Em segundo lugar, os thelemitas em geral diferenciam o “homem” Aleister Crowley
do “profeta e Magus” Therion. Os libri assinados como Mestre Therion geralmente
possuem maior valor iniciático dos que aqueles que foram de autoria do “homem” Crowley.
Isso se pela concepção de que, após “cruzar o Abismo”, Crowley teria se tornado um
Chefe Secreto, fazendo parte de uma irmandade cósmica de conhecimento mágicko e
místico além dos limites humanos
129
. Por isso, seus escritos e ensinamentos seriam de
grande valia. Em outras palavras, é como se Crowley tivesse sido apenas um veículo de
manifestação para uma consciência mais avançada, representada por To Mega Therion.
Esses dois pontos podem parecer incompatíveis, mas as práticas thelêmicas os
seguem sem grandes problemas: afinal, enquanto o ofício de Besta pode ser assumido por
qualquer praticamente, só houve realmente um Mestre Therion.
Sobre o porquê da escolha de um motto tão agressivo quanto “A Grande Besta”,
nome este que com certeza foi responsável por uma série de enganos sobre a pessoa de
Crowley, Duquette nos elucida:
Como um jovem, apenas iniciando seus estudos sobre o misticismo hebreu e cristão,
Crowley descobriu que o número 666, longe de estar associado ao mal, era sagrado,
especialmente relacionado ao Sol e, no corpo humano, ao chacra (ou centro psíquico)
do coração, também chamado de centro crístico.
[...]
Da mesma forma, Crowley extrairia da literatura cris outras “blasfêmias” para
nelas expressar a dinâmica dos conceitos do novo Éon (por exemplo, Prostituta de
Babalon, Sangue dos Santos, lice das Abominações, etc), sendo o termo “Besta
666” apenas outro exemplo dos conceitos usados por Crowley, que no passado
representavam temores o sagrados de um futuro maléfico, redimindo-os de modo
que atualmente representem os mistérios sagrados da nova era emergente. Isso é
bem simples (e não satânico)
130
.
1.2.9 A GRANDE OBRA
A Grande Obra, do latim Magnum Opus, seria o trabalho mágicko em si, no qual o
adepto buscaria a sua união com o Absoluto, sua evolução espiritual máxima. Neste
processo, ele deveria se dedicar a escrever todas as suas experiências e práticas em diários
mágickos, que indicariam o progresso de seu desenvolvimento.
129
Teria cumprido sua Vontade, tornando-se um Deus, como mencionamos anteriormente.
130
DUQUETTE 2007, 20-21.
58
A primeira condição para se tornar membro na A.’.A.’. é que um deve jurar a
identificar sua própria Grande Obra com aquela de elevar a humanidade a níveis
mais altos, espiritualmente, e em qualquer outro caminho.
131
1.2.10 ASTRVM ARGENTVM (A.’.A.’.)
A Astrvm Argentvm (ou Argentvm Astrvm, de acordo com outros autores, em ambos
os casos sendo latim para “Estrela Prateada”) é uma ordem iniciática criada por Crowley e
George Cecil Jones
132
em 1907, cujo objetivo principal é a formação de um currículo, um
método, de iniciação e evolução espiritual. Opera sob a idéia de graus de evolução, sendo
uma ordem hierárquica, muito semelhante à Golden Dawn.
Apesar de se basear no sistema de graus da G.D., o princípio básico da A.’.A.’.
133
é
que ela funcionaria como um veículo não-físico de operação da Grande Fraternidade
Branca, sendo esta um nome dado a todo um corpo de altos iniciados, os Chefes Secretos e
seus seguidores
134
. Segundo Crowley, tal Fraternidade teria sido mencionada por vários
sábios, incluindo Karl von Eckartshausen, conhecido místico católico alemão, em seu livro
The Cloud Upon the Sanctuary
135
, e teria sido chamada de “Igreja celestial invisível”
136
.
Tendo como princípio básico o fato de que a Ordem não deveria possuir templos no plano
físico, a A.’.A.’. se caracterizaria por operar especialmente no plano astral, não havendo
relação social entre os membros. Em outras palavras, o único membro que um adepto
teoricamente conheceria da A.’.A.’. seria o próprio indivíduo que o introduziu à ordem.
Todo o currículo de evolução espiritual da A.’.A.’. se baseia especialmente em
leituras e práticas de auto-disciplina, tais como métodos de concentração, postura física
131
(Tradução nossa) “The first condition of membership of the AA is that one is sworn to identify one's
own Great Work with that of raising mankind to higher levels, spiritually, and in every other way.”
(CROWLEY 1991, 91).
132
Colega de Crowley na Golden Dawn, responsável por ter apresentado (e convidado a se afiliar) esta a ele.
133
Essa forma de abreviação é extensamente utilizada pelos Thelemitas. Os três pontos ao de cada um dos A’s
indicaria, segundo eles, que a Ordem se encontra tanto nos planos mais baixos quanto elevados de existência.
Em outras palavras, indicaria, de certa forma, a santidade da Ordem.
134
Como seguidores e altos iniciados, podemos citar aqueles pelos quais Crowley tinha grande apreço e
identificava como pertencentes da Grande Fraternidade Branca: Mme. Blavatsky, John Dee, Eliphas Levi,
Papus etc.
135
(Tradução nossa) “A Nuvem Sob o Santuário”. Não foi encontrada por nós uma tradução em português.
136
(Tradução nossa) “the invisible celestial Church”. ECKARTSHAUSEN 2009, 16.
59
(influência clara dos conhecimentos que Crowley possuía de Ioga) além de estudos de
Cabala, Tarô, diversos sistemas de Magia etc. Através desses estudos e práticas, o adepto
evoluiria até o ponto de estar apto para entrar em contato com seu SAG, tornando, a partir
deste ponto, desnecessária a continuada orientação daquele que o iniciou na Ordem em um
primeiro momento.
Como a própria natureza da Ordem exige a sua não-representação em plano físico,
extrema confusão sobre como ela opera nos dias de hoje, havendo muitos ramos
diferentes, todos clamando serem a “verdadeira” linhagem
137
. Ainda assim, é possível
verificar um grande interesse nela até os dias de hoje, especialmente através de discussões
acerca dela em sites de cunho thelêmico, como o mais famoso, lashtal.com, e livros mais
recentes, como ESHELMAN 2000, que encontra-se atualmente em sua terceira edição
(2009).
Muito mais poderia ser dito sobre a A.’.A.’., mas tal desejo nos desviaria do foco
inicial do presente trabalho. Basta então deixarmos claro que ela é uma ordem que visa a
evolução espiritual humana através de trabalhos individuais que visam, mais adiante, a
união do indivíduo com o Absoluto, tendo como apoio os Chefes Secretos, A Grande
Fraternidade Branca, que operariam, por sua vez, em um plano além do físico – o Astral.
1.2.11 ORDO TEMPLI ORIENTIS (O.T.O.)
A Ordo Templi Orientis, mais conhecida como O.T.O. ou “Sociedade dos
Templários do Oriente”, é uma ordem de caráter originalmente maçônico, também em
formato hierárquico de graus, cuja principal característica como ordem thelêmica é a
confraternização social entre os membros thelemitas. Faz parte dela a Ecclesia Gnostica
Catholica (E.G.C.), que é corpo eclesiástico da O.T.O., sendo responsável pela realização
de rituais de grupo e comunhão, tal como a Missa Gnóstica, escrita por Crowley em 1913,
que representa a comunhão do homem com o o Aeon de Hórus.
Ela foi criada no início do século XX por Karl Kellner, um conhecido e alto
graduado maçom e renomado ocultista da época, e tinha como meta o estudo e
desenvolvimento de um trabalho espiritual que envolvia, em princípio, magia hermética
137
LACERDA 1997, 123.
60
(ocidental) com técnicas de Tantra e magia sexual oriental (por isso o nome “templários do
oriente”, tendo em vista que Kellner, como maçom, defendia que as raízes da Maçonaria se
encontram na atuação dos templários).
Em 1904, Kellner publicou a seguinte declaração no Oriflamme, o periódico da
Ordem:
Nossa Ordem possui a Chave que abres todos os Segredos Maçônicos e Herméticos,
a saber: O ensino da magia sexual, e estes ensinos explicam, sem exceção, todos os
segredos da Natureza, todo o Simbolismo da Maçonaria e todos os sistemas de
religião.
138
diversas versões sobre como Crowley teria entrado na O.T.O., e variam desde
que ele teria sido membro muito tempo
139
como que ele teria sido convidado a ingressar
por ter publicado (sem saber, segundo o próprio) o maior segredo da Ordem
140
. O que se
sabe com certeza é que, após Crowley ter entrado na O.T.O. entre 1910 e 1912, tornou-se
O.H.O.
141
da ordem, sucedendo aquele que o recebeu na mesma, Theodor Reuss, que teria
comandado após a morte de Kellner em 1905.
Sendo líder, Crowley adaptou a Ordem à sua filosofia thelêmica, o que causou uma
série de descontentamentos por parte de membros mais antigos, que decidiram formar
novos ramos da O.T.O. sem a influência thelêmica
142
.
Após a morte de Crowley, o cargo de O.H.O. foi para Karl Germer, um discípulo
seu, que se manteve na função até sua morte em 1962. A partir deste ponto da história,
grandes problemas em se determinar qualquer traço de uma “verdadeira” O.T.O., pois
Germer não deixou claro em seu testamento quem deveria seguir como líder. Muitos ramos
com líderes diversos surgiram, sendo os mais significativos o ramo americano de Grady
McMurtry
143
, chamado popularmente de “Califado” ou C.O.T.O. (Caliphate O.T.O.), o
ramo inglês de Kenneth Grant, chamado popularmente de “O.T.O. Tiphoniana” (Typhonian
138
LACERDA 1997, 27.
139
LACERDA 1997, 28.
140
CROWLEY 1981.
141
Outer Head Of the Order (Cabeça Externa da Ordem), título para o que seria equivalente ao Grão-Mestre
em uma ordem maçônica, ou seja, o líder supremo.
142
Se esses grupos ainda existem, é difícil saber. Para mais sobre o assunto, Cf. LACERDA 1997, 25-38.
143
Mais conhecido por HYMENAEUS ALPHA, seu mottogico.
61
O.T.O., T.O.T.O.
144
) e o ramo de Marcelo Motta, brasileiro, discípulo de Kellner, fundador
de um ramo da S.O.T.O. (Society O.T.O.)
145
.
A O.T.O. americana, chamada de Califado, é, atualmente, a mais conhecida
sociedade thelêmica, sendo responsável pelas principais publicações das obras de
Crowley
146
. Após os casos judiciais contra Motta
147
, e a recente vitória na corte contra a
O.T.O. de Grant
148
, o Califado é reconhecido como a única instituição de cunho religioso
que pode ostentar a logo da Ordem e usar apenas O.T.O. como nome. Contudo, ainda hoje
há diversos outros ramos da O.T.O., mas são de menor expressão no quadro atual
149
.
Para finalizarmos essa parte, basta apontarmos que a característica principal da
O.T.O., apesar de declarar possuir um grande segredo de magia sexual, como notamos na
declaração de Kellner, é um trabalho mais social entre thelemitas, bem diferente da
A.’.A.’., que visa o trabalho individual. Uma ordem não substituiria a outra, e thelemitas
que se afiliam à O.T.O. geralmente o fazem pelo desejo de contato com outros semelhantes.
O trabalho espiritual thelêmico, como doutrina e filosofia de vida, se daria mais
propriamente através dos trabalhos da A.’.A.’.
1.3 Crowley na Cultura Popular
Crowley possui diversas referências na cultura popular, e uma das mais conhecidas
é, sem dúvida, a sua presença na capa do disco Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band
(1967) da banda inglesa The Beatles.
144
É conhecido como “Tiphoniano” porque o trabalho de Grant se concentra nos aspectos de trabalho
esotérico que busca no símbolo do Dragão, Typhon, uma fonte de poder nos aspectos mais sombrios da
natureza humana.
145
Motta é o principal responsável pela divulgação pública da Thelema de Crowley no Brasil. O nome Society
O.T.O. deu-se devido a um caso perdido por Motta em corte americana contra a O.T.O. de McMurtry, no ano
de 1985. Até então, ambas ordens chamam-se O.T.O.
146
Legalmente, eles possuem agora a maior parte dos direitos autorais nas obras de Crowley.
147
Para detalhes do caso, Cf. CROWLEY et al 1990, 101-112.
148
Mais detalhes sobre o caso da T.O.T.O. x C.O.T.O. em http://www.lashtal.com/nuke/Article1069. phtml,
último acesso em 20 de fevereiro de 2010. Atualmente, após a derrota em corte, Grant mudou o nome de sua
ordem para Typhonian Order.
149
Cf. LACERDA 1997, 31-122.
62
Ozzy Osbourne, ex-vocalista da banda inglesa Black Sabbath, tem uma conhecida
música, lançada durante sua carreira solo em 1980, chamada Mr. Crowley, na qual faz
referências ao mago.
Jimmy Page, guitarrista da famosa banda Led Zeppelin chegou a ser dono de
Boleskine, uma famosa casa que pertenceu à Crowley no início do século XX, aos
arredores do Lago Ness, na Escócia.
Na literatura, podemos citar a obra The Magician
150
, primeiro livro publicado de
William Somerset Maugham, possui um vilão chamado Oliver Haddo, um suposto mago
negro, que foi baseado em Crowley
151
.
No Brasil, Crowley e sua Thelema ficaram especialmente conhecidos pelo cantor de
rock Raul Seixas. Discos como Gita (1974)
152
e Novo Aeon (1975) são claramente de cunho
thelêmico.
O conhecido escritor Paulo Coelho também se envolveu com Thelema nesta mesma
época, e ambos foram discípulos de Euclydes Lacerda, que por sua vez era discípulo de
Marcelo Motta. Contudo, Paulo Coelho considera esta fase de sua vida como uma fase
negra, e considerou todos os thelemitas como satanistas
153
.
No cenário musical atual, muitas bandas que usam da filosofia crowleyana para
suas canções, podendo-se destacar as TOOL (Estados Unidos), Behemoth (Polônia), Fields
of the Nephilim (Inglaterra), entre outras.
No cinema, temos o americano Kenneth Anger, produtor de filmes alternativos,
cujos filmes sempre possuem simbologia thelêmica. Em 2008, Bruce Dickinson, vocalista
da banda inglesa Iron Maiden, escreveu e lançou um filme intitulado The Chemical
Wedding
154
, no qual tratava com a situação de um professor universitário que acreditava ser
a reencarnação de Aleister Crowley
155
. Dickinson também escreveu, tanto em carreira
150
(Tradução nossa) O magista”, ou “O Magoou o “O Mágico”. Uma versão traduzida em português desta
obra não foi encontrada por nós.
151
Maugham conheceu Crowley e, obviamente, não gostava dele. Para mais, Cf. MAUGHAM 2007, vii-xxix.
152
Este disco contém a famosa sica Sociedade Alternativa, que foi claramente baseada no LIBER OZ
(CROWLEY 1997, 200) de Aleister Crowley. É considerada por muitos como uma ode thelêmica. Marcelo
Motta co-escreveu muitas das letras dessa fase de Raul Seixas.
153
MORAIS 2008, 281-370; LACERDA 1997, 101-111.
154
(Tradução nossa) “O casamento químico” – referência alquímica.
155
Como é possível verificar no fórum thelêmico virtual, lasthal.com, o filme dividiu opiniões: aqueles que
acharam o filme bom como uma “piada”, e aqueles que detestaram, já que a figura de Crowley é distorcida
a ponto de ser retratado nas telas como um assassino satanista (no sentido de que “adora o mal”) louco. Cf.
http://www.lashtal.com/nuke/Article1069.phtml, último acesso em 20 de fevereiro de 2010.
63
solo como para o Iron Maiden, algumas músicas baseadas em livros e fatos da vida de
Crowley, sendo a música Moonchild, do disco Seventh Son of a Seventh Son (1988), um
dos exemplos mais claros, que o nome que a música possui é o mesmo de um livro
lançado por Crowley.
64
CAPÍTULO II: ASPECTOS DA ÉTICA E MORAL THELÊMICA
Nesta parte do trabalho, buscaremos expor as idéias principais sobre Ética e Moral
no pensamento de Crowley. Apesar de falar sobre o assunto de maneira recorrente, ele
nunca chegou a sistematizar seu pensamento ético-moral em formas mais concisas, sendo
assim necessária uma pesquisa um pouco mais abrangente em sua obra para achar tais
passagens. Desta maneira, não é de se estranhar que certas discussões que são relevantes ao
campo em questão estejam ausentes. Por exemplo: não em sua obra um aprofundamento
claro sobre sistemas políticos ou religiosos e Thelema, nem mesmo grandes considerações
sobre a relação entre as esferas públicas e privadas do social. Há, sim, muita crítica aos
sistemas vigentes (como críticas aos sistemas democráticos “burgueses”, denotando certa
simpatia a um pensamento aristocrático, e recorrentes críticas à mentalidade judaica-cristã
de seu tempo
156
), mas pouco aprofundamento de como sua Thelema operaria em tais
esferas. Isso não pode ser considerado um deslize: Crowley acreditava que sua Thelema e
sua manifestação na sociedade se daria naturalmente, e por isso seria desnecessário um
aprofundamento no funcionamento de seus mecanismos sociais
157
. É uma confiança na
função mística da Vontade, e que seria totalmente independente de quaisquer formulações
teóricas.
Este ponto é importante enfatizarmos que Crowley acreditava fielmente em sua
nova religião e, portanto, postulava que, com a passagem do Aeon de Osíris para o de
Hórus, que lhe teria sido revelada através da sabedoria dos Mestres Secretos que regeriam o
destino do planeta como um todo, a mentalidade dos homens mudaria radicalmente,
independente do que ele falasse. Neste caso, Crowley via-se como um mensageiro, um
profeta, e o máximo que poderia fazer como tal seria revelar a doutrina que tanto dedicou-
se. O sucesso ou fracasso de seus escritos e considerações teóricas seriam insignificantes
dentro dos planos de mudanças de pensamento dos Mestres Secretos. Sua “função”, como
profeta da Thelema, como Mestre Therion, seria apenas de revelar a doutrina aos homens.
É aqui que notamos também outra importante característica de Crowley e,
principalmente, de como grande parte dos thelemitas encaram sua personalidade: Crowley
156
Algumas dessas críticas foram apresentadas no capítulo anterior. Novas serão apresentadas no decorrer do
trabalho, de modo que delinearão melhor certos aspectos de seu pensamento.
157
CROWLEY 1996a, 117.
65
era o homem, enquanto que “A Grande Besta 666”, To Mega Therion, era um Mestre, um
profeta, um alto iniciado. Sendo assim, os textos e livros assinados como “Aleister
Crowley” possuem um valor simbólico muito menor do que aqueles assinados pelo Mestre
Therion. Ao assinar como este último, ele buscava indicar que tais obras teriam sido
escritas durante grande inspiração espiritual, ou seja, estariam longe dos problemas
mundanos que o homem Crowley poderia trazer em si.
Suas considerações sobre ética e moral são todos assinados pelo “homem” – ou seja,
dentro do imaginário thelêmico, são apenas “interpretações” de um homem comum (mesmo
que este homem seja considerado o veículo de manifestação da doutrina thelêmica, ainda
assim, é apenas um homem).
Há vários autores thelêmicos que buscaram (e até hoje buscam) dar uma forma mais
concisa ao que seria uma ética thelêmica
158
. As contradições entre tais autores são várias, o
que demonstra um cenário em que não é possível definir um pensamento claro sobre o
assunto. Para evitar uma confusão maior, nos atemos especificamente aos escritos de
Crowley, utilizando outros autores thelêmicos somente quando era alguém próximo de
Crowley
159
ou quando tocamos em assuntos tangentes às dimensões Ético-morais
160
.
Mesmo reunindo o máximo possível de escritos dispersos em sua obra sobre o
assunto, não será nosso possível realizar uma total e completa investigação de tal área,
especificamente nos pontos que apontamos haver lacunas logo no início, o que seria
considerado ideal sob as lentes de cientistas de Ética. Isso se não apenas pela falta de
aprofundamento do próprio Crowley sobre o assunto, como também devido à natureza de
nosso objetivo, que é uma investigação sobre os aspectos de seu pensamento ético-moral
que já denotariam uma mentalidade pós-moderna em termos maffesolianos.
2.1 “Faze o que tu Queres” – Significado e Dimensões Ética e Moral
“Do what thou wilt shall be the whole of the Law”. Este é o lema thelêmico, o
norteador de toda a filosofia crowleyana. Segundo o relato de Crowley, o lema lhe foi
158
MORPHEUS 2005, 63-74; CAMPO 1994; IAO131 2010; LACERDA 2001; MOTTA 1986; HESSLE
2007, 5-13, etc.
159
Tal como ACHAD 2007.
160
Como quando nos utilizaremos de CAMPO 1994 para melhor explicitar a importância do conceito de
Vontade dentro de um contexto social.
66
passado durante a passagem no Cairo, quando recebera o Livro da Lei
161
, e se encontra no
versículo 40 do primeiro capítulo do mesmo.
Marcelo Motta, o primeiro brasileiro a traduzir as obras de Crowley para o
Português, buscou uma tradução que mantivesse a profundidade do lema em suas esferas
místicas e éticas. No primeiro ponto em especial é que residia o maior desafio. Em um
primeiro momento, a tradução mais imediata seria “Faze a tua Vontade será o todo da Lei”.
Apesar de aparentar ser uma tradução justa, ela perde força em sua dimensão mística, tendo
em vista que a frase original possui 11 palavras, número significativo dentro da mística de
Crowley. Motta então optou por traduzir a sentença como “Faze o que tu queres de ser
tudo da Lei”. Sobre isso, Motta diz:
(21) Faze o que tu queres de ser tudo da Lei. Foi impossível traduzir isto em
monossílabos; o máximo que pudemos fazer foi nos aproximarmos do ritmo do
original perdendo o nimo possível do significado. Note-se onze palavras em
ambos os casos. Se nosso falecido Instrutor, Frater SATURNUS
162
, não tivesse
chamado nossa atenção para as onze palavras que constituem, por assim dizer, a
Declaração da Lei, este fato sutil nos teria escapado.
163
Apesar de todos os méritos que a tradução de Motta possui, tanto historicamente
quanto na questão iniciática entre thelemitas brasileiros, optamos aqui nesta dissertação
manter a palavra Vontade no lema, tendo em vista que tal palavra é um conceito de
fundamental importância para a compreensão de como Crowley buscou desenvolver a
dimensão ética e moral de sua doutrina. Sendo assim, para fins de melhor desenvolvimento
científico e compreensão conceitual, usaremos “Faze a tua Vontade será o todo da Lei”.
Contudo, mantemos o “Faze o que tu queres” como título da dissertação e deste subcapítulo
como forma de referência à tradução mais usual.
Como dito no capítulo anterior, Vontade é provavelmente o conceito mais
importante na doutrina de Crowley – afinal, não é à toa que Thelema é a palavra grega para
“Vontade”. Talvez, a melhor maneira para explicarmos este conceito sem partirmos para
descrições por demais abstratas, podemos nos referir ao livro Diary of a Drug Fiend
164
,
quando Crowley, por intermédio de Peter Pendragon, um dos personagens, reflete sobre a
natureza da Vontade:
161
CROWLEY 1997a, 94-180.
162
Karl Germer, líder mundial da O.T.O. após a morte de Crowley em 1947.
163
Comentário de Marcelo Motta, em nota de rodapé, em CROWLEY 1976, 113.
164
CROWLEY 2002. Em português, Diário de um Demônio de Drogas. Ao momento, não possui tradução
em português.
67
É isso que ele quer dizer com Faze a tua Vontade”. Eu imagino qual é a minha
verdadeira vontade. Existe realmente uma coisa como essa? Minha matemática me
diz que deve existir. Não importam quantas forças podem estar atuando, sempre é
possível encontrar a resultante delas.
165
Dessa forma, podemos compreender Vontade como a resultante de forças atuantes
no corpo e alma de alguém. Seria a verdadeira identidade, a “missão” de alguém na Terra,
uma natureza inata, ontológica. Ou, de modo mais preciso, o ofício que cada pessoa deve
seguir.
Há clara influência de um neoplatonismo
166
– nada mais natural, tendo em vista que
a formação histórica de boa parte do pensamento esotérico ocidental bebeu
demasiadamente da fonte neoplatônica
167
.
CAMPO
168
busca tentar explicar as diferenças entre os conceitos de Destino e
Vontade dentro do sistema de Crowley, sendo que, a maior delas, é que o primeiro implica
impossibilidade de ação, estando-se sujeito a forças além do plano físico (no caso, dentro
de um pensamento judaico-cristão, por exemplo, seriam “as forças de Deus”). o conceito
de Vontade implica escolha e propósito. É assumir um papel de “co-criador do Universo”.
Uma outra forma de ver essa questão é considerar que a “Verdadeira Vontade é o
Destino transmutado em uma forma que permite tomar um papel ativo na própria
existência
169
”. Dentro do sistema thelêmico, é a única e verdadeira forma de um adepto
entrar em contato com sua esfera divina.
Dessa forma, podemos entrar em uma questão que nos é muito relevante. Se todo
homem e toda mulher possuem uma Vontade que lhes o direito de agirem como deuses
na Terra, como é possível evitar um estado de caos social? Qual o limite de cada um agir?
