Download PDF
ads:
Universidade do Estado do Rio de Janeiro
Centro de Educação e Humanidades
Instituto de Letras
Wilson Alves-Bezerra
Da clínica do desejo a sua escrita:
Incidências do pensamento psicanalítico na escrita de alguns autores
do Brasil e Caribe (1918-1990)
Rio de Janeiro
2010
ads:
Livros Grátis
http://www.livrosgratis.com.br
Milhares de livros grátis para download.
Wilson Alves-Bezerra
Da clínica do desejo a sua escrita:
Incidências do pensamento psicanalítico na escrita de alguns autores
do Brasil e Caribe (1918-1990)
Tese apresentada como requisito parcial para
obtenção do título de Doutor, ao Programa de
Pós-Graduação em Letras, da Universidade do
Estado do Rio de Janeiro. Área de concentração:
Literatura Comparada.
Orientação do Prof. Dr. Guillermo Francisco Giucci Schmidt
Rio de Janeiro
2010
ads:
CATALOGAÇÃO NA FONTE
UERJ/REDE SIRIUS/CEHB
Autorizo, apenas para fins acadêmicos e científicos, a reprodução parcial desta tese
__________________________ __________________
Assinatura Data
A474 Alves-Bezerra, Wilson
Da clínica do desejo a sua escrita: incidências do pensamento
psicanalítico na escrita de alguns autores do Brasil e Caribe: 1918-
1990 / Wilson Alves-Bezerra. – 2010.
298f.
Orientador: Guillermo Francisco Giucci Schmidt
Tese (doutorado) – Universidade do Estado do Rio de Janeiro,
Instituto de Letras.
1. Psicanálise e literatura Brasil Séc. XX Teses. 2.
Psicanálise e literatura – Caribe – Séc. XX – Teses. 3. Psicanálise na
literatura – Teses. 4. Literatura comparada – Temas, motivos – Teses.
5. Literatura comparada – Brasileira e caribenha – Teses. 6. Desejo –
Teses. I. Schmidt, Guillemo Francisco Giucci. II. Universidade do
Estado do Rio de Janeiro. Instituto de Letras. III. Título.
CDU 82:159.964.2
Wilson Alves-Bezerra
Da clínica do desejo a sua escrita:
Incidências do pensamento psicanalítico na escrita de alguns autores
do Brasil e Caribe (1918-1990)
Tese apresentada como requisito parcial
para obtenção do título de Doutor, ao
Programa de Pós-Graduação em Letras, da
Universidade do Estado do Rio de Janeiro.
Área de concentração: Literatura
Comparada.
Aprovado em 19 de março de 2010.
Banca Examinadora:
Prof. Dr. Guillermo Francisco Giucci Schmidt
Instituto de Letras da UERJ
Profa. Dra. Carlinda Fragale Pate Nuñez
Instituto de Letras da UERJ
Profa. Dra. Ana Medeiros Costa
Instituto de Psicologia da UERJ
Profa. Dra. Adriana Kanzepolsky
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP
Profa. Dra. Flavia Trocoli Xavier da Silva
Faculdade de Letras da UFRJ
Rio de Janeiro
2010
Agradecimentos
Guillermo Giucci
Carlinda Fragale Pate Nuñez
Victor Hugo Adler Pereira
Mario Bruno
Ana Costa
Adriana Kanzepolsky
Teresa Cristófani Barreto
Flavia Trocoli Xavier da Silva
Claudio Castro Filho
Fernanda Shcolnik
Fernanda Castelano Rodrigues
Ana Vicentini de Azevedo
Nelson Viana
Patricia Leme
Luiz Mascio
Claudia Lemos
Reinaldo Montero
Ernesto Olivera
José Luiz Martínez Amaro
Eliane Mara Silveira
Departamento de Letras / UFSCar
Escola de Psicanálise de Campinas
Alunos e orientandos, de agora e de antes.
escribiendo sobre la arena siempre los mismos textos
Severo Sarduy, “Homenaje a Lezama Lima”
RESUMO
ALVES-BEZERRA, Wilson. Da clínica do desejo a sua escrita: incidências do pensamento
psicanalítico na escrita de alguns autores do Brasil e Caribe (1918-1990). Brasil. 2010.
298f. Tese (Doutorado em Literatura Comparada) - Instituto de Letras, Universidade do
Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2010.
Tomando a noção de “traveling theory” de Edward Said como ponto de partida, o presente
trabalho propõe analisar os deslocamentos do pensamento psicanalítico – a obra de Sigmund
Freud e Jacques Lacan – para o campo da cultura e da literatura na América Latina, ao longo
do século vinte. Privilegiam-se, comparativamente, os casos brasileiro (São Paulo, nos anos
vinte; Rio de Janeiro, nos anos cinqüenta) e caribenho (Martinica Francesa, anos sessenta;
Cuba, a partir dos anos quarenta). Busca-se assim aferir as incidências do pensamento
psicanalítico na obra de alguns autores, tratando de pensar o que resta da clínica do desejo em
sua escrita literária ou ensaística. Mas também postular as possíveis incidências da escrita
literária sobre o pensamento analítico. Sob tal perspectiva, são analisados, principalmente,
textos dos seguintes autores: Mário de Andrade, Nelson Rodrigues, Frantz Fanon e Severo
Sarduy. A hipótese que mobiliza este trabalho é que na passagem da reflexão sobre a clínica
para a literatura, e vice-e-versa, algo se mantém e realimenta os dois campos. Dito de outra
forma, é possível pensar – no caso do ensaio e da literatura – na existência de uma escrita
que mobiliza o desejo; e tal escrita não se dá necessariamente quando há um estudo apurado
por parte dos escritores da teoria psicanalítica; quando a literatura mobiliza o desejo, não raro,
são os analistas que se debruçam sobre tal escrita.
Palavras-chave: Literatura e psicanálise. Desejo. Traveling theory. Literatura latino-
americana. Literatura comparada.
RESUME
En prenant la notion de “traveling theory” d’Edward Said comme point de départ, ce travail
propose d’analyser les déplacements de la pensée psychanalytique – l’œuvre de Sigmund
Freud et Jacques Lacan – vers le champs de la culture et de la littérature en Amérique latine,
tout au long du XXème siècle. On privilégie, comparativement, les cas brésilien (São Paulo
aux années 20 ; Rio de Janeiro, à partir des années 50) et caraïbéen (Martinique française,
années 60 ; Cuba, à partir des années 40). Ainsi, on prétend mesurer les incidences de la
pensée psychanalytique dans l’œuvre de certains auteurs, tout en cherchant aussi de postuler
les incidences possibles de l’écriture littéraire sur la pensée analytique. Sous cette perspective,
on analysera surtout des textes des auteurs : Mário de Andrade, Nelson Rodrigues, Frantz
Fanon et Severo Sarduy. L’hypothèse qui mobilise ce travail est que dans le passage de la
réflexion sur la clinique vers la littérature et vice-versa, quelque chose demeure et nourri les
deux champs. Autrement dit, il est possible de penser, dans le cas des essais et de la
littérature, à l’existence d’une écriture qui mobilise le désir ; cette écriture n’existe pas
forcément quand il y a une étude approfondie de la théorie psychanalytique de la part des
écrivains ; quand la littérature mobilise le désir, c’est souvent les analystes qui se penchent sur
cette écriture.
Mots-clé: Littérature et psychanalyse. Désir. Traveling theory. Littérature latino-américaine.
Littérature comparée.
Sumário
INTRODUÇÃO....................................................................................................................11
1. PARTE 1: SÃO PAULO E RIO DE JANEIRO (1918-1974).......................................23
1.1. Mário de Andrade, leitor exemplar, seguindo passo a passo a doutrina
freudiana................................................................................................................................23
1.1.1. Docteur Freud aporta em São Paulo, anos vinte..........................................................27
1.1.2. Freud na imprensa paulistana: Durval Marcondes e Franco da Rocha.........................29
1.1.3. O primeiro Mário de Andrade.......................................................................................39
1.1.4. A teia dos termos: Viagens de ideias freudianas pelas línguas européias e leituras
brasileiras - instintos, pulsões e impulsos...............................................................................43
1.1.5. refoulement, censura, sequestro... e uma fotografia......................................................49
1.1.6. A Dona Ausente e o sequestro......................................................................................53
1.1.7. Tristão de Athayde e o Lustprinzip – em busca da salvação do Freud decaído...........57
1.1.8. Libido x fomes amorosas..............................................................................................62
1.1.9. Amorosa errância entre línguas... Amar, verbo intransitivo.........................................64
1.1.10. Seguindo passo a passo a doutrina freudiana
.............................................................74
1.2. Nelson Rodrigues, não-leitor de Freud.......................................................................76
1.2.1. A cultura freudiana e o psicanalista como tipo social na obra de
Nelson Rodrigues...................................................................................................................76
1.2.2. Cheiro de psicanálise no galinheiro. A atmosfera carioca dos anos 30.......................83
1.2.3. Sexo (1934), de Renato Vianna....................................................................................84
1.2.4. Gastão Pereira da Silva – mascate freudiano..............................................................93
1.3. A psicanálise em Nelson Rodrigues, para além do galinheiro:
tragédia e desejo...................................................................................................................97
1.3.1. Situando a questão: Nelson Rodrigues e a criatura humana.........................................97
1.3.2. Freud, leitor de Schopenhauer: O enigma de Hamlet.................................................107
1.3.3. Jacques Lacan, leitor de Shakespeare. O desejo em Hamlet......................................116
1.3.4. A via do desejo em Nelson Rodrigues - O que quer uma mulher?............................127
1.3.5. Elas gostam de apanhar (1974)..................................................................................128
1.3.6. O desejo feminino em Senhora dos afogados (1947).................................................138
1.3.7. Tragédia do Real ou fantasia masculina?....................................................................145
1.3.8. Considerações finais....................................................................................................151
2. PARTE 2: CONEXÃO PARIS-CARIBE (1953-1990) ..............................................157
2.1. Frantz Fanon, uma escrita em busca de um estatuto..............................................160
2.1.1. Que veut l´homme noir? – o avesso da psicanálise de Fanon....................................160
2.1.2. Lacan e Fanon em torno às tramas do desejo – lendo Kojève...................................164
2.1.3. Escrita epidérmica ou universalismo à flor da pele – Fanon e a psicanálise
.............171
2.1.4. Deslocamentos de uma reflexão : clínica e violência em Fanon (1961)
....................187
2.1.5. Fanon: guerrilheiro e psiquiatra.................................................................................190
2.1.6. O discurso de Fanon...................................................................................................202
2.1.7. Coda - Adocicando o debate: leituras francesas de Gilberto Freyre..........................207
2.2. Psicanálise à cubana: de Freud a Pavlov..................................................................221
2.2.1. Das quantas vezes Freud não chegou a Cuba............................................................223
2.2.2. Dois artigos sobre psicanálise em Cuba – olhar da fresta.........................................227
2.2.3. De Freud a Pavlov, via Fidel......................................................................................231
2.2.4. Lezama Lima – viajante ilhado – a homossexualidade e a psicanálise
......................235
2.2.5. A rebelião erótica de Reinaldo Arenas
.......................................................................245
2.3. Severo Sarduy e a poética do exílio.......................................................................... 252
2.3.1. Severo Sarduy e Reinaldo Arenas em torno a Cuba..................................................252
2.3.2. Escrito sobre o exílio, sob o exílio.............................................................................256
2.3.3. O exílio barroco do significante lacaniano.................................................................259
2.3.4. Exilado na rue de l´île................................................................................................270
2.3.5. Filiação: o Lezama de Sarduy e o seu Fidel
...............................................................272
CONSIDERAÇÕES FINAIS ..........................................................................................281
REFERÊNCIAS.................................................................................................................284
11
Introdução
Há na psicanálise, desde sua origem, uma interrogação sobre o desejo: Lacan
enuncia por diversas vezes que a pergunta Was will das weib? (o que deseja uma mulher?)
teria acompanhado Freud ao longo de mais de trinta anos. Dessa interrogação surge – como
a pergunta partilhada no final do século XIX entre Breuer e Freud diante da cama das
histéricas – uma clínica que visava dar conta do sofrimento psíquico, aquele que não deixa
encontrar no corpo orgânico uma causa cabal do mal que aflige o paciente. Da escuta
dessas primeiras pacientes nasce a técnica, também por uma delas nomeada de talking cure,
que viria a se tornar a psicanálise, a partir do momento em que Freud abre mão da hipnose
e passa a escutar a fala desimpedida das pacientes. Assim, dando vazão ao ritmo do dizer é
que terminava por irromper na cadeia de fala das pacientes – escutadas pelo psicanalista –
aquilo mesmo que, desde que submetido a uma escuta analítica, possibilitaria a cura. Tal
momento fundacional da psicanálise é referido pelo próprio Freud quando, em 1909, ao
ditar cinco conferências sobre psicanálise em solo norte-americano, conta esta história na
primeira delas. (Cf. Freud, 1909)
O outro modo de começar este trabalho seria dizer que Freud foi o responsável pela
constituição de uma disciplina que, anos depois, seria considerada como partícipe de um
metadiscurso, nos termos propostos por Lyotard (cf. Lyotard, 1979). O fato é que
certamente há um abismo entre falar que Freud se perguntou sobre o desejo e que foi o
partícipe da constituição de um novo metadiscurso; e o abismo fica mais bem desenhado
quando se explicita que há uma diferença entre o discurso universitário e o discurso da
psicanálise. Enunciar de ambas formas o surgimento da psicanálise tem o objetivo, nesta
página inicial, de fazer notar o deslocamento ocorrido em relação às ideias psicanalíticas:
da clínica à cultura, para dizê-lo de algum modo.
Há uma viagem espaço-temporal de tais ideias da qual procurarei dar conta em
alguns aspectos. Trata-se da chegada da psicanálise à América Latina, onde suas ideias
incidiram sobre a cultura e a reflexão que se faz tomando o continente como tema, ou como
lugar de um pensamento próprio.
É da suposição de que as ideias, inclusive as psicanalíticas, viajam, deslocam-se, e
são apropriadas de forma distinta em discursos diversos, que parte este trabalho. O
12
desterrar-se das ideias em geral, e das ideias psicanalíticas em particular, não se limita a seu
curso geográfico em torno ao globo; no caso da psicanálise, assistimos, ao longo do século
vinte, um deslocamento da clínica à etnografia, à sociologia, à literatura, ao teatro, ao
cinema, ao mercado, numa palavra, da clínica à cultura. Mas, há que se perguntar: A
questão fundadora da psicanálise – aquela que procura dar conta do desejo, e de dizer algo
do sofrimento humano – a incômoda pergunta que surge como razão de ser da psicanálise,
ao passar para o lado da cultura, manteve-se ou não a mesma?
Edward Said, ao tratar do que ele chamará de traveling theory, uma engenhoca
conceitual que permite acompanhar a metamorfose de uma ideia ou teoria, nos servirá para
rastrear aquilo que, tendo surgido no texto de Freud, volta a aparecer noutro texto, contexto
e lugar, a saber, os textos de alguns artistas, médicos e intelectuais da América Latina,
desde o final dos anos dez do século vinte. Ao propor este trajeto, termino por fazer – se
não uma história – um mapeamento da entrada dos textos de psicanálise no continente
nestes primeiros tempos, tratando de ver o que se transmite daquilo que fora pensado sobre
o sofrimento psíquico, o desejo e a clínica para o outro lado: trata-se de ver o que se passa
quando isso se torna objeto cultural, partilhável, seja sob a forma de teoria, seja como
objeto artístico. Dito de outra forma, de clínica do indizível pela fala a artefato partilhável
da cultura, o que passou de um lado a outro? Tal pergunta é guia que conduz para um
ponto cego, algo que poderá ser, quiçá, melhor falado ao final destas linhas. O que podem
falar sobre o desejo, à maneira da psicanálise, o teatro, a teoria, a literatura?
Não cabe, na hipótese que ordena este trabalho, qualquer purismo. A viagem das
ideias, seria possível dizer, é desejável, não fosse o fato de ela ser contingente. Há que se
dizer que o autor destas linhas se mantém numa posição que cabe aqui explicitar: ao
assumir como pressuposto a traveling theory de Said, partilho da hipótese de que a
psicanálise consiste num conjunto de ideias mais ou menos articuladas, o que equivaleria
dizer, um corpo de reflexão; e ao mesmo tempo, ao perguntar sobre o lugar da questão do
desejo na teoria, coloca-se em cena o que é da ordem propriamente da clínica psicanalítica.
A posição adotada, portanto, parte da especificidade de dois discursos, o universitário e o
da psicanálise, para ver como se dão as passagens de um lado a outro, sem ignorar que são
13
estruturalmente irredutíveis um ao outro. Assim, vale explicitar que é de ordem diversa o
que se postula na clínica e as várias derivações obtidas no campo da cultura.
Outro título deste trabalho poderia ser Freud e Lacan lidos por não-psicanalistas
latino-americanos. E parte-se aqui da hipótese de que nem sempre serão leituras estéreis.
Talvez seja ocioso dizer que não se pode partilhar aqui da noção de ideias fora do lugar
título do célebre artigo de Roberto Schwarz (1977) – porque o pressuposto destas linhas é
que primeiramente importa como um sujeito, em determinado lugar, pensa uma
determinada ideia, tornando-a outra, diversa e, paradoxalmente, afeita a seu entorno. Não se
parte, portanto, da noção de que uma ideia inapropriada causa um estrago, que uma ideia
pudesse chegar “antes da hora”, e sim que a ideia se molda ao meio, ao passo que o
transforma, ao também se transformar.
Cernido o lugar, América Latina, opta-se, por questões de exequibilidade do
trabalho, por um recorte ainda mais cirúrgico. Trata-se de duas das comarcas culturais do
continente
1
: Brasil e Caribe. Escolher duas regiões latino-americanas e nela alguns autores,
quando talvez bastasse uma região e um autor ou dois, ampara-se na possibilidade de
escrever de alguma forma a história desta chegada, ou esboçar dela um mapa; o histórico e
o geográfico não são desprovidos de interesse à medida que os autores estudados têm
incidências da psicanálise em contextos específicos e diversos como podem ser o
tratamento de pacientes na guerra da Argélia, a produção literária vanguardista na São
Paulo dos anos 20, a imprensa e o teatro carioca dos anos 50, a reflexão sobre a escravidão
dos negros caribenhos feita por um martinicano na França ao longo dos anos 50, e a
teorização estruturalista sobre o barroco hispânico escrita por um cubano auto-exilado na
Europa ao longo dos anos 60 e 70.
Tanto no caso brasileiro, quanto no caribenho, o momento do qual busco falar é o
dos primeiros tempos de uma chegada: o afluxo de uma primeira onda freudiana em São
1
O conceito de comarca cultural foi pensado por Ángel Rama ao debruçar-se sobre o continente latino-americano para
além de suas diferenças linguísticas imediatas, com o intuito de pensar em termo de unidade. Para Rama, as comarcas
seriam regiões nas quais “los elementos étnicos, la naturaleza, las formas espontáneas de la sociabilidad, las tradiciones de
la cultura popular convergen en parecidas formas de creación literaria” (Rama, 1970:211). Apesar de no contexto dos
anos setenta, em que tal teorização foi concebida, o objetivo fosse construir politicamente uma grande América, a grande
validade vigente de sua teorização é postular outras unidades no território que antecedem a descoberta dos europeus, o que
permite aproximações para além daquelas trazidas pelas fronteiras nacionais contemporâneas. Não que toda a América
fosse o mesmo, mas toda ela passa pelo processo de colonização européia, e posterior balcanização. Assim, partilhando
traços culturais comuns, proponho-me a ver como incide o pensamento analítico em duas das comarcas latino-americanas:
a brasileira e a caribenha.
14
Paulo, e seu primeiro refluxo no Rio de Janeiro anos depois, quando Freud não parecia
estar em voga no Brasil. Da mesma forma, no Caribe, os anos cinquenta e sessenta
representam, se não uma chegada, ao menos uma partida. Pois o afluxo das ideias de Lacan
nos caribenhos implica um deslocamento diverso. Regra geral, não são os livros que
chegam, mas caribenhos que partem; eis porque a segunda parte deste trabalho
sintomaticamente se denomina Conexão Paris-Caribe. Uma sorte de impermeabilidade
caribenha ao pensamento psicanalítico é que a faz estar presente nestas páginas, e logo, traz
de volta a França, tão importante na difusão paulistana dos anos vinte, para o centro da
cena.
Parte-se, na segunda parte do trabalho, com Frantz Fanon, psiquiatra nascido na
Martinica Francesa, que chega à França no período imediatamente anterior ao processo de
descolonização da África, já nos anos 60; na obra de Fanon se conjugam a reflexão teórica
e a clínica, marcadas pela pulsação do momento histórico.
Ato seguido, aborda-se o nunca chegar da psicanálise a Cuba, e perscruta-se as
particularidades da Ilha, como forma de analisar a incidência do pensamento analítico na
obra de autores que não são de forma alguma alheios ao pensamento cristão. Assim, serão
objeto de análise autores como José Lezama Lima, Virgilio Piñera, Reinaldo Arenas. Dada
a especificidade de sua obra, o capítulo final apresenta um desdobramento de tal
problemática na obra ensaística de Severo Sarduy, cubano em seu auto-exílio parisiense,
que publica ativamente na América Latina.
É a partir de tal multiplicidade que me proponho perguntar sobre a natureza da
relação destes intelectuais com as ideias de Freud e Lacan. O estabelecimento dos marcos
temporais (1918-1990) responde ao momento primeiro da chegada das ideias psicanalíticas
a São Paulo, com a fundação da cadeira de psiquiatria pelo médico paulista Francisco
Franco da Rocha, entusiasta das ideias de Freud, autor de artigos na grande imprensa sobre
o fundador da psicanálise, futuro autor de uma importante obra de divulgação científica e
que, paradoxalmente, jamais clinicará como psicanalista. O marco final deste recorte é a
escrita das memórias de Reinaldo Arenas, Antes que anochezca, no exílio, em Nova Iorque.
Este marco final coincide com a morte de dois dos autores cubanos analisados na parte
dois: além do próprio Arenas, que se suicida ao final de suas memórias, também Severo
15
Sarduy, cuja vida chegaria ao fim no ano de 1993. Este recorte temporal equivale a um
trajeto, do mais poroso – a São Paulo modernista dos anos vinte – ao mais impermeável – a
Cuba Castrista dos anos sessenta, onde a psicanálise que entrou não conseguiu ficar. Por
isso, além de porosa, a história das ideias analíticas no continente espraia-se para além dele,
e passa por Paris – onde sediou-se Sarduy – Nova Iorque – onde foi se abrigar Arenas. Ir
além do purismo geográfico, aceitar a nacionalidade como conceito poroso e movente, é
que permite, por exemplo, um encontro imprevisto entre as ideias de Frantz Fanon e
Gilberto Freyre num improvável debate na França, quando da tradução da obra do
brasileiro no mesmo ano da publicação de Les damnés de la terre, obra de Fanon onde a
questão do ódio racial está em primeiro plano.
Que Gilberto Freyre e Reinaldo Arenas não tenham lidado com a psicanálise é um
fato, embora Freyre tenha chegado a ler e comentar algo de Freud. Mas há que se dizer que
entre Franco da Rocha e Severo Sarduy, sem buscar de forma alguma a exaustão, surgem
alguns autores que serão pontos de força, como os dois citados, por encamparem discussões
que não são alheias às dos autores estudados; assim, no contraste, a posição deles afigura-se
como fundamental. Outros haverá ainda, que oferecem aos leitores alguns poucos textos
que tem papel de difusão importante e que, de alguma forma, antecipam formulações
psicanalíticas fundadoras, daí sua presença no trabalho.
Assim, no capítulo primeiro, que tem por cenário a São Paulo dos anos vinte, e o
grupo dos modernistas, por um lado, e a faculdade de Medicina de São Paulo, por outro, a
ênfase recai sobre Mário de Andrade, leitor atento, diligente, anotador dos seus seis
exemplares franceses da obra de Freud
2
em sua biblioteca pessoal. Entram ainda nesse
primeiro capítulo, na medida em que participam do debate freudiano, o já citado Francisco
Franco da Rocha, e o pensador cristão Tristão de Athayde, dois autores laterais, num
primeiro momento, mas que logo mostram sua importância no panorama de debates no
campo cultural.
2
Considera-se aqui que a imensa maioria dos latino-americanos leu Freud, nos primeiros tempos, a partir do final dos
anos dez, em traduções inicialmente francesas, e logo inglesas, para só então surgirem as primeiras versões hispânicas ou
em língua portuguesa. De forma que a tradução participa deste processo de viagem das ideias freudianas. Ao introduzir a
questão da leitura de traduções no caso específico de Mário de Andrade, mas também marginalmente nos demais autores,
revelo a pretensão de aportar algo à história das traduções freudianas, através de sua recepção no Brasil, embora este,
obviamente, não seja o objetivo principal deste trabalho.
16
O capítulo 2, ainda no Brasil, desloca-se para o Rio de Janeiro, a partir do anos
trinta, e quer dar conta do fenômeno da difusão da psicanálise por sua não-leitura. As ideias
vão se difundindo não mais pelas leituras diligentes de figuras como Mário de Andrade ou
Franco da Rocha, mas por uma certa diluição, vulgarização, que se mostra em sua entrada
massiva pela via da imprensa e da dramaturgia (seguindo uma tendência norte-americana
da época). A figura que norteia este capítulo é o dramaturgo, cronista e comentarista
esportivo Nelson Rodrigues, através de suas diversas menções aos psicanalistas e a Freud
em suas crônicas e peças teatrais. Mas para que se possa dar conta do fenômeno aludido,
comparecem figuras hoje menores ou desconhecidas como o dramaturgo Renato Vianna,
autor da precursora Sexo – peça de teatro com referências diretas a Freud, encenada em
1934; surge ainda o singularíssimo Gastão Pereira de Andrade, médico ao qual caberia nos
dias atuais a anacrônica pecha de marqueteiro, por seu papel de massificador da psicanálise,
numa atuação que poderia ser exemplificada pela interpretação – freudiana – de sonhos,
através das páginas de um magazine.
O capítulo 3 representa uma mudança de rumo no trabalho. Pois a recepção da obra
freudiana e as incidências da mesma não se deram sempre da mesma maneira, por uma
“correta” leitura. De sorte que o capítulo terceiro consiste em, após ter considerado a que a
incidência de Freud em Nelson Rodrigues não se dá por via da leitura, qualificar a relação
entre a obra do dramaturgo e cronista e a psicanálise. Parto da hipótese que o diálogo entre
Nelson Rodrigues e o pensamento analítico ultrapassa em muito as menções satíricas e a
macaqueação da vulgata psicanalítica; para tanto, a obra de Renato Vianna e a de Gastão
Pereira de Andrade teriam sido suficientes. Certamente Nelson Rodrigues insere-se na
tradição psicanalítica, não só pelas diversas menções satíricas aos analistas em peças como
Viúva, porém honesta, ou em diversas crônicas. Há mais.
É quando lanço mão de uma hipótese forte para a leitura do dramaturgo, a qual, vai
buscar a natureza da relação noutra parte, através da aproximação do teatro de Nelson
Rodrigues com o teatro lido por Freud ou, mais precisamente, procurar no teatro de Nelson
Rodrigues o que Freud e Lacan buscaram no teatro para o exercício analítico. Com isso,
procuro mostrar como esta aproximação da obra dramatúrgica de Nelson Rodrigues com a
psicanálise dá-se não somente pela via da difusão da vulgata e da sátira – o que a tornaria
mero pastiche – mas também por uma via que a poderia qualificar de teatro psicanalítico,
17
não no sentido em que a obra de Mário de Andrade seria psicanalítica, e sim no preciso
sentido de que o seriam a obra de Sófocles e a de Shakespeare.
Estabelecer tal relação entre Nelson Rodrigues e a psicanálise não significa fincar
raízes no campo da livre interpretação, antes propor uma leitura do que sejam as relações
que a psicanálise freudiana (e logo lacaniana, pois não são a mesma) estabelece com a
literatura. Antes de ser a resposta à pergunta: como se lê literatura a partir da psicanálise,
tal incursão quer ser a pergunta como a psicanálise leu a literatura. Entretanto, tal
indagação leva – retroativamente – a uma pergunta sobre o capítulo primeiro, que poderia
ser traduzida por como se escreve literatura a partir da psicanálise, a qual, obviamente,
recai sobre a obra de Mário de Andrade, escrita a partir de leituras atentas de Freud.
Com isso, estou dizendo que este trabalho, para além de uma cronologia, busca
também uma topologia. Pois parto do princípio que encadear nomes e obras que trazem
rastros de Freud ou Lacan seria reduzir o que é clínica à teoria, e reduzir a influência a uma
relação mecanicista de incidência direta. Para poder responder a isto que questiono já nas
primeiras linhas da introdução – o que passa da clínica à cultura pela escrita literária ou
ensaística – é preciso interrogar o trajeto particular dos autores trabalhados. O exercício de
literatura comparada mostra então sua produtividade, ao nos permitir colocar em contraste
Mário de Andrade e Nelson Rodrigues, qualificando dois projetos distintos de escrita que
permitem que nos interroguemos sobre as vicissitudes da relação entre literatura e
psicanálise. E, para isso, ter exposto a presença da psicanálise na obra de cada um terá sido
fundamental para qualificar este movimento na escrita de ambos.
Daí é que após um mapeamento espacial e cronológico – que poderia ser história e
mapa, e que tem lugar nos dois primeiros capítulos –, a partir do capítulo terceiro é possível
pensar nos textos de Freud e Lacan, agora não mais como matrizes das quais se rastreia as
marcas, mas como um pensamento rico que pode iluminar a posição dos dois autores em
relação àquilo mesmo de que se ocupa a psicanálise: o desejo.
De forma que a primeira parte do trabalho encerra-se com algumas hipóteses sobre
as relações entre literatura e psicanálise, a partir das obras de Nelson Rodrigues e Mário de
Andrade. Se bem sucedida, tal parcela do trabalho terá dado conta de escrever, em traços
gerais, a crônica da chegada da psicanálise ao eixo Rio-São Paulo na primeira metade do
18
século vinte; analisar sucintamente um pouco da influência que o pensamento psicanalítico
exerce na cultura paulistana e carioca, através de livros e revistas publicados na época;
aferir como se dá a passagem do que é do campo da psicanálise para o campo da literatura;
discutir as relações entre psicanálise e literatura a partir de dois escritores canônicos: Mário
de Andrade, assíduo leitor freudiano, e Nelson Rodrigues, que não leu Freud. Eis as
focalizações da quais tal seção do trabalho terá pretendido dar conta.
Na segunda parte do trabalho, quando o olhar volta suas atenções ao Caribe, são
feitas duas escalas insulares: uma na Martinica e outra em Cuba. Nota-se, logo num
sobrevoo, uma certa impermeabilidade às ideais psicanalíticas envolvendo as ilhas
caribenhas no correr do século vinte. Por outro lado, como já antecipei acima, é notório o
movimento distinto: agora não são mais os livros que migram aos imóveis Mário de
Andrade e Nelson Rodrigues – que, ao que consta, jamais abandonaram o solo brasileiro
3
os migrantes agora são, em sua maioria, os artistas. A figuras de Mário de Andrade e
Nelson Rodrigues mostram-se seu caráter de imobilidade, se contrapostas aos irrequietos
Frantz Fanon, Severo Sarduy e, em menor medida, Virgilio Piñera e Reinaldo Arenas.
Assim, nos anos cinquenta, não há propriamente uma entrada do pensamento Lacan
em nenhuma das ilhas caribenhas, o oposto é que é vale: o Caribe vai a Lacan. Tal
movimento inovador não será sem conseqüências, nos termos que propus neste trabalho:
pois tal relação implicará uma inscrição de vanguarda por parte de alguns pensadores
latinoamericanos nas ideias psicanalíticas, a qual parte já da releitura que Lacan faz de
Freud em seus seminários e em seus Écrits. Entretanto, diferentemente do que terá sido
mostrado do caso brasileiro, não só não entra no Caribe nesses primeiros tempos uma
clínica freudiana, como sequer uma clínica lacaniana.
A parte dois, portanto, inicia-se pela pequena ilha da Martinica, na qual se destaca
uma figura singular, que poderia causar espécie, pois muitas vezes sequer se emparelha a
Martinica como parte da América Latina. Mais do que fazer a apologia do seu
pertencimento, o que interessa é fazer notar o leitor que embora o processo de colonização
e de descolonização, a língua falada sejam diversos das porções lusitanas e hispânicas da
América Latina, é importante refletir sobre os possíveis diálogos que permite a articulação
3
Excetuando-se as incursões de Mário de Andrade às fronteiras amazônicas, documentadas em seu O turista aprendiz.
19
dessa banda francófona ao restante do território latinoamericano. Por mais que as
diferenças linguísticas e históricas sejam notáveis, as semelhanças existentes justificam a
aproximação e – até pelo contraste – iluminam alguns pontos.
A figura a ser tratada, como disse, é Frantz Fanon. De todos os autores analisados
ao longo destas páginas, Frantz Fanon é o único que passou por um processo de formação
institucional clínica (foi médico com especialização em psiquiatria), e que realmente
clinicou; havendo produzido, além do mais, uma reflexão sobre a clínica. Assim, Fanon
apresenta-se como um ponto de inflexão neste trabalho. Trata-se de um primeiro momento
em que, no trajeto proposto, teve-se como ponto de partida a clínica do desejo e proposto
como ponto de chegada a escrita da clínica. Fanon é um autor que se debruçou sobre
ambas questões ao longo de sua obra, pois há em seus livros tanto uma pergunta sobre o
desejo quanto uma articulação do pensamento analítico com vistas à reflexão social;
comparecem portanto, de maneira nem sempre harmônica, clínica e ensaio antropológico
na escrita de Fanon. Além do mais, no marco da pergunta fundadora de Freud – Was will
das weib? – a reelaboração proposta por Fanon nas primeiras páginas de seu primeiro livro
é Que veut l´homme noir?, O que quer o homem negro? O desejo do negro, portanto, é a
chave a partir da qual se poderá discutir o pensamento de Fanon.
Servindo de uma sorte de contraponto brasileiro, proponho, ao final do capítulo,
uma breve articulação entre o pensamento de Fanon acerca do negro, ao de Gilberto Freyre.
Freyre serve a esta reflexão na medida em que seu Casa Grande & Senzala é publicado em
francês no mesmo ano de publicação Les damnés de la terre, de Frantz Fanon, criando no
ambiente cultural francês um debate entre ambos autores não acontecido em terras
americanas. E ainda, um rápido cotejo com a peça Anjo Negro, de Nelson Rodrigues, que
não é alheia à problemática do negro, e tampouco à reflexão de Gilberto Freyre.
O capítulo 5 parte para a Ilha de Cuba. E ressalta uma forte intervenção estatal
naquilo que é da ordem da clínica na Ilha. A história recente de Cuba é a história de gestos
oficiais de Fidel Castro regulamentando uma política psiquiátrica. Como se sabe, as ideias
não entram nem saem por decreto, mas pensar no papel do governo cubano é fundamental
para refletir sobre o que é da ordem da psicanálise em Cuba. Além disso, como já
antecipado acima, um novo elemento é acrescentado na análise, a forte herança católica
20
presente na Ilha, outro entrave à circulação das ideias psicanalíticas. Totalitarismo e
catolicismo não são certamente condições propícias para o pensamento psicanalítico. É
nesse ambiente hostil que, à maneira do que é realizado no capítulo primeiro quanto à
entrada da reflexão sobre a psicanálise nas revistas culturais, será feita uma varredura em
busca de vestígios de Freud nas revistas culturais cubanas. Para logo encontrarmos nos
textos das revistas psiquiátricas, já sob o regime de Fidel, as fortes tentativas de
apagamento da mínima presença de uma clínica freudiana na Ilha. Aí comparecem José
Lezama Lima e Virgilio Piñera, dois dos escritores que de alguma maneira encenam as
tensas relações com a obra de vienense em Cuba. Na geração seguinte, analiso brevemente
a obra de Reinaldo Arenas, tomando-a como uma singular apreensão entre o político e o
sexual no ambiente católico e repressivo da Ilha.
E é então necessário, de modo semelhante ao que já ocorrera nos dois capítulos
sobre o Rio de Janeiro, estabelecer um corte, legando o capítulo final da tese à obra de
Severo Sarduy. As muitas peculiaridades do cubano obrigam a que sua obra seja – mesmo
que brevemente – analisada numa seção à parte. Contemporâneo de Reinaldo Arenas,
Sarduy sai de Cuba ainda jovem, e escreve a quase totalidade de sua obra em território
francês. Assim, por essa contingência histórica, poder-se-ia considerar sua produção crítica
e literária como sendo francesa, e não cubana. Pois é fato que Sarduy encontra entre seus
pares parisienses uma companhia intelectual e pessoal para levar a cabo sua produção
artística e suas reflexões – pois publica seus livros em francês pela Seuil, a cargo de seu
namorado François Wahl, filósofo e editor dos Écrits, de Lacan. Mas também é fato que, ao
mesmo tempo, faz pleitos diversos para garantir que sua obra circule também na América
Latina, em língua espanhola. Sirvam-nos dois exemplos: Sarduy conta em um de seus
muitos escritos autobiográficos que após a recusa por parte de Carlos Barral – editor da
Seix Barral – em publicar De dónde son los cantantes, segundo romance de Sarduy, escrito
em 1967, o crítico e embaixador latino-americano pelo mundo das Letras Emir Rodríguez
Monegal “invita a dos editores a tomar um trago en su casa (Díez Canedo y Benito Milla);
se trata de una encerrona: los dos salen decididos a publicarme. De dónde aparece pues en
México y antes en Francia” (Sarduy, 1975 apud 1999:8).
Nota-se, nesta breve história editorial, o empenho em inscrever-se na literatura
latinoamericana. Poucos anos depois, em 1972, Sarduy apresenta as conclusões de seu livro
21
cosmogônico em preparação Barroco (Buenos Aires, Sudamericana, 1974) para o livro
América Latina en su literatura, um volume de uma série que – publicada sob os auspícios
da UNESCO – procurava mapear a produção cultural do continente. Neste volume
continental seu ensaio se chamava “Barroco y neobarroco”. O caso do ensaio “Barroco y
neobarroco” é fundamental pois nele, fazendo uso de uma teorização europeia em sua
grande maioria – Kepler, Freud, Lacan, Barthes etc – toma como objeto o Barroco, em sua
versão hispânica, e nele inscreve não apenas sua própria literatura (o neobarroco dele
mesmo e de seu conterrâneo e mestre José Lezama Lima), como a política cubana
(“Barroco de la revolución.” É a frase que fecha o artigo) Uma voz poderia erguer-se e
dizer que, nesse caso, a produção de Sarduy é francesa, não latinoamericana; entretanto é
preciso que se leve em conta que se Sarduy encontra entre seus pares parisienses a
companhia ideal para sua produção artística e suas reflexões – pois publica seus livros em
francês pela Seuil, a cargo de seu namorado Wahl – ao mesmo tempo faz pleitos para
garantir que sua obra circule também na América Latina.
Assim, é preciso levar em conta o movimento de Sarduy em direção à psicanálise
lacaniana (e ao estruturalismo de maneira mais ampla) na França, ao mesmo tempo em que
sua herança cubana mantém-se ativa – de maneira tensa e paradoxal – ao longo de sua
produção ensaística.
Emparelhar Severo Sarduy a Mário de Andrade, Nelson Rodrigues e Frantz Fanon
serve-nos ainda para marcar a diversidade do que poderia ser qualificado como o estar na
psicanálise de cada um deles. Lerei os ensaios de Sarduy a partir da perspectiva de uma
poética do exílio, a qual, a meu ver, perpassa toda a obra do poeta. Qual a composição
possível entre Lezama Lima e Lacan, Fidel Castro e nomes como Philippe Sollers, François
Wahl e Roland Barthes, na obra de Sarduy? E, finalmente, qual a articulação possível sobre
o desejo em sua obra?
Assim, para finalizar esta introdução, seria possível explicitar uma outra focalização
que perpassa a feitura deste trabalho e a escolha dos autores analisados, para além dos
marcos históricos e geográficos já estabelecidos. Trata-se de explicitar que, como que em
ritornello, a pergunta sobre o desejo encontra formulações específicas ao longo das quatro
unidades propostas. Assim, no capítulo 1 está-se com a psicanálise em Mário de Andrade,
22
com uma obra que encena os postulados freudianos no âmbito do lar burguês. Em Nelson
Rodrigues, trata-se do desejo feminino. Em Fanon, do negro. Entre Arenas e Sarduy, a
questão pode ser lida em dois níveis: no nível da repressão estatal, e no nível de uma vazão
ao desejo do homossexual. Tal seria outro ordenamento possível do mapa proposto.
Como veremos, ao longo das páginas que seguem, a coisa se complexifica. Mais
que postular uma resposta a cada uma das perguntas ouvidas, cabe ver como se sustenta (ou
não) o desejo na escrita. Escutar as vozes, atentar às escritas e ao que elas detonam é o
objetivo das páginas a seguir.
23
1. PARTE 1: SÃO PAULO E RIO DE JANEIRO (1918-1974)
Ahora no pasa un tigre sino su descripción.
Virgilio Piñera, “La isla en peso” (1943)
1.1. Mário de Andrade, leitor exemplar, seguindo passo a passo a doutrina freudiana
Mentor intelectual do movimento modernista, leitor onívoro, generoso na produção
de anotações de leitura em seus livros, sua biblioteca tem sido fonte de sedução aos
pesquisadores em geral, tendo dado ensejo às mais diversas abordagens de suas leituras
4
. A
farta marginalia e o pioneirismo de algumas leituras têm sido motivo suficiente para torná-
lo o iniciador – em amplo sentido – de algumas leituras e reflexões no Brasil.
O mesmo ocorre, no caso de Mário de Andrade, em relação à psicanálise. Leitor
contumaz de Freud, além de alguns psicólogos, a sua obra visível traz indícios destas
leituras. Os pesquisadores de sua biblioteca pessoal já se debruçaram sobre o tema desde o
fim dos anos sessenta (Nite Ferres, 1969; Tele Porto Ancona Lopez, 1972), num esforço de
documentação digno de mérito. Tal relação tem sido de tempos em tempos revista (Lara,
1972; Riaviz, 2003). Também do lado da psicanálise, tal história já foi contada, bem
recentemente, por Carmem Lucia Montechi Valladares de Oliveira (2006), que trata não só
de Mário de Andrade, mas do conjunto dos modernistas paulistanos, influenciados que
foram pelas ideias da psicanálise.
Os modos como tem sido abordada esta relação, seja entre modernistas e os textos
de Freud, seja especificamente no caso de Mário de Andrade, tendem a pensar nos poetas,
mais do que como produtores de literatura, como intelectuais. Alfredo Bosi, em sua
História Concisa da Literatura Brasileira, ao falar da leitura das leituras dos antropófagos
modernistas, refere-se a um “Freud equívoco e mal deglutido” (Bosi, 2007:343), e ainda
referindo-se aos açodados deglutidores, refere-se a um efeito de entropia, no qual há
4
Estão devidamente rastreadas suas leituras dos franceses (Nite Ferres, 1969; Ancona Lopez, 1972); hispânicos (Antelo,
1986); argentinos (Rodríguez Monegal, 1978, Artundo, 2004), e assim por diante.
24
uma perda de conteúdos semânticos do emissor para o receptor da informação. Este,
faminto de novidade, não digere bem as mensagens: apanha-as lacunosamente e, como age
em situação de emergência teorizadora, deforma e enrijece os fragmentos recebidos.
(Bosi, 2007:384)
Certamente, trata-se tão somente de um fragmento de uma história literária, que de
modo algum está à altura da reflexão de Alfredo Bosi. Entretanto, tal fragmento parece
eficaz no que ajuda a captar certa apreensão do modernismo brasileiro pela crítica de
esquerda da segunda metade do século vinte, que o enquadra no que o próprio Bosi dá a ver
em sua eloquente imagem: “as palavras de ordem de 22 parecem fogachos de adolescente”
(op. cit., p.383), em oposição à compreensão viril do social, privilégio dos escritores da
geração posterior a 1930 (cf. op. cit., p.384). No caso específico de Mário de Andrade, Bosi
não chega a qualificar as suas leituras de Freud. Seu juízo geral, em relação à psicanálise e
o modernismo, é o que resume com a seguinte frase lapidar: “o desrecalque psicológico
‘freudiano-surrealista’ ou ‘freudiano-expressionista’ [...] também chegou até nós com as
águas do Modernismo” (Bosi, 2007:385) A partir disso, entendemos que, para Bosi, o papel
do Modernismo é o de introdutor das novas ideias, por um grupo de adolescentes bem
nascidos, mas nem sempre com grande rigor. Segundo ele entende, o amadurecimento
tardaria a chegar.
Tele Porto Ancona Lopez (1972) parece filiar-se à leitura de Bosi, ao partir do
pressuposto de que a psicanálise e as demais novas ideias tenham sofrido uma “síntese
eclética de periferia” por parte de Mário de Andrade (Ancona Lopez, 1972:109). Nesse
sentido, ela chega a ecoar expressão de Bosi na mesma obra “teorização eclética de Mário”
(Bosi, 2007:348), quando se refere ao “Prefácio Interessantíssimo” e à Paulicea
Desvairada (1922).
Entre os historiadores da psicanálise, Carmem Lucia Oliveira apresenta uma
abordagem diversa. Se por um lado ela livra os modernistas da necessidade do rigor teórico
ou do compromisso social, por outro, fala em “apropriação livre de alguns dos conceitos
freudianos sem nenhuma filiação ou preocupação teórica” (Oliveira, 2006:66). Ou seja,
nota-se um certo tom de cobrança quanto ao “desrespeito” à teoria freudiana.
Entretanto, da mesma maneira, os estudiosos do tema parecem coincidir em que a
obra de Freud teve papel importante na formação intelectual do jovem Mário de Andrade.
Nites Feres (1969), ao comentar a marginalia de Mário de Andrade nos exemplares de
25
psicanálise e em algumas traduções francesas de Freud, constantes de sua biblioteca, diz
que:
No campo da psicologia científica, os volumes em língua francesa documentarão, com
suas notas, os problemas que mais chamaram a atenção do leitor. Eles levantam, também,
a hipótese de que o interesse por esta ciência não foi um elemento secundário na formação
do pensamento de Mário de Andrade (Feres, 1969:55)
Antonio Candido (1969), ao prefaciar a obra acima, faz coro à hipótese da autora, e
afirma que: “a obra de Freud, [é] decisiva, a certa altura, para configurar a maturidade do
seu pensamento [de Mário de Andrade]” (Candido, 1969:6).
Poucos anos depois, ainda na empolgação da recente descoberta da biblioteca de
Mário de Andrade, Lara (1972) afirma cabalmente que é em “Freud e Bergson que o
Modernismo se fundamentará.” (Lara, 1972: 215 apud Oliveira, 2006)
Ambas as classes de afirmações – (a) Freud é fundamental para o pensamento e
Mário e, conseqüentemente, para o movimento modernista, (b) Mário de Andrade e os
modernistas leram mal a psicanálise – parecem caminhar paralelamente, e nos pedem um
instante de reflexão. Para além da percepção de certa incidência do pensamento
psicanalítico sobre um escritor ou grupo de escritores (a), a segunda afirmação parece trazer
em seu seio uma certa noção de leitura que precisa ser melhor interrogada. Qual é a
hipótese da boa leitura que se postula no caso de Mário de Andrade?
Ao propor escrever uma história da psicanálise em São Paulo, Oliveira mostra o que
ela chama de “difusão do pensamento psicanalítico”, no caso dos modernistas paulistanos.
Nota-se que o pensamento psicanalítico incide sobre os modernistas. Mas entre a incidência
e a difusão parecem frustrar-se certas expectativas de quem, a posteriori, relê estes
acontecimentos, ao afirmarem que os modernistas leram mal. É preciso retomar algo: entre
o que incide e o que se difunde, o modernismo constitui-se, e não como algo transparente; o
grau de opacidade do movimento modernista é que permite uma difração [do latim
diffringere, ‘quebrar em pedaços’] do pensamento freudiano.
Do ponto de vista deste trabalho, são justamente a opacidade e a difração que
justificam o estudo. Pois é de um lugar espefico – o do escritor – de um modo específico
– através de traduções francesas – que Mário de Andrade lê. O lugar do leitor não é sem
importância. O destino das palavras francesas de Freud na obra de Mário de Andrade
tampouco o são. Ainda mais quando se considera que, no caso do autor paulistano, trata-se
26
de uma incidência sobre sua escrita literária, e sobre suas reflexões quanto à escrita
literária. Ou, se não, seria o caso de se perguntar, se fosse Mário de Andrade o leitor correto
que parte da crítica supracitada parece idealizar, o que teria sido sua obra, senão um
compilação de postulados freudianos?
Portanto, sequer postulo o que seria uma suposta ‘leitura correta’, e descarto-a, por
idealizadora. Opto, isso sim, no caso de Mário de Andrade, por aquilo que Harold Bloom
(1973) chamou de ‘leitura forte’, ou desleitura [misreading], isto é, uma leitura que desloca
o original
5
, que o recria. Numa perspectiva mais afim a este trabalho, Edward Said (1983)
urde sua traveling theory, hipótese a partir da qual as ideias e teorias viajam, e ao fazê-lo,
deslocam-se, desterram-se, finalmente tornando-se outras.
Trazer ambas as referências, a noção de misreading de Bloom (1973)
6
e a traveling
theory de Said (1983), tem neste trabalho a importância de mostrar não somente o viajar do
pensamento e, neste caso específico, o viajar de um pensamento europeu à América, como
também a tensão e o alcance do que é ler a partir da literatura.
Pois se já constitui grande interesse neste primeiro momento reconstruir a chegada
do pensamento freudiano a São Paulo, ao longo dos anos vinte, sobremaneira na obra do
modernista Mário de Andrade – mas também na obra dos médicos Franco da Rocha e
Durval Marcondes – eu o faço aqui considerando que em todos eles, escritores de literatura
ou não, o pensamento psicanalítico deixou marcas na escrita. Entretanto, no caso daqueles
que são propriamente escritores – e principalmente no caso de Mário de Andrade – a
psicanálise deixou marcas que não são somente a referência ao nome próprio de Freud,
como também uma miríade de conceitos retrabalhados no campo poético, uma colocação
em cena (através da narrativa literária) de situações freudianas, enfim, uma incidência no
plano da forma e dos conteúdos.
Eis a hipótese mobilizada no caso de Mário de Andrade: o pensamento freudiano
deposita-se em sua forma literária, em seu modo de narrar e na sua escolha de temas. Na
literatura, pensa-se pela forma. Já o demonstrou claramente a literatura engajada – seja de
esquerda ou direita – que veicular ideias pelo conteúdo meramente não é propriamente
pensar, antes propagandear.
5
A noção de ‘original’, no caso do Freud francês, será discutida adiante.
6
O que interessa trazer de Harold Bloom (1973) é tão somente o seu termo misreading [desleitura], e não toda sua teoria
da influência. Trata-se de enfatizar como a apropriação por Mário de Andrade de algumas ideias de Freud é produtiva em
sua obra e responsável – em grande medida – pela singularidade dela.
27
Portanto, no cruzamento entre a “síntese eclética de periferia” e “o caráter
formador”, defendo que Mário de Andrade, poeta, deslê (misread) Freud, e se apropria
poeticamente dele, transformando-o em outra coisa ao reescrevê-lo em seu próprio campo.
Assim, para além da marginalia indicada por Feres (e da revelação da efetiva leitura nos
rabiscos do autor em seu livro já amarelado), e do que explicitamente diz Mário de Andrade
em seus manifestos, temos a sua literatura.
A discussão sobre o fazer poético, pensado a partir de suas primeiras leituras
psicanalíticas, nos interessará sobremodo, como é o caso de A escrava que não é Isaura
(1923). Mas é preciso que nos debrucemos sobre a obra narrativa em prosa, como Amar,
Verbo intransitivo (1924) e Contos Novos (1947)
7
, como forma de ver a ação de um
pensamento forte em uma escrita forte.
1.1.1. Docteur Freud aporta em São Paulo, anos vinte
A chegada física de Freud às Américas, sabe-se, deu-se pela América do Norte, para
uma série de cinco conferências na Clark University, em 1909. Acompanharam ao
psicanalista vienense seus então discípulos Jung, Adler e Ferenczi. Jung conta que, ao
chegarem, disseram entre si “Eles não sabem que lhes estamos trazendo a peste”.
Certamente a chegada de Freud aos EUA foi tremendamente impactante, tanto por haver
preparado terreno para a chegada do pensamento psicanalítico naquelas terras – o que
fisicamente ocorreu com a diáspora dos psicanalistas judeus à América do Norte durante a
Primeira Grande Guerra – como por gerar um volume introdutório sobre a psicanálise, que
7
Contos Novos é uma publicação póstuma de 1947. Entretanto, a gênese de alguns destes contos remontam aos anos
vinte. Maria Célia de Almeida Paulillo aponta que “Como o autor fez questão de anotar no final de cada narrativa [de
Contos Novos], o livro é fruto de um minucioso processo de elaboração artesanal que compreende várias versões de um
mesmo texto e se estende por períodos de tempo que vão de quatro até dezoito anos de preparação... Este é o caso de
“Frederico Paciência”, cuja gestação criativa evolui de 1924 até 1942.” (Paulillo, 1983:9). Assim, contrariamente ao que
se costuma dizer (cf. Oliveira, 2006) sobre o interesse de Mário de Andrade pela psicanálise ter-se limitado aos anos vinte,
sustento – baseado no trabalho constante sobre esses Contos Novos – que de alguma forma é preciso considerar a
incidência do pensamento psicanalítico sobre suas inquietações de escritor para a maturidade. Inclusive a sua
correspondência é outro índice destas inquietações. Por exemplo, o conto “Vestida de negro”, segundo o amigo do
escritor, Moacir Werneck de Castro (1989), foi iniciado durante o exílio de Mário de Andrade no Rio em 1938; neste
conto lê-se o seguinte: “jamais sofri de Complexo de Édipo. Toda a minha vida, mamãe e eu fomos muito amigos, sem
nada de amores perigosos”. Em uma carta a Paulo Duarte, aborda o mesmo tema: “Bom, às vezes sinto que a única
salvação é voltar para São Paulo de uma vez. Lá tenho minha mãe, que de longe não é suficientemente forte para vencer
meus desesperos. Antes os aumenta, pela própria ausência dela, que não posso suportar. Complexo de Édipo, que
estupidade! Muito eu tenho analisado em mim o meu amor por minha Mãe, que coisa admirável, que você está em boas
condições de compreender.” (Mário de Andrade apud Castro, 1989:87). Sem levar adiante a leitura do conto e da carta de
Mário de Andrade, é preciso admitir que seu interesse pela psicanálise ultrapassa, em muito, o espectro dos anos vinte.
28
se tornou a referência primeira sobre a psicanálise, ao ser traduzido para diversos idiomas
8
.
Refiro-me en passant a este acontecimento pelos efeitos que o mesmo produziu, pois não
interessa contar de fato esta história, e sim outra que teve lugar mais ao sul, na chamada
América Latina. Baste-nos portanto, a imagem dos efeitos da chegada de Freud e os seus
discípulos: o livro traduzido em diversos países e, mais tarde, nestes mesmos Estados
Unidos. E a peste assimilada.
Já a chegada do pensamento freudiano ao Brasil foi muito menos espalhafatosa, mas
igualmente impactante, embora com conseqüências bem diversas. Talvez se pudesse falar
em uma entrada errática, lenta, sutil, insidiosa até, mais afeita à imagem do câncer que a da
peste, para manter o campo semântico das metáforas médicas. E o Freud que nos chega
vem por outra rota, não via Viena, e tampouco em alemão, e sim pelas primeiras traduções
francesas. Assim, quem aporta em São Paulo, no final dos anos 10, com quase dez anos de
atraso em relação aos Estados Unidos, é o Dr. Sigm. Freud, professeur a la faculté de
médecine de Vienne, como nos é apresentado na maioria nos volumes em oitavo da
Bibliothèque Scientifique, da Editora Payot.
Abra-se aqui um parênteses para falar sobre estes originais. Há pouco eu me referia
às desleituras de Mário de Andrade. Será preciso considerar que Mário lê um Freud em
língua francesa, que difere – como a crítica tem sofrido para fazer ver ao longo do século –
do de língua alemã, do argentino, do espanhol, daquele de Stratchey, da versão brasileira,
das primeiras traduções franceses retrabalhadas e posteriormente retraduzidas.
Assim, será preciso caracterizar minimamente nosso Docteur Freud, levando em
consideração os exemplares lidos por Mário de Andrade, para que seja possível ver a
incidência deste proto-franco-vienense sobre o poeta paulistano. Além disso, será preciso
qualificar sua entrada em terras brasileiras, a qual foi livresca, ou seja, indissociável do
mundo intelectual – não necessariamente da área médica –, das revistas culturais e inclusive
da literatura.
E como esse Freud fez escala em Paris, tardou um pouco mais a chegar. Os
exemplares constantes na biblioteca pessoal de Mário de Andrade, anotados, foram
8
Trata-se do volume Über Psychoanalyse, que ficou conhecido em português como Cinco lições de psicanálise. A
difusão deste volume é tal que acabou servindo inclusive de base para a feitura do filme de John Huston, Freud (Freud,
além da alma, em português), de 1962.
29
editados entre 1922 e 1925, e recolhem os trabalhos freudianos das duas primeiras décadas
do século vinte. Nites Ferres (1969) indica a existência dos seguintes exemplares no acervo
do autor:
Livros do Docteur Freud na biblioteca de Mário de Andrade
Título Publicação
em alemão
Edição em
francês
Cinq Leçons sur la Psychanalyse. (Trad. Ives de Lay). Paris:
Payot.
1910 1924
Essays de Psychanalyse. (Trad. Samuel Jankélévitch). Paris:
Payot.
-------- 1927
La Psychopathologie de la vie cothidienne. (Trad. Samuel
Jankélévitch). Paris: Payot.
1901 1922
Introduction a la Psychanalyse. (Trad. Samuel Jankélévitch).
Paris: Payot.
1917 1927
Trois essais sur la théorie de la sexualité. (Trad. B. Reverchon).
Paris: Éditions de la Nouvelle Revue Française.
1905 1923, 12ª
edição
Totem et tabou. Paris: Payot. 1912 1925
Entretanto, o conhecimento de Mário de Andrade da obra de Freud é anterior a 1922,
posto que seu primeiro livro de poemas modernistas, Paulicea desvairada, publicado em
1922,
9
refere-se a Freud no “Prefácio Interessantíssimo”. Seria preciso retroceder o
conhecimento de Freud àqueles anos, mesmo sem que o poeta tivesse tido ainda contato
direto com a obra do vienense.
1.1.2. Freud na imprensa paulistana: Dr. Franco da Rocha
Foi precisamente em 1919 que começam a surgir na imprensa cultural paulistana
referências a Freud. O marco deste surgimento é médico. Oliveira, em sua História da
Psicanálise em São Paulo (2006), aponta que o primeiro artigo sobre psicanálise publicado
em São Paulo coincide com a fundação da cadeira de Clínica Psychiatrica e Doenças
Nervosas da Faculdade de Medicina de São Paulo, no início do ano letivo de 1919, a qual
9
O livro foi escrito, conforme a folha de rosto, entre dezembro de 1920 e dezembro de 1921.
30
fica a cargo do médico Franco da Rocha (1864-1933), que contava então 54 anos de idade.
O artigo de Franco da Rocha, ainda conforme Oliveira, intitula-se “Do delírio geral”, e
trazia referências a Freud, tendo sido publicado no Estado de São Paulo, em março de 1919
(op. cit, 2006:62).
O que nos interessa ressaltar é que, contemporaneamente a tal inauguração, o Dr.
Franco da Rocha passa a colaborar com certa regularidade na Revista do Brasil, a qual, se
existia já desde 1916, fundada por Julio de Mesquita do grupo O Estado de São Paulo,
havia sido comprada há pouco por Monteiro Lobato, em junho de 1918, o qual passara a ser
seu diretor a partir do número 30. Com a chegada de Lobato, a Revista do Brasil tem sua
tiragem aumentada, sua circulação ampliada, e sua sede torna-se, além de tudo, um local de
encontros e tertúlias (Cf. Ribeiro, 2008). Assim, coincide com o momento de florescimento
da Revista do Brasil, o início da colaboração do Dr. Franco da Rocha que, apenas um mês
depois da publicação seu artigo n’O Estado de São Paulo, republica-o na seção Rezenha do
mez, da Revista do Brasil, agora sob o título “Psychiatria” (título provavelmente atribuído
pelo editor)
10
.
Nesse artigo, o nome de Freud vem como de segunda menção, pois o foco é a obra de
um discípulo seu, Wilhelm Stekel (1868-1940); e vale ressaltar que a obra de Stekel é
referida em alemão pelo médico brasileiro: Die Traume [sic] der Dichter [1912]. Franco da
Rocha não faz nenhuma citação direta de Freud e comenta, através de aproximações de
filosofia (Taine, Schiller), e literatura (Poe, Dostoievski, Goethe), a doutrina dos sonhos de
Stekel, sobre a qual diz que “O onirócrita tem diante de si muitas causas de erro; para evitá-
las faz-se mister muito bom senso, muito estudo e atenção”
11
(p.498). Então passa a
analisar o que é o inconsciente e o que é o subconsciente; estabelece uma topologia, e diz
que no sonho “o inconsciente sobe para o lugar do consciente” (p.498). O restante do artigo
é dedicado às aproximações perpetradas por Stekel entre “o criminoso, o nevrotico e o
10
Vale dizer que o alcance de tais artigos na Revista do Brasil é bastante amplo. Veja-se, por exemplo, esta nota do diário
de juventude de Gilberto Freyre, quando o autor estava em Nova Iorque, em 1922: “Já por mais de uma vez me referi, em
artigos para o Diário de Pernambuco, que a Revista do Brasil, de Monteiro Lobato, vem transcrevendo, à psicanálise, a
Freud, ao freudismo. Creio que são desconhecidos, no Brasil. Ou quase desconhecidos, assim como o novo psicologismo
norte-americano. No estrangeiro Freud é mais do que Marx, que começa a ser falado em certos meios brasileiros, de onde
está desaparecendo o velho e extremo apreço por Augusto Comte” (Freyre, 1975:73)
11
Optei manter a grafia da época, tanto nos textos de língua portuguesa, quanto nos textos em língua estrangeira. No caso
dos textos de língua portuguesa, a materialidade dos vocábulos muitas vezes nos revelam segredos, como a vacilação no
significante referente à nova prática: Franco da Rocha, leitor de Freud em alemão, como veremos adiante, refere-se à
“psicoanalise” (cf. Revista do Brasil, outubro de 1919:130); já o editor, no mesmo artigo, grafa “psychoanalise”, mais
próxima do francês “psychanalyse”.
31
poeta”, os quais teriam em comum “um secreto sonho de grandeza”. Há apenas uma
menção mais próxima a Freud, ainda assim de segunda mão:
A escola de Freud sustenta mesmo que a obtenção de succeso, de poder, de força, reverte
sempre, consciente ou inconscientemente, em satisfação do instincto sexual.
Comprehende-se bem isso quando se consegue penetrar no amago da doutrina
pansexualista dessa escola, coisa que não é fácil. A vontade de domínio é antes desejo de
amor; anceio de domínio é o desejo de ser amado por todos, amado sem limites. O amor é
uma submissão. Pela lei da bipolaridade corresponde a essa vontade de domínio a vontade
de submissão. (Franco da Rocha, 1919:502)
Vale ressaltar o acaso de a psicanálise ser introduzida em São Paulo a partir de uma
resenha de um livro daquele que foi justamente uma das figuras mais controversas dos
primeiros tempos da psicanálise, Wilhelm Stekel, a quem Freud não vacilou em referir-se,
publicamente e por mais de uma vez, como sendo “That writer, who has perhaps damaged
pshychoanalysis as much as he has benefited it” (Freud, 1925 apud Roazen, 1971:219). É
evidente que tal citação, extraída de um prefácio de 1925 à Interpretação dos Sonhos,
sequer fora proferida quando da resenha de Franco da Rocha, significando muito mais, da
parte de Freud, um reconhecimento crítico tardio. Entretanto, vale também ressaltar que a
ruptura entre ambos já havia se dado em 1912 – portanto seis anos antes do artigo de
Franco da Rocha – como indica esta carta de Freud a Karl Abraham:
Stekel is going his own way. (I am so delighted about it; you cannot realize how much I
have suffered under the obligation to defend him against the whole world. He is an
intolerable person.) The occasion for the split was not a scientific one, but presumption on
his part against another member of the Society whom he wished to exclude from the
review in “his paper”, which I could not permit… it is a blessing to have god rid of such a
doubtful character… (Freud, 12 de novembro de 1912 apud Roazen, 1971:217)
Trata-se de mostrar como a psicanálise em terras paulistanas tem sua temporalidade
própria, e estava absolutamente alheia às querelas em terras européias. Na verdade, a
resenha de Franco da Rocha, com seu atraso de quase dez anos em relação à publicação do
livro de Stekel, e não sabedora da ruptura entre ambos autores, é fundamental para a
introdução do pensamento freudiano no Brasil. Acrescente-se ainda, a favor de Franco da
Rocha que, a despeito do rompimento, os exemplos advindos de Stekel presentes na obra de
Freud foram mantidos nas sucessivas reedições em vida da obra freudiana.
32
Seis meses depois, aparecerá um segundo artigo de Franco da Rocha na Revista do
Brasil, na edição de outubro do mesmo ano, intitulado “A doutrina de Freud”. Trata-se de
uma resenha de Psychopathologie des Alltagslebens, livro de 1901, até então traduzido
somente ao inglês, mas que Franco da Rocha parece ter lido no original e ao qual se refere
como Psicologia da vida diária
12
. Tal livro desempenhará papel fundamental, anos depois,
no processo de composição de Amar, Verbo Intransitivo, de Mário de Andrade (1927). Vai
notando o leitor o papel formador da imprensa cultural, de antecipar as novas ideias e
colocá-las em circulação no meio intelectual paulistano
13
.
Em seu artigo, Franco da Rocha ocupa-se em expor brevemente a importância
atribuída por Freud aos deslizes cotidianos, como “a mímica, os reflexos, os cacoêtes,
inflexão da voz, uma palavra solta e habitual, os lapsus, as ratadas, os esquecimentos de
nomes, trócas de palavras, etc” (Franco da Rocha, 1919b:130). Ao leitor de hoje, salta à
vista a agudeza de Franco da Rocha ao expor este inovador inconsciente freudiano, que se
manifesta pela linguagem, através de exemplos em língua portuguesa. O articulista
brasileiro segue assim o exemplo dos primeiros tradutores, de superar as dificuldades dos
jogos de palavras alemães através de exemplos em sua língua nativa.
Finalmente, nota-se ainda neste artigo a superação da noção de inconsciente
romântico, como lugar das profundezas, que aparecia ainda no artigo anterior de Franco da
Rocha: “No sonho o inconsciente sobre para o lugar do consciente. O ‘eu’ sensorial cede o
lugar ao ‘eu’ esplancnico, diz Tissié (Les Rêves)” (Franco da Rocha, 1919a:498). Chamo a
atenção para este ponto porque esta coexistência do inconsciente freudiano e do que estou
chamando (quiçá imprecisamente) de inconsciente romântico, parece ser a tônica dos
escritos paulistanos sobre psicanálise destes anos vinte, como veremos a seguir na obra do
primeiro Mário de Andrade.
O editor, no texto de apresentação deste segundo artigo, informa ainda que “O
eminente psychiatra Dr. Franco da Rocha publicou em opusculo [sic] um interessantissimo
estudo sobre a doutrina de Freud ou a psychoanalise”. Tal opúsculo, ao que consta, era
12
Conforme assinalam Roudinesco & Plon (1997:617), a tradução francesa tardaria ainda três anos (justamente a edição
que mais tarde Mário de Andrade teria em sua biblioteca, a da Payot, de 1922), mesma data de início da publicação das
Obras de Freud em espanhol.
13
Por mais que fosse possível objetar, dizendo que o livro de Freud é introduzido no Brasil através desta resenha e muito
tardiamente, com um lapso de dezoito anos em relação à sua publicação, o fato de antecipar-se em três anos à tradução
francesa e suceder em tão somente quatro anos a edição em inglês mostra uma certa sincronia com a discussão
transoceânica. No entanto, como já disse, parece-me mais adequado falar em coincidência do que propriamente diálogo;
este, como se sabe, não se deu.
33
destinado à circulação interna entre os alunos da Faculdade de Medicina de São Paulo, e
seria o germe de seu O pansexualismo na Doutrina de Freud, que seria lançado
comercialmente apenas no ano seguinte. A respeito deste opúsculo, Mokrejs (1993) nos traz
um saboroso relato:
A publicação da obra que o consagrou – O Pansexualismo na Doutrina de Freud (1919)
gerou na Congregação da Faculdade de Medicina uma certa apreensão em relação à
sanidade mental de Franco da Rocha, tendo esse fato contribuído para que não fosse
convocado para comparecer a uma das reuniões, na qual formou-se uma comissão para
visitar o autor do livro em sua casa, a fim de melhor avaliar suas condições mentais.
(Mokrejs, 1993:35)
A autora não cita explicitamente a fonte deste relato. De outra parte, sabe-se que
Sagawa (1985) já havia tratado do tema oito anos antes, ao trazer o seguinte depoimento,
datado de 1976, de Durval Marcondes – discípulo de Franco da Rocha – acerca do
acontecido:
‘Por volta de 1925, num domingo à tarde apareceu na casa dele (Franco da Rocha) o
doutor Luiz Pereira Barreto. O dr. Luiz Pereira Barreto era um grande cirurgião, um
homem de grande cultura e foi um dos mais destacados próceres do positivismo brasileiro.
[...] Franco da Rocha me disse que tinha a impressão de que estava sendo submetido a um
interrogatório psiquiátrico. Depois de uma certa conversa, Pereira Barreto levantou-se e
disse: Eu vou contar para você o que eu vim fazer aqui. Eu vou voltar agora para a casa de
Arnaldo Vieira de Carvalho (que era então diretor da recém-fundada Faculdade de
Medicina de São Paulo) onde estão vários colegas e amigos nossos. Estamos reunidos
para estudar o seu caso porque consta por aí que você está louco, porque você
escreveu um livro absolutamente incompreensível, um livro muito estranho. Eu não
acreditei, mas me deram um exemplar para ler e acabada a leitura eu tive que aceitar que
você estava mesmo louco. Mas agora, depois dessa conversa, vejo que você não está
louco. Eu vou lá para a casa do Arnaldo. Eles estão ansiosos à minha espera. Você pode
ficar tranqüilo porque você está em perfeita saúde mental.’ (Depoimento de 12.11.1976)
(MARCONDES, Durval apud SAGAWA, 1985:27, grifos meus).
Devemos considerar que, ao tratar-se de um depoimento oral, não se pode afirmar
qual seja a data segura do acontecido, 1919 – como afirma Mokrejs – ou 1925 – de acordo
como depoimento de Marcondes. Há que se ressaltar que talvez Mokrejs tenha se
confundido com as datas e esteja se referindo não à publicação do livro de 1920 –
Pansexualismo – mas ao opúsculo destinado aos formandos da turma de 1919
14
, pois é
difícil supor que a acusação de loucura de Franco da Rocha tenha tardado em seis anos ao
aparecimento do opúsculo, e cinco anos após a publicação do Pansexualismo na Doutrina
14
“Ainda no ano de 1919, Franco da Rocha foi convidado para ser paraninfo da turma de doutorandos, e lhes ofereceu
como brinde um opúsculo, A Doutrina de Freud, cuja cópia não foi possível encontrar nem localizar.” (Sagawa, 1985:16-
17)
34
de Freud. Certamente os boatos, fruto do choque inicial com as ideias psicanalíticas remete
ao surgimento do opúsculo, que coincide com a aparição dos primeiros textos sobre
psicanálise de Franco da Rocha na imprensa paulistana.
Mas é preciso ressaltar também o grande impacto da aparição destas “ideias
estranhas” no meio acadêmico paulistano, dadas pelas palavras – ainda que de segunda
menção – de Pereira Barreto, o “prócer do positivismo”. A Faculdade de Medicina mostra-
se como um meio inóspito, neste primeiro momento, para a aceitação das ideias
psicanalíticas. Não por acaso, o meio fértil será justamente o dos “bem nascidos” – como
se referia há pouco Bosi – mais afeitos às novas ideias estrangeiras.
De toda forma, é razoável supor que Franco da Rocha acusa o golpe, dado que em
1930, em sua segunda edição, o livro de Franco da Rocha tem seu título reduzido para A
Doutrina de Freud. Ao cotejar as duas edições, percebe-se que a alteração se limita ao
título e à diagramação da capa. No interior, permanece a advertência prévia ao leitor, na
qual é citada uma passagem contundente de um livro de defesa da psicanálise de Bleuler
(1911), e encerra com um argumento de autoridade, de que o volume foi lido por uma
respeitável inglesa. Precauções certamente oriundas da experiência pregressa, que remonta
ao tempo de trabalho na Faculdade de Medicina:
Prevenidos no prefácio, os que tiverem medo de ver sua béla moral estragada, fechem este
livro, não o leiam. A aplicação da psicoanalise á vida social já foi, entretanto, gabada num
escrito por uma senhora ingleza, Mrs. Bradby, representante de uma raça cuja prudery é
bem conhecida. (Franco da Rocha, 1930:9)
De outra parte, a respeito da reação inamistosa dos seus pares, Mokrejs faz uma
ponderação que será produtivo trazer à baila e discutir: “Esse episódio ilustra a forte
resistência que a psicanálise encontrou na sociedade da época (até no recinto acadêmico)”
(Mokrejs, op. cit., 35, grifos meus). Cabe aqui uma ressalva a tal ponderação, a
considerarmos que a psicanálise encontrou grande acolhida nos meios intelectuais, como é
notório pelo acolhimento de Franco da Rocha e Durval Marcondes, respectivamente, nas
páginas da Revista do Brasil, Klaxon, O Estado de São Paulo, além das citações de Freud e
de Durval Marcondes pelos modernistas, é preciso matizar tal generalização. Nos anos
vinte, como até hoje, meio universitário e meios intelectuais não se confundem
estritamente. O modernismo não nasceu e não cresceu na universidade, tendo tardado anos
para se tornar estudado na Academia. E nisso o movimento artístico em algo se assemelha à
35
psicanálise, cujo lugar de florescimento e difusão não é o da universidade, e sim o dos
consultórios e grupos à parte. Como disse na introdução a este trabalho, o discurso
universitário e o da psicanálise diferem radicalmente.
É preciso ainda considerar o funcionamento político das instituições acadêmicas.
Pois, para além de uma seara do livre-pensar, trata-se de uma instituição sujeita aos
interesses políticos e conveniências afins. Neste sentido, é o próprio Sagawa (1985:26-33)
quem nos mostra as vicissitudes de Durval Marcondes no meio acadêmico, em contenda
com o grupo dos neuro-psiquiatras, para ocupar a cadeira deixada vaga por Franco da
Rocha, quando de sua aposentadoria.
Assim, é preciso considerar que a aprendizagem da psicanálise por parte de Durval
Marcondes, que teve por mestre Franco da Rocha, deu-se fora do meio acadêmico, pois
Franco da Rocha já havia se aposentado em 1924. E que, além disso, Durval Marcondes
encontra grande resistência na Faculdade de Medicina para a nova prática clínica.
Como se pode notar, a segunda edição da obra de Franco da Rocha tem o termo
‘pansexualismo’ deslocado do título para um discreto pé de página, através da menção “
edição de Pansexualismo”. O título da obra ficará mesmo sendo: A doutrina de Freud.
Resumo Geral Indispensavel para a Comprehensão da Psicoanalise. (1930). (cf. figs. 1 e
2). Mesmo ao longo sua aposentadoria, Franco da Rocha jamais clinicara; limitando-se sua
atuação no campo psicanalítico na reedição de seu livro e na formação de Durval
Marcondes.
36
Fig. 1. Primeira edição de O Pansexualismo na Doutrina de Freud, de Franco da Rocha, 1920.
37
Fig 2. Na segunda edição, de 1930, o termo “pansexualismo” fica relegado ao pé de página.
38
Apesar de a primeira e a segunda edições do livro de Franco da Rocha manterem o
mesmo conteúdo, nota-se, pela bibliografia apresentada no volume da segunda edição, que
o autor demonstra ter tido contato com a produção psicanalítica ao longo da década. É
notório que Franco da Rocha ampliou seu repertório de leituras de Sigmund Freud, todas
em alemão, e alcançou uma clareza e um alcance de elaboração que não se faziam notar em
seus dois artigos da revista do Brasil. A este respeito, já na primeira edição, ele mesmo
desculpa-se a seu leitor, chamando a atenção dele para o fato de que se tratava muito mais
de uma dificuldade em relação ao gênero do que propriamente desinformação de sua parte,
embora também a admita:
Antes deste livro já havia eu escrito diversas preleções sobre a doutrina de Freud, sómente
para meus alunos da Faculdade de Medicina de S. Paulo. Pareceu-me, porêm, que muitos
leitores encontravam difficuldade em compreender toda a doutrina exposta no resumo das
preleções, justamente por ser mui conciso. (Franco da Rocha, 1930:6)
O fato é que cobrindo a leitura de diversos livros de Freud publicados em alemão,
entre 1900 e 1915
15
, Franco da Rocha logra uma excelente exposição – cuja paixão fica na
feitura do trabalho mais do que na adjetivação indevida (como ocorrerá, conforme veremos,
em Tristão de Athayde) – das elaborações freudianas, que em nada se confunde com o que
atualmente conhecemos como obra de divulgação. Sublinho esta característica pois é
preciso acrescentar, no capítulo sobre a história das ideias em São Paulo no início da
década de vinte, o livro de Franco da Rocha, ao lado das traduções francesas do vienense,
como importante difusor das ideias freudianas no meio intelectual paulistano.
Assim, se a chegada dos livros franceses de Freud à biblioteca de Mário de Andrade
tarda possivelmente até o ano de 1922, há como importante antecedente a obra de Franco
da Rocha, já em 1920
16
.
15
Constam da bibliografia do livro de Franco da Rocha – que ainda faz a mesura de desculpar-se com o leitor por usar
algumas traduções em inglês “porque era impossível obter livros da Alemanha durante a guerra” (op. cit., 1930:233) – os
seguintes volumes de Freud, em alemão: Die Traumdeutung [1900]; Drei Abhandlungen zur Sexualtheorie (1915);
Psychopathologie des Allltagslebens (1912); Der Witz und seine Beziehung (1912); Über Psychoanalyse (1912); Die
kulturelle Sexualmoral und die moderne Nervosität (1908); Meine Ansichten über die Rolle der Sexualitat in der
Aetiologie der Neurose [?]; Eine Kindheitserinnerung des Leonardo da Vinci [1910]; Der Wahn und die Träume in W.
Jensens Gradiva [1906]; Totem und Tabu (1913); Sammlung keiner Schriften zur Neurosenlehre [1906].
16
Seria possível dar continuidade a este rastreamento das ideias psicanalíticas em São Paulo, na mesma época, através de
algumas revistas, como Klaxon – na qual o psicanalista Durval Marcondes chegou a publicar artigos sobre a relação entre
literatura e psicanálise e poemas; na Revista de Antropofagia, em suas primeira e segunda dentições (1928 e 1929) – o
Manifesto Antropógafo, de Oswald de Andrade, por exemplo, traz uma releitura de Totem e Tabu, de Freud; na obra em
prosa de Menotti del Picchia, e assim por diante. A psicanálise é bastante presente em toda a produção dos modernistas
como inclusive já o apontara Alfredo Bosi – entretanto, optei por restringir-me à obra de Mário de Andrade, por seu
39
1.1.3. O primeiro Mário de Andrade
Como já disse, quando da publicação de Paulicea Desvairada, em 1922, Mário de
Andrade não tinha ainda nenhum exemplar de Freud em sua biblioteca, a se considerarem
as datas das edições das traduções francesas, todas posteriores a 22. Entretanto, como é
razoável supor, algo já sabia sobre o vienense, seja pela possível leitura de artigos na
Revista do Brasil, pelas discussões com seus pares – como Paulo Prado – que lhe
presentearia os Cinq Essais... – , ou talvez pela leitura do livro de Franco da Rocha (1920).
O fato é que ao longo de todo o “Prefácio interessantíssimo” que abre a obra, nota-se a
presença de um pensamento, se não estritamente psicanalítico, certamente psicológico,
denotando o interesse do poeta pelo universo psi. Pululam termos como consciente,
subconsciente, inconsciente, sublimação, impulsão, instinto, eu superior, eu profundo.
Entretanto, tais termos não parecem advir de Freud, a quem há tão somente uma referência
explícita, como se verá adiante. A partir dos volumes da biblioteca de Mário de Andrade, e
das referências que eles trazem, é o francês Theódule Ribot que parece ser o principal
norteador de algumas reflexões do poeta-prefaciador. Ribot dedica um livro à imaginação
criativa: Essai sur l´Imagination Créatrice (1921), o qual é lateralmente citado por Mário
de Andrade:
(1) Ribot disse algures que inspiração é telegrama cifrado transmitido pela actividade
inconsciente á atividade consciente que o traduz. Essa actividade consciente pode ser
repartida entre poeta e leitor. (Mário de Andrade, “Prefácio Interessantíssimo”, 1922:31)
Nite Feres (1969), primeira crítica a adentrar nos volumes de Mário de Andrade, e
consignar em livro parte da marginalia do poeta, indica que o trecho de Ribot lido pelo
escritor deve ter sido o seguinte:
L´inspiration signifie imagination inconsciente et n´en est même qu´un cas particulier.
L´imagination consciente est un appareil de perfectionnement. [...] L´inspiration ressemble
à une dépêche chiffrée que l´activité inconsciente transmet à l´activité consciente, qui la
traduit. (Ribot, 1921:48 apud Ferres, 1969:61)
O que importa sublinhar neste momento é que com Ribot, o poeta Mário de Andrade
parece estabelecer uma topologia a partir da qual aquilo que comumente nas poéticas
caráter exemplar, por constituir uma posição singular em relação ao pensamento freudiano e porque ela permanece
presente na obra do paulistano para além da vanguarda dos anos vinte, como se verá na próxima seção.
40
chamar-se-ia inspiração ocupará o lugar do irracional, do eu-profundo, ou do inconsciente.
No nível de um eu-superior estará a atividade mental, responsável por traduzir o impulso
primordial. Seria possível dizer que o poeta está tão somente psicologizando os lugares-
comuns conferidos à criação poética. Podem-se ver variações dessa mesma ideia nos
fragmentos seguintes:
(2) Quando sinto a impulsão lírica escrevo sem pensar tudo o que o meu inconsciente
me grita. Penso depois: não só para corrigir, como para justificar o que escrevi. (Mário de
Andrade, “Prefácio Interessantíssimo”, 1922: 8, grifos meus)
(3) Um pouco de teoria? Acredito que o lirismo, nascido no subconsciente, acrisolado
num pensamento claro ou confuso, crea frases que são versos inteiros, sem prejuízo de
medir tantas sílabas, com acentuação determinada. (Mário de Andrade, “Prefácio
Interessantíssimo”, 1922:15, grifos meus)
(4) Quem canta seu subconsciente seguirá a ordem imprevista das comoções, das
associações de imagens, dos contactos exteriores. Acontece que o tema às vezes
descaminha. O impulso lírico clama dentro de nós como turba enfuriada. (Mário de
Andrade, “Prefácio Interessantíssimo”, 1922:21, grifos meus)
Note o leitor como este irracionalismo aparentado ao que seria da ordem do
inconsciente (não-freudiano), é o que – esteticamente – justifica a ausência da metrificação
nos poemas do autor, as imagens livremente associadas, numa lógica não-aristotélica. Ou
seja, Mário não está somente psicologizando a inspiração; para além disso, está transferindo
ao domínio da forma esta inspiração psicologizada.
À métrica e à lógica, o poeta responderá com a musicalidade. Mas a musicalidade não
é da ordem da inspiração somente. Para justificá-la, Mário de Andrade outra vez recorrerá a
Ribot, que em seu La logique des Sentiments (1920) dedica uma seção à música. Leiamos
no volume de Ribot uma frase grifada por Mário:
Il y a la forme musicale, moins clare mais plus profonde, plus complexe et aussi variée que
la precedente. Ce dernier procede mieux que tout autre est l´instrument de l´invention
affective pure (Ribot, 1920:136 apud Ferres, 1969:58)
Mário explica, através da música, seu modo de versificar. O poeta diz que seus versos
são harmônicos, de harmonias inconscientes, esporádicas. Ao juntar som e sentido, o poeta
assim define sua poesia, postulada como fruto de uma espécie de jorro musical
inconsciente:
(5) Os psicólogos não admitirão a teoria... [...] si você já teve por acaso na vida um
acontecimento forte, imprevisto (já teve, naturalmente) recorde-se do tumulto desordenado
das muitas ideas que nesse momento lhe tumultuaram no cérebro. Essas ideas, reduzidas
41
ao mínimo telegráfico da palavra, não se continuavam, porque não faziam parte de frase
alguma, não tinham resposta, solução, continuidade [...] Sem ligação, sem concordância
aparente – embora nascidas do mesmo acontecimento – formavam, pela sucessão
rapidíssima, verdadeira simultaneidade, verdadeiras harmonias acompanhando a melodia
enérgica e larga do acontecimento.” (Mário de Andrade, “Prefácio Interessantíssimo”,
1922:28)
Este Mário de Andrade psicologizante, pré-psicanalítico, demonstra, por outro lado,
um interesse pelo que é da ordem do psiquismo. Entretanto, é importante diferir seu
procedimento nesta obra daquele empregado em sua prosa posterior. Aqui, numa chave
quase sempre irônica, o poeta postula o prefácio como sendo uma explicação a posteriori,
referido como algo da ordem do consciente, que pudesse vir em auxílio de uma arte
supostamente inspirada, irracional. Mas também como uma teoria que poderá ser
substituída por outra, e que é mesmo desconstruída no final do prefácio, numa auto-ironia
inconsequente: “E está acabada a escola poética ‘Desvairismo’. Próximo livro fundarei
outra.” (op. cit., p. 39)
O livro que se segue, a aceitarmos a chave proposta pelo autor, prescinde do
“inteligente” Prefácio que o antecedera. Se há uma observação aguda do poeta é justamente
que o plano da reflexão e o da poetização se apresentam – nesse momento de sua produção
– como duas esferas estanques, incomunicáveis. Aqui o manifesto, lá a poesia. Sustento que
o que diferenciará a produção futura de Mário, e principalmente a obra em prosa, é que nela
as leituras de Freud participam organicamente do tecido da narrativa, como veremos
adiante.
Parece haver uma mudança importante de posição entre este primeiro Mário de
Andrade e o posterior. Nesse “Prefácio...”, paradoxalmente, o poeta, ao mesmo tempo em
que recorre às explicações psicologizantes, parece se insurgir contra elas. Como se
ocupasse dois lugares na estrutura da criação poética ou, dito de outra forma, como se a
posição do prefaciador e a do poeta fossem antagônicas, inconciliáveis. E o momento em
que isso se dá a ver com maior clareza é justamente o instante em que ele se refere a Freud
em seu prefácio:
(6) Dom Lirismo, ao desembarcar do Eldorado do Inconsciente no cáis da terra do
Consciente, é inspeccionado pela visita médica, a Inteligéncia, que o alimpa dos
macaquinhos e de toda e qualquer doença que possa espalhar confusão, obscuridade
na terrinha progressista. Dom Lirismo sofre mais uma visita alfandegária,
descoberta por Freud, que a denominou Censura. Sou contrabandista! E contrário à lei
da vacina obrigatória.
42
Parece que sou todo instinto... Não é verdade. Há no meu livro, e não me desagrada,
tendéncia pronunciadamente intelectualista. Que quer você? Consigo passar minhas sedas
sem pagar direitos. Mas é psicologicamente impossível livrar-me das injeções e dos
tônicos.(Mário de Andrade, “Prefácio interessantíssimo”, 1922:32-2)
O poeta coloca-se em cena como o rebelde, o criminoso, aquele que pode burlar, por
exemplo, isso que ele chama – via Freud, na única referência explícita no texto ao vienense
– de Censura. O inconsciente aqui é o território proibido, verdadeiro Hades ou, para manter
uma referência geográfica, verdadeira Ciudad del Este, território ao qual caberia ao poeta
adentrar e contrabandear as preciosidades. O poeta, no trecho acima, diferentemente do que
ocorrera nos demais, parece trazer elementos novos à sua diatribe.
A medicina aparece pela primeira vez justamente no fragmento em que se fará
referência ao Dr. Freud (Em inspecionado pela visita médica). Como vimos acima, no
momento de sua entrada no Brasil, em 1918, a psicanálise surge como especialidade
médica (Franco da Rocha preside a cadeira de psiquiatria). Entretanto, no fragmento parece
haver um duplo alvo, a chamada ‘higiene mental’, à qual a psiquiatria se encontrava então
associada, e que é atacada frontalmente, no seu caráter de controle social e ideológico: “a
visita médica [...] que o alimpa dos macaquinhos e de toda e qualquer doença que possa
espalhar confusão, obscuridade na terrinha progressista.”
Em segundo lugar, o contingente flerte entre o poeta e a loucura (“Lirismo: estado
afectivo sublime – visinho sublime da loucura” [op. cit., p. 30]) parece levar o poeta a
querer burlar tal controle alfandegário, para poder transitar entre a sanidade e a insanidade,
caucionado pela arte. Acrescentemos ainda que a referência a Freud, a Censura, surge qual
elemento exógeno no texto, sem qualquer uso conceitual, mas certamente aparentada ao
campo semântico evocado por “visita médica” e logo por “visita alfandegária”, isto é, o que
é da ordem do controle. Entretanto o poeta coloca o controle, insisto, como sendo algo
próprio de uma ordem social, não da ordem do sujeito.
43
1.1.4. A teia dos termos: Viagens das ideias freudianas pelas línguas europeias e leituras
brasileiras – instintos, pulsões e impulsos
Fenômeno curioso no caso dos leitores brasileiros de Freud: tradução e leitura
encontram-se necessariamente imbricadas. O primeiro Freud que chega a São Paulo nos
anos vinte está em língua estrangeira: a primeira tradução brasileira será fruto de uma
parceria entre Durval Marcondes (que não sabia alemão) e o cardiologista José Barbosa
Corrêa; trata-se da versão brasileira das Cinco Conferências Introdutórias, em 1931, a qual,
apesar da qualidade duvidosa da tradução, continua sendo sistematicamente reeditada no
Brasil, após uns poucos retoques.
Assim, dado o caráter traduzido da obra freudiana no Brasil, houve historicamente
por parte dos comentadores, leitores ou intelectuais que se debruçaram sobre ela, a
necessidade de lançar mão de algum termo em língua portuguesa. Assim, leitura, tradução e
reflexão estiveram sempre interrelacionadas, no que tange à psicanálise freudiana, de modo
a fazer com que cada leitura publicada da obra freudiana implique, mais explicitamente, um
gesto tradutório e interpretativo. Poder-se-ia evocar aqui a reflexão de Haroldo de Campos
(1963), quando este, num artigo sobre tradução, fala no estabelecimento – por parte do
tradutor – de uma tradição ativa. Apesar de Campos estar se referindo à tradução literária e
ao tradutor que é, num só tempo, crítico e escritor, defendo (cf. Alves-Bezerra, 2010, no
prelo) que o estabelecimento da tradição pela tradução dá-se mesmo contingencialmente,
de modo mesmo inercial, pelo conjunto dos tradutores.
De uma forma ou de outra, pensar em termos de tradução e leitura, no que toca às
viagens do pensamento psicanalítico, mostra sua pertinência ao permitir evidenciar o lugar
interpretativo a partir do qual os intelectuais, médicos e escritores brasileiros desses
primeiros tempos leram Freud. No caso brasileiro, quase sempre se tratou de uma escolha
de segunda mão, pois poucos tinham acesso a Freud em alemão. Apenas Franco da Rocha e
Tristão de Athayde puderam fazer suas escolhas terminológicas a partir da língua de
origem.
Bastem-nos alguns exemplos. Há um termo bastante importante em Freud, cuja
tradução tem sido problemática. Partindo da versão francesa que leu Mário de Andrade,
estou me referindo a instinct, e o termo alemão neste caso é Trieb. A respeito de tal termo,
44
Luiz Hanns, em seu Dicionário comentado do alemão de Freud, aponta que há, em Trieb,
um largo matiz que passa pelo caráter coletivo, da espécie, e que poderia equivaler ao
termo português instinto, até chegar a outra conotação, algo do foro do singular, que
poderia ser melhor expresso por pulsão, neologismo português, ou ainda pelos termos
impulso ou impulsão.
Por outro lado, Marilene Carone, germanófila e tradutora de Freud a quem a morte
encontrou prematuramente, pondera que na obra freudiana Trieb e Instinkt aparecem em
contextos bem diferentes:
Todos sabem que em Freud encontramos Instinkt para designar um padrão fixo de
comportamento, hereditariamente determinado, e Trieb para designar uma força que
empurra o psiquismo para uma determinada meta, cujo resultado concreto final, no plano
de comportamento, longe de ser fixo, é infinitamente maleável e diversificado. (Carone,
1987:186)
Interessa-nos ressaltar, num primeiro momento, como a tradução do alemão de
Freud radicaliza a questão do lugar onde se lê – ou se traduz – a sua obra, pois nos termos
instinto, pulsão, impulsão, impulso, recobre-se um vasto campo de significações que
apontam para direções as mais diversas. Escapa aos objetivos deste trabalho escolher a
tradução ou traduções mais adequadas, o que interessa nesta seção é evidenciar através das
escolhas tradutórias, a forma pela qual Freud – em alemão ou nas outras versões – foi lido
pelo poeta. Tal proposta atribui importância, portanto, não somente ao modo como Mário
de Andrade leu Freud, como também à tradução que ele leu.
Tome-se outro exemplo. Marilene Carone segue, e sugere outra possibilidade de
tradução para Triebimpulso – mas termina por refutá-la, por trazer o caráter de “ação
irrefletida, momentânea, e não de uma força que impele permanentemente o psiquismo em
determinadas direções, como quer Freud” (op. cit, 186). Quanto à sugestão de uso do termo
impulsão, ela diz o seguinte:
Por que não ‘impulsão’, que pelo menos não é um neologismo? Não sabemos. O fato é que
não pegou. O mais provável é porque pura e simplesmente o termo cunhado na França foi
pulsion [...] pulsão é de aparecimento recente: chegou até [nós] nos anos 70 com prestígio
do Vocabulário de Psicanálise, de Laplanche e Pontalis. (Carone, 1987:186-7)
Essa observação de Carone, tradutora sagaz, no fim dos anos oitenta, termina por
mostrar a lacuna estabelecida – no campo das traduções francesas de Freud – a partir do
45
novo projeto das Oeuvres Complètes dirigida por Jean Laplanche, André Bourguignon e
Pierre Cotet, a qual, se começa a ser publicada ao longo dos oitenta, remonta – pelo menos
– ao Vocabulário de Psicanálise dos autores.