Mesmo deixando claro que “fazer sua Vontade” não é o mesmo que “fazer o que
deseja”, o limite que compreende as Vontades de cada humano ainda é um dos temas mais
polêmicos na Thelema. De maneira que pudesse demonstrar que seu sistema possui uma
preocupação ética que não cai em completa anarquia social, Crowley desenvolveu um
165
(Tradução nossa) “That’s what he means by ‘Do what thou wilt.’ I wonder what my true will is? Is there
really such a thing after all? My mathematics tells me that there must be. However many forces there may be
at work, one can always find their resultant.” (CROWLEY 2002, 335)
166
CROWLEY 2002, 207.
167
Para mais sobre o assunto, conferir JUNG 1991 e DURAND 2008, 13-65.
168
CAMPO 1994, 25-31.
169
(Tradução nossa) “It could be said that True Will is Destiny transmuted into a form which allows you an
active roll in your existence”. (CAMPO 1994, 26)
68
modelo figurado para explicar a dinâmica da Vontade humana, que é explicada pela
passagem do Livro da Lei: “todo homem e todo mulher é uma estrela”
170
.
Adotando esse modelo de que todo homem e toda mulher passam agora a serem
“estrelas”, Frater Achad, motto mágico de Charles Stansfeld Jones, um dos mais famosos e
produtivos discípulos de Crowley, escreveu o ensaio Passando do Velho ao Novo Aeon, no
qual explica que a partir do momento em que o homem passar a se identificar com o Sol,
ele passará a ser um deus, pois será a fonte de luz fazendo assim uma alusão com as
crenças mais antigas que viam no Sol uma das figuras mais significativas da divindade.
No momento em que nos identificamos com o Sol, s percebemos que nos
tornamos a fonte de Luz: que nós, também, estamos agora brilhando
gloriosamente; mas ao mesmo tempo, percebemos que a Luz do Sol não mais é
para s; nós não podemos mais ver o Sol, tal como em nossa estreita consciência
do velho aeon não podíamos ver a s mesmos. Em volta nossa Noite perpétua;
mas esta é a Luz Estelar do Corpo de Nossa Senhora Nuit, na qual nós vivemos, e
nos movemos, e temos nosso ser.
Corpo de Nossa Senhora Nuit, na qual nós
vivemos, e nos movemos, e temos nosso ser. Então, desta altura, nós
contemplamos aquele pequeno planeta Terra, do qual nós, faz um momento,
éramos parte; e Nos vemos emitindo Nossa Luz sobre todos esses pequenos
indivíduos que chamáramos de irmãos e irmãs, os escravos que servem.
171
A mentalidade do velho Aeon, a era osiriana, judaica-cristã, do deus sacrificado,
teria exigido do homem uma redução de sua divindade interna, uma necessidade de se
tornar menor e enxergar a luz do sol como fonte de toda a energia e vida do planeta, um
escravo. Contudo, no novo Aeon, a era de Hórus, a era thelêmica, da criança conquistadora,
todo homem e toda mulher passam a ser deuses, co-criadores do Universo.
Essa metáfora da estrela é fundamental para a compreensão da maneira como a
filosofia thelêmica define o humano ao identificar cada homem e cada mulher com uma
estrela, Crowley determina que cada indivíduo possui uma órbita, um trajeto que, se
seguido de maneira correta, não entrará em colisão com outra estrela. Em outras palavras,
se cada um seguir sua Verdadeira Vontade, o Universo entra em harmonia, vivendo cada
um em sua rota e melhorando assim a condição de vida de toda a comunidade.
170
CROWLEY 1997a, 95.
171
(Esta tradução se encontra em http://www.astrumargentum.org/arquivos/ht/ensaios/achad_1.htm, acessado
em 29 de maio de 2009.) “The moment we identify ourselves with the Sun, we realize that we have become
the source of Light, that we too are now shining gloriously, but we also realize that the Sunlight is no longer
for us, for we can no longer see the Sun, any more than in our little old-aeon consciousness we could see
ourselves. All around us is perpetual Night, but it is the Starlight of the Body of Our Lady Nuit in which we
live and move and have our being. Then, from this height we look back upon the little planet Earth, of which
we, a moment ago, were a part, and think of Ourself as shedding our Light upon all those little individuals we
have called our brothers and sisters, the slaves that serve.” (ACHAD 2007, 184-185)
69
- Thelema - significa Vontade.
A chave para esta Mensagem é esta palavra - Vontade. O primeiro significado
óbvio desta Lei é confirmado por antítese: "a palavra de Pecado é Restrição
172
".
Outra vez: "Tu o tens direito senão fazer a tua vontade. Faze aquilo e nenhum
outro dirá não. Pois vontade pura, desembaraçada de propósito, livre da ânsia de
resultado, é toda via perfeita"
173
.
Considerai isto cuidadosamente; parece implicar uma teoria que se todo homem e
toda mulher fizesse sua vontade - a verdadeira vontade - o haveria conflito.
"Todo homem e toda mulher é uma estrela"
174
, e cada estrela move-se em uma
órbita determinada sem interferência. Há muito espaço para todos; é apenas a
desordem que cria confusão.
175
Se é possível um paralelo nesse sentido, de modo que facilite a compreensão,
Crowley pode soar próximo às teorias de Adam Smith sobre como o indivíduo, ao buscar o
que é melhor para ele, acaba ajudando também sua comunidade. Contudo, importantes
diferenças: Crowley está desenvolvendo aqui uma metafísica, uma ontologia do ser,
declarando assim que é possível, através de um método de grande disciplina (o método
thelêmico), entrar em contato com a esfera mais elevada da alma humana, elevando-a assim
ao seu estado divino e permitindo que o homem e a mulher exerçam suas Vontades, sem
chocar-se assim um com o outro, que seria a própria Vontade que regula a ordem e o
bom funcionamento do Universo. Logo, não aqui uma exacerbação da individualidade
pelo contrário, aqui uma diminuição dela, representada especialmente pela necessidade
da aniquilação do ego
176
, visando assim um enfoque na comunhão com o meio, o Universo
em si, sendo este representado freqüentemente pela deusa egípcia Nuit, a deusa que, com
seu corpo negro cheio de estrelas, curvada sobre o mundo, cria a noite e o cosmos.
Tendo isso em mente, Crowley declara em sua autobiografia, The Confessions of
Aleister Crowley, que não é necessário um desenvolvimento muito profundo sobre a Ética
172
CROWLEY 1997a, 97.
173
CROWLEY 1997a, 97.
174
CROWLEY 1997a, 95.
175
(A presente tradução pode ser encontrada em http://www.astrumargentum.org/arquivos/ht/libri/
libri_2.htm, último acesso em 11 de julho de 2009.) “Thelema - means Will. The Key to this Message is
this word-Will. The first obvious meaning of this Law is confirmed by antithesis; ‘The word of Sin is
Restriction.’ Again: ‘Thou hast no right but to do thy will. Do that and no other shall say nay. For pure
will, unassuaged of purpose, delivered from the lust of result, is every way perfect.’ Take this carefully; it
seems to imply a theory that if every man and every woman did his and her will--the true will--there
would be no clashing. Every man and every woman is a star,’ and each star moves in an appointed path
without interference. There is plenty of room for all; it is only disorder that creates confusion.”
(CROWLEY 2007, 41)
176
CROWLEY 1996a, 95.
70
em Thelema, pois a Lei em si define linhas bem claras sobre como se deve buscar o
“bem comum”.
Não necessidade de se desenvolver a ética da Thelema em detalhes, pois tudo se
desenrola com absoluta gica do princípio singular, Faze a tua Vontade seo todo
da Lei”
177
. Ou, para colocar de outra forma, “Não há lei além do Faz o que tu
queres”
178
. E, “tu não tens direito senão fazer tua vontade”
179
. Essa fórmula em si se
desenrola de modo inelutável da concepção do indivíduo descrito na sessão que
precede. “A palavra de Pecado é Restrição
180
. “Isto é uma mentira, esta tolice contra
o ser”
181
. A teoria é que todo homem e toda mulher tem cada um atributos definitivos
cuja tendência, considerada em determinada relação com o ambiente, indica um
curso apropriado de ão em cada caso. Buscar por esse curso de ação é realizar a
verdadeira vontade. “Faze isto e nenhum outro dirá não”
182
.
183
Notemos então como Crowley aposta em sua religião, defendendo-a como mais
eficaz do que sistemas religiosos mais antigos, acusando esses sistemas de até possuírem
atributos interessantes, mas sempre falhando em algum ponto
184
. E o motivo principal em
acreditar nisso é justamente porque coloca em foco a Vontade do Ser em questão,
transformando-o em Estrela, co-criador do Universo. aqui a tentativa de uma inversão
dos valores cristãos: enquanto estes desejariam submeter-se a uma força maior (Deus), o
thelemita deverá tornar-se a força maior através de sua própria Vontade. Não
julgamentos morais ou uma Ética racionalmente planejada a própria natureza humana,
principalmente no seu sentido ontológico e místico, se encarregaria de “organizar” a
sociedade do melhor modo que convir às situações impostas.
Neste ponto devemos ser cuidadosos, e enfatizar a questão de que “Vontade” não é
“fazer o que quiser”. Sobre isso, Crowley explicava que o descobrimento da Verdadeira
Vontade era, ao mesmo tempo, a maior das libertações e a maior das prisões. E isso fica
bem claro quando lemos o versículo 42 do primeiro capítulo do Livro da Lei: “Que seja
177
CROWLEY 1997a, 97.
178
CROWLEY 1997a, 112.
179
CROWLEY 1997a, 97.
180
CROWLEY 1997a, 97.
181
CROWLEY 1997a, 102.
182
CROWLEY 1997a, 97.
183
(Tradução nossa) There is no need to develop the ethics of Thelema in detail, for everything springs with
absolute logic from the singular principle, ‘Do what thou wilt shall be the whole of the Law.’ Or, to put it
another way, ‘There is no law beyond Do what thou wilt.’ And, ‘thou hast no right but to do thy will.’ This
formula itself springs ineluctably from the conception of the individual outlined in the preceding section. ‘The
word of Sin is Restriction.’ ‘It is a lie, this folly against self.’ The theory is that every man and every woman
has each definite attributes whose tendency, considered in due relation to environment, indicate a proper
course of action in each case. To pursue this course of action is to do one's true will. Do that, and no other
shall say nay.’” (CROWLEY 1969, 422)
184
CROWLEY 1969, 418.
71
este estado de diversidade amarrado e odiado. Assim com tudo teu; tu não tens direito
senão fazer a tua vontade”
185
.
Ainda sobre este paradoxo, remetemos aqui a uma passagem do Liber II, intitulado
A Mensagem do Mestre Therion: “Destas considerações estaria claro que ‘Faze a tua
vontade’ não significa ‘Faze o que te agrades’. É a apoteose da Liberdade; porém é também
a mais estrita das injunções”.
186
Contrastemos aqui essa questão com o livre-arbítrio cristão: enquanto este coloca a
responsabilidade dos atos do homem frente ao julgamento divino, no pensamento thelêmico
temos que todo ato é sempre bom se estiver em conformidade com sua Vontade. Caso
alguém aja contrariando esse aspecto, tornar-se-á assim um “magista negro”, um “irmão
negro”
187
, ou seja, aquele que utiliza de habilidades mágicas
188
apenas para satisfações
egóicas
189
, deixando de lado o total cumprimento da sua própria natureza afinal, esta,
segundo Crowley, postula a necessidade do cumprimento da Vontade.
Em vários de seus escritos, Crowley lembra da necessidade do adepto em sempre ter
em mente que todos seus atos devem realizados em nome de Nuit. Para isso, cita o Livro da
Lei, no seu primeiro capítulo, que é justamente o capítulo que representa a fala de Nuit:
Sede bom portanto: vesti-vos todos vós em finas roupas; comei deliciosos
alimentos e bebei doces vinhos e vinhos que espumejam! Também, tomai vossa
fartura e vontade de amor comos quereis, quando, onde e com quem vós querei!
Mas sempre para mim.
190
185
CROWLEY 1997a, 97.
186
(Tradução nossa) “From these considerations it should be clear that Do what thou wilt’' does not mean
‘Do what you like.It is the apotheosis of Freedom; but it is also the strictest possible bond”. (CROWLEY
2007, 41)
187
A palavra negro” aqui não deve ser compreendida na conotação racial. Ela se refere “àquele que se
afastou da luz”, deixando de tornar-se Estrela. Em outras palavras, tornou-se um praticante de Magia Negra,
pois todo ato que não entra em conformidade com a Vontade, ou seja, que não auxilia na eliminação do Ego, é
considerado um ato desta natureza.
188
“Habilidades Mágicas” aqui devem ser entendidas como derivadas da palavra “Magia”, e não da prática de
“Mágica”. A primeira, segundo Crowley, seria a capacidade de causar mudanças no meio, enquanto da
segunda derivariam práticas de entretenimento, profanas.
189
Ao falarmos de “satisfações egóicas”, não desejamos entrar em discussões teóricas muito complexas sobre
este termo psicológico. No momento, nos basta ter em mente que, para Crowley, tais satisfações egóicas
seriam aquelas que trazem apenas o conforto próprio, que não visa o “ir além”, a evolução espiritual humana
(tanto individual quanto coletiva). O Magista Negro é, acima de tudo, um que recusou deixar de lado sua
própria identidade humana (Ego) parar cumprir totalmente sua Vontade e finalmente tornar-se um Deus. Em
outras palavras, ao invés de evoluir espiritualmente (o que auxiliaria a humanidade como um todo), ele
preferiu manter-se estagnado.
190
CROWLEY 1997a, 98.
72
Reforçando essa passagem, podemos citar uma passagem do 2
º
capítulo do Livro da
Lei, este representado por Hadit, que, em linhas gerais, pode ser considerado uma entidade
egípcia que representa a manifestação do Sagrado Anjo Guardião, do Deus Interno, da
Kundalini (dentro do sistema de Yoga e Tantra de Crowley), etc, ou, para ser mais preciso e
condizente com a terminologia thelêmica, seria a manifestação da Vontade.
22. Eu sou a Cobra que traz Conhecimento & Deleite e brilhante glória, e excito os
corações dos homens com embriaguez. Para adorar-me tomai vinho e estranhas
drogas das quais Eu falarei ao profeta, & embriagai-vos destes! Eles não vos farão
mal de forma alguma. Isto é uma mentira, esta tolice contra si. A exposição da
inocência é uma mentira. forte, ó homem! Cobice, goze todas as coisas de
sentido de sentido e raptura: não temas que qualquer Deus te negará por isto.
23. Eu sou só: não existe Deus onde Eu sou.
191
Notemos então um ponto muito característico da filosofia crowleyana: o excesso
não é visto como algo necessariamente ruim, desde que seja dirigido a Nuit, o cosmos, e a
Hadit, o Sagrado Anjo Guardião, a manifestação da Vontade, o que consequentemente
deverá tornar todo ato humano um ato sagrado, refinado, um ato mágico.
70. Existe auxílio & esperança em outros encantamentos. A Sabedoria diz: sê
forte! Então tu podes suportar mais prazer. Não animal; refina tua raptura! Se tu
bebes, bebe pelas oito e noventa regras da arte; se tu amas, excede pela delicadeza;
e se tu fazes o que quer que seja de prazeroso, que haja sutileza nisso!
71. Mas excede! Excede!
192
Pode-se notar clara influência do poeta inglês William Blake, que em seus
Provérbios do Inferno, presentes na sua obra mais famosa, O Matrimônio do Céu e do
Inferno, nos dizia que “a estrada do excesso leva ao palácio da sabedoria”
193
. Nietzsche
também desempenha grande influência
194
.
Apesar de toda essa formulação, uma questão fica aberta: até um homem descobrir
sua verdadeira vontade, como este deve agir? Como um thelemita deve lidar com alguém
que não descobriu ou que não aceita a Lei de Thelema? Levando em consideração a
questão dessa e a submissão necessária para que cada um obtenha tal conhecimento,
Crowley reconhece em sua autobiografia que a maioria da população não aceitaria a Lei de
191
CROWLEY 1997a, 102.
192
CROWLEY 1997a, 105.
193
BLAKE 2004, 19.
194
Não adentraremos nessas questões das influências de Crowley para não perdermos o foco do presente
trabalho. Contudo, basta deixarmos registrado aqui que Crowley possui vários escritos sobre William Blake
(como por exemplo CROWLEY 1998a, 115-126) e considerava Nietzsche um “profeta da Thelema”
(CROWLEY 1991, 303), colocando-o inclusive na lista dos Santos de sua Missa Gnóstica (CROWLEY 1997,
591), o principal ritual de Eucaristia do movimento thelêmico. Sobre esta, conferir DUQUETTE 2007, 231-
249 e CROWLEY 1997b, 584-597.
73
Thelema. Nesse caso, segundo ele, caberia aos thelemitas do meio guiarem essas pessoas,
de forma que, quando o momento fosse oportuno, elas despertariam suas próprias
Vontades, tornando-se assim mestres de suas próprias vidas, sem necessitarem das ordens
dos outros. Se o Livro da Lei avisa que “os escravos servirão”
195
, Crowley complementa
que, quando os thelemitas passarem a ser seguidos, estes terão uma importante obrigação
social:
O volume da humanidade, não possuindo verdadeira vontade, encontrar-se-á impotente.
Caberá a nós comandá-los sabiamente. Nós devemos garantir sua felicidade e treiná-los
para a liberdade última ao dar-lhes tarefas pelas quais suas naturezas se adequam. No
passado, a massa sem vontade ou mente tem sido tratada sem tato ou escrúpulo; um
erro socialmente, economicamente e politicamente, não menor do ponto de vista
humanitário. Nós devemos lembrar que cada homem e cada mulher é uma estrela, é
nosso dever manter a ordem da natureza visando-a para que sua órbita seja
corretamente calculada. As revoluções e catástrofes com as quais a história está cheia
são invariavelmente devido aos governantes terem falhado em encontrar funções
adequadas para o povo. O resultado óbvio tem sido descontentamento social, resultando
na recusa de células exercerem seu trabalho no organismo.
196
Concluindo essa primeira parte, podemos entender melhor agora como Crowley
compreende a busca pelo Bem comum, o espírito ético, dentro da sua filosofia thelêmica:
descobrindo nossa Verdadeira Vontade, tornamo-nos estrelas, entrando assim em harmonia
com o Universo e a própria existência. Aqueles que ainda não a descobriram serão
escravos, submetendo-se de forma natural assim aos thelemitas
197
, estes tendo daí a
obrigação de guiar aqueles à sua própria liberdade através de métodos específicos que os
farão conhecer-se plenamente. Nota-se claramente a existência de uma visão messiânica – o
195
CROWLEY 1997a, 104-105.
196
(Tradução nossa). “The bulk of humanity, having no true will, will find themselves powerless. It will be
for us to rule them wisely. We must secure their happiness and train them for ultimate freedom by setting
them tasks for which their nature fits them. In the past, the mob without will or mind have been treated
without sense or scruple; a mistake socially, economically and politically, no less than from the humanitarian
point of view. We must remember that each man and woman is a star, it is our duty to maintain the order of
nature by seeing to it that his orbit is correctly calculated. The revolutions and catastrophes with which history
is crammed are invariably due to the rulers having failed to find fitting functions for the people. The obvious
result has been social discontent ending in the refusal of the cells to perform their work in the organism.”
(CROWLEY 1969, 940)
197
“De forma natural” porque não seria uma obediência imposta. O Universo funcionaria pura e simplesmente
dessa forma, além dos limites de compreensão humanos, assim como a gravidade atua nos corpos
independente do desejo do homem. É como uma promessa: se você realizar a sua Vontade, o Universo entra
em harmonia consigo e seus atos e, assim, deixam de existir obstáculos. No próprio Livro da Lei há essa
promessa, nos versículos 42 e 43 do primeiro capítulo do Livro da Lei: “42. Que seja este estado de
diversidade amarrado e odiado. Assim com tudo teu; tu não tens direito senão fazer tua vontade. 43. Faze
isto, e nenhum outro dirá não.” (Grifos nossos - CROWLEY 1997a, 97)
74
que não é de se espantar, tendo em vista que Crowley considerava-se o profeta do novo
Aeon.
2.2 A Dimensão Mística do Ser em Crowley
Falaremos muito aqui sobre a conotação mística de suas idéias em Ética e Moral.
Dentro do sistema thelemita, a dimensão ética se demonstra indissociável de sua
compreensão do que seria misticismo. Sendo assim, é importante explanarmos sobre como
Crowley o entendia. Em seu livro Magick: Book 4, considerado por muitos thelemitas como
sua obra-prima, ele detalha um pouco o que compreende por isso. O livro é composto por
quatro partes: I. Mysticism, II. Magick (Elementary Theory), III. Magick in Theory and
Practice e IV. Thelema The Law
198
, somado em seguida de diversos apêndices, os quais
contém muitos dos documentos e libers fundamentais para Thelema.
Na primeira parte, Misticismo, Crowley compreende que uma linha em comum
nas narrativas referentes aos grandes mestres religiosos de todos os tempos
199
, citando
como exemplo para isso Moisés, Mohamed, Buda, Cristo, Lao-Tsé, entre outros
200
. A linha
seria a seguinte: todos esses mestres passaram por um período de reclusão e isolamento
antes que pudessem retornar ao mundo com suas novas “leis”
201
. Essas reclusões seriam
momentos em que os mestres teriam passado por intenso trabalho espiritual, meditativo, e
acabaram por entrar em contato com uma dimensão de conhecimento que se encontra além
dos sentidos. Crowley refere-se a estes líderes e mestres religiosos como figuras do
gênio
202
, ou seja, pessoas com capacidade de causar grandes mudanças em seu tempo e
meio por causa de suas idéias. Essa capacidade de mudança e influência do gênio no meio
seria, segundo ele, por si um milagre. Contudo, deve-se ter em mente que, para essas
198
Em português: I. Misticismo, II. Magia (k) (Teoria Elemental), III. Magia (k) em Teoria e Prática e IV.
Thelema – A Lei (tradução nossa. O termo “Magia (k)” deriva de BRONZE,2006).
199
CROWLEY 1997b, 7.
200
Entende-se com isso que pode ter havido um grande número de mestres e altos iniciados no decorrer da
história humana, cada um ascendendo espiritualmente de maneira própria. Muitos desses mestres, como
vimos no primeiro capítulo, podem ter acabado por tornarem-se deuses em narrativas místicas, e muitos ainda
poderiam se manter desconhecidos até hoje. Ou seja, o fato de esses “mestres” terem sido citados por nós não
significa que eles foram os únicos.
201
“Leis” aqui compreendido como a “fórmula mágica” ou “norma de conduta ideal” que ressoaria as
influências cósmicas atuantes no mundo naquele determinado período de tempo e espaço.
202
(Tradução nossa) The Genius (CROWLEY 1997b, 8).
75
figuras, tais mudanças foram possíveis após um período de exclusão ou isolamento.
“Não se pode pensar em um super-cachorro transformando o mundo dos cachorros,
enquanto que na história da humanidade isso acontece com regularidade e freqüência”
203
.
Esse estado de “gênio” é, segundo Crowley, possível de ser atingido após um
determinado grau de desenvolvimento espiritual, obtido especificamente através de técnicas
de meditação
204
. Essas técnicas teriam o mesmo propósito do ato de rezar, ou seja, visariam
a obtenção do controle da mente e dos pensamentos. Ao se obter o controle do pensamento,
ao se compreender de onde eles brotam e como se desenvolvem, haveria o contato do Ser
com o Absoluto, com a existência em sua mais sublime esfera. Ao se contatar esta, o adepto
se depararia então com uma série de imagens que traduziriam sua experiência a verdade
intrínseca no existir. É por isso então que, mesmo desenvolvendo e possuindo condutas
morais e valores muito diferentes, mestres como Mohamed e Buda, ao desenvolverem seus
gênios, puderam revelar verdades essenciais para a época e meio em que viviam.
Segundo Crowley, o fato de as idéias desses mestres divergirem entre si pouco
importa: ao voltarem-se para o mundano, eles estavam presos a determinadas condições de
tempo, raça, clima e língua. Daí vem as divergências. Contudo, haveria “identidade
essencial no método”
205
. Essa identidade essencial, essa “fonte”, é o que envolveria o
trabalho místico. A busca pela experiência mística seria o contato com o interior mais
profundo do Ser
206
, fazendo emergir as mais profundas verdades do Universo.
O desenvolvimento do gênio, o contato com a esfera mística, exigiria,
impreterivelmente, o isolamento e introspecção. Como defesa dessa idéia, Crowley aponta
justamente para o fato de como no relato desses mestres sempre o isolamento do meio,
ou ao menos grandes lacunas em sua história (como em Cristo, por exemplo, em que nada
se sabe entre o período dos seus 12 ao 30 anos). Essas omissões seriam de fundamental
importância para se compreender o caminho místico.
Até mesmo nas lendas dos selvagens encontramos essa mesma coisa universal; alguém
que é ninguém em particular vai embora para um longo período ou curto período, e
volta como “o grande homem da cura”; mas ninguém nunca sabe exatamente o que
ocorreu a ele.
203
(Tradução nossa)One cannot even think of a super-dog transforming the world of dogs, whereas in the
history of mankind this happens with regularity and frequency.” (CROWLEY 1997b, 8)
204
Pode ser o contato com o SAG ou algum estágio muito próximo.
205
(Tradução nossa) “There is essential identity in the method”. (CROWLEY 1997b, 42)
206
Se tomarmos um paralelo junguiano, pensaríamos aqui no conceito de inconsciente coletivo e os seus
arquétipos.
76
Realizando toda possível dedução por fábula ou mito, nós temos essa mesma única
coincidência. Um ninguém vai embora, e retorna um alguém. Isso não deve ser
explicado pelos modos ordinários.
207
Sobre essas experiências, Crowley compreende que em cada período histórico
haverá novas interpretações sobre os motivos pelos quais elas teriam ocorrido, tendo em
mente que em determinada época elas teriam sido chamadas de “supernaturais”, em outros
períodos de “espirituais”, e até mesmo que pensadores modernos poderiam supor que esses
milagres teriam ocorrido através de experiências epiléticas ou esquizofrênicas.
Especificamente sobre essa última interpretação, Crowley chega a ironizar, comentando
“como se organização pudesse surgir de desorganização! Mesmo se epilepsia tivesse sido a
causa para esses grandes movimentos que fizeram civilização após civilização erguer-se do
barbarismo, isso formaria meramente um argumento para cultivar-se epilepsia”
208
. De
qualquer forma, independente da explicação que é dada em todos os períodos históricos
para essas mesmas experiências, a origem delas seria sempre a mesma.
Tendo isso em mente, Crowley enfatiza a necessidade de se perceber que nem
mesmo aqueles que passaram pelas experiências citadas sabiam exatamente o que estavam
acontecendo com eles próprios. A experiência mística seria, em si mesma, um eterno
mistério. Contudo, haveria métodos (rituais, coletivos ou individuais) para obtê-la.
Os todos aconselhados por todas essas pessoas têm uma surpreendente
semelhança um com o outro. Eles recomendam “virtude” (de rios tipos), solidão,
ausência de excitamento, moderação em dieta, e finalmente uma prática que alguns
chamam de reza e outros de meditação. (As primeiras quatro podem revelar-se, ao
serem examinadas, como meras condições favoráveis à última).
Ao se investigar o que significa essas duas coisas, descobrimos que elas são na verdade
apenas uma. Pois o que é o estado de reza ou meditação? É a restrição da mente para
um único ato, estado ou pensamento.
209
207
(Tradução nossa grifos do autor)Even in the legends of savages we find the same thing universal;
somebody who is nobody in particular goes away for a longer or shorter period, and comes back as the great
medicine man; but nobody ever knows exactly what happened to him.
Making every possible deduction for fable and myth, we get this one coincidence. A nobody goes away,
and comes back a somebody. This is not to be explained in any of the ordinary ways.” (CROWLEY 1997b,
8)
208
(Tradução nossa) “As if organisation could spring from disorganization! Even if epilepsy were the cause of
these great movements which have caused civilization after civilization to arise from barbarism, it would
merely form an argument for cultivating epilepsy”. (CROWLEY 1997b, 9). Tal passagem também serve de
exemplo de como Crowley criticava o pensamento moderno puramente “cientificista”.
209
(Tradução nossa, grifos do autor) “The methods advised by all these people have a startling resemblance
to one another. They recommend virtue (of various kinds), solitude, absence of excitement, moderation in
diet, and finally a practice which some call prayer and some call meditation. (The former four may turn out on
examination to be merely conditions favourable to the last.)
On investigating what is meant by these two things, we find that they are only one. For what is the state of
77
Esse controle voluntário da mente seria então uma forma de se desenvolver as
capacidades mais profundas do Ser. Ao se colocar a mente sob controle, ao colocar-se todos
os pensamentos em ordem, haveria então possibilidade de direcionamento do pensar sob o
agir mais efetivo e verdadeiro. Mas não deve-se aqui concluir que Crowley deseja que os
atos de alguém sejam apenas conscientes esse não é o único objetivo. Deve-se ir além
disso; deve ser percebido que a consciência em si já é uma prisão que inibe a agir mais puro
e natural. Segundo Crowley, todo ato que é por demais calculado é um ato impuro. O
método meditativo, visando a contemplação da esfera mística do Ser, e conseqüentemente
da esfera Absoluta da existência, deve funcionar como uma diminuição da interferência
racional do agir, permitindo que o homem viva naturalmente sem a interferência do meio.
Agir por agir, de acordo com suas faculdades anímicas, experimentando por si mesmo que
a diferença entre o Ser o Mundo, ou o Ser e o Outro, é uma ilusão de dualidade. Em fato,
todo o agir de um é o agir de todos. O Ego é uma ilusão que deve ser quebrada.
Finalmente, algo ocorre, cuja natureza pode formar o assunto da discussão a
seguir. Por enquanto, deve ser suficiente dizer que essa consciência do Ego e do
não-Ego, do observador e da coisa observada, do que conhece e da coisa
conhecida, é obscurecida.
210
Crowley acreditava que a experiência mística era possível de ser obtida através de
determinados métodos de controle mental. Ao usar o lema “O método da Ciência, o
Objetivo da Religião” na abertura de suas revistas esotéricas The Equinox, Crowley queria
dizer que compreendia seu método de magia como um método científico, chegando a
conclusões como “é mais eficaz atingir a dimensão mística do Ser através de meditação do
que de reza”. Ele visava quebrar dogmas estabelecidos, especialmente no pensamento
cristão, doutrina de sua criação, tentando assim tornar a experiência mística “mais pura”.
Foi o grande trabalho da vida de Frater Perdurabo
211
provar isso [que distinções
nas instruções de grandes mestres do passado por causa de suas limitações físicas].
Estudando cada prática religiosa de cada grande religião em vista, ele foi capaz de
either prayer or meditation? It is the restraining of the mind to a single act, state, or thought.
(CROWLEY 1997b, 10)
210
(Tradução nossa, grifos do autor) Finally something happens whose nature may form the subject of a
further discussion later on. For the moment let it suffice to say that this consciousness of the Ego and
the non-Ego, the seer and the thing seen, the knower and the thing known, is blotted out. (CROWLEY
1997b, 13)
211
Um dos vários mottos de Aleister Crowley. Em específico, esse se refere ao início de seu caminho como
adepto, sendo uma fórmula em latim que visava significar “Eu Perdurarei Até o Fim”.
78
mostrar a Identidade-na-diversidade de tudo, e formular umtodo livre de todo
preconceito dogmático, e baseado apenas nos fatos certificados de anatomia, fisiologia
e psicologia.
212
É interessante notarmos aqui que, ao dizer isso, Crowley não nega a validade das
experiências místicas de mestres do passado, mesmo com seus dogmas. Ao falar de Joana
d’Arc, por exemplo, ele diz que suas visões eram cristãs simplesmente pelo fato de que ela
era cristã. E que, através dessas visões, ela teria encontrado força para realizar seus grandes
feitos. Contudo, não deveríamos supor que ao obter-se o contato com o gênio alguém
estaria fadado a realizar grandes coisas. Sobre isso, Crowley diz que “pode ser verdade que
todas essas grandes pessoas ‘viram Deus’, mas isso não quer dizer que todos que ‘vêem
Deus’ farão grandes coisas”
213
. Isso não seria necessariamente sinal de fraqueza: Crowley
indica justamente que talvez isso seja sinal de grande força, e que os que causaram grandes
mudanças no mundo sejam na verdade as grandes falhas da humanidade
214
.
É válido apontarmos também que Crowley dava-se grande crédito por ter
conseguido, segundo ele, unir diversos sistemas filosóficos, religiosos e espirituais, de
modo conciso e eficaz, dentro de seu próprio sistema. Por diversos escritos, ele demonstra
um sentimento de grande êxito e confiança em seu próprio sistema, argumentando que este
teria conseguido “resolver os problemas da filosofia”
215
, além de ter sido capaz, graças
especialmente a compreensão mística da realidade, de integrar sistemas de magia e
misticismo
216
. Sobre isso, ele diz em uma de suas cartas em Magick Without Tears:
Eu não penso que estou falando excessivamente de modo injusto quando digo que
minhas pesquisas pessoais foram do mais alto valor e importância para o estudo de
tópicos de Magia (k) e Misticismo em geral, especialmente minha integração dos
vários sistemas de pensamento do mundo, notavelmente a identificação do sistema
212
(Tradução nossa) “It was the great work of the life of Frater Perdurabo to prove this. Studying each
religious practice of each great religion on the spot, he was able to perceive the Identity-in-diversity of all,
and to formulate a method free from all dogmatic bias, and based only on the ascertained facts of anatomy,
physiology, and psychology.” (CROWLEY 1997b, 42)
213
(Tradução nossa) “It may be true that all these great people ‘saw God’, but it does not follow that every
one who ‘sees God’ will do great things.” (CROWLEY 1997b, 14)
214
CROWLEY 1997b, 14.
215
CROWLEY 1969, 413-424; Idem 1997b, 693-708. Além dos problemas da filosofia, ele também afirma
que o Livro da Lei é capaz de resolver todos os problemas religiosos, abrir comunicações com inteligências
desencarnadas, reconciliar concepções cosmológicas que transcendem o tempo e o espaço, resolver os
problemas ético-morais da humanidade, entre outras coisas. Essas afirmações devem servir de exemplo de
como Crowley, apesar de tudo o que foi dito contra ele, acreditava fielmente em seu sistema.
216
Como pudemos ver no capítulo anterior, Crowley montou um sistema de evolução sincrético que agregava,
especialmente, diversas formas de trabalhos e filosofias herméticas com práticas e conceitos orientais
(especialmente a ioga).
79
do I Ching com aquele da Cabala. Mas eu lhe garanto que todo o trabalho de minha
vida, mesmo que multiplicado por mil, não valeria um décimo do valor de um único
verso do Livro da Lei.
217
.
Para finalizarmos, podemos deixar claro a seguinte idéia: Crowley acreditava que
todas as idéias sobre Deus, Absoluto, Supra-alma, Divino, Infinito, etc, seriam formas
muito profundas de pensamento, além do racional, além da própria mente, e que seriam
possíveis de serem atingidas por esforço próprio. Não noção de graça aqui: é o homem
sozinho que possuiria as capacidades de tornar-se em si um Deus, justamente ao entrar em
contato com seu Ser mais profundo – sua experiência mística
218
.
Resumindo, nós afirmamos uma fonte secreta de energia que explica o fenômeno
do Gênio. Nós não acreditamos em quaisquer explicações sobrenaturais, mas
insistimos que esta fonte pode ser atingida pelo seguimento de regras definidas, o
grau de sucesso dependendo da capacidade daquele que procura, e não no favor
de qualquer Ser Divino. Nós afirmamos que o fenômeno crítico que determina
sucesso é uma ocorrência do rebro caracterizada essencialmente pela união do
sujeito e objeto. s propomos discutir este fenômeno, analisar sua natureza,
determinar fielmente as condições físicas, mentais e morais que são favoráveis a ele, a
assegurar sua causa, e então produzi-lo em s mesmos, para que nos possamos
adequadamente estudar seus efeitos.
219
2.3 Ética e Moral no Livro da Lei
Para esta parte do trabalho, nos focaremos nos comentários de Crowley sobre o
Livro da Lei, especificamente aqueles presentes no livro The Law is for All The
Authorized Popular Commentary to The Book of The Law
220
, trazendo como auxílio
algumas passagens do livro Magick Without Tears
221
.
217
(Tradução nossa) “I do not think I am boasting unfairly when I say that my personal researches have been
of the greatest value and importance to the study of the subject of Magick and Mysticism in general,
especially my integration of the various thought-systems of the world, notably the identification of the system
of the Yi King with that of the Qabalah. But I do assure you that the whole of my life's work, were it
multiplied a thousand fold, would not be worth one tithe of the value of a single verse of The Book of the
Law.” (CROWLEY 1991, 1-2)
218
CROWLEY 1997b, 42.
219
(Tradução nossa, grifos do autor) To sum up, we assert a secret source of energy which explains the
phenomenon of Genius. We do not believe in any supernatural explanations, but insist that this source
may be reached by the following out of definite rules, the degree of success depending upon the capacity
of the seeker, and not upon the favour of any Divine Being. We assert that the critical phenomenon
which determines success is an occurrence in the brain characterized essentially be the uniting of
subject and object. We propose to discuss this phenomenon, analyse its nature, determine accurately the
physical, mental and moral conditions which are favourable to it, to ascertain its cause, and thus to produce it
in ourselves, so that we may adequately study its effects.”. (CROWLEY 1997b, 14)
220
(Tradução nossa): A Lei é para Todos O Comentário Popular Autorizado para O Livro da Lei. Sem
tradução em português. Há várias edições dos comentários do Livro da Lei que Crowley produziu, tendo
80
De forma a ilustrar nosso intento, podemos começar colocando que, em comparação
com os 10 Mandamentos existentes no Antigo Testamento bíblico, existe um
mandamento na filosofia thelêmica, que é o “fazer a sua Vontade”. Não apenas essa é a
única
222
Lei como também o único verdadeiro direito
223
. Todos os atos e direitos seguintes
seriam apenas decorrentes da condição de compreensão da própria Vontade.
Um dos pontos principais a serem considerados no pensamento sobre Ética em
Crowley está localizado nos comentários referentes aos versículos 27 à 34 do segundo
capítulo do Livro da Lei, lembrando que este capítulo seria a voz de Hadit, a entidade que
representa a manifestação da Vontade. São os que seguem:
27. Existe grande perigo em mim; pois quem não compreende estas runas comete
uma grande falha. Ele cairá no fosso chamado Porque, e ele perecerá com os
cães da Razão.
28. Então uma maldição para Porque e seus parentes!
29. Possa Porque ser amaldiçoado para sempre!
30. Se a Vontade ra e clama Por Quê, invocando Por Causa, então a Vontade
pára & nada faz.
31. Se o Poder pergunta por quê, então o Poder é fraqueza.
32. Também a razão é uma mentira; pois existe um fator infinito & desconhecido;
& todas as suas palavras são enganosas.
33. Basta de Porquê! Seja ele danado para um cão!
34. Mas vós, ó meu povo, erguei-vos & despertai!
224
Analisemos essas passagens. Nelas, nota-se um violento ataque ao idealismo
racional. A busca pelas relações entre causa e efeito e as construções racionais sobre tais
seriam impedimentos contra a plena realização da Vontade. Esta não teria causa de existir.
Ela simplesmente é. Qualquer tentativa de racionalizá-la ou de tentar justificar os atos do
thelemita por outras vias além dela são atos falhos em si. A Vontade se auto-justifica. Para
reforçar este ponto, podemos nos utilizar de um aforismo de Nietzsche (lembrando que
como diferenças principais os trabalhos dos editores, escolhendo quais comentários eram mais ou menos
relevantes. A grande maioria dessas outras edições não se encontra mais disponível para consulta, sendo hoje
parte de bibliotecas particulares e itens de colecionador. A edição que estamos utilizando é a mais acessível
no momento. Para uma breve explicação histórica sobre as diferentes edições, conferir CROWLEY 1996a, 7-
12.
221
Magia (k) semgrimas, em português - até o momento sem tradução.
222
CROWLEY 1997a, 97.
223
CROWLEY 1997a, 97.
224
CROWLEY 1997a, 103.
81
Crowley o considera um profeta de Thelema
225
), que diz que “não fenômenos morais,
mas apenas uma interpretação moral desses fenômenos”
226
.
Abre-se aqui uma questão: como desenvolver um pensamento ético? Como se
define o que é um ato bom e o que não é? Como se justifica um ato? Se alguém deve
sempre se basear na sua Vontade, e esta extrapola os limites racionais, e sendo a Ética por
definição uma reflexão racional sobre quais são os atos corretos, como discutir ética em
Thelema?
Crowley aponta a Ética como o exercício racional da busca pelo Bem comum, a
esfera pública. Para ele, esse exercício racional é bobagem, como veremos a seguir. a
Moral é a busca do que é bom e mal para cada um esfera privada. Neste campo entra a
questão da relatividade de valores, que Crowley considera essencial para o thelemita, como
também veremos no decorrer do presente capítulo.
Comentando sobre os versos citados do Livro da Lei, Crowley critica severamente
os intelectuais, dizendo que a experiência é a maior de todas as professoras
227
.
Desenvolvendo este raciocínio, ao comentar especificamente sobre o versículo 28, ele
complementa:
Isto é contra esses intelectuais mencionados anteriormente. Não “normas de
Correto”. Ética é tolice. Cada Estrela deve seguir sua órbita. Ao inferno com “princípio
moral”; tal coisa não existe; essa é uma ilusão da plebe, e torna o homem em gado. Não
escute a explicação racional do “Quão Certo Isso Tudo É”, nos jornais.
228
Com este comentário, não devemos concluir que Crowley nega a razão ou a Ética,
mas sim que ele nega esses exercícios mentais como sendo as únicas formas válidas de se
decidir o que é certo ou errado. A Ética à qual ele se refere é o exercício racional, lógico,
sobre como se determinar o que deve ser feito. A Vontade extrapolaria todos esses limites.
Ela operaria por si só. É ela quem deveria definir o que é Bom, e não o contrário. O agir
humano deve estar em conformidade com a Vontade, tornando-se um ato natural, sem
contaminação do pensamento lógico.
225
Nietzsche pode ser considerado um de nossos profetas. (Tradução nossa - Nietzsche may be regarded as
one of our prophets”). (CROWLEY 1991, 303)
226
NIETZSCHE 2004, 94.
227
CROWLEY 1996a, 117.
228
(Tradução nossa, grifos nossos) “This is against these Intellectuals aforesaid. There are no ‘standards of
Right’. Ethics is balderdash. Each Star must go on its orbit. To hell with moral principle’; there is no such
thing; that is a herd-delusion, and makes men cattle. Do not listen to the rational explanation of How Right It
All Is, in the newspapers.” (ibid, 117).
82
Isso nos fica mais claro nos comentários seguintes, quando Crowley reconhece que
a razão deve ser a autocrata da mente, desdenhando assim as artes do orador. Deve ser
sempre lembrado que este mesmo argumento enfatiza que a mente deve se ater aos seus
próprios assuntos, sem ultrapassar seus próprios limites, sendo que a Verdadeira Vontade, e
sua Apreensão, devem estar absolutamente além do plano mental
229
. A mente e a razão,
como entendidas aqui, seriam apenas veículos e ferramentas da verdadeira vontade, e não
sua manifestação plena
230
.
Não haveria motivo, segundo ele, para se perguntar por que uma estrela segue sua
órbita, ou por que um cachorro late
231
. Tais fenômenos seriam inatos de suas naturezas:
acontecem porque simplesmente são assim. Não haveria motivos para tentar descobrir as
causas primeiras. Tais tentativas seriam perda de tempo, afastando o indivíduo da sua plena
realização. Apesar disso, caso seja necessário à realização da vontade que tais estudos se
realizem, não haverá problemas em realizá-los. O que não dever ocorrer de forma alguma é
a busca por algo que em nada satisfaz a realização do Ser. uma forma de hedonismo
místico aí: toda ação material deve estar em conformidade com a verdadeira identidade de
cada um. Se para a realização da vontade de alguém, este deverá se tornar cientista ou
lixeiro, não cabe a ninguém julgar. A idéia racional de que uma profissão é melhor que
outra por si só seria uma ilusão causada pelos valores e princípios morais derivados de uma
ética judaico-cristã ou seja, pela busca de hierarquia de valores. Na lógica crowleyana,
não há bem ou mal absolutos, mas sim uma constante relativização desses conceitos.
Atacando a idéia de que a razão deve ser justa, ou que ela leva o homem à sua plena
emancipação e felicidade, Crowley desenvolve sua idéia de que propósito na
existência com a satisfação da Vontade. Esta, por sua vez, não estando ligada a princípios
culturais, permite que o homem não siga certos padrões culturais impostos pelo meio. As
habilidades de ler e escrever, por exemplo, que são impostas pelos meios de produção atual,
podem ser contrárias à Vontade. Se em determinadas pessoas tais habilidades não são
necessárias para a realização dela, então não haveria motivos para que sejam aprendidas
232
.
229
CROWLEY 1996a, 118.
230
Como vimos no capítulo anterior, quando descrevemos o que é a Vontade segundo Crowley.
231
CROWLEY 1996a, 119.
232
CROWLEY 1996a, 130-131.
83
Crowley também desenvolve a idéia de que todo poder deve sempre possuir uma
grande dimensão inconsciente
233
. Um poder outorgado ou recebido é sempre falso. O poder
político se prova falso se o governante não possuir em si a capacidade de comandar. Por
isso, Crowley é um grande crítico dos sistemas democráticos e da exigência de
conhecimento exercida pelo sistema de produção capitalista. A idéia de que todos são
iguais, que todos devem ter as mesmas chances, lhe soava absurda. Contudo, “todo homem
e toda mulher é uma estrela”. Ou seja, todo homem e toda mulher são deuses a serem
despertados e possuem plenas possibilidades de se tornarem co-criadores do Universo. Isso
não deve ser confundido com “direitos iguais” ou “possibilidades iguais” ao contrário, o
homem deverá ter o direito de não se submeter a formas de trabalhos das quais não entram
em conformidade com sua vontade. O termo chave aqui é para compreendermos essa visão
é realmente um relativismo social.
É uma nova visão de mundo que Crowley busca desenvolver aqui. Como místico,
ele se o direito de desenvolver uma forma de organização social relativista que bebe a
todo momento de seu conceito metafísico – a Vontade. As dificuldades implícitas no
descobrimento dela, ou as novas formas de organização social que derivariam de um
“quadro ideal” (aquele em que todos a saberiam e a exerceriam plenamente) pouco
importam neste tipo de pensamento. Ele visa justamente o desenvolvimento de uma nova
forma de se ver e organizar a sociedade. Obviamente, sua filosofia é baseada no indivíduo,
mas existem repercussões no âmbito social que são claras. De tão evidentes que são,
Crowley dedica alguns escritos (os que estamos analisando) sobre como uma sociedade
ideal poderia funcionar nesses termos.
Contudo, o conceito de uma sociedade ideal não deve recair em imposições sociais,
como se daria em um âmbito de leis criadas por homens. Sob a Lei de Thelema, a Lei da
Vontade, ou a “Lei do Forte”
234
, Crowley dedica-se à formulação de uma sistematização
social que nunca é imposta, mas sim orgânica, inconsciente, de respaldo espiritual e
233
CROWLEY 1996a, 119.
234
“Forte” aqui possui claras ressonâncias com a tipologia nietzscheana, na qual o homem forte seria aquele
que o se deixaria contaminar pelo pensamento errôneo da imposta moralidade cristã, que glória na
derrota e na caridade. O homem forte é aquele que ultrapassa essas idéias e vive sua vida plenamente, sem se
importar se seus atos serão moralmente aceitos ou não. Para mais, cf. NIETZSCHE 2004, 2005 e 2007. Pode-
se também conferir a passagem 21 do Capítulo II do Livro da Lei, em que se : “A compaixão é o vício dos
reis: calcai aos pés os desgraçados & os fracos: esta é a lei do forte; esta é a nossa lei e o prazer do mundo”.
(CROWLEY 1997, 102)
84
biológico, como veremos em breve. O próprio fato de Crowley defender que
desaptidões sociais devido ao não descobrimento da verdadeira vontade, e
consequentemente da verdadeira função que alguém teria no meio social, prova esse seu
pensamento.
Há um ponto que Crowley considerava fundamental para a compreensão da Ética de
Thelema: o egoísmo
235
. Este termo seria, segundo ele, muito mal interpretado, e a
moralidade cristã teria deturpado-o ainda mais. Como grande de paradoxos, Crowley
comenta que, ao mesmo tempo que se deve ser egoísta, uma grande característica do Mestre
do Templo
236
é justamente o altruísmo. Apesar de parecer contraditório, o que ele quer
dizer é que o altruísmo por si só, baseado em uma suposta compaixão derivada de um
pensamento cristão, é uma falsa alegria, e, acima de tudo, um insulto a todos os irmãos.
Isso porque, segundo ele, ao realizar-se um trabalho de caridade, baseado exatamente na
idéia de necessidade de compaixão e necessidade, por exemplo, o que realiza a ação
caridosa coloca-se automaticamente em posição “melhor” do que o outro. Isso seria uma
insegurança, uma falha de caráter. Sendo “todo homem e toda mulher uma estrela”, todos
devem ser tratados da mesma forma. O ato de caridade deveria ser realizado quando não
houver a necessidade psicológica da caridade em si. O que Crowley acreditava é que 90%
da população não agüentaria essa situação de colocar-se de igual para igual frente ao irmão
mais pobre. Mesmo com o discurso cristão de que todos são irmãos, essa noção teria
deixado de funcionar há eras. O que ocorreria seria apenas uma compensação psicológica: o
homem comum tem compaixão por se achar melhor que o outro. Os valores thelêmicos
visariam uma aniquilação desse quadro todos seriam iguais, mas não uma igualdade
forçada, como o sistema democrático político visaria impor. O próprio sistema democrático
seria um sinal de fraqueza de caráter. O que se visa aqui é uma igualdade humana, uma
irmandade na mais profunda esfera do Ser. Em outras palavras, um respeito mútuo pelo fato
de o Outro ser sempre uma estrela, um Deus, um Rei em potencial, não importando as
condições em que se encontra. Razão e Emoção: estes são os dois grandes inimigos da
Ética de Thelema”
237
. Mais uma vez, fica evidente o ataque que Crowley faz aos atos
235
CROWLEY 1991, 292.
236
Título referente a um alto nível de evolução espiritual no sistema thelêmico.