Faço ao leitor notar, a partir da lacuna na fala de Carone, como as traduções de
Samuel Jankélévitch, de Ives de Lay e de Reverchon – as precursoras, dos anos 10 e 20 –
não são aqui referidas, como elas parecem ter sido esquecidas. Tal apagamento termina –
em nosso caso brasileiro – por borrar do debate as escolhas de Mário de Andrade, todas
elas oriundas daquelas traduções precursoras.
A despeito de uma inevitável superação daquelas traduções francesas, as quais – a
exemplo do que ocorreu com a tradução espanhola integral de Luiz López-Ballesteros
não primavam pelo rigor conceitual do texto freudiano, antes pela fluência de seu texto,
têm um papel importante para os primeiros leitores de Freud na América Latina.
Entretanto, se a tradução de López-Ballesteros segue sendo discutida em terras
americanas (cf. Ornston, 1992), o mesmo não se pode dizer das traduções francesas. Tal
apagamento pode ser atribuído ao trabalho da equipe de Laplanche, em dois sentidos. Seu
projeto de tradução foi ambicioso, sistemático e, ao que consta, bem sucedido, tornando a
sua tradução referência em língua francesa. Por outro lado, Laplanche e equipe, no volume
que em português chamou-se Traduzir Freud, deliberadamente não citam os nomes dos
primeiros tradutores franceses, optando por desconsiderá-los, como se as obras que
circularam ao logo de setenta e cinco anos na França não merecessem o lugar de
interlocutoras. O demérito é tal que os autores se limitam a dois breves comentários sobre
tais traduções, os quais cito a seguir:
[...] traduções iniciais, ultrajantemente infiéis, às vezes aliás caucionadas pelo próprio
Freud, mas que tinham ‘o mérito de existir’ (Laplanche et alli, 1989:5)
Na mesma medida em que os primeiros tradutores de Freud para o francês inspiraram
reconhecimento por seu trabalho de pioneiros, desconcertam pelas liberdades que tomam
com o original, alongado ou encurtado por eles em função de suas necessidades ou
dificuldades (Laplanche et alli, 1989:17)
Longe de discordar da segunda afirmação (a primeira, por ser meramente adjetival,
dispensa comentários), cabe ressaltar como a não-nomeação vai relegando ao esquecimento
os primeiros tradutores freudianos, cuja versão, em língua mais acessível aos latino-
americanos que o alemão, teve ainda o mérito de ser a via de acesso aos brasileiros nos
46
anos vinte. Tal apagamento prejudica o debate, como notamos no caso de Carone, onde o
silêncio – por não ser tão eloquente quanto o de Laplanche – denota realmente que a
supressão dos antigos tradutores pelos novos parece ter sido bem lograda, malogrando a
história
17
.
O que suscita estranheza é justamente o fato de que, ao tentar apagar esta história das
traduções pregressas, Pontalis termina por apagar algo de sua própria história pois, entre as
sucessivas atualizações que sofreram as antigas traduções de Freud ao francês, algumas
delas foram levadas a cabo por esse mesmo Pontalis, como se pode ver no prefácio de
Blanche Reverchon-Jouve, na edição de 1964 dos Trois essais sur la theorie de la
sexualité:
Cette traduction est celle que fut publiée en 1923. Quelques modifications lui ont été
apportées, dans un souci de précision, notamment pour tenir compte de la terminologie
psychanalytique aujourd´hui pus fixée en France qu´elle ne l´était à cette époque.
Je remercie Jean Laplanche et J. B. Lefèvre-Pontalis, membres de la Societé Française de
Psychanalyse, d´avoir bien voulu se charger de cette révision.
Dr. Blanche Reverchon-Jouve. En mémoire Du travail fait em 1923 avec Bernard
Groethuysen. (Reverchon, Blanche. In Freud, Trois essais sur la theorie de la sexualité,
1964:5)
Para o presente trabalho, é fundamental resgatar a história que os novos tradutores
franceses parecem querer apagar, justamente porque é a partir dela, e dos termos freudianos
tais como eram grafados nos anos vinte, que o percurso de Mário de Andrade, no que toca à
psicanálise, revela seu trajeto singular. E tal tarefa, evidentemente, só pode ser levada a
termo, a partir das versões lidas por Mário de Andrade
18
.
17
Faço constar aqui que Laplanche e equipe, logo na primeira página de Traduzir Freud afirmam de modo cabal: “Uma
‘crônica da tradução de Freud em francês’ está fora de nossos propósitos” (Laplanche et alli, 1989:1), remetendo,
entretanto, no rodapé ao artigo de André & Odile Bourguignon, Traduire Freud? I – Singularité d´une histoire. . In :
Revue française de Psychanalyse, XLVII, 6, 1983, pp.1257-1279. Mesmo na edição francesa do livro, Traduire Freud – ,
muito mais alentada que a brasileira (esta com 103, aquela com 380 páginas) – sequer lá consta tal artigo ou maiores
referências sobre as demais traduções, estando as demais 277 páginas preenchidas com o Vocabulário de Psicanálise, de
Laplanche, e ainda um Glossário [Terminologie raisonné], consagrando assim seu caráter fundador.
18
Outros intelectuais paulistanos de gerações posteriores também beberam destas primeiras traduções francesas, como foi
o caso de Florestan Fernandes que, a se levarem em conta os livros de sua biblioteca pessoal, leu Freud em francês,
espanhol e inglês. Ele teria tomado contato com a obra de Freud através do livro Freud¸ do carioca Gastão Pereira da
Silva (19–? ), em 1942, e suas primeiras leituras de trabalhos do vienense foram feitas através dos livros The Ego and the
Id (Tradução inglesa de Jean Riviere, edição de 1947, adquirida por Florestan Fernandes em janeiro de 1948) Totem et
tabou (na tradução francesa de Reverchon, edição de 1947, adquirida por Florestan em maio de 1948) – o que denota uma
certa permanência das primeiras traduções francesas no Brasil para além dos anos vinte.
47
Feito o parênteses, retornemos à letra francesa, Reverchon, na tradução dos Trois
essais... termina por optar pelo termo instinct, numa leitura que termina oferecendo ao
leitor um viés biologizante. E tal escolha, retomando a interrogação de Carone, mostra
como o termo português instinto tinha também no francês mais um antecedente.
É preciso considerar que para o leitor contemporâneo, nessa mesma obra, no fim das
contas, o uso do termo termina soando algo paradoxal. Por exemplo, em alguns momentos,
após dizer que a repugnância a determinadas práticas sexuais (como a felação e o sexo
anal) é cultural, o Docteur Freud de Reverchon afirma que “La force de l´instinct sexuel se
plaît à passer outre ce dégoût” (Freud, Trois Essais, ed. 1932:41), gerando uma estranha
inversão, na qual é a natureza que busca vencer a cultura.
De toda forma, o termo instinto é o escolhido por Mário de Andrade na maioria dos
casos, a não ser nos instantes em que ele opta pelo emprego de impulsão. É o que notamos,
por exemplo, em seu A escrava que não é Isaura (1925). Nesta obra, o poetólogo abraça
outra vez o psicologismo, o qual, apesar de ter algo de freudiano, deve ser creditado muito
mais a suas leituras do psicólogo francês Ribot. Note-se como o poeta abre mão dos ‘temas
poéticos’ e substitui esta noção pela de uma impulsão lírica, imotivada:
(7) O assunto poético é a conclusão mais anti-psicológica que existe. A impulsão lírica é
livre, independe de nós, independe da nossa inteligência. Pode nascer de uma réstea de
cebolas como de um amor perdido. [...] Todos os assuntos são vitais. [...] O que realmente
existe é o subconsciente enviando à inteligência telegramas e mais telegramas – para me
servir da comparação de Ribot. [...] Assim, virgem, sintético, energico, o telegrama dá-lhe
fortes comoções, exaltações divinatorias, sublimações, poesia. (Mário de Andrade, A
escrava que não é Isaura, 1925:208-9, grifos meus)
É de se notar como no trecho acima, independente de questões tradutórias, Mário de
Andrade vê-se insitado a escolher o termo impulsão lírica, posto que a criação poética tem
para ele – como para grande parte dos poetas modernos – o caráter de criação singular;
nada mais estranho se, neste caso, o poeta optasse por falar em instinto lírico, como se fora
algo inerente à espécie. Essa, parece-me, é uma dar marcas de uma elaboração de Mário de
Andrade sobre suas leituras; não mera reprodução do lido. Nada mais distante de um Freud
mal deglutido, pois se vê aí como o poeta trai a letra – do tradutor – em busca de algo que
poderíamos chamar (talvez imprecisamente) o espírito freudiano.
48
Entretanto, ao nos achegarmos no terreno propriamente sexual, com os Trois essais
sur la théorie de la sexualité, a opção por instinct, como dissemos, na tradução de
Reverchon, determina a aproximação ao campo biológico. Essa opção passa da tradução de
Reverchon ao romance Amar, verbo intransitivo, de Mário de Andrade, que se refere aos
instintos da professora de alemão, Elza:
(8) Todos os instintos baixos dela, porque baixos! todos os instintos altíssimos dela,
guardados por horas... (altos ou baixos?... ninguém o saberá jamais!) guardados por horas,
por dias, meses, surgiam somados numa carreira de estouro que só a exaustão pararia.
(ANDRADE, Mário de. Amar, verbo intransitivo, p. 89, grifos meus).
A escolha do poeta mostra sua pertinência para o romance, pois tanto impulsões
quanto umas improváveis pulsões dificilmente alcançariam o efeito desejado na cena que é
justamente de grande tensão sexual entre a professora e seu jovem aluno. Assim, mantém-
se a coerência do narrador de tal obra, como veremos adiante, ao tratar das fomes amorosas,
de optar por termos mais coloquiais ao referir-se ao campo do que é objeto da psicanálise.
Faça-se aqui a ressalva, portanto, de que Mário de Andrade, ao ter lido as traduções
francesas de Freud, não as traduziu inercialmente. Os termos escolhidos mostram sua
produtividade de acordo com o contexto em que os utiliza. Assim, ter optado por impulsão
no referente à criação poética, e instinto no campo sexual mostra-se em acordo com o que
é mais partilhável socialmente. Mantém-se assim a noção de empuxo presente no alemão,
conforme o dicionário de Luis Hanns; e o instinto remetendo – imprecisamente ou não – ao
coletivo e impulsão à singularidade da criação poética.
Por outra parte, feita a ressalva ao caráter biologizante do termo instinto, note-se
que a oscilação, na referência a Fräulein Elza entre os instintos baixos e os altíssimos, se
liga diretamente, na reflexão freudiana, à sublimação – outra elaboração de Freud – das
pulsões sexuais de Elza, sempre a afirmar que seu trabalho é o de ensinar o amor correto,
como deve ser, a despeito de estar se apaixonando por Carlos e, além do mais, de fazer uso
da tensão sexual entre ambos para ensinar-lhe o alemão, como veremos adiante, ao tratar do
romance
19
.
19
Numa leitura lacaniana, que levaremos a cabo no capítulo terceiro, Fräulein poderia enquadrar-se no que Lacan vem a
chamar de idéal de l´amour genital ou amour médecin (Lacan, 1959:17), um ideal higiênico de amor, baseado na
complementaridade e na completude, e que teria sido defendido pelos pós-freudianos. Lacan se ri deste ideal. Entretanto
49
Baste-nos neste momento a lembrança de que os conceitos freudianos de recalque
[refoulement, no francês; Verdrängung, em alemão] e sublimação [Sublimmierung no
alemão] são termos caríssimos a Mário de Andrade, e deles passamos agora a tratar, como
forma de melhor abordar as leituras freudianas de Mário de Andrade.
1.1.5. refoulement, censura, sequestro... e uma fotografia
Passado o primeiro momento da obra de Mário de Andrade, que pode ser localizado
como o da feitura dos poemas de Paulicea Desvairada e logo de A Escrava que não é
Isaura, o poeta inicia uma leitura detida da obra freudiana. A partir daí é que surgem, na
tessitura da escrita do paulistano, termos que ecoam conceitos do vienense, e que, além
disso, têm alcance próprio em sua própria obra literária. Refiro-me aos vocábulos censura
e sequestro. Embora ambos tenham origens certamente freudianas, sua matriz é difusa e
controversa, e seu alcance é ímpar.
Ancona López, em seu já citados Ramais e Caminhos, por certo que o termo
sequestro do poeta paulistano seria oriundo do refoulement freudiano – a tradução do
termo alemão Verdrängung
20
perpetrada pelos primeiros franceses. Referindo-se à
marginalia do exemplar dos Trois essais... pertencente a Mário de Andrade, diz a
professora que
O têrmo ‘Refoulement’ dará origem à expressão peculiar de Mário de Andrade,
‘Sequestro’, usada para designar o mesmo fenômeno e ainda outros na literatura erudita e
popular, na arte e na observação do cotidiano (Lopez, 1972:106).
Sugestivamente, num livro que ela intitula Ramais e caminhos, Lopez vai
estabelecendo um percurso de associações, a partir do qual aproxima refoulement a uma
gama de conceitos deveras ampla. Isto por si só denota que a relação entre os termos de
raiz freudiana em Mário de Andrade e a obra do psicanalista vienense não é direta:
ele parece bem apropriado para dar conta do cuidado burguês do pai do protagonista do romance de Mário de Andrade,
além, é claro, da própria Fräulein.
20
Souza, em seu As Palavras de Freud (1999) discute a diferença entre os termos Verdrängung e Unterdrückung, e se a
mesma bastaria para constituir dois conceitos distintos. E assinala que, numa reunião em 1927 (cf. Roudinesco, Tomo I, p.
384 apud Souza, 1999:109), definiu-se que para o primeiro termo a tradução padrão seria refoulement, já para o segundo
seria répression.
50
Sequestro, é a interpretação de ‘Refoulement’, que Mário passa a empregar a partir de
1928-1929, numa tentativa de aplicar elementos psicanalíticos: sublimação,
transferência, repressão [sic], ligando-os directamente ao comportamento afectivo e
sexual. [...] A sua concepção de criação imagética compensadora apóia-se não só em
Freud, como também na interpretação de Charles Baudonin e Georges Politzer sobre a
dramatização. (Lopez, 1972:132, grifos meus)
Sustento que é necessário estabelecer uma distinção entre refoulement e sequestro.
Que um não parte somente do outro. Como muito bem aponta Lopez, sequestro é uma
elaboração de Mário de Andrade que abarca uma gama de noções que está para além de
apenas um conceito freudiano. Fazer equivaler noções tão díspares equivaleria a anular o
alcance de ambas. E também, obviamente, como sugeri no princípio deste trabalho, não se
trata tão só de estabelecer o que um termo passa a significar de um trabalho a outro; fazer
tal coisa seria limitar Mário de Andrade – e qualquer outro leitor pensante – a deglutidor de
conceitos. O interesse maior reside em analisar o tipo de elaboração à qual o autor submete
o conceito lido em Freud, e qual sua produtividade no outro campo. E é preciso acrescentar
que refoulement tem uso próprio em Mário de Andrade.
Imagino, por outra aparte, que refoulement poderia ter sido a base para o termo
censura, o qual aparece no “Prefácio interessantíssimo”, explicitamente referido como
descoberto por Freud. Para tanto remeto o leitor à citação (6), páginas atrás, quando Mário
de Andrade dizia que “Dom Lirismo, ao desembarcar do Eldorado do Inconsciente no cáis
da terra do Consciente [...] sofre mais uma visita alfandegária, descoberta por Freud,
que a denominou Censura” (Mário de Andrade, “Prefácio interessantíssimo”, 1922:32,
grifos meus).
Segundo Luis Hanns, o termo francês refoulement é a costumeira tradução do
alemão Verdrängung, que em português ficou conhecido como recalque ou repressão (Cf.
Hanns, 1996:355-367). Dentre as obras de Freud, contidas na biblioteca de Mário, tem-se
nas Cinq leçons sur la Psychanalyse, na segunda conferência, uma parábola sobre o
significado do conceito de refoulement, ao qual poderíamos aproximar a imagem
freudiana:
J´illustrerai le processus du refoulement et sa relation nécessaire avec la resistánce par
une grossière comparaison. Supposez que dans la salle de mes conférences, dans mon
auditoire calme et attentif, se trouve pourtant un individu qui se conduise de façon à me
51
déranger et qui, par des rires inconvenants, par son bavardage ou en tapants de pieds, me
trouble. Je déclararai que je ne peux continuer à professer ainsi; sur ce, qualques auditeurs
vigoureux se lèveront et, après un lutte brève, mettront le personnage à la porte. Il sera
‘refoulé’ et je pourrai continuer ma conférence. Mais, pour que le troube ne se reproduise
plus si l´expulsé essayait de rentrer dan la salle, les personnes qui son venues à mon aide
iront adosser leurs chaises à la porte et s´etablir ainsi comme ‘résistance’. Si maintenant
l´on transport sur le plan psychique les événements de notre exemple, si l´on fait de la
salle de conférences le conscient, et du vestibule l´inconscient, voilà une assez bonne
image du refoulement. (Freud, Sigmund. Cinq leçons, p. 80, grifos meus)
Não pretendo estabelecer uma relação de causa e efeito de caráter mecanicista, uma
influência direta desta suposta leitura, inclusive porque este exemplar só chegaria à
biblioteca de Mário no mesmo ano de publicação do “Prefácio Interessantíssimo”.
Entretanto, nada nos impede de supor que ele tivesse tido contato com esta parábola
freudiana, por via de algum outro texto ou comentário
21
, ou ainda por exemplo
semelhante em outra obra de Freud, com a qual o poeta já tivesse travado contato.
Note-se, ainda assim, como se esclarece a passagem de Mário de Andrade a partir
do texto de Freud. Assim, o poeta seria aquele que permite a travessia do inconsciente ao
consciente, vencendo a censura [refoulement], e garantindo a chegada do contrabando,
isto é, o poema.
22
É o momento de retomar a reflexão de Ancona Lopez que, após ter feito uma
aproximação entre refoulement e sequestro, esclarece que o termo francês tem um uso
próprio na obra de Mário de Andrade. Dirá a autora:
A primeira aplicação da palavra [refoulement], ainda no original francês, pode ser
encontrada em 1927, quando dá título a uma foto que tirou durante a viagem ao Norte: a
sugestão de corpos nas roupas dum varal agitado pelo vento. (Lopez, 1972:106)
Na foto em questão, reproduzida páginas antes na mesma obra, vemos a legenda do
próprio Mário de Andrade: “Roupas Freudianas / Fortaleza / 5-VII-27 / Fotografia
refoulenta / Refoulement” (Andrade apud Lopez, 1972:79). (cf. fig. 3).
21
Não se pode esquecer que homens como Paulo Prado (que presentearia Mário com um exemplar dos Trois essais sur la
theorie de la sexualité, em 1923), Durval Marcondes, Franco da Rocha, poderiam ter-lhe servido de fonte, via seus artigos
de divulgação.
22
A edição contemporânea do Petit Robert inclusive estabelece censure entre os termos que compõem a possível
sinonímia para refoulement: “ censure
. L'oubli, selon Freud, a pour cause le refoulement.” (Petit Robert, edição
eletrônica)
52
Fig. 3 “Fotografia refoulenta” de Mário de Andrade, com a legenda do autor. Acervo IEB-SP.
Há que se levar em conta, portanto, a escrita de Mário de Andrade. Pode-se pensar
em termos da incidência do pensamento freudiano, e inclusive de sua terminologia, sobre a
produção do autor em questão. Entretanto, não se pode perder de vista que o uso explícito
do termo – refoulement – e inclusive sua tradução sob a forma de adjetivo – refoulenta –
denotam uma interpretação explícita do poeta de tal termo. Assim, seria problemático fazer
equivaler refoulement a sequestro; não são, em definitiva, termos intercambiáveis. Que se
possa ler refoulement a partir do termo censura, como defendi acima, ou que se possa
aproximá-lo à noção de sequestro, são interpretações que cabem ao crítico, não sendo
razoável, entretanto, atribuir ao autor o que é ilação do leitor.
Fazê-lo é ignorar não só a palavra impressa de Mário de Andrade, como sua argúcia
de leitor, já que refoulement, conforme apontei acima, citando a edição das Cinq Leçons...,
que Mário supostamente leu, não se confunde com a sublimação, antes pode participar
neste processo.
53
Mais do que enquadrar Mário de Andrade, o mais produtivo me parece justamente
ver a compreensão peculiar que ele demonstra da elaboração freudiana, a partir da
composição de uma fotografia tão rica. A foto – roupas brancas esvoaçantes num varal que
prossegue transversalmente da esquerda à direita, em perspectiva – permite ao seu
observador, por seu caráter sugestivo, um amplo espectro associativo.
Colocar-me na posição do que associa seria contrário ao que postulo com este
trabalho. Sustento que o mais apropriado para tratar da fotografia é mostrar como os
processos de metáfora e metonímia podem ativar-se a partir dessa imagem cujo centro é o
fragmento. Tem-se a roupa branca esvoaçante, que não veste o corpo, mas remete a eles,
remete aos corpos nus fora da cena.
Se o conteúdo sexual – a roupa sem corpo como o corpo sem roupa – é relegado
para fora da cena, como que recalcado, ou se a foto é já o resultado de uma sublimação,
isso depende da posição do observador. De tal ambiguidade existente na fotografia é que
me parece razoável concluir que não se trata da demonstração de uma conceituação (como
se verá em Amar, verbo intransitivo), antes de uma obra artística, que convida ao seu
espectador a dela participar. O que me parece importante, e isso Mário o faz à maravilha, é
mostrar como os corpos, que não aparecem na fotografia, estão sim sugeridos pelas roupas
que os vestiram, estando metonimicamente sugeridos na cena, isto é, refoulés.
“Sequestro, é a interpretação de ‘Refoulement’”, dizia-nos há pouco Ancona Lopez
(1972:132). É preciso concordar com Lopez no que se refere a não estabelecer uma
equivalência entre ambos os termos. Há sim uma noção de Mário de Andrade, a qual não
me parece ser o caso de conferir o estatuto de conceito. E que, é preciso que se diga,
resultam aqui, não mais numa tentativa de explicação – como ocorria no caso dos prefácios
– mas ela mesma numa obra artística. O fato de ser uma leitura, coloca a questão para além
do poeta inteligente que explica sua própria obra.
1.1.6. A Dona Ausente e o sequestro
Vanessa Nahas Riaviz (2003), num trabalho no qual se debruça justamente sobre o
que ela chama Os rastros freudianos em Mário de Andrade, dedicará todo um capítulo ao
54
termo sequestro na obra do escritor. E quanto ao equivalente conceitual freudiano, dirá o
seguinte:
Encontramos na produção textual de Mário de Andrade momentos em que a palavra
seqüestro aparece como sinônimo de recalque, no sentido psicanalítico do termo.
Porém, em outros momentos, o termo é usado em sentido mais amplo para indicar algum
mecanismo inconsciente, ou seja, um deslocamento, uma condensação, a sublimação,
dentre outros. (Rivaiz, 2003:38, grifos meus)
Quanto à escolha de Mário de Andrade, a autora aventura-se numa comparação entre
os termos alemães para refoulement e sequestro: respectivamente Verdrängung e
Entführung, chegando à conclusão de que sequestro seria “uma repressão bem sucedida,
eficaz” (op. cit., 41). Embora seu raciocínio não seja de todo desprovido de sentido, e ela
chegue à sua conclusão após intrincado trajeto etimológico; seria o caso de nos
perguntarmos, se Mário de Andrade leu Freud em francês – e ninguém que se tenha
debruçado sobre o sequestro perdeu de vista o refoulement – qual a pertinência de buscar a
resposta no idioma alemão? Embora conste que Mário de Andrade, em meados dos anos
vinte, iniciou um estudo do idioma (o que se nota em seu Amar, verbo intransitivo, onde a
língua é parte da trama), parece-me difícil supor uma escolha etimológica por parte do
poeta. É notória a tendência de colocar Mário de Andrade na posição do mestre, inclusive
naquilo que ele notoriamente desconhecia.
Além disso, sustento que é preciso ter em conta que estamos tratando aqui de um
poeta, não de um psicanalista ou de um etnógrafo, e que suas escolhas – embora possam ser
rastreadas – não necessitam ser desvendadas – e tampouco devem ter necessariamente
rigor conceitual. Tanto Ancona Lopez como Rivaiz deixam claro em algum momento de
suas reflexões que o termo sequestro não se limita a uma equivalência psicanalítica exata. E
é preciso acrescentar: sequestro é uma noção movente, de raiz freudiana, mas de alcance
próprio na obra do escritor. Baste-nos isso.
Se pretendi mostrar acima, na escolha do poeta por impulsão em detrimento de
instinto, e assim mostrar como é possível pensar a partir da literatura, também é preciso
considerar que se Mário de Andrade, como outros escritores e intelectuais brasileiros do
início do século vinte, acabaram desempenhando o papel de divulgadores do pensamento
psicanalítico. Sem a necessidade do rigor. Muito embora seja preciso admitir, é o próprio
55
caráter de Mário de Andrade, de intérprete da realidade nacional, como veremos no caso do
Sequestro da Dona Ausente, que o leva a ser lido pela chave da teoria.
Basta vermos como ele mesmo define, em sua obra visível, o termo sequestro. Trata-
se da conferência “Dona Ausente”, cuja retomada deve ser creditada ao trabalho de Ricardo
Carvalho (2001). Estamos diante de três conferências proferidas ao longo dos anos 30 (cf.
Carvalho, op. cit.:7), as quais estão nas origens da “Dona Ausente”, e que serviriam de base
para o artigo publicado em 1943 – dois anos antes da morte do poeta – na revista Atlântico.
É importante dizer que nesta conferência, a noção de sequestro é central e,
acrescente-se, o vínculo com o refoulement, se o há, não é da mesma ordem do que vimos
na fotografia refoulenta. Trata-se aqui do que se poderia chamar de ensaio de interpretação;
é quando o termo sequestro presta-se à interpretação da cultura nacional, e não mais ao
campo pictórico.
Vejamos. Já ao final do primeiro parágrafo, o poeta refere-se ao termo sequestro, não
sendo este, entretanto, o único termo psicanalítico do qual Mário de Andrade lança mão:
(9) Complexo inicialmente marítimo porém que, no Brasil, tornou-se terrestre também. /
A Dona Ausente é o sofrimento causado pela falta da mulher nos navegadores de um
povo de navegadores.(Mário de Andrade, “Dona Ausente”, 1943, grifos meus)
23
23
Complexo é um termo caro à escola psicanalítica de Zurique, cuja figura maior é Jung. Na biblioteca de
Mário de Andrade, a referência ao termo está presente, por exemplo, nas Cinq leçons sur la psychanalyse:
“Suivons l´exemple de l´école de Zurich (Bleuer, Jung, etc.) et appelons complexe tout groupe d´elements
représentatifs reliés ensemble et chargés d´affect. Donc, si pour chercher un complexe refoulé nous partons
des souvenirs que le malade possède encore, nous pouvons réussir à condition qu´il nous apporte un nombre
suffisant d´associations spontanées. Nous laissons parler le malade comme il lui plaît, conformément à notre
hypothèse d´aprés laquelle rien ne peut lui venir à l´esprit qui ne cepénde indirectement du complex cherché.”
(Freud, Cinq leçons sur la psychanalyse, pp. 92-93) Assim, considerado como “groupe d´elements
représentatifs reliés ensemble et chargés d´affect”, Mário de Andrade está em consonância com a escola
junguiana. Freud, após seu rompimento com Jung, manterá o termo complexo unicamente para referir-se ao
Complexo de Édipo [Ödipuskomplex]. A mesma proliferação de complexos, nós a vemos no plano da cultura,
no contexto brasileiro. É preciso notar como os “complexos” se adequaram à perfeição para os intelectuais do
século XX, em sua aplicação mais ou menos ‘selvagem’ à vida cultural. Além do Complexo da Dona Ausente
a que se refere Mário de Andrade, não é difícil lembrar o Complexo de Vira-lata de Nelson Rodrigues, de
quem falaremos noutro capítulo. Na segunda parte deste trabalho, veremos ainda autores como Mannoni,
com o “Complexo de Dependência” para referir-se à situação dos povos colonizados. Seria possível seguir
indefinidamente com uma exaustiva enumeração de complexos no plano da cultura, da crítica e da psicologia;
mas creio que já terá ficado suficientemente claro como cada um destes complexos mostra-se como uma
derivação do Édipo freudiano que, ao ter produzido tantos engendros, mostra sua produtividade (ainda que
nefasta). Entendo ainda que a máquina de fazer complexos fique encoberta sob uma certa legitimidade ao
alojar suas interpretações mais ou menos motivadas num conceito que, ao fim e ao cabo, parece ainda gozar
de respeito e de certa legitimidade. O Complexo de Édipo, portanto, surge aqui como um legitimador dos
complexos mais ou menos livremente elaborados pelos livre pensadores da cultura. Fanon (1952, 1961)
mostrará como estes complexos muitas vezes serem para legitimar posição fortemente ideologizadas para
alguns conflitos. Nesse sentido, foi (é) uma marca da elaboração junguiana pensar em termos de psicologia
dos povos [Völkerpsychologie], tratando de ver o arquétipo de cada povo. Nada mais distante do pensamento
56
Mário de Andrade, poeta, ao pensar no seu Sequestro da Dona Ausente, parece situar-
se a meio caminho entre o universalismo e o culturalismo, ao trazer tão somente elementos
de pesquisa etnográfica para a relação homem e mulher. Ao atentarmos para alguns trechos
da Dona Ausente que destaquei pelo negrito logo abaixo, poderemos ver a economia do
pensamento freudiano projetada nas particularidades culturais e históricas da colonização
brasileira. Vejamos:
(10) A Dona Ausente é o sofrimento causado pela falta da mulher nos navegadores de
um povo de navegadores. (Mário de Andrade, “Dona Ausente”, 1943, grifos meus)
(11) Mas a saudade da mulher persegue o casto, o desejo dela o castiga demais
(Mário de Andrade, “Dona Ausente”, 1943, grifos meus).
Assim, salta à vista do leitor que o que temos em Mário de Andrade é a reflexão de
Freud aplicada à poesia e à história nacionais, através do passado de navegações. O trajeto
proposto pelo poeta termina colocando em segundo sua própria descoberta, que advém do
deslocamento de certas noções da psicanálise pensadas a partir de uma situação dada da
cultura luso-brasileira: o complexo da Dona Ausente seria, no entender de Mário de
Andrade, uma doença nacional, que o poeta teria detectado por intermédio do pensamento
psicanalítico. Numa palavra, partir do universal da psicanálise para dele derivar uma
explicação do supostamente específico nacional. Entretanto, o que termina prevalecendo, e
isso busquei mostrar com os negritos com os quais salpiquei o texto, é bem outra coisa,
uma coita amorosa que parece independer da geografia e da história, e que se projeta para
freudiano que, mesmo nos últimos momentos de proximidade com Jung, qual seja o momento da escrita do
assim lido por Mário de Andrade, Totem et tabou, procurava na observação etnográfica – de segunda mão, no
seu caso – o traço universal que caracterizasse o sujeito. Assim, pode-se dizer que Freud tendia para o
universal – caracterizado no Édipo – enquanto Jung e os junguianos terminavam pela singularização
universalizadora – materializada nos diversos arquétipos e complexos. (O que é outra forma de mostrar a
oposição entre um e cinqüenta complexos). Outro nome deste conflito é a oposição entre universalismo e
culturalismo. A psicanálise freudiana tende para o universal, e mesmo Lacan vai nesta direção, ao admitir
particularidades no psiquismo dos povos, ao mesmo tempo em que se questiona do lugar desta particularidade
para a constituição subjetiva: “Este tal de culturalismo consiste em salientar, na análise, aquilo que, em cada
caso, diz respeito ao contexto cultural no qual o sujeito está imerso. Este aspecto não foi desconhecido até
agora – que eu saiba nem Freud nem aqueles que podem qualificar-se como especialmente freudianos jamais
o negligenciaram. A questão é de saber se se deve conceder a este elemento uma importância prevalente na
constituição do sujeito [...].” (Lacan, Seminário 2, 1955: 189).
57
além do complexo nacional urdido por Mário de Andrade. Ou seja, complexo da Dona
Ausente, assim lido, resulta na tristeza do homem sem mulher.
É preciso, neste momento, estabelecer uma distinção importante. Historicamente, o
trajeto de Freud seria outro, o procedimento na elaboração da psicanálise foi o de, a partir
da observação empírica, derivar as leis gerais que regem a psique do sujeito. O que
equivale partir do específico para dele derivar leis universais. Já Mário de Andrade, a partir
da teoria dos complexos e da psicalise freudiana, quer fazer derivar um mal tipicamente
brasileiro, ou seja, buscando estabelecer um mal específico – e nacional – a partir do
universal. Assim, seria possível supor que o que é supérfluo em termos freudianos é
desejável para Mário de Andrade – a Dona Ausente – e vice-e-versa.
1.1.7. Tristão de Athayde e o Lustprinzip – em busca da salvação do Freud decaído
Tenho defendido a noção de que nas viagens dos conceitos entre uma língua e outra,
e entre uma área e outra, marca-se a especificidade do leitor-tradutor, isto é, o lugar de onde
ele lê, seus interesses, suas limitações. Assim, o refoulement do Freud francês num
momento materializa-se numa aduana, sob a forma de censura ou controle alfandegário;
doutra feita – outra imagem – constrói-se freudianamente numa foto das roupas baloiçando
no varal; noutro momento ainda, numa livre interpretação do aparelho psíquico, projeta-se
junguianamente numa problemática mais ampla e traduz-se num Complexo que explicaria
um aspecto da cultura nacional. Acima de tudo, defendo que estes três exemplos mostram a
produtividade do pensamento freudiano na pluma, e nas lentes fotográficas do poeta
paulistano. Insisto que cada uma destas interpretações ou traduções de Freud não tem
nenhum vínculo de fidelidade ao psicanalista de Viena, e só justificam aqui o seu estudo
por fazerem parte da viagem do pensamento freudiano, e das mutações que ele sofre,
tomando a forma de pilares da constituição da obra de um poeta. Acrescento ainda que
estas mutações são inerentes ao lugar daquele que lê, e que não se devem atribuir –
ingenuamente – ao fato de Mário de Andrade ter lido uma tradução; muito embora, este
fato, claro está, possa ter influenciado na escolha de um ou outro termo.
Como uma sorte de contraponto a Mário de Andrade, exporei agora mais um caso
emblemático da divulgação de Freud no Brasil, que permitirá que se veja, outra fonte
58
leitora e divulgadora do pensamento freudiano, como também mostrar uma produtividade
absolutamente diversa daquela presente em Mário de Andrade. Refiro-me ao pensador
cristão Tristão de Athayde (Alceu Amoroso Lima), crítico e figura ativa no campo da
cultura, ao longo do século XX.
Athayde travou contato com a obra de Freud mais ou menos na mesma época que os
demais autores aqui tratados, e sua presença aqui mostra sua produtividade, pois difere
cabalmente da leitura clínica de Franco da Rocha, da leitura poética de Mário de Andrade;
trata-se, antes de tudo, de uma leitura de um homem de Deus, tocado e concernido pela
religião católica.
Athayde foi o autor de dois artigos de jornal, numa seção chamada Vida literária,
publicada no jornal carioca Diário de Notícias
24
. Em tais artigos, ocupa-se em falar sobre a
obra de Freud. Mário de Andrade leu, certamente, o segundo artigo da série, chamado
Freud II, e guardou-o, bom leitor que era, dentro de seu exemplar de Introduction a la
psychanalyse. (Cf. Nite Ferres, 1969:71).
Tristão de Athayde reuniu posteriormente seus dois artigos, e publicou-os em um
pequeno livro, ao que parece em 1929 (não há data no volume), na série Jackson de
Figueiredo, do Centro D. Vital, no Rio de Janeiro. O volume, in-oitavo, chama-se Freud, e
é o décimo quarto de uma série que já versara sobre temas religiosos – como O culto de
Maria, no Brasil, Reflexões sobre o milagre de Pio VI a Pio XI ; políticos – O comunismo;,
literários – Ensaio sobre Mauriac (de autoria de Augusto Frederico Schmidt); e sexuais –
Educação sexual. A esta série acrescenta-se o volume de Athayde.
Nota-se que já nesses primeiros tempos no Brasil, o pensamento de Freud – ou
fragmentos dele – passam a ser discutidos no âmbito da medicina (com Franco da Rocha),
da arte (com Mário de Andrade, Franco da Rocha e Durval Marcondes) e da filosofia e
religião (com Tristão de Athayde), o que denota que desde os primeiros tempos, no Brasil,
as reflexões de Freud tinham grande circulação no circuito extraclínico. E a multiplicidade
de áreas que debatem, ou ao menos citam fragmentariamente as ideias freudianas, terminam
24
Mário de Andrade era leitor assíduo de Tristão de Athayde. Há outros recortes da coluna Vida Literária nos arquivos do
escritor. Ricardo de Souza Carvalho (2001:100) reproduz a coluna intitulada “O baptismo de América”, em sua
dissertação de mestrado. Mário dedicará em seu livro Aspectos da Literatura Brasileira um artigo a esse singular
pensador, que depois também será matéria frequente das crônicas de Nelson Rodrigues, cuja obra será tratada no próximo
capítulo.
59
por introduzi-lo no debate nacional de modo bastante particular. Vejamos, por exemplo, o
Freud de Tristão de Athayde.
No texto do livro, no qual é notório o assombro do crítico em relação a Freud,
alternam-se momentos de reconhecimento e tentativas de desqualificação do vienense. A
estratégia do texto I do livro – que equivale ao primeiro artigo – é inserir Freud na tradição
filosófica, comparando-o a Nietzsche:
Eu vejo em Freud um Nietzsche sem gênio. [...] E se Nietzsche procurou, como typo de
ser humano, o extremo superior do individuo, Freud procurou o extremo inferior. De modo
que podemos dizer de Nietzsche que é o philosopho do Super-Homem e de Freud que é
o psychologo do Infer-Homem. (Athayde, 1929:7-8, grifos meus)
Na tentativa de explicar – por uma comparação supostamente filosófica – a aberração
que ele considera ser Freud, o autor, através de uma tentativa de historicização, busca no
Renascimento a busca dos descaminhos do pensamento:
Desde o Renascimento que essa inversão começou. A hierarchia natural dos seres e do
conhecimento dos seres começou a perder-se. [...] De modo que a revolução
copernicana e galileana veio abalar fortemente a estructura do pensamento
occidental, por onde se espalhava o christianismo. Começou, então, em todos os
campos de acção, a predominar o individualismo. (Athayde, 1929:12, grifos meus)
O pensamento de Athayde padece de pessimismo, lamentando uma certa involução
do pensamento ocidental, ao qualificar mesmo Galileu e Copérnico como responsáveis pelo
abalo da hierarchia natural dos seres e do conhecimento dos seres.
Deliberadamente ou não, Athayde está retomando um argumento utilizado pelo
próprio Freud, num artigo de 1917, chamado “Eine Schwierigkeit der Psychoanalyse” , que
ficou conhecido na tradução argentina como “Una dificultad del psicoanálisis”. Entretanto,
se houve leitura deste argumento por esta época, o mais provável é que esta tenha se dado
através da 18ª conferência, presente no volume Introduction a la psychanalyse. Trata-se do
seguinte :
Dans le cours des siècles, la science a infligé à l´égoïsme naïf de l´humanité deux
graves démentis. Le première fois, ce fut lorsqu´elle a montré que la terre, loin d´être le
centre de l´universe, ne forme qu´une parcelle insignificante du système cosmique dont
nous pouvons à peine nous représenter la grandeur. Cette première démonstration se
rattache pour nous au nom de Copernic (Freud, Introduction a la Psychanalyse,
1917:266, grifos meus)
60
Antes de seguir a exposição de Freud – a segunda afronta ao egoísmo humano –
voltemos a Athayde:
E o curioso é que esse individualismo extremado, essa subordinação de Deus ao
homem, - que é o extremo de toda a inversão a que chegou o espírito humano em nossos
dias – foi auxiliado consideravelmente, no correr do século passado, por todos aquelles
movimentos de idéas que julgavam, ao contrario, deslocar o centro da explicação das
coisas do homem para a natureza. Darwin, por exemplo, visou sempre mostrar que o
homem nada mais é do que um animal, relativamente aperfeiçoado. Ora, o
darwinismo se espalhou por todos os caminhos de actividade, ficou sendo um synonimo
de luta inflexivel pela vida, de selecção dos mais fortes, de volta ao homo homini lupus de
Hobbes (Athayde, 1929:14-15, negritos meus, itálicos do autor)
Eis a segunda ferida narcísica apontada por Freud, doze anos antes:
La second démenti fut inflingé à l´humanité par la recherche biologique, lorsqu´elle a
réduit à rien les prétentions de l´homme à une place privilégiée dans l´ordre de la
création, en établissant sa descendance du règne animal et en montrant l´indestructibilité
de sa nature animale. Cette derniére révolution s´est accomplie de nos jours, à la suite des
travaux de Ch. Darwin, de Walace et de leurs prédécesseurs, travaux qui ont provoqué la
résistance la plus acharnée des contemporains. (Freud, Introduction a la psychanalyse,
1917: 266, grifos meus)
É evidente a homologia de argumentação dos dois autores, ocupando ambos,
entretanto, lugares opostos quanto à apreciação dos fatos nos quais coincidem em atribuir
importância na concepção da humanidade acerca de si mesma. Athayde, no passo seguinte
de sua argumentação, no momento de inserir a psicanálise nesta ordem de acontecimentos,
opõe justamente Nietzsche a Freud mais uma vez, como forma de argumentar que o homem
não é nem uma coisa nem outra, isto é, nem super-homem, nem infer-homem, mas algo
intermediário entre ambas coisas. É o expediente relativizador ao qual ele recorre para
opor-se ao que ele qualifica de “a excitação do público” (op. cit., p 25) em relação ao
pensamento de Freud. E para afirmar que os tempos que correm são de fato relativos, busca
mostrar como o próprio Freud não se manteria o mesmo, e tampouco haveria unanimidade
em relação a ele:
E hoje se começa a reagir conscientemente contra Freud, como a princípio se reagira
cegamente [...] – e depois se acceitara cegamente, vendo em Freud ‘um novo Kepler, um
novo Galileu’, como ainda hoje o vêm muitos discípulos seus, não só longe daqui, mas
entre nós... (Athayde, 1929:26)
Athayde se apóia para tal afirmação num volume recentemente publicado na
Alemanha, o qual, para ele, denotaria uma mudança no espírito em relação ao pensamento
61
psicanalítico
25
. Através de um de seus artigos, do psiquiatra Han Prizhorn, indica as
supostas fases do pensamento de Freud: “hysteria, psychiatria, psychologia e
metaphysicologia” (op. cit.,p. 29). E da metaphysicologia, que Athayde aparenta à
metafísica, é que Freud – como bom cristão decaído – estaria voltando à religião:
E em Freud tocamos vivamente essa monstruosidade typica do homem-seculo XX.
Toda a sua actual pretensão metapsychologica, que sucedeu ás phases sucessivas de
medicina, de psychiatria e de psychologia – é uma tentativa de passar do que ha de
animal no homem ao que ha de divino. Até ha poucos annos toda a sua doutrina
girava em torno do ‘Lust-prinzip’, do principio de conscupicencia. Hoje em dia elle se
colloca ‘jenseits des Lust-prinzips’, para além do princípio de conscupiscencia, como o seu
patrono Nietzsche se collocava para além do princípio do bem e do mal. E da mesma
fórma que Nietzsche chegou por elle á sua doutrina do ‘Uber-mensch’, Freud chegou hoje
em dia á sua doutrina do ‘Uber-Ich’, que é actualmente a sua grande preocupação. E dahi
a attenção consideraval que tem dedicado ao problema religioso (Athayde, 1929:45-6,
grifos meus)
Chamo ainda a atenção, para além da leitura bastante peculiar e cristã de Athayde, a
instigante tradução do termo Lust, de Lustprinzip. Coerente com sua leitura de Freud como
cristão decaído, Tristão de Athayde traduz Lust por concupiscência, termo pejorativo
notadamente de uso religioso que, por oposição, marca o afastamento das coisas divinas.
Eis, portanto, outra interessante viagem das ideias freudianas. O pensamento de Freud é
deslocado da clínica à filosofia, tomando, ao longo de todo o livro, como dissemos,
Nietzsche como contraponto. Mais eis o que neste momento tardio do pensamento
freudiano seria um afastamento de Nietzsche (cf. p. 28). Assim é que se faz possível
postular a equivalência entre o “para além do bem e do mal” de Nietzsche e o “princípio da
concupiscência” [sic] de Freud. Atenhamo-nos ao termo: Athayde, em meio à vasta gama
de escolhas para a tradução de Lust, opta por aquela mais cara ao discurso religioso.
Vejamos:
Conscupiscência  [...] 1 cobiça de bens materiais; 2 anelo de prazeres sensuais Ex.:
confunde amor com c.; 3 Rubrica: filosofia. no agostinismo, luxúria carnal, desejo
libidinoso 4 Rubrica: filosofia. no tomismo medieval, desejo de prazer gerado por uma
realidade física, material; 5 Rubrica: teologia.; aspiração humana de bens naturais ou
sobrenaturais 5.1 movimento de amor em direção a Deus e aos homens 6 Rubrica:
teologia. Uso: pejorativo. cobiça natural do homem pelos bens terrenos,
conseqüência do pecado original e que produz desordem dos sentidos e da razão.
(Houaiss, ed. Eletrônica, grifos meus)
25
Krisis der Psychoanalyse – I Band. Auswirkungen der Psychoanalyse in Wissenchaft und Leben – Der Neue Geits
Verl. Leipzig – 1928” (Athayde, 1929:27)
62
Vemos portanto, em Tristão de Athayde, um pensador cristão fazendo a defesa de
sua doutrina. Cabe marcar a ideologização inerente ao processo tradutório. Mas não se
perca de vista a torção perpetrada por Athayde no princípio do prazer, em uso na reflexão
de Freud, e o princípio da concupiscência que ele introduz. Tal procedimento tem como
conseqüência tornar o decaído Freud, pensador sem Deus do século XX, reaproximando-
se da salvação ao final de seu trajeto de vida, ao superar a concupiscência e voltar-se para
as coisas divinas. Vivesse Freud mais alguns anos, certamente Tristão de Athayde lhe
dedicaria uma biografia de estilo hagiográfico.
1.1.8. Libido x fomes amorosas
Se se fora buscar em Freud o conceito que Tristão de Athayde quer expressar com
seu princípio de concupiscência – ainda que seu uso seja primordialmente retórico – seria
preciso buscar em outro lugar, que não no texto Para além do princípio do prazer. Pois é
preciso fazer notar que o Lustprinzip de Freud refere-se não ao gozo, mas ao princípio de
conservação, de busca de homeostase do sujeito, fugindo do desprazer; nessa perspectiva,
o gozo seria o ultrapassamento do princípio do prazer, não sua realização. Aquilo que é da
ordem do desejo sexual – que tampouco se confunde com luxúria – será expresso por
Freud em sua obra através do termo latino libido.
Na biblioteca de Mário de Andrade, tal termo encontra-se expresso logo no início
do primeiro dos Trois essais sur la theorie de la sexualité (1905). Em seu romance Amar,
verbo intransitivo (1927), do qual nos ocuparemos mais adiante, o autor adota uma
posição saborosamente ambígua em relação a Freud: por um lado recusa o seu termo
libido, ao mesmo tempo em que, para propor sua tradução, opta por uma sugestão do
próprio Freud:
(12) O que Sousa Costa pensava, mas não tivera a intenção de falar: pagavam só para que
ela [Fräulein Elza] se sujeitasse às primeiras fomes amorosas do rapaz.
Este circunlóquio das ‘fomes amorosas’ fica muito bem aqui. Evita o ‘libido’ da
nomenclatura psicanalista, antipático, vago masculino, e de duvidosa compreensão
leitoril. As fomes amorosas são muito mais expressivas e não fazem mal para
ninguém. Isto é: vir na casa de Sousa Costa unicamente pra se sujeitar às tais de Carlos
(Mário de Andrade, Amar, verbo intransitivo,1927:77, grifos meus)
63
Aqui, o alvo do narrador é duplo, por um lado facilita o vocábulo para o leitor, sob a
justificativa de evitar a “nomenclatura psicanalista”, mas, ao mesmo tempo, incorre num
procedimento claramente freudiano: Freud sempre foi conhecido, por seus leitores no
alemão, de ser possuidor de um estilo límpido e coloquial.
Ademais, ao afirmar que as fomes são mais expressivas e não fazem mal para
ninguém, o narrador parece atingir ainda outro alvo, ao lograr deslocar o que é da ordem da
psicanálise (ou da sexualidade) do campo médico e do campo do patológico, para um
cotidiano chão. Numa palavra, opõe-se frontalmente, por exemplo, à posição de Tristão de
Athayde – cujo recorte sobre Freud já estava por esta altura em seu exemplar de
Introduction a la psychanalyse. Para Athayde, o aprofundamento de estudo da sexualidade
no homem implicava tornar o homem, como vimos, infer-homem, animalizá-lo; já o
movimento de Mário de Andrade segue a mão oposta. Na obra acima, por exemplo, ele
sexualiza o lar burguês ao, num movimento em paralelo ao de Freud, expõe a sexualidade
dentro do ambiente familiar. Assim, Mário de Andrade se mostra o mais freudiano, ao
incorporar algo da sexualidade ao lar burguês.
Além disso, ao adotar o termo fomes amorosas para referir-se aos desejos sexuais
do garoto, na verdade, está fazendo uso de um termo postulado pelo próprio Freud:
Pour expliquer les besoins sexueles de l´homme et de l´animal, on se sert, en biologie, de
l´hypotèse qu´il existe une ‘instinct sexuelle’; de même que pour expliquer la faim, on
suppose l´instinct de nutrition. Toutefois, le langage populaire ne connaît pas de terme
qui, por le besoin sexuel, corresponde au mot faim ; le langage scientifique se sert du
terme ‘Libido’. (FREUD, Sigmund. Trois essais sur la theorie de la sexualité, p. 19,
grifos meus)
Ao optar pelas fomes amorosas, em detrimento da libido, e mais poéticas do que o
também possível apetite sexual, Mário logra uma sexualidade terrestre, cotidiana,
desalojada do campo dito por ele científico, e também do campo pecaminoso instaurado
pelo cristão Athayde, com seu princípio de concupiscência. E ainda resolve o desafio
linguístico proposto pelo próprio Freud. É nessa chave da criação que poderemos entender
melhor a produtividade do pensamento psicanalítico em Mário de Andrade e discernir o
lugar, em sua obra madura, de uma visada mais propriamente psicanalítica.
64
1.1.9. Amorosa errância entre línguas... Amar, verbo intransitivo
A gramática apareceu depois de organizadas as línguas.
Acontece que meu inconsciente não sabe da existência de gramáticas,
nem de línguas organizadas.
E como Dom Lirismo é contrabandista...
“Prefácio Interessantíssimo”, Mário de Andrade, 1924:33
26
Nomear de “errância entre línguas” a seção deste trabalho dedicada ao romance
Amar, verbo intransitivo (1927) remete não somente ao alvo mais evidente – o
aprendizado do alemão do jovem burguês Carlos, concomitante e a cargo da mesma
mestra responsável por seu aprendizado sexual. A língua estrangeira aparece neste
romance como recurso de composição fundamental. O emparelhamento entre o
aprendizado amoroso-sexual e o lingüístico já se dá a ver a partir do título da obra, onde
também aparece a fundação do conflito de Fräulein Elza, dividida entre o método do amor
equilibrado e seu inescapável envolvimento com o adolescente Carlos.
Errância entre línguas faz menção ainda à migração, tema central do romance, bem
como da história cultural de São Paulo do início do século, onde estão aí inclusos os
migrantes Elza, Tanaka, mas também o pensamento psicanalítico – importante alvo das
reflexões aqui pressentes – e sua aculturação no ambiente brasileiro.
A noção da passagem de uma língua à outra se refere ainda a um dado biográfico de
Mário de Andrade. É importante trazer à cena que o período de composição desse
romance – indicado por Ancona Lopez como sendo entre 1924 e 1927 – é imediatamente
posterior ao início dos estudos de alemão do escritor; bem como sucede em poucos anos
ao início de suas leituras de psicanálise. Assim, Freud torna-se uma figura importante da
obra, por dialogar diretamente com a cultura alemã, que tem na personagem Fräulein
Elza, a professora de alemão e piano, sua principal representante, mas também sobre
Freud. Além disso, traz reflexões sobre o amor e o sexo, em torno da qual orbita o
inexperiente Carlos, advindas de debates do narrador com ideias freudianas.
É importante fazer notar ainda ao leitor que, se há um movimento em Amar, verto
intransitivo, de aproximação à cultura e à língua alemãs, com o que seria de se supor que
26
O psicanalista francês Charles Melman, num livro de 1992, ao tratar das incidências subjetivas da relação entre línguas,
cunhará frase semelhante a esta, ao dizer que: “Do ponto de vista lingüístico, nada se opõe à penetração de uma língua por
outra [...] O inconsciente não é nacionalista nem xenófobo.” (Melman, 1992:16). Mário de Andrade já avançara um pouco
em tal discussão a partir de seu Amar, verbo intransitivo.
65
tivéssemos Herr Professor Freud em seu próprio ambiente, trata-se ainda de Docteur
Freud, pois Mário de Andrade não fez, até onde conta, leituras do vienense no original.
Assim, o encontro entre a cultura alemã e a psicanálise freudiana faz-se via língua
francesa em ambiente paulistano, o que, diga-se, é bem apropriado a esta São Paulo dos
anos vinte – ponto de chegada de migrantes e cosmopolita.
Trata-se da língua de Freud, mas não dangua da obra de Freud. A cultura alemã
aparecerá na obra através referências culturais de Elza, materialmente – e nem sempre
traduzida – na superfície lingüística do texto, ganhando por vezes papel central. Termina
por se construir assim – para o não-leitor de alemão – um território novo no qual Carlos
vai sendo introduzido pela mestra, ao qual nem sempre aquele que lê a obra tem acesso.
Curiosa maneira do narrador de sugerir uma intimidade do casal que resta sempre como
inacessível ao leitor.
Nesse ambiente idílico e impenetrável, como costuma ser o da intimidade dos novos
casais, a psicanálise encontra um lugar onde se alojar, tanto no que tange aos mistérios da
iniciação amorosa do adolescente quanto a suas vicissitudes lingüísticas entre o português
e o alemão. Ressalte-se que, como indicado na conjugação proposta pelo título da obra,
ambas as instâncias – amor e língua estrangeira – surgem como inseparáveis. Imiscuem-se
a língua alemã e a figura da amante, e o próprio amar é mostrado como língua estrangeira.
A psicanálise, portanto, não se instala na obra com um discurso forte, como um
lugar de saber a partir do qual explicam-se os mistérios da iniciação amorosa. Trata-se
exatamente do contrário, a psicanálise instaura-se – com o narrador – num lugar de não-
saber, a partir do qual surgem os mistérios do cotidiano (o lapso, o esquecimento, o
sintoma, o desejo) com a meia-luz que caracterizará a narrativa do século, sem verdades
cabais. Nada mais distante, portanto, do lugar-comum a partir do qual é criada a
referência à psicanálise, no bordão: “Freud explica!”
27
Assim, todas as discussões sobre temas amorosos ou sexuais, que poderiam
encontrar em Freud uma palavra final, são sustentadas um pouco mais, de modo
inconclusivo. Passa-se, portanto, do bordão daquele que tudo sabe e tudo explica, a outro,
27
A disseminação desse bordão será mostrada no próximo capítulo, que tem por tema a difusão das ideias de Freud no Rio
de Janeiro. Entre os cariocas, já na obra de Renato Vianna (1934) o bordão está funcionando. Mas é preciso sublinhar que,
em terras paulistanas, na literatura modernista, já circula uma certa imagem de Freud como aquele que é capaz de tudo
explicar, como aparece, por exemplo, nas narrativas de Alcântara Machado (em “Mana Maria” das Novelas Paulistanas),
e na Salomé de Menotti del Picchia, onde quem aparece nesta posição é o Dr. Marcondes.
66
mais aberto, repetido à exaustão pelo narrador ao longo do romance: “Ninguém o saberá
jamais”. É dessa forma que o narrador termina por destituir-se, de modo auto-irônico, de
qualquer caráter de onisciência. Através desse recurso literário, o narrador parcial, não
somente ele não coincidente consigo mesmo, urde uma personagem que, no dizer deste
mesmo narrador “não concorda consigo mesma” (op. cit, p. 79), instaurando assim, de
modo cabal, um ensaio do sujeito da psicalise na narrativa do modernismo paulistano.
É por este relativismo, por este lugar do mistério que melhor se pode perscrutar a
presença freudiana em Amar, verbo intransitivo. É assim que se pode entender como,
apesar de “gordo de freudismo” (op. cit, p. 153), o livro não se transforma num enfadonho
romance de tese oitocentista. Inclusive porque, na leitura fina que já havia feito a esta
altura Mário de Andrade da obra de Freud, ele logrou entender que a psicanálise não dá
conta apenas do patológico, mas também do funcionamento psíquico do sujeito medíocre,
burguês e bem nascido, como é o caro do intranscendente Carlos.
Assim, é neste ambiente e com estes personagens – e não num cortiço naturalista do
século anterior – que o narrador vai desfiando, uma a uma, as teses freudianas, sem que
isso cause qualquer espécie ao leitor. Entendo que o incômodo maior, que talvez tenha
suscitado críticas por parte dos contemporâneos do romance, seja a intromissão algo
excessiva por parte do narrador, mas aí seria preciso dizer também que este é um
procedimento que, em nossas letras nacionais, remonta a uma tradição que talvez
Machado de Assis haja instituído.
28
Bastem-nos alguns exemplos da passagem do que é lido em Freud ao que é escrito
em Mário de Andrade neste romance, sem que isso implique em engordar o freudismo da
obra, antes de ver como o pensamento freudiano, a partir da leitura de Mário, funciona
literariamente no livro.
Mantendo-nos inicialmente na tensão estabelecida entre as línguas alemã e
portuguesa, e a tensão sexual entre Fräulein e Carlos, poderíamos estabelecer um trajeto
que tem início já nas primeiras páginas do romance. Num primeiro momento temos
Carlos resistente à língua que a alemã vem lhe ensinar, desprovida ela de qualquer
28
Poderia constituir uma seção à parte deste trabalho uma arrolagem das críticas negativas recebidas por Mário de
Andrade referentes a este romance. Entretanto isso nos levaria longe de nossos objetivos aqui, que são de qualificar os
logros narrativos do autor em relação ao pensamento psicanalítico.
67
sedução ou mesmo interesse; ao mesmo tempo, Carlos pouco se interessa pela professora;
a recíproca parece ser verdadeira. Vejamos como urde o narrador tal paralelismo:
(13) No princípio tinha de ser simples. Simples e insexual. O amor nasce das excelências
interiores. Espirituais, pensava [Fräulein]. O desejo, depois. (Mário de Andrade. Amar,
verbo intransitivo, 1927:50)
(14) Quantos anos você tem?
.. fazer dezasseis
Ich Bin sechzehn Iahre alt.
Carlos repetia encabulado.
Não. Pronuncie melhor. Não abra assim as vogais. É sechzehn.
Sechzehn.
Isso. Repita agora a frase inteira.
Em inglês eu sei bem! I´m sixteen years old!
Fräulein escondeu o movimento de impaciência. Não conseguia prender a atenção do
menino. O inglês e o francês eram familiares já para ele. [...] Mas alemão... Já cinco lições
e não decorara uma palavrinha só, burrice? Nesta aula que acabava, Fräulein já fora
obrigada a repetir três vezes que irmã era Schwester. Carlos aluado. As palavras alemãs
lhe fugiam da memória, assustadiças, num tilintar de consoantes agrupadas. Pra salvar a
vaidade respondia em inglês. Machucava a professora, lhe dando uns ciúmes
inconscientes. (op. cit., p. 56, grifos meus)
Note-se como Carlos abriga-se no que é familiar – a língua inglesa – e resiste a
aprender o alemão de Fräulein. Assim como não tem olhos ainda para a professora, e
mantém-se nos jogos vagamente sexuais com a irmã:
(15) O menino agarra a irmã na boca do corredor. Brincalhão, bem disposto como
sempre. E machucador. Porém não fazia de propósito, ia brincar e machucava. Cingia
Maria Luísa com os braços fortes, empurrava-a com o peito, cantarolando bamboleado no
picadinho. Ela se debatia, danando por se ver tão mais fraca. Empurrada sacudida revirada
[...] Sacudida revirada, tiririca, socos. [...] Empurrada sacudida. [...] A carne rija dele
recebia os socos, deliciada. (op. cit., pp. 51-52, grifos meus)
Assim, faço notar que neste primeiro momento de suas aulas com Elza, Carlos
mantém, ao lado da resistência ao alemão, a insistência nos jogos eróticos com a irmã. Da
mesma forma, é possível notar na narrativa como o interesse pelo alemão dá-se
concomitantemente ao desinteresse pela ir e a uma certa aproximação erótica a Elza. O
que equivale dizer, em termos freudianos, que está estabelecida aí uma escolha de objeto
(erótico) para além do âmbito familiar. Trata-se do que seria, segundo Freud, a dissolução
do complexo de Édipo.
Vejamos, à maneira de ilustração, como se dá, num momento posterior da narrativa, a
conjugação destes três âmbitos: relação com a irmã, com a língua alemã e com Elza.
Primeiro o interesse de Carlos pelo alemão, ligado à figura de Elza:
68
(16) De repente Carlos começou a estudar o alemão. Em 15 dias fez um progresso danado.
Quis propor um aumento das horas de estudo, porém, não sabendo bem porque, não
propôs. Lhe interessava tudo o que era alemão, comprava revistas de Munique.
Andava com elas na rua e depois vinha depressa entregá-las a Fräulein. [...] Um dia
afirmou no jantar que Goethe era muito maior que Camões, maior gênio de todos os
tempos (op. cit., p. 61-62, grifos meus)
Tal interesse súbito é antecedido por uma cena de aula, na qual o garoto, aluado,
abandona seu olhar nos cabelos da professora. Ele próprio – e ela – vai descobrindo que sai
da sua órbita cotidiana, e seu olhar vai, pouco a pouco, passando a orbitar em torno a
Fräulein:
(17) O menino aluado como sempre. Fixava com insistência um pouco de viés... Seria a
orelha dela? Mais pro lado, fora dela, atrás. Fräulein se volta. Não vê nada. Apenas o
batalhão dos livros, na ordem de sempre. Então era nela, talvez a nuca. Não se desagradou
do culto. Porém Carlos com o movimento da professora viu que ela percebera a insistência
do olhar dele. Carecia explicar. Criou coragem mas encabulou, encafifado de estar
penetrando intimidades femininas. Não foi sem comoção, que venceu a própria
castidade e avisou:
Fräulein, seu grampo caiu. (op. cit., p. 58, grifos meus)
É importante perceber como é do seu lugar de garoto aluado que Carlos é capturado
pela imagem da professora. Assim, chamo a atenção para a reiteração do termo aluado em
ambas cenas, concomitante ao deslocamento do familiar, do termo irmãSchwester – no
qual ele ficara empacado (cf. fragmento 14) para o que veio em seguida, um interesse
súbito pela professora. Evitando relações causais demasiado mecânicas, o narrador deixa
claro que neste momento Carlos ainda não estuda, mas algo deste momento fertiliza-lhe o
interesse pela língua, isso é inegável, como vimos pelo fragmento 16.
A essa cena seguem as discretas narrações das práticas masturbatórias de Carlos (cf.
op. cit., p. 70), que já são um indício mais do deslocamento do jogo erótico-infantil com a
irmã para uma tentativa de inclusão do sexual à imagem de Fräulein. Dito de outra forma,
às brincadeiras com a irmã e à atitude aluada diante de Fräulein, começa a surgir a própria
imagem da preceptora em suas práticas masturbatórias. Abre-se, passo a passo, como é
página a página previsto pela alemã, e como rezava o contrato com o pai, a consumação da
relação sexual entre professora e aluno.
Nesse ínterim, porém, seguirá a instigação do garoto por parte de Fräulein, que
atingirá seu cume na aula em que ambos leem um poema de Heine (que nos é oferecido por
Mário de Andrade no original e com mais três traduções ao final do livro), e cujas
69
insinuações da professora crescem sobremaneira no verso final, que alude às pérolas nas
profundezas do mar, em especial na expressão “Tiefe ruht” (cf. op. cit., p. 75). Mais uma
vez o aprendizado da nova língua por Carlos é erotizado.
Paulatinamente, seria de se esperar, portanto, que a pequena Maria Luísa fosse
perdendo espaço para a alemã, traduzido no desinteresse do irmão mais velho. Há, neste
sentido, uma cena digna de nota, quando Maria Luísa está “brincando de família” com a
irmã Aldinha, de cinco anos; é quando subitamente chega Carlos, querendo também
brincar. Nessa cena, a interação entre os irmão é verbal, não há o menor indício de que
Carlos toque a irmã; mas ressalto que é quando ele mais a machuca:
(18) Também quero brincar!
Não pode!
Que tem, Aldinha! Deixe ele! Carlos é o pai da sua filha!
[...]
Não careço de pai pra minha filha! Só se for da de você!
Maria Luísa se cala porque também não quer pai pra bebê tão bonito. O imperialismo das
mães... Carlos ainda mais encafifa a menina:
Também você pensa que eu vou ser pai duma boneca de celulóide! Não vê! Sou pai
só de bonecas de louça! (op. cit., pp. 105-106, grifos meus)
Nesse mesmo dia, Maria Luísa adoece, com uma gripe forte que a mantém de cama
por longo tempo. O adoecimento, numa perspectiva freudiana, seria resultado de uma
conversão, fruto da rejeição do irmão. Esta leitura, que se depreende da obra de Freud, é
consignada pelo próprio narrador, páginas adiante: “Gripe danada. Apanhara-a naquela
tarde fria, brincando de família com as irmãs.” (p. 112). Na perspectiva do jogo, dada a
impossibilidade de ter uma filha com o irmão mais velho – que já não se interessa pelas
bonecas de pano, apenas pelas de louça – a jovenzinha sofre a rejeição, adoece, e volta-se
para a mãe em busca daquilo que a faria desejável e casadoira. Pede então à mãe, o que o
irmão Carlos lhe recusara: “Mamãe, mas depois você dá uma boneca de louça para
mim?” (p. 113). Por contraste, o narrador termina mostrando a diferença de posição entre
os dois irmãos: enquanto Carlos olha já para fora do circuito familiar, os mistérios da
sexualidade seguem velados para a pequena Maria Luísa, para quem inclusive a diferença
sexual segue sendo um mistério.
Chamo a atenção do leitor para o fato de que Mário de Andrade logra mostrar o
complexo de Édipo na perspectiva do romance familiar. Assim, na atualização literária do
70
quadro edípico, via Freud, vê-se a incidência do processo de saída do Édipo por parte do
garoto nos membros da família. Tal incidência termina por explicitar, como dizia acima, a
oposição entre Freud e Jung: o complexo de Édipo, tal como é pensado por Freud – aqui
posto em cena por Mário de Andrade – não se limita ao processo de escolha de objeto
sexual por parte dos garotos,
29
antes de uma dinâmica familiar, na qual toma parte todo o
clã.
Outra cena, que remete diretamente a La Psychopathologie de la vie cothidienne, é
motivada pelo fato corriqueiro do esquecimento de uma palavra. É o momento em que o
âmbito da intimidade do casal, o do aprendizado do alemão, torna-se armadilha para o
próprio par. Trata-se do inexplicável esquecimento da tradução em português da palavra
Geheimnis. O fato, aparentemente banal, é referido por Fräulein na mesa do almoço, diante
da família de Carlos. Tal confissão, entretanto, vai, pouco a pouco, ganhando um outro
contorno, delineado por um evidente constrangimento de Carlos e Elza que, ao terem
revelado o fato, parecem, de alguma forma, terem se auto-incriminado, e terminam presa do
medo de que com a tradução pudesse ser revelado algo que denunciasse a natureza da
relação secreta entre os dois:
(19) Tem alguma coisa, Fräulein?
Ela meio que ri:
Não é... (hesita. Afinal conta:) Mas acontece cada uma. Nós hoje encontramos uma
palavra na lição... Sabemos como é em português, porém não há meios de lembrar. Parece
incrível, palavra tão comum... E nem eu nem Carlos! (Mário de Andrade, Amar, verbo
intransitivo, 1927:107)
Sublinho o fato de que Carlos, falante nativo do português, partilha do
esquecimento da preceptora, ao também reconhecer a palavra em alemão, mas não ser
capaz de dizê-la em português. O exato oposto do garoto que resistia a ingressar no novo
idioma, e que agora mal consegue sair dele, ao menos neste esquecimento incriminador.
O território secreto de ambos, ao mesmo tempo em que não encontra sua passagem
ao português, revela-se vedado aos comensais, no constrangimento da professora e do
aluno. Pois, aquilo que era o esquecimento ocorrido entre os dois, revela-se como enigma
na mesa familiar. Dito de outra forma, a palavra esquecida entre ambos, mesmo que sob a
29
A crença de que o complexo de Édipo é exclusivo para os meninos é que levou Jung a pensar num complexo de Electra,
exclusivo para as meninas.
71
forma de enigma, é trazida para o âmbito familiar por Fräulein. O constrangimento de
Carlos e Elza é total.
Entretanto, ressalto também que, embora o que está em jogo seja a relação secreta
do casal, a qual é insidiosamente posta em risco de se revelar através do esquecimento
incriminatório de uma palavra, temem eles – ou desejam? – a revelação absoluta perante
toda a família
30
. Ou seja, o que se apresenta como ameaça e mistério já é sabido – em maior
ou menor grau – pelo diversos membros da família, posto que cada um, à sua maneira, já se
posicionou ou sofreu as consequências da relação dos dois. E é justamente neste paradoxo
que reside a importância da descoberta freudiana; o que está em questão, para além do
medo dos dois de serem descobertos como casal, é uma exposição pública, que saia da
ordem do não-dito, e se desvele
31
.
O não-dito do casal, exposto sob a forma de enigma, é suficiente para aterrorizá-los.
E a tortura mental seguirá, quando a irmãzinha Maria Luísa – que também está estudando
alemão – e cuja tensão sexual com o irmão é evidente, insiste em saber qual é palavra, que
ela tentará traduzir à mesa, como forma de chegar à alguma verdade:
(20) Diga a palavra, vamos!
Nn... não sei mais...
É Geheimnis, Maria Luísa.
Geheimnis... já escutei esta palavra...
Está vendo! não sabe!
Mas podia saber muito bem! (Mário de Andrade, Amar, verbo intransitivo, 1927:108,
grifos meus)
30
“As crianças têm progredido muito... [...] Pois até elas já perceberam! Você sabe o que são essas crianças de hoje! toda
hora mandam Carlos ir bulir com Fräulein!” (Amar, verbo intransitivo, p. 81)
31
Lacan, em seu Séminaire sur la “ Lettre Volée “ fala da política do avestruz, onde a ave lhe serve de modelo daquele
que se sente oculto, pois com o mero ocultamento da cabeça no buraco, crê na própria invisibilidade. O medo do
desvelamento de Elza e Carlos poderia ser equivalido a este do avestruz, como se ambos – com suas cabeças ocultas no
buraco, tivessem medo que a palavra secreta tivesse o efeito de retirá-la de lá. A outra maneira de ler tal cena pode ser
feita a partir de elementos trazidos pelo esloveno Slavoj Žižek (2006), que fala, em seu How to read Lacan? das astúcias
do que é da ordem do Simbólico, refere-se a ele como lugar do já-dito, das fórmulas e gestos vazios: “The most
elementary level of symbolic exchange is a so called ‘empty gesture’, an offer made or meant to be rejected. [...]
Something similar is parte of our everyday codes of behaviour. [...] Of course, the problem is: what if the person to whom
the offer to be rejected is made should actually accept it? [...] A situation like this is properly catastrophic: it causes the
disintegration of the semblance (of freedom) that pertains to the social order, which equals the disintegration os the social
substance itself, the dissolution of the social link. The notion of social link established through empty gestures enables us
to define in a precise way the figure of sociopath. [...] In other words, the sociopath´s use of language paradoxically
matches the standard commonsense notion of language as a purely instrumental means of communication, as signs that
transmit meanings. He uses language, he is not caught up it in, and he is insensitive to the performative dimension.”
(Žižek, 2006:12-13). Neste sentido, pode-se considerar também o não-dito sustentado à mesa por toda a família de Carlos
como a necessária manutenção do ritual familiar e a preservação dos valores da família burguesa. Não é ali o lugar de se
dizer verdades.
72
O fato de a pequena, que estuda alemão com a mesma professora e durante o mesmo
tempo que Carlos, não atinar com a palavra, embora já a tenha escutado, é bastante
revelador. Freud fala sobre como o esquecimento é contagioso. Isso fica claro no fato de o
esquecimento ter sido compartilhado por Carlos e Elza; entretanto, quando Maria Luísa
entra no circuito, inicialmente como aquela que pode desvelar o mistério, é logo capturada
por esta amnésia:
Je veux encore attirer l´attention sur ce fait que l´oubli de noms est contagieux au plus haut
degré. Dans une conversation entre deux personnes, il suffit que l´une prétende avoir
oublié tel o tel nom, pour que le même nom échappe à l´autre. Seulement la personne, chez
laquelle l´oublie est un phénomène induit, retrouve plus facilement le nom oublié. Cet
oubli ‘collectiv’ qui, rigoureusement parlant, est un des phénomènes par lesquels se
manifeste la psychologie des masses, n´a pas encore fait l´objet de recherches
psychanalytiques. (FREUD, Sigmund. Psychopathologie de la vie quotidienne, 1922:
47)
Freud segue, entretanto, com um ilustrativo exemplo de Reik, sobre o qual não
interessa nos determos, a não ser em um aspecto fundamental: por ele depreende-se que o
contágio ocorre porque, de alguma forma, o contagiado vê-se implicado naquela situação,
ou ver-se-ia afetado pela lembrança. Assim, seria razoável supor que Maria Luísa, ao
mesmo tempo em que se mostrava ávida por traduzir a palavra, tal como o casal de
amantes, vê-se atemorizada com a possibilidade da descoberta. A pequena Maria Luísa
certamente também atravessa uma iniciação ao longo da trama, ao ver-se privada do irmão,
e resistir a isso.
A lembrança da palavra, isto é importante, o casal a terá no momento do jantar e,
identificados que parecem estar um ao outro, ambos a têm a um só tempo. O fato de o
esquecimento ser enunciado no almoço, e a lembrança também se dar na mesa de jantar
deixa claro que os destinatários deste eloqüente esquecimento não são outros, senão os
familiares de Carlos:
(21) Carlos, venha jantar! Chame Fräulein!
Os dois exclamaram duma vez, sem a surdina que abafara o diálogo anterior:
Já sei!
Silêncio curto. Um espera que o outro fale. E juntos:
É segredo!
Rindo muito, descem para jantar. Fräulein anuncia que afinal descobriram a palavra,
Geheimnis quer dizer segredo:
Foi ela que achou!
Eu só não, Carlos. Fomos os dois.
E ambos têm uma desilusão, palavra tão sem significância! Fräulein se admira de não ter
dado com ela mais cedo, come calmamente. Carlos acha agora que não tinha razão pros
73
terrores do almoço e do dia, come satisfeito. Nunca ninguém descobrirá! Sousa Costa,
não sei, porém me parece que teve uma intuição genial: olha malicioso pros dois.
(Mário de Andrade, Amar, verbo intransitivo, 1927:111, grifos meus)
É importante ter em conta o efeito revelador da palavra esquecida que ao mesmo
tempo reafirma o efeito anterior de encobrimento. A palavra segredo ao revelar algo,
encobre a natureza da relação que há entre os dois. Ambos tranqüilizam-se, ao conotar de
insignificante a palavra; entretanto, sua significação de caráter sexual não escapa ao pai,
Sousa Costa, que tem uma intuição genial.
Cabe nos perguntarmos sobre este segredo. Tal segredo, isto é, o de serem amantes,
parece, ao ser revelado na mesa de jantar, onde fora enunciada já na hora do almoço, não
ter meramente como alvo o manter invisíveis os dois avestruzes. Ao endereçar à família a
mensagem cifrada, a palavra Geheimnis mostra sua face mais insidiosa: eles têm uma
relação em segredo e toda a família, em diferentes graus, sabe disso. O casal, no seu lapso
compartilhado, revela portanto a natureza de sua relação, que deverá manter seu caráter
não-dito. Joga-se aqui não com o desvelamento de uma verdade oculta, como ambos
temiam. Mas como revelação de uma relação secreta, um segredo compartilhado por
todos, que seguirá não-dito no lar burguês.
Há mais, entretanto. O segredo que paira entre a tranqüilidade primeira de que
desfrutam Carlos e Fräulein, ao perceberem que a família não notou o poder de revelação
da palavra, e o desenlace de sua relação deixa entretanto uma questão em descoberto: a
família não sabe seu segredo, mas saberão eles próprios o segredo da relação amoroso-
sexual na qual tomam parte? Pois o segredo incide sobre cada um dos dois sujeitos de
maneiras bastante distintas; se ambos de alguma compartilhavam um segredo conjunto,
mas não o mesmo e nem da mesma forma, pois cada um estava numa posição bastante
diversa na relação. Carlos nada sabia – por exemplo – do segredo entre Fräulein e Sousa
Costa, que pagava a ela por sua iniciação amorosa e sexual; e para a própria Fräulein, o
estar-se envolvendo com Carlos constituía algo, para ela, de natureza quase inconfessável
e incompreensível. Está-se no limite daquilo que Lacan chamará o caráter não
simbolizável da relação sexual, traduzido por seu temido aforismo Não há relação sexual.
O termo que circundara velado a mesa de almoço, e que então retorna, ainda mais
enigmático na mesa do jantar, parece ainda trazer de volta a frase de tempos em tempos
repetida pelo narrador: Ninguém jamais o saberá. E, nesse sentido, o lugar do leitor não
74
chega a ser o mais privilegiado, posto que lhe é dado uma certa visão de conjunto dos
personagens mas, recusando-se a obra a ser psicológica – de uma psicologia explicativa,
de personagens coesos – a parcialidade é condição do leitor: os segredos seguem
preservados; os enigmas, insolúveis; o amor, indizível.
1.1.10. Seguindo passo a passo a doutrina freudiana...
É assim que se refere Mário de Andrade, em uma carta aberta sobre seu Amar,
verbo intransitivo, que terminou por tornar-se posfácio das edições mais recentes da obra
(cf. Andrade, 1927:153): como havendo, na composição de seu livro, seguido passo a
passo a doutrina freudiana.
E como exaustivamente tem-se visto neste trabalho até aqui, estão em sua obra, em
suas leitura dos ensaios freudianos sobre a teoria sexual, a escolha de objeto sexual, o
declínio do Complexo de Édipo, as reflexões sobre o ato falho; da mesma forma que
estarão nalguns contos dos Contos Novos uma reencenação do mito do Pai da Horda
primitiva, tal como aparecem em Totem e tabu (1912), no conto “O peru de natal”; e uma
amizade entre adolescentes de cunho notadamente homossexual que é ela mesma outra
encenação do Édipo na adolescência, como se pode ler no conto “Frederico Paciência”.
Mostrei ainda que a incidência de Freud em Mário de Andrade pode ser entendida,
no caso da narrativa, com o advento de um narrador de terceira pessoa que se demite do
lugar da onisciência, recusando portanto o viés realista dos romancistas do século XIX,
através do mote “ninguém jamais o saberá”.
A singularidade de Mário de Andrade em relação à psicanálise, portanto, é a do
leitor aplicado, do estudante que se dedica a uma doutrina aprendida na composição
literária. Posição em relação ao escrito que difere em muito do segundo autor que aqui se
irá estudar, Nelson Rodrigues. Pois se com Mário de Andrade passa-se da psicanálise à
literatura, Nelson Rodrigues nos oferece, em sua obra, uma via que pode ser entendida
como a inversa.
Em Nelson Rodrigues, a relação entre literatura e psicanálise pode ser invertida.
Não se trata nele de uma obra literária que encena os conceitos psicanalíticos, mas uma
75
obra literária que ao colocar em cena o desejo, sem que este esteja salvaguardado pela
explicação psicanalizante, o que torna seus escritos, paradoxalmente, como veremos, mais
propriamente psicanalíticos que os de Mário de Andrade.
No capítulo seguinte, ao contar o trajeto das ideias psicanalíticas no Rio de Janeiro,
e nele o surgimento da obra de Nelson Rodrigues, será possível estabelecer o tipo de
relação com a psicanálise presente nas obras de Mário de Andrade e Nelson Rodrigues e, a
partir daí, constatar duas posições distintas entre a literatura e a psicanálise.
76
1.2. Nelson Rodrigues, não-leitor de Freud
El psicoanálisis te salvará
(Título de uma seção da revista portenha Idilio, que no final dos anos 40 pedia às leitoras
que enviassem seus sonhos, que eram interpretados pelo sociólogo Gino Germani e por
Enrique Butelman, dono da editora Paidós.)
1.2.1. A cultura freudiana e o psicanalista como tipo social na obra de Nelson Rodrigues
De Nelson Rodrigues (Recife, 1912 - Rio de Janeiro, 1981) – dramaturgo, cronista
esportivo, romancista, autor de folhetins apócrifos, criador de uma heterônima que
respondia às leitoras do correio sentimental, crítico de ópera por um dia, e que atravessou
gorda parcela do século XX em frente a uma máquina de escrever – não consta que tenha
sido leitor de Freud. Aliás, pelos indícios biográficos (Ruy Castro, 1992), críticos (Pereira,
2001) e pelas crônicas do próprio Nelson Rodrigues, seria possível sustentar que nada leu
de psicanálise.
Contrariamente ao que foi feito com Mário de Andrade no capítulo anterior, não
haverá, portanto, livros de psicanálise nos quais rastrear as leituras do dramaturgo, e nada
produtivo seria supor influência direta através de leituras freudianas. Como então justificar
a escolha de tal autor como segundo elemento aglutinador deste trabalho sobre a
aclimatação do pensamento psicanalítico em terras latino-americanas?
Ressalto uma vez mais que o postulado que move estas páginas é o da incidência e
difração das ideias psicanalíticas e, neste quesito, Nelson Rodrigues, foi eficiente como
poucos. Enfurnado nas redações de jornal desde os 13 anos de idade – quando acompanhou
pela primeira vez seu pai, Mário Rodrigues, à sede do jornal A Manhã – teve os mais
diversos contatos possíveis com intelectuais, pintores, escritores, políticos, psicanalistas
que circularam pelo ambiente de redação e pelos meios culturais e boêmios cariocas ao
longo do resto do século.
Tais indícios – no que tange à psicanálise – já os podemos ver em um texto do autor
quando, aos vinte e quatro anos de idade, em seu primeiro e único artigo como crítico de
ópera, em 30 de março de 1936, nas páginas de O Globo, lança uma investida contra
Carlos de Mesquita, autor da ópera Esmeralda. Em tal passagem, Nelson Rodrigues se
77
lamenta da falta de consistência do personagem principal da ópera, e Freud surge já como
argumento de autoridade:
(1) um ser sem complexos, sem recalques, cujas excitações são maravilhosamente
controladas e atenuadas [...] Se o maestro se dispusesse a investigar bem, concluiria
surpreso que, na sua própria rua, existem personagens à altura de uma ópera, e
personagens já urbanizados, humanizados, dramatizados pela vida mesma. Em suma:
gente que vai sofrendo, sonhando, amando e sorrindo, não com poses convencionais, e sim
histérica e grotescamente com esgares, caras feias, ríctus tremendos, babas de ódio, medo
e lascívia. O maestro precisa conhecer melhor os seus semelhantes. Lembro ainda que
procure adquirir certa cultura freudiana. (Nelson Rodrigues, 30 de março de 1936
apud Castro, 1992:141, grifos meus)
O que exatamente conhecia o jovem Nelson Rodrigues da cultura freudiana, ou a quê
exatamente se referia com a expressão é um exercício divinatório que não cabe ao autor
destas linhas. O que quero primeiro destacar com relação a esse fragmento é que como o
crítico Nelson Rodrigues mostra-se preocupado com a complexidade dos personagens da
ópera, da mesma forma quando, oito anos depois, iniciasse sua carreira de dramaturgo
tampouco seria alheio à questão na construção dos seus. O que pode equivaler dizer que a
concepção de seus personagens não é alheia à cultura freudiana; a qual, como veremos
neste capítulo, estava de certa forma já disseminada pelo ambiente cultural carioca há cerca
de uma década. O que tampouco se pode afirmar, diferentemente do que ocorrera no caso
de Mário de Andrade, é que tal conhecimento, por parte de Nelson Rodrigues, seja fruto de
leituras de textos do psicanalista vienense, ou sequer de textos de psicanálise ou psicologia.
Dito isso, cabe uma ressalva: na obra de Nelson Rodrigues – aí inclusa a obra
dramática e as crônicas – será preciso diferenciar a tal cultura freudiana do tipo social do
psicanalista, que frequentará assiduamente as páginas do autor, nos mais diversos gêneros e
nas mais diversas épocas. Defendo sem ambiguidade que sem esta diferenciação não se
pode entender a obra literária de Nelson Rodrigues em seu contato com o universo
psicanalítico. Até porque marcar essa fronteira entre a cultura freudiana e a imagem do
psicanalista significará traçar os limites impostos pelo termo freudismo, cunhado pela
primeira vez por Bakhtin, em sua obra homônima (Bakhtin, 1927) e que, com felicidade, dá
78
conta de um certo culto em relação ao homem Freud, o que certamente não é o caso do
dramaturgo em questão
32
.
Quanto à cultura freudiana, ela será deslocada do que diz o crítico Nelson Rodrigues
à condição de uma noção que pode dar conta, de modo eficaz, da leitura de sua própria
obra. E que será entendida em dois níveis:
(a) Primeiro, como isso da psicanálise que, por assim dizer, está no ar. Ou seja, aquilo
que de elaboração freudiana passou a elemento do senso comum. Passados dezoito anos
desde a publicação do primeiro artigo do doutor Franco da Rocha na imprensa paulistana,
não é difícil perceber que já há então, no Rio de Janeiro, uma atmosfera freudiana: ideias
que circulam no ambiente cultural tendo como referência o psicanalista vienense, uma certa
vulgata, uma certa coleção de noções da psicanálise que vão sendo mais ou menos
assimiladas pelo mundo letrado. Nesse sentido, nada mais adequado que o meio jornalístico
para a composição de tal vulgata. Explorarei de forma detida, a seguir, como se compôs
esta cultura freudiana na imprensa carioca nos anos 30.
(b) De outra parte, à maneira do que faz Jorge Luis Borges, em seu texto “Kafka y
sus precursores” (1951), é preciso reconhecer como são certos autores que terminam
funcionando como catalisadores que permitem reconhecer, a posteriori, um conjunto de
características que, aparecendo agrupadas em sua obra, levam a uma releitura da tradição,
ou ainda, a uma criação, après-coup, de uma tradição. Trata-se disso que Borges se refere
como sendo percebido pelo adjetivo kafkiano. E que aqui poderá ser entendido na espessura
do termo freudiano, como passam a sê-lo, contingencialmente, dramaturgos como Sófocles,
Shakespeare e Ibsen; mas certamente não contingencialmente, e não da mesma forma
autores como Eugene O´Neill.
No caso de Nelson Rodrigues, cabe percebermos como ele se filia à tradição deste
teatro – entenda-se, no que ele tem de trágico, mas também no que ele tem daquilo que a
partir de Freud chamaremos romance familiar. E em Nelson Rodrigues temos a
exacerbação dos conflitos do romance familiar, sua elevação a grau superlativo.
Assim, não se trata de mostrar Nelson Rodrigues como o que ele não é, leitor de
Freud, e sim como participante da tradição freudiana, e detentor de uma certa cultura
32
É preciso dizer que Bakthin (1927), ao cunhar o termo freudismoo procurava dar conta de algo distinto da
psicanálise. Entretanto o que ele termina realizando com grande eficácia é dar conta do culto que se criou em torno do
homem Freud.
79
freudiana. Mais do que inscrevê-lo nessa tradição, interessará mostrar de que modo seu
teatro se inscreve nela e com que particularidades. Num segundo momento, no capítulo
terceiro, será possível dispensar a noção da cultura freudiana, e ler Nelson Rodrigues para
além dela, no que ele traz de contingencialmente psicanalítico.
Por outra parte, quando me refiro ao psicanalista como tipo social, o que está em
questão é uma caricatura– e portanto uma deformação deliberada, mas não totalmente
enganadora. Na faceta caricatural do psicanalista, estão ressaltados em Nelson Rodrigues, o
silêncio do profissional nas consultas, em seus ganhos financeiros considerados altos e,
portanto, seus clientes burgueses, além, é claro, de seu conhecimento privado e privilegiado
do sexo e da vida sexual de seus pacientes e, mais importantes das suas pacientes. Será esse
o personagem que habitará peças e crônicas de Nelson Rodrigues
33
. Baste-nos, o exemplo
do Dr. Lupicínio, psicanalista, personagem de Viúva, porém honesta (1957), quando
chamado pelo Dr. JB, pai da jovem viúva acometida de uma crise que a impede de sentar-
se:
(2) DR. J.B. – Fala de uma vez, apresentando uma solução salvadora. Com a palavra, o
psicanalista. [...]
DR. LUPICÍNIO – Não posso falar.
DR. J.B. – Como não pode?
DR. LUPICÍNIO – O doente fala, eu calo. O doente paga, eu nem pio. Aliás, cobro meu
silêncio pelo taxímetro. (exibe o taxímetro).
DR. J.B. – Que mamata!
DR. LUPICÍNIO – Sua filha está morrendo. Muito bem. Ela entra com uma angústia braba
e eu com um divã macio. Eis a minha contribuição: o divã.
[...]
DR. J.B. – Continue, amigo psicanalista.
DR. LUPICÍNIO – Não posso. Aliás, nunca falei tanto e já me sinto um traidor da
psicanálise. Não me peça mais que o divã. (Nelson Rodrigues, Viúva, porém honesta, 1º
ato, cena I, grifos meus)
Vê-se como nessa farsa irresponsável retrocede-se, com o problema da recém-
viúva, ao final do século XIX, com as histéricas tratadas por Freud e Breuer, aquelas jovens
acometidas de um mal físico sem qualquer explicação orgânica aparente. Como dito no
33
Uma saborosa referência à ojeriza pública do autor aos psicanalistas, nós a encontramos na enquete publicada pela
revista O Cruzeiro, em janeiro de 1956, respondida por Nelson Rodrigues: “Gosto: 1. Minhas peças. 2. Cigarro ordinário.
3. Música barata. 4. Criança desdentada. 5. Fluminense. 6. Filme de diligência. 7. Mulher bonita e burra. 8. Dramalhão. 9.
Visitar cemitério. 10. Estar só. Detesto: 1. Luar. 2. Chicória. 3. Cumprimento. 4. Varizes. 5. Teatro dos outros. 6. Samba.
7. Trabalho. 8. Psicanalista. 9. Sujeito inteligente. 10. Qualquer político.” (Nelson Rodrigues, O Cruzeiro, janeiro de
1956 apud Castro, 1992:292.)
80
capítulo anterior, esse ambiente de origem da psicanálise é evocado nas Cinco lições de
psicanálise (1909), fruto das já referidas conferências fundadoras nos Estados Unidos, na
Clark University.
A importância de aludir a esse assunto é que a cena trazida por Nelson Rodrigues
em sua farsa – apesar de ter rias outras referências – tem na personagem da jovem
Ivonete, uma histérica típica de Freud. Assim, não me parece exagerado dizer que, da
mesma forma que o Freud de Mário de Andrade era francês, o de Nelson Rodrigues é
certamente norte-americano. Como já disse, não que as traduções de língua inglesa tenham
circulado muito pelo Brasil, mas muito mais por seus subprodutos, via indústria cultural.
Uma das vias mais evidentes é a do teatro da Broadway, que deita influências sobre o teatro
brasileiro da primeira metade do século e, no que nos anos 1920, a Broadway mostra-se
bastante freudiana (cf. Pereira, 2001:69-75 e Sievers, 1951, passim). Tais marcas
transparecem no teatro carioca dos anos trinta, em peças como Sexo, de Renato Vianna, que
será discutida a seguir.
Outro indício que corrobora esta divulgação da psicanálise via Estados Unidos, por
vias outras que não as do texto freudiano, nós a vemos em uma crônica sobre futebol,
escrita por Nelson Rodrigues e publicada na Revista Manchete Esportiva, uma publicação
criada por Mário Filho para a Bloch Editores, que contou, na máquina de escrever de
Nelson Rodrigues, com uma grande colaboração. Mantém-se, no trecho que segue, o
mesmo tom burlesco em relação à figura do psicanalista, mas agora em sua relação à
cultura norte-americana:
(3) Um amigo meu que foi aos Estados Unidos, informa que, lá, todo mundo tem o seu
psicanalista. O psicanalista tornou-se tão necessário e tão cotidiano como uma namorada.
E o sujeito que, por qualquer razão eventual deixa de vê-lo, de ouvi-lo, de farejá-lo, fica
incapacitado para os amores, os negócios e as bandalheiras. Em suma: – antes de um
desses atos gravíssimos, como seja o adultério, o desfalque, o homicídio ou o simples e
cordial conto do vigário, a mulher e o homem praticam a sua psicanálise. (Nelson
Rodrigues, “Freud no futebol”, 7 de abril de 1956 in Rodrigues, 2007:65, grifos meus)
É curioso notar como a figura do psicanalista é vista nesse trecho não como o do
profissional endinheirado, mas em seu papel social de confessor espiritual, aquele que pode
absorver o bom burguês – ou a boa burguesa – em suas bandalheiras cotidianas. A imagem
que se constitui pelos dois fragmentos é a de que a psicanálise funcionaria como uma sorte
81
de igreja laica, na qual o alívio do “cliente” viesse, após a confissão, não com uma
penitência, mas o pagamento de uma boa soma de dinheiro.