237
(Tradução nossa, grifos do autor) Reason and Emotion: these are the two great enemies of the Ethic of
Thelema.” (CROWLEY 1991, 294)
85
calculados por exigências morais e desprovidos da influência da Vontade. O ato caridoso,
sendo imposto como necessidade social, é um insulto. Por isso o egoísmo. Contudo, o
Mestre do Templo, possuindo grande desenvolvimento espiritual, seria aquele que teria a
capacidade de se colocar acima de todos os valores, amando a existência por si só, entrando
em uníssono com o mundo, tendo todos os seus atos em coformidade natural com sua
vontade e existência. Por isso, seria altruísta. Esta é a explicação para o paradoxo
apresentado pouco. Ao realizar um ato de caridade, o Mestre do Templo o faz por
respeito a si próprio e ao seu outro, pois conseguiu se libertar das imposições sociais
cristãs. Crowley nos dá um exemplo prático de como tal dinâmica social deveria operar:
Agora, em prática, no dia-a-dia, este altruísmo está sempre aparecendo. o apenas
você insulta seu irmão Rei por seu “nobre auto-sacrifício”, mas você está quase certo
de interferir com a Verdadeira Vontade dele. Caridade sempre significa que a alta
alma que presenteia está, na verdade, lá no fundo, tentando aprisionar o agraciado de
sua bestial generosidade!
Na prática, eu vou começar novamente, é quase inteiramente um problema de ponto de
vista. “Aquele pobre homem aparenta que uma boa refeição não iria machucá-lo”; e
você o joga uma meia-coroa. Você ofende seu orgulho, você o torna pobre, vo se
torna um grosseiro, e você vai embora com um brilho por ter feito sua boa ação do dia.
Está tudo errado. Em tal caso, vodeveria tornar isto o pedido por um favor. Diga que
você está “morrendo de vontade de ter alguém com quem conversar, e se ele se
importaria de se juntar a você em algum lugar de almoço no Ritz, ou em qualquer
lugar que você sentir que ele seria mais feliz.
Quando vo conseguir fazer esse tipo de coisa da maneira que deve ser feita, sem
embaraços, falsa vergonha, com todo seu coração em mãos fazer isso simplesmente,
para resumir vose encontrabem à frente na estrada para a república real que é o
ideal da sociedade humana.
238
Mais uma vez, temos em evidência a importância que Crowley à necessidade de
se agir livre, sem “porquês”, não no sentido de anarquia ou inconseqüência, mas sim no
sentido de contato interior, de se saber a verdadeira identidade de cada um. Se conhecendo,
238
(Tradução nossa, grifos do autor) Now in practice, in everyday life, this unselfishness is always cropping
up. Not only do you insult your brother King by your "noble self-sacrifice," but you are almost bound to
interfere with his True Will. "Charity" always means that the lofty soul who bestows it is really, deep down,
trying to enslave the recipient of his beastly bounty!
In practice, I begin afresh, it is almost entirely a matter of the point of view. That poor chap looks as if a
square meal wouldn't hurt him; and you chuck him a half-crown. You offend his pride, you pauperize him,
you make a perfect cad of yourself, and you go off with a glow of having done your good deed for the day.
It's all wrong. In such a case, you should make it the request for favour. Say you're "dying for someone to
talk to, and would he care to join you in a spot of lunch" at the Ritz, or wherever you feel that he will be the
happiest.
When you can do this sort of thing as it should be done, without embarrassment, false shame, with your whole
heart in your words—do it simply, to sum up—you will find yourself way up on the road to that royal republic
which is the ideal of human society.” (CROWLEY 1991, 294)
86
e conhecendo sua vontade, o homem agiria livremente, sem hipocrisias ou atos falsamente
impostos. Ao saberem suas órbitas, cada estrela segue seu caminho naturalmente
O dinamismo social visado nesse esquema thelêmico pode ser apontado como falho
neste modelo astronômico apresentado. Como bem se sabe, estrelas colidem. Crowley
também sabia desse fenômeno, mas não perde de vista que, mesmo colidindo, elas estão
seguindo suas órbitas. Por isso, é importante deixarmos claro aqui que a Ética thelêmica
não prenuncia exatamente uma ordem “boa” ou “feliz” ela é, acima de tudo, trágica, pois
supõe a luta como princípio fundamental da vida. Em decorrência do relativismo de valores
empregado, obviamente haverá conflitos. Quando estes ocorrerem, Crowley aconselha para
a luta “como irmãos”. Aqui, ele está mais uma vez quebrando a hierarquia de valores
relativizando-se o bem e o mal, cada um terá valores próprios. Não por definição aquele
que estaria mais correto que o outro. O mais forte sobrevive – afinal, Thelema seria
também “A Lei do Forte”
239
, como apontamos pouco. Com isso, não se deve entender
que Crowley desejava que todos se matem. Pelo contrário, Crowley admirava a “boa
disputa”, e por isso a compara como figuras de Irmãos e Reis: descobrindo sua vontade, o
homem evolui. Sendo evoluído, suas lutas seriam longe de um nível bárbaro. Haveria
beleza no conflito. Falando sobre a questão do adultério, no comentário do versículo 41 do
primeiro capítulo do Livro da Lei
240
, ao analisar tal situação como uma de conflito,
Crowley diz:
O ato sexual é um sacramento da Vontade. Profa-lo é a grande ofensa. Toda
expressão verdadeira é legal
241
; toda supressão ou distorção é contrária à Lei da
Liberdade. Usar de restrições legais ou financeiras para forçar abstenção ou submissão
é inteiramente horrível, não-natural e absurda. Restrição física, aum certo ponto, não
é tão seriamente errada; pois ela tem suas raízes no conflito sexual original que vemos
nos animais, e possui frequentemente o efeito de excitar o Amor em sua forma mais
alta e nobre. Alguns dos vínculos mais passionais e permanentes começaram com
estupro. Roma foi em verdade fundada assim. Similarmente, assassinato de um parceiro
infiel é eticamente desculpável, em um certo sentido; pois pode haver estrelas cuja
Natureza é pura violência. A colisão de galáxias é um espetáculo magnífico, afinal.
Mas não nada de inspirador em uma visita ao advogado de alguém. Claro que é esse
é apenas meu ponto de vista pessoal; uma estrela que por acaso veio a se tornar um
advogado pode ver as coisas de outra forma! Ainda assim, a inexplicável variedade da
Natureza, apesar de admitir crueldade e egoísmo, não nos oferece quaisquer exemplos
do puritano e do moralista que se acha superior.
[...]
239
CROWLEY 1997a, 102.
240
“A palavra do Pecado é Restrição. Ó homem! o recuses tua esposa, se ela quer! Ó amante, se tu queres,
parte! Não existe laço que possa unir os divididos senão o amor: tudo mais é uma maldição. Maldito! Maldito
seja isto para os eons! Inferno”. (CROWLEY 1997a, 97).
241
“Legal” no sentido de “de acordo com a Lei”. No caso, a Lei de Thelema.
87
Leis contra o adultério são baseadas na idéia que a mulher é uma possessão pessoal, de
modo que fazer amor com uma mulher casada é privar o marido de seus serviços. É a
mais franca e mais insensível afirmação de uma situação de escravidão. Para nós, toda
mulher é uma estrela. Ela possui então o direito absoluto de viajar em sua própria
órbita. Não razão para ela o ser a ideal dona-de-casa, se essa for por acaso sua
vontade. Mas a sociedade não tem direito de insistir nessa questão.
242
Aqui vemos Crowley admitindo que existe conflito, que existe colisão de vontades,
mas que essa luta pode ser magnífica, se tiver como ponto de origem a vontade dos
envolvidos. Infelizmente, não muitos outros escritos dele que desenvolvam tal idéia do
conflito. sim a menção das dificuldades que surgem com a obtenção do conhecimento
sobre a Vontade e de que haverá lutas, como em seu Liber II
243
, mas não muito mais
sobre o conflito em si. De qualquer forma, as idéias apresentadas já servem como ilustração
de que tal cenário ocorre, tirando do campo thelêmico a idéia de uma felicidade mundana
plena. A felicidade thelêmica, a busca pelo Bem comum e individual, a Ética thelêmica em
si, aponta para a necessidade de conflito, colocando-o como importante e necessário.
Relatividade como compreensão de conduta. Fim de valores absolutos, início de
valorizações individuais. Em contato com a Vontade, todo ato é bom. Mas nenhum ato é
bom em si. Segundo Crowley, essa compreensão seria “a doutrina da relatividade aplicada à
esfera moral”
244
.
Esclarecendo ainda mais a relativização absoluta dos valores éticos e morais, não
poderíamos deixar de citar um de seus libers mais famosos, o Liber OZ. Nele, Crowley
242
(Tradução nossa, grifos nossos) “The sexual act is a sacrament of Will. To profane it is the great offence.
All true expression of it is lawful; all supression or distortion is contrary to the Law of Liberty. To use legal or
financial constraint to compel either abstention or submission, is entirely horrible, unnatural and absurd.
Physical constraint, up to a certain point, is not so seriously wrong; for it has its roots in the original sex-
conflict which we see in animals, and has often the effect exciting Love in his highest and noblest shape.
Some of the most passionate and permanent attachments have begun with rape. Rome was actually founded
thereon. Similarly, murder of a faithless partner is ethically excusable, in a certain sense; for there may be
some stars whose Nature is extreme violence. The collision of stars is a magnificent spectacle, after all.
But there is nothing inspiring in a visit to one’s lawyer. Of course this is merely my point of view; a star who
happened to be a lawyer might see things otherwise! Yet Nature’s unspeakable variety, though it admits
cruelty and selfishness, offers us no example of the puritan and the prig!
[...]
Laws agains adultery are based upon the idea that woman is a chattel, so that to make love to a married
woman is to deprive the husband of her services. It is the frankest and most crass statement of a slave-
situation. To us, every woman is a star. She has therefore an absolute right to travel in her own orbit. There is
no reason why she should not be the ideal hausfrau, if that chance to be her will. But society has no right to
insist upon that standard.” (CROWLEY 1996a, 42-43)
243
CROWLEY 2007, 39-43.
244
(Tradução nossa) “This is the Doctrine of Relativity applied to the moral sphere.” (CROWLEY 1991, 423)
88
explana em poucas linhas toda a norma de conduta que um thelemita deve seguir. Segue
abaixo o documento na íntegra.
Liber OZ: Liber LXXVII
245
"A Lei do forte: esta é a nossa Lei e a alegria
do mundo." AL II 21
246
"Faze a tua Vontade será o todo da Lei." AL I 40
"tu não tens direito senão fazer a tua vontade.
Faze aquilo, e nenhum outro dirá não." AL I 42-3
"Todo homem e toda mulher é uma estrela." AL I 3
“Não existe deus senão o homem.”
1.
O ser humano tem o direito de viver pela sua própria Lei---
de viver da maneira como quiser viver;
de trabalhar como quiser;
de brincar como quiser;
de morrer quando e como quiser.
2.
O homem tem o direito de comer o que quiser;
de beber o que quiser;
de morar onde quiser;
de se mover como quiser sobre a face da terra.
3.
O homem tem o direito de pensar o que quiser;
de falar o que quiser;
de escrever o que quiser;
desenhar, pintar, lavrar, estampar, moldar, construir como quiser;
de se vestir como quiser.
4.
O homem tem o direito de amar como quiser:
"tomai vossa fartura e vontade de amor como quiserdes, quando, onde e com quem
quiserdes." AL I 51
5. O homem tem o direito de matar esses que quereriam contrariar estes
direitos.
"os escravos hão de servir." AL II 58
"Amor é a lei, amor sob vontade." AL I 57
247
245
Essa numeração em algarismos romanos, LXXVII (77), é apenas a forma pela qual Crowley utilizava para
melhor catalogar seus libers. Há sempre um sentido místico no número, utilizando-se de uma gematria
hermética. Contudo, tal explicação demonstra-se desnecessária no presente trabalho. Para fins de elucidação
do motivo de tal número aparecer, basta saber que tal relação existe.
246
AL II 21 corresponde ao Livro da Lei, Capítulo II, versículo 21. Essa notação é a abreviação que
thelemitas utilizam para se referir a determinadas passagens do Livro da Lei, sendo AL (ou Liber AL) um dos
nomes que esta obra recebe.
247
CROWLEY 1997a, 200 – adaptado.
89
Quando a questão da Ética em Crowley surge, o Liber OZ é geralmente o
documento mais citado, justamente porque, além de demonstrar os direitos de cada homem
e mulher, é também um dos mais mal-interpretados. Não é difícil lê-lo e pensar que
Crowley desejava anarquia social, ou ao menos um hedonismo e egoísmo indiferente ao
meio. Mas ao analisarmos este documento após toda a explanação sobre o que Crowley
compreendia por Ética dentro de seu sistema, podemos ver no Liber OZ basicamente um
resumo sobre quais os direitos que o homem obtém após o descobrimento de sua vontade.
Todo o “querer” contido no documento é um querer condicionado por ela. Ou seja, não é
um ato racional ou condicionado pelo meio em que se vive. É um ato de pura expressão e
liberdade do Ser vivente. Contudo, tal estado de existência pode ser obtido após intenso
trabalho espiritual.
Mas para seu próprio intelecto como para regras gerais de seus digo de Morais
privado, o que é “certo” e o que é “errado” para você, isso emergirá apenas após
longa auto-análise tal como é o trabalho principal da Espada
248
processo de sua
Iniciação.
249
Em todo o momento, a Vontade é sempre o fim e o início, enquanto as ações são
sempre meramente os meios.
A Lei de Thelema nos ajuda a lidar com esta questão de modo muito simples e
sucinto. Primeiro, ela remove a necessidade em se definir “Fim”; pois para nós este
se torna idêntico com a “Verdadeira Vontade”; e s estamos presos a assumir que o
homem em si mesmo é o único árbitro; nós postulamos que seu “Fim” é auto-
justificado.
250
.
Poder-se-ia argumentar então, por exemplo, na questão do roubo. Poder-se-ia pensar
em alguma estratégia do príncipe de Maquiavel, na qual “os fins justificariam os meios”,
mas há, segundo Crowley, restrições. “Seria ético roubar?” A resposta de Crowley é um
incisivo “não”, tendo em vista que o roubo é um ato de invasão na vida do Outro, ou seja,
um ato que inibe a realização da vontade dele.
Minha réplica é, contudo, convincente e final. Roubo de qualquer forma é uma
248
A Espada” aqui deve ser compreendida como a faculdade “Mental”, “lógica”, do magista. Na linguagem
esotérica ocidental em grande escala, e principalmente no sistema de Crowley, a Espada é a arma mágica que
simboliza essas dimensões.
249
(Tradução nossa, grifos do autor) “But as to your own wit of judgment as to the general rules of your own
private Code of Morals, what is ‘right’ and what is ‘wrongfor you, that will emerge only from long self-
analysis such as is the chief work of the Sword in the process of your Initiation.” (CROWLEY 1991, 424)
250
(Tradução nossa, grifos do autor) “The Law of Thelema helps us to deal with this question very simply and
succintly. First, it obliviates the need of defining the properEnd’; for with us this becomes identical with the
‘True Will’; and we are bound to assume that the man himself is the sole arbiter; we postulate that his ‘End’is
self-justified.” (CROWLEY 1991, 309)
90
quebra da Lei de Thelema. É interferência com o direito de um outro de se livrar de
sua propriedade como quiser; e se assim eu o fizer, não importa com qual justificação
tática, eu dificilmente poderia pedir a outros a respeitar meu próprio direito
similar.
251
.
Concluímos então essa parte de explanação do que Crowley compreendia como o
que é Ético e Moral: ambas esferas de reflexão da ação devem se ver livres de qualquer
laço social. A Ética como exercício racional em busca do Bem público é inútil, e a
moralidade do indivíduo é possível de ser desenvolvida após grande análise do próprio
Ser, ou seja, durante seu desenvolvimento espiritual. Podemos então considerar que, no seu
sistema, Crowley visa fundir Ética e Moral, tornando ambas relativas. O indivíduo deve
buscar suas próprias ações e condutas que considera boas, não por obediência ao estado ou
à família
252
, mas sim em obediência à sua Vontade inata, ao seu trabalho e desenvolvimento
no caminho de iniciação mística. Sendo algo inato no homem, e por tornar o seu
descobridor um “Deus”, enquanto que os outros que ainda não a descobriram seriam
“escravos”, Crowley desenvolve suas idéias em Ética e Moral baseada nessa tipologia
dicotômica. Nesse sentido, é hierárquico o Deus domina o escravo. Mas isso jamais é
imposto: tal quadro é natural, decorrente da obtenção de conhecimento da Vontade, assim
como o latido é natural a um cão
253
.
Além disso, podemos também considerar que a ética crowleyana possui um caráter
paradoxal, sendo, em determinados aspectos, tanto evolutiva quanto estática. Como
característica estática, apontamos justamente à natureza da Vontade, que seria Universal
(inerente a todos) mas se apresentando de maneira única no mundo (manifestação relativa).
Apesar disso, a obtenção do conhecimento sobre a própria Vontade e a sua execução no
plano físico seriam formas de evolução espiritual, elevando o homem de sua condição
estritamente humana e tornando-o um ser divino. Como apontamos sobre os Chefes
251
(Tradução nossa)My retort, however, is convincing and final. Robbery in any shape is a breach of the
Law of Thelema. It is interference with the right of another to dispose of his property as he will; and if I did
so myself, no matter with what tactical justification, I could hardly ask others to respect my own similar
right.” (CROWLEY 1991, 311-312)
252
Assim como o matriarcado refletia a fórmula do Aeon de Ísis, e o patriarcado o de Osíris, assim então a
regra da “Criança Coroada e Conquistadora” expressa aquela de Horus. A família, o clã, o estado nada
contam; o Indivíduo é o Autocrata.
(Tradução nossa) “As matriarchy reflected the Formula of the Aeon of Isis, and patriarchy that of Osiris, so
does the rule of the "Crowned and Conquering Child" express that of Horus. The family, the clan, the state
count for nothing; the Individual is the Autarch.” (CROWLEY 1991, 303)
253
Como no exemplo dado anteriormente.
91
Secretos, no Capítulo 1, a função deles seria de ajudar a humanidade a evoluir
espiritualmente, e os thelemitas devem buscar tal auxílio. Deve-se esclarecer, no entanto,
que esse caráter evolutivo da ética thelêmica não se apóia necessariamente em questões
científicas
254
ou no sentido estritamente iluminista do termo, mas sim em um processo de
auto-conhecimento que não será necessariamente “bom” ou “ruim”, mas necessário para a
humanidade como um todo afinal, segundo Crowley, com a chegada do Aeon de Hórus,
chegou-se também o momento de completa revisão de valores antigos e formulação de
novos que auxiliariam o homem em seu próximo estágio evolutivo.
254
Ao menos não nos termos de “ciência” que o pensamento moderno sintetiza. Crowley acreditava que seu
método de elevação espiritual possuía rigores científicos, mas isso deve ser compreendido como um rigoroso
processo de auto-conhecimento, com registros em diários, experimentos (tipos de meditação, testes com
variados sistemas gickos etc) e todo e qualquer processo que indicasse necessidade de revisão e avaliação
sobre a própria conduta. Para Crowley, a experiência é muito mais válida do que qualquer teoria ou narrativa
passada. Essa importância empírica em sua Thelema se aplicaria da seguinte forma: se quer saber se Deus (ou
Deuses) existe, tente entrar em contato direto com Ele.
92
CAPÍTULO III: A ÉTICA PÓS-MODERNA SEGUNDO MICHEL MAFFESOLI
Neste capítulo procuraremos estabelecer quais são as lentes de análise para o estudo
da ética em Crowley. A obra de Michel Maffesoli, teórico escolhido para o presente
trabalho, é por demais extensa e, justamente por isso, é necessário um delineamento mais
preciso das ferramentas de estudo que serão retiradas de seu trabalho. Ao estabelecermos
esses termos, poderemos partir, então, no capítulo seguinte, à análise do que Crowley
entende por Ética e Moral, e se podemos ou não considera-lo um pensador que
vislumbrava uma ética pós-moderna, compreendida aqui nos termos maffesolianos da
expressão.
3.1 Pós-Modernidade e Relativismo Epistemológico
O termo “pós-modernidade” possui diversas definições, e não nos caberá no
presente trabalho apresentar todas, tendo em vista que muitas delas são não apenas
incompatíveis como, também, contraditórias. Dado nosso objetivo principal, basta
apresentá-lo dentro do trabalho do sociólogo francês Michel Maffesoli, de onde provém
nosso campo teórico escolhido para análise e desenvolvimento do trabalho.
Segundo ele, a “pós-modernidade” marca o atual período da história em que alguns
dos principais sistemas teóricos que sustentam o pensamento moderno teriam entrado em
saturação. Dessa forma, a pós-modernidade não seria somente um período histórico
possível de ser demarcado com exatidão, mas principalmente um momento de transição em
que começam a aparecer determinados padrões e formas de comportamento / pensamento
que pré-configuram os sinais dos tempos a seguir.
Pode-se perceber a saturação dos valores da Modernidade, mas não se sabe o que
está para vir a tomar seu lugar. Estamos, pois, numa época provisória: notamos o que
não é mais, mas não conhecemos ainda o que está por vir. Sentimos o adubo (le
terreaux), aquilo que vai fazer brotar qualquer coisa, nas formas de comer, nas
emoções coletivas, nas pequenas tribos urbanas, etc., sedimentando adubando,
formando a camada freática que sustenta a terra e que irá alimentar o que essobre
ela. É um momento, uma passagem da Modernidade a qualquer coisa, para
apreendermos, é preciso saber buscar no substrato sensível dos dados sociais. Buscar
o sensível, mas que seja possível de se interpretar racionalmente. Uma “razão
sensível”, isto é, capaz de elaborar sobre os dados da sensibilidade intuitiva.
255
255
ROUANET & MAFFESOLI 1994, 22.
93
Essa noção de um momento histórico transitório é importante dentro do quadro
teórico maffesoliano: denota o aspecto efêmero das diferentes novas formas de
socialização. Elas não visam ser permanentes buscam justamente o jogo, a troca
simbólica incessante, o gozo pela intensificação do momento presente. Essa atitude
presenteísta seria, segundo ele, uma das maiores marcas desse período de transição. Dentro
dessa lógica, busca-se, dentro de sua sociologia, um estudo dos fenômenos “mundanos”,
banais, que, contudo, realizam uma ligação mística do ser com o meio. Sobre essa forma de
misticismo, Maffesoli nos diz:
[...] cabe lembrar que, de um modo paroxísmico, os místicos viveram e pensaram em
referência à experiência da luz interior. É o que neles suscita ao mesmo tempo a
beatitude e a iluminação [...]. Sem pretender, nem poder, por falta de competência,
abordar de frente o fenômeno stico, cabe indicar que ele repousa, essencialmente,
sobre uma percepção direta e intuitiva do si-mesmo, do mundo e do divino. Se, em
particular, este último for entendido como uma metáfora da globalidade, do caráter
orgânico da totalidade do ambiente social e natural, deve-se reconhecer que há, nesse
insight, uma via alternativa para aquilo que foi a hegemonia da luz da razão
(Aufklärung). Sem passar pelas mediações próprias à dialética, a experiência mística
nos ensina que é possível ter acesso, diretamente, a uma consciência cósmica[...].
Coisas que podem ser compreendidas de diversas maneiras mas que, no âmbito de
nossa proposta, remetem para uma relação com o mundo, com as coisas e com as
pessoas, vivida de um modo imanente. Em suma, uma fruição imediata sem projeto
voltado para o além, sem busca de causas ou conseqüências longínquas.
Ocorre que uma experiência tal, vivida de um modo paroxístico pelos místicos, e
isso em numerosas tradições culturais, tende a exprimir-se minoradamente na vida
cotidiana. Sem que isso seja conscientizado ou verbalizado de modo explícito é
preciso reconhecer que a ambiência do tempo, o estilo da época, favorece uma
mística por analogia. Numerosos observadores não pretendem ver senão um
retorno do irracionalismo ou, ainda, a moda passageira de um esoterismo de
pacotilha. Isso não é falso. Mas, para além do julgamento de valor, é inegável que as
diversas formas de sincretismo, a empolgação pelas filosofias espiritualistas, o
recurso aos diversos “Orientes míticos”, sem falar do culto da natureza ou do
corporeísmo ambiente, atingem tal amplitude que não se pode mais ignorá-los
denegá-los.
256
Com essas passagens, podemos compreender então que a “união mística” a que
Maffesoli se refere é uma forma de compreender o “estar-junto” social. O social sendo uma
esfera mística, misteriosa, que através dos pequenos atos banais do dia-a-dia fazem a
ligação da pessoa com o meio. Dessa forma, procura-se um olhar mais atento aos atos
frívolos que ganham demasiada importância nos tempos atuais. Isso seria sua “sociologia
sensível” uma tentativa de poder apreender na análise social a importância dos atos e
desejos que não possuem tanta força na análise científica de maior expressão. Essa
256
MAFFESOLI 2008a, 145-146.
94
sensibilidade que Maffesoli procura desenvolver se especificamente porque ele acredita
que os grandes temas da Modernidade tais como Democracia e Liberdade, por exemplo
deixaram de ter importância no imaginário social atual
257
. então, em sua epistemologia,
uma diferença fundamental entre Poder e Potência enquanto a primeira é instituída por
órgãos estatais hierarquicamente superiores, uma potência social que vai contra todas
essas imposições. O desejo pela teatralidade social, pelo aspecto estético da existência,
denotando assim uma força trágica na própria condição de viver, iria contra toda essa
estrutura de análise primeira nas ciências sociais em geral.
É sempre instrutivo, para o observador social, estar atento à dialética entre poder e
potência. Ao elaborar o ideal democrático a modernidade pôs ênfase sobre o primeiro
e, deste modo, valorizou a expressão conceptual e a visão teórica do mundo. a
pós-modernidade tende a privilegiar a expressão imagética e o jogo das formas. Por
conseguinte, é outro modo de estar-junto que se configura, o do ideal comunitário,
expressão direta da potência. Esta o tem necessidade alguma de se legitimar
através de uma racionalização teórica, pode dispensar representações, tanto
intelectuais quanto políticas; por outro lado, ela é, ao mesmo tempo, a causa e o
efeito de uma série de emoções, de paixões e de sentimentos coletivos, donde a
profusão de imagens e o jogo das formas de que se acabou de tratar. Em suma, existe
uma relação direta entre o ressurgimento da forma e o da comunidade. A
revalorização do próprio corpo que engendra a do corpo coletivo, a exacerbação do
“eu” e do “cuidado de si” que culmina em um nós fusional, confusional, unicamente
preocupado com o prazer de estar junto aqui e agora.
258
Seguindo uma leitura nietzscheana dos atos humanos
259
, Maffesoli aponta que uma
das grandes características desse período pós-moderno seria a teatralização do mundo, um
retorno do espírito trágico. Tirar-se-ia do foco dos atos humanos as suas dimensões morais
e colocar-se-ia em evidência o aspecto estético dos mesmos. Existiria assim um “agir
estético”, uma forma de socialização que evidenciaria de forma mais clara um
relacionamento sensível com o mundo, contrapondo-se assim com a visão
racionalista/moral, proveniente do espírito moderno.
Em primeiro lugar, a suspeita em relação ao sujeito e ao indivíduo; em segundo, a
não-racionalidade, e, em terceiro, a concepção trágica da existência. No momento do
individualismo moderno, Nietzsche mostrou como isso estava corroído por dentro. É
como a madeira comida pelos cupins. Foi Nietzsche que me permitiu pensar na idéia
de “pessoa” e de tribo”, ou seja, na saturação do indivíduo e na emergência do
tribalismo. Para Nietzsche, o o-racional não quer dizer irracional. As muitas
atitudes coletivas envolvendo jovens geram práticas não-racionais, pois elas têm
como que uma gica interna. uma razão própria do grupo. O não-racional
257
MAFFESOLI 2006a, 61.
258
MAFFESOLI 2008a, 105-106.
259
“Nietzsche é como um par de óculos para mim.” (MAFFESOLI 2008b, 8)
95
permite compreender a idéia de anomia (um aquém ou um além da lei). O o-
racional é da ordem da paixão, da emoção e do afeto.
Quanto ao terceiro aspecto, trata-se de um aporte muito importante de Nietzsche,
que inspirou a distinção entre o drama e a tragédia. Nosso modo de pensar é
dramático, quer saibamos ou o. No drama, há uma ão que deve ser solucionada,
com base em uma concepção judaico-cristã, e que é encontrada no marxismo. O
político é dramático. Cheguemos à resolução do problema, cujo instrumento lógico é
a dialética: tese, antítese e síntese. Temos, , a idéia do projeto na educação, na
política e na economia. O drama, em outras palavras, é o modo de pensar oficial.
Todo o resto é trágico, o que chamei de “instante eterno”. A palavra “trágica é
agórica, isto é, o tem (re)solução. Na concepção trágica,há uma integração da
morte, um viver a morte todos os dias (homeopatização da existência). Não se
procura uma eternidade, mas sim o presente e o gozo.
260
Partindo desses pontos, Maffesoli aponta em seu trabalho a importância de se
colocar em foco o estudo das formas banais de socialização, o aspecto lúdico da existência.
A teatralização da existência, a busca pela satisfação estética e imaginal, este instante
eterno no efêmero
261
, seriam marcas profundas do pensamento e atitude pós-modernas.
Como se pode observar, esse tipo de atitude epistemológica vai contra muitos dos
cânones da própria ciência moderna. Isso porque, ao querer analisar o banal e as pequenas
dinâmicas tribais-urbanas, inevitavelmente tira-se de foco a idéia de um conhecimento que
seja determinante ou “correto em si”. Não é apenas uma forma de se postar neutramente
frente às análises de fenômenos sociais levando essa atitude às últimas conseqüências
epistemológicas, Maffesoli busca uma atitude científica que admite um pluralismo do
conhecimento, um politeísmo de valores. Em outras palavras, uma relativização total da
existência.
É com efeito esse pluralismo do conhecimento, um nome diferente para o
relativismo, que deve ser articulado para entender o fato de que a inteligência
humana es intrinsecamente ligada à imagem. Sendo então o papel da ciência a
produção da imaginação justa. Nessa perspectiva, o apetite participa da elaboração
do saber. Libido sciendi. Uma apetência como condição de competência.
262
Maffesoli fala muito da importância da imagem. Esta, em sua obra, seria um fator de
ligação, aquilo que estabelece vínculos sociais em outras palavras, o cimento social que
se desenvolve através da comunicação
263
. Nessa perspectiva, ela não tem como ser
totalmente apreendida, pois é por demais efêmera. Apesar disso, não pode ser negada ou
260
MAFFESOLI 2008b, 8.
261
MAFFESOLI 2003a, 67.
262
MAFFESOLI 2007b, 217 – 218.
263
MAFFESOLI 2003c, 17.
96
moralmente rejeitada, especialmente pelos intelectuais que analisam as novas formas de
interação social na contemporaneidade.
Dessa maneira, e dentro da idéia de que devemos olhar com maior atenção aos atos
sociais atuais que mais podem causar repulsa aos olhos modernos, podemos pensar na
imagem como uma das formas que causa ligação em pequenos núcleos sociais, e que, por
mais agressivos que possam parecer a alguns, formam laços. No caso destes, em especial,
as imagens que traduzem o mal possuem importante papel, como forma de se lidar com este
ao invés de ignorá-lo.
Com efeito, na ideologia do homo oeconomicus, o fato de o indivíduo ter sido
analisado como pivô auto-suficiente da sociedade acabou fazendo com que fosse
eliminada ou pelo menos postulada a superação da imperfeição. Em contrapartida, a
reafirmação da pessoa plural num mundo policultural tende a integrar o mal como
um elemento entre outros. Ele pode ser vivido, tribalmente e, com isto,
“homeopatizar-se”, tornar-se mais ou menos inofensivo. Cabe supor que uma parte
dos problemas dos professores nos colégios considerados problemáticos decorre de
sua propensão a ver uma turma como uma soma de indivíduos que precisam ser
aperfeiçoados, e não como um grupo com suas dificuldades, mas também com suas
com suas potencialidades coletivas.
264
Adotando inclusive o mal como algo válido socialmente, percebe-se melhor a sua
atitude como cientista proveniente de uma lógica complexa. Esse politeísmo de valores
evocado permite então uma análise de fenômenos sociais que não caia em grandes
paranóias ou metateorias demasiadamente complexas busca-se apenas a descrição dos
fenômenos como são, que devem assim ser analisados para uma melhor compreensão
daquilo que funda o agir estético social. Não se busca mais um ato bom, mas sim um ato
belo. Essas considerações teóricas serão melhor aprofundadas mais adiante.
Cabe-nos dizer que a negação da busca por considerações morais acerca dos atos se
especialmente porque Maffesoli considera que tal análise recai em uma forma inútil de
análise que “mata” o fenômeno a ser estudado. Para evitar esse perigo é que se adota a idéia
de um politeísmo de valores, considerando-se especialmente a desnecessidade de uma
busca por causas primeiras em determinados fenômenos. Ao considerar-se a complexidade
das formações de fenômenos e o desenvolvimento por um estudo fenomenológico, mais
descritivo do que necessariamente progressista, enfatiza-se o aspecto orgânico dos atos
sociais e evita-se a unilateralidade de interpretações.
São esses os caracteres essenciais da ordem orgânica; por um lado ela encontra seu
264
MAFFESOLI 2004a, 15-16.
97
impulso a partir de si-própria, por outro lado ela reúne, exprime ao seu modo,
estabelece uma conjunção nova com elementos do passado. Donde a necessidade de
fazer uma genealogia para bem compreender seu dinamismo. Essa genealogia,
evidentemente, é difícil de fazer, pois, à imagem das vias subterrâneas, e dos
escoamentos invisíveis, ela escolhe percursos que são tudo menos evidentes. Por
mais paradoxal que isso possa parecer, a forma orgânica é uma aparência oculta.
Parece-se compreendê-la de pronto, quando, na verdade, é muito delicado traçar-lhe
os contornos, distinguir-lhe as raízes, delimitar-lhe as redes. Mas é exatamente isso o
que torna a análise cativante, que faz dela um verdadeiro jogo intelectual. Tanto mais
que a atualidade mostra bem os limites da unidimensionalidade. Ao contrário do
monoteísmo sob suas diversas modulações, o politeísmo de valores é certamente o
ponto nodal de toda organicidade.
O termo empregado aqui o é neutro; quando Max Weber fala de politeísmo de
valores pretende, à imagem do politeísmo grego, dar conta da complementaridade,
das alianças, da guerra que os deuses do Panteon não cessavam de instaurar entre si.
É algo dessa ordem que se trata aqui.
265
A unidimensionalidade analítica seria, segundo ele, proveniente da visão monoteísta
judaica-cristão, que buscava a única verdade do Universo, representada especialmente na
figura de um único Deus. Tal visão unilateral do mundo teria desembocado na idéia de um
único método científico, uma única forma de se analisar os atos uma única forma correta
de ver e agir. Ao buscar a revitalização de um politeísmo de valores, buscando assim um
paganismo como atitude, Maffesoli tenta montar um abarco teórico que seja capaz de trazer
à luz novas formas de interações sociais que vão contra o pensamento judaico-cristão e
moderno “impostos”
266
. Os mecanismos epistemológicos desenvolvidos para isso serão
apresentados a seguir.
3.2 Sombra de Dionísio e Reencantamento do mundo
Emprestando o conceito de Nietzsche, Maffesoli acredita que, contrastando com o
espírito Apolíneo do mundo - representante de uma ciência progressista, pensamento
iluminista, que visa a emancipação e o desenvolvimento do homem “senhor de si” -, a pós-
modernidade é marcada pela constante presença do barulhento Dionísio, deus grego dos
bacanais, do teatro, do espírito lúdico como atitude frente ao mundo. Este seria, além dos
aspectos apresentados, uma representação do aspecto hedonista da existência, uma forma
diferenciada de narcisismo. Não haveria mais uma preocupação com o “dever-ser” social,
265
MAFFESOLI 2008a, 66-67.
266
MAFFESOLI 2006d, 9.
98
mas sim o simples “ser” em uma dimensão mais pessoal que é também dividida pelo meio
em que se encontra. Por isso, um narcisismo coletivo.
Com certeza, esse processo significa o fim ou, mais exatamente, a saturação, dos
valores dominantes e gerais que são aceitos e partilhados contratualmente pela
maioria. De fato, a identificação agrega cada pessoa a um pequeno grupo ou a uma
série de grupos. O que implica uma multiplicidade de valores opostos uns aos outros.
É isso que fez com que se falasse, sem razão, em narcisismo. Sem razão, se se
concebe o narcisismo como o estreitamento sobre o mundo individual, como é
costume analisá-lo. Em compensação, é de todo legítimo vislumbrar um narcisismo
coletivo, se o compreendemos como o fato de produzir e de viver uma mitologia
específica. Esse narcisismo coletivo, sem deixar de ser individual, põe a tônica na
estética, pois o que ele promove, é esse estilo particular, esse modo de vida, essa
ideologia, esse uniforme vestimentário, esse valor sexual, em suma, o que é da ordem
da paixão partilhada.
267
Esse hedonismo coletivo que Maffesoli aponta se daria em uma “nova” forma de
socialidade. Dizemos “nova”, entre aspas, porque ela seria na verdade uma retomada de
uma forma arcaica, que é o tribalismo. Contudo, adaptada ao ambiente atual, tornar-se-ia
um tribalismo urbano, que nada mais é do que uma rejeição epistemológica do conceito de
massa (confusa, disfuncional) e do indivíduo (único, indivisível). Através da noção de
tribos, Maffesoli busca desenvolver uma forma de análise social que se foca em pequenos
núcleos socais que dividem rituais e legislações que, apesar de serem contrários entre si,
são aceitos em seus próprios núcleos, mesmo que acabem indo contra a moralidade social
imposta. Ao atacar o conceito do indivíduo, e por conseqüência do individualismo,
contrapondo a isso a questão de tribalismo e espírito dionisíaco, ele comenta:
Não tenho a intenção de abordar frontalmente o problema do individualismo. Vou
falar dele, regularmente, a contrario, sendo o essencial apontar, descrever e analisar
as configurações sociais que parecem ultrapassá-lo, a saber, a massa indefinida, o
povo sem identidade ou o tribalismo como nebulosa de pequenas entidades locais.
Trata-se, é claro, de metáforas que pretendem acentuar, sobretudo, o aspecto
confusional da socialidade. Sempre a figura emblemática de Dionísio. A titulo de
ficção, proponho fazer como se” a categoria, que nos serviu durante mais de dois
séculos para analisar a sociedade, estivesse completamente saturada. Costuma-se
dizer que, muitas vezes, a realidade supera a ficção. Tentemos, pois, estar à altura
daquela. Talvez seja necessário mostrar, como o fizeram certos romancistas, que o
indivíduo o tem mais a substancialidade que, de modo geral, lhe haviam creditado
os filósofos, a partir do Iluminismo.
268
267
MAFFESOLI 2005c, 38.
268
MAFFESOLI 2006d, 36.
99
Apesar de neste trecho ele recuar a um ataque frontal à noção do indivíduo,
reconhecemos, em outro trecho de sua obra, um ataque direto a este conceito, apontando
que este seria, em sua análise, um fenômeno social que não se vê mais acontecendo.
De que é feita a vida [na s-modernidade], a vida de todos nós, senão, justamente,
do oposto do individualismo? Como compreender todas essas aglomerações em
massa, todas essas “amontoações”que pontuam a vida social? Aglomerações
musicais das quais as Techno Parade, a mais recente, oferece uma sonora ilustração.
Comunhões religiosas, como as Jornadas Mundiais da Juventude, em Paris. Êxtases
esportivos, como bem mostrou, pouco tempo atrás, a Copa do Mundo. Em termos
mais cotidianos, celebrações culturais, dentre elas as múltiplas jornadas” e festivais
(solenidades oficiais, festas nos parques, musicais, etc.) e as festas do consumo, nos
hipermercados e nos múltiplos saldos e liquidações que são os templos
contemporâneos.
Poderíamos multiplicar à vontade os exemplos. Basta lembrar que, em cada um
desses casos, o indivíduo racional e senhor de si fica singularmente ausente. Em cada
uma dessas situações, o importante é “perder-se no outro”. Perder-se numa dessas
tribos – musical, religiosa, esportiva, consumidora, cultural ou humanitária
269
.
Dentro da dinâmica social tribal, formam-se espaços sagrados no meio urbano,
“altares” que servem de comunhão e celebração entre as tribos. É nestes altares em que
ocorre a perda da noção do indivíduo ao ocorrer a ligação simbólica, fortalecendo-se o
cimento cultural, há uma formação de interações imagéticas que escapariam tanto dos
conceitos de massa quanto de indivíduo. Espaços de celebração de mistério, de entrega
mística ao Outro
270
, fazendo o membro da tribo pertencer a algo maior do que ele em sua
própria ( e única) vida. Há religação (re-ligare) com o meio.
Assim, poderíamos dizer que a megalópole é constituída por uma série de “altares”,
no sentido religioso do termo, nos quais são celebrados diversos cultos de forte
componente ético-estético. o os cultos do corpo, do sexo, da imagem, da amizade,
da comida, do esporte, etc. Nesse aspecto, a lista é infinita. O denominador comum é
o lugar onde se realiza esse culto. Com isso, o lugar faz o elo. Uma formulação de
Rilke resume bem essa colocação: o “espaço de celebração” (Raum des Rühmung).
Celebração que confere ao religioso sua dimensão original de ligação e que pode ser
uma celebração técnica (museu de la Villette, La Vidéothèque), cultural
(Beaubourg), lúdico-erótica (o Palace), de consumo (les Halles), esportiva (parc des
Princes, Roland-Garros), musical (Bercy), religiosa (Notre-Dame), intelectual (o
grande anfiteatro da Sorbonne), política (Versailles), comemorativa (o Arco da
Defesa), etc. Aí estão diversos altares onde a banalidade cotidiana vai revigorar-se,
seja diretamente, seja por intermédio da televisão. Trata-se de espaços específicos de
alta carga erótica, e o é à toa, aliás, que alguns deles, levando essa lógica às
últimas conseqüências, são tidos como locais de “paquera”, nos quais se exerce,
contemporaneamente, a prostituição sagrada, essa hierodulia de antiga memória que
reforçava o sentimento que uma sociedade tinha de si. Espaços de celebração feitos
por e para iniciados, aos quais se vai em busca de iniciação e onde se observam os
iniciados: no sentido etimológico do termo, portanto, espaços onde se celebram
269
MAFFESOLI 2004b, 78-79.
270
MAFFESOLI 2008a, 146.
100
mistérios. As pessoas se reúnem, reconhecem umas às outras e, com isso, conhecem
a si mesmas.
[...]
Todos esses territórios, que é preciso compreender no sentido etológico – esses
“altares”, esses lugares e espaços de socialidade são compostos por afetos e
emoções comuns, consolidados pelo cimento cultural ou espiritual, em suma, existem
por e para os tribos que neles escolheram seu domicílio.
271
Como formas de tribalização, não deixam de faltar nessas novas dinâmicas sociais
diversas provas e desafios que compõem um típico cenário tribalista. Para se iniciar em
determinada tribo, o indivíduo precisa passar por etapas. Só então ele será aceito. As provas
ocorrem por diversas mediações simbólicas: tatuagens, modos de se vestir, lugares (reais ou
virtuais), gírias, assuntos etc. Todos esses elementos constituem parte do cimento social
tribal, ao mesmo tempo em que são colocados em prova a todo o momento, fazendo o
probacionista elevar-se potencialmente em sua tribo. Contudo, como as tribos urbanas não
funcionam de forma regulamentada, toda essa provação se dá de maneira muito mais
orgânica e velada. Os membros e colegas de tribo vão, naturalmente, aceitando ou
afastando o participante. Até sua consolidação no meio, um trajeto a seguir. Ainda
assim, tal vínculo pode ser desfeito a qualquer momento seja por parte dos mesmos da
tribo quanto do próprio indivíduo. Os novos laços sociais, neste caso, são transitórios, e
podem morrer na mesma velocidade que nasceram.
Inspirando-se da expressão desencantamento do mundo de Weber, Maffesoli
desenvolve o conceito de que o homem pós-moderno passa atualmente por um processo de
reencantamento do mundo, visível especialmente nessas interações simbólicas de
conotação místicas e religiosas sociais em volta dos altares urbanos dentro das dinâmicas
tribais.. Se Weber exprimia com aquela frase uma noção de que o homem moderno passou
a se utilizar da razão como ferramenta generalizante de toda a sua existência, deixando de
lado a dimensão espiritual, Maffesoli busca provar através de seu trabalho que atualmente a
sociedade pode estar passando por processos de formação de novos valores que não são
racionalmente compreensíveis na lógica moderna, religando-se de maneira sensível ao
mundo. Assim, ao dizer que existe hoje um reencantamento do mundo, Maffesoli também
busca assinalar, mais uma vez, o que ele acredita ser o fim da modernidade.
Então, quando falo de um reencantamento do mundo, falo de uma modernidade que
termina. Não concordo de falar de modernidade segunda ou de um estágio posterior
271
MAFFESOLI 2004b, 57-60.
101
da modernidade. Algo qualitativamente diferente está se produzindo. E este
qualitativamente diferente nos remete a esta Terra amor mundi. Nesse sentido,
devemos recorrer às intuições de Nietzsche, que tão bem mostrou isso.
Curiosamente, o amor pelo mundo vem acompanhado por uma forma de
reencantamento pouco importam as expressões. Eu diria que isso reintroduz
justamente o politeísmo.
272
Perda do indivíduo, atitude dionisíaca, tribos urbanas, politeísmo de valores,
reencantamento do mundo. Todos esses conceitos estão interligados dentro da perspectiva
teórica maffesoliana, e é importante compreendermos qual a conexão que possuem. A
dinâmica, resumidamente, seria então a seguinte: após o período de desencantamento
moderno, denunciado por Weber, o homem, através de uma atitude de efervescência
dionisíaca, desenvolvendo assim uma atitude estética perante ao mundo, reencanta-se.
Contudo, esse processo é possível de ocorrer através da experimentação de um
politeísmo de valores diferentes formas de se conviver e ler o mundo, sem que nenhuma
necessariamente se ponha diante de outra. Não melhor ou pior, não busca por único
caminho a seguir. A regra de conduta na pós-modernidade seria justamente a de se tentar
vários caminhos, criando assim laços simbólicos efêmeros, dinâmicos, transitórios,
resultando dessa forma na perda da idéia de um indivíduo único, surgindo a idéia de um
homem tribal, ou seja, aquele pertencente a determinado grupo (que é, também, dinâmico, e
pode tanto surgir quanto desaparecer com a mesma velocidade). Esse processo, esse jogo
social estético, seria o fator principal de reencantamento. Porém, deve-se ter em mente que,
ao experimentar esse politeísmo de valores, o homem passa a experimentar também um
tipo de paganismo, que deixa de haver a forte influência de um pensamento do tipo
monoteísta (“só um jeito certo de se viver”). Em outras palavras, tem-se “o paganismo
como princípio vital”
273
como forma mais explícita de cenário reencantador.
3.3 Ética da Estética
Muito falamos sobre o agir estético e a importância da estética como forma de Ética
na pós-modernidade, posição epistemológica adotada por Maffesoli. Tal uso do termo exige
maior explicação.
272
MAFFESOLI 2006a, 60-61.
273
MAFFESOLI 2006b, 38.
102
Retomemos um aforismo de Nietzsche, citado no capítulo anterior: “não
fenômenos morais, mas apenas uma interpretação moral desses fenômenos”
274
. Lembremos
que tal afirmação se apóia na posição epistemológica de que, enquanto a noção de
“indivíduo” é, por si só, uma “invenção” do pensamento moderno, idéia esta que Maffesoli
claramente defende, tentar identificar uma moralidade inata nos atos (perguntar-se qual ato
é “bom” e qual é “ruim”) é uma tentativa errônea. Os atos humanos não são morais em si,
deixando-nos livres apenas para realizarmos interpretações morais deles.
Esse aforismo de Nietzsche ilustra bem a posição epistemológica de Maffesoli,
quando este busca montar seu conceito de Ética da Estética que é, segundo ele, a forma
de Ética que se apresenta na pós-modernidade. Em primeiro lugar, Maffesoli busca realizar
uma diferenciação entre as noções de Ética e Moral em seu campo de estudo. Segundo ele,
a moral é sempre imposta, opressora. Ela detém um discurso que visa ser universalizante, e,
ao fazer isso, “agride” a organicidade que uma razão sensível poderia trazer. Através da
imposição de um pensamento moral recorrente no meio social, as pulsões sociais seriam
agredidas, impedindo-as de se desenvolverem de forma orgânica e/ou natural. Em outras
palavras, a moral funciona em uma lógica de “dever-ser” como se deve agir, como se
deve pensar, como devemos nos portar, nos vestir, etc. Tal tipo de imposição simbólica
impediria o desenvolvimento do imaginário social.
Contudo, em contrapartida, haveria várias “Éticas”, sendo estas perceptíveis
especialmente na formação dos núcleos tribais. Muitas dessas tribos teriam códigos éticos
que vão contra a moralidade socialmente impostas, operando não mais em uma lógica de
“dever-ser”, mas sim em uma lógica afetiva, uma lógica de se “estar junto”. Os códigos
éticos formados nas tribos urbanas seriam, como elas, muito mais maleáveis e efêmeros,
justamente por causa de sua dimensão Estética. Este é o ponto em comum que Maffesoli
identifica nos diversos núcleos sociais relativistas pós-modernos: não há preocupações
racionais no “agir”, mas sim preocupações estéticas.
Talvez seja mais necessário do que nunca fazer uma distinção entre a moral que
decreta um certo número de comportamentos, que determina os caminhos de um
indivíduo ou de uma sociedade, que, em uma palavra, funciona com a lógica do
dever-ser e a ética, que remete ao equilíbrio e à relativização recíproca dos
diferentes valores que constituem um determinado conjunto (grupo, comunidade,
nação, povo, etc). A ética é, antes de qualquer coisa, a expressão do querer-viver
global e irreprimível; traduz a responsabilidade que esse conjunto assume quanto à
274
NIETZSCHE 2004, 94.
103
sua continuidade. Nesse sentido, é dificilmente formalizável [...]. É possível
extrapolar e dizer que ética coletivo é o sentido vivido da estática e da dinâmica que
constituem uma sociedade enquanto tal [...] não é inútil lembram que é sempre em
nome do “dever-ser” moral que o instauradas as piores tiranias, e que o
totalitarismo suave da tecnoestrutura contemporânea a ele deve muito.
[...]
Assim, a moral é muitas vezes inspiradora ou acompanhante da ordem estabelecida.
Ao contrário, a ética se manifesta ora nos sobressaltos dos períodos de efervescência,
ora, de maneira mais difundida, pela duplicidade cotidiana que, aceitando
aparentemente as diversas imposições moras (no que concerne, em particular, aos
regulamentos do trabalho e do sexo), encontra numerosos expedientes para expressar
o querer viver obstinado da socialidade.