Entretanto, se prosseguimos na crônica, logo se nota que, a despeito de toda a
ironia do texto, atribui-se à psicanálise um papel de tratamento da alma dos jogadores, o
qual, ainda que posto em chave irônica, denota outrossim um certo reconhecimento de uma
função social para o novo profissional:
(4) Mas quem ganha e perde as partidas é a alma. Foi a nossa alma que ruiu face à
Hungria, foi a nossa alma que ruiu face ao Uruguai. E aqui pergunto: – o que entende de
alma um técnico de futebol? Não é um psicólogo, não é um psicanalista, não é nem mesmo
um padre. Por exemplo: - no jogo Brasil x Uruguai entendo que um Freud seria muito mais
eficaz na boca do túnel do que um Flávio Costa, um Zezé Moreira , um Martim Francisco.
Nos Estados Unidos, não há uma Bovary, uma Karenina que não passe, antes do
adultério, ao psicanalista. (Nelson Rodrigues, “Freud no futebol”, 7 de abril de 1956 in
Rodrigues, 2007:66, grifos meus)
Chamo aqui a atenção – retomando a discussão sobre os termos freudianos levada a
cabo no primeiro capítulo – para o reiterado uso, por parte de Nelson Rodrigues, do termo
alma , para referir o que, no original freudiano, denota-se com o termo Seele, que o próprio
Freud sugeriu a Stratchey que traduzisse por soul, na falta de um equivalente inglês para o
grego Psique. De toda forma, Stratchey optou por mind. Nelson Rodrigues, mesmo que à
margem desta discussão, termina por cunhar o termo alma. A escolha do termo tem a
vantagem de fazer dialogar a psicanálise com a outra área em questão ao longo de toda a
crônica, a religiosa, no que se aparentam o psicanalista e o padre
34
.
Ressalte-se ainda que no texto de Nelson Rodrigues, para além da ironia cáustica, não
se pode negar que, com a psicanálise aplicada ao mundo do futebol, descortina-se uma
dimensão nova do esporte, em seu aspecto trágico. Não por acaso, o dramaturgo aportará
tanto à crônica esportiva. A importância de que ressaltar tal uso no futebol, em detrimento
de sua obra dramatúrgica ou narrativa, é que, como aludi acima, na dramaturgia, o ser
freudiano pode ser sempre atribuído à tradição, como algo contingente. Por exemplo, os
incestos do Álbum de família não podem ser lidos apenas como a retomada do tema tal
como aparece em Édipo Rei? Entretanto, neste gênero nascente em terras brasileiras, a
34
É curioso notar como, anos depois, um dos seguidores de Freud, Bruno Bettelheim (1982) publicará uma crítica à
Standard Edition das obras freudianas, na qual fará a defesa da substituição do termo mind por soul. Trata-se do livro
Freud and man´s soul.
82
crônica de futebol, qualquer alusão à alma humana, a um complexo, tem de ser
necessariamente atribuída ao pensamento psicanalítico.
Dessa forma, seguindo por tal leitura, poderemos encadear o final dessa mesma
crônica – Freud no futebol – com outra citação que se tornaria célebre, com a cunhagem de
termo inédito, memorável e que até hoje circula no ambiente do futebol e para além dele. O
fato é que, passados já seis anos desde a derrota do Brasil para o Uruguai em pleno
Maracanã, na Copa de 1950, e sem ainda se ter chegado a uma palavra final acerca da
inexplicável derrota do time nacional, Nelson Rodrigues volta ao tema. O cronista, à guisa
de explicação, ressalta que há, no caso brasileiro, uma supremacia técnica que impediria a
derrota para qualquer time do mundo, mas como, entretanto, algo sempre falha, o falhar
teria de ser de outra ordem:
(5) Faço minhas as palavras da autoridade: – só um Freud explicaria a derrota do Brasil
frente à Hungria, do Brasil frente ao Uruguai e, em suma, qualquer derrota do homem
brasileiro no futebol ou fora dele. (Nelson Rodrigues, “Freud no futebol”, 7 de abril de
1956 in Rodrigues, 2007:66)
A reelaboração dessa ideia tardaria ainda dois anos, e surgiria, nas mesmas páginas
da Manchete Esportiva, dois anos depois, justamente no contexto do embarque da seleção
Brasileira para a Suécia, desacreditada, para a disputa do Mundial de 1958. A expressão
que então se cunha não é desconhecida de nenhum brasileiro contemporâneo nosso:
(6) Eis a verdade, amigos: – desde 50, que o nosso futebol tem pudor de acreditar em si
mesmo. A derrota frente aos uruguaios, na última batalha, ainda faz sofrer, na cara e na
alma, qualquer brasileiro. Foi uma humilhação nacional, que nada, absolutamente nada,
pode curar [...] E hoje, se negamos o escrete de 58, não tenhamos dúvida: – é ainda a
frustração de 50 que funciona. Gostaríamos talvez de acreditar na seleção. Mas o que nos
trava é o seguinte: – o pânico de uma nova e irremediável desilusão. [...] mas vejamos: – o
escrete brasileiro tem, realmente, possibilidades concretas? Eu poderia responder
simplesmente “não”. Mas eis a verdade: – eu acredito no brasileiro e pior que isso: – sou
de um patriotismo inatual e agressivo, digno de um granadeiro bigodudo. [...] Em suma: –
temos dons em excesso. E só uma coisa nos atrapalha e, por vezes, invalida nossas
qualidades. Quero aludir ao que eu poderia chamar ‘complexo de vira-latas’. Estou a
imaginar o espanto do leitor: – “O que vem a ser isso”. Eu explico.
Por ‘complexo de vira-latas’ entendo eu a inferioridade em que o brasileiro se coloca,
voluntariamente, face ao resto do mundo. [...] Insisto: – para o escrete, ser ou não ser vira-
latas, eis a questão. (Nelson Rodrigues, “Meu personagem da semana: o escrete”, 31 de
maio de 1956 in Rodrigues, 2007:386-387, grifos meus)
83
Levando adiante sua psicanálise de galinheiro – a expressão é também de Nelson
Rodrigues
35
– iniciada dois anos antes, quando ele detectava a ausência de um Freud que
explicasse a seleção, ou o escrete, como ele prefere dizer, aportuguesando o termo inglês
scretch, o cronista se arroga o lugar desse Freud, ou melhor, desse Jung. E dá o seu
diagnóstico: brasileiro tem complexo de vira-lata. Notemos como, passados trinta anos,
mudamos do complexo da Dona Ausente para o complexo de vira-Latas. E se no caso de
Mário de Andrade eram-lhe necessárias tantas leituras, pesquisas e elaborações; no presente
caso de Nelson Rodrigues, dispensam-se os muitos livros e as eruditices. Por outro lado, é
preciso acrescentar que a psicanálise dos complexos tal como concebida por Jung tampouco
trazia grandes dificuldades, posto que parecia funcionar como uma estrutura aberta, à qual
sempre era possível agregar um novo diagnóstico coletivo, amparado no termo complexo.
Nelson Rodrigues, por exemplo, capta-o no ar. Apressadamente seria possível concluir
que, de fato, respira-se neste rio de Janeiro, desde os anos 30 ao menos, uma atmosfera
freudiana.
1.2.2. Cheiro de psicanálise no galinheiro. A atmosfera carioca dos anos trinta
À semelhança do que estava ocorrendo em São Paulo, a introdução da psicanálise
no Rio de Janeiro também se deu, em grande medida, no campo da medicina, para logo se
difundir no campo da cultura. A diferença é que, num primeiro momento, não houve, no
Rio de Janeiro, um canal forte de difusão destas ideias, como no caso do grupo do
Modernismo paulistano; em terras cariocas o papel de difusão no campo da cultura seria a
imprensa e o teatro, e tardaria ainda até os anos 30. Tal lapso temporal, como veremos, é
fundamental para diferenciar o processo paulistano do carioca.
No âmbito médico, Mokrejs (1992:84-85) indica como precursora uma tese de
doutoramento de um hoje obscuro Genserico Aragão de Souza Pinto, denominada Da
psicanálise (A sexualidade das neuroses) que, publicada no ano de 1915, teria sido a
primeira publicação sobre psicanálise em território brasileiro. Outros nomes se seguiram,
mas não vou me deter aqui para contar esta história, pois isso significaria redundar em
35
A jocosa expressão é cunhada na peça Bonitinha, mas ordinária (1962), como veremos a seguir.
84
relação ao primeiro capítulo, devido às muitas homologias entre os ambos processos, no
caso da via médica
36
.
A homologia é tal que, no ano de 1927, Rio e São Paulo unem-se para a fundação da
Associação Brasileira de Psicanálise. Conforme Rocha (1989:52), a seção paulistana é
fundada em novembro de 1927, capitaneada por Franco da Rocha e Durval Marcondes, e
contando entre seus membros com o modernista Menotti del Picchia; já a seção carioca,
fundada em junho do ano seguinte, tem como presidente Juliano Moreira e como secretário
Júlio Porto-Carreiro. A associação chega a lançar o primeiro número da Revista Brasileira
de Psicanálise, mas não o segundo, assim como tampouco chegará ao segundo ano de vida.
É importante trazer à luz esta história para mostrar como, se da via propriamente
clínica e institucional, o caminho da psicanálise em terras brasileiras mostra-se tortuoso e
cheio de vicissitudes, no campo da cultura seu processo é de outra natureza. Chego
inclusive a pensar se não é a chamava vulgata da psicanálise, tal como difundida na
literatura, no jornalismo, no cinema, no teatro, a responsável pelo crescimento da
psicanálise como clínica propriamente. Pois, no Brasil, excetuada talvez a década de 10 e
os primeiros anos da década de 1920, a clínica vem como que a reboque.
1.2..3. Sexo (1934), de Renato Vianna
Para que se tenha o alcance da influência de Renato Vianna no entorno carioca dos
anos 30, bem como para cernir se não a influência, ao menos a incidência de sua obra
dramatúrgica sobre Nelson Rodrigues, citarei uma crônica da série A Cabra Vadia, dos
anos 60, sugestivamente chamada “A Selva Teatral”. Neste texto, onde o cronista
rememora as primícias de sua atuação teatral, através da escrita de A mulher sem pecado e
Vestido de Noiva, termina por destilar seu ódio pelos dramaturgos contemporâneos seus
daqueles primórdios:
(7) Eu abominava os outros, todos os outros [dramaturgos]. Negava qualquer nome
passado, presente, ou futuro, do teatro brasileiro. Por exemplo: Renato Viana. Já no
fim, tinha uns restos ainda de prestígio intelectual, uma meia-dúzia de fiéis ainda o
adulava. Certa vez, disse-me o Schmidt: “Ninguém consegue ser nada, no Brasil, se
não acreditou, um dia, em Renato Viana.” Exagerei minha gargalhada: “Essa é a
36
Remeto o leitor interessado para os trabalhos de Rocha (1989) e Mokrejs (1992), ricos ambos em dados sobre os
primeiros tempos da psicanálise no Rio de Janeiro, posto que ambos debruçaram-se sobre fontes primárias em arquivos.
85
maior!” Sùbitamente sério, disse e repeti, com sombrio élan: “Uma bêsta, uma bêsta.”
(Nelson Rodrigues, “A Selva Teatral” in A Cabra Vadia, 1970:59)
A estréia de Renato Vianna como autor teatral deu-se em 1918, com a peça
Voragem. Entretanto, o começo de seu sucesso viria apenas quatro anos depois, com A
batalha da Quimera, e a consagração, apenas ao longo dos anos 30, com peças como Sexo,
da qual nos ocuparemos mais detidamente, por ser justamente aquela na qual a presença de
Freud surge. A nos pautarmos pela apresentação das Obras Completas de Renato Vianna,
editadas a partir de 1954, cuja peça de abertura não é outra senão Sexo (1934), depreende-
se que a crítica considera justamente este momento como o início de sua obra dramatúrgica
de peso. Assim se expressa o prefaciador a respeito deste momento de Vianna:
Ano de 1934, também no Teatro Casino, desta capital. [...] Surgiam os primeiros grandes
sintomas de um renascimento de valores e o conflito se concretizava entre o passado e o
futuro. Choque de interesses e prejuízos. Usam-se todas as armas: o escândalo, a injúria, o
falso testemunho, a calúnia. Era a idéia destruindo obstáculos e avançando no espaço e no
tempo. Assinalada a grande campanha para o lançamento da peça “SEXO”, de sua autoria.
Pela primeira vez despertavam as elites intelectuais do Rio a sua atenção para o teatro.
Professores, magistrados, jornalistas, políticos, intervêm no conflito. Manifesta-se o
Parlamento Nacional através da Câmara dos Deputados. O Presidente da República é
chamado a entrar em cena... e entra.” (OS CONTINUADORES, “Renato Vianna e sua
batalha da Quimera... [texto apócrifo de apresentação da obra completa, não consta sequer
de número de página], 1954)
Feitas as devidas ressalvas, por tratar-se de um texto apócrifo, pouco generoso quanto
a informações mais precisas sobre a montagem da peça e os fatos concretos aos quais alude
apenas lateralmente em seu estilo grandiloquente, tal texto tem sua importância por ocupar
o lugar privilegiado de apresentação das Obras Completas de Renato Vianna. Assim, deve
ser considerado como o constituinte da imagem pela qual os editores da obra decidiram
fixar a imagem primeira do dramaturgo. E parece ser não menos que a de um polemista
iconoclasta. Esse perfil, associado aos temas que ele sugere tratar em ambas as peças, o
sexo e a divindade, parece encontrar em Freud e na psicanálise uma via de realização da
subversão. Veremos com que alcance.
Será preciso analisar como aparecem Freud e a psicanálise na peça de 1934, a qual foi
sem dúvida um grande difusor da imagem do psicanalista na cidade do Rio de Janeiro.
Como já vimos, em suas origens, a psicanálise se apresenta como um pensamento
subversivo, a fazer frente às convenções familiares e à moral burguesa; não nos
esqueçamos da imagem da peste, esboçada por Jung. Em Sexo, este é o aspecto
86
privilegiado, fragmentos de discursos com uma certa cor psicanalítica se fazem ouvir da
boca dos boêmios da família-núcleo da peça, tais como o João, irmão do patriarca Cesar, e
seu sobrinho Carlos – ambos amigos de Calazans, um médico de confiança da família, que
será o responsável por descortinar o novo sistema de pensamento.
Na primeira aparição da psicanálise como discurso subversivo contra as convenções
burguesas, aparece a noção de máscara social, um modo de proceder dos pulcros burgueses
que, quando tomando parte no jogo social, seria responsável por ocultar o verdadeiro eu.
Há, segundo o discurso que se instaura na peça, a possibilidade de livrar-se da máscara,
justamente pela vida libertina, como vemos por boca de João, o tio, que sai em meio a um
Conselho Familiar, onde se está deliberando sobre o destino da adolescente Cecy,
apaixonada por um “crápula”, amigo de Calazans:
(1) CESAR – Que deseja você insinuar?
“JOÃO – O falso drama que se está representando aqui e no qual não quero tomar parte.
Por isso mesmo, vou-me embora. Vou para os ‘cabarés’ aos quais você tanto alude. Lá,
pelo menos, tenho a certeza de encontrar a verdade. Foi lá que a moral se refugiou da
civilização. E neste carnaval sem fim da sociedade em que vivemos, é lá que a
humanidade tira a máscara. (para Cesar) Você sabe disso. Adeus! (para os demais)
Até logo, mascarados! (para Amélia) Sua benção, vovó? (movimento de saída). (Vianna,
Renato, Sexo, 1934, I ato, cena II, p. 44, grifos meus)
Em uma cena posterior, Cesar, já sabedor de que sua esposa é amante do
pretendente da filha, vai procurar Calazans, que havia apresentado Roberto Magalhães à
família, para saber se ele de fato sabia da história. O patriarca é então surpreendido pela
tranquilidade de Calazans que, seguindo em seu discurso a mesma linha argumentativa de
João, alude outra vez à máscara, e submete o amigo a uma sorte de expurgo anímico, que
traz ecos do discurso psicanalítico:
(2) CALAZANS – [...] Tire a máscara, Cesar! [...] Vê? Nem você mesmo sabia que
usava máscara... Pareço-lhe outro, não é assim? É que neste momento eu também acabo de
tirar a minha máscara, para que nos vejamos tal qual somos... Que tem sido você, como
esposo? Estamos sem as máscaras e eu posso dizer-lhe sem mentira: um canalha! [...]
Não estamos em sociedade. Tiramos as máscaras. Podemos respirar, desabafar, ser
amigos sinceramente, nobremente. Podemos pensar e falar. [...] Você vai sentar-se aqui...
E vai falar... e vai insultar-me, gritar, dizer tudo o que você quiser e até mesmo chorar...
Não se importe... Vomite tôda a sua alma, Cesar... (op. cit., II ato, cena I, p. 73, grifos
meus)
Nota-se no fragmento uma interpretação livre de Freud, em seu pensamento relativo
à repressão presente na vida social. Seria possível sugerir que Vianna tenha tido algum
87
contato, direto ou não, com textos como Mal estar na civilização [Das Unbehagen in der
Kultur] (1930) e Totem e Tabu [Totem und Tabu. Einige Übereinstimmungen im
Seelenleben der Wilden und der Neurotiker] (1912). Há um deslocamento interessante em
relação a Freud, por parte de Calazans, no que se refere à vida social: nos textos aludidos,
Freud historiciza o surgimento da vida social (ou da cultura, a depender da tradução
37
), e vê
na repressão das pulsões um preço a pagar pela existência do corpo social; já Calazans
postula um ente fora da vida social, quando diz “Não estamos em sociedade”.
É fundamental notar que o enunciado Não estamos em sociedade só é possível
através de uma acepção do termo sociedade que exclua a vida privada. Seria possível
aventar aqui a hipótese de que a tradução vigente na primeira metade do século XX do livro
de Freud de 1930, Das Unbehagen in der Kultur, nos mais diversos idiomas, que terminam
optando pelo termo civilização, e a ocorrência do termo sociedade na obra seja o que tenha
permitido tamanha relativização de Kultur para vida em sociedade, na obra de Vianna.
Assim, tal uso denota que sua ‘aplicação’ de Freud abre mão da noção de universalidade e
centra-se numa crítica da sociedade burguesa, no que ela teria de sustentação de aparências
e convenções, às quais ele aproxima da noção de “máscaras sociais”.
De sorte que em Renato Vianna, os ecos freudianos tornam-se sustentáculos de uma
certa moral, que se postula como libertária, mas que traz os seus juízos de valor que vão
pouco a pouco se revelando como oriundos de uma moral burguesa convencional. Assim,
prevalece um certo verniz transgressor, como no momento em que Calazans chama Cesar
de Canalha! Ainda assim, esta liberdade traz em si a utopia de que se poderia “dizer tudo”,
“vomitar a alma”, alcançando assim uma certa pureza, uma certa verdade.
Calazans alude ainda à ideia central do mito do Pai da Horda (Cf. Freud, 1912)
quando, ao provocar Cesar, diz-lhe “você tem sido o senhor de mulheres, o senhor de
gineceu, o chefe implacável da horda, como nos bons tempos primitivos...” (Viana, op. cit.,
p. 74). A referência neste trecho é o célebre mito forjado por Freud, e qualificado por ele
mesmo como histórico, que daria conta da figura do patriarca nas hordas primitivas de
antepassados da humanidade; trata-se do macho gozador que dispunha para si de todas as
37
Valha-nos uma nota acerca do termo-chave do ensaio de Freud (1912): Kultur. Na primeira metade do século, a tônica
é de traduzi-lo não por ‘cultura’, ou seu equivalente etimológico nas diversas línguas conhecidas. Opta-se,
majoritariamente por ‘civilização’: assim, temos civilization (inglês), civilization (francês) civilização (português),
constituindo uma meritória exceção o termo cultura, na versão espanhola de Luis López-Ballesteros, contemporânea das
primeiras traduções.
88
mulheres. É esta figura do patriarca entendido como macho potente, dominador, que
Calazans vem a ironizar.
Entretanto, a visão libertária que parece infundir ao espectador a figura de Calazans,
logo mostra não superar a lógica folhetinesca pois, ao ter chamado Cesar de “canalha”,
arrogando-se uma certa moral que não termina de esclarecer-se, logo Calazans diz que
Vanda – esposa de Cesar – nunca foi amante de Roberto; e que ela o confessou por ciúmes,
nada mais. Quanto a Roberto, diz Calazans, o amor de Cecy o redimirá, pois “Só o amor
redime tudo.” (Viana, 1959:74). Prevalece, portanto, ao caráter subversivo, o de articulador
dos afetos para a manutenção da coesão do corpo familiar. O que fica ainda mais claro
quando, ao final da peça, o próprio Calazans faz o aborto de Cecy, que tivera seu namorado
assassinado por seu irmão Carlos. A justificativa do médico passa pela apologia da
instituição familiar:
(3) CALAZANS – [...] Horroroso seria se ela viesse a ser mãe... Se deixasse vingar o
intruso espúrio e o visse crescer dia a dia como um corpo estranho no seio da família,
vilipendiado, abominado, repelido... Numa outra sociedade mais feliz, mais sincera, mais
bem organizada, onde não causasse vergonha o ser mãe, concordo em que ela tivesse
cometido um crime abominável e eu dois... Por enquanto, porém, a nossa consciência está
tranqüila: salvamos um mártir... Foi um ato heróico! Um ato de piedade! Um ato de
sacrifício! Um ato de amor. (op. cit., Epílogo, p. 120, grifos meus)
Assim, através do personagem Calazans, torna-se o saber psicanalítico uma forma
de crítica à sociedade burguesa, com seus valores de aparência, suas convenções, sua
frivolidade. Entretanto, a potência desta crítica limita-se a um pequeno abalo, que não baste
para fazer ruírem os pilares do patriarcado burguês vigente, amparado na família, no
casamento, e em certa liberdade sexual para os machos do clã.
Caberá, portanto, a partir desta lógica, a defesa do casamento da filha de dezoito
anos do patriarca, mas de forma alguma admitir que ela possa ser mãe solteira; o adultério
da esposa pode ser tão somente sugerido, para ser logo desmentido como um mal-
entendido, um impropério dito num momento de desequilíbrio, o que, de uma forma ou de
outra, cauciona o adultério, desde que este se mantenha na condição de não-dito; a família
patriarcal ergue-se como uma instituição inabalável e intocável pelas críticas psicanalíticas
do doutor Calazans, o qual, também, sintomaticamente é chamado de “papai Calazans” por
Cecy, de quem é, para além de conselheiro, uma espécie de alcoviteiro.
89
Uma referência diversa na obra ao pensamento freudiano pode ser rastreada pela
noção de romance familiar, presente na obra do vienense em sua mais conhecida versão
como complexo de Édipo. Surge tal noção, outra vez pela boca de Calazans, tanto em
relação ao patriarca Cesar quanto a seu filho João, tomando Cecy como objeto de disputa.
A ambos ele afirma, em momentos distintos, que seu afeto pela jovem não se justifica pela
intenção moral de querer salvá-la do supostamente inescrupuloso Roberto Magalhães, e sim
por seu desejo por ela. Ele se expressa a este respeito pelas seguintes palavras, na cena –
aludida – de psicanálise selvagem com Cesar, quando este descobrira que sua esposa e a
filha supostamente eram amantes de Roberto:
(4) CALAZANS – Quem me exproba? Quem me acusa? Quem está falando por você? O
espôso ou o pai?
CESAR – Ambos!
CALAZANS – Nenhum! (gesto de Cesar) Convença-se do que lhe digo, Cesar: nenhum!
Fala por você, e sem que você mesmo tenha consciência disso, o Senhor e o rival! Da
sua mulher e da sua própria filha... (op. cit., II ato, cena I, p. 72, grifos meus)
Ainda na mesma cena, Calazans repetirá mais uma vez, ainda sob a forma de
acusação, a rivalização de Cesar em relação a Roberto:
(5) CESAR – Sou o pai de Cecy!
CALAZANS – Protesto mais uma vez! Você não é o pai, mas o rival de seu amor...
Você vai vingar-se do homem que lhe conquistou duas mulheres ao mesmo tempo...
CESAR – (tremendo e sufocado, com mêdo do que ouve). Basta, Calazans! Basta! (A
operação terminou. Cesar caiu em soluços e esmagado pela verdade cruel. É neste
momento que entra Amélia também agitada). (op. cit., II ato, cena I, p. 78, grifos meus,
itálicos do autor)
O potencial subversivo da afirmação, que na cena tem o poder de nocautear o
patriarca, com seu efeito de verdade e revelação, na economia familiar, como vimos,
indicaria o aquiescer do pai quanto à união da filha com o Roberto. Entretanto, sequer este
efeito chega a se realizar pois será o filho de Cesar, Carlos, quem impedirá por razões
semelhantes a união: “Prefiro vê-la morta que amante dêsse bandido.” (Vianna, 1959:81).
Carlos mata Roberto à traição, dando ensejo ao aborto que, como vimos acima, é
perpetrado por Calazans. Assim, a psicanálise revela seu potencial desestabilizador, mas
este surge apenas sugerido pois, no instante seguinte, alguma peripécia restabelece a ordem
burguesa, salvaguardando a família tradicional de qualquer abalo endógeno.
90
Pode-se dizer, portanto, que o pensamento psicanalítico comparece em Sexo, de
Renato Vianna, através de Calazans, com referências indiretas ao complexo de Édipo e ao
mito do Pai da Horda. Alude ainda, em suas conversas com Cesar, ao que o próprio Freud
chamou de psicanálise selvagem, em um artigo de 1910 (Über wilde Psychoanalyse), uma
apropriação inábil de alguns tópicos analíticos, que seriam operados ou transmitidos ao
paciente fora dos padrões do que seria uma sessão analítica mais canônica. O que se nota é
uma sorte de exorcismo moral de contornos psicanalíticos nas conversas de Calazans; pois,
por mais que a posição que se sobressaia na obra de Vianna seja bastante retrógrada e
conservadora, o alvo é, por isso mesmo, não o sujeito singular, mas a vida social. Assim, o
alvo último da peça de Vianna é a burguesia, a quem dá uns ligeiros tapinhas e em seguida
afaga, ao oferecer-lhe diversão de matizes subversivas e efeito anódino.
O digno de nota é que na leitura que aqui se faz, Doutor Calazans ocupa o lugar do
saber psicanalítico, mas é referido pelos personagens da peça através de epítetos que são da
ordem da religião e do curandeirismo, nunca da clínica. Assim, veremos o médico ora
referido como o detentor de uma ‘filosofia” (op. cit., p. 105), ora como “milagroso” (op.
cit., p. 104) mas nunca como psicanalista, psicólogo ou coisa que o valha. De modo que
talvez o mais adequado seja situá-lo, na obra, como um suposto leitor de Freud.
Pois é isso o que se mostra na cena a seguir, quando João e seu sobrinho Carlos
folheiam os livros de Calazans em seu gabinete. Como que por oposição, João mostra-se na
cena como um entusiasta de Freud, ainda que não um leitor do vienense:
(6) JOÃO (lendo) Você já leu Freud? (folheando o livro) Tenho um respeito por êste
homem... Não há o que lhe escape... () “a consciência e o inconsciente”...” (folheia)
“censura e repressão...” (folheia). Êste homem é o Diabo... (lê) “sonhos...” (dirigindo-
se a Carlos) Você precisa ler êste homem... (folheando) Se a gente soubesse o que os
sonhos significam nunca dizia a ninguém o que tinha sonhado... () “neuroses...”
(folheia) “Libido...” Dona Corina deve estar por aqui... (Entra Corina, que ouve as
últimas palavras de João e julga que êle es se dirigindo a Carlos e a seu respeito)
CORINA – Estou aqui, sim...
JOÃO – É o que a senhora pensa. A senhora não está aí: está aqui.. (e fecha o livro) (op.
cit., IV ato, cena I, p. 103-104, grifos meus)
Eis aqui, nessa cena exemplar, a gênese do não-leitor entusiasta, personagem que,
para completarmos o panorama proposto ao início deste capítulo, pode ser colocado ao lado
do psicanalista como tipo social destes anos 30 cariocas. O livro de Freud folheado por um
91
curioso é um índice interessante de uma certa forma de leitura da psicanálise que parece ter
sido freqüente no Rio de Janeiro por estes anos, e que difere de uma aproximação ao texto
freudiano mais detida, como aquela que Mário de Andrade encenou no primeiro capítulo.
Na cena acima, fica clara a incidência de uma não-leitura sobre o pensamento do grupo
social. João não dá mostra de ter mais que folheado o livro que tem nas mãos, embora faça
uso daquilo que ele considera as verdades da obra para provocar os de seu entorno, como
fez com a solteirona Corina.
No momento seguinte, quando Corina sai, ele continua falando e até expondo o que
supostamente seria o pensamento do vienense, pelo que ele acredita ter compreendido da
exposição de Calazans:
(7) João – Não compreendo como Calazans, que é milagroso para toda a gente, não
tenha conseguido curar esta maluca… É verdade que ele me confessou certa vez que
ele é o único degenerado da família... E na filosofia dele, degenerado é sinônimo de
são… de lúcido mentalPorque esta mulher é positivamente maluca! Freudiana
pura! É da galeria dos tímidos: dos que não pecam por medo e vociferam contra os
outros para amortecer o próprio desejo que lhes morde os impulsos… Foi Calazans
mesmo que me ensinou isto… E quanto à Corina, chamou-lhe ‘náufraga do amor’.
Náufragas do amor são as mocinhas que têm mêdo do homem e por isso renunciam ao
casamento. Para elas a noite nupcial é a noite do horror, do sacrifício. Fiquei até muito
admirado com as revelações do Calazans... Nunca imaginei que houvesse mocinhas
assim tão inocentes... Mas Calazans afirmou que sim, que ainda as há. A conclusão dêle é
que me pareceu paradoxal: disse-me que essas mocinhas assim ingênuas são uma
conseqüência de pais imorais.. Não entendi isto. Você entendeu? (…) Você precisa ler o
homem [Freud]… Você está necessitando de um purgante psíquico… (op. cit., IV ato,
cena I, p. 104-5, grifos meus)
O horror ao sexo de Corina ganha contornos de “inocência”, e a psicanálise de
“purgante psíquico”. Nota-se no fragmento acima uma apropriação bastante singular do
pensamento de Freud. Por mais que João diga “Você precisa ler o homem”, a transmissão
deste saber é oral (João escutou alguma coisa de Calazans, e agora, por sua vez, conta algo
do que entendeu ao sobrinho Carlos) e, crivada de malentendidos “Não entendi isto. Você
entendeu?”. Não há nada que João tenha lido em Freud, tudo ele ouviu de Calazans.
Por outra parte, é preciso sublinhar o campo semântico associado ao par Calazans e
sua irmã, que é posta na posição de paciente:
Calazans > milagroso; degenerado x lúcido mental; paradoxal
Corina > maluca x tímida; freudiana pura
92
Vale notar como a adjetivação é sempre extremada e antitética, da ordem do
paradoxo. O adjetivo freudiana qualifica explicitamente, a mulher, como sinônimo de
louca; e implicitamente a Calazans, pois é ele o conhecedor da filosofia de Freud. Mas a
Calazans estão ainda relacionados milagroso e degenerado. É quando é revelada ao público
a condição de Freud como o guru de Calazans, origem de suas ideias esquisitas. E, é
preciso reafirmar, não se trata da psicanálise, ou da psicologia (termos que não são grafados
uma só vez em toda a peça), mas da filosofia de Freud.
O Freud de Renato Vianna surge quase como uma figura mística, porque objeto de
um temor religioso. Isso se nota ainda no mesmo diálogo quando, após ver a bela
enfermeira, João diz: “Esta enfermeira faz um homem ficar doente... (elevando as mãos)
perdoa, Freud! Perdoa, Calazans!” (op. cit., p. 106) Freud, à maneira do que diz Assoun
(1990), no livro Freudismo, a despeito de seus projetos, parece ter criado uma seita, em
torno da qual reuniam-se seus seguidores a cultuar seu nome próprio. É isso o que parece
colocar em cena Vianna, neste seu Sexo:
É patente, de fato, que Freud se introduziu na primeira pessoa em seu discurso analítico,
não hesitando em revestir suas teses ‘científicas’ – já que reivindicava algo como uma
ciência do inconsciente – de afirmações provenientes dele mesmo (…) de modo que as
conquistas objetivas da psicanálise parecem, em certa medida, inseparáveis de seu ‘sabor’
freudiano. (Assoun, 1990:9)
Entretanto, para além desse Freud de Renato Vianna, que surge envolto num halo
religioso e filosófico, cabe acrescentar como o saber psicanalítico surge, tanto na obra de
Renato Vianna, como na de Nelson Rodrigues, também como um divertimento burguês,
como algo da ordem de um saber elitizado. A grande diferença entre ambos dramaturgos é
que, se em Renato Vianna o nome de Freud e os pensamentos a ele atribuídos operam na
peça no nível da peripécia, em Nelson Rodrigues de fato haverá um potencial subversivo
que cabe atribuir ao pensamento psicanalítico, ainda que numa chave bem distinta da mera
influência.
93
1.2.4. Gastão Pereira da Silva – mascate freudiano
Além de Renato Vianna, há outro grande responsável no Rio de Janeiro dos anos
trinta, pela grande massificação da psicanálise. Trata-se do médico Gastão Pereira da Silva,
que inaugura uma nova etapa das ideias psicanalíticas no Brasil.
Desse autor cabe dizer que é um pioneiro, um polígrafo, um curioso e, acima de
tudo, um entusiasta do pensamento psicanalítico. Não seria de se esperar, portanto, grande
rigor em sua obra. O ritmo de suas reflexões é o da grande imprensa, e uma mera lista de
suas obras publicadas bastará para se conhecer a classe de trabalhos deste singular
divulgador: Para compreender Freud (1931); A psicanálise em 12 lições (19–?); A
Psicanálise (19–?); Lenine e a psicanálise (1933); Crime e Psicanálise (1933); Neurose do
coração (1934); Educação sexual da criança (1934); Conhece-te pelos sonhos (1936); O
Drama sexual de nossos filhos (1939); Vícios da Imaginação (1939); Doentes célebres
(1940); Freud (1940); Conheça seu filho (1942); Como se interpretam os sonhos (1943); O
tabu da virgindade (1943); Como se pratica a psicanálise (1948); Os bichos amam assim
(19–?); Getúlio Vargas e a Psicanálise das Multidões (19–?); Vinte e cinco anos de
psicanálise (1959).
O grande interesse de trazer à baila a figura de Gastão Pereira da Silva é que ele, em
grande medida, guarda certa equivalência com o tipo de pensamento que vimos expresso
através do par de personagens João e Calazans; ele traz algo da dupla pois, através de suas
diversas obras, qualquer leitor letrado sente-se autorizado a falar em nome de Freud, da
psicanálise e inclusive decifrar seus próprios sonhos. Gastão Pereira da Silva, ao longo de
toda sua longa carreira realiza, ipsis litteris, o que se possa supor do termo vulgarização da
psicanálise.
É por uma figura como Gastão Pereira da Silva que se poderá melhor entender as
referências a Freud que pululam na obra de Nelson Rodrigues. A partir deste momento, em
que historicamente na Europa e nos Estados Unidos, corresponde ao período em que já não
se lê e não se leva em conta a obra de Freud, no Brasil, a peste da psicanálise passa a ser de
domínio público.
É possível dizer que a gênese do psicanalista como figura social, em paralelo à
institucionalização da psicanálise no Brasil e à formação dos psicanalistas, dá-se de
94
maneira visível através de uma figura como Gastão Pereira da Silva, que verdadeiramente
parece fundar uma tradição de psicanalistas midiáticos.
Por tratar-se de uma obra de vulgarização, não há grande compromisso teórico por
parte de Gastão. Apesar de ele citar, no conjunto de suas obras, os mais diversos livros de
Freud, o rigor parece ficar em segundo plano, e ele irrefreadamente passa a fazer as
comparações mais inusitadas em seus livros como, por exemplo, comparar a censura
(Zwang) à censura estatal (Silva, 1959); compara os sonhos coloridos à tecnologia do
technicolor; cunha ainda os mais diversos termos, com caráter conceitual, assim, ao
complexo de Édipo soma “complexo de velhice”, a “impotência psíquica” (Silva, 1959:27);
fala em “desejos positivos” e “desejos negativos” (op. cit. pp. 31-5); e chega a defender
uma hipótese que, para ele, seria uma de suas maiores contribuições ao pensamento
psicanalítico, qual seja, a possibilidade de os mortos sonharem (op. cit., pp. 38-51). Para
amparar suas elucubrações, lança mão de referências europeias, como de um médico
italiano que teria afirmado ser capaz de fotografar os sonhos através de uma máquina
dotada de infra-vermelho, a qual possibilitaria aprisionar as imagens oníricas na retina do
paciente (op. cit; p. 52); para complementar esta ideia poética, vale dizer que o médico,
segundo Gastão, chama-se Dr. Calderon
39
!
o bastasse esta selva de inovações, desfiadas com orgulho, cada uma delas, em
seu livro de memórias Vinte e cinco anos de psicanálise, que teve mais de uma edição,
Gastão chegou a clinicar no Rio de Janeiro. Sua formação, além da faculdade de Medicina,
foi a leitura das obras de Freud, a auto-análise de seus sonhos e, ato contínuo, a autoria de
uma coluna de análise de sonhos na Revista Carioca, a partir de 1935, a qual é assim
descrita por seu autor:
Em 1935, creio eu, surgia, em tôdas as bancas de jornais, essa curiosa e interessante
revista, que se chamou “Carioca”.Com o primeiro número aparecia, em suas páginas a
minha seção intitulada “Psicanálise dos Sonhos”, ilustrada por uma fotografia de Freud,
‘clichê’ do mesmo retrato que êle me enviara, em 1934, com sugestiva dedicatória. [...] Os
sonhos que me enviavam, seguiam as regras que eu estabelecera, além de outros informes,
de ordem pessoal, igualmente exigidos. [...] Assim, afora a troca de cartas relativa à
interpretação dos sonhos, comecei a receber inúmeras outras, nas quais os seus signatários
‘abriam’ a alma, encontrando em mim o esperado ‘transfert’, ao qual confiavam as
suas ‘confidências’, algumas tão ‘difíceis’ de serem narradas que, não raro, pediam
licença, ou solicitavam ‘vênia’ para declinar o nome. Justificando essa maneira de
esconder a personalidade, diziam que não seriam capazes de ‘fazer tais confidências’
se me conhecessem pessoalmente. (Silva, 1959:17-18, grifos meus)
39
Não se poderia escutar aí uma alusão a Calderón de la Barca, dramaturgo espanhol, autor de La vida es sueño?
95
Nota-se no fragmento acima, o grau de envolvimento e liberalidade de Gastão
Pereira da Silva em relação à psicanálise. Se por um lado ele sugere que é imprescindível a
busca da transferência (transfert, Übertragung) para que se dê a interpretação, supõe que
esta possa dar-se por escrito, nas páginas de uma revista. E por mais que no capítulo
seguinte do livro vá tratar daassociação de ideias” e de sua importância para o processo de
análise, ele não faz referência alguma a ela neste momento, e sequer faz pergunta-se como
poderia dar-se a associação de ideias por escrito.
Assim, embora o trabalho de Gastão Pereira da Silva esteja de fato embasado em
algumas leituras de Freud – mais que apenas em seu retrato autografado – termina por
limitar-se a uma exposição de ideias curiosas advindas da psicanálise; a intranscendência de
seu método de análise mostra-se no relato – por escrito – do sonho de uma moça quase
cega, o qual, apesar de rico em imagens, não lhe basta para dizer nada além do senso
comum, posto que lhe falta um elemento fundamental: a paciente em seu dizer (op. cit., p.
37).
Vale ressaltar que aludir à falta de rigor de Gastão Pereira da Silva, contrariamente
ao que foi feito no caso de Mário de Andrade, baseia-se no fato de que o poeta paulistano
propunha-se a fazer literatura, já em Silva todas suas elucubrações estão baseadas na clínica
psicanalítica, o que o desloca para um lugar bastante singular nesta crônica da viagem das
ideias psicanalíticas.
Com ele, como já disse, está-se em cheio na vulgarização das ideias psicanalíticas.
E o orgulho de Gastão Pereira da Silva foi justamente esse: o de ter sido o massificador da
psicanálise.
Eis portanto traçada uma genealogia possível da entrada midiática da psicanálise no
Rio de Janeiro. Esta trajetória pode ser qualificada como a do Nelson Rodrigues cronista, o
modo como a psicanálise e o personagem Freud são tratados em suas crônicas e mesmo na
dimensão de costumes de seu teatro. Entretanto, há mais. Sustento haver em Nelson
Rodrigues elementos suficientes para ensaiar outra espécie de relação entre literatura e
psicanálise em sua obra. Relação que, se bem sucedida, para além do mapeamento da
entrada da psicanálise em São Paulo e Rio de Janeiro nas primeiras décadas do século vinte,
96
nos possibilitará estabelecer duas posições do literário em relação à psicanálise, cujo
alcance, pretendo, esteja para além do entorno imediato de ambos os autores.
97
1.3. A psicanálise em Nelson Rodrigues, para além do galinheiro: tragédia e desejo
Um grã-fino, que é revolucionário quando lúcido, e reacionário quando bebe, engrolava as
palavras: — ‘Dá-lhe duro, Nelson , dá-lhe duro!’.
Nelson Rodrigues, “O reacionário”, 24 de agosto de 1971
1.3.1. Situando a questão: Nelson Rodrigues e a criatura humana
A obra de Nelson Rodrigues, quando considerada a partir do mapeamento proposto
neste trabalho, traz um questionamento do qual não é possível desviar. Tal questionamento,
no limite, atualiza a tensa relação entre literatura e psicanálise, quando consideramos
autores que não foram lidos pelos psicanalistas e que tampouco leram obras psicanalíticas.
Ou seja, se é claro que a psicanálise bebeu no veio farto das obras literárias para pensar no
sujeito e seu funcionamento – não poucas vezes Freud e Lacan dão mostras disso em suas
reflexões – por outro lado, tomar certa literatura produzida após o advento da psicanálise –
como é o caso da obra de Nelson Rodrigues – condiciona o olhar do crítico, de certa forma,
a buscar as incidências psicanalíticas sobre tal obra, inclusive pela temática tratada pelo
escritor.
Assim, num primeiro momento, o desafio não é mostrar que há incidência do
pensamento psicanalítico em Nelson Rodrigues – a se levarem em conta os incestos que
pululam em sua obra – e sim mostrar como tais elementos não advêm necessariamente da
psicanálise, a se considerar que Nelson Rodrigues tampouco leu Freud, Lacan. Com Nelson
Rodrigues, o que se expõe – à maneira do que propõe Borges no seu já citado “Kafka y sus
precursores” – é que há mais de psicanalítico entre o céu e a terra do que sonham as vã
teorias da influência.
No presente capítulo, o que se pretende é qualificar a relação que há – na obra de
Nelson Rodrigues – entre literatura e psicanálise. Tal relação será estabelecida para além da
filiação direta, pertinente no caso de Mário de Andrade, e inexistente em Nelson Rodrigues;
a relação, tampouco será aquela estabelecida no capítulo anterior, qual seja, do psicanalista
como tipo social.
Partirei de outra sorte de incidência, que considera a contingência histórica de que a
obra de Nelson Rodrigues é escrita, anos após o advento da psicanálise, o que leva, a um só
98
tempo, estarem conjugados em seu fazer literário o ser alheio e o não poder ser alheio à
psicanálise. Pois, a se considerar o primeiro pólo, o ser alheio à psicanálise é entendido no
caso de Nelson Rodrigues como jamais ter lido Freud ou qualquer outro psicanalista,
resultaria em que o cronista e dramaturgo não poderia escrever ou professar psicanálise que
não fosse de galinheiro. A se considerar o segundo pólo proposto, não poder ser alheio à
psicanálise, não apenas enfatizo que não há obra posterior à descoberta (ou invenção)
freudiana que não seja, de alguma forma, tocada por ela. Por exemplo, uma série de
temáticas – como a sexual – irrompem no literário; noutro sentido, uma certa classe de
literatura passará a ser qualificada como psicanalizante, em alguma medida; ou, dito de
outra forma, um certo escopo da ordem do literário ao qual vem a se sobrepor a reflexão
psicanalítica termina por tornar uma série de escritos psicanalíticos avant la lettre. Defendo
que isso ocorre em Nelson Rodrigues, em concomitância com a incidência psicanalítica que
é do seu próprio meio social e momento histórico, como já visto no capítulo anterior.
Falando mais claramente, já havia na literatura algo que contemporaneamente se
entende como sendo da ordem do sujeito anteriormente ao advento da psicanálise – vide
Sófocles e Shakespeare – mas esta demanda por um dizer do sujeito na literatura
complexifica-se e problematiza-se após o advento da obra de Freud. A literatura de Nelson
Rodrigues é uma marca disso, mesmo que seja – algo paradoxalmente - posterior a Freud;
mesmo que tenha personagens psicanalistas; mesmo que cite o nome de Freud.
Portanto, o presente capítulo quer mostrar outra espécie de viagem de algo que
talvez não seja somente o pensamento freudiano, mas que certamente encontra-se em
relação íntima com ele. Uma das formas de dar partida a esta discussão é retomar uma
citação do psicanalista francês Jacques Lacan, em seu seminário Le désir et son
interpretation, dos anos de 1958 e 1959, no qual dedica algumas aulas ao Hamlet de
Shakespeare e, ao mesmo tempo, relê a análise de Freud sobre a relação entre esta tragédia
e o Édipo Rei de Sófocles. No fragmento a seguir, Lacan reconhece a anterioridade da
literatura em relação à psicanálise:
O que são estes grandes temas míticos sobre os quais se exercem no decorrer dos séculos
as criações dos poetas senão longas aproximações através das quais eles acabam por
entrar na subjectividade, na psicologia? Defendo sem ambigüidade - e, fazendo-o, penso
seguir a linha de Freud - que as criações poéticas geram, mais do que reflectem, as
criações psicológicas. (Jacques Lacan, Hamlet, 4 de março de 1959:23, grifo meu)
41
41
Tal seminário é de publicação integral ainda inédita, tanto em francês como em português. Quando da
99
Essa afirmação nos permite estabelecer a posição da obra de Nelson Rodrigues em
relação à psicanálise ou, mais propriamente, em relação ao que é da ordem sujeito da
psicanálise. A levarmos em conta o trabalho já realizado pela crítica, de que o dramaturgo
Nelson Rodrigues pode ser situado numa longa tradição que começa com a tragédia grega,
passa por Shakespeare, Ibsen, Strindberg e Eugene O´Neill, na qual ele bebe, e da qual ele
se vale para realizar sua obra dramatúrgica, teríamos uma trajetória linear. Em tal trajetória,
a herança do que se diz sobre o sujeito viria não de Freud, mas da tradição da cultura
ocidental. E, como também se sabe, os primeiros autores dessa série foram avidamente
lidos por Freud, que tampouco se furtou a admitir o papel privilegiado da literatura na
reflexão sobre certas noções psicanalíticas. Mas, dito isso, a relação entre Nelson Rodrigues
e Freud mostra um aspecto inescapável para quem se proponha – como aqui se propõe – a
uma aproximação entre a literatura e a psicanálise: há em Nelson Rodrigues uma fertilidade
outra para uma leitura via psicanálise, a partir da brecha que nos abre Freud em suas
leituras de Sófocles e Shakespeare.
O inquietante dessa fertilidade exacerba-se quando se aceita o postulado presente
neste capítulo: Nelson Rodrigues não leu Freud. Portanto, a abertura na obra de Nelson
Rodrigues para uma aproximação que considera a hipótese do inconsciente haveria que
buscá-la em outra parte, que não numa influência direta. A tensão aumenta quando se leva
em conta que a figura do psicanalista, como já mostrado, está presente no conjunto da
dramaturgia de Nelson Rodrigues, no papel de coadjuvante inofensivo; é notório que, nesse
sentido, a prática psicanalítica está posta ao lado de outras formas de terapia alternativas,
como a homeopatia
42
, o teofilismo
43
, a adivinhação pelas cartas
44
, tratamentos que
escrita deste trabalho, tive acesso a duas versões: a portuguesa da Assírio e Alvim, que recolhe as sessões
ocorridas entre os dias 4 de março e 29 de abril de 1959, relativas à leitura do Hamlet, de Shakespeare, a
partir da transcrição de Miller, na revista Ornicar? (1981-1983); e também uma cópia integral do seminário
escaneada da versão datilografada a partir dos estenogramas da época das sessões, tal como foi
disponibilizada pela École lacanienne de psychanalyse, em seu sítio. Farei portanto referência ao texto em
francês no corpo do trabalho, referindo a versão lusitana nos rodapés. Nalguns casos – como no do presente
fragmento – faltam páginas no original francês, então transcreverei o trecho em português no texto. Nas
demais citações, ao longo do trabalho, de textos de Lacan, buscarei fazer sempre a citação em francês no coro
do texto, com a respectiva tradução em português – quando houver – no rodapé.
42
Em A Falecida (1953) e Perdoa-me por me traíres (1957).
43
Em Os sete gatinhos (1958). Vale dizer que o teofilismo pode ser entendido como uma vertente do kardecismo, no que
tange à comunicação com os espíritos com vista a uma cura.
44
Em A Falecida (1953).
100
tentariam dar conta do que não se trata ou não se explica pelos meios socialmente
considerados convencionais.
A esse viés da sátira, no qual a ridicularização do psicanalista é o elemento mais
eloquente, devem ser acrescidos ainda dois outros matizes. Por mais que em Nelson
Rodrigues seja possível emparelhar a psicanálise ao que é da ordem da religião e do
misticismo, é a psicanálise e não a homeopatia ou a quiromancia que permeia mais da
metade da dramaturgia do autor, com ao menos uma menção na maioria de suas assim
chamadas tragédias cariocas. Assim, esta insistência é minimamente sugestiva, ainda mais
quando seus personagens lançam mão, com variantes, do mote: “Caso de psicanálise!”
(Como em A Falecida).
Na obra Toda nudez será castigada, uma peça em que o tema da homossexualidade
está em primeiro plano, há uma série de elementos e símbolos que parecem estar dispostos
ali para conferir uma cor psicanalizante à trama, fazendo inclusive crer a seus
contemporâneos na deliberada discussão dos postulados psicanalíticos por parte do
dramaturgo. Não parece ter sido outro o motivo que levou o crítico Décio de Almeida
Prado, em crítica de jornal à época da estreia, a enxergar psicanalistas numa peça onde tal
personagem inexiste:
Depois [do primeiro ato], ao invés de se ater ao conflito que havia proposto [‘a paixão
entre o puritano e a prostituta’], a peça começa a contar uma história muito comprida,
cheia de incidentes, de padres, de psicanalistas, esvaindo-se a tensão inicial por entre as
complicadas malhas do enredo. (Almeida Prado, O Estado de São Paulo, 24 de outubro de
1965 in Rodrigues, 2004:279, grifos meus) [grifos meus]
Certamente a visão de Almeida Prado não é imotivada, numa peça em que se trata da
inapetência para a vida e logo da homossexualidade de Serginho, o desespero do pai
procurando um médico conhecido seu é assistido pelo crítico Almeida Prado como uma
visita ao psicanalista. Tal percepção pode ser entendida como mais uma mostra da inserção
na sociedade da época desse novo tipo, que se deixa ver até onde não está.
O verniz psicanalizante das peças rodrigueanas não foi alheio a seus contemporâneos,
tal como o demonstra Victor Hugo Adler Pereira:
(…) uma parte da intelectualidade contemporânea ao lançamento desta produção do autor
[as peças míticas de Nelson Rodrigues, nos anos 40], passou a considerar que essas obras
comprovavam as teses de uma nova ontologia, baseada nas considerações sobre o
desejo, e que Nelson Rodrigues se baseava em concepções sobre o psiquismo e a
existência inspiradas nas obras de Freud e Jung. Tal como acontecera com O´Neill, nos
101
Estados Unidos, o reconhecimento como um autor ‘freudista’ tornava-o afinado com ideias
modernas. (Adler Pereira, 2000:117, grifos meus)
Tal freudismo a despeito de Freud, tais psicanalistas onde psicanalistas não há são
características da dramaturgia de Nelson Rodrigues, que vistas pela perspectiva deste
trabalho não nos podem passar desapercebidas. Mais do que considerações sobre o
psiquismo inspiradas em Freud e Jung o que parece haver em Nelson Rodrigues, em uma
obra como Toda Nudez será castigada é uma série de temas, elementos ou fragmentos de
interpretações que levam o crítico – tal como acontecera ao incauto Almeida Prado – ou o
espectador, a acreditar-se diante de um saber psicanalítico, de uma verdade sobre o sujeito.
Assim o teatro rodrigueano ganha já um estatuto não só de moderno, mas de versado nas
questões do desejo.
Em Toda Nudez será castigada, para além do médico (ou psicanalista), é possível
listar alguns dos elementos que poderiam figurar numa antologia das coisas freudistas de
Nelson Rodrigues. Trata-se de elementos da atmosfera freudiana carioca, da vulgata
psicanalítica que por então se constituía:
a. “Geni, meu irmão é um casto. E o casto é um obsceno.” (Toda Nudez,
primeiro ato, p. 116); “É a obscenidade do casto.” (op. cit., p. 126). As duas
frases e a ideia nelas contida, aparentemente paradoxal, retoma uma noção
presente, por exemplo, em Sexo, de Renato Vianna, atribuída a Freud:
“Freudiana pura! É da galeria dos tímidos: dos que não pecam por mêdo e
vociferam contra os outros para amortecer o próprio desejo que lhes morde os
impulsos” (Renato Vianna, Sexo, 1934, Ato IV, p. 105)
b. Herculano, diante do padre, associa a arma em sua boca, quando ia suicidar-
se, a um ato de felação, lugar comum vulgarmente atribuído a Freud:
HERCULANO – [...] E quando ela morreu, eu estava disposto a me matar. Dois dias
depois do enterro, descobri o revólver que tinham escondido. Tranquei-me no quarto. E, lá,
cheguei a introduzir na boca o cano do revólver. Mas isso me deu uma tal ideia de
penetração obscena. Desculpe, desculpe! Mas foi o que senti no momento – penetração
obscena. (Toda nudez será castigada, III ato, p. 154)
c. Ódio ao pai, como lugar comum do complexo de Édipo: “SERGINHO – Só
agora eu vejo que não gostei nunca do meu pai. Mesmo antes de mamãe
morrer. Sempre odiei e não sabia.” (Toda Nudez, terceiro ato, p. 159)
102
Quanto às peças míticas, às quais fazia referência Victor Hugo Adler Pereira – das
quais constam, de acordo com a canônica classificação de Sábato Magaldi, Álbum de
família, Anjo Negro, Dorotéia e Senhora dos Afogados – tais elementos seriam tanto a
onipresença do incesto e, em Dorotéia, a presença de objetos desprovidos de significação
imediata, como o par de botas, que poderiam ser interpretados por exercícios de psicanálise
selvagem.
Tal tendência de psicanalização de Nelson Rodrigues, segundo Adler Pereira,
prosseguiria até as montagens contemporâneas, ainda sustentadas, segundo ele, sobre o
mesmo pressuposto:
O mapeamento desse universo de questões relacionadas ao teatro moderno, e de algumas
de suas repercussões na contemporaneidade, coloca em questão os limites das leituras
realizadas por diretores ou adaptadores da dramaturgia de Nelson Rodrigues, que
reduzem a um realismo rasteiro ou para a demonstração de postulados freudo-
junguianos. (Pereira, 2000:186, grifos meus)
É preciso concordar com a posição de Victor Hugo Adler Pereira no que se refere a
não reconhecer em Nelson Rodrigues um autor freudiano – nos termos em que seria
possível conferir esta alcunha a Mário de Andrade em algumas de suas obras, por exemplo.
E que a nos mantermos nesta posição, nada haveria a ser interrogado na obra do dramaturgo
a partir da psicanálise, restando-nos concordar que para o que até aqui se falou, a sociologia
seria uma ferramenta muito mais eficaz de abordagem. Pois o que parece fazer o
dramaturgo Nelson Rodrigues nos fragmentos enfeixados acima é uma coleção dos
elementos da moda freudista então em voga.
Entretanto, o pressuposto aqui é outro, que com essa descoberta não se esgota a
questão do cheiro de psicanálise em Nelson Rodrigues. Certamente os exercícios de análise
selvagem que essa coletânea de elementos freudistas em Nelson Rodrigues poderiam
suscitar parecem ter impedido o avanço pela senda da psicanálise no dramaturgo, em outra
chave mais complexa.
Sustento que é possível distinguir outros odores para além daqueles atribuídos à
psicanálise de galinheiro, seja a de um personagem com Werneck, seja a do próprio
dramaturgo, com suas pistas supostamente psicanalíticas – acima apontadas. Sigamos
adiante. A outra corda que tange a dramaturgia de Nelson Rodrigues, e que parece ser
aquela mesma que tanto possibilita, para além das pistas falsas e das sátiras, uma certa
103
consonância com o que entoam as ideias psicanalíticas, é sua abordagem do desejo. Ou,
como é dito no trabalho de Carlinda Nuñez, num contexto alheio ao da psicanálise, “é
preciso verificar que o conjunto de sua obra dramática obedece ao gradativo
desenvolvimento de uma pesquisa sobre a criatura humana” (Nuñez, 2000:218).
Ora, uma pesquisa sobre a criatura humana pode dar-se por diversas vias, não é ela
escopo exclusivo da psicanálise. Entretanto, e aí reside a singularidade de Nelson
Rodrigues, os veios que ele explora são, em muito, coincidente com os veios psicanalíticos.
O que não significa dizer que Nelson Rodrigues tenha chegado, por vias travessas, à
psicanálise. Em qualquer aproximação entre psicanálise e teatro é preciso ser consequente e
considerar sempre a anterioridade lógica do teatro em relação ao advento da psicanálise. O
mais acertado é dizer que o dramaturgo alcançou algo que também a psicanálise tem
buscado e, eis o paradoxo, tem encontrado, desde Freud, no próprio teatro e, mais
especificamente ainda, na tragédia.
Sabe-se que Freud, desde muito cedo, encontra no Édipo Rei de Sófocles uma
iluminação para sua intuição quanto à natureza de uma tendência incestuosa por parte das
crianças, traduzida em uma entrega afetiva e sexual ao genitor do sexo oposto e em ódio ao
genitor do mesmo sexo. Em Lacan, no seminário L´étique de la psychanalyse, dos anos de
1959 e 1960, encontramos uma formulação que escancara um pouco mais a anterioridade
da tragédia de Sófocles à filosofia de Sócrates, Platão e Aristóteles:
Pour nous, j´essaie de vous montrer qu´à une époque qui précède l´élaboration étique de
Socrate, Platon et Aristote, Sophocle nous présente l´homme et l´interroge dans les voies
de la solitude, et nous situe le héros dans une zone d´empiétement de la mort sur la vie,
dans son rapport à ce que j´ai appelé ici la seconde morte. Ce rapport à l´être suspend tout
ce qui a rapport à la transformation, au cycle des générations et des corruptions, à l´histoire
même, et nous porte à un niveau plus radical que tout, en tant que comme tel il est
suspendu au langage. (Lacan, étique de la pshychanalyse, 15 de junho de 1960,
1986:331)
45
Uma das muitas relações que Lacan encontra entre a tragédia e psicanálise está no
termo catharsis, segundo ele, presente no livro nos Estudos sobre a histeria de Freud e
45
“No que me concerne, tento mostrar-lhes que numa época que precede a elaboração ética de Sócrates, Platão e
Aristóteles, Sófocles nos apresenta o homem e o interroga nas vias da solidão, em os situa o heróis numa zona em que a
morte invade a vida, em sua relação com o que aqui chamei de segunda morte. Essa relação com o ser suspende tudo o
que tem relação com a transformação, com o ciclo das gerações e das corrupções, com a própria história, e nos leva a um
nível mais radical do que tudo, dado que, como tal, ele está suspenso à linguagem.” (Lacan, 15 de junho de 1960,
1988:344)
104
Breuer (1895), em referência à ab-reação [Abreagierung], entendida como descarga,
purgação ou purificação o que, conforme o atestam os fragmentos da Poética que nos
restam, também está presente em Aristóteles. Curioso é pensar que a catharsis, lograda
coletivamente, ganhe, com Freud e Breuer, a dimensão privada do consultório, e seja obtida
não através de uma obra artística, mas de uma criação coletiva entre analista e analisante.
Ocorre que na obra de Nelson Rodrigues, o seu teatro desagradável, há uma explícita
busca por algo da mesma ordem da catharsis; isso é o que se depreende, através das
palavras do próprio dramaturgo:
Perguntam-me se Perdoa-me por me traíres é tão violente como as minhas peças
anteriores. Respondo: “Mais violenta!” Mas vejamos essa violência. Morbidez?
Sensacionalismo? Não. E explico: a ficção, para ser purificadora, precisa ser atroz. O
personagem é vil, para que não o sejamos. Ele realiza a miséria inconfessa de cada um de
nós. [...] E no teatro, que é mais plástico, direto e de um impacto tão mais puro, esse
fenômeno de transferência torna-se ainda mais válido. Para salvar a platéia, é preciso
encher o palco de assassinos, de adúlteros, de insanos e, em suma, de uma rajada de
monstros. São os nossos monstros, dos quais eventualmente nos libertamos, para depois
recriá-los. (Nelson Rodrigues, “Programa de Perdoa-me por me traíres”, 1957 apud
Rodrigues, 2004:274, grifos meus)
A ligação primeira, portanto, entre a obra de Nelson Rodrigues e o que sustente uma
relação desta com o pensamento psicanalítico poderíamos situá-la em sua consonância com
a tragédia – clássica ou moderna – no que esta traz do desejo humano, em sua encenação
das paixões, e no efeito que ela produz sobre seu público.
Faço o leitor notar ainda, no fragmento acima, um deslocamento que Nelson
Rodrigues promove em relação a grande maioria dos demais leitores de Freud já citados
neste trabalho, no que toca a ver o humano não em sua patologia, mas sim naquilo que cada
qual traz de potencialmente desviante em si, como constitutivo. Pois quando o dramaturgo
fala em assassinos, adúlteros e insanos diz que tais monstruosidades são a de seu público e
a dele próprio; o outro aspecto presente é que o público não se livra de seus monstros com a
peça, já que os mesmos se reconstituiriam pouco depois, doutra forma
46
.
Portanto, para além do postulado acima, é o exercício da aproximação e da colocação
em cena do desejo humano, de homens e mulheres flagrados em seu limite, diante de
46
Outra forma de ler este enunciado de Nelson Rodrigues, a partir da psicanálise lacaniana é a através da dissolução e
reconfiguração do nó borromeano, figura topológica composta por três registros: Real, Simbólico e Imaginário, cujos
momentos de corte e dispersão sempre se apresentam ao sujeito através do horror. Sustento que a tragédia – como outras
formas artísticas – podem ter tal efeito devastador e reconfigurador na psiquismo do sujeito. Quanto à reflexão sobre o nó
borromeano, remeto o leitor a Milner (1983, cap. 1).
105
dilemas morais (Bonitinha, mas ordinária), e da irrupção do desejo incestuoso (como em
Álbum de Família, Senhora dos afogados), que a ação dramatúrgica de Nelson Rodrigues
permite uma aproximação pela via da psicanálise. Não se trataria pois, da presença
frequente de psicanalistas em suas peças, ou dos símbolos fálicos da moda, o que de fato
pode vir a constituir consistência psicanalítica à obra de Nelson Rodrigues. Trata-se, para
ver com conseqüência a psicanálise em Nelson Rodrigues, de proceder a uma construção
mais elaborada, e não se deixar seduzir pelo efeito de superfície, já aludido.
O desejo e as paixões humanas, tal como aparecem não estão submetidas a um
discurso moralizador; pois Nelson Rodrigues, quando urde a trama de sua obra, e o que
proponho ler pela via da psicanálise, não está no nível da demonstração, senão no da
colocação em cena
47
.
Nesse sentido, como acaba ocorrendo com muitos artistas, sua prática supera –
muitas vezes – seu discurso acerca dessa mesma prática. Tomemos a pecha de reacionário
ou moralista que muitas vezes se atribuiu a Nelson Rodrigues, e que ele próprio tomou para
si, mais que propagando-a, alardeando-a, e terminando por batizar um dos seus últimos
livros de crônicas com tal epíteto: O Reacionário; salvo o fato de que tal nomeação
enquadrava-se muito mais a seu posicionamento político de apoio à ditadura e ao exército
brasileiro (que é inclusive o tema da crônica que dá título ao livro em questão), a carapuça
reacionária parece tê-lo vestido bem.
Entretanto, se formos além da opinião política imediata do homem público, e nos
detivermos em sua obra teatral, surge um outro aspecto mais revelador. E o suposto caráter
moralizante, que já foi apontado mais de uma vez, de uma peça como Bonitinha, mas
ordinária (1962), mostra outra faceta. Assim, o suposto moralismo, que residiria numa
trajetória de redenção do casal Ritinha e Edgar, após terem passado por situações de grande
afronta à moral burguesa, quais sejam: o assédio sexual do Velho Patrão à Ritinha; a curra
da rica Maria Cecilia por cinco negros numa estrada deserta; a venda de Edgard para casar-
se com a violada Maria Cecilia; a posterior revelação de que a curra de Maria Cecilia
correspondia a uma fantasia secreta dela; o encontro amoroso entre Ritinha e Edgard no
47
Ao fazer uso da expressão, tenho em mente a função atribuída por Lacan às figuras topológicas das quais fazia uso. Elas
não seriam, neste sentido, metáfora de outra coisa, elas seriam a própria coisa. Da mesma forma, atribuo ao teatro de
Nelson Rodrigues um caráter de ‘exibição’ de algo que é da ordem do Real, e não metáfora de outra coisa. Nesse sentido,
no texto de apresentação à exposição do artista François Rouan, Lacan dizia da obra do artista que ela tinha o caráter que
de seu nó borromeano, “Une tentative de mostration pour la chose-même, sans concept” ( Lacan, Jacques [1979]
“Préface à une exposition des oeuvres de François Rouan”)
106
fundo de uma cova aberta no Cemitério do Caju; a psicanálise de galinheiro com as grã-
finas e a curra grupal das virgens na festa do Dr. Werneck. Tudo isso, finalmente sucedido
pela redenção de Ritinha e Edgard, pelo casamento, e pela renúncia ao polpudo cheque do
Doutor Werneck, rasgado na cena final. Ou seja, um leitor apressado poderia vir até nos
falar em moral da história.
Ocorre que o ter rasgado o cheque na cena final, gesto que teria o efeito para Edgard
de libertá-lo da frase “O mineiro só é solidário no câncer”, mote que o atormentava e o
assediava ao longo de suas ações, não logra sucesso. Edgar, após ter pensado que aquela
frase tem o poder de justificar qualquer ação hedionda pois, raciocina ele, se o homem é
mesmo solidário apenas no câncer, então tudo é permitido, entrega-se contrito ao amor de
Ritinha, a suburbana. Uma palavra sobre Ritinha, antes de seguir adiante: a primogênita
suburbana, prostituída, primeiro para salvar a mãe – acusada de furto – logo para pagar a
dívida desta mesma mãe e, finalmente para garantir a virgindade das irmãs, e que busca a
redenção através do casamento com Edgard, angariando para si a imagem de que ela era
uma pobre proletária levada pelas circunstâncias, a imagem de que, ela sim, é o caráter
sublime da peça.
Ocorre que, contrariamente a tal expectativa da redenção, o fim da peça é, no limite,
uma apoteose de festim, pois a cena final, do casal que, já tendo rasgado o cheque, aprecia
comovido o nascer do sol defronte ao mar, é esquecível diante do que a antecedera. É
possível dizer que a redenção final não ter a mesma força da brutalidade das cenas que a
precedem e que não basta, por si só, para apagá-las da lembrança do público. Até que
Edgard rasgue o cheque, a frase atribuída a Otto Lara Resende, “O mineiro só é solidário no
câncer” já havia permitido a ele dar vazão a muitos de seus impulsos e, por consequência,
mobilizado o espectador, fascinado. Brutalidade e paixões não estão no mesmo nível da
moral, é a primeira coisa que a peça de Nelson Rodrigues nos diz: a moral retrógrada logo
se esquece, as cenas de curra, jamais.
Assim, é preciso dizer que, se por um lado de fato a realização literária e
dramatúrgica de Nelson Rodrigues muitas vezes – como no caso de Bonitinha mas
ordinária – caminhar no sentido de uma explicação moralizante e até mesmo didática, por
outro, não é difícil notar que o que tem chamado a atenção do seu público e de seus leitores
107
ao longo dos tempos são justamente as paixões humanas por ele expostas, o obsceno, ou o
indizível que ele traz à cena.
Portanto, não se trata de tomar aqui Nelson Rodrigues como um tragediógrafo
freudiano, ou não mais freudiano do que o foram Sófocles ou Shakespeare. Insisto num
ponto, cabe pensar que Sófocles e Shakespeare escreveram e encenaram suas tragédias
antes do nascimento de Freud, e que Mário de Andrade, por outro lado, jamais teria escrito
Amar Verbo Intransitivo sem a leitura de Freud. Assim sendo, talvez o mais razoável seja
chamar Nelson Rodrigues de trágico, tratando de pensar o que há na tragédia que diz
respeito diretamente à psicanálise. Isso será feito pouco mais adiante.
A questão passa por inicialmente discernir entre os dramaturgos por um lado, e a via
aberta por Freud, a qual foi postulada, desde o primeiro momento, como clínica.
Posteriormente, há que se perceber que, a despeito da leitura supostamente psicanalizante
que enquadra Nelson Rodrigues como freudista, ou contextualmente freudiano, por conta
dos elementos em voga de sua época, há em Nelson Rodrigues outra coisa. A matéria
trágica, a catharsis, a revelação do obsceno de seu público em seus personagens.
Portanto, trata-se de, adiantando uma diferenciação, dizer: Mário de Andrade foi
deliberadamente freudiano, freudólogo, freudista; uma obra como Amar, verbo intransitivo
é uma marca disso. Nelson Rodrigues, se foi contingencialmente freudista – era moda sê-lo
como indicou com astúcia Victor Hugo Adler Pereira – também foi freudiano, entendido aí
o que há de psicanalítico avant la lettre na tragédia, e assim é que foi psicanalizante de uma
maneira forte, sustentando uma leitura forte. A hipótese, portanto, é de que a relação de
Nelson Rodrigues com a psicanálise transcende em muito o freudismo de galinheiro,
embora, como temos visto, também o galinheiro de Nelson precise ser interrogado.
1.3.2. Freud, leitor de Schopenhauer: O enigma de Hamlet
A fibra primeira em que literatura e psicanálise se tocam em Nelson Rodrigues é a
fibra do trágico. Partamos dela, sem a menor pretensão de dar conta cabalmente do trágico,
tarefa inexequível dado a outra que aqui se postula; do trágico me servirei tão somente para
chegar a Nelson Rodrigues, para explicitar, enfim, um caminho real por onde o dramaturgo
108
passou. E no ponto inicial desse trajeto, onde é preciso descampar um caminho, parto de
uma homologia que nos servirá de guia: a hipótese que lancei acima acerca da obra de
Nelson Rodrigues é que ela é freudiana no sentido em que Sófocles e Shakespeare o eram;
então cabe a interrogação acerca de quê há de trágico nos dois dramaturgos; e, finalmente,
o que há de trágico nos dois dramaturgos que terá interessado inicialmente a Freud, e logo a
Lacan. O caminho que proponho é justamente o de perseguir as leituras que de Shakespeare
fizeram os dois psicanalistas.
O resultado vislumbrado é poder estabelecer o ponto de aproximação entre a reflexão
sobre a tragédia e o pensamento contemporâneo, seja a psicanálise (sua herdeira mais
cabal), seja a produção literária de Nelson Rodrigues. O ponto de articulação escolhido,
como ficará claro a partir da reflexão de Lacan, é isso que se pode nomear como desejo,
onde ele se encontra com o trágico, no contato entre psicanálise e tragédia. Para que seja
possível qualificar o desejo como o concebe Lacan – desejo de desejo revisitam-se antes
Schopenhauer e Freud, onde a questão, conforme a entendo, começa a ser articulada.
Esclareço portanto que a partir deste ponto, proponho outro roteiro para a traveling
theory, já que não se trata de um trajeto da incidência da psicanálise sobre a literatura; e sim
de uma via outra, em que, a literatura – ao alimentar-se da literatura (Freud, deglutidor dos
trágicos) nutre também a psicanálise, que a realimenta.
O roteiro entretanto, é bastante linear. Parto da leitura que fez Freud de autores tão
distintos como Sófocles e Shakespeare, respectivamente em Édipo Rei e Hamlet; em
seguida, tratarei brevemente da retomada de Schopenhauer de ambos autores para falar do
tema da tragédia e do seu conceito de Vontade [Wille]; e logo contraponho a Vontade
schopenhaueriana ao desejo [Wunsch] que articula Freud. Ato seguido, parto a Lacan, para
ver como ele relê tal tradição.
O livro em que Freud desenvolve mais alentadamente a noção de desejo, o qual é
inconsciente, e do qual os sonhos tem muito a dizer, é Interpretação dos Sonhos
[Träumdeutung], de 1900. É nesta obra que, a princípio em uma nota de rodapé que logo
será incorporada ao texto, Freud aproxima o Hamlet¸ de Shakespeare, ao Édipo Rei, de
Sófocles e, com isso, termina por realizar um exercício de literatura comparada, através do
qual projeta o personagem Hamlet na estrutura do Édipo Rei, com o que, segundo ele,
estaria respondida a instigante pergunta: Por que o príncipe Hamlet, tendo plenas condições
109
para levar a cabo a vingança encomendada por seu pai, não o faz? Ele assim articula a
resposta:
En el mismo suelo que Edipo rey hunde sus raíces otra de las grandes creaciones trágicas,
el Hamlet de Shakespeare. Pero en el diverso modo de tratar idéntico material se
manifiesta toda la diferencia de la vida anímica en esos dos períodos de la cultura, tan
separados en el tiempo: se muestra el progreso secular de la represión en la vida
espiritual de la humanidad. En Edipo, como en el sueño, la fantasía del deseo infantil
subterráneo es traída a la luz y realizada; en Hamlet permanece reprimida, y sólo
averiguamos su existencia -las cosas se encadenan aquí como en una neurosis- por sus
consecuencias inhibitorias. Cosa extraña: quedarse totalmente a oscuras acerca del carácter
del héroe en nada perjudicó el efecto subyugante del más reciente de esos dos dramas.
(Freud, 1900:506-507, grifos meus).48
A hipótese de Freud não deixa de ser produtiva e instigante, pois a partir dela poder-
se-ia supor dois tipos de estruturação psíquica em duas épocas distintas da humanidade.
Pode-se qualificar portanto a posição freudiana como considerando uma mudança no
psiquismo da humanidade através dos tempos. Com isso, introduz-se uma brecha para
pensar que noutra época – como a contemporânea – poderia haver outra manifestação do
Édipo. Ensaiei em outra oportunidade
tal hipótese, a partir de uma leitura de Senhora dos
Afogados, de Nelson Rodrigues
49
. Voltarei a esta possibilidade mais adiante; entretanto, é
preciso ressaltar desde já que Freud estabelece, a partir da noção de complexo de Édipo
[Oedipuskomplex], uma matriz interpretativa a partir da qual outras narrativas, como as do
paciente em análise, podem ser transpostas a tal narração primária. É por esse
procedimento, por exemplo, que Freud logra resolver aquilo que Ernest Jones (1949) viria a
chamar o enigma do Hamlet. Antes de analisar o alcance, as consequências e limitações de
tal procedimento, é preciso deixar claro que Freud termina, deliberadamente ou não, por
estabelecer uma tipologia entre diferentes tipos de tragédia relativos às diferentes épocas,
em cuja confrontação seria revelada a diferença psíquica entre tais épocas.
Parece-me adequado rastrear as origens desta concepção freudiana sobre o trágico
como forma de melhor qualificar a significação de seu gesto. Proponho uma rápida
retomada de um dos filósofos que grande influência teve sobre o pensamento de Freud,
48
As citações da obra de Freud que não são fruto da leitura de algum dos autores aqui estudados – como o Freud em
francês de Mário de Andrade – será em língua espanhola, na tradução dos anos vinte de López-Ballesteros. Aqui o autor
do trabalho se rende à sua circunstância, de também não ter lido a obra de Freud no original.
49
Propus, na monografia A psicanálise vai à literatura: Freud, filósofo do trágico, lê os clássicos… e Nelson Rodrigues,
que tragédias fará? (Alves-Bezerra, 2008, mimeo), levar adiante a diferença exposta por Freud (1900) entre o Hamlet e o
Édipo Rei introduzindo na série um terceiro elemento, a tragédia Senhora dos Afogados, de Nelson Rodrigues. A validade
daquela leitura suspende-se aqui, quando proponho um exercício distinto, que é trazer a reflexão de Jacques Lacan (1958-
9) sobre o tema, e a partir daí questionar a afirmação de Freud no trecho acima.
110
Arthur Schopenhauer, que também já havia se interrogado sobre a tragédia, em termos que
nos interessam bem de perto para esta exposição.
Schopenhauer faz parte dos filósofos a quem, retrospectivamente, atribui-se o haver
retomado a reflexão sobre a tragédia, não como gênero, mas sim através do trágico tomado
como efeito. Teriam sido assim responsáveis pela passagem da poética da tragédia para
uma filosofia do trágico Schopenhauer e os filósofos de sua geração. Tal tradição remonta a
Kant, e aos demais filósofos românticos dos séculos XVIII e XIX, e o húngaro Peter Szondi
(1961) sugere que seriam eles mesmos responsáveis pela criação de novos modelos de
tragédias ou, o que seria ainda mais radical, de filosofias trágicas:
Em que medida as concepções do trágico em Schelling, e Hegel, em Schopenhauer e
Nietzsche, tomam o lugar da poesia trágica, que parece ter chegado ao fim na época em
que esses autores escreveram? Em que medida essas concepções apresentam por si
mesmas tragédias ou modelos de tragédias? (Szondi, 1961:24)
No contexto dos pensadores que trazem o trágico para o centro de suas reflexões está
Freud, que não é filósofo, e pertence à geração posterior à de Nietzsche e Schopenhauer,
mas que é fortemente tocado pelo pensamento de ambos. Qualificá-lo não como pensador
do trágico mas – pelo que nos autoriza Szondi – como um autor trágico, posiciona sua
concepção do sujeito e sua leitura das tragédias em uma senda pela qual pretendo avançar.
Valha-nos um parêntese. Sabe-se da relação ambígua que Freud manteve – em suas
declarações públicas e privadas – em relação à obra de Nietzsche e Schopenhauer; suas
palavras foram sempre de elogio e de defesa, chegando, por vezes, a negar que os tivesse
lido, ou projetar para uma data incerta, como faz em seu Estudo autobiográfico, de 1924:
“Li Schopenhauer muito tarde em minha vida”. Entretanto, é consenso entre a crítica
contemporânea que ambos tiveram importância cabal na reflexão de Freud, seja por
influência direta ou, mesmo admitindo a não-leitura que Freud por vezes alardeou, pelo
meio cultural vienense do final do século XIX. Rouanet (1996), a este respeito, é explícito,
se não ao desmentir Freud, ao menos em indicar as diversas homologias entre o
pensamento de ambos os autores:
Com Schopenhauer, repete-se a atitude de denegação. Freud diz que não deve a esse autor
a descoberta do recalque, apesar de Otto Rank ter assinalado uma passagem em que o
filósofo descrevia com muita exatidão esse mecanismo de defesa. Graças à sua ignorância
filosófica, diz Freud, ele não conhecia Schopenhauer e portanto acreditava, com toda boa
consciência, ter feito sozinho esta descoberta. No entanto, a afirmação de que ele não
111
conhecia Schopenhauer dificilmente se sustenta. As coincidências são palpáveis, e não
se limitam à teoria do recalque, que de fato está com todas as letras no filósofo [...] As
coincidências existem, por exemplo, na teoria dos sonhos [...], no tema do inconsciente
[...], na importância atribuída à sexualidade, no dualismo vida-morte, e em geral no
pessimismo com relação ao destino individual e coletivo. (Rouanet, 1996:220-221, grifos
meus).
Trazer Schopenhauer tem para este trabalho a importância de indicar a clara filiação
de Freud para com a filosofia do trágico, e ver como as homologias de pensamento por
vezes se invertem, como no caso preciso da comparação – presente em Freud – entre o
Hamlet e o Édipo Rei. Mais que querer provar que Freud de fato leu Schopenhauer desde
cedo e de que este foi decisivo em sua formação, o que importa é assinalar como há uma
sorte de continuidade entre o pensamento de um e outro. Vejamos.
A concepção de tragédia ideal em Schopenhauer traz o elemento primordial de onde
parece ter partido Freud: a supressão da vontade [Selbtaufhebung des Willens]. A vontade
schopenhaueriana é, para dizer o mínimo, causa de desconforto no homem, ponto onde todo
ideal de equilíbrio esboroa-se, quando a razão pode pouco. A vontade, tal como a concebe
Schopenhauer, é onde propriamente o sujeito idêntico a si mesmo e senhor de seu proceder
encontra-se em cisão. Ou, para valer-me das palavras de Roberto Machado: “Como
essência do mundo, a vontade é uma força obscura, um impulso cego, irracional,
inconsciente, indeterminado, livre.” (Machado, 2006:168-170).
Residiria portanto, o caráter sublime no enfrentamento com sua vontade e a posterior
supressão da mesma. Neste sentido, a tragédia moderna seria aquela que alcançaria de
maneira mais eficaz tal efeito, segundo a concepção de Schopenhauer:
O caráter sublime, por exemplo, notará erros, ódio, injustiça dos outros contra si, sem no
entanto ser excitado pelo ódio; notará a felicidade alheia, sem no entanto ser excitado
pelo ódio; notará a felicidade alheia, sem no entanto sentir inveja; até mesmo reconhecerá
as qualidades boas dos homens, sem no entanto procurar associação mais íntima com
eles; perceberá a beleza das mulheres, sem cobiçá-las. A sua felicidade ou infelicidade
pessoal não lhe abaterá mas, antes, será como o Horácio descrito por Hamlet:
Fostes como alguém
Que sofrendo tudo, nada sofreu;
Um homem que recebeu equânime
Tanto a favorável quanto a desfavorável fortuna
Pois em seu próprio decurso de vida com seus acidentes, olhará menos a própria sorte e
mais a da humanidade em geral, e, assim, conduzirá a si mesmo mais como quem
conhece, não como quem sofre. (Schopenhauer, 1816, Livro III, § 39, p. 280, grifos
meus)
112
É fundamental notar como a realização máxima do caráter sublime corresponde a um
ideal cristão, presente na tragédia de Shakespeare como o príncipe Hamlet, identificado por
Schopenhauer também como ideal a ser atingido. É preciso dizer agora que este modelo
cristão de tragédia corresponde – obviamente – à tragédia moderna; mas que, para além da
cronologia, há características nela que são fundamentais para o entendimento do
pensamento do filósofo.
Ele agudamente mostra a seu leitor em que consistiria, para ele, a superioridade da
tragédia moderna. Para que isso fique finalmente claro, vale lembrar que para
Schopenhauer existem três formas principais pelas quais pode se dar o efeito trágico: (a)
maldade extraordinária
50
; (b) pela intervenção do destino cego, que induz os personagens
ao erro
51
; (c) há ainda um terceiro tipo, que equivale propriamente ao funcionamento do
trágico na dramaturgia moderna, que revela a acurácia do pensamento do filósofo: trata-se
de uma outra classe de efeito, causado – como dizê-lo? – pelo simples fato de o homem
estar no mundo; dito de outra forma, é a infelicidade inerente à existência humana sobre a
Terra. Ele assim se refere a este terceiro tipo de efeito trágico:
Por fim, a infelicidade pode ser produzida pela mera disposição mútua das pessoas e
combinações de suas relações recíprocas, de tal modo que não se faz preciso um erro
monstruoso, nem um acaso inaudito, nem um caráter malvado acima de toda medida
e que atinge os limites da perversidade humana (…); meras circunstâncias são
colocadas, tais que aparecem com freqüência, contudo, as pessoas são de uma tal maneira
opostas, que precisamente a sua situação as compele conscienciosamente a tramar a maior
desgraça umas contra as outras, sem que com isso a injustiça seja atribuída exclusivamente
a um lado. Este último tipo de tragédia me parece superar em muito as anteriores, pois nos
mostram a grande infelicidade não como exceção, não como algo produzido por
circunstâncias raras ou caracteres monstruosos mas como algo que provém fácil e
espontaneamente das ações e dos caracteres humanos, como uma coisa quase
essencial, trazida terrivelmente para perto de nós. (Schopenhauer, 1816 Livro III, § 51,
p. 335, grifo meu)
Bien mirado, este tipo de efeito se consegue a partir de um outro tipo de arranjo na
ordenação poetológica ou, dito de outra maneira, dado que Schopenhauer situa este tipo de
efeito trágico no âmbito do cotidiano – visto que não se trata mais de circunstâncias raras
ou caracteres monstruosos – é de se supor que a tragédia que contenha este tipo de efeito
50
Os exemplos trazidos por Schopenhauer são Ricardo III, Iago em Otelo, Shylok em O mercador de Veneza, Franz
Moor, de Os Ladrões, de Schiller, Fedra de Eurípedes e Creonte em Antígona. (Cf. Schopenhauer, 1816, Livro III, § 51,
p. 335)
51
“Pode ocorrer mediante o destino cego, ou seja, por acaso e erro: um verdadeiro modelo é Édipo Rei de Sófocles, as
Traquínias, e em geral a maioria das tragédias dos antigos; entre os modernos, citem-se como exemplos Romeu e Julieta,
Tancredo de Voltaire, A noiva de Messina [de Schiller].” (Schopenhauer, 1816, Livro III, § 51, p. 335)
113
tenha se deslocado também na perspectiva de suas cenas. Defendo com isso que se está
saindo do espaço aberto da polis e se chegando num âmbito que se poderia chamar de mais
“privado”, ou ainda, que se está mergulhando no âmbito da subjetividade.
Schopenhauer percebe adentrar a outro recinto quando diz que este tipo de efeito é
mais difícil de ser alcançado. Vejamos com que motivos ele justifica esta afirmação e que
tragédias trariam melhor realizado este tipo de efeito:
A execução desse último tipo de tragédia é extremamente difícil, pois se tem de
produzir o maior efeito com o menor número de recursos e motivos de ação,
meramente pelo seu posicionamento e distribuição. Por isso até mesmo em muitas das
melhores tragédias essa dificuldade não é superada. (…) Também Hamlet pertence em
certa medida a esse gênero, se se leva em conta tão-somente sua relação com Laertes e
Ofélia. (Schopenhauer, 1816 Livro III, § 51, p. 335-336, grifos meus)
Trata-se portanto da valorização dos tormentos inerentes ao sujeito em detrimento
das grandes tragédias, nas quais os grandes erros ou a monstruosidade tinham lugar. Esta
valorização deve também ser situada, em Schopenhauer, no contexto da valorização dos
valores cristãos e védicos pelo filósofo.
Cabe ressaltar que em sua concepção da tragédia ideal, Schopenhauer logra
caracterizar, de modo mais detido, a tragédia moderna em oposição à antiga, introduzindo
um corte temporal, à maneira do que Freud fará anos depois, partindo de tragédias já
citadas por Schopenhauer.
Para melhor ordenar a relação entre o pensamento de Freud e Schopenhauer,
poderíamos expor a questão nos seguintes termos: De Hamlet, Schopenhauer elogia a
supressão da Vontade [Selbtaufhebung des Willens]; já Freud privilegia no príncipe o
aspecto do reconhecimento do desejo [Wunsch]. De toda forma, há que se ressaltar, que, em
Hamlet, está presente o sujeito dividido a partir da descoberta do desejo, o que seria
impensável em Édipo, posto que nele há puro ato e que, na tragédia de Sófocles, o
desvelamento coincide com o final da peça. Assim, para Schopenhauer, o príncipe é
modelo pois Hamlet tem vontade, mas não age, seguindo seu modelo maior, que é Horacio,
através do que realiza o ideal schopenhaueriano de supressão da Vontade. Já Freud inverte
a equação pois, para ele Hamlet não age, mas tem desejo.
114
Ação e desejo em Hamlet
segundo Schopenhauer e Freud
Hamlet tem vontade, mas não age. Realização do caráter Sublime
(Schopenhauer)
Hamlet não age, mas tem desejo. Complexo de Édipo
(Freud)
Da descoberta do desejo incestuoso em Hamlet é que se dá a ver, em Freud, a
descoberta da condição trágica, não apenas do personagem do príncipe, mas de todo
homem, pois, para ele, como já citado, Si el destino de Edipo nos conmueve es porque
habría podido ser el nuestro (Freud, op. cit.)
.
Justamente neste ponto, em que o pensamento de Freud e o de Schopenhauer se
tocam, é que eles se afastam, e a obra de Freud, a partir deste aspecto, torna-se não mais
uma filosofia do trágico (ainda que possa legitimamente ser lida neste sentido), e sim uma
clínica. Lá onde para Schopenhauer estava a culminância do homem, para Freud está o
ponto do qual deve partir uma clínica que permita ao sujeito se haver com seu desejo, com
o preço inerente à condição humana.
Em Freud e Schopenhauer está claro que se trata de suas posições distintas em relação
ao desejo, tal como passa a ser entendido pelo pensamento psicanalítico; entretanto, é de se
notar que ambos coincidem na percepção de que há uma diferença entre Shakespeare e
Sófocles, que para ambos responde a algo que é projetado numa diferença temporal que se
traduz pelos termos antigo e moderno. Ao introduzir-se este corte temporal, cria-se uma
série para a qual seria sempre possível ensaiar um terceiro tempo, ao qual se poderia
chamar contemporâneo, através do qual se pudesse rediscutir o Édipo a partir de uma
terceira perspectiva
52
.
Valha-nos agora uma nota, à maneira de apêndice, à aproximação proposta entre
Vontade [Wille] em Schopenhauer e desejo [Wunsch] em Freud. A respeito de ambos os
termos, Luis Hanns, em seu Dicionário do Alemão de Freud, diz o seguinte:
52
Nesta perspectiva é que ensaiei, como aludi acima, uma análise de Senhora dos Afogados de Nelson Rodrigues. No
trajeto aqui proposto, no entanto, o interesse recai no questionamento da posição freudiana a partir de Jacques Lacan
(1958-1959).
115
O substantivo Wunsch é traduzido adequadamente por ‘desejo’, mas em alemão o termo
tem um uso mais específico. Em geral dirige-se ao que é almejado (mais distante e
idealizado), reservando-se para o ‘desejo mais imediato’ e mais próximo do ‘querer’
outras palavras – por exemplo, ‘vontade’ (Lust) e ‘querer’ (Wille). [...] No texto
freudiano, Wunsch vincula-se a determinadas palavras do campo preponderantemente
representacional e se diferencia de Lust (vontade/desejo/prazer) e de Begierde (desejo
intenso, sofreguidão). (Hanns, 1996:136).
.
De todo modo, acrescenta Hanns, será em Interpretação dos Sonhos que Freud
elaborará mais detidamente a noção de Wunsch (op. cit., p. 143). É nesta obra que, no
intuito de qualificar o caráter onírico, Freud, em seu capítulo 3 da Interpretação dos
Sonhos, dirá que o sonho é a realização de um desejo [Wunscherfüllung]. A partir desta
tese, exporá diversos sonhos, nos quais o desejo [Wunsch] irá de uma prosaica sede, ao
desejo de não ter filhos, ou de ter uma maternidade mais tranquila etc. Será no contexto
desta tipologização dos sonhos que Freud fará a citação em que se apoia na tragédia de
Shakespeare e na de Sófocles para falar do desejo incestuoso. Portanto, ao menos na
Interpretação dos sonhos, o que é da ordem do desejo recobre uma variedade que vai da
sede ao desejo sexual. Embora, o próprio Hanns assevere que, regra geral, Wunsch está
mais ligado a “um caráter fortemente imaginário, remete ao ideal, ao sonho e a objetivos
mais distantes e almejados.” (op. cit. , p. 138). Assim, o fato de tanto o desejo sexual
quanto a sede aparecerem na esfera do Wunsch deve-se mais à experiência onírica que ao
uso cotidiano do termo no alemão. De modo que não seria razoável fazer o Wunsch
equivaler a termos como em português desejo sexual” ou “necessidade”.
Quanto ao termo que em português convencionou-se a cunhar como vontade (Wille),
na referência àe Schopenhauer, Ferrater-Mora (1990) nos indica o seguinte:
Ecos metafísicos suenan en la idea del deseo tal como ha sido presentado por
Schopenhauer (Die Welt als Wille und Vorstellung, II, 28) lo que se comprende si se tiene
en cuenta que su idea de deseo está íntimamente ligada con la de Voluntad. (Ferrater-
Mora, 1990:768, grifos meus)
Mario Bruno (2004) indica, também quanto à ambivalência dos termos Wunsch e
Wille, ao longo da obra freudiana:
Sobrevém ao que já foi dito num artigo de Jean-François Lyotard, “Sobre uma figura do
discurso”, no qual afirma que a palavra desejo em Freud tem dois sentidos: o desejo no
sentido de propósito (Wunsch, Wish) e o desejo no sentido de força, de energia (a Wille de
Nietzsche). Ambos aparecem mesclados na obra de Freud e só ganham uma separação,
116
uma autonomia, a partir de Além do Princípio do Prazer (1920), instalando-se uma
divergência quanto aos dois sentidos. (Mário Bruno, 2004:33)
Assim, sem que os autores citados tenham levado adiante qualquer aproximação
entre a conceituação freudiana na Traumdeutung e a de Schopenhauer, pelos exemplos
trazidos, parece-me claro que se está entre os conceitos de Wunsch e Wille recobrindo
campos parecidos e minimamente coincidentes, mas que não se confundem.
O mais importante, a meu ver, é levar em conta como a noção de desejo ganha o
centro da reflexão freudiana a partir do deslocamento de sua leitura de Schopenhauer, e
como isso é pleno de consequências, como no caso da leitura do Hamlet.
1.3.3. Jacques Lacan, leitor de Shakespeare. O desejo em Hamlet
Antes de entrar propriamente na questão do desejo em Jacques Lacan, que vai
implicar uma nova ordenação na abordagem da questão, cabe situá-lo quanto à operação
proposta por Freud, e referida na seção anterior. Lacan opõe-se de maneira frontal à
perspectiva freudiana de separar tragédia antiga e tragédia moderna, e insiste, ao longo dos
seminários Le désir et son interpretation (1958-1959) e L´étique de la psychanalyse (1959-
60), que Freud caiu na armadilha de supor uma decadência entre ambas épocas:
Hamlet n´est pas de tout le drame de l´impuissance de la pensée au regard de l´action.
Pourquoi, au seuil des temps modernes, Hamlet ferait-il le termoignage d´une spéciale
débilité de l´homme à venir au regard de l ´action? Je ne suis pas si noir, et rien ne nous
oblige à l´être, sinon un cliché de la décadence, dans lequel Freud lui-même tombe,
quand il compare les attitudes diverses d´Hamlet et d´Oedipe au regard du désir.