275
Após essa diferenciação entre as noções
276
de Ética e Moral nos termos
maffesolianos, podemos partir para sua definição mais precisa sobre a dimensão estética da
moral pós-moderna. Ao descrever sobre esse ponto, Maffesoli não deseja recair nas
questões mais usadas do termo, ou seja, naquela sobre o estudo do Belo. Em seu trabalho
teórico, a noção de Ética da Estética está ligada a uma forma de se pensar o mundo no seu
aspecto formal, na imagem, na apresentação e tragicidade do viver. Em outras palavras, é
uma preocupação com o “estar-junto”, com a afetividade, a sedução, o aspecto existencial
dionisíaco.
Estética deve aqui ser entendida em sentido amplo, esse que designa a sensação, a
sensualidade. O orgiasmo sempre foi, justamente, uma maneira de se dar conta desse
desenfreamento e de integrá-lo neste todo complexo que é o corpo coletivo e o corpo
individual. De uma maneira específica, ele permite a partilha e, talvez, a atenuação
do trágico, mais ou menos consciente, que é a parte comum de toda a experiência
mundana.
277
Deve-se entender, neste caso, estética no seu sentido mais simples: vibrar em
comum, sentir em uníssono, experimentar coletivamente, tudo o que permite a cada
um, movido pelo ideal comunitário, de sentir-se daqui e em casa neste mundo.
Assim, o laço social é cada vez mais dominado pelos afetos, constituído por um
estranho e vigoroso sentimento de pertença.
278
Nota-se aqui uma constante afronta às idéias de um agir social que esteja regulado
por leis ou regras impostas. Apenas o “estar-junto” importa, deixando de lado a obrigação
do “dever-ser”. Seria uma forma de moral “sem obrigação nem sanção; sem outra
275
MAFFESOLI 2003b, 17.
276
Maffesoli prefere usar o termo “noção” do que conceito”, tendo em vista que o primeiro é mais maleável
e melhor adaptável às mudanças do tempo, e o segundo visaria ser estático, atemporal (MAFFESOLI 2004b,
10-11).
277
MAFFESOLI 2003b, 19.
278
MAFFESOLI 2005a, 8.
104
obrigação que a de unir-se, de ser membro do corpo coletivo”
279
. Não há outra preocupação
senão o pertencer, ao ponto que, ao se findar o interesse de se ligar ao grupo, não medo
de exclusão. Esse desapego com as formas de hierarquia imposta (social, religiosa, familiar,
etc), buscando assim uma forma de prazer estético do Viver é o que denotaria, e que seria o
ponto em comum, de toda a forma do agir em uma ética pós-moderna. Ao tirar-se de foco
das lentes epistemológicas as noções de um individualismo exacerbado e uma obediência
“cega” às diversas formas hierárquicas de poder, entra em cena a idéia de potência de vida
e agir estético, mais sensível, orgânico e “banal”.
Numa visão de conjunto (o holismo ou o que chamei de unicidade), pode haver
sinergia entre a ética e a estética. O que pode evitar, ao mesmo tempo, o formalismo
da arte pela arte do estetismo e o dogmatismo moralizador do puritanismo político.
Ao fazer isso, pode-se estar em condições de apreciar inúmeras atitudes,
experiências, situações como sendo, para retomar a expressão de M. Foucault, modos
de “amoldar-se como sujeito ético”. Vê-se todo o interesse dessa perspectiva: pode
haver muitas atitudes sociais consideradas frívolas ou imorais que, além de todo
julgamento normativo, podem ser reconhecidas como sendo técnicas de
automodelagem, ou que têm uma função “etho-poética” (Plutarco). Sejam os caixões
de isolamento sensoriais, muito na moda nas megalópoles contemporâneas, os
diversos body-bulding”, sem esquecer o jogging e, seguramente, todas as técnicas
de inspiração oriental, estamos em presença de um corpo que nos dedicamos a
“epifanizar”, a valorizar. Notemos, no entanto, que, até em seus aspectos mais
“privados”, esse corpo é construído para ser visto. É teatralizado ao mais alto
grau. Na publicidade, na moda, na dança, só é paramentado para ser apresentado em
espetáculo. Pode-se dizer que se trata de uma socialização que é, talvez, específica,
mas que não deixa de apresentar todas as características da socialização: a de integrar
num conjunto e de transcender o indivíduo. Acontece que, para isso, a tônica é
colocado mais na sensação coletiva que num projeto racional comum. Mas o
resultado não é diferente: fazer participar desse corpo geral, de um corpo social.
Nesse sentido, a estética, no sentido amplo, pode ter uma função de agregação, e
fortalecer o que chamo de socialidade.
280
3.4 A Religiosidade Pós-Moderna
A religião, como se entende o termo em sua concepção mais largamente aceita, é
uma forma da ligação entre o homem e o divino. No Ocidente, dada toda a formação e
influência história do pensamento judaico-cristão, essa ligação se daria através de uma
relação entre um único Deus onipotente, o Deus bíblico, e uma busca incessante por uma
re-ligação. A “queda” do paraíso seria o fator que coloca o homem em constante busca pelo
279
MAFFESOLI 2005c, 37.
280
MAFFESOLI 2005c, 40-41.
105
retorno àquele lugar. Haveria então, no imaginário ocidental, uma constante “culpa” que
impulsiona os atos para uma possível salvação. É uma situação entre dois pólos, uma
constante divisão entre a Terra e o Céu. Todos os atos devem estar em conformidade com o
retorno à uma condição de salvação, representado no mito do Gênesis pelo Éden.
Como apontamos anteriormente, essa constante “culpa” seria o princípio que
impulsionou toda questão por emancipação pessoal e a busca por um modo “correto” de se
agir e pensar. Contudo, dentro do pensamento maffesoliano, a busca pela moralidade
inerente aos atos deixou de ter importância. A Ética vigente teria se tornado Estética, e a
condição principal de existência teria se voltado a uma preocupação de um hedonismo
social procura-se “estar-junto” ao invés de “deve-ser” algo. A nova forma de
socialização, o tribalismo, denotaria então uma mudança no esquema clássico (ou moderno)
da salvação. uma nova forma de panteísmo no espírito pós-moderno, assim como um
renascimento de um gnosticismo
281
. Em outras palavras, vê-se o divino em toda a
existência. A figura estática da divindade, o modelo divisório entre o mundano e o divino,
teriam sido quebrados, fazendo ressurgir uma relação pagã e politeísta com o mundo.
Diluindo-se o divino em várias formas, uma propagação de valores religiosos que se
manifestam das mais diversas formas. A intenção religiosa ainda se mantém ainda se
busca o religare. Contudo, a diferença fundamental dessa forma contemporânea de
religiosidade é, novamente, a efemeridade. Junto dela, a necessidade de sentir-se ligado
ao mundo como um todo. E daí, a figura de um holismo. O próprio mundo, tornando-se
divino, torna-se meta de religação. Com isso, o corpo ganha espaço. A meta de salvação
religiosa não visa apenas o alimento ao espírito. Este, ainda importante, passa a dividir seu
espaço com uma preocupação à saúde do corpo novamente, a idéia de hedonismo ou
narcisismo. A busca pelo prazer. A estética despontando em uma esfera espiritual,
intrinsecamente ligada à dimensão corpórea, material. Interrompe-se a idéia de uma
salvação espiritual em detrimento do corpo físico e este passa a ser um templo (pós-
moderno) de adoração mística e religiosa – sempre focada na busca pela perda do indivíduo
imerso em sua tribo, com todos seus rituais e provas de iniciação, ou seja, todas suas
dinâmicas simbólicas.
A viagem sedentária ilustra bem a necessidade da interrupção, do enraizamento do
devir interrompido, angústia do tempo que passa, no caminhar caótico e arriscado do
281
MAFFESOLI 2008a, 84.
106
fluxo existencial. É isso mesmo que remete à ordem do dia, de diversas maneiras, a
temática da iniciação, do caminho, ou da passagem. Com a conotação religiosa, até
mística, que tudo isso o deixa de ter. Homo viator que todo mundo vai ser, através
das vicisstudes, das felicidades e infelicidades de que estão repletos os destinos
humanos. Seguramente, uma tal perspectiva iniciática é nada menos do que
consciente. Mas no ambiente sincrético característico de nossa época, essa
perspectiva vai impregnar, profundamente, numerosas práticas que dão importância
ao cuidado do corpo e ao da alma, valorizando diversos místicos, ou favorecendo a
realização do eu empírico em um Si mais transcendente.
É necessário chamar a atenção para o fato de que esse processo iniciático não se
reduz, simplesmente, a uma atitude espiritual. O corpo, o disse, tem sua parte
nisso. A sexualidade também não é estranha ao processo, e numerosas técnicas
tântricas o testemunham. O intelecto também sua contribuição. Em resumo, o
indivíduo é tomado em sua globalidade, e usa cnicas também elas holísticas. Tudo
isso aliando o próximo e o longínquo [...]. É no quadro tribal que se vai sair de si,
explodir-se e, através desse êxtase, comungar com forças cósmicas ou, muito
simplesmente, navegar nas redes da internet. Onde havia separação, corte,
diferenciação, e isso em todos os domínios, renasce uma perspectiva global, dando
ênfase à religação” das pessoas e das coisas, da natureza e da cultura, do corpo e da
alma. É isso que caracteriza bem a religiosidade pós-moderna.
282
O “estar-junto” e o espírito de um agir estético no mundo seriam formas de se
compreender a dinâmica simbólica pós-moderna que denota uma crença no fim das
fronteiras entre o homem e o divino, esse panteísmo presenteísta. A religação com o social,
com o meio, a comunhão em volta dos altares urbanos, etc, seriam as novas formas de
religião.
É importante aqui destacarmos justamente que, ao integrar o divino ao meio, dentro
da perspectiva de um politeísmo de valores, o homem pós-moderno também integra as
diversas formas de divindade em seu panteão imaginário. Desta forma, os deuses batalham
entre si, representando o fim de rígidas fronteiras morais. Mais uma vez, uma existência
trágica, estética, teatralizada. Ao tomarmos como modelo de panteão divino a mitologia
grega, por exemplo, temos deuses que não são expressões máximas de bondade ou
maldade. Há novamente a ênfase em uma relativização total da existência, inclusive em sua
esfera mística e divina. Especificamente sobre a idéia de “mal” no imaginário pós-moderno,
Maffesoli nos diz:
Talvez fosse o caso de dizer “multipolaridade”, tão claro parece que, ao contrário
de um monote’smo transcendente o do chefe, do cérebro, do uraniano , os
Infernos propiciam um politeísmo de valores que se relativizam uns aos outros [...].
Ao contrário das religiões monoteístas, nas quais Deus está acima e além do homem
(transcendente), as religiões politeístas, as filosofias orientais e o que eu chamo de
cultura pós-moderna consideram que existe em nós uma parte de deidade, que não
282
MAFFESOLI 2001a, 148-149.
107
está além do humano, mas faz parte da natureza humana da mesma forma que o
mal, por sinal.
283
Essa forma de encarar os fenômenos pós-modernos, obviamente, recai na questão da
relativização de conhecimento que Maffesoli tanto enfatiza. A religião, sendo uma área
humana que busca religação, teria se difundido em diversas formas que acabam formando
uma espécie de “divino social”. “O estar-junto moral ou político, tal como prevaleceu na
modernidade, não é senão a forma profana de religião”
284
. Essa forma profana teria, hoje, se
saturado, fazendo o homem pós-moderno entrar em contato com novas formas de
socialização que buscam novas formas de participar do mundo. Haveria assim um desejo de
não mais assistir ao mundo sendo feito, mas sim de fazê-lo junto. Em formas de relação
hierárquicas, representadas em formas de poder que vêm “do alto” (Igreja, Estado, etc), o
homem era apenas um espectador. O homem pós-moderno a necessidade de
participação, e por isso busca formas muito particulares de vivenciar o mundo. Neste
sentido, o sincretismo religioso é mais uma marca profunda do pensamento pós-moderno,
pois permite ao homem realizar suas próprias escolhas sobre o que considera melhor ou
pior para si mesmo. Nesta mesma dinâmica, ao encontrar aqueles que dividem opiniões e
ideais similares, um desejo incessante de se comunicar, de se satisfazer esteticamente, de se
“estar-junto”, ele perde sua própria identidade e passa a fazer parte um novo grupo, uma
nova tribo, sendo esta não mais regulada apenas por grandes órgãos de controle social. A
experiência e o cuidado-de-si formam novas configurações sociais, representadas nas mais
diversas formas de religiosidade que seriam visíveis nos dias atuais.
[...] ele [o estar-junto moral ou político como forma profana de religião] exprime
bem a história da salvação, de início cristã: espera da parusia, depois progressista:
mito do desenvolvimento, particularmente forte no século XIX. Mas a partir do
momento em que o fundamento divino perde sua substância, do momento em que o
fundamento divino perde sua substância, do momento em que o progresso não é mais
considerado como um imperativo categórico, a existência social é, desde então,
devolvida a si própria. Para ser mais preciso, a divindade não é mais uma entidade
tipificada e unificada, mas tende a se dissolver no conjunto coletivo para se tornar “o
divino social”. É quando mundo é devolvido a si mesmo, quando vale por si mesmo,
que vai se acentuar o que me liga ao outro: o que se pode chamar de religação. É
assim que compreendo a expressão de Nietzsche: “a vontade de poder enquanto
arte”. Na ótica moral, só Deus é o grande artista; ou seus sucedâneos: Estado,
história, progresso, o que dá no mesmo. É d’Ele (ou d’eles) que depende a criação ou
recriação de todas as coisas. É isto que fundamenta a noção do poder que obnubila
tanto, por fortalecê-la ou contestá-la os tempos modernos. É isso que constitui a
283
MAFFESOLI 2004a, 44.
284
MAFFESOLI 2005c, 27.
108
razão última de iniciativa sociológica. O mundo entregue a si próprio vai, cada vez
mais, confiar na potência intrínsica que o constitui. A criação, em suas diversas
formas, jorrará de uma dinâmica sempre renovada, e sempre plural. As diversas
situações sociais, os modos de vida, as experiências poderão ser consideradas
múltiplas expressões de um vitalismo poderoso. Outra maneira de exprimir o
politeísmo dos valores.
285
As diversas provas que o homem pós-moderno tem que passar em sua aceitação
pela tribo em muito se assemelhariam então com as formas de iniciação religiosa. Quanto
mais nobre o ato, quanto mais forte seu vitalismo simbólico, maior a aceitação e privilégios
que o membro da tribo terá com seus colegas. O indivíduo vai se perdendo cada vez mais,
tornando-se gradativamente a expressão máxima daquele grupo indício claro disso se
daria nas diversas formas de culto aos artistas pop, atletas, celebridades locais, etc. um
reconhecimento de um através da sua relação com o outro. Mas este, também, é parte de
algo maior. Esse pertencer a algo além é uma forma revitalizada de transcendência. Faz-se
parte de algo maior – extrapola-se os limites da própria identidade.
Chega-se aqui ao coração do paradoxo da forma: a liberdade do visível, da
dinâmica, pode ser compreendida como a multiplicação dos signos que levam à
coibição do invisível. Invertendo-se os termos, o invisível (coibição) tem necessidade
de ser mostrado pelo visível (liberdade). Por visível entendo todo o cintilar
cambiante e a proliferação dos objetos, das imagens, dos símbolos, dos rituais que
tomam parte crescente na vida cotidiana. O invisível, por sua vez, é o que remete
para a força de coesão, o “mana” das tribos primitivas, que favorece a atração social,
na qual cada um age, pensa, imagina, em resumo, tudo aquilo que é fazedor de uma
cultura social. Como já indiquei, o termo alemão de Bildung resume bem esse
paradoxo. A Bildung é feita de imagens, de representações intelectuais e, ao mesmo
tempo, designa a forma e a formação. O uso que o pensamento alemão fará de tal
noção é conhecido. Em particular, esna origem de toda socialização. De Goethe,
com seu Wilhelm Meister, a Thomas Mann e sua Montanha Mágica, o
Bildgungsroman tem como fio condutor a iniciação que integra um jovem a uma
sociedade onde ele pode desabrochar.
Em seu sentido religioso, a Bilgund designa igualmente a abertura à graça divina,
isto é, uma iniciação que nos leva a participar da plenitude da perfeição. De um
ponto de vista sociológico, precisamente do pensamento de Durkheim, sabe-se que é
o social a expressão do divino. Portanto, a idéia de forma, no sentido que acaba de
ser mencionado, é propriamente aquilo que permite a melhor integração possível ao
divino que é o social. Mede-se, assim, a importância dos paradoxos visível-invisível
que acabo de referir e, deste modo, é possível melhor compreender em que o
manuseio das imagens, o consumo dos objetos, a ênfase posta na moda
vestimentária, os diversos cultos do corpo ou cuidado de si”, são também como
signos de reconhecimento, como etapas iniciáticas conducentes ao sacramento de
união, a um tipo de eucaristia profana. uma inegável religiosidade na sociedade
contemporânea. E isso não tem muita coisa a ver com a suposta ressurgência das
grandes religiões institucionais, o mais do que com a vivacidade de suas doutrinas.
Trata-se efetivamente de uma religiosidade, algo pagã, que repousa essencialmente
285
MAFFESOLI 2005c, 27-28.
109
sobre o compartilhamento de imagens, de símbolos, de rituais, que, portanto,
encontra no jogo de formas uma excelente expressão.
286
Essa Bildung apontada por Maffesoli, essa busca pela vivência simbólica do
paradoxo, da união entre o visível e o invisível, se traduz nos jogos sociais como as novas
formas de comunhão religiosa. laços sociais de cunho místico sendo formados aí. Um
sentimento transcendente que alcança uma dimensão invisível e eleva o homem de sua
condição individual. O sentimento de pertença é altamente engrandecido. Como pano de
fundo, uma religiosidade pagã, politeísta, que reforça os laços simbólicos.
Dentro desta lógica, Maffesoli identifica as novas formas de religiosidade na pós-
modernidade tendo algumas características básicas: sincréticas e visando uma (re) união do
homem com a natureza. Esta não seria mais visto como algo a ser dominado ou conquistado
(visão judaica-cristã e, mais tarde, recaindo no mito progressista da modernidade), mas sim
como “uma parceira com a qual convém estabelecer uma reversibilidade”
287
. Nesse cenário
também se encontraria muito das chamadas manifestações “New Age”, do ressurgimento
de diversas formas de superstição, partindo, segundo Maffesoli, de uma “teologia
romântica”, proveniente de Schleiermacher, “que considerava a religião como ‘intuição
admirada do universo’”
288
. Os laços sociais de cunho religioso se dariam, então, através de
uma “intuição comum que serve de cimento à comunidade, a constitui enquanto tal, em
suma, serve de fundamento àquilo que vai fortalecer o estar-junto”
289
.
Concluímos então este capítulo reforçando os seguintes aspectos que consideramos
mais relevantes dentro da sociologia sensível de Maffesoli:
_o tribalismo urbano, que se através de mediações simbólicas sensíveis (ou seja, não
apenas racionais) entre as pessoas de determinados grupos socais, acaba por criar novas
formas de socialização que são transitórias e realizam constantes transações simbólicas;
_destas formas de interação simbólica, um constante desejo de se “estar-junto”,
contrapondo-se à imposição moral do “dever-ser” age-se esteticamente, e não mais
moralmente;
286
MAFFESOLI 2008a, 103-104.
287
MAFFESOLI 2008a, 134.
288
MAFFESOLI 2008a, 134.
289
MAFFESOLI 2008a, 135.
110
_ao agir-se levando em conta a noção do “estar-junto”, há um desejo pela “perda do
indivíduo”, visando assim a dissolução total da própria identidade e a identificação total
daquele com o grupo/tribo pertencente;
_o meio sacraliza-se, e busca-se constante comunhão com este através de rituais específicos
àquelas determinadas tribos;
_os símbolos que realizam as mediações sociais são efêmeros, transitórios. Não desejam ser
estáticos nem totalmente racionalizados. Acima de tudo, devem ser sentidos,
experimentados, gerando assim impressões pessoais e uma relativização total dessas
chamadas imagens sagradas - toda experiência é válida, toda conclusão e pensamento
também o são. Dentro das tensões simbólicas geradas pelas experiências, novas tribos se
formarão constantemente;
_em resumo, a religiosidade pós-moderna se caracteriza especialmente por uma vivência do
paganismo como fator principal, levando em consideração um cenário multiplural de
valores (relativização da própria concepção de divindade/divino), em que a experiência
pessoal e tribal é fortemente valorizada. Dentro desta lógica, há afrontamento com os
valores modernos e judaico-cristão, tendo em vista que estes enfatizam as noções de
indivíduo, progresso e salvação pela vontade divina. No imaginário pós-moderno, a
religiosidade pode ser sincrética, politeísta, presenteísta (ênfase no agora ao invés no
amanhã) e um espírito de certo retorno gnóstico em que o homem mesmo tem o poder
de não apenas (re)criar o meio em que vive como também salvar-se e redimir-se por
méritos próprios, sem a necessidade de intervenção divina direta.
111
CAPÍTULO IV: CROWLEY – PENSADOR DE UMA ÉTICA PÓS-MODERNA?
Neste momento, tomando como ponto de partida as considerações realizadas no
capítulo II, procuraremos investigar se Crowley apresentava ou não características de um
pensador de uma ética pós-moderna, tendo como base teórica a sociologia sensível de
Michel Maffesoli, apresentada no capítulo anterior. Para tal, dividimos os aspectos a serem
analisados em três pontos que acreditamos serem de maior relevância. No primeiro ponto,
buscamos enfatizar o que cada pensador pensa sobre Ética e Moral, quais as diferenças
entre as duas esferas, e se Crowley, sob a luz da teoria maffesoliana, denotava idéias que o
pré-figurariam como um pensador de uma ética pós-moderna, estética; no segundo ponto,
buscamos analisar o conceito e crítica de “verdade absoluta”, não contraditória, que visa
uma harmonização plena da existência, marca do pensamento moderno, criticado tanto por
Crowley quanto por Maffesoli; no terceiro ponto, analisaremos o conceito de “Magia (k)”
em Crowley, e qual a relevância de tal conceito dentro de uma ótica maffesoliana. Para
finalizar, realizaremos as consideração crítico-analíticas na parte final do capítulo.
As explanações a seguir poderão soar, em um primeiro momento, como um estudo
comparativo entre os dois pensadores. Tal processo é necessário para que se encontrem os
pontos em comum entre eles, de modo que facilite a análise crítica que fechará o trabalho.
Em outras palavras, a comparação entre os pensamentos dos dois autores não é nosso
objetivo final. Contudo deve ser relembrado que, apesar de possuirem alguns pontos em
comum, Crowley era um pensador místico, enquanto que Maffesoli é um sociólogo. Logo,
é natural que muitos pontos sejam divergentes em suas epistemologias. Mesmo assim,
adotamos uma postura fenomenológica-sensível (dentro da proposta maffesoliana), no
sentido de analisar os fenômenos sociais da maneira como se apresentam, sem grandes
formulações teóricas sobre as motivações primeiras de determinados comportamentos
sociais, buscando assim um delineamento do comportamento pós-moderno independente de
julgamentos morais ou deterministas.
4.1 Sobre o agir e as esferas moral e ética em Crowley
112
Nesta parte, é importante delinearmos as principais diferenças entre as noções de
ética e moral que se encontram no pensamento de Crowley sob a luz da sociologia
maffesoliana.
Deve-se notar, em primeiro momento, que Maffesoli emprega um parâmetro
analítico diferente do usual na relação de diferenciação entre essas duas esferas.
Usualmente, distingue-se moral e ética considerando que a primeira seja relacionada às
normas de conduta dentro da esfera privada do meio social, e a segunda à esfera pública.
para Maffesoli, como pudemos ver no capítulo anterior, a moral possui como principal
característica uma natureza de conjunto de normas que são impostas pelo meio, visando ser
universal, um espírito de “dever-ser”, enquanto que a ética possui um caráter relativista,
podendo então existir um quadro social em que várias éticas frente a uma moral vigente,
visando no caso um “estar-junto”. “A Máfia, por exemplo, é imoral em relação à moral
circundante, mas tem uma ética”
290
. Em uma palestra que proferiu na Universidade
Estadual do Rio de Janeiro em em novembro de 1989, Maffesoli foi questionado sobre essa
sua configuração teórica. A resposta é a que segue:
Nesse ponto, alguém interrompeu Maffesoli questionando-o sobre o uso
universalizado que ele consagrava ao termo “moral”. Foi lembrada a origem
etimológica da palavra moral”, que vem de mores, isto é, usos e costumes, que
seriam particulares. Enquanto ethos, por sua vez, referia-se a um bem que
transcendia à própria época. Por outro lado, o indagador fazia uma distinção entre
ethos e pathos, que seriam opostos. A seu ver, Maffesoli queria antes iluminar o
pathos. Foi-lhe perguntado, então, se não seria mais adequado opor a ética ao
pathos, do que a moral à ética.
Maffesoli respondeu, a respeito de a moral referir-se a costumes particulares e não
o contrário, ser este um problema de convenção. Naturalmente, os termos poderiam
ser intercambiáveis. Entretanto, ele preferia o sentido que havia dado à moral.
Parecia-lhe ser o moralismo mais generalizável e estar agora saturado, chegando a
vez das diversas éticas particulares. Quanto ao ethos e ao pathos, reconheceu que a
perspectiva concedida ao ethos incluía o pathos o Einfühlung – que corresponde a
um pathos muito forte, de onde derivam as palavras simpatia” e “empatia”. Sua
noção de costume ou de habitus (como usada por Santo Tomás de Aquino)
relacionava-se mais à ética do que à moral. Mas o importante era sobretudo decidir,
definir ou esclarecer bem como se emprega o termo. Para fazer isso ele geralmente
usava o método de aproximações sucessivas, dando uma pluralidade de definições,
como havia feito com a palavra “socialidade”, distinguindo-a de “social” e de
“sociabilidade”. Usava e recomendava o método de definir de rias maneiras, o
mais e melhor possível.
291
290
ROUANET & MAFFESOLI 1994, 29.
291
ROUANET & MAFFESOLI 1994, 29-30.
113
Notamos então que Maffesoli se utiliza do termo Ética especificamente para trazer à
luz da análise os atos mais comuns, habituais, tendo-os como objeto de estudo fundamental,
pois acredita que são estes que determinam o espírito pós-moderno, que os grandes
sistemas explicativos, próprios do espírito moderno, teriam se saturado característica que
se torna epistemologicamente mais coerente quando colocada dentro do contexto da sua
ética da estética, do “estar-junto”.
Crowley, por sua vez, indica que apesar de existir uma diferenciação conceitual
entre ética e moral, as duas esferas acabam se misturando dentro da sua Thelema. Ao falar
da “moralidade mágica do novo Aeon de Thelema
292
”, Crowley explicita que seu sistema
thelêmico visa a quebra dos valores ético-morais existentes na sua época em específico,
moralismos judaico-cristãos ou sonhos seculares modernos. A era thelêmica, visando a
regulação do indivíduo em torno de sua própria Vontade, como mostramos no capítulo II,
denotaria um comportamento típico: uma relativização total do agir humano
293
,
contrastando diretamente com o que ele acreditava ser um sistema de valores falido, que
seria, no caso, o cristianismo. Se evocarmos Maffesoli, lembraremos que este acredita que,
como expusemos no capítulo anterior, todos os valores modernos são construções
ideológicas de caráter religioso “profano”, pois seriam valores derivados da mentalidade
judaica-cristã, que tem como expoente máximo a idéia de Deus, mais tarde subvertida em
conceitos seculares como Estado, Ciência, Justiça, Democracia, etc. A idéia de um norma
universal de conduta, e a submissão a essas normas, seria uma característica típica do
pensamento moderno, que buscou encaixar o homem em uma série de padrões, como forma
de melhor controlar o fenômeno social.
Notemos a seguinte frase de Crowley: “Você está explicitamente avisada contra
confiança em ‘autoridade’, mesmo na própria Ordem”
294
. Nos seus escritos, como pudemos
ver, sempre grande ênfase no trabalho individual e nas conclusões que se tiram da
experiência de cada um. uma constante necessidade de “experimentação”. Essa
desconfiança frente às instituições reguladoras de vários meios (social, religioso, familiar,
etc) é, segundo Maffesoli, uma das maiores características da ética pós-moderna. Se o
292
(Tradução nossa.)Magical Morality of the New Aeon of Thelema.”
293
CROWLEY 1991, 423.
294
(Tradução nossa). “You are explicitly warned against reliance upon ‘authority’, even that of the Order
itself. A “Ordem”, no caso, refere-se às ordens esotéricas montadas por Crowley, a Ordo Templi Orientis
(O.T.O.) e a Astrum Argentum (A.’.A.’.) (CROWLEY 1991, 426).
114
espírito moderno visava um aperfeiçoamento evolutivo do homem, reconhecendo na
autoridade uma fonte de conhecimento de vida, a pós-modernidade subverte essa hierarquia
e a coloca em um jogo estético: é possível conhecer após se tentar, após vivenciar.
Temos, nessa primeira atitude, uma pista de que Crowley, ao incorporar uma postura
relativista em seu pensamento ético, pensava em termos muito próximos de Maffesoli
acerca de uma norma de conduta pós-moderna.
Contudo, não podemos deixar de esquecer que Crowley, como pensador místico,
centra a relativização total do agir humano dentro do seu conceito de Vontade. Seria
possível argumentar que, ao declarar a necessidade do encontro do indivíduo com ela,
Crowley monta um sistema que não é totalmente relativo, tendo em vista que a Vontade
seria um conceito Universal. Essa é uma perspectiva que perde força quando analisamos o
que ele entendia pelo próprio conceito, colocando-a como uma esfera de expressão máxima
do ser. Em outras palavras, ela não é mensurável como um simples dado em busca de um
“Bem” ela exige a vivência mística em busca da obtenção do estado de “gênio”, que
mencionamos no segundo capítulo. Funcionando como uma camada interna do indivíduo, a
sua expressão se daria em uma nova perspectiva sobre a relação entre o Ser e o Existir, não
sendo facilmente qualificável. Apenas o indivíduo, no caso o thelemita, pode dizer se sua
Vontade está sendo atendida ou não. Neste ponto, podemos perceber que Crowley, com
seus constantes ataques a todo e qualquer tipo de pensamento moralista universalizante,
visa realmente uma quebra de todos os valores modernos. Ao dizer que o Aeon de Hórus
chegou, ele expressa sua posição de que todo pensamento construído pela humanidade no
decorrer dos últimos séculos
295
deve ser derrubado, pois a natureza desta nova Era seria
uma de quebra de valores pré-estabelecidos, tendo em vista que este deus egípcio é
relacionado à destruição e vingança, como nos é lembrado pela seguinte passagem do Livro
da Lei: “Assim que seja primeiramente compreendido que Eu sou um Deus de Guerra e de
Vingança. Eu lidarei duramente com eles.”
296
Acerca desta passagem específica, Crowley
comenta:
Mas [...] se estabelecer na vida é abandonar a atitude heróica; é perceber na
estagnação do rebro. Eu quero ser confortável, ou mesmo prolongar a vida; eu
prefiro mover constantemente de galáxia em galáxia, de uma encarnação a outra. Tal
295
Mais especificamente da Era Cristã, que Crowley busca, claramente, a revitalização e retorno de muitos
símbolos pagãos.
296
CROWLEY 1997a, 107.
115
é minha íntima Vontade individual. É como então este “deus de Guerra e Vingança”
é então meramente um que deverá fazer os homens realizarem suas próprias
Vontades ao Irem como Deuses o fazem, ao invés de tentar descobrir o curso
irresistível da Natureza.
297
Percebemos neste comentário uma outra característica típica da natureza ética-
estética que Maffesoli acredita ser típica da pós-modernidade: a desconfiança por
promessas futuras, e o desejo constante pela vivência do momento presente, uma
experiência do presenteísmo. Se tudo o que sabemos é que vivemos agora, busca-se um
gozo nessa própria condição. Derrubando-se a idéia de que há uma forma correta de se agir,
se deixa de lado a idéia de que uma entidade superior e externa (Deus) que regula o que
é bom ou ruim. Ao contrário, dentro da cosmologia crowleyana, em que o indivíduo, e
especialmente sua Vontade, é o centro do Universo, considera-se e formulações de tais
ideais como sendo próprios do indivíduo mesmo. O ato de um thelemita busca uma
harmonização com a ordem natural das coisas, e não com o que se pensa que é mais ou
menos aceitável socialmente.
Este modelo de funcionamento cosmológico nos coloca em uma situação de
diversas polaridades, diversas formas de se ver o mundo diversos centros reguladores,
sendo estes a Vontade de cada um. Vemos essa pluralidade no que Maffesoli aponta como
sendo uma necessidade de se ver que há uma série de mundos a serem analisados, buscando
muito mais o aspecto existencial transitório do que aquele que deve ser necessariamente
permanente:
Para dizê-lo em termos um pouco mais acadêmicos, a ambivalência dos sentidos,
vale dizer, o reconhecimento do bem e do mal, traduz efetivamente o fluxo
heraclitiano das vivências” (Husserl). uma pluralidade de mundos, uma
pluralidade de apreciações e sensações. O mundo o é um e não existe uma única
maneira de entendê-lo; seu princípio não se encontra apenas no celestial. Nossos
mundos são “alto” e “baixo”. Sua transcendência se imanentiza. Para retomar a
distinção proposta por Gilbert Simondon entre ontologia e ontogênese, enquanto a
primeira é una, estável, transcendente, a segunda é plural, lábil, pontual e enraizada.
“Desdobramento de ser polifásico”, diz ele. Uma síntese feliz, na medida em que
chama a atenção para essas fases múltiplas que, através da impermanência, da
fluidez, da duplicação do particular, garantem a perduração do todo, do Si, do
coletivo.
298
297
(Tradução nossa) “But [...] to settle down in life is to abandon the heroic attitude; it is to acquiesce in the
stagnation of the brain. I do not want to be comfortable, or even to prolong life; I prefer to move constantly
from galaxy to galaxy, from one incarnation to another. Such is my intimate individual Will. It seems as thou
this ‘god of War and Vengeance is then merely one who shall cause men to do their own Wills by Going as
Gods do, instead of trying` to check the irresistible course of Nature.(CROWLEY 1996a, 155)
298
MAFFESOLI 2004a, 49.
116
Não é à toa que, visando a quebra de um modelo de pensamento baseado num
pensamento judaico-cristão, ou seja, sistematizado em torno da idéia de apenas um Deus,
um centro, Crowley monta sua Thelema utilizando a figura de vários deuses. O panteão
egípcio, um dos panteões mais usados por ele, funciona como um modelo cosmológico que
explicita justamente a natureza plural da existência. Vários deuses, várias éticas. Cada
Vontade determinará qual a maneira mais adequada para cada indivíduo agir no mundo.
Dentro desta lógica, busca-se o nascimento de um tipo de pensamento que vise um
surgimento de novos valores de vida. Desta forma, não se lida mais apenas com o que é
bom para o Estado, para a família ou para a Igreja volta-se ao indivíduo em sua esfera
espiritual. Busca-se fusão do ser com o meio de forma harmônica, natural nas formas mais
profundas possíveis. Uma união plena com o Absoluto, sem propósitos morais por trás.
Essa ambição está expressa pela idéia de que “pura vontade, com excitado propósito, livro
de ânsia e resultado, é cada caminho perfeito”
299
. O ato determinado pela vontade jamais
seria um ato obrigado pelo meio social. um desprendimento dos valores instituídos,
buscando-se assim uma vivência mais totalizante do ser com a natureza. E se a natureza
tiver seus momentos de dor, não se busca expurgar essa condição, como o pensamento
moralista moderno teria buscado: admitindo a face trágica da existência, Crowley acredita
que todo ato mágico, todo ato da vontade não é necessariamente “justo” ou “bom”, mas sim
belo, pois toda a existência seria puro deleite. Novamente, encontramos aqui a pluralidade
do panteão divino: várias formas de se poder agir, representada na adoção de panteões
politeístas. Cada figura de cada Deus é apenas uma cristalização de diferentes formas de se
encarar o mundo. Encontramos, neste caso, a atitude epistemológica de Maffesoli, que
adota uma idéia de “paganismo como princípio vital”, que vimos há pouco.
4.2 Crítica ao conceito de verdade universal – experiência e vivência paradoxal
Outro interessante aspecto do pensamento ético de Crowley se encontra na sua
noção de verdade, que seria profundamente relacionada à experiência, como pudemos
apresentar no capítulo II. Defendendo essa posição, ele realiza um ataque à dialética
hegeliana. Esta, por sua vez, opera de forma triádica: tem-se primeiramente uma tese (a
299
CROWLEY 1997a, 97.
117
coisa, o ser em si), que é em seguida contrastada com uma antítese (quando ser se encontra
fora de si), resultando daí de uma síntese (a coisa voltando para si)
300
. Crowley nega a
dialética hegeliana ao apontar que tanto a tese quanto a antítese são válidas reforçando
novamente seu espírito relativista -, e que a busca por uma síntese acabaria por diminuir a
intensidade da experiência do real.
Nem, Ó homem, acredites que a finalidade é possível de ser alcançada em qualquer
lugar por palavras. Eu balanceio A e não-A (a), e achando ambos falsos, ambos
verdadeiros, transcendo com B. Mas o que quer que B seja, é tão falso e verdadeiro
quanto b; nós chegamos a C. Então de C para c, e para sempre. Não, como Hegel
pensou, até que cheguemos em uma idéia na qual nenhuma semente de auto-
contradição se esconda; pois tal nunca será.
O pensável é falso, então? (mais uma vez!), Sim, mas igualmente é verdade.
301
Muito próximo dessa perspectiva, encontramos em Maffesoli a noção de formismo
que, dentro da sua epistemologia que aceita uma multiplicidade de valores e
conhecimentos, explicita uma atitude analítica que busca um delineamento da forma do
fenômeno social sem que haja necessidade de julgá-lo. É uma atitude derivada tipicamente
do seu espírito fenomenológico, que apresentamos no capítulo anterior. Segundo ele, deve-
se utilizar de metáforas, analogias, enfim, narrativas que dêem forma ao fenômeno,
delineando-o, sem buscar a causa primeira do fenômeno que ocorre, pois tal objetivo, além
de jamais poder se cumprir precisamente, pode acabar por violentar o próprio ocorrido. De
forma mais explícita, temos que
[...] longe de ser uma abdicação do intelecto pode-se acreditar que, graças a
descrições e comparações precisas, seja possível estabelecer uma tipologia operatória
que permita apreender, com mais justeza, o estilo de vida contemporâneo. Tal
descrição, pondo em jogo metáforas, analogias, poderá ser um vetor de
conhecimento, muito precisamente estabelecendo grandes formas que permitam fazer
sobressair os fenômenos, as relações, as manifestações figurativas da socialidade
contemporânea. É o que, de minha parte, chamei de “formismo”. Isto é, uma análise
que se contenta em desenhar grandes quadros que têm por função apenas fazer
sobressair a efervescência vital, e dar a isso uma aparência de ordem intelectual.
302
Essa atitude epistemológica de Maffesoli, que parte do princípio de que não deve
mais haver uma atitude que visa um “dever-ser” de natureza moral, visa quebrar a dialética
300
NICOLA 2002, 358.
301
(Tradução nossa.)Nor, O man, believe thou that finality is anywhere to be reached in words. I balance A
and not-A (a), and finding both false, both true, transcend with B. But whatever B is, it is as false and true as
b; we reach C. So from C to c, and for ever. Not, as Hegel thought, until we reach an idea in which no seed of
self-contradiction lurks; for that can never be.
The thinkable is false, then? (once more!), Yea, but equally it is true.” (CROWLEY 1982, ix)
302
MAFFESOLI 2008a, 127-128.
118
hegeliana ao dizer que os fenômenos sociais não levam a alguma evolução específica, a
uma síntese que chega à verdade. O que aconteceria seria um cenário social paradoxal, que
vive em suas próprias oposições. Mais: pelo formismo, tais contradições sobrevivem e se
fortalecem, não visando a integração entre os pólos, mas sim a integração de núcleos
sociais (as tribos urbanas). É por isso, também, que a atitude moralizante moderna é tida
como falha ao se apoiar na necessidade de progresso, representado na síntese hegeliana,
por exemplo, acaba por ignorar os atos banais que ganham força na pós-modernidade.
Atendo-se à forma, atêm-se ao social. Mais uma vez, uma postura condizente com a ética
da estética.
A forma é, portanto, uma maneira de reconhecer a pluralidade dos mundos, tanto
no plano do macrocosmo geral, do cosmos social, quanto no do microcosmo
individual, e isto sem deixar de manter a coesão necessária à vida. Assim, sem
reduzir à unidade que é o próprio do racionalismo ela favorece a unicidade,
coesão a coisas díspares. Em outras palavras, num mundo de contrastes, ela permite
que se tenha uma idéia de conjunto: a da organicidade que une, subterraneamente,
todos os fragmentos do heterogêneo. A dialética tinha por ambição, pretensão,
ultrapassar o contraditório, é assim que dava um sentido ao mundo, orientava-o,
dava-lhe uma finalidade. O formismo, ao contrário, mantém juntos todos os
contraditórios, favorecendo assim um sentido que se esgota em atos, que o se
projeta, que se vive no jogo das aparências, na eflorescência das imagens, na
valorização dos corpos.
303
Voltando a Crowley, notamos em suas idéias sobre “verdade” sempre a necessidade
de uma vivência de um estado paradoxal. A existência em si seria um paradoxo, e é
necessário ao thelemita que compreenda isso para perceber a abrangência de sua Vontade.
apenas um compromisso: com a Vontade, visando assim uma fusão com o Universo
Absoluto (representado em muitos de seus escritos pela deusa egípcia Nuit). Lembremos
que a Vontade deve ter necessariamente uma grande dimensão inconsciente, que torna os
atos humanos em atos divinos, naturais. Dentro dessa lógica, Crowley acreditava que a
própria consciência já delimitava a relação do indivíduo com o mundo – por isso a
necessidade da aniquilação do Ego para se realizar a própria Vontade
304
. Somente assim é
que se teria um vislumbramento da natureza paradoxal da própria existência.
Acreditando fielmente em seu conceito de Vontade, Crowley chegou a denominar
um tipo de ação chamado “Ato de Verdade”
305
, no qual o indivíduo procuraria realizar atos
303
MAFFESOLI 2008a, 86.
304
CROWLEY 1991, 213-214.
305
(Tradução nossa) “Act of Truth” (CROWLEY 1991, 152-154).
119
regulados pela Vontade que se excederiam de sua própria condição social. Tendo a Vontade
como total reguladora do Universo de cada um, se todo ato excedente estiver em
conformidade com ela, o Universo em retorno lhe daria mais condições de continuar se
excedendo. Como exemplo, se alguém precisa de dinheiro para realizar sua Vontade,
deverá se gastar ainda mais do que se tem. Afinal, caso seu ato seja verdadeiramente
condizente com aquela, mais dinheiro virá. Esse é um ato de vontade.
Logicamente, tal atitude não é condizente com a velha postura “precavida” que
alguém deve possuir na vida econômica pessoal se falta dinheiro, a recomendação geral é
“não gaste muito”. Crowley deseja quebrar até mesmo essa idéia, ao dizer que, se gastar
bastante for necessário à realização metafísica do ser, mais meios de renda aparecerão.
É inegável a presença de um espírito hedonista aí. Contudo, não devemos concluir
apressadamente de que este seja meramente centrado nos poderes de decisão individual de
cada um é importante lembrar que a Vontade funciona em meio a outras Vontades, e
que estando todas em equilíbrio, os atos tornam-se todos verdadeiros. O desejo pela
realização da Vontade de cada um poderia então ser encarado como um hedonismo
coletivo, outra marca essencial da pós-modernidade, segundo Maffesoli. Afinal, dentro da
cosmologia crowleyana, quando cada um realiza sua vontade, não importando o quão
absurda ela pode parecer à moralidade vigente, o Universo se harmoniza cada vez mais em
sua dimensão mística.
NÃO digas, ó meu Filho, que neste Argumento Eu estabeleci limites à Liberdade
individual. Pois cada Homem neste Estado que Eu proponho estará satisfazendo sua
própria verdadeira Vontade por sua pronta Aquiescência na Ordem
306
necessária ao
Bem-Estar de todos, e portanto também dele mesmo. Mas bem que estabeleças
um elevado Padrão de Satisfação, e que a cada um sobre após seu Trabalho, Lazer e
Energia, de forma que, sua Vontade de Auto-Preservação estando satisfeita por sua
Execução de sua Função no Estado, ele possa devotar o Restante de seus Poderes à
Satisfação das outras Partes de sua Vontade. E como o Povo é freqüentemente
ignorante, e não compreende o Prazer, faz com que seja instruído na Arte da Vida:
como preparar Comida agradável e sadia, cada qual a seu Gosto; como fazer Roupas
cada qual de acordo com sua Fantasia, com Variedade de Individualidade; e como
praticar as múltiplas técnicas do Amor. Estas Coisas sendo antes de mais nada
asseguradas, depois tu podes guiá-los aos Céus da Poesia e do Conto, da Música, da
Pintura e da Escultura, e ao Estudo da Mente mesma, com sua insaciável Alegria de
todo Conhecimento. Daí deixa que eles levantem vôo!
307
306
A “Ordem” refere-se provavelmente à A.’.A.’.
307
(Tradução de Marcelo Ramos Motta, disponível em http://www.svmmvmbonvm.org/liberaleph/
liberaleph.htm - último acesso em 4 de outubro de 2009) “Say not, o my Son, that in this Argument I have set
Limits to individual Freedom. For each Man in this State which I purpose is fulfilling his own true Will by his
eager Acquiescence in the Order necessary to the Welfare of all, and therefore of himself also. But see thou
well to it that thou set high the Standard of Satisfaction, and that to everyone there be a surplus of Leisure and
120
Contudo, esse hedonismo coletivo, que acreditamos estar presente na natureza da
filosofia crowleyana, obviamente não se resume às idéias mais “banais” de compaixão, por
exemplo, que este seria, segundo Crowley, um valor ainda relacionado à mentalidade
cristã sistema de valores que, lembremos, ele combatia ferozmente. Crowley identifica
duas faculdades humanas como verdadeiras inimigas da Ética thelêmica: Razão e
Emoção
308
. Isso porque essas duas faculdades estariam tão infectadas pelo pensamento
moralizador vigente que não poderiam mais ser confiáveis
309
. Ao falar do egoísmo, por
exemplo, Crowley indica que não maneiras fáceis de se falar do assunto dentro de uma
ótica thelêmica. Ao mesmo tempo, ele seria tanto a fundação do pensamento ético em
Thelema quanto a condição que o mais alto iniciado não possuiria novamente, o aspecto
paradoxal de sua filosofia mística. Essa aparente contradição se especialmente
novamente em um ataque aos valores cristãos: Crowley deseja que a idéia de “egoísmo”,
como é encarada pelo senso-comum cristão, seja quebrada ao trazer à luz seu conceito de
Vontade, essencial a todo Ser. Afinal, como ser “caridoso” ou “altruísta” sem deixar de
lado a própria Vontade? Contudo, o mais alto iniciado teria consciência de que todo seu ato
por ela é válido (nem bom, nem ruim), e de que ao realizá-la, ele está fazendo um bem ao
Universo como um todo. “Caridade” por pena, por exemplo, seria um insulto, uma
limitação imposta socialmente à Vontade do próximo.
Agora na prática, no dia-a-dia, este altruísmo está sempre aparecendo. Não apenas
você insulta seu Rei irmão por seu “nobre auto-sacrifício”, como você es quase
certo de interferir com sua Verdadeira Vontade. Caridade” sempre significa que a
elevada alma que a presenteia é na verdade, lá no fundo, tentando escravizar o
recipiente de bestial generosidade.
310
of Energy, so that, his Will of Self-Preservation being fulfilled by the Performance of his Function in the
State, he may devote the remainder of his Powers to the Satisfaction of the other Parts of his Will. And
because the People are oft times unlearned, not understanding Pleasure, let them be instructed in the Art of
Life; to prepare Food palatable and wholesome, each to this own Taste, to make Clothes according to Fancy,
with Variety of Individuality and to practise the manifold Crafts of Love. There Things being first secured,
thou mayst afterward lead them into the Heavens of Poesy and Tale, of Music, Painting, and Sculpture, and
into the Lore of the Mind itself, with its insatiable Joy of all knowledge. Thence let them soar.” (CROWLEY
1996a, 132)
308
CROWLEY 1991, 293-294.
309
No caso, tanto a “Razão” como a Emoção”, dentro de um contexto cristão, buscariam o melhor” para o
indivíduo baseado em vivências sociais que, até então, negligenciariam a existência da Vontade. Com a
chegada do Aeon de Hórus, tal mentalidade perderia validade.
310
(Tradução nossa)Now in practice, in everyday life, this unselfishness is always cropping up. Not only do
you insult your brother King by our “noble self-sacrifice”, but you are almost bound to interfere with his True
121
Podemos então notar, com este exemplo acerca da questão de altruísmo/egoísmo,
que Crowley desejava formar uma nova forma de se pensar a Ética dentro de padrões de
pensamento que fugissem de moralidades impostas pelo pensamento cristão vigente. É seu
objetivo quebrar esses valores, por acreditar que tais não mais condizem com os novos
tempos que aparecem o que ele chamou de a Era de Hórus, a Era Thelêmica. Em termos
maffesolianos, vemos novamente uma característica da ética pós-moderna: a
desconfiança nos grandes discursos, nas grandes formulações impostas, especialmente nas
que concernem e derivam do pensamento judaico-cristão, formalizado através dos últimos
séculos, além de uma característica hedonista, presenteísta, e, ainda assim, coletiva.
Pensamento em princípio paradoxal mas que, em última análise, busca uma nova
interpretação sobre a realidade e da forma de se atuar no mundo.
4.3 Sobre o agir mágicko/banal
Como nativo da língua inglesa, Crowley viu-se na necessidade de distinguir o que
ele entendia por “Magia” e qual a distinção com “Mágica”, sendo que, na sua língua
materna, ambos os termos são expressados pela palavra “Magic”. A forma encontrada para
distinção seria de continuar utilizando “magic” como aquela concernente a fenômenos de
show, truques (o que entendemos em português por “mágica”), e resgatando o termo
elizabetano “Magick”, com o “k” no final, para se referir aos atos que podem causar
mudança no Universo (o que entendemos em português por “Magia”). Como o termo
“Magia” possui demasiadas definições, apresentamos aqui uma breve conceituação do que
Crowley entendia por ele, levando-nos adiante a nos referir ao conceito sempre por Magia
(k), que é a denominação para tal idéia dentro do campo thelêmico
311
.