(Lacan, Jacques.
L´Éclat d´Antigone, dia 25 de maio de 1960, Seminário L´éthique de
la psychanalyse, 1986:293, grifos meus)
53
Ressalto que há dois antagonistas nesta argumentação: Freud e Goethe, sendo que
este último é conhecido por sua interpretação de que o conflito do príncipe Hamlet é o
conflito do intelectual, incapaz de agir como homem de ação. Entretanto, o que está em
questão para Freud tampouco é a possibilidade ou impossibilidade de ação por si só, e sim
53
Hamlet não é absolutamente o drama de impotência do pensamento em relação à ação. Porque, no limiar dos tempos
modernos, Hamlet seria o testemunho de uma certa debilidade do homem que está por vir com respeito à ação? Não vejo
as coisas tão pretas, e nada nos obriga a vê-las, senão um clichê de decadência, no qual o próprio Freud cai, quando
compara as atitudes diversas de Hamlet e do Édipo com respeito ao desejo.” (Lacan, Jacques. “O brilho de Antígona”, dia
25 de maio de 1960, Seminário A Ética da psicanálise, 1986:304)
117
o modo de lidar com o desejo. É claro que Freud atribuíra à impossibilidade de Hamlet de
levar a cabo sua vingança ao progreso secular de la represión en la vida espiritual de la
humanidad e aí oferece os flancos para a crítica contundente de Lacan.
É preciso atentar para o que diz Lacan, pois um argumento que atualmente se repete
para dizer que a psicanálise tornou-se prescindível é que nas sociedades ocidentais já não se
vive mais tamanha repressão. Por outro lado, compactuar totalmente com o postulado de
Freud, implicaria uma perspectiva de repressão total, que Senhora dos Afogados, de Nelson
Rodrigues de alguma maneira encenaria
54
. A questão é que o que aqui digo é um exercício
de supor um terceiro tempo a partir do que diz Freud. Talvez Žižek, quanto à pertinência ou
não da psicanálise na sociedade contemporânea traga um aporte produtivo, face aos dois
extremos apontados acima; o que ele vem a nos dizer em suas diversas entrevistas é que,
dada a permissividade das sociedades capitalistas contemporâneas, em que o sexual deixa
de ser tabu, e torna-se mercadoria, a grande questão é: como sustentar o desejo quando tudo
nos é oferecido como mercadoria? Ou seja, quando a falta é como tamponada pela
promessa de satisfação plena.
De toda forma, parece haver sempre uma grande dificuldade de passar da reflexão
sobre o coletivo – a função paterna na sociedade contemporânea, o desejo na sociedade de
consumo, o desejo nos sistemas totalitários – para a discussão do que é da ordem do
singular ou empírico – o desejo em determinado autor, por exemplo. Ainda assim, parece-
me que este conjunto de questões permite que se possa situar a obra dos autores aqui
estudados em relação aos postulados da psicanálise de Freud, e de Lacan, sem perder de
vista que as sociedades da segunda metade do século vinte, matizam algumas questões.
Tenhamos em conta este panorama difuso para avançar em meio a esta neblina
contemporânea, e a partir daí discutirei o lugar da obra de Nelson Rodrigues, articulando
nela teatro, desejo e psicanálise
55
. Para tanto, será necessário partir da leitura que Lacan faz
do Hamlet pois é através dela que se dará o desmonte do Édipo freudiano por parte do
psicanalista francês.
54
Tal posição é plenamente aferível pois, ao analisar Senhora dos Afogados à luz do Édipo freudiano, é-se levado a
aceitar que, face a não estruturação edipiana dos personagens, estaríamos frente a uma tragédia proto-psicótica. (Cf.
Alves-Bezerra, 2008) Cabe ainda acrescentar o quanto se tem discutido contemporaneamente o chamado declínio da
função paterna ou declínio do Édipo na sociedade contemporânea (Cf. Žižek, 1999, cap. 6)
55
O social se oferece com mais força, ao longo das páginas restantes deste trabalho, seja através do regime totalitário
cubano, da violência na descolonização da Argélia, possibilitando uma nova focalização no que tange à questão, a qual,
ademais, encontrará elementos para sua melhor articulação face às diferentes posições dos autores cubanos em relação ao
desejo, em contexto totalitário.
118
Não nos precipitemos a uma resposta, portanto. Como disse, Lacan dedica algumas
sessões de um seminário para falar de Hamlet, e tal seminário tem por nome Le désir et son
interpretation. E é de fato pela via do desejo, não do Édipo, que o francês se põe a
interpretar a obra de Shakespeare. Não sem antes dizer, já na primeira sessão, de 4 de
março de 1959, que terá o cuidado “de guardar Hamlet, onde Freud o colocou” (Seminário
VI:14). Deve-se questionar tal afirmação, pois Lacan afasta-se bastante da senda proposta
por Freud. Segundo o francês, pela leitura psicanalítica clássica, Hamlet não agiria (não
mataria Claudio) porque Claudio realizara o crime edipiano, que ele mesmo desejara ter
cometido, portanto, atentar contra o tio seria atentar contra si mesmo. Ora, dirá Lacan, mas
esta é uma falsa razão, pois tal justificativa volta-se contra si mesma:
si Hamlet se précipitait tout de suit sur son beau-pére, dire qu´il y trouve après tout
l´occasion d´étancher sa propre culpabilité en trouvant hors de lui le véritable coupable.
Que tout de même, pour appeler les choses par leux nom, tout lo porte à agir au contraire,
et va dans le même sens, car le père reviente de l´au-delà sous la forme d´un fantôme pour
lui commander cet acte de vindicte. Cela ne fait aucun doute. Le commandement du
surmoi est là en quelque sorte matérialisé, er pourvu de tout le caractère sacré de celui là
même qui reviente d´outre-tombe, avec ce que lui ajout d´autorité sa grandeur, sa
séduction, le fait d´être la victime, le fait d´avoir été vraiment atroccement dépossédé non
seulement de l´objet de son amour, mais de sa puissance, de son trône, de la vie même, de
son salut, de son bonheur éternel. [...] Nous le [Hamlet] voyons en fin de compte avec
deux tendances : la tendance impérative que lui est pour lui doublement [...] par l´autorité
du père et l´amour qu ´il lui porte ; et la deuxieme de vouloir défendre sa mère, et de
vouloir se la garder, qui doit le faire aller dans le même sens pour tuer Claudius. Donc
deux choses positives, choses curieuse, donneraint un résultat zéro. (Lacan, Le désir et son
interpretation, 18 de março de 1959:472-475)
56
Lacan portanto, seguindo o que ele chama “a tradição analítica” – entenda-se Freud
– termina por mostrar como Hamlet deveria agir se fosse impulsionado por seu desejo pela
mãe. E entretanto, como vemos, Hamlet não age. Pela hipótese freudiana, como vimos, de
que o Hamlet fosse uma sorte de reatualização do mito de Édipo, o recalcamento do
príncipe Hamlet viria no sentido de impedi-lo de aproximar-se do objeto incestuoso, a mãe,
ao descobrir seu desejo por ela. Isso foi o que procurei demonstrar pela frase Hamlet não
56
“Se Hamlet se precipitasse imediatamente sobre o seu padrasto, não poderíamos dizer também que encontrava a ocasião
de estancar fora dele a sua própria culpabilidade? Notemos que tudo o leva a agir. Em primeiro lugar o seu pai volta do
outro mundo sob a forma de um espectro para lhe ordenar este acto de vingança. O imperativo do super-eu encontra-se
aqui materializado, preenchido pelo carácter sagrado daquele que vem de além-túmulo, com o que lhe acrescenta de
autoridade a sua grandeza, a sua sedução, o facto de ser a vítima, de ter sido atrozmente despossuído não só do objecto de
seu amor, mas do poder, do trono, da própria vida, da sua salvação, da sua felicidade eterna. [...] Vêmo-lo [a Hamlet]
animado de duas tendências: uma é dirigida pela autoridade do seu pai e o amor que lhe tem; a outra responde à vontade
de defender a sua mãe e de a guardar. Estas duas tendências deveriam dirigi-lo no mesmo sentido – matar Claudio. Ora
duas coisas positivas dariam aqui um resultado igual a zero?” (Lacan, “O desejo da mãe” In: O desejo e sua interpretação,
18 de março de 1959, , pp. 49-50)
119
age, mas tem desejo que agora seria preciso complementar pela mãe. A causa da não ação,
conforme Freud, seria a possibilidade de que cumprisse com seu desejo incestuoso.
Já Lacan, ao se opor frontalmente a esta leitura, indica que o cumprimento da
vingança de Hamlet seria desejável, inclusive socialmente, pois tratar-se-ia de lavar a honra
do pai e de salvar a mãe das malhas da corrupção. Ou seja, para Lacan, haveria motivo de
sobra para que Hamlet agisse. É neste ponto que se situa o passo de Lacan. Pois, para ele, o
que está em questão não é o desejo de Hamlet pela mãe, e sim o desejo da mãe de Hamlet,
do qual o príncipe fica cativo. Assim, seria então possível reelaborar a partir da leitura
lacaniana, a oposição anteriormente estabelecida entre Freud e Schopenhauer. Vejamos:
Ação e desejo em Hamlet
segundo Freud e Lacan
Hamlet não age porque tem desejo [Wunsch]
pela Mãe
Complexo de Édipo
(Freud)
Hamlet não age porque o desejo [désir] é da
Mãe
Desejo (Lacan)
É preciso notar que a distinção que se dá entre as leituras de Freud e Lacan parece
levar também a que nos coloquemos a pergunta sobre o que é o desejo em Lacan. Pois, se
em Freud se tratava de um desejo reprimido, desejo que impedia o jovem de partir à ação,
em Lacan, nota-se que o desejo é justamente o que coloca a rainha em marcha.
No L´étique de la psychanalyse, logo no começo, o desejo aparece como faute,
entendo-se aí faute em sua dupla acepção, como ausência e como desvio. Para Lacan, a
falta é pré-condição para haver desejo. Note-se portanto como ele relê a ideia freudiana de
que um sonho seria a realização de um desejo, não pela via da satisfação, e sim pela da
falta. Freud (1900) quando ele fala dos sonhos, toma-os como realização alucinatória de um
desejo; Já Lacan, nas palavras de Mário Bruno (2004), “não pensa o desejo segundo o
modelo da satisfação alucinatória, acentua a falta” (op. cit., p. 33):
Je terminerai aujoud´hui par une note de la Traumdeutung empruntée à l´Introduction à la
Psychanalyse. Un second facteur à nous diriger, écrit Freud, beaucoup plus important et
tout à fait négligé par le profane, est le suivant. Certes, la satisfaction d´un voeu doit
120
apporter du plaisir, mais – je ne pense pas forcer les choses en retrouvant ici
l´accentuation lacanienne d´une certaine manière de poser les questions – le rêveur, c´est
bien connu, n´a pas un rapport simple et univoque avec son voeu. Il le rejette, il le
censure, il n´en veut pas. Nous retrouvons ici la dimension essentielle du désir,
toujours désir au second degré, désir de désir. (Lacan, L´étique de la psychanalyse, 18
de novembro de 1959, pp. 23-24, grifos meus)
57
Antonio Quinet (1988) aponta, em sua tradução brasileira do Seminário 7 (Lacan,
1988:392, nota 5), que satisfaction d´un voeu é o modo costumeiro que Lacan usa pra
traduzir a Wunscherfüllung de Freud. Quinet opta por “satisfação de um voto” em sua
tradução (op. cit., p. 24). Deve-se ressaltar que nessa passagem, está posta uma separação
cabal entre Freud e Lacan. Pois para traduzir o desejo freudiano [Wunsch], Lacan opta pelo
termo voeu, reservando para seu próprio conceito de desejo o termo désir, que ele se
apressa a definir como “désir de désir”. Acrescente-se, neste momento, tão somente que na
concepção lacaniana do desejo intervem a noção de desejo de Hegel, lida por Kojève
58
. É
será a partir da noção kojèviana de désir, e não do Oëdipuskomplex, que Lacan lerá o
Hamlet. É a partir daí, creio eu, que se pode perceber como Lacan oferece uma dimensão
conceitual própria – não freudiana – para sua concepção de desejo; não se trata de um voto,
algo de que se possa saber, algo que se possa realizar, mas isso que é da ordem da falta,
isso que se desconhece, isso que coloca o sujeito em marcha.
Assim, ao optar pela via do désir, e não do voeu, que a leitura que Lacan promove
do Hamlet pode tomar um rumo absolutamente diverso da de Freud. Inclusive ao
estabelecer que o sujeito desejante na obra não é, num primeiro momento, o príncipe
Hamlet, mas a rainha.
A mãe, dirá Lacan, é o sujeito primordial da demanda. Ela é a personagem
desejante, enquanto que a tragédia do príncipe Hamlet ordena-se a partir de sua disjunção
com o desejo. As consequências de tal situação se dá a ver na quarta cena do terceiro ato,
57
“Terminarei hoje, por uma nota da Traumdeutung extraída da Introdução à psicanálise. Um segundo fator a
nos guiar, escreve Freud, muito mais importante e totalmente negligenciado pelo profano é o seguinte.
Certamente a satisfação de um voto deve trazer prazer, mas – não acho estar forçando as coisas ao encontrar
aqui uma acentuação lacaniana numa certa maneira de colocar as questões –, o sonhador, isso é bem
conhecido, não tem uma relação simples e unívoca com seu voto. Ele o rejeita, o censura, não o quer.
Encontramos aqui a dimensão essencial do desejo, sempre o desejo ao segundo grau, desejo de desejo.”
(Lacan, A ética da psicanálise, 18 de novembro de 1959, 1988 :24).
58
Em sua leitura e tradução do Wunsch freudiano, intervém um outro elemento: a interpretação levada a cabo por Kojève
(1939) da dialética do senhor e do escravo de Hegel, que o leva a traçar sua própria dialética do desejo. A discussão acerca
da leitura de Kojève e de sua produtividade no pensamento lacaniano será efetuada no próximo capítulo, ao tratar da
escrita de Frantz Fanon.
121
na leitura de Lacan. Nessa cena, ponto nevrálgico da peça, nota-se o total fracasso de
Hamlet: o príncipe vai encontrar a Rainha, sua mãe, disposto a convencê-la a abandonar o
leito incestuoso e honrar a memória do morto; no trajeto à alcova real, Hamlet acaba
encontrando o rei Claudio em posição indefesa, orando. Seria sua chance de cumprir a
vingança, ele o sabe mas, contrariando o senso comum, não o mata. Primeiro fracasso.
Ato seguido, vai ter com a mãe, logra sacudi-la e perturbá-la, ao ponto de ela, em
sua máxima fragilidade, assim expressar-se: “QUEEN O Hamlet, speak no more! /
Thou turn´st my eyes into my <very> soul, / and there I see such black and <grained> spots
/ As will <not> not leave their tinct.” (Shakesperare, 3º ato, cena IV, p. 175)
59
, dando claros
indícios de ser absolutamente sensível ao seu crime incestuoso. Neste ínterim, surge o
fantasma do pai morto, que aconselha Hamlet a prosseguir em seu intento, cuidando de
preservar a integridade da mãe: “GHOST But look, amazement on thy mother sits. / O,
step between her and her fighting soul. / Conceit in weakest bodies strongest works. / Speak
to her, Hamlet.” (Shakesperare, 3º ato, cena IV, p. 177)
60
Nessa retomada de fôlego da mãe, ao ver o filho olhando para o vazio ela, já mais
calma, dirige-se com doçura a Hamlet, pedindo a ele que se acalme e se recomponha. E o
príncipe, por sua vez, em atitude que se opõe frontalmente ao resto da cena, vai
inesperadamente baixando o tom da sua agressividade. No final da cena, o que era franca
agressividade torna-se tão somente uma mansa e resignada ironia:
QUEEN – What shall I do?
HAMLET – Not this by no means that I bid you do: / Let the boat king tempt you again to
bed, / Pinch wanton on your cheek, call you his mouse, / And let him, for a pair of reechy
kisses / Or paddling in your neck with his damned fingers, /Make you to ravel all this
matter out / That I essentially am not in madness, / But mad in craft. ´Twere good you let
him know, / For who that´s but a queen, fair, sober, wise, / Would from a paddock, from a
bat, a gib, / Such dear concerning hide? Who would do so? / No, in despite of sense and
secrecy, / Unpeg the basket on the house´s top, / Let the birds fly, and like the famous ape,
/ To try conclusions, in the basket creep / And break your own neck down. (Shakesperare,
Hamlet, 3º ato, cena IV, p. 181-3)
61
59
“RAINHA Basta! / Voltas os olhos para minh´alma / E nela eu vejo tantos pontos negros / Que nunca sairão...”
(Shakesperare, 3º ato, cena III [sic], p. 153)
60
“FANTASMA Mas vê que o espanto oprime tua mãe; / Põe-te entre ela e su´alma conflagrada; / Que o mal domina o
corpo que é mais fraco. / Fala-lhe, Hamlet.” (Shakesperare, 3º ato, cena III [sic], p. 155).
61
RAINHA – Que farei eu?
HAMLET – Nada daquilo que eu pedi que faças; / Deixa que o fátuo rei te leve ao leito / Te belisque na face com luxúria,
/ E uma carícia no pescoço obtenha / De ti a história tôda dêste caso, / Que eu não sou louco, mas apenas finjo. / É bom
que lhe confesses tudo isso; / Pois quem, não sendo mais que uma rainha / Bela, virtuosa e casta, esconderia / De um sapo,
de um chacal, de um velho gato, / Tão boas novas? Quem faria isso? / Não, apesar de sensatez discreta, / Abre essa cesta
no telhado e deixa / Voar os passarinhos; como o mono / Entra na cesta para ver o fundo / E quebra nessa queda o teu
pescoço.” (Shakesperare, Hamlet, 3º ato, cena III [sic], p. 158-159)
122
O que Hamlet faz é aderir ao discurso da mãe, o que em sua boca soa irônico, mas
também veicula uma desistência quanto ao intento inicial; desistência de tal modo radical,
que ele, após isso, faz lembrar à sua mãe que está partindo à Inglaterra, e sai arrastando o
cadáver de Polônio, acidentalmente morto por ele durante a conversa com a mãe. Assim, a
anterior vitória no duelo verbal não traz qualquer consequência, trata-se de uma queda do
príncipe, a qual revela, para Lacan, a sua condição de sujeito em busca de um desejo:
Le mouvement de cette scène est à peu près celui-ci, qu´au delà de l´autre, l´adjuration du
sujet essaye de rejoindre, au niveau du code de la loi, et qu´il retombe non pas vers un
point où quelque chose l´arrête, où il se rencontre lui-même avec son propre désir – il n´a
plus de désir. Ophélie a été rejetée. (Lacan, Jacques. Le désir et son interpretation, 18 de
março de 1959, p. 482)
62
É importante enfatizar o deslocamento de Lacan em relação a Freud. O francês está
de acordo com Freud ao considerar que em Hamlet está-se diante da tragédia do desejo,
entretanto, recusa-se a ver nela a reprodução linear do esquema do Édipo. Vê Hamlet em
busca de seu desejo e, portanto, em disjunção com ele. Na cena citada o que prevalece é o
desejo de Gertrudes, sua mãe e o de seu pai morto; Hamlet parece girar em falso. Sua fala
se esboroa em seu próprio movimento, seu discurso moralizante cai por terra na pantomima
da sexualização da mãe, como que reconhecendo que sua fala porta uma moral não
aplicável à mãe. Diante da mãe, que parece operar por outra lei, ele pode pouco; sua
agressividade em relação à ela é semelhante àquela dirigida à Ofélia, entretanto, Ofélia fica
à mercê das palavras do príncipe, a mãe não.
Assim, mesmo a fórmula lacaniana “le désir de l´homme c´est le désir de l´Autre” não
é o que propriamente deveria ser aplicado a esta cena pois Hamlet limita-se a atender a
demanda materna. O problema de Hamlet, diz Lacan, é “d´en retrouver la place de son
désir” (op. cit., p. 488). Sua posição, no luto pela morte do pai, é aquela que Freud (1917)
chamava a do melancólico e, impossibilitado que está de desejar, soçobra diante da
demanda materna, a qual, por sua vez, tampouco escolhe entre o rei morto e o rei posto:
Le prémier pas que nous avons fait dans cette voie, a donc été d´articuler combien la pièce,
qui est le drame du désir dans le rapport au sir de l´autre, combien elle est dominée de
cet autre qui est ici le désir de la façon la moins ambigue, la Mére, c´est-à-dire le sujet
62
“O movimento desta cena é mais ou menos este – a adjuração do sujeito para além do Outro tenta chegar ao nível do
código da lei, mas cai. Não se reencontra com o seu próprio desejo, pois já não há mais desejo, na medida em que Ofélia
foi rejeitada por ele.” (Lacan, “O desejo da mãe” In: O desejo e sua interpretação, 18 de março de 1959, p. 54)
123
primordial de la demande. [...] Le drame se présente d´une façon toujours double, ses
éléments étant à la fois inter et intrasujectifs. Donc dans la pespective même du sujet, du
prince Hamlet, ce désir de l´autre, de désir de la mère se présente essentiellement comme
un désir qui est entre un objet éminent, entre cet objet idéalisé, exalté qu´est son père, et
cet objet déprécié, méprisable qu´est Claudius, le frère criminel et adultère, ne choisit pas.
(Lacan, Jacques. Le désir et son interpretation, 15 de abril de 1959, pp. 516-517)
63
A Rainha é incapaz de luto, diz Lacan. E o jovem filho capitula. Tal situação só se
alterará mais adiante na peça quando, já tendo partido para a Inglaterra, desistido no meio
do caminho, e retornado, Hamlet depara-se com o túmulo de Ofélia. Só diante desta visão é
que algo sucederá ao príncipe que o levará a uma mudança radical de posição na trama. A
partir do texto “Luto e Melancolia” [Trauer und Melancholie] de Freud (1917), Lacan vai
elaborar a hipótese de que é nesta cena que se faz possível para o jovem o trabalho do luto,
o qual, bem sucedido que é, coloca-o na posição de sujeito desejante.
Em “Luto e Melancolia”, Freud afirma que o trabalho do luto consiste em deslocar a
libido do objeto perdido de volta ao eu, para que o sujeito se coloque novamente em
condições de desejar ou, nos termos de Freud, que possa então deslocá-la para outro objeto.
Lacan reconhece esta virada em Hamlet, quando ele se entrega a uma rivalização que chega
a ser engraçada, de tão descabida, lançando a Laertes o desafio de que aquele – em luto
pela irmã – não o poderia superar em sua dor:
HAMLET – I loved Ophelia. Forty thousand brothers / Could not with all their quantity of
love / Make up my sum. What wilt thou do for her? [...] ‘Swounds, show me what thou´t
do. / Woo´t weep, woo´t fight, woo´t fast, woo´t tear thyself, / Woo´t drink up eisel, eat a
crocodile? / I´ll do it. Dost <thou> come here to whine? / To outface me with leaping in
her grave? / Be buried quick with her, and so will I. / And if thou prate of mountains, let
them throw / Millions of acres on us, till our ground, / Singeing his pate against the
burning zone, / Make Ossa like a wart. Nay, an thou´tl mouth, / I´ll rant as well as thou.
(Shakespeare, Hamlet, 5º ato, cena I, p. 255-7)
64
63
“O primeiro passo que fizemos neste caminho foi de articular o quanto a peça é dominada por este Outro, a Mãe, isto é,
o sujeito primordial da demanda. A omnipotência de que falamos sempre na análise é, primeiramente, a omnipotência do
sujeito como sujeito da primeira demanda, e é à Mãe que deve ser referida. [...] Como é que o desejo do outro se apresenta
na própria perspectiva do sujeito, do príncipe Hamlet? Esse desejo, desejo da mãe, apresenta-se essencialmente assim:
entre um objecto eminente, idealizado, exaltado, que é o pai, e um objecto desvalorizado, desprezível, que é Cláudio,
irmão criminoso e adúltero, ela não escolhe.” (Lacan, “O objecto Ofélia” in O desejo e sua interpretação, 15 de abril de
1959, p. 73).
64
“HAMLET – Amei Ofélia. / Quarenta mil irmãos, por mais que a amassem, / Não somariam mais que o meu amor. Que
queres tu fazer então por ela? [...] Pelas chagas de Cristo, que pretendes? / Chorar? Lutar? Jejuar? Despedaçar-te? / Beber
fel? Engolir um crocodilo? / Eu o farei. Vieste para queixar-te? / Desafiar-me, saltando em sua cova? / Enterra-te com ela
e eu o farei. / Se falas das montanhas, que nos cubram / Jogando sobre nós milhões de acres, / Até que a nossa tumba,
chamuscada / No tôpo por tocar as zonas tórridas, / Faça da Ossa um botão! Se o que pretendes / É atroar os ares, eu te
sigo / E clamarei tão alto como tu.” (Shakespeare, Hamlet, 5º ato, cena I, p. 215-216)
124
Lacan, vê aí uma identificação imaginária, à maneira do que elaborara em “O estádio
do espelho como formador da função do eu” [Le stade du miroir comme formateur de la
fonction du Je] (1949), para dizer que Hamlet reconhece seu próprio luto em Laertes e, no
momento em que reclama do quão espalhafatoso ele é, volta-se contra sua própria
condição, finalmente levando a cabo o trabalho do luto. Esta visão em espelho de si mesmo
é que permite a Hamlet, no dizer de Lacan, passar “a ser um homem” (op. cit., p. 55) ou,
dito de outra forma, voltar a desejar. Em termos freudianos, este ato seria o responsável
pelo deslocamento libidinal a outros objetos, o que permitirá, como se sabe, Hamlet levar a
cabo sua vingança. É possível, pois, ver tal cena como a libertação do jugo – ou da
demanda – maternos; é o momento em que Hamlet logra ver um para além da mãe.
Cabe ainda acrescentar que o encontro de Hamlet com Laertes é construído de forma
tal por Shakespeare, que Laertes acaba de fato funcionando como imagem invertida do
príncipe. Pois é justamente a partir da cena do encontro de Hamlet com a rainha, do
assassinato de Polônio, e da posterior saída de cena do príncipe, que se vê na peça o
ressurgimento do raivoso Laertes, que quer a todo custo – ele sim – vingar a morte de seu
pai. E vai demonstrando todas as atitudes viris que se poderia esperar de um filho que teve
o pai morto à traição, o que vale dizer que Laertes age como se esperaria de Hamlet ao
longo de toda a peça. Daí perceber-se o efeito cênico da conversão de Hamlet a partir do
encontro com Laertes. O espelhamento que habilmente é visto por Lacan, a partir de um
termo de sua própria reflexão anterior, está presente na trama, colocado por Shakespeare.
Procuro ressaltar com isso uma coincidência entre o que está do lado da interpretação e o
que está do lado da composição dramática.
Lacan estabelece ainda outra relação importante, que remete à cena do cemitério:
trata-se da mudança repentina de Hamlet em relação a Ofélia. Sabe-se o quanto Hamlet
vinha tratando mal Ofélia desde o aparecimento do fantasma de seu pai. Ela tornara-se para
ele, “le symbole même du rejet comme tel de son désir” (op. cit., p. 561)
65
. Na cena citada,
por outro lado, a visão do pranto de Laertes e do túmulo de Ofélia tem sobre o príncipe
grande efeito. Falando sobre o desejo do obsessivo, Lacan diz que seu objeto de desejo é
um objeto impossível, e é ao passar a ocupar este lugar na estrutura que Ofélia ganha outra
dimensão para o príncipe:
65
“o símbolo da rejeição do seu desejo” (op. cit., p. 98)
125
Hamlet s´est conduit avec Ophélie de la façon plus que méprisable et cruele. J´ai insisté
sur le caractère d´agression, dévalorisant, d´humiliation sans cesse imposée à cette
personee quei est devenue soudain le symbole même du rejet comme tel de son désir. Nous
ne pouvons pas manquer d´être frappés de quelque chose qui complète pour nous une fois
de plus, sous une autre forme, dans un autre trait, la structure pour Hamlet. C´est que
soudain cet objet va reprendre pour lui sa présence, sa valeurs. [...] C´est en quelque sorte
dans la mesure où l´objet de son désir est devenu un objet impossible qu´il redevient
pour lui l´objet de son désir.. (Lacan, Jacques. Le désir et son interpretation, 22 de abril
de 1959, pp.561-562, grifos meus)
66
Portanto, a assunção de Hamlet a uma condição de sujeito desejante – conforme a
leitura de Lacan – advém do trabalho do luto por Ofélia, cujo nome é escandido pelo
francês evocando sua etimologia: Ophelia > O phallus. Donde conclui que do luto do falo é
que Hamlet, como qualquer sujeito, advém na castração na condição de sujeito desejante.
A seguinte ação interpretativa de Lacan também será sobre um significante; agora não
mais de Shakespeare, mas do próprio Freud; o francês interpreta a decadência [Untergang]
do Édipo a que aludira Freud não nos termos de reflexo de uma mudança sócio-histórica,
mas nos termos aos quais se refere o vienense em seu próprio texto, “O declínio do Édipo”
(1924) [“Der Untergang des Ödipuskomplexes”], tomando Untergang no sentido de
dissolução. Portanto chama a atenção para o momento da Untergang do Édipo de Hamlet.
Pode-se notar como a leitura que Lacan faz da tragédia de Shakespeare não se
confunde de modo algum com a leitura de Freud. E muito embora os dois textos de Freud
(1915, 1924) tenham se mostrado importantes na análise de francês, a questão do desejo na
peça é articulada para além do Édipo. Quanto à afirmação do psicanalista francês de que irá
guardar Hamlet, onde Freud o colocou (Lacan, op. cit.,:14) talvez possa ser entendida
através do movimento das leituras que Lacan faz de Freud ao longo de sua obra: leituras
críticas que, não raro, deslocam os pressupostos freudianos a partir de pressupostos
freudianos – tal como se pode notar da reinterpretação do declínio do Édipo a partir da
tragédia de Shakespeare.
Finalmente é possível retomar a questão anteriormente colocada. Por esta breve e
esquemática exposição da leitura de Lacan fica claro que o enigma de Hamlet encontrou na
66
“Hamlet conduziu-se com Ofélia de um modo desprezante e cruel. Já insisti sobre a agressão desvalorizante, a
humilhação que impõe continuamente esta pessoa que se tornou para ele o próprio símbolo da rejeição do seu desejo. Ora,
de repente este objecto retoma para ele a sua presença, o seu valor [...] E eis um traço que retoma e completa sob uma
outra forma a estrutura de Hamlet – é na medida em que o objecto do seu desejo se tornou um objecto impossível que
voltou a ser de novo, o objecto de seu desejo.” (Lacan, “O desejo e o luto” In: O desejo e sua interpretação, 22 de abril de
1959, p. 98)
126
reflexão do francês uma resposta outra. Se Freud projetara o Complexo de Édipo em
Hamlet, Lacan recusa-se a considerar o príncipe um caso clínico (op. cit., : 488)
67
, motivo
pelo qual ele diz que não deverá decidir se o personagem seria neurótico ou histérico.
Limita-se a dizer que se trata, em Hamlet de « un drame que permet de situer si vous
vouler, comme une plaque tournente où se situe un désir » (op. cit., : 488).
A partir da suspensão da projeção do mito clínico do Édipo sobre a trama de Hamlet,
Lacan termina por promover uma interpretação outra, na qual os personagens se articulam
diversamente. Quando Freud introduz o complexo de Édipo, pode-se dizer que ele funda
uma matriz interpretativa. Tal matriz ganha na psicanálise – e para além dela – uma
condição estruturante. Tal condição estruturante pode estar tanto no pólo da análise – vide
a interpretação freudiana do Hamlet – quando no da escrita; um exemplo claro disso é a
escrita de Amar, verbo intransitivo, que poderia ser qualificado aqui, sem qualquer
demérito a seu autor, de romance de tese.
A obra dramática e em prosa de Nelson Rodrigues, por exemplo, sustentam uma
leitura psicanalítica, que não incida nem sobre o autor e que tampouco deite seus
personagens no divã. O modo de composição de suas obras, que finca raízes na tragédia
clássica e moderna, faz com que elas sustentem uma abordagem forte. Há certamente algo
dito sobre o sujeito no gênero trágico; das águas que manam desta fonte, psicanalistas e
dramaturgos seguem sorvendo algo. A reflexão lacaniana – como vimos – também se nutriu
aí: Hamlet no Seminário Le désir et son interpretation e Antígona em L´étique de la
psychanalyse. Nelson Rodrigues operou na prática da escrita teatral de modo similar ao que
operou Lacan na sua reflexão sobre a clínica. O fato de que a obra de Nelson Rodrigues
sustente uma dupla leitura, pela via do desejo, mas também pela via do Édipo freudiano,
não é uma marca disso?
67
Esta tendência de fazer equivaler um personagem literário (ou um escritor) a um paciente era frequente nas primeiras
abordagens de Freud da literatura. No que toca ao autor, Dostoievski e Edgar Allan Poe foram “vítimas” de Freud, pois o
vienense acreditava que a psicanálise poderia prestar-se a melhor analisar os gênios criadores (Cf. Prefácio de Freud ao
livro de Marie Bonaparte. Edgar Poe, étude psychoanalytique. Paris: Denoël et Steele,1933.) Portanto, a posição de Lacan
diante do literário, ademais, oferece outras vias de abordagem, que prescindem da biografia do autor e da noção de gênio
criador.
127
1.3.4. A via do desejo em Nelson Rodrigues: O que quer uma mulher?
A esta altura já é possível dizer que, uma abordagem de Nelson Rodrigues a partir
da psicanálise ou, dito de outra forma, uma abordagem de Nelson Rodrigues que
evidenciasse os elementos com os quais opera a psicanálise lacaniana, deve considerar o
desejo. O que se buscou fazer ao longo destes dois capítulos foi mostrar como a obra de
Nelson Rodrigues tange as cordas do desejo, como a tangiam o Édipo rei e o Hamlet. O
fato de ela ter sido produzida já na metade do século XX, agrega-lhe elementos externos de
aproximação à psicanálise, os quais, é preciso que se diga, se por um lado evidenciam que a
influência se faz presente de forma diluída, por outro atestam que o desejo não é tocado em
Nelson Rodrigues porque havia psicanalistas pelas ruas do Rio ou nos Estados Unidos; mas
porque na calçada em frente representavam-se obras de Lorca, Shakespeare, O´Neill, Ibsen,
e os trágicos clássicos
68
.
Dizendo-o de maneira cabal, Nelson Rodrigues está na psicanálise pelo trágico,
entendendo-se aqui que, contemporaneamente, o trágico participa da psicanálise, pelo
desejo. Para corroborar esta posição, além da herança trágica de Schopenhauer retrabalhada
por Freud, mais contemporaneamente tem-se a afirmação de Lacan da dimensão trágica da
psicanálise (cf. Seminário 7). Tal dimensão trágica, se for pensada na chave da filosofia do
trágico, que desloca o gênero para o que é da ordem de um efeito, nos levará de imediato a
pensar que tal dimensão em Nelson Rodrigues ocupa um espaço que exorbita do teatro. Daí
ser da maior importância, na abordagem proposta, que não nos limitemos às suas tragédias,
mas que perscrutemos igualmente sua obra em prosa.
E nesta abordagem exploratória, o que buscarei destacar, é a dimensão do desejo
feminino na obra de Nelson Rodrigues, através de duas frentes: em primeiro lugar, a partir
de suas crônicas da série A vida como ela é...; além dela, a já aludida tragédia Senhora dos
Afogados, de escrita e encenação bastante anteriores. Trata-se de dois gêneros distintos,
produzidos em épocas distintas e com alcance diversos, ambos entretanto coincidindo numa
insistência em torno à mulher. A partir desta insistência em torno ao feminino, se pode
depreender algumas formulações sobre o desejo. O que é preciso deixar claro de antemão é
68
Eis mais um aspecto em que Nelson Rodrigues é um antípoda de Mário de Andrade: sua formação intelectual parece ser
primordialmente oral e visual. Nelson Rodrigues declarou-se mais de uma vez pouco letrado, mas manifesta em suas
crônicas um conhecimento empírico de frequentador que se enfronhou em sua obra. Seu conhecimento da obra teatral –
isso se depreende da leitura de sua obra – parece advir do lugar do espectador, não do leitor.
128
que em Nelson Rodrigues não se está diante de uma obra que apenas herda um legado, mas
uma obra que é co-participante na construção de uma Erótica, nos termos que veremos a
seguir.
1.3.5. Elas gostam de apanhar (1974)
Enquanto o cheiro de Freud já se difundia e dispersava pela atmosfera carioca, tal
como o perfume de café que certos poetas juravam sentir ao passear pelo Rio de Janeiro
69
, a
obra de Lacan sequer cogitava imiscuir-se na maresia local. E, entretanto, já então, a série
A Vida como ela é, publicada nas páginas do jornal Última Hora, de Samuel Wainer, entre
1951 e 1961, Nelson Rodrigues escancarava de modo pretensamente naturalista a vida
sexual do carioca, e perguntava-se de modo obsessivo sobre a aparente impossibilidade das
relações monogâmicas e sobre a misteriosa sexualidade feminina.
Tratava-se de relatos curtos, dum Rio de Janeiro de tísicos, adúlteras, maridos traídos,
filhas doentes, noivas apaixonadas, que são donas de casa, secretárias, datilógrafas,
choferes, numa palavra, assalariados que amam, desejam, matam e morrem por ódio ou por
amor. Já na primeira publicação da série, prometia-se no jornal: “tragédia, drama, farsa e
comédia”. Ou seja, nota-se que há – ao menos no nível da propaganda – uma oferta do
trágico, mas também do dramático, do farsesco e do cômico; toda uma exposição das
paixões humanas nas páginas ásperas do jornal diário, com os personagens os mais
intrancendentes. De modo que se conclui que há um apelo popular – ou popularesco – que,
por outra parte, também virá a ser sucesso popular, como o atestam os dez anos de vida da
série.
Quanto à recepção do público, há uma crônica de Nelson Rodrigues, quando a série
completa seu primeiro ano de existência, que traz uma dimensão – evidentemente parcial –
do modo como era lida, e do modo como supostamente o próprio cronista a concebia.
Trata-se do texto “Eu não tenho culpa que a vida seja como ela é”. Nele, o cronista
romanceia a gênese da coluna, a qual, teria sido concebida para conferir “aura trágica” aos
acontecimentos que costumeiramente sofreriam o tratamento objetivo da crônica policial.
69
“Sólo por cuatrocientos mil reis se toma un café, que perfuma todo un barrio de la ciudad durante diez minutos.”
(Girondo, Oliverio. “Río de Janeiro” in Veinte poemas para ser leídos en el tranvía, 1922)
129
Sem tocar no termos, levantam-se na crônica dois tópicos fundamentais. A catharsis e o
lugar da mulher na série. Quanto ao primeiro deles, diz o cronista: “Era uma coluna triste
[...] sofriam os personagens e os leitores” (Nelson Rodrigues, “Eu não tenho culpa que a
vida seja como ela é”, 13 de junho de 1962, 2009:11). E logo adiante, ressaltando seu
interesse pelo gênero trágico e o papel dele para a série:
E como se não bastasse a vida mesma, tão triste e tão feia, restaria ainda, para amargar esta
coluna, minha condição teatral. Bem ou mal, sou dramaturgo. E, para mim, o teatro se
reduz ao gênero trágico. (Nelson Rodrigues, “Eu não tenho culpa que a vida seja como ela
é”, 13 de junho de 1962, 2009:11)
O segundo aspecto, que será também objeto de interesse, é a condição das mulheres
em A vida como ela é... A esse respeito, o cronista oferece ao leitor uma suposta conversa
telefônica com uma leitora, a qual é bastante reveladora:
Um dia, o telefone bateu. Voz de mulher, perguntando por mim. Atendo e, do outro lado
da linha, vem a pergunta:
— É o senhor que escreve aquela seção “A vida como ela é...” ?
— Perfeitamente.
Continuou a voz:
— Aqui fala uma leitora. Me diz uma coisa: O senhor é inimigo das mulheres?
Caio, automaticamente, das nuvens?
— Eu, minha senhora? Pelo amor de Deus!...
A leitora, porém, insiste?
— Então, como é que, nas suas histórias, as mulheres fazem o diabo, hein? (Nelson
Rodrigues, “Eu não tenho culpa que a vida seja como ela é”, 13 de junho de 1962,
2009:11-12, girfos meus)
Eis aí, revelada em palavras eloquentes, duas das características mais inovadoras das
crônicas policiais de Nelson Rodrigues, em primeiro lugar, sua dimensão trágica, em
segundo lugar, o papel ativo das mulheres no desenrolar dos enredos. Que tais exercícios
narrativos tenham ficado ocultados pelo entorno imediato da vida suburbana carioca, pela
violência dos assassinatos, suicídios, funerais, traições – repetidos à exaustão ao longo das
mais de 150 crônicas da série – não obsta para que em meio às poças de sangue não se
possam revelar pequenas pérolas. Nelas, a mulher ocupam inequivocamente um papel
central, como já o percebera a atenta leitora, imaginária ou não.
Coincidentemente, léguas marítimas além, pela mesma época, Jacques Lacan, logo
na primeira aula de seu seminário de 1959, L´éthique de la psychanalyse, perguntava-se
130
sobre o desejo, e se lamentava sobre o quão pouco a psicanálise havia avançado na questão
desde Freud; ainda mais com a esterilidade dos pós-freudianos que acreditavam no ideal do
amor médico, asséptico e na completude genital.
Para Lacan, da descoberta freudiana do desejo, que implica uma tremenda mudança
de posição em relação ao tema, não foram tiradas todas as conseqüências possíveis e, em tal
campo, carecia-se ainda da elaboração de uma Erótica. O campo das relações
monogâmicas, diz Lacan, segue sendo um território inexplorado:
Dire que les problèmes de l´experiénce morale sont entièremente résolus concerannt
l´union monogamique serait une formulation imprudente, excessive et inadéquate. (Lacan,
Jacques. « Notre programe », dia 18 de novembro de 1959, L´éthique de la psychanalyse,
1986:17)
70
Uma das causas dessa irresolução, conforme o francês, seria o mistério que segue
sendo a sexualidade feminina. E Lacan vai encontrar em Freud um antecessor do
questionamento – incessante e irresoluto – de tal mistério:
A ce propos, ce que j´ai mis à l´ordre du jour de notre prochain Congrès, la sexualité
féminine, est un des signes les plus patents, dans l´évolution de l´analyse, de la carence
que je désigne dans le sens d´une telle élaboration. Il est à peine besoin de rappeler ce que
Jones a recueilli d´une bouche qui n´a sans dout rien de espécialement qualifié à nos
yeux, mais quie est supposée à tout le moins avoir transmis dans son juste texte, sous
toute réserve, ce qu´elle a recueilli de la bouche de Freud. Jones nous dit avoir reçu de
cette personne la confidence qu´un jour, Freud lui dit qualque chose comme ceci – Aprés
quelque trente années d´expérience et de réflexion, il y a toujours un point sur lequel je
reste sans pouvoir donner de réponse, et c´est – Was will das Weib ? Qu´est-ce que
veut la femme ? Très precisement – Qu´est-ce qu´elle désire ? – le terme will, dans
cette expression, pouvant avoir ce sens dans la langue allemande. (Lacan, Jacques.
« Notre programe », 18 de novembro de 1959, Seminário L´éthique de la psychanalyse,
1986 :18, itálicos do autor, negritos meus)
71
Vale notar que oscila mais uma vez, agora sobre a forma verbal – o will freudiano
nesta frase e o wunsch da Interpretação dos Sonhos. O voto (veut) ou querer da frase
recolhida por Jones é entendido na sua condição de desejo. E é sobre o desejo feminino que
70
“Dizer que os problemas da experiência moral que concernem à união monogâmica estão inteiramente resolvidos seria
uma formulação imprudente, excessiva e inadequada.” (Lacan, Jacques, “Nosso programa”, dia 18 de novembro de
1959, 1988:18)
71
“A esse respeito, o que sei ter sido colocado na ordem do dia do nosso próximo congresso, a sexualidade
feminina, é um dos sinais dos mais patentes, na evolução da análise, da carência que designo no sentido de
uma tal elaboração. Quase não é preciso relembrar o que Jones recolheu de uma boca que com certeza não é
em nada especialmente qualificada a nosso ver, mas que se supõe ter, no mínimo, transmitido em seu texto
exato, com toda reserva, o que ela recolheu da boca de Freud. Jones nos diz ter recebido dessa pessoa a
confidência de que, um dia, Freud lhe diz algo como isto – Depois de trinta anos de experiência e reflexão,
continua havendo um ponto sobre o qual fico sem poder dar resposta, e que é – Was will das Weib? O que
quer a mulher? Muito precisamente – O que ela deseja? – o termo will, nessa expressão podendo ter esse
sentido na língua alemã.” (Lacan, Jacques, “Nosso programa”, dia 18 de novembro de 1959, 1988:18)
131
Lacan se perguntará, tendo inclusive como substrato o teatro de Ibsen, contemporâneo de
Freud, para pensar como tal questão sobre a mulher abafou-se na obra de Freud. O que foi
oferecido em termos de reflexão analítica, diz Lacan, foi uma série de ideais anódinos, tais
como o ‘ideal do amor humano’, complementar e genitalizado. Em oposição a isso, Lacan
oferecerá a Antígona de Sófocles.
Do outro lado do Atlântico, será algo bem diverso do amor complementar o que nos
oferecerá Nelson Rodrigues em sua dramaturgia, e em suas crônicas de A vida como ela é...
Apesar de se tratarem de dois contextos bastante diferentes, o do final dos anos 50 na
França e no Brasil, é notório como os questionamentos de Lacan e Nelson Rodrigues a
respeito da sexualidade, da ética e da moral e, principalmente, da sexualidade feminina,
toquem em pontos semelhantes; ainda que resultem, é claro, em respostas de natureza
bastante diversa.
Pois é ao longo dos anos cinquenta que Nelson Rodrigues faz desfilarem diante dos
olhos atônitos de seus leitores, histórias sexuais em âmbito familiar, nas quais são possíveis
as mais diversas variações em torno ao mito do Édipo freudiano, ou, para os que queiram
prescindir desta filiação psicanalítica, nas quais o narrador exercita uma vasta combinatória
de elementos moralmente inaceitáveis.
Ao leitor que se pergunte, o que tem exatamente isso a ver com a psicanálise, para
além da sincronia entre questionamentos por parte de ambos pensadores, cabe um ensaio de
resposta através de uma cena do ato final de Bonitinha, mas ordinária, peça encenada pela
primeira vez no ano de 1962. Em tal cena, o Dr. Werneck organiza, na Barra da Tijuca, não
uma cura, mas uma curra psicanalítica. A cena a seguir, por si só, obriga a que volte o
leitor a pensar na peça Sexo, de Renato Vianna, e ver como sua suposta provocação sexual
torna-se a mais cordata e dócil apologia da boa vida burguesa:
DR. WERNECK – Bem, é o seguinte. Vamos fazer uma brincadeira. (VOZES. RISOS).
Silêncio! Fontainha! Cala a boca! Uma brincadeira. [...] O negócio é psicanálise.
Psicanálise. Assim, olha. O divã. (DR. WERNECK VAI ATÉ O DIVÃ). O divã está aqui.
[...] O freguês deita-se no divã. Como na psicanálise. Eu vou bancar o Freud. Tomo
notas. Num caderninho. O que está deitado conta as próprias sujeiras. [...] (COMO
UM CAMELÔ) Vai querer? Primeira?
1º GRÃ-FINO – Eu!
DR. WERNECK – Um momento. Só mulher! Mulher tem mais graça (NUM BERRO
MAIOR). De preferência mulher casada com o marido presente. Quem se habilita?
[...]
DR WERNECK – (COM A VOZ FORTE). Ana Isabel. Qual foi o seu michê mais
baixo?
ANA ISABEL – Não me lembro.
132
DR WERNECK – Responda, Ana Isabel! Não admito pudores. Você pertence a uma
família formidável. Não interessa. Tem que dizer tudo. Qual foi seu michê mais baixo?
O mais baixo?
ANA ISABEL – (VIOLENTA E ESGANIÇADA) 75 cruzeiros!
DR WERNECK – Por que os quebrados?
ANA ISABEL – O sujeito deu tudo o que tinha. 75 cruzeiros.
[...]
DR WERNECK – (COM EXALTAÇÃO SELVAGEM) Outra mulher!
3º GRÃ-FINO – Agora, sou eu.
DR WERNECK – Mulher, rapaz! (PARA OS OUTROS). Outra coisa. É a seguinte. Isso
aqui é psicanálise. De galinheiro, mas é. Para mulher, a psicanálise é como se fosse
um toque ginecológico – sem luva! Outra mulher!” (Nelson Rodrigues, Bonitinha, mas
ordinária, 1962, III Ato, grifos meus)
A cena prossegue com a “análise” de outras mulheres, até que chega ao seu apogeu
com a curra das virgens suburbanas. O que interessa sublinhar é o interesse do personagem
Dr. Werneck pelas mulheres. Tal traço, para além de uma idiossincrasia do personagem,
tem a ver com a chegada da psicanálise à sociedade brasileira: a assunção social da mulher
à condição daquela que passa a ter acesso ao consultório do psicanalista, onde faz
revelações salvaguardada pela ética do analista e, o mais brutal para os homens, livre do
jugo regulador da religião, do controle familiar, dos olhares sociais. O pacato cidadão –
mas aqui enfatizo o impacto para a mulher, em particular – eleva-se à condição de sujeito
desejante. A dimensão trágica de mulheres e homens liberta-se da regulação totalitária da
religião, o que, em Nelson Rodrigues, não implica em liberdade, em utopia, mas na
revelação da dimensão do desejo e do sofrimento.
Levando adiante a analogia entre a clínica, a medicina e a religião, a qual está
sempre presente em Nelson Rodrigues, pelas figuras do psicanalista, como uma figura
média entre o médico e o padre, é preciso dizer: é a primeira vez que não há possibilidade
do controle masculino. Dito de outra forma, se a psicanálise não liberta – como a Igreja –
ao mesmo tempo não controla – como a Igreja.
Supõe-se que no ato da confissão, busca-se o controle do desejo, e qualquer desvio é
punido; no médico, ou ginecologista, o medo masculino é encontro íntimo da mulher com
um médico-homem, o que sempre se podia resolver indicando que a mulher fosse a uma
médica ginecologista
72
. Assim, abole-se socialmente a possibilidade – mesmo que
72
Segundo aponta Ruy Castro (1992) em sua suculenta biografia de Nelson Rodrigues, tal era o expediente de Mário
Rodrigues, como também seria o do seu filho Nelson Rodrigues, para evitar o contato íntimo da esposa com outro
homem, mesmo que fosse um médico do sexo masculino. Faço aqui este relato por seu caráter exemplar, que sugere o
impacto da psicanálise na sociedade brasileira de então, em geral, e especificamente sobre o escritor Nelson Rodrigues.
133
imaginária – do controle da mulher, com o surgimento de um profissional que propõe dar
conta, entre outras coisas, da vida sexual da paciente.
Desse modo, não é gratuita a imagem da psicanálise como sendo um toque
ginecológico sem luva, se não para a mulher, certamente sim na fantasia masculina de
então. Some-se a isso, a tais fantasias masculinas, o fascínio causado pela mulher posta na
condição sujeito desejante, e ter-se-á um panorama interessante das personagens de Nelson
Rodrigues, tanto de seu teatro quanto de suas crônicas
73
. Ganha vida na literatura de Nelson
Rodrigues o temor masculino pelo desejo, pela traição feminina. E, pior de tudo para a
mentalidade patriarcal, no consultório do analista os ‘desvios’ não serão ‘punidos’.
Assim, ressalto como a pergunta de Freud sobre o que deseja a mulher, bem como o
questionamento de Lacan, já nos anos 50, sobre a sexualidade feminina, parecem ser
reatualizados na máquina de escrever de Nelson Rodrigues.
Entretanto, na forma como Nelson Rodrigues visita a questão há algumas marcas
bastante particulares. Pois diante do desejo, à maneira do que ocorria em Édipo Rei, a
reação de homens – e até mesmo de mulheres – é de total suspensão. Se para a psicanálise
trata-se, em Lacan, de avançar a partir da pergunta de Freud – O que deseja a mulher? – em
Nelson Rodrigues não se trata de responder, posto que se está fascinado pelo choque da
descoberta masculina – mas também feminina, a qual não pede resposta, e pode ser
resumida pela seguinte interjeição: As mulheres desejam!
A esse respeito, parece prevalecer no senso comum até hoje, a noção de que a
resposta de Nelson Rodrigues foi a mais machista possível, e que poderia ser resumida pelo
título de sua segunda antologia de contos da série A vida como ela é... O título era: Elas
gostam de apanhar (1974). Antes de nos apressarmos em desdizer ou caucionar tal
afirmativa, é preciso enfatizar que ela, de certa forma, traduz a condição desejante
feminina, mesmo que travestida numa ambígua punição, a qual, por outro lado, também
poderia ser entendida como fazendo referência aos jogos amorosos. Opte-se por uma leitura
– a da punição – ou por outra – a erótica – o fato é que na expressão Elas gostam de... já se
está admitindo uma demanda ou desejo feminino, os quais, na obra do cronista e
73
Um exemplo claro da mulher desejante, com direito à voz, na obra de Nelson Rodrigues, é Susana Flag, pseudônimo do
escritor, que causou furor na sociedade carioca com os folhetins Meu destino é pecar (1944). Escravas do amor (1944),
Minha vida (1946), Núpcias de fogo (1948), O homem proibido (1951), A mentira (1953). Houve ainda outra, Myrna,
autora de A mulher que amou demais (1949). Somem-se a isso as personagens femininas de Nelson Rodrigues, das quais
tratarei a seguir.
134
dramaturgo, têm contornos sexuais. Tal resposta que a expressão implica supõe um
enunciado causador, o qual enunciaria um desejo – um desvio – prévio, que se faz a causa
desse posicionamento.
Quanto a palavra do Nelson Rodrigues, como vimos na crônica acima, que buscava
explicar o funcionamento da coluna A vida como ela é..., ele assume também a persona do
moralista, para declarar:
Discordo desse ideal da noiva cega, surda e muda diante da vida. Acho que uma moça só
deve ser esposa quando está em condições de resistir aos maus exemplos. Considero
monstruosa, ou inexistente, a virtude que se baseia pura e simplesmente na ignorância do
mal. Cada mulher devia ter um minucioso conhecimento teórico do bem e do mal.
Afinal de contas, a virtude é, acima de tudo, uma opção. (Nelson Rodrigues, “Eu não
tenho culpa que a vida seja como ela é”, 13 de junho de 1962, 2009:11-12, grifos meus)
Curiosa a posição do escritor, pois se avança por um lado – o valor da experiência
para a mulher – toma uma postura maniqueísta ao falar em conhecimento do bem e do mal.
Acrescente-se o paradoxo, o conhecimento do bem e do mal deve ser teórico! Ideal da
conduta feminina para o entrevistado: experiência teórica com fins a aumentar sua virtude.
Tal seria o caráter formador das crônicas de A vida como ela é... Sustento que, diante dessa
fala não posso mais que reiterar o comentário já feito a respeito do suposto tom moralista
de Bonitinha mas ordinária: a catharsis é muito mais eficaz que a moral da história.
Nesse sentido, é como se Nelson Rodrigues retomasse a posição de Schopenhauer, em
seu O mundo como vontade e como representação, quando o filósofo afirma que o ideal
sublime é a supressão da vontade. Em sua literatura, como veremos, a posição que se
depreende é certamente mais transgressiva, e ninguém mais anti-schopenhaueriano que o
abjeto Nelson Rodrigues.
Quando saem das páginas do Última Hora, as crônicas de A vida como ela é...
ganham a página menos fugaz dos livros. Elas gostam de apanhar (1974) é o título do
segundo volume de crônica da série
74
. Neste tomo, o nome alude a uma suposta fantasia
feminina que o autor nos vem a desvelar, uma fantasia de punição que pode ser tomada nas
mais diversas acepções, como já disse. As vinte e seis crônicas que compõem o volume, em
oposição às cem que compunham os dois volumes de A vida como ela é... (1961), e o longo
74
As cem primeiras crônicas selecionadas ocuparam dois volumes chamados Cem contos escolhidos – A vida como ela
é..., editados pela J. Ozon, em 1961. Em 1974 a Bloch Editores publica pela primeira vez o aludido Elas gostam de
apanhar, com outras 26 crônicas da série. Mais recentemente, a Agir publica outras 39 crônicas em livro, sob o título Eu
não tenho culpa que a vida seja como ela é (2009).
135
período que separa esta segunda publicação da anterior, poderiam nos levar a pensar em
uma organização temática de crônicas, que fariam referência ao universo feminino. Mas o
título reverbera ainda algumas entrevistas que o autor dava por aquela época nas quais
explicando o mote do título, e parecem mais soar como uma provocação do que
propriamente aludir a algum conteúdo específico da obra: “Mas é como eu disse, nem todas
as mulheres gostam de apanhar. Só as normais. As neuróticas reagem”.
O fato é que não há uma só crônica no volume em que uma mulher apanhe.
Entretanto, para além de ser um título altamente provocativo, seu conteúdo poderia evocar,
ao ser colocado em confronto com os personagens das crônicas, uma sorte de castigo que
paira sobre as histórias relatadas. O fato é que as narrativas que propõem diversas variações
em torno ao romance familiar, com namoros, flertes, casos de amantes, viuvezes
prematuras – terminam por resolver-se inequivocamente de modo cabal, por assassinato,
suicídio, sequestro ou entrega sexual. No entanto, para além dos desenlaces
convencionalmente folhetinescos, há quatro outras narrativas, cujas histórias destoam, o
que por si só já justificaria sua glosa abaixo. Entretanto, como se notará, há mais:
(i) “Retrato de Marido” . Neste relato, Adelaide – “senhora casada, dos seus
trinta e poucos anos, de busto opulento e amplas cadeiras [...] com seus
vestidos colantes e os seus decotes violentos” (op. cit. :67) – propõe a
seu amante Olinto, “uma brincadeira infernal”, um encontro amoroso em
sua casa na ausência do marido, mas diante do retrato dele: “Quer abraçá-
lo, beijá-lo, sob as vistas do retrato cordial e implacável” (op. cit.,:69).
Olinto, já no apartamento, não suporta a situação. Diz o narrador: “Saiu
dali correndo como um alucinado”.
(ii) Em “Doente do pulmão”, D. Clélia, mulher casada, recebe sob sua porta
um poema anônimo. Chega à conclusão – após longa conversa com as
vizinhas – de que o autor é o tísico Silveirinha. Ela insufla o marido para
que ele dê uns tiros no poeta, como prova de amor e macheza. O marido
opta por uma sova ao invés de um tiro. Numa madrugada, quando de fato
o tísico chega para depositar novo poema sob a soleira da porta, D. Clélia
desperta o marido e a vizinhança. “Criou-se uma platéia. Assistido e
estimulado por uma espécie de torcida, Geraldo bateu além da medida”
136
(op. cit.,:108). Final inusitado: “Clélia cai de joelhos na calçada.
Abraçada ao tísico, chora também; beija-o, soluça: Meu marido é
mau! Meu marido não chega aos teus pés!” (op. cit.:108).
(iii) Em “O fracasso”, após terem sido namorados apaixonados, Maciel vê-se
sexualmente desinteressado pela esposa, Olívia, e passa a ter aventuras
fora do casamento. Olívia recusa-se a pedir o divórcio, e acaba
engravidando. Maciel enamora-se da filha recém-nascida, mas segue
indiferente em relação à mulher. Após a doença da filha, numa noite, uma
frase da esposa fecha o conto de forma lapidar: “Eu fracassei como
esposa e tu como pai. Pausa, e conclui: Como pai, porque essa filha
não é tua.” (p. 116)
(iv) Em “O ladrão de crianças”, o padrinho de Tião, Tertuliano, repete uma
pergunta à comadre, se o filho dela fosse sequestrado, e o sequestrador
exigisse como resgate a entrega sexual dela, se ela pagaria o resgate.
Indefectivelmente, a resposta era Claro!”. Como num flerte, ele ameaça
a comadre que sequestrará o garoto. Um dia, ao acaso, Tião acaba
dormindo na casa do padrinho. Ele liga para a comadre, de brincadeira,
propondo o sequestro. Ela vem, desesperada. Tertuliano se assusta,
dizendo que era uma brincadeira. Ela, desesperada, quer se entregar assim
mesmo.
Nota-se, nas quatro narrativas, um papel ativo por parte das mulheres, na expressão
repentina de um desejo, que termina por deixar desarmado o homem que elas têm diante de
si. Nesses contos, como em alguns outros, a voz que diz “Elas gostam de apanhar...” parece
emergir como uma sorte de condenação, de apologia ao corretivo, de um super-macho que
restabelecesse a ordem patriarcal. Entretanto, o fato de tal enunciado surgir, como que
ordenando tais histórias, de novo sob a ótica da moralidade, já é uma forma de afirmar a
impotência do mesmo poder masculino.
Assim é que a crônica de costumes de Nelson Rodrigues termina por afirmar o
desejo feminino, ainda que sob protesto. Esse desejo, é preciso que se diga, é sempre da
ordem do desvario, como algo que não se sustenta, que é seguido pela sanção da morte, do
137
suicídio; a exceção seriam os quatro casos acima, nos quais a tônica é um olhar atônito
masculino, que se deixa entrever na fresta do que é dito por cada uma das quatro mulheres.
De outra parte, o atrativo que fez com que a coluna fosse um sucesso ao longo de
dez anos ininterruptos, parece ser o comprazimento dos leitores que acompanharem as
apimentadas histórias. Para além da suposta punição, a afirmação do desejo feminino
certamente não passou desapercebida entre os leitores e leitoras de Nelson Rodrigues.
Ressalto que me limitei às crônicas especificamente do volume de 1974, tal
conjunto seria bastante engordado se fossem emparelhadas a estas, os hoje clássicos como
“A dama do lotação”, ou outras menos conhecidas como “Pecadora”, “Veneno”, entre
outras. De toda forma, a série A vida como ela é... e essas quatro crônicas de Elas gostam
de apanhar têm papel importante na constituição da Erótica de Nelson Rodrigues.
Constituem o ponto máximo que alcança a obra de Nelson Rodrigues relativamente à
sexualidade feminina, na perspectiva do que possibilita a chegada do pensamento
psicanalítico ao Rio de Janeiro em meados do século XX.
O que objetivei aqui foi mostrar como há na obra de Nelson Rodrigues elementos
que discutem temas caros à psicanálise lacaniana – inclusive contemporaneamente a ela –
como a moral sexual, familiar e o desejo feminino. Creio que esta é uma forma de mostrar
o caráter subversivo da literatura rodrigueana.
Se nos tempos ditos libertários que hoje se vive, parece pequena e tímida a incursão
da obra de Nelson Rodrigues no universo feminino em relação à contundência do que teria
feito a psicanálise, a seguinte afirmação de Lacan, no que tange à mesma questão, mostra
que também no âmbito da psicanálise se havia avançado bem pouco. O curioso é que, para
Lacan, no caso de Freud, havia sido também o fermento do teatro que havia fomentado um
primeiro ponto de vista sobre a questão, a qual, entretanto, viu-se posteriormente abafada:
[...] Dissons que l´analyse, et précisément la pensée de Freud, est liée à une époque qui
avai articulé cette question avec une insistence tout spéciale. Le contexte ibsénien de la
fin du XIX
e
siècle où mûrit la pensée de Freud ne saurait être ici négligé. Et il est en
somme très étrange que l´experience analytique ait plutôt étouffé, amorti, éludé les
zones du problème de la sexualité vu dans la perspective de la demande féminine.
(Lacan, Jacques. L´éthique de la psychanalyse, 18 de novembro de 1959, 1989:18, grifos
meus)
75
75
“Digamos que a análise, e especialmente o pensamento de Freud, está ligada a uma época que havia articulado essa
questão com uma insistência toda especial. O contexto ibseniano do fim do século XIX onde o pensamento de Freud
amadureceu não poderia aqui ser negligenciado. E, em suma, é muito estranho que a experiência analítica tenha,
sobretudo, abafado, amortecido, eludido as zonas do problema da sexualidade vistas dentro da perspectiva da demanda
feminina.” (Lacan, Jacques, “Nosso programa”, dia 18 de novembro de 1959, 1988:18-19)
138
A nos pautarmos pelo que diz Lacan relativamente à demanda feminina e o teatro,
caberia nos perguntarmos em que lugar situa-se a dramaturgia de Nelson Rodrigues e – por
quê não? – a de Renato Vianna.
Tem sido frequente por parte da crítica, desde os contemporâneos de Nelson
Rodrigues, equiparar sua obra à do norte-americano O´Neill. Há trabalhos diversos neste
sentido, o que coube aqui, tão somente, na lógica do que propõe este trabalho, foi ver como
se dá tal relação no tocante ao desejo feminino, em dois momentos da obra de Nelson
Rodrigues, sendo o primeiro deles as crônicas. Passemos à sua dramaturgia.
1.3.6. O desejo feminino em Senhora dos afogados (1947)
De 1974, com a publicação de Elas gostam de apanhar... retroagimos a 1947, ano
da escrita de Senhora dos afogados. No entanto, tal peça terá de aguardar até 1954 para
poder estrear. Pode-se entender que a temática da obra possa ter causado sua proibição de
ser encenada: incesto, matricídio, alelofagia, prostituição. Nelson Rodrigues, em suas
Memórias, refere-se da seguinte forma à interdição da obra:
Eis o fato: — minha peça Senhora dos afogados fora interditada. Recorri ao então Chefe
de Polícia, General Lima Câmara. Homem de temperamento forte, ele foi comigo, e com
minha peça, um doce, um terno. Pedi uma Comissão de Intelectuais, cujo parecer salvaria
ou não Senhora dos Afogados. Indiquei nomes, e o general aceitou. Olegário [Mariano,
poeta] fora uma das minhas sugestões. Gilberto Freyre, oura. Muito bem: — Olegário
votou contra, vejam vocês, contra (Gilberto a favor).
“Tomei um baque quando vi o parecer da Comissão: — a maioria estava com a Polícia.
Há, no meu texto, três ou quatro cenas fortes. Fortes por absoluta necessidade
psicológica e dramática. E ai de mim! O nosso literato age e reage diante do sexo
como uma Bernarda Alba. (Nelson Rodrigues, “Capítulo 3” in Memórias. A menina
sem estrela, 18 de fevereiro de 1967, 2009:29-30, grifos meus)
Chama a atenção na narração a peça ter sido censurada, a despeito da influência do
autor junto às autoridades, inclusive indicando membros para sua própria comissão
julgadora. Não é difícil entender a censura à obra, que de fato traz à cena diversas cenas
contundentes, entre relações sexuais e assassinas dentro do próprio clã familiar. Melhor
para o público que ela tenha sido logo liberada.
139
Nota-se logo que a peça dialoga com a tradição da tragédia clássica. Sábato Magaldi,
em seu estudo introdutório à peça, estabelece o vínculo direto da Senhora dos afogados
com a trilogia Mourning Becomes Electra, de Eugene O´Neill; mas não deixa de fazer
referência à Oréstia, trilogia de Ésquilo. Carlinda Pate Núñez (2001) ocupou-se em levar
adiante o paralelismo e o deslocamento entre as três obras, mostrando os elementos
dissonantes de Rodrigues.
Disse acima que uma possível leitura via psicanálise, era a de abordar a Senhora dos
Afogados a partir do mito de Édipo em sua versão freudiana. Entretanto, proponho uma
leitura contrapontística que, embora não desconsidere o alcance e as possibilidades de uma
leitura edipiana da obra, possa avançar em direção a uma compreensão pela via do conceito
de desejo de Lacan. Assim, considero – em diferente medida – o corte temporal proposto
por Freud, e logo o avanço proposto por Lacan em seu seminário 7 no sentido da
reconsideração do desejo e da constituição de uma Erótica.
De Senhora dos Afogados é preciso dizer que seu caráter trágico específico –
entendido a partir de Freud (1900) – reside num conflito que evoca o entrecruzamento de
uma realidade sociohistórica específica e numa certa constituição psíquica. Tal leitura seria
possível na perspectiva apontada no início deste capítulo, qual seja, a de que Nelson
Rodrigues poderia ser considerado como um terceiro momento da série formada por
Sófocles, Shakespeare e finalizada por ele mesmo.
Mas uma possível objeção seria o pretenso caráter mítico” atribuído por Magaldi à
esta obra de Nelson Rodrigues. Essa classificação como que suspende a priori uma leitura
que considerasse o entorno sociohistórico no qual ela se constitui, ainda mais porque
Magaldi opõe esta peça (e Anjo Negro, por exemplo) às tragédias cariocas. Creio que
embora não se possa certamente emparelhar o tratamento da realidade sociohistórica em
Senhora dos Afogados e, por exemplo, Elas gostam de apanhar, sustento que é necessário
considerar que, no tocante ao desejo feminino e sua repressão, aproximar duas realizações
tão distintas é minimamente revelador. De sorte que é preciso considerar essa sorte que
sanção, que aparece em ambas obras, ao desejo feminino, ou à sexualidade de maneira mais
ampla.
O fragmento das Memórias de Nelson Rodrigues é bastante revelador neste sentido,
quando a comissão de intelectuais condena sua peça por seu conteúdo inapropriado, que
140
poderia ser sim lida pela via da tragédia grega; quando apenas Gilberto Freyre – para quem
a sexualidade deve ser celebrada – vota a favor, nota-se o quanto é repressivo, em certo
sentido, o Rio de Janeiro pós-Estado Novo. Assim, para além da dimensão mítica da peça,
que a coloca em diálogo com as tragédias já apontadas, é preciso dizer que ela dialoga
também com seu entorno, o Rio de Janeiro dos anos quarenta. É a partir deste lugar que me
parece razoável fazer referência à reflexão de Freud, e daí partir: a peça em questão gesta-
se e exibe-se em uma sociedade que regula as manifestações explícitas da sexualidade.
Poder-se-ia objetar, se estou propondo uma leitura que considera o mito freudiano e,
mais ainda, a partir da psicanálise, de uma obra que canonicamente tem sido considerada
mítica, qual é a produtividade de inserir aí a estrutura social e, com ela, como não poderia
deixar de ser, a dimensão histórica? É possível responder que se trata de figurações diversas
do feminino, um na chave mítica, outro numa realidade suburbana, entretanto, em
contraposição a um universo masculino, a um só tempo, repressor e reprimido.
Nesse sentido, há uma aguda observação de Magaldi, em sua introdução a Senhora
dos Afogados, que alude ao simbolismo presente na obra:
Surge do episódio [casamento de Misael e assassinato da prostituta] um símbolo, que
nutre a obra rodrigueana: para um homem casar-se, precisa sacrificar a prostituta que
existe na mulher, ou, por outra, o matrimônio é frio, casto e triste, sem nenhum abandono
erótico, pulsional, amoroso (Magaldi, 1981:40)
Esse elemento parece fundamental para entender a tragédia de Nelson Rodrigues em
geral, mas parece-me necessário situar esta afirmação numa chave mais ampla, para então
voltar a ela de modo específico em seu funcionamento no teatro rodrigueano. De toda
forma, entre a prostituta e esposa casta, poucas – ou nenhumas – opções restam a Misael;
esta sorte de esquematismo reduzido, que confere ainda mais alcance à afirmação de Lacan
do quanto a ética das relações monogâmicas ainda é incipiente e problemática, nos oferece
uma porta de entrada ao modo como está tratada a sexualidade em Senhora dos Afogados.
Freud tem um texto iluminador quanto ao tema, trata-se de um artigo de 1910,
“Sobre um tipo especial de la elección de objeto en el hombre” [Über einen besonderen
Typus der Objektwahl beim Manne”], acerca da escolha objetal no homem; ele busca dar
conta de uma das etapas cruciais na vida do garoto. Tal texto precisa ser colocado na série
dos escritos de Freud que apresentam uma das muitas versões do tema do complexo de
Édipo, que estava ainda longe de ser o definitivo em sua obra. O autor se refere a uma
141
dualidade presente no menino adolescente, ao deparar-se com o desejo da mãe, dirigido a
outro que não ele mesmo:
Pero precisamente la decidida antítesis entre la «madre» y la «prostituta» ha de
estimularnos a investigar la evolución y la relación inconsciente de estos dos complejos,
pues sabemos ya de antiguo que en lo inconsciente suelen confundirse en uno solo
elementos que la conciencia nos ofrece antitéticamente disociados. (…) Así, no es raro
verle [al niño] rechazar indignado tal posibilidad, diciendo a su iniciador: «Es posible que
tus padres y otras personas hagan eso; pero los míos, no.» Como corolario casi regular de
la «ilustración sexual» averigua el niño al mismo tiempo la existencia de ciertas mujeres
que realizan procesionalmente el acto sexual, siendo por ello generalmente despreciadas.
(…) Cuando más tarde no puede ya mantener aquella primera duda que excluía a sus
padres de las bajas normas de la actividad sexual, llega a decirse, con lógico cinismo, que
la diferencia entre la madre y la prostituta no es, en último término, tan grande, puesto
que ambas realizan el mismo acto. (…) Comienza, pues, a desear a la madre, en el
nuevo sentido descubierto, y a odiar de nuevo al padre, como a un rival que estorba el
cumplimiento de tal deseo. En nuestra terminología decimos que el sujeto queda
dominado por el complejo de Edipo. El hecho de que la madre haya otorgado al padre el
favor sexual le parece constituir algo como una imperdonable infidelidad. (Freud,
1910:1628-1629, grifos meus).
Não é difícil perceber outra vez presente em Freud a trama do Hamlet – mais que a
do Édipo Rei – estando o jovem garoto, que algo já sabe sobre o sexo, diante da mãe,
reinserindo-se no circuito primeiro do complexo de Édipo. É preciso notar como, para
Freud, o garoto oscila entre duas figuras, a da ‘mãe’ e a da ‘prostituta’. A questão sexual
fica portanto circunscrita ao campo da marginalidade, do sexo comercializado, da
prostituição; à mãe cabe a pulcritude da vida doméstica. Dito de outro modo, uma
idealização materna fica dissociada do que é da ordem do sexo, e o desejo sexual limita-se
a outro campo, o da troca comercial. Elude-se aqui o que poderia ser a mulher que deseja
um homem, condição para que o garoto possa vir a ter uma vida sexual saudável, para além
do âmbito doméstico.
Uma marca notória da vigência desta elisão em nossa sociedade é o xingamento
“filho da puta”, cuja extremada ofensividade advém da sobreposição das duas figuras: a
mãe e a da prostituta. Talvez coubesse buscar a agressividade do palavrão em questão, a
seguirmos a trilha freudiana, que a ofensa do garoto ao ver que sua mãe o trai com o pai
amplia-se para todo o espectro de homens que queiram tomá-la sexualmente e possam
pagar por isso. O filho da puta, nesta perspectiva, é aquele traído não só pelo pai, mas por
todos os homens potencialmente existentes.
Note-se que a reflexão de Freud – como o próprio título do artigo nos indica –
limita-se à escolha dos garotos. E que no imaginário destes garotos, conforme Freud,
142
inexiste a imagem da mulher, estão tão somente a mãe e a prostituta. Mais uma vez é a
sombra da pergunta freudiana que se manifesta sobre o texto: Was will das weib? O que
deseja a mulher? Pois a mulher não aparece nem como uma posição acessível ao garoto, e
nem como fazendo uso de seu direito de escolha. Um silêncio estridente do vienense.
É dessa pergunta que Lacan vai derivar, em seu seminário 17, L´envers de la
Psychanalyse, o mote “le rôle de la mére, c´est de désir de la mére”. O que significa dizer
que cabe à mãe tão somente o desejar, desejar um mais além do filho, para que na castração
simbólica este possa advir como ser desejante. Como que se apropriando das elipses
freudianas quanto ao desejo feminino, ele vem nos afirmar que o desejo é ele mesmo aquilo
que move o sujeito, como a obra de Freud parece ter se movido, ao longo de décadas, por
uma perguntao respondida.
Ressalte-se que o que Lacan está fazendo é uma releitura do Oëdipuskomplex
freudiano, lançando luz sobre a mulher que há na mãe, cujo desejo não se encerra no filho
concebido; cujo desejo a leva adiante e, no limite, faz o filho mover-se noutra direção que
não a dela. Embora seja possível ver tal percepção, ao menos potencialmente, em Freud, é
preciso dizer que é na pergunta Was will das Weib? que parece depositar um certo resto que
Lacan virá a recolher, rearticulando-o ao pensamento freudiano.
É a dissociação entre a mãe e a puta, e de umas reticências quanto ao lugar da
mulher – que não parece ser um conflito irresoluto apenas na obra freudiana – que é posta
em cena em Senhora dos afogados, em sua dimensão de horror.
Assim, seria possível dizer que os adolescentes – meninos e meninas – de Nelson
Rodrigues encenam a traumática passagem à vida adulta no contexto de uma sociedade
patriarcal que não lhes permitiria aceder ao ser desejante. Sua sexualidade encontra,
ademais das vicissitudes propriamente estruturais, aquelas históricas que, em Nelson
Rodrigues estão claramente marcadas. É preciso evitar, outrossim, a transposição
mecanicista da tragédia para a sociedade na qual ela foi concebida e censurada, antes de ser
encenada. Certamente Senhora dos afogados fala do Rio de Janeiro no qual ela se produziu,
mas reverbera uma questão ocidental, presente já na obra de Freud desde o final do século
dezenove. Não ter a cor local presente em Elas gostam de apanharo faz dela menos
referente a uma questão da sociedade em que foi escrita e encenada.
143
Ressalto ainda que as mulheres de Nelson Rodrigues equivalem, em muito, a uma
certa fantasia masculina. Daí a importância de considerar o artigo de Freud de 1910, no
qual mulher e desejo aparecem dissociados para o adolescente de Freud. A junção dos dois
pólos – a mulher e o desejo ou ainda, a mãe e a puta – é explosiva em Nelson Rodrigues.
Seria possível dizer que Nelson Rodrigues dá um passo em relação ao que está proposto em
Freud, um passo em direção ao desejo da mulher, e neste passo, o quadro visto é
primordialmente de horror. E se nos relatos curtos de Elas gostam de apanhar, a questão se
suspendia pelo recurso folhetinesco à morte, em Senhora dos afogados, o conflito é
sustentado e extraem-se dela não poucas consequências.
A família da peça em questão é burguesa, e o pai da família – Misael – está em um
feliz momento de ascensão social. Os valores familiares são reafirmados continuamente por
Misael e a figura da mãe é santificada. A assepsia e a desumidificação do lar burguês
rodrigueano mostram-se como o cenário fundamental para – numa perspectiva freudiana –
ver o que seria a travessia do Édipo por seus jovens personagens; ou ainda, a operação do
desejo, tal como nos mostra Lacan. Ocorre que o ambiente é de profunda repressão da
sexualidade, o que impede que qualquer travessia seja levada a cabo a contento.
A matriarca e mãe de Misael é a defensora da repressão da sexualidade, a qual é
definida como a marca do clã dos Drummond, como o elemento que mantém sua coesão.
Vemos isso em diversos momentos da tragédia; baste-nos um dos mais agudos:
(1) AVÓ (para os vizinhos)– Mas não é só Clarinha… Pudor têm todas as mulheres da
família.
D. EDUARDA (num breve protesto) – Os vizinhos não precisam saber.
AVÓ – Precisam, sim! (para os vizinhos) Na nossa família, as mulheres se
envergonham do próprio parto, acham o parto uma coisa imoral – imoralíssima…
(…)
AVÓ – Eu, (indica o próprio peito) eu quando moça e bonita, como és agora, eu tinha
vergonha de mim mesma… Tinha vergonha de tudo que era mulher em mim. (rápida
e acusadora) E tu? tens vergonha? de teu próprio corpo, tens?... Ou despes teu busto
diante do espelho para namorá-lo? Responde! (Nelson Rodrigues, Senhora dos
afogados, 1º ato, Quadro I, 2004: 213-214, grifos meus)
A matriarca tem orgulho de propagandear que as mulheres do clã tem vergonha de
serem mulheres. Não é a repressão que se vê em La casa de Bernarda Alba, quando o que
estava em questão era manter as irmãs solteiras, castas e de luto fechado; aqui, mesmo o
casamento, mesmo o parto, devem causar horror às jovens, e isso é afirmado com orgulho.
É como se fosse uma obscenidade às avessas, que é posta em cena pela sua negação.
144
Senhora dos afogados traz de volta um elemento presente na tragédia fundadora
freudiano, Édipo Rei: Trata-se da encenação das fantasias incestuosas. Entretanto, não do
modo cego, como o fizera o jovem e incauto Édipo, mas sim deliberada e desbragadamente.
Como entender tal encenação? Há modos diversos de abordar a questão, com diferente
alcance. Lacan, em seu seminário sobre as psicoses, refere-se ao fato de que, para o
psicótico, o que é recalcado no simbólico, retorna no real:
La relation que Freud établit entre ce phénomène et ce très spécial ne rien savoir de la
chose, même au sens du refoulé exprimé dans son texte, se traduit par ceci – ce qui est
refusé dans l´ordre symbolique, resurgit dans le réel. Il y a une relation étroite entre, d´un
côté, la dénégation et la réapparition dans lórdre purement intellectuel de ce qui n´est pas
intégré par le sujet, et de l´autre, la Verwerfung et l´hallucination, c´est-à-dire la
réapparition das le réel de ce qui est refusé par le sujet. (Lacan, 16 novembro de 1955,
Seminário 3, Les Psychoses, p. 22)
Tal excerto de Jacques Lacan parece antecipar o que vem em seguida em Senhora dos
Afogados: incestos, parricídios etc. Dizer dessa peça que ela encena algo que é da ordem da
psicose não implica dizer que tenha personagens psicóticos, autor psicótico ou se refira a
uma sociedade psicótica, e sim que ela põe em cena – à maneira de uma alucinação – aquilo
mesmo que ela faz negar, o desejo e a sexualidade.
Num certo sentido, na cena final do Édipo Rei, quando o jovem se descobre o
criminoso que ele mesmo procurava, autor do incesto e do parricídio, tudo isso se desvela
como horror, que o leva inclusive a furar os próprios olhos e desterrar-se, assumindo uma
espécie de morte simbólica. Tal cena tem o efeito, para o público, de um desvelamento
horroroso, culminância da encenação. Já em Senhora dos afogados, o horror é sustentado
ao longo da peça, e sempre aumenta pouco mais; assim, quando digo que algo do real aí se
encena, é no sentido que não é uma irrupção do real no tecido do simbólico, e sim que a
trama logra sustentar-se no registro do horroroso. Ele exorbita inclusive o trágico,
ingressando no nível do patético. É isto que permite aproximar a peça do registro da
psicose, mesmo se tratando de um objeto da cultura, partilhável.
De certa forma, encena-se a ineficácia da lei simbólica como reguladora da vida
social. Ou, dito de outra forma, como uma tragédia do malogro do Édipo. Como se aquilo
que surgira no Édipo Rei como “como en el sueño, la fantasía del deseo infantil subterráneo
es traída a la luz y realizada” (Freud, 1900:507), e que no Hamlet era, ainda segundo Freud,
[la fantasía del deseo infantil, que] “permanece reprimida, y sólo averiguamos su existencia
145
- las cosas se encadenan aquí como en una neurosis - por sus consecuencias inhibitorias”
(Freud, 1900:507), o que temos aqui é afirmação agônica da impossibilidade do desejo, e
sua realização em ato, como horror. Por essa chave é que seria possível falar de uma peça
de teatro que opera no domínio da psicose como a entende Lacan, o que é recalcado,
retornando no real.
Entretanto, na perspectiva do desejo, seria mais atinado ler a peça não privilegiando a
ineficácia do Oëdipuskomplex (quando não se forma o complexo, vive-se no real e, neste
caso, no domínio da psicose), e sim pela via do desejo feminino. Ou seja, como encenação
da negação do desejo feminino, este sim, que retorna como horror, para um homem. Nesse
sentido, a peça exibiria uma fantasia masculina, na referência às vicissitudes do próprio
Misael.
1.3.7. Tragédia do Real ou fantasia masculina?
Na perspectiva de uma tragédia que encena o real, Misael é logo no primeiro quadro
da peça apresentado como o suspeito de ter matado uma “mulher de má fama”, cuja morte
se reatualiza constantemente para ele, seja através das visões que por vezes tem, seja pelo
canto ritual das prostitutas no cais, seja pelas acusações que ele tem que ouvir de tempos
em tempos, de ser o suposto assassino:
(2) PAULO — Há anos que penso no que falam do meu pai... E digo a mim mesmo –
meu pai não mataria ninguém – muito menos uma vagabunda do cais do porto...
Dizem também que ele sujou as mãos de sangue e enxugou as mãos numa toalha... [...]
Moema, jura que meu pai não matou essa prostituta... Jura que não enxugou as mãos na
toalha. [...] Jura, Moema...
MOEMA — Juro.
PAULO (Num apelo maior) — Por Deus!
MOEMA — Por Deus, não!
PAULO [...] O pior tu não sabes – nem mamãe... Faz hoje 19 anos que a mulher
foi morta...
D. EDUARDA (crispada) — Também hoje é o aniversário do nosso casamento...
[...]
PAULO (fora de si) — ... essas vozes? Esses gemidos? São as mulheres do cais...
Choram e rezam pela que mataram há 19 anos... Ouves agora? (Nelson Rodrigues,
Senhora dos afogados, 1º ato, Quadro I, 2004: 219, grifos meus)
A coincidência de datas entre o casamento do pai e o assassinato da prostituta deixa
Misael, aos olhos da família, sob suspeição, e nos remete à realização da metáfora de
Sábato Magaldi – de que para que o homem pudesse se casar era preciso assassinar a
146
prostituta – ainda como possibilidade. E aí começam os paralelos na peça, pois assim como
faz dezenove anos da morte da prostituta, também neste dia morreu a filha Clarinha, de 15
anos, sob circunstâncias suspeitas, afogada. O espectador descobre que há uma força que
vai atrai as mulheres do clã à morte, que a morte – como a defesa explícita da castidade –
são a marca – ou o estigma – da família.
E se essa seção ao iniciar a análise da peça, falei que havia em Nelson Rodrigues
uma dificuldade para alcançar a condição de mulher, que as garotas passavam de filha à
esposa e mãe, ou se desviavam para ser adúltera ou prostituta; é preciso acrescentar que
também há do lado masculino, uma dificuldade para aceder a uma posição viril. O garoto
Paulo, filho de Misael, é uma figura perturbada, frágil, que passa o dia no mar em busca do
corpo das irmãs mortas, Dora e Clarinha, e se ocupa – como se vê no fragmento acima –
com a idealização do pai. A condição quase andrógina de garotos como ele – e como o
Paulinho de Toda nudez será castigada – mostra a ausência do pai que proceda àquilo que
Lacan chamava castração simbólica, o corte entre o filho e a mãe que permite o filho
aceder à condição de desejante para fora da estrutura familiar.
Misael parece não exercer este papel no seio familiar. E esclareça-se que o exercício a
que me refiro limita-se a um abandono desejante em relação à sua mulher, de modo que os
filhos não encontrem lugar onde se enganchar na relação do casal, e possa instalar-se para
eles uma falta que os faça seguir adiante. Nos termos do psicanalista Mauro Mendes Dias
(2005), “o homem precisa fazer questão da mulher que escolheu” .
Perscrutemos a alcova de Misael e D. Eduarda e ver o que se passa ali. Seguindo o
texto supra-citado de Freud (1910), não é difícil notar como Misael não supera a fase do
pré-adolescente de que o vienense nos propunha. A defesa do leito matrimonial casto e
assexuado é explícita:
(2) MISAEL – Te lembras de nossa primeira noite?
(Misael pousa o copo. Aproxima-se de D. Eduarda.)
D. EDUARDA – Não me lembro – nem quero.
MISAEL – Teu corpo ao longo do meu corpo. Nenhuma palavra que nos unisse. (…)
Sabes porque foste minha? Por causa da família… Eu queria de ti filhos… Só podia
querer filhos… Prazer, não, nenhum prazer… (…) Um Drummond não pode amar
nem a própria esposa. Desejá-la, não; ter filhos. Se Deus nos abençoa é por isso,
porque somos sóbrios… Nossa mesa é sóbria e triste. A cama é triste para os
Drummond…
D. EDUARDA – Tens os filhos em casa e amas na rua! (Nelson Rodrigues, Senhora dos
afogados, 1º ato, Quadro I, 2004: 232, grifos meus)
147
Misael nega sentir ou ter sentido desejo pela esposa, posto que desejá-la é colocá-la
na posição de prostituta. A cisão está clara e é explícita. O papel da esposa é de reprodutora
e mãe dos filhos, E como casar com ela teve o preço de assassinar a prostituta, como já
observara Magaldi
76
, sua imagem se interpõe a qualquer tentativa de aproximação sexual
entre Misael e a esposa. A prostituta morta retorna à menor manifestação de desejo pela
esposa e, insepulta, interpõe-se entre ele e a esposa no leito conjugal:
(3) Outros podem ver mulher nua, mas eu, não… Sempre foste minha nas trevas, como
dois cegos que se possuíssem… (baixo e desesperado) Quando me aproximo de ti,
sabes o que acontece? Uma morta se interpõe entre nós dois… Eu não vejo teu rosto,
mas o rosto da morta, sempre!... Ela não deixa que eu cobice nenhuma mulher. (Nelson
Rodrigues, Senhora dos afogados, 1º ato, Quadro I, 2004: 232, grifos meus)
A prostituta, a quem Misael pode entregar-se sexualmente, é figura que – regra geral
– exclui o desejo, posto que se oferece como mercadoria, no contexto de uma troca
comercial. Mas a prostituta morta ainda cobra de Misael o preço de sua morte, em todas as
instâncias da sua vida pública e privada, negando-se a abandoná-lo. A fantasia grotesca de
Misael – de que a prostituta e a mãe se fundissem numa só pessoa– é o que ele ou tenta
reprimir, sem êxito. A realização da sobreposição entre a mãe e a prostituta é para ele a
materialização do horror. A esposa é a mãe dos filhos, somente. E a entrega sexual resta
velada pelo sangue do assassinato, e reatualizada pela prostituta morta que retorna pelo
discurso dos outros, pelo choro das prostitutas, pela fala dos inimigos, ou pelas visões de
Misael.
É importante ressaltar como a posição de Misael incide sobre seus filhos. O garoto
Paulo o tem por herói e fica preso em sua imagem. A filha Moema, a única ainda viva,
encontra-se fixada à imagem dos pais: em seus movimentos com as mãos confunde-se com
a mãe, como se ela fosse uma sombra da genitora; e, como seria de se esperar, tem uma
devoção pelo pai tal que, como viremos a saber, levou-a a matar cada uma das irmãs para
76
Embora seja de uma precisão assombrosa a intuição de Magaldi, de que “Surge do episódio [casamento de Misael e
assassinato da prostituta] um símbolo, que nutre a obra rodrigueana: para um homem casar-se, precisa sacrificar a
prostituta que existe na mulher” (Magaldi, 1981:40), sustento nesta leitura que o assassinato da prostituta pode ser
entendido não como símbolo, mas em seu aspecto de real, quase como um ritual que pudesse permitir a ele passar à vida
adulta, ao casamento. Entretanto, como fica claro, tal intento malogra, pois não há inscrição no simbólico deste ato, a não
ser o seu retorno real das mais diversas formas ao longo da peça: o filho bastardo retorna para vingar-se, a esposa
prostitui-se (com o filho), as filhas se afogam e são choradas como prostitutas, a prostituta morta retorna como alucinação
durante um almoço de desagravo e o impede ascender à condição de ministro.
148
poder aproximar-se dele, e aproximar-se da realização de seu desejo incestuoso. Quanto a
sua identificação à mãe, vejamos a primeira didascália da peça:
(4) Mãe e filha estão em pé, rígidas, hieráticas. Nenhuma semelhança especial entre as
duas. Mas os seus movimentos de mãos coincidem muito; e isso as exaspera. Esta
coincidência será uma das constantes da peça. (Nelson Rodrigues, Senhora dos afogados,
1º ato, Quadro I, 2004: 211, grifos meus)
Os homens da casa as confundem, seja o irmão Paulo, seja Misael, como se Moema
fosse um reflexo ou uma sombra da imagem de D. Eduarda. E a própria Moema se exaspera
com esta impossibilidade de descolamento. O que ela quer, enfim, é tomar o lugar da mãe,
ser a mulher predileta do pai. Trata-se, claro está, do trajeto do Édipo freudiano, mas que
aqui não ocorre – levando adiante a reflexão de Freud (1900) nem de modo inconsciente
como ocorrera com Édipo, nem reprimido como com o jovem Hamlet, antes de maneira
deliberada.
O horror da situação se dá a ver quando a jovem ouve da mãe que estar com ela é a
pior forma de estar sozinha. Não é difícil perceber, recorrendo à tradição literária, que
Moema é o duplo de sua mãe, e que a própria mãe não reconhece em sua filha qualquer
dimensão de alteridade.
Levando ao limite a noção de Lacan de que é na travessia da demanda do outro que se
advém como sujeito desejante (Cf. Seminário 5), sendo a mãe o sujeito da primeira
demanda, Moema limita-se a macaquear o espectro do desejo da mãe. Aquilo mesmo que
D. Eduarda reprime é o que Moema manifesta em relação ao pai: a tentativa de concretizar
seu amor, de matar cada uma das irmãs, o noivo, a mãe, a avó, para finalmente tornar-se a
única mulher da casa.
Mas Moema traz também para o seio familiar uma figura de fora, que é fundamental
na pela, seu namorado, rapaz misterioso de quem se fala horrores: que teria o corpo tatuado
com nome de prostitutas, que moraria na Ilha das Prostitutas Mortas. Ele será o detonador
do desejo no clã, pois vem trazer de volta aquilo que Misael buscara recalcar com o
assassinato da prostituta. O rapaz – como viremos a saber – é o filho da prostituta, e quer
vingar-se do assassinato dela, devolvendo a Misael o mal causado, tomando-lhe a filha e a
mulher, insidiosamente.
É curioso perceber como todos os personagem orbitam em torno ao patriarca Misael,
que o tomam como modelo ideal (Paulo), objeto de vingança (Noivo), objeto de desejo
149
(Moema), ao mesmo tempo em que o próprio Misael encontra-se como que à deriva,
incapaz de tomar uma posição diante dos seus, atormentado pelo crime cometido.
A falta de inscrição simbólica faz com que todos os atos da peça seja perpetrados no
real. O Noivo, o filho da prostituta que é, tem pai desconhecido, então grava na pele o
nome da mãe, na tentativa de inscrição da maternidade no corpo. Moema, para levar a cabo
o seu projeto de entregar-se ao pai, faz uso daquilo mesmo que à identifica à mãe, suas
mãos. E as mãos das duas mulheres, em Senhora dos Afogados, parecem possuir
características ativas e fálicas: para Moema, as mãos são a encarnação no corpo do
significante fálico (Cf. Nuñez, 2001). São elas o instrumento ativo no amor e no crime:
(5) MOEMA (fora de si) – E por que não a castigas nas mãos? (num crescendo) As
mãos são mais culpadas no amor… Pecam mais… Acariciam… O seio é passivo; a
boca apenas se deixa beijar… O ventre apenas se abandona… Mas as mãos, não… São
quentes e macias… E rápidas… E sensíveis Correm no corpo… (Nelson Rodrigues,
Senhora dos afogados, 2º ato, segundo quadro, 2004:252, grifos meus)
Como sabemos, a consecução de Moema do asassinato das mulheres próximas a seu
pai mostra que, diferentemente do que se vê em Édipo da tragédia de Sófocles, é ardilosa –
entrega o noivo à mãe – para que ela tenha um motivo para dizer ao pai que D. Eduarda
deve ser castigada. E sua transgressão é ter finalmente reunido, em sua pessoa, a mãe e a
prostituta:
(6) D. EDUARDA (num grito maior) – Desce e vem chamar tua mãe de
prostituta!”(Nelson Rodrigues, Senhora dos Afogados, 3º ato, quadro I, p. 263)
Pai e filha decidem por punir D. Eduarda, extirpando-lhe seus membros – as mãos.
Misael, incapaz de castração simlica, mas que já cometera o assassinato da prostituta que
lhe pedira o privilégio de seu amor, agora decepa as mãos da própria esposa, que morrerá
em conseqüência do sangramento. Ao se defender, perante si mesmo, dirá ele que o
assassinato não recai sobre a esposa, mas sobre aquilo mesmo que remete à sua condição de
desejar:
(7) MISAEL (gritando) – Mas eu não a matei! Só matei as mãos! (Nelson Rodrigues,
Senhora dos Afogados, 3º ato, quadro II, p. 266)
É preciso notar, portanto, que assim como Moema acima qualificara a decepação
como “castigo”, Misael fala em “morte das mãos”. Motivo que leva a entender que a morte
150
de D. Eduarda é de fato uma tentativa de castração, canhestramente perpetrada no real. A
consequência deste “corte” para Moema, contrariamente à sua expectativa inicial, não é
aceder ao pai, tampouco é o libertar-de da mãe. O efeito é nefasto para Moema. Como
havia sugerido acima, ela era mero reflexo da mãe. Após a morte daquela, inicialmente
Moema perde sua imagem no espelho, não tem a quem se identificar. Depois da angústia de
não se ver mais refletida, ela volta a encontrar a imagem da mãe como seu reflexo. E é
também de modo invertido que se devem ouvir as palavras de Moema, em sua investida
contra a mãe:
(8) MOEMA – Tens raiva de mim por isso… Porque eu tenho as minhas [mãos] e
perdeste as tuas… Eu posso acariciar qualquer homem… E tu, não… Não poderias
nunca… Por que voltaste da ilha, senão por isso?... As mulheres nuas te mandaram
embora… Não conseguirias afagá-las… Ou voltarias com as mãos ou não te deixariam
entrar… (Nelson Rodrigues, Senhora dos Afogados, 3º ato, quadro II, p. 269)
Atentemos ao fato de que as imprecações da jovem são contra o espelho. E em sua
rivalização imaginária diante do fantasma da mãe morta, o que faz Moema é contar
vantagens que de fato não são as suas. Diz a jovem, Eu posso acariciar qualquer homem…,
mas de fato só lhe interessa um – o marido da mãe. Ela se diz na posição de quem pode
desejar, mas nada quer além do que desejara a mãe. E só o que lhe resta é maldizê-la, posto
que suas vantagens só têm razão de ser em oposição ao duplo, a mãe morta. Daí a imagem
da mãe tornar-se onipresente:
(9) MOEMA – Agora estás em todos os espelhos… E na água do rio e nas poças de
água… Sempre encontrarei tua imagem e não a minha própria… (…) Esse rosto não é
meu… (Nelson Rodrigues, Senhora dos afogados, 3º ato, quadro II, p. 269)
Sequer lhe restará a conquista do pai, que não resistindo ao impacto dos
acontecimentos, morre. Moema resta sozinha, com seus espelhos refletindo a mãe.
A possibilidade de ler a obra pela chave do real lacaniano permite entender a peça
como a tragédia da impossibilidade da incorporação do desejo feminino ao âmbito familiar.
As mulheres lançam-se à prostituição, ou idealizam a Ilha das Prostitutas Mortas como uma
sorte de utopia do desejo. Numa palavra, enredam-se no tecido familiar, sem lograr um para
além dele, e tampouco sem encontrar nele uma posição feminina, que possa incluir o
sexual. Mas não se pode desconsiderar também que, em toda a referência ao desejo
feminino, trata-se aqui, em grande medida, de uma fantasia masculina. Uma visão
151
masculina sobre a dimensão horrorosa do desejo feminino, tal como mostrei em algumas
crônicas de Elas gostam de apanhar.
1.3.8. Considerações finais
É preciso ter claro como há certa coerência entre o modo como as personagens
femininas são construídas em Senhora dos afogados e Elas gostam de apanhar, embora
deva se levar em conta que as diferenças de gênero levam a diferenças cruciais. Mas é
importante notar que, se na crônica ligeira de Elas gostam de apanhar, o conflito se resolve
com um ato extremo – crime, suicídio, entrega sexual –, já na peça ele se sustenta e como o
dramaturgo dá voz às personagens, conhece-se mais de suas motivações. Ao confrontarmos
as duas realizações do autor, percebe-se facilmente como a escrita do cronista Nelson
Rodrigues não se esgota, contrariamente ao que se poderia supor, num naturalismo, na vida
cotidiana das classes baixas do Rio de Janeiro. É pela via do baixo que o cronista atinge a
dimensão da tragédia.
Ainda assim, embora haja tal caráter trágico nas crônicas, a dimensão da tragédia
dá-se a vez de maneira mais cabal no teatro de Nelson Rodrigues. Colocar em cena o desejo
não é o mesmo que relatá-lo. Numa palavra, há um diferença própria aos gêneros, mas o
papel da mulher em ambos – quanto ao desejo – é bastante semelhante.
Antes de colocar um ponto final nestas reflexões, vale destacar que o tragediógrafo
Nelson Rodrigues, nos textos do Programa de Senhora dos Afogados, emite suas posições
acerca da tragédia, as quais, a partir de duas breves citações, possibilitará que o situemos
em relação à nossa discussão. O autor explicita que, para ele, a tragédia é mais que a vida,
que é a vida concentrada ou, em termos freudianos, poderíamos ler que ele diz da tragédia
que ela é a vida sem recalques:
(1) O que caracteriza uma peça trágica é, justamente, o poder de criar a vida e não
imitá-la. (…) O personagem do palco é mil vezes mais real, mais denso e, numa palavra,
‘mais homem’ que cada um dos espectadores. (…) O personagem vive a vida, que
devia ser a nossa, a vida que recusamos. (Nelson Rodrigues, 1947c:297, grifos meus)
O alcance da dramaturgia de Nelson Rodrigues não se mostra em toda a sua potência
psíquica ao lermos o que ele diz acerca de os personagens trágicos viverem a vida que
152
recusamos, na chave do real lacaniano? Isto é, a dissociação experimentada entre a mulher
e o desejo na vida cotidiana não reaparece na obra teatral, vivida, pelos personagens
rodrigueanos? Não teríamos em seu teatro a afirmação agônica do desejo confrontando o
repressão dos costumes conhecida no ambiente social? Daí ser possível entender Senhora
dos Afogados como um pesadelo vivido.
Outra das concepções da tragédia que aproximam Nelson Rodrigues de Lacan é a de
que a tragédia cria a vida, e não a imita. Lacan diria o mesmo, doze anos depois, sobre a
incidência das criações artísticas sobre as criações psicológicas (Cf. Lacan, 1961). Assim,
sem ter qualquer sorte de adesão ao pensamento psicanalítico, todo o contrário, Nelson
Rodrigues, no cerne de sua concepção do trágico, cruza-se ao pensamento psicanalítico no
que também ele tem de anterior à psicanálise: o teatro trágico propriamente dito. Posto que
é nele, e não em outro lugar, que se encontram as concepções tão díspares de vida e
filosofia articuladas ao longo deste trabalho.
Em relação ao efeito catártico da tragédia, que em Freud aparece como fruto da
identificação entre espectador e personagem, Nelson Rodrigues dirá o seguinte:
(2) Talvez fosse mais lógico que víssemos as peças, não sentados, mas atônitos e de
joelhos. Pois o que ocorre no palco é o julgamento do nosso mundo, o nosso próprio
julgamento, o julgamento do que pecamos e poderíamos ter pecado. Diante da verdadeira
tragédia, o espectador crispa-se na cadeira, como um pobre, um miserando condenado.
(Nelson Rodrigues, 1947c:297)
A noção aristotélica de catarse parece sobrepor-se à noção cristã de pecado. E nesse
fragmento de Nelson Rodrigues é possível encontrar o mesmo cruzamento presente na
concepção do trágico presente em Schopenhauer, a redenção do homem. Entretanto, como
espero que tenha ficado claro, a tragédia de Nelson Rodrigues é o oposto daquela defendida
por Schopenhauer, na medida em que ela expõe tudo o que há de escabroso no homem. Não
se trata do recalcado Hamlet, nem do inconsciente Édipo, mas de algo que se dá no nível
da carne carente do símbolo. Motivo suficiente para que Schopenhauer tivesse horror a esta
tragédia de Nelson Rodrigues Se fôssemos contrapor o dramaturgo brasileiro ao filósofo,
seria preciso dizer que não há Vontade que tenha sido negada nesta peça de Nelson
Rodrigues.
153
Da passagem do trágico de Schopenhauer a Freud e, portanto, da filosofia à clínica,
algo se manteve coeso. Como disse acima, trata-se do lugar de destaque conferido ao
sujeito. Quando Schopenhauer diz da dificuldade e da sutileza da tragédia moderna, ele ao
mesmo tempo está deslocando, no plano da análise, a ação da tragédia moderna do espaço
aberto da polis ao privado da família burguesa.
Assim, quando Freud fala da subjetividade, num plano literário ela parece equivaler
ao conflito psíquico de cada sujeito. Tal conflito, lido numa perspectiva trágica converte a
cada personagem literário num herói trágico em potencial; seria possível levar adiante o
paralelo, e dizer que também em seu processo de análise cada sujeito constrói sua própria
tragédia. Essa é justamente a via escolhida por Lacan, como vimos, no seu Seminário 7, ao
falar em uma ética trágica da psicanálise.
O que vale retomar para que se possa finalmente colocar um ponto final nas
reflexões desta primeira parte é que ao propor uma ética trágica, na tentativa de fazer
avançarem as reflexões quanto à constituição de uma Erótica, e das relações monogâmicas,
Lacan está – como procurei mostrar – emparelhando-se com os procedimentos artísticos de
Nelson Rodrigues. Escritor e psicanalista estão – cada qual à sua maneira – explorando um
mesmo veio, o trágico, como forma de acederem a outra coisa.
Valha-nos um instante pensar sobre o que se opunha cada um deles neste dado
momento de sua reflexão. O teatro escabroso – ou desagradável – de Nelson Rodrigues
opunha-se, não é difícil notá-lo à amena dramaturgia de Renato Vianna, com a apologia da
família burguesa. Nelson Rodrigues traz inovações tanto formais – desde Vestido de Noiva
(1943) – quanto no nível dos diálogos.
Já Lacan, em L´étique de la psychanalyse, ao propor uma ética trágica, está se
opondo de maneira cabal ao que ele explicitamente chama a pastoral analítica e seus
ideais. Pode-se entender tal pastoral como a apropriação dos postulados freudianos pelos
pós-freudianos, que terminam por levar a um ideal de pacificação na análise; os ideais
seriam três: 1. ideal do amor humano (em oposição a uma Erótica), que pode também ser
traduzida como uma apologia do amor genital; 2. ideal de autenticidade, com o alcance de
um eu auto centrado e autônomo; 3. ideal da não dependência, que levaria a uma
pacificação do sujeito e uma harmonização com seu entorno social. A esses ideais Lacan
154
vem a opor uma dimensão trágica, trazida por Sade, pelo teatro de Sófocles, colocando o
desejo no centro da cena.
O que é importante ressaltar é que Lacan não está se colocando contra Freud, mas
contra certa interpretação pacificadora de Freud que é apreensível não só nos pós-
freudianos, mas também nalgumas das realizações artísticas brasileiras já analisadas neste
trabalho. Não só o teatro de Renato Vianna, bem pouco freudiano, mas também, o livro de
Mário de Andrade, Amar, verbo intransitivo.
Pois estão no idílio de Mário de Andrade expostos, à maravilha, cada um dos
postulados da pastoral analítica. O ideal do amor médico, da iniciação sexual higiênica
promovida ao jovem Carlos, para que ele não tenha que se embrenhar com as prostitutas,
nem com a violência e a marginalidade; uma sorte de enquadramento do garoto na vida
social, que o permita aceder a sua posição de bom burguês. Os afetos de Carlos estão
regulados por uma relação de prestação de serviço da preceptora alemã, numa sorte de
educação sexual que exclui o desejo. A própria ruptura entre Elza e Carlos é planejada pelo
pai e contratante. Assim o jovem vive seu processo de saída do Édipo e de escolha de
objeto regulado pela economia familiar, e não rompendo com ela.
É possível estabelecer, portanto, uma passagem entre Mário de Andrade e Nelson
Rodrigues, a partir do tratamento do desejo nos termos de uma pastoral analítica no escritor
paulistano, e de uma ética trágica na obra de Nelson Rodrigues.
E isso nos leva, não a pensar no que cada um deles leu, e sim em sua posição em
relação ao desejo. Eis a hora de refazer a pergunta: o que se passou de Freud a Mário de
Andrade e o que se passa entre Nelson Rodrigues e Freud? Pois a trajetória que
cartesianamente se constrói entre Freud e Mário de Andrade, termo a termo, conceito a
conceito, leitura a leitura, se esboroa em Nelson Rodrigues. As ideias freudianas, as
palavras freudianas, que se traduzem, se transplantam de Viena à Barra Funda, no gabinete
da Rua Lopes Chaves, num trajeto do qual é possível até mesmo ensaiar o tracejar de um
mapa; em Nelson Rodrigues, importam pouco, pois na sua escrita, termos como histeria
são meros adjetivos repetidos à exaustão, desprovidos de significação psicanalítica, e o
mesmo para obsessão, neurose e variantes.
155
Para chegar à psicanálise em Nelson Rodrigues, como mostrei, é preciso desviar-se
das pistas freudistas, dos psicanalistas de galinheiro, do discurso pseudo-psicanalizante de
alguns personagens, e escutar-lhes o grito. A ponto de ser possível dizer que há, em Nelson
Rodrigues, uma poética do grito, onde os personagens de suas peças, suas manchetes e até o
óbvio ulula. É preciso, portanto, considerar este grito.
Lançar mão aqui do termo cultura, em detrimento de literatura, mostra sua
produtividade se considerarmos o quanto a psicanálise serviu a Mário de Andrade para falar
da cultura, na posição do etnógrafo. A partir de Freud e da psicologia, como vimos, é que
ele urde a hipótese do sequestro da Dona Ausente. No teatro de Nelson Rodrigues, seus
personagens estão sempre no limiar da cultura, a relação incestuosa sempre a espreitar a
família de forma insidiosa.
Quanto à produção narrativa de Mário de Andrade, é adequado retomar a distinção
que fiz acima acerca do Édipo. O Édipo freudiano serve para Mário de Andrade, no plano
da concepção dos personagens de Amar, verbo intransitivo, de tal forma que é possível
rastrear suas conseqüências no entorno familiar, as quais nos são narradas com mesura.
Entretanto, acrescente-se que apesar de o narrador do romance insistir explicitamente nos
temas freudianos, seria possível ler a obra sem seguir-lhe a chave. Vê-se nesse Amar, verbo
intransitivo, o conflito exposto a partir de seus efeitos, os quais são sempre tão sutilmente
expostos que seria possível sempre atribuí-lo a outra coisa. Assim, a doença da irmãzinha
de Carlos, se pode psicanaliticamente ser atribuída à brincadeira do irmão e a rejeição
deste, poderia também ser atribuída ao excesso de atividade etc. Quero dizer com isso que o
narrador de Mário de Andrade encena o lar burguês a partir de um ponto de vista da
psicanálise, segundo o qual os motores sexuais jazem sempre no interdito e no não dito,
encenando uma pastoral.
O narrador de Mário de Andrade, por mais que se mostre encantado com a história
familiar que narra, e tomando partido a todo momento, está muito mais próximo do
botânico que expõe e narra o passeio de seu olhar pela nervura de uma só folha,
exaustivamente mostrada. De outro lado, a encenação de Nelson Rodrigues nos joga em
meio à selva, sem qualquer mediação entre o espectador e a sugestão incestuosa.
156
Sim, pois o lar também burguês de Misael e D. Eduarda mostra-se ao leitor da peça
ou a seu expectador como selvagem. Lá grita-se grandiloquente uma sexualidade que se
apresenta como exacerbada aos personagens, como não cabendo nas normas do clã
familiar. A sexualidade não corre no cotidiano à maneira do que acontecia com a família do
menino Carlos, onde ela poderia ser amestrada; a sexualidade, na obra de Nelson
Rodrigues, de tão reprimida, é afirmada a todo instante, e corre a céu aberto.
Seria possível objetar dizendo que a economia própria de cada gênero – narrativo e
dramático – seria responsável por esta presença ou ausência de mediação. Mas então seria
preciso lembrar que em Sexo, de Renato Vianna, o personagem Calazans – o pseudo-
subversivo que conduzia a trama – trata de dosar a quantidade de subversão cabível para a
família carioca. E, por outra, o conto “Frederico Paciência”, de Mário de Andrade, é
narrado em primeira pessoa pelo próprio garoto que reconstrói na maturidade sua
experiência, o que não obsta para que o leitor sinta-se comodamente distanciado da trama.
É preciso considerar que o procedimento poetológico de Nelson Rodrigues é de
outra cepa. E que ele chega à “criatura humana” não via da pesquisa freudiana. Seus
materiais, já conhecidos, o folhetim, o jornal sensacionalista, o dramalhão, cruzam-se à
tragédias antigas e modernas, e forjam um sujeito suficientemente complexo para produzir
catarse no espectador/leitor.
Com isso estou dizendo que o teatro desagradável de Nelson Rodrigues consiste
também na falta de mediação entre o público e a cena, sendo este um procedimento
importante que possibilita o efeito catártico, de todo ausente seja do teatro de Renato Viana,
seja na obra narrativa de Mário de Andrade. E que este procedimento rodrigueano denota
uma posição diante da criatura humana, ou do sujeito, muito distinta daquela de Mário de
Andrade. Assim, como demonstrei, é o trágico, em sua construção no limite da cultura, o
que possibilita a posta em cena do sujeito freudiano em Nelson Rodrigues.
A psicanálise, em Nelson Rodrigues, estaria na via do seu procedimento, mais do
que numa elaboração intelectual para a consecução de um efeito. A psicanálise vem a
Mário de Andrade, que elabora a partir dela e cria suas obras. Nelson Rodrigues, sem se
propor deliberadamente, chega a ela.
157
2. PARTE 2: CONEXÃO PARIS-CARIBE (1946-1990)
Un hombre pasa con un pan al hombro
¿Voy a escribir, después sobre mi doble?
Otro se sienta, ráscase, extrae un piojo de sua axila, mátalo
¿Con que valor hablar del psicoanálisis?
[...]
Alguien pasa contando con sus dedos
¿Cómo hablar del no yo sin dar un grito?
Cesar Vallejo, 5 nov 1937
Porém meu ódio é o melhor de mim.
Com ele me salvo
e dou a poucos uma esperança mínima
Carlos Drummond de Andrade, “A flor e a náusea”
History, Stephen said, is a nightmare from which I am trying to awake.
James Joyce, Ulyses
A pergunta que deve ser feita antes de se iniciar a segunda parte do trajeto proposto
é: Por que o Caribe? Após a chegada da psicanálise à América Latina vista da perspectiva
do eixo São Paulo – Rio de Janeiro, haveria outros trajetos possíveis, que pareceriam ao
leitor muito mais orgânicos e que não pediriam maiores explicações. A região do Rio da
Prata, por exemplo, possibilitaria uma análise acurada da entrada maciça do pensamento
psicanalítico no continente. Pois, em concomitância com certo escárnio ou popularização
pelo qual passa a psicanálise no Rio de Janeiro ao longo dos anos cinquenta – como na
obra de Nelson Rodrigues e Gastão Pereira da Silva – a Argentina assiste ao florescimento
mais ou menos canônico de suas ideias em Buenos Aires. É por esses anos que surge na
Argentina aquela que é até hoje considerada uma das melhores traduções das Obras
Completas de Freud, a cargo de José Luis Etcheverry. É na Argentina onde se estabelece
158
um corpo de reflexão que resulta na formação de respeitados psicanalistas até os dias que
correm. De modo que é também em Buenos Aires que se cria um terreno fértil para a
entrada do pensamento lacaniano, o que resultará ainda em uma tradução integral das obras
do autor – incluídos aí seus seminários – a qual só não se encontra publicada devido às
rígidas normas de direitos autorais que resguardam o espólio do psicanalista francês.
Entretanto, a trajetória escolhida não foi essa. Inclusive porque a proposta deste
trabalho não é riscar o traçado triunfante da entrada do pensamento psicanalítico resultando
em clínica; o objetivo é esboçar seus desvios – pelos quais se supõe que é possível saber
pouco mais da natureza do corpo de ideias que organiza essa clínica. Assim, ao considerar a
hipótese de que a clínica psicanalítica dá-se na resistência (embora não se faça sem
transferência), a opção foi seguir por uma região que certamente se pode considerar
inóspita para a introdução de tais ideias. A região do Caribe, que também por sua geografia
insular terminou por ter historicamente se estabelecido como um amontoado de colônias
sob o jugo dos mais diversos reinos, produziu histórias locais as mais diversas, em línguas
diversas, de contornos algo distintos do resto da América Latina. (Cf. Mignolo, 2000).
Assim, para citar dois exemplos, o processo da descolonização da África afeta a Martinica
Francesa de modo bastante diverso do que afetou o restante do continente; bem como Cuba,
uma das últimas possessões espanholas do ultramar. Essas duas ilhas, Cuba e Martinica,
locais de cristianismo arraigado que atravessaram longos períodos de regimes totalitários,
serão os pontos de passagem na parte segunda do presente trabalho. Difícil supor região
mais cultural e politicamente fechada às ideias psicanalíticas, todo o oposto da afrancesada
Buenos Aires, onde a obra de Docteur Lacan chega e encontra calorosa acolhida.
A hipótese que orienta tal escolha é aquela presente em Lacan, a da resistência. Mas
também uma ideia presente num artigo fundamental de Freud (1927), chamado em recente
tradução de A Negativa, segundo o qual, no processo analítico, o psicanalista vienense
recomenda ao psicanalista oferecer particular atenção ao que é negado pelo paciente. Como
pensar as mutações de uma clínica que tem entre suas técnicas a análise dos sonhos e a livre
associação de ideias, em países onde houve historicamente um policiamento das ideias e
uma massiva presença religiosa? Proponho investigar, como se dão as metamorfoses da
pergunta freudiana acerca do desejo, recolhida por Lacan, nessas terras onde o que é da
ordem do desejo historicamente esteve sob o jugo estatal.
159
A nos pautarmos pelo artigo de Freud (1927), é certo que haverá manifestações no
nível da cultura que trarão à tona isto que é negado no plano religioso e estatal. De que
forma e com que alcance, isto é que se haverá de mostrar. E dado que é de meados do
século vinte que se ocupa esta traveling theory, notarão os leitores que as mutações
psicanalíticas caribenhas se dão em forte relação com o exterior. Diferentemente do que se
via no que fora analisado no caso brasileiro, em que tínhamos São Paulo como uma
metrópole acolhedora e fértil às ideias estrangeiras e cosmopolitas no campo da cultura, o
caso caribenho trará, a partir da aridez local, uma tendência a que os intelectuais
interessados nas ideias psicanalíticas desloquem-se fisicamente de seu território para o
exterior. O território escolhido foi a França, no caso de Frantz Fanon e de Severo Sarduy.
Entretanto, há no conjunto das obras produzidas por esses homens, uma clara tentativa de
inscrição de seus debates na pauta latinoamericana, mas também no debate europeu.
No caso do primeiro autor, Frantz Fanon, cuja obra num primeiro momento mostra-
se algo desvinculada das discussões do capítulo 1, e é publicada na França, veremos como
reverberam questões presentes em obras dos brasileiros Nelson Rodrigues e Gilberto
Freyre, e como a psicanálise ocupa diferentes papeis para os três autores para tratar do
desejo em sua dimensão racial.
Depois, passa-se a Cuba, onde sucessivas ditaduras – primeiro a de Fulgencio
Batista e logo a de Fidel Castro – tem efeito drástico na história das ideias. Daí ter sido
preciso colocar os ditadores – principalmente Castro – no campo de estudo, de modo a ver
como a presença estatal interferiu no florescer (ou murchar) dessas mesmas ideias. Assim, é
na insipiência e na impossibilidade de um pensamento analítico, que se nutre o capítulo
cinco, onde caberá o debruçar-se sobre os vetos estatais a Freud. Serão analisadas algumas
manifestações esparsas de Virgilio Piñera e José Lezama Lima acerca de Freud, mas
também obras suas que coloquem em cena o tema do desejo, independentemente da
referência a Freud, tal como realizado com Nelson Rodrigues no capítulo 3. Passa-se, em
seguida, à geração seguinte, com a análise da autobiografia Antes que anochezca, de
Reinaldo Arenas, que nos servirá como um formulação acerca do desejo que não se enuncia
a partir da psicanálise. Finalmente, fecha-se a reflexão desta segunda parte com a obra do
cubano Severo Sarduy – contemporâneo de Reinaldo Arenas – que se exila na França e
busca tecer uma obra em que comparecem tanto o cristão Lezama Lima quanto Jacques
160
Lacan, levando ao extremo as contradições entre o pensamento analítico, o nacionalismo e
uma defesa do exílio.
A história e a política irrompem nesta segunda parte, fazendo-nos questionar acerca
do lugar do desejo nos regimes totalitários. Sobre isso, de modos distintos, falarão Frantz
Fanon, José Lezama Lima, Reinaldo Arenas e Severo Sarduy. O exílio e a psicanálise
surgem como tentativas agônicas de resposta.
2.1. Frantz Fanon, uma escrita em busca de um estatuto
2.1.1. Que veut l´homme noir? – o avesso da psicanálise de Fanon
Francês da Martinica, que depois viria a se naturalizar argelino, Frantz Fanon (Fort-
de-France, 1925 – Nova Iorque, 1961), formou-se psiquiatra e ao longo da vida abraçou a
luta armada pela independência da Argélia. As ideias psiquiátricas e psicanalíticas
incidiram de um modo bastante particular em seu pensamento e em suas ações, nas quais
ocupam o primeiro plano o ser negro e ser da Martinica, o ter-se descoberto negro e
martinicano na França, o ter-se interrogado primeiro sobre a diferença racial, e logo o ter se
perguntado sobre a diferença colonial.
Entretanto, Fanon, ao longo de seu caudaloso percurso biográfico, nunca descartou
a clínica, embora sua relação com ela jamais tenha sido simples. É preciso dizer que ele se
manteve além e aquém da psicanálise, e que pareceu resistir-se a estar nela, embora –
paradoxalmente – tenha servido de maneira cabal das ideias psicanalíticas em sua reflexão
e em sua prática.
Há, à maneira de Nelson Rodrigues, uma pergunta agônica, fundamental, que move
seus escritos. E tal pergunta, diferentemente daquela de Nelson Rodrigues, passa por um
tête-à-tête deliberado com a psicanálise, mas também a rechaça e, por vezes, antecipa-se a
ela. As contingências históricas de Fanon, sua apaixonada escrita, sua opção pela clínica e
pela luta política fizeram dele uma figura singular, cujo estudo é fundamental na
constituição deste trabalho.
161
Por um lado, a formação de Fanon em psiquiatria torna evidente seu contato com
textos psicanalíticos os mais diversos, de autores como Freud, Lacan, Jung, Adler, que são
constantemente referidos em sua obra; mas, por outro, é preciso que se diga, aparecem
também com grande destaque autores que colocam em primeiro plano temas sociais, como
Karl Marx, Jean Paul Sartre e o poeta martinicano Aimé Césaire
77
.
Entre as principais preocupações do primeiro Fanon está a relação do Negro com o
Branco
78
, mote de seu livro de estreia, Peau Noire, Masques Blancs (1952); além da
situação psíquica dos argelinos e dos franceses no contexto da guerra de independência da
Argélia, em Les damnés de la terre (1961), a partir do que viveu quando de sua
participação na luta armada e sua experiência clínica naquele país. Sua curta carreira e sua
curta vida, nas quais atuou como psiquiatra, intelectual e guerrilheiro balizam-se pela
publicação dos dois livros, publicados ao longo de oito anos. No mesmo ano de 1961,
Fanon morre de leucemia em Nova Iorque, aos trinta e seis anos de idade, deixando um
legado a ser interpretado.
O leitor poderia perguntar-se sobre o motivo da presença de um psiquiatra entre os
literatos aqui enfeixados. Sabe-se que Fanon não produziu obra literária e também que as
discussões atuais sobre o autor passam longe do que é da ordem do estético
79
. Seria
possível então recorrer ao conceito de texto que traz Barthes (1984), em seu Rumor da
língua, para possibilitar que o que é propriamente da ordem do significante e de uma escrita
forte possam compor com os demais escritos aqui analisados. A proposta de trazer Fanon
para este trabalho necessariamente passa pelo modo pelo qual se pode lê-lo. Neste sentido,
trazê-lo e emparelhá-lo a brasileiros e hispânicos mostra-se não um empecilho, mas uma
forma de enriquecer o diálogo, dado que seus escritos tocam questões de interesse para o
que se tem abordado acerca dos demais autores aqui tratados.
Quanto à crítica sobre Frantz Fanon, os trabalhos que consideram o aspecto
psicanalítico de sua obra não abundam, e mesmo aqueles que considerem sua reflexão pelo
viés das leituras de Freud e Adler, o fazem de modo lateral, privilegiando questões raciais e
culturais (Bulhan, 1985), ponto a partir do qual Fanon se insere na maioria das pautas
77
Não que a discussão das questões sociais não tenha sido corrente ao longo dos anos cinquenta e sessenta pelas bandas
da psicanálise. Lacan, por exemplo, ao longo dos sessenta, falava do discurso capitalista, da descolonização da África, do
movimento estudantil de maio de 1968, em seu Seminário. Mas Fanon chega primeiro a esta discussão e engaja-se nela de
modo singular, de forma a torná-la, em grande medida, a preocupação central de sua escrita.
78
A grafia em maiúscula é do próprio Fanon.
79
É costume na crítica contemporânea de Fanon inclusive rechaçar seus ‘themes lyriques discutables’ (Harbi (2002:311)
162
contemporâneas. Quanto às (poucas) leituras que Fanon fez de Lacan, a abordagem é parca,
embora haja algumas exceções, como o recente trabalho de Gibson (2003), ainda que as
aproximações à psicanálise lacaniana não sejam o principal objetivo de seu estudo, e essa
não seja a área de interesse daquele autor.
Justificar a presença de Fanon nestas páginas passa então por uma rearticulação que
propõe deslocar o lugar costumeiro do autor para um outro, no qual sua escrita se
desestabiliza e cobra um estatuto. Proponho reler alguns textos ensaísticos de Fanon –
sobretudo os dois livros aludidos – e levar em conta seu caráter movente, o que possibilitará
considerar que sua paixão dá consistência ao significante, e sua implicação com o tema
tratado carrega sua escrita de uma espessura que permite que ela seja lida não apenas como
estudo antropológico, sociológico ou político.
Tal leitura não é inovadora, pois o leitor se lembrará como Bhabha (1998:77) – a
partir de Lacan – já considera a importância do significante em Fanon; entretanto, Bhabha
não avança por esta via propriamente no martinicano, derivando sua reflexão para a leitura
de um poema de Adil Jussawalla. Proponho, contrariamente, deter-me em Fanon. Trata-se,
pois, de revisitar Fanon e sublinhar alguns aspectos particulares de sua escrita. Aqueles que,
advindos da cultura francesa na qual ele se formou, encontram nos escritos lacanianos um
eco que possibilita pensá-los noutra chave. Aqui às posições que propus na primeira parte
em relação a Mário de Andrade (ir em direção à psicanálise) e Nelson Rodrigues (chegar à
psicanálise sem se propor a tanto), acrescenta-se a de Fanon: estando na psicanálise,
resistir-se à ela, sem no entanto abrir mão da mesma ou, dito de outra forma, numa
apropriação sui generis do discurso psicanalítico – em Peau noire, masques blancs – e logo
em uma apropriação igualmente singular da prática psicanalítica em sua reflexão em Les
damnés de la terre.
Tal proposta tem ainda como resultado permitir articular o trabalho de Fanon ao dos
cubanos Severo Sarduy e José Lezama Lima, a partir da herança comum da cultura francesa
compartilhada por todos, de modo a pensar em como cada qual se serviu do caldo com o
qual se nutre o pensamento de Lacan. Levando adiante uma metáfora de Lezama Lima,
presente em seu romance Paradiso, seria possível dizer que o objetivo imediato desta
segunda parte é de ver de que forma se sentaram à mesa do banquete psicanalítico ao qual
163
nem todos caribenhos foram convidados mas, do qual todos acabaram participando de certa
forma: Severo Sarduy, Virgilio Piñera, Lezama Lima e o próprio Fanon.
Num aspecto mais geral, ao nomear como “uma escrita em busca de um estatuto” a
este capítulo, o que quero focalizar na escrita de Fanon é o entrelugar a partir do qual tal
escrita se dá: na deliberada torção de conceitos psicanalíticos e filosóficos com vistas a uma
finalidade premente: a libertação do negro e logo a libertação do homem colonizado. A
hipótese é que, para além deste objetivo que se poderia qualificar como social ou racial, a
escrita de Fanon opera no nível do desejo. Pretendo aferir o estatuto de sua escrita a partir
do modo como ele se vale da psicanálise em sua obra. Há, sobretudo em Peau noire,
masques blancs, já nas primeiras páginas, uma pergunta crucial sobre o desejo: Que veut
l´homme noir? Com ela, Fanon antecipa-se à discussão lacaniana sobre o desejo, que
ocupará o centro das discussões, como vimos, a partir do seminário de 1958-9 (quando
Lacan traça o grafo do desejo sob o mote Che vuoi?).
Contemporâneo de Lacan, e de formação francesa, seria esperável de Fanon que ele
debatesse algumas das ideias do psicanalista. Entretanto, em 1953, o Seminário de Lacan
estava ainda em seu início, com a fundação da Sociedade Francesa de Psicanálise. Ou seja,
Lacan, embora contasse já 52 anos de idade, não era ainda a figura controversa e famosa à
qual atualmente se associa sua imagem, embora já tivesse artigos publicados e certa
influência sobre o meio analítico. Os Écrits, por exemplo, só seriam publicados em 1966. O
que estava disponível em publicação eram textos dispersos; dentre os quais, o verbete sobre
a família na Encyclopédie Française, de 1938
80
, no qual ele chega a fazer referência às
teses de Le stade du miroir, texto que tematiza o papel do imaginário na constituição
simbólica do infans, e no qual Lacan critica a noção de sujeito da filosofia existencialista.
Fanon teve acesso a tal verbete e o citou; além de fazer referência à tese de doutoramento
de Lacan (1932), e de aludir com certa frequência ao autor em seus textos sem referir-se a
qualquer obra em específico, o que permite supor um contato oral com as reflexões
lacanianas, de modo direto ou indireto.
Entretanto, está longe da leitura que aqui sustento considerar Fanon um lacaniano; o
que quero mostrar é que há sim uma consonância temática nalguns pontos, uma certa
80
Trata-se do verbete “Le complexe, facterur concret de la psychologie familiale”, no tomo VIII da Encyclopédie
française, dirigido por Wallon, sobre “A vida mental”. Depois tal artigo seria recolhido nos Autres Écrits, sob o título
“La familie: le complexe, facteur concret de la pathologie familiale. Les complexes familiales en pathologie”.
164
concordância de interesses, como a apropriação da dialética hegeliana do senhor e do
escravo, como veremos adiante.
Assim, mais do que fazer derivar destas primeiras leituras de Lacan um suposto
Fanon lacaniano, acredito que a obra do martinicano, sustentada nos diversos outros autores
aos quais fiz menção, e em interesses prementes à época, traz elementos que podem ser
melhor organizados a partir de algumas ponderações lacanianas que viriam a ter lugar
somente anos depois. Claramente dito: Fanon, se lido a partir de Lacan, ou minimamente
considerando algumas elaborações de Lacan, pode ser melhor apreendido em nuances
pouco exploradas.
2.1.2. Lacan e Fanon em torno às tramas do desejo – lendo Kojève
Na chave do tema que tem sido perseguido ao longo do presente trabalho, quero
privilegiar, como marco para todo este capítulo, uma formulação lacaniana, que a um só
tempo retoma os dois grandes interesses que identificarei na obra de Fanon, porém noutra
formulação. Trata-se da seguinte reflexão de Lacan acerca do desejo:
L´idée de mettre lê père tout-puissant au príncipe du désir est três suffisamment réfutée
par lê fait que c´est le désir de l´hystérique dont Freud a extrait sés signifiants-maîtres. Il
ne faut pas oublier en effet que c´est de là que Freud est parti, et que ce qui resta u centre
de as question, il l´a avoué. [...] C´est la question – Que veut une femme?
Une femme. Ce n´est pas n´importe laquelle. Rien que poser la question veut dire qu´elle
veut quelque chose. Freud n´a pas dit – Que veut la femme ? Parce que la femme, rien ne
dit qu´aprés tout, elle veuille quoi que ce soit. [...] Mais dès que vous posez la question
Que veut une femme ? vous situez la question au niveau du désir, et chacun sait que situer
la question au niveau du désir, pour la femme, c´est interroger l´hystérique.
C´est que l´hystérique veut – je dis ça pour ceux que n´ont pas la vocation, il doit y en
avoir beaucoup – , c´est un maître. [...]
C´est de là que Freud est parti. Elle, c´est l´hystérique, mais ce n´est pas forcément
espédifié à un sexe. Dés que vous poser la question Que veut Untel ? vous entrez dans la
fonction du désir, et vous sortez le signifiant-maître. (Lacan, Seminário 17: L´envers de la
psychanalyse, sessão 10, “Du mythe à la structure”, 18 de março de 1970 :149-50)
81
81
“A idéia de colocar o pai onipotente no princípio do desejo é suficientemente refutada pelo fato de que foi do desejo da
histérica que Freud extraiu seus significantes-mestres. Não se deve esquecer, com efeito, que Freud partiu daí, e que ele
confessou o que permanece como centro de sua questão. (…) É a pergunta – O que quer uma mulher?. Uma mulher. Não
é qualquer uma. Só fazer a pergunta já quer dizer que ela quer alguma coisa. Freud não disse: – O que quer a mulher?
Porque a mulher, nada garante que, afinal, ela queira seja lá o que for. [...] Mas a partir do momento em que vocês fazem
a pergunta – O que quer uma mulher?, situam a questão no nível do desejo, e todos sabem que situar a pergunta no nível
do desejo, para a mulher, é interrogar a histérica. O que a histérica quer – digo isto para os que não têm tal vocação, deve
haver muitos – é um mestre. [...] Foi daí que Freud partiu. Ela é a histérica, mas isto não significa forçosamente um sexo.
Desde o momento em que fazem a pergunta – O que quer Fulano?, vocês entram na função do desejo e fazem o
significante-mestre sair.” (Lacan, Seminário 17: O avesso da psicanálise, sessão 10, “Do mito à estrutura”, 18 de março
de 1970, pp. 121-122)
165
A formulação de Lacan sobre o desejo, como se vê acima, é posterior à desaparição
de Fanon; não será portanto lida com influência ou consonância, antes como um ponto de
chegada que desdobra questionamentos presentes na obra de Fanon que leremos adiante.
Além disso, explicita – da parte de Lacan – não apenas uma releitura de Freud, mas uma
deliberada inversão em relação aos postulados freudianos: a derrocada do Pai. Tal
derrocada encontra um paralelo importante, presente na Fenomenologia do Espírito, de
Hegel. Trata-se da dialética do senhor e do escravo, exposta de maneira bastante sintética
na seção A do capítulo IV. Hegel partira da história da relação entre o senhor e o escravo
para iluminar sua reflexão acerca da consciência de si, da sujeição do outro, da relação do
sujeito com o mundo e, como o entenderá Kojève, do desejo. Nas palavras de Hegel, em
tradução espanhola:
El señor se relaciona al siervo de un modo mediato, a través del ser independiente, pues a
esto precisamente es a lo que se halla sujeto el siervo; ésta es su cadena, de la que no
puede abstraerse en la lucha, y por ella se demuestra como dependiente, como algo que
tiene su independencia en la coseidad. Pero el señor es la potencia sobre este ser, pues ha
demostrado en la lucha que sólo vale para él como algo negativo (…) Y, asimismo, el
señor se relaciona con la cosa de un modo mediato, por medio del siervo; el siervo, con
autoconsciencia en general, se relaciona también de un modo negativo con la cosa y la
supera; pero, al mismo tiempo, la cosa es para él algo independiente, por lo cual no puede
consumar su destrucción por medio de su negación, sino que se limita a transformarla.
Por el contrario, a través de esta relación mediata se convierte, para el señor, en la pura
negación de la misma o en el goce, lo que la apetencia no lograra lo logra él: acabar con
aquello y encontrar satisfacción en el goce. La apetencia no podía lograr esto a causa de
la independencia de la cosa; en cambio, el señor, que ha intercalado el siervo entre la cosa
y él, no hace con ello más que unirse a la dependencia de la cosa y gozarla puramente;
pero abandona el lado de la independencia de la cosa al siervo, que la transforma. (Hegel,
1807 (1978):117-118)
A relação antitética entre senhor e escravo, se resolveria, numa síntese posterior,
com o senhor revelando que “su esencia es lo inverso de aquello que quiere ser” e com a
independência do escravo. O fato é que a dialética hegeliana tornada célebre foi lida e
compreendida das mais diversas formas ao longo dos tempos. Em Fanon, ela serve para dar
conta da relação entre os escravos reais em relação aos brancos e, de maneira mais ampla,
da busca de independência do jugo colonial. Isto será analisado detidamente até o fim do
presente capítulo. Para Lacan, a mesma dialética serve de ponto de partida para falar do
desejo e para desenvolver suas reflexões sobre os quatro discursos, como analisarei ao final
do capítulo, tomando Fanon como exemplo.
166
É importante levar em conta que tanto a leitura de Lacan quanto a de Fanon têm
uma referência comum. Trata-se do filósofo russo Alexandre Kojève, um dos principais
introdutores do pensamento hegeliano na França, ao longo dos anos trinta. Kojève, “russo
por nascimento, alemão por formação, francês por escolha”, nas palavras de César
Benjamin (2002), foi o responsável por uma série de seminários sobre Hegel na École
Pratique de Hautes Études, em Paris, entre os anos de 1933 e 1939. Sabe-se que Lacan
frequentou alguns destes cursos. Já o contato de Frantz Fanon com a obra de Kojève
provavelmente deu-se através da coletânea de anotações de muitas das conferências do
russo feita por Raymond Queneau, publicada pela Gallimard em 1949. Dentre os diversos
textos que compõe aquele volume, destaca-se o de abertura, uma tradução comentada de
Kojève da seção A do capítulo IV da Fenomenologia do Espírito, justamente aquela onde
se trata da dialética do senhor e do escravo. A particularidade textual deste artigo, que foi
inicialmente publicado por Kojève na revista Mesures, em janeiro de 1939, é que ele
introduz uma série de interpolações ao texto hegeliano, sempre entre chaves, o que termina
por torna-lo uma espécie de obra em co-autoria.
Em algumas poucas páginas, além de traduzir Hegel, Kojève apresenta sua
compreensão da dialética do senhor e do escravo. Logo nas primeiras páginas, antes do
início do texo de Hegel, o russo introduz a noção de desejo: “L´être même de l´homme,
l´être conscient de soi, implique donc et présuppose le Désir” (Kojève, 1939 [1997])
82
. Tal
necessidade de desejar é, para Kojève, em certa medida, uma necessidade de
reconhecimento. Não se trata, portanto, de desejo do que é natural – no sentido biológico –
mas algo que possa ser imbuído pelo homem de um valor simbólico; é quando ele introduz
a noção (já tratada no capítulo anterior, quando nos referimos a Lacan) de que se deseja o
desejo:
Le Désir humaine, ou mieux encore: anthropogène, constituant un individu libre et
historique consciente de son individualité, de sa liberté, de son histoire, et, finalement, de
son historicité – le Désir anthropogène diffère donc du Désir animal (constituant un être
naturel, seulement vivant et n´ayant q´un sentiment de sa vie) par le fait qu´il porte non
pas sur un objet réel, ‘positif’, donée, mais sur un autre Désir. Ainsi, dans le rapport entre
l´homme et la femme, par exemple, le Désir n´est humain que si l´un désire non pas le
corps, mais le Désir de l´autre, s´il veut être ‘desiré’ ou ‘aimé’ ou bien encore: ‘reconnu’
dans sa valeur humaine, dans sa realité d´individu humain. [...] il est humain de désirer
ce que désirent les autres, parce qu´ils le désirent. Ainsi, un objet parfaitement
inutile au point de vue biologique (tel qu´une décoration, ou le drapaeu de l´ennemi)
82
“O Ser do homem, o Ser consciente de si, implica e supõe o desejo” (Kojève, 1939 (2002):11)
167
peut être désire parce qu´il fait l´objet d´autres désirs. Un tel Désir ne peut être
qu´un Désir humain, et la réalité humaine en tant que différente de la réalité
animale ne se crée que par l ´action qui satisfait de tels Désirs: l ´histoire humaine
est l´histoire des Désirs désirés. (Kojève, 1939 [1997]:13, grifos meus)
83
Reconhece-se facilmente o discurso lacaniano no fragmento acima, quando ele
afirma que “o desejo do homem é o desejo do outro”. Kojève prossegue dizendo que a
busca da satisfação deste desejo é tamanha para o humano que para ir nesta direção,
inclusive arrisca a vida. Entra em cena uma luta cruenta, cujas consequências são
conhecidas na psicanálise, por exemplo, no plano amoroso:
Et puisque chacun des deux êtres doués d´un tel Désir est prêt à aller jusq´au bout dans la
poursuit de as satisfaction, c´est-a-dire est prêt à risquer sa vie [...] leur rencontre ne peut
être que une lutte à mort. (Kojève, 1939[1987]:14)
84
É neste embate que alguém acaba por capitular, “abandonar seu desejo e satisfazer o
desejo do outro” (op. cit.,:15). Neste movimento de capitulação é que o homem advém
escravo do desejo do outro. Assim, ao reconhecer a dialética do desejo como aquela que
caracteriza a história humana, Kojève está emparelhando-a àquela do senhor e do escravo.
Nota-se então a passagem não evidente entre a dialética senhor-escravo à dialética do
desejo:
la ‘dialectique’ historique est la ‘dialetique’ du Maître et de l ´Esclave. Mais si
l´opposition de la ‘thèse’ et de l ‘antithèse’ n´a un sens qu´à l´interieur de la conciliation
par la ‘synthèse’, si l´histoire au sens fort du mot a nécessariament un terme final, si l
´homme qui devient doit culminer en l´homme devenu, si le Désir doit aboutir à la
satisfaction, si la science de l´homme doit avoir la valeur d´une vérité définitivemente et
universellement valable, - l´interaction du Maître et de l´Esclave doit finalement aboutir à
leur ‘suppresion dialectique’ (Kojève, 1339 [1997]:16)
85
83
O desejo humano, ou melhor, antropogênico – que constitui um indivíduo livre e histórico consciente de sua
individualidade, de sua liberdade, de sua história e, enfim, de sua historicidade –, o desejo antropogênico difere portanto
do desejo animal (que constitui um Ser natural, apenas vivo e tendo só o sentimento de sua vida) pelo fato de não buscar
um objeto real, “positivo”, dado, mas um outro desejo. Assim, na relação entre homem e mulher, por exemplo, o desejo só
é humano se um deles não deseja o corpo, mas sim o desejo do outro, se quer possuir ou assimilar o desejo considerado
como desejo, isto é, se quer ser desejado ou amado, ou mais ainda, reconhecido em seu valor humano, em sua realidade de
indivíduo humano. [...] é humano desejar o que os outros desejam, porque eles o desejam. Assim, um objeto
perfeitamente inútil do ponto de vista biológico (como uma condecoração ou a bandeira do inimigo) pode ser
desejado porque é objeto de outros desejos. Tal desejo só pode ser um desejo humano. [...] a história humana é a
história dos desejos desejados” (Kojève, 2002 [1939]:13, grifos meus)
84
“E, como cada um dos seres dotados de semelhante desejo está decidido a ir até o fim na busca de sua satisfação, ou
seja, está decidido a arriscar a vida [...] o encontro dos dois só pode ser uma luta de morte” (Kojève, op. cit., p. 14)
85
“a dialética histórica e a dialética do senhor e do escravo. Mas, se a oposição da tese e da antítese só tem sentido na
conciliação pela síntese, se a história no sentido forte da palavra tem necessariamente um termo final, se o homem que
está em via de tornar-se deve culminar no homem que já se tornou, se o desejo deve levar à satisfação, se a ciência do
homem deve ter valor de verdade definitiva e universalmente válida, então a interação do senhor e do escravo deve
finalmente levar à supressão dialética deles.” (Kojève, 2002 [1939]:15)
168
O trecho acima é esclarecedor. Por um lado ele mostra um certo pensamento
finalista, que será absolutamente assimilado tanto por Fanon quanto por Sartre (outro
frequentador dos cursos de Kojève (cf. Benjamin, 2002), que demonstram uma crença
inabalável na possibilidade da aplicação prática dos postulados acima visando a
transformação social e histórica. Já na leitura de Lacan, a verdade não se diz, o desejo não
se satisfaz, não havendo portanto uma síntese que ponha fim aos conflitos; tratar-se-á não
de uma dialética que se fecha em síntese, mas daquilo mesmo que se convencionou chamar
de análise
86
.
É preciso que nos perguntemos sobre o aparecimento do termo désir no texto de
Kojève. Ainda que ele apareça na referência direta a Hegel, ele é um elemento que parece
certo atribuir ao próprio Kojève, mais que a Hegel. Ferrater-Mora indica que há sim na
própria Fenomenologia do Espírito uma noção de desejo, na seção da dialética do senhor e
do escravo (B IV):
Finalmente, en Hegel y en algunos autores contemporáneos, la noción de deseo ha sido
tratado en sentido ‘metafísico-existencial’. Hegel indica que ‘la conciencia de sí mismo
es el estado de deseo en general’, que ‘la conciencia de sí mismo es Deseo’
(Phänomenologie des Geistes. Int. B 4). La condición del ‘deseo’ y del ‘trabajo’ (o
esfuerzo) aparece en el proceso en que la conciencia vuelve a sí misma en el curso de sus
transformaciones como conciencia [...] infeliz (ibid,. Int. B4b). (Ferrater-Mora, 1990:768,
grifos meus)
Ainda assim, nota-se ao ler o texto de Kojève, como o russo toma Désir como termo-
chave em sua reflexão, desenvolvendo bastante o que propõe, e chegando à formulação, da
qual Lacan se apropriará, a qual toma o desejo como “desejo do outro” ou “desejo de
desejo”.
A inversão de Lacan em relação a Hegel consiste em tomar o desejo como sendo, por
definição, da ordem do inconsciente e, com isso, abolir a possibilidade de autoconsciência.
Vale notar, como desenvolverei adiante, que Fanon é – neste sentido – mais hegeliano que
Lacan, pois operará com a possilidade da tomada de consciência (prise de conscience) por
parte do Negro, o que equivaleira à possibilidade da síntese e consequente libertação.
86
contemporaneamente há uma interessante discussão sobre o lugar do analítico e do sintético na sociedade ocidental em
Sloterdijk & Heinrichs. El sol y la muerte. Investigaciones dialógicas, na seção “Lo analítico y lo sintético”. Madri:
Siruela, 2004 (2001), pp. 263-272.
169
O fato é que a dialética do senhor e do escravo e o tema do desejo são elementos
fundamentais para Fanon em seu Peau noire, masques blancs (1952), e de outra forma no
Damnés de la terre (1961). Para Lacan, esta mesma reflexão hegeliana aparece no já citado
seminário de 1969-1970, L´envers de la psychanalyse, como vimos pelo trecho citado há
pouco. Pierre Kauffman (1993:330) chama a atenção para o fato de que o surgimento dessa
elaboração em Lacan coincide com as agitações de maio de 1968 na França, e que suas
primeiras formulações remontam ao seminário de 1968-9. Da mesma forma, a dialética do
senhor e do escravo, em Fanon, é ponto de partida para tratar da “desalienação do Negro”,
no contexto da descolonização africana em que escrevera Fanon. Ou seja, é importante
levar em conta como, para ambos os autores, a dialética hegeliana surge como uma resposta
a uma questão social premente. Haveria pois, um deslocamento – no sentido de Said – do
texto filosófico para a urgência do momento histórico
87
. Isto é particularmente evidente em
Fanon, em cujo livro o senhor e o escravo hegelianos tornam-se senhor branco e escravo
negro. Não mais os personagens de uma parábola filosófica, mas personagens de carne e
osso, servindo como sorte de uma abstração que é preciso por em cena.
Em Lacan, a passagem é mais sutil, pois o que se faz – como analisarei na seção
final deste capítulo – é caracterizar o discurso do senhor (maître), e urde uma oposição
outra a ele, que é o discurso da histérica, o qual, conforme veremos, pode-se tornar
particularmente produtivo para uma leitura retrospectiva da obra de Fanon.
A formulação mais explícita de Fanon da dialética hegeliana encontra-se no capítulo
final de Peau noire, masques blancs, mas se faz notar ao longo de toda a obra O que o
Negro deseja, para Fanon, é ser reconhecido. Curiosamente, tal formulação funciona como
resposta à pergunta colocada já nas páginas iniciais da obra: Qui veut l´homme noir? É no
87
Esta apropriação da dialética hegeliana pelo pensamento que visa dar conta da realidade sócio-histórica, poderia, numa
primeira leitura, ser pensada como um ‘desvio’, como uma viagem das ideias hegelianas no sentido de Said. Mas há
leituras que atribuem este sentido da urgência histórica ao próprio texto hegeliano. Assim, ao conceber a dialética do
senhor e do escravo, Hegel teria em mente a situação real da escravidão, no entender de Susan Buck-Morss: “É pouco
provável que ele [Hegel], ao conceber a dialética senhor-escravo, não tivesse em mente a existência de escravos reais em
países reais (como, por exemplo, nas colônias caribenhas) ou que esses escravos, como o seu escravo filosófico, não
fossem capazes de se rebelar. 1803 é a data da revolução haitiana e é também quando a temática do senhor-escravo
aparece pela primeira vez nos escritos de Hegel. [...] Ao percebermos que Hegel está descrevendo condições históricas
reais [...] sua filosofia torna-se legível como um comentário da época. [...] A atual importância política dessa leitura é que
ela contribui para minar o discurso do ‘desenvolvimento’, do ‘progresso’ ou do ‘atraso’ histórico. Todas as partes do
planeta estão no tempo presente – do mesmo modo que, em 1800, a escravidão no Caribe era um fato da história europeia,
não algum resíduo ‘pré-histórico’ africano, como Hegel tentou argumentar na Filosofia da História, para tornar
convincende sua teoria do Weltgeist.” (Buck-Morss, 1997:61). O fato é que tal potencial de apropriação de Hegel, seja na
leitura de Buck-Morss ou na de Kojéve, foi não poucas vezes utilizado.
170
trajeto entre a proposição dessa pergunta e a formulação da resposta nas linhas finais que
me deterei.
Proporei, nas páginas que seguem, a leitura da obra de Fanon considerando as
formulações de Lacan do seminário 17, L´envers de la psychanalyse, no qual, coloca a
“psicanálise do avesso”, e passa a torcer deliberadamente alguns conceitos freudianos
considerados canônicos. Em tal seminário, a figura do mestre, ou do grande patriarca, que
aparece em importantes formulações freudianas, quais sejam, a do Édipo, a de Totem e
Tabu e a de Moisés e a religião monoteísta – é questionada com veemência por Lacan, a
partir da figura da histérica, a qual, como diz Lacan no fragmento acima, foi aquela que
permitiu a Freud botar para funcionar sua psicanálise, ou, nos termos em que dirá o próprio
Lacan, anos depois, no seminário 11, a mulher faz parte do resto não analisado de Freud.
Embora eu tenha dito há pouco que não parece haver movimento de síntese na psicanálise
lacaniana, a derrocada do Pai todo-poderoso em sua obra parece encontrar certo paralelo
com a queda do senhor em detrimento do escravo no Hegel e de Kojève. É possível ainda
dizer que se em Fanon o escravo – e o negro – são postos em primeiro plano; em Lacan é a
histérica que é alçada à condição primordial de, inclusive, responsável pela psicanálise
freudiana.
Já para Fanon – e para alguns de seus seguidores – Freud e a psicanálise que ele
representa – também parecem estar num lugar que pede um destronamento. A psicanálise
freudiana é, para Fanon, antes de tudo, uma psicanálise dos senhores brancos. No duplo
questionamento presente em Fanon, tanto do que ele chama a desumanização do homem
negro pelo branco colonizador, quanto da insuficiência da psicanálise para dar conta de tais
conflitos, há uma reivindicação que será preciso qualificar. Trata-se, no fim das contas, de
responder à pergunta: a partir de que lugar fala Fanon?
Pois tal como fará Lacan, há na obra de Fanon tanto a operação sobre a dialética
senhor-escravo quanto a questão – freudiana e kojèviana – sobre o desejo; mas é na
articulação que há em Lacan que se criam as condições para um leitura crítica do gesto
teórico de Fanon. A passagem de Fanon de um discurso a outro ao longo de sua obra é a
hipótese forte de leitura que mobilizará este capítulo. Na tensão presente em toda a obra de
Fanon é que procurarei situar os impasses e o alcance de sua reflexão, ao identificar os
discursos que se mobilizam em sua obra. E é o postulado lacaniano sobre o desejo, e logo
171
sobre os quatro discursos, que permitem insistir na discussão sobre a psicanálise em Fanon,
para além do rechaço mais imediato que sua obra parece querer trazer. A refutação do
universalismo freudiano – por supostamente excluir o negro – retorna em Fanon na
reverberação formal da mesma pergunta freudiana sobre o desejo: O que quer o Negro?
Minha proposta é sustentar a pergunta sobre o desejo na leitura de Fanon, e não
perdê-la de vista nas certamente importantes questões das circunstâncias históricas e sociais
dos negros antilhanos e argelinos. Ver, numa palavra, o que, no nível da escrita, Fanon faz
do desejo ao longo de suas reflexões que são também políticas e raciais. Ou ainda, o que
resta da psicanálise em Fanon. E o que se lê pela psicanálise em Fanon. O avesso pelo qual
Fanon toma a psicanálise termina revelando muito sobre sua própria escrita, e permite, com
Lacan, atribuir-lhe um estatuto. Sustento portanto que tomar a psicanálise freudiana e
lacaniana nas duas pontas, na da produção de Fanon e na reflexão sobre a mesma, permitirá
melhor qualificá-la.
2.1.3. Escrita epidérmica ou universalismo à flor da pele – Fanon e a psicanálise
A posição de Fanon em relação à psicanálise é complexa. Tanto no plano da sua
escrita, quanto na forma como sua obra tem sido abordada pela crítica. Assim, chama a
atenção que ao longo de todo o livro Frantz Fanon and the psychology of opression,
Bulhan (1985) faça tão somente duas menções a Jacques Lacan, sempre em meio a uma
série de autores, na primeira ocorrência para nomear os especialistas (op. cit p. 61) citados
por Fanon em Peau Noire e logo em seguida (op. cit., p.102), para se referir aqueles que
assistiram aos seminários em que Kojève analisava a obra de Hegel, na França. É preciso
reconhecer que o grande interesse de Bulhan, a despeito do título “psychology of
opression”, recai muito mais sobre a opressão, do que propriamente sobre psicologia, o que
termina por tornar seu livro um libelo contra aquilo que ele chama de Euro-American
Psychology. O olhar mais generoso de Bulhan deita-se sobre a influência de Adler em
Fanon, com o conceito de supercompensação. Trago este exemplo como forma de mostrar
que as aproximações a Fanon considerando a psicanálise têm sido bastante reticentes.
172
Mais recentemente, Bhabha (1998), como já aludi, parece alterar tal tendência, ao
indicar a produtividade de uma releitura de Fanon considerando a psicanálise lacaniana. O
traço diferencial que se pode marcar na leitura de Bhabha, em relação a Bulhan (1985), por
exemplo, é aquilo que ele privilegia em Fanon: as suas sombras, as cisões advindas de seu
dizer, suas rupturas. Se Bulhan buscava em Fanon um corpo coeso de uma doutrina contra
a opressão, Bhabha vai na mão oposta. Vejamos:
Fanon é o provedor da verdade transgressiva e transicional. Ele pode ansiar pela
transformação total do Homem e da Sociedade, mas fala de modo mais eficaz a partir dos
interstícios incertos da mudança histórica [...] A incômoda divisão que quebra sua linha
de pensamento mantém viva a dramática e enigmática sensação de mudança. [...] É esta
pressão palpável da divisão e do deslocamento que leva a escrita de Fanon para a
extremidade das coisas – a extremidade cortante que não revela nenhuma iluminação
última mas, em suas palavras, ‘expunha uma declividade completamente nua de onde
pode nascer uma autêntica sublevação’ (Bhabha, 1998:70)
Desse modo, Bhabha, diferentemente de Bulhan, não toma Fanon como uma
autoridade e, sobretudo, não o lê a partir de sua desejada coerência, mas de sua
precariedade, a partir de onde se dá a ver, em seu entendimento, um lugar privilegiado para
pensar sobre os limites da identidade pós-colonial. A articulação entre a demanda e o
desejo em Fanon, tomados pela via da psicanálise, são analisadas por Bhabha a partir da
noção de identificação, e do olhar.
Dessa passagem que faz Bhabha pela obra de Fanon marca-se não somente uma
forma de ler que desloca o martinicano da posição de autoridade inconteste para a de um
dizer que interroga e demanda interrogação; abre-se também, com a leitura de Bhabha, uma
via que – pelos interesses de sua obra – ele não chega a explorar: a produtividade da
abordagem de Fanon pela via do desejo.
Outro traço marcante da escrita de Fanon, reconhecido por aqueles que não o
querem encastelar na posição do mestre, é o da peculiar articulação teórica que ele propõe
em Peau noire, masques blancs. Fanon coloca-se, de certa forma, contra a psicanálise; seu
argumento é o da necessária inclusão do materialismo dialético e da sociogênese na
articulação entre filogênese e ontogênese que, segundo ele, Freud teria trazido à reflexão
psicanalítica. Portanto, seu movimento é o de projetar o singular no coletivo, já que para
ele, o que existe é a questão coletiva do Homem Negro que, ao exorbitar as preocupações
primeiras da psicanálise, deverá agora ser incluída em sua reflexão.
173
Contrário ao método científico, fiel ao que é da ordem do empírico, a escrita urgente
de Fanon vai buscar nas disciplinas que prometem a transformação social aquilo que lhe
parece faltar na psicanálise. E então começa a pagar o alto preço epistemológico de suas
escolhas: compor numa trama tensa o materialismo dialético marxista, o sujeito dividido da
psicanálise e o eu autocentrado do existencialismo sartreano. Mas Fanon, pela via do
escárnio, explicita sua posição em relação ao método científico. Dirá ele já na introdução de
seu primeiro livro:
(1) Il est de bon ton de faire précéder un ouvrage de psychologie d´un point de vue
méthodologique. Nous faillirons à l´usage. Nous laissons les méthodes aux botanistes et
aux mathématiciens. Il y a un point où les méthodes se résorbent. (Fanon, 1952:9, grifos
meus)
88
Nesse fragmento está a marca pessoal do primeiro Fanon: a urgência da escrita do
homem de ação que busca na teoria uma solução para o desconcerto, o que redunda em um
modo desinibido de lidar com o teórico. Tal bricolagem teórica é que, para alguns, o torna
(Cf. Bulhan, 1985) o criador da psicologia da opressão. Tal posição também tem levado a
que nos livros em que se aborda Fanon, haja um capítulo sobre o existencialismo, outro
sobre a psicanálise, outro sobre a filosofia de Hegel, outro sobre sua atuação política, e
assim por diante, como se a agônica pluralidade de Fanon demandasse uma horda de
especialistas para analisar seu pensamento; como se ele falasse do lugar de mestria de cada
um dos campos mobilizados. Como se, numa palavra, as teorias não estivessem todas
embaralhadas com a finalidade última de servir a uma prática.
Entretanto, para autores como Gibson (2003), essa singular posição de Fanon é sim
reconhecida como uma espécie de forma de escape, dada pela premência das questões que
ele se obriga a resolver; assim, para o objeto ou situação que uma certa teoria não dá conta,
Fanon o irá buscar em outra parte. Isso ocorreria, para Gibson, principalmente, em relação
às questões raciais:
Yet, while Fanon takes psychoanalytic seriously, every time he engages a
psychoanalytic theorist there is an immediate qualification. When the question of race is
introduced one has to move from the individual to the social and from the
unconscious to the conscious. (Gibson, 2003:43, grifos meus)
88
“É de bom tom fazer preceder uma obra de psicologia por um ponto de vista metodológico. Violaremos a norma.
Deixamos o método aos botânicos e matemáticos. Há um ponto em que os métodos se reabsorvem” (Fanon, 1952:41)
174
Esse é, a meu ver, um dos desafios de ler Fanon, considerar que o que ele diz a
partir de cada área de conhecimento é sempre da ordem de um deslocamento; de modo que
tanto a adesão irrefletida quanto a desqualificação daquele campo de conhecimento são
atitudes perigosas do leitor. Quanto à abordagem de Gibson, chama a atenção o modo como
ele qualifica a abordagem de Fanon da psicanálise; além do trecho acima, quando ele cita
que por vezes, Fanon toma seriamente a psicanálise, afirma a seguir que “psychoanalytic
language is useful more often as a metaphor” (Gibson, 2003:44).
O ponto de vista que adoto é que há em Fanon uma tensa discussão com os
postulados psicanalíticos, no qual não há nem aceitação plena nem total rechaço. Nem tão
lúdica quanto aponta Gibson, nem tão coerente, como assinala Bulhan. Pois não se pode
esquecer que Fanon tem uma atuação clínica ao longo de sua vida, e que isso não se esgota
em mera metáfora, inclusive porque dedica páginas de seu último livro à sua experiência
clínica. A discussão de Fanon é, regra geral, com conhecimento de causa – embora ele tome
generosas liberdades – o que, no fim das contas, possibilita que se possa situá-lo sim a
partir das discussões psicanalíticas, seja quando ele as ultrapassa, quando ele as antecipa,
como quando ele transgride o que pode caber na psicanálise.
Seria possível, por exemplo, filiar a abordagem de Fanon em Peau noire... à da
psicologia das massas, na qual Freud buscava compreender os movimentos coletivos, como
a religião, a cultura, a guerra, tendo como fim último o lugar do sujeito e seu tratamento na
clínica.
Outros autores, quando em momentos de análise social, já lançaram mão da
psicanálise. Por exemplo, Análise do eu e psicologia das massas, de Freud, era uma das
leituras de Gilberto Freyre, citadas em seu Casa Grande & Senzala, e prestava-se à análise
do pernambucano das relações interraciais, da fixação dos garotos brancos na mulheres
negras. Assim, tal apropriação, em Freyre, funciona como uma forma de analisar uma
tendência coletiva. Já o resultado do deslocamento em Fanon mostra que sua escrita visa
não a uma cura de um, mas a libertação da todos; não se trata de uma escrita analítica, mas
reivindicante. A posição do analista – prevalente em Freud – desloca-se para outra:
(2) L´analyse que nous entreprenons est psychologique. Il demeure toutefois
évidentent que pour nous la veritable désalienation du Noir implique une prise de
conscience abrupte des réalités économiques et sociales.[...] Nous estimons qu´il y a, du
175
fait de la mise en présence des races blanche et noire, prise en masse d´un complexus
psycho-existencial. En analysant, nous visons à sa destruction. (Fanon, 1953:8-9)
89
De modo que, num primeiro momento, é razoável supor que a psicanálise aparece
na reflexão de Fanon como um porto de passagem, pois dela ele se vale para mostrar o
funcionamento da “epidermização” da inferioridade social do negro perante o branco; num
segundo momento, sua função é levar à desalienação coletiva” dos negros.
A contradição que se coloca em cena em Fanon é a idealização de um Eu racial –
consagrado no texto sob as formas Blanc e Noir, grafados ambos em letras maiúsculas – o
qual conta sim com inconsciente, lapsos (op. cit., :18), narcisismo (op. cit., :18), o que o
torna aparentado ao sujeito da psicanálise. O mito freudiano do Pai da horda primitiva – já
referido no segundo capítulo deste trabalho – parece haver se metamorfoseado em Super
Psicólogo Negro. É justamente aí que, uma vez mais, exibe-se outra vez expondo suas
carnes a pergunta fundamental: como qualificar a escrita de Fanon, de que lugar ele fala?
Qual é sua perspectiva quando ele fala sobre “O Negro”?
Ao lado do universalizante Noir e Blanc, o autor oferece ao atônito leitor a
afirmação de que
(3) Etant Antillais d´origine, nos observations et nos conclusions ne valent que pour
L´Antilles, – tout au moins en ce qui concerne le Noir chez lui. Il y aurait une étude à
consacrer à la explication des divergences qui existent entre Antillais et Africaines.
(Fanon, 1952 :11)
90
Surge assim, ao lado da relação universalizadora entre Brancos e Negros o
relativismo culturalista de que os antilhanos seriam detentores de particularidades que, por
si só, levariam a determinar um psiquismo particular. Tal ideia será desdobrada em Les
damnés de la terre, quando Fanon se dedicará ao relato de suas experiências clínicas na
Argélia, durante as lutas de descolonização. Pode-se dizer que o universalismo é reservado,
em sua obra, para a relação entre Negros e Brancos, sendo esta a matriz fundadora, que
tomará diferentes matizes nas diferentes situações em que se dá; por outro lado, como se
89
“A análise que empreendemos é psicológica. Permanece contudo evidente que, para nós, a verdadeira desalienação do
negro implica uma tomada abrupta de consciência das realidades econômicas e sociais. [...] Consideramos que há, pelo
facto do encontro das raças branca e negra, uma adopção em massa de um complexo psico-existencial. Analisando-o,
visamos a sua destruição.” (Fanon, 1952:40-2)
90
“Sendo Antilhano de origem, as nossas observações e conclusões apenas valem para as Antilhas, - pelo menos naquilo
que diz respeito ao Negro no seu meio. Deveria consagrar-se um estudo à explicação das divergências que existem entre
Antilhanos e Africanos.” (Fanon, 1952:45)
176
verá adiante, o autor recusará o pilar da psicanálise freudiana, o complexo de Édipo. O
universalismo para Fanon está não na sexualidade, mas na flor – e na cor – da pele.
Quanto à pergunta sobre o desejo, em termos lingüísticos, é possível dizer que,
diferentemente do procedimento de Freud na frase recolhida por Ernest Jones, na qual
tínhamos a mulher na terceira pessoa do singular (Was will das weib?), e de Lacan, cuja
formulação implica a interpelação do seu interlocutor (Che vuoi?), o questionamento de
Fanon é lateral e auto-excludente, dado que ele faz uso da terceira pessoa, mesmo sendo
homem e sendo negro: Que veut l´homme noir? Tal tipo de enunciado em que se separam
aquele que enuncia e o objeto da sentença é característico do discurso científico. Entretanto,
o fato de ser dito por quem o diz – um negro falando sobre o negro e que deliberadamente
abdica do procedimento científico – abre a possibilidade de algum questionamento. É o
próprio Fanon que ao longo de sua obra escarnece da metodologia científica e se inclui
deliberadamente como parte de seu campo de observação. É o próprio gesto de Fanon de
recusar a cientificidade, a objetividade e de se incluir a todo momento como parte de seu
estudo, que autoriza a seu leitor procurá-lo em seu próprio texto: “Je me suis attaché dans
cette étude à toucher la misère du Noir. Tactilement est affectivement. Je n´ai pas voulu
être objectif. D´ailleurs, c´est faux: il nea pas été possible d´être objectif” (Fanon,
1952:70)
91
. Assim, se o autor parece tomar um objeto de análise de maneira distanciada,
vemos no trecho anterior como ele está absolutamente identificado a este objeto, a ponto
de, por muitas vezes, ser ele o seu próprio objeto de estudo. Vejamos como se dão tais
passagens.
No plano da análise social, logo no primeiro capítulo de Peau noire, masques
blancs, chamado “Le Noir et le langage”, as atenções recaem sobre a análise de ocorrências
linguísticas trazidas pela interação do negro com outro negro, e do negro com os brancos; aí
os exemplos são os mais diversos, sejam os do negro antilhano na França falando com os
franceses, do negro antilhano que regressa à terra natal macaqueando o modo de falar
afrancesado, do francês falando “simples” com os negros em geral, do antilhano perante os
africanos etc. Em todos estes casos, Fanon coloca-se não na posição de negro, mas na
daquele que, fora da cena, sensível à questão do negro, relata o que vê. Assim, em tal
91
“Debrucei-me neste estudo sobre a miséria do Negro. Táctil e afectivamente. Não quis ser objetivo. Aliás, é falso: não
me foi possível ser objectivo.” (Fanon, 1952:118)
177
relação do negro com a linguagem, a dimensão que o autor privilegia é aquela que, com
Lacan, se pode chamar de Imaginária. É neste aspecto que a incidência do texto do estádio
do espelho, de Lacan, se mostra. Não se está, portanto, em Fanon, na dimensão do sujeito
constituído pela linguagem, e sim na linguagem como assunção imaginária do que se
poderia chamar uma identidade: “Parler, c´est être à même d´employer une certaine
syntaxe, posséder la morphologie de telle ou telle langue, mais c´est surtout assumer une
culture, supporter le poids d´une civilisation” (Fanon, 1952 :13)
92
. O drama do negro
antilhano, para Fanon, será o de tentar se parecer mais e mais branco em seu modo de falar,
e esquecer a língua crioula. Há portanto, contrariamente ao que postulam algum linguistas
que consideram a psicanálise, um esquecimento possível da língua materna para Fanon
93
. A
língua, para Fanon, não aparece na dimensão constituinte do sujeito, mas como uma
instância exterior a ele, a qual pode ser escolhida, assumida, rejeitada, contra a qual, numa
palavra, é possível lutar.
Nesse sentido, chamam a atenção as tensões linguísticas presentes ao longo do livro
na linguagem do próprio Fanon. O leitor nota que, ao longo da maior parte de Peau
Noire..., o autor assume a terceira pessoa para referir-se ao “Negro”, há dois momentos em
que se faz notar uma eloquente alteração nesta voz narradora que são marcantes: no início
dos capítulos 3 e 5, quando surge uma voz em primeira cujo tom seria possível qualificar
como lírico, e que seria possível identificar a este “Negro” que sonha ser “Branco” de que
fala Fanon. No terceiro parágrafo, interpõe-se um período que contesta a Hegel, depois
segue adiante no tom lírico. Vejamos:
(4) De la partie la plus noire de mon âme, à travers de la zone hachurée me monte ce désir
d´être tout à coup blanc.
Je ne veux pas être reconnu comme Noir, mais comme Blanc.
Or – et c´est là une reconnaissance que Hegel n´a pas décrite – quie peut le faire, sinon
la Blanche? En m´aimant, elle me prouve que je suis digne d´un amour blanc. On m´aime
comme un Blanc.
Je suis un Blanc.
Son amour m´ouvre illustre couloir qui mène à la prégnance totale...
J´épouse la culture blanche, la beuaté blanche, la blancheur blanche.
Dans ces seins blancs que mes mains ubiquitaires caressent, c´est la civilisation et la
dignité blanche que je fais miennes. (Fanon, 1952:51, grifos meus)
94
92
“Falar, é ao mesmo tempo empregar uma certa sintaxe, possuir a morfologia desta ou daquela língua, mas é sobretudo
assumir uma cultura, suportar o peso de uma civilização (Fanon, 1952:48)
93
Remeto o leitor interessado na discussão para o estudo de Maria Fausta Pereira de Castro, “Sobre o (im)possível
esquecimento da língua materna” (2008), que segue na direção oposta à proposta de Fanon.
94
“Da parte mais negra da minha alma, através da zona sombreada sobre-me este desejo de ser de repente branco.
“Não quero ser reconhecido como Negro, mas como Branco.
178
Esta apologia da brancura que demanda o Negro mostra-se entre o envolver-se a um
corpo branco de mulher e o ser branco, e é seguida, já assumida a voz do crítico que
perpassa a obra, pelo relato de uma piada: Um negro, em meio a uma relação sexual com
uma loira fogosa (“blonde ‘incendiaire’”), na iminência do orgasmo, grita vivas a
Schoelcher, o responsável pela abolição da escravatura na III República. Sabemos que o
tema do capítulo serão os desejos sexuais do Negro.
Segue-se ao longo de páginas uma análise do romance do escritor negro Jean
Veneuse, Un homme pareil aux autres – que Fanon qualifica de autobiográfico. Trata-se de
um exercício crítico de leitura por parte de Fanon da história de um negro que se julga
indigno do amor de uma branca, a qual, no entanto, dá todas as mostras de gostar dele, a
despeito de sua cor. É notório o contraste entre uma anedota sexual sobre o coito entre o
negro e a loura e uma história de amor de um negro que não se julga merecedor do amor da
branca, mas sobre isso Fanon nada diz.
Ele segue sua análise sobre o romance de Veneuse, mostrando o insistente pedido
do personagem negro que solicita à amada todo o tipo de provas de seu amor, mas mantém-
se irredutível em sua posição de não ser um homem digno de ser amado por uma branca. O
leitor vai vendo que nenhuma prova será suficiente para o personagem negro de Jean
Veneuse.
Para a análise da obra, Fanon vale-se do livro La névrose d´abandon, de Germaine
Guex, e, em consonância com sua hipótese, o que ele considera a neurose de abandono do
autor do livro, Jean Veneuse. Contrariamente ao que é a tônica de Peau noire..., a
conclusão a que chega Fanon é de que a neurose do personagem (ou do autor, pois ele
considera o romance como autobiográfico) nada tem a ver com a cor de sua pele. A chave
que o autor encontra para analisar Veneuse, se nos reportarmos à leitura que Freud fez do
Hamlet de Shakespeare, e de seu complexo de Édipo, pode ser aparentada à de um Hamlet
negro:
“Ora – e trata-se de um reconhecimento que Hegel não descreveu – quem o pode fazer, senão a Branca? Amando-me,
prova-me que sou digno de um amor branco. Amam-me como a um Branco.
“Sou um Branco.
“O seu amor abre-me o corredor ilustre que conduz à pregnância total...
“Desposo a cultura branca, a beleza branca, a brancura branca.
“Nesses seios brancos que as minhas mãos ubiquitárias acariciam, é a civilização e a dignidade brancas que faço minhas”
(Fanon, 1952:95)
179
(5) Jean Veneuse est un névrosé et sa couleur n´est qu´une tentative d´explication d´une
structure psychique. N´eût-elle pas existé, cette différence objective, qu´il l´êut créée de
toutes pièces.
Jean Veneuse est un de ces intellecltuels qui veulent se placer uniquement sur le plan
de l´idée. Incapable de réalisar le contact concret avec son semblable.[...]
Et nous dissons que Jean Veneuse ne représente pas une expérience des rapports
noir-blanc, mais une certaine façon por un névrosé, accidentellement noir, de se
comporter. (Fanon, 1952:63-4, grifos meus)
95
Não deixa de ser curiosa a posição de Fanon pois, embora ele ponha em destaque a
suposta neurose de Veneuse, e diga que ela poderia ser originada por qualquer outro
elemento que não a cor de sua pele; ele não considera importante o fato de que o dado
concreto neste caso seja a cor da pele. Além disso, percebem-se nesse trecho de Fanon,
ecos da leitura que Goehte fizera do Hamlet – como o intelectual incapacitado para a ação
–, mais que os ecos da leitura de Freud – de um jovem atônito diante da descoberta da
sexualidade –. E da duplicação da leitura de Shakespeare que sugeri aqui, nota-se a singular
posição de Fanon: uma tensa e restrita adesão à psicanálise. Mas reitero que é este o
momento do livro em que Fanon se mostra mais freudiano, quando admite que o conflito
racial recobre uma neurose de outra natureza; muito embora, ao momento de dar a causa de
tal neurose, desvie-se do sexual e lance mão de dizer que o conflito de Veneuse é de ordem
intelectual.
Outro traço marcante é o fato de que nesse capítulo 3 – “L´homme de couleur et la
Blanche” – no qual as atenções recaem sobre o negro, Fanon tenha escolhido uma obra não-
exemplar de tal tipo de relação. Procedimento oposto ao qual ele lançara mão no capítulo
anterior – La femme de couleur et le Blanc – quando escolheu dois livros que, segundo ele,
algo tinham de exemplares, embora no final das contas acabe abandonando tal posição: Je
suis Martiniquaise, de Mayotte Capécia, e Nini, La Mulâtresse du Sénégal, de Abdoulaye
Sadji . Assim, a tese de Fanon, o negro e a negra querem possuir sexualmente a branca e o
branco para tornarem-se eles mesmos brancos, parece ter soçobrado no capítulo dedicado
aos homens negros (acerca dos quais, não nos esqueçamos, está dirigida a pergunta que
abre o livro). A exemplaridade parece ter não ter cabido na ordem do desejo: algo falhou ao
95
“Jean Veneuse é um neurótico e sua cor não é senão uma tentativa de explicação de uma estrutura psíquica. Se não
tivesse existido esta diferença objectiva, ele tê-la-ia completamente criado.
“Jean Veneuse é um destes intelectuais que querem colocar-se ùnicamente no plano da ideia. Incapaz de realizar o
contacto concreto com o seu semelhante. [...]
“E afirmamos que Jean Veneuse não representa uma experiência das relações negro-branco, mas uma certa maneira de um
neurótico, acidentalmente preto, se comportar.” (Fanon, 1952:110-111)
180
momento de dar-lhe uma resposta cabal. E a piada que abriu o capítulo sobre o desejo do
negro ficou, como um resto, como uma fantasia não analisada e não retomada pelo autor.
Tal idealização equivaleria à síntese harmônica da dialética do senhor e do escravo,
transposta ao plano sexual.
Finalmente, em relação ao ideal que perpassa os dois capítulos, a busca de um
“amor autêntico” – a expressão é de Fanon – ao final da reflexão, quando vê malogrado sua
hipótese, o autor lança mão de um recurso minimamente radical, que seria possível chamar
de hamletiano: Trata-se da alteração radical do mundo, sua reestruturação. Vê-se aí com
clareza, como ficará claro também em outros trechos como Fanon, formado em medicina
no final dos anos quarenta inscreve-se na tendência que anos depois será criticada por
Lacan, como vimos no capítulo anterior, de uma Pastoral Analítica, com seu ideal de amor
autêntico. Uma posição que se aproxima não só daquela que organizara o Amar, verbo
intransitivo, de Mário de Andrade, como do agônico príncipe Hamlet. Mas diferentemente
do que ocorrera em ambas as obras, Fanon radicaliza, e vai em busca de nada menos que a
reestruturação do mundo. É quando a desejada síntese desloca-se uma vez mais, agora do
plano sexual interracial para o da Revolução:
(6) Il faut que ce mythe sexuel – recherche de la chair blanche – ne vienne plus, transité
par des consciences aliénées, gêner une compréhension active. [...] Nous verrons qu´une
autre solution est possible. Elle implique uns restruturaction du monde. (Fanon,
1952:66, grifos meus)
96
E ao considerar o que diz Fanon, restam ao leitor de Fanon duas posições
antagônicas a tomar: ou considerar Fanon como o mestre, detentor de um saber e uma
liderança e partir à luta social e política, que ele mesmo proporá adiante (e que ele mesmo
fará tempos depois), ou seguir interrogando-o naquilo mesmo que ele propusera: a fantasia
racial que recobre a questão sexual. O fato é que o próprio Fanon não dá um destino para as
diversas fantasias raciais que ele coloca em cena em seu livro, como mostrei no caso da
piada do negro que se regozija da abolição da escravatura enquanto possui sexualmente a
loura fogosa.
96
“É preciso que esse mito sexual – procura da carne branca –, contrabandeada por consciências alienadas, não mais
venha a perturbar uma compreensão activa. [...] Nós veremos que uma outra solução é possível. Ela implica uma
reestruturação do mundo” (Fanon, 1952:113)
181
Em termos discursivos – tomando a abordagem de Lacan no seminário L´envers de
la psychanalyse, seguir pela primeira senda equivaleria a tomar Fanon como operando no
registro daquilo que Lacan via chamar o discurso do mestre (esta é a leitura de Bulhan,
por exemplo); a segunda, como veremos ao final deste capítulo, afina-o mais ao discurso da
histérica.
Já o capítulo 6, “Le Nègre et la psychopathologie”, na parte dedicada ao que se
poderiam chamar as fantasias das mulheres brancas em relação aos negros, permite que se
teçam outras considerações. Fanon traz alguns exemplos sobre o que ele chama “la phobie
du nègre” que acometeria algumas mulheres brancas. Como suas referências são as da
psicanálise freudiana, e seu próprio estilo de relato remete a narração dos casos de
pacientes de Freud, é algo perturbador pensar – a partir da psicanálise – nos seguintes
relatos:
(7) Nous avons connu un étudiant en médecine noir qui n´osait pas faire un toucher
vaginal aux malades que venaient en consultation au service de gynécologie. Il nous
avoua un jour avoir entendu cette réflexion d´une consultante: ‘Il y a un nègre là-dedans.
S´il me touche, je le gifle. Avec eux, on ne sait jamais. Il doit avoir de grandes mains et
puis il est certainement brutal. (Fanon, 1952:130)
97
(8) Sur le plain clinique, il nous revient l´histoire de cette jeunne femme qui présentait un
délire du toucher, se lavant sans cesse les mains et les bras depuis le jour òu on lui avait
présenté un Israélite. (Fanon, 1952:130)
98
Embora ambos os exemplos venham na mesma página, separados tão somente por
um parágrafo, a brutal diferença entre ambos é notória, mas não é explorada pelo autor.
Ambos são trazidos para convencer o leitor como as neuroses não se dão – em muitos casos
– independentemente do meio social e da raça.
O leitor de Freud está acostumado ao relato dos casos de pacientes que vieram
procurá-lo ou mesmo de pacientes de colegas seus; é o que temos no segundo caso, quando
é possível supor algum sofrimento psíquico por parte da moça, ou seja, pode-se supor que
esta mulher fosse à procura de um tratamento para se curar do seu délire du toucher. Já no
relato anterior (7) não há indícios de que a mulher esteja afetada por qualquer incômodo,
97
“- Conhecemos um estudante de Medicina negro que não ousava fazer uma apalpação vaginal as doentes que vinham à
consulta do serviço de ginecologia. Confessou-nos um dia ter ouvido este comentário de uma paciente: ‘Há lá dentro um
preto. Se ele me toca esbofeteio-o. Com eles nunca se sabe. Deve ter umas grandes mãos e com certeza é um bruto.”
(Fanon, 1952:193)
98
“No plano clínico, surge-nos a história de uma rapariga que apresentava um delírio do contacto, lavando-se sem cessar,
as mãos e os braços, desde o dia em que lhe tinham apresentado um Israelita.” (Fanon, 1952:194).
182
pois para ela supõe-se que bastaria a troca por um ginecologista branco; o ginecologista
negro, de igual forma, parece aceitar a situação, pois incorpora o não examinar as pacientes
brancas a seu métier; quem se vê afetado é justamente aquele que relata o caso, o próprio
Frantz Fanon.
Começa a se revelar então o lugar que ocupa Fanon neste seu primeiro livro. A
formulação do que ocorre entre este ginecologista negro e a paciente branca não é posta
pelo autor na ordem do preconceito racial, mas da patologia, algo passível inclusive de uma
cura. E uma patologia atribuída por um terceiro, que termina por se implicar na cena e pôr-
se a interpretá-la. Fanon chega a associar a negrofobia a uma sexualidade anormal:
“L´inquiétude sexuelle est prédominante ici. Toutes les femmes negróphobes que nous
avons connues avaient une vie sexuelle anormale.” (Fanon, 1952:128)
99
. Trata-se quase de
postular uma cura do mundo.
Trazer esses relatos tem a função de mostrar como na obra, embora o negro esteja
posto na maior parte do tempo na terceira pessoa, é a singular forma de implicar-se do autor
que, afetado por situação racial e social, diagnostica o outro. Neste sentido é que se pode
afirmar que em Peau noire, masques blancs que o autor traz a visão de uma sociedade
doente, mas que quem se vê afetado por tal funcionamento social é preponderantemente o
próprio autor. É nesta chave que se pode entender a estranha mescla entre um livro de
denúncia social e racial, e uma escrita desesperada na qual o autor está se colocando em
cena a todo o momento. Daí é que se pode melhor qualificar o tênue limite entre a luta
social e a cura psíquica.
Perceba o leitor – à maneira de um contraponto – como na obra de Freud, por
exemplo, o sofrimento psíquico está do lado do paciente, não do autor, diferentemente do
que parece ocorrer aqui, quando Fanon se projeta na cena analisada para dar um
diagnóstico que não lhe foi solicitado por seus participantes. Evidentemente, em tal
fragmento, mais uma vez a clínica aparece a reboque de uma preocupação racial.
Além do mais, é importante ir notando como Fanon se move pelos ideais de uma
pastoral analítica, ao dizer que as mulheres que tem preconceito racial tem uma
“sexualidade anormal”, sem qualificar em que consistiria tal anormalidade. Há um ideal de
99
“A inquietude sexual é aqui predominante. Todas as mulheres negrófobas que conhecemos tinham uma vida sexual
anormal” (Fanon, 1952:192)
183
retidão e normalidade que perspassa a obra de Fanon independentemente das questões
raciais. Como se também as relações interraciais pudessem ser ‘normalizadas’.
Ainda no entrecruzamento entre a clínica e o que é da ordem do coletivo e do social,
é possível dar um passo a mais, e interrogar também os significantes recorrentes em Fanon.
Tomem-se alguns significantes-chave que perpassam seu primeiro livro: aliénation -
desálienation; inconscient - prise de conscience. Trata-se de termos centrais do campo de
formação e atuação de Fanon, que suscitam significações ambíguas em sua reflexão:
(a) aliénation – Joga-se com as duas acepções fortes do termo, a política e a
psíquica; alienado em Fanon pode ser o louco como pode ser o alienado
político;
(b) Inconscient – Neste termo a ambiguidade mostra-se ainda mais rica, e
expõe a grande contradição do projeto de Fanon. Pois o inconsciente é e
ao mesmo tempo não é o freudiano. Se por um lado, tentando seguir os
passos do Freud da Psicopatologia da vida cotidiana, Fanon lança-se a
observar a fala dos negros e brancos em seus diálogos, buscando os
ratés; em trechos como (2) o que se busca é uma “tomada de
consciência” que é da ordem do social.
Caberia nos perguntarmos se a realização ideal do projeto do primeiro Fanon não
coincidiria com a abolição do inconsciente. Pois em seu tenso projeto de escrita, em que a
psicanálise é desacreditada – por sua suposta insuficiência em relação ao negro – ao mesmo
tempo em que é pressuposto da reflexão – o lugar da cura fica projetado para alhures.
Onde? O lugar de estabilidade para Fanon não é o da cura psíquica, mas antes o de um
certo ideal: Se a afirmação de Fanon na crença da desalienação (op. cit, p. 8), da
conscientização (op. cit., p. 9), que são facilmente atribuíveis à sua época política; o que
dizer de seus ideais do “amor autêntico”:
(9) Il s´agit, pour nous, dans ce chapitre consacré aux rapports de la femme de couleur et
de l´Européen, de déterminer dans quelle mesure l´amour authéntique demeurera
impossible tant que ne seront pas expulsés ce sentiment de inferiorité ou cette exaltation
184
adlérienne, cette surcompensation, qui semblent être l´indicatif de la Weltanschauung
noire. (Fanon, 1952:33-34, grifos meus)
100
A importância atualmente atribuída a Fanon é antes de tudo – como já disse – a de
sua luta política e racial; entretanto, quando o leitor se aproxima de sua obra pelo viés aqui
proposto, o que salta aos olhos é de outra ordem, qual seja, como os conflitos psíquicos aos
quais a psicanálise desde Freud tem se dedicado são recobertos pela questão racial. Pois a
leitura que se pode fazer do fragmento acima não é somente aquela atualmente tautológica
– há preconceito racial – e sim a noção de que, ao se cumprir um ideal político-racial (o fim
do sentimento de inferioridade do negro) poder-se-ia cumprir um ideal outro: a realização
do “amor autêntico”. Sabe-se que há no contexto de Fanon o sentimento de inferioridade e
a impossibilidade do ideal do amor autêntico; a inovação de Fanon é atrelar o fim de um
como pré-condição para a realização do outro. Dito de outra maneira, no to be or not to be
de Fanon, que nunca se fecha dialeticamente, como convém ao Hamlet, alterna-se entre
negar (Cf. capítulo 3) e afirmar (capítulo 6) o conflito racial como causa do sofrimento
psíquico. Nas palavras de Bhabha:
[Em Fanon] As formas de alienação e agressão psíquica e social – a loucura, o ódio a si
mesmo, a traição, a violência – nunca podem ser reconhecidas como condições definidas
e constitutivas da autoridade civil, ou como os efeitos ambivalentes do próprio instinto
social. Elas são sempre explicadas como presenças estrangeiras, oclusões do
progresso histórico, e forma extrema de percepção equivocada do Homem. (Bhabha,
1998:74, grifos meus)
A psicanálise branca – entenda-se freudiana – é desqualificada por não ter dado
conta das questões raciais; entretanto, a verdadeira cura social, que é também psicanalítica,
e que Fanon propõe, termina por deslocar esta nova psicanálise como a portadora da
possibilidade de realizar a síntese ideal, que implica finalmente na assunção da
normalidade, do reconhecimento mútuo e da igualdade.
A utopia psicanalítica de Fanon, quando projetada no elemento racial, fica ainda
mais clara, como se vê nos trechos a seguir:
(10) Un efant normal ayant grandi dans une famille normale sera un homme normal. Il
n´y a pas de disproportion entre la vie familiale et la vie nationale. [...] Un enfant noir
s´anormalisera au moindre contact avec le monde blanc. (Fanon, 1952:116-117)
101
100
“Neste capítulo consagrado às relações da mulher de cor e do Europeu, tenta-se determinar em que medida o amor
autêntico continuará a ser impossível enquanto não forem expulsos o sentimento de inferioridade, ou a exaltação
adleriana, a super-compensação, que parecem ser o indicativo da Weltnaschauung negra.” (Fanon, 1952:74)
185
Há uma postulada normalidade no mundo sem raças, que abole a noção de
sofrimento. Na nota de rodapé a este trecho, o autor esclarece sua noção de normalidade a
partir do livro de Canguilhem, Le normal et le pathologique, e define o anormal da seguinte
forma: “Ajoutons seulement que, dans le domaine mental, est anormal celui qui demande,
appele, implore.” (Fanon, 1952:116, nota 2)
102
.
Toda a dinâmica do Édipo, base da psicanálise freudiana, é contraditada, como se a
dinâmica do desejo não fizesse parte das crianças que ele considera normais ou, numa
palavra, como se ele identificasse normalidade à completude. É uma visão que tem por
consequência a negação do desejo. Aliás, é esta mesmo a visão de Fanon, que afirma com
todas as letras que a pacificação é o estado primordial do ser humano: “On oubli trop
souvent que la névrose n´est pas constitutive de la réalite humaine.” (Fanon, 1953:123)
103
.
Tal afirmação é parte de um fragmento de insurgência contra Freud e Adler, no qual
o autor quer dar conta da ausência dos negros na reflexão de ambos psicanalistas. Mais do
que ir pela via que, anos depois, Edward Said (2003) seguiria para dizer que o mundo de
Freud é um mundo anterior ao da descolonização, no qual os negros não faziam parte
104
;
Fanon opta pelo elogio da normalidade do negro, ao afirmar que os negros de sua terra,
inclusive, não tem complexo de Édipo. Gibson (2003), em sua aproximão entre Fanon e a
psicanálise, curiosamente, chancela acriticamente tal posição:
Neither neurosis nor the Oedipus complex are basic elements of human reality, but
Fanon´s departure from Freud and Lacan is not only based on cultural relativism. His
phenomenological view of culture, as it reflects lived experience, underwrites his critique
of Oedipus complex. (Gibson, 2003:45, grifos meus)
É preciso ressaltar que o trecho em negrito traz uma posição de Fanon, que não
condiz com as formulações de Freud, para quem o complexo de Édipo é parte do processo
101
“Uma criança normal que cresceu numa família normal será um homem normal. Não há desproporção entre a vida
familiar e a vida nacional. [...] Uma criança negra normal, que cresceu no seio de uma família normal, anormalizar-se-á ao
menos contacto com o mundo branco.” (Fanon, 1952:178-9)
102
“Acrescentemos apenas que, no domínio mental, é anormal aquele que pede, chama, implora” (Fanon, 1952:238, nota
2)
103
“Esquece-se demasiadas vezes que a neurose não é constitutiva da realidade humana.” (Fanon, 1952:186)
104
“em todo caso, acredito que é correto dizer que Freud possuía uma visão eurocêntrica da cultura – e por que não
haveria de sê-lo? O seu mundo não tinha sido tocado pela globalização, nem pelas viagens rápidas, ou a descolonização,
que tornariam aquelas culturas, antes desconhecidas ou reprimidas, disponíveis para a Europa metropolitana.” (Said,
2003:48)
186
de constituição psíquica de qualquer sujeito, não uma doença. Quanto ao termo normal,
embora Freud ainda o use, e pense na cura da neurose; a partir de Lacan tem-se neurose,
psicose e perversão como diferentes estruturações psíquicas, sendo abolido o termo normal.
A aceitação tácita de Gibson parece mostrar uma tendência (na qual o próprio Gibson
raramente incorre) de se tomar o texto de Fanon como texto de autoridade, ignorando as
divergências fundadoras de sua reflexão, como se elas fossem de menor importância. Faço
esta ressalva pois aqui se tem uma posição de Fanon, não da psicanálise, e a leitura singular
do martinicano precisa ser sublinhada, porque é marca forte de sua conturbada relação com
o pensamento psicanalítico.
Assim, Fanon mostra-se como opositor radical do complexo de Édipo. Vejamos o
trecho completo:
(11) [...] ni Freud, ni Adler, ni même le cosmique Jung n´ont pensé aux Noirs, dans le
cours de lers recherches. En quoi ils avaient bien raison. On oublie trop souvent que la
névrose n´est pas constitutive de la réalité humaine. Qu´on le veuille ou non, complexe
d´Œdipe n´est pas près de voir le jour chez les nègres. On pourrait nous objecter, avec
Malinowski, que le régime matriarcal est seul responsable de cette absence. Mais, outres
que nous pourrions nous demander si les ethnologues, imus de complexes de leur
civilisation, ne se sont pas efforcées d´en retrouver la copie chez les peuples par eux
étudiés, il nous serait relativement facile de montrer qu´aux Antilles françaises, 97%
des familles sont incapables de donner naissance à une névrose œdipienne. Incapacité
dont nous nous félicitons hautement. (Fanon, 1953:123-124, grifos meus)
105
A nos pautarmos pelo fragmento acima, o problema do negro é o branco pois, de
acordo com a compreensão de Fanon, o negro propriamente não apresenta qualquer sorte
de sofrimento psíquico, habita antes uma idade de ouro, na qual realiza os ideais da pastoral
analítica.
Os conflitos do sujeito são mais uma vez encobertos pelo conflito racial. E persiste a
idealização de que, resolvidos os conflitos raciais, os sujeitos se tornariam “normais”. É
preciso admitir que, mesmo sob uma superfície textual agônica, Fanon é muito mais
otimista que o Freud de Mal estar na cultura, por exemplo, para quem não havia sequer a
saída da utopia racial.
105
“[...] nem Freud, nem Adler, nem mesmo o cósmico Jung pensaram nos Negros durante as suas investigações. No que
tinham toda a razão. Esquece-se demasiadas vezes que a neurose não é constitutiva da realidade humana. Quer se queira
ou não, o complexo de Édipo não está ainda perto de nascer entre os pretos. Poderiam objectar-nos, com Malinowski, que
o regime matriarcal é o único responsável por essa ausência. Mas, além de nos podermos perguntar se os etnólogos,
imbuídos de complexos da sua civilização, não se esforçarem por lhes encontrar uma cópia nos povos que estudavam, ser-
nos-ia relativamente fácil mostrar que nas Antilhas francesas 97% das famílias são incapazes de dar origem a uma neurose
edipiana. Incapacidade pela qual nos felicitamos orgulhosamente” (Fanon, 1952:186)
187
Fazer tal leitura de Fanon tem o objetivo não de dizer dele que foi um mau leitor de
psicanálise, e sim de sublinhar como se construíram algumas das bases sobre as quais ele
viria a sustentar a luta pelo que ele veio a chamar a desalienação racial. Trata-se de uma
base tensa, cheia de contradições, calcada na idealização do negro e na perspectiva da
síntese à dialética hegeliana.
2.1.4. Deslocamentos de uma reflexão: clínica e violência em Fanon (1961)
A multiplicidade de perspectivas que apareciam no primeiro livro de Fanon parece
espraiar-se nos campos de atuação de sua vida. Assim, aquilo que aparecia sobreposto em
sua reflexão inicial vai encontrando lugar nas escolhas do autor: ele se traslada já em 1953
para a Argélia, onde vai ocupar o posto de Chefe de Departamento do Hospital Psiquiátrico
Bida-Joinville por três anos. Após este período, abandona o posto e passa a fazer parte da
FLN – Frente de Libertação Nacional – pela independência da Argélia; nesse período,
colabora com artigos para a revista dirigida por Jean-Paul Sartre, Les temps modernes, para
o periódico Présence Africaine e para o jornal da FLN, El Moudjahid. Tais artigos serão
recolhidos postumamente em Pour la révolution africaine, em 1964.
Assim, a atuação política, a urgência da escrita jornalística e o trabalho como
psiquiatra – que se entrecruzavam em Peau noire... – encontrarão diferentes destinos ao
longo da década final de Fanon. O que interessará analisar aqui são os desdobramentos de
sua reflexão do campo da psicanálise. Para tanto, proponho nos debruçarmos sobre seu
último livro, escrito ao longo de dez meses, movido agora pela urgência da leucemia
diagnosticada que estreitava seus horizontes vitais. Les damnés de la terre é publicado em
1961, antecedido por um contundente prefácio de Jean-Paul Sartre. Ler Les damnés de la
terre é perceber uma série de deslocamentos na obra do autor. Se por um lado mantém-se a
relação de espelhismo entre os antagonistas, agora eles são outros: Fanon coloca em cena
não mais o Branco e o Negro, cuja presença era motivada pelas reflexões do jovem
estudante antilhano trasladado à França; como agora se trata da descolonização da Argélia
propriamente, a tensão será entre o colonizador e o colonizado. O querer tornar-se outro,
entretanto, mantém-se como marca da reflexão de Fanon: tal como antes víamos a vontade
188
do Negro em tornar-se Branco, agora temos: “Le colonisé est un persécuté qui rêve en
permanence de devenir persécuteur
106
.” (Fanon, 1961:54)
107
. Para Fanon, as duas posições
são intercambiáveis, a partir de sua leitura da dialética hegeliana.
O autor, que anos antes se mostrava disposto a “une restruturaction du monde”
(Fanon, 1952:66) como forma de resolver o conflito entre o Negro e o Branco, vê-se agora
não mais somente como quem analisa o quadro social, mas como um agente da
reestruturação. Fanon, já tendo pego em armas, confronta-se com o cenário vivido da
reestruturação do mundo: “La décolonisation, que se propose de changer l´ordre du monde,
est, on le voit, un programme de désordre absolu.” (Fanon, 1961:39)
108
. Tal desordem,
prossegue Fanon, deve-se ao fato de esta mudança fazer parte de um processo histórico, não
imediatamente apreensível. Portanto, esse novo livro, que se constitui como o day after da
proposta total de mudança, se imporá tarefa de refletir sobre os acontecimentos, o que
termina por conferir-lhe um caráter bem menos imperativo que seu primeiro trabalho. Isso
não o torna menos utópico, pois Fanon está todo o tempo a sonhar com a derrocada do
capitalismo, a destruição da burguesia etc.
O que interessa principalmente sublinhar é como a psicanálise deixa de ser substrato
da reflexão – como ocorria em Peau Noire – para ganhar outro estatuto. Nesse momento
da obra de Fanon, tão somente alguns conceitos são evocados bastante espaçadamente, e
poder-se-ia dizer – para nos mantermos no campo da terminologia de Fanon –
epidermizados, sem as frequentes citações de autores do livro de estreia. Entretanto, surgem
sempre mesclados à reflexão marxista, evocando a luta de classes, como quando fala do
“monologue narcisiste [de la] bourgeoisie colonialiste” (Fanon, 1961:49), ou como no
trecho a seguir, em que fala dos supostos complexos dos povos colonizados, ecoando o
ataque à posição ocupada por Mannoni no primeiro livro:
(12) La haine est désamorcée par ces trouvailles psychologiques. Les technologues et les
sociologues éclairent les manouvres colonialistes et multiplient les études sur les
106
Parece haver uma concordância por parte da crítica de que Fanon a relação Negro-Branco dá lugar à Colonizador-
Colonizado, num processo de simples troca: “In The Wretched of the Earth, Fanon´s (1968) masterpiece of
decolonization [...] Colonialism also reveals itself simply as another stage of slavery; the colonizer-colonized relationship
is thus a derivative of the master-slave relationship. Analysis of one reveals the essential of other. Concern with general
master-slave relations in Fanon´s first book give way to an analysis of colonizer-colonized relations in his later
works without a shift in substance.” (Bulhan, 1985:116, grifos meus)
107
“O colonizado é um perseguido que sonha permanentemente tornar-se um perseguidor.” (Fanon, 1961:70)
108
“A descolonização, que se propõe a mudar a ordem do mundo, é, como se vê, um programa de desordem absoluta.”
(Fanon, 1961:52)
189
‘complexes’: complexe de frustration, complexe belliqueux, complexe de colonisabilité.
On promeut l´indigéne, on essaie de le désarmer par la psychologie et, naturellement,
quelques pièces de monaie. (Fanon, 1961:134-135)
109
Percebe-se o tom de crítica a um uso considerado nefasto por Fanon da reflexão
psicológica, aparelhada para o controle social
110
. Em Peau noire..., a crítica recaía sobre as
supostas insuficiências do pensamento psicanalítico, agora já não se trata mais de uma
discussão teórica. Fanon volta-se para a realidade social, e a toma por objeto. Entretanto,
ainda assim, persiste no plano da reflexão do autor alguma elaboração advinda da
psicanálise, como no caso em que pensa sobre a libido tomada como uma questão grupal
entre os subdesenvolvidos. Note-se como também aí aparece um conceito da reflexão
marxista, o de superestrutura, e como a reflexão psicanalítica aparece agora mesclada não a
uma questão racial, e sim sociopolítica:
(13) Cette superestructure magique qui imprègne la société indigène remplit, dans le
dynamisme de l´économie libidinale, des fonctions précises. L´une des caractéristiques,
en effect, des sociétés sous-développées c´est que la libido est d´abbord une affaire de
groupe, de famille. On connaît ce trait, bien décrit par les ethnologues, de sociétés où
l´homme qui rêve qu´il a des relations sexuelles avec une autre femme que la sienne doit
avouer publiquement ce rêve et payer l´impôt en nature ou en journées de travail au mari
ou à la famille lésée. Ce qui prouve, en passant, que les sociétés dites antéhistoriques
attachent une grande importance à l´inconscient. (Fanon, 1961:56-57, grifos meus)
111
Não deixa de causar certa estranheza esse fragmento de Fanon. Como veremos no
capítulo seguinte, as características que ele atribui às sociedades subdesenvolvidas, com a
libido tomada como elemento grupal, é bem semelhante ao funcionamento das sociedades
com regimes totalitários, nas quais as ideias, os sonhos e os pensamentos proibidos são
igualmente coibidos. E o fato de atribuir a libido coletiva ao grupo subdesenvolvido leva o
leitor a se postular sobre de que natureza seria a libido numa sociedade desenvolvida, nos
termos que postula Fanon. Nos recolocarmos esta pergunta no contexto da sociedade
109
“O ódio é desarmado por esses “achados” psicológicos. Os tecnólogos e sociólogos esclarecem as manobras
colonialistas e multiplicam os estudos sobre os “complexos”: complexos de frustração, complexo belicoso, complexo de
colonizabilidade. Promove-se o indígena, tenta-se desarma-lo pela psicologia e, naturalmente, algumas moedas.” (Fanon,
1961:165)
110
O uso nefasto deste aparelhamento será analisado, no caso cubano, no próximo capítulo.
111
“Essa superestrutura mágica, que impregna a sociedade indígena, exerce, no dinamismo da economia libidinal, funções
precisas. Uma das características das sociedades subdesenvolvidas é que a libido é, primeiro, uma questão de grupo, de
família. Conhecemos essa característica, bem descrita pelos etnólogos, em sociedades em que o homem que sonha que
tem relações sexuais com um mulher que não é sua deve confessar publicamente esse sonho e pagar o imposto em
dinheiro ou em dias de trabalho ao marido ou à família lesados. Incidentalmente, isso prova que as sociedades ditas ante-
históricas [sic] atribuem grande importância ao inconsciente.” (Fanon, 1961:72)
190
capitalista em que hoje se vive visa retomar a discussão sobre o funcionamento psíquico da
utopia política de Frantz Fanon.
2.1.5. Fanon: guerrilheiro e psiquiatra
Entretanto, além da reflexão amparada na psicanálise, há em Les damnés de la terre
um novo elemento: uma abordagem de Fanon que é própria do psiquiatra em serviço, na
qual a psicanálise e a psiquiatria surgem não na condição de uma teoria, mas como clínica.
Tal espaço limita-se ao capítulo final do livro, mas é certamente um dado que obriga o
leitor a repensar a relação do autor com a psicanálise.
Mais do que trazer esclarecimentos, o capítulo final de Les damnés de la terre
projeta novas sombras na intrincada relação do autor com o saber psicanalítico e com a
clínica. Fanon relata uma série de casos de pacientes sob seus cuidados. O que sabemos é
que os casos relatados ocorreram entre 1954 e 1959, e cobrem o período em que esteve à
frente do Front de Libération Nationale argelino. O período, portanto, é posterior à escrita
de Peau noire, masques blancs.
É a primeira vez que há na obra de Fanon uma descrição de pacientes reais, que
chegaram a ele em sofrimento psíquico. Portanto não se trata mais dos colegas de
universidade de Fanon, das mulheres que ele observara ou conhecera ao longo da vida ou
de personagens literários – como ocorria em Peau noire... – quando tais figuras eram
alçadas pelo autor à condição de pacientes. Os pacientes irreais ou idealizados agora foram
substituídos por pessoas que tomam parte no conflito e, além de tomar lugar ativo nas
guerras de independência, frequentam o divã de Fanon. Ele, por sua vez, desdobra-se entre
os dois lugares. Entretanto, dizer que ele assume a clínica em sua escrita não implica – de
modo algum – em dizer que a questão está resolvida.
Chama a atenção o modo peculiar como Fanon introduz os casos que passará a
relatar em tal capítulo final; supondo que seu leitor poderá achar algo inapropriada a sua
inclusão em um livro até então se dedicara, em sua quase total extensão, à questão colonial
em suas implicações sociológicas e revolucionárias, diz ele:
191
(14) Nous abordons ici le problème des troubles mentaux nés de guerre de libération
nationale que mène le peuple algérien.
On trouvera peut-être inopportunes et singulièrement déplacées dans un tel livre
ces notes de psychiatrie. Nous n´y pouvons strictement rien.
“Il n´a pas dépendu de nous que dans cette guerre des phénomènes psychiatriques, des
troubles du comportement et de la pensée aient pris d l´importance chez les acteurs de la
‘pacification’ ou au sein de la population ‘pacifiée’. La verité est que la colonisation,
dans son essence, se présentait déjà comme une grande pourvoyeuse des hôpitaux
psychiatriques. (Fanon, 1961:239, grifos meus)
112
Nota-se que a justificativa de Fanon recai não sobre a economia da obra, ou da
pertinência dos relatos para a obra que ele está produzindo, e sim sobre a realidade argelina;
de modo a fazer-nos pensar que seu compromisso é primordialmente com o entorno
imediato da Argélia, com a urgência do momento tal como ele a apreende ou mesmo com a
realidade colonial de maneira mais ampla, mais do que com a proposta teórica do livro.
Trata-se portanto, de uma afirmativa que vem do guerrilheiro, mais do que do psicanalista.
Entretanto, ele parece postular que há espaço para a psiquiatria na guerra.
Além disso, quando ele se refere ao seu próprio livro – “dans un tel livre” – não o
qualifica; não se tem clareza do modo como Fanon concebera a própria obra. E esta é uma
característica frequente dos escritos de Fanon, uma certa dificuldade em seu enquadramento
– como veremos adiante no caso de Gibson (2003). Recentemente, Alice Cherki (2002), ao
prefaciar uma nova edição de Les damnés, refere-se à obra com uma quantidade
considerável de negativas: “Ni traité d´économie, ni essai de sociologie voire de politique,
cet ouvrage est un appel et même un cri d´alarme sur l´état et devenir des pays colonisés”
(Cherki, 2002:9, grifos meus). Os escritos de Fanon seguem clamando um estatuto que,
outra vez, leva a um seu leitor a defini-lo por negativas ao invés de tomá-lo cabalmente.
O fato é que há um elemento incômodo na obra de Fanon, que não deixa de causar
constrangimento: sua apologia da violência, sua prática da violência. Ela é o elemento
dissonante ao momento de enquadrar Fanon como o mestre: debaixo de que tapete
esconder, em nosso século politicamente correto, o lado violento de Fanon? E,
acrescentaria a pergunta: como fazer compor violência e clínica? Aquele que tem no ato de
matar – ainda que por questões políticas – parte de seu métier tem condições de clinicar?
112
“Abordaremos aqui o problema dos distúrbios mentais originados na guerra de libertação nacional travada pelo povo
argelino.
“Talvez se julguem inoportunas e singularmente deslocadas neste livro estas notas de psiquiatria. Mas nada podemos
fazer.
“Não depende de nós que, nessa guerra, fenômenos psiquiátricos, distúrbios de comportamento e de pensamento tenham
tomado importância entre os atores da ‘pacificação’ ou no seio da população ‘pacificada’. A verdade é que a colonização,
na sua essência, já se apresentava como uma grande provedora dos hospitais psiquiátricos” (Fanon, 1961:287)
192
Discutirei primeiro o aspecto da violência em FAnon, para logo retomar a pergunta quanto
à clínica.
sobre a violência
Haver um incômodo quanto ao modo de tomar um autor ao mesmo tempo
fundamental e desagradável como Fanon em nossa época politicamente correta é algo que
se nota ao ter entre as mãos a reedição de 2002 de Les damnés de l aterre. O volume conta
não só com o prefácio de Sartre, da primeira edição, mas com outro, já citado, de Alice
Cherki que, quarenta e um anos depois, tenta matizá-lo (ou descafeiná-lo, para usar a feliz
expressão de Žižek). É importante notar que o prefácio de Cherki abre a edição e antecipa o
de Sartre, como que indicando como ele deve ser lido. Figura ainda, na mesma edição, um
posfácio de Mohammed Harbi. Coisa incomum, um livro apresentado por três autores,
ainda mais em uma edição de bolso.
Cherki, passados quarenta anos, faz um balanço da recepção de Fanon, e apresenta
um receoso elogio ao prefácio de Sartre, mostrando suas supostas inconsistências e seu
efeito nefasto sobre a obra do antilhano:
La belle préface de Sartre à ce livre, que Fanon avai souhaitée, fut, semble-t-il, davantage
lue au cours des années que le corps du texte. Et pourtant, d´une certe façon, elle
détourne les préocupations et le ton de Fanon. Elle s´adresse essentiellement aux
Européens, introduisant une premiére discordance entre ce texte et celui qu´il présente.
[...] Et, surtout, cette préface radicalise l´analyse de Fanon sur la violence. En effet,
Sartre justifie la violence alors que Fanon l´analyse, ne la promeut pas comme une fin en
soi mais y voit un passagem obligé. (Cherki, 2002:11, grifos meus)
113
A afirmação de Cherki coloca em questão um ponto importante: quem seria o
interlocutor postulado pelo livro de Fanon? É fato que o prefácio de Sartre é dirigido aos
europeus, mas, ao mesmo tempo, o livro de Fanon é editado pelo francês François Maspero,
com o prefácio do francês Jean Paul-Sartre. Por mais que sejam ambos – Sartre e Maspero
– intelectuais que se postulam como engajados, sua interlocução é com a Europa. Além do
113
“O belo prefácio de Sartre a esse livro, que Fanon desejara, parece que foi mais lido, ao longo dos anos, do que o corpo
do texto. Entretanto, de certo modo, esse prefácio desvia as preocupações e o tom de Fanon. Dirige-se essencialmente aos
europeus, introduzindo uma primeira discordância entre esse texto e aquele que ele apresenta. [...] E, principalmente, esse
prefácio radicaliza a análise de Fanon sobre a violência. Na verdade, Sartre justifica a violência enquanto Fanon a analisa,
não a promove como um fim em si, mas vê nela uma passagem obrigatória.” (Cherki, 2001:15)
193
que, como se pode notar já pela capa da primeira edição do livro (cf. fig. 4), há uma alusão
em grandes letras para o prefácio de Jean Paul-Sartre.
Além disso, é preciso que se diga, o prefácio atendia ao pedido do próprio Fanon.
Quisesse Fanon um prefácio que se dirigisse aos negros africanos, dificilmente teria editado
seu livro na França, e poderia ter pedido uma apresentação a Aimé Césaire, não a Sartre.
Entretanto, ainda assim, em sua leitura, Cherki quer buscar no silêncio de Fanon diante do
prefácio de Sartre um gesto de repúdio ao texto encomendado:
Fanon, en lisant le préface de Sartre, ne fit aucun commentaire; il resta même,
contrarement à son habitude, extrêmement silencieux. Néanmoins, il écrivit à François
Maspero qu´il espérait avoir, le moment venu, la possibilité de s´expliquer. (Cherki,
2002:11)
114
O argumento de Cherki parece ter bases frágeis, pois se contradiz com a versão
corrente de uma certa proximidade entre Fanon e Sartre. Se Fanon não estivesse satisfeito,
não poderia ele ter simplesmente falado com o filósofo? E houve, por outro lado, a
anuência de Maspero, que o publicou, e que, assim como Fanon, participou das lutas na
Argélia, e seguiu editando Fanon postumamente. (A primeira edição de Pour la révolution
africaine é da Maspero).
Além do que o silêncio de um homem à beira da morte – pois no fim de 1961 era
esta a condição de Fanon – ao ver impressa a apresentação de seu último livro certamente
não tem nada de óbvio, e dificilmente parece ser redutível a um juízo crítico como o da
nova prefaciadora e biógrafa.
114
‘Fanon, ao ler o prefácio de Sartre, não fez nenhum comentário; ao contrário do costume, ficou até extremamente
silencioso. E escreveu a François Maspero que esperava ter, no momento adequado, a possibilidade de explicar-se.”
(Cherki, 2001:16)
194
Fig. 4. Vê-se na imagem o destaque conferido ao prefácio de Jean Paul-Sartre na edição de François
Maspero.
195
De toda forma, em livro publicado pouco tempo após o prefácio de Cherki, Gibson
– como já disse – insiste na mesma abordagem, quando na primeira página de seu estudo
diz que Fanon “is not a simply glorifier of violence” (Gibson, 2003:1). E atribui esta
imagem ao agora nefasto prefácio de Sartre:
Despite the characterization of The Wretched of the Earth (Les damnés de la terre) as
a handbook of violence, underlined by Jean-Paul Sartre´s influential introduction,
Fanon is not a simply glorifier of violence. While he recognized the psychological and
symbolic importance of the anticolonial violence in the context of the exponential
imbalance of colonial violence, he indicated that violence was also a problematic.
(Gibson, 2003:1-2, grifos meus)
É preciso notar, de fato, que o lugar a partir do qual fala Sartre não é, e nem poderia
ser, o mesmo do qual fala Fanon. Sartre mostra-se como o filósofo europeu falando aos
europeus, com certa dose de cinismo e auto-crítica; e ao mesmo tempo apresenta Fanon
primeiro como Un Africain (Sartre, 1961:18), e logo como um ex indigène de ‘langue
française’ que lança um brado marxista aos seus iguais: “Indigènes de tous le pays sous-
développés, unissez vous!” (Sartre, 1961:19). Ao lado da imagem do revolucionário, Sartre
confere a Fanon um estatuto de racionalidade, em oposição à irracionalidade francesa:
Il faut faire une réserve, pourtant. Quand un Français, par exemple, dit à d´autres
Français: ‘Nous sommes foutus!’ – ce qui, à ma connaissance, se produit à peu pr`s tous
le jours depuis 1930 –, c´est un discours passionnel, brûlant de rage et d´amour, l´orateur
se met dans le bain avec tous ses compatriotes. [...] Quand Fanon, au contraire, dit de
l´Europe qu´elle court à sa perte, loin de pousser un cri d´alarme, il propose un
diagnostic. Ce médecin ne prétend ni la condamner sans recours – on a vu des
miracles – ni lui donner les moyens de guerrir: il constate qu´elle agonise. (Sartre,
1961:19, grifos meus)
115
Assim, Sartre constroi a imagem de uma Europa decadente, e de um Fanon que é, a
um só tempo, revolucionário “africano”, marxista, racional e que diagnostica a morte
iminente da Europa. Mas que, ao mesmo tempo, não se preocupa com os europeus:
Qu´est-ce que ça peut lui faire, à Fanon, que vous lisiez ou non son ouvrage, c´est à ses
frères qu´il dénonce nos vielles malices, sûr que nous n´en avons pas de rechange. C´est à
115
“Quando um francês, por exemplo, diz a outros franceses: ‘Estamos perdidos!’ – o que, que eu saiba, acontece mais ou
menos todos os dias depois de 1930 – é um discurso passional, ardente de raiva e de amor, o orador se inclui, com todos
os seus compatriotas. [...] Quando Fanon, ao contrário, diz que a Europa corre para o precipício, longe de dar um
grito de alarme, propõe um diagnóstico. Esse médico não quer nem condená-la sem apelação – milagres acontecem
– nem dar-lhe os meios de curar-se: constata que ela agoniza.” (Sartre, 1961:26, grifos meus)
196
eux qu´il dit: l´Europe a mis les patter sur nos continents, il faut les taillader jusqu´à ce
qu´elle les retire; le moment nous favorise (Sartre, 1961:21)
116
Talvez um dos principais gestos que Sartre logra promover é deslocar a oposição de
Fanon, primeiro entre negros-brancos – do primeiro livro – e logo colonizador-colonizado
– de Les damnés... – para europeus-africanos, tirando qualquer ambiguidade da discussão
proposta pelo martinicano, e escancarando o conflito. Sartre dá nome aos atores:
En Algérie, en Angola, on massacre à veu les Européens. C´est le moment du boomerang,
le troisième temps de la violence: elle revient sur nous, elle nous frappe et, pas plus que
les autres fois, nous ne comprenons que c´est le nôtre. (Sartre, 1961:28)
117
Sartre é fiel aos acontecimentos. E Fanon, como já disse, lutava junto à FNL, na
Argélia. Bastante carregada em tintas, a apresentação de Sartre mostra-se adequada ao livro
de Fanon. Mas, ao mesmo tempo, o prefácio o torna um personagem da história europeia,
uma sorte de messias anti-revolucionário europeu, mais do que um intelectual. O capítulo
final de Les damnés, todo ele dedicado à clínica, e mesmo o poder analítico de Fanon, em
certas passagens, mostram que ele está para além de um revolucionário marxista envolto
em uma aura luminosa. Mas Fanon destaca com todas as letras o papel da violência, já no
primeiro capítulo, que tem por nome De la violence, Fanon exorta:
(15) Le colonisé qui décide de réaliser ce programme, d´en faire le moteur, est préparé
de tout temps à la violence. Dès sa naissance il est clair pour lui que ce mond rétréci,
semé d´interdictions, ne peut être remis en question que par la violence absolue.
(Fanon, 1961:41, grifos meus)
118
A violência é programática em Fanon, não se esqueça que ele aderiu à luta armada
pela independência da Argélia, e que Sartre é o filósofo, não o contrário. Les damnés de la
terre é o livro do homem de ação, e é pela violência, e não pela psiquiatria, que ele se põe
em marcha para “mudar a ordem do mundo”.
116
“A Fanon, pouco importa que vocês leiam ou não a sua obra, é aos seus irmãos que ele denuncia as nossas velhas
astúcias, certo de que elas se esgotaram. É aos seus irmãos que ele diz: a Europa botou as patas sobre nossos continentes;
é preciso feri-las até que ela as retire; o momento nos favorece.” (Sartre, 1961:29)
117
“Na Argélia, em Angola, massacram-se abertamente os europeus. É a hora do bumerangue, o terceiro tempo da
violência: ela volta par anós, ela nos golpeia, e, como das outras vezes, não compreendemos que ela é nossa.” (Sartre,
1961:37)
118
“O colonizado que decide realizar esse programa, que decide fazer-se o seu motor, está preparado desde sempre para a
violência. Desde o seu nascimento, está claro para ele que esse mundo encolhido, semeado de interdições, só pode ser
questionado pela violência absoluta.” (Fanon, 1961:53)
197
E é justamente esta a imagem de Fanon que atualmente parece pouco fora de moda.
Não por outro motivo foi incluído outro prefácio, o de Cherki, a comentar o de Sartre. Tal
movimento não escapou ao filósofo esloveno Slavoj Žižek, que observa que é no aspecto da
violência que reside muito do interesse da obra de Fanon, e que, os atuais comentadores
estariam perdendo o elemento transgressor e sua verdadeira contribuição:
Franz Fanon has suffered a similar fate. He was very clear about the role of violence,
and he certainly wasn’t speaking of some "transcendental" violence. He meant
killing, he meant terror. But this dimension of their work is not present in contemporary
commentators. We have a softened, "decaffeinated" Fanon [...] (Žižek, 2007, grifos
meus)
A ponderação de Žižek faz ao leitor se lembrar que o homem que escreveu Les
damnés de la terre fazia parte da luta armada pela libertação da Argélia, e portanto a
violência era parte de seu métier, tal como o é de sua reflexão.
da clínica
Assim, a pergunta sobre que papel que teriam os relatos dos casos psiquiátricos em
tal livro de Fanon, no qual a reflexão sobre a violência ganha o primeiro plano, mostra-se
ainda mais inquietante. Pois no mesmo momento em que se dedica à luta armada, Fanon
igualmente dedica-se a atender pacientes que lhe são encaminhados para atendimento
psiquiátrico no hospital, ou que o vêm procurar em sua clínica particular. Aquilo que se
mostrava ou como equilíbrio tenso ou como contradição em Peau noire, masques blancs
a relação entre a discussão racial e a psicanálise – reapresenta-se no cotidiano de Fanon
como duas práticas diversas: de um lado, a luta armada, e do outro, a prática clínica.
Fiel às negativas, Fanon afirma que, por não se tratar de uma obra científica, evitará
“tout discussion séméiologique, nosologique ou thérapeutique” (op. cit., p. 241) , e também
jargões psiquiátricos, exceto “psychoses réactionelles”, que caracterizariam todo um grupo
de patologias que seriam apresentadas a seguir, e a discussão sobre a benignidade ou
malignidade de tais psicoses. Ora, qual seria então o seu intuito, se de cara ele já diz que o
livro presente não é do escopo da psiquiatria ou da psicanálise e se, logo em seguida, ele
explicita que não fará nenhuma discussão clínica?
198
Ainda assim, ele adota uma terminologia própria da psiquiatria, adota no tratamento
medicamentos antipsicóticos (neuroléticques), e percebe-se pelos relatos de casos que o
tratamento sustenta-se também na psicanálise. Nota-se isso porque, do modo como é
contado o histórico dos pacientes, é trazida sua fala e, nos momentos-chave do tratamento,
encontram-se inclusive reproduzidos os diálogos entre médico e paciente. Em tais diálogos,
o autor limita-se a algumas poucas intervenções, e o dizer dos pacientes tem toda a
importância na condução do tratamento.
Esse capítulo de Fanon está organizado em quatro séries de relatos: A) argelinos e
europeus que apresentaram “distúrbio reacional” a algum acontecimento traumático; B)
casos ocasionados pela “atmosfera de guerra total”; C) reações psíquicas causadas pelas
torturas; D) distúrbios psicossomáticos.
Os casos trazidos, principalmente nas séries A e B chamam a atenção pelo
exacerbado grau de violência ao qual foram submetidos os pacientes para chegarem a
situação limite: estupro, tortura e atentados são alguns dos elementos do histórico dos
pacientes de Fanon. Violência e trauma são elementos constitutivos do cotidiano daqueles
que estão envolvidos na luta pela independência argelina, e que se deparam com o
psiquiatra Frantz Fanon. Se nos remetêssemos aos relatos de casos de Freud, de Lacan, logo
nos lembramos que eles eram trazidos à baila na medida em que podiam fazer caminhar a
reflexão sobre a clínica.
A psicanalista brasileira Ana Costa (2008) pergunta-se sobre o que leva um analista
a relatar seus casos, e chega a uma ponderação que interessa para a presente reflexão:
podemos pensar que a escrita de caso em psicanálise tem a ver com um determinado
cruzamento, que implica o que é interdito numa análise: o impossível de se dizer convoca
cada analista a transmitir o impossível da clínica. Ali, situa-se o cruzamento específico
entre o caso e o endereçamento do analista à sua comunidade de pares. (Costa, 2008:17)
Ora, parece haver um grande paradoxo, no caso de Fanon, quanto ao endereçamento
de sua escrita, para quem a comunidade de pares dista muito de ser um grupo de analistas.
O que parece querer transmitir o autor com sua escrita é a violência – não simbolizável – de
seu entorno. O efeito é que, da forma como está enunciado seu livro, e a quem ele está
endereçado, o resultado não pode ser outro senão produzir maior violência.
Assim, a violência, que ao longo de Les damnés aparecia na reflexão do autor como
um meio de defesa e ataque dos colonizados, mostra-se em sua faceta cotidiana, na clínica
199
do autor. Fanon relata casos de torturadores franceses que se tornaram seus pacientes. Há,
portanto, uma ética que move seu atendimento e a defesa da violência, no plano coletivo,
que parece não se aplicar quando há um potencial inimigo no divã, guarda no relato deste
atendimento mais pólvora para a reprodução posterior dos danos que causaram aquele
atendimento. Quase como se fosse uma clínica que se nega a si própria.
Outro elemento importante a considerar é que com a série de relatos de casos, Fanon
mostra a pertinência do tratamento psiquiátrico, e também psicanalítico (o qual é associado
à administração de remédios), para além da crítica fácil de muitos leitores de Fanon, de que
a psicanálise é mera “clínica branca e burguesa” (Como é o caso de Mignolo, 2000:127-
128).
Depreende-se ainda dos casos de Fanon que a guerra colonial faz vítimas de ambos
os lados – torturadores e torturados – e que o sofrimento é inerente a quem faça parte do
sistema, seja em posição for. O caso 4 da série A, por exemplo, é de um policial europeu
deprimido que, depois de muito torturar os presos políticos que estavam sob sua custódia,
passa a ouvir gritos que o impedem de dormir; está deprimido e decidido a abandonar suas
funções, quando procura Fanon. O relato do tratamento termina com o surpreendente e
casual reencontro do torturador com um antigo conhecido:
(16) Quelques minutes plus tard, rentrant chez moi, je le trouve sur le chemin. Is est
appuyé à un arbre, l´air manifestemente accablé, tremblant, baigné de sueur, en pleine
crise anxieuse. Je le prends dans ma voiture et le conduis chez moi. Une fois installé sur
le divan, il me raconte avoir rencontré dnas l´établissement un de mes malades qui avait
été interrogé dnas les locaux de la policie (c´est un patriote algérien), et qui est soigné
pour ‘troubles post-commotionnels de type stuporeux’. [...] J´administre quelques sédatifs
qui calment l´anxieté de A... Après son départ, je me rends au pavillon où est hospitalisé
le patriote. Le personnel ne s´est aperçu de rien. Le malade cependant demeure
introuvable. Enfin, on arrive a découvrir dans un lavabo où il tentait de se suicider (le
malade avait de son côté reconnu le policier et croyat que celui-ci était venu le chercher
pour le conduire à nouveau dnasle locaux de la police). (Fanon, 1961:255)
119
O encontro entre aqueles que estavam na situação de torturador e torturado não é
sem consequência para nenhum deles. O horror que se atualiza para ambos – facilmente
119
“Alguns minutos depois, entrando em casa [sic], eu o encontrei no caminho. Estava apoiado em uma árvore,
visivelmente acabrunhado, trêmulo, banhado de suor, em plena crise de ansiedade. Mandei-o entrar no carro e o levei para
a minha casa. Uma vez instalado no divã, contou-me ter encontrado no hospital um dos meus doentes, que fora
interrogado na delegacia de polícia (era um patriota argelino) e que era tratado de ‘distúrbios pós-traumáticos de tipo
apático’ [...] Administrei alguns sedativos, que acalmaram a ansiedade de A. Depois de sua partida, fui ao pavilhão onde
estava hospitalizado o patriota. O pessoal não percebeu nada, entretanto, ninguém encontrou o doente. Enfim, ele foi
descoberto num banheiro, onde tentava suicidar-se (o doente reconhecera o policial e acreditava que este viera buscá-lo
para levá-lo de novo para a delegacia.” (Fanon, 1961:306)
200
perceptível pela crise de angústia do torturador e pela tentativa de suicídio do torturado –
mostra como para nenhum daqueles dois sujeitos a situação foi mais cômoda, já que ambos,
além de tudo, estão sob cuidados médicos. E tal história revela ainda muito sobre a posição
do Fanon psiquiatra. Nota-se que o fato de ter sob seus cuidados um torturador, mesmo
estando o autor implicado na guerra, não o impediu de tratá-lo, de modo bastante
convencional, com uso de medicamentos, mas também com o uso da palavra. A clínica é
percebida pelo autor, nesse momento de sua reflexão, em uma instância que o permite
perceber a guerra como “povoadora de sanatórios” de parte a parte.
Mas dizer isso bastaria para dizer que este não é o Fanon da luta armada, mas
somente o médico psiquiatra e psicanalista? Pois, se o Fanon ensaísta estiver certo, e a
guerra for mesmo uma povoadora de sanatórios
120
, não estaria ele também, que sofreu da
guerrilha os efeitos mais nefastos, sob suspeita para clinicar?
A violência é inerente ao conflito armado. E, se na primeira parte do livro cabia ao
autor incentivá-la como forma de luta e resistência; aqui cabe a ele minorar seus efeitos e,
ato seguido, amplifica-los, pois é desta forma que os conflitos estão ali enumerados, para
realimentar a guerra.
Ainda assim, é a escrita da clínica em Fanon que tem o efeito de nos levar a reler
sua própria obra em outra chave. Este capítulo final de sua obra final tem o poder de
colocar sob ligeira suspeição sua própria escrita. Veja-se, por exemplo, a negação veemente
do Complexo de Édipo entre os antilhanos (que parecia poder ser estendida aos negros em
geral), e que ele fizera em seu primeiro livro, encontra no relato do primeiro caso da série A
uma ligeira inflexão. Trata- se do caso denominado Impuissance chez un algérien
consécutive au viol de sa femme. Após o uso fracassado de antipsicóticos que não bastaram
para fazer o paciente acalmar sua excitação nervosa e descansar e de algumas consultas, o
paciente começa a relatar ao autor a história de sua esposa, estuprada em sessão de tortura
por não ter revelado ao exército francês informações sobre o marido e seus conhecidos. A
partir daí – diz o paciente – ele passa a sofrer de impotência sexual e a sentir asco da filha,
de quem tem vontade de rasgar a foto. O autor percebe que na associação do paciente da
foto da filha à imagem da ex-esposa estuprada poderia se encontrar o ponto de partida para
120
É razoável supor que Fanon está certo neste caso, e disso não faltam exemplos. Seria possível citar o relato do casal de
psicanalistas uruguaios Maren e Marcelo Viñar (1989) que relatam suas experiências pessoais de tortura e aprisionamento
durante a ditadura uruguaia. Tal livro mostrará sua pertinência ao momento de analisar a obra dos cubanos sob a ditadura
de Fidel Castro, no capítulo seguinte.
201
a interpretação do caso; embora o tratamento o conduza noutra direção interpretativa, é de
se ressaltar que o Édipo aparece-lhe como hipótese ao longo de suas cavilações
121
. O
tratamento segue e o paciente relata a história anterior do casamento (casou-se com a prima
da mulher que amava) e o sentimento de culpa em relação ao estupro da esposa, que foi
violentada por não delatar o marido e que mesmo assim não o culpou, e sim pediu que a
deixasse, pois ela estava desonrada. Ao final, ele pergunta ao psiquiatra “si la ‘faiblesse
sexuelle’ est à mon avis causée por ses tracas.” (Fanon, 1961:248). O autor relata que após
este encontro o paciente vai se acalmando e volta a se interessar pela questão nacional,
pelas discussões políticas e diz que irá em busca da esposa novamente. E que, caso não se
recupere, voltará a procurar o doutor.
Toda a série C é uma coletânea de dados que mostram os efeitos de devastação
psíquica que advém da tortura. Escrita desapaixonadamente, diferentemente da Conclusão
do livro, que vem a seguir, nesta série o autor rejeita a análise crítica dos dados, optando
pela descrição aparentemente isenta:
(17) On a beaucoup parlé ces derniers temps de l´ ‘action psychologique’ en Algérie.
Nous ne voulons pas procéder à l ´étude critique de ces méthodes. Nous nous
contenterons d´évoquer ici leurs conséquences psychiatriques. (Fanon, 1961:275,
grifos meus)
122
Mantendo o tom científico, o qual, aliás, é marca de todo este capítulo final, Fanon
enumera a longa série de formas de tortura – física, química e psicológica – bem como suas
consequências para o psiquismo dos torturados. A ética do psiquiatra Fanon aparece por
oposição a de seus colegas que se orgulham de tomar parte nos ‘experimentos’ e de ‘vencer
as resistências’ dos presos.
O leitor sai das páginas de Peau noire, masques blancs e Les damnés de la terre algo
atônito, pois poderia ser levado a aventar a possibilidade de um jovem Fanon psiquiatra,
121
Também o caso 3, da série B, da jovem neurótica, é aparentemente analisado a partir do Édipo, a partir do desencanto
com o pai, recém falecido “Mais ce qui retient l´attention, c´est sourtout la facilité du contact manifestemente trop rapide,
alors que se sent, sous-jacente, une angoisse importante. La morte de son père, récent pourtant d´après la date, este
signalée par la malade avec une telle légèreté que nous orientons rapidement nos investigations sur ses rapportes avec son
père.” (Fanon, 1961:264) [“Mas o que chama a atenção é principalmente a facilidade de contato, manifestamente rápida
demais, ao passo que percebe-se, subjacente, uma angústia severa. A recente morte do pai é mencionada pela doente com
tal displicência que logo orientamos nossas investigações para as suas relações com o pai.” (Fanon, 1961:317)] . Trata-se
de uma jovem europeia, desencantada com o pai torturador.
122
“Muito se falou, nestes últimos tempos, da ‘ação psicológica’ na Argélia. Não desejamos fazer um estudo crítico
daqueles métodos. Apenas evocaremos aqui as suas conseqüências psiquiátricas.” (Fanon, 1961:330)
202
que se insurge contra a psicanálise e faz uma defesa apaixonada do Negro; logo de um
Fanon analista social, que ainda marcado de certa forma pela reflexão de seu primeiro livro,
vaticina que pela violência os colonizados poderão se libertar; e finalmente um terceiro
Fanon, comedido, que trata os dois lados da guerra que destroça psíquica e organicamente
seus participantes. Evidentemente, trata-se do mesmo sujeito que, de forma ou de outra,
órbita em torno à violência. Pode o afã revolucionário e a demanda interpretativa lançada
em nome do Negro – entidade quase metafísica – ceder lugar ao comedimento da ética do
analista?
Não é demais lembrar que todas estas instâncias em aparências díspares e
contraditórias encontram lugar na escrita de Fanon, em seus dois livros aqui analisados. É o
caso de finalmente refazer a pergunta: o que move a escrita de Fanon? Como, ao fim e ao
cabo, atribuir-lhe um estatuto, não reducionista e, ao mesmo tempo, não imaginário? É o
que se buscará responder na próxima seção.
2.1.6. O discurso de Fanon
Na medida em que avançavam as seções anteriores, alguns elementos foram sendo
sublinhados, de forma a possibilitar que se pensasse sobre o lugar do qual fala Fanon, e
sobre o que move sua escrita. Ficou claro que há muitas formas de lê-lo. Uma leitura que
tomasse a psicanálise como termo de referência revelaria alguns equívocos do recém-
formado psiquiatra Fanon de Peau noire em relação aos postulados freudianos. Como a
leitura aqui adotada não é a normativa, procurei mostrar a que serviam tais desvios: à
assunção do Negro a uma certa inatacabilidade – desde que tomado em si mesmo – e o
Branco e colonizador como aquele que veio trazer a patologia. Ainda assim, a todo tempo,
o recobrimento dos conflitos psíquicos por questões raciais costumava soçobrar; e restava
como enunciação em Fanon a demanda pela desalienação do Negro, sua libertação, e uma
cura que era da ordem do ideal, para dizer o menos.
Se em Peau noire, masques blancs prevalecia a reflexão agônica e a exaltação do
Negro, em Les damnés de la terre mostrei como aquela primeira escrita cede lugar à
prática: prática revolucionária e prática clínica, ambas marcadas pelo signo da violência.
203
Os ideais da desalienação coletiva do Negro propalados em 1952 cedem lugar a um
trabalho clínico de pequeno alcance, com negros e também com brancos, fazendo com que
os dois extremos se borrem um pouco. Um desencanto trazido pela clínica, poder-se-ia
dizer, alivia o tom de Fanon na parte final do livro, sem qualquer brado retumbante
desalienador de ordem coletiva. As peles perdem as cores, a dor toma o primeiro plano. À
flor da pele agora está o sofrimento, não a pigmentação.
Assim, cabe não menos que discordar da posição de Harbi (2002), que no posfácio
da edição de 2002, que agora circula em português e francês, encontra justamente uma certa
porosidade, uma certa continuidade entre prática revolucionária e prática clínica,
conferindo a Fanon uma pia coerência:
Ajoutons pour finir que l´inspiration de Fanon passe aussi dans la manière dont il
comprend sa pratique de psychiatre. L´institution psychiatrique lui apparaît comme une
machine à normaliser le ‘fou’ et à lui imposer des normes sans rapport avec ce dont sa
parole est l´expression. Inscrit dnas le mouvement antipsychiatrique, il mettra l´accent sur
la libération de cette parole en renversant la relation entre le médecin et le patient. C´est
du côté de la folie que se trouvent une vérité et une authenticité auxquelles il faut
laisser son libre exercice. Entre le populisme à dimension libertaire de Fanon et sa
pratique médicale, le parallélisme est évident. (Harbi, 2002:311, grifos meus)
123
Como espero tenha ficado claro, a posição que sustento é que a prática clínica em
Fanon é uma espécie de argumento que, uma vez mais, o tem no centro da cena. É o Fanon
revolucionário quem se justifica diante de seu próprio divã, pois, mostra-nos ele, a
revolução é de fato violenta. Clínica e Revolução, em Fanon, respondem de lugares
diferentes aquela primeira questão: Que veut l´homme noir? Mas ambas colocam Fanon no
centro da cena.
Mas Harbi (2002) toma Fanon como o entusiasta do louco, como um participante da
antipsiquiatria, numa leitura que parece algo anacrônica, pois inexiste na produção a que
tive acesso de Fanon qualquer coisa que vá nesta direção; a não ser talvez, o primeiro
Fanon. Mas mesmo aí, o que há é o elogio do Negro. E isto sim pode nos ajudar a situar o
discurso do primeiro Fanon, e acompanhar suas mutações na obra final.
123
“Para terminar, gostaríamos de ressaltar que a inspiração de Fanon pode ser observada também na maneira como ele
compreende sua prática psiquiátrica. A instituição psiquiátrica é vista por ele como uma máquina, cuja função é a de
normalizar ‘o louco’ e lhe impor normas sem nenhuma relação com aquilo que sua linguagem expressa. Como partícipe
do movimento da anti-psiquiatria Fanon valorizou, acima de tudo, a liberação desta fala, invertendo, dessa maneira, a
relação entre o médico e o paciente. É no campo da loucura que se encontram uma verdade e uma autenticidade às quais é
necessário permitir a livre fruição. O paralelo entre o populismo libertário de Fanon e sua prática médica é evidente.”
(Harbi, 2001:373)
204
Para tanto, procederei por duas vidas distintas. A primeira delas, aquela que permite
Lacan, em seu Seminário 17, L´envers de la psychanalyse (1969-70), quando se dedica a
pensar sobre o discurso a partir da psicanálise. A outra via, mais afeita ao método
comparatista adotado ao longo deste trabalho, será a de contrapor o discurso de Fanon ao de
outros dois contemporâneos seus que terminaram por se debruçar sobre o tema das relações
raciais em ex-colônias. Refiro-me ao Nelson Rodrigues de Anjo Negro (1949) e ao Gilberto
Freyre de Casa Grande & Senzala (1933); trata-se de duas respostas que, vindas ambas do
Brasil, terminam por dialogar entre si de modo bastante singular e permitem, por contraste,
conferir um certo estatuto à escrita de Fanon.
Já na primeira sessão de L´envers de la psychanalyse, Lacan define o discurso
como sendo “uma estrutura fundamental sem palavras”, a qual mobilizaria uma série de
relações fundamentais. Tais relações, evidentemente, estariam amparadas na linguagem.
Assim, ele dedica o seminário a situar estas formas fundamentais, que para ele terão
número de quatro: o discurso do mestre, o discurso da histérica, discurso analítico e
discurso universitário.
A noção de discurso de Lacan mostra sua produtividade, não só por permitir situar o
funcionamento discursivo de certas falas, como também por permitir perceber que um
discurso também tem a ver com o modo como ele é tomado. O exemplo que ele apresenta,
ainda na primeira sessão, é o de que a tradução equivocada – em francês – do termo Trieb,
da psicanálise freudiana, por instinct, ao invés de pulsion, teve uma contrapartida positiva,
que foi fazer permitir que o discurso freudiano fosse “habitado de outra maneira” (cf.
Lacan, op. cit. , p. 14)
Tal percepção, tanto da produção de um discurso, quando do modo como o mesmo
é habitado, não é sem importância para o caso de Fanon. Já na introdução do livro de
Gibson, ele mostra a dificuldade que há em qualificar a contribuição de Fanon, e mesmo
em categorizá-lo; e mostra-o através de negativas:
[...] it’s hard to place Fanon’s originality. [...] Fanon was not a central figure nor a
leader of the FLN (Front de la Liberátion Nationale – National Liberation Front). He was
not involved in leadership decisions. He was not an important diplomat, though he did
represent the provisional government of Algeria in Ghana. He was not a military
strategist, though he did embark on an important reconnaissance trip to open up a new
front in the south-west. (Gibson, 2003:3-4, grifos meus)
205
Mais do que projetar esta instabilidade no contexto histórico de Fanon, ou de
enquadrá-la pelo viés pós-colonial – o que é alheio aos objetivos deste trabalho – o que se
coloca em jogo com tal fragmento é que a controvérsia que desperta a escrita de Fanon, que
o título da seção do livro de Gibson “Answering Some Critics” (p. 10), dá uma consistente
ideia), e pelas diversas leituras de sua obra, não parece gratuita.
Lanço aqui a hipótese de que a escrita do Fanon de Peau noire, masques blancs
opera no nível do discurso da histérica. Lacan diz que é o papel do analista promover a
histerização do discurso; fazer com que o analisante se ponha a falar loucamente, por assim
dizer. Esta seria a forma de fazer com que o sintoma ocupasse o primeiro plano na fala,
permitindo ao analista, pela transferência, intervir sobre aquela fala (Cf. Lacan, op. cit., p.
31). Ocorre que, como procurei mostrar já nos primeiros fragmentos de Peau noire..., o que
ocorre com Fanon é destacar a condição patológica da posição do negro; confundindo-se,
ele mesmo, com o negro na sociedade psiquicamente enferma.
A histérica, como se sabe a partir de Lacan, é aquela reivindicante que não admite a
castração simbólica, da mesma forma que Fanon toma a posição daquele que martiriza o
negro perfeito: aquele que não desenvolve Complexo de Édipo, aquele que é corrompido
pela sociedade branca, aquele que, numa palavra, seria feliz se não fosse o branco a
expoliá-lo. É possível falar, nos escritos de Fanon, numa sorte de pastoral analítica negra.
Pois o negro é alçado à condição de sumidade, e Fanon termina por encenar, ele mesmo, o
discurso da histérica.
Defendo que é justamente por conta deste funcionamento discursivo que não há, no
primeiro Fanon, espaço para a clínica, embora haja sim espaço para colocar a psicanálise
em cena. A operação de escrita do primeiro Fanon é da ordem da histerização. Equivaleria,
em termos psicanalíticos, à pergunta da histérica “O que o Outro quer de mim?
124
.
Apenas neste sentido é que se poderia entender Fanon como precursor da anti-
psiquiatria, nos termos em que, a partir dos quatro discursos, o psicanalista Antonio Quinet
o define: “No laço social promovido pela anti-psiquiatria, o psiquiatra se dirige ao louco
124
Em relação a esta pergunta da histérica, há uma passagem interessante no filme The pervert´s guide, de Slajov Žižek
(2005), em relação ao tema, para o qual remeto o leitor.
206
para que este produza um saber – o elogio da loucura. Aqui tem-se a estrutura do discurso
da histérica” (Quinet, 2006:125).
Assim, se a histerização do discurso é a operação própria do trabalho do analista,
como o indica Lacan, quando ela é deslocada para o mero elogio da loucura, ou da
vitimização do negro, ela ganha outro estatuto. É o que acontece com o primeiro Fanon. Na
dialética entre o senhor e o escravo, ele – mesmo lateralmente – coloca-se a fazer o elogio
da condição do escravo, que só não triunfou na vida pelas impossibilidades impostas pela
sociedade branca, preconceituosa e doentia. E, ainda seguindo Lacan (a partir de Kojève),
sabe-se que o escravo é quem detém uma certa verdade sobre o senhor, já que o mestre não
sabe de seu desejo, pois nada lhe falta. Esta falta de falta no senhor é produzida pelo
escravo. Pode-se supor que seja daí que advenha a autoridade de Fanon ao tratar da
questão, mas daí também – desta posição do subalterno – só se pode saber do desejo do
mestre, do senhor, não se pode aceder ao próprio desejo (como sempre é). Ocorre que a
culpa pela impossibilidade de desejar do negro é atribuída, por Fanon, aos brancos. E ele
segue perguntando, agonicamente, qui veut l´homme noir?
Como já adiantei acima, embora seja possível ver na apareência, uma mudança
radical entre os dois livros de Fanon aqui analisados, abrindo inclusive um espaço para
uma tentativa de clínica, mesmo que enxertada na parte final de seu livro final, e uma
escrita desta mesma clínica, há que se perguntar se houve de fato uma mudança de posição
no lugar do qual falava Fanon.
Num primeiro momento, seria possível aventar a hipótese de que há a assunção -
por parte de Fanon - do discurso do analista; o que equivaleria a dizer que passa a ser
possível tanto sustentar a clínica quanto sustentar uma escrita desta clínica. Entretanto, é
ainda a histericização do discurso que está em questão. Lacan diz, acerca do discurso do
analista, que “Lui, l´analyste, se fait la cause du désir de l´analysant” (Lacan, op. cit., p.
41)
125
É quando na escrita de Fanon seria possível sustentar um desejo, sem repetir
agonicamente a pergunta sobre o desejo. Entretanto, ao mesmo tempo, no momento do
endereçamento, nos termos de Costa (2008), desta clínica, parece ela ganhar não caráter
clínico, mas exemplar, e servir de sustentáculo à revolução. O negro, na sua nova
125
“Ele, o analista, se faz de causa do desejo do analisante” (Lacan, op. cit., p. 36)
207
configuração de colonizado, seguiria sendo a grande vítima. O saber que seria produzido a
partir da fala do paciente, que é inclusive transcrita por Fanon, reincide na afirmativa de
uma sociedade doente.
2.1.7. Coda - Adocicando o debate: leituras francesas de Gilberto Freyre
A apologia da violência no último Fanon, bem como a busca da libertação do negro
colonizado em seu primeiro livro, compõem um pensamento raivoso, amparado sob
aspectos da reflexão hegeliana e da psicanálise com vistas a uma transformação
sóciohistórica. Defendi aqui que a singularidade da escrita de Fanon passa por sua trajetória
singular, sua formação, as contingências de sua história pessoal, e as mutações de sua
escrita.
Entretanto, seria inadequado circunscrever o que pensou e escreveu este autor no
plano das idiossincrasias. Tal procedimento equivaleria ao processo de descafeinação de
Fanon, aludido por Žižek. Há uma maneira outra de mensurar o alcance de sua escrita,
através do debate francês. Para tal, intervém no debate um personagem brasileiro,
inadvertidamente alçado à condição de contricante de Frantz Fanon. Refiro-me ao
pernambucano Gilberto Freyre (1900-1987).
Ao publicar no Brasil, em 1933, seu célebre Casa Grande & Senzala, antecipa-se à
discussão racial que proporá Fanon, como vimos, vinte anos depois, na relação entre negros
e brancos na sociedade colonial brasileira. Sabe-se que o processo histórico da
descolonização brasileira difere em muitos aspectos daquele das colônias do Caribe; o que
pareceria, num primeiro momento, desautorizar a comparação. Entretanto, é notório como
tanto Freyre quanto Fanon elegem a via sexual como uma estrada real para abordar tais
relações. Se a solução de Fanon é a da violência – que seria possível derivar em alguma
medida da agressividade de que fala Freud, em seu Mal estar na cultura (1932); para
Gilberto Freyre o que vienense traz é o suporte para falar da sexualidade, da libido, a qual,
208
no limite, vai permitir-lhe tratar a relação entre negros e brancos no Brasil desde os tempos
da colonização
126
.
Assim, tratarei de ambos autores que, também tendo sofrido maior ou menor
incidência do pensamento psicanalítico, terminaram por tratar em suas obras sobre isto que
venho chamando com Fanon, ao longo do capítulo, o desejo do negro. O método
comparativo permitirá contribuir para estabelecer, por contraste, o estatuto da escrita de
Fanon.
Já em 1922, quando de sua estadia em Nova Iorque, aparece uma primeira menção a
Freud nos diários de juventude de Freyre, que seriam posteriormente publicados em 1975,
sob o título Tempo morto e outros tempos
127
. O tom é de exaltação, de quem fez uma
grande descoberta:
Aprendo em Freud alguma coisa que explica a mim mesmo: não só explica assuntos
de minha meninice, de que eu próprio me recordo, como outros de que se recordam
as pessoas antigas de minha família. [...] Outros mistérios a psicanálise parece
esclarecer. É claro que há o perigo de ser o seu método de interpretação levado ao
exagero. Mas isto é inevitável, tratando-se de revolução tão radical nos chamados
‘domínios da psicologia’. (Freyre [Nova Iorque, 1922], 1975:72-73, grifos meus)
De modo similar ao que parece ter ocorrido a Nelson Rodrigues, Gilberto Freyre
demonstra ter encontrado na psicanálise um campo a partir do qual pode falar sobre a
sexualidade, a partir da memória, da experiência, e não somente pela via do discurso
médico, em tom cientificista e desapaixonado. Talvez o impacto da leitura de Freud sobre
Freyre, como sobre Mário de Andrade, é a possibilidade da incorporação de um discurso
sobre a sexualidade num tom não-cientificista.
O interesse pelo que é da ordem do sexual antecede o conhecimento dos textos
psicanalíticos, em Freyre. Em seus diários, vê-se a descrição íntima de suas aventuras
126
Não caberia aqui qualificar Casa Grande & Senzala, por fugir totalmente à discussão proposta neste trabalho, e pela
impossibilidade de aportar ao debate. Meu interesse recai sobre os indícios da leitura que Freyre fez de Freud e, em
segundo lugar, da inserção de Freyre no debate francês. Aos interessados na fortuna crítica da caudalosa obra, remeto à
sua edição crítica, a cargo de Giucci, Larreta & Fonseca (1996).
127
A autenticidade destes diários é bastante controversa. Já foi apontado por Giucci & Larreta (2007) tanto a suposta
inautenticidade dos textos quanto, o seu caráter sumamente revelador; motivo pelo qual optei por manter aquelas notas
juvenis de Freyre, apócrifas ou não, pelo que trazem daqueles anos de formação, vividos e escritos ou imaginados e
escritos. Vejamos o que dizem Giucci & Larreta: “Tempo morto e outros tempos foi publicado em 1975. Termina em
1930, com o exílio em Lisboa. Consiste em fonte insegura e ao mesmo tempo imprescindível. no texto editado, sem
dúvida, acréscimos posteriores e modificações. Mas mesmo estes são reveladores da personalidade de Gilberto. No final
da vida, Freyre narrou experiências posteriores a 1930 para uma segunda edição de Tempo morto e outros tempos.
(Giucci & Larreta, 2007:591, nota 1).
209
sexuais – masturbação, felação, bestialismo, sexo anal – ao menos sete anos antes de
descobrir Freud. Mas quando o descobre, o pensamento freudiano parece conferir sentidos
diversos ao seu manancial de histórias pregressas, como no caso citado acima, quando
reelabora uma cena repetida por toda a família: aquela em que ele foi surpreendido, em
criança, besuntado o corpo em suas próprias fezes. O fato de encontrar na obra de Freud um
sentido para essa experiência permite-o citá-la longamente. Provavelmente o texto de Freud
ao qual Freyre se refere seja o ensaio sobre a sexualidade infantil, que compõe os Três
Ensaios para uma teoria sexual, editado originalmente em 1905.
Já na obra máxima do ensaísta, Casa Grande & Senzala, há uma citação da tradução
francesa de Psychologie collective et analyse du Moi, de 1924, no que se refere ao
paralelismo entre a libido e os prazeres gastronômicos. Vale ressaltar que é a única
referência explícita a Freud em todo o livro de Freyre. Embora, tangencialmente, os
pressupostos freudianos apareçam pelo livro. Por exemplo, no início do capítulo “O
escravo negro na vida sexual e de família do brasileiro”, Freyre diz:
Já houve quem insinuasse a possibilidade de se desenvolver das relações íntimas da
criança branca com a ama-de-leite negra muito do pendor sexual que se nota pelas
mulheres de cor no filho-família dos pais escravocratas. A importância psíquica do ato
de mamar, dos seus efeitos sobre a criança, é na verdade considerada enorme pelos
psicólogos modernos; e talvez tenha alguma razão Calhou para supor esses efeitos de
grande significação no caso de brancos criados por amas negras. (Freyre, 1933:301)
A importância do ato de mamar e sua relação com o erotismo ulterior a que faz
alusão Freyre rapidamente remete ao ensaio da sexualidade infantil no já citado livro de
Freud dos Três ensaios para uma teoria sexual (1905), muito embora já vejamos a
referência como que diluída. Entretanto, mais do que querer defender que a origem da ideia
seja diretamente o livro de Freud – o qual, por outro lado, Freyre dá mostras de ter lido – o
que importa ressaltar é como aqui este erotismo oral aparece como forma de pautar a
importância da mulher negra ou mulata para a vida sexual do jovem branco.
Tal como fará Fanon, anos depois, a atração interracial é tematizada, porém em
Freyre de modo distinto, sem a virulência ou o desejo de tornar-se o outro, que Fanon,
assumindo a perspectiva do negro expoliado, fará em sua obra. As relações interraciais em
Freyre estão, antes de tudo, circunscritas a uma conjunção histórica, mas que deixam suas
210
marcas e suas influências na vida social do presente. Vejamos um exemplo do patológico
na sexualidade interracial, como no trecho a seguir:
Conhecem-se casos não só de predileção [dos meninos brancos pelas negras] mas de
exclusivismo: homens brancos que só gozam com negra. De rapaz de importante
família rural de Pernambuco conta a tradição que foi impossível aos pais promoverem-
lhe o casamento com primas ou outras moças brancas de famílias igualmente ilustres.
Outro caso, referiu-nos Raoul Dunlop de um jovem de conhecida família escravocrata do
Sul: este para excitar-se diante da noiva branca precisou, nas primeiras noites de casado,
de levar para a alcova a camisa úmida de suor, impregnada de budum, da escrava negra
sua amante. Caso de exclusivismo ou fixação. Mórbidos, portanto, mas através dos
quais se sente a sombra do escravo negro sobre a vida sexual e de família do
brasileiro. (Freyre, 1933:302, grifos meus)
Tal como ocorria em Fanon, a visada psicanalítica permite uma psicanálise selvagem
de acontecimentos vistos ou relatados, no tocante às interações sexuais entre brancos e
negros. O discurso analítico parece atribuir um verniz científico aos causos relatados, e
conferir força de argumento a uma constatação empírica. Outro traço a ressaltar é que o
discurso analítico se presta, em Fanon, a mostrar o desejo interracial como encobridor de
um ódio, de um desejo de aceder à posição do outro; já em Freyre, a psicanálise presta-se a
mostrar um desejo de fundir-se ao outro. Enquanto Fanon vale-se da psicanálise para
ressaltar a diferença racial, Freyre como que quer exterminá-la, primeiro pela relação
sexual, e logo pela miscigenação.
Mas ainda isso seria pouco para sustentar uma comparação entre Fanon e Freyre,
pesem as diferenças dos contextos de escrita dos dois autores. Seria, não fosse o fato
inapelável de uma peripécia editorial, a qual, à maneira de Said, veio a tornar Freyre uma
outra coisa, em outro contexto. Refiro-me à edição francesa de Casa Grande & Senzala.
Ao ser publicado no Brasil, em 1933, Casa Grande & Senzala não dialoga
diretamente com nada da realidade caribenha, mas o mesmo não se pode dizer de sua
tradução francesa. Esta vem à luz justamente no ano de 1953, pela editora Gallimard – um
ano após a publicação de Peau noire, masques blancs (1952) , pela Seuil –, e traz um título
que a um só tempo é uma alusão à dialética hegeliana do senhor e do escravo e ao livro de
Fanon: Maîtres et esclaves. La formation de la société brésilienne. (cf. fig. 5)
211
Fig. 5. O título hegeliano da tradução francesa de Freyre coloca-o em direto confronto com Peau noire,
masques blancs, de Frantz Fanon, lançado no ano anterior (1952).
212
Assim, no contexto francês, a obra de Freyre já na tradução do título se dá a ver um
certo diálogo com a problemática do primeiro livro de Fanon, a qual está na ordem do dia: a
descolonização da África. Não se pode esquecer que Freyre, ao referir-se ao escravagismo
no Brasil, tem como referência o período colonial, os edifícios referidos no título original –
a Casa Grande e a Senzala – que remetem ao passado colonial especificamente brasileiro,
com não poucas ressonâncias. A casa grande e a senzala, em Freyre, são alçadas não só à
condição de patrimônio arquitetônico representativo do imperialismo lusitano, como
também a elas toda uma cadeia de elementos da vida econômica, política e cultural são
associadas
128
.
Poder-se ia dizer que tais ressonâncias dos dois elementos do título seriam
intraduzíveis
129
. De toda forma, há que se dizer que na opção do tradutor como que desloca
a relação de poder implicada ao optar não por duas edificações historicamente marcadas, e
sim por nomear os personagens da relação: maîtres e esclaves. Tal escolha tem o efeito de
inscrever a obra de Freyre diretamente no debate acerca da descolonização, num exemplo
claríssimo da traveling theory de Said.
Assim, a interpretação brasileira de Freyre ganha contornos outros quando referida a
uma questão da ordem do dia na França. Torna-se, numa palavra, uma via alternativa à
proposta racial de Fanon. Tal deslocamento fica absolutamente claro a partir do prefácio da
obra, a cargo do historiador Lucien Febvre, um dos fundadores da Escola de Annales.
Febvre dá mostras de perceber o alcance da modificação do título, e opta por fazer um
gracejo ao comentá-lo, como que a ignorar que a nova oposição senhores-escravos tem
muito de ressonâncias contemporâneas: “Casa-Grande e Senzala – que devient chez nous,
un peu pauvrement, Maîtres et esclaves: bon titre pour un roman russe des années 1900.”
128
Já na introdução à primeira edição brasileira do livro, Freyre aponta a contribuição arquitetônica e, ao mesmo tempo, o
alcance político e econômico do advento da casa grande brasileira: “A casa-grande de engenho que o colonizador
começou, ainda no século XVI, a levantar no Brasil – grossas paredes de taipa ou de pedra e cal, coberta de palha ou de
telha-vã, alpendre na frente e nos lados, telhados caídos num máximo de porteção contra o sol forte e as chuvas tropicais –
não foi nenhuma reprodução das casas portuguesas, mas uma expressão nova, correspondendo ao ambiente físico e
a uma fase surpreendente, inesperada, do imperalismo português: sua atividade agrária e sedentária nos trópicos;
seu patriarcalismo rural e escravocrata.” (Freyre, 1933:11, grifos meus). E logo adiante, incluindo a senzala: “A casa-
grande, completada pela senzala, representa todo um sistema econômico, social e político: de produção (a monocultura
latifundiária); de trabalho (a escravidão); de transporte (o carro de boi, o bangüê, a rede, o cavalo); de religião (o
catolicismo de família, com capelão subordinado ao pater familias, cultos dos mortes, etc.); de vida sexual e de família (o
patriarcalismo polígamo); de higiene do corpo e da casa (o ‘tigre’, a touceira de bananeira, o banho de rio, o banho de
gamela, o banho de assento, o lava-pés); de política (o compadrismo).” (Freyre, 1933:12).
129
Giucci & Larreta (2002:928) mostram que o argumento da intradutibilidade – no caso da versão hispânica – serviu
justamente para a manutenção dos termos em sua grafia brasileira. A tradução espanhola, de 1943, tem por nome “Casa
grande y senzala”.
213
(Febvre, 1953:11). O tom geral do prefácio é esse mesmo, de humor ameno e um certo
otimismo em relação a auspiciosa obra do brasileiro. Tal tom é pleno de consequências.
É possível ler o prefácio de Febvre como um argumento contrário à solução
proposta em Peau noire, masques blancs, de Fanon, ou, minimamente, como uma
abordagem otimista da relação entre os europeus e suas colônias. Se para Fanon era
necessária a total “reestruturação do mundo”, o prefácio de Febvre vem dizer ao seu leitor
que houve uma experiência colonial bem sucedida – não sem alguns percalços – que
alcançou um grau excelso de convívio entre as raças, num imenso país tropical, que levou à
fusão entre elas e uma harmoniosa coexistência. O livro de Gilberto Freyre, neste sentido, é
cooptado e incorporado uma lição para a tensão da hora presente. E no trecho a seguir,
quando retoma os termos da discussão de Fanon – a colonização, a escravidão, o racismo –
e fala dos negros revoltados contra Europa, Febvre posiciona-se com clareza. Pode-se dizer,
sem exagero, que Freyre é aplicado como um bálsamo contra a má-consciência europeia:
Le livre de Gilberto Freyre – ce n´est parce qu´il est plein de talent; [...] parce qu´il est
noble de inspiration, et courageux en tout ce qui touche au racisme, à la sexualité, à
l´esclavage – ce n´est pas exclusivement pour ces raisons, si excelentes soient-elles, qu´il
est bon de le mettre à la portée des Français. [...] C´est parce qu´il pose à sa façon, dans
son secteur à lui, le plus gros de problèmes qui se dressent, en 1952, devant les
porteurs de la vielle civilisation européenne.
Partout, ils voient se révolter contre eux ces peuples de couleur (et, de quelques-uns,
à dire d´anthropologues, la couleur est blanche) – qu´ils n´ont voulu détruire ni
physiquement ni moralement, mais qu´avec une enfantine légèreté, ils ont cru
pouvoir à leur heure, à leur gré, et dans la mesure qui leur convenait, assimiler et,
pour parler leur langage, élever au niveau du blanc civilisé. (Febvre, 1953:8-9, grifos
meus)
Febvre seguirá sua argumentação, com Freyre, no sentido de buscar um apagamento
do conflito exposto por Fanon, perguntando-se se não é possível o apagamento da
diferença. Ele postula que uma civilização única talvez fosse a solução; esta civilização,
claro está, seria a europeia, e traria o bem comum aos homens. E insiste, a grande solução
que aporta o livro de Freyre é a “fusão de raças”, a qual, para ele, é a solução do problema
racial: “Grande leçon de cette histoire brésilienne telle que la met sous nous yeux Gilberto
Freyre. Elle est tout entière une immense expérience, une expérience privilegiée de fusion
des races, d´échange des civilisations.” (Febvre, 1953:20)
É possível ver como à idealização negra de Fanon, o prefácio de Febvre termina por
responder – intencionalmente ou não – com uma idealização mestiça, brasileira e tropical.
Vale ressaltar que o título da tradução de Bastide do livro de Freyre não é novo, pois é o
214
título da edição norte-americana, de 1946, por Samuel Putnam: The Mastes and the Slaves.
A Study in the Development of Brazilian Civilization.
O fato é que no momento histórico francês de sua publicação, o título ganha
contornos que apontam muito mais na direção do debate sobre a descolonização do que
propriamente ao livro em questão. Tanto que, no mesmo ano, Roland Barthes aponta o
descompasso entre o título francês e o tema da obra de Freyre: “Le Maîtres et esclaves de
Gilberto Freyre (titre presque trop hégélien pour un contenu somme toute materialiste)
a pour l´objet le mélange ethnique du Portugais, de l`Indien et du Nègre au B´resil.”
(Barthes, 1953 [2002]:1100, grifos meus).
De toda forma, como vimos pelo prefácio de Jean Paul-Sartre (1961), com o avançar
da década, o debate se acirrará bastante, e terminará por prevalecer – não só no nível
discursivo, mas também no da realidade imediata – a questão do ódio racial.
Uma caricatura de Gilberto Freyre
E se no contexto francês, como vimos, Freyre termina por funcionar – ainda que
circunstancialmente – como um anti-Fanon, tivemos no Brasil nosso anti-Freyre. É em
Nelson Rodrigues que o Brasil terá, ela via da tragédia, uma resposta a Freyre, através de
sua censurada peça O Anjo Negro (1948). Como já constatara Victor Hugo Adler Pereira
(1999), em seu estudo sobre o dramaturgo, novamente vemos Nelson Rodrigues em
consonância com as ideias discutidas na Europa; entretanto, suas respostas são sempre
singularíssimas, numa sorte de eco distante que termina por conferir cor própria ao debate;
o que, em seu caso, termina por não se tornar diluição, pois o talento do dramaturgo sempre
resulta em obra a ser considerada . Assim como mostrei que ele expunha o desejo feminino
enquanto Lacan discutia o mesmo tema; ao final dos anos quarenta, quase
contemporaneamente a Fanon, Nelson Rodrigues exporá o ódio racial em terras brasileiras.
Em mais uma das peças consideradas míticas por Magaldi, Nelson Rodrigues fala
diretamente à sociedade na qual foi escrita e encenada. O ódio racial, por mais que o espaço
da ação e o tempo possam ser apreendidos na dimensão do mito, mostra um cariz que
ultrapassa com força qualquer leitura ahistórica.
215
A certa altura da peça o protagonista, o negro Ismael, mostra-se ressentido de ter
sido chamado de “negro hediondo” por não poucas vezes ao longo da vida; este mesmo
personagem queimará com ácido os olhos da recém-nascida filha branca da esposa branca,
para que ela não possa nunca ver que ele, Ismael, é preto.
A discussão proposta pela peça, entretanto, não se limita ao plano do racial pois, ao
mesmo tempo, o ato de Ismael também é justificado na economia cênica porque a recém-
nascida é na verdade filha de seu irmão cego (e branco) – Elias – que foi amante da mulher,
e seu ato tem também a justificativa de ser fazer a filha cega como o verdadeiro pai, numa
vingança cruel. Assim, a peça de Nelson Rodrigues se livra de ser panfleto libertário e
também obra de tese; os conflitos sexuais mesclam-se aos raciais, e à beleza plástica da
concepção das cenas e dos diálogos, o que faz com que o resultado seja de fato teatro, não
discussão de ideias somente.
Com isso, estou também dizendo que se cruzam, em Anjo Negro o que é da ordem
racial – o ódio entre brancos e negros – mas também o que é sexual – o desejo sexual entre
cunhados, e o desejo da filha pelo pai. Uma das características marcantes é que o desejo
sexual e o ódio racial saem do plano do recalque e vem ocupar o centro da cena: há
estupros, incestos, filicídios, assassinatos entre irmãos, tudo encenado com grande
naturalidade. O fato de serem os protagonistas o Negro Ismael e a Branca Virgínia (assim
referidos pelo coro das pretas descalças no final da peça, com a mesma caracterísca de
exemplaridade que parecerm ter o Branco e o Negro de Fanon) complexifica a situação, e
alçam a peça de Nelson Rodrigues ao plano da provocação.
Como ódio e desejo se conjugam entre o racial e o sexual, a peça sustenta uma
dupla leitura: aquela pela via do psicanalítico, e também a sociológica, como num
contraponto provocativo a Gilberto Freyre. É possível ver, através desta hipótese, como o
teatro de Nelson Rodrigues funciona no plano da ideia diluída, quando ela saiu da discussão
universitária e entrou nas redações de jornal, nos cafés. Neste sentido, é possível considerar
o Anjo Negro de Nelson Rodrigues como anti-freyrista, parafraseando o freudismo de que
tratei na primeira parte. Nelson Rodrigues como que cria um Gilberto Freyre caricato, com
pés de barro, e o toma por antagonista.
Se nos debruçamos sobre algumas das leituras dos contemporâneos de Nelson
Rodrigues, logo percebemos que a crítica não foi muito acolhedora com a provocação do
216
dramaturgo; mas nem entre os que elogiaram, nem entre os detratores, toca-se diretamente
no tema do ódio racial da peça. Aí sim é que os críticos lançam mão da terminologia da
psicanálise, como forma de estabilizar os conflitos da peça.
Sirva-nos de exemplo uma leitura contemporânea da peça. O crítico Fonseca
Pimentel (1951), num livro dedicado à obra do dramaturgo, O teatro de Nelson Rodrigues
traz uma leitura altamente perturbadora. Fonseca Pimentel opta por abordar o teatro de
Rodrigues a partir dos clássicos, e elege como contraponto a tragédia grega (uma forma
inclusive de conferir certa assepsia às atrocidades postas em cena). Ao falar da condição do
negro Ismael, fala que ele é possuidor de um “complexo”, “um estigma”, oscilando entre o
que é do plano psíquico e do plano da enfermidade. Ato seguido, desmerece a peça por sua
ausência de realismo:
estamos em presença de uma peça sem nenhum caráter realista, para usarmos as
expressões do próprio autor, e, por isso mesmo, com uma grande dose de poesia e
simbolismo, na qual, infelizmente, a fantasia, solta e desenfreada, entra em pleno domínio
da extravagância. E, em conseqüência, a primeira constatação que fazermos em face da
peça de Nelson Rodrigues é que um grande, belo e apaixonante tema foi desperdiçado,
contràriamente ao que tínhamos o direito de esperar de um autor que nos dera pouco antes
Vestido de Noiva. (Fonseca Pimentel, 1951:34-5, itálicos do autor, negritos meus.)
Nota-se em Pimentel uma tônica que se manterá nos comentários dos demais
críticos, um certo eufemismo ao se referir ao tema do ódio racial, que aparece primeiro
como “complexo” (op. cit., p. 33) e logo como “grande, belo e apaixonante tema” (op. cit.,
p. 34). O problema da peça, conforme o crítico, é justamente ser “sem nenhum caráter real,
sem sombra de vida, sem o mínimo reflexo de humanidade e, por tudo isso, sem a marca do
trágico” (op. cit., p. 38). E continua: “Ninguém sabe onde nos pretende levar o autor e
provavelmente não o saberá nem o próprio Nelson Rodrigues” (op. cit., p. 40). A não
considerar Anjo Negro como uma tragédia sobre o ódio racial, e ao tomá-la como “o drama
racial de Ismael e o drama sexual de Virgínia” (op. cit., p. 38) como se eles não tivessem
nada a ver um com o outro, como se ambos os “dramas” não tivessem relação, e eclodissem
na vida social e sexual dos personagens, Pimentel termina por perder o fio de condução da
peça. Mal comparando, é como a crítica que não conseguia ver o conflito de Hamlet na
tragédia de Shakespeare. Pimentel, de igual maneira, não enxerga o conflito em questão em
Anjo Negro, qualificando-o, ao fim e ao cabo de um drama frouxo, com belos diálogos, e
elogiando os pendores de “poeta dramático” de Nelson Rodrigues. O fato de não admitir
217
Anjo Negro como dizendo respeito às tensões raciais da sociedade brasileira e, por outro
lado, não lhe reconhecer os conflitos da trama, já parece ser um indício suficientemente
forte de que o dramaturgo atingiu o alvo.
Do lado dos que elogiaram a peça, como Menotti Del Picchia, num texto de 1965
que hoje engrossa a fortuna crítica presente no Teatro Completo de Nelson Rodrigues, são
postas em primeiro plano as tensões sexuais da peça, que seria possível qualificar de
edipianas. Lembre-se o leitor de que Del Picchia figura entre os primeiros modernistas que
incorporaram a psicanálise em sua obra literária, neste caso pela inclusão do Doutor Durval
Marcondes, um dos introdutores da psicanálise em São Paulo, em suas narrativas. O que
chama a atenção é o relevo conferido pelo crítico aos temas psicanalíticos na peça, em
detrimento do espaço conferido ao tema racial:
O tema, porém, nesta tragédia dos múltiplos problemas suplementares: o do paradoxo
biológico da mestiçagem; o do ciúme patológico já estudado por Shakespeare no Otelo;
o do combate mortal entre a mulher-mãe e a mulher-filha, recalcado monstro
ambivalente, feito da mesma carne mas despedaçado pelo antagonismo de duas almas, em
luta dormida ou declarada pela posse do amor sempre que o amor tenha um só face. (Del
Picchia, Menotti, 1965:293, grifos meus)
Nota aí o leitor como o tema racial é velado pelo eufemístico “paradoxo biológico
da mestiçagem”, fazendo ecoar com o último termo a reflexão de Gilberto Freyre, sem no
entanto indicar a referência ao “biológico” – quando mesmo o pernambucano já deslocara,
com Boas, a discussão racial para o campo cultural.
Ainda linhas antes, na mesma toada, Del Picchia dissera que “esta tragédia em que a
luta entre os preconceitos e os complexos raciais criam um clímax esquiliano” (op. cit., p.
293, grifos meus). Limitam-se a estes os comentários quanto à temática racial na obra,
restando as demais linhas da resenha para elogiar a beleza plástica da montagem, a
iluminação de Ziembinski, a atuação de Maria Della Costa etc.
Assim, o eloquente silêncio quanto ao ódio racial, que é eludido por Pimentel e
apenas tangenciado por Del Picchia, que o entende como “luta entre os preconceitos e os
complexos raciais”, são um excelente indicativo de que Nelson Rodrigues parece ter
abordado o tema do ódio racial por um viés que, na sociedade brasileira, não praxe tratar.
Nelson Rodrigues, ao que parece, não consegue colocar em debate a questão racial
na discussão no campo cultural, e tem de sua obra elogiada tão somente a beleza plástica,
218
ou criticada a frouxidão do roteiro. Da relação inter-racial nada é comentado, nem
elogiosamente, nem criticamente; prevalece o silêncio. Como se a história da Branca
Virgínia, estuprada pelo Negro Ismael à mando da tia dela, porque ela era amante do noivo
da irmã, e o posterior casamento de conveniência para desfazer o dano, não pudessem por
si só serem lidos como uma ridicularização de uma imagem construída pelo dramaturgo da
democracia racial de Gilberto Freyre.
Ruy Castro (1992) diz que Nelson Rodrigues decepcionou-se com a recepção de
Anjo Negro, e terminou por demonizar a beleza plástica da peça que, segundo ele, teria
“anestesiado a platéia para a contundência social e dramática do espetáculo” (Castro,
1992:204). Castro comenta ainda que a crítica sequer estranhou que o Negro Ismael fosse
interpretado por um ator branco, com graxa no rosto. O biógrafo conta que a preferência do
dramaturgo para o papel principal era do ator negro Abdias do Nascimento, do Teatro
Experimental do Negro, mas que não conseguiu levar a cabo seu intento. A considerarmos
a decepção de Nelson Rodrigues, a peça deveria ter considerada um fracasso; entretanto, o
silêncio da crítica em torno à questão racial parece dizer outra coisa.
A leitura asséptica da peça permitia passar ao largo dos conflitos raciais encenados.
A psicanálise, quando referida pela crítica, parece servir como elemento estabilizador dos
conflitos; como se apelar a algum conceito forte da psicanálise ou lançar mão do Édipo de
Sófocles – fosse suficiente para dar conta da discussão encenada em Anjo Negro.
Nelson Rodrigues, duas décadas depois da encenação, em suas Memórias (1967)
qualifica sua Anjo Negro como “tragédia racial”, sem ambigüidades e sem margem para
dúvidas quanto ao caráter de seu projeto inicial. Ainda no mesmo texto, explicita seu anti-
freyrismo:
Quase posso dizer que Anjo Negro nasceu comigo. Eu não sabia ler, nem escrever, e já
percebera uma verdade que até hoje escapa a Gilberto Freyre: - não gostamos de
negro. Nada mais límpido, nítido, inequívoco, do que o nosso racismo. E como é
humilhante a relação entre brancos e negros. Os brancos não gostam de negros; e o pior é
que os negros não reagem. Vejam bem: - não reagem. [...] A ‘democracia racial’ que
nós fingimos é a mais cínica, a mais cruel das mistificações. Quando andou por aqui,
Jean Paul-Sartre fez cinco, seis ou dez conferências. E sempre que o gênio falava, era um
sucesso tremendo. Gente em pé, sentada, pendurada, trepada etc., etc. Na última palestra,
o filósofo perdeu a paciência. Vira-se para dois ou três brasileiros, que o lambiam com a
vista, e perguntou: — ‘E os negros? Onde estão os negros?’ (Nelson Rodrigues,
1967:340-341, grifos meus)
219
No caldeirão de Nelson Rodrigues, Gilberto Freyre e Jean Paul-Sartre aparecem
mescladas, como os intelectuais que gostam de preto, em marcada oposição em relação à
sociedade brasileira. A caricaturização de ambos é evidente. A partir desse lugar é que o
cronista enunciará sua antropologia de galinheiro, ao dizer, nas crônicas do livro O óbvio
ululante, que, no Brasil, branco não gosta de preto e que preto também não gosta de preto.
E que o único negro brasileiro é justamente Abdias do Nascimento, em quem ele diz ter se
inspirado para compor o Ismael de O Anjo Negro.
Para além da carnavalização promovida pelo cronista do debate europeu referido ao
longo deste capítulo, e de um certo barateamento da discussão, é preciso considerar que, à
maneira do que acontecia em relação ao desejo feminino, Nelson Rodrigues insiste, via
frase de efeito, em alguma verdade brutal. Afirma ele, do alto do poleiro de seu galinheiro
conceitual: há ódio racial no Brasil, os pretos não se assumem como pretos, os brancos
odeiam os pretos. Da mesma forma que ele indicava, já em seu O Anjo Negro: as mulheres
desejam!
Assim se, no que tange ao esboço da psicopatologia do Negro que fizera Fanon, em
Nelson Rodrigues o que temos é a exibição do preconceito racial, sem que isso implique
grandes juízos de valor. Tanto é assim que o próprio Abdias do Nascimento transforma-se
em personagem das crônicas de Nelson Rodrigues, de modo igualmente caricato. Por
exemplo, em “O único negro do Brasil” (1968), o cronista relata um encontro com Abdias,
no qual ele falava que era preciso fazer um protesto contra a participação da África do Sul
nas Olimpíadas, já que era o único país onde o preconceito era legitimado pela política do
apartheid. O cronista se ri da cândida inocência de Abdias:
Disse-lhe: ‘Quer que eu escreva? Contra a África do Sul? Escrevo.’ Apontei-lhe uma
mesa adiante: - ‘Subo naquela mesa e darei um morra à África do Sul. E meu berro será o
único, e não arrastará um único e escasso idiota.’ Abdias me ouvia só, e atônito.
Continuei. Disse-lhe: - ‘No Brasil, o branco não gosta do preto; e o preto também não
gosta de preto.’ [...]
“Não há na Terra ninguém mais só do que o nosso preto. Um esquimó tem a companhia
de meia dúzia de outros esquimós. Mas a solidão do negro brasileiro não tem a
companhia do próprio negro. (Nelson Rodrigues, “O único negro do Brasil”, O Globo,
11 de março de 1968:200-201, grifos meus)
Há ainda uma crônica, da mesma série do Óbvio ululante – “Onde estão os negros
brasileiros?”, na qual o cronista, rememorando um episódio da infância, relata o dia em que
a professora o tirou da sala porque ele tinha piolho. Sentindo-se humilhando e,
220
retroativamente, evocando Guimarães Rosa, Sartre e os negros do Brasil, o cronista fecha o
texto relatando a chegada de uma negrinha, banguela, risonha, que diz ao menino que ela
também tem piolhos e lêndeas. “Estávamos sós, maravilhosamente sós.” (op. cit., p. 66).
Eis o máximo de comunhão a que se permite o cronista, aquela lírica de uma infância
recordada.
Assim, diferentemente de Fanon, sua exposição do ódio racial não tem finalidades
práticas. É o exercício da cáustica provocação, o escárnio de Gilberto Freyre. O que faz o
cronista e dramaturgo é lançar luz sobre um traço da pretensa sociabilidade dos brasileiros,
e escarnecer dele. Nesse sentido, Nelson Rodrigues mostra-se muito mais radical, ao
simplesmente afirmar o ódio racial no Brasil sem o anteparo consolador de um passado ou
um futuro promissor. Mas evidentemente, em seu caso, trata-se de crônica, ou de teatro,
não de ensaio. Não há, portanto, o compromisso da reflexão da mesma forma, embora isso
não obste para que suas conclusões sejam contundentes e provocadoras.
221
2.2. Psicanálise à cubana: de Freud a Pavlov
Por ahí corre un chiste que dice:
‘Ionesco se acercaba a las costas cubanas, y sólo con verlas, dijo: Aquí no tengo nada que
hacer, esta gente es más absurda que mi teatro...’
Entonces, si así es, yo soy absurdo y existencialista, pero a la cubana...
Virgilio Piñera, “Piñera teatral”(1960)
En esta reunión debe practicarse la discusión abierta y libre, sin sectarismos, con amplia
seguridad de que cada especialista puede militar en la escuela científica que quiera,
siempre que no se alteren los postulados básicos de la Revolución.
Dr. Mario Escalona, II Conferencia de Instituciones Psiquiátricas de Cuba (1963)
Agora e na hora de nossa morte, amém
“Ave Maria”
Em novembro de 1986, ocorre em Cuba o Encontro dos Intelectuais pela Soberania
da América Latina e do Caribe. Fidel Castro, que houvera convidado a psicanalista Marie
Langer a Havana, pergunta-lhe sobre sua opinião quanto à psicanálise e a saúde mental em
Cuba; ao ouvir de sua convidada que não existe psicanálise em Cuba, ele a coloca em
contato com o Ministério da Cultura para que ela, nas palavras de Chemouni, “introduzisse
oficialmente a psicanálise em Cuba.” (Chemouni, 1990:87).
Este capítulo, de algum modo, retoma os anteriores. Já terá ficado claro a esta altura
que não se tratou aqui de ensaiar uma cronologia, que as histórias aqui relatadas são
recortadas, e que a reiteração é uma das marcas deste trabalho, sempre com deslocamentos.
Variações sobre o tema do desejo em escritas diversas. Sempre o desejo, mas interrogado a
partir de lugares distintos, com finalidades várias. O desejo do bom burguês com Mário de
Andrade, o da mulher com Nelson Rodrigues, o do negro com Fanon, e outra vez com
Nelson Rodrigues e Gilberto Freyre. A mera repetição sempre que possível foi evitada, pois
interessa mais ressaltar a diferença, ver os deslocamentos entre os autores diversos, bem
como as mudanças de posição ao longo da obra de um mesmo autor, como foi o caso de
Fanon.
Assim, ao chegar a Cuba, como ocorrera no caso paulistano, no início do primeiro
capítulo, as revistas voltam a ter lugar de destaque, mas os regimes totalitários – à maneira
do que se viu no capítulo anterior – incidem sobre a produção cultural de maneira atroz. Tal
222
incidência leva a que mesmo que as revistas outra vez nos sirvam como campo de
observação, haverá outros pontos em que a entrada do pensamento psicanalítico, ou sua
impossibilidade de entrada, serão mais elucidativos. Especificamente neste capítulo, como
o indica o parágrafo de abertura, é o discurso estatal – que com sua truculência faz deixa
marcas indeléveis – que deverá ser interrogado.
Se na pauliceia descobria-se – ainda que com certa defasagem temporal e numa
língua outra – o Docteur Freud, em Cuba o vienense já chega morto. Lá sua entrada não é
a da peste, nem é a insidiosa dos livros, vem sim nas páginas de uma certa revista, cujo
provocativo título, Ciclón, é uma mostra de que uma vontade de romper com algumas
estruturas vigentes. O ano é 1956, e o mote é já a celebração de centenário de nascimento
de Freud, através de um dossiê.
Na Ilha, intervêm ainda personagens outros, que se movem no campo cultural com o
peso que lhe é característico: o forte catolicismo – herança da presença espanhola que
manteve seu poder metropolitano até 1912 – e a intervenção do Estado. Cuba passa por
sucessivos regimes totalitários, a ditadura de Fulgencio Batista, e logo o governo dito
revolucionário, e ambos são determinantes na produção cultural cubana.
Assim, se políticas de Estado já apareciam no capítulo dedicado a Frantz Fanon, que
a todo momento estava se havendo com a condição do sujeito em face das contingências
histórias e das guerras de descolonização, agora elas tomam de vez o centro da cena. A
grande mobilidade – territorial e ensaística – de Fanon encontra eco em alguns dos autores
deste capítulo; a presença inescapável de um Estado que se sobrepõe ao que seja da ordem
tanto da criação artística quanto da clínica, e ainda se arroga o direito de deliberar sobre o
desejo dos cidadãos, causa não poucas consequências no campo da cultura. Por isto o falar
de Cuba é, de certa maneira, falar sobre o exílio; onde há censura, as vozes emergem de
lugares outros, neste caso, emergem de um fora que se quer inscrever sempre de alguma
forma na discussão geral.
Diferentemente dos demais capítulos, dadas as particularidades socio-históricas da
Ilha, aqui terá vez a voz do Estado, em sua apropriação do pensamento psicanalítico, como
um agente mais das mudanças do pensamento psicanalítico, em uma de suas facetas menos
nobres, para dizer o menos. Há pouco dizia que o pensamento católico, e as condições
políticas pouco propícias fazem com que Freud já chegue morto em Cuba; pois a política
223
do estado castrista faz de tudo para que o vienense se mantenha nesta condição, e não
ressuscite. E a fala tardia de Castro, nos anos oitenta, é uma marca disso.
Para além da voz do terror, que cerceia o que é da instância do desejo e faz tornar-se
supérfluo ou mesmo subversivo o que é reconhecível como singularidade, vozes outras
vêm desde um exterior, como que a nos fazer lembrar que a cada negação é preciso
considerar uma afirmação contrária.
2.2.1. Das quantas vezes Freud não chegou a Cuba
Terá Freud perdido quantas vezes a viagem a Cuba? Ele não veio à Ilha com a
Revista de Avance – co-fundada por Alejo Carpentier (1904-1980) – cujo primeiro
número é publicado em março de 1927. Carpentier, músico e escritor, filho de europeus,
poderia ter tido contato com as ideias de Freud; no entanto, se se acompanha sua trajetória,
logo se vê que as preocupações que tomavam a ele e a seus contemporâneos eram de outra
natureza, política, antes de tudo:
En el año 27 el Manifiesto Minorista (…), donde pedíamos la cooperación y una unión y
un mutuo conocimiento con los demás países de América Latina, veíamos a América
Latina como una unidad, veíamos una suerte de internacionalismo revolucionario entre
los países de América Latina, protestábamos contra la invasión de nuestras tierras por el
capital norteamericano, etcétera, etcétera, pedíamos la reforma de la enseñanza,
protestábamos violentamente contra las dictaduras, etcétera, hizo que mi situación en
Cuba se hiciese insostenible y me fuese necesario marcharme por imperativos de orden,
diríamos, policial, porque la política me hacía la vida imposible. (Carpentier, Alejo,
1975:151)
Por ter assinado o Manifesto Minorista, ao qual faz referência no fragmento acima,
Carpentier ficaria na prisão de julho até o início de 1928. Ainda naquele ano, fugirá para a
França, onde permanecerá por cerca de dez anos. A Revista de Avance continua ainda
sendo publicada, a cada ano com um novo nome, até 1930.
Trazer esse fragmento tem a função de mostrar como a discussão, por esta época é
sobretudo política ou estética somente. Não parece haver espaço, entre os vanguardistas
cubanos, para a discussão da psicanálise. Inclusive o próprio Carpentier, apesar de sair de
Cuba com a ajuda do surrealista francês Robert Desnoes, e conhecer a todo o grupo na
França – altamente influenciado por leituras de Freud (Cf. Roudinesco, “O surrealismo a
224
serviço da psicanálise” (1986:17-49), termina por desinteressar-se tanto do surrealismo, e
mantém seu silêncio quanto à psicanálise – como se nota pela completa ausência de
referências ao vienense em sua obra – optando sim pelo que ele ufanamente virá a chamar o
“real maravilhoso latinoamericano”. Já nos anos sessenta, reincorporado a Cuba, será
nomeado subdiretor de Cultura. O silêncio de Carpentier quanto à psicanálise, mesmo tendo
militado entre os surrealistas, e antes ainda entre os vanguardistas cubanos, é um indício
bem sugestivo do espaço que terão as ideias de Freud na Ilha de Cuba ao longo do século
vinte.
E se Freud perdeu a viagem com a Revista de Avance, haveria ainda outra chance na
primeira metade do século. A grande revista de cultura dessa época em Cuba é, sem dúvida
alguma, Orígenes. Capitaneada por José Lezama Lima, e com o apoio financeiro do
mecenas José Rodríguez Feo (1920-1993), a revista circulou de 1944 a 1956 e, neste
período, propôs, à sua maneira, um diálogo com Estados Unidos, Europa e América
Hispânica
130
. Se por um lado a revista insere o campo cultural cubano em uma certa
modernidade, esta é bem relativa pois, como se sabe, o catolicismo dominante entre os
membros da revista, impede a inclusão de tendências outras nas páginas da revista, tais
como o surrealismo, o existencialismo e, claro, a psicanálise.
Assim, na história dos doze anos de Orígenes prolonga-se o período de ausência da
obra de Freud na Ilha. Seria preciso esperar até 1956 quando finalmente, nas páginas da
revista Ciclón, dirigida pelo ex-co-diretor de Orígenes, José Rodríguez Feo, e contando
como secretário com Virgilio Piñera (1912-1979), também dissidente origenista, algo
mudará no panorama estabelecido.
Como já disse acima, é em novembro de 1956, que surge um número inteiro
dedicado à obra de Freud. Embora nele se discuta o legado freudiano, a discussão
compõem-se de ecos de terras distantes; o leitor logo nota que entre os textos presentes, a
imensa maioria compõe-se de artigos traduzidos, e há tão somente dois textos de autores
cubanos, os artigos “Freud y Freud” do próprio secretário, Virgilio Piñera e “Freud a los
cien años” de Enrique Collado Portal
131
. Teria que se buscar a posição e a proposta da
revista na escolha dos textos. Tais são os textos traduzidos: um fragmento de Freud
130
Remeto o leitor interessado nas relações internacionais da Revista de Avance ao trabalho de Kanzepolsky (2005).
131
Não foi possível localizar informações precisas sobre Collado Portal, mas tudo indica – por fragmentos do texto – que
era cubano, e que dedicava, de alguma forma, à psicanálise, provavelmente em seu aspecto clínico.
225
chamado “Fugacidad; o artigo de Lionel Trilling “Freud y la literatura”; o poema “En
memória de Sigmund Freud”, de W .H. Auden; o artigo “Miseria de la psicología” de
Manès Sperber; o artigo “Freud” de Blanchot.
O contraste do que apresenta esta edição de Ciclón com o que se discutiu na parte
primeira do trabalho é notória. A possibilidade de um número completo de uma revista
cultural dedicada à obra de Freud é marca da importância atribuída a seu pensamento;
entretanto, o fato de ser esta a primeira publicação do gênero em Cuba, em meados dos
anos cinqüenta, mostra uma grande defasagem em relação a qualquer discussão anterior
sobre o tema ocorrida na América Latina. Tanto é assim que há apenas dois autores
hispânicos. Nas revistas culturais cubanas, até onde pude averiguar, não houve nada antes,
como no caso paulistano, como os comentários sobre psicanálise que iam surgindo
paulatinamente nas páginas de O Estado de São Paulo e da Revista do Brasil, a ecoar e
comentar o que se estava então discutindo noutras partes do mundo. Numa palavra, foi
preciso em Cuba a chegada de um “Ciclone” para que se pudesse discutir a obra de Freud,
já morto.
O ciclone cubano vem se contrapor à revista de cultura por excelência, Orígenes, de
forte tendência católica, a qual parece ter sido um grande veículo de não-difusão do
pensamento psicanalítico. Àquilo que Orígenes silenciara, o grupo de Ciclón parece querer
dar voz. O preço da demora é o exemplar aludido sobre a psicanálise, a discussão que não
se estabeleceu nas gerações anteriores, tem que ser quase que integralmente importada.
Kanzepolsky (2005), no já citado livro dedicado à revista Orígenes, mostra como a
presença de Virgilio Piñera e José Rodríguez Feo na direção de Ciclón, ambos oriundos da
redação de Orígenes, é uma marca de como o catolicismo dominante nas páginas daquela
revista impedia a presença de ideias de outra tendência, provavelmente por conta do veto de
seu diretor, José Lezama Lima, e seus seguidores:
Virgilio Piñera sale muy temprano de Orígenes (sus colaboraciones terminan
aproximadamente en 1949); sin embargo, su pequeña intervención resulta de sumo
interés, ya que al introducir los nombres de Kafka, con un ensayo de su autoría, y de
Gombrowicz, con un texto del autor, y un ensayo de Adolfo de Obieta sobre Ferdydurke
nos posibilita pensar que de haber sido mayor su participación la revista se hubiera
apartado del eje Francia/Inglaterra, que es el que la domina.
“Es cierto también que Rodríguez Feo tuvo durante largo tiempo el proyecto de traducir a
un conjunto de poetas italianos, entre los que figuraban Ungaretti, Saba, Montale, Mario
Luzi y Quasimodo, pero, posiblemente por falta de interés de Lezama, no llegaron a
226
publicarse en Orígenes y se publicarán algunos años después en Ciclón. (Kanzepolsky,
2005:227)
Nota-se, pela leitura de Kanzepolsky, não uma ruptura total entre ambas revistas,
mas uma sorte de reorientação de trajetória, de inclusão no novo veículo de uma pauta
estética e política que não cabia na conservadora Orígenes. Assim, o preço da coerência da
revista de Lezama é a exclusão de vários temas e assuntos; só assim é que se pode pensar
Ciclón como uma revista de ruptura, no sentido de que ela vence uma espécie de marco
auto-regulatório, ou linha editorial da velha revista da Ilha. É o que se lê no editorial-
manifesto da primeira edição de Ciclón: “Nacimos del antagonistmo y de la ruptura. O con
mayor exactitud, nacimos de la negación” (Arrufat, 1956). O brado de Arrufat poderia ser
lido, talvez com maior precisão, principalmente a frase “nacimos de la negación”, como
tendo sido Ciclón originada pelas negações impostas pela publicação de Lezama. Quem
nega, num primeiro momento, é Orígenes, ao proscrever de suas páginas a psicanálise, o
existencialismo, o marxismo, o surrealismo; Ciclón é o retorno do que é negado ou, numa
palavra, nasce dessa negação.
Ao ser tomada dessa forma, Ciclón não é necessariamente uma revista inovadora
per se, ela apenas inova por trazer temas que até então estavam relegados ao silenciamento
naquele dado contexto. Assim, o grande interesse de sua abertura à psicanálise é, antes de
tudo, falar sobre o que não se podia falar até então. E tal expediente já ganha se reveste de
um caráter renovador. É o mero gesto da publicação de Ciclón o seu maior triunfo, pois sua
publicação estabelece uma nova via, um novo olhar, uma nova pauta.
A duração do Ciclón, como convém aos arroubos de vanguarda, será breve, e sua
desaparição será contemporânea ao fim da ditadura de Fulgencio Batista, com o
recrudescimento da guerrilha em Cuba, que culminará com a ascensão do governo
revolucionário ao poder. É em tal conturbado contexto histórico que a publicação da revista
é interrompida:
En el mes de julio de 1957 se suspendió la publicación de esta revista porque en los
momentos en que se acrecentaba la lucha contra la tiranía de Batista y moría en las calles
de la Habana y en los montes de Oriente nuestra juventud más valerosa, nos pareció una
falta de pudor ofrecer a nuestros lectores ‘simple literatura’. (Rodríguez Feo apud
Kanzepolsky 2009:sn, grifos meus)
227
Esse modo menor de referir-se ao literário aparece com frequência nos textos da
Ilha. É possível ler esta posição de Rodríguez Feo numa chave semelhante à que propus
acima para Carpentier: o compromisso político antes de tudo.
Ciclón publicará ainda um único número em 1959, de onde foi extraído o fragmento
acima, mas seu papel no panorama cultural cubano termina sendo mesmo o de um
suplemento a Orígenes. Em tal panorama é que pretendo projetar os dois textos publicados
sobre Freud na edição especial de Orígenes de fins de 1956, ou seja, o que pretendo é
enfatizar o caráter de resistência de Ciclón, agora marcado pelo viés da psicanálise.
Tem-se abordado costumeiramente, por oposição, as revistas Ciclón e Orígenes.
Afinal, há oposições, e o gesto parricida é sempre eloqüente. Entretanto, tal abordagem é
matizada na obra de Kanzepolsky (2009), que entende que a relação de Ciclón em relação a
sua antecessora é antes da ordem de um deslocamento, de uma mudança de rumo. Seria
possível ainda dizer, como afirmado acima, que Ciclón, por mais que se postule como
portadora de uma negação é, na verdade, efeito de uma negação anterior, como que
trazendo à ordem do dia o que não se podia falar na casa paterna. Não há gesto parricida
que não seja também ele, um gesto de afirmação do poder do pai. Como não há negação,
como já o disse Freud, que não coloque em cena o seu contrário. E tão imbricadas estão as
duas revistas, que ambas param de ser publicadas na mesma época. O papel de Ciclón
termina por ser o de uma sombra de Orígenes; não há, em seu contexto, formado pelo
próprio trabalho de mais de uma década de Orígenes, um público ávido por ela. Tal público
teria de ser criado. Ciclón termina por se esgotar em sua referência à antagonista.
2.2.2. Dois artigos sobre psicanálise em Cuba – olhar da fresta
O artigo já aludido de Enrique Collado Portal, “Freud a los cien años” em qualquer
outro contexto seria um texto sem maiores consequências, de um autor hoje inteiramente
desconhecido. Mas em Cuba, tem o seu caráter fundador, e é pleno de consequências para a
leitura que aqui farei.
Nele, o autor faz um percurso do que ele nomeia como antifreudismo – as diversas
resistências à psicanálise, dos pacientes, dos seguidores de Freud, e de seus detratores
228
contemporâneos, inclusive cubanos. O tema da resistência como inerente à psicanálise, ao
ser publicado numa revista cubana que propõe romper tal resistência, é significativamente
apropriado. O alvo de Collado parece ser mesmo o seu entorno conservador, quando diz
que a psicanálise freudiana já era considerada superada por alguns no início dos anos
quarenta:
Hace más o menos quince años un distinguido intelectual cubano me insistía en la no
vigencia, ya en ese momento, del psicoanálisis al cual consideraba superado como
método de investigación y tratamiento. (Collado Portal, 1956:36)
Ato seguido, o autor historiciza a resistência à psicanálise, de modo a relativizar a
assertiva do tal “intelectual cubano”. Habilmente, o autor, ao traçar as linhas gerais do
movimento analítico, tanto nas elaborações de Freud como nas ulteriores, termina por
desautorizar o que se diz em Cuba contra a psicanálise, ao projetar tais resistências numa
série maior e histórica. Para além da resistência do intelectual cubano, alude ainda à
resistência política à psicanálise, mostrando como as tendências refratárias à tal clínica, no
contexto em que o autor escreve, estão para além das que Freud havia suposto:
Freud vivió en una época en que e odium theologicum había sido reemplazado por el
odium sexicum pero no aún por el odium politicum. De este último parte quizás la
acusación al psicoanálisis de apoyar y defender determinado régimen social o económico.
(Collado Portal, 1956:37)
Ao fazer tal afirmação, de alto potencial provocativo, o autor equipara a resistência
política à psicanálise à resistência decimonônica ao que era da ordem do sexual. Atingir
com a pecha de retrógrados aos antagonistas da psicanálise e compará-los aos puristas
sexuais sem grande elevação do tom do texto é um dos grandes achados desta página de
Collado Portal. Com ela também, evidentemente, o autor logra deslocar a discussão
psicanalítica para seu contexto imediato.
Finalmente, Collado termina seu artigo posicionando-se cabalmente a favor da
psicanálise, e diminuindo o alcance dos seus críticos: “Lo verdaderamente insólito es que
[...] a los cien años de Freud, sintamos claramente que esta historia no ha hecho más que
comenzar” (Collado Portal, 1956:38). Pelo desenrolar de sua argumentação, fica evidente o
afã de uma defesa da clínica psicanalítica, quase uma defesa de sua legitimidade e sua
eficácia. Embora não tenha sido possível obter dados concretos sobre esse autor, Collado
229
parece falar desde a clínica, como psiquiatra ou psicanalista; e, como ficou claro, contra os
intelectuais cubanos que se posicionam contrariamente à psicanálise.
Logo se nota que o que ocorre aqui é o contrário da tendência geral da entrada da
psicanálise em São Paulo, a qual se deu, em grande parte, pela via dos intelectuais mais do
que propriamente pela clínica. Em Cuba, é a partir da clínica que se faz a crítica da
resistência à psicanálise no campo social. Curiosa inversão. Agregue-se ainda que, no
entender de Kanzepolsky (2009), a oposição que representa Ciclón no campo cultural
cubano, faz com que, mais do que se discutir os postulados freudianos, já seja um grande
avanço poder falar-lhe o nome, rompendo com o embargo que as páginas de Orígenes
capitaneada por José Lezama Lima – terminam por lhe impor. No entender de
Kanzepolsky, negar Orígenes significava
Entre otras cosas, trocar el tono grave que la caracterizó y darle lugar a un registro lúdico
e irreverente, permitir que la vanguardia, la polémica, el anticlericalismo e y
sicoanálisis ingresasen a sus páginas. Cambiar la opción de la primera hacia los poetas
católicos por un discurso que mirase de frente y sin ambages la sexualidad,
cualquiera fuera su signo. (Kanzepolsky,2009, grifos meus)
Assim, entende-se que o gesto de publicar um número sobre Freud já pode ser
considerado um gesto político, de incluir na pauta um tema que até então não tinha vez. E a
habilidade de Collado, de mapear o campo de atuação dos seus opositores é digna de nota.
O artigo de Piñera, por sua vez, é uma lufada de ar na aridez de três desertos – para
me apropriar de uma expressão de Nelson Rodrigues (1967) – que dominava o panorama
cubano. Explico-me. Ao que consta, é o primeiro artigo sobre literatura e psicanálise
publicado na ilha cubana. Em “Freud y Freud”, Piñera lê o vienense não como se ele fora
um cientista, mas como poeta. Os sonhos relatados na Interpretação dos Sonhos e as
análises de Freud são entendidos por Piñera, também eles, como assombrosas metáforas,
elas mesmo sendo uma criação literária. A perenidade da obra freudiana, Piñera a vê não
em sua clínica, mas em sua verve poética, no que ela traz de assombro:
Freud es un gran artista en tanto que intérprete de la vida psíquica del hombre. Su fantasía
poderosa, que se sitúa entre los grandes artistas de todas las épocas, lo lleva, con poderes
de brujo a construcción de un mundo que al par que implacablemente lógico es también
implacablemente ilógico. (Piñera, 1956:48)
230
Após citar um dos sonhos analisados na Interpretação dos Sonhos, em que se
desvela um marcado conteúdo sexual, Piñera ressalta o paradoxo de que, através de um
método por ele qualificado de científico, o psicanalista vienense tenha obtido como
resultado uma construção igualmente assombrosa, em que se conjugam a razão e a
desrazão:
Si un sueño ya es de por sí pasmoso, mucho más pasmosa será la interpretación que Freud
nos da del mismo. [...] Esto es lógico, es científico, es serio: hay que tener en muy en
cuenta que Freud no llegó a descifrar los sueños sino después de haber elaborado un
método riguroso. Sin embargo, que esos ladrones y esa policía representen los órganos
masculinos, que capilla, bosque y montaña sean los femeninos, que los escalones que
conducen a la iglesia sean el símbolo del acto sexual, es tan onírico, tan pesadillesco que
no puedo menos que sentirme enredado en nueva maraña. (Piñera, 1956:47-8)
Destaco da leitura de Piñera o aspecto estético tanto das construções oníricas quanto
das interpretações psicanalíticas. Como artista criador, é possível ver a busca de tal
assombro na construção das obras de Piñera, onde o elemento onírico e o absurdo aparecem
com frequência. Piñera termina por fazer o elogio em Freud das características que ele
próprio desenvolve em sua obra narrativa.
Bastem-nos o exemplo do colorido psicanalítico – o cheiro de psicanálise piñeriano
– presente em um dos contos do autor. Trata-se de “Un parto insospechado” (1957), que
comporá o livro El que vino a salvarme (1970), no qual é contada a história do homem de
cinquenta anos que, após sentir o mal estar físico de perceber sua cabeça unida a seus pés,
tem na presença de sua velha mãe – uma anciã de setenta anos – o alívio necessário. Ele
retorna ao útero da velha, onde permanecerá por nove meses, até poder recomeçar a vida. A
mãe, regozijante, ainda afirma aos amigos do filho: “Este hará fortuna en la vida, empieza a
patear desde muy temprano... Por lo demás, todo consistirá em tener paciencia durante
nueve meses. Esperemos que será un parto feliz.” (Piñera, 1957 in 1999:152). Chama a
atenção que a atmosfera criada pelo narrador de Piñera, própria do assombro onírico,
remeta àquela a qual ele próprio – como ensaísta – sublinha na obra freudiana.
Não que se deva meramente atribuir isso a uma influência freudiana, mas nota-se
uma sorte de identificação entre a produção onírica e a literatura tanto na leitura que Piñera
faz de Freud como em sua própria produção literária
132
. A produção literária de Piñera,
132
Nesse sentido, seria possível enfeixar uma série de relatos de Virgilio Piñera, nos quais vê-se tal cor psicanalítica, por
seu aspecto onírico. Por exemplo, em seus Cuentos Fríos, há contos construídos a partir do elemento onírico – como
231
aliada a sua breve reflexão sobre Freud, permitem mostrar de que forma sua produção se
inscreve no contexto psicanalítico, e permitem ainda mostrar o alcance do número de
Ciclón dedicado a Freud para além do que poderia ser a defesa da clínica, antes a defesa do
absurdo como inerente ao psiquismo.
Ambos os artigos, o de Piñera e o de Collado Portal, em sua árida solidão cubana,
têm ao mesmo tempo um caráter profundamente representativo do que será a situação da
psicanálise na Ilha. A partir dessas páginas é possível determinar, em linhas gerais, as
posições em relação à psicanálise no campo cultural cubano.
A de Piñera, a do artista criador que se interessa, que se apropria da psicanálise de
alguma forma em seu trabalho literário, em sua reflexão: a via do assombro psíquico
associada à criação estética. E a via de Collado Portal, a da clínica, é aquela que encontra
mais dificuldade no país, como passarei agora a discutir. O que é importante dizer,
cabalmente, portanto, é que seja na via da criação literária ou na da clínica, a psicanálise
não parece ter lugar em Cuba.
2.2.3. De Freud a Pavlov, via Fidel
A visada política em relação à psicanálise ganhará outros contornos com a ascensão
dos revolucionários e logo de Fidel Castro ao poder na Ilha. Se já no artigo de 1956, ainda
sob a ditadura de Bastista, notava-se na argumentação de Collado Portal uma sorte de
réplica à resistência em Cuba por parte dos intelectuais, a oposição a ela se acirrará nos
tempos vindouros, agora sob o jugo dos ditos revolucionários.
O ano de 1959, laudatoriamente chamado “Ano da Libertação”, coincide com o
fechamento de teatros em Havana pelo novo governo, onde eram exibidos filmes
pornográficos e havias strip teases (Cf. Barreto, 1996:129). Este choque de moralidade,
“Proyecto para un sueño” (1944), em que o sonho deixa de ser construção onírica para tornar-se elaboração consciente –
quanto sobre a impossibilidade de adormecer – “En el insomnio” (1956). Também no plano do teatro de Piñera seria
possível estabelecer relações com o pensamento freudiano. Neste sentido, a peça Electra Garrigó é um exemplo
claríssimo, pela via da retomada da tragédia grega via o teatro do norte-americano Eugene O´Neill: “A Electra Garrigó de
Virgilio Piñera, escrita em 1941, assemelha-se à de O´Neill pela saturação de referências freudianas, a ponto de
adquirirem um tom paródico, como também pelo processo de duplicação das personagens, assim como pela utilização do
efeito de congelamento da expressão dos atores, transformando seus rosto em um análogo da máscara” (Pereira, 2001:144,
grifos meus). Nesse sentido, a obra de Virgilio Piñera possibilita e pede uma análise mais detida que considere o
pensamento psicanalítico.
232
esta domesticação da sexualidade está longe de ser um gesto isolado, antes faz parte de uma
tendência que será dominante nos anos vindouros, até ganhar os contornos de uma política
governamental, claramente exposta pelo governo castrista.
E para que o pesquisador tenha acesso às fontes primárias que tratam desta polícia a
tarefa não é fácil. Embora muitos dos anais de congressos e reuniões do governo
revolucionário tenham sido publicados em periódicos como a Revista del Hospital
Psiquiátrico de La Habana, o que implicaria não só uma viagem à Ilha de Cuba, como
complicados trâmites para ter acesso a tal material. Assim, artigos e compilações
disponíveis na Internet são fontes fundamentais de acesso; a maior parte dela vem de
cubanos exilados que as tornam disponíveis na rede
133
.
Em seu artigo “Psiquiatría para el nuevo Estado; algunos documentos”, o poeta e
médico cubano Pedro Marqués de Armas (2006) reconstrói o percurso da política
psiquiátrica cubana ao longo dos anos sessenta. O autor mostra como há ao longo daquela
década uma paulatina ascensão de profissionais da área médica para cargos de comando
que visam uma política psiquiátrica baseada em abordagens bastante específicas. Um
exemplo disso é a nomeação do psiquiatra marxista Diego González Martín, seguidor de
Pavlov, “reflexólogo destacado y crítico feroz del psicoanálisis” (Marqués de Armas,
2006), como Coordenador Nacional de Psiquiatria. Na toada de sua ascensão a tal cargo de
mando, segue-se a publicação de várias obras de divulgação das teorias de Pavlov e Anojin,
nas quais também se vê – sempre de acordo com Marqués de Armas – a defesa dos
tratamentos químicos, e fortes críticas ao pensamento freudiano. Em tais críticas, linda-se
com a ridicularização das teorias freudianas, as quais são qualificadas como mistificadoras:
En estos años fueron cada vez más frecuentes las críticas al psicoanálisis, que en realidad
había influido en la formación de no pocos psiquiatras y psicólogos cubanos, una parte de
ellos miembros del Grupo de Estudios Psicoanalíticos. Según la retórica ad usum,
semejante a la que imperaba en los medios literarios, se podía militar en cualquier
escuela siempre que el contenido fuera revolucionario”. No obstante, las críticas
subieron de tono, y de calificar al psicoanálisis como “método no científico” se pasó
a definirlo como “mera fantasía que no se eleva más allá de la alquimia y la
astrología. (Marqués de Armas, 2006, grifos meus)
133
Fazer este parênteses neste momento tem o alcance de dizer que, neste capítulo, está-se tratando de uma história de
repressão cujo último capítulo ainda não foi escrito. Assim, o papel dos memorialistas é fundamental, entendidos aí desde
escritores como Reinaldo Arenas (1992), como compiladores de informações, como o médico e poeta cubano Marqués de
Armas (2006).
233
Dentre as críticas à psicanálise freudiana, e a recomendação oficial de sua
substituição pelas ideias de Pavlov, pode-se destacar um artigo de Eduardo Bernabé Ordaz,
na Revista del Hospital Psiquiátrico. Tal revista, que anteriormente havia sido extinta,
ressurge com grande tiragem. O tom do artigo, claro está, é de pleno acordo com a nova
política estatal:
Si entendemos por conocimiento científico todo aquel obtenido por método experimental,
objetivo, demostrable y reproducible, la Psiquiatría Soviética llena a cabalidad estos
postulados, y ha sido por ello que se ha visto ceder la imaginación freudiana ante la
metodología más eficiente del sabio ruso I. P. Pavlov. (Bernabé Ordaz, Eduardo: Revista
del Hospital Psiquiátrico de La Habana, 1963, vol 4, no 3, julio-septiembre, p. 460 apud
Marqués de Armas, 2006)
Marqués de Armas se refere ainda a uma paulatina radicalização da resistência à
psicanálise em Cuba quando, por exemplo, em 1965, é publicado o artigo “Algunas
consideraciones críticas sobre la teoría freudiana” por Diego González Martín, na revista
Cuba Socialista, com o propósito de, nas palavras do autor, dissuadir “los escasos núcleos
de freudianos revolucionarios que mantienen sus ideas”. O objetivo agora, segundo
Marqués de Armas, não era mais o extermínio do pensamento freudiano, mas a sua
cooptação pelo governo: “González Martín, que antes de la Revolución calificara al
psicoanálisis, en polémica con Roberto Sorhegui, de “superchería científica”, planteaba
ahora la necesidad de valorar al freudismo desde una metodología dialéctico
materialista…” (Marqués de Armas, 2006)
Adiantando-me a uma discussão que terá toda a importância no caso de autores
como Virgilio Piñera, Severo Sarduy e, mais contemporaneamente, Reinaldo Arenas, é
importante deixar claro como há, por parte do estado cubano, um programa de “cura” para
o homossexual. Valha-nos o exemplo da Mesa Redonda sobre Homosexualidad, ocorrida
em fevereiro de 1971, na qual chegou-se às seguintes conclusões:
1) "La homosexualidad constituye una patología que trasciende los límites de la
individualidad y pasa a constituir una patología social por el carácter antisocial que esta
actividad conlleva en la mayoría de los casos”.
2) "La homosexualidad es un tema complejo y difícil de tratar y requiere un enfoque
cuidadoso y preciso como condición previa para abordarlo. Sólo así se podrá entrar en
este campo, en el cual aún quedan elementos importantes por descubrir”.
3) "La homosexualidad es una enfermedad compleja con graves repercusiones sociales”.
4) "El homosexualismo es una enfermedad, es decir, es una condición psicopatológica”.
5) "El pueblo siempre rechazó al homosexual. Era el régimen capitalista el que propiciaba
la corrupción donde el homosexual se desarrollaba. Hoy día, por nuestra conformación,
por una concepción diferente de los valores morales, el repudio es mayor, y a todos los
234
niveles de nuestra sociedad: dirigencia y masas" (Martín Castellanos, “Mesa redonda
sobre Homosexualidad”, fev. 1971 apud Marqués de Armas, 2006)
Ressalte-se que, em sendo a homossexualidade uma patologia, haverá por parte do
Estado a prerrogativa de tratá-la e curá-la. Para tanto, entram em jogo os cientistas do
sistema. Em 1962 já se publicara na Revista del Hospital Psiquiátrico, um artigo de
Eduardo Gutiérrez Agramonte, sobre o tratamento da homossexualidade. O tratamento
consistia numa adaptação de uma ideia de um tcheco, e era baseado no uso de eletrochoque:
Se trataba de una técnica desarrollada por el investigador checo Kurt Freund, pero
adaptada por el cubano. Si aquel empleaba como estímulo inhibidor un vomitivo, y dosis
subcutáneas de testosterona tras la observación por el sujeto de láminas de desnudos
masculinos; éste aplica un corrientazo en lugar del vomitivo, al tiempo que suprime la
hormona y deja al paciente “elegir la imagen”. La terapia fue calificada de
“prometedor aporte cubano a la reflexología”, y se aplicó hasta bien entrada la
década del setenta. (Marqués de Armas, 2006, grifos meus)
Note-se como se imbricam ideais políticos e prática clínica. Mostrei no capítulo
anterior, como a prática política e os ideais clínicos estavam presentes no primeiro livro de
Fanon; e que quando Fanon voltou-se para a prática clínica, houve uma sorte de cisão em
relação a seus ideais políticos, que não entravam no espaço de seu consultório. Pode-se
agora mensurar, em todo seu alcance, o resultado do gesto individual de Fanon por um
lado; e as consequências nefastas da ideologização ou aparelhamento da clínica, por outro.
As fontes primárias aqui indicadas, às quais o autor destas linhas não teve acesso,
certamente constituem vasto material para análise, que poderia implicar em
desdobramentos para este trabalho. Entretanto, o objetivo principal, no que tange à presente
reflexão, é nada mais que indicar como a apropriação do pensamento psicanalítico em Cuba
fica, a partir da dita revolução socialista, muito mais na mão do Estado do que dos
escritores ou dos próprios psicanalistas. E à maneira do que foi dito na seção sobre Ciclón e
Orígenes, as vozes cubanos que representem um contraponto a tal sanção, irão perdendo o
espaço, sendo relegadas, num momento posterior, ao espaço do exílio.
Sirva-nos de contraponto, o relato de quem experimentou o cotidiano desta Cuba
militante contra a homossexualidade. Antón Arrufat, no prefácio à edição espanhola dos
contos completos de Virgilio Piñera, refere-se à política anti-homossexual em Cuba, e a
mostra num crescendo, que vai da metade dos anos sessenta até os anos setenta:
235
[...] desde 1965 había empezado a esbozarse una política antihomosexual [em Cuba]. En
ese año y durante el siguiente se llevó a la práctica dicha política: se crearon campos de
trabajo en provincias y algunos artistas y escritores fueron internados en ellos. (…) En
abril de 1971 la política homosexual quedó manifiesta y patente, durante la celebración
del Primer Congreso de Educación y Cultura, y mediante la promulgación de una ley
laboral que impedía a los homosexuales ocupar cargos de cierta relevancia en la esfera
cultural. (Arrufat, 1999:16).
O autor prossegue dizendo que posteriormente tal política foi abandonada e, no fim
dos anos noventa – quando ele escreve o texto – é considerada um anacronismo. Ainda
assim, seu depoimento serve para mostrar a homossexualidade em sua dimensão
ideológica. Caberá a Reinado Arenas, em seu Antes que anochezca, explorar tal aspecto,
como veremos adiante.
2.2.4. Lezama Lima – viajante ilhado– a homossexualidade e a psicanálise
Tal como opus Ciclón e Orígenes há pouco, tem sido expediente comum abordar
Virgilio Piñera como um antípoda de José Lezama Lima, estilisticamente, fisicamente. E,
em consonância com tal abordagem, não há aproximação a Piñera que desconsidere
Lezama Lima, tal a identificação que se estabeleceu entre ambos. (Cf. Arenas, 1992;
Barreto, 1996). De certa forma, tal abordagem mostrar-se produtiva, pois se trata de
escritores que lograram construir obras bastante antagônicas. O exemplo claro disso é a
oposição entre as revistas nas quais ambos militaram.
Entretanto, na abordagem aqui proposta, pela via do desejo e da relação com a
psicanálise, o que se vê no caso de cada qual são posições bastante distintas em relação ao
pensamento psicanalítico; aliás, nem seria correto falar em “pensamento psicanalítico”, no
caso de ambos, já que nas referências que se vê na obra deles é um ponto de vista em
relação a Freud, mais que à psicanálise. E, no caso específico de Piñera, em seu “Freud y
Freud”, o tom é de deslumbramento; como se Piñera, mais que um teórico, estivesse se
deparando com um precursor
134
.
Em Lezama Lima, a nos pautarmos pelos comentários que se podem ver em seu
Paradiso, a visão em relação a Freud é sempre jocosa. E no seu caso, o leitor tem que se
134
No sentido dado por Borges no já referido “Kafka y sus precursores”.
236
contentar com o que dizem seus personagens, pois ao que consta, inexistem juízos pessoais
de Lezama acerca do psicanalista vienense
135
.
A premissa da leitura que ordena a análise de Lezama Lima, portanto, vai por outra
via, que não um caminho que o pudesse conduzir diretamente a Freud. Proponho uma trilha
indutiva, a partir da qual seja possível aproximar-se do tratamento de alguns temas em
Lezama que são também do escopo da psicanálise, de modo geral, e do presente capítulo,
de modo específico. Refiro-me a um aspecto que deve ser considerado a uma aproximação
ao campo cultural cubano de meados do século vinte, a homossexualidade. A quase
totalidade dos autores discutidos ao longo deste e do próximo capítulo é homossexual:
Lezama Lima, Piñera, Arenas e Sarduy; e todos eles, de alguma forma, tomaram o
elemento sexual e direta ou indiretamente a psicanálise como parte de seus temas de
interesse.
No caso de Lezama Lima, sua posição em relação a Freud parece oscilar entre a
indiferença e o escárnio, na medida em que a discussão sobre o sexual em sua obra
constrói-se em oposição ao pensamento freudiano. Cintio Vitier, responsável pela edição
crítica, notas e comentários diversos de Paradiso, afirma em certa nota que
Salvo ocasionales alusiones, están ausentes [em Lezama Lima] las teorías freudianas,
tanto como el ‘inmoralismo’ esteticista del autor de Corydoni (1924) [Andrés Gide].
Todo el diálogo [entre Fronesis, Foción e Cemí] tiene lugar dentro del universo cultural
creado por Lezama, del mismo modo que los diálogos socráticos no salen fuera del
pensamiento de Platón. (Vitier & Sariol, “nota 51 al capítulo IX” in “Notas Finales” in
Paradiso, op. cit., p. 499)
A orientação normativa de Vitier & Sariol – autores da nota acima – mostra, em sua
enfática negação, o afã de salvar o católico Lezama da heresia freudiana. Para tal, elevam-
no à estatura de um Sócrates, detentor de um universo cultural próprio, no qual a
psicanálise não faz parte, quase uma Ilha. Entretanto, é situando Lezama como anti-
freudiano que se pode melhor mostrar sua relação com a obra do vienense ou com as ideias
da psicanálise de modo mais amplo. Já estará mais do que claro a esta altura que negação é
135
No alentado volume das cartas de Lezama Lima à sua família, encontra-se tão somente uma referência explícita a
Sigmund Freud, e nela, curiosamente, o interesse de Lezama não recai sobre o vienense, antes sobre sua corresponsal: “Te
recomindo también el interesantísimo libro publicado por la editorial Siglo XXI, Freud, Andreas Salomé.
Correspondencia. sabes que la Salomé es una de las mujeres más interesantes de su época (1861-1937). Fue amiga de
Nietzsche y amante de Rilke, pero sobre todo una inteligencia deslumbradora. María Luisa lo está leyendo con gran
deleite. No lo suelta y tengo que decirle: Ya es hora de comer” (Lezama Lima, La Habana, 21 de octubre de 1974,
1998:188). Chama a atenção do leitor a oposição entre o deslumbramento demonstrado por Piñera, em seu já citado artigo
e a total indiferença de Lezama Lima em relação a Freud.
237
uma forma de relação, não de impermeabilidade. Pois, em certos fragmentos de Paradiso,
Lezama Lima se põe a debater, ainda que lateralmente, com Freud; conhecia suas ideias,
portanto, e posicionava-se em relação a elas. É bem difícil admitir que ao longo do século
vinte seja possível estabelecer alguma reflexão sobre a sexualidade, e ainda mais sobre a
homossexualidade, que não considere o pensamento de Freud, mesmo na Ilha de Cuba.
Proponho partir do capítulo IX de Paradiso, saturado de significantes que podem
ser lidos como sendo da ordem do sexual. Na construção de algumas imagens, por mais que
o significado para o qual a metáfora aponte não seja necessariamente da ordem do sexual,
sim o são os significantes que o compõem. Além disso, o tema do capítulo – que aparece
nas discussões, sonhos, delírios do personagem Cemí – é também da ordem do sexual;
assim, o sexual, sugerido a todo o momento, sobrepõe-se a fatos da história de Cuba, que
são lidos numa chave muitas vezes sociológica, nas notas de rodapé da edição crítica de
Cintio Vitier.
A chegada do personagem principal, o jovem Cemí à universidade de Upsalon o
deparara, ao longo das páginas do capítulo, com o deslumbramento, seja pelos garotos, seja
pelas garotas que ele conhece, e toda uma rede de discussões e experiências sobre a
sexualidade, que o deixam atônito. O leitor acompanha, desde o início, o olhar perdido do
jovem cristão, que depois de ter participado de uma grande passeata de protesto, nos é
mostrado recuperando-se de uma forte crise de asma, fruto da afetação física que sentiu
diante das palavras da mãe. Segundo o narrador
(1) las palabras más hermosas que Cemí oyó en su vida, después de las que leyó en
los evangelios, y que nunca oirá otras que lo pongan tan decisivamente en marcha,
pero fueron tantas las cosas que recayeron en ese día sobre él, que comenzó a sentir esa
indecisión nerviosa que precede a la sibilación bronquial, de una crisis asmática. (Lezama
Lima, Paradiso, IX:232, grifos meus)
O efeito prostrante, físico, das palavras maternas, que deixam Cemí ao mesmo
tempo embevecido e impotente, levam o leitor diretamente ao príncipe Hamlet, bestificado
diante do desejo materno, conforme a leitura lacaniana da primeira parte deste trabalho. O
que dissera a mãe é que morto o pai, suspenderam-se os sentidos, ela ficou “sin respuesta
para el resto de mi vida”, e acrescenta o jovem que “alguno de nosotros daríamos
testimonio al transfigurarnos para llenar esa ausencia [del padre]” (Lezama, IX:231). Ele, o
238
jovem Cemí, sente-se o escolhido para tal tarefa, pois, segundos antes, a mãe já havia
identificado o pai morto ao filho, ao dizer que aquele falecera há dez anos, e que ela agora
temia a morte do filho, “ahora que percibo que vas ocupando el lugar de él” (Lezama,
IX:230).
Embora orgulhoso e embevecido, o efeito devastador das palavras maternas produz
em Cemí a crise de asma e, igualmente ao que ocorrera com Hamlet, uma certa ojeriza às
jovens raparigas em flor que ele encontra na universidade, com seus “pronunciados pechos
potentes” e que “intercambiaban sonrisas y melindres con jóvenes que parecían en acecho
para la caza del unicornio, entre la fuente y las enaguas de una princesita de Westfalia.”
(Paradiso, IX:238). O frágil rapaz, outra vez, se abala: “Aquél escándalo molestaba a
Cemí, que se dirigió a la escuela de Filosofía y Letras, en busca de reposo y de horas
serenas.” (Paradiso, IX:238). Ato seguido, como que em oposição às moças que lhe
pareciam vulgares, encontra um grupo de estudantes em uma conversa intelectual – que
poderia ser qualificada de socrática – dentre os quais, chama-lhe a atenção o colega
Fronesis, a quem ele considerara um sedutor pois “tenía la facultad de crear coordenadas
que convergían hacia él.” (Paradiso, IX:238), e que, na véspera, o havia salvo no meio da
confusão do protesto.
A partir desse panorama é que se estrutura o capítulo: a passagem da vida familiar
para a vida social, com as escolhas da ordem do sexual que tal passagem implica, a partir
das coordenadas familiares que incluem o pai morto e a mãe dominadora. Entre as moças
consideradas por ele vulgares e os rapazes intelectuais, Cemí escolherá estes últimos. Serão
figuras permanentes no capítulo o já aludido colega Fronesis, mas também o jovem
Eugenio Foción, de vinte e quatro anos, que apesar de não ser estudante, fazia questão de
frequentar a universidade e manter conversas filosóficas com os estudantes. Foción exerce
certo fascínio sobre Cemí.
O tema da sexualidade, como já disse, pulula ao longo de todo o capítulo, de forma
mais latente ou mais explícita. Cemí – mas também o leitor – é surpreendido com sonhos,
vozes e falas que o tomam, e no qual há muitas imagens, metáforas e significantes que
ganham contornos sexuais.
A abordagem da sexualidade por Lezama Lima não tem nada de óbvio, pois seu
conjunto de referências é demasiado amplo, e passa pela filosofia e cultura grecolatinas,
239
cristãs, além de diversas religiões e cultos obscuros, e da psicanálise – sempre em tom de
sátira. A saturação do sexual inclui a paródia do romance familiar freudiano, mas sempre de
maneira velada, sutilíssima, todo o contrário da sátira escancarada promovida por Nelson
Rodrigues.
Inicialmente, as alusões são laterais, como a referência que faz a mãe, cujo marido
morrera há dez anos, e de sua angústia pela demora do filho. Há cenas como o rechaço do
hamletiano Cemí às garotas na universidade. Antes porém, Cemí encontra Foción na
livraria conversando com um amigo desconhecido, e começa uma brincadeira de pedir
livros inexistentes ao vendedor, como “El Goethe de James Joyce, que acaban de publicar
en Ginebra” (Lezama, IX:236); o desconhecido se perturba e sai da livraria pois, segundo o
narrador
(2) Su madre y su padre acababan de divorciarse. Tenía una crisis sexual que se revelaba
en una falsa y apresurada inquietud cultural, que se hacía patológica ante las novedades
de las librerías y la publicación de obras raras (Lezama, IX:237)
No caso acima, trata-se de evidente sátira ao discurso freudiano, em que através da
fala burlesca de Cemí, cujas associações disparatadas de nomes de obras e autores, produz
uma crise de angústia no cliente da livraria.
Outro exemplo de alusão é quando Cemí vê um grupo de estudantes de Upsalón em
torno a uma imagem do deus Término – o deus latino que guarda os limites das
propriedades – que nos é assim descrita:
(3) En el centro, el dios Término, con una mandíbula moviente, que remedaba una risa
solfeando un solo hecho, con un enorme falo, y en la mandíbula, correspondía un
movimiento rítmico de la mano con el cuerno que tapaba hímnica longura del falo. El
comentario alegraba a todos los grupos en un esperma naciente. (Lezama Lima, Paradiso,
IX:243)
Também aí há espaço para um comentário lateral que trata de simbolizar a imagem
onírica, que pode ser lido como paródia de Freud: “Delfines, símbolo de um desvío sexual,
que retozan cerca de la concha donde la cipriota diosa se envuelve en sus velos de salitre.”
(Paradiso, IX:243).
A certa altura, o que era só aludido se torna tema e, estabelece-se entre Fronesis e
Foción um diálogo filosófico acerca da homossexualidade. Em tal discussão encontram-se
dois elementos fundamentais: inicialmente, a escolha da homossexualidade como tema
240
indica uma consonância com a pauta de debates cubana contemporânea à escrita do livro,
como vimos na seção anterior. Pois se embora possa prevalecer a ideia de que a obra de
Lezama Lima limita-se a este espaço quase onírico (que ele mesmo chamava
“sobrenaturaleza”), noutro nível de leitura, veem-se tanto a discussão dos postulados
freudianos (igualmente postos em crise, pela sátira, como no nível da discussão
governamental), quanto da discussão do tema caro ao governo castrista: o estatuto da
homossexualidade, crime, desvio, doença, pecado etc. Quanto a tal pergunta, a resposta
posta na boca dos personagens de Lezama é intrigante:
(4) Fronesis hablaba de que el desvío sexual era una manifestación de la memoria
ancestral. El hombre de las eras fabulosas – decía Fronesis sin ninguna exaltación, pues
siempre rehusaba todo problematismo sexual, el sexo era para él, como la poesía, materia
concluyente, no problemática – tendía a reproducirse en la hibernación, ganaba la
sucesión precisamente en la negación del tiempo. (…) Las estaciones del hombre no
pueden ser sucesivas, es decir, hay hombres en los cuales ese estado de inocencia, ese
vivir en niñez, pervive toda la vida. El niño que después no es adolescente, adulto y
maduro, sino que se fija para siempre en la niñez, tiene siempre tendencia a la
sexualidad semejante, es decir, a situar en el sexo la otredad, el otro semejante a sí
mismo. (Lezama Lima, Paradiso, IX:247, grifos meus)
Ser homossexual para Fronesis, de acordo com o fragmento acima, não constitui um
problema, tão somente uma manutenção da sexualidade infantil, de uma sexualidade
especular, em que se deseja o semelhante como a si mesmo. Por tal visão, a vida humana
não é composta de etapas sucessivas, mas de diferentes etapas, e pode-se permanecer em
uma delas ao longo da vida.
Foción retrucará, dizendo que o homossexualismo [sic] não é exceção, não é um
vício, e não é uma maldição dos deuses. E usa o contexto de Sócrates como argumento
pois, segundo ele, Sócrates não necessitava justificar-se por haver supostamente quebrado
com “ninguna ley de la reminiscencia o de la inmortalidad.” (Lezama Lima, Paradiso,
IX:249). A continuação da argumentação de Foción não deixa de ser inquietante: sustenta
ele que limitar a sexualidade aos órgãos é um erro, equivalente a limitar a poesia ao poema.
E se insurge contra Freud:
(5) Así como algunos tontos creen que la poesía sólo viene a hipostasiarse en el poema,
los hay igualmente que vienen a creer con Freud, que sólo el falo, el ano, la boca y la
vulva son los órganos sexuales. Sobre todo el aporte de la boca – añadió Foción con una
ironía desdeñosa –, convertiría al hombre en un ciclóstomo, el pez boca, que debe tragar
agua y botarla por la aleta anal con innegable deleite. A la entrada de cualquier
meditación sobre lo sexual, debe inscribirse la frase del Eclesiastés: ‘Hay camino que
241
al hombre le parece derecho; empero su fin son caminos de muerte’ (Lezama Lima,
Paradiso, IX:250, grifos meus)
O potencial transgressivo da fala de Foción – a afirmação de que a
homossexualidade não é um desvio – esboroa-se diante de seu novo argumento, não apenas
a homossexualidade mas, aparentemente, o que é da ordem do que Freud chamou – em
seus Três ensaios sobre a teoria da sexualidade – de perversão, ou seja, a prática sexual
com sua finalidade desviada, não é um caminho “direito”. Nessa direção, a frase do
Eclesiastes soa como um argumento de ordem moralizante. Não se trata da negação do
prazer, pois ele não é negado, entretanto é desqualificado como algo menor (eis aí a
eloquente imagem do peixe soltando água pelo ânus).
Contra este “camino de muerte”, Foción alude a outro, que elude “la irrupción de
una desemejanza que [el hombre] no ha logrado dominar” (Lezama Lima, Paradiso,
IX:250). Para quem ler tal fragmento levando em conta a psicanálise lacaniana, é difícil não
ver este ‘outro caminho’ que Foción irá propor como uma proposta da desconsideração da
diferença sexual, a qual ele se refere como “desemejanza”.
E a argumentação de Foción seguirá realmente nessa direção; através de um
sutilíssimo argumento, ele se perguntará, a partir do livro do Gênesis, se a mulher só
apareceu no sétimo dia da criação, e criou o homem no quarto dia, no mesmo dia em que
disse a ele “Crescei e multiplicai-vos”, como é que o homem poderia se reproduzir sem a
mulher? Assim, prossegue Foción,
(6) todo lo que hoy nos parece desvío sexual, surge en una reminiscencia, o en algo
que yo me atrevería a llamar, sin temor a ninguna pedantería, una hipertelia de la
inmortalidad, o sea una busca de la creación, de la sucesión de la criatura, más allá de
toda causalidad de la sangre o aún del espíritu, la creación de algo hecho por el hombre,
totalmente desconocido aún por la especie. La nueva especie justificaría toda hipertelia
de la inmortalidad. (Lezama Lima, Paradiso. IX:251, grifos meus)
A defesa pois, é de uma androgenia prévia, que coincide com a abolição da
diferença sexual. Acede-se assim a um estado pré-sexual, em que a sexualidade seria – nas
palavras de Foción – indefinida, não encarnada nos órgãos sexuais; estado no qual haveria,
numa palavra, uma completude. Entretanto, é preciso observar, que embora Foción seja
categórico em tal defesa, ele é ambíguo quanto ao homossexual; pois se por um lado ele o
livra do estigma de doente, ao mostrar como ao longo da história as relações homossexuais
são frequentes, e mesmo as práticas como a felação – não exclusiva dos homossexuais, é
242
evidente – estão documentadas no Kama Sutra; por outro lado, o fim último parece ser a
realização cristã de um corpo não sexualizado, completo, imortal, representado pela
“hipertelia da imortalidade” , o ideal que o move.
Esse parece ser o alcance de uma resposta cristã ao caráter delinquencial que se vai
atribuindo à homossexualidade na Ilha Castrista. Ela tem toda sua contundência, por ser
dada no interior de Cuba, no plano da literatura, e não se confundir de modo algum com a
resposta pavloviana que é escolhida pelo Estado, mas também diferir radicalmente dos
postulados da psicanálise freudiana.
Fronesis, por sua vez, opta não pela via do ideal de Foción, e toma como alvo a
dificuldade do uso da categoria ‘homossexual’, a partir de exemplos empíricos. Fala de um
homem – “un hispano robusto” – que quando ia à praia sentia um prazer quase orgástico ao
descalçar-se e roçar os pés na areia, e que, em tais ocasiões, os gemidos e gritinhos que ele
dava derrubavam toda sua virilidade. Em seguida, dá ainda outro exemplo de um homem
para quem “Toda su sexualidad consistía en que le doblasen los párpados y se los irritasen
con las uñas. En esa sensibilidad hecha como de plumilla, rondaba la traición sexual.”
(Lezama Lima, Paradiso, IX:257). Fala ainda de um outro homem que levava a mulher
para casas de lenocínio, e se comprazia na simulação de ser sodomizado por ela, e assim,
“poseído por la mujer que no lo poseía, podía expresar el vuelco del líquido feliz.” (Lezama
Lima, Paradiso, IX:257). O fato é que todos esses casos poderiam aparecer em um livro de
Freud, ou poderiam mesmo ser analisados à luz do pensamento de Freud. Ocorre que não é
por tal via que Fronesis toma estas pequenas perversões – para manter-me no termo
freudiano dos Três ensaios – sua conclusão é, pelo contrário, deliberadamente anti-
freudiana:
(7) En todos esos pequeños demonios visitadores, hay la reminiscencia de un menoscabo
de la sexualidad, sin embargo, todos eran ínclitos varones, con la voz ronca como un
parche sioux. Se mecían en una hamaca, eran y no eran homosexuales. Pero eran todos
seres aquejados por un desvío aunque no se pudiera señalar en relación con qué
centro se verificaba ese desvío. (Lezama Lima, Paradiso, IX:257, grifos meus)
A proposta de defesa de uma sexualidade libertada do que se costuma chamar a
‘heteronormatividade” atribuída a Freud parece estar em vigência no fragmento anterior.
Contraditoriamente, é verdade. Pois embora Fronesis negue a norma ao afirmar o desvio
“en relación con qué centro” – ele não vacila em qualificar a todos os homens por ele
243
citados de “ínclitos varones”. Assim, ele próprio veladamente reconhece uma certa norma
socialmente aceita, ao qualificar pelo senso comum os “ínclitos varones” para só então
relativizar os casos que ele apresenta. Mais que a obra do próprio Freud, o que parece estar
sendo posto em crise é uma visão normativa da sexualidade e do desejo. O curioso – e
contraditório – é ver como Fronesis continuamente cai na armadilha desta visão normativa,
ao falar em seguida de homossexuais que eram “hasta hombres que ofrecen una sexualidad
medianamente normal” (Lezama Lima, Paradiso, p. 258). Assim, embora Freud seja um
alvo aparente ao qual se mira, o alvo atingido é outro – o da normatividade. Embora, ao
negar qualquer lei que regule a sexualidade humana – que é o que vem fazer Freud no
sentido de prover um mapeamento do desejo a partir do complexo de Édipo – Fronesis fica
impedido de seguir a discussão, e termina por declinar da contenda, recorrendo a uma lenda
hindu, do lótus e da tartaruga. O fato é que ao negar os pressupostos, a possibilidade de
seguir a discussão se esfarela no ar:
(8) Lo que puede saber el loto de la tortuga, es también lo que pude saber uno del otro
inasible, por eso es para mí casi imposible hablar de cualquier forma de sexualidad
[...] es como si hablásemos de algún atributo formal que puede estar en su cuerpo
pero no en su sombra, o en su sombra pero no en su cuerpo. (Lezama Lima, Paradiso,
IX:259, grifos meus)
Ao nomear isso que está no corpo mas que não tem forma, do qual não é possível
falar, Fronesis declina da possibilidade de que seu aparato conceitual dar conta da
sexualidade; curiosamente, ao fazê-lo, termina por tocar, de certa forma, aquilo que é
entendido em Lacan como sendo da ordem do significante, como o pode ser o falo, o
significante-mestre. Aquilo que ordena o desejo, embora não tenha existência física,
material, sobredetermina algo que é da ordem corpórea.
Nesse momento, o próprio diálogo entra em crise, a temperatura cresce, e Fronesis e
Foción terminam indo para as vias de fato, agredindo-se fisicamente, ainda que de maneira
algo delicada e prazerosa; com isso se pode pensar que eles, de algum modo, levam ao ato
aquilo tudo que na teoria não puderam discutir.
Entretanto, logo em seguida, Fronesis retoma à carga, e quer opor aos delírios
poéticos, delírios científicos. É quando Freud é mais uma vez nominalmente citado. Contra
o senso comum, de que Freud ampliou a noção de sexualidade (e aqui a referência parece
ser, mais uma vez, as ideias contidas nos Três ensaios...) com a inclusão da boca e do ânus
244
como órgãos sexuais, Fronesis defende que o que houve foi uma limitação, e para tanto cita
as “Leyes de Manú”:
(9) – Pero no podemos apoyarnos tan sólo en un delirio poético, sino vamos a apoyarnos
también en lo que pudiéramos llamar delirio científico. Se ha hablado entre nosotros – se
veía que quería evitar nombrar a Foción, para no volver a molestarlo-, de los órganos
sexuales. Se ha hablado también de que Freud aumentó los habituales vehículos de la
expresión sexual, añadiéndole la boca y el ano, ese pozo negro como decían algunos
contemporáneos de Rabelais. Pero lo que algunos estiman como una ampliación de
Freud, es en el fondo una restricción si lo comparamos con las Leyes de Manú,
probablemente siete mil años antes de Cristo. (Lezama Lima, Paradiso. IX: 260-1,
grifos meus)
O fato é que tal insistência em ir contra Freud, por parte de Fronesis, não lhe resulta
em um novo sistema que dê conta da sexualidade, o que lhe importa é deixá-la livre de
normatização, qualquer que seja ela. Fazer da sexualidade um território sem lei, numa
palavra, de gozo pleno e desimpedido. Mais uma vez na narrativa, quando se chega ao
momento em que nada mais é passível de ser dito, parte-se outra vez ao corpo-a-corpo. Mas
diferentemente da última vez, quem vem para o combate, agora tão somente amoroso, é a
jovem e loura Lucía que, faceira, diz a Fronesis que ela o estava aguardando, e o toma pela
mão, subtraindo-o da discussão, para o estupor e decepção dos demais convivas.
É o avançar dos acontecimentos, mais uma vez, que dá sentido à posição e às
palavras de Fronesis. A sexualidade sem lei que ele defende é aquela que ele vive, eran y
no eran homosexuales, dizia ele há pouco, e é amorosamente capturado pela jovem loura,
sem ter meios para lidar com ela. Para Fronesis, como ele dissera antes de ser capturado por
Lucía, a sexualidade seria mera função corporal, como a respiração e a digestão; portanto,
em termos lacanianos, não capturada pelo significante, fora da rede simbólica, se possível
fosse.
Já Foción, ainda segundo o ponto de vista de Fronesis, quer retomar uma unidade
ideal, mítica. Vejamos a citação completa:
(10) quiere reemplazar el laberinto contemporáneo por aquel de los mitos, demostrar que
hay hombres que se apartan de toda dicotomía, por una reminiscencia del Uno Urano.
Pero en mi opinión lo sexual hay que verlo después de la respiración y la digestión.
(Lezama Lima, Paradiso. IX: 261, grifos meus)
Já Foción, no entender de Vitier & Sariol, o que quer é “salvar el fenómeno de la
homosexualidad desde el punto de vista teológico” (Vitier & Sariol, “nota 51 al capítulo
245
IX” in “Notas Finales” in Paradiso, op. cit., p. 499). Noutro sentido, seria uma busca de
totalidade, o que em termos lacanianos equivaleria a desconsiderar a falta que é condição
mesma para haver desejo. Neste sentido, abrir mão do conceito de homossexualidade, e
lançar mão do de androginia é um expediente sagaz:
(11) Se habla con exceso de la homosexualidad, ya desde el punto ético o del científico,
pero se tienen muy pocas ideas precisas sobre la androginia. El andrógino primitivo que
pasa al culto esférico de la totalidad y de la perfección, que pasa al ápeiron de los griegos
y a la esfera universal de los cristianos. (…) todas esas referencias a la androginia en el
mundo de los taoístas, de os platónicos y de los gnósticos alejandrinos, la casi totalidad
del mundo antiguo, y del mismo Freud, que intentan llevar todas esas cosmologías al
empequeñecedor espíritu científico, hijo de aquel espíritu objetivo, de que aquel absoluto
circulizado. (Lezama Lima, Paradiso, X:304)
Assim, ora escapando para o terreno mítico-religioso, ora escapando para a função
corporal, os jovens debatedores constroem um diálogo inconclusivo sobre o tema da
homossexualidade, no qual buscam estabelecer um território de liberdade, fora do que
seriam as amarras seja das classificações, seja de sua condenação como pecado ou doença.
O debate, nestes termos, tem de ser, por definição, inconclusivo.
Trata-se, no limite, de uma construção sutilíssima que termina por caucionar a
prática da homossexualidade, no plano da religião, como prática não pecaminosa, e ao
mesmo tempo desautorizar as visões contemporâneas – freudianas – que no entender dos
jovens terminaria por estabelecer regras quanto a estas práticas, bem como aquelas que
transformam em doença a homossexualidade. A homossexualidade neste capítulo de
Lezama Lima mostra-se como que ilhada do debate do momento, e ao mesmo tempo
velada.
2.2.5. A rebelião erótica de Reinaldo Arenas
A geração de Lezama Lima e Virgilio Piñera em Cuba – ambos escritores nascidos
nos anos dez do século vinte –, como vimos nas seções anteriores, teve uma incidência
incipiente e lateral do pensamento freudiano em sua obra. A presença de Freud é mais
marcante na obra de Lezama, sobremaneira em Paradiso, ainda que seu gesto seja de
rechaço e burla; os elogios presentes em “Freud y Freud”, de Piñera, não foram suficientes
para representar uma incidência forte do pensamento do vienense em seus escritos, muito
246
embora uma admiração seja inegável e dela haja não poucos elementos em sua produção
literária. Assim, a relação do pensamento de Freud com ambos autores pode ser
aproximada aquela de Nelson Rodrigues – uma psicanálise que se achega pela segunda mão
– aparentada a um gesto de burla acompanhado de uma discussão de postulados
semelhantes, da sexualidade feminina em Nelson Rodrigues, e da homossexualidade em
Lezama Lima. E mesmo no teatro de Piñera, a influência de Freud é semelhante aquela de
Nelson Rodrigues, e que se personifica entre os contemporâneos de ambos, na figura de
Eugene O´Neill; entre os antigos, é a tragédia grega. É o Freud da Broadway, portanto, e os
gregos freudianos
136
.
Na geração seguinte de autores cubanos, nota-se que tanto Virgilio Piñera quanto
Lezama Lima exerceram forte influência em Reinaldo Arenas (1943-1990), a nos
pautarmos pelas memórias do escritor, que conviveu com ambos autores. Como é de se
esperar, entre a heraa deixada pelos dois mestres, não se encontra o pensamento
freudiano; antes um entusiasmo juvenil pelo modo como os dois trataram a
homossexualidade em suas obras. Arenas foi leitor tanto de Paradiso quanto da revista
Ciclón:
(1) La publicación de Paradiso de 1966 fue, sencillamente, um acontecimiento
heroico desde el punto de vista literario. Creo que nunca se llegó a publicar en Cuba
una novela que fuera tan avasalladoramente homosexual; tan extraordinariamente
compleja y rica en imágenes, tan cubana, tan latinoamericana, criolla y, a la vez, tan
extraña. (Arenas, 1992:110, grifos meus)
Quanto à revista Ciclón, o olhar de Arenas é igualmente empolgado:
(2) Virgilio [Piñera] rompió con la revista Orígenes hacia el año 1957 y creó, junto con
José Rodríguez Feo, otra revista mucho más irreverente, prácticamente homosexual,
dentro de una dictadura como la de Batista, reaccionaria y burguesa. Lo primero que hizo
Virgilio en la revista Ciclón fue publicar Las ciento veinte jornadas de Sodoma y
Gomorra del Marqués de Sade. (Arenas, 1992:106, grifos meus)
136
E também à maneira do que ocorre em Nelson Rodrigues, a psicanálise em Virgilio Piñera deve ser procurada em outro
lugar. Em termos da pulsão de morte, há contos de Piñera em que a volta ao orgânico é um tema recorrente (em contos
como “La carne” [1944] “La transformación” [1947], “Un parto insospechado” [1957]), e também a provocação que se
pode ver – avant la lettre – acerca da anterioridade lógica do significante em relação ao significado (Cf. Lacan, 1966) que
é divertidamente invertida na peça de teatro Dos viejos pánicos (1967), a partir do teste psicológico que já traz as
respostas de antemão.
247
Acrescente-se que Arenas atribui um caráter político à escrita de Piñera,
antecipadamente contrário ao regime de Fidel Castro, um anti-Fidel avant la lettre, ao
qualificar o conto “El muñeco” (1946), que Piñera publica em Ciclón como premonitório. É
preciso fazer as devidas ressalvas ao que diz Arenas, por tratar-se de uma escrita
memorialística, em que a fidelidade é, sobremaneira, aos olhos da lembrança, a ponto de
vista da juventude, recordado já na idade madura. Assim, há uma cor um pouco exagerada
nas afirmações de Arenas, de que Ciclón seja uma revista homossexual; o mais equilibrado
seria dizer que é uma revista onde se pode discutir a sexualidade; mas o importante é notar
como, ao traçar suas memórias desta forma, Arenas o que está fazendo é erguer seus ídolos
e mostrar seus precursores e elevá-los a uma condição grandiosa, conferindo-lhe alguns
tons que talvez não tenham tido. De sua leitura dos precursores, destaca-se uma visada
eminentemente sexual e política. É onde o jovem Arenas beberia e constituiria sua escrita
futura, na qual a rebelião contra o governo ditatorial de Fidel Castro será principalmente
erótica e literária.
A questão religiosa, presente na formação de Arenas ao longo da vida, como se lê
em Antes que anochezca, aparece apenas lateralmente também, por exemplo, nas críticas
que faz à carolice de Cintio Vitier, que durante o tempo em que trabalharam juntos na
Biblioteca Nacional, recomendava que ele não lesse Piñera, por conta da pobreza de estilo.
Pode-se dizer que ao desfiar seus credos e ódios literários em suas memórias,
Arenas está ao mesmo tempo constituindo-se como escritor a partir das características que
destaca daqueles que o influenciaram. Arenas e seus precursores, poder-se-ia dizer, mais
uma vez parodiando Borges.
Outro aspecto que salta aos olhos a partir das memórias de Arenas é o quanto, em
suas narrativas pessoais, a sexualidade não se constitui, em momento algum, como um
problema. Diferentemente do que ocorre em Paradiso, em que a condição homossexual tem
o estatuto de questão, sendo portanto longamente debatida, em Arenas, por outro lado, ela é
vivida e relatada. É desejo posto em ato. Assim, não há espaço para Freud ou para a
psicanálise na obra em suas narrativas.
Seria possível dizer que a sexualidade ocorre em Antes que anochezca numa
dimensão que nem sempre apresente grande mediação simbólica – nos termos de Lacan.
248
Ela ocorre antes, numa dimensão do ‘real’, sob a forma do sem-sentido. Um exemplo
poderia ser aventura sexual relatada pelo memorialista com um militar:
(3) Recuerdo también una aventura con otro joven militar. Nos conocimos frente a la
UNEAC; le di la dirección, fue a mi casa y se sentó en el único sillón que tenía allí. No
tuvimos que hablar mucho; ambos sabíamos a lo que íbamos, pues ya en los urinários
de Coppelia él había dado señales de un erotismo impostergable. Nos entregamos a un
combate sexual bastante notable. Después de haber eyaculado y de haberme poseído
en forma apasionada, se vistió tranquilamente y sacó un carné del Departamento de
Orden Público y me dijo: ‘Acompáñame; estás arrestado; preso por maricón.
(Arenas, 1992: 120, grifos meus)
Chamo a atenção para a oposição entre “No tuvimos que hablar mucho” em que a
relação sexual não é mediatizada por qualquer conversa prévia, denotando uma falta de
necessidade de uma inscrição forte do encontro no plano do simbólico e, logo em seguida o
trecho: “se vistió tranquilamente y sacó un carné del Departamento de Orden Público y me
dijo: ‘Acompáñame; estás arrestado; preso por maricón.’”. Nesse trecho final, a reinscrição
no simbólico, por parte do militar, é de reassumir seu lugar de autoridade, como que
desconsiderando o sexo que houve entre ambos. A desconsideração é a tal ponto eloquente
que ela equivale a auto-condenação do militar, porque evidentemente aos olhos da lei que
ele quer representar, ele está igualmente implicado na relação sexual aconteceu entre
ambos.
Entretanto, ainda assim, não se constitui nessa cena um problema que o
memorialista venha a querer discutir. Ele simplesmente relata o fato, como uma das muitas
peripécias sexuais, mais ou menos traumáticas, que fizeram parte de sua vida.
Abro parênteses para mostrar como esta sorte de despersonalização, que faz com
que os corpos sejam – de certa forma – desprovidos de sua condição simbólica, algo terá a
ver com o regime totalitário. O narrador chega a falar, em certa altura, numa “rebelião
erótica” de sua geração:
(4) Creo que nunca se singó más en Cuba que en los años sesenta; en esa década
precisamente cuando se promulgaron todas aquellas leyes contra los homosexuales,
se desató la pesecución contra ellos y se crearon los campos de concentración;
precisamente cuando el acto sexual se convirtió en un tabú, se pregonaba al hombre
nuevo y se exaltaba al machismo. (Arenas, 1992:130-1, grifos meus)
E logo a seguir afirma que “El placer realizado entre dos hombres era uma especie de
conspiración” (op. cit., p. 131). Independente de discutir-se aqui a veracidade da afirmação,
249
o que importa ressaltar é que o gesto homossexual se mostra – com Arenas – como gesto
contestador, que tem valor na realização do coito, mas que tem também uma finalidade
segunda, que é atingir o governo. Reconhecer a dimensão política do ato homossexual para
Arenas nos levará também a perceber uma certa consonância entre tal afirmação e a prática
do militar acima aludido: ambos oferecem seu ato ademais com um fim desviado, como
que o alienam no Grande Ditador.
O desejo fica como que posto em suspensão em nome do Ditador: para o militar
acima referido, sua própria dimensão singular fica como que anulada, como se o coito entre
ele e Arenas tivesse se apagado com seu final, e o que se impõe, no instante seguinte, é
fazer com que se cumpra a lei, que proíbe a homossexualidade.
Estou buscando com isso mostrar como a força do discurso estatal do Governo parece
arrefecer a possibilidade de um desejo que não tenha como finalidade o próprio governante.
De uma certa forma isso remete ao que falava Frantz Fanon em seu Peau noire, masques
blancs, quando ele dizia da impossibilidade de um “amor autêntico”. Sem seja precdiso o
aceitar o que implica a idealização do “amor autêntico”, pode-se entender a afirmação do
martinicano no que ela dá conta de um certo apagamento da dimensão singular, que fica
como que esmagada diante de um discurso totalitário, seja ele o da escravidão – antes se
sermos dois sujeitos desejantes, somos um negro e uma branca – ou da ditadura: Entre
Arenas e o militar houve sexo, mas isso é como que esquecido no instante seguinte, pois
logo eles voltam a ser o militar e o veado, e o militar deve prender o veado.
Se em Fanon, a prática clínica foi a responsável por uma – digamos – re-
humanização dos participantes da guerra, em Arenas quem parece ocupar tal lugar é a
escrita, que de alguma forma tem a função de ordenar o vivido, atribuir-lhe algum sentido,
inseri-lo na rede simbólica o sem-sentido da relação sexual, que parece se acentuar no
sistema totalitário.
Entretanto, mesmo que se aceite certa eficácia de tal gesto de Arenas, é preciso ter em
mente que, ainda assim, a “Carta de Despedida” que encerra Antes que anochezca, e na
qual o autor avisa sobre seu suicídio, ele textualmente responsabiliza Fidel Castro por sua
morte:
(5) Ninguna de las personas que me rodean están comprometidas en esta decisión.
Sólo hay um responsable: Fidel Castro. Los sufrimientos del exílio, las penas del
250
destierro, la soledad y las enfermedades que haya podido contraer en el destierro
seguramente no las hubiera sufrido de haber vivido libre en mi país. (Arenas, 1992:343,
grifos meus)
Também aí o Ditador é o destinatário do sem-sentido que é a morte, ainda mais a
morte levada a cabo pelas próprias mãos. Tal força tem esse gesto que ele é o que põe
ponto final às memórias de Arenas, e ressignifica-as, ao torná-las póstumas, e escritas por
um dissidente, assassinato pela ditadura de Castro. Assim, Reinaldo Arenas transforma, a
uma só vez, sua vida e sua morte como uma oferenda ao regime de Fidel Castro.
Há ainda uma outra dimensão a opor entre a posição de Arenas e a de Lezama Lima.
Em Arenas, há uma necessidade de sair da Ilha, a todo o tempo reafirmada em suas
memórias. Lezama Lima é ele mesmo aparentado a um continente – por Severo Sarduy – e
nada mais alheio a sua produção e a sua biografia que a ausência da movência.
Mesmo na obra narrativa de Arenas, a fuga de Cuba constitui-se um tema. Em seu
romance El mundo alucinante (publicado originalmente em francês, em 1968, e relançado
em espanhol, já com modificações do autor, em 1982), que narra a história do frei Servando
Teresa de Mier, há um curioso e único capítulo, chamado “De mi huida de La Habana” que
narra a fuga do frei. Nele, o leitor de Antes que anochezca encontra ecos do período em que
o autor esteve na prisão de El Morro, em Cuba, que aqui é mostrada como “una subterránea
prisión de una cárcel marítima” (op.cit., p. 256):
(6) El verano. Yo, dentro de El morro, brinco de un lado a otro. Me asomo por entre la
reja y miro al puerto hirviendo. Y me pongo a gritar que me lancen de cabeza al mar.
“El verano. La fiebre de calor ha puesto de mala sangre a los carceleros que, molestos por
mis gritos, entran a mi celda y me muelen a golpes. Pido a Dios que me conceda una
prueba de su existencia mandándome la muerte. Pero dudo que me oiga. Dios aquí se
hubiera vuelto loco. (Arenas, 1982:260-261)
A solução da cena é pelo recurso ao maravilhoso; o intenso calor faz com que as
grades se derretam e que o frei possa finalmente fugir, mesmo que meio chamuscado. O
que interessa ressaltar é o tema da fuga, presente na obra de muitos autores cubanos desta
época. Não é escusado lembrar o poema “La isla en peso” (1943), de Piñera, com seu
pegajoso verso repetido à exaustão: “Nadie puede salir”. Lezama Lima, como se sabe,
optou por exilar-se dentro da Ilha, e foi consequente com sua posição. Diferentemente dos
seus pares que saíram, ele não parecia acreditar em uma redenção fora da Ilha.
251
De toda forma, é fato que os autores dessas duas gerações deparam-se com o
dilema: sair ou não sair de Cuba. E cada qual dá sua resposta, da qual se pode saber pela
leitura de sua obra. Nota-se desta forma o peso do regime sobre a produção literária de cada
um desses autores e, em grande medida, de sua própria biografia.
No próximo capítulo, a partir da obra de Severo Sarduy, procurarei analisar como se
conjugam em sua obra uma poética do exílio na qual coexistem de modo tenso a herança
cristã de Cuba, e o aporte da psicanálise lacaniana.
252
2.3. Severo Sarduy e a poética do exílio
Como el universo, el exilio está en expansión
Severo Sarduy, “Exilado de sí mismo”, 1990
2.3.1. Severo Sarduy e Reinaldo Arenas em torno a Cuba
Se em muitos sentidos é possível tomar José Lezama Lima e Virgilio Piñera como
antípodas; é possível, na geração seguinte, fazer outra oposição entre Reinaldo Arenas e
Severo Sarduy. O sentido de tal oposição é meramente mostrar como estes dois escritores
contemporâneos – que compartilharam a admiração pela obra de Lezama Lima e Virgilio
Piñera, e uma influência da mesma, além do fato contingente de serem ambos
homossexuais – dão respostas tão diferentes a questões semelhantes, a saber: o desejo, a
homossexualidade, a psicanálise e a escrita.
Sarduy, nascido em Camagüey, tinha seis anos de idade a mais que Arenas. Isso faz
com que as contingências históricas surpreendam a ambos mais ou menos com a mesma
idade. Ao lado disso, ambos têm suas estreias literárias com a mesma idade, aos vinte e um
anos: Sarduy publica seu primeiro poema na revista Ciclón, em 1958 (se se excetua a
publicação do poema “Tres”, cinco anos antes, no jornal local El Camagüeyano); Arenas
publicará o seu romance de estreia, Celestino antes del alba, após vencer o prêmio da
UNEAC (Unión Nacional de Escritores y Artistas Cubanos), em 1964. No lapso temporal
que separa a estreia literária de ambos, dá-se a Revolução Cubana.
Ambos os escritores tiveram a chancela e o incentivo da dupla José Lezama Lima e
Virgilio Piñera: Sarduy por ter sua estreia literária na revista Ciclón, co-dirigida por Piñera;
Arenas por ter tido a presença de Virgilio Piñera na comissão julgadora do segundo prêmio
da UNEAC, em 1966, em que apresentou El mundo alucinante. Após este contato inicial
com Piñera, Arenas relata em suas memórias que contou com a colaboração diária do
253
escritor para retrabalhar o livro, que dois anos depois, como vimos, seria publicado em
francês, dedicado a ninguém menos que o próprio Virgilio Piñera.
Em 1958, quando Sarduy publicava seu primeiro poema em Ciclón, Arenas estava
entediado em Holguín, cidade pequena e comercial, e começava a ter ideias
revolucionarias. É em tal ano-chave, quando as tropas de Fidel Castro avançam sobre o
poder do ditador Fulgencio Batista que, de um lado, o adolescente Arenas, então com
quatorze anos quer tomar parte na guerrilha; e que o jovem estudante de medicina Severo
Sarduy começa a considerar a porta de saída da Ilha, fato que ocorrerá no ano seguinte,
quando obtém uma bolsa do governo revolucionário cubano para estudar Artes da Europa,
de onde não mais regressará a Cuba. Arenas, por outro lado, não pega em armas, pelo
contrário, vai à universidade, no novo curso de Administração Agrícola, patrocinado por
uma bolsa estatal.
Tal momento, em que Sarduy sai de Cuba com apoio do governo, e Arenas enfronha-
se ainda mais na Ilha, bancado pelo mesmo Estado, é fundamental para os destinos de
ambos. Pois dois escritores que têm praticamente a mesma idade, compartilham admirações
literárias, tem em comum o desejo pelo ofício da escrita, terminam por trilhar caminhos
absolutamente díspares. Evidentemente, as possibilidades econômicas de cada um deles não
são sem importância para o horizonte de possibilidades que se apresenta para cada qual.
Mas, neste momento, a posição geográfica que assumem equivale a uma posição subjetiva
distinta, a qual será fundamental na constituição da obra de cada um e em sua posição
diante de Cuba e do Governo de Fidel Castro.
De modo que as palavras de Sarduy, para a Revolução Cubana, para Fidel Castro, são
eloquentemente diversas das de Reinaldo Arenas. Nota-se sempre certa idealização de Cuba
e da Revolução, embora Sarduy tenha dado também diversas declarações negativas quanto
à perseguição de homossexuais na Ilha. Em um de seus muitos textos memorialísticos, o
auto-exilado Sarduy assim se refere àquele ano de 1959:
(1) 1959 – [...] Entretanto (Cf. : Gestos) la revolución iba subiendo. Entrada de Castro
en La Habana. Una paloma, para citar Picasso, se le posó en el hombro. Era blanco
y rubio, Quetzacoatl de regreso.
1960 – Europa y/o El Louvre. Europa es un museo generalizado, como el de Oklahoma
un teatro generalizado para Kafka. (…) Viajo por toda Europa. (Sarduy, “Severo
Sarduy” [1937?], 1975:7, grifos meus)
254
Já no estilo da escrita reconhecem-se as imagens à maneira de Lezama Lima, e Fidel
Castro é alçado à condição de um dos mais importantes deuses guerreiros do panteão
asteca, a serpente emplumada. As referências de Sarduy à Revolução Cubana serão poucas,
evasivas, e sempre algo idealizadas. Num momento posterior, no texto “Para una biografía
pulverizada en el número – que espero no póstumo – de Quimera” (1990), ao fazer uma
autocrítica sobre sua permanência no exílio frans por mais de trinta anos, Sarduy formula
duas respostas diversas. A primeira delas, na verdade, é uma tentativa de resposa à
provocação de José Rodríguez Feo – co-editor das revistas Orígenes, Ciclón, além de
mecenas de Piñera – que teria dito a Sarduy “que ese verdadero motivo, por el que no he
regresado a Cuba: para no ver el desajuste entre mi recuerdo y la realidad” (Sarduy,
1990:12). Certamente a idealização da Cuba da primeira juventude e da infância (que o leva
inclusive a dizer, na mesma entrevista, “ – Mi família está toda, con sus orishas, en La
Habana, vivita y coleando” [Sarduy, 1190:11]) – não era alheia aos contemporâneos do
autor.
Momentos adiante, na mesma entrevista, Sarduy retornaria ao tema de sua
permanência no exílio e procuraria um certo acerto de contas consigo mesmo:
(2) – Lo que sigue está menos claro. Me dieron una beca para estudiar pintura en Europa
y me quedé. Pero no es que decidiera quedarme: me fui quedando. Hoy en día, soy muy
autocrítico: creo que debía de haber vuelto, que debía de haberme comprometido en un
sentido o en otro. Asumir mi karma, hundirme en la contingencia, en la realidad. En
definitiva, adopté la solución de la facilidad: instalarme en una casa de campo, en las
afueras de París, y ponerme a escribir y a pintar. Han pasado treinta años y hoy en día el
balance es paupérrimo. No tengo nada y los que debían de leerme, que son los
cubanos, no me conocen y ni me pueden leer. No creo que ya me quede tiempo para
terminar mi obra allá. Otra vez será… (Sarduy, 1990:13, negritos meus, itálicos do
autor.)
Nota-se a preocupação do autor com algo que certamente era uma cobrança
ideológica de seu tempo: assumir uma posição em relação ao regime cubano; o não ter
tomado esta posição parece levar Sarduy a querer se justificar. O segundo ponto a ser
destacado é a vontade não realizada do autor de ser lido pelos cubanos. Como aludi na
introdução à segunda parte, embora nunca tenha sido publicado na Ilha, foram várias as
empreitadas de Sarduy para que sua obra circulasse pelo continente americano,
principalmente na Argentina e no México. Com isso ele consegue, de certa forma,
inscrever-se na discussão latinoamericana, mesmo que Cuba se torne para ele um
255
continente impenetrável. Além disso, Cuba é o cenário de muitos de seus romances,
certamente uma Ilha que não se parece em nada àquela descrita por Arenas em seus livros,
miserável e fornicante; trata-se antes de uma Ilha idealizada, onde todos dançam a todo o
tempo, onde há uma forte influência chinesa, ao lado da negra e da europeia, e inclusive
chega a nevar.
Além do mais, ao dizer que são os cubanos que o deveriam ler, Sarduy termina por incorrer
numa idealização que não faz senão justificar a provocação de Rodríguez Feo. Como vimos
pelas memórias de Arenas, não havia à época qualquer espaço em Cuba para as sofisticadas
discussões que propõe Sarduy com sua obra ensaística, por exemplo. Como se o regime
totalitário tornasse supérflua a “mera literatura”, para parafrasear a outra provocação de
Rodríguez Feo, nas já citadas páginas de Ciclón. Numa palavra, soa algo fora de lugar
discutir o barroco e o significante na sociedade cubana, quando o que havia era excesso de
repressão e falta do que garantisse a subsistência – imediata e intelectual.
Prova disso é que o próprio Arenas – que permaneceu em Cuba até 1980 – não
publicou senão um livro na Ilha, e todos os demais na França ou Estados Unidos. Não é
apenas para a psicanálise que não havia lugar em Cuba, mas também para um pensamento
mais sofisticado (a ruína de Lezama Lima nos seus últimos tempos parece ser marca
eloquente disso). Não por acaso, tanto Sarduy quanto Arenas não têm seus livros em
catálogo em Cuba até os dias atuais
137
.
Portanto, defendo que a contribuição de Sarduy não é de forma alguma no que tange
à reflexão sobre Cuba. Contrapor sua visão a este respeito à de Arenas tem tão somente o
objetivo de mostrar como se trata de projetos literários bastante diversos, e que tais
diferenças não são alheias às circunstâncias dos autores, e a suas posições, ao mesmo tempo
geográficas e subjetivas.
De forma que a obra de Severo Sarduy, tal como ocorre com Frantz Fanon, é
impensável sem a saída do país natal, sem o exílio; ao mesmo tempo em que é igualmente
impensável sem a referência a este mesmo país natal. Não se pode conceber Peau noire,
137
Já Piñera e Lezama Lima passaram por uma sorte de resgate na Ilha, o qual, por outro lado, equivale também a um
silenciamento. O teatro de Piñera é massivamente representado, e teve uma reedição recente – em 2006 – que contou com
uma tiragem de 30 mil exemplares; o prólogo ficou a cargo de Rine Leal, num texto de 1989, “Piñera teatral”, no qual o
autor é alçado ao cânone, e tem destacado seu compromisso ideológico a favor da revolução. Situação semelhante tem
passado Lezama Lima, agora incensado como autor nacional na Ilha, inclusive com nova edição de seu Paradiso a ser
publicada no ano de 2010. Em relação à canonização e ideologizançaõ, sua irmã Eloísa deu recentemente depoimentos de
repúdio à televisão espanhola.
256
masques blancs sem a formação psiquiátrica de Fanon, sem sua estadia na França, e sua
distância da Martinica. Foi preciso urdir-se esse interstício para que Fanon pudesse compor
seu texto.
Assim, se a Cuba totalitária e a psicanálise são incompossíveis, a obra de Sarduy
mostra como elas se fazem possíveis (e compossíveis) a partir da reflexão construída no
exílio: defendo portanto que a Cuba semiológica (mas também a Cuba mítica), o barroco
estruturalista são construções teóricas e vitais de Sarduy.
2.3.2. Escrito sobre o exílio, sob o exílio
Logo no início de um ensaio sobre o exílio, Edward Said diz “O exílio nos compele
estranhamente a pensar sobre ele, mas é terrível de experienciar.” (Said, 1984:46). Com tal
frase, Said ilumina um duplo aspecto da condição do exilado, refletir sobre sua condição e,
ao mesmo tempo, estar concernido por ela; isso, no limite, condiciona de maneira
determinante o que se possa falar acerca da própria condição de exilado. Esta dupla
condição nós a encontramos com força na obra de Sarduy, e tais variações sobre o tema do
exílio são marca de sua obra.
O autor às vezes se postula como exilado, como auto-exilado e, noutras, como no
texto que sintomaticamente é escrito em francês, alça-se à condição de centro, deslocando
os seus conterrâneos à periferia. Trata-se de um depoimento pessoal (há muitos
autorretratos na Obra Completa do autor), sem a autocrítica daquele texto que citei há
pouco, de 1990. O alvo é a “intelligentzia oficial” (cubana ou latinoamericana, ele não o
esclarece), que o toma como um ser exótico. Enquanto ela o compararia a uma Carmem
Miranda semiológica, ele se põe lado a lado com ninguém menos que Rubén Darío e Jorge
Luis Borges:
(3) Mon cas, si modeste soit-il, n´est pas très différent [ao de Darío e Borges]. Comme il
était prévisible, l´intelligentzia officielle n´a pas voulu accepter que mes exercises ne
sont que manifestations, avec un peu de plumes et pailletes, du Tel Quel jet-set,
quelque chose comme une Carmen Miranda devenue sémiologique... Mais, malgré
mon très long séjour ici, loin de sources, comme on dit, j´ai pu écrire un roman, Ecrit
en dansant, composé de trois fictions qui correspondent aux troix cultures cubaines
espagnole, africaine, et même chinoise – et qui commence à être perçu, en samizdat, bien
257
entendu, comme une vraie image de l´île, même si à la fin in neige sur La Havane !
(Sarduy, Severo, “C´est chez nous...”, 1985 :27, grifos meus)
Tal arroubo de narcisismo, se colocado lado a lado com o depoimento de 1990,
quando ele se lamenta por não ter assumido seu suposto compromisso com a realidade
cubana, é uma clara marca de que a condição de exilado de Severo Sarduy rendeu
enunciados contraditórios ao longo dos tempos. O que não varia nunca são suas constantes
afirmações de que seu público último seria o cubano. Cuba é certamente uma obsessão na
obra de Sarduy, a nos pautarmos pela frequência com que ela surge.
No mesmo texto citado acima, pouco mais adiante, o autor diz que segue um dos três
preceitos de James Joyce, o desterrado literário prototípico do início do século vinte: o
exílio. Sabe-se que a defesa do exílio é feita pelo personagem Stephen Dedalus, nas páginas
finais do primeiro romance do autor, Portrait of the artist as a young man:
– Look, here, Cranly, he said. You have asked me what I would do and what I would not
do. I will tell you what I will do and what I not do. I will not serve that in which I no
longer believe, whether it call itself my home, my fatherland, or my church: and I
will try to express myself in some mod of life of art as freely as I can and as wholly as I
can, using for my defense the only arms I allow myself to use – silence, exile, and
cunning. (James Joyce, Portrait of the artist as a young man, p. 281, grifos meus)
O personagem de Joyce renega a casa, a pátria e a religião, em nome de “silêncio,
exílio e astúcia”. Negar a família, o país e a religião, três das instituições com maior poder
de agregação e inserção do sujeito no simbólico, na obra de James Joyce, mais do que o
silêncio, tem o efeito de gritaria em todas as línguas, tal como se lê no Finnegans Wake,
obra na qual, ademais, parece construir-se no limiar da ruptura do laço social. Em tal livro
comparecem a sobreposição de línguas, vozes e tradições culturais, numa experiência
radical de negação.
Não parece ser o que ocorre em Sarduy. Ou talvez fosse mais atinado aproximar
Sarduy ao primeiro Joyce, o de Dubliners e Portrait of the artist as a young man. Afora o
fato de que o exilado nunca se calar, antes afirmar-se ao mesmo tempo como exilado e
cantar a pátria perdida, constrói-se uma Dublin em Joyce, como se constrói certa Cuba
258
onipresente em Sarduy, sombra a partir da qual se erigem seus escritos, local de origem que
é como um monumento à pátria perdida, a qual ele jamais regressará
138
.
É evidente que ao transformar o exílio em tema de seus ensaios, de suas entrevistas,
não há silêncio em Sarduy. Quanto à religião, a poesia mística encontrará o seu centro, e
também o magistério de Lezama Lima – às quais Sarduy promoverá uma inversão tal que,
se no Século de Ouro tínhamos místicos como San Juan de la Cruz e Santa Teresa de Jesús
submetendo seus versos místicos à cuidadosa exegese; no trabalho de Sarduy o trabalho
será justamente de enfatizar o erotismo e a sensualidade destes mesmos versos. O erotismo
ganha contornos ainda mais licenciosos na escrita do autor, e ele chega afirmar ter
pretensões de ser pornográfico com sua literatura. É o que se ouve em sua conferência
“Poesía bajo programa”, proferida nas Ilhas Canárias:
(4) Quizás, voy a dar uma pequeña muestra [...] de mi trabajo que yo pudiera llamar, por
compostura universitaria, erótico y mortuorio. En efecto, yo aspiro a que sea
pornográfico y funerario. (Sarduy, 1999:260, grifos meus)
Mas é importante deixar claro que seria reducionista enxergar o exílio em Sarduy
apenas como tema, a partir de seu discurso sobre o exílio. Assim, no aspecto de sua escrita
sob o exílio é que irei me deter com um pouco mais de vagar. Analisar os aspectos
fundamentais de tal escrita, produzida sob o exílio, é que permitirá traçar melhor o lugar da
psicanálise na obra desse autor.
É preciso determinar, em tal aspecto, o grau da inscrição de Sarduy no meio cultural
parisiense. É comum abordar seu trabalho literário como resultado de um longo convívio
com os membros da revista francesa Tel Quel, entretanto será preciso problematizar tal
relação. Pois, é preciso não perder de vista sua vontade de não perder sua inscrição na
cultura e na literatura hispano-americana, e as inescapáveis tensões que encontra nos dois
pólos: uma dificuldade de inscrição tanto no grupo de Tel Quel quanto uma impossibilidade
de uma existência textual em Cuba.
Assim, se é costumeiro ver a Sarduy como resultante de uma sorte de cruzamento
entre Lezama Lima e o estruturalismo francês, através de autores como Barthes, Lacan e
138
Há tamanha idealização deste retorno que, numa conferência nas Ilhas Canárias, Sarduy compara a chegada às
Canárias como uma sorte de retorno à Ilha de Cuba: “Gracias, pues, a todos por estar aquí, porque para mí ha sido un
regreso a la isla natal, al país natal. Un regreso físico, ya que las dos islas son idénticas Idénticas: indiferenciables. Y un
regreso espiritual y, quizás, inmaterial. (…) Para mí, estar aquí es volver en una medida simbólica a Cuba. De modo que
gracias por el regreso al país natal.” (Sarduy, “Poesía bajo programa”, 1999:253)
259
Levi-Strauss, será preciso ressaltar que a somatória nada tem de harmônico, e se destaca
pela tensão, pela contradição, e até pelo paradoxo.
Os referenciais são embaralhados e torcidos, o que resulta na singularidade de sua
escrita e na dificuldade de enquadramento de seu projeto de escrita. Da cultura hispano-
americana sobressaem-se, além de Lezama, os poetas barrocos, principalmente Góngora, e
os já citados místicos San Juan de la Cruz e Santa Teresa de Jesús – e neles o elemento
erótico é trazido ao primeiro plano; ao mesmo tempo em que o catolicismo de Lezama
Lima é ressaltado em detrimento do aspecto sexual. Fidel Castro e seu regime aparecem
nada mais que como uma sombra na obra de Sarduy, mas uma sombra de não pouca
importância. As principais menções, como vimos, ocorrem em sua obra de caráter mais
memorialístico, mas também irrompem em textos ensaísticos, como no encerramento de
seu “Barroco y Neobarroco” (1972) que se fecha com a frase de não pouco alcance nos
anos setenta “Barroco de la Revolución”.
Quanto as relações com a psicanálise lacaniana, a semiologia e o meio cultural
francês, passo agora a tratar.
2.3.3. O exílio barroco do significante lacaniano
Reza a lenda – na versão do próprio Sarduy – que ao viajar de Cuba à Europa com
uma bolsa do governo cubano para estudar história da arte, o jovem estudante de Medicina
tinha planos de se estabelecer na Espanha e lá ficar, estudando. Mas conta Sarduy que ele
logo desistiu, e um dos motivos de sua desistência foi sua chegada a Paris. Para além do
romanesco da situação – ditadura de Franco na Espanha e o contato com aquele que viria a
ser seu namorado, o filósofo François Wahl – é fundamental para situar o pensamento de
Sarduy levar em conta sua relação com aqueles que tornariam os membros do grupo da
revista de vanguarda Tel Quel: além do próprio François Wahl, editor das Éditions du Seuil,
Philippe Sollers, que anos depois traduziria alguns de seus livros para o francês, e Roland
Barthes, de quem Sarduy se reconhece uma devedor intelectual, ao autoproclamar-se
“alumno de Roland Barthes”
139
. Como já sugeri acima, há sempre um elemento enganoso –
139
Seria possível traçar outro perfil de Sarduy –que se acrescentaria aos muitos que ele fez de si mesmo – a partir de seus
epítetos: “alumno de Roland Barthes”, “Carmen Miranda sémiologique”, “alguien que vivió en la Era Lezama”. Todas as
260
ou imaginário – na imagem que se possa ter de si mesmo; em que pese o reconhecimento
intelectual, na expressão citada nota-se também uma apropriação de um pouco do capital
intelectual daquele a quem se elogia para si mesmo, para além da mera filiação.
O fato é que a revista Tel Quel – que seria fundada no ano seguinte à chegada de
Sarduy a Paris, portanto em 1960 – e será um dos canais de difusão das ideias do jovem
escritor. Mas é preciso matizar a importância de Tel Quel no conjunto da produção de
Severo Sarduy pois, apesar de sempre declarar-se próximo aos membros do grupo, ele não
publica mais do que oito artigos na revista, ao longo de quatorze anos – o que é bastante
pouco para alguém auto-declarado uma Carmem Miranda semiológica, sediado em Paris, e
supostamente próximo do grupo. Ainda mais se considerarmos que o primeiro dos artigos,
“Pages dans le banc”, aparecerá somente quando a revista já está em sua edição de número
23, cinco anos após sua fundação, já no ano de 1965.
Entre os artigos capitais publicados em Tel Quel encontra-se “Sur Góngora”,
publicado no número 25, em 1966, no qual Sarduy trata de suas ideias fundamentais acerca
da linguagem barroca, e do que ele virá a chamar uma “ética do desperdício”. Nota-se
portanto que o cubano primeiro fez-se escritor, ao publicar seu romance de estreia, Gestos
(1963), editado ao mesmo tempo espanhol e francês – pela própria Seuil – para só então
aceder às páginas de Tel Quel. Apenas este dado basta para mostrar como o jovem cubano
não foi imediatamente aceito como parte do grupo.
Assim, para compreender o pensamento e as estratégias de Sarduy, não basta
limitar-se à Tel Quel, pois a revista-chave, em termos de difusão de seu pensamento foi
outra, Mundo Nuevo, editada em Paris, e distribuída pela América Latina. Nela, o autor
publicou nada menos que doze artigos, ao longo de dois anos (1966-1968), todos em
espanhol. Não bastasse a quantidade bastante superior se comparada à Tel Quel, os ensaios
publicados em Mundo Nuevo são a base daquele que virá a ser seu mais importante livro de
ensaios, Escrito sobre un cuerpo
140
.
informações deste parágrafo vem da entrevista que Sarduy concedeu, em 1978 a Joaquín Soler Serrano, no programa A
Fondo, da TVE.
140
Refiro-me a “De la pintura de objetos a objetos que pintan” (nº 1, 1966, pp. 60-2); “Sobre Góngora: la metáfora al
cuadrado” (nº 6, 1966, pp. 84-6); “Textos libres y textos planos” (nº 8, 1967, pp. 38); “Del Yin al Yang” (nº 13, 1967, pp.
4-13); “Un fetiche de Cachemira”, nº 18, 1967, pp. 87-91); “Escritura/travestismo” (nº 20, 1968, pp. 72-4); “Dispersión /
Falsas notas (Homenaje a Lezama Lima)” (nº 20, 1968, pp. 5-17); “Por un arte urbano” (nº 25, 1968, pp. 81-3) . A
referência dos artigos é da edição da Obra Completa de Sarduy, p. 1846.
261
Tentar uma filiação de Sarduy a um grupo não é tarefa simples pois, como ele
mesmo disse, seus textos deixam de ser lidos e publicados em Cuba logo após sua saída da
Ilha. Sirva-nos de parênteses que o escritor publica, por curto espaço de tempo, artigos
sobre arte na Europa nas páginas da cubana Lunes de revolución
141
, dentre os quais “La
Bienal de Venecia” “Picasso expone”, ambos em 1960, e que não voltará a publicar em
Cuba após este ano. Além disso, ficou claro que ele nunca foi um membro atuante de Tel
Quel, apenas um colaborador esporádico. E sua principal revista de difusão é uma
publicação francesa que circula na América, dificultando o autor de partilhar – num
primeiro momento – a repercussão de seus escritos.
Ao longo de sua produção intelectual, desde sua chegada em Paris, a figura
fundamental parece ser François Wahl, que será o editor de sua obra em francês, desde seu
livro de estreia, Gestes (Éditions du Seuil, 1963), até sua obra póstuma. Wahl foi o co-
responsável pela organização da Obra Completa do autor, já nos anos noventa, pela
Colección Archivos, da Unesco. Ao percorrer a biografia e as obras de Sarduy, François
Wahl aparece como aquele como elemento organizador para o escritor, editando,
organizando e publicando seus livros.
E o próprio François Wahl que, num texto memorialístico mas também analítico
sobre o companheiro morto, afirma que a relação de Sarduy com o grupo Tel Quel nada
tinha de simples ou harmônica:
Ses relations avec Tel Quel furent loin d´être aussi simples qu´on se les représente en
Amérique et se résument en fait à ses relations avec Sollers.abord, le group, qu´il
croisait au Seuil, le regarda suspicieusement: ses intentions – je parle du temps de De
donde...[1967] ne semblait pas claires, et son ton désinvolte était fort éloigne de celui de
la revue à l´époque. Ce fut Phillipe que reconnut en lui un semblabe et convint avec lui
des premiers articles qu´il y publia. [...] Il était donc là un marginal, situation qu´on
comprendra mieux si l´on sait que c´était aussi bien – mais de façon moins voyante
celle de Barthes. (Wahl, 1998:1451-2, meus grifos)
A condição do exilado – ou do marginal – parecem condizer melhor com a posição
de Sarduy. E é neste lugar – no fora ou à margem – que ele se vale também na composição
de seus ensaios. Neles, o enunciar-se de fora parece ser fundamental.
141
Lunes de Revolución foi uma revista de grande tiragem, dirigida nessa época pelo escritor cubano Guillermo Cabrera
Infante. Seu objetivo, por este momento, conforme Arrufat, era divulgar a recém-ocorrida Revolução Cubana.
262
Primeiramente, cabe ressaltar a dimensão da collage. Tal procedimento é evidente,
por exemplo, em seu ensaio “Dispersión – Faltas notas / Homenaje a Lezama Lima”
(1968), o qual, composto por anotações, citações e fragmentos diversos, trama uma
tessitura que se mostra inacabada e aberta; figura-se como um projeto para um texto que
não será escrito, posto que o projeto e texto coincidem. Tal forma de composição – de um
texto aberto – parece realizar à maravilha o que se poderia supor pelo sentido etimológico
do termo ‘ensaio’
142
, entendido como algo prévio à obra.
Por outro lado, a dimensão da collage, pode ser considerada extensiva ao modo como
Sarduy se apropria das diversas teorias. Como fala a partir de um lugar incerto e movente,
seu modo de operar com as teorias faz com que ele não se inscreva em nenhuma delas de
maneira cabal. Isso não o impede de ter um pensamento próprio e uma reflexão produtiva.
Mas, ao mesmo tempo, é uma marca definidora de sua reflexão. De certa forma parece
seguir, mais uma vez, o magistério de Lezama Lima, a quem o embaralhar referências sem
atentar para o rigor era prática deliberada e ao mesmo tempo produtiva.
Assim, não é incomum ver num ensaio de Sarduy, o autor saltar de Kepler a Lacan, de
Góngora a Lezama, passando por Freud, e todos parecem conviver alegremente no espaço
de uma página. Dentre as diversas teorias mobilizadas pelo escritor, destacarei sua operação
com a psicanálise e a literatura barroca, as quais, implicam uma certa visão sobre Cuba e
sobre a linguagem.
Há, como já disse, uma proliferação de teorias em torno a Sarduy. Parecem estar na
origem de seus interesses a linguagem do barroco, e a teorização de um neobarroco,
entendido como escrita de vanguarda que privilegia a dimensão do significante, do qual
seriam representantes latinoamericanos além do próprio Sarduy, José Lezama Lima. O
estruturalismo permite ao Sarduy tratar de ambos autores prescindindo, num primeiro
momento, do elemento histórico
143
. E aí comparecem com força as noções de significante e
significado, tomada de Ferdinand de Saussure, mas já na releitura que os estruturalistas
142
Tal forma de ensaio fez escola em terras brasileiras, por exemplo, com o livro A libélula, a pitonisa: homossexualismo,
revolução e literatura em Virgilio Piñera, de Teresa Cristófani Barreto (1996). A técnica mostra aí sua produtividade
noutra dimensão, a da construção do texto como rede de citações e referências múltiplas numa unidade coesa. Talvez a
principal diferença é que o ensaio de Barreto tende justamente à unidade, a uma intrincada trama onde nada pode entrar; já
o de Sarduy parece mostrar-se poroso a uma intervenção, mas oferece a contraparte de ser uma obra talvez demasiado
aberta.
143
É justamente esse ponto de Sarduy que vem sofrendo críticas contundentes. Ver, por exemplo, João Adolfo Hansen
(2003), em seu fundamental ensaio “Barroco, neobarroco e outras ruínas”.
263
faziam por aqueles anos, dentre os quais caberia citar principalmente Jacques Lacan, autor
fundamental na reflexão de Sarduy. A partir de tal aparato conceitual é que Sarduy se porá
a ler o que ele chama o barroco e o neobarroco.
Essa discussão se configura como fundamental na obra de Sarduy, e é possível
rastreá-la numa série de textos, publicados em francês e espanhol, ao longo dos anos, e logo
em português. O primeiro deles é, sem dúvida “Sur Góngora” (1966)
144
. Há ainda o ensaio-
chave “El barroco y el neobarroco”, que é publicado pela primeira vez em 1972, na
coletânea da Unesco América Latina en su literatura; e logo republicado, com
modificações, no livro Barroco, editado em 1974, na Argentina. E chegará ao Brasil, em
1979, no volume América Latina em sua literatura.
Sur Góngora / Sobre Góngora (1966)
Há um dado fundamental para iniciar a discussão desse artigo de Sarduy. Ele é
publicado, como já disse, no ano de 1966, em Tel Quel, e é apenas o segundo artigo de
Sarduy na revista. Mas o fato ao qual não se pode deixar de atentar é que 1966 é também o
ano da publicação dos Écrits, o único livro de Lacan planejado como tal. Lendo “Sur
Góngora” e os demais textos sobre o barroco e o neobarroco, pode-se notar o impacto das
ideias de Jacques Lacan sobre Sarduy, que o cita não poucas vezes. O que interessa
sublinhar são as mutações que as ideias de Lacan sofrem na reflexão de Sarduy.
Antes de avançar, cabe um esclarecimento. Falar da relação de Sarduy com o
pensamento psicanalítico é considerar, antes de tudo, que tal relação está mediada pelo
grupo Tel Quel, o que significa dizer, por uma abordagem estruturalista. Em última
instância, tal relação termina por equivaler a uma abordagem do pensamento lacaniano.
Freud é elemento quase ausente da reflexão de Sarduy, ainda que o cite algumas poucas
vezes e ainda que, paradoxalmente, Freud seja o autor central das reflexões lacanianas.
Não há mostras, na ensaística de Sarduy, de que ele tenha lido a obra de Freud –
diferentemente do que ocorre com a obra de Lacan – e nas poucas referências que há ao
vienense, o autor esclarece que se trata de citação de segunda mão, como no caso do
conceito de represión (Verdrängung / refoulement) em Barroco: “La definición de estos
144
“Sur Góngora”, Tel Quel, n
o
25, 1966, pp. 91-93; “Sobre Góngora: la metáfora al cuadrado”, Mundo Nuevo, n
o
6,
1966, pp. 84-6. O texto reaparece em Escrito sobre un cuerpo, três anos depois, na Argentina. O livro é traduzido ao
português em 1979.
264
conceptos freudianos está tomada de Jean Laplanche y J. S. Pontalis, Vocabulaire dela
Psychanalyse, Paris, PUF, 1967” (Sarduy, 1999:1235, nota 5). A referência forte de
Sarduy, em psicanálise, é mesmo Lacan, motivo pelo qual privilegiarei esta leitura nas
páginas seguintes.
É preciso dizer que a metáfora é o ponto nodal dos artigos de Sarduy que abordam a
linguagem e o barroco. E a metáfora, ou o processo metafórico de referenciação – para
dizê-lo nos termos que propõe Jakobson (outra influência marcante neste texto) – funda-se,
para Sarduy, numa oposição algo problemática: aquilo que ele chama de “pureza
denotativa” (op, cit, p. 1155), mas também “a linguagem da comunicação”, como dirá em
“Barroco y neobarroco”. Assim, a este primeiro nível, de uma linguagem “da
comunicação”, sucederia outro, o da metáfora, tal como é conhecida na literatura. Um
terceiro nível seria trazido pela poesia de Góngora, a “metáfora al cuadrado”, como se tudo
fosse figura em Góngora, sem denotação, e a linguagem de sua poesia alcançasse um nível
inédito de auto-referência.
Há, nesse sentido, dois exemplos bastante esclarecedores trazidos por Sarduy: o
primeiro deles é o seguinte verso de Góngora: “Si el agua cristal, el cristal agua”, na qual o
cristal metaforiza a água e a água metaforiza o cristal, num procedimento circular infinito;
não haveria portanto um fora do texto, uma remissão ao mundo das coisas. O segundo
exemplo é das Soledades:
(5) El peregrino de las Soledades se encuentra ante un paisaje al estilo renacentista en el
cual se ven un río y unas islas. ¿Cómo nos introduce Góngora en esa totalidad? A través
de la imagen del discurso: las islas son como paréntesis (paréntesis frondosos) en el
período de la corriente. (Sarduy, 1966:1156, grifos meus)
Trata-se de um fragmento no qual a metáfora gongorina remete da linguagem para a
própria linguagem, e não ao mundo extra-textual, ou constrói um mundo extra-textual a
partir da materialidade da página: mundo feito texto.
Logo a seguir, Sarduy segue seu expediente de fazer uso de um suposto “nivel puro
del lenguaje” – que seria o nível puramente denotativo – como oposição para o mundo da
linguagem de Góngora. Ele chega a questionar a existência de tal nível, mas a verdade é
que segue usando-o em seu argumento e, mais ainda, tal nível é fundamental para que o
cubano possa erigir seu edifício reflexivo:
265
(6) Si el nivel puro del lenguaje es aquel que no contiene ninguna figura de retórica (por
supuesto, la existencia de ese nivel es muy discutible, ya que lo que se entiende por nivel
puro es en realidad una cadena de figuras naturalizadas), es inevitable que entre el
lenguaje metafórico y él se cree una separación, una distancia. Signo de lo literario, esta
separación llega en Góngora hasta el máximo. El terror [...] desaparece: el significado
ausente se pierde en una trama de significados posibles. En los clásicos, la distancia
entre figura y sentido, entre significante y significado, es siempre reducida; el
barroco agranda esta falla entre los dos polos del signo. (Sarduy, 1966:1156-1157,
grifos meus)
Trata-se em Sarduy, de partir de uma concepção de linguagem que vem de
Saussure, com a noção de significante e significado. Mas tal noção aparece já vista a partir
do corte lacaniano que, em sua psicanálise, separa significante e significado, dando
primazia ao primeiro. Ocorre que o que faz Sarduy é aparentar sua noção de linguagem
barroca à noção da própria linguagem que se pode depreender da obra lacaniana. Mas é
preciso atentar que ele opõe à linguagem do barroco uma concepção de linguagem advinda
da teoria da comunicação. Embora seja possível pensar também que pode tratar-se, no caso
de Sarduy, da transposição da noção de Jakobson das funções da linguagem, das quais ele
teria pinçado a função comunicativa e a função poética, para compor sua oposição.
Ainda assim, em qualquer uma das hipóteses, seja na obra de Lacan, seja nos
estudos linguísticos, trata-se de duas concepções diversas acerca da linguagem, com todas
as suas implicações bastante diversas. Em Sarduy, elas se juntam para descrever dois
supostos funcionamentos de escrita de dois estilos diversos: o clássico e o barroco, ou a
comunicação e o barroco (já que denotação fica sendo característica tanto da literatura
clássica quando da comunicação, o que já é bastante questionável).
De modo que aquilo que em Lacan tem toda sua radicalidade ao definir o sujeito
como sendo constituído de linguagem e na linguagem, termina por relativizar-se em
Sarduy, pois nele tal concepção tem a ver tão somente com a escrita do barroco, a qual ele
alçará à profissão de fé. De sorte que no transplante da psicanálise lacaniana à literatura, o
sujeito só é efeito de significante se ele for um escritor barroco gongorino.
A exposição de Sarduy segue, a partir da superação do signo que Lacan levara a
cabo num artigo fundamental dos Écrits, “L´instance de la lettre dans le inconscient ou la
raison despuis Freud”, no qual a relação de indissociabilidade entre significante e
significado, constituindo o signo, é desfeita pelo francês, segundo ele, numa homenagem ao
próprio Saussure:
266
Pour pointer l´émergence de la discipline linguistique, nous dirons qu´elle tient, comme
c´est le cas de toute science au sens moderne, dans le moment constituant d´un algorithme
qui la fonde. Cet algorithme suivant :
_ S .
s
qui se lit : signifiant sur signifié, le sur répondant à la barre que en sépare les deux étapes.
Le signe écrit ainsi, mérite d´être attribué à Ferdinand de Saussure [...]
La thématique de cette science est dès lors en effet suspendue à la position primordiale du
signifiant et du signifié, comme d´ordres distincts et sépares initialement par une barrière
résistante à la signification. (Lacan, 1966 :497)
145
É a defesa dessa noção de linguagem que Sarduy passa a encampar, sempre que se
refira, claro está, à linguagem do barroco. Entretanto, é preciso acrescentar que, na
continuidade de seu ensaio, o significado é deslocado à condição de um enigma passível de
decifração, através daquilo que Sarduy passará a chamar de “leitura radial”. À proliferação
de significantes que seria característica do barroco, corresponderá, para ele, a uma operação
de decifração do significado oculto, de um centro vazio. Notará o leitor que, ao lado da
concepção trazida por Lacan, mantém-se a noção de que a linguagem é portadora de uma
mensagem. Vejamos:
(7) Poesía que es, por naturaleza, tropo, que elude (e-ludere) todo mensaje. Los versos
constituyen una serie de perífrasis: círculo que recorre la lectura y cuyo centro, aunque
elíptico, está siempre presente. El significado elíptico de la perífrasis gongorina funciona
como ese ‘nudo patógeno’ de que habla Jacques Lacan: en la lectura longitudinal del
discurso es ese tema regularmente repetido (repetido como ausencia estructurante, como
lo que se elude), frente al cual la palabra falla. Y ese fallo señala el significado
ausente. La cadena longitudinal de la perífrasis describe un arco: la lectura radial de
esos fallos permite descifrar el centro ausente. (Sarduy, 1966:1157, grifos meus)
Parecem concorrer aí em Sarduy, uma vez mais, duas noções distintas, quanto a este
centro ausente, a esta falta. Em primeiro lugar, uma noção que ele só retomará em seu livro
seguinte, Barroco (1974), ao aproximar a codificação barroca à noção freudiana de
repressão/recalque (Verdrängung/refoulement). Assim, no texto literário haveria, segundo
145
“Para assinalar a emergência da disciplina lingüística, diremos que ela se origina, como é o caso de toda ciência no
sentido moderno, no momento constituinte de um algoritmo que a funda. Esse algorítimo é o seguinte
_ S .
s
que se lê: significante sobre significado, corresponde o “sobre” à barra que separa as duas etapas.
“O signo assim escrito, merece ser atribuído a Ferdinand de Saussure [...]
“A temática desta ciência fica, efetivamente, desde então, suspensa à posição primordial do significante e do significado,
como duas ordens distintas e separadas inicialmente por uma barreira resistente à significação” (Lacan, 1966: 500)
267
ele, uma aproximação entre sintoma e metáfora. O fato é que ele propõe que a leitura pode
detectar o que é este centro ausente; quanto então – levando adiante a analogia que se pode
depreender daí – o leitor seria alçado à condição de analista.
A outra concepção lacaniana, presente no fragmento acima, é aquela segundo a qual
há uma dimensão de falta na palavra, de que um significante necessariamente remete a
outro, e este a um terceiro, e assim sucessiva e indefinidamente. Tout se dit pas, diz Lacan,
porque há uma dimensão de falta constitutiva na palavra. Ora, se assim é, como se poderia
se arvorar Sarduy a uma operação decifratória na leitura do texto literário, se ele parece
partir desta mesma noção? O autor transforma aqui o paradoxo em técnica: Y el fallo señala
el significado ausente. A falta constitutiva – de que fala Lacan – transforma-se em espaço
de cifração/decifração como se escrita e leitura fossem tomadas numa dimensão de
charada/adivinhação.
Barroco y neobarroco
No segundo texto do qual nos ocuparemos, “Barroco y neobarroco” (1972), o autor,
levando adiante o que expusera em “Sur Góngora”, falará de mecanismos de
cifração/decifração, que podem ser assim resumidos: substituição, proliferação e
condensação. Na seção substituição, ele trata do mecanismo de metáfora tal como
usualmente se conhece; o exemplo que ele nos traz é de Lezama Lima, em Paradiso,
quando, segundo Sarduy, o narrador, para se referir a um pênis diz “el aguijón del
leptosomático macrogenitoma” (Lezama Lima apud Sarduy, 1972:1387). A ilustração que
Sarduy traz mostra muito de sua concepção de linguagem, na sua referência implícita a
Lacan:
(8)
a) La sustitución
Snt.
------> Snte
1
Sgdo
(Sarduy, 1972:1388)
268
Vê-se que o diagrama traçado pelo autor lembra em muito aquele que se lê na edição
francesa dos Écrits de Lacan. Mas o paradoxo é que entre o que está antes e depois da seta,
nota-se um movimento de Sarduy de retorno a uma concepção de linguagem pré-lacaniana.
Pois parte-se justamente de um primeiro momento de estabilidade, quando significante e
significado estão unos (a dimensão comunicativa da linguagem, da qual Sarduy jamais se
livrará) e só então – via escrita barroquizante – é que significante e significado se
separarão. Entretanto, mesmo se considerássemos uma passagem de um momento de
estabilidade para um momento (barroco) de desestabilização, é preciso ver como, pelo
mecanismo de decifração de Sarduy, o que há é um retorno ao momento inicial de
estabilidade. Pois, a seguirmos sua leitura, no exemplo de Lezama, retornaríamos
meramente a “pênis”, como se a radicalidade da escrita lezamiana fosse um jogo de
adivinha.
O problema, a meu ver, é que em seu “Barroco y neobarroco”, Sarduy termina por
privilegiar demasiado a dimensão do signo, quando supõe uma relação de necessidade entre
significante e significado. Ao fazer isso, ele termina por desconsiderar a radicalidade de
considerar a literatura em sua dimensão significante, para além da mera significação.
O fato é que ele parece, ao falar de substituição, ter em conta a metáfora tal como
Lacan a trata no texto já aludido. Vejamos o que ele diz:
L´étincelle créatrice de la métaphore ne jaillit pas de la mise em présence de deux images,
c´est-a-dire de deux signifiants également actualisés. Ele jaillit entre deux signifiants dont
l´un s´est substitué à l´autre en prenant sa place dans la chaîne signifiante, le signifiant
occulté restant présent de sa connexion (métonymique) au rest de la chaîne. (Lacan,
1966 :507)
146
O elemento fundamental a ser considerado, e que fará toda a diferença, é que Lacan
fala tão somente em substituição de um significante pelo outro, e que o significante oculto
mantém seus efeitos sobre a cadeia significante. Já Sarduy, ao considerar o mecanismo de
substituição, leva em conta que aquilo a que se pode chegar não é outro significante, e sim,
outro significado. Em linhas gerais seria possível dizer que, ao não abrir mão da noção de
146
“A centelha criadora da metáfora não brota da presentificação de duas imagens, isto é, de dois significantes igualmente
atualizados. Ela brota entre dois significantes dos quais um substituiu o outro, assumindo seu lugar na cadeia significante,
enquanto o significante oculto permanece em sua conexão (metonímica) com o resto da cadeia” (Lacan, 1966:510)
269
signo é que Sarduy termina por deitar fora a radicalidade do pensamento lacaniano acerca
da linguagem.
No mecanismo da condensação, mais do que ao barroco, a referência são as palavras-
valise de Lewis Carroll e James Joyce. Tal exemplificação mostra com clareza a intenção
de criar o vínculo entre a escrita de vanguarda e a do dito barroco histórico; é o modo de
Sarduy, à sua maneira, inscrever-se nessa tradição. Curiosamente, é no mecanismo da
condensação que a reflexão de Sarduy mostra-se mais pertinente, pois nela tem-se a
materialidade significante das duas ou mais palavras que originaram a nova palavra, e neste
processo o mecanismo da significação é notadamente imprevisível.
Entretanto, tanto nos mecanismos de substituição quanto de proliferação, a pergunta
que fica por ser respondida é: de que lugar se pode aceder a uma significação oculta senão
pelo próprio significante? E se o significante, conforme Sarduy, foi substituído, nada mais
consequente que supor que o significado é, por definição, perdido.
Ainda assim, insistirá Sarduy que o barroco é justamente a arte da busca deste objeto.
Uma vez mais, a linguagem “da comunicação” aparece como elemento de oposição, como
lastro que sustenta a argumentação:
(9) Contrariamente al lenguaje comunicativo, económico, austero, reducido a su
funcionalidad – servir de vehículo a una información –, el lenguaje barroco se
complace en el suplemento, en la demasía y la pérdida parcial de su objeto. O mejor: en
la búsqueda, por definición frustrada, del objeto parcial. El ‘objeto’ del barroco puede
precisarse: es ése que Freud, pero sobre todo Abraham, llaman el objeto parcial: seno
materno, excremento – y su equivalencia metafórica: oro, materia constituyente y soporte
simbólico de todo barroco –, mirada, voz, cosa para siempre extranjera a todo lo que el
hombre puede comprender, asimilar(se) del otro y de sí mismo, residuo que podríamos
describir como la (a)lteridad, para marcar en el concepto el aporte de Lacan, que llama a
ese objeto precisamente (a). (Sarduy, 1972:1401-1402, itálicos do autor, negritos meus.)
Para manter o achado da linguagem barroca, o preço que paga Sarduy é manter vivo
o cadáver da linguagem comunicativa, para mostrar o quanto o barroco é revolucionário.
Entretanto, quem se aproxime da obra de Sarduy pela perspectiva dos estudos da linguagem
logo percebe que quem busca sustentar uma linguagem barroca com os contornos que faz
Sarduy, dificilmente manteria em vigência tal conceito de linguagem comunicativa. O
deslize de Sarduy parece ter sido particularizar para uma certa escrita literária uma reflexão
que visa a abarcar a natureza da fala.
270
Percebe-se, ademais, no fragmento acima, como se acrescenta na reflexão de Sarduy
um elemento mais, o objeto a, objeto causa de desejo, do qual Lacan falava em seu
Seminário 11, ao qual Sarduy faz referência no rodapé como “Curso sobre el objeto (a),
inédito, en la École Normale de París”. A dimensão da falta, como já disse acima, a respeito
do teatro de Nelson Rodrigues, é fundamental para a reflexão sobre o desejo. Tal elemento
parece inexistir na teorização de Sarduy pois, mais que em falta, ele fala em excesso, em
suplemento. Logo voltarei a esse ponto.
Outro elemento que precisa ser mobilizado ao se tratar desse texto de Sarduy é o
paradoxo da descrição dos mecanismos de cifração/decifração trazidos no início do artigo,
e a conclusão de que a busca é frustrada, na conclusão do texto. Tal afirmação não causaria
tanta estranheza se o autor não houvesse prometido, ao princípio do artigo um
(10) esquema operativo preciso, que no dejara intersticios, que no permitiera el abuso o el
desenfado terminológico de que esta noción [el barroco] ha sufrido recientemente y muy
especialmente entre nosotros. (Sarduy, 1972:1386).
Assim, do esquema operatório prometido no início do artigo, o autor passa ao
elogio da proliferação de significantes, que ele celebra como erótica, e frustrada de
antemão. A impressão final é que muito do que fala Sarduy neste artigo seria melhor
aplicado à linguagem em geral, e não somente à literária, e menos ainda somente à
linguagem barroca. O autor sai de seu artigo como que à margem dos estudos da
linguagem, e da psicanálise lacaniana, embora, paradoxalmente, fique clara a incidência do
pensamento lacaniano e estruturalista de modo geral em sua escrita.
O outro paradoxo do texto é que a apropriação das reflexões que se pretendem algo
universalizantes – a psicanálise, a reflexão sobre a linguagem – são particularizadas, o que
faz com que, no processo da apropriação e da collage, elas percam muito de seu potencial
explicativo.
2.3.4. Exilado da Rue de l´île
Como se pode notar pela nota referente ao seminário 11 na seção anterior, e pelo
próprio contato com François Wahl, editor de Lacan, Sarduy certamente teve uma certa
proximidade física da figura pública de Jacques Lacan e, como ocorreu com muitos
271
intelectuais, frequentou algumas sessões de seus seminários. Procurei mostrar como
inclusive os Écrits representaram certa incidência do pensamento lacaniano sobre Sarduy,
no tocante à noção de significante. Mas, uma concepção comunicativa da linguagem
impede Sarduy de tornar produtiva a noção de significante em sua obra, limitando-se ao
elogio da proliferação.
A despeito do encanto que parece ter exercido a psicanálise sobre Sarduy, ele não
deixou de reiteradamente demonstrar certa reserva em relação a este pensamento. Numa
saborosa passagem de “Severo de la rue Jacob”, François Wahl (1998) revela que Sarduy
frequentava o seminário de Lacan muito esporadicamente, que chegava a ter certa
desconfiança em relação a ele, mas que não se furtava a certo encanto, e tampouco à leitura
de seus textos, durante o processo de edição dos Écrits. Embora o objetivo do trabalho não
seja fazer derivar dados biográficos dos autores à sua produção escrita, este causo relatado
por Wahl exige seu lugar nestas páginas por sua exemplaridade:
Son rapport avec Lacan ne fut guère qu´indirect et prudent, voire méfiant, il n´assista
qu´irrégulièrement à ses séminaires, n´eut avec lui que quelques rencontres, mais la
conceptualité lacanienne baignait le milieu dans lequel il se déplaçait, il en était partie
prenante, il le lisait chaque fois qu íl en avait besoin, il était a mes côtés pendant les mois
où je m´étais réfugie à la montagne pour préparer l´édition des Écrits. (Wahl, 1998:1450)
Essa adesão com reservas, provavelmente contemporânea à escrita de “Barroco y
neobarroco” cujos efeitos vimos acima, ganha outra dimensão quando se lê a nota de
rodapé de Wahl ao trecho acima, na qual relata um salutar exercício de psicanálise
selvagem entre ele e Sarduy, no qual se revelam – da parte de Sarduy – a um só tempo,
através de uma associação imprevista, suas reservas a Lacan e à Ilha de Cuba:
À propos de psychanalyse: pendant longtemps, il n´arriva jamais à se souvenir du nom de
la rue de Lille, et longtemps crut que le fait que Lacan l´habitât était la cause de ce
refoulement du nom; jusqu´au jour où il s´avisa que c´était pour lui la... rue de l ´île.
L´oubli aussitôt disparut. (Wahl, 1998:1450, grifos meus)
Mais do que corroborar a interpretação conjunta de Wahl e Sarduy, cabe ressaltar do
saboroso trecho acima como a concepção lacaniana da cadeia significante – advinda já do
Freud de Psicopatologia da vida cotidiana e radicalizada com a noção de homonímia – está
em plena operação na atividade do casal. Sem que seja preciso levar adiante a interpretação,
é notório como a irrupção da sequência “Rua da Ilha” na cadeia significante revela uma
tensa relação de Sarduy, a um só tempo, com a psicanálise lacaniana e a Ilha de Fidel. E
272
mostra, no fim das contas, que se trata de relações entre significantes, não entre
significados, na obra de Lacan. A qeustão, como vimos, é como Sarduy se apropria disso
em sua escrita.
Embora o sabor dos relatos de Wahl seja incomparável, para se chegar às reservas de
Sarduy quanto à psicanálise não seria necessária a história íntima do casal, pois tal posição
o autor manifestou-a publicamente em seus escritos:
(11) /Indagar, sin caer en el psicoanálisis, los dos signos mayores de Lezama, presentes
desde la primera frase de Paradiso: el lenguaje la madre – y la respiración como
angustia. [...] Si el lenguaje en majestad subrayo la connotación católica (la Virgen)
del término – testimonia la presencia de la madre, la respiración como angustia sería un
significante de la ausencia del padre. (Sarduy, “Dispersión. Falsas notas / Homenaje a
Lezama Lima”, 1968:1176, grifos meus)
A psicanálise como um erro no qual se pode incorrer é uma imagem que nada tem
de gratuito. Ainda mais se se percebe como o fragmento que se segue é um exercício que de
fato não incorre na psicanálise, mas num arremedo de psicanálise freudiana que linda com
o psicologismo, ao extrair de Paradiso, de Lezama Lima, um pai e uma mãe. Seria o caso
de se perguntar: pai e mãe de quem? Pois neste tipo de exercício, psicologizante, quando se
postula uma figura materna e uma paterna, supõe-se haver tamm um filho: o personagem
Cemí,? O próprio Lezama Lima?
Cabe dizer ainda que este texto de homenagem a Lezama, que também figura em
seus Escrito sobre un cuerpo – onde também o título ressoa os Écrits de Lacan – é o
exercício máximo da collage de Sarduy. Publicado pela primeira vez em 1968, em Mundo
Nuevo, traz explicitamente a dimensão cubana da obra do autor, sua filiação primeira. Ao
falar dela, curiosamente, como vimos, ele se esquiva da psicanálise, não sem
consequências, como veremos na seção seguinte.
2.3.5. Filiação: O Lezama Lima de Severo Sarduy e o seu Fidel
O texto “DISPERSIÓN. Falsas notas / Homenaje a Lezama Lima”, como já disse, é
composto por uma sucessão incessante de fragmentos narrativos, epistolares, reflexivos,
citações de autores diversos. Mas, já de cara, o que salta aos olhos é certo caráter
273
memorialístico, dado já pelas epígrafes ao texto, uma dedicatória a Rolando Escardó, que
teria presenteado o autor com um exemplar da revista Orígenes, em 1949, portanto quando
Sarduy contava com doze anos de idade. A outra é uma citação do próprio Lezama, acerca
de Góngora.
A primeira seção do texto se chama “RECUERDO” e traz uma evocação de uma ida
de Sarduy ao teatro, em Cuba, na companhia de Lezama Lima, para ver uma apresentação
do balé Bolshoi. Um embevecido Sarduy se recorda de haver perguntado ao mestre sobre
suas impressões acerca do espetáculo. A resposta é textualmente reproduzida – com a
memória da admiração:
(12) Mire joven – e impuso su voz gravísima, sentencioso, aspirando una bocanada de
aire, acezante, como si se ahogara –, Irina Durujanova, en las puntuales variaciones del
Cisne, tenía la categoría y majestad de Catalina la Grande de Rusia cuando paseaba en su
alazán por las márgenes congeladas del Volga... – y volvió a tomar aire. (Sarduy,
1968:1160)
Em seguida, de volta ao tempo da escrita, o autor diz que certamente Lezama Lima
nunca viu o Volga, em seu curso caudaloso ou mesmo congelado, que a visão, o
conhecimento ou a suposição da adiposidade de Catalina eram igualmente duvidosos, mas
que, mesmo assim, a analogia que ele construíra era perfeita e a frase funcionava à
maravilha. O que importa na frase de Lezama Lima para Sarduy é muito menos seu
conteúdo que sua forma, sua foné. Em termos lacanianos – pois Lacan certamente está na
raiz dessa evocação de Sarduy – é a cadeia significante de Lezama o que importa para o
autor. Tanto que, no parágrafo seguinte, prossegue Sarduy, dando o caráter causador para
as disparatadas palavras do mestre asmático:
(13) Ahora, después de la definición, del enunciado, y en ese tiempo único y reversible
que es el de la poesía, los bailarines del Bolchoi habían ilustrado una frase
previamente pronunciada por Lezama, habían confirmado – ejemplos, casos – una
categoría. (Sarduy, 1968:1160, itálicos do autor, grifos meus)
Sarduy parece estar mobilizando aqui outra ideia presente nos Écrits de Lacan, no
texto já aludido acima, quando o psicanalista francês diz que “le signifiant de sa nature
anticipe toujours sur le sens en déployant en quelque sorte au devant de lui sa dimension.”
274
(Lacan, 1966:502)
147
, formulação que se tornará mais epigramática, no seminário Encore,
de 1972-3, ao retomar o mesmo tema: “Le signifié c´est l´effect du signifiant.” (Lacan,
1972:34)
148
. Sirva-nos ainda, à maneira de parênteses, para corroborar o que foi dito na
seção anterior, que é nesta mesma aula do seminário que Lacan traz duas definições que, se
confrontadas às ponderações de Sarduy, exporiam a distância entre a concepção de
linguagem de Lacan e a de Sarduy:
Distinguer la dimension du signifiant ne prend relief que de poser que ce que vous
entendez, au sens auditif du term, n´a avec ce que ça signifie aucun rapport. (Lacan,
1972 :31)
149
Il n´y a aucune réalité pré-discursive. Chaque realité se fonde et se définit d´un discours.
(Lacan, 1972 :33)
150
Trazer as duas máximas de Lacan acima referidas tem a função não apenas de
acentuar a diferença de concepção que terminou por se estabelecer entre ambos pensadores,
antes de mostrar como havia potencialmente no pensamento de Sarduy uma possível
entrada para a reflexão lacaniana. Pois se se pensa, à luz do que é dito acima da literatura
dita barroca, e a noção de sobrenatureza espraia-se para toda a linguagem, e a riqueza da
literatura dita barroca deriva não mais por sua exclusividade, mas pela exposição da
dimensão do gozo do significante na poesia, elemento que o próprio Lacan explorará neste
seu seminário 20. A via de Sarduy, veremos agora, será diametralmente oposta, a ponto da
total negação de Lacan.
Retornemos a Sarduy. A cadeia significante de Lezama é tomada por Sarduy num
sentido quase mágico, conforme o qual a uma só vez radicaliza-se e restringe-se o
postulado de Lacan: a fala ordinária de Lezama invertendo temporalidades e produzindo
realidades novas a partir de seu dizer. Como se o Lezama Lima recordado por Sarduy fosse
o próprio Señor Barroco criado pelo mestre adiposo em seu La expresión americana. Ou
ainda uma espécie de Deus bíblico do livro do Gênesis que, ao falar, criasse em torno a si
todas coisas, com o poder de seu verbo. Eis como a leitura estruturalista de Sarduy pode ser
entendida como erigindo o Deus católico de Lezama Lima.
147
“o significante, por sua natureza, sempre se antecipa ao sentido, desdobrando como que adiante dele sua dimensão”
(Lacan, 1966:505)
148
“O significado é efeito de significante” (Lacan, 1972:47).
149
“Distinguir a dimensão do significante só ganha relevo ao se colocar o que vocês entendem, no sentido auditivo do
termo, não tem nenhuma relação com o que isso significa.” (Lacan, 1972:42)
150
“Não há nenhuma realidade pré-discursiva. Cada realidade se funda e se define por um discurso.” (Lacan, 1972:45)
275
Mas a atribuição dessa dimensão mágica à linguagem de Lezama, retornará ainda na
seção seguinte do mesmo texto, chamada “Detrás del discurso”, com efeitos notáveis e não
poucas consequências:
(14) Y es que el lenguaje cubano en Lezama, por primera vez entre nosotros, ha
adquirido todo su sentido, su gravitación materna. El idioma tiene en él toda la fuerza
creadora, inaugural, del primer contacto con la madre; diálogo que va a reanudarse,
metafóricamente, en la devoción de Lezama – y esta relación trinitaria de Madre, Hijo
y Lenguaje no puede tener lugar más que en un espacio católico – por la Virgen, la
‘Deipara, paridora de Dios’. Salvar el lenguaje, poseerlo en su vastedad y su infinito, ha
sido, para Lezama, salvar a la Madre, rechazar su muerte, como el Mallarmé del Tombeau
pour Anatole quiere, con las palabras, resucitar al hijo. (Sarduy, 1968:1175, itálicos do
autor, negritos meus.)
Destaco inicialmente a adjetivação do fragmento, pois surgem na superfície textual
alguns qualificativos de grande importância: lenguaje cubano, gravitación materna,
espacio católico. Se o leitor se lembrar do início deste capítulo, quando tracei a hipótese de
uma poética do exílio em Sarduy, e propus um ligeiro contraponto com o personagem
Stephen Dedalus, de James Joyce, logo verá que os três termos cunhados por Sarduy
remetem, não por mera coincidência, aos três termos dos quais o personagem Stephen
Dedalus pretendia renegar: a pátria, o lar e a religião; nos termos de Joyce: “my home, my
fatherland, or my church”. E eis que o semiologista exilado, ao tratar de sua filiação a
Lezama Lima, reafirma cada um dos elementos dos quais pretendia se afastar: lenguaje
cubano, gravitación materna, espacio católico.
Assim, a linguagem teorizada por Lacan deixa de ser barroca para ser cubana; surge
uma figura da mãe e um espaço católico. É interessante notar como, contrariamente ao que
se poderia esperar, a partir do seu arsenal teórico da semiologia, da psicanálise, o autor que
muitas vezes fará o elogio da condição de autoexilado, subitamente afirma-se cubano
através da postulada cubanidade da obra de Lezama.
O próprio catolicismo, praticamente ausente da maior parte de seus textos
ensaísticos, ganha primeiro plano, pelos três elementos que ele encontra em Paradiso, entre
Madre, Hijo y Lenguaje, numa sorte de trindade discursiva, a qual, segundo ele próprio, só
poderia ter lugar ‘en un espacio católico’. Sarduy como que se rende a uma sorte de
cosmogonia católico-cubana, e seu aparato lacaniano-estruturalista soçobra diante da
imagem mágica de José Lezama Lima.
276
Por outro lado, corroborando a hipótese de que ao fundo cristão, à teoria da
comunicação, permanece sim um certo aspecto estruturalista, surge um novo paradoxo.
Anos depois, numa reflexão que parte de um lugar teórico semelhante a este no qual Sarduy
tentou inscrever-se, no qual são consideradas a linguística saussureana e a psicanálise
lacaniana, Claudia Lemos (2000) concebe, ao teorizar sobre o processo de aquisição de
linguagem na infância, uma estrutura. Nela comparecem os mesmos três elemnentos
trazidos à baila por Sarduy: a criança, a fala da mãe (ou a fala do outro, de maneira mais
ampla) e a linguagem. Entretanto, em Lemos, está-se bem distante de uma trindade cristã:
To be brief, in my view, language acquisition is a subjetivizing process definable by
changes in the child’s position within a structure where la langue, the other’s parole
in its full sense are inextricably related with a ‘corps pulsionnel’, i.e. with the child as a
body whose activity demands interpretation (Lemos, 2000:177, grifos meus)
Tal coincidência entre os termos nada tem de gratuito, pois se trata, no âmbito de
uma reflexão sobre a linguagem, da articulação três elementos fundamentais, os quais,
quando presentes por Sarduy e Lemos, rendem uma leitura cheia de consequências, embora
de natureza bastante diversa em ambos autores. O fato é que a leitura de Lemos,
sucedendo-se a de Sarduy em cerca de trinta anos, ilumina-a permite que a possamos reler,
já noutra chave.
Com tais elementos – Madre, hijo, lenguaje – Sarduy faz derivar, como se sabe,
uma trindade católica para, já na página seguinte, numa posição delicada em relação à
psicanálise, fazer derivar também um núcleo familiar na trama do romance. Retomemos o
trecho (11), já citado, páginas atrás, em que ao autor, a um só tempo nega e afirma a
produtividade da psicanálise em sua leitura de Paradiso, através de uma de suas notas.
Sarduy procura mostrar a presença da mãe e do pai no romance, “sin caer en el
psicoanálisis”. Tal denegação é tremendamente estranha, pois está, uma vez mais, na raiz
de sua reflexão, o pensamento lacaniano. Só se entende a mãe como linguagem na obra,
pela onipresença de sua fala afetando Cemí, das mais diversas formas, ao longo da trama,
causando-lhe inclusive as crises de asma. O pai está ausente em Paradiso porque está
morto. Mas há ainda outra leitura possível, a partir do seminário de Lacan do ano seguinte a
escrita da primeira versão das notas de Sarduy, refiro-me ao seminário L´envers de la
psychanalyse. No trecho a seguri, Lacan alude especialmente ao papael da mãe e do pai
para uma criança:
277
De plus en plus , les psychanalystes s´engagent dans quelque chose qui est, en effet,
excessivement important, à savoir le rôle de la mère. Ces choses, mon Dieu, j´ai déjà
commencé de les aborder.
Le rôle de la mère, c´est le désir de la mère. C´est capital. Le désir de la mère n´est pas
quelque chose qu´on peut supporter comme ça, que cela vous soit indifférent. Ça entraîne
toujours des dégâts. Un grand crocodile dans la bouche duquel vous êtes – c´est ça, la
mère. On ne sait pas ce qui peut lui prendre tout d´un coup, de refermer son clapet. C´est
ça, le désir de la mère.
Alors, j´ai essayé d´expliquer qu´il y avait quelque chose qui était rassurant [...] Il y a un
rouleau, en pierre, bien sûr, quie est là en puissance au niveau du clapet, et ça
retient, ça coince. C´est ce qu´on appelle le phallus. C´est le rouleau qui vous met à l
´abri, si, tout d´un coup, ça se referme. (Lacan. L´envers de la psychanalyse, 1970 :129,
grifos meus)
151
Se incorresse na psicanálise – lacaniana – , Sarduy daria o nome dos bois, desejo da
mãe, e nome do pai. Mas o que o cubano faz é de uma natureza diversa, ao invés de
conceber Cemí numa posição semelhante a do príncipe Hamlet diante da Rainha, coisa que
Lacan já fizera em seu Le désir et son intérpretation, como vimos capítulos atrás, o que ele
faz é dizer que o romance é a negação da morte. E Cemí, que nada tem que lhe sirva de
anteparo às palavras da mãe, não há pai, não há falo, termina como presa do grande
crocodilo maternal.
Nessa entrega indefesa é que Sarduy – numa interpretação bastante reveladora – vê
o gesto magistral do romance de Lezama e, ato seguido, aproximará o próprio Cemí de
Lezama, pois, para ele, “salvar el lenguaje, poseerlo en su vastedad y su infinito ha sido,
para Lezama, salvar a la Madre, rechazar su muerte”. Ou seja, o elemento máximo para
Sarduy, nomeando a quem de direito, é capitular diante do desejo do outro, seja para Cemí
ou Lezama em relação à Mãe. Algo semelhante à posição que assume a criança, diz Claudia
Lemos (2003), quando há a prevalência do polo do outro, quando imperam as
interpretações advindos deste outro que a interpreta e lhe atribui sentidos:
Se o pólo dominante ou convergente da primeira posição é o outro, as relações, na fala da
criança, entre esses significantes que vêm do outro dão a ver o funcionamento da língua e
um processo de subjetivação por ele regido, enfim, um sujeito emergente no intervalo
entre os significantes do outro. (Lemos, 2003:529)
151
“Cada vez mais, os psicanalistas embarcam em algo que é, de fato, extremamente importante. Essas coisas, Meu Deus,
já comecei a abordá-las.
O papel da mãe é o desejo da mãe. É capital. O desejo da mãe é algo que se possa suportar assim, que lhes seja
indiferente. Carreia sempre estragos. Um grande crocodilo em cuja boca vocês estão – à mãe é isso. Não se sabe o que lhe
pode dar na telha, de estalo fechar sua bocarra. O desejo da mãe é isso.
“Então tentei explicar que havia algo tranquilizador [...] Há um rolo, de pedra, é claro, que lá está em potência, no
nível da bocarra, e isso retém, isso emperra. É o que se chama falo. É o rolo que os põe a salvo se, de repente, aquilo
se fecha.” (Lacan, O avesso da psicanálise, 1970:105, grifos meus)
278
Evidentemente a autora está falando de crianças bastante jovens, ainda em processo
de entrada na linguagem; entretanto, tal citação permite que se faça um deslocamento para
pensar, num sujeito já constituído, que se coloca na posição de quem se deixa interpretar
pelo outro, e soçobra diante daquela fala alheia, verdadeiro títere. Aí seria possível ver a
identificação ainda em outra parte, não mais entre Cemí e Lezama Lima, mas entre o
próprio Sarduy diante da fala caudalosa de José Lezama Lima. Não só quando faz o elogio
da fala materna, como também quando atribui a José Lezama Lima os poderes mágicos de
engendrar realidades, como se fora ele o detentor não só dos belos significantes mas de
todas as significações.
O elemento cubano, também defendido por Sarduy no texto de homenagem a
Lezama pode ser melhor apreendido no já citado “Barroco y Neobarroco”. Há em tal texto
uma menção final, da qual passo agora a tratar. Trata-se do item final da conclusão do
texto, resumido em apenas dois parágrafos na versão latino-americana do artigo:
(15) c) Revolución
Sintácticamente incorrecta a fuerza de recibir incompatibles elementos alógenos, a fuerza
de multiplicar hasta la ‘pérdida del hilo’ el artificio sin límites de la subordinación, la
frase neobarrocala frase de Lezama – muestra en su incorrección (falsas citas,
malogrados ‘injertos de otros idiomas, etc.), en su no ‘caer sobre sus pies’ y su pérdida de
la concordancia, nuestra pérdida del alleurs único, armónico, concordante con
nuestra imagen, teológico en suma.
Barroco que en su acción de bascular, en su caída, en su lenguaje pinturero, a veces
estridente, abigarrado y caótico, metaforiza la impugnación de la entidad logocéntrica,
que hasta entonces lo y nos estructuraba desde su lejanía y su autoridad; barroco que
recusa toda instauración, que metaforiza al orden discutido, el dios juzgado, a la ley
trasgredida. Barroco de la Revolución. (Sarduy, 1972:1403-1404, itálicos do autor,
grifos meus.)
O Barroco e seu poder de subversão, que é trazido à reboque da escrita de Lezama
Lima, é emparelhado à Revolução, que na obra e no contexto de Sarduy não pode ser outra
senão a cubana
152
. Da passagem da leitura operativa ao barroco de la Revolución, erige-se
em Sarduy uma reflexão cuja forma é inovadora – o uso do collage, das reflexões de
Lacan, Barthes, Sollers – mas cujo conteúdo remete à religião, à Revolução Cubana, ao
catolicismo. Para usar uma expressão do próprio autor, sua obra traveste-se de conceitos da
ordem do dia, mas se compraz dos valores tradicionais, vigentes em sua terra natal, da qual,
porém, mantém-se exilado física, mas não discursivamente.
152
Cf. Martínez Amaro, no curso Veredas transversales de la expresion americana: Lezama, Borges, Drummond
(UFSCar, 2006).
279
Com sua poética – e sua ética – do exílio, Severo Sarduy é transgressivo o bastante
para que sua obra não circule mais na Ilha de Cuba mas, ao mesmo tempo, seu pensamento
estaca diante da transgressão, e aferra-se a uma posição reacionária, de sustentar uma noção
de cubanidade, de uma linguagem comunicativa, e do catolicismo como elementos que
poderiam salvar o sujeito daquilo mesmo que, segundo a psicanálise lacaniana, o define, a
falta.
Ao mesmo tempo, apesar de não chegar a inscrever-se de fato, nem no grupo de Tel
Quel – embora se regozije ao se auto-ironizar como Carmem Miranda Semiológica – nem à
reflexão radical proposta por Lacan ou Barthes, postula-se como fazendo parte de ambas
realidades, nos seus muitos autorretratos – verdadeira tentativa de, pela linguagem, reatar
os nós de uma possível identidade. Ainda assim, o lugar de Severo Sarduy permanece
sendo o alhures, uma intrincada fenda onde não se deixa capturar.
Se fosse para, ao final destas páginas, dizer qual a mutação pela qual passa o desejo
na escrita de Severo Sarduy seria preciso dizer que – a se levar em consideração a premissa
de Lacan em L´étique de la psychanalyse, de que o desejo se constrói a partir da faute – o
espaço do erotismo de Sarduy impede a criação de um espaço de desejo em sua obra. Ao
invés da falta, ele postula o excesso que termina por buscar o ocultamento desta mesma
falta.
Posto que a premissa mesma do horror vacui é levada à máxima potência pela
proliferação significante; tal proliferação a situamos na escrita narrativa de Sarduy, no seu
procedimento de collage teórico, na sua reflexão enfim. Em Sarduy é sempre possível
passar de um fragmento a outro, de um gênero a outro, de uma imagem à outra, de uma
teoria a outra; e é sempre possível erigir, nos interstícios onde se faz ver uma falta, uma das
maître-mot do discurso do francocubano: a cubanidade, a revolução, o deus cristão, o
erotismo, Lezama Lima.
Não há falta que se deixe ver na escrita de Sarduy; como não há real que possa
irromper da sua reflexão, posto que as unidades estão dadas de antemão. De nada valeu
então assumir como grau zero o signo partido de Lacan, pois Sarduy a todo o momento
confere ao signo saussuriano uma idealizada unidade. E a proliferação ou esconde um
sentido dado de antemão ou serve à Revolução, com o que ele chama de desperdício.
280
E se uma voz se erguesse para dizer que no erótico talvez pudesse haver algo em
Sarduy que permitiria falar sobre o desejo, valeria inclusive rememorar uma entrevista em
que Sarduy dá sua definição do erótico, opondo-o a nada mesmo que a sexualidade. Ao
afirmar que a sexualidade é da ordem da reprodução, e que o erótico é da ordem do jogo, o
espaço da suspensão do sentido, da instauração da falta é tamponado (Cf. Sarduy, 1978,
entrevista a Joaquín Serrano, no programa A fondo). De modo que o autor se desvia do real
da relação sexual em nome de um jogo verbal, inócuo, de adivinhações.
O trabalho instigante com a promissora reflexão de Sarduy – que o espaço destas
páginas impede de levar a cabo – seria relê-la a partir de Lacan, e ver o que, no fim das
contas, sua escrita poderia aportar a uma compreensão psicanalítica do barroco, na sua
dimensão de gozo, mas também em sua dimensão trágica, que não tivesse as cartas
marcadas antes do início da partida.
À guisa de conclusão, e retomando a oposição com a qual este capítulo foi iniciado,
voltemos à comparação entre Sarduy e Arenas. Tal comparação, é evidente, não se baseia
no critério da produção estética, antes no postulado ao longo deste trabalho, de ver as
mutações na escrita sobre o desejo, da passagem entre a psicanálise e algumas produções
culturais. Em Arenas há algo da ordem do real, que perpassa a sua relação, literariamente
construída (Arenas, 1992), com o governo de Fidel Castro na Ilha de Cuba, com o sexual. O
sexual em Arenas, frequentemente escapa da ordem do sentido, e tão somente seu gesto
final de suicídio ganha sentido quando o dedica ao ditador.
Já na obra de Severo Sarduy, vemos torneios e volutas que o desviam do real, e
inclusive do que é da ordem do desejo. Os significantes que se proliferam terminam por
encobrir algo, que não chega nunca a ser revelado, pois diante dele estão uma Revolução
idealizada, uma cubanidade idealizada, um oriente idealizado, e o real do sexo traveste-se
sucessivamente de homem, de mulher, e outra vez de homem, libertando o sujeito de
qualquer enfrentamento
153
.
153
O exemplo mais eloquente deste procedimento está no romance Colibri, pelos sucessivos travestimentos de alguns
personagens.
281
Considerações finais
Este trabalho ordenou-se a partir de alguns pressupostos fundamentais. O primeiro
deles é que a psicanálise é – antes de tudo – uma clínica que opera pela linguagem. E que
tal forma de tratamente tem seu início com Sigmund Freud; em sua fundação, os dizeres
das histéricas têm papel fundamental, inclusive na nomeação trazida por Anna O., de
“talking cure”, uma clínica do dizer na qual intervém a escuta. Em segundo lugar, o saber
psicanalítico viajou para o campo da cultura, no qual o indizível é compartilhado entre
muitos e ganha estatuto estético. Tal viagem teve impacto sobre a produção cultural do
ocidente ao longo do século vinte. Finalmente, tal clínica – e a reflexão de Freud – parecem
ter sido movidas por uma queso fundamental sobre o desejo: “O que quer uma mulher?”.
A partir desses pressupostos, perguntas fundamentais passaram a mobilizar a
reflexão que, por sua vez, possibilitou a escrita deste trabalho. A primeira delas recaía sobre
as implicações de tal passagem da clínica à cultura: de que forma é possível falar sobre tal
incidência, como é possível qualificá-la? E, finalmente, quanto à pergunta sobre o desejo,
como ela funciona quando deslocada para o campo da cultura, para a escrita?
Para ensaiar possibilidades de resposta quanto à tais perguntas, mobilizei a noção de
traveling theory de Edward Said, a qual, contrariamente a concepção de Roberto Schwarz,
não considera a existência de “ideias fora do lugar”, justamente o oposto, parte do
pressuposto que o lugar da ideia é o deslocar-se. A travelling theory permitiu falar sobre os
deslocamentos das ideias psicanalíticas sem qualquer noção purista.
O campo de observação dos deslocamentos ofi a América Latina, em dois
momentos privilegiados, a entrada do pensamento freudiano no Brasil e a impossibilidade
de entrada do pensamento freudiano e lacaniano no Caribe. Foram analisadas, mais
especificameente quatro autores nucleares: no momento da entrada do pensamento
freudiano em São Paulo, no contexto do modernismo, a obra de Mario de Andrade. Quando
do refluxo do entusiasmo inicial em relação a psicanálise, no Rio de Janeiro, já com certa
282
diluição desse pensamento, o autor privilegiado foi Nelson Rodrigues. Na seção caribenha
do trabalho, foram abordados dois autores, principalmente, o martinicano Frantz Fanon,
que se deslocou à França e logo à Argélia; e quando das dificuldades do pensamento
analítico em Cuba, a saída de Severo Sarduy para seu autoexílio francês.
A consideração de que se trata de dois momentos históricos bastante distintos, o
Brasil do começo do século e o eixo Caribe-França em meados do século, leva a que o
trabalhe se apresente como uma história da entrada da psicanálise na America Latina. E,
ainda assim, permite que se veja a operação da questão sobre o desejo na escrita dos
diversos escritores. Neste sentido, o trabalho seria também um mapeamento que considera
o histórico mas, ao mesmo tempo, tem a pretensão de permitir uma comparação estrutural,
qual seja, a posição destes autores em relação à psicanálise, à linguagem e ao desejo. Seria,
portanto, uma história da entrada da Psicanalise na America Latina que considera o
desejo. Vale ressaltar que optar por comparações estruturais não impede que se conte uma
história.
Assim, ao final da trajetória proposta, foi possível esboçar algumas respostas. Nas
obras dos diversos autores analisados, as ideias psicanalíticas – ou um arremedo delas –
figuraram-se das mais diversas formas: como uma panaceia, charlatanismo ou uma sorte de
oráculo. É o que se percebe na obra Sexo, de Renato Viana, nos livros de Gastão Pereira de
Andrade, e nas diversas sátiras perpetradas por Nelson Rodrigues em seu teatro e crônicas.
Funciona ainda como uma sorte de salvo conduto para dizer, fazer ou mostrar
obscenidades, tal como se vê no teatro de Renato Viana e Nelson Rodrigues. Num outro
nível, nota-se a psicanálise como fornecedora de tema para alguns textos literárias, de
maneira bastante simples, como em Nelson Rodrigues – que se apropria da vulgata
psicanalítica em seu teatro – mas também de forma algo mais sutil, como na feitura de
Amar, verbo intransitivo, de Mário de Andrade. Entretanto, não estaria ainda aí o veio mais
fértil a ser explorado.
Quanto à pergunta sobre as formas de incidência da influência do pensamento
psicanalítico sobre a escrita literária, no caso latinoamericano e, mais especificamente, nos
autores analisados, seria possível dizer que tal relação de influência pode ser mecânica mas
não somente. No caso de Mário de Andrade, seria mecânica se a considerássemos sua obra
como uma apropriação de conceitos psicanalíticos aplicados à feitura do romance.
283
Igualmente a obra de Nelson Rodrigues poderia ser tomada por esta perspectiva, entretanto,
no seu caso específico, mostrou-se mais produtivo, considerar a anterioridade histórica da
literatura em relação à psicanálise, e buscar na tradição trágica o antecedente comum entre
Nelson Rodrigues, de um lado, e Freud e Lacan, de outro. O desejo é, neste caso, trágico,
antes de ser psicanalítico, ou, dito de outra forma, é analítico sendo trágico.
Finalmente, quanto à pergunta sobre o desejo visto do lado da produçaõ cultural, foi
possível ainda traçar um outro mapa, assim disposto: o desejo no lar burguês, tal como o
concebera Freud, posto em cena sob a forma do romance familiar em Mário de Andrade e
Renato Viana; o desejo feminino, na obra de Nelson Rodrigues; o desejo do negro, em
Fanon; o desejo do homossexual, em Severo Sarduy, Reinaldo Arenas e José Lezama Lima.
Ao traçar tal mapa, seria possível ainda perguntar-se sobre o lugar da contingência histórica
à estruturação psíquica, e ver se tais adjetivações do desejo jogam algum papel
fundamental.
À guisa de conclusão, pode-se dizer que uma escrita que convoca o desejo não passa
por uma leitura atenta de Freud ou Lacan, e isso o provam os exercícios trágicos de Nelson
Rodrigues; e nem tal leitura atenta poderia trazer qualquer garantia, como nos fica evidente
por Severo Sarduy e Mário de Andrade. Mas se a influência mecânica não basta para tal
operação com o desejo, também a sátira não obsta para que haja de fato tal operação, e aí a
obra de Nelson Rodrigues é fundamental. Sequer é necessário que se toque no tema da
psicanálise para que a operação se dê, como o mostram as tragédias antiga e moderna, e a
escrita de Arenas, por exemplo. É preciso uma certa posição em relação ao desejo para
poder fazer dele uma escrita, que não seja puro jogo verbal, que convoque novos sentidos,
que suspenda os sentidos, que mobilize, enfim, o sujeito, em seu escrever. É preciso enfim,
uma dimensão de real que faça rememorar ao sujeito a presença ineludível da castração.
São Carlos, 20 de janeiro de 2010.
284
REFERÊNCIAS
ALVES-BEZERRA, Wilson. Da tradução como criação e como crítica: Rumo à
caracterização de um Quiroga brasileiro. In: Revista Olhar. São Carlos: UFSCAR, 2010.
No prelo.
ALVES-BEZERRA, Wilson. A psicanálise vai à literatura: Freud, filósofo do trágico, lê
os clássicos… e Nelson Rodrigues, que tragédias fará?. Rio de Janeiro: UERJ, 2008.
Trabalho monográfico apresentado à disciplina Textos Seminais em Teoria da Literatura,
ministrada no primeiro semestre de 2008 pela Profa. Dra. Carlinda Fragale Pate Núñez
Mimeografado.
ANCONA LOPEZ, Telê Porto. Mário de Andrade: Ramais e Caminho. São Paulo: Duas
Cidades, 1972 [primeira edição em 1972].
ANDRADE, Mário de. Paulicea Desvairada (ed. facsimilar). São Paulo: Edusp, 2002
[primeira edição em 1922].
______. A escrava que não é Isaura. In: Obra Imatura. o Paulo: Martins. Belo Horizonte:
Villa Rica, 1980, 3ª ed. [primeira edição em 1925].
______. Amar, verbo intransitivo. Idílio. Belo Horizonte: Itatiaia, 1987, 14ª ed. [primeira
edição em 1927].
______. A proposito de Amar, verbo intransitivo. In: Amar, verbo intransitivo. Belo
Horizonte: Villa Rica, [19– ][primeira edição em 1927], pp.153-155.
______. Contos Novos. Belo Horizonte / Rio de Janeiro: Villa Rica, 1993, 15ª ed. [primeira
edição em 1947].
ANTELO, Raúl. Na Ilha de Marapatá: Mário de Andrade lê os hispano-americanos. São
Paulo: Hucitec; Brasília: Ministério da Cultura, 1986.
ARENAS, Reinaldo. El mundo alucinante. Caracas: Monte Ávila, 1982 [primeira edição
em 1968].
285
______. Antes que anochezca.Barcelona: Tusquets, 2008 [primeira edição em 1992].
ARRUFAT, Anton. Un poco de Piñera. In: PIÑERA, Virgilio. Cuentos Completos. Madri:
Alfaguara, 1999, pp. 11-31.
ARTUNDO, Patrícia. Mário de Andrade e a Argentina. Trad. Gênese Andrade. São Paulo,
Edusp, 2004.
ATHAYDE, Tristão de. Freud II. In: Vida Literária. [S.l.: s.n., 19–?]. Recorte de jornal.
______. Freud. Rio de Janeiro: Centro D. Vital, [19–] [primeira edição em
aproximadamente 1929].
BARRETO, Teresa Cristófani. A libélula, a pitonisa. Revolução, homossexualismo e
literatura em Virgilio Piñera. São Paulo: Iluminuras / FAPESP, [19–?] [primeira edição em
1996].
BARTHES, Roland. Maîtres et esclaves [primeira edição em 1953]. In: FREYRE, Gilberto.
Casa Grande & Senzala. México: Conaculta, 2002 [primeira edição em 1933], p. 1100-
1101.
BENJAMIN, Cesar. Apresentação [primeira edição em 2002]. In: KOJÈVE, Alexandre
Introdução à leitura de Hegel. Trad. Estela dos Santos Abreu. Rio de Janeiro: Contraponto,
2002 [primeira edição em 1947]. Orelhas.
BHABHA, Homi. Interrogando a identidade: Frantz Fanon e a Prerrogativa Pós-colonial.
In: O Local da Cultura. Trad. Myriam Ávila; Eliana Lourenço de Lima Reis; Gláucia
Renata Gonçalves. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2005 [primeira edição em 1998], pp.70-
104.
BLOOM, Harold. A Angústia da Influência: Uma teoria da poesia. Trad. Marcos Santarrita.
Rio de Janeiro: Imago, 2002, 2ª ed. [primeira edição em 1973].
BORGES, Jorge Luis. Kafka y sus precursores. In: Obras Completas. Barcelona: Emecé,
1996 [primeira edição em 1951], pp.96-98.
286
BOSI, Alfredo. História Concisa da Literatura Brasileira. São Paulo: Cultrix, 2007.
BOURGUIGNON, André & Odile. Traduire Freud? I: Singularité d´une histoire. Revue
française de Psychanalyse, [Paris], v.47, n.6, 1983, pp.1257-1279. [obra não consultada]
BOURGUIGNON, André; COTET, Pierre & LAPLANCHE, Jean. Traduire Freud. Paris:
PUF, 1989.
BRUNO, Mário. Lacan & Deleuze: O trágico em duas faces do além do princípio do
prazer. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2004.
BUCK-MORSE, Susan. Utopia e engajamento. Trad. Fernanda Pitta; Mracio Sattin.
Cadernos de Filosofia Alemã, [S.l.: s.n.], n.3, 1997, pp.61-68. Disponível em:
<http://antivalor2.vilabol.uol.com.br/textos/frankfurt/morrs_01.htm>. Consultado em
01/02/2010.
BULHAN, Hussein Abdilahi. Frantz Fanon and the Psychology of Opression. Nova
Iorque: Plenum, 1985.
CARONE, Marilene. Freud em português: uma tradução selvagem. In: SOUZA, Paulo
César Souza (org). Sigmund Freud & O gabinete do Dr. Lacan. São Paulo: Brasiliense,
1989 [primeira edição em 1985a], pp.160-166.
______. Freud em português: ideologia de uma tradução. In: SOUZA, Paulo César Souza
(org). Sigmund Freud & O gabinete do Dr. Lacan. São Paulo: Brasiliense, 1989 [primeira
edição em 1985b], pp.1166-1176.
______. Freud em português: tradução e tradição. In: SOUZA, Paulo César Souza (org).
Sigmund Freud & O gabinete do Dr. Lacan. São Paulo: Brasiliense, 1989 [primeira edição
em 1987], pp.176-188.
CARPENTIER, Alejo. Un camino de medio siglo. In: Ensayos. Madri: Siglo XXI, [19–]
[primeira edição em 1975], pp.141-166.
CASTRO, Ruy. O Anjo Pornográfico: A vida de Nelson Rodrigues. São Paulo: Companhia
das Letras, 2007 [primeira edição em 1992].
287
CASTRO, Moacyr Werneck de. Mário de Andrade: Exílio no Rio. Rio de Janeiro, Rocco,
1989.
CASTRO, Ricardo de Sousa. Edição genética d´O Seqüestro da Dona Ausente. São Paulo:
Dissertação de Mestrado, FFLCH/USP, 2001.
CHEMOUNI, Jacquy. História do movimento psicanalítico. Trad. Clovis Marques. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar, 1991 [primeira edição em 1990].
CHERKI, Alice. Préface à l´édition de 2002. In : FANON, Frantz. Les damnés de la terre.
Paris: La Découverte, 2002, pp.5-15.
______. Prefácio à edição de 2002. In: FANON, Frantz. Os condenados da terra. Trad.
Enilce Albergaria Rocha; Lucy Magalhães. Juiz de Fora: EDUFJF, 2005, pp.7-21
DIAS, Mauro Mendes. Seminário sobre Édipo/Castração. Campinas: Escola de Psicanálise
de Campinas, 2005, CD-ROM.
DURVAL MARCONDES. Sinfonia em branco e preto. In: Klaxon, [sem número], 15 de
dez. de 1922. [obra não consultada]
______. O simbolismo esthetico na literatura: Ensaio de uma orientação para crítica
literária, baseada nos conhecimentos fornecidos pela pshyco-analyse. São Paulo: Secção de
obras de O Estado de São Paulo, 1926. [obra não consultada]
FANON, Frantz. Peau noire, masques blancs. Paris: Seuil, [19–] [primeira edição em
1952].
______. Pele negra, máscaras brancas. Trad. Alexandre Pomar. Porto: A. Ferreira, [19–]
[primeira edição em 1952].
______. Les damnés de la terre. Paris: La Découverte, 2002 [primeira edição em 1961].
288
FANON, Frantz. Les damnés de la terre. Paris: François Maspero, 1961.
______. Os condenados da terra. Trad. Enilce Albergaria Rocha; Lucy Magalhães. Juiz de
Fora: EDUFJF, 2005 [primeira edição em 1961].
FEBVRE, Lucien. Brésil, terre d´histoire [primeira edição em 1952]. In : FREYRE,
Gilberto. Maîtres et esclaves : La formation de la société brésilienne. Paris: Gallimard,
1974, pp.11-22.
FERES, Nite Therezinha. Leituras em francês de Mário de Andrade. Seleção e comentário
com fundamento na marginália. São Paulo: Instituto de Estudos Brasileiros, 1969.
FRANCO DA ROCHA. A doutrina de Freud. Revista do Brasil, São Paulo , n. 46, ano IV,
pp.130-136, out. de 1919.
______. Psychiatria [Rezenha do mez]. Revista do Brasil, São Paulo, n. 46, ano IV, pp.498-
502, abr. de 1919.
______. A doutrina de Freud: Resumo Geral Indispensavel para a Comprehensão da
Psicoanalise. 2ª edição de Pansexualismo. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1930.
FREUD, Sigmund. Cinq Leçons sur la Psychanalyse. Trad. Ives de Lay. Paris: Payot, 1924
[primeira edição em 1910].
______. Cinq Leçons sur la Psychanalyse. Trad. Ives de Lay. Paris: Payot, 1926 [primeira
edição em 1910].
______. Cinco lições de psychanalyse. Trad. Durval Marcondes e J. Barbosa Corrêa. São
Paulo: Editora Nacional, 1931 [primeira edição em 1910].
______. Interpretación de los sueños. In: Obras Completas 1. Trad. Luis López-Ballesteros.
Madri: Biblioteca Nueva, 1996 [primeira edição em 1900], pp.343-720.
______. Sobre un tipo especial de la elección de objeto en el hombre. In: Obras Completas
2. Trad. Luis López-Ballesteros. Madri: Biblioteca Nueva, 1996 [primeira edição em 1910],
pp.1625-1630.
289
FREUD, Sigmund. Essays de Psychanalyse. Trad. S. Jankélévitch. Paris: Payot, 1927.
______. Essays de Psychanalyse. Trad. S. Jankélévitch. Revisada por A. Hasnard. Paris:
Payot, 1979.
______. Zur Psychopathologie des Alltagslebens. Frankfurt: Fisher Verlag, 1985 [primeira
edição em 1901].
______. La Psychopathologie de la vie cothidienne. Trad. S. Jankélévitch. Paris: Payot,
1922 [primeira edição em 1901].
______. Totem und Tabu (Einige Übereinstimmungen im Seelenleben der Wilden und der
Neurotiker). In: Kulturghoretische Scriften. Frankfurt : Fischer Verlag, 1986 [primeira
edição em 1912], pp.287-444.
______. Totem et tabou. Paris: Payot, 1925 [primeira edição em 1912].
______. Introduction a la Psychanalyse. Trad. S. Jankélévitch. Paris: Payot, 1927 [primeira
edição em 1917]. [M.A.]
______. Introduction a la Psychanalyse. Trad. S. Jankélévitch. Paris: Payot, 1962 [primeira
edição em 1917].
______. Trois essais sur la théorie de la sexualité. Trad. B. Reverchon. Paris: Éditions de
la Nouvelle Revue Française, 1923, 12ª ed. [primeira edição em 1905]. [M.A]
______. Trois essais sur la théorie de la sexualité. Trad. B. Reverchon. Paris: NRF /
Librairie Gallimard, 1932, 30ª ed. [primeira edição em 1905]
______. Trois essais sur la théorie de la sexualité. Trad. B. Reverchon. Paris: NRF/
Gallimard, 1964 [primeira edição em 1905].
FREYRE, Gilberto. Casa Grande & Senzala. México: Conaculta, 2002 [primeira edição
em 1933].
290
FREYRE, Gilberto. Maîtres et esclave : La formation de la société brésilienne. Trad. Roger
Bastide. Paris: Gallimard, 1974 [primeira edição em 1952].
______. Tempo morto e outros tempos: Trechos de um diário de adolescência e primeira
mocidade. 1915-1930. Rio de Janeiro: José Olympio, 1975.
GIBSON, Nigel. Fanon: The Postcolonial Imagination. Cambridge: Polity, 2003.
HANNS, Luiz. Dicionário comentado do alemão de Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
HANSEN, João Adolfo. Barroco, Neobarroco e Outras Ruínas. In: Estudios Portugueses,
Salamanca, v. 3, 2003, pp.171-217.
HARBI, Mohammed. Postface à l´édition de 2002 . In: FANON, Frantz. Les damnés de la
terre. Paris: La Découverte, 2002, pp.307-311.
HEGEL, G. W. F. La verdad y la certeza de sí mismo. In: Fenomenología del espíritu.
Trad. Wenceslao Roces e Ricardo Guerra. México: Fondo de Cultura Económica, 1978,
pp.107-139.
IBSEN, Henrik. Casa de bonecas. Trad. Maria Cristina Guimarães Cupertino. Mairiporã:
Veredas, 2007.
JONES, Ernest. Hamlet e o complexo de Édipo. Rio de Janeiro: Zahar, 1970 [primeira
edição em 1949].
JUNG, Carl Gustav. Um Mito Moderno sobre coisas vistas no céu. Petrópolis: Vozes,
1991, 2ª ed.
KANZEPOLSKY, Adriana. Acerca de algunos extranjeros: de Orígenes a Ciclón. Revista
Iberoamericana, Pittsburgh, v. 70, n. 208 - 209, pp. 839-856, 2004.
______. Un dibujo del mundo: extranjeros en Orígenes. Rosario: Beatriz Viterbo, 2005.
291
KANZEPOLSKY, Adriana. Las razones de la literatura. Crítica. Revista cultural de la
Universidad Autónoma de Puebla. [S.l.], ano 31, n. 134, pp.143-151, set. /out. de 2009.
KOJÈVE, Alexandre. En guise d´introduction. In : Introduction à la lecture de Hegel.
Gallimard: 1997 [primeira edição em 1947], pp.9-34.
______ . À guisa de introdução. In: Introdução à leitura de Hegel. Trad. Estela dos Santos
Abreu. EDUERJ, 2002 [primeira edição em 1947], pp.11-31.
LACAN, Jacques. Le Séminaire, Livre III : Les Pshychoses. Paris: Seuil, 1981 [primeira
edição em 1956].
______. A instância da letra no inconsciente ou a razão desde Freud. In: Escritos, 1966
[primeira edição em 1957].
______. Hamlet, por Lacan [Seminário 6]. In: Shakespeare, Duras, Wedeking, Joyce. Trad.
Eunice Martinho. Lisboa: Assírio & Alvim, 1989 [primeira edição em 1959].
______. Le Séminaire. Livre VII: L´étique de la psychanalyse. Paris: Seuil, 1986 (primeira
edição em 1960).
______. O Seminário, Livro 7: A ética da psicanálise. Trad. Antonio Quinet. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar, 1988 [primeira edição em 1960].
______. Mais, ainda . Trad. M.D. Magno. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985 [seminário
ministrado nos anos de 1972-1973, primeira edição em 1975].
LAPLANCHE, Jean; COTET, Pierre; BOURGUIGNON, André. Traduzir Freud. Trad.
Cláudia Berliner. São Paulo: Martins Fontes, 1992 [primeira edição em 1989].
LAPLANCHE & PONTALIS. Vocabulário da psicanálise. Trad. Pedro Tamen. São
Paulo: Martins Fontes, 1992, 2ª ed [primeira edição em 1982].
LARA, Cecília de. Klaxon & Terra Roxa e outras terras: dois periódicos modernistas de
São Paulo. São Paulo: IEB-USP, 1972.
LARRETA, Enrique; GIUCCI, Guillermo. Gilberto Freyre: uma biografia cultural. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 2007.
292
LARRETA, Enrique; GIUCCI, Guillermo. Casa Grande & Senzala: História da Recepção.
In: FREYRE, Gilberto. Casa Grande & Senzala. México: Conaculta, 2002 [primeira edição
em 1933], pp.927-952.
LEMOS, Claudia. O erro como desafio empírico às abordagens cognitivistas do uso da
linguagem: o caso da aquisição da linguagem. In: Saudades da língua. Campinas: Mercado
de Letras, 2003, pp.513-534.
______. Questioning development: the case of language acquisiton. Culture & Psychology.
London. v.1, n.2., pp.169-182, jan de 2000.
LEZAMA LIMA, José. A expressão americana. Trad. Irlemar Chiampi. São Paulo:
Brasiliense, [19–?] [primeira edição em 1957].
______. Paradiso. São Paulo: Alca XX, 1997 [primeira edição em 1968].
______. Image de l´Amérique Latine. Trad. Pierre de Place. Cahiers Confrontation. Paris.
n.5, pp.5-10., 1981.
______. Fugados.Trad. Josely Vianna Baptista. São Paulo: Iluminuras, 1993.
______. Cartas a Eloísa y otra correspondencia. Madri: Verbum, 1998.
LONGINO. Do Sublime.Trad. Filomena Hirata. São Paulo: Martins Fontes, 1996.
MACHADO, Roberto. O nascimento do trágico: De Schiller a Nietzsche. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar, 2006.
MAGALDI, Sábato. Introdução. In: Teatro Completo de Nelson Rodrigues. Org. Sábato
Magaldi. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1981.
293
MARQUÉS DE ARMAS, Pedro (2006). Psiquiatría para el nuevo Estado; algunos
documentos. La Habana Elegante, segunda época, Revista semestral de literatura y cultura
cubana, caribeña, latinoamericana, y de estética, [S.l.: s.n.], 2006. Disponível em:
<http://www.habanaelegante.com/Winter2006/Panoptico.html>. Consultado em 11 de
outubro de 2009.
MELMAN, Charles. Imigrantes: Incidências subjetivas das mudanças de língua e país.
Trad. Rosane Pereira. São Paulo: Escuta, 1992.
MIGNOLO, Walter. Histórias locais / projetos globais: Colonialidade, saberes subalternos
e pensamento liminar. Trad. Solange Ribeiro de Oliveira. Belo Horizonte: EDUFMG, 2003
[primeira edição em 2000].
MOKREJS, Elisabete. A psicanálise no Brasil: As origens do pensamento psicanalítico.
Rio de Janeiro: Vozes, 1993.
NUÑEZ, Carlinda Pate. Crepúsculo à beira-mar. In: Electra ou uma constelação de
sentidos. Goiânia: Editora da UCG, 2000, pp.216-279.
OLIVEIRA, Carmem Lucia Montechi Valladares de. História da psicanálise: São Paulo
(1920-1969). São Paulo: FAPESP / Escuta, 2006.
ORNSTON, Darius Gray (org.). Traduzindo Freud. Trad. Cristina Serra. Rio de Janeiro:
Imago, 1999.
PAULILLO, Maria Célia de Almeida. Contos da Plenitude. In: ANDRADE, Mário de
(1947). Contos Novos. Belo Horizonte; Rio de Janeiro: Villa Rica, 1993, 15ª ed. [primeira
edição em1983], pp.9-20.
PEREIRA, Victor Hugo Adler. Electra nas encruzilhadas culturais. In: LIMA, Tereza
Marques de Oliveira & MONTEIRO, Conceição. Representações culturas do Outro nas
Literaturas de Língua Inglesa. Rio de Janeiro: Vício de Leitura, 2001.
______. Nelson Rodrigues e a Obs-cena contemporânea. Rio de Janeiro: EDUERJ, 1999.
PIMENTEL, A. Fonseca. O teatro de Nelson Rodrigues. Rio de Janeiro, Margem, 1951.
PIÑERA, Virgilio. Freud y Freud. Revista Ciclón. Habana: Sociedad Colombista
Panamericana, v.2, n.6, pp.48-49, nov. de 1956
294
PIÑERA, Virgilio. Piñera teatral. In: Teatro Completo. Havana: Ediciones R, 1960, pp.7-
30.
______. La vida entera. Habana: Contemporáneos, 1969.
______. Muecas para escribientes. Habana: Editorial Letras Cubanas, 1987.
______. Contos frios. Trad. Teresa Cristófani Barreto. São Paulo: Iluminuras, 1989.
______. Cuentos Completos. Madri: Alfaguara, 1999.
______. Teatro Completo. Ed. Rine Leal. Havana: Letras Cubanas, 2006.
RAMA, Angel. Diez problemas para el novelista latinoamericano. In: v.a. Literatura y arte
nuevo en Cuba. Barcelona: LAIA, 1977 [primeira edição em 1970], pp.195-259.
RIVAIZ, Vanessa Nahas. Rastros freudianos em Mário de Andrade.2003. Tese de
Doutoramento – Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis.
ROAZEN, Paul. Freud and his followers. Nova Iorque: Da Capo Press, 1992 [primeira
edição em 1971].
ROCHA, Gilberto S. Introdução ao nascimento da psicanálise no Brasil. Rio de Janeiro:
Forense Universitária, 1989.
RODRIGUES, Nelson. Teatro Completo. Volume 2: Peças Míticas. Álbum de Família.
Anjo Negro. Dorotéia. Senhora dos Afogados. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2004, 2ª ed.
______. Teatro Completo. Tragédias Cariocas I: A Falecida. Perdoa-me por me traíres. Os
sete gatinhos. Boca de Ouro. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2004, 2ª ed.
______. Teatro Completo. Tragédias Cariocas I: A Serpente. O Beijo no Asfalto. Toda
Nudez será castigada. Otto Lara Resende ou Bonitinha, mas ordinária. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 2004, 2ª ed.
295
RODRIGUES, Nelson. Teatro Completo. Peças psicológicas: A mulher sem pecado.
Vestido de Noiva. Valsa nº6. Viúva, porém honesta. Anti-Nelson Rodrigues. Rio de
Janeiro: Nova Fronteira, 1981.
______. Teatro Completo. Volume 2. Peças Míticas: Álbum de Família. Anjo Negro.
Dorotéia. Senhora dos Afogados. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1981.
______ . A vida como ela é. Rio de Janeiro: Agir, 2006 (primeira edição em 1961).
______. Memórias: A menina sem estrela. Rio de Janeiro: Agir, 2009 (primeira edição
em1967).
______. A cabra vadia: Novas confissões. Rio de Janeiro: Eldorado, 1970.
______. Elas gostam de apanhar. Rio de Janeiro: Agir, 2007 (primeira edição em 1974).
______. O baú de Nelson Rodrigues: Os primeiros anos de Crítica e Reportagem. São
Paulo: Companhia das Letras, 2004.
______. O berro impresso das manchetes: Crônicas Completas da Manchete Esportiva 55-
59. Rio de Janeiro: Agir, 2007.
______. Eu não tenho culpa que a vida seja como ela é. Rio de Janeiro: Agir, 2009.
RODRÍGUEZ FEO, José. Introdução. Trad. Teresa Cristófani Barreto. In: Contos frios. São
Paulo: Iluminuras, 1989 [primeira edição em 1988].
RODRÍGUEZ MONEGAL, Emir. Mário de Andrade / Borges: Um diálogo dos anos 20.
São Paulo: Perspectiva, [19–] [primeira edição em1978].
ROUANET, Sergio Paulo. Filósofos e escritores alemães. In: PERESTRELLO, Marialzira.
A formação cultural de Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1996, pp.215-227.
ROUDINESCO, Elisabeth. História da Psicanálise na França. A Batalha dos Cem anos.
Volume 2: 1925-1985. Trad. Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1988 [primeira
edição em 1986].
296
SAGAWA, Roberto Yutaka. A psicanálise pioneira e os pioneiros da psicanálise em São
Paulo. In: FIGUEIRA, Sérvulo A. Cultura da Psicanálise. São Paulo: Brasiliense, 1985,
pp.15-34.
______. Redescobrir as psicanálises. São Paulo: Lemos, 1992.
______. A construção local da psicanálise. Marília: Núcleo de Psicanálise de Marília e
Região: Editora Interior, [19–].
SAID, Edward. Traveling theory. In: The World, the Text and the Critic. Cambridge,
Massachusetts: Harvard University Press, 1983, pp.226-247.
______. Culture & Imperialism. London: Vintage, 2003 [primeira edição em 1993].
______. Traveling Theory Reconsidered. In: Reflections on exile and other essays.
Cambridge: Harvard University Press, 2000, pp.436-452.
______. Freud e os não-europeus. Trad. Arlene Clemesha. São Paulo: Boitempo, 2004
[primeira edição em 2003].
SARDUY, Severo. Obra completa, 2 vol. São Paulo: Scipione, 1999.
______ . Gestes. Trad. Henri Sylvestre. Paris: Seuil, 1963.
______ . O Barroco e o Neobarroco. In: MORENO, César Fernández (org.). A América
Latina em sua literatura. São Paulo: Perspectiva, 1979 [primeira edição em 1972], pp.161-
178.
______. Escrito sobre um corpo. Trad. Lígia Chiappini Moraes Leite; Lúcia Teixeira
Wisnik. São Paulo: Perspectiva, 1979.
______. Vers la concrétude. Trad. Pierre de Place. Cahiers Confrontation. America Latina.
Paris. n.5, pp.53-61, 1981.
297
SARTRE, Jean-Paul. Préface. In : FANON, Frantz. Les damnés de la terre. Paris: La
Découverte, 2002 [primeira edição em 1961], pp.17-36.
_____ . Prefácio. In: FANON, Frantz. Os condenados da terra. Trad. Enilce Albergaria
Rocha; Lucy Magalhães. Juiz de Fora: EDUFJF, 2005 [primeira edição em 1961], pp. 23-
48.
SILVA, Gastão Pereira da. Vinte e cinco anos de Psicanálise. Rio de Janeiro: Livraria
Império, 1959.
SCHOPENHAUER, Arthur. O mundo como vontade e como representação. Trad. Jair
Barboza. São Paulo: Editora da Unesp, 2005 [primeira edição em 1816].
SCHWARZ, Roberto . Ideias fora do lugar. In: Ao vencedor as batatas. São Paulo: Editora
34 / Duas Cidades, 2000 [primeira edição em 1977].
SHAKESPEARE, William. Hamlet. Ed. Bárbara A. Mowat; Paul Werstine. Nova Iorque:
Washington Square Press, 1992.
______. Hamlet. Trad. Millôr Fernandes. Porto Alegre: L&PM, 2004.
SILVA, Gastão Pereira da. Vinte e cinco anos de Psicanálise. Rio de Janeiro: Livraria
Império, 1959.
SÓFOCLES. Édipo rei.Trad. Paulo Neves. Porto Alegre: L&PM, 2005.
______. A trilogia tebana: Édipo Rei. Édipo em Colono. Antígona. Trad. Mário da Gama
Kury. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2006, 12ª edição.
SOLLERS, Philippe. Visión en Nueva York. Trad. Lucía Baranda; Alberto Clavería.
Barcelona, Kairós, 1982 [primeira edição em 1981].
SOUZA, Paulo César Souza. Nosso Freud. In: Sigmund Freud & O gabinete do Dr. Lacan.
São Paulo: Brasiliense, 1989 [primeira edição em 1985], pp.155-159.
298
SOUZA, Paulo César Souza. A ‘nova’ edição de Freud. In: Sigmund Freud & O gabinete
do Dr. Lacan. São Paulo: Brasiliense, 1989 [primeira edição em 1988], pp.188-190.
______ . As palavras de Freud: O vocabulário freudiano e suas versões. o Paulo: Editora
Ática, 1999.
SZONDI, Peter. Ensaio sobre o trágico. Trad. Pedro Süssekind. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar, 2004 [primeira edição em 1961].
VIANNA, Renato. Sexo / Deus. Rio de Janeiro: A Noite, 1954 [primeira edição em 1934].
ŽIŽEK, Slavoj. El espinoso sujeto. El centro ausente de la ontología política..Trad. Jorge
Pitiagorsky. Buenos Aires: Paidós, 2007 [primeira edição em 1999].
______. Divine Violence and Liberated Territories: SOFT TARGETS talks with Slavoj
Žižek. Soft Targets Journal. Los Angeles, 14 de março de 2007. Disponível em:
<http://www.softtargetsjournal.com/web/zizek.php>. Consultado em 1/2/2010.
______. How to read Lacan. Nova Iorque: Norton, 2007 (primeira edição em 2006).
______ . Violence. Nova Iorque: Picador, 2008.
Livros Grátis
( http://www.livrosgratis.com.br )
Milhares de Livros para Download:
Baixar livros de Administração
Baixar livros de Agronomia
Baixar livros de Arquitetura
Baixar livros de Artes
Baixar livros de Astronomia
Baixar livros de Biologia Geral
Baixar livros de Ciência da Computação
Baixar livros de Ciência da Informação
Baixar livros de Ciência Política
Baixar livros de Ciências da Saúde
Baixar livros de Comunicação
Baixar livros do Conselho Nacional de Educação - CNE
Baixar livros de Defesa civil
Baixar livros de Direito
Baixar livros de Direitos humanos
Baixar livros de Economia
Baixar livros de Economia Doméstica
Baixar livros de Educação
Baixar livros de Educação - Trânsito
Baixar livros de Educação Física
Baixar livros de Engenharia Aeroespacial
Baixar livros de Farmácia
Baixar livros de Filosofia
Baixar livros de Física
Baixar livros de Geociências
Baixar livros de Geografia
Baixar livros de História
Baixar livros de Línguas
Baixar livros de Literatura
Baixar livros de Literatura de Cordel
Baixar livros de Literatura Infantil
Baixar livros de Matemática
Baixar livros de Medicina
Baixar livros de Medicina Veterinária
Baixar livros de Meio Ambiente
Baixar livros de Meteorologia
Baixar Monografias e TCC
Baixar livros Multidisciplinar
Baixar livros de Música
Baixar livros de Psicologia
Baixar livros de Química
Baixar livros de Saúde Coletiva
Baixar livros de Serviço Social
Baixar livros de Sociologia
Baixar livros de Teologia
Baixar livros de Trabalho
Baixar livros de Turismo