Magia (k) é a arte de causar mudança em fenômenos existentes. Este definição
inclui ressuscitar os mortos, controlar magicamente o gado, fazer chover, obter bens,
fascinar juízes, e todo o resto da programação. Bom: mas isso também todo e
qualquer ato? Sim; eu assim quis. Não é possível declarar palavra ou realizar coisas
sem produzir o efeito exato e necessário para tal. Então Magia (k) é a Arte da Vida
em si mesma.
[...]
Will. “Charity” always means that the lofty sould who bestows it is really, deep down, trying to enslave the
recipient of his beastly bounty!” (CROWLEY 1991, 294)
311
Como dito anteriormente, tal denominação é oriunda de BRONZE 2006.
122
Lembre-se, também, que, a menos que você saiba qual sua verdadeira Vontade é,
você pode estar devotando as mais louváveis energias para se auto-destruir [...]
Lembre que Magia (k) é a Arte da Vida, e assim de causar mudança de acordo com
Vontade; e assim sua lei é amor sob Vontade”, e todo movimento é um ato de
amor.
312
É necessário observar aqui que o conceito de Magia (k) em Crowley é o ponto nodal
de toda a sua questão sobre a manifestação do “agir pela Vontade”. Estando em
conformidade com a Vontade, todo ato de um thelemita torna-se um ato mágicko desde
entrar em contato com seres de outra dimensão até realizar uma simples refeição. Neste
último caso, se a refeição tornar o corpo do thelemita mais apto para a realização de sua
Vontade, este será indubitavelmente um ato mágicko.
Desta forma, devemos compreender que Crowley formula uma nova concepção de o
que é Magia em geral por isso a necessidade de se utilizar um termo próprio para seu
trabalho. Ao invés de encarar somente atos de grande cerimônia ou aprofundamento
espiritual, ele expandiu o termo, trazendo à luz da necessidade uma maior atenção a todo e
qualquer ato humano. Desta forma, segundo ele, o indivíduo estaria mais apto a realizar e
perceber as dimensões de seu papel no mundo.
Esta nova concepção de magia nos é particularmente interessante porque mostra que
Crowley procura dar maior atenção inclusive aos atos banais. Todo ato seria um ato
sagrado, desde que estivesse em conformidade com a Vontade do indivíduo. Vemos uma
característica clara da importância dos atos mundanos e seus papéis no mundo. Como
vimos anteriormente, Maffesoli acredita que a pós-modernidade tem como grande
característica uma maior ênfase nestes atos que são considerados de menor importância
pela moralidade reguladora vigente. Ao colocar a possibilidade de várias éticas, em especial
na sua função estética, trágica, os atos menores ganham grande importância, pois, mesmo
312
(Tradução nossa)Magick is the art of causing change in existing phenomena. This definition includes
raising the dead, bewitching cattle, making rain, acquiring goods, fascinating judges, and all the rest of the
programme. Good: but it also includes every act soever? Yes; I meant it to do so. It is not possible to utter
word or do deed without producing the exact effect proper and necessary thereto. Thus Magick is the Art of
Life itself.
[...]
Remember, also, that, unless you know what your true Will is, you may be devoting the most laudable
energies to destroying yourself [...] Remember that Magick is the Art of Life, therefore of causing change in
accordance with Will; therefore its law is “love under will”, and its every movement is an act of love.”
(CROWLEY 1996a, 39-40)
123
que considerados “errados” ou de pouca importância, ganham força, pois possuem
potência.
Fora este ponto dos atos banais, podemos melhor exemplificar a relação dos atos
mágickos e a Vontade usando situações consideradas de conduta na sociedade atual,
como o uso de drogas ilícitas. Crowley acreditava que o uso de drogas como ópio ou
cocaína não afetaria o homem que conhece sua própria Vontade novamente, se esta o
permite realizar tais atos, não haveria nada de errado. Encarando sua thelema como uma
“apoteose da liberdade”
313
, acreditava que todo ato poderia tornar alguém
escravo/dependente se a Vontade não estivesse sendo devidamente trabalhada. Como forma
de melhor ilustrarmos essa convicção, citamos as seguintes passagens, acerca de bebidas e
drogas:
Vinho e estranhas drogas o prejudicam pessoas que estão realizando suas
vontades; elas apenas envenenam pessoas que estão cancerosas com o Pecado
Original.
[...]
A Verdade é tão terrível para esses detestáveis provocadores da humanidade [em
especial os Puritanos] que o pensamento de si é uma realização do inferno. Assim
eles correm para bebidas e drogas como um anestésico em operações cirúrgicas e
introspecção.
O desejo por essas coisas é causado por uma tristeza interna na qual seus usos se
revelam para as almas-escravas. Se você é realmente livre, você pode consumir
cocaína tão simplesmente quanto um biscoito de água e sal. Não há melhor duro teste
de uma alma quanto sua atitude perante drogas. Se um homem é simples, destemido,
corajoso, ele está bem; ele não se tornará um escravo. Se ele tem medo, ele é um
escravo. Deixe o mundo inteiro tomar ópio, haxixe, e o resto; aqueles que o pré-
dispostos a abusar disso estariam melhor mortos.
314
Nós de Thelema achamos que é vitalmente certo deixar um homem consumir ópio.
Ele pode destruir seu veículo físico assim, mas ele poderá produzir um outro Kubla
Kahn [poema de Samuel Taylor Coleridge (1772-1834), escrito enquanto estava
intoxicado com ópio]. É sua própria responsabilidade. Nós também sabemos que “Se
ele for um Rei” isso não o prejudicará – no fim.
315
313
CROWLEY 2007, p. 41.
314
(Tradução nossa) Wine and strange drugs do not harm people who are doing their will; they only poison
people who are cancerous with Original Sin.
[...]
Truth is so terrible to these detestable mockeries of humanity that the thought of self is a realization of hell.
Therefore they fly to drink and drugs as to an anaesthetic in the surgical operation of introspection.
The craving for these things is caused by the internal misery which their use reveals to the slave-souls. If you
are really free, you can take cocaine as simply as salt-water taffy. There is no better rough test of a soul than
its attitude to drugs. If a man is simple, fearless, eager, he is all right; he will not become a slave. If he is
afraid, he is already a slave. Let the whole world take opium, hashish, and the rest; those who are liable to
abuse them were better dead.(CROWLEY 1996a, 110)
315
(Tradução nossa) We of Thelema think it vitally alright to let a man take opium. He may destroy his
physical vehicle thereby, but he may produce another Kubla Khan. It is his own responsability. Also we know
well that “If he be a King” it will not hurt him – in the end.” (CROWLEY 1996a, 146)
124
Analisemos tal atitude perante drogas e bebida sob uma ótica maffesoliana. As
informações que nos são passadas hoje em dia sobre os malefícios dessas substâncias
provêm de determinadas instituições pesquisas científicas, governo, escola, igreja, meios
de propaganda etc. uma grande campanha para a erradicação e/ou controle de muitas
dessas substâncias. Contudo, ainda assim, o consumo destas mesmas aumenta
gradativamente, criando estranhamentos frente certo desejo de melhoramento de saúde.
Aqui, segundo Maffesoli, atua o presenteísmo, juntamente com a questão do espírito
dionísiaco pós-moderno, que busca sempre a vivência pelo excesso e embriaguez. É uma
visão dionisíaca do mundo, visando a inversão (ou sombreamento) dos valores apolíneos
modernos. Os atos subversivos, aqueles considerados moralmente errados, continuam a
crescer e formar novas formas de socialização tribos urbanas, com seus próprios atos e
rituais sagrados.
Como apontamos no capítulo anterior, a religiosidade pós-moderna estaria sempre
buscando uma imanente transcendência, um desejo de perda do si-próprio e a busca de
fusão com o meio. Neste momento, as situações-limite, moralmente subversivas, ganham
grande força. Ao tirar de foco as necessidades do que é “socialmente bom”, a ética estética
pós-moderna busca o êxtase, o gozo eterno marcado no momento presente. Aqui, explica-se
a relação que o uso de drogas e álcool ganharia dentro desta nova perspectiva religiosa: ao
se extrapolar os limites sensoriais com o uso de determinadas substâncias, o homem pós-
moderno se sentiria mais próximo de uma possível dimensão sagrada, que ele admite com
maior facilidade após a experimentação. Apesar de tal tendência ter se tornado muito
popular durante o movimento hippie, e o uso de alucinógenos como o LSD, períodos
históricos que já denotavam grandes transições no imaginário ocidental, nos chama a
atenção que Crowley denotava algumas dessas idéias e conceitos que seriam mais tarde
adotadas como bandeiras de uma nova era de pensamento. Hoje, tais atitudes,
especialmente entre os mais jovens, em relação às mesmas substâncias moralmente
inaceitáveis, ganham mais espaço e nichos específicos de discussão, denotando assim uma
atitude no mínimo diversa da velha moralidade moderna, que buscava incessantemente o
progresso em nome de um Bem comum culminando, obviamente, na expurgação de tais
mentalidade mais subversivas. Em outras palavras, mesmo com as diversas tentativas de
125
conscientização acerca dos perigos que tais experiências podem vir a trazer, o homem pós-
moderno, não mais confiando nas hierarquias informacionais instituídas, procura, em sua
própria vivência do mundo, formar suas próprias conclusões. Essa atitude, que
encontramos em Crowley no início do século XX, seria, segundo Maffesoli, uma grande
marca da ética estética pós-moderna.
Tenho insistido com freqüência nessa transcendência imanente específica da
religiosidade s-moderna. Podemos lembrar aqui que ela emana desses confins
misteriosos”, ou seja, das situações-limite provocadas pela união dos corpos e das
almas. Isto gera uma exaltação específica, que não distingue o bem do mal e se
mostra inclusive indiferente a semelhante divisão, exaltação que a partir desse
momento enfatiza o surreal no próprio interior da vida de cada um. Entende-se
melhor, assim, como o êxtase místico, em suas diversas modulações, sempre
preocupou os poderes estabelecidos, as teorias racionalistas e os gestores de
carteirinha do sagrado.
É este êxtase inquietante que vamos encontrar nos diferentes transes coletivos que
não faltam em nossa época. Em particular, naturalmente, nos ajuntamentos musicais
que envolvem o desvario. Há muito a dizer sobre esses fenômenos. Para começar,
que são tudo, menos insignificantes. A tendência tampouco é efêmera, indicando um
movimento de fundo. Cabe notar igualmente que a desconfiança que provocam é das
mais instrutivas, bem demonstrando, a contrario, que não podem mais ser
considerados irrelevantes ou marginais. De minha parte, eu veria neles, à maneira de
M. Mauss, um fato social total” que permite ler a sociedade em sua integridade, à
maneira de um corte histológico.
316
Assim, podemos concluir que Crowley, especialmente no ponto acerca de atos
mágickos e suas relações com a dimensão mística da Vontade, denotava uma atitude de
desconfiança hierárquica e desejo de experimentação, creditando assim em seu sistema
religioso uma forma potência de humana que ultrapassaria qualquer tipo de moralidade
imposta. Dessa forma, fica-nos claro que Crowley foi capaz de vislumbrar um momento
importante de transição no pensamento ético ocidental, traduzindo em sua religião essas
novas questões que viriam a surgir no decorrer das décadas seguintes.
4.4 Análise crítica
Tendo essa confiança na doutrina que teria lhe sido revelada pelos Mestres Secretos,
é de nossa suspeita que Crowley somente pincelou certos aspectos de quais seriam os
fundamentos éticos dela.
316
MAFFESOLI 2004a, 156-157.
126
Crowley, recebendo dos Chefes Secretos a missão de ser o profeta da Era de Hórus
que teria chego, e sentindo a responsabilidade de atacar a moralidade cristã como maneira
de preparar o mundo para os novos tempos vindouros, buscou desenvolver uma forma de
pensamento ético-moral que não mais se centrasse em idéias de auto-sacrifício, por
exemplo, por ideais baseados em concepções judaico-cristãs ou estritamente seculares. Pela
lógica de Hórus (e dos Chefes Secretos), tais ideais estariam chegando ao seu fim, e seria
necessário preparar a humanidade para os novos tempos. Apesar de se basear em conceitos
metafísicos (tal como a Vontade) para o que seria uma forma de vida ideal neste novo
mundo que surgiria, é inegável notar, como apontamos no decorrer do trabalho, uma grande
desconfiança que Crowley possuía em instituições pré-estabelecidas que dizem possuir "a
verdade" ou serem exemplos a seguir. A necessidade da experiência pessoal é sempre
enfatizada, assim como a importância de que cada thelemita deve ser capaz de tirar suas
conclusões sobre qualquer assunto, inclusive sobre o que ocorre após a morte, como
pudemos notar no primeiro capítulo, em que Crowley diz acreditar em reencarnação por
motivos próprios e que cada adepto deve responder tal pergunta apenas após constatação e
verificação de hipóteses e experimentos que ele mesmo realizar.
De uma ótica maffesoliana, essa postura condiz bastante com a típica desconfiança
nas grandes metateorias e sistemas impostos na mentalidade pós-moderna. A necessidade
de experimentar e vivenciar qualquer suposição seriam, segundo Maffesoli, próprias dos
tempos atuais.
Maffesoli fala em politeísmo de valores, e o fato de Crowley trabalhar com diversos
panteões divinos como forma de trabalho espiritual, adaptando-os para as necessidades de
determinados trabalhos mágickos que viesse a realizar, demonstra no centro de sua obra
uma predisposição a essa atitude, que fica ainda mais clara quando somada ao lema
thelêmico “Faze a tua Vontade”. Não respostas definidas, e a própria Vontade se
manifesta de maneiras diferentes.
Contudo, o conceito de Vontade não deixa de ser um conceito Universal, muito
próximo do conceito de imperativo categórico kantiano que Maffesoli busca combater.
Ainda assim, sendo um conceito de natureza universal e metafísico, é necessário aqui
fazermos a separação entre campo teórico e objeto de estudo, deixar de lado a postura
comparativa e perceber que, no campo do fenômeno, um thelemita exercendo sua Vontade,
127
não importando como ela se manifesta, teria a possibilidade de viver de forma totalmente
diferente de outro thelemita. Mais importante do que isso é perceber que o sistema de
pensamento crowleyano permite tal tipo de vivência antagônica, que o mais importante
em tal estilo de vida não é agradar socialmente alguém, mas sim a experiência de uma
esfera mística, além do plano material, e que tal contato permita ao homem (ou mulher) que
sua Vontade seja reconhecida e realizada.
Indo mais adiante, Crowley defende que, ao se realizar as Vontades, os homens
entram em harmonia e que não haveria “colisões” de estrelas (lembrando que “todo homem
e toda mulher é uma estrela” na filosofia thelêmica) lembrando que “harmonia” para
Crowley não é a ausência de conflitos. Os conflitos podem existir, desde que não exista
interferência na Vontade do Outro.
Essa é uma visão de mundo particular de Crowley, baseada em toda a sua vivência
espiritual, e que era apontada por ele como ideal. Em outras palavras, ele tinha um
“projeto”, uma forma de instituir uma nova forma de relação do homem com o meio.
Como não é possível analisar se uma sociedade thelêmica é passível de operar por si
só, simplesmente por não existirem governos ou grupos sociais que operem baseados
nesses ideais, podemos apontar que a postura messiânica de Crowley possui caráter
paradoxal: se posta como profeta
317
, diz que sua Thelema seria capaz de melhorar a vida
dos homens e fazê-la evoluir de acordo com os planos dos Chefes Secretos que regem o
futuro da Terra, mas, ainda assim, se utiliza de uma lógica relativista, ao falar que cada um
realiza sua Vontade de forma distinta. Da ótica maffesoliana, no plano do fenômeno, ou
seja, deixando de lado a necessidade de se encontrar o primeiro estímulo (condição
metafísica) isso aponta a possibilidade e postura por formação de estilos de vida diferentes,
ou seja, a formação de várias éticas que discordam da saturada moralidade judaica-cristã.
Ou seja, mesmo Crowley desenvolvendo um pensamento ético baseado em uma
mística, o que poderia causar uma perda do caráter relativista de tal postura, devemos ter
em mente que a postura thelêmica é relativista no plano fenomenológico, dado o caráter
plural (politeísta) e não definido de manifestação física da Vontade. Concluímos isso
baseado no fato de que uma forte característica da pós-modernidade, segundo Maffesoli, é
o comportamento efêmero de crenças, a efervescência de espiritualidades mais adaptáveis
317
Ou seja, alguém que possui uma “Verdade”.
128
ao dia-a-dia e, principalmente, àquele tipo de religião que permite o indivíduo optar quais
atitudes poderá exercer no decorrer de sua vida, tendo a opção de mudar caso não concorde
com o que a instituição (ou tribo) que pertence postular. A filosofia thelêmica,
teoricamente, permite no âmago de sua estrutura tal dinâmica de crenças – que, mesmo com
a grande desconfiança que marca nossos tempos, não deixaram de existir (vide as chamadas
formas de religiosidade pós-moderna que citamos no terceiro capítulo).
Outro ponto que consideramos importante é a questão da “morte do Ego” em
Crowley, e o que isso significaria de um ponto de vista ético. Ora, como apontamos
anteriormente, a “morte do Ego” do thelemita é considerada um ponto de passagem, um
último passo na questão da evolução espiritual. “Matar o Ego” significaria abdicar de uma
existência plenamente mundana e tornar-se um só com o Universo, entrando em total
conformidade com a própria Vontade, o que o tornaria um Deus. Essa explicação é
obviamente por demais abstrata para análises mais precisas de como se daria esse rito de
passagem, e Crowley sempre adverte sobre como é necessária a experiência de tal processo
para compreendê-lo plenamente. Entretanto, tal dificuldade de análise não nos impede de
perceber que está presente uma forma de “hedonismo coletivo”, como apontado em
termos maffesolianos. A ética de Crowley, nosso objeto de estudo, ao falar de evolução
espiritual, visa o bem da humanidade como um todo, representando assim para a
comunidade de seus seguidores um ícone de perda da individualidade e ganho de espírito
comunitário não mais termos da típica irmandade do espírito unificadora cristão, mas sim
no sentido de afirmação do aspecto plural e politeísta da vida. Acreditamos encontrar
um delineamento do conceito de tribalização maffesoliano, uma das marcas da ética
estética pós-moderna.
Para finalizar, é importante também comentarmos sobre a questão da teatralidade
maffesoliana ao analisar a declaração de Crowley a respeito da Razão e da Emoção,
considerando-as inimigos da ética thelêmica. Maffesoli aponta que o jogo de emoções é
característico do comportamento pós-moderno, e que as primeiras motivações existentes
“por trás” das aparências, atualmente, seriam de menor importância, que os aspectos
superficiais do comportamento (justamente um “teatro social”) ganham muito mais espaço
do que as suas causas originais. Por isso, o lúdico e o banal ganharam tanto espaço no
imaginário contemporâneo: é uma das conseqüências do reencantamento do mundo,
129
buscando novos tipos de vivências e experiências que não mais se preocupam com grandes
narrativas norteadoras das vidas humanas. O prazer deve ser instantâneo, e o instante deve
ser eterno – tal é a postura pós-moderna com a vida, de acordo com Maffesoli.
Como apontamos anteriormente, ao dizer que a razão e a emoção são inimigas da
Ética thelêmica, Crowley quer apontar apenas que essas funções estariam por demais
impregnadas do pensamento judaico-cristão e/ou do espírito moderno. Lembrando que
Crowley escreveu tais idéias ainda na metade do século XX, ainda na Inglaterra vitoriana,
extremamente conservadora, não é de se estranhar que suas palavras podem ser mal
interpretadas a ponto de se supor que um thelemita deve ser não-racional ou
emocionalmente apático. No contexto de sua época, em uma sociedade de certo modo
repressora, é perfeitamente plausível entender tais declarações não como defesas de não-
ação ou apatia, mas sim como críticas à mentalidade vigente. Crowley desejava, com
aquelas declarações, mostrar que as faculdades mentais que são mais geralmente usadas, e
portanto estariam adaptadas às idéias cristãs, se tornariam inúteis em um contexto social
como o que vivia, que o Aeon de Hórus teria chego e indicaria o fim deles. Além disso,
se deve ter em mente também que o conceito de Vontade postula que ambas faculdades
mentais devem estar a seu serviço, e não contrário.
Ao lado dessas considerações, deve ser lembrado a importância que Crowley dava
aos rituais e às possibilidades de se ter comportamentos excessivos, desde que eles fossem
sempre direcionados à Nuit, ou seja, ao Cosmos, Universo, Absoluto, enfim. E aqui sim
encontramos a essencial característica mística em Crowley, que destoaria de todo o campo
de análise ao considerá-lo um pensador de uma ética pós-moderna: ele acreditava fielmente
em seu sistema, e tinha certeza de que todos os seus atos, por mais banais ou sublimes que
fossem, deveriam ser direcionados à união mística com o Todo. Apesar de no campo dos
fenômenos tais ações poderem nos parecer recorrentes e comuns
318
, seu sistema religioso é
metafísico, e tudo que for realizado deverá assim ser feito em nome da Vontade por mais
polissêmica que ela possa se demonstrar no plano físico. Ainda assim, Crowley afirma o
gozo pela vida, e inegavelmente busca, nessa sua forma de religiosidade, um
reencantamento com o mundo.
318
Em uma lógica tribal, teríamos rituais de iniciação, rituais diários, rituais sagrados, rituais banais etc.
131
CONCLUSÃO
No capítulo I, explicamos o contexto histórico e apresentamos alguns conceitos-
chave para a compreensão do pensamento de Crowley. Disso, nos foi possível adentrar, no
capítulo II, na questão da Ética e Moral em Crowley e sua Thelema, de forma a apresentar e
tentar ordenar algumas de suas considerações sobre o assunto.
No capítulo III, apresentamos o campo teórico que nos utilizamos para realizar toda
a análise crítica do capítulo IV, no qual nos foi possível analisar quais seriam os aspectos
pós-modernos da ética thelêmica.
Como apontamos na introdução do trabalho, as questões acerca do tema surgiriam
em torno especialmente do problema de se definir o que é Thelema e da idéia do temor que
as idéias de Crowley poderiam incutir na mentalidade cristã (em termos gerais) e que,
apesar da relevância de tais questões, o ponto de discussão principal seria a investigação
sobre se, por acaso, Crowley anteciparia, como pensador de uma ética religiosa, algumas
questões concernentes à mentalidade pós-moderna, da forma que Maffesoli entende o
termo. Acreditamos que o trabalho, nesse quesito, foi bem sucedido, apontando diversas
características que se encaixam nas definições maffesolianas da Ética Estética pós-
moderna, ao mesmo tempo que também apontou algumas divergências, sendo estas
decisivas para as declarações finais da presente conclusão.
Tomamos, como ponto de partida, a hipótese de que Crowley pré-figuraria um
pensador de uma ética pós-moderna no campo religioso, especialmente pelo caráter
sincrético (unindo paganismo, hermetismo e práticas orientais) e empírico de sua doutrina –
ou seja, a necessidade da experiência pessoal como ponto fundamental para se tirar
qualquer conclusão, denotando assim uma desconfiança às instituições e discursos pré-
estabelecidos de caráter judaico-cristão e/ou tipicamente modernista. Podemos agora
concluir que nossa hipótese levantada foi muito relevante em alguns pontos e falhou em
outros. Expliquemos.
Enquanto a questão do “faze a tua Vontade” declara um relativismo do agir humano
no campo fenomenológico, é inegável que tal conceito, pela sua conotação mística, parte de
um ponto epistemológico de cunho metafísico, criando assim um paradoxo: pela lei da
Vontade, tudo pode ser permitido (relativismo), desde que, obviamente, esteja em
132
conformidade com ela (absolutismo). Cria-se, dessa maneira, uma forma de imperativo
categórico, um conceito mais rígido que, por mais que possa ser criticado ou que exija a
vivência mística para tal conclusão, não deixa de ser um discurso de função universalizante.
Sendo assim, nossa hipótese foi apenas comprovada em alguns aspectos, deixando
outros passíveis de revisão e/ou contra-argumentação por futuros pesquisadores.
Com isso, apontamos também que o campo de estudo da Ética sob o ponto de vista
thelêmico mostra ser ainda um campo muito pouco explorado, e que pesquisas futuras
poderão, talvez, trazer novas luzes sobre o assunto especialmente com a publicação de
material inédito de Crowley através da O.T.O. americana.
Não apenas isso, mas novas correntes de pensamento thelêmico parecem surgir a
todo o momento, como mostramos no primeiro capítulo, quando mencionamos a O.T.O. e a
A.’.A.’. Esses novos thelemitas trarão novas interpretações dos pensamentos crowleyanos,
e será de grande valia para o campo das ciências da religião prestar atenção em tais novos
fenômenos à medida que forem surgindo, já que novos pensamentos sobre a ética thelêmica
deverão surgir com essas novas gerações.
É também de se notar que a Ética de Crowley é passível de análise por outros
campos teóricos além daqueles que não relacionados às considerações do pensamento pós-
moderno, abrindo assim o leque de possibilidades para aprofundamentos mais pontuais,
como, por exemplo, as idéias de Crowley sobre educação, política, movimentos
humanitários etc, tanto em contexto históricos determinados quanto projeções futuras.
Por fim, concluímos o presente trabalho reafirmando a importância de novas
pesquisas acerca do fenômeno thelêmico, tendo em vista que é um movimento religioso de
crescente interesse em comunidades esotéricas, e que poderá fornecer, no futuro próximo,
dados mais precisos de como seus seguidores se apresentam e agem socialmente o que
possibilitará, por sua vez, analisar aspectos mais precisos de seus pensamentos ético-
morais.
133
